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© 2021 Alessandra Ferrer



Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.

ATENÇÃO: Este livro não é recomendado para menores de dezoito anos.

Capa
Alessandra Ferrer

Diagramação
Alessandra Ferrer

Leitura crítica
Camila Rodrigues (@primaveraliteraria)
SUMÁRIO





SUMÁRIO
NOTAS DA AUTORA
UMA ESCOLHA, DUAS PERDAS
TEMPO PERDIDO
CHOQUE DE ALTA VOLTAGEM
ME PERDOA QUE EU TE PERDOO
MEMÓRIA PRECIOSA
A COVARDIA É UM CAMINHO SEM VOLTA
ZONA DE GUERRA
HABITAT NATURAL
A DIABA ESTÁ DE VOLTA
ERA UMA VEZ
O PREÇO
CARTAS DE ÓDIO
CIÚME DOENTIO
DINÂMICA EXAUSTIVA
A MINHA PRAIA
OS PORTÕES DO INFERNO
A TRÉGUA
EGOÍSTA
ESCOLHAS DO CORAÇÃO
IMAGINAÇÃO TENTADORA
DESEJOS INTENSOS
CINQUENTA TONS DE SAMUEL
A SENTENÇA DE MIGUEL
A PAZ TEM SEUS ATRIBUTOS
PERFEITA HARMONIA
SEGREDO CAMUFLADO
OMISSÃO
PAPAI SOVAT
TAREFA DIFÍCIL
PAI DE MENINA
DE UMA VEZ SÓ
UMA ESCOLHA, DOIS CORAÇÕES EM JOGO
QUEIMANDO NO INFERNO
CARTAS DE ESCLARECIMENTO
DUAS PRECIOSIDADES
ALERTA VERMELHO
POR NÓS
IGUALMENTE ESPECIAL
DIGA SIM
A IRONIA DO NOSSO DESTINO
AGRADECIMENTOS












































Para todos que já se sentiram sufocados pela dor.
Você é mais forte do que esse sentimento autodestrutivo.




“Quando a nossa música tocar, tu ainda vai lembrar do ritmo?

Quando o mundo me machucar, tu ainda vai querer curar minha dor?

Tua voz e tua respiração são meus sons preferidos

Mas, quando eu esquecer de viver

Teu olhar ainda vai me lembrar quem eu sou”


A Música Mais Triste do Ano| Luiz Lins
NOTAS DA AUTORA



Olá, queridas leitoras!
Olá, queridas leitoras!
Antes de vocês iniciarem a leitura, gostaria de fazer alguns avisos a respeito
desta história.
Ao longo da trama, poderão haver algumas situações, pensamentos e atitudes
envolvendo os personagens que gerem gatilhos. Assuntos como: aborto,
violência, suicídio e tortura estaram constantemente em pauta por aqui. Algumas
cenas são gráficas, ou seja, descritas, podendo gerar desconforto para as pessoas
sensíveis ao assunto ou que passaram por experiências semelhantes.
Minha intenção, de forma alguma, é gerar desconforto nas minhas leitoras.
Através desse livro, quero emocionar e contar a história desses personagens.
Portanto, se você não se sente bem lendo a respeito destes assuntos, recomendo
que não prossiga com a leitura.
A protagonista sofre de estresse pós-traumático. Há várias passagens onde ela
se recorda dos acontecimentos que a traumatizaram como se estivessem
acontecendo no presente. Isso foi propositalmente colocado pois um dos
principais sintomas dessa doença é a recordação pontual do ocorrido, fazendo
com que o paciente sinta exatamente as mesmas coisas que sentiu quando
aconteceu, podendo também se recordar de cheiros, sons e texturas com
precisão, tornando a memória ainda mais perturbadora.
Portanto, levem isso em consideração quando chegarem nessas cenas e se
depararem com uma narrativa escrita no presente.
Além disso, é importante ressaltar que eu dei vida a Cassandra e Miguel,
construi suas personalidades, tracei o destino deles, mas isso não quer dizer que
concordo com todas as atitudes e falas que vocês encontrarão nas páginas
adiante. O processo de escrita para mim envolve explorar novos horizontes e dar
voz a outros pontos de vista. Portanto, saibam separar a arte e o artista.
E, por último, mas NUNCA menos importante… Quero pedir um favorzinho
em nome da Cassandra.
Se coloquem no lugar dela.
Pensem no que seriam capazes de fazer caso sentissem as coisas que ela
sentiu ao longo da trama.

Boa leitura.
Com amor e gratidão, Alessandra<3






UMA ESCOLHA, DUAS PERDAS

4 de janeiro
Treze anos
Hoje faz treze anos que meu mundo ruiu.
Treze anos desde o dia em que perdi o amor da minha vida.
Ainda me lembro de chegar no hospital, eufórico com a notícia de que minha
mulher tinha dado à luz a nossa filha.
Até descobrir que uma delas não resistiu.
A euforia logo se transformou em desespero.
Um momento que deveria ser mágico, se transformou em um pesadelo.
O dia, que deveria ficar marcado por ser a data em que a minha filha ganhou
vida, ficará marcado para sempre no meu coração também por outro motivo. Um
motivo extremamente infeliz.
Foi em um quatro de janeiro que desabei no corredor da maternidade onde
Safira nasceu. Que meu mundo ruiu como as paredes de um vulcão em erupção.
Que meu coração foi estilhaçado como se fosse feito de vidro. Que eu precisei,
de forma relutante, aceitar que Clarice não estaria aqui para viver esse sonho
comigo. Por algum motivo, Deus não reservou isso para ela.
Foi difícil. Foi tão difícil aceitar que o meu Deus, o mesmo que me acode e
me protege, me tirou o chão, me tirou o direito de degustar do amor verdadeiro.
Sendo um castigo ou não, ainda hoje, mesmo depois de treze anos, é difícil para
mim recordar que de fato foi isso que aconteceu.
Aceitar, eu aceito. Só não consigo fazer parar de doer. Porque dói muito, dói
demais, dói mais do que um coração calejado como o meu é capaz de aguentar.
Eu perdi a pessoa que mais queria no mundo. E mesmo assim, continuo de pé.
Como?
Por amor.
Não o mesmo amor que me fez sangrar. O amor mais forte, puro e verdadeiro
que existe.
O amor de pai.
É ele quem me salva todos os dias. É nele que eu me apego quando a tristeza
bate, quando me recordo daquele quatro de janeiro. E principalmente, quando
me recordo dela.
Eu falo com ela todos os dias. Mas tento não me lembrar do seu sorriso. De
como suas covinhas ficavam à mostra quando sorria, o que era o tempo inteiro.
Tento não me lembrar de como os seus olhos, de um verde cristalino, me
hipnotizaram por nunca ter visto nada tão lindo. De como ela sempre pensava
positivo, não importava o quão horrível fosse o que tivesse acontecido. De como
ela me amava, com todas as suas forças.
Mas às vezes, eu simplesmente não consigo conter as lembranças. Elas vêm
como uma avalanche para cima de mim. Sem piedade do meu pobre coração. Ele
sente tanta falta de ser amado. No fundo, ele sabe que ninguém o faria como ela.
É por isso que nunca mais bateu forte por nenhuma outra pessoa. E nem o fará.
Um amor como o nosso não acontece duas vezes na mesma vida. Isso
também dói. Porque, da mesma forma que perdê-la partiu meu coração em mil
caquinhos, o amor seria a única coisa capaz de reconstruí-lo.
Mas como eu disse, um amor como o nosso não acontece duas vezes na
mesma vida. Eu perdi a chance de vivê-lo naquele quatro de janeiro. E tento me
conformar com isso desde então.
É mais fácil no dia a dia, quando a rotina consome minhas energias e o único
momento em que a memória dela vem em minha mente é a noite, antes de
dormir. É o momento que conversamos, ou melhor, eu falo e não obtenho
resposta. Conto a ela tudo que está me afligindo, como nossa filha fica mais
linda a cada dia, como meus irmãos estão, como eu morro de ciúmes do
namorado da minha mãe...
Só não conto a ela o quanto sinto sua falta, porque isso ela com certeza já está
cansada de saber. De me ouvir chorar, mesmo baixinho, algumas vezes antes de
pegar no sono. De ver o quanto sinto inveja do meu irmão por ter finalmente
encontrado o amor.
Ela sabe o quanto sinto a sua falta.
Todos que a conheceram sentem.
Clarice era aquele tipo de pessoa impossível de não gostar. Sua presença era
sinônimo de alegria. Ela era o sinônimo de alegria.
Com sua bondade, doçura e simpatia, encantava a todos sem ter dificuldade.
Até as pessoas mais ranzinzas, como, por exemplo, meu irmão, Rafael. Seu mau
humor não tinha vez quando Clarice estava por perto.
Nós crescemos juntos. Éramos vizinhos, morávamos lado a lado desde
crianças em uma rua simples de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Mas foi apenas na adolescência que a paixão surgiu. Não sei dizer exatamente
em que momento comecei a enxergá-la com outros olhos, apenas que foi natural
ao ponto de não saber explicar porque a amava, mas eu sentia. E eu sempre
soube que sentir é a melhor forma de saber.
Aos dezoito anos eu sentia que havia encontrado o meu grande amor.
Ouvi muitas pessoas dizerem que eu ainda era muito jovem, que eu ainda iria
me apaixonar outras vezes, que dali a dez anos nós não estaríamos mais juntos...
Entre outras coisas do tipo. Mas nada tirava de mim a sensação de que estavam
errados, de que eu e Clarice tínhamos o tipo de amor que duraria a vida inteira. É
claro, a possibilidade de estarem certos existia, eu tinha plena consciência disso.
Mas eu estava confiante. Convicção não me faltava. Força de vontade? Menos
ainda.
Quando Clarice engravidou, ouvi mais comentários. Sobre sermos muito
novos para vivermos isso, sobre termos estragado nossas vidas colocando outra
pessoa no mundo, sobre filhos desgastarem a relação... Muitas merdas, todas
desafiando o nosso amor, a nossa força. Mas a gente não se abalou. Minha
família nos apoiaram, isso era tudo o que precisávamos.
À medida que a barriga de Clarice crescia, meu amor por ela crescia também.
Meus amigos, jovens adultos na época, diziam que eu era maluco por ansiar a
paternidade ainda tão jovem. E de fato, eu era. Maluco por aquela mulher.
Maluco por amar a ideia de formar uma família. Maluco por me imaginar sendo
pai de cinco filhos, morando em uma casa com jardim e comemorando bodas de
prata com Clarice.
Eu era um maluco feliz.
Nós dois éramos. Ela amava essa ideia tanto quanto eu.
— EU CONSEGUI, PAI! EU CONSEGUI!
O grito de Safira me faz dar um sobressalto.
Saio da cozinha avoado, arrancando o avental no caminho, encontrando
minha filha chutando o boneco de pancada ao chegar na sala. Deixo escapar um
sorriso quando entendo o motivo da sua euforia.
Há semanas ela tenta dar um pontapé nele.
Desde que comecei a ensiná-la alguns movimentos de defesa básica, que
Safira tirou de letra, a trombadinha vem insistindo que tem talento para aprender
a lutar de verdade.
— Parabéns, filha. — bagunço o cabelo dela. Safira não se incomoda quando
faço isso.
Diferente de sua mãe, ela não tem nenhum pingo de delicadeza nos
movimentos. Mesmo com pouca idade, Safira demonstra que não herdou o jeito
singelo de Clarice e claramente também não tem o mesmo equilíbrio que eu
quanto a brutalidade. Ela tem movimentos bruscos, uma personalidade forte e
não se incomoda nem um pouco em ser gentil. Já eu, sempre soube conciliar
muito bem o meu lado sanguinário com a parte de mim que gosta de dar e
receber carinho.
Noto o olhar insinuativo de um dos meus irmãos, o que agora está menos
estúpido devido a sua professora de etiqueta; Antônia.
Ele se aproxima de mim, ainda com a xícara de café em mãos e os olhos azuis
me examinando ao passo que diminui a distância entre nós.
— Sabe quem a Sasa me lembra?
Olho para minha filha, que tenta reproduzir o pontapé dado anteriormente
enquanto Samuel segura o boneco de pancada para facilitar. Ela sorri
majestosamente durante as tentativas. Esse sorriso sempre aquece meu coração,
é ele quem me diz todos os dias que fiz a coisa certa quando decidi me reerguer e
aceitar a vontade de Deus.
Continuo observando a cena sem chegar a uma resposta exata para Rafael.
— A Clarice é que não é. — Respondo.
Apesar da semelhança física extrema, Safira não possui nada mais que me
remete a sua mãe, infelizmente. Se as pessoas fossem mais como ela, o mundo
seria um lugar melhor.
— Bom, não sei se vai concordar, mas para mim, a Sasa está cada dia mais
parecida com a Cassie.
A simples menção desse nome faz as paredes do meu coração se estreitarem,
como se ela, em pessoa, estivesse o apertando, demonstrando todo o ódio que
deve sentir de mim seja lá onde esteja.
Penso no que o anjo disse, chegando à conclusão de que ele está certo, Safira
tem mesmo muito da sua tia. A predisposição inata para lutar, o jeito insensível
de dizer o que pensa sem se preocupar em como isso vai afetar o outro, até
mesmo a forma como ela anda é semelhante, de um jeito firme, agressivo. Não
sei porque não havia feito essa associação antes.
Na verdade, você sabe exatamente o porquê, Miguel. Não se faça de sonso.
— Meu subconsciente diz, trazendo à tona uma recordação que também me
entristece.
— Tem razão, elas se parecem mesmo. — Acabo confessando.
— É uma pena as duas nunca terem se conhecido, seria muito bom para
Safira ter a tia por perto, uma figura feminina além da mamãe…
Finjo indiferença frente ao que meu irmão diz, como se eu nunca tivesse
chegado a essa conclusão por conta própria. Como se eu nunca tivesse me
lamentado por ser o motivo pelo qual a minha filha nunca vai conhecer sua tia.
—É — suspiro — Teria sido bom mesmo.
— Pelo menos agora ela tem a Antônia. As duas se dão muito bem, são mais
irmãs do que tia e sobrinha.
No mesmo instante que o anjo elogia a relação das duas, minha cunhada
aparece na sala de casa com algumas sacolas em mãos e se junta a nós para o
café da manhã tradicional de aniversário que faço para a minha filha todos os
anos.
Não sei exatamente quando introduzi essa tradição, só sei que ela nos faz
bem, tanto para Safira quanto para nossa família em si. É como se a gente
dissesse, sem dizer uma palavra sequer, que ela é o nosso raio de luz, que ela é a
razão da nossa felicidade todas as manhãs.
— Sim, as duas têm uma relação muito bonita. — Digo.
Sigo o olhar do meu irmão, que observa a namorada mimar Safira com itens
de beleza que vão ficar espalhados pelo seu quarto e em breve não terão mais
utilidade alguma. Mas minha cunhada não se importa, continua firme na missão
de instruir a sobrinha a ter mais vaidade.
Meu irmão é doido por essa magrela, se apaixonou perdidamente e enfrentou
muita coisa até poder apreciar a sensação de encontrar a sua cara metade.
Ele está até menos grosso e arrogante…
O que um chá de boceta bem dado não faz, né?!
Já o meu caçula…
Esse é um caso perdido, boceta nenhuma é capaz de domá-lo, como
aconteceu com nosso irmão do meio. Rafael tinha uma pose de egomaníaco e
metódico, mas soube se render diante de um amor avassalador.
Duvido muito que o mesmo ocorra com o nosso caçula.
Samuel é desprovido da necessidade de ser amado. Não porque teve uma
desilusão amorosa ou coisa do tipo, mas porque é um fresco mesmo!
Seco e insensível. Ele não passaria frio se fosse a Antártida, já que nada
aquece o seu coração. Nenhuma mulher, nenhuma boceta. Nada.
Na verdade, há uma coisa que faz as batidas do coração dele acelerarem e o
corpo pegar fogo: adrenalina.
Ah, essa danada é o vício desse loirinho metido a badboy.
Com sua moto a cento e sessenta por hora, ele é levado ao ápice.
Mas quando não está fazendo loucuras para satisfazer o seu vício, Samuel
está com a família, a quem ocupa um espaço no coração sombrio sem motivo
algum e passa frio.
Somos os únicos a quem ele se importa de fingir compaixão. Mas sabemos
que suas emoções são limitadas. Ele nos ama, não tenho dúvidas disso, embora
seja do jeito distorcido dele sobre afeto.
Isso fica bem nítido para mim enquanto o observo interagir com a nossa
família. Encostado no portal da cozinha, vejo Samu brincar com a minha filha,
revirar os olhos para Antônia, fingir estar contente com a presença do namorado
da nossa mãe… Eu enxergo todas as nuances por trás da personalidade fria que
meu irmão caçula possui. Diferente de todos ao redor, que ignoram o quanto ele
tem a mesma forma de pensar do nosso pai.
Me desvencilho desses pensamentos quando ouço a chaleira chiar, indicando
que a água ferveu. Saio da sala de fininho para passar o café que vamos tomar.
Enquanto deixo o líquido quente se fundir ao pó escuro e o cheiro forte do
café me inebriar, minha mente vaga para uma memória que há tempos não me
permito recordar, que há tempos mantenho adormecida junto com a parte de
mim que lamenta pela outra perda que tive um pouco antes do dia que fui
devastado.
Cassandra.
Mesmo depois de tanto tempo, o rosto dela ainda é nítido quando fecho os
olhos e permito que seus traços invadam meu campo de visão. Sendo guiado
pela memória de treze anos atrás, que reflete o rosto da menina jovem e geniosa
que ela era.
Não deixo de imaginar onde Cassandra estaria agora. Com quem está. O que
está fazendo. Será que ainda me odeia? Será que ainda me ama? Será que sequer
se lembra da minha existência?
Uma parte de mim torce para que ela esteja bem, feliz, sendo amada do jeito
que merecia. E a outra, bem… A outra lamenta pela perda dela, mesmo sabendo
o quanto ver a minha felicidade teria a machucado.
Mas acontece que algum tempo depois que ela se foi, meu mundo ruiu. Eu
tive que escolher uma das duas e no fim, fiquei sem elas.
Eu as queria de formas diferentes, isso sempre foi muito claro para mim. Mas
não para uma delas. E por isso, ela me deixou por vontade própria. Foi embora
determinada a fingir que nunca havíamos nos conhecido. Ela estava tão cega
pelo ódio que não me deu a chance de lhe contar que em breve eu seria pai. Que
em breve ela seria tia.
Sinto as lágrimas se acumularem nos meus olhos. Inspiro fundo. Solto o ar
lentamente. Desvio minha atenção para o café que está quase completamente
coado. No entanto, da mesma forma voraz e avassaladora como Cassandra
declarou seu ódio por mim ao me olhar pela última vez, a saudade reprimida
ganha força e rompe as barreiras que impus para manter a culpa que sinto
afastada na maior parte do tempo.
As lágrimas caem, uma após a outra, pelo rosto que não exibe mais a mesma
felicidade de antes. De quando o motivo delas ainda estava aqui. De quando eu
ainda era um garoto, alheio a tudo que aconteceria em minha vida antes mesmo
de completar vinte anos.
Só espero que aonde quer que Cassandra esteja, que ela esteja mais realizada,
amada e feliz. Muito mais feliz do que eu poderei ser nesta vida.

TEMPO PERDIDO

Desde muito pequena, eu sempre gostei de barulho. Minha mãe costumava


dizer que ainda bebê, eu tinha mais facilidade em dormir ao lado de um rádio do
que no completo silêncio.
A calmaria nunca me agradou.
Até hoje eu tenho dificuldade de adormecer se a televisão não estiver ligada.
Se não ouvir o barulho da hélice do ventilador trabalhando. Ou os motores de
carros rangendo na rua. Sem, pelo menos, uma dessas coisas, minha noite de
sono não existe. O barulho precisa estar lá. Um ruído, um estrondo, um sussurro.
Qualquer coisa. Eu preciso adormecer ao som de algum rumor.
Por quê?
Para silenciar a minha mente infernal.
Simples assim.
Quando se tem uma cabeça fodida como a minha, adormecer facilmente
nunca é uma opção. Na verdade, quase todos os dias eu travo uma batalha
interna para conseguir pregar os olhos. Nem mesmo os soníferos dão conta de
derrubar os meus demônios de uma só vez.
Os ansiolíticos? Não fazem nem cosquinha neles.
Há noites em que eles pegam leve. Apenas serpenteiam a minha mente com
as memórias menos torturantes, as que eu deveria considerar memórias felizes,
mas que se tornaram piores do que as lembranças que eles me trazem nos dias de
martírio, como eu chamo as noites em que sou atormentada com as piores
lembranças.
Hoje é uma dessas noites.
O ventilador está trabalhando em sua potência máxima.
A televisão ilumina o quarto escuro com uma explosão de cores.
O barulho de motos zanzando pela rua entra sorrateiramente pelas frestas da
janela de madeira envelhecida do meu quarto.
Eu bato com as unhas na mesa de cabeceira, produzindo um rumor irritante.
Minha mente produz sons mais irritantes ainda.
Mas a lembrança do barulho do desfibrilador ligado, pronto para ser usado,
não me deixa adormecer. É sempre assim. Eu estou quase dormindo, a maioria
dos meus sentidos está em standby, entretanto, o meu consciente se recusa a
ignorar as provocações dos meus demônios.
Ele se entrega tão facilmente. Ele deveria ser mais forte, se levássemos em
consideração o que eu já passei na vida. Esse filho da puta deveria ser como uma
rocha. Impenetrável e duro na queda.
Ele já foi melhor. Minha consciência era boa demais quando resolvi fodê-la.
Quando, por imaturidade, resolvi ir de braços abertos para o inferno.
Não posso culpá-la, ela estaria boa se não fosse pela minha decisão
desgraçada.
Mas eu vou, mesmo assim.
Eu sou muito boa em transferir a culpa dos meus erros para pessoas
inocentes. Ah se sou!
E com a minha própria mente não podia ser diferente.
Enquanto continuo batendo com as unhas na madeira polida ao lado da minha
cama, eu luto contra ela, me mantendo concentrada nos sons que invadem meu
tímpano simultaneamente, com os olhos fechados, tentando romper a todo custo
as imagens dolorosas que insistem em invadir o meu campo de visão.
Durante esses tempos de tormento, percebi que há apenas uma coisa capaz de
derrubar os meus demônios quando eles se apossam do meu consciente: o
cansaço.
O meu cansaço.
O cansaço que me consome quando passo o dia inteiro na academia e meu
corpo pede arrego assim que eu me aproximo de uma cama.
Sobra apenas o tempo de tomar um banho e comer alguma coisa até que o
meu cansaço se misture com o efeito dos remédios e eu possa ter uma noite
esporádica de descanso.
Esporádica porque recebi recomendações médicas de não malhar pesado por
mais de duas vezes na semana.
Hoje, no entanto, fiquei umas boas horas fritando os músculos durante a
tarde. Sendo esse um esforço em vão, pois, além da luta contra toda a merda que
insiste em me atormentar, a ansiedade para ouvir a chegada de Helena também
não me deixa adormecer. Talvez ela tenha algo bom para me contar.
Não bom o suficiente para me fazer voltar aos tempos em que eu dormia
tranquilamente. Mas bom ao ponto de me fazer dormir com um pouco mais de
esperança.
Afinal, ela é a última que morre, certo?
Prestes a derrapar no abismo que é o meu sono desgraçado, ouço quando a
porta da sala é fechada e os passos ecoam no piso da residência em que passei
uma parte da minha vida. Sei exatamente qual passada pertence a quem. As de
Helena são leves e sutis. As do meu pai são brutas e inquietas. Da mesma forma
que a personalidade deles.
Continuo deitada de bruços na cama enquanto meu pai se locomove para seu
quarto, passando pelo corredor e fazendo a porta do cômodo onde estou tremer
quando seus pés descalços massageiam o piso de madeira sem nenhuma
delicadeza. Espero que ele feche a sua porta para que eu me levante e me
locomova, também descalça, em direção à sala, onde Helena provavelmente me
aguarda.
Desde que voltei para o lugar de onde nunca deveria ter saído, costumo tê-la
como companhia nas noites em que me recuso a me entregar facilmente para os
meus demônios. Minha madrasta sofre de insônia há muitos anos. Ela troca o
dia pela noite, assistindo filmes e tricotando madrugada adentro. Se tornando
uma parceira e tanto para mim há algumas semanas.
Não a encontro na sala, como havia previsto, então sigo para a cozinha,
encontrando uma Helena sorrateira, comendo os docinhos que trouxe da festa de
sua neta.
— Cadê a consideração comigo, Heleninha? — cantarolo, em um tom de
escárnio.
O corpo esmirrado dá um sobressalto ao ouvir minha voz. Típico de quem é
pego no flagra. Entretanto, como a cara de pau que é , Helena logo se recompõe
e rebate:
— Se você quisesse tanto assim, teria ido à festa — seu tom é de deboche
quando se refere aos doces que possui em mãos. Costumamos interagir dessa
forma na maior parte do tempo, recorrendo ao humor ácido como uma forma de
lidar com toda a merda que nos envolve, mas dessa vez, ela deixa um fundo de
verdade pairar no ar.
— Não era a hora. — Digo, em um fio de voz, sem nenhum traço de humor
ao encarar as mãos da minha madrasta.
Ela rapidamente percebe a minha mudança de tom, entendendo que não
estamos mais no meio natural de comunicação sarcástica que aderimos. Estamos
na minha zona de martírio.
— Safira vai amar você, não precisa ter medo.
Solto uma risada anasalada, como se o receio das palavras de Helena não
serem verídicas fosse algo banal. E não é. Esse é apenas o menor dos meus
receios. Mas nunca poderia considerá-lo o mais banal. Afinal, Safira é tudo o
que me sobrou. Se é que eu tenho o direito de dizer que mereço tê-la por perto.
Que mereço o seu amor. Pois, depois do que eu fiz, acho que não sou digna da
sua mínima atenção.
— Espero que sim, mas nós duas sabemos que envolve muito mais do que
isso.
Os olhos castanhos da minha madrasta agora me analisam profundamente
enquanto ela se delicia com um brigadeiro, encostada no balcão da cozinha.
Ignoro o gesto, roubando um doce do prato e me recostando ao lado dela, na
tentativa de escapar da sua análise perturbadora.
— Ele vai te perdoar. Você conhece o Miguel, ele ainda é o mesmo rapaz
bondoso e gentil que conheceu.
Solto outra risada anasalada.
— Eu estou pouco me fodendo se ele vai me perdoar ou não. Na verdade, eu
nem ao menos sei porque devo um pedido de desculpas a ele. Ele é quem me
deve perdão por ter escondido de mim a gravidez da minha irmã.
— Você humilhou ele, Cassandra. Humilhou ele simplesmente pelo fato dele
ter sido honesto sobre os sentimentos dele por você. Sei que fez isso porque
ouvir a verdade te feriu de uma maneira horrível, mas as coisas que disse a ele…
— Era tudo o que eu sentia naquele momento, assim como as dele também
transmitiram o mesmo.
O suspiro de Helena reverbera na cozinha silenciosa, demonstrando o quanto
ela é uma das poucas pessoas que têm paciência comigo.
— As coisas que disse a ele foram muito injustas, filha — deixo meu ombro
cair ao ouvi-la me chamar assim. Odeio admitir, mas minha madrasta se tornou
um alicerce para mim. O jeito como me trata, como se realmente eu fosse a sua
filha querida, quebra as barreiras que impus desde que a conheci. — Não tem
problema nenhum em assumir que você errou no que fez. Você era jovem,
rebelde, achava que era a dona da razão, e teve seu coração partido pela primeira
vez. Assuma os seus erros e repare eles. Deus te deu o tempo que tirou da sua
irmã. Espero, de coração, que faça bom uso dele.
“Deus te deu o tempo que tirou da sua irmã. ”
Depois de tudo que já passei, eu cheguei a pensar que nada seria capaz de me
foder mais.
Eu estava completamente enganada.
Se eu trepasse com o Kid Bengala por duas horas inteiras, não estaria tão
fodida como estou agora que Helena se retirou da cozinha e me deixou sozinha
com suas palavras de merda.
O Todo Poderoso não devia ter feito isso. Ele jamais deveria ter tirado a vida
de uma mulher como Clarice e mantido a de uma mulher como eu. Essa é mais
uma das coisas sem sentido que ele faz e as pessoas aplaudem, como se não
fosse injusto ou completamente sem noção.
Engulo dois docinhos de uma vez, batendo a porta do quarto e me jogando na
cama de qualquer jeito em seguida. Encaro o teto por alguns minutos, sentindo o
cansaço se apossar do meu corpo novamente.
O que minha madrasta disse ainda ecoa na minha mente quando a escuridão
beija meus olhos. Sem forças para fingir que ela está errada, adormeço sabendo
que independente de achar que mereço ou não essa segunda chance que recebi,
eu preciso recuperar o tempo perdido com a única coisa boa que surgiu da época
em que meu coração foi despedaçado pela primeira vez.

CHOQUE DE ALTA VOLTAGEM

O número do telefone de Isabela me encara enquanto observo o celular há


alguns minutos, tentando decidir se realmente farei o que estou pensando em
fazer.
Não há nada me impedindo de fazê-lo.
Tenho certeza de que minha mãe me apoiaria. Meus irmãos iriam achar
estranho, de primeiro momento, mas se opor a mim nunca foi o forte de nenhum
dos dois. Raramente isso acontece.
Entretanto, estou sentindo que devo esperar.
Esperar o quê?
Também não sei!
Vou completar trinta e quatro, se eu for pai agora, estarei na meia idade
quando o meu filho ou filha for adolescente. Isso não é nada mau para um
homem que foi pai um pouco depois do fim da sua adolescência.
Ainda assim, há uma voz dentro de mim dizendo que eu não devia me
precipitar, que devo pensar um pouco melhor nas consequências.
O relógio de ponto, posicionado na parede da sala da minha casa, marca meia
noite e trinta e oito, um excelente argumento para reforçar o meu adiar de
decisão, já que Isabella é enfermeira e hoje é o seu dia de descanso do último
plantão. Não vou atrapalhar seu sono. Tenho mais uma semana para lhe dar uma
resposta.
Deixo o celular jogado no sofá, indo para a cozinha ajudar Safira a guardar os
restos de comida que sobraram da festinha que demos para ela há algumas horas.
Minha filha está concentrada em conseguir encaixar todos os pratos com bolos e
doces dentro da geladeira quando me encosto no batente da porta e observo o
quanto ela tem crescido rápido demais para o meu gosto.
Os cabelos, de um castanho escuro brilhoso, caem como uma cascata sob os
seus ombros finos até chegar no meio das costas, onde ela tem como limite para
o comprimento deles. Seu corpo vem se modificando aos poucos, de acordo com
o passar dos anos. Safira está mais alta, a estrutura física esguia que herdou da
mãe tem se transformado aos poucos. Ela ainda não apresenta nenhum sinal da
puberdade além dos pelos. Provavelmente pelo fato de que ainda não menstruou.
Confesso que anseio esse dia na mesma medida em que abomino.
Será a transição oficial dela de menina para o desenvolvimento de uma
mulher. Como cresci rodeado de homens, não sei exatamente como isso
implicará na nossa relação ou na personalidade dela. Espero que, mesmo com a
necessidade de amadurecer, Safira mantenha a sua essência de menina. Pelo
menos quando se tratar de mim, seu pai amado. Ela sempre será a minha menina.
O meu maior medo é de, no meio dessas mudanças, hormônios e garotos, eu
deixe de ser o seu porto seguro.
Afasto essa ideia quando os olhos azuis escuros dela se dão conta da minha
presença.
— O que o senhor está escondendo de mim, pai?
Entreabro os lábios, um pouco surpreso com a sua astúcia.
— Por que acha que estou escondendo algo de você, preciosa?
— É óbvio que está! — o revirar de olhos que Safira me oferece faz um
sorriso escapar dos meus lábios. — Se esqueceu que estou lendo o livro do
Sherlock Holmes? Nada mais passa batido por mim.
Ainda estou sorrindo quando ela levanta as sobrancelhas, me encorajando a
falar. Pondero por alguns segundos se devo ou não compartilhar o que venho
tramando pelas suas costas.
Safira nunca foi o tipo de criança que vive pedindo um irmão. Mas, também
não faz o tipo egoísta. Acredito que não se sentiria ameaçada caso precisasse
dividir a minha atenção com outra criança.
— Eu estava pensando em ter outro filho — jogo a informação no colo dela
sem mais nem menos.
Pela forma como ela arregala os olhos, percebo que não deveria ter começado
por esse ponto.
— Mas o senhor nem tem uma namorada! — Safira se aproxima de mim,
ainda com os olhos esbugalhados. — Ai, meu Deus… Está escondendo uma
namorada de mim, pai?
Agora, quem arregala os olhos sou eu.
— Não! É claro que não! — respondo, na defensiva. O corpo da minha filha
relaxa ao perceber que falo a verdade. — Nós já conversamos sobre isso, Sasa.
Eu nunca mais vou ter uma…
— Sim, o senhor tem várias preciosas, já sei! — ela completa, me
interrompendo.
— Eu ia dizer que… — Me vejo em um beco sem saída ao tentar explicar
sobre minha vida amorosa inexistente desde a morte da mãe dela.
Safira faz um sinal com a mão, dizendo que eu posso deixar a explicação de
lado. Mesmo assim, me sinto mal por vê-la achar o meu comportamento normal.
— Eu só...não encontrei alguém que me faça sentir como sua mãe fez.
Passo o braço por cima dos ombros dela e a puxo para a sala, onde pretendo
lhe deixar a par do que venho pensando há anos. Conto à Safira sobre como
conheci Isabela, deixando de fora o seu nome e informações mais pessoais, a fim
de evitar que ela crie qualquer vínculo com a mulher.
— Ela é uma moça que trabalha como barriga de aluguel para ter uma renda
extra. — Explico.
— Então, ela meio que vai ter o seu bebê e depois vai abandonar ele com
você em troca de dinheiro?
É em momentos como esse que eu me assusto com a facilidade da minha filha
de enxergar as situações da forma como elas realmente são. Sem rodeios. Sem
ilusão. Apenas a verdade nua e crua.
— Basicamente isso — pego sua mão, conduzindo Safira para que ela se
sente no sofá. Me sento à sua frente, na mesa de centro, e prossigo: — Ela
amamentaria o bebê pelos primeiros seis meses, depois a gente cuidaria dele
sozinhos. O que acha?
— Por quê? — encaro seu rosto, sem entender o que quer que eu responda. —
Por que quer ser pai solteiro de novo?
Respiro fundo.
— Ser pai foi a melhor coisa que poderia ter acontecido na minha vida. Desde
mais novo eu sentia vontade de ter, no mínimo, três filhos, mas acabei parando
na primeira por conta do que aconteceu.
Safira fica alguns minutos em silêncio. Posso sentir as engrenagens da sua
cabeça incrível trabalhando, assimilando o que eu propus e pensando em como
se sente quanto a isso.
— Eu gosto da ideia de ter um irmão. Só não sei se seria bom o senhor fazer
isso de novo.
— Isso de novo o quê?
— Colocar outro filho no mundo sem mãe.
Percebendo o meu choque com a sua sinceridade, ela se explica:
— Não que eu seja infeliz, eu sou muito feliz com a minha vida e a minha
família, mas, uma mãe é uma mãe. Principalmente para uma filha, é com as
nossas mães que aprendemos a ser mulher de verdade.
— Você tem a sua avó…
— Sim. Mas, sei lá, é diferente, sabe? Mesmo sem nunca ter tido minha mãe
aqui comigo, eu sei que é diferente.
Meus olhos estão marejados quando abaixo a cabeça, incapaz de encarar a
minha filha depois de ouvir suas palavras.
Mesmo sem ter culpa, me sinto culpado pela forma como ela se sente. Eu não
fazia ideia do tamanho do vazio que a morte de Clarice deixou na nossa filha. E
o pior é que, da mesma forma como acontece comigo, nenhuma outra mulher
conseguirá ocupar o espaço que era de Clarice no coração da nossa pequena.
Isso, por si só, faz meu coração ficar apertado.
Como pai, eu suportaria a dor que fosse apenas para que minha filha jamais
soubesse o que é agonizar por um segundo sequer. Saber que ela sente o mesmo
que eu, ainda tão jovem, me faz pensar no quanto estou ficando impotente
conforme ela cresce. No quanto as feridas dela poderão se tornar mais profundas
do que as de quando ela era apenas uma menininha e se ralava ao cair da
bicicleta.
— Talvez ele, ou ela, não sinta o mesmo que eu. Talvez ele nem se importe…
— Safira acaricia as minhas costas com o rosto apoiado no meu ombro. — Acho
que um bebê vai te fazer bem.
Inspiro um pouco de ar, de uma forma profunda e lenta. Busco os olhos da
minha filha, de um azul tão escuro quanto o de um mar aberto.
— Vamos decidir isso depois, ok? Agora, vamos terminar de arrumar as
coisas e dormir. Quero acordar cedo para aproveitar bem as minhas férias.
Com um aceno de cabeça, Safira dá o assunto como encerrado e segue para a
cozinha.

8 de janeiro
Uma das coisas que mais me deixa entusiasmado com o tempo livre que as
férias me proporcionam é poder me aventurar na cozinha. Testar receitas novas.
Preparar as refeições sem pressa. Gosto muito do tempo que passo por aqui, não
é atoa que reformei ela inteira no ano passado. Troquei os móveis planejados que
a minha mãe mandou fazer quando me deu a casa, comprei utensílios novos,
quebrei a parede que não me permitia interagir com a minha família enquanto
eu cozinhava.
Agora a minha cozinha conta com uma combinação de design rústico e
tecnológico, uma bancada de mármore lindíssima e um forno a lenha, o meu
xodó.
Não me lembro quando surgiu o amor pela culinária. Acredito que tenha
surgido da necessidade de alimentar uma garotinha enjoada para comer, essa que
me aguarda colocar as panquecas verdes no forno, com os olhos brilhando diante
do seu prato preferido.
— Essas panquecas ficaram dos Deuses! — Safira elogia, indo até a geladeira
em busca de algo.
De todos os que adoram saborear as coisas que cozinho, minha filha com
certeza é a minha melhor degustadora.
— E quando foi que não ficaram?
Ela me lança um sorriso cheio de deboche.
— As primeiras não eram tão boas assim… — Sua sinceridade dá as caras ao
me lembrar das primeiras vezes que me aventurei na cozinha.
— Poxa! Eu estava aprendendo, não era para ficar perfeito, era só para ser
comível.
— Mas elas não eram, pai. Comer pedra era mais agradável.
Finjo estar decepcionado com o que ela disse, colocando a mão no peito e
unindo as sobrancelhas.
— Sem drama, pai, sem drama. O que importa é que agora elas são ótimas —
ao me ver franzir ainda mais as sobrancelhas, esperando um adjetivo melhor
para descrever as panquecas que coloquei no forno, Safira acrescenta: — Porque
perfeitas elas só vão ficar quando eu buscar o queijo ralado na casa da minha
avó. Já volto, paizinho.
Com o sorriso aberto até chegar quase perto dos olhos, minha filha some do
meu campo de visão antes mesmo de me ver sorrir também.
Sozinho no meu lugar preferido da casa, ligo a JBL, que começa a tocar
Preliminares, do Mumuzinho. Transfiro um pouco de cerveja da lata para o meu
copo de metal do Fluminense, voltando a ficar de frente para o forno,
observando a minha obra de arte ficar pronta.
A conversa que tive com Safira há alguns dias ainda assombra a minha mente.
Tive uma noite de sono horrível, me sentindo triste por não poder fazer nada
para consertar as coisas, ajudar a melhorar a tristeza que ela deve sentir. Na
verdade, deve sim haver coisas que eu possa fazer, como, por exemplo, me casar
e lhe dar uma figura feminina que não seja a minha mãe.
Mas isso não seria certo.
Nem comigo, nem com nenhuma mulher que eu escolhesse.
A cerveja desce tranquilamente pela minha garganta até eu ouvir um estrondo
semelhante a uma porta sendo brutalmente arrombada, me fazendo dar um
sobressalto. Largo o copo por qualquer canto da cozinha, empurrando o líquido
que ainda não desceu garganta adentro.
— Por que fez isso, Safira? A porta estava destrancada, caramba! —
resmungo, achando que o furacão que passou pela porta se trata da minha filha.
Eu nunca estive tão errado na minha vida.
Não que eu seja o tipo de cara que erra muito ou algo do tipo. Eu só não
estava preparado para a hipótese de encontrar o que eu encontrei ao chegar na
sala.
Ou melhor, quem eu encontrei.
Pisco algumas vezes, ainda atônito com a imagem que os meus olhos captam.
Por um momento, me pergunto se não misturei nada com a cerveja hoje, eu
costumo fazer isso de vez em quando. Entretanto, a razão do meu espanto abre
os lindos lábios carnudos e me comprova que o que eu vejo é a mais pura
realidade quando diz:
— Espero que tenha sentido muito a minha falta, Mica, porque eu cheguei
para recuperar os treze anos que perdi.
De uma forma irracional e completamente ingênua, me vejo ficando feliz em
encontrá-la novamente em um primeiro momento.
Apenas no primeiro momento mesmo.
Um ínfimo minuto em que eu me permito esquecer o quanto o sorriso largo
esboçado no rosto atraente dela quer dizer que estou terrivelmente fodido.
Que suas palavras não passam do puro e nítido deboche mascarando a raiva
que ainda deve sentir de mim.
Que a imagem de Cassandra vestida com uma calça de couro, salto alto, body
preto e seus lindos cabelos loiros encaracolados se desmanchando por seus
ombros seja apenas uma ilusão.
No segundo momento, quando seus olhos verdes me encaram com desdém, é
quando me dou conta de que a imagem dela parada ao lado da porta que
escancarou com um único chute há poucos segundos é doentia e linda de um
jeito real demais para ser uma mera ilusão.
É o começo do meu verdadeiro martírio.
Alheio à minha perturbação, Mumuzinho continua cantando através da caixa
de som que deixei na cozinha.
É nas preliminares
Que liga o transformador
E a gente dá choque de alta voltagem

É, Mumuzinho. Não foi nas preliminares, mas o transformador da minha vida
acabou de ser ligado e o choque de alta voltagem é inevitável.
ME PERDOA QUE EU TE PERDOO

A expressão de espanto no rosto de Miguel ao me encarar, ainda atônito do


outro lado da sala, é impagável.
Apesar de parecer que vai vomitar a qualquer momento, ele está mais lindo
do que nunca, não posso negar isso.
Diferente da última vez que o vi, há mais de doze anos, sua pele agora possui
um tom bronzeado, caramelo, que envolve os músculos enormes, moldando seus
braços e tronco. O cabelo ainda possui o mesmo tom de loiro dourado, mas
agora é curto dos lados e grande no centro, onde o monte de fios lisos está
alinhado para trás em um topete invertido.
Miguel poderia facilmente fazer parte do elenco da série dos Vikings. A
barba, também de um tom dourado, adorna seu maxilar até quase a linha do
pescoço, exatamente como a de um Viking. Conferindo a ele uma beleza bruta,
apropriada para tal.
— O que aconteceu com você nesses anos todos? Onde você se meteu,
Cassie? — é a primeira coisa que ele diz depois de ter assimilado a minha
chegada.
Desfaço o meu sorriso no mesmo instante.
Fazendo uso do mesmo pé que utilizei para abrir, ou melhor, arrombar a
porta, empurro ela para que volte a ficar fechada. O trinco faz barulho quando
ela se choca contra o batente, sem se fechar completamente, ficando apenas
encostada.
— Não vai me dizer? — ele insiste, começando a me irritar com seu jeito
melodramático.
Olho bem para o homem que foi o meu primeiro amor, não sentindo nada
além de rancor, e pergunto:
— Por que acha que eu fui embora, Miguel?
Ele me analisa por alguns segundos, pensando na resposta com as
sobrancelhas franzidas, nitidamente confuso com a mudança de rumo que eu
propus.
— Porque você estava chateada, confusa, triste… Pensei que voltaria quando
estivesse com a cabeça fria. Mas você nunca voltou.
A mágoa que Miguel deixa transparecer quando responde a minha pergunta
me conforta de certa forma. Gosto de saber que também o fiz sofrer, mesmo
quando foi ele mesmo quem escolheu isso.
Se ele tivesse me escolhido, Clarice não teria engravidado.
Se ele tivesse me escolhido, a minha irmã não teria morrido.
Tudo seria tão diferente…
— Pois, é. Eu não voltei. Não mandei notícias. Agora, eu te pergunto: o que
te faz pensar que eu te darei explicações sobre o que eu fiz com a minha vida?
Quando foi você mesmo quem escolheu não fazer mais parte dela?
— Eu nunca disse que não queria mais fazer parte da sua vida, Cassandra!
Pare de fazer parecer que eu sou o vilão, quando na verdade, eu sofri mais do
que ninguém com a sua partida.
Não consigo controlar a crise de riso que tenho ao ouvir a merda sem
tamanho que ele disse, ela sai instintivamente.
— Não seja ridículo, Miguel. O que você chama de sofrimento foi, na
verdade, a tristeza momentânea por perder a garota boba que faria de tudo por
você.
— Eu também faria tudo por você. Éramos amigos, éramos melhores amigos
antes de você decidir que era apaixonada por mim e me fazer escolher entre a
minha melhor amiga e o amor da minha vida. — Aparentando se sentir
derrotado, Miguel passa a mão pelo cabelo, colocando alguns fios desalinhados
para trás, respirando fundo antes de voltar a me encarar.
Eu queria dizer que não, meu Deus, como eu queria dizer que não dei a
mínima ao ouvir ele declarar que Clarice sim era o amor da sua vida. E eu, uma
mera amiga.
Pensei que treze anos seriam suficientes para apagar esse rancor. O ódio que
senti ao ser preterida. Pensei que, depois de me arrepender do ódio que senti da
minha irmã, por conta do amor que sentia por ele, conseguiria lidar com a sua
escolha, pensei que eu olharia para o passado e realmente me arrependeria do
que fiz e disse à ela.
No entanto, me encontro em um cenário bem diferente do que imaginei.
Me odeio por ter agido daquela forma com a minha irmã. Como eu me
arrependo! Não só porque ela não está mais aqui, mas porque Clarice nunca,
nunca mesmo, rebateu o desprezo que lhe dei. Ela era bem mais madura do que
eu, mesmo tendo dois anos a menos, e se colocava no meu lugar.
Ela perdoava o meu comportamento porque nosso pai havia se separado da
minha mãe quando eu ainda era um bebê e eu sofria muito com a ausência dele
em casa. Porque, aos doze anos, eu a perdi e tive que morar com Clari e a minha
madrasta, a quem eu culpava por todas as coisas ruins que aconteceram na minha
vida.
Clarice não merecia a irmã horrível que teve.
Agora, anos depois, me dando conta do mal que fiz à ela, ainda sinto meu
coração ser esmagado ao ver que o amor de Miguel está intacto quando se refere
à minha irmã. Na maneira como disse que ela foi seu grande amor.
Me sinto horrível por perceber que ainda invejo a sua posição, mesmo
desejando aqueles anos de volta para me redimir com ela.
— Foda-se — disparo, fazendo Miguel suspirar. Dramático como sempre. —
Não vim aqui para brincar de “me perdoa que eu te perdoo”.
— Então porque veio, Cassie?
Me sento no sofá de couro, voltando a assumir o meu lado sarcástico.
— Eu já disse, vim recuperar o tempo perdido. Só que, não com você, mon
amour. — O sorriso que ofereço a ele o faz respirar fundo, como se ele estivesse
à beira de um colapso e precisasse se controlar.
E é nesse exato momento que a razão da minha vinda resolve dar as caras.
Safira escancara a porta com quase tanta delicadeza quanto a que eu tive,
adentrando a sala correndo, parando ao perceber a minha presença. Os olhos
azuis dela brilham quando isso acontece. Por um instante, penso que talvez ela
saiba da minha existência, contrariando o que Helena havia me dito sobre
Miguel preferir não tocar no meu nome na frente da menina. Mas logo ele
quebra as minhas expectativas quando diz:
— Então, filha, essa é a Jade, a moça que eu te falei…
Minhas sobrancelhas quase chegam ao fim da minha testa quando encaro
Miguel, que me encara de volta com uma expressão de cinismo no rosto
barbado.
Parecendo não se dar conta da mentira que seu pai acabou de lhe contar,
Safira se vira para mim e me cumprimenta com um sorriso largo, como se
estivesse realmente feliz em ver essa tal de Jade. Me pego pensando em quem
deve ser essa infeliz. Uma namorada do pai dela? Essa é a opção mais plausível,
se levarmos em consideração o cenário: um domingo, o almoço no forno, o som
ligado…
Curiosa, resolvo que irei entrar na onda de Miguel e me fazer de sonsa para
ver onde isso vai dar.
— Estou tão feliz por finalmente conhecer você, Safira! — me levanto e
abraço a menina, que se surpreende com o meu gesto, mas logo envolve os
braços finos na minha cintura, retribuindo o abraço. — Seu pai falou muito de
você. Agora, me diga, ele tem falado de mim?
Ela solta uma risada gostosa, como se eu fosse muito engraçada.
— Sim, ele conversou bastante comigo sobre você. Estamos super prontos
para isso.
Fico sem entender o que ela quer dizer. O que seria esse “isso” ao qual se
refere? Antes que eu possa investigar mais o assunto, Miguel se posta ao meu
lado, colocando uma mão nas minhas costas, e pede para a filha:
— Vou mostrar a casa para a Jade, tá bom, filha? Coloca mais um prato, copo
e talheres na mesa para ela, por favor. — A menina olha de mim para ele,
intrigada com o seu comportamento tanto quanto eu.
Depois de me dar um sorriso sem dentes, ela marcha até a cozinha para fazer
o que o pai pediu enquanto o mesmo me arrasta para a escada, me guiando com
a mão ainda nas minhas costas.
— Voltamos já — ele avisa quando começamos a subir o primeiro degrau.
Na parede paralela a escadaria, há alguns quadros com fotos pregadas na
parede pintada de cinza chumbo. Nenhuma é de Clarice, para a minha surpresa.
A maioria são da família Sovat reunida em anos diferentes, percebo isso pela
evolução na aparência deles. Há também algumas fotografias das formaturas de
Safira e das viagens que fez ao lado do pai. Os dois riem para a câmera
naturalmente enquanto se abraçam em quase todas elas.
— Vocês são muito felizes, pelo visto — comento despretensiosamente.
— Sim, nós somos. E é por isso que não posso permitir que ela saiba quem
você é.
Paro de acompanhá-lo, me desvencilhando da sua mão e me afastando dele ao
chegarmos no corredor do segundo andar da casa.
— O que quer dizer com isso, Miguel? — meu tom de voz sai cortante,
fazendo ele ficar em alerta com o rumo que essa conversa pode seguir.
— Não fique chateada com o que eu vou te dizer, mas você é extremamente
instável, explosiva e impulsiva. Hoje você chegou toda determinada a ficar, mas
o amanhã é totalmente incerto quando se trata de você. Pode ser que desista a
qualquer momento dessa ideia e saia por aquela porta como se nada tivesse
acontecido, sem se importar com o que a gente sente. E eu não vou arriscar
deixar você fazer isso com a minha filha, Cassandra, não vou mesmo.
Quando Miguel termina de falar o meu maxilar já está tão trincado que sinto
um pouco de dor nos meus dentes.
— Eu nunca faria isso com ela. Safira não merece menos do que todo o meu
amor e carinho. Foi por esse motivo que voltei, para dar isso a ela. — Digo,
convencida das minhas intenções.
— Sua irmã não merecia ser abandonada. Ela também merecia todo o seu
amor e carinho. E o que você fez, Cassie? Você mandou a consideração para a
casa do caralho como se ela nao fosse porra nenhuma sua! — o rosto dele
começa a adquirir um tom de vermelho na proporção que vai ficando irritado
com a lembrança do passado. Não consigo deixar de notar a veia proeminente
que salta do seu pescoço a cada palavra que ele diz. — Você não tem
responsabilidade nenhuma com o sentimento dos outros. Me perdoe se eu não
acredito que seja capaz de cumprir o seu papel de tia, mas não vou arriscar. Por
favor, vá embora assim que terminarmos o almoço e não volte mais.
Inspiro um pouco de ar lentamente, reunindo uma paciência que jamais tive
para, em seguida, dizer:
— Eu aceitaria o seu perdão se realmente tivesse ficado ofendida com o que
disse. Mas, como deixei de me importar há muito tempo com a sua opinião de
merda, você não precisa pedir desculpas. — Me desencosto da parede, ficando
ereta e estufando o peito para prosseguir dizendo: — Eu não pretendo ir embora
daqui tão cedo, Miguel. E convenhamos, Safira não vai gostar de saber que teve
a oportunidade de conhecer a tia e isso foi tirado dela pelo próprio pai. Então,
qual vai ser? Vamos fazer isso do jeito simples ou do meu jeito?
Sabendo que não tem chance comigo depois dos argumentos serem jogados
na sua cara, Miguel coça a barba, me encarando como se quisesse me exterminar
com apenas um olhar.
— Ninguém mandou transar sem camisinha. — Zombo. Ele apenas semicerra
os olhos.
— Não me arrependo nem por um segundo. Além de ter gerado a minha filha,
foi uma ótima transa, se bem me lembro. — Para a minha surpresa, ele rebate.
Reviro os olhos.
— Ah, com certeza deve ter sido! Com você dizendo “eu te amo” no ouvido
dela a cada minuto. Me poupe, Miguel! Foda boa, é foda bruta.
Dessa vez, quem inspira lentamente é ele.
— Puta que pariu! Você não muda mesmo, né? — balanço a cabeça, negando
com um sorriso sem dentes. — É melhor mudar esse vocabulário se quiser estar
presente na vida da minha filha. Eu não falo esse tipo de coisa perto dela e não
vai ser você quem vai falar.
— Eu sei o que eu tenho e o que não tenho que falar perto da minha sobrinha.
— Rosno entredentes.
Miguel está a ponto de rebater o que eu disse quando Safira nos chama da
sala, dizendo que as panquecas ficaram prontas, fazendo seu pai repensar no que
ia dizer.
— É o seguinte, Cassie, não confio nem um pouco nas suas intenções. Você
pode resmungar, debochar de mim e fazer o que quiser, mas eu levo o meu papel
de pai muito a sério e não vou deixar ela saber quem você é até que me prove
que o amor da minha filha está seguro contigo.
— Miguel… — Rosno novamente.
Ele ignora completamente a minha censura e continua:
— Então, você vai continuar sendo a Jade até eu ver que amadureceu.
Dito isso, ele me dá as costas e começa a descer alguns degraus, sem esperar
por mim ou a minha opinião quanto a isso. Como Safira nos aguarda lá embaixo
e eu não tenho a intenção de causar mal a ela, resolvo que irei acatar a exigência
dele em primeiro momento.
Desço alguns degraus, sussurrando para Miguel quando chego ao seu alcance,
ainda faltando um lance de escadas para chegarmos a sala:
— E quem é essa tal de Jade?
Pela primeira vez desde que me viu hoje, Miguel sorri. Os dentes brancos e
alinhados contrastam lindamente com o tom caramelo da sua pele. Odeio ter
reparado nisso, mas tenho certeza de que qualquer mulher no meu lugar faria o
mesmo. O importante é que vou guardar essa observação comigo até o túmulo.
— A minha barriga de aluguel.
Minha expressão é de choque quando retorno a sala depois do que Miguel
revelou.
Uma barriga de aluguel? Puta merda, ele precisa mesmo de uma para ter um
filho?
A que ponto você chegou, hein, Miguel?!
Apaixonado como era, não duvido nada que esteja de celibato até hoje.
— Seu nome é tão bonito — Safira elogia ao se sentar na mesa e esperar que
eu faça o mesmo. Me sento na cadeira ao lado direito da outra que deve
pertencer a Miguel, me proporcionando ficar de frente para a minha sobrinha. —
Quem escolheu?
— A minha mãe.
No mesmo instante em que ela abre a boca para dizer mais alguma coisa, seu
pai retorna da cozinha com uma travessa recheada de panquecas de coloração
esverdeada. O cheiro é divino. Fico surpresa ao descobrir que foi ele mesmo
quem fez quando Safira elogia o pai, frisando o quanto ama tudo que é feito
pelas mãos dele.
É estranho estar entre eles, tendo um momento tão descomplicado quanto
esse. Tão diferente da realidade que me assombra. Entretanto, deixo de lado esse
pensamento, tentando agir naturalmente enquanto o assunto gira em torno das
panquecas. Com propriedade, Miguel transcorre sobre o preparo delas. Ouço os
detalhes atentamente, colocando uma garfada atrás da outra com um pouco da
massa verde. O gosto é tão bom quanto o cheiro. Não há nenhum sinal de que
isso foi feito com espinafre.
— Então, quando vai rolar a gravidez? — Safira indaga, assim que o silêncio
paira sobre nós.
Tranquilamente, o pai da menina termina de mastigar a comida e limpa os
lábios cheios com um guardanapo de pano.
— Bom, eu resolvi que quero estar presente em todas as fases da gravidez.
Por isso, decidimos que ela vai passar esse tempo com a gente, aqui em casa.
Fico surpresa com a facilidade com a qual ele trata o assunto. Comprar um
filho não seria tão natural assim para o Miguel que eu conhecia, um homem com
princípios, que idolatrava o casamento e a ideia de ter filhos com uma esposa.
Essa era uma das coisas que eu mais gostava nele: o seu sonho de ser pai.
E agora, olha só para ele: querendo ter um filho com uma desconhecida em
troca de dinheiro. Tudo bem que eu não sou uma barriga de aluguel e, muito
menos, irei ter um filho dele, mas Miguel estava pensando nisso antes da minha
chegada.
Espero que tenha repensado em fazer esse absurdo.
— Eu gosto da ideia. Vai ser legal acompanhar tudo de perto. Quando você
vem? — minha sobrinha questiona, empolgada.
— Hoje mesmo. Mais tarde, seu pai vai buscar as minhas coisas, não é, Mica?
— meu tom de voz é meloso ao falar, olhando diretamente para ele.
Vejo Miguel vacilar ao tentar rebater o que sugeri quando se dá conta de que
usei o apelido para me referir à ele.
— Sim. Eu vou sim. — O sorriso falso que estampa seus lábios me faz
perder a seriedade por um momento.
Provocá-lo está se tornando o meu passatempo preferido. E olha que eu só
cheguei há uma hora.
Prevejo que os próximos tempos serão bem satisfatórios para mim.
MEMÓRIA PRECIOSA

Eu não costumo acreditar em sorte.


