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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

RAZÃO E SENTIMENTO NOS JULGAMENTOS


MORAIS (EM DAVID HUME)

EDSON EVANGELISTA DO NASCIMENTO

Florianópolis - SC
M arço / 2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

RAZÃO E SENTIMENTO NOS JULGAMENTOS


MORAIS (EM DAVID HUME)

Dissertação apresentada ao programa de pós-


graduação em filosofia da Universidade Federal de
Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção
do grau de mestre em filosofia.

EDSON EVANGELISTA DO NASCIMENTO

Orientador
PROF.“ DRA. SARA ALBIERI

F lo rian ó p o lis - SC
Março / 2003
Esta dissertação foi julgada
adequada para a obtenção do título
de Mestre em Filosofia e aprovada
em sua forma final pelo Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina.

7(k,tCH

Pyor. Dr“. Maria de Loyrdes Alves Borges


Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Fiiosoiia da UFSC

^ Lurdes A. Borges
«rn filosofio ■CFH/UFSC

Banca E^imna

Prof. D it a r a Albieri
Presidente- U F ^

Prof. Dr® Livia (ííiimarães


Membro - UFMG

Membro - UFSC
U1

(^ u e m e n ç m o u t u J o is s o a o s e n h o T , j ^ o u t o v ?

/ \ v e s p o s ia velo p v o n ia m e n ie :

s o fr im e n io .

Albert Camus,
A Peste
IV

/\ o s m e u s p a is ,

]á -a\ec\àos, com t o J o o

a m o v J o meu c o va q ã o ..
AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os professores de filosofia responsáveis por minha


formação, e um especial agradecimento à minha orientadora, professora Sara
Albieri, pela confiança em mim depositada, pela atenção, empenho, abnegação e
lucidez em sua orientação, e pela relação de amizade que comigo mantém.
VI

SUMARIO

R E SU M O .......................................... .................................................................... viii


A B ST R A C T .......................................................................................................... ix
A B R E V IA TU R A S...............................................................................................x

IN TRO DUÇ ÃO ....................................................................................................01

CAPÍTULO I
1. TEORIA DA A Ç Ã O ........................................................................................... 04
1.1 DO PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE......................................................................04
1.2 QUE A VONTADE NÃO FUNDAMENTA A CAUSALIDADE ................08
1.3 DAS PAIXÕES COMO CAUSAS DAS AÇÕES............................................23
1.4 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA AS A Ç Õ E S ............................................... 25
1.5 DO CONCEITO DE RAZÃO PRÁTICA......................................................... 31
1.6 DA IDÉIA DE LIBERDADE E NECESSIDADE..................................... 35
1.6.1 Da n e c e ssid a d e ..................................................................................................... 35
1.6.2 Da l i b e r d a d e ...................................................................................................... ..4 0

CAPÍTULO II
2. A TEORIA MORAL DE HUM E.....................................................................46
2.1 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA A M O R A L .................................................46
2.2 O QUE ORIGINA A MORAL............................................................................64
2.3 DO PROJETO CONCILIADOR ENTRE RAZÃO E SENTIMENTO........68
2.4 DOS PRINCÍPIOS DA MORAL E DO SENTIMENTO M ORAL..............72
2.5 DO CONCEITO DE SIM PATIA.......................................................................75
2.6 A DEFESA DO PRINCÍPIO DA SIMPATIA E A REFUTAÇÃO DAS TEO-
RL\S DO EGOÍSMO.................................. ..............................................................90
2.7 DA CIENTinCIDADE DA TEORIA DO PRINCÍPIO DA SIMPATIA................ 111
2.8 DA RACIONALIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS REGRAS
GERAIS ......................................................... ........................................................ 115
Vll

CONSIDERAÇÕES F IN A IS ............................................................................ 130

REFERÊNCIAS......................... ..........................................................................133
VUl

RESUMO

Segundo Hume, a razão sozinha jamais poderia fundamentar a moral, pois ela
necessita de um sentimento básico de dor e prazer, relacionado não só ao nosso interesse
particular, mas também ao geral, que lhe dê um sentido prático relativo à ética. Da mesma
forma, em poucos casos nossos julgamentos morais são derivados exclusivamente do campo do
sentimento, sendo necessário que a racionaUdade tome partido indicando o verdadeiro valor do
objeto em questão, e, em muitos casos, indicando ações que se tomam deveres por melhor se
adequarem aos sentimentos morais e receberem o assentimento destes. Explicitar essa relação
entre sentimento e razão no âmbito moral é a nossa tarefa no presente trabalho. E ao fazermos
estaremos apontando, mesmo não sendo o objeto dessa dissertação, os limites do naturalismo
de Hume, limites que ele próprio coloca para o tratamento da moral. Tal é a fronteira entre
natureza e cultura no território ético, segundo a perspectiva humeana.
IX

ABSTRACT

According to Hume, reason alone could never provide the foundation for morality,
since it requires a basic sentiment of pleasure and pain, related not only to private but also to
public interest, to provide the practical ends related to ethics. In the same manner, our moral
judgements seldom derive from sentiment only. Reason cooperates to enlighten the object
under evaluation. It often recommends actions that become duties for best fitting moral
sentiments and appreciation. The aim of this dissertation is to clarify the roles played by reason
and sentiment in Hume’s moral theory, at the same time pointing to the limits of Hume’s
naturalism in morais. Those are the humean boundaries between nature and culture in ethics.
ABREVIATURAS

As cinco obras principais de Hume que utilizaremos serão abreviadas da seguinte


forma: “Tratado da Natureza Humana” (T); “Uma Investigação Sobre o Entendimento
Humano” (lEH); “Uma Investigação Sobre os Princípios da Moral” (IPM); “Diálogos Sobre a
Religião Natural” (DRN); “Ensaios Morais Políticos e Literários” (E). Outras obras serão
abreviadas e indicadas em cada caso.
INTRODUÇÃO

Hume propõe uma conciliação, ou casamento, entre razão e sentimento, no que


concerne às distinções morais, mostrando, ao mesmo tempo, os motivos pelos quais não
concorda com aqueles filósofos que pretenderam defender que a moralidade teria um caráter
puramente racional, nem tampouco com aqueles que defenderam que a moral não requer nada
mais do que um sentimento básico e original pertencente à nossa constituição ou natureza.
Sua teoria apresenta um conjunto de elementos que se relacionam e formam a base
argumentativa para negar as pretensões das teorias citadas acima. Esses elementos podem
assim ser postos: 1) uma teoria do determinismo causai (que envolve as noções de liberdade e
necessidade); 2) uma teoria das paixões; 3) uma teoria da racionalidade (relacionada com sua
teoria da mente); e 4) uma teoria do dever (envolvendo a relação entre sentimento e razão).
Assim, relacionando esses elementos teóricos e partindo da premissa fática de que a moral
promove ações, as razões que levam Hume a negar um fundamento da moral com base apenas
na razão ou no sentimento são as seguintes.

Em primeiro lugar, Hume defende a idéia de que as ações humanas não são livres,
tendo como causas originárias as paixões e sentimentos, aliados, com freqüência, a situações
externas que as determinam. As paixões põem sempre o fim para as ações humanas, ao passo
que a racionaUdade participa como colaboradora, orientando as paixões na maneira mais
adequada de atingir cada finalidade, de acordo com a situação. Em segundo lugar, tal razão
não é aquela que em outra parte (Investigação sobre o Entendimento, Seção IV) diz se ocupar
de relações entre idéias, como nas matemáticas e ciências formais, mas a racionalidade acerca
dos argumentos vindos da experiência, conseqüentemente, não a priori. A razão não pode, de
acordo com Hume, pôr os fins para a ação, nem tampouco determinar nossa vontade a agir,
sem que antes um sentirriento ou paixão se manifeste a favor da orientação que ela propõe.
Dessas considerações segue-se, em terceiro lugar, uma teoria do dever contendo os seguintes
pontos.

Não há leis morais eternas e imutáveis - indicadas pela razão - que se


relacionariam com as ações dos homens. Os deveres morais são decorrentes de uma relação
estreita e estrita entre as paixões - sentimentos humanos - e as situações concretas vividas
pelos homens, podendo, assim, se modificar caso essas situações se modifiquem. E como a
razão não origina ação alguma, não pode, por ela mesma, obrigar o sujeito a seguir a norma
moral. Os deveres que orientam nossas ações são, em muitos momentos, indicados pela
racionalidade; mas o seu cumprimento, assim como o assentimento último dados a eles, é
oriundo do campo dos sentimentos e paixões. Ou seja, Hume exige duas condições para que a
moral pertença, exclusivamente, à esfera da razão. Que ela consiga estabelecer normas morais
universais, justificando-as através somente de relações de idéias; e que essas normas sejam
cumpridas por uma determinação exclusiva dela própria. Ele vai mostrar que as duas
condições não são satisfeitas pela razão, necessitando de um outro fundamento.

Mas, pelo fato da razão ter uma participação no âmbito moral, Hume nega que as
noções éticas possam ser função exclusiva de um sentimento inato que, por si mesmo,
justificaria as diversas normas morais espalhadas nas diferentes culturas, assim como as ações
decorrentes desses deveres. O filósofo defende que, muito embora as distinções morais
tenham origem num sentimento, é necessária a razão para orientá-lo. O sentimento moral
caracteriza-se pela tendência ao prazer pessoal e geral, mas esse prazer não se reaUza no
próprio sentimento que o originou, necessitando da racionahdade para indicar os meios
adequados para esse fim. O argumento básico dele para negar a teoria que pretende fundar a
moral somente no sentimento, é que seriam necessários infindáveis instintos, que tanto se
relacionassem com os infindáveis preceitos morais, como ordenassem o sujeito a cumpri-los.
Como recurso empírico que desmente esse absurdo, Hume faz uma distinção entre virtudes
naturais e virtudes artificiais, onde estas liltimas, notoriamente, necessitam de uma orientação
constante da razão para indicar, conforme a dinâmica social, quais ações se coadunam a elas;
é o caso, por exemplo, da justiça.

Portanto, a teoria moral do filósofo tem como base uma relação entre ação,
sentimento (incluindo as paixões) e razão. E o objetivo deste trabalho é mostrar, dentro de
uma seqüência coerente de apresentação, toda a argumentação de Hume, que apenas
anunciamos, para defender que razão e sentimento se relacionam, em grande medida, nas
questões morais, apontando qual o papel dessas faculdades no que diz respeito aos deveres,
ações e julgamentos morais.
No primeiro capítulo faremos a explanação dos elementos que compõem
o que denominamos teoria da ação, apresentando, de início, o princípio da
causalidade, que é ponto chave para se entender o determinismo moral, já que
Hume extrai os conceitos de necessidade e liberdade do próprio conceito de
causalidade que ele cunha. Outro ponto importante, é que a causalidade, na forma
como é apresentada, é base para se entender as razões pelas quais o filósofo nega
que a razão possa, originalmente, indicar os fins para a ação. Acrescentando a isso
que ela é também base para se entender o conceito de razão experimental, tão
necessário à presente discussão. Compondo a teoria da ação de Hume, aponta­
remos, segundo ele, a relação da vontade com a causalidade, com a razão e com as
paixões, expondo os argumentos do filósofo para impugnar a defesa de que a r a ­
cionalidade possa originar as ações humanas, sendo ela apenas móbil
intermediário para a ação.

No segundo capítulo, apresentaremos a teoria moral de Hume, mostrando os


argumentos dele para defender que a moral não tem origem na razão, procurando destacar que
tais argumentos dependem de sua teoria da ação apresentada no capítulo anterior.
Destacaremos primeiramente que a moral tem como fundamento básico um sentimento, mas
não a razão, e depois, que há um projeto concihatório proposto por Hume para essas
faculdades. Em seguida investigaremos os princípios que norteiam a moral, a relação entre
eles, sua função específica, e a in^ortância de cada um deles dentro da teoria humeana.
Daremos um destaque maior ao princípio da simpatia, explicitando seu conceito, a defesa e
cientificidade dele em relação ao princípio do egoísmo. E, por fim, apresentaremos a relação
entre a racionalidade e as regras gerais, de acordo com o projeto conciliatório do mestre.

Vale ainda dizer, que no decorrer de todo o trabalho tocaremos em algumas


questões que são ponto de discussão na doutrina de Hume, apresentando nossa concordância e
discordância, quando houver, com os autores que escolhemos para o debate. Contudo,
devemos salientar que essas discussões não visam a esgotar os problemas e possíveis soluções
apresentadas, mas apenas expor alguns problemas de interpretação dando nossa contribuição
ao debate.
CAPITULO I

1. TEORIA DA AÇÃO

Este capítulo trata daquilo que pode compor o que se pode chamar
Teoria da Ação, vinculando-a ao princípio da causalidade, e que se relaciona
diretamente com a teoria moral de Hume. Julgamos ser um preâmbulo adequado à
discussão do presente tema dessa dissertação.

1.1 PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE

De acordo com o Livro I, Parte I, Seção V, do Tratado, existem para


Hume duas espécies de relações, as naturais e as filosóficas. As do primeiro tipo
são as que conectam nossas idéias, naturalmente, na imaginação. As do segundo,
aquelas que, quando mesmo que ocorra uma união arbitrária das idéias na
imaginação, “podemos considerar apropriado compará-las” (T, p. 39). Falaremos
dessas relações oportunamente; por ora diremos que a relação de causa e efeito é
uma “relação filosófica, além de ser também uma relação natural” (T, p. 39), e é
nesse duplo sentido que a explicaremos.

Para Hume, todo o conteúdo da mente resume-se em percepções, onde as mesmas


dividem-se em idéias e impressões. As primeiras são as percepções fortes, enquanto as
segundas são as fracas. A diferença entre elas reside apenas na intensidade com que se
apresentam à mente, e “todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas
impressões ou percepções mais vivas” (lEH, p. 37). Como se observa, além da conjunção
constante entre idéia e impressão, a anterioridade desta em relação àquela, ele nos diz que
“essa anterioridade das impressões é uma prova de que nossas impressões são causas^ de
nossas idéias, e não nossas idéias causas de nossas impressões” (T, p. 29).

' Veremos no decorrer deste capítulo, que esta afirmação de Hume resulta da própria conceituação do princípio
que ora apresentamos.
Assim: “para dar a uma criança uma idéia de escarlate ou do laranja, do doce ou
do amargo, apresento-lhe os objetos, em outras palavras, transmito-lhe essas impressões; mas
nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões, excitando as idéias” (T, p. 29). As
idéias, em Hume, são representações das impressões.

Hume anuncia três princípios de associação das idéias na mente que


atuam na imaginação; “Até mesmo em nossos mais desordenados e errantes
devaneios, como também em nossos sonhos, notaremos, se refletirmos, que a
imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma conexão
entre as diferentes idéias que se sucediam” (lEH, p. 39). Quais são esses
princípios?: “Para mim, apenas há três princípios de conexão entre as idéias, a
saber; de semelhança, de contigüidade - no tempo e no espaço - e de causa ou
efeito” (lEH, p. 49). Esses princípios têm como finalidade comum ligar idéias na
mente através da imaginação. Por isso;

um quadro conduz naturalmente nossos pensam entos para o original;^


quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se
introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros.^ E, se
pensamos acerca de um ferimento, quase não podem os furtar-nos a
refletir sobre a dor que o acompanha."* (lEH , p. 41)

A causalidade tem uma característica que a faz o princípio de maior


destaque na mente; ela é a “única que remete para além de nossos sentidos e que
nos informa acerca de existências e objetos que não vemos ou tocamos” (T, p. 103).
Veremos agora no que isto implica. Tomemos as relações entre dois fenômenos,
por exemplo, fogo e calor. Ao observarmos a conjunção constante desses fenô­
menos, atribuímos a eles uma relação causai que compreende os seguintes
aspectos: 1) da anterioridade do fogo em relação ao calor, dizemos que o primeiro
é a causa e o segundo é o efeito; 2) atribuímos à causa um poder de produção do
efeito; 3) inferimos que toda vez que a causa (fogo) se apresentar, o efeito (calor)
também o fará; 4) inferimos, também, uma conexão necessária entre causa e
efeito; e, o mais importante, 5) acreditamos sem dúvida alguma nas inferências
que fazemos.

^ Semelhança.
^ Contigüidade.
Causalidade.
É justamente por nos proporcionar uma inferência acerca do futuro, ou
seja, de algo que não nos é dado no presente, que a causalidade se distingue,
qualitativamente, da contigüidade e da semelhança. Em outras palavras, se
houvesse apenas a relação de semelhança ou de contigüidade entre os fenômenos,
nada poderíamos inferir acerca deles no futuro, pois:

Em nenhuma delas, a m ente é capaz de ir além daquilo que está


im ediatam ente presente aos sen tid os, para descobrir seja a existên cia
real, sejam as relações dos ob jetos. Apenas a causalidade produz uma
conexão capaz de nos proporcionar uma convicção sobre a existên cia
ou ação de um objeto que foi segu ido ou precedido por outra existên cia
ou ação. As outras duas relações só podem ser empregadas no racio­
cínio enquanto afetam ou são afetadas por ela. (T, p. 102)

A semelhança e contigüidade não têm um caráter necessário nas


relações entre os objetos, porque a mente “não tem absolutamente nenhuma
necessidade de fantasiar objetos semelhantes e contíguos, e se o faz, tampouco
tem necessidade de se restringir sempre aos mesmos objetos, sem nenhuma
diferença ou variação” (T, p. 140). Na relação de causa e efeito:

Os objetos que apresenta são fix o s e inalteráveis. As im pressões da


mente nunca se alteram consideravelm ente; e cada im pressão trás
consigo uma idéia p recisa, que tom a seu lugar na im aginação, como
algo sólido e real, certo e invariável. O pensamento se vê sempre
determinado a passar da im pressão à idéia, e dessa impressão particular
àquela idéia particular, sem escolh a ou hesitação. (T, p. 140)

O que Hume investiga na causalidade é a crença que a ela é pertinente


e, conseqüentemente, a inferência que dela faz parte e que promove a ação. Para
que possamos tratar dessa questão, é necessário que coloquemos em tela o
conceito de razão que Hume utiliza em toda sua filosofia, até mesmo porque este
conceito aparecerá nas discussões e esclarecimentos no decorrer do nosso
trabalho. Hume nos diz que a “razão é a descoberta da verdade ou falsidade” (T,
p. 498), e que a verdade “pode ser de dois tipos, consistindo quer na descoberta
das proporções das idéias consideradas enquanto tais, quer na conformidade de
nossas idéias dos objetos com a existência real deles” (T, p. 484). Ao primeiro
campo em que opera a razão “pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da
aritmética e, numa palavra, toda afirmação que intuitivamente ou demonstra­
tivamente certa” (lEH, p. 47). No campo das idéias o conhecimento é exato,
necessário, não podendo ser concebido de outra forma. Com efeito, não podemos
conceber nunca a negação de que 2+2+2 = 3+3, ou que a soma dos ângulos
internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos. Com respeito ao campo dos
fatos, em que nossas idéias devem ser confirmadas pela experiência, não há um
caráter necessário na verdade que se descobre, pois o “contrário de um fato
qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o
espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em
completo acordo com a realidade” (lEH, p. 48).

Se o princípio da causalidade tivesse um fundamento exclusivo na pura


razão, segue-se que chegaríamos a ele, tomando o primeiro campo de operação da
razão, com base em apenas idéias. Mas nenhuma relação de idéias é capaz de
justificar a necessidade da causa para uma existência ou nova existência qualquer,
pois não somos, logicamente, obrigados a aceitar que para algo existir tem que
haver uma causa que o crie.

Nunca podemos demonstrar a necessidade de uma causa para toda nova


existência ou para toda nova m odificação de existência sem mostrar, ao
mesmo tem po, a im possibilidade de que alguma coisa com ece a existir
sem algum princípio produtivo. E se esta última proposição não puder
ser provada, deve-se perder a esperança de jamais provar a primeira.
(T, p. 107)

Hume desenvolve um argumento com base em sua teoria da mente, que


é o seguinte. Nossas idéias simples não admitem distinção ou separação (por
exemplo, a idéia de uma cor), porém, as complexas sim (por exemplo, da idéia de
maçã podemos separar; cor, sabor, aroma). As complexas são formadas das
impressões ou idéias simples, e por mais que tenhamos a capacidade de criar
idéias complexas das quais não observamos as impressões correlatas, vemos, após
uma acurada investigação, que na verdade sua gênese advém de impressões que
outrora afetaram os sentidos. Com efeito, não vemos um minotauro, mas essa
idéia surge da união da idéia de um homem e de um touro. Portanto, o poder
criador do espírito “não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar
ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela expe­
riência” (T, p. 36). Dizendo de outra forma, as idéias complexas, engendradas.
quer diretamente ou por arbítrio humano, têm seus elementos extraídos da
experiência. Vejamos o ponto de toque do argumento de Hume.

A idéia de causalidade é uma idéia complexa, já que envolve duas


idéias: causa e efeito. Como toda idéia complexa surge de idéias ou impressões
simples, e não há duas impressões, conseqüentemente duas idéias, que sejam
completamente inseparáveis, sempre “que a imaginação percebe uma diferença
entre idéias, ela pode facilmente produzir uma separação” (T, p. 34). Devemos
notar que, mesmo Hume tendo adnütido que as impressões são causas de nossas idéias, o que
ele está criticando nesse momento é a idéia de necessidade, ou conexão necessária entre elas.
Conclusão: analiticamente, não há uma necessidade que vincule duas idéias ou
impressões, pois uma

tal inferência eqüivaleria a um conhecim ento, e im plicaria a absoluta


contradição e im p ossib ilid ad e de se conceber algo diferente. Mas, uma
vez que todas as idéias distintas são separáveis, é evidente que não
pode haver tal im p ossib ilid ad e. (T, p. 116)

Da mesma forma, tomando-se agora o segundo campo de investigação


da razão, há uma impossibilidade de se extrair das qualidades sensíveis dos
objetos, assim como de suas relações, o fundamento da causalidade, já que a
experiência nada informa acerca de uma conexão necessária entre eles. Com base
em sua teoria da mente, Hume exige que a experiência, quando inspecionada pela
razão, indique de qual impressão a idéia de causa deriva.

Aqui, novamente, exam ino o objeto de tod os os lados, a fim de d es­


cobrir a natureza dessa con exão necessária e encontrar a im pressão, ou
im pressões, de que pode ser derivada sua idéia. Quando dirijo meu
olhar para as qualidades conh ecid as dos ob jetos, descubro im ediata­
mente que a relação de causa e efeito não depende em nada delas.
Quando considero suas relações as únicas que encontro são as de con-
tigüidade e sucessão - que já dem onstrei serem im perfeitas e in sa tis­
fatórias [...]. (T, p. 105-106)

Por isso, a razão não pode ser o fundamento da idéia de causa. O funda­
mento para a causalidade, de a:cordo com Hume, deve provir da experiência.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são d e sc o ­
bertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em
relação àqueles objetos de que nos recordam os e que certa vez nos
foram com pletam ente d escon h ecid os, porquanto devemos ter c o n s is­
tên cia de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgirá d eles.
(lE H , p. 50)

A certeza então pretendida depende totalmente da experiência; mas o


que não se pode afirmar é que ela assente em bases racionais, pois usar a
experiência como fundamento da certeza é incorrer em petição de princípio. Qual
seja, usar como premissa justamente aquilo que se problematiza. Expliquemos. É
que recorrer à regularidade da experiência, dizendo, por exemplo, que calor e fogo
sempre estiveram juntos e não houve exceção alguma, e que, portanto, daí se
extrai a certeza acerca dos fenômenos causais, na verdade é andar em círculo - a
experiência passada é fruto da própria relação causai que organiza os fenômenos
experimentados e de que se busca o fundamento.

T em os dito que todos os argumentos referentes à existência se fundam


na relação de causa e efeito; que nosso conhecim ento daquela relação
provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas con clu sões
experim entais decorrem da suposição que o futuro estará em con for­
m idade com o passado. Portanto, tentar provar a última conjectura [...],
por argumentos referentes à existência, con siste, certamente, em girar
num círculo [...]. (lEH, p. 56)

Jamais podemos, demonstrativamente, provar que o futuro assemelhar-


se-á ao passado; e recorrer à regularidade do passado para justificar tal proposição
é envolver-se num círculo vicioso. Falta-nos a premissa menor (um termo médio,
diz Hume) que garanta que a natureza se manterá regular em seus fenômenos.

Premissa M aior; A natureza sempre se manteve regular até o presente


momento (o gelo sempre foi seguido pelo frio, por exemplo).

Premissa M enor; “Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo que


ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que
realmente existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos”
(lEH, p. 55).
10

Conclusão; A natureza sempre se manterá regular, conforme o passado mostrou-


nos (e o gelo sempre será seguido pelo frio). Sem o termo médio não há como se admitir essa
conclusão.

Não posso conceber clara e distintam ente que um corpo que tomba das
nuvens - semelhante em todos os asp ectos ao da n eve - tenha, todavia,
sabor de sal e queime com o fogo? [...]. Portanto, con sid era-se in te li­
g ív el toda proposição concebida distintam ente e sem contradição e, por
conseguinte, jam ais sua falsidade é mostrada por argumento dem ons­
trativo ou raciocínio abstrato a p r io ri. (lE H , p. 55)

O que significa dizer que é através da experiência que conhecemos a


causalidade (“ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção,
que o conhecimento dessa relação não se obtém, em nenhum caso por raciocínios
a priori, porém, nasce inteiramente da experiência [...]” (lEH, p. 50)), quando foi
mostrado que ao se investigar todos os fatos possíveis não capturamos a impres­
são que lhe dá origem? Hume deixou claro que a causalidade se conhece pela
experiência e ao mesmo tempo negou que a mesma possa nos fornecer alguma
impressão que possa criar aquela idéia.

Pretenderei apenas dar uma resposta negativa à questão aqui proposta.


D igo, pois, que mesmo depois que tem os experiência das operações de
causa e de efeito, nossas con clu sões d essa experiência não estão funda­
das sobre raciocínios ou sobre qualquer processo do entendim ento.
(lE H , p. 53)

Logo, significa que o fundamento da causalidade é o reflexo, ou a


impressão, da experiência no espírito, e não uma reflexão do espírito sobre a
experiência. O fundamento é conseqüência de uma experiência vivida que
redundará num sentimento, ao invés de uma intelecção. É da experiência de se ter
visto objetos se comportarem de forma regular e em conjunção constante (como o
gelo e o frio), que, naturalmente, se é levado a acreditar em sua repetição no
futuro; mesmo que dela não se tenha extraído nenhuma idéia de poder oculto,
mediante o qual um dos objetos produziu o movimento ou fez surgir o outro;

e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar esta inferência.


Mas ele se encontra determinado a tirá-lo; e mesmo se ele fosse persua­
dido de que seu entendimento não participa da operação, continuaria
pensando o mesmo, porquanto há um outro princípio que o determina a
tirar semelhante conclusão. (lEH, p. 61)
11

Qual é, pois, o princípio que determina o sujeito? “Este princípio é o


costume ou o hábito” (lEH, p. 61). E, portanto, todas as inferências tiradas da
experiência são efeitos do costume. Então, é o costume “o grande guia da vida
humana” (lEH, p. 63), pois é ele que nos faz acreditar na relação causai e, como
vimos, antecipar que o futuro será semelhante ao passado. “Todas estas operações
são uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do
pensamento e do entendimento é capaz de produzir ou de impedir” (lEH, p. 64).

Qual ló g ic a , qual Processo do raciocínio vos assegura contra essa


conjectura? Minha prática, d izeis, refuta minhas dúvidas. Mas, neste
caso, confundis o significado de minha questão. Como pessoa que age,
estou m uito satisfeito a este respeito; mas, com o filó so fo dotado de
alguma curiosidade - não direi ceticism o - quero saber o fundamento
dessa inferência. (lEH , p. 58)

A insistência de Hume neste ponto recebe, sem dúvida, da própria


experiência, um grande apoio.

Certamente, os cam poneses mais ignorantes e estúpidos - até os bebês


e as bestas irracionais - se aperfeiçoam pela experiência e adquirem
conhecim ento das qualidades dos objetos naturais, observando os
efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a sensação da
dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não por mais sua
mão perto de outra vela, pois ela esperará um efeito sem elhante de uma
causa que é semelhante em suas qualidades e aparências sen síveis. Se
afirm ais, contudo, que o entendimento da criança chega a esta con ­
clusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso le g i­
timamente pedir-vos que se mostre este argumento [...]. (lEH , p. 58)

Vemos, então, que a instrução que a experiência oferece acerca da


causalidade faz com que aflore no sujeito um sentimento de expectativa e
convicção acerca dos fatos que ainda não experimentou. A experiência, os fatos
enquanto tais, nossas percepções (idéias ou impressões), todos esses sinônimos
são aquilo que nos chega através dos sentidos e nos instrui sobre a relação de
causa e efeito. Mas, se a experiência é somente aquilo que afeta o espírito,
necessita-se de algo que a fixe nele e que, de alguma forma, facilite a transição de
uma percepção à outra que ainda não se lhe apresentou. Qual é, pois, essa
faculdade que, digamos, acolhe a experiência e junto com ela promove a crença e
a inferência causai? O argumento de Hume tem uma forma lógica, que é a
seguinte:
12

V Prem issa; O fundamento dos raciocínios com base na experiência,


ou é a razão ou a imaginação.

2^ Prem issa; Não é a razão (aqui são invocados todos os argumentos


explicados há pouco).

Conclusão; A imaginação é o fundamento dos raciocínios com base na


experiência.

Esse raciocínio por exclusão permite a Hume afirmar que é na


imaginação que a crença e a inferência se realizam. Mas o hábito, que foi
apontado há pouco como princípio fundador destes mesmos raciocínios, não seria
suficiente para promover a crença e a inferência causai, quer sozinho ou com o
auxílio da imaginação. São requeridos mecanismos de associação de idéias e
impressões para fixar a experiência na imaginação. Esses mecanismos são aqueles
apontados há pouco: contigüidade, semelhança e causa e efeito (aqui, tratando-se, de
uma relação natural). É o tripé; princípio do hábito, faculdade da imaginação e
princípios (ou mecanismos) de associação de idéias, que originam a crença.

Portanto, quando a mente passa da idéia ou im pressão de um objeto à


idéia de outro objeto, ou seja, à crença n este, ela não está sendo
determinada pela razão, mas por certos p rin cíp ios que associam as
idéias desses objetos, produzindo sua união na im aginação. Se as idéias
não fossem mais unidas na fantasia que os ob jetos parecem ser no
entendim ento, nunca poderíamos realizar uma inferência das causas aos
efeito s, nem depositar nossa crença em qualquer questão de fato.
(T, p. 121)

A crença não é tão-somente uma concepção de uma idéia. Por exemplo.

quando afirmamos que Deus existe, sim plesm ente formamos a idéia
d esse ser, tal como nos é representado; a ex istên cia que a ele atri­
buímos não é concebida mediante uma idéia particular que.juntaríam os
à idéia de suas outras qualidades, e que p udéssem os novam ente separar
e distinguir destas últimas. (T, p. 123)

E, ainda, a crença nessa existência não junta novas idéias àquelas que
compõem a idéia do objeto: “Quando penso em Deus, quando penso que ele existe,
minha idéia dele não aumenta nem diminui” (T, p. 123). Nosso mestre, dessa
13

forma, pontua a diferença entre a simples concepção da existência de um objeto


(ou seja, posso pensar na idéia de um Unicórnio) e, de fato, a crença na sua
existência. Vejamos a seguinte distinção. No campo dos fatos, não basta apenas
concebermos uma idéia para crermos nela de fato.

Suponham os que haja uma p essoa diante de mim enunciando propo­


siçõ es com as quais não concordo: que César morreu em seu leito , que
a prata é mais fu sív e l que o chumbo, ou que o mercúrio é mais pesado
que o ouro. E evid en te que, não obstante minha incredulidade, entendo
claram ente o que essa pessoa quer dizer, e formo as mesmas id éias que
ela. M inha im aginação é dotada dos mesmos poderes que a sua, e é
im p o ssív el que ela conceba qualquer idéia que eu não possa conceber,
ou que junte idéias que eu também não possa juntar. (T, p. 123-124)

Algo mais é requerido para que se possa crer, não só conceber, numa
proposição relacionada aos fatos. Agora no campo das idéias enquanto tais, a
crença vem acompanhada da concepção.

N este caso, a p essoa que m anifesta seu assentim ento não apenas con ­
cebe as idéias de acordo com a proposição, mas é necessariam ente de­
terminada a con ceb ê-las dessa maneira particular, seja im ediatam ente,
seja pela interp osição de outras idéias. Tudo que é absurdo é inin ­
te lig ív el; é im p o ssív el para a im aginação conceber algo contrário a
uma dem onstração. (T, p. 124)

Realmente, se alguém nos diz que 2 -1- 6 = 4 -i- 4, não só concebemos


estas idéias, mas também cremos naquilo que elas afirmam. Agora, quanto àquelas
proposições anunciadas acima, necessitamos, além da concepção das idéias,
impressões que a elas se relacionam para que a crença surja. E a razão em nada
participa na formação dessa crença.

A razão jam ais pode nos convencer de que a existência de um objeto


qualquer im plica a de outro; assim , quando passamos da im pressão de
um à idéia de outro, ou à crença nele, não estamos sendo determ ina­
dos pela razão, mas pelo costum e ou um princípio de associação.
(T, p. 126)

É por isso que os mecanismos ou princípios de associação de idéias e


impressões são requeridos na produção da crença, pois eles tornam mais viva e
mais sentida no espírito uma idéia da qual não temos a impressão. Com efeito.
14

ao nos ser apresentado o retrato de um am igo ausente, a idéia que


temos dele se aviva de forma evidente pela sem elhança, e faz que todas
as paixões que essa idéia ocasiona, quer de alegria, quer de tristeza,
adquiram nova força e vigor. Concorrem para a produção d esse efeito
uma relação e uma im pressão presente. (T, p. 130)

Sobre a contigüidade Hume nos diz;

Pensar em um objeto rapidamente conduz a m ente ao que lhe é


contíguo [...]. Quando estou a algumas m ilhas de casa, tudo que se
relaciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a
d u zen taslégu as. (T, p. 130)

E, por último, nos fala

que a causalidade tem a mesma influência que as outras duas relações,


de sem elhança e contigüidade. Os supersticiosos têm grande estim a por
relíquias de santos e beatos, e a razão disso é a mesma que os leva a
buscar emblemas e im agens, ou seja, para inten sificar sua devoção e
formar uma concepção mais íntima e forte daquelas vidas exem plares,
que tanto desejam imitar. Ora, é evidente que uma das m elhores
relíquias que um devoto poderia conseguir seria algo produzido pelas
mãos do santo; e se as roupas e apetrechos deste [...]. E devem ser
considerados com o efeitos im perfeitos, conectados a ele por m eio de
uma cadeia de conseqüências mais curta que aquelas que nos levam a
conhecer a realidade de sua existência. E sse fenôm eno prova de
maneira clara que uma impressão presente, juntam ente com uma
relação de causalidade, pode avivar qualquer idéia e, con seq ü en te­
mente, produzir crença ou assentimento, conform e à d efin ição p rece­
dente dessa noção. (T, p. 131)

Portanto, a crença é “algo mais que uma simples idéia” (T, p. 126). A
crença “é uma maneira [...] que torna as realidades mais presentes a nós que as
ficções e faz que tenham um peso maior no pensamento, bem como uma influência
superior sobre as paixões e a imaginação” (T, p. 127). Como a crença causai,
assim como a inferência que dela decorre, é uma questão de fato, ela pode ser
definida como “uma idéia vivida relacionada ou associada com uma impressão
presente” (T, p. 125). Em nota, há uma outra definição de Hume para crença, ela
“é somente a concepção forte e firme de uma idéia, aproximando-se em grande
m edida de uma impressão imediata” (T, p. 126).

E, na filo so fia , não podemos ir além da afirm ação de que a crença é


algo sentido pela mente, que permite distinguir as idéias do ju ízo das
ficções da im aginação. A crença dá a essas id éias m ais força e
influência; faz que pareçam mais importantes, fixa-as na mente; e as
torna os princípios reguladores de todas as nossas ações. (T, p. 127)
15

A causalidade também não está fundada num raciocínio probabilístico,


pois o raciocínio probabilístico repousa em princípios psicológicos, tendo seu
fundamento na própria crença causai que pretende fundamentar. Vejamos. Há,
segundo Hume, dois tipos de probabilidade: das causas e dos acasos.^ Quando
jogamos um dado, onde em quatro faces mostra o número dois e nas outras duas o
número seis, há uma probabilidade maior de que o número dois apareça, ao invés
do seis. Há um raciocínio que nos leva a pensar dessa forma e que merece ser
explicado. Não há como deduzirmos que só porque o dois aparece em quatro faces
ele aparecerá, ou até mesmo tenha prioridade sobre o seis. Até mesmo porque é
“inerente ao acaso tornar inteiramente iguais todos os eventos particulares
compreendidos nele” (lEH, p. 72).

Mas, verifican do que m aior número de faces aparece mais em um


evento que noutro, o espírito converge com mais freqüência para ele e
o encontra m uitas vezes ao considerar as várias p ossib ilid ad es das
quais depende o resultado d efin itiv o . Essa afluência de várias in sp e­
ções sobre um único evento particular gera imediatamente, [...] o sen ti­
mento da crença, dando prim azia a este evento sobre seu antagonista,
que é apoiado por pequenos núm eros de insp eções e recorre com menos
freqüência ao espírito. (lE H , p. 72)

Hume põe naquilo que chamamos de probabilidade, o mesmo funda­


mento da crença. Vimos que ele houvera definido crença como uma concepção de
uma idéia mais firme e mais forte do que uma idéia da imaginação, e dessa forma
nos diz que a

con flu ên cia de várias in sp eçõ es ou de olhadas rápidas imprime a idéia


[através da im pressão do 2] com mais força em nossa im aginação, dá-
lhe força e vigor superiores, torna mais sen sível sua influência sobre as
p aixões e in clin ações e, numa palavra, origina esta confiança e segu ­
rança que constituem a natureza da crença e da opinião. (lEH, p. 72)

Quanto à probabilidade das causas ocorre o mesmo fundamento. Quan­


do as causas são “inteiramente uniformes e constantes na produção de deter­
minado efeito e não apresentam nenhum exemplo de falha ou irregularidade em
seu procedimento” (lEH, p. 72), a certeza de que o fogo queimará, por exemplo, é
total. Mas essa certeza, mostramos, é psicológica, não lógica, fruto da ação do

Acaso, aqui, significando algo, aparentemente, sem causa. Pois o dado foi lançado livremente sem nenhuma
determinação a priori.
16

hábito sobre a imaginação. E quando uma causa deixa de produzir seu efeito
habitual, produzindo efeitos diversos, “todos esses efeitos variados devem se
apresentar ao espírito ao transferir o passado para o futuro, e devemos considerá-
lo quando determinamos a probabilidade do evento” (lEH, p. 73).

É este segundo tipo de probabilidade que nos interessa, por isso


devemos perguntar qual o fundamento dela, a fim de esclarecermos a questão
presente. Em primeiro lugar, é necessário que, “em todos os raciocínios
prováveis, haja alguma coisa presente à mente, quer seja vista ou lembrada, e que
dessa coisa infiramos algo a ela conectado, que não é nem visto nem lem brado”
(T, p. 118). Em segundo lugar, para passarmos de eventos que se nos apresentam
imediatamente aos sentidos a outros que ainda não vemos é necessário a idéia de
causa e efeito; e ela “é derivada da experiência, que nos informa que tais objetos
particulares, em todos os casos passados, estiveram em conjunção constante um
com o outro” (T, p. 118-119). Em terceiro lugar, a probabilidade se funda na
suposição de uma semelhança entre os objetos de que tivemos experiência e
aqueles de que não tivemos” (T, p. 119). Das premissas anteriores podemos
concluir que a probabilidade não pode fundar a crença causai e nem a inferência
que dela decorre, pois a probabilidade depende justamente daquilo que pleiteia
fundamentar, a saber, da crença causai; e o “mesmo princípio não pode ser ao
mesmo tempo causa e efeito de outro” (T, p. 119).

Quando analisados os fundamentos psicológicos da probabilidade vemos


que ela não passa de uma crença, que é uma maneira de sentir uma idéia mais
forte no espírito conforme ela vá se apresentando regularmente em associação
com a impressão que se relaciona. Pondo com outras palavras, probabilidade é o
nome que se dá aos vários graus de crença; nada mais.

Há vários tipos de probabilidades de causas, mas todas derivam da


mesma origem: a associação de idéias a uma im pressão presente. Como
o hábito que produz a associação nasce da conjunção freqüente de
objetos, ele deve atingir sua perfeição gradativamente, adquirindo mais
força a cada caso observado. O primeiro caso tem pouca ou nenhuma
força; o segundo acrescenta alguma força ao primeiro; o terceiro se
torna ainda mais sen sível; e é assim, a passos lentos, que n osso ju ízo
chega a uma perfeita certeza. Antes de atingir tal grau de p erfeição,
porém, passa por diversos graus inferiores; e em todos eles d eve ser
considerado apenas uma suposição ou probabilidade. (T, p. 164)
17

Com base em tudo o que foi explicado anteriormente, podemos tratar da


questão que permeou todo o percurso de nossa apresentação, a saber, acerca da
impressão que origina a idéia de causa. Aqui necessitamos introduzir em nossa
apresentação um pouco mais sobre a teoria da mente em Hume. Vimos anterior­
mente que nossas percepções dividem-se em idéias e impressões. Para estas Hume
propõe a seguinte divisão: de sensação e de reflexão, onde as “da primeira espécie
nascem originalmente na alma, de causas desconhecidas. As da segunda derivam
em grande medida de nossas idéias [...]” (T, p. 32). O processo, Hume explica.

