Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Pfil0010 D
Pfil0010 D
Florianópolis - SC
M arço / 2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Orientador
PROF.“ DRA. SARA ALBIERI
F lo rian ó p o lis - SC
Março / 2003
Esta dissertação foi julgada
adequada para a obtenção do título
de Mestre em Filosofia e aprovada
em sua forma final pelo Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina.
7(k,tCH
^ Lurdes A. Borges
«rn filosofio ■CFH/UFSC
Banca E^imna
Prof. D it a r a Albieri
Presidente- U F ^
Membro - UFSC
U1
(^ u e m e n ç m o u t u J o is s o a o s e n h o T , j ^ o u t o v ?
/ \ v e s p o s ia velo p v o n ia m e n ie :
s o fr im e n io .
Albert Camus,
A Peste
IV
/\ o s m e u s p a is ,
]á -a\ec\àos, com t o J o o
a m o v J o meu c o va q ã o ..
AGRADECIMENTOS
SUMARIO
CAPÍTULO I
1. TEORIA DA A Ç Ã O ........................................................................................... 04
1.1 DO PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE......................................................................04
1.2 QUE A VONTADE NÃO FUNDAMENTA A CAUSALIDADE ................08
1.3 DAS PAIXÕES COMO CAUSAS DAS AÇÕES............................................23
1.4 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA AS A Ç Õ E S ............................................... 25
1.5 DO CONCEITO DE RAZÃO PRÁTICA......................................................... 31
1.6 DA IDÉIA DE LIBERDADE E NECESSIDADE..................................... 35
1.6.1 Da n e c e ssid a d e ..................................................................................................... 35
1.6.2 Da l i b e r d a d e ...................................................................................................... ..4 0
CAPÍTULO II
2. A TEORIA MORAL DE HUM E.....................................................................46
2.1 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA A M O R A L .................................................46
2.2 O QUE ORIGINA A MORAL............................................................................64
2.3 DO PROJETO CONCILIADOR ENTRE RAZÃO E SENTIMENTO........68
2.4 DOS PRINCÍPIOS DA MORAL E DO SENTIMENTO M ORAL..............72
2.5 DO CONCEITO DE SIM PATIA.......................................................................75
2.6 A DEFESA DO PRINCÍPIO DA SIMPATIA E A REFUTAÇÃO DAS TEO-
RL\S DO EGOÍSMO.................................. ..............................................................90
2.7 DA CIENTinCIDADE DA TEORIA DO PRINCÍPIO DA SIMPATIA................ 111
2.8 DA RACIONALIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS REGRAS
GERAIS ......................................................... ........................................................ 115
Vll
REFERÊNCIAS......................... ..........................................................................133
VUl
RESUMO
Segundo Hume, a razão sozinha jamais poderia fundamentar a moral, pois ela
necessita de um sentimento básico de dor e prazer, relacionado não só ao nosso interesse
particular, mas também ao geral, que lhe dê um sentido prático relativo à ética. Da mesma
forma, em poucos casos nossos julgamentos morais são derivados exclusivamente do campo do
sentimento, sendo necessário que a racionaUdade tome partido indicando o verdadeiro valor do
objeto em questão, e, em muitos casos, indicando ações que se tomam deveres por melhor se
adequarem aos sentimentos morais e receberem o assentimento destes. Explicitar essa relação
entre sentimento e razão no âmbito moral é a nossa tarefa no presente trabalho. E ao fazermos
estaremos apontando, mesmo não sendo o objeto dessa dissertação, os limites do naturalismo
de Hume, limites que ele próprio coloca para o tratamento da moral. Tal é a fronteira entre
natureza e cultura no território ético, segundo a perspectiva humeana.
IX
ABSTRACT
According to Hume, reason alone could never provide the foundation for morality,
since it requires a basic sentiment of pleasure and pain, related not only to private but also to
public interest, to provide the practical ends related to ethics. In the same manner, our moral
judgements seldom derive from sentiment only. Reason cooperates to enlighten the object
under evaluation. It often recommends actions that become duties for best fitting moral
sentiments and appreciation. The aim of this dissertation is to clarify the roles played by reason
and sentiment in Hume’s moral theory, at the same time pointing to the limits of Hume’s
naturalism in morais. Those are the humean boundaries between nature and culture in ethics.
ABREVIATURAS
Em primeiro lugar, Hume defende a idéia de que as ações humanas não são livres,
tendo como causas originárias as paixões e sentimentos, aliados, com freqüência, a situações
externas que as determinam. As paixões põem sempre o fim para as ações humanas, ao passo
que a racionaUdade participa como colaboradora, orientando as paixões na maneira mais
adequada de atingir cada finalidade, de acordo com a situação. Em segundo lugar, tal razão
não é aquela que em outra parte (Investigação sobre o Entendimento, Seção IV) diz se ocupar
de relações entre idéias, como nas matemáticas e ciências formais, mas a racionalidade acerca
dos argumentos vindos da experiência, conseqüentemente, não a priori. A razão não pode, de
acordo com Hume, pôr os fins para a ação, nem tampouco determinar nossa vontade a agir,
sem que antes um sentirriento ou paixão se manifeste a favor da orientação que ela propõe.
Dessas considerações segue-se, em terceiro lugar, uma teoria do dever contendo os seguintes
pontos.
Mas, pelo fato da razão ter uma participação no âmbito moral, Hume nega que as
noções éticas possam ser função exclusiva de um sentimento inato que, por si mesmo,
justificaria as diversas normas morais espalhadas nas diferentes culturas, assim como as ações
decorrentes desses deveres. O filósofo defende que, muito embora as distinções morais
tenham origem num sentimento, é necessária a razão para orientá-lo. O sentimento moral
caracteriza-se pela tendência ao prazer pessoal e geral, mas esse prazer não se reaUza no
próprio sentimento que o originou, necessitando da racionahdade para indicar os meios
adequados para esse fim. O argumento básico dele para negar a teoria que pretende fundar a
moral somente no sentimento, é que seriam necessários infindáveis instintos, que tanto se
relacionassem com os infindáveis preceitos morais, como ordenassem o sujeito a cumpri-los.
Como recurso empírico que desmente esse absurdo, Hume faz uma distinção entre virtudes
naturais e virtudes artificiais, onde estas liltimas, notoriamente, necessitam de uma orientação
constante da razão para indicar, conforme a dinâmica social, quais ações se coadunam a elas;
é o caso, por exemplo, da justiça.
Portanto, a teoria moral do filósofo tem como base uma relação entre ação,
sentimento (incluindo as paixões) e razão. E o objetivo deste trabalho é mostrar, dentro de
uma seqüência coerente de apresentação, toda a argumentação de Hume, que apenas
anunciamos, para defender que razão e sentimento se relacionam, em grande medida, nas
questões morais, apontando qual o papel dessas faculdades no que diz respeito aos deveres,
ações e julgamentos morais.
No primeiro capítulo faremos a explanação dos elementos que compõem
o que denominamos teoria da ação, apresentando, de início, o princípio da
causalidade, que é ponto chave para se entender o determinismo moral, já que
Hume extrai os conceitos de necessidade e liberdade do próprio conceito de
causalidade que ele cunha. Outro ponto importante, é que a causalidade, na forma
como é apresentada, é base para se entender as razões pelas quais o filósofo nega
que a razão possa, originalmente, indicar os fins para a ação. Acrescentando a isso
que ela é também base para se entender o conceito de razão experimental, tão
necessário à presente discussão. Compondo a teoria da ação de Hume, aponta
remos, segundo ele, a relação da vontade com a causalidade, com a razão e com as
paixões, expondo os argumentos do filósofo para impugnar a defesa de que a r a
cionalidade possa originar as ações humanas, sendo ela apenas móbil
intermediário para a ação.
1. TEORIA DA AÇÃO
Este capítulo trata daquilo que pode compor o que se pode chamar
Teoria da Ação, vinculando-a ao princípio da causalidade, e que se relaciona
diretamente com a teoria moral de Hume. Julgamos ser um preâmbulo adequado à
discussão do presente tema dessa dissertação.
' Veremos no decorrer deste capítulo, que esta afirmação de Hume resulta da própria conceituação do princípio
que ora apresentamos.
Assim: “para dar a uma criança uma idéia de escarlate ou do laranja, do doce ou
do amargo, apresento-lhe os objetos, em outras palavras, transmito-lhe essas impressões; mas
nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões, excitando as idéias” (T, p. 29). As
idéias, em Hume, são representações das impressões.
^ Semelhança.
^ Contigüidade.
Causalidade.
É justamente por nos proporcionar uma inferência acerca do futuro, ou
seja, de algo que não nos é dado no presente, que a causalidade se distingue,
qualitativamente, da contigüidade e da semelhança. Em outras palavras, se
houvesse apenas a relação de semelhança ou de contigüidade entre os fenômenos,
nada poderíamos inferir acerca deles no futuro, pois:
Por isso, a razão não pode ser o fundamento da idéia de causa. O funda
mento para a causalidade, de a:cordo com Hume, deve provir da experiência.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são d e sc o
bertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em
relação àqueles objetos de que nos recordam os e que certa vez nos
foram com pletam ente d escon h ecid os, porquanto devemos ter c o n s is
tên cia de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgirá d eles.
(lE H , p. 50)
Não posso conceber clara e distintam ente que um corpo que tomba das
nuvens - semelhante em todos os asp ectos ao da n eve - tenha, todavia,
sabor de sal e queime com o fogo? [...]. Portanto, con sid era-se in te li
g ív el toda proposição concebida distintam ente e sem contradição e, por
conseguinte, jam ais sua falsidade é mostrada por argumento dem ons
trativo ou raciocínio abstrato a p r io ri. (lE H , p. 55)
quando afirmamos que Deus existe, sim plesm ente formamos a idéia
d esse ser, tal como nos é representado; a ex istên cia que a ele atri
buímos não é concebida mediante uma idéia particular que.juntaríam os
à idéia de suas outras qualidades, e que p udéssem os novam ente separar
e distinguir destas últimas. (T, p. 123)
E, ainda, a crença nessa existência não junta novas idéias àquelas que
compõem a idéia do objeto: “Quando penso em Deus, quando penso que ele existe,
minha idéia dele não aumenta nem diminui” (T, p. 123). Nosso mestre, dessa
13
Algo mais é requerido para que se possa crer, não só conceber, numa
proposição relacionada aos fatos. Agora no campo das idéias enquanto tais, a
crença vem acompanhada da concepção.
N este caso, a p essoa que m anifesta seu assentim ento não apenas con
cebe as idéias de acordo com a proposição, mas é necessariam ente de
terminada a con ceb ê-las dessa maneira particular, seja im ediatam ente,
seja pela interp osição de outras idéias. Tudo que é absurdo é inin
te lig ív el; é im p o ssív el para a im aginação conceber algo contrário a
uma dem onstração. (T, p. 124)
Portanto, a crença é “algo mais que uma simples idéia” (T, p. 126). A
crença “é uma maneira [...] que torna as realidades mais presentes a nós que as
ficções e faz que tenham um peso maior no pensamento, bem como uma influência
superior sobre as paixões e a imaginação” (T, p. 127). Como a crença causai,
assim como a inferência que dela decorre, é uma questão de fato, ela pode ser
definida como “uma idéia vivida relacionada ou associada com uma impressão
presente” (T, p. 125). Em nota, há uma outra definição de Hume para crença, ela
“é somente a concepção forte e firme de uma idéia, aproximando-se em grande
m edida de uma impressão imediata” (T, p. 126).
Acaso, aqui, significando algo, aparentemente, sem causa. Pois o dado foi lançado livremente sem nenhuma
determinação a priori.
16
hábito sobre a imaginação. E quando uma causa deixa de produzir seu efeito
habitual, produzindo efeitos diversos, “todos esses efeitos variados devem se
apresentar ao espírito ao transferir o passado para o futuro, e devemos considerá-
lo quando determinamos a probabilidade do evento” (lEH, p. 73).
Com eço observando que os termos eficácia, ação, poder, força, energia,
n ecessidade, conexão e qualidade produtiva são quase sinônim os; e,
por isso , é abuso empregar qualquer um deles para definir o resto. Com
essa observação rejeitam os, de uma só vez, todas as d efin ições com uns
que os filó so fo s dão para poder e eficácia. Em vez de procurar a idéia
nessas d efin ições, devem os procurá-la nas im pressões de que origin al
mente deriva. Se for uma idéia com posta, deverá resultar de im pressões
com postas. Se for sim ples, de im pressões simples. (T, p. 190)
Dessa forma, “se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma
classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idéias
19
correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons”
(lEH, p. 37). Da mesma forma, não cabe defender, como fazem os cartesianos, que é de Deus
que vem a causa ou poder que atribuímos à matéria. Vejamos essa questão. Os partidários da
filosofia de Descartes reconhecem, após reclamarem que temos total conhecimento sobre a
matéria, que esta não tem nenhuma eficácia e que, portanto, é impossível que, por si só, seja a
causa dos efeitos que a ela atribuímos. Afirmando que a matéria é inativa, sem possuir
qualquer poder que pudesse produzir movimento, e como esse efeito, além de outros, são
evidentes aos nossos sentidos, inferem que ele tem de estar em Deus, que para eles “é o
primeiro motor do universo, e não apenas criou a matéria e deu a ela seu impulso original,
mas também, por um exercício contínuo de sua onipotência, sustenta sua existência,
conferindo-lhe sucessivamente todos os movimentos, configurações e qualidades de que é
dotada” (T, p. 192).
mesma razão (não é uma idéia inata e as impressões que a engendram nada nos
informam sobre seu poder em atuação na matéria). A única saída seria, para
quem quer se opor a Hume, “mostrar uma idéia que [...] não deriva dessa fonte”
(lEH, p. 37). O que sobra como esperança é mostrarmos que a idéia de poder ou
causa surge de nossa vontade, tomando, dessa forma, a vontade como causa.
mesma autoridade, nem tampouco conseguimos apontar por que não podemos.
”Por que a vontade tem influência sobre a língua e os dedos, e não sobre o
coração e o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se tivéssemos cons
ciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo” (lEH, p. 78).
porém, a maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é
produzida estão inteiramente fora de nossa compreensão” (lEH, p. 80). Em
segundo lugar, Hume insiste na ignorância do espírito acerca de sua própria
natureza, como ocorre na relação entre o espírito e o corpo.
