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SOBRE APEGO E TERNURA

Ao longo da minha vida e de diversas mudanças de casa, fui deixando objetos, livros, discos,
fotografias por aí. Não sou de grandes apegos, tenho em mim que a vida é maior que a gente,
vão se os anéis ficam-se os dedos. Em tudo. Sobretudo pesssoas. Nascida sb o signo e sagitário,
deixem-me acreditar nas estrelas, prezo a individualidade, odeio amarras e acho o cúmulo do
absurdo projetar no outro a sua base de segurança. Porque no fim, estamos todos no mesmo
barco. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, disse sabiamente Pessoa, ele mesmo um
consumidor atroz de bebida , porque a dor de viver muitas vezes exige uma anestesia. Pena
que em excesso dá cirrose.Os homens que se lançaram naas naus , em busca de um mundo
desconhecido, naquelas caravelas que pareciam cascas de noz no oceano, ainda possuíam
bússola, astrolábio e as estrelas para se guiar. Nós seguimos às tontas e as cegas, tentando
acertar, as vezes errando feio.Não há instrumentos que nos apontem os caminhos. Viver não
é preciso.

Foi assim que me vi numa discussão em que era a palavra chave.. Aqui narro uma história.
Meu bisavô paterno, lusitano, da região de Braga, era um jovem sargento do exército
português. Foi destacado para servir em Tavira, no Algarve., bem longe de sua terra natal. Lá
conheceu uma moça de olhos verdes e de cabelos negros e escorridos, que não deixavam
dúvidas sobre a sua ascendência moura. O jovem ruivo, de feições eslavas, que se repetiram
em mim, apaixonou-se pela morena , o sentimento foi recíproco, casaram-se e tiveram a
primeira filha. A felicidade do jovem casal, porém, foi perturbada com a notícia de que
Portugal declarara guerra a Angola e meu bisavô havia sido escalado para a batalha da África.

O pai de Domingos, uma pessoa que bebê colocado na Roda da Misericórdia, o chamado “filho
das ervas”, sem pai, sem mãe, abandonado quando nasceu e nunca saberemos o porque,
havia imigrado para o Brasil alguns anos antes do casamento do filho. Minha avó se lembra
desse avô quando teve a gripe espanhola e o pai dela adoeceu. Vitorino, um ruivo de grandes
bigodes , que fazia o serviço de carregar fardos de carvão para ajudar a família do filho, porque
morreu todo mundo, não havia quem fizesse o serviço. Temeroso com o destino da jovem
família, convenceu-os a atravessarem o Atlântico e virem ao seu encontro. O Brasil era pintado
pelo pai do meu bisavô como um lugar paradisíaco, bonito, cheio de oportunidades, perfeito
perfeito para construir o futuro.

Já falei muito aqui do meu bisavô, tive a sorte de conhece-lo muito bem, viveu quase um
século. Talvez, além do forato do rosto e das maçãs altas, tenha herdado dele o prazer de
contar histórias e o antifascismo que corre nas minhas veias. Carinhosíssimo com os netos e
bisnetos, era tão grato ao Brasil por tê-lo acolhido que naturalizou-se brasileiro.

A minha avó , filha dele, com a mesma habilidade do pai para narras histórias, me contou que
ele tinha guardado consigo dois objetos da sua terra natal. Um foi o livro de trovas do
Bandarra, que ele sabia de cor.

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