Primeiramente, uma impressão atinge nossos sentidos, fazendo-nos p erce­


ber o calor ou o frio, a sede ou a fom e, o prazer ou a dor, de um tipo ou
de outro. Em seguida, a mente faz uma cópia dessa im pressão, que
permanece m esm o d ep ois que a im pressão desaparece, e à qual den o­
minamos idéia. Essa id éia de prazer ou de dor, ao retornar à alma,
produz novas im p ressões, de desejo ou aversão, esperança ou m edo,
que podem os chamar propriamente de im pressões de reflexão, porque
derivadas dela. Essas im pressões de reflexão são novamente copiadas
pela memória e pela im aginação, con verten d o-se em idéias as quais,
por sua vez, podem gerar outras im p ressões e idéias. D esse modo, as
im pressões de reflexão antecedem apenas suas idéias correspondentes,
mas são posteriores às im pressões de sensação, e delas derivadas.
(T, p. 32)

Sendo assim, a impressão que origina a idéia de causa e, como conse­


qüência, a crença e a inferência que dela resulta, é do tipo acima explicado: de
reflexão. Expliquemos, agora, sua gênese. Tudo o que a experiência nos rnostra
são objetos semelhantes conjuntados - não conectados e quando nos
habituamos a perceber estes objetos semelhantes, muito embora nada de novo
aconteça entre esses objetos, nosso espírito percebe uma modificação interna
concomitantemente com o hábito. Sentimos, por conta da ação do hábito em nossa
imaginação, uma necessidade de passar de um objeto ao outro, e, muito embora
este último ainda não tenha se apresentado aos sentidos, somos levados, pela
imaginação, a antecipá-lo. Sentimos ainda uma necessidade mais forte de conectar
esses objetos, não obstante a experiência não mostrar tal vínculo. E, ainda, este
sentimento de necessidade leva-nos a afirmar que o primeiro objeto produz o
segundo, não obstante a experiência nada nos informar acerca dessa produção. As
experiências que engendram esse sentimento são registradas em nossa memória, e
quando trazidas à consciência, pela lembrança natural ou decorrente de um
fenômeno semelhante que se nos apresenta aos sentidos, essas, agora idéias, nos
18

fazem sentir a mesma necessidade anterior de antecipar um objeto quando da


aparição do outro. Portanto, a impressão que origina a idéia de causa, além de ser
de reflexão, não é externa, mas, sim, interna. Os raciocínios causais
fundamentam-se num sentimento de crença.

1.2. QUE A VONTADE NÃO FUNDAMENTA A CAUSALIDADE

Vontade e poder estão, de fato, imbricados, já que afirmar que a von­


tade é a causa direta de nossas ações é conferir-lhe poder de causá-las. Nesse
sentido, para a vontade fundar a causalidade, sendo ela mesma uma causa, deve-se
verificar se nas volições do espírito e do corpo encontramos a impressão que
origina a idéia de causa ou poder. Comecemos pelo seguinte esclarecimento que
Hume nos faz.

Com eço observando que os termos eficácia, ação, poder, força, energia,
n ecessidade, conexão e qualidade produtiva são quase sinônim os; e,
por isso , é abuso empregar qualquer um deles para definir o resto. Com
essa observação rejeitam os, de uma só vez, todas as d efin ições com uns
que os filó so fo s dão para poder e eficácia. Em vez de procurar a idéia
nessas d efin ições, devem os procurá-la nas im pressões de que origin al­
mente deriva. Se for uma idéia com posta, deverá resultar de im pressões
com postas. Se for sim ples, de im pressões simples. (T, p. 190)

A idéia de poder, defender-se-ia, surge das diversas produções novas da


matéria, tais como os movimentos e variações dos corpos, já que tais produções
implicam um determinado poder para produzi-las. Este, contudo, não é observado
mas inferido racionalmente. E, como as idéias surgem das impressões que afetam
nossos sentidos, “a razão, por si só, jamais pode gerar uma idéia original” (T, p.
190). Logo, retornamos ao ponto inicial, sem a impressão correspondente não há
legitimidade na conclusão acima. Além disso, o próprio princípio da cópia refuta
a concepção de que a idéia de poder ou causa é inata (já se encontra no espírito,
antes deste se constituir como sujeito), pois todas as idéias referentes ao campo dos
fatos derivam de uma impressão que afeta os sentidos.

Dessa forma, “se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma
classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idéias
19

correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons”
(lEH, p. 37). Da mesma forma, não cabe defender, como fazem os cartesianos, que é de Deus
que vem a causa ou poder que atribuímos à matéria. Vejamos essa questão. Os partidários da
filosofia de Descartes reconhecem, após reclamarem que temos total conhecimento sobre a
matéria, que esta não tem nenhuma eficácia e que, portanto, é impossível que, por si só, seja a
causa dos efeitos que a ela atribuímos. Afirmando que a matéria é inativa, sem possuir
qualquer poder que pudesse produzir movimento, e como esse efeito, além de outros, são
evidentes aos nossos sentidos, inferem que ele tem de estar em Deus, que para eles “é o
primeiro motor do universo, e não apenas criou a matéria e deu a ela seu impulso original,
mas também, por um exercício contínuo de sua onipotência, sustenta sua existência,
conferindo-lhe sucessivamente todos os movimentos, configurações e qualidades de que é
dotada” (T, p. 192).

De acordo com o princípio da cópia, a própria idéia que temos de Deus


não é inata, mas formada das impressões que afetam os sentidos. Assim Hume nos
diz:

A idéia de D eus, significand o o ser infinitam ente inteligen te, sábio e


bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito,
quando aumentamos indefinidam ente as qualidades de bondade e sabe­
doria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quiser­
mos, e acharemos sempre que cada idéia que exam inam os é cópia de
uma impressão sem elhante. (lE H , p. 37)

Aqui reside o ataque de Hume ao argumento cartesiano: como as


impressões que dão origem à idéia de Deus nada informam acerca de uma força ou
poder, logo, “é igualmente impossível descobrir ou sequer imaginar um tal
princípio ativo em Deus” (T, p. 193). Recorrer a Deus, portanto, é mergulhar num
abismo ainda maior de ignorância. Acaso a experiência nos indica qualquer
impressão que justifique afirmar o poder de Deus atuando na matéria? Passemos à
questão da vontade.

Definitivamente, vimos, os corpos externos nada nos informam acerca


do seu suposto poder, não podendo, assim, epistemologicamente falando, serem
apontados como causas uns dos outros. Recorrer às idéias inatas está vedado,
conforme a teoria da mente de Hume, e também recorrer a Deus, malogra pela
20

mesma razão (não é uma idéia inata e as impressões que a engendram nada nos
informam sobre seu poder em atuação na matéria). A única saída seria, para
quem quer se opor a Hume, “mostrar uma idéia que [...] não deriva dessa fonte”
(lEH, p. 37). O que sobra como esperança é mostrarmos que a idéia de poder ou
causa surge de nossa vontade, tomando, dessa forma, a vontade como causa.

P o d e-se dizer que, em todo m om ento, temos consciência de n osso


p oder interno, porquanto sentim os que, pela mera ordem de nossa
vontade, podem os mover os órgãos de nosso corpo ou governar nossas
faculdades espirituais. Um ato volitivo produz um movimento em n os­
sos membros ou origina uma nova id éia em nossa imaginação. C onhe­
cem os esta influência da vontade pela consciência. Adquirimos essa
id éia de poder ou de energia e certificam o-nos que tanto nós com o to ­
dos os outros seres inteligentes são adotados deste poder. Esta idéia,
portanto, é uma idéia reflexiva porque surge ao refletir sobre as o p e­
rações de nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade
exerce tanto sobre os órgãos do corpo como sobre as faculdades da
alma. (lEH , p. 77)

Analisemos, junto com o filósofo, a influência da vontade sobre o


corpo. Passemos a seu primeiro argumento.

Esta influência, devem os observar, é um fato que, com o todos os outros


even tos naturais, unicamente pode ser conhecida pela experiência e
jam ais pode ser prevista a partir da aparente energia ou poder situado
na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a conseqüência in fa lív el
da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade.
D isto tem os sempre consciência, mas o modo p elo qual isso se realiza,
a energia conferida à vontade no desem penho deste processo tão extra­
ordinário, distanciam -se de nossa con sciên cia imediata e devem e x ­
clu ir-se para sempre de nossa mais d iligen te investigação. (lE H , p. 78)

O que Hume exige é um esclarecimento maior com respeito à relação


entre alma e corpo. Conceber o modo pelo o qual uma suposta substância espiri­
tual exerce uma influencia sobre outra material é algo tão misterioso, que a
consciência nada nos informa sobre a origem do poder ou energia da vontade. Se o
fizesse, “deveríamos apreender este poder, deveríamos entender sua conexão com
o efeito; deveríamos conhecer a união oculta da alma e do corpo e a natureza
destas duas substâncias, por meio da qual uma é capaz de agir, de tantos modos,
sobre a outra” (lEH, p. 78). Sobre esse aspecto, ele lança uma série de
questionamentos a fim de mostrar que não podemos fundar na vontade a idéia de
poder ou causa. Nem somos capazes de mover todos os órgãos do corpo com a
21

mesma autoridade, nem tampouco conseguimos apontar por que não podemos.
”Por que a vontade tem influência sobre a língua e os dedos, e não sobre o
coração e o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se tivéssemos cons­
ciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo” (lEH, p. 78).

É fato que alguém subitamente atacado por uma paralisia da perna ou


do braço, ou que tenha recentemente perdido esses membros, tende a princípio e
com freqüência a movê-los e usá-los em suas funções habituais. “Neste caso, tal
pessoa, está tão consciente do poder que governa estes membros como um homem
de saúde perfeita é consciente do poder que move qualquer membro que perma­
nece em sua condição e estado normais” (lEH, p. 78). Esse argumento mostra
quão finito e ilusório é nosso conhecimento acerca do poder que, sem razões con­
vincentes, atribuímos à vontade. O argumento prossegue:

[...]. A anatomia nos informa que o objeto im ediato ao poder no m ovi­


mento voluntário não é o próprio membro que é m ovido, porém certos
m úsculos, nervos e espíritos anim ais e, talvez, alguma coisa ainda
menor e desconhecida através da qual o m ovim ento se propaga
sucessivam ente antes de alcançar o próprio membro, cujo m ovim ento é
o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o
poder que realiza toda a operação, tão distante de ser direta e com ple­
tamente conhecida por um sentim ento interno ou co n sciên cia , é em
última análise m isterioso e in in telig ív el? L ogo que o esp írito quer certo
evento, imediatamente um outro evento é gerado, que ignoram os e que
é totalmente diferente do evento visado; este evento gera um outro,
igualm ente desconhecido, até que, finalm ente, através de uma longa
sucessão, 0 evento desejado é gerado. Mas se se sen tisse o poder ori­
ginal, deveríamos con h ecê-lo; se o con h ecêssem os, d ev er-se-ia conhe­
cer também seu efeito, visto que todo poder é relativo a seu efeito. E
vice versa, se não conhece o efeito , não se pode conhecer nem sentir o
poder [...]. (lEH, p. 79)

Não adiantaria também afirmar que a idéia de poder surge da relação


entre a vontade e o espírito, no que concerne particularmente à vontade em sua
relação com as idéias. O argumento seria dizer que, ao percebermos como a von­
tade age na produção das idéias, suscitando-as na mente, fixando-as no espírito ao
analisá-las e, a seu bel-prazer, trocando-as por outras, dessa percepção surgiria a
idéia de poder. Mas essa forma de analisar a questão é muito superficial, caso
não, vejamos. Em primeiro lugar, esse poder do espírito não é nem sentido ou
conhecido; e, mais ainda, é pouco concebível pelo espírito, pois “apenas sentimos
o evento, a saber, a existência de uma idéia conseqüente a uma ordem da vontade;
22

porém, a maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é
produzida estão inteiramente fora de nossa compreensão” (lEH, p. 80). Em
segundo lugar, Hume insiste na ignorância do espírito acerca de sua própria
natureza, como ocorre na relação entre o espírito e o corpo.

[...], o governo do espírito sobre si mesmo é lim itado, assim como seu
controle sobre o corpo, e estes lim ites não são conhecidos pela razão
ou por qualquer conhecim ento da natureza de causas e efeitos, mas
apenas p ela observação ou pela experiência, com o em todos os outros
eventos naturais e na operação de objetos externos. N ossa autoridade
sobre n ossos sentim entos e nossas paixões é muito mais débil do que
sobre n ossas idéias; e mesmo esta última se circunscreve dentro dos
mais estreitos lim ites. Quem prenderá dar a razão última destes lim ites
ou mostrar por que o poder é déb il em alguns casos, e não em outros?
(lE H , p. 80)

E, por fim, Hume argumenta que mesmo a experiência mostrando a


relativa e fraca ação suposta da vontade, quer sobre o espírito enquanto tal, quer
sobre o corpo, ela também mostra que tal poder é circunstancial, dependendo, em
grande medida, da condição presente do espírito e do corpo.

Um homem sadio o possui em maior grau do que alguém que se


consume com a doença. Somos mais donos de nossos pensamentos pela
manhã do que pela noite; em jejum , do que após uma refeição copiosa.
Podemos dar alguma razão destas variações exceto a experiência? Onde
está, p ois, o poder do qual pretenderíamos ser conscientes? Não há
aqui, seja em uma substância material ou espiritual, seja em ambas,
algum m ecanism o desconhecido ou estrutura de elem entos ao qual
depende o efeito e que, por nos ser inteiram ente d esconhecido, torna o
poder ou energia da vontade igualm ente desconhecidos e
incom p reensíveis? (lEH , p. 80)

A argumentação de Hume pode resumir-se à seguinte analogia. Assim


como nos fenômenos da natureza não podemos racionalmente defender que a
causa do calor reside no fogo, por exemplo, também não podemos, legitimamente,
afirmar que a causa dos movimentos de nosso corpo, assim como a organização,
elaboração, rejeição e eleição de nossas idéias, reside na vontade. E isso por uma
única e comum razão, a saber, que em ambos os casos não temos a impressão que
origina a idéia de poder e a de conexão necessária. Dito de outra maneira, não
temos bases racionais ou evidências empíricas suficientes para justificá-las. Nesse
sentido, valem aqui todos aqueles argumentos apresentados no tratamento dado ao
princípio da causalidade. Mas é preciso perceber um ponto importantíssimo.
23

Hume não está negando que a vontade é a causa de nossas ações, ou que, pelo
menos, mantenha uma relação causai com ela, quer próxima ou não; ele está
apenas mostrando que tal conhecimento não repousa na razão ou em qualquer
impressão originária dessa idéia, da mesma forma como ocorre nos fenômenos
naturais.

Longe de se perceber a conexão entre um ato de volição e um m o v i­


mento do corpo, o que se vê é que nenhum efeito é mais in e x p lic á v e l,
dados os poderes e a essência do pensamento e da matéria. T am pouco o
dom ínio da vontade sobre nossa mente é mais in te lig ív e l. Aqui o efeito
é d istinguível e separável da causa, e não poderia ser previsto sem a
experiência de sua conjunção constante. [...]. Em suma, as a çõ e s da
mente são, sob esse aspecto, iguais às da m atéria. Tudo que p e rc eb e­
mos é sua conjunção constante, e nosso raciocín io jam ais pode ir além
disso. Nenhuma impressão interna possui uma energia evid en te, não
mais que os objetos externos. (T, p. 194)

Somente “a experiência nos ensina a ação de nossa vontade. E a


experiência nos ensina apenas como um evento acompanha constantemente outro,
sem nos informar sobre a desconhecida conexão que as liga e que as torna
inseparáveis” (lEH, p.77). E ainda:

A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estam os


suficientem ente fam iliarizados. R efleti sobre ela. C onsiderai-a sob
todos os ângulos. Encontrastes nela algo de sem elhante a este poder
criador, pelo qual do nada gera uma nova idéia, e, por uma e sp é c ie de
f ia t, im ita a onipotência de seu criador - se me permiti falar assim -
que converge para a existência dos diferentes panoramas da natureza?
Esta energia da vontade acha-se tão afastada de n ossa con sciên cia que
necessitam os recorrer à experiência - com o a que possuím os - para
convencer-nos de que tão extraordinários efeito s resultam efetivam ente
de um sim ples ato da vontade. (lEH , p. 80-81)

1.3 DAS PAIXÕES COMO CAUSA DAS AÇÕES

As paixões são apontadas por Hume como as causas diretas das ações,
pois é sempre do campo do desejo, do sentimento, que vem o impulso para agir,
após aquelas agirem diretamente sobre a vontade. Reforçaremos essa tese ao
longo de nosso trabalho. Por ora, apresentaremos a classificação que Hume faz
das paixões, que servirá de base para o desenvolvimento dos demais temas que
serão apresentados no decorrer deste capítulo. Faz-se necessário para isso a
24

apresentação de um pouco mais da teoria da mente que Hume construiu, pois que
ela relaciona-se diretamente com a classificação das paixões.

Vimos que as impressões foram divididas em impressões de sensação e


de reflexão, assim como vimos como se dá o processo que origina as impressões
do segundo tipo. Como exemplo delas, Hume inclui “todas as nossas sensações,
paixões e emoções, em sua primeira aparição à alma” (T, p. 25). No Livro II (Das
Paixões), Parte I, Hume ratifica sua classificação das impressões, muito embora
use uma terminologia nova: impressões originais (são as de sensação) e secundá­
rias (são as de reflexão). O importante é destacar que as paixões são impressões
secundárias ou de reflexão. “Do primeiro tipo são todas as impressões dos
sentidos; do segundo, as paixões e outras emoções semelhantes” (T, p. 309). E
vale ressaltar, ainda, que as impressões secundárias ou reflexivas são as que
procedem de impressões originais, seja imediatamente, seja pela interposição de
suas idéias:

Dores e prazeres fís ic o s são fontes de muitas paixões, seja quando


sen tid os, seja quando considerados pela mente; mas surgem na alma, ou
no corpo (como se preferir), originalm ente, sem nenhum pensamento
ou percepção precedente. Uma crise da gota produz uma longa série de
p aixões, com o pesar, esperança, medo, mas não deriva diretam ente de
nenhum afeto ou idéia. (T, p. 310)

As paixões (impressões de reflexão) dividem-se em dois tipos: calmas e


violentas. “Do primeiro tipo são o sentimento do belo e do feio nas ações,
composições artísticas e objetos externos. Do segundo são as paixões de amor e
ódio, pesar e alegria, orgulho e humildade” (T, p. 310). Hume faz ainda uma
segunda divisão das paixões, a saber: diretas e indiretas: “Por paixões diretas
entendo as que surgem imediatamente do bem ou do mal, da dor ou do prazer. Por
indiretas as que procedem dos mesmos princípios, mas pelas conjunções de outras
qualidades” (T, p. 311). Como exemplo das paixões indiretas: orgulho, humildade,
ambição, vaidade, amor, ódio, inveja, piedade, malevolência, generosidade; como
exemplo, das diretas: desejos, aversão, tristeza, alegria, esperança, medo, deses­
pero, confiança.

Na Parte III, Hume analisa a relação das paixões diretas com a vontade.
25

e considera esta não propriamente uma paixão, mas o mais notável dentre “todos
os efeitos imediatos da dor e do prazer” (T, p. 435); conseqüentemente, um efeito
das próprias paixões diretas. A definição de vontade é-nos dada por Hume na
seguinte passagem: “Desejo observar que entendo por vontade simplesmente a
impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando delibera­
damente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em
nossa mente” (T. p. 435). Anterior à vontade aparece sempre uma paixão a ela
conjuntada, e como não podemos colocar algo anterior às paixões, estas são vistas
por Hume como o limite da pesquisa acerca das causas das ações.

1.4 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA AS AÇÕES

Observando atentamente todo o desenvolvimento da questão da causa­


lidade, veremos que a forma como Hume tratou a crença e a inferência causai já
se constitui um belo e peremptório argumento para justificar que a racionalidade
não promove, amiúde, ação alguma. Como todo o conteiido do argumento já foi
extensamente trabalhado, o exporemos apenas em seu aspecto formal.

Premissa; Só a crença causai nos leva à ação em que a relação de causa e


efeito está envolvida.

2^ Prem issa: A razão não fundamenta a crença causai.

Conclusão; A razão não nos leva à ação em que a relação de causa e


efeito está envolvida.

A razão não funda a crença causai, assim Hume nos instruiu, e com
base nessa idéia construímos o argumento anterior. Mas há casos em que a razão
pode ser um móbil intermediário para a ação, na medida em que esta dependa da
descoberta da relação causai ou dos meios para a satisfação do desejo que
originou a vontade.

É evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer


26

por causa de um objeto, sen tim os, em conseqüência disto, uma em oção
de aversão ou de propensão, e som os levados a evitar ou a abraçar
aquilo que nos proporcionará e sse desprazer ou essa satisfação. Também
é evidente que tal em oção não se lim ita a isso; ao contrário, faz que
olhem os para tod os os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja
conectado com o original p ela relação de causa e efeito. É, aqui,
portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa
relação; e conform e n ossos ra cio cín io s variam, nossas ações sofrem uma
ação subseqüente. Mas é claro que, neste caso, o im pulso não decorre da
razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer
que gera a aversão ou propensão ao objeto; essas em oções se estendem
àquilo que a razão e a exp eriência nos apontam como as causas e os
efeito s desse ob jeto. (T, p. 450)

A razão é, assim, inerte apenas no que se relaciona ao impulso


originário da ação e, por conseguinte, da vontade; mas como ela oferece os meios
para que os fins sejam alcançados, é incorreto afirmar que ela é totalmente inerte.
É por isso que Hume argumenta que como ela não gera nenhuma ação ou volição,
é “incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer
paixão ou emoção” (T, p. 450). O raciocínio dele objetiva mostrar que só um
impulso contrário e fundador da ação pode se opor à paixão; como a razão não
funda a ação, logo... ”Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não
estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa. A razão é, e deve ser
apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar à outra função além de servir e
obedecer a elas” (T, p. 451).

No momento preciso em que Hume anuncia essa sentença, está falando


estritamente do caráter originário da ação em busca do prazer em detrimento da
dor; e neste sentido a razão é escrava mesma, porque diante do impulso ela
automaticamente sai em auxílio das paixões. Anthony Quinton propõe que
“escrava” deve ser entendido como “serve como instrumento para a satisfação
de“®. E que “só deve ser” é um floreio retórico irrelevante”^. Macintyre, ao con­
trário, nos diz que “a paixão dá uma função prática à razão [...]. Não há nenhum
exagero retórico com relação a sua própria visão quando Hume afirma: ‘a razão é
e deve ser apenas escrava das paixões

®QUINTON, Anthony. Hume. São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 4.


’ Ibidem.
* MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo: Edições Loyola, 1991. p. 328.
27

Por que a razão, mesmo não sendo responsável pela origem das ações,
não pode fazer frente às paixões? A resposta é conseqüência do papel que a razão
desempenha na descoberta da verdade. Na procura da verdade a razão opera sem ­
pre com idéias, e como a paixão é uma existência original ou modificação de
existência, ela “não contém nenhuma qualidade representativa que a torne cópia
de outra existência ou modificação. Quando tenho raiva, estou realmente possuído
por essa paixão; e, com essa emoção, não tenho mais referência a um outro objeto
do que quando estou com sede, ou doente [...]” (T, p. 451). Logo, não pode haver
uma oposição ou contradição entre razão e paixão, devido à natureza desta (uma
impressão). Como no campo dos fatos a razão descobre a verdade comparando as
idéias com os objetos que representam, a paixão não sendo uma idéia, em nada a
respeito dela a razão se pronunciará. “Portanto, é impossível haver uma oposição
ou contradição entre essa paixão e a verdade ou a razão, pois tal contradição
consiste na discordância entre certas idéias, consideradas como cópias, e os
objetos que elas representam” (T, p. 451).

Vejamos o seguinte. Sendo a razão empregada na descoberta da v er­


dade, tudo que tiver uma dependência da descoberta desta última terá, conseqüen­
temente, uma dependência da própria razão. Logo, pode haver uma espécie de
oposição entre razão e paixão, desde que esta esteja acompanhada de algum juízo
ou opinião infundada. Por conta disso, quando uma paixão, por exemplo, a do
medo, surge decorrente de um objeto que na verdade não existe, logo esse
sentimento desaparece quando a razão nos informa de tal fato. Assim também,
quando agimos movidos por uma paixão e escolhemos os meios errados ou
insuficientes para o fim pretendido nos enganando em nossos juízos de causa e
efeito, quando a razão nos informa de tal equívoco a paixão desaparece.

P osso desejar uma fruta que ju lgo possuir um sabor excelen te; m as se
me convencerem de meu engano, meu desejo cessa. P osso querer
realizar certas ações com o m eio de obter um bem desejado; mas com o
minha vontade de realizar essas ações é apenas secundária, e se b aseia
na suposição de que elas são as causas do efeito pretendido, logo que
descubro a falsidade dessa suposição tais ações devem se tornar
indiferentes para mim (T , p. 452).

É somente em tais casos que paixão e razão disputam o controle da


vontade e das ações, mas a disputa refere-se aos meios, nada tem a ver com a
28

origem das ações. A conseqüência que Hume extrai dessa abordagem é que
quando a paixão não se funda num falso juízo, e nem escolhe meios insuficientes
para sua finalidade, a razão não só é impotente para contrariá-la, como não pode
justificá-la, nem condená-la: “Não é contrário à razão eu preferir a destruição do
mundo inteiro a um arranhão em meu dedo. Não é contrário à razão que eu
escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou
de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida” (T, p. 452).

No início deste capítulo falamos que as paixões são as causas que


originam as ações e determinam a vontade, e apontamos a divisão que Hume faz
entre paixões calmas e violentas. Agora mostraremos que as disputas acerca do
controle da vontade residem estritamente no campo das próprias paixões, entre as
violentas e as calmas. O argumento de Hume consiste em mostrar que existe um
outro engano quando se diz, em muitas ocasiões, que se agiu seguindo as
determinações da razão: isso ocorre pelo fato de confundirmos a razão com uma
paixão calma. A racionalidade, em seu exercício.

não produz nenhuma em oção sen sível; e, exceto nas indagações


filo só fica s mais sublim es, ou nas frívolas sutilezas escolásticas, quase
nunca transmite prazer ou desconforto. É por isso que toda ação da
mente que opera com a m esm a calma e tranqüilidade é confundida com
a razão por todos aqueles que ju lgam as co isa s por seu primeiro
aspecto e aparência. (T, p. 4 5 3 )

Podemos acrescentar que isso se dá, em grande medida, justamente por


ela sempre trabalhar no campo das idéias, que, segundo a teoria da mente desse
autor, são cópias das impressões e, portanto, fracas em vivacidade, não
provocando, assim, grandes impactos no espírito. Neste ponto, Hume conclui o
seguinte:

Ora, é certo que há determinadas tendências e desejos calm os que,


embora sejam verdadeiras p aixões, produzem pouca emoção na mente,
sendo conhecidos mais por seus e fe ito s que pelo sentimento ou
sensação im ediata que produzem . E sses desejos são de dois tipos; ou
bem são certos in stin tos originalm ente implantados em nossas
naturezas, tais com o a b en evolên cia e o ressentim ento, o amor à vida e
a ternura pelas crianças; ou então são o apetite geral pelo bem e a
aversão pelo mal, considerados meramente enquanto tais. Quando
alguma dessas p aixões é calm a e não causa nenhuma desordem na alma,
é facilm ente confundida com as determ inações da razão, e supomos que
29

procede da mesma faculdade que a que julga sobre a verdade e a


falsidade. Supomos que sua natureza e seus princípios são os m esm os
porque suas sensações não são evidentem ente diferentes. (T, p. 453)

Como além das paixões calmas, “que freqüentemente determinam a


vontade”, há outras paixões que também a determinam, por exemplo, a paixão do
ressentimento, que nos faz desejar um mal àquele que nos causou algum tipo de
dano, e é um tipo de paixão violenta, é sempre a prevalência de uma delas que
determina nossa vontade. Na ótica de Hume, quando as paixões violentas são
sobrepujadas pelas calmas, a isso se dá o nome de firmeza de caráter.

Os homens com freqüência agem conscientem ente contra seus próprios


interesses, por essa razão, a perspectiva do maior bem nem sempre os
influencia. Os homens muitas v ezes se contrapõem a uma paixão v io ­
lenta ao perseguirem seus interesses e objetivos; não é apenas o des-
prazer presente, portanto, que os determina. Observamos em geral, que
ambos os princípios atuam sobre a vontade; e, quando são contrários,
um dos dois prevalece, segundo o caráter geral ou a d isp osição da
pessoa. O que se chama de firm eza de caráter im plica o predom ínio das
paixões calmas sobre as violentas; mas é fácil observar que não há
ninguém que possua essa virtude de forma tão consciente que nunca,
em nenhuma ocasião, ceda às so licita çõ es da paixão e do d esejo. A
essas variações de temperamento se deve a grande dificuldade em se
decidir acerca das ações e resolu ções humanas, quando existe qualquer
contrariedade de m otivos e p aixões. (T, p. 454)

Nosso filósofo nos aponta uma distinção importante a ser feita no que
concerne às paixões. Deve-se “diferenciar paixões calmas de paixões fracas, e
paixões violentas de paixões fortes” (T, p. 454). O forte, nesse caso, tem a ver
apenas com o poder que determinada paixão tem na condução da vontade, e não
com o estado emocional que ela provoca.

É evidente que as paixões não influenciam a vontade na mesma


proporção de sua violên cia ou da desordem que ocasionam no humor;
ao contrário, uma vez que uma paixão se estabelece como um princípio
de ação e se torna a inclinação predominante da alma, ela com um ente
não produz mais nenhuma agitação sen sível. Como a repetição, o
costum e e sua própria força fazem tudo se submeter a ela, a paixão
dirige as ações e a conduta sem essa oposição e essa em oção que tão
naturalmente acompanham cada explosão momentânea de paixão.
(T, p. 454)

Vemos, assim, que uma paixão violenta transforma-se numa calma, e


vice-versa. Esse fenômeno decorre, segundo este autor, da relação que a paixão
30

mantém com seu objeto. Ambas, segundo ele, perseguem o bem e evitam o mal, e
a metamorfose acontece, simplesmente, por conta da proximidade que o objeto,
tido como bom, mantém da paixão que a ele se relaciona. Dessa forma, uma
paixão calma tornar-se-ia uma paixão violenta - o grau do afeto aumentaria - caso
o objeto desta paixão dela estivesse próximo, tornando-se fraco caso o objeto se
distanciasse. Esse é o efeito da relação de contigüidade (no espaço e no tempo)
sobre a imaginação. Se relembrarmos a definição de crença - a vivacidade com
que uma idéia ou impressão se apresenta ao espírito - , perceberemos que ela
relaciona-se diretamente com as paixões, no sentido de transformar uma paixão
calma em violenta. De acordo com Hume, existe “uma razão fácil para explicar
por que tudo que nos é contíguo no espaço ou no tempo é concebido com uma
força e vividez peculiar, e supera qualquer outro objeto em sua influência sobre a
imaginação” (T, p. 463). Isso acontece porque ao concebermos os objetos que
consideramos reais e existentes

nós os tomamos em sua ordem e situação próprias; nunca saltamos de


um objeto a outro que lhe seja distante sem percorrer, ao menos super­
ficialm ente, todos os objetos interpostos entre e le s [...]. É fácil co n ce­
ber que essa interrupção deve enfraquecer a id éia ao romper a ação da
mente, impedindo assim que a con cepção seja tão intensa e contínua
como nas ocasiões em que refletim os acerca de um objeto mais
próximo. Quanto menos p assos são necessários para chegar ao objeto, e
quanto mais suave o cam inho até ele, menos sen tim os a dim inuição da
vividez; mas esta ainda poderá ser mais ou m enos notada, propor­
cionalm ente aos graus de distância e dificuldade. (T , p. 463-464)

Como uma impressão pela sua própria definição é mais viva, assim
como as idéias e impressões se confundem ou se aproximam umas das outras
quando diminui ou aumenta o grau de vivacidade,^ quanto mais próximo o objeto
estiver de uma impressão (no sentido de se aparentar mais com ela, sensivelmente
falando) maior influência terá sobre a imaginação;

Devem os, pois, considerar aqui d ois tipos de ob jetos: os contíguos e os


remotos, aqueles, por m eio de sua relação co n o sco , aproxim ando-se das
im pressões em força e vividez; estes últim os, em razão da interrupção
em nosso modo de con çeb ê-los, aparecem de maneira mais fraca e
imperfeita. (T, p. 464)

' Ver Tratado, Seção I, Parte I, do Livro I, p. 26.


31

A contigüidade, ao tornar um objeto de uma paixão mais próximo dela,


aviva a imaginação provocando uma maior intensidade na paixão. Existem outras
causas que influenciam nossas paixões, transformando-as ora em paixão calma,
ora em violenta; mas comio a relação de contigüidade é a que nos interessará no
decorrer deste trabalho, deixamos à curiosidade do leitor pesquisar no Tratado as
outras causas que influenciam as paixões.

1.5 DO CONCEITO DE RAZÃO EXPERIMENTAL (OU RAZÃO PRÁTICA?^”)

A fim de apreciarmos melhor a posição de Hume em relação ao caráter


inerte da razão na origem das ações, assim como por que não se pode falar de uma
oposição entre paixão e razão, é preciso discutir o estatuto desse raciocínio que
informa os meios para a realização da ação.

Esse saber racional que aponta certos meios para a consecução da ação,
opera com o princípio da causalidade. Por que a razão indica a água ao invés da
cicuta para matar a sede? Porque a primeira mostrou-se, “na experiência”, matan­
do a sede e não causando nenhum dano à saúde humana. A razão, aqui, portanto, é
puramente indutiva. Mas a causalidade, vimos, é um sentimento no espírito fruto
da repetição e conjunção regular dos objetos - não há uma conexão real entre eles,
essa conexão se dá na mente. Esta racionalidade é muito mais um impulso
mecânico, já que ela não passa de registros ou impressões na alma. Há um aspecto
nuclear na teoria de Hume: a razão é adestrada pela experiência, mas é livre no
espírito; ela está no espírito mas não pertence a ele. Hume nos diz que a
“memória, os sentidos e o entendimento são todos, portanto, fundados na
imaginação, ou vividez de nossas idéias” (T, p. 298). No campo dos fatos a
racionalidade tem sua gênese assentada no terreno do sentimento.

'°Alasdair Macintyre usa a expressão racionalidade prática ao falar da razão em Hume. (Justiça de Quem? Qual
Racionalidade? Edições Loyola: São Paulo, 1991. CapítuloXVI). O mesmo faz Giles Deleuze em Empirismo e
Subjetividade, durante toda sua argumentação (São Paulo; Editora 34, 2001). Preferimos usar a terminologia
razão experimental, pois acreditamos ficar mais de acordo com a filosofia de Hume. O conceito de razão prática
tem um comprometimento direto com a filosofia kantiana, para a qual a vontade é uma espécie de razão prática;
algo inconcebível em Hume. “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional age segundo a
representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das
leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (KANT, Immanuel. Fundamentação da
Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, p. 47).
32

Essa é precisamente a posição de Gilles Deleuze. No seu livro “Empi-


rismo e Subjetividade”, capítulo 1, página 23, ele diz, ao falar do tema, que a
razão experimental em Hume “é uma espécie de sentimento” . E, como falamos
acima que tal razão é principalmente causai, ela deve ter sua gênese no hábito. É o
que Deleuze defende, ao falar sobre a relação entre probabilidade e causalidade.

No em pirismo de Hume, a gên ese é sempre com preendida a partir de


princípios e como um princípio. Derivar a causalidade da probabilidade
é confundir essa formação progressiva de um p rincípio, do qual a razão
depende, com o progresso de um raciocínio. Com efeito, a razão ex p e­
rimental nasce do hábito, não o inverso. O hábito é a raiz da razão, o
princípio do qual ela é o efeito.

Pode ser levantada a seguinte objeção a essa interpretação: uma coisa é


perceber que a água é salutar para o organismo humano, aqui se reconhece que o
processo vem do campo do sentir; outra coisa é saber onde encontrar a água
quando a sede exige. Com essa objeção, parece, pois, que, no segundo caso, a
racionalidade, ao contrário do primeiro, em que ela identifica o fim por conta de
um automatismo decorrente de sucessivos registros na imaginação e na memória,
já não age da mesma forma. Se requer aqui, pode-se argumentar, uma maior
sofisticação, já que o processo não se dá automaticamente. Diríamos que, pelo
menos na maioria dos casos, isso não passa de uma ilusão da imaginação. Pois se
percorrermos toda a trajetória da razão à procura da água, veremos que ela não
deu muitos passos, ou mesmo todos, em que a experiência, através da ação do
hábito sobre a imaginação, não tenha sido sua “causa” . Mas se a racionalidade
experimental é causada, significa que ela não pode alçar-se à condição de
fundadora das ações, já que ela está envolvida no mesmo processo.

Para mostrar que nosso raciocínio anterior não passa de mera elucu-
bração, vamos embasá-lo na questão que Hume trata acerca da razão dos animais.
Como o desenvolvimento dela se encontra na breve Seção XVI, do Livro I, na
Parte III do Tratado, faremos um resumo das idéias do filósofo. A inferência de
que os animais raciocinam acerca da experiência, como os homens, havendo aqui
uma diferença apenas de grau, baseia-se numa analogia. Percebemos os mesmos
sentimentos e afetos que se apresentam nos homens, também nos animais.

" d e l e u z e , Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 67-68.
33

Percebemos também, nestes, o desempenho de tarefas que, quando comparadas


àquelas que aqueles fazem, sugerem a ação de um raciocínio. Ou seja, vemos os
animais, tal qual os homens, adaptando os meios a determinados fins. E é “com
base na semelhança entre as ações externas dos animais e as por nós mesmos
realizadas que julgamos que também suas ações internas se assemelham a nossa”
(T, p. 210). E Hume diz ainda que “o defeito comum a todos os sistemas apre­
sentados pelos filósofos para explicar as ações da mente é que supõem um pensa­
mento tão sutil e refinado que não apenas ultrapassem a capacidade dos animais,
mas até das crianças e pessoas comuns de nossa própria espécie [...]” (T, p. 210).
A questão epistemológica aqui é bem clara: diante da grande semelhança apon­
tada, quer nas atividades práticas, quer na questão dos sentimentos, como justifi­
car que só os homens possuem razão?

Hume cita dois exemplos de comparação entre as ações desenvolvidas


pelos homens e pelos animais, uma mostrando um caráter ordinário, a outra um
caráter mais sofisticado e extraordinário. Para o primeiro tipo, Hume cita o
exemplo de um cão que evita o fogo e os precipícios, e que se afasta de estranhos
e trata seu dono carinhosamente. Para o segundo, ele diz: “Um pássaro que esco­
lhe com grande cuidado e precisão o lugar e os materiais para seu ninho, que
choca seus ovos pelo tempo devido e na estação apropriada, com a precaução de
um químico que realiza a experiência mais delicada, fornece-nos um exemplo vivo
do segundo” (T, p. 211).

O que nos interessa nesse ponto não é reforçar a tese de Hume com
outros exemplos, já que a investigação científica e a psicologia animal contempo­
râneas já fazem tal tarefa; o que queremos ressaltar é que, segundo Hume, o
raciocínio dos animais assenta nos mesmos princípios que o dos homens: “Quanto
às ações do primeiro tipo, afirmo que procedem de um raciocínio que, em si
mesmo, não é diferente nem fundado em princípios diferentes dos que aparecem
na natureza humana” (T, p. 211). Os animais, da mesma forma que os homens,
nunca percebem nenhuma conexão real entre os objetos. É pelo hábito, portanto,
que inferem uns dos outros. São incapazes de, mediante argumentos, formar a
conclusão geral de que objetos que eles nunca experimentaram se assemelham
àqueles de que já tiveram experiência. Portanto, “é unicamente por meio do
34

costume que a experiência opera sobre eles” (T, p. 212). Ora, por que essa com ­
paração que Hume faz ampara nosso raciocínio anterior? Simplesmente porque
Hume, a nosso ver, coloca a seguinte questão filosófica: se os princípios das in fe­
rências de homens e animais são os mesmos, ou bem os animais raciocinam, ou
bem os homens agem, quando pensam que estão raciocinando, exclusivamente por
instinto.

Nada mostra melhor a força que o hábito exerce ao fazer-nos aceitar


um fenôm eno qualquer que o fato de os homens não se espantarem com
as operações de sua própria razão, ao mesmo tem po em que admiram o
‘instin to’ dos animais e têm dificuldade em ex p licá -lo s sim plesm ente
porque não pode ser reduzido exatamente aos m esm os princípios. M as,
a se considerar devidam ente a questão a rázão não é senão um m ara­
vilhoso e in in telig ív el instinto de nossas almas, que nos conduz por
uma certa seqüência de idéias conferindo-lhes qualidades particulares
em virtude de suas situações e relações particulares. É verdade que tal
instinto surge da observação e experiência passada; mas quem poderá
dar a virtude últim a que explique por que d eve ser a experiência e a
observação passada, e não a natureza por si mesma, o que produz tal
efeito? A natureza certamente é capaz de produzir tudo aquilo que pode
surgir do hábito. Ou antes: o hábito não é senão um dos p rincípios da
natureza, e extrai toda a sua força dessa origem . (T, p. 212)

Na verdade, a razão experimental sendo condicionada pela experiência,


faz com que o processo intelectivo dependa da ação do hábito. Logo, quando os
fenômenos são bem regulares a decisão “racional” é bem mais rápida. Com efeito,
vendo que o fogo sempre queimou, ao vê-lo, experimentamos uma sensação de
medo e o evitamos. Assim como, ao percebermos que a água sempre saciou nossa
sede, não hesitamos em bebê-la, a fim de obter o prazer que ela proporciona ao
aliviar nossa ansiedade e satisfazer nossas necessidades orgânicas. Mas, quando
os fenômenos não são tão regulares, instala-se uma certa hesitação, pois levamos
em consideração os eventos contrários, e a razão passa a julgar probabilis-
ticamente. Porém, como vimos, esse raciocínio “probabilístico” depende inteira­
mente dos afetos que os objetos empíricos causaram em nós. Nesse processo não
há distinção entre aquilo que chamamos entendimento ou imaginação.