[...], o governo do espírito sobre si mesmo é lim itado, assim como seu
controle sobre o corpo, e estes lim ites não são conhecidos pela razão
ou por qualquer conhecim ento da natureza de causas e efeitos, mas
apenas p ela observação ou pela experiência, com o em todos os outros
eventos naturais e na operação de objetos externos. N ossa autoridade
sobre n ossos sentim entos e nossas paixões é muito mais débil do que
sobre n ossas idéias; e mesmo esta última se circunscreve dentro dos
mais estreitos lim ites. Quem prenderá dar a razão última destes lim ites
ou mostrar por que o poder é déb il em alguns casos, e não em outros?
(lE H , p. 80)
Hume não está negando que a vontade é a causa de nossas ações, ou que, pelo
menos, mantenha uma relação causai com ela, quer próxima ou não; ele está
apenas mostrando que tal conhecimento não repousa na razão ou em qualquer
impressão originária dessa idéia, da mesma forma como ocorre nos fenômenos
naturais.
As paixões são apontadas por Hume como as causas diretas das ações,
pois é sempre do campo do desejo, do sentimento, que vem o impulso para agir,
após aquelas agirem diretamente sobre a vontade. Reforçaremos essa tese ao
longo de nosso trabalho. Por ora, apresentaremos a classificação que Hume faz
das paixões, que servirá de base para o desenvolvimento dos demais temas que
serão apresentados no decorrer deste capítulo. Faz-se necessário para isso a
24
apresentação de um pouco mais da teoria da mente que Hume construiu, pois que
ela relaciona-se diretamente com a classificação das paixões.
Na Parte III, Hume analisa a relação das paixões diretas com a vontade.
25
e considera esta não propriamente uma paixão, mas o mais notável dentre “todos
os efeitos imediatos da dor e do prazer” (T, p. 435); conseqüentemente, um efeito
das próprias paixões diretas. A definição de vontade é-nos dada por Hume na
seguinte passagem: “Desejo observar que entendo por vontade simplesmente a
impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando delibera
damente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em
nossa mente” (T. p. 435). Anterior à vontade aparece sempre uma paixão a ela
conjuntada, e como não podemos colocar algo anterior às paixões, estas são vistas
por Hume como o limite da pesquisa acerca das causas das ações.
A razão não funda a crença causai, assim Hume nos instruiu, e com
base nessa idéia construímos o argumento anterior. Mas há casos em que a razão
pode ser um móbil intermediário para a ação, na medida em que esta dependa da
descoberta da relação causai ou dos meios para a satisfação do desejo que
originou a vontade.
por causa de um objeto, sen tim os, em conseqüência disto, uma em oção
de aversão ou de propensão, e som os levados a evitar ou a abraçar
aquilo que nos proporcionará e sse desprazer ou essa satisfação. Também
é evidente que tal em oção não se lim ita a isso; ao contrário, faz que
olhem os para tod os os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja
conectado com o original p ela relação de causa e efeito. É, aqui,
portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa
relação; e conform e n ossos ra cio cín io s variam, nossas ações sofrem uma
ação subseqüente. Mas é claro que, neste caso, o im pulso não decorre da
razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer
que gera a aversão ou propensão ao objeto; essas em oções se estendem
àquilo que a razão e a exp eriência nos apontam como as causas e os
efeito s desse ob jeto. (T, p. 450)
Por que a razão, mesmo não sendo responsável pela origem das ações,
não pode fazer frente às paixões? A resposta é conseqüência do papel que a razão
desempenha na descoberta da verdade. Na procura da verdade a razão opera sem
pre com idéias, e como a paixão é uma existência original ou modificação de
existência, ela “não contém nenhuma qualidade representativa que a torne cópia
de outra existência ou modificação. Quando tenho raiva, estou realmente possuído
por essa paixão; e, com essa emoção, não tenho mais referência a um outro objeto
do que quando estou com sede, ou doente [...]” (T, p. 451). Logo, não pode haver
uma oposição ou contradição entre razão e paixão, devido à natureza desta (uma
impressão). Como no campo dos fatos a razão descobre a verdade comparando as
idéias com os objetos que representam, a paixão não sendo uma idéia, em nada a
respeito dela a razão se pronunciará. “Portanto, é impossível haver uma oposição
ou contradição entre essa paixão e a verdade ou a razão, pois tal contradição
consiste na discordância entre certas idéias, consideradas como cópias, e os
objetos que elas representam” (T, p. 451).
P osso desejar uma fruta que ju lgo possuir um sabor excelen te; m as se
me convencerem de meu engano, meu desejo cessa. P osso querer
realizar certas ações com o m eio de obter um bem desejado; mas com o
minha vontade de realizar essas ações é apenas secundária, e se b aseia
na suposição de que elas são as causas do efeito pretendido, logo que
descubro a falsidade dessa suposição tais ações devem se tornar
indiferentes para mim (T , p. 452).
origem das ações. A conseqüência que Hume extrai dessa abordagem é que
quando a paixão não se funda num falso juízo, e nem escolhe meios insuficientes
para sua finalidade, a razão não só é impotente para contrariá-la, como não pode
justificá-la, nem condená-la: “Não é contrário à razão eu preferir a destruição do
mundo inteiro a um arranhão em meu dedo. Não é contrário à razão que eu
escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou
de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida” (T, p. 452).
Nosso filósofo nos aponta uma distinção importante a ser feita no que
concerne às paixões. Deve-se “diferenciar paixões calmas de paixões fracas, e
paixões violentas de paixões fortes” (T, p. 454). O forte, nesse caso, tem a ver
apenas com o poder que determinada paixão tem na condução da vontade, e não
com o estado emocional que ela provoca.
mantém com seu objeto. Ambas, segundo ele, perseguem o bem e evitam o mal, e
a metamorfose acontece, simplesmente, por conta da proximidade que o objeto,
tido como bom, mantém da paixão que a ele se relaciona. Dessa forma, uma
paixão calma tornar-se-ia uma paixão violenta - o grau do afeto aumentaria - caso
o objeto desta paixão dela estivesse próximo, tornando-se fraco caso o objeto se
distanciasse. Esse é o efeito da relação de contigüidade (no espaço e no tempo)
sobre a imaginação. Se relembrarmos a definição de crença - a vivacidade com
que uma idéia ou impressão se apresenta ao espírito - , perceberemos que ela
relaciona-se diretamente com as paixões, no sentido de transformar uma paixão
calma em violenta. De acordo com Hume, existe “uma razão fácil para explicar
por que tudo que nos é contíguo no espaço ou no tempo é concebido com uma
força e vividez peculiar, e supera qualquer outro objeto em sua influência sobre a
imaginação” (T, p. 463). Isso acontece porque ao concebermos os objetos que
consideramos reais e existentes
Como uma impressão pela sua própria definição é mais viva, assim
como as idéias e impressões se confundem ou se aproximam umas das outras
quando diminui ou aumenta o grau de vivacidade,^ quanto mais próximo o objeto
estiver de uma impressão (no sentido de se aparentar mais com ela, sensivelmente
falando) maior influência terá sobre a imaginação;
Esse saber racional que aponta certos meios para a consecução da ação,
opera com o princípio da causalidade. Por que a razão indica a água ao invés da
cicuta para matar a sede? Porque a primeira mostrou-se, “na experiência”, matan
do a sede e não causando nenhum dano à saúde humana. A razão, aqui, portanto, é
puramente indutiva. Mas a causalidade, vimos, é um sentimento no espírito fruto
da repetição e conjunção regular dos objetos - não há uma conexão real entre eles,
essa conexão se dá na mente. Esta racionalidade é muito mais um impulso
mecânico, já que ela não passa de registros ou impressões na alma. Há um aspecto
nuclear na teoria de Hume: a razão é adestrada pela experiência, mas é livre no
espírito; ela está no espírito mas não pertence a ele. Hume nos diz que a
“memória, os sentidos e o entendimento são todos, portanto, fundados na
imaginação, ou vividez de nossas idéias” (T, p. 298). No campo dos fatos a
racionalidade tem sua gênese assentada no terreno do sentimento.
'°Alasdair Macintyre usa a expressão racionalidade prática ao falar da razão em Hume. (Justiça de Quem? Qual
Racionalidade? Edições Loyola: São Paulo, 1991. CapítuloXVI). O mesmo faz Giles Deleuze em Empirismo e
Subjetividade, durante toda sua argumentação (São Paulo; Editora 34, 2001). Preferimos usar a terminologia
razão experimental, pois acreditamos ficar mais de acordo com a filosofia de Hume. O conceito de razão prática
tem um comprometimento direto com a filosofia kantiana, para a qual a vontade é uma espécie de razão prática;
algo inconcebível em Hume. “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional age segundo a
representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das
leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (KANT, Immanuel. Fundamentação da
Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, p. 47).
32
Para mostrar que nosso raciocínio anterior não passa de mera elucu-
bração, vamos embasá-lo na questão que Hume trata acerca da razão dos animais.
Como o desenvolvimento dela se encontra na breve Seção XVI, do Livro I, na
Parte III do Tratado, faremos um resumo das idéias do filósofo. A inferência de
que os animais raciocinam acerca da experiência, como os homens, havendo aqui
uma diferença apenas de grau, baseia-se numa analogia. Percebemos os mesmos
sentimentos e afetos que se apresentam nos homens, também nos animais.
" d e l e u z e , Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 67-68.
33
O que nos interessa nesse ponto não é reforçar a tese de Hume com
outros exemplos, já que a investigação científica e a psicologia animal contempo
râneas já fazem tal tarefa; o que queremos ressaltar é que, segundo Hume, o
raciocínio dos animais assenta nos mesmos princípios que o dos homens: “Quanto
às ações do primeiro tipo, afirmo que procedem de um raciocínio que, em si
mesmo, não é diferente nem fundado em princípios diferentes dos que aparecem
na natureza humana” (T, p. 211). Os animais, da mesma forma que os homens,
nunca percebem nenhuma conexão real entre os objetos. É pelo hábito, portanto,
que inferem uns dos outros. São incapazes de, mediante argumentos, formar a
conclusão geral de que objetos que eles nunca experimentaram se assemelham
àqueles de que já tiveram experiência. Portanto, “é unicamente por meio do
34
costume que a experiência opera sobre eles” (T, p. 212). Ora, por que essa com
paração que Hume faz ampara nosso raciocínio anterior? Simplesmente porque
Hume, a nosso ver, coloca a seguinte questão filosófica: se os princípios das in fe
rências de homens e animais são os mesmos, ou bem os animais raciocinam, ou
bem os homens agem, quando pensam que estão raciocinando, exclusivamente por
instinto.
1.6.1 Da necessidade
de. Vimos que Hume negou qualquer nexo causai real entre os objetos, sendo a
razão totalmente ineficaz para tentar fundamentar esse princípio. Quando trabalha
com idéias, somente, não consegue estabelecer nenhum argumento lógico que nos
faça concordar com a conexão real entre os objetos. Quando investiga os fatos
empíricos, também não consegue justificar tal vínculo. As idéias em nossa mente
também não têm nenhuma conexão necessária, pois a imaginação pode separá-las
sempre que lhe aprouver (as complexas). Mas, lembremos: a conexão necessária
entre os fenômenos naturais foi negada de um prisma lógico, mas não psicológico,
pois, como explicamos, a necessidade causai é uma impressão no espírito; um
sentimento de crença que se instala decorrente da ação do hábito sobre a
imaginação. Vejamos agora como Hume constrói a idéia de necessidade acerca
dos fenômenos do espírito.
E prossegue:
Eis aqui, portanto, dois pontos que devem os considerar com o essen
ciais à necessidade: a união constante e a inferência da m ente; onde
quer que os descubramos teremos de admitir uma n ecessid ad e. Ora,
como a única necessidade existente nas ações da matéria é a que deriva
dessas circunstâncias, e com o não é por m eio de uma visão direta da
essência dos corpos que descobrim os sua conexão, a ausência dessa
visão, enquanto a união e a inferência se mantêm, nunca, em nenhum
caso, eliminará a n ecessidade. [...], basta provar a existên cia de uma
união constante nas ações da mente para estabelecer a inferência,
justamente com a necessidade dessas ações. (T, p. 436-437)
Toda gente recon hece que há grande uniformidade nas ações humanas
em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana
sempre perm anece igual em seus princípios e operações.'^ Os m esm os
m otivos produzem sempre as m esm as ações. A ambição, a avareza, o
amor-próprio, a vaidade, a am izade, a generosidade e o espírito pú
b lico, p aixões misturadas em vários graus e distribuídas pela sociedade
têm sido, desde o com eço do m undo, e ainda são, a fonte de todas as
ações e em preendim entos que se têm sempre observado entre os h o
mens. (lE H , p. 91)
Margarita Costa nos diz que não se deve entender por natureza humana algo como a essência do homem, como
fizeram os filósofos medievais e racionalistas modernos, mas “um complexo ou sistema de faculdades” (As
Idéias Morais e Sócio-PoKticas de Hume. Argentina: revista do instituto de investigações educativas. Série:
documentos e investigações, 1979. p. 7).
38
Importante também é enfatizarmos que, assim como no que se refere aos objetos
empíricos, o entendimento ou razão nas questões morais dependem igualmente dessa
regularidade nas ações, pois “se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo
experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossível
coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência, por mais que
a reflexão a houvesse assinalado, serviria para algum fim” (lEH, p. 92).
naquele campo, não assenta em bases racionais. Esta necessidade das ações não é
lógica, e sim psicológica. Pois assim como não podemos garantir que o calor
sempre seguirá o fogo, também não podemos garantir, tomando o exemplo de
Hume, que aquele sujeito rico e honesto não nos apunhalará a fim de nos roubar.
A regularidade engendra a crença. A grande questão que ele nos informa, é que a
necessidade sempre foi aceita por toda humanidade, nos termos em que ele mesmo
a conceituou.
Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentim os em
nós a liberdade, um espectador pode geralm ente inferir n ossos atos de
n ossos m otivos e de nosso caráter, e mesmo quando não pode, conclui
geralm ente que poderia se con h ecesse perfeitamente todas as circu n s
tâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de
n ossa disposição - esta é, portanto, a verdadeira essência da n e c e s
sidade, segundo a doutrina anterior. (lEH , p. 99)
1.6.2 Da liberdade
quo non para a imputabilidade moral. Admitir que as ações não são causadas
impossibilitaria o julgamento moral. Excluindo-se as causas todas as ações esta-
riam, por assim dizer, ao sabor do acaso, não podendo ser da responsabilidade de
ninguém. É somente quando vinculamos as ações à alguma causa, que reside no
caráter das pessoas, que podemos condená-las ou não, moralmente falando.
Realmente, os homens não são acusados por ações que tenham execu
tado casualmente ou sem intenção. Até juridicamente é sempre uma circunstância
atenuante quando há suficientes elementos que indiquem que assim se deram as
ações. Quando os homens agem com pressa e sem premeditação, são menos conde
nados, pela simples razão de que um temperamento precipitado, “embora dotado de
uma causa ou princípio constante no espírito, atua apenas por intervalo e não cor
rompe todo o caráter” (lEH, p. 103).
Será igualm ente fácil provar, usando os m esm os argum entos, que a
liberdade, segundo a definição acima m encionada e com a qual todos os
homens concordam, é também essen cia l à moralidade e que nenhuma
ação humana na qual não se encontra presente é su scetív el de q u ali
dades morais, ou possa ser objeto de aprovação ou desaprovação. P ois,
com o as ações são os objetos de n osso sentim ento moral, unicam ente
na medida em que são in d ícios, de p aixões e a feiçõ es, é im p o ssív e l que
elas possam ocasionar o elogio ou a crítica, se elas não procedem
destes princípios e se elas derivam inteiram ente de uma intervenção
exterior. (lEH , p. 103)
pelo agente.
Sánchez Vázquez afirma que, “em termos gerais, o homem só pode ser
responsável moralmente pelos atos cuja natureza conhece e cujas conseqüências
pode prever, assim como por aqueles que, por se realizarem na ausência de uma
coação extrema, estão sob seu domínio e controle.”'^. Como exemplos de coação
irresistível cita a neurose, cleptomania ou desajuste sexual, e lança a pergunta se
poderíamos responsabilizar moralmente um neurótico que mata num momento de
crise aguda, um desajustado sexualmente que lança palavras obscenas a uma
mulher por razões inconscientes, ou um cleptomaníaco que rouba por um impulso
irresistível. Nesses casos, diz Vázquez, “a coação interna é tão forte que o sujeito
não pode agir de maneira diferente daquela como operou, e não tendo realizado o
que livre e conscientemente teria querido”’'*.
VÁZQUEZ, Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 116.
VÁZQUEZ, Ibidem, p. 117.
45
Quanto à questão do livre arbítrio, creio que Hume tem razão, exceto no que
respeita o modo como defende que a sua concepção de liberdade ‘é aceite por toda
gente’. Concordar-se-ia, penso eu, que o filósofo estabeleceu uma condição
necessária de liberdade. Duvido, contudo, que na generalidade seja considerada
suficiente. Parece-me, antes, que não só os nossos juízos morais mas também muito
de nossos sentimentos sobre nós próprios e sobre as outras pessoas, como os
sentimentos de orgulho e de gratidão, são, em parte, guiados por uma noção de
mérito que requer da nossa vontade de ser livre mais força do que a prevista pela
definição de Hume. Atribuímo-nos, de modo confuso, a nós próprios e aos outros
aquilo que algumas vezes já foi descrito como um poder de autodeterminação. O
problema consiste no fato de, ainda que existisse algo que correspondesse a esta
descrição, não haver possibilidade de escapar ao dilema de Hume. Ou o exercício
desse poder se adaptaria a um padrão causai ou ficaria entregue ao acaso e, em
nenhum dos casos, parece justificar uma imputação de responsabilidade.'^
AYER, A. J. Hume Mestres do Passado. Oxford: Oxford University Press, 1981. p. 151.
CAPÍTULO II
Veremos agora a teoria moral de Hume, onde ficará bastante claro seu
vínculo com a teoria da ação, dando uma seqüência lógica à nossa apresentação.
Neste capítulo, que é o objeto central de nossa dissertação, tentaremos explicitar
os principais pontos acerca do papel da razão e do sentimento nos julgamentos
morais.
3^ Prem issa; A razão não é um princípio ativo (pois não produz ação
alguma).
3^* Prem issa; “Uma paixão é uma existência original ou, se quisermos,
uma modificação de existência; não contém nenhuma qualidade representativa que a
torne cópia*^ de outra existência ou modificação de existência” (T, p. 451).
[...] prova diretam ente que as ações não extraem seu mérito de uma
conform idade com a razão, nem seu caráter censurável de uma
contrariedade em relação a ela; e prova a mesma verdade mais
indiretam ente ao nos mostrar que, com o a razão não pode impedir ou
produzir im ediatam ente uma ação, contradizendo-a ou aprovando-a,
tampouco pode ser a fonte da d istin ção entre o bem e o mal morais, os
quais constatam os que tem tal influência. As ações podem ser
louváveis ou con d en áveis, mas não podem ser racionais ou irracionais.
Louvável ou con d en ável, portanto, não é a mesma coisa que irracional
ou racional. As d istin çõ es morais, portanto, não são frutos da razão. A
razão é totalm ente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio
ativo com o a co n sciên cia ou senso moral. (T, p. 498)
ia reclamar uma relação mais próxima entre razão e moral. Mas aqui há um
equívoco que Hume esclarece. Vejamos qual.
Uma pessoa, ao ser afetada por uma paixão, pode supor que determinado
objeto poderá lhe trazer prazer, por exemplo, desejar alimentar-se de uma fruta, que
ao final produzirá um efeito desagradável. Essa mesma pessoa poderá escolher
meios inadequados para atingir esse objeto, por exemplo, tentar apanhá-la expondo-
se a quedas e ferimentos. Portanto, cometeu dois erros através de juízos falsos que,
poder-se-ia pensar, afetam as ações e as paixões a elas conectadas, tornando-as
contrárias à razão. Sendo assim, ao descobrir-se esses falsos juízos em que as
paixões se apoiaram, o agente sofreria uma censura. Ou seja, por as paixões
estarem fundadas em um falso juízo, seriam ditas contrárias à razão. Mas o que
descarta um vínculo com a moral é que esses erros não implicam censura moral
alguma.
Mas ainda que se reconheça tal coisa, é fácil observar que esses erros
estão longe de ser a fonte de toda im oralidade, tanto mais que costum am
ser muito inocentes, não trazendo nenhuma espécie de culpabilidade à
p essoa que teve o infortúnio de os com eter. Não vão além de um erro de
fato, que em geral os m oralistas não consideram como um crim e, porque
é inteiramente involuntário. Quando me engano quanto ao poder que
certos objetos teriam de produzir dor ou prazer, ou se não con h eço os
m eios adequados de satisfazer meus desejos, sou antes digno de pena
que de censura. Ninguém jam ais pode considerar tais erros com o um
d efeito em meu caráter. (T, p. 499 -5 0 0 )
Sem dúvida, não é pelo fato de uma ação causar um falso juízo à outra
pessoa que o agente sofre reprovação moral; não é por esse desacordo com a
verdade - objeto de investigação da razão - que sofre penalidade moral. Ademais,
se o vício fosse a conseqüência de uma tendência na ação a produzir um
determinado erro, seguir-se-ia que, como os objetos inanimados, muitas vezes,
nos levam a conceber falsos juízos, deveriam sofrer uma censura moral; coisa que
não acontece. Não vale alegar que os objetos inanimados não possuem liberdade
ou escolha, já que, se estas não “são necessárias para que uma ação produza em
nós uma conclusão errônea, não podem ser, sob nenhum aspecto, essenciais à
moralidade” (T, p. 501). Na verdade, Hume invoca uma questão de coerência, qual
seja, se a tendência a causar erro pudesse ser a origem da desaprovação moral,
essa tendência viria sempre acompanhada de desaprovação moral.
filósofo, buscam recusar a idéia de que os falsos juízos gerados por nossas ações
sejam a fonte da imoralidade, e isso por se oporem à razão.
mesma” (T, p. 97). Com respeito à segunda classe, “as relações de contigüidade e
distância entre dois objetos podem se alterar por uma mera alteração de seus
lugares sem nenhuma mudança nos próprios objetos ou em suas idéias; e o lugar
depende de centenas de acidentes diferentes, que não podem ser previstos pela
mente” (T, p. 97).
Que não podem ser previstos pela mente, significa que não há nenhuma
necessidade entre os fatos e as idéias que a eles se referem. Temos precisamente
em nossas mentes o que vem a ser a idéia de contigüidade e distância; contudo,
elas nada podem informar acerca de como essa contigüidade ou distância
ocorrerão na experiência. O mesmo se dá com a causalidade, pois mesmo que
tenhamos em nossas mentes a sua idéia precisa, não podemos garantir necessa
riamente e, portanto, demonstrativamente, quais efeitos surgirão da mesma causa
que se nos apresentou, num passado remoto ou não (vimos as razões disso no
primeiro capítulo). Segue-se disso que, “dessas sete relações filosóficas, apenas
quatro, por dependerem unicamente das idéias, podem ser objeto de conhecimento
e certeza. Essas quatro relações são semelhança, contrariedade, graus de qualidade
e proporções de quantidade ou número” (T, p. 98). Dessas quatro relações, três
pertencem muito mais ao campo da intuição que ao da demonstração, são elas;
semelhança, contrariedade e grau de qualidade. A título de ilustração:
Não cabe, para o primeiro exemplo, argumentar-se que falta uma esco
lha ou vontade; isso nada altera a questão em si, pois que a vontade^® não cria
Quanto ao campo das idéias, somente: “Alguém que raciocina teoricamente sobre triângulos e círculos
considera as várias relações dadas e conhecidas entre as partes dessa figura e infere daí alguma relação
desconhecida que é dependente das primeiras” (IPM, p. 179).
Não se pode realmente dizer que o ponto que decide a questão é a vontade, já que no segundo exemplo não se
pode negar que haja vontade, no sentido de Hume, nos animais. Além disso, se a vontade não for livre, tanto faz
dizer que “é a vontade ou escolha que determina um homem a matar seu pai; e são as leis da matéria e do
movimento que determinam o broto a destruir o carvalho que o gerou” (T, p. 507).
54
nenhuma relação diferente: “as mesmas relações têm causas diferentes; mas as
relações ainda são as mesmas. E como sua descoberta não se faz acompanhar de
uma noção de imoralidade em ambos os casos, segue-se que tal noção não surge
dessa descoberta” (T, p. 507). Para o segundo exemplo, não procede o argumento
de que essa ação é inocente nos animais porque lhes falta razão suficiente para
descobrir sua torpeza, “pois antes que a razão possa perceber essa torpeza, a
torpeza tem de existir; por conseguinte, ela é independente das decisões de nossa
razão, sendo mais propriamente seu objeto que seu efeito” (T, p. 507).
Enfim, defender essas idéias é assumir o ônus de que todo anim al tem
de ser suscetível, na mesma medida que os homens, das mesmas virtudes e vícios
que nos fazem condenar ou enaltecer os seres humanos, pois que eles são
também dotados, da mesma forma que nós somos, de apetites, sentidos e von
tade, e a diferença consistiria em “que nossa razão superior pode servir para des
cobrir o víçio ou a virtude, aumentando assim a censura e o elogio” (T, p. 507).
E o fato de não possuírem uma razão em grau comparável ao dos homens, pode
apenas impedi-los “de perceber os deveres e obrigações da moral, mas nunca
poderia impedir esses deveres de existir, uma vez que, para serem percebidos,
eles têm de existir previamente. A razão deve encontrá-los, mas nunca produzi-
los” (T, p. 508).
20
RAFHAEL, D. D. Hume and the Enlightenment. Edimburgo; Edinburgh University Press, 1975. p. 22.
56
que a razão origine as ações, e apresentou, sim, como mostramos, vários e bons
argumentos, podendo ser acusado apenas de que tais argumentos não são
suficientes para justificar que a razão não tem, no âmbito da ação, uma
participação fundadora. Realmente, não há uma prova cabal nos argumentos de
Hume de que a razão não origine ação alguma, ou até mesmo de que ela não faça
frente às paixões no comando das ações. Pois como não se pode fazer um raio-x
da relação paixão-razão-ação, não podemos atestar, decididamente, que, em última
instância, a razão, mesmo que minimamente, não participe da origem das ações^\
Ora, mas nem tampouco o pode fazer a doutrina contrária. Hume não é um
anatomista nem muito menos um espírita; ele trabalha com as percepções da
mente - com a experiência naquilo que se pode extrair dela. Portanto, valem para
ele argumentos extraídos da observação. Vamos passar em revista os argumentos
de Hume, a fim de mostrarmos que eles têm uma seqüência na forma como aqui
apresentamos.
Essa longa passagem mostra que Hume não nega à razão um caráter prático, ao mesmo tempo em que sabe
que a investigação pode atingir apenas a crosta da questão: “Antes de deixarmos este tema da vontade, talvez não
seja inapropriado resumir, em poucas palavras, tudo o que foi dito a seu respeito, a fim de apresentar o conjunto
mais distintamente ao leitor. Aquilo que comumente entendemos por paixão é uma emoção violenta e sensível da
mente, que ocorre quando se apresenta um bem ou um mal, ou qualquer objeto que, pela formação original de
nossas faculdades, seja propício a despertar um apetite. Com a palavra razão referimo-nos a afetos exatamente da
mesma espécie que os anteriores, mas que operam mais calmamente, sem causar desordem no temperamento;
essa tranqüilidade faz com que nos enganemos a seu respeito, vendo-os exclusivamente como conclusões de
nossas faculdades intelectuais. Tanto as causas como os efeitos dessas paixões, violentas e calmas, são bastante
variáveis, dependendo, em grande parte, do temperamento e da disposição peculiar de cada indivíduo. Falando
de maneira geral, as paixões violentas exercem uma influência mais poderosa sobre a vontade; mas constatamos
freqüentemente que as calmas, quando corroboradas pela reflexão e auxiliadas pela resolução, são capazes de
controlá-las em seus movimentos mais impetuosos. O que toma tudo isso mais incerto é que uma paixão calma
pode facilmente se tomar violenta, seja por uma mudança no humor da pessoa ou na situação e nas
circunstâncias que envolvem o objeto, seja por extrair força de uma paixão concomitante, pelo costume, ou por
excitar a imaginação. De tudo isso, podemos concluir que é esse combate entre paixão e razão, como é chamado,
que diversifica a vida humana e toma os homens tão diferentes, não apenas uns dos outros, mas também de si
mesmos em momentos diferentes. A filosofia pode explicar apenas alguns dos maiores e mais sensíveis eventos
dessa guerra; mas tem de abrir mão de todas as revoltas menores e mais deUcadas, por dependerem de princípios
demasiadamente sutis e diminutos para sua compreensão” (T, p. 473-474).
