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Olá, queridas leitoras!
Olá, queridas leitoras!
Antes de vocês iniciarem a leitura, gostaria de fazer alguns avisos a respeito
desta história.
Ao longo da trama, poderão haver algumas situações, pensamentos e atitudes
envolvendo os personagens que gerem gatilhos. Assuntos como: aborto,
violência, suicídio e tortura estaram constantemente em pauta por aqui. Algumas
cenas são gráficas, ou seja, descritas, podendo gerar desconforto para as pessoas
sensíveis ao assunto ou que passaram por experiências semelhantes.
Minha intenção, de forma alguma, é gerar desconforto nas minhas leitoras.
Através desse livro, quero emocionar e contar a história desses personagens.
Portanto, se você não se sente bem lendo a respeito destes assuntos, recomendo
que não prossiga com a leitura.
A protagonista sofre de estresse pós-traumático. Há várias passagens onde ela
se recorda dos acontecimentos que a traumatizaram como se estivessem
acontecendo no presente. Isso foi propositalmente colocado pois um dos
principais sintomas dessa doença é a recordação pontual do ocorrido, fazendo
com que o paciente sinta exatamente as mesmas coisas que sentiu quando
aconteceu, podendo também se recordar de cheiros, sons e texturas com
precisão, tornando a memória ainda mais perturbadora.
Portanto, levem isso em consideração quando chegarem nessas cenas e se
depararem com uma narrativa escrita no presente.
Além disso, é importante ressaltar que eu dei vida a Cassandra e Miguel,
construi suas personalidades, tracei o destino deles, mas isso não quer dizer que
concordo com todas as atitudes e falas que vocês encontrarão nas páginas
adiante. O processo de escrita para mim envolve explorar novos horizontes e dar
voz a outros pontos de vista. Portanto, saibam separar a arte e o artista.
E, por último, mas NUNCA menos importante… Quero pedir um favorzinho
em nome da Cassandra.
Se coloquem no lugar dela.
Pensem no que seriam capazes de fazer caso sentissem as coisas que ela
sentiu ao longo da trama.
Boa leitura.
Com amor e gratidão, Alessandra<3
UMA ESCOLHA, DUAS PERDAS
4 de janeiro
Treze anos
Hoje faz treze anos que meu mundo ruiu.
Treze anos desde o dia em que perdi o amor da minha vida.
Ainda me lembro de chegar no hospital, eufórico com a notícia de que minha
mulher tinha dado à luz a nossa filha.
Até descobrir que uma delas não resistiu.
A euforia logo se transformou em desespero.
Um momento que deveria ser mágico, se transformou em um pesadelo.
O dia, que deveria ficar marcado por ser a data em que a minha filha ganhou
vida, ficará marcado para sempre no meu coração também por outro motivo. Um
motivo extremamente infeliz.
Foi em um quatro de janeiro que desabei no corredor da maternidade onde
Safira nasceu. Que meu mundo ruiu como as paredes de um vulcão em erupção.
Que meu coração foi estilhaçado como se fosse feito de vidro. Que eu precisei,
de forma relutante, aceitar que Clarice não estaria aqui para viver esse sonho
comigo. Por algum motivo, Deus não reservou isso para ela.
Foi difícil. Foi tão difícil aceitar que o meu Deus, o mesmo que me acode e
me protege, me tirou o chão, me tirou o direito de degustar do amor verdadeiro.
Sendo um castigo ou não, ainda hoje, mesmo depois de treze anos, é difícil para
mim recordar que de fato foi isso que aconteceu.
Aceitar, eu aceito. Só não consigo fazer parar de doer. Porque dói muito, dói
demais, dói mais do que um coração calejado como o meu é capaz de aguentar.
Eu perdi a pessoa que mais queria no mundo. E mesmo assim, continuo de pé.
Como?
Por amor.
Não o mesmo amor que me fez sangrar. O amor mais forte, puro e verdadeiro
que existe.
O amor de pai.
É ele quem me salva todos os dias. É nele que eu me apego quando a tristeza
bate, quando me recordo daquele quatro de janeiro. E principalmente, quando
me recordo dela.
Eu falo com ela todos os dias. Mas tento não me lembrar do seu sorriso. De
como suas covinhas ficavam à mostra quando sorria, o que era o tempo inteiro.
Tento não me lembrar de como os seus olhos, de um verde cristalino, me
hipnotizaram por nunca ter visto nada tão lindo. De como ela sempre pensava
positivo, não importava o quão horrível fosse o que tivesse acontecido. De como
ela me amava, com todas as suas forças.
Mas às vezes, eu simplesmente não consigo conter as lembranças. Elas vêm
como uma avalanche para cima de mim. Sem piedade do meu pobre coração. Ele
sente tanta falta de ser amado. No fundo, ele sabe que ninguém o faria como ela.
É por isso que nunca mais bateu forte por nenhuma outra pessoa. E nem o fará.
Um amor como o nosso não acontece duas vezes na mesma vida. Isso
também dói. Porque, da mesma forma que perdê-la partiu meu coração em mil
caquinhos, o amor seria a única coisa capaz de reconstruí-lo.
Mas como eu disse, um amor como o nosso não acontece duas vezes na
mesma vida. Eu perdi a chance de vivê-lo naquele quatro de janeiro. E tento me
conformar com isso desde então.
É mais fácil no dia a dia, quando a rotina consome minhas energias e o único
momento em que a memória dela vem em minha mente é a noite, antes de
dormir. É o momento que conversamos, ou melhor, eu falo e não obtenho
resposta. Conto a ela tudo que está me afligindo, como nossa filha fica mais
linda a cada dia, como meus irmãos estão, como eu morro de ciúmes do
namorado da minha mãe...
Só não conto a ela o quanto sinto sua falta, porque isso ela com certeza já está
cansada de saber. De me ouvir chorar, mesmo baixinho, algumas vezes antes de
pegar no sono. De ver o quanto sinto inveja do meu irmão por ter finalmente
encontrado o amor.
Ela sabe o quanto sinto a sua falta.
Todos que a conheceram sentem.
Clarice era aquele tipo de pessoa impossível de não gostar. Sua presença era
sinônimo de alegria. Ela era o sinônimo de alegria.
Com sua bondade, doçura e simpatia, encantava a todos sem ter dificuldade.
Até as pessoas mais ranzinzas, como, por exemplo, meu irmão, Rafael. Seu mau
humor não tinha vez quando Clarice estava por perto.
Nós crescemos juntos. Éramos vizinhos, morávamos lado a lado desde
crianças em uma rua simples de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Mas foi apenas na adolescência que a paixão surgiu. Não sei dizer exatamente
em que momento comecei a enxergá-la com outros olhos, apenas que foi natural
ao ponto de não saber explicar porque a amava, mas eu sentia. E eu sempre
soube que sentir é a melhor forma de saber.
Aos dezoito anos eu sentia que havia encontrado o meu grande amor.
Ouvi muitas pessoas dizerem que eu ainda era muito jovem, que eu ainda iria
me apaixonar outras vezes, que dali a dez anos nós não estaríamos mais juntos...
Entre outras coisas do tipo. Mas nada tirava de mim a sensação de que estavam
errados, de que eu e Clarice tínhamos o tipo de amor que duraria a vida inteira. É
claro, a possibilidade de estarem certos existia, eu tinha plena consciência disso.
Mas eu estava confiante. Convicção não me faltava. Força de vontade? Menos
ainda.
Quando Clarice engravidou, ouvi mais comentários. Sobre sermos muito
novos para vivermos isso, sobre termos estragado nossas vidas colocando outra
pessoa no mundo, sobre filhos desgastarem a relação... Muitas merdas, todas
desafiando o nosso amor, a nossa força. Mas a gente não se abalou. Minha
família nos apoiaram, isso era tudo o que precisávamos.
À medida que a barriga de Clarice crescia, meu amor por ela crescia também.
Meus amigos, jovens adultos na época, diziam que eu era maluco por ansiar a
paternidade ainda tão jovem. E de fato, eu era. Maluco por aquela mulher.
Maluco por amar a ideia de formar uma família. Maluco por me imaginar sendo
pai de cinco filhos, morando em uma casa com jardim e comemorando bodas de
prata com Clarice.
Eu era um maluco feliz.
Nós dois éramos. Ela amava essa ideia tanto quanto eu.
— EU CONSEGUI, PAI! EU CONSEGUI!
O grito de Safira me faz dar um sobressalto.
Saio da cozinha avoado, arrancando o avental no caminho, encontrando
minha filha chutando o boneco de pancada ao chegar na sala. Deixo escapar um
sorriso quando entendo o motivo da sua euforia.
Há semanas ela tenta dar um pontapé nele.
Desde que comecei a ensiná-la alguns movimentos de defesa básica, que
Safira tirou de letra, a trombadinha vem insistindo que tem talento para aprender
a lutar de verdade.
— Parabéns, filha. — bagunço o cabelo dela. Safira não se incomoda quando
faço isso.
Diferente de sua mãe, ela não tem nenhum pingo de delicadeza nos
movimentos. Mesmo com pouca idade, Safira demonstra que não herdou o jeito
singelo de Clarice e claramente também não tem o mesmo equilíbrio que eu
quanto a brutalidade. Ela tem movimentos bruscos, uma personalidade forte e
não se incomoda nem um pouco em ser gentil. Já eu, sempre soube conciliar
muito bem o meu lado sanguinário com a parte de mim que gosta de dar e
receber carinho.
Noto o olhar insinuativo de um dos meus irmãos, o que agora está menos
estúpido devido a sua professora de etiqueta; Antônia.
Ele se aproxima de mim, ainda com a xícara de café em mãos e os olhos azuis
me examinando ao passo que diminui a distância entre nós.
— Sabe quem a Sasa me lembra?
Olho para minha filha, que tenta reproduzir o pontapé dado anteriormente
enquanto Samuel segura o boneco de pancada para facilitar. Ela sorri
majestosamente durante as tentativas. Esse sorriso sempre aquece meu coração,
é ele quem me diz todos os dias que fiz a coisa certa quando decidi me reerguer e
aceitar a vontade de Deus.
Continuo observando a cena sem chegar a uma resposta exata para Rafael.
— A Clarice é que não é. — Respondo.
Apesar da semelhança física extrema, Safira não possui nada mais que me
remete a sua mãe, infelizmente. Se as pessoas fossem mais como ela, o mundo
seria um lugar melhor.
— Bom, não sei se vai concordar, mas para mim, a Sasa está cada dia mais
parecida com a Cassie.
A simples menção desse nome faz as paredes do meu coração se estreitarem,
como se ela, em pessoa, estivesse o apertando, demonstrando todo o ódio que
deve sentir de mim seja lá onde esteja.
Penso no que o anjo disse, chegando à conclusão de que ele está certo, Safira
tem mesmo muito da sua tia. A predisposição inata para lutar, o jeito insensível
de dizer o que pensa sem se preocupar em como isso vai afetar o outro, até
mesmo a forma como ela anda é semelhante, de um jeito firme, agressivo. Não
sei porque não havia feito essa associação antes.
Na verdade, você sabe exatamente o porquê, Miguel. Não se faça de sonso.
— Meu subconsciente diz, trazendo à tona uma recordação que também me
entristece.
— Tem razão, elas se parecem mesmo. — Acabo confessando.
— É uma pena as duas nunca terem se conhecido, seria muito bom para
Safira ter a tia por perto, uma figura feminina além da mamãe…
Finjo indiferença frente ao que meu irmão diz, como se eu nunca tivesse
chegado a essa conclusão por conta própria. Como se eu nunca tivesse me
lamentado por ser o motivo pelo qual a minha filha nunca vai conhecer sua tia.
—É — suspiro — Teria sido bom mesmo.
— Pelo menos agora ela tem a Antônia. As duas se dão muito bem, são mais
irmãs do que tia e sobrinha.
No mesmo instante que o anjo elogia a relação das duas, minha cunhada
aparece na sala de casa com algumas sacolas em mãos e se junta a nós para o
café da manhã tradicional de aniversário que faço para a minha filha todos os
anos.
Não sei exatamente quando introduzi essa tradição, só sei que ela nos faz
bem, tanto para Safira quanto para nossa família em si. É como se a gente
dissesse, sem dizer uma palavra sequer, que ela é o nosso raio de luz, que ela é a
razão da nossa felicidade todas as manhãs.
— Sim, as duas têm uma relação muito bonita. — Digo.
Sigo o olhar do meu irmão, que observa a namorada mimar Safira com itens
de beleza que vão ficar espalhados pelo seu quarto e em breve não terão mais
utilidade alguma. Mas minha cunhada não se importa, continua firme na missão
de instruir a sobrinha a ter mais vaidade.
Meu irmão é doido por essa magrela, se apaixonou perdidamente e enfrentou
muita coisa até poder apreciar a sensação de encontrar a sua cara metade.
Ele está até menos grosso e arrogante…
O que um chá de boceta bem dado não faz, né?!
Já o meu caçula…
Esse é um caso perdido, boceta nenhuma é capaz de domá-lo, como
aconteceu com nosso irmão do meio. Rafael tinha uma pose de egomaníaco e
metódico, mas soube se render diante de um amor avassalador.
Duvido muito que o mesmo ocorra com o nosso caçula.
Samuel é desprovido da necessidade de ser amado. Não porque teve uma
desilusão amorosa ou coisa do tipo, mas porque é um fresco mesmo!
Seco e insensível. Ele não passaria frio se fosse a Antártida, já que nada
aquece o seu coração. Nenhuma mulher, nenhuma boceta. Nada.
Na verdade, há uma coisa que faz as batidas do coração dele acelerarem e o
corpo pegar fogo: adrenalina.
Ah, essa danada é o vício desse loirinho metido a badboy.
Com sua moto a cento e sessenta por hora, ele é levado ao ápice.
Mas quando não está fazendo loucuras para satisfazer o seu vício, Samuel
está com a família, a quem ocupa um espaço no coração sombrio sem motivo
algum e passa frio.
Somos os únicos a quem ele se importa de fingir compaixão. Mas sabemos
que suas emoções são limitadas. Ele nos ama, não tenho dúvidas disso, embora
seja do jeito distorcido dele sobre afeto.
Isso fica bem nítido para mim enquanto o observo interagir com a nossa
família. Encostado no portal da cozinha, vejo Samu brincar com a minha filha,
revirar os olhos para Antônia, fingir estar contente com a presença do namorado
da nossa mãe… Eu enxergo todas as nuances por trás da personalidade fria que
meu irmão caçula possui. Diferente de todos ao redor, que ignoram o quanto ele
tem a mesma forma de pensar do nosso pai.
Me desvencilho desses pensamentos quando ouço a chaleira chiar, indicando
que a água ferveu. Saio da sala de fininho para passar o café que vamos tomar.
Enquanto deixo o líquido quente se fundir ao pó escuro e o cheiro forte do
café me inebriar, minha mente vaga para uma memória que há tempos não me
permito recordar, que há tempos mantenho adormecida junto com a parte de
mim que lamenta pela outra perda que tive um pouco antes do dia que fui
devastado.
Cassandra.
Mesmo depois de tanto tempo, o rosto dela ainda é nítido quando fecho os
olhos e permito que seus traços invadam meu campo de visão. Sendo guiado
pela memória de treze anos atrás, que reflete o rosto da menina jovem e geniosa
que ela era.
Não deixo de imaginar onde Cassandra estaria agora. Com quem está. O que
está fazendo. Será que ainda me odeia? Será que ainda me ama? Será que sequer
se lembra da minha existência?
Uma parte de mim torce para que ela esteja bem, feliz, sendo amada do jeito
que merecia. E a outra, bem… A outra lamenta pela perda dela, mesmo sabendo
o quanto ver a minha felicidade teria a machucado.
Mas acontece que algum tempo depois que ela se foi, meu mundo ruiu. Eu
tive que escolher uma das duas e no fim, fiquei sem elas.
Eu as queria de formas diferentes, isso sempre foi muito claro para mim. Mas
não para uma delas. E por isso, ela me deixou por vontade própria. Foi embora
determinada a fingir que nunca havíamos nos conhecido. Ela estava tão cega
pelo ódio que não me deu a chance de lhe contar que em breve eu seria pai. Que
em breve ela seria tia.
Sinto as lágrimas se acumularem nos meus olhos. Inspiro fundo. Solto o ar
lentamente. Desvio minha atenção para o café que está quase completamente
coado. No entanto, da mesma forma voraz e avassaladora como Cassandra
declarou seu ódio por mim ao me olhar pela última vez, a saudade reprimida
ganha força e rompe as barreiras que impus para manter a culpa que sinto
afastada na maior parte do tempo.
As lágrimas caem, uma após a outra, pelo rosto que não exibe mais a mesma
felicidade de antes. De quando o motivo delas ainda estava aqui. De quando eu
ainda era um garoto, alheio a tudo que aconteceria em minha vida antes mesmo
de completar vinte anos.
Só espero que aonde quer que Cassandra esteja, que ela esteja mais realizada,
amada e feliz. Muito mais feliz do que eu poderei ser nesta vida.
TEMPO PERDIDO
8 de janeiro
Uma das coisas que mais me deixa entusiasmado com o tempo livre que as
férias me proporcionam é poder me aventurar na cozinha. Testar receitas novas.
Preparar as refeições sem pressa. Gosto muito do tempo que passo por aqui, não
é atoa que reformei ela inteira no ano passado. Troquei os móveis planejados que
a minha mãe mandou fazer quando me deu a casa, comprei utensílios novos,
quebrei a parede que não me permitia interagir com a minha família enquanto
eu cozinhava.
Agora a minha cozinha conta com uma combinação de design rústico e
tecnológico, uma bancada de mármore lindíssima e um forno a lenha, o meu
xodó.
Não me lembro quando surgiu o amor pela culinária. Acredito que tenha
surgido da necessidade de alimentar uma garotinha enjoada para comer, essa que
me aguarda colocar as panquecas verdes no forno, com os olhos brilhando diante
do seu prato preferido.
— Essas panquecas ficaram dos Deuses! — Safira elogia, indo até a geladeira
em busca de algo.
De todos os que adoram saborear as coisas que cozinho, minha filha com
certeza é a minha melhor degustadora.
— E quando foi que não ficaram?
Ela me lança um sorriso cheio de deboche.
— As primeiras não eram tão boas assim… — Sua sinceridade dá as caras ao
me lembrar das primeiras vezes que me aventurei na cozinha.
— Poxa! Eu estava aprendendo, não era para ficar perfeito, era só para ser
comível.
— Mas elas não eram, pai. Comer pedra era mais agradável.
Finjo estar decepcionado com o que ela disse, colocando a mão no peito e
unindo as sobrancelhas.
— Sem drama, pai, sem drama. O que importa é que agora elas são ótimas —
ao me ver franzir ainda mais as sobrancelhas, esperando um adjetivo melhor
para descrever as panquecas que coloquei no forno, Safira acrescenta: — Porque
perfeitas elas só vão ficar quando eu buscar o queijo ralado na casa da minha
avó. Já volto, paizinho.
Com o sorriso aberto até chegar quase perto dos olhos, minha filha some do
meu campo de visão antes mesmo de me ver sorrir também.
Sozinho no meu lugar preferido da casa, ligo a JBL, que começa a tocar
Preliminares, do Mumuzinho. Transfiro um pouco de cerveja da lata para o meu
copo de metal do Fluminense, voltando a ficar de frente para o forno,
observando a minha obra de arte ficar pronta.
A conversa que tive com Safira há alguns dias ainda assombra a minha mente.
Tive uma noite de sono horrível, me sentindo triste por não poder fazer nada
para consertar as coisas, ajudar a melhorar a tristeza que ela deve sentir. Na
verdade, deve sim haver coisas que eu possa fazer, como, por exemplo, me casar
e lhe dar uma figura feminina que não seja a minha mãe.
Mas isso não seria certo.
Nem comigo, nem com nenhuma mulher que eu escolhesse.
A cerveja desce tranquilamente pela minha garganta até eu ouvir um estrondo
semelhante a uma porta sendo brutalmente arrombada, me fazendo dar um
sobressalto. Largo o copo por qualquer canto da cozinha, empurrando o líquido
que ainda não desceu garganta adentro.
— Por que fez isso, Safira? A porta estava destrancada, caramba! —
resmungo, achando que o furacão que passou pela porta se trata da minha filha.
Eu nunca estive tão errado na minha vida.
Não que eu seja o tipo de cara que erra muito ou algo do tipo. Eu só não
estava preparado para a hipótese de encontrar o que eu encontrei ao chegar na
sala.
Ou melhor, quem eu encontrei.
Pisco algumas vezes, ainda atônito com a imagem que os meus olhos captam.
Por um momento, me pergunto se não misturei nada com a cerveja hoje, eu
costumo fazer isso de vez em quando. Entretanto, a razão do meu espanto abre
os lindos lábios carnudos e me comprova que o que eu vejo é a mais pura
realidade quando diz:
— Espero que tenha sentido muito a minha falta, Mica, porque eu cheguei
para recuperar os treze anos que perdi.
De uma forma irracional e completamente ingênua, me vejo ficando feliz em
encontrá-la novamente em um primeiro momento.