A probabilidade surge de uma oposição de chances ou causas contrá­


rias, que não permite que a mente se fixe em nenhum dos lados, fa z en ­
do que ela seja jogada incessantem ente de um ao outro, ora d eter­
minada a considerar um objeto com o existin d o, ora o contrário. A
imaginação ou entendimento, como se queira cham á-lo, flutua entre as
considerações opostas; e embora possa freqüentem ente se voltar m ais
para um lado que para outro, é-lhe im p ossível perm anecer em um d eles,
em razão da op osição das causas ou chances. (T, p. 476)
35

Esse conceito de razão experimental, que construímos de acordo com os


textos de Hume, serve como um forte argumento adicionado aos anteriores para
mostrar que a razão não origina nossas ações, pois essa razão prática já é, em sua
origem, um sentimento provindo da experiência. Na primeira Investigação, em
nota na página 62, ele desmistifica a separação que se costuma fazer entre o
raciocínio (que é, amiúde, considerado como mero resultado de nossas faculdades
intelectuais) e a experiência (que não passa de uma informação dos sentidos),
mostrando que a razão é uma subsunção da experiência.

Se exam inarm os os argum entos em uma das ciências acima m en cio­


nadas e supormos que e le s são meros efeitos do raciocínio e da r e fle ­
xão, verificarem os que terminam pelo menos em alguma conclusão ou
princípio geral, dos quais não podem os alegar outra razão a não ser a
observação e a exp eriência [...]. A verdade é que um homem que racio­
cina sem experiência não poderia raciocinar se olvidasse inteiram ente a
experiência; quando designam os alguém com esta característica, faze-
m o-lo som ente em sentido com parativo e supomos que possui exp eriên ­
cia em grau mais ou m enos im perfeito. (lEH , p. 62)

1.6 DA IDEIA DE LIBERDADE E NECESSIDADE

Como a idéia de poder, força ou causa, não surge de nenhum tipo de


volição exercida pelo sujeito, a vontade não se constitui a força motriz das ações.
Pois não encontramos na vontade a impressão primeira que aponta para o marco
inicial da ação, ao mesmo tempo em que sempre podemos apontar uma paixão
anterior à vontade e às ações. A vontade, nesse sentido, seria, por assim dizer, um
componente da própria paixão. Se não há, então, uma faculdade que possa se opor
ou conter as paixões, segue-se por isso que as ações humanas são necessárias, e
não livres, não obstante toda variação que possam vir a sofrer quando a razão as
instrui acerca dos meios adequados para sua melhor satisfação? Hume afirma que
sim. Para expor as razões dele é preciso apresentar o exame dos conceitos de
liberdade e necessidade que compõem sua teoria compatibilizadora.

1.6.1 Da necessidade

Devemos voltar às considerações feitas acerca do princípio da causalida­


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de. Vimos que Hume negou qualquer nexo causai real entre os objetos, sendo a
razão totalmente ineficaz para tentar fundamentar esse princípio. Quando trabalha
com idéias, somente, não consegue estabelecer nenhum argumento lógico que nos
faça concordar com a conexão real entre os objetos. Quando investiga os fatos
empíricos, também não consegue justificar tal vínculo. As idéias em nossa mente
também não têm nenhuma conexão necessária, pois a imaginação pode separá-las
sempre que lhe aprouver (as complexas). Mas, lembremos: a conexão necessária
entre os fenômenos naturais foi negada de um prisma lógico, mas não psicológico,
pois, como explicamos, a necessidade causai é uma impressão no espírito; um
sentimento de crença que se instala decorrente da ação do hábito sobre a
imaginação. Vejamos agora como Hume constrói a idéia de necessidade acerca
dos fenômenos do espírito.

No Livro II (Das Paixões), ap tratar das idéias de liberdade e neces­


sidade, Hume deixa claro qual será a sua forma de raciocinar a fim de averiguar se
as ações humanas são necessárias ou não.

Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são n eces­


sárias, e que, na com unicação de seu m ovimento e em sua atração e
coesão mútuas, não há nenhum traço de indiferença ou liberdade [...].
Portanto, as ações da matéria devem ser vistas com o exem plos de ações
necessárias, e tudo que, por esse aspecto, estiver na mesma situação
que a matéria deverá ser admitido como necessário. Para saber se é este
o caso das ações da mente, começaremos examinando a matéria e anali­
sando qual o fundamento da idéia de uma necessidade em suas opera­
ções, e por que concluím os que um corpo ou ação é a causa in fa lív e l de
outro corpo ou ação. (T, p. 436)

E prossegue:

Eis aqui, portanto, dois pontos que devem os considerar com o essen ­
ciais à necessidade: a união constante e a inferência da m ente; onde
quer que os descubramos teremos de admitir uma n ecessid ad e. Ora,
como a única necessidade existente nas ações da matéria é a que deriva
dessas circunstâncias, e com o não é por m eio de uma visão direta da
essência dos corpos que descobrim os sua conexão, a ausência dessa
visão, enquanto a união e a inferência se mantêm, nunca, em nenhum
caso, eliminará a n ecessidade. [...], basta provar a existên cia de uma
união constante nas ações da mente para estabelecer a inferência,
justamente com a necessidade dessas ações. (T, p. 436-437)

O objetivo de Hume será mostrar, pela experiência, “que nossas ações


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possuem uma união constante com nossos motivos, temperamentos e com as


circunstâncias que nos envolvem” (T, p. 437). Ora, constatada essa uniformidade
nas ações humanas, da mesma forma como ocorre nas operações dos corpos, pode-
se, legitimamente, fazer-se inferências e predições, tanto numas como noutras.

Toda gente recon hece que há grande uniformidade nas ações humanas
em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana
sempre perm anece igual em seus princípios e operações.'^ Os m esm os
m otivos produzem sempre as m esm as ações. A ambição, a avareza, o
amor-próprio, a vaidade, a am izade, a generosidade e o espírito pú­
b lico, p aixões misturadas em vários graus e distribuídas pela sociedade
têm sido, desde o com eço do m undo, e ainda são, a fonte de todas as
ações e em preendim entos que se têm sempre observado entre os h o­
mens. (lE H , p. 91)

E no Tratado nos diz que.

quer consideram os os homens segundo suas diferenças de sexo, idade,


governo, condição ou método de educação, podem os discernir a mesma
uniformidade e regularidade na operação dos princípios naturais. Cau­
sas sem elhantes sem pre produzem efeito s sem elhantes do mesmo modo,
que na ação mútua dos elem entos e poderes da natureza. (T, p. 437)

Note-se que, embora haja uma diversidade de ações decorrentes da


educação e cultura, além de ser tão comum na espécie humana uma inconstância
nas ações por conta da alteração do temperamento - das paixões - e desejos que
se modificam, ainda assim, nos fala Hume: “devemos proceder com base nas m es­
mas máximas que quando raciocinamos acerca dos objetos externos” (T, p. 439).

Se um homem, que sei que é honesto e rico e com o qual mantenho


íntima am izade, vem à minha casa onde estou rodeado por meus
criados, estou bem seguro que não me apunhalará antes de sair a fim de
roubar meu tinteiro de prata e d este evento suspeito tanto com o de que
venha abaixo a casa que é nova e solidam ente construída e alicerçada.
(lEH , p. 97)

E quando há uma relativa incerteza, devido à irregularidade entre


motivos e ações, tal qual ocorre, com freqüência, com respeito aos fenômenos

Margarita Costa nos diz que não se deve entender por natureza humana algo como a essência do homem, como
fizeram os filósofos medievais e racionalistas modernos, mas “um complexo ou sistema de faculdades” (As
Idéias Morais e Sócio-PoKticas de Hume. Argentina: revista do instituto de investigações educativas. Série:
documentos e investigações, 1979. p. 7).
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naturais, onde as mesmas causas nem sempre acompanham os mesmos efeitos, da


mesma forma que neste campo a mente opera com raciocínio probabilístico.

A mente pesa as experiências contrárias e, subtraindo das superiores,


procede segundo o grau de segurança ou evidência que resta [...].
Nenhuma união pode ser mais constante e certa que a de algumas ações
com determinados m otivos e caracteres; se, em outros casos, a união é
incerta, essa incerteza não é maior que a de algumas operações dos
corpos. Não Podemos extrair do primeiro tipo de irregularidade uma
conclusão que não se siga igualm ente do outro. (T, p. 440)

Importante também é enfatizarmos que, assim como no que se refere aos objetos
empíricos, o entendimento ou razão nas questões morais dependem igualmente dessa
regularidade nas ações, pois “se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo
experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossível
coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência, por mais que
a reflexão a houvesse assinalado, serviria para algum fim” (lEH, p. 92).

Dessa similaridade que Hume constata nas inferências, tanto no que se


prende aos fenômenos naturais quanto aos humanos, ele estabelece que a neces­
sidade da mente em passar das causas aos efeitos é a mesma que aquela com que
passa dos motivos as ações. Ou seja, quando motivos semelhantes se apresentam
ao espírito, as mesmas ações que os acompanharam no passado são inferidas. A
origem da idéia de necessidade é a mesma que se apresenta para os objetos
externos, a saber, uma impressão de reflexão.

À medida que os homens estendem suas relações e tornam mais co m ­


plexas suas com unicações com os outros homens, sempre com preendem
em seus planos de vida uma maior variedade de atos voluntários que
esperam, por m otivos ju stos, que colaborem com sua própria ação. Em
todas essas conclusões tiram suas regras da experiência passada, do
mesmo modo que em seus raciocínios sobre objetos externos; acreditam
firmemente que tanto os homens com o os elem entos devem continuar
em suas operações tal com o foram sempre encontrados. Um fabricante
conta ao mesmo tempo com o trabalho de seus em pregados para a
execução de qualquer obra com o com a maquinaria empregada, e fic a ­
ria igualm ente surpreso se se decepcionasse em suas exp ectativas.
(lEH , p. 96)

É uma espécie de sentimento que surge no espírito decorrente da


repetição regular dos fenômenos e, portanto, do mesmo modo como ocorre
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naquele campo, não assenta em bases racionais. Esta necessidade das ações não é
lógica, e sim psicológica. Pois assim como não podemos garantir que o calor
sempre seguirá o fogo, também não podemos garantir, tomando o exemplo de
Hume, que aquele sujeito rico e honesto não nos apunhalará a fim de nos roubar.
A regularidade engendra a crença. A grande questão que ele nos informa, é que a
necessidade sempre foi aceita por toda humanidade, nos termos em que ele mesmo
a conceituou.

Numa palavra, a inferência e o raciocínio experim ental referentes aos


atos de outrem incorporam -se tanto na vida humana, que nenhum
homem, enquanto está desperto, deixa de u tilizá -lo s por um momento
sequer. Não temos razão, portanto, para afirmar que toda a humanidade
sempre tem concordado com a doutrina da necessidade tal com o a
definição e a exp licação dadas mais acima? (lE H , p. 96)

Essa é a grande contradição prática apontada por Hume, pois muito


embora neguemos com palavras e argumentos sofisticados a doutrina da
necessidade das ações, nos surpreendemos, basta atentarmos para isso, atribuindo
causas às ações humanas e fazendo inferência acerca delas com toda convicção.
Diz ele que embora a humanidade tenha sempre reconhecido a necessidade das
ações “em toda sua ação política e em todos os seus raciocínios, manifesta-se,
contudo, relutante em reconhecê-la em palavras, tendo antes mostrado, em toda
época, uma tendência a professar opinião contrária” (lEH, p. 98).

Agora, sem dúvida, a questão mais importante a que devemos atentar na


concepção de Hume, é que, da mesma forma como ocorre nos objetos externos,
em que a necessidade não existe de fato neles, já que não existe uma conexão
causai real, mas, tão-somente, no espírito de quem os observa, no que se refere às
ações humanas se dá o mesmo. A necessidade é algo que reside no espírito de
quem observa, e não no de quem pratica as ações. É pontualmente essa caracte­
rização que nos leva, segundo ele, a não aceitar que as ações humanas sejam
determinadas. Pois como o agente das ações, na maioria das vezes, percebe seus
atos como sujeitos à sua vontade (como mostramos, apenas por uma associação),
imagina que sente esta não subordinada a nada. E pelo fato de, quase sempre,
poder exercer sua “liberdade” fazendo operar sua vontade quer num sentido, quer
noutro, quer em busca de um objeto, ou a seu bel-prazer evitando-o, ao
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experimentar essa sensação julga-se, então, livre. O equívoco nessa forma de


pensar, é não “considerarmos que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui
o motivo de nossas ações” (lEH, p. 99). E ainda;

Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentim os em
nós a liberdade, um espectador pode geralm ente inferir n ossos atos de
n ossos m otivos e de nosso caráter, e mesmo quando não pode, conclui
geralm ente que poderia se con h ecesse perfeitamente todas as circu n s­
tâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de
n ossa disposição - esta é, portanto, a verdadeira essência da n e c e s­
sidade, segundo a doutrina anterior. (lEH , p. 99)

1.6.2 Da liberdade

Hume dá o mesmo tratamento que deu aos fenômenos naturais às


questões humanas, mostrando que em ambos os lados a relação de causa e efeito
está presente. Nossas ações não podem, assim, serem consideradas livres, pois que
seguem as disposições de nossas paixões, motivos e caracteres de uma forma
geral. O próximo passo do filósofo será mostrar que o conceito de liberdade só
pode ser extraído do próprio conceito de necessidade, no sentido especial que ele
lhe dá. O ponto decisivo do argumento do escocês será mostrar que a única forma
de se negar a necessidade das ações é-se cunhando um conceito diferente do seu
para o princípio da causalidade, já que, ao se aceitar a forma como ele concebeu
tal princípio, deve-se, como conseqüência, concordar com a doutrina da
necessidade, visto que esta é parte essencial daquele princípio. Mas, ao negarmos
a necessidade destruímos a noção de causa, relegando o ordenamento e
regularidade dos fenômenos naturais e morais ao acaso.

O uso afirmar, com toda segurança, que ninguém há de tentar refutar


esse s raciocínios, a menos que altere minhas definições e atribua um
sentido diferente aos termos causa, efeito, necessidade, liberdade e
acaso. De acordo com minhas d efin ições a necessidade é parte e sse n ­
cial da causalidade; conseqüentem ente, a liberdade, ao suprimir a n e­
cessid ad e, suprime também as causas, e é o mesmo que o acaso. Como
normalmente se pensa que o acaso im plica uma contradição, ou ao
m enos que é diretamente contrário à experiência, os mesmos argu­
m entos podem sempre ser u tilizados contra a liberdade ou livre-arbí-
trio. Se alguém alterar as d efin ições, não posso pretender argumentar
antes de conhecer o sentido que se atribui a esses termos. (T, p. 443)
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Portanto, o dilema que Hume nos apresenta é bastante claro: a expe­


riência, seguindo seu método empírico, não mostra o menor sinal de acaso, tanto
nos fenômenos naturais quanto nos humanos. O princípio da causalidade é aceito
factualmente nos dois âmbitos, pois sempre buscamos alguma causa que explique
os fenômenos naturais e morais. Desse jeito, negar a necessidade que está im plí­
cita no conceito de causalidade, atribuindo uma idéia de acaso ou de liberdade de
indiferença as nossas ações (podemos agir assim ou não a nosso bel-prazer) é
negar o próprio princípio; e isso é, em si, contraditório. Ao mesmo tempo em que,
como foi mostrado, não conseguimos identificar em nossa vontade nenhum poder
ou força originais, não podemos também deixar de atribuir alguma causa ou
motivo externos ou internos anteriores a ela. A única forma de se manter o
princípio da causalidade é, por conseguinte, negando as idéias de acaso e
liberdade de indiferença (vontade livre). Porém, pode-se conciliar as idéias de
liberdade e necessidade, desde que aquela seja definida em termos de uma
liberdade de constrangimento ou de restrições do agir.

Mas para realizar nosso projeto de recon ciliação relativo à questão da


liberdade e da necessidade - a m ais controvertida questão da m eta­
física , a mais litigiosa das ciên cias - não precisam os de muitas pala­
vras para provar que todos os hom ens sempre têm concordado a res­
p eito da doutrina da liberdade, assim com a da n ecessid ad e, e que toda
discussão a este respeito tem sido puramente verbal. P ois o que se
entende por liberdade quando se ap lica a palavra às ações voluntárias?
Não podemos certamente dizer que estes atos têm tão pouca conexão
com os m otivos, as in clin ações e as circunstâncias, que um não deriva
do outro com um certo grau de uniform idade e que um não proporciona
nenhuma, inferência pela qual podem os concluir a existên cia do outro.
Pois estes são fatos patentes e recon hecidos. Por liberdade, então,
podemos apenas entender um poder de agir ou não segundo as
determinações da vontade, isto é, se escolherm os permanecer em
repouso podemos; mas, se escolh erm os m over-nos, também podem os.
Ora, reconhece-se universalm ente que esta liberdade incondicional
encontra-se em todo homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado.
L ogo, aqui não há assunto para d iscu ssão. (lEH , p. 100)

Logo, para Hume, ou adota-se um outro conceito de causalidade ou


admite-se a necessidade que dele é parte integrante, onde “a liberdade, oposta à
necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda
a gente está de acordo que não existe” (lEH, p .101). Vê-se, por isso, que a única
idéia de liberdade admitida por Hume é a de constrangimento. Mas ele vai mais
adiante nessa questão. Segundo esse autor a causalidade das ações é condição sine
42

quo non para a imputabilidade moral. Admitir que as ações não são causadas
impossibilitaria o julgamento moral. Excluindo-se as causas todas as ações esta-
riam, por assim dizer, ao sabor do acaso, não podendo ser da responsabilidade de
ninguém. É somente quando vinculamos as ações à alguma causa, que reside no
caráter das pessoas, que podemos condená-las ou não, moralmente falando.

As ações são, por sua própria natureza, temporais e perecíveis e se não


procedem de alguma causa que reside no caráter ou disposição da pessoa
que as realizou não podem redundar em sua honra, se são boas, nem em
sua infância, se são más. Admitamos agora que as próprias ações podem
ser condenáveis e contrárias a todas as regras da moral e da religião, mas
que a p essoa não é responsável por elas. Como as ações não procedem de
algo que seja durável e constante, e que não deixam atrás de si nada
desta natureza, é im possível que por causa delas a pessoa possa tornar-se
objeto de castigo ou vingança. Assim , de acordo com o princípio que
nega a necessidade e, por conseguinte, as causas, um homem é tão puro e
im aculado depois de ter cometido o mais horrendo crime como no
primeiro momento de seu nascimento, já que seu caráter não se relaciona
com suas ações, pois elas não derivam dele, e a perversidade de umas
não serve para provar a depravação do outro. (lEH , p. 102)

Realmente, os homens não são acusados por ações que tenham execu­
tado casualmente ou sem intenção. Até juridicamente é sempre uma circunstância
atenuante quando há suficientes elementos que indiquem que assim se deram as
ações. Quando os homens agem com pressa e sem premeditação, são menos conde­
nados, pela simples razão de que um temperamento precipitado, “embora dotado de
uma causa ou princípio constante no espírito, atua apenas por intervalo e não cor­
rompe todo o caráter” (lEH, p. 103).

Por outro lado, o arrependimento purifica todos os crimes, se acom ­


panhado de uma reforma da vida e dos costum es. Como explicar isto?
Apenas declarando que as ações tornam alguém crim inoso quando elas
constituem provas da existência de princípios crim inais, em seu e sp í­
rito; quando, por uma alteração destes princípios, deixam de ser provas
con clu d en tes, igualm ente deixam de ser crim inais. Mas, excetuando a
doutrina da necessidade, elas nunca foram provas concludentes e, por
con segu in te, nunca foram crim inais. (lEH , p. 103)

Hume finaliza seu projeto conciliador afirmando que é justamente


aceitando que a liberdade só pode ser concebida da forma como ele fez, ou seja, a
liberdade de ir e vir, de agir ou não agir sem coerção externa, que o julgamento
moral tem cabimento. Assim, nós julgamos moralmente alguém porque acredita­
mos que suas ações decorrem de seu caráter, paixões, etc. Tirando essas causas
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não podemos vincular as ações ao sujeito e, como conseqüência, julgá-lo. Em con­


sonância com isso, esse mesmo sujeito só pode ser julgado moralmente quando
percebermos que não sofreu qualquer coerção externa que o levasse a cometer
uma ação imoral, ou a abster-se de realizar uma determinada ação que redundaria
numa censura caso não a fizesse.

Será igualm ente fácil provar, usando os m esm os argum entos, que a
liberdade, segundo a definição acima m encionada e com a qual todos os
homens concordam, é também essen cia l à moralidade e que nenhuma
ação humana na qual não se encontra presente é su scetív el de q u ali­
dades morais, ou possa ser objeto de aprovação ou desaprovação. P ois,
com o as ações são os objetos de n osso sentim ento moral, unicam ente
na medida em que são in d ícios, de p aixões e a feiçõ es, é im p o ssív e l que
elas possam ocasionar o elogio ou a crítica, se elas não procedem
destes princípios e se elas derivam inteiram ente de uma intervenção
exterior. (lEH , p. 103)

Uma conseqüência direta das concepções de Hume acerca da liberdade e


da necessidade é que no julgamento moral a liberdade de restrição deve ser levada
em consideração enquanto aspecto avaliativo da razão. E quando a falta dela é
identificada nas ações, pode servir de base para um perdão moral; porém, sem
eliminar o determinismo causai. Dessa forma, quando alguém não realiza uma
determinada ação e a censuramos por isso, é porque supomos que tal pessoa
deveria ter sido influenciada pelo motivo próprio da ação, e consideramos vicioso
que o tenha desconsiderado: “Se, após investigarmos melhor a situação, desco­
brirmos que o motivo virtuoso estava em seu coração, embora sua operação tenha
sido impedida por alguma situação que nos era desconhecida, retiramos nossa
censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de
fato realizado a ação que dela exigíamos” (T, p. 518).

Com relação à liberdade de indiferença, apesar de destruir toda


possibilidade de imputação moral, a qual está ligada diretamente a um elemento
do caráter, significa dizer que ela não pode, ou não deve, entrar na avaliação para
a imputabilidade moral? Perceba-se que o motivo que impede a realização de uma
ação pode ser interno, pois uma “crise de gota produz uma longa série de paixões,
como pesar, esperança, medo; mas não deriva imediatamente de nenhum afeto ou
idéia” (T, p. 310). Mas isso corrobora a idéia de buscar no caráter, paixões e
sentimentos, um outro fator determinante que tenha impedido a realização da ação
44

pelo agente.

Sánchez Vázquez afirma que, “em termos gerais, o homem só pode ser
responsável moralmente pelos atos cuja natureza conhece e cujas conseqüências
pode prever, assim como por aqueles que, por se realizarem na ausência de uma
coação extrema, estão sob seu domínio e controle.”'^. Como exemplos de coação
irresistível cita a neurose, cleptomania ou desajuste sexual, e lança a pergunta se
poderíamos responsabilizar moralmente um neurótico que mata num momento de
crise aguda, um desajustado sexualmente que lança palavras obscenas a uma
mulher por razões inconscientes, ou um cleptomaníaco que rouba por um impulso
irresistível. Nesses casos, diz Vázquez, “a coação interna é tão forte que o sujeito
não pode agir de maneira diferente daquela como operou, e não tendo realizado o
que livre e conscientemente teria querido”’'*.

Tomamos esses exemplos de Vázquez para mostrar que em qualquer


situação em que se use o argumento da liberdade como fator decisivo, ou partici­
pante, da avaliação moral, pressupõe-se sempre o determinismo na base. Contudo,
não são argumentos, ou exemplos, tão passíveis de fácil aceitação. Um clepto­
maníaco que rouba minha caneta com certeza pode receber meu perdão moral; mas
0 que rouba as parcas iguarias de uma mãe que contava com elas para alimentar
seus filhos não se pode desculpar facilmente. Será que realmente dispensamos do
ônus moral um neurótico que mata alguém (uma inocente criança, por exemplo)
como afirma Vázquez? Da mesma forma, desculpamos tão facilmente um desajus­
tado sexualmente que estupra uma adolescente por razões inconscientes? Parece
que, embora a razão possa apresentar um motivo para se desculpar tais agentes, o
dolo nesses casos é tão grande que o foro passa a ser nossos sentimentos. Os
estupradores, por exemplo, mesmo sendo protegidos pelo direito de defesa, são
tão condenados moralmente que não são raros os casos em que a sociedade mani­
festa o desejo de fazer justiça com as próprias mãos; e essa censura é tão grande
que até mesmo outros criminosos reclamam e, em alguns casos, põem em prática a

VÁZQUEZ, Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 116.
VÁZQUEZ, Ibidem, p. 117.
45

sentença proferida pela sociedade, realizando-a nas próprias prisões. Resumindo:


quando a ausência de liberdade é colocada como desculpa para a absolvição
moral, quer seja a de deslocamento ou de indiferença, pode-se sempre encontrar
um fator que operou como causa das ações. O que corrobora a teoria de Hume.
Ayer, mesmo discordando em certa medida do filósofo, percebeu bem a questão
que explicamos acima. Diz ele;

Quanto à questão do livre arbítrio, creio que Hume tem razão, exceto no que
respeita o modo como defende que a sua concepção de liberdade ‘é aceite por toda
gente’. Concordar-se-ia, penso eu, que o filósofo estabeleceu uma condição
necessária de liberdade. Duvido, contudo, que na generalidade seja considerada
suficiente. Parece-me, antes, que não só os nossos juízos morais mas também muito
de nossos sentimentos sobre nós próprios e sobre as outras pessoas, como os
sentimentos de orgulho e de gratidão, são, em parte, guiados por uma noção de
mérito que requer da nossa vontade de ser livre mais força do que a prevista pela
definição de Hume. Atribuímo-nos, de modo confuso, a nós próprios e aos outros
aquilo que algumas vezes já foi descrito como um poder de autodeterminação. O
problema consiste no fato de, ainda que existisse algo que correspondesse a esta
descrição, não haver possibilidade de escapar ao dilema de Hume. Ou o exercício
desse poder se adaptaria a um padrão causai ou ficaria entregue ao acaso e, em
nenhum dos casos, parece justificar uma imputação de responsabilidade.'^

AYER, A. J. Hume Mestres do Passado. Oxford: Oxford University Press, 1981. p. 151.
CAPÍTULO II

2. A TEORIA MORAL DE HUME

Veremos agora a teoria moral de Hume, onde ficará bastante claro seu
vínculo com a teoria da ação, dando uma seqüência lógica à nossa apresentação.
Neste capítulo, que é o objeto central de nossa dissertação, tentaremos explicitar
os principais pontos acerca do papel da razão e do sentimento nos julgamentos
morais.

2.1 QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA A MORAL

No Tratado, um dos argumentos de Hume para provar que a razão não


fundamenta a moral, retoma a relação paixão-razão. Como a moral produz e
impede ações, além de despertar as paixões, e como a razão, “por si só, é
inteiramente impotente quanto a esse aspecto” (T, p. 497), segue-se que as regras
da moral não são fundadas na razão. O argumento pode ser composto no seguinte
sorite:

1^ Prem issa; “Um princípio ativo nunca pode estar fundado em um


princípio inativo” (T, p. 497).

2^ Prem issa; A moral é um princípio ativo (pois “produz e impede


ações”).

3^ Prem issa; A razão não é um princípio ativo (pois não produz ação
alguma).

Conclusão; A razão não pode fundar a moral.


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O argumento anterior tratava da relação razãó-paixão num sentido mais


propriamente causai; o que segue agora leva em conta o caráter funcional da razão
(conforme às definições que foram dadas de racionalidade), e desconsidera as
paixões, volições e ações como objetos dela, ou seja, como não suscetíveis de um
julgamento acerca da verdade. Dessa forma, seguindo a mesma linha de racio­
cínio, se a razão não se refere às paixões, volições e ações no que concerne ao
certo ou errado, também não se referirá à moralidade, não podendo, conseqüente­
mente, apontar qual ação é certa ou errada. Vejamos o argumento seguinte.

V Prem issa: “A razão é a descoberta da verdade ou falsidade”


(T, p. 498).

2^ Prem issa; “A verdade pode ser de dois tipos, consistindo quer na


descoberta das proporções das idéias consideradas enquanto tais, quer na confor­
midade de nossas idéias dos objetos com a existência real destes” (T, p. 484).

3^* Prem issa; “Uma paixão é uma existência original ou, se quisermos,
uma modificação de existência; não contém nenhuma qualidade representativa que a
torne cópia*^ de outra existência ou modificação de existência” (T, p. 451).

4^ Prem issa: “Volições e ações [...] são fatos e realidades originais,


completas em si mesmas” ^’ (T, p. 498).

Conclusão; “As paixões, volições e ações não são objetos da razão, no


sentido de que é impossível declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou
conformes à razão” (T, p. 498).

Podemos resumir os dois argumentos da seguinte forma. Ambos têm


como base a noção de que a moralidade possui uma ligação direta com as paixões.
Estas originam ações; a moral também. Como foi mostrado que a razão não
origina ação alguma, não pode fundar a moral. Caso admitíssemos que a razão
funda a moral, teríamos que admitir umá relação causai entre juízos morais e

Isto é, paixões não são idéias.


Também não são idéias.
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ações supostamente deles decorrentes. Da mesma forma, como a racionalidade


busca descobrir a verdade, e esta é formulada através de um acordo ou desacordo
das idéias em relação a outras idéias, ou das idéias em relação aos fatos aos quais
elas se referem, e como as “paixões, volições e ações, são incapazes de tal acordo
ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completas em si mes­
mas, e que não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações”
(T, p. 498), não há nenhuma verdade ou falsidade a ser descoberta, e, portanto, a
moral ultrapassa a esfera da razão. Numa palavra: é por não se relacionar com as
paixões e ações originalmente, que a operação da razão não pode ser causa
originária do comportamento moral. E “enquanto se admitir que a razão não tem
influência sobre nossas paixões ou ações, será inútil afirmar que a moralidade é
descoberta apenas por uma dedução racional” (T, p. 497).

Essa linha de argumentação

[...] prova diretam ente que as ações não extraem seu mérito de uma
conform idade com a razão, nem seu caráter censurável de uma
contrariedade em relação a ela; e prova a mesma verdade mais
indiretam ente ao nos mostrar que, com o a razão não pode impedir ou
produzir im ediatam ente uma ação, contradizendo-a ou aprovando-a,
tampouco pode ser a fonte da d istin ção entre o bem e o mal morais, os
quais constatam os que tem tal influência. As ações podem ser
louváveis ou con d en áveis, mas não podem ser racionais ou irracionais.
Louvável ou con d en ável, portanto, não é a mesma coisa que irracional
ou racional. As d istin çõ es morais, portanto, não são frutos da razão. A
razão é totalm ente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio
ativo com o a co n sciên cia ou senso moral. (T, p. 498)

Uma possível objeção que se poderia levantar quanto ao argumento de


Hume de que a vontade ou a ação não são contrárias à razão, não sendo, pois,
objetos dela, seria defender, e de fato é verdade, que uma ação pode causar um
juízo ou pode ser obliquamente causada por um juízo: sendo este contrário à
razão, a paixão que originou a ação também o seria. Como conseqüência, já que
Hume defendeu que as paixões são a origem primeira da moral, a razão também
poderia ter esse papel. Afinal, o papel da razão consiste em informar os meios
adequados para a satisfação de certa paixão, e, também, apontar quando uma paixão
está apoiada em um falso juízo, neste caso fazendo uma apreciação acerca da
falsidade ou verdade. Por conta dessas atividades relacionadas às paixões, poder-se-
49

ia reclamar uma relação mais próxima entre razão e moral. Mas aqui há um
equívoco que Hume esclarece. Vejamos qual.

Uma pessoa, ao ser afetada por uma paixão, pode supor que determinado
objeto poderá lhe trazer prazer, por exemplo, desejar alimentar-se de uma fruta, que
ao final produzirá um efeito desagradável. Essa mesma pessoa poderá escolher
meios inadequados para atingir esse objeto, por exemplo, tentar apanhá-la expondo-
se a quedas e ferimentos. Portanto, cometeu dois erros através de juízos falsos que,
poder-se-ia pensar, afetam as ações e as paixões a elas conectadas, tornando-as
contrárias à razão. Sendo assim, ao descobrir-se esses falsos juízos em que as
paixões se apoiaram, o agente sofreria uma censura. Ou seja, por as paixões
estarem fundadas em um falso juízo, seriam ditas contrárias à razão. Mas o que
descarta um vínculo com a moral é que esses erros não implicam censura moral
alguma.

Mas ainda que se reconheça tal coisa, é fácil observar que esses erros
estão longe de ser a fonte de toda im oralidade, tanto mais que costum am
ser muito inocentes, não trazendo nenhuma espécie de culpabilidade à
p essoa que teve o infortúnio de os com eter. Não vão além de um erro de
fato, que em geral os m oralistas não consideram como um crim e, porque
é inteiramente involuntário. Quando me engano quanto ao poder que
certos objetos teriam de produzir dor ou prazer, ou se não con h eço os
m eios adequados de satisfazer meus desejos, sou antes digno de pena
que de censura. Ninguém jam ais pode considerar tais erros com o um
d efeito em meu caráter. (T, p. 499 -5 0 0 )

Nota-se que o que Hume quer evitar é qualquer tentativa de vincular o


princípio da moralidade a um acordo ou desacordo com a razão. Se uma paixão
que, diga-se de passagem, determina a vontade, conduz o agente a uma ação mal
avaliada pelo sujeito, quer na escolha do objeto de prazer, quer nos meios corretos
para obtê-lo, não pode ser moralmente censurável por falta dessa anuência da
razão. Se assim o fosse.

elas teriam de ocorrer toda vez que os formássemos; não haveria


nenhuma diferença entre a questão dizer respeito a uma maçã ou a um
reino, ou entre o erro poder ou não ter sido evitado. Como se está
supondo que a própria essência da moralidade consiste em um acordo
ou em um desacordo com a razão, as outras circunstâncias seriam
inteiram ente arbitrárias, jam ais podendo conferir a uma ação o caráter
de virtuosa ou viciosa, ou privá-la desse caráter. A isso podem os
acrescentar que, como esse acordo ou desacordo não admite graus,
todas as virtudes e v ício s seriam, obviam ente, iguais. (T, p. 500)
50

Há um outro argumento que poderia ser utilizado para reivindicar uma


ligação entre razão e moral, a saber, acerca daqueles casos em que nossas ações
provocam um falso juízo nas outras pessoas. Como um falso juízo liga-se, por
categoria, à razão, seguir-se-ia que, se esses falsos juízos implicassem numa
censura moral, ter-se-ia que aceitar um nexo forte entre razão e moral. Uma
paixão e conseqüentemente uma ação podem provocar um falso juízo, isso é fato.
O exemplo de Hume é aquele em que alguém vê um comportamento lascivo entre
eu e minha vizinha, e pensa ser esta minha esposa. Mas, nos diz Hume, “não
consigo ver nisso razão para se afirmar que a tendência a causar um erro seja a
fonte primeira, ou princípio originário, de toda a imoralidade” (T, p. 501).

Sem dúvida, não é pelo fato de uma ação causar um falso juízo à outra
pessoa que o agente sofre reprovação moral; não é por esse desacordo com a
verdade - objeto de investigação da razão - que sofre penalidade moral. Ademais,
se o vício fosse a conseqüência de uma tendência na ação a produzir um
determinado erro, seguir-se-ia que, como os objetos inanimados, muitas vezes,
nos levam a conceber falsos juízos, deveriam sofrer uma censura moral; coisa que
não acontece. Não vale alegar que os objetos inanimados não possuem liberdade
ou escolha, já que, se estas não “são necessárias para que uma ação produza em
nós uma conclusão errônea, não podem ser, sob nenhum aspecto, essenciais à
moralidade” (T, p. 501). Na verdade, Hume invoca uma questão de coerência, qual
seja, se a tendência a causar erro pudesse ser a origem da desaprovação moral,
essa tendência viria sempre acompanhada de desaprovação moral.

Vejamos dois aspectos importantes citados em nota por Hume; “ [...], se


eu tivesse tomado a precaução de fechar as janelas enquanto me entregava a tais
liberdades com a esposa de meu vizinho, não teria tido a menor tendência a
produzir uma falsa conclusão” (T, p. 501). Além disso, nos casos em que uma
ação fosse realizada sem levar a nenhum tipo de falso juízo, não poderia ser
condenada moralmente, se seguíssemos essa forma de pensar, muito embora tal
ação redundasse num crime. Assim ocorreria no caso de um ladrão que ao adentrar
numa casa tomasse todo o cuidado de não ser percebido, mas que se fosse, não
poderia ser condenado moralmente, já que ninguém, “ao vê-lo nessa situação, iria
tomá-lo por quem ele não é realmente” (T, p. 502). Em suma, esses argumentos do
51

filósofo, buscam recusar a idéia de que os falsos juízos gerados por nossas ações
sejam a fonte da imoralidade, e isso por se oporem à razão.

Pode-se, ainda, numa tentativa de vincular a moral à razão, argumentar


que erros promovidos por falsos juízos, embora não sendo crimes por se tratarem de
erros de fato, podem ser assim qualificados em vários casos, por se tratarem,
amiúde, de erros de direito. Assim a moral seria reduzida ou fundada no direito, ou
seja, seria “ [...] afirmar que a moralidade consiste nas relações entre as ações e a
regra do direito, e essas ações são denominadas boas ou más conforme concordem
ou discordem dessa regra” (IPM, p. 178). Mas argumentar desse jeito é incorrer em
petição de princípio; se as regras do direito balizam a moral, qual o fundamento das
regras do direito? A resposta a essa pergunta baseia-se em algum senso moral e,
portanto, é a moral que é anterior ao direito, é ela que está na condição de ser
fundamento do direito.

Se se afirmasse que, embora um erro de fato não seja um crime, um erro


de direito freqüentemente o é, e que este último pode ser a fonte da
imoralidade, eu responderia que é im possível que um tal erro possa jamais
ser a fonte original da imoralidade, pois supõe a existência real de uma
distinção moral, independentemente desses juízos. Um erro de direito,
portanto, pode se tornar uma espécie de imoralidade, mas apenas
secundária, fundada em alguma outra imoralidade que lhe seja anterior.
(T, p. 500)

Passemos agora a analisar a atuação da razão quer no campo dos fatos,


quer no campo das relações de idéias, a fim de identificarmos se, após o escru­
tínio dessas duas áreas, ela pode constituir o fundamento daquilo que chamamos
moralidade. Comecemos pelas relações de idéias.

No Tratado, Hume estabeleceu os sete tipos de relações filosóficas:


“semelhança, relações de tempo e espaço, proporção de quantidade ou niímero,
graus de qualidade, contrariedade e causalidade” (T, p. 97). Para estas relações
Hume estabeleceu a seguinte divisão: “as que dependem inteiramente das idéias
comparadas e as que podem se transformar sem que haja nenhuma transformação
nas idéias” (T, p. 97). Concernente à primeira classe, “é partindo da idéia de um
triângulo que descobrimos a relação de igualdade que existe em seus três ângulos
e dois retos; e essa relação fica invariável enquanto nossa idéia permanece a
52

mesma” (T, p. 97). Com respeito à segunda classe, “as relações de contigüidade e
distância entre dois objetos podem se alterar por uma mera alteração de seus
lugares sem nenhuma mudança nos próprios objetos ou em suas idéias; e o lugar
depende de centenas de acidentes diferentes, que não podem ser previstos pela
mente” (T, p. 97).

Que não podem ser previstos pela mente, significa que não há nenhuma
necessidade entre os fatos e as idéias que a eles se referem. Temos precisamente
em nossas mentes o que vem a ser a idéia de contigüidade e distância; contudo,
elas nada podem informar acerca de como essa contigüidade ou distância
ocorrerão na experiência. O mesmo se dá com a causalidade, pois mesmo que
tenhamos em nossas mentes a sua idéia precisa, não podemos garantir necessa­
riamente e, portanto, demonstrativamente, quais efeitos surgirão da mesma causa
que se nos apresentou, num passado remoto ou não (vimos as razões disso no
primeiro capítulo). Segue-se disso que, “dessas sete relações filosóficas, apenas
quatro, por dependerem unicamente das idéias, podem ser objeto de conhecimento
e certeza. Essas quatro relações são semelhança, contrariedade, graus de qualidade
e proporções de quantidade ou número” (T, p. 98). Dessas quatro relações, três
pertencem muito mais ao campo da intuição que ao da demonstração, são elas;
semelhança, contrariedade e grau de qualidade. A título de ilustração:

Quando dois objetos ou mais se assem elham , a sem elhança lo g o salta


aos olhos, ou, antes, à m ente, e quase nunca requer um novo exam e. O
mesmo se dá com a contrariedade e com os graus de uma qualidade.
Ninguém jamais poderia duvidar que a existência e a não existência
destróem -se uma à outra, sendo absolutam ente incom p atíveis e con ­
trárias e, embora seja im p ossível formar um ju ízo exato acerca dos
graus de uma qualidade qualquer, com o cor, saber, calor ou frio,
quando a diferença entre esses graus é muito pequena, é fá cil decidir
qual deles é superior ou inferior ao outro quando sua diferença é
considerável. E tal d ecisão é sempre tomada à prim eira vista, sem
necessitar de nenhuma investigação ou raciocínio. (T, p. 98)

Apresentadas essas noções básicas, podemos afirmar que o argumento


de Hume opera de duas formas: 1) a razão, ao identificar ou deparar-se com as
relações, não consegue extrair delas o senso moral; 2) admitindo-se que a
moralidade reside nas próprias relações, chega-se a grandes absurdos (essa
53

segunda forma de argumentar, aproximando-se muito do método de redução ao


absurdo). Vamos aos argumentos.

Para a moralidade pertencer ao campo da certeza, deveríamos reduzi-la


às quatro relações possíveis de um conhecimento seguro; e onde essas relações
fossem identificadas, o vício ou a virtude deveriam acompanhá-las. Pois nas
deliberações morais, após estarmos familiarizados com todos os objetos e relações
que as envolvem, “nenhum novo fato deve ser averiguado, nenhuma nova relação
precisa ser descoberta” (IPM, p. 179).^^ Mas, admitindo-se que assim ocorra, se “a
própria essência da moralidade repousar nas relações, e como todas essas relações
são aplicáveis não apenas a objetos irracionais, mas também a objetos inanimados,
segué-se que mesmo tais objetos deveriam ser suscetíveis de mérito e demérito”
(T, p. 503). Ou seja, chegaríamos a algo absurdo e, ao mesmo tempo, não empí­
rico, pois não censuramos tais objetos.