57
que impugnou a noção de que a vontade é uma espécie de causa, enquanto objeto
de discernimento da razão, pois vimos que tudo que a experiência nos fornece
apresenta apenas uma conjunção entre ela e nossas ações. Aduzindo a isso o fato
de Hume ter mostrado que seu suposto poder não é explicado pela razão quando
analisamos a relação corpo-mente.
Nesses dois argumentos salta aos olhos o seguinte aspecto; como pode a
razão ter um poder de gerar ações, se não consegue justificar um princípio e uma
faculdade que se liguem diretamente a elas? E não adianta dizer que a razão,
embora não os fundamente, tem uma relação causai com a vontade tal como para
Kant, pois aqui se esbarra na questão que o próprio princípio da causalidade trás
em seu bojo, a saber, de qual impressão deriva tal idéia? Ou, como chegamos a
este conhecimento? Ou melhor, como pode a razão justificar-se como causa da
vontade? É nesse ponto que Hume apresenta o seu argumento para justificar que a
razão não passa de uma veleidade, ou fraca paixão. Pois vimos que a relação de
contigüidade opera diretamente sobre as paixões tornando-as fortes ou fracas
conforme a distância em que estiverem de seu objeto de relação, levando as
decisões da “razão” a tombarem quando a labareda da paixão fica forte com a
proximidade de seu objeto. Além de ter argumentado que as decisões que operam
sobre a vontade são decorrentes de um conflito entre paixões (violentas contra
fracas), onde uma delas sobrepuja a outra. Acrescente-se, também, que a
experiência contraria a soberba humana, já que as ações humanas são explicadas
sempre com base em alguma paixão.
De acordo com o que nos informa Adolfo Sánchez Vásquez, este argu
mento atraiu grande interesse, e alimentou muitas discussões na comunidade
filosófica. Recebeu o nome de guilhotina de Hume, e depois passou a ser tratado
nos termos daquilo que ficou consagrado como falácia naturalista.
o ‘bom’, por m eio de propriedades naturais; quer dizer, não se pode passar
logicamente do natural (o não ético) ao não natural (o ético).
E ainda:
VÁSQUEZ, Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 250.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 34.
DELEUZE, Ibidem, p. 36.
TUGENDHAT, Emst. Lições Sobre Ética. Petrópolis, Rj: Editora Vozes, 1996. p. 57.
60
A proposta de Hume é boa até onde alcança, mas tem -se de fazer a ela
duas objeções: em primeiro lugar apresenta o que na ética foi chamado
falácia naturalista; na ética sim plesm ente constataríamos o que os
hom ens de fato aprovam, e tem -se de perceber diante disso que ju ízo s
sobre haver ju ízos morais são em píricos, mas que a pretensão dos
próprios ju ízos morais não é em pírica (cf.acim a primeira liçã o ). Ora,
isto é precisam ente negado por Hume, e ele nos faria refletir que não
tem os nenhuma outra via que não a naturalista, injustam ente
denominada de falácia. D eve-se, aliás, considerar que Hume som ente se
pôde dar por satisfeito com esta concepção, porque admitia que todos
os homens julgam moralmente de modo idêntico. Um con ceito de
moralidade que não deixe aberta a possibilidade de vários co n ceito s
morais tem, contudo, de parecer-nos hoje inaceitável.^®
No livro III (Da Moral), Parte I (Da virtude e do vício em geral). Seção
II, Hume pergunta “Je que princípios derivam e como surgem na mente humana'"
a dor e o prazer que distinguem o bem e o mal morais. Nega que esses sentimentos
se produzam por uma qualidade original, já que o número de deveres morais sendo
bastante amplo, “é impossível que nossos instintos originais se estendam a cada
um deles e, desde nossa primeira infância, imprimam na niente humana toda essa mul
tiplicidade de preceitos contidos nos mais completos sistemas éticos” (T, p. 513).
E diz que é “necessário reduzir o número desses impulsos primários e encontrar
alguns princípios mais gerais (grifo nosso) que fundamentem todas as noções
morais” (T, p. 513).
Mas, de acordo com a segunda definição, podem ser consideradas não naturais, visto que “a virtude heróica,
sendo inabitual, é tão pouco natural quanto a barbárie mais brutal” (T, p. 514).
O professor Darlei Dali’ Agnol escreveu um artigo bastante interessante sobre a falácia naturalista em Moore.
Em uma parte de seu artigo, explicitando o pensamento de Moore, ele nos diz: “O livro de Moore pretende
estabelecer as bases científicas da ética sem falsas representações, sejam naturalistas ou metafísicas, dos valores
62
fala que essa conclusão é bastante conveniente, pois que leva a uma única
questão: “por que uma ação ou sentimento, quando são contemplados ou consi
derados de uma forma geral, produzem em nós uma certa satisfação ou descon
forto?” (T, p. 515). Portanto, a nosso ver, Hume não tem uma pretensão de defi
nir, categoricamente, o bom, mas apenas de descrevê-lo. E como o prazer e dor
estão, factualmente, relacionados ao vício e a virtude, esse é o ponto de onde ele
parte. Agora, é um equívoco enorme tomar sua filosofia como aquela que reduz a
noção de bom ou virtude a princípios estritamente naturalistas. A noção de prazer
e dor que acompanha as virtudes e vícios é apenas um princípio geral confirmado
pela experiência; mas isso não quer dizer que Hume reduza a noção de virtude ao
prazer. Pois o senso da virtude requer algo que a própria natureza não dá
originalmente - uma reflexão imparcial.
morais. Julga fazer isso mostrando que “bom” é simples, inanalisável, indeíinível e, em seu sentido eticamente
relevante, refere-se ao valor intrínseco de algo, isto é, aquilo que é valioso em si mesmo de forma não
instrumental. Esta caracterização mostra que bom é sui generis e Moore procura construir argumentos para
refutar aqueles que negam a especificidade dos valores intrínsecos.” (Argumentos Filosóficos. Horianópolis:
Editora eletrônica (Nel), UFSC, 2001. p. 67.). E ao defender Moore, p. 79, da acusação de platonismo, devido
sua caracterização de “bom” como sui generis e de valor intrínseco, fala que os comentadores “esquecem que
Moore também insistiu que “bom” não é uma propriedade metafísica.”. Podemos nos perguntar se, até que
ponto, de acordo com a explanação acima, Hume não considerava a virtude algo sui generis. Ela não pode ser
definida metafisicamente, nem a príori, e também não é, por excelência, naturalizada. Na Investigação Hume
chega mesmo a definir a virtude da mesma forma como Darlei define algo sui generis. Vejamos: “Ora, como a
virtude é um fim, e é desejável por si mesma, sem retribuição ou recompensa, simplesmente pela satisfação
imediata que comunica, é necessário que haja algum sentimento tocado por ela, algum gosto, sensação, ou que se
quiser chamá-lo, que distingui entre o bem e o mal morais, e adere o primeiro ao mesmo tempo em que rejeita o
segundo” (IPM, p. 184). E Hume chega mesmo a usar a expressão valor intrínseco na Seção VII do Tratado sobre
a origem do governo, justamente quando fala por que a justiça é negligenciada. Diz ele: "Nenhuma qualidade da
natureza humana causa tantos erros fatais em nossa conduta quanto a que nos leva a preferir o que é presente ao
que é distante e remoto, e nos faz desejar os objetos mais de acordo com sua situação que com seu valor
intrínseco” (T, p. 577). Vê-se que o prazer é apenas algo que nos toma interessado na virtude - no bom mas
não algo que a define.
Grifo nosso.
63
Segundo Hume, o que faz com que o raciocín io sobre a ju stiça seja
sólido é, fundamentalmente, que é um raciocín io com partilhado por,
pelo m enos, a maioria dos membros da com unidade a qual alguém
pertence. O que faz com que a em issão de ju ízos sobre a virtude e o
vício seja efetiva é que eles expressam , não apenas as reações in d iv i
duais de alguém, mas as reações reciprocadas pela grande maioria.
Portanto, alguém raciocina e ju lga, em tod os os assuntos morais e prá
ticos, com o membro de uma com unidade particular e de um tipo de
ordem social característico de todos os p o v o s civilizados.^^
Sobre esse sentimento de dor e prazer que acompanha as virtudes, trataremos em detalhes no decorrer dessa
obra.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo; Edições Loyola, 1991. p. 344.
64
1* Premissa; “Já observamos que nada está presente à mente senão suas
percepções; e que todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar
incluem-se sob essa denominação” (T, p. 496).
Mas como vimos que essa impressão não é descoberta pela razão, de
onde ela surge? Assim como em relação ao princípio da causalidade a impressão
65
Cabe neste ponto uma objeção a Hume, e ela não lhe passou desper
cebida. Ele objetara ao argumento de que a moral expressava-se nas relações que
a razão descobriria, alegando que, se assim o fosse, teríamos que atribuir vício à
matéria inanimada e aos animais, já que estes se encontram, amiúde, envolvidos
nas mesmas relações que acompanham as ações humanas. Poder-se-ia, então,
fazer-lhe uma crítica similar: se a virtude e o vício são determinados pela dor ou
prazer, qualquer objeto inanimado ou animado, racional ou irracional, poderia ser
dito virtuoso ou vicioso quando nos proporcionasse prazer ou dor. Vejamos como
Hume se sai dessa objeção. A base do seu argumento é fazer distinções entre os
prazeres ou satisfações. Uma composição musical e um excelente vinho produzem
igualmente prazer, e sua excelência decorre da qualidade mesma do prazer obtido;
porém, não se pode dizer que o vinho é harmonioso, ou que a música é saborosa.
“De maneira semelhante, tanto um objeto inanimado quanto o caráter ou os
sentimentos de uma pessoa podem nos dar satisfação, isso nos impede de
66
temos de fazer uma distinção, portanto, entre a causa e o objeto dessas paixões;
entre a idéia que as excita e aquela a que dirigem seu olhar, quando excita
das” (T, p. 312).
Porém, deve-se fazer uma nova distinção nas causas da paixão, a saber,
entre a qualidade operante e o sujeito no qual essa qualidade está situada. Assim,
um homem que se orgulha de sua casa (objeto inanimado que provoca um
sentimento de prazer), tem como objeto da paixão ele próprio, e como causa a
beleza da casa. Mas esta causa divide-se em duas partes: “a qualidade que atua
sobre a paixão e o sujeito a que tal qualidade é inerente. A qualidade é a beleza, e
o sujeito é a casa, considerada como sua propriedade ou criação. Ambas as partes
são essenciais, e a distinção não é vã nem quimérica” (T, p. 313-314). Sendo
assim, para que a paixão do orgulho seja despertada e, conseqüentemente, o prazer
que a acompanha, os dois elementos causais devem estar presentes, pois “a beleza,
considerada simplesmente como tal, nunca produzirá orgulho ou vaidade, a menos
que situada em algo relacionado a nós; e a mais forte relação, por si só, sem a
beleza ou algo que a substitua, tampouco exerceria qualquer influência sobre essa
paix ão” (T, p. 314).
Diz José Oscar: o caso da segunda Investigação, a obra aqui traduzida, apresenta problemas especiais.
De fato trata-se de um texto que apresenta notáveis diferenças com relação ao que lhe deu origem [ Oscar refere-
se ao Tratado], e essas diferenças não se resumem apenas à ordem em que os temas são apresentados, ou a
ênfase em que recebem em cada caso. Na opinião de um conceituado intérprete como Selby-Bigge, as mudanças
são de tal ordem a ponto de ser possível dizer que todo o sistema de moral é essencialmente distinto nos dois
casos. “ (IPM, p. 13). Outro comentador da obra de Hume que faz a mesma colocação é D.D.Raphael; “As duas
versões da filosofia moral de Hume que aparecem no Tratado e na segunda Investigação diferem não só na
ordem da exposição mas no conteúdo.” (Hume And The Enlightenment. Edimburgo: Edinbugh The University
Press, 1975. p. 19).
70
enquanto tais, nem tampouco nas relações. O ato de ingratidão, por exemplo, que
é condenável, “não é nenhum fato particular, mas decorre de um complexo de
circunstâncias que, ao se apresentarem ao espectador, provocam o sentimento de
censura [...]” (IPM, p. 176). Afirma o filósofo que “por mais que se torça e retor
ça o exemplo, jamais se conseguirá estabelecer a moralidade sobre uma relação,
mas será sempre necessário recorrer às decisões do sentim ento” (IPM, p. 177). E
acrescenta: “A hipótese que propomos é clara. Ela mantém que a moralidade é
determinada pelo sentimento. Ela define a virtude como qualquer ação ou quali
dade espiritual que comunica ao espectador um sentimento agradável de aprova
ção; e o vício como seu contrário” (IPM, p. 178).
Por fim, sustenta que a razão não constitui móbil para a ação: “A razão
sendo fria e desinteressada, não constitui um motivo para a ação mas limita-se a
direcionar o impulso recebido dos apetites e inclinações, mostrando-nos os meios
de atingir a felicidade e evitar o sofrimento” (IPM, p. 185).
71
Monteiro, João Paulo. Ensaios: Teoria, Retórica e Ideologia. São Paulo: Ática, 1982. p. 102-103.