Apenas no primeiro momento mesmo.
Um ínfimo minuto em que eu me permito esquecer o quanto o sorriso largo
esboçado no rosto atraente dela quer dizer que estou terrivelmente fodido.
Que suas palavras não passam do puro e nítido deboche mascarando a raiva
que ainda deve sentir de mim.
Que a imagem de Cassandra vestida com uma calça de couro, salto alto, body
preto e seus lindos cabelos loiros encaracolados se desmanchando por seus
ombros seja apenas uma ilusão.
No segundo momento, quando seus olhos verdes me encaram com desdém, é
quando me dou conta de que a imagem dela parada ao lado da porta que
escancarou com um único chute há poucos segundos é doentia e linda de um
jeito real demais para ser uma mera ilusão.
É o começo do meu verdadeiro martírio.
Alheio à minha perturbação, Mumuzinho continua cantando através da caixa
de som que deixei na cozinha.
É nas preliminares
Que liga o transformador
E a gente dá choque de alta voltagem
É, Mumuzinho. Não foi nas preliminares, mas o transformador da minha vida
acabou de ser ligado e o choque de alta voltagem é inevitável.
ME PERDOA QUE EU TE PERDOO
A casa de Maurício e Helena ainda está do mesmo jeito de quando vim aqui
da última vez, no ano passado. Localizada no bairro Jacarepaguá, Zona Oeste do
Rio de Janeiro, ela fica ao lado da residência simples que pertence a minha
família desde o meu nascimento.
Apesar de mantê-la, não entro nela há anos. Soube que meu irmão esteve
aqui no ano passado e trouxe a namorada. Diferente de mim, que estive aqui
apenas na época em que resolvi reformá-la.
Passando pela casa azul recém pintada, abro o portão de ferro gasto e adentro
a residência ao lado, sendo recebido por uma Helena sorridente.
— A gente se vendo duas vezes no mesmo mês? — ela brinca. — Vai chover!
Não contenho o sorriso quando abraço a minha sogra. Ela tem o mesmo riso
fácil que a filha tinha. O mesmo jeito divertido também.
— Não exagera. Nos vemos pouco porque a minha vida é corrida. Mas por
mim, a senhora estava sempre lá em casa. Aliás, não sei porque quase nunca vai.
— Maurício não gosta de sair de casa, filho. O jeito de sempre, você sabe.
Finjo que acredito no que ela diz, como se eu não soubesse que ele não gosta
mesmo é de ir na minha casa. No fundo, meu sogro nunca me perdoou por eu ter
engravidado sua filha ainda tão jovem. Helena finge que não, mas eu sei que
Maurício me culpa pela morte dela, já que isso foi uma consequência do que eu
fiz. Talvez ele esteja certo. Talvez, esteja terrivelmente errado. Não sei. Não
gosto de pensar muito sobre isso. A simples possibilidade dele estar certo
acarreta uma carga de tristeza ainda maior sobre os meus ombros.
Ao adentrar a casa simples, sou recebido pelo cheiro de café que impregna os
meus poros no mesmo instante. A minha bebida preferida tem esse poder sobre
mim desde que me entendo por gente. Sou louco em um cafezinho bem passado.
Helena sabe muito bem disso.
— Fiz um café para você, querido. Espero que tenha tempo de se sentar um
pouco comigo. — Ela diz, já se dirigindo à cozinha.
— Para você eu sempre tenho, sogrinha.
Estou sorrindo quando me sento à mesa. Helena faz o mesmo, trazendo
consigo uma xícara para mim e outra para ela, transbordando com o líquido
quase preto.
Aprecio a fragrância forte que escapa da porcelana, através do vapor entrando
nas minhas narinas. Quente e concentrado, exatamente do jeito que eu gosto.
— Me diga, Cassandra chegou bem?
Espero o gole de café descer pela minha garganta lentamente e respondo:
— Sim, na medida do possível. — Acabo rindo ao me lembrar da entrada
triunfal dela.
Helena também ri, entendendo o que eu quis dizer. Ela conhece bem a
enteada que tem.
— Tenha paciência com ela, Miguel. Sei exatamente o quanto Cassandra
pode tornar a vida de alguém um inferno. Ah se sei! — minha ex sogra ri
novamente com a lembrança do passado. Da época em que sua enteada perdeu a
mãe e precisou se mudar para cá. — Mas ela não sabe lidar com a confusão que
se tornou a cabeça dela desde nova. No fundo, Cassie ainda é uma menina que
precisa de carinho e compreensão.
— Ela tem trinta e dois anos, Helena, está longe de ser uma menina indefesa.
— Todas nós mulheres, independente da idade que tenhamos, sempre iremos
ter uma menina indefesa dentro de nós. A diferença é que algumas acham que
isso seja uma fraqueza, outras entendem que podemos ter inseguranças, só não
podemos deixar que elas nos paralisem. — Reflexiva, Helena coloca a sua mão
sobre a minha, me olhando nos olhos com determinação exalando pelas orbes
cor de mel. — Cassandra ainda vai aprender que pode sim demonstrar fraqueza
sem deixar de ser uma mulher forte. Mas isso só vai acontecer se houver alguém
capaz de acolhê-la, de enxergar suas dores e não querer minimizá-las.
— Ela jamais vai deixar que eu seja essa pessoa, Helena. Sua enteada ainda
tem o mesmo complexo de mulher maravilha que tinha antes. Jamais vai
permitir que eu veja por trás da rocha que se tornou o seu coração.
Minhas palavras não abalam a mulher sentada à minha frente. Muito pelo
contrário, ela balança a cabeça e me observa como se eu tivesse dito algo bobo,
uma besteira sem tamanho.
— Até as rochas mais duras têm suas rachaduras, meu querido. Espere aquela
peste em forma de mulher revelar as suas e se infiltre nelas. Uma vez dentro
dessa rocha, talvez você encontre uma forma de curar a sua dor também.
— Não vejo como isso daria certo. Estamos em extremos da vida muito
diferentes um do outro…
Se levantando com as duas xícaras de café vazias, Helena me lança um
sorriso entristecido que eu não via em seu rosto há muito tempo.
— Ela agora tem muito mais em comum com você do que imagina, Miguel.
Apenas espere as rachaduras.
Dito isso, minha sogra deixa a sala dizendo que posso encontrar as coisas que
vim buscar no primeiro quarto à esquerda. Decido não ficar muito tempo
pensando no que ela me disse e me levanto da mesa rapidamente.
Pessoas mais velhas geralmente são bem sábias, em especial Helena, uma
antiga professora de história, mas creio que dessa vez ela esteja enganada.
Conheço Cassandra bem demais para acreditar na possibilidade de ela se deixar
ser cuidada por alguém. Ainda mais por mim, quem, sem querer, causou um
estrago no seu coração quando ela ainda era uma garota.
O quarto ao qual fui guiado para entrar é tão simples quanto o resto da casa.
Móveis de madeira mofada, cortinas velhas, prateleiras cheias de bonecas
empoeiradas. Uma delas em específico me chama a atenção.
Minha memória é uma das poucas coisas que não sinto se esvair a medida que
vou ficando mais velho. Ela é perfeita. Principalmente quando se trata de
acontecimentos que sinto tanta falta.
É o caso da memória que me vem à mente ao pegar a boneca loira dos olhos
azuis nas mãos. Passo os dedos pelo rosto dela, tirando a poeira que não me
impede de recordar da época em que ela era nova.
Eu estava há horas jogando futebol na rua. Em algum momento, saí do jogo
para dar vez a outro garoto e foi quando eu percebi a presença de uma menina
sentada no muro da casa de Dona Helena.
Os cabelos eram tão loiros e brilhantes que por um instante, fiquei confuso se
o que eu via não era o reflexo do sol. Entretanto, quando ela moveu a face na
minha direção, eu percebi que parte daquela luz vinha dela.
Os cachos formavam uma aura em volta do seu rosto bonito e triste. Os olhos
eram claros, emitindo uma intensidade que me impactou de longe.
Linda demais para parecer tão triste.
Me lembro de ter pensado nisso ao decidir me aproximar, ficando escorado
no muro ao lado de suas pernas que jaziam ali. Ela notou a minha presença,
mas não disse nada, apenas penteava o cabelo da boneca que mantinha em seu
colo com as mãos e acompanhava o movimento da bola com os olhos. Eu fiz o
mesmo por um tempo, até ela finalmente decidir que queria saber algo sobre
mim.
— Como você se chama?
A menina não falava do jeito que eu havia imaginado. Sua voz não era calma
e serena, demonstrava determinação mesmo na hora de fazer uma pergunta
simples. Totalmente diferente da aparência de garotinha doce e frágil.
Foi ali que eu percebi o quanto a menina raio de sol podia ser muito
surpreendente.
— Miguel. — Respondi, sorridente.
— Como o anjo?
Pus uma mão acima dos olhos para conseguir enxergá-la no meio de toda
aquela luz. De perto, pude ver que suas orbes eram verde esmeralda. Como a
pedra. Me lembro de ter adorado a comparação, já que eu sempre adorei pedras
preciosas.
— Sim, igual ao anjo. E você, como se chama?
— Cassie.
— Só Cassie?
Ela revirou os olhos de um jeito engraçado e ajeitou a boneca em seu colo.
— Cassandra, esse é meu nome de verdade. Mas eu não gosto, parece que
sou velha.
Na minha cabeça, esse era um nome bonito, bem longe de ser um “nome de
velha”, mas guardei isso para mim, não queria começar a nossa amizade a
contrariando. Cassie, apesar de ser um apelido, parecia ideal para ela. Era sutil
e impactante como a loirinha raio de sol.
— E por que está tão triste, Cassie?
Minha pergunta pareceu irritar a menina, que pulou do muro e caiu em pé ao
meu lado, ainda com a boneca no colo.
— Não é da sua conta — continuei olhando a garota, sem acreditar que havia
falado comigo daquela maneira. Mal sabia eu que aquela não seria a última
vez. — Pergunte outra coisa.
Me encostei no muro, sem graça, e olhei para o que ela carregava nos
braços.
— Como você chama essa boneca?
— O nome dela é Jade.
Bastou isso para eu sorrir feito um bobo e esquecer o que aconteceu
anteriormente.
— É o nome de uma pedra preciosa, sabia? — ela balançou a cabeça,
dizendo que não. — Esmeralda, Rubi, Safira, Jade, são todas pedras preciosas.
Sem saber o quão raras e caras essas pedras podiam ser, a menina raio de
sol perguntou:
— Você tem uma delas?
— Não. Mas um dia eu vou ter. — Respondi com convicção.
A lembrança dos olhos dela brilhando para mim com Jade no colo me traz de
volta a realidade.
Hesito em colocar a boneca de volta na prateleira, decidindo, por fim, que a
levarei comigo. Saio da casa de Helena com a pequena Jade em mãos e a bolsa
de Cassie nas costas.
A cena que eu encontro quando chego no que, antes, era a minha residência e,
agora, é um chiqueiro, faz o sangue ferver dentro das minhas veias grossas.
Minha cozinha, a que eu deixei limpa e organizada quando saí, não se parece
em nada com o lugar que era há algumas horas. A bancada está suja com o que
parece ser farinha de trigo. Os rolos de modelar as massas estão jogados em
cima do balcão. A louça transborda de vasilhas e colheres para lavar.
Mas o pior eu ainda não contei.
O forno à lenha, o meu xodó, o meu segundo filho, a minha melhor aquisição,
a razão de eu amar tanto essa cozinha, foi usado. Nesse momento, ele está
ligado, com o que tudo dá a entender ser uma pizza assando dentro dele.
— SAFIRA HELENA SOVAT! — grito alto o suficiente para fazer minha
filha e a diaba descerem juntas aos tropeços na escada.
Minha expressão facial não é nada amigável quando encaro as duas, que me
encaram de volta. Safira nervosa e Cassandra se segurando para não rir.
Foi ela.
É CLARO QUE FOI A DIABA LOIRA!
Ela já estava de olho no meu forno quando eu saí.
— Por que mexeu no meu forno, Jade? — tiro paciência do cu para perguntá-
la, me lembrando que não posso explodir com Cassandra na frente da minha
filha. Afinal, ela é a minha “ barriga de aluguel''.
— Ela gosta de cozinhar também, pai. Disse que sabe fazer uma pizza
deliciosa, então pedi que fizesse uma para mim.
Dou um sorriso sem dentes para minha filha, deixando de lado a minha fúria.
Safira entende o recado no mesmo instante.
— Vamos limpar tudo agora mesmo, nem se preocupe. Eu só estava
mostrando o quarto para a Jade.
— Vou levar as coisas dela lá para cima enquanto vocês deixam a minha
cozinha um brinco. — Ofereço um sorriso irônico para Cassie, que retribui,
murmurando um “obrigada” falso.
Me tranco no meu quarto, tentando ignorar o quanto estou puto por ela ter se
apossado da minha cozinha dessa forma. Odeio que mexam no que é meu,
principalmente na minha cozinha. Aquele é o meu santuário. O lugar onde eu
sou a porra do rei!
Se não conhecesse Cassandra, poderia relevar, acreditar que ela não fez por
mal, que ela não tinha como saber sobre a minha possessão com o fogão à lenha.
No entanto, eu conheço a peça. Essa diaba não dá ponto nenhum sem nó. Com
certeza Safira comentou com ela que gosto de cozinhar e ela viu ali uma
oportunidade de me atormentar. O sorriso cínico que me deu ao notar a minha
fúria comprova isso.
Tentando me acalmar, pego o telefone e escrevo algumas mensagens para um
dos meus irmãos. O que está viajando com a namorada, curtindo a vida em Nova
York enquanto eu me fodo no Brasil.
Miguel: Cassie apareceu, anjo. Ela voltou do inferno para me atazanar!
Miguel: A terrorista está dizendo que vai ficar hospedada na minha casa
por tempo indeterminado.
Miguel: E você ainda diz que a Antônia que é abusada...
Miguel: SOCORRO!
Em poucos minutos, o infeliz me responde do outro lado da América.
Rafael: Parece que não fui o único a jogar entulho na cruz...
Rafael: Se vira! Ninguém mandou quebrar o coração da pobre coitada,
agora aguenta.
Rafael: E vê se me deixa em paz que eu estou de férias.
Rafael: FÉÉRIAAAASSS!!
Frustrado, jogo o celular em algum lugar da cama, me deitando de bruços,
exausto mentalmente.
É claro que esse corno não ia me ajudar. Que merda eu estava pensando
quando mandei mensagem para ele? Até parece que o anjo saberia resolver o
meu problema. Depois que virou pau mandado da Antônia, não presta para mais
nada.
Samuel Roberto?
Outro imprestável!
Não o vejo desde ontem. Deve estar virando a noite, fazendo racha pelas ruas
do Rio.
Aparentemente, resta apenas eu na guerra contra essa diaba.
A COVARDIA É UM CAMINHO SEM VOLTA
Uma das coisas que as pessoas mais reclamam sobre mim é a minha
possessividade. Costumo me apossar facilmente de coisas e pessoas, agindo
como um animal quando alguém ameaça se aproximar do que é meu.
Reconheço que não é saudável da minha parte. Esse traço da minha
personalidade sempre me causa problemas. A incapacidade que eu tenho de abrir
mão do poder sobre algo me torna alguém complicado de se lidar.
Esse lado meu é colocado à prova quando acordo disposto a fazer um
belíssimo café da manhã e descubro que alguém já fez isso por mim. A mesa está
posta com diversas opções. Queijo, presunto, frutas, pães, ovos, suco de
maracujá, achocolatado e um café que cheira forte, me tirando o foco por um
instante.
Cassandra não brinca em serviço quando o assunto é me testar. — É o que
estou pensando quando adentro a cozinha e a encontro em cima da pia,
devorando uma melancia.
Não, ela não brinca mesmo.
Ainda usando o pijama indecente que vestiu ontem, ela se delicia com um
pedaço enorme da fruta, sem se importar com o líquido que escorre por seu
pescoço e se perde no vão entre os seus seios, descendo pele abaixo.
A cena é tão erótica que paraliso na entrada do cômodo e me vejo observando
os detalhes dela, como um tarado.
Os cabelos estão presos em um coque frouxo no alto da cabeça, alguns fios
mais curtos estão soltos e emolduram o rosto pálido quando ela se dá conta da
minha presença, me lançando um olhar que termina de tornar tudo ainda mais
obsceno do que a minha mente já havia tornado.
— Devia ter acordado mais cedo. É falta de educação deixar a visita com
fome, sabia? — Cassandra diz, sarcástica, se desfazendo da postura sexy e
arrebatadora que portava há um minuto atrás.
— Você não é visita, Cassandra. E soube muito bem se virar por aqui quando
quis fazer uma pizza ontem.
Passo por ela, esbarrando no seu cotovelo. O atrito me deixa desnorteado por
um momento com a lembrança do quão atraente a diaba estava daquele jeito,
saboreando a fruta com tanto vigor e usando uma roupa tão minúscula.
Quando ela desce da pia, em um pulo, seus seios pesados se agitam por
debaixo do tecido, me fazendo prestar atenção em um detalhe que fode com o
meu psicológico de vez. A ausência do sutiã torna visível os mamilos
entumecidos de Cassandra, que são como um imã para os meus olhos famintos
por mais uma mísera informação sobre o corpo enlouquecedor à minha frente.
Que porra está acontecendo com você, Miguel? Nunca viu um par de peitos
na vida, seu merda? — Minha consciência grita.
Forço rapidamente meus olhos para longe, mirando a minha atenção na
torneira atrás dela e me lembrando do que vim buscar quando resolvi entrar aqui.
Aceno com a mão para que ela se afaste, quando isso acontece, abro o armário
inferior e pego a minha xícara do Fluminense.
Cassandra anda para o outro lado da cozinha quando me sirvo de um pouco
do café que ela fez, chegando a conclusão de que o gosto é ainda melhor do que
o cheiro. Sem querer, querendo, acabo voltando a observá-la de costas enquanto
corta mais um pedaço da melancia.
A bunda dela me encara como se tivesse vida própria. O short do pijama mal
cobre as duas bolas redondas que escaparam por debaixo do tecido quando ela
pulou e se aderiram a pele dela do jeito que a minha boca implora para fazer, em
um pensamento impulsivo.
Ela é tia da sua filha, você quer mesmo estragar tudo de novo? — Meu lado
consciente ataca novamente. Sabendo da resposta, desvio a minha atenção para a
mesa do café da manhã.
— Posso te pedir uma coisa, Cassie?
Diabólica como é, Cassandra se vira para mim com um pedaço da fruta na
boca e mais do líquido escorrendo por sua blusa adentro. Dessa vez, ela acena
positivamente para que eu continue.
— Enquanto eu estiver aqui, fique longe da cozinha, por gentileza. Eu gosto
de fazer a comida da minha casa e não me sinto bem com você mexendo em
tudo, fazendo as coisas por mim.
O pedaço de melancia dança na boca dela quando Cassie se contém para não
rir da expressão séria que faço.
— Hmmm… Temos um impasse. — A diaba chupa os dedos melados. — Eu
também gosto muito de fazer a comida da minha casa.
— Acontece que não estamos na sua casa, raio de sol.
— Mas acontece que eu estou morando aqui, precioso. Logo, eu devo fazer
dessa a minha casa também. Foi isso que Safira disse para eu fazer.
— Tenho certeza de que ela te avisou sobre a cozinha ser um território
proibido para você criar asas. — Rebato, entredentes.
— É, acho que ela comentou sobre algo assim… — Cassie finge estar
pensativa. — Mas como você mesmo disse, eu sou uma diaba. Não espere que
eu acate esse pedido, preciso fazer jus ao apelido que me deu.
Não escondo minha expressão de surpresa ao saber que Cassandra descobriu
a forma que tenho usado para me referir à ela.
— Estava ouvindo a minha conversa atrás da porta ontem à noite? — indago,
chocado. — Não faça mais isso!
Pelo sorrisinho debochado que recebo, sei que as minhas palavras só vão
instigá-la a fazer o oposto.
— Não me proíba de usar a cozinha. Ou em uma dessas vezes que eu escutar
suas conversas posso acabar descobrindo mais do que a sua falta de coragem
para me chamar de diaba na minha cara.
Puto com a petulância dela, me aproximo do corpo que me excita e me faz
sentir vontade de estrangulá-lo ao mesmo tempo, ficando cara a cara com a
mulher que eu tive como uma irmã durante muito tempo e digo, com a boca
rente ao seu nariz:
— Você é uma diaba, Cassandra. Não respeita ninguém, não aceita nenhuma
ordem e não sabe dar valor ao que tem. Uma perfeita diaba.
— Melhor assim. — Debocha, devolvendo a intensidade no olhar que eu
direcionei a ela.
— Você só está se esquecendo de uma coisa, meu raio de sol…
Ela passa os dedos pela minha barba, meu pau se contrai dentro da cueca com
o gesto.
— Então me faça lembrar, amour.
Entrando no seu joguinho perturbado, pego uma mecha do cabelo dela e
enrolo no meu dedo, devolvendo o formato ondulado ao fio.