Vejamos como o filósofo exemplifica seus argumentos. Tomemos a


relação de semelhança para analisarmos se, no momento da sua identificação, o
vício a acompanha. Um carvalho ou um olmo, quando deixa cair suas sementes,
produz logo abaixo de si um broto que, crescendo gradativamente, acaba por
encobrir e destruir a árvore mãe, havendo, nesse caso, dois vícios; ingratidão e
assassinato. Pois uma “árvore jovem que sobrepuja e destrói aquela que lhe deu
origem esta exatamente na mesma situação de Nero ao matar Agripina; e se a
moralidade consistisse simplesmente em relações, seria sem dúvida igualmente
criminosa” (IPM, p. 183). Outro exemplo onde a relação é ainda maior, é o caso
do incesto, que ocorre tanto na espécie humana quanto na animal; mas nem por
isso julgamos os animais viciosos.

Não cabe, para o primeiro exemplo, argumentar-se que falta uma esco­
lha ou vontade; isso nada altera a questão em si, pois que a vontade^® não cria

Quanto ao campo das idéias, somente: “Alguém que raciocina teoricamente sobre triângulos e círculos
considera as várias relações dadas e conhecidas entre as partes dessa figura e infere daí alguma relação
desconhecida que é dependente das primeiras” (IPM, p. 179).
Não se pode realmente dizer que o ponto que decide a questão é a vontade, já que no segundo exemplo não se
pode negar que haja vontade, no sentido de Hume, nos animais. Além disso, se a vontade não for livre, tanto faz
dizer que “é a vontade ou escolha que determina um homem a matar seu pai; e são as leis da matéria e do
movimento que determinam o broto a destruir o carvalho que o gerou” (T, p. 507).
54

nenhuma relação diferente: “as mesmas relações têm causas diferentes; mas as
relações ainda são as mesmas. E como sua descoberta não se faz acompanhar de
uma noção de imoralidade em ambos os casos, segue-se que tal noção não surge
dessa descoberta” (T, p. 507). Para o segundo exemplo, não procede o argumento
de que essa ação é inocente nos animais porque lhes falta razão suficiente para
descobrir sua torpeza, “pois antes que a razão possa perceber essa torpeza, a
torpeza tem de existir; por conseguinte, ela é independente das decisões de nossa
razão, sendo mais propriamente seu objeto que seu efeito” (T, p. 507).

Enfim, defender essas idéias é assumir o ônus de que todo anim al tem
de ser suscetível, na mesma medida que os homens, das mesmas virtudes e vícios
que nos fazem condenar ou enaltecer os seres humanos, pois que eles são
também dotados, da mesma forma que nós somos, de apetites, sentidos e von­
tade, e a diferença consistiria em “que nossa razão superior pode servir para des­
cobrir o víçio ou a virtude, aumentando assim a censura e o elogio” (T, p. 507).
E o fato de não possuírem uma razão em grau comparável ao dos homens, pode
apenas impedi-los “de perceber os deveres e obrigações da moral, mas nunca
poderia impedir esses deveres de existir, uma vez que, para serem percebidos,
eles têm de existir previamente. A razão deve encontrá-los, mas nunca produzi-
los” (T, p. 508).

Analisemos um terceiro exemplo envolvendo a relação de


contrariedade. A ingratidão pode ser representada pela idéia de alguém que presta,
de boa vontade, bons serviços a outrem, e recebe em troca hostilidade e
indiferença, além de desserviço ou omissão. Deixemos que Hume nos explique por
que não é só na descoberta da relação de contrariedade que o vício se constitui.

No exem plo acima apresentado, vejo inicialm ente a boa vontade e os


préstim os de uma pessoa, e vejo em seguida hostilid ad e e os desser-
viços de outra. Há, pois, entre eles, uma relação de contrariedade.
Residirá nessa relação aquilo que há de con d enável? Suponharse porém
que alguém demonstrou hostilidade contra mim, ou realizou atos que
me prejudicaram, e que eu em contrapartida fiq u ei indiferente a essa
pessoa ou prestei-lhe um bom serviço. Há aqui a mesma relação de
contrariedade, mas meu com portamento, em m uitas ocasiões d esse tipo,
é altamente elogiável. (IPM, p. 177)
55

Com os exemplos citados, Hume torna ininteligível, ou insustentável, a


idéia de que a moralidade consiste em relações que são objetos de ciência. Mas
resta ainda a possibilidade de ligar a moral à razão, defendendo-se que ela é uma
questão de fato que a racionalidade descobre. Ou seja, assim como se exigiu da
razão que fundamentasse o princípio da causalidade (a produção do efeito pela
causa, os poderes secretos da causa), se exige aqui que ela identifique nas ações
condenadas pelos homens o fato preciso que as qualifiquem como vício. Para
esclarecer este ponto, recuperemos o tratamento dado à questão da causalidade.
Da mesma forma como naquela questão foi solicitada a impressão que originaria a
idéia de causação, pede-se, agora, a impressão que origina ou permite a avaliação
moral. Mas tal empresa malogra.

Tom em os qualquer ação reconhecidam ente viciosa. O hom icídio


voluntário, por exem p lo. Exam inem o-la sob todos os pontos de vista, e
vejam os se podem os encontrar o fato, ou existência real, que chamamos
de v íc io . Como quer que a tom em os, encontramos som ente certas p ai­
xões, m otivos, v o liç õ e s e pensam entos. Não há nenhuma outra questão
de fato neste caso. O v ício nos escapa por com pleto, enquanto co n sid e­
ramos o objeto. N ão o encontramos até dirigim os nossa reflexão para
nosso próprio íntim o e darmos com um sentimento de desaprovação,
que se forma em nós contra essa ação. Aqui há um fato, mais ele é
objeto do sentim ento, não da razão. (T, p. 508)

Antes de passarmos adiante devemos tentar responder a uma acusação


bastante séria que D.D. Rafhael faz a Hume. Em seu artigo "‘’Hume's Critique o f
Ethical Racionalísm '\ ao falar que para os racionalistas a razão tem uma função
prática, além da capacidade de fazer induções e deduções, diz ele que Hume nega
tal função à razão, porém, sem apresentar nenhum argumento. Rafhael:

Ora, afirmar simplesmente que o impulso não surge da razão é uma


petição de princípio. Hume assume que as únicas funções da razão são a
dedução e a indução. O racionalista, seguindo Aristóteles, diz que há
também uma função prática da razão. Hume o nega, mas não nos deu
qualquer argumento para preferirmos sua posição àquela de seus
oponentes.”^®

Não podemos aceitar a acusação de Rafhael. Hume não negou à razão


um caráter prático (exceto no sentido de Kant), já que ela participa da ação
orientando as paixões na melhor maneira de sua satisfação. Hume negou apenas

20
RAFHAEL, D. D. Hume and the Enlightenment. Edimburgo; Edinburgh University Press, 1975. p. 22.
56

que a razão origine as ações, e apresentou, sim, como mostramos, vários e bons
argumentos, podendo ser acusado apenas de que tais argumentos não são
suficientes para justificar que a razão não tem, no âmbito da ação, uma
participação fundadora. Realmente, não há uma prova cabal nos argumentos de
Hume de que a razão não origine ação alguma, ou até mesmo de que ela não faça
frente às paixões no comando das ações. Pois como não se pode fazer um raio-x
da relação paixão-razão-ação, não podemos atestar, decididamente, que, em última
instância, a razão, mesmo que minimamente, não participe da origem das ações^\
Ora, mas nem tampouco o pode fazer a doutrina contrária. Hume não é um
anatomista nem muito menos um espírita; ele trabalha com as percepções da
mente - com a experiência naquilo que se pode extrair dela. Portanto, valem para
ele argumentos extraídos da observação. Vamos passar em revista os argumentos
de Hume, a fim de mostrarmos que eles têm uma seqüência na forma como aqui
apresentamos.

O primeiro argumento de Hume refere-se à causalidade, pois como este


princípio, que nos faz crer em objetos que a experiência ainda não nos mostrou e,
como conseqüência, nos leva a agir, não tem seu fundamento amparado na razão,
há aqui, sem dúvida, um bom argumento para se propor uma desconfiança quanto
ao poder da razão de originar ações. Resta apenas a quem acha que esse não é um
argumento, mostrar que a causalidade tem sua fundação na razão. Um outro
argumento apresentado por Hume, seguindo a esteira da causalidade, foi aquele

Essa longa passagem mostra que Hume não nega à razão um caráter prático, ao mesmo tempo em que sabe
que a investigação pode atingir apenas a crosta da questão: “Antes de deixarmos este tema da vontade, talvez não
seja inapropriado resumir, em poucas palavras, tudo o que foi dito a seu respeito, a fim de apresentar o conjunto
mais distintamente ao leitor. Aquilo que comumente entendemos por paixão é uma emoção violenta e sensível da
mente, que ocorre quando se apresenta um bem ou um mal, ou qualquer objeto que, pela formação original de
nossas faculdades, seja propício a despertar um apetite. Com a palavra razão referimo-nos a afetos exatamente da
mesma espécie que os anteriores, mas que operam mais calmamente, sem causar desordem no temperamento;
essa tranqüilidade faz com que nos enganemos a seu respeito, vendo-os exclusivamente como conclusões de
nossas faculdades intelectuais. Tanto as causas como os efeitos dessas paixões, violentas e calmas, são bastante
variáveis, dependendo, em grande parte, do temperamento e da disposição peculiar de cada indivíduo. Falando
de maneira geral, as paixões violentas exercem uma influência mais poderosa sobre a vontade; mas constatamos
freqüentemente que as calmas, quando corroboradas pela reflexão e auxiliadas pela resolução, são capazes de
controlá-las em seus movimentos mais impetuosos. O que toma tudo isso mais incerto é que uma paixão calma
pode facilmente se tomar violenta, seja por uma mudança no humor da pessoa ou na situação e nas
circunstâncias que envolvem o objeto, seja por extrair força de uma paixão concomitante, pelo costume, ou por
excitar a imaginação. De tudo isso, podemos concluir que é esse combate entre paixão e razão, como é chamado,
que diversifica a vida humana e toma os homens tão diferentes, não apenas uns dos outros, mas também de si
mesmos em momentos diferentes. A filosofia pode explicar apenas alguns dos maiores e mais sensíveis eventos
dessa guerra; mas tem de abrir mão de todas as revoltas menores e mais deUcadas, por dependerem de princípios
demasiadamente sutis e diminutos para sua compreensão” (T, p. 473-474).
57

que impugnou a noção de que a vontade é uma espécie de causa, enquanto objeto
de discernimento da razão, pois vimos que tudo que a experiência nos fornece
apresenta apenas uma conjunção entre ela e nossas ações. Aduzindo a isso o fato
de Hume ter mostrado que seu suposto poder não é explicado pela razão quando
analisamos a relação corpo-mente.

Nesses dois argumentos salta aos olhos o seguinte aspecto; como pode a
razão ter um poder de gerar ações, se não consegue justificar um princípio e uma
faculdade que se liguem diretamente a elas? E não adianta dizer que a razão,
embora não os fundamente, tem uma relação causai com a vontade tal como para
Kant, pois aqui se esbarra na questão que o próprio princípio da causalidade trás
em seu bojo, a saber, de qual impressão deriva tal idéia? Ou, como chegamos a
este conhecimento? Ou melhor, como pode a razão justificar-se como causa da
vontade? É nesse ponto que Hume apresenta o seu argumento para justificar que a
razão não passa de uma veleidade, ou fraca paixão. Pois vimos que a relação de
contigüidade opera diretamente sobre as paixões tornando-as fortes ou fracas
conforme a distância em que estiverem de seu objeto de relação, levando as
decisões da “razão” a tombarem quando a labareda da paixão fica forte com a
proximidade de seu objeto. Além de ter argumentado que as decisões que operam
sobre a vontade são decorrentes de um conflito entre paixões (violentas contra
fracas), onde uma delas sobrepuja a outra. Acrescente-se, também, que a
experiência contraria a soberba humana, já que as ações humanas são explicadas
sempre com base em alguma paixão.

Mas, talvez, o argumento mais importante de Hume diz respeito ao


próprio conceito de razão experimental que expusemos acima. Se a razão quer ter
uma participação na origem das ações, como pode ser ela mesma conseqüência da
experiência, já que a regularidade das ações engendra uma crença que possibilita
um raciocínio causai? Como esclarecemos, a razão experimental é adestrada pela
experiência; e é um sentimento que engendra o raciocínio causai. Isso põe os afe­
tos numa relação de anterioridade em relação à razão. Em suma: precisamos
primeiro sentir para depois agirmos e raciocinarmos. Enfim, há argumentos apre­
sentados por Hume; portanto, não podemos concordar com a crítica de Rafhael.
58

Indo adiante, um outro golpe que Hume dá naquelas pretensões de


fundamentar a moral na razão é quando faz uma crítica aos sistemas morais; seus
autores sempre acabam passando de proposições do tipo É e NÃO É para as do
tipo, DEVE e NÃO DEVE (ou seja, saem de um ponto de vista descritivo - e x p li­
cativo, para outro, normativo ou prescritivo). A crítica aqui é profunda. Como foi
mostrado, Hume estabeleceu as relações que se aplicam às nossas ações, paixões e
volições, e foi categórico ao dizer que “caso se afirme que o senso da moralidade
consiste na descoberta de alguma relação distinta dessas, e que nossa enumeração
não foi completa quando reduzimos todas as relações demonstrativas a quatro
tipos diferentes, não saberei o que responder enquanto alguém não tiver a bondade
de me apontar essa nova relação” (T, p. 504).

Como o DEVE ou NÃO DEVE expressa uma nova relação, deve-se,


pois, explicar como essa nova relação pode ser inferida de outras inteiramente
diferentes, já que aqui não estamos diante de relações matemáticas. Tomemos
como exemplo a relação de contrariedade expressa na ingratidão de um filho que
mata a própria mãe que lhe deu a vida. Não há diívida que essa ação é condenável,
e a razão dessa condenação reside num sentimento. Como, então, retirar desse fato
uma norma? Por exemplo: “não se deve matar as mães” . Se essa norma é
decorrente de uma inferência, quais são as premissas do suposto argumento?
Conclusão: “as ações podem ser louváveis ou condenáveis, mas não podem ser
racionais ou irracionais. Louvável ou condenável, portanto, não é a mesma coisa
que racional ou irracional” (T, p. 498).

De acordo com o que nos informa Adolfo Sánchez Vásquez, este argu­
mento atraiu grande interesse, e alimentou muitas discussões na comunidade
filosófica. Recebeu o nome de guilhotina de Hume, e depois passou a ser tratado
nos termos daquilo que ficou consagrado como falácia naturalista.

Este argumento é considerado tão demolidor que Max Black o chama de ‘a


guilhotina de Hume’. Tudo aquilo que pretende passar de um é a um deve
ser, como se passa de uma premissa para uma conclusão, terá n ecessa­
riamente de cair sob esta guilhotina. Duzentos anos mais tarde, G.E.
Moore vem reforçar o argumento de Hume com a sua ‘falácia naturalista’,
segundo a qual não se pode definir uma propriedade não natural, com o
59

o ‘bom’, por m eio de propriedades naturais; quer dizer, não se pode passar
logicamente do natural (o não ético) ao não natural (o ético).

Obviamente, o que Hume interdita é a possibilidade de se tratar a moral


de um ponto de vista dedutivo, pois percebe-se que a questão refere-se a um
argumento lógico. As normas morais, para nosso pensador, têm a ver com os
fatos, e sua validade implica, veremos na seqüência, a participação não só da
razão, que para ele, no âmbito ético, não é uma razão dedutiva. Ao mesmo tempo,
se atentarmos para a falácia naturalista, veremos que em Hume não há uma
naturalização do homem, no sentido de explicá-lo meramente a partir de sua
natureza física. A moral, explica Deleuze, não se reduz ao natural, embora não
recorra a um sobrenatural. ”Isso quer dizer que o mundo moral não se reduz a um
instinto moral [...]. O mundo moral afirma sua realidade quando a contradição se
dissipa efetivamente, quando a conversação é possível e substitui a violência,
quando a propriedade substitui a avidez

E ainda:

Todos os elem entos da m oralidade (sim patias) são dados naturalmente,


mas, por si m esm os,são im potentes para constituir um mundo moral. As
parcialidades, os in teresses particulares não podem se totalizar natu­
ralmente, p ois se excluem . [...] O problem a da moral é o esquem atism o,
isto é, do ato pelo qual os interesses naturais são referidos à categoria
p olítica do conjunto ou da totalidade, que não é dada na natureza.^'*

Mas, teria o próprio Hume sido alvo de sua guilhotina, ou cometido a


falácia naturalista? É o que parece afirmar Ernst Tugendhat. Ao falar sobre o
“bom” e o “mau” ele diz que “poder-se-ia dizer como Hume: bom, neste sentido é
o que todos os homens de fato preferem e nesta m edida aprovam; mau o que, de
modo correspondente, censuram”^^. E depois, explicita o conceito de falácia natu­
ralista e acusa o filósofo de tê-la cometido, e de que sua fundamentação da ética é
dogmática.

VÁSQUEZ, Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 250.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 34.
DELEUZE, Ibidem, p. 36.
TUGENDHAT, Emst. Lições Sobre Ética. Petrópolis, Rj: Editora Vozes, 1996. p. 57.
60

A proposta de Hume é boa até onde alcança, mas tem -se de fazer a ela
duas objeções: em primeiro lugar apresenta o que na ética foi chamado
falácia naturalista; na ética sim plesm ente constataríamos o que os
hom ens de fato aprovam, e tem -se de perceber diante disso que ju ízo s
sobre haver ju ízos morais são em píricos, mas que a pretensão dos
próprios ju ízos morais não é em pírica (cf.acim a primeira liçã o ). Ora,
isto é precisam ente negado por Hume, e ele nos faria refletir que não
tem os nenhuma outra via que não a naturalista, injustam ente
denominada de falácia. D eve-se, aliás, considerar que Hume som ente se
pôde dar por satisfeito com esta concepção, porque admitia que todos
os homens julgam moralmente de modo idêntico. Um con ceito de
moralidade que não deixe aberta a possibilidade de vários co n ceito s
morais tem, contudo, de parecer-nos hoje inaceitável.^®

A acusação feita ao escocês seria bastante irônica, já que, como vimos


com Sánchez, a falácia naturalista é de inspiração humeana. Quanto à primeira
acusação, tomando a falácia naturalista no sentido de um impedimento de se tratar
a m oral em termos dedutivos, obviamente que Hume não escorregou no seu
próprio tapete, pois sua posição, como vimos há pouco, nega que a moral possa
ser tratada em termos dedutivos. Agora, no sentido de Moore, não se podendo
definir uma propriedade não natural em termos naturais, tem-se que fazer algumas
colocações. Hume não pode ser acusado, peremptoriamente, de ter cometido esse
“modelo de falácia”, já que ele não define, se é que tem a pretensão de definir, o
bom em termos puramente naturalistas. O bom não é dado originalmente pela
natureza, nem a priori pela razão - mas requer a participação da razão no que se
refere às virtudes artificiais. O que impede de se vê-lo como tratando a questão
em termos puramente naturais. O que Hume constata empiricamente é que aquilo
que é bom produz prazer; mas isso é um princípio geral, e não uma leif^.

No livro III (Da Moral), Parte I (Da virtude e do vício em geral). Seção
II, Hume pergunta “Je que princípios derivam e como surgem na mente humana'"
a dor e o prazer que distinguem o bem e o mal morais. Nega que esses sentimentos
se produzam por uma qualidade original, já que o número de deveres morais sendo
bastante amplo, “é impossível que nossos instintos originais se estendam a cada

TUGENDHAT, Ibidem, p. 57.


Uma lei tem um caráter necessário. Por exemplo: “Toda gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer
moralmente, isto é como fundamento de uma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta [...]”
(KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, página 15). Diz ainda
Kant, na mesma obra, à página 58: “[...] A lei, porém, é o princípio objetivo, váüdo para todo ser racional,
princípio segundo o qual ele deve agir, quer dizer um imperativo”. Em Hume os princípios não têm um valor de
lei, pois não há uma necessidade lógica na causalidade. O próprio princípio da cópia tem sua exceção apontada
pelo próprio filósofo.
61

um deles e, desde nossa primeira infância, imprimam na niente humana toda essa mul­
tiplicidade de preceitos contidos nos mais completos sistemas éticos” (T, p. 513).
E diz que é “necessário reduzir o número desses impulsos primários e encontrar
alguns princípios mais gerais (grifo nosso) que fundamentem todas as noções
morais” (T, p. 513).

Depois, Hume analisa o conceito de natural com o intuito de averiguar


se esses princípios devem ser considerados naturais ou não. Natureza, segundo ele,
pode opor-se a milagre, e nesse caso “não apenas a distinção entre o vício e a vir­
tude é natural, mas também qualquer acontecimento que já tenha ocorrido no mun­
do, excetuando-se os milagres em que se fundamentam nossa religião” (T, p. 513).
Opõe-se também ao que é raro e inabitual, e nesse caso é difícil fazer uma dis­
tinção precisa de uma coisa e outra, pois “o que é freqüentemente e o que é raro
depende do número de casos em que observamos; e, como esse número pode
aumentar ou diminuir gradativamente, é impossível fixar os limites exatos entre
os dois” (T p. 513). Nesses dois sentidos apresentados, as noções de virtude e
vício podem ser consideradas naturais, pois não se tratam de um milagre, e, ao
mesmo tempo, são bastante freqüentes^®. Porém, há um outro sentido que impede
que o senso da virtude seja colocado plenamente no plano natural, muito embora
possa ser discutido; é o caso em que se opõe natural a artificial.

Mas também se pode opor n atu reza a a rtifício , além de a raro e


inabitual; e, nesse sentido, p od e-se questionar se as noções de virtude
são ou não naturais. E squecem os facilm ente que os desígnios, projetos
e objetivos dos homens são princípios tão n ecessários em sua operação
quanto o calor e frio, o úmido e o seco. Em v ez d isso, consideram os
que são livres e que cabem exclusivam ente a nós; por isso, é comum
estabelecerm os uma op osição entre ele e os dem ais princípios da
natureza [...]. T alvez mais adiante verem os que o senso de algumas
virtudes é artificial, e o de outras, natural. (T, p. 514)

Hume encerra a Seção afirmando que “em nenhum sentido, portanto, a


distinção entre o natural e o não natural pode marcar a fronteira entre o vício e a
virtude” 29 (T, p. 515), e retomando a idéia de prazer e dor relacionada às virtudes

Mas, de acordo com a segunda definição, podem ser consideradas não naturais, visto que “a virtude heróica,
sendo inabitual, é tão pouco natural quanto a barbárie mais brutal” (T, p. 514).
O professor Darlei Dali’ Agnol escreveu um artigo bastante interessante sobre a falácia naturalista em Moore.
Em uma parte de seu artigo, explicitando o pensamento de Moore, ele nos diz: “O livro de Moore pretende
estabelecer as bases científicas da ética sem falsas representações, sejam naturalistas ou metafísicas, dos valores
62

fala que essa conclusão é bastante conveniente, pois que leva a uma única
questão: “por que uma ação ou sentimento, quando são contemplados ou consi­
derados de uma forma geral, produzem em nós uma certa satisfação ou descon­
forto?” (T, p. 515). Portanto, a nosso ver, Hume não tem uma pretensão de defi­
nir, categoricamente, o bom, mas apenas de descrevê-lo. E como o prazer e dor
estão, factualmente, relacionados ao vício e a virtude, esse é o ponto de onde ele
parte. Agora, é um equívoco enorme tomar sua filosofia como aquela que reduz a
noção de bom ou virtude a princípios estritamente naturalistas. A noção de prazer
e dor que acompanha as virtudes e vícios é apenas um princípio geral confirmado
pela experiência; mas isso não quer dizer que Hume reduza a noção de virtude ao
prazer. Pois o senso da virtude requer algo que a própria natureza não dá
originalmente - uma reflexão imparcial.

A lém d isso, nem todo sentimento de prazer ou dor derivado de um


caráter ou ação é do tipo peculiar que nos faz louvar ou condenar. As
boas qualidades de um inim igo são penosas ^°para nós; mas, ainda
assim , podem merecer nossa estim a e respeito. É somente quando um
caráter é considerado em geral, sem referência a nosso interesse
particular, que causa essa sensação ou sentimento em virtude do qual o
denom inam os moralmente bom ou maL (T, p. 512)

Quanto à segunda acusação, o conceito de bom em Hume é apenas um


assentimento prático e não pressupõe uma validade para além da cultura; já que,
como procuramos mostrar, a moral como objeto da razão é posta no campo dos

morais. Julga fazer isso mostrando que “bom” é simples, inanalisável, indeíinível e, em seu sentido eticamente
relevante, refere-se ao valor intrínseco de algo, isto é, aquilo que é valioso em si mesmo de forma não
instrumental. Esta caracterização mostra que bom é sui generis e Moore procura construir argumentos para
refutar aqueles que negam a especificidade dos valores intrínsecos.” (Argumentos Filosóficos. Horianópolis:
Editora eletrônica (Nel), UFSC, 2001. p. 67.). E ao defender Moore, p. 79, da acusação de platonismo, devido
sua caracterização de “bom” como sui generis e de valor intrínseco, fala que os comentadores “esquecem que
Moore também insistiu que “bom” não é uma propriedade metafísica.”. Podemos nos perguntar se, até que
ponto, de acordo com a explanação acima, Hume não considerava a virtude algo sui generis. Ela não pode ser
definida metafisicamente, nem a príori, e também não é, por excelência, naturalizada. Na Investigação Hume
chega mesmo a definir a virtude da mesma forma como Darlei define algo sui generis. Vejamos: “Ora, como a
virtude é um fim, e é desejável por si mesma, sem retribuição ou recompensa, simplesmente pela satisfação
imediata que comunica, é necessário que haja algum sentimento tocado por ela, algum gosto, sensação, ou que se
quiser chamá-lo, que distingui entre o bem e o mal morais, e adere o primeiro ao mesmo tempo em que rejeita o
segundo” (IPM, p. 184). E Hume chega mesmo a usar a expressão valor intrínseco na Seção VII do Tratado sobre
a origem do governo, justamente quando fala por que a justiça é negligenciada. Diz ele: "Nenhuma qualidade da
natureza humana causa tantos erros fatais em nossa conduta quanto a que nos leva a preferir o que é presente ao
que é distante e remoto, e nos faz desejar os objetos mais de acordo com sua situação que com seu valor
intrínseco” (T, p. 577). Vê-se que o prazer é apenas algo que nos toma interessado na virtude - no bom mas
não algo que a define.
Grifo nosso.
63

fatos, onde reconhecidamente não há espaço na filosofia dele para concepções


absolutas. Julgar de modo idêntico em Hume não é, como afirma Tugendhat,
negar a possibilidade de vários conceitos morais. A identidade é aquela da
natureza humana, no caso um sentimento básico de prazer e dor que embasa
nossos juízos morais^\ Tal sentimento eqüivale a um a disposição de nossa
natureza para agradar-se ou desgostar-se diante do bem ou mal moral, mas não
determina de antemão quais seriam esse bem ou mal. Ou seja, o objeto desse
sentimento pode mudar conforme a dinâmica social e a conseqüente nova
orientação da razão. Assim entendido, não é mais possível submeter Hume à sua
própria guilhotina - nem à de Moore.

Agora, enquanto fato social, a moral se constitui a partir do acordo,


ainda que temporário, dos juízos morais acerca dos mesmos objetos. Um acordo
que não é espontâneo, da natureza, mas mediado pelos raciocínios acerca da
experiência, e pelo debate social acerca deles.

Segundo Hume, o que faz com que o raciocín io sobre a ju stiça seja
sólido é, fundamentalmente, que é um raciocín io com partilhado por,
pelo m enos, a maioria dos membros da com unidade a qual alguém
pertence. O que faz com que a em issão de ju ízos sobre a virtude e o
vício seja efetiva é que eles expressam , não apenas as reações in d iv i­
duais de alguém, mas as reações reciprocadas pela grande maioria.
Portanto, alguém raciocina e ju lga, em tod os os assuntos morais e prá­
ticos, com o membro de uma com unidade particular e de um tipo de
ordem social característico de todos os p o v o s civilizados.^^

Mas há um outro ponto importante a ser abordado nessa questão:


significa, então, que na ética de Hume não se pode falar em prescrição ou
normatização? Mas há uma normatização fática. Qual o fundamento dela? O que
dizer acerca de sentenças do tipo: “a obrigação moral mantém proporção com a
utilidade” (IPM, p. 67)? E quando fala da castidade, diz ele: “Uma infidelidade
dessa natureza é muito mais perniciosa nas mulheres que nos homens. Daí as leis
[grifo nosso] da castidade serem muito mais estritas com relação às mulheres do
que aos homens” (IPM, p. 68). Nós voltaremos a essa questão oportunamente, pois

Sobre esse sentimento de dor e prazer que acompanha as virtudes, trataremos em detalhes no decorrer dessa
obra.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo; Edições Loyola, 1991. p. 344.
64

para respondê-la a contento precisamos esclarecer um pouco mais da teoria do


filósofo escocês.

2.2 O QUE ORIGINA A MORAL

A principal pergunta que Hume lança ao público ao tratar da questão


moral é a seguinte: “será por meio de nossas idéias ou impressões que
distinguimos entre o vício e a virtude, e declaramos que uma ação é condenável
ou louvável?”(T, p. 496). Apresentamos há pouco todos os argumentos que ele
utiliza para mostrar que a razão não pode colocar-se na condição de fundadora da
moral, e foi visto que tal proposição foi negada, por um lado, justamente pelo fato
de que a racionalidade lida com idéias, quer nas relações entre as idéias enquanto
tais, quer nas relações das idéias com os fatos aos quais se referem. Nós vimos
também que a 'moral não tem origem em nenhuma impressão descoberta por ela;
logo, podemos nos deparar com a seguinte dificuldade decorrente da teoria da
mente que o mesmo concebeu. Vejamos o seguinte argumento:

1* Premissa; “Já observamos que nada está presente à mente senão suas
percepções; e que todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar
incluem-se sob essa denominação” (T, p. 496).

2* Premissa: “Aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas


percepções diferentes” (T, p. 496).

3^ Premissa: As percepções dividem-se em idéias e impressões.

4” Premissa: O Julgamento Moral não trata de idéias (vimos isso há


pouco).

Conclusão: O Julgamento Moral apóia-se numa impressão.

Mas como vimos que essa impressão não é descoberta pela razão, de
onde ela surge? Assim como em relação ao princípio da causalidade a impressão
65

que a fundamenta surge no campo do sentimento, o mesmo ocorre na questão


moral:

A m oralidade, portanto, é mais propriamente sentida que ju lgad a,


embora essa sensação ou sentim ento seja em geral tão branda e suave
que tendem os a confundi-la com uma id éia, de acordo com n osso
costum e corrente de considerar tudo que é m uito sem elhante com o se
fosse um só coisa. (T, p. 510)

E da mesma forma que no exame da teoria da mente, mostramos que,


para Hume, o espírito tende, naturalmente, a evitar os estímulos desagradáveis e
buscar os agradáveis, na questão moral seguir-se-á a mesma teoria, ou seja, “a
impressão derivada da virtude é agradável e a procedente do vício é desagradável”
A

(T, p. 510). E fácil concluirmos que, se a mente busca estímulos agradáveis, e se a


virtude é agradável, a aprovação moral decorre deste prazer imediato que elas nos
transmitem.

O próprio sentim ento constitui nosso elo g io ou admiração. Não vam os


além disso, nem investigam os a causa da satisfação. Não inferim os
que um caráter é virtuoso porque nos agrada; ao sentirm os que nos
agrada dessa maneira particular, nós de fato sentim os que é virtu oso.
(T, p. 510 -5 1 1 )

Cabe neste ponto uma objeção a Hume, e ela não lhe passou desper­
cebida. Ele objetara ao argumento de que a moral expressava-se nas relações que
a razão descobriria, alegando que, se assim o fosse, teríamos que atribuir vício à
matéria inanimada e aos animais, já que estes se encontram, amiúde, envolvidos
nas mesmas relações que acompanham as ações humanas. Poder-se-ia, então,
fazer-lhe uma crítica similar: se a virtude e o vício são determinados pela dor ou
prazer, qualquer objeto inanimado ou animado, racional ou irracional, poderia ser
dito virtuoso ou vicioso quando nos proporcionasse prazer ou dor. Vejamos como
Hume se sai dessa objeção. A base do seu argumento é fazer distinções entre os
prazeres ou satisfações. Uma composição musical e um excelente vinho produzem
igualmente prazer, e sua excelência decorre da qualidade mesma do prazer obtido;
porém, não se pode dizer que o vinho é harmonioso, ou que a música é saborosa.
“De maneira semelhante, tanto um objeto inanimado quanto o caráter ou os
sentimentos de uma pessoa podem nos dar satisfação, isso nos impede de
66

confundir nossos sentimentos relativos a cada um deles, e nos faz atribuir a


virtude à pessoa, mas não ao objeto” (T, p. 511).

Argumenta ainda que

[...], nem todo sentim ento de prazer ou dor derivado de um caráter ou


ação é do tipo pecu liar que nos faz louvar ou condenar. As boas
qualidades de um in im igo são penosas para nós; mas, ainda assim ,
podem m erecer nossa estim a e respeito. É somente quando um caráter é
considerado em geral, sem referência a nosso interesse particular, que
causa essa sensação ou sentim ento em virtude do qual o denom inam os
m oralm ente bom ou mau. É verdade que temos naturalmente uma
tendência a confundir e misturar os sentim entos devidos ao interesse e
os d evidos à moral. Raramente deixam os de pensar que um inim igo é
v icio so e raramente som os capazes de distinguir entre sua op osição a
nosso interesse e sua vilan ia ou baixeza reais. Isso não im pede, porém,
que esses sentim entos sejam distintos neles mesmos; [...]. (T, p. 512)

Parece-nos que a resposta de Hume refere-se especificamente a uma


distinção existente nos próprios sentimentos, coisa que não pode ocorrer com
respeito às relações onde se alega residir a moralidade, e que a razão descobre.
Com o termo prazer, como nos diz ele, “compreendemos sensações muito
diferentes, e que não apresentam mais que uma distante semelhança umas com as
outras, suficiente apenas para fazer que sejam expressas pelo mesmo termo
abstrato” (T, p. 511). Sabor e harmonia são coisas distintas, mas ambas dão
prazer. Da mesma forma, há uma diferença entre o prazer proporcionado por um
objeto inanimado (por exemplo, o prazer de tocar um tapete de lã) e um caráter ou
sentimento de um homem (por exemplo, a forma meiga e educada, ou ainda moti-
vadora com que se reporta às pessoas): uma coisa é o prazer enquanto sensação,
outra é o sentimento de prazer.

Ainda, para pontuar que há de se fazer uma distinção entre os afetos


que objetos e pessoas provocam em nós, Hume alude às paixões do orgulho e da
humildade. Segundo o filósofo, estas paixões, embora contrárias, têm o mesmo
objeto. “Esse objeto é o eu, ou seja, aquela sucessão de idéias e impressões
relacionadas, de que temos uma memória e consciência íntima. É aqui que se fixa
nosso olhar, sempre que somos movidos por uma dessas paixões” (T, p. 311). E
quando o “eu não é levado em consideração, não há lugar nem para o orgulho,
nem para a humildade” (T, p. 312). Agora, o “eu” não é a própria causa, “pois
67

temos de fazer uma distinção, portanto, entre a causa e o objeto dessas paixões;
entre a idéia que as excita e aquela a que dirigem seu olhar, quando excita­
das” (T, p. 312).

A causa do orgulho, por exemplo, está localizada em um a grande


variedade de sujeitos, pois qualquer “qualidade mental de valor, seja da
imaginação, do juízo, da memória ou do temperamento - espírito, bom senso,
erudição, coragem, justiça, integridade - , todos são causas de orgulho; e seus
opostos de humildade” (T, p. 313). Mas não é “ apenas a mente que é contemplada
por essas paixões, mas também o corpo, pois um homem pode se orgulhar de sua
beleza, força, agilidade, boa aparência, talento para a dança [...]” (T, p. 313). E
ainda vão mais longe, “compreendendo qualquer objeto que tenha conosco a
m enor aliança ou relação. Nosso país, família, filhos, parentes, riquezas, casas,
jardins, cavalos, cães, roupas - tudo isso pode ser tornar causa de orgulho ou de
humildade” (T, p. 313).

Porém, deve-se fazer uma nova distinção nas causas da paixão, a saber,
entre a qualidade operante e o sujeito no qual essa qualidade está situada. Assim,
um homem que se orgulha de sua casa (objeto inanimado que provoca um
sentimento de prazer), tem como objeto da paixão ele próprio, e como causa a
beleza da casa. Mas esta causa divide-se em duas partes: “a qualidade que atua
sobre a paixão e o sujeito a que tal qualidade é inerente. A qualidade é a beleza, e
o sujeito é a casa, considerada como sua propriedade ou criação. Ambas as partes
são essenciais, e a distinção não é vã nem quimérica” (T, p. 313-314). Sendo
assim, para que a paixão do orgulho seja despertada e, conseqüentemente, o prazer
que a acompanha, os dois elementos causais devem estar presentes, pois “a beleza,
considerada simplesmente como tal, nunca produzirá orgulho ou vaidade, a menos
que situada em algo relacionado a nós; e a mais forte relação, por si só, sem a
beleza ou algo que a substitua, tampouco exerceria qualquer influência sobre essa
paix ão” (T, p. 314).

E este, então, o argumento de Hume para mostrar que há distinções nos


afetos que não permitem que se faça uma objeção nos moldes anteriores: a virtude
e o vício sempre se referem ao caráter, nosso ou de outrem, além de se fazerem
68

acompanhar de orgulho e humildade, respectivamente, e proporcionarem o prazer


ou dor que os identifica. Dito de outro modo, as paixões do orgulho e da hum il­
dade, amor ou ódio, sempre vêm acompanhadas das virtudes correspondentes
quando evocadas por ações humanas, ao passo que os objetos inanimados nem
sempre despertam essas paixões, muito embora possam despertar prazer.

Em segundo lugar, podem os recordar o sistem a das paixões anterior­


mente apresentado, a fim de salientar uma diferença ainda mais c o n si­
derável entre n ossas dores e prazeres. Orgulho e humildade, amor e
ódio são despertados quando se apresenta a nós alguma coisa que, ao
m esm o tem po, mantém uma relação com o objeto da paixão. Ora, a
virtude e o v ício se acompanham dessas circunstâncias. D evem n ece s­
sariamente se situar em nós ou em outrem, e excitar prazer ou despra-
zer; devem , portanto, gerar uma dessas quatro paixões, o que os d istin ­
gue claram ente do prazer e da dor resultantes de objetos inanim ados,
que freqüentem ente não têm co n o sco nenhuma relação. E este, ta lv ez, o
efeito da virtude e do vício sobre a mente humana. (T, p. 512)

O senso moral é, assim, decorrente de uma impressão, um sentimento de


prazer ou dor que nos faz aprovar ou condenar determinadas ações. Agora, qual
seja o sentimento que fundamenta a moral proporcionando regras que a elevam a
uma perspectiva universal, será visto na seqüência de nosso trabalho.

2.3 DO PROJETO CONCILIADOR ENTRE RAZÃO E SENTIMENTO

Na Seção I do livro “Uma Investigação sobre os Princípios da M oral”


(obra da maturidade de Hume), onde trata dos princípios gerais da moral, o
filósofo, após apresentar alguns argumentos dos que defendem que a moral deriva
do sentimento, e outros daqueles que defendem que ela deriva da pura razão,
propõe a seguinte perspectiva.

E sses argumentos em favor de cada um dos lados (e muito mais


poderiam ser forn ecid os) são tão p lau síveis que sou levado a suspeitar
que tanto uns com o outros podem ser sólidos e satisfatórios, e que
razão e sentim ento confluem em quase todas as decisões e con clu sões
morais. É provável que a sentença final que julga [...] se apóie em
algum sentido ou sentim ento que a natureza tornou universal na esp écie
inteira. Pois que outra coisa seria capaz de uma influência d esse tipo?
Contudo, para preparar o cam inho para tal sentimento e prover o
discernim ento apropriado de seu objeto, descobrim os que é freqüen­
tem ente n ecessário que m uitos raciocínios o precedam, que d istin ções
sutis sejam traçadas, con clu sões corretas extraídas, com parações d is­
69

tantes efetuadas, relações com plexas examinadas e fatos gerais esta b e­


lecid os e verificados. (IPM , p. 23-24)

Hume chega a propor uma comparação da moral com as belas-artes, que


neste caso, diferentemente de alguns tipos de beleza - as espécies naturais, por
exemplo onde não há necessidade de nenhum apoio racional para sentirmos
afeto e darmos aprovação aos mesmos, “é preciso empregar muito raciocínio para
experimentar o sentimento adequado, e um falso deleite pode freqüentemente ser
corrigido por meio de argumentos e da reflexão” (IPM, p. 24). E continua Hume:
“Há boas razões para concluir que a beleza moral faz parte em boa medida deste
último tipo, e exige a assistência de nossas faculdades intelectuais para adquirir
uma influência apropriada sobre a mente humana“ (IPM, p. 24).

No prefácio da Investigação sobre a moral, José Oscar de Almeida


Marques alude a profundas mudanças na filosofia moral de Hume^^, tomando
como base a comparação entre o Tratado e a Investigação. Com certeza vemos que
de fato pode-se assim pensar, e apontaremos no decorrer desse trabalho o que nos
parece ter sido uma mudança essencial feita por Hume. Mas, sem dúvida, essa
mudança não pode dizer respeito à relação entre o papel da razão e do sentimento
no que se refere ao julgamento moral. E como esse é um ponto central na teoria de
Hume, e objeto de nosso estudo, mostraremos que há uma verdadeira concor­
dância entre as duas obras. Analisemos primeiramente o que permanece clara­
mente comum ao Tratado e à Investigação.