73
O interesse aponta sempre para algo que produza prazer; como foi
definido no capítulo anterior que “a virtude se identifica pelo prazer, e o vício,
pela dor, produzidos em nós pela mera visão ou contemplação de uma ação ou
caráter” (T, p. 515), segue-se que há de existir, naquilo que se chama virtude,
ação ou caráter, algo que, quando identificado, produza uma satisfação e nos faça
condená-los ou aprová-los. Aqui entra o segundo princípio que norteia a moral, a
saber: o princípio de utilidade. Para Hume a “utilidade é agradáveP^ e granjeia
nossa aprovação. Esta é uma questão confirmada pela observação diária”
(IPM, p. 82). Como a utilidade não diz respeito só aos interesses particulares, mas
também, na maioria das vezes, aos interesses gerais, Hume defende que o bem da
sociedade e dos indivíduos, de uma forma geral, não nos é indiferente. E é por
essa razão que ele introduz o terceiro princípio: o princípio da simpatia^®. A
simpatia “nos dá um interesse pelo bem da Humanidade [...]” (T, p. 624).
^^Não cabe a objeção de que os objetos inanimados deveriam receber censura ou aprovação moral quando úteis
ou não, se a teoria de Hume estivesse certa. Quando falamos da origem da moral explicamos as razões de Hume
para não aceitar tal objeção (que ele mesmo aventou), já que há uma diferença natural entre os sentimentos que
impede que isso ocorra.
^®No Tratado, na Parte II, Seção I, Livro III (Da Moral), página 521, Hume nega que haja na mente humana um
sentimento humanitário e aponta a simpatia como aquele princípio que nos faz sentir afetados pela felicidade ou
infelicidade dos demais. Na Investigação, Hume promove ou qualifica a simpatia como esse sentimento
humanitário universal. Essa é a grande mudança na filosofia moral de Hume; porém, sem trazer qualquer
conseqüência negativa a seu sistema, assim defenderemos.
74
Ora, a justiça só é uma virtude moral porque tem essa tend ên cia para o
bem da humanidade; e, na verdade, não é senão uma invenção artificial
com esse propósito. P od e-se dizer o m esm o da ob ed iência c iv il, do
direito internacional, da m odéstia e das boas maneiras. [...]. Ora, com o
o m eio para se obter um fim só pode ser agradável quando o fim é
agradável; e como o bem da socied ad e, quando nosso in teresse ou de
n ossos amigos não está en volvid o, só agrada por sim patia, essa
simpatia é a fonte do apreço que tem os por todas as virtudes artificiais.
(T, p. 617)
Na investigação Hume mostra o mesmo pensamento: “Mas para que possamos acomodar as questões e afastar,
se possível, todas as dificuldades, vamos supor que todos esses raciocínios sejam falsos. Vamos supor que
abraçamos uma hipótese errônea quando reduzimos o prazer que provém da perspectiva de utilidade aos
sentimentos de humanidade e simpatia” (IPM, p. 162). E isso é confirmado diretamente por Hume: “Ora, o
prazer de um estranho, por quem não temos nenhuma amizade, agrada-nos somente por simpatia. É a esse
princípio, portanto, que se deve a beleza que encontramos em tudo que é útil” (T, p. 616).
75
que impede que seja colocado como uma das causas que funda a moral? E ainda,
qual o estatuto do princípio da simpatia? Se tomarmos de novo a interpretação do
professor João Paulo Monteiro, apontaremos alguma diferença entre a posição
dele e a nossa. Assim, apresentaremos o conceito de simpatia e sua importância na
filosofia de Hume, ao mesmo tempo em que apresentaremos a posição do
Professor João Paulo, pontuando em qual sentido discordamos dele.
Quando o outro deixa de nos ser indiferente por causa da simpatia, sua
opinião se nos torna relevante, mesmo nos causando dor, pois “um amante apai
xonado fica muito ofendido quando censuramos e condenamos seu amor; mas é
evidente que nossa oposição não pode ter nenhum efeito se não tiver influência
sobre ele, e se ele não tiver uma simpatia conosco” (T, p. 359). Também não
significa, como no caso da benevolência, que essa ausência de indiferença diga
respeito a uma atenção para com ele no sentido de assisti-lo em suas necessidades,
atenção esta incondicional. Muito pelo contrário, pois “uma região árida e
desolada sempre parece repulsiva e desagradável, e comumente nos inspira des
prezo por seus habitantes. Entretanto, tal repulsa procede em grande parte de uma
simpatia com os habitantes, [...]; só que de uma simpatia fraca, que não vai além
de uma sensação imediata, que é desagradável” (T, p. 422). Contudo, quando esse
grau de simpatia aumenta a ponto de experimentarmos uma dor, que é do outro, de
forma intensa, pode ocorrer que tenhamos por essa pessoa um sentimento de bene
volência.
Ora, é óbvio que a natureza preservou uma grande sem elhança entre
todas as criaturas humanas, e que qualquer paixão ou p rincípio que
observam os nas outras pessoas podem encontrar, em algum grau, um
paralelo em nós m esm os [...]. Uma notável sem elhança se mantém em
meio a toda sua diversidade; e essa sem elhança deve contribuir muito
para nos fazer penetrar nos sentimentos alheios, abraçando-os com
facilidade e prazer. A ssim , segundo constatam os, sempre que, além da
sem elhança geral de nossas naturezas, ex iste alguma sim ilaridade
peculiar em nossas maneiras, caráter, país ou linguagem , is so facilita
^®a simpatia. Quanto mais forte for a relação entre nós e um objeto,
mais facilm ente a im aginação realizará a transição e transmitirá à idéia
relacionada a vivid ez daquela concepção com que formamos a id éia de
nossa própria pessoa. (T, p. 352-353)
Pode-se tomar a palavra gerar em seu sentido forte, causai; pois, na seqüência fica bastante claro que os
princípios apenas aumentam o grau de afeto que é o efeito do princípio da simpatia. Portanto, a relação causai
aqui se refere aos efeitos, e não ao princípio, que, como defenderemos é inato. Tem-se que fazer a Hume uma
severa crítica por conta de sua frouxidão conceituai.
Grifo nosso.
79
Se a simpatia, como mostramos, pode levar o sujeito a ter a paixão ou sentimento de benevolência por outro,
este efeito tem de resultar, mesmo que em parte, do próprio princípio, sendo apenas auxiliado pelos princípios da
imaginação, pois “podemos concluir que uma associação de idéias, embora necessária, não é suficiente para,
sozinha, despertar uma paixão” (T, p. 339).
Veja-se que este é apenas um dos efeitos do princípio, pois ele pode dizer respeito à nossa própria dor e prazer
numa relação de simpatia com outrem. E note-se, também, que a moral requer, em Hume, uma relação entre
sentimento e razão, pois a simpatia, no Tratado, e através de um de seus efeitos (sentir a dor do outro), necessita
do auxílio da reflexão; “Ninguém que considere devidamente essa questão terá escrúpulo em admitir que
qualquer demonstração de falta de educação, ou qualquer expressão de orgulho e soberba nos desagrada
exclusivamente porque colide com nosso próprio orgulho, levando-nos, por simpatia, a estabelecer uma
comparação que causa a desagradável paixão da Humildade. Ora, como censuramos uma insolência desse tipo
mesmo em uma pessoa que sempre foi cortês conosco em particular, e até em alguém cujo nome conhecemos
apenas pela História, segue-se que nossa desaprovação procede de uma simpatia com os outros, e da reflexão de
que um tal caráter é altamente desagradável e odioso para todos que entram em conversação ou têm algum tipo
de relacionamento com a pessoa que o possui. Simpatizamos com eles em seu desconforto; e como esse
desconforto procede em parte de uma simpatia com quem os insultou, podemos observar aqui um duplo
ricochete da simpatia [...]” (T, p. 641). Sendo assim, para entendermos o conceito de simpatia temos de fazer
uma distinção entre o princípio enquanto tal (que é apenas uma propensão natural e original que nos leva a
considerar o outro), e o seu efeito. Como Hume usa um mesmo significante para ambos, isso gera uma confusão
que estamos tentando esclarecer.
80
Dissemos que ela não tem uma relação teleológica com a ética: “Assim,
por exemplo, vemos que todas as pessoas, mas sobretudo as mulheres, tendem a se
enternecer com criminosos que vão para o cadafalso, e logo imaginam que são
extraordinariamente belos e bem-apessoados; entretanto, quem presencia a cruel
execução do suplício não sente essas emoções suaves; ao contrário, enche-se de
horror, e não tem nem tempo para moderar essa sensação desagradável por meio
de uma simpatia oposta” (T, p. 423). Por esse motivo é que a razão tem um papel
importante nas distinções morais ao corrigir nossos juízos. Na Investigação Hume
fala o seguinte;
Usar a expressão “efeitos originais” não é um absurdo; “O costume têm dois efeitos originais sobre a mente;
confere a ela uma faciüdade para reahzar uma ação ou para conceber um objeto; e, posteriormente, uma
tendência ou inclinação a fazê-lo” (T, p. 458). Sendo assim, podemos dizer que o efeito originário do princípio
da simpatia é nos fazer, ou ter uma propensão, a tomar os outros em consideração. E os seus diversos efeitos
naturais são os que ora apresentamos.
Grifo nosso.
81
grifo nosso.
82
E, se, como nos diz Alasdair Maclntyre"^^, “ao julgar esta ou aquela ação
virtuosa ou viciosa, por exemplo, estou dando expressão à minha reação àquilo
que causou, em mim, orgulho ou amor, num caso, ódio ou humildade, no outro” ;
podemos concluir que esse prazer que está na base do julgamento moral, e que se
relaciona com a simpatia, obviamente é função do princípio de prazer. Sendo
assim, a simpatia, como defendemos, consiste numa forma do próprio princípio de
prazer se apresentar, e não, como defende o professor Monteiro, numa ampliação
do princípio de prazer mediada pela imaginação. Os dois princípios estão
fortemente relacionados. Mas como o princípio de prazer pode apresentar-se em
seu caráter individual, dizendo respeito à dor ou prazer apenas de um sujeito
qualquer, e sem que o princípio da simpatia seja sua condição, ao passo que o
princípio da simpatia apresenta-se, sempre, tendo como base o de prazer, segue-se
que este, e não aquele, é mais abrangente.
Nada é mais evidente de que o fato de que as pessoas obtêm nossa afeição
ou se expõem à nossa má vontade na proporção direta do prazer ou
desprazer que delas recebemos [...]. Aquele que encontra uma maneira de
se tornar útil ou agradável a nós, seja por meio de seus serviços, sua
beleza, ou sua adulação, pode estar certo de que terá nossa afeição. Ao
contrário, aquele que nos prejudica ou desagrada sempre despertará nossa
raiva e ódio. Quando nossa nação está em guerra com outra detestamos
todos os membros desta última, acusando-os de cruéis, pérfidos, injustos e
violentos; a nós e a nossos aliados, porém, consideramos sempre justos,
moderados e clementes [...]. É evidente que o mesmo método de
pensamento está presente em toda vida comum. (T, p. 382)
Para reforçar nossa posição, não concordamos que o prazer que decorre
da simpatia não diga respeito à sobrevivência do sujeito que o sente, e vamos
defender isso com premissas do próprio texto de Monteiro. Esse prazer é o
elemento principal das distinções morais, distinções estas que se tornam possíveis
apenas numa relação entre sociedade e princípio da simpatia. Como a simpatia é
um fenômeno que ocorre também nos animais, sem que nestes apareça o fenômeno
moral, “a causa decisiva deve ser aquela diferença entre a espécie humana e as
espécies animais que concorre com a simpatia para produzir, em nós, a capacidade
para estabelecer distinções morais” (TLD, p. 240). “E esta causa é a sociedade, a
organização da espécie humana em grupos sociais, condição de sobrevivência
da espécie” (TLD, p. 240). E como “para Hume a existência desses grupos
48
Justiça de Quem? Qual Racionalidade? Coleção Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 327.
84
Há uma longa passagem na Investigação (páginas 195-196), onde Hume reclama que para as nossas
realizações e desejos há que se colocar uma paixão como causa. Assim, Hume nos fala que se não tivéssemos a
paixão da vaidade, os elogios dos outros nos seriam totalmente indiferentes, assim como se não houvesse
nenhuma espécie de apetite antecedente ao amor a si mesmo essa propensão dificilmente poderia alguma vez
exercer-se... Depois nos diz; “Mas onde está a dificuldade em conceber que isso pode igualmente ocorrer no caso
da benevolência e da amizade e que, pela estrutura original de nosso temperamento, podemos alimentar um
desejo pela felicidade ou bem de outra pessoa [...]” (IPM, p. 196). Ou seja, o mesmo raciocínio aplica-se a
simpatia no Tratado. Temos uma propensão a simpatizar decorrente de um princípio inato.
85
Como nos diz Deleuze: ”A associação é uma regra da imaginação, não um produto, não uma manifestação do
livre exercício desta” (DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 14-15.).
Sem dúvida, mesmo que se critique Deleuze argumentando que a imaginação, como o próprio Hume nos diz,
pode unir, a seu bel prazer, idéias na mente, esse livre exercício da imaginação é ainda função da regularidade
que os próprios princípios conferem a ela.
Veja-se a seguinte passagem que mostra que a simpatia não pode ser função da imaginação ou um mecanismo
desta: “Esse princípio da simpatia tem uma natureza tão poderosa e sugestiva que intervém em quase todos os
nossos sentimentos e paixões [...]. Os sentimentos alheios nunca poderiam nos afetar se não se tomassem, em
certa medida, nossos sentimentos; e, nesse caso, eles agem sobre nós combatendo e intensificando nossas
paixões, como se tivessem sido originalmente derivados de nosso próprio peito e disposição. Enquanto
permanecem ocultos nas mentes alheias, não podem ter nenhuma influência sobre nós; e, mesmo quando
conhecidos, se não fossem além da imaginação ou da concepção, esta faculdade está tão acostumada a toda
espécie de objetos, que uma mera idéia, ainda que contrária a nossos sentimentos e inclinações, nunca seria
sozinha capaz de nos afetar” (T, p. 632-633). E quando Hume fala da simpatia nos animais fica claro em sua
finalização que a imaginação ,é apenas algo de reforço, e não originário dela: “A inveja e a malevolência são
paixões muito fortes nos animais. São, talvez, mais comuns que a piedade, porque requerem um esforço menor
de pensamento e imaginação” (T, p. 433).
Além disso, nosso conceito fala que um princípio originário pode variar em sua intensidade, não perdendo, por
isso, sua condição. E isso é confirmado por Hume na investigação. Ao se referir aos sentimentos humanitários
como decorrente de princípios que à primeira vista ”podem parecer algo frágeis e delicados”, nos diz que outras
paixões “talvez originalmente mais forte, [grifo nosso] são não obstante - pelo fato de serem egoístas e privadas
- freqüentemente sobrepujadas pelo poder da primeira, e cedem o domínio de nosso coração àqueles princípios
públicos e sociais” (IPM, p. 161).
86
Essa mudança é tão substancial, que, como mostramos, a simpatia, no Tratado, não tem só a ver com o
cuidado que temos em relação ao outro, ou com nossa preocupação com ele em decorrência de sua dor que
experimentamos em nosso Peito. Ela nos faz desprezar, entre outras coisas, o outro. Convidamos o leitor a ler e
perceber um detalhe importantíssimo na Investigação: toda vez que a simpatia é falada por Hume, ela é sempre e
invariavelmente vinculada ao prazer que temos quando contemplamos a felicidade alheia, e ao desprazer que
temos quando contemplamos sua infelicidade. O que é bastante coerente, já que, nesta obra, ela se tomou um
princípio humanitário.
Se a simpatia tivesse um caráter originário - inflexível - em seus efeitos, não poderia ora produzir desprezo,
ora benevolência. E se os seus efeitos fossem originalmente sempre de caráter benevolente, obviamente que, pela
linha de raciocínio de Hume, não haveria justiça, pois estaríamos sempre pondo os interesses dos outros em
primeiro lugar.
COSTA, Margarita. As Idéias Morais e Sócio-PoKticas de Hume. Argentina; Edições da Revista do Instituto
de Investigações Educativas, 1979. p. 25.
Ibidem.
87
Ao falar, na Investigação, dos sentimentos humanitários, Hume nos diz: “Os graus desses sentimentos podem
ser assunto de controvérsia, mas não há como negar que a realidade de sua existência deve ser admitido em
qualquer sistema ou teoria” (IPM, p. 93).
Para fazer-se notar essa metamorfose, a seguinte comparação entre o Tratado e a Investigação nos parece
pertinente. No Tratado, ao mostrar que a fonte da aprovação moral que a justiça recebe deriva da simpatia, Hume
nos diz o seguinte: “Este último princípio, da simpatia, é fraco demais para controlar nossas paixões; mas tem
força suficiente para influenciar nosso gosto, e nos dar os sentimentos de aprovação ou condenação”
(T, p. 540). Na investigação, em sua conclusão, Hume nos diz o seguinte: “Basta para nossos presentes
propósitos que se admita - o que com certeza não poderá ser posto em dúvida sem incorrer em grande absurdo -
que há alguma benevolência, por pequena que seja, infundida em nosso coração, algum lampejo de afeição pelo
gênero humano [...]. Mesmo supondo que esses sentimentos generosos são demasiados frágeis, [...] ainda
assim são capazes de comandar as decisões de nosso espírito e, caso todo o reato seja indiferente, de produzir
uma moderada preferência pelo que é útil e proveitos à humanidade em face daquilo que lhe é prejudicial e
perigoso. Surge de imediato uma distinção moral, um sentimento genérico de censura e aprovação [...]“
(IPM, p. 155). Percebe-se que o afeto que a simpatia faz surgir em favor da humanidade, que também pode ser
contrário, no Tratado, é, na Investigação, transformado numa benevolência ampla. Porém, ambos são fracos.
88
sam ser reduzidos a p rin cíp ios mais sim ples e universais, [...] e
podem os considerar com segurança que esses princípios são originais
[...]• (IPM , p. 84-85)
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 33.
89
E para apoiar sua posição, Deleuze faz uma citação resumida do Trata
d o , o n d e Hume, logo após recusar a noção de que os homens só agem pensando
em si mesmos, está a se referir à benevolência^^ É ela na integra:
Não é a utilidade que nos agrada enquanto tal, e a partir dela surge um
sentimento pelo bem social. É a sociedade, os outros, que nos interessa, além de
nosso interesse próprio, e a utilidade recebe a aprovação, tanto particular como
universal, por conta desse duplo interesse. Demonstrativamente o argumento de
Hume não se sustenta. Partindo das premissas que Hume utiliza não há como
aceitarmos a conclusão de que somos simpáticos à sociedade desinteressadamente,
que é a questão que pulsa.
Vê-se que a conclusão não se segue das premissas, pois falta uma
premissa que possa garantir que o interesse que temos pela sociedade é, enquanto
tal, tomado como valor em si - mesmo que isso não se dê racionalmente, mas por
força de um sentimento. É perfeitamente plausível que o bem da sociedade nos
interesse apenas na medida em que é a própria sociedade, em harmonia, que nos
proporciona um bem-estar ou prazer maior; ou seja, o interesse pelo bem social
seria, em sua origem, decorrente de um interesse egoísta. É esse exatamente o
caso da justiça, pois como o próprio Hume assume, ela surgiu de um interesse
particular; e nada impede que o mérito que lhe atribuímos seja não como ele
afirma - devido uma simpatia pelo bem piíblico - , mas estritamente porque
garantindo a justiça, garantimos nosso próprio bem-estar.
Cícero Araújo em: Clássicos do Pensamento Político. São Paulo, Edusp, 1988. p. 78.
ARAÚJO, Ibidem, p. 80.
68
ARAÚJO, Ibidem, p. 81.
92
surgindo e mostrando ao homem que era vantajoso não se apropriar dos bens
alheios, visto que, dessa forma, a posse dos seus próprios bens seria respeitada.
Essa posse não poderia ser, contudo, fixa ou definitiva, já que os bens
de cada um nem sempre estão de acordo com suas necessidades respectivas; logo
haveria que se permitir uma flexibilidade de posse para que as pessoas pudessem
trocar os seus bens. A partir da primeira lei (estabilidade das posses), através de
um consentimento miítuo (segunda lei: transferência de propriedade por consen
timento), haveria comércio que geraria uma terceira lei; cumprimento das promes
sas. Pois como nem sempre “se pode transferir a propriedade de uma casa parti
cular que fica a vinte léguas de distância, porque aqui o consentimento não pode
ser acompanhado pela entrega” (T, p. 559), era necessário que os homens
cumprissem com a palavra dada, a fim de garantir o comércio tão necessário à
manutenção da sociedade e, por conseguinte, à manutenção da própria vida.
Essas três leis surgem não por uma indicação, a priori, da razão, mas de
uma reflexão que tem origem no sentimento e na experiência. Aos poucos os
homens vão percebendo que é vantajoso respeitar a posse dos bens alheios, pois que
assim os bens de cada um serão respeitados. Aos poucos os homens vão percebendo
que não pode haver inflexibilidade na posse da propriedade, pois que isso é
prejudicial a cada um. Aos poucos os homens vão percebendo que é vantajoso
cumprir as promessas, pois o cumprimento delas é favorável ao comércio de cada
um em particular. E aos poucos essas três leis vão sendo respeitadas, implicando
numa censura moral a quem as desrespeita. Só depois é que as noções de
propriedade e direito vão surgir. As três leis se sustentam por serem extremamente
úteis à sociedade. A justiça, que diz respeito estritamente aos bens materiais, é útil
porque atende ao princípio de prazer relacionado aos bens de consumo. Ela tem sua
origem no interesse particular, e é neste interesse que reside a obrigação natural
para com ela (e isso fica claro na explicação de Hume); mas não fica claro que a
obrigação moral decorra do interesse na sociedade, no sentido da preocupação com
o bem-estar alheio, ou seja, um interesse puramente altruísta.
Pondo uma pá de cal nessa questão, convidamos o leitor a ler a Seção V, Parte II, Livro II, que fala de nossa
estima pelos ricos e poderosos, a fim de perceber que Hume faz questão de mostrar que essa estima não segue de
uma expectativa de vir a ter algum benefício dessas pessoas. Porque não há “dúvida de que nós naturalmente
estimamos e respeitamos os ricos, antes mesmo de descobrir neles uma tal disposição favorável para conosco”
(T, p. 395). Não dá pra vincular a simpatia a um interesse egoísta. Sendo a simpatia aquilo que, originalmente e
imperativamente, nos faz tomar o outro em consideração, não pode ser vista como um princípio que se liga
somente ao interesse particular, pois “às vezes levamos tão longe essa simpatia, que chegamos a sentir um
desconforto por possuirmos uma qualidade que é conveniente para nós, só porque essa qualidade é incômoda
para outras pessoas e nos toma desagradáveis a seus olhos, mesmo que não tenhamos nenhum interesse em nos
tomar agradáveis a elas“ (T, p. 629). Sepultando a questão do egoísmo relacionado à simpatia: “Mas embora a
distinção entre o vício e a virtude possa parecer decorrer diretamente do prazer ou desprazer imediato que as
qualidades particulares causam em nós ou nas outras pessoas, é fácil observar que ela também depende
consideravelmente do princípio da simpatia, em que tantas vezes insisti. Aprovamos uma pessoa que possui
qualidades imediatamente agradáveis àqueles com quem tem algum relacionamento, mesmo que nunca
tenhamos extraído nenhum prazer dessas qualidades. Também aprovamos a pessoa que possui qualidades
imediatamente agradáveis a si mesma, ainda que não tenham utilidade para nenhum mortal. Para explicar esses
fatos, temos de recorrer aos princípios anteriormente mencionados” (T, p. 630). Essa passagem reforça ainda
mais nossa posição de que a simpatia é um princípio inato, pois percebe-se que não é apenas uma simulação em
nossa imaginação da dor ou prazer do outro o que nos faz tomá-lo em consideração.
96
POPPER, R. KARL. Conjecturas e Refutações. Rio de Janeiro: Editora Universidade de Brasíüa, 1985. p. 65.
98
Hume quer desmentir essa doutrina por duas razões: 1) a m oral requer
algum sentimento universal que possa justificar as regras universais que se
apresentam na experiência; 2) a doutrina egoísta só poderia justificar as máximas
universais se houvesse nas ações virtuosas e nos louvores às virtudes um real
interesse, expresso empiricamente, de cunho pessoal. Sem falar que a noção de
egoísmo depõe contra um código de normas aceitas universalmente.
Quando um homem chama outro de seu in im igo, seu rival, seu anta
gonista, seu adversário, entende-se que ele está falando a linguagem do
amor a si mesmo e expressando sentim entos que lhe são p eculiares e
que surgem das particulares situações e circunstâncias em que está
envolvido. Mas quando confere a alguém os epítetos de corrupto,
odioso ou depravado, já está falando outra linguagem e expressando
sentim entos que ele espera que toda sua audiência irá com e le com par
tilhar. (lE H , p. 156-157)
E ainda que
esta afecção humanitária não seja em geral considerada tão forte com o
a vaidade ou a am bição, somente ela, por ser comum a tod os os seres
humanos, pode constituir a fundação da moral ou de qualquer sistem a
geral de censura ou louvor. A ambição de uma pessoa não é a ambição
de outra, e nem podem ambas ser satisfeitas por um m esm o objeto ou
acontecim ento; mas a humanidade de um hom em é a hum anidade de
todos, e o mesmo objeto excita esta paixão em todas as criaturas huma
nas. (IPM, p. 157)
ações contra o interesse público, em qualquer época que seja, ou quando mostra
ojeriza por um caráter maléfico, mesmo que este se nos apresente numa época
remota da história. Hume combate esse tipo de argumento categoricamente.
Escutemo-lo.
Como observamos, somos tocados tanto pelo que diz respeito às não-
virtudes humanas (que só trazem prejuízos às pessoas que as possuem), como
pelas virtudes (que só trazem benefícios às pessoas que as possuem). Com isso
Hume mostra que, nas duas questões, levamos em consideração não somente a
nossa pessoa. E aqui há um sólido muro construído contra aqueles que querem
destruir a fortaleza das ações desinteressadas. Pois, como as vantagens colhidas
por quem possui as virtudes citadas são desfrutadas somente pela pessoa que
possui tal caráter, “não pode de modo algum ser o amor a si mesmo que torna sua
contemplação agradável para nós, os espectadores, e que inspira nossa estima e
aprovação” (IPM, p. 104)’"^. O ponto de toque a ser ressaltado é que quem defende
que secretamente existe um interesse egoísta na base desses louvores, deve, se
Essa pessoa que contagia com sua alegria natural é sempre bem
recebida, sempre sentem sua falta, a ela prestam-se favores, a ela ofertam-se
presentes, a ela dirigem-se palavras de elogio. Mas não cabe dizer que todas as
oferendas que lhe são endereçadas fazem parte de um interesse egoísta por parte
daqueles que esperam sempre que a pessoa alegre lhes proporcione prazer. Isso
seria inverter a ordem empírica: primeiro somos contagiados por sua alegria e lhe
damos a merecida consideração, depois lhe prestamos favores. O que pode ser
inferido é que todos os galardões não passam de um efeito da simpatia, uma
espécie de gratidão, mas não que são decorrentes de um cálculo racional. Agora, é
possível que depois as pessoas passem a bajular o sujeito por interesse no prazer
104
75
IPM, p. 141.
105
agarrasse desde que pudesse, com o restante, viver com honra e renome
[...]. (IPM, p. 131)
que a própria brandura e delicad eza d esse sentim ento, sua cativante
afabilidade, suas afetuosas exp ressões, seus atenciosos cuidados e todo
o fluxo de mútua confiança e respeito que faz parte dos ternos vínculos
de amor e amizade; também se reconhecerá, eu d izia, que esses
sentim entos, por serem em si m esm os d eleitá v eis, são necessariam ente
transmitidos aos espectadores e os en volvem na m esm a ternura e
delicadeza. (IPM, p. 135)
Que o mérito que damos à benevolência não decorre somente de sua utiüdade pode ser provado obliquamente
ao se perceber que, mesmo em hipótese alguma ela não trazendo mal à sociedade, às vezes observa-se uma leve
censura às pessoas que excedem em sua benevolência, realizando mais do que se é exigido na sociedade (fulano
é bom demais até!), conforme Seção VII da segunda Investigação.
106
E sses são alguns exem plos das várias esp écies de mérito que são
valorizadas p elo prazer im ediato que com unicam à pessoa que as
p ossui. Nenhuma perspectiva de utilidade ou de futuras con seq ü ên cias
b enéficas toma parte nesse sentim ento de aprovação; e, no entanto, ele
é sem elhante àquele outro sentim ento que surge de uma p ercep ção da
utilidade pública ou privada. O bservamos que a m esm a simpatia so cia l,
ou sentim ento de solidariedade pela felicid ad e ou miséria hum anas,
está na origem de ambos; e esta analogia, em todas as partes da
presente teoria, pode com justiça ser tomada com o uma confirm ação
desta. (IPM, p .139)
” O “agradável” deve ser visto como sintoma de uma paixão social, e não egoísta.
108
Antes de passarmos adiante, devemos analisar uma forte crítica que foi
feita a Hume por William Davie, relativa ao catálogo de virtudes acima, por ele
apresentado como procedimento metodológico inadequado para se abordar a
questão moral. O objetivo de Davie é tratar exclusivamente do catálogo de Hume;
muito embora alegue, sem tocar na questão, que o defeito ali encontrado conta
mina toda a teoria moral do filósofo. Citamos: “Se há algo errado nesse catálogo,
como penso, deve-se esperar tal defeito no conjunto da filosofia ética de Hume”’^.
Para discutirmos essa questão, julgamos útil colocar em tela a passagem em que
Hume fala do catálogo, a fim de confrontarmos o autor com a crítica de Davie.
Vejamos a passagem.
DAVIE, William. Hume’s Catalog o f Virtue and Vice. DAVID HUME, Many-side Genius. University of
Oklahoma press: edited by KENNETH R. Merril and W. Shahan. 1976. p. 45.
109
coleta e arranjo das qualidades humanas que são estim áveis ou censurá
v eis. A única tarefa do raciocínio é discernir as circunstâncias com uns,
em cada um dos lados, a essas qualidades; observar aquelas caracterís
ticas particulares em que concordam, de um lado, as qualidades esti
m áveis, e, de outro, as censuráveis; e a partir daí atingir o fundamento
da ética e descobrir aqueles princípios universais dos quais se deriva,
em última instância, toda censura e aprovação. (IPM , p. 2 4 -2 5 -2 6 )
A crítica de Davie é boa para aquilo que ele enfocou; mas não atinge o
essencial da proposta de Hume ao elaborar o catálogo. Ao apresentar o catálogo
ele tem em vista, como o final da passagem indica, atingir os princípios gerais de
que derivam toda censura e aprovação. Esses princípios são a utilidade pública, o
sentimento humanitário e o prazer ou dor que acompanham a virtude e o vício.
Nosso filósofo inicia seu catálogo com a benevolência e depois com a justiça.
Pode alguém questionar se estas são ou não virtudes? Ou se estariam ou não no
catálogo das virtudes de qualquer pessoa? Agora, o que são atos justos ou
benevolentes é uma outra questão. Assim como se a realização ou operação dessas
virtudes sempre é favorável à sociedade.
É por isso que Hume mostra que, para certas virtudes, a razão tem um
papel decisivo. Dar esmolas é um ato de benevolência (é uma espécie de dever
moral ajudar os mais carentes); mas pode se tornar um vício, ou fraqueza, quando
passamos a considerar que essa prática, encoraja a indolência e a ociosidade.
Então “passamos a considerar que essa espécie de caridade é antes uma fraqueza
que uma virtude” (IPM, p. 33). Nossos sentimentos são orientados pela razão, pois
“as virtudes sociais nunca são consideradas à parte de suas tendências benéficas”
(IPM, p. 34). Note-se que a variação nos sentimentos e, conseqüentemente, a
variação na censura não implicam sempre numa variação na eleição de uma
virtude; a benevolência continua sendo uma virtude, mas as ações que decorrem
desse sentimento dependem de considerações que atendem às necessidades da
sociedade. Agora, o que nos faz mudar nossa opinião, ou crença, é uma orientação
da razão, sem dúvida, mas impulsionada por um sentimento de desagrado diante
das ações que outrora eram consideradas virtuosas. Mas por que não são mais?
Porque se tornaram nocivas à sociedade. Um sentimento de desagrado ou prazer
precisa se manifestar para que as ações mudem, e deve estar relacionado, segundo
Hume, a um sentimento humanitário. Mas segue-se por isso, ou por qualquer
consideração da razão, que as pessoas deixem de dar esmolas? Obviamente não.
mesmo por outras nações, quando a elas não tenha causado nenhum dano. A
moral, parece ter escapado a Davie, é um fato social. Retrate-se ao público a
ambição de dois homens, e que o resultado das ações de um deles tenha trazido
conseqüências nocivas à sociedade, à outra pessoa, ou ao próprio agente, e será
difícil conceber uma aceitação favorável. Faça-se o mesmo experimento sem que
nenhum dano tenha trazido a qualquer pessoa...
tados, assim como todas as propostas que apresentarmos para execução desse
objetivo.
Mas onde está a dificuldade em conceber que isso pode igualm ente
ocorrer no caso da benevolência e da amizade e que, pela estrutura
original [contra M onteiro] de nosso temperamento, podem os alimentar
um desejo pela felicidade ou bem de outra pessoa, o qual, por m eio
dessa afecção, torna-se nosso próprio bem e é a seguir perseguido p elos
m otivos com binados da benevolência e auto-satisfação? (IPM, p. 196)
A ssim , dado que a distinção entre essas esp écies de sentim entos é tão
grande e óbvia, a linguagem deve prontamente adaptar-se a ela e in ven
tar uma classe especial de termos para expressar esses sentim entos
universais de censura ou aprovação que surgem dos afetos hum anitários
ou de uma percepção da utilidade geral, e os sentimentos contrários. A
virtude e o v ício tornam-se então con h ecid os, a moral é identificada,
formam-se certas idéias gerais acerca das ações e dos com portam entos
[...]. (IPM, p. 159)
Nesse sentido, Alasdair Macintyre nos diz o seguinte: “Na visão de Hume, as paixões são pré-conceituais e
pré- lingüísticas. É isso que lhe possibilita falar na ‘correspondência das paixões nos homens e nos animais’."
(Justiça de Quem? Qual RacionaUdade? São Paulo: Edições Loyola, 1991. p. 325).
114
É verdade que a filo so fia moral tem uma desvantagem peculiar, que
não se encontra na filo so fia da natureza: ela não pode reunir
experim entos de maneira deliberada e prem editada, a fim de esclarecer
todas as dificuldades particulares que vão surgindo. Quando não sou
capaz de conhecer os efeito s de um corpo sobre outro em uma dada
situação, tudo que tenho a fazer é pôr os dois corpos nessa situação e
84
Que é a tese de Monteiro acerca da simpatia. Então, a tese de monteiro seria, para o próprio Hume, metafísica.
115
Das virtudes sociais que apresentamos,^^ a única que tem seu mérito
extraído exclusivamente da utilidade é a justiça. A benevolência exerce-se por um
instinto que visa um determinado objeto, sem implicar maiores considerações para
com a sociedade. Qualquer ação benevolente, amiúde, não causa nenhum dano
social, pois se dirige geralmente a uma pessoa amada ou estimada, e o bem que
dela resulta é em si completo e integral. Além do que, esse bem decorrente da
benevolência promove uma aprovação moral “sem qualquer reflexão sobre
conseqüências posteriores, e sem uma perspectiva mais ampla relativa à adesão e
imitação de outros membros da sociedade” (lEH, p. 198). Já com a justiça não
ocorre o mesmo, assim como com a obediência civil, pois elas
A obediência ao governo, ou a fídehdade, como Hume chama, é também uma virtude onde a utiUdade é a
única causa de seu mérito.
116
suficiente se, por m eio d ele, estab elecer-se uma com pensação por todos
os m ales e inconveniências que decorrem de situações e caracteres
particulares. (IPM, p. 198-199)
Mas embora a razão, quando plenam ente d esen volvida e cu ltivad a, seja
suficiente para nos fazer reconhecer a tendência útil ou n ociva de
atributos e ações, ela sozinha não basta para originar qualquer censura
ou aprovação moral. A utilidade é apenas a tendência para atingir um
certo fim, e, se esse fim nos fo sse de todo indiferente, a mesma
indiferença seria experimentada em relação aos m eios. É p reciso , aqui,
que um sentimento venha a se m anifestar, para que se estab eleça a
preferência pelas tendências úteis diante das nocivas. E sse sentim ento
não pode ser sènão um interesse pela felicid a d e dos seres humanos e
uma indignação perante sua desgraça, já que estes são os diferentes
fins que a virtude e o vicio têm tendência a promover. A qui, portanto, a
razão nos informa sobre as diversas tendências das ações, e a ben e
volên cia faz uma distinção em favor daquelas que são úteis e b en éficas.
(IPM, p. 174-175)
paixão maior, leva a uma percepção, dada pela razão experimental, de que pen
sar de forma geral trás tanto um bem público como particular. Essa pedagogia
natural ensina aos homens que o melhor partido é o do interesse geral, pois como
nos diz Hume, ao falar dos sentimentos humanitários, “eles formam, de certo
modo, o partido da humanidade contra o vício e a desordem, seus inimigos co
muns” (IPM, p. 161). Mas para isso, esses sentimentos humanitários já têm de
existir; o homem é conduzido por suas paixões a refletir segundo um parâmetro
universal, já posto em nossa constituição pela natureza, a saber, a simpatia. Ao
falar sobre a idéia da moral, o filósofo afirma que:
Enfim, já era do agrado dos homens a felicidade dos outros, mesmo que
em escala ínfima em relação à felicidade de cada um. Daí todo o empenho de
Hume em provar que existe um sentimento, mínimo que seja, de caráter huma
nitário. É a própria paixão do interesse privado que “determina” os homens, junto
com as situações concretas experimentadas, a pensarem, valorizarem e refletirem
a partir desse pequeno sentimento. Quando o interesse particular não está
fortemente em jogo, somos naturalmente levados a desejar o bem da sociedade, e
quando ele está presente, também somos “obrigados” a pensar socialmente, a fim
de satisfazê-lo mais adequadamente (princípio de realidade). Daí surgem as regras
gerais que a razão ajuda a estatuir. Numa palavra: quando o egoísmo torna-se
exacerbado, torna-se, ao mesmo tempo, pernicioso para própria pessoa, e esse
interesse particular realiza-se mais completamente quando amparado por regras
que visam o interesse geral. Reiteremos: a paixão do egoísmo é maior e uma das
causas que origina a justiça; mas ao mesmo tempo, por uma reflexão advinda da
experiência, ela, paradoxalmente, promove uma exaltação da benevolência, que é
limitada.
E ainda:
Seja qual for a contradição que vulgarm ente se supõe existir entre os
sentim entos ou d isp osições egoístas e so cia is, estes não são realm ente
mais op ostos do que ‘eg o ísta ’ e ‘am b icioso’, ‘e g o ísta ’ e ‘v in g a tiv o ’,
’eg o ísta ’ e ‘fú til’. O amor a si mesmo precisa ter como base uma
propensão original de algum tipo que torne atraentes os objetos d e sua
busca, e nada é mais adequado a esse propósito do que a b en evolên cia
ou humanidade. (IPM, p. 168)
as três regras da justiça nada têm a ver com a moral, visto que o cumprimento
delas decorre de um interesse particular e racional, interesse marcado pela real
necessidade de sobrevivência. Ou seja, nessa fase primordial, a moralidade, pelo
menos quanto às três leis da justiça, ainda não existe. Essa justiça primitiva é
tipicamente amoral, pois nada a torna necessária já que o interesse de todos é
igual. E as regras morais, entre as quais se incluem regras equivalentes às regras
racionais produzidas pelo interesse, pela obrigação natural, têm portanto uma
dupla origem: ”nos princípios da natureza humana [a simpatia] e nas necessidades
da organização social” (TLD, p. 258).
Resumo da posição de João Paulo Monteiro, de acordo com sua tese de livre-docência, página 253.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 32.
120
reunião de fam ília; mas uma reunião de fam ílias não é uma reunião
fam iliar. Sem dúvida, as fam ílias são unidades sócias; porém o próprio
dessas unidades é não se adicionarem N este sentido o problem a da
sociedade não é o de lim itação, mas de integração. Integrar as sim pa
tias é fazer com que a simpatia ultrapasse sua contradição, sua parcia
lidade natural.*®
Portanto, o egoísmo que originou a justiça foi apenas uma das causas,
pois a própria simpatia relativa (benevolência limitada) contribuiu para isso, além
do crescimento da sociedade. Nesse prisma, interesse particular não significa
unicamente egoísmo. O sentimento moral é originário, mas o senso m oral não.
Este vai se formando aos poucos. Mas tem um outro aspecto a ser considerado, e
que parece impugnar a reivindicação de que o louvor à justiça pode ser decorrente
do próprio egoísmo. Tal impulso originário está sempre depondo contra si, na
m edida em que é esse mesmo impulso que conspira contra a justiça, motivando
ações que a desrespeitam. Então, o apreço à justiça não pode ser decorrente do
próprio impulso - paixão - que a originou, pois que isso levaria a um vai-e-vem
de admiração e desprezo pelo egoísmo; e pela justiça (incongruente com a
experiência ética). E como o senso moral funda-se no sentimento humanitário (e
não há contradição alguma quando as ações humanas são pautadas nele), não há
por que se ver contradição ou ambigüidade no argumento de Hume. Vamos
adiante.
DELEUZE, Ibidem, p. 34. Aproveitamos para reforçar nossa posição contrária à de Deleuze, pois ele confunde
simpatia com benevolência restrita. É a benevolência que leva a imparcialidade e, somada ao egoísmo e
condições externas, opõe-se à sociedade. A simpatia, no Tratado é uma outra coisa diferente da benevolência.
Assim, onde se lê simpatia, leia-se benevolência restrita.
121
não pode acontecer senão com base num sentimento universal. Ou seja, a
comunicação entre os homens realiza-se apenas quando eles pensam com base em
princípios gerais. A necessidade de comunicação leva os homens a raciocinarem
com base no único sentimento que pode promover o interesse geral.
Quando fala sobre a simpatia®^ Hume diz que ela, por privilegiar
primeiro nossos interesses, depois o das pessoas que nos são mais próximas, deve
ser restringida com respeito â essa parcialidade, a fim de tornarmos nossos
sentimentos mais públicos e sociais e podermos manter um intercâmbio social
mais adequado, pois que seria impossível mantermos uma comunicabilidade social
caso nos mantivéssemos rígidos em nossas posições pessoais. Mas devemos notar
que a reflexão chega sempre depois, e decorrente de uma situação concreta vivida
conjuntada a uma comunicação de sentimentos, pois é justamente um intercâmbio
de sentimentos na vida e na convivência sociais “que faz-nos estabelecer um certo
padrão geral e inalterável com base no qual aprovamos e desaprovamos os
caracteres e costumes” (IPM, p. 97).
Hume está a falar, obviamente, da simpatia geral, que, conforme mantemos, sofre influência, tanto na
investigação como no Tratado, dos princípios que atuam na imaginação. Sendo que no Tratado trata-se apenas de
um princípio que nos faz tomar o outro em consideração, sem que haja uma essência benevolente em relação a
ele; muito embora, pela intensidade da dor que transmite, possa originar um sentimento de benevolência.
Enquanto na Investigação a simpatia é ela mesma um sentimento humanitário de caráter geral (uma benevolência
geral) que depende, para sua eficácia, da ajuda da imaginação. A benevolência restrita leva o sujeito à ação, a
geral tem uma dependência da imaginação e de outras paixões para ação.
.122
ou não nas ações e, conseqüentemente, fornece regras do agir. Agora, que essas
regras promovem apenas a satisfação das paixões, e que não são rígidas como um
código eterno e imutável consubstanciado por uma razão pura a priori, e por isso
não podem se conformar aos ditames da razão, que apenas os indica e nada mais;
que sua obrigatoriedade dá-se no âmbito das próprias paixões e princípios da
mente (veremos daqui a pouco), sempre em determinados contextos sociais; isso é
de fato o sistema de Hume. O que é imutável, enquanto fato constatado, e não
como algo essencial, é a própria natureza humana, entendida como um conjunto
de paixões que se têm mantido regulares na história da humanidade, e não as
ações que delas são efeitos. Portanto, a moral surge historicamente devido à
passionalidade humana e necessidades externas que se vão apresentando aos
homens. Nas próprias paixões ou na natureza humana, não existe inscrito um
código de ética que determine o homem a agir de tal ou qual forma. Não há uma
relação entre vontade e normas que podC;m surgir na sociedade decorrente das
paixões e situações vividas. Nem tampouco isso poderia acontecer numa relação
entre razão, vontade e norma. Preconizar essa idéia seria aceitar o fundamento
metafísico da causalidade, que Hume desmentiu.
* A própria simpatia ou benevolência ampla serve apenas como princípio basilar da moral, mas jamais se
constitui como um instinto originário que leva o homem, infalivelmente, a agir conforme as normas morais que
objetivam o bem da sociedade; ” Minha simpatia por outra pessoa pode me dar um sentimento de dor e
desaprovação quando se apresenta um objeto que tenha uma tendência a lhe causar um desprazer, mesmo que
talvez eu não esteja disposto a sacrificar em nada meu interesse, ou a contrariar nenhuma de minhas paixões para
satisfazê-la” (T. p, 625-626). E ainda: “Poderíamos chegar a afirmar que não há criatura humana para quem a
visão da felicidade (quando não estão envolvidos a inveja e o ressentimento) não traga prazer, e a da miséria
desconforto. Isto parece ser inseparável de nosso feitio e constituição. Mas são apenas os espíritos mais
generosos que, a partir daí, são impelidos a buscar zelosamente o bem dos demais e a sentir uma real paixão pelo
seu bem estar. Em homens de espírito estreito e mesquinho, essa simpatia não vai além de um tênue sentimento
da imaginação, que apenas serve para excitar sentimentos de satisfação ou censura e aplicar aos seus objetos
denominações honrosas e desonrosas. Um avarento insaciável. Por exemplo, elogia extremamente a diligência e
a frugalidade mesmo em outros homens, e as coloca, em sua estima, acima de todas as outras virtudes. Ele
reconhece o bem que delas resulta e sente por essa espécie de felicidade uma simpatia mais vivida do que por
qualquer outra que lhe pudéssemos representar, embora possivelmente não venha abrir a mão de um único
centavo para contribuir para fortuna do homem industrioso que tanto elogia” (IPM, p. 105).
124
Parece do mesmo modo supérfluo provar que as virtudes so ciá v eis das
boas maneiras e da espirituosidade, do decoro e do cavalheirism o são
mais desejáveis que os atributos contrários. A simples vaidade, sem
qualquer outra consideração, já é um m otivo suficiente para fazer-nos
desejar a posse desses dons. Ninguém jam ais foi de bom grado falho
n esses aspectos; aqui, todas as nossas deficiências procedem de má
educação, falta de habilidade, ou uma disposição de ânimo caprichosa e
obstinada. Será que alguém poderia seriamente ficar em dúvida sobre
se preferiria ter sua companhia desejada, admirada e requerida ao invés
de odiada, desprezada e evitada? A ssim como nenhum prazer é genuíno
sem alguma referência à con vivên cia humana e social, tam pouco pode
ser agradável ou mesmo tolerável um m eio social no qual uma p essoa
sinta que sua presença não é bem -vinda e observe a toda sua volta
sinais de desagrado e aversão. (IPM, p. 167)
enquanto o coração humano for com posto dos mesmos elem entos que
hoje contém , jam ais será totalm ente insensível ao bem público nem
inteiramente indiferente às tendências dos caracteres e condutas. E
ainda que esta afecção humanitária não seja em geral considerada tão
forte com o a vaidade ou a am bição, somente ela, por ser comum a to
dos os seres humanos, pode constituir a fundação da moral ou de qual
quer sistema geral de censura ou louvor. (IPM, p. 157)
instrumento de moral prática', e podem tornar esta última ciência mais correta em
seus preceitos^^ e mais persuasiva em suas exortações” (T, p. 660). E, como
exemplo de uma norma, diz ele que o “rico tem uma obrigação moral de dar aos
necessitados uma parte do que lhe é supérfluo” (T, p. 523). A questão é sabermos
se afirmações como as citadas acima põem Hume em contradição, já que se pode
perguntar de onde derivam esses preceitos ou deveres. Essa é uma questão
bastante delicada em Hume, e antes de firmarmos nossa posição, sem ter a
pretensão de esgotar esse problema, mostraremos primeiramente como a questão
foi tratada por alguns filósofos, e, depois, em que m edida nossa posição discorda
ou não deles. Comecemos com Rafhael e Macintyre. Rafhael expõe o ponto de
vista de Macintyre da seguinte forma:
Rafhael concorda com Maclntyre (nós também) que Hume usa a palavra
dedução para significar inferência em geral^^. É o caso do método experimental de
Hume, onde o mesmo fala que só podemos obter sucesso na investigação sobre a
moral deduzindo máximas gerais a partir de uma comparação de casos
particulares; conforme vimos acima. Mas Rafhael defende, e concordamos com
ele, que Hume tem uma concepção clara de duas, e apenas duas, formas de
inferência. E que se prontifica a usar a palavra dedução de cada um dos modos, ou
Grifo nosso.
RAFHAEL, D. D. In: Hume and the Enlightnment (Hume’s Critique of Ethical Racionalism). Edimburgo;
Edinburgh The Univaersity press, 1976. p. 25. Nós só colocamos as duas primeiras teses de Maclntyre que
dizem respeito à nossa discussão.
É mais um caso de imprecisão conceituai de Hume, pois ele usa a palavra dedução tanto para significar as
inferências indutivas, como para significar as inferências de caráter demonstrativo. Se ao exigir como se chega a
uma proposição de dever através de outra relativa aos fatos, Hume usasse a expressão “demonstra”, e não
“deduz”, talvez Maclntyre não tivesse levantado uma posição tão contrária à geral. Ou seja, se ao invés de
indagar “como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes” (T, p. 509), ele indagasse
“como essa nova relação pode ser demonstrada de outras inteiramente...”, talvez não houvesse tanta coisa a ser
discutida nesse ponto.
126
ambos em conjunto. Mas isto não implica que utilizaria a palavra dedução para
qualquer forma de derivação, tal como a explicação que ele dá do julgamento
moral relacionado aos sentimentos humanos. Uma das conclusões de Rafhael, e
também concordamos com ele, é que quando Hume explica um julgamento de
obrigação como a expressão de um sentimento de desaprovação pela não execução
de uma ação, ele não nos mostra como inferir “deve” de ‘é’ por indução. Mas
Hume ao falar sobre a passagem do ‘É ’ para o ‘DEVE’, quando utiliza a palavra
dedução, se refere à inferência. Conclui Rafhael, não obstante os usos que Hume
faz da palavra dedução, que, de acordo com o filósofo, uma inferência
demonstrativa (isto é, dedutiva) diz respeito a relações, e a inferência provável
(isto é, indutiva) a questões de fato. Assim, embora a palavra dedução para Hume
não necessariamente signifique dedução no sentido estrito em outros contextos, no
presente deve significar.
RAFHAEL, D. D. In: Hume and the Enlightnment (Hume’s Critique of Ethical Racionalism). Edimburgo;
Edinburgh The Univaersity press, 1976. p. 26. Neste parágrafo fizemos um resumo da posição de Rafhael.
VOLPATO, Delamar. Reformulação Discursiva da Moral Kantiana. Tese de doutorado. Rio grande do sul;
Universidade Federal do Rio grande do sul, 1997. p. 234-235.
Aqui Delamar refere-se às quatro relações pertencentes ao campo da certeza, explicadas anteriormente por nós.
127
Como a citação diz, se trata de matéria de fato, mas num sentido preciso,
a saber, objeto do sentimento, não da razão, ou de idéias.
Também não vemos razões nos textos de Hume que apontem para uma
admoestação a se extrair preceitos morais com base nos fatos ou sentimentos.
Portanto, concordamos com Rafhael, nesse sentido. É bastante esclarecedora a
forma como Ayer argumenta mostrando que não há possibilidade de se extrair
qualquer dever tomando-se como base as ações; pois qualquer obrigação que se
queira pleitear como norma moral pressupõe um senso de dever que precisa ser
explicado. Citamos Ayer:
HUME, David. CARTA DE UM CAVALHEIRO A SEU AMIGO EM EDIMBURGO. Tradução de Plúiio J. Smith.
Manuscrito, revista internacional de filosofia. Campinas-SP: Universidade Estadual de Cançinas, 1997. p. 24-25.
AYER, A. J. Hume, Mestres do Passado. Oxford: Oxford University Press, 1981. p. 165-166.
129
minada cura; que devemos praticar exercícios para mantermos a saúde em dia;
que, quando o tempo estiver nublado, devemos levar um guarda-chuva para nos
proteger da chuva, enfim, um monte de obrigações decorrentes de fatos que se
mantiveram regulares. Não podemos da mesma forma fazer em relação ao campo
moral? Se a experiência mostrou, regularmente, que a obediência civil é útil a
todos quando os governos são bons; qual razão impede-nos de fazer uma p re s
crição, de caráter indutivo, de respeito ao governo. A mesma norma aplica-se ao
respeito à propriedade, já que a experiência mostrou que tal mandamento é útil à
sociedade em geral. Não são os mesmos princípios que atuam nos dois âmbitos?
Não há, nos dois lados, uma regularidade de fenômenos conjuntados e
relacionados pela causalidade; assim como uma crença decorrente da ação do
costume sobre a imaginação, de que o futuro repetirá o passado ?
Mas, muito embora o remédio seja artificial - sem dúvida - o meio para
aplicá-lo é ainda natural. A razão experimental, como mostramos, é ainda
natureza, pois é esta que “fornece, no juízo e no entendimento, um remédio para o
que há de irregular e inconveniente nos afetos” (T, p. 529). Dizendo de outro
modo; ”A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para
todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento; e certamente os
movimentos cegos daqueles, sem a direção deste, incapacitam o homem para a
sociedade” (T, p. 533). Seguindo esse raciocínio, mesmo sendo as instituições
produto da criação humana, não se segue que essas criações sejam resultado de
uma liberdade incondicional, pois “esquecemos facilmente que os desígnios,
projetos e objetivos dos homens são princípios tão necessários em sua operação
131
quanto o calor e o frio, o úmido e o seco” (T, p. 514). Basta agora identificarmos,
com base no estudo acima, e relativo tão-somente à moral, o que a natureza
realiza originalmente, sem a participação da razão.
Os deveres m orais podem ser divididos em duas esp écies. A prim eira 101
A segunda espécie de deveres morais “é a dos que não assentam em qualquer instinto original da natureza,
derivado inteiramente de um sentido de obrigação, quando consideramos as necessidades da sociedade humana
[...]. É assim que a justiça, o respeito pela propriedade alheia, e a lealdade, o cumprimento das promessas, se
tomam obrigatórias e ganham autoridade sobre os homens” (E, p. 207).
132
com preende aqueles a que todos o s hom ens são conduzidos por um
instinto ou propensão natural, que exerce influência sobre eles ind e
pendentem ente de qualquer idéia de obrigação e qualquer consideração
de utilidade pública ou privada. D esta natureza são amor pelas
crianças, a gratidão para com os b en feitores e a piedade p elos in felizes.
Ao refletirm os sobre as vantagens de que a sociedade se b en eficia
graças a tais in stin tos humanos, prestam o-lhes o justo tributo da
aprovação e da estim a moral; mas a p esso a que por eles é guiada sente
seu poder e in flu ên cia anteriorm ente a qualquer reflexão desse ti
po. (E, p. 207)
Sem dúvida, de acordo com Hume há um julgam ento moral que tem sua
origem e fim no puro sentimento; irrefletido por assim dizer: "Talvez mais adiante
vejamos que nosso senso de algumas virtudes é artificial, e o de outras, natural”
(T, p. 514). Esse julgamento refere-se àquelas virtudes apontadas quando falamos
do catálogo, que não trazem dano à sociedade e que são comunicadas por um
prazer imediato, recebendo, assim, nossa aprovação.
O que nos leva a concluir que a relação entre razão e sentimento ocorre
mais pontualmente quando estão em pauta as virtudes de caráter utilitário, que são
mais prementes para a manutenção da sociedade, e exigem uma atividade maior
por parte do raciocínio; raciocínio este puramente indutivo e motivado por um
sentimento de dor e prazer.
133
BIBLIOGRAFIA
r
Obras de Hume
____ . Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
[coleção pensadores]
____ . Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WILLIAM, DAVIE. Hume’s catolog o f virtue and vice. David Hume, Many-side
Genius: University of Oklahoma Press: Norman, 1976.