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UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

IDENTIDADE E TERRITÓRIO COMO NORTE DO PROCESSO DE CRIAÇÃO


TEATRAL DE RUA: BURACO D`ORÁCULO E POMBAS URBANAS NOS
LIMITES DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO

ADAILTOM ALVES TEIXEIRA

SÃO PAULO

2012
ADAILTOM ALVES TEIXEIRA

IDENTIDADE E TERRITÓRIO COMO NORTE DO PROCESSO DE CRIAÇÃO


TEATRAL DE RUA: BURACO D`ORÁCULO E POMBAS URBANAS NOS
LIMITES DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA


DE PÓS-GRADUAÇÃO DO INSTITUTO DE ARTES
DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”, PARA A
OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE.

ORIENTADOR: PROF. DR. ALEXANDRE LUIZ MATE

SÃO PAULO

2012


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À minha filha Bruna que, aos seis anos, começa a dar seus primeiros passos no mundo
da leitura. E à minha mãe, Maria, que mesmo se tivesse alcançado esse momento, não
conseguiria lê-lo.
AGRADECIMENTOS

Uma pesquisa nunca é realizada sem apoio; sempre há a necessidade de outras


pessoas, de diálogos, de encorajamento, de compreensões, e essa não foi diferente. Por
isso, mesmo correndo o risco de esquecer alguém, quero agradecer a várias pessoas.
Agradeço à minha companheira de vida, de arte e de luta, Selma Pavanelli, que
esteve ao meu lado todo o tempo. Quero agradecer à nossa filha Bruna, pela paciência e
compreensão em “acostumar-se” com minha ausência, mesmo fisicamente presente. E à
dona Solita (Deonilda Pavanelli) pelo apoio aos três.
Agradeço também ao meu querido mestre na vida e na arte, meu orientador,
professor Alexandre Mate, por ser sempre tão solícito e gentil, apoiando-me em todos
os momentos, bem como pela leitura muito atenta de cada página escrita e pelo
encorajamento nos momentos mais difíceis.
Agradeço aos meus irmãos de grupo por toda a solidariedade e amparo: Edson
Paulo, Lu Coelho, Humberto Heber (que na arte escolheu ser Johnny John), Selma
Pavanelli e Rominson Paulo. Sem vocês não teria conseguido.
Agradeço aos parceiros de arte e de luta do Pombas Urbanas, que sempre
atenderam às minhas solicitações: Adriano Mauriz, Juliana Flory, Marcelo Palmares,
Marcos Kaju, Natali Santos, Paulo Carvalho e Ricardo Big.
Agradeço aos professores Mario Fernando Bolognesi e Ana Bárbara Pederiva
Scheer pela leitura atenta e pelas observações no momento da qualificação.
Agradeço aos professores da Pós-Gradução do Instituto de Artes da Unesp, João
Cardoso de Palma Filho, José Manuel Lázaro Ortecho, Marianna F. M. Monteiro e
Wagner Cintra e a todos os colegas pelos debates interessantes.
Obrigado, Hugo Villavicenzio, colega de Pós-Gradução, pelas conversas e pela
entrevista a mim concedida.
Obrigado, Valmir Santos, por disponibilizar o relatório de sua pesquisa sobre
Lino Rojas.
Obrigado, Aurea Karpor e Simone Pavanelli, pela leitura dos primeiros
rascunhos.
Obrigado, Fernando Ávila, pelo empréstimo de tantos materiais valiosos para
minha pesquisa.
Obrigado, companheiro Luis Carlos Checchia, pelas conversas políticas.
Por fim, agradeço a todos aqueles que, direta ou indiretamente – mesmo sem
nenhuma citação – realizaram essa pesquisa comigo.
Ser Pombas Urbanas é ser periférico, jovem, ser novato em teatro, entusiasmado, gostar
de rock e forró.
Marcelo Palmares – ator do Pombas Urbanas

Ainda somos vistos como um grupo utópico e marginal.


Edson Paulo – ator do Buraco d`Oráculo

Não somos nenhuma bela adormecida, uma humanidade congelada na alienação até que
nosso partido príncipe venha nos beijar; vivemos sim uma luta constante para nos
libertar da maldição da bruxa.
John Holloway apud Teatro na comunidade. Tim Prentki

[...] o caminho para uma ecclesia [assembleia de cidadãos, do grego ekkalesía]


verdadeiramente autônoma passa por uma ágora populosa e vibrante, onde as pessoas se
encontram todos os dias para continuarem seus esforços conjuntos a fim de traduzir as
linguagens dos interesses privados e do bem público.
A sociedade individualizada. Zygmunt Bauman
RESUMO

A pesquisa tem por objetivo analisar alguns espetáculos criados para a rua,
buscando identificar de que maneira a identidade (sentimento de pertencimento) e o
território (o espaço significado) influenciam nesse processo. Os dois grupos
pesquisados, Pombas Urbanas e Buraco d`Oráculo, estão sediados na parte leste da
cidade de São Paulo (SP), local basicamente habitado por trabalhadores migrantes ou
por seus descendentes. Uma característica comum é que ambos os grupos criam seus
espetáculos com base na observação da realidade na qual estão inseridos. Trataremos de
quatro espetáculos: Mingau de concreto e Histórias para serem contadas (Pombas
Urbanas); O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (Buraco
d`Oráculo), de forma a tornar clara a relação aludida.

Palavras-chave: Território, identidade, teatro de rua, grupo teatral, Pombas Urbanas,


Buraco d`Oráculo
RESUMEN

La investigación tiene como objetivo examinar algunas creaciones producidas para la


calle, de modo a identificar de que manera la identidad (sentido de pertenencia) y el
territorio (espacio sentido) influyen en este proceso. Los dos grupos, Pombas Urbanas y
Buraco d`Oráculo, se encuentran en la porción oriental de la ciudad de São Paulo (SP),
el lugar habitado principalmente por trabajadores migratorios o sus descendiente. Una
característica común a ambos grupos es la creación de sus espectáculos a partir de la
observación de la realidad a la que pertenecen. Trataremos de cuatro espectáculos:
Mingau de concreto y Histórias para serem contadas (Pombas Urbanas); O cuscuz
fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (Buraco d`Oráculo), con el fín
de aclarar la relación que ya hemos aludido.

Palabras claves: Territorio, identidad, teatro de calle, grupo de teatro, Pombas Urbanas,
Buraco d`Oráculo
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Urbanização da cidade de São Paulo entre 1915 e 1929................................. 35


Figura 2: Evolução do Salário Mínimo, de 1940 a 2011................................................ 40
Figura 3: Espetáculo Histórias para serem contadas –
Parque da Água Branca, em São Paulo (SP), 2007............................ .............53
Figura 4: Jovens saem em cortejo pelas ruas de Cidade Tiradentes,
em São Paulo (SP)........................................................................................... 54
Figura 5: Espetáculo ComiCidade em Cidade Tiradentes, em São Paulo (SP).............. 62
Figura 6: Grupo Pombas Urbanas................................................................................ 127
Figura 7: Apresentação no Boulevard da Avenida São João - São Paulo/SP.............. 130
Figura 8: Apresentação no Boulevar da Avenida São João,
década de 1990.............................................................................................. 134
Figura 9: Apresentação no Boulevard da Avenida São João,
década de 1990.............................................................................................. 135
Figura 10: Apresentação no bairro de Cidade Tiradentes,
em São Paulo (SP), 2011............................................................................. 137
Figura 11: “O homem que virou cachorro”.................................................................. 139
Figura 12: Histórias para serem contadas................................................................... 141
Figura 13: O camelô e sua dor de dente....................................................................... 145
Figura 14: Apresentação do Buraco d`Oráculo no Parque Raul Seixas,
em Itaquera (São Paulo/SP), 2006............................................................... 148
Figura 15: Apresentação do Buraco d`Oráculo em Cidade Tiradentes
(Setor G VII), 2007..................................................................................... 150
Figura 16: Material de divulgação do projeto Circular Cohab`s,
julho e agosto de 2007................................................................................. 151
Figura 17: Apresentação na Praça do 65, em Cidade Tiradentes,
em 2007...................................................................................................... 156
Figura 18: Apresentação no Boulevard da Avenida São João,
em São Paulo (SP), novembro de 2003....................................................... 158
Figura 19: Cartaz de divulgação da primeira circulação pelos conjuntos
habitacionais da zona leste da cidade de
São Paulo, em 2005..................................................................................... 159
Figura 20: Apresentação na Praça do Casarão – Vila Mara/São Miguel
Paulista, em São Paulo (SP), 2009.............................................................. 162
Figura 21: Mapa dos bairros por onde costuma circular o Buraco d`Oráculo............. 164
Figura 22: Os migrantes chegam à cidade................................................................... 167
Figura 23: Apresentação no Campus da Universidade de São Paulo,
em Piracicaba (SP), 2011............................................................................ 168
Figura 24: Janelas da Cohab........................................................................................ 170
Figura 25: Apresentação no Parque Santa Amélia, Itaim Paulista,
em São Paulo (SP), 2010............................................................................. 172
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11

1. O TEATRO QUE OCUPA RUAS, VIELAS, BECOS E PRAÇAS


PARA CHEGAR A TANTOS(AS) TRABALHADORES(AS) PARA
PROPOR-LHES TROCAS DE EXPERIÊNCIAS.............................................. 18
1.1. Viver em um mundo globalizado............................................................................ 18
1.2. São Paulo – a zona leste de tantos trabalhadores.................................................... 29
1.3. Circular por tantos Buracos para semear asas de Pombas...................................... 45
1.3.1. Pombas Urbanas semeando asas.......................................................................... 46
1.3.2. Buraco d`Oráculo circulando pelas Cohabs......................................................... 56

2. TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHADORES DE


TEATRO NAS FRANJAS DA CIDADE DE SÃO PAULO................................ 65
2.1. Espaço, território, territorialização e lugar.............................................................. 65
2.2. Paisagens e imaginários........................................................................................... 78
2.3. Identidades............................................................................................................... 83
2.4. O grupo teatral......................................................................................................... 89
2.4.1. Alienação e teatro................................................................................................. 94
2.5. A rua e o teatro...................................................................................................... 105
2.5.1. Definindo teatro de rua...................................................................................... 107
2.5.2. Espaço aberto: rompimento e ressignificação.................................................... 113

3. COMO SERVIR CUSCUZ E MINGAU COM HISTÓRIAS


DA OUTRA MARGEM – OU SERES TÃO CONCRETOS
CRIADOS A PARTIR DAS MARGENS DA CIDADE.................................... 118
3.1. Sobre troca de experiência e a relação na rua........................................................ 118
3.2. Um Mingau de concreto servido por Pombas Urbanas......................................... 125
3.3. Histórias de Joãos e Josés que lutam diariamente na cidade grande..................... 138
3.4. O Cuscuz fedegoso feito pelo Buraco d`Oráculo................................................... 147
3.5. Histórias de um sertão urbano............................................................................... 160

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 173


BIBLIOGRAFIA GERAL............................................................................................ 179
INTRODUÇÃO

Chin-Tao Wu (2006), ao analisar as políticas neoliberais dos governos de


Ronald Reagan e de Margareth Thatcher, afirma que as corporações, desde as duas
últimas décadas do século XX, têm fincado suas garras no campo das artes de forma
abrangente e universal. Diante disso, não há dúvida de que qualquer arte que se
contraponha à forma mercadoria tem encontrado dificuldade para sobreviver. Não
obstante, no campo teatral, na cidade de São Paulo, pode-se dizer que, desde os anos
1990, vivemos uma verdadeira proliferação de grupos – que, em tese, por suas próprias
características, organizam-se de maneira diferente daquela imposta pelo mercado.
Assim, criar um teatro “não culinário” é bastante difícil no atual estágio do capitalismo.
No entanto, o teatro de rua nunca deixou de existir, mesmo que com dificuldades, e seus
praticantes sempre se propuseram a inserir-se e a relacionar-se com a sociedade,
sobretudo com aqueles que continuam sendo os produtores de riqueza (embora
apartados dela), a saber, os trabalhadores.
O teatro, derivado de rituais em homenagem aos deuses, nasceu ao ar livre.
Muito tempo depois, ele foi “aprisionado” em um edifício pela aristocracia grega da
Antiguidade clássica, que necessitava de um símbolo que a representasse. Embora tenha
continuado ao ar livre, ao inserir um protagonista para dialogar com o coro, cria
distinção na cena entre aqueles que mandam e os comandados.
De qualquer forma, ao estudar a história do teatro, têm-se “[...] a surpresa de
perceber o quanto é limitada a seção pertinente ao edifício teatral como local específico,
projetado e aparelhado para os espetáculos” (CRUCIANI, 1999: 19).
Mas o que vem a ser teatro de rua? Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti, no livro
Teatro de rua, afirmam que “[...] é um termo que pode abarcar coisas bastante
diversificadas” (1999: 19), desde espetáculos espontâneos, representações circenses,
happenings, até representações elaboradas, pesquisadas e ensaiadas para o espaço
aberto. Na pesquisa, o termo tem o significado do último conceito: espetáculos
pensados, pesquisados e elaborados para a rua. Em contraposição a isso, a rua
compreende um conceito mais amplo, isto é, trata-se de todo e qualquer espaço aberto:
ruas, praças, parques, entre outros, que possam acolher um espetáculo teatral.