A razão, sozinha, não pode fundar a moral, pois quando se busca


“determinar pela pura razão em que consiste o demérito ou a culpa, jam ais se
chegará a qualquer resultado ou conclusão” (IPM, p. 176). A razão opera sobre
questões de fato ou sobre relações, mas o vício não está presente nem nos fatos

Diz José Oscar: o caso da segunda Investigação, a obra aqui traduzida, apresenta problemas especiais.
De fato trata-se de um texto que apresenta notáveis diferenças com relação ao que lhe deu origem [ Oscar refere-
se ao Tratado], e essas diferenças não se resumem apenas à ordem em que os temas são apresentados, ou a
ênfase em que recebem em cada caso. Na opinião de um conceituado intérprete como Selby-Bigge, as mudanças
são de tal ordem a ponto de ser possível dizer que todo o sistema de moral é essencialmente distinto nos dois
casos. “ (IPM, p. 13). Outro comentador da obra de Hume que faz a mesma colocação é D.D.Raphael; “As duas
versões da filosofia moral de Hume que aparecem no Tratado e na segunda Investigação diferem não só na
ordem da exposição mas no conteúdo.” (Hume And The Enlightenment. Edimburgo: Edinbugh The University
Press, 1975. p. 19).
70

enquanto tais, nem tampouco nas relações. O ato de ingratidão, por exemplo, que
é condenável, “não é nenhum fato particular, mas decorre de um complexo de
circunstâncias que, ao se apresentarem ao espectador, provocam o sentimento de
censura [...]” (IPM, p. 176). Afirma o filósofo que “por mais que se torça e retor­
ça o exemplo, jamais se conseguirá estabelecer a moralidade sobre uma relação,
mas será sempre necessário recorrer às decisões do sentim ento” (IPM, p. 177). E
acrescenta: “A hipótese que propomos é clara. Ela mantém que a moralidade é
determinada pelo sentimento. Ela define a virtude como qualquer ação ou quali­
dade espiritual que comunica ao espectador um sentimento agradável de aprova­
ção; e o vício como seu contrário” (IPM, p. 178).

Que o entendimento tem um papel a desempenhar, posto em brilho


máximo na presente obra, é verdade; mas após clarificar o campo de ação do
sentimento, nada mais lhe resta a fazer.

Mas lo g o que se conheçam todas as circunstâncias e todas as relações,


o entendimento não tem mais espaço para atuar, nem qualquer tópico
sobre o qual pudesse aplicar-se. A aprovação ou censura que então
resulta não pode ser obra do entendim ento, mas do coração, e não
constitui uma proposição ou afirm ação especulativa mas um ativo
sentim ento ou sensação. N as indagações do entendimento inferim os, a
partir de relações e circunstâncias con h ecid as algo novo e até então
desconhecido. Nas d ecisõ es morais, todas as circunstâncias e relações
devem ser previam ente conhecidas, e a m ente, baseado-se na contem ­
plação do todo, sente alguma nova im pressão de afeto ou desagrado,
estim a ou repúdio, aprovação ou recrim inação. (IPM, p. 180)

Ou seja, o julgamento moral deriva do sentimento, que não é uma idéia,


mas uma impressão. Outra passagem:

É n esses sentim entos, portanto, e não na descoberta de qualquer


esp écie de relações, que consistem todas as determ inações morais.
Antes de pretendermos tomar qualquer d ecisão desse tipo, tudo que se
relaciona ao objeto ou ação deve ser con h ecid o e verificado. E nada
mais será necessário de nossa parte senão experim entar um sentimento
de censura ou aprovação, com base no qual declaram os a ação ofensiva
ou virtuosa. (IPM , p. 181)

Por fim, sustenta que a razão não constitui móbil para a ação: “A razão
sendo fria e desinteressada, não constitui um motivo para a ação mas limita-se a
direcionar o impulso recebido dos apetites e inclinações, mostrando-nos os meios
de atingir a felicidade e evitar o sofrimento” (IPM, p. 185).
71

Comparando as obras de Hume (as citações anteriores, relativas a esta


questão, foram feitas com base no Tratado) vemos que os principais pontos de
vista acerca da m oral são a elas comuns; 1) as distinções morais se originam no
sentimento; 2) o julgamento moral se exerce sobre o sentimento; 3) a razão não
origina ação alguma; e 4) não há verdade alguma a ser descoberta nas ações
humanas.

Onde entra o papel da razão? Nas decisões ou julgamentos envolvendo


as virtudes sociais, onde a utilidade é o principal aspecto do qual elas extraem seu
mérito. Isso ficará mais claro daqui a pouco. Como nosso interesse, neste m omen­
to, não é discutir exaustivamente a questão da mudança na filosofia moral de
Hume quando comparamos as duas obras, talvez baste apontar uma passagem no
Tratado em que ele confirma a mesma perspectiva de análise que a da Investi­
gação. É que a obra da maturidade é mais bem organizada, e o filósofo aponta
desde o início seu projeto, método e objeto de investigação, ao passo que no
Tratado há uma m istura de assuntos, e é preciso que o leitor una aquilo que nele
está separado a fim de perceber o verdadeiro contexto da obra. Aqui vai a citação
que confirma a homogeneidade no pensamento humeano - especificamente no que
diz respeito ao assunto que estamos tratando.

M uitos sistem as acerca da moral foram propostos por filó so fo s de todas


as épocas; mas se os examinarmos com rigor, apenas dois d eles m ere­
cem nossa atenção. O bem e o mal morais certamente se distinguem por
n ossos sentim entos, não pela razão; esses sentimentos podem surgir, no
entanto, seja do sim ples aspecto e aparência de um caráter ou paixão,
seja da reflexão sobre sua tendência a trazer o bem da humanidade e
dos indivíduos. Minha opinião é que essas duas causas se entrelaçam
em nossos ju ízos morais, do mesmo modo como se entrelaçam em
nossas d ecisões acerca de quase todos os tipos de beleza exterior. Mas
também sou da opinião de que a reflexão sobre as tendências das ações
tem de longe a maior influência e determina as grandes linhas de nosso
dever. Entretanto, há exem plos de casos menos importantes em que é o
gosto ou sentimento imediato que produz nossa aprovação. [...]. Algumas
dessas qualidades produzem satisfação nos demais por meio de p rincí­
pios particulares originais à natureza humana, que não podem ser e x p li­
cados; outras podem ser reduzidas a princípios mais gerais. (T, p. 6 2 9 )

Razão e sentimento confluem acerca das decisões morais. Passaremos


agora a mostrar como isso ocorre, deixando claro o que já ficou bem estabelecido:
o que origina a moral é um sentimento, e não a razão. Esta é apenas um meio que
72

auxilia na realização desse sentimento que já é dado como disposição na natureza


humana.

2.4 DOS PRINCÍPIOS DA MORAL E DO SENTIMENTO MORAL

Dado que é um sentimento de dor ou prazer que caracteriza a virtude,


este é o momento adequado para apresentarmos quais os princípios que norteiam a
moral, já que “bastará mostrar os princípios que nos fazem sentir uma satisfação
ou um mal-estar ao considerar um certo caráter para nos convencer por que esse
caráter é louvável ou censurável” (T, p. 510). E como as noções ou deveres
morais, que são infinitos, não surgem através de instintos originais, pois que,
segundo Hume, é impossível que tais supostos instintos imprimam na mente
humana a multiplicidade de preceitos contidos nos mais complexos sistemas
éticos, “é necessário, portanto, reduzir o número desses impulsos primários e
encontrar alguns princípios mais gerais que fundamentam todas as noções morais”
(T, p. 513). Portanto, veremos que o sentimento, que está ligado à dor e ao prazer,
é o elemento primordial na questão do julgamento moral; porém, por não ter um
caráter originário, requer a mediação e (ou) indicação da racionalidade para sua
adequação às situações concretas às quais a sociedade se submete.

A teoria moral de Hume é bastante elegante por ser composta de apenas


três princípios que se entrelaçam e a fundamentam. O primeiro já foi explicado no
decorrer de nossa explanação, e com base na terminologia adotada pelo professor
João Paulo Monteiro daremos a ele o nome de princípio de prazer, deixando o
próprio autor falar sobre ele:

O interesse é o grande princípio m otor das ações humanas - é do lado


da paixão, não do da razão, que vem o im pulso fundam ental. O que em
última instância dirige o com portam ento é um ‘princípio de prazer’: o
padrão básico de conduta con siste em procurar os estím ulos agradáveis
e evitar os desagradáveis. Mas, para que o p rincípio de prazer seja
seguido de maneira mais com pleta, é n ecessário que ele seja substi­
tuído por um princípio de realidade - que só em certo sentido o substi­
tui, pois no fundo trata-se de uma forma superior, mais perfeita do
mesmo princípio. (TRI, p. 102-103)^'*

Monteiro, João Paulo. Ensaios: Teoria, Retórica e Ideologia. São Paulo: Ática, 1982. p. 102-103.
73

O interesse aponta sempre para algo que produza prazer; como foi
definido no capítulo anterior que “a virtude se identifica pelo prazer, e o vício,
pela dor, produzidos em nós pela mera visão ou contemplação de uma ação ou
caráter” (T, p. 515), segue-se que há de existir, naquilo que se chama virtude,
ação ou caráter, algo que, quando identificado, produza uma satisfação e nos faça
condená-los ou aprová-los. Aqui entra o segundo princípio que norteia a moral, a
saber: o princípio de utilidade. Para Hume a “utilidade é agradáveP^ e granjeia
nossa aprovação. Esta é uma questão confirmada pela observação diária”
(IPM, p. 82). Como a utilidade não diz respeito só aos interesses particulares, mas
também, na maioria das vezes, aos interesses gerais, Hume defende que o bem da
sociedade e dos indivíduos, de uma forma geral, não nos é indiferente. E é por
essa razão que ele introduz o terceiro princípio: o princípio da simpatia^®. A
simpatia “nos dá um interesse pelo bem da Humanidade [...]” (T, p. 624).

É importante ressaltarmos a relação entre os princípios citados,


atribuindo a eles a verdadeira importância e função que desempenham. O segundo
é a marca que confere mérito às virtudes em geral, em particular à justiça e certas
virtudes de extrema importância para a subsistência da sociedade, que extraem seu
mérito exclusivamente do seu caráter útil; pois outras virtudes recebem seu
mérito, além de sua utilidade, do prazer que proporcionam à pessoa que as possui
ou às outras pessoas pela simples contemplação (veremos na seqüência). O
terceiro, veremos, por possibilitar uma comunicação de sentimentos, é aquilo que
embasa a moralidade, evitando uma torre de babel de opiniões morais, pondo-a
numa perspectiva universal, requerida para ética, que possa gerar regras que
contemplem o interesse geral, balizando o julgamento moral. Concluindo, é a
simpatia o sentimento que constitui o material básico ou o alicerce da moral.

^^Não cabe a objeção de que os objetos inanimados deveriam receber censura ou aprovação moral quando úteis
ou não, se a teoria de Hume estivesse certa. Quando falamos da origem da moral explicamos as razões de Hume
para não aceitar tal objeção (que ele mesmo aventou), já que há uma diferença natural entre os sentimentos que
impede que isso ocorra.
^®No Tratado, na Parte II, Seção I, Livro III (Da Moral), página 521, Hume nega que haja na mente humana um
sentimento humanitário e aponta a simpatia como aquele princípio que nos faz sentir afetados pela felicidade ou
infelicidade dos demais. Na Investigação, Hume promove ou qualifica a simpatia como esse sentimento
humanitário universal. Essa é a grande mudança na filosofia moral de Hume; porém, sem trazer qualquer
conseqüência negativa a seu sistema, assim defenderemos.
74

A relação da simpatia com a utilidade confere àquela uma precedência


sobre esta, na medida em que a utilidade jamais poderia nos fazer atribuir mérito
às virtudes sociais, caso o fim a que se destinam - o bem da sociedade —nos fosse
de todo indiferente^^. Assim como o prazer que a utilidade desperta só acontece
em virtude de nosso interesse na sociedade.

Ora, a justiça só é uma virtude moral porque tem essa tend ên cia para o
bem da humanidade; e, na verdade, não é senão uma invenção artificial
com esse propósito. P od e-se dizer o m esm o da ob ed iência c iv il, do
direito internacional, da m odéstia e das boas maneiras. [...]. Ora, com o
o m eio para se obter um fim só pode ser agradável quando o fim é
agradável; e como o bem da socied ad e, quando nosso in teresse ou de
n ossos amigos não está en volvid o, só agrada por sim patia, essa
simpatia é a fonte do apreço que tem os por todas as virtudes artificiais.
(T, p. 617)

O princípio de utilidade tem como condição de possibilidade o prin­


cípio de prazer, que é um princípio geral da mente, pois tudo aquilo que nos
interessa o faz porque produz alguma satisfação, e o que é útil agrada justam ente
por ser meio para atingirmos aquilo que é de nosso interesse e agrado. E tem
como condição de possibilidade também o princípio da simpatia, como vimos
acima. O princípio do prazer, sem dúvida, subjaz ao princípio da simpatia, aquele
é o princípio principal da vida moral. Mas podemos dizer que esses dois
princípios estão tão fortemente conectados, já que se não houvesse dor ou prazer a
simpatia seria estéril. Da mesma forma, se não houvesse a simpatia como
princípio que nos faz tomar o sofrimento do outro em consideração, o princípio de
prazer é que seria estéril, no sentido de não poder, por si só, engendrar um senso
moral, já que os outros nos seriam indiferentes. Pois “quando uma qualidade ou
caráter tem uma tendência a promover o bem da humanidade, ela nos agrada, e por
isso a aprovamos, uma vez que apresenta a idéia vivida de prazer, que nos afeta
por simpatia e é em si mesma uma espécie de prazer” (T, p. 620).

Antes de passarmos adiante, vale a pena nos debruçarmos sobre a se-

Na investigação Hume mostra o mesmo pensamento: “Mas para que possamos acomodar as questões e afastar,
se possível, todas as dificuldades, vamos supor que todos esses raciocínios sejam falsos. Vamos supor que
abraçamos uma hipótese errônea quando reduzimos o prazer que provém da perspectiva de utilidade aos
sentimentos de humanidade e simpatia” (IPM, p. 162). E isso é confirmado diretamente por Hume: “Ora, o
prazer de um estranho, por quem não temos nenhuma amizade, agrada-nos somente por simpatia. É a esse
princípio, portanto, que se deve a beleza que encontramos em tudo que é útil” (T, p. 616).
75

guinte questão: pode o princípio de prazer participar, junto com o da simpatia e o


da utilidade, do elenco dos princípios da moral? Ou ele tem uma função específica
I

que impede que seja colocado como uma das causas que funda a moral? E ainda,
qual o estatuto do princípio da simpatia? Se tomarmos de novo a interpretação do
professor João Paulo Monteiro, apontaremos alguma diferença entre a posição
dele e a nossa. Assim, apresentaremos o conceito de simpatia e sua importância na
filosofia de Hume, ao mesmo tempo em que apresentaremos a posição do
Professor João Paulo, pontuando em qual sentido discordamos dele.

2.5 DO CONCEITO DE SIMPATIA

Como o conceito de original é ponto importante para uma precisa


elucidação do conceito de simpatia e sua importância na filosofia de Hume,
começaremos por ele, identificando o que vem a ser um princípio original na
filosofia desse autor. Nós vamos apresentar uma definição de original, e depois
tentaremos aproximá-la dos textos do filósofo. Numa palavra: original é todo
princípio ou causa que não sendo proveniente de um artifício mediado pela razão,
se vincula a uma realidade externa ou interna sem variação, muito embora a
relação com o seu objeto possa ser intensa ou fraca. Seria uma espécie de
imperativo da natureza. Hume nos diz, por exemplo, que “o homem é uma espécie
inventiva; e quando uma invenção é evidente e absolutamente necessária, é tão
correto considerá-la natural quanto tudo que proceda imediatamente de princípios
originais, sem a intervenção do pensamento ou reflexão” (T, p. 524). O que nos
permite, ampliando o conceito, dizer que tudo que é original é também natural;
mas o contrário não se segue.

Quanto à invariabilidade do que é original, além de sua distinção do


natural, fica bastante clara na passagem em que Hume define que o desejo pela
boa reputação é natural mas não original. Note-se que o desejo pela boa reputação
é natural, pois não é um artifício humano, mas não é original porque depende de
uma certa anuência do sujeito. Ou seja, a boa reputação é uma paixão de nossa
natureza; mas ela não tem o objeto com o qual se relaciona determinado original­
mente pela natureza.
76

Mas, se fosse algum instinto original que produzisse na m ente o d esejo


da boa reputação e a aversão pela má reputação, a boa e a má reputação
nos influenciariam indistintamente; e toda opinião, conform e fo sse
favorável ou desfavorável, excitaria igualm ente e sse desejo ou aversão.
O julgam ento de um tolo é o julgam ento de outrem tanto quanto o de
um sábio o é, e só é inferior a este em sua in flu ên cia sobre n osso
próprio julgam ento. (T, p. 536)

Quanto à adequação incondicional a uma realidade interna, ao falar das


paixões do orgulho e da humildade ele nos diz que a propriedade que “determina
que essas paixões tenham como objeto o eu não é somente natural, mas também
original [...]. O objeto do orgulho e da humildade é sempre o eu” (T, p. 314).
Agora, as causas do orgulho e humildade, que podem ser vários tipos de objetos
externos criados pelos homens, “embora sejam claramente naturais, veremos, ao
examiná-las, que não são originais, e que seria inteiramente impossível que cada
uma delas se adaptasse a essas paixões por um dispositivo particular e pela
constituição primária da natureza” (T, p. 315). Passemos à simpatia.

Podemos definir a simpatia da seguinte forma: é um princípio original,


que nos faz tomar os outros em consideração, benevolentemente ou não, contra­
riamente a nós ou não, mediante uma relação de prazer e dor, e que é dependente,
para sua melhor atuação, dos princípios que atuam na imaginação, podendo em
sua operação desenvolver um sentimento benevolente e, conseqüentemente, uma
ação correspondente. E mais: não tem um caráter teleológico em relação à moral,
tendo em vista que ela própria pode se opor à ética, como veremos. Vamos à
justificação do conceito.

Com toda certeza, há que se fazer, no Tratado, uma distinção entre


benevolência e simpatia; vejamos qual. Que a benevolência é um instinto original
fica patente na seguinte passagem.

Ora,' é certo que há determinadas tendências e d esejos calm os que,


embora sejam verdadeiras paixões, produzem pouca em oção na m ente,
sendo conhecidos mais por seus efeito s que p elo sentim ento ou
sensação imediata que produzem. E sses d esejos são de dois tipos: ou
bem são certos instintos originalm ente im plantados em nossas natu­
rezas, tais como a benevolência, o amor à vida e a ternura p elas crian­
ças; ou então são o apetite geral pelo bem e a aversão ao mal, c o n s i­
derados meramente enquanto tais. (T, p. 453)
77

Que ela é também limitada e não extensiva a todos da espécie humana,


fica claro quando Hume argumenta que, se a benevolência fosse ampla, as regras
da justiça perderiam sua razão de ser; já que, “a justiça tira sua origem exclusi­
vamente do egoísmo e da generosidade restrita dos homens, em conjunto com a
escassez das provisões que a natureza ofereceu para suas necessidades” (T, p. 536). E
mais: “podemos concluir que um respeito pelo interesse público, ou uma bene­
volência forte e irrestrita, não é nosso primeiro motivo, ou o motivo original, para
observar as regras da justiça, já que se admite que se os homens fossem dotados
de tal benevolência, essas regras jamais teriam sido imaginadas” (T, p. 536).

Quando o outro deixa de nos ser indiferente por causa da simpatia, sua
opinião se nos torna relevante, mesmo nos causando dor, pois “um amante apai­
xonado fica muito ofendido quando censuramos e condenamos seu amor; mas é
evidente que nossa oposição não pode ter nenhum efeito se não tiver influência
sobre ele, e se ele não tiver uma simpatia conosco” (T, p. 359). Também não
significa, como no caso da benevolência, que essa ausência de indiferença diga
respeito a uma atenção para com ele no sentido de assisti-lo em suas necessidades,
atenção esta incondicional. Muito pelo contrário, pois “uma região árida e
desolada sempre parece repulsiva e desagradável, e comumente nos inspira des­
prezo por seus habitantes. Entretanto, tal repulsa procede em grande parte de uma
simpatia com os habitantes, [...]; só que de uma simpatia fraca, que não vai além
de uma sensação imediata, que é desagradável” (T, p. 422). Contudo, quando esse
grau de simpatia aumenta a ponto de experimentarmos uma dor, que é do outro, de
forma intensa, pode ocorrer que tenhamos por essa pessoa um sentimento de bene­
volência.

Um determ inado grau de pobreza produz desprezo, mas um grau a mais


causa com paixão e b en evolên cia. Podem os dar pouco valor a um
cam ponês ou criado, mas quando a infelicidad e de um m endigo parece
muito grande, ou é retratada em cores muito vivas, sim patizam os com
ele em suas afliçõ es, e sentim os em nosso coração sinais evid en tes de
piedade e b en evolên cia. O mesmo objeto causa paixões contrárias,
segundo seus diferentes graus. As paixões, portanto, devem depender
de p rin cíp ios que atuam n esses graus p recisos, de acordo com minha
h ip ótese. O aumento da simpatia tem, evidentem ente, o mesmo efeito
que o aumento da in felicid ad e. (T, p. 422)
78

De fato, de acordo com o nosso conceito, a simpatia amplia nossa


benevolência, pois a visão de uma cidade em cinzas traz sentimentos benevo­
lentes, “porque entramos tão profundamente nos interesses de seus infelizes
habitantes que desejamos sua prosperidade, ao mesmo tempo em que sentimos sua
adversidade” (T, p. 422). “Mas embora a força da impressão geralmente produza
piedade e benevolência, se for levada longe demais, deixa de ter esse efei­
to” (T, p. 422). Essa alternância de nossos sentimentos e ações depende, como
falamos acima, dos princípios que atuam na imaginação; o que passamos a
justificar. Que a causalidade tem uma relação direta com a simpatia não há a
menor dúvida: “Nenhuma paixão alheia se revela imediatamente à nossa mente.
Somos sensíveis apenas a suas causas ou efeitos. É desses que inferimos a paixão;
conseqüentemente, são eles que geram^® nossa simpatia” (T, p. 615). Nós falamos
que a simpatia pode ser contrária a nós. A passagem que apresentamos agora
confirma isso, ao mesmo tempo em que mostra a influência da contigüidade.

Em primeiro lugar, deles podemos inferir que o desprazer que surge


quando somos desprezados depende da sim patia, e que a sim patia
depende da relação dos objetos a nós. Pois sentim o-nos mal som ente
quando desprezados por pessoas que estão relacionadas co n o sco tanto
por consangüinidade com o por uma contigüidade no esp aço. A ssim ,
procuramos diminuir essa simpatia e esse mal estar, d esfazen do essas
relações e colocando-nos em contigüidade com estranhos, ao mesmo
tempo em que nos distanciam os de n ossos parentes. (T, p. 3 5 7 )

Quanto à influência da semelhança no fenômeno da simpatia, Hume nos


diz o seguinte.

Ora, é óbvio que a natureza preservou uma grande sem elhança entre
todas as criaturas humanas, e que qualquer paixão ou p rincípio que
observam os nas outras pessoas podem encontrar, em algum grau, um
paralelo em nós m esm os [...]. Uma notável sem elhança se mantém em
meio a toda sua diversidade; e essa sem elhança deve contribuir muito
para nos fazer penetrar nos sentimentos alheios, abraçando-os com
facilidade e prazer. A ssim , segundo constatam os, sempre que, além da
sem elhança geral de nossas naturezas, ex iste alguma sim ilaridade
peculiar em nossas maneiras, caráter, país ou linguagem , is so facilita
^®a simpatia. Quanto mais forte for a relação entre nós e um objeto,
mais facilm ente a im aginação realizará a transição e transmitirá à idéia
relacionada a vivid ez daquela concepção com que formamos a id éia de
nossa própria pessoa. (T, p. 352-353)

Pode-se tomar a palavra gerar em seu sentido forte, causai; pois, na seqüência fica bastante claro que os
princípios apenas aumentam o grau de afeto que é o efeito do princípio da simpatia. Portanto, a relação causai
aqui se refere aos efeitos, e não ao princípio, que, como defenderemos é inato. Tem-se que fazer a Hume uma
severa crítica por conta de sua frouxidão conceituai.
Grifo nosso.
79

A simpatia, portanto, torna os sentimentos alheios “intimamente presen­


tes a nós”, e os princípios da imaginação apenas fortalecem, e não originam, a
simpatia; porque, “para além da relação de causa e efeito, que nos convence da
realidade da paixão"^” com que simpatizamos, precisamos da relação de semelhança
e contigüidade para sentir a simpatia em sua plenitude” (T, p.354). Além do que,
“as relações são necessárias à simpatia, não absolutamente [...]” (T, p. 357). Como a
simpatia não é senão “uma idéia vivida convertida numa impressão” (T, p. 420),
desse modo “tornamo-nos sensíveis a dores e prazeres que não nos pertencem
[...]” (T, p. 420), ao passo que a benevolência “é um prazer original derivado do
prazer da pessoa amada, e uma dor procedente de sua dor [...], para fazer que uma
paixão tenha uma direção paralela à da benevolência, precisamos sentir essas
duplas impressões” (T, p. 421); esta surge de “um alto grau de infelicidade, ou de
qualquer grau com que simpatizemos fortemente, o ódio ou desprezo surge de um
baixo grau com que simpatizemos pouco [...]” (T, p. 422)"^\ Mas quando a infe­
licidade de outra pessoa me toca de maneira fraca, “eu sou afetado por todas as
paixões relacionadas a ela; mas, como não me interesso tanto a ponto de me
preocupar igualmente com a boa e a má sorte dessa pessoa, nunca sinto a simpatia
extensa, e tão pouco as paixões com ela relacionadas” (T, p. 421).

Isto é, a benevolência volta-se às pessoas que amamos, enquanto a


simpatia, quando intensa, produz uma benevolência natural e similar, não original,
pelas pessoas que não amamos. O princípio da simpatia é original, tendo apenas

Se a simpatia, como mostramos, pode levar o sujeito a ter a paixão ou sentimento de benevolência por outro,
este efeito tem de resultar, mesmo que em parte, do próprio princípio, sendo apenas auxiliado pelos princípios da
imaginação, pois “podemos concluir que uma associação de idéias, embora necessária, não é suficiente para,
sozinha, despertar uma paixão” (T, p. 339).
Veja-se que este é apenas um dos efeitos do princípio, pois ele pode dizer respeito à nossa própria dor e prazer
numa relação de simpatia com outrem. E note-se, também, que a moral requer, em Hume, uma relação entre
sentimento e razão, pois a simpatia, no Tratado, e através de um de seus efeitos (sentir a dor do outro), necessita
do auxílio da reflexão; “Ninguém que considere devidamente essa questão terá escrúpulo em admitir que
qualquer demonstração de falta de educação, ou qualquer expressão de orgulho e soberba nos desagrada
exclusivamente porque colide com nosso próprio orgulho, levando-nos, por simpatia, a estabelecer uma
comparação que causa a desagradável paixão da Humildade. Ora, como censuramos uma insolência desse tipo
mesmo em uma pessoa que sempre foi cortês conosco em particular, e até em alguém cujo nome conhecemos
apenas pela História, segue-se que nossa desaprovação procede de uma simpatia com os outros, e da reflexão de
que um tal caráter é altamente desagradável e odioso para todos que entram em conversação ou têm algum tipo
de relacionamento com a pessoa que o possui. Simpatizamos com eles em seu desconforto; e como esse
desconforto procede em parte de uma simpatia com quem os insultou, podemos observar aqui um duplo
ricochete da simpatia [...]” (T, p. 641). Sendo assim, para entendermos o conceito de simpatia temos de fazer
uma distinção entre o princípio enquanto tal (que é apenas uma propensão natural e original que nos leva a
considerar o outro), e o seu efeito. Como Hume usa um mesmo significante para ambos, isso gera uma confusão
que estamos tentando esclarecer.
80

um efeito original e vários apenas naturais,''^. A benevolência é tanto natural como


original. Essa interpretação se confirma plenamente quando apreciamos a Seção
VII (Da compaixão) do Tratado. Nela, Hume nos fala que; “Embora o desejo
da felicidade ou infelicidade daqueles que amamos ou odiamos seja um
instinto arbitrário e original implantado em nossa natureza, vemos, no entanto,
que em muitas ocasiões ele pode ser simulado e surgir de princípios
secundários” (T, p. 403). E no parágrafo seguinte, ele diz:

É fácil explicar a paixão da piedade com base no raciocín io anterior


concernente à simpatia. Tem os uma idéia viva de tudo que tem relação
conosco. Todas as criaturas humanas estão relacionadas con osco p ela
sem elhança. Portanto, suas existên cias, seus interesses, suas p a ix õ e s,
suas dores e prazeres devem nos tocar vivam ente, produzindo em nós
uma em oção similar à original - pois uma idéia viva se converte
facilm ente numa im pressão. Se isso é verdade em geral, quanto m ais no
que diz respeito à aflição e a tristeza, que exercem uma in flu ên cia m ais
forte e duradoura que qualquer prazer ou satisfação. (T, p. 403)

Dissemos que ela não tem uma relação teleológica com a ética: “Assim,
por exemplo, vemos que todas as pessoas, mas sobretudo as mulheres, tendem a se
enternecer com criminosos que vão para o cadafalso, e logo imaginam que são
extraordinariamente belos e bem-apessoados; entretanto, quem presencia a cruel
execução do suplício não sente essas emoções suaves; ao contrário, enche-se de
horror, e não tem nem tempo para moderar essa sensação desagradável por meio
de uma simpatia oposta” (T, p. 423). Por esse motivo é que a razão tem um papel
importante nas distinções morais ao corrigir nossos juízos. Na Investigação Hume
fala o seguinte;

As ligações e casos am orosos de Henrique IV da França durante as


guerras civis da liga prejudicaram freqüentemente seus interesses e sua
causa, mas todos os joven s apaixonados capazes de sim patizar com os
sentim entos de afeto admitirão, pelo menos eles, que essa fraqueza
(pois estarão prontos a considerá-la como tal) aumenta esp ecialm en te
seu apreço por aquele herói e os torna interessados em suas v ic is s i-
tudes.'^^ (IPM, p. 137)

Usar a expressão “efeitos originais” não é um absurdo; “O costume têm dois efeitos originais sobre a mente;
confere a ela uma faciüdade para reahzar uma ação ou para conceber um objeto; e, posteriormente, uma
tendência ou inclinação a fazê-lo” (T, p. 458). Sendo assim, podemos dizer que o efeito originário do princípio
da simpatia é nos fazer, ou ter uma propensão, a tomar os outros em consideração. E os seus diversos efeitos
naturais são os que ora apresentamos.
Grifo nosso.
81

Qual é, pois, a importância do princípio da simpatia na filosofia de


Hume? Aqui apresentamos essa questão em resumo, mas esperamos explicitá-la
paulatinamente no decorrer do trabalho. A moralidade pressupõe, em Hume, um
sentimento que fundamente nossos juízos morais, e para isso ele tem que ser algo
comum que possa tocar a alma de todas as pessoas. Porém, “não há na mente dos
homens uma paixão como o amor à humanidade, concebida meramente enquanto
tal [...]” (T, p. 521), e se a infelicidade ou felicidade dos outros nos afeta, “isso se
deve meramente à simpatia, e não prova que haja uma tal afeição universal pela
humanidade” (T, p. 521-522). Logo, é a simpatia, por nos fazer tomar o outro em
consideração, fazendo-nos sentir sua dor ou prazer, entre outras coisas, que vai
fundamentar o senso moral, já que, de acordo com o princípio de prazer, evitamos
os estímulos desagradáveis e abraçamos os agradáveis. Pois o “bem da sociedade,
quando nosso próprio interesse ou de nossos amigos não está envolvido, só agrada
por simpatia, essa simpatia é a fonte do apreço que temos por todas as virtudes
artificiais” (T, p. 617). E podemos dizer “que é ela também que dá origem a m ui­
tas das outras virtudes, e que certas qualidades obtêm nossa aprovação em virtude
de sua tendência para promover o bem da humanidade” (T, p. 617).

Outro papel - fundamental - que a simpatia desenvolve, por conta de


nos fazer não indiferentes uns aos outros, é propiciar uniformidade no tempera­
mento e maneira de pensar das pessoas.

Não há na natureza humana qualidade m ais n otável, tanto em si mesma


como por suas con seq ü ên cias, que nossa propensão'*^ a simpatizar com
os outros e a receber por com unicação suas inclin ações e sentim entos,
por mais diferentes ou até contrários aos n ossos. Isto é evidente, não
apenas nas crianças, que aceitam sem pestanejar qualquer opinião que
lhes seja proposta, mas tam bém em hom ens de grande discernim ento e
inteligên cia, que têm muita dificuldade em seguir sua própria razão ou
inclinação quando esta se op õe à de seus am igos ou com panheiros do
dia-a-dia. É a esse princípio que devem os atribuir a grande uniform i­
dade observável no tem peram ento e no m odo de pensar das pessoas de
uma mesma nação [...]. (T, p. 351)

Em sua tese de livre-docência, o professor Monteiro defende os seguin­


tes pontos. Em primeiro lugar, a simpatia tem a função de “operar uma ampliação

grifo nosso.
82

da influência do princípio de prazer” (TLD, p. 233)"^®. Em segundo, “ela faz o


prazer ou dor do outro funcionar dentro de nós como se fosse nosso próprio prazer
ou dor, numa autêntica simulação do princípio de prazer original” (TLD, p. 234);
e este "prazer ‘segundo’difere do primeiro fundamentalmente porque nada tem a
ver com a preservação do indivíduo que o experimenta” (TLD, p. 234). Monteiro
parece fazer uma distinção entre o prazer que origina as distinções morais e o
prazer típico do princípio de prazer, na medida em que aquele se refere a uma
simulação do prazer ou dor de uma pessoa no espírito da outra, ao passo em que
este refere-se somente a um indivíduo e sua sobrevivência. Nós defendemos que
se trata do mesmo prazer, na medida em que se tome o princípio de prazer como o
princípio geral que explique tanto a preservação do indivíduo e formação da
sociedade, como a formação da moral"^^. Em nenhum momento Hume apresenta o
princípio de prazer vinculado especificamente a isso ou àquilo (a não ser à própria
dor e prazer em geral), mas, tão-somente, como um princípio geral da mente. E
fica claro o vínculo do princípio de prazer, e não apenas o prazer que a simpatia
gera, com a moral, pois no Livro III (Da Moral), Seção I (da origem das virtudes e
do vício), Hume inicia sua exposição justamente anunciando o princípio de
prazer„47 . Diz ele:

O principal motor ou princípio de ação da mente humana é o prazer ou


dor; e quando essas sensações são retiradas de nosso pensam ento ou
sentim ento, ficam os incapazes de paixão ou ação, de desejo ou v o liçã o .
Os efeitos mais im ediatos do prazer e da dor são os m ovim entos de
propensão e de aversão [...]. Quando, porém, juntamente com isso , os
objetos que causam prazer ou dor adquirem uma relação con osco ou
com outros, eles, ao mesmo tempo que continuam a excitar desejo e
aversão, tristeza e alegria, causam também as paixões indiretas de
orgulho ou hum ildade, amor e ódio (T, p. 613-614)

Abreviatura de tese de livre-docência.


Basta ver que Hume liga o prazer individual à moral: “Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que
nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer; e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício,
nada mais pode ser preciso para regulação de nossa conduta e comportamento” (T, p. 509).
Na segunda Investigação, Apêndice I (Sobre o Sentimento Moral), é o momento em que Hume conclui acerca
daquilo que se propôs a investigar: o papel da razão e dó sentimento nas questões morais. Após indicar o papel
da razão e do sentimento, mostrando que aquela sem a participação do sentimento humanitário não pode fundar a
moral, encerra suas colocações com o princípio de prazer: “Assim, os limites e atribuições da razão e do gosto
são facilmente determinados. A primeira transmite o conhecimento sobre o que é verdadeiro ou falso; o segundo
fornece o sentimento de beleza e fealdade, de virtude e vício [...]. A razão sendo fria e desinteressada, não
constitui um motivo para a ação mas limita-se a direcionar o impulso recebido dos apetites e inclinações,
mostrando os meios de atingir a felicidade e evitar o sofrimento. O gosto, como produz prazer ou dor e constitui,
portanto, felicidade ou sofrimento, torna-se um motivo para a ação e o princípio ou impulso original do desejo e
da volição” (IPM, p. 185).
83

E, se, como nos diz Alasdair Maclntyre"^^, “ao julgar esta ou aquela ação
virtuosa ou viciosa, por exemplo, estou dando expressão à minha reação àquilo
que causou, em mim, orgulho ou amor, num caso, ódio ou humildade, no outro” ;
podemos concluir que esse prazer que está na base do julgamento moral, e que se
relaciona com a simpatia, obviamente é função do princípio de prazer. Sendo
assim, a simpatia, como defendemos, consiste numa forma do próprio princípio de
prazer se apresentar, e não, como defende o professor Monteiro, numa ampliação
do princípio de prazer mediada pela imaginação. Os dois princípios estão
fortemente relacionados. Mas como o princípio de prazer pode apresentar-se em
seu caráter individual, dizendo respeito à dor ou prazer apenas de um sujeito
qualquer, e sem que o princípio da simpatia seja sua condição, ao passo que o
princípio da simpatia apresenta-se, sempre, tendo como base o de prazer, segue-se
que este, e não aquele, é mais abrangente.

Nada é mais evidente de que o fato de que as pessoas obtêm nossa afeição
ou se expõem à nossa má vontade na proporção direta do prazer ou
desprazer que delas recebemos [...]. Aquele que encontra uma maneira de
se tornar útil ou agradável a nós, seja por meio de seus serviços, sua
beleza, ou sua adulação, pode estar certo de que terá nossa afeição. Ao
contrário, aquele que nos prejudica ou desagrada sempre despertará nossa
raiva e ódio. Quando nossa nação está em guerra com outra detestamos
todos os membros desta última, acusando-os de cruéis, pérfidos, injustos e
violentos; a nós e a nossos aliados, porém, consideramos sempre justos,
moderados e clementes [...]. É evidente que o mesmo método de
pensamento está presente em toda vida comum. (T, p. 382)

Para reforçar nossa posição, não concordamos que o prazer que decorre
da simpatia não diga respeito à sobrevivência do sujeito que o sente, e vamos
defender isso com premissas do próprio texto de Monteiro. Esse prazer é o
elemento principal das distinções morais, distinções estas que se tornam possíveis
apenas numa relação entre sociedade e princípio da simpatia. Como a simpatia é
um fenômeno que ocorre também nos animais, sem que nestes apareça o fenômeno
moral, “a causa decisiva deve ser aquela diferença entre a espécie humana e as
espécies animais que concorre com a simpatia para produzir, em nós, a capacidade
para estabelecer distinções morais” (TLD, p. 240). “E esta causa é a sociedade, a
organização da espécie humana em grupos sociais, condição de sobrevivência
da espécie” (TLD, p. 240). E como “para Hume a existência desses grupos

48
Justiça de Quem? Qual Racionalidade? Coleção Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 327.
84

depende da existência de regras morais“ (TLD, p. 240), e “em determinadas


circunstâncias uma condição necessária a sobrevivência das sociedades
humanas” (TLD, p. 240-241), não dá para escapar da conclusão de que o prazer
que a simpatia gera no outro diz respeito à sua sobrevivência. No mínimo, temos
que admitir que a sobrevivência do indivíduo é um efeito colateral da simpatia, já
que a manutenção da sociedade é condição para sua sobrevivência.

Finalizando, o princípio de prazer faia que a mente busca os estímulos


agradáveis e evita os que provocam dor. Tal como o fogo que queima provocando
dor, e por isso nós o evitamos, o vício também promove desprazer (vimos isso), e
por isso o condenamos - o que não deixa de ser uma forma de evitá-lo.

Monteiro defende, ainda, que a simpatia “é, portanto, da ordem do imagi­


nário. Sua origem deve ser buscada na imaginação” (TLD, p. 234), já que ela não
passa de um “efeito da imaginação” (TLD, p. 235). E, por fim, que a simpatia, “embo­
ra não seja propriamente um princípio original da natureza”, é “o produto da ação dos
princípios de associação sobre a esfera da paixão e do prazer, [...]” (TLD, p. 238).

Em nossa apresentação do conceito de simpatia também apontamos que


a intensidade dos afetos que dela surgem são dependentes dos princípios da
imaginação. Mas discordamos da limitação imposta pelo prof. Monteiro, de
que o próprio princípio não seja “mais do que a imaginação funcionando”
(TLD, p. 237), ou “que a palavra ‘simpatia’ é apenas a designação de mais um
mecanismo da imaginação” (TLD, p. 236). Vejamos a seguinte passagem.

Por que admirarmo-nos, então, de não podermos emitir qualquer ju ízo


relativo ao caráter e conduta dos seres humanos sem levar em conta os
prováveis resultados de suas ações e a felicid ad e ou miséria que daí
decorrem para a sociedade? Que associação de idéias iria jamais operar
se esse princípio estivesse aqui totalm ente inativo? (IPM, p. 91)'^'^

Há uma longa passagem na Investigação (páginas 195-196), onde Hume reclama que para as nossas
realizações e desejos há que se colocar uma paixão como causa. Assim, Hume nos fala que se não tivéssemos a
paixão da vaidade, os elogios dos outros nos seriam totalmente indiferentes, assim como se não houvesse
nenhuma espécie de apetite antecedente ao amor a si mesmo essa propensão dificilmente poderia alguma vez
exercer-se... Depois nos diz; “Mas onde está a dificuldade em conceber que isso pode igualmente ocorrer no caso
da benevolência e da amizade e que, pela estrutura original de nosso temperamento, podemos alimentar um
desejo pela felicidade ou bem de outra pessoa [...]” (IPM, p. 196). Ou seja, o mesmo raciocínio aplica-se a
simpatia no Tratado. Temos uma propensão a simpatizar decorrente de um princípio inato.
85

Logo, para os princípios de associação operarem, deve existir um


princípio que origine o afeto básico com o qual eles se relacionam; e o espaço ou
lugar onde essa relação se desenvolve é a imaginação.^°Por isso, a simpatia deve
ser um princípio originário. Se tomarmos nossa definição, uma das partes que a
compõem afirma que um princípio é originário quando se vincula invaria­
velmente a um objeto externo. Ora, a simpatia tem como objeto único o outro, fato
com que o professor Monteiro concorda: “Ora, o objeto da simpatia é sempre um
outro indivíduo” (TLD, p. 236). Agora, se a intensidade dessa relação, assim
como a eficácia do princípio da simpatia, depende da imaginação^\ isso não colo­
ca tal princípio na condição de não-originário^^. Uma passagem do Tratado reforça
nossa posição, pois é a intensidade do desprazer, atuando na imaginação, e não o
prazer sendo um efeito dela, que nos faz ter benevolência pelos outros.

