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RELATO DE EXPERIÊNCIA: A JORNADA DOS PEQUENOS HERÓIS, UMA NOVA


PERSPECTIVA DA PRÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Chapter · November 2020

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3 authors, including:

Fabiula Campos Falcão Fagundes Gelson Vanderlei Weschenfelder


Universidade Feevale
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Os super-heróis como um recurso para programas de intervenção para promover a resiliência em crianças e adolescentes View project

Mangá como material didático e paradidático em sala de aula na disciplina de História View project

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Thuanny de Azevedo Bedinote
Marcelo Ávila Franco
Larissa Tamborindenguy Becko
André Daniel Reinke
(Organização)

ALAR SOBRE
VAMOS F

CULTURA

POP
TEXTOS DO V COLÓQUIO REGIONAL SUL
EM ARTE SEQUENCIAL
Thuanny de Azevedo Bedinote
Marcelo Ávila Franco
Larissa Tamborindenguy Becko
André Daniel Reinke
(Organização)

OS FALAR SOBRE

A
VAM

CULTUR

POP
Leopoldina, MG
2020
ASPAS – Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial
https://blogdaaspas.blogspot.com/ | aspascontato@gmail.com
Diretoria da ASPAS (2019-2021) Ilustração da Capa
Sabrina da Paixão Brésio Guilherme Sfredo Miorando
Ivan Carlo Andrade de Oliveira
Attila de Oliveira Piovesan Projeto Gráfico
Valéria Aparecida Bari André Daniel Reinke

Conselho Editorial da ASPAS Revisão Técnica


Prof. Dr. Iuri Andréas Reblin (Faculdades Iuri Andréas Reblin
EST, São Leopoldo/RS, Brasil); Prof. Dr. Edgar
Franco (UFG, Goiânia/GO, Brasil); Prof. Dr. Revisão ortográfica
Gazy Andraus (FIG-UNIMESP, Guarulhos/ Dos Autores e das autoras
SP, Brasil); Prof.ª Dr.ª Valéria Fernandes da
Silva (CM, Brasília/DF, Brasil) e Ma. Christine
Atchison (Kingston University, London,
England) Esta obra foi licenciada sob uma Licença Creative
Commons Atribuição-Não Comercial- Sem
Coordenação Editorial Derivados 3.0 Não Adaptada.
Iuri Andréas Reblin

Editoração Eletrônica e Compilação


Iuri Andréas Reblin

Nota: Os textos aqui compilados são de inteira responsabilidade de seus autores e suas autoras, que
respondem individualmente por seus conteúdos e/ou por ocasionais contestações de terceiros. Qualquer
parte pode ser reproduzida, desde que a fonte seja mencionada.
Esta publicação é um ebook disponibilizado gratuitamente, sem objetivação de lucro. Uma cópia impressa
do ebook pode ser adquirida em http://www.perse.com.br ao preço de custo.
As imagens utilizadas ao longo desta publicação possuem viés de investigação acadêmica, sem
desrespeitar, portanto, os direitos de propriedade intelectual, conforme previsto pela Lei n. 9.610, de 19 de
fevereiro de 1998, especialmente, pela leitura dos artigos 7, 22 e 24 e 46.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vamos falar sobre cultura pop [livro eletrônico] : episódio 4 :
o pop não poupa ninguém / organização Thuanny de Azevedo
Bedinote ... [et al.]. -- 1. ed. -- Leopoldina, MG : ASPAS, 2020.
PDF

Outros colaboradores.
ISBN 978-65-87876-02-3

1. História em quadrinhos 2. Cultura pop 3. Literatura e sociedade I.


Bedinote, Thuanny de Azevedo.
20-45983 CDD-741.5
Índices para catálogo sistemático:
1. História em quadrinhos : Teoria : Crítica e interpretação 741.5
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .7

ESTUDOS SOBRE CULTURA POP NO BRASIL:


MAPEAMENTOS INICIAIS .9
Amaro X. Braga Jr.

A CIÊNCIA SUPERMAN: APROXIMAÇÕES


EPISTEMOLÓGICAS ACERCA DOS ASPECTOS
MITOLÓGICOS DO FAZER CIENTÍFICO EM
COMUNICAÇÃO . 37
Larissa Tamborindenguy Becko

RELATO DE EXPERIÊNCIA: A JORNADA DOS


PEQUENOS HERÓIS, UMA NOVA PERSPECTIVA
DA PRÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL . 55
Fabiula Campos Falcão Fagundes, Amanda Selle
Bortolotti e Gelson Vanderlei Weschenfelder

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO PROCESSO


DE FORMAÇÃO LITERÁRIA: DINÂMICAS DE
LEITURA CRÍTICA COM O PROJETO SUPER
LEITORES . 73
Lisiane Teresinha Dias Olsen e Luciana Backes

A FIGURA DA MULHER NO MANGÁ DE


ROMANCE ESCOLAR: UM ESTUDO SOBRE O
ESTEREÓTIPO E SUAS RUPTURAS . 87
Ana Paula Pacheco Luiz
TRADIÇÃO E ESTILO NO MANGA SHOUNEN
DOS ANOS 1970: ESTÉTICA, POLÍTICA, ROBÔS
E MONSTROS NA PRODUÇÃO DE ISHINOMORI
SHOUTAROU E NAGAI GOU .99
Rafael Machado Costa

UMA LEITURA DE SNOOPY A PARTIR DO


MÉTODO CARTOGRÁFICO-CRÍTICO . 121
Charles Klemz

UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DO


APOCALIPSE CRISTÃO NA HQ HELLBOY . 141
Gabriel Brito dos Santos

JESSICA JONES: UMA ANÁLISE PSICOLÓGICA


DE UMA HEROÍNA EM CRISE . 157
Emanuele Barbosa e Gelson Vanderlei
Weschenfelder

HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO E
REPRESENTATIVIDADE: UMA ANÁLISE DE
CONTEÚDO NA REDE SOCIAL TWITTER . 175
Brandy Stephanie Ribeiro Aguiar e Jordão de
Oliveira Farias

FIGHT LIKE A GIRL: MULHER MARAVILHA E


SUA INSERÇÃO NAS PRÁTICAS DOCENTES . 185
Talize Zilio e Gelson Vanderlei Weschenfelder

UM FADO ÚMIDO: IMAGINÁRIOS


CONTEMPORÂNEOS EM A FORMA DA ÁGUA . 195
Sabrina da Paixão Brésio
APRESENTAÇÃO

Muito mais do que entretenimento, a cultura pop pode ser enten-


dida como um repositório de objetos e fenômenos interessantes de
serem analisados academicamente. Pela possibilidade de intersecção
com diferentes áreas do conhecimento, estudar os elementos que
compõe essa cultura se torna, no mínimo, um grande desafio. E, para
nós pesquisadores, esse acaba por ser um grande estímulo.
Neste livro, reunimos alguns dos trabalhos que foram apresenta-
dos no V Colóquio Regional Sul em Arte Sequencial, realizado em
outubro de 2019 pelo Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Arte
Sequencial, Mídias e Cultura Pop (CultdeCultura), vinculado ao
Programa de Pós-graduação da Faculdades EST, de São Leopoldo,
RS. Aqueles que se dispuserem a se aventurar nessa publicação terão
a oportunidade de verificar como os estudos de elementos da cultura
pop são atravessados pelos olhares angulados pelos campos da co-
municação, da teologia, da educação, das artes, etc.
As propostas de estudos apresentadas aqui não deixam dúvidas.
A cultura pop é diversa, múltipla e complexa e faz parte das nossas
vidas. Dessa forma, a pesquisa acadêmica nessa área se faz mais do
que justificada e essencial. Esperamos que a leitura seja intrigante,
envolvente e incentivadoras, de modo que as investigações dessa es-
fera estejam sempre em processo de desenvolvimento.

Uma ótima leitura,


Me. Larissa Tamborindenguy Becko
Líder do CultdeCultura
ESTUDOS SOBRE CULTURA POP NO
BRASIL: MAPEAMENTOS INICIAIS1
Amaro X. Braga Jr.2

Introdução

Parte do processo de entender um campo de estudo é identifi-


cado pelos temas e objetos que ocupam as pesquisas que se identi-
ficam como pertencentes a este mesmo campo. Então, no processo
de entendimento sobre a pesquisa sobre Cultura Pop, no Brasil, o
que se têm feito? Esta questão nos ajuda a delimitar o que é a Cul-
tura Pop e perceber como ela tem aliciado os pesquisadores dentro
da academia. Ao se problematizar alguns aspectos temáticos que se
relacionam com as pesquisas temos um panorama geral deste campo
dentro da Academia. O que apresento neste trabalho, construído de
forma ensaística e por vias de uma revisão de literatura focada em te-
mas, são algumas ramificações e adensamentos dos principais temas
e objetos de pesquisa que a Cultura Pop assume, citando, brevemen-
te, casos reais de pesquisa sobre estes mesmos temas.

1  Este artigo toma como base a palestra de abertura homônima realizada no V Colóquio do
Cult de Cultura, ocorrido na EST em 11 de outubro de 2019. E cuja primeira versão, compôs
um capítulo de um manual de disciplina em um curso de pós-graduação na EST. Este texto,
portanto, é uma versão revisada e ampliada. Cf.: BRAGA JR, A. X.; REBLIN, I. A..Estudos
de Cultura Pop e perspectivas de análise. Curso de Especialização em Cultura Pop. São
Leopoldo: EST, 2019, p. 02-44. [Cap. 2 e 3]. Cf.: BRAGA JR, A. X. A pesquisa acadêmica sobre
cultura pop: possibilidades e desafios. Palestra de abertura. V Colóquio Regional Sul em
Arte Sequencial. 11-12 out. 2019. São Leopoldo: EST. [Exposição Oral]
2  Doutor e Mestre em Sociologia. Mestre em Antropologia Social. Bacharel e Licenciado
em Ciências Sociais. Professor do Instituto de Ciências Sociais. Universidade Federal de
Alagoas. E-mail: amaro@ics.ufal.br.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 10

Em uma rápida pesquisa no banco de Teses e Dissertações da Ca-


pes3 sobre “Cultura Pop” encontramos a seguinte distribuição expos-
ta na Fig.1.

Figura1 – Capturas das Telas do Portal de Repositório de Teses da CAPES.


Fonte: CAPES, 2019.

Este levantamento, sobre o termo “Cultura Pop”, nos revela al-


guns dados interessantes para pensar a pesquisa acadêmica sobre
este tema, vejamos quais são:

• O mapeamento considera apenas trabalhos de pós-gradua-


ção stricto sensu como Doutorado (25), Mestrado Acadêmico
(128) e Mestrado Profissional (8);
• A varredura por ano pega de 1990 até 2018;
• Entre os 159 autores e autoras listados, apenas dois deles
mantiveram a terminologia “Cultura Pop” entre as palavras-
-chaves dos seus trabalhos de mestrado ou doutorado;
• As grandes áreas de conhecimento mais receptivas aos tra-
balhos de Cultura Pop foram: Ciências Sociais Aplicadas (73),
Ciências Humanas (36), Lingüística, Letras e Artes (33) e
Multidisciplinar (9);
• Já as áreas de conhecimento foram: Comunicação (67), Le-
tras (23), Antropologia (10), Artes Visuais (9), Teologia (9),

3  Este levantamento não representa o universo, por completo. É apenas um recorte tempo-
ralizado e circunstancial que nos permite uma breve inferência sobre a pesquisa produzida
sobre Cultura Pop.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 11

Sociologia (7), Linguística Aplicada (7), Educação (6), Ciên-


cias Sociais (6), Arquitetura E Urbanismo (1), Ciência da In-
formação (2), Ensino de Ciências e Matemática (2), História
(2), Ciência Política (1), , Comunicação Visual (1), Desenho
Industrial (1), Interdisciplinar (1) Jornalismo e Editoração (1),
Psicologia (1), Teatro (1), Teoria Literária (1);
• 51 trabalhos não definiram claramente a área de concentra-
ção, ficando em branco;
• Das Faculdades/Universidades com mais produções, três são
particulares e duas são públicas.

O que estes dados podem nos dizer? Nada muito concreto. Ainda
assim, é possível inferir como os estudos sobre Cultura Pop estão
distribuídos pelos diversos campos do saber, configurando as abor-
dagens como interdisciplinares e que é mais fácil estudar estes as-
pectos em instituições particulares do que nas públicas. Isso mostra
como, no setor público, alguns aspectos atribuídos à importância
dos temas e objetos resvala na temática da Cultura Pop.

O que se pesquisa na Cultura Pop?

Há muitas ressalvas sobre estes dados surgidos a partir de uma


busca simples no portal da Capes. Há de se considerar suas limita-
ções. O sistema de palavras-chaves usados pelos pesquisadores não
descreve de maneira tão apropriada as pesquisas que fazem.
Muitos, inclusive, nem usam o termo “Cultura Pop” no título de
seus trabalhos, mas enfatizam os produtos da Cultura Pop, o que não
nos permite saber com mais precisão quantos e quais são estas pes-
quisas feitas sem um estudo mais demorado e incisivo.
Mesmo assim, é possível perceber a pulverização da temática da
Cultura Pop em diversas áreas, apesar da predominância no campo
da comunicação, artes e ciências sociais.
Em verdade, os números citados na abertura deste tópico são
muito mais amplos.
A Cultura Pop é um conceito amplo e genérico que envolve diver-
sas produções e produtos tais como Música, Quadrinhos, Cinema,
Animação, Games e Cosplay. A Cultura Pop se apresenta por diver-
sos segmentos distintos. E reunir tudo isso em torno de um único
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 12

campo é complicado.
É importante, inclusive, perceber suas ramificações ou objetos
de análise, por assim dizer. Com o objetivo de mapear estas rami-
ficações que a Cultura Pop assume, entre as pesquisas, propus uma
exposição, pontual, dos principais temas e objetos que se relacionam
com a Cultura Pop de maneira mais usual. O objetivo não é findar o
tema ou circunscrevê-lo aos aspectos citados, mas, sobretudo, possi-
bilitar uma aparência mais concreta a uma terminologia muito am-
pla e diversificada. Um guia de referência, por assim dizer, que toma
como base, as principais pesquisas e resultados trazidos pelos pes-
quisadores que identificam suas ações como pertencentes ao campo
denominado “Cultura Pop”.

Programas de TV
Como forma de entretenimento, a Cultura Pop surgiu a partir
dos produtos midiáticos. E o primeiro deles a criar esta demanda por
comportamento de consumo destes produtos vinculados à diversão
foi a Televisão.
A Televisão criou uma nova forma de entreter a população. Ela
levava diversão, conhecimento e lazer, tudo de uma vez só, em um
tempo reduzido e simplificado para dentro das casas.
Os programas de auditório e games shows criaram comunidades
de fãs que reservavam os horários para não perder uma única exibi-
ção. Criaram celebridades e famosos que começaram a criar fãs que
idealizavam estes novos personagens que não eram artistas (como os
do teatro ou da música), mas encantavam pelo carisma e pelo víncu-
lo que criaram com seus respectivos programas.
Estes shows também possibilitaram que uma nova classe de es-
pecialistas surgisse na sociedade, sabedores de todos os momentos
daquele programa.
Estes programas não apenas levavam diversão travestida de in-
formação até seu público doméstico, mas um novo padrão de consu-
mo de diversos produtos. A TV sobrevivia (e ainda o faz até os dias
atuais) de propaganda de produtos vinculados à sua programação.
Roupas, acessórios, objetos e utensílios diversos que eram anuncia-
dos antes, durante e depois das apresentações.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 13

Figura 2 – Gincana da TV Japonesa.


Fonte: O Globo4

O sucesso destes programas gerava novos subprodutos que eram


comercializados com o mesmo fim, tais como jogos e brinquedos,
mas também frases de efeito e vestimentas. Assim surgiam os Games
televisionados:

O divertimento é garantido com esses programas, pois a cada fase dos jogos
ficamos mais e mais apreensivos, torcendo para que os participantes che-
guem aos grandes prêmios. [..] Quem nunca sonhou em participar de um
desses programas? Acho que todos já nos sentimos dentro dos games shows,
participando e dando os nossos pitacos como se o jogador que lá está, con-
seguisse ouvir por transmissão de pensamento a resposta certa.5

Programas como o Yes-No (Sim ou Não/ Domingo no Parque), o


Roda da Fortuna (Roda a Roda), Deal or no Deal (Topa ou não Topa)
ou Who Whants to be a Millionare? (Show do Milhão), que tanto
encantaram a TV dos EUA quanto a brasileira, a serem veiculados e
apresentados pelo Silvio Santos no canal de TV SBT.
Estes programas criaram uma demanda de jogadores em poten-
cial que gostariam de participar. Uma geração de fãs especializados
em cada detalhe do programa. Não à toa, foram estes os elementos
primeiramente copiados por outras culturas que desenvolveram ele-
mentos de Cultura Pop, tal qual os estadunidenses. De perguntas e
respostas para torneios de atividades físicas, os games se desenvolve-
ram e criaram diversos outros novos produtos.
4 <https://ogimg.infoglobo.com.br/in/3012111-165-61c/FT1086A/652/xPrograma-Hole-in-
-the-wall.jpg.pagespeed.ic.1-TSiNk63G.jpg>
5 <https://casinosnobrasil.com.br/novidades/game-show-da-tv-para-o-computador/>
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 14

No Japão, estes games foram se desenvolvendo e chegando a pa-


tamares de cultuação muito mais amplos que os seus originais nos
EUA. Os programas de TV dos EUA (e no Brasil também) já colo-
cavam as pessoas em situações vexatórias e expostas ao ridículo. E
no Japão isso se ampliou exponencialmente. E independente destes
fatores, conquistaram audiência, a pauta das conversas entre os ami-
gos, e um valor agregado de conhecimento especializado sobre sua
trajetória, que findam em um comportamento específico de indiví-
duos que dominam os saberes sobre estes programas, e criam um
grupo especializado em consumir e descrever aspectos e assuntos a
eles relacionados. Este grupo de interesse especial, por conseguinte,
se transforma em um grupo cultural, que de forma sociológica, pos-
sui regras de conduta que gerenciam a participação e a identidade
dos indivíduos (assim como qualquer outro grupo de referência)6.

Figura 3 - Tabela Programas de Auditório na TV Japonesa


Fonte: Coisas do Japão7 e NSV Mundo Geek8

6  Para aprofundar esta dimensão dos grupos de referência, vide o trabalho de Erving
Goffman, especialmente em: GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da
Identidade Deteriorada, Rio de Janeiro, Editora LTC, 1988; e, GOFFMAN, Erving. Forms of
Talk (Conduct and Communication). Paperback: New York, 1981.
7 <https://www.coisasdojapao.com/2017/06/os-programas-de-televisao-no-japao-sao-os-
-melhores/>
8 <https://www.nsvmundogeek.com.br/japao/programas-bizarros-da-tv-japonesa/>
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 15

Séries de TV
Foram a partir dos programas de TV, suporte para a maioria dos
demais bens e produtos da Cultura Pop, que se desenvolverem os
desenhos animados, séries de televisão, filmes do cinema, filmes fei-
tos para a televisão, minisséries, etc.. No Japão, surgiram, inclusive,
novos produtos como os Live Actions (encenação com atores reais
de personagens dos quadrinhos e da animação); os Tokusatsu, as
séries de fantasia sci-fi com muito efeito especial como Godzila e
Jaspion; e os Sentai, um tokusatsu com grupo de cinco integrantes,
como Changeman, Flashman e Maskman.
Estes produtos resultaram em pesquisas diversas como a disser-
tação em Comunicação e semiótica, “Metáforas políticas no gênero
tokusatsu: a metamorfose dos signos na mídia japonesa” de Nordan
Manz (MANZ, 2013). E, entre este produtos televisivos, uma série
de outros relacioandos à cultura de consumo: trilhas sonoras, ban-
das musicais, práticas alimentares e de vestimentas e congêneres tais
como jogos, quadrinhos e outros produtos derivados deste patamar.
Nos EUA, as séries veiculadas na TV, aberta ou por assinatura,
criaram novas demandas de consumo de produtos associados aos
fãs deste material.

Figura 4 – Super Sentai exibidos no Brasil.


Fonte: Blog Tokusatsu Exibidos no Brasil9

9 <http://4.bp.blogspot.com/-xqy3RSkv4eM/UFXVw9EHuKI/AAAAAAAAADc/efQ82oTe-
PX4/s640/SUPER+SENTAI+EXIBIDOS+NO+BRASIL.jpg >
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 16

Da mesma forma que acontece com os produtos da TV Japonesa,


há uma enorme proliferação e grupos de fãs relacionados aos pro-
dutos da TV estadunidense. São grupos por tema (séries de Terror,
Horror, Sci-fi, Younger, etc.) mas também específicos de algumas
séries em particular: Friends, Big Ban Theory, Alias, Game of Thro-
nes, etc. Quanto mais tempo durar a produção e exibição da matéria,
maior será a tendência em existências de grupos de fãs. Esta é a “Cul-
tura da Série” como defende o professor de cinema da UFPB, Marcel
Silva (SILVA, 2019).
E efeitos interessantes acontecem. Há séries de TV que são feitas
já pensadas para Tribos Urbanas específicas de determinadas regi-
ões, como EMO´s, NERDs e GEEKs, Motoqueiros, etc. Mas estas
produções não circulam (e são consumidas) apenas por estes gru-
pos, resultando em efeitos de criação. No Brasil, por exemplo, po-
dem propagar e criar novos grupos, ao passo que estabeleçam uma
relação com novos grupos de fãs no país, como revelou o estudo de
Pedro Curi:

Programas de TV norte-americanos podem ser assistidos de qualquer lugar


do planeta enquanto são transmitidos ou baixados pela internet poucas ho-
ras depois. Jovens espectadores fazem isso usando diferentes ferramentas e
redes sociais, discutindo o que viram. Entre esses espectadores há um grupo
mais específico: os fãs. No Brasil, não é diferente. No entanto, esse mercado
global não parece tão inclusivo. Alguns dos programas possuem uma série
de paratextos, produtos conexos ou lógicas interativas que fãs estrangeiros
não conseguem alcançar. Sentindo que estão perdendo parte da história,
fãs brasileiros tentam criar novas formas de interagir com esses universos e
com outros fãs. Este trabalho procura mostrar como os espectadores brasi-
leiros interagem com produtos globais transmidiáticos e entre eles em um
consumo global, com elementos locais (CURI, 2012, p. 1199).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 17

Figura 5 – Mapa dos EUA mostrando as séries que retratam as ambientações e os


comportamentos culturais de cada estado da Federação. Estas séries se tornam
objetos de culto concomitante com sua duração.
Fonte: Pinterest10

Ya-Lit, Literatura Young Adults


Outro produto da Cultura Pop bastante efervescente são os li-
vros feitos para adolescentes e jovens adultos, que vão dos 12 aos 24
anos. É um tipo de literatura que coloca protagonistas nesta mesma
faixa etária, em gêneros de fantasia a distopias sci-fi que enfatizam
estes mesmos personagens, passando por situações de enfrentamen-
to compartilhadas por jovens da vida real: discriminação, drogas,
suicídio, bullying, pais ausentes, etc., são situações da vida real que
criam empatia com os eleitores.
São séries serializadas como Harry Potter (J. K. Rowling), Cre-
púsculo (Stephenie Meyer), Jogos Vorazes (Suzanne Collins), Di-
vergente (Veronica Roth) e Instrumentos Mortais (Cassandra Cla-
re). Todos escritos por mulheres, coincidentemente. Apesar de haver
autores homens como Artemis Fowl escrito por Eoin Colfer e Percy
Jackson do Rick Riordan, entre diversos outros.
Estes livros também criaram uma rede de fãs aficionados pelos
respectivos universos ao ponto de incorporarem, em sua vida, falas,
trejeitos, ações e vestimentas (até mesmo um turismo pelos locais

10 <https://i.pinimg.com/originals/36/59/42/3659421049375b940a11363e80d72360.jpg>
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 18

descritos nos livros, quando possível) baseados em sua admiração.


Obviamente, grupos de discussão, debate, blogs e análises sobre o
universo (e eventuais falhas ou lapsos). Estes fãs são capazes até de
detectar quando os autores erraram algum elemento da cronologia
em seus universos extensos:

Continuidade: Antes de Harry e Hermione voltarem no tempo, é menciona-


do que Bicuço está amarrado a uma árvore (página 266, edição brasileira).
Mas quando eles voltam no tempo, Bicuço está amarrado a uma cerca (pá-
gina 320, edição brasileira).
Continuidade: Assim que eles saem da Casa dos Gritos, a ordem é Bichento,
Lupin, Pettigrew, Rony, Snape, Harry, Hermione e Sirius (página 306, edi-
ção brasileira). Entretanto, quando eles voltam no tempo, a ordem é Lupin,
Rony, Pettigrew, Hermione, Snape, Harry e Sirius (página 327, edição bra-
sileira).
Continuidade: Em junho, Fred e Jorge Weasley descobrem que conseguiram
“alguns N.O.M.s cada um”. Entretanto, em livros seguintes, é declarado com
firmeza que os resultados de N.O.M. são mandados para casa por coruja e
não são recebidos antes de agosto (na página 344 de PdA estão os resultados
dos gêmeos, e na página 575 de OdF, a informação de que os resultados
chegam em julho).
Continuidade: Na página 275 (versão brasileira), diz que Rony “arrastou-se
até a cama de colunas e largou-se sobre ela”. Mas quando o professor Lupin
entra, diz que “seus olhos piscaram ao ver Rony, deitado no chão”. Isso não
poderia ocorrer, pois Rony ainda estava na cama.
Continuidade: Nas versões americanas, o Sr. Weasley diz nesse livro que
Harry e Rony estiveram na Floresta Proibida duas vezes (página 58 da ver-
são brasileira). Mas em Pedra Filosofal, apenas Harry foi, cumprindo deten-
ção – ele estava com Hermione, Neville e Malfoy.
Erro factual: o Capítulo Dezesseis (A Predição da Profa. Trelawney) ocorre
em junho de 1994. No começo da página 355 (edição brasileira) do capí-
tulo, Harry Potter lê um bilhete de Hagrid e diz “o recurso do Bicuço, está
marcado para o dia seis”. Na noite do recurso do hipogrifo, Remo Lupin se
transforma em um lobisomem por causa da lua cheia, o que significa que
isso ocorreu na noite de 6 de junho de 1994. O site HP Lexicon também
confirma essa informação. No entanto, uma breve olhada no calendário lu-
nar de sites como Stardate e Verizon definitivamente mostra 9 de junho de
1996 como uma noite de lua nova, o que significa que a lua cheia não pode-
ria ter ocorrido três dias antes.11

11 < http://harrypradoclub.blogspot.com/2011/07/erros-dos-livros-3-harry-potter-e-o.
html>
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 19

Sim, fãs fazem isso. Não é falta de tempo ou vontade de penalizar


as coisas. Tudo aquilo que é admirado é visto com outros olhos. E
estas incongruências são objeto valorativo de troca entre os outros
fãs. É um tipo de moeda simbólica que denota ao portador destas
informações o reconhecimento da capacidade de identificação de
cada particularidade que envolve o tema do seu discurso. É um
atestado público que ele ou ela deve ser respeitado ou reconhecido
como um agente importante para compreender este produto. Trata-
se, assim, de um tipo de prestígio social atrelado ao campo.
Esta prática de identificação, inclusive, é advinda da audiência
dos fãs de cinema em identificar os erros de continuidade de uma
cena para outra. Uma pessoa comum dificilmente percebe estas au-
sências e erros. É necessário assistir inúmeras vezes o mesmo mate-
rial para começar a perceber. E quem faz isso são os fãs.12
São pauta de seus debates e sistema de status social. E vários tra-
balhos têm demostrado isso, como a pesquisa de Jacques Filho:

As apropriações dos fãs sobre a narrativa Harry Potter assumem direciona-


mentos variados. [...] O sentido do que os admiradores da série [Harry Pot-
ter] fazem atravessa exemplos distintos, impulsionados pela consolidação da
internet. Para compreender essa relação contemporânea selecionamos três
dispositivos que reinterpretam o enredo original: dois sites de fanfictions –
fanfiction.net e Floreios e Borrões, duas páginas do Facebook – A Varinha
e Harry Potter – e um fã-clube baseado em Porto Alegre, os Herdeiros de
Sonserina. Primeiramente faremos descrições e breves apontamentos sobre
o funcionamento dos casos. Analisa-se então, por analogia e homologia, a
relação que mantêm entre si, dentro da lógica de práticas dos fãs. Dessa re-
flexão encontramos alguns indícios que qualificamos como a verticalização
dos dispositivos, a prevalência do valor de culto e as limitações interacionais
das estruturas formadas (JACQUES FILHO, 2014, resumo).

E sua admiração rende diversos subprodutos numa enorme ca-


deia de economia criativa que movimenta não apenas valores econô-
micos, mas, essencialmente, bens culturais em torno da produção de
um produto midiático de entretenimento.

12  Veja cum caso similar relacionado aos filmes de Harry Potter: https://fanzone.potterish.
com/filmes/erros-de-filmagem/ordem-da-fenix/erros-de-continuidade
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 20

Figura 6 – Fã postando foto de sua biblioteca com post-its com frases


selecionadas de cada um dos livros.
Fonte: Rebloggy13

Estes produtos entram em um fluxo contínuo de produção de


bens para a Cultura Pop, que estimulam o consumo e aumentam o
número de fãs a incluir novos segmentos. Assim, do livro, surge o
filme, a série para a TV, um jogo de vídeo game, um jogo de tabu-
leiro, uma revista em quadrinho, um desenho animado, moda de
vestuário, brinquedos...
Há diversos outros círculos que se desdobram em outros pro-
dutos: sites e blogs da internet, perfis nas redes de relacionamento
social, coletâneas especializadas no segmento, brinquedos e produ-
tos decorativos, produções artísticas tais como Fanfics14 e Commis-
sions15, por exemplo.

13 <http://rebloggy.com/post/quotes-my-post-books-fairy-lights-classics-reading-literatu-
re-ya-bookshelf-ya-li/77578842079>
14  “Fan fiction (em português, literalmente, “ficção de fã”), também grafada fanfiction ou,
abreviadamente, fanfic é uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs inicialmente em
fanzines impressos e posteriormente em blogs, sites e em outras plataformas pertencen-
tes ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de
produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos, videogames, etc. Portanto, tem como
finalidade a construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato
dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos”. FANFIC. In: WIKIPÉDIA, a
enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.
org/w/index.php?title=Fanfic&oldid=56224867>. Acesso em: 12 set. 2019.
15  “Commission” é uma arte (desenho e/ou pintura) feita sob encomenda, por um artista
para a pessoa que encomenda. Normalmente, é bem especificado o que é que deve ser de-
senhado e com quais características. Sejam personagens previamente existentes ou não. É
a pessoa que encomenda que define todos os elementos do desenho final.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 21

Figura 7 - Esquema 1: Produções Interconectadas.


Fonte: autoria própria.

RPGs, Board games e Card games


O universo da Cultura Pop é repleto de jogos dos mais diversos ti-
pos. Normalmente, todos sempre se lembram dos games eletrônicos
e digitais, como grandes agentes de integração desta comunidade.
Apesar de serem mais conhecidos pelos indivíduos que não fa-
zem parte da Cultura Pop, não são as únicas formas de jogatina que
existem. Há versões analógicas que existiam antes dos videogames e
continuam a desempenhar o mesmo papel.
Jogos de RPG ou “Role Playing Game” são jogos de narrativa no
qual os jogadores interpretam papeis e situações, tomando como
base um cenário que segue o mesmo patamar da literatura Ya-Lit,
cenários góticos que vão da fantasia medieval até o sci-fi e o horror.
Da mesma forma que os demais produtos da Cultura Pop, se tor-
nam objetos de culto e consumo. Vivificam-se em torno de livros
especiais, normalmente com acabamento luxuoso e volumoso e da-
dos multifacetados de inúmeros lados. As sessões de RPG costumam
durar muitas horas, dias e até mesmo anos.
São enredos de aventura em diversos sistemas que visam geren-
ciar os destinos das ações com base nas rolagens de dados e em ou-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 22

tros meios (cartas e jokempô16, p. ex.) tais como o World of Dark-


ness responsável por sucessos como Vampire, Werewolf e Mage que
usa o sistema Storyteller com D10 ou o mais famoso entre todos: o
Dungeons & Dragons que usa o sistema D20. O sistema diz o tipo
de dado que é usado para as rolagens.
Estes jogadores se reúnem em convenções, mas também em es-
paços apropriados para jogar, de maneira reservada. Até mesmo em
espaços públicos tais como lanchonetes, praças, shoppings ou qual-
quer lugar que tenham onde sentar e apoiar seus dados e fichas de
personagens.
Board Games ou jogos de Tabuleiros são antigos. Referem-se
desde aqueles joguinhos clássicos da infância, como Trilha, Domi-
nó e Xadrez, passando pelos mundialmente conhecidos como Ma-
nopoly/Banco Imobiliário, Detetive e War e os inúmeros jogos de
Trivia (pergunta e resposta) até as suas versões modernas, altamente
complexas, como Catan, Agrícola e Scythe.
Os jogos de tabuleiro modernos são inúmeros. São jogos que
emulam os mais diversos ambientes em torno de uma configuração
de materiais e de um tabuleiro (por isso o nome). Além das sessões
e eventos para jogar boards, estes fãs desenvolvem novas práticas,
como usar as redes sociais para tirar fotos, não de si mesmos, mas
de suas coleções. Esta prática é chamada pelos praticantes de Shel-
fies. Uma brincadeira com as palavras em inglês “shelf ” (prateleira)
e “self ” (relativa à foto tirada de si mesmo). Assim, as Shelfies são
fotos que enquadram a prateleira dos jogadores. As fotos dos grupos
do facebook são repletas de postagens como esta (fig. 8) no qual os
fãs avaliam o perfil da coleção, maneira de organização dos títulos,
aparência e preservação dos volumes e sistema de armazenamento.
Os Card Games são outro fenômeno à parte. São jogos no qual
decks de cartas são usados para batalhar com outros jogadores.

16  “Jokempô: Pedra, papel e tesoura, também chamado em algumas regiões do Brasil
de jokempô (do japonês , jankenpon) é um jogo de mãos recreativo e simples
para duas ou mais pessoas, que não requer equipamentos nem habilidade. O jogo é fre-
quentemente empregado como método de seleção (como na escolha de equipes para a
prática desportiva, por exemplo), assim como lançar moedas, jogar dados, entre outros. No
entanto, diferentemente desses métodos que se baseiam exclusivamente em sorte, pedra-
-papel-tesoura pode ser jogado com um pouco de habilidade. Principalmente se o jogo
se estender por vários turnos com o mesmo jogador, este pode reconhecer e explorar a
lógica do comportamento do adversário (perceber e anteceder as jogadas do adversá-
rio).”. PEDRA, PAPEL E TESOURA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia
Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pedra,_
papel_e_tesoura&oldid=56113552>. Acesso em: 29 ago. 2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 23

A grande maioria dos jogos são torneios de disputa entre dois


jogadores tais como Magic: the Gathering, Pokemón, Yu-Gi-Oh!,
Destiny, Legends of Five Rings e Keyforge; mas há também jogos
com múltiplos jogadores como o Vampire: The Eternal Struggle ou
VtES, no qual vários jogadores se enfrentam mutualmente em um
sistema circular.
Todos estes jogos de cartas são chamados de Trading Card Game
(TCG) ou Collectible Card Game (CCG), ou ainda, Living Card
Game (LCG), que apesar de terem diferenças entre si, fazem todos
menção a um sistema de colecionamento de cartas usado no jogo.
Há uma centena de tipos de torneio e embate entre os jogadores e
sistemas de organização integrada no mundo todo. Há registro digi-
tais de todos os decks e partidas fazendo como que haja rankeamento
internacional das partidas e dos ganhadores, que movimentam cifras
financeiras enormes no processo de jogabilidade com as premiações,
mas também da comercialização entre os jogadores de decks e cartas
bem avaliadas pela comunidade.

Figura 8 – Shelfie da coleção de Boards Games Modernos de Amaro Braga em fev.


2018. 230 títulos de jogos representando todas as 51 mecânicas catalogadas.
Fonte: do Autor.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 24

Figura 9 – Torneio de Magic com centenas de participantes


jogando ao mesmo tempo.
Fonte: Magic: the Gathering17

Figura 10 – Torneio de VTeS com 4x4 jogadores.


Fonte: Vtes Instagram18

Este grande impacto econômico (e social) não passou desperce-


bido da academia. O pesquisador português Carlos Alves (2012), em
sua dissertação de mestrado em comunicação, estudou justamente
estas redes que se formam entre os jogadores apreciadores destes
segmentos da Cultura Pop:

17   <h t t p s : // m a g i c .w i z a r d s . c o m / s i t e s / m t g / f i l e s / i m a g e s / f e a t u r e d / E N _
RegionalProTourQualifier_Header_0.jpg >
18 <https://scontent-yyz1-1.cdninstagram.com/vp/3605942b08c7a6bcfd6ddf1be6117405/5
E2F7687/t51.2885-15/sh0.08/e35/s640x640/69701290_2517957314964293_6722070407217
126299_n.jpg?_nc_ht=scontent-yyz1-1.cdninstagram.com&_nc_cat=105 >
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 25

A dissertação de mestrado centra-se no estudo do impacto que a pertença


dos praticantes de board games, trading card games e role-playing games ao
Magic Clube Caldas tem nas suas vidas, através da aplicação de um inqué-
rito por questionário a 122 jogadores do clube, que envolve cinco questões
centrais: relação dos praticantes com os jogos dentro do clube; relação dos
praticantes com os jogos fora do clube; relação dos praticantes com os jogos
na internet; opinião que os praticantes têm dos jogos Magic:the Gathering;
Dungeons and Dragons; Yugioh e Pokémon; relação entre os jogadores e o
Magic Clube Caldas. No primeiro capítulo é realizada uma revisão da litera-
tura sobre os temas centrais (comunidades; relações e grupos sociais; cons-
trução identitária no processo de consolidação do sentimento de pertença;
movimentos associativos; utilização da internet em Portugal e as relações de
sociabilidade em rede) pertinentes para a compreensão dos resultados do
inquérito, apresentados no capítulo dois, simultaneamente com a metodo-
logia adaptada no estudo. Finalmente, são apresentadas as principais con-
clusões deste, de onde se apura que os jogadores têm uma forte relação com
o clube e com os outros jogadores, com quem criam vínculos duradouros,
que se formam a partir de um interesse em comum, o jogo. Estes vínculos
são transpostos para fora do clube, dando origem a relações de amizade e
permitindo a prática do jogo noutros espaços, essencialmente quando não
lhes é possível aí jogar. Nesta parte são também apresentadas algumas limi-
tações do estudo e sugeridas pesquisas para futuras investigações (ALVES,
2012, resumo).

Muitas vezes, tais pesquisas, possibilitam análises específicas


dentro do campo, como acontece com o trabalho de Meggie Rosar
Fornazari (2017) que analisa a representação dos múltiplos gêneros
de personagens não heteronormativos, como agênero, gays, lésbicas
e mulheres trans no card game do Magic: The Gatherin, problema-
tizando uma discussão sobre quais as implicações desta ampliação
de representações no jogo e na percepção dos jogadores sobre esta
temática, tão importante nos dias atuais.

Música para acompanhar


A Cultura Pop desenvolveu uma nova relação com a musicalida-
de. As produções de música se incorporaram a todos os seus produ-
tos, mas não como foco principal na apreciação da exibição ou da
maestria de seus intérpretes na execução dos instrumentos. A músi-
ca se tornou um instrumento derivado das outras atividades.
A música surgiu não como uma apreciação em si, mas associada
aos produtos da Cultura Pop. As músicas da cultura Pop são trilha
sonora, são faixas de abertura, temas dos filmes, propagandas ou sé-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 26

ries. Às vezes artistas consagrados preparam material específico para


estes produtos; às vezes se aproveita algo que já existia antes de se
associar ao novo produto; na grande maioria das vezes se produz
especificamente para o produto. Foi o que motivou Gustavo Oliveira
(2002) a fazer sua dissertação de mestrado em Multimeios ao refletir
sobre o uso da trilha sonora em jogos comerciais.
Os filmes e séries televisivas não fazem sucesso sem uma boa tri-
lha sonora ou mesmo uma boa edição de som, tanto que os prêmios
da indústria dirigem sua atenção a uma boa variabilidade de práticas
relacionadas à edição de som, sonoplastia e outros derivados mais
técnicos como mostra Nelson Pinton Filho em seu doutorado ao re-
sumir sua pesquisa da seguinte forma:

Um olhar atento para os eventos que compõe a trilha sonora da Trilogia da


Morte de Gus van Sant: Gerry (2002), Elephant (2003) e Last Days (2005).
Os materiais sonoros são tratados como um aliado, auxiliando na constru-
ção narrativa. De maneira geral, incorporam músicas de paisagens sonoras,
cujos fonogramas originais são combinados aos demais elementos da banda
sonora, resultando numa mixagem particular e surpreendente que impac-
ta na montagem fílmica, nos processos inerentes e complexos do tempo,
nas tensões sonoras internas compostas de timbres e no resultado cognitivo
para o espectador. Esta pesquisa auxilia na compreensão do processo de
sound design, surgido em meados dos anos 70, e que se estabelece nos dias
atuais como forma expressiva de tratar os sons nos filmes (PINTON FILHO,
2014, resumo).

Ou como faz Juliano de Oliveira (2012), em seu mestrado em


Música, ao realizar um estudo analítico “acerca do desenvolvimento
da poética e dos processos da música eletroacústica na trilha sonora
- principalmente na trilha musical - do cinema de ficção científica
norte-americanos” (OLIVEIRA, 2012, resumo) com base nos filmes
O planeta proibido (1956), THX 1138 (1971), Tron: uma odisseia
eletrônica (1982) e A última profecia (2002) e Lucas Bonnetti (2018)
que analisa a fronteira entre Sound Design e Trilha Musical com base
no seriado televisivo estadunidense The Twilight Zone (1959-1964).
A mesma questão acompanha a produção de videogames. Os
eventos de Cultura Pop, principalmente japonesa, não fazem sucesso
se não apresentarem uma banda de K-Pop (mesmo sendo coreanas)
ou realizarem torneios musicais com apresentação de cosplays ou
grupos de dança interpretando cenas de abertura e encerramento de
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 27

animações e tokustasu famosos. É que faz Thiago Santos (2016) na


dissertação de mestrado em Antropologia, ao realizar uma etnogra-
fia da prática musical do K-pop em São Paulo.
Até os grupos de RPG e Board Games usam a trilha sonora de
suas sessões. Há sítios virtuais especializados em oferecer o acompa-
nhamento como o Melodice.Org ou canais do Youtube e até mesmo
Youtubers que fazem crítica das melhores faixas para acompanhar os
jogos e sessões. É o que faz o professor de matemática Lucas Andra-
de que mantém um canal e um blog sobre o assunto:

Uma de minhas maiores alegrias neste hobby é pesquisar a trilha sonora


ideal para cada jogo. Quem já acompanha esta minha missão aqui neste
site, nos primeiros episódios do podcast Meeple Maniacs e em meu perfil no
Spotify, sabe que não jogo sem a ambientação sonora perfeita. Até se quise-
rem saber mais sobre este tema recomendo ouvir o episódio 12 do podcast
Zero Bits.19

As recomendações de Lukita, como é conhecido no meio, são


complexas e bem detalhadas. Cada música é pensada para refletir
o tema, a época e a sensação imersiva que o jogo proporciona. Há
jogos, inclusive, que já vem com trilha sonora específica para ser ou-
vida durante as partidas, como é o caso do jogo Fireteam Zero.

Figura 11 – Jogo Fire Team Zero que vêm com um CD contendo trilha sonora para
ser ouvida durante as partidas.
Fonte: Amazon20 e Balena Ludens21

19 <https://www.ludopedia.com.br/topico/4010/trilhas-sonoras-para-dezenas-de-jogos-e-
-vem-mais>
20  < https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/71QZU9GZ1KL._SL1000_.jpg>
21 <https://i1.wp.com/www.balenaludens.it/wp-content/uploads/2016/12/fireteam-Ze-
ro-005-1024x552.jpg?resize=1024%2C552>
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 28

Cult, é de Cultuado
A produção de audiovisual é muito ampla: vai desde de vídeos
curtos para internet, curtas, média e longa metragens para serem
exibidos em salas especiais preparadas para seus efeitos de som e
imagem até gravações de duração variada para serem exibidos na
TV. Há diferenças de narrativa, enquadramento e até concepção de
enredo e personagens para cada um destes segmentos. O que os po-
dem tornar objetos da Cultura Pop está relacionado a dois elemen-
tos: sua continuidade serializada e a aderência do público enquanto
objeto de culto.
Não à toa, algumas produções fílmicas se tornam Cult, por serem
justamente cultuadas por algum fator de ordem estético que o faz de-
senvolver relações de sentido valorativo para um grupo em especial
que consome estes produtos.
Desta forma há dois movimentos distintos: um que parte da in-
dústria de entretenimento e outro que parte dos grupos que conso-
mem os materiais.
São os agrupamentos humanos que objetificam determinados
objetos da cultura de massa, da cultura popular e da cultura erudita,
tornando-os objetos de culto. Passam a ser valorados por um tipo
de representação estética, temática, transtemporal que é eleita pelo
grupo como instrumento simbólico. Há, muitas vezes, reminiscên-
cias de um tempo passado, nostálgico, que o respectivo material que
o grupo foca, representa muito bem. E, é por isso, que ele se torna
“cult”.
A ação de se tornar Cult é emblemática da Cultura Pop. Esta rela-
ção vem atraindo diversos pesquisadores interessados em entender
como este processo de vínculo se estabelece, obviamente para apli-
car em novos produtos com interesse nas aplicações comerciais22 ou
estéticos23.