— Assim como o diabo, você vai perder essa guerra. Vai cair feio sem as suas
asas. E da mesma forma como o anjo que originou o meu nome, sou eu quem vai
tirá-las de você.
— E quem disse que eu preciso delas? — o ar que evapora dos seus lábios
beija o meu pescoço, gerando um arrepio interno que me irrita. Eu sou tão
doente quanto ela para estar excitado em uma situação como essa. — Eu só
preciso que você tire os olhos da cozinha por um instante para me apossar desse
lugar.
— E eu só preciso que você saia da linha uma vez para romper o trato e te
mandar embora daqui. Se estiver querendo perder a chance de fazer parte da vida
da sua sobrinha, está no caminho certo, Cassie. — Me afasto de forma bruta,
quebrando a tensão sexual que insistiu em pairar sobre nós dois hoje.
Deixo a cozinha antes que o meu lado animal dê as caras, com a sensação de
que o meu santuário vai se tornar uma zona de guerra daqui em diante.
Eu admiro muito a capacidade que Suzana Sovat tem de estar ainda mais
bonita do que há treze anos, por mais que eu não tenha pretensão nenhuma de
deixá-la ciente disso. Se fossemos amigas, eu com certeza perguntaria qual é o
segredo dela para se manter jovem desse jeito. Entretanto, como estamos bem
longe disso, fico calada durante o tempo em que ela e Safira preparam o jantar.
Suzana tem se demonstrado alegre desde quando adentrei a sua casa, depois
de Miguel ter praticamente me jogado na porta da mãe, saindo logo em seguida,
sem dizer aonde ia.
Provavelmente, o sem vergonha trocou uma noite com a família por um
pouco de diversão em um puteiro qualquer. Pelo que ouvi falar, isso não é algo
incomum na vida dele. Um hábito contraditório para um homem que jura amor
eterno a uma mulher por quem se apaixonou na juventude.
No passado, eu nunca cheguei a duvidar da bondade de Miguel. Para mim,
seu coração era puro, livre de qualquer maldade. E olha que eu nunca fui o tipo
de menina ingênua, desde cedo soube o quanto as pessoas podem ser mal caráter.
No entanto, Miguel nunca deixava a desejar quando o assunto era benevolência.
Eu não me lembro de uma única vez em que o vi agir de má fé com alguém.
Mentir? Sim, ele mentiu diversas vezes. Mas jamais fazia mal a alguém de
propósito. O menino loiro e franzino que conheci preferia se ferir a ter que
machucar o outro. Bem diferente do homem forte e de pulso firme que encontrei
quando cheguei aqui.
Eu, mais do que ninguém, sei o quanto alguns anos são capazes de nos
modificar. Talvez até nos tornar irreconhecíveis aos olhos de quem costumava
nos conhecer melhor do que nós mesmos. Acho que esse é o caso do Miguel. A
dor de perder um grande amor, a vida de pai solteiro, a perda do próprio pai tão
cedo, comandar os negócios da família, tudo isso pode ter feito ele se afastar da
sua essência. Eu passei por coisas parecidas e sinto que perdi tudo o que um dia
foi bom na minha pessoa.
Uma parte de mim fica triste ao pensar no quanto Miguel pode ter mudado,
no quanto da sua essência encantadora ele pode ter perdido. E ao mesmo tempo,
sinto que isso não aconteceu. Quando está perto da filha, Miguel parece ainda
possuir a mesma delicadeza que tinha ao tratar qualquer mulher à sua volta. Não
era diferente comigo, apesar de eu sempre dispensar esse seu lado.
Me preocupa também o quanto a falta da mãe pode ter impactado na vida da
minha sobrinha. Aos doze anos, perdi a minha mãe também e só eu sei o quanto
dói viver sem ela. Isso porque eu ainda tive a sua presença por alguns anos. Nem
posso imaginar o quanto Safira deve sofrer com a saudade de alguém que nunca
conheceu. Na verdade, me sinto péssima ao pensar que eu poderia ter ajudado a
manter a memória da minha irmã vívida para sua filha e não o fiz. Se eu tivesse
voltado antes, tudo teria sido tão diferente. Talvez eu pudesse ter suprido um
pouco dessa falta, juntado a minha saudade com a dela e feito algo melhor do
que ter fugido.
Eu vou morrer me culpando por isso, não tem jeito.
Contudo, acabo de decidir que também vou morrer tentando ser a melhor
versão de mim para a minha sobrinha.
Do outro lado da cozinha, com os cabelos presos e concentrada na tarefa de
ajudar a avó, Safira não faz ideia do quanto sua vida mudou o rumo da minha.
— Tem certeza de que não querem ajuda? — pergunto, pela segunda vez.
As duas negam com um aceno de cabeça.
— Já terminamos. — Colocando a massa no forno, Suzana responde.
— Minha roupa ficou toda suja de molho de tomate — minha sobrinha nos
mostra a sua blusa, manchada no centro com um tom vermelho sangue. — Vou
lá em casa trocar. Volto já.
Assim que a neta desaparece porta afora, a mulher de longos cabelos cor de
mel e olhos escuros se aproxima, sentando na banqueta à minha frente, me
lançando um olhar avaliativo.
— Onde esteve por todo esse tempo?
O meu respirar preguiçoso faz dueto com o som baixo que toca na JBL
pequena, localizada em cima do armário à minha esquerda. Eu realmente
esperava que algo mais interessante fosse sair da boca dela.
— Missões de paz. Engatei uma atrás da outra.
— Você continuou no Exército? — ela parece mais surpresa do que curiosa.
Afirmo, balançando a cabeça. — Menos mal. Pensávamos que tinha deixado
tudo para trás e começado uma nova vida do zero, mas pelo visto, você só
deixou as pessoas que te amavam preocupadas mesmo, já tinha tudo em mente.
— Eu precisava me manter. O militarismo me deu a estabilidade que
precisava para viver em paz.
Ou, pelo menos, era isso o que eu pretendia ter.
— E por que voltar agora? Você nunca gostou de viver em paz, Cassandra, o
que aprontou na missão para ser mandada de volta?
Sinto vontade de rir diante do quanto Suzana parece certa de que me conhece,
quando, na realidade, apenas vê o que eu sempre quis que ela visse.
— Dessa vez, eu não fiz nada. Resolvi sair do Exército e ser mais presente na
vida da minha sobrinha. O que acha disso?
— Acho que, se você pensa que sou como a Helena, que passa a mão na sua
cabeça, está muito enganada. Experimente abandonar a minha neta, como fez
com a sua irmã, que eu vou atrás de você, nem que seja no inferno, e te dou a
lição que sua madrasta deveria ter lhe dado há muito tempo.
Diferente de um minuto atrás, não controlo o riso. Faço questão de rir na cara
dela e digo:
— Não se preocupe, Suzaninha. Eu escapei de lá não tem muito tempo. E não
pretendo voltar nem tão cedo.
A viatura militar balança aos montes ao passo que anda na estrada sem asfalto
de Bangui. Ao meu lado, o Tenente Torres arrisca pronunciar algumas palavras
em francês a caminho do acampamento onde estamos hospedados. O seu sotaque
brasileiro ainda influencia muito na hora de exercitar a língua francesa.
Como Tenente de Infantaria, a sua função é completamente tática, fazendo a
segurança de locais e servindo como fonte de apoio para a polícia de Bangui.
Acaba que Francisco não tem tanta disponibilidade de manter diálogos com os
nativos, dificultando um pouco o seu aprendizado.
Por ser Sargento de Intendência, fico restrita à parte administrativa e de
assistência às necessidades do meu pelotão, também tendo contato com os
moradores que aparecem no acampamento em busca de ajuda. Um deles em
específico, chamado Erasto, foi o responsável por me fazer aprender francês
rapidamente. Com apenas nove anos, o menino literalmente puxa a minha orelha
toda vez que erro a pronúncia de alguma palavra.
O pequeno "homem da paz", como diz o significado de seu nome, se tornou
um companheiro e tanto para mim, me dando a certeza de que fiz algo bom
vindo para cá e ajudando outras crianças, que assim como ele, precisam
sobreviver no meio do caos.
A guerra entre o povo cristão e os muçulmanos vem se intensificado na
República Centro-Africana há alguns anos. Eu e mais outros setecentos militares
fomos enviados para representar o Brasil na Minusca: como é chamada a Missão
das Nações Unidas na República Centro-Africana. Estamos aqui há um ano para
promover a paz, também ajudando a população no enfrentamento da pobreza,
oferecendo assistência médica e refúgio.
Conforme seguimos caminho em direção ao acampamento, é possível ver
como essa região foi esquecida pelo restante da população mundial. As
condições de vida por aqui são precárias. Coisas como: saneamento básico,
acesso a saúde e alimentação regular, são artigos de luxo para o povo. A guerra
gerou uma instabilidade política que consequentemente, afetou economicamente
o país, que já não tinha uma condição das melhores.
O resultado disso são crianças desnutridas, famílias desabrigadas e ataques
frequentes.
Uma desordem que me entristece por ver de perto o quanto as consequências
dessa realidade violenta afetam crianças inocentes, que crescem aprendendo a
sobreviver com o mínimo apenas porque nasceram em um país economicamente
desfavorecido e negligenciado.
Meu coração fica apertado quando, ao longo do caminho, me pego pensando
se conseguirei deixar esse lugar no momento do fim da missão. Ao chegar aqui,
eu tinha completa consciência do pandemônio que encontraria, esse foi um dos
motivos da certeza de que eu era perfeita para desempenhar a função que me foi
dada.
O caos é o meu habitat natural.
Sentado no banco do carona da viatura em frente à minha, Felipe Alves me
disse isso durante o nosso tempo de formação na Escola de Sargento das Armas.
Depois que ficamos três dias no campo, tendo de nos virar sozinhos como
obstáculo final para concluirmos o curso, ele viu o quanto posso ser resiliente no
meio da desordem.
E eu? Eu só prestei atenção em como o moreno de olhos castanhos ficava
incrivelmente atraente quando estava sujo de lama.
Felipe também notou que eu sou irresistível mesmo suada e com o rosto
pintado com tinta verde oliva.
Foi assim que o nosso amor nasceu. No meio do caos, da lama e muito suor.
Exatamente do jeito que deveria ser.
Ou, ao menos, deveria ser até eu piscar os olhos e a viatura em que ele está
ser bombardeada com tiros. Não há tempo para reação, as balas surgem de todos
os lados da mata à nossa volta, o sangue espirra para todas as direções a medida
que os homens são atingidos.
— NÃÃÃÃOOOO! — Grito, desolada, quando o Capitão Borges dá meia
volta com a viatura, fugindo dos tiros e deixando os outros militares para serem
alvejados.
É assim que tem que ser. Quando não podemos salvar uns aos outros,
devemos, pelo menos, tentar nos salvar. Eu sei disso. Fui ensinada de que esse é
o certo.
Mas como explicar isso para o meu coração? Ele bate em um ritmo acelerado
ao me dar conta de que perdi o lugar onde eu encontrei a paz.
Felipe Alves é a paz no meio do meu caos.
As lágrimas rolam bochechas abaixo enquanto a poeira levanta e eu perco a
última oportunidade de vê-lo com vida. Me debato dentro do pequeno espaço no
carro durante o instante em que me recordo de que Alves jamais saberá o que eu
descobri essa manhã.
Mas é quando uma carroça com homens fortemente armados nos encurrala no
caminho de volta que o meu coração falha quatro batidas.
Por mim.
Por ele.
Pelo nosso bebê.
Pelo nosso futuro.
É quando cai a ficha de que não pude salvá-lo e também não haverá salvação
para mim e meus homens.
A DIABA ESTÁ DE VOLTA
Assim que deixo Cassie na porta da casa da minha mãe, sigo viagem rumo a
Niterói com uma sensação estranha no peito. O rádio toca Indomável, um feat do
Belo e PK. A melodia é agradável, em dias normais eu iria cantarolar batucando
os dedos no volante, entretanto, não estamos em um dia normal.
No banco do carona, Samuel descansa a cabeça na janela, observando as ruas
por onde passamos, despreocupado, se mantendo em silêncio desde que saímos
de casa. Diferente de mim, ele não é um cara sensitivo. Dirá que é bobagem eu
estar sentindo que algo de errado vai acontecer. Afinal, na sua cabeça, todo o
esquema é muito “simples”.
— O Alfredo já chegou para o turno dele? — pergunto, me referindo a um
dos guardas que fazem a segurança do Porto de Niterói.
— Não, ele chega daqui a uns trinta minutos. Saímos adiantados por causa do
engarrafamento.
Geralmente, eu não participo da primeira operação. Fico aguardando meu
irmão e os outros homens chegarem com a carga no galpão onde estocamos essa
mercadoria. Eles pegam as caixas que atracam no porto, eu apenas confiro se
está tudo em ordem para revendê-las. O motivo da minha presença hoje se dá ao
fato de que perdi o homem da minha confiança que comandava toda a operação
no meu lugar. Com a ida de Edgar para o Japão, me encontro tendo que cumprir
o trabalho dele, pois ainda não encontrei outra pessoa competente o suficiente
para substituí-lo. A função de Samuel não lhe permite comandar uma equipe, é
indispensável tê-lo no controle do volante durante o trajeto de volta para o
galpão, tornando-o indisponível para ocupar o cargo. E não é viável promover
um dos homens da equipe a líder. Eu preciso realmente encontrar um homem e
instruí-lo do zero.
Venho adiando tomar essa decisão há um bom tempo. Reconheço que uma
hora ou outra eu terei de fazê-lo, só esperava ter um filho para torná-lo meu
sucessor. Mas pelo visto, isso não vai rolar nem tão cedo. Vou mesmo precisar
recrutar alguém do meu quartel. De preferência, um dos mais novos para ser
meu braço direito, e um dia, quem sabe, assumir o meu lugar.
Essa é apenas a segunda vez que participo da operação, e apesar de ter
aprendido todos os passos com o meu pai, me sinto um completo amador. Não
nasci para fazer coisas sorrateiras, gosto do alvoroço, dos tiros e da perseguição.
Quando chegamos ao bendito galpão e trocamos o conforto da minha SUV
pelo cheiro de mofo do furgão, eu sinto a sensação ruim se intensificar à medida
que Samu dirige rumo ao nosso destino.
Há muitas coisas que podem dar errado essa noite. Incontáveis possibilidades,
todas nos levando a sermos indiciados pela Polícia Federal e estragando o
esquema ilícito criado pelo meu pai. Esquema do qual conta com uma rede de
apoio extensa para encobrir os rastros da operação, que começa na Bolívia, cruza
o Brasil e é finalizada na Europa. No entanto, essa rede pode não ser o suficiente
se formos pegos em flagrante.
Com o carro há alguns metros de distância do portão de entrada, Samuel
aguarda Alfredo permitir o nosso acesso. O farol está desligado para não chamar
a atenção, deixando tudo à nossa volta em um completo breu. Este pequeno
detalhe não atrapalha em nada os olhos de águia do meu irmão, que enxerga o
guarda acenando ao longe e pisa no acelerador com destreza assim que o portão
é aberto, dando início ao plano.
O mar está calmo na Baía de Guanabara, totalmente diferente do frenesi que
se torna a minha mente no momento em que Samuel estaciona ao lado do
container azul, o motivo de estarmos aqui. Eu e os outros homens saímos do
automóvel no mesmo instante, marchando com determinação exalando por
nossos poros até a enorme caixa metálica. Suor pinga pela minha testa no
instante em que desfaço as trancas e me deparo com o conteúdo dentro do
container.
Agilidade e força são as coisas mais importantes nessa operação. Tudo
precisa acontecer no tempo de dez minutos. A porta do furgão é escancarada, os
bancos foram abaixados para receber a cocaína disfarçada de pó de café, no
entanto, aos quatro minutos da operação, percebemos que, na verdade, a carga
trazida contém sim cocaína, mas ela está compactada em tabletes disfarçados de
embalagens de folha A4.
Genial?
Sim, muito genial.
Entretanto, não é a nossa mercadoria. Não é o nosso modo de exportar.
— Que porra é essa, Alfredo? — esbravejo, fazendo o guarda dar um
sobressalto e arregalar os olhos.
— É a carga de vocês, senhor. O outro container de cocaína foi levado mais
cedo, esse só pode ser o de vocês.
Contenho a vontade de esmurrar o metal, me forçando a pensar em uma
solução.
Seis minutos de operação.
Eu sabia que tinha alguma coisa errada nessa porra! Eu sabia!
E agora, Miguel? O que você vai fazer com toda essa droga que não é sua?
— Pergunto para mim mesmo.
A única coisa que posso fazer com o tempo que tenho.
— Coloquem todas as caixas na van. — Ordeno. Os homens se movimentam
no mesmo instante, sem questionar.
Restam apenas alguns segundos para o tempo pré-determinado: dez minutos,
quando terminamos de pegar a carga e eu bato a porta do furgão, sendo recebido
pelo meu irmão, que me lança um olhar nada amigável.
— Posso saber o que caralhos você pretende fazer pegando uma droga que
não é nossa? — apesar de não entender o que penso em fazer, ele pisa no
acelerador, cantando pneu quando deixa o Porto de Niterói para trás em
segundos.
— Encontrar quem pegou a nossa mercadoria por engano e barganhar uma
possível troca antes que seja tarde.
— Você sabe que aqui tem bem menos pó do que a nossa mercadoria, né?
— Eu não preciso ter as habilidades de cálculo do Rafael para saber que
estamos levando menos de 1 tonelada de cocaína, Samu.
Eu soube disso no momento em que pus os olhos nos tabletes. Por isso o
desespero. Fora o detalhe de que não faço a menor ideia de onde isso veio, se
tem qualidade, se está puro…
Estamos no escuro.
A melhor opção é encontrar os outros traficantes antes que eles vendam a
cocaína e tenham lucro em cima do que é nosso.
O grande problema é que a Facção da VR não gosta de esperar. E se, por um
acaso muito fodido, essa droga for parar nas mãos da facção rival, as coisas
mudam de figura, tomando uma proporção ainda maior, dando mais munição
para uma guerra entre bandidos que se estende por anos.
Isso seria muito ruim para os meus aliados. E consequentemente, para mim
também.
O relógio marca duas da manhã quando finalmente chego em casa. Deixo o
molho de chaves sobre a mesa, fazendo um barulho estridente que quebra o
silêncio do lugar por poucos segundos. Me sirvo de um copo de água gelada,
refrescando a minha garganta que implorava pelo líquido transparente depois da
força que fiz para descarregar todos os pacotes com a droga no galpão.
Sinto o cansaço se apossar do meu corpo durante a subida das escadas. Minha
cabeça dói de preocupação. Meus sentidos vão ficando letárgicos ao imaginar a
cama confortável onde pretendo pegar no sono após um banho bem tomado.
Mas basta apenas ouvir o grito de Cassandra para que eu entre em estado de
alerta e corra ao seu encontro, escancarando a porta do quarto num movimento
bruto. A madeira bate contra a parede violentamente, o barulho não afeta Cassie,
ela continua se debatendo e murmurando coisas que só entendo quando me
aproximo, tomando seu rosto entre as minhas mãos. O suor escorre por sua face,
alguns fios do cabelo dela se aderiram à pele. Afasto eles delicadamente
enquanto ela continua se debatendo, tentando fugir do meu toque.
— Nãããooo, me matem logo, me matem logo! — o desespero dela se
intensifica conforme tento conter suas mãos, que arranham meu rosto e peito.
— Cassie! Sou eu , Cassie, o Miguel, acorde! — com apenas uma mão,
enlaço seus pulsos, colocando eles acima da sua cabeça. Usando a outra, acaricio
a bochecha dela, chamando o seu nome, implorando que ela acorde.
Cassandra continua irredutível, me chutando e desviando do meu toque. A
mulher treme enquanto grita por socorro. Lágrimas escapam dos seus olhos sem
parar. Vê-la assim, tão apavorada, perdida em um pesadelo, parte o meu coração.
Entro em desespero à medida que os minutos passam e ela não acorda. Tento de
tudo. Chamo seu nome repetidas vezes, sacudo o seu corpo, digo que ela está
sonhando… Nada a faz abrir os olhos.
Desesperado, não raciocinando tão bem quanto deveria, me vejo grudando os
lábios nos dela, lhe dando um beijo terno que depois de alguns segundos faz o
seu corpo amolecer.
Continuar beijando a boca de Cassandra não era a intenção, mas é o que faço
quando ela corresponde, deixando minha língua trilhar o caminho até a sua. O
movimento é suave. Os meus sentidos se desligam, permitindo que meu corpo
relaxe sobre o dela.
Me afasto quando sinto o gosto salgado do seu choro interferir no beijo.
Agora completamente acordada, Cassie limpa o rosto com as mãos, não
adiantando muito pois logo a água escorre novamente bochechas abaixo. O som
do seu soluço preenche o quarto, que antes da sua chegada era vazio, e no
momento está cheio de sentimentos dolorosos pairando no ar.