Quando o desprazer é ele mesmo pequeno ou quando está lo n g e de nós


[contigüidade], não prende a im aginação, sendo incapaz de transmitir
uma igiial preocupação com o bem futuro e contingente que com o mal
presente e real. Quando adquire mais força, ficam os tão preocupados
com os interesses da pessoa que nos tornamos sen sív eis tanto a sua boa
com o a sua má sorte; e, dessa sim patia com pleta, nascem a piedad e e a
benevolência. (T, p. 423)

Podemos ainda argumentar a favor de nossa interpretação. Falamos há


pouco que a grande mudança que houve na filosofia moral de Hume foi promover

Como nos diz Deleuze: ”A associação é uma regra da imaginação, não um produto, não uma manifestação do
livre exercício desta” (DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 14-15.).
Sem dúvida, mesmo que se critique Deleuze argumentando que a imaginação, como o próprio Hume nos diz,
pode unir, a seu bel prazer, idéias na mente, esse livre exercício da imaginação é ainda função da regularidade
que os próprios princípios conferem a ela.
Veja-se a seguinte passagem que mostra que a simpatia não pode ser função da imaginação ou um mecanismo
desta: “Esse princípio da simpatia tem uma natureza tão poderosa e sugestiva que intervém em quase todos os
nossos sentimentos e paixões [...]. Os sentimentos alheios nunca poderiam nos afetar se não se tomassem, em
certa medida, nossos sentimentos; e, nesse caso, eles agem sobre nós combatendo e intensificando nossas
paixões, como se tivessem sido originalmente derivados de nosso próprio peito e disposição. Enquanto
permanecem ocultos nas mentes alheias, não podem ter nenhuma influência sobre nós; e, mesmo quando
conhecidos, se não fossem além da imaginação ou da concepção, esta faculdade está tão acostumada a toda
espécie de objetos, que uma mera idéia, ainda que contrária a nossos sentimentos e inclinações, nunca seria
sozinha capaz de nos afetar” (T, p. 632-633). E quando Hume fala da simpatia nos animais fica claro em sua
finalização que a imaginação ,é apenas algo de reforço, e não originário dela: “A inveja e a malevolência são
paixões muito fortes nos animais. São, talvez, mais comuns que a piedade, porque requerem um esforço menor
de pensamento e imaginação” (T, p. 433).
Além disso, nosso conceito fala que um princípio originário pode variar em sua intensidade, não perdendo, por
isso, sua condição. E isso é confirmado por Hume na investigação. Ao se referir aos sentimentos humanitários
como decorrente de princípios que à primeira vista ”podem parecer algo frágeis e delicados”, nos diz que outras
paixões “talvez originalmente mais forte, [grifo nosso] são não obstante - pelo fato de serem egoístas e privadas
- freqüentemente sobrepujadas pelo poder da primeira, e cedem o domínio de nosso coração àqueles princípios
públicos e sociais” (IPM, p. 161).
86

O princípio da simpatia à condição de sentimento humanitário de caráter geral^^,


coisa que havia negado no Tratado. E é justamente por ter negado tal coisa que
Hume precisou mostrar o efeito da simpatia^^ dando a ela a função de ampliar
nossa benevolência original - de caráter limitado e parcial - e originar uma
uniformidade de pensamentos e sentimentos. Essa mudança é também apontada
por Margarita Costa: ”Devemos assinalar uma diferença importante entre as
concepções do Tratado e da Investigação com respeito ao tema que nos ocupa. Na
Investigação Hume considera que a benevolência, que chama também de
humanidade, é uma paixão universal, comum a todos os homens e “no
Tratado, ao contrário, [...], a benevolência não é considerada um sentimento
universal nem é o fundamento da aprovação e desaprovação moral. Esta função é
desempenhada pelo mais complexo mecanismo da simpatia”^^. Talvez faltou à
autora dizer, como mostraremos agora, que a simpatia, na Investigação, trans­
forma-se numa espécie de benevolência.

Isso não provoca nenhuma contradição, já que a simpatia torna-se, na


Investigação, um princípio humanitário amplo, e não restrito como a benevo­
lência; mas fraco, continuando a necessitar dos princípios da imaginação para
operar com maior intensidade. Porém, tanto a simpatia, como o efeito que dela
resulta (a dor diante do sofrimento alheio, e prazer diante de sua felicidade), são
originais, já que eles não levam ao desprezo, mas sempre à compaixão. Agora, no
Tratado e na Investigação, por serem fracos, os efeitos desses princípios nem
sempre levam a uma ação (se levassem não haveria necessidade da justiça, o que
mantém coerente o raciocínio de Hume nas duas obras), dependendo, ambos, dos
princípios que atuam na imaginação para que a dor aumente e, conseqüentemente.

Essa mudança é tão substancial, que, como mostramos, a simpatia, no Tratado, não tem só a ver com o
cuidado que temos em relação ao outro, ou com nossa preocupação com ele em decorrência de sua dor que
experimentamos em nosso Peito. Ela nos faz desprezar, entre outras coisas, o outro. Convidamos o leitor a ler e
perceber um detalhe importantíssimo na Investigação: toda vez que a simpatia é falada por Hume, ela é sempre e
invariavelmente vinculada ao prazer que temos quando contemplamos a felicidade alheia, e ao desprazer que
temos quando contemplamos sua infelicidade. O que é bastante coerente, já que, nesta obra, ela se tomou um
princípio humanitário.
Se a simpatia tivesse um caráter originário - inflexível - em seus efeitos, não poderia ora produzir desprezo,
ora benevolência. E se os seus efeitos fossem originalmente sempre de caráter benevolente, obviamente que, pela
linha de raciocínio de Hume, não haveria justiça, pois estaríamos sempre pondo os interesses dos outros em
primeiro lugar.
COSTA, Margarita. As Idéias Morais e Sócio-PoKticas de Hume. Argentina; Edições da Revista do Instituto
de Investigações Educativas, 1979. p. 25.
Ibidem.
87

uma ação dela decorra. Na Investigação, simpatia e benevolência são a mesma


coisa, mas a benevolência ou simpatia geral é fraca^’. Hume em nota de rodapé à
Investigação define a simpatia como uma espécie de benevolência mais ampla, e a
toma como um sentimento real, e não como uma ficção ou efeito da imaginação.
A benevolência é o gênero e a simpatia a espécie. Vejamos.

A b en evolência d ivid e-se naturalmente em duas e sp éc ie s, a geral e a


particular. A primeira tem lugar quando não mantemos am izade nem
relacionam ento nem apreço esp ecia l pela p essoa, mas sentim os por ela
apenas uma simpatia geral, ou com paixão por seus sofrim entos e
satisfação por suas alegrias. A outra esp écie de b en evolên cia repousa
em uma opinião sobre a virtude, em favores que nos foram prestados,
ou em lig a çõ es particulares [...]. Ambos esses sentim entos devem ser
admitidos com o realmente existentes na natureza humana [...]. T erem os
freqüentemente oportunidade de tratar, no curso desta in vestigação, do
primeiro sentim ento, a saber, o de uma b en evolên cia, ou hum anidade,
ou estim a gerais; e vou assum i-lo como real com base na exp eriência
comum, sem qualquer outra prova. (IPM. p, 190-191)

Ora, se a simpatia é um tipo de benevolência^^, e esta, por sua vez, um


sentimento real e de caráter universal, segue-se que a própria simpatia deve
receber esse qualificativo. Agora, se ela é um sentimento originário, outro ponto
de discussão com Monteiro, isso é o próprio Hume quem afirma. Em nota de
rodapé, ele nos diz o seguinte:

É desnecessário estender tanto nossa investigação a ponto de perguntar


por que temos sentim entos humanitários ou de com panheirism o para
com os demais. É suficiente que se saiba pela experiência que e sse é
um princípio da natureza humanà. [...]. Ninguém é totalm ente in d ife ­
rente à felicid ad e e desgraça de outros. A primeira tem uma tendência
natural a produzir prazer, e a segunda, dor. Isto é algo que cada qual
pode verificar em si mesmo. Não é provável que esse s p rin cíp ios p o s-

Ao falar, na Investigação, dos sentimentos humanitários, Hume nos diz: “Os graus desses sentimentos podem
ser assunto de controvérsia, mas não há como negar que a realidade de sua existência deve ser admitido em
qualquer sistema ou teoria” (IPM, p. 93).
Para fazer-se notar essa metamorfose, a seguinte comparação entre o Tratado e a Investigação nos parece
pertinente. No Tratado, ao mostrar que a fonte da aprovação moral que a justiça recebe deriva da simpatia, Hume
nos diz o seguinte: “Este último princípio, da simpatia, é fraco demais para controlar nossas paixões; mas tem
força suficiente para influenciar nosso gosto, e nos dar os sentimentos de aprovação ou condenação”
(T, p. 540). Na investigação, em sua conclusão, Hume nos diz o seguinte: “Basta para nossos presentes
propósitos que se admita - o que com certeza não poderá ser posto em dúvida sem incorrer em grande absurdo -
que há alguma benevolência, por pequena que seja, infundida em nosso coração, algum lampejo de afeição pelo
gênero humano [...]. Mesmo supondo que esses sentimentos generosos são demasiados frágeis, [...] ainda
assim são capazes de comandar as decisões de nosso espírito e, caso todo o reato seja indiferente, de produzir
uma moderada preferência pelo que é útil e proveitos à humanidade em face daquilo que lhe é prejudicial e
perigoso. Surge de imediato uma distinção moral, um sentimento genérico de censura e aprovação [...]“
(IPM, p. 155). Percebe-se que o afeto que a simpatia faz surgir em favor da humanidade, que também pode ser
contrário, no Tratado, é, na Investigação, transformado numa benevolência ampla. Porém, ambos são fracos.
88

sam ser reduzidos a p rin cíp ios mais sim ples e universais, [...] e
podem os considerar com segurança que esses princípios são originais
[...]• (IPM , p. 84-85)

Percebe-se, portanto, que não pode existir nem na Investigação, nem no


Tratado, uma gênese da simpatia, ou sentimento humanitário, na imaginação,
como defende Monteiro. O que se pode defender com base na Investigação e no
Tratado, é que na imaginação esse sentimento é avivado pelos princípios de
associação, e que sua força, sem dúvida, é inferior à do egoísmo.

Não é n ecessário que uma ação generosa sumariamente mencionada em


um velho livro de história ou em um periódico de um lugar rem oto
deva transm itir fortes sentim entos de aplauso e admiração. A virtude
quando situada a uma tal distância, é com o uma estrela fixa que,
embora apareça aos olhos da razão tão lum inosa com o o sol a prumo,
está tão infinitam ente afastada que não afeta os sentidos com sua luz e
calor. Traga essa virtude para mais perto, pela nossa fam iliaridade ou
conexão com as pessoas en volvid as, ou mesmo por um relato eloqüente
do ep isód io, e nossos corações serão imediatamente capturados, nossa
sim patia é avivada [...]. (IPM , p. 99)

A benevolência, no Tratado, sabemos, é limitada e dirigida somente às


pessoas mais próximas - parentes ou amigos - , e Hume nos diz que “esse
fenômeno da dupla simpatia e de sua tendência para produzir amor pode
contribuir para a produção daquela afeição que naturalmente sentimos por nossos
parentes e amigos” (T, p. 423). De acordo com nossa interpretação, ao fazermos,
no Tratado, uma distinção entre simpatia e benevolência, também não podemos
concordar com a interpretação que Gilles Deleuze faz na mesma obra, já que o
mesmo confunde esses dois conceitos, tratando-os como um só. A posição de
Deleuze fica bastante óbvia na seguinte passagem:

Justam ente, porque a essên cia da paixão, porque a essência do interesse


particular não é o egoísm o, mas a parcialidade, é que a simpatia, por
sua vez, não ultrapassa o in teresse particular e nem a paixão. ‘N osso
sentido do dever segue sem pre o curso habitual e natural de nossas
p a ix õ e s’. V am os até o fim , com o risco de, aparentemente, perder o
b en efício de nossa d istin ção do egoísm o e da simpatia: esta não deixa
de opor-se à sociedade tanto quanto aquele.^®

DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 33.
89

E para apoiar sua posição, Deleuze faz uma citação resumida do Trata­
d o , o n d e Hume, logo após recusar a noção de que os homens só agem pensando
em si mesmos, está a se referir à benevolência^^ É ela na integra:

Entretanto, embora devam os reconhecer, em honra da natureza humana,


a existência dessa generosidade, podem os, ao mesmo tem po, observar
que essa paixão tão nobre, em vez de preparar os hom ens para a vida
em grandes sociedades, é quase tão contrária a estas quanto o mais
acirrado egoísm o. (T, p. 527-528)

Ao lermos o trabalho de Ayer sobre Hume percebemos alguma sim ila­


ridade com nossa visão; mas, ao mesmo tempo, um ponto de vista que o põe nas
mesmas dificuldades trabalhadas acima, no que diz respeito à interpretação da
obra de Hume. Ayer percebe, como nós, que a simpatia “varia em grau e a sua
força depende de uma variedade de outras relações, que podem ligar uma pessoa
ao objeto dessa simpatia [...]” . Percebe, ainda, que nos casos “em que os atos de
um indivíduo não são intencionais, emoções como a simpatia ou o embaraço ou a
cólera podem desencadear em nós comportamentos que, muito embora cons­
cientes, não resultem no bem absolutamente de ninguém.®^” . Mas, ao mesmo tem ­
po em que faz essas considerações sobre a simpatia, confunde-a, tal como
Deleuze, com a benevolência. Basta ver que, ao falar sobre a simpatia, faz
citações de Hume onde o mesmo se refere à benevolência.

A simpatia por outras criaturas revela-se um instinto natural. A sua


força m anifesta-se de tal forma que, embora seja ‘raro deparar-se-nos
alguém que ame qualquer p essoa mais do que a si própria’ , parece
igualm ente ‘raro deparar-se-nos alguém em quem todos os atributos de
benevolência, tom ados conjuntamente, não tenham màis peso que todos
os eg o ísta s’ (T 487). Este instinto natural de simpatia ou b en evolên cia
desempenha um papel importante na formação das nossas atitudes m o­
rais e políticas.®^

® DELEUZE, Ihidem, p. 33.


Seção II (Da origem da justiça e da propriedade), p. 527.
AYER, A. J. Hume Mestres do Passado. Oxford; Oxford University Press, 1981. p. 158.
“ AYER, Ibidem, p. 159.
AYER, Ibidem, p. 155.
90

2.6 A DEFESA DO PRINCÍPIO DA SIMPATIA E A REFUTAÇÃO DAS TEO­


RIAS DO EGOÍSMO

Dado, então, que o princípio humanitário^^ faz parte de nossa cons­


tituição interna, (e é nesse sentido que ele é originário), resta ainda um problema
a ser dissolvido quanto a ele, e é o que passamos a apresentar. A lógica argu-
mentativa de Hume parece-nos, então, ser a seguinte: a dor, ou sofrimento, nos
desagrada, o prazer, ou contentamento, ao contrário, nos agrada. Tudo aquilo que
aponta ou contribui para obtenção do prazer recebe nossa aprovação; assim ocorre
com o que é útil. E como essa utilidade beneficia ou agrada, amiúde, não só a
alguém em particular, segue-se que o objeto para o qual a perspectiva de prazer
produzida pela utilidade aponta nos interessa de alguma forma, ou seja, o agrado
que a utilidade produzirá relacionado a esse objeto nos interessa porque o próprio
objeto para o qual ela se dirige também nos interessa. Sendo esse objeto a
sociedade, ela, então, nos interessa. E Hume explica esse interesse através do
princípio da simpatia.

Não é a utilidade que nos agrada enquanto tal, e a partir dela surge um
sentimento pelo bem social. É a sociedade, os outros, que nos interessa, além de
nosso interesse próprio, e a utilidade recebe a aprovação, tanto particular como
universal, por conta desse duplo interesse. Demonstrativamente o argumento de
Hume não se sustenta. Partindo das premissas que Hume utiliza não há como
aceitarmos a conclusão de que somos simpáticos à sociedade desinteressadamente,
que é a questão que pulsa.

V Prem issa: O prazer nos interessa, buscamos o prazer.

2° Prem issa: A utilidade nos interessa porque aponta para uma


finalidade prazerosa, recebendo nossa aprovação.

3^ Prem issa: A utilidade promove o bem ou prazer não só particular,


mas também, social.

^^Esclarecido o conceito de simpatia e sua transformação em benevolência, ou princípio humanitário, passaremos


a usar estes três significantes referindo-se a um único significado.
91

C o n c lu são : somos simpáticos ou interessados no bem-estar ou prazer


da sociedade (dos outros).

Vê-se que a conclusão não se segue das premissas, pois falta uma
premissa que possa garantir que o interesse que temos pela sociedade é, enquanto
tal, tomado como valor em si - mesmo que isso não se dê racionalmente, mas por
força de um sentimento. É perfeitamente plausível que o bem da sociedade nos
interesse apenas na medida em que é a própria sociedade, em harmonia, que nos
proporciona um bem-estar ou prazer maior; ou seja, o interesse pelo bem social
seria, em sua origem, decorrente de um interesse egoísta. É esse exatamente o
caso da justiça, pois como o próprio Hume assume, ela surgiu de um interesse
particular; e nada impede que o mérito que lhe atribuímos seja não como ele
afirma - devido uma simpatia pelo bem piíblico - , mas estritamente porque
garantindo a justiça, garantimos nosso próprio bem-estar.

Esta suspeita se justifica, e foi tema de um excelente texto desen­


volvido por Cícero Araújo, de nome: “As virtudes do ‘interesse próprio’". Em
resumo, Araújo traz à discussão o velho paradoxo apontado por Bernard Man-
deville em seu livro a “Fábula das Abelhas” , onde os benefícios públicos pareciam
ser mais amplamente produzidos justo quando os homens se preocupavam
exclusivamente com os seus interesses privados. E fala que em Hume há um
esforço sistemático de dar conta desse paradoxo, “não obstante os resultados
parecerem ambíguos São dois os pontos que Cícero reclama na funda­
mentação de Hume; 1) que o mesmo ao fazer uma distinção entre o interesse
próprio e o público, atribui ao último a origem dos sentimentos morais em obser­
vadores, “como se o primeiro não tivesse nada a ver com tais emoções”^’; 2) que
ele quer evitar que se conclua da explicação da justiça como um todo, que a
aprovação moral a atos justos seja “orientada para o mesmo motivo que teria
levado os homens, em sua conjectura histórica, a inventar a virtude. Pois isso
seria o mesmo que afirmar que observadores aprovam moralmente pessoas que
agem por motivo de interesse próprio.” 68 Nós concordamos com aquilo que Cícero

Cícero Araújo em: Clássicos do Pensamento Político. São Paulo, Edusp, 1988. p. 78.
ARAÚJO, Ibidem, p. 80.
68
ARAÚJO, Ibidem, p. 81.
92

aponta como sendo problemático na fundamentação de Hume; mas não concor­


damos que sua solução seja ambígua. Na seqüência deste capítulo trataremos des­
sa questão. Faremos uma breve apresentação da teoria da origem da justiça em
Hume, conforme a Seção II do Livro II do Tratado, com o intuito de pôr às claras
a relação entre os princípios do prazer e da utilidade, mostrando a inadequação do
princípio da simpatia a estes dois princípios - enquanto tomados isoladamente.

A sociedade humana forma-se basicamente a partir de um instinto pri­


mordial - o sexual - que engendra a família, e devido à debilidade humana frente
às necessidades que a vida impõe e que precisam ser superadas para que a própria
vida de cada um e de sua prole seja garantida. Essa debilidade só é superada
quando o homem agrupa-se somando forças, podendo, assim, adquirir alimentos
através da caça, vestimenta e todo tipo de objeto que lhe possa garantir a subsis­
tência. É por conta desse drama que o homem vai aos poucos aprendendo o valor
de viver em sociedade (esta passa ser a idéia mais contígua à sua mente, influen­
ciando sua imaginação); e esta se mantém estável, até o momento em que os bens
de consumo decresçam de um certo patamar, provocando a desordem na socie­
dade, decorrente da paixão do egoísmo e do desejo insaciável de possuir tais bens
(paixão incorrigível, segundo nosso filósofo). Num estado de extrema escassez os
homens unem-se para adquirir bens que lhes garantam a sobrevivência - é o
interesse particular que opera levando à união diante de um objetivo comum. Após
a aquisição desses bens a sociedade mantém-se estável (e quanto mais bens,
menor o conflito), até o momento em que estes de novo comecem a faltar, pois
“da mesma maneira que o auxílio destes bens constitui a vantagem principal da
sociedade, a instabilidade de sua posse, junto com sua escassez, constituem o
principal impedimento a esta” (T, p. 528).

A benevolência não poderia operar como estabilizadora da sociedade


devido à sua limitação, já que tal afeto é dirigido preferencialmente para o que
nos é contíguo, para as pessoas mais próximas, e que amamos (parentes e amigos).
Ao contrário, Hume, ao falar da preferência da benevolência, diz que “essa
situação deve produzir [...], uma oposição de ações; [...]” (T, p. 528). Desse jeito,
a “estabilidade da posse dos bens de consumo” foi a primeira providência adotada
a fim de garantir a paz, e isso ocorreu por força de um sentimento comum que foi
93

surgindo e mostrando ao homem que era vantajoso não se apropriar dos bens
alheios, visto que, dessa forma, a posse dos seus próprios bens seria respeitada.

Essa posse não poderia ser, contudo, fixa ou definitiva, já que os bens
de cada um nem sempre estão de acordo com suas necessidades respectivas; logo
haveria que se permitir uma flexibilidade de posse para que as pessoas pudessem
trocar os seus bens. A partir da primeira lei (estabilidade das posses), através de
um consentimento miítuo (segunda lei: transferência de propriedade por consen­
timento), haveria comércio que geraria uma terceira lei; cumprimento das promes­
sas. Pois como nem sempre “se pode transferir a propriedade de uma casa parti­
cular que fica a vinte léguas de distância, porque aqui o consentimento não pode
ser acompanhado pela entrega” (T, p. 559), era necessário que os homens
cumprissem com a palavra dada, a fim de garantir o comércio tão necessário à
manutenção da sociedade e, por conseguinte, à manutenção da própria vida.

Essas três leis surgem não por uma indicação, a priori, da razão, mas de
uma reflexão que tem origem no sentimento e na experiência. Aos poucos os
homens vão percebendo que é vantajoso respeitar a posse dos bens alheios, pois que
assim os bens de cada um serão respeitados. Aos poucos os homens vão percebendo
que não pode haver inflexibilidade na posse da propriedade, pois que isso é
prejudicial a cada um. Aos poucos os homens vão percebendo que é vantajoso
cumprir as promessas, pois o cumprimento delas é favorável ao comércio de cada
um em particular. E aos poucos essas três leis vão sendo respeitadas, implicando
numa censura moral a quem as desrespeita. Só depois é que as noções de
propriedade e direito vão surgir. As três leis se sustentam por serem extremamente
úteis à sociedade. A justiça, que diz respeito estritamente aos bens materiais, é útil
porque atende ao princípio de prazer relacionado aos bens de consumo. Ela tem sua
origem no interesse particular, e é neste interesse que reside a obrigação natural
para com ela (e isso fica claro na explicação de Hume); mas não fica claro que a
obrigação moral decorra do interesse na sociedade, no sentido da preocupação com
o bem-estar alheio, ou seja, um interesse puramente altruísta.

Essa dificuldade fica ainda mais evidente quando percebemos, conforme


dito sobre o princípio de prazer, que o que prepondera na passagem ao princípio
94

de realidade é a consecução do desejo da paixão dominante, que apenas é auxi­


liada pelo entendimento, no sentido de satisfazê-la mais adequadamente. O inte­
resse na sociedade decorre do interesse na satisfação particular, onde em última
instância visa-se a preservação da própria vida.

A sociedade é absolutam ente necessária ao bem -estar dos homens; e


essas leis são igualm ente n ecessárias à sustentação da socied ad e. Sejam
quais forem as restrições que elas possam impor às p aixões humanas,
na realidade são frutos dessas p aixões, sendo apenas um m eio mais
artificial e refinado de satisfazê-las. Nada é mais vig ila n te e inventivo
que nossas paixões; e nada é mais evid en te que a convenção para
observar essas regras. (T, p. 565)®®

Então, tanto o princípio de prazer como o de utilidade apontam para um


interesse egoísta na sociedade, e não desinteressado; o princípio da simpatia,
deixado nestes termos, sem dúvida aparece como um princípio metafísico, e
injustificado. Antes de tentarmos apontar uma solução para essa questão, traremos
o professor João Paulo à discussão, pois sua interpretação da simpatia confirma as
suspeitas de Araújo. É que Monteiro transforma o princípio da simpatia num
vassalo da paixão do egoísmo. Vejamos.

A ssim , à simpatia continua presidindo, através da m ediação da


im aginação, o princípio de prazer do qual depende toda ação humana.
Se o sujeito é levado a com portam entos aparentem ente m otivadps pelo
prazer que proporcionam aos outros, com o quando procura aliviar o
sofrim ento de alguém, é porque na verdade esses com portam entos são
para o próprio agente uma fonte de prazer, ou uma maneira de evitar o
desprazer. Concepção muito próxima à que viria a ser sustentada no
Emile de Rousseau, onde da mesma maneira, a com paixão ( ‘p itié ’) é,
em última análise, redutível à paixão por si mesmo. (TLD, p. 237)^°

Esse é o princípio de realidade.


™ Talvez o erro de Monteiro tenha sido vincular a simpatia unicamente ao prazer ou dor que nos faz tomar o
outro em apreço ou rejeitá-lo. Nós defendemos que ela é apenas uma das formas do princípio de prazer se
apresentar; mas não defendemos que ela sempre se vincule ao princípio de prazer, sendo presidida por este, já
que é um princípio independente e com função própria. Tanto é assim que quando nossa simpatia é tamanha,
perdemos de vista nosso próprio interesse na sociedade; o que confirma, mais uma vez, que ela não tem uma
caráter teleológico com a ética: “O heroísmo, ou glória militar, é muito admirado pela generalidade dos homens.
Homens de raciocínio sereno não são, porém, tão sanguíneos em seus elogios. A seu ver, a infinita confusão e
desordem que o heroísmo ocasionou no mundo diminuem seu mérito. E quando querem se contrapor às noções
populares a esse respeito, sempre retratam os males que essa suposta virtude causou à sociedade humana [...].
Mas quando dirigimos nosso olhar para a própria pessoa que causou esses estragos, há algo tão deslumbrante em
seu caráter, e sua mera contemplação eleva a tal ponto o espírito, que não podemos lhe recusar nossa admiração.
A dor que experimentamos por sua tendência a prejudicar a sociedade é sobrepujada por uma simpatia mais forte
e imediata” (T, p. 641).
95

E na seqüência, Monteiro diz que, ”para Hume, a compaixão Ccompassion’,


'p ity ’) é uma paixão que se explica pelo mesmo mecanismo que o da simpatia”
(TLD, p. 238). Essa questão é tão aguda, que dessa forma Monteiro parece trans­
formar Hume no mais ferrenho defensor da teoria do egoísmo. De fato, se a sim­
patia “é a fonte do apreço que temos por todas as virtudes artificiais” (T, p. 617),
e podemos dizer “que é ela também que dá origem a muitas das outras virtudes, e
que certas qualidades obtêm nossa aprovação em virtude de sua tendência para
promover o bem da hum anidade” (T, p. 617), Hume seria esse teórico. A questão
do filósofo não é simplesmente que os homens não têm somente princípios
egoístas, pois isso salvaria Monteiro de nossa acusação, já que existe uma
benevolência, pequena que seja, implantada na alma dos homens. A questão maior
dele é que o fundamento da m oral não pode repousar num princípio egoísta.

A simpatia, no Tratado, promove, entre outros efeitos^\ um sentimento


de apreço pela humanidade. No Tratado, essa tênue simpatia nos faz perceber a
importância do outro e acolhê-lo em várias situações, “pois a justiça é aprovada
por uma única razão, ou seja, porque tem uma tendência a trazer o bem público; e
o bem público ser-nos-ia indiferente se a simpatia não criasse em nós um interesse
por ele” (T, p. 657-658). Mas esse interesse é consciente, pois não há nada nos
textos de Hume que indique o contrário, ou seja, de estarmos sendo guiados,
inconscientemente, pelo egoísmo. E o senso moral, que tem esse sentimento como
fundamento, requer a participação da razão, no sentido de nos fazer perceber que

Pondo uma pá de cal nessa questão, convidamos o leitor a ler a Seção V, Parte II, Livro II, que fala de nossa
estima pelos ricos e poderosos, a fim de perceber que Hume faz questão de mostrar que essa estima não segue de
uma expectativa de vir a ter algum benefício dessas pessoas. Porque não há “dúvida de que nós naturalmente
estimamos e respeitamos os ricos, antes mesmo de descobrir neles uma tal disposição favorável para conosco”
(T, p. 395). Não dá pra vincular a simpatia a um interesse egoísta. Sendo a simpatia aquilo que, originalmente e
imperativamente, nos faz tomar o outro em consideração, não pode ser vista como um princípio que se liga
somente ao interesse particular, pois “às vezes levamos tão longe essa simpatia, que chegamos a sentir um
desconforto por possuirmos uma qualidade que é conveniente para nós, só porque essa qualidade é incômoda
para outras pessoas e nos toma desagradáveis a seus olhos, mesmo que não tenhamos nenhum interesse em nos
tomar agradáveis a elas“ (T, p. 629). Sepultando a questão do egoísmo relacionado à simpatia: “Mas embora a
distinção entre o vício e a virtude possa parecer decorrer diretamente do prazer ou desprazer imediato que as
qualidades particulares causam em nós ou nas outras pessoas, é fácil observar que ela também depende
consideravelmente do princípio da simpatia, em que tantas vezes insisti. Aprovamos uma pessoa que possui
qualidades imediatamente agradáveis àqueles com quem tem algum relacionamento, mesmo que nunca
tenhamos extraído nenhum prazer dessas qualidades. Também aprovamos a pessoa que possui qualidades
imediatamente agradáveis a si mesma, ainda que não tenham utilidade para nenhum mortal. Para explicar esses
fatos, temos de recorrer aos princípios anteriormente mencionados” (T, p. 630). Essa passagem reforça ainda
mais nossa posição de que a simpatia é um princípio inato, pois percebe-se que não é apenas uma simulação em
nossa imaginação da dor ou prazer do outro o que nos faz tomá-lo em consideração.
96

agindo em prol do bem público, atendemos ao nosso duplo interesse - o nosso


próprio e o interesse nos outros. Nós vimos que tanto no Tratado como na
Investigação há uma participação da razão e do sentimento nas decisões morais.
Ou seja, o senso moral requer “além da capacidade de reflexão que reserva aos
atos dos agentes racionais humanos, a capacidade de pensar essas ações como
praticadas com intenção, e ‘em geral’, e também independentemente de nosso
interesse individual imediato [...]” (TLD, p. 346). Não podemos, por isso,
concordar com a interpretação de Monteiro. Voltemos à questão de Cícero Araújo.

É preciso concordar com Araújo que a dificuldade que o mesmo aponta


deve ser considerada na teoria de Hume. Porém, o problema lógico que apontamos
mais acima é atenuado, senão dissolvido, quando o interpretamos apenas como
indicação daquilo que ele já anteviu na experiência. Lembremos acerca da moral,
que já “que esta é uma questão factual e não um assunto de ciência abstrata, só
podemos esperar obter sucesso seguindo o método experimental e deduzindo
máximas gerais a partir de uma comparação de casos particulares” (IPM, p. 26). E
ainda: “Hoje os homens estão curados de sua paixão por hipóteses e sistemas em
filosofia natural, e não darão ouvidos a quaisquer argumentos a não ser aqueles
derivados da experiência” (IPM, p. 26). Portanto, é a experiência que vai
fundamentar a simpatia, e é nesse sentido que nosso mestre faz uma
fenomenologia das virtudes (ou qualidades), construindo um catálogo delas com o
intuito de mostrar que a sociedade (não somente enquanto sistema, mas tomando-a
como agrupamento de pessoas) não nos é indiferente, na medida em que nos
preocupamos com os outros além de considerações egoístas.

Tal catálogo é observável (dele trataremos daqui a pouco), e podemos


tomá-lo como medida de nossas inferências; ao contrário, pressupor um agente
egoísta além do que é observado, aí sim, seria desandar na metafísica. Isso é o que
ocorre com a doutrina que defende o egoísmo como guia único das ações hum a­
nas. Esta doutrina pode ser resumida da seguinte forma. Todos os homens mesmo
quando agem com a mais pura sinceridade e realizam atos louváveis de pura
benevolência desinteressada, mesmo que não se descubra nada que possa por em
dúvida suas atitudes morais, ainda assim, agem por egoísmo. A crítica que Karl
97

Popper fez à psicologia individual de Alfred Adler,^^ que procura explicar o


comportamento humano com base unicamente no sentimento de inferioridade,
reflete bem o problema epistemológico que depõe contra a doutrina do egoísmo.
Dois homens, um joga uma criança no rio com a intenção de matá-la, o outro se
joga ao rio com a intenção de salvá-la. De acordo com a teoria de Adler, o
primeiro, devido ao sentimento de inferioridade, quer provar a si mesmo ser capaz
de cometer um crime. O segundo, por força do mesmo sentimento, quer provar a si
mesmo ser capaz de um belo gesto (ou, poderíamos dizer, buscar a estima das
pessoas). Como decorrência dessa abordagem, não há base empírica que possa
refutar a teoria; ela é imune à refutação, sendo, segundo o projeto de Popper, não-
científica. Este não é o caso da simpatia, como veremos adiante.

A teoria do egoísmo padece do mesmo defeito. Uma velhinha é ajudada


a atravessar a rua; quem a ajudou estava atendendo a motivações pessoais de
busca de auto-estima. Mas não há ninguém nas ruas, a não ser a velhinha e quem a
ajudou. Os partidários dessa doutrina respondem: esta pessoa estava projetando, e
ao perceber que um dia se encontrará nas mesmas dificuldades, agiu assim apenas
por esse motivo. Hume não nega que o egoísmo ou interesse particular é a paixão
dominante, muito pelo contrário, ele é categórico ao afirmar que a nossa
benevolência é inferior ao interesse próprio, e que as ações benevolentes têm
vazão, na maioria das vezes, somente quando não conflitam com nossos interesses
particulares. O que ele combate é a afirmação que vem explícita na doutrina do
egoísmo, qual seja, de que não há ações desinteressadas. Citamos Hume.

Com o, na verdade, poderíam os supor p ossível a um ser dotado de um


coração humano, caso lhe fosse submetido à apreciação um caráter ou
sistem a de conduta b en éfico e outro pernicioso à sua esp écie ou
com unidade, que e le não viesse a manifestar pelo menos uma moderada
preferência pelo prim eiro, ou atribuir-lhe minimamente algum mérito e
consideração? Por m ais egoísta que suponhamos ser essa pessoa, por
mais que sua atenção esteja absorvida em seus próprios interesses, ela
d eve sentir inevitavelm ente, nos casos em que seus interesses não estão
em jo g o , alguma propensão ao bem da humanidade, e fazer dele o
objeto de sua escolh a sempre que isso não lhe trouxer maiores co n se­
qüências. (IPM, p. 9 1 -9 2 )

POPPER, R. KARL. Conjecturas e Refutações. Rio de Janeiro: Editora Universidade de Brasíüa, 1985. p. 65.
98

Hume quer desmentir essa doutrina por duas razões: 1) a m oral requer
algum sentimento universal que possa justificar as regras universais que se
apresentam na experiência; 2) a doutrina egoísta só poderia justificar as máximas
universais se houvesse nas ações virtuosas e nos louvores às virtudes um real
interesse, expresso empiricamente, de cunho pessoal. Sem falar que a noção de
egoísmo depõe contra um código de normas aceitas universalmente.

Quando um homem chama outro de seu in im igo, seu rival, seu anta­
gonista, seu adversário, entende-se que ele está falando a linguagem do
amor a si mesmo e expressando sentim entos que lhe são p eculiares e
que surgem das particulares situações e circunstâncias em que está
envolvido. Mas quando confere a alguém os epítetos de corrupto,
odioso ou depravado, já está falando outra linguagem e expressando
sentim entos que ele espera que toda sua audiência irá com e le com par­
tilhar. (lE H , p. 156-157)

E ainda que

esta afecção humanitária não seja em geral considerada tão forte com o
a vaidade ou a am bição, somente ela, por ser comum a tod os os seres
humanos, pode constituir a fundação da moral ou de qualquer sistem a
geral de censura ou louvor. A ambição de uma pessoa não é a ambição
de outra, e nem podem ambas ser satisfeitas por um m esm o objeto ou
acontecim ento; mas a humanidade de um hom em é a hum anidade de
todos, e o mesmo objeto excita esta paixão em todas as criaturas huma­
nas. (IPM, p. 157)

Vejamos como nosso pensador defende o princípio da simpatia,


empiricamente. Passemos as seguintes considerações. A experiência nos mostra
que as expressões de pesar e lamentação, embora arbitrárias, inspiram-nos um
sentimento de tristeza; “mas os sintomas naturais como lágrimas, gritos e gemidos
não deixam jamais de produzir compaixão e desconforto. Se os efeitos da aflição
nos tocam de uma forma tão vivida, seria porventura concebível que ficaríamos de
todo insensíveis e indiferentes a suas causas, quando um caráter ou
comportamento malicioso e traiçoeiro nos fosse apresentado?” (IPM, p. 86).
Sendo fato que somos movidos, exclusivamente, por motivos egoístas, por que
razão nos preocupamos em não causar dor ou aumentar o sofrimento alheio,
quando nossos interesses particulares não estão em jogo?

Um homem que vai caminhando iria porventura pisar propositalm ente


sobre os pés machucados de um outro com quem não tem nenhuma rixa
99

com a mesma tranqüilidade com que pisa sobre as pedras duras do


calçam em o? [...]. Levamos com certeza em consideração a felicid ad e e
a desgraça de outros ao pesar os diversos m otivos para uma ação, e
inclin am o-nos para a prim eira sempre que considerações de caráter
privado não nos levem a procurar nossa própria promoção ou vantagem
à custa do prejuízo de n ossos sem elhantes. (IPM, p. 93)

Mas, não somente o egoísmo serve de entrave às nossas pretensões


morais, outras paixões como o ressentimento ou a inveja nos impelem no sentido
contrário das ações desinteressadas. Porém, quando não estamos corrompidos por
elas, “estamos sempre inclinados, pela nossa filantropia natural, a dar preferência
à felicidade da sociedade e, conseqüentemente, à virtude, mais do que a seu
oposto” (IPM, p. 94). Quaisquer acontecimentos que afetem o destino de “Esta­
dos, províncias ou um grande número de indivíduos, são extremamente inte­
ressantes mesmo para aqueles cujo bem-estar não está diretamente envolvido”
(IPM, p. 89). E quando lemos a história de povos que foram humilhados por
tiranos ou por exércitos em batalha desonesta, somos tomados por um sentimento
de revolta. E sofremos, também, quando percebemos o sofrimento alheio decor­
rente de alguma deformação física. Com efeito, Hume cita o exemplo de uma
pessoa que gagueja e articula suas palavras com dificuldade. Neste caso “simpa­
tizamos inclusive com esse mal-estar trivial, e sofremos por ela” (IPM, p. 90).

Mas os defensores do egoísmo poderiam objetar dizendo que esses


sentimentos são provocados pela imaginação, e que por conta dela a benevolência
é apenas uma função do interesse particular. Quando nos preocupamos com a
desgraça alheia, quer no momento presente ou em função de acontecimentos
passados, na verdade estamos fazendo uma projeção ou retroação, onde nos
colocamos na posição das pessoas envolvidas e pensamos nos benefícios ou
contratempos que poderíamos ali ter, daí resultando os sentimentos de aprovação
ou reprovação experimentados. Sendo assim, quando alguém nos fala de um
modelo de caráter digno de todos elogios que nos comunica, instantaneamente, um
sentimento de aprovação, quando dedicamos elogios a ações virtuosas realizadas
em épocas muito distantes e em países que não o nosso, e que se dirigiam não
somente a uma pessoa em particular, estamos, tão-somente, por efeito da imagi­
nação, experimentando uma sensação de prazer de cunho totalmente particular. O
mesmo raciocínio serviria para aqueles exemplos em que nosso espírito repudia
100

ações contra o interesse público, em qualquer época que seja, ou quando mostra
ojeriza por um caráter maléfico, mesmo que este se nos apresente numa época
remota da história. Hume combate esse tipo de argumento categoricamente.
Escutemo-lo.

É im p ossível conceber com o um sentimento ou paixão reais podem


brotar de um interesse reconhecidam ente im aginário, esp ecialm en te
quando nosso interesse real continua sendo levado em conta e é
freqüentemente reconhecido como inteiramente distinto do in teresse
imaginário, e m esm o, algumas vezes, oposto a ele. (IPM, p. 81)

O que Hume está fazendo é enfatizando o estatuto metafísico da


doutrina do egoísmo. O que nos chega, via experiência, é o sentimento de
aprovação ou desaprovação diante dos fatos, e isso é automático e sem nenhum
espaço de tempo para que a reflexão se ponha a divagar sobre conseqüências
negativas ou positivas que teríamos caso nos encontrássemos em tais situações.
Não conseguimos encontrar nada que possa identificar um egoísmo originário.