ϭϭ


O teatro de rua sempre foi diversificado; além disso, teve e tem forte apelo
popular e, portanto, desse ponto de vista, sempre esteve no seio popular, com o povo1.
Sem a pretensão de rever todos os momentos de sua história, até porque não é essa a
proposição dessa pesquisa, é possível dar um grande salto na história.
No século XX, surgiram novas formas de teatro de rua, como o agit-prop
(agitação e propaganda) russo e o prolekult (Proletarskaya kultura) alemão, grupos de
agitação e propaganda que mobilizaram os trabalhadores em torno da ideologia
comunista pós-revolução Russa. Nos anos 1950, nos Estados Unidos da América,
surgiram os movimentos de contracultura e os teatros de guerrilha com a proposta de
chegar, representar, comover e fugir. Nesse bojo, surgiram grupos importantes como o
Living Theatre e o Bread and Puppet.
No Brasil, Augusto Boal, que havia estudado nos Estados Unidos da América e
presenciado o nascimento e a efervescência dos teatros de guerrilha, criou, com atores
do Teatro de Arena, o Teatro do Oprimido, hoje prática presente em mais de setenta
países. Por intermédio do Teatro do Oprimido, Boal desenvolveu várias técnicas, como
o teatro fórum e o teatro invisível, e participou ativamente do teatro político brasileiro
da década de 1960.
No processo de democratização, no fim da década de 1970 e início da década de
1980, surgiram vários grupos de teatro de rua, como o sergipano Imbuaça, o mineiro
Galpão, o gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz e o carioca Tá Na Rua. Hoje, além de centenas
de grupos disseminados pelo Brasil, há também diversos movimentos organizados
acerca desse fazer nos Estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, bem como nacionalmente, na Rede Brasileira
de Teatro de Rua (RBTR).2
Esses pequenos voos pela história são apenas para nos situarmos, pois a pesquisa
tem por objetivo se debruçar sobre o processo de ajuntamento em grupo, definindo-o e
analisando possibilidades de desalienação, com base na história de dois grupos: Pombas
Urbanas e Buraco d`Oráculo. Esses dois grupos surgiram nas duas últimas décadas do


1
Adotamos aqui a terceira acepção do Dicionário básico de filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo
Marcondes: “Classe social inferior. Ex.: homem do povo” (2006: 223).
2
A RBTR foi criada em março de 2007, na cidade de Salvador-BA, dentro do encontro A Roda,
organizado pelo Movimento de Teatro de Rua da Bahia. A RBTR, por meio de seus articuladores, está
presente em todo o Brasil e se organiza de forma horizontal em um fórum virtual e nos encontros
presenciais. Até o momento (março de 2012) já foram realizados dez encontros. O autor dessa dissertação
é um dos fundadores da RBTR.
ϭϮ


século passado, escolheram a rua como palco e os bairros populares como sede e local
de atuação, enraizando-se na parte leste da cidade de São Paulo, habitada
principalmente pelos trabalhadores. Por isso, mesmo quando se deslocam para outras
cidades, a prioridade continua a ser preferencialmente esse mesmo público.
Ao longo da história desses dois grupos, foram escolhidos quatro espetáculos,
dois de cada coletivo, para que fosse possível realizar um estudo mais aprofundado, de
maneira a compreender de que forma o território e a identidade influenciaram o
processo de criação desses coletivos. Em relação ao grupo Pombas Urbanas, foram
escolhidas as seguintes obras: Mingau de concreto e Histórias para serem contadas. A
primeira aborda os socialmente marginalizados, como travestis, prostitutas, entre outros;
a segunda obra trata da precarização do trabalho, apresentando um homem animalizado,
devido as condições a que ele é submetido, e um homem que é impedido de trabalhar
devido a uma dor de dente. Do grupo Buraco d`Oráculo, foram escolhidos O cuscuz
fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, sendo que a primeira obra
apresenta algumas figuras populares na luta pela sobrevivência; a segunda,
trabalhadores na luta por moradia.
No que concerne ao território, trata-se de uma parte da cidade de São Paulo, a
zona leste; mais especificamente, dois bairros: São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes.
Mas o território não é apenas geográfico, em seu sentido material; o território é também
simbólico, relacional (HAESBAERT, 2006a). O que nos interessa são três aspectos do
território: o seu sentido político, que diz respeito à delimitação do espaço; o seu aspecto
cultural, quando se refere à apropriação do espaço por parte de um grupo de pessoas; e a
relação econômica, quando se refere ao embate de classes. Somados esses três aspectos,
é possível perceber a importância do território também na formação da identidade, seja
ela individual ou coletiva.
Para alguns pensadores (HALL, 2005), vivemos uma crise de identidade; para
outros (CASTELLS, 2001), ao contrário, a identidade tem sido cada vez mais
importante na medida em que tem juntado pessoas, criando movimentos com
perspectivas de mudanças sociais. Ademar Bogo afirma que, em uma sociedade cindida
em classes, como a que vivemos, a identidade é subdividida em quatro:

[...] é biológica, histórica, cultural e, quando as perspectivas apontam


na direção das mudanças estratégicas, é também política, articulada
em torno de um projeto de poder, em que a classe proletária,
ϭϯ


organizada nas suas diversas forças, opondo-se à classe burguesa,
torna-se o sujeito histórico das transformações, objetivando ocupar,
com uma nova ordem, o lugar da velha, colocando-a em um novo
patamar de negações (2008: 31).

Nesse trabalho não será possível discorrer sobre todas as formas de identidade,
mas sim sobre a identidade política, apontada por Bogo, isto é, a identidade de classe,
porque ela é muito importante para o entendimento acerca da inserção dos dois grupos
no território abordado. Na medida em que ambos os grupos aqui analisados fizeram a
opção por dialogar, por meio de seus trabalhos, com pessoas destituídas do acesso a
grande parte dos bens culturais e, em especial o teatro, e por terem optado pela
ocupação de espaços que não foram criados para a fruição das artes, é visível o recorte
de identidade de classe, não apenas por escolha, mas por pertencerem a essa mesma
classe.
Quanto ao processo de coletivização, é importante perguntar: por que tantas
pessoas têm se juntado em grupo para fazer teatro? A geração que começou a fazer
teatro nos anos 1980 e 1990, em geral, nasceu sob o signo da ditadura civil-militar
(1964-1985), período crítico de nossa história, que interrompeu diversos sonhos e
inúmeras vidas. Apenas no fim dos anos 1980 voltou-se a eleger um presidente por
meio do voto direto – Fernando Collor de Melo (1990-1992, pelo Partido da
Reconstrução Nacional) –, que, logo após a posse, confiscou o dinheiro da população3.
No campo teatral, um retrocesso, pois esse mesmo presidente fechou a Fundação
Nacional de Artes Cênicas (Fundacen)4. Em certa medida, a junção de pessoas em
coletivos foi uma resposta a tudo isso. A precarização no campo teatral fez com que as
pessoas se unissem para produzir sua arte. Por outro lado, foi também uma resposta
libertária e horizontal, na medida em que se colocou contra a forma hierarquizada que
vinha sendo praticada na área teatral, a saber, primeiro vinha o autor; depois, o diretor e,
por último, os atores. Em grupo, essa hierarquia, em geral, é derrubada e todos

3
O Plano Collor, anunciado um dia após assumir o cargo, em 15/03/1990, incluía também a substituição
da moeda e congelamento de preços e salários. O Plano teve vida curta, apenas seis meses, pois falhou em
sua principal proposição: derrotar a inflação. Segundo o economista Carlos Eduardo Carvalho, “[...] o
Plano falhou porque era inaplicável” (2003:285).
4
O campo cultural como um todo sofreu retrocessos, de acordo com Lia Calabre: “Em abril de 1990, o
Presidente promulgou a Lei nº 8.029, que extinguia, de uma só vez, diversos órgãos da administração
federal, em especial da área da cultura – FUNARTE, Pró-Memória, FUNDACEN, FCB, Pró-Leitura e
EMBRAFILME – e reformulava outros tantos como o SPHAN. Todo o processo foi feito de maneira
abrupta, interrompendo vários projetos, desmontando trabalhos que vinham sendo realizados por mais de
uma década” Disponível em: www.ufba.br/enecult2005/LiaCalabre.pdf. Consultado em: 03/04/2012.
ϭϰ


interferem em todos os campos. Por isso mesmo os coletivos, em geral, criam os
próprios textos, como será possível observar na maioria das obras estudadas.
Desse ponto de vista, o grupo é uma possibilidade democrática de relação e de
criação e, ao mesmo tempo, quase a única possibilidade de produção de uma arte
diferenciada daquela imposta pelo mercado, ainda que em condições precárias.
Talvez, por isso mesmo, o teatro produzido em grupo nunca tenha sido tão
importante como na atualidade, sobretudo aquele que ressignifica os espaços abertos,
tornando-os espaços cênicos, pois, em um mundo cada vez mais individualizado, o
teatro, em sendo uma arte coletiva, não deixa de ser uma luz no fim do túnel, se não
para o público, pelo menos para quem o faz.
A produção teatral organizada em grupo, com essa forma diferenciada e
horizontal, proliferou nos anos 1990. Nesse mesmo período, alguns grupos se
encaminharam ou começaram a surgir em regiões distantes do centro da cidade de São
Paulo. É o caso do grupo Pombas Urbanas, criado em 1989, na Oficina Cultural Luiz
Gonzaga, em São Miguel Paulista, hoje, sediado em Cidade Tiradentes; e do Buraco
d`Oraculo, criado em 1998, na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi, e que, em 2002, se
deslocou para o bairro de São Miguel Paulista a fim de desenvolver seus projetos.
Nascidos sob o signo da ditadura civil-militar e sem apresentar formação teatral
tradicional – escolas ou universidades na área de teatro –, os integrantes dos dois
coletivos optaram por um fazer teatral diferenciado, escolhendo como público
preferencial os trabalhadores que habitam a zona leste da cidade de São Paulo.
É importante destacar que o foco dessa pesquisa são as formas teatrais
“invisíveis” aos grandes jornais e revistas, para citar apenas dois tipos de veículos que
hierarquizam as práticas simbólicas que passam a servir de referência para a sociedade.
Sabe-se que são poucos os privilegiados que aparecem nesses veículos, daí a
necessidade da criação de outras formas documentais, para que os trabalhos desses
coletivos não passem ao largo da história, como se não tivessem existido,
principalmente porque esses grupos escolheram o caminho e o fazer teatral da
contramarcha da mercadoria.
O foco, quanto à criação desses coletivos, como já mencionado, será nos
trabalhos feitos para os espaços abertos. Nesse aspecto, o Buraco d`Oráculo tem sua
produção quase totalmente voltado para a rua, à exceção de uma única obra criada para
o espaço fechado – A bela adormecida (2001) –, posteriormente levada também à rua. O
ϭϱ


grupo Pombas Urbanas, por sua vez, tem algumas obras criadas para o teatro de sala,
como Os tronconenses (1991), Funâmbulo (1994), Ventre de lona (1998), entre outras,
mas, nesta pesquisa, serão privilegiados seus trabalhos criados para o espaço aberto.
Entender como se deu a constituição do coletivo, bem como a criação dos
espetáculos, tomando a identidade e a escolha por um território de atuação – zona leste
da cidade de São Paulo, local extremamente populoso e que padece pela ausência do
poder público – e saber como essas carências reverberam na criação dos espetáculos
caracterizam o escopo dessa pesquisa. Documentar os motivos pelos quais esses grupos
abandonaram o conforto das salas de espetáculo, travando um diálogo mais direto com
seu público na rua, mesmo em uma cidade extremamente ruidosa, é tarefa urgente e
necessária.
Com relação à fundamentação teórica dessa pesquisa, nem todos os campos da
abordagem contam com expressivo material bibliográfico. No entanto, ainda que fosse
vasto, e considerando a proposição dessa dissertação, houve a necessidade de se
constituir uma documentação por meio de entrevistas. A criação de documentos
ampara-se na história oral, principalmente na metodologia apresentada pelo professor
José Carlos Sebe Bom Meihy, para quem “[...] a história oral implica uma percepção do
passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está
acabado” (2005: 19). Dessa forma, as fontes primárias para a análise dos espetáculos
serão as entrevistas e os documentos dos respectivos arquivos dos grupos Pombas
Urbanas e Buraco d`Oráculo, como peças gráficas de divulgação dos espetáculos,
programas, entre outros.
Assim, a dissertação será desenvolvida com base em uma pesquisa bibliográfica,
associada à coleta de material in loco: entrevistas com os integrantes dos grupos,
arquivos dos coletivos, apreciação de espetáculos e demais registros julgados
pertinentes para o entendimento das proposições apontadas.
De maneira mais direta, a distribuição dos capítulos apresenta-se da seguinte
forma: no primeiro capítulo, há uma discussão histórica, partindo-se do geral para o
particular. São observados alguns aspectos mundiais; em seguida, discorre-se de modo
sucinto sobre a história de São Paulo, em especial sobre a zona leste da cidade e, por
fim, apresenta-se a história dos grupos em epígrafe.
No capítulo dois, há uma discussão conceitual com respeito a território e
identidade. Discorre-se acerca da constituição de um grupo teatral e sobre as
ϭϲ


possibilidades que essa forma de organização apresenta para um processo de
desalienação. Em seguida, conceitua-se teatro de rua, discutindo sua relação com a
cidade e o cidadão, bem como destacando aspectos que revelam uma verdadeira troca
de experiência.
Por fim, no terceiro capítulo, são analisados os espetáculos Mingau de concreto,
Histórias para serem contadas, O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra
margem, sem perder de vista os processos de criação e a estética de cada grupo.


ϭϳ


1. O TEATRO QUE OCUPA RUAS, VIELAS, BECOS E PRAÇAS PARA
CHEGAR A TANTOS(AS) TRABALHADORES(AS) PARA PROPOR-
LHES TROCAS DE EXPERIÊNCIAS

A sociedade que entra no século XXI não é menos “moderna” que a


que entrou no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é
moderna de um modo diferente. O que faz tão moderna como era mais
ou menos há um século é o que distingue a modernidade de todas as
outras formas históricas de convívio humano: a compulsiva e
obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização; a
opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de
criatividade destrutiva, se for o caso: de “limpar o lugar” em nome de
um “novo aperfeiçoado” projeto; de “desmantelar”, “cortar”,
“defasar”, “reunir” ou “reduzir”, tudo isso em nome da maior
capacidade de fazer o mesmo no futuro – em nome da produtividade
ou da competitividade).
Modernidade líquida. Zygmunt Bauman

1.1.Viver em um mundo globalizado

Em 1989, ano em que surgiu o grupo Pombas Urbanas na cidade de São Paulo,
“caía” o muro de Berlim. Simbolicamente, dentre outras significações, a imprensa
burguesa considerou essa queda como a “vitória total” do capitalismo. Visões mais
catastróficas – dentre as quais a de Francis Fukuyama (1992) – anunciaram o “fim da
história”. Duas grandes potências mundiais, Inglaterra e Estados Unidos da América,
por meio de políticas reacionárias, denominadas laissez-faire, revogaram inúmeras
conquistas da classe trabalhadora e submeteram os demais países às suas políticas
neoliberais. Estava posta a ditadura do mercado.
No Brasil, após vinte e nove anos sem eleições diretas (1960-1989), elegia-se
um presidente civil, Fernando Collor de Mello, pelo Partido de Reconstrução Nacional
(PRN) de Alagoas. A época dos projetos políticos para os partidos parecia ter chegado
ao fim; agora, o que “se vendia” fundamentalmente era a imagem. Eis aí a estratégia da
vitória de Fernando Collor: amparado por significativo marketing político, o candidato
teve a sua imagem espetacularmente construída, levando-o à presidência do Brasil.
Naquele mesmo ano, na cidade de São Paulo, uma mulher nordestina, Luiza
Erundina, assumia a prefeitura da cidade mais rica e mais populosa do Brasil. Esses
acontecimentos, postos sem análise e sem conexão uns com os outros, apenas apontam
para as mudanças factuais, mas revelam, também, a contradição da política brasileira.