22  Veja: TRIERWEILLER, Andréa Cristina; WEISE, AndreasDittmar; PEREIRA, Vera


LuciaDuarte Do Valle; PACHECOJUNIOR, Waldemar; ROCHA, RudimarAntunes Da.
Diagnóstico De Satisfação De Clientes Como Ferramenta Para Fidelização: UmEstudo De
Caso Em Cinema Cult. Revista de Administração da Unimep, vol. 9, núm. 1, Jan.-abr., São
Paulo: Universidade Metodista de Piracicaba. 2011, pp. 112-130. Disponível em: https://www.
redalyc.org/pdf/2737/273719431006.pdf.
23  Veja: GRECO, Clarice. A Tv Cult E O Culto À Telenovela No Brasil. Estudios de
Recepción do XII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Investigadores de
la Comunicación (ALAIC). Set. 2013. Perú. Disponível em: http://congreso.pucp.edu.pe/
alaic2014/wp-content/uploads/2013/09/GT7-Clarice-Greco.pdf;
CASTELLANO, Mayka. Gosto cult: a proximidade velada entre o cinema de arte e a cultu-
ra trash. Revista EcoPós. v. 17, n. 3, 2014. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 29

Em todos os casos, os produtos sempre estão atrelados a um con-


sumo especializado por pessoas que cultivam um saber aprofundado
pelo material que consomem, que lhes ocupa muito mais que um
tempo de lazer, mas uma dedicação a consumir estes materiais. Até
de forma mais intensa que seus próprios produtores. São os fãs. São
eles que atribuem tanta importância a um material. Pois são eles que
consomem e pagam pela sobrevida dele na sociedade. Se tornam
parte de suas vidas e de seus interesses. Seu prazer está em saber cada
detalhe sobre o produto que consomem. A diversão está em consu-
mir, mas também em saber que outros reconhecerão seu conheci-
mento especializado. Por isso, os fandom, como são chamados, tem
a tendência de se tornarem os consumidores mais chatos e exigentes.
Não existe fã sem critério de exigência por ortodoxia.
Os fãs de quadrinhos japoneses, por exemplo, (e isso não ocorre
com a mesma frequência com os fãs de quadrinhos de super-heróis,
p. ex.) tem uma prática comum de criar ou alimentar sítios virtuais
de Scanlation. Uma prática, solitária ou em grupo, de traduzir, edi-
torar e distribuir as histórias em quadrinhos japonesas não editadas
em língua portuguesa para outros fãs através da internet24. Trata-se
de uma prática antiga que já existia desde de a época dos VHS (anos
1980), no qual os fãs gravavam desenhos animados que passavam na
TV a Cabo ou copiavam fitas de locação para distribuir entre os fãs
do gênero (também legendando o material, muitas vezes). Apesar de
esbarrar em questões de legalidade, sempre foi uma prática comum
nos clubes de fãs.
Trata-se de criar uma rede de consumo múltiplo: Filme – Série –
Quadrinhos – Desenho Animado – Música – Brinquedo – Jogo – Vi-
deogame – Literatura .... que se retroalimenta reforçando o consumo
e a aderência dos grupos de fãs com seus produtos. Com esta diver-
sidade imensa, as possibilidades de pesquisa são inúmeras e muito

eco_pos/article/view/1763
24  Para mais informações, consulte: CARLOS, Giovana Santana. O(S) Fã(S) da Cultura
Pop Japonesa e a Prática de Scanlation no Brasil. Dissertação de Mestrado em
Comunicação e Linguagens. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2011. Disponível
em: https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/7296348/%5Bdissertacao
%5D%20Os%20fas%20da%20cultura%20pop%20japonesa%20e%20a%20pratica%20
de%20scanlation%20no%20Brasil.pdf?response-content-disposition=inline%3B%20
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015792d020bba5f7cbdc5504b496cc3ac2d9. Acessado em: 25 ago. 2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 30

dificilmente não consigam se encaixar em qualquer que seja a abor-


dagem da academia em qualquer área possível. Basta o pesquisador
e a pesquisadora direcionar o produto ao seu respectivo campo de
investigação e aprumar suas bases teóricas e metodológicas.

Considerações Finais

O que expus neste trabalho foi um breve levantamento, genérico


e ensaístico, dos principais elementos relacionados às pesquisas so-
bre a Cultura Pop e como elas aparecem na prática acadêmica. Não
finda ou limita o que é foco da pesquisa sobre este tema amplo. Ape-
nas mapeia os elementos iniciais, norteadores. Há inúmeros outros
e cabe a cada agente envolvido em revisar a literatura e construir um
estado da arte, realizar.
Meu breve levantamento na Plataforma da CAPES revelou só al-
gumas destas direções e áreas com maior capilaridade para hospedar
os problemas de pesquisa relacionados às temáticas da Cultura Pop.
Ainda assim, deve-se ficar ciente que quaisquer temas e objetos
da Cultura Pop podem ser pauta para uma gama infinita de possibli-
dades de pesquisa. O controle do pesquisador e da pesquisadora está
em direcionar e adequar os objetos ao campo em que se vinculam
enquanto pesquisa acadêmica.
As possibilidades são múltiplas e sempre giram ou em torno das
pessoas que consomem a Cultura Pop ou das representações e im-
pactos dos seus objetos circulantes.
Assim, programas de TV, séries, filmes, literatura jovem e jogos
digitais ou analógicos produzem demandas de comportamento na
forma de entretenimento bastante impactante na sociedade. Grupos
de fãs de cada uma destas produções consomem de maneira tão in-
tensa estes conteúdos que se transformam em especialistas de cada
um destes segmentos, colecionando, catalogando e estudando as
produções na tentativa de absorver a maior quantidade possível de
informação.
A Cultura Pop ressinificou a Cultura de Massa lhe atribuindo um
papel identitário e consolidador da formação de grupos de interes-
se (ou subgrupos, ou subculturas) na forma de Tribos Urbanas, que
mantém um forte sentimento de pertencimento sem mesmo se co-
nhecerem pessoalmente. Integram-se uns aos outros pelo comparti-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 31

lhamento de práticas, valores, linguagem, vestimenta, gosto musical


e ações de entretenimento comuns à dimensão específica da Cultura
Pop ao qual estão vinculadas.
É um Culto ampliado formado por uma rede ampla de consumo
múltiplo de diversos produtos, tematicamente organizados: Filme
– Série – Quadrinhos – Desenho Animado – Música – Brinquedo
– Jogo – Videogame – Literatura e outros que, porventura, possam
vir a existir.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 32

Referências

ALVES, Carlos Fernando da Marta. O impacto que a perten-


ça dos praticantes de board games, trading card games e role-
-playing games ao Magic Clube Caldas tem nas suas vidas. Dis-
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Informação. Lisboa: ISCTE-IUL, 2012. Disponível em:<http://hdl.
handle.net/10071/5148>.
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academia.edu.documents/7296348/%5Bdissertacao%5D%20
Os%20fas%20da%20cultura%20pop%20japonesa%20e%20a%20
pratica%20de%20scanlation%20no%20Brasil.pdf ?response-con-
tent-disposition=inline%3B%20filename%3DO_s_fa_s_da_cul-
tura_pop_japonesa_e_a_pra.pdf&X-Amz-Algorithm=AWS4-
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d722d55f3f0db015792d020bba5f7cbdc5504b496cc3ac2d9 Acessado
em: 25 ago. 2019.
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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 36
A CIÊNCIA SUPERMAN:
APROXIMAÇÕES
EPISTEMOLÓGICAS ACERCA
DOS ASPECTOS MITOLÓGICOS
DO FAZER CIENTÍFICO EM
COMUNICAÇÃO1
Larissa Tamborindenguy Becko2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em um episódio do podcast “Filosofia Pop”, Charles Feitosa,


Doutor em Filosofia, professor e pesquisador do Programa de Pós-
-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO), apresenta suas concepções sobre o papel
da filosofia pop3:

O que eu imaginei então uma filosofia pop em que a gente fizesse uma par-
ceria com as imagens, mas que as imagens tivessem um espaço maior, uma
maior preponderância a tal ponto que, às vezes, os conceitos pudessem se
deixar levar pelas imagens e pela imaginação, abrindo mão um pouco então
do seu poderio. É uma parceria então do pensamento com a imaginação e
da Filosofia com a arte. E isso é diferente em relação à Filosofia tradicional,
que é, basicamente, uma parceria da Filosofia com a Ciência. Então não é
um abandono da parceria com a Ciência, mas é uma ampliação, uma pro-
posta de articulação com as artes em geral.4

1  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
2  Doutoranda em Ciências da Comunicação pela UNISINOS. Tem interesse em cultura pop,
estudos de fãs e performances. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2305267175695707.
E-mail: larissabecko@gmail.com.
3  Segundo Oliveira (2015, p. 15), “tal abordagem filosófica que faria usos e transfigurações
do pensamento filosófico ao longo da história, analisando e valendo-se de temas da cultura
popular, foi inicialmente preconizada por Deleuze, estudioso, da obra de Nietzsche. Ele cha-
mou de pop’filosofia (DELEUZE; PARNET, 1998). Esta seria algo como uma nova maneira de
ler e talvez de escrever, tratando os livros como se escuta um disco”.
4  Trecho do episódio “#010 – Filosofia Pop, com Charles Feitosa”. Filosofia Pop.
Spotify, Setembro de 2015. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/
episode/3z5eEh1AewA95sem6B1Yp7
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 38

Essa declaração chamou a minha atenção, porque, pessoalmen-


te, é praticamente impossível não buscar nos fenômenos, cenários
e objetos com os quais eu estou familiarizada os conceitos, teorias e
percepções dos autores estudados na academia. Através do exercício
de analogia, é possível detectar, utilizar e produzir similaridades de
modo a tentar compreender os objetos e os fenômenos analisados
(MORIN, 2008). De acordo com Ferrara (2015), as metáforas valem-
-se como são modos de dizer e de pensar já que “pensar é achar uma
metáfora” (Ibid., p. 4).
E é exatamente a partir dessa dinâmica que eu vou buscar ar-
ticular os autores que dialogam com os processos e compreensões
de cunho epistemológico para ilustrar os meus entendimentos acer-
ca de suas ideias. O argumento central do trabalho parte do caráter
“salvador” que a ciência parece ter adquirido nas últimas décadas,
o que compromete o entendimento do real papel da produção de
conhecimento científico.

Entre os paradigmas daquele momento está a crença no progresso e na ci-


ência, vias por meio das quais seria possível alcançar um mundo melhor
em que reinasse a tolerância e a justiça: fim da ignorância e império do co-
nhecimento e do progresso. No mesmo caminho, os dualismos adquirem
potência e a mente se sobressai ao corpo, a ciência entra no lugar da religião,
a razão elimina a subjetividade e a crença é substituída pela verdade com-
provável. (ROSÁRIO, 2013, p. 79)

Sendo assim, a proposta para este artigo é elucidar os argumen-


tos que circundam esses deslocamentos e construir uma discussão a
fim de pensar uma proposta prática para fins de desconstrução des-
sa perspectiva mitológica com foco, principalmente, na atuação dos
sujeitos pesquisadores. Seguindo a linha da filosofia pop de Feitosa,
a “ciência Superman” tem por objetivo, portanto, traçar e analisar as
relações mitológicas entre o fazer científico, especialmente no cam-
po da comunicação, e o Superman, icônico personagem fictício das
histórias em quadrinhos.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 39

A CIÊNCIA SUPERMAN

Recentemente, assolados pelos cortes orçamentários promovidos


pelo governo federal neste ano, milhares de jovens brasileiros foram
às ruas em protesto às medidas anunciadas pelo governo Bolsona-
ro5. Nas faixas e cartazes levantados pelos estudantes (Figura 1), uma
unidade é facilmente percebida: a palavra “ciência”. Parece lógico que
o contingenciamento de recursos das universidades afeta diretamen-
te a produção científica. No entanto, A Ciência, dita desta forma,
com letras maiúsculas e precedida do artigo definido, parece não dar
conta da complexidade do que quer dizer, em última instância, “fazer
ciência”.

Figura 1: Pesquisadores protestam dia 8 de maio


contra cortes na ciência e educação
Fonte: Saiba Mais Agência de Reportagem6

É claro que a construção desses discursos mereceria uma análise


mais aprofundada, visto que um discurso é sempre suscetível de di-
ferentes “leituras”, considerando que há sempre várias gramáticas de
reconhecimento envolvidas (VERÓN, 2004). No entanto, esse não é
o objetivo central desse exercício. A ideia aqui também não é desva-
lorizar as ações legítimas em defesa do papel dos pesquisadores e da-
queles que contribuem para a produção de conhecimentos no país,
5 Fonte: https://www.saibamais.jor.br/pesquisadores-protestam-dia-8-de-maio-contra-
-cortes-na-ciencia-e-educacao/
6 Fonte: https://www.saibamais.jor.br/pesquisadores-protestam-dia-8-de-maio-contra-
-cortes-na-ciencia-e-educacao/
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 40

mas discutir o caráter “sobre-humano” que a ciência adquiriu ao lon-


go dos séculos, o que a faz ser vista como uma entidade superior. As
descobertas científicas, muitas vezes, acabam sendo assumidas como
algo acabado, uma nova verdade indiscutível.

Os escolásticos medievais, seguindo os romanos, faziam da lógica, depois da


gramática, o primeiro dos estudos de um rapaz, e apresentavam-no como
sendo muito fácil. Assim era, tal como o entendiam. O seu princípio fun-
damental, segundo eles, era que todo o conhecimento repousa ou na auto-
ridade ou na razão; mas o que quer que seja deduzido pela razão depende
em última análise de uma premissa derivada da autoridade. Deste modo,
assim que um rapaz era perfeito no procedimento silogístico, acreditava-se
que o seu conjunto de ferramentas intelectuais estava completo. (PEIRCE,
1877, p. 1)

Este, aliás, é um dos pontos de encontro com o personagem tra-


zido já no título desde trabalho. O Superman, originalmente conce-
bido para as histórias em quadrinhos, é uma criação humana. Da ca-
beça de dois artistas, Jerry Siegel e Joe Shuster, o personagem ganhou
vida na primeira edição da Action Comics, em 1938. E a partir daí o
super-herói ganhou o mundo. Filmes, séries de TV, animações, ga-
mes, camisetas, brinquedos. Os tantos produtos midiáticos e merca-
dológicos que receberam o emblema em vermelho e amarelo estam-
pado com o imponente “S”, com certeza, foram imprescindíveis para
que o Superman virasse mais que um personagem de quadrinhos. E
essa afirmação encontra veracidade quando Fawaz (2016) conta que
a morte do Superman, em 1992, se transformou em um marco que
ultrapassou os limites das páginas de um gibi. O autor aponta que
meses antes de a história que narraria a morte do personagem ser
roteirizada, os veículos de comunicação norte-americanos saudaram
o episódio “como um evento de extraordinário significado cultural,
impulsionando o que inicialmente parecia uma decisão criativa iso-
lada do campo do debate público” (Ibid., p. 1, tradução própria7).
No entanto, a importância do Superman extrapolou as fronteiras
dos Estados Unidos: trata-se de um personagem que atinge uma di-
mensão global. E percebemos isso quando sabemos que a morte do
herói foi noticiada por Cid Moreira no Jornal Nacional, na Rede Glo-

7  No original:“an event of extraordinary cultural significance, propelling what initially appea-


red as an isolated creative decision into the realm of public debate.”
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 41

bo8. Essa dimensão múltipla e complexa que o personagem adquiriu


está, a meu ver, diretamente relacionada às construções que permi-
tem que uma fã se refira ao Superman como sendo “a promessa de
que a gente pode ser melhor”9.
Acredito que, impulsionado por todos os processos transmidiá-
ticos pelo qual vem passando, o Superman transcendeu às próprias
mídias, tornando-se uma “entidade” maior que os gibis, os filmes ou
qualquer outro texto midiático. Esse caráter é o que permite que os
produtos – mesmo quando são considerados ruins pelo público –
não invalidem o personagem. O Superman não perdeu a adoração
de seus fãs porque o filme “Batman vs Superman: A Origem da Justi-
ça” (2016) foi considerado um fracasso10. O produto em si parece não
ter a capacidade de obstruir o legado do super-herói.
Agora, vamos voltar aos cartazes dos manifestantes. Wallerstein
(1996, p. 27) declara que “a ciência foi proclamada como sendo a
descoberta da realidade objetiva através do recurso a um método
que nos permitia sair para fora da mente”, ou seja, ir além do ao de
criar cogitações sobre os fenômenos. De forma corriqueira, não é
incomum usarmos e ouvirmos o termo “a ciência” para nos referir-
mos às produções de conhecimentos baseadas no método científico.
Ao que me parece, a terminologia, no entanto, obscurece o fato de
se tratar de um conjunto de processos plurais, dinâmicos, comple-
xos e em constante desenvolvimento. Como conclui Popper (1975, p.
184), jamais poderemos “descrever, por meio de nossas leis univer-
sais, uma essência final do mundo”, pois os conceitos, as teorias e até
as leis científicas estão submetidas à possibilidade da transformação.
“A ciência” – no singular – figura como algo estático, sólido, funda-
do; parece perder seu caráter inerentemente humano. Nesse sentido,
Japiassu (1991, p. 131) nos provoca a pensar: “E o que significa a
ciência, de que tanto hoje nos orgulhamos? Ela mais parece um acer-
vo de conhecimentos acumulados nos livros do que conhecimentos
que, de fato, possuímos em nós e que possamos compreender”.
Esse entendimento deturpado e limitante da ciência como algo
sobre-humano cria em torno dela uma aura “salvadora”. Torna-se
8  Fonte: http://www.terrazero.com.br/2018/09/morte-super-homem/.
9  Depoimento de uma fã entrevistada para a pesquisa de mestrado disponível em Becko
(2019)
10  Fonte: https://www.omelete.com.br/batman-vs-superman-a-origem-da-justica/batman-
-vs-superman-decepcao-com-o-filme-pode-levar-a-reducao-de-lancamentos-da-warner-
-bros.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 42

um mito, assim como o Superman. É inegável que os avanços cientí-


ficos, graças à pesquisa, têm salvado vidas há centenas de anos. Mas
não é nesse critério que eu gostaria de repousar a reflexão. O que
acredito que vale reconhecer é que são as pessoas que estão fazendo
esse movimento.

Sempre que passamos a explicar uma lei ou teoria conjectural por meio de
uma nova teoria conjectural de grau de universalidade superior, estamos
descobrindo mais acerca do mundo, tentando penetrar mais a fundo em
seus segredos. E sempre que conseguimos tornar falsa uma teoria dessa
espécie, fazemos uma nova descoberta. Pois estas falsificações são muito
importantes. Elas nos ensinam o inesperado; e nos confirmam que embora
nossas teorias sejam feitas por nós mesmos, embora sejam invenções de nós
mesmos, nem por isso deixam de ser asserções genuínas acerca do mundo;
pois podem chocar-se com algo que nunca fizemos. (Ibid, p. 184-185)

Assim como não é o Superman que ajuda os leitores de gibis a


entenderem sobre seus papeis como cidadãos, por exemplo, mas os
roteiristas, desenhistas e editores que estão por trás da criação das
narrativas do personagem. Para Sfez (2000, p. 122),

Quanto à ciência de hoje, enquanto significante absoluto, ela se encarrega da


garantia de fronteiras entre nós e as coisas. A razão funciona aqui seguindo
o impulso do legalismo. Ora, o saber total é um mito, já que o único saber
total, que existe para ocultar, nos diz que no princípio era o pai e a Pátria.

O rigor científico é mantido a partir do método. “É somente gra-


ças ao estudo das aplicações regulares dos procedimentos científicos
que será possível chegar à formação de um bom sistema de hábitos
intelectuais; aliás, esse é o objetivo essencial do método” (BORDIEU;
CHAMBOREDON & PASSERON, 2010, p. 9-10). Entretanto, se o
fazer científico é uma ação humana, os processos que o envolvem
estarão atravessados por elementos humanos, como o senso comum,
as crenças e as experiências pessoais.

[...] As alegações da verdade de qualquer tipo, desde as da matemática, da


lógica e das ciências naturais, às da ética, da estética e da religião, são todas
delimitadas pelos múltiplos ‘jogos de linguagem’, práticas culturais ou ‘for-
mas de vida’ e, portanto, devem ser julgadas (cada uma) conforme os seus
próprios específicos do que constitui uma declaração válida ou significativa
(NORRIS, 2007, p. 17).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 43

“A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir


do senso comum” (POPPER, 1975, p. 42). E a forma de lidar com
esses aspectos não é a partir da exclusão, mas sim do reconhecimen-
to e da incorporação desses elementos como parte fundamental dos
processos de produção dos conhecimentos. O método científico,
portanto, deve ser capaz de levar em consideração as subjetividades
dos pesquisadores.

ONDE NOS PERDEMOS NA TRAJETÓRIA



Para o exercício reflexivo acerca do fazer científico que estamos
propondo aqui, faz-se necessário tentar buscar as algumas mani-
festações percebidas a partir desse cenário em questão. O fato de a
ciência ter assumido esse caráter mitológico no qual comentamos
anteriormente nos possibilita relacionar a dois fatores: a) a tentativa
de legitimar o campo da comunicação como ciência; e b) a inclina-
ção à utilização das teorias tidas como mais clássicas como verdades
absolutas para as análises críticas.

Entre o posto de ciência constituída ou apenas um campo de intersecção


do conhecimento, o estatuto da comunicação social tem variado e dividido
opiniões ao longo das décadas. Uma de suas características mais marcantes
- e, portanto, talvez, sua experiência para além do debate decisivo sobre sua
definição teórica - é a forte atração que desperta nas mais variadas esferas
sociais e nos mais variados grupos de interesse. (MARTINO, 2005, p. 75,
tradução própria11)

Alsina (1995, p. 13, tradução própria12) afirma que “uma das pre-
ocupações fundamentais da teoria da comunicação tem sido estabe-
lecer seu status científico”. Quando comenta a história do estudo da
comunicação, o autor afirma que, até os anos de 1930, a disciplina foi
ocupada pelos saberes humanísticos e que somente após esta década
a sociologia se aproximou do campo. Na ânsia de se afirmar como ci-
ência, o campo da comunicação compartilhou seu objeto com outras
11  No original: “Entre el rango de ciencia constituida o sólo un campo de intersección de
saberes, el estatuto de la comunicación social ha variado y dividido opiniones a lo largo de
las décadas. Una de sus características más marcadas —y de ahí, tal vez, su vivencia más
allá del debate decisivo acerca de su definición teórica— es la fuerte atracción que suscita en
los más variados ámbitos sociales y en los más variados grupos de interés. Todos se intere-
san en el papel y el efecto de los medios de comunicación sobre la sociedad y el individuo.”
12  No original: “una de las preocupaciones fundamentales de la teoría de la comunicación
ha sido establecer su estatuto científico”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 44

ciências, incluindo disciplinas concernentes à cultura. Para o autor,


a Teoria da Comunicação “está interessada em explicar como o ser
vivo controla seu entorno mediante o recurso da informação” (Ibid.,
tradução própria13). E uma das formas de elucidar as teorias se dá
através da construção de modelos.
Alsina (1995) defende que os modelos na Teoria da Comunicação
têm um papel importante na produção de conhecimento científico.
Tratam-se de instrumentos para a realização da finalidade última
da prática científica: a obtenção do maior e mais fidedigno conheci-
mento da realidade estudada. Mas como simplificações, os modelos
possuem limitações. Os modelos costumam unir enunciados teóri-
cos sobre as relações entre variáveis que caracterizam um fenômeno.
Cada tipo de modelo é adequado para descrever uma determinada
parcela da realidade. Os modelos contribuem, significativamente,
para o entendimento acerca das teorias e, portanto, para as discus-
sões de cunho científico. O problema é quando as teorias e seus mo-
delos são tidos como retratos completos e genuínos dos fenômenos
observados. Se a ciência virou mitologia, muito deve aos processos
de sacramentação das teorias.
O Superman, como produto da cultura pop, também não nasceu
sacramentado. Aliás, vale ressaltar que o caminho para obter esse
caráter divino foi bastante árduo, tendo em vista a hostilização pela
qual as histórias em quadrinhos passaram na sua origem:

As comics, como são conhecidas nos países de língua inglesa, surgiram na


mesma época do cinematógrafo, mas diferente do que aconteceu com o ci-
nema, que desde sua estreia foi considerado a sétima arte, os quadrinhos
não receberam da crítica a devida importância, sendo até mesmo conside-
rados como uma má influência para crianças e adolescentes. Isso aconteceu
em virtude das temáticas abordadas, que fugiam às narrativas convencio-
nais, pois se nem a disposição no papel era convencional, por que a lingua-
gem o seria? Essa inovação provocou grande estranhamento e as impressões
iniciais sobre as HQs transportaram a arte sequencial para o submundo das
artes, onde permaneceu até a década de 60, quando invadiu o universo aca-
dêmico e ganhou a simpatia de estudantes e professores. (PEREZ, arquivo
digital)

O super-herói em questão, como personagem idealizado, que aju-


da a humanidade a combater os problemas de injustiças e de violên-

13  No original: “está interesada en explicar cómo el ser vivo controla su entorno mediante
el recurso de la información”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 45

cias, ressalta a real carência que temos como sociedade em solucio-


nar, de fato, esses conflitos. O Superman, como suas características
supra-humanas, tem a capacidade de congregar em si as qualidades
que os seres humanos gostariam de ter, mas não têm. Fawaz (2016)
defende que, em sua essência, as histórias em quadrinhos são fanta-
sias no sentido que exploram capacidades físicas ou mentais a que
os seres humanos não têm acesso. O autor considera que as histórias
são consumidas a fim de se obter prazer, a partir dessa capacidade
expandida e também para refletir sobre que tipos de escolhas que as
pessoas fazem com os poderes dos quais dispõem.
Nesse contexto, Viana (2011) aponta que os super-heróis são
produtos históricos e sociais, de forma que a criação e a renovação
desses personagens – bem como as temáticas, valores, concepções,
presentes nas suas histórias – são atravessadas pela realidade. Os
personagens de quadrinhos podem ser definidos, segundo Fawaz
(2016), como um arquivo vivo de nossas fantasias coletivas sobre
uma série de preocupações, incluindo a natureza do poder (os seus
prazeres e perigos), o significado de ação ética e bondade coletiva,
prazer visual no testemunho de habilidades impossíveis e a capaci-
dade de mudar o mundo.
A existência do Superman nos ajuda a refletir sobre determina-
dos elementos da nossa realidade, mas as suas narrativas de aventura
não são – de fato – a nossa realidade. Da mesma forma, devemos
estar atentos às limitações dos modelos e das teorias de cunho cien-
tífico que utilizamos em nossas análises.
A validação do campo da comunicação como ciência não deve
ser o objetivo final do pesquisador, mas o exercício de analisar e de
confrontar de maneira mais criteriosa as teorias que embasam suas
investigações é fator indispensável para que isso aconteça.

Falar de “meta” da atividade científica pode talvez parecer um tanto ingê-


nuo; pois, claramente, cientistas diferentes têm metas diferentes, e a própria
ciência (seja o que for que possa significar) não tem metas. Admito tudo
isso. E contudo parece que, quando falamos de ciência, sentimos, mais ou
menos nitidamente, que há alguma coisa característica da atividade científi-
ca; e como a atividade científica tem muito bem o aspecto de uma atividade
racional, e como uma atividade racional deve ter alguma meta, a tentativa
de descrever a meta da ciência pode não ser inteiramente fútil. Sugiro que a
meta da ciência é encontrar explicações satisfatórias de qualquer coisa que
nos impressione como necessitando de explicação. (POPPER, 1975, p. 180)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 46

E fazer isso utilizando as teorias como soluções explicativas, pode


ser perigoso. As teorias devem valer como orientadoras do pensa-
mento do cientista, o que não significa que não poderão ser discu-
tidas, confrontadas, tensionadas tendo em vista as realidades e fe-
nômenos que estudamos. “A reconhecida dificuldade por nós hoje
sentida de pensar a transformação social e a emancipação reside no
colapso da teoria que nos trouxe até aqui, provocado pela erosão dos
pressupostos que lhe deram credibilidade no passado” (SANTOS,
2006, p. 52). Sendo assim,

O que simplesmente é inadmissível, segundo Dummett, é a existência de


verdades – ou de valores de verdade relativos a certas proposições históricas
bem formadas – que possuam esse caráter somente em virtude de corres-
ponderem ao modo como as coisas eram na realidade, e não ao modo como
elas eram de acordo com o nosso melhor conhecimento presente ou os nos-
sos melhores meios de verificação presentes (NORRIS, 2007, p. 47).

A ciência passou a ser entendida como ciência a partir do rom-


pimento com aspectos mitológicos das culturas, “dando margem à
criação de saberes demonstráveis como aritmética, geometria, álge-
bra, astronomia etc.” (SODRÉ, 2010 p. 44). No entanto, de tanto ten-
tar se afastar das crenças, os cientistas acabaram tornando sagradas
as teorias, e o retorno a elas com o olhar crítico acabou tornando-se
mais difícil. E aí reduz-se o ato científico a uma constatação (BOR-
DIEU; CHAMBOREDON & PASSERON, 2010).
Os processos de produção de conhecimentos, especialmente no
campo da comunicação, são complexos, porque se voltam ao estudo
de fenômenos que também o são. Segundo Martín-Barbero (2008, p.
17, tradução própria14):

[...] as mudanças no campo da tecnicidade e da identidade exigem urgente-


mente pensar as mediações comunicativas da cultura, um novo mapa que
explica a complexidade nas relações constitutivas da comunicação na cultu-
ra, porque, os meios passaram a constituir um espaço-chave de condensa-
ção e intercepção da produção e consumo culturais, ao mesmo tempo que
catalisam algumas das mais interessantes redes de poder hoje em dia.

14  No original: “[...] los cambios en el ámbito de la tecnicidad y la identidaded están recla-
mando imperiosamente pensar las mediaciones comunicativas de la cultura, un nuevo mapa
que dé cuenta de la complejidad en las relaciones constitutivas de la comunicación en la
cultura, pues, los medios han passado a constituir un espacio clave de condensación e inter-
cepción de la producción y el consumo cultural, ao mismo tiempo que catalizan hoy algunas
de las más interessantes redes de poder”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 47

E, somado a isso, como vimos anteriormente, ainda contamos


com uma diversidade de elementos relativos às subjetividades que
atravessam as ciências humanas. Tendo em vista todos esses fatores,
o exercício epistemológico torna-se fundamental para aqueles que
estão empenhados em fazer ciência no campo da comunicação.

O DESAFIO EPISTEMOLÓGICO NO CAMPO DA CO-


MUNICAÇÃO

O pensamento epistemológico é necessário para a ciência como


um todo, se a entendemos como prática social. E é através dele que
se torna possível desconstruir a natureza mística que hoje paira na
produção de conhecimentos científicos, que assumem um papel de
detentores e proprietários do saber (MATTELART & MATTELART,
2004).

O que a epistemologia coloca em questão é um tipo de objetividade sem su-


porte epistemológico, que se apresenta como uma racionalização das cren-
ças ingênuas ligadas ao prestígio da ciência: crença na unidade dos conheci-
mentos, em seu caráter absoluto e histórico, na independência da realidade
que se pretende conhecer relativamente aos meios do conhecimento. É esta
imagem da ciência que fornece o modelo de objetividade que dá a ilusão de
que podemos nos elevar acima das condições reais de elaboração da ciência.
Em outras palavras, o objetivo da epistemologia crítica é mostrar que se
deve distinguir, na ciência atual, dois mitos: de um lado, o mito da Ciência
que necessariamente conduz ao progresso; do outro, o mito da Ciência-Pura
e neutra (JAPIASSU, 1991, p. 156).

Nesse sentido, faz-se indispensável pensar os sujeitos pesquisa-


dores. Peirce (1877, p. 7) afirma que “as nossas crenças guiam os nos-
sos desejos e moldam as nossas ações”. E a crença, para o autor, tem
relação com a dúvida:

A dúvida é um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para


nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado
calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou alterar por uma crença
noutra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-nos tenazmente, não me-
ramente à crença, mas a acreditar exatamente naquilo em que acreditamos.
(Ibid.)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 48

Esse sentimento de inquietação é o que provoca e motiva os pes-


quisadores em suas investigações. No entanto, é importante estar
atento para que esse incômodo não se transforme em uma ansie-
dade apressada pela busca de respostas. Afinal, a pesquisa científica
avança na medida em que as certezas devem ser minuciosamente
verificadas, examinadas e afastadas como entraves ao conhecimento
por meio do método. E é nessa perspectiva que Popper (1975) afirma
que a tarefa da ciência se renova constantemente:

Podemos marchar para sempre, passando a explicações de nível de univer-


salidade cada vez mais alto – a menos, realmente que cheguemos a uma
explicação final; isto é, a uma explicação que não seja capaz de qualquer
explicação ulterior nem necessite dela. (Ibid., p. 182)

O pesquisador, então, tem um papel de diligência sobre a produ-


ção científica. Nesse contexto, ele também precisa estar atento ao seu
atravessamento na pesquisa como indivíduo. As trajetórias, os sa-
beres e as vivências pessoais vão afetar, em algum nível, as escolhas,
os olhares e as análises que vão compor o processo de investigação.
Nesse aspecto, Morin (2008) incentiva o caráter inventivo na produ-
ção de conhecimentos:

Chegamos talvez ao ponto e ao momento de fazer dialogar nossos mitos


com as nossas dúvidas, nossas dúvidas, com nossos mitos. Temos uma ne-
cessidade imperiosa de correção empírica/lógica/racional de todas as nos-
sas atividades mentais, mas necessitamos também da cobertura imaginária/
simbólica que ajuda a tecer a realidade e constrói os mitos (MORIN, 2008,
P. 194).

“O objeto do raciocínio é descobrir, a partir da consideração


daquilo que já sabemos, alguma outra coisa que desconhecemos”
(PEIRCE, 1877, p. 4). Quanto mais diversos os saberes em torno do
objeto de estudo, mais recursos teremos para produzir inferências
de sustentação. Esse deslocamento epistêmico, que propõe uma re-
flexão filosófica como a mediação mística (SODRÉ, 2017), torna-se
fundamental quando lidamos com fenômenos tão complexos como
os comunicacionais. E é por isso que nós, cientistas da comunicação,
devemos dialogar com outras áreas e disciplinas. Afinal, “a interdis-
ciplinaridade é mais um passo na consolidação da teoria da comuni-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 49

cação como ciência” (ALSINA, 1995, p.14, tradução própria15).


Essa multiplicidade de saberes acerca dos objetos é um dos pila-
res do raciocínio epistemológico, porque através dela conseguimos
desconstruir pensamentos simplistas e reducionistas:

A reflexão sobre o conjunto de paradigmas que sustentam as novas aborda-


gens do real nos ensina que é conceder demasiada honra à revolução tec-
nológica querer que ela sozinha produza um novo social. Se há um avanço
importante na “virada epistemológica” de hoje, trata-se do desenvolvimento
de um pensamento em que social e técnico não são mais mundos fechados
e separados, da consciência de que há social e representação do social no
artefato. (MATTELART & MATTELART, 2004, p. 85)

Nesse processo de confluências e combinações, também se faz


fundamental reconhecer a centralidade do método, que deve ser
pensando e construído a fim de dar conta de abarcar as diversas face-
tas de nossos objetos, que não são – muitas vezes – dadas e estáticas,
mas que estão em constante transformação, ou seja, trata-se do “fe-
nômeno comunicativo entendido em sua totalidade enquanto algo
vivo, em movimento” (CHRISTINO, 2015, p. 4). Toda a atenção deve
ser dada a esse assunto, quando, no senso comum, há quem acredite

[...] que a comunicação seja um fato imediato. Ora, fatos imediatos são cam-
po da psicologia comportamental, que opera com reações instantâneas e
irracionais, como, por exemplo, as da estratégia publicitária, da imprensa
reprodutora de clichês, dos arregimentadores de fanáticos. Comunicação,
ao contrário, exige tempo de maturação. Trata-se de algo que se desenvolve.
(MARCONDES, 2015, p. 3)

E é por isso que não podemos “reduzir a reflexão sobre o método


a uma lógica formal das ciências” (BORDIEU; CHAMBOREDON &
PASSERON, 2010). Para Maldonado (2013, p. 31),

a multidimensionalidade e a complexidade dos contextos comunicacionais


contemporâneos, atravessados por uma digitalização intensa, demandam
das vertentes críticas para pensar as transformações midiáticas como uma
realidade (expandida) de sistemas, configurações e conjuntos culturais de
geração múltipla de produtos culturais que estruturam novas possibilidades
simbólicas.

15  No original: La interdisciplinariedad es un paso más en la consolidación de la teoría de


la comunicación como ciência.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 50

Nesse sentido, o autor nos apresenta a perspectiva transmetodo-


lógica como alternativa para as pesquisas que lidam com cenários,
contextos e fenômenos tão dinâmicos.
Todos esses cuidados dos quais comentamos aqui e que envolvem
e atravessam o estudo e a produção de conhecimentos denotam o
quanto o papel do pesquisador acaba sendo decisivo para o êxito
científico. Mais do que nunca, é necessário, portanto, “recuperar o
sujeito crítico, suprimido pela indústria” (SFEZ, 2000, p. 126), que
compreenda a ciência como prática coletiva e que consiga oferecer
uma contribuição para a sociedade. Precisamos nos preocupar me-
nos em usar palavras difíceis e criar textos complexos e dar mais
valor ao caráter investigativo da ciência. Afinal de contas, “visar à
simplicidade e à lucidez é um dever moral de todos os intelectuais:
a falta de clareza é um pecado e a presunção é um crime” (POPPER,
1975, p. 51).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A “ciência Superman” precisa ser revista, confrontada, descons-


truída. E talvez nós, os pesquisadores, sejamos a chave para essa mu-
dança, pois, é através da popularização dos conhecimentos, dos diá-
logos com a sociedade e do reconhecimento de nossa contribuição a
nível coletivo que poderemos avançar nesse sentido.
Nesse artigo, a analogia entre o personagem fictício e a ciência
se deteve aos aspectos mitológicos que transformaram ambos em
sinônimo de salvação divina. No entanto, há ainda outras aproxima-
ções que poderiam ter sido realizadas. O fato de o Superman, ape-
sar de ser alienígena, ser considerado um símbolo dos valores e dos
ideais estadunidenses, pode nos levar a pensar sobre a centralidade
das teorias advindas dos países do Norte no campo da comunicação
(MALDONADO, 2015). E se estamos falando sobre origem, tam-
bém podemos falar sobre gênero e raça; no fim das contas, o Su-
perman é um homem branco. Como cientistas da comunicação, é
nossa função buscar formas de descolonização, desmasculinização e
desbranqueamento do pensamento.
A necessidade de se pensar as práticas acadêmicas e científicas
em prol da produção de conhecimentos se fundamenta quando re-
conhecemos as ciências como elementos essenciais para o desenvol-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 51

vimento social e humano. O pensamento epistemológico, portanto,


precisa ser incorporado pelos sujeitos pesquisadores. Afinal, “todas
as formas clássicas de epistemologia estiveram sempre, de um modo
ou de outro, vinculadas ao progresso das ciências” (JAPIASSU, 1991,
p. 130).
Se, no campo da comunicação, estamos vivendo a complexifica-
ção da transnacionalização das telecomunicações (MARTÍN-BAR-
BERO, 1988), faz-se ainda mais importante ter o cuidado na com-
posição do método e nos diálogos com as teorias, principalmente na
desconstrução das ciências como criadoras de verdades absolutas.
Por isso, é fundamental estudar os contextos históricos, entender
os cenários e as trajetórias dos autores, pois “não podemos voltar a
pensar a transformação social e a emancipação sem reinventarmos
o passado (SANTOS, 2006, p. 53). Só assim, seremos capazes de dar
luz aos desafios da complexidade dos fenômenos comunicacionais
(VERÓN, 2004).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 52

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RELATO DE EXPERIÊNCIA: A
JORNADA DOS PEQUENOS
HERÓIS, UMA NOVA PERSPECTIVA
DA PRÁTICA NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Fabiula Campos Falcão Fagundes1
Amanda Selle Bortolotti2
Gelson Vanderlei Weschenfelder3
 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo se desenvolveu da prática exigida para aplica-


ção à disciplina de Estágio Supervisionado do Curso de Pedagogia
da Universidade La Salle/Canoas. A prática docente se deu em uma
escola de educação infantil do município de Canoas, em uma turma
de maternal II, alunos com faixa etária de 3 a 4 anos. A partir da
temática super-heróis com base no conhecimento prévio dos alunos,
com curiosidades que nos moveram a criação deste projeto, realiza-
mos uma prática pedagógica que uniu várias áreas do conhecimento
e que despertou a criatividade, criticidade e autonomia das crianças
como o universo dos super-heróis.
Os resultados foram promissores, contando com a participa-
ção efetiva das famílias, assim como a empolgação dos educandos
e desenvolvimento de valores essenciais para o bem viver. Utiliza-
mos como referencial teórico os autores como Freire (1996), Piaget

1  Pedagoga e Mestranda em Educação da Universidade La Salle (RS). Educação, inter-


venção pedagógica, Políticas Públicas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3509235891580103
E-mail:fabiulafalcaofag@gmail.com
2  Pedagoga pela Universidade La Salle (RS). Educação, Intervenção Pedagógica, Educação
infantil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7707062240552218 E-mail:amandasellebtl@gmail.com
3  Pós doutorando no ppg de Educação na universidade LaSalle. Doutor e mestre em
Educação e graduação em filosofia. Educação, Histórias em quadrinhos, Super-heróis.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3994106019346267 E-mail:gellfilo@terra.com.br
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 56

(1996) Maluf (2003), Weschenfelder (2011), entre outros.


Apresentamos como objetivos estimular o pensamento das crian-
ças em relação ao respeito, amizade e companheirismo através de
atividades lúdicas e contextualizadas, de acordo com a faixa etária
dos educandos, tendo como temática central os super-heróis; desen-
volver a cooperação entre os colegas e construir noções sobre a im-
portância da convivência para o bem comum; promover atividades
lúdicas e de reconhecimento mútuo que estimulem a criatividade e
autonomia das crianças e contextualizar e problematizar as vivências
dos alunos para desenvolver, diante a temática dos super-heróis.
O artigo em questão, de cunho qualitativo, emprega a análise do-
cumental como recurso metodológico para alcançar o objetivo de
verificar a aplicabilidade da cultura pop no contexto social e seus
benefícios. Este relato de experiência tem o intuito de apresentar as
possibilidades de desenvolver práticas diferenciadas na educação
infantil com a temática centralizada na cultura pop, vinculado ao
grupo de pesquisa Universos Paralelos: Arte Sequencial, Mediação
Cultural e práticas pedagógicas.

REFERENCIAL TEÓRICO

Nas últimas décadas, várias pesquisas têm demonstrado que os


primeiros seis anos de vida de uma criança se constituem de período
de intenso aprendizado e desenvolvimento, em que se assentam as
bases do “aprender a conhecer”, “aprender a viver junto”, “aprender a
fazer” e “aprender a ser”. O atendimento educacional de qualidade,
nessa fase da vida, tem um impacto extremamente positivo no cur-
to, médio e longo prazo, gerando benefícios educacionais, sociais e
econômicos mais expressivos do que qualquer outro investimento na
área social. Consequentemente, os pesquisadores destacam:

A aprendizagem é uma atividade cooperativa e comunicativa, na qual as


crianças constroem conhecimento, dão significado ao mundo, junto aos
adultos e, igualmente importante, com outras crianças: por isso enfatizamos
que a criança pequena como aprendiz, é um co-construtor ativo. (DAHL-
BERG, MOSS e PENCE, 2003, p. 72)

Todas as práticas realizadas necessitavam da curiosidade dos pe-


quenos e de sua imaginação fértil, para que a tarefa tivesse sucesso,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 57

nossos alunos aprenderam brincando. O autor relata:

A criança é curiosa e imaginativa, está sempre experimentando o mundo e


precisa explorar todas as possibilidades. Ela adquire experiência brincando.
Participar de brincadeiras é uma excelente oportunidade para que a criança
viva experiências queiram ajudá-la a amadurecer emocionalmente e apren-
der uma forma de convivência mais rica. (MALUF, 2003, p.21)

Os desafios durante o processo de atividades foram muitos, mas


o nosso aprendizado foi imenso; em algumas das práticas não ob-
tivemos sucesso pela falta de saber ouvir de alguns alunos, mas esse
foi o maior aprendizado (erro construtivo), são questões que estão
presentes diariamente no cotidiano da educação infantil. A partir do
estágio finalizado, ganhamos mais conhecimento para atuar no pro-
cesso de aprendizagem da educação infantil.
A educação Infantil, segundo os artigos 29 e 30 da L.D.B. (Lei
de Diretrizes e Bases), é a “primeira etapa” da educação básica no
processo de educação ao longo da vida escolar, sendo complementar
da ação educativa da família, com a qual deve estabelecer estreita
relação, favorecendo a formação e o desenvolvimento equilibrado da
criança, tendo em vista a sua plena inserção na sociedade como “ser
autônomo, livre e solidário”. Nesse período, desenvolvemos as habi-
lidades fundamentais para o bem viver social. A criança deve estar
ativamente envolvida na aprendizagem e construir o conhecimento
a partir da interação com o mundo que a rodeia: com pessoas, ma-
teriais e ideias. O papel dos adultos que ensinam e orientam consiste
em apoiar as crianças na elaboração da sua própria compreensão do
mundo.
Neste estudo utilizamos os super-heróis como tutores de resiliên-
cia no processo de desenvolvimento infantil, para a melhor compre-
ensão dos pequenos, em um contexto lúdico e interativo, priorizando
a aprendizagem significativa ao educando. Com base no pensamento
do pesquisador, destacamos os valores trazidos pelas Histórias em
Quadrinhos (HQs) que constituem o universo dos super-heróis, as-
sim colabora:

As HQ’s tornaram-se uma referência na formação de opiniões porque de


maneira sutil e perspicaz colocam em debate as questões fundamentais das
relações sociais e os dilemas morais com os quais todos os seres humanos
normais se defrontam no dia a dia. Elas abordam, na forma exemplar de vi-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 58

vência do personagem, as questões de suma importância enfrentadas pelos


seres humanos, tais como a responsabilidade pessoal e social, a identidade,
pessoal, a diferença; as questões atinentes, à alma, à mente e às emoções
humanas, além de problemas bem concretos do cotidiano. (WESCHEN-
FELDER, 2011, p. 12-13)

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DC-


NEI, Resolução CNE/CEB nº 5/2009), em seu Artigo 4º, definem
a criança como “sujeito histórico e de direitos, que interage, brin-
ca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra,
questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produ-
zindo cultura” (BRASIL, 2009, p. 32).
Desta maneira, criamos atividades lúdicas para que as crianças
realmente fossem heróis em atos simples presentes em seu cotidiano,
como tratar os pais com respeito, ajudar seus colegas, tratar bem os
animais, pensar e refletir antes de agir e etc.
Com base nas experiências vividas na observação e no relato do
professor titular, desenvolvemos um projeto que uniu várias áreas do
conhecimento e que despertou a criatividade, criticidade e autono-
mia. Tivemos a intenção de desmistificar a ideia que as crianças pos-
suem ao usar a força, pois isso resultava em algumas brigas em sala
de aula. Diante disso, trabalhamos a essência dos super-heróis, tra-
zendo aspectos além da super força, tais como: trabalhar em equipe,
promover o bem comum e consequentemente a relação de amizade
das crianças. Assim, os pequenos entenderam o sentido do respeito
e do companheirismo que todos os heróis possuem ao participarem
de uma missão.
Na sequência destacamos as atividades desenvolvidas. A que teve
destaque e tornou nosso estágio enriquecedor foi a “Super Sacola”,
onde cada educando levou a sacola para casa e junto com seus pais
construiu o seu super-herói, diante de seus conhecimentos e neces-
sidades sociais e emocionais. Como essa é uma proposta utilizada
para integrar a família na participação escolar, os pais relataram a
experiência. No decorrer deste artigo realizamos uma discussão e
análise da prática desenvolvida.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 59

METODOLOGIA DA PRÁTICA

Fundamentamos a prática na epistemologia construtivista pelo


fato de compreendemos que todas as crianças possuem um conhe-
cimento prévio, diante do tema escolhido; acreditando que todo co-
nhecimento é construído através da interação e diálogo.

Construtivismo significa isto: a ideia de que nada, a rigor, está pronto, aca-
bado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma
instância, como algo terminado. Assim constitui-se pela interação do indi-
víduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo
das relações sociais; e se constitui por força de sua ação e não por qualquer
dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que pode-
mos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência e, muito
menos, pensamento. (BECKER, 2009, p. 2).

Precisamos considerar todas as crianças como um ser que é úni-


co, que possui uma história de vida singular, que já tem suas crenças
e valores, e que tudo isso irá influenciar no seu modo de agir e nas
suas relações sociais no meio em que vive. Através da epistemologia
construtivista e do pensamento de Becker (2009), entendemos que
nenhuma criança é uma tábula rasa. Colaboram os autores:

Mudamos a maneira de ver a criança, de uma concepção de que era apenas


um adulto em miniatura, nos reportamos para uma criança, como ser his-
tórico e social, que pensa, que age e interage com o mundo que está posto a
sua frente, desta forma constrói e reconstrói seus conhecimentos[...]. (SIL-
VA e GUIMARÃES, 2011, p.2)

É na interação escolar que seus conhecimentos são construídos


e reconstruídos, por isso é muito importante que o professor saiba
realizar a mediação em todo o processo de aprendizagem. Também,
é preciso que haja respeito do educador aos educandos, conforme
indicam os argumentos de Freire (1996, p.38), destacamos:

Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a digni-


dade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pen-
sar também, como já salientei, em como ter uma prática educativa em que
aquele respeito, que seu dever ter ao educando, se realize em lugar de ser
negado. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha
prática através da qual vou fazendo a avaliação do meu próprio fazer com
os educandos.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 60

Ao repensar a prática como educadores estamos tendo a opor-


tunidade de melhorar nossa maneira de enxergar cada criança do
seu jeito. Por este motivo destacamos, com este projeto, desenvolver
atividades que estimulem a autonomia, criticidade, respeito e iden-
tidade.

PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS

Com a finalidade de desenvolver o projeto, estudando as particu-


laridades e singularidades de cada criança, seguimos a abordagem
qualitativa, tendo como modalidade o estudo de caso. O estágio foi
realizado em uma escola da rede municipal de Canoas/RS, em uma
turma de Maternal II com faixa etária que variava de três a quatro
anos de idade, sendo constituída de quinze alunos na sala, sendo
oito meninos e sete meninas. Quase todos os alunos já se conheciam,
pois estavam no Maternal I da mesma escola. No que tangia ao com-
portamento, a turma era bastante participativa, criativa e autônoma.
Para dar conta dos objetivos criamos atividades para serem mi-
nistradas durante a prática de estágio, tendo como referência o es-
tágio operatório ou simbólico de Piaget (2 a 6-7 anos) em que há
a transição entre a inteligência propriamente sensório-motora e a
inteligência representativa, representada pela imitação (reprodução
de um modelo). Ainda nesse pensamento Cavicchia (2010, p.11) cita
que “o pensamento imagístico egocêntrico, característico desta fase,
pode ser observado no jogo simbólico, no qual a criança transforma
o real ao sabor das necessidades e dos desejos do momento”. Ao re-
lacionar essa fase de inteligência representativa com os super-heróis,
Weschenfelder afirma que:

Os super-heróis estimulam nas crianças virtudes, como a coragem, enfren-


tando assim os desafios; vencer os medos; proteger os mais fracos; defender
ideais e etc. Nesse cenário, eles representam os atributos que os humanos
mais admiram em si próprios. Estes personagens são mais que apenas ído-
los, são modelos morais.(WESCHENFELDER, 2011, p. 12)

No primeiro momento, seguindo a perspectiva de Paulo Freire


(1996), ao utilizar o conhecimento prévio dos alunos como méto-
do em nossa observação na escola, perguntamos ao professor titular
da turma qual o tema que mais chamava a atenção das crianças do
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 61

Maternal II B. O educador relatou que as crianças gostavam muito


de realizar atividades com tintas, massinhas de modelar, gostavam
de dançar e falar sobre culinária. Depois de um tempo, o professor
titular declarou a verdadeira paixão das crianças da turma, os super-
-heróis. Para comprovar isso, o professor chamou algumas das crian-
ças e perguntou nomes de super-heróis. Os nomes falados foram:
Hulk, Batman, Mulher-Maravilha e Sonic. Sendo assim, decidimos
desenvolver um projeto sobre os super-heróis, com a seguinte pre-
missa de Basílio (2016):

É nessa relação da criança com os super-heróis que são plantadas as se-


mentes de valores, como ética, coragem, humildade. Nos contos de fadas,
os heróis são os mais humildes e bondosos da família ou da aldeia. São os
que aceitam enfrentar a perigosa tarefa que irá salvar o reino, o rei, o pai.
[on line]

Através disso, começamos a observar que todas as crianças pos-


suíam atitudes que são exemplos dos seus personagens favoritos,
atitudes estas que nem sempre são boas. Como exemplo, tivemos
o caso de um dos alunos que bateu em outro colega e se justificou
como sendo um herói. A partir deste ponto, resolvemos trabalhar es-
sas questões, pois como diz a citação acima, os super-heróis possuem
outros valores além da força. Assim questionamos os pequenos so-
bre os valores que os personagens possuíam e sobre qual qual a pers-
pectiva dos pequenos ao personagem e qual seria a missão de cada
um se realmente fossem heróis. A partir do período de observação,
delimitamos as atividades do projeto, a partir do referencial e me-
todologia escolhidas, as mesmas são descritas no Quadro 1, abaixo:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 62

Quadro 1: Atividades realizadas na intervenção e desenvolvimento metodológico


Fonte: Autoria própria, 2019.

A “SUPER SACOLA”: A CRIAÇÃO DE NOSSOS PE-


QUENOS HERÓIS

Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), “na Edu-


cação Infantil, as aprendizagens essenciais compreendem tanto com-
portamentos, habilidades e conhecimentos quanto vivências que
promovem aprendizagem e desenvolvimento nos diversos campos
de experiências”. Sendo assim, ao desenvolver o projeto, pensamos
em um tema que faz parte da vivência dos educandos e que também
envolve todos os campos de experiências que devem ser desenvolvi-
dos na escola de educação infantil.
Dentre todas as atividades que realizamos no estágio, queremos
ressaltar a importância da “Super Sacola”. A atividade consistia em
os alunos levarem uma sacola enfeitada que possuía um caderno,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 63

giz de cera e caneta. O objetivo principal era que, junto com suas
famílias e em casa, os alunos desenhassem o seu próprio super-herói,
descrevendo também as habilidades do mesmo. Após, a família es-
creveria um relato sobre como foi realizar essa atividade. Na Figura
1 apresentamos a “Super Sacola” que foi enviada para a casa dos edu-
candos.

Figura 1: “Super Sacola”


Fonte: Autoria própria, 2017.

Já na Figura 2, demonstramos de maneira lúdica a intervenção


para a família, utilizando os heróis para ilustração.

Figura 2: Descrição da intervenção para a família


Fonte: Autoria própria, 2017.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 64

Para nossa felicidade, essa atividade resultou em relatos muito


positivos, e, assim está disposta no campo de experiência “escuta,
fala, pensamento e imaginação” da BNCC, no qual as crianças de até
3 anos e 11 meses devem “manipular textos e participar de situações
de escuta para ampliar seu contato com diferentes gêneros textuais
(parlendas, histórias de aventura, tirinhas, cartazes de sala, cardá-
pios, notícias etc.)” (p.50). E, através dos relatos obtidos, considera-
mos que esse objetivo foi alcançado, juntamente com a família dos
educandos. No decorrer do texto apresentaremos fragmentos dos
trechos resultantes da intervenção “Super Sacola”.
Relato 1:
“A Laura estava eufórica, conversando sobre heróis e heroínas,
feliz em saber que iria ajudar as pessoas”.
Relato 2:
“... criamos o herói SUPER AMIGO. Esse herói seria capaz de
voar para observar as crianças e suas atitudes. Caso perceba brigas,
ou alguém correndo quando não deve, ou até mesmo sendo mal-
-educado, teimoso com os profs., o superamigo terá o poder de raio
lazer paralisante. Assim, as crianças irão virar estátua até perceberem
que estavam agindo de forma errada e se arrependerem. Acredita-
mos que amizade é fundamental, é como uma plantinha que neces-
sita de cuidados para florir, fortificar. E o respeito vem colado para
tornar-se uma relação saudável e um ambiente acolhedor”.
Relato 3:
“...criamos a Lady Marinete, a qual possui os poderes de voar, pu-
lar super alto e quando aparece um problema transforma-se em uma
joaninha um pouco humana...”.
Relato 4:
“A Pietra estava ansiosa para que chegasse o dia em que ela traria
a sacola para casa. Enfim este dia chegou. Foi no dia 06/06 que trou-
xemos a sacola para casa, com muita emoção ela lembrou “a sacola
deve retornar para a escola”.
Relato 5:
“Ele gostou da atividade, achei tudo a ver com o que ele está cur-
tindo”.
Relato 6:
“Recebemos a super sacola com muita alegria. O Rafael estava
muito empolgado e ansioso para começar as atividades assim que
chegou em casa”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 65

Relato 7:
“Penso que foi um trabalho muito interessante, pois acompanha-
mos um pedacinho da disposição dela quando o assunto era traba-
lho para a escola”.
A partir desses relatos percebemos o impacto da intervenção, da
participação da família no desenvolvimento escolar dos alunos, do
uso da criatividade e imaginação dos pequenos e do entendimento
dos valores morais passado durante as atividades. Com o conheci-
mento significativo proporcionamos a aprendizagem e oportuniza-
mos o educando a se estabelecer como agente de seu conhecimento.
Na Figura 3 apresentamos os heróis criados pelos alunos junta-
mente com sua família, e percebemos que cada personagem exibe
características positivas, promovendo o bem, tendo como superpo-
der a amizade, o amor, o respeito, o instinto protetor e a alegria.

Figura 3: Os heróis criados pelos alunos


Fonte: Acervo pessoal, 2017.

AVALIAÇÃO DA PRÁTICA

O objetivo ao avaliar as crianças da turma Maternal II B foi o


de olhar para além dos resultados das atividades. Como realizamos
o estágio na Educação Infantil, precisávamos observar como cada
criança se comportou, as brincadeiras que elas participaram, como
interagiam com seus colegas. No decorrer do nosso estágio tiramos
fotos das crianças para registrar determinados momentos. Nesse pe-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 66

queno tempo que ficamos nessa turma fizemos uma avaliação diag-
nóstica e formativa, sem recorrer a uma avaliação classificatória.

Sua função constitui-se num instrumento estático e frenador do processo


de crescimento. [...] O educando como sujeito humano e histórico; contu-
do, julgado e classificado, ficará para o resto da vida, do ponto de vista do
modelo escolar vigente, estigmatizado, pois as anotações e registros per-
manecerão, em definitivo, nos arquivos e nos históricos escolares, que se
transformam em documentos legalmente definidos (LUCKESI, 2000 apud
MENEGHEL; KREISCH, 2009, p. 9822).

Nesse sentido, não podemos utilizar um método avaliativo que


possui como característica domesticar os educandos. Esse tipo de
avaliação só vê o produto, ou seja, a nota. Ao trabalhar com o tema
de super-heróis de maneira lúdica estamos contribuindo para o de-
senvolvimento e o potencial de cada educando, respeitando as dife-
renças e o tempo de aprendizagem de cada um. Assim como define o
Ministério da Educação, para avaliar na Educação Infantil, a ênfase
está:

Em aspectos relacionais e formativos mais amplos e não a campos do saber


específicos ou a determinados conteúdos de ensino. Aprofundando e avan-
çando nessa perspectiva, no Art. 9º, lembramos que “as práticas pedagógicas
que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como
eixos norteadores as interações e a brincadeira” (BRASIL, 2009, p. 4), garan-
tindo experiências, vivências e descobertas que ampliem o conhecimento
do mundo e de si mesmas. (BRASIL, 2015, p. 38).

A avaliação na Educação Infantil deve estar voltada para o pro-


cesso e não para o resultado. Precisamos valorizar as diferenças no
modo de aprender associado ao prazer pela descoberta da constru-
ção de significados, além de entender que nessa faixa etária precisa-
mos trabalhar com todas as dimensões do ser humano, respeitando
o jeito de cada educando. Para o autor:

A avaliação, enquanto relação dialógica vai conceber o conhecimento como


apropriação do saber pelo aluno e pelo professor, como ação-reflexão-ação
que se passa na sala de aula em direção a um saber aprimorado, enriquecido,
carregado de significados, de compreensão.(HOFFMANN, 1994, p. 56)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 67

Tendo como referência esse conceito de avaliação defendido por


Hoffmann (1994), a avaliação precisa ter como base a mediação.
Nesse contexto, o professor precisa agir, refletir sobre sua prática,
para depois disso, reformular sua prática. A avaliação precisa estar
centrada na Educação Infantil e no diálogo; esse deve estar presente
juntamente com atividades lúdicas, que valorizam a criança em to-
das as suas linguagens e sensibilidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do projeto A Jornada dos Pequenos Heróis, usamos um


tema que os educandos do Maternal II B adoravam e que nos pro-
piciou trabalhar valores, regras e convivência. As atividades foram
pensadas para que contemplassem todas as preferências da turma e
de modo que realmente trouxessem significado para eles. Na turma
cada criança tinha um super-herói favorito (usamos isso como re-
ferência), mas também apresentamos a eles outros heróis que não
tinham somente a força como qualidade, e que cada super-herói ti-
nha uma missão. Uns tinham a missão da alegria, outros do amor,
do respeito, da amizade. Acreditamos que mesmo de forma pequena
conseguimos passar isso para os educandos.
Sabemos que pela faixa etária das crianças, elas ainda se encon-
tram em um momento egocêntrico e que isso é natural da idade, mas
aos poucos fomos mostrando, com pequenas atitudes, a importância
do respeito, das regras, do amor, falávamos todos os dias das práticas
e o quanto eles eram importantes. Assim, certas atitudes do cotidia-
no, como ajudar os pais, respeitar os mais velhos e o professor, os
tornava heróis.
O estágio e esse tema nos fizeram refletir sobre dois aspectos: o
primeiro é sobre o quanto nós, adultos, esquecemos de valorizar os
pequenos momentos, pois o professor titular nos contou algumas
histórias sobre a vida de cada criança da turma. Percebemos que os
alunos que mais apresentavam um comportamento desrespeitoso,
eram os que tinham famílias desestruturadas e de pais que lutavam
na justiça pela sua guarda. Mesmo assim, todos os dias que fomos na
escola essas crianças diziam que nos amavam e nos recebiam com
um belo sorriso. Em um determinado momento a questão que re-
pensamos sobre ser herói é “por que nos somos heróis?”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 68

Ao nos depararmos com os desafios da educação infantil perce-


bemos que os problemas encontrados no espaço escolar são muitos.
Verificamos que há falta de estrutura e planejamento pedagógico.
É necessária uma mudança de pensamento, de cultura, de mé-
todos e planejamento que encontrem alternativas para efetivar uma
educação que vise à troca de vivências e valorize a diferença como
um adjetivo de qualidade, de diferentes potencialidades, encontran-
do no aluno possibilidades de desenvolvimento social e cultural atra-
vés da convivência, da troca de experiências e do aprender com a
ludicidade.
Esperamos que este relato incentive outros educadores a mergu-
lhar no universo fantástico dos super-heróis, que se permitam acre-
ditar na dimensão desta temática e em seu teor de conhecimento e
encantamento. Após analisar percebemos o belo trabalho que de-
senvolvemos e como foi gratificante ver o envolvimento de cada alu-
no em ser um super-herói e de importância de utilizar o imaginário
como fonte de aprendizagem e descobertas no campo do saber, pois
o herói é aquele que ajuda, que se preocupa com o bem-estar do ou-
tro, ou como define Bráulio Bessa (2017), na poesia “Heróis da vida
real” que colocamos na “Super Sacola”, “herói é quem faz o bem sem
nenhum superpoder”.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 69

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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 72
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO
LITERÁRIA: DINÂMICAS DE
LEITURA CRÍTICA COM O PROJETO
SUPER LEITORES
Lisiane Teresinha Dias Olsen1
Luciana Backes2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As possibilidades de mediações culturais no acesso às histórias


em quadrinhos (HQs) são inúmeras. As HQs são tecnologias consi-
deradas como “portas de entrada” ao universo da leitura. Entretanto,
não devem ser compreendidas somente como o início de processo de
formação do leitor e sim como um objeto portador de leitura dispo-
nível para a formação literária. Essa pesquisa apresenta o desenvol-
vimento e as análises dos dados referentes ao projeto Super Leitores,
no qual foram realizadas intervenções pedagógicas no processo de
formação literária de estudantes do terceiro ano do Ensino Funda-
mental em uma escola da rede pública de ensino. Esse capítulo é um
recorte do Trabalho de conclusão de curso de Pedagogia intitulado
Histórias em quadrinhos como tecnologia na formação literária. A
pesquisa é de natureza qualitativa, com a metodologia de estudo de
caso analítico sobre a exploração das HQs na formação de leitores,
bem como o acesso das mesmas na biblioteca escolar, a partir do
processo de idealização e organização da gibiteca da escola.
O Projeto Super Leitores foi realizado na EMEF João Paulo I, lo-
1  Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade La Salle - Unilasalle, Histórias em qua-
drinhos; Biblioteca escolar; TIC’s, currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9050123994050221,
E-mail: lisianeolsenlisi@gmail.com
2  Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade La Salle. Doutora
em Educação e Science de L’Education. Educação digital, Convivência e Tecnologia Digital
na Contemporaneidade, currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6301625161386664, E-mail:
luciana.backes@unilasalle.edu.br
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 74

calizada em área urbana da cidade de Canoas, região metropolitana


de Porto Alegre - RS. A escola conta com cerca de 50 funcionários,
579 estudantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, 363 nos
anos finais do Ensino Fundamental e 179 na educação de jovens e
adultos; destes 1.121 estudantes 64 necessitam de educação especial.
Conforme os dados encontrados na base do Qedu (2017) e através
da inserção no próprio contexto da escola, sua infraestrutura conta
com acessibilidade, saneamento básico, coleta de lixo, alimentação,
sanitários, cozinha, laboratório de ciências, quadra de esportes (gi-
násio), sala de artes, sala de matemática, sala dos professores, sala da
direção e sala de recursos (atendimento especializado) e biblioteca.
Nesse contexto a exploração das HQs representa a legitimidade
da cultura pop como conhecimento literário, aproximando a vida
dos estudantes ao ambiente escolar. Visto que:

a criança é um ser de cultura, que, ao se relacionar com o mundo, aprende


nos intercâmbios com seus pares e é capaz de modificá-lo; dotado de uma
lógica singular, consegue ir além do desenvolvimento alcançado em um
dado momento (VIEIRA; FERNANDES; SILVA & MARTINS, 2008, p.12).

A partir dessa compreensão desenvolveram-se dentro da escola


novos olhares sobre os processos de leitura e possibilidades de uso
da biblioteca e gibiteca em prol da formação literária e cidadã dos
estudantes. O desenvolvimento do Projeto Super Leitores ocorreu na
turma 3ºD que estava realizando igualmente o Projeto Somos da Tur-
ma da Cíntia, alusivo a Turma da Mônica. Nessa turma a professora
regente, Cíntia Marantes, desenvolvia atividades que contemplassem
os conteúdos curriculares articulados aos personagens criados pelo
Maurício de Souza, estudando as características e as histórias nas
HQs.
Assim, problematizamos como as mediações culturais, nas prá-
ticas pedagógicas com o acesso às HQs, desenvolvem a formação
literária de estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental. O proje-
to envolveu pesquisa, reflexão e prática por parte dos estudantes e
professores. Para tanto, foi estudada cada etapa do desenvolvimento
de uma HQ, conhecendo os responsáveis por cada uma. Também
analisamos a leitura de HQs, praticando a leitura crítica, para que
assim fosse mais significativa aos leitores. Logo, propiciando a parti-
lha dos conhecimentos e cooperação na produção de novos saberes.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 75

AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A ESCOLA

A presença das HQs nos ambientes escolares muitas vezes é per-


cebida como um passatempo e entretenimento aos estudantes. Pou-
co exploradas nas práticas de sala de aula e raramente inseridas nos
planejamentos pedagógicos. Contudo, esse quadro de desvaloriza-
ção vem sendo desconstruído. Docentes estão procurando novas
tecnologias para exploração em suas salas de aula, aproximando com
o cotidiano dos estudantes, problematizando os recursos existentes
nas escolas e refletindo em como utilizá-los de maneiras diferentes.
Assim, para que não sejam instituições livrescas e sem significado
para os seus estudantes, “as escolas passam a constituir um mun-
do dentro do mundo, uma sociedade dentro da sociedade (DEWEY,
1978, p. 21).
Os professores e professoras que estão dispostos a conhecer as
características das HQs e suas possibilidades pedagógicas se encan-
tam pelo leque de práticas e temáticas que podem ser trabalhadas a
partir da linguagem das HQs, de forma criativa e divertida. A partir
dessa disposição, como Dewey (1978, p. 21) defende, “a experiência
é ampliada por um processo de reconstrução imaginativa. As novas
coisas aprendidas estão ligadas às primeiras experiências reais”. As-
sim, destacamos a importância de formações continuadas, pesquisas
e trocas de experiências entre professores para a constituição de rede
de colaboração ao uso das HQs em sala de aula.
Nessa compreensão, as escolas apresentam engajamentos em prol
do respeito às diferentes culturas inseridas no contexto escolar, e “é
neste sentido que toda educação é social, sendo, como é, uma par-
ticipação, uma conquista de um modo de agir comum. Nada se en-
sina, nem se aprende, senão através de uma compreensão comum
ou de um uso comum” (DEWEY, 1978, p. 23). Reconfigurando os
espaços e contribuindo para a construção de equidade, assim, educar
consiste em:

Educar-se é crescer, não já no sentido puramente fisiológico, mas no sentido


espiritual, no sentido humano, no sentido de uma vida cada vez mais larga,
mais rica e mais bela, em um mundo cada vez mais adaptado, mais propício,
mais benfazejo para o homem (DEWEY, 1978, p. 17).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 76

Para tanto, entendemos a importância da comunicação em um


ensino transformador e significativo, de maneira congruente com o
século XXI. Visualizamos as interações entre estudantes, estudantes
e professores, estudantes e objeto de conhecimento como fundamen-
tais para a construção do conhecimento no coletivo e não apenas a
sua reprodução. Dewey descreve o processo de comunicação na edu-
cação como importante visto que “quem recebe a comunicação tem
uma nova experiência que lhe transforma a própria natureza. Quem
a comunica, por sua vez, se muda e se transforma no esforço para
formular a sua própria experiência” (DEWEY, 1978, p. 19).
Assim, é importante compreender o estudante como sujeito de
aprendizagem com conhecimentos prévios e culturas que devem
protagonizar junto aos do professor os processos de ensino e de
aprendizagem. Logo, conforme Freire entendemos que “o educa-
dor, como quem sabe, precisa reconhecer, primeiro, nos educandos
em processo de saber mais, os sujeitos, com ele, deste processo [...]”
(FREIRE, 2011, p. 39). Na formação de leitores é de suma impor-
tância compreender o leitor como um ser cultural, com diferentes
visões de mundo e com uma diversidade socioeconômica ao qual
está inserido.

FORMAÇÃO LITERÁRIA ATRAVÉS DAS HQS

Partindo do uso das HQs em sala de aula podemos observar o


encantamento que esse portador de leitura proporciona para os dife-
rentes leitores: pré-leitores, leitores compreensivos, leitores interpre-
tativos ou leitores críticos. Em cada um desses níveis o leitor irá ler
a história conforme sua leitura de mundo, suas experiências prévias
e a partir dos sentimentos vividos durante o ato de ler. Conforme
Freire reflete “cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e
com os outros” (FREIRE, 2011. p. 37).
A formação literária requer uma sensibilidade diferenciada, por-
que mediamos processos de alfabetização de leitores iniciantes que
estão sendo inseridos em uma cultura letrada. Principalmente pelo
fato de que “a criança vive em um mundo em que tudo é contato
pessoal. Dificilmente penetrará no campo da sua experiência qual-
quer coisa que não interesse diretamente seu bem-estar ou o de sua
família e amigos” (DEWEY, 1978, p. 43).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 77

A formação literária é norteada pelas experiências vividas ao lon-


go da história dos leitores. Ouvir histórias na família ou na escola, ler
recados e listas de supermercado, visualizar encartes de propaganda
e placas, manusear jornais, revistas e livros, ou seja, o contato com
diferentes leituras e variadas mediações culturais. Uma experiência
inteligente, com percepção das relações e uma contínua participação
do pensamento na ação leitora (DEWEY, 1978). Através das experi-
mentações o leitor vai construindo o seu repertório literário e cultu-
ral, ampliando o seu vocabulário, conhecendo diferentes pontos de
vista e desenvolvendo o gosto pela leitura. Indo ao encontro às ideias
de Freire, quando descreve sobre as leituras de mundo durante a sua
formação literária:“a decifração da palavra fluía naturalmente da ‘lei-
tura’ do mundo particular” (FREIRE, 2011, p. 24).
Na linguagem das HQs são realizadas três tipos de leituras dife-
rentes: visual, textual e crítica. Essas leituras são, “dentro da cultura
das histórias em quadrinhos, [...] o ato representativo que reúne e or-
ganiza as pessoas em redes sociais distintas de estruturas sociais pré-
-existentes” (BARI, 2018. p. 132). Uma leitura complexa que como
Bari (2018) e Duarte, Oliveira e Sgarbi (2017) descrevem abrange
do letramento à apropriação de sentido coletivo com elementos e
uma simbologia tão próprios e característicos que “[...] para quem
não está acostumado com ele, pode ser até impossível entender a
história” (DUARTE; OLIVEIRA; & SGARBI, 2017, p. 265). Em uma
dinâmica entre linguagem e realidade onde ler não se refere somente
à linguagem escrita. Uma relação entre as diferentes linguagens
(visuais, textuais e mistas) participando desse processo a inteligência
do mundo (FREIRE, 2011).
Com a leitura visual as imagens tratam de forma concreta o ce-
nário, as ações e as emoções de cada situação da história. Na leitura
textual o leitor irá buscar pelo título, falas, onomatopeias da narrati-
va. Compreendendo o pensamento, os ideais e as variações linguís-
ticas dos personagens. Por meio da leitura crítica ocorre a tradução
do que a história quer passar aos leitores, porque “[...] a leitura da
palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma
certa forma [...] de transformá-lo através de nossa prática conscien-
te” (FREIRE, 2011, p. 30 ).
A leitura crítica compreende a reflexão e o questionamento, arti-
culando a mensagem com o cotidiano do leitor. Para Freire “a com-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 78

preensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a


percepção das relações entre o texto e o contexto” (FREIRE, 2011, p.
20). Assim, o leitor para realizar a leitura crítica das HQs necessita
ler o texto relacionando com as imagens representadas, contextua-
lizando com as suas vivências pessoais e com as referências trazidas
no enredo. Ou seja, ler “[...] implica sempre percepção crítica, inter-
pretação e ‘re-escrita’ do lido [...]” (FREIRE, 2011, p. 31).
A partir das HQs os leitores desenvolvem esses três tipos de leitu-
ras, de forma dinâmica e divertida, acompanhando o processo de al-
fabetização; potencializando a criatividade e a criticidade que serão
necessárias nas demais tarefas escolares e sociais. No Projeto Super
Leitores as dinâmicas de leitura visual, textual e crítica foram obser-
vadas, destacando o papel das HQs em sala de aula como tecnologia
para a formação literária.

O PROJETO SUPER LEITORES



Emergindo no contexto de uma escola preocupada em disponi-
bilizar diferentes portadores de leitura e em problematizar temáti-
cas reais de suas vidas, o projeto contempla inúmeras dinâmicas de
formação literária partindo da inserção de HQs até a sua releitura,
em atividades de: pesquisas, contações de histórias, teatros, saídas de
campo, produções artísticas. O Projeto Super Leitores ocorreu por
meio de intervenções pedagógicas na turma do 3º ano D, a fim de
estudar, problematizar e proporcionar novas experiências literárias
com HQs.
A turma do 3º ano D iniciou o ano letivo com a Turma da Mô-
nica - Mauricio de Souza Produções (MSP) pois estava inserida no
cotidiano escolar. A escolha da Turma da Mônica se deu pela iden-
tificação e familiarização dos estudantes com os personagens e pelo
fato de que muitos pais leram gibis em sua infância e passam aos
filhos essa paixão. A partir das leituras realizadas pelos estudantes a
turma construiu hipóteses sobre a criação de HQs, história dos per-
sonagens e curiosidades sobre o universo da cultura pop, levantou
dúvidas, emergindo novas temáticas a serem estudadas. Dessa forma
ler as HQs da Turma da Mônica já não era somente diversão, a lei-
tura se transformava em fonte de informação e potencialidade para
a construção do conhecimento, ampliando suas visões de mundo a
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 79

partir dos dilemas e descobertas dos diferentes personagens.


As intervenções pedagógicas foram realizadas em cinco sema-
nas, com início no mês de abril e término em maio. A compreensão
dos processos de ensino e de aprendizagem consistiu na ação dos
estudantes na realização das atividades, participando e construindo
conhecimentos, ou seja, o estudante protagonista da sua aprendiza-
gem. O projeto contemplou as seguintes atividades: Sondagem ini-
cial, Hora do conto e Roda de conversa, Oficina de criação de perso-
nagens, Oficina de produção de tirinhas e Sondagem final.

DINÂMICAS DO PROJETO

A sondagem dos níveis de leitura dos quais os estudantes parti-


cipantes se encontravam, bem como a análise dos conhecimentos
prévios sobre a linguagem das HQs, tinha como objetivo verificar
o conhecimento dos estudantes a fim de ampliar e construir novos
conhecimentos. Assim, evidenciamos que a maioria dos estudantes
estavam em pleno desenvolvimento do processo de leitura, com 60%
dos estudantes como leitores bons ou fluentes e realizando leituras
críticas.

Figura 1: Níveis de leitura


Criado pela autora. OLSEN, 2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 80

As leituras foram classificadas conforme os níveis: silábica, uma


leitura realizada sílaba por sílaba; soletrada, o leitor lê as palavras
soletrando-as; fraca, uma leitura com pausas e dificuldades em de-
terminadas palavras; boa, o leitor lê mas ainda com insegurança; e
fluente, uma leitura sem pausas e com interpretação. A avaliação
ocorreu no acompanhamento de leituras individualizadas de HQs.
Na segunda semana foram debatidos conceitos sobre as HQs du-
rante uma roda de conversa na turma. Foi o momento de verificar
os conhecimentos prévios dos estudantes sobre as características das
HQs. Iniciou-se a intervenção com questionamentos como “O que
eram HQs?”, “Como era feita a leitura desses gibis?”, “Como eram
produzidos?”, “Quem criava as HQs?” e problematização dos perso-
nagens, características (Desenho, balões, onomatopeias), etapas da
criação de HQs e profissionais da área das HQs (Quadrinista, cartu-
nista, letrista, desenhista, colorista, roteirista, editor, etc). Nessa ati-
vidade o importante era proporcionar a escuta dos conhecimentos
dos estudantes já que “[...] tão difícil quanto determinar a origem
exata das histórias em quadrinhos é determinar o que é uma história
em quadrinhos, visto que o próprio conceito muda e evolui na medi-
da que as narrativas se desenvolvem” (MARINO, 2018, p. 38). Desta-
camos os dados evidenciados na pesquisa referente aos conhecimen-
tos debatidos com uma contação de história da HQ Chico Bento em:
Esperança (SOUZA, 2018).
Na história é apresentado um encontro entre a Turma da Mônica
(MSP) e a Liga da Justiça (DC Comics), envolvendo os personagens
Superman, Mulher Maravilha e o Chico Bento. Em seu enredo são
trabalhados conceitos de bondade e compaixão e adjetivos, compa-
rando a virtudes dos super heróis. Durante a contação de história os
leitores puderam refletir sobre como o personagem principal, Chico
Bento, mostrou conter virtudes de um verdadeiro herói e as possibi-
lidades de julgar as pessoas por seus atos. Os acontecimentos retrata-
dos também geraram debates sobre a preservação do meio ambiente
(fogueira na floresta), vida no campo (o porquê da plantação ser tão
importante para a família Bento) e prevenção de incêndio (como
agir e procedimentos). Dessa forma, ampliamos as leituras visuais,
exercitamos a leitura crítica e potencializamos a leitura verbal.
Na terceira semana aconteceu a oficina de criação de personagens.
Nessa atividade os estudantes foram questionados sobre a impor-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 81

tância dos personagens nas HQs, pois a narrativa da história ocorre


por meio deles. As ações dos personagens potencializam a relação
de afetividade, identificação e empatia entre os estudantes. Foram
apresentados também alguns dos personagens da Turma da Mônica
destacando suas características físicas, psicológicas e referências de
cada um. Para compreender o processo de criação das personagens
de HQs foram apresentados também os tipos de desenhos utiliza-
dos: Desenho acadêmico, imita a natureza e o corpo humano; Estilo
cartum, livre e exagerado; Estilo comics, super heróis; Estilo mangá,
detalhes e olhos grandes.
Após o estudo os estudantes foram colocar em prática o que
aprenderam. Então, criaram seus próprios personagens, um super
herói ou uma super heroína, a partir de um questionário norteador.
As perguntas que iriam auxiliá-los na criação eram: Qual o seu super
nome? Qual o seu super poder? Qual o seu maior sonho? Qual o seu
maior medo? Com as produções prontas foi possível evidenciar a
criatividade dos estudantes, assim como a contextualização da reali-
dade social nas representações escritas e visuais.
Na quarta semana os estudantes participantes foram convidados
a analisarem o processo de criação de personagens na oficina fábrica
de tirinhas. Assim, foi proposta a vivência da criação de uma tiri-
nha e refletir sobre a importância da leitura. Na biblioteca e gibiteca
da escola, os estudantes participaram da leitura com a Tevibis3, a
partir da mediação pedagógica da pesquisadora. Foram realizadas
as leituras coletivas de 4 tirinhas explorando a temática “leitura”. Nas
leituras coletivas das tirinhas os estudantes partilhavam seus enten-
dimentos e opiniões sobre a história, indo ao encontro da ideia de
Dewey ao defender que é essa “circulação de reações e de experiên-
cias e de conhecimentos que forma a vida em comum dos homens, e
que lhes permite a perpétua renovação de suas existências, por uma
perpétua reeducação” (DEWEY, 1978, p.20).
Duarte, Oliveira e Sgarbi refletem que “a leitura de textos literá-
rios, por exemplo, poesias, romances, crônicas, biografias, quadri-
nhos etc, leva, muitas vezes, a um estado de empatia, pois há espaço
para o lúdico, para nossas fantasias e emoções” (DUARTE; OLIVEI-
RA; SGARBI, 2017, p.263 ). Foram analisadas dessa forma pelos es-
tudantes as seguintes tirinhas com a temática leitura:

3  Caixa de papelão em forma de televisão decorada com gibis reciclados.


VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 82

Figura 2: Armandinho
© 2018, Armandinho Inc. Todos os direitos reservados.
Fonte: Padula Livros4

A partir dessa leitura, os estudantes compartilharam as suas in-


terpretações, leituras críticas, concluindo que o fato de não querer
ler um livro pode ser por não saber ler e ter vergonha de falar. Nesse
momento, os estudantes realizaram a articulação com as suas vivên-
cias cotidianas pelo fato de que 40% da turma passa por dificuldades
em seu processo de alfabetização.

Figura 3: Zíper e os livros


© 2012, Rafael Marçal Inc. Todos os direitos reservados.
Fonte: Vacilândia5

Com Zíper as leituras dos possíveis desfechos da história trou-


xeram referências às experiências cotidianas dos estudantes com os
seus cachorros de estimação. Situações semelhantes as vivenciadas
pelo personagem Zíper, onde os seus cachorros também morderam
livros e cadernos, confirmando o que Freire (2011, p.19) destaca que
“a leitura do mundo precede a leitura da palavra”.

4  Disponível em: https://twitter.com/padulalivros/status/971490950177611778?lang=pt


5  Disponível em: https://vacilandia.com/ziper-e-os-livros/
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 83

Figura 4: Mafalda e o dicionário


© Quino Inc. Todos os direitos reservados.
Fonte: Pinterest6

A partir da tirinha da Mafalda surgiram referências às tecnolo-


gias digitais, problematizando novas formas de buscar o conheci-
mento através de dicionários na internet, sites ou em lojas de apli-
cativos para dispositivos móveis. Tecnologias presentes no cotidiano
dos estudantes, indiferente ao perfil socioeconômico, destacadas
pelo conhecimento do uso e de suas possibilidades.

Figura 5: Flash na biblioteca


©2014, Bell ville Sensible Inc. Todos os direitos reservados.
Fonte: Univap Valores Humanos7

6  Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/371195194260240513/


7  Disponível em: https://www.felipeguedes.com/tirinha-favorita-reflexao/
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 84

Na última leitura, os estudantes refletiram a importância de ler


para buscar sabedoria e novos conhecimentos, bem como que “to-
das as formas de leitura são importantes e devem ser valorizadas”
(ELIAS, 2000, p. 184). Refletiram como era importante aprender a
ler e frequentar bibliotecas para sempre buscarem por mais conhe-
cimentos.
Após essa primeira dinâmica em pequenos grupos os estudantes
dividiram as tarefas e juntos pensaram em uma história. A divisão
ocorreu em: roteirista, desenhista, colorista e letrista. Os estudantes
criaram um roteiro delineando cenário, personagens e problema-
-central, depois desenharam suas histórias, recriando o cenário ima-
ginado e qual forma poderiam transmitir suas mensagens. O dese-
nhista foi a profissão mais citada entre os estudantes.
Nas análises das histórias criadas foi possível destacar referên-
cias às temáticas trabalhadas em sala de aula como os personagens
da turma do Sítio do Picapau Amarelo, os super heróis e a Turma
da Mônica. Durante as criações os estudantes ficaram focados nas
suas tarefas, demonstrando compreensão e apreciação à atividade
em grupo, sem se preocuparem com o tempo e o fim da aula. Essa
última colocação foi ressaltada pela docente da turma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas observações e dinâmicas realizadas os resultados


apontam para o potencial do uso das HQs no encantamento e desen-
volvimento de uma leitura crítica. Através das mediações culturais o
docente consegue incluir os estudantes de diferentes níveis de leitu-
ra, problematizando temáticas significativas e que irão os encantar
em ler questionando o que é apresentado a eles. Afinal, é de suma
importância proporcionar momentos de reflexão e posicionamento
dos estudantes sobre as leituras; porque a partir dessa dinâmica com-
preendem a existência de diferentes pontos de vista, que é preciso
diálogo e que com pensamentos diferentes podem aprender mais,
um auxiliando ao outro na construção dos conhecimentos.
Destacamos a partir das intervenções o incentivo à leitura, exer-
cício da interpretação e criatividade dos estudantes. Os personagens
das histórias contribuem para que os estudantes tenham empatia e
identificação, aproximando-os e contribuindo para a ação na cons-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 85

trução de suas próprias tirinhas. Para tanto, salientamos a impor-


tância na diversificação das atividades pedagógicas ao longo do ano
letivo. Na EMEF João Paulo I, é possível evidenciar a presença da
cultura pop, através das interações entre estudantes e professores,
temáticas trabalhadas em sala de aula e da legitimação das leituras
de mundo destacadas nessas mediações culturais. Assim, há a legi-
timação dos saberes e leituras de mundo dos leitores pertencentes a
cultura pop. Além de que:

Projetos realizados com HQs desenvolvem habilidades tanto discentes


como docentes. Eles aproximam professores e alunos e demonstram que
as formas de produção de conhecimento não são monopólio exclusivo de
grandes centros de pesquisa (BRAGA, 2015, p. 22).

Através de levantamentos de acervo existentes na biblioteca


pesquisada e aplicação do projeto Super Leitores configurou-se a
biblioteca e gibiteca escolar como centro cultural (FREIRE, 2011)
“[...] e não como um depósito silencioso de livros, [...] vista como
fator fundamental para o aperfeiçoamento e a intensificação de uma
forma correta de ler o texto em relação com o contexto” (FREIRE,
2011, p.45). Refletindo que, a partir de leis, é possível viabilizar a
necessária diversidade literária e mediações culturais com as HQs
como tecnologias que potencializam a formação literária, podem-se
desenvolver intervenções para uma leitura crítica e significativa dos
leitores.
Compreendemos a formação literária como experiências cultu-
rais e literárias que se desenvolvem individual e coletivamente, tendo
a escola um papel fundamental nesse processo de iniciação leitora.
Afinal, “a compreensão crítica da alfabetização, que envolve a com-
preensão igualmente crítica da leitura, demanda a compreensão crí-
tica da biblioteca” (FREIRE, 2011, p.33). Dessa forma, a bilbioteca
constitue-se como espaço de busca por leituras, informação, expo-
sição e compartilhamentos de saberes; um centro cultural dentro da
escola, que precisa ser legitimado como tal, pensado para os seus
leitores e sua comunidade escolar. E aqui acrescentamos a compre-
ensão crítica sobre a criação de gibitecas nas escolas como potencia-
lizadoras de novas experiências literárias e culturais.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 86

REFERÊNCIAS

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drinhos na formação de leitores:​​busca de um contraponto en-
tre os panoramas culturais brasileiro e europeu.2008, 250 p. Tese
de Doutorado. São Paulo: Escola de comunicações e Artes - ECA/
USP, 2008. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponi-
veis/27/27151/tde-27042009-121512/pt-br.php > Acesso em: 23 de
outubro de 2018.
BRAGA, Amaro; MODENESI, Thiago Vasconcellos (Org.).​
Quadrinhos e educação:​​ relatos de experiências e análises de publi-
cações. Recife: Tarcísio Pereira, 2015.
DEWEY, John. Vida e educação. 10. ed. São Paulo: Melhoramen-
tos, 1978. 113 p.
DUARTE, André Damasceno Brown; OLIVEIRA, Carlos Vic-
tor de; SGARBI, Paulo. As histórias em quadrinhos, sua linguagem
e inserção nas práticas de ensino com TIC’s. In:
​​ SANTOS, Edméa;
SANTOS, Rosemary dos; PORTO, Cristiane. Múltiplas linguagens
no currículo. João Pessoa: UFPB, 2017, p.247 - 280.
ELIAS, Marisa del Cioppo. De Emílio a Emília: a trajetória da
alfabetização. São Paulo: Scipione, 2000. 207 p.
EMEF. JOÃO PAULO I. Aprendizado dos alunos: Brasil. QEdu.
Disponível em: https://www.qedu.org.br/escola/219631-emef-joao-
-paulo-i/aprendizado Acesso em: 25 de abril de 2019.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que
se completam. 51. ed. São Paulo: Cortez, 2011. 102 p.
MARINO, Daniela dos Santos Domingues; ​As gibitecas como
polos fomentadores de cultura e de exercício da cidadania. ​​Dis-
sertação de mestrado em Ciências da comunicação. 2018, 148 p. São
Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo
- USP, 2018.
VIEIRA, Adriana Silene; FERNANDES, Célia Regina Delácio;
SILVA, Márcia Cabral da; MARTINS, Milena Ribeiro. O ​ rganização e
Uso da Biblioteca Escolar e das Salas de Leitura. ​​In:​ ​​Pró-Letramen-
to​ ​​: Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/
Séries Iniciais do Ensino Fundamental : alfabetização e linguagem
. – ed. rev. e ampl. incluindo SAEB/Prova Brasil matriz de referência/
Secretaria de Educação Básica – Brasília : Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2008. 364 p.
A FIGURA DA MULHER NO MANGÁ
DE ROMANCE ESCOLAR: UM
ESTUDO SOBRE O ESTEREÓTIPO E
SUAS RUPTURAS
Ana Paula Pacheco Luiz1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Inicialmente, o shoujo era criado por homens e isso facilitava


a criação de estereótipos femininos que correspondiam ao que se
esperava da mulher na época. Esperavam uma mulher submissa e
romântica e, claramente, isso era levado para os quadrinhos. Porém,
com o tempo, algumas mangakás quebraram esse estereótipo e trou-
xeram personagens femininas mais independentes e fortes. Ainda
assim, o estereótipo de mulher submissa se mantém fortemente nos
romances escolares de hoje.
A presente pesquisa tem como objetivo analisar os estereótipos e
suas rupturas nos mangás shoujo de romance escolar, trazendo au-
tores como Paul Gravett, Thierry Groensteen e Yukari Fujimoto para
falar de mangá durante a história, assim como Sonia Luyten, Vir-
ginie Despentes e Judith Butler para discutir sobre as quadrinistas
no mercado de trabalho e feminilidade. Junto desses autores, trago
Gilles Deleuze para falar sobre simulacro e cópias.

SHOUJO E SUAS PERSONAGENS FEMININAS

No Japão, em 1868, foi implantada a doutrina confucionista, a


qual pregava que mulheres deveriam ser totalmente obedientes aos

1  Formanda do curso de Letras – Língua Portuguesa e Literatura, da UNISUL e orientanda


do Prof. Dr. Alexandre Linck Vargas. Palavras-chave: Gênero; Mangá; K-pop; Feminilidade;
Masculinidade. Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/8949395394545241. E-mail para con-
tato: anappluiz@hotmail.com.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 88

pais, maridos, filhos e, até mesmo, ao imperador, o que diminuía, em


parte, os poucos direitos que as mulheres tinham naquela época. É
nesse mesmo período que surgem os primeiros mangás na acepção
moderna da palavra, que quer dizer “desenhos caprichosos” ou “im-
provisados” (SCHODT, 1996). Deste modo, o mangá e a submissão
feminina trilham um caminho simbiótico. Os primeiros quadrinhos
voltados para o público feminino são criados por homens em 1902.
Uma das primeiras revistas para o público feminino foi a shoujo Kai
(Mundo das Meninas), também considerada a pioneira do gênero
shoujo, que são mangás que têm como público-alvo meninas entre
12 e 17 anos. Os romances shoujo eram contaminados pela ideologia
do período (1902), enfatizando que uma garota – que não era uma
criança, mas também não era adulta – deveria aspirar apenas ao re-
finamento, ao romance, ao casamento e à maternidade (GRAVETT,
2005, p. 80).
Apenas no pós-guerra, em 1946, com a mangaká Machiko Hase-
gawa, que o shoujo se destacaria com uma artista mulher, principal-
mente, entre as donas de casa. Isso se deve pela série em quadrinhos
Sazae-san, protagonizada por uma dona de casa de mesmo nome.
Sazae-san seria adaptada para animação e é a série animada mais
longa da história, sendo exibida até hoje (GRAVETT, 2005). Em
1948, com a imposição da constituição norte-americana, as mulhe-
res passaram a ter mais direitos, contudo, elas ainda eram desencora-
jadas a entrar no mercado de trabalho, tendo que manter o papel de
dona de casa, de mulher submissa e dependente, imposto, até então,
pela sociedade, e traduzido pelos quadrinhos da época. Era o caso
do artista Tetsuya Chiba, um dos mais populares autores homens de
shoujo na década de 1960. Ele produziu obras como Akane-chan. Era
muito comum mangakás de shonens, gênero voltado para o públi-
co masculino, criar shoujos. Chiba fazia parte desse grupo de man-
gakás. Muitos autores tinham dificuldade de criar shoujos e Chiba
foi um dos que relatou sobre essa dificuldade:

Era difícil para mim escrever para as revistas para meninas, porque eu sou
homem e não tenho irmãs, só irmãos. Até mesmo minha mãe era quase um
homem. Os mangás para meninas naquela época eram verdadeiros drama-
lhões. Eu pensei “se é isso que elas querem, eu deveria fazer o mesmo”. Chiba
e outros artistas começaram produzindo histórias sentimentais e melosas
sobre órfãs, bailarinas e violinistas, que reforçavam o estereótipo sensível e
despretensioso do shoujo. (GRAVETT, 2005, p. 82).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 89

No ano de 1970, surge, então, o Grupo do Ano de 24, nome este


dado por ser formado por várias mulheres mangakás que nasceram
em 1949 ou o ano de 24 da era Showa. Elas criavam shoujo e shonen-
-ai, também conhecido como boys love (amor entre meninos). Não
é certo o número total de membros, mas algumas que estavam entre
elas eram Moto Hagio, autora de Poe no Ichizoku, Keiko Takemiya,
autora de Kaze to ki no Uta (ou A Canção do Vento e das Árvores, no
Brasil), Riyoko Ikeda, de Versailles no Bara (ou Rosa de Versalhes),
Suzue Miuchi, de Glass no Kamen e Yumiko Igarashi e Kyoko Mi-
zuki, de Candy Candy.
Os mangás abordavam romances, podendo ser com vampiros ou
históricos ou homoafetivos (shonen-ai). Eram dramáticos, porém,
traziam personagens fortes e independentes, diferente da geração
anterior. Por exemplo, Rosa de Versalhes, que se passa na França re-
volucionária, traz a história de uma garota que foi criada como rapaz
e, por conta da educação militar que recebeu, ela se torna capitã da
Guarda Real. As mangakás do Grupo do Ano de 24 foram muito
influenciadas por Macoto Takahashi.
Em “Beyond the Storm”, Macoto trouxe figuras de corpos inteiros
ou da cintura para cima, que pulam para fora dos quadros, além dos
olhos brilhantes e expressivos. As figuras não eram apenas decora-
tivas, mas, sim, ligadas diretamente à transformação do leiaute do
shoujo (FUJIMOTO, 2012, p. 42). Essas inovações seriam incorpora-
das e radicalizadas pelo grupo de 24, como a falta de linha nos requa-
dros, desprendendo-se do padrão imposto aos quadrinhos mains-
tream até então, bem como o uso de sobreposições, com quadrinhos
menores sobre maiores. O shoujo também conquista características
únicas do gênero, como o “the catwak effect”, prevalecendo o deco-
rativo sobre o narrativo, não raramente através de elementos como
flores e estrelas (GROENSTEEN, 2018, p. 8).
Relativamente, no Japão, hoje as mulheres quadrinistas são
privilegiadas, já que o mercado dos quadrinhos para o público
feminino é dominado por elas, diferentemente do ocidente. Porém,
segundo Luyten, as mulheres muitas vezes não fazem proveito da
posição que elas conquistaram.

Hoje, no Japão, como expus anteriormente, as revistas de histórias em qua-


drinhos femininas são feitas não por homens, mas por mulheres, fato esse
que poderia causar inveja às desenhistas de todo o mundo. Isso poderia ser
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 90

um passo, uma condição especial para que a mulher construísse sua ima-
gem e até fosse um agente modificador. Estão de posse da ferramenta e ain-
da martelam no mesmo lugar. Isso pode, no entanto, significar também algo
mais profundo e assustador (LUYTEN, 2008, p. 68).

Mesmo o mercado sendo dominado por mulheres, os estereóti-


pos criados por homens continuam estampados nos mangás. O que
Luyten diz ser algo mais profundo e assustador talvez seja esse medo
da mulher adentrar num mercado dominado por homens. É o medo
que nós, mulheres, temos de colocar nossa voz ao vento.

Eu sou desse sexo aí, esse que deve ficar calado, esse que forçamos a ficar ca-
lado. E que deve aceitar isso com elegância, uma vez mais pedir licença. Se-
não, desapareceremos. Os homens sabem melhor do que nós o que devemos
falar a respeito de nós mesmas. E as mulheres, se elas desejam sobreviver,
devem compreender essa ordem. Que não me venham dizer que as coisas
evoluíram bastante, que nós já passamos a outras coisas. Não para mim. O
que suporto como escritora mulher é duas vezes maior do que um homem
suporta. (DESPENTES, 2018, p. 115).

Então, por mais que as mulheres japonesas possuam o privilégio


de pôr sua voz nos quadrinhos, ainda são os homens que sabem me-
lhor, são eles que devem falar e ditar o que as mulheres são. Não é
em vão que as personagens continuam estereotipadas, já que foram
os homens que ditaram que é dessa forma que as mulheres deveriam
ser representadas. Quanto a representação, Butler (2019) diz:

Mas política e representação são termos polêmicos. Por um lado, a repre-


sentação serve como termo operacional no seio de um processo político que
busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políti-
cos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem
que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria
das mulheres. (BUTLER, p. 18, 2019).

Essa representação das mulheres dadas tanto por mangakás ho-


mens, quanto mulheres, mostra, então, uma visão distorcida sobre
mulheres. Sobre personagens femininas. E já que os homens deter-
minavam antes como uma mulher deveria ser representada, isso
acaba sendo tido como verdade e, então, repetido e traduzido pelas
quadrinistas na atualidade.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 91

A FIGURA DA MULHER NO MANGÁ “KAICHOU WA


MAID-SAMA!”

Como já disse, o estereótipo de personagem submissa é algo re-


corrente nos romances escolares. Porém, há algumas rupturas dessas
estereotipias aqui e ali. Como exemplo dessa ruptura, trago Misaki
Ayuzawa, personagem criada por Hiro Fujiwara, no mangá “Kai-
chou Wa Maid-Sama!”.
Misaki é uma garota de 16 anos, estudante do Ensino Médio, que
tem uma vida um tanto quanto complicada. Ela estuda num colégio
que, anteriormente, era um colégio só para meninos e, por isso, tem
como maioria alunos. Porém, é o que sua mãe pode pagar. A escola
é um caos, os meninos não são organizados e não são limpos, além
disso tudo, assediam as alunas. Para que a escola melhorasse e mais
meninas se sentissem bem-vindas no colégio, Misaki estuda o má-
ximo que pode para ser a melhor estudante e se tornar presidente
do Conselho Estudantil. Ela consegue. Com isso, ela passa a impor
regras e trazer melhorias para a escola.
Além disso, Misaki mora com sua mãe e sua irmã mais nova. Seu
pai abandonou sua mãe, deixando-a com todas as dívidas da família.
A mãe de Misaki é enfermeira e trabalha em vários plantões, para
que possa pagar suas dívidas, bem como, faz alguns bicos para com-
plementar a renda. Ao ver sua mãe daquela forma, Misaki começa a
trabalhar meio período num café que tem como temática emprega-
das britânicas. Por mais que ela seja durona, acaba aceitando traba-
lhar nesse lugar, já que o salário é alto. Como ela tem essa fama de
durona, Misaki mantém seu trabalho em segredo da escola, pois isso
pode mudar a imagem que ela construiu como presidente do Conse-
lho. Pouco tempo depois de virar empregada, Usui – o menino com
quem ela tem uma rivalidade e, posteriormente, uma paixão – acaba
descobrindo que ela é “empregada”, mas, para própria diversão, ele
mantém em segredo também e vira cliente diário do café. Por isso o
mangá traz como título “A presidente é uma empregada!”.
A personagem, então, é uma mulher independente, que preza
pelos seus estudos e sua vida profissional. Ela se vira sozinha. Não
precisa de um homem, nem ela, nem sua mãe e sua irmã, como po-
demos ver nos quadrinhos a seguir:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 92

Figura 1: Misaki sendo sequestrada.


Fonte: FUJIWARA, Hiro. Kaichou wa Maid-sama! Disponível em: mangasoul.com.

O café em que a Misaki trabalha vira alvo de perseguidores e fe-


tichistas. A dona, que é muito cuidadosa com as meninas que tra-
balham com ela, tenta dar diversas maneiras de proteção. Porém, ao
ser a última a sair do café, Misaki é surpreendida por dois homens e
acaba sendo “sequestrada”. Eles a prendem e levam-na para o segun-
do andar do café.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 93

Figura 2: Usui vendo Misaki sendo sequestrada


Fonte: FUJIWARA, Hiro. Kaichou wa Maid-sama! Disponível em: mangasoul.com

Da rua, Usui nota uma movimentação estranha no segundo an-


dar do café e acaba avistando a sombra de Misaki e outros dois ho-
mens. Ele, obviamente, corre para salvá-la, porém...
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 94

Figura 3: Misaki se salvando


Fonte: FUJIWARA, Hiro. Kaichou wa Maid-sama! Disponível em: mangasoul.com

Misaki se salva sozinha e acaba dando uma surra nos homens que
a sequestraram e, enquanto isso, Usui aparece minúsculo num qua-
dro. Misaki é maior que Usui. Ela é mais forte que ele e não precisa de
um herói para resgatá-la. Ela protagoniza a cena, que deveria ser pro-
tagonizada pelo cavaleiro que a salva. Misaki não traz a personagem
feminina que o homem quer que seja representado. Para Despentes:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 95

Feminilidade é a putaria. A arte do servilismo. Pode-se chamar de sedução e


tentar transformar isso num troço com glamour. Não se trata de um esporte
de alto nível na maioria dos casos. Quase sempre, trata-se de se habituar a
se comportar como inferior. Entrar num cômodo, olhar se existem homens
presentes, desejar agradá-los. Não falar muito alto. Não se expressar num
tom categórico. Não se sentar com as pernas abertas, com mais comodi-
dade. Não se expressar num tom autoritário. Não falar de dinheiro. Não
desejar conquistar poder. Não desejar ocupar um posto de autoridade. Não
procurar prestígio. Não rir muito alto. Não ser muito engraçada. Agradar
aos homens é uma arte complicada que exige que apaguemos tudo que faça
referência ao domínio de potência. (DESPENTES, 2018, p. 107).

Ayuzawa é o contrário. Ela é a mulher que estuda para ser pre-


sidente do Conselho Estudantil, para poder mandar e impor regras
a maioria dos alunos homens que estudam na sua escola. Ela grita.
Manda. Salva a si própria. E, por isso, até um certo ponto dos quadri-
nhos, ela é odiada e até desrespeitada pelos alunos. Ela é só mais uma
mulher, por que ela tem o direito de gritar com homens? Mandar
neles? Fujiwara traz representação distorcida da mulher, tida como
verdade (BUTLER, 2019, p. 18), que os quadrinistas da geração ante-
riores disseminaram, indiretamente, nesses personagens masculinos
que acham ruim ter uma mulher como presidente. Junto dessa repre-
sentação distorcida, Fujiwara mostra como é possível construir per-
sonagens femininas independentes e fortes e que, posteriormente,
elas podem, sim, ter um papel de poder e ter homens obedecendo-as
e entendendo que mulheres também podem deter a potência.

ESTEREÓTIPOS

Trago Deleuze para falar um pouco sobre estereótipo. Acredi-


to que Ayuzawa seja um dos exemplos de quebra de estereótipo de
mulher submissa, criado e implantado nos romances escolares por
homens no século passado. Porém, acredito também que Ayuzawa
esteja ajudando na criação de um novo estereótipo, já que, junto
dela, várias outras personagens femininas independentes e fortes
acabaram surgindo, em menor escala, mas surgiram. Porém, tam-
bém pode-se pensar dessa personagem como simulacro.

A cópia é uma imagem dotada de semelhanças, o simulacro, uma imagem


sem semelhança. O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-
-nos com esta noção: Deus fez o homem à sua semelhança, mas, pelo pecado,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 96

o homem perdeu a semelhança, embora conservasse a imagem. Tornamo-


-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência
estética. A observação do catecismo tem a vantagem de enfatizar o caráter
demoníaco do simulacro. Sem dúvida, ele produz o efeito de semelhança;
mas é um efeito conjunto, exterior, e produzido por meios complementa-
res diferentes daqueles que se acham em ação no modelo. O simulacro é
construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma
dissimilitude. (DELEUZE, 2009, p. 263).

Uma mulher que foge da feminilidade imposta pela sociedade


é dissimulada. Misaki foge das cópias repetidamente trazidas pelos
homens de 1902. Ela é o contrário da feminilidade, que acha que a
mulher deve ser calada, que não deve querer o poder, querer mandar,
querer agradar a si mesma e não a homens. Misaki pode ser simu-
lacro, porque não é a representação distorcida da mulher do século
passado. Ela é construída sobre um disparo, sobre o diferente e car-
rega no seu interior a dissimulação. Ela é tudo o que uma sociedade
patriarcal não quer.
Porém, o eterno retorno e o simulacro andam juntos. Devem an-
dar juntos.

O eterno retorno é, pois, efetivamente o Mesmo e o Semelhante, mas en-


quanto simulados, produzidos pela simulação, pelo funcionamento do si-
mulado (vontade de potência). É nesse sentido que ele subverte a represen-
tação, que destrói os ícones: ele não pressupõe o Mesmo e o Semelhante,
mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única
semelhança do desemparelhado. Ele é o fantasma único para todos os si-
mulacros (o ser para todos os entes). É potência, para afirmar a divergência
e o descentramento. Faz deles o objeto de uma afirmação superior. É sob a
potência do falso pretendente que ele faz passar e repassar o que é. Assim,
não faz retornar tudo. É ainda seletivo, faz a diferença, mas não à maneira de
Platão. O que seleciona são todos os procedimentos que se opõem à seleção.
O que exclui, o que não faz retornar, é o que pressupõe o Mesmo e o Seme-
lhante, o que pretende corrigir a divergência, fazer uma cópia. (DELEUZE,
2009, p. 270).

Então, o eterno retorno traz um novo estereótipo à tona, faz uma


nova cópia e é isso que acontece com as personagens femininas nos
romances escolares. Pois Misaki é um novo Ideal pressuposto das
personagens que surgiram depois dela ou antes dela. Misaki é uma
possível cópia. É um novo estereótipo. Um estereótipo de mulher
independente.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como objetivo analisar os estereótipos


trazidos pelos mangás shoujo de romance escolar. Usei Gravett, Fu-
jimoto e Groensteen para contextualizar o surgimento do shoujo
e, junto dele, os estereótipos carregados pela ideologia da época de
mulher submissa e romântica. Além disso, trouxe Luyten, Butler e
Despentes para falar sobre feminilidade e o que as quadrinistas en-
frentam no mercado de trabalho. Deleuze foi de grande importância
para falar sobre o simulacro e o eterno retorno.
Concluo, então, que a personagem que analisei, Misaki Ayuzawa,
de “Kaichou wa Maid-sama!” é um novo estereótipo. É o eterno re-
torno, que não retorna tudo, mas traz uma nova cópia. Apesar disso,
Misaki foge da representação errônea imposta pela geração anterior,
trazendo um novo conceito de mulher para o romance escolar. Ela
foge da feminilidade que é imposta e aparece como uma mulher que
preza pela sua independência e poder.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 98

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão


da identidade. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva,
2009.
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: N-1, 2016.
FUJIMOTO, Yukari. Mechademia: Lines of Sight, vol. 7. Minne-
apolis: University of Minnesota Press, p. 24-55, 2012.
FUJIWARA, Hiro. Kaichou wa Maid-Sama! Cap. 3. Disponível
em: < https://mangasoul.com/reader/1520/3> Acesso em: 10 out.
2019.
GRAVETT, Paul. Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadri-
nhos. São Paulo: Conrad do Brasil, 2006.
GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Nova Igua-
çu: Marsupial, 2018.
LUYTEN, Sonia. Mangá: O Poder dos Quadrinhos Japoneses.
São Paulo: Hedra, 2008.
SCHODT, Frederik L. Dreamland Japan: writings on modern
manga. Berkeley: Stone Bridge, 2011.
TRADIÇÃO E ESTILO NO MANGA
SHOUNEN DOS ANOS 1970:
ESTÉTICA, POLÍTICA, ROBÔS
E MONSTROS NA PRODUÇÃO
DE ISHINOMORI SHOUTAROU E
NAGAI GOU
Rafael Machado Costa1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: ESTILOS E GERAÇÕES

Uma das possibilidades de se compreender uma produção artísti-


ca é a partir do conceito de “estilo”. Um estilo artístico seria um con-
junto de convenções, modelos e códigos usados para construir re-
presentações de temas e formas que é compartilhado por um grupo
de indivíduos em um mesmo contexto cultural. Ou seja, tratam-se
das características comuns utilizadas por diferentes artistas perten-
centes a um mesmo círculo de influências na criação de suas obras,
e que estão relacionadas às questões relevantes para o contexto de
seu período histórico e social, pelas quais podem ser vistos como um
grupo ou conjunto e contrastam com as características de grupos de
outros recortes cronológicos, geográficos e sociais. Como exemplo
de características que poderiam compor um estilo temos modelos
de enquadramento, de representação de luz, sistemas de perspecti-
va, temas, modelos de representação naturalista ou abstracionista.
Ou seja, as características utilizadas na composição de uma obra que
aparentemente poderiam ser escolhidas de maneira arbitrária, mas
que são empregadas derivando de modelos compartilhados por ar-
tistas vindos de um mesmo recorte social, cultural e cronológico e

1  Doutorando e mestre em Artes Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em História da Arte e Bacharel em Direito. Palavras-
chave: História da Arte; Teoria dos Estilos; História em Quadrinhos; Videogame. Currículo
lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4373221Z6&tipo=completo&i
diomaExibicao=1
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 100

que divergem dos modelos utilizados por grupos de contextos di-


versos.
A natureza do fenômeno dos estilos pode ser interpretada a partir
de teorias como as de Alois Riegl (1858-1905, RIEGL, 1992) e ou-
tros autores da Escola de Viena de História da Arte, como Wilhelm
Worringer (1881-1965, WORRINGER, 1953) e Wilhelm Pinder
(1878-1947, PINDER, 1946), em conjunto com a teoria da Sociolo-
gia das Gerações de Karl Mannheim (1893-1947, PILCHER, 1994.
E também: WELLER, 2010). Segundo o apresentado por essa cor-
rente teórica, é possível entender tal fenômeno como a existência de
uma propensão entre artistas de uma mesma geração a utilizar os
mesmos esquemas formais para tentar solucionar questões artísticas
relacionadas a temas e discussões importantes ao seu local e tempo
derivados do contexto histórico ao qual estão inseridos e que, diante
de grandes mudanças sociais, surgem novos temas relacionados aos
novos contextos surgidos que passam a ter mais relevância para as
gerações que neles vivem e requerem o uso de novos mecanismos e
códigos formais para poderem ser adequadamente abordados. Par-
tindo dessa premissa, compreenderíamos que mudanças históricas
em uma sociedade levariam os artistas do momento a criar novas
formas para representar uma arte mais condizente a este novo status
social, ou seja, mudanças sociais levam a mudanças temáticas que
levam a mudanças formais como modelo de entendimento da ocor-
rência dos estilos.
A partir desse raciocínio, podemos entender os estilos como um
fenômeno geracional. Entretanto faz-se necessário entender o con-
ceito de geração não como um fenômeno puramente cronológico,
mas como um processo sociológico que ocorre de maneira múltipla e
sobreposta. As diferentes gerações não ocorreriam meramente como
um processo positivista de alternância natural vinculada a uma pas-
sagem temporal mensurável e, portanto, previsível matematicamente
em ciclos de um número determinado de anos. Seriam sim resultado
de um processo sociológico conforme apresentado por Mannheim
(PILCHER, 1994. Também: WELLER, 2010) definido pelo fato de
indivíduos nascidos em um recorte temporal aproximado que vivem
em um mesmo ambiente e praticam interações similares teriam pro-
pensão a receberem as mesmas influências culturais em sua idade de
formação. Assim, uma geração cultural seria formada por sujeitos
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 101

que estiveram sob as mesmas influências culturais, compartilhando


do mesmo contexto histórico, tendo temas de interesse em comum
e valendo-se dos mesmos códigos formais de representação. Dessa
forma, um estilo artístico compartilhado por artistas de uma mesma
região e época seria derivado desse fenômeno, e as mudanças estilís-
ticas ocorridas entre artistas do mesmo local em épocas posteriores
derivaria da formação de novas gerações culturais. Faz-se importan-
te notar que o modelo de Mannheim, uma vez que leva em consi-
deração a existência de círculos de influência cultural que podem
ter como fatores determinantes elementos de classe social, gênero,
acesso e interação, compreende a existência de diferentes gerações
culturais — e, portanto, gerações artísticas e estilos — simultâneas
coexistindo em um mesmo local e período, mas atuando em diferen-
tes círculos ou valendo-se de diferentes modelos.
Tendo o fenômeno dos estilos em mente, sua constituição a partir
do contexto social e histórico dos indivíduos que os desenvolveram
e que se trata de um fenômeno que ocorre em diferentes produções e
linguagens artísticas, podemos entendê-lo como um fenômeno que
também se manifesta na História em Quadrinhos. Dessa forma, pas-
semos a tratar de sua ocorrência nas histórias em quadrinhos pro-
duzidas no Japão.
As histórias em quadrinhos japonesas, dentro de uma concep-
ção stricto sensu do que seria “história em quadrinhos” quanto à
forma e à intenção dos autores, remetem ao começo do século XX.
Na década de 1930, já existia no Japão uma variedade de títulos de
histórias em quadrinhos voltados para públicos infantis e adultos.
Tal produção, em grande parte, seguia a tradição formal da produ-
ção de histórias em quadrinhos estadunidense do começo do século
XX, a chamada Era de Platina (COSTA, 2013, p. 43-114), tendo suas
composições construídas em desenhos estruturados por linhas de
espessura constante, enquadramentos centralizados, perspectiva em
plano tableau, uso de representações em abstracionismo icônico or-
gânico com claras definições entre os elementos e, quando coloridas,
usavam cores chapadas com poucos efeitos de sombreamento. Um
dos grandes quadrinhistas desse período foi Tagawa Suihou (1899-
1989) que, entre suas muitas obras, produziu Norakuro a partir de
1931, tendo como tema um cachorro vira-lata membro do exército
de um país de cachorros e que foi um dos personagens de histórias
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 102

em quadrinhos mais popular do Japão no período anterior à Segun-


da Guerra Mundial (TAKEUCHI, 2010, p. 10-11).
No período pós-guerra, ocorreu uma reconstrução da lingua-
gem das histórias em quadrinhos no Japão, tanto na reconstrução
de uma indústria editorial como em uma renovação formal. A mu-
dança estilística veio primeiro através de Tezuka Osamu (1928-1989)
incorporando técnicas de composição e enquadramento derivadas
da Animação, principalmente sob influência das produções de Walt
Disney (1901-1966), e apresentando temas de aventura voltados para
um público infantil ou adolescente (MAZUR; DANNER, 2014, p.
8, 12). Segundo, vinda do movimento Gekiga, iniciado por Tatsumi
Yoshihiro (1935-2015, MAZUR; DANNER, 2014, p. 13), que, além
de pretender temáticas voltadas para um público mais maduro, pas-
sou a utilizar convenções formais de personagens ainda em abstra-
cionismo icônico, mas de formas menos orgânicas e curvilíneas em
favor de proporções um pouco mais naturalistas, em cenários natu-
ralistas tanto em proporção quanto em modelos de perspectiva base-
ados no sistema de perspectiva linear renascentista e na mimetização
da visualidade de texturas dos objetos representados.
Na classificação da produção de histórias em quadrinhos japone-
sa é bastante comum uma categorização que partiu de sua estrutura
editorial e que não é de uso comum em produções de outros paí-
ses: a demografia. Ou seja, a produção de histórias em quadrinhos
tem como critério de classificação primeiro um conjunto de eixos
ou linhas editoriais que foram estabelecidos em relação ao público
alvo das obras. Um desses exemplos é o shounen, que, originalmente,
abrange uma produção destinada a leitores jovens masculinos, en-
quanto, concomitantemente, foram criadas outras demografias ten-
do diferentes públicos alvos. Tal sistema de classificação demográ-
fica, obviamente, não resultou em uma determinação fática do que
cada gênero e faixa etária pode ou não ler e se identificar, sendo que
é comum um público feminino e de diferentes idades consumir a
produção de quadrinhos shounen. Essas divisões de linhas editoriais
por demografia a partir do que supostamente cada um dos grupos
demográficos gostaria de acessar e com o qual se identificaria aca-
bou resultando que as demografias editoriais assumiram para si de-
terminados conjuntos de temas, valores e estéticas tornando-se um
tipo de “grande gênero” ou “metagênero” a partir do qual os gêneros
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 103

de maneira como são classificados na produção ocidental podem se


estabelecer. Por exemplo, dentro da demografia shounen pode haver
uma produção no gênero da fantasia ou da ficção científica, como
na demografia shoujo, tendo como público alvo presumido jovens
do sexo feminino, também podem haver produções de temática de
fantasia de ficção científica. Entretanto a ficção científica shounen e a
ficção científica shoujo possuem diferentes tradições e convenções de
códigos narrativos e formais. Dessa forma, a busca de um leitor pela
produção de uma determinada demografia não ocorre necessaria-
mente motivada pela idade ou gênero deste leitor, mas pelo conjunto
de valores temáticos e estéticos que ele deseja encontrar.
A tradição shounen começou a se estabelecer a partir da produção
de Tezuka Osamu e seus seguidores e dos grupos editoriais sediados
em Tokyo, mas acabou tendo suas convenções temáticas básicas defi-
nidos pelos editores da revista de quadrinhos Weekly Shounen Jump
(1968-) da editora Shueisha, que tem seu núcleo temático baseado
em três valores: amizade, esforço e triunfo (MAZUR; DANNER,
2014, p. 66). Ou seja, a característica temática principal da produção
shounen, independente do gênero em que se enquadre cada obra,
trata-se de narrativas tendo como núcleo a superação de desafios
através do trabalho duro e apoio mútuo entre amigos. Mas, embora
exista um eixo temático básico rígido — mantido pela atuação dos
editores —, os grupos demográficos também estiveram sujeitos aos
efeitos dos fenômenos estilísticos, tendo variações estéticas na forma
de desenvolver tais valores nucleares de acordo com cada geração de
autores. Nossa proposta aqui será tratar especificamente da produ-
ção shounen dos anos 1970 e das características específicas compar-
tilhadas pelos autores desta geração entendendo tal produção como
um estilo artístico e a partir da análise da produção de dois de seus
autores mais influentes: Ishinomori Shoutarou (1938-1998) e Nagai
Gou (1945-).

CONSTRUINDO O ROBÔ COMO OBJETO E COMO


SUJEITO: O MECHA E O JINZOU NINGEN

A presença da representação de robôs nas histórias em quadri-


nhos e nas narrativas japonesas em geral se dá desde o período an-
terior à Segunda Guerra Mundial, embora tenha se tornado mais
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 104

corriqueira a partir da década de 1950. Entretanto foi justamente no


shounen da década de 1970 que as convenções clássicas para a repre-
sentação do robô foram estabelecidas.
Para traçarmos uma genealogia do robô gigante nas narrativas ja-
ponesas, faz-se necessário tratar de Tetsujin 28 Gou (Pessoa de Ferro
Número 28, em uma tradução livre) de Yokoyama Mitsuteru (1934-
2004) publicado de 1958 a 1966. Nessa HQ, Dr. Kaneda, um cientista
que trabalhava na construção de uma arma que ajudaria o Japão a
vencer a Segunda Guerra Mundial, consegue terminar seu trabalho
apenas após o fim da guerra e, antes de morrer, deixa o robô gigante
comandado por controle remoto para seu filho de dez anos, Kaneda
Shoutarou, que o utiliza para combater o crime e proteger a Terra.
Yokoyama publicou outra história em quadrinhos com uma temá-
tica parecida entre 1967 e 1968, Giant Robo (Robô Gigante), na qual
o jovem Kusama Daisaku é sequestrado por uma organização que
planeja a dominação global e, para fugir de seu cativeiro, vincula sua
voz de maneira definitiva ao aparelho capaz de controlar uma arma
desenvolvida por esta organização chamada GR1, que trata-se de um
robô gigante movido pela energia de um reator nuclear. Em ambas
as histórias, Yokoyama aborda situações relacionadas a contextos de
guerra, valendo-se de perspectivas próprias das suas experiências de
infância durante a Segunda Guerra Mundial. As duas histórias apre-
sentam jovens que são involuntariamente arrastados para dentro de
um conflito militar em que a corrida na criação de uma arma defini-
tiva determina as relações de poder.
Tezuka também apresentou sua versão para um robô gigante em
Magma Taishi (1965-1967) (Embaixador Magma em tradução livre,
conhecido no Brasil como Vingadores do Espaço). Na HQ de Tezuka,
após a força extraterrestre Goa ameaçar conquistar a Terra, um mago
que vive no núcleo do planeta entrega ao menino Murakami Ma-
moru um dispositivo que lhe permite invocar Magma, uma figura
humanoide gigante feita de metal dourado. Robôs gigantes também
apareceram nas produções cinematográficas da Toho, como Mogue-
ra, no filme Chikyuu Boueigin (Força de Defesa da Terra, em tradução
livre) de 1957, e a versão maligna e mecanizada de seu personagem
mais famoso, Mechagodzilla, em Godzilla tai Mechagodzilla (Go-
dzilla contra Mechagodzilla, em tradução livre) de 1974 e Mechago-
dzilla no Gyakushuu (O Contra-ataque de Mechagodzilla, em tradu-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 105

ção livre) de 1975. Uma construção comum em todas essas versões


de robôs gigantes é de que eles atuavam como uma espécie de servi-
çais semiautônomos. Eram construtos de aparência humanoide, ou
baseada em algum outro animal ou kaijuu, que executavam funções,
principalmente de natureza bélica, ao receberem comandos. Em par-
te tais robôs tinham papel de instrumentos para aqueles que os en-
viavam comandos, ao mesmo tempo que aparentavam poder tomar
decisões limitadas apenas quanto à forma específica de executar a
tarefa ordenada. Tais robôs não eram desprovidos completamente de
capacidade de determinação, mas, ao mesmo tempo, estavam longes
de serem apresentados como sujeitos possuidores de consciência de
si próprios e capacidade de autodeterminação.
Tal status projetado na representação de robôs teve indícios de
alterações no trabalho de Izumi Yukio (1938-), autor que produzia
segundo as lógicas da demografia kodomo, convencionalmente des-
tinada ao público de até dez anos de idade. Izumi, de 1964 a 1965,
produziu uma HQ intitulada Akanbou Teikoku (Império dos Bebês,
em tradução livre), que tratava-se de um remake de uma série de
quadrinhos criada por Takano Yoshiteru (1923-2008) e publica-
da originalmente de 1952 a 1953 sobre um planeta habitado e go-
vernado por bebês que combatiam invasões de forças alienígenas
com a ajuda de uma estátua gigante de Buda que recebia comandos
através de um computador. Ou seja, a mesma estrutura comum à
apresentada em outras HQs com robôs gigantes, e sendo a versão
de Takano anterior a Tetsujin 28 Gou. Entretanto, entre 1967 e 1968,
Izumi produziu a HQ Dai Machine (Grande Máquina, em tradução
livre). A trama tem claras inspirações em Tetsujin 28 Gou e foi inicia-
da logo após seu fim. Uma força extraterrestre tenta invadir a Terra
e envia um robô gigante como arma de destruição chamado M 1
Gou. O robô é modificado pelo cientista humano Dr. Noah, que o
transforma em uma arma de defesa do planeta contra os invasores
controlada por seu filho através de um telefone especial. Entretanto
o robô de Dai Machine tem um diferencial em relação aos outros
robôs do período: Dr. Noah o projetou com, além da capacidade de
se desmontar em diferentes partes recombináveis, uma cabine em
sua cabeça pela qual, em uma invocação do mito da Arca de Noé
salvando a vida na Terra a contendo em seu interior, M 1 Gou pode
ser tripulado e controlado.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 106

A partir desses precedentes, Nagai Gou definiria as bases do me-


cha — o robô gigante tripulado — ao fazer uma releitura do tema a
partir do estilo do shounen da década de 1970 em sua obra paradig-
mática Mazinger Z de 1972 a 1974. Em Mazinger Z, reproduzindo
parte dos esquemas da tradição dos Super Robot, o protagonista, Ka-
buto Kouji, recebe de seu avô pouco antes da morte deste um robô
gigante feito de tecnologia de ponta e passa empregá-lo na proteção
do planeta contra forças conquistadoras. Entretanto Nagai constrói
sua narrativa de Super Robot a partir da perspectiva da geração de
autores dos anos 1970. Uma das tensões conceituais do período era o
discurso das instituições de que o desenvolvimento tecnológico seria
o responsável por levar o Japão a um futuro otimista de desenvolvi-
mento social e econômico que estava em constante contraste com
o estigma ainda presente das consequências das campanhas impe-
rialistas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial e o efeito das
bombas atômica. As armas nucleares eram o componente do mundo
real que mais se aproximava do Mazinger Z, um símbolo do desen-
volvimento científico e de todo o potencial criador e ilimitado da
tecnologia. Mas essa mesma tecnologia que poderia levar a humani-
dade à autossuperação é também a maior ameaça à existência huma-
na. O Mazinger Z é apresentado por seu criador no primeiro volume
da HQ como um “monstro mecânico” que pode tornar-se um deus
responsável pela salvação do mundo ou um demônio que o conquis-
tará. A própria etimologia do nome de sua criatura surge da combi-
nação dos ideogramas “ma” (“demoníaco”/”maligno”) e “shin”/“jin”
(“deus”) enfatizando a natureza ambígua e de múltiplos potenciais
do mecha. O Dr. Kabuto deixa bem claro ao seu neto o poder ilimi-
tado do instrumento que está lhe deixando como herança e a total
neutralidade presente no dispositivo. Nagai apresenta o Mazinger Z
como um mecha ao qual o possuidor não pode dar ordens à distan-
cia e se manter também longe das consequências de suas ações, já
que o Mazinger Z precisa ser tripulado e pilotado presencialmen-
te, devendo seu piloto decidir cada ação individualmente e ativar os
mecanismos específicos para realizá-las. O Dr. Kabuto entrega seu
instrumento de poder a Kouji simplesmente enfatizando que o neto
poderia fazer qualquer coisa que desejasse com ele, mas não lhe pas-
sa nenhuma prerrogativa moral de como deve agir em relação a isto
ou em como empregar o mecha, isentando-se de qualquer julgamen-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 107

to moral e legando o problema de realizar tal julgamento aos seus


descendentes. Da mesma forma como fez a geração que governou o
Japão, e boa parte do mundo, durante e no período imediatamente
anterior à Segunda Guerra Mundial produzindo um progresso téc-
nico que se confunde com progresso bélico e legando esta tecnologia
com potencial destrutivo para as próximas gerações terem de lidar
com suas consequências.
Em Mazinger Z, Nagai se apropria da tradição dos gigantes atô-
micos, que nascem como armas e são transformados pelo otimis-
mo dos comandos de crianças inocentes em servos com potencial
de promoverem a paz, e faz sua releitura definindo o mecha como
uma ferramenta ou instrumento completamente despersonalizado.
A tecnologia apresentada como um produto técnico amoral sem res-
ponsabilidade que gera uma série de incertezas em relação ao futuro.
Nagai ainda criaria uma série de sequências para Mazinger Z e
outros títulos com temas próximos, como Great Mazinger (1974-
1975), Getter Robo (1974-1975), UFO Robo Grandizer (1975-1976),
Groizer X (1976) — conhecido no Brasil como Piratas do Espaço —,
que definiram as premissas para o gênero mecha nas diversas mídias
e inspirou a próxima geração de autores a abordar o tema. Se até
então os mecha na produção de História em Quadrinhos, Cinema
e Animação eram apresentados como gigantes de formas cilíndri-
cas consideradas criações únicas, especiais e incomparáveis, os Su-
per Robot, as novas narrativas sobre mecha inspiradas nas obras de
Nagai e relidas pela série animada Mobile Suit Gundam (1979-1980)
passariam a apresentar tais robôs como artefatos tecnológicos repro-
duzíveis em grande escala e, portanto, banais. Ou seja, imaginando
um futuro em que a relação com a tecnologia bélica e a guerra em si
tornar-se-iam tão corriqueiras que perderiam o poder de impactar
os sujeitos. O shounen da década de 1970 acabou definindo o imagi-
nário do robô gigante como uma ferramenta sem propósito próprio,
que é amoral e irresponsável como o discurso de uma ciência supos-
tamente neutra da qual é produto, e, portanto, mais terrível ainda
quando constatado todo o potencial de impacto que possui sobre a
vida humana. Ao mesmo tempo, enfatiza que a escolha está sempre
nas mãos do piloto, do humano, que é o único culpado pelas con-
sequências, e do cientista que fez a opção moral de invocar para si
próprio uma imagem de neutralidade tentando se isentar pelas res-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 108

ponsabilidades daquilo que cria.


Formalmente Nagai também estabelece algumas diferenças entre
a tradição anterior, ainda muito vinculada às convenções estéticas
definidas por Tezuka. A tradição formal dos quadrinhos japoneses
pré-guerra tinha muito como base os modelos da tradição da Era de
Platina estadunidense, com representações segundo um abstracio-
nismo icônico de formas curvilíneas e enquadramentos em plano
tableau. Tezuka, influenciado pela animação de Disney e pelo cine-
ma, rompe com o plano tableau e passa amostrar enquadramentos
de múltiplos ângulos com alternâncias que simulam a montagem
cinematográfica, bem como apresenta algumas tentativas de orga-
nizar esta representação de espaço como uma construção diegética
tridimensional. O que aconteceu no shounen dos anos 1970 foi uma
mescla de elementos formais da tradição de Tezuka, como a repre-
sentação em abstracionismo icônico curvilíneo de personagens, com
a tradição do Gekiga, como o uso de cenários naturalistas com pers-
pectiva renascentista e a busca pela simulação de texturas de am-
bientes e objetos. Os personagens com reações caricatas — apesar de
terem uma proporção corporal um pouco mais naturalista do que os
de Tezuka — são colocados sobre uma representação de espaço que
simula o mundo real conforme suas características não apenas de or-
ganização, mas também de experiência óptica. Há algumas ocorrên-
cias de representações de personagens sobre fundo vazio ou sólido
construindo o espaço como função a partir de justaposição, mas tal
ocorrência se dá geralmente em closes de rosto com efeito dramático,
trazendo nos demais quadros representações de espaços autônomos
compostos de arquitetura urbana ou representação de tecnologia.
Nagai ainda desenvolve o uso das linhas de representação de mo-
vimento usadas massivamente por Tezuka, e por várias tradições da
História em Quadrinhos desde a Era de Platina, de uma maneira um
tanto nova. Se nos estilos anteriores as linhas de movimento eram
usadas para representar a abstração do deslocamento de um objeto
pelo quadro através de traços que percorriam seu espaço indicando
a rota de seu deslocamento até a posição final do objeto, onde era
desenhado para marcar sua posição final, Nagai passou a utilizá-las
de maneira mais intensa e até exagerada. Não só linhas de movi-
mento eram empregadas — em quantidade muito maior do que a
usada pelos autores anteriores — para indicar o deslocamento, como
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 109

era utilizada uma série de linhas que formavam raios partindo de


um mesmo centro mostrando o ponto final do trajeto indicando que
ali ocorria um impacto. Não só elementos não visuais ou estáticos
como o som e o movimento eram representados em uma linguagem
puramente visual e estática como as histórias em quadrinhos segun-
do o modelo herdado da Era de Platina, como códigos para outros
fenômenos em condições similares foram desenvolvidos, como as
linhas de impacto. Ocasionalmente, para demonstrar a intensidade
de certos movimentos, o objeto em deslocamento era decomposto
e representado de maneira parcial e tendo todas suas partes visíveis
compostas por aglomerados de linhas de movimento confundido a
representação do próprio objeto com a de seu movimento. Outro
mecanismo formal que se tornou forte nesse período foi o do en-
quadramento subjetivo dos elementos, que consiste em, ao invés do
desenhista representar o espaço e maneira estática e os elementos
em deslocamento serem representados com o recurso das linhas de
movimento, construir um enquadramento que simula uma câmera
fixa ao elemento deslocado, como se estivesse se movendo o acom-
panhando, resultando na representação do objeto em movimento
como se estivesse estático, e compondo todo o cenário e objetos es-
táticos com o uso de linhas de movimento. Tais linhas de movimen-
to e de impacto poderiam ser utilizadas inclusive para representar
movimentos de aproximação ou afastamento da câmera virtual que
produzia o enquadramento — mais uma vez referindo-se ao enqua-
dramento cinematográfico — ou simplesmente para gerar um ênfase
dramático em algum elemento específico presente no quadro que
deveria ser destacado para efeitos narrativos.
Da mesma forma que fez com o mecha, o shounen da década de
1970 também foi responsável por definir as convenções de represen-
tação do robô de proporções e formas humanoides. Robôs apresen-
tados com uma existência que simula a existência humana já apa-
reciam na HQ de Tagawa Suihou do pré-guerra Jinzou Ningen de
1929. O termo “jinzou ningen” foi uma apropriação feita por Tagawa
do título da primeira tradução para o japonês, realizada por Itsuo
Uga em 1923 (ROBERTSON, 2018, p. 12), da peça R.U.R. de 1920
escrita por Karel Čapek (1890-1938) na qual cunhou o termo “ro-
boti” para definir seres artificiais criados para executarem tarefas a
partir da palavra checa roboti, cujo significado é “corveia” ou “força
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 110

de trabalho não remunerada”. O termo “jinzou ningen”, cunhado por


Itsuo e depois utilizado por Unno Juuza (1897-1949) em seu conto
Jinzou Ningen F-shi de 1939, teria como tradução literal “humano
construído por uma pessoa” ou “humano artificial”. Em seu Jinzou
Ningen, Tagawa contava pequenas aventuras envolvendo um homem
e os robôs humanoides que deveriam lhe prestar assistência em suas
tarefas cotidianas enquanto conviviam em conjunto, mas que provo-
cavam contextos cômicos ao agirem por curiosidade ou motivados
por inocência de quem não conhece as relações sociais e os elemen-
tos básicos que compõem o mundo. Após Tagawa, outros autores de
quadrinhos japoneses apresentaram histórias com robôs com função
de serviçais e auxiliares de tarefas no mesmo sentido do apresenta-
do por Čapek durante as décadas de 1930 e 1940, como Sakamoto
Gajou (1895-1973) em seu Tank Tankuro (1934), Noboro Ooshiro
(1905-1998) em Jinzou Ningen no Pin Bou (1938) e Yukau no Tetsu
Koujo (1941), Sakai Shichima (1905-1969) em Kairobotto (1947) e
Tezuka Osamu em Kasei Hakase (1947) e Metropolis (1949).
Tezuka desenvolveu uma importante questão para a representa-
ção dos robôs humanoides nas HQs japonesas em seu Atom Taishi
(Embaixador Atom, em tradução livre) de 1951 a 1952 e Tetsuwan
Atom (Atom Braço de Ferro, em tradução livre, conhecido nos EUA
como Astroboy) de 1952 a 1963. O Atom de Tezuka parte de uma
releitura de Le Avventure di Pinocchio: storia di un burattino, publica-
da entre 1881 e 1882, de Carlo Collodi (1826-1890) e sua adaptação
para longa animado feita por Disney em 1940. Em um futuro próxi-
mo no qual robôs são usados em larga escala para realizarem tarefas
e auxiliar humano, o Dr. Tenma constrói um robô com a aparência
de seu filho morto em uma tentativa de substituí-lo e o equipa com
um circuito único que lhe permite sentir emoções como um huma-
no, mas em seguida o rejeita e descarta por não conseguir suportar a
constante lembrança de seu filho perdido.
Ishinomori parte da premissa do jinzou ningen e faz suas releitu-
ras de Le Avventure di PinocchioI e Tetsuwan Atom nas duas obras que
definiriam as bases para a discussão sobre inteligência artificial nos
quadrinhos japoneses: Jinzou Ningen Kikaider (Humano Artificial Ki-
kaider, em tradução livre) de 1972 a 1974 e Robot Keiji (Investigador
Policial Robô, em tradução livre) de 1972 a 1973. Em Jinzou Ningen
Kikaider, o Dr. Koumyouji, após o assassinato de seu primogênito,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 111

dedica-se a criar uma forma de vida artificial e se torna tão obcecado


pela tarefa que negligencia os cuidados de seus outros dois filhos.
O laboratório do Dr. Koumyouji é destruído por uma organização
que deseja roubar sua tecnologia para usar com fins bélicos, mas sua
criação, um humanoide mecanizado capaz de sentir emoções huma-
nas e realizar julgamentos morais, passa a sentir-se responsável por
proteger os filhos de seu criador daqueles que querem se apropriar
de seus experimentos. O protagonista, Jiro/Kikaider, foi criado para
simular a forma humana e substituir um humano não mais existente,
possuindo inclusive a capacidade de sentir emoções — que no caso
de Jiro são principalmente remorso, culpa e a sensação de não se
encaixar —, ou seja, para almejar ser um humano. Entretanto Jiro
é constantemente levado a situações em que tem de agir não como
um sujeito que pode manifestar sua personalidade tranquila, mas
como um objeto, como uma arma para proteger aqueles com quem
se importa daqueles que justamente o veem como uma arma a ser
apropriada e utilizada. Já em Robot Keiji, um policial veterano perto
da aposentadoria recebe de seus superiores ordens para participar
de um experimento no qual deve assumir como parceiro o robô hu-
manoide K, ao qual trata com menosprezo por acreditar que o novo
colega, por não ser humanos, é apenas um boneco que não merece
ser equiparado às pessoas, bem como por sentir-se velho diante de
uma nova era em que máquinas farão dele um objeto substituível.
Ishinomori estabelece um novo padrão de representação e dis-
cussão do robô nas HQs japonesas. Até então eles eram comumen-
te representados segundo a concepção original do termo de Čapek:
mecanismos complexos para serem usados como força de trabalho
na execução de tarefas variadas a serviço dos humanos. Ou seja, fer-
ramentas nas mãos dos humanos, que usariam de sua capacidade
de ação e modificação do ambiente da mesma maneira que pilota-
riam seus outros robôs, os mecha. Entretanto, diferente dos mecha
— que são apresentados como ferramentas amorais filhas de uma
perigosa ciência que se autodeclara neutra e, por isto, não assume
responsabilidades por seus atos —, os jinzou ningen compartilham
da ambição de Pinocchio, eles almejam a equiparação com a condi-
ção humana e as responsabilidades que advém deste status. Os jinzou
ningen estabelecidos por Ishinomori no shounen da década de 1970,
e que se tornaram a base para a representação de autores posteriores,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 112

são objetos que receberam dos humanos um nível de consciência


suficiente para perceberem seus criadores como um modelo a ser
atingido e desejarem equiparar-se a eles ao mesmo tempo em que
são constantemente lembrados de que jamais atingirão esta condição
humana. Dessa forma, dos robôs serviçais como exemplo do poten-
cial da ciência para melhorar a qualidade de vida humana presentes
nas HQs japonesas das gerações anteriores, no shounen da década de
1970 foram derivadas duas formas específicas de se tratar a questão
dos robôs: o mecha — como o robô na condição de objeto puro que
atua unicamente como uma extensão da vontade humana podendo
amplificá-la, mas não tendo responsabilidade sobre tais ações — e
o jinzou ningen — como o objeto que nega sua condição como fer-
ramenta e invoca para si o direito sobre um reconhecimento de seu
status como sujeito a partir de suas similaridades com a condição
humana.
A ruptura no modelo se dá no fato de que Atom e Magma, ro-
bôs autoconscientes de Tezuka, são concebidos tendo a função de
embaixadores. Como se sua natureza ambígua que não se enqua-
dra como sujeito nem como objeto lhes concedesse a capacidade de
pertencerem aos dois lados e agirem como mediadores. Já os robôs
conscientes de Ishinomori são objetos criados com as características
consideradas definidoras do status de sujeito quando presentes em
um humano, mas não com o status social e legal de sujeitos, tornan-
do-os párias que sofrem como humanos, mas nunca são reconheci-
dos como um deles.
Nos dois casos tratam-se de problemas vinculados com o discur-
so humanista. O primeiro caso aponta neutralidade das ferramentas
e seu potencial múltiplo, dando ênfase que cabe apenas aos huma-
nos decidir o que fazer com estas ferramentas e lidar com as conse-
quências de tais escolhas. O segundo enfatiza o humano apresen-
tando indivíduos que não são vistos como sujeitos por não serem
humanos em uma sociedade na qual o homem é a medida das coisas
e entendendo que apenas ao conseguirem tornar-se humanos deixa-
rão de receber o status de objetos.
Formalmente Ishinomori também utiliza-se de personagens em
abstracionismo icônico orgânico sobre representações espaciais
naturalistas. Embora valha-se menos do que Nagai dos efeitos de
linha de impacto e de expressão para representar fenômenos abs-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 113

tratos e não visuais. Ishinomori, como Nagai, usa uma estrutura de


quadros bem delimitados com requadros bem demarcados e apenas
ocasionalmente permite que seus elementos trespassem as margens
do quadro. Mas explora mais a manipulação do espaço topológico,
criando proporções variadas em seus quadros e alternando suas dis-
posições a cada página dependendo do conteúdo a ser mostrado no
quadro e o efeito narrativo que pretende passar.

RECONSTRUINDO O HUMANO COMO OBJETO: O


KAIZOU NINGEN E O KAIJIN

Uma das principais obras de Ishinomori é Cyborg 009 (1964-


1981), cuja premissa parte da existência de uma organização militar
que sequestra pessoas marginalizadas ao redor do mundo para usá-
-las como cobaias em experimentos de modificação corporal através
do emprego de tecnologia com o objetivo de criar soldados. Entre-
tanto um dos cientistas envolvidos no projeto, Dr. Isaac Gilmore,
auxilia as nove cobaias a escaparem, que passam a ser perseguidas
pela organização. Ishinomori trabalhou com o tema do sujeito que
é sequestrado por uma organização e transformado em um agente
ciborgue contra sua vontade em outras HQs como Skulman (1970)
e Kamen Rider (1971-1972). Nesse contexto, o autor, a partir do ter-
mo “jinzou ningen”, cunhou a variação “kaizou ningen” cuja tradução
seria “humano remodelado”. O fator em comum em todas essas nar-
rativas é os protagonistas como soldados involuntários que tiveram
seus corpos modificados para lutar em uma guerra da qual não de-
sejam participar. Um processo similar é mostrado por Nagai em seu
Devilman (1972-1973), em que o protagonista é manipulado pelo
seu melhor amigo para ter o corpo fundido ao de um demônio, ins-
trumentalizando seu poder para proteger os humanos de uma inva-
são de demônios. Em todos os casos, os personagens passam por um
processo de certa forma inverso ao dos jinzou ningen, no qual par-
tem do estado de humanos — socialmente vistos como sujeitos — e
são manipulados à revelia de seu interesse pessoal para tornarem-se
armas. Sujeitos despersonalizados ao serem levados a uma condi-
ção não-humana na qual passam a ser considerados pelos humanos
como apenas ferramentas.
Os kaizou ningen não sofrem da ambição de Pinocchio porque
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 114

já perderam completamente sua humanidade e não possuem mais


esperança de resgatá-la. Seu conflito é por terem perdido tal con-
dição e se tornado párias. Ao colocar seus personagens em um es-
tado de não serem reconhecidos como humanos pela sociedade a
qual integram, Ishinomori e Nagai constroem alegorias para tratar
de racismo e xenofobia, tanto da relação ao sentimento antijaponês
pós-guerra ainda presente durante a década de 1960 e começo da
de 1970 (HENSHALL, 2005, p. 207), quanto da recepção de certos
povos estrangeiros no Japão. Antes de modificação, o protagonista
Joe Shimamura/Cyborg 009 era um mestiço japonês-estadunidense
que sofria preconceitos não só por não ser um japonês “puro”, como
por ser órfão, enquanto em Devilman, todos os devilmen — huma-
nos com corpos fundidos aos de demônios, mas que mantiveram sua
consciência — são linchados, torturados e mortos pelos humanos
que pretendiam proteger por acreditarem que a humanidade não era
cruel e corrompida como os demônios.
Além do racismo e da xenofobia, outra questão presente na pro-
dução da geração do shounen dos anos 1970 era o medo da reto-
mada do sentimento militarista da população japonesa em conjunto
com o crescente desenvolvimento industrial do país (HENSHAL,
2005, p. 225-226). O que vai ao encontro da maior angustia dos kai-
zou ningen que os levava a repetidamente tentarem se afirmar como
mais do que um objeto, como não sendo apenas uma arma. Todos
os nove protagonistas de Cyborg 009 passam por esse conflito, mas o
que talvez seja o mais enfático é o do personagem Albert Heinrich/
Cyborg 004. Heinrich era um cidadão de Berlim Oriental que de-
sejava se afastar da zona de conflito e viu sua noiva ser assassinada
por soldados quando tentavam atravessar o Muro de Berlim. Após o
procedimento que o transformou em um ciborgue, Heinrich tem sua
mão direita transformada em uma metralhadora que dispara através
de seus dedos, sua mão esquerda passa a ter uma lâmina embutida,
ambas as pernas possuem lança-mísseis, e seu tórax armazena uma
bomba nuclear. Heinrich, como seus colegas, são vítimas de uma ci-
ência puramente utilitária que os reduz a instrumentos de morte.
Ishinomori e Nagai várias vezes apresentam seus personagens mo-
dificados possuindo um sentimento de autorrepulsa, não reconhe-
cendo o seus próprios corpos como sendo eles, que, apesar do desejo
desesperado de negar seu estado de objeto, também não conseguem
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 115

se ver como humanos, estão em uma posição na qual não podem se


enquadrar em nenhuma das categorias conhecidas.
A fuga dos protagonistas enquanto são perseguidos pela organi-
zação que quer recuperar suas ferramentas extraviadas é uma tenta-
tiva desesperada destes indivíduos marginais tentarem afirmar sua
autonomia e sua condição como sujeitos. O que nos leva a outro
problema relevante para essa geração de autores: o conflito com a
ideia de responsabilidade coletiva (HENSHALL, 2005, p. 68; 82-84.
Também: MORTON; OLENIK, 2005, p. 71), que resulta em um sis-
tema de valoração moral que mede o mérito dos sujeitos a partir do
quanto eles conseguem cumprir os papeis que a sociedade espera
deles. Tais exigências sociais que poderiam ter sido aceitáveis aos in-
divíduos no contexto do Japão feudal poderiam ser extremamente
estressantes na geração que vivia no contexto da abertura interna-
cional e dos movimentos de contracultura. Escapar dos papeis para
o qual seus criadores os modelaram é tentar escapar da imposição
de um papel social por instituições externas aos sujeitos e imaginar
uma função social ou uma não-função a partir de um contexto de
autodeterminação.
Enquanto Dr. Kabuto concedeu poder e liberdade total de de-
terminação ao seu neto ao legá-lo o Mazinger Z, com o qual Nagai
nos alerta dos perigos de um desenvolvimento científico neutro ou
amoral, Joe Shimamura e seus companheiros recebem da organiza-
ção Black Ghost poder sem nenhuma autonomia de como usá-lo.
Os kaizou ningen renascem na forma do roboti de Čapek ou de um
imigrante mal visto pela sociedade na qual quer se integrar.
Ishinomori também nos apresenta outro lado dessa condição
com seus kaijin. Se o protagonista de Kamen Rider renega a função
como soldado e arma para qual foi reformulado, vários dos agen-
tes que são enviados para capturá-lo fazem o oposto. Desde a déca-
da de 1950, o cinema japonês emprega o termo kaijuu, em que kai
vem do ideograma para “modificado”/”alterado”/”estranho” e juu de
“fera”/”besta”/”animal selvagem”. Assim, o kaijuu é um animal não
domesticado, e portanto não adaptado para o convívio na sociedade
humana, que passou por algum tipo de modificação em seu corpo
que o tornou diferente de sua espécie e o único de seu tipo. Ishino-
mori comumente vale-se de uma derivado desse termo em que “fera”
é substituído por “pessoa”, resultando em um kaijin. Ishinomori em-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 116

prega kaijin para outro tipo de humano remodelado que se distingue


do kaizou ningen justamente por aceitar sua condição como arma e
seu papel como instrumento. Diferente da arma criada pela ciência
amoral dos mecha, o kaijin é produto de uma visão científica que
muitas vezes entende e sabe que suas ações causarão dano à socie-
dade e a outros sujeitos, mas são indiferentes a estas consequências.
Uma ciência criada com objetivos pessoais contrários ao interesse
social difuso. O mesmo papel é desempenhado na obra e Nagai pelos
kikaijuu (feras mecânicas), robôs enviados para destruir o Mazin-
ger Z e roubar sua tecnologia. Entretanto Ishinomori também usa o
conceito de kaijin para representar uma rebeldia antissistema e con-
tra as instituições. Em Kaijin Doumei (Aliança Kaijin, em tradução
livre) de 1967 e Inazuman de 1973 a 1974, jovens adquirem poderes
psíquicos e, para fugir de organizações que querem usá-los, às vezes
têm de agir contra as regras de conduta social.

INSTRUMENTALIZAÇÃO DA GUERRA: O VILÃO E


A CONTEMPORANEIDADE LIDOS A PARTIR DO SEN-
GOKU JIDAI

Um tema constante em todas essas obras é a crescente militariza-


ção e o progresso científico medido através dos avanços tecnológicos
com finalidade militar. Tanto mecha, jinzou ningen, kaizou ningen e
kaijin são mostrados como um desenvolvimento técnico com o obje-
tivo de criar armas definitivas. No primeiro volume de Cyborg 009, o
líder da organização Black Ghost faz uma declaração a um grupo de
empresários e políticos anunciando que o desenvolvimento de armas
nucleares havia impossibilitado o modelo vigente de se fazer guerra
sem provocar uma aniquilação mútua entre as potenciais envolvidas,
e que o novo modelo de guerra seria determinado por soldados ha-
bilidosos com talentos diferenciados para ações individuais. O que
motivaria a transformação dos sujeitos em ferramentas bélicas.
Outro ponto comum é o modelo de vilão nessa produção de
shounen da década de 1970. Tanto a Black Ghost de Cyborg 009, a
Shocker de Kamen Rider, a DARK e a SHADOW de Jinzou Ningen
Kikaider, o grupo comandado pelo Dr. Hell em Mazinger Z e outros
são todos organizações controladas por cientistas, comumente com
vínculos com instituições políticas ou empresariais, que possuem um
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 117

projeto baseado no uso de instrumentos tecnológicos desenvolvidos


por uma ciência amoral para realizar uma grande campanha mili-
tar que unificará o mundo sob seu controle e, assim, acabará com
todos os conflitos. Tal modelo de vilão parece baseado no persona-
gem histórico Oda Nobunaga (1534-1582) que durante o Sengoku
Jidai (Era da Nação em Guerra, c. 1467-c. 1590) — período histórico
em que as instituições políticas japonesas entraram em colapso, e o
país passou por uma guerra generalizada entre incontáveis facções
(HENSHALL, 2005, p. 63. Também MORTON; OLENIK, 2005, p.
87) — iniciou o processo de unificação do Japão (CARVALHO, 1974,
vol. 3, p. 439. Também: HENSHALL, 2005, p. 64-70) através de uma
grande campanha militar que, quando vencida, deveria acabar com
todos os conflitos militares. Oda também era conhecido pelo seu
desprezo pelas práticas formais e convenções sociais quando estas
atrapalhavam a realização de objetivos práticos (HENSHALL, 2005,
p. 65 ) e, para atingi-los, utilizou-se da primeira grande unidade mi-
litar japonesa equipada com armas de fogo (MORTON; OLENIK,
2005, p. 106), que contrariavam as tradições de combate instituídas.
A grande ameaça estabelecida na tradição do shounen da década
de 1970 foi justamente a ameaça de retorno de um projeto militarista
e de emprego e desenvolvimento da tecnologia sem a preocupação
com as consequências morais e éticas de sua aplicação entendidos
como uma releitura dos projetos políticos e sociais do Japão impe-
rialista durante a Segunda Guerra Mundial e da unificação japonesa
iniciada por Oda Nobunaga. Tal tensão com um possível retorno a
um modelo de sociedade beligerante e a uma nova catástrofe como
a dos ataques nucleares ao Japão foi um tema de relevância para a
geração dos anos 1970. E os autores desse período, como Ishinomori
e Nagai, desenvolveram convenções formais e temáticas que fossem
compatíveis com a abordagem desses temas, resultando nas caracte-
rísticas estilísticas específicas do shounen da década de 1970.
Tais convenções foram tão impactantes nos quadrinhos japone-
ses do período que determinaram bases seguidas por outros autores
da mesma época e a partir das quais autores posteriores puderam
desenvolver seus temas derivando-os destas bases e introduzindo
elementos relevantes e funcionais para a sua geração. Durante a dé-
cada de 1980, a produção shounen do período derivou para um dife-
rente estilo com temas próprios, o Battle Shounen, centrado em dra-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 118

mas de combate. Mas mesmo nessa produção, as convenções para a


representação de mecha — como na franquia Gundam — e jinzou
ningen — como os presentes em Dragon Ball (1984-1995) de Toriya-
ma Akira (1955-) — derivam e citam diretamente os trabalhos de
Nagai e Ishinomori. Ainda, os principais herdeiros dos temas apre-
sentado pelos autores do shounen da década de 1970 foram autores
vinculados à demografia seinen — tendo como público alvo jovens
adultos — como, por exemplo, Ootomo Katsuhiro (1954-) que, após
ser responsável pelo roteiro e design de personagens da adaptação
para longa animado da HQ de Ishinomori e Hirai Kazumasa (1938-
2015) Genma Taisen (1967-1969), inspirou-se em vários dos elemen-
tos presentes na obra de Ishinomori e outros autores do período e
os combinou com estilo Cyberpunk para a produção de seu Akira
(1982-1990).
Dessa forma, o shounen da década de 1970 constitui-se de um
estilo específico dentro da produção de História em Quadrinhos,
apresentando temas e convenções formais desenvolvidas a partir do
contexto histórico e social do período no qual seus autores estavam
inseridos e definiram várias das convenções bases das historias em
quadrinhos japonesas de ficção científica e aventura.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 119

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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 120
UMA LEITURA DE SNOOPY
A PARTIR DO MÉTODO
CARTOGRÁFICO-CRÍTICO
Charles Klemz1
Charlie Brown pergunta a Snoopy em uma das tiras de Charles M. Schulz:
– Te incomoda que a Bíblia não fale muito bem dos cachorros?
– Claro que me incomoda – responde o cachorro – mas aí eu vou e ofereço
o outro focinho.2

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa tiras do Snoopy a partir do método
cartográfico-crítico a fim de verificar como se dá a construção do
aspecto religioso neste produto da cultura pop. O Método Carto-
gráfico-Crítico foi desenvolvido por Iuri Andréas Reblin, em duas
etapas, a cartográfica e a crítica. O estudo cartográfico consiste no
mapeamento da obra. Já o estudo crítico se dá a partir da área esco-
lhida para a análise, neste caso, a Teologia.
Assim, após a explanação do Método Cartográfico-Crítico e da
contextualização do universo do Snoopy, reflete-se a epistemologia
do religioso em tiras selecionadas do produto cultural em questão.
Foram selecionadas tiras a partir de seleções temáticas sobre o mis-
terioso, a felicidade e temáticas relacionadas à teologia.
A importância que se verifica no estudo é a de que a religião e
a religiosidade permeiam o cotidiano das pessoas e sofrem com os

1  Doutorando em Teologia na Faculdades EST. Mestre em Teologia pela mesma


instituição. Pesquisador na área de Teologia e Educação. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9638271117297229. Email: charlesklemz@gmail.com.O presente trabalho foi realiza-
do com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
2  ESPARZA, Daniel R. No que Snoopy crê. Aleteia, maio de 2016. Disponível em: <https://
pt.aleteia.org/2016/05/19/no-que-snoopy-cre/>. Acesso em 29 jul.2018.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 122

valores que são despejados através das mídias – digitais, televisivas,


impressas, etc. – de forma a passarem um viés ideológico e torná-los
evidentes. Porém, isso não significa que sejam reais ou verdadeiros.
Os quadrinhos, mais especificamente as tiras que são veiculadas nas
mídias digitais e impressas, carregam consigo não apenas uma dis-
tração, mas fazem delas a forma de apresentar e defender alguma
ideia, inclusive servindo de forma de propagação de valores ou cren-
ças religiosas.

O MÉTODO CARTOGRÁFICO-CRÍTICO

O Método Cartográfico-Crítico, desenvolvido por Iuri Andréas


Reblin (2019), auxilia a verificar como se dá a epistemologia do re-
ligioso na cultura pop. Através deste método é possível realizar uma
hermenêutica de produções culturais, como o proposto no presente
estudo, das tiras da turma do Snoopy. São quatro etapas a serem se-
guidas para o estudo cartográfico.
A primeira etapa consiste na leitura da obra, pelo que ela é e
como se apresenta (REBLIN, 2019, p 105). Em linhas gerais, trata-
-se da primeira aproximação com a obra para, então, partir para o
estudo da mesma, mais precisamente, da estrutura da narrativa. Esta
é a segunda etapa, que abrange as coesões interna, estruturante e ex-
terna. Além do texto, há que se considerar também, como no caso de
quadrinhos, os elementos pictóricos nesta etapa.
A segunda etapa diz respeito à narrativa, a partir de três eixos:
coesão interna, coesão estruturante e coesão externa. No caso da co-
esão interna, o objetivo é verificar aspectos como o enredo da histó-
ria, o contexto histórico, “[...] os personagens, o uso de referências
(históricas, teóricas, etc.), inclusão de elementos da mitologia de um
personagem (se houver), etc” (REBLIN, 2019, p 106). A coesão es-
truturante ocupa-se com o gênero narrativo da história, suas carac-
terísticas, o lugar vivencial do gênero, além “[...] da identificação da
intencionalidade da história por si” (REBLIN, 2019, p 106). Wittke
(2012, p. 21) explica que:

O gênero textual refere-se aos diferentes formatos que o texto assume para
desempenhar as mais diversas funções sociais, ressaltando suas proprie-
dades sociocomunicativas de funcionalidade e de intencionalidade. Nesse
domínio, são artefatos culturais historicamente construídos e usados pelo
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 123

homem. Eles apresentam diferentes caracterizações, com vocabulários es-


pecíficos e empregos sintáticos apropriados, em conformidade com o papel
social que exercem.

Há que se mencionar que os quadrinhos são também caracteri-


zados como um gênero literário3 e possuem uma intenção, seja de
recreação, ou de informação e crítica na forma de ironia ou metá-
fora. Geverson T. Bohm (2017, p. 23), ao dissertar sobre as tiras de
Mafalda, do argentino Quino, menciona que ele “[...] se utiliza da
ironia como recurso para produzir humor e crítica”. Há, portanto,
uma intencionalidade. Nesta intencionalidade, Reblin (2019) pro-
põe responder às perguntas: quais são as aproximações do enredo da
história com as características do gênero? Em que medida o enredo
reflete a intencionalidade do gênero?
A pessoa autora, portanto, ao criar a tira, considera a pessoa lei-
tora, também envolvida num determinado contexto social, e que lê
a tira a partir da sua realidade. Voelz (1989) afirma que essa experi-
ência de vida da pessoa leitora é importante para a interpretação do
texto: “Ou seja, poderíamos dizer que, quando um leitor lê, lê sim os
sinais de um determinado texto, mas também sua própria experiên-
cia de vida [...] para dar sentido à sua própria experiência de vida,
isto é, para aplicar o texto para si mesmo” (VOELZ, 1989, p. 32).
Este gênero narrativo, portanto, pode aproximar uma temática à
pessoa leitora, uma temática que faz parte do seu cotidiano, mas cuja
complexidade pode não ser compreensível facilmente somente atra-
vés do texto. A narrativa gráfico-visual vem auxiliar na assimilação
do conteúdo.
Ainda na análise da estrutura da narrativa está a coesão externa,
específica para a produção seriada, que trata da relação da história
específica com o conjunto no qual ela está inserida.

[...] trata-se da relação da história que é contada com o arco narrativo a


que pertence (voltados às produções seriadas – uma história em quadri-
nhos dentro de um arco). Busca-se identificar as características desse arco,
a intencionalidade da história no arco e sua relevância no todo em relação à
história estudada. (REBLIN, 2019, p. 108)

3  Bohm explica que “As tiras estão inseridas no contexto das histórias em quadrinhos, são
‘narrativas gráfico-visuais’.” (BOHM, 2017, p. 32).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 124

Compreender a estrutura da narrativa se mostra fundamental


para compreender o gênero literário utilizado. Analisadas as coe-
sões, adentra-se à etapa seguinte, que envolve o contexto criativo,
estudando a relação do texto com o contexto. Reblin explica que é
necessário conhecer a autoria da história, o uso que faz das fontes,
o contexto de criação da narrativa, além de aspectos relacionados
à história, sobre como foi criada, em que condições foi publicada/
divulgada, entre outros aspectos (REBLIN, 2019, p. 108-110).
Pode-se dizer, portanto, que a vida do autor ou autora deve ser
“esmiuçada”, desde as influências teóricas, políticas, culturais, so-
ciais, econômicas, etc. Porém, não confundir com a etapa seguinte, a
historicidade da obra. Esta etapa “esmiúça” o lugar da história estu-
dada no todo da mitologia de um personagem (se houver), isto é, seu
lugar ou não dentro do ‘cânon’, o impacto na receptividade da histó-
ria no fandom (REBLIN, 2019, p. 110-112). Ao analisar o processo
criativo, o autor ou autora está no centro na análise; na historicidade,
a história em si é o centro, as suas respectivas relações e impactos
com o todo, no caso, a sua receptividade (fãs, mídia e crítica).
Fato é que na produção e na interpretação de um texto há uma re-
lação entre a pessoa autora e a pessoa leitora que, para Koch e Elias,
se trata de uma concepção interacional/dialógica da língua. Assim,
tanto a pessoa que escreve como aquela para quem se escreve, são au-
tores/construtores sociais, ativos, e que constroem e são construídos
no texto, constituindo um evento comunicativo através dos aspectos
linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais (KOCH; ELIAS, 2015,
p. 34). Koch e Elias explicam, ainda, que:

[...] a atividade de produção textual que se realiza, evidentemente, com base


nos elementos linguísticos e na sua forma de organização, mas requer, no
interior do evento comunicativo, a mobilização de um vasto conjunto de
conhecimentos do escritor, o que inclui também que esse pressupõe ser do
conhecimento do leitor ou do que é compartilhado por ambos (KOCH,
2015, p. 35).

Há, desta forma, uma troca entre a pessoa autora e a pessoa lei-
tora, cada qual com as suas particularidades sociais, culturais, polí-
ticas e econômicas e que, de alguma forma, interferem na intenção
da criação e na forma de recepção da mesma pelo leitor ou leitora.
Bakhtin, a esse respeito, menciona que:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 125

O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente
neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto
o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos
que esse contato é um contato dialógico entre textos [...] por trás desse con-
tato está um contato de personalidades e não de coisas (BAKHTIN, 2006,
p. 162).

Estas etapas, portanto, dizem respeito à compreensão do texto e


dos elementos visuais dos quadrinhos, essencial a última seguinte, a
análise crítica a partir da Teologia. Nesse caso, se parte para a bus-
ca de sentidos teológicos produzidos pelo artefato da cultura pop
em questão. Para tanto, Reblin elenca cinco eixos para a análise que
envolvem, respectivamente, o protagonista, o mal, a salvação, a esca-
tologia e a eclesiologia:

(Te)ontologia: o conceito do ser herói, do protagonista principal, suas ca-


racterísticas, como se constitui o ser que torna o personagem principal um
herói ou super-herói.
Hamartiologia: o conceito de mal presente na história.
Soteriologia: o conceito de salvação presente na história.
Escatologia: o conceito de esperança presente na história.
Eclesiologia: o impacto interpretativo e o uso do significado da história no
cotidiano do fandom. (trata-se de estudo de receptividade, se for o caso).
(REBLIN, 2019, p. 214)

Os elementos da análise teológica são, em linhas gerais, aspectos


considerados na exegese bíblica, como as dimensões eclesiais e de es-
perança (WEGNER, 1998, p. 297-306). Pode-se dizer que o Método
Cartográfico-Crítico proposto por Reblin (2019) possui semelhan-
ças com a exegese bíblica. Além de se tratar da interpretação do texto
(com a peculiaridade de um se ater às narrativas bíblicas e o outro
ao elemento religioso nas produções culturais), segue um roteiro de
análise literária, textual, histórica (contextual), da historicidade e,
evidente, a teológica, caso esta for a escolhida para a análise crítica.
Ao trazer a literatura e o texto bíblico em paralelos, Rodrigues
afirma que:

Em se tratando do estudo da Bíblia como literatura, divisamos dois grupos:


no primeiro estão teólogos e biblistas que utilizam a teoria literária em uma
visão técnica ou mais popular, para a análise de textos bíblicos. No outro
grupo estão os críticos literários que fazem incursões pela literatura bíblica
utilizando seus instrumentos de análise. (WEGNER, 1998, p. 297-306)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 126

Ao dissertar sobre crença e poesia, por exemplo, Bloom defende


que ambas “[...] vagueiam juntas e separadas, num vazio cosmológi-
co marcado pelos limites da verdade e do sentido” (BLOOM, 2012,
p. 17). Evidencia-se assim a importância do leitor bem informado e
formado, que conheça um número significativo de textos. De outra
parte, o sentido do texto pode ser variado, pois, conforme Bloom
(2012), o excesso de sentido dá originalidade ao texto.
Fato é que a coerência do todo é necessária uma vez que pode
ser entendida como um princípio de interpretabilidade, conforme
Massini-Cagliari (2001, p. 48). Argumenta a autora que o conheci-
mento linguístico é fundamental para poder interpretar o texto. Por
isso, o leitor deve estar também formado, conforme mencionado,
para compreender e interpretar. Questões como estrutura morfoló-
gica, sintática, semântica e pragmática da língua são elementos que
devem ser dominados para a interpretação do texto.

A ANÁLISE TEOLÓGICA: EPISTEMOLOGIA DO RELI-


GIOSO EM SNOOPY

Para a análise epistemológica do religioso em Snoopy, conside-


rando o Método Cartográfico-Crítico de Reblin (2019), o Quadro 1
apresenta uma síntese4 das quatro primeiras etapas:
ETAPAS ANÁLISE
1 Leitura da As tiras de Charles Schulz pararam de ser publicadas no
obra ano de 2000, um mês antes da sua morte. Desde a déca-
da de 1940 foram publicadas em jornais diversos.
2 Estrutura da A narrativa se apresenta na forma de diálogos, em tiras.
narrativa Com frases curtas e na economia nos traços das ilustra-
ções.a
Coesão Coesão interna: as tiras selecionadas têm como perso-
interna nagens Charlie Brown, Lucy e Snoopy. Os demais per-
sonagens da turma não aparecem porque se tratam de
diálogos específicos acerca de temas pontuais da reli-
gião.

a
CRONKITE, Walter. Introdução. p. XI-XIII. In: SCHULZ, Charles M. Peanuts Com-
pleto: 1953-1954. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. XII.

4  Justifica-se a síntese por se tratar de uma proposta de um método, bem como presente
estudo se limitar a um a um artigo. Trata-se de uma tentativa de análise a partir do método
proposto.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 127

Charlie Brown é um menino que se preocupa com o


sentido da vida, e muitas vezes é incompreendido pelos
amigos. Um perdedor nato, péssimo em esportes. É o
alter-ego de Charles Schulz, refletindo as angústias da
infância e adolescência.
Lucy é a psiquiatra do grupo, objetiva, racional e arro-
gante.
Soopy é o cão beagle de Charlie Brown, escoteiro e de
muita imaginação.b
Coesão Coesão estruturante: o gênero literário é o de quadri-
estruturante nhos, publicados em jornais e compilados em obras
temáticas. As tiras, ainda que criadas num determinado
período histórico, este se mostra irrelevante, uma vez
que as temáticas não se encaixam a um período especí-
fico, ou seja, são atemporais, uma vez que as temáticas
perpassam a vida das pessoas. Possui como característi-
cas a ironia e o uso de metáforas a fim de proporcionar
reflexão sobre os temas. Nas próprias palavras de
Schulz, assim como já identificou Lirac em sua pesquisa,
usa um tom de pregação: “eu prego em minhas tiras e
me reservo o direito de dizer o que quero dizer, como o
religioso faz a partir do púlpito.” d
Coesão Coesão externa: as temáticas das tiras selecionadas
externa fazem parte da intencionalidade do autor em abordar
temas do cotidiano que dizem respeito à vida das pesso-
as nas suas diversas esferas. Caracterizam, de certa for-
ma, os questionamentos do próprio autor. Por isso
compreende-se o desejo formalizado em sua última tira,
publicada um dia após a sua morte: “A minha família
não deseja que Peanuts seja continuado por mais nin-
guém, portanto eu estou anunciando a minha aposen-
tadoria.”e As suas tiras retratam os seus questionamen-
tos e posicionamentos e, desta forma, não haveria sen-

b
Os dados acerca das características dos três personagens envolvidos nas tiras sele-
cionadas são de: SCHULZ, Charles M. Você não entende o sentido da vida. Porto
Alegre: L&PM, 2014.
c
LIRA, David Pessoa de. O aspecto secular-religioso dos peanuts: uma análise teolin-
guística da prédica de Charles Schulz através da narrativa figurada. Estudos Teoló-
gicos, São Leopoldo, v.56, n.1, p. 40-54, jun. 2016. Disponível em:
<http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/2721/2541>
Acesso em 10 ago. 2018.
d
LIND, Stephen. A Charlie Brown Religion: Exploringthe Spiritual Life and Workof
Charles M. Schulz. Missipi: University Press of Mississippi, 2015. (E-book).
e
DEZ ANOS sem Charles Schulz: Veja a última tirinha de Snoopy e Charlie Brown.
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<https://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2010/02/12/dez-anos-sem-charles-
schulz-veja-a-ultima-tirinha-de-snoopy-e-charlie-brown.jhtm>. Acesso em 30 jul.
2018.
tido a sua continuação.
3 Contexto Schulz foi criado num ambiente sufocante tanto pela
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM
criativo igreja como pela família, que não incentivava a leitura 128
de livros, e onde as crianças eram obrigadas a ficarem
caladas.f Por mais que estivesse envolvido em contextos
tidoguerra
de a sua (II
continuação.
Guerra Mundial e Guerra Fria), suas temá-
3 Contexto Schulz foi
ticas eram maiscriadode num
cunhoambiente
existencial,sufocante
de solidão tanto pela
e perda.
criativo igreja como pela família, que não incentivava
4 Historicidade Mais de 560 das quase 17.800 tiras da “Peanuts” possu- a leitura
de livros,
em algumae referência
onde as crianças eram
espiritual, obrigadas
teológica a ficaremg
ou religiosa.
caladas.f Por mais
Converteu-se que estivesseaoenvolvido
ao cristianismo retornar do emfront
contextos
na II
de guerra
Guerra (II Guerra
Mundial. FoiMundial e GuerradeFria),
líder de grupos suasdotemá-
estudos An-
ticas eram mais dee cunho
tigo Testamento existencial,
professor de escola dedominical.
solidão e perda.
h
Suas
4 Historicidade tiras
Maistrataram
de 560 das de quase
temas 17.800 tiras da
do cotidiano e o“Peanuts”
público alvopossu-
era
em alguma referência espiritual, teológica
o comum, sem distinguir por quaisquer tipos de classi- ou religiosa. g

Converteu-se
ficações. ao cristianismo
Porém, são os temasaocomunsretornarque do front
tratam nadoII
Guerra
sentido Mundial.
da vida em Foiseus
líderdiversos
de grupos de estudos
aspectos: do An-
econômico,
tigo Testamento
político, e professor
social, cultural de escolaAssim,
ou religioso. o que Suas
dominical. h
apa-
tiras trataram
rente ser apenas de uma
temasleitura
do cotidiano e o público
de recreação, alvo era
é também de
o comum,
crítica sem distinguir
e reflexão. por quaisquer
As tiras selecionadas têmtipos
comode tema
classi-a
ficações.
religião e Porém, são os
a felicidade, umtemas comuns
dos tantos quepertinentes
temas tratam do
sentido da vida em seus diversos aspectos:
ao cotidiano dos seres humanos e que é próprio das econômico,
político,
religiões social, cultural Sua
e da teologia. ou religioso.
receptividadeAssim, foiofantástica
que apa-
rentepúblico
por ser apenas umai,leitura
e crítica tanto de recreação,
é que é também
se manteve durante de
crítica e reflexão.
meio século As tiras selecionadas
nos principais têm como
jornais do mundo. Nastemapala-a
religião e a felicidade,
vras de Umberto um dosretrará
Eco, Schulz tantosem temas
suaspertinentes
tiras a sua
ao cotidiano
versão dos seres
da condição humana humanos e queo leitor
tanto para é próprio
inocentedas
religiões e da teologia.
como para o sofisticado. Sua
j receptividade foi fantástica
por público e críticai, tanto é que se manteve durante
meio século nos principais jornais do mundo. Nas pala-
vras de Umberto Eco, Schulz retrará em suas tiras a sua
versão da condição humana tanto para o leitor inocente
como para o sofisticado.j

f
BIOGRAFIA conta a verdadeira história de Schulz e Charlie Brown. G1, Pop & Arte,
Quadrinhos, 21 out. 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL153922-7084,00-
BIOGRAFIA+CONTA+A+VERDADEIRA+HISTORIA+DE+SCHULZ+E+CHARLIE+BR
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g
LIND, 2015.
h
f ESPARZA, 2016.
BIOGRAFIA conta a verdadeira história de Schulz e Charlie Brown. G1, Pop & Arte,
i
No entanto, uma
Quadrinhos, das2017.
21 out. críticas negativas
Disponível foi a de que “Alguns críticos acusam Charlie
em:
Brown e seus amigos de serem falsas crianças, na verdade adultos em miniatura,
<http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL153922-7084,00-
com preocupações e tiradas que não pertencem ao mundo infantil.” MISTÉRIOS de
BIOGRAFIA+CONTA+A+VERDADEIRA+HISTORIA+DE+SCHULZ+E+CHARLIE+BR
Charlie Brown
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j
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No Umberto.
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acusam Charliede
junho de
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e seus Disponível em: <https://www.nybooks.com/articles/1985/06/13/on-
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krazy-kat-and-peanuts/>.
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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 129

A literatura pode corroborar as verdades bíblicas e reproduzi-las


através de produtos culturais, como as tiras. Ao analisar tiras de Sno-
opy sob o viés teológico, se está fazendo algo semelhante ao que vem
ocorrendo de forma constante na contemporaneidade no que tange
produtos culturais da chamada cultura pop – cultura popular. Bohm
(2017) analisa o tema da ética nas tiras da Mafalda. David Pessoa
Lira (2016), por sua vez, adentra ao universo teológico para analisar
o aspecto secular-religioso dos Peanuts a partir da linguística utiliza-
da por Charles Schultz na narrativa figurada.
Reblin (2015) menciona que tanto a teologia como a superaven-
tura são artes de se contar uma história, para se entender o mundo e,
assim, “[...] abrigar retratos de humanidade e concepções de mundo”
(REBLIN, 2015, p. 75). Desta forma, é legítimo relacionar teologia
com as superaventuras (e quadrinhos em geral) e identificar influên-
cias da teologia em produções da cultura pop. Ela acaba reproduzin-
do, a partir da visão da pessoa autora, temáticas teológicas-religiosas
a partir de “[...] uma narrativa própria da era contemporânea” (RE-
BLIN, 2015, p. 76). Por isso, Reblin articula, de certa forma, a teolo-
gia nas narrativas da cultura pop como teologia do cotidiano:

[...] um termo formal que alude à percepção de uma teologia que se imiscui
nos meandros da vida cotidiana; trata-se de uma teologia constituída pelo
sujeito ordinário no dia a dia e expressa das mais diferentes maneiras. Em
outras palavras, as pessoas em sua vida diária não “apenas” têm experiências
e vivências religiosas, mas procuram elaborar para si e para outros, o que
essas experiências significam. (REBLIN, 2015, p. 88-89)

No caso específico das tiras de Charles Schulz, Snoopy e sua tur-


ma acabam por fazer exatamente isso: se defrontam com “[...] valo-
res, símbolos, modelos de comportamento e histórias em suas re-
lações diárias que podem ou não lhe dizer algo sobre como viver,
como resolver determinadas situações-problema, como expressar
sua busca por sentido” (REBLIN, 2015, p. 89). Trata, portanto, das
experiências vivenciadas e que dizem respeito ao universo teológico-
-religioso.
A produção de Charles Schulz pode ser inserida na classi-
ficação de Braga Júnior (2015) como aquela de “Referência Frag-
mentada ou Neutra”, quando há elemento religioso, secundário, sem
destaque ou sem vínculos institucionalizados (BRAGA JUNIOR,
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 130

2015, p. 183). Não se trata de satirizar o elemento religioso, mas de


inseri-lo no cotidiano dos personagens como uma espécie de “confli-
to existencial” ou de dúvidas em relação ao misterioso e a temáticas
relacionadas à teologia.

Dúvidas em relação ao misterioso e a te-


máticas relacionadas à teologia

As Figuras 1 e 2 expõem uma narrativa acerca da morte num


diálogo entre Charlie Brown e Lucy. A questão primordial, no entan-
to, não é tanto se todos estarão no céu, mas se estarão juntos após
a morte também os insetos que foram mortos pelos humanos por
temê-los em vida. Isso porque Lucy teme uma possível retaliação das
suas vítimas.

Figura 1: Morte, medo e vingança5


Fonte: Schulz, 2012, p. 43

Afirmando que gosta de acreditar que todos irão para o céu,


Charlie evidencia sua crença na vida após a morte. Porém, ao ser
indagado se os seres humanos se encontrarão com os insetos mortos
por eles, Charlie se mostra surpreso e sem resposta.

5  O título das figuras com as tiras de Snoopy são de autoria própria a partir da leitura que
se fez da tira. Nas obras consultadas as tiras não possuem título, mas foram selecionadas de
acordo com a temática de cada livro. No caso do presente artigo, os livros consultados são
compilações de tiras que abortam a temática da felicidade e o Natal.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 131

Figura 2: Morte, medo e vingança, o final


Fonte: Schulz, 2012, p. 44

Lucy se questiona se terá que se desculpar com suas vítimas e,


nesse momento, não sofra a retaliação. Com isso, mostra que na sua
morte não terá seus pecados redimidos, do contrário, não precisaria
pedir desculpas. A vida no céu seria, portanto, uma extensão da vida
na terra. Pode-se dizer, também, que o fato de transferir a responsa-
bilidade para Charlie é outro elemento da sua crença de que as re-
lações no céu sejam parecidas com as vivenciadas no seu cotidiano.
Por outro lado, por serem crianças, é possível relacionar os ques-
tionamentos de Lucy com o estágio de 2 de fé proposto por James
Fowler (1992).6 Trata-se de uma fé mítico-literal, que marca as habi-
lidades da criança em questionar as suas imagens da fé testando-as
de acordo com os ensinamentos dos adultos e de acordo com suas
próprias capacidades mais desenvolvidas de revirar seus pensamen-
tos e testar suas percepções. Porém, em Lucy ainda há o egocentris-
mo do estágio anterior, ao temer uma retalização. Na fase 2 as pes-
6  Os estágios propostos por Fowler não pretendem medir a fé no sentido de dizer quem
possui e quem não possui fé. mas de verificar como se dá a relação das pessoas com a
crença no Misterioso. Ainda que o autor, também, sugira idades para cada estágio, não sig-
nifica que todas as pessoas passem por todos os estágios. Na verdade, passar de estágios
está relacionado com a maturidade da sua fé. Fowler inicia com o pré-estágio da fé, quando
não há nenhuma relação com outro transcendente/imanente explícito pela criança. Estágio 1:
Fé Intuitivo-Projetiva, fantasiosa e imitativa. Estágio 2: Fé Mítico-Literal, quando as crenças,
regras e atitudes morais são apropriadas com uma interpretação literal mítico-literal. Estágio
3: Fé Sintético-Convencional, quando há a busca de um relacionamento mais pessoal com
Deus, em uma perspectiva mais dialogal e há necessidade de sintetizar valores. Estágio 4:
Fé Indutivo-Reflexiva, quando a fé é mais autônoma e demanda decisões que contribuirão
para o equilíbrio e a estabilização, visão crítica dos valores. Estágio 5: Fé Conjuntiva, quan-
do os significados da fé vão além do que pode ser racionalmente afirmado. Estágio 6: Fé
Universalizante, quando se entrega totalmente a uma causa.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 132

soas ainda não conseguem tomar distância do fluxo das histórias e


formular seus próprios conceitos e refletir sobre os significados.
Estar nos estágios iniciais da fé pode ser justificado pelo fato de
serem crianças, quando a fé não está amadurecida, assim como ques-
tões que envolvem a ética e a moral. Isso não significa que as tiras
sejam, desta forma, voltadas ao público infanto-juvenil. Mas auxilia
o público de todas as idades a questionar e refletir acerca da sua cren-
ça. As Figuras 3 e 4 também evidenciam o egoísmo de Lucy ao ouvir
acerca do recenseamento de Caesar Augustus.

Figura 3: Do Salvador...
Fonte: Schulz, 2012, p. 18

Lucy ouve a leitura de Charlie Brown. Snoopy é, aparentemente,


apenas mais um elemento nas tiras.

Figura 4: ... para a individualidade


Fonte: Schulz, 2012, p. 19
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 133

Snoopy, no entanto, evidencia a sua perplexidade quando Lucy se


compara, de certa forma, em importância com Jesus Cristo. Assim
como Jesus teria a atenção da humanidade apesar do seu nascimento
humilde, mas logo amado e presenteado, também ela, Lucy, amada
ao nascer e muito presenteada, teria também a atenção da humani-
dade. Verifica-se aqui, o egoísmo do Estágio 1 da fé proposto por Fo-
wler, mas também uma transição para o Estágio 2, na interpretação
mítico-literal.

A felicidade

A felicidade das pessoas é uma preocupação chave no cristianis-


mo, porém nem sempre enfatizada de forma tão direta. Menciona-se
a igualdade, a justiça, o bem estar, mas sem vinculá-los diretamente
à felicidade. Ora, suprir tais questões significa felicidade para as pes-
soas. Santo Agostinho (354-430), em seu “diálogo sobre a felicidade”,
questiona sobre a opção pela satisfação do corpo e da alma. Para tan-
to, também se utiliza de metáfora e de um elemento comum a todos
e todas e que se torna visual na mente da pessoa leitora: um almoço.

Assim sendo, visto que concordamos entre nós que no homem existem dois
componentes, a saber, um corpo e uma alma, parece-me que no dia do meu
aniversário devia apresentar um almoço um pouco mais lauto, não apenas
para os nossos corpos, mas também para as almas. (AGOSTINHO, 2000,
p. 39)

O autor pretende comemorar seu aniversário alimentando o cor-


po, mas também a alma, no sentido de que a felicidade está no equi-
líbrio de ambos, não apenas em saciar o corpo. Sentencia afirmando
que “[...] querer o que não convém, isso mesmo é a maior infelicida-
de. [...] ninguém pode ser feliz se não tiver o que quer, mas também
não pode ser feliz quem tudo quer” (AGOSTINHO, 2000, p. 41).
A abundância, portanto, não significa felicidade. Mas o que é a fe-
licidade na contemporaneidade? As tiras de Snoopy abordam o tema
seguindo as características das tiras, como Bohm concluiu a partir
do tema da ética nas tiras da Mafalda:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 134

Há, nos quadrinhos, a comédia, os desenhos que são repassados para o en-
tendimento de tudo e todos, mas com uma mensagem politizada e com o
intuito de gerar maior capacidade de questionamento de todos os princípios
políticos e éticos. Com humor e ironia, as tiras apresentam um discurso crí-
tico, aparentemente inofensivo, uma vez que se utiliza de metáforas, figuras
de linguagem, ironia e outros subterfúgios [...]. (BOHM, 2017, p. 41)

A Figura 5 evidencia um conceito de felicidade bem apropriado


para a contemporaneidade, caracterizada por uma sociedade de con-
sumo e individualista, na qual as relações pessoais não são priorida-
de, conforme aponta Zygmunt Bauman (2001).7

Figura 5: Felicidade é... Shopping


Fonte: Schulz, 2015, p. 110

O desejo da emancipação dos pais e a vida de consumo estão bem


implícitos no diálogo entre Lucy e Charlie Brown na tira da Figura 5.
Assim, ainda que não de forma direta (lembrando a forma secundá-
ria mencionada por Braga Júnior (2015, p. 183) na sua classificação
de tiras com temáticas religiosas), a tira da turma do Snoopy carac-
teriza a felicidade ao contrário daquilo que prega a religião cristã,
quando a felicidade estaria na fuga do mundano. “À diferença da
religião, que despacha a solução para o além, onde tudo seria infi-
nitamente saciável, a lógica mundana – da felicidade social – bus-
ca ajeitar-se nas condições concretas da vida real” (DEMO, 2001,
p. 207) Essa mesma caracterização mundana de felicidade pode ser
observada na Figura 6.

7  Bauman destaca a fragilidade do ser humano, cujas relações sociais que perdem sua soli-
dez e acabam por se refletirem no consumo, no descartável. As relações são líquidas porque
espelham o novo tipo de sociedade, também no consumo, na relação com os objetos e na
“descartabilidade” das relações.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 135

Figura 6: Felicidade é... Batata Frita


Fonte: Schulz, 2015, p. 27

O consumo é a felicidade e o que Silva Santos (2008) chama de


lightização dos corpos e do comer. Essa lightização valoriza a leveza
da existência. Comer/consumir leva, portanto, à leveza da existência.
Isso porque “[...] as questões que conduzem as práticas corporais e
alimentares dos sujeitos são mais profundas do que a racionalidade
médico-nutricional” (SANTOS, 2008, p. 331). Porém, essa mesma
leveza pode ser “conquistada” com aquilo que geralmente foge aos
olhos, como mostra metaforicamente a Figura 7.

Figura 7: Felicidade é... Nada ou tudo!


Fonte: Schulz, 2015, p. 26

Ao fugir dos olhos humanos, são os olhos de Snoopy que real-


mente enxergam além do concreto ou do saciável corporalmente.
Saciar o corpo (ao ingerir alimentos) e saciar a alma (ao contemplar
a beleza da criação) diz respeito à vida sadia. Felicidade é, portanto,
estar junto de quem se ama e onde se habita, conforme mostra a
Figura 8.

Figura 8: Felicidade é... Saúde, casa e família


Fonte: Schulz, 2015, p. 23
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 136

As tiras de Charles Schulz acabam sendo um espelho dos ques-


tionamentos humanos e, pode-se arriscar a dizer que aqueles que
fogem à compreensão humana têm num animal uma válvula de
escape. Assim, aquilo que não é racionalizável à mente humana fica
para o irracional.
Enquanto o protagonista Charlie Brown aparece como um anti-
-herói, Snoopy é o espelho do gozo da vida. O mal está nas pessoas
egoístas, que buscam saciar o corpo de forma individual, e que per-
dem nas pequenas coisas da vida a compreensão do sentido desta
vida. Porém, a salvação está na própria pessoa, no ser humano, a
partir do livre arbítrio, uma vez que pode escolher entre saciar o cor-
po ou a alma, ou o equilíbrio entre ambos. Essa escolha é dada por
Jesus Cristo, que mostra o caminho com os seu testemunho e ensi-
namentos.
Enfim, as tiras do Snoopy evidenciam a teologia no cotidiano das
pessoas. A cultura pop é, portanto, forma e meio de comunicação e
reflexão teológica da vida concreta das pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida de Charles M. Schulz é espelhada em suas tiras da Turma


do Snoopy. As suas angústias e conflitos são retratados nos persona-
gens, principalmente em Charlie Brown, seu alter-ego. Temas exis-
tenciais, principalmente da sua infância e adolescência, bem como
suas dúvidas acerca da vida, são divididos com as pessoas leitoras
que acabam refletindo a partir das suas premissas.
Verifica-se a partir do Método Cartográfico-Crítico que as tiras
cumprem uma função reflexiva teológica densa. Através de lingua-
gem característica dos quadrinhos,8 com ilustrações que evidenciam
as reações dos personagens, as tiras jogam na arena questões rele-
vantes para a teologia, com humor e ironia, mas que tocam as pes-
soas e as levam à reflexão. Ao pesquisar a linguagem do autor, a sua
história de vida (de conversão ao cristianismo), percebe-se que ques-
tões religiosas são algumas das suas inquietações. Charlie Brown não

8  Mas que, segundo Lira, “Charles Schulz foi influenciado pela linguagem da prédica, do
sermão, da pregação, do aconselhamento pastoral e do ensino de estudos bíblicos.” (LIRA,
2016, p. 54). Não que esta linguagem tenha predominado, mas a característica da narrativa
figurada permite a possibilidade de se recorrer a “[...] elementos transversais da linguagem
religiosa em congruência ao âmbito secular.” (LIRA, 2016, p. 54).
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 137

se rende às provocações da inquietante Lucy, evidenciando que as


convicções (o seu estágio da fé) do autor não são abaláveis.
Schulz mostra preocupação com as pessoas e a busca pela feli-
cidade, que é, na verdade, o objetivo de vida máximo das pessoas:
serem felizes. Essa felicidade atingida significa a conquista de uma
vida plena, sem necessidades, mas plenamente saciada, em corpo e
alma. A concepção de felicidade de Schulz está nas pequenas coisas,
como na observação de uma folha caindo da árvore ou estar com a
família e os amigos gozando de saúde. Ao mesmo tempo em que diz
o que é felicidade, critica aquela artificial, buscada no consumo, que
é individualista, pois sacia o indivíduo de forma isolada e não no seu
sentido coletivo.
Enfim, a obra de Schulz, como um todo, ainda que analisada
apenas a partir de uma parcela mínima das suas tiras e da sua vida
pessoal, permite às pessoas leitoras uma aproximação com um tema
complexo como a teologia/religião. Comprova, ainda, que produtos
da cultura pop são importantes e eficientes meios de reflexão teoló-
gica.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 138

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UMA ANÁLISE DA
REPRESENTAÇÃO DO APOCALIPSE
CRISTÃO NA HQ HELLBOY
Gabriel Brito dos Santos1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao nos depararmos com a arte sequencial gráfica de Hellboy, no-


tamos que o autor Mike Mignola se utiliza das linguagens dos qua-
drinhos para poder expressar de maneira mais eficaz possível o seu
discurso, se utilizando de um entrelaçamento entre o apocalipse bí-
blico, por meio de uma miscelânea de interconexões e intertextuali-
dades entre diversos universos de sentidos, valores e símbolos. Dessa
forma, estamos diante de uma narrativa que se utiliza de diversos as-
pectos do fenômeno religioso e estes ressignificados encontrados em
nossa sociedade, esse fenômeno é mesclado com a cultura de massa e
os famosos gêneros de superaventura. Podemos observar que o autor
se utiliza dessas linguagens em busca de expressar da melhor forma
possível o seu discurso através da linguagem dos quadrinhos (BAR-
BIERI, 2017, p. 254).
Quando abrimos uma história em quadrinhos de Hellboy, nos
deparamos literalmente com a representação gráficado demônio,
mas nesse caso com um demônio do bem ou que pelo menos tenta
fazer o bem. A sua aparência lembra o demônio do imaginário po-
pular; um ser de pele escarlate, par de chifres em sua cabeça, patas
de bode e uma longa cauda – e sua mão direita possui a chave do fim

1  Discente da Universidade do Estado do Pará. Graduando de Licenciatura plena em


Ciências da Religião. Belém, Brasil. Bolsista de iniciação cientifica CNPq/PIBIC e membro
do grupo de pesquisa ARTEMI – Arte, Religião e Memória, na linha de pesquisa Religião e
Quadrinhos. Palavras-chaves: Quadrinhos, Religião, Representação, demoníaco.
Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7519519199563774
E-mail de contato: gabriel.bds14@hotmail.com
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 142

do mundo – o personagem é conhecido pelas alcunhas de O Arauto


da destruição, A besta do apocalipse ou Dragão do apocalipse. E assim
como no apocalipse bíblico, vinda do dragão é o prenúncio do fim
dos tempos.
Durante a narrativa gráfica podemos observar que Hellboy, o ser
incumbido de causar o fim do mundo aos moldes do apocalipse bí-
blico, tentando impedir que a sua profecia se realize, ao mesmo tem-
po tenta derrotar uma intensa entidade cósmica que possui a forma
de um poderoso dragão que busca destruir a humanidade causando
o fim do mundo. O objeto deste artigo, é analisar de que forma é feita
a representação do apocalipse cristão em relação ao personagem de
Hellboy no volume intitulado de edição gigante: A morte de Hellboy,
roteirizada pelo criador Mike Mignola e desenhada pelo artista in-
glês Duncan Fegredo.
A técnica utilizada para análise será feita a partir de uma semió-
tica, que tem sido a metodologia mais utilizada nos estudos em qua-
drinhos, pois, ela permite descobrir os significados mais latentes que
se manifestam tanto pelos textos como pelos signos e a forma como
eles se relacionam. Esse procedimento de análise, é um método bas-
tante complexo que busca interpretar os signos que são a manifes-
tação gráfica sequencial mais apropriada para analisar as histórias
em quadrinhos, dado que incluem tantos os textos como imagens;
as cores utilizadas, os sombreamentos, as posturas dos personagens
e a forma como a história se desencadeia, todos esses elementos são
passíveis de uma análise semiótica (VERGUEIRO, 2017, p. 95-96).

A REPRESENTAÇÃO DO APOCALIPSE CRISTÃO

A história de Hellboy começa na segunda guerra mundial, quan-


do um grupo de soldados nazistas liderados pela figura histórica do
místico russo Grigori Rasputin, tenta pôr em prática a última fase
do projeto “Ragnarok”. O objetivo deste experimento era reverter o
rumo da guerra a favor dos nazistas. Porém, o místico Rasputin pos-
suía outros planos para além do triunfo nazista. Esse experimento é
responsável por invocar das profundezas do inferno um bebê demô-
nio, com a pele vermelha, chifres na cabeça, uma longa cauda, per-
nas de bode e que no lugar da mão direita possuía uma mão feita de
pedra indestrutível. Todavia, a criatura surge em um local diferente
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 143

do esperado pelos nazistas. O personagem Hellboy é invocado no


local onde um grupo de paranormais se reunia para tentar impedir
os planos do projeto Ragnarok. Esse grupo é responsável por adotar
e nomear o bebê, chamando-o de Hellboy. Tal grupo fica responsável
por cuidar e criar de Hellboy – O verdadeiro nome de Hellboy é:
Anung um Rama “O arauto da destruição”, ou “A besta do apocalip-
se” ou como o dragão do apocalipse – dentre estes se destaca Trevor
Bruttenholm que é considerado, pelo próprio Hellboy, como seu pai.
Na história a mão é a chave para o fim do mundo, quem possuí-la
ganhará o direito de se torna o líder de todas as legiões do inferno
e por consequência o possuidor dessa manopla será o causador do
apocalipse.
O apocalipse cristão apresenta diversos elementos ou sinais de
sua chegada. Todavia, não há porque nos determos sobre todos es-
ses sinais, tais como os quatro cavaleiros do apocalipse, ou bestas,
semelhantemente a Abaddon, o rei dos seres chamados locustas. En-
tretanto, nenhuma dessas criaturas tem alguma relação direta com
o Diabo.
Essa pesquisa irá se focar na figura de Satanás que surge a partir
do capítulo 12 do livro do Apocalipse. Embora, a sua primeira apari-
ção seja em forma de um grande dragão vermelho, com sete cabeças
e dez chifres e nas cabeças sete coroas, que com sua cauda arrastava
a terça das estrelas. Nesse momento, ainda não temos a identificação
clara que o dragão é o próprio Satanás, mas em determinado mo-
mento podemos obter essa identificação. Segundo o autor:

Houve uma batalha no céu: Miguel e os seus anjos tiveram de combater o


Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E
já não houve lugar para eles. Foi então precipitado o grande Dragão, a antiga
serpente, chamada Diabo e Satã, o sedutor do mundo inteiro. Foi precipita-
da na terra, e com ela foram precipitados seus anjos. (KELLY, 2008, p. 180).

Nesse momento vale ressaltar que esse imaginário sobre o dragão


da antiguidade poderia ser apenas uma serpente terrestre ou maríti-
ma. Não possuindo pernas ou patas, e em raros casos eram encontra-
das serpentes com asas (KELLY, 2008, p. 180). Essas características
podem ser encontradas nas mais diversas e numerosas descrições
sobre o demônio e suas narrativas que transitava a Europa nos sé-
culos XII – XIII. As culturas que habitavam o continente europeu
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 144

eram marcadas pela diversidade de povos do mediterrâneo, dos cel-


tas, dos germânicos, dos eslavos e dos escandinavos, e tais sofreram
modificações cada um em diferentes graus de acordo com a expan-
são e disseminação das ideias cristãs, que terminaram em assimilar e
modificar essas tradições e narrativas. Em determinado momento, o
cristianismo teve que dar um sentido coesivo a essas diversas tradi-
ções demoníacas nascidas das diversas narrativas. Então, necessitava
unificar as histórias da serpente, com a do rebelde, do tirano tenta-
dor, do sedutor concupiscente e do dragão todo-poderoso.
Quando entramos em contato com as HQs do Hellboy, encon-
tramos um personagem inserido num universo compartilhado por
criaturas de diversos espaços literários2 e entidades provenientes da
mitologia do leste europeu somadas com uma grande quantidade
de símbolos presente no universo judaico-cristão. Sendo assim, ve-
mos a arte sequencial apresentar diversos elementos da mitologia e
religiosidade, de diversas religiões dentro de uma linguagem narra-
tiva gráfica sequencial, que utiliza elementos textuais e imagens para
transmitir esses diversos conceitos.
Na história em quadrinhos “A Morte de Hellboy”, a feiticeira
Nimue3 também conhecida como a rainha das bruxas, a rainha de
sangue e inimiga da humanidade ressurge. Nimue, uma bruxa das
crônicas arturianas, que enlouquece sem a tutela de Merlin, que a
havia traído e enganado, ficando incapaz de controlar os seus po-
deres sem o auxílio do poderoso mago. A rainha de sangue acaba
convertendo-se em uma adoradora de uma criatura cósmica conhe-
cida por Ogdru Jahad4. Temendo a sua insanidade e o seu poder, as
bruxas da Inglaterra decidem trair a sua rainha e acabam matando-a,
esquartejam o seu corpo e enterram em diversos locais pelo planeta,
todavia, os membros de Nimue continuavam a se reagrupar esperan-
2  Os escritores da literatura PulpFiction e ficção cientifica como HP Lovecraft, Robert E.
Howard, Clark Ashton Smith, Manly Wade Wellman e Michael Moorcockentre outros escrito-
res, são as principais influências de Mike Mignola.
3  Nimue ou Viviane Niniane ou apenas Vivien, esses são os vários nomes desta persona-
gem das histórias arturianas. A sua origem varia de acordo com cada versão das lendas
arturianas, a personagem possuiu diversos papeis de acordo com a obra. Um desses papeis
era entregar a espada Excalibur ao rei Arthur, a sedução e aprisionamento de Merlin ou a
criação de Lancelot após a morte do pai. Em uma das versões Numue é aprendiz de Merlin,
que por ela se apaixona. Ela recusa se entregar ao amor do mago até ele entregar todos os
seus segredos. Quando Nimue domina todos os segredos de Merlin, acaba por aprisionar o
mago em uma árvore, ou sob uma rocha, depende da obra.
4  Essa entidade cósmica criada por Mike Mignola é inspirada, sobretudo nos “mitos de
Cthulhu” de H.P. Lovecraft, em combinação com elementos de diversas mitologias e do apo-
calipse bíblico.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 145

do a sua ressureição. Com isso, as bruxas decidem trancar seu corpo


desmembrado em um caixote e confinando-o nas profundezas da
terra, até que um dia o ser de nome Gruagach5 ressuscita a rainha das
bruxas, que decide reunir um exército para destruir a raça humana.
O personagem Hellboy supostamente também está destinado a
comandar as forças das trevas como rei das bruxas, ou como o rei
da Inglaterra, da qual ele tem direito, por sua mãe ser uma bruxa
e descendente do Rei Arthur, das lendas arturianas ou como rei do
inferno e comandante de todas as frotas das hordas infernais, por
possuir a mão direita feita de pedra, chamada de “The Right Hand
Of Doom”6, traduzida para o português como a mão direita da per-
dição; esse artefato é a chave para a destruição e o fim do mundo.
A origem dessa chave para destruição do mundo descende, se-
gundo a história, de um dos primeiros espíritos enviados à Terra
para vigiá-la, só que um desses espírito criou uma criatura cha-
mada os Ogdru Jahad, que é uma entidade sétupla –Amon-Jahad,
Adad-Jahad, Mamrat-jahad, Irra-Jahad, Nunn-Jahad, Beuu-Jahad e
Nergal-Jahad – criada pelo espírito Anum, que é um dos grandes
espíritos enviados por Deus no princípio de tudo. Esses espíritos de-
veriam servir como guardiões da Terra. Os Ogdru Jahad assumem
uma natureza maligna e caótica, tendo apenas o objetivo de destruir
a Terra. Quando os outros espíritos descobriram o que seu irmão ha-
via criado, os espíritos guardiões decidem por destruir Anum, con-
servando apenas a sua mão direita. Aprisionaram os Ogdru Jahad
em casulos no limbo cósmico. Apesar de tudo, a ira de Deus recaiu
sobre todos os espíritos guardiões por terem interferido na criação
divina do todo-poderoso. A mão remanescente de Anum é a chave
dimensional para libertar os Ogdru Jahad e de invocar do inferno
todas as legiões de demônios, sendo essa a única força capaz de rom-
per as paredes entre o céu e o inferno. Essa chave foi implantada em
Hellboy minutos após o seu nascimento.

5  Gruagach é uma criatura do folclore da Escócia e da Inglaterra. Essa entidade geralmente


habita casas e ajudam domesticas, geralmente não gostam de serem visto por isso só traba-
lham a noite. Costumam abandonar as casas quando as oferendas são chamadas de paga-
mento ou quando sofrem abusos dos seus donos. Essas entidades também são conhecidas
como guardiões dos dragões.
6  O nome desse artefato vem das influências de outro autor de ficção e fantasia. O escritor
norte americano Robert E. Howard, conhecido por suas criações como Conan, O Bárbaro e
Solomon Kane
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 146

Na narrativa sequencia gráfica de Hellboy, a entidade Ogdru


Jahad assume a forma de um dragão negro cósmico. Dentro do ima-
ginário judaico cristão o simbolismo do dragão é de uma criatura
apocalíptica. Entretanto, dentro de diversas mitologias antigas a re-
presentação da serpente e o dragão se confundem entrem si. A ser-
pente encontra-se presente em diversas mitologias:

Na mesopotâmia foram encontrados muitos objetos sagrados com ilustra-


ções de cobras ou serpentes de tipo naja, certas delas relacionadas ao culto
de alguma deusa serpente. O Deus salvífico de origem síria Baal, muito cul-
tuado na antiga Canaã, também era representado ou associado ao touro e
à serpente. No Egito, a serpente aparece com a cruz da vida em sua boca.
Na Grécia, o caduceu de Hermes contém duas serpentes entrelaçadas que
sugerem a união do princípio masculino e feminino, “o conúbio divino e
renovador do mundo da serpente-monstro com a deusa-nua em sua forma
de serpente”. Esses deuses e deusas eram associados á imagem da serpente
porque este era um símbolo de fertilidade e vida eterna, uma vez que se
renovava constantemente trocando de pele. A serpente também era empre-
gada na antiguidade em rituais de magia para enfeitiçar uma pessoa. Ela foi
associada pelos judeus à magia e aos poderes demoníacos. (Xavier, 2004,
p. 113)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 147

Figura 1: Nimue, Merlin e a serpente


Fonte: MIGNOLA; MIKE, 2016, p. 399.
 
Na figura 1, podemos observar o momento de traição de Nimue
para com Merlin, e logo atrás do casal podemos observar um quadro
que representa o pecado original. Nesse quadro conseguimos verifi-
car que a mulher recebe uma fruta de uma serpente que se encontra
toda enrolada na árvore, e a serpente aparentemente apresenta uma
fisionomia extremamente humana, com traços e rostos bem femini-
nos. Esse quadro é bem similar ao que se encontra no teto da capela
sistina pintada por Michelangelo, essa parte da pintura é conhecida
como o Pecado Original e a Expulsão do Paraíso. Segundo Kelly:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 148

Durante a idade média, na Europa, iniciando no século XI, todas as ser-


pentes começaram a ser retratadas nas artes visuais como sendo bípedes ou
quadrúpedes, e tendo também penas e asas de pássaros e cabeças e orelhas
de cão. Por que isso aconteceu? Quem sabe? Algum tipo de força evoluti-
va pictórica misteriosa e inexplicável estava em ação. À medida que essas
serpentes pintadas e esculpidas evoluíram, algumas desenvolveram cabeças
humanas em vez de caninas. Era amplamente considerando que Satã tivesse
usado uma serpente com cabeça de mulher para persuadir Eva a comer o
fruto proibido.(KELLY, 2008, p. 180).

Ambos os momentos representam a traição, e nos dois eventos


temos um ser externo controlando e seduzido; no quadro na pa-
rede a serpente está tentando Eva, e no caso de Nimue a serpente
será uma das formas que Ogdru Jahad assume. Como já vimos após
a traição, a rainha das bruxas se torna uma das adoradoras dessa
entidade cósmica. A entidade Ogdru Jahad encontra-se presa, mas
consegue libertar parte do seu poder; deste modo, a criatura age de
forma manipuladora, controlando as ações da rainha das bruxas, Ni-
mue. Através da bruxa a entidade consegue se libertar completamen-
te para que enfim possa destruir toda a humanidade.

O COMBATE PRIMORDIAL: O DRAGÃO VERMELHO


E O DRAGÃO NEGRO

O simbolismo do dragão dentro do imaginário judaico-cristão é


de uma criatura apocalíptica. Este simbolismo é proveniente do mito
babilônico de criação, simbolizado pelo caos primordial e pela no-
ção do mal no mundo posteriormente à criação; esse imaginário se
integra à literatura hebraica e pós-testamentária. Com o passar das
décadas irrompem diversas doutrinas escatológicas em numerosos
apocalipses. No apocalipse de São João existem diversas descrições
do dragão do apocalipse: “Um outro sinal no céu: um grande dragão
vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e na cabeça sete coroas.
[...] o grande dragão, a primitiva Serpente, chamando Demônio e
Satanás, o sedutor do mundo” (Apocalipse 12:3-9).
O dragão na tradição cristã age como uma suprema força de anar-
quia, destruição e morte – neste contexto é bem similar à entidade
Ogdru Jahad – sendo nesse caso o próprio demônio. Entretanto, essa
ameaça traz consigo outro terror, a aparição de outro monstro do
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 149

mal, o “Anticristo”, trazendo consigo na sua vinda à Terra os horrores


de pragas, guerras, fome e destruição. O anticristo seria a contra-
parte maligna do Cristo. Esse era bondade e luz, o salvador; já o
outro seria toda a maldade e escuridão, o destruidor. Um nascido da
virgem e outro de uma prostituta. Encontramos diversos elementos
dessas dualidades no imaginário cristão, entretanto, nas narrativas
das histórias em quadrinhos de Hellboy podemos dizer que essa du-
alidade entre um ser destruidor e outro salvador seja mais complexa.
A origem do anticristo na tradição hebraica está relacionada com
humanos agressores, ligados a uma esfera sobrenatural de ferocidade
maligna. O primeiro arquétipo foi o do Antiochus IV Epiphanes, rei
de Selêucida da Síria, que tomou a cidade de Jerusalém em 168 a.C.
massacrando e escravizando os seus habitantes. Epiphanes significa
“Deus manifestado”, sendo o próprio Antiochus, buscava se tornar
um ser divino, essas pretensões passaram a integrar o arquétipo do
anticristo. No novo testamento a palavra Anticristo aparece nas epís-
tolas de João, essa palavra era usada para atacar desvios doutrinários
dentro do cristianismo: “anticristo era mentiroso impostor, o impos-
tor que não reconhecia a encarnação de Jesus” (II João 2:18; 4:2-3).
Esse medo do anticristo perdura vivo no imaginário coletivo por
toda a idade média e modernidade, devido às diversas e sucessivas
invasões dos bárbaros, godos, humos, mongóis e turcos esses povos
eram identificados como os exércitos do grande dragão. Para Eliade:

O reinado do Anticristo equivale, em certa medida, a um retorno ao Caos.


Por um lado, o Anticristo é, apresentado sob a forma de um dragão ou
de um demônio, o que lembra o antigo mito do combate entre Deus e o
Dragão. O combate teve lugar no princípio, antes da Criação do Mundo,
e será novamente travado no Fim. Por outro lado, quando o Anticristo for
considerado o falso Messias, seu reinado representará a total subversão dos
valores sociais, morais e religiosos; em outros termos, o retorno ao Caos.
(ELIADE, 1972, p. 50).

No imaginário judaico-cristão o combate contra o dragão pos-


sui um caráter escatológico. Segundo Eliade, em outras mitologias
esse combate simboliza o mito primordial cosmogônico da luta entre
herói e o dragão primordial. Nesse momento o cristianismo obtém
êxito em assimilar as narrativas de outras tradições, principalmente
as do oriente. Esses mitos cósmicos de combate primordial entre os
deuses, possuindo a condição humana como o principal desafio:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 150

Quer se esperasse um ou outro, era raro que não se concedesse um lugar im-
portante ao Anticristo. Para alguns, sua chegada era iminente. Para outros,
ele já nascera. Essa figura sinistra não pertence ao Apocalipse, ainda que, ao
constituir-se na imaginação coletiva, tenha sido progressivamente associada
à “Babilônia, a grande, covil de demônios” e a “besta escarlate” evocada pelo
livro das Revelações. Em compensação, o Anticristo, seja como personali-
dade individual, seja como personagem coletivo, vem das Epístolas de são
João e da segunda Epístola de são Paulo aos tessalonicenses. (DELUMEAU,
2009, p. 317).

Figura 2: A Profecia do Dragão do apocalipse.


Fonte: MIGNOLA; Mike, 2016, p. 322. 

Na figura 2, podemos observar a representação do destino Hell-


boy como o arauto da destruição. Essa é uma visão do futuro pro-
porcionada pela Morgana Le Fay7. Nessa lâmina, vemos Hellboy, em
sua verdadeira forma, com os pares de cornos crescidos em forma
semi-ondular e a sua coroa repousa em sua cabeça. Os chifres assim
como no imaginário judaico-cristão simbolizam força, sempre que
eles crescem, o nosso herói vermelho encontra-se com o seu desti-
7  Conhecida também por diversas variações, todavia, é mais conhecida por ser uma pode-
rosa feiticeira do ciclo arturiano, rival do rei Artur seu meio-irmão e da sua rainha Guinevere.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 151

no de destruidor recebendo as forças do inferno. A coroa simboliza


Hellboy como possuidor da The Right Handof Doom, sendo assim, o
líder dos exércitos infernais na batalha final.
Ao contrário do que vimos logo do início, quando o dragão ver-
melho é identificado como o Diabo e Satã através da visão de João,
na narrativa gráfica de Hellboy a visão do dragão está expressa no
personagem principal e no seu trágico destino de ser o destruidor de
toda a humanidade. A segunda força de destruição na história é os
Ogdru Jahad, entidade que, em forma de dragão luta, contra Hellboy.
Os autores cristãos não tinham uma visão coerente da relação
entre o Anticristão e o demônio. Algumas vezes ele era o próprio
demônio ou um aspecto dele, em outros textos, uma ser humano
possuído pelo diabo, ou ainda poderia ser o filho de Satã. Ele o líder
na terra dos exércitos infernais na batalha final, em sua majestosa
forma terrena de um poderoso rei, assumindo o triunfo de Deus e
sua forma verdadeira e sobrenatural, a de um monstruoso dragão
alado. (NOGUEIRA, 2002, p. 78).
A narrativa sequencial gráfica de Hellboy segue a ideia de que
Satã é um ser diferente ao dragão do apocalipse. Na verdade, nesse
momento da história, Satanás nem fez a sua aparição. O mito do
dragão do apocalipse sofre outra modificação na narrativa, como já
vimos Hellboy não é filho de Satã, entretanto, ele possui o mesmo
arquétipo do anticristo, sendo o herdeiro do inferno e todas as suas
hordas, possuindo o direito de invocá-las para trazer a destruição
do mundo. Porém, a transformação em dragão do apocalipse não
ocorre na narrativa, na verdade Hellboy é o responsável por lutar
para impedir a criatura de destruir a Terra. Podemos dizer que o per-
sonagem salva o mundo ao mesmo tempo em que nega o seu destino
como anticristo, ao menos por enquanto.
Na narrativa, percebemos a existência desses dois dragões, os Og-
dru Jahad e chamado de dragão negro dos primórdios do mundo, o
destruidor de almas. Enquanto, Hellboy recebe a alcunha do dragão
vermelho da Britânia. O Combate entre esses dois seres é chamado
de Ragnarök, onde o campeão da humanidade, no caso o Hellboy
enfrentará o dragão do apocalipse, essa batalha resultará no fim do
mundo. Estes monstros surgiram do fundo abissal e a muito tempo
vieram ao mundo e permanecerão nele até que tudo esteja abrasado
quando por fim um novo mundo surgirá, o confronto entre esses
dois seres não é apenas o fim, mas um novo princípio.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 152

Figura 3: O Combate primordial


Fonte: MIGNOLA; Mike, 2016, p. 499.

No imaginário judaico-cristão o combate contra o dragão possui


um caráter escatológico. Segundo Eliade (1992), em outras mitolo-
gias esse combate simboliza o mito primordial cosmogônico da luta
entre herói e o dragão primordial. Nesse momento o cristianismo
obtém êxito em assimilar as narrativas de outras tradições, princi-
palmente as do oriente. Esses mitos cósmicos de combate primor-
dial entre os deuses possuem a condição humana como o principal
desafio:
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 153

Na verdade, em certas cosmogonias arcaicas, o mundo recebeu existência


por meio do sacrifício de um monstro primordial, simbolizando o caos
(Tiamat), ou através do sacrifício de um gigante cósmico (Ymir, Pan-Ku,
Purusa). Para garantir a realidade e a durabilidade de uma construção, exis-
te uma repetição do ato divino da construção perfeita: a Criação dos mun-
dos e do homem. Como primeiro passo, a “realidade” do lugar é garantida
por intermédio da consagração do terreno, isto é, por sua transformação
em um Centro; então, a validade do ato de construção é confirmada pela
repetição do sacrifício divino. (ELIADE, 1992, p. 25).

Logo, ao entrarmos em contato com a narrativa sequencial grá-


fica A Morte de Hellboy, encontramos a representação do apocalipse
cristão, todavia, também podemos encontrar elementos da escatolo-
gia nórdica e escandinava. O universo de Hellboy apresenta diversas
características cíclicas, o seu mundo é continuamente destruído e
recriado.

[...] mesmo dentro do quadro das três grandes religiões — iraniana, judai-
ca e cristã — que limitaram a duração total do Cosmo a algum número
específico de milênios, afirmando que a história acabará de uma vez por
todas inillo tempore, ainda sobrevivem alguns sinais da doutrina primitiva
da periódica regeneração da história. Em outras palavras, a história pode
ser abolida, e, consequentemente, renovada uma série de vezes, antes que o
eschaton final se manifeste. (ELIADE, 1972, p. 125).

Logo, podemos observar a repetição de ambos os mitos sendo


reforçados, buscando representar um momento mítico com o qual
o arquétipo do demoníaco e do fim do mundo é representado no
personagem de Hellboy, mas esses arquétipos apesar de se repetirem
sofrem modificações e com influências de outras mitologias, somado
com um imaginário do demoníaco contemporâneo, que deixa de ser
o ser responsável por causar o fim do mundo. A luta entre esses dois
seres reatualiza o momento cosmogônico-escatológico da luta entre
o ser mitológico e o dragão primordial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O apocalipse cristão é recontado nas histórias em quadrinhos


do Hellboy, possuindo diversos elementos do imaginário judaico-
-cristão juntamente com os mitos de cosmogonia e escatologias de
outras mitologias. Neste contexto de ideias, os mitos transmitem e
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 154

preservam os paradigmas e os modelos exemplares das atividades da


quais os homens são responsáveis por transmitir e seguir. Esses mo-
delos paradigmáticos são reproduzidos e repetidos com o objetivo
de construir um arquétipo mítico.

O ato de se recontar ou de se reinventar as histórias de super-heróis faz parte


da própria adaptação ou atualização de mito. Entretanto, em todo caso, em-
bora as histórias dos super-heróis possam mudar através do tempo, afirma
Fingeroth, “o herói faz sempre a coisa certa. Talvez, mais importante, ele
sabe o que é coisa certa”. E essa, poder-se-ia dizer, é a característica essen-
cial, um dos mitologemas (elementos básicos de todo mito) constituintes do
mito do super-herói. (REBLIN, 2015, p. 168).

Desse modo, como já vimos, na medida em que entramos no uni-


verso de Hellboy, encontramos diversos elementos simbólicos, con-
cepções de uma compilação de interconexões e intertextualidades
entre diversos universos de sentidos, valores, símbolos, conceitos e
representações do imaginário popular.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 155

REFERÊNCIAS

BARBIERI, Daniele. As Linguagens dos Quadrinhos. São Paulo:


Peirópolis, 2017.
DELUMEAU, Jean. A História do medo no Ocidente: Uma cida-
de sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
p. 50
ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Mercuryo,
1992.
MIGNOLA, Mike. Hellboy: Edição gigante volume 1: A morte de
Hellboy. São Paulo: Mythos Editora, 2016.
MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo: Séculos XII-
-XX. Rio de janeiro: Bom texto, 2001.
NOGUEIRA, Carlos. O Diabo no Imaginário Cristão. 2ed. São
Paulo: EDUSC, 2002.
REBLIN, Andréas Iuri. O Alienígena e o Menino. Jundiaí: Paco
Editorial, 2015.
VERGUEIRO, Waldomiro. Pesquisa Acadêmica em história em
Quadrinhos. 1 ed. São Paulo: Criativo. 2017.
XAVIER, Cristina Levine Martins. Soldado do Inferno: mito e
religiosidade nos quadrinhos. São Caetano do Sul, SP: Difusora Edi-
tora, 2004.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 156
JESSICA JONES: UMA ANÁLISE
PSICOLÓGICA DE UMA HEROÍNA
EM CRISE
Emanuele Barbosa1
Gelson Vanderlei Weschenfelder2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A relação entre arte e psicanálise é abordada na psicologia desde


Freud em Delírios e Sonhos na Gradiva de W. Jensen (2006). Com a
utilização da literatura, o autor inovou o modo de relatar os casos
clínicos de seus pacientes e através do uso de metáforas, introduz no
mundo das artes a concepção da relação entre a produção artística
e o inconsciente (FUKS, 2003). Olhar a arte pelo viés da psicanálise
permite um maior entendimento sobre a individualidade do artista,
que se expressa através da criação da sua obra, bem como da mesma,
que reverbera sentidos pessoais através da subjetividade do espec-
tador. De acordo com Rivera (2002), o entrelaçamento e a afinidade
entre as áreas ocorrem porque a psicanálise e a arte moderna surgi-
ram na mesma época e compartilham do mesmo espírito.
A produção artística relacionada aos super-heróis das histórias
em quadrinhos (HQs), apresenta traumas, conflitos emocionais,
sintomas e características afetivas dos personagens. Assim, essa se
torna um campo rico para o trabalho de representação dos fenô-
menos psíquicos. Campbell (1997), em seus estudos sobre o herói
mitológico, defende que “[...] existe uma certa sequência de ações
heróicas, típica, que pode ser detectada em histórias provenientes de
1  Graduanda no curso de Psicologia da Universidade La Salle. http://lattes.cnpq.
br/3143643967351096, Barbosa.emanunele@gmail.com
2  Pós doutorando no PPG de Educação da Universidade La Salle, Doutor e Mestre em
Educação, Graduado em Filosofia. http://lattes.cnpq.br/3994106019346267. gellfilo@gmail.
com
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 158

todas as partes do mundo, de vários períodos da história” (p. 11), o


que o levou a criar a teoria da Jornada do Herói. O autor considera
essa uma fórmula que tem como núcleo a representação de rituais de
passagem divididos em três grandes estágios: separação ou partida,
provas e vitórias da iniciação e retorno e reintegração à sociedade.
Em função do exposto, este trabalho tem por objetivo realizar
uma análise psicológica, da personagem Jessica Jones, a partir da sé-
rie homônima, lançada pela plataforma de streaming Netflix. A aná-
lise se restringirá à terceira temporada, uma vez que essa é a tempo-
rada final e encerra o ciclo da personagem nesta plataforma.

Quem é Jessica Jones?

Jessica Jones originalmente surgiu como a super-heroína Jewel


nas HQs dos vingadores. Quando se aposenta do posto de super-
-heroína passa a trabalhar como uma detetive particular. Sua história
fica conhecida na HQ Alias, lançada em 2001, como carro chefe da
Marvel Max, um selo da Marvel Comics direcionado para o público
maior de 18 anos. Atualmente, há uma série que leva o seu nome e
que conta a sua história após seu casamento com Luke Cage e a con-
ciliação de seu trabalho como investigadora e mãe.
Em 2015 a plataforma Netflix lança o seriado Jessica Jones, basea-
do no arco Alias. Nele, é apresentada uma personagem traumatizada
e enlutada que tem dificuldades em lidar com os acontecimentos de
sua vida, como resumido pela própria personagem: “Minha família
morreu em um acidente de carro, alguém fez experiências horríveis
comigo, fui raptada, estuprada e forçada a matar alguém”. Na primei-
ra temporada ela precisa lidar com um dos problemas do passado ao
enfrentar Kilgrave, personagem conhecido nas HQs como Homem
Púrpura.
O seriado apresenta Kilgrave como um vilão capaz de controlar
a mente e o desejo das pessoas, através da manipulação dos fero-
mônios. Essa capacidade foi adquirida em um tratamento para uma
doença neurodegenerativa na infância. Com a sua aparição desco-
brimos que no passado Jessica havia ficado sob controle desse per-
sonagem que a abusou física e mentalmente a utilizando como ins-
trumento para os seus crimes a obrigando, inclusive, a matar uma
pessoa. Jessica, que ainda não havia superado o trauma causado por
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 159

esse relacionamento abusivo, se vê obrigada a enfrentá-lo novamente


quando ele reaparece em sua vida. Após quase sucumbir novamente
aos seus poderes, Jessica adquire a capacidade de evitar a sua mani-
pulação e decide matar o vilão, por entender que do contrário ela
nunca estaria livre.
O passado volta a assombrar Jessica também na segunda tem-
porada. Dessa vez, ela descobre que sua mãe, que a princípio acre-
ditava ter morrido no acidente de carro que vitimou a sua família,
reaparece explicando que também havia passado por experimentos
em laboratório e havia adquirido poderes. No entanto, em função de
efeitos colaterais do experimento, ela tem dificuldades de controlar
seus impulsos violentos, se tornando uma criminosa. Após tentar
manipular Jéssica e convencê-la a fugir do país, sua mãe é morta por
Trish, sua irmã adotiva.
Na terceira e última temporada, que será analisada nesta pesqui-
sa, a personagem precisa lidar com seus conflitos internos, principal-
mente em relação ao seu heroísmo, uma vez que os acontecimentos
das temporadas anteriores a fizeram confrontar seus sentimentos e
questionar a sua identidade. Ela precisa lidar com os lutos da perda
da sua mãe pela segunda vez e de uma concepção de vida que passa
a ser ressignificada.

A jornada do Herói

Joseph Campbell, na obra O Herói de Mil Faces (1997), faz um


estudo sobre o herói mitológico utilizando os conhecimentos da psi-
canálise por entender que os símbolos mitológicos são produções da
psique humana. Pesquisando sobre as diversas representações mi-
tológicas na história, ele percebe que há características em comum
entre elas na representação simbólica do herói que o levou ao desen-
volvimento da Jornada do Herói. Essa jornada é composta por 12
estágios percorridas pelo herói, conforme descrição abaixo:

1. Mundo Comum: a representação do mundo conhecido pelo


herói. Uma normalidade ou cotidiano que será quebrada assim que
a jornada iniciar.
2. Chamado da Aventura: Um convite para um desafio ou uma
aventura que se apresenta ao herói em um momento de distração, ou
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 160

até mesmos em um erro cometido.


3. Recusa do Chamado: receoso, o herói cogita negar o chamado,
resultando em uma demora na aceitação.
4. Auxílio Sobrenatural: uma ajuda externa que auxilia o herói no
início da jornada. Pode estar representado em uma figura divina, ou
em um mentor.
5. Passagem pelo Primeiro Limiar: ao aceitar o chamado, o herói
cruza as fronteiras entre o mundo comum e o mundo especial. A
partir desse ponto não é mais possível retornar e marca o início da
aventura.
6. Ventre da Baleia: ao encontrar inimigos e aliados, o herói passa
por testes que o fazem enfrentar seus limites até A morte, física ou
simbólica, seguida por seu renascimento.
7. Aproximação: o herói adquire conhecimento e habilidades e
enfrenta com êxito às provações que lhe cruzam o caminho.
8. Provação: quando o herói precisa colocar em prática o conhe-
cimento adquirido ao enfrentar uma grande prova, colocando sua
vida em risco.
9. Recompensa: o herói é recompensado por ter enfrentado seus
medos e desafios.
10. Caminho de Volta: percurso de retorno ao mundo comum,
após a decisão do herói de deixar o mundo especial.
11. Ressurreição do Herói: um novo teste se apresenta e o herói
precisa utilizar todos os conhecimentos adquiridos durante a jorna-
da.
12. Retorno com o Elixir: o retorno do herói para o mundo co-
mum com o elixir, uma espécie de recompensa, e a jornada tem fim.

A Jornada do Herói está presente na grande maioria das repre-
sentações artísticas e culturais onde há a figura ou a simbologia de
heroísmo. Em função disso, tornou-se uma referência bibliográfica
nos estudos sobre os super-heróis das HQs e de suas representações
na Cultura Pop de forma geral. Por essa razão, foi escolhida como
uma das bases teóricas para a análise realizada neste estudo.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 161

O Luto

Para compreender os conflitos enfrentados pela personagem,


entende-se a necessidade de uma explicação acerca da concepção de
Luto.
A definição de luto pelo viés psicanalítico inicia-se com os es-
tudos de Freud em sua obra Luto e Melancolia, onde ele realiza um
estudo que diferencia a tristeza do luto com o estado melancólico.
Freud (2006) define o luto como uma “reação à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um
ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim
por diante” (p. 249). Esse processo não ocorre somente para a morte,
mas com qualquer perda ou descontinuidade na vida do indivíduo,
como o final de um relacionamento, perda de emprego, mudança de
cidade, etc. (SOUZA e PONTES, 2016).
O autor denominou esse processo de elaboração psíquica de Tra-
balho do Luto. Tal trabalho possibilita a pessoa adiar ilusoriamente
a perda dando ao indivíduo tempo para a elaboração da morte (NA-
SIO, 1996). Freud define três momentos importantes no trabalho do
luto:

O objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja
retirada de suas ligações com aquele objeto. [...] Cada uma das lembranças
e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é
evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação
a cada uma delas. [...] Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se
conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido (2006, p. 249)3.

Segundo Nasio (1996), esses três momentos podem ser denomi-
nados de superinvestimento, desinvestimento e identificação. Em
um primeiro momento, quando o objeto deixa de existir, o afeto que
lhe era direcionado acaba por ser superinvestido nas representações
do mesmo, em uma tentativa do eu de perpetuar o objeto. Somen-
te, aos poucos o afeto vai sendo desinvestido dessas representações,
retornando para o próprio sujeito que internaliza a imagem do ob-
jeto perdido através de uma identificação com o mesmo. A fase do
superinvestimento é a mais dolorida, uma vez que “a dor do luto

3  Conceitos psicanalíticos podem ser consultados em: LAPLANCHE, Jean; PONTALIS,


Jean-Bertrand. Dicionário de psicanálise. São Paulo, 1991.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 162

não é dor de separação, mas de ligação” (NASIO, 1996, p.166). Para


Bowlby (1982), os sentimentos que mais causam o sofrimento no
luto são o medo do abandono, a saudade e a raiva por não mais po-
der encontrar a figura perdida.
Kübler-Ross (1989), ao realizar uma pesquisa com doentes termi-
nais, construiu uma teoria sobre o luto, definindo fases enfrentadas
pelos indivíduos. Segundo a autora, as fases são: Negação, Raiva, Ne-
gociação, Depressão e Aceitação. A autora salienta que pode haver
uma sobreposição dos estágios e que não há um período de tempo
estipulado para cada um, podendo durar de horas até anos. Ainda
que haja a definição das fases, compreende-se que um indivíduo pos-
sa elaborar o luto sem que passe por todas as fases, ou ainda pode
transitar por elas, retornando a uma fase anterior antes que efeti-
vamente haja a aceitação. Não há consenso na literatura quanto ao
tempo de duração de cada fase.
Em função da análise envolver duas teorias distintas, optamos
por explorar as fases do luto conforme Kübler-Ross (1989), utilizan-
do 3 grandes fases: Negação, Negociação e Aceitação. Para isso, se-
gue uma pequena descrição de cada uma das fases.

I-Negação
Inicia-se logo que o indivíduo recebe a notícia da perda, devido a
incapacidade de elaboração psíquica de um evento muito dolorido.
Segundo Bolwby (1982), o que ocorre é uma tentativa do indivíduo
de retornar ao momento anterior a perda ao invés de aceitar a rea-
lidade. Em um processo inconsciente, ao negar a perda o indivíduo
permanece com o afeto cristalizado no passado. Ainda, “o enlutado
também sente uma raiva e irritabilidade que podem ser externaliza-
dos sob a forma de comportamentos hostis” (MOURA, 2006, p. 25).
A negação, como mecanismo de defesa do ego age no sentido de pro-
teger a integridade do aparelho psíquico (FEIST, FEIST e ROBERTS,
2015). Esse mecanismo pode causar o isolamento social e a perda de
interesse nas atividades cotidianas, em uma tentativa de reprimir a
informação impedindo o acesso à consciência (SOARES e CASTRO,
2017). Em alguns casos, em que a perda já é esperada, essa fase pode
não ser vivida.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 163

II-Negociação
Trata-se de uma fase intermediária, quando o indivíduo já deixou
de negar a perda mas ao mesmo tempo ainda não consegue aceitá-la,
desenvolvendo conflitos psíquicos. Moura (2006), caracteriza dois
momentos que podem integrar a fase da negociação. O primeiro, é o
momento de Anseio ou Procura, onde persiste a dor psíquica, pois o
indivíduo pensa a todo tempo no falecido. Nesse momento, as me-
mórias relacionadas ao objeto se intensificam e situações que ante-
riormente foram insignificantes, ganham uma maior importância na
vida do indivíduo enlutado (SOARES e CASTRO, 2017). Posterior-
mente, há a Desorganização e Desespero, quando há a dificuldade de
adaptação após a perda. Em função da desorganização, o indivíduo
tende a ficar em um estado depressivo, uma vez que o sentimento de
raiva é substituído pelo sentimento de tristeza e desespero.

III-Aceitação
Aceitar a nova realidade da vida após a perda é um processo difí-
cil e doloroso. Segundo Moura (2006), o indivíduo precisa adaptar-
-se à perda, uma vez que esta é uma condição que não pode ser des-
feita. Ao internalizar simbolicamente o objeto perdido, a libido antes
direcionada a esse objeto fica livre e o indivíduo está pronto para
novos investimentos libidinais (FREUD, 2006). Aceitar uma perda
não significa que ela deixará de ser sentida ou que não causará mais
dor, significa que o indivíduo, apesar dela, consegue seguir com a
sua vida.

METODOLOGIA

Através da análise do voz over da terceira temporada, será abor-


dado o caráter heroico da personagem utilizando como referência
a Jornada do Herói de Campbell (1997) e suas questões afetivas à
luz da teoria psicanalítica. O voz over, é uma fala ou narrativa que
está sobreposta à cena, ou seja, não dialoga com a ação que ocorre
no momento. Esse recurso de voz do audiovisual é o equivalente ao
recordatório utilizado nas HQs. O recordatório é uma forma narra-
tiva que tem por finalidade situar o leitor na história e se diferencia
visualmente por estar em uma caixa de texto (POSTEMA, 2018).
Tanto o recordatório, quanto o voz over em Jessica Jones traz uma
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 164

narrativa em primeira pessoa, tornando-se um material rico para


análise psicológica uma vez que concede acesso ao mundo interno
da personagem. Busca-se com isso, compreender o entrelaçamento
das dimensões heróicas e psíquicas da personagem na resolução de
seus conflitos pessoais.

ANÁLISE

Tendo em vista o entrelaçamento das dimensões heróicas e psí-
quicas da personagem, a análise foi realizada a partir das três fases
do luto, mencionadas acima. Também foi analisado os conceitos das
dimensões heróicas a partir do olhar de Campbell (1997) sobre o
mito.

Odeio heroísmo: A Negação


Durante as duas primeiras temporadas, Jéssica precisa confrontar
o seu passado. Ao fazer isso, inicia-se um processo de ressignificação
de sua história de vida, impactando em sua noção de identidade. Até
então, sua identidade fora constituída ao redor da tragédia, do aban-
dono e do sentimento de que não fazia diferença na vida das pessoas.
Ao mesmo tempo em que nega a sua necessidade de pertencimento,
a solidão lhe causa dor e angústia, pois em seu âmago, ela precisa
dos outros e deseja amor e atenção. Ela diz: “Todo mundo precisa
demais dos outros. Sei que a solidão pode ser atraente, mas para al-
gumas pessoas, é fingimento. Por dentro, desejam amor e atenção.
Independentemente de quantos morram”. Entende-se, porém que
ao falar sobre ‘todo mundo’ ou ‘algumas pessoas’, na verdade ela fala
de si, uma vez que foi acionado um mecanismo de defesa do ego
chamado de ‘Projeção’. Isso ocorre quando um impulso indesejado
gera uma ansiedade excessiva que o ego entende não ter condições
de lidar. Na tentativa de proteção e redução da ansiedade, o meca-
nismo atribui esse impulso a um objeto externo, no caso de Jessica,
à outras pessoas (FEIST, FEIST e ROBERTS, 2015). É como se vís-
semos no outro o que está presente em nosso inconsciente, mas não
aceitamos. Além de ocultar seus sentimentos, negar seu heroísmo é
uma fuga da responsabilidade que ela acreditava não ter condições
de assumir. O processo de ressignificação também pode gerar um
enlutamento, uma vez que o conhecido não existe mais. Isso ocorre
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 165

porque o luto não está vinculado somente a perda de um objeto real,


mas também pode estar relacionado a perdas subjetivas (SOUZA e
PONTES, 2016).
No início, a personagem reluta em aceitar as mudanças perma-
necendo na fase de Negação. Ela nega a necessidade de se entender
como indivíduo após a reconstrução de sua história de vida, a per-
da real da família e, também, a sua condição de heroína. Essa fase
se caracteriza por alguns padrões de pensamento e comportamento
como os de entender a perda como uma fatalidade, ocultar os sen-
timentos e principalmente os de eliminar a dor (KOVACS, 1992).
Jéssica utiliza o álcool como mecanismo para evitar lidar com seu
sofrimento psíquico. A relação entre o luto e a toxicomania é enten-
dida como uma forma do indivíduo refugiar-se no mundo interno,
evitando assim as pressões da realidade e tende a ser a única for-
ma que o indivíduo utiliza para lidar com as conflitivas de sua vida
(SILVA e ULHOA, 2015). A relação da personagem com o álcool é
explorada na série como uma característica de sua personalidade e é
enfatizada nos momentos onde se pretende demonstrar a sua nega-
ção com responsabilidades, cuidado de si e relações de afeto. Jéssica
se questiona sobre as mudanças de Trish, sua irmã adotiva, e deixa
claro que possui um entendimento sobre a utilização do álcool como
um mecanismo de fuga da realidade. A personagem reflete:

Tirar uma vida muda uma pessoa. Com certeza me mudou. Parece que mu-
dou a Trish também. Trish vê as coisas em preto e branco, certo e errado.
Ou costumava ver. Talvez agora ela se pergunte como eu “Quem sou eu para
julgar?” Minha resposta é uma garrafa de uísque.

Trish Walker se tornou irmã adotiva de Jéssica, após a tragédia


com sua família. Ela foi uma atriz de renome na sua infância e ado-
lescência, quando passou a fazer o uso abusivo de drogas. Ela foi
internada por diversas vezes e Jéssica se sentia responsável por seus
cuidados e pela sua sobriedade. No final da segunda temporada,
após matar a mãe de Jéssica, em uma tentativa de salvá-la de suas
manipulações, Trish passa pelos mesmos experimentos que Jéssica
e também ganha poderes. Na terceira temporada, é revelado que ela
passa a utilizar seus poderes para trabalhar como uma justiceira, dei-
xando para trás a sua vida de glamour, desaparecendo sem deixar
rastros.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 166

Após o pedido insistente de sua mãe adotiva, Jéssica decide pro-


curar por Trish. Quando a encontra, ela precisa salvar a irmã que
quase foi morta ao invadir a casa de um suspeito. Trish a confronta
e diz que não precisa de sua ajuda, que agora ela seria a heroína que
Jéssica relutava em ser. Ela lhe diz: “Você não entende Jess (Jessica).
Está livre. Sempre disse que não pediu por isso, mas eu sim. Então,
pode parar de tentar e de se sentir culpada e inadequada. Não preci-
so que seja heroína, ninguém precisa. Eu cuido disso”.
O sentimento de responsabilidade com as atitudes de Trish en-
volve Jéssica em uma série de ações que impactarão o destino de
sua vida. Por essa razão, compreende-se que essa simboliza a figu-
ra do Arauto, personagem secundário que realiza o ‘Chamado da
Aventura’ (Campbell, 1997). O ‘Chamado da Aventura’ tira o herói
do mundo comum e o leva para um mundo desconhecido. Assim,
compreender uma realidade em que Trish também tem poderes é
mundo que precisa ser descoberto por Jéssica que, até então, optara
pela profissão de detetive particular por ser um trabalho solitário.

Ela achava que eu era capaz: A Negociação


Na terceira temporada, após ter recebido o ‘Chamado da Aven-
tura’, Jéssica inicia a barganha que ocorre na fase da Negociação, fase
essa do luto, segundo Kübler-Ross (1989) A personagem começa a
questionar as percepções e os sentimentos que tinha como verda-
de absoluta em sua vida. Os questionamentos iniciam em função
dos diálogos com sua mãe, no pouco tempo em que puderam estar
juntas novamente. Desde o início do primeiro capítulo, através da
narrativa em primeira pessoa, fica claro que nesta temporada a per-
sonagem estaria passando por conflitos internos. O capítulo inicia
com a seguinte fala:

Tem coisas que você olha e pensa: ‘Perfeito’. Sem dúvida é a coisa certa.
Outras coisas são obviamente erradas. Mas certo e errado não são a maior
prioridade de uma investigadora até ela ter a brilhante ideia de mudar e se
importar.

Essa passagem nos traz indícios da sua percepção de que não se


importava com os seus clientes e que, a partir dos acontecimentos da
temporada anterior, isso havia mudado. A partir de agora, ela se im-
portava. A vivência com sua mãe, permitiu que a personagem pudes-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 167

se se sentir importante e capaz, uma vez que tinha ganho a aprovação


que tanto esperava.

Se importar e fazer algo a respeito. É como minha mãe definiu uma heroína.
Apesar de ela não ser perita no assunto. Ela achava que eu era capaz. Não
tenho tanta certeza. Ela tinha esperanças. Eu não queria, mas ela passou pra
mim como por mágica. E agora é tudo o que me resta dela.

A crença da mãe em suas capacidades é o gatilho para que Jéssica


inicie um desprendimento do processo de negação e passe a nego-
ciar. Pela segunda vez a mãe havia partido, porém agora algo havia
permanecido com ela: a esperança. Os questionamentos se intensifi-
cam quando em um ataque de Salinger, o vilão da terceira tempora-
da, ela é ferida com uma faca, perde o baço, e chega próxima da mor-
te. Neste momento, ela se sente vulnerável e percebe a importância
de seus poderes e que, assim como a mãe desejava, a força fazia parte
dela e ela poderia ser uma heroína. Pelo ponto de vista psicanalítico,
é possível compreender que houve Para Jessica:

Uma heroína é forte. Uma heroína é invulnerável. Uma heroína tem um


maldito baço. Perca um órgão, ganhe um caso. Uma vítima é fraca, vul-
nerável. [...] Mas pro inferno com vulnerável. A força faz parte de mim. E
ninguém irá tirá-la.

Esse é um momento que Jéssica precisa novamente se confrontar


com mudanças na perspectiva em relação à sua vida. Ela se percebe
vulnerável, no mesmo momento em que a pessoa que ela sempre
precisou cuidar e proteger se torna forte. Assim, como mencionado
no diálogo abaixo, Trish a questiona sobre as suas capacidades e
responsabilidades com seus poderes.

Trish: -Sei que vai contra tudo em que acredita. Que pode ser fraca e que eu
possa ser forte.
Jessica: -Não me venha com baboseira de autoajuda pra cima de mim.
Trish: -Sabe o que é baboseira? Ser esfaqueada porque estava distraída, in-
diferente e provavelmente bêbada. Quer ser uma heroína, mas não faz o
que é necessário. Quantas vezes treinou no ano passado? Ou na sua vida?
E quantas garrafas bebeu? [...] Passei o último ano aperfeiçoando minhas
habilidades, sendo o melhor de mim. Sou irrefreável. E tenho todos os meus
órgãos intactos.
(Jessica dá um tapa no rosto de Trish que a joga longe)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 168

Jessica: -Aprendi algo recentemente. Algo que deveria saber. Ninguém é ir-
refreável.

A fase continua enquanto Jessica permanece com a esperança da


mãe internalizada e, assim como esperado nesta fase do luto, as me-
mórias da mãe estão mais presentes e relevantes uma vez que a libido
está sendo superinvestida no objeto (NASIO, 1996). A cada evento
bem sucedido, a memória da mãe surge reforçando a aprovação e
desempenhando a função de Auxílio Sobrenatural (Campbell, 1997).
As frases de incentivo e aprovação como “Minha mãe teria adora-
do isso” e “Minha mãe teria ficado orgulhosa”, são recorrentes na
narrativa em voz over. De acordo com Silva e De Melo Figueiredo
(2019), a figura que representa o ‘Auxílio Sobrenatural’ desempenha
uma função materna de cuidado e segurança, que incentiva e prote-
ge o herói. Ainda que negasse, o desejo de pertencimento estava ali.
Mesmo que as atitudes da mãe tenham prejudicado a personagem, o
resgate que ela faz com o seu retorno, grava em seu inconsciente uma
nova representação, onde o sentimento de abandono é substituído
pelo sentimento de afeto e de uma mãe que acredita nas suas poten-
cialidades. Para Nasio (1997), no processo de luto, o investimento
libidinal não está direcionado para a pessoa do morto, mas sim para
as representações mentais registradas no inconsciente do indivíduo.
Sendo assim, ainda que tempestuoso, o encontro com a mãe foi fun-
damental para o processo de elaboração do luto da personagem.
No desenvolvimento da trama, Jessica enfrente novamente um
evento de quase morte que a faz perceber e assumir que o desejo de
ser heroína não era apenas de sua mãe, mas seu também.

Minha mãe teria adorado isso. Não os cadáveres...nem meu encontro de


quase morte com um psicopata cretino...mas encontrar o dito cretino, expô-
-lo, isso é coisa de heróis. É o que minha mãe queria. Talvez eu também
queira.

Esse pensamento de Jessica ocorre após ela ter ficado presa em


um container onde estão os corpos de todas as vítimas de Sallinger.
Ela fica sem ar e chega a perder a sua consciência, sendo salva por
Trish e a polícia. Uma representação do estágio do ‘Ventre da Baleia’
na Jornada do Herói, sendo que essa é uma simbologia uterina que
permite o renascimento do herói após sua auto-aniquilação no teste
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 169

final, que provoca mudanças que podem ser tanto físicas como em
seu caráter. A passagem do container constitui uma representação
simbólica dessa fase na Jornada do Herói. O container como um es-
paço físico, cuja saída estava bloqueada, representa a prisão no Ven-
tre da Baleia. Ficar sem ar ao ponto de perder a consciência desperta
na personagem o medo da morte pela segunda vez em um pequeno
espaço de tempo, representando a auto-aniquilação. Ter sido salva,
após haver perdido as esperanças, a fez aceitar que o desejo de assu-
mir seu heroísmo estava dentro de si, atuando como uma simbologia
do renascimento do herói.
Ainda assim, Jessica flerta novamente com um retorno à fase da
negação pois ela sente que falhou com Trish, ao tentar prender Sa-
linger. Com isso, sua percepção era a de que o seu maior medo havia
se concretizado: o de fracassar no papel de super-heroína. Essa tran-
sitoriedade entre as fases do luto é comum e faz parte do processo da
elaboração até a sua aceitação (KÜBLER-ROSS, 1989). Nessa hora,
Jéssica questiona se não seria melhor ter permanecido com as coisas
como estavam no passado, antes dela começar a se importar com as
pessoas.

Eu era forte antes de me importar. E você (Trish) se importou muito antes de


ser forte. Mas demos um jeito. Minha mãe teria ficado orgulhosa. Mas sua
mãe sempre teve orgulho. Tem sangue nas minhas mãos. Do tipo que não
sai lavando. Eu fiz algo hoje. Deixei um assassino escapar. Trish precisava de
uma heroína. Fui o conseguiu.

No entanto, ela não chega a cristalizar novamente a negação.


Quando é presa por Salinger, esse a provoca confrontando seus sen-
timentos, crenças e medos. Os questionamentos descritos no diálogo
abaixo funcionam como uma espécie de ‘Confrontação’ (ZIMER-
MAN, 2009), que aproximam a personagem da aceitação de seu luto.

Jessica: -Quer que eu admita que trapaceio? Que sou uma fraude? Eu sou as
duas coisas e mais.
Salinger: -Estou mais interessado na mentira maior que diz a si mesma so-
bre por que quer ser uma heroína.
Jessica: -Exceto que não quero. Nunca quis.
Salinger: -E essa é a mentira. Porque você quer isso desesperadamente e sus-
peito que sempre quis. Certamente enganou a Trish. Se tivesse sido sincera
com ela, ela não teria se sentido obrigada a preencher seu lugar.
Jessica: -Você não a conhece. Nem me conhece.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 170

Salinger: E não preciso, porque é óbvio. Veja sua indiferença rebelde inten-
cional, por exemplo. Ela é a sua capa, sua máscara e sua armadura. Você
anseia a distinção. Ou que tal a sua profissão escolhida? Detetive particular.
É um clichê preguiçoso do herói individualista.
Jessica: -Paga as contas.Nem todo mundo pode viver do seguro do irmão
morto.
Salinger: -É. Vamos falar dos mortos. Eles têm seu papel.
Jessica: -Espera que eu chore? Que implore por minha vida como a Doro-
thy? Isso não é verdade.
Salinger: -Quero que aceite o que mais teme. Que sua família morreu a toa.
Acreditou que foram sacrificados em troca de seus dons. Que morreram
para que você pudesse salvar o mundo, uma pessoa por vez. E agora finge
que nunca quis isso? Está morrendo de medo de ter falhado com eles. E
falhou. Porque você não é e nem nunca será uma heroína.

Segundo Zimerman (2009), a ‘Confrontação’ é uma técnica psi-


canalítica que tem por objetivo levar o paciente a confrontar a per-
cepção de si com a percepção dos outros sobre ele e se sua fala está
alinhada com suas atitudes. Ainda, possibilita ao paciente vislumbrar
ressignificações para fatos e acontecimentos em sua vida, ao con-
frontar a sua narrativa sobre os mesmos. Salinger confronta exata-
mente os sentimentos que causam angústia na personagem naquele
momento, uma vez que ela estava em um processo de ressignificação
de sua identidade, principalmente com as questões relacionadas à
família e ao heroísmo.
Após esse diálogo, Jessica é resgatada pela polícia e Salinger acaba
preso. No entanto, para Trish isso não era o suficiente. Ela invade a
prisão e acaba matando Salinger em sua cela. Com isso, Jessica per-
cebe que o fato de ter os poderes lhe responsabiliza a agir como uma
super-heroína, tendo compromisso com as suas escolhas e que a par-
tir daquele momento não seria mais possível ser indiferente.

Não tentem ser heróis. É um trabalho de ‘m…’: A Aceitação


O início da aceitação de sua condição vem representada na sua
decisão de entregar Trish para a polícia, por entender a sua responsa-
bilidade em tudo o que havia ocorrido. Ao preparar-se para procurá-
-la, ela não repete o ato costumeiro de beber uísque antes de sair para
uma missão, salientando: “vou ter que fazer isso sóbria”. Essa atitude
pode ser entendida como uma demonstração de sua aceitação sobre
o problema que enfrenta com o álcool e seu amadurecimento em
função do caminho percorrido.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 171

Após a prisão de Trish, Jessica decide se mudar, em uma tentativa


de deixar para trás todo o ocorrido. Já que não seria mais possível
negar a ressignificação de sua vida e o seu heroísmo, permanecer
em Nova York significaria enfrentar os seus medos conscientes. A
personagem chega à estação de trem e solicita uma passagem para
o local mais próximo do México. Ao receber a passagem, essa é da
cor roxa, que Jessica associa com Kilgrave e ouve sua voz, em sua
mente, dizendo que seria melhor ela desistir pois nunca seria uma
heroína. Com isso, ela percebe que não adianta fugir, uma vez que a
sua história de vida e suas vivências permanecerão internalizadas e a
seguirão onde ela estiver. O processo de aceitação do luto indica que
a personagem internalizou a figura simbólica da mãe e aceitou que
sua vida já não é a mesma. Cabe a ela enfrentar seus sentimentos,
seus medos e reconhecer ser quem ela é. Em função da aceitação do
luto, a personagem está preparada para encontrar novos objetos de
desejo em sua vida já que a libido que antes era direcionada ao objeto
perdido está livre para ser redirecionada (SOUZA e CASTRO, 2017).
Essa é a etapa do ‘Retorno com o Elixir’ na Jornada do Herói, uma
vez que essa representa o encerramento de um ciclo em que o herói
já não é mais o mesmo.

Tem coisas que você olha e pensa : “Desastre”, Procura por saídas, fugas.
Outras coisas, você pensa: “Talvez eu possa consertar isso”. Pode se per-
guntar: “O que será necessário para consertar isso?” A resposta é “Demais”.
Será demais.

Assim como a aceitação do luto significa que o indivíduo con-


segue seguir com a sua vida, apesar da tristeza gerada pela perda,
o seriado termina com Jessica desistindo de deixar Nova Iorque e
assumindo que, ainda que seja demais, sua vida tem conserto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar o voz over através do olhar psicanalítico permite


um conhecimento maior sobre o mundo interno do personagem,
enriquecendo o entendimento da obra em si e das reverberações que
possam causar no espectador. Ainda que a história se passe em um
contexto que em um primeiro momento entendemos como fantasio-
so, a obra é uma representação de situações, sentimentos e emoções
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 172

que qualquer indivíduo pode enfrentar.


A vida da personagem Jessica Jones, conturbada desde a sua
infância, dificultou o seu desenvolvimento emocional em função
dos traumas e lutos enfrentados em diversos momentos. Em fun-
ção disso, entende-se que seu temperamento, humor e atitudes auto-
-agressivas, como o uso abusivo de álcool, são na verdade formas en-
contradas, conscientes ou não, de sobreviver ao sofrimento psíquico
gerado por todas as adversidades. A terceira temporada do seriado
explora a dualidade que constitui essa super-heróina, a humanidade
e o heroísmo, e como essas duas instâncias podem ser conflitivas
causando prejuízos emocionais à personagem.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 173

REFERÊNCIAS

BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. São


Paulo: Martins Fontes, 1982.
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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 174

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HOMEM-ARANHA
NO ARANHAVERSO E
REPRESENTATIVIDADE: UMA
ANÁLISE DE CONTEÚDO NA REDE
SOCIAL TWITTER
Brandy Stephanie Ribeiro Aguiar1
Jordão de Oliveira Farias2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A representatividade é um dos principais fatores para cons-


trução de uma identidade sólida e saudável. Alguns contextos são
capazes de influir de forma positiva ou negativa na construção iden-
titária de um indivíduo, como: sociedade, criação parental e cultura.
Quando interseccionamos os conceitos de identidade e negritude em
um contexto ocidental, diversas problemáticas surgem, relacionadas,
principalmente ao racismo e um modelo de sociedade pós-colonial.

NEGRITUDE E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

A identidade é um conjunto de caracteres que podem servir


para diferenciar um indivíduo perante os seus semelhantes. Ciampa
(1987) entende identidade como metamorfose, ou seja, em transfor-
mação constante, sendo uma espécie de resultado adquirido através
da soma entre a história do indivíduo, sua bagagem, contexto his-
tórico e social. Desta forma, podemos assumir que cada indivíduo
inserido na sociedade possui seus próprios traços quando trata-se de
identidade, por ter vindo de um contexto de características únicas.
1  Graduanda do 3º semestre no curso de Relações Públicas da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. E-mail: brandystephanie@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9865609251566444
2  Bacharel em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade
do Vale do Rio do Sinos. E-mail: fariasjordao@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.
br/7370119190252443
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 176

Dubar (1997) define identidade com um enfoque sociológico,


sendo resultado de todo um processo de socialização. Para o autor, a
identidade para o “eu” não se separa da identidade para o “ele”, mas
se relacionam e se constroem juntamente. O antropólogo Roberto
Damatta corrobora com Dubar (1997) trazendo a identidade desta
vez de uma visão antropológica, como algo que deriva de afirmati-
vas e negativas sociais a partir do posicionamento dos indivíduos
diante das situações do cotidiano, sendo assim, os perfis de iden-
tidade constroem-se partindo de bases sociológicas já presentes na
sociedade como um todo e não somente com escolhas individuais
(DAMATTA, 1997).
Quando tratamos especificamente de identidade negra não ve-
mos nada de muito distinto em termos de conceituação, porém a
forma com que ela se aplica dentro da sociedade é onde temos uma
grande diferenciação. A pedagoga Nilma Lino Gomes entende a
identidade afrodescendente de tal forma:

[…] a identidade negra aparece como uma construção social, histórica e


cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a cons-
trução do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a
um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o
outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si
mesmo, pois só o outro interpela nossa própria identidade. (GOMES, 2002
- p.165)

Gomes (2002) traz também a identidade negra como uma cons-


trução política, tendo em vista que se autoafirmar enquanto negro
no Brasil, não se limita apenas à cor da pele, mas também, ao fazer
isto, assume-se uma postura política.
Sobre a autoafirmação ainda existe um grande entrave cultural
que retrai a população negra: o racismo, que faz com que a negritude
tenha dificuldade em assumir sua própria descendência. O sociólogo
Clóvis Moura explica este contexto da seguinte forma:

A elite de poder, que se autodefine como branca escolheu, como tipo ideal,
representativo da superioridade étnica na nossa sociedade, o branco euro-
peu e, em contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e culturalmen-
te, o negro. Partindo desta dicotomia étnica estabeleceu-se uma escala de
valores, sendo o indivíduo ou grupo mais reconhecido e aceito socialmente
na medida em que se aproxima do tipo branco, e desvalorizado e social-
mente repelido à medida que se aproxima do negro. (MOURA, 1988 - p.58)
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 177

Sendo o branco, europeu apresentado como o superior e exemplo


de perfeição não apenas étnica, mas também estética, o que provoca
diversas problemáticas na construção identitária da população negra.
Araújo (2000) diz que as características da ideologia da identidade
brasileira, criam, uma dupla ambiguidade para brancos e negros. Os
brancos, esquivando-se de assumir uma identidade e seguindo suas
vidas utilizando-se de seus privilégios étnicos como se não vivessem
numa sociedade racializada, já os negros mesmo quando tentam
assumir sua identidade, acabam sendo retraídos e forçados a voltar
atrás pela sociedade etnicamente branca. O que faz com que muitos
negros acabem se sujeitando a pressão e tornando-se ‘socialmente
brancos’. Sendo uma espécie de violência racial, já que proporciona
o seguinte dilema: assumir a identidade negra e aguentar a repressão
ou negar as origens e, de certa forma, tornar-se socialmente branco.
Nelson Inocencio, Coordenador de Estudos Afrobrasileiros da UnB,
explica essa violência de tal forma:

A violência racial exerce duas maneiras distintas de coerção. Uma física e


irrefutável, outra simbólica e questionável. No plano da estética esta coerção
simbólica produz uma crise esquizofrênica na mente negra, que anula qual-
quer resquício de autoimagem positiva que nela possa haver. O dilema de
“ser ou não ser” é a questão, muito embora cause extrema angústia, porque
o povo negro indubitavelmente o é. E “não ser” significaria nada mais nada
menos do que a escolha pelo suicídio coletivo, se não físico pelo menos
espiritual. (INOCENCIO, 1992 - p.30)

Essas duas maneiras de coerção provocam uma divisão mental à


população negra, em termos de identidade. “Não ser negro, sendo-o,
implica em querer ser branco.” (Inocencio, 1999).
A identidade afrodescendente está diretamente relacionada à
educação e representatividade, ambos os fatores podem ser um auxi-
liador (ou não) quando trata-se de construção identitária. O ensino
escolar é um fator fundamental nessa construção, novamente, Nilma
Lino Gomes, elucida a dubiedade em que a formação de identidade
pode aparecer na escola da seguinte forma:

A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem
na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua
cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças
quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-
-las. […] Sendo entendida como um processo contínuo, construído pelos
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 178

negros e negras nos vários espaços – institucionais ou não – nos quais cir-
culam, podemos concluir que a identidade negra é forjada também durante
a trajetória escolar desses sujeitos. Nesse percurso, o negro e a negra depa-
ram-se, na escola, com diferentes olhares sobre o seu pertencimento racial,
sobre a sua cultura e a sua história. Muitas vezes, esses olhares chocam-se
com a sua própria visão e experiência da negritude. (GOMES, 2002 - p.146)

Para a criança negra a escola pode tornar-se num espaço de ex-


clusão. O contexto, à sua volta, muitas vezes, reproduz experiências
de rebaixamento concorrendo para o enfraquecimento da autoesti-
ma e para o desencorajamento.

NEGRITUDE, REPRESENTATIVIDADE E MÍDIA

Para compreender como as relações raciais e a representatividade


se apresenta através da mídia, é preciso analisar de que forma o ne-
gro está (se é que está) inserido nesse meio. A sociedade assume um
padrão eurocêntrico como correto, perfeito e irrefutável, mesmo de
forma involuntária e quando se trata da mídia isso não se mostra di-
ferente. As expressões midiáticas reforçam um padrão eurocêntrico,
assim como elucida Araujo (2000):
O Estado-nação no Brasil estabeleceu como referência para a cultura mas-
siva os atributos da cultura branca europeia, desestruturando e ao mesmo
tempo absorvendo das culturas negras e indígenas o tempero para a aclima-
tização e melhor aceitação da cultura homogênica. […] O surgimento da
televisão no Brasil, nos anos 50, veio reforçar esse papel das mídias já exis-
tentes na organização de uma identidade nacional, transformando também
elementos culturais dos não-homogênicos, negros e índios, em característi-
cas marcantes da identidade nacional brasileira e ampliando as dificuldades
de se definir o que é o negro no país. (ARAUJO, 2000 - p.89)

A mídia massiva assume um papel importantíssimo na constru-


ção de identidade e representatividade, papel esse que é extrema-
mente mal desempenhado, ajudando, muitas vezes, a reforçar es-
tereótipos negativo e causar o dilema de identidade na população
negra. Assim como aponta Inocencio (1999), na mídia perduram
expressões que rebuscam na estética, porém relaxam na ética. Quan-
do vemos o negro sempre esbarramos nos velhos clichês, como o
da empregada doméstica, o motorista ou o menino de rua, que ao
contrário do que muitos pensam, não servem para denunciar a desi-
gualdade racial brasileira, mas sim para reforçá-la.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 179

Negritude, representatividade e cultura pop


A cultura pop é um espaço de amplitude em termos de conteúdo
e formas de mídia, mas não em diversidade racial. Infelizmente não
há dados quantitativos sobre a presença de personagens negros em
objetos fílmicos, quadrinhos, games e outros produtos que envolvem
a cultura pop, mas um simples olhar de fora nota a forma destoante
em que se constroem as relações étnico raciais.
Mesmo que de forma lenta, o cenário vem mudando aos poucos
e o protagonismo negro tem ganhado o mínimo de espaço dentre as
produções culturais do ambiente. Exemplos como o próprio objeto
desta pesquisa e entre outros surgem para descentralizar a produção
e democratizar, mesmo que a curtos passos, o âmbito da cultura pop.

HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO

Vencedor do Oscar em 2019, Homem-Aranha: no Aranhaverso é


um longa de animação estadunidense, baseado nas histórias em qua-
drinhos do personagem Miles Morales, Marvel Comics. Produzido
pela Columbia Pictures e Sony Pictures Animation em associação
com a Marvel Entertainment e distribuído pela Sony Pictures Rele-
asing.
O longa conta a história de um adolescente negro nascido e criado
no distrito do Brooklyn/NYC. A narrativa traz elementos da cultura
e comportamento da comunidade negra na região. Diferente de mui-
tas outras produções, Homem-Aranha: no Aranha verso é pontual,
trazendo uma narrativa com perspectivas positivas de negritude que
vão da cultura e comportamento até relações familiares.

Homem-aranha no aranhaverso e representatividade: reações


no ciberespaço
O objetivo deste estudo é realizar uma análise sobre as reações
do público impactado pelo longa na rede social Twitter. A pesqui-
sa consiste em algumas etapas, primeiramente na coleta de dados a
partir da filtragem de publicações nacionais na rede social Twitter
com palavras-chave (representatividade, aranhaverso e Miles Mora-
les) durante o período de um mês a partir da data de lançamento
do filme. Com base neste percurso metodológico, foi alcançado na
primeira etapa do estudo um corpus de centenas de tweets. Para ca-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 180

tegorização do corpus as publicações foram divididas em três âm-


bitos. O primeiro relacionado à percepção do espectador de que o
longa produz efeitos positivos de mudança na representatividade na
cultura pop. O segundo referente a identificação direta entre o espec-
tador e o objeto fílmico. Por fim, percepções gerais de espectadores
correlacionando o filme com a temática de diversidade e seus des-
dobramentos. Aqui neste resumo foram consideradas as seguintes
pautas de observação: a forma com que o discurso se desdobra no
ciberespaço quando observamos pela ótica da representatividade na
cultura pop e de que forma o fator influi na construção identitária.

Interpretação dos tweets
Após a etapa de pesquisa e filtro, foi possível chegar a alguns dos
principais resultados que sintetizam grande parte das reações do
público, seguidos de uma análise interpretativa do impacto com a
chegada do longa.

Figura 1: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com


VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 181

Figura 2: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com

Nos exemplos acima temos uma análise direta dos moldes de au-
toidentificação e representação a partir do tema central: perspectiva
de crianças negras sobre um herói que se assemelha com eles. Usa
estratégias de referencialidade a partir das duas imagens para reforço
argumentativo.

Figura 3: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com

O exemplo acima se coloca próximo do dito, mesmo não fazendo


parte do recorte racial, faz alusão direta para a construção identitá-
ria de crianças negras, extrapolando as delimitações do imaginário
social.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 182

Figura 4: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com

Se coloca próximo do dito, utilizando a referência ao processo


receptivo do outro para ser mais um fator argumentativo dentro do
posicionamento da importância da representatividade.

Figura 5: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com

Aqui é feita uma análise do impacto geral do produto fílmico na


produção cinematográfica a partir da perspectiva da representativi-
dade.

Figura 6: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 183

Figura 7: print da rede social Twitter


Disponível no dia 10 de nov. de 2019 em: twitter.com

Aqui os atores se colocam próximo do dito a partir das suas expe-


riências e referenciando a experiência de outro. Destaca-se também
outros elementos da indústria cultural que carregam elementos sim-
bólicos de identidade cultural de pessoas negras.

ANÁLISE DOS DADOS

Por meio de análise dos dados colhidos com os filtros de pesquisa


na rede social twitter foi possível observar como o longa Homem-
-Aranha: no Aranhaverso teve impacto positivo já em sua estreia.
Quando tratamos do fator representatividade é observável que o
assunto esteve diretamente atrelado ao filme, o que (passível de nova
análise) pode representar um aumento no interesse sobre a pauta
negritude e representatividade mesmo em indivíduos não-negros.
Homem-Aranha: no Aranhaverso é uma obra que abriu o ca-
minho para discussões acerca do tema, criando um buzz positivo e
atingindo públicos fora do fandom da cultura pop.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Homem-Aranha: no Aranhaverso pode ser um marco para uma


maior representatividade no âmbito da cultura pop, aparecendo com
uma importante ferramenta para criação de identidade, principal-
mente para crianças e adolescentes. A excelente recepção do público,
como observado pela reações no twitter, valida o produto fílmico
enquanto uma produção carismática e importante para o cenário.
Fomentar produções semelhantes é fundamental para que o mer-
cado cinematográfico torne-se mais inclusivo e represente grupos
diversos de forma mais assertiva. O que deve ser tendência nos pró-
ximos anos.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 184

Miles Morales e seu manto enquanto Homem-Aranha são uma


figura importante para representatividade para a juventude negra,
que, a partir disto e outras narrativas positivas, pode ser ver como
tudo, inclusive um super-herói.

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FIGHT LIKE A GIRL: MULHER
MARAVILHA E SUA INSERÇÃO
NAS PRÁTICAS DOCENTES
Talize Zilio1
Gelson Vanderlei Weschenfelder2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As histórias em quadrinhos (HQs) possuem valor pedagógico


indiscutível, contudo, seu potencial como ferramenta de ensino ain-
da é pouco explorado pelos professores, inclusive nos anos finais do
Ensino Fundamental e Ensino Médio. Essa afirmação se fundamenta
ao observarmos o espaço destinado às HQs na maioria das escolas
de nosso país: elas são absorvidas pelo universo lúdico infantil como
motivadoras de bons hábitos e valores morais. Na maioria das bi-
bliotecas escolares, permanecem na sessão de alfabetização e muitas
vezes são utilizadas para recorte na produção de cartazes e afins. 
Os professores ao não reconhecerem as HQs enquanto arte, como
a música e a literatura, por exemplo, destinam seu uso a superficia-
lidade, não as explorando didaticamente, de forma relevante, prin-
cipalmente, em classes adolescentes e adultas. As HQs possuem um
universo complexo, refinado por personagens que trazem consigo
o debate e a batalha contra preconceitos sociais, como a luta pelos

1  Mestranda no Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade LaSalle, bol-


sista CAPES/PROSUC; Graduada em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 
Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Ensino-Aprendizagem, Educação, Formação
Docente. http://lattes.cnpq.br/8557666257185229 Contato: talizezi@gmail.com
2  Pós Doutorando no Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade LaSalle;
Doutor e Mestre em Educação pela Universidade LaSalle e Graduado em Filosofia pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Formação
Docente, Resiliência, Educação, Mediação Cultural. http://lattes.cnpq.br/3994106019346267
Contato: gelfilo@gmail.com
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 186

direitos das mulheres, iniciada pela personagem Mulher Maravilha


no século passado. 
A inserção consciente da Mulher Maravilha nas práticas docen-
tes é um exemplo precioso do amplo estudo que pode ser realizado
através da contextualização da arte sequencial as habilidades e com-
petências previstas na Base Nacional Comum Curricular, a BNCC.
Desse modo, podemos introduzir  a personagem observando que
o axioma binário de divisão de habilidades a partir do sexo é con-
templado pela história através dos séculos. No mundo moderno,
ele ganhou força no período pós Revolução Industrial, quando as
máquinas assumiram, massivamente, funções antes desempenhadas
por homens. A partir desse avanço, teorias da medicina da época
desestimularam as mulheres ao esforço físico, sob ameaça do não
cumprimento de seu papel de mãe. Além disso, diversos esportes
foram desaconselhados as mulheres, fadando-as ao sedentarismo e a
habilidades voltadas a técnicas domésticas e artesanato. 
Com a II Guerra Mundial, a mulher, nos Estados Unidos, em es-
pecial, foi levada a desenvolver trabalhos antes, apenas pertencentes
ao universo masculino, como ofícios na indústria bélica. Contudo,
com o término dos conflitos, tiveram decretado seu retorno ao lar
e às suas funções. De acordo com Jesus e Almeida (2016) diversas
campanhas publicitárias, da época, davam conta da importância do
papel social da mulher no interior de suas casas, mais especificamen-
te, em suas cozinhas. Sendo elas consagradas com o famoso título de
“Rainhas do Lar”. 
Enquanto muitas mulheres, retomam seus papéis domésticos,
outras inauguraram um movimento, dentro do feminismo, chama-
do de Segunda Onda. O livro de Simone de Beauvoir, O Segundo
Sexo, que foi um dos inspiradores dessa organização, trata da subor-
dinação da mulher ao homem a partir do olhar da sua relação com
a domesticidade. A obra, além de defender a liberação sexual femi-
nina, também observa a igualdade de gêneros e a independência das
mulheres. Na mesma década de seu lançamento (1940), observamos
o nascimento de nossa heroína, Mulher Maravilha.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 187

FIGHT LIKE A GIRL – DESMISTIFICANDO ESTEREÓ-


TIPOS

No ano de 2014, uma empresa de produtos de higiene, mundial-


mente conhecida, lançou uma campanha publicitária para sua linha
de absorventes íntimos na qual utilizava como ponto principal  de
interação com o seu público, a #likeagirl (como uma garota). O pro-
pósito da peça era desmistificar a premissa cultural negativa do fazer
algo ou agir como uma garota.
A peça publicitária consistia em comerciais que apresentavam
como protagonistas: mulheres, um homem, meninas e um meni-
no. Nela, era solicitado aos participantes que demonstram situações
como correr, arremessar uma bola e brigar da forma como uma ga-
rota faria. Os integrantes mais velhos e o menino apresentaram as
ações de modo estereotipado, exagerado e negativo, enquanto as me-
ninas ilustraram as atividades com bastante empenho e seriedade.
Em seguida, perguntaram a todos os envolvidos o que significava
para eles agir como uma garota (like a girl), novamente, os mais ve-
lhos e o menino observaram que a expressão os remetia a algo infe-
rior. Já as meninas, afirmaram que agir como uma garota significava
fazer o melhor que podia dar tudo de si, levando todos a refletir que
o gênero feminino é condicionado socialmente a ocupar um lugar de
fraqueza, de inabilidade. Para a autora: 

[...] a mulher internaliza a naturalidade da discriminação, tornando-se di-


fícil para ela romper com esta imagem de desvalorização de si mesma. Ela
acaba aceitando como natural sua condição de subordinada, vendo-se atra-
vés dos olhos masculinos, incorporando e retransmitindo a imagem de si
mesma criada pela cultura que a discrimina [...] (COLLING, 2014 p. 36). 

Dessa forma, observa-se um cenário, no qual a ideia de inferiori-


dade feminina é aceita de forma banal, introjetada socialmente nas
mulheres, determinando que assumam os papéis a elas destinados, a
partir das premissas da cultura machista dominante. 
Mesmo não indicando qualquer tipo de inspiração na campanha
de absorventes, um ano depois, a ilustradora gaúcha e desenvolvedo-
ra de games Kaol Porfírio, criou uma série artística de imagens que
homenageou mulheres da vida real, como Rosa Parks, Marie Curie,
Malala Yousafzai e do imaginário pop, como heroínas das histórias
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 188

em quadrinhos e personagens da literatura e do cinema, intitula-


da “Fight like a girl”. Seus desenhos ficaram conhecidos em todo o
mundo e estampam uma linha de roupas femininas celebrada por
organizações não governamentais feministas como o OLGA(org.) e
por celebridades da música pop. Através das ilustrações da artista,
as mulheres de todas as idades e segmentos não só contemplaram
as expoentes do gênero, como também, por elas foram inspiradas e
motivadas. A expressão fight like a girl deixa seu estigma negativo e
passa a denotar toda a força feminina, antes subjugada. 
Não somente a ação de marketing e as ilustrações contribuíram
para a expansão do termo Fight like a girl, o cinema e os quadri-
nhos foram agentes fundamentais na disseminação  dos ideais fe-
ministas, principalmente, por equidade de direitos e libertação de
padrões patriarcais, além do empoderamento das mulheres. Sobre
empoderamento, palavra que deriva da inglesa empowerment pode-
-se atestar a ela uma série de significados como delegação de poder,
de autoridade, promoção de autonomia, promoção da emancipação,
da afirmação, promoção de capacidades. Para Colling (2014, p. 6),
“o empoderamento é o processo pelo qual as mulheres incrementam
sua capacidade de configurar suas próprias vidas. É uma evolução na
conscientização das mulheres sobre si mesmas, sobre sua posição na
sociedade”.
 Entretanto, na cultura pop (quadrinhos, músicas, cinema), nem
sempre foi assim: a figura feminina era destinada a morte ou violên-
cia de qualquer espécie para o nascimento do herói. Ou ainda, era o
símbolo sexualizado da incapacidade para resolução de seus proble-
mas, precisando, dessa forma, de um norteador e salvador masculi-
no. A passividade feminina por elas assumida foi apontada no livro
Curso de Direito Social da ativista feminista Jeanne Deroin (1848
apud ALVES, 1985, p. 39): “A mulher ainda uma escrava, permanece
em silêncio. [...] Subjugada pelo domínio masculino, ela nem sequer
aspirar à sua própria libertação; o homem é que deve libertá-la.”
A roteirista norte-americana Gail Simone, no ano de 1999, criou
o termo “Women in Refrigerator” (Mulheres na Geladeira) ao ob-
servar um padrão perverso em relação às mulheres nas HQS: eram
constantemente feridas, estupradas ou mesmo mortas para promo-
ver o aparecimento do super-herói.
De acordo com Rodrigues (2015):
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 189

O nome Women In Refrigerator, Mulheres na Geladeira em tradução livre,


surgiu em um arco do Lanterna Verde, quando, ao chegar em casa, ele se de-
parou com sua namorada esquartejada dentro da geladeira. A morte não foi
planejada, nem teve real motivação, apenas serviu como plot device, mais
uma vez uma personagem feminina serviu de mero peão, com o objetivo de
tornar a história mais atrativa. A morte logo foi superada e a história seguiu
sem maiores referências ao acontecido. (RODRIGUES, 2015, p. 8)

Ainda em 2019, as personagens femininas continuam caracteri-


zadas em situações de risco, precisando do suporte masculino para
serem salvas, ou se sacrificarem, estimulando um herói ou um grupo
a modificar sua condição.

#FIGHT LIKE WONDER WOMAN (#LUTE COMO A


MULHER MARAVILHA)

Foi a partir do ano de 1941, com o lançamento de uma história


em quadrinhos protagonizada por uma mulher que a cultura pop
conheceu uma das suas mais notórias heroínas: a Mulher Maravilha.
Criada pelo psicólogo e ativista dos direitos humanos William Moul-
ton Marston, Diana, nome da heroína, recebeu a vida pela vontade
de Zeus através de uma escultura de barro feita por sua mãe, Hipó-
lita, rainha de Themyscira (Grécia). Ela foi agraciada pelos deuses
com diversas habilidades: a “[...] beleza de Afrodite, a força de Hér-
cules, a sabedoria de Atena e a velocidade de Mercúrio” (KNOW-
LES, 2008, p. 182). 
Além disso, utiliza acessórios que potencializam seus poderes:
dois braceletes, indestrutíveis que a auxiliavam contra projéteis e
raios de todas as espécies, funcionando como um de escudo prote-
tor; uma tiara, que quando arremessada, torna-se um poderoso bu-
merangue e um laço que fazia com que as pessoas por ele capturado,
falassem somente a verdade. 
Foi no alvorecer da Segunda Guerra Mundial que a heroína sur-
giu como símbolo de força feminina. 

Os EUA viveram uma forte onda nacionalista durante a Segunda Guerra


Mundial – basicamente toda a população entendia que Hitler era mesmo
um inimigo a ser combatido com sangue, suor e lágrimas. Ao mesmo tem-
po, quando os homens foram guerrear, as mulheres é que tiveram de arre-
gaçar as mangas e trabalhar para sustentar suas casas. Foi nesse contexto de
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 190

nacionalismo somado a emancipação feminina que, em 1941, nasceu a Mu-


lher-Maravilha. Ela tinha tudo: era uma mulher forte, poderosa, bonita – e,
de quebra, estava vestida com as cores da bandeira dos EUA, com uma águia
careca, o símbolo do país, estampada no peito. (D’ANGELO, 2016, p. 18)
 
O objetivo da personagem, vai além do enaltecimento do empo-
deramento feminino, uma vez que incentivava a adesão das mulhe-
res na indústria bélica americana. Para Jill Lepore (2014), a Mulher-
-Maravilha foi idealizada como um exemplo de força, liberdade e
coragem que possibilita findar com a concepção de que mulheres são
seres inferiores aos homens. Dessa forma, os movimentos feministas
da época, passaram a considerá-la como um símbolo de luta contra
o machismo, empoderando as mulheres, num todo.
Desde os anos 2000 com a ascensão dos filmes baseados em su-
per-heróis das histórias em quadrinhos, muitos aguardavam, com
ansiedade, a estreia de Mulher Maravilha. No ano de 2017, a pelícu-
la foi um sucesso de público e aclamada positivamente, não só pela
crítica especializada, mas pelas mulheres que se viram representadas
na essência guerreira e determinada da personagem. Assim, Mulher
Maravilha retoma seu papel como símbolo da luta pela humanidade,
pela justiça, pelo amor e acaba por arrebatar uma nova geração de fãs
e simpatizantes que são influenciados e representados por sua figura.

MULHER MARAVILHA NO CONTEXTO DIDÁTICO


ESCOLAR

Dificilmente, haverá pessoa que esteja conectada a qualquer tec-


nologia, digital, ou analógica que desconheça Mulher Maravilha. Di-
ferentes faixas etárias e classes sociais compartilham da admiração
pela heroína. Ao transportá-la para a educação, vários temas podem
ser abordados: desde o seu surgimento, levando os estudantes a co-
nhecer mitologia grega, as duas Grandes Guerras e os períodos que
as sucederam, a ascensão do feminismo, a corrida armamentista, a
guerra fria, entre tantos outros. Além disso, valores como resiliência,
humanidade e compaixão também são contextualizados pela per-
sonagem. Weschenfelder e Colling (2011) observam que os desdo-
bramentos históricos da sociedade são retratados nas Histórias em
quadrinhos, assim, abrindo um leque de possibilidades a serem ex-
ploradas pelos docentes em suas práticas.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 191

A identificação com a personagem Mulher Maravilha, ultrapassa


as questões de gênero, pois mesmo sendo um ícone de força femini-
na, é amplamente reconhecida e consagrada como uma das mais for-
tes heroínas, por todos os públicos. Desse modo, ela também aproxi-
ma seus leitores e espectadores socialmente e pode unir a educação
com o entretenimento através de suas histórias, tornando-se uma va-
liosa ferramenta para ampliação de conhecimentos e reflexões acerca
dos direitos humanos.
Abaixo, seguem sugestões aplicáveis de alguns temas para a prá-
tica docente nas disciplinas de História, Geografia, Língua Inglesa,
Língua Portuguesa, Física e Química e Ensino Religioso (presente
ainda nos currículos das escolas públicas do Ensino Fundamental)
que podem ser relacionados com a heroína.
Em história, pode-se estudar a mitologia Grega, observando o
surgimento da Mulher Maravilha e as divindades que lhe concedem
habilidades, como Mercúrio, Hércules, Atena e Afrodite, por exem-
plo; é possível, também, contextualizar a Primeira Guerra Mundial
através de seu filme recente, lançado em 2017. Além, de observar a
criação da campanha publicitária do governo americano e mais tar-
de símbolo de força feminino com a personagem Rosie - The Riveter
e sua relação com a heroína.
O estudo da polis grega e a possível localização da fictícia Ilha de
Themyscira, pode ser aplicado em geografia, bem como problemas
sociais e urbanos (Mulher Maravilha vive em Washington DC); os
blocos econômicos; os movimentos sociais (feminismo).
Nas línguas inglesa e portuguesa, o estudo dos idiomas através
do uso das histórias em quadrinhos, contextualizando tópicos gra-
maticais a partir de histórias da personagem. Atividades alusivas a
seu filme, observando, em inglês a habilidade relativa a audição e
compreensão dentro da própria língua, o listening. Também atra-
vés dela, contemplar elementos da cultura estadunidense, bem como
discutir sua influência sobre nosso modo de vida na América Latina.
Na disciplina de física é possível observar as demonstrações de
poderes como super velocidade, super força, resistência que a per-
sonagem desempenha. Em química, o laço da verdade, instrumen-
to de poder da heroína, serve como objeto de pesquisa: poderia ele
atuar através de neurotransmissores para obrigar a pessoa a falar a
verdade? Quais elementos químicos poderiam compor os braceletes
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 192

da Mulher Maravilha? Em Ensino Religioso, os temas: humanidade,


respeito, empatia, humildade, resiliência e amor permeiam as histó-
rias da personagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mulher Maravilha está além da super-heroína da ficção. A repre-


sentatividade realizada por ela, desde a sua criação é uma demons-
tração da força feminina. Ela é um ícone da cultura pop, inspirando
cada vez mais mulheres a mostrarem o que realmente significa fight
like a girl (lute como uma garota). Ao introduzi-la nas práticas do-
centes estaremos não somente, estimulando a apreciação da arte das
HQs, como também, oportunizando aos estudantes uma aprendiza-
gem prazerosa e significativa.
 David Ausubel (1968), em sua teoria da aprendizagem significa-
tiva nos fala que os conhecimentos prévios dos alunos sempre devem
ser levados em consideração, pois são a partir deles que se edifica a
aprendizagem significativa. Quando o docente oferece uma proposta
motivadora ao seu aluno, seus saberes prévios são ativados, expandi-
dos e transformados em novos, de forma relevante para si. 
Dessa forma, a utilização da personagem e sua contextualização
nas práticas didáticas escolares são valiosas para os docentes. O uni-
verso de possibilidades exploratórias de pesquisas e estudos que ela
nos oferece, nas mais diversas áreas de conhecimento, é excepcional.
Mulher Maravilha expressa o que há de melhor nos seres humanos
e é um exemplo de otimismo e força diante das adversidades. Ela
ultrapassa a barreira de gênero e de preconceitos e chega na sala de
aula como heroína que é, salvando inclusive, a aula da monotonia. 
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 193

REFERÊNCIAS

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VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 194

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de Federal de Pernambuco 2015. (Intercom – Sociedade Brasileira
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Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro - RJ – 4 a
7/9/2015 )
WESCHENFELDER, G.V.; COLLING, A.As super- -heroínas
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15(2):437-454. 2011. Disponível em: https://doi.org/10.4025/dialo-
gos.v15i2.447
UM FADO ÚMIDO: IMAGINÁRIOS
CONTEMPORÂNEOS EM A FORMA
DA ÁGUA
Sabrina da Paixão Brésio1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem por objetivo propor uma investigação


mitopoética do filme A forma da água, seguindo uma perspectiva
da hermenêutica simbólica. Neste sentido, partimos da acepção de
J.R.R. Tolkien sobre as origens dos contos de fada e da fábula, apre-
sentadas no ensaio Sobre Histórias de Fadas (1938)¸bem como dos
escritos de Edgar Morin acerca do cinema e sua correlação com o
Imaginário Simbólico, para compreender como esta obra desenrola
uma narrativa que congrega elementos míticos atualizados ao perío-
do contemporâneo, traduzindo em imagens, cor, sons e texturas, te-
mas relacionados ao amor, desejo, preconceito e invisibilidade social,
através de suas diferentes personagens. Consideramos que este filme,
até o momento, sintetiza o conjunto narrativo da obra mais autoral
de Guilhermo Del Toro, laureada com 4 Oscars em 2018, reunindo
elementos estéticos e temáticos reconhecíveis ao longo de sua carrei-
ra, que dialoga com o fantástico e o fabuloso como meios de leitura,
compreensão e ressignificação do real.

1  Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo, mestre pela mesma insti-
tuição com a dissertação: Nas trilhas do herói. Histórias em quadrinhos & itinerários de for-
mação (2016), pesquisadora do GEIFEC (Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação
em Educação e Cultura), membro da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte
Sequencial), roteirista colaboradora no Gibi Quântico vol. 2 (2016). Áreas de interesse:
Imaginário Simbólico, Cultura Pop, Narrativas audiovisuais. http://buscatextual.cnpq.br/bus-
catextual/visualizacv.do?id=K4352843U8. Contato: sapaixao.hq@gmail.com.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 196

A GEOMETRIA DEL TORO

Guillermo Del Toro é um cineasta, roteirista, escritor e produtor,


nascido em Guadalajara em 1964. Formado em 1983 na Universidad
de Guadalajara, já produzia curtas-metragens desde a adolescência.
Trabalhou em televisão, como diretor de maquiagem e com criação
de efeitos especiais com o estúdio Necropia, no México. Lança em
1987 o curta Geometria e em 1993 seu primeiro longa-metragem
Cronos, obra premiada que será responsável por aproximá-lo de
Hollywood. Em 1997, já nos Estados Unidos, o cineasta lança Mu-
tação (Mimic), obra que não é bem recebida pela crítica ou pelo pú-
blico. Em 2001 lança A Espinha do Diabo (El Espinazo del Diablo),
produção hispano-mexicana, que traz o tema da Guerra Civil Espa-
nhola, o qual terá continuidade no também premiado O Labirinto
do Fauno (El Laberinto del Fauno), de 2007. Sua filmografia segue
intercalando filmes produzidos nos Estados Unidos, os quais dirigiu,
roteirizou e produziu: Hellboy (2002), Hellboy II: O Exército Doura-
do (Hellboy: the Golden Army,2008), Círculo de Fogo (Pacific Rin,
2013); A colina escarlate (Crimson Peak, 2015) e A Forma da Água2
(The Shape of Water, 2017), este último indicado em 13 categorias no
Oscar 2018, ganhando como Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor
Trilha Sonora e Melhor Design de Produção.
O percurso filmográfico de Guillermo Del Toro é claro quanto a
sua predileção por histórias de cunho fabuloso, com monstros e todo
o tipo de criaturas. Também são óbvias suas referências literárias e
cinematográficas, devedoras dos contos de fadas, romances góticos,
ficção científica e, por conta deste itinerário, nos interessa aqui apon-
tar uma possível leitura hermenêutica do conjunto imagético de suas
produções, detendo-se em seu último filme.
O autor já prestou homenagens aos vampiros, com Cronos, ao
Godzilla em Círculo de Fogo, aos quadrinhos, com a adaptação de
Hellboy, aos romances góticos, com A Colina Escarlate. Entretanto,
não devemos nos ater a seus filmes apenas como releituras ou refe-
rências à gêneros fundantes da chamada cultura pop: com A Espinha

2  Não podemos deixar de registrar que junto a esta extensa lista de indicações e premia-
ções o filme foi envolvido em uma ação de plágio movida pela família de Paul Zindel, drama-
turgo estadunidense, que foi rejeitada pela corte. Mais informações sobre o caso em: https://
www.hollywoodreporter.com/thr-esq/judge-rejects-lawsuit-alleging-shape-water-ripped-pu-
litzer-prize-winner-1129566. Acesso em 25/04/2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 197

do Diabo e O labirinto do Fauno, Del Toro amplia o tempo e, o espaço


para que estas metáforas vivas3 possam desvelar o que há de fabu-
loso no mito e terrificante no real. Podemos considerar Geometría4
como uma pedra angular neste processo. Este vídeo de pouco mais
de 6 minutos é, a nosso ver, fundamental para a compreensão de um
conjunto imagético que acompanha a produção autoral do cineasta e
culmina, como propomos, em A Forma da Água.
Em Geometría, Guillermo Del Toro inspira-se no conto Naturally5,
de Fredric Brown, mesclando elementos do universo fantástico que
iriam compor posteriormente seu modo de fazer filmes. Escalando
sua própria avó como co-protagonista, ele conta a história de um
pacto entre um estudante e um demônio, para que aquele não repro-
ve em geometria. A trilha sonora, os objetos excêntricos e a paleta de
cores conduzem o clima obscuro da casa, com azuis se contrapondo
ao vermelho pontual em momentos de tensão, finalizando o ato de
horror com um tom sarcástico ao som do bolero Supersticiòn. Neste
curta ele já faz homenagem àqueles que foram referências em seu
processo criativo, como a Dick Smith, maquiador em obras clássicas
como O Poderoso Chefão, Taxi driver e O Exorcista, com quem Del
Toro estudou, bem como o próprio filme de William Friedkin é auto
referenciado algumas vezes (o nome do demônio é creditado como
Linda B, nome da atriz que interpreta Regan McNeil).
Quando elencamos elementos-chave no conjunto de sua filmo-
grafia, é notória como sua origem mexicana é um fator fundamental
para a abertura narrativa que transita por temas de vida e morte,
pelo convívio entre humanos e seres fantásticos. A cultura mexica-
na, que celebra a morte com festas e caveiras coloridas, é fonte para
a multiplicidade de criações dos seres de Del Toro. Esta cultura é
devidamente homenageada na animação Festa no Céu (The Book of
Life, 2014), dirigida pelo mexicano Jorge R. Gutierrez e produzida
por Del Toro, após a ruptura do diretor com a DreamWorks. Esta
animação explora como o Día de los Muertos6 é parte integrante de

3  Del Toro: “Monsters Are Living, Breathing Metaphors”. Entrevista feita por Max Miller para
o Big Think em 22/09/2010. Disponível em https://bigthink.com/videos/monsters-are-living-
-breathing-metaphors. Acesso em 25/04/2019.
4 Curta completo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1oMSE8VUadA.
Acesso em 25/04/2019.
5  Conto disponível na íntegra em: https://www.sffaudio.com/hypnobobs-naturally-by-fre-
dric-brown/. Acesso em 22/07/2019.
6 O Día de los Muertos é considerado desde 2008 como Patrimônio Cultural Imaterial da
Humanidade.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 198

um modo de ver e viver a vida cotidiana em troca constante com ou-


tras esferas simbólicas, uma festividade popular singular que é uma
mescla das tradições dos povos pré-colombianos (mexica, maya, pu-
répecha, totonaca) com elementos da cultura católica imposta pelos
espanhóis. Del Toro flerta em suas obras com esta dualidade cultural,
referenciando por vezes a tradição católica na qual foi educado desde
pequeno, incluindo as referências literárias que fizeram parte de sua
formação, reduzindo a fronteira entre o chamado “mundo real” e
o universo do sombrio, da fantasia e do desconhecido, comumente
entendido como “universo fantástico”.

Figura 1-A Morte em Festa no Céu (The book of Life, 2014)


© 2014 20th Century Fox. Todos os direitos reservados
Fonte:https://i.kinja-img.com/gawker-media/image/upload/kqkk8itr1vciz8t7xean.png

Figura 2- O anjo da morte em Hellboy II: The Golden Army (2008).


© 2008 Universal Pictures. Todos os direitos reservados
Fonte: https://media.comicbook.com/2017/06/hellboy-2-angel-of-death-1005118-
1280x0.jpg

A estética de Del Toro é alimentada com literatura gótica e com


os primórdios da literatura de ficção científica produzidas na Velha
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 199

Europa, mas também se encora no realismo mágico, gênero gestado


na América Latina. Esta literatura agrega alguns componentes nar-
rativos como um forte teor descolonial, construindo cenários que
flertam com o sobrenatural, o absurdo, o non sense, costurado pela
mistura heterogênea de referências nativas, negras e européias. Este
gênero tão pouco se encontra plenamente definido, mas aponta para
uma forma de leitura do real que se irmana em diferentes autores,
como pontua Rafael Camorlinga Alcaraz (2005, p. 22):

A nova safra de escritores cujas obras aparecem mais para a metade do pre-
sente século, procuram, então, uma saída poética do realismo. Merecem
destaque Uslar Pietri, propagador do realismo mágico, Alejo Carpentier,
que propôs o real maravilhoso e J. L. Borges, partidário e cultivador de uma
narrativa mágica, de uma literatura fantástica. Além deles podemos citar
Asturias, da Guatemala, Rulfo, do México, Cortázar, da Argentina, Onetti,
do Uruguai.

Além destes poderíamos citar Gabriel Garcia Marques, Mário


Vargas Llosa, Laura Esquivel, Isabel Allende, Adolfo Bioy Casares,
e tantos outros,7 bem como as discussões acerca das terminologias,
como realismo fantástico, realismo mágico, real maravilhoso, dentre
outras titulações que tentam dar conta da complexidade e multipli-
cidade que envolve esta produção, comuns apenas na extrapolação
narrativa para além de um campo propriamente do “mundo real” e
suas regras físico-naturais. Este tipo de narrativa, derivada da cul-
tural oral, da mitologia e do folclore, aduba a produção literária e
esta inspira o cinema. A respeito dos gêneros cinematográficos, Luís
Nogueira apresenta a seguinte definição de fantástico:

O fantástico pode ser definido de um modo suficientemente convincente,


apesar das contaminações em que convive com outros gêneros (o filme de
aventuras, o filme de acção, o filme de terror ou o filme de ficção científica
são disso exemplo claro), das múltiplas géneses das suas personagens (re-
ligiosas, tecnológicas, sobrenaturais) ou da morfologia e ontologia plural
dos seus universos (passados ou futuros, próximos ou distantes, mentais
ou físicos). Se a causalidade é, na concepção clássica e mais convencional
da narrativa, uma das suas características fundamentais e um dos factores
decisivos para a sua inteligibilidade, assegurando as necessárias condições
de verosimilhança ou veracidade, o filme fantástico é aquele onde essa mes-

7  Mais referências podem ser acessadas em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/realismo-


-magico/.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 200

ma causalidade mais se afasta das premissas realistas e das leis comuns do


quotidiano. Aqui, as relações de causa-efeito como as conhecemos são cons-
tantemente desafiadas: seja na mente das personagens seja na mais reconhe-
cível banalidade, tudo acaba por, a certo momento e em certas condições, se
tornar possível. As leis do mundo e as suas premissas são quebradas e um
novo regime de causalidade é instaurado: um novo tipo de explicações e de
justificações entra em vigor. (NOGUEIRA, 2010, p. 26-27)

Figura 3- Del Toro posa com o fantasma da mãe interpretado por Doug Jones em
A Colina Escarlate.
© 2015 Universal Pictures. Todos os direitos reservados
Fonte: https://i.pinimg.com/originals/ca/3a/e5/
ca3ae5bdbc0e5c19616166887d73f4f0.jpg

Compreendendo A Forma da Água como pertencente ao gêne-


ro do fantástico, veremos qual leitura possível da realidade ele nos
oferta.

ELE NEM MESMO É HUMANO

Ambientado nos anos de 1960, no auge da Guerra Fria e do ápice


do american way of life, A Forma da Água é uma obra que divide opi-
niões. Ela pode ser tanto considerada uma aposta alta do diretor, ao
mesclar uma miscelânea de situações aparentemente incompatíveis
para um filme tipicamente hollywoodiano (uma mulher muda que
se apaixona por um ser anfíbio com poderes sobre-humanos, e que o
resgata de um laboratório secreto com ajuda de um espião russo, sua
colega faxineira e seu amigo gay), ao mesmo tempo em que pode ser
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 201

acusado de excesso de condescendência para com o estilo do cinema


clássico de Hollywood, utilizando-se de alusões diretas à era de ouro
dos musicais. O próprio diretor faz troça desta sinopse, quando trata
de como vendeu o roteiro para os patrocinadores8. Compreendemos
que o filme pode ser ambas coisas, o que explicaria sua performance
no Oscar 2018, por alcançar um sabor que equilibrou seu elemento
autoral com fartas doses de referências à própria Hollywood e ao ci-
nema clássico como meios de criar fantasias sobre outras realidades
possíveis. Tendo isto posto, o que nos interessa retomar é como o
diretor elabora as metáforas que direcionam suas escolhas para com-
por uma história que versa sobre o monstruoso que é o outro.
Valendo-se de um período bem circunscrito da história, Del
Toro utiliza uma figura animalesca para contrastar e problematizar
a dualidade simplista ocidental. A Guerra Fria indica um período de
polarização ideológica que orientou a construção imagética e psi-
cossocial sobre temas como o Bem e o Mal. Os russos são maus, os
estadunidenses, bons. Tendo este parâmetro como régua moral, o
diretor elabora um discurso no qual apresenta uma série de tipos
sociais que são incluídos na linha de “outros” dentro da sociedade
norte-americana. Interessante notar que o diretor elabora este ponto
de vista excludente a partir daquele que é o padrão do que seria bom
e correto nesta sociedade: o homem branco heterossexual.

Figura 4- Coronel Richard Strickland, interpretado por Michael Shannon.


© 2017 Fox Searchlight Pictures. Todos os direitos reservados.
Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

8  Master Class ‘De Geometría a La forma del agua’ por Guillermo del Toro. Disponível em:
https://youtu.be/KagZl9YCF34 . Acesso em 20/04/2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 202

Richard Strickland é a personagem que atua como reguladora


neste contexto, é por sua ótica que as demais pessoas são filtradas e
taxadas como boas ou más, como cidadãs ou como “monstros”. Ou-
tros personagens reforçam esta primazia do homem branco, como o
General Frank Hoyt e o vendedor da loja de tortas. Assim estabelece-
-se uma hierarquia social na qual mulheres, negros, deficientes, gays
e estrangeiros são tidos como um outro indesejável: Del Toro não é
discreto ao usar suas metáforas. Comecemos com suas personagens
femininas.
Elisa Esposito é uma jovem muda, que há uma década trabalha
como faxineira e vive modestamente em um pequeno apartamento
adaptado dentro de um cinema em decadência. Órfã, foi encontra-
da próximo a um rio quando bebê, já com as marcas características
em seu pescoço, que indicariam a retirada intencionais de suas cor-
das vocais. Seu nome, derivado do hebraico Elishebba, traz algumas
significâncias como “promessa divina”, enquanto Esposito deriva da
palavra italiana para “exposto”, sobrenome utilizado para nomear
crianças abandonadas. Esta moça sem perspectivas, que não se en-
quadra no chamado “mundo real”, vive em seu próprio mundo, cer-
cado por discos, sapatos e épicos filmes musicais. Quando a história
se inicia, acompanhamos sua rotina matinal que inclui, sem pudores,
uma cena de masturbação. Esta é a protagonista, uma mulher sem
voz, alheada do mundo comum, mas que tem vontades, desejos e
hobbies como qualquer outra pessoa. Elisa não é uma mocinha a ser
salva, ou uma mulher autossuficiente endurecida pela vida. Ela equi-
libra suas fragilidades com sua capacidade de observar e ler o mundo
a sua volta. Sua melhor (e única) amiga é Zelda Dalila Fuller, outra
faxineira, uma mulher negra e casada. Ambas trabalham no turno da
madrugada e é Zelda quem acolhe Elisa neste lugar, aprende a língua
de sinais, sendo a intérprete dela para o resto do microuniverso que
é a empresa Occam e, em contrapartida, Elisa é toda ouvidos para as
reclamações e desabafos de Zelda, casada com um homem apático,
o qual ela sustenta.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 203

Figura 5- Zelda e Elisa.


© 2017 Fox Searchlight Pictures. Todos os direitos reservados.
Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

As relações sociais e raciais são fartamente exploradas ao longo


do filme, com os frequentes assédios morais por parte de Strickland,
incluindo assédio sexual para com Elisa. Em uma cena memorável
do filme, quando Strickland interroga os funcionários, seu diálogo
com Zelda expressa o abismo social que é estabelecido nesta socie-
dade que vivencia o começo dos movimentos dos direitos civis: Ao
perguntar sobre seu nome do meio, Dalila, ele comenta que ela é
uma personagem bíblica, uma mulher que trai e tenta destruir San-
são com seus ardis. Em outro momento, ele diz que Deus fez tudo a
sua imagem e semelhança, e neste caso, Deus deve se parecer mais
com ele do que com Zelda. Mesmo a situação de fuga do laborató-
rio é explicada em termos de diferenciação social: ao ser torturado
para dizer quem é o grupo responsável pelo ataque, Hoffstetler ri e
se contenta em dizer apenas “eles limpam”. Este grupo de trabalho
é invisibilizado, como se as faxineiras fossem fantasmas sem nome,
sem personalidade, seres que não são notados pelos demais setores.
Outra personagem que possui um papel curto, contudo impac-
tante, é Elaine Strickland. A família de Strickland é composta como a
perfeita propaganda da família do american way of life, eles emulam
a família da propaganda de gelatinas que Giles passa boa parte do
filme elaborando, que no Brasil chamamos de “Família Margarina”.9

9  Mais sobre como a publicidade vê este termo em: https://www.meioemensagem.com.


br/home/comunicacao/2018/01/30/para-onde-foi-a-familia-do-comercial-de-margarina.html
. Acesso em 12/08/2019
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Figura 6- Elaine Strickland.


©2017 Fox Searchlight Pictures. Todos os direitos reservados.
Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

Elaine ajuda a construir a personagem de Richard, nos oferecen-


do um olhar doméstico sobre este homem, que lutou no Vietnã e
retornou transformado de sua missão na Amazônia. Elaine aponta as
mudanças e a degradação da personalidade de Richard, bem como
a violência doméstica, que chega ao ápice do estupro. No livro10,
Lainie Strickland possui mais camadas e acompanhamos sua trans-
formação também de esposa de um militar, mãe devotada e dona
de casa repleta de eletrodomésticos de ponta, para uma mulher que
começa a trabalhar fora e questionar seus anseios na vida e que, ao
chegar em seu limite de suportar a violência física de Richard, aban-
dona o lar com os filhos para recomeçar.
Estas mulheres são três facetas que tentam representar condi-
ções sociais do feminino, seja nos anos 1960, seja na atualidade, com
pautas que infelizmente mantem-se resistentes ao longo das gera-
ções (desigualdade de gênero, violência doméstica, assédio moral,
assédio sexual, jornadas duplas e subempregos). E em se tratando
de excluídos sociais, Giles é a personagem que incorpora a pauta de
preconceitos contra os homossexuais. Se Zelda é a única pessoa com
quem Elisa possui um relacionamento no mundo externo, Giles ocu-
pa este lugar no ambiente doméstico. Vivendo no apartamento ao
lado, Giles é um artista de meia idade, homossexual e solitário, que
vive entre desenhos, gatos e filmes na TV. O mercado da propaganda

10  A obra, escrita em parceria com Daniel Kraus e lançado em 2018 é, como afirmou
Kraus, uma obra independente do filme. https://entretenimento.uol.com.br/noticias/
redacao/2018/03/06/a-forma-da-agua-um-livro-idealizado-antes-do-filme-mas-publicado-
-depois.htm. Acesso em 20/03/2019.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 205

está mudando com as inovações tecnológicas e paulatinamente ele


está sendo excluído dele. Elisa e Giles se completam em sua solidão,
dividindo o mundo de sonhos e beleza que o cinema os oferta com
as reprises na TV. Suas poucas incursões ao exterior da casa são para
ir à loja de tortas, onde ele tem a oportunidade em conversar com
o vendedor, comendo tortas de limão que detesta, como forma de
ter algum contato humano com alguém. Este contato é bruscamente
rompido quando Giles presencia uma cena de discriminação racial
do vendedor com uma família negra que entra na loja e é expulsa,
bem como ele na sequência, após insinuar que era gay.

Figura 7 Giles e ‘Pie Guy’


©2017 Fox Searchlight Pictures. Todos os direitos reservados.
Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

A última personagem que apontaremos é o cientista Robert/


Dmitri Hoffstetler. Ele se torna o contraponto político de Strickland,
no binômio da Guerra Fria. Espião russo infiltrado para descobrir os
segredos da criatura capturada pelos militares estadunidenses, Ho-
ffstetler não encarna o estereótipo do vilão russo. Ao contrário, ele
se parece mais com o próprio Strickland. Ambos são homens que
respondem a hierarquias militares ferozes, que jogam com suas vidas
sem titubear. Robert não escolheu sua condição, ele é chantageado
e, como Richard, ele quer terminar sua missão e retomar sua vida,
como prometido por seus superiores.
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Figura 8 Richard Strickland e Dr. Dr. Robert Hoffstetler.


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Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

Diferente deste, ele vê a criatura aprisionada como uma maravi-


lha da natureza, que deve ser preservada e estudada; Strickland, por
outro lado, quer destruir a criatura a todo o custo, ele se recusa a
admirar sua magnificência. Seu ódio e loucura chegam as máximas
consequência de torturar e matar a sangue frio Dmitri.
Estes personagens fazem parte do cenário onde este conto de fa-
das se desenrola e compõe um panorama da crítica e da necessidade
de alteridade. Como em um musical, são pares que dançam e tecem
uma crítica social. Strickland é a síntese de um pensamento delirante
de poder e ordem social que apodrece aos poucos, levando-o a uma
insana fixação com a criatura e com Elisa, que se torna seu protótipo
ideal de mulher, modesta, frágil e, sobretudo, calada; já o homem-
-anfíbio ( chamado no livro de Deus Brânquia) é o ser catalizador de
todas as expressões de ódio e preconceitos de Strickland. Apenas ao
final é que ele, na iminência de sua morte, compreende a amplitude
fantástica do ser anfíbio, quando declara “Você é um Deus”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Forma da Água foi considerado um conto de fadas contempo-


râneo, uma atualização possível de A bela e fera e segundo o diretor
seu filme mais otimista até o momento.11 A proposição que a água

11  Citado em, Master Class ‘De Geometría a La forma del agua’ por Guillermo del Toro.
Disponível em: https://youtu.be/KagZl9YCF34 . Acesso em 20/04/2019.
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representa o amor, um amor que não tem forma, ou que pode tomar
todas as formas possíveis é um elemento arquetípico potente. Elisa
sonha com água, e tudo que se refere a ela é aquático. A escolha da
paleta de cores no filme, da iluminação e dos objetos contam esta
história, uma das premissas do diretor é que o amor acontece sem
palavras. Elisa não é capaz de se comunicar com o mundo em ter-
mos vocais e por isso mesmo o mundo também não faz questão de
ouvi-la de outras maneiras. São os filmes musicais que dão a voz que
ela não tem para expressar todo o amor que sente, dentro de uma
ilusão em preto e branco. A percepção de que Elisa e o Deus Brân-
quia se compreendem melhor do qualquer outro casal ao longo do
filme reforça a crítica sobre como nos relacionamos. Zelda reclama
diariamente da apatia de seu esposo; Lainie e Richard mantêm um
relacionamento modelo, no qual a mulher é submissa e silenciada
mesmo quando demonstra seu desejo pelo marido; Gilles sofre com
sua sexualidade reprimida; Dmitri morre em nome do seu amor pela
ciência.
Em sua investigação hermenêutica, Gaston Bachelard disserta
sobre o elemento em A água e os sonhos e suas diferentes acepções
imagéticas. Na introdução de sua obra, ele aponta que

(...) existe, sob as imagens superficiais da água, uma série de imagens cada
vez mais profundas (...). Reconhecerá na água, na substância da água, um
tipo de intimidade (...) a água é também um tipo de destino, não mais ape-
nas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não
se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a
substância do ser. (...) o ser humano tem o destino da água que corre. A água
é realmente o elemento transitório. (...). O ser votado à água é um ser em
vertigem. (BACHELARD, 1997, p. 6-7)

Elisa mergulha neste conto de fadas, pois sua existência é um


transitar entre mundos da ficção, repletos de grandiosidade, sons
e possibilidades, e o mundo comum. O homem-anfíbio a encanta,
e ambos desenvolvem uma linguagem própria, um meio de sentir
e experimentar esta realidade de outro modo. O amor entre uma
mulher e um ser aquático deixa de ser absurdo e adentra o reino da
fábula.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 208

Figura 9-Elisa e o homem-anfíbio


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Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/

O interessante é que este conto de fadas vai além dos termos eufe-
mizados do amor casto. O desejo é sexual, a atração é mútua e satis-
feita. É uma construção moderna a correlação entre contos de fadas
e crianças. Estas histórias derivam das narrativas orais transmitidas
a todos, e a própria noção de infância é um conceito relativamente
recente. Robert Darnton desenvolve em seu estudo das mentalida-
des francesas no Antigo Regime um panorama dos contos que cir-
culavam no campesinato francês, no qual a sobrevivência é o grande
tema motor e a violência e a morte não são excluídas ou censuradas
em detrimento dos ouvidos das crianças. Elas fazem parte ativa desta
sociedade de excluídos e deste modo ouvem, assistem e participam
destas narrativas de superação dos males, permeadas de sequestros,
roubos, assassinatos e sexo. Ao comparar diferentes versões dos
mesmos contos, Darnton (2018, p. 53) afirma que “na maioria dos
contos, a satisfação dos desejos se torna um programa para a sobre-
vivência, não uma fantasia ou fuga. (...) Apesar de ocasionais toques
de fantasia, portanto, os contos permanecem enraizados no mundo
real”. O que se passa com A forma da água nos parece algo similar. As
relações humanas não são atenuadas, não há apenas uma dualidade
entre bons e maus, e sim pessoas que tentam sobreviver, cada qual de
seu modo, aliciando suas próprias fugas imaginárias, tendo o cinema
como um grande referencial metalinguístico.
Recorrendo ao pensamento de Edgar Morin (2014, p. 204) acer-
ca das relações do cinema com o imaginário simbólico, ele define a
simbiose que ocorre entre o filme e o espectador: “O filme é repre-
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 209

sentação e ao mesmo tempo significado. Ele remixa o real, o irreal, o


presente, a vivência, a lembrança e o sonho no mesmo nível mental
comum. Como a mente humana, ele é tão mentiroso quanto verídi-
co; tão mitômano quanto lúcido.”

Figura 10. Elisa e o Deus Brânquia se reencontram no cinema.


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Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5580390/mediaviewer/rm2116771072

Se observarmos a figura acima, um dos frames do filme no qual


Elisa reencontra o Deus Brânquia no cinema após sua fuga da ba-
nheira, temos este duplo significado metalinguístico e intencional: o
que é mais real, o que está sendo representado na tela atrás deles, ou
o que se passa com eles neste momento? O cinema, um dos únicos
lugares reservados para o uso da cor vermelha no filme, é o ponto
de encontro entre a ficção e a realidade, entre os sonhos e a possi-
bilidade de experimentar outra vida possível. Outro filme que traz
este questionamento é A Rosa Púrpura do Cairo, de 1985, dirigido
por Woody Allen. Ambientado em outro contexto de crise, os anos
de 1930 nos Estados Unidos, ele brinca com o véu entre a realidade,
crua, dolorosa e apática, e o cinema, em seu auge de glamour e ilusão
milionária. O final deste filme sabe a um sabor agridoce, contudo
também oferece ao expectador (seja a protagonista, sejamos nós),
um gosto do que poderia ser este contato com o sonho. Ainda acom-
panhando Edgar Morin (2014, p. 243-245), estas interconexões entre
a ficção projetada na tela e o real demonstram tão somente como
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 210

O cinema mostra o processo de penetração do homem no mundo e o pro-


cesso inseparável de penetração do mundo no homem. [...] O cinema reflete
as trocas mentais do homem com o mundo. [...]. A fonte permanente do
imaginário é a participação. Aquilo que pode parecer o mais irreal, nasce
do que há de mais real.

As relações entre Del Toro e a indústria cinematográfica esta-


dunidense nem sempre foram tranquilas, e o que observarmos e
defendemos aqui é uma forma de observar sua produção fílmica or-
ganizada em dois movimentos: um que engloba as produções em
língua inglesa e outro com suas produções em língua espanhola,
onde compreendemos que ele apresenta mais de sua forma narra-
tiva puramente autoral e experimental. Deste modo, incluímos A
forma da água como um filme que foi capaz de unir estas duas fren-
tes, mantendo um viés independente no que se trata de concepção
fílmica, recursos visuais e do intercâmbio entre a fábula e o mundo
comum, bem como atendendo ao tom exigente da academia, com o
tributo ao cinema clássico hollywoodiano. Tal qual em A Espinha do
Diabo e O labirinto do Fauno, o diretor parte de um cenário histórico
como palco central, e neste palco ele delineia os contornos do que é
humano. Ao definir o que compreende por contos de fadas, Tolkien
(2010, p. 15-16) declara que

As histórias de fadas não são histórias sobre fadas ou elfos, mas sim sobre o
Belo Reino, Faërie, o reino ou estado no qual as fadas existem. [...] A maio-
ria das boas Ahistórias de fadaA trata das aventuras dos homens no Reino
Perigoso [...]. A definição de história de fadas- o que é ou o que deveria ser-
não depende, portanto, de qualquer definição ou relato histórico sobre elfos
ou fadas, mas sim da natureza do Belo Reino [...]. Por ora só direi isto: uma
Ahistória de fadasA é aquela que resvala ou usa o Belo Reino, qualquer que
seja sua finalidade principal- sátira, aventura, moralidade, fantasia.

Ao propor uma narrativa que recolhe material bruto das mito-


logias mais antigas (relacionamento entre humanos e seres aquáti-
cos), contextualizando-a historicamente e geograficamente em nos-
so tempo, Guillermo Del Toro explora este lugar do sonho de outra
realidade possível, expõe as monstruosidades que habitam o interior
do humano, e a beleza que pode haver ao cruzar os portais do Belo
Reino, rumo à terra das fadas, e como ela pode estar mais próxima
do que pensamos.
VAMOS FALAR SOBRE CULTURA POP? EPISÓDIO 4: O POP NÃO POUPA NINGUÉM 211

REFERÊNCIAS

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gico latino-americano. Fragmentos: Revista de Língua e Literatura
Estrangeiras, números 28/29, p. 21/28 Florianópolis: jan - dez/2005.
Disponível em : https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/is-
sue/view/745 .Acesso em 08/08/2019.
BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaios sobre a imagina-
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DARNTON, R. O grande massacre de gatos e outros episódios
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2018.
FERREIRA-SANTOS, M. ALMEIDA, R. Aproximações ao Ima-
ginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.
KRAUS, D.; TORO, G. A forma da água. Rio de Janeiro: Intrín-
seca, 2018.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Ensaio de An-
tropologia Sociológica. São Paulo: É Realizações, 2014.
NOGUEIRA, L. Gêneros clássicos.In: Manuais de Cinema II-
Gêneros Cinematográficos. Covilhã/Portugal: LabCom, 2010. Dispo-
nível em: http://www.labcom-ifp.ubi.pt/ficheiros/nogueira-manual_
II_generos_cinematograficos.pdf. Acesso em 21/03/2019
TOLKIEN, J.R.R. Sobre histórias de Fadas. 2ª edição. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2010.
R SOBRE
VAMOS FALA

CULTURA

POP
“Vamos falar sobre cultura pop? Episódio 4 - O pop não
poupa ninguém” apresenta artigos referentes a traba-
lhos apresentados no V Colóquio Regional Sul em Arte
Sequencial, ocorrido em outubro de 2019, na Faculda-
des EST. O evento, promovido pelo Grupo de Pesquisa
Interdisciplinar em Arte sequencial, Mídias e Cultura Pop
(Cult de Cultura), anualmente, reúne pesquisadores com
interesse em arte sequencial e em cultura pop. Nesta edi-
ção, as investigações que perpassam temáticas como
histórias em quadrinhos, memes, arte e literatura.

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