Passemos à análise, através do catálogo, das virtudes e vícios. Hume


faz a seguinte distinção entre as qualidades ou virtudes; 1) qualidades úteis aos
outros; 2) qualidades úteis para própria pessoa; 3) qualidades imediatamente
agradáveis aos outros; e 4) qualidades imediatamente agradáveis à própria pessoa.
Da análise que o filósofo levanta dessas virtudes, extrai a conclusão de que há de
fato um sentimento, ao qual ele dá o nome de simpatia, de consideração com o
bem das pessoas e de desprazer com o seu sofrimento. Na Seção VI da
Investigação, ele trata das qualidades que são úteis às próprias pessoas que as
possuem. Elenca primeiramente uma série de atributos que, mesmo trazendo mal
somente às pessoas por eles afetadas, não são de todo indiferentes àqueles que as
observam. São eles: indolência, negligência, falta de método e ordem, teimosia,
volubilidade, precipitação, credulidade. Tais atributos não são indiferentes ao
caráter, e tampouco são tidos como virtude ou perfeição, pois que “o dano que
deles resulta chama imediatamente nossa atenção e nos comunica um sentimento
de pena e desaprovação” (IPM, p. 103). Agora vejamos o inventário que nosso
filósofo constrói de qualidades (virtudes) úteis somente às pessoas que as
possuem; são elas: discrição, diligência, frugalidade, temperança, reserva, decoro.
101

entre outras. A discrição, por exemplo, é a qualidade mais necessária para


realização de qualquer empreendimento útil, e com ela

mantemos um relacionam ento seguro com os outros, damos a devida


atenção a seu caráter e ao n osso, pesam os cada circunstância da
atividade que estam os desem penhando e empregamos os m eios mais
adequados e con fiáveis para alcançar qualquer fim ou propósito.
(IPM, p .107)

Sobre a diligência, pergunta Hume sobre a necessidade de enumerar os


louvores a ela e de enaltecer suas vantagens para aquisição de riqueza e poder, ou
para edificar aquilo que se chama uma fortuna no mundo. E quanto à frugalidade, ele
nos diz; “mas todas as perspectivas de sucesso na vida, ou mesmo de uma tolerável
subsistência, devem falhar se falta uma razoável frugalidade” (IPM, p. 109).

Todas as virtudes há pouco citadas despertam o interesse geral e


promovem uma admiração por aquelas pessoas que as possuem. Obviamente,
outros sentimentos podem ocorrer, por exemplo a inveja; contudo, o que Hume
quer realçar é que quando os talentos naturais e habilidades adquiridas “nos
apresentam o panorama da elevação, progresso, uma boa posição na vida, sucesso
florescente, um firme controle das eventualidades e a realização de grandes ou
vantajosos empreendimentos, somos tocados por essas imagens agradáveis e
sentimos brotar imediatamente uma satisfação e consideração por essa pessoa”
(IPM, p.104-105).

Prestemos atenção a estratégia de Araújo de aludir aos argumentos de


Hume para colocá-los sob suspeita. Diz ele:

Como salientei em outro lugar, Hume pensa que certas qualidades


mentais agradáveis ou ú teis ao s e lf (ao próprio agente), independen­
temente de seus efeito s nos outros, são consideradas virtudes. E le não
diz que o interesse próprio nos term os em que estou caracterizando
aqui, é uma virtude. M as ele diz que a ‘prudência’, ‘frugalidade’,
‘indústria’ são todas qualidades vistas com o virtude (T, p. 587); e não
porque tais qualidades de alguma forma contribuem para o bem dos
outros, com o pensa H utcheson, mas porque tendem a produzir
vantagens para o agente que as p ossu i. Mais interessante ainda; um
devido grau de orgulho entre os traços de caráter de uma p essoa é visto
como virtude. Pois ‘nada é mais útil a nós mesmos na conduta da vida,
que um devido grau de orgulho, que nos faz sensíveis de nossos
próprios m éritos, e nos dá confiança e segurança em todos os nossos
projetos e em preendim entos’ (T, p. 5 9 6 -5 9 7 ). O interesse próprio
102

esclarecid o é a paixão que subjaz, em diferentes graus e com d iferentes


características, a todas as qualidades virtuosas acima citadas.

O interesse esclarecido é o que norteia a ação dos homens em relação à


origem da justiça, e na passagem acima Cícero, ao fazer notar o interesse próprio
que está conectado às virtudes citadas, e associando-o, sem justificativa alguma,
ao interesse próprio esclarecido que fundamenta a justiça, quer nos levar a crer,
ou pelo menos a admitir como plausível que, já que admiramos essas virtudes de
interesse unicamente pessoal, deveríamos nutrir admiração pela virtude da justiça
nos mesmos termos. Mas aqui há um erro grave: mesmo se percebendo que as
virtudes citadas atendem somente aos interesses das próprias pessoas que as
possuem, não se segue que nosso louvor a essas virtudes se dê por conta de uma
admiração e consideração pelo interesse particular, e não pelas pessoas, que é o
que Hume quer apontar. E tem mais: esse argumento é circular, porque já está
pressupondo que o que nos faz de fato levar em consideração as pessoas
portadoras dessas virtudes é a satisfação do interesse próprio, e não as próprias
pessoas. Além do que, podemos dizer, o benefício que se consegue por se ter essas
virtudes é natural, e o que se consegue em relação à justiça é puramente racional e
artificial, pois que os homens, instruídos pela razão experimental, sabem e
perseguem racionalmente seu próprio interesse. Há uma analogia imprópria.

Como observamos, somos tocados tanto pelo que diz respeito às não-
virtudes humanas (que só trazem prejuízos às pessoas que as possuem), como
pelas virtudes (que só trazem benefícios às pessoas que as possuem). Com isso
Hume mostra que, nas duas questões, levamos em consideração não somente a
nossa pessoa. E aqui há um sólido muro construído contra aqueles que querem
destruir a fortaleza das ações desinteressadas. Pois, como as vantagens colhidas
por quem possui as virtudes citadas são desfrutadas somente pela pessoa que
possui tal caráter, “não pode de modo algum ser o amor a si mesmo que torna sua
contemplação agradável para nós, os espectadores, e que inspira nossa estima e
aprovação” (IPM, p. 104)’"^. O ponto de toque a ser ressaltado é que quem defende
que secretamente existe um interesse egoísta na base desses louvores, deve, se

ARAÚJO, Ibidem, p. 86.


Frontalmente contra João Paulo Monteiro.
103

deseja seguir os passos da razão e da ciência, providenciar argumentos baseados


na observação que indiquem tal conexão. Pois que, segundo o filósofo, nenhum
esforço da imaginação

pode converter-nos em outra p esso a e fazer-nos imaginar que, por ser­


mos ela, colhem os b en efício s dessas v a lio sa s qualidades que lhe
pertencem .[...], nenhuma rapidez da im aginação poderia transportar-
nos imediatamente de volta para nós m esm os e fazer-nos admirar e
estimar essa pessoa com o distinta de nós. (IPM , p. 104)

Escapou a Araújo a seguinte dificuldade: se é o interesse privado que


nos faz levar em consideração as pessoas que possuem tais virtudes, e não um
sentimento natural de humanidade, deveríamos, naturalmente, ter uma antipatia
geral por aquelas pessoas que possuem as não-virtudes - já que não atendem a
seus interesses próprios. Vejamos agora as qualidades que são imediatamente
agradáveis à própria pessoa, e que, de uma forma muito especial, conquistam
nossa simpatia apenas pelo seu aspecto agradável, sem que haja nenhuma
consideração de caráter utilitário. Assim, como exemplo, a alegria subitamente
conquista a aprovação geral, e é üma qualidade espiritual como outras que

sem apresentar nenhuma u tilid ad e ou tendência a um b en efício


adicional quer para a com unidade, quer para seu possuidor, transmitem
uma satisfação aos que as contem plam , e obtêm estim a e apreciação.
Sua sensação im ediata para a p essoa que as p ossui é agradável, os
outros se põem no mesmo humor e captam o sentimento por um
contágio ou simpatia natural; e, com o não podem os evitar gostar de
tudo o que agrada, brota uma cordial em oção dirigida para a pessoa que
transmite tanta satisfação. (IPM , p. 126)

Essa pessoa que contagia com sua alegria natural é sempre bem
recebida, sempre sentem sua falta, a ela prestam-se favores, a ela ofertam-se
presentes, a ela dirigem-se palavras de elogio. Mas não cabe dizer que todas as
oferendas que lhe são endereçadas fazem parte de um interesse egoísta por parte
daqueles que esperam sempre que a pessoa alegre lhes proporcione prazer. Isso
seria inverter a ordem empírica: primeiro somos contagiados por sua alegria e lhe
damos a merecida consideração, depois lhe prestamos favores. O que pode ser
inferido é que todos os galardões não passam de um efeito da simpatia, uma
espécie de gratidão, mas não que são decorrentes de um cálculo racional. Agora, é
possível que depois as pessoas passem a bajular o sujeito por interesse no prazer
104

de sua alegria, mas não na gênese do fenômeno. A alegria agrada, em primeiro


lugar, à própria pessoa, e por simpatia contagia os demais.

Na Seção VIII, da Investigação, nosso pensador trata das qualidades


imediatamente agradáveis aos outros. Em nota de r o d a p é , s a l i e n t a que essas
virtudes, a despeito de outras que produzem prazer porque são úteis à sociedade,
ou úteis e agradáveis à própria pessoa que as possui, produzem prazer de maneira
imediata. Na seqüência, ele nos fala que a eloqüência, habilidades de todas as
espécies, bom senso e sólido raciocínio, “quando se elevam a um grau superior e
são empregados em assuntos que envolvem grande dignidade e refinado
discernimento, [...] parecem agradar de imediato e tem um mérito que se distingue
de sua utilidade” (IPM, p. 144). A decência, ou a apropriada consideração pela
idade, sexo, caráter e posição social, é classificada, por Hume, com as qualidades
que são imediatamente agradáveis aos outros e que “por isso, recebe louvor e
aprovação” (IPM, p. 148).

Há certas virtudes de caráter social que^ conforme Hume, recebem o


devido mérito tanto pela sua utilidade, quanto pelo prazer em si que proporcionam
ao espectador. Entre elas estão a coragem e a benevolência. Quanto à primeira,
diz que seu mérito deve-se, em grande medida^ ao aspecto útil que ela possui,
tanto para o público quanto para o seu possuidor. Mas ressalta que qualquer um
que a considere com a devida atenção “perceberá que esta qualidade tem um
brilho especial, que extrai totalmente de si mesma e da nobre exaltação que lhe é
inseparável” (IPM, p. 131). Ele prossegue informando-nos que a imagem da
coragem traçada pelos poetas e pintores, revela uma grandeza e ousada confiança
que captura o olhar, “granjeia o afeto e infunde, por simpatia, uma semelhante
grandeza de sentimentos em todo espectador” (IPM, p. 131). para justificar sua
posição, Hume cita a representação de Felipe feita por Demóstenes. É ela;

Contem plei Filipe, contra quem lutastes, expondo-se resolutam ente, em


sua busca de poder e dom ínio, a todos os ferim entos; seu olho coberto
de sangue, seu pescoço contorcido, seu braço e coxa trespassados,
pronto a deixar para trás qualquer parte de seu corpo que a fortuna

75
IPM, p. 141.
105

agarrasse desde que pudesse, com o restante, viver com honra e renome
[...]. (IPM, p. 131)

Nosso filósofo quer nos convencer de que, quando contemplamos atos


ou ouvimos relatos de coragem, somos tomados por uma forte admiração que é
desvinculada de qualquer interesse próprio. Com respeito a Felipe, podemos ver
que “a perspectiva apresentada pelo autor não nos transporta para além do próprio
herói, e jamais considera as futuras conseqüências vantajosas de seu valor”
(IPM, p. 131). O mesmo se dá com respeito à benevolência; seu mérito provém,
em grande medida, de sua utilidade e de sua tendência a promover o bem da
humanidade. Mas além disso se reconhecerá, nos diz Hume,

que a própria brandura e delicad eza d esse sentim ento, sua cativante
afabilidade, suas afetuosas exp ressões, seus atenciosos cuidados e todo
o fluxo de mútua confiança e respeito que faz parte dos ternos vínculos
de amor e amizade; também se reconhecerá, eu d izia, que esses
sentim entos, por serem em si m esm os d eleitá v eis, são necessariam ente
transmitidos aos espectadores e os en volvem na m esm a ternura e
delicadeza. (IPM, p. 135)

O ponto central neste argumento é que, como estamos acostumados a


avaliar o mérito e demérito dos caracteres principalmente pelas suas tendências
úteis ou perniciosas, “não podemos evitar aplicar um termo de censura diante de
um sentimento que se eleva a um grau prejudicial; mas pode ocorrer, ao mesmo
tempo, que sua nobre elevação ou sedutora gentileza capturem de tal modo o
coração a ponto de, antes, aumentarem nossa estima e interesse por essa pessoa”
(IPM, p. 136). Mesmo a reflexão nos informando que o excesso pode não ser lítil,
ainda assim damos crédito e admiramos as pessoas que possuem essas
qualidades’^. O filósofo cita o seguinte exemplo: “A coragem excessiva e a
resoluta inflexibilidade de Carlos XII arruinaram seu próprio país e assolaram
todos os países vizinhos, mas exibem um tal esplendor e grandeza que nos enchem
de admiração, e poderiam até mesmo receber um certo grau de aprovação, se não
traíssem ocasionalmente sintomas demasiado evidentes de loucura e desordem
mental” (IPM, p. 137).

Que o mérito que damos à benevolência não decorre somente de sua utiüdade pode ser provado obliquamente
ao se perceber que, mesmo em hipótese alguma ela não trazendo mal à sociedade, às vezes observa-se uma leve
censura às pessoas que excedem em sua benevolência, realizando mais do que se é exigido na sociedade (fulano
é bom demais até!), conforme Seção VII da segunda Investigação.
106

A suspeita - e não a prova - que haveria um interesse particular,


egoísta, sempre atuando nas ações humanas, assim como na censura ou aprovação
que dirigimos a seus agentes, só teria razão de ser caso as virtudes dependessem
estritamente do caráter utilitário que em algumas delas aparece. A justiça é uma
virtude que extrai seu mérito exclusivamente de sua utilidade. Hume faz questão
de deixar isso bastante claro; aliás, é essa a sua intenção na Seção III da
Investigação, pois “ [...] a afirmação de que a utilidade pública é a única origem
da justiça e que as reflexões sobre as conseqüências benéficas dessa virtude são a
única fundação de seu mérito, sendo uma proposta mais inusitada e significativa,
é mais merecedora de nosso exame e investigação” (IPM, p. 35).

Quando a sociedade tem extrema abundância de todas as conveniências


externas (não há conflito, pois os bens de consumo estão fortemente à disposição
das pessoas), ou quando é tombada por uma extrema miséria, a justiça passa a não
mais causar efeito algum sobre os homens, pois perde sua utilidade. No primeiro
caso, diz Hume: “parece óbvio que, em uma condição tão afortunada, todas as
demais virtudes sociais iriam florescer e intensificar-se dez vezes mais; mas,
quanto à cautelosa e desconfiada virtude da justiça, dela não se ouviria falar uma
vez sequer” (IPM, p. 36). Quanto ao segundo caso, diz o filósofo: “Numa tal
emergência admitir-se-á prontamente, segundo acredito, que as leis estritas da
justiça estarão suspensas, dando lugar aos motivos mais fortes da necessidade e
autopreservação” (IPM, p. 39). Da mesma forma, ocorreria caso houvesse uma
diminuição do interesse particular a favor de uma benevolência e preocupação
maior com o bem alheio.

Suponha-se além disso que, embora as carências da raça humana


continuem as mesmas do presente, o espírito se tenha engrandecido
tanto e esteja tão repleto de sentim entos am igáveis e generosos que
todo ser humano nutre o maior carinho pelos demais e não sente uma
preocupação m aior pelos assuntos de seu próprio interesse do que pelos
de seus com panheiros. Parece evidente que, em vista de tamanha
b en evolên cia, o uso da justiça ficaria suspenso neste caso, e jamais se
cogitaria, aqui, as d ivisões e barreiras da propriedade e obrigação.
(IPM, p. 37)

Ao analisarmos as outras virtudes, não tomando só a justiça como


referência, a suspeita de que ao atribuir méritos a esta, assim como aos atos
107

benevolentes, estamos sempre visando nosso próprio interesse, torna-se indefen­


sável. Se no que diz respeito àquelas virtudes ou qualidades que só trazem
benefícios (são úteis) a quem as possui, damos louvores e mostramos a maior
admiração por quem delas desfruta, por que, então, não haveríamos de prestar
algum tipo de louvor desinteressado às virtudes da justiça e da benevolência, das
quais sabemos que decorre um bem geral? A análise das virtudes visava m ostrar
justamente aquilo que Hume anunciara anteriormente, a saber, que é impossível
que a utilidade agrade enquanto meio, sem que o fim a que se destina também não
agrade de alguma forma. Temos uma simpatia pelos outros, pelo bem da hum a­
nidade, pois isso nos é agradável^^. O princípio de prazer está sempre presente
como princípio da moral conectado ao da simpatia. Há princípios inatos que nos
levam a considerar o outro desinteressadamente, independentemente de querermos
ou não; isto é anterior à nossa vontade, sendo causa originária. Diríamos até que o
outro possui um valor em si, tão-somente por conta desse sentimento, e não por
força de uma determinação ou conclusão a priori da razão. E, ainda, que esses
princípios são uma espécie de imperativos naturais.

Provado o sentimento de humanidade, retira-se a desconfiança, ou pelo


menos fica ela suspensa até novos argumentos, de que o mérito atribuído à justiça
ou às ações úteis, ou ainda ao caráter útil, dê-se por conta exclusivamente de um
interesse pessoal. Pois se tanto onde entra o caráter utilitário (nos casos em que
uma virtude só é útil a quem a possui), assim como onde ele não está presente
(nas qualidades que são imediatamente agradáveis à pessoa que as possui),
levamos em consideração as pessoas às quais essas virtudes beneficiam, como
retirar essa atenção para com o outro no que diz respeito à virtude da justiça?

E sses são alguns exem plos das várias esp écies de mérito que são
valorizadas p elo prazer im ediato que com unicam à pessoa que as
p ossui. Nenhuma perspectiva de utilidade ou de futuras con seq ü ên cias
b enéficas toma parte nesse sentim ento de aprovação; e, no entanto, ele
é sem elhante àquele outro sentim ento que surge de uma p ercep ção da
utilidade pública ou privada. O bservamos que a m esm a simpatia so cia l,
ou sentim ento de solidariedade pela felicid ad e ou miséria hum anas,
está na origem de ambos; e esta analogia, em todas as partes da
presente teoria, pode com justiça ser tomada com o uma confirm ação
desta. (IPM, p .139)

” O “agradável” deve ser visto como sintoma de uma paixão social, e não egoísta.
108

Podemos finalizar dizendo que como a paixão do egoísmo predomina


nas situações em que a sobrevivência pessoal estiver em jogo, tanto as normas da
justiça perdem sua força, como a própria moralidade (suas normas), ficando em
vigor apenas a benevolência relacionada com as pessoas mais próximas, pois “a
justiça tira sua origem exclusivamente do egoísmo e da generosidade restrita dos
homens, em conjunto com a escassez das provisões que a natureza ofereceu para
suas necessidades” (T, p. 536).

Antes de passarmos adiante, devemos analisar uma forte crítica que foi
feita a Hume por William Davie, relativa ao catálogo de virtudes acima, por ele
apresentado como procedimento metodológico inadequado para se abordar a
questão moral. O objetivo de Davie é tratar exclusivamente do catálogo de Hume;
muito embora alegue, sem tocar na questão, que o defeito ali encontrado conta­
mina toda a teoria moral do filósofo. Citamos: “Se há algo errado nesse catálogo,
como penso, deve-se esperar tal defeito no conjunto da filosofia ética de Hume”’^.
Para discutirmos essa questão, julgamos útil colocar em tela a passagem em que
Hume fala do catálogo, a fim de confrontarmos o autor com a crítica de Davie.
Vejamos a passagem.

Pois se tiverm os a fe lic id a d e, no curso dessa investigação, de descobrir


a verdadeira origem da moral, será fácil perceber em que medida tanto
o sentim ento com o a razão figuram em todas as determ inações dessa
natureza. Para alcançar esse objetivo, esforçar-nos-em os para seguir
um m étodo bastante sim ples: vamos analisar o com plexo de qualidades
m entais que constituem aquilo que, na vida cotidiana, chamamos de
mérito pessoal; vam os considerar todos os atributos do espírito que
fazem de alguém um objeto seja de estim a e afeição, seja de ódio e
desprezo; todos os h ábitos, sentim entos ou faculdades que, atribuídos a
uma p essoa qualquer, im plicam ou louvor ou censura, e poderiam
figurar em algum p anegírico ou sátira de seu caráter e maneiras. A
aguda sen sibilidad e que é tão universal, nesses assuntos, entre os seres
humanos fornece ao filó so fo uma garantia suficiente de que nunca
estará enganado em dem asia ao compor seu catálogo, nem correrá qual­
quer risco de cla ssifica r erroneamente os objetos de sua contem plação;
tudo o que ele precisa é consultar por um momento seu próprio coração
e considerar se desejaria ou não que esta ou aquela qualidade lhe
fossem atribuídas, e se tal ou tal atribuição procederia de um amigo ou
de um inim igo. A natureza mesma da linguagem guia-nos quase in fa li­
velm ente na form ação de um ju ízo dessa espécie; e assim como qual­
quer língua possui um conjunto de palavras que são tomadas em um
bom sen tid o e outras em um sentido oposto, basta a mínima fam i­
liaridade com o idiom a para nos orientar, sem qualquer raciocín io, na

DAVIE, William. Hume’s Catalog o f Virtue and Vice. DAVID HUME, Many-side Genius. University of
Oklahoma press: edited by KENNETH R. Merril and W. Shahan. 1976. p. 45.
109

coleta e arranjo das qualidades humanas que são estim áveis ou censurá­
v eis. A única tarefa do raciocínio é discernir as circunstâncias com uns,
em cada um dos lados, a essas qualidades; observar aquelas caracterís­
ticas particulares em que concordam, de um lado, as qualidades esti­
m áveis, e, de outro, as censuráveis; e a partir daí atingir o fundamento
da ética e descobrir aqueles princípios universais dos quais se deriva,
em última instância, toda censura e aprovação. (IPM , p. 2 4 -2 5 -2 6 )

A crítica principal de Davie refere-se ao fato de não concordar (nós


também não) que o catálogo de Hume possa receber, digamos, uma aceitação geral
diante da variedade cultural existente e das diferenças pessoais: “O significado de
nossas reações a palavras não é imediatamente óbvio. Para tornar isso mais
evidente, basta que perguntemos a nós mesmos se diferentes pessoas construiriam,
ao final do experimento, um mesmo c a t á l o g o . D a v i e põe em dúvida se cada
pessoa colocaria uma mesma palavra na mesma parte do catálogo em que outra
colocaria; ou se cada pessoa poria as mesmas palavras no catálogo. Alega ainda
que as palavras provocam reações diferentes nas pessoas; “Sobretudo, poderia
haver uma diferença considerável de pessoa para pessoa mesmo com respeito a
palavras mais comuns. Palavras como “sensual”, “durão”, “cabeça-oca” , “ateu”, e
muitas outras poderiam provocar reações em algumas pessoas e não em outras.
O que leva Davie a questionar o experimento mental que Hume solicita que
façamos a fim de considerarmos se desejaríamos se tal ou qual qualidade deveria
ser endereçada a nós ou não: “O desafio consiste em apresentar casos que nos
façam duvidar da relevância dos elaborados mecanismos mentais de Hume e dos
o1 __
sentimentos que produzem em nós.” . E: “Seu respectivo catálogo de virtudes e
vícios seria consideravelmente diferente. A palavra “ambição”, por exemplo,
poderia nomear uma virtude no livro de Ivan, mas um vício na avaliação de Al.
Podemos imaginar isso ocorrendo com muitas palavras.

A crítica de Davie é boa para aquilo que ele enfocou; mas não atinge o
essencial da proposta de Hume ao elaborar o catálogo. Ao apresentar o catálogo
ele tem em vista, como o final da passagem indica, atingir os princípios gerais de
que derivam toda censura e aprovação. Esses princípios são a utilidade pública, o
sentimento humanitário e o prazer ou dor que acompanham a virtude e o vício.

™DAVIE, Ibidem, p. 48.


Ibidem.
Ibidem.
DAVIE, Ibidem, p. 53.
110

Nosso filósofo inicia seu catálogo com a benevolência e depois com a justiça.
Pode alguém questionar se estas são ou não virtudes? Ou se estariam ou não no
catálogo das virtudes de qualquer pessoa? Agora, o que são atos justos ou
benevolentes é uma outra questão. Assim como se a realização ou operação dessas
virtudes sempre é favorável à sociedade.

É por isso que Hume mostra que, para certas virtudes, a razão tem um
papel decisivo. Dar esmolas é um ato de benevolência (é uma espécie de dever
moral ajudar os mais carentes); mas pode se tornar um vício, ou fraqueza, quando
passamos a considerar que essa prática, encoraja a indolência e a ociosidade.
Então “passamos a considerar que essa espécie de caridade é antes uma fraqueza
que uma virtude” (IPM, p. 33). Nossos sentimentos são orientados pela razão, pois
“as virtudes sociais nunca são consideradas à parte de suas tendências benéficas”
(IPM, p. 34). Note-se que a variação nos sentimentos e, conseqüentemente, a
variação na censura não implicam sempre numa variação na eleição de uma
virtude; a benevolência continua sendo uma virtude, mas as ações que decorrem
desse sentimento dependem de considerações que atendem às necessidades da
sociedade. Agora, o que nos faz mudar nossa opinião, ou crença, é uma orientação
da razão, sem dúvida, mas impulsionada por um sentimento de desagrado diante
das ações que outrora eram consideradas virtuosas. Mas por que não são mais?
Porque se tornaram nocivas à sociedade. Um sentimento de desagrado ou prazer
precisa se manifestar para que as ações mudem, e deve estar relacionado, segundo
Hume, a um sentimento humanitário. Mas segue-se por isso, ou por qualquer
consideração da razão, que as pessoas deixem de dar esmolas? Obviamente não.

É necessária para o sentimento moral, vimos, uma certa contemplação


abstraída de nosso interesse próprio, pois só assim podemos considerar uma
virtude até mesmo em nosso inimigo. O exemplo que Davie oferece sobre a
ambição restringe-se ao interesse particular de duas pessoas; mas é somente
quando a ambição de alguém torna-se perniciosa à sociedade ou a outrem, ou até
mesmo ao próprio Ivan, por um descontrole seu sobre essa paixão, causando no
observador um desprazer, que poderá ser considerada viciosa ou não. É óbvio que
um estadista ambicioso que consiga, motivado por essa paixão, elevar a condição
de seu povo a um patamar invejável não receberá censura moral por isso. Nem
111

mesmo por outras nações, quando a elas não tenha causado nenhum dano. A
moral, parece ter escapado a Davie, é um fato social. Retrate-se ao público a
ambição de dois homens, e que o resultado das ações de um deles tenha trazido
conseqüências nocivas à sociedade, à outra pessoa, ou ao próprio agente, e será
difícil conceber uma aceitação favorável. Faça-se o mesmo experimento sem que
nenhum dano tenha trazido a qualquer pessoa...

O desejo de obter fama, reputação e a consideração dos dem ais, lon ge


de ser algo m erecedor de censura, parece inseparável da virtude,
talento, capacidade e uma nobreza e elevação de caráter [...]. Em que
consiste, então, esta vaidade que com tanta justiça se considera uma
falta ou im perfeição? Ela parece consistir principalm ente em uma
exibição tão destemperada de nossas vantagens, honras e rea liza çõ es,
em uma busca tão afoita e inconveniente de elogio e admiração, que se
torna ofensiva às outra pessoas e invade suas am bições secretas. Ela é,
além d isso, um sintoma in falível da ausência daquela genuína
dignidade e elevação espiritual que constitui uma jó ia tão esp lên did a
em qualquer caráter. (IPM , p .145)

A questão não é, pois, de construir infalivelmente um catálogo das


virtudes que seja universalmente aceito; mas de escolher certas virtudes que
tenham em maior ou menor medida a aceitação geral, e identificar quais os
princípios que nelas operam. A questão não é se os indivíduos vão concordar com
as virtudes catalogadas; mas, independentemente da variação de opiniões e
interesses e sentimentos em relação a elas, o que os faz elegerem tais e tais
virtudes, em tais e tais nações e épocas.

2.7 DA CIENTIFICIDADE DA TEORIA DA SIMPATIA

Vejamos a seguinte citação.

Um homem que perdeu um amigo e benfeitor pode persuadir-se de que


toda sua tristeza provém de sentimentos generosos, sem qualquer
mesola de considerações mesquinhas e interesseiras; mas no caso de um
homem que se lamenta pela perda de um amigo valioso que n ecessitava
de seu apoio e proteção, com o poderíamos supor que sua apaixonada
ternura provém de certas preocupações m etafísicas com um in teresse
próprio que não tem fundamento ou realidade? Explicar a origem da
paixão partindo-se de tais reflexões abstratas seria eq u ivalente a
imaginar que m inúsculas molas e engrenagens, com o as de um r e ló g io ,
pudessem pôr em movim ento um vagão carregado. (IPM, p. 193)
112

Na introdução do Tratado, Hume fala-nos que “a ciência do homem é o


único fundamento sólido para as outras ciências, assim também o único
fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e observação”
(T, p. 22), e no Livro III (Da Moral) deixa claro que se trata de uma “tentativa de
introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais” (T, p. 491).
Ainda na introdução do Tratado, ao falar sobre o conceito de metafísica de sua
época, diz o seguinte: “Entendem eles por raciocínio metafísico, não os
raciocínios de um ramo particular da ciência, mas qualquer espécie de argumento
que seja de alguma forma abstruso [...]” (T, p. 20). E, para finalizar, no final da
Seção XII da Investigação sobre o Entendimento Humano, nos diz o seguinte: “Se
examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou metafísica escolástica e
indagarmos: contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do
número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de
fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao Fogo, pois não contém senão
sofismas e ilusões” (IPM, p. 154).

Hume põe assim a doutrina do egoísmo na condição de Joana D’Arc; e


disto podemos inferir que o princípio da simpatia não está na mesma condição
para o filósofo. Nas citações que fizemos, nota-se também que a metafísica refere-
se àqueles raciocínios abstratos e sem um amparo na experiência. É exatamente
por isso que o princípio do egoísmo não goza de um estatuto científico; mas
deixemos claro, isso se dá pelo seu caráter abrangente, ou seja, explicar tudo com
base nele (exatamente o mesmo erro de Adler). O princípio da simpatia não tem
essa pretensão, jâ que Hume admite ações egoístas. O princípio do egoísmo é
rejeitado pela experiência, o da simpatia é corroborado. A pretensão de Hume com
o princípio da simpatia é explicar a universalidade da linguagem moral.

As paixões, comó vimos, são as causas que agem nos homens. Os


fenômenos humanos são explicados por elas, e se existe uma linguagem moral,
que é por si universal, há que se buscar a causa desse fenômeno, que não pode ser
senão uma paixão que se apresente como universal, no sentido de ter a
aquiescência geral. Se dissermos num tribunal universal que desejamos o bem de
todos e apresentarmos as virtudes que podem tornar esse bem real, receberemos a
anuência geral. Se dissermos que queremos somente o nosso bem, seremos rejei­
113

tados, assim como todas as propostas que apresentarmos para execução desse
objetivo.

É necessário que a natureza, por m eio da estrutura e organização de


nosso espírito, tenha-nos dado uma propensão para a fama antes de
poderm os colher qualquer prazer de sua obtenção ou buscá-la m otiva­
dos pelo amor a nós mesmos e por um desejo de felicid ad e. Se não
tenho nenhuma vaidade, não terei prazer em ouvir elogios; se estou
desprovido de ambição, o poder não me traz contentamento; se não
estou encolerizado, a punição de um adversário ser-m e-á totalm ente
indiferente. Em todos esses casos há uma paixão que aponta im ed ia­
tamente para o objeto e o torna para nós um bem ou m otivo de f e li­
cidade; [...]. (IPM, p .195)

E diz Hume ainda:

Mas onde está a dificuldade em conceber que isso pode igualm ente
ocorrer no caso da benevolência e da amizade e que, pela estrutura
original [contra M onteiro] de nosso temperamento, podem os alimentar
um desejo pela felicidade ou bem de outra pessoa, o qual, por m eio
dessa afecção, torna-se nosso próprio bem e é a seguir perseguido p elos
m otivos com binados da benevolência e auto-satisfação? (IPM, p. 196)

Logo, tomar a paixão do egoísmo como causa de todas as nossas ações,


é indicar como falsas as relações entre as paixões e as ações manifestas na
experiência. A mesma situação é corroborada pela linguagem. Linguagem para o
pensador escocês, é um reflexo de nossos sentimentos e paixões, funcionando
assim como signo de algo que é anterior^^ a ela e, de certa forma, sua causa.

A ssim , dado que a distinção entre essas esp écies de sentim entos é tão
grande e óbvia, a linguagem deve prontamente adaptar-se a ela e in ven ­
tar uma classe especial de termos para expressar esses sentim entos
universais de censura ou aprovação que surgem dos afetos hum anitários
ou de uma percepção da utilidade geral, e os sentimentos contrários. A
virtude e o v ício tornam-se então con h ecid os, a moral é identificada,
formam-se certas idéias gerais acerca das ações e dos com portam entos
[...]. (IPM, p. 159)

De acordo com essa perspectiva, aquilo que a experiência mostra em


relação à linguagem, deve-se aceitar como representando um sentimento real. Se
há, então, uma linguagem que aponta para sentimentos particulares é porque tais

Nesse sentido, Alasdair Macintyre nos diz o seguinte: “Na visão de Hume, as paixões são pré-conceituais e
pré- lingüísticas. É isso que lhe possibilita falar na ‘correspondência das paixões nos homens e nos animais’."
(Justiça de Quem? Qual RacionaUdade? São Paulo: Edições Loyola, 1991. p. 325).
114

sentimentos existem; da mesma forma que se a experiência mostra uma linguagem


de caráter geral...

O interesse de cada pessoa é próprio dela, e as aversões e desejos que dele


resultam não podem ser considerados como capazes de afetar outras
pessoas num grau semelhante. A linguagem geral, portanto, tendo sido
formada para uso geral, deve amoldar-se a perspectivas mais gerais e
afixar os epítetos de louvor ou censura em conformidade com os sen­
timentos que brotam dos interesses gerais da comunidade. (IPM, p. 96)

A linguagem, pois, está numa relação direta com os sentimentos que


representa. Agora, é um absurdo defender a doutrina metafísica do egoísmo
tomando a empiricidade da linguagem natural, pois se tudo que fazemos está
atendendo de pronto a um instinto egoísta, toda linguagem moral estaria a serviço
de uma única referência. Logo, palavras como gratidão, respeito etc., seriam
vazias de sentido. É exatamente esta a pergunta que Hume faz: “Não é a gratidão
uma afecção do coração humano, ou será apenas uma palavra sem significado nem
realidade?” (IPM, p. 194). Finalizando, a defesa do egoísmo como única base das
ações implica, também, numa falsa relação entre os signos lingüísticos e os
sentimentos que eles apontam. É nesse sentido que a doutrina do egoísmo se nos
apresenta como sem cientificidade, ao passo que o princípio da simpatia não.
Hume assume a benevolência como fato indiscutível, pois que “a linguagem e a
observação ordinária demarcam as causas e efeitos, objetos e modos de operação
desses sentimentos, e distinguem-nas claramente daqueles das paixões egoístas”
(IPM, p .191). A experiência é a base dos raciocínios de Hume. Contudo, mesmo
enfatizando que essa é a aparência óbvia das coisas - são essas as palavras de
Hume - , ele defende que ela deve ser admitida até que se descubra alguma
hipótese que, “ao penetrar mais profundamente na natureza humana, consiga
demonstrar que as primeiras afecções [benevolência] não são senão modificações
das últimas [egoísmo]”^"^ (IPM, p. 191). Enquanto esperamos o desenvolvimento
do projeto genoma, a experiência deve ser nosso guia.

É verdade que a filo so fia moral tem uma desvantagem peculiar, que
não se encontra na filo so fia da natureza: ela não pode reunir
experim entos de maneira deliberada e prem editada, a fim de esclarecer
todas as dificuldades particulares que vão surgindo. Quando não sou
capaz de conhecer os efeito s de um corpo sobre outro em uma dada
situação, tudo que tenho a fazer é pôr os dois corpos nessa situação e

84
Que é a tese de Monteiro acerca da simpatia. Então, a tese de monteiro seria, para o próprio Hume, metafísica.
115

observar o resultado. Mas se tentasse esclarecer da mesma forma uma


dúvida no dom ínio da filo so fia moral, colocando-m e no mesmo caso
que aquele que estou considerando, é evidente que essa reflexão e
prem editação iriam perturbar de tal maneira a operação de meus
princípios naturais que se tornaria im p ossível formar qualquer con ­
clu são correta a respeito do fenôm eno. Portanto, nessa ciência, d ev e­
mos reunir n ossos experim entos mediante a observação cuidadosa da
vida humana, tom ando-os tais com o aparecem no curso habitual do
m undo, no comportamento dos homens em sociedade, em suas ocu ­
p ações e em seus prazeres. Sempre que experim entos dessa esp écie
forem criteriosam ente reunidos e com parados, podem os esperar estab e­
lecer, com base n eles, uma ciên cia, que não será inferior em certeza, e
será muito superior em utilidade, a qualquer outra que esteja ao alcance
da com preensão humana. (T, p. 24)

2.8 DA RACIONALIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS REGRAS GERAIS

Das virtudes sociais que apresentamos,^^ a única que tem seu mérito
extraído exclusivamente da utilidade é a justiça. A benevolência exerce-se por um
instinto que visa um determinado objeto, sem implicar maiores considerações para
com a sociedade. Qualquer ação benevolente, amiúde, não causa nenhum dano
social, pois se dirige geralmente a uma pessoa amada ou estimada, e o bem que
dela resulta é em si completo e integral. Além do que, esse bem decorrente da
benevolência promove uma aprovação moral “sem qualquer reflexão sobre
conseqüências posteriores, e sem uma perspectiva mais ampla relativa à adesão e
imitação de outros membros da sociedade” (lEH, p. 198). Já com a justiça não
ocorre o mesmo, assim como com a obediência civil, pois elas

são úteis ao extrem o e, na verdade, absolutam ente necessárias ao bem-


estar da humanidade; contudo, o b en efício que delas resulta não é uma
conseqüência de cada ato individual isolado mas decorre do plano ou
sistem a global no qual cooperam todos ou a maior parte dos membros
da sociedade. A paz e a ordem gerais são os frutos da justiça, ou de
uma generalizada abstenção de apoderar-se da propriedade alheia, mas
o acatamento esp ecífico a um direito particular de um cidadão in d i­
vidual pode com freqüência, tomado isoladam ente, trazer co n se­
qüências perniciosas. O resultado dos atos individuais é aqui, em m ui­
tos ca so s, diretamente oposto ao resultado do sistem a global de ações,
e p ode ocorrer que o primeiro seja extremamente prejudicial embora o
últim o seja vantajoso no mais alto grau. As riquezas herdadas de um
progenitor são, quando em mãos de uma má pessoa, um instrumento de
m alefício; o direito de herança pode, em certos casos, ser pernicioso.
Seu b en efício provém apenas da observância de uma regra geral, e é

A obediência ao governo, ou a fídehdade, como Hume chama, é também uma virtude onde a utiUdade é a
única causa de seu mérito.
116

suficiente se, por m eio d ele, estab elecer-se uma com pensação por todos
os m ales e inconveniências que decorrem de situações e caracteres
particulares. (IPM, p. 198-199)

Por isso, nas virtudes em que o caráter utilitário é essencial, a raciona­


lidade tem um papel decisivo, “pois nada a não ser essa faculdade pode informar-
nos sobre a tendência dos atributos e ações e apontar suas conseqüências bené­
ficas para a sociedade ou para seu possuidor” (IPM, p. 173). A mesma lógica
consoante à razão - como serva - aqui se apresenta, pois a razão busca apenas
indicar aquilo que é agradável a alguém em particular ou à sociedade; e tampouco
é a responsável direta pela censura moral.

Mas embora a razão, quando plenam ente d esen volvida e cu ltivad a, seja
suficiente para nos fazer reconhecer a tendência útil ou n ociva de
atributos e ações, ela sozinha não basta para originar qualquer censura
ou aprovação moral. A utilidade é apenas a tendência para atingir um
certo fim, e, se esse fim nos fo sse de todo indiferente, a mesma
indiferença seria experimentada em relação aos m eios. É p reciso , aqui,
que um sentimento venha a se m anifestar, para que se estab eleça a
preferência pelas tendências úteis diante das nocivas. E sse sentim ento
não pode ser sènão um interesse pela felicid a d e dos seres humanos e
uma indignação perante sua desgraça, já que estes são os diferentes
fins que a virtude e o vicio têm tendência a promover. A qui, portanto, a
razão nos informa sobre as diversas tendências das ações, e a ben e­
volên cia faz uma distinção em favor daquelas que são úteis e b en éficas.
(IPM, p. 174-175)

A grande pergunta que se pode fazer refere-se à questão das regras


gerais, que implicam em censura moral quando do seu descumprimento. Como os
sentimentos (paixões) e a razão relacionam-se nessa questão? É o que tentaremos
esclarecer. Isso requer uma nova reflexão acerca da origem da justiça. O
sentimento humanitário é sem dúvida inferior ao particular; contudo, ao se afirmar
que a justiça foi engendrada pelo egoísmo não se segue que o mérito atribuído a
ela se dê por conta exclusiva desse mesmo sentimento. Não existe um estado de
natureza em Hume, muito menos do tipo hobbesiano. Se tal fosse proposto por
ele, os homens viveriam em paz sem querer o mal-estar dos outros. É somente
quando os bens materiais se tornam escassos, dentro de um certo patamar, que o
conflito e o interesse privado passam a operar.