ϭϴ

Se o neoliberalismo adentrava o Brasil pela via federal, após a ditadura civil-militar que
durou mais de duas décadas (1964-1985), uma mulher de um partido progressista (na
época, de esquerda5) assumia o poder em São Paulo. Os acontecimentos aqui descritos
não revelam toda a complexidade histórica do período, mas servem para confirmar que
“[...] o mar da história é agitado”, como escreveu Vladimir Maiakóvski, no poema E
então, que quereis?
Ainda na linha dos acontecimentos pontuais, em 1998, foi criado o Buraco
d`Oráculo, a Rússia (hoje, oficialmente Federação Russa, criada após a dissolução da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, cujo processo de dissolução iniciou-se em
1989), passou por grave crise financeira, causando tensões sociais e políticas. Na
Federação Russa já combalida, os problemas econômicos e sociais fizeram com que
30% de sua população ficassem abaixo da linha da pobreza. A conjuntura problemática
na Rússia havia sido precedida por outra crise: a asiática6. O capitalismo parecia

5
Para esclarecer essa questão de como o Partido dos Trabalhadores deixou de ser esquerda, basta cotejar
a Carta de Princípios, lançada em 1o de maio de 1979, com a Carta ao Povo Brasileiro, de 22 de junho
de 2002, lida no centro financeiro do País: São Paulo. A Carta de Princípios (Disponível em:
http://www.pt.org.br/arquivos/cartadeprincipios.pdf. Consultado em: 02/02/2012) convocava a todos os
trabalhadores a se organizarem pelo País, pois o momento era auspicioso, mas também perigoso, já que,
segundo o documento, quem realizava a abertura política eram os mesmos que haviam mantido o regime
civil-militar: “Em poucas palavras, pretendem promover uma conciliação entre os de cima, incluindo a
cúpula do MDB [mais tarde PMDB, atual aliado do PT], para impedir a expressão política dos de baixo,
as massas trabalhadoras do campo e da cidade”. O documento é claro nas proposições políticas, de cunho
socialista: “O PT não pretende criar um organismo político qualquer. O Partido dos Trabalhadores define-
se, programaticamente, como um partido que tem como objetivo acabar com a relação de exploração do
homem pelo homem”. Já a Carta ao Povo Brasileiro, de Luiz Inácio Lula da Silva (Disponível em:
http://www2.fpa.org.br/carta-ao-povo-brasileiro-por-luiz-inacio-lula-da-silva. Consultado em:
02/02/2012), já no 4o parágrafo, propõe uma aliança de classes, ao afirmar que elas estão desestimuladas
com o fracasso do atual modelo [seria o neoliberalismo?] e, no parágrafo seguinte, afirma: “O mais
importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao
desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e
desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do
País, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a
crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no
mundo”. Para que não reste dúvida da conciliação entre as classes, o documento afirma ainda: “[...]
parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão,
em muitos aspectos suprapartidários, que busca abrir novos horizontes para o País”. E o projeto, como se
sabe, foi posto em prática, levando alguns milhões de brasileiros ao consumo, mas não à cidadania plena,
o que já era apresentado também no documento: [O Brasil] “Quer trilhar o caminho da redução de nossa
vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de
consumo de massas”. Para que o setor financeiro não ficasse assustado, o pacto o incluía de forma
generosa, ainda que a transição de “modelos” não fosse feito da noite para o dia, a transição exigia uma
premissa: “[...] o respeito aos contratos e obrigações do País”. E mais à frente: “Vamos preservar o
superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a
confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. Como resultado, os bancos
lucraram bilhões, batendo recordes a cada ano, enquanto mais de 30% do que vem se produzindo no País
continua indo para o bolso da classe dominante mundial.
6
A crise asiática foi considerada a primeira crise mundial no mundo globalizado, isto é, apesar de ter sido
iniciada na Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas (os tigrinhos), Coréia do Sul e Hong Kong (os tigres),
afetou todos os países. Devido à forte modernização da indústria daqueles países, aliada à universalização

ϭϵ

demonstrar ao mundo sua precariedade e sua impossibilidade como sistema; entretanto,
era como se essa precariedade não fosse percebida. Afinal, após a suposta derrota da
esquerda, as críticas ao capitalismo escassearam, como se ele nem existisse, e criticá-lo
ficou démodé, quase “invisível”. Um sistema é algo que não vemos, mas os problemas
que são gerados por ele saltam aos olhos. Como bem afirmou Terry Eagleton, “[...]
Ninguém, por certo, jamais viu um sistema, como ninguém bateu os olhos no id de
Freud, mas parece precipitado e temerário concluir disso que nenhum deles existe”
(1998: 18).
No mesmo período, as pessoas em todo o mundo – particularmente banqueiros e
grandes investidores – viviam aflitas com um possível bug7 que viria a ocorrer muito
proximamente; temiam, os citados banqueiros, que todos os computadores do mundo
entrassem em pane, já que os dois primeiros algarismos não saltariam para 20(00), mas
voltariam, segundo a ótica daqueles, para 1900, gerando uma confusão no sistema
financeiro.
No Brasil, sob suspeita de compra de votos de parlamentares, o governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002 – Partido da Social Democracia Brasileira)
conseguiu aprovar uma emenda parlamentar para que aqueles que ocupavam cargos
executivos pudessem ser reeleitos. Assim, Fernando Henrique Cardoso pôde ser
reeleito, dando continuidade ao processo de privatizações que já vinha realizando sob o
discurso de modernizar o Brasil. No entanto, a máquina pública não apenas foi
enxugada, mas também, de certo modo, entregue ao capital estrangeiro, pois sob seu
governo a dívida pública, tanto externa como interna, só aumentou. A dívida interna,

educacional nas décadas anteriores, eles apresentaram forte crescimento econômico. No entanto, em
1997, ocorreu uma “fuga de capital” e suas moedas nacionais sofreram acentuada desvalorização. Nos
países denominados “tigrinhos”, houve um agravamento por conta da especulação imobiliária (o que viria
a se repetir em 2008, levando à bancarrota países como a Grécia e agravando as economias da Espanha e
mesmo dos Estados Unidos da América). Segundo Henrique Altemani de Oliveira, foram quatro as
causas da crise asiática: 1. Excessivo investimento externo de japoneses e europeus, por meio de
empréstimos, levando os países a um alto endividamento externo; 2. Inadequada supervisão financeira
(baixa fiscalização e práticas de corrupção); 3.Excessiva confiança no mercado e; 4. Política (pressão por
parte do Ocidente e certa manipulação por parte de alguns órgãos como o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Mundial). Cf. OLIVEIRA, Henrique Altemani de. A crise asiática e a China. IEA/USP
(Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo). Disponível em:
www.iea.usp.br/iea/textos/oliveiracriseasiatica.pdf. Consultado em 04/08/2011. Conferir também:
CANUTO, Otaviano. A crise asiática. Disponível em: www.eco.unicamp.br/artigos/artigo4.htm.
Consultado em: 03/08/2011.
7
O termo foi utilizado para representar a falha na concepção dos softwares: “O problema central do Bug
do Milênio era o fato de que os sistemas antigos desenvolvidos no século XX guardavam e interpretavam
as datas com 2 dígitos no ano. Isso ocorria pela necessidade de se economizar, uma vez que em 1965 um
megabyte de espaço de memória magnética (suficiente para gravar um texto de 300 páginas) custava US$
761”. Bug do Milênio. Disponível em: http://www.mundoeducacao.com.br/informatica/bug-milenio.htm.
Consultado em: 03/02/11.

ϮϬ

por exemplo, passou de R$ 59,4 bilhões em 1994, para mais de R$ 700 bilhões em
2002, no fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.8 Francisco de
Oliveira (2005) afirma que as privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso
foram, para o Brasil, um processo de “autoimolação”. No fim do primeiro mandato,
enquanto o governo anunciava

[...] uma entrada de R$ 85 bilhões por conceito de venda das estatais,


o próprio Estado Brasileiro renunciou a receitas, subsidiou as
compras, pagou por indenizações trabalhistas, deu crédito do próprio
BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento], investiu para
“sanear” as empresas num montante subavaliado de R$ 87 bilhões
(OLIVEIRA, 2005: 150).

Quanto a São Paulo, “a metrópole do trabalho” (POCHMANN, 2001), deixa de


ser uma cidade industrial para se tornar uma cidade de serviços. Os empregos não
fornecem a mesma segurança se comparados aos da indústria; assim, multiplicaram-se
os empregos de baixa remuneração. Com relação ao crescimento populacional,
enquanto os bairros centrais e mais estruturados tiveram diminuição populacional, as
periferias continuaram a crescer. “Distritos como Anhanguera, no noroeste, e Cidade
Tiradentes, no extremo leste, cresceram mais de 3% ao ano” (ROLNIK, 2002: 66). Para
Rolnik, a “máquina da exclusão” continuava a produzir desigualdades, como afirmou:
“Hoje [2002] são 2 milhões os favelados na cidade9, representando um recorde histórico


ϴ
SILVA, Cristiano Monteiro. Imperialismo e dívida externa nos governos de Fernando Henrique Cardoso
e Lula. In: Ponto-e-vírgula. N. 2, 2007, p. 198-209. Disponível em: www.pucsp.br/ponto-e-
virgula/n2/pdf/14-cristiano.pdf. Consultado em: 04/08/2011.
9
Em 2009, o número de favelados havia diminuído para mais ou menos 1,3 milhão de pessoas, segundo
dados da Secretaria Municipal da Habitação (Sehab). Outro dado importante é que, em 2007, pela
primeira vez, o número de favelas havia diminuído em decorrência da falta de terrenos e das
desocupações; mesmo assim, sua população havia crescido 3, 7% ao ano, quase duas vezes mais que a
média paulistana, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição online de 17 de
outubro de 2009 (Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,sao-paulo-tem-menos-
favela-e-mais-favelado,452249,0.htm. Consultado em: 04/08/2011.). Atualmente, o número de favelas
continua a diminuir, não porque existam políticas públicas relativas a esse objetivo, mas porque os
favelados têm se direcionado para a Grande São Paulo. José Benedito da Silva, em matéria publicado no
jornal Folha de S. Paulo de 18/7/2011, no caderno Cotidiano, informa que, conforme o Censo de 2010,
dos 39 municípios da Grande São Paulo, 34 cresceram mais do que a capital nos últimos dez anos. O
crescimento deveu-se à pressão imobiliária, o que faz com que São Paulo fique “ilhada por favelas”. A
cidade de São Paulo tem 1.594 favelas, e o seu entorno, 1.746. As favelas estão se conurbando: “A Vila
Nova Esperança é bom exemplo das favelas conurbadas na metrópole: metade em São Paulo, metade em
Taboão e na fronteira com Osasco e Cotia” (Folha de S. Paulo, 18/7/2011: C3). A citada favela abriga
450 famílias.

Ϯϭ

de 20% da população; mais de um milhão de pessoas na faixa etária dos 18 aos 24 anos
estão sem estudo e sem trabalho na cidade” (ROLNIK, 2002: 67). Quanto à mobilidade,
apesar do incremento tecnológico nos transportes, as pessoas moradoras de bairros
precários e favelas continuam restritas a eles. “São Paulo, portanto, não é uma, mas pelo
menos duas: é uma cidade partida entre incluídos e excluídos, conectados e soltos,
marcada em sua própria estrutura básica de funcionamento pela apartação
socioterritorial” (ROLNIK, 2002: 75). A “dualidade” da cidade diz respeito às decisões
políticas que vem sendo tomadas ao longo de sua história, principalmente no século
XX. Decisões daqueles que sempre optaram por governar para os ricos. Para Aldaíza
Sposati, “São Paulo sempre foi marcadamente uma cidade de cultura higienista, que por
contraponto traz a discriminação e a apartação do que não é considerado ‘higiênico’ aos
olhos de suas elites” (2001: 25).
Nas décadas de 1980 e 1990, as contradições só aumentaram, tanto
regionalmente como no restante do mundo. Em todo o globo – graças à tecnologia –,
mesmo a humanidade tendo atingido a capacidade de alimentar a todos, nunca se viu
tanta fome, tanto desemprego. Enquanto os mais ricos acumulam cada vez mais somas
extraordinárias, milhões de pessoas chegam a viver com menos de um dólar por dia; a
quase totalidade delas mora em habitações precárias, enquanto a minoria aparta-se
livremente do convívio social, passando a morar em áreas superprotegidas, ainda que
continue a depender dos serviços daquelas pessoas que devem ser mantidas à distância.
Todos os elementos pontuais aqui levantados, de alguma maneira, foram
vivenciados pelos integrantes dos dois grupos aqui historiados, afinal o mundo, há
bastante tempo, é uma aldeia global, como anunciara Marshall MacLuhan em A galáxia
de Gutenberg (1962). O mundo vem se modificando radicalmente desde o término da
Segunda Guerra Mundial, mas, nas décadas de 1980 e 1990, radicalizou-se e se
modificou profundamente. Eric Hobsbawm, em A era dos extremos,afirma que “[...] não
há como duvidar seriamente de que em fins da década de 1980 e início da década de
1990 uma era se encerrou e outra começou” (2008: 15).
No campo da política, o que passou a imperar foi a compartimentação dos
movimentos, dividindo a luta: movimentos étnicos, dos homossexuais, ecológicos, entre
outros. Ainda que cada uma dessas lutas tenha sua importância, o inimigo maior, o
capitalismo, é atacado apenas em parte, no campo ou na área de cada movimento, e não

ϮϮ

como um todo. Os recentes acontecimentos em diversas partes do globo10 parecem dar
mostra de novo alento na luta de classes; entretanto, é cedo para fazer qualquer análise
nem é a proposta dessa dissertação.
No campo das artes, o plural e o hibridismo (a mistura de linguagens, correntes e
escolas de várias épocas) estão em voga, pois se trata do pós-modernismo. Para David
Harvey, no entanto,
[...] na medida em que não tenta legitimar-se pela referência ao
passado, o pós-modernismo tipicamente remonta à ala de pensamento,
a Nietzsche em particular, que enfatiza o profundo caos da vida
moderna e a impossibilidade de lidar com ele [e] com o pensamento
racional (1996: 49).