Nunca fui o tipo de homem que espera o acaso fazer as coisas darem certo.
Eu sou a minha própria sorte. Eu faço as coisas darem certo até quando dão
errado.
Uma prova disso? A minha escolha de não contar à Safira o nome da barriga
de aluguel. A prova concreta do que eu afirmei anteriormente.
Se eu tivesse citado o nome de Isabela, meus planos de camuflar a identidade
da diaba loira iriam por água abaixo.
Diaba a qual agora me fulmina com o olhar enquanto eu lavo os pratos que
usamos para almoçar, um almoço muito agradável por sinal. Diferente do que eu
esperava.
— É sério que você ia mesmo contratar uma barriga de aluguel? — ela
questiona, deixando bem claro, no tom de voz, que despreza a ideia.
— Ainda não descartei a possibilidade.
O silêncio abraça a cozinha quando um novo pronunciamento dela não vem.
Isso me incomoda. Se tratando de Cassandra, a calmaria nunca é um bom sinal.
— Mas agora as minhas prioridades mudaram — enxugo as mãos com o pano
de prato ao terminar de lavar a louça, me escorando na pia para observá-la
melhor. — Primeiro, eu quero resolver as coisas entre você e Safira.
Ela dá de ombros, analisando o fogão à lenha, interessada no que vê. Me
aproximo, ainda mantendo uma distância significativa e proponho:
— Vamos lá buscar as suas coisas?
— Pode ir.
Finalmente, Cassandra se vira para mim e parece não entender a minha
confusão quando me encara.
— O quê? — ergue as sobrancelhas. — Helena está em casa, pegue tudo com
ela.
— Não vai fazer a sua madrasta arrumar tudo para você, né, Cassandra? Ela
não é a sua empregada!
O revirar de olhos se faz presente da mesma forma que a respiração profunda.
Pelo visto, a diaba está levando a sério as minhas exigências de se manter nos
trilhos enquanto estiver debaixo do meu teto.
— Em momento algum eu disse “vá até lá e arrume as minhas coisas com a
Helena”, eu disse “ busque as minhas coisas com a Helena”. Percebe a
diferença? — quem respira fundo agora sou eu. — Deixei tudo pronto no meu
antigo quarto. É só você encostar o carro e colocar dentro.
Me sentindo cansado da nossa interação problemática, jogo o pano de prato
em cima do balcão e saio da cozinha, pegando a chave do carro ao passar pela
sala. Deixo a minha morada sabendo exatamente o caminho que farei quando
entro no meu Range Rover e dou partida.

A casa de Maurício e Helena ainda está do mesmo jeito de quando vim aqui
da última vez, no ano passado. Localizada no bairro Jacarepaguá, Zona Oeste do
Rio de Janeiro, ela fica ao lado da residência simples que pertence a minha
família desde o meu nascimento.
Apesar de mantê-la, não entro nela há anos. Soube que meu irmão esteve
aqui no ano passado e trouxe a namorada. Diferente de mim, que estive aqui
apenas na época em que resolvi reformá-la.
Passando pela casa azul recém pintada, abro o portão de ferro gasto e adentro
a residência ao lado, sendo recebido por uma Helena sorridente.
— A gente se vendo duas vezes no mesmo mês? — ela brinca. — Vai chover!
Não contenho o sorriso quando abraço a minha sogra. Ela tem o mesmo riso
fácil que a filha tinha. O mesmo jeito divertido também.
— Não exagera. Nos vemos pouco porque a minha vida é corrida. Mas por
mim, a senhora estava sempre lá em casa. Aliás, não sei porque quase nunca vai.
— Maurício não gosta de sair de casa, filho. O jeito de sempre, você sabe.
Finjo que acredito no que ela diz, como se eu não soubesse que ele não gosta
mesmo é de ir na minha casa. No fundo, meu sogro nunca me perdoou por eu ter
engravidado sua filha ainda tão jovem. Helena finge que não, mas eu sei que
Maurício me culpa pela morte dela, já que isso foi uma consequência do que eu
fiz. Talvez ele esteja certo. Talvez, esteja terrivelmente errado. Não sei. Não
gosto de pensar muito sobre isso. A simples possibilidade dele estar certo
acarreta uma carga de tristeza ainda maior sobre os meus ombros.
Ao adentrar a casa simples, sou recebido pelo cheiro de café que impregna os
meus poros no mesmo instante. A minha bebida preferida tem esse poder sobre
mim desde que me entendo por gente. Sou louco em um cafezinho bem passado.
Helena sabe muito bem disso.
— Fiz um café para você, querido. Espero que tenha tempo de se sentar um
pouco comigo. — Ela diz, já se dirigindo à cozinha.
— Para você eu sempre tenho, sogrinha.
Estou sorrindo quando me sento à mesa. Helena faz o mesmo, trazendo
consigo uma xícara para mim e outra para ela, transbordando com o líquido
quase preto.
Aprecio a fragrância forte que escapa da porcelana, através do vapor entrando
nas minhas narinas. Quente e concentrado, exatamente do jeito que eu gosto.
— Me diga, Cassandra chegou bem?
Espero o gole de café descer pela minha garganta lentamente e respondo:
— Sim, na medida do possível. — Acabo rindo ao me lembrar da entrada
triunfal dela.
Helena também ri, entendendo o que eu quis dizer. Ela conhece bem a
enteada que tem.
— Tenha paciência com ela, Miguel. Sei exatamente o quanto Cassandra
pode tornar a vida de alguém um inferno. Ah se sei! — minha ex sogra ri
novamente com a lembrança do passado. Da época em que sua enteada perdeu a
mãe e precisou se mudar para cá. — Mas ela não sabe lidar com a confusão que
se tornou a cabeça dela desde nova. No fundo, Cassie ainda é uma menina que
precisa de carinho e compreensão.
— Ela tem trinta e dois anos, Helena, está longe de ser uma menina indefesa.
— Todas nós mulheres, independente da idade que tenhamos, sempre iremos
ter uma menina indefesa dentro de nós. A diferença é que algumas acham que
isso seja uma fraqueza, outras entendem que podemos ter inseguranças, só não
podemos deixar que elas nos paralisem. — Reflexiva, Helena coloca a sua mão
sobre a minha, me olhando nos olhos com determinação exalando pelas orbes
cor de mel. — Cassandra ainda vai aprender que pode sim demonstrar fraqueza
sem deixar de ser uma mulher forte. Mas isso só vai acontecer se houver alguém
capaz de acolhê-la, de enxergar suas dores e não querer minimizá-las.
— Ela jamais vai deixar que eu seja essa pessoa, Helena. Sua enteada ainda
tem o mesmo complexo de mulher maravilha que tinha antes. Jamais vai
permitir que eu veja por trás da rocha que se tornou o seu coração.
Minhas palavras não abalam a mulher sentada à minha frente. Muito pelo
contrário, ela balança a cabeça e me observa como se eu tivesse dito algo bobo,
uma besteira sem tamanho.
— Até as rochas mais duras têm suas rachaduras, meu querido. Espere aquela
peste em forma de mulher revelar as suas e se infiltre nelas. Uma vez dentro
dessa rocha, talvez você encontre uma forma de curar a sua dor também.
— Não vejo como isso daria certo. Estamos em extremos da vida muito
diferentes um do outro…
Se levantando com as duas xícaras de café vazias, Helena me lança um
sorriso entristecido que eu não via em seu rosto há muito tempo.
— Ela agora tem muito mais em comum com você do que imagina, Miguel.
Apenas espere as rachaduras.
Dito isso, minha sogra deixa a sala dizendo que posso encontrar as coisas que
vim buscar no primeiro quarto à esquerda. Decido não ficar muito tempo
pensando no que ela me disse e me levanto da mesa rapidamente.
Pessoas mais velhas geralmente são bem sábias, em especial Helena, uma
antiga professora de história, mas creio que dessa vez ela esteja enganada.
Conheço Cassandra bem demais para acreditar na possibilidade de ela se deixar
ser cuidada por alguém. Ainda mais por mim, quem, sem querer, causou um
estrago no seu coração quando ela ainda era uma garota.
O quarto ao qual fui guiado para entrar é tão simples quanto o resto da casa.
Móveis de madeira mofada, cortinas velhas, prateleiras cheias de bonecas
empoeiradas. Uma delas em específico me chama a atenção.
Minha memória é uma das poucas coisas que não sinto se esvair a medida que
vou ficando mais velho. Ela é perfeita. Principalmente quando se trata de
acontecimentos que sinto tanta falta.
É o caso da memória que me vem à mente ao pegar a boneca loira dos olhos
azuis nas mãos. Passo os dedos pelo rosto dela, tirando a poeira que não me
impede de recordar da época em que ela era nova.
Eu estava há horas jogando futebol na rua. Em algum momento, saí do jogo
para dar vez a outro garoto e foi quando eu percebi a presença de uma menina
sentada no muro da casa de Dona Helena.
Os cabelos eram tão loiros e brilhantes que por um instante, fiquei confuso se
o que eu via não era o reflexo do sol. Entretanto, quando ela moveu a face na
minha direção, eu percebi que parte daquela luz vinha dela.
Os cachos formavam uma aura em volta do seu rosto bonito e triste. Os olhos
eram claros, emitindo uma intensidade que me impactou de longe.
Linda demais para parecer tão triste.
Me lembro de ter pensado nisso ao decidir me aproximar, ficando escorado
no muro ao lado de suas pernas que jaziam ali. Ela notou a minha presença,
mas não disse nada, apenas penteava o cabelo da boneca que mantinha em seu
colo com as mãos e acompanhava o movimento da bola com os olhos. Eu fiz o
mesmo por um tempo, até ela finalmente decidir que queria saber algo sobre
mim.
— Como você se chama?
A menina não falava do jeito que eu havia imaginado. Sua voz não era calma
e serena, demonstrava determinação mesmo na hora de fazer uma pergunta
simples. Totalmente diferente da aparência de garotinha doce e frágil.
Foi ali que eu percebi o quanto a menina raio de sol podia ser muito
surpreendente.
— Miguel. — Respondi, sorridente.
— Como o anjo?
Pus uma mão acima dos olhos para conseguir enxergá-la no meio de toda
aquela luz. De perto, pude ver que suas orbes eram verde esmeralda. Como a
pedra. Me lembro de ter adorado a comparação, já que eu sempre adorei pedras
preciosas.
— Sim, igual ao anjo. E você, como se chama?
— Cassie.
— Só Cassie?
Ela revirou os olhos de um jeito engraçado e ajeitou a boneca em seu colo.
— Cassandra, esse é meu nome de verdade. Mas eu não gosto, parece que
sou velha.
Na minha cabeça, esse era um nome bonito, bem longe de ser um “nome de
velha”, mas guardei isso para mim, não queria começar a nossa amizade a
contrariando. Cassie, apesar de ser um apelido, parecia ideal para ela. Era sutil
e impactante como a loirinha raio de sol.
— E por que está tão triste, Cassie?
Minha pergunta pareceu irritar a menina, que pulou do muro e caiu em pé ao
meu lado, ainda com a boneca no colo.
— Não é da sua conta — continuei olhando a garota, sem acreditar que havia
falado comigo daquela maneira. Mal sabia eu que aquela não seria a última
vez. — Pergunte outra coisa.
Me encostei no muro, sem graça, e olhei para o que ela carregava nos
braços.
— Como você chama essa boneca?
— O nome dela é Jade.
Bastou isso para eu sorrir feito um bobo e esquecer o que aconteceu
anteriormente.
— É o nome de uma pedra preciosa, sabia? — ela balançou a cabeça,
dizendo que não. — Esmeralda, Rubi, Safira, Jade, são todas pedras preciosas.
Sem saber o quão raras e caras essas pedras podiam ser, a menina raio de
sol perguntou:
— Você tem uma delas?
— Não. Mas um dia eu vou ter. — Respondi com convicção.
A lembrança dos olhos dela brilhando para mim com Jade no colo me traz de
volta a realidade.
Hesito em colocar a boneca de volta na prateleira, decidindo, por fim, que a
levarei comigo. Saio da casa de Helena com a pequena Jade em mãos e a bolsa
de Cassie nas costas.

A cena que eu encontro quando chego no que, antes, era a minha residência e,
agora, é um chiqueiro, faz o sangue ferver dentro das minhas veias grossas.
Minha cozinha, a que eu deixei limpa e organizada quando saí, não se parece
em nada com o lugar que era há algumas horas. A bancada está suja com o que
parece ser farinha de trigo. Os rolos de modelar as massas estão jogados em
cima do balcão. A louça transborda de vasilhas e colheres para lavar.
Mas o pior eu ainda não contei.
O forno à lenha, o meu xodó, o meu segundo filho, a minha melhor aquisição,
a razão de eu amar tanto essa cozinha, foi usado. Nesse momento, ele está
ligado, com o que tudo dá a entender ser uma pizza assando dentro dele.
— SAFIRA HELENA SOVAT! — grito alto o suficiente para fazer minha
filha e a diaba descerem juntas aos tropeços na escada.
Minha expressão facial não é nada amigável quando encaro as duas, que me
encaram de volta. Safira nervosa e Cassandra se segurando para não rir.
Foi ela.
É CLARO QUE FOI A DIABA LOIRA!
Ela já estava de olho no meu forno quando eu saí.
— Por que mexeu no meu forno, Jade? — tiro paciência do cu para perguntá-
la, me lembrando que não posso explodir com Cassandra na frente da minha
filha. Afinal, ela é a minha “ barriga de aluguel''.
— Ela gosta de cozinhar também, pai. Disse que sabe fazer uma pizza
deliciosa, então pedi que fizesse uma para mim.
Dou um sorriso sem dentes para minha filha, deixando de lado a minha fúria.
Safira entende o recado no mesmo instante.
— Vamos limpar tudo agora mesmo, nem se preocupe. Eu só estava
mostrando o quarto para a Jade.
— Vou levar as coisas dela lá para cima enquanto vocês deixam a minha
cozinha um brinco. — Ofereço um sorriso irônico para Cassie, que retribui,
murmurando um “obrigada” falso.
Me tranco no meu quarto, tentando ignorar o quanto estou puto por ela ter se
apossado da minha cozinha dessa forma. Odeio que mexam no que é meu,
principalmente na minha cozinha. Aquele é o meu santuário. O lugar onde eu
sou a porra do rei!
Se não conhecesse Cassandra, poderia relevar, acreditar que ela não fez por
mal, que ela não tinha como saber sobre a minha possessão com o fogão à lenha.
No entanto, eu conheço a peça. Essa diaba não dá ponto nenhum sem nó. Com
certeza Safira comentou com ela que gosto de cozinhar e ela viu ali uma
oportunidade de me atormentar. O sorriso cínico que me deu ao notar a minha
fúria comprova isso.
Tentando me acalmar, pego o telefone e escrevo algumas mensagens para um
dos meus irmãos. O que está viajando com a namorada, curtindo a vida em Nova
York enquanto eu me fodo no Brasil.
Miguel: Cassie apareceu, anjo. Ela voltou do inferno para me atazanar!

Miguel: A terrorista está dizendo que vai ficar hospedada na minha casa
por tempo indeterminado.

Miguel: E você ainda diz que a Antônia que é abusada...

Miguel: SOCORRO!

Em poucos minutos, o infeliz me responde do outro lado da América.
Rafael: Parece que não fui o único a jogar entulho na cruz...

Rafael: Se vira! Ninguém mandou quebrar o coração da pobre coitada,
agora aguenta.

Rafael: E vê se me deixa em paz que eu estou de férias.

Rafael: FÉÉRIAAAASSS!!

Frustrado, jogo o celular em algum lugar da cama, me deitando de bruços,
exausto mentalmente.
É claro que esse corno não ia me ajudar. Que merda eu estava pensando
quando mandei mensagem para ele? Até parece que o anjo saberia resolver o
meu problema. Depois que virou pau mandado da Antônia, não presta para mais
nada.
Samuel Roberto?
Outro imprestável!
Não o vejo desde ontem. Deve estar virando a noite, fazendo racha pelas ruas
do Rio.
Aparentemente, resta apenas eu na guerra contra essa diaba.
A COVARDIA É UM CAMINHO SEM VOLTA

— Acho que meu pai ficou muito chateado.


Preciso disfarçar o meu sorriso quando Safira chega à essa conclusão.
É claro que Miguel ficou chateado, eu invadi seu espaço e me apossei do seu
xodózinho. Sua reação já era esperada por mim. Para falar a verdade, eu ansiei
ver a fúria nos seus olhos.
— Sinto muito, vou ficar longe do forno dele daqui em diante.
A menina apenas assente com a cabeça e continua limpando a bancada
enquanto eu lavo os utensílios que usamos para fazer a pizza.
Safira é completamente diferente do que eu imaginei. Ela é gentil na medida
certa, sem ser puxa saco. Tem um jeito irreverente de falar que encanta qualquer
um. E uma beleza que a faz parecer doce e frágil, mas que engana. Diferente da
mãe, minha sobrinha está longe de ser um dos dois. Acredito que esse fato foi o
responsável por eu me sentir tão conectada com ela imediatamente.
— A pizza ficou mesmo uma delícia, Jade. Você cozinha muito bem. — Ela
elogia depois de terminarmos a limpeza.
— Fico feliz que tenha gostado. Adorei cozinhar com você, quero fazer isso
mais vezes. — Recebo um sorriso genuíno como resposta. — Mas, da próxima
vez, vamos incluir seu pai também, prometo.
— Vai ser incrível ver vocês dois cozinhando juntos.
A imagem de Miguel dividindo o espaço comigo na cozinha não me parece de
todo ruim. No entanto, duvido muito que ele cederia o comando para mim. E eu
é que não vou ser a assistente dele.
É o comando ou nada.
— Vai sim. — Afirmo, ironicamente.
— Vou me deitar. Se precisar de alguma coisa, é só bater na minha porta, ok?
Ela fica em frente a sua.
Aceno com a cabeça, concordando. Ela some do meu campo de visão quando
sobe a escada e me deixa sozinha na cozinha silenciosa. O lugar está um brinco,
como Miguel queria. Eu e Sasa demos uma faxina e tanto por aqui depois de
comer a pizza, que ficou com um gostinho ainda melhor por ter sido assada no
forno a lenha.
Fico um tempo zanzando pela sala, adiando a minha subida por saber que não
vou conseguir pegar no sono facilmente. Ao rolar os olhos pelo aparador,
localizado no canto do cômodo, reparo em uma fotografia de Clarice que não
havia prestado atenção antes. Com toda a confusão que foi a minha chegada, não
me atentei muito aos diversos retratos localizados ali.
Pego a moldura em mãos, sentindo o peso da madeira se misturar com a força
com que o sorriso da minha irmã me desestabiliza por um instante, quando me
vejo pensando mais uma vez em como é injusto eu ainda ter vida enquanto ela
perdeu a dela. Não preciso ter nenhum tipo de poder visionário para saber que
Clarice seria uma mulher muito mais feliz do que eu se estivesse viva. E porra,
como isso é injusto! Nunca vou me cansar de dizer o quanto é injusto Deus
preferir que uma mulher quebrada, fodida, infeliz, continue no mundo, quando
poderia dar essa chance a alguém como a minha irmã.
Eu queria poder dar a minha vida à ela. Eu daria a minha vida a ela sem nem
mesmo pensar. Não só para me redimir, mas também porque sei que Clarice faria
escolhas muito melhores do que eu se seu coração ainda batesse.
Uma lágrima solitária escapa do meu olho esquerdo quando coloco a
fotografia no lugar, ainda observando o quanto ela era linda e cheia de vida. Seu
sorriso ia de orelha a orelha enquanto abraçava Miguel, ambos sentados na
calçada da nossa antiga rua.
Qualquer pessoa que coloca os olhos nessa foto percebe o quanto eles
estavam apaixonados. É nítido na forma como se tocam, como se não quisessem
estar em nenhum outro lugar que não fosse entre os braços um do outro.
É uma pena não ter sido nítido para mim naquela época.
Agora, treze anos depois, além de enxergar o quanto eles realmente se
amavam, enxergo também que foi melhor assim.
Apesar de destruir as coisas com muita facilidade, eu odeio me dar conta
disso, odeio quando me dou conta do estrago que causei. Dói tanto perceber que
não consigo amar sem ferir ninguém.
Então, querendo ou não, foi melhor assim.
Clarice era incapaz de ferir qualquer coisa, essa coisa tendo vida ou não. O
coração de Miguel estava seguro com ela. Esse foi o meu pensamento quando
peguei minha mochila e saí de casa para nunca mais voltar.
Mesmo fodida, mesmo afogada na merda, com o coração despedaçado, eu
ainda queria o bem desse filho da puta. Desejei que ele fosse feliz mesmo depois
de dizer coisas horríveis na sua cara.
Por que eu sou desequilibrada?
Não.
Porque eu me dei conta de que amava ele.
Você sabe que é amor quando prefere ver o seu amado seguro e feliz, mesmo
que não seja ao seu lado.
E eu preferia.
Odiava a ideia de saber que Miguel nunca me viu como mulher. Mas uma
parte de mim ficou contente com isso. Eu tinha tanto carinho por ele que entrava
em pânico com a ideia de estragar tudo, quebrar seu coração. Por isso demorei
tanto tempo para me declarar. O coração dele era precioso demais para mim,
uma das coisas que eu mais amava nele, mesmo depois de descobrir que o órgão
nunca havia batido por mim.
E justamente por ser tão precioso, eu tinha medo da merda que eu poderia
fazer se ele estivesse nas minhas mãos.
Então por que eu disse aquelas coisas a ele? Porque eu odeio essa porra.
Odeio não conseguir odiá-lo. Odeio ter me tornado a mocinha fodida da história,
que ama tanto um homem ao ponto de se afastar para que ele seja feliz, de
querer com todas as forças que ele seja feliz, mesmo que não seja comigo.
Eu precisava colocar para fora a raiva por odiar o papel que eu exercia na sua
vida. A outra parte de mim, a rancorosa e orgulhosa, não podia aceitar aquilo de
bom grado.
Então eu fugi.
Eu vi a minha mãe morrer com falta de ar.
Não aguentaria ver Miguel se casando com a minha irmã.
Era demais para aguentar.
Fugir exigiria menos força do que isso, então eu o fiz.
E faço de novo. Fujo dessas lembranças quando me afasto do aparador e me
dirijo para o meu novo quarto, batendo a porta, me jogando na cama com
ímpeto.
A covardia é um caminho sem volta.
Me levanto, pego uma camisola simples, vou para debaixo do chuveiro, a
água gelada escorre pelo meu corpo, meus músculos enrijecem, minha mente
relaxa por um instante.
Saio do banho com falta de ar e lágrimas escorrendo sem parar pelos meus
olhos. Rapidamente, abro o zíper da minha bolsa e jogo as roupas para fora, em
busca da minha necessaire onde guardo os meus remédios. Encontro ela no
fundo. Jogo todas as embalagens em cima da cama e pego a caixa do
Bromazepam. Exalo com força, me recordando de que ele não vai fazer efeito
imediato, para isso seria necessário um calmante, mas a médica cortou depois
que quase fiquei viciada neles.
Decido executar o exercício de respiração que quase nunca faço uso. Inspiro e
expiro lentamente, criando um ritmo do qual eu uso para me concentrar. Imagino
uma tela em branco e tento focar somente nela por alguns minutos, não
permitindo que nada mais ocupe a minha mente ou o meu campo de visão.
— Branco, branco, branco. — Repito quando a barreira que criei começa a
ceder e alguns pensamentos tentam invadir a minha mente.
Depois de algum tempo, acredito que mais de dez minutos nessa luta contra
mim mesma, recupero o controle da minha mente e as coisas melhoram. Saio do
quarto com a caixinha do remédio em mãos e fecho a porta devagar, diferente de
quando entrei. Ao passar pelo corredor, quase chegando na escada, escuto a voz
de Miguel depois de passar pela porta do quarto dele. Não resistindo, volto dois
passos, ficando escorada na parede e ouvindo a voz rouca sussurrar:
— Eu sei, mãe. Mas acho que é para valer, acho que ela realmente quer
fazer as coisas certas dessa vez. Vou pegar firme no pé dela para que nada de
mau aconteça, a senhora sabe bem que sei ser ruim quando o coração de quem
amo está em jogo. — Uma pausa é feita, provavelmente para ele escutar Suzana
falar do outro lado da linha. — Tá bom, passo aí com elas amanhã para a
senhora ver como a diaba cresceu e virou um mulherão.
Me desencosto da parede, sendo pega de surpresa quando escuto Miguel se
levantar da cama num pulo e seus passos firmes ecoarem no piso, indicando que
ele se aproxima. Desço a escada na ponta dos pés para estar longe dali quando
ele abrir a porta.
Consigo chegar à cozinha quando a porta é aberta e Miguel aparece no
primeiro andar alguns segundos depois sem camisa, vestindo apenas uma
bermuda preta de moletom. É inevitável não correr os olhos pelo tronco
belíssimo que ele tem ao ver o desgraçado caminhando na minha direção. Sem
um tecido para atrapalhar a minha avaliação, percebo que os braços de Miguel
são ainda mais musculosos do que eu já havia pontuado. O abdome exibe os
gominhos perfeitos, ressaltados pelo tom bronzeado da sua pele. As pequenas
curvas paralelas ao seu umbigo, formando o famoso “V”, que trilham o caminho
em direção a sua pelve são altamente sugestivas para a mulher de imaginação
fértil que sou.
Parando ao meu lado para pegar um copo, ele parece alheio a pequena
investigação feita por mim acerca do seu corpo. Apesar de ter reparado em
muitos detalhes, mantive a descrição, mexendo na caixa do meu remédio e
olhando de relance para ele enquanto se movimentava.
Miguel nem de longe se parece com o garoto magricelo e doce que um dia
conheci. Sua beleza agora é bruta. Tornando inevitável que eu pare de encarar
seu belo tronco desnudo quando ele se vira de costas e pega um pouco de água
do filtro.
— Eu estou muito gostoso, né? — o desgraçado pergunta, ficando de frente
para mim com o copo em mãos e um sorrisinho presunçoso nos lábios.
Dessa vez, não faço cerimônia, olho bem para o corpo escultural, fingindo
tédio para não dar crédito à sua presunção.
— É, você ficou gostosinho mesmo conforme os anos se passaram. — Minto.
É pecado usar um adjetivo no diminutivo para definir o corpo de Miguel. Ele
ficou um gostosão, isso sim. Entretanto, eu morrerei antes de admitir isso em voz
alta.
— Gostosinho? Você chama esse shape de gostosinho? — ele passa uma mão
pelo abdômen e usa a outra para afastar a bermuda, revelando um pedaço de pele
da pelve que era impedida pelo tecido de ser vista. — O que é um homem
gostosão para você?
Lhe ofereço um sorriso malicioso quando a imagem de outro homem
delicioso invade a minha mente.
— Henry Cavill. Ele sim é o próprio sinônimo da palavra gostosão. — Minha
resposta faz Miguel bufar. — Você é um filhotinho de cruz credo perto daquele
homem.
— Mas é o filhotinho de cruz credo aqui que você estava secando há alguns
minutos atrás. — Ofendido, ele fecha a cara e bebe alguns goles da água.
Dou de ombros, tirando um comprimido da cartela e passando por ele para
pegar um pouco de água do filtro.
— Só para constar, eu não estava te secando. Estava apenas observando como
você mudou com o tempo. Não imaginava que viria a gostar de musculação um
dia.
Quando volto a ficar de frente, os olhos de Miguel sobem rapidamente para o
meu rosto. Ele também estava me secando. Provavelmente observando a minha
bunda, marcada pelo short de tecido fino da camisola que estou usando.
— Faz uns seis anos que pratico musculação. No ano passado, mudei para o
Crossfit, para dar uma intensificada, e me apaixonei.
Fico surpresa com essa revelação e principalmente, com a minha animação ao
descobrir isso.
— Eu comecei a fazer Cross na academia perto da casa do meu pai, estava
pegando o jeito, mas agora preciso encontrar uma perto daqui — confesso, sem
querer, baixando a guarda.
— Não precisa, pode treinar comigo na academia aqui em casa. — O rosto
dele se ilumina ao fazer essa proposta.
Pondero concordar por um instante, disfarçando o meu receio enquanto bebo
um gole de água.
— Vou ver. — É o que acabo dizendo, por fim.
Disposta a fugir dessa aproximação, termino de beber o resto do líquido
transparente e lavo o copo, usando como deixa para me retirar o bocejo
repentino que dou.
— Boa noite, Cassie. Se precisar de algo, pode me chamar. — Miguel diz
quando passo por ele.
—Ok.
Me tranco no quarto escuro pensando no quanto odeio toda essa situação. No
quanto odiei a ideia de malhar com ele. No quanto odeio que uma parte de mim
goste da ideia de malhar com ele.
Esse é o tipo de pensamento que a mocinha fodida dentro de mim tem.
Ela adora a ideia de passar um tempo com Miguel na cozinha ou na academia.
É por isso que ela é uma fodida!
Mas, assim como fiz no passado, não importa o quanto ela grite que o ama
dentro de mim, eu sempre vou externalizar o quanto o odeio por mexer desse
jeito comigo.
ZONA DE GUERRA

Uma das coisas que as pessoas mais reclamam sobre mim é a minha
possessividade. Costumo me apossar facilmente de coisas e pessoas, agindo
como um animal quando alguém ameaça se aproximar do que é meu.
Reconheço que não é saudável da minha parte. Esse traço da minha
personalidade sempre me causa problemas. A incapacidade que eu tenho de abrir
mão do poder sobre algo me torna alguém complicado de se lidar.
Esse lado meu é colocado à prova quando acordo disposto a fazer um
belíssimo café da manhã e descubro que alguém já fez isso por mim. A mesa está
posta com diversas opções. Queijo, presunto, frutas, pães, ovos, suco de
maracujá, achocolatado e um café que cheira forte, me tirando o foco por um
instante.
Cassandra não brinca em serviço quando o assunto é me testar. — É o que
estou pensando quando adentro a cozinha e a encontro em cima da pia,
devorando uma melancia.
Não, ela não brinca mesmo.
Ainda usando o pijama indecente que vestiu ontem, ela se delicia com um
pedaço enorme da fruta, sem se importar com o líquido que escorre por seu
pescoço e se perde no vão entre os seus seios, descendo pele abaixo.
A cena é tão erótica que paraliso na entrada do cômodo e me vejo observando
os detalhes dela, como um tarado.
Os cabelos estão presos em um coque frouxo no alto da cabeça, alguns fios
mais curtos estão soltos e emolduram o rosto pálido quando ela se dá conta da
minha presença, me lançando um olhar que termina de tornar tudo ainda mais
obsceno do que a minha mente já havia tornado.
— Devia ter acordado mais cedo. É falta de educação deixar a visita com
fome, sabia? — Cassandra diz, sarcástica, se desfazendo da postura sexy e
arrebatadora que portava há um minuto atrás.
— Você não é visita, Cassandra. E soube muito bem se virar por aqui quando
quis fazer uma pizza ontem.
Passo por ela, esbarrando no seu cotovelo. O atrito me deixa desnorteado por
um momento com a lembrança do quão atraente a diaba estava daquele jeito,
saboreando a fruta com tanto vigor e usando uma roupa tão minúscula.
Quando ela desce da pia, em um pulo, seus seios pesados se agitam por
debaixo do tecido, me fazendo prestar atenção em um detalhe que fode com o
meu psicológico de vez. A ausência do sutiã torna visível os mamilos
entumecidos de Cassandra, que são como um imã para os meus olhos famintos
por mais uma mísera informação sobre o corpo enlouquecedor à minha frente.
Que porra está acontecendo com você, Miguel? Nunca viu um par de peitos
na vida, seu merda? — Minha consciência grita.
Forço rapidamente meus olhos para longe, mirando a minha atenção na
torneira atrás dela e me lembrando do que vim buscar quando resolvi entrar aqui.
Aceno com a mão para que ela se afaste, quando isso acontece, abro o armário
inferior e pego a minha xícara do Fluminense.
Cassandra anda para o outro lado da cozinha quando me sirvo de um pouco
do café que ela fez, chegando a conclusão de que o gosto é ainda melhor do que
o cheiro. Sem querer, querendo, acabo voltando a observá-la de costas enquanto
corta mais um pedaço da melancia.
A bunda dela me encara como se tivesse vida própria. O short do pijama mal
cobre as duas bolas redondas que escaparam por debaixo do tecido quando ela
pulou e se aderiram a pele dela do jeito que a minha boca implora para fazer, em
um pensamento impulsivo.
Ela é tia da sua filha, você quer mesmo estragar tudo de novo? — Meu lado
consciente ataca novamente. Sabendo da resposta, desvio a minha atenção para a
mesa do café da manhã.
— Posso te pedir uma coisa, Cassie?
Diabólica como é, Cassandra se vira para mim com um pedaço da fruta na
boca e mais do líquido escorrendo por sua blusa adentro. Dessa vez, ela acena
positivamente para que eu continue.
— Enquanto eu estiver aqui, fique longe da cozinha, por gentileza. Eu gosto
de fazer a comida da minha casa e não me sinto bem com você mexendo em
tudo, fazendo as coisas por mim.
O pedaço de melancia dança na boca dela quando Cassie se contém para não
rir da expressão séria que faço.
— Hmmm… Temos um impasse. — A diaba chupa os dedos melados. — Eu
também gosto muito de fazer a comida da minha casa.
— Acontece que não estamos na sua casa, raio de sol.
— Mas acontece que eu estou morando aqui, precioso. Logo, eu devo fazer
dessa a minha casa também. Foi isso que Safira disse para eu fazer.
— Tenho certeza de que ela te avisou sobre a cozinha ser um território
proibido para você criar asas. — Rebato, entredentes.
— É, acho que ela comentou sobre algo assim… — Cassie finge estar
pensativa. — Mas como você mesmo disse, eu sou uma diaba. Não espere que
eu acate esse pedido, preciso fazer jus ao apelido que me deu.
Não escondo minha expressão de surpresa ao saber que Cassandra descobriu
a forma que tenho usado para me referir à ela.
— Estava ouvindo a minha conversa atrás da porta ontem à noite? — indago,
chocado. — Não faça mais isso!
Pelo sorrisinho debochado que recebo, sei que as minhas palavras só vão
instigá-la a fazer o oposto.
— Não me proíba de usar a cozinha. Ou em uma dessas vezes que eu escutar
suas conversas posso acabar descobrindo mais do que a sua falta de coragem
para me chamar de diaba na minha cara.
Puto com a petulância dela, me aproximo do corpo que me excita e me faz
sentir vontade de estrangulá-lo ao mesmo tempo, ficando cara a cara com a
mulher que eu tive como uma irmã durante muito tempo e digo, com a boca
rente ao seu nariz:
— Você é uma diaba, Cassandra. Não respeita ninguém, não aceita nenhuma
ordem e não sabe dar valor ao que tem. Uma perfeita diaba.
— Melhor assim. — Debocha, devolvendo a intensidade no olhar que eu
direcionei a ela.
— Você só está se esquecendo de uma coisa, meu raio de sol…
Ela passa os dedos pela minha barba, meu pau se contrai dentro da cueca com
o gesto.
— Então me faça lembrar, amour.
Entrando no seu joguinho perturbado, pego uma mecha do cabelo dela e
enrolo no meu dedo, devolvendo o formato ondulado ao fio.
— Assim como o diabo, você vai perder essa guerra. Vai cair feio sem as suas
asas. E da mesma forma como o anjo que originou o meu nome, sou eu quem vai
tirá-las de você.
— E quem disse que eu preciso delas? — o ar que evapora dos seus lábios
beija o meu pescoço, gerando um arrepio interno que me irrita. Eu sou tão
doente quanto ela para estar excitado em uma situação como essa. — Eu só
preciso que você tire os olhos da cozinha por um instante para me apossar desse
lugar.
— E eu só preciso que você saia da linha uma vez para romper o trato e te
mandar embora daqui. Se estiver querendo perder a chance de fazer parte da vida
da sua sobrinha, está no caminho certo, Cassie. — Me afasto de forma bruta,
quebrando a tensão sexual que insistiu em pairar sobre nós dois hoje.
Deixo a cozinha antes que o meu lado animal dê as caras, com a sensação de
que o meu santuário vai se tornar uma zona de guerra daqui em diante.

Me sinto vingado quando desço as escadas e noto o olhar furtivo de


Cassandra sobre mim. Ela jura que eu não estou ciente da forma como observa
meus músculos através da blusa preta colada. Ou como seu pescoço quase se
quebra quando me ponho de costas para onde está, lhe dando uma visão da
minha bunda, coberta pela calça jeans de lavagem escura, que a diaba parece
aproveitar para investigar o meu rabo como fiz com o dela hoje cedo.
— Aonde vai parecendo que bebeu meio litro de perfume?
Encaro o rosto dela pelo espelho à minha frente. Suas sobrancelhas estão
levantadas. Os olhos estão fixos nos meus em busca de respostas.
— Vou resolver umas coisas enquanto você e a Sasa passam um tempo com a
minha mãe. — Respondo, despreocupado, olhando o meu reflexo para conferir
se os fios do meu cabelo estão perfeitamente alinhados para trás, como eu
gosto.
— Eu não tenho a pretensão de passar um tempo com a sua mãe. Não sei de
onde tirou essa ideia.
— Vocês precisam fingir que estão se conhecendo. — Fico de frente para a
mulher, que ainda me observa atentamente, sentada no sofá.
— Suzana já me conhece muito bem, Miguel. Não vem com essa.
Cruzo os braços, retribuindo a arrogância que Cassandra insiste em usar
quando fala comigo.
— Sim, a sua petulância e irresponsabilidade ela já conhece muito bem
mesmo, mas eu me refiro à Jade. Safira quer que a minha mãe conheça você. —
Minto, usando minha filha como um meio para convencê-la sem gerar uma
briga. — Vá, se vista que eu te levo até lá. Sasa já foi ajudar a avó com o jantar,
devem estar esperando você.
— Não precisa, estou pronta. — Ela se levanta do sofá com uma delicadeza
inédita e retira o tecido do short jeans, que ficou preso no vão entre as suas coxas
grossas.
E é lógico que eu acompanho o movimento hipnotizado, do mesmo modo que
fiz mais cedo. É incrível como tenho prestado atenção nos mínimos detalhes dela
com facilidade, eu nem mesmo tenho como controlar, quando vejo, já estou
secando a diaba.
Prefiro acreditar que isso não seja uma atração. É apenas uma reação normal,
gerada pela curiosidade. Eu a vi crescer, conheço Cassandra desde antes de ela
ter peitos. É normal ficar curioso diante da mulher feita que voltou para minha
vida depois de passar por mudanças naturais no corpo feminino.
É apenas isso.
Da mesma forma como ela também me observa sem pensar. Estamos apenas
nos acostumando com as mudanças. Treze anos nos modificou muito.
— Então vamos indo — me dirijo à porta da minha casa, abrindo-a e
esperando que Cassandra passe na frente. Quando ela não o faz, acrescento: —
Diabas primeiro, anjos depois.
— Vai pro inferno, Miguel — amaldiçoa, se colocando para fora da
residência à minha espera.
— Você primeiro.
O sorrisinho cínico que ofereço faz uma expressão de tédio surgir no rosto
dela.
Estou ficando bom nessa coisa de enfrentar a diaba.
Caminho lado a lado com ela, lembrando o quanto a minha mãe é ainda
melhor nisso. As duas nunca se bicaram. Suzana Sovat jamais saberá tolerar a
língua afiada da minha ex melhor amiga. Estou ansioso para descobrir como vão
driblar isso, tendo uma interação minimamente educada na frente da minha filha.
HABITAT NATURAL


Eu admiro muito a capacidade que Suzana Sovat tem de estar ainda mais
bonita do que há treze anos, por mais que eu não tenha pretensão nenhuma de
deixá-la ciente disso. Se fossemos amigas, eu com certeza perguntaria qual é o
segredo dela para se manter jovem desse jeito. Entretanto, como estamos bem
longe disso, fico calada durante o tempo em que ela e Safira preparam o jantar.
Suzana tem se demonstrado alegre desde quando adentrei a sua casa, depois
de Miguel ter praticamente me jogado na porta da mãe, saindo logo em seguida,
sem dizer aonde ia.
Provavelmente, o sem vergonha trocou uma noite com a família por um
pouco de diversão em um puteiro qualquer. Pelo que ouvi falar, isso não é algo
incomum na vida dele. Um hábito contraditório para um homem que jura amor
eterno a uma mulher por quem se apaixonou na juventude.
No passado, eu nunca cheguei a duvidar da bondade de Miguel. Para mim,
seu coração era puro, livre de qualquer maldade. E olha que eu nunca fui o tipo
de menina ingênua, desde cedo soube o quanto as pessoas podem ser mal caráter.
No entanto, Miguel nunca deixava a desejar quando o assunto era benevolência.
Eu não me lembro de uma única vez em que o vi agir de má fé com alguém.
Mentir? Sim, ele mentiu diversas vezes. Mas jamais fazia mal a alguém de
propósito. O menino loiro e franzino que conheci preferia se ferir a ter que
machucar o outro. Bem diferente do homem forte e de pulso firme que encontrei
quando cheguei aqui.
Eu, mais do que ninguém, sei o quanto alguns anos são capazes de nos
modificar. Talvez até nos tornar irreconhecíveis aos olhos de quem costumava
nos conhecer melhor do que nós mesmos. Acho que esse é o caso do Miguel. A
dor de perder um grande amor, a vida de pai solteiro, a perda do próprio pai tão
cedo, comandar os negócios da família, tudo isso pode ter feito ele se afastar da
sua essência. Eu passei por coisas parecidas e sinto que perdi tudo o que um dia
foi bom na minha pessoa.
Uma parte de mim fica triste ao pensar no quanto Miguel pode ter mudado,
no quanto da sua essência encantadora ele pode ter perdido. E ao mesmo tempo,
sinto que isso não aconteceu. Quando está perto da filha, Miguel parece ainda
possuir a mesma delicadeza que tinha ao tratar qualquer mulher à sua volta. Não
era diferente comigo, apesar de eu sempre dispensar esse seu lado.
Me preocupa também o quanto a falta da mãe pode ter impactado na vida da
minha sobrinha. Aos doze anos, perdi a minha mãe também e só eu sei o quanto
dói viver sem ela. Isso porque eu ainda tive a sua presença por alguns anos. Nem
posso imaginar o quanto Safira deve sofrer com a saudade de alguém que nunca
conheceu. Na verdade, me sinto péssima ao pensar que eu poderia ter ajudado a
manter a memória da minha irmã vívida para sua filha e não o fiz. Se eu tivesse
voltado antes, tudo teria sido tão diferente. Talvez eu pudesse ter suprido um
pouco dessa falta, juntado a minha saudade com a dela e feito algo melhor do
que ter fugido.
Eu vou morrer me culpando por isso, não tem jeito.
Contudo, acabo de decidir que também vou morrer tentando ser a melhor
versão de mim para a minha sobrinha.
Do outro lado da cozinha, com os cabelos presos e concentrada na tarefa de
ajudar a avó, Safira não faz ideia do quanto sua vida mudou o rumo da minha.
— Tem certeza de que não querem ajuda? — pergunto, pela segunda vez.
As duas negam com um aceno de cabeça.
— Já terminamos. — Colocando a massa no forno, Suzana responde.
— Minha roupa ficou toda suja de molho de tomate — minha sobrinha nos
mostra a sua blusa, manchada no centro com um tom vermelho sangue. — Vou
lá em casa trocar. Volto já.
Assim que a neta desaparece porta afora, a mulher de longos cabelos cor de
mel e olhos escuros se aproxima, sentando na banqueta à minha frente, me
lançando um olhar avaliativo.
— Onde esteve por todo esse tempo?
O meu respirar preguiçoso faz dueto com o som baixo que toca na JBL
pequena, localizada em cima do armário à minha esquerda. Eu realmente
esperava que algo mais interessante fosse sair da boca dela.
— Missões de paz. Engatei uma atrás da outra.
— Você continuou no Exército? — ela parece mais surpresa do que curiosa.
Afirmo, balançando a cabeça. — Menos mal. Pensávamos que tinha deixado
tudo para trás e começado uma nova vida do zero, mas pelo visto, você só
deixou as pessoas que te amavam preocupadas mesmo, já tinha tudo em mente.
— Eu precisava me manter. O militarismo me deu a estabilidade que
precisava para viver em paz.
Ou, pelo menos, era isso o que eu pretendia ter.
— E por que voltar agora? Você nunca gostou de viver em paz, Cassandra, o
que aprontou na missão para ser mandada de volta?
Sinto vontade de rir diante do quanto Suzana parece certa de que me conhece,
quando, na realidade, apenas vê o que eu sempre quis que ela visse.
— Dessa vez, eu não fiz nada. Resolvi sair do Exército e ser mais presente na
vida da minha sobrinha. O que acha disso?
— Acho que, se você pensa que sou como a Helena, que passa a mão na sua
cabeça, está muito enganada. Experimente abandonar a minha neta, como fez
com a sua irmã, que eu vou atrás de você, nem que seja no inferno, e te dou a
lição que sua madrasta deveria ter lhe dado há muito tempo.
Diferente de um minuto atrás, não controlo o riso. Faço questão de rir na cara
dela e digo:
— Não se preocupe, Suzaninha. Eu escapei de lá não tem muito tempo. E não
pretendo voltar nem tão cedo.

A viatura militar balança aos montes ao passo que anda na estrada sem asfalto
de Bangui. Ao meu lado, o Tenente Torres arrisca pronunciar algumas palavras
em francês a caminho do acampamento onde estamos hospedados. O seu sotaque
brasileiro ainda influencia muito na hora de exercitar a língua francesa.
Como Tenente de Infantaria, a sua função é completamente tática, fazendo a
segurança de locais e servindo como fonte de apoio para a polícia de Bangui.
Acaba que Francisco não tem tanta disponibilidade de manter diálogos com os
nativos, dificultando um pouco o seu aprendizado.
Por ser Sargento de Intendência, fico restrita à parte administrativa e de
assistência às necessidades do meu pelotão, também tendo contato com os
moradores que aparecem no acampamento em busca de ajuda. Um deles em
específico, chamado Erasto, foi o responsável por me fazer aprender francês
rapidamente. Com apenas nove anos, o menino literalmente puxa a minha orelha
toda vez que erro a pronúncia de alguma palavra.
O pequeno "homem da paz", como diz o significado de seu nome, se tornou
um companheiro e tanto para mim, me dando a certeza de que fiz algo bom
vindo para cá e ajudando outras crianças, que assim como ele, precisam
sobreviver no meio do caos.
A guerra entre o povo cristão e os muçulmanos vem se intensificado na
República Centro-Africana há alguns anos. Eu e mais outros setecentos militares
fomos enviados para representar o Brasil na Minusca: como é chamada a Missão
das Nações Unidas na República Centro-Africana. Estamos aqui há um ano para
promover a paz, também ajudando a população no enfrentamento da pobreza,
oferecendo assistência médica e refúgio.
Conforme seguimos caminho em direção ao acampamento, é possível ver
como essa região foi esquecida pelo restante da população mundial. As
condições de vida por aqui são precárias. Coisas como: saneamento básico,
acesso a saúde e alimentação regular, são artigos de luxo para o povo. A guerra
gerou uma instabilidade política que consequentemente, afetou economicamente
o país, que já não tinha uma condição das melhores.
O resultado disso são crianças desnutridas, famílias desabrigadas e ataques
frequentes.
Uma desordem que me entristece por ver de perto o quanto as consequências
dessa realidade violenta afetam crianças inocentes, que crescem aprendendo a
sobreviver com o mínimo apenas porque nasceram em um país economicamente
desfavorecido e negligenciado.
Meu coração fica apertado quando, ao longo do caminho, me pego pensando
se conseguirei deixar esse lugar no momento do fim da missão. Ao chegar aqui,
eu tinha completa consciência do pandemônio que encontraria, esse foi um dos
motivos da certeza de que eu era perfeita para desempenhar a função que me foi
dada.
O caos é o meu habitat natural.
Sentado no banco do carona da viatura em frente à minha, Felipe Alves me
disse isso durante o nosso tempo de formação na Escola de Sargento das Armas.
Depois que ficamos três dias no campo, tendo de nos virar sozinhos como
obstáculo final para concluirmos o curso, ele viu o quanto posso ser resiliente no
meio da desordem.
E eu? Eu só prestei atenção em como o moreno de olhos castanhos ficava
incrivelmente atraente quando estava sujo de lama.
Felipe também notou que eu sou irresistível mesmo suada e com o rosto
pintado com tinta verde oliva.
Foi assim que o nosso amor nasceu. No meio do caos, da lama e muito suor.
Exatamente do jeito que deveria ser.
Ou, ao menos, deveria ser até eu piscar os olhos e a viatura em que ele está
ser bombardeada com tiros. Não há tempo para reação, as balas surgem de todos
os lados da mata à nossa volta, o sangue espirra para todas as direções a medida
que os homens são atingidos.
— NÃÃÃÃOOOO! — Grito, desolada, quando o Capitão Borges dá meia
volta com a viatura, fugindo dos tiros e deixando os outros militares para serem
alvejados.
É assim que tem que ser. Quando não podemos salvar uns aos outros,
devemos, pelo menos, tentar nos salvar. Eu sei disso. Fui ensinada de que esse é
o certo.
Mas como explicar isso para o meu coração? Ele bate em um ritmo acelerado
ao me dar conta de que perdi o lugar onde eu encontrei a paz.
Felipe Alves é a paz no meio do meu caos.
As lágrimas rolam bochechas abaixo enquanto a poeira levanta e eu perco a
última oportunidade de vê-lo com vida. Me debato dentro do pequeno espaço no
carro durante o instante em que me recordo de que Alves jamais saberá o que eu
descobri essa manhã.
Mas é quando uma carroça com homens fortemente armados nos encurrala no
caminho de volta que o meu coração falha quatro batidas.
Por mim.
Por ele.
Pelo nosso bebê.
Pelo nosso futuro.
É quando cai a ficha de que não pude salvá-lo e também não haverá salvação
para mim e meus homens.
A DIABA ESTÁ DE VOLTA

Assim que deixo Cassie na porta da casa da minha mãe, sigo viagem rumo a
Niterói com uma sensação estranha no peito. O rádio toca Indomável, um feat do
Belo e PK. A melodia é agradável, em dias normais eu iria cantarolar batucando
os dedos no volante, entretanto, não estamos em um dia normal.
No banco do carona, Samuel descansa a cabeça na janela, observando as ruas
por onde passamos, despreocupado, se mantendo em silêncio desde que saímos
de casa. Diferente de mim, ele não é um cara sensitivo. Dirá que é bobagem eu
estar sentindo que algo de errado vai acontecer. Afinal, na sua cabeça, todo o
esquema é muito “simples”.
— O Alfredo já chegou para o turno dele? — pergunto, me referindo a um
dos guardas que fazem a segurança do Porto de Niterói.
— Não, ele chega daqui a uns trinta minutos. Saímos adiantados por causa do
engarrafamento.
Geralmente, eu não participo da primeira operação. Fico aguardando meu
irmão e os outros homens chegarem com a carga no galpão onde estocamos essa
mercadoria. Eles pegam as caixas que atracam no porto, eu apenas confiro se
está tudo em ordem para revendê-las. O motivo da minha presença hoje se dá ao
fato de que perdi o homem da minha confiança que comandava toda a operação
no meu lugar. Com a ida de Edgar para o Japão, me encontro tendo que cumprir
o trabalho dele, pois ainda não encontrei outra pessoa competente o suficiente
para substituí-lo. A função de Samuel não lhe permite comandar uma equipe, é
indispensável tê-lo no controle do volante durante o trajeto de volta para o
galpão, tornando-o indisponível para ocupar o cargo. E não é viável promover
um dos homens da equipe a líder. Eu preciso realmente encontrar um homem e
instruí-lo do zero.
Venho adiando tomar essa decisão há um bom tempo. Reconheço que uma
hora ou outra eu terei de fazê-lo, só esperava ter um filho para torná-lo meu
sucessor. Mas pelo visto, isso não vai rolar nem tão cedo. Vou mesmo precisar
recrutar alguém do meu quartel. De preferência, um dos mais novos para ser
meu braço direito, e um dia, quem sabe, assumir o meu lugar.
Essa é apenas a segunda vez que participo da operação, e apesar de ter
aprendido todos os passos com o meu pai, me sinto um completo amador. Não
nasci para fazer coisas sorrateiras, gosto do alvoroço, dos tiros e da perseguição.
Quando chegamos ao bendito galpão e trocamos o conforto da minha SUV
pelo cheiro de mofo do furgão, eu sinto a sensação ruim se intensificar à medida
que Samu dirige rumo ao nosso destino.
Há muitas coisas que podem dar errado essa noite. Incontáveis possibilidades,
todas nos levando a sermos indiciados pela Polícia Federal e estragando o
esquema ilícito criado pelo meu pai. Esquema do qual conta com uma rede de
apoio extensa para encobrir os rastros da operação, que começa na Bolívia, cruza
o Brasil e é finalizada na Europa. No entanto, essa rede pode não ser o suficiente
se formos pegos em flagrante.
Com o carro há alguns metros de distância do portão de entrada, Samuel
aguarda Alfredo permitir o nosso acesso. O farol está desligado para não chamar
a atenção, deixando tudo à nossa volta em um completo breu. Este pequeno
detalhe não atrapalha em nada os olhos de águia do meu irmão, que enxerga o
guarda acenando ao longe e pisa no acelerador com destreza assim que o portão
é aberto, dando início ao plano.
O mar está calmo na Baía de Guanabara, totalmente diferente do frenesi que
se torna a minha mente no momento em que Samuel estaciona ao lado do
container azul, o motivo de estarmos aqui. Eu e os outros homens saímos do
automóvel no mesmo instante, marchando com determinação exalando por
nossos poros até a enorme caixa metálica. Suor pinga pela minha testa no
instante em que desfaço as trancas e me deparo com o conteúdo dentro do
container.
Agilidade e força são as coisas mais importantes nessa operação. Tudo
precisa acontecer no tempo de dez minutos. A porta do furgão é escancarada, os
bancos foram abaixados para receber a cocaína disfarçada de pó de café, no
entanto, aos quatro minutos da operação, percebemos que, na verdade, a carga
trazida contém sim cocaína, mas ela está compactada em tabletes disfarçados de
embalagens de folha A4.
Genial?
Sim, muito genial.
Entretanto, não é a nossa mercadoria. Não é o nosso modo de exportar.
— Que porra é essa, Alfredo? — esbravejo, fazendo o guarda dar um
sobressalto e arregalar os olhos.
— É a carga de vocês, senhor. O outro container de cocaína foi levado mais
cedo, esse só pode ser o de vocês.
Contenho a vontade de esmurrar o metal, me forçando a pensar em uma
solução.
Seis minutos de operação.
Eu sabia que tinha alguma coisa errada nessa porra! Eu sabia!
E agora, Miguel? O que você vai fazer com toda essa droga que não é sua?
— Pergunto para mim mesmo.
A única coisa que posso fazer com o tempo que tenho.
— Coloquem todas as caixas na van. — Ordeno. Os homens se movimentam
no mesmo instante, sem questionar.
Restam apenas alguns segundos para o tempo pré-determinado: dez minutos,
quando terminamos de pegar a carga e eu bato a porta do furgão, sendo recebido
pelo meu irmão, que me lança um olhar nada amigável.
— Posso saber o que caralhos você pretende fazer pegando uma droga que
não é nossa? — apesar de não entender o que penso em fazer, ele pisa no
acelerador, cantando pneu quando deixa o Porto de Niterói para trás em
segundos.
— Encontrar quem pegou a nossa mercadoria por engano e barganhar uma
possível troca antes que seja tarde.
— Você sabe que aqui tem bem menos pó do que a nossa mercadoria, né?
— Eu não preciso ter as habilidades de cálculo do Rafael para saber que
estamos levando menos de 1 tonelada de cocaína, Samu.
Eu soube disso no momento em que pus os olhos nos tabletes. Por isso o
desespero. Fora o detalhe de que não faço a menor ideia de onde isso veio, se
tem qualidade, se está puro…
Estamos no escuro.
A melhor opção é encontrar os outros traficantes antes que eles vendam a
cocaína e tenham lucro em cima do que é nosso.
O grande problema é que a Facção da VR não gosta de esperar. E se, por um
acaso muito fodido, essa droga for parar nas mãos da facção rival, as coisas
mudam de figura, tomando uma proporção ainda maior, dando mais munição
para uma guerra entre bandidos que se estende por anos.
Isso seria muito ruim para os meus aliados. E consequentemente, para mim
também.
O relógio marca duas da manhã quando finalmente chego em casa. Deixo o
molho de chaves sobre a mesa, fazendo um barulho estridente que quebra o
silêncio do lugar por poucos segundos. Me sirvo de um copo de água gelada,
refrescando a minha garganta que implorava pelo líquido transparente depois da
força que fiz para descarregar todos os pacotes com a droga no galpão.
Sinto o cansaço se apossar do meu corpo durante a subida das escadas. Minha
cabeça dói de preocupação. Meus sentidos vão ficando letárgicos ao imaginar a
cama confortável onde pretendo pegar no sono após um banho bem tomado.
Mas basta apenas ouvir o grito de Cassandra para que eu entre em estado de
alerta e corra ao seu encontro, escancarando a porta do quarto num movimento
bruto. A madeira bate contra a parede violentamente, o barulho não afeta Cassie,
ela continua se debatendo e murmurando coisas que só entendo quando me
aproximo, tomando seu rosto entre as minhas mãos. O suor escorre por sua face,
alguns fios do cabelo dela se aderiram à pele. Afasto eles delicadamente
enquanto ela continua se debatendo, tentando fugir do meu toque.
— Nãããooo, me matem logo, me matem logo! — o desespero dela se
intensifica conforme tento conter suas mãos, que arranham meu rosto e peito.
— Cassie! Sou eu , Cassie, o Miguel, acorde! — com apenas uma mão,
enlaço seus pulsos, colocando eles acima da sua cabeça. Usando a outra, acaricio
a bochecha dela, chamando o seu nome, implorando que ela acorde.
Cassandra continua irredutível, me chutando e desviando do meu toque. A
mulher treme enquanto grita por socorro. Lágrimas escapam dos seus olhos sem
parar. Vê-la assim, tão apavorada, perdida em um pesadelo, parte o meu coração.
Entro em desespero à medida que os minutos passam e ela não acorda. Tento de
tudo. Chamo seu nome repetidas vezes, sacudo o seu corpo, digo que ela está
sonhando… Nada a faz abrir os olhos.
Desesperado, não raciocinando tão bem quanto deveria, me vejo grudando os
lábios nos dela, lhe dando um beijo terno que depois de alguns segundos faz o
seu corpo amolecer.
Continuar beijando a boca de Cassandra não era a intenção, mas é o que faço
quando ela corresponde, deixando minha língua trilhar o caminho até a sua. O
movimento é suave. Os meus sentidos se desligam, permitindo que meu corpo
relaxe sobre o dela.
Me afasto quando sinto o gosto salgado do seu choro interferir no beijo.
Agora completamente acordada, Cassie limpa o rosto com as mãos, não
adiantando muito pois logo a água escorre novamente bochechas abaixo. O som
do seu soluço preenche o quarto, que antes da sua chegada era vazio, e no
momento está cheio de sentimentos dolorosos pairando no ar.
Não sei o que de fato ela estava sonhando para demonstrar tamanho
desespero. Mas quando seus olhos se fixam nos meus pela primeira vez desde
que acordou, eu desvendo exatamente o que esse olhar carrega. O vislumbre que
tenho diante de mim é o mesmo do dia em que nos conhecemos. Os mesmos
olhos verdes entristecidos escondendo uma dor ainda mais profunda do que a
imensidão de suas orbes esverdeadas são capazes de deixar transparecer.
Linda demais para parecer tão triste. — O pensamento se faz rapidamente na
minha cabeça, como naquele dia.
Assim, com os lábios inchados, as bochechas vermelhas e lágrimas banhando
o seu rosto, ela está mais vulnerável do que nunca. E mais linda do que nunca
também. Há uma certa beleza na forma como Cassandra se impõe, forte e
inabalável. Mas é quando suas barreiras caem que a sua verdadeira graciosidade
pode ser vista, sendo ela muito mais linda.
Sem perceber, encosto a minha testa na dela, acariciando o seus braços na
intenção de oferecer conforto. O gesto só a faz chorar mais.
— Não é você quem eu queria aqui — ela diz, entre lágrimas e soluços.
— Mas sou eu quem está aqui com você. — Ignoro os seus protestos e puxo o
corpo dela até que meu peito esteja colado no seu. — Me diga, com o que estava
sonhando para ficar desesperada desse jeito?
— Não é da sua conta.
Minha risada faz Cassie afundar o rosto no meu ombro, se permitindo rir
também por um instante em meio ao choro incansável.
— Você disse a mesma coisa para mim quando te perguntei o porquê de
parecer tão triste no dia em que nos conhecemos, se lembra? — ela nega,
esfregando o rosto na minha camisa. Meus dedos se engrenam entre os fios
cacheados até chegar na sua nuca, onde eu puxo delicadamente para que ela
volte a olhar no meu rosto. Apenas alguns centímetros separam nossos lábios
quando digo: — Mas eu esperei até você confiar em mim e se sentir confortável
para me contar.
— E o que uma coisa tem a ver com a outra?
— Eu vou esperar de novo, Cassie. Vou esperar até você confiar em mim para
contar o porquê está tão devastada novamente.
O minuto que se segue é de completo silêncio. Nossas bocas estão próximas,
ao ponto de me fazer sentir o hálito dela a cada vez que respira. Percebo que
seus mamilos roçam o meu peito quando presto atenção no ritmo da sua
respiração. Cogito beijá-la novamente, chego até mesmo a encostar meus lábios
nos dela, mas Cassandra recua, recobrando a consciência e me fazendo recuperar
um pouco da minha também.
— Não faça mais isso. Nunca mais, Miguel.
Apesar de estar me rejeitando em voz alta, seus braços ainda envolvem o meu
pescoço.
— Não vou fazer mais, me desculpa.
— Se desculpe fazendo algo para eu comer.
E é assim que a Cassie vulnerável se vai. A muralha protegendo o seu coração
foi erguida novamente. A dor está camuflada pelo olhar impaciente que me lança
ao levantar- se da cama.
A diaba está de volta.
Me pedindo que cozinhe para ela.
Eu aceito, feliz por ter visto um pouco da loirinha raio de sol que ainda mora
dentro dela.
ERA UMA VEZ

Vinte anos antes…



Fazia quase quarenta graus no Rio de Janeiro quando fui convidada por
Miguel para tomar banho de piscina na sua casa. Ao chegar lá, usando maiô e
carregando Jade comigo nos braços junto de uma bóia, percebi que a piscina à
qual ele se referiu nada mais era do que uma caixa d'água grande, colocada no
quintal para nos refrescarmos.
Não fiquei decepcionada, afinal, eu havia ido para ter a sua companhia,
pouco me importava onde estaríamos, portanto que ele estivesse comigo. Àquela
altura, já estava rendida pelo menino de sorriso fácil.
— Sabe, Cassie, você ainda não me contou porque veio morar aqui… — Ele
insinuou, tentando arrancar informações de mim enquanto estávamos na água.
— Talvez seja porque não é da…
— Da minha conta, eu sei!
— Se sabe, então por que continua insistindo?
— Porque eu quero saber tudo sobre você. Esse mistério está me deixando
obcecado, Cassandra!
Ignorei o fato dele ter me chamado pelo nome e franzi as sobrancelhas,
confusa.
— O que é ficar obcecado?
— Quando ficamos pensando muito em uma coisa, querendo ter aquilo a todo
custo.
Eu achei engraçado um garoto de treze anos usar uma palavra difícil como
essa, fiquei alguns segundos rindo da sua cara.
— É sério! Você sabe tudo sobre mim, eu sei apenas que é filha do seu
Maurício e tem doze anos.
— Eu nunca te perguntei nada, você falou porque quis.
Miguel colocou a mão sobre o peito com uma expressão de dor no rosto
bonito, fingindo ter sido atingido por algo doloroso ali. O menino fazia isso toda
vez que eu era grossa.
— Poxa, Cassie. Nós somos melhores amigos, precisamos ser mestres em
saber tudo um sobre o outro.
Continuei deslizando meus braços pela água, que havia ficado morna devido
ao sol escaldante acima de nós, ignorando-o completamente. Antes que pudesse
resmungar, seu irmão mais novo entrou na caixa d'água para nos fazer
companhia. Miguel pegou o pequeno Samuel e o colocou no seu colo. Me
lembro de ter achado fofo a forma como ele era muito carinhoso com os irmãos,
apesar de Rafael, o filho do meio, fugir dos seus abraços e beijos sempre que
podia.
— Onde está a sua mãe? — perguntou. Lhe dei um olhar repressor, odiando o
rumo que a conversa tomou. — Só me diga: ela te abandonou? É por isso que
está tão triste?
Meus olhos se encheram de lágrimas na mesma hora. Porque, de fato, era
assim que eu me sentia: abandonada. Saí correndo para fora da água. Miguel
deixou o irmão de lado e veio ao meu encontro. Nossos corpos molhados
fizeram uma trilha no chão conforme eu corria e ele me acompanhava.
— Não fique assim. Foi ela quem perdeu uma filha incrível, não o contrário.
— O menino me consolou, abraçando o meu corpo contra a minha vontade
enquanto eu chorava sem parar.
— Fui eu quem perdi, Mica. Perdi a minha mãe.
Por um instante, ele ficou em choque, os braços permaneceram à minha volta
e os olhos se encheram de lágrimas. Pela primeira vez, Miguel não soube o que
dizer.
Mas sabia sentir. O garoto destemido e alegre me confortou durante os
minutos em que chorei desesperadamente nos seus braços, tudo isso enquanto
seu irmão, que devia ter uns cinco anos, nos observava com um semblante sério,
provavelmente enciumado.
Era impressionante como Miguel conseguia driblar as barreiras que eu
impunha desde quando o conheci. Naquela tarde, onde seus olhos pousaram em
mim pela primeira vez, eu senti que a mudança para a casa do meu pai poderia
não ser algo tão horrível assim. As circunstâncias que me levaram até lá que
eram. E, de alguma forma, Mica enxergou isso.
Foi assim que ele ganhou o meu coração. Enxergando além do que eu
deixava transparecer. Tirando um sorriso meu todos os dias. Se importando com
o motivo da minha tristeza quando todos à minha volta diziam que eu devia ser
forte. Miguel apenas queria ver a minha fragilidade, não para tirar proveito
disso, e, sim, com o intuito de me ajudar.
— Cassie? — a voz máscula invade os meus pensamentos, me obrigando a
sair do transe. Encaro o rosto do homem que faz parte das minhas melhores
lembranças. — Pode pegar o queijo para mim na geladeira?
Acato seu pedido, colocando o pote à sua frente. Ele agradece com um
balançar de cabeça.
— No que estava pensando? Te chamei várias vezes e você não escutou.
Parecia perdida…
— Vai mesmo me obrigar a dizer que não é da sua conta pela milésima vez?
— ele revira os olhos. — Pergunte menos e cozinhe mais, Miguel. Estou vendo a
hora de amanhecer e esse pão não ficar pronto.
— Esse não é um pão qualquer, Cassandra. É uma pizza com pão de forma. E
já está indo para o forno, sua chata. — Miguel marca no relógio de pulso o
tempo que devemos esperar para ficar pronto. — Agora só nos resta esperar.
Dito isso, ele se joga no sofá e liga a televisão, passando os canais que não
lhe interessam até parar em uma luta de MMA que prende a sua atenção. Me
ponho ao seu lado, mantendo a distância de alguns centímetros entre nossos
corpos.
— Obrigada. — Digo, do nada.
Ele fica em silêncio, os olhos mirados na TV, mas longe de estar focado no
que se passa ali.
— Pelo quê?
— Por me salvar.
Quando a televisão é colocada no mudo, o som da minha respiração pesada
preenche a sala. Sentindo vergonha por ter deixado que Miguel visse uma parte
vulnerável minha, abaixo a cabeça.
— Eu poderia fazer mais, se você deixasse.
Fico chocada com tamanha audácia, erguendo o rosto para olhar bem a cara
de pau dele.
— Colocando a língua mais fundo na minha boca? Dispenso! — seus olhos
estão arregalados quando prossigo: — Aliás, que porra estava passando na sua
cabeça quando pensou que seria uma boa ideia me beijar? Acha que eu sou o
quê? A Cinderela?
— Primeiramente, não é a Cinderela quem recebe um beijo para acordar, essa
é a Branca de Neve. Em segundo lugar, se você dispensasse mesmo, não teria
deixado acontecer.
— Eu estava sonhando!
— Mas acordou com o meu beijo.
— Acordei com você enfiando a língua na minha boca!
— Eu senti a sua também. — Trinco o maxilar quando Miguel me oferece o
seu sorriso presunçoso. — Se um não quer, dois não beijam, Cassie.
Permaneço em silêncio nos minutos seguintes.
Ele está certo?
Sim, está.
Eu irei admitir isso em voz alta?
Jamais.
E Miguel sabe disso.
O filho da puta está com os olhos fixos em mim, se sentindo triunfal por ter
me encurralado.
— Sabe, Cassandra, não precisa ficar envergonhada por ter gostado. Foi… —
Irritada, encaro o seu rosto com um semblante nada amigável e o interrompo.
— Cale essa boca ou eu quebro o seu forno à lenha todinho usando um
machado que encontrei na garagem.
— Você não é nem maluca de fazer isso!
Agora, quem debocha sou eu, exibindo todos os meus dentes em um sorriso
sarcástico.
— Não sou?
— Maluca você é. — Conclui. — Mas nós temos um trato. Espero que não
seja louca ao ponto de arriscar perder a oportunidade que estou te dando.
Nossos olhares disputam para ver qual deles intimida mais. Meu corpo
exalando audácia por todos os poros. O dele emanando a petulância que mantém
guardada para ocasiões como essa, onde alguém do mesmo nível o desafia.
Esse duelo se estende por algum tempo, sem palavras, apenas soltando faíscas
invisíveis para todos os lados devido a tensão que o silêncio carrega. Nenhum de
nós está disposto a se entregar, até o relógio dele apitar, indicando que o pão
deve ser retirado do forno.
Sigo junto com Miguel em direção a cozinha, ambos ainda sem dizer uma
palavra sequer. Minha barriga ronca quando vejo a tal pizza de pão. O queijo
derretido pelas bordas da massa me faz salivar.
— Eu não sei porque fiz aquilo — para a minha surpresa, ele confessa.
Ponho um pedaço do pão na boca, afim de justificar a minha falta de
pronunciamento imediato. O clima agora é de constrangimento, totalmente
diferente de uns minutos atrás.
— Se acontecer de novo, tampe o meu nariz por alguns segundos ou jogue
água na minha cara.
Miguel não responde, apenas balança a cabeça, me chamando para voltarmos
ao sofá. Nos sentamos lado a lado novamente, com o prato estabelecendo uma
distância saudável entre nós dois, mas, ainda assim, sinto que estamos cada vez
mais próximos emocionalmente.
Constatar isso me faz entrar em estado de alerta.
Eu não perdoo ele por ter escondido de mim o que sentia pela minha irmã.
Muito menos por omitir a gravidez dela. O perdão é para quem realmente se
arrepende. Não é o caso do homem que depois de comer, adormeceu ao meu
lado.
Se pudesse escolher viver tudo aquilo de novo, tendo que me magoar
profundamente, apenas para ter Clarice de volta, Miguel faria. Tenho certeza de
que não pensaria duas vezes. Ele escolheria quebrar meu coração em nome do
amor que sente por ela.
Quando eu me levanto e o deixo dormindo no sofá, eu também faço uma
escolha.
Escolho nunca mais permitir que Miguel Sovat brinque com o meu coração.
O PREÇO

Crazy in Love toca no último volume enquanto Beyoncé rebola em cima do


meu colo sem parar. A visão dela me olhando de cima faz meu pau se contrair
dentro da cueca como jamais fez para mulher alguma.
Ela tem esse poder sobre mim desde que eu era garoto.
As mãos dela deslizam pelo meu pescoço, descendo e se enfiando por
debaixo da minha blusa. Depois voltam a dar atenção para o meu rosto, alisando
a minha barba e…
AÍ, BEYONCÉ!
Um tapa é desferido no lado direito da minha face, recebo outro logo em
seguida, do lado esquerdo, me fazendo abrir os olhos para dar de cara com um
Samuel impaciente.
— Acorda, princesa.
Quando me ponho sentado no sofá, percebo que seus cabelos estão molhados,
e penteados para trás, deixando a mostra os traços perfeitamente demarcados do
seu rosto.
Naturalmente meu irmão já possui uma cara de psicopata. A mandíbula
esculpida tem cem por cento da culpa quanto a isso. Esse detalhe da sua face,
somado aos olhos azuis claros, encantam na mesma medida em que assustam.
Enquanto observa o meu espreguiçar lento, Samuel parece possuir duas vezes
mais tendências psicopatas.
— Já pensou em deixar a barba crescer? — sugiro. Ele apenas se senta na
minha poltrona. — Vai ajudar a melhorar essa sua cara de príncipe cruel.
— Eu estou muito contente com o meu rosto. Você é quem deveria ter
vergonha dessa sua cara. Babando no sofá enquanto sonha com a Beyoncé. —
Tiro um pouco de remela dos meus olhos, ainda me acostumando com a
claridade do amanhecer. O psicopata continua dando sermão. — Clarice deve
estar se contorcendo no caixão…
Sem querer, dou risada.
— Eu nunca escondi dela o efeito que a Be sempre teve em mim. — Meu
irmão me observa, entediado. — Clarice não ficava chateada com isso.
— Que seja. Levanta logo e escova esses dentes. Estou sentindo o seu bafo de
leão daqui.
Para tirar uma com a cara dele, sopro um pouco de ar bem próximo ao seu
rosto. Ele põe a língua para fora, enojado.
— Puta que pariu!
— Deixa de ser fresco. — Bagunço seu cabelo. — Por que veio me acordar?
Estou esquecendo de algum compromisso?
— Henrique resolveu vir para cá de última hora. Marcou um encontro com a
gente no Copacabana Palace às dez.
A preguiça dá as caras quando me recordo do trânsito que vamos enfrentar
para chegar lá em pleno final de semana. Confiro o relógio no meu pulso, faltam
duas horas, o tempo mínimo que se leva para ir da Barra até Copa.
— Lá se vão as minhas férias… — Resmungo, me dirigindo ao banheiro do
primeiro andar da minha casa.
— E bandido lá tem férias, Miguel?!
Minha risada ecoa pelo corredor. Estou quase entrando no banheiro quando
ouço o barulho vindo de lá e noto a porta do porão aberta. Curioso, resolvo
verificar quem é o responsável. Ao descer as escadas, sou presenteado com mais
uma visão erótica esplêndida de Cassandra, que está de quatro no chão, elevando
a perna com uma caneleira.
Dar de cara com a bunda dura e empinada, instintivamente faz meu pau
endurecer mais do que já estava quando acordei.
Beyoncé e Cassandra são uma combinação perigosa pela manhã. Na verdade,
a qualquer hora do dia! Mas principalmente no período vespertino, que é quando
meu cacete tem uma tendência maior a ficar bem animado.
Eu já havia recebido uma amostra da quantidade de carne generosa que a
diaba possui no rabo, devido a ineficácia do pijama indecente em cobri-lo.
Entretanto, nada poderia me preparar para vê-la agachada, com os joelhos e
cotovelos no chão, executando um exercício tão excitante se visto do ângulo em
que estou vendo.
Chamá-la de diaba nunca foi tão apropriado como agora. Porque isso com
certeza não é de Deus!
— Quem está secando quem agora, Miguel? — ironia escorre dos seus lábios
quando ela sai da posição, ficando apenas de joelhos, o rosto virado de lado para
me enxergar.
— Não estou te secando… Estava esperando você terminar a série. — Engulo
em seco, torcendo para que a calça jeans não esteja deixando tão evidente a
minha ereção. — Aliás, pensei que íamos treinar juntos.
Em um movimento gracioso, Cassie se levanta depois de retirar a caneleira. O
short fica ainda mais colado ao corpo quando o faz. De frente, percebo um
detalhe sobre ela que não havia tido a oportunidade de notar antes. A borboleta
tatuada no vão entre os seus seios me chama a atenção, sendo possível de
visualizar graças ao top decotado que ela resolveu usar.
— Não me lembro de ter dito que iria treinar com você.
— É, realmente não disse. Mas eu supus que…
— Supôs errado. — Me interrompe. — A academia fica bem melhor sem
você. Vaza.
— Como pode saber, se nunca treinou comigo?
Sentada na cadeira flexora, ela me olha com desdém.
— Tem certas coisas que a gente não precisa experimentar para saber que não
gostamos.
— A sua sorte é que eu preciso sair, senão, você teria que me aguentar
puxando ferro por aqui. — Observo o relógio, constatando que terei de correr se
quiser chegar em Copacabana às dez. — Tenha um bom dia, raio de sol. Cuida
da Sasa pra mim e fique longe do meu forno.
— Dirija com cuidado, Miguel. Um deslize e sua filha, seu forno e essa
academia belíssima vão parar nas minhas mãos. — Diferente do usual, o
deboche dela não vem acompanhado de um sorriso.
Ainda não entendi porque Cassandra insiste em impor uma muralha entre nós
com as suas alfinetadas. Pensei que, depois do ocorrido de ontem, estávamos
caminhando para ter uma boa relação. Pelo visto, como ela mesmo disse, eu
supus errado.
— Obrigado pela motivação. Com certeza vou ter o dobro de cuidado depois
disso.
— É sempre um prazer. — Essa é a última coisa que ouço dela depois que
coloca os fones de ouvido e inicia o exercício.

A fachada do hotel Copacabana Palace enche os meus olhos quando entrego a


chave do carro para o manobrista e me dirijo à entrada do lugar.
O edifício cheira a luxo e poder. Composto de uma estrutura colonial pintada
em tons claros, sacadas com a vista privilegiada da orla de uma das praias mais
famosas do mundo. É um hotel para quem quer o melhor. E claro, pode pagar
por isso.
Ao passo que percorro o caminho até a área da piscina, cruzo com diversas
pessoas que se encaixam nesse quesito. Mulheres exibindo jóias de ouro,
homens vestindo ternos caríssimos feitos sob medida, senhoras e senhores que
não estão desfalcando suas economias para estarem aqui, muito pelo contrário,
de onde vem a verba que lhes permite se hospedar nesse hotel há muito mais.
E quanto mais dinheiro tiver, mais espaço para o luxo haverá.
Essa foi a primeira coisa que aprendi depois de assumir o comando dos
negócios da minha família. Principalmente por influência do homem que sorri
majestosamente ao me avistar indo na sua direção. Esse senador corrupto gosta
muito de luxar às custas do esquema ilícito que somos sócios.
— Finalmente os meus meninos de ouro chegaram. — Ele diz, fazendo sinal
para eu e meu irmão nos sentarmos na sua mesa, posta com um café da manhã
recheado de guloseimas.
Henrique Salazar é o homem mais agradável que já conheci. E também o
mais perverso. Ninguém imagina que por trás da faceta de político respeitado há
muita sujeira e crimes jogados para debaixo do tapete. Aos quarenta e dois anos,
ele esbanja charmosidade devido a sua semelhança com o Patrick Dempsey. Os
fios brancos que começaram a aparecer recentemente só o tornam ainda mais
desejado pelas mulheres. Que se encantam pelo seu sorriso sedutor e olhar
penetrante, sem fazer a maior ideia do quão podre Henri é.
Mas eu também não posso dizer muita coisa. Fui abençoado com um rosto
belíssimo e escondo várias merdas debaixo do tapete, assim como meu irmão,
que conversa sobre trivialidades com o nosso sócio, se desvirtuando do motivo
pelo qual viemos.
— O papo está muito bom, mas eu deixei minha filha em casa para estar aqui.
Vamos logo direto ao ponto, Henri, preciso voltar antes do almoço.
— Claro, tenho dois pontos para abordar. — Ele se ajeita na cadeira, ficando
ereto para que possa nos dizer o que pretende sem alarmar as pessoas em volta.
— Primeiro, sobre o ocorrido com a carga, aconselho que peçam para o primo de
vocês uma nova remessa rápido.
— Estamos rastreando o veículo que levou a nossa mercadoria por engano,
em breve teremos alguma notícia… — Samuel tenta explicar, sendo
interrompido pelo senador.
— Vocês são muito ingênuos para serem filhos de Cícero Sovat se pensam
que vão encontrar a carga, e pior, se acreditam mesmo que a conseguirão de
volta.
— Uma nova carga vai demorar cerca de um mês para chegar, duvido muito
que o Russinho queira esperar isso tudo. — Digo, ofendido com o comentário de
Henrique. Ele me olha sério, deixando para trás a simpatia forçada que costuma
usar o tempo inteiro.
— O que Cícero fez quando foi roubado? — a pergunta me pega de surpresa,
mas logo Henri mostra que ela é retórica. — Ele encomendou uma nova
mercadoria e não descansou até ter a cabeça do ladrão.
— E isso custou a vida dele.
Voltando a se recostar na cadeira, meu sócio relaxa sua postura.
— Esse é o preço da vida que escolhemos levar, Miguelito: a nossa própria
cabeça. Por isso é tão perigoso e lucrativo. Dependendo do quão temidos nós
somos, algumas cabeças custam mais e outras custam menos.
— Então você sugere que a gente execute o mandante do roubo… —
Assimilo, falando mais baixo.
— E se a cabeça desse mandante custar caro? — Samuel tira as palavras da
minha boca.
— Então faça a sua custar ainda mais.
É nisso que dá ouvir o conselho de um sádico. As palavras do meu sócio
soam até poéticas na presença do seu sorriso presunçoso. Mas, para um homem
que tem outra vida dependendo da sua, são puramente ácidas. Se eu não fosse
pai, a ideia de ter uma mira na minha cabeça não seria tão apavorante.
Entretanto, eu sou.
— Qual é a outra coisa que você queria falar? — mudo de assunto.
— Eu vou me casar! — a revelação faz meus olhos se arregalarem. Henrique
se casando? — Não faz essa cara, eu já passei dos quarenta, está mais do que na
hora.
— Parabéns, então. — Samu é o primeiro a parabenizá-lo. Ele idolatra Henri
desde que se entende por gente, não é estranho vê-lo puxar o saco do senador.
— Manda o convite, papi. Vou estar na primeira fileira para te ver jurando
amar e cuidar da sua noiva.
— Na verdade, você vai estar no altar, junto comigo, como o meu padrinho.
Aliás, leve a madrinha.
— Quem tinha que fazer isso não era você, Henri? — pergunto.
— Não quando você tem uma cunhada tão bonita como aquela que está
hospedada na sua casa. Sem contar que as únicas mulheres presentes na minha
vida são prostitutas.
Ah não…
— Fora de cogitação eu voar para Brasília e levar Cassie comigo!
— Vai sim, eu escolhi Cassandra como minha madrinha. — O desgraçado
mostra os dentes, brancos e perfeitamente alinhados, rindo da minha cara. — A
moça é militar e não tem cara de puta. Perfeita para a ocasião. Eu quero ela ao
seu lado no altar!
— Você me paga por isso, Henrique.
— Esse preço não é tão alto, Miguelito… — Ele definitivamente não conhece
aquela diaba. — Pense no quanto um tempinho a sós com ela, em um hotel cinco
estrelas de Brasília, não vai ser proveitoso para vocês.
Há apenas duas coisas capazes de me fazer sair de mim: raiva e tesão.
Cassandra me faz sentir os dois.
E, se tratando de nós, essa combinação é tão sutil quanto misturar fogo e
gasolina.
Então, Henrique, se tem uma coisa que esse tempo a sós com ela não vai ser é
PROVEITOSO!
CARTAS DE ÓDIO

Mãos à frente do rosto, postura ereta, o corpo relativamente distante do


adversário.
Safira está quase perfeita.
— Mantenha seu corpo de lado. Isso dificulta ser atingida. — Oriento-a.
Minha sobrinha se move, ainda sem estar na posição que deveria. Seguro seu
ombro direito, mostrando qual o lado que ela precisa virar. — Dessa forma, seu
peito e estômago estão mais protegidos.
— É por isso que os lutadores nunca ficam de frente. — Conclui.
— Aham. Outro truque que eles usam é ficar na ponta dos pés durante a luta.
Isso ajuda a se mover mais rápido e esquivar de algum golpe.
No pequeno espaço da academia, Safira põe em prática o que ensinei,
imitando o comportamento dos lutadores e simulando um confronto com o
boneco de pancada do seu pai. Apesar do corpo esmirrado, ela possui certa
destreza ao chutar seu adversário de borracha. Se continuar treinando, com
certeza vai ser melhor do que eu era quando tinha a sua idade.
Comecei a praticar Taekwondo aos quinze anos. O amor pela luta surgiu na
escola, lugar onde eu fazia aulas durante a manhã e aprendia a lutar de tarde. Foi
lá que participei dos primeiros torneios, colecionando medalhas e recebendo
ofertas para lutar em outros lugares do Brasil. Tive que negar todas elas, por não
ter condições de arcar com os custos e também pela falta de apoio do meu pai.
Ele não me permitia sonhar com um futuro como lutadora, dizia que eu deveria
ter uma vida mais estável.
Não tiro a razão dele. Como pai, Maurício desejava conforto e segurança
para as filhas. Sua intenção nunca foi frear o meu sonho por maldade, e, sim, me
encaminhar para uma vida estável, sem complicações ou incertezas, coisas que,
sem dúvidas, eu enfrentaria caso seguisse a carreira de lutadora.
— E agora? Está certo? — Safira pergunta, empenhada na missão de executar
as minhas instruções perfeitamente.
— Sim, só vou acrescentar mais uma coisa: deixe os joelhos levemente
flexionados, isso te torna um alvo menor e também ajuda a se esquivar mais
facilmente.
A menina acena positivamente, replicando o que eu disse na mesma hora. Ela
realmente está levando a sério, quer mesmo aprender como se luta. Miguel
apenas a ensinou o básico, mas a sede da pequena preciosa vai muito além disso.
Safira é tão parecida comigo nesse quesito, não descansa até ter o que quer.
Negar ensiná-la nem passou pelos meus planos quando entrou aqui e me viu
dando alguns golpes. Os olhos dela se iluminaram. Minha sobrinha ficou tão
encantada quanto eu fiquei ao ver uma luta de perto. Jamais poderia dizer não
quando ela me pediu que a ensinasse tudo o que eu sei.
Mostro a Safira todos os truques e movimentos essenciais para uma luta
limpa durante o tempo que ficamos na academia. Meu top está encharcado de
suor quando voltamos ao primeiro andar para prepararmos o almoço. Sasa não
fica atrás, sua legging cinza adquiriu uma cor mais escura e seus cabelos brilham
devido à oleosidade.
Mas o sorriso radiante não deixa o seu rosto enquanto ela arruma a mesa. Eu
observo minha sobrinha de longe, preparando um frango grelhado e pensando no
que Safira dirá quando souber que sou a sua tia. O choque será inevitável. Minha
sobrinha não faz a menor ideia de que existo, isso causará uma grande confusão
na sua cabeça. Espero que ela seja tão esperta para lidar com essa situação
quanto é para se esquivar de um golpe.
— Você já escreveu uma carta na vida, Jade? — a pergunta me pega de
surpresa.
— Acho que não. Talvez na escola, não lembro. Você já?
Como resposta, Safira coloca diversos envelopes sobre o balcão à minha
frente. Eles têm cores variadas. Alguns são lilás, outros vermelhos e alguns
possuem a cor rosa. Um detalhe que chama atenção são os adesivos colados no
centro de todos eles para fechá-los. Parecem terem sido tirados de um mesmo
caderno. Aquelas figurinhas que vem na cartela deles, sabe? Bem coisa de
criança mesmo.
— Essas são apenas as do ano passado. Tem várias caixas com milhares de
outras cartas que escrevo para o meu pai.
— Que fofo, você escreve cartinhas para o seu papai. — Brinco. Ela revira os
olhos. — Mas, falando sério, achei legal mesmo você fazer isso.
— Eu escrevo cartas como essas desde que aprendi a escrever. Não é tão
legal quando se faz pela milésima vez.
O som da minha risada se mistura ao da manteiga dourando os pedaços de
frango que coloco na frigideira.
— Se não gosta mais, por que continua fazendo?
— Meu pai ama essas cartas. Ele escreve para mim também. E sempre tem
uma forma diferente de dizer o quanto me ama. Eu já não sei mais o que
inventar, o que mais usar como analogia para dizer que também o amo mais do
que tudo.
— Então diga isso a ele!
Ela ri, sem humor algum.
— Não quero decepcionar o meu pai. Na cabeça dele, essa é uma forma de
manter a gente sempre unido.
— Então continua escrevendo as cartas, ué. — Safira encara o amontoado de
envelopes caseiros. Eu sou uma péssima conselheira, isso nunca foi um segredo
para mim. Tentando me redimir, acrescento: — Você pode pegar uns poemas na
internet para se inspirar, ou até copiar também.
— E você, por que não escreve uma carta?
— Não tenho para quem escrever. — Confesso, sem querer.
A menina apoia o rosto entre as mãos, sustentando um olhar singelo,
direcionando-o para mim como ninguém jamais fez. As orbes são tão claras que
me hipnotizam. É um tom de azul tão lindo. Profundo e terno ao mesmo tempo.
— Escreva para alguém que você não teve tempo de dizer tudo o que queria.
É bom vomitar umas palavras no papel de vez em quando. Acho que deve ser
ainda melhor colocar para fora tudo o que um dia a gente já quis dizer pra
alguém e não pôde.
É surpreendente a forma como Safira parece ter adivinhado o que eu preciso.
Se não houvesse a mentira inventada por Miguel entre nós duas, eu diria a ela
que milhares de cartas não seriam o suficiente para o que eu queria dizer a sua
mãe. Precisaria de muito mais para que eu pudesse expressar o quanto sinto
muito pelo que houve.
— É, talvez eu deva escrever algumas cartas. — Digo. Recebo um sorriso
sem dentes da menina.
Depois da conversa interessante sobre colocar nossos sentimentos em
palavras, nós duas comemos no completo silêncio na mesa grande de madeira da
sala de jantar. O frango grelhado, acompanhado de uma salada, matou a minha
fome e rendeu um elogio da sobrinha esfomeada que eu tenho. Ela vem se
demonstrando cada vez mais encantada com os meus temperos. E não vou negar,
estou adorando vê-la querendo a minha comida ao invés da do pai.
O sentimento de vitória se esvai no momento em que me vejo sozinha no
quarto depois de um banho frio e vestida com roupas limpas. O conselho de
Safira reverbera na minha cabeça conforme decido finalmente segui-lo, pegando
uma caneta e folha qualquer que encontrei pelo cômodo. Tantos sentimentos me
tomam à medida que o papel deixa de estar em branco para ficar escurecido com
toda a mágoa e ressentimento que tenho de mim mesma. Ao final da primeira
carta, não me sinto mais leve. Ela é um discurso de ódio para a Cassandra do
passado. Mas eu preciso dela. É uma forma de demonstrar o meu
arrependimento também.
Escrevo uma segunda, terceira e quarta, todas banhadas com as minhas
lágrimas. O papel descansa na mesa ao lado da cama quando paro de vomitar
todos os sentimentos escondidos por trás das palavras não ditas. Repito o
processo várias vezes, escrevendo, chorando, parando, respirando, voltando a
escrever… Um looping que se estende até a noite cair e Miguel bater na porta do
meu quarto.
CIÚME DOENTIO

O rosto de Cassandra está vermelho quando atende ao meu chamado em sua


porta. Descalça e vestindo uma camiseta larga que cobre até a metade de suas
coxas, ela me lança um olhar mortal.
— O que você quer?
Saber o motivo da sua tristeza.
— Meu irmão chegou de viagem. Vamos todos nos reunir na casa da minha
mãe para recebê-lo, não quer vir comigo?
Quando estamos lidando com pessoas geniosas, a pior coisa que podemos
fazer é dar ordens diretas. Elas odeiam sentir que estão à mercê de alguém.
Portanto, a melhor opção é fazer uma sugestão. Assim, você induz uma pessoa
com um gênio do cão a fazer o que você quer sem gerar um confronto direto.
Exatamente o que estou fazendo agora.
Sei que atingi o meu objetivo quando a expressão facial da diaba se suaviza.
— Pode ir na frente, depois eu vou.
E é assim que se doma um leão, senhoras e senhores!
— Está tudo bem? Precisa de alguma coisa? — meu tom de voz é sereno, a
fim de manter o clima ameno entre nós.
— Um carro.
Franzo o cenho, não entendendo o que Cassandra quer dizer. Ela explica:
— Preciso de um carro.
Ah sim!
— Por quê?
Ao invés de fazer cara feia para a minha intromissão, a diaba abaixa a cabeça,
encarando os pés para fugir do meu olhar. Cassie faz isso quando está prestes a
mostrar uma parte vulnerável de si mesma. Logo ela, que é especialista em bater
no peito e enfrentar o mundo de cabeça erguida, se sentindo envergonhada.
Mal sabe ela que ser frágil não é sinal de fraqueza. É ser humano.
— Tenho que voltar a me consultar com a terapeuta. — Confessa, ainda sem
conseguir me encarar.
Fico um pouco aliviado ao saber que está se consultando com uma
especialista, alguém que possa ajudá-la de verdade com seja lá o que tenha
acontecido. Pelo menos Cassandra não está guardando tudo para si e agindo tão
impulsivamente, como fez no passado. A mulher que vejo à minha frente é bem
mais centrada e menos impulsiva do que a de treze anos atrás.
— Samu tem uma Mitsubishi Eclipse na garagem que não usa. Posso
perguntar quanto ele quer pelo carro. O que acha?
— Pode ser.
Sem dizer mais nada, Cassandra se vira e volta para a cama. Sigo para a casa
da minha mãe com o coração apertado por tê-la deixado sozinha lá. No meio do
caminho, penso em voltar e obrigá-la a vir comigo, mas repenso sobre isso,
chegando à conclusão de que só estragaria as chances de ela se sentir confiante
para se abrir. Por mais que eu queira ajudá-la com todas as minhas forças, não
posso fazer isso sem o seu consentimento. O único jeito é ficar na defensiva,
esperando o momento em que Cassandra se cansará de guerrilhar para eu me
infiltrar nas suas rachaduras e descobrir o que tanto a perturba.
O que eu farei quando descobrir?
Ainda não sei.
Mas há uma parte de mim que está disposta a ir até o inferno para protegê-la.
Doideira, não é?
A mulher só falta me comer vivo e eu ainda sou capaz de tudo por ela.
Mesmo depois do que Cassandra fez, disse e causou, eu não quero o seu mal.
A diaba, querendo ou não, sempre terá um espaço no meu coração. Um espaço
que ela odeia ocupar, mas que sempre será dela.
Já dentro da casa da minha mãe, em meio ao meu irmão, cunhada e filha,
percebo o quanto eu queria que Cassie fosse mais fácil de lidar. A verdade é que
sinto falta de como éramos bons cúmplices quando mais novos. Nós dois
precisamos muito um do outro nesse momento das nossas vidas. Mas,
aparentemente, sou o único capaz de reconhecer isso.
— Olha só se não é o paizinho do ano. — Rafael sibila, se aproximando de
mim, exalando deboche. — Cadê a Jade ? — Dá ênfase no nome que inventei. O
infeliz está sabendo sobre a chegada da diaba desde que ela arrombou minha
porta. E tem debochado de mim desde então.
— É verdade, cadê ela? — Antônia também questiona ao chegar perto de
onde estamos. Essa é curiosa por natureza. Tão fofoqueira que só Jesus na causa!
— Está…
— Ali. — Meu irmão completa, apontando para algo atrás de mim.
Cassandra adentra a sala ao lado de Samuel, ambos rindo de alguma coisa.
RINDO!
Dá pra acreditar?
Meu caçula só usa os dentes pra mastigar. E olhe lá!
Cassie? Seu sorriso só aparece quando é para me enfrentar!
Por que caralhos esses dois estão de risadinha? Sendo que ele nunca foi
muito com a cara dela?
— Aí está você! — minha cunhada se adianta, cumprimentando Cassandra
com um abraço rápido. — Sou Antônia, namorada do Rafael. Estou feliz em te
conhecer.
Não fique, avatarzinha. Ela ainda vai acabar com a nossa paz.
— Igualmente. — Que falsa! — Miguel fala tanto de você, não via a hora de
finalmente nos conhecermos.
Como consegue ser tão dissimulada, meu pai?
Eu nem toquei no nome da Antônia nesses dias.
As duas trocam sorrisos sem dentes, mantendo uma cordialidade que vai
durar pouco tempo se depender da diaba loira. O anjo faz a mesma coisa. Deve
estar adorando testemunhar o início da minha ruína.
— Vamos lá na cozinha ajudar a dona Suzy. — Antônia propõe, levando
Cassie consigo.
Tô puto!
Eu aqui, querendo ajudá-la, tentando relevar o jeito dela, sonhando com o dia
em que vamos nos acertar, levando patada todos os dias…
E ela toda felizinha, chegando com o meu irmão e dando risadinha!
— Quando foi que a Cassan…Jade — me autocorrijo ao lembrar que minha
filha ainda está na sala, concentrada no seu Nintendo. — ganhou as suas graças,
Samuel Roberto?
— Caetano fugiu quando eu estava saindo de casa, e por coincidência, Jade
estava saindo da sua também. Ela me ajudou a encontrá-lo, foi só isso.
— Estão sentindo o cheiro? — Rafael inspira um pouco de ar
dramaticamente.
— De quê? — pergunto.
— Do seu ciúme doentio.
Ridículo.
Só porque as coisas deram certo pra ele, agora o anjo se acha no direito de
tirar uma com a minha cara o tempo inteiro.
— Ela é a futura mãe do meu filho. Não é pecado ficar atento.
Rafael contém o riso, não comprando a minha desculpa, mas desistindo de
retrucar por conta da presença da minha filha a alguns metros de onde estamos.
— Aliás, Samu, estou precisando comprar um carro para ela. Quanto quer
pela sua Mitsubishi? — desconverso. Meu irmão é mais adepto a motocicletas,
quase não usa esse automóvel.
— Pode ficar. Vou pegar as chaves para você daqui a pouco.
— Vai dar um carro de graça pra ela? — elevo o tom de voz, incrédulo com
essa simpatia repentina de Samuel.
— Não. Eu vou dar um carro de graça pra você. — Continuo de cara fechada,
sem acreditar no que diz. — Para com essa porra, Miguel. Eu não quero comer a
sua melhor amiga, cacete!
— A futura mãe do filho dele! — Rafael corrige, logo em seguida, na
intenção de disfarçar o deslize do nosso irmão caçula.
Nem fico ouvindo as merdas que esses infelizes dizem por muito tempo, fujo
para a cozinha, onde encontro outro infeliz. Ricardo me oferece um sorriso
quando passo por ele e fico ao lado de Antônia, que lava alguns pratos enquanto
Cassie e minha mãe preparam o jantar do outro lado do cômodo.
— O que achou dela? — pergunto, fazendo a avatar ficar confusa em
primeiro momento, mas depois entende a quem estou me referindo.
— Gostei dela. Apesar de estar me corroendo de inveja daquela bunda. —
Antônia olha de relance para o corpo de Cassandra. — Você sabe se é natural?
— É sim. Uma combinação perfeita de genética e esforço na academia.
— Mentira! — duvida. — É tão injusto!
Nossas risadas se misturam ao som da água caindo da torneira. Os outros
também conversam entre si. Mamãe explicando para o namorado como se monta
uma lasanha. Cassie ajuda ela em silêncio. Nossos olhares se cruzam por um
instante, desvio o meu rapidamente, não querendo contato nenhum com ela no
momento. Volto a prestar atenção na minha cunhada, sentindo que estou sendo
observado pela diaba loira, mas ignorando-a com louvor. Antônia enche meus
ouvidos contando sobre a sua viagem para Nova York. Eu ouço tudo, dando
pitaco de vez em quando.
— Miguel. — Meu irmão caçula me chama.
— Sim. — Ainda estou puto quando respondo.
— As chaves estão aqui.
— Obrigado pela gentileza.
Ele sai da cozinha bufando.
Talvez amanhã eu peça desculpas.
Hoje, não estou afim.
— Aqui. — Ponho as chaves no balcão à frente de Cassandra. — O carro está
na garagem da casa do Samu. Qualquer coisa, peça ajuda a ele.
Cassandra olha de mim para o objeto, sem entender o motivo da minha
grosseria. Não faço questão de explicá-la, apenas deixo que pense o que quiser e
me afasto.
DINÂMICA EXAUSTIVA

— O que acham de semana que vem? — Antônia pergunta, animada demais


para irmos à balada que sua sogra costuma frequentar.
Sinceramente? Eu prefiro cavar um buraco e me enterrar.
Não tenho a mínima vontade de passar mais tempo do que o necessário na
companhia de Suzana. E Antônia também não vem se demonstrando o tipo de
pessoa que eu gosto de ter por perto. Sua animação é irritante. Ela gesticula
muito enquanto fala. Parece estar transbordando de felicidade. Talvez seja a
inveja falando mais alto, mas não gostei tanto dela.
Entretanto, não posso me esquecer de que tenho um objetivo aqui. A Jade é a
minha passagem para entrar na vida de Safira e mostrar ao pai dela que vim para
ficar. Se para isso eu precisar aturar as duas por algumas horas, é o que farei.
— Por mim, tudo bem. Não tenho nenhum compromisso na semana que vem.
— Digo, usando o meu tom mais amigável.
— Combinado, então?
— Fechado. — Suzana responde prontamente. — Vamos levar essa lasanha
para a mesa de jantar.
Ela carrega a travessa consigo. Eu e Antônia saímos da cozinha atrás dela.
Todos voltam o olhar para nós quando chegamos ao outro cômodo, por conta do
cheiro delicioso da massa. Na mesa de jantar, o clima é de perfeita harmonia. Ou
era até eu me sentar ao lado de Miguel, que tem agido estranho comigo desde
que cheguei aqui.
— Então, Mica, pra quando é o bebê? — Rafael questiona, interessado em
um sobrinho que nunca vai sair do meu útero.
— Que bebê? — é a vez do namorado de Suzana perguntar.
— Jade é a barriga de aluguel que vai gerar o meu próximo neto. — Ela
explica, mentindo na cara dura, como se seus filhos não soubessem a minha real
identidade.
O homem de meia idade nos dá um aceno de cabeça, me oferecendo também
um sorriso tímido. Retribuo o gesto, insegura com o rumo que a conversa tomará
a partir de agora.
— Estamos trabalhando nisso — Miguel responde o irmão. — Vocês vão
saber quando acontecer.
— Eu posso passar mais tempo por aqui se o senhor quiser, pai. — Safira
surpreende a todos quando sugere. Os tios dela estão se controlando para não rir
da situação enquanto eu e Miguel nos entreolhamos, chocados.
— Ham… — Ensaio uma fala, mas nada sai da minha boca.
— Vamos parar com essa palhaçada, por favor, né?! — Suzana quebra o
silêncio e o clima constrangedor que se instaurou. — A menina não é nenhuma
idiota, sabe muito bem que o irmão dela não vai ser entregue por uma cegonha!
— Eu sempre achei essa história ridícula. — Minha sobrinha acrescenta,
recebendo um olhar sério do pai que a faz se calar.
— Tratem de jantar e irem logo fazer o meu neto. Safira vai ficar comigo essa
noite. — Finaliza.
Eu realmente quero cavar um buraco e me enfiar agora.
— Posso ficar nas próximas também, se precisarem de mais…
— Safira — Miguel ralha. A menina levanta as mãos, em sinal de rendição.
— E você, Rafael, quando vai me abençoar com um netinho?
A simples pergunta da senhora Sovat faz o seu filho do meio se engasgar. Sua
namorada dá leves tapinhas em suas costas para ajudá-lo. Seu rosto está
vermelho quando responde:
— Vamos esperar Antônia ficar um pouquinho mais velha, né, amor?
— Aham. Decidimos que quando eu tiver trinta anos, vamos abençoar o
mundo com um baby nosso.
— É, apenas um.
— Por que você ainda continua sendo tão metódico sobre a sua vida, anjo?—
Miguel enfim abre a boca. — Só vão se casar quando ela completar vinte e
cinco. Só vão ter um filho quando ela tiver trinta. E se vocês terminarem? E se
ela engravidar antes? Ou pior, e se ela morrer?
— Isso…
— Você vai ficar arrasado, porque não foi do jeito que planejou. Como
aconteceu quando descobriu que a Barbie te traiu. — Não faço a menor ideia do
que ele está dizendo, apenas que isso está atingindo Rafael de uma forma
negativa. — Planejar é importante, anjo. Mas viver é mais ainda. Não cometa o
mesmo erro duas vezes. Quem tem que planejar os detalhes da nossa vida é
Deus, temos apenas que seguir o caminho Dele.
Todos ficamos sem entender o que aconteceu quando Miguel se levanta e
deixa a residência sem mais nem menos. Pondero por alguns minutos se devo ou
não me juntar a ele, decidindo que sim, já que ninguém se manifestou.
Faço o caminho até a casa dele em um minuto, o coração batendo forte dentro
do peito por não saber o que irei fazer ou dizer. Não o encontro no primeiro
andar. Subo dois degraus por vez, a aflição aumentando ao passo que chego
próximo à porta do quarto dele, que está fechada. Hesitante, entro no cômodo,
avistando uma trilha com roupas jogadas pelo chão que termina na porta do
banheiro. A calça jeans e a blusa azul marinho que ele usava, junto do cinto
preto me encaram quando sento no colchão macio da sua cama, aguardando o
momento que sairá do banheiro.
Não escuto nada. Está tudo um completo silêncio. Sem barulho do chuveiro
ou torneira ligados. Também não há sinal de movimento dentro do cubículo.
Será que ele desmaiou?
Ponho meu ouvido perto da porta, constatando que não estou ficando louca,
ele realmente não está produzindo nenhum tipo de som. Fico alguns minutos ali,
esperando que o homem dê sinal de vida para evitar denunciar minha presença
sem necessidade. No entanto, isso não acontece. O cômodo ainda está silencioso
quando resolvo dizer:
— Miguel? Está tudo bem com você?
A resposta vem em forma de um estrondo, os pés dele batendo no chão com
força, como se ele estivesse se levantando abruptamente. A porta é aberta em um
rompante. O susto me faz dar dois passos para trás quando a figura de Miguel
vestindo apenas uma cueca boxer vermelha se põe na minha frente.
— Sim, o que você quer? — não há presença de nenhuma emoção na voz
dele. Nunca achei que Miguel pudesse ser tão impassível algum dia. Ele é um
homem intenso, que não era tão bom em esconder o que sentia.
— Queria saber se estava bem… Você começou a agir estranho do nada.
— Só estou cansado.
— Você parece puto com algo.
Ele passa por mim, ignorando o que eu disse. Não consigo controlar, acabo
acompanhando o movimento da sua bunda conforme caminha até a cama e se
deita ali. É possível ver o volume dos gominhos que compõem o seu abdome
trincado de onde estou. A perna direita está dobrada, me permitindo vislumbrar
também o volume das suas bolas dentro da cueca. É uma visão bonita, não nego.
Miguel parece um Deus grego desse jeito. A pele bronzeada em contraste com o
vermelho da Boxer. Os braços dobrados atrás da cabeça. Seus músculos
parecendo que foram esculpidos por alguém muito perfeccionista. São todos
detalhes hipnotizantes.
— De qualquer forma, não é da sua conta. Pode sair. — Diz, por fim.
Fico indignada com a sua fala.
Quem ele pensa que é para dizer isso pra mim?
— Que porra é essa, Miguel? Pensa que está falando com quem? Com a sua
mãe? — elevo o tom de voz. Ele não se abala, continua me olhando com
desdém.
— É bom ser enxotado, não é? Ser tratado com indiferença quando você está
apenas tentando ajudar. Como se sente sendo tratada da mesma forma como me
trata, Cassie? — o tom da voz dele é cortante ao perguntar. Estou arrepiada,
surpresa com o quanto Miguel pode ser intimidante quando quer.
Me sinto mal. Essa é a resposta sincera para a pergunta dele. Mas não é o que
respondo.
— Eu tenho motivos para fazer isso.
— Não. Você acredita que tem. É diferente. — Ele abaixa a perna. — Mas
continue. Só não reclame por estar recebendo o mesmo tratamento.
Sentindo meu sangue ferver dentro das veias, dou alguns passos em direção a
saída, parando no batente da porta.
— Qual o seu problema, cara? Hoje de manhã estava ótimo, me convidou
para ir à casa da sua mãe e eu fui, como você queria. Estou me dando bem com a
sua família para te mostrar que quero levar o meu papel de tia a sério. Por que
está agindo desse jeito? Você nunca foi assim, rancoroso, grosso…
— Estou cansado da sua dinâmica, Cassandra. Se te dão carinho, você dá
desprezo. Se te dão desprezo, você dá carinho. Percebeu isso? É exaustivo lidar
com uma pessoa que não está disposta a perdoar. Então eu decidi que não vou
mais me humilhar para você. Só tente não estragar a sua relação com a minha
filha. Porque a nossa não tem mais jeito.
Estou sem fala.
Forço as minhas pernas para fora do quarto, sentindo um misto de raiva e
tristeza que me corroem por dentro. Eu deveria estar contente, não é? Perdoá-lo
nunca foi a minha intenção.
Mas por que meu coração parece ter sido esmagado com as palavras dele?
Provavelmente porque eu gostava de vê-lo se esforçando para me ter de volta
em sua vida, mesmo não tendo a pretensão de resgatar a nossa amizade. Saber
que isso não vai mais acontecer faz o meu lado sádico se sentir derrotado.
Ou talvez seja aquela parte de mim que ainda o ama, gritando para que eu
volte lá e peça desculpas, que eu o perdoe para que voltemos a ser cúmplices,
pois assim, essa parte pode ser alimentada com as migalhas de afeto que ele me
dará e em pouco tempo eu voltarei a ser uma boba apaixonada pelo homem que
nunca será inteiramente meu.
Eu também estou cansada disso, Miguel.
Te odiar é cansativo.
Tentar não te amar também.
Estou exausta dessa dinâmica tanto quanto você.
A MINHA PRAIA


Uma semana depois…

O som dos meus pés batendo na esteira preenche a academia. Com um fone
nos ouvidos, Miguel parece indiferente à minha presença. Sua atenção está
focada no seu próprio reflexo no espelho enquanto levanta pesos com os braços.
A veia grossa do pescoço infla toda vez que o movimento é feito. Sem contar as
que permeiam sua pele do antebraço, que parecem estar prestes a estourar. O
bronzeado do corpo dele agora deu lugar à vermelhidão.
Desde o episódio do seu quarto, não estamos nos falando muito. Ou melhor,
ele não tem falado muito comigo. Ainda continuo sem entender o que realmente
causou o estopim, apenas que Miguel não está para brincadeira essa semana. Ele
se manteve calado nas refeições que fizemos à mesa. Saiu quase todos os dias no
horário da noite. Passou também bastante tempo na casa da sua mãe durante o
dia, deixando que eu ficasse a sós com Safira. O que de certa forma foi bom para
mim. Aproveitei as oportunidades para conhecê-la melhor e ensiná-la um pouco
mais sobre luta, mais especificamente falando, sobre o Taekwondo.
Mas, mesmo assim, a postura de Miguel tem me incomodado muito. Por mais
que eu tente ignorar, fingir que estamos melhor desse jeito, tem sido torturante
aguentar o seu tratamento de choque. De vez em quando, tenho tentado deixá-lo
desconfortável também.
Sem querer, querendo, esbarro em seu corpo ao sair da esteira, fazendo com
que o peso caia no chão e Miguel inspire fundo.
— Foi mal. — Sorrio ingenuamente. Ele dá de ombros e pega o objeto.
É normal que Miguel não se abale tão facilmente. No Exército, eles nos
ensinam a sermos resilientes, nos testam o tempo inteiro, nos levando ao limite,
vendo o quanto somos capazes de aguentar Principalmente os homens, que
sofrem mais pressão psicológica durante o processo que nós mulheres. Por
representarem a parte tática da força, eles precisam ser ainda mais
compenetrados.
No entanto, eu o provoco mesmo assim, de forma indireta, esperando que em
algum momento Miguel rompa essa maldita barreira que criou e pare de ignorar
a minha existência. Esse se tornou o meu novo hobby.
Quando ele termina de fazer os exercícios de musculação, se dirige para o
canto da academia, onde pega algumas anilhas e as coloca na barra, iniciando o
levantamento de peso. Começo o meu alongamento, flexionando as pernas em
um ângulo de 180 graus. A legging azul se adere perfeitamente ao meu corpo,
mostrando as minhas curvas e deixando pouco para a imaginação de quem me
observar. Capto o olhar de Miguel dos fundos da sala pelo espelho. As orbes
azuis se revezam entre fitar a si mesmo realizando o exercício e assistir as
minhas pernas darem um show de flexibilidade. Ele também, vez ou outra,
aprecia a vista privilegiada da minha bunda. No instante que me abaixo para
tocar os dedos das mãos nos meus pés é que Miguel não consegue mais disfarçar
o quanto a sua atenção foi comprometida, pois nossas visões se encontram no
espelho, e ele solta a barra no chão sem desviar os olhos dos meus. O que, por
um acaso fodido, ocasiona que ela caia no seu pé direito, gerando uma dor
lacerante que o faz comprimir os lábios.
— Caralho, Cassandra! — esbraveja.
— Ninguém mandou você soltar o negócio!
Me aproximo dele, agachada para poder ver melhor o estrago que a anilha
causou. O peito do seu pé está vermelho, demonstrado que logo ficará inchado.
O dedo médio também foi atingido na queda e sangra um pouco.
— Onde eu posso achar coisas para fazer um curativo?
— Em uma caixa branca no meu banheiro. Pega gelo no congelador também.
— Responde, pressionando o local com os olhos fechados e respirando fundo
para a dor passar logo.
— Ok. Volto já.
Chego à suíte em poucos segundos, arfando e apreensiva. Escancaro a porta
do pequeno banheiro e abro os armários bruscamente, remexendo nos itens que
estão ali, em busca da tal caixa branca. Encontro-a nos fundos dele, poeira paira
sobre ela, demonstrando que faz tempo que a caixa não é retirada dali. Na
descida, pego um bloco de plástico com água congelada dentro, do tamanho
perfeito para cobrir a extensão do peito do pé de Miguel que foi atingida.
— Tudo aqui. — Digo, ao voltar para a academia. — Põe o gelo por cima do
lugar inchado enquanto eu cuido do dedo ferido.
— Puta merda, está ficando inchado pra cacete! — murmura, observando o
estrago feito pela anilha.
— Quer ir pro médico?
— Não. Só faz parar de sangrar logo.
Delicadamente, seguro o dedo médio de seu pé para ver melhor o estrago. Há
uma pequena ferida próxima à cutícula. Estanco o sangramento com a ajuda de
um pedaço de gaze embebida em álcool. Miguel estremece. Solto uma risadinha
controlada. Finalizo o curativo colocando esparadrapo para conter o fluxo de
sangue.
— A academia fica melhor sem você. — Dispara, quando termino.
— É assim que você me agradece?
— A culpa foi toda sua, Cassandra. Seus joguinhos de merda que causaram
isso. Não vou agradecer porra nenhuma. — Ele ainda está puto comigo.
— Quem soltou a barra foi você, inferno!
Me levanto do chão. Estendo a mão para Miguel, que esbanja uma cara de cu
quando aceita e se levanta com a minha ajuda. Ele não consegue ficar em pé,
sobe a escada mancando, se apoiando no meu corpo, que só recebe alívio no
momento que finalmente chegamos à sala e Miguel senta no sofá, ainda
dolorido. Poucos segundos se passam quando meu celular apita em cima da
mesa, indicando que recebi uma nova mensagem. Vou até lá na força do ódio,
trazendo o aparelho comigo e me jogo novamente no sofá.

Grupo das meninas Sovat

Antônia: E aí, girls?

Antônia: Tudo certo para a baladinha hoje a noite?

Puta merda.
Tinha me esquecido disso.

Suzana: Tudo certo!

Suzana: Vamos quebrar tudo hoje!

Antônia: Uhuuuul!

Antônia: E você, Cassie?

Cassandra: Miguel se machucou agora, não está conseguindo andar
muito bem.

Cassandra: Talvez ele precise que eu fique em casa.

— Não preciso não. — O maldito diz, se esgueirando ao meu lado para ler as
mensagens.

Antônia: Aí, meu Deus. Precisa de ajuda?

Suzana: Ele tem dois irmãos, qualquer coisa pode ligar pra eles.

Suzana: Esteja pronta às 20h.

Antônia: Certo. Rafael vai direto pra aí quando chegar.

Antônia: Vamos de Porsche, Mitsubishi ou Mini Cooper?

Suzana: Nenhum deles. Samuel vai levar a gente no carro do Miguel.

Suzana: Vamos é encher a cara.

— No meu carro? — ele indaga. — Que abuso!


O meu visual está impecável quando analiso o reflexo no espelho. Cabelos
presos em um rabo de cavalo, deixando os cachos visíveis apenas no
comprimento. Vestido preto justo indo até a metade das coxas. Salto alto prata
que Suzana me emprestou. Fiz também uma maquiagem básica, usando somente
rímel, blush e gloss.
Está faltando alguma coisa…
Continuo fiscalizando meu reflexo, em busca do que há de errado. Subo os
olhos até a altura do rosto e nada. Realmente esqueci o que faltava.
Com a bolsa em mãos, vou para a sala esperar minhas companhias dessa
noite. O barulho dos meus saltos batendo no piso faz Miguel se virar para
acompanhar o meu andar. Seus olhos se fixam no ponto entre os meus seios,
onde a abertura do vestido possibilita uma visão da tatuagem de borboleta que
fica ali.
— Para quem não queria ir, você está muito animada. — Insinua, depois de
voltar a assistir televisão.
— Se com, "animada", você quer dizer linda, eu agradeço pelo elogio
mascarado de deboche. E respondendo ao que disse, não é porque estou sendo
coagida a sair que vou estar desarrumada.
Ouço ele bufar de costas para mim. Ignoro o gesto, retocando o gloss no
espelho da sala. Meu celular apita assim que termino.