Não sei o que de fato ela estava sonhando para demonstrar tamanho
desespero. Mas quando seus olhos se fixam nos meus pela primeira vez desde
que acordou, eu desvendo exatamente o que esse olhar carrega. O vislumbre que
tenho diante de mim é o mesmo do dia em que nos conhecemos. Os mesmos
olhos verdes entristecidos escondendo uma dor ainda mais profunda do que a
imensidão de suas orbes esverdeadas são capazes de deixar transparecer.
Linda demais para parecer tão triste. — O pensamento se faz rapidamente na
minha cabeça, como naquele dia.
Assim, com os lábios inchados, as bochechas vermelhas e lágrimas banhando
o seu rosto, ela está mais vulnerável do que nunca. E mais linda do que nunca
também. Há uma certa beleza na forma como Cassandra se impõe, forte e
inabalável. Mas é quando suas barreiras caem que a sua verdadeira graciosidade
pode ser vista, sendo ela muito mais linda.
Sem perceber, encosto a minha testa na dela, acariciando o seus braços na
intenção de oferecer conforto. O gesto só a faz chorar mais.
— Não é você quem eu queria aqui — ela diz, entre lágrimas e soluços.
— Mas sou eu quem está aqui com você. — Ignoro os seus protestos e puxo o
corpo dela até que meu peito esteja colado no seu. — Me diga, com o que estava
sonhando para ficar desesperada desse jeito?
— Não é da sua conta.
Minha risada faz Cassie afundar o rosto no meu ombro, se permitindo rir
também por um instante em meio ao choro incansável.
— Você disse a mesma coisa para mim quando te perguntei o porquê de
parecer tão triste no dia em que nos conhecemos, se lembra? — ela nega,
esfregando o rosto na minha camisa. Meus dedos se engrenam entre os fios
cacheados até chegar na sua nuca, onde eu puxo delicadamente para que ela
volte a olhar no meu rosto. Apenas alguns centímetros separam nossos lábios
quando digo: — Mas eu esperei até você confiar em mim e se sentir confortável
para me contar.
— E o que uma coisa tem a ver com a outra?
— Eu vou esperar de novo, Cassie. Vou esperar até você confiar em mim para
contar o porquê está tão devastada novamente.
O minuto que se segue é de completo silêncio. Nossas bocas estão próximas,
ao ponto de me fazer sentir o hálito dela a cada vez que respira. Percebo que
seus mamilos roçam o meu peito quando presto atenção no ritmo da sua
respiração. Cogito beijá-la novamente, chego até mesmo a encostar meus lábios
nos dela, mas Cassandra recua, recobrando a consciência e me fazendo recuperar
um pouco da minha também.
— Não faça mais isso. Nunca mais, Miguel.
Apesar de estar me rejeitando em voz alta, seus braços ainda envolvem o meu
pescoço.
— Não vou fazer mais, me desculpa.
— Se desculpe fazendo algo para eu comer.
E é assim que a Cassie vulnerável se vai. A muralha protegendo o seu coração
foi erguida novamente. A dor está camuflada pelo olhar impaciente que me lança
ao levantar- se da cama.
A diaba está de volta.
Me pedindo que cozinhe para ela.
Eu aceito, feliz por ter visto um pouco da loirinha raio de sol que ainda mora
dentro dela.
ERA UMA VEZ
Uma semana depois…
O som dos meus pés batendo na esteira preenche a academia. Com um fone
nos ouvidos, Miguel parece indiferente à minha presença. Sua atenção está
focada no seu próprio reflexo no espelho enquanto levanta pesos com os braços.
A veia grossa do pescoço infla toda vez que o movimento é feito. Sem contar as
que permeiam sua pele do antebraço, que parecem estar prestes a estourar. O
bronzeado do corpo dele agora deu lugar à vermelhidão.
Desde o episódio do seu quarto, não estamos nos falando muito. Ou melhor,
ele não tem falado muito comigo. Ainda continuo sem entender o que realmente
causou o estopim, apenas que Miguel não está para brincadeira essa semana. Ele
se manteve calado nas refeições que fizemos à mesa. Saiu quase todos os dias no
horário da noite. Passou também bastante tempo na casa da sua mãe durante o
dia, deixando que eu ficasse a sós com Safira. O que de certa forma foi bom para
mim. Aproveitei as oportunidades para conhecê-la melhor e ensiná-la um pouco
mais sobre luta, mais especificamente falando, sobre o Taekwondo.
Mas, mesmo assim, a postura de Miguel tem me incomodado muito. Por mais
que eu tente ignorar, fingir que estamos melhor desse jeito, tem sido torturante
aguentar o seu tratamento de choque. De vez em quando, tenho tentado deixá-lo
desconfortável também.
Sem querer, querendo, esbarro em seu corpo ao sair da esteira, fazendo com
que o peso caia no chão e Miguel inspire fundo.
— Foi mal. — Sorrio ingenuamente. Ele dá de ombros e pega o objeto.
É normal que Miguel não se abale tão facilmente. No Exército, eles nos
ensinam a sermos resilientes, nos testam o tempo inteiro, nos levando ao limite,
vendo o quanto somos capazes de aguentar Principalmente os homens, que
sofrem mais pressão psicológica durante o processo que nós mulheres. Por
representarem a parte tática da força, eles precisam ser ainda mais
compenetrados.
No entanto, eu o provoco mesmo assim, de forma indireta, esperando que em
algum momento Miguel rompa essa maldita barreira que criou e pare de ignorar
a minha existência. Esse se tornou o meu novo hobby.
Quando ele termina de fazer os exercícios de musculação, se dirige para o
canto da academia, onde pega algumas anilhas e as coloca na barra, iniciando o
levantamento de peso. Começo o meu alongamento, flexionando as pernas em
um ângulo de 180 graus. A legging azul se adere perfeitamente ao meu corpo,
mostrando as minhas curvas e deixando pouco para a imaginação de quem me
observar. Capto o olhar de Miguel dos fundos da sala pelo espelho. As orbes
azuis se revezam entre fitar a si mesmo realizando o exercício e assistir as
minhas pernas darem um show de flexibilidade. Ele também, vez ou outra,
aprecia a vista privilegiada da minha bunda. No instante que me abaixo para
tocar os dedos das mãos nos meus pés é que Miguel não consegue mais disfarçar
o quanto a sua atenção foi comprometida, pois nossas visões se encontram no
espelho, e ele solta a barra no chão sem desviar os olhos dos meus. O que, por
um acaso fodido, ocasiona que ela caia no seu pé direito, gerando uma dor
lacerante que o faz comprimir os lábios.
— Caralho, Cassandra! — esbraveja.
— Ninguém mandou você soltar o negócio!
Me aproximo dele, agachada para poder ver melhor o estrago que a anilha
causou. O peito do seu pé está vermelho, demonstrado que logo ficará inchado.
O dedo médio também foi atingido na queda e sangra um pouco.
— Onde eu posso achar coisas para fazer um curativo?
— Em uma caixa branca no meu banheiro. Pega gelo no congelador também.
— Responde, pressionando o local com os olhos fechados e respirando fundo
para a dor passar logo.
— Ok. Volto já.
Chego à suíte em poucos segundos, arfando e apreensiva. Escancaro a porta
do pequeno banheiro e abro os armários bruscamente, remexendo nos itens que
estão ali, em busca da tal caixa branca. Encontro-a nos fundos dele, poeira paira
sobre ela, demonstrando que faz tempo que a caixa não é retirada dali. Na
descida, pego um bloco de plástico com água congelada dentro, do tamanho
perfeito para cobrir a extensão do peito do pé de Miguel que foi atingida.
— Tudo aqui. — Digo, ao voltar para a academia. — Põe o gelo por cima do
lugar inchado enquanto eu cuido do dedo ferido.
— Puta merda, está ficando inchado pra cacete! — murmura, observando o
estrago feito pela anilha.
— Quer ir pro médico?
— Não. Só faz parar de sangrar logo.
Delicadamente, seguro o dedo médio de seu pé para ver melhor o estrago. Há
uma pequena ferida próxima à cutícula. Estanco o sangramento com a ajuda de
um pedaço de gaze embebida em álcool. Miguel estremece. Solto uma risadinha
controlada. Finalizo o curativo colocando esparadrapo para conter o fluxo de
sangue.
— A academia fica melhor sem você. — Dispara, quando termino.
— É assim que você me agradece?
— A culpa foi toda sua, Cassandra. Seus joguinhos de merda que causaram
isso. Não vou agradecer porra nenhuma. — Ele ainda está puto comigo.
— Quem soltou a barra foi você, inferno!
Me levanto do chão. Estendo a mão para Miguel, que esbanja uma cara de cu
quando aceita e se levanta com a minha ajuda. Ele não consegue ficar em pé,
sobe a escada mancando, se apoiando no meu corpo, que só recebe alívio no
momento que finalmente chegamos à sala e Miguel senta no sofá, ainda
dolorido. Poucos segundos se passam quando meu celular apita em cima da
mesa, indicando que recebi uma nova mensagem. Vou até lá na força do ódio,
trazendo o aparelho comigo e me jogo novamente no sofá.
Grupo das meninas Sovat
Antônia: E aí, girls?
Antônia: Tudo certo para a baladinha hoje a noite?
Puta merda.
Tinha me esquecido disso.
Suzana: Tudo certo!
Suzana: Vamos quebrar tudo hoje!
Antônia: Uhuuuul!
Antônia: E você, Cassie?
Cassandra: Miguel se machucou agora, não está conseguindo andar
muito bem.
Cassandra: Talvez ele precise que eu fique em casa.
— Não preciso não. — O maldito diz, se esgueirando ao meu lado para ler as
mensagens.
Antônia: Aí, meu Deus. Precisa de ajuda?
Suzana: Ele tem dois irmãos, qualquer coisa pode ligar pra eles.
Suzana: Esteja pronta às 20h.
Antônia: Certo. Rafael vai direto pra aí quando chegar.
Antônia: Vamos de Porsche, Mitsubishi ou Mini Cooper?
Suzana: Nenhum deles. Samuel vai levar a gente no carro do Miguel.
Suzana: Vamos é encher a cara.
— No meu carro? — ele indaga. — Que abuso!
O meu visual está impecável quando analiso o reflexo no espelho. Cabelos
presos em um rabo de cavalo, deixando os cachos visíveis apenas no
comprimento. Vestido preto justo indo até a metade das coxas. Salto alto prata
que Suzana me emprestou. Fiz também uma maquiagem básica, usando somente
rímel, blush e gloss.
Está faltando alguma coisa…
Continuo fiscalizando meu reflexo, em busca do que há de errado. Subo os
olhos até a altura do rosto e nada. Realmente esqueci o que faltava.
Com a bolsa em mãos, vou para a sala esperar minhas companhias dessa
noite. O barulho dos meus saltos batendo no piso faz Miguel se virar para
acompanhar o meu andar. Seus olhos se fixam no ponto entre os meus seios,
onde a abertura do vestido possibilita uma visão da tatuagem de borboleta que
fica ali.
— Para quem não queria ir, você está muito animada. — Insinua, depois de
voltar a assistir televisão.
— Se com, "animada", você quer dizer linda, eu agradeço pelo elogio
mascarado de deboche. E respondendo ao que disse, não é porque estou sendo
coagida a sair que vou estar desarrumada.
Ouço ele bufar de costas para mim. Ignoro o gesto, retocando o gloss no
espelho da sala. Meu celular apita assim que termino.
Grupo das meninas Sovat
Antônia: Estou pronta e vocês?
Suzana: Colocando a sandália.
Cassandra: Prontíssima.
Suzana: Me esperem no carro. Vou dar um beijinho no Miguel antes de
irmos.
Antônia: Ok
Cassandra: Ok
— Estou indo, pé grande. — Aviso. — Diga à Safira que deixei comida no
forno para ela comer quando chegar da casa da Helena.
— Tá bom. — Responde, a contragosto.
O vento gelado deixa a minha pele arrepiada durante o trajeto em direção ao
carro de Miguel, estacionado na frente da casa de Suzana. Encontro Samuel no
banco do motorista, concentrado na corrida que assiste pelo celular. Me sento no
banco do carona. Sou cumprimentada com um aceno de cabeça pelo caçula dos
Sovat, que volta a prestar atenção no conteúdo do seu telefone.
Um garoto de poucas palavras.
Ele é assim desde pequeno. Já estou acostumada a isso. Encosto minha
cabeça no vidro, ansiando que as mulheres cheguem logo. Quanto mais rápido
formos, mais rápido voltaremos. Parecendo que ouviram as minhas preces
silenciosas, elas caminham lado a lado e se sentam no carro alguns minutos
depois de virem da casa de Miguel.
Antônia sorri para mim assim que entra. Seu vestido também é preto, como o
meu, sendo um pouco mais longo. Suzana se limita a me olhar pelo retrovisor
interno quando já está acomodada no banco de trás. Seu vestido brilha mesmo
estando na escuridão da Range Rover.
— Vamos, Samuel, liga esse carro e pisa fundo nisso. Estamos atrasadas. —
Ordena.
A tal "Boss" é bem melhor do que eu esperava. A fachada do local é toda
revestida em preto fosco e possui um letreiro com o nome da boate no tom de
roxo neon. Seu interior também não deixa a desejar, há espelhos em todas as
paredes, mesas redondas sem cadeiras, luzes roxas iluminando apenas o centro
do lugar, onde pessoas, a maioria mulheres, dançam um funk que não reconheço
de imediato. Uma consequência de ter passado anos na África. Estou
completamente desatualizada a respeito das músicas.
Me mantenho no canto escuro junto com Antônia enquanto sua sogra
cumprimenta algumas conhecidas. Escolhemos uma mesa vazia e colocamos
nossas bolsas ali para "marcar território" quando vamos ao bar, pedir as
primeiras bebidas da noite. Um Martini para Antônia e uma Caipirinha para
mim. Suzana chega algum tempo depois e pede uma Piña Colada. A acidez do
líquido me entorpece na proporção que bebo mais uns goles. Observando o
movimento na pista, pressinto que talvez não tenha sido uma má ideia vir aqui.
Há tantas coisas me estressando, que uma noite de bebedeira e muita dança pode
ser tudo que preciso para aliviar.
— Vamos para a pista? — pergunto às duas, que bebericam seus drinks.
— Só se for agora. — Suzana responde prontamente.
— Já aviso que eu ainda estou aprendendo. Não me julgue. — A namorada de
Rafael confessa.
— Vamos ver o que você sabe fazer. — Dou um sorriso cheio de dentes para
ela, sentindo meu corpo aquecer com a bebida começando a fazer efeito.
Na pista, constato que é difícil não julgar Antônia dançando. Ela tem
dificuldade de usar seu corpo esbelto ao seu favor. Se eu tivesse essas pernas,
usaria mais elas na hora de descer até o chão. Como Suzana faz com maestria
junto de outras mulheres da sua idade. É engraçado como o tempo não passou
para a senhora Sovat. Ela parece muito mais viva do que quando era casada.
Quem olha a mulher sorridente, com belos cabelos cor de mel e olhos escuros
penetrantes, não imagina que ela passou por tantas coisas até chegar aqui.
Traição. A morte do marido. Três filhos para criar. Fácil é que não deve ter sido.
Mas ela superou tudo isso e continua com a pele intacta e um corpo invejável. É
impossível não ficar admirada com sua força. Eu mesma me coloquei no lugar
dela quando Helena contou sobre Cícero e não sei se conseguiria continuar tão
inabalável.
— Está gostando? — Antônia pergunta. A modelo trouxe nossos drinks para
bebermos na pista. O meu chega ao fim quando respondo:
— Aham. Mas preciso de outra bebida para aproveitar mais — digo, em meio
à música alta. — Você quer outro? — ela faz que não com o dedo. — Vou pegar
outro pra mim, então.
Faço caminho entre as pessoas dançando ao meu redor, chegando ao balcão
do bar um pouco zonza.
— Moço, eu quero um… — praticamente preciso gritar para que me ouça. —
Sex on the Beach.
Ele sorri para mim. Há um piercing em seu freio. Um detalhe que reluz
quando o barman mostra os dentes.
— Agora mesmo.
Acompanho o trabalho das suas mãos habilidosas que misturam vodka, suco
de laranja, licor de pêssego e gelo para bater na coqueteleira. Vê-lo
chacoalhando esse objeto me deixa enjoada. Desvio o olhar para o lado, notando
um corpo forte na minha lateral.
— Você não deveria pedir um sexo na praia para um garoto que acabou de
sair da adolescência. — A voz gutural soa perto do meu ouvido.
— Eu deveria pedir para você?
Viro o banco, ficando de frente para o dono da voz. O conjunto da barba e
cabelos ruivos são um tapa na minha cara ao vislumbrar esse monumento de
homem.
É exótico e sexy demais.
Com certeza eu deveria pedir para ele.
— A menos que pedofilia seja a sua praia. — Um sorriso se abre nos lábios
carnudos e o efeito vai parar diretamente entre as minhas pernas.
Eu devo estar no cio. Só pode.
Quanto tempo faz que não tenho uma foda mesmo?
Oitenta e quatro anos, provavelmente.
— Não, não é. — Mostro os dentes. Pela forma como acompanha o
movimento, deve estar tão atraído por mim como estou por ele.
— Então qual é a sua praia?
— Não sei. Só sei que com certeza você estaria nela.
A cada vez que o desconhecido sorri, me vejo juntando as pernas para conter
a vibração que se forma ali.
— É bom saber que já temos algo em comum. Agora eu quero saber seu
nome, moça do sexo na praia.
— Cassie. E o seu, ruivo gostoso?
Aproximo mais o meu rosto do dele para poder ouvi-lo.
— Eric.
Esse nome combina perfeitamente com o homem, que não deve ter mais de
trinta e cinco anos.
Meu drink fica pronto. Bebo um gole do líquido colorido em tons de
vermelho e laranja.
— O que acha de transar comigo, Eric? — minha voz é engolida pela música
alta.
— O quê?
— O que acha de dançar comigo, Eric? — repito, dessa vez mais alto.
Ele ri.
— Eu gosto da ideia de transar com você, Cassie.
— O quê? — agora sou eu quem pergunto, em dúvida se entendi mesmo o
que disse.
— Eu gosto muito da ideia de dançar com você, Cassie. — Repete, mais alto.
Pegando na minha mão, Eric me guia para a pista de dança, onde dançamos e
bebemos tranquilamente em meio a música acelerada e pessoas se agitando. Os
olhos dele nunca deixam os meus. Suas mãos passeam pelas minhas costas,
testando o quanto sou capaz de aguentar o tesão que venho reprimindo desde que
vislumbrei seu rosto lindo e seu corpo gostoso.
— Quero você, Eric. E quero agora. — Sussurro no seu ouvido.
OS PORTÕES DO INFERNO
Tsiiii.
O barulho da garrafa de cerveja sendo aberta é reconfortante. Significa que
estou no meu momento de relaxar. Não estou completamente relaxado neste
instante, por vários motivos, mas bebo pequenos goles do líquido como se
estivesse.
Aumento o volume da televisão, querendo amenizar o silêncio que é a minha
casa sem Safira e Cassandra. A primeira não irá voltar hoje, resolveu que quer
passar essa noite com a avó materna. A outra, só Deus sabe quando vai chegar.
Resumindo: elas me abandonaram no momento em que mais preciso de ajuda e
carinho. Os únicos que posso contar estão atrasados para me fazer companhia.
Caço meu celular no meio das almofadas, querendo saber onde foi que esses
infelizes se enfiaram para demorar tanto.
Grupo dos anjinhos Sovat
Miguel: Cadê vocês, seus putos?
Samuel: Posso levar o Hugo comigo?
Miguel: Pode.
Samuel: Estamos a caminho.
Rafael: Terminando de me arrumar.
Rafael: Daqui a alguns minutos estou aí.
Está vendo?
Eu preciso implorar várias vezes para eles me darem um pouco de atenção.
Quero ver como vai ser no meu enterro. Não vou estar aqui para lembrá-los de
comparecer. É capaz deles me esquecerem até mesmo nesse dia.
— Chegamos, chorão. — Hugo, o melhor amigo do meu irmão caçula berra.
— E trouxemos mais cerveja.
— Grande coisa. — Rafael diz, chegando em seguida.
— E o que você trouxe, anjo? — indago, sentado no sofá e observando os três
na minha cozinha.
— Meu estômago. Só vim pela comida.
— Então você se ferrou porque eu não fiz nada para comer.
Estou quase voltando a assistir uma luta de MMA na televisão quando Hugo
berra:
— Mas alguém fez. — Esse garoto não sabe falar normal, nem parece que
tem vinte e seis anos. — Strogonoff de carne, parece estar delicioso.
— O meu preferido! — Rafael exclama. — Cassie nunca erra.
— Quem é Cassie?
— A tia da Safira. — Samuel explica, se servindo de um pouco da comida.
— Como assim ela tem uma tia?
— Longa e trágica história, Hugo. — Meu irmão do meio explica.
Os três se sentam no sofá junto comigo, todos com um prato em mãos e seus
copos de refrigerante na mesa de centro a frente. Por um tempo, conversamos
sobre assuntos triviais. O anjo conta como está sendo a vida de professor
universitário. Hugo, tagarela como é, enche nossos ouvidos com fofocas sobre o
Downtown, lugar onde ele administra o escritório que era do meu irmão. E em
algum momento, os dois iniciam uma conversa chata sobre bolsa de valores que
eu corto logo.