Assim, a luta política, em seus diversos campos, busca apenas reformas, não
mudanças radicais do sistema. Por sua vez, a arte, ainda que não busque originalidade,
boa parte dela está à procura da novidade, caindo em modismos e formalismos
esvaziados de conteúdo, ao mesmo tempo que entrou para o rol das mercadorias como
outra qualquer.
O tempo se acelerou, o mundo encolheu. Para diversos pensadores, entre os
quais Jean-François Lyotard (2006), atravessa-se um período chamado de pós-
modernidade; outros, como Zygmunt Bauman (2001), entende que se vive, tão-somente,
uma radicalização da modernidade ou uma modernidade líquida. Em termos
econômicos, estamos todos sob o signo da globalização, que Bauman já havia
anunciado ser o “[...] destino irremediável do mundo.” Para o autor, a globalização
divide e une, e “[...] diz respeito ao que está acontecendo a todos nós” (1999: 68).
Portanto, no seu entender, não se pode fugir de suas consequências.
O fato é que, finda a primeira década do terceiro milênio, raros são os que
negam a existência de um mercado mundial, ainda que seja possível questionar a forma
como este atue. A tentativa de padronizar as “[...] atitudes e comportamentos em todo o
mundo, colocando em risco a diversidade cultural da humanidade” (VIEIRA, 2000: 70),
é um problema para todos e de todos, afinal o que está em risco não é apenas a
diversidade cultural, mas a própria humanidade, na medida em que o próprio planeta já
não suporta a forma de produção capitalista.


10
Para citar os mais importantes: Primavera Árabe, Movimento dos Indignados da Espanha e Ocupe Wall
Street.

Ϯϯ

É importante destacar que o capitalismo, em sua sanha devoradora, sempre teve
vocação para o global, e por onde passa tende a transformar tudo em mercadoria.
Mesmo assim, “[...] a descoberta de que o globo terrestre [...] não é mais apenas uma
figura astronômica, e sim histórica, abala modos de ser, pensar, fabular” (IANNI: 2003,
14). O que assusta, conforme afirma Ianni, é saber que a ideia de uma economia-mundo
emerge em um horizonte em que as “produções e transações” podem ocorrer “[...] tanto
entre as nações como por sobre elas” (2003: 30). E isso afeta a todos sobremaneira.
Liszt Vieira, em Cidadania e globalização (2000), deixa ainda mais claro essas
mudanças ao destacar cinco aspectos da globalização e de como elas afetam a todos: a)
a econômica, que revela o enfraquecimento do Estado diante dos conglomerados e das
empresas transnacionais, demonstrando que “[...] quem comanda a economia global é
cada vez mais o mercado financeiro” (2000: 81), gerando concentração de renda e
aumento da pobreza pelo mundo; b) a política, que expressa a importância cada vez
maior de instituições intergovernamentais, como a Organização das Nações Unidas
(ONU). Mas o autor faz sua crítica, já que essas instituições “[...] não têm poder real
que vá além daquele outorgado pelos diferentes Estados” (2000: 85); c) a social, em que
reflete sobre todos os problemas gerados por essa nova ordem mundial, como a
crescente exclusão, a degradação ambiental e a crescente urbanização, afirmando que
“[...] o desemprego urbano será o principal problema das cidades no século XXI” (2000:
93); d) a ambiental, em que a fauna e flora estão cada vez mais ameaçadas. Para Vieira,
é preciso tratar a questão ambiental de outra forma: “Além de ser uma questão local e
nacional, o meio ambiente é um problema global” (2000: 96); e) a cultural, em que
retoma Renato Ortiz e critica a globalização como americanização do mundo, o centro
vendendo a todas as periferias. Essa cultura globalizada, internalizada praticamente por
todos, aproxima o que está distante e afasta o que está próximo. Por tudo isso é que as
pessoas tendem a se identificar muito mais com as causas e problemas distantes do que
com aqueles que estão a seu lado. Ao internalizar a cultura globalizada, as pessoas
empobrecem seus repertórios culturais, como havia alertado Walter Benjamin (1996)
em relação à arte de narrar.
Além dos aspectos aqui apresentados, cabe destacar, ainda, três mudanças
fundamentais, de ordem categorial: tempo, espaço e indivíduo11. De modo sucinto,


ϭϭ
 A opção por essas três categorias decorre do fato de o indivíduo viver em um local (espaço) em
determinado tempo histórico. No entanto, Sébastien Charles (2009), assim como outros pensadores,
destaca outros excessos ligados ao que ele prefere chamar de hipermodernidade: complexidade, consumo

Ϯϰ

destacamos as propostas de Marc Augé, que afirma que não vivemos na pós-
modernidade, mas em uma “supermodernidade”, isto é, atravessamos um período de
radicalização da modernidade, caracterizado por três excessos: de tempo, espaço e de
ego. Em Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (2008), o
autor, por se dirigir aos antropólogos, propõe uma mudança de foco, pois só assim
entenderemos a contemporaneidade: não se trata mais de método, mas de nos voltarmos
para o objeto, isto é, para o mundo contemporâneo e suas mudanças; daí as três
categorias de excesso propostas por ele. O excesso multiplica os fatores, dificultando a
análise da contemporaneidade.
O excesso de tempo, caracterizado por um excesso factual do mundo high tech,
faz com que percebamos o mundo de forma diferente. Nas palavras de Augé, “[...]
estamos com a história em nossos calcanhares” (2008: 29). Tudo envelhece rapidamente
por causa do volume de informação, criando uma necessidade em dar sentido a tudo em
tempo real. Essa abundância factual cria uma dificuldade para o historiador
“contemporaneísta” que tente traduzir nosso tempo para os demais. Afinal, nossa
própria história “pertence à história” (2008: 29): pode-se compreender o presente graças


e individualismo. No primeiro caso, a complexidade, o autor destaca que a sociedade liberal vive um
paradoxo em diversas questões. Citemos aqui o Estado e a família, que vivem um misto de
conservadorismo e flexibilidade. No segundo caso, o consumo, Charles observa que este desfaz os
vínculos coletivos, criando um hiperconsumo, no qual todas as relações passam a ser meramente
mercantis, baseado em uma lógica emotiva e hedonista, o que leva ao hiperindividualismo. O
hiperindividualismo, terceiro elemento da análise do autor, ocorre devido a uma desilusão nas grandes
ideologias, impondo uma “lógica global” em que os indivíduos se posicionam uns contra os outros, tendo
de assumir sua autonomia em relação aos grupos; ao mesmo tempo, deve ser diferente em relação a todos
os outros. Assim, os indivíduos devem tornar-se gestores de si, ou seja, devem dá prazer a si mesmos e
precisam assumir as responsabilidades que outrora foram de responsabilidade do Estado.
Manuel Castells, em A sociedade em rede (2003), afirma que a tecnologia da informação remodelou a
base da sociedade, sendo um fator primordial ao “rejuvenescimento” do capitalismo; por isso mesmo, a
sociedade é capitalista e informacional. Mas o autor acredita ainda na racionalidade, não no “niilismo
intelectual” dos pós-modernos ou em apregoadores do fim da história à la Fukuyama. Mesmo assim, as
reformas são profundas, tendo quatro objetivos principais: “[...] aprofundar a lógica capitalista de busca
de lucro nas relações capital/trabalho; aumentar a produtividade do trabalho e do capital; globalizar a
produção, circulação e mercados, aproveitando a oportunidade das condições mais vantajosas para a
realização de lucros em todos os lugares; e direcionar o apoio estatal para ganhos de produtividade e
competitividade das economias nacionais, frequentemente em detrimento da proteção social e das normas
de interesse público. [...] Portanto, o informacionalismo está ligado à expansão e ao rejuvenescimento do
capitalismo [...]. Nas condições da integração financeira global, políticas monetárias nacionais autônomas
tornaram-se literalmente inviáveis, uniformizando, portanto, os parâmetros econômicos básicos dos
processos de reestruturação em todo o planeta” (2003: 55-6).
Já Zygmunt Bauman, em Modernidade líquida, analisa cinco aspectos que estão modificando nossa
época: a emancipação, a individualidade, o tempo/espaço, o trabalho e a comunidade. Bauman utiliza a
metáfora líquida e fluida, por entender que existe uma grande mobilidade, ainda que veja essa mobilidade
desde o início da modernidade que chama de sólida; no entanto, na contemporaneidade, há uma
radicalização dessa mobilidade. O autor destaca que essas mudanças têm levado cada vez mais a um
domínio de uma minoria sobre a maioria: “No estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é
dominada pela elite nômade e extraterritorial” (2001: 20).

Ϯϱ

à abundância de fatos, mas há uma dificuldade para se compreender a história que se
distancia de nós no tempo; tem-se dificuldade em lhe dar sentido. Como já havia
afirmado Walter Benjamin (1996), todos os dias recebemos notícias do mundo inteiro e
elas já vêm com as explicações, empobrecendo-nos de experiências, pois não
conseguimos ir além delas, não reconhecemos o processo histórico, estamos apartados
da história. O “excesso de tempo” cria uma crise de sentido. Se a história ocorre no
tempo e no espaço, os dois são cada vez mais fugidios. Assim chegamos à segunda
categoria discutida por Augé: o espaço.
Na categoria de espaço, o seu excesso se traduz em um encolhimento. A
sensação é a de que o mundo teria encolhido. As grandes concentrações urbanas
radicalizam essa sensação, pois cada vez mais pessoas moram em grandes aglomerados
urbanos. Outra sensação de encolhimento: a de vivermos, hoje, como se pudéssemos
estar em diversos lugares ao mesmo tempo, seja por meio de transportes extremamente
velozes ou pela informação que recebemos de todo o planeta, favorecendo a criação do
que Augé denominou de não-lugares. Na concepção de Augé o não-lugar não cria
identidade, mas tão-somente relações contratuais. Os espaços que traduzem bem os não-
lugares são aqueles voltados aos viajantes, como aeroportos, restaurantes de beira de
estrada, metrôs, entre outros.
A terceira categoria proposta por Augé refere-se ao excesso de ego, de
individualidade, na qual as pessoas perdem as referências coletivas e as identidades. O
indivíduo passa a ser o centro do mundo. Em termos sociais, essa radicalidade a que
Bauman (2008) denominou de “sociedade individualizada” teve como elemento político
as medidas12 adotadas pela então primeira-ministra da Grã-Bretanha (1979-1990)
Margareth Thatcher, para quem o individualismo deveria prevalecer sobre qualquer
forma de coletivismo: “Não existe essa coisa chamada sociedade” (Apud BAUMAN,
2008: 137). O desdobramento dessa prática política vai levar a uma exacerbação. Nas
palavras de Marc Augé, “[...] o indivíduo quer o mundo para ser o mundo” (2008: 38).
Por isso mesmo as histórias das pessoas têm sido valorizadas para compreendermos
melhor o tempo presente, sendo mesmo necessária, pois “[...] o social começa com o
indivíduo” (2008: 24). O autor entende que ao analisarmos os indivíduos de hoje e


ϭϮ
As medidas são basicamente de cunho econômico, centradas na desregulamentação do setor financeiro,
flexibilização do mercado de trabalho, isto é, eliminação das garantias dos trabalhadores, e privatização
das empresas estatais.

Ϯϲ

como ele tem se transformado, entenderíamos melhor nosso tempo. Afinal, “[...] somos
todos indivíduos; não por escolha, mas por necessidade” (BAUMAN, 2008: 137).
Para Marc Augé ainda não aprendemos a olhar a supermodernidade. Para tanto,
seria fundamental reaprendermos “a pensar o espaço”, isso porque é nele que se criam
os não-lugares. Se, de certa forma, essas três categorias são as responsáveis pela criação
do não-lugar, ele se dá no espaço, sendo essa uma categoria muito importante para
entendermos a supermodernindade. O espaço de Augé é uma abstração. Diferentemente,
ao tomarmos as teses de Michel de Certeau, este afirma que “[...] o espaço é um lugar
praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em
espaço pelos pedestres” (2003: 202. Grifo do autor.). Certeau compara o ato de
caminhar pela cidade ao ato comunicativo que, ao mesmo tempo, desafia e reinventa o
discurso urbanístico: “A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita
etc. as trajetórias que fala” (CERTEAU, 2003: 179). É essa reinvenção da cidade por
meio do caminhar que “[...] torna o espaço habitável” (CERTEAU, 2003: 186). Apesar
de distintas, ambas as definições sobre o espaço são importantes nessa pesquisa. Se
Augé discute o espaço como totalidade e Certeau em sua parcialidade (na cidade), pode-
se afirmar que o local não está apartado do global, este influencia aquele, e vice-versa.
Se não se pode dominar a totalidade, o simples ato de caminhar pela parte, pela cidade,
modifica o espaço.
As mudanças aqui abordadas, especialmente a crise nas categorias de espaço, as
mudanças dos indivíduos – sem esquecer que todo sujeito é histórico, daí a importância
do tempo –, tornam as relações na supermodernidade superficiais e efêmeras,
principalmente nas grandes cidades. As cidades são depósitos de problemas, “[...] nas
quais vive atualmente mais da metade do gênero humano” (BAUMAN, 2009: 78).
Desse ponto de vista, vivemos também uma crise da noção de coletivo, de coletividade.
E a crise de coletividade foi um projeto político desenvolvido nas superpotências
mundiais, primeiro na Inglaterra, com Margareth Thatcher, seguido pelos Estados
Unidos da América. Alexandre Mate, em sua tese de doutorado, afirma:

[Ronald] Reagan [...] também é um apologista das mesmas teses que


‘alimentam’ as estratégias políticas de [Margareth] Thatcher
‘aclimatadas’ ao gosto do self made man e american way of life. Esse
fenômeno de aposta no individualismo não é novo, mas, pela crise
econômica do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, ele ganha
matizes mais fortes e determinadas e dá início à cruzada e ao discurso
de globalização, no sentido de ‘manter o equilíbrio ajustado do
Ϯϳ

mundo’: países capitalistas precisariam se unir contra o mal soviético
e, em especial, contra as ameaças cubanas. A partir dos pontos de
vistas desses dois dirigentes mundiais, Reagan insistia em teses
segundo as quais – ‘a política é a segunda profissão mais antiga do
mundo, muito semelhante à primeira, aliás.’ – o conceito de indivíduo
pode corresponder também a um processo de tentativas de seu
banimento da comunidade natural de que venha a fazer parte, isto é, a
comunidade humana.

Com o principal fito de opacizar a percepção da vida social e legitimar


a manutenção das diferenças, hierarquizadas a partir de determinados
paradigmas imperialistas segundo os quais o centro decisório do
equilíbrio do mundo passaria pelo gabinete do Pentágono, a apologia
norte-americana ao conceito de indivíduo liberal, sempre agregando
novas nuances, sobretudo atomistas (tendo em vista que seus objetos
são indivíduos e grupos, nunca classes sociais), espalha-se pelo
mundo, principalmente pela cultura de massa (2008: 51).