Grupo das meninas Sovat

Antônia: Estou pronta e vocês?

Suzana: Colocando a sandália.

Cassandra: Prontíssima.

Suzana: Me esperem no carro. Vou dar um beijinho no Miguel antes de
irmos.

Antônia: Ok

Cassandra: Ok

— Estou indo, pé grande. — Aviso. — Diga à Safira que deixei comida no
forno para ela comer quando chegar da casa da Helena.
— Tá bom. — Responde, a contragosto.
O vento gelado deixa a minha pele arrepiada durante o trajeto em direção ao
carro de Miguel, estacionado na frente da casa de Suzana. Encontro Samuel no
banco do motorista, concentrado na corrida que assiste pelo celular. Me sento no
banco do carona. Sou cumprimentada com um aceno de cabeça pelo caçula dos
Sovat, que volta a prestar atenção no conteúdo do seu telefone.
Um garoto de poucas palavras.
Ele é assim desde pequeno. Já estou acostumada a isso. Encosto minha
cabeça no vidro, ansiando que as mulheres cheguem logo. Quanto mais rápido
formos, mais rápido voltaremos. Parecendo que ouviram as minhas preces
silenciosas, elas caminham lado a lado e se sentam no carro alguns minutos
depois de virem da casa de Miguel.
Antônia sorri para mim assim que entra. Seu vestido também é preto, como o
meu, sendo um pouco mais longo. Suzana se limita a me olhar pelo retrovisor
interno quando já está acomodada no banco de trás. Seu vestido brilha mesmo
estando na escuridão da Range Rover.
— Vamos, Samuel, liga esse carro e pisa fundo nisso. Estamos atrasadas. —
Ordena.


A tal "Boss" é bem melhor do que eu esperava. A fachada do local é toda
revestida em preto fosco e possui um letreiro com o nome da boate no tom de
roxo neon. Seu interior também não deixa a desejar, há espelhos em todas as
paredes, mesas redondas sem cadeiras, luzes roxas iluminando apenas o centro
do lugar, onde pessoas, a maioria mulheres, dançam um funk que não reconheço
de imediato. Uma consequência de ter passado anos na África. Estou
completamente desatualizada a respeito das músicas.
Me mantenho no canto escuro junto com Antônia enquanto sua sogra
cumprimenta algumas conhecidas. Escolhemos uma mesa vazia e colocamos
nossas bolsas ali para "marcar território" quando vamos ao bar, pedir as
primeiras bebidas da noite. Um Martini para Antônia e uma Caipirinha para
mim. Suzana chega algum tempo depois e pede uma Piña Colada. A acidez do
líquido me entorpece na proporção que bebo mais uns goles. Observando o
movimento na pista, pressinto que talvez não tenha sido uma má ideia vir aqui.
Há tantas coisas me estressando, que uma noite de bebedeira e muita dança pode
ser tudo que preciso para aliviar.
— Vamos para a pista? — pergunto às duas, que bebericam seus drinks.
— Só se for agora. — Suzana responde prontamente.
— Já aviso que eu ainda estou aprendendo. Não me julgue. — A namorada de
Rafael confessa.
— Vamos ver o que você sabe fazer. — Dou um sorriso cheio de dentes para
ela, sentindo meu corpo aquecer com a bebida começando a fazer efeito.
Na pista, constato que é difícil não julgar Antônia dançando. Ela tem
dificuldade de usar seu corpo esbelto ao seu favor. Se eu tivesse essas pernas,
usaria mais elas na hora de descer até o chão. Como Suzana faz com maestria
junto de outras mulheres da sua idade. É engraçado como o tempo não passou
para a senhora Sovat. Ela parece muito mais viva do que quando era casada.
Quem olha a mulher sorridente, com belos cabelos cor de mel e olhos escuros
penetrantes, não imagina que ela passou por tantas coisas até chegar aqui.
Traição. A morte do marido. Três filhos para criar. Fácil é que não deve ter sido.
Mas ela superou tudo isso e continua com a pele intacta e um corpo invejável. É
impossível não ficar admirada com sua força. Eu mesma me coloquei no lugar
dela quando Helena contou sobre Cícero e não sei se conseguiria continuar tão
inabalável.
— Está gostando? — Antônia pergunta. A modelo trouxe nossos drinks para
bebermos na pista. O meu chega ao fim quando respondo:
— Aham. Mas preciso de outra bebida para aproveitar mais — digo, em meio
à música alta. — Você quer outro? — ela faz que não com o dedo. — Vou pegar
outro pra mim, então.
Faço caminho entre as pessoas dançando ao meu redor, chegando ao balcão
do bar um pouco zonza.
— Moço, eu quero um… — praticamente preciso gritar para que me ouça. —
Sex on the Beach.
Ele sorri para mim. Há um piercing em seu freio. Um detalhe que reluz
quando o barman mostra os dentes.
— Agora mesmo.
Acompanho o trabalho das suas mãos habilidosas que misturam vodka, suco
de laranja, licor de pêssego e gelo para bater na coqueteleira. Vê-lo
chacoalhando esse objeto me deixa enjoada. Desvio o olhar para o lado, notando
um corpo forte na minha lateral.
— Você não deveria pedir um sexo na praia para um garoto que acabou de
sair da adolescência. — A voz gutural soa perto do meu ouvido.
— Eu deveria pedir para você?
Viro o banco, ficando de frente para o dono da voz. O conjunto da barba e
cabelos ruivos são um tapa na minha cara ao vislumbrar esse monumento de
homem.
É exótico e sexy demais.
Com certeza eu deveria pedir para ele.
— A menos que pedofilia seja a sua praia. — Um sorriso se abre nos lábios
carnudos e o efeito vai parar diretamente entre as minhas pernas.
Eu devo estar no cio. Só pode.
Quanto tempo faz que não tenho uma foda mesmo?
Oitenta e quatro anos, provavelmente.
— Não, não é. — Mostro os dentes. Pela forma como acompanha o
movimento, deve estar tão atraído por mim como estou por ele.
— Então qual é a sua praia?
— Não sei. Só sei que com certeza você estaria nela.
A cada vez que o desconhecido sorri, me vejo juntando as pernas para conter
a vibração que se forma ali.
— É bom saber que já temos algo em comum. Agora eu quero saber seu
nome, moça do sexo na praia.
— Cassie. E o seu, ruivo gostoso?
Aproximo mais o meu rosto do dele para poder ouvi-lo.
— Eric.
Esse nome combina perfeitamente com o homem, que não deve ter mais de
trinta e cinco anos.
Meu drink fica pronto. Bebo um gole do líquido colorido em tons de
vermelho e laranja.
— O que acha de transar comigo, Eric? — minha voz é engolida pela música
alta.
— O quê?
— O que acha de dançar comigo, Eric? — repito, dessa vez mais alto.
Ele ri.
— Eu gosto da ideia de transar com você, Cassie.
— O quê? — agora sou eu quem pergunto, em dúvida se entendi mesmo o
que disse.
— Eu gosto muito da ideia de dançar com você, Cassie. — Repete, mais alto.
Pegando na minha mão, Eric me guia para a pista de dança, onde dançamos e
bebemos tranquilamente em meio a música acelerada e pessoas se agitando. Os
olhos dele nunca deixam os meus. Suas mãos passeam pelas minhas costas,
testando o quanto sou capaz de aguentar o tesão que venho reprimindo desde que
vislumbrei seu rosto lindo e seu corpo gostoso.
— Quero você, Eric. E quero agora. — Sussurro no seu ouvido.
OS PORTÕES DO INFERNO

Tsiiii.
O barulho da garrafa de cerveja sendo aberta é reconfortante. Significa que
estou no meu momento de relaxar. Não estou completamente relaxado neste
instante, por vários motivos, mas bebo pequenos goles do líquido como se
estivesse.
Aumento o volume da televisão, querendo amenizar o silêncio que é a minha
casa sem Safira e Cassandra. A primeira não irá voltar hoje, resolveu que quer
passar essa noite com a avó materna. A outra, só Deus sabe quando vai chegar.
Resumindo: elas me abandonaram no momento em que mais preciso de ajuda e
carinho. Os únicos que posso contar estão atrasados para me fazer companhia.
Caço meu celular no meio das almofadas, querendo saber onde foi que esses
infelizes se enfiaram para demorar tanto.
Grupo dos anjinhos Sovat

Miguel: Cadê vocês, seus putos?

Samuel: Posso levar o Hugo comigo?

Miguel: Pode.

Samuel: Estamos a caminho.

Rafael: Terminando de me arrumar.

Rafael: Daqui a alguns minutos estou aí.

Está vendo?
Eu preciso implorar várias vezes para eles me darem um pouco de atenção.
Quero ver como vai ser no meu enterro. Não vou estar aqui para lembrá-los de
comparecer. É capaz deles me esquecerem até mesmo nesse dia.
— Chegamos, chorão. — Hugo, o melhor amigo do meu irmão caçula berra.
— E trouxemos mais cerveja.
— Grande coisa. — Rafael diz, chegando em seguida.
— E o que você trouxe, anjo? — indago, sentado no sofá e observando os três
na minha cozinha.
— Meu estômago. Só vim pela comida.
— Então você se ferrou porque eu não fiz nada para comer.
Estou quase voltando a assistir uma luta de MMA na televisão quando Hugo
berra:
— Mas alguém fez. — Esse garoto não sabe falar normal, nem parece que
tem vinte e seis anos. — Strogonoff de carne, parece estar delicioso.
— O meu preferido! — Rafael exclama. — Cassie nunca erra.
— Quem é Cassie?
— A tia da Safira. — Samuel explica, se servindo de um pouco da comida.
— Como assim ela tem uma tia?
— Longa e trágica história, Hugo. — Meu irmão do meio explica.
Os três se sentam no sofá junto comigo, todos com um prato em mãos e seus
copos de refrigerante na mesa de centro a frente. Por um tempo, conversamos
sobre assuntos triviais. O anjo conta como está sendo a vida de professor
universitário. Hugo, tagarela como é, enche nossos ouvidos com fofocas sobre o
Downtown, lugar onde ele administra o escritório que era do meu irmão. E em
algum momento, os dois iniciam uma conversa chata sobre bolsa de valores que
eu corto logo.
— Vocês não vieram para a minha casa ficar falando de trabalho não, né?
— A gente veio pra comer mesmo. — Para a minha indignação, Samu
responde.
— Eu vim para te ver — Hugo diz, logo após o melhor amigo. — E talvez,
somente talvez, comer alguma coisa. Afinal, a sua comida é excelente, jamais
negaria se me oferecesse.
— A da Cassie é melhor. — Rafael afirma.
— Bom, a mulher tem talento, não posso negar. Aliás, como ela é? Fiquei
curioso.
Meus irmãos se entreolham, incertos se devem ou não entrar nesse assunto.
Permaneço calado, esperando para ver quem terá coragem de apresentar o
furacão Cassie para esse contador.
— Ela é bonita, tem trinta e dois anos, é Sargento do Exército, sumiu no
mundo quando a irmã estava grávida e só viemos saber mais notícias dela agora
que voltou e quer ser mais presente na vida da sobrinha. — O anjo é quem toma
a iniciativa.
— Mas Safira ainda não sabe disso. Toma cuidado para não contar sem
querer. — Samu alerta.
— Interessante. É errado eu estar rendido por ela?
— Se você quiser causar encrenca com o meu irmãozinho ciumento aqui,
sim. — Ele me olha de lado. — Outro dia, Cassandra me ajudou a encontrar o
meu cachorro e depois a gente chegou junto na reunião de família. O resultado
disso? Miguel surtou e ficou dias sem falar direito comigo.
Deveria ter ficado mais.
— Que possessivo!
— Você não viu nada. — Meu irmão caçula se levanta com o prato e seu
copo. — Vem, vamos lavar essas coisas.
Resta apenas eu e Rafael no sofá. Ele ainda não terminou de fazer a refeição,
está mastigando freneticamente ao meu lado. Seu olhar alterna entre mim e a
televisão.
— Sobre o que aconteceu semana passada… — Deixa o prato em cima da
mesa, se virando para me encarar. — Eu não estou sendo tão metódico com a
minha vida como antes. O planejamento não é por minha causa, é pela Antônia.
Ela tem muitas inseguranças a respeito de relacionamentos e sobre o nosso
futuro em geral. Então a gente está se preparando para o que queremos viver um
dia.
— Você quer mesmo ser pai?
A pergunta o faz sorrir.
— Eu nunca fiz questão. Acho que porque não fazia sentido com as outras,
sabe? — o sorriso não deixa seu rosto quando continua: — E porra, agora eu
amo a ideia de vivenciar isso com ela. É claro que ter contato com o filho do
Edgar tem uma parcela de culpa nisso. Nós dois começamos a amadurecer essa
ideia depois que Antônio César nasceu. Ver o quanto Edgar amadureceu e está
mais feliz me fez questionar se talvez eu não poderia ser um homem ainda
melhor pelo meu filho.
Estou em choque.
Nem em mil anos, nem nos meus sonhos mais loucos, eu imaginaria meu
irmão dizendo algo assim. É incrível como Antônia tem feito bem a ele.
Eu não acredito que o amor mude as pessoas. Acho que, se for um sentimento
saudável, vai te despertar uma vontade de ser melhor para a pessoa que você
ama. Coisas que antes não faziam sentido, começam a fazer, apenas quando está
do lado da pessoa certa. Exatamente como aconteceu com o meu irmão.
— Você vai ser um ótimo pai.
— Será?
Agora quem sorri sou eu.
— Até parece que você sabe ser ruim. Não consegue desejar o mal de quem
te prejudicou. Jamais será capaz de fazer mal a um filho seu. Então sim, você vai
ser um excelente pai.
— Antes, eu quero me tornar um bom marido.
Encaro bem o seu rosto, buscando na sua expressão radiante algum sinal de
hesitação. Não encontro. Rafael parece determinado, como sempre.
— Está sugerindo o que eu estou pensando que está?
— O que o Rafael está sugerindo? — Recém chegado da cozinha, Hugo
questiona, quase tão curioso quanto eu.
— Não estou sugerindo, estou afirmando que pretendo pedir Antônia em
casamento logo logo.
CHEGOU O DIA, CARALHO!
Finalmente alguém da família vai casar.
Obrigado, Deus. Eu sei que tu me sondas!
— E quero a ajuda de vocês para bolar um pedido de casamento memorável.
Ah, irmão, esse pedido vai se tornar um evento histórico se depender de mim.

Estou deitado confortavelmente na minha cama de casal quando ouço o


furacão Cassandra chegar. Uma espiada no relógio e confirmo que são três da
manhã nesse exato momento. Seus passos vão ficando mais audíveis ao passo
que ela sobe a escada, parando por alguns segundos, provavelmente para se
equilibrar. Deve estar terrivelmente bêbada. Inspiro fundo, torcendo para que
não esteja. Minhas expectativas são quebradas quando ela abre a porta do meu
quarto em um rompante, os saltos pendendo das suas mãos e os cabelos
esvoaçados.
— Cadê a Sasa?
Ela cheira a álcool e decepção ao se aproximar da minha cama.
— Vai dormir na casa da Helena hoje.
— Eu gosto da Heleninha, por incrível que pareça. Me arrependo muito de ter
desprezado ela. — Confessa, por conta do álcool.
— Imagino. — deixo a televisão de lado, voltando minha atenção toda para
ela e peço: — Tome um banho e vá dormir, Cassie.
— Não! Estou com tesão, não posso dormir com tesão.
Minha risada a faz ficar irritada.
— Não ria, eu acabei de ser rejeitada por um ruivo muito gostoso.
— Nem imagino porque ele diria não a você. — Ironizo.
— Pois é! Ele não quis me comer porque disse que estou bêbada demais.
Acredita?
Pelo menos o merdinha tem escrúpulos.
— Caramba, que coisa horrível! — volto a ironizar. — Mas agora você
precisa tomar um banho e dormir.
— Me deixa em paz, Miguel!
Assim, Cassie deixa o meu quarto, batendo a porta ao sair e levando seus
sapatos consigo.
Tento me concentrar na televisão, os pensamentos corrompem a minha
atenção cada vez mais conforme os minutos se passam. Isso tem sido comum de
acontecer desde que Cassandra voltou para a minha vida. Estou sempre dividido
entre estar feliz por tê-la de volta e sentir raiva por não estar tudo bem como
deveria. E isso tem tomado os meus pensamentos gradativamente. De um jeito
ou de outro, a diaba se apossou da minha cabeça. Me mostrando que existe sim
uma linha bem tênue entre o amor e o ódio. E que Cassie é especialista em me
fazer cruzá-la todos os dias.
Depois do ocorrido no último jantar em família, eu me vi sentindo coisas
diferentes, coisas que não deveria sentir pela diaba: ciúmes. Não qualquer tipo
de ciúmes. Foi daqueles que me faz perder a razão e agir impulsivamente. A
simples possibilidade do meu irmão ter encostado nela me agonia como se
tivessem passando com um trator por cima do meu coração. E foi tão ruim que
me encontrei disposto a fazer qualquer coisa pra parar isso.
Foi aí que percebi que tinha algo errado.
Eu não sou idiota, sei exatamente o que significa sentir algo assim por uma
mulher. Por muito tempo, pensei que jamais seria capaz disso novamente. Mas
eis aqui a mulher que realizou esse feito: a mesma que arrombou a porta da
minha casa e me odeia mais do que qualquer coisa.
Olha por quem meu coração resolveu dar sinal de vida!
Precisei me afastar, controlar essa palpitação que acontece no meu peito
sempre que ponho os olhos nela. Preciso continuar afastado. Isso nunca daria
certo por milhares de motivos. Mas é difícil me manter disciplinado quando
escuto os gemidos dela no quarto ao lado.
Eu estou carente. Há anos sem ter um envolvimento emocional com ninguém.
É normal estar criando sentimentos pela diaba, ela é uma das poucas mulheres
que restaram no meu coração. A carência faz a gente confundir as coisas, tenho
plena consciência disso. Por isso me afastei, para enxergar melhor toda essa
situação.
Mas Cassandra é uma tentação e tanto quando está gemendo. Mesmo eu, que
fui treinado para aguentar qualquer tipo de tortura, acabo cedendo e caminhando
em direção ao seu quarto, decidindo que não sou capaz de aguentar, não quando
Cassie é a torturadora.
Ela está tão perdida no próprio prazer que não repara quando adentro o
quarto, sendo presenteado com a visão dela aberta em cima da cama, os dedos
trabalhando freneticamente no seu clítoris enquanto a outra mão agarra um dos
seus seios macios e volumosos.
— Cassie — chamo. Não obtenho resposta. Os olhos dela ainda estão
fechados. — CASSANDRA!
— O QUÊ É, MIGUEL? — pergunta, sem deixar de se acariciar. Viro o rosto.
— Pare com isso. Agora.
Por incrível que pareça, ela para. Abrindo mais as pernas, Cassandra diz:
— Me obrigue a parar. — As orbes esverdeadas exalam luxúria quando
desafia.
— É melhor você se vestir e ir dormir, ou eu…
— O que vai fazer, Miguel?
— Ou eu tiro você da minha casa amanhã mesmo!
A tensão sexual que paira entre nós dois é elevada em mil porcento com a
sugestão que recebo:
— Eu tenho uma ideia melhor. — Volta a acariciar sua intimidade, apenas
roçando os dedos na parte de fora. — Por que você não vem aqui, me chupa bem
gostoso e acaba com o meu tesão para que eu possa dormir tranquilamente?
— Ficou louca? Se vista e vá dormir agora!
— Ou então você vai embora e dorme ouvindo os meus gemidos. Qual vai
ser, Miguel?
Furioso, acabo com a distância que havia entre nós, parando no limite do
colchão, onde suas pernas permanecem abertas, me saudando. É aqui que
percebo o quanto esse sentimento tórrido não vai cessar enquanto eu a tiver por
perto.
— Você vai embora amanhã mesmo. — Sussurro, ficando de joelhos à sua
frente.
— Vou? — ela pergunta, choramingando. Eu faço que sim, balançando a
cabeça. — Por que está se ajoelhando, então?
— Porque, antes disso, eu vou te dar o que me pediu.
Surpresa e desejo são as emoções que a sua expressão transmite. Tesão e raiva
são o que estou sentindo. Escolho ignorar o meu subconsciente gritando que essa
é uma péssima ideia e vou em frente, beijando o interior das coxas de Cassandra,
caindo de boca na boceta molhada como se não houvesse amanhã.
— Coloca os seus dedos — pede, arfando. — Quero eles dentro de mim
também.
Ponho dois de uma vez, ela me lança um olhar travesso. Seus gemidos ficam
mais intensos quando três dos meus dedos invadem seu interior e mordisco seu
clitóris inchado. O corpo voluptuoso ondula sobre o colchão, seu quadril treme à
medida que um orgasmo se aproxima. Observo tudo extasiado, me permitindo
desfrutar do sabor dela pela primeira e última vez.
Essa única oportunidade é o suficiente para eu constatar que as pernas de
Cassandra são os portões do inferno, e o que há no meio delas acaba de se tornar
o meu paraíso.
A TRÉGUA

Acordo com a cabeça latejando e os pés doloridos de tanto dançar em cima do


salto na noite anterior.
Ah, a noite anterior.
O que dizer de toda aquela loucura?
Flashes dos momentos que tive dançando e bebendo com Eric invadem a
minha mente sem pedir permissão. A química imediata que tivemos me
surpreendeu. É difícil encontrar homens que me cativem tão facilmente como ele
fez.
Falando nele…
Ao dar uma olhada no meu celular, vejo uma mensagem sua, enviada na
madrugada.

Número desconhecido:
Oi, Cassie. Espero que não tenha ficado chateada comigo, realmente não
condiz com o meu caráter transar com uma mulher bêbada.

Número desconhecido:
Quero muito te conhecer melhor. Espero mesmo que me dê essa chance.

Eu não me lembro do momento em que dei meu telefone para Eric. Esse
instante não veio junto dos fragmentos de memória. Acho que meu cérebro é
bem espertinho e só gosta de me recordar dos detalhes sórdidos, porque também
não lembro de ter tomado banho e vestido um pijama, mas me recordo do que
aconteceu nessa cama depois que cheguei em casa.
Os braços fortes de Miguel envolvendo as minhas pernas. Sua língua
invadindo a minha intimidade de uma forma bruta e suave ao mesmo tempo.
Detalhes que meu cérebro fez questão de guardar meticulosamente para me
torturar em um futuro próximo, como faz com outras coisas que aconteceram na
minha vida.
Precisando de café urgentemente, desço as escadas depois de escovar os
dentes e prender o cabelo em um coque desajeitado. Ainda uso o pijama que não
sei quando coloquei. E estou descalça, o que contribui para que a minha
presença não seja denunciada quando chego quase no fim das escadas e ouço
uma briga calorosa entre Miguel e Safira pela primeira vez.
— Isso não vai dar certo, Safira! Ela precisa ir. — Ele diz, parecendo estar
apreensivo.
— Não vai dar certo por que o senhor gosta dela, não é?
Silêncio. Essa é a resposta que Miguel dá à menina. Provavelmente, o homem
deve estar tão em choque quanto eu estou, me esgueirando na parede para ver
sua reação. O rosto dele exibe uma expressão de confusão. Sua boca abre e
fecha, sem conseguir formular uma frase para responder a filha. É quando ela
prossegue, dizendo:
— A Jade é uma moça legal. Vocês tem várias coisas em comum, seriam um
casal bonito. E eu sei que gosta dela, não adianta mentir. Eu vi como ficou
irritado quando o Samuel arrastou asa para ela. Só não entendo porque o senhor
precisa ficar a vida inteira chorando pelos cantos por uma mulher que nunca
mais vai voltar, quando pode ser feliz com outra que está bem ao seu alcance.
Uau.
Essa doeu em mim.
Nem imagino o baque que ouvir isso da filha de treze anos deve ter causado
nele.
— Ela nunca mais vai voltar porque eu a engravidei — finalmente ele diz
algo, a voz perde um pouco do tom apreensivo, e se torna melancólica. — É
injusto eu seguir com a minha vida enquanto Clarice nunca terá essa chance.
Percebendo que tocou no ponto fraco, Safira se aproxima dele, ficando à sua
frente, na cozinha iluminada com a luz do sol matinal.
— O senhor se sente culpado? — ele não responde, apenas desvia o olhar. —
Eu não acho errado. Não é errado. Você não pegou uma faca e enterrou no peito
dela, ué. Ela morreu porque teve uma complicação no parto. Não foi você, nem
eu e nem os médicos. Foi Deus que achou melhor assim. Dói? Sim, dói pra
caramba nunca ter conhecido a minha mãe. Mas dói mais ainda ver o senhor
achando que não merece ser feliz.
Uma lágrima desce sem pedir permissão por meu olho abaixo. Orgulho.
Amor. Admiração. Sentimentos que tento administrar no meu peito enquanto
ouço minha sobrinha dar um show de maturidade.
Clarice deve estar se orgulhando tanto de você, preciosa.
— E, sabe, tem um exemplo de superação bem perto da gente. A minha avó.
Sei que não gosta do namorado dela, mas ele é um bom homem. Demorou um
pouquinho para chegar, mas vovó nunca perdeu as esperanças. Ela não deixou a
felicidade dela morrer com o meu avô. E está muito bem junto do Ricardo.
Talvez a Jade seja o seu Ricardo!
— Eu não quero um Ricardo! — ele solta uma risada fraca, parecendo ainda
abalado com tudo que ouviu.
— Então fique com a Jade. O que acha?
Não permaneço ali para escutar a resposta. Subo as escadas com a mesma
discrição que desci, voltando para minha cama, ainda necessitando do café, mas
disposta a esperar que Miguel saia da cozinha para eu ir buscar.
Encaro o teto, me sentindo leve como não me sentia há muito tempo. Por
incrível que pareça, o peso do que aconteceu entre eu e Miguel na noite anterior
não está me atingindo como deveria. Tirando a dor de cabeça, estou flutuando
em um mar tranquilo. Onde os meus problemas parecem distantes demais, como
se estivessem em uma realidade paralela. Nem mesmo quando Miguel adentra o
meu quarto com uma bandeja de café da manhã em mãos o meu estado de paz
interna se abala.
Será que eu fumei maconha e não me lembro?
Se fosse o caso, o efeito já teria passado, não?
— Bom dia, diaba. — cumprimenta, pondo a bandeja na cama. Estou
estranhamente tensa quando resolvo encará-lo. Ele parece indiferente, como se
não tivesse esfregado o rosto no meio das minhas pernas e se deleitado com o
som dos meus gemidos.
— Eu lembro de tudo. — Disparo.
— Eu não fiz o meu melhor para que você se esquecesse.
A resposta afiada me deixa sem palavras. Aparentemente, os papéis foram
invertidos, e Miguel está dominando o jogo em que eu sempre fui melhor. Agora
sou uma mera amadora.
— Vai me mandar embora? — pergunto, deixando de lado todo o meu
orgulho.
— Seria injusto. E eu não sou injusto.
Que porra está acontecendo com ele? Que porra está acontecendo comigo
para eu baixar a guarda sem nem perceber?
— Então o que vai fazer? — acabo perguntando, apreensiva pela resposta.
— Vou te levar comigo para Brasília. — Ao notar minha expressão de
confusão, olhando para ele de baixo para cima, Miguel prossegue: — Um amigo
meu vai se casar e eu preciso de companhia para ir à festa.
E por que eu sou uma boa opção?
É o que eu deveria estar questionando.
Tá bom.
É o que eu me vejo dizendo.
— Miguel — chamo, quando ele vira as costas e está prestes a sair. — Isso é
uma trégua?
— Eu quero que seja. E você?
Novamente, fico sem saber o que dizer, em primeiro momento.
Eu sei o que vai acontecer se eu baixar a guarda e me aproximar dele.
Mas também sei que esse ódio todo que guardo só tem feito mal a mim
mesma. E se eu quiser ter espaço para amar a minha sobrinha, preciso abrir mão
de um pouco da raiva que guardo no meu coração para recebê-la.
De todos que me feriram, Miguel é o único que está vivo. Talvez seja por isso
que despejo nele toda a minha frustração. Mas nem de longe o que ele fez
merece todo o rancor que tenho para me livrar. É um pouco injusto, se olharmos
desse ângulo.
— Pela minha sobrinha, eu quero que seja também. — Respondo, confiante
de que é apenas por isso.
EGOÍSTA

É noite quando faço caminho pelo local bem iluminado e cheio de mulheres
seminuas zanzando. As paredes vermelhas me saúdam quando adentro a sala
reservada, onde outras moças dançam sem pudor para atrair a atenção dos
homens que estão ali. Um deles em específico me chama atenção.
Este não é um puteiro qualquer. Juízes, políticos, empresários e criminosos
compõem a clientela daqui, fazendo o lugar ganhar o título de "Puteiro de Elite
do Rio". Mas, se você enxergar bem de perto, verá que, na verdade, se assemelha
mais a um bueiro. Todos esses homens que descrevi não passam de ratos sujos.
Roubam, mandam matar, mentem… Tudo isso com um sorriso no rosto e se
escondendo por trás da lei.
Eu sou um deles, não é atoa que passo muito tempo por aqui. Entretanto, sou
sem dúvidas o mais limpo. Principalmente em relação ao que me olha torto
quando sento próximo a ele, com um metro de distância nos separando no sofá
de couro escuro.
— Como vai, Luciano? A mão já cicatrizou? — ele apenas vira o rosto,
bebendo um pouco do conhaque que tem na mão esquerda. — Dia ruim? Ok,
então.
Faço sinal para que Michely se aproxime, quando ela o faz, peço um pouco
de gim com gelo e descanso os braços no encosto do estofado. Não demora para
que a prostituta volte com o que pedi. Sua pele negra possui alguns pontos
iluminados por baixo da lingerie rosa que usa. Os cabelos cacheados estão
soltos, indo até a altura da cintura, uma das coisas mais lindas nela, só perdem
para os olhos, cor de mel.
— Pensei que tivesse conhecido alguém, faz duas semanas que não te vejo —
comenta, pondo o copo nas minhas mãos e se sentando com as pernas cruzadas
ao meu lado.
— Você sabe que nas férias eu costumo ficar mais em casa por causa da
minha filha.
— Sim, mas você sempre dá um jeitinho de aparecer…
É verdade, eu dava algumas escapadas durante a madrugada, quando Safira
dormia. Não me orgulho do certo vício que adquiri por esse lugar, mas foi a
minha válvula de escape por algum tempo. Entretanto, nas últimas semanas eu
realmente não senti vontade de vir. O que me faz pensar que talvez eu não seja
tão viciado assim.
— Estou tendo alguns problemas, é só isso.
Ela usa as unhas para acariciar o meu peito por cima da camisa.
— Duas semanas sem transar comigo é um problema mesmo, dengo. —
Recebo um beijo no canto dos lábios, seguido de uma mordida no lóbulo da
orelha. — Vamos para qual suíte hoje?
— Hoje não vamos para nenhuma, preciosa. Tenho que resolver uma coisa.
Chame a Ravena para mim, por favor.
Sua expressão se torna insatisfatória no mesmo instante.
— Por que a Ravena pode te ajudar e eu não?
— Michely… — Encaro o rosto bonito, me sentindo mal por causar essa
rivalidade, mas ao mesmo tempo sabendo que não tenho a obrigação de escolhê-
la. — Faça o que te pedi, por favor.
O que meus olhos lhe disseram é o suficiente para que ela se levante e suma
corredor adentro em busca da sua colega de trabalho. Estou voltando a relaxar
quando ouço uma voz prepotente dizer:
— Miguelito.
Meu sócio se senta onde Michely estava há poucos minutos.
— O que está fazendo aqui, Henrique? Você vai se casar daqui a três dias!
— Fala baixo, garoto. — Ele olha para os lados, desconfiado, e desabotoa o
paletó do seu terno bem cortado. — Digamos que minha noiva se recusa a fazer
sexo comigo.
É impossível conter o riso diante disso.
— Caramba. E eu achando que nenhuma mulher dizia não aos seus charmes.
— E não dizem mesmo. Paola é a única cadela que ousa fazer isso.
A expressão facial de Henrique ao se referir a noiva é de ódio. O senador tem
fama de ser um partido cobiçado até mesmo pelas mulheres casadas. Deve estar
se corroendo por dentro com o não que recebeu da tal Paola.
— A propósito, se ela não te deseja, por que ainda vão se casar?
— Porque eu não consigo desejar outra mulher que não seja ela.
A contradição me faz voltar a dar risada. Ironicamente, entendo um pouco o
que ele está sentindo, apesar de ter sido bem recebido por Cassandra na noite
anterior.
Jamais imaginaria que me ajoelhar e abocanhar a boceta dela resultaria em
uma trégua. Se soubesse, teria feito um pouco antes. Falta de vontade não foi.
Encontrá-la tão calma no dia seguinte também foi uma surpresa das grandes.
Entrei no quarto me preparando para ser alvejado e saí de lá com um acordo de
paz.
Acho que Henrique não terá a mesma sorte com Paola. Pelo que me disse, a
mulher se transforma no capeta quando ele bate de frente com ela, o que me fez
adorá-la, em silêncio, é lógico, meu sócio está cuspindo fogo com a "audácia" da
Bracho, como a chama. Melhor deixá-lo pensando que é o último biscoito do
pacote mesmo.
— E a mercadoria, o que resolveram fazer? — indaga, depois de se cansar da
ladainha sobre como Paola é uma filha da puta que ainda beijará seus pés.
— Pedimos uma nova remessa, que chegará em dois meses. Sobre os
assaltantes de merda, Samu está trabalhando com Agnes para achar o paradeiro
deles nem que seja em Marte.
— Miguel — Michely chama, parada na porta do corredor onde havia
entrado. — Ravena está no quarto cinco te esperando.
— Bom, tenho que ir. — Me levanto, depois de apertar a mão de Henrique.
No caminho, passo pelo juiz Fagundes e não resisto, digo: — Espero que a outra
mão não esteja fazendo falta na hora H. Eu odeio pensar que posso ter
prejudicado o seu alto desempenho.
Sumo corredor adentro, sem esperar que Luciano se pronuncie. O quarto
cinco é logo à esquerda. Não demoro muito para abrir a porta e me enfiar no
cômodo escuro, onde encontro Ravena deitada na cama, vestindo apenas uma
calcinha fio dental enquanto mexe no celular.
— Presumo que não veio atrás de sexo, já que dispensou Michely. — Supõe,
ainda focada no telefone.
— Não, não vim mesmo. Preciso de ajuda.
Ela finalmente move o rosto, acenando para que eu me deite ao seu lado e
explique a minha situação. Não demoro para fazê-lo, contando à protistuta um
pouco da minha história com Cassandra, desde a infância, até aqui. Ravena
escuta tudo em silêncio, me olhando com desdém vez ou outra.
Apesar de ter uma beleza estonteante, ela é mais requisitada para serviços
como esse do que para fazer programas sexuais. É surpreendente a quantidade de
homens que pagam Ravena para serem ouvidos ou apenas para conversarem
com ela. Isso a tornou a puta mais cobiçada daqui, sua hora custa o dobro do que
custava antes, mas vale cada centavo. Constato isso quando coloco para fora
tudo que venho guardando dentro de mim desde que descobri a paixão de Cassie.
— Esse é um caso bem típico. O cara que tem uma mulher aos seus pés, mas
acaba se apaixonando pela outra, que nem olhava na sua direção. — Ravena
pontua. — É frustrante perder um homem para outra, principalmente se essa
outra for a sua irmã. E mais ainda se esse homem for o seu melhor amigo.
— Sim. Deve ter sido horrível para ela. Mas eu…
— Calado. — Ela me lança um olhar repressor. — Ainda é horrível. Porque,
mesmo que você esteja apaixonado por ela agora, nada entre vocês aconteceria
se Clarice estivesse viva. Na verdade, Cassandra nem seria uma opção se a irmã
ainda tivesse vida. Percebe como é frustrante ser a segunda opção?
— Eu imagino como ela deve se sentir. Só que, nós não temos controle sobre
os nossos corações. — Se tivéssemos, com certeza Cassie escolheria nunca ter
se apaixonado por mim. — Eu não escolhi Clarice, meu coração escolheu ela,
entende? Mas depois de descobrir sobre a paixão de Cassie, eu me senti culpado
por algo que não tenho culpa. E ela me odeia por achar que tenho culpa.
— Ela não odeia você.
— Diz isso porque não viu como ela me trata.
— E nem preciso ver. Tenho certeza de que Cassandra te repele, não porque
odeie você, mas porque odeia o que ainda deve sentir por você.
Isso faz bastante sentido. Entretanto, não torna as coisas mais fáceis.
— O que eu devo fazer, então?
Um minuto de silêncio se arrasta até que Ravena finalmente diga:
— O menos egoísta a ser feito seria deixar a mulher em paz para que ela siga
em frente e supere o que sente por você. — Essa alternativa faz meu peito se
apertar e um sentimento de angústia dar as caras.
— E a opção egoísta?
— Alimentar o que está sentindo e conquistar o coração da pobre coitada
novamente.
É horrível, mas me sinto mais propenso a escolher essa alternativa, mesmo
sabendo o quão filho da puta isso me torna.
— Você está na profissão errada, Ravena. Deveria abrir um consultório. —
Nossas risadas preenchem o cômodo escuro.
Em silêncio, penso no quão egoísta sou capaz de ser em nome do desespero
que meu coração se encontra por desejar Cassandra.

A sala está no completo breu quando chego em casa. O único ponto de luz
vem da televisão, onde passa Velozes & Furiosos 5. A cena em que eles arrastam
um cofre pelas ruas do Rio está passando quando me aproximo do sofá e
encontro Cassie deitada, com um balde de pipoca em seu colo. Resolvo ir direto
para o meu quarto, não querendo conversar enquanto ainda estou confuso sobre
o que sinto. Mas, assim que piso no primeiro degrau da escada, sou
surpreendido.
— Você não tem vergonha não? — indaga, parecendo furiosa.
Viro o corpo na sua direção, encontrando os olhos esverdeados me
analisando.
— De quê, exatamente?
— De passar a noite em um puteiro e chegar fedendo a bebida e mulher.
Solto uma risada fraca. Ela continua séria.
— Eu deveria me guardar até você admitir que quer meu pau dentro de você?
— provoco.
— Eu não quero essa coisa suja dentro de mim! Só Deus sabe por onde isso
andou.
Dou outra risada, essa um pouco mais alta.
— Boa noite, Cassie. A porta do meu quarto está aberta. — Pisco para ela,
que me dá o dedo do meio com um biquinho nos lábios e as sobrancelhas unidas,
puta com a minha provocação.
Depois de um banho frio, me deito usando apenas uma cueca. Encaro o teto
branco. Um misto de cansaço e incerteza toma conta de mim.
— O que eu faço, Clari? — pergunto, como se ela pudesse me escutar.
Não tenho feito isso nos últimos dias, mas costumo falar com Clarice em voz
alta antes de dormir. Um hábito que deixei de lado depois da chegada de
Cassandra. Talvez porque eu ainda me sinta mal por ter causado uma briga entre
as duas irmãs. Falar com uma enquanto a outra está por perto não parece certo
para a minha consciência.
— Estou cansado de me sentir culpado por ter te engravidado, por ter me
apaixonado por você, por ter quebrado o coração da sua irmã sem querer, por
estar criando sentimentos pela sua irmã depois de tudo. O que eu faço com toda
essa culpa, Clari? Só queria poder ser feliz sem parecer que estou fazendo algo
de errado.
Os minutos se passam, e, como sempre, a resposta não vem. Ela nunca vem.
Mas, mesmo assim, eu nunca deixarei de pedir que Clarice ilumine o meu
caminho de lá do céu. Uma das coisas que alivia um pouco a angústia é pensar
que ela se tornou o meu anjo da guarda. Esse parece um propósito melhor para a
sua morte do que uma simples vontade de Deus. Ainda tenho dificuldade em
aceitar que ele teve um motivo para tirar a vida dela. Fico dividido entre a minha
fé cega e o meu coração partido que não encontrou razões que justificassem os
planos dele.
Mas, eu desconfio de que nunca encontrarei. Mesmo que um dia descubra a
razão de tudo ter acontecido do jeito que aconteceu. Porque a fé e a razão são os
dois lados opostos da moeda. Quem tem fé, precisa fechar os olhos e se manter
firme no que se propôs a acreditar. Quem tem razão, acredita no que vê e no que
tem explicação. E nem sempre Deus nos dá uma, as vezes ele guarda para si os
motivos de ter feito tudo como fez.
Quando se tem fé, nos resta apenas confiar que Ele escolheu a melhor opção.
ESCOLHAS DO CORAÇÃO

A uma hora e meia de voo transcorre em completo silêncio. Miguel dormiu


durante todo o trajeto do Rio de Janeiro até Brasília devido ao remédio para
enjoo que tomou antes do avião dar partida, acordando apenas quando estamos
prestes a aterrissar.
Ele espreguiça os braços lentamente, esbarrando em mim no processo. Meu
olhar repressor o faz sorrir.
Aparentemente, estamos em paz.
Os últimos dias foram de completa harmonia na residência do Major Sovat.
Apenas trocamos algumas provocações, para não perder o hábito. Fora isso, está
tudo sob controle. Eu me mantive longe da cozinha. Ele tem usado a academia
nos horários que não estou lá. Até assistimos um reality show junto com Safira
ontem a noite. Ela não desgrudou de nós dois nos últimos dias, parece estar
gostando de me ver mais próxima do seu pai.
Já eu…
Não estou gostando nada da ideia de ficar dois dias ao lado dele sem Safira
para impor uma barreira entre nós. Principalmente quando chego ao hotel que o
tal Henrique alugou para hospedar os convidados e descubro que na reserva
consta apenas um quarto para mim e Miguel.
— Nós não somos um casal, minha senhora. Separe outro quarto para mim,
por favor. — Peço para a atendente, entregando-lhe toda a minha paciência ao
fazê-lo.
— Me perdoe, mas todos os quartos já estão reservados para os convidados
do senhor Salazar com base na lista que ele nos forneceu.
Inspiro fundo.
Solto o ar devagar.
Era só o que faltava.
— Não me fode, Henrique! — Miguel rosna no telefonema com o amigo.
A risada do senador soa tão alta que consigo escutar através do celular do
homem ao meu lado.
Babaca.
— Quer saber? — digo, me virando para Miguel. — Manda o seu amiguinho
ir à merda. — Encaro a atendente. — Me dê logo a chave da porra do quarto.
Com o objeto em mãos, sigo para o elevador, arrastando a pequena mala junto
comigo. Miguel para atrás de mim, já tendo terminado a ligação com o filho da
putinha.
— Eu não vou dormir no chão. — Dispara, entrando na caixa metálica
quando ela chega.
— Em algum momento eu disse que você vai? — indago, apertando o botão
número 4.
— Pensei que…
— Eu já dormi em lugares muito piores do que ao seu lado, Miguel. Vou
sobreviver.
Encerro o assunto quando saio do elevador sem olhar em seu rosto e caminho
rumo ao quarto 404. Encosto o cartão na maçaneta eletrônica, que é destrancada
segundos depois. O ambiente parece ter sido limpo minuciosamente, o que se
espera de um hotel desse nível.
A cama de casal é mais do que suficiente para eu dividí-la com Miguel sem
que nos toquemos. O banheiro é todo revestido em um azulejo que simula
mármore branco, contando também com a presença de um espelho enorme que
acompanha a bancada. Essa contém duas pias. Ao lado delas, há dois roupões
brancos, juntos de uma cesta de palha com guloseimas, velas e um sabonete
líquido aromático para usar na banheira. Há também um pequeno bilhete
acompanhando tudo isso.
Para os meus padrinhos queridos.
Espero que transem muito nessa banheira.
Com tesão, Henrique Salazar.
— Miguel — chamo. Ele chega poucos segundos depois, o celular ainda em
mãos. — Acho que estamos no quarto errado. Tem um bilhete para os padrinhos.
Não somos os padrinhos.
Um sorrisinho dissimulado se abre em seu rosto másculo. Miguel avalia os
roupões, abrindo um deles para que eu veja o que está escrito nas costas do
tecido.
Padrinho.
Joga a vestimenta na bancada, pegando o outro e desenrolando a frente dos
meus olhos.
Madrinha.
— Somos sim. — Afirma, pondo o primeiro roupão, que se ajusta
perfeitamente ao corpo forte dele.
— Como assim eu sou madrinha do casamento daquele filho de uma puta?
Ele ri, se virando para observar as próprias costas pelo espelho.
— Henri não tinha nenhuma mulher decente para colocar no altar como
madrinha. Eu ofereci levar você junto comigo e ele achou uma excelente ideia.
— É claro que tem dedo seu nisso! — esbravejo. — Você não pensou em me
contar esse pequeno detalhe antes?
— Se eu te contasse, você ficaria de cu doce e não viria. Aliás, estamos em
paz, Cassandra. Pare de causar discórdia e prove seu roupão.
— Causar discórdia? Eu fui trazida para cá sem fazer a menor ideia de que
seria madrinha de um casamento! Tenho todo o direito de ficar brava!
Sem me dar ouvidos, ele dobra o roupão e o coloca no lugar, saindo do
cômodo em seguida. Fico parada ali, puta com a situação, e mais ainda por ter
sido ignorada dessa forma. Miguel parece indiferente à minha presença quando o
sigo. Ele pega sua carteira e se dirige até a porta sem dizer uma palavra sequer.
— Ei! Aonde vai? — pergunto.
— Vou jantar. Você vem? — estou de braços cruzados enquanto analiso a
proposta. Minhas sobrancelhas estão unidas quando ele diz: — Se for para brigar
comigo, fica aí que eu mando trazer a comida para você. — Ele abre a porta.
— Não, espera! — Olha para mim, esperando uma resposta. — Eu vou.
— Estou falando sério, Cassandra. Não vou comer com você de mau humor.
Se quiser jantar comigo, é para ter uma noite agradável. Sem discussão ou
provocação. Consegue fazer isso?
— Existem pouquíssimas coisas que eu não consigo fazer, Miguel. Te aturar é
difícil, mas nunca foi uma delas.
Respirando fundo, ele fecha a porta depois que saio. Seguimos para o
primeiro andar em silêncio no elevador.
Me olho no espelho, conferindo se minha aparência está boa. Uso uma blusa
vermelha de mangas e gola alta, junto com uma saia de couro preta e botas cano
médio da mesma cor. Minhas pernas torneadas estão à mostra, chamando a
atenção de alguns homens no caminho até o restaurante do hotel. Sinto a mão de
Miguel na parte inferior das minhas costas quando um grupo de executivos passa
por nós. Não protesto, deixo que me conduza até nossa mesa e arraste a cadeira
para eu sentar.
Estamos em paz. — Repito mentalmente.
Logo o garçom chega, trazendo consigo um cardápio e saindo discretamente
para que possamos escolher o que iremos comer. Folheio o menu, escolhendo
um macarrão ao alho e óleo por ser uma das poucas coisas que conheço dali.
Miguel pede bobó de camarão e uma garrafa de vinho branco para nós dois.
Ao nosso redor, as pessoas bebem, sorriem, conversam, parecem estar tendo
uma noite agradável. Uma boa olhada pelo salão do restaurante e constato que a
maioria dos convidados de Henrique são homens. Todos vestindo belíssimos
ternos. Completamente diferente de Miguel, que além de ser o mais jovem
daqui, destoa dos outros pelas roupas “simples”em comparação com a dos
homens à sua volta. Usando uma calça jeans branca e blusa polo azul marinho,
ele observa a hora no lindo Rolex que tem em seu pulso, alheio à comparação
que faço mentalmente.
Foi surpreendente para mim ver a diferença gritante que existe no padrão de
vida que Miguel tinha quando fui embora e o que tem agora. Não era segredo
para ninguém lá onde morávamos que Cícero Sovat foi um homem metido em
esquemas ilícitos lucrativos. Entretanto, por não esbanjar dinheiro, nunca
soubemos se, de fato, ele fazia uso da verba provinda das suas ilicitudes. Pelo
que Helena me contou, a decisão de se mudar e melhorar o padrão de vida veio
de Suzana, que após a morte do marido, não se sentia mais segura para viver na
casa modesta que tinham ao lado da nossa.
— Vocês se mudaram antes de Clarice morrer? — puxo assunto,
surpreendendo-o.
— Não. O condomínio que moramos hoje ainda estava sendo construído
naquela época. Eu e Clarice pretendíamos morar em Teresópolis, antes de tudo
acontecer.
— Vocês chegaram a se casar?
Evitei fazer essa pergunta à Helena. Por vários motivos. O maior deles foi a
possibilidade de ficar feliz caso a resposta fosse não. No entanto, Miguel nega,
me fazendo perceber que não há como ficar contente diante do ocorrido.
A infelicidade deles jamais me faria feliz.
— Por que não me contou o que sentia? — há cautela no seu tom de voz. As
duas esferas azuis me examinam com uma intensidade que desnorteia-me por
um instante.
— Eu achava que você era a única coisa boa na minha vida naquela época.
Não queria estragar tudo. Tinha medo de que não sentisse o mesmo por mim.
Assim como também tinha medo de que você sentisse.
— Por que tinha medo de que eu sentisse o mesmo?
— Eu sempre acabo estragando as coisas com o meu jeito de ser. E o que nós
dois tínhamos era precioso demais para mim, não queria perder você em
hipótese alguma.
É tão difícil colocar essas palavras para fora que, quando o garçom chega
com o vinho e nos serve, aproveito esses segundos para engolir o choro que se
acumulou em minha garganta.
Estou acostumada a perder.
Mas me recordar das perdas dói.
Ainda é doloroso lembrar da última vez que vi minha mãe respirando.
Assim como a lembrança do dia em que descobri que Miguel nunca foi meu.
Da mesma forma que ver Felipe ser alvejado.
Tanto quanto sentir o sangue descer por minhas pernas abaixo.
Mais ainda quando voltei e soube que minha irmã se foi. Que ela não
desfrutou da maternidade e da vida ao lado do seu grande amor.
Todas recordações angustiantes que reforçam o quanto as perdas fazem parte
da minha vida.
As lágrimas escorrem, demonstrando que ainda dói, não importa quanto
tempo se passe. Compadecido, Miguel traz sua cadeira para ficar ao meu lado. O
polegar dele pesca algumas gotas de água que descansam na minha bochecha.
Sua barba roça o meu pescoço enquanto ele acaricia as minhas costas e sente o
cheiro que emana da minha pele.
— Eu não fazia a menor ideia, juro. Por mais que fôssemos muito próximos,
você sempre foi seca e rude comigo. Jamais demonstrou que me via como mais
que um amigo.
— Você também nunca demonstrou que sentia algo pela minha irmã. Nem
próximo dela você era, Miguel. Por que a escolheu?
Parecendo magoado, ele levanta o rosto, segurando meu queixo para que eu o
encare olho no olho.
— Por que você me escolheu? — não consigo responder, fico estática, apenas
meus olhos se movimentam para avaliar o rosto bruto a centímetros do meu. Ele
prossegue: — Se pudesse mandar no seu coração, faria ele escolher outra
pessoa?
Sem dúvida.
— É claro que sim. Acha que eu gosto de ser rejeitada?
— Não, eu não acho. Mas me diga, Cassie, com toda a sua sinceridade, me
conhecendo como me conhece: acha que eu fiz você sofrer de propósito? E, pior,
que gostei de te ver sofrendo por mim? — novamente, as palavras não saem. —
Diga!
— Talvez não. Mas, se me considerasse tanto como costuma dizer, teria me
contado sobre o que pretendia fazer. E não teria aparecido na minha casa para
pedir Clarice em casamento sem mais nem menos!
— Foi tudo muito rápido. Estávamos nos vendo às escondidas por causa do
seu pai. Bastou um descuido e ela engravidou. — Miguel segura meu rosto para
que eu volte a olhar para ele. Relutante, paro de fugir do seu toque e presto
atenção no que diz. — Eu ia te contar, Cassie, juro que ia. Queria a sua ajuda, o
seu apoio naquele momento. Mas Clarice estava tão envergonhada, me implorou
que eu não te contasse.
Consigo imaginar minha irmã desesperada depois de ver que o teste deu
positivo. Ela era uma menina conservadora. Ou, pelo menos, meu pai a criou
para ser assim. Deve ter sido horrível perceber que agiu contra tudo que
Maurício pregava.
Clari era a filha de ouro, iria despencar do pedestal que nosso pai a colocava
assim que desse essa notícia. A opinião dele sempre foi muito importante para
ela. Com certeza minha irmã se sentiu um lixo ao ver o desgosto dele sobre tudo
aquilo.
Se eu estivesse lá para apoiá-la…
À essa altura, estou chorando com o rosto enterrado no pescoço de Miguel,
que me acalenta enquanto as pessoas olham para nós sem entender o que se
passa.
— Eu não escolhi Clarice — sussurra no meu ouvido. — Assim como você
não me escolheu. Nossos corações foram quem escolheram por nós.
— Por que eles precisavam fazer essa confusão toda? — pergunto, fungando.
Passeando com os dedos pelos fios do meu cabelo, Miguel sorri e confessa:
— Eu me pergunto isso há treze anos, Cassie. Mas, a cada dia que passa,
tenho a impressão de que estou perto de descobrir.
A positividade é um traço dele que sempre me irritou. Por ser cristão
ferrenho, Miguel acredita cegamente que tudo tem um motivo para acontecer. Na
sua cabeça, Deus não erra, nem mesmo quando tira a vida de pessoas boas como
Clari.
Para mim, o que o Todo Poderoso fez ao levar minha mãe, Clarice, Felipe e o
meu filho nunca terá um propósito plausível.
Eu nunca vou agradecer por toda a desgraça que essas perdas causaram na
minha vida.
— Você acha que Deus teve um propósito ao levá-la? — a resposta vem em
forma de um balançar de cabeça positivo. — Como consegue se manter
pensando assim diante do sofrimento que sua morte causou? Como a morte de
uma menina como Clarice pode ser algo positivo para nós?
Miguel suspira, ainda acariciando meu cabelo.
— Acho que não se trata de ser positivo ou não. É tudo sobre os planos Dele.
Nunca sobre as nossas vontades.
— Continuo sem entender como posso tirar algo bom disso.
Nesse momento, o garçom se aproxima, trazendo nossos pratos.
Agradecemos com um aceno de cabeça e ficamos ali, apenas apreciando o aroma
das comidas.
— Cassie, sei que não compartilha da mesma fé que eu, mas, às vezes, Deus
precisa nos fazer fortes antes de nos fazer felizes.
Se ele soubesse o quanto venho sendo forte em troca das migalhas de
felicidade que Deus me deu a vida inteira, entenderia o porque não tenho tanta fé
nisso.
— Não sei você, mas estou cansada de ser forte. Quando vai chegar a nossa
hora de sermos felizes?
Sua risada me contagia. Apesar de ser um assunto triste, me permito rir da
nossa desgraça.
— Minha intuição diz que, quando menos esperarmos, a felicidade arrombará
a nossa porta e nos surpreenderá.
Mal vejo a hora disso acontecer.
IMAGINAÇÃO TENTADORA

Treze anos antes…


Minhas mãos suavam quando entrei na casa de seu Maurício oficialmente
pela primeira vez.
O motivo de eu estar ali?
O aniversário de Clarice.
Teoricamente, eu estava lá por Cassandra. Pois, para todos os efeitos, sua
irmã e eu não éramos próximos. Minha presença se dava apenas por ser o
melhor amigo de Cassie.
Mas, em segredo, eu era o namorado da aniversariante.
É engraçado me lembrar como estava eufórico naquele dia pela simples
oportunidade de permanecer no mesmo lugar que ela sem precisar ser às
escondidas. Quando, na verdade, isso era algo triste.
O pai das meninas era um homem muito rigoroso, principalmente com
Clarice. Diferente da irmã, ela foi criada para ser uma garota de "família". Era
um absurdo a forma como Maurício exigia da filha mais nova compostura, e
tratava Cassie como um caso perdido.
Enquanto a mais velha podia ficar na rua o dia inteiro, rodeada de meninos,
se quisesse, Clarice não era autorizada a colocar o nariz para fora de casa sem
a presença dos pais. Antes de Cassie vir morar na casa do pai, eu nunca havia
tido contato com Clari, por esse motivo. E as coisas só pioraram conforme ela
cresceu.
Ter um namorado?
Naquela época, a mãe da minha filha não podia nem sonhar com isso. Seria
ir contra um dos mandamentos mais importantes de Maurício Borello.
"Não namorarás antes de se formar e ter uma profissão."
Algumas pessoas cumprimentavam a aniversariante quando cheguei, junto
com Rafael, para comemorar os dezoito anos da mulher que viria a ser a mãe da
minha filha. Seus olhos brilharam quando pousaram em mim, parado ali, à sua
espera. Ela precisou desfazer o sorriso no mesmo instante para não levantar
suspeitas e se aproximou de onde estávamos, abraçando primeiro meu irmão, e
depois, a mim.
— Parabéns, Clari. — Eu disse, tímido com toda aquela situação.
— Obrigada, Mi. Estou feliz que tenha vindo. — A última parte foi dita em
um sussurro.
E então, ela se afastou. Ficou a maior parte da festa rodeada pelas amigas
do colégio enquanto eu me sentei na mesa com meu irmão e amigos até Cassie
chegar da Escola.
Fazia alguns meses desde que ela havia sido aprovada para a ESA (Escola de
Sargento das Armas). Por isso, Cassandra chegou no fim da festa. Minha
melhor amiga passou a semana inteira lá, podendo apenas retornar para casa
no sábado.
Hoje, percebo que a ausência dela naquele momento foi um fator que
contribuiu para a minha aproximação de Clarice. Se não fosse por isso, talvez
eu não tivesse a chance de notar a menina franzina e simpática que chorava de
saudade no parapeito da janela em frente à minha.
Foi assim que tudo começou…
Em uma noite, eu estava prestes a pular a janela do meu quarto para sair
escondido e me deparei com Clarice, chorando.
Cassie havia dito que era a sua irmã quem tinha o quarto com a janela em
frente à minha. Mas, a caçula dos Borello não era de fazer muito barulho. Eu
mesmo não me lembro de ter escutado algum ruído vindo dali antes daquele dia.
Tampouco já tinha visto ela, em pessoa, dando as caras naquela abertura.
— Ei — chamei sua atenção. Os olhos azuis escuros se voltaram para mim.
— É Clarice, né? — ela assentiu, cabisbaixa. — Posso te ajudar?
Era estranho oferecer ajuda para uma garota de dezessete anos que chorava
encolhida no batente da janela. Mas, eu tinha uma mãe que costumava chorar
quando estava de TPM, pensei que esse fosse o caso da garota e quis ajudar.
— Pode trazer minha irmã de volta? Preciso dela aqui.
— Não, nem se eu quisesse poderia. Ela está toda feliz na formação militar.
— Eu queria ser corajosa como a minha irmã. — Confessou, a visão focada
no espaço de concreto que colocava uma certa distância entre nossas janelas.
Clarice parecia absorta em pensamentos profundos.
— E quem não quer? — me sentei no batente. — Sua irmã é a porra da
mulher maravilha, versão loira e endemoniada.
Clarice já não chorava mais depois que iniciamos a conversa. Ela riu do meu
comentário sobre Cassandra.
— É. E eu não tenho coragem nem de dizer ao meu pai que não quero mais
ser médica.
Naquele dia, ficamos quase a madrugada inteira conversando sobre a vida
restrita que ela levava. Clarice me contou suas inseguranças, maiores medos, as
coisas que realmente queria para o seu futuro. Ela se abriu. Como uma linda
flor que não conhece o seu potencial até ter a chance de desabrochar. E eu, fui
me apaixonando a cada vez que pulava a janela e fazia companhia para aquela
garota solitária, cheia de vida e beleza dentro de si, mas que vivia sendo
impedida de florescer.
Os beijos, toques e sexo vieram depois de já termos chegado a conclusão de
que nossas almas nasceram para se completarem. É daí que vem a minha crença
de que jamais terei essa conexão novamente com alguém.
Entretanto, o que aquece um pouco o meu coração é saber que aproveitei
cada segundo do êxtase que foi amá-la. Eu pulei a janela todos os malditos dias
e aninhei a minha pequena em meus braços sempre que pude. Inclusive, no dia
do seu aniversário, quando a noite caiu e seus pais foram dormir. Entrei no seu
quarto de fininho depois dela abrir a janela para mim e deitei na sua cama de
solteiro. Clarice veio em seguida, a cabeça apoiada no meu peito e os dedos
entrelaçados nos meus.
— Eu preciso contar para a Cassie. Não aguento mais guardar segredo dela.
Precisamos contar. — Confessei.
— Não, por favor, não conte. — Ela se levantou, demonstrando certo
desespero com a possibilidade de sua irmã saber.
— Você completou dezoito anos, seu pai não pode mais te impedir de
namorar! Cassie pode nos ajudar a convencer ele, ela sempre consegue tudo o
que quer.
— Ele vai ficar decepcionado comigo, Miguel, por favor, entenda. — Meu
rosto foi tomado por suas mãos pequenas e macias. — E Cassie vai me odiar
quando souber. Ela acha que minha mãe roubou nosso pai da mãe dela. Tenho
certeza de que vai achar que te roubei dela também.
Eu não dei importância para o que Clarice disse. Achava que conhecia
Cassie mais do que ninguém. Que ela nunca acharia isso da irmã.
Eu não podia estar mais errado.
— Ela é a minha melhor amiga, a irmã que eu não tive. Cassie jamais vai te
odiar por me fazer feliz. Ela só vai ficar um pouco chocada, mas vai nos apoiar.
— Você ama Cassandra? — a pergunta me pegou de surpresa. Franzi o
cenho. — Pode dizer, eu não vou ficar chateada.
— Eu sou o seu Yin e ela é o meu Yang. Amo Cassandra com tudo que tenho
dentro de mim. Por isso é tão ruim ter que me esconder dela.
Um sorriso brotou nos seus lábios.
Clarice não tinha ciúmes da minha amizade com a sua irmã. Ela sabia muito
bem da ligação forte que nós dois tínhamos desde que nos conhecemos, e nunca
se demonstrou contra isso. Esse foi o grande motivo de eu não achar errado me
relacionar com a irmã da minha melhor amiga, pensei que se elas se amassem e
me amassem também, estava tudo certo, não é? Quem ama quer a felicidade do
outro, não?
Nem sempre.
Esse era o caso de Cassandra.
Em segredo, eu era o dono do seu coração.
A minha felicidade com a sua irmã era a ruína do seu coração já ferido.
— Então mantenha o nosso segredo, se a ama tanto quanto diz. Vai por mim,
Miguel, estamos fazendo o melhor para a minha irmã, ela não merece sentir que
perdeu alguém novamente. — Suplicou. Não fui capaz de me opor.
Em segredo, eu optei por preservar Cassie.
Errei ou acertei ao fazê-lo?
Acho que só Deus sabe. Ele me conhece mais do que ninguém, deixo nas
mãos Dele a responsabilidade de guiar-me pelo melhor caminho.
Sou arrancado das lembranças do passado quando sinto Cassandra se debater
ao meu lado na cama.
Está acontecendo de novo.
Me recordando do que ela pediu que eu fizesse caso tivesse outro pesadelo
daqueles, ponho a mão na sua barriga para estabilizá-la no colchão e tampo seu
nariz por alguns segundos. As unhas dela me arranham quando começa a perder
o ar. Os olhos se abrem logo depois. Retiro as mãos do seu corpo, me sentando
na cama e a observando se recompor. Seus cachos rebeldes formam uma aura
sobre seu rosto.
— Está olhando o quê? — questiona, como se nada tivesse acontecido e se
levanta.
— Bom dia para você também, querida diaba.
Ela some banheiro adentro, voltando algum tempo depois usando um vestido
florido que possui um decote generoso, expondo a borboleta entre seus seios.
— Não vai tomar café? Os noivos devem estar esperando os padrinhos para
comer com eles.
Reviro os olhos.
Estou acordado desde às cinco da manhã. Tomei um banho mais cedo e deitei
novamente, vestindo apenas uma calça jeans preta. Ponho a mesma blusa de
ontem e calço os tênis, seguindo com Cassandra para fora do quarto.
Me incomoda os olhares que ela recebe quando adentramos o salão onde será
servido o café da manhã, homens com o dobro da sua idade comem a minha
acompanhante com os olhos, sem dar a mínima para a presença de outra figura
masculina ao seu lado.
Não sou intimidante o suficiente para vocês, seus merdinhas?
Minha mão guia Cassandra pelo caminho entre as mesas até chegarmos em
uma vazia, no canto do salão. Por um milagre divino, a diaba não se opõe, deixa
que meus dedos repousem na pele nua das suas costas, e pior, ainda permite que
eu puxe a cadeira para que se sente.
— Está tudo bem? — pergunto, quando nos sentamos e começamos a avaliar
o cardápio.
— Por que não estaria? Vou ser madrinha do casamento de um cuzão com
uma desconhecida, e ainda preciso dividir a cama com você. Como poderia não
estar tudo ótimo? — a dose excessiva de deboche vem acompanhada de um
sorriso sonso.
— Cuzão é um eufemismo generoso demais para se referir ao meu noivo,
querida. — Trajada com um belíssimo vestido preto rendado que termina quase
na altura dos seus joelhos, Paola se põe ao lado da nossa mesa, sendo seguida
pelo meu sócio. Parecendo estar desfrutando de um excelente humor, ele rebate:
— De desconhecida a minha noiva não tem nada, Sargento Borello. Ela é
uma epítome da Paola Bracho. — O olhar afiado que trocam, além das farpas,
me fornece uma boa ideia do quão perturbador pode se transformar a relação
desses dois.
Fisicamente, a noiva de Henrique não se parece em nada com a sua xará
mexicana. Seus lábios são finos, assim como o nariz e as sobrancelhas. Os
cabelos estão pintados de castanho claro e cortados um pouco abaixo da
mandíbula. O corpo é magro, padrão digno de uma modelo, apesar dela não ter
mais do que 1,60 de altura.
Ela exala elegância.
O tipo de mulher que você pode deixar nua, em pele e osso, que sua postura
ainda terá o mesmo ar sofisticado, como se estivesse vestindo o mais caro dos
trajes. Porque o segredo delas está na sua conduta, e não no que usam ou
esbanjam.
— Finalmente estou de frente para a senhora Salazar — me levanto para
cumprimentá-la com um abraço. Seu cheiro é doce, mas não menos intenso do
que o vislumbre de voracidade que Henrique faz questão de me oferecer.
— Ainda não sou uma Salazar, Miguel. Inclusive, agora mesmo eu estava
reconsiderando os meus planos de dizer “sim”no altar.
— Você nasceu para ser minha, Bracho. Não é um mero acaso ter vindo parar
justo nas minhas mãos. — As orbes azuladas dele brilham de luxúria quando a
encara, apertando-a de encontro ao seu corpo sem obter nenhuma resistência da
mulher, que devolve o olhar, parecendo odiar o quanto ele está certo. — O "não"
nunca foi uma opção para você. Agora que estamos tão entregues um ao outro,
menos ainda.
— Que bom, porque, eu voei do Rio para cá com o intuito de aproveitar uma
festa de casamento de ricos pela primeira vez. Não tirem isso de mim. —
Cassandra zomba, quebrando levemente o clima tenso do ambiente.
Tentação.
Segundo o Google, isso pode ser:
Impulso para a prática de alguma coisa censurável ou não recomendável.
Ou...
Desejo veemente ou violento.
Ou…
Cassandra neste instante.
O Google precisa acrescentar essa última definição o quanto antes.
— Fecha para mim — pede. Avanço alguns passos, me posicionando atrás
dela para fechar o zíper do seu vestido. Através do espelho, permito-me babar
um pouco mais na mulher espetacular a centímetros de mim.
Cassandra já possui um físico exuberante com toda essa carne localizada nos
lugares estratégicos, fruto do seu empenho na academia. O vestido vermelho
sangue, todo revestido em acabamento rendado e contendo um decote profundo
que expõe os seus seios pesados, faz o papel de coadjuvante no palco que é o
corpo dela nesta vestimenta. A cauda aberta nas laterais somado às costas nuas,
são detalhes que disputam o protagonismo.
Não sei o que é mais belo: as pernas tonificadas entre o tecido avermelhado,
os peitos sendo engolidos pela renda, a bunda perfeitamente contornada pelo
pano.
Me afasto da tentação assim que termino de fechar o zíper, voltando a me
distrair com o celular para ignorar sua beleza diabólica.
— Acha que o penteado combinou comigo? — sua pergunta faz com que eu
volte a prestar atenção nela, tendo o rosto como foco.
A face de Cassandra está completamente revestida pela maquiagem que lhe
foi feita há algumas horas, quando foi ao salão, se aprontar junto com a noiva e
sua madrinha. Não é nada exagerado, sombras neutras, batom claro, ressaltando
as duas esferas verdes belíssimas que a diaba possui. No cabelo, foi feito um
penteado de tranças embutidas em um coque na nuca. Os fios loiros foram
domados e somente alguns cachos jazem para fora, um detalhe delicado que
contrasta lindamente com a ousadia da sua vestimenta.
— Ficou lindo. Não precisa se preocupar.
— Não estou preocupada. — Fica de frente para mim. Inspiro fundo ao dar de
cara com os melões que Cassandra chama de peitos. — Pare de imaginar.
— Imaginar o quê?
— Seu pau entre os meus peitos.
Minha boca fica seca em segundos.
Não era isso que eu estava imaginando…
Mas é uma boa ideia também, não nego!
— Se tem uma coisa que eu não estava imaginando, era isso, Cassandra. —
Encaro bem o seu rosto.
— Agora está. — Sorri, ajeitando o decote. Por instinto, meus olhos recaem
sobre a área, famintos para ver mais um pouco da pele que há escondida ali.
Qual será o significado de "diabólica" no Google?
Com certeza ele deveria considerar colocar o nome de Cassandra como uma
das definições.
— E se eu estiver? — dou um passo à frente.
— Seria falta de caráter da sua parte desejar a cunhada tão descaradamente.
— Não tanto se o sentimento fosse mútuo.
— Não é. — Recua um passo. Meu sorriso fica maior.
— Sério? Você foi bem específica. A menos que consiga ler mentes, não tinha
como saber exatamente o que eu estava imaginando ao olhar para os seus peitos.
A menos que…
Ela volta a se aproximar, olhando firme para mim.
— A menos que o quê?
— A menos que você estivesse imaginando isso.
— Eu não estava. Mas vocês homens são tão previsíveis no sexo, que não é
difícil imaginar o que fantasiam com uma mulher como eu.
Ajeito a gravata, rindo da forma como Cassie sempre tem uma resposta sagaz
para encobrir sua derrota quando estou certo.
— Que bom, porque seria falta de caráter da sua parte cobiçar o noivo da sua
falecida meia-irmã.
Sua risada preenche o cômodo quando se senta para calçar os saltos.
— Não tanto se ela tivesse… — Para no meio da frase, desistindo de ir
adiante.
— Se ela tivesse cobiçado o que deveria ser seu? — completo. Sua respiração
fica acelerada, o olhar fatal é direcionado para mim no mesmo instante.
— Desça. — É a única coisa que diz, colocando toda a sua intensidade na
pronúncia.
— Eu sempre estive ali, bem ao seu alcance, você poderia me ter, se quisesse.
Mas escolheu me afastar, nunca quis que eu visse quem você realmente era. —
Afirmo. — Não pode esperar que alguém te ame só pelo que vê na superfície.
Todos nós somos um mar de coisas, para amar uma pessoa, é preciso mergulhar
nesse oceano e se encantar pelas coisas viu. Ontem, você me perguntou porque
eu escolhi Clarice, ainda mantenho o que respondi, mas talvez, o fato dela ter me
deixado conhecer a imensidão que existia dentro dela tenha superado a visão
rasa que me permitia ter do mar turbulento que é você, Cassandra.
— Então a culpa é minha? É isso que está insinuando? — se levanta, pronta
para atacar.
— Não. Para mim, ninguém é culpado por seguir o coração.
— Mas eu sou culpada por nunca ter assumido o que sentia? Me poupe,
Miguel! Não aja como se fosse me escolher, caso eu tivesse me declarado antes.
— Vocifera.
— Você realmente queria que eu te escolhesse? — brado de volta. — Me
querendo por perto quando estava triste e me enxotando quando ficava melhor?
Só um cachorro escolheria viver assim!
— EU QUERO QUE VOCÊ VÁ PARA O INFERNO! Quem você pensa que
é? Deus, para escolher alguma coisa? Se manca!
Estamos cara a cara nesse momento, os narizes se encostando, ela podendo
competir de igual para igual comigo devido aos saltos, que igualam nossas
alturas. Sinto as lufadas de ar que saem do nariz dela no meu rosto junto com o
seu peito subindo e descendo apressadamente.
Quero jogá-la na parede e calar sua boca maldita até ela entender quem eu
realmente sou. Em um impulso que não consigo frear, é o que faço, a empurro,
prensando nossos corpos, agarrando a sua mandíbula sem delicadeza alguma,
espremendo a carne das suas bochechas. A outra mão contém seus pulsos acima
da cabeça.
— Eu sou o dono dos seus desejos mais intensos, Cassandra.
DESEJOS INTENSOS

— Eu sou o dono dos seus desejos mais intensos, Cassandra.


Miguel roça o nariz no meu. Uma onda de calor percorre todo o meu corpo e
se fixa no ventre. Posso ouvir meu coração batendo freneticamente no peito,
como se estivesse implorando para se libertar de toda essa excitação que cresce a
medida em que sinto o corpo dele mais perto, seu cheiro másculo, a postura
dominante que assumiu.
— Esse é o motivo de direcionar tanto desprezo para mim, não é? Você não
suporta me querer, mesmo depois de tudo. Seu ego não permite.
Permaneço calada. Em parte porque seu aperto impossibilita que eu fale
perfeitamente. Em outra porque me sinto fraca, encurralada como uma ratazana,
tão suja como uma por desejá-lo, por me sentir inevitavelmente atraída pelo lado
preponderante de Miguel.
— O que foi, Cassie? — busca meus olhos, analisando-os intensamente. —
Eu estou mentindo? Vamos, me diga que eu estou mentindo!
A pressão diminui, permitindo que eu murmure:
— Está.
Os dentes de Miguel brilham sob a luz amarelada do quarto. Ele está se
divertindo com o poder.
— Hmmm… — Liberta meus pulsos, escorregando a mão livre para dentro
do meu vestido, rapidamente o desgraçado sente a umidez da calcinha, sem nem
mesmo precisar verificar a parte interna. — As Cataratas do Iguaçu estão
perdendo para a sua calcinha, Cassandra.
— E você vai perder sua mão, se não tirá-la daí. — Recolho o resto do
orgulho que ainda possuo e o empurro para longe do meu corpo, quebrando a
tensão sexual que havia se estabelecido entre nós. — Você adora falar de mim,
mas sei que está duro por minha causa. E digo mais, tenho certeza de que não é a
primeira vez.
— Não tenha dúvidas disso — confessa, sem um pingo de vergonha nessa
cara barbuda. — A diferença entre nós dois é que eu estou cansado desse
joguinho de cão e gato. Cheguei ao ponto de preferir lidar com a consciência
pesada do que continuar com as bolas doendo de tanto tesão reprimido.
Sua sinceridade me pega desprevenida.
— O que quer dizer com isso, Miguel?
— O passado nunca vai poder ser mudado. Eu nunca vou me arrepender de
não ter feito uma escolha. Você parece que nunca vai me perdoar por não ter
feito uma. Ou seja, sempre iremos viver nesse impasse enquanto formos
Cassandra e Miguel. — Volta a ficar próximo de mim. Tensão e desejo pairam
no ar, junto com o mistério sobre as reais intenções dele.
— Não escolher, também foi uma escolha, Miguel. Sabe muito bem disso.
— Eu pensei que, não escolhendo, você entenderia que eu não era capaz de
fazer isso. — Suspira, passando a mão pelo cabelo. — Mas não vem ao caso
agora.
— E o que vem? — pareço controlada por fora, o peito estufado e as pernas
firmes no chão. Entretanto, por dentro, um misto de apreensão e adrenalina me
corroem, à espera do que vem a seguir.
— E se nós, simplesmente, não fôssemos Miguel e Cassandra essa noite? —
põe as mãos nos bolsos. — Somente para aplacar esse desejo que estamos
sentindo, sem culpa enquanto fazemos. Uma única noite. Podemos ser outras
pessoas e ter algumas horas de prazer fora da realidade.
Não vou mentir, já imaginei diversas vezes como seria ter Miguel por um
instante sequer. Depois de vê-lo se transformar em um homem, essa imaginação
se tornou ainda mais intensa. Quando tomou minha intimidade com a sua boca,
se tornou insuportável de tão real a necessidade que eu tenho de experimentar
mais, explorar o potencial do que Miguel pode fazer para aplacar esse desejo que
está aqui desde a adolescência.
Sua proposta é tentadora para o meu lado depravado, e perigosa para o meu
lado apaixonado.
— Pense nisso até o fim da noite — ele põe uma mecha de cabelo atrás da
minha orelha. — A propósito, eu não colocaria meu pau entre os seus peitos, não
tenho tanto tesão nisso. Eu faria você deitar no chão e gozaria neles.


Felizmente, a cerimônia na igreja não demorou muito. Ao contrário do que
insinuou esta manhã, Paola aceitou prontamente se casar com o cuzão. Entrou
usando um vestido de noiva belíssimo e fez o caminho pelo tapete vermelho
rapidamente.
Não a julgo, Henrique parece ser um bom partido. Rico, bonito, inteligente,
sedutor… O quarentão tem seu charme, admito. E não nos poupa do seu atrativo
enquanto dança agarrado à sua digníssima esposa na festa de casamento. Os dois
possuem um magnetismo impressionante, não importando o quanto a senhora
Salazar tente fingir que o despreza, a força com que o deseja é nitidamente
maior.
Não a julgo, novamente. Sei bem como é cobiçar e repudiar a mesma pessoa
tão intensamente das duas formas.
Inclusive, neste instante, e em todos os outros desde que saímos do quarto,
não paro de sentir esse misto de emoções por Miguel.
Eu faria você deitar no chão e gozaria neles.
Essa porra não sai da minha cabeça! Inferno!
Onde foi que ele enfiou o caráter?
Nós dois não deveríamos estar cogitando fazer isso em hipótese alguma. Seria
trair a memória da minha irmã, certo? E se eu quero me redimir com ela, jamais
posso ir por esse caminho.
Se bem que, Clarice agiu de má fé quando ficou com o meu melhor amigo
escondido de mim. Isso foi falta de caráter da parte dela. Ela me devia mais
lealdade do que Miguel, visto que éramos irmãs.
Merda!
Por que é tão difícil para mim não ser rancorosa?
Estar sendo tentada a fazer o que sempre desejei internamente também não
tem ajudado em nada!
A necessidade de querer fazer o certo, e ao mesmo tempo, querer me libertar,
é desgastante. São dois caminhos distintos que, uma vez cruzados, não tem volta.
A vontade de jogar tudo para o alto e gritar: FODA-SE A COISA CERTA, EU
QUERO É FODER!, começa a ganhar força dentro de mim, assim que penso nos
prós e contras.
Em trinta e dois anos, eu não fiz nada do jeito certo. É um ato ingênuo esperar
que uma mulher como eu possa resistir a tentação de estragar tudo,
simplesmente porque decidiu, enfim, ser politicamente correta.
Se tem uma coisa que nunca vou ser, é correta.
— Acho que quem está imaginando agora é você. Estou certo? — o sussurro
de Miguel me traz de volta a realidade. Ele usa um terno cinza de grife, junto de
uma gravata vermelha, combinando com o meu vestido. Sua barba está um
pouco mais curta do que de costume. Os cabelos também, alinhados, como
sempre, para ficarem para trás.
— Estou apenas considerando a possibilidade de você conseguir me
satisfazer. — Minto.
Assumindo uma postura intimidante, ele se inclina, até estar bem próximo ao
lóbulo da minha orelha, e diz:
— Você pode questionar tudo sobre mim, Cassandra. Menos o meu papel
como pai e a minha capacidade de satisfazer uma mulher.
É instantâneo o efeito que suas palavras têm em meu corpo. Posso sentir um
arrepio na nuca, assim como os pelinhos do braço eriçados. Sem contar com a
pontada no meu ventre, que se estreita toda vez que fantasio Miguel entre as
minhas pernas.
É aquela maldita coisa, né. O proibido é mais gostoso.
— Você tem uma filha? — mudo o tom de voz para algo menos debochado.
— A propósito, meu nome é Jade. E não foi minha intenção questionar a suas
habilidades, apesar de estar curiosa para saber se você é tudo isso mesmo.
O sorriso de Miguel faz meu estômago se retorcer de ansiedade.
Ele sabe que entrei no seu jogo. O homem exala contentamento quando põe
as mãos na minha cintura e me guia para fora do salão principal. O som das
pessoas falando diminuiu à medida que nos distanciamos dali.
— Há algum tempo atrás, uma mulher me disse que foda boa é foda bruta —
chama o elevador, ficando ao meu lado, ainda com a mão na minha cintura, para
esperá-lo. — Concorda com isso, Jade?
— Esse é o meu mantra, amour. — Revelo, sorrindo com a lembrança do dia
em que lhe disse isso.
— Aquela mulher não sabe, mas esse também é o meu mantra entre quatro
paredes. Principalmente quando estou acompanhado de… — O elevador chega.
As portas se abrem e nós dois adentramos a caixa metálica rapidamente.
— Acompanhado de…?
Sou trazida para perto do seu corpo abruptamente. Nossos olhares estão fixos
um no outro, os dedos dele brincam com o brinco na minha orelha.
— De uma puta bem gostosa, disposta a fazer tudo que eu mandar. — As
palavras saem em um sussurro depravado, como se esse fosse um segredo
delicioso que Miguel está revelando só para mim.
— Então você gosta de mandar?
— Aham. E você vai gostar de me obedecer. — Beija meu pescoço. As portas
se abrem. Seu aperto parece inflamar ainda mais o incêndio que se torna o meu
interior conforme sou arrastada para fora do elevador pela nuca.
Dentro do quarto, ele me solta, tirando o paletó e olhando para mim com a
respiração ofegante. Fico estática, esperando-o, querendo descobrir o quanto irei
gostar de ser subjugada por Miguel.
— Tira o vestido. — Manda, o tom de voz carregado de autoridade.
Sou pega de surpresa com a ordem.
— Por que não tira você?
— Se eu for aí tirar, vou rasgar esse vestido inteiro.
Apesar da imagem dele me despindo de tal forma animalesca ser muito
atraente, não quero me desfazer desse traje. Dou um jeito de abrir o zíper,
descendo o tecido por minhas pernas abaixo. Meus seios saltam quando se
libertam, chamando a atenção de Miguel. Ele está sem camisa quando me joga
na cama, sem me esperar tirar os saltos. Faço menção de tirá-los, Miguel contém
meus pulsos.
— Quero que fique com eles.
— E se eu não quiser? — provoco, passando a língua pelo lábio inferior. Ele
me encara, compenetrado, mesmo estando tão cheio de tesão quanto eu.
— Você não tem querer aqui.
Dito isso, Miguel invade a minha boca com a sua, ainda mantendo meus
pulsos restritos. Enlaço seu quadril com as pernas, acariciando-o com a ponta
dos saltos, atritando minha pelve na sua, desesperada para tê-lo dentro de mim.
— Me come logo, por favor. — A necessidade é tamanha, que acabo
implorando enquanto ele morde minha orelha e o pedaço de pele logo abaixo.
— Que bonitinha, ainda nem começamos, e já está implorando. — Volta a me
encarar, acariciando meu rosto delicadamente demais para quem disse gostar de
brutalidade. — Até o fim da noite você vai estar pedindo misericórdia, minha
putinha. — O tapa que recebo no lado direito do meu rosto termina de encharcar
a calcinha fina que estou usando.
Ele distribui mordidas pelo meu pescoço. A sensação de seus dentes fazendo
a minha pele de refém é um combustível para o tesão desenfreado que estou
sentindo. A dor me atinge quando Miguel abocanha a carne de um dos meus
seios, sem piedade alguma. A região arde quando termina de mordê-la e parte
para o outro seio, sugando o mamilo e roçando os dentes nele.
— Essa tatuagem é tão linda — elogia, passando a língua pela região entre o
meu busto. A borboleta brilha em meio a saliva que Miguel deixa ali, descendo
para o meu umbigo.
Meus pulsos seguem contidos ao lado do corpo pelas mãos fortes dele, que
me chupa e me domina com a mesma intensidade.
— O que você quer que eu faça, querida?
Abro os olhos. Miguel está apoiado nos joelhos, posicionados entre as minhas
pernas, abertas para esperá-lo.
— Quero que me chupe. — Suplico, ofegante. — E depois, quero dar de
quatro para você.
Ele balança a cabeça com um sorriso sacana nos lábios gostosos. Sou puxada
pelas pernas até Miguel estar totalmente entre elas. Ao contrário do que
imaginei, minha calcinha não é retirada, e muito menos recebo sexo oral. O
homem me pega pela nuca e desfaz o penteado, revelando meus cachos rebeldes.
Com uma mão apertando eles desde a raiz e a outra pressionando as minhas
bochechas, Miguel morde meus lábios. Arranho seus braços, em busca de
libertação, quando consigo, observo atentamente meu algoz abrir a calça.
— Chupa ele todinho. Agora. — Manda, ao aproximar o membro da minha
face. O líquido pré-sêmem banha meus lábios, fechados, porém ansiosos para
chupá-lo.
— Não é o que eu queria.
— Qual a parte do "você não tem querer aqui" ainda não entendeu?
Lambo a cabeça do seu pau, dividida entre fazer o que pediu ou oferecer-lhe
um pouco da minha rebeldia.
— Então por que me perguntou o que eu quero?
— Para garantir que não terá.
Isso deveria enfurecer a Cassandra geniosa que há dentro de mim. Mas só
aumenta o meu nível de excitação.
Hoje, eu não sou a mulher calejada e errônea que arrombou a porta da casa de
Miguel.
Sou apenas alguém que decidiu não ser mais refém da luxúria, e sim, explorar
todas as suas nuances com o homem que sempre foi meu objeto de desejo.
E faço isso muito bem, engolindo o membro dele vagarosamente até sentí-lo
pressionando a entrada da garganta. Respiro devagar. Miguel estremece quando
impulsiono o resto do seu comprimento ainda mais fundo, centímetro a
centímetro sendo devorado goela abaixo.
Meu olhar nunca deixa o dele, que transmite o quanto estou testando seu
autocontrole ao movimentar minha língua tão devagar. Com as mãos, acaricio
suas bolas, sentindo que estão duras e inchadas, loucas para ter seu conteúdo
esvaziado, me deixando doida para sentir o gozo banhando meus seios, como
Miguel sugeriu que gostaria de fazer.
— Porra, essa boquinha fica tão linda em volta do meu pau. — Geme,
puxando meu cabelo e acariciando meu rosto. A mistura de brutalidade e sutileza
me enlouquece. — Mas agora eu quero experimentar a sua bocetinha, que de
pequena não tem nada.
— Não vai nem fazer um carinho nela? — questiono, manhosa, entrando na
personagem que criei especificamente para esse momento.
Como resposta, ele desce a mão até encontrar a calcinha rendada que uso,
afastando-a e desferindo um tapa que me faz sobressaltar no colchão. Não
achando suficiente, Miguel prende meu clitóres inchado entre os dedos,
espremendo-os sem piedade. Meu corpo ondula enquanto tento tirar sua mão
dali, não obtendo sucesso, visto que o brutamonte possui muito mais força do
que eu.
— Esse é o máximo de carinho que você vai ganhar hoje, minha putinha
carente.
Em um único movimento, Miguel se desfaz da minha calcinha ao rasgá-la
contra a minha pele, ainda ardendo do tapa que recebi, e sedenta por outro mais
forte.
Sou jogada no colchão como se não passasse de uma boneca que está ali
apenas para satisfazer quem a comprou. Mesmo que esse seja um tipo de
pensamento errado para se apreciar, gosto da sensação de estar à mercê das
vontades de Miguel entre quatro paredes.
Como eu disse anteriormente, nunca fui correta. Então não é tão condenável
para mim ver prazer no erro.
— Você vai experimentar só o meu pau hoje, para ver que eu sou tudo isso e
mais um pouco. — Diz, me pondo deitada de lado e ficando atrás de mim.
De início, não entendo muito bem o que pretende. A ficha cai somente
quando Miguel enlaça meu pescoço com seu braço musculoso, apertando ele
com a mão livre, e usa o outro para deixar uma das minhas pernas dobradas,
facilitando que seu pau seja introduzido sem dificuldade pela minha entrada
lubrificada.
— Você quer que eu use camisinha? — a pergunta é feita sem conter a
postura agressiva que Miguel teve antes.
— Sim. — Respondo, o coração batendo forte dentro do peito. Ele começa a
se afastar, me deixando confusa. — Ei, o que vai fazer?
— Pegar a camisinha, ué.
— Eu não quero que use. Quero te sentir melhor.
— Você disse que queria que eu usasse…
— E você disse que não faria nada que eu quisesse… — Sorrio, trazendo o
corpo dele para perto de mim novamente e o braço ao redor do meu pescoço.
— Então você quer me sentir melhor, sua puta? — volta a encaixar o pau na
minha entrada, sem introduzí-lo, apenas roçando a área. Faço que sim,
balançando a cabeça e olhando bem nos seus olhos. — Então implora.
— Me come, por favor. — Sussurro, rente aos lábios dele. O aperto no meu
pescoço se intensifica no mesmo instante em Miguel segura uma das minhas
pernas e penetra seu pau de uma vez só em mim. — Isso, me come com força.
O som das nossas partes se chocando junto com os meus gemidos e a
respiração ofegante de Miguel dominam o ambiente. Ele me segura forte rente
ao seu corpo, pela perna e pescoço, como se eu fosse capaz, ou quisesse, fugir
desse momento e com isso, não pretendesse permitir.
Pensando agora, percebo que nunca havia experimentado essa posição antes.
Ela proporciona um contato pele a pele mais violento, atritando nossos corpos
drasticamente a cada estocada, atingindo um ponto muito sensível no fundo do
meu canal vaginal, que se estreita até não aguentar mais guardar tanto prazer
acumulando-se ali e explode, causando espasmos que dominam todo o meu ser
enquanto grito loucamente nos braços de Miguel.
— Você é tão escandalosa, minha putinha — diz, no pé do meu ouvido, sem
parar a penetração por um segundo sequer. — Amo isso.
— Me faz gritar mais forte. — Peço, sentindo o orgasmo se dissipar. De
algum jeito, ele consegue fazê-lo. Seu corpo se choca tão rapidamente contra o
meu que sinto suas bolas massacrarem a minha entrada a todo momento.
Chegamos a um ponto onde não existe nada ao nosso redor, apenas prazer e
luxúria. Não há espaço para o pudor quando essas coisas estão juntas de forma
extrema, como está acontecendo agora. Todos os nossos pensamentos, ações e
desejos estão presos a um único propósito: conhecer o limite dessa atração. Se é
que haverá um.
Quando entrei nesse quarto, pensei que haveria. Que ao experimentar Miguel,
eu poderia, enfim, saciar a minha vontade de tê-lo. Gozando outra vez no seu
pau enquanto ele se entrega ao ápice também, desconfio que esse será mais um
dos erros que cometi.
E que certos desejos estão fadados a não terem fim.
CINQUENTA TONS DE SAMUEL

O barulho padrão de notificação de mensagem me acorda brevemente. Elas


não param de chegar, uma atrás da outra. Abro os olhos. Sofro com a
luminosidade excessiva vinda da janela principal do cômodo, que abri na noite
passada e esqueci de fechar. Um dos meus braços apoia a cabeça de Cassandra,
enquanto o outro trabalha para alcançar o telefone na mesa de cabeceira sem
fazer movimentos bruscos, pretendendo não acordá-la.
Um sentimento de conforto me atinge ao sentir o calor que emana do corpo
dela. Quanto tempo faz que não durmo acompanhado de uma mulher?
Provavelmente muitos anos. Isso não é do meu feitio. A única que passou uma
noite inteira comigo foi…
Afasto o pensamento antes que a culpa me atinja.
O celular irrita ainda mais os meus olhos quando desbloqueio a tela e entro no
aplicativo de mensagens, constatando que é Samuel quem resolveu me acordar
para a realidade, literalmente.
Samuel: Espero verdadeiramente que você tenha dormido bem, Mica.
Samuel: Tenho uma novidade. Ela tem nome e sobrenome.
Samuel: Assim que chegar de viagem, venha ao meu encontro.
Samuel: Eu e Samantha vamos te esperar na Caverna Um.
Ah pronto!
Se Samantha vai comparecer, boa coisa não vai rolar.
Miguel: Que inferno, hein!
Miguel: Chego depois do almoço.
Largo o aparelho onde estava, me virando para admirar um pouco dos
detalhes de Cassie antes que ela acorde. Os cabelos estão espalhados pelo
travesseiro e meu braço. Passo os dedos pelos fios, recordando automaticamente
de tê-los puxado na noite passada. Foi extraordinário domá-la daquela forma.
Há semanas venho tendo pensamentos pervertidos sobre ela, e quando
finalmente pude realizá-los, não consegui me controlar, fui com muita sede ao
pote, não fiz nem metade do que pretendia, e provavelmente perdi a única
chance que teria para fazê-lo.
A coisa toda fluiu mais rápido do que eu imaginava. Ambas as partes estavam
sedentas demais para investir tempo nas preliminares. Nossos corpos estavam
prontos, ansiosos para receber um ao outro. Me deixou tão louco ver o desejo cru
nas orbes verdes dela.
Eu já fui cobiçado por muitas mulheres ao longo da vida, mas nenhuma delas
o fez como Cassandra. Nem mesmo Clarice me olhou com tanta lascívia. É
como se Cassie ansiasse por mim de uma forma mais carnal do que qualquer
outra já o fez. Ela é a única capaz de despertar o lado animal que vive
adormecido dentro de mim na maior parte do tempo.
E foi do caralho ter essa parte do meu ser conhecendo o instinto indomável
dela. Mesmo que tenha durado, o quê? Uns dez minutos? No máximo. Eu ficaria
envergonhado se fosse em outra situação. Mas dessa vez vou me dar um
desconto. Estava sentindo um tesão desumano e a boceta de Cassandra não
facilitou em nada as coisas para o meu pobre cacete. Ela se apertava tanto ao
redor dele, que se tivesse vida própria, meu pau teria ficado sufocado. Sem
contar que Cassie gemia desesperadamente a cada vez que eu metia forte dentro
dela. Isso foi um teste para a minha sanidade, quanto mais a diaba gritava, mais
forte eu queria meter nessa desgraçada.
Que porra a boceta dela tem, meu pai?
Porra ela só teve no final, né, quando desperdicei meu gozo todo dentro dela,
esquecendo completamente de jogar o líquido pelo seu corpo.
Que merda, Miguel!
— Que horas são? — a voz rouca dela me assusta. Pisco algumas vezes,
enxergando uma Cassandra recém acordada, com remela nos olhos e cabelos
embaraçados, mais claramente.
— Oito e sei lá o quê.
— Liga para alguma farmácia e pede uma pílula do dia seguinte. — Diz, se
levantando da cama para vestir a blusa. Demoro um pouco até processar o
motivo do pedido.
Seus espermatozóides estão fazendo festa no útero dela, otário! — Meu
subconsciente alerta.
— Merda. Eu esqueci totalmente de…
— Só compre a pílula, ok? — estranhando tamanha serenidade, confirmo,
balançando a cabeça e pego novamente o celular, em busca do número da
farmácia mais próxima. — Vou tomar um banho enquanto isso.
Ela desaparece banheiro adentro, me deixando confuso sobre seu humor e
sentindo uma pontinha de felicidade irracional.

É quase meio dia quando o avião aterrissa no Rio de Janeiro. Cassandra e eu


pegamos nossas pequenas malas e marchamos para fora do aeroporto em um
silêncio confortável. Ela parece tranquila. Tomou a pílula do dia seguinte antes
de sairmos do hotel, sem se demonstrar preocupada com o que fizemos ontem.
Internamente, torço para que tudo continue assim.
— Acho que a modelo está atrasada. — Diz, se referindo a Antônia.
— Não, o carro dela está estacionado bem ali. — Reconheço o Honda Fit cor
preta ao longe, no estacionamento lotado do aeroporto. O adesivo de um panda
com raiva colado na traseira é inconfundível. — Vamos até lá.
A mala do automóvel é destrancada quando Antônia nos vê pelo retrovisor.
Ponho nossas bagagens ali e me sento no banco do carona enquanto Cassie opta
pelo banco traseiro, cumprimentando Antônia com um “olá”seco e se mantendo
calada por todo o trajeto até a Barra da Tijuca.
— É aqui? — minha cunhada indaga, curiosa sobre o interior do edifício
abandonado que pedi que ela me deixasse.
— É sim. — Retiro o cinto, me dirigindo à Cassandra, quieta e com a cabeça
apoiada no vidro, provavelmente divagando. — Se importa de voltar sozinha
com Antônia para casa? Preciso resolver uma coisa com o Samu.
— Sem problemas. — Se limita a dizer. Recebo um sorriso desprovido de
dentes dela e um aceno da minha cunhada ao deixar o carro e seguir para o meu
destino.
A rua em questão é sem saída. Há alguns prédios sendo construídos ao longo
da viela, entretanto, por ser domingo, o lugar fica completamente deserto depois
que o carro de Antônia canta pneu para longe daqui.
O som de uma cadeira sendo arrastada me saúda ao entrar no edifício
abandonado. Enquanto subo as escadas, fico mais próximo de encontrar o
responsável por produzir o ruído. Meu lábios se curvam em um meio sorriso
com a imagem de Samuel lançando um de seus olhares mortais para o homem
nu, amarrado no chão.
Sádico do caralho.
— Samantha, cadê você? Eu vim aqui só pra te ver… — Cantarolo,
cumprimentando meu irmão com um aperto de mão. Ele ri da minha gracinha.
— Ela está te esperando para começar o show. — Responde, esbanjando
sarcasmo.
Samantha, nada mais é do que um chicote de couro trançado que meu irmão
caçula faz uso em situações como essa. Onde a persuasão tem que ser feita
através de um incentivo que leva qualquer pessoa ao limite, sem comprometer
sua capacidade de nos dar o que queremos.
— O bonitão aqui foi um dos que roubaram a nossa carga do Porto. —
Explica, brincando com o couro em suas mãos. — Foi inteligente para usar uma
van idêntica a nossa, mas burro na hora de parar em um posto de gasolina para
abastecer com uma tonelada de pó dentro. Como pode ser tão idiota? Explica
isso pra gente, Marcelinho.
O homem permanece encolhido em posição fetal no chão, com a cabeça
escondida entre os braços amarrados.
— Acho que ele está com vergonha. — Ironizo, me aproximando e o pegando
pela nuca para que nos encare.
— Não fique envergonhado. Nós temos a mesma coisa que você. Só que em
tamanhos maiores, é claro.
— Vamos, diga quem mandou você roubar o nosso pó e a gente acaba logo
com isso. — Faço Marcelo ficar de joelhos. Ele engole em seco, pondo os braços
sobre as coxas para esconder sua genitália.
— E sem o papinho de que não sabe — Samu adverte. — Ou Samantha vai
precisar refrescar a sua memória.
— Eric Motta.
Por alguns minutos, o rastro do que Marcelo disse ecoa em nossas cabeças.
Sei que meu irmão também processa a informação várias vezes, não preciso ler
mentes para descobrir. Até mesmo Rafael também o faria se estivesse aqui. Esse
sobrenome provoca um arrepio na coluna de todos nós da família Sovat. Mas
acompanhado desse primeiro nome soa ainda pior.
— E a história se repete. — É Samu quem se pronuncia primeiro.
— Por que, exatamente, Eric faria isso, além do interesse na mercadoria? —
Direciono a pergunta à Marcelo. — Qual o recado ele quer nos dar?
O homem fica em silêncio.
O estalo da primeira chicotada contra a pele morena dele soa alto no edifício
oco.
Marcelo fricciona tanto os dentes um no outro para conter o gemido que o
ranger se assemelha ao de um garfo sendo arrastado pela superfície de um prato.
— Diz, caralho! — Samuel ralha, andando em volta do corpo encolhido de
Marcelo.
— Isso eu não sei! — devolve, mirando os olhos no chicote como se estivesse
diante do diabo. — Pare de usar essa coisa em mim. Sou só um soldado dele,
cheguei há pouco tempo, não tenho muita informação para oferecer.
Me afasto dos dois, duvidando de que dessa vez os métodos do meu irmão
funcionem. Minha cabeça ameaça doer ao pensar no que pode surgir de agora
em diante.
— Engraçado, sua mulher é prima da esposa dele. Vocês estão sempre juntos
nos churrascos de domingo… — O chicote percorre desde os pés até o pescoço
de Marcelo. — Não venha com esse papinho pra cima de mim. Posso ser jovem,
mas sou graduado em sagacidade e doutorando em perspicácia. Duvido que Eric
não soltou alguma coisa sobre os planos dele. Merdinhas burros como ele
sempre gostam de se gabar para os fracassados que nem você.
— Falou o cara que gosta de amarrar outro homem pelado e usar um chicote
pra bater nele. Quem é você mesmo, garoto? Se fosse mais importante do que
eu, seu nome estaria na ponta da minha língua.
— Eu sou o Christian Grey carioca. — Samu responde, se divertindo com o
insulto de Marcelo. — E não seja por isso. Tenho certeza que depois de hoje,
meu nome e o de Samantha vão ficar bem marcados na sua memória.
Por que esse cara não podia ter ficado calado e poupado o rabo dele?
Mal sabe Marcelo que nas mãos de Samuel, esse chicote estalando na sua
pele pode ser mais insuportável do que um martelo quebrando seus ossos.
A SENTENÇA DE MIGUEL

O teto branco e perfeitamente limpo me encara há mais de uma hora. Com os


braços jogados no colchão, permaneço imóvel, apenas mantendo a frequência da
minha respiração e piscando quando necessário. Tento manter a mente livre de
pensamentos culposos, imaginando uma tela em branco, como gosto de fazer, e
impedindo que qualquer coisa que não seja essa cor invada a minha cabeça.
Branco. Branco. Branco.
Repito, quando flashes do dia anterior forçam entrada.
Em um rompante, ergo-me da cama e decido que é hora de ocupar a mente
com outra coisa mais interessante.
O quê?
Não faço ideia.
Não até passar pelo corredor e notar a porta do quarto de Miguel entreaberta.
Já são quase cinco da tarde e o bendito ainda não deu as caras em casa. Ao
chegar, deixei sua mala de qualquer jeito dentro do cômodo e esqueci de fechar a
porta completamente. Encaro a bagagem com os olhos semicerrados.
Desfazer a mala é uma ótima distração.
Assim que o pensamento se faz, estou jogando o objeto sobre a cama e
abrindo seu zíper, o cheiro da colônia masculina amadeirada que Miguel usa
invade minhas narinas. Guardado no pequeno espaço, há algumas peças de
roupas dobradas, as que ele não usou, e no canto, um saco com outras,
provavelmente as que vestiu. Retiro a sacola, deixando-a pela cama ainda
fechada e me concentro em separar os trajes para guardá-los corretamente em
seu guarda-roupa. Poucos minutos depois, há três pilhas de roupas separadas ao
lado da sacola e uma nécessaire fechada que retirei ao esvaziar a mala.
Instintivamente, abro o zíper, encontrando ítens como: barbeador, mini
shampoo e condicionador, um perfume, uma loção pós barba e por fim, um
hidratante. A bolsa também exala o cheiro característico de Miguel, que constato
ser resultado do uso desses produtos simultaneamente.
Não resistindo, acabo por desfazer o nó da sacola e retirar as roupas sujas
dali, cheirando peça por peça e sentindo que estão tão cheirosas quanto as
demais que não foram usadas. Uma das cuecas contém uma mancha na parte
interna da frente, provavelmente é a que ele usava quando fizemos sexo. Miguel
esbanjava uma quantidade considerável de líquido pré-semem quando revelou
seu membro para mim. O fluido deve ter transbordado e manchado ali antes que
fosse libertado do tecido.
— Por que está aí parada, cheirando a minha cueca?
Não consigo conter o sobressalto que a aparição repentina de Miguel provoca.
Ao abrir os olhos, percebo que estava mesmo estática e com a peça íntima
próxima ao rosto, me lembrando do momento exato em que o vi retirá-la na
noite passada.
— Só estou te fazendo o favor de guardar essas coisas — digo, contornando a
situação. — Não sabia quais eram as limpas e as sujas.
O sorrisinho de canto que Miguel expressa demonstra que não estou
enganando ninguém. Ignorando-o, prossigo com a arrumação, abrindo o guarda-
roupa e colocando as peças em seus devidos lugares.
O interior do armário é tão organizado quanto a mala. Todas as peças estão
dobradas meticulosamente e separadas por tipo de trajes.
E ele ainda disse que o irmão é metódico…
Acredito que, em parte, esse hábito de arrumação tenha sido por conta do
treinamento do Exército. Em outra, por causa de Suzana. Me lembro bem o
quanto ela pegava no pé dele e dos irmãos para serem homens limpos e
organizados. A mulher usava exatamente essas palavras.
— Obrigado, então. — Ele agradece, se deitando na cama.
— O que houve? — acabo perguntando, estranhando o estado aéreo em que
se encontra ao encarar o teto como eu fiz algumas horas atrás.
— Problemas. Parece que eles me perseguem.
— E você nem faz por merecer, né?
Ouço apenas o ruído baixo da risada sem humor que ele dá. Sigo abrindo e
fechando as gavetas até encontrar a de roupas íntimas, onde coloco as cuecas que
o grandalhão não usou. Prestes a fechá-la, noto alguns fios de cabelo por baixo
dos tecidos empilhados ali. Não acredito no que vejo quando os afasto e bato os
olhos no objeto escondido.
— O que a Jade está fazendo na sua gaveta de cuecas?
— Se escondendo de você. — Brinca. — A intenção era guardá-la em um
lugar onde você nunca encontraria. Mas eis aqui suas mãozinhas curiosas na
minha gaveta de cuecas.
— Ridículo — afundo a extremidade do colchão ao me sentar. — Por que
trouxe ela pra cá?
— Sei lá. Saudades de quando ela vivia nos seus braços, provavelmente.
Encaro o rosto da boneca, que agora possui um tom amarelado devido ao
tempo guardada. Também sinto falta dessa época. Daria tudo para nunca ter
saído dessa fase da minha vida.
— Se lembra de quando me conheceu? Eu estava no muro…
— Eu me lembro, Cassie.
— Você tinha me dito que Jade é o nome de uma pedra preciosa. Era
fissurado por essas coisas. Esse foi o motivo por trás do nome de Safira?
Pensativo, ele põe as mãos cruzadas na barriga, focando o olhar na boneca em
meu colo.
— Aham. Assim que coloquei os olhos nela, soube que estava diante da
minha maior preciosidade. Seu nome não poderia ser diferente.
— Sabe, Miguel, você é um cuzão em todos os aspectos da palavra, menos
quando o assunto é ser pai. — Nossas risadas preenchem o ambiente. Deito ao
seu lado, a boneca fica entre nós, determinando uma distância que Miguel
quebra ao afastar uma mecha de cabelo do meu pescoço e deslizar os dedos pela
região.
— Acho que não sou tão cuzão quando estou em uma cama, não acha? — seu
dedo pressiona um ponto perto da minha clavícula. O local está dolorido por
causa das mordidas que recebi.
— Meu pescoço que o diga. — Ironizo. Prendo a respiração ao sentir os
lábios dele serem pressionados contra o pedaço de pele. — Miguel…
— Eu queria ter feito mais — confessa, seguindo com a boca rumo a minha
orelha enquanto a mão acaricia meu seio, apenas sustentado pela blusa regata
que uso. — Qual o problema de usar sutiã, Cassandra?
— Acha ruim? — viro meu rosto até estar paralelo ao seu.
— Acho bom demais para foder a minha saúde mental.
— É sempre um prazer.
Nosso duelo de sorrisos afrontosos dura pouco. Logo Miguel me pega pelo
queixo e toma meus lábios em um beijo lento, torturante para a parte de mim que
conheceu seu lado indomável.
— Preciso de mais — ele corta o beijo, parecendo aflito de um jeito que
nunca vi antes. — Me dê mais, Cassie.
— Vou pensar — levanto da cama rapidamente, fugindo antes que o tesão fale
por mim.
— Porra, vai pensar? — me olha incrédulo, fazendo drama. — Isso porque
você gozou duas vezes, imagina se não tivesse gozado…
— Precisamos concordar que você não tem lá muitos pontos comigo. Um ou
dois orgasmos não fazem diferença para a sua sentença.
Revira os olhos.
— E qual foi a minha sentença, Meritíssima?
— Você foi considerado culpado pelo crime de desonestidade para com sua
ex melhor amiga.
— Eu tenho direito a fiança, Meritíssima? — seus lábios carnudos exibem um
biquinho que eu adoraria beijar.
— A fiança ainda está sendo discutida. Cabe ao Réu aguardar.
— Tem algo que o Réu possa fazer para ajudá-la a se decidir?
Me mantenho escorada no batente da porta, braços cruzados e olhar afiado
direcionado a Miguel.
— Não vejo o quê.
— Não seja cínica, Vossa Excelência, a senhora conhece bem as habilidades
do Réu…
O barulho da porta de casa se abrindo interrompe nosso joguinho. Fico em
alerta, não querendo que Safira crie esperanças na minha relação com seu pai.
Faço menção de deixar o quarto, mas o pedido de Miguel me faz parar no lugar.
— Espera. Quero te mostrar uma coisa. — O encaro com uma expressão
ameaçadora no rosto. — Não é nada sexual, fique tranquila.
Dou uma última olhada no corredor, constatando que dará tempo de ver o que
Miguel quer me mostrar antes que Safira volte. Pelo barulho de geladeira sendo
fechada e panelas esbarrando uma na outra, presumo que a menina esteja
preparando algo para comer.
— Vamos logo.
Acompanho ele até o closet, onde Miguel abre uma das portas espelhadas e
afasta os cabides com casacos, revelando um cofre. Este armário parece ser
usado apenas para guardar roupas sociais, que agora percebo que Miguel possui
em montes, apesar de não usar com frequência. Ele digita a senha, sem se
importar que eu veja.
2810.
28 de outubro, o aniversário de Clarice.
— Vem cá — chama, me querendo ao seu lado para que eu veja melhor as
duas pedras guardadas no cofre. Ele pega a primeira em mãos. O tom de verde é
inconfundível até mesmo para mim, que não entendo muito do assunto. —
Esmeralda — pega a outra. O azul escuro reluz nas mãos bronzeadas dele. —
Safira azul.
— São lindas. Você conseguiu, agora é dono de duas pedras preciosas.
— Estou negociando a compra da pedra de Rubi e esperando para comprar a
de Jade por um preço melhor. Ela costuma ser a mais cara. — Tranca o cofre
com as pedras lá dentro. — Vou mandar fazer um anel da Safira azul para minha
filha quando ela completar quinze anos.
— Acho que ela vai gostar.
Até eu gostaria de ganhar um anel desse. E olha que odeio usar anéis.
— Você vai estar aqui? — franzo as sobrancelhas. — Quando Safira tiver
quinze anos, acha que ainda vai querer estar aqui?
Essa é uma pergunta que me divide.
Estou acostumada a não ter um lugar fixo. O meu lar sempre foram pessoas, e
não lugares. Quando voltei pra casa, tinha em mente apenas dar um tempo, mas
descobrir sobre Safira mudou tudo.
Em contrapartida, sinto cada vez mais que pertenço à essa casa como jamais
pertenci a lugar nenhum. Algumas semanas foram o suficiente para me
acostumar com a rotina do pai solteiro e a sua pedra preciosa. Cada dia mais
encontro conforto na presença desses dois.
Pode ser que, em algum momento, eu tenha vontade de ir embora. Respirar
novos ares, fazer novas lembranças.
No entanto, Safira se tornou o motivo da minha resiliência, não posso garantir
que ainda terei razões para continuar viva se ficar muito tempo longe dela.
Ela é a minha paz em meio ao caos que se tornou a minha mente. Por isso,
reúno toda a minha força de vontade para dizer:
— Espero que sim.
A PAZ TEM SEUS ATRIBUTOS

Estou prestes a adentrar minha casa, após voltar de uma reunião com meus
irmãos, quando Safira tromba comigo ao sair.
— Pai! — chama, fechando a porta da nossa residência com o travesseiro e o
edredom em mãos. — Vou dormir na minha avó hoje.
— De novo? — balança a cabeça positivamente. — Poxa, você quase não tem
dormido comigo. Minha cama está com pulgas e eu não estou sabendo?
— Sua cama está ótima. Mas é a Jade quem tem que passar mais tempo lá. —
Minha boca está escancarada quando ela continua a dizer: — Hoje é um dia
perfeito para o senhor fazer dela seu travesseiro. E fazer o meu irmãozinho
também!
— Safira… — Meu tom é de censura. O sorriso travesso dela não diminui.
— Boa noite, pai — corre para a casa de sua avó e me deixa sozinho com a
vontade de ter Cassandra na minha cama.
Faz cinco dias desde que voltamos da viagem á Brasília. E faz cinco dias que
quero repetir o que fizemos lá. Já parei de pensar no quanto desejar Cassandra
faz de mim um homem hipócrita e sem escrúpulos, isso não diminui a vontade
que sinto de agarrá-la e fodê-la por todos os cômodos da minha casa todo santo
dia.
Então por que dar ouvidos a esses pensamentos? Quando a lembrança de
Cassie gemendo no meu ouvido é muito mais satisfatória?
Completamente desnecessário.
Um barulho de água sendo jorrada brutalmente me deixa em alerta quando
chego à cozinha.
Não sei o que me choca mais: a torneira quebrada jorrando um aguaceiro, ou
uma mulher diabolicamente sexy deitada na bancada usando seu pijama
indecente que tanto me atormenta.
— Cassandra! — ela vira a cabeça na minha direção, indiferente ao tsunami
que se apossa da minha cozinha a cada segundo. — A torneira está vazando!
Não vai fazer nada?
— Se eu soubesse onde fica o registro, teria fechado. — Diz, prontamente,
sem sair do lugar para me ajudar enquanto tento conter o vazamento,
pressionando a rosca.
— E não pensou em me ligar? — balança os ombros. — Ia deixar a minha
casa alagar, então?
— Acabou de acontecer, Miguel. Eu te vi chegando pela janela e resolvi
esperar.
Inspiro tão fundo que o ruído dos meus pulmões inflando sobressai o da
pressão da água querendo escapar da torneira pelo vazamento.
— O registro fica na garagem, do lado de um armário com ferramentas. Vai lá
e fecha ele até o final. — Peço.
— Sim, senhor, Major Sovat. — Ela sai correndo pela porta depois de bater
continência para mim.
Como eu posso sentir tesão na mesma medida em que me sinto irritado por
Cassandra?
Ou melhor, como ela consegue me irritar e me fazer desejá-la com a mesma
intensidade?
Um dia eu descubro.
— Prontinho — comemora, de volta à cozinha após fazer o que lhe pedi. Tiro
a mão do local onde estava pressionando e constato que o registro realmente foi
fechado.
— Agora vamos limpar esse aguaceiro. — O sorriso que brota no rosto dela
me deixa confuso. — O que foi?
— Nada. Vou pegar alguns panos de chão, baldes e dois rodos. — Se retira do
cômodo, rebolando a bunda gostosa coberta pelo tecido fino do short de pijama.
Tiro meus tênis, que a essa altura estão encharcados. Me liberto também da
camisa, pois o calor do Rio de Janeiro não está para brincadeira hoje, mesmo à
noite. Ao retornar, o olhar de Cassandra não deixa meu corpo em paz. A diaba
aprecia cada milímetro de pele exposta como se estivesse em um museu e eu
fosse a escultura mais interessante que já colocou os olhos.
— Não me olhe assim se não quiser foder. — Digo, rispidamente, odiando a
distância física que ela tem colocado entre nós dois desde a viagem.
— Não tire a camisa se não quiser que eu te olhe assim. — Rebate. Com o
pano em mãos, ela fica de quatro e começa a secar o chão, torcendo o tecido no
balde quando fica ensopado.
— Estou na minha casa, posso andar pelado, que você não vai ter o direito de
me olhar dessa forma. — Pego outro pano de chão seco e com o pé, uso o tecido
para absorver um pouco da água acumulada rente ao balcão. Esbarro no corpo de
Cassandra quando vou espremer o pano no balde. As orbes verdes dela me
observam com lascívia. Desse jeito, com os braços e joelhos no chão e um olhar
fatal, ela se assemelha à uma felina, e eu fico estático, parecendo uma presa fácil
para essa mulher diabólica fazer o que quiser comigo.
— Ajoelha — a ordem vem acompanhada de um tom severo que me excita e
me surpreende. Não sei exatamente o que estou querendo ao obedecê-la e cair de
joelhos à sua frente. Imponente, ela se levanta e chega mais perto, alisando meu
cabelo como a dona de um cachorro dócil faria. — Que obediente esse meu
cachorrinho.
Umedeço os lábios ao vê-la descer seu short e calcinha à centímetros do meu
rosto, possibilitando que eu sinta o cheiro do sabonete íntimo invadir as narinas.
O aroma floral não combina em nada com o caos incrível que ela se encontra.
— Tira a blusa também — suplico, ansioso para ter a visão dos seus seios de
baixo para cima. Cassandra joga o tecido em algum lugar que eu não reparo pois
seu corpo nu é magnético para os meus olhos. — Você é tão gostosa.
— E o quê mais? — coloca as pernas nos meus ombros, amparo seu peso
com as minhas mãos segurando firme a bunda dela.
— E diabólica — ela se esfrega contra o meu rosto, usando meu nariz para
estimular seu clitóris enquanto eu introduzo a língua pela sua vagina melada.
— E mais o quê? — rebola mais rápido, puxando meu cabelo, os gemidos
vão se intensificando conforme fodo sua boceta com a boca. — Me diga o que
eu sou, Miguel.
— É uma puta gostosa do caralho que acaba com o meu juízo. — Minhas
mãos pressionam a carne de Cassandra sem piedade, o quadril dela se mexe de
encontro ao meu rosto, lambuzado dos seus fluidos. Os gemidos agora saem
desesperadamente dos lábios entreabertos dela.
— Isso, me fode gostoso com a sua boca, cachorrinho. — Pede, os seios
pulando toda vez que minha língua lhe penetra em uma consistência dura para
satisfazê-la.
Cassandra é uma tentação até mesmo quando posso tê-la. Parece que para o
tamanho do meu desejo, não importa o quanto eu a tenha, nunca será suficiente,
sempre vou querer mais. Como uma maldição, se eu quero seu corpo para mim,
não paro de cobiçá-la até conseguir, e depois que consigo, eu quero novamente,
só que com duas vezes mais intensidade.
Isso não é de Deus! Tem que ser obra do diabo. O Todo Poderoso não
brincaria assim comigo. Parece que quem a fez, usou um conjunto de artimanhas
irresistíveis para mim.
Se entregando a um orgasmo avassalador que faz suas pernas tremerem
violentamente contra os meus ombros, ela é a personificação da união entre o
céu e o inferno. Uma beleza angelical somada a um gênio diabólico.
Será que Deus e o Diabo se juntaram para me castigar?
Provavelmente.
Errados eles não estão. Tenho contas pra acertar com os dois.
Mas qual é o peso de mais um pecado na minha lista já imensa?
Quase nulo.
Sendo assim… Não me acanho ao erguer Cassandra e colocá-la em cima do
balcão. Ele tem a altura perfeita para que eu consiga meter nela estando em pé
enquanto seu corpo está posicionado de lado, as pernas unidas e a bunda toda
exposta para mim.
Cassie ainda desfruta dos efeitos do orgasmo quando retiro meu pau da calça
e pincelo ele sobre sua intimidade. Eu amo vê-la derretida assim. A diaba
costuma ser imponente na maior parte do tempo, mas é só gozar que perde essa
pose e se torna cativa, gostando de estar à minha mercê, como agora.
Prendo seus pulsos entre as suas próprias coxas, segurando suas mãos para
que esteja completamente imobilizada. Introduzo meu membro lentamente por
seu caminho, mais apertado devido à fricção entre as pernas dela.
— Está gostando, minha putinha? — a resposta vem em forma de um gemido
misturado com murmúrio. Afasto os cachos loiros do rosto para que ela possa
me ver melhor. — Vamos, geme gostoso pra mim.
— Isso é torturante — reclama, se referindo às minhas estocadas lentas. —
Mete direito, Miguel. — Choraminga.
Seu jeito irreverente é uma das coisas que mais amo nela. Sempre foi assim.
Mas agora é como se tudo em Cassandra estivesse sendo evidenciado com um
holofote para me deixar sem a opção de não reparar.
— Assim está bom? — acelero o ritmo, minhas bolas batem bruscamente
contra a bunda dela. Ela revira os olhos de prazer ao sentir um tapa estalar no
seu rosto. — Você gosta de ser maltratada, não é? Eu também gosto de te
maltratar.
Invisto cada vez mais rápido contra a boceta dela, sentindo seu interior se
apertar ao redor do meu pau, inchado e louco para liberar uma quantidade de
porra absurda, equivalente às inúmeras vezes em que me imaginei gozando nela.
Minhas mãos apertam seus pulsos e cintura para manter a sustentação das
minhas pernas, que tremem a cada vez que arremato mais fundo no interior de
Cassandra.
— Vamos, goza de novo pra mim — Cassie estremece com o meu pedido. —
Quero sentir sua boceta me apertando uma última vez.
Acho que uma das coisas que torna viciante transar com Cassandra é poder
libertar o animal enjaulado dentro de mim. Ela odeia limites, e no sexo isso não
é diferente, sei que há apenas pouquíssimas coisas que a diaba não aceitaria fazer
entre quatro paredes. Saber que tenho tanta liberdade assim me excita em um
nível que jamais experimentei sentir.
Estou acostumado a pagar para ter prazer. As putas estão acostumadas a fazer
de tudo para proporcionar isso aos seus clientes. Nós entramos lá sabendo que
tudo é possível se tivermos condições de pagar.
Totalmente diferente de ser surpreendido com uma mulher que se permite ir
além do comum para desfrutar da luxúria sem pudor ou julgamento. Uma mulher
que sabe o seu valor e não permite que as coisas que gosta de fazer no sexo o
diminuam apenas por ser "imoral" perante ao papel dela na sociedade.
Cassandra é esse tipo de mulher.
Gozando junto comigo, ela grita, se contorce, xinga, pede mais. E não perde
nenhum pouco do seu valor aos meus olhos. Muito pelo contrário, depois de me
arrumar e limpar o gozo que despejei no seu corpo, permaneço alguns minutos
admirando-a se recompor, fascinado pela loira diabólica.
Ainda deitada sobre o mármore gelado, Cassie parece desorientada após a
nossa transa intensa. Sem consultá-la, pego seu corpo nu nos braços e a levo
comigo para a minha cama, onde ela se acomoda normalmente e dorme abraçada
comigo como se essa fosse a coisa mais natural do mundo.

Hmm… Que carinho gostoso.


Os dedos fazem uma massagem relaxante na minha barba. Se eu estivesse de
olhos abertos, reviraria eles com tamanha satisfação.
Estou flutuando entre o estado de sono e o de consciência enquanto sou
mimado pela mão delicada.
Tão delicada…
Quem tem uma mão leve assim?
Ou melhor, quem está ao meu lado me fazendo carinho?
Um entreabrir de olhos é o suficiente para eu perceber a cabeleira loira
esparramada pelo travesseiro. Tão rápido quanto uma flecha voando em direção
ao seu alvo, as recordações invadem a minha mente e justificam o que Cassandra
faz aqui, dividindo a cama comigo.
Eu a trouxe depois da nossa noite tórrida. E inesperadamente ela não se opôs.
O motivo da sua carícia que realmente é a incógnita neste momento.
— O inferno congelou e você ressuscitou com uma mão leve ou é alucinação
minha? — pergunto, sem abrir os olhos, querendo desfrutar um pouco mais
disso.
— Não gostou? — cessa o toque, afastando um pouco seu corpo do meu.
— Gostei muito. Continua.
Receosa, Cassie volta a me acariciar. Necessitando postergar esse clima entre
nós, puxo-a para mim novamente e roço os meus dedos pelos pelinhos do braço
dela, que ficam arrepiados com o contato.
— Está vendo como é bom ficar em paz? Você podia ser assim todos os dias.
— Ela ri.
— É. La paix a ses attributs.[1]
Meus olhos a encaram, surpresos ao vê-la falando Francês pela primeira vez.
— Onde aprendeu a falar Francês?
— Na África. Fiquei um ano em uma Missão de Paz na República Centro-
Africana. Lá eles só falam Sango, a língua nativa, ou Francês. A segunda opção
foi mais fácil de aprender.
Eu já havia cogitado a possibilidade de Cassandra ter saído do país através do
seu trabalho no Exército, mas nunca cheguei a, de fato, procurar saber. Ter
conhecimento de onde ela estava só iria me deixar mais angustiado naquela
época.
— Por que não quis me contar sobre isso quando perguntei pela primeira vez?
— Porque eu não quis.
— Simples assim?
— Simples assim. — Puxa o cobertor para si. — Agora vai buscar café para
mim, anda.
— O anjo costuma dizer que a Antônia é abusada — puxo a coberta de volta,
trazendo seu rosto para bem próximo de mim. — Acho que ele precisa passar
um tempinho com você.
— Assim corre um sério risco dele largar a modelo. — Sorri. — Ela é
boazinha demais se comparada a mim. Os homens gostam mesmo é das
malvadas.
Não sei os outros, mas eu descobri que gosto mesmo.
— Isso não se aplica ao meu irmão, querida diaba. Ele preserva a harmonia
em uma relação — mordo o nariz dela. — Você sabe o que é harmonia?
— Se você trouxer o café para mim vou ser o próprio significado dessa
palavra o dia inteiro. — Por mais que esteja rindo, há sinceridade no que diz.
Na dúvida, visto minha calça de qualquer jeito e desço as escadas em direção
à cozinha, querendo ver o quanto Cassandra está disposta a cumprir o que
propôs.
PERFEITA HARMONIA

A camiseta de malha que peguei no guarda-roupa de Miguel se acomoda


confortável em meu corpo desnudo de peças íntimas. Sua demora para trazer o
café me fez ir atrás de alguma vestimenta para não descer à sua procura estando
nua.
Quase chegando à cozinha, ouço uma voz familiar reclamar:
— Sai, garoto! — me aproximo da porta, conseguindo observar Miguel
abraçando a figura pequena e franzina vestindo um avental rosa. — Você teve
sorte que eu encontrei esse pijama minúsculo jogado aqui. Já pensou se Safira
chega e dá de cara com isso?
— Ainda bem que você voltou das férias na hora certa. — Ele solta a mulher,
que agora percebo ser ruiva, e beija o topo da sua cabeça.
— É, a tempo de te ver fazendo a própria casa de abatedouro. Já estou me
preparando psicologicamente para ver a calamidade que deve estar aquele seu
quarto. Aliás, já mandou a sua puta ralar peito de lá?
— Ela está me esperando para o segundo round.
A senhora olha para Miguel com uma expressão assassina no rosto.
— Segundo round é o caralho — diz, entredentes, enquanto Miguel coa o
café. — Pode enfiar o seu palito de fósforo no rabo dela o quanto quiser, mas
longe daqui. Eu tenho muita coisa para fazer hoje nesta casa.
— Então Yoyo… — o tom debochado dele a faz semicerrar os olhos. —
Acontece que, ela mora aqui comigo.
— O que é isso, garoto? Eu fico um mês fora e você arranja mais alguém para
encher o meu saco, não basta aquela modelo manhosa que seu irmão arranjou?
— resmunga, provavelmente se referindo à Antônia.
— Eu não arranjei nada, ela que arrombou a minha porta e quis ficar! — se
defende, bebericando um gole do líquido escuro. “Yoyo” continua a varrer o
chão, balançando a cabeça em negação. — É a irmã de Clarice, Cassandra. A
loirinha encapetada que se juntava comigo e Rafael para quebrar as plantas da
minha mãe, lembra?
— Desgraçados. Sobrava pra mim jogar aquelas porras todas fora e limpar a
sujeira que vocês faziam.
Uma risadinha me escapa. Nós fazíamos mesmo isso, sem piedade nenhuma
de Suzana, que continuava a cultivar plantas e castigar seus filhos por sempre
maltratá-las. Eu também não saía impune, a senhora Sovat enchia os ouvidos do
meu pai sempre que encontrava suas plantinhas dilaceradas e espalhadas pela
varanda. Foi assim que iniciou o desgosto dela por mim.
— Não sei o que é mais decadente: você comendo a sua cunhada, ou ela
dando para o pai da sobrinha. — Finge decepção. A lembrança da mulher de
cabelo laranja e pele pálida, anos mais jovem, me faz ter um estalo de
consciência.
Ela é ninguém menos que Yolanda, a faxineira que limpava a casa dos Sovat
toda sexta-feira quando eram meus vizinhos.
— É complicado, Yo. — Miguel explica, se escorando no balcão onde
ontem me pôs em cima e fodeu sem dó. O meio das minhas pernas ainda arde,
resultado da fricção bruta entre nossas partes.
— Imagino, deve ter sido bem complicado encontrar o caminho para dentro
da boceta dela.
Ele bufa.
— É sério, Yolanda. Eu tentei evitar, mas parece que ela é um imã e eu sou
limalha de ferro, entende? É inevitável, quando vejo, estamos nos agarrando… E
o resto você viu no que dá.
— É, eu percebi. Não sei de mais nada. Só que essa história daria um bom
Casos de Família. — Ri da conclusão que chegou. — Vou limpar a casa do
Samu enquanto você resolve as suas coisas.
Com uma pá e vassoura em mãos, Yolanda não se assusta ao passar por mim
no corredor, seguindo pelo caminho contrário ao meu depois de me medir dos
pés à cabeça e oferecer um sorriso sem dentes que esbanja deboche.
— Imã e limalha de ferro, é? — indago, roubando a xícara de café de Miguel
e me recostando ao seu lado. Ele não me olha, parece um pouco envergonhado
pelo que disse.
— Yolanda estava limpando aqui, tive que esperar para coar o café, por isso
demorei. — Desconversa, fitando o chão. — A proposta de harmonia ainda está
de pé?
Fico em silêncio por alguns segundos, fazendo com que ele sinta a
necessidade de me olhar para entender o que se passa. Miguel parece um
cachorrinho vira-lata implorando por carinho enquanto espera uma resposta.
Sádica como sou, não digo nada até terminar de beber todo o café da xícara,
saboreando sem pressa o gosto forte e amargo do líquido. Ele somente volta a
respirar normalmente quando digo:
— Está.

Ao som de Quem de Nós Dois, da Ana Carolina, eu e Miguel partilhamos o
espaço da cozinha em perfeita harmonia, como prometi. Enquanto preparo a
salada, sinto o olhar dele em mim vez ou outra. Quando o encaro, ele sorri feito
um garoto bobo. E eu? Volto a prestar atenção no que estou fazendo,
compartilhando da mesma felicidade e sentindo meu coração se derretendo por
Miguel cada vez mais, mas ainda em dúvida se é seguro transparecer isso.

Sinto dizer que amo mesmo
Tá ruim prá disfarçar
Entre nós dois
Não cabe mais nenhum segredo
Além do que já combinamos

Como se fossem dois imãs, nossos olhares são atraídos um para o outro.
Posso estar errada, entretanto, acho que ele está tão afetado pela letra da música
quanto eu. Paro o que estava fazendo, me concentrando apenas em ouvir a voz
doce de Ana Carolina e vislumbrar algo mais profundo nos olhos azuis gelo de
Miguel.

No vão das coisas que a gente disse
Não cabe mais sermos somente amigos
E quando eu falo que eu já nem quero
A frase fica pelo avesso
Meio na contra-mão
E quando finjo que esqueço
Eu não esqueci nada

Paixão.
Posso jurar que vejo isso transbordando nos olhos de Miguel, na forma como
larga a faca que usava para cortar os legumes e se aproxima de mim, tirando uma
mecha do meu cabelo do rosto e tomando ele nas mãos. Estou tão hipnotizada
com o gesto que demoro para entreabrir os lábios e permitir a entrada da sua
língua. As mãos dele descem para a minha cintura e as minhas seguram sua
nuca, em um pedido silencioso para que Miguel continue até não poder mais
respirar.
Nossas línguas trocam carícias como se fossem velhas conhecidas. Os toques
que ele distribui pelo meu corpo são delicados, sem a luxúria exacerbada que
usou para fazê-lo nas outras vezes que me apalpou. Fico na ponta dos pés para
intensificar o beijo, querendo prolongar esse momento para sempre. Ele agarra
meu cabelo com uma das mãos, tentando me deter, eu diminuo a intensidade das
investidas da minha língua.

E cada vez que eu fujo, eu me aproximo mais
E te perder de vista assim é ruim demais
E é por isso que atravesso o teu futuro
E faço das lembranças um lugar seguro

O som de lábios se chocando e línguas se encostando é quase tão delicioso
quanto o beijo em si. Quase. Porque, apesar de gostar do fogo e da selvageria,
percebo que não há nada melhor que o conforto de um beijo apaixonado quando
se é alguém tão quebrado e amargurado como eu.
Uma pausa é feita para que ele possa inspirar um pouco de ar. Não tenho
coragem de encarar as orbes azuladas neste instante, permaneço com o rosto
apoiado no seu peito enquanto Miguel respira.

Não é que eu queira reviver nenhum passado
Nem revirar um sentimento revirado
Mas toda vez que eu procuro uma saída
Acabo entrando sem querer na tua vida

Eu conheço a letra da música há um bom tempo, minha mãe costumava
gostar muito dessa cantora, na nossa casa praticamente só tocava ela. Mas fico
surpresa com o quanto os dizeres dessa canção parecem ter sido escritos por
mim. Com o quanto essa última estrofe resume perfeitamente os meus
sentimentos em relação a Miguel.
Percebendo a minha confusão, ele segura meu queixo, fazendo com que eu
veja suas feições tranquilas e me pergunte como foi que ele partiu de um viúvo
irredutivelmente apaixonado por Clarice para o homem fascinado à minha
frente.
— Você ainda me ama? — a pergunta é feita com cautela.
— Nunca deixei de amar. — A confissão sai naturalmente, dado a intensidade
do momento.
— E você ainda me odeia?
— Sinto que sempre vou odiar as escolhas que fez — sussurro,
envergonhada. É mais fácil estar nua diante dele do que expor meus sentimentos
assim. — E você, me odeia pelas coisas que eu fiz e disse?
Uma risada antecede a sua resposta.
— À essa altura do campeonato, eu já sou blindado contra as coisas que você
faz quando está magoada. — Quem ri agora sou eu. — Mas se puder não fazer,
eu agradeço imensamente.
— Vou pensar no seu caso. — Puxo ele pela nuca e rapidamente voltamos ao
ritmo lento e delicado do beijo que tirou o nosso fôlego.
— WEEEEE ARE CHAAAMPIONS, MY FRIEEEEEENDY — Safira
cantarola alto, me fazendo largar seu pai e dar um sobressalto. — Foi mal pelo
susto. Mas eu não podia deixar de comemorar.
Eu e Miguel não dizemos nada, ficamos estáticos, ambos sem saber como
reagir à Safira nos pegando no flagra.
— Safira, nós… — O pai da menina tenta dizer, sendo interrompido pela
euforia dela.
— Estão namorando! — exclama, com um sorriso de orelha à orelha. — Eu
estou feliz por isso, não se preocupe, pai. Estou tão feliz que vou até assistir
aquele Reality Show de casamento às cegas com vocês.
— Vai? — Miguel questiona, contrariado.
— Vou sim. — Ela se afasta da cozinha, indo em direção à escada. — Vamos
almoçar e assistir juntos na sala depois que eu tomar banho.
— Que negócio é esse de casamento às cegas? — pergunto, falando baixinho
quando Safira some escada acima.
— Ah, é um reality bem legal. — Volta a cozinhar, fazendo mistério quanto a
isso.
Em dúvida sobre o rumo das coisas daqui em diante, retorno a bancada e
termino de preparar a salada um pouco antes de Miguel finalizar o Yakissoba
caseiro. O cheiro é divino. Ele coloca a travessa na mesa, arrumada com pratos,
copos e talheres, para aguardar minha sobrinha.
— Você está de acordo com isso? — Miguel quebra o silêncio.
— Ahmm… Sobre o quê?
— Sobre namorar comigo. — Quase torço o pescoço ao virar bruscamente o
rosto na sua direção. — Sei que a nossa situação é complicada, que há muitas
coisas mal resolvidas e um passado cheio de culpa e arrependimentos, mas nós
não podemos continuar assim agora que minha filha sabe que estamos…
ficando. Que tipo de exemplo de homem eu serei para ela se não assumir o que
estamos fazendo? Vou estar dizendo que tudo bem um homem morar com uma
mulher, ter relações com ela, mas não assumi-la. E não está tudo bem isso. Não
quero isso para Safira, e muito menos… — Dá uma pausa, fugindo do meu olhar
imóvel, absorvendo cada palavra do seu discurso. — Para você. Errei muito
contigo no passado, não quero errar de novo.
Ao fim do discurso, sinto que avançamos muitos degraus desde que voltamos
da viagem. Não me recordo mais de quando éramos lados opostos de uma guerra
sem propósito. De quando eu repelia ele com todas as minhas forças. Parece que
isso aconteceu em uma realidade paralela e na verdade, o que estamos vivendo
agora é efetivamente o nosso destino.
Não há mais como retroceder. Não agora que Safira está tão contente e
esperançosa. Não quando eu estou me sentindo bem como não sentia há muito
tempo. Os pesadelos se tornaram esporádicos, a ansiedade diminuiu. Esses
benefícios me deixam inclinada a arriscar.
— Tudo bem. Estamos namorando então. — Respondo, secamente, não
querendo transparecer a minha euforia e receio com tudo isso.
Mas, de alguma forma, Miguel sabe exatamente como estou me sentindo. Ele
pega a minha mão e acaricia a palma, não deixando de fazê-lo nem mesmo
quando Safira se junta a nós na mesa. O carinho cessa apenas durante a refeição.
Ao término dela, seus dedos voltam a me massagear, enquanto rimos e
conversamos entre si, como uma família feliz depois de ter uma refeição
agradável.
Com a cozinha limpa e tudo nos conformes, sentamos os três no sofá e Safira
dá play no Reality Show que mencionou anteriormente.
Casamento às Cegas, basicamente, é um experimento onde várias pessoas
têm a oportunidade de se conhecerem sem fazer a menor ideia da aparência que
a outra pessoa tem. Tudo acontece através de uma sala fechada onde há uma
parede no centro, dividindo o lugar em dois cômodos e possibilitando que o
único elemento que componha a conversa seja a voz dos participantes. São dois
por sala. Conforme os dias vão seguindo, eles decidem com quem querem passar
mais tempo conversando. A conexão é gerada a partir daí.
É interessante, não nego.
Mas pedir alguém em casamento sem saber nada sobre sua aparência é uma
loucura!
E pelo que Miguel me disse, é isso que vai acontecer em alguns episódios
adiante. Aparentemente, ele já assistiu ao reality e não se cansa de vê-lo
novamente.
— Eu nunca vou me conformar que o Keny e a Kelly não se casaram. Olha só
para eles, tinham tudo para ficarem juntos!
Eu e Safira nos entreolhamos. Nossas risadinhas passam despercebidas por
seu pai, deitado com a cabeça no meu colo e recebendo carinho na barba como
tanto gosta.
— Às vezes, não é de harmonia que um casal precisa para acabar ficando
junto — digo, chamando sua atenção. O sorriso que se abre em seu rosto me
surpreende.
— É, às vezes precisa de caos para acontecer.
SEGREDO CAMUFLADO


Três semanas depois…
O fim das férias tinha tudo para me deixar estressado. Entretanto, devido às
últimas semanas excelentes que tive, não há nenhuma sombra de irritação
quando visto minha farda, antes mesmo do dia amanhecer completamente, e me
preparo para mais um dia de serviço no Quartel de Deodoro, Vila Militar. Nem
mesmo me recordar das horas que gasto somente no caminho daqui para lá é
capaz de abalar o meu humor.
Não consigo lembrar se um dia já estive tão de bem com a vida como agora.
Tenho quase certeza que não. Esses últimos tempos estão compensando mais de
uma década de angústia, só sei disso.
Assumir uma relação com Cassandra não estava nos meus planos. Assim
como gostar tanto de tê-la ao meu lado. Acontece que a diaba pode ser muito
encantadora e companheira quando quer. Desde que começamos, oficialmente, a
namorar, nossa convivência mudou drasticamente.
Pela manhã, saio para trabalhar bem cedo, mas não antes de passar em seu
quarto e lhe dar um beijo. Ela tem se dedicado mais à academia e ocupado o meu
lugar na cozinha, mandando bem na tarefa de fazer todas as nossas refeições.
Cassie também leva e busca Safira na escola todos os dias. As duas estão cada
vez mais próximas, principalmente por conta da luta. Minha filha está muito
entusiasmada em aprender a lutar com a tia.
Cansado, eu chego no fim da tarde, encontrando a casa com um clima vivido
que me enche de felicidade. Fez uma total diferença na minha vida ter os braços
de Cassandra para me receber, as suas carícias que me fazem pegar no sono.
Apenas o que falta para tudo ficar ainda melhor é acordar com seu corpo ao meu
lado na cama.
Vez ou outra, depois de uma noite regada a muito sexo selvagem e beijos
apaixonados, ela pega no sono por aqui. Mas na maior parte das vezes Cassie
opta por dormir na sua cama, alegando que não quer atrapalhar o meu sono com
os seus pesadelos.
Gentil demais da sua parte, no entanto, eu prefiro ir trabalhar sem dormir do
que saber que ela está presa nesse tormento e eu não estive lá para ajudar. Eu vi
como eles a deixam perturbada, no quanto esses episódios lhe desestabilizam.
Eu preciso tê-la comigo.
Contudo, parei de insistir. Levanto algumas vezes durante a madrugada e dou
uma espiada no seu quarto, em alerta caso algo esteja errado. Cassie não teve
nenhum pesadelo nos últimos quinze dias, então estou acatando o que propôs e
aguardando a hora certa para voltar a abordar o assunto.
Afinal, Cassandra ainda é uma bomba relógio, só está mais controlada.
Preciso pensar bem no que farei, para não desencadear um conflito que poderia
ser evitado.
— Você fica tão incrivelmente mais gostoso nessa farda — o elogio vem
acompanhado de uma voz aveludada e um sorriso de canto que consigo ver
através do espelho à minha frente.
— Tenho certeza de que você também fica deliciosa com a sua — digo.
As mãos dela enlaçam a minha cintura e os olhos percorrem meu corpo de
cima abaixo, desde os coturnos perfeitamente engraxados até o meu nome
gravado na borda do bolso da gandola camuflada em um tom vivo de verde
oliva.
— Major Sovat — repete o que está escrito, fascinada com como soa, se dito
em voz alta. E eu gostando de como fica ainda melhor quando sai dos seus
lábios.
— Quando vai vestí-lá para eu ver, preciosa? — revira os olhos ao me ouvir
chamá-la dessa forma. Cassie não se conforma, acha que eu chamo qualquer
uma assim. Bom, eu realmente chamava. Mas ela deveria acreditar quando digo
que deu um novo significado a palavra para mim.
— Em breve. — Se limita a dizer, me soltando e se sentando na cama com
uma expressão não muito boa.
— O que houve? — entro em alerta. A preocupação é visível na minha
mudança de postura.
— Estou com um mau-estar — põe a mão sobre a testa. — Acordei
indisposta.
— Quer ir ao médico? Dá tempo de eu te levar e te deixar em casa.
— Não. Vou comer alguma coisa e esperar passar.
Faço carinho no seu rosto, ainda inchado por ter acordado há pouco tempo,
mas não menos gracioso do que sempre. Ela está realmente abatida. Os olhos
levemente fundos e a pele pálida, perdendo o tom caramelo que tanto combina
com seus cabelos dourados.
— Tem certeza? Talvez seja melhor você fazer alguns exames. Pode ser
anemia ou algo assim.
— Se continuar, eu vou ao médico, tá bom? Agora termine de se arrumar e vá
trabalhar, Major.
Tenta um sorriso, mas não me convence muito.
— De quanto tempo é a sua licença, Cassie? — se afasta do meu toque, quase
no mesmo instante em que termino de perguntar.
— Três meses. — Levanta da cama, cambaleando ao fazê-lo. Amparo
Cassandra, impedindo que perca o equilíbrio. — Obrigada. Vou tomar um banho
para ver se me ajuda a reagir.
Desconfiado, permito que saia do cômodo sem questioná-la sobre mais nada.
Continuo me arrumando, sentindo uma dúvida que me acompanha durante todo
o trajeto até o trabalho.

Já são quase quatro horas da tarde quando retorno ao quartel depois de uma
operação.
Devolvo o fuzil que carreguei comigo ao armário da sala de armamentos e
sigo para o banheiro, que fica do outro lado do prédio onde me encontro. Faço o
caminho a passos largos, querendo chegar em casa o mais rápido possível.
— Major — paro no meio do corredor, reconhecendo a voz, mas não
conseguindo conectar um rosto à ela. — Posso falar com o senhor?
Ao virar, avalio o rapaz de pele negra, cabelo cortado rente a cabeça e
algumas tatuagens transbordando para fora do tecido da farda, sem me lembrar
como o reconheço de algum lugar.
— Diga, Soldado Toledo. — Acerto o nome graças à identificação escrita no
bolso da gandola, onde consta apenas a sua patente e o último sobrenome,
contendo também o seu tipo sanguíneo.
O garoto não deve ter mais de vinte anos. No entanto, esbanja uma postura de
homem feito e um olhar perspicaz, que varre o corredor longo em que estamos,
desconfiado, e pergunta:
— Pode vir comigo, senhor? Prefiro não conversar aqui. — Olha para o teto,
sem dar na cara ao que se refere, mas eu entendo exatamente o que quer dizer.
Ele quer ficar longe das câmeras.
— Me acompanhe — Marcho para fora dali, entrando à esquerda e pegando
um atalho para a parte externa do quartel, onde alguns soldados treinam tiro a
muitos metros distantes de nós. Paro debaixo de uma árvore, propositalmente me
esquivando da câmera que há na porta de onde saímos. Ela é uma das poucas que
não capta som, apenas imagens. O que vem a calhar nessa situação. — Vá direto
ao ponto, preciso sair o quanto antes.
— Quero fazer parte do seu esquema. — Diz, decidido. O garoto até mesmo
estufa o peito, se mantendo com as mãos juntas frente ao corpo e os pés um
pouco separados, nariz empinado e olhos atentos esperando um pronunciamento
meu.
— Hmm… Qual é o seu nome mesmo?
— Apolo, senhor.
— Então, Apolo, não sei do que está falando — minto, querendo entender
qual é a dele. — Não faço parte de nenhum esquema. Você deve ter se enganado.
— Me viro, saindo de perto dele sem esperar uma resposta. O soldado vem atrás
de mim.
— Henrique mandou eu procurar o senhor. — Cesso o passo, ainda incerto
sobre suas palavras.
— Ele também deve ter se enganado. Procure esse Henrique novamente e
acerte o mal entendido. — Dessa vez, não paro de andar até estar dentro do
banheiro masculino.
Apolo pode estar falando a verdade, tenho quase certeza de que está, contudo,
eu não posso pagar para ver, arriscar tudo o que meu pai construiu por causa de
um descuido.
Preciso me lembrar de confirmar isso com Henrique depois, agora a minha
prioridade é voltar para casa e ver como Cassie está. Ela não respondeu às
minhas mensagens e nem atendeu a ligação que fiz no horário do almoço.
Entro no banheiro tão preocupado que nem falo com nenhum dos rapazes que
estão ali, passando direto para o meu armário e o abrindo sem delicadeza, já
irritado, imaginando as horas de trânsito que enfrentarei até ter notícias da minha
diaba.
— Aí, galera, vocês não sabem da boa — o Sargento Figueiredo berra,
chamando a atenção de todos, inclusive eu, que viro o rosto na sua direção,
curioso para saber da "boa". — Tem uma loira deliciosa na sala do Comandante
Teixeira. Acho que ela vai trabalhar na Intendência daqui. Vocês precisam ver
como a farda fica um pecado naquele corpo gostoso. — O burburinho começa,
todo mundo falando ao mesmo tempo, querendo mais informações.
Reviro os olhos, voltando a focar em tirar a farda e dobrá-la para que caiba na
mochila.
Por incrível que pareça, mulheres não são uma pauta frequente por aqui. A
maioria das que trabalham no quartel são casadas, e as que não são, costumam
ser bem sérias quanto a dar brechas para os colegas de trabalho. Acredito que o
motivo seja o machismo que infelizmente existe entre os militares. Se elas não
impõem distância, eles passam dos limites e tentam subjugá-las, independente da
patente que tenham.
Não existe hierarquia que impeça um homem ignorante de querer cantar de
galo para cima de uma mulher. Eles são guiados pelo pensamento que rege o
machismo: homens são superiores por simplesmente terem um pinto dentro das
calças.
Nada mais. Nada menos.
— Qual é o nome dela? Vou logo procurar no Instagram. — Outro Sargento
pergunta.
— Na farda está escrito Borello. Vou esperar ela sair da sala para perguntar o
primeiro nome. — O sorrisinho malicioso que Figueiredo dá ao colega faz uma
onda de irritação percorrer meu corpo, ganhando força lentamente,
transformando o cansaço em fúria.
Bato a porta do armário com força e saio bufando do banheiro com a mochila
nas costas, ainda usando o coturno.
Não sei o que estou sentindo enquanto sigo em direção à sala do Comandante.
Uma mistura de raiva e insegurança, talvez? A possibilidade de ser Cassandra
naquela sala me deixa confuso demais. Paro em frente à porta, decidindo que
esperarei bem aqui para saber se é ela ou não.
Se for, por que Cassie não queria que eu soubesse sobre a sua vinda?
Não faz o menor sentido. Antes, talvez fizesse, quando estávamos distantes
emocionalmente. Mas agora? Estamos namorando, apaixonados eu diria. Sei que
ela ainda guarda algumas coisas para si, contudo, não imagino como sua vinda
ao quartel poderia ser uma dessas coisas que Cassie prefere me manter afastado.
À medida que os minutos se seguem, perco um pouco da raiva que sentia
quando cheguei, sentindo apenas uma ansiedade que só irá cessar no minuto em
que eu descobrir se a tal loira é mesmo a minha diaba.
Ou não.
Ao botar os olhos na figura que sai da sala depois de apertar a mão do
Comandante e lhe oferecer um sorriso contido, a ansiedade cresce no meu peito.
O coração dispara de surpresa. Meu olhar se perde por um instante na beleza
arrebatadora de Cassandra sendo realçada pela roupa verde oliva.
A forma como a gandola foi ajustada para as curvas dela nos dá um vislumbre
do quanto Deus caprichou na hora de desenhá-la. O culote camuflado esconde o
volume das suas coxas gostosas, mas não duvido que realce sua bunda
afortunada, como Figueiredo afirmou. Os cachos estão domados pelo coque
meticulosamente feito. Nas mãos, ela carrega a boina. Os pés, calçados com uma
bota preta, param no limite entre a porta e o corredor na mesma hora em que a
diaba nota a minha presença.
Minha expressão facial não deve estar das melhores. Percebo isso através da
conduta defensiva que Cassandra assume ao me ver desencostar da parede e me
erguer até a postura estar ereta, segurando a alça da mochila com uma força
desnecessária que pode rasgar o tecido a qualquer momento.
Sem saber como reagir, ela abre e fecha os lábios algumas vezes, olhando do
Comandante para mim, encurralada. Cinismo escorre dos meus lábios quando
digo:
— Não vai bater continência para mais antigo, Sargento Borello?
[2]
OMISSÃO

Meu coração luta dentro da minha caixa torácica contra o impulso de sair pela
boca. Meus olhos captam a imagem de um Miguel parcialmente furioso,
parcialmente porque ele parece estar em dúvida se tem mesmo um motivo para
estar com raiva, provavelmente desejando que eu tenha uma explicação
plausível.
Não tenho.
E a forma como fico ali, estática, buscando as palavras certas, demonstra isso.
O que está acontecendo com você, Cassandra?
Cadê a mulher forte, que não se abala com nada?
Por que está tão preocupada em contar a verdade?
A resposta para tudo isso está bem aqui.
A resposta tem um metro e noventa, cabelos dourados e olhos azuis gelo que
ao invés de intimidar, me confortam.
— Não vai bater continência para mais antigo, Sargento Borello? — o tom
rude reverbera pelo corredor longo. Ao meu lado, o Comandante arranha a
garganta, querendo que eu resolva essa situação o quanto antes.
Para a Cassandra de um tempo atrás, isso seria humilhante. Diante da situação
em que me encontro, é apenas insignificante.
Uma continência é a coisa que menos me envergonha nesse momento. Ter
deixado ele entrar no meu coração novamente que é realmente a coisa
vergonhosa em questão.
Com os pés juntos, a postura ereta e o braço esquerdo dobrado para amparar a
boina, movimento a mão direita, com a palma para baixo, até a cabeça. Meu
olhar se fixa em um ponto qualquer da parede atrás dele quando cumprimento:
— Major.
— Sargento. — Ele movimenta a cabeça, recebendo a minha continência.
— Tem algo para falar comigo, Major Sovat? — O Comandante Teixeira
questiona.
— Não, senhor.
— Então me deem licença.
Sincronizados, eu e Miguel batemos continência para ele, que recebe o gesto
e fecha a sua porta educadamente.
— Eu espero que você não tenha vindo com o seu carro de quase duzentos
mil reais, Cassandra. — Me encara, desejando estar certo.
— Não vim. Peguei um uber.
— Pelo menos isso — murmura. — Vamos.
Seguimos andando lado a lado para fora do prédio principal. O som da minha
bota e do coturno dele, somado à sua respiração barulhenta, típica de quando
está puto, são a trilha sonora da nossa caminhada. Até uma voz masculina
chamar:
— Sargento Borello — me viro no mesmo instante, fazendo com que Miguel
também pare para ver quem é o dono da voz.
— Sim? — responto, incerta do que esse Sargento poderia querer comigo.
— Seja bem-vinda. Já está de saída? — olha para o homem ao meu lado. —
Major.
— É melhor voltar para o seu posto, Figueiredo. Ou eu vou até a sala do
Comandante e faço uma queixa de assédio sexual agora mesmo.
Sem entender, olho de Miguel para o Sargento, que rapidamente se retrai com
a ameaça, enquanto o Major faz o contrário, se impõe ao meu lado e coloca sua
mão na minha cintura sem apertá-la, apenas encostando-a ali. A ação teve um
efeito singelo para mim e altamente intimidante para o militar do outro lado do
corredor, que parece ter tido um lapso de consciência.
— Me desculpe, senhor. O que eu fiz no banheiro não irá mais se repetir.
Com licença. — Tão repentinamente quanto apareceu, ele se vai.
Opto por não questionar nada a respeito disso, me mantendo em silêncio até
estar dentro do carro simples que Miguel usa para vir trabalhar.
— Onde guarda esse carro?
— Na garagem da minha mãe — responde, indiferente, dando partida no
carro.
Espero até estarmos longe do quartel para perguntar:
— Por que agiu daquele jeito com o Sargento? Não podia engolir o ego e
deixar que eu assumisse a situação?
Ele ri, nitidamente debochando.
— Da próxima vez eu deixo, não se preocupe, vou ficar bem longe para que
você possa desfilar pelo quartel sem eu saber.
Decido não responder. Encontrar Miguel daquele jeito repentino fez a
sensação de que estou prestes a vomitar voltar com tudo. Abro a janela do
automóvel, torcendo para que um pouco de ar melhore as coisas.
— O que foi fazer lá, Cassandra? Por que mentiu pra mim?
Inspiro fundo, tentando conter o impulso de botar para fora tudo o que comi
hoje.
— Eu não menti em momento algum. Só não te contei que viria. Isso se
chama omissão. — Minha resposta o faz bufar.
— Então por que resolveu omitir isso de mim, Cassandra Borello? — a bile
se acumula na minha garganta e respirar fica difícil. Parece que tem alguém
mexendo o conteúdo do meu estômago com uma colher. — Responde,
Cassandra!
— Para o carro, Miguel. Preciso vomitar.
Assim que ele estaciona no acostamento da avenida, desço do automóvel
cambaleando e me apoio no pequeno muro de concreto. Não preciso de muito
esforço para que todo o vômito vá parar no chão. Ergo rosto, encontrando
Miguel com um pedaço de papel higiênico, que ele usa para limpar a minha
boca.
— Vou te levar ao médico. Nem adianta dizer que não.
Não digo nada. Entro no carro com a sua ajuda e deixo que Miguel assuma a
responsabilidade por mim.

— Ela pediu um exame de gravidez — abro os olhos para prestar mais


atenção em Miguel. A luz do ambulatório onde fui trazida para tomar soro irrita
meus olhos, sensíveis à claridade. — Por que ela pediu um exame de gravidez se
tem quase certeza que é uma anemia?
— Talvez seja um protocolo. Enjoo é um dos principais sintomas de gravidez.
Deve ser para descartar essa hipótese.
Ou talvez porque eu não fui muito convincente ao dizer que não existia
possibilidade de estar grávida.
— E se a pílula não fez efeito? — a pergunta me deixa nervosa. Aquela foi a
minha primeira bola fora desde que… Desde que perdi o meu bebê.
— Então provavelmente estou grávida. — Dou uma risada sem humor.
— E se você estiver? — os olhos dele buscam os meus. Desvio o olhar,
incerta se gosto do rumo que Miguel está dando à essa conversa. — Você
gostaria de ser mãe?
Ah, Miguel, houve um tempo em que gerar outro ser era o meu maior sonho.
Assim como me casar e ter uma família.
É uma pena que tudo isso tenha sido arrancado de mim antes mesmo de eu ter
um vislumbre da vida que tanto sonhei.
Queria ser o tipo de pessoa que usa as coisas ruins para se fortalecer, que não
deixa a raiva ganhar vida no coração, ou que enxerga algo de bom em todas as
merdas que aconteceram comigo.
Juro que queria ser esse tipo de pessoa.
No entanto, não consigo.
Imaginar uma vida nova, com outro bebê e outro marido não ameniza a
tristeza das lembranças do que me foi tirado.
— Não sei — respondo, odiando ver a expressão de expectativa em seu rosto
cansado. Mas incapaz de frustrá-lo com toda a minha negatividade.
Miguel quer isso. Não é segredo para ninguém o quanto ele ama a
paternidade e deseja vivê-la desde o começo novamente. É daí que vem o brilho
no olhar ao pensar na possibilidade do exame dar positivo.
— Bom, só saberemos daqui a três dias. — Diz, por fim.
— Eu fui lá para dar baixa na minha carreira como Sargento.
Imediatamente ele deixa o papel com o pedido dos exames cair no chão,
tamanha a surpresa diante da revelação.
— Você fez o quê, Cassandra? — leva alguns segundos até que Miguel
processe a informação. — Por que fez isso? Você ama vestir essa farda mais do
que qualquer um naquele quartel.
Eu realmente amava.
— Não mais, Mica. Não mais.
O beijo que Miguel deposita na minha mão torna o momento ainda mais
dramático.
— Quando vai me contar o que houve para você estar tão devastada desse
jeito? — melancolia transborda do seu tom de voz.
— Não é o tipo de coisa que eu goste de compartilhar. É algo pesado demais
para eu jogar nos seus ombros, Miguel.
Ele pega meu queixo e me faz encará-lo.
— É melhor do que guardar para si e isso continuar sobrecarregando os seus.
Talvez seja.
Contudo, Miguel também tem as suas dores. Não é justo fazer com que, de
alguma forma, ele se responsabilize pelas minhas.
— Eu estou me tratando com a terapeuta — forço um sorriso. — Aos poucos,
as coisas estão melhorando, não se preocupe.
— Pare de me enganar, Cassie. Conheço você, quando alguma coisa te
machuca você deixa isso te corroer por inteira até não aguentar mais e pedir
socorro. Não deixe as coisas chegarem a esse ponto, por favor. Eu posso te
ajudar, quero muito fazer isso. Só preciso que se permita ser cuidada.
— Pode cuidar de mim, Miguel. Só não me peça para narrar a pior coisa que
já aconteceu na minha vida, porque eu não vou.
Ele assente, encostando a cabeça no meu peito e entrelaçando os dedos nos
meus, em uma compreensão silenciosa. Ficamos dessa forma até a dosagem de
soro chegar ao fim e eu finalmente ter alta do hospital.
PAPAI SOVAT

O cheiro do sabonete de Cassandra emanando de dentro do meu banheiro já


se tornou familiar. Ela toma um banho demorado enquanto estou aparando a
barba com a ajuda de uma tesoura pequena. Em dado momento, decido que o
comprimento está do meu agrado, guardando os itens utilizados na gaveta e
dando uma última olhada no meu visual.
— Estou indo, preciosa — digo, atraindo a atenção dela, que abre a porta de
vidro do box e semicerra os olhos. — Eu não vou ao puteiro, vou me encontrar
com Henrique no leilão.
— É claro que não vai. — Afirma, entredentes. — Você sabe muito bem que
se eu sonhar que esteve perto daquele puteiro ou de qualquer outro, corto seu
pau com o serrote que está na garagem e faço picadinho das suas bolas para o
cachorro do Samuel comer.
Não duvido nada que o puto do Caetano vá gostar de engolir o meu saco. Ele
só não come pedra porque quase morreu engasgado na última vez que tentou.
— Eu te amo um pouco mais sempre que me ameaça com as ferramentas da
garagem. — Roubo um selinho dela.
— Que bom que gosta das minhas demonstrações de afeto. — Ela esboça um
sorriso cínico.
Olho o relógio de pulso. Cinco para as oito.
— Preciso ir. — Outro selinho e estou quase saindo do banheiro quando
lembro de perguntar: — Conseguiu ver o resultado do exame?
— Não. — Ela responde, rápido como se tivesse previsto a pergunta e
ensaiado a resposta. — Mas estou atualizando o site toda hora.
— Ok… Vou indo.
Cassie me dá outro sorriso e depois some dentro do box escuro.
No caminho para encontrar Henri, a imagem de Cassandra grávida invade
meus pensamentos sem pedir licença.
Durante os últimos três dias, foi inevitável não pensar na possibilidade disso
acontecer. Pensei em tudo, na reação da minha família, na evolução da nossa
relação se isso acontecesse, no que Clarice estaria achando disso lá do céu. E por
incrível que pareça, eu não fiquei abalado com a possível culpa. Parece certo de
um jeito que me assusta. Provavelmente porque uma criança jamais seria um
arrependimento para mim. Elas podem até chegarem sem terem sido planejadas
por nós, mas foram planejadas por Deus.
Eu acredito fielmente que filhos são a maior benção que Ele poderia nos dar.
Sendo assim, posso dizer sem pestanejar que enfrentaria qualquer coisa por um
filho meu.
O leilão está tão cheio quanto sempre quando passo pelas portas de vidro do
salão onde um dia já foi um teatro, e atravesso outra porta nos fundos do
ambiente. Garçons segurando bandejas com doses de uísque andam de um lado
para o outro dentro da saleta reservada e contendo isolamento acústico.
Em uma mesa ao longe, Henrique conversa na companhia de um rapaz, que
só percebo ser Apolo assim que estou próximo o suficiente deles para observar o
rosto jovial do Soldado.
E não é que o garoto estava falando mesmo a verdade?
Ele conhece Henrique. Isso quer dizer que está seguro abrir o jogo. Meu sócio
não se aproxima de ninguém por mais de um metro sem saber o histórico de vida
da pessoa.
— Então quer dizer que por trás dessa carinha de filho queridinho da mamãe
existe um garotinho rebelde que quer se corromper? — faço graça, me sentando
ao lado de Henri.
— É por ela que eu estou aqui, senhor. Faço qualquer coisa pelo bem-estar da
minha mãe.
Olho de relance para Henri. Ele apenas sorri e acena para que Apolo continue.
— Câncer de pulmão. Os médicos deram, no máximo, cinco anos à ela. Me
destruiu ouvir alguém reduzir a vida de uma mulher tão boa, que trabalhou duro
por anos dando o seu suor para ganhar um salário mínimo, à porra de cinco anos.
Me desculpe o palavreado, senhor, é que realmente estou injuriado. — Balanço
as mãos, lhe oferecendo liberdade para falar quantos palavrões quiser. —
Compreende as minhas motivações, Major? Quero lutar por ela, conseguir pagar
médicos melhores, se for o caso, até levá-la para fora do país em busca de um
especialista renomado.
A dor agora é mais nítida no olhar de Apolo. O desespero é palpável na forma
como me encara, como se eu fosse a sua única esperança e ele estivesse disposto
a tudo para não perdê-la.
Apesar de não ter perdido ninguém para o câncer, tenho uma noção do
estrago que essa doença pode causar na vida dos entes de quem a teve. Tenho
certeza que Cassandra nunca se esquecerá dos anos que antecederam a morte da
sua mãe. As lembranças de vê-la sofrendo com falta de ar, perdendo a vida aos
poucos, jamais serão esquecidas por ela.
Apolo está vivendo isso. Por ele ser um homem crescido, talvez torne as
coisas duas vezes pior. Saber que não há muito o que ser feito, principalmente
recebendo um salário como o dele, o faz se sentir insuficiente e impotente. E
esses sentimentos juntos podem ser fatais para corromper um rapaz como ele.
Havia amor e gratidão em cada uma das suas palavras.
Injúria e angústia também.
É errado o que vou dizer, contudo, já passei da fase em que o erro se torna
peso na consciência, então direi mesmo assim: Apolo é um prato cheio para
homens como eu e Henri.
Está com sangue nos olhos, tem raiva do sistema e possui motivações que
tocam o seu coração.
Perfeito para ser corrompido.
— Entendo completamente, Apolo. E respeito os seus motivos. — Finalmente
respondo.
— Conte ao Miguelito a sua ideia de negócio, Apolinho.
Compenetrado, o jovem Soldado passa os próximos minutos detalhando uma
possível forma de lucrar em cima do tráfico de armas usando nossos contatos
para se sobressair no mercado ilegal.
— Gosto dessa proposta. Mas no momento, expandir os negócios não é a
minha prioridade, Toledo. — Explico. Ele deixa os ombros caírem,
decepcionado. — Roubaram a minha última carga e estou tendo problemas com
o merdinha que fez isso.
Problema é um eufemismo perto do que realmente está acontecendo entre
mim e Eric Motta. Através de Marcello, descobrimos que a droga já foi vendida.
E ao contrário do que imaginei, ele não vendeu para a Facção rival, mas sim para
a mesma que eu vendo desde que meu pai faleceu e precisei modificar algumas
coisas em seu esquema, como, por exemplo, o comprador da mercadoria.
Pelo visto, Viktor não se importou em comprar a minha droga de outro
homem por um preço menor, estratégia adotada por Eric para convencê-lo a
fechar negócio.
Agora estou sem o meu principal comprador e a próxima mercadoria só chega
daqui algumas semanas.
— O que eu posso fazer para ajudar, senhor? Nasci na Cidade de Deus,
alguns homens do Viktor são meus amigos de infância, posso ver se eles têm
informações sobre Eric e a quadrilha dele.
— Ótimo, agradeço se puder fazer isso. — Apolo assente. Ao meu lado,
Henrique põe o braço no meu ombro e sorri do jeito irreverente dele.
— Acho que encontramos o menino de ouro do papi Sovat aqui.
— E na melhor hora. — Sorrio junto com ele.

A alegria que vinha sentindo no caminho de volta para casa se esvai quando
ao me aproximar do quarto de Cassie, ouço-a chorar baixinho. Os soluços
contidos partem meu coração em pedacinhos. Me aproximo depois de fechar a
porta devagar, sentando na cama, perto de seu corpo parcialmente coberto pelo
edredom. Ela cessa o cair de lágrimas por um instante ao se dar conta da minha
presença, alguns míseros segundos antes de desatar a chorar novamente.
— O que houve, preciosa? — mantenho a voz baixa. Meus dedos fazem
carinho na sua bochecha.
— Pode me chamar de outra coisa? Algo que você nunca tenha usado para se
referir a ninguém, de preferência. — O pedido é feito em meio a soluços.
— Eu tenho uma ideia — confesso, sorrindo feito um idiota no breu em que
se encontra o quarto dela. Apenas a luz da lua, vinda da janela que Cassie insiste
em deixar aberta, ilumina o cômodo. — Mas acho que pode ser meio brega para
você.
— Qualquer coisa que me faça sentir única, mesmo que seja brega, é válido.
— Você é única demais para mim, coração. — Beijo os lábios dela, banhados
em lágrimas que aos poucos param de descer. — Gosta de como soa? Eu acho
que combina com o que sinto por você.
— E o que sente por mim, Miguel?
As orbeses esverdeadas ficam um tom mais escuro à luz do luar, destacando a
expectativa que brilha em alguns pontos das orbes intensas que Cassandra
possui. Os olhos grandes e expressivos são lindos de se admirar, eu ficaria horas
aqui fazendo isso. Mas agora devo uma resposta à altura de tudo o que passamos
até chegar neste instante.
— Sinto que você dominou esse órgão — ponho sua mão direita no meu
peito. —, e fez dele seu submisso, espremendo o pobre coitado toda vez que me
magoa, estilhaçando ele em mínimos pedaços sempre que eu te ouço chorar, e
reconstruindo ele inteiramente apenas com um comando: seu sorriso sarcástico.
— Ela ri, sentindo os meus batimentos pressionarem a palma da sua mão. — Eu
ainda vou comprar um monitor cardíaco para você ver o quanto meu coração é
influenciado por tudo o que faz. Vocês dois estão ligados, parecem terem se
tornado um só. Acho justo chamar a bomba sanguínea no meu peito de Cassie e
você de coração. O que acha?
— Eu acho lindo. — Ela se senta no colchão e tira a mão do meu peito,
trazendo a minha para a sua barriga. Os olhos dela enchem de lágrimas
novamente ao revelar: — Principalmente agora que terá outro coração nas
minhas mãos.
Ela não está… Eu não vou ser… Nós não vamos ter um…
Formular uma frase se torna difícil de uma hora para outra.
Minhas mãos tremem.
Meus olhos extravasam água feito uma cachoeira.
Meu peito transborda alegria.
Meu cérebro ainda processa a informação lentamente durante o tempo em que
sou abraçado por Cassandra e envolvo os braços ao redor do corpo que abriga a
nossa preciosidade.
TAREFA DIFÍCIL

Em meio a lágrimas de alegria, roço os lábios nos de Miguel, a carne


avermelhada e robusta se abre instantaneamente. Nossas línguas brincam uma
com a outra tranquilamente ao passo em que me sento no colo dele e esfrego
nossas intimidades, gerando um atrito gostoso que envia uma onda de excitação
para o resto do meu corpo.
Sinto o pau de Miguel endurecendo aos poucos abaixo de mim. Agarro sua
nuca, ganhando impulso para aumentar o ritmo em favorecimento do meu
clitóris, pulsando de desejo. Quando dou por mim, estou gemendo feito uma
louca com a boca longe da de Miguel e apertando os fios do seu cabelo
desesperadamente.
— Shhhh — ele trás minha boca de volta para perto da sua. Meus gemidos
agora são engolidos por Miguel, que me beija com vigor e move o quadril de
encontro ao meu. — Você quer gozar gostoso roçando no meu pau, coração?
— Aham… — Perco o raciocínio sentindo suas mordidas descerem do lóbulo
da orelha até o meu pescoço.
— Então vai, cavalga em mim até não aguentar mais. — Se deitando no
colchão, ele deixa que eu procure o prazer sozinha enquanto mantém meu
pescoço refém, segurando-o com uma mão e usando a outra para expor meus
seios através da blusa fina.
— Brinca com eles — suplico, sem parar o movimento do quadril. Chupo os
dedos que Miguel coloca na minha boca e me delicio com a dor que senti-lo
espremer o meu mamilo proporciona.
Aumento o aperto no lençol conforme os vislumbres de um orgasmo
começam a aparecer. O clitóris parece soltar faíscas que emanam uma carga
energética que estremece o interior do meu ventre.
Miguel transfere a mão do meu pescoço para a minha boca, impedindo os
gemidos descontrolados de se propagarem pelo quarto afora.
— Tão escandalosa. Já disse o quanto amo isso? — sorri, mostrando todos os
dentes. Os olhos também parecem que estão sorrindo para mim, admirando o
prazer que esboço ao senti-lo espremer ainda mais meu mamilo entre os dedos.
— Fala de novo. Estou quase lá, quero gozar te ouvindo dizer o quanto me
ama. — Peço, arfando em cima do seu colo.
— Eu te amo tanto, Cassandra Almeida Borello. — Me puxa para mais perto.
Apoio meus braços ao lado do seu corpo e continuo saciando meu clitóris. Antes
de me beijar, Miguel acrescenta: — Você é o raio de sol no fim do meu túnel. É a
terrorista que fez meu coração de refém. A rocha linda que destrói qualquer
tentativa minha de não me render.
Uma explosão absurda de prazer toma conta de mim. Espasmos
incontroláveis sacodem meu corpo por alguns segundos, intensos e viscerais
segundos em que tudo se resume ao puro êxtase proporcionado pelo orgasmo e
as palavras de Miguel roubando o lugar da insegurança que tive ao descobrir o
resultado do exame.
O ar parece escasso após as sensações prazerosas se dissiparem. Respiro com
força, retomando o fôlego. Perco-o novamente quando Miguel inverte nossas
posições, me deixando por baixo e tomando a minha boca em um beijo exigente.
A atmosfera do quarto parece ter sido influenciada pela intensidade das nossas
emoções. O cômodo gira dentro da minha cabeça ao sentir os dedos dele
segurarem cada lado do meu short e descê-lo lentamente, expondo a minha
nudez de uma vez só.
— Sem calcinha? — Miguel lambe os lábios, mais do que satisfeito com o
que vê.
— Os médicos recomendam que as mulheres durmam sem calcinha. Não
sabia?
— Não, mas concordo plenamente com eles. — Levanto o quadril para que
termine de retirar o tecido pernas abaixo. O short vai parar no chão depois que
deixa o meu corpo.
Novamente minha boca é assaltada pela língua ardilosa de Miguel. Estando
por cima, ele tem a oportunidade de esfregar sua ereção monstruosa na minha
virilha e assim o faz, sem colocar todo o seu peso sobre mim, apoiando os braços
ao meu lado e me beijando gostoso.
— Tenho uma coisa para você — diz, ofegante. — Vou buscar.
Miguel deixa o quarto, se livrando dos tênis e meias no caminho, voltando
sem camisa e com uma caixa que parece abrigar uma joia em mãos.
— O que é? — pergunto, sentindo um misto de curiosidade e receio. Sem
responder de imediato, ele abre a caixa de veludo e retira o objeto disforme. —
Um plug anal?
— Não é qualquer plug anal — coloca a peça na minha mão. — Olhe atrás.
Faço o que pede, prestando atenção na pedra que compõe o puxador do
objeto. É comum ter uma dessas neles, contudo, essa parece brilhar demais na
escuridão do quarto.
— Isso não é uma…
— Pedra verdadeira? — pega a peça de volta. — É sim, coração. Uma
esmeralda que eu mandei encaixar aqui para você.
Rio da situação.
— Você não podia ter mandado fazer um anel ou coisa assim?
— Se você gostasse de jóias, sim. — Lambe os meus lábios. — Mas essa
você vai gostar, e muito, meu coração. Isso aqui vai ficar enterrado no seu rabo
enquanto eu como a sua boceta.
Faminto, Miguel retira o cinto no mesmo momento em que me livro da blusa.
A calça e a cueca foram parar no chão, ao lado do meu short. Completamente nu,
ele segura a tira de couro, se aproximando de mim, retomando o beijo que
interrompeu quando saiu e colocando meus pulsos acima da cabeça.
— Já fez isso antes? — as orbes exalando desejo esperam pela resposta, sua
respiração desregulada soprando em meu pescoço.
— Anal? Sim. Não vai ter muito trabalho para colocar a sua jóia dentro. Já
entraram coisas maiores aqui. — Provoco, sentindo seu pau cutucar meu
umbigo.
— Que bom, vai me poupar a delicadeza que eu não tenho quando o assunto é
comer cu.
Minha risada desafia Miguel, que amarra meus pulsos com o cinto em um nó
apertado. Provavelmente terei marcas dessa aventura amanhã. Abro mais as
pernas à medida que ele distribui mordidas fortes pelo meu pescoço, colo, seios
e barriga. Os dentes se fecham ao redor da pele enquanto o olhar dele nunca
deixa o meu solitário, gostando de apreciar o quanto sentir dor me dá prazer.
Suas mãos arreganham as minhas pernas até o limite, Miguel aproxima o
rosto do meio delas, mordendo a virilha, os lábios, roçando os dentes no clitóris
ainda sensível do último orgasmo. Ondulo sobre o colchão, agoniada de um jeito
bom ao senti-lo insistir em brincar com o meu centro de prazer. De repente, um
tapa na região me tira do eixo. Abro os olhos, não a tempo de prever o outro que
se segue, distribuindo uma ardência por toda a região em que a mão grande de
Miguel estapeou.
Outro. E mais outro. Quatro tapas fortes no meu sexo deixam o local
extrememente avermelhado, do jeito que Miguel parece querer ver. Posso sentir
meus fluidos escorrendo pela minha fenda, pulsando com a necessidade de tê-lo
ali dentro. Usando o líquido a seu favor, ele traz a lubrificação para o ânus,
introduzindo dois dedos, retirando-os em dado momento para colocar o plug no
lugar. A carne do local se abre à medida em que o objeto entra, cada vez mais
ganhando espaço, até estar totalmente inserido.
Miguel me lança um último olhar admirado e estoca todo o seu comprimento
de uma vez só na minha boceta.
Um grito escapa do fundo da minha garganta. Prevendo que esse poderá não
ser o único, Miguel põe as minhas pernas em seus ombros e se debruça sobre
mim, me calando com a sua língua enroscada na minha. Quero desmoronar de
tanto prazer em estar sendo preenchida duplamente. Meu olhos reviram
sozinhos, sincronizados com as investidas do pau de Miguel, entrando e saindo
mais rápido do que nunca.
A cama bate na parede violentamente, um reflexo do meu canal vaginal, que
começa a se contrair no mesmo ritmo de vai e vem do colchão.
É arrebatador, intenso, feroz.
Um encontro entre os nossos lados selvagens.
— Não aguento mais, Miguel. — Estremeço abruptamente embaixo dele.
Gozo como jamais gozei, sentindo que todas as minhas células estão mais vivas
que nunca depois disso.
— Aguenta sim, coração. Eu ainda vou comer esse seu rabo gostoso hoje. —
Diz, me mantendo no lugar quando meu corpo não sabe fazer outra coisa que
não seja tremer.
Passado o orgasmo, Miguel retira seu membro de dentro de mim, lambuzado
do meu gozo e inchado, querendo liberar o dele. Estou tonta, ainda amarrada,
observando ele buscar uma camisinha na calça e vesti-la, apressado para
retomar o sexo.
O plug sai do meu ânus sem dificuldade, sendo substituído pelo pau grosso
que se introduz totalmente ali dentro com apenas duas estocadas fervorosas. As
que se seguem voltam a me deixar desnorteada, minhas pernas jazem sobre os
ombros dele e meus lábios viram reféns dos seus dentes, que alternam em
mordê-los e chupá-los.
— Porra… — Geme, um pouco menos desconcertado do que eu, tentando
manter o controle das coisas, mas com dificuldade. — Onde quer que eu goze?
— Nos meus peitos, como disse que faria na viagem e não fez.
O corpo dele está quente ao se afastar do meu. A camisinha é jogada no lixo
do lado da cama. O colchão afunda um pouco com o peso de Miguel se
levantando, ficando em pé acima de mim, entre as minhas pernas, mirando o pau
em meus seios.
Se antes minha respiração estava irregular, nem se compara com agora. Vê-lo
erguido, tão imponente, os músculos do peitoral e braços contraindo enquanto se
masturba e admira meu corpo exposto é enlouquecedor em um nível que nunca
experimentei. A imagem dos jatos do líquido esbranquiçado melando minha pele
quente e arrepiada é graciosa, assim como ele mordendo os lábios, jogando a
cabeça para trás, grunhindo baixinho para não acordar a filha.
Ao final do espetáculo, Miguel se ajoelha e beija minha boca.
— Ainda acha que eu deveria ter feito um anel? — indaga, depois de me
libertar do cinto e se deitar ao meu lado.
— Não, você encontrou uma utilidade melhor para a pedra. — Respondo,
ofegante.

Não sei dizer exatamente há quanto tempo estou tentando me acostumar com
o que meus olhos vêem, só que ainda é surpreendente acordar coberta por pétalas
de rosas.
Elas estão por toda a cama e também um pouco no chão. Vermelhas e
cheirosas. Meu sorriso se alarga só de imaginar Miguel espalhando-as em cima
de mim.
E por falar nele…
O bendito adentra o quarto trazendo em mãos uma bandeja de café da manhã,
lindo, vestindo apenas uma bermuda, os pés descalços e o sorriso largo.
— Bom dia, mamãe. — O tom meloso se faz presente quando coloca a
bandeja na cama.
Acredito que qualquer pessoa conseguirá ver o quão radiante Miguel está
depois da notícia de ontem. Houve uma mudança significativa nas suas feições,
agora mais tranquilas. Assim como um brilho nos olhos genuíno, que não dava
as caras há muito tempo.
— Miguel, sobre a gravidez…
— Vai dar tudo certo. Eu marquei uma consulta com a obstetra, vamos
começar o pré-natal o quanto antes. — Ele se deita à minha frente, alisando
minha barriga nua, deslumbrado. — Estou tão ansioso para saber o sexo… Não
vejo a hora de completar oito semanas e poder fazer o exame de sexagem. Se
você concordar, é claro.
— Podemos fazer sim. — Respondo, dividida entre a euforia e a incerteza. —
Eu só… — Ele me encara atentamente, os olhos tremeluzindo enquanto aguarda
o que vou dizer. — Quero esperar um pouco para contar às pessoas.
— Um pouco quanto?
— Completar as doze semanas.
Miguel continua fazendo carinho na minha barriga, parecendo frustrado com
o meu pedido.
— Do que está com medo, Cassie? — não respondo de imediato, mantenho o
olhar fixo na pétala de rosa que tenho em mãos. — Do que as pessoas vão pensar
da gente?
Solto uma risada sem nenhum traço de humor.
Isso é o de menos, Miguel.
A opinião das pessoas deixou de ter importância há muito tempo.
Mas a minha própria opinião sobre mim nunca me deixará em paz. Foi por
causa dela que chorei na noite anterior, ao finalmente decidir descobrir o
resultado do exame, ela me diz a todo momento que sou uma impostora, que
estou vivendo uma vida que não deveria ser minha, que não mereço a felicidade.
Receber o resultado positivo no exame terminou de me massacrar. Chorei
horrores, com a ideia martelando na minha cabeça, de não ser digna dessa
benção.
— Olhe para mim, Cassandra. — Sou retirada do devaneio quando as mãos
de Miguel tomam meu rosto e seu nariz roça minha bochecha. — Você nunca foi
o tipo de pessoa que se importa com o que os outros pensam, por isso é tão
desinibida e corajosa. Acredite em mim quando eu digo que todos queriam ser
assim, como você. Essa é a sua essência, linda e livre, e eu quero que o nosso
bebê veja isso. Ele tem que saber o quanto é sortudo por ter uma versão real da
mulher maravilha para chamar de mãe, entendeu? — balanço a cabeça
positivamente, incapaz de formular uma resposta devido à choradeira que toma
conta de mim. — Não tenha medo de nada, coração. Estamos vivendo
exatamente o que deveríamos viver. Eu vou cuidar de vocês e Deus vai cuidar de
todos nós.
— Pare de dizer essas coisas bonitas, senão não vou conseguir parar de chorar
hoje! — reclamo. Meu rosto deve estar inchado e vermelho feito um tomate.
— Seriam os hormônios já fazendo efeito? — brinca, limpando as lágrimas
que escorrem bochechas abaixo.
— Eu espero que não!
Miguel ri de se acabar em conjunto ao meu choro dengoso. Seus braços me
puxam em um abraço apertado e vamos parar do outro lado do colchão, rindo e
chorando.
— Agora vem a tarefa mais difícil da vida de um pai e uma mãe. — Ele usa
um tom sério para dizer.
— Qual?
— A escolha do nome dessa bendita criança.
Dou um tapinha em seu braço, enrolado na minha cintura para que sua mão
acaricie minha barriga, querendo castigá-lo por me deixar preocupada sem
motivo.
— Não acho que esse seja o maior desafio que iremos enfrentar.
— Mas é, coração, o primeiro de muitos deles. Essa escolha vai definir se a
nossa relação com ele começará com o pé direito ou esquerdo. O nome é o
começo de tudo.
Me desvencilho dele, indo até a bandeja para beliscar o café da manhã que
Miguel trouxe.
— Bom, então é melhor capricharmos na escolha.
PAI DE MENINA

Através da pequena caixa de som que mantenho na cozinha, Ferrugem canta


Eu Juro. A voz afinada e melodiosa era o que faltava para completar o meu
domingo. Churrasco na brasa, cerveja gelada e uma família que se reunirá daqui
a pouco para almoçarmos juntos, um dia perfeito.
— Gael — digo, de repente. Estamos há horas tentando entrar em um
consenso a respeito de como se chamará o nosso baby. — Amo esse nome!
Sentada na bancada da cozinha, Cassie ri do meu entusiasmo.
— É um nome bonito. Curto, fácil de escrever e forte. Gostei. Agora
precisamos pensar em um nome de menina.
— Eu já te disse, Cassie, é um menino, estou sentindo. — Minha intuição não
falha. Há algo dentro de mim gritando que serei pai de um menininho.
— Legal, mas precisamos ter uma opção caso esteja errado. — Ela explica,
com o ceticismo que tem usado frequentemente para encarar a primeira gravidez.
Cassie jamais admitiria, mas vejo como essa situação a deixa apreensiva. A
forma como está se mantendo calada, sua cabeça parecendo distante, os sorrisos
agora são forçados, querendo camuflar o seu lado vulnerável, como sempre.
Isso me magoa. Porque quer dizer que ela ainda não confia em mim cem por
cento para se abrir. E pensar que um dia eu fui seu maior alicerce, a única pessoa
a quem recorria para se abrir.
Até eu colocar tudo a perder.
Me concentro na execução do corte da carne, afastando as memórias, que
somente servem para me atormentar no presente.
Finalizado o corte, ponho os pedaços amontoados em uma vasilha e tomo um
gole da minha cerveja, escorado no balcão, observando Cassie distraída com
algo no seu celular.
— Qual nome você sugere?
Pensativa, ela deixa o aparelho de lado e vem até mim. Seus braços envolvem
meu corpo e sua cabeça se mantém apoiada no meu peito, sentindo as batidas do
coração soarem altas contra o seu ouvido.
— Eu gosto de Jade. Se encaixa em todos os meus requisitos: ser curto,
simples de escrever e marcante. Além do mais, tem um significado especial para
nós dois.
— Então está decidido, daqui a quatro semanas descobriremos se nosso baby
é a Jade ou o Gael. — Só Deus sabe o quanto estou ansioso por isso. Não vejo a
hora de Cassandra completar as oito semanas. Faltam apenas cinco, mas
parecem uma eternidade para mim.
— Eu aposto que será outra menina. — Ela ri contra o meu peito.
— Você adora ir contra tudo o que digo, né? — beijo o topo da sua cabeça.
— Essa é uma das coisas que mais me dá prazer na vida. — Rebate, a língua
sempre afiada.
— E qual é a maior delas?
Estou esperando outra resposta sagaz, contudo, ela não vem. A chegada de
Safira no recinto acanha Cassandra, que automaticamente esquece o assunto e se
vira, escorando as costas em meu peito de forma inocente, não querendo dar a
entender à minha filha que estamos tão entrosados.
— Vamos, gente, está todo mundo lá fora esperando.
Cassie se afasta de mim, acompanhando a sobrinha para fora de casa, eu sigo
um pouco depois, trazendo comigo a carne e o arroz. Constato que está mesmo
todo mundo reunido ao comparecer na área de lazer, onde uma piscina modesta e
um deque com freezer, geladeira e churrasqueira compõem o ambiente.
Na piscina, Hugo e Samuel jogam vôlei tranquilamente. Um pouco distante
da borda, mamãe e Ricardo riem de algo, sentados na mesa de madeira, perto de
Antônia, que faz diversas poses e pede que Safira fotografe todas elas do seu
celular.
Noto meu irmão, Rafael, se aproximando ao me ver colocar as carnes na
brasa. Cassie também está por perto, me fazendo o favor de entregar o sal
grosso, escondido do lado da churrasqueira, que passou despercebido enquanto
eu vasculhava a pia na intenção de encontrá-lo.
— Obrigado, coração. — Agradeço, lhe dando um selinho rápido,
surpreendendo Rafael. Meu irmão do meu franze a testa, confuso, e se aproxima
mais depois da saída de Cassie.
— Quando foi que ela passou de “diaba” para “coração”? O que eu perdi
nesse meio tempo? — indaga, incrédulo. Seu corpo magro e pálido quase parece
transparente à luz solar, tamanha a falta de melanina desse homem.
Rafael possui um físico completamente oposto ao meu. Já Samuel, é o meio
termo entre nós dois. Seu corpo não tem tanta massa muscular quanto o meu, no
entanto, é definido nos braços, pernas e peitoral. Sua pele também contém um
tom levemente bronzeado, assim como a minha. Seus olhos são de um azul mais
claro, enquanto eu e Rafael compartilhamos da mesma cor azul gélida em nossas
orbes.
Para a maioria das pessoas, somos extremamente parecidos. Contudo, a única
coisa realmente igual é a cor do cabelo. Todos nós três temos fios loiros claros,
dourados à luz do dia. As nossas de mais semelhanças são contestáveis.
— Não sei dizer. — Respondo meu irmão do meio. Ele continua me
encarando, desconfiado.
— Mas está contente com isso, não é? — balanço a cabeça positivamente. —
Nunca te vi tão feliz na vida, Miguel. Nem quando estava com a…
— Não compare as duas, anjo. — Advirto. Nem mesmo eu me permito fazê-
lo. Elas são completamente diferentes, não há um parâmetro justo o suficiente
para compará-las.
— Comparo sim! — ele insiste, a pose de “senhor sabe tudo” marcando
presença quando prossegue: — Nunca entendi o porque escolheu Clarice. Vocês
dois não tinham nada em comum a não ser…
— Cassandra.
Tenho plena ciência do que Rafael diz. Várias vezes ao longo da vida me
questionei se Clarice e eu teríamos nos envolvido caso sua irmã não estivesse tão
ausente.
A conclusão disso? Acho que a falta de Cassie realmente foi um elemento
decisivo para isso acontecer. Eu queria a minha amiga ao meu lado pela maior
quantidade de tempo possível, contudo, sabia que o Exército era seu sonho e que
seria egoísta pensar daquela forma. Como um escape, busquei refúgio em sua
irmã, uma forma inconsciente de me ater a algo que pudesse trazer conforto do
mesmo jeito que sua presença trazia.
O resultado? Encontrei algo completamente diferente do que esperava e me
apaixonei.
No entanto, atualmente, não paro de pensar que talvez eu e Clarice não
fôssemos tão predestinados um ao outro como eu sempre acreditei.
— Foi tão aleatório quando assumiu que estava namorando com ela. —
Rafael confessa. — Ninguém te disse nada, mas todos nós achávamos que estava
se precipitando, você é intenso, sente tudo muito à flor da pele, talvez tivesse se
convencido de que eram almas gêmeas. O sonho de ser pai ia ser realizado bem
antes do que esperava, talvez isso tenha culminado para…
— Para eu acreditar que ela era minha outra metade? — ele assente. — Eu
não estava delirando, anjo, era o que sentia naquela época, era o que a minha
intuição dizia. E você sabe que ela sempre foi forte, desde quando eu era apenas
um garoto.
— O ponto aqui é que você e Cassandra acabaram ficando juntos, no fim das
contas. E vou te dizer, isso sim parece um encontro de alma gêmeas. Treze anos
de distância não foram o suficiente para destruir a conexão de vocês.
— Ainda não recuperamos totalmente a nossa conexão, há várias coisas mal
resolvidas entre nós. — O cheiro da carne assando invade minhas narinas,
indicando que é hora de virá-las para dourar o outro lado.
— Questão de tempo. — Meu irmão afirma, colocando para fora sua opinião
sobre a minha vida amorosa como nunca ousou fazer. Mas também, como
poderia? Ele só passou a entender sobre amor depois que se apaixonou por
Antônia.
Como um raio, Safira passa correndo por nós, parecendo aflita. Minha
cunhada segue logo atrás. Notando o meu olhar preocupado, Cassie sussurra um
“tudo sob controle”, indo para dentro da minha casa junto das duas.
Rafael também percebe o alvoroço, mas apenas ri e balança a cabeça em
negação.
— Deus sabe o que faz, Mica. Tudo tinha que acontecer exatamente como
aconteceu. Além do mais, o que seria dessa família sem Safira? Não gosto nem
de pensar. A trombadinha nos uniu muito depois que papai morreu, sem contar
que ela te fez amadurecer mais rápido.
E sem Safira, talvez Cassandra nunca teria voltado.
E consequentemente, eu não receberia outra chance de ser feliz.
No fim das contas, acho que devo tudo à ela.
— Miguel. — A dona dos meus pensamentos chama. Me viro, encontrando
uma Cassandra apreensiva. — Safira acabou de menstruar pela primeira vez.
— Ah, então era por isso que tinha sangue escorrendo das pernas dela. —
Samuel conclui, se juntando a nós, próximos à churrasqueira.
— Ela está bem? — pergunto, sentindo um misto de preocupação e euforia.
Minha filha ficou mocinha!
— Aham, só um pouco desnorteada, mas Antônia se encarregou de explicar
tudo que Safira precisa saber sobre ciclos menstruais e higiene pessoal.
— É a cara dela querer se encarregar disso. — Rafael afirma, em tom de
escárnio.
— O que está fazendo, Mica? — É Samu quem questiona, me observando
buscar o número da mesma floricultura onde comprei as pétalas de rosas para
Cassie.
— Vendo se consigo comprar flores para Safira. — Explico, sem tirar os
olhos do telefone, torcendo para que eles possam entregar um buquê de rosas
vermelhas ainda hoje.
— E por que caralhos você vai dar flores à menina?
— É meio que uma tradição, Samuel. A primeira menstruação marca a nossa
passagem de menina para mulher. Dar flores é um capricho que os pais
costumam adotar para marcar o momento. — Cassandra faz o favor de explicar.
— Se eu soubesse que ia acontecer agora, teria trago um absorvente
importado para Sasa. — Todos nós rimos da brincadeira de Rafael.
— Tomara que vocês não sejam pais de meninas, seriam uma negação
exercendo esse papel. — Brinco, com um fundo de verdade nas minhas palavras.
Meus irmãos realmente não têm o tato necessário para lidar com as variáveis que
envolvem criar uma mulher.
Samuel concorda, dando um sorriso de lado. Ao contrário do nosso irmão do
meio, que passa os próximos minutos expondo argumentos que contestam a
minha fala, enquanto eu e Cassie trocamos olhares confidentes.
DE UMA VEZ SÓ


Duas semanas depois…

Eu costumava gostar muito de ir ao parque de diversões quando criança.
Eram corriqueiros os pedidos para que minha mãe me levasse. Depois do
diagnóstico, nem todos eram atendidos. Haviam vezes em que ela não conseguia
nem ficar de pé, principalmente durante o estágio terminal, a força se esvaiu
completamente do seu corpo, impossibilitando-a de me levar a qualquer lugar
que não fosse um hospital.
Tenho certeza que mamãe morreu se culpando por não ter conseguido ir
comigo até lá uma última vez.
Se eu pudesse dizer algo a ela, diria que isso não fez diferença alguma para
mim. O parque sempre será o nosso lugar, independente de quantas vezes não
pudemos ir porque seus pulmões estavam fracos demais para suportar fazer uma
simples caminhada.
Não foi sua culpa, mãe.
Você fez ser especial em todas as outras vezes.
Porque você era esse tipo de pessoa: que transformava todos os momentos em
momentos especiais.
Vamos fazer valer a pena, filha.
Era o que dizia sempre que íamos usar a última ficha restante na máquina de
bichinhos de pelúcia.
De volta ao parque de diversões, sinto que você fez mesmo valer a pena, não
só todas as vezes que me trouxe aqui, mas também com cada molécula de
oxigênio que usou até seus pulmões não aguentarem mais.
Ao meu redor, as luzes coloridas, os brinquedos girando, subindo, descendo,
são um prato cheio para as minhas melhores memórias com você, mãe.
Prefiro acreditar que seu corpo não foi páreo para a mulher intensa e cheia de
vida que era.
Ponho a mão na barriga que está começando a ficar protuberante, decidindo
que passarei para o meu bebê todas as lindas memórias que minha mãe deixou
para mim. E quando ele me perguntar porque ela se foi, direi que o corpo dela
pode ter perdido a vida, mas Daniela nunca estará morta, pois soube cultivar
lembranças que sempre a manterão viva no coração de quem a amava.
Ando alguns passos pelo lugar, ladeada por outras pessoas que desconheço.
Em pouco tempo de caminhada, avisto o carrossel. Ele era, sem dúvidas, meu
brinquedo preferido. Não resisto, e logo estou ingressando na estrutura giratória,
me apossando de um cavalo branco. Seguro firme na extremidade dele, temendo
que em um descuido eu perca a estabilidade e vá parar no chão.
A simples ideia de cair com meu filho estando na barriga me apavora.
Tem sido assim, o medo se faz constante em relação a coisas simples, como
subir escadas, correr, pegar algo pesado.
Em um solavanco, o carrossel torna a girar, lentamente, os cavalos subindo e
descendo. Meu sorriso se alarga quando penso ter visto minha mãe um pouco à
frente, também sentada no cavalo. Os cabelos loiros claros são idênticos,
cortados na altura dos ombros, exatamente como gostava. Ela se vira para trás
outra vez e não restam mais dúvidas, é Daniela.
— Mãe? — chamo, em meio a várias pessoas falando ao nosso redor. Mamãe
não responde, e nem retorna a olhar para mim. — MÃE! — grito, sem receber
uma resposta. — Daniela! Sou eu, Cassandra!
Nada.
A estrutura continua girando, me deixando tonta e piorando o meu estado de
confusão com o que está acontecendo. Coloco a mão na cabeça, querendo conter
o latejar frenético da região. É aí que acontece o que eu mais temia.
Caio no chão, de barriga para baixo, ao perder o equilíbrio em cima do
cavalo. Minha testa bate contra o piso metálico e meu nariz queima. Agarro uma
das pilastras da estrutura, tentando me levantar, quando o faço, entro em
desespero com a imagem de uma poça de sangue esparramada no pedaço do
metal.
— MEU BEBÊ! — o grito ecoa por minha garganta afora. Sinto braços
envolverem meu corpo, me mantendo no lugar, continuo gritando. — NÃO, DE
NOVO NÃO!
— Cassie, acorde, por favor. — A voz de Miguel intervindo me faz parar por
alguns segundos. Ele não está junto comigo no parque… — Abra os olhos,
coração.
Ao fazê-lo, encontro seu rosto bem próximo ao meu enquanto seus braços me
cercam, um por baixo dos meus ombros e o outro por cima da minha barriga.
— Foi um pesadelo? — ele assente, tirando alguns fios de cabelo da minha
testa suada. — Desculpe. Eu te acordei?
— Não se desculpe por uma coisa que não pode controlar. E não, estava lá
embaixo preparando o jantar. Você ficou aqui em cima para tirar um cochilo e
dormiu a tarde inteira. É quase noite.
Mais um pesadelo horrível.
Isso tem acontecido bastante ultimamente. Em todos eles, eu perco meu bebê
de um jeito diferente.
— Ah, sim. — Finjo indiferença, não querendo que Miguel perceba o quão
atormentada estou. Ele tem se demonstrado eufórico com a gravidez, muito mais
do que eu.
Para falar a verdade, a cada dia que passa vem sendo difícil manter o
pensamento positivo em meio aos pesadelos e as lembranças do meu aborto. Em
alguns dias, sinto vontade de simplesmente sumir, ir para algum lugar bem longe
da expectativa sufocante de Miguel, porque infelizmente vê-lo tão esperançoso
só está piorando as coisas.
Não quero decepcioná-lo. Mas é pesado carregar tudo sozinha agora que
tenho outro ser dentro de mim. Fico dividida entre demonstrar como me sinto ou
fingir que compartilho da mesma animação.
— Você está tendo muito mais pesadelos ultimamente. Acha que é por ter
parado de tomar os remédios?
— Provavelmente.
Assim que iniciei o pré-natal, no dia seguinte à descoberta da gravidez, a
obstetra recomendou que eu suspendesse o uso dos ansiolíticos até o fim da
amamentação, para evitar riscos ao bebê.
Como resultado, minha mente está trabalhando com o dobro de potência para
me atormentar. Estou ansiosa, sentindo um misto de sensações sufocantes
tomando conta de mim aos poucos. Isso é perigoso, tenho medo de chegar ao
ponto de não aguentar e… Explodir. Destruindo junto comigo quem está ao meu
redor. E, claro, o bebê que ganha vida dentro de mim.
— Você pode tentar ocupar a mente. Voltando a praticar atividade física
moderadamente, lendo alguns livros, testando receitas novas… — Miguel tenta
propor uma solução. Ele realmente está se esforçando para me agradar. Enquanto
eu me esforço para não mandá-lo ir à merda. Estou irritada na maior parte do
tempo, efeito colateral da falta dos remédios provavelmente, e isso tem custado
sugar qualquer resquício de paciência que há em mim.
— É, posso sim. — Forço um sorriso.
— Amo você. — Beija meus lábios. Me sinto indigna do seu carinho.
— Também te amo. — Saio da cama depois de lhe retribuir com outro
selinho. —Vou lá fora pegar um pouco de ar.
— Ok, vou voltar para a cozinha e terminar de fazer o jantar.
Descemos as escadas juntos, tomando rumos diferentes ao final dela. Quando
fecho a porta da casa atrás de mim, sinto que tirei um peso enorme dos ombros.
Ando para longe, respirando melhor a cada passo que coloca uma distância
saudável entre Miguel e eu, me possibilitando um pouco de descanso da farsa
que tenho vivido.
Mas a paz dura por pouco tempo mesmo, somente até Suzana estacionar seu
Mini Cooper na lateral da sua residência e decidir se aproximar de onde estou
parada, absorvendo a maior quantidade de ar puro que posso. Não tão puro
assim, considerando o índice de poluição do Rio de Janeiro, contudo, livre das
coisas que me sufocam na casa de Miguel.
— Cassandra. — A senhora Sovat cumprimenta, parecendo disfrutar de um
excelente humor.
— Suzana. Algum problema? — porque é isso que falta para eu explodir.
— Eu que te pergunto, houve algum problema?
Inspiro devagar, voltando a ficar irritada por conta do tom desconfiado.
— Não, Suzana. Está tudo ótimo. Mais alguma coisa?
— Nada. — Simples assim, ela se vira e dá alguns passos rumo à sua casa,
mas logo algo a faz cessar o andar e se virar novamente. — Eu não tenho nada
contra você, Cassandra. Apenas fiquei receosa sobre o seu amadurecimento. Mas
você me mostrou que eu não tenho porque temer. Estou contente com isso.
Esse seria o momento em que eu deveria dizer algo. Agradecer? Concordar?
Apenas assinto, encarando o céu escurecer.
— Não tema essa gravidez. É normal ficar insegura, mas não deixe que isso
te consuma, vai fazer mal ao bebê. — Volto a atenção para Suzana tão rápido
que meu pescoço dói com o esforço feito para encará-la. Eu e Miguel
combinamos que não íamos contar a ninguém antes de completar as doze
semanas! Isso é mais do que o necessário para voltar a ficar irritada. — Fique
tranquila. Estarei aqui para te ensinar tudo o que precisa saber sobre a
maternidade, pode contar comigo, querida.
— Obrigada. Agora eu preciso voltar e ajudar Miguel a preparar o jantar. —
Minto.
— Vai lá. Amanhã dê uma passada aqui em casa para conversarmos melhor.
Assinto, lhe dando um sorriso sem dentes carregado de falsidade. Vejo
Suzana marchar para sua residência vestindo uma saia lápis de couro, blusa de
oncinha e scarpins pretos, acompanhada da sua Louis Vuitton, alheia ao que se
passa na minha cabeça.
De volta à casa de Miguel, bato a porta sem delicadeza alguma e exalando
fúria a cada passo que dou, ando em direção à cozinha. Ele rapidamente se dá
conta da minha presença e não demora a captar os sinais de que há algo errado
no meu comportamento.
— Eu te pedi para guardar segredo até os três meses, Miguel. — Relembro.
— Foi só para a minha mãe, coração. Não consegui esconder, ela me
conhece, eu tive que contar. — Ele se defende, usando um argumento que não
vale nada para mim.
Sinto meus olhos lacrimejarem. Trinco o maxilar, engolindo em seco a
vontade de me desfazer em lágrimas pelo chão. Corro o mais rápido que posso
escadas acima e me tranco no meu quarto, deixando o choro escapar e abafando
o som dos meus soluços com o rosto enterrado no travesseiro.
Raiva, culpa, decepção, todos sentimentos que ganham força dentro de mim a
cada vez que expulso uma lágrima.
Estou acostumada a me sentir assim, mas não conseguir controlar essa
avalanche de emoções que escorre para fora do meu corpo de forma violenta é
duas vezes pior agora, que estou grávida. Há um ser crescendo na minha barriga
que será influenciado por tudo o que eu fizer. E neste momento, estou fazendo
algo ruim para nós dois, simplesmente porque me acostumei a fazer mal a mim
mesma, e agora não consigo parar.
Estou condenando meu bebê a viver esses episódios de tormenta junto
comigo, a partilhar do inferno que é estar dentro do meu corpo.
Eu já desejei diversas vezes acabar com tudo, sair de mim, pois não importa
quanto tempo passe, a dor está entranhada no âmago do meu ser.
É ingênuo esperar que algo de bom floresça aqui. É cruel manter alguém aqui
dentro quando eu mesma sinto vontade de fugir do meu interior todos os dias.
Talvez eu devesse acabar com o nosso sofrimento de uma vez só.
UMA ESCOLHA, DOIS CORAÇÕES EM JOGO

Não resisto, acabo chorando ao ver a gravação do pedido de casamento do


meu irmão.
Foi tudo tão lindo.
Rafael passou o dia com Antônia no zoológico para que eu e Samu
pudéssemos preparar seu escritório para a surpresa final. Fizemos uma trilha
com pétalas de rosas do corredor até a sala dele. Lá dentro, colocamos velas em
todas as prateleiras e superfícies possíveis, bem como no chão. Na sua mesa
havia uma caixa com o anel e um coração feito de pétalas ao redor dela.
Simples, porém memorável, como ele queria.
De tanto ser ameaçado por mim, Rafael concordou que eu deixasse uma
câmera escondida em cima de um dos seus armários para registrar o momento.
E que momento!
Antônia entrou na sala com uma expressão de desconfiança, duvidando das
intenções do meu irmão. Mas logo a dúvida foi substituída pela felicidade ao
entender o que significava a caixinha de veludo.
No vídeo não dá para escutar o que Rafael disse no seu ouvido, entretanto,
não diminui a emoção que a gravação transmite.
Os dois se abraçam, beijam, e sorriem feito idiotas um para o outro enquanto
fazem um brinde com o champanhe que deixei lá sem Rafael saber.
Ao final, meu irmão caminha em direção à câmera e a desliga, provavelmente
não querendo registrar a primeira transa deles após ficarem noivos.
— Por que está chorando? — Cassie pergunta, se sentando ao meu lado no
sofá da sala. Os cabelos estão molhados, deixando seus cachos em um tom de
loiro escuro. Seu corpo cheira a sabonete e lavanda. Enxugo as lágrimas,
bloqueando a tela do celular e o colocando no bolso da minha calça jeans.
— Rafael pediu a Antônia em casamento. Eu estava assistindo o vídeo e me
emocionei, só isso. — Confesso. Ela ri, brevemente, e logo adquire uma postura
séria. Somente agora percebo que Cassie está arrumada para sair, vestindo calça
jeans, uma blusa justa de mangas preta e botas de cano baixo, um traje parecido
com o que ela usava quando apareceu aqui pela primeira vez. — Vai sair?
A pergunta deixa Cassandra tensa.
— Quero conversar com você, antes.
A resposta me deixa tenso.
Nas últimas semanas, Cassie tem agido como se não me suportasse, negando
meu carinho, passando a maior parte do tempo trancada em seu quarto, até
mesmo Safira não está conseguindo abertura com ela.
Estou tentando lhe dar espaço. Deixei que ficasse sozinha com seus
pensamentos, me mantendo à vista apenas caso precisasse. Mas ela não precisou.
— Diga, coração. — Peço.
Cassie desvia o olhar do meu, abaixando a cabeça para observar suas pernas
cruzadas no sofá.
— Acho que não vou conseguir, Miguel. — O relato mais parece uma
confissão, como se essas palavras abrissem as portas para que seus pensamentos
mais profundos possam ser desvendados por mim.
— Conseguir o quê? — o tom apreensivo da minha pergunta chega a fazer
eco tamanho o silêncio que paira na sala. Tenho a impressão de que Safira
resolveu sair de casa na hora certa, o rumo dessa conversa está começando a me
preocupar.
— Fazer isso. — Responde, ainda cabisbaixa.
— Isso o quê, Cassandra? Olhe para mim e me diga exatamente o que quer
dizer, por favor.
Quando ela o faz, levantando a cabeça e mirando as orbes esverdeadas na
minha direção, sinto um calafrio tomar conta de mim. Não consigo enxergar
nada de bom nesse olhar, mas reconheço ele, era o mesmo que Cassandra tinha
quando chegou em casa e me viu ali, revelando que eu e sua irmã nos casaríamos
Nebuloso, essa é a palavra que mais define esse olhar.
— Acho que não sou capaz de suportar passar por essa gravidez, Miguel. Me
desculpe. — Dito isso, Cassie se levanta. Eu a sigo, segurando seu braço e a
virando para que olhe bem nos meus olhos.
— Como assim, “suportar”? Você está tão irritada comigo ao ponto de ser um
fardo carregar um filho meu? — indago, sentindo algo explodir dentro de mim.
Raiva? Indignação? Não sei definir ainda. Mas se ela estiver sugerindo o que eu
acho que está…
— Não tem nada a ver com você, Miguel! — algumas lágrimas rolam por seu
rosto. — É sobre mim! Não vou aguentar sete meses assim. Precisa escolher…
— NÃO! — grito, desesperado. — Nem pense em fazer isso, Cassandra.
Nem pense em me pedir para escolher entre você e o meu filho, caralho!
Ela fica em completo silêncio, parecendo prender a respiração. Fecho os
olhos, não querendo ver a expressão estampada no seu rosto que diz “é
exatamente isso que eu quero que você faça, Miguel.”
Estou tremendo, o ar me falta, minha cabeça gira pensando no quanto isso é
cruel. Comigo, com ela, com o nosso bebê, principalmente com ele. Que culpa
ele tem das coisas que eu fiz a ela?
Ouvir da boca dela que não irá conseguir suportar estar grávida de mim me
machucou como nada jamais o fez.
Sinto que algo se rompeu aqui dentro. É como se eu tivesse cruzado uma
linha que me levou a outro patamar do sofrimento, um tipo de dor invisível que
corrói todo o seu interior em segundos, mas que você não a sente fazer isso.
Quando percebe é tarde demais, ela já destruiu qualquer esperança que havia
dentro de você e a dor é tamanha que te anestesia. Eu sei que estou ferido, mas é
tudo tão intenso e maior que sentir a dor fica em segundo plano.
— Não é por maldade, como deve estar pensando. Eu só… Não quero falar
disso, mas acredite em mim quando digo que é muito para suportar. — Cassie
continua, terminando de me atormentar.
— E como acha que é para mim ouvir você dizer que não quer ter esse bebê?
Eu o quero mais do que tudo, me sinto devastado em saber que queremos coisas
diferentes. — Digo. Volto a sentar no sofá, minhas pernas tremem como se
estivessem me tirando o chão. De fato, estão. Ela está. — Não faça isso comigo,
Cassie. Me conte o que aconteceu, vamos superar isso juntos…
— Eu não posso te oferecer esse conto de fadas que tanto quer, amour de ma
vie. — Sua fala vem acompanhada de muito choro, fazendo sua voz embargar e
dificultando que coloque para fora cada uma dessas palavras.
Olhando assim, parece que Cassie realmente sente muito pelo que está
fazendo. Contudo, eu conheço sua força e determinação, quando ela quer algo,
vai até o fim para consegui-lo. A mulher à minha frente tem quatorze anos de
Exército, muitas lutas e conquistas nas costas, posso estar sendo injusto, mas não
entra na minha cabeça que logo ela queira desistir assim.
— Não quero um conto de fadas… Quero você e o nosso filho. Talvez eu seja
indigno disso? Sim, provavelmente. Mas foi Deus quem me deu, então é para ser
meu, é para ser nosso, coração. Ele nunca nos dá algo mais difícil do que
podemos suportar. — A encaro com lágrimas embaçando os olhos, permitindo
que eu veja apenas a figura do seu corpo em pé, as mãos inquietas, tremendo.
— Ele sempre me deu mais sofrimento do que eu sou capaz de suportar! —
Cassie murmura, soluçando. — E você nunca me escolhe. No fim das contas,
tudo é mais importante para você do que como me sinto.
— Como pode dizer isso, Cassandra? Estamos falando de uma vida, caralho!
Uma vida que NÓS DOIS FIZEMOS! Eu quero te ajudar, te quero do meu lado,
mas enquanto você não se abrir, não espere que eu adivinhe como se sente e faça
uma escolha, como quis no passado.
— Você já está fazendo uma escolha, Miguel, exatamente como fez no
passado. — Seu rosto agora é tomado pelo ressentimento.
É inútil tentar me acalmar, sou tomado por uma fúria que poucas vezes senti
na vida.
— Se você não se abrir, saiba que não será uma opção para mim. — Meu tom
é tão rude que a assusta. Ela dá um passo para trás. Eu me levanto. — Tem todo
o direito de não querer essa criança, mas eu quero. Como disse antes, quero mais
do que tudo.
— Então você…
— Escolho ele. Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a
vida do próprio filho. — Algo parece desmoronar dentro dela e por um instante,
me sinto bem sabendo que a machuquei tanto quanto ela me machucou. Apenas
um instante, pois no outro eu me sinto um lixo de homem que não conseguiu
fazê-la feliz. — Espero que não faça nenhuma loucura enquanto meu filho
estiver na sua barriga, Cassandra. Ou eu não sei o que sou capaz de fazer se você
for cruel ao ponto de tirá-lo de mim.
— Eu vou entregá-lo para você, Miguel. Nem que isso me custe toda a minha
vontade de viver, não se preocupe. — Responde, há mágoa impregnada em cada
uma de suas palavras.
Fazendo o mesmo estrondo quando chegou, ela se vai, batendo a porta forte e
pisando fundo no acelerador de seu carro até se afastar da minha casa.
Deixo que vá para longe de mim. Cassandra com raiva é como um caminhão
sem freio descendo uma ladeira, dificilmente você consegue parar sem se ferir
no caminho. E eu já estou machucado demais para permitir que ela destrua seja
lá o que tenha sobrado do meu coração.
Volto a sentar no sofá, esfregando os olhos para afastar as lágrimas insistentes
querendo cair a todo custo.
Quero gritar, socar alguma coisa na tentativa de aplacar um pouco dessa
tristeza que está me matando por dentro. Quando dou por mim, estou desferindo
socos no boneco de borracha do porão, tão forte que a cada vez que meu punho
acerta seu rosto ele é empurrado para trás e retorna na hora exata em que estou
pronto para acertá-lo outra vez no mesmo local, e assim sucessivamente.
Esse lugar tem o cheiro dela. Consigo facilmente imaginá-la em todos os
cantos daqui. Mas por algum motivo, a lembrança de quando ela se foi pela
primeira vez invade meus pensamentos.
Eu estava tremendo, sentado no sofá da casa de Cassandra com sua irmã ao
meu lado e seu pai à minha frente. O homem bufava alto depois de saber que
engravidei sua filha, parecia um verdadeiro touro e eu, um lenço vermelho
ativando sua fúria.
Não temia por mim, e sim por Clarice. Ela havia acabado de completar
dezoito anos, mas ainda era muito dependente dos pais.
Helena voltou para a sala com um copo de água misturada com açúcar para
seu marido tomar, ele dispensou, é claro, e a mulher ofereceu o líquido à sua
filha, abalada ao meu lado. Foi nesse momento que ela chegou. Cassandra ficou
alguns segundos estática na porta da sala, assimilando o cenário, e
principalmente a minha mão descansando na perna de sua irmã. Seus olhos se
focaram ali com tamanha intensidade que pareciam estar diante de algo
inacreditável, do tipo que ela jamais gostaria de ter visto.
— Você sabia disso, Cassandra? Foi você que acobertou essa palhaçada? —
Maurício perguntou, os olhos dela não se desviaram para olhá-lo.
— Do que está falando? — ela parecia saber exatamente do que se tratava,
mas também parecia precisar de uma resposta para acreditar no que seus olhos
constatavam.
— Sua irmã deu para esse filho da puta, Cassandra! Bem debaixo do meu
nariz! — ralhou, o rosto ficando vermelho. — Você estragou a sua vida, Clarice.
Não vai chegar a lugar nenhum! Eu te disse para focar nos estudos, ser uma
mulher independente, para só depois namorar. Eu queria o melhor pra você. E o
que você fez comigo? Foi contra tudo o que planejei.
— Maurício, se acalme. Não é o fim do mundo, vamos conversar e vai dar
tudo certo. — Helena interferiu.
— Vai sobrar para mim, isso sim, Helena. — Furioso, ele olhou para sua
filha mais nova, que se encolheu e apertou meu braço. — Eu te digo por
experiência própria, Clarice, tem que ser muito homem e amar muito uma
mulher para sobreviver a essa fase. E te digo outra coisa também, esse garoto
não é um homem que se preze, porque se fosse, não estaria comendo a filha de
alguém às escondidas, debaixo do nariz dele.
Naquela época, eu achava que Maurício estava louco. Me sentia um homem
feito e estava disposto a arcar com todas as consequências do que fizemos.
Amava Clarice com tudo de mim. Jamais teria coragem de abandoná-la.
Contudo, hoje, me lembrando desse dia, entendo perfeitamente o
posicionamento dele. Não concordo com tudo o que disse, mas como pai de uma
menina, consigo facilmente me identificar com ele.
— Eu vim aqui justamente para admitir que errei, mas também que estou
disposto a arcar com todas as consequências dos meus atos. — Finalmente tive
uma brecha para me posicionar. — Se o senhor tivesse me deixado dizer alguma
coisa desde que cheguei, eu teria dito antes.
— Agora que a merda já está feita não tem nada que possa dizer para
melhorar as coisas, garoto. — Ele se levantou, pegando a chave do carro em
cima da mesa e saindo de casa sem falar mais nada. Helena foi atrás dele,
passando por Cassandra, ainda parada na porta, chocada demais para dizer
algo.
— Cassie… — Tentei explicar, mas assim como seu pai, ela foi intransigente
e me interrompeu.
— Cale a porra da sua boca, Miguel. — Tão furiosa quanto Maurício, ela
direcionou o olhar para a irmã e disse: — Como pode querer que a gente tenha
uma boa relação se continua roubando tudo que deveria ser meu?
— Ele não te ama dessa forma, Cassie, não roubei nada de você. — Clarice
disse, chorando muito.
— Você não me ama mais do que tudo, Miguel? — minha melhor amiga
perguntou, me encurralando em um beco sem saída do qual eu não fazia a
menor ideia de como fui parar ali.
— Amo. Eu amo vocês duas, parem com essa discussão ridícula. — Me
levantei, querendo acalmar Cassandra, a ação teve o efeito inverso. Os olhos
dela ficaram nebulosos e direcionaram toda a neblina para cima de mim.
— Estou cansada dessa merda de todo mundo dizer que gosta de nós duas,
como se fôssemos parecidas demais para alguém conseguir escolher qual é a
melhor. Somos completamente diferentes, não tem como você amar as duas
igualmente, Miguel. Ou uma coisa ou outra. Escolha qual você realmente ama.
— Ordenou. Atrás de mim, Clarice soluçava de tanto chorar enquanto eu só
conseguia pensar que essa discussão toda estava fazendo mal ao bebê.
— Não vou escolher nada, Cassandra. Você é a minha melhor amiga, te amo
como se fôssemos irmãos. Clarice é a minha futura esposa, a amo por dois. —
Respondi, impulsivamente. Naquele dia eu também vi algo se quebrar dentro de
Cassandra, mas não entendi o porquê. Afinal, tínhamos uma relação de quase
irmãos.
Eu quebrei seu coração ao dizer com todas as letras que a amava como uma
irmã.
E sem perceber, fiz uma escolha ao dizer que amava Clarice duas vezes mais,
me referindo também ao nosso bebê.
Errei tentando acertar.
— Meu pai estava certo — Cassie afirmou, se contendo para não derramar
uma lágrima sequer na minha frente. — Você não é um homem que se preze,
Miguel. É um merda, sem caráter, que se aproveitou da burrice da minha irmã.
— Olhou para Clarice. — É isso que você é, Clari, uma burra! E vai perceber
isso quando ele fizer com você o que fez comigo, ficar com outra pelas suas
costas e dizer que não sabe escolher qual delas realmente quer.
Se ela tivesse atirado em mim à queima roupa não teria doído tanto como
doeu ouvi-la distorcer toda a situação.
Com sangue nos olhos, Cassie apertou a alça da mochila que carregava suas
coisas da Escola Militar no ombro e deu meia volta, mas antes de sair porta
afora para nunca mais voltar, ela disse:
— Eu te odeio, Miguel. Tomara que vocês dois sejam muito infelizes juntos.
QUEIMANDO NO INFERNO

Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
A frase ecoa diversas vezes na minha cabeça, doendo igualmente em cada
uma delas.
Um dia, cheguei a pensar que já haviam me destruído ao ponto de não sobrar
nada mais para ninguém poder fazê-lo.
Estava terrivelmente enganada.
Com essas palavras, Miguel estilhaçou o que seu amor estava reconstruindo
dentro de mim.
Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
Ao ouvi-lo dizer isso, senti que essa frase se tornaria um divisor de águas na
minha vida. Enquanto dirijo sem rumo, paro o mais longe que posso de sua casa,
percebo que foi a coisa mais cruel que já me disseram.
Não por ter sido dita com tamanha raiva como Miguel fez, mas por ser a mais
pura verdade, nua e crua, me estapeando sem usar as mãos.
Não quero uma mulher que tem a coragem de acabar com a vida do próprio
filho.
Eu também não quero ser essa mulher, Miguel.
A dor é tão forte que me tornou essa mulher, que prefere abortar um bebe
inocente do que lutar por ele, como uma mãe de verdade faria.
Acontece que as forças que me restaram não são mais suficientes para lutar
contra os meus demônios. Sinto que estou perdida em um labirinto onde não
importa para onde eu vá, o sofrimento me perseguirá do mesmo jeito.
Queria ser capaz de te explicar isso, Miguel, mas também não tenho forças
para fazê-lo. Ver a forma como te destruí com as minhas palavras drenou toda a
força que guardei para este momento, onde eu explodiria e destruiria tudo que
estivesse por perto.
Por isso dirijo para o mais longe possível, porque sei que com a quantidade de
raiva que estou sentindo, ainda há munição para outra explosão.
Seguro o volante com tamanha força que os nós dos meus dedos ficam
brancos. Piso firme no acelerador ao entrar em uma rua qualquer, deserta e cheia
de vegetação ao redor, um gatilho que ativa a memória do pior dia da minha
vida.
Assim que o Capitão Borges deu meia volta com a viatura para fugirmos do
tiroteio, fomos encurralados por diversos homens fortemente armados em uma
caminhonete. Eles faziam parte dos grupos hostis que representavam a
resistência contra o governo. Suas armas estavam apontadas para nossas
cabeças, não nos dando outra opção a não ser descer e colocar as nossas no
chão, como queriam.
Quando eles se aproximaram e nos renderam definitivamente, eu sabia que
aquele seria o começo do inferno. Fui para aquela missão ciente da extrema
violência que esses grupos ofereciam a qualquer pessoa ligada ao governo. E
pela primeira vez na vida eu desejei não estar fardada, queria estar em um lugar
seguro, onde eu pudesse manter meu filho na minha barriga em segurança.
Mas lá estava eu, sendo enfiada na caminhonete, condenada a conhecer o
extremo da crueldade humana em prol da missão que escolhi fazer parte.
E alguns meses depois, aqui estou eu de novo. Sendo encurralada por dois
carros numa rua deserta. Desejando não ter sido impulsiva e saído da casa de
Miguel. Querendo voltar para a proteção que os muros enormes daquela
residência me proporcionava. Pedindo internamente para Deus que haja uma
solução para seja lá o que esteja prestes a acontecer.
Por Miguel.
Pelo nosso bebê.
E talvez, se Ele achar que sou digna de uma outra chance, por mim também.
— Desça do carro, Cassandra. E nem pense em reagir, senão seu corpo vai
parecer uma peneira de tantos tiros que vai levar. — A voz conhecida me
apavora, estou tremendo quando tiro a chave da ignição e saio do automóvel,
sendo pressionada contra a porta e tendo meus pulsos algemados atrás das
costas.
Através do vidro, a última coisa que vejo é o sorriso no rosto de Eric antes de
ele bater minha cabeça contra a superfície do automóvel e a escuridão preencher
todo o meu campo de visão.

O lugar para onde os rebeldes levaram eu e os meus homens era escuro e


sujo. Cheirava a esgoto. Era abafado. Não havia sinal de nenhuma janela. A
única luz no ambiente vinha por debaixo da porta, que foi brutalmente aberta
algumas horas depois que acordei.
Cerca de oito homens passaram por ela, um deles ligou uma lâmpada e só
então me dei conta de que o lugar era muito pior do que eu havia deduzido.
Éramos cinco militares capturados. Sendo eu a única mulher do grupo. Foi
inevitável não temer o que fariam especialmente comigo. Eu seria estuprada
com meu filho ainda na barriga. As lágrimas começaram a cair assim que o
pensamento se fez. Um dos rebeldes chegou bem perto de mim ao notar o meu
desespero, e alisou minha testa delicadamente. Suas mãos estavam sujas e ele
cheirava mal, combinando com o lugar onde eu estava sendo mantida presa.
O gesto me deixou enojada como nada jamais o fez. Senti raiva por estar em
uma posição tão submissa, e principalmente por estar chorando feito uma
menina usando a farda.
Depois de oferecer um sorriso de dentes podres, o homem se afastou. Eu
soltei o ar e encarei meus companheiros. Eles pareciam querer encontrar um
meio de sair dali a todo custo, seus olhos não paravam quietos, todos tentando
achar uma vantagem para nós naquela sala.
Mas não havia nenhuma.
Éramos cinco contra oito. Sendo que os oponentes estavam fortemente
armados e acostumados a lidar com esse tipo de armamento.
Um deles disse algo na sua língua nativa, o Sango, que fez o Capitão Borges
arregalar os olhos na minha direção. Não tive tempo de perguntar o que ele
ouviu. Não foi preciso.
Eu entendi tudo ao sentir o sujeito nojento me arrastando pelo chão até eu
estar próxima de uma mesa no canto do ambiente.
Meu coração batia tão forte dentro do peito que minha cabeça começou a
doer no mesmo instante, tamanha rapidez do fluxo sanguíneo percorrendo meu
corpo naquele momento.
Eu estava mais viva do que nunca. Não havia necessidade daquele
desgraçado descarregar a energia do desfibrilador em mim.
Meu coração literalmente quase foi parar na boca todas as vezes que o
choque me atingia.
A risada do homem que me torturava era estridente. Enquanto eu agonizava,
só conseguia pensar que talvez o diabo fosse bem humorado. E que talvez o
inferno não queimasse.
Meus órgãos estavam queimando.

PUTA QUE ME PARIU!


Não acredito que a loira resolveu convulsionar logo hoje.
Logo agora, cacete!
— Segura ela pelo ombro, Juliano. Vamos deitar ela de lado no chão. —
Ordeno, segurando as pernas de Cassandra enquanto seu corpo sofre uma
convulsão.
— Eu faço mais o quê, patrão? — Juliano pergunta, apavorado.
— Nada. Temos que nos manter afastados e esperar até passar. — Mantenho
uma certa distância. Meu subordinado faz o mesmo.
— Como o senhor sabe disso?
Cruzo os braços. Não desvio o olhar do corpo de Cassandra ao responder:
— Minha sogra tinha convulsões quase toda semana.
Ele assente, fazendo da minha resposta o suficiente, exatamente como tem
que ser.
Pareço calmo, mas por dentro estou apreensivo. Cassandra é a peça chave do
meu plano, se algo lhe acontecer… O jogo muda, e eu estou morto. Não é isso
que eu quero. Meu interesse nisso tudo é apenas um: o porto. O resto fica para o
merdinha que me ofereceu esse plano.
Ele sim é o vilão que Miguel precisa deter. Eu sou apenas uma fachada, uma
distração para que o verdadeiro diabo pareça inofensivo aos olhos dos Sovat.
Volto a respirar normalmente quando a convulsão cessa e Cassandra recobra a
consciência. Me ajoelho do seu lado, impedindo que se levante. Observo-a por
alguns instantes, querendo ter certeza de que está sem sequelas. Ela parece
desnorteada, sem fazer a menor ideia do que aconteceu.
— Você teve uma convulsão. Como se sente? — pergunto, aliviado por ter
decidido tirar suas algemas assim que chegamos aqui. Caso contrário, ela
poderia ter quebrado os pulsos.
— Com nojo por ter que olhar para essa sua cara de novo. — Cospe as
palavras, arredia como imaginei que seria.
— Então está ótima. — Lhe ofereço um sorriso cínico. — Vem, Juliano. Leve
a leoa para a jaula. — Mando. Ele se aproxima e algema Cassandra, levantando-
a em seguida. Estou cara a cara com ela quando digo: — Espero que a sua
estadia aqui seja breve. Mas não depende de mim. Vamos ver o que Miguel está
disposto a abrir mão por você.
Por um breve instante, a confiança dela é abalada. Como se Cassandra não
acreditasse que Miguel a ama para tal.
Gesticulo para Juliano, que entende o recado e arrasta a mulher consigo em
direção ao andar abaixo do que estamos. Assim que os vejo sumir porão adentro,
pego o telefone no meu bolso e realizo uma chamada para o número de Miguel,
desejando que Cassandra esteja errada e que o primogênito dos Sovat esteja
disposto a ir até o inferno para salvá-la.
CARTAS DE ESCLARECIMENTO

Minhas mãos estão inchadas quando resolvo que é hora de parar de judiar do
boneco de borracha e subo as escadas rumo ao segundo andar da casa,
planejando passar direto pelo quarto de Cassie. Contudo, isso não acontece.
Entro a passos incertos no ambiente e acendo a luz.
É claro que o cheiro da desgraçada tem que estar na casa inteira!
Mesmo com raiva, inspiro seu aroma. Ele está impregnado em cada canto
daqui, como se a parede e os móveis fossem tão fissurados por senti-lo quanto
eu.
O local possui uma arrumação impecável, nem parece que a dona desse
quarto é o próprio furacão. Sento em sua cama, passando as mãos pelo edredom,
não querendo me desfazer das lembranças de quando fizemos amor bem aqui.
Eu já comparei Cassandra com inúmeras coisas, mas nenhuma delas foi tão
certeira do que compará-la à um raio de sol.
Ela brilha.
Assim como queima.
Ela ilumina.
Tanto quanto faz arder.
Foi ingênuo da minha parte achar que poderia rodeá-la sem me queimar.
Estou levantando da cama dela quando esbarro na sua mesa de cabeceira e
alguns papéis caem no chão. Bufo, frustrado, me abaixando para recolhê-los, e
sou surpreendido ao perceber que se tratam de cartas. Uma delas está aberta.
Reconheço a letra cursiva bem arredondada, o que não entendo é porque Cassie
escreveria uma carta para si mesma.
Para a Cassandra do passado.
Você fez tantas merdas que não consigo pontuar qual delas foi a mais decisiva
para te condenar ao inferno que viria a ser sua vida mais adiante. Você foi
egoísta, invejosa e amarga. Talvez ver a própria mãe desfalecendo diante dos
seus olhos tenha acabado com qualquer esperança que havia dentro do seu
coração. Mas ao invés de se abrir e buscar coisas boas, você escolheu semear o
ódio. Talvez mereça tudo o que te aconteceu, no fim das contas.
Estou tremendo enquanto seguro o papel. Lágrimas ameaçam voltar a cair. Se
Cassandra foi capaz de empregar tanto rancor em palavras destinadas para ela
mesma nem consigo imaginar o quão piores podem ser as cartas adiante. Mesmo
com receio, passo uma das folhas para frente, desembrulhando-a. Respiro fundo
ao ler o remetente.
Para Clarice.
Eu gostaria que a imaturidade tivesse pego mais leve comigo quando penso em
você. Eu tinha doze anos quando decidi que você era uma ameaça a tudo que eu
queria. E fiz da nossa relação uma rivalidade.
Estou me segurando para não escrever a palavra perdão mil vezes nesta
carta. Está difícil porque a cada vez que penso no que eu podia ter feito
diferente, essa palavra vem à minha mente. Ela não é o suficiente para
demonstrar o quanto me arrependo. Mas penso que se estivéssemos em lados
diferentes, e você fizesse uma carta para mim onde escreveu perdão mil vezes,
eu sentiria a sua culpa com mil vezes mais intensidade.
Perdão por…

No restante da carta, Cassie faz exatamente o que propôs, pede perdão
diversas vezes e lista todas as coisas das quais se arrepende. Não leio até o fim,
embrulho o papel novamente. Sem querer, deixo que algumas lágrimas caiam em
cima da próxima carta. Mas não o suficiente para impedir que eu leia o
remetente.
Não reconheço o nome, e isso me intriga ainda mais a continuar mergulhando
nas palavras escritas a mão por Cassandra. É como se através dessas cartas eu
recebesse uma porta que me permitisse mergulhar na imensidão dos
pensamentos dela. Por essa ser a primeira oportunidade que tenho de entender o
que se passa na sua cabeça, sinto uma necessidade absurda de decifrar o que
cada linha significa para ela, como Cassie se sentia quando escreveu.
Devoro as próximas duas cartas como se esses pedaços de papéis explicassem
tudo o que venho buscando há muito tempo. A cada linha, perco o fôlego, e
preciso parar por alguns segundos para me recuperar.
Para Felipe.
Você viu beleza em mim antes mesmo de poder decifrar os traços do meu rosto
em meio à lama.
Você se apaixonou antes mesmo de perceber o quão intenso era o coração
que havia conquistado. Mas ao contrário do que pensei, você não quis voltar
para a superfície. Você mergulhou fundo no mar imenso de sentimentos que
havia dentro de mim. Não se assustou com as ondas bravas que de vez em
quando apareciam. Você morreu sem conseguir explorar tudo o queria, mas eu
ainda te guardo aqui dentro, no meu mar interior, porque sei que não há outro
lugar do qual você iria querer estar.
Amo você com todo o caos que habita dentro de mim.