— Vocês não vieram para a minha casa ficar falando de trabalho não, né?
— A gente veio pra comer mesmo. — Para a minha indignação, Samu
responde.
— Eu vim para te ver — Hugo diz, logo após o melhor amigo. — E talvez,
somente talvez, comer alguma coisa. Afinal, a sua comida é excelente, jamais
negaria se me oferecesse.
— A da Cassie é melhor. — Rafael afirma.
— Bom, a mulher tem talento, não posso negar. Aliás, como ela é? Fiquei
curioso.
Meus irmãos se entreolham, incertos se devem ou não entrar nesse assunto.
Permaneço calado, esperando para ver quem terá coragem de apresentar o
furacão Cassie para esse contador.
— Ela é bonita, tem trinta e dois anos, é Sargento do Exército, sumiu no
mundo quando a irmã estava grávida e só viemos saber mais notícias dela agora
que voltou e quer ser mais presente na vida da sobrinha. — O anjo é quem toma
a iniciativa.
— Mas Safira ainda não sabe disso. Toma cuidado para não contar sem
querer. — Samu alerta.
— Interessante. É errado eu estar rendido por ela?
— Se você quiser causar encrenca com o meu irmãozinho ciumento aqui,
sim. — Ele me olha de lado. — Outro dia, Cassandra me ajudou a encontrar o
meu cachorro e depois a gente chegou junto na reunião de família. O resultado
disso? Miguel surtou e ficou dias sem falar direito comigo.
Deveria ter ficado mais.
— Que possessivo!
— Você não viu nada. — Meu irmão caçula se levanta com o prato e seu
copo. — Vem, vamos lavar essas coisas.
Resta apenas eu e Rafael no sofá. Ele ainda não terminou de fazer a refeição,
está mastigando freneticamente ao meu lado. Seu olhar alterna entre mim e a
televisão.
— Sobre o que aconteceu semana passada… — Deixa o prato em cima da
mesa, se virando para me encarar. — Eu não estou sendo tão metódico com a
minha vida como antes. O planejamento não é por minha causa, é pela Antônia.
Ela tem muitas inseguranças a respeito de relacionamentos e sobre o nosso
futuro em geral. Então a gente está se preparando para o que queremos viver um
dia.
— Você quer mesmo ser pai?
A pergunta o faz sorrir.
— Eu nunca fiz questão. Acho que porque não fazia sentido com as outras,
sabe? — o sorriso não deixa seu rosto quando continua: — E porra, agora eu
amo a ideia de vivenciar isso com ela. É claro que ter contato com o filho do
Edgar tem uma parcela de culpa nisso. Nós dois começamos a amadurecer essa
ideia depois que Antônio César nasceu. Ver o quanto Edgar amadureceu e está
mais feliz me fez questionar se talvez eu não poderia ser um homem ainda
melhor pelo meu filho.
Estou em choque.
Nem em mil anos, nem nos meus sonhos mais loucos, eu imaginaria meu
irmão dizendo algo assim. É incrível como Antônia tem feito bem a ele.
Eu não acredito que o amor mude as pessoas. Acho que, se for um sentimento
saudável, vai te despertar uma vontade de ser melhor para a pessoa que você
ama. Coisas que antes não faziam sentido, começam a fazer, apenas quando está
do lado da pessoa certa. Exatamente como aconteceu com o meu irmão.
— Você vai ser um ótimo pai.
— Será?
Agora quem sorri sou eu.
— Até parece que você sabe ser ruim. Não consegue desejar o mal de quem
te prejudicou. Jamais será capaz de fazer mal a um filho seu. Então sim, você vai
ser um excelente pai.
— Antes, eu quero me tornar um bom marido.
Encaro bem o seu rosto, buscando na sua expressão radiante algum sinal de
hesitação. Não encontro. Rafael parece determinado, como sempre.
— Está sugerindo o que eu estou pensando que está?
— O que o Rafael está sugerindo? — Recém chegado da cozinha, Hugo
questiona, quase tão curioso quanto eu.
— Não estou sugerindo, estou afirmando que pretendo pedir Antônia em
casamento logo logo.
CHEGOU O DIA, CARALHO!
Finalmente alguém da família vai casar.
Obrigado, Deus. Eu sei que tu me sondas!
— E quero a ajuda de vocês para bolar um pedido de casamento memorável.
Ah, irmão, esse pedido vai se tornar um evento histórico se depender de mim.
É noite quando faço caminho pelo local bem iluminado e cheio de mulheres
seminuas zanzando. As paredes vermelhas me saúdam quando adentro a sala
reservada, onde outras moças dançam sem pudor para atrair a atenção dos
homens que estão ali. Um deles em específico me chama atenção.
Este não é um puteiro qualquer. Juízes, políticos, empresários e criminosos
compõem a clientela daqui, fazendo o lugar ganhar o título de "Puteiro de Elite
do Rio". Mas, se você enxergar bem de perto, verá que, na verdade, se assemelha
mais a um bueiro. Todos esses homens que descrevi não passam de ratos sujos.
Roubam, mandam matar, mentem… Tudo isso com um sorriso no rosto e se
escondendo por trás da lei.
Eu sou um deles, não é atoa que passo muito tempo por aqui. Entretanto, sou
sem dúvidas o mais limpo. Principalmente em relação ao que me olha torto
quando sento próximo a ele, com um metro de distância nos separando no sofá
de couro escuro.
— Como vai, Luciano? A mão já cicatrizou? — ele apenas vira o rosto,
bebendo um pouco do conhaque que tem na mão esquerda. — Dia ruim? Ok,
então.
Faço sinal para que Michely se aproxime, quando ela o faz, peço um pouco
de gim com gelo e descanso os braços no encosto do estofado. Não demora para
que a prostituta volte com o que pedi. Sua pele negra possui alguns pontos
iluminados por baixo da lingerie rosa que usa. Os cabelos cacheados estão
soltos, indo até a altura da cintura, uma das coisas mais lindas nela, só perdem
para os olhos, cor de mel.
— Pensei que tivesse conhecido alguém, faz duas semanas que não te vejo —
comenta, pondo o copo nas minhas mãos e se sentando com as pernas cruzadas
ao meu lado.
— Você sabe que nas férias eu costumo ficar mais em casa por causa da
minha filha.
— Sim, mas você sempre dá um jeitinho de aparecer…
É verdade, eu dava algumas escapadas durante a madrugada, quando Safira
dormia. Não me orgulho do certo vício que adquiri por esse lugar, mas foi a
minha válvula de escape por algum tempo. Entretanto, nas últimas semanas eu
realmente não senti vontade de vir. O que me faz pensar que talvez eu não seja
tão viciado assim.
— Estou tendo alguns problemas, é só isso.
Ela usa as unhas para acariciar o meu peito por cima da camisa.
— Duas semanas sem transar comigo é um problema mesmo, dengo. —
Recebo um beijo no canto dos lábios, seguido de uma mordida no lóbulo da
orelha. — Vamos para qual suíte hoje?
— Hoje não vamos para nenhuma, preciosa. Tenho que resolver uma coisa.
Chame a Ravena para mim, por favor.
Sua expressão se torna insatisfatória no mesmo instante.
— Por que a Ravena pode te ajudar e eu não?
— Michely… — Encaro o rosto bonito, me sentindo mal por causar essa
rivalidade, mas ao mesmo tempo sabendo que não tenho a obrigação de escolhê-
la. — Faça o que te pedi, por favor.
O que meus olhos lhe disseram é o suficiente para que ela se levante e suma
corredor adentro em busca da sua colega de trabalho. Estou voltando a relaxar
quando ouço uma voz prepotente dizer:
— Miguelito.
Meu sócio se senta onde Michely estava há poucos minutos.
— O que está fazendo aqui, Henrique? Você vai se casar daqui a três dias!
— Fala baixo, garoto. — Ele olha para os lados, desconfiado, e desabotoa o
paletó do seu terno bem cortado. — Digamos que minha noiva se recusa a fazer
sexo comigo.
É impossível conter o riso diante disso.
— Caramba. E eu achando que nenhuma mulher dizia não aos seus charmes.
— E não dizem mesmo. Paola é a única cadela que ousa fazer isso.
A expressão facial de Henrique ao se referir a noiva é de ódio. O senador tem
fama de ser um partido cobiçado até mesmo pelas mulheres casadas. Deve estar
se corroendo por dentro com o não que recebeu da tal Paola.
— A propósito, se ela não te deseja, por que ainda vão se casar?
— Porque eu não consigo desejar outra mulher que não seja ela.
A contradição me faz voltar a dar risada. Ironicamente, entendo um pouco o
que ele está sentindo, apesar de ter sido bem recebido por Cassandra na noite
anterior.
Jamais imaginaria que me ajoelhar e abocanhar a boceta dela resultaria em
uma trégua. Se soubesse, teria feito um pouco antes. Falta de vontade não foi.
Encontrá-la tão calma no dia seguinte também foi uma surpresa das grandes.
Entrei no quarto me preparando para ser alvejado e saí de lá com um acordo de
paz.
Acho que Henrique não terá a mesma sorte com Paola. Pelo que me disse, a
mulher se transforma no capeta quando ele bate de frente com ela, o que me fez
adorá-la, em silêncio, é lógico, meu sócio está cuspindo fogo com a "audácia" da
Bracho, como a chama. Melhor deixá-lo pensando que é o último biscoito do
pacote mesmo.
— E a mercadoria, o que resolveram fazer? — indaga, depois de se cansar da
ladainha sobre como Paola é uma filha da puta que ainda beijará seus pés.
— Pedimos uma nova remessa, que chegará em dois meses. Sobre os
assaltantes de merda, Samu está trabalhando com Agnes para achar o paradeiro
deles nem que seja em Marte.
— Miguel — Michely chama, parada na porta do corredor onde havia
entrado. — Ravena está no quarto cinco te esperando.
— Bom, tenho que ir. — Me levanto, depois de apertar a mão de Henrique.
No caminho, passo pelo juiz Fagundes e não resisto, digo: — Espero que a outra
mão não esteja fazendo falta na hora H. Eu odeio pensar que posso ter
prejudicado o seu alto desempenho.
Sumo corredor adentro, sem esperar que Luciano se pronuncie. O quarto
cinco é logo à esquerda. Não demoro muito para abrir a porta e me enfiar no
cômodo escuro, onde encontro Ravena deitada na cama, vestindo apenas uma
calcinha fio dental enquanto mexe no celular.
— Presumo que não veio atrás de sexo, já que dispensou Michely. — Supõe,
ainda focada no telefone.
— Não, não vim mesmo. Preciso de ajuda.
Ela finalmente move o rosto, acenando para que eu me deite ao seu lado e
explique a minha situação. Não demoro para fazê-lo, contando à protistuta um
pouco da minha história com Cassandra, desde a infância, até aqui. Ravena
escuta tudo em silêncio, me olhando com desdém vez ou outra.
Apesar de ter uma beleza estonteante, ela é mais requisitada para serviços
como esse do que para fazer programas sexuais. É surpreendente a quantidade de
homens que pagam Ravena para serem ouvidos ou apenas para conversarem
com ela. Isso a tornou a puta mais cobiçada daqui, sua hora custa o dobro do que
custava antes, mas vale cada centavo. Constato isso quando coloco para fora
tudo que venho guardando dentro de mim desde que descobri a paixão de Cassie.
— Esse é um caso bem típico. O cara que tem uma mulher aos seus pés, mas
acaba se apaixonando pela outra, que nem olhava na sua direção. — Ravena
pontua. — É frustrante perder um homem para outra, principalmente se essa
outra for a sua irmã. E mais ainda se esse homem for o seu melhor amigo.
— Sim. Deve ter sido horrível para ela. Mas eu…
— Calado. — Ela me lança um olhar repressor. — Ainda é horrível. Porque,
mesmo que você esteja apaixonado por ela agora, nada entre vocês aconteceria
se Clarice estivesse viva. Na verdade, Cassandra nem seria uma opção se a irmã
ainda tivesse vida. Percebe como é frustrante ser a segunda opção?
— Eu imagino como ela deve se sentir. Só que, nós não temos controle sobre
os nossos corações. — Se tivéssemos, com certeza Cassie escolheria nunca ter
se apaixonado por mim. — Eu não escolhi Clarice, meu coração escolheu ela,
entende? Mas depois de descobrir sobre a paixão de Cassie, eu me senti culpado
por algo que não tenho culpa. E ela me odeia por achar que tenho culpa.
— Ela não odeia você.
— Diz isso porque não viu como ela me trata.
— E nem preciso ver. Tenho certeza de que Cassandra te repele, não porque
odeie você, mas porque odeia o que ainda deve sentir por você.
Isso faz bastante sentido. Entretanto, não torna as coisas mais fáceis.
— O que eu devo fazer, então?
Um minuto de silêncio se arrasta até que Ravena finalmente diga:
— O menos egoísta a ser feito seria deixar a mulher em paz para que ela siga
em frente e supere o que sente por você. — Essa alternativa faz meu peito se
apertar e um sentimento de angústia dar as caras.
— E a opção egoísta?
— Alimentar o que está sentindo e conquistar o coração da pobre coitada
novamente.
É horrível, mas me sinto mais propenso a escolher essa alternativa, mesmo
sabendo o quão filho da puta isso me torna.
— Você está na profissão errada, Ravena. Deveria abrir um consultório. —
Nossas risadas preenchem o cômodo escuro.
Em silêncio, penso no quão egoísta sou capaz de ser em nome do desespero
que meu coração se encontra por desejar Cassandra.
A sala está no completo breu quando chego em casa. O único ponto de luz
vem da televisão, onde passa Velozes & Furiosos 5. A cena em que eles arrastam
um cofre pelas ruas do Rio está passando quando me aproximo do sofá e
encontro Cassie deitada, com um balde de pipoca em seu colo. Resolvo ir direto
para o meu quarto, não querendo conversar enquanto ainda estou confuso sobre
o que sinto. Mas, assim que piso no primeiro degrau da escada, sou
surpreendido.
— Você não tem vergonha não? — indaga, parecendo furiosa.
Viro o corpo na sua direção, encontrando os olhos esverdeados me
analisando.
— De quê, exatamente?
— De passar a noite em um puteiro e chegar fedendo a bebida e mulher.
Solto uma risada fraca. Ela continua séria.
— Eu deveria me guardar até você admitir que quer meu pau dentro de você?
— provoco.
— Eu não quero essa coisa suja dentro de mim! Só Deus sabe por onde isso
andou.
Dou outra risada, essa um pouco mais alta.
— Boa noite, Cassie. A porta do meu quarto está aberta. — Pisco para ela,
que me dá o dedo do meio com um biquinho nos lábios e as sobrancelhas unidas,
puta com a minha provocação.
Depois de um banho frio, me deito usando apenas uma cueca. Encaro o teto
branco. Um misto de cansaço e incerteza toma conta de mim.
— O que eu faço, Clari? — pergunto, como se ela pudesse me escutar.
Não tenho feito isso nos últimos dias, mas costumo falar com Clarice em voz
alta antes de dormir. Um hábito que deixei de lado depois da chegada de
Cassandra. Talvez porque eu ainda me sinta mal por ter causado uma briga entre
as duas irmãs. Falar com uma enquanto a outra está por perto não parece certo
para a minha consciência.
— Estou cansado de me sentir culpado por ter te engravidado, por ter me
apaixonado por você, por ter quebrado o coração da sua irmã sem querer, por
estar criando sentimentos pela sua irmã depois de tudo. O que eu faço com toda
essa culpa, Clari? Só queria poder ser feliz sem parecer que estou fazendo algo
de errado.
Os minutos se passam, e, como sempre, a resposta não vem. Ela nunca vem.
Mas, mesmo assim, eu nunca deixarei de pedir que Clarice ilumine o meu
caminho de lá do céu. Uma das coisas que alivia um pouco a angústia é pensar
que ela se tornou o meu anjo da guarda. Esse parece um propósito melhor para a
sua morte do que uma simples vontade de Deus. Ainda tenho dificuldade em
aceitar que ele teve um motivo para tirar a vida dela. Fico dividido entre a minha
fé cega e o meu coração partido que não encontrou razões que justificassem os
planos dele.
Mas, eu desconfio de que nunca encontrarei. Mesmo que um dia descubra a
razão de tudo ter acontecido do jeito que aconteceu. Porque a fé e a razão são os
dois lados opostos da moeda. Quem tem fé, precisa fechar os olhos e se manter
firme no que se propôs a acreditar. Quem tem razão, acredita no que vê e no que
tem explicação. E nem sempre Deus nos dá uma, as vezes ele guarda para si os
motivos de ter feito tudo como fez.
Quando se tem fé, nos resta apenas confiar que Ele escolheu a melhor opção.
ESCOLHAS DO CORAÇÃO
Estou prestes a adentrar minha casa, após voltar de uma reunião com meus
irmãos, quando Safira tromba comigo ao sair.
— Pai! — chama, fechando a porta da nossa residência com o travesseiro e o
edredom em mãos. — Vou dormir na minha avó hoje.
— De novo? — balança a cabeça positivamente. — Poxa, você quase não tem
dormido comigo. Minha cama está com pulgas e eu não estou sabendo?
— Sua cama está ótima. Mas é a Jade quem tem que passar mais tempo lá. —
Minha boca está escancarada quando ela continua a dizer: — Hoje é um dia
perfeito para o senhor fazer dela seu travesseiro. E fazer o meu irmãozinho
também!
— Safira… — Meu tom é de censura. O sorriso travesso dela não diminui.
— Boa noite, pai — corre para a casa de sua avó e me deixa sozinho com a
vontade de ter Cassandra na minha cama.
Faz cinco dias desde que voltamos da viagem á Brasília. E faz cinco dias que
quero repetir o que fizemos lá. Já parei de pensar no quanto desejar Cassandra
faz de mim um homem hipócrita e sem escrúpulos, isso não diminui a vontade
que sinto de agarrá-la e fodê-la por todos os cômodos da minha casa todo santo
dia.
Então por que dar ouvidos a esses pensamentos? Quando a lembrança de
Cassie gemendo no meu ouvido é muito mais satisfatória?
Completamente desnecessário.
Um barulho de água sendo jorrada brutalmente me deixa em alerta quando
chego à cozinha.
Não sei o que me choca mais: a torneira quebrada jorrando um aguaceiro, ou
uma mulher diabolicamente sexy deitada na bancada usando seu pijama
indecente que tanto me atormenta.
— Cassandra! — ela vira a cabeça na minha direção, indiferente ao tsunami
que se apossa da minha cozinha a cada segundo. — A torneira está vazando!
Não vai fazer nada?
— Se eu soubesse onde fica o registro, teria fechado. — Diz, prontamente,
sem sair do lugar para me ajudar enquanto tento conter o vazamento,
pressionando a rosca.
— E não pensou em me ligar? — balança os ombros. — Ia deixar a minha
casa alagar, então?
— Acabou de acontecer, Miguel. Eu te vi chegando pela janela e resolvi
esperar.
Inspiro tão fundo que o ruído dos meus pulmões inflando sobressai o da
pressão da água querendo escapar da torneira pelo vazamento.
— O registro fica na garagem, do lado de um armário com ferramentas. Vai lá
e fecha ele até o final. — Peço.
— Sim, senhor, Major Sovat. — Ela sai correndo pela porta depois de bater
continência para mim.
Como eu posso sentir tesão na mesma medida em que me sinto irritado por
Cassandra?
Ou melhor, como ela consegue me irritar e me fazer desejá-la com a mesma
intensidade?
Um dia eu descubro.
— Prontinho — comemora, de volta à cozinha após fazer o que lhe pedi. Tiro
a mão do local onde estava pressionando e constato que o registro realmente foi
fechado.
— Agora vamos limpar esse aguaceiro. — O sorriso que brota no rosto dela
me deixa confuso. — O que foi?
— Nada. Vou pegar alguns panos de chão, baldes e dois rodos. — Se retira do
cômodo, rebolando a bunda gostosa coberta pelo tecido fino do short de pijama.
Tiro meus tênis, que a essa altura estão encharcados. Me liberto também da
camisa, pois o calor do Rio de Janeiro não está para brincadeira hoje, mesmo à
noite. Ao retornar, o olhar de Cassandra não deixa meu corpo em paz. A diaba
aprecia cada milímetro de pele exposta como se estivesse em um museu e eu
fosse a escultura mais interessante que já colocou os olhos.
— Não me olhe assim se não quiser foder. — Digo, rispidamente, odiando a
distância física que ela tem colocado entre nós dois desde a viagem.
— Não tire a camisa se não quiser que eu te olhe assim. — Rebate. Com o
pano em mãos, ela fica de quatro e começa a secar o chão, torcendo o tecido no
balde quando fica ensopado.
— Estou na minha casa, posso andar pelado, que você não vai ter o direito de
me olhar dessa forma. — Pego outro pano de chão seco e com o pé, uso o tecido
para absorver um pouco da água acumulada rente ao balcão. Esbarro no corpo de
Cassandra quando vou espremer o pano no balde. As orbes verdes dela me
observam com lascívia. Desse jeito, com os braços e joelhos no chão e um olhar
fatal, ela se assemelha à uma felina, e eu fico estático, parecendo uma presa fácil
para essa mulher diabólica fazer o que quiser comigo.
— Ajoelha — a ordem vem acompanhada de um tom severo que me excita e
me surpreende. Não sei exatamente o que estou querendo ao obedecê-la e cair de
joelhos à sua frente. Imponente, ela se levanta e chega mais perto, alisando meu
cabelo como a dona de um cachorro dócil faria. — Que obediente esse meu
cachorrinho.
Umedeço os lábios ao vê-la descer seu short e calcinha à centímetros do meu
rosto, possibilitando que eu sinta o cheiro do sabonete íntimo invadir as narinas.
O aroma floral não combina em nada com o caos incrível que ela se encontra.
— Tira a blusa também — suplico, ansioso para ter a visão dos seus seios de
baixo para cima. Cassandra joga o tecido em algum lugar que eu não reparo pois
seu corpo nu é magnético para os meus olhos. — Você é tão gostosa.
— E o quê mais? — coloca as pernas nos meus ombros, amparo seu peso
com as minhas mãos segurando firme a bunda dela.
— E diabólica — ela se esfrega contra o meu rosto, usando meu nariz para
estimular seu clitóris enquanto eu introduzo a língua pela sua vagina melada.
— E mais o quê? — rebola mais rápido, puxando meu cabelo, os gemidos
vão se intensificando conforme fodo sua boceta com a boca. — Me diga o que
eu sou, Miguel.
— É uma puta gostosa do caralho que acaba com o meu juízo. — Minhas
mãos pressionam a carne de Cassandra sem piedade, o quadril dela se mexe de
encontro ao meu rosto, lambuzado dos seus fluidos. Os gemidos agora saem
desesperadamente dos lábios entreabertos dela.
— Isso, me fode gostoso com a sua boca, cachorrinho. — Pede, os seios
pulando toda vez que minha língua lhe penetra em uma consistência dura para
satisfazê-la.
Cassandra é uma tentação até mesmo quando posso tê-la. Parece que para o
tamanho do meu desejo, não importa o quanto eu a tenha, nunca será suficiente,
sempre vou querer mais. Como uma maldição, se eu quero seu corpo para mim,
não paro de cobiçá-la até conseguir, e depois que consigo, eu quero novamente,
só que com duas vezes mais intensidade.
Isso não é de Deus! Tem que ser obra do diabo. O Todo Poderoso não
brincaria assim comigo. Parece que quem a fez, usou um conjunto de artimanhas
irresistíveis para mim.
Se entregando a um orgasmo avassalador que faz suas pernas tremerem
violentamente contra os meus ombros, ela é a personificação da união entre o
céu e o inferno. Uma beleza angelical somada a um gênio diabólico.
Será que Deus e o Diabo se juntaram para me castigar?
Provavelmente.
Errados eles não estão. Tenho contas pra acertar com os dois.
Mas qual é o peso de mais um pecado na minha lista já imensa?
Quase nulo.
Sendo assim… Não me acanho ao erguer Cassandra e colocá-la em cima do
balcão. Ele tem a altura perfeita para que eu consiga meter nela estando em pé
enquanto seu corpo está posicionado de lado, as pernas unidas e a bunda toda
exposta para mim.
Cassie ainda desfruta dos efeitos do orgasmo quando retiro meu pau da calça
e pincelo ele sobre sua intimidade. Eu amo vê-la derretida assim. A diaba
costuma ser imponente na maior parte do tempo, mas é só gozar que perde essa
pose e se torna cativa, gostando de estar à minha mercê, como agora.
Prendo seus pulsos entre as suas próprias coxas, segurando suas mãos para
que esteja completamente imobilizada. Introduzo meu membro lentamente por
seu caminho, mais apertado devido à fricção entre as pernas dela.
— Está gostando, minha putinha? — a resposta vem em forma de um gemido
misturado com murmúrio. Afasto os cachos loiros do rosto para que ela possa
me ver melhor. — Vamos, geme gostoso pra mim.
— Isso é torturante — reclama, se referindo às minhas estocadas lentas. —
Mete direito, Miguel. — Choraminga.
Seu jeito irreverente é uma das coisas que mais amo nela. Sempre foi assim.
Mas agora é como se tudo em Cassandra estivesse sendo evidenciado com um
holofote para me deixar sem a opção de não reparar.
— Assim está bom? — acelero o ritmo, minhas bolas batem bruscamente
contra a bunda dela. Ela revira os olhos de prazer ao sentir um tapa estalar no
seu rosto. — Você gosta de ser maltratada, não é? Eu também gosto de te
maltratar.
Invisto cada vez mais rápido contra a boceta dela, sentindo seu interior se
apertar ao redor do meu pau, inchado e louco para liberar uma quantidade de
porra absurda, equivalente às inúmeras vezes em que me imaginei gozando nela.
Minhas mãos apertam seus pulsos e cintura para manter a sustentação das
minhas pernas, que tremem a cada vez que arremato mais fundo no interior de
Cassandra.
— Vamos, goza de novo pra mim — Cassie estremece com o meu pedido. —
Quero sentir sua boceta me apertando uma última vez.
Acho que uma das coisas que torna viciante transar com Cassandra é poder
libertar o animal enjaulado dentro de mim. Ela odeia limites, e no sexo isso não
é diferente, sei que há apenas pouquíssimas coisas que a diaba não aceitaria fazer
entre quatro paredes. Saber que tenho tanta liberdade assim me excita em um
nível que jamais experimentei sentir.
Estou acostumado a pagar para ter prazer. As putas estão acostumadas a fazer
de tudo para proporcionar isso aos seus clientes. Nós entramos lá sabendo que
tudo é possível se tivermos condições de pagar.
Totalmente diferente de ser surpreendido com uma mulher que se permite ir
além do comum para desfrutar da luxúria sem pudor ou julgamento. Uma mulher
que sabe o seu valor e não permite que as coisas que gosta de fazer no sexo o
diminuam apenas por ser "imoral" perante ao papel dela na sociedade.
Cassandra é esse tipo de mulher.
Gozando junto comigo, ela grita, se contorce, xinga, pede mais. E não perde
nenhum pouco do seu valor aos meus olhos. Muito pelo contrário, depois de me
arrumar e limpar o gozo que despejei no seu corpo, permaneço alguns minutos
admirando-a se recompor, fascinado pela loira diabólica.
Ainda deitada sobre o mármore gelado, Cassie parece desorientada após a
nossa transa intensa. Sem consultá-la, pego seu corpo nu nos braços e a levo
comigo para a minha cama, onde ela se acomoda normalmente e dorme abraçada
comigo como se essa fosse a coisa mais natural do mundo.
Três semanas depois…
O fim das férias tinha tudo para me deixar estressado. Entretanto, devido às
últimas semanas excelentes que tive, não há nenhuma sombra de irritação
quando visto minha farda, antes mesmo do dia amanhecer completamente, e me
preparo para mais um dia de serviço no Quartel de Deodoro, Vila Militar. Nem
mesmo me recordar das horas que gasto somente no caminho daqui para lá é
capaz de abalar o meu humor.
Não consigo lembrar se um dia já estive tão de bem com a vida como agora.
Tenho quase certeza que não. Esses últimos tempos estão compensando mais de
uma década de angústia, só sei disso.
Assumir uma relação com Cassandra não estava nos meus planos. Assim
como gostar tanto de tê-la ao meu lado. Acontece que a diaba pode ser muito
encantadora e companheira quando quer. Desde que começamos, oficialmente, a
namorar, nossa convivência mudou drasticamente.
Pela manhã, saio para trabalhar bem cedo, mas não antes de passar em seu
quarto e lhe dar um beijo. Ela tem se dedicado mais à academia e ocupado o meu
lugar na cozinha, mandando bem na tarefa de fazer todas as nossas refeições.
Cassie também leva e busca Safira na escola todos os dias. As duas estão cada
vez mais próximas, principalmente por conta da luta. Minha filha está muito
entusiasmada em aprender a lutar com a tia.
Cansado, eu chego no fim da tarde, encontrando a casa com um clima vivido
que me enche de felicidade. Fez uma total diferença na minha vida ter os braços
de Cassandra para me receber, as suas carícias que me fazem pegar no sono.
Apenas o que falta para tudo ficar ainda melhor é acordar com seu corpo ao meu
lado na cama.
Vez ou outra, depois de uma noite regada a muito sexo selvagem e beijos
apaixonados, ela pega no sono por aqui. Mas na maior parte das vezes Cassie
opta por dormir na sua cama, alegando que não quer atrapalhar o meu sono com
os seus pesadelos.
Gentil demais da sua parte, no entanto, eu prefiro ir trabalhar sem dormir do
que saber que ela está presa nesse tormento e eu não estive lá para ajudar. Eu vi
como eles a deixam perturbada, no quanto esses episódios lhe desestabilizam.
Eu preciso tê-la comigo.
Contudo, parei de insistir. Levanto algumas vezes durante a madrugada e dou
uma espiada no seu quarto, em alerta caso algo esteja errado. Cassie não teve
nenhum pesadelo nos últimos quinze dias, então estou acatando o que propôs e
aguardando a hora certa para voltar a abordar o assunto.
Afinal, Cassandra ainda é uma bomba relógio, só está mais controlada.
Preciso pensar bem no que farei, para não desencadear um conflito que poderia
ser evitado.
— Você fica tão incrivelmente mais gostoso nessa farda — o elogio vem
acompanhado de uma voz aveludada e um sorriso de canto que consigo ver
através do espelho à minha frente.
— Tenho certeza de que você também fica deliciosa com a sua — digo.
As mãos dela enlaçam a minha cintura e os olhos percorrem meu corpo de
cima abaixo, desde os coturnos perfeitamente engraxados até o meu nome
gravado na borda do bolso da gandola camuflada em um tom vivo de verde
oliva.
— Major Sovat — repete o que está escrito, fascinada com como soa, se dito
em voz alta. E eu gostando de como fica ainda melhor quando sai dos seus
lábios.
— Quando vai vestí-lá para eu ver, preciosa? — revira os olhos ao me ouvir
chamá-la dessa forma. Cassie não se conforma, acha que eu chamo qualquer
uma assim. Bom, eu realmente chamava. Mas ela deveria acreditar quando digo
que deu um novo significado a palavra para mim.
— Em breve. — Se limita a dizer, me soltando e se sentando na cama com
uma expressão não muito boa.
— O que houve? — entro em alerta. A preocupação é visível na minha
mudança de postura.
— Estou com um mau-estar — põe a mão sobre a testa. — Acordei
indisposta.
— Quer ir ao médico? Dá tempo de eu te levar e te deixar em casa.
— Não. Vou comer alguma coisa e esperar passar.
Faço carinho no seu rosto, ainda inchado por ter acordado há pouco tempo,
mas não menos gracioso do que sempre. Ela está realmente abatida. Os olhos
levemente fundos e a pele pálida, perdendo o tom caramelo que tanto combina
com seus cabelos dourados.
— Tem certeza? Talvez seja melhor você fazer alguns exames. Pode ser
anemia ou algo assim.
— Se continuar, eu vou ao médico, tá bom? Agora termine de se arrumar e vá
trabalhar, Major.
Tenta um sorriso, mas não me convence muito.
— De quanto tempo é a sua licença, Cassie? — se afasta do meu toque, quase
no mesmo instante em que termino de perguntar.
— Três meses. — Levanta da cama, cambaleando ao fazê-lo. Amparo
Cassandra, impedindo que perca o equilíbrio. — Obrigada. Vou tomar um banho
para ver se me ajuda a reagir.
Desconfiado, permito que saia do cômodo sem questioná-la sobre mais nada.
Continuo me arrumando, sentindo uma dúvida que me acompanha durante todo
o trajeto até o trabalho.
Já são quase quatro horas da tarde quando retorno ao quartel depois de uma
operação.
Devolvo o fuzil que carreguei comigo ao armário da sala de armamentos e
sigo para o banheiro, que fica do outro lado do prédio onde me encontro. Faço o
caminho a passos largos, querendo chegar em casa o mais rápido possível.
— Major — paro no meio do corredor, reconhecendo a voz, mas não
conseguindo conectar um rosto à ela. — Posso falar com o senhor?
Ao virar, avalio o rapaz de pele negra, cabelo cortado rente a cabeça e
algumas tatuagens transbordando para fora do tecido da farda, sem me lembrar
como o reconheço de algum lugar.
— Diga, Soldado Toledo. — Acerto o nome graças à identificação escrita no
bolso da gandola, onde consta apenas a sua patente e o último sobrenome,
contendo também o seu tipo sanguíneo.
O garoto não deve ter mais de vinte anos. No entanto, esbanja uma postura de
homem feito e um olhar perspicaz, que varre o corredor longo em que estamos,
desconfiado, e pergunta:
— Pode vir comigo, senhor? Prefiro não conversar aqui. — Olha para o teto,
sem dar na cara ao que se refere, mas eu entendo exatamente o que quer dizer.
Ele quer ficar longe das câmeras.
— Me acompanhe — Marcho para fora dali, entrando à esquerda e pegando
um atalho para a parte externa do quartel, onde alguns soldados treinam tiro a
muitos metros distantes de nós. Paro debaixo de uma árvore, propositalmente me
esquivando da câmera que há na porta de onde saímos. Ela é uma das poucas que
não capta som, apenas imagens. O que vem a calhar nessa situação. — Vá direto
ao ponto, preciso sair o quanto antes.
— Quero fazer parte do seu esquema. — Diz, decidido. O garoto até mesmo
estufa o peito, se mantendo com as mãos juntas frente ao corpo e os pés um
pouco separados, nariz empinado e olhos atentos esperando um pronunciamento
meu.
— Hmm… Qual é o seu nome mesmo?
— Apolo, senhor.
— Então, Apolo, não sei do que está falando — minto, querendo entender
qual é a dele. — Não faço parte de nenhum esquema. Você deve ter se enganado.
— Me viro, saindo de perto dele sem esperar uma resposta. O soldado vem atrás
de mim.
— Henrique mandou eu procurar o senhor. — Cesso o passo, ainda incerto
sobre suas palavras.
— Ele também deve ter se enganado. Procure esse Henrique novamente e
acerte o mal entendido. — Dessa vez, não paro de andar até estar dentro do
banheiro masculino.
Apolo pode estar falando a verdade, tenho quase certeza de que está, contudo,
eu não posso pagar para ver, arriscar tudo o que meu pai construiu por causa de
um descuido.
Preciso me lembrar de confirmar isso com Henrique depois, agora a minha
prioridade é voltar para casa e ver como Cassie está. Ela não respondeu às
minhas mensagens e nem atendeu a ligação que fiz no horário do almoço.
Entro no banheiro tão preocupado que nem falo com nenhum dos rapazes que
estão ali, passando direto para o meu armário e o abrindo sem delicadeza, já
irritado, imaginando as horas de trânsito que enfrentarei até ter notícias da minha
diaba.
— Aí, galera, vocês não sabem da boa — o Sargento Figueiredo berra,
chamando a atenção de todos, inclusive eu, que viro o rosto na sua direção,
curioso para saber da "boa". — Tem uma loira deliciosa na sala do Comandante
Teixeira. Acho que ela vai trabalhar na Intendência daqui. Vocês precisam ver
como a farda fica um pecado naquele corpo gostoso. — O burburinho começa,
todo mundo falando ao mesmo tempo, querendo mais informações.
Reviro os olhos, voltando a focar em tirar a farda e dobrá-la para que caiba na
mochila.
Por incrível que pareça, mulheres não são uma pauta frequente por aqui. A
maioria das que trabalham no quartel são casadas, e as que não são, costumam
ser bem sérias quanto a dar brechas para os colegas de trabalho. Acredito que o
motivo seja o machismo que infelizmente existe entre os militares. Se elas não
impõem distância, eles passam dos limites e tentam subjugá-las, independente da
patente que tenham.
Não existe hierarquia que impeça um homem ignorante de querer cantar de
galo para cima de uma mulher. Eles são guiados pelo pensamento que rege o
machismo: homens são superiores por simplesmente terem um pinto dentro das
calças.
Nada mais. Nada menos.
— Qual é o nome dela? Vou logo procurar no Instagram. — Outro Sargento
pergunta.
— Na farda está escrito Borello. Vou esperar ela sair da sala para perguntar o
primeiro nome. — O sorrisinho malicioso que Figueiredo dá ao colega faz uma
onda de irritação percorrer meu corpo, ganhando força lentamente,
transformando o cansaço em fúria.
Bato a porta do armário com força e saio bufando do banheiro com a mochila
nas costas, ainda usando o coturno.
Não sei o que estou sentindo enquanto sigo em direção à sala do Comandante.
Uma mistura de raiva e insegurança, talvez? A possibilidade de ser Cassandra
naquela sala me deixa confuso demais. Paro em frente à porta, decidindo que
esperarei bem aqui para saber se é ela ou não.
Se for, por que Cassie não queria que eu soubesse sobre a sua vinda?
Não faz o menor sentido. Antes, talvez fizesse, quando estávamos distantes
emocionalmente. Mas agora? Estamos namorando, apaixonados eu diria. Sei que
ela ainda guarda algumas coisas para si, contudo, não imagino como sua vinda
ao quartel poderia ser uma dessas coisas que Cassie prefere me manter afastado.
À medida que os minutos se seguem, perco um pouco da raiva que sentia
quando cheguei, sentindo apenas uma ansiedade que só irá cessar no minuto em
que eu descobrir se a tal loira é mesmo a minha diaba.
Ou não.
Ao botar os olhos na figura que sai da sala depois de apertar a mão do
Comandante e lhe oferecer um sorriso contido, a ansiedade cresce no meu peito.
O coração dispara de surpresa. Meu olhar se perde por um instante na beleza
arrebatadora de Cassandra sendo realçada pela roupa verde oliva.
A forma como a gandola foi ajustada para as curvas dela nos dá um vislumbre
do quanto Deus caprichou na hora de desenhá-la. O culote camuflado esconde o
volume das suas coxas gostosas, mas não duvido que realce sua bunda
afortunada, como Figueiredo afirmou. Os cachos estão domados pelo coque
meticulosamente feito. Nas mãos, ela carrega a boina. Os pés, calçados com uma
bota preta, param no limite entre a porta e o corredor na mesma hora em que a
diaba nota a minha presença.
Minha expressão facial não deve estar das melhores. Percebo isso através da
conduta defensiva que Cassandra assume ao me ver desencostar da parede e me
erguer até a postura estar ereta, segurando a alça da mochila com uma força
desnecessária que pode rasgar o tecido a qualquer momento.
Sem saber como reagir, ela abre e fecha os lábios algumas vezes, olhando do
Comandante para mim, encurralada. Cinismo escorre dos meus lábios quando
digo:
— Não vai bater continência para mais antigo, Sargento Borello?
[2]
OMISSÃO
Meu coração luta dentro da minha caixa torácica contra o impulso de sair pela
boca. Meus olhos captam a imagem de um Miguel parcialmente furioso,
parcialmente porque ele parece estar em dúvida se tem mesmo um motivo para
estar com raiva, provavelmente desejando que eu tenha uma explicação
plausível.
Não tenho.
E a forma como fico ali, estática, buscando as palavras certas, demonstra isso.
O que está acontecendo com você, Cassandra?
Cadê a mulher forte, que não se abala com nada?
Por que está tão preocupada em contar a verdade?
A resposta para tudo isso está bem aqui.
A resposta tem um metro e noventa, cabelos dourados e olhos azuis gelo que
ao invés de intimidar, me confortam.
— Não vai bater continência para mais antigo, Sargento Borello? — o tom
rude reverbera pelo corredor longo. Ao meu lado, o Comandante arranha a
garganta, querendo que eu resolva essa situação o quanto antes.
Para a Cassandra de um tempo atrás, isso seria humilhante. Diante da situação
em que me encontro, é apenas insignificante.
Uma continência é a coisa que menos me envergonha nesse momento. Ter
deixado ele entrar no meu coração novamente que é realmente a coisa
vergonhosa em questão.
Com os pés juntos, a postura ereta e o braço esquerdo dobrado para amparar a
boina, movimento a mão direita, com a palma para baixo, até a cabeça. Meu
olhar se fixa em um ponto qualquer da parede atrás dele quando cumprimento:
— Major.
— Sargento. — Ele movimenta a cabeça, recebendo a minha continência.
— Tem algo para falar comigo, Major Sovat? — O Comandante Teixeira
questiona.
— Não, senhor.
— Então me deem licença.
Sincronizados, eu e Miguel batemos continência para ele, que recebe o gesto
e fecha a sua porta educadamente.
— Eu espero que você não tenha vindo com o seu carro de quase duzentos
mil reais, Cassandra. — Me encara, desejando estar certo.
— Não vim. Peguei um uber.
— Pelo menos isso — murmura. — Vamos.
Seguimos andando lado a lado para fora do prédio principal. O som da minha
bota e do coturno dele, somado à sua respiração barulhenta, típica de quando
está puto, são a trilha sonora da nossa caminhada. Até uma voz masculina
chamar:
— Sargento Borello — me viro no mesmo instante, fazendo com que Miguel
também pare para ver quem é o dono da voz.
— Sim? — responto, incerta do que esse Sargento poderia querer comigo.
— Seja bem-vinda. Já está de saída? — olha para o homem ao meu lado. —
Major.
— É melhor voltar para o seu posto, Figueiredo. Ou eu vou até a sala do
Comandante e faço uma queixa de assédio sexual agora mesmo.
Sem entender, olho de Miguel para o Sargento, que rapidamente se retrai com
a ameaça, enquanto o Major faz o contrário, se impõe ao meu lado e coloca sua
mão na minha cintura sem apertá-la, apenas encostando-a ali. A ação teve um
efeito singelo para mim e altamente intimidante para o militar do outro lado do
corredor, que parece ter tido um lapso de consciência.
— Me desculpe, senhor. O que eu fiz no banheiro não irá mais se repetir.
Com licença. — Tão repentinamente quanto apareceu, ele se vai.
Opto por não questionar nada a respeito disso, me mantendo em silêncio até
estar dentro do carro simples que Miguel usa para vir trabalhar.
— Onde guarda esse carro?
— Na garagem da minha mãe — responde, indiferente, dando partida no
carro.
Espero até estarmos longe do quartel para perguntar:
— Por que agiu daquele jeito com o Sargento? Não podia engolir o ego e
deixar que eu assumisse a situação?
Ele ri, nitidamente debochando.
— Da próxima vez eu deixo, não se preocupe, vou ficar bem longe para que
você possa desfilar pelo quartel sem eu saber.
Decido não responder. Encontrar Miguel daquele jeito repentino fez a
sensação de que estou prestes a vomitar voltar com tudo. Abro a janela do
automóvel, torcendo para que um pouco de ar melhore as coisas.
— O que foi fazer lá, Cassandra? Por que mentiu pra mim?
Inspiro fundo, tentando conter o impulso de botar para fora tudo o que comi
hoje.
— Eu não menti em momento algum. Só não te contei que viria. Isso se
chama omissão. — Minha resposta o faz bufar.
— Então por que resolveu omitir isso de mim, Cassandra Borello? — a bile
se acumula na minha garganta e respirar fica difícil. Parece que tem alguém
mexendo o conteúdo do meu estômago com uma colher. — Responde,
Cassandra!
— Para o carro, Miguel. Preciso vomitar.
Assim que ele estaciona no acostamento da avenida, desço do automóvel
cambaleando e me apoio no pequeno muro de concreto. Não preciso de muito
esforço para que todo o vômito vá parar no chão. Ergo rosto, encontrando
Miguel com um pedaço de papel higiênico, que ele usa para limpar a minha
boca.
— Vou te levar ao médico. Nem adianta dizer que não.
Não digo nada. Entro no carro com a sua ajuda e deixo que Miguel assuma a
responsabilidade por mim.
A alegria que vinha sentindo no caminho de volta para casa se esvai quando
ao me aproximar do quarto de Cassie, ouço-a chorar baixinho. Os soluços
contidos partem meu coração em pedacinhos. Me aproximo depois de fechar a
porta devagar, sentando na cama, perto de seu corpo parcialmente coberto pelo
edredom. Ela cessa o cair de lágrimas por um instante ao se dar conta da minha
presença, alguns míseros segundos antes de desatar a chorar novamente.
— O que houve, preciosa? — mantenho a voz baixa. Meus dedos fazem
carinho na sua bochecha.
— Pode me chamar de outra coisa? Algo que você nunca tenha usado para se
referir a ninguém, de preferência. — O pedido é feito em meio a soluços.
— Eu tenho uma ideia — confesso, sorrindo feito um idiota no breu em que
se encontra o quarto dela. Apenas a luz da lua, vinda da janela que Cassie insiste
em deixar aberta, ilumina o cômodo. — Mas acho que pode ser meio brega para
você.
— Qualquer coisa que me faça sentir única, mesmo que seja brega, é válido.
— Você é única demais para mim, coração. — Beijo os lábios dela, banhados
em lágrimas que aos poucos param de descer. — Gosta de como soa? Eu acho
que combina com o que sinto por você.
— E o que sente por mim, Miguel?
As orbeses esverdeadas ficam um tom mais escuro à luz do luar, destacando a
expectativa que brilha em alguns pontos das orbes intensas que Cassandra
possui. Os olhos grandes e expressivos são lindos de se admirar, eu ficaria horas
aqui fazendo isso. Mas agora devo uma resposta à altura de tudo o que passamos
até chegar neste instante.
— Sinto que você dominou esse órgão — ponho sua mão direita no meu
peito. —, e fez dele seu submisso, espremendo o pobre coitado toda vez que me
magoa, estilhaçando ele em mínimos pedaços sempre que eu te ouço chorar, e
reconstruindo ele inteiramente apenas com um comando: seu sorriso sarcástico.
— Ela ri, sentindo os meus batimentos pressionarem a palma da sua mão. — Eu
ainda vou comprar um monitor cardíaco para você ver o quanto meu coração é
influenciado por tudo o que faz. Vocês dois estão ligados, parecem terem se
tornado um só. Acho justo chamar a bomba sanguínea no meu peito de Cassie e
você de coração. O que acha?
— Eu acho lindo. — Ela se senta no colchão e tira a mão do meu peito,
trazendo a minha para a sua barriga. Os olhos dela enchem de lágrimas
novamente ao revelar: — Principalmente agora que terá outro coração nas
minhas mãos.
Ela não está… Eu não vou ser… Nós não vamos ter um…
Formular uma frase se torna difícil de uma hora para outra.
Minhas mãos tremem.
Meus olhos extravasam água feito uma cachoeira.
Meu peito transborda alegria.
Meu cérebro ainda processa a informação lentamente durante o tempo em que
sou abraçado por Cassandra e envolvo os braços ao redor do corpo que abriga a
nossa preciosidade.
TAREFA DIFÍCIL
Não sei dizer exatamente há quanto tempo estou tentando me acostumar com
o que meus olhos vêem, só que ainda é surpreendente acordar coberta por pétalas
de rosas.
Elas estão por toda a cama e também um pouco no chão. Vermelhas e
cheirosas. Meu sorriso se alarga só de imaginar Miguel espalhando-as em cima
de mim.
E por falar nele…
O bendito adentra o quarto trazendo em mãos uma bandeja de café da manhã,
lindo, vestindo apenas uma bermuda, os pés descalços e o sorriso largo.
— Bom dia, mamãe. — O tom meloso se faz presente quando coloca a
bandeja na cama.
Acredito que qualquer pessoa conseguirá ver o quão radiante Miguel está
depois da notícia de ontem. Houve uma mudança significativa nas suas feições,
agora mais tranquilas. Assim como um brilho nos olhos genuíno, que não dava
as caras há muito tempo.
— Miguel, sobre a gravidez…
— Vai dar tudo certo. Eu marquei uma consulta com a obstetra, vamos
começar o pré-natal o quanto antes. — Ele se deita à minha frente, alisando
minha barriga nua, deslumbrado. — Estou tão ansioso para saber o sexo… Não
vejo a hora de completar oito semanas e poder fazer o exame de sexagem. Se
você concordar, é claro.
— Podemos fazer sim. — Respondo, dividida entre a euforia e a incerteza. —
Eu só… — Ele me encara atentamente, os olhos tremeluzindo enquanto aguarda
o que vou dizer. — Quero esperar um pouco para contar às pessoas.
— Um pouco quanto?
— Completar as doze semanas.
Miguel continua fazendo carinho na minha barriga, parecendo frustrado com
o meu pedido.
— Do que está com medo, Cassie? — não respondo de imediato, mantenho o
olhar fixo na pétala de rosa que tenho em mãos. — Do que as pessoas vão pensar
da gente?
Solto uma risada sem nenhum traço de humor.
Isso é o de menos, Miguel.
A opinião das pessoas deixou de ter importância há muito tempo.
Mas a minha própria opinião sobre mim nunca me deixará em paz. Foi por
causa dela que chorei na noite anterior, ao finalmente decidir descobrir o
resultado do exame, ela me diz a todo momento que sou uma impostora, que
estou vivendo uma vida que não deveria ser minha, que não mereço a felicidade.
Receber o resultado positivo no exame terminou de me massacrar. Chorei
horrores, com a ideia martelando na minha cabeça, de não ser digna dessa
benção.
— Olhe para mim, Cassandra. — Sou retirada do devaneio quando as mãos
de Miguel tomam meu rosto e seu nariz roça minha bochecha. — Você nunca foi
o tipo de pessoa que se importa com o que os outros pensam, por isso é tão
desinibida e corajosa. Acredite em mim quando eu digo que todos queriam ser
assim, como você. Essa é a sua essência, linda e livre, e eu quero que o nosso
bebê veja isso. Ele tem que saber o quanto é sortudo por ter uma versão real da
mulher maravilha para chamar de mãe, entendeu? — balanço a cabeça
positivamente, incapaz de formular uma resposta devido à choradeira que toma
conta de mim. — Não tenha medo de nada, coração. Estamos vivendo
exatamente o que deveríamos viver. Eu vou cuidar de vocês e Deus vai cuidar de
todos nós.
— Pare de dizer essas coisas bonitas, senão não vou conseguir parar de chorar
hoje! — reclamo. Meu rosto deve estar inchado e vermelho feito um tomate.
— Seriam os hormônios já fazendo efeito? — brinca, limpando as lágrimas
que escorrem bochechas abaixo.
— Eu espero que não!
Miguel ri de se acabar em conjunto ao meu choro dengoso. Seus braços me
puxam em um abraço apertado e vamos parar do outro lado do colchão, rindo e
chorando.
— Agora vem a tarefa mais difícil da vida de um pai e uma mãe. — Ele usa
um tom sério para dizer.
— Qual?
— A escolha do nome dessa bendita criança.
Dou um tapinha em seu braço, enrolado na minha cintura para que sua mão
acaricie minha barriga, querendo castigá-lo por me deixar preocupada sem
motivo.
— Não acho que esse seja o maior desafio que iremos enfrentar.
— Mas é, coração, o primeiro de muitos deles. Essa escolha vai definir se a
nossa relação com ele começará com o pé direito ou esquerdo. O nome é o
começo de tudo.
Me desvencilho dele, indo até a bandeja para beliscar o café da manhã que
Miguel trouxe.
— Bom, então é melhor capricharmos na escolha.
PAI DE MENINA
Duas semanas depois…
Eu costumava gostar muito de ir ao parque de diversões quando criança.
Eram corriqueiros os pedidos para que minha mãe me levasse. Depois do
diagnóstico, nem todos eram atendidos. Haviam vezes em que ela não conseguia
nem ficar de pé, principalmente durante o estágio terminal, a força se esvaiu
completamente do seu corpo, impossibilitando-a de me levar a qualquer lugar
que não fosse um hospital.
Tenho certeza que mamãe morreu se culpando por não ter conseguido ir
comigo até lá uma última vez.
Se eu pudesse dizer algo a ela, diria que isso não fez diferença alguma para
mim. O parque sempre será o nosso lugar, independente de quantas vezes não
pudemos ir porque seus pulmões estavam fracos demais para suportar fazer uma
simples caminhada.
Não foi sua culpa, mãe.
Você fez ser especial em todas as outras vezes.
Porque você era esse tipo de pessoa: que transformava todos os momentos em
momentos especiais.
Vamos fazer valer a pena, filha.
Era o que dizia sempre que íamos usar a última ficha restante na máquina de
bichinhos de pelúcia.
De volta ao parque de diversões, sinto que você fez mesmo valer a pena, não
só todas as vezes que me trouxe aqui, mas também com cada molécula de
oxigênio que usou até seus pulmões não aguentarem mais.
Ao meu redor, as luzes coloridas, os brinquedos girando, subindo, descendo,
são um prato cheio para as minhas melhores memórias com você, mãe.
Prefiro acreditar que seu corpo não foi páreo para a mulher intensa e cheia de
vida que era.
Ponho a mão na barriga que está começando a ficar protuberante, decidindo
que passarei para o meu bebê todas as lindas memórias que minha mãe deixou
para mim. E quando ele me perguntar porque ela se foi, direi que o corpo dela
pode ter perdido a vida, mas Daniela nunca estará morta, pois soube cultivar
lembranças que sempre a manterão viva no coração de quem a amava.
Ando alguns passos pelo lugar, ladeada por outras pessoas que desconheço.
Em pouco tempo de caminhada, avisto o carrossel. Ele era, sem dúvidas, meu
brinquedo preferido. Não resisto, e logo estou ingressando na estrutura giratória,
me apossando de um cavalo branco. Seguro firme na extremidade dele, temendo
que em um descuido eu perca a estabilidade e vá parar no chão.
A simples ideia de cair com meu filho estando na barriga me apavora.
Tem sido assim, o medo se faz constante em relação a coisas simples, como
subir escadas, correr, pegar algo pesado.
Em um solavanco, o carrossel torna a girar, lentamente, os cavalos subindo e
descendo. Meu sorriso se alarga quando penso ter visto minha mãe um pouco à
frente, também sentada no cavalo. Os cabelos loiros claros são idênticos,
cortados na altura dos ombros, exatamente como gostava. Ela se vira para trás
outra vez e não restam mais dúvidas, é Daniela.
— Mãe? — chamo, em meio a várias pessoas falando ao nosso redor. Mamãe
não responde, e nem retorna a olhar para mim. — MÃE! — grito, sem receber
uma resposta. — Daniela! Sou eu, Cassandra!
Nada.
A estrutura continua girando, me deixando tonta e piorando o meu estado de
confusão com o que está acontecendo. Coloco a mão na cabeça, querendo conter
o latejar frenético da região. É aí que acontece o que eu mais temia.
Caio no chão, de barriga para baixo, ao perder o equilíbrio em cima do
cavalo. Minha testa bate contra o piso metálico e meu nariz queima. Agarro uma
das pilastras da estrutura, tentando me levantar, quando o faço, entro em
desespero com a imagem de uma poça de sangue esparramada no pedaço do
metal.
— MEU BEBÊ! — o grito ecoa por minha garganta afora. Sinto braços
envolverem meu corpo, me mantendo no lugar, continuo gritando. — NÃO, DE
NOVO NÃO!
— Cassie, acorde, por favor. — A voz de Miguel intervindo me faz parar por
alguns segundos. Ele não está junto comigo no parque… — Abra os olhos,
coração.
Ao fazê-lo, encontro seu rosto bem próximo ao meu enquanto seus braços me
cercam, um por baixo dos meus ombros e o outro por cima da minha barriga.
— Foi um pesadelo? — ele assente, tirando alguns fios de cabelo da minha
testa suada. — Desculpe. Eu te acordei?
— Não se desculpe por uma coisa que não pode controlar. E não, estava lá
embaixo preparando o jantar. Você ficou aqui em cima para tirar um cochilo e
dormiu a tarde inteira. É quase noite.
Mais um pesadelo horrível.
Isso tem acontecido bastante ultimamente. Em todos eles, eu perco meu bebê
de um jeito diferente.
— Ah, sim. — Finjo indiferença, não querendo que Miguel perceba o quão
atormentada estou. Ele tem se demonstrado eufórico com a gravidez, muito mais
do que eu.
Para falar a verdade, a cada dia que passa vem sendo difícil manter o
pensamento positivo em meio aos pesadelos e as lembranças do meu aborto. Em
alguns dias, sinto vontade de simplesmente sumir, ir para algum lugar bem longe
da expectativa sufocante de Miguel, porque infelizmente vê-lo tão esperançoso
só está piorando as coisas.
Não quero decepcioná-lo. Mas é pesado carregar tudo sozinha agora que
tenho outro ser dentro de mim. Fico dividida entre demonstrar como me sinto ou
fingir que compartilho da mesma animação.
— Você está tendo muito mais pesadelos ultimamente. Acha que é por ter
parado de tomar os remédios?
— Provavelmente.
Assim que iniciei o pré-natal, no dia seguinte à descoberta da gravidez, a
obstetra recomendou que eu suspendesse o uso dos ansiolíticos até o fim da
amamentação, para evitar riscos ao bebê.
Como resultado, minha mente está trabalhando com o dobro de potência para
me atormentar. Estou ansiosa, sentindo um misto de sensações sufocantes
tomando conta de mim aos poucos. Isso é perigoso, tenho medo de chegar ao
ponto de não aguentar e… Explodir. Destruindo junto comigo quem está ao meu
redor. E, claro, o bebê que ganha vida dentro de mim.
— Você pode tentar ocupar a mente. Voltando a praticar atividade física
moderadamente, lendo alguns livros, testando receitas novas… — Miguel tenta
propor uma solução. Ele realmente está se esforçando para me agradar. Enquanto
eu me esforço para não mandá-lo ir à merda. Estou irritada na maior parte do
tempo, efeito colateral da falta dos remédios provavelmente, e isso tem custado
sugar qualquer resquício de paciência que há em mim.
— É, posso sim. — Forço um sorriso.
— Amo você. — Beija meus lábios. Me sinto indigna do seu carinho.
— Também te amo. — Saio da cama depois de lhe retribuir com outro
selinho. —Vou lá fora pegar um pouco de ar.
— Ok, vou voltar para a cozinha e terminar de fazer o jantar.
Descemos as escadas juntos, tomando rumos diferentes ao final dela. Quando
fecho a porta da casa atrás de mim, sinto que tirei um peso enorme dos ombros.
Ando para longe, respirando melhor a cada passo que coloca uma distância
saudável entre Miguel e eu, me possibilitando um pouco de descanso da farsa
que tenho vivido.
Mas a paz dura por pouco tempo mesmo, somente até Suzana estacionar seu
Mini Cooper na lateral da sua residência e decidir se aproximar de onde estou
parada, absorvendo a maior quantidade de ar puro que posso. Não tão puro
assim, considerando o índice de poluição do Rio de Janeiro, contudo, livre das
coisas que me sufocam na casa de Miguel.
— Cassandra. — A senhora Sovat cumprimenta, parecendo disfrutar de um
excelente humor.
— Suzana. Algum problema? — porque é isso que falta para eu explodir.
— Eu que te pergunto, houve algum problema?
Inspiro devagar, voltando a ficar irritada por conta do tom desconfiado.
— Não, Suzana. Está tudo ótimo. Mais alguma coisa?
— Nada. — Simples assim, ela se vira e dá alguns passos rumo à sua casa,
mas logo algo a faz cessar o andar e se virar novamente. — Eu não tenho nada
contra você, Cassandra. Apenas fiquei receosa sobre o seu amadurecimento. Mas
você me mostrou que eu não tenho porque temer. Estou contente com isso.
Esse seria o momento em que eu deveria dizer algo. Agradecer? Concordar?
Apenas assinto, encarando o céu escurecer.
— Não tema essa gravidez. É normal ficar insegura, mas não deixe que isso
te consuma, vai fazer mal ao bebê. — Volto a atenção para Suzana tão rápido
que meu pescoço dói com o esforço feito para encará-la. Eu e Miguel
combinamos que não íamos contar a ninguém antes de completar as doze
semanas! Isso é mais do que o necessário para voltar a ficar irritada. — Fique
tranquila. Estarei aqui para te ensinar tudo o que precisa saber sobre a
maternidade, pode contar comigo, querida.
— Obrigada. Agora eu preciso voltar e ajudar Miguel a preparar o jantar. —
Minto.
— Vai lá. Amanhã dê uma passada aqui em casa para conversarmos melhor.
Assinto, lhe dando um sorriso sem dentes carregado de falsidade. Vejo
Suzana marchar para sua residência vestindo uma saia lápis de couro, blusa de
oncinha e scarpins pretos, acompanhada da sua Louis Vuitton, alheia ao que se
passa na minha cabeça.
De volta à casa de Miguel, bato a porta sem delicadeza alguma e exalando
fúria a cada passo que dou, ando em direção à cozinha. Ele rapidamente se dá
conta da minha presença e não demora a captar os sinais de que há algo errado
no meu comportamento.
— Eu te pedi para guardar segredo até os três meses, Miguel. — Relembro.
— Foi só para a minha mãe, coração. Não consegui esconder, ela me
conhece, eu tive que contar. — Ele se defende, usando um argumento que não
vale nada para mim.
Sinto meus olhos lacrimejarem. Trinco o maxilar, engolindo em seco a
vontade de me desfazer em lágrimas pelo chão. Corro o mais rápido que posso
escadas acima e me tranco no meu quarto, deixando o choro escapar e abafando
o som dos meus soluços com o rosto enterrado no travesseiro.
Raiva, culpa, decepção, todos sentimentos que ganham força dentro de mim a
cada vez que expulso uma lágrima.
Estou acostumada a me sentir assim, mas não conseguir controlar essa
avalanche de emoções que escorre para fora do meu corpo de forma violenta é
duas vezes pior agora, que estou grávida. Há um ser crescendo na minha barriga
que será influenciado por tudo o que eu fizer. E neste momento, estou fazendo
algo ruim para nós dois, simplesmente porque me acostumei a fazer mal a mim
mesma, e agora não consigo parar.
Estou condenando meu bebê a viver esses episódios de tormenta junto
comigo, a partilhar do inferno que é estar dentro do meu corpo.
Eu já desejei diversas vezes acabar com tudo, sair de mim, pois não importa
quanto tempo passe, a dor está entranhada no âmago do meu ser.
É ingênuo esperar que algo de bom floresça aqui. É cruel manter alguém aqui
dentro quando eu mesma sinto vontade de fugir do meu interior todos os dias.
Talvez eu devesse acabar com o nosso sofrimento de uma vez só.
UMA ESCOLHA, DOIS CORAÇÕES EM JOGO
Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
A frase ecoa diversas vezes na minha cabeça, doendo igualmente em cada
uma delas.
Um dia, cheguei a pensar que já haviam me destruído ao ponto de não sobrar
nada mais para ninguém poder fazê-lo.
Estava terrivelmente enganada.
Com essas palavras, Miguel estilhaçou o que seu amor estava reconstruindo
dentro de mim.
Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
Ao ouvi-lo dizer isso, senti que essa frase se tornaria um divisor de águas na
minha vida. Enquanto dirijo sem rumo, paro o mais longe que posso de sua casa,
percebo que foi a coisa mais cruel que já me disseram.
Não por ter sido dita com tamanha raiva como Miguel fez, mas por ser a mais
pura verdade, nua e crua, me estapeando sem usar as mãos.
Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
Eu também não quero ser essa mulher, Miguel.
A dor é tão forte que me tornou essa mulher, que prefere abortar um bebe
inocente do que lutar por ele, como uma mãe de verdade faria.
Acontece que as forças que me restaram não são mais suficientes para lutar
contra os meus demônios. Sinto que estou perdida em um labirinto onde não
importa para onde eu vá, o sofrimento me perseguirá do mesmo jeito.
Queria ser capaz de te explicar isso, Miguel, mas também não tenho forças
para fazê-lo. Ver a forma como te destruí com as minhas palavras drenou toda a
força que guardei para este momento, onde eu explodiria e destruiria tudo que
estivesse por perto.
Por isso dirijo para o mais longe possível, porque sei que com a quantidade de
raiva que estou sentindo, ainda há munição para outra explosão.
Seguro o volante com tamanha força que os nós dos meus dedos ficam
brancos. Piso firme no acelerador ao entrar em uma rua qualquer, deserta e cheia
de vegetação ao redor, um gatilho que ativa a memória do pior dia da minha
vida.
Assim que o Capitão Borges deu meia volta com a viatura para fugirmos do
tiroteio, fomos encurralados por diversos homens fortemente armados em uma
caminhonete. Eles faziam parte dos grupos hostis que representavam a
resistência contra o governo. Suas armas estavam apontadas para nossas
cabeças, não nos dando outra opção a não ser descer e colocar as nossas no
chão, como queriam.
Quando eles se aproximaram e nos renderam definitivamente, eu sabia que
aquele seria o começo do inferno. Fui para aquela missão ciente da extrema
violência que esses grupos ofereciam a qualquer pessoa ligada ao governo. E
pela primeira vez na vida eu desejei não estar fardada, queria estar em um lugar
seguro, onde eu pudesse manter meu filho na minha barriga em segurança.
Mas lá estava eu, sendo enfiada na caminhonete, condenada a conhecer o
extremo da crueldade humana em prol da missão que escolhi fazer parte.
E alguns meses depois, aqui estou eu de novo. Sendo encurralada por dois
carros numa rua deserta. Desejando não ter sido impulsiva e saído da casa de
Miguel. Querendo voltar para a proteção que os muros enormes daquela
residência me proporcionava. Pedindo internamente para Deus que haja uma
solução para seja lá o que esteja prestes a acontecer.
Por Miguel.
Pelo nosso bebê.
E talvez, se Ele achar que sou digna de uma outra chance, por mim também.
— Desça do carro, Cassandra. E nem pense em reagir, senão seu corpo vai
parecer uma peneira de tantos tiros que vai levar. — A voz conhecida me
apavora, estou tremendo quando tiro a chave da ignição e saio do automóvel,
sendo pressionada contra a porta e tendo meus pulsos algemados atrás das
costas.
Através do vidro, a última coisa que vejo é o sorriso no rosto de Eric antes de
ele bater minha cabeça contra a superfície do automóvel e a escuridão preencher
todo o meu campo de visão.
Minhas mãos estão inchadas quando resolvo que é hora de parar de judiar do
boneco de borracha e subo as escadas rumo ao segundo andar da casa,
planejando passar direto pelo quarto de Cassie. Contudo, isso não acontece.
Entro a passos incertos no ambiente e acendo a luz.
É claro que o cheiro da desgraçada tem que estar na casa inteira!
Mesmo com raiva, inspiro seu aroma. Ele está impregnado em cada canto
daqui, como se a parede e os móveis fossem tão fissurados por senti-lo quanto
eu.
O local possui uma arrumação impecável, nem parece que a dona desse
quarto é o próprio furacão. Sento em sua cama, passando as mãos pelo edredom,
não querendo me desfazer das lembranças de quando fizemos amor bem aqui.
Eu já comparei Cassandra com inúmeras coisas, mas nenhuma delas foi tão
certeira do que compará-la à um raio de sol.
Ela brilha.
Assim como queima.
Ela ilumina.
Tanto quanto faz arder.
Foi ingênuo da minha parte achar que poderia rodeá-la sem me queimar.
Estou levantando da cama dela quando esbarro na sua mesa de cabeceira e
alguns papéis caem no chão. Bufo, frustrado, me abaixando para recolhê-los, e
sou surpreendido ao perceber que se tratam de cartas. Uma delas está aberta.
Reconheço a letra cursiva bem arredondada, o que não entendo é porque Cassie
escreveria uma carta para si mesma.
Para a Cassandra do passado.
Você fez tantas merdas que não consigo pontuar qual delas foi a mais decisiva
para te condenar ao inferno que viria a ser sua vida mais adiante. Você foi
egoísta, invejosa e amarga. Talvez ver a própria mãe desfalecendo diante dos
seus olhos tenha acabado com qualquer esperança que havia dentro do seu
coração. Mas ao invés de se abrir e buscar coisas boas, você escolheu semear o
ódio. Talvez mereça tudo o que te aconteceu, no fim das contas.
Estou tremendo enquanto seguro o papel. Lágrimas ameaçam voltar a cair. Se
Cassandra foi capaz de empregar tanto rancor em palavras destinadas para ela
mesma nem consigo imaginar o quão piores podem ser as cartas adiante. Mesmo
com receio, passo uma das folhas para frente, desembrulhando-a. Respiro fundo
ao ler o remetente.
Para Clarice.
Eu gostaria que a imaturidade tivesse pego mais leve comigo quando penso em
você. Eu tinha doze anos quando decidi que você era uma ameaça a tudo que eu
queria. E fiz da nossa relação uma rivalidade.
Estou me segurando para não escrever a palavra perdão mil vezes nesta
carta. Está difícil porque a cada vez que penso no que eu podia ter feito
diferente, essa palavra vem à minha mente. Ela não é o suficiente para
demonstrar o quanto me arrependo. Mas penso que se estivéssemos em lados
diferentes, e você fizesse uma carta para mim onde escreveu perdão mil vezes,
eu sentiria a sua culpa com mil vezes mais intensidade.
Perdão por…
No restante da carta, Cassie faz exatamente o que propôs, pede perdão
diversas vezes e lista todas as coisas das quais se arrepende. Não leio até o fim,
embrulho o papel novamente. Sem querer, deixo que algumas lágrimas caiam em
cima da próxima carta. Mas não o suficiente para impedir que eu leia o
remetente.
Não reconheço o nome, e isso me intriga ainda mais a continuar mergulhando
nas palavras escritas a mão por Cassandra. É como se através dessas cartas eu
recebesse uma porta que me permitisse mergulhar na imensidão dos
pensamentos dela. Por essa ser a primeira oportunidade que tenho de entender o
que se passa na sua cabeça, sinto uma necessidade absurda de decifrar o que
cada linha significa para ela, como Cassie se sentia quando escreveu.
Devoro as próximas duas cartas como se esses pedaços de papéis explicassem
tudo o que venho buscando há muito tempo. A cada linha, perco o fôlego, e
preciso parar por alguns segundos para me recuperar.
Para Felipe.
Você viu beleza em mim antes mesmo de poder decifrar os traços do meu rosto
em meio à lama.
Você se apaixonou antes mesmo de perceber o quão intenso era o coração
que havia conquistado. Mas ao contrário do que pensei, você não quis voltar
para a superfície. Você mergulhou fundo no mar imenso de sentimentos que
havia dentro de mim. Não se assustou com as ondas bravas que de vez em
quando apareciam. Você morreu sem conseguir explorar tudo o queria, mas eu
ainda te guardo aqui dentro, no meu mar interior, porque sei que não há outro
lugar do qual você iria querer estar.
Amo você com todo o caos que habita dentro de mim.
Para o meu bebê.
Você se foi da mesma forma repentina como chegou. Se eu tivesse previsto a
sua chegada, teria feito tantas coisas diferentes. Tenho muitos arrependimentos,
mas com certeza esse é o maior. Não sei se a culpa foi minha, de qualquer
forma, peço perdão por não ter conseguido manter você em segurança dentro de
mim. Foi pesado demais, até hoje não sei como eu mesma aguentei. Quase todos
os dias eu desejo ter ido junto com você. Talvez assim fosse mais justo. Menos
sofrido. Porque a tortura não acabou quando me resgataram, ela começou
naquele dia. A dor dos choques não chega nem aos pés da dor de perder você,
meu bebê.
Espero, de coração, que esteja melhor do que quando estava na minha
barriga. E que um dia a gente se encontre.
Amo você com todas as minhas forças.
Não…
Ela não…
Meu Deus!
Largo os papéis em cima da cama e corro para a sala, onde deixei meu
telefone. Assim que o tenho na minha mão, faço uma chamada para o número de
Cassandra, aflito, querendo ouvir sua voz o mais rápido possível. Ela não atende.
É claro que não vai atender… Deve estar sentindo um ódio descomunal de mim.
Resolvo ligar para Helena, torcendo para que ela esteja com Cassie e me
ajude a resolver as coisas.
— Alô, Miguel? — ela atende. Parece tranquila.
— Helena, Cassie está por aí? Ela saiu daqui sem dizer para onde ia, nós
brigamos e…
— Calma, Miguel. Vamos por partes. Não falo com Cassandra há um tempo.
Algumas semanas, acho. Ela não apareceu por aqui. Que horas saiu daí?
— Faz uma hora, eu acho… — Respondo, minha cabeça girando de
preocupação. — Se ela aparecer, me ligue, Helena, por favor. Precisamos
conversar.
— Claro, ligo sim.
Depois de me despedir, desligo a ligação com o coração apertado. Odeio
pensar em Cassandra dirigindo, furiosa comigo, e grávida. Essa combinação não
é nada boa.
Estou tentando me acalmar quando meu telefone toca novamente. Pego o
aparelho achando que se trata de Helena me ligando para avisar que Cassie
acabou de chegar na sua casa, mas sinto um alívio momentâneo ao ver que se
trata do número de Cassandra.
— Cassie? — chamo, assim que atendo.
— Ela está enjaulada nesse momento, mas você pode conversar comigo para
negociar a soltura dela. Que tal?
O alívio se esvai, dando lugar ao desespero, no instante que ouço a voz
masculina.
DUAS PRECIOSIDADES
Apertando a embreagem da sua moto, Samuel produz um barulho que gera
expectativa em todos que aguardam a sua entrada no salão. O caçula dos Sovat
veste calça jeans rasgada, uma blusa simples e blazer branco, se demonstrando
neutro quanto à preferência do sexo do bebê.
— Anda logo com essa porra, Samuel! — O filho do meio de Suzana berra.
Aparentemente Rafael não gosta de esperar para saber nada. Ele odiou a ideia do
chá de bebê e insistiu que era uma comemoração desnecessária. Esse contador é
bem rabugento para um cara com uma vida luxuosa como a dele.
Samuel ignora o irmão e continua a apertar a embreagem. Seus cabelos estão
penteados para trás, ficando esvoaçados quando ele dá partida na moto e enfim
adentra o salão, espalhando a fumaça cor de rosa que nos faz vibrar de alegria.
— Sua intuição falhou. — Jogo o fato na cara de Miguel. Ele me abraça,
ficando em silêncio por alguns segundos, até que diz:
— Nunca fiquei tão feliz em saber que minha intuição falhou.
Me lembro de pensar que talvez Miguel tivesse perdido a sua complacência
ao longo desses anos, devido a tudo que lhe aconteceu. Entretanto, ele ainda
possui essa qualidade de sobra. Todos os dias eu vejo um pouco dela nas suas
atitudes e me apaixono um pouco mais.
Sem dúvidas essa é a coisa que mais amo nele. E o que me faz não ter medo
de entregar meu coração para viver todas as experiências incríveis que amar
Miguel me proporciona.
— Vamos ter mais uma preciosa em casa. — Afirmo, ainda me acostumando
com a notícia.
— Nossa pequena Jade. — Ele cantarola, gostando de dizer isso em voz alta.
— Eu realmente espero que ela tenha a sua beleza e a minha personalidade.
— Aposto que será o contrário, ela vai ser uma diabinha. — Miguel suspira,
provavelmente imaginando o perrengue que irá passar se Jade me puxar.
— Por favor, Deus, não faça isso comigo. — Pede, olhando para cima com os
braços abertos, fingindo drama.
Através das caixas de som, Belo canta Reinventar, enquanto eu e Miguel
dançamos pelo espaço do salão, os corpos colados e os olhares compenetrados
um no outro.
Sem tua metade
— Acho que o Belo fez essa pensando na gente. — Miguel brinca. Encosto a
minha testa na dele, lhe dando como resposta um sorriso e entrelaçando nossas
mãos.
O milagre do amor
Mamãe, Antônia, Safira e Cassie tinham ido ao cinema essa tarde. A bolsa
estourou assim que saíram de lá. Por isso, quando cheguei ao hospital, todas elas
estavam aqui, aguardando notícias.
— Sou o pai da criança. — Digo para o médico, que se aproximou de onde eu
e minha família estamos. Rafael e Ricardo chegaram um pouco depois de mim.
Faltam apenas Samuel e Hugo para a família estar completa.
— Venha comigo. — Sigo o homem vestido com uniforme cirúrgico até uma
sala, onde sou preparado para entrar na sala de cirurgia como acompanhante de
Cassandra.
A decisão de ter um parto normal foi algo que ela não abriu mão. Foram
meses de expectativa para viver esse momento. E aqui estamos nós, com exatas
trinta e três semanas de gestação, aguardando a chegada da nossa menina através
de um parto natural.
— Meu Deus, como dói! — Cassie murmura enquanto faz força para o bebê
sair.
Seguro firme sua mão e limpo um pouco do suor da sua testa com uma toalha.
Ela fecha os olhos, mordendo os lábios para conter o grito que ameaça escapar
quando finalmente o corpo de Jade é retirado de dentro dela.
Cassandra é tão forte.
O parto em si é um momento lindo, me faz derramar uma boa quantidade de
lágrimas, mas esse parto desperta uma porção absurda de emoções em mim. Ele
é um marco nas nossas vidas, representa a nossa linha de chegada, a nossa
vitória depois de tudo o que enfrentamos até chegar aqui.
E, porra, ela não poderia ser mais linda!
Uma das enfermeiras entrega Jade aos braços de Cassandra e nós nos
entreolhamos, ambos chorosos. Me aconchego perto delas, fazendo carinho no
rostinho avermelhado da bebê recém-nascida. Seus olhos estão fechados,
impossibilitando que a gente descubra qual a cor deles. Os cabelos, ralos e finos
no topo da cabeça dela, são loiros, como imaginamos que seria.
— Olha só essa mãozinha, meodeoso. — Beijo o dorso da mão de Jade. Ela
boceja, linda e sonolenta.
— Valeu a pena toda a dor. — Cassie afirma, olhando para mim. Sei que não
está se referindo apenas ao parto.
— Eu disse que valeria, coração. — Beijo seus lábios. O gosto é salgado,
devido às lágrimas que nós dois derramamos.
— Vamos levar essa princesinha para tirar as medidas e receber alguns
cuidados. Encontramos vocês no quarto. — A enfermeira pega Jade de volta,
levando-a consigo para fora da sala.
Sou encaminhado por uma profissional da equipe até o quarto onde Cassie e
Jade ficarão pelas próximas horas. Minha noiva chega um pouco depois, sendo
acompanhada pela enfermeira em uma cadeira de rodas. A profissional lhe ajuda
a deitar na cama, colocando Cassandra de um jeito confortável. A recomendação
é de que ela não ande pelas próximas horas, devido ao risco da queda de pressão.
— Estou exausta. — Com os olhos inchados e o rosto vermelho, ela diz.
— Descanse um pouco antes dela chegar. — Seguro sua mão, lhe oferecendo
conforto. Cassie fecha os olhos, quase se rendendo ao sono, mas o toque do meu
celular a faz despertar. — Desculpa. — Me afasto dela para não perturbá-la
novamente, ficando do outro lado do quarto.
O número que me liga é desconhecido. Atendo no impulso, incerto se devo
fazê-lo logo agora.
— Miguel? — não demoro mais de um segundo para reconhecer a voz
feminina. Michely parece desesperada, suponho pela forma como respira com
dificuldade.
— O que houve, Michely? — pergunto, falando baixo na intenção de que
Cassandra não me ouça. No entanto, ela ouve. Sinto seu olhar queimando a
minha nuca, viro o rosto apenas o suficiente para ver suas sobrancelhas erguidas
e os lábios unidos em um bico de desaprovação.
— Aconteceu uma coisa, Miguel… — O barulho da sirene de polícia ao
fundo interrompe sua fala. — É sobre o seu irmão…
— Seja objetiva, me diga exatamente o que aconteceu. — Peço, ignorando o
olhar mortal que Cassandra me lança.
— Samuel. É sobre o Samuel… — Ela respira fundo, me deixando aflito. —
Ele saiu da sala da Ayumi com um envelope e foi lá para fora… — Mais uma
pausa é feita. — Aí depois o Luciano, aquele juiz sem vergonha, seguiu seu
irmão e os dois saíram conversando.
— E depois?
— Depois eu não vi mais, estava do lado de dentro…. Até que ouvi os tiros
e… fui lá ver o que era.
Paro de respirar.
— O que aconteceu com o meu irmão, Michely?
— Ele foi alvejado enquanto tentava ir embora, Miguel. Ele conseguiu
escapar de alguns tiros e ir um pouco longe com a moto, mas caiu…
— Como ele está? Estou indo para aí agora. — Me apresso em pegar a chave
do carro na bolsa que trouxe para Jade.
— Miguel… — Ela chama, como se precisasse ponderar o que deve dizer a
seguir. Paro no lugar, tremendo e sem conseguir respirar direito. — Eu entrei um
instante para pedir ajuda e quando voltei… O corpo dele tinha desaparecido.
Deixo o telefone cair no chão ao mesmo tempo que as minhas pernas cedem e
os joelhos também encontram a superfície.
Cassie se assusta ao me ver desmoronar.
Ela me pergunta o que houve. Eu não consigo dizer nada.
Ela pede que eu me levante. Eu não me movo nenhum centímetro.
Estou em contato com a superfície, sinto o azulejo maltratar a minha pele.
Mas não sinto o chão. Ele me foi tirado assim que assimilei as palavras de
Michely.
Exatamente como aconteceu quando me ligaram e disseram que meu pai
havia sido alvejado na porta de casa.
Até o livro do Samuel <3
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer, primeiramente, à Deus, que como sempre, me dá forças e
ilumina o meu caminho para que eu continue a perseguir os meus sonhos.
À minha família, que se orgulha de mim e me apoia em qualquer
circunstância.
Às meninas do bookstagram, que me acolheram e deram uma chance ao meu
trabalho: Anne Paixão (@olivroqueeuqueroler), Lyvia Maciel (@quemlesente),
Day (@minhaestante.d), Dani (@vicioo_literario_), Sarah Dionísio
(@saraheseuslivros), a minha xará, Alessandra Fardim (@ale_e_livros), o meu
mais sincero obrigada!
Ás minhas leitoras queridas, que embarcaram nessa comigo e me apoiaram
durante o processo de escrita. Devo tudo a vocês!
E, por último, mas de jeito nenhum menos importante, devo um
agradecimento especial à Camila Rodrigues (@primaveraliteraria). Ela, que
topou betar esse livro e analisou cada linha com cuidado. Ela, que me mostrou o
quanto eu tenho vícios de linguagem e escrevo palavras erradas no calor do
momento. Ela, que desgostou do Miguel até praticamente o final do livro e deu
em cima do Samuel todas as vezes que ele aparecia.
Gratidão, Camila<3
[1]
A paz tem seus atributos.
[2]
A expressão "mais antigo" é usada entre os militares para se referir a patente. O militar mais antigo
seria o que está acima de outro militar em questão na hierarquia.