A citação é longa, entretanto clarifica como uma proposição política afetou o


mundo como um todo. E essas mudanças têm influência direta em nosso objeto de
discussão: território e identidade como norte do processo de criação teatral. Afinal, se o
espaço já não é mais o mesmo, devido a seu “encolhimento”, segundo Milton Santos,
continua sendo “[...] uma instância da sociedade, ao mesmo título que a instância
econômica e a instância cultural-ideológica” (2008a: 12), portanto, é social, logo,
modificado historicamente pelos sujeitos. Sujeitos que, a despeito de certa imposição
globalizante, formam suas identidades a partir de um tempo-espaço, já que o tempo e o
lugar em que nascemos dizem muito sobre nós. Não obstante, em uma sociedade de
consumo, ter identidade, ser diferente, é tão-somente, segundo Zygmunt Bauman
(2001), ter a liberdade de comprar. Enfim, não podemos esquecer que todas essas
mudanças são, no fim das contas, transformações do próprio capitalismo.
Por tudo isso, tende a ficar claro que a discussão de território e de identidade se
caracteriza em terreno pantanoso, principalmente se entendido como elementos que
influenciam o processo criativo de grupos teatrais. Mas, por isso mesmo, a discussão é
tão premente, pois, a partir deles, é possível entendermos melhor a arte que se faz na
atualidade. Afinal, ainda é possível confiar, à semelhança de Janice Caiafa, que “[...]
não é na relação de consumo que a arte chega a seu destinatário” (2000: 23). E isso
ocorre quando o grupo teatral toma seu território e sua classe como ponto de partida de
sua criação, tendo nesse mesmo público o destinatário de suas obras.

Ϯϴ

1.2. São Paulo – a zona leste de tantos trabalhadores

Deixemos de lado a discussão mais ampla e partamos para o particular ou local.


Discutir a cidade de São Paulo, sobretudo sua periferia, é entender como as bordas, em
geral, sempre foram destinadas àqueles que produzem sua riqueza, embora sem nenhum
direito a mesma. Afinal, se em dado momento da história havia uma separação entre
senhor e escravo, na modernização do processo industrial, ainda que houvesse uma
permanência da distância social, foi somada também a segregação espacial. “Um dos
conteúdos ideológicos que contribuirá para esta segregação será o discurso e a prática
sanitarista, base do novo urbanismo” (CLEMENTE, 1998:46).
Para que se compreenda melhor a junção entre território e classe trabalhadora na
cidade de São Paulo se faz necessário uma viagem por entre as fendas da história, sem a
pretensão de dar conta de toda a sua complexidade. O sobrevoo histórico visa
demonstrar como surgiram os bairros populares.
A cidade de São Paulo teve desenvolvimento lento; durante séculos foi apenas
um pequeno aglomerado de pessoas. Fundada pelos jesuítas no século XVI, não se
esperava que tivesse o destino que teve: maior metrópole da América Latina. O local
escolhido, uma acrópole, tornou-se estratégico para seus ocupantes em termos de
defesa. Situada no planalto, o maior obstáculo era a Serra do Mar. Segundo relatos
deixados por José de Anchieta, era "[...] mui áspero e, segundo creio, o pior que há no
mundo" (apud TOLEDO, 2003:17).
Quanto à população, em 1589, São Paulo de Piratininga contava com 150
moradores13, e as construções iam crescendo muito mais por conta dos religiosos, já que
no fim do século XVI, além dos jesuítas, havia mais duas ordens: frades carmelitas
(1592) e monges beneditinos (1598). Os franciscanos chegaram em 1639, onde hoje é a
Praça do Patriarca. Foi nesse período que abriram a Rua São Bento, formando o
triângulo com a Rua Direita e 15 de Novembro, conhecido como centro histórico.
Márcio Pochmann, no seu livro A metrópole do trabalho (2001), chama a atenção para
o fato de os religiosos serem os integradores dessa população inicial. Tudo girava em
torno das ordens religiosas. Vale lembrar que a população nesse período era
majoritariamente composta de índios e portugueses.


13
Por essa quantidade de pessoas, é bem provável que os indígenas não estivessem incluídos nessa
contagem.

Ϯϵ

São Paulo permaneceu como vila por quase dois séculos, tornando-se cidade por
decreto imperial em 11 de julho de 1711. Naquela época, “[...] as povoações territoriais
eram classificadas como arraial, vila e cidade, de acordo com sua prosperidade
populacional” (SPOSATI, 2001: 22).
Segundo o economista Marcio Pochmann, “[...] até 1850, São Paulo mal
conseguia caminhar com suas próprias pernas, pouco se diferenciando de cidades como
Campinas e Itu” (2001: 11). São Paulo era apenas um entreposto comercial. Mas foi
nessas terras que surgiu “[...] o bandeirismo e o aventureirismo como características do
homem paulistano” (2001: 29). Provavelmente por causa da violência provocada pelos
bandeirantes é que o termo paulista inicialmente adquirira conotação negativa. Não se
tratava de um designativo de morador de São Paulo, mas sim, “[...] sinônimo de rudeza,
brutalidade, ferocidade” (AMBIRES, s/d.: 57). No entanto, Antônio Celso Ferreira, em
A epopeia bandeirante (2002), demonstra como alguns intelectuais, políticos e
instituições celebraram os feitos do passado, justamente para justificar ações do
presente, ou seja, transformaram uma história de violências em “pioneirismo” e
vanguardismo.
No que diz respeito ao início do processo de urbanização em São Paulo, este
começou em 1742, com a determinação da Câmara referente ao calçamento de ruas por
causa dos estragos provocados pela passagem do gado. Só mais tarde,

[...] no final do século XIX e no início do século XX se definem


procedimentos legais a serem utilizados na vida pública, como os
estabelecidos pelo Código de Posturas de 1886, pelo Código Sanitário
de 1894 ou pelo Código Saboya de 1929, que dividiu a cidade em
zonas. O uso de regras coletivas vai confirmando o caráter urbano de
São Paulo (SPOSATI, 2001: 24).

O desdobramento do espaço urbano se deu em bairros e loteamentos isolados


onde antes era o “cinturão das chácaras”, e no antigo “cinturão caipira”, para onde
foram levadas várias atividades econômicas que se formaram em benefício da capital.
Mas não há dúvida de que foi na segunda metade do século XIX que o núcleo
urbano de São Paulo se desenvolveu, graças ao crescimento da produção de café no
Oeste Paulista. A diferença entre núcleo urbano e área rural torna-se evidente nesse
período. Por conta do café, organizaram-se as primeiras reformas urbanas, o centro se
expandiu com as reformas realizadas onde hoje é o Vale do Anhangabaú. Dessa forma,

ϯϬ

“[...] inaugurava-se, assim, um novo projeto urbanístico na cidade de São Paulo. As ruas
largas e retas contrastavam fortemente com as mais antigas, existentes no núcleo
colonial (centro velho)” (CAMARGO, s.d.: 17).
Nesse período, século XIX, começou também um processo de apartação entre os
trabalhadores e as elites, uma política higienista que persiste ao longo da história da
cidade. Com o café são criadas as linhas de trens que ligam o porto de Santos à cidade
de Jundiaí, distante 60 km de São Paulo. O trem foi muito importante para o
escoamento da produção de café, mas também facilitou o transporte, permitindo a vinda
dos fazendeiros do Oeste paulista para a cidade de São Paulo. Ainda na segunda metade
do século XIX, dois alemães, Frederico Glete e Victor Nothmann, criam os primeiros
bairros nobres: Campos Elíseos (1879), Higienópolis (1890). Depois foi criada a
Avenida Paulista (1891), que abrigou os barões do café. Esses bairros nobres eram
dotados de infraestrutura com redes de água e esgoto, iluminação e piso macadamizado,
diferentemente das áreas destinadas aos trabalhadores.
Mas a apartação não está apenas nos bairros, pois, com a libertação dos
escravos, a elite paulista preferiu importar mão de obra branca da Europa,
principalmente da Itália, em detrimento da mão de obra especializada dos negros.
Assim, na virada do século, a cidade “[...] já contava com uma população de 250 mil
habitantes, dos quais mais de 150 mil eram estrangeiros” (ROLNIK, 2002: 16). E os
estrangeiros continuariam a chegar. Quando São Paulo começou a sua industrialização,
nas áreas têxteis e alimentícia, de igual maneira, a mão de obra estrangeira é a que foi
absorvida.
[...] pelo menos até 1929, os postos de trabalho urbanos ocupados
pertenciam ao trabalhador imigrante. Dessa forma, os empregadores
urbanos e rurais privilegiaram a disciplina e a cultura do trabalhador
assalariado do europeu, ao mesmo tempo em que induziam o
branqueamento da população no país (POCHMANN, 2001: 40).

Com isso, não é possível negar a importância dos estrangeiros na construção de


São Paulo, mas tão-somente se busca revelar as estratégias da elite paulista. O certo é
que, depois do café, São Paulo não pararia mais de crescer econômica e
urbanisticamente. Sua área ocupada estendeu-se até os seus limites, tudo isso em pouco
mais de cem anos. Já no começo desse desenvolvimento, entre os anos de 1875 e 1900,
observou-se espetacular crescimento demográfico e modesto crescimento dos
municípios vizinhos. Após esse período houve uma verticalização de crescimento

ϯϭ

populacional na capital. Evidente que o espraiamento não ocorreu por toda a cidade. As
indústrias tiveram de se deslocar em direção à periferia. Para Clemente, “[...] para além
do Brás, o número de habitantes permaneceu estável até o final da década de [19]30,
quando as regiões da Penha, Itaquera e São Miguel Paulista começaram a conviver com
fluxos populacionais que não se estabilizaram até os dias de hoje” (1998: 54).
Com o surto industrial, São Paulo passou a receber outra leva de pessoas, dessa
vez não de outro País, mas sim da região Nordeste do Brasil e de Minas Gerais. Quando
São Paulo parou de receber os imigrantes em massa, começou a receber as primeiras
levas de migrantes, com o intuito de renovar a mão de obra rural no interior do Estado,
depois absorvida especialmente na construção civil da capital. O movimento migratório
interno começou a partir da década de 1920.
Na cidade de São Paulo, os primeiros bairros populares seguiram o símbolo do
desenvolvimento, a linha férrea. A ferrovia funcionou como instrumento de
reorganização; primeiro, porque provocou o colapso do antigo sistema de transporte
(feito por animais); segundo, porque não seguiu as mesmas vias, de modo que os
aglomerados que se beneficiavam dessa atividade foram desvalorizados, enquanto que
ao redor da linha férrea foram surgindo os chamados povoados-estação que cresciam em
detrimento dos antigos aglomerados. Foi assim que cresceram os primeiros bairros
populares como: Lapa, Bom Retiro, Brás, Pari, Belém, Moóca e Ipiranga. Os
trabalhadores residiam nas vilas, em sobrados de aluguel, pensões e cortiços. Se os
bairros nobres se caracterizavam por suas ruas largas e mansões, “[...] nos bairros
populares, a paisagem misturava as chaminés de fábrica à alta densidade das vilas e
cortiços, e a infraestrutura urbana se resumia praticamente ao bonde” (ROLNIK, 2002:
17). Assim, a indústria nascente se erigiu ao longo das ferrovias, e os trabalhadores
seguiram o mesmo movimento.
Nesses bairros populares que iam sendo criados havia pouca infraestrutura, com
um comércio quase inexistente, criado não raras vezes pelos estrangeiros, resumindo-se
a pequenos armazéns, sapatarias, barbearias etc. Assim, tanto os trabalhadores das
indústrias como esses pequenos comerciantes não tinham força política. E por quê?
Porque todas as decisões políticas ficavam nas mãos de poucos: homens maiores de 21
anos, alfabetizados. Portanto, não havia relação de exercício político com os populares;
quem estava no poder não se interessava em ouvir as demandas populares, colocava-se a
serviço de uma elite que detinha o poder econômico. Com a clara intenção de afastar os
populares da região central, para que ela não se desvalorizasse, foram criadas as

ϯϮ

primeiras medidas em relação às moradias: a proibição de construção de cortiços no
centro da cidade. Assim, por descaso político em relação aos trabalhadores, estes se
viram obrigados a se distanciarem cada vez mais da região central e, consequentemente,
a se distanciarem também do seu trabalho.

Dessa maneira se demarcava uma área ‘regulada’ da cidade, onde a


habitação popular não poderia acontecer, ao mesmo tempo que se
configurava, fora do perímetro urbano, uma zona de obscuridade,
sobre a qual o olhar do poder municipal não vigorava (ROLNIK,
2002: 23).

Ainda na década de 1920 houve a primeira crise desse sistema político-urbano,


pois, com o crescimento demográfico, ocorreu também a demanda por habitação. São
criados sindicatos nos bairros populares. Começou a surgir, também, uma camada
intermediária, a classe média paulistana, composta de comerciantes, funcionários
públicos, entre outros, mas ainda sem poder de voz na política. A empresa anglo-
canadense The São Paulo Tramway Light and Power Co. perdeu o monopólio dos
transportes com o surgimento, em 1924, dos primeiros ônibus clandestinos. Também
nessa década ocorreu em São Paulo a revolta de alguns militares, desencadeando a
chamada Revolução de 1924, comandada por Isidoro Dias Lopes, que contou com
amplo apoio dos operários, principalmente estrangeiros. Os bairros dos trabalhadores
foram bombardeados, deixando mais de mil mortos e quatro mil feridos, a maioria civil.
Carlo Romani, no artigo São Paulo, 1924: a Revolução dos Tenentes, afirma que foi um
dos maiores morticínios urbanos: “[...] a matança indiscriminada de civis pobres foi
praticamente ignorada, quase esquecida em todo o país, principalmente pelos próprios
historiadores paulistanos” (s/d.: 20). Embora essa revolta tenha desestabilizado a Velha
República, segundo o autor, a elite paulista tende a considerar Revolução apenas a de
1932, por ter sido protagonizada por eles. O fato é que o bombardeio causou grandes
estragos na arquitetura dos bairros populares, piorando ainda mais a situação dos
moradores. O dramaturgo Luís Alberto de Abreu, com extensa produção dramatúrgica
de proposições épico-dialéticas, no texto Bella Ciao (1982), conta a saga de uma família
de italianos que vem ao Brasil e vivencia a revolução de 1924. Giovanni (o pai), casado
com Carmela, é anarquista, e sua família – composta também por Maria e Genarino
(filhos) –, vive em meio aos conflitos provocados pelas tropas de Arthur Bernardes
(então presidente) e do General Isidoro Dias Lopes (que comandou a revolta), além dos

ϯϯ

conflitos no próprio seio familiar, por causa da situação precária a que está submetida a
classe trabalhadora, a família é obrigada a tomar uma decisão: apoiar ou não a luta. O
filho decide lutar ao lado das tropas do comandante Lopes; o pai, inicialmente, tenta
dissuadi-lo, pois no seu entender não se trata de uma luta deles; no entanto, depois o
apoia. Mas os problemas que os populares devem ter passado à época estão resumidos
na fala de Carmela:
Você foi pra tua revoluçon e tua família ficou recebendo bomba na
cabeça. [...] eu e Maria tivemo que ir para a casa de uma conhecida do
outro lado da cidade. (Para Giovanni) Isso você não viu! (Para o
Ponto) Quando voltamos, as ruas estavam cheias de pedras que os
homens tinham amontoado pra fazer barricadas. Era uma confuson,
tudo destruído. (Carmela fala como se estivesse chegando ao local.
Dirige-se ao fundo do palco.) Eu vi dona Augusta sentada na frente da
casa. “Bom dia, dona Augusta”, ela disse: “Meu filho, Vitorino,
morreu”. E eu meio louca, respondi: (Como se respondesse a um
cumprimento) “Bem. E sua família, como vai?” (ABREU, 2001: 89).