Para o meu bebê.
Você se foi da mesma forma repentina como chegou. Se eu tivesse previsto a
sua chegada, teria feito tantas coisas diferentes. Tenho muitos arrependimentos,
mas com certeza esse é o maior. Não sei se a culpa foi minha, de qualquer
forma, peço perdão por não ter conseguido manter você em segurança dentro de
mim. Foi pesado demais, até hoje não sei como eu mesma aguentei. Quase todos
os dias eu desejo ter ido junto com você. Talvez assim fosse mais justo. Menos
sofrido. Porque a tortura não acabou quando me resgataram, ela começou
naquele dia. A dor dos choques não chega nem aos pés da dor de perder você,
meu bebê.
Espero, de coração, que esteja melhor do que quando estava na minha
barriga. E que um dia a gente se encontre.
Amo você com todas as minhas forças.

Não…
Ela não…
Meu Deus!
Largo os papéis em cima da cama e corro para a sala, onde deixei meu
telefone. Assim que o tenho na minha mão, faço uma chamada para o número de
Cassandra, aflito, querendo ouvir sua voz o mais rápido possível. Ela não atende.
É claro que não vai atender… Deve estar sentindo um ódio descomunal de mim.
Resolvo ligar para Helena, torcendo para que ela esteja com Cassie e me
ajude a resolver as coisas.
— Alô, Miguel? — ela atende. Parece tranquila.
— Helena, Cassie está por aí? Ela saiu daqui sem dizer para onde ia, nós
brigamos e…
— Calma, Miguel. Vamos por partes. Não falo com Cassandra há um tempo.
Algumas semanas, acho. Ela não apareceu por aqui. Que horas saiu daí?
— Faz uma hora, eu acho… — Respondo, minha cabeça girando de
preocupação. — Se ela aparecer, me ligue, Helena, por favor. Precisamos
conversar.
— Claro, ligo sim.
Depois de me despedir, desligo a ligação com o coração apertado. Odeio
pensar em Cassandra dirigindo, furiosa comigo, e grávida. Essa combinação não
é nada boa.
Estou tentando me acalmar quando meu telefone toca novamente. Pego o
aparelho achando que se trata de Helena me ligando para avisar que Cassie
acabou de chegar na sua casa, mas sinto um alívio momentâneo ao ver que se
trata do número de Cassandra.
— Cassie? — chamo, assim que atendo.
— Ela está enjaulada nesse momento, mas você pode conversar comigo para
negociar a soltura dela. Que tal?
O alívio se esvai, dando lugar ao desespero, no instante que ouço a voz
masculina.
DUAS PRECIOSIDADES

— Quem fala? — tento ser intimidante ao perguntar. O homem do outro lado


da linha ri, antes de me responder, sem se intimidar nenhum pouco.
— O seu pesadelo, talvez? — ri de novo. — A gente nunca se conheceu
pessoalmente, mas creio que você saiba quem sou eu. Nossas famílias têm uma
história juntas, sabe...
Fecho os olhos com força, como se com o gesto eu pudesse fazer as últimas
horas desaparecerem e impedir que isso acontecesse.
— Eric Filho da Puta Motta — cuspo as palavras. — Posso saber por que
caralhos você está com a minha mulher?
O desgraçado gargalha.
— Bom, eu não estou com ela nesse sentido, não se preocupe.
— Não estou preocupado. — Estou preocupado pra caralho mesmo.
— Pelo menos não hoje. — Completa, irônico.
— Como assim, "não hoje”?
— Eu estive com Cassandra em uma balada há um mês atrás, mas isso não
vem ao caso agora… — Controlo o impulso de jogar o celular no chão e pisar
em cima dele quando imagino Cassie nos braços desse merda. — O negócio é o
seguinte, Miguel: se você quiser a sua mulher de volta vai ter que me dar algo
em troca.
— Você tem cheirado o pó que roubou de mim ou perdeu a noção do perigo
mesmo? Quem pensa que é para querer barganhar comigo, seu puto?
— Hmm… Deixa eu ver… Sou o cara que tem a sua mulher presa.
— Por enquanto…
— Sim, somente enquanto você agiliza a chegada da nova mercadoria e
entrega ela para mim.
Quem ri dessa vez sou eu.
— Sem chance. Leve Cassandra para o mesmo lugar onde a pegou antes que
seja tarde demais para você, Eric. — Ordeno. Ele suspira lentamente.
— Sem chance, Miguel. Se for começar a planejar a caçada por mim, lembre-
se de planejar o funeral da sua mulherzinha, porque eu estou disposto a levá-la
comigo para o inferno caso não me dê a carga e o seu lugar no porto.
Ele é louco. Esse idiota é mais louco do que seu pai era.
Fabricio Motta testou os limites da loucura ao roubar a carga de Cícero Sovat.
Ele pagou com a própria vida o preço da sua ousadia. E posteriormente meu pai
também recebeu o pagamento por brincar de Deus.
Esse é o custo de não temer e não ser temido.
Não respondo de imediato, tiro alguns segundos para tentar colocar as coisas
em ordem na minha cabeça. No entanto, o grito de Cassie no fundo da ligação
me desnorteia completamente.
— Faz ela calar a boca, Juliano! — Eric grita para alguém.
— Não encoste um dedo sequer nela, Eric. Ou eu arranco todos eles quando
te encontrar, seu filho da puta doente! — ralho. O sangue ferve dentro das
minhas veias.
— Ah, cala a boca. Você gosta de aturar os surtos dela, eu não. — O som dos
gritos de Cassandra cessam. — Olha só, a sua cadela dá muito trabalho, viu? Ela
teve uma convulsão assim que chegamos, é melhor você…
— O que você fez com ela, Eric? Cassandra está grávida! Juro que enfio um
poste no seu cu se ela perder o nosso filho por sua causa!
Ele fica em silêncio durante alguns segundos.
— OUVIU, ERIC? — esbravejo.
— Eu não sabia que ela estava grávida. É melhor ainda, tenho duas das suas
preciosidades em mãos, e só estou lhe pedindo que ceda o lugar no porto. —
Responde, cínico.
Pondero dar a ele o que quer. Se dependesse somente de mim eu trocaria tudo
para ter Cassie de volta a salvo, mas não depende. Minha família, meu sócio,
meus soldados… Estarei comprometendo o futuro de todos caso faça isso.
— Vai fazer mal ao bebê ficar sob esse estresse todo, Miguel. E só depende
de você. Me entregue as coisas que pedi e eles voltam para casa a salvo.
— Quem me garante? — insisto, não querendo me render, e ao mesmo tempo
cogitando fazê-lo.
— Não há garantias. Mas se serve de alguma coisa, te digo que não estamos
em guerra, sua mulher não corre perigo se fizer tudo certo. Eu sou justo até
mesmo na hora da vingança, nossos problemas acabaram no momento em que
matei seu pai. — Ele fala, com uma imperiosidade que sinto do outro lado da
linha.
Durante anos, tratamos a morte do meu pai como algo injusto, cruel. Mas a
verdade é que foi o fim de um ciclo sujo que estava destinado a ter o fim que
teve. Nós, familiares, é quem escolhemos distorcer as coisas no dia a dia, para
ver se dói menos pensar que Cícero Sovat não merecia morrer com vinte e cinco
tiros disparados contra o seu corpo.
Entretanto, ele mereceu.
Mas ouvir Eric confessar ser quem colocou um fim nisso me faz achar injusto
tal ato.
— E como, na sua cabeça fodida, pode ser justo me roubar? — indago,
sabendo que receberei mais uma das suas respostinhas espertas e cheias de
ironia.
— Eu tentei arranjar um espaço para receber as minhas droguinhas no porto
humildemente, mas não consegui. Você é o único que pode reinar lá. Então eu
preciso roubar a sua coroa. — Completa a fala com uma das suas risadas
ridículas.
— Não podia encontrar outro meio de receber as suas coisas, seu idiota?
— Não. Além de ser mais complexo, não seria tão nostálgico quanto um
Motta roubando a mercadoria dos Sovat. — Ri de novo. Eu cerro o punho. —
Enfim, a sua próxima carga chega em três dias. Tem setenta e duas horas para
me dizer se seu filho e a sua mulher valem mais do que a tonelada de pó que está
chegando.
Dito isso, Eric põe um fim na ligação.

Me sento no chão frio, onde antes eu estava deitada, ao ouvir os passos do
tênis de Eric se aproximando da minha masmorra. O outro homem, Juliano, me
deixou aqui há algum tempo. Seus passos são mais suaves, sem a imponência
que o chefe dele emprega a cada vez que bate o pé no chão.
Eu resisti à vontade de chorar como uma garotinha, encolhida em posição
fetal, durante todo esse tempo. Mas a apreensão para saber o que Miguel e Eric
decidiram faz uma lágrima solitária escorrer pelo meu rosto.
Ele deve realmente estar me odiando nesse momento. Não só pelo que fiz
antes de deixar sua casa, mas também por ter me metido nisso. Será que eu
nunca vou conseguir ficar longe de problemas? A cada segundo me convenço de
que sou um imã para eles, essa é a única explicação.
Novamente, fiz uma escolha péssima que coloca em risco a vida do meu
bebê.
Miguel nunca me perdoará se perdê-lo aqui, dentro dessa cela maldita. Na
verdade, ele não vai ter misericórdia de mim se eu perder essa criança em
hipótese alguma. Eu vi isso explícito na maneira como me olhou pela última vez.
— Acho que você é uma galinha dos ovos de ouro, Cassandra. — Eric
zomba, abrindo a grade da cela. O desgraçado destampa uma garrafa de água e
me oferece. Estou sentindo muita sede. Se dependesse apenas de mim, preferiria
morrer desidratada a beber uma gota dessa água. Meu orgulho jamais permitiria
que eu o fizesse. No entanto, pelo feto que a cada dia ganha vida dentro de mim,
abro a boca apenas o bastante para que Eric derrame um pouco do líquido nela.
Alguns goles não são suficientes, a sede é tamanha que bebo a garrafa inteira em
mais algumas goladas.
— Não sabia sobre a gravidez? Que porra de sequestrador é você que nem se
dá ao trabalho de estudar as suas vítimas? — É a minha vez de ironizar. Me
afasto dele, cruzando as pernas em formato borboleta. Eric encosta na parede,
ainda com a garrafa vazia nas mãos. Ele não possui a mesma confiança
inabalável que tinha quando chegamos. Parece… Com medo. Os olhos estão
fixados na parede do outro lado do cômodo, a respiração pesada e o pé batendo
no chão de forma inquieta.
— A questão é que você não me interessa. Só está aqui por ser a putinha do
Miguel. O bebê é uma vantagem que não esperava ter, mas de qualquer forma eu
sairia ganhando.
— Não tenha tanta certeza disso. — Contra-argumento. — Eu e Miguel
brigamos feio hoje. Duvido muito que ele moveria um dedo para me salvar se eu
não estivesse carregando o filho dele.
Se eu não estivesse carregando o filho dele, provavelmente também não
teríamos brigado… — Meu subconsciente alerta. Deixo essa parte de fora. Eric
não precisa saber que está com a sorte a seu favor.
— Nós dois sabemos que isso não é verdade, Cassandra. Miguel pode ter
aquele tamanho todo e o corpo de um brutamonte, mas todos sabem que por
dentro ele é um ursinho caridoso. — Desdenha. Eric não está errado, sua
definição de Miguel é certeira. Contudo, eu vi a ira transbordar dos seus olhos
quando ameacei lhe tirar algo que quer mais do que tudo.
Não havia vestígio do homem carinhoso das últimas semanas, apenas um
aviso implícito de que qualquer coisa que ele teria sentido por mim se esvairia e
ele me faria pagar caro pela minha crueldade.
Quando decidi contar sobre a minha decisão de não querer prosseguir com a
gravidez, não sabia bem o que esperar. Miguel, assim como eu, é intenso. Não há
como prever de que forma nós iremos reagir. Nem mesmo sabemos conter a
avalanche de emoções que nos invade sem pedir permissão. Contudo, se eu
soubesse que veria tantos sentimentos dolorosos através da imensidão azul que
carrega em cada orbes, eu teria ido embora sem avisá-lo.
Covarde da minha parte? Talvez.
Mas só eu sei o tamanho da dor que carrego. Vê-lo tão devastado apenas
serviu para aumentar o peso nas minhas costas.
Se eu perder esse bebê…
Essa culpa será demais para suportar.
Preciso resistir. Me acalmar, tornar meu corpo um bom lugar para essa
criança estar.
Penso em Miguel ninando nosso filho. Imagino um menino em seus braços,
como ele quer, e mentalizo seu sorriso largo enquanto balança o pequeno bebê
encoberto por uma manta num movimento semelhante ao de um barco
velejando.
Por incrível que pareça, a imagem me tranquiliza. Gosto do que vejo. Gosto
tanto que imagino vários outros momentos onde eu e Miguel cuidamos do nosso
filho. Me apego tão intensamente a esses pensamentos que durmo desejando
voltar logo para casa e transformá-los em realidade.
ALERTA VERMELHO

— De jeito nenhum! — Samuel esbraveja, puto como nunca o vi antes.


Assim que Eric desligou a ligação, chamei meus irmãos para virem até a
minha casa. Os dois compartilham da mesma frustração que eu depois de
saberem das condições que o desgraçado impôs para libertar Cassandra. No
entanto, Samuel está injuriado, irredutível a ceder tudo pela mulher que amo e o
meu filho. Ele ainda não sabe sobre a gravidez, mas na sua cabeça fodida,
provavelmente isso não muda nada.
— O que quer fazer, Mica? — é Rafael quem pergunta. Seus olhos alternam
entre mim e nosso irmão mais novo. A tensão paira no ar à medida que Samuel
respira pesadamente.
— Nem pense em dar o que ele quer — ameaça, me fulminando com o olhar.
— Eric está com a minha mulher e o meu filho, Samuel! — ele continua me
encarando, indiferente. — Sei que isso não quer dizer nada para você, na sua
vida o seu umbigo é o único que realmente importa. Mas para mim, minha
família vale tudo.
— Ela não é sua família, Miguel. Pare de se iludir. — Rebate, frio e sincero,
assumindo a camada de gelo que reveste o seu interior.
Sabendo que as palavras do nosso irmão acertaram em cheio uma parte
vulnerável de mim, Rafael se levanta a tempo de me impedir de avançar em
Samuel e descontar nele tudo o que Eric merece.
— Opa, opa. Alerta de altos níveis de cortisol por aqui. — Ironiza. Suas mãos
empurram meu peito até que eu esteja sentado no sofá novamente. Rafael
permanece de pé, se dirigindo a Samuel ao dizer: — Cassandra cresceu com a
gente. De um jeito ou de outro ela faz parte da família.
— Ela está grávida. — Completo, fazendo Rafael arregalar os olhos e Samuel
bufar.
— Melhor ainda. — Sorri, na tentativa falha de me tranquilizar.
— Então é por isso que você está se iludindo… — Cerro o punho para meu
irmão ao ouvir seu tom de desdém.
O que deu nele para agir assim?
— É melhor calar a boca, Samuel. — Rafael faz o favor de alertar, ficando
puto também.
— Não! — se levanta. — Não vou aceitar ver você destruindo tudo que nosso
pai construiu por causa de um fogo no cu! Quer trazer a mulher de volta para
viver o seu conto de fadas de merda? Beleza, agora arranje outro jeito.
— Samuel… — nosso irmão do meio alerta novamente. Eu me levanto,
cruzando o pequeno espaço que nos separa, até estar com a garganta de Samu
entre os dedos e pressionando seu corpo em uma das paredes.
— Retire o que disse — ordeno, o tom de voz fingindo cautela. Sinto ele
engolir em seco. Sua face ainda mantém a expressão indiferente.
— Mantenho cada palavra. — Diz, entredentes. Não parece que estou diante
do meu irmãozinho caçula, o que dividia a cama comigo diversas noites quando
criança, o mesmo que sempre me apoiou e confiou cegamente nas minhas
decisões. Aperto seu pescoço com mais afinco, como se realmente não sentisse
nenhuma conexão com o homem à minha frente.
Eu perdi a razão?
Ele está sendo insensível?
A capacidade de discernimento se esvaiu quando descobri que a mulher que
eu amo corre perigo. Quero dar tudo de mim para trazê-la de volta. Talvez seja
errado esperar que um homem como Samuel, que nunca amou alguém com tudo
dentro de si, entenda a minha necessidade.
Mas ele é meu irmão, porra!
Nós nos ajudamos, fazemos o que for preciso um pelo outro.
— Pare com isso, Miguel. Vamos consertar as coisas de um jeito que fique
bom para os dois. Solte o pescoço dele. — Rafael implora. Não me mexo
nenhum centímetro, mantenho os olhos nos de Samuel e o pulso firme
pressionando sua garganta até o limite, fazendo lágrimas escorrerem e o ar lhe
faltar.
— Espero que você nunca precise sentir o desespero de perder a pessoa que
mais ama no mundo. Tomara que seu coração seja sempre assim: à prova de
amor e compaixão. Porque se um dia você estiver na minha posição, não vai
sobreviver. Você é covarde demais para aguentar algo tão doloroso e continuar
de pé. — Tiro as mãos de perto dele, lhe dando as costas. — Acha que com
apenas o lucro das empresas conseguimos viver por mais um ano sem mexer no
dinheiro investido, anjo?
Rafael ajeita os óculos, pensativo, fazendo cálculos para me responder com o
máximo de precisão.
— Acredito que sim. Teríamos que cortar alguns gastos extravagantes, mas…
passar fome é que não vamos.
Respiro, aliviado. Graças a ele, lavamos o dinheiro vindo do tráfico através
das empresas em que possuímos ações no nome da nossa família. Algo que meu
pai não se dava ao trabalho de fazer e que agora será a nossa salvação.
— Ótimo. Faça um planejamento financeiro com tudo que precisaremos
cortar ou reduzir para viver utilizando apenas a renda das empresas, por favor.
— Ele assente.
— Então é isso, vai dar o nosso lugar no porto para aquele filho da putinha?
— Samuel indaga, depois de se recompor. O rosto dele ainda possui um tom
avermelhado, bem como o pescoço, onde a marca dos meus dedos deixou um
rastro escarlate na pele bronzeada.
— Por enquanto, sim. Eric não está para brincadeira. Ele falou comigo com
muita determinação, como se fosse um caso de vida ou morte. Cassandra está
sensibilizada por conta da gravidez e de algumas coisas que aconteceram com
ela. Não posso correr o risco de deixar que algo aconteça novamente, Samuel.
Nunca vou conseguir viver em paz se Eric machucá-la e eu souber que podia ter
feito mais para impedir. — Seguro meu rosto entre as mãos, esgotado, mas
incapaz de parar de lutar para trazer Cassandra de volta em segurança. — Então
sim, vou dar o porto a Eric. Podemos encontrar outra forma de receber a
mercadoria. E além do mais, tenho outros projetos em mente.
Me lembro da proposta de Apolo. Ela é promissora e será de grande ajuda
agora que iremos perder a nossa principal fonte de renda.
— E quem garante que ele vai mesmo entregar Cassandra? É arriscado e
incompetente da sua parte apostar nosso futuro desse jeito.
— É por isso que chamei vocês, preciso de ajuda para montar uma estratégia
que certifique que tudo correrá bem.
Samuel desiste de tentar ir contra mim e vai para a cozinha, voltando depois
de alguns minutos com dois copos de água. Aceito um e Rafael fica com o outro.
Bebemos o líquido em silêncio. O clima é de pura tensão. Qualquer pessoa que
entre aqui irá senti-lo. Podemos não dizer nada, mas nossas mentes estão
fazendo barulho enquanto pensam em uma forma de fazer as coisas darem certo.

Duas horas, doses de uísque e algumas ligações depois, estamos acabados,


jogados no tapete da minha sala. O relógio marca três da manhã quando
finalmente temos um plano. No entanto, ele só poderá ser colocado em prática
daqui a dois dias.
Estou exausto, mas não há chance alguma de eu subir e dormir enquanto
Cassandra não voltar para casa. Minha cabeça está lotada de coisas que preciso
lhe dizer. Meu corpo quer o dela. Continuo vidrado em buscar resquícios do seu
cheiro.
Não vou aguentar dois dias assim.
— Agora precisamos decidir quem vai buscar Cassandra… — Samuel diz.
Com um olhar severo, o interrompo.
— Eu vou buscar a minha mulher pessoalmente.
Meu irmão caçula está prestes a contra-argumentar quando a voz
inconfundível da nossa mãe lhe poupa o trabalho ao dizer:
— Não. Você não vai.
POR NÓS

Um dos principais pilares do treinamento militar é a resistência. Muitos


pensam que resistir se resume à capacidade de aguentar algo doloroso e
perturbador por um determinado período de tempo. Não é bem assim.
Dependendo do tipo de coisa a que somos expostos, vai muito além disso.
Quando estamos falando de torturas, período em cárcere privado, ou qualquer
outra forma de trauma físico e mental, a sua resistência não termina no momento
onde você se vê livre daquilo. Ela precisa perdurar por todo o pós-
acontecimento.
As marcas, muitas vezes, não estampam o nosso corpo, e sim a mente. Elas
ficam frisadas na cabeça, fazendo dela um lugar do qual iremos estar
constantemente querendo sair, mas impossibilitados de fazê-lo.
Bom, não completamente.
O suicidio é sempre uma opção. Não é à toa o número de militares que
cometem este ato depois de retornarem das missões.
É aí que entra a verdadeira resistência.
Eles não são fracos por terem se rendido ao desejo de pôr um fim nas
lembranças dolorosas. Eles chegaram a um ponto onde a força que precisavam
para se manterem de pé era tamanha que sugou toda a vontade de viver que
tinham. Dessa forma, a morte pareceu insignificante, pois o sofrimento já havia
sido responsável por sugar tudo de bom que restava neles.
Eu vivo constantemente cruzando a linha onde a morte é insignificante, e
retornando para o outro lado, em que a vida ainda tem um resquício de cor.
Safira foi quem me puxou do abismo assim que retornei ao Brasil. Ela não faz
a menor ideia disso, mas grande parte da minha resistência é por causa dela.
De um jeito torto, Miguel também tem participação nisso. Odiá-lo me fez
bem por um tempo, foi bom poder descontar em alguém vivo todo o meu rancor.
No entanto, me sentir amada por ele foi o que mudou tudo.
Nas últimas… deixa eu conferir no relógio de pulso… exatas quarenta e seis
horas, senti falta do seu acolhimento. E em poucas horas cheguei a conclusão de
que estraguei, novamente, outra coisa incrível que poderia acontecer na minha
vida.
Eu não busco a felicidade, entretanto, parece que ela me persegue, e sempre
acabo ficando desapontada quando nos desencontramos. Talvez eu a queira, mas
sinta que não a mereço…
Provavelmente esse é o grande problema.
Resisto todos os dias pelas pessoas que me amam, e nunca porque quero
viver, nunca por minha causa.
Estou há quarenta e seis horas pensando que devo manter a calma porque tem
um bebê dentro de mim e porque o pai dele o quer muito.
Apenas por isso.
Não pensei nas coisas que ainda quero viver, nos lugares que quero conhecer,
no quanto quero ser mãe e viver a maternidade porque sempre foi o meu sonho.
É agora que acabo de perceber que a grande resistência tem que ser sobre
mim, a força da minha vontade de viver necessita ser tão grande quanto a dos
motivos pelos quais eu preciso estar viva.
Quero que seja feliz, Borello. Você merece, ouviu? Você é a mulher mais
forte, linda e incrível que eu já conheci. Então ordeno que não faça menos do
que ser feliz, entendeu? — me recordo das palavras de Felipe.
— Acorde, galinha. — A voz irritante de Eric ressoa pela cela.
Eu mereço a felicidade.

Meu estômago está embrulhado enquanto aguardo a chegada de Miguel ao


lado de Juliano. Estamos na mesma rua onde fui capturada. Alguns carros foram
parados no meio da viela para impedir que alguém avance. Um helicóptero
sobrevoa a área acima de nós. Provavelmente coisa de Eric para se certificar de
que sairá ganhando.
Tenho minhas dúvidas.
— Onde o seu patrão está? — pergunto para Juliano, aflita com a demora.
Estamos parados aqui há uns trinta minutos.
— Indo buscar a mercadoria dele. Sua sogra está a caminho. — O homem
diz, ríspido.
— Não é Miguel quem vem me buscar?
Como resposta, recebo um menear de cabeça que me faz olhar adiante. Do
outro lado da barreira o Range Rover preto para no meio da estrada sem asfalto,
sendo seguido por outro automóvel, da mesma cor, que não reconheço. Os vidros
são muito escuros, assim como a lataria, me deixando ansiosa para encontrar um
rosto conhecido saindo dali.
— Suzana Sovat acabou de chegar, senhor. — Juliano avisa através do
telefone que tem em mãos.
Imponente, ela sai do carro pela porta do motorista, dando alguns passos até
estar em frente ao capô. Quatro homens a acompanham depois de saírem do
outro automóvel, segurando fuzis apontados para cima.
— Vá. — O capanga de Eric ordena. Fico estática, desconfiando da facilidade
com a qual as coisas estão acontecendo. — Não quer voltar para casa, dona?
— É tudo o que mais quero.
Ignoro as minhas dúvidas e sigo andando firme até onde Suzana me espera.
Ela retira os óculos de sol assim que estou ao seu alcance e estende os braços.
Aceito o convite, jogando meu corpo contra o dela em um abraço apertado como
quem sentiu saudades.
— Vamos sair daqui. — É a única coisa que diz após me soltar, acrescentando
um sorriso tranquilizador.
Ao invés de entrarmos no carro de Miguel, ela agarra minha mão e me puxa
em direção ao outro, parado alguns centímetros atrás do Range Rover. Não faço
perguntas nesse momento, apesar de estranhar o fato de que seus homens
abriram as portas, mas não adentraram o automóvel. Eles descem os vidros,
posicionando os fuzis na abertura, mirando Juliano e seus três comparsas.
Evito olhar para trás. Me acomodo no assento do carona, sentindo uma
pontada de alívio que dura até a troca de tiros começar.
Suzana não se intimida com as balas voando um pouco a frente de nós, ela dá
ré na estrada, levantando poeira ao manobrar rumo a saída.
— Por que você veio me buscar? — sinto a necessidade de perguntar e não
resisto. Provavelmente isso foi um pedido de Miguel. Ele não vai querer colocar
os olhos em mim tão cedo.
Pensar nisso faz meu coração doer.
Quer dizer que o magoei ao ponto de ele não fazer questão de se certificar do
meu bem-estar com os próprios olhos.
Cruzei uma linha em que sua compaixão já não é mais infinita para mim.
— Eu disse que iria até o inferno te buscar caso fosse preciso, se lembra?
Nossas risadas preenchem o interior do carro, aliviando um pouco da minha
tensão.


A passos incertos, entro na casa de Miguel com a delicadeza que nunca usei
para fazê-lo. Meu olhar varre a sala, onde a família se levanta ao notar minha
chegada, e não o encontra.
— Ele está chegando. O helicóptero vai pousar na nossa propriedade a
qualquer momento. — Como se pudesse ler meus pensamentos, Suzana explica.
— Então o helicóptero era…?
— Era Miguel monitorando tudo lá de cima. Até parece que ele deixaria de
estar presente de algum jeito. — Ela ri, descontraindo. Não tenho tempo de
assimilar a informação que recebi ou respondê-la, um corpo se choca contra o
meu violentamente e me aperta em um abraço.
— Cassandra! — Safira exclama, respirando pesadamente. — Pensei que
nunca mais ia te ver. — Enrosco os braços ao seu redor, sentindo um conforto
por tê-la tão próxima. Demoro alguns segundos para me dar conta do nome que
usou para se referir a mim. Nossos olhares se encontram rapidamente, um sorriso
escapa dos seus lábios finos. — Eu sei de tudo desde o início. Minha avó me
contou.
Instintivamente, olho para a mulher sentada no sofá. Ela sorri
debochadamente sem usar os dentes.
— Eu não queria me esconder, a ideia foi do seu pai. Ele achava que eu iria
desistir de você, então não me deixou contar a verdade até que eu provasse que
vim para ficar. — Explico, sentindo o olhar da família inteira em mim.
— E você ainda quer ficar? — o tom de voz é propositalmente melodioso. Os
cílios escuros batem freneticamente enquanto ela pisca os olhos várias vezes em
alguns segundos, implorando de forma silenciosa.
— É tudo o que mais quero.
Safira sorri, radiante, com a minha resposta. Nos abraçamos novamente, e
algo parece diferente. É como se finalmente as coisas estivessem indo para os
seus devidos lugares.
Uma felicidade repentina toma conta de mim ao abraçar todos que estavam à
minha espera. Rafael, Antônia e até mesmo Hugo, parecem aliviados. O caçula
dos Sovat nem tanto. Ele ainda possui o mesmo jeito desconfiado de quando era
criança.
Ignoro seu olhar indecifrável, me concentrando em passar os próximos
minutos conversando com minha sobrinha e Antônia sobre trivialidades.
É inevitável não sentir aquele conforto de "finalmente estou de volta ao lar",
mesmo tendo medo de que Miguel não aceite o meu perdão.
IGUALMENTE ESPECIAL

A minha vontade é de pular do helicóptero para vê-la o mais rápido possível


quando avisto o jardim do condomínio. Aperto os dedos ao redor do cinto de
segurança à medida que o piloto vai se aproximando do gramado para aterrissar.
Não por medo, mas pela vontade insana de chegar logo em casa, que me faz
cogitar pular aqui mesmo, tamanha a ânsia de pôr meus olhos no rosto de
Cassandra e dizer o quanto senti saudades.
— Obrigado, Lopes. Sua dívida está paga. — Digo para o piloto, um oficial
do Exército que me devia alguns favores.
— Fique com Deus, Major.
Me despeço dele com um aperto de mãos e pulo fora da cabine. Quando dou
por mim, estou correndo rumo à porta da minha casa. O coração batendo forte no
peito. Entro na residência sem cerimônia depois de forçar a fechadura e passar
pelo portal às pressas.
Vários olhares se voltam para mim, mas nenhum deles me interessa no
momento, apenas as orbes esverdeadas que me analisam com cautela. Ignoro a
forma como ela parece acanhada depois da minha chegada e a puxo para um
beijo inesperado, pegando seu rosto entre as mãos, forçando que se levante para
corresponder.
Engulo o breve suspiro que Cassandra solta segundos antes de entregar seus
lábios aos meus, aproximando nossos corpos até sentir os seios volumosos
espremidos contra o meu tórax, que sobe e desce em um ritmo frenético devido à
respiração acelerada.
Meu corpo relaxa quando meus dedos sentem a textura dos cachos e puxam
um punhado deles enquanto aprecio o sabor da sua boca gostosa. Ela também me
explora com as mãos, uma delas aperta a minha nuca ao passo em que a outra
acaricia a barba por fazer.
Tem gosto de saudade, arrependimento e perdão.
Uma combinação que recarrega nossas energias para enfrentar tudo o que
houve. E nos lembra que nossos sentimentos são fortes demais para se perderem
como quase aconteceu.
— Nos deixaram sozinhos — Cassie conclui, abrindo os olhos quando damos
uma pausa no beijo para respirar. Ainda estamos grudados, meus braços
envolvem a cintura dela e os seus a minha nuca.
— Eles sabem serem sensatos quando querem. — Encosto o queixo na cabeça
dela, esperando a respiração voltar ao normal e o coração estabilizar as batidas.
Todos saíram de fininho enquanto eu e Cassandra matávamos um pouco da
saudade. Nenhum de nós sequer ouviu os passos deles ou o bater da porta,
estávamos concentrados demais nos beijando.
— Eu sinto tanto, Miguel. Aconteceram algumas coisas… — Ela levanta o
rosto para me olhar.
— Eu sei, coração. — Limpo uma lágrima que caiu do seu olho direito.
Cassie está com olheiras profundas e as maçãs do rosto emagrecidas. — Li as
cartas que escreveu. Entendi o porque não gosta de falar sobre isso, e respeito.
Só quero te pedir que não desista assim do nosso bebê. Me deixe cuidar de você
e te fazer feliz. Sei que juntos nós vamos conseguir, apenas não desista.
— Eu não vou desistir, prometo. — Seu choro se torna mais intenso. Deixo
que coloque para fora todos os sentimentos através das lágrimas que aos poucos
molham minha camisa.
Alguns minutos se passam até que ela pare. Cassie está sentindo uma
exaustão que vai além do físico. Não gosto de como parece assustadoramente
devastada.
— Deite um pouco aqui enquanto preparo algo para você comer. —
Relutante, ela faz o que peço.
Tento ser o mais rápido possível no preparo de um sanduíche de frango com
creme cheese, adicionando salada ao pão e pondo um copo com suco de uva na
bandeja.
De volta a sala, encontro Cassandra cochilando. Sinto pena de acordá-la então
deixo a bandeja na mesa e me sento no sofá, pondo seus pés descalços no meu
colo para massageá-los.
— Suas mãos são mais leves do que as minhas quando quer. — Ela murmura,
ainda de olhos fechados.
— Eu sempre quero ser leve contigo. Você é quem não colabora. — Cassie
finalmente abre os olhos, elevando as sobrancelhas com desdém. — Tá bom,
nem sempre. — Sorrio.
— Amo você, Miguel. — Sou pego de surpresa pela declaração repentina.
Aumento o meu sorriso, satisfeito. Ela acrescenta: — Estou disposta a aceitar os
planos de Deus.
— Finalmente. — Puxo Cassandra pelas pernas até que esteja no meu colo.
Beijo sua boca até perdermos o ar.

Pensei que conseguiria dormir depois de tê-la de volta em casa. Me enganei


terrivelmente. Meus olhos se recusaram a fechar durante toda a noite.
Desligo o abajur, não precisando mais da luz artificial para admirar o rosto
dela enquanto dorme. O dia está amanhecendo, o sol tenta se infiltrar pelas
frestas da cortina e ilumina alguns pontos do quarto. Cassie respira
tranquilamente, a boca um pouco entreaberta e os cabelos estão espalhados pelo
travesseiro.
Sinto um misto de alívio e ansiedade ao pensar no que iremos enfrentar de
agora em diante. As coisas que ela passou deixaram um rastro de dor que nunca
será apagado. A terapia, o uso de medicamentos e o apoio familiar tem o poder
de amenizar, apenas. É sofrido para mim saber que não posso fazer mais do que
lhe oferecer o meu amor. Não que isso seja pouco, mas a minha vontade é
arrancar todas as fontes de dor que há dentro do seu peito e transferir para o
meu.
Por outro lado, notei uma determinação a mais nas palavras de Cassandra. Ela
parece ter despertado para a vida e realmente disposta a lutar pela sua felicidade.
Delicadamente, afasto o edredom que cobre parcialmente o corpo dela e
ponho a mão na sua barriga. A região ainda é plana, não há sinal de que tem uma
criança crescendo ali dentro. Mas eu sinto algo sempre que a toco aqui. Apoio o
cotovelo no travesseiro e descanso o rosto em cima de uma das minhas mãos
enquanto a outra continua acariciando-a por cima da blusa.
Não vejo a hora dessa barriga ficar redondinha, de Cassie ter desejos
estranhos e me fazer sair no meio da noite para satisfazê-los…
— Está pensando em como ele vai ser? — ela pergunta, entreabrindo os olhos
e dando de cara comigo, a admirando.
— Não, pensando no quanto estou ansioso para viver tudo isso ao seu lado.
Ela sorri.
— Você já viveu essas coisas, não vai ser nenhuma novidade.
— Nunca vivi isso com você. — Me aproximo dela, pondo o braço por baixo
da sua cabeça e trazendo seu rosto para junto do meu até que nossos narizes se
toquem. — Além do mais, nenhuma gravidez é igual a outra. Sempre vai ser
diferente, mas igualmente especial.
Cassie assente, ficando calada pelos próximos minutos, parecendo pensativa.
— Acha que, no fim das contas, eu deveria ser a sua primeira opção? — ela
quebra o silêncio.
— Meu coração não é um pódio, com primeiro, segundo e terceiro lugar. Não
gosto de fazer dos meus sentimentos pelas pessoas uma hierarquia, entende? Por
isso foi tão cruel quando me pediu que escolhesse entre você e a sua irmã.
Respondendo a sua pergunta, acho que tudo aconteceu como tinha que acontecer
e nós estamos exatamente onde deveríamos estar. Amei Clarice com tudo o que
havia dentro de mim enquanto pude, assim como você também fez com Felipe.
Tínhamos que viver esses outros amores para então descobrirmos o poder do
nosso amor um pelo outro.
— Essa é uma forma romântica de ver as coisas… — Elevo as sobrancelhas
ao vê-la desdenhar da minha resposta. Cassie franze o nariz e acrescenta: —
Mas… Eu também concordo que precisávamos desse tempo e de viver outras
coisas antes de nos encontrarmos. Entendo o que sentiu pela minha irmã e agora
percebo que são coisas diferentes, mas especiais cada uma do seu jeito. Sinto
que sempre vou amar Felipe, não trocaria os momentos que tivemos juntos por
nada. E também não estou disposta a trocar o resto da vida ao seu lado por
nenhuma outra coisa.
— Isso é tão lindo, Cassie. — Beijo seus lábios. Me afasto dela apenas para
pegar um bloco de papel e uma caneta na mesa de cabeceira e lhe entregar. —
Escreve essa última frase para mim. Vou usá-la contra você toda vez que pensar
em desistir da gente.
Rindo, Cassandra pega o papel e anota suas palavras.
DIGA SIM

Engordei dois quilos em três semanas.


Por causa dos desejos da gravidez?
Não.
De ansiedade mesmo.
Os ansiolíticos estão me fazendo falta. A comida se mostrou uma excelente
forma de substituí-los. Me sinto aliviada enquanto mastigo. Por isso tenho
procurado estar sempre mastigando. E é por isso que o vestido não está
fechando.
— Conseguiu, Antônia? — pergunto.
— Quase lá. — Ela murmura, concentrada em subir o zíper pelas minhas
costas.
A ideia de mandar fazer um vestido sob medida para eu usar no chá de bebê
foi de Miguel. Ele insistiu que nós dois tínhamos que usar roupas feitas
especialmente para essa ocasião.
O terno ficou lindo no corpo musculoso dele. O tecido é branco, assim como
o da minha vestimenta, para expressar neutralidade da nossa parte quanto ao
sexo do neném. O que é um pouco hipócrita da parte dele. Miguel está
convencido de que teremos um menino.
Não questionei seu pedido, mas agora sinto vontade de mandá-lo ir a merda
por fazer essa sugestão. Não sei que horas sairei daqui e nem se Antônia
conseguirá subir esse negócio sem rasgar o tecido.
Preciso mandá-lo para a puta que pariu mesmo!
— Pronto! — A modelo diz, arfando. — Consegui.
Encaro o espelho. O vestido é simples, justo no corpo, decote arredondado e
alças caídas. Me transpassa uma leveza que não sentia há um tempo quando
olhava o meu reflexo no espelho.
Pareço mais saudável e… feliz!
E, de fato, estou.
Voltei a fazer terapia, tenho aprendido a lidar com os traumas e colocado para
fora os sentimentos ruins de dentro de mim.
A gravidez está correndo bem. Aos poucos, estou desassociando a experiência
do aborto com a minha atual gestação, mas ainda há alguns dias onde regrido e
sinto medo de levantar da cama e colocar em risco a vida do meu bebê.
Nesses dias, Miguel me abraça e diz coisas bonitas que me fazem chorar de
gratidão por tê-lo. Mas é claro que ainda há outros em que quero torcer seu
pescoço.
É uma vida equilibrada, sabe?
Entre tapas e muuuitos beijos. Do jeito que a gente gosta.
— Está linda, Cassie. — Antônia elogia, também admirando o meu reflexo no
espelho.
Desde que fui resgatada, nós duas nos aproximamos bastante. Ela me mostrou
um lado meigo e acolhedor que fez cair por terra a imagem de menina fútil que
eu tinha dela. Ainda temos um pouco de dificuldade na hora de encontrarmos
coisas em comum, no entanto, as conversas estão fluindo bem, na medida do
possível.
— Você também está. — Lhe ofereço um sorriso.
A modelo usa um vestido curto, de gola alta, e rosa chá. Ela e seu namorado
apostam que teremos mais uma menina na família.
— Estão prontas, garotas? Quase a lista inteira de convidados chegou e vocês
ainda não saíram. — Suzana questiona, entrando no quarto. Minha sogra veste
azul, crendo que será avó de um menino dessa vez.
— Let 's go. — Antônia responde.
O salão de festas da residência da família Sovat está decorado em tons de
branco quando chegamos, contando com uma ornamentação glamourosa,
planejada a dedo por Suzana. Os convidados foram acomodados em mesas nos
cantos do ambiente, deixando o centro livre para a passagem da moto que daqui
a pouco entrará soltando fumaça para revelar o sexo do próximo herdeiro.
Posando para foto no meio da decoração está Miguel, junto de seus dois
irmãos. Suzana passa na minha frente e se acomoda ao lado deles, os flashes das
câmeras iluminam o salão por alguns instantes.
— Venha tirar fotos comigo, coração. — Miguel chama, o sorriso indo de
orelha à orelha. Fico ao seu lado, uma mão nas suas costas e outra em seu peito
para que os fotógrafos capturem o olhar cúmplice que lhe ofereço.
— Você parece um anjo vestido assim, todo de branco. — Sussurro perto da
sua boca.
— E você está uma grande gostosa nesse vestido. — Devolve, sorrindo com
malícia.
Nosso momento de luxúria é interrompido com a sugestão do fotógrafo de
tirarmos uma foto da família completa. Safira escolhe ficar um pouco à frente de
mim e seu pai. Nós envolvemos a menina em um abraço triplo enquanto os
outros familiares se acomodam dos lados.
— Que família linda. — O homem elogia, entre um clique e outro. —
Prontinho.
— Obrigada, Giovane. — Minha sogra diz para o fotógrafo.
Passamos os próximos minutos indo de mesa em mesa agradecer a presença
das pessoas. Não conheço a maioria, contudo, Miguel sempre me apresenta
como sua noiva e os convidados tratam a mim com muita simpatia.
— Eu não estou entendendo você dizer que sou sua noiva, sendo que em
momento algum recebi um pedido de casamento. — Digo, parando no meio do
ambiente, depois de cumprimentarmos um casal de amigos dele. Miguel também
cessa o passo, semicerrando os olhos para mim. — Não vou me casar com você
sem um pedido, se é o que está pensando. — Acrescento, em tom de desafio. Ele
ergue as sobrancelhas e tira algo do bolso antes de se ajoelhar à minha frente.
— Não seja por isso.
Devem ter mais ou menos umas cem pessoas presentes, mas assim que
Miguel põe um dos joelhos no chão e ergue a caixinha de veludo, parece que não
há mais ninguém ao nosso redor. O silêncio é sepulcral. É possível ouvir a minha
respiração acelerada e os passos de alguém se aproximando para entregar um
microfone nas mãos dele.
Com o microfone perto dos lábios, ele diz:
— Quero deixar registrado que eu tinha preparado um momento da noite
especialmente para isso, mas a minha noiva acabou de insinuar que eu não
pretendo pedi-la em casamento. Acreditam nisso? Logo eu! Não posso permitir
que ela continue pensando isso até o fim da noite, queridos amigos. Preciso dizer
que, como quase sempre, ela está terrivelmente enganada ao meu respeito. —
Miguel dá uma pausa no discurso para abrir a caixinha, exibindo o anel de
diamantes. Sorrio e ao mesmo tempo lágrimas descem por meus olhos, sem
pedir permissão. — Eu não só vou te pedir em casamento, Cassandra, como
também vou pedir que nunca mais saia do meu lado, porque no fim das contas,
depois de todas as ironias do destino, você voltou para mim. E a cada dia que
passa tenho mais certeza de que esse é o seu lugar. Então diga sim para se unir a
mim perante Deus. É só o que falta para eu me sentir completo: te ter como
esposa.
— E se eu disser não? — brinco, arrancando risadas das pessoas presentes.
— Vocês estão vendo como ela é teimosa, não é, gente? — Miguel se levanta,
me puxando pela nuca de encontro ao seu corpo. O microfone separa nossos
lábios, mas não impede que nossas testas se encostem. — Há algumas semanas,
Cassie me disse que não estava disposta a trocar a oportunidade de passar o resto
da vida ao meu lado por nenhuma outra coisa. Foi tão natural, saiu antes que ela
se desse conta do quão significativas eram as suas palavras. Então não se deixem
enganar pelo jeito marrento dela, na verdade, ela é loucamente apaixonada por
mim e está doida para dizer sim.
— Estou mesmo. — Digo, roubando o microfone dele e beijando a sua boca
em seguida. — Sim, Miguel, eu estou doida para me casar com você.
Continuamos a nos beijar, ao som do bater de palmas e assobios dos
convidados.


Apertando a embreagem da sua moto, Samuel produz um barulho que gera
expectativa em todos que aguardam a sua entrada no salão. O caçula dos Sovat
veste calça jeans rasgada, uma blusa simples e blazer branco, se demonstrando
neutro quanto à preferência do sexo do bebê.
— Anda logo com essa porra, Samuel! — O filho do meio de Suzana berra.
Aparentemente Rafael não gosta de esperar para saber nada. Ele odiou a ideia do
chá de bebê e insistiu que era uma comemoração desnecessária. Esse contador é
bem rabugento para um cara com uma vida luxuosa como a dele.
Samuel ignora o irmão e continua a apertar a embreagem. Seus cabelos estão
penteados para trás, ficando esvoaçados quando ele dá partida na moto e enfim
adentra o salão, espalhando a fumaça cor de rosa que nos faz vibrar de alegria.
— Sua intuição falhou. — Jogo o fato na cara de Miguel. Ele me abraça,
ficando em silêncio por alguns segundos, até que diz:
— Nunca fiquei tão feliz em saber que minha intuição falhou.
Me lembro de pensar que talvez Miguel tivesse perdido a sua complacência
ao longo desses anos, devido a tudo que lhe aconteceu. Entretanto, ele ainda
possui essa qualidade de sobra. Todos os dias eu vejo um pouco dela nas suas
atitudes e me apaixono um pouco mais.
Sem dúvidas essa é a coisa que mais amo nele. E o que me faz não ter medo
de entregar meu coração para viver todas as experiências incríveis que amar
Miguel me proporciona.
— Vamos ter mais uma preciosa em casa. — Afirmo, ainda me acostumando
com a notícia.
— Nossa pequena Jade. — Ele cantarola, gostando de dizer isso em voz alta.
— Eu realmente espero que ela tenha a sua beleza e a minha personalidade.
— Aposto que será o contrário, ela vai ser uma diabinha. — Miguel suspira,
provavelmente imaginando o perrengue que irá passar se Jade me puxar.
— Por favor, Deus, não faça isso comigo. — Pede, olhando para cima com os
braços abertos, fingindo drama.
Através das caixas de som, Belo canta Reinventar, enquanto eu e Miguel
dançamos pelo espaço do salão, os corpos colados e os olhares compenetrados
um no outro.

Sem tua metade

Sou tão imperfeito

Tudo tem um jeito, coração

Sei que a gente pode sorrir

— Acho que o Belo fez essa pensando na gente. — Miguel brinca. Encosto a
minha testa na dele, lhe dando como resposta um sorriso e entrelaçando nossas
mãos.

Juro que vou me conter

Juro nunca mais errar

Como eu quero te mostrar

O milagre do amor

Você me fez mudar

Tão bom te amar


Te amar

— O seu amor me reinventou. — Beijo o nó dos seus dedos.

— Posso dizer o mesmo de você. — Ele imita o meu gesto.


A IRONIA DO NOSSO DESTINO

Quase oito meses depois…


Trinta e três semanas.
Hoje faz exatamente trinta e três semanas que Cassie está grávida.
Isso dá em torno de cinco mil e seiscentas horas que estou ansioso para
conhecer a minha filha.
A lembrança do dia que descobri sobre a gravidez parece distante em meio ao
tanto de coisas que aconteceram nos últimos meses.
Para falar a verdade, tudo o que vivi nos últimos anos aparenta ter acontecido
em uma realidade paralela, pois a vida que tenho hoje é tão leve, de forma a
parecer que tenho vivido isso há muito tempo.
Me acostumei a acordar ao lado de Cassandra e compartilhar com ela cada
minuto do meu dia. A dor, a saudade, a culpa, são coisas que não carrego mais
sozinho. Se estou frustrado, apenas me aconchego no corpo da minha noiva e
aceito seu cafuné. Se ela tem um desejo de gravida esquisito como, chupar gelo
com sal, eu me levanto a hora que for para satisfazê-la. Eu ganho o dia toda vez
que sinto nossa filha chutar sua barriga. Vomito junto com ela quando Cassandra
coloca para fora o que comeu. Depois nós choramos em conjunto, pois
normalmente a comida estava boa e ela se arrepende de ter vomitado. Enquanto
eu fico desesperado, sem saber o que fazer.
Os hormônios dela na gravidez ficam muito confusos!
Convenhamos que minha futura esposa não é uma pessoa muito estável
normalmente, somando isso à abstinência dos ansiolíticos e a chuva de
hormônios… As coisas ficam intensas!
Aaaah, e sem contar com o fato de que agora minha filha menstrua. Safira
está oficialmente na fase da adolescência. Ou seja, hormônios e mais hormônios
para eu lidar!
E falando na trombadinha… Meu telefone acaba de tocar e seu nome brilha
na tela. Pego o aparelho em mãos, atendendo a chamada no segundo toque.
— PAI! — ela berra. Dou um sobressalto. — Cassandra entrou em trabalho
de parto, estamos indo para a maternidade, encontre com a gente lá, agora!
— Ai, meu Deus… Preciso pegar a bolsa, os documentos, a chave do carro…
— Anda logo, pai!
— Estou a caminho. — Desligo a ligação. A verdade é que ao invés de correr
e pegar tudo, passo alguns segundos me olhando no espelho.
Eu estava me arrumando para ir até o bordel, receber um pagamento pela
proteção que ofereço à Ayumi, a dona do local. E, de repente, descubro que
chegou o dia, finalmente verei o rostinho dela e irei segurar Jade nos braços.
Volto a mexer no telefone, buscando o número do meu irmão caçula e ligando
para ele. Minha mão treme enquanto seguro o aparelho e marcho para fora do
meu quarto com a bolsa de Jade e os documentos pendendo da mão livre.
— Diga. — Samu atende depois de vários toques.
— Cassie entrou em trabalho de parto — ele suspira do outro lado da linha.
— Estou a caminho da maternidade e preciso que você pegue o dinheiro com a
Ayumi por mim. Me encontre no hospital quando sair de lá, ok?
Estranho quando não ouço uma resposta imediata, e sim um silêncio que dura
vários segundos.
— Samu? Está me ouvindo? — chamo. Sua respiração volta a fazer barulho e
ele arranha a garganta, dizendo em seguida:
— Sim, estou aqui. Vou fazer o que me pediu. — Estou prestes a desligar,
mas ele me impede. — Mica.
— Diga, Samu.
— Espero um dia ser metade do homem que é. — A declaração me pega de
surpresa, por vir de quem vem. Não consigo lembrar se um dia ele já demonstrou
me admirar. — Mas se eu não conseguir, não quero que pense que nunca tentei,
porque tentei, e muito. Mas é difícil pra mim, sabe? Então…peço desculpas
desde já.
Antes que eu possa assimilar ou formular uma resposta, Samuel desliga.
Deixo para conversar sobre isso com ele depois e saio de casa às pressas,
avisando Rafael e o namorado da minha mãe no caminho da maternidade.

Mamãe, Antônia, Safira e Cassie tinham ido ao cinema essa tarde. A bolsa
estourou assim que saíram de lá. Por isso, quando cheguei ao hospital, todas elas
estavam aqui, aguardando notícias.
— Sou o pai da criança. — Digo para o médico, que se aproximou de onde eu
e minha família estamos. Rafael e Ricardo chegaram um pouco depois de mim.
Faltam apenas Samuel e Hugo para a família estar completa.
— Venha comigo. — Sigo o homem vestido com uniforme cirúrgico até uma
sala, onde sou preparado para entrar na sala de cirurgia como acompanhante de
Cassandra.
A decisão de ter um parto normal foi algo que ela não abriu mão. Foram
meses de expectativa para viver esse momento. E aqui estamos nós, com exatas
trinta e três semanas de gestação, aguardando a chegada da nossa menina através
de um parto natural.
— Meu Deus, como dói! — Cassie murmura enquanto faz força para o bebê
sair.
Seguro firme sua mão e limpo um pouco do suor da sua testa com uma toalha.
Ela fecha os olhos, mordendo os lábios para conter o grito que ameaça escapar
quando finalmente o corpo de Jade é retirado de dentro dela.
Cassandra é tão forte.
O parto em si é um momento lindo, me faz derramar uma boa quantidade de
lágrimas, mas esse parto desperta uma porção absurda de emoções em mim. Ele
é um marco nas nossas vidas, representa a nossa linha de chegada, a nossa
vitória depois de tudo o que enfrentamos até chegar aqui.
E, porra, ela não poderia ser mais linda!
Uma das enfermeiras entrega Jade aos braços de Cassandra e nós nos
entreolhamos, ambos chorosos. Me aconchego perto delas, fazendo carinho no
rostinho avermelhado da bebê recém-nascida. Seus olhos estão fechados,
impossibilitando que a gente descubra qual a cor deles. Os cabelos, ralos e finos
no topo da cabeça dela, são loiros, como imaginamos que seria.
— Olha só essa mãozinha, meodeoso. — Beijo o dorso da mão de Jade. Ela
boceja, linda e sonolenta.
— Valeu a pena toda a dor. — Cassie afirma, olhando para mim. Sei que não
está se referindo apenas ao parto.
— Eu disse que valeria, coração. — Beijo seus lábios. O gosto é salgado,
devido às lágrimas que nós dois derramamos.
— Vamos levar essa princesinha para tirar as medidas e receber alguns
cuidados. Encontramos vocês no quarto. — A enfermeira pega Jade de volta,
levando-a consigo para fora da sala.
Sou encaminhado por uma profissional da equipe até o quarto onde Cassie e
Jade ficarão pelas próximas horas. Minha noiva chega um pouco depois, sendo
acompanhada pela enfermeira em uma cadeira de rodas. A profissional lhe ajuda
a deitar na cama, colocando Cassandra de um jeito confortável. A recomendação
é de que ela não ande pelas próximas horas, devido ao risco da queda de pressão.
— Estou exausta. — Com os olhos inchados e o rosto vermelho, ela diz.
— Descanse um pouco antes dela chegar. — Seguro sua mão, lhe oferecendo
conforto. Cassie fecha os olhos, quase se rendendo ao sono, mas o toque do meu
celular a faz despertar. — Desculpa. — Me afasto dela para não perturbá-la
novamente, ficando do outro lado do quarto.
O número que me liga é desconhecido. Atendo no impulso, incerto se devo
fazê-lo logo agora.
— Miguel? — não demoro mais de um segundo para reconhecer a voz
feminina. Michely parece desesperada, suponho pela forma como respira com
dificuldade.
— O que houve, Michely? — pergunto, falando baixo na intenção de que
Cassandra não me ouça. No entanto, ela ouve. Sinto seu olhar queimando a
minha nuca, viro o rosto apenas o suficiente para ver suas sobrancelhas erguidas
e os lábios unidos em um bico de desaprovação.
— Aconteceu uma coisa, Miguel… — O barulho da sirene de polícia ao
fundo interrompe sua fala. — É sobre o seu irmão…
— Seja objetiva, me diga exatamente o que aconteceu. — Peço, ignorando o
olhar mortal que Cassandra me lança.
— Samuel. É sobre o Samuel… — Ela respira fundo, me deixando aflito. —
Ele saiu da sala da Ayumi com um envelope e foi lá para fora… — Mais uma
pausa é feita. — Aí depois o Luciano, aquele juiz sem vergonha, seguiu seu
irmão e os dois saíram conversando.
— E depois?
— Depois eu não vi mais, estava do lado de dentro…. Até que ouvi os tiros
e… fui lá ver o que era.
Paro de respirar.
— O que aconteceu com o meu irmão, Michely?
— Ele foi alvejado enquanto tentava ir embora, Miguel. Ele conseguiu
escapar de alguns tiros e ir um pouco longe com a moto, mas caiu…
— Como ele está? Estou indo para aí agora. — Me apresso em pegar a chave
do carro na bolsa que trouxe para Jade.
— Miguel… — Ela chama, como se precisasse ponderar o que deve dizer a
seguir. Paro no lugar, tremendo e sem conseguir respirar direito. — Eu entrei um
instante para pedir ajuda e quando voltei… O corpo dele tinha desaparecido.
Deixo o telefone cair no chão ao mesmo tempo que as minhas pernas cedem e
os joelhos também encontram a superfície.
Cassie se assusta ao me ver desmoronar.
Ela me pergunta o que houve. Eu não consigo dizer nada.
Ela pede que eu me levante. Eu não me movo nenhum centímetro.
Estou em contato com a superfície, sinto o azulejo maltratar a minha pele.
Mas não sinto o chão. Ele me foi tirado assim que assimilei as palavras de
Michely.
Exatamente como aconteceu quando me ligaram e disseram que meu pai
havia sido alvejado na porta de casa.
Até o livro do Samuel <3
AGRADECIMENTOS









Quero agradecer, primeiramente, à Deus, que como sempre, me dá forças e
ilumina o meu caminho para que eu continue a perseguir os meus sonhos.
À minha família, que se orgulha de mim e me apoia em qualquer
circunstância.
Às meninas do bookstagram, que me acolheram e deram uma chance ao meu
trabalho: Anne Paixão (@olivroqueeuqueroler), Lyvia Maciel (@quemlesente),
Day (@minhaestante.d), Dani (@vicioo_literario_), Sarah Dionísio
(@saraheseuslivros), a minha xará, Alessandra Fardim (@ale_e_livros), o meu
mais sincero obrigada!
Ás minhas leitoras queridas, que embarcaram nessa comigo e me apoiaram
durante o processo de escrita. Devo tudo a vocês!
E, por último, mas de jeito nenhum menos importante, devo um
agradecimento especial à Camila Rodrigues (@primaveraliteraria). Ela, que
topou betar esse livro e analisou cada linha com cuidado. Ela, que me mostrou o
quanto eu tenho vícios de linguagem e escrevo palavras erradas no calor do
momento. Ela, que desgostou do Miguel até praticamente o final do livro e deu
em cima do Samuel todas as vezes que ele aparecia.
Gratidão, Camila<3
















































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































[1]
A paz tem seus atributos.
[2]
A expressão "mais antigo" é usada entre os militares para se referir a patente. O militar mais antigo
seria o que está acima de outro militar em questão na hierarquia.

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