A situação concreta desse conflito é que vai engendrar regras gerais de


justiça que visam o bem comum, ou seja, dialeticamente, o egoísmo, que é a
117

paixão maior, leva a uma percepção, dada pela razão experimental, de que pen­
sar de forma geral trás tanto um bem público como particular. Essa pedagogia
natural ensina aos homens que o melhor partido é o do interesse geral, pois como
nos diz Hume, ao falar dos sentimentos humanitários, “eles formam, de certo
modo, o partido da humanidade contra o vício e a desordem, seus inimigos co­
muns” (IPM, p. 161). Mas para isso, esses sentimentos humanitários já têm de
existir; o homem é conduzido por suas paixões a refletir segundo um parâmetro
universal, já posto em nossa constituição pela natureza, a saber, a simpatia. Ao
falar sobre a idéia da moral, o filósofo afirma que:

Ela também p ressupõe um sentimento tão universal e abrangente que


con siga esten der-se a toda a humanidade e tornar até mesmo as ações e
com portam entos das pessoas mais distantes em objetos de aplauso ou
censura, na proporção em que estejam ou não de acordo com a regra de
direito que se estabeleceu . Estes dois requisitos são satisfeitos apenas
p elo sentim ento humanitário que aqui se enfatizou. (IPM, p. 156)

Enfim, já era do agrado dos homens a felicidade dos outros, mesmo que
em escala ínfima em relação à felicidade de cada um. Daí todo o empenho de
Hume em provar que existe um sentimento, mínimo que seja, de caráter huma­
nitário. É a própria paixão do interesse privado que “determina” os homens, junto
com as situações concretas experimentadas, a pensarem, valorizarem e refletirem
a partir desse pequeno sentimento. Quando o interesse particular não está
fortemente em jogo, somos naturalmente levados a desejar o bem da sociedade, e
quando ele está presente, também somos “obrigados” a pensar socialmente, a fim
de satisfazê-lo mais adequadamente (princípio de realidade). Daí surgem as regras
gerais que a razão ajuda a estatuir. Numa palavra: quando o egoísmo torna-se
exacerbado, torna-se, ao mesmo tempo, pernicioso para própria pessoa, e esse
interesse particular realiza-se mais completamente quando amparado por regras
que visam o interesse geral. Reiteremos: a paixão do egoísmo é maior e uma das
causas que origina a justiça; mas ao mesmo tempo, por uma reflexão advinda da
experiência, ela, paradoxalmente, promove uma exaltação da benevolência, que é
limitada.

A humanidade com o um todo assem elha-se tanto ao princípio do bem


que, quando n ossas d isp osições não estão corrompidas pelo interesse, o
ressentim ento ou a inveja, estam os sempre inclinados, pela nossa filan­
118

tropia natural, a dar preferência à felicid ad e da socied ad e e, c o n s e ­


qüentemente, à virtude, mais do que a seu oposto. (IPM , p. 94)

E ainda:

Seja qual for a contradição que vulgarm ente se supõe existir entre os
sentim entos ou d isp osições egoístas e so cia is, estes não são realm ente
mais op ostos do que ‘eg o ísta ’ e ‘am b icioso’, ‘e g o ísta ’ e ‘v in g a tiv o ’,
’eg o ísta ’ e ‘fú til’. O amor a si mesmo precisa ter como base uma
propensão original de algum tipo que torne atraentes os objetos d e sua
busca, e nada é mais adequado a esse propósito do que a b en evolên cia
ou humanidade. (IPM, p. 168)

Voltemos à questão - de Cícero Araújo - se a aprovação moral que


damos à justiça pode ser resultado apenas do seu efeito, e não, também, ou
somente, da causa que a originou, no caso o egoísmo. Vale a pena introduzir o
professor João Paulo Monteiro nessa discussão.

Na ética de Hume “não há lugar para um sentido moral inerente à


natureza humana, como um de seus princípios originais” (TLD, p. 243). E o
sentimento moral não é para Hume “derivado de um sentido moral que seria um
princípio original ou inato da natureza humana” (TLD, p. 244). “O bem moral
produz em nós um prazer de tipo especial que é o motivo do juízo moral, assim
como o mal produz um desagrado, e um juízo correspondente” (TLD, p. 244). E o
bem e o mal morais não foram estabelecidos pela natureza. Q fundamento da
distinção entre o vício e a virtude deve ser procurado dentro do próprio peito do
sujeito do juízo, “mas tal não significa que na natureza desse sujeito exista um
princípio, ou um instinto, o sentido moral, capaz de encontrar na natureza exterior
a diferença entre o bem e mal” (TLD, p. 246). Ter o sentido moral implica, além
da capacidade de reflexão que reserva as distinções morais aos atos dos agentes
racionais humanos, “a capacidade de pensar essas ações como praticadas com
intenção, e ‘em geral’, e também independentemente de nosso interesse individual
imediato, a ponto de podermos valorizar moralmente um inimigo altamente
prejudicial par nós” (TLD, p. 246).

E quanto à justiça - motivo das desconfianças de Araújo - vamos ver a


posição do professor, que nos parece bastante esclarecedora. Segundo Monteiro,
119

as três regras da justiça nada têm a ver com a moral, visto que o cumprimento
delas decorre de um interesse particular e racional, interesse marcado pela real
necessidade de sobrevivência. Ou seja, nessa fase primordial, a moralidade, pelo
menos quanto às três leis da justiça, ainda não existe. Essa justiça primitiva é
tipicamente amoral, pois nada a torna necessária já que o interesse de todos é
igual. E as regras morais, entre as quais se incluem regras equivalentes às regras
racionais produzidas pelo interesse, pela obrigação natural, têm portanto uma
dupla origem: ”nos princípios da natureza humana [a simpatia] e nas necessidades
da organização social” (TLD, p. 258).

Na passagem de um estado primitivo e amoral para um estado social


mais desenvolvido e moral, nada há de ambíguo na argumentação humeana; basta
que se admita a existência de um princípio humanitário que possa fomentar o
sentido moral. E isto é uma questão de fato, como Hume mostrou. O egoísmo,
como vimos, não se satisfaz adequadamente sem a concorrência da benevolência,
pois a sobrevivência individual e da espécie dependem das regras morais. E como
a racionalidade tem um papel decisivo nessas questões, haveria uma grande
contradição em termos; como a justiça é fruto de uma intenção racional humana,
foi a própria razão, diante das situações concretas experimentadas pelos homens,
que os mostrou que seu egoísmo não pode ser o norte que orienta suas ações. Com
o surgimento do senso moral, proveniente do desenvolvimento social, também o
egoísmo não pode balizar os julgamentos morais, conforme foi mostrado até aqui.
Voltamos a repetir: não há um estado de guerra, movido pelo egoísmo, na origem
da sociedade pois “uma das idéias mais simples de Hume, porém uma das mais
importantes, é esta: o homem é muito menos egoísta do que parcial”®’. O que há é
um conjunto de simpatias parciais que, conforme Deleuze, precisam ser
integradas.

O que encontram os na natureza, a rigor, são fam ílias; assim , o estado


de natureza já é desde sem pre algo distinto de um sim ples estado de
natureza. A fam ília, independentem ente de toda legislação, é explicada
pelo in stin to sexual e p ela simpatia, simpatia dos pais entre si, simpatia
dos pais pela sua progenitura. Compreendemos a partir daí o problema
da socied ad e, pois esta encontra seu obstáculo nas próprias sim patias e
não no egoísm o. Sem dúvida, em sua origem, a sociedade é uma

Resumo da posição de João Paulo Monteiro, de acordo com sua tese de livre-docência, página 253.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo; Editora 34, 2001. p. 32.
120

reunião de fam ília; mas uma reunião de fam ílias não é uma reunião
fam iliar. Sem dúvida, as fam ílias são unidades sócias; porém o próprio
dessas unidades é não se adicionarem N este sentido o problem a da
sociedade não é o de lim itação, mas de integração. Integrar as sim pa­
tias é fazer com que a simpatia ultrapasse sua contradição, sua parcia­
lidade natural.*®

Portanto, o egoísmo que originou a justiça foi apenas uma das causas,
pois a própria simpatia relativa (benevolência limitada) contribuiu para isso, além
do crescimento da sociedade. Nesse prisma, interesse particular não significa
unicamente egoísmo. O sentimento moral é originário, mas o senso m oral não.
Este vai se formando aos poucos. Mas tem um outro aspecto a ser considerado, e
que parece impugnar a reivindicação de que o louvor à justiça pode ser decorrente
do próprio egoísmo. Tal impulso originário está sempre depondo contra si, na
m edida em que é esse mesmo impulso que conspira contra a justiça, motivando
ações que a desrespeitam. Então, o apreço à justiça não pode ser decorrente do
próprio impulso - paixão - que a originou, pois que isso levaria a um vai-e-vem
de admiração e desprezo pelo egoísmo; e pela justiça (incongruente com a
experiência ética). E como o senso moral funda-se no sentimento humanitário (e
não há contradição alguma quando as ações humanas são pautadas nele), não há
por que se ver contradição ou ambigüidade no argumento de Hume. Vamos
adiante.

Além de indicar quais ações, medidas ou normas deve-se adotar para o


bem da sociedade, a razão tem um importante papel no que diz respeito à correção
dos juízos diante da parcialidade de nosso sentimento humanitário. Quando
falamos das paixões, destacamos um dos princípios que as influenciam - a conti-
güidade no espaço e no tempo - fazendo alternar nossos sentimentos conforme a
proximidade ou não dos objetos com os quais se relaciona. Quanto mais próximo
o objeto mais forte a paixão, quanto mais distante, vamos perdendo a noção do
seu valor. É nesse sentido que a razão entra para corrigir as possíveis parcia-
lidades nos julgamentos, apontando o valor real do objeto que se encontra distante
da imaginação e, conseqüentemente, despertando o sentimento de aprovação - que

DELEUZE, Ibidem, p. 34. Aproveitamos para reforçar nossa posição contrária à de Deleuze, pois ele confunde
simpatia com benevolência restrita. É a benevolência que leva a imparcialidade e, somada ao egoísmo e
condições externas, opõe-se à sociedade. A simpatia, no Tratado é uma outra coisa diferente da benevolência.
Assim, onde se lê simpatia, leia-se benevolência restrita.
121

não pode acontecer senão com base num sentimento universal. Ou seja, a
comunicação entre os homens realiza-se apenas quando eles pensam com base em
princípios gerais. A necessidade de comunicação leva os homens a raciocinarem
com base no único sentimento que pode promover o interesse geral.

D edicam os sempre uma consideração mais apaixonada a um estadista


ou patriota que serve n osso próprio país em nossa própria época do que
a um outro cuja in flu ên cia b en éfica operou em eras remotas ou n ações
distantes, nas quais o bem resultante de sua generosa b en evolên cia,
estando m enos relacionado co n o sco , parece-nos mais obscuro e nos
afeta com uma sim patia menos vivid a. Podem os reconhecer que o m é­
rito é igualm ente grande em am bos os casos, embora nossos sen ti­
mentos não se elev em à mesma altura. Aqui o juízo corrige a parcia­
lidade de nossas em oções e p ercep ções internas, do mesmo modo que
nos protege do erro diante das muitas variações das im agens apre­
sentadas dos n ossos sentidos externos E de fato, sem uma tal
correção das aparências, tanto nos sentim entos internos com o nos
externos, os hom ens não poderiam jam ais pensar ou falar de modo
uniforme sobre qualquer assunto, já que suas variáveis p o siçõ es p ro­
duzem uma continua variação nos objetos e colocam -nos em
perspectivas e situ ações distintas e contraditórias. (IPM, p. 95)

Quando fala sobre a simpatia®^ Hume diz que ela, por privilegiar
primeiro nossos interesses, depois o das pessoas que nos são mais próximas, deve
ser restringida com respeito â essa parcialidade, a fim de tornarmos nossos
sentimentos mais públicos e sociais e podermos manter um intercâmbio social
mais adequado, pois que seria impossível mantermos uma comunicabilidade social
caso nos mantivéssemos rígidos em nossas posições pessoais. Mas devemos notar
que a reflexão chega sempre depois, e decorrente de uma situação concreta vivida
conjuntada a uma comunicação de sentimentos, pois é justamente um intercâmbio
de sentimentos na vida e na convivência sociais “que faz-nos estabelecer um certo
padrão geral e inalterável com base no qual aprovamos e desaprovamos os
caracteres e costumes” (IPM, p. 97).

De fato, há que se ter, de acordo com o sistema humeano, uma aquies­


cência de sentimentos e a partir de então a razão experimental indica o que é útil

Hume está a falar, obviamente, da simpatia geral, que, conforme mantemos, sofre influência, tanto na
investigação como no Tratado, dos princípios que atuam na imaginação. Sendo que no Tratado trata-se apenas de
um princípio que nos faz tomar o outro em consideração, sem que haja uma essência benevolente em relação a
ele; muito embora, pela intensidade da dor que transmite, possa originar um sentimento de benevolência.
Enquanto na Investigação a simpatia é ela mesma um sentimento humanitário de caráter geral (uma benevolência
geral) que depende, para sua eficácia, da ajuda da imaginação. A benevolência restrita leva o sujeito à ação, a
geral tem uma dependência da imaginação e de outras paixões para ação.
.122

ou não nas ações e, conseqüentemente, fornece regras do agir. Agora, que essas
regras promovem apenas a satisfação das paixões, e que não são rígidas como um
código eterno e imutável consubstanciado por uma razão pura a priori, e por isso
não podem se conformar aos ditames da razão, que apenas os indica e nada mais;
que sua obrigatoriedade dá-se no âmbito das próprias paixões e princípios da
mente (veremos daqui a pouco), sempre em determinados contextos sociais; isso é
de fato o sistema de Hume. O que é imutável, enquanto fato constatado, e não
como algo essencial, é a própria natureza humana, entendida como um conjunto
de paixões que se têm mantido regulares na história da humanidade, e não as
ações que delas são efeitos. Portanto, a moral surge historicamente devido à
passionalidade humana e necessidades externas que se vão apresentando aos
homens. Nas próprias paixões ou na natureza humana, não existe inscrito um
código de ética que determine o homem a agir de tal ou qual forma. Não há uma
relação entre vontade e normas que podC;m surgir na sociedade decorrente das
paixões e situações vividas. Nem tampouco isso poderia acontecer numa relação
entre razão, vontade e norma. Preconizar essa idéia seria aceitar o fundamento
metafísico da causalidade, que Hume desmentiu.

Uma coisa é conhecer a virtude, e outra conformar a vontade com ela.


Portanto, para provar que os critérios do certo e do errado são le is
eternas, obrigatórias para toda mente racional, não basta mostrar as
relações que os fundamentam; tem os de mostrar também a conexão
entre a relação e a vontade; e temos de provar que essa conexão é tão
necessária que deve ter lugar e exercer sua influência em toda m ente
bem intencionada, ainda que a diferença entre essas mentes seja, sob
outros aspectos, imensa e até infinita. Ora, além de já termos provado
que, mesmo na natureza humana, nenhuma relação sozinha pode pro­
duzir uma ação; além d isso, digo, mostramos, ao tratar do en ten ­
dim ento, que não existe nenhuma conexão de causa e efeito tal com o se
a com preende, ou seja, que possa ser descoberta de outro m odo que não
seja pela experiência, e da qual possam os pretender ter alguma certeza
pela mera consideração dos objetos. (T, p. 505)

Cristaliza-se, pois, que a racionalidade não tem, no âmbito das normas,


nenhuma relação causai com a vontade. A reflexão, juízo ou razão significa
apenas uma calma paixão que atua por seu objeto estar distante. Tudo se define no
foro das paixões. As regras surgem pela confluência de sentimentos e experiências
vividas (a razão, então, se põe a servir as paixões), e a observância dessas regras
ocorre por conta de uma relação de proximidade. Elas passam a influenciar mais
fortemente a imaginação pela percepção do valor da norma para si e para os
123

outros, tendo sua origem também nos sentimentos e situações experimentadas.


Não obstante, nada garante a observância das regras, já que outras paixões, assim
como a imaginação, que nos leva a preferir o contíguo ao remoto, se opõem ao
respeito à norma. O sujeito vive sob o domínio de suas paixões.

Adm ite-se que todas as p essoas têm um igual desejo de alcançar a


felicid ad e, mas poucas são bem sucedidas nessa busca. Uma causa
significativa é a falta da força de vontade que poderia capacitá-las a
resistir à tentação do conforto e prazer im ediatos e fazê-las avançar na
busca de um b en efício e satisfação mais distantes. Nossas afecções,
diante de uma visão geral de seus ob jetos, formam certas regras de
conduta e certos graus de preferência de uns em relação a outros; e
essas d ecisões, embora sejam realm ente o resultado de nossas calmas
paixões e d isp osições (p ois o que mais poderia decidir que algum
objeto é ou não p referível a outro?), são ditas, por um natural abuso de
linguagem ; d ecisõ es da pura razão e reflexão. Mas quando algum
desses objetos se aproxima de nós ou adquire as vantagens de uma
perspectiva ou situação favoráveis capazes de capturar o coração ou a
im aginação, nossas resolu ções gerais freqüentem ente se abalam, um
curto prazer recebe a p referência e uma duradoura mágoa e ignom ínia
se abatem, em con seq ü ên cia, sobre nós. (IPM , p. 111)

Assim como algumas características da própria natureza humana fazem


o sujeito desviar-se da r e g r a , t a i s como o egoísmo e princípios da imaginação,
outras conduzem o homem ao respeito à norma moral, ou seja, uma reflexão que
tem origem numa paixão. Assim é o efeito do desejo pela fama que, segundo
Hume, é muitas vezes o motivo supremo de cada um de seus planos e realizações.

Em nossa busca tenaz e sincera de um caráter, um nome, uma reputação


no mundo, passam os freqüentem ente em revista nosso procedim ento e
conduta, e considerarm os com o eles aparecem aos olhos daqueles que
nos estão próxim os e nos observam . Este constante hábito de nos in s­
pecionarm os, por assim d izer, pela reflexão, mantém vivos todos os

* A própria simpatia ou benevolência ampla serve apenas como princípio basilar da moral, mas jamais se
constitui como um instinto originário que leva o homem, infalivelmente, a agir conforme as normas morais que
objetivam o bem da sociedade; ” Minha simpatia por outra pessoa pode me dar um sentimento de dor e
desaprovação quando se apresenta um objeto que tenha uma tendência a lhe causar um desprazer, mesmo que
talvez eu não esteja disposto a sacrificar em nada meu interesse, ou a contrariar nenhuma de minhas paixões para
satisfazê-la” (T. p, 625-626). E ainda: “Poderíamos chegar a afirmar que não há criatura humana para quem a
visão da felicidade (quando não estão envolvidos a inveja e o ressentimento) não traga prazer, e a da miséria
desconforto. Isto parece ser inseparável de nosso feitio e constituição. Mas são apenas os espíritos mais
generosos que, a partir daí, são impelidos a buscar zelosamente o bem dos demais e a sentir uma real paixão pelo
seu bem estar. Em homens de espírito estreito e mesquinho, essa simpatia não vai além de um tênue sentimento
da imaginação, que apenas serve para excitar sentimentos de satisfação ou censura e aplicar aos seus objetos
denominações honrosas e desonrosas. Um avarento insaciável. Por exemplo, elogia extremamente a diligência e
a frugalidade mesmo em outros homens, e as coloca, em sua estima, acima de todas as outras virtudes. Ele
reconhece o bem que delas resulta e sente por essa espécie de felicidade uma simpatia mais vivida do que por
qualquer outra que lhe pudéssemos representar, embora possivelmente não venha abrir a mão de um único
centavo para contribuir para fortuna do homem industrioso que tanto elogia” (IPM, p. 105).
124

sentim entos do certo e do errado, e engendra, nas naturezas mais n o­


bres, uma certa reverência por si mesmo e pelos outros que é a m ais
segura guardiã de toda virtude. (IPM, p. 161-162)

A vaidade é uma outra paixão que atua cooperando com o sentimento


moral.

Parece do mesmo modo supérfluo provar que as virtudes so ciá v eis das
boas maneiras e da espirituosidade, do decoro e do cavalheirism o são
mais desejáveis que os atributos contrários. A simples vaidade, sem
qualquer outra consideração, já é um m otivo suficiente para fazer-nos
desejar a posse desses dons. Ninguém jam ais foi de bom grado falho
n esses aspectos; aqui, todas as nossas deficiências procedem de má
educação, falta de habilidade, ou uma disposição de ânimo caprichosa e
obstinada. Será que alguém poderia seriamente ficar em dúvida sobre
se preferiria ter sua companhia desejada, admirada e requerida ao invés
de odiada, desprezada e evitada? A ssim como nenhum prazer é genuíno
sem alguma referência à con vivên cia humana e social, tam pouco pode
ser agradável ou mesmo tolerável um m eio social no qual uma p essoa
sinta que sua presença não é bem -vinda e observe a toda sua volta
sinais de desagrado e aversão. (IPM, p. 167)

O sentimento de humanidade - a simpatia - é o único que se apresenta


na natureza humana capaz de levar os homens- a um consenso e, como conse­
qüência, a fundar um código de ética que possa orientar suas ações, assim como
ser m edida para aprovação e reprovação morais. E como essas regras não são
decorrentes de instintos originários, segue-se que o cumprimento delas depende de
uma variedade de situações e influências que se encontram fora da natureza
humana (e que não podem ser previstas), mas também de outras paixões e prin­
cípios que nela se encontram. Mas,

enquanto o coração humano for com posto dos mesmos elem entos que
hoje contém , jam ais será totalm ente insensível ao bem público nem
inteiramente indiferente às tendências dos caracteres e condutas. E
ainda que esta afecção humanitária não seja em geral considerada tão
forte com o a vaidade ou a am bição, somente ela, por ser comum a to ­
dos os seres humanos, pode constituir a fundação da moral ou de qual­
quer sistema geral de censura ou louvor. (IPM, p. 157)

Neste momento, é possível retomar outra questão pendente: existe


algum impedimento para se fazer prescrições na ética de Hume em decorrência de
seu argumento de que do que “É” não se pode derivar um “DEVE”? No Tratado,
no final do livro sobre a moral, Hume nos diz que “as especulações mais abstratas
acerca da natureza humana, por mais frias e sem graça que sejam, fazem-se um
125

instrumento de moral prática', e podem tornar esta última ciência mais correta em
seus preceitos^^ e mais persuasiva em suas exortações” (T, p. 660). E, como
exemplo de uma norma, diz ele que o “rico tem uma obrigação moral de dar aos
necessitados uma parte do que lhe é supérfluo” (T, p. 523). A questão é sabermos
se afirmações como as citadas acima põem Hume em contradição, já que se pode
perguntar de onde derivam esses preceitos ou deveres. Essa é uma questão
bastante delicada em Hume, e antes de firmarmos nossa posição, sem ter a
pretensão de esgotar esse problema, mostraremos primeiramente como a questão
foi tratada por alguns filósofos, e, depois, em que m edida nossa posição discorda
ou não deles. Comecemos com Rafhael e Macintyre. Rafhael expõe o ponto de
vista de Macintyre da seguinte forma:

A interpretação comum é que Hume quer dizer que é im p ossível


deduzir deve de é. M acintyre op õe a isso três teses. (1) A palavra
dedução, como usada por Hume, não quer se referir à conclusão de uma
inferência estritamente dedutiva (para a qual o term o usual de Hume é
demonstração) mas inferência em geral. (2) Hume não afirma a im p os­
sibilidade de derivar con clu sões norm ativas de afirm ações de fato, pois
ele próprio faz isso em sua exp licação do julgam ento moral. Quando
ele exige que seja dada uma razão para o que ‘p a rece’ incon ceb ível, ele
diz isso a sério e não ironicam ente; “parece” in con ceb ível e é d ifícil
mas pode ser feito, conform e pretende mostrar em sua própria teoria

Rafhael concorda com Maclntyre (nós também) que Hume usa a palavra
dedução para significar inferência em geral^^. É o caso do método experimental de
Hume, onde o mesmo fala que só podemos obter sucesso na investigação sobre a
moral deduzindo máximas gerais a partir de uma comparação de casos
particulares; conforme vimos acima. Mas Rafhael defende, e concordamos com
ele, que Hume tem uma concepção clara de duas, e apenas duas, formas de
inferência. E que se prontifica a usar a palavra dedução de cada um dos modos, ou

Grifo nosso.
RAFHAEL, D. D. In: Hume and the Enlightnment (Hume’s Critique of Ethical Racionalism). Edimburgo;
Edinburgh The Univaersity press, 1976. p. 25. Nós só colocamos as duas primeiras teses de Maclntyre que
dizem respeito à nossa discussão.
É mais um caso de imprecisão conceituai de Hume, pois ele usa a palavra dedução tanto para significar as
inferências indutivas, como para significar as inferências de caráter demonstrativo. Se ao exigir como se chega a
uma proposição de dever através de outra relativa aos fatos, Hume usasse a expressão “demonstra”, e não
“deduz”, talvez Maclntyre não tivesse levantado uma posição tão contrária à geral. Ou seja, se ao invés de
indagar “como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes” (T, p. 509), ele indagasse
“como essa nova relação pode ser demonstrada de outras inteiramente...”, talvez não houvesse tanta coisa a ser
discutida nesse ponto.
126

ambos em conjunto. Mas isto não implica que utilizaria a palavra dedução para
qualquer forma de derivação, tal como a explicação que ele dá do julgamento
moral relacionado aos sentimentos humanos. Uma das conclusões de Rafhael, e
também concordamos com ele, é que quando Hume explica um julgamento de
obrigação como a expressão de um sentimento de desaprovação pela não execução
de uma ação, ele não nos mostra como inferir “deve” de ‘é’ por indução. Mas
Hume ao falar sobre a passagem do ‘É ’ para o ‘DEVE’, quando utiliza a palavra
dedução, se refere à inferência. Conclui Rafhael, não obstante os usos que Hume
faz da palavra dedução, que, de acordo com o filósofo, uma inferência
demonstrativa (isto é, dedutiva) diz respeito a relações, e a inferência provável
(isto é, indutiva) a questões de fato. Assim, embora a palavra dedução para Hume
não necessariamente signifique dedução no sentido estrito em outros contextos, no
presente deve significar.

Delamar Volpato é outro filósofo que defende que a questão presente


refere-se a uma negação de Hume de que a moral possa ser oriunda exclusi­
vamente do campo das idéias ou relações. Em sua tese de doutorado ele diz que a
razão, em Hume, é uma faculdade passiva, no sentido de ter sua origem completa
na sensação, pois que tudo que ela faz é perceber relações que são conjugadas
pela própria regularidade da natureza, não tendo “qualquer propriedade norma­
tiva” .^^ E, após analisar a questão em detalhes, finaliza dizendo o seguinte;

Esse argumento de Hume torna simples a interpretação de sua clássica


afirmação de que os sistemas morais começam por usar proposições com
é e não é e, depois, imperceptivelmente passam a usar expressões com
deve e n ão deve Como é evidente que tal relação não existe, pois
trata-se de uma nova relação, segundo esses sistemas que ele quer
refutar, então a outra opção é que ela é derivada dessas quatro
existentes®^ o que é inconcebível [...]. D uvidou-se, razoavelmente, se o
próprio Hume significa por essa passagem o que foi feito subseqüente
dela. E le realmente pensa, e explicitamente diz, que a atenção sobre esse
ponto d eve ‘levar-nos a ver que a distinção entre vício e virtude não é
fundado meramente em relações de objetos, nem é percebida pela razão’.
Isso não significa, portanto, afirmar, para Hume, que o significado de
bem seja indefinível ou equívoco, nem que ele seja alguma coisa ideal.

RAFHAEL, D. D. In: Hume and the Enlightnment (Hume’s Critique of Ethical Racionalism). Edimburgo;
Edinburgh The Univaersity press, 1976. p. 26. Neste parágrafo fizemos um resumo da posição de Rafhael.
VOLPATO, Delamar. Reformulação Discursiva da Moral Kantiana. Tese de doutorado. Rio grande do sul;
Universidade Federal do Rio grande do sul, 1997. p. 234-235.
Aqui Delamar refere-se às quatro relações pertencentes ao campo da certeza, explicadas anteriormente por nós.
127

Como a citação diz, se trata de matéria de fato, mas num sentido preciso,
a saber, objeto do sentimento, não da razão, ou de idéias.

Nossa posição é discordante da de Macintyre, pois consideramos que


realmente Hume indaga acerca da impossibilidade de se derivar de um fato uma
norma; e essa indagação refere-se a uma demonstração. Não precisamos repetir
toda a argumentação humeana sobre se a moral é fundada exclusivamente na
Qft
razão . Antes de encerrar a seção que trata desse tema, Hume vincula sempre a
palavra relação à palavra demonstração (“Se afirmardes que o vício e a virtude
consistem em relações suscetíveis de certeza e demonstração, devereis vos limitar
àquelas quatro relações que admitem tal grau de evidência; e, nesse caso,
incorrereis em absurdos [...]” (T, p.503)). E a diívida que paira por conta de Hume
usar a palavra dedução, ao invés de demonstração, no momento em que faz seu
questionamento, deve ser encarada apenas como mais um exemplo de frouxidão,
ou displicência, no uso dos conceitos pelo filósofo.

Há uma razão forte para mostrarmos que, de fato, trata-se apenas de um


mau uso que Hume faz de seus conceitos. A matemática, sem dúvida, tem um
caráter demonstrativo para Hume. E alguém que raciocina teoricamente sobre
triângulos e círculos “considera as várias relações dadas e conhecidas entre as
partes dessa figura e infere daí alguma relação desconhecida que é dependente das
primeiras” (IPM, p. 179). Quando questiona a passagem do “É” para o “DEVE”, Hume
nos diz que “como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação,
esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse
uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova
relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes” (T, p. 509). De fato, se
tomarmos a “CARTA DE UM CAVALHEIRO A SEU AMIGO EM EDIMBURGO”,
em que Hume, anonimamente, se defende das acusações de ceticismo e ateísmo, a
passagem seguinte reforça nossa interpretação: “Ele de fato negou a eterna
diferença entre o certo e o errado no sentido em que Clark e Woolaston a sus­
tentaram, a saber, que ás proposições da moralidade eram da mesma natureza que as

” Cf. DELAMAR, Ibidem, p. 236.


Basta que o leitor retome a ler o item desse trabalho: “QUE A RAZÃO NÃO ORIGINA A MORAL”, onde
procuramos pontuar por qual razão Hume não considera que a moral seja objeto de certeza descoberta pela razão.
128

verdades das matemáticas e das ciências abstratas, os objetos meramente da razão,


não as sensações, de nossos gostos e sentimentos internos”.

Também não vemos razões nos textos de Hume que apontem para uma
admoestação a se extrair preceitos morais com base nos fatos ou sentimentos.
Portanto, concordamos com Rafhael, nesse sentido. É bastante esclarecedora a
forma como Ayer argumenta mostrando que não há possibilidade de se extrair
qualquer dever tomando-se como base as ações; pois qualquer obrigação que se
queira pleitear como norma moral pressupõe um senso de dever que precisa ser
explicado. Citamos Ayer:

Também tem aparecido desafios vários à contenda de Hume quanto a


‘d e v e ’ não ser conseqüência de ‘é ’. O contra-exem plo favorito con siste
em fazer prom essas. A linha de argumentação é a seguinte; partindo da
prem issa puramente factual de que, sob condições esp ecificá v eis, um
indivíduo faz uma asserção do tipo ‘prometo fazer isto ou aq u ilo’,
podem os logicam ente concluir que, em igualdade de circunstâncias, ele
devia fazer isto ou aquilo. Trata-se, porém, de um sofism a. O argu­
m ento, de facto, parece convincente, mas tão-som ente porque aparece
en volto num clim a moral, adentro do qual se prevê a prom essa, isto é,
uma cláusula que im plica sujeição a uma obrigação moral pelo sim ples
proferir de determ inadas seqüências de palavras, dadas as condições
adequadas. Se, porém , se trata de uma questão de vinculação lógica,
não pode legitim am ente pressupor-se a existência de um clim a destes.
Terá de se afirmar com o prem issa extra, na medida em que o suspeito
falante pertence a uma sociedade que aceita, por princípio, que pronun­
ciar estas ou aquelas palavras eqüivale, num certo âmbito de circuns­
tâncias, a assumir um com prom isso moral. Estamos de novo diante de
uma prem issa factual, que, no entanto, mesmo quando com binada com
a outra, não acarreta a conclusão desejada. Precisam os recorrer à pre­
m issa moral de que este princípio observado na sociedade em que vive
e sse indivíduo é daqueles a que devia obedecer.

Mas ainda persiste uma questão latente na filosofia moral de Hume, e


que nos parece bem plausível inferir de acordo com o tratamento que ele deu à
causalidade. Quando vemos dois objetos repetidas vezes conjuntados, inferimos a
aparição de um sempre que o outro corta nossa retina, e sentimos uma necessidade
de sempre fazermos tal inferência, assim como acreditamos, sem vacilar, que um
objeto seguirá ao outro como dantes. Com base nessa crença fazemos um monte
de prescrições: que fulano deve tomar determinado remédio para obter deter-

HUME, David. CARTA DE UM CAVALHEIRO A SEU AMIGO EM EDIMBURGO. Tradução de Plúiio J. Smith.
Manuscrito, revista internacional de filosofia. Campinas-SP: Universidade Estadual de Cançinas, 1997. p. 24-25.
AYER, A. J. Hume, Mestres do Passado. Oxford: Oxford University Press, 1981. p. 165-166.
129

minada cura; que devemos praticar exercícios para mantermos a saúde em dia;
que, quando o tempo estiver nublado, devemos levar um guarda-chuva para nos
proteger da chuva, enfim, um monte de obrigações decorrentes de fatos que se
mantiveram regulares. Não podemos da mesma forma fazer em relação ao campo
moral? Se a experiência mostrou, regularmente, que a obediência civil é útil a
todos quando os governos são bons; qual razão impede-nos de fazer uma p re s­
crição, de caráter indutivo, de respeito ao governo. A mesma norma aplica-se ao
respeito à propriedade, já que a experiência mostrou que tal mandamento é útil à
sociedade em geral. Não são os mesmos princípios que atuam nos dois âmbitos?
Não há, nos dois lados, uma regularidade de fenômenos conjuntados e
relacionados pela causalidade; assim como uma crença decorrente da ação do
costume sobre a imaginação, de que o futuro repetirá o passado ?

Nós concordamos com Davie, ao mesmo tempo em que discordamos


com Macintyre, que Hume não nos propõe estabelecermos normas com base no
princípio da indução, pois nada há nos textos dele que nos leve a pensar assim. E
discordamos de Macintyre, ao passo em que concordamos com Davie, e parece ser
a posição de Ayer e Delamar, que quando Hume refere-se à questão da passagem
do “É” para o “DEVE” a questão é puramente lógica (demonstrativa); o que vai ao
encontro de sua expressa pretensão de mostrar que a moral não pertence ao campo
da certeza, das matemáticas, das relações enquanto tais. Mas, se negarmos a
possibilidade aventada, de que normas morais podem ser hauridas, legitimamente,
indutivamente, teremos que retirar o tijolo principal do alicerce da filosofia m oral
de Hume, a saber: O mesmo tratamento (método) dispensado às ciências empíricas
e morais. Assim, as passagens em que o filósofo fala de deveres, leis e preceitos
morais, não o põe em contradição. Basta que se entenda que a intenção dele não é
negar a legitimidade das normas morais espalhadas no seio das sociedades, mas
apenas investigar o seu fundamento. Preceitos morais, assim como raciocínios
causais, são legítimos; mas ambos necessitam de um sentimento de crença,
fundamentado na experiência, amparando-os.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O princípio de prazer é o aspecto irrefletido da mente humana, segundo


o qual as paixões, quando deixadas livres, não encontram nelas próprias o meio
adequado de se satisfazerem. É na passagem para o princípio de realidade, onde
elas recebem uma orientação da experiência e razão, que a moralidade assume
papel decisivo, pois sem ela a satisfação das paixões seria impossível. Numa
palavra: as paixões, ou a natureza, põem os fins, mas não a forma de atingi-los,
pois elas nem sempre são guiadas por princípios originários, mas apenas naturais.
Eis o espaço da criação, da instituição, o espaço da cultura.

Ora, o único meio de realizar isso é por uma convenção, de que


participam tod os os m em bros da sociedade, para dar estabilidade à
p osse d esses bens externos, permitindo que todos gozem pacificam ente
daquilo que puderem adquirir por seu trabalho ou boa sorte. D esse
m odo, cada qual sabe aq uilo que pode possuir com segurança; e as
p aixões têm restringidos seu s movim entos parciais e contraditórios. Tal
restrição não é contrária às paixões; se o fosse jam ais poderia ser feita,
nem mantida. É contrária apenas a seu movimento cego e im petuoso.
Em vez de abrir mão de n ossos interesses próprios, ou do interesse de
n ossos am igos mais próxim os, abstendo-nos dos bens alheios, não há
m elhor m eio de atender a ambos que por essa convenção, porque é
d esse modo que mantemos a sociedade, tão necessária a seu bem -estar
e su bsistência, como tam bém aos nossos. (T, p. 530)

Mas, muito embora o remédio seja artificial - sem dúvida - o meio para
aplicá-lo é ainda natural. A razão experimental, como mostramos, é ainda
natureza, pois é esta que “fornece, no juízo e no entendimento, um remédio para o
que há de irregular e inconveniente nos afetos” (T, p. 529). Dizendo de outro
modo; ”A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para
todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento; e certamente os
movimentos cegos daqueles, sem a direção deste, incapacitam o homem para a
sociedade” (T, p. 533). Seguindo esse raciocínio, mesmo sendo as instituições
produto da criação humana, não se segue que essas criações sejam resultado de
uma liberdade incondicional, pois “esquecemos facilmente que os desígnios,
projetos e objetivos dos homens são princípios tão necessários em sua operação
131

quanto o calor e o frio, o úmido e o seco” (T, p. 514). Basta agora identificarmos,
com base no estudo acima, e relativo tão-somente à moral, o que a natureza
realiza originalmente, sem a participação da razão.

Em resumo, a razão tem uma participação importante nas distinções


morais, exclusivamente nas que se referem às virtudes de caráter utilitário, ao
identificar pontualmente o bem maior, aprimorando, assim, as regras que a elas
concernem, e, conseqüentemente, direcionando - não originando - o sentimento
moral, que é cego. Com efeito, o ato de dar esmolas é elogiável, mas quando se
percebe que essa prática encoraja a ociosidade e a indolência, ”passamos a
considerar que essa caridade é antes uma fraqueza do que uma virtude”
(IPM, p. 33). Ela também ajuda a “corrigir” nosso juízo acerca de um determinado
objeto, mostrando seu real valor, fazendo assim com que o sentimento moral com
o qual o objeto se relaciona se aplique melhor; porém, isso ocorre devido à
distância do objeto em relação ao sujeito. E é só esse seu papel. Como mostramos,
ela nem obriga o sujeito a se guiar conforme à norma, nem é responsável, sozinha,
pela censura daquelas pessoas que dela se desviam.

O sentimento moral, por sua vez, é responsável pela censura e pela


universalidade da norma (auxiliado pela razão); mas, da mesma forma que a racio­
nalidade, não coage o sujeito a agir conforme às regras, pois isso depende tanto da
influência de outras paixões e sentimentos, como dos princípios da natureza humana,
além das situações concretas vividas pelos membros da sociedade. Pois “[...], as
regras da justiça dependem inteiramente do estado e situação particulares que os
homens se encontram [...]” (IPM, p. 41). Mas como a natureza, ou as paixões, em
outros casos, tanto põe os fins como originalmente os realiza sem a intervenção do
raciocínio, no campo da moral isso não poderia ser exceção. Há tanto um senso moral
fundado no sentimento puro, como uma ação moral que se realiza por um instinto,
sem que a racionalidade tome participação orientadora.

Os deveres m orais podem ser divididos em duas esp écies. A prim eira 101

A segunda espécie de deveres morais “é a dos que não assentam em qualquer instinto original da natureza,
derivado inteiramente de um sentido de obrigação, quando consideramos as necessidades da sociedade humana
[...]. É assim que a justiça, o respeito pela propriedade alheia, e a lealdade, o cumprimento das promessas, se
tomam obrigatórias e ganham autoridade sobre os homens” (E, p. 207).
132

com preende aqueles a que todos o s hom ens são conduzidos por um
instinto ou propensão natural, que exerce influência sobre eles ind e­
pendentem ente de qualquer idéia de obrigação e qualquer consideração
de utilidade pública ou privada. D esta natureza são amor pelas
crianças, a gratidão para com os b en feitores e a piedade p elos in felizes.
Ao refletirm os sobre as vantagens de que a sociedade se b en eficia
graças a tais in stin tos humanos, prestam o-lhes o justo tributo da
aprovação e da estim a moral; mas a p esso a que por eles é guiada sente
seu poder e in flu ên cia anteriorm ente a qualquer reflexão desse ti­
po. (E, p. 207)

Sem dúvida, de acordo com Hume há um julgam ento moral que tem sua
origem e fim no puro sentimento; irrefletido por assim dizer: "Talvez mais adiante
vejamos que nosso senso de algumas virtudes é artificial, e o de outras, natural”
(T, p. 514). Esse julgamento refere-se àquelas virtudes apontadas quando falamos
do catálogo, que não trazem dano à sociedade e que são comunicadas por um
prazer imediato, recebendo, assim, nossa aprovação.

Entretanto, há exem p los de casos m enos importantes em que é o gosto


ou sentim ento im ediato que produz n ossa aprovação. A espirituosidade,
ou um certo com portam ento casual e desprendido, são qualidades
im ediatam ente a g r a d á v e is aos outros, inspirando seu amor e apreço.
Algumas dessas qualidades produzem satisfação nos demais por m eio
de princípios particulares originais á natureza humana, que não podem
ser exp licad os [...]. (T , p. 629)

O que nos leva a concluir que a relação entre razão e sentimento ocorre
mais pontualmente quando estão em pauta as virtudes de caráter utilitário, que são
mais prementes para a manutenção da sociedade, e exigem uma atividade maior
por parte do raciocínio; raciocínio este puramente indutivo e motivado por um
sentimento de dor e prazer.
133

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