A precariedade dos trabalhadores aumentou devido ao conflito de 1924, pois a


pouca infraestrutura que havia, foi destruída.
Ainda na década de 1920 foi planejada a “cidade dos anéis”14, tendo sido levada
a termo apenas na década de 1940, quando aquele que o projetou, Francisco Prestes
Maia, governou a cidade de São Paulo. Prestes Maia, como ficou conhecido, foi prefeito
por três vezes, de 1938 a 1945 (dois mandatos) e depois de 1961 a 1965. Nas primeiras


ϭϰ
Tratava-se de quatro anéis viários concedidos com o nome de Plano de Avenidas, uma ideia original do
urbanista João Ulhôa Cintra, com projeto do engenheiro Francisco Prestes Maia. O Plano de Avenidas
propunha uma reorganização da cidade, realizada por meio da criação de novos acessos e da dinamização
dos já existentes. O projeto tinha quatro anéis, sendo o primeiro chamado de “perímetro de irradiação”, na
região central, passando pelas Ruas dos Timbiras, Praça da República, Cásper Líbero (na época, Rua
Conceição), Avenida Senador Queiroz, Parque Dom Pedro II etc., até chegar novamente na Praça da
República. O segundo anel, denominado “Boulevards exteriores”, abraçava todo o centro histórico,
aproveitava o traçado ferroviário da São Paulo Railway, interligando as Avenidas Angélica e Carlos de
Campos (atual Paulista), Lins de Vasconcelos etc. O terceiro anel, “circuitos parciais secundários”, previa
a criação de novas avenidas e o aproveitamento de outras, como Avenida Brasil, Avenida Pompéia, entre
outras. O quarto círculo ou anel, o “circuito de parkways”, aproveitava a canalização de rios, bem como
“[...] as futuras avenidas marginais do Rio Tietê e do Rio Pinheiros, interligando-se ao longo deste com
uma via marginal ao Córrego do Sapateiro (também chamado ‘do Curtume’ ou ‘do Matadouro’, hoje
Avenida Juscelino Kubitschek, atingiria a invernada do Ibirapuera, continuando pela Avenida Iraci e
depois por uma rua nova até o ‘Parque das Cabeceiras do Ipiranga’ (Parque do Estado), naquela época
pertencente ao Município de Santo Amaro. Tomaria o caminho do Cursino, sobre o divisor de águas do
Ipiranga e do Tamanduateí, acompanharia o Córrego do Sacomã, passando à Vila Prudente, desceria o
vale do Tatuapé (hoje Avenida Salim Farah Maluf) até a confluência com o Tietê” (ZMITROWICZ,
1996: 31).

ϯϰ

gestões ele fora nomeado prefeito pelo interventor15 Adhemar de Barros, a pedido de
próprio Getúlio Vargas.

Figura 1: Urbanização da cidade de São Paulo entre 1915 e 1929.

Fonte: Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano – Emplasa. Disponível em:


http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/urb-1920.jpg. Consultado em:
20/09/2011.

Com o Plano de Avenidas, São Paulo entrou no modelo rodoviarista: deixava de


investir em trilhos para investir em avenidas e no transporte sobre pneus. “Nove de
Julho, 23 de Maio, Radial Leste: todas fazem parte do plano que acabou por definir, até
os dias de hoje, a estrutura urbana básica da cidade” (ROLNIK, 2002: 33). O Plano
ainda previa a canalização de córregos e avenidas ao lado dos rios, surgindo as avenidas

ϭϱ
 Durante o Estado Novo (1937-1945), instalou-se uma ditadura no Brasil, com Getúlio Vargas no
comando do País. Durante esse período, os Estados eram governados por interventores, isto é, pessoas
indicadas pelo presidente da República para assumir determinado cargo. Por sua vez, os interventores
nomeavam os prefeitos.

ϯϱ

do Estado e Aricanduva. Dessa forma, a cidade podia crescer horizontalmente e de
maneira ilimitada. O crescimento desordenado ocorreu até os anos 1970, quando a
cidade se espalhou vorazmente, “[...] engolindo morros e várzeas e conurbando-se com
municípios vizinhos, quase sempre por meio de loteamentos irregulares e casas
autoconstruídas, sem aprovação da prefeitura” (ROLNIK, 2002: 35).
Assim, se houve um projeto para dar vazão à circulação da cidade, além de
permitir o crescimento até aos seus limites, ainda mantinha os trabalhadores distantes do
centro da cidade. Inicialmente, os bairros populares foram se formando ao longo da
ferrovia a partir das estações, paralelamente às instalações das indústrias, provocando,
assim, acentuado desenvolvimento suburbano. O que antes era “povoado-estação”,
nessa época passava a ser, no mais das vezes, “subúrbios-estação”. Nos subúrbios
industriais, como é o caso de São Miguel Paulista, os operários eram atraídos devido à
proximidade da Companhia Nitroquímica Brasileira, do Grupo Votorantim, que chegou
ao bairro na década de 1930 e, na década de 1940, já empregava quatro mil pessoas
(PONCIANO, 2001).
Com a construção da estrada de ferro variante, em 1932, unindo Brás
a São Miguel Paulista, esta região irá tornar-se atrativa. Em 1935,
instala-se no bairro de São Miguel Paulista a fábrica Nitroquímica,
que atrai massas de migrantes em busca de novas oportunidades
(CLEMENTE, 1998: 54-5).

Sem dúvida, algumas fábricas contribuíram com o processo de crescimento dos


bairros populares, primeiramente por causa da sua ida para os arrabaldes, atraindo os
trabalhadores nessa direção; depois, por meio da construção de vilas operárias. Essas
duas tendências provocaram um aumento de contingente demográfico regional. Assim,
com o tempo, “[...] os subúrbios industriais passam paulatinamente a acumular a função,
secundária ainda mais expressiva, de subúrbio-dormitório” (LANGENBUCH, 1971:
147), uma vez que esses subúrbios se transformavam em fornecedores de mão de obra
também para as indústrias mais centrais.
Até os anos 1930, a indústria realizou ainda algumas ações que visavam suprir a
questão da habitação por meio das vilas operárias, mas o rápido crescimento
demográfico fez com que a indústria logo abandonasse as ações, passando a questão ao
Estado. Por sua vez, o Estado “liberou” a expansão horizontal ao não tomar medidas
cabíveis. Houve, assim, um aumento das moradias populares, construídas nos

ϯϲ

momentos de folga em áreas não legalizadas. Dessa forma, o trabalhador era
duplamente explorado, como bem adverte Lúcio Kowarick, em A espoliação urbana:

Assim, a autoconstrução, enquanto uma alquimia que serve para


reproduzir a força de trabalho a baixos custos para o capital, constitui-
se num elemento que acirra ainda mais a dilapidação daqueles que só
têm energia física para oferecer a um sistema econômico que de per si
já apresenta características marcadamente selvagens. Por outro lado,
esse longo processo redunda, no mais das vezes, numa moradia que,
além de ser desprovida de infraestrutura básica e de se situar em áreas
distantes dos locais de emprego, apresenta padrões bastante baixos de
habitabilidades (1993: 65).

Ainda nessa década o trabalhador nacional passava a ser “valorizado”, pois os


preconceitos do século XIX não eram bem-vistos e, claro, a mão de obra daqui era mais
barata do que a estrangeira. Assim, o trabalhador brasileiro
“[...] passa a ser visto como um elemento básico no projeto econômico brasileiro – o
nacional desenvolvimentismo – pois é sua força de trabalho que garantirá a
produtividade e o desenvolvimento do parque industrial nacional” (CLEMENTE, 1998:
57).
Na década seguinte, São Paulo se modifica ainda mais. A “cara” da cidade, que,
em certa medida, desembocou na cidade que conhecemos hoje, realmente se definiu na
década 1940, nas gestões de Prestes Maia, o engenheiro político. Sua gestão fez a
cidade expandir horizontalmente, nascendo diversos bairros populares distantes do
centro, priorizando ainda o transporte coletivo sobre rodas. Prestes Maia executou o
Plano de Avenidas e o Sistema Y, formado pela Avenida Nove de Julho, Avenida Vinte
e Três de Maio e Anhangabaú (hoje Avenida Prestes Maia). A cidade ficou em obras
durante os oito anos de seu governo. Todos os autores pesquisados, dentre os quais
Raquel Rolnik (2002), são unânimes em indicar Prestes Maia com o político que
modificou e redefiniu a feição moderna de São Paulo. Assim, a cidade deixou para trás
a “fachada” de cidade dos barões do café para se tornar uma cidade industrial.
Após a ditadura do Estado Novo (1937-1945), São Paulo sofreu novo surto de
industrialização, impactando ainda mais a vida urbana, graças ao grande fluxo de
migrantes que chegavam à cidade, fazendo com que a periferia crescesse cada vez mais.
Foram criadas vilas populares; no entanto, a principal moradia da população pobre
naquele período era o cortiço. Na mudança da cidade dos barões para a cidade

ϯϳ

industrial, surgiu “[...] outro tipo de segregação social e espacial, não mais
hegemonicamente sanitarista, mas agora com demarcações claramente capitalistas, que
objetivam garantir a reprodução e a acumulação do capital” (CLEMENTE, 1998: 62).
Na década seguinte, mais precisamente em 1953, ano em que Jânio Quadros,
primeiro prefeito eleito pelo voto, assumiu o cargo, após anos de intervenção, São Paulo
já era a maior metrópole brasileira. Sua população tinha crescido rapidamente: 1,3
milhão de pessoas em 1940, 2.155.000 habitantes em 1950 e 2,5 milhões de pessoas no
quarto centenário da cidade, em 1954 (O PODER EM SÃO PAULO, 1992). Foi nos
anos 1950 que São Paulo suplantou o Rio de Janeiro, em termos populacionais,
industriais e econômicos.
Nas duas décadas seguintes, a cidade de São Paulo viveu o auge de seu
crescimento horizontal, embalada por novo surto industrial e pelo crescimento
populacional: “Durante a expansão urbana dos anos [19]60 e [19]70, ocorreu a
conurbação com os municípios da atual região metropolitana, sobretudo Osasco e
Taboão da Serra (a oeste), Guarulhos (a leste) e o ABC16 (a sudoeste)” ROLNIK, 2002:
43). Foi o auge da migração, que teve como destino a periferia. Por sua vez, a elite
mudou o seu centro de consumo: saiu do centro histórico e foi para a região da Paulista
e dos Jardins.
Na década de 1960, decorrente do golpe civil-militar de 1964, o Brasil passou
por intenso controle social. A máquina se burocratizou ainda mais. A repressão contra
aqueles que lutavam por seus direitos imperava e, depois, disseminou-se a fantasia do
milagre econômico17 (1968-1973). O prefeito Faria Lima (1965-1969), último a ser
eleito durante a ditadura civil-militar, criou a Companhia Metropolitana de Habitação
(Cohab) para captar recursos do Banco Nacional da Habitação (BNH) e, assim, poder
construir apartamentos e casas populares. São Paulo vivia intenso crescimento
populacional: cinco milhões de pessoas em 1965. Foi, ainda, na gestão de Faria Lima,

16
A região do ABC tem origem em três municípios, todos com nomes de santos: Santo André, São
Bernardo do Campo e São Caetano. Hoje a região é composta de sete municípios. Além dos três já
citados, somam-se Mauá, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Com a expansão rodoviária, as
indústrias puderam se distanciar cada vez mais da cidade de São Paulo. A Via Anchieta (que ligava São
Paulo ao Porto de Santos), por exemplo, que foi inaugurada em duas etapas – primeira pista em 1947 e
segunda pista em 1953 – permitiu essa expansão, sobretudo das empresas automotivas. Esse foi um dos
motores do desenvolvimento do ABC.
17
De acordo com o documento Os “milagres” do capitalismo contemporâneo, do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (Cebrap), a expressão milagre econômico foi utilizada pela primeira vez logo
após a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha Ocidental, que, com sua economia de mercado, teve
rápido crescimento, servindo, assim, de propaganda do sistema capitalista e do regime liberal. Disponível
em: http://www.cebrap.org.br/v1/upload/biblioteca_virtual/os_milagres_do_capitalismo.pdf. Consultado
em: 13/08/2011.

ϯϴ

por meio de decreto (6.235/65), que foram criadas as Administrações Regionais –
desdobramento das Agências Distritais (responsável pela fiscalização das obras nos
bairros afastados), “[..] sob o argumento de que a explosão populacional da cidade que
‘mais crescia no mundo’ exigia maior agilidade de seu aparato burocrático (O PODER
EM SÃO PAULO, 1992: 86).
Em 13/12/1968, por meio do Ato Institucional no 5, a ditadura exerceu um
controle sem limites sobre os municípios, podendo fechar câmaras de vereadores, cassar
mandatos, entre outras arbitrariedades. Em 26 de fevereiro de 1969, o Ato Institucional
no 7 suspendeu as eleições para cargos executivos ou legislativos, na União, nos Estados
e nos municípios. Ao mesmo tempo, São Paulo dava os primeiros sinais de
desaceleração industrial, pois se “[...] chegou a representar 27% do Valor de
Transformação Industrial nacional, em 1959, foi reduzida para 24%, em 1970, e para
17,1, em 1980” (POCHMANN, 2001: 97). No entanto, continuavam a chegar à capital
novas correntes migratórias. Eram os pobres do Brasil buscando melhores meios de
subsistência. Com a crise do petróleo, na segunda metade dos anos 1970, São Paulo foi
deixando de ser a cidade industrial para se transformar em grande cidade de serviços.
São Paulo continuou a crescer demograficamente, multiplicando seus problemas.
Quando Olavo Setúbal, então diretor-presidente do Banco Itaú, foi nomeado prefeito em
1975, já havia mais de sete milhões de habitantes. Os trabalhadores demonstravam
sinais de organização, por meio das Sociedades Amigas do Bairro (SAB), que não
representaram grande obstáculo ao governo. Mas cabe ressaltar a greve dos funcionários
públicos, dos lixeiros, dos motoristas e cobradores de ônibus que este governo teve de
enfrentar. Setúbal viu-se pressionado a investir na periferia. Ele não resolveu todos os
problemas, mas tentou amenizá-los, criando o Cadastro Geral da Cidade, a Comissão de
Loteamentos Clandestinos, além de investir no transporte coletivo e na educação,
criando diversas escolas. Foi esse prefeito que inaugurou a linha norte-sul do Metrô (de
Santana ao Jabaquara) e iniciou a leste-oeste (da Sé ao Brás), e foi também o
responsável pela transferência do Metrô para o governo do Estado. Na periferia, Setúbal
criou os parques do Carmo e Anhanguera, construiu a Avenida Aricanduva, palco de
muitas enchentes. Em 1978, foram entregues doze mil apartamentos em conjuntos
populares, mas nada fez pelos favelados. Aliás, na sua gestão, assistentes sociais e
fiscais municipais poderiam utilizar a polícia para expulsar favelados das áreas públicas,
o que levou a criação da União dos Moradores das Favelas, que teve papel importante
na luta por moradia nos anos seguintes.

ϯϵ

As habitações populares nos anos 1970 eram gritantemente precárias. Para que
se tenha uma ideia, em 1975, a capital tinha 615 mil moradores de cortiços, 1,8 milhão
pessoas moravam na periferia em casas precárias, feitas na base da autoconstrução
(KOWARICK, 1993). O processo de espoliação do trabalhador é fruto da especulação
imobiliária ocorrida com apoio do Estado, por meio de seu ente municipal. Pois, se, por
um lado, a cidade cresceu muito devido à ausência do Estado, levando a população mais
pobre às ocupações de terrenos baldios e à autoconstrução, quando a prefeitura passou a
realizar melhorias nesses lugares, houve incremento no comércio e aumento no valor
dos terrenos. Tudo ficou mais caro, o que fez com que muitas pessoas não
conseguissem arcar com os custos, indo para mais longe. Assim, como as benfeitorias
não se deram na cidade como um todo, tornou-se privilégio; logo, os únicos e
verdadeiramente beneficiados foram as empreiteiras e construtoras.

Figura 2: Evolução do salário mínimo, de 1940 a 2011.

Fonte: Portal G1-Economia. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/02/veja-


evolucao-do-salario-minimo-desde-sua-criacao-ha-70-anos.html. Consultado em: 14/08/2011.

Se a opção pelo transporte sobre pneus, em certa medida, favoreceu o


crescimento horizontal, trouxe também outros problemas para a cidade, como a
poluição e o trânsito. “Em 1968 havia 7 milhões de deslocamentos diários, cifra que em
1974 passa para 13,9 milhões” (KOWARICK, 1993: 38). Esse inchaço fez com que, nos

ϰϬ

horários de pico, os ônibus circulassem com 130 passageiros, quando sua capacidade
era de apenas metade desse contingente. Um verdadeiro massacre do trabalhador. Como
havia vasta mão de obra e certa dificuldade de organização por parte dos trabalhadores,
pois se vivia uma ditadura, os salários eram diminutos. Nessa dinâmica da exploração
da classe trabalhadora, cabe ainda ressaltar que, desde 1965, o salário mínimo começou
a cair em termos reais (ver Figura 2).
Essa era a realidade enfrentada pelos trabalhadores em São Paulo, grande parte
constituída por migrantes (nordestinos e mineiros em sua maioria), que, à procura de
uma vida melhor, deparavam-se com uma cidade que aparta, segrega e divide. Eles
deixavam suas regiões por falta de alternativa, como afirma Milton Santos: “[...] a
migração, em última instância, é, sem paradoxo, consequência também da imobilidade.
Quem pode [...] vai consumir e volta ao lugar de origem. Quem não pode locomover-se
periodicamente, vai e fica” (2008b: 63). Esse deslocamento é fruto do desenvolvimento
desigual do Brasil, por isso as regiões pobres enviam mão de obra barata para as regiões
mais desenvolvidas.
No início da década de 1980, o Brasil atravessava grave crise econômica e certo
esgotamento de sua industrialização. Foi um período de taxas elevadas de desemprego
que iria se agravar ainda mais na década seguinte. Na cidade de São Paulo, o orçamento
decresceu em termos reais. A população mais pobre percebeu “[...] que não se vivia de
promessas populistas e acabaram construindo uma nova prática política” (CLEMENTE,
1998: 66). Dessa forma, a prefeitura, por meio da gestão de Reynaldo Emídio de Barros
(1979-1982), diante de inúmeras reclamações e protestos, viu-se obrigada a investir na
periferia, mas apenas em obras de baixo custo. Por isso, foram criados os projetos Pró-
morar, Pró-água, Pró-luz e Pró-favela para a população pobre. No entanto, o prefeito
encontrou dupla resistência: de um lado, a população se queixava que as habitações
eram de má qualidade e, por outro, a pressão do governador Paulo Salim Maluf (por
quem fora nomeado), que preferia as grandes obras. Mas na época,

O povo das vilas, como nominavam Jânio Quadros, Faria Lima [...]
quando se referiam aos moradores da periferia, era, na década de
[19]80, organizado sobretudo por mulheres e mostrava o precário
cotidiano de suas crianças. Pedaços da cidade se compunham e
recompunham em movimentos pró-moradia, pró-creches, pró-água,
pró-luz. Até mesmo gestores conservadores não podiam prescindir de
operar gastos sociais com São Paulo (SPOSATI, 2001: 17. Grifo da
autora.).

ϰϭ

Foi ainda na década de 1980 que a periferia se expandiu totalmente, chegando
aos limites da cidade. Em 1981, o modelo de zoneamento adotou um dispositivo que
destinou uma franja rural (Z818) para construir prédios para habitação popular
(ROLNIK, 2002). O objetivo era baratear os custos dos terrenos para a Cohab. Assim
surgiram as Cohabs Itaquera 1, 2, 3, 4 e Cidade Tiradentes, criada em 1984 e, 28 anos
depois, já congrega em suas habitações populares quase trezentos mil habitantes. Esses
conjuntos habitacionais, conforme Raquel Rolnik, criaram “[...] guetos habitacionais
sem variedade social” (2002: 50). Portanto, esses lugares são destinados apenas aos
pobres, trabalhadores espoliados pelo sistema capitalista. E quem conhece esses lugares
sabe que a maioria dos terrenos utilizados eram impróprios. Ainda hoje essas
localidades não dispõem de infraestrutura.
Para a construção dos conjuntos foram devastadas imensas áreas verdes que
ainda existiam na cidade. O solo, em boa parte desses terrenos, é arenoso, que, em
épocas de chuvas, são arrastados para os córregos, provocando enchentes e gerando
mais problemas para esses habitantes. Pelo assoreamento permanente, nunca se parou
de tirar terra e areia do rio Tietê desde 1960. Entretanto, o pior impacto desse projeto,
conforme alerta Raquel Rolnik, foi “[...] a radical exclusão territorial a que foram
condenados os moradores da extrema periferia, guetos de baixa renda, educação
precária, desemprego alto, serviços urbanos deficientes, radicalmente fora dos locais
onde circulam as oportunidades” (1992: 51).
Na década de 1990, e como afirmado anteriormente, São Paulo tornou-se a
capital dos serviços. Em termos de ocupação do solo, a periferia não consegue mais se
expandir horizontalmente, pois atingiu seu limite; no entanto, continua a crescer em
termos populacionais. Enquanto os bairros mais estruturados têm diminuída sua
população, a periferia continua a crescer: “Distritos como Anhanguera, no noroeste, e
Cidade Tiradentes, no extremo leste, cresceram mais de 3% ao ano” (ROLNIK, 2002:
66). A máquina da exclusão ainda está a todo vapor.


18
O zoneamento da cidade de São Paulo começou em 1957, quando foi criada uma regra que limitava as
construções no máximo a seis vezes o tamanho do terreno. Somente em 1972 é que foi criado o
zoneamento com formas de uso e ocupação para toda área urbana. Assim, nas áreas em que já havia
verticalização, era permitida sua expansão: as Z3, Z4 e Z5; nos bairros em que as construções são de alto
padrão, denominados de loteamentos city, são Z1; nas regiões industriais, Z6 e Z7; já nos bairros
predominantemente residenciais, habitado por pessoas com rendas médias e baixas, o zoneamento é
misto, Z2. “O modelo proposto pelo zoneamento se completaria em 1981, com a adoção de um
dispositivo na lei destinando a primeira franja da zona rural (Z8-100/1) como área para a construção de
conjuntos habitacionais populares” (ROLNIK, 2002: 49). Dessa forma, criava-se uma reserva de terras
baratas para a Cohab.

ϰϮ

As decisões políticas dos governantes paulistanos, alinhadas aos projetos da
elite, fizeram de São Paulo o que ela é hoje. Aliás, elite e governantes, ao longo da
história da cidade, amalgamaram-se, sendo praticamente impossível distinguir um do
outro. Por isso mesmo, a população mais carente sempre esteve à margem das decisões,
entrando no reino da política apenas por meio dos favores e do clientelismo. Mesmo
depois, quando os movimentos sociais, sobretudo os de moradia, puderam brigar e lutar
abertamente por seus direitos, logo suas lideranças eram assediadas pelos políticos. À
primeira vista, o que parecia favorável à luta tendia a enfraquecê-la.
Todos os problemas até aqui levantados gerou uma “cidade despedaçada”, com
grandes e enormes “pedaços” destinados aos pobres, sem infraestrutura, distante do
trabalho, sem áreas de lazer, praticamente sem nada. Do outro lado, uma pequena área
destinada aos mais abastados com toda infraestrutura e sempre privilegiada pelos
investimentos públicos. Hoje, no entanto, essas duas zonas se encontram, pois a cidade
não tem mais para onde crescer, e por mais que os ricos se fechem em seus condomínios
cada vez mais fortificados, não podem mais ignorar a pobreza que bate à sua porta.
São Paulo é fruto do desenvolvimento desigual na sociedade brasileira, que em
alguns momentos privilegiou quase todo o investimento em poucos pontos, atraindo
para cá mão de obra barata. É uma primate cities (CASTELLS, 1983), isto é, uma
cidade primaz, fruto de um desenvolvimento desigual do País, e para onde acorrem as
pessoas das regiões menos desenvolvidas economicamente.
São Paulo é vendida ainda hoje, de modo espetacularizado, como a terra das
oportunidades. Se há verdade nessa afirmação, não podemos esquecer que é também o
reino da exclusão. Por isso, sua periferia – local dos pobres e da classe média ascendida
no governo Lula (2003-2010), logo, trabalhadores – cresceu tanto nas últimas duas
décadas e continuará crescendo, pois esse é o reduto dos excluídos. “O anel periférico
foi responsável por 43% do incremento populacional nos anos [19]60, por 55% desse
incremento nos anos [19]70, por 94% entre 1980 e 1991 e por 262% entre 1991 e 1996”
(TASCHNER; BÓGUS, 2000: 254).
Pelo exposto, e ratificando os argumentos de tantos estudiosos, compreendemos
a zona leste da cidade de São Paulo, desde o seu nascimento, como uma região de
trabalhadores. Assim, como já afirmado, entendemos que os dois grupos teatrais,
Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas, são frutos dessa classe, daí seu sentimento de
pertencimento a mesma. Daí resulta que as tantas personagens que habitam suas peças
são pessoas comuns, trabalhadores, marginalizados do sistema. É principalmente da

ϰϯ

classe operária que os dois grupos retiram suas histórias, inspiram-se em sua cultura,
devolvendo a essa mesma classe todos os seus espetáculos, pois é nela que os dois
grupos têm seu público-alvo. Os grupos que aqui se caracterizam no objeto de estudo
procuram levar o lazer e a reflexão às comunidades na qual estão inseridos, afinal, o
lazer é também político (SANTOS, 2000a).
Para Robert Kurz (2000), nas sociedades pré-capitalistas, não havia separação
entre trabalho e lazer. Foi a sociedade moderna capitalista que expandiu “[...] a jornada
de trabalho até aos limites do fisicamente suportável, desencadeando o empobrecimento
mais maciço registrado pela história” (2000: 39). Para Kurz, nas sociedades pré-
modernas, ainda que houvesse poucos recursos, a produção consistia em um misto de
“fruição e ócio”. Mas na modernidade, especialmente no século XX, à medida que os
trabalhadores foram conquistando tempo livre, este também foi sendo apropriado pelo
capital: “[...] a indústria da cultura e indústria do lazer passaram a ocupar e a colonizar o
tempo penosamente conquistado e concedido fora do espaço funcional abstrato”
(KURZ, 2000: 43). Assim, para Kurz: “Não se trata de ócio no seu sentido antigo, mas
de tempo funcional para o consumo permanente de mercadorias” (2000: 43), pois o que
resta à classe trabalhadora em seus momentos de lazer é, sobretudo, a televisão.
Ainda que o termo classe, de acordo com o conceito clássico do marxismo,
possa suscitar dúvidas quanto a seu uso, pois há quem entenda que hoje as classes em
seus intercambiamentos relacionais estão diluídas, é preciso afirmar, assim como o faz
Terry Eagleton, que: “As pessoas não deixam de ser parte da classe trabalhadora porque
se convertem em garçom ao invés de trabalhador têxtil. [...] ‘classe trabalhadora’ denota
uma posição dentro das relações sociais de produção” (2006: 453-4). Para que não haja
nenhuma dúvida, adotamos aqui o conceito de Edward Palmer Thompson, que
compreende a classe em uma “relação histórica”:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdados ou partilhados), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de
classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção
em que os homens nasceram ou entraram involuntariamente (1987: 9-
10).

Assim, a zona leste da cidade de São Paulo é o território que nos interessa neste
trabalho, considerada a segunda maior região em extensão e a primeira em população,

ϰϰ

com mais de quatro milhões de pessoas residindo nos trinta e três distritos,
administrados por onze subprefeituras. Mais especificamente, interessa-nos os bairros
de São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, pois nesses dois bairros desenvolvem seus
trabalhos artísticos os grupos teatrais Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas,
respectivamente. Ambos os grupos formaram-se no mesmo território em que atuam,
isso porque seus integrantes residiam e continuam a residir na zona leste da cidade de
São Paulo, buscaram e buscam, por meio de seus espetáculos, transformar tantos lugares
indistintos em espaços propícios às trocas significativas, mediadas pelo simbólico. Seus
integrantes são também trabalhadores, e essa classe é a fonte de inspiração para os
espetáculos desses dois grupos, e também seu principal público-alvo. Ambos
escolheram a rua como palco, tomando os trabalhadores como protagonistas de seus
espetáculos.

1.3. Circular por tantos Buracos para semear asas de Pombas

Os dois grupos abordados nesse trabalho têm em comum o fato de terem nascido
na zona leste da cidade de São Paulo e escolhido essa região para sua atuação. Ambos
os grupos têm integrantes migrantes ou filhos de migrantes, sobretudo vindos do
Nordeste do Brasil. Portanto, são filhos de trabalhadores que vieram em busca de
melhores condições na cidade grande. Por isso mesmo, os grupos têm nesse público o
principal destino de suas obras. Por essa razão, também, seus espetáculos são
protagonizados por homens e mulheres simples, pessoas do povo, como se costuma
dizer. A estética mais presente em suas obras é o grotesco, e a opção pela rua levou-os à
utilização de diversos expedientes épicos.
Da zona leste, dois bairros entrecruzam suas histórias: São Miguel Paulista e
Cidade Tiradentes. No primeiro nasceu o grupo Pombas Urbanas, em 1989, e recebeu,
em 2002, o Buraco d`Oráculo, que desenvolve suas atividades por lá até hoje, como o
circuito teatral de rua Re-Praça e a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista. O segundo
bairro, Cidade Tiradentes, maior conjunto habitacional da América Latina, com quase
trezentos mil habitantes, abriga, desde 2005, o Centro Cultural Arte em Construção,
gerido pelo grupo Pombas Urbanas. Em anos anteriores, especialmente em 1997, ainda
sem a denominação Buraco d`Oráculo, os jovens que depois vieram a compor esse
coletivo moravam nesse bairro e ensaiavam em uma associação de moradores, com o

ϰϱ

grupo Putz! Tipo Assim... Dessa forma, podemos dizer que, em suas trajetórias, esses
coletivos trocaram de bairro, mas não de região nem de público.
Os integrantes de ambos os grupos não tiveram formação técnica ou
universitária na arte de representar. Essa formação foi conquistada em projetos
realizados em equipamentos públicos. Por coincidência, ambos nasceram como grupo
em Oficinas Culturais geridas pela Secretaria de Estado da Cultura. Nesses projetos,
tiveram orientadores, pessoas importantes para sua formação e para sua continuidade
como grupos teatrais. Pombas Urbanas teve em Lino Rojas, que permaneceu com eles
por quinze anos, um mentor. Buraco d`Oráculo nasceu de um projeto coordenado por
João Carlos Andreazza, mas muito de sua estética foi definida em encontro posterior
com Ednaldo Freire.
A cultura popular e os populares permeiam as obras de ambos os grupos, não
mais a cultura popular tradicional, vinda do espaço rural, com a qual os pais desses
atores tiveram contato, mas culturas populares urbanas, vivenciadas e transformadas por
esses migrantes e por eles próprios. Seus espetáculos nascem da observação da
realidade que presenciam e vivenciam.

1.3.1. Pombas Urbanas semeando asas

O grupo Pombas Urbanas tem mais de duas décadas de existência, e surgiu no


cenário paulistano em 1989, no bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.
Seu nascimento deu-se graças à realização de um projeto desenvolvido pelo diretor
peruano Lino Rojas (1942-2005), que, segundo os integrantes do grupo, estava cansado
de trabalhar com pessoas que não davam prosseguimento à carreira teatral. Por isso, foi
trabalhar com os jovens na periferia, denominando seu projeto de Semear Asas, que
tinha em sua equipe Mariza Pinto, Jaime Kuk e Armando Fernandez. O projeto foi
desenvolvido de outubro de 1989 a dezembro de 1990, contava com cursos trimestrais
com turmas de vinte pessoas. Foram cinco turmas, das quais ficaram onze jovens:
Adriano Mauriz, Andréia de Souza, Beto Alves, Gislaine Ribeiro, Lindiane Moretti,
Luciana Melo, Marcelo Almeida (depois Palmares), Maria da Penha, Marta Guedes,
Paulo Carvalho e Valmir Santos, que originaram o grupo Pombas Urbanas.
Em entrevista concedida ao autor dessa dissertação em 16/03/2008, Adriano
Mauriz, ator do grupo, relatou que houve inscrição de mais de oitocentos jovens para o
Projeto Semear Asas em 1989. No seu entender, havia muitos jovens em São Miguel

ϰϲ

Paulista e região querendo se expressar por meio do teatro. O trabalho do Lino Rojas
sempre teve forte relação com a juventude e a periferia, formou o Pombas Urbanas e
continuou trabalhando junto às comunidades, ministrando oficinas ou criando
espetáculos para a juventude.
Lino Rojas era formado pelo Instituto Superior de Arte Dramática (Insad) de
Lima (Peru), havia estudado com outros artistas de renomes como Julian Beck, Enrique
Buenaventura, Jerzy Grotowsky, entre outros. Foi com essa sólida formação que veio
atuar no Brasil em meados de 1975, como dramaturgo e diretor, ficando com o grupo
Pombas Urbanas por quinze anos, até morrer tragicamente em fevereiro de 2005. Ainda
nesse ano, o Ministério da Cultura conferiu a Ordem ao Mérito ao dramaturgo e, em
2006, a homenagem foi feita em forma de uma mostra teatral realizada pelo Movimento
de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP), um reconhecimento a um dos pioneiros na
pesquisa em teatro de rua na cidade de São Paulo. Por sua vez, a homenagem na Mostra
fez com que os integrantes do Grupo voltassem a fazer teatro.
No trajeto inicial do grupo, como afirmaram na apresentação do livro referente à
sua história, esses “[...] jovens tiveram a sorte de encontrar o artista Lino Rojas”
(Pombas Urbanas Apud SILVESTRE, 2009: 07), que auxiliou na transformação do
previsível que os aguardava, afirmando, dessa forma, que fugiram, de certa maneira, da
condição de marginais a que ainda estão condenados todos os habitantes da periferia;
eles, pelo menos, puderam escolher o que iriam fazer: teatro. O próprio Lino sabia bem
o que significava estar à margem: sua mãe era descendente indígena; ele, um estrangeiro
no Brasil, trabalhando com jovens da periferia. Como afirmou Valmir Santos, “A
condição de margem lhe era familiar desde cedo” (apud SILVESTRE, 2009: 10). Essa
condição de margem surpreendeu Adriano Mauriz que, em entrevista a mim concedida
em 16/01/2011, disse que Lino Rojas afirmava descender de uma família de políticos
peruanos pertencentes à classe média.
Para Lino Rojas, o teatro estava nas ruas e pedia sempre aos seus atores que
observassem bem as pessoas e as situações vividas nesses espaços. Desse ponto de vista
surge, em certa medida, o processo de treinamento desenvolvido por Lino Rojas,
conforme relatado nas diversas entrevistas realizadas com os integrantes do grupo
Pombas Urbanas. Havia um treinamento prático em sala, calcado em um trabalho físico
e na observação fora da sala. As fundamentações teóricas, se se pode chamar dessa
maneira, ocorriam nas rodas de conversas que abriam e fechavam os trabalhos. Ali era o
espaço para se falar de tudo.

ϰϳ

Esse processo de preparação de ator desenvolvido por Lino Rojas, sem grandes
discussões teóricas, é um pouco explicado em seu texto Teatro jovem, publicado no
Informativo do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (2008: 6). Ele fugia do
academicismo e das discussões teóricas porque estava lidando com jovens da periferia,
chamados por ele de “jagunços de calças jeans”, jovens capazes de “[...] explodirem as
máscaras da commdia dell`arte”. O objetivo era fazer com que esses atores fizessem
qualquer tipo de teatro, tornando-se “atores orgânicos” capazes de transformar suas
vivências em arte. Não interessava, portanto, de onde vinham as fundamentações, mas
sim a prática. Daí a exigência de um treinamento focado no corpo, na expressão
corporal. Mas como fazer com que esses jovens que não haviam tido contato com o
teatro se interessassem por esta arte? O eixo principal era “[...] a descoberta da sua
própria origem, do seu reconhecimento, da sua cultura, da sua etnia e de suas relações”
(A GARGALHADA, 2006: 6). Logo, o que se buscava no treinamento prático era o
conhecer-se e, nas conversas, o mergulho em sua origem, em sua identidade.
Desde o princípio, o grupo tinha a preocupação de estar integrado com a
comunidade. Durante as oficinas com Lino Rojas em São Miguel Paulista, uma das
tarefas era observar os lugares e as pessoas para demonstrar aos demais colegas. Por
isso, as primeiras performances refletiam o universo no qual estavam inseridos. Uma
das primeiras criações chamava-se Os pássaros chorões que vieram da Bahia. Era uma
intervenção que apresentava dois pássaros que pousavam na praça após chegarem da
Bahia, eram saudosistas e refletiam sobre si. Por não haver casa de espetáculo em São
Miguel Paulista, Adriano Mauriz, na citada entrevista, afirmou que a rua foi o caminho
esperado, natural. Tudo o que criavam acabava sendo experimentado na praça.
Merecem destaque os elementos identitários, a busca pela própria história, que
desde o princípio eram trabalhados por Lino Rojas, o que, no decorrer do processo de
formação dos jovens atores, levou-os à consciência de si e da própria realidade. Ainda
segundo Adriano Mauriz, nessa mesma entrevista, Lino Rojas trabalhava a formação de
atores aliando a pesquisa de linguagem e de dramaturgia; por isso quase todos os
espetáculos criados por eles, em parceria com o mestre, foram elaborados em um
processo coletivo.
São Miguel Paulista, bairro onde surgiu o grupo, é um dos bairros mais antigos
de São Paulo. O historiador Sylvio Bomtempi, em seu livro Origens de São Miguel
(2000), data a fundação do bairro no ano de 1560 pelo religioso José de Anchieta, mas
seu desenvolvimento foi lento. Tornou-se distrito apenas em 1891, mas, assim como a

ϰϴ

cidade de São Paulo, foi no século XX que teve rápido desenvolvimento. A chegada da
Companhia Nitro Química Brasileira ao bairro, na década de 1930, acelerou ainda mais
a vinda de migrantes nordestinos para a região. “Além de servir a fábrica, a migração
transformou São Miguel Paulista num bairro populoso, apelidado até hoje como ‘nova
Bahia’” (CLEMENTE, 1998: 55). A cultura nordestina é muito perceptível no bairro,
seja por meio da fala de seus moradores ou de nomes dados a espaços importantes,
como a Praça do Forró (oficialmente Padre Aleixo Monteiro Mafra), Oficina Cultural
Luiz Gonzaga, além do mercado municipal, localizado no centro do bairro, ser
eminentemente popular, com alimentos típicos do Nordeste brasileiro.
Os primeiros anos do grupo foram dedicados à sua estruturação artística.
Concluídas as oficinas, e ainda na região, o grupo passou pela Escola Estadual Professor
Máximo de Moura Santos, na Vila Jacuí; pelo Clube Balneário de Vila Curuçá e,
depois, pelo Parque Chico Mendes, espaço que a comunidade lutava para transformar
em uma casa de cultura. Nesse período, 1991, criaram o primeiro espetáculo: Os
tronconenses.19 O espetáculo compunha-se de quinze cenas independentes, mas com
relação ao universo abordado. O espetáculo contava a história de Dito, “[...] menino
magrinho, sem pão, sem amor, mas bendito, maldito e também filho da Bendita. Ele
procura um pai, uma mãe, um lar, um lugar” (SILVESTRE, 2009: 17). Uma história de
abandono, contado por crianças, mas como uma reflexão do universo adulto. A primeira
apresentação ocorreu no auditório da Universidade Cruzeiro do Sul, em São Miguel
Paulista, numa programação artística que englobava outras manifestações. Segundo
Marcelo Palmares, em entrevista a mim concedida em 20/01/2011, a programação
começou atrasada e, no meio do espetáculo, a professora responsável pelo balé quis o
espaço. Assim, a apresentação foi interrompida, tendo de ser finalizada no pátio,
proposta feita por Lino Rojas, logo atendida pelo público, esvaziando, assim, o
auditório e, por consequência, deixando a apresentação de balé sem público.


19
Esse mesmo espetáculo marcou o início do primeiro grupo teatral formado pelo Pombas Urbanas em
Cidade Tiradentes, com processo muito semelhante ao que Lino Rojas havia desenvolvido com aqueles
jovens em São Miguel Paulista: “A primeira atividade que o grupo ofereceu à comunidade, além de
intervenções teatrais, foi a abertura de um curso de iniciação ao teatro. Cerca de 800 pessoas se
inscreveram, entre crianças, adolescentes e jovens – a maioria curiosa ou na expectativa de tornar-se um
sucesso televisivo. De 800 ficaram duas pessoas e, assim, a cada semestre ou trimestre, o grupo abria
novas inscrições. Quem queria continuar se inscrevia novamente e ao final de um ano havia um coletivo
de 13 jovens dispostos a se aprofundar no fazer artístico e teatral, um projeto de vida, nascia assim o
Núcleo Teatral Filhos da Dita.” Disponível em: http://www.pombasurbanas.org.br/formacao-
artistica/formacao-artistica. Acessado em: 16/07/2011.

ϰϵ

Para Marcelo Palmares, essa experiência foi marcante por demonstrar desde o
princípio que o grupo teria de se adaptar às necessidades da vida e da arte. Depois, o
mesmo espetáculo participou do 7o Festival de Teatro Amador de São Paulo (Fepama),
conquistando os prêmios de melhor atriz, melhor ator, atriz revelação e melhor pesquisa
de linguagem, concorrendo também ao melhor espetáculo e melhor figurino.
Em 1992, com a necessidade de produzir outro espetáculo, novos rumos tiveram
de ser definidos e, por isso, era preciso saber quem continuava ou não. No fim desse
ano, numa reunião realizada no Guarujá, saíram Andréia de Souza e Lindiane Moretti.
Em 1993-1994, houve a consolidação do grupo. Seus integrantes ocuparam uma sala no
Tendal da Lapa, que vinha sendo ocupado por outros artistas desde 1989. O Tendal da
Lapa virou Casa de Cultura e o prédio foi tombado depois de intenso processo de luta
em 2007.20
A maior dificuldade apresentada pelos integrantes para se estruturarem como
grupo era a de que todos trabalhavam e estudavam. Teatro só nos fins de semana. Essa
rotina se manteve de 1989 até 1994, quando começaram a abandonar os empregos para
se dedicarem apenas à sua arte. Alguns se tornaram auxiliares do mestre Lino Rojas no
curso que ele passou a ministrar no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(Senac). Quem não auxiliava o mestre, participava do curso como bolsistas,
possibilitando, assim, sua profissionalização. Foi em 1994 que começaram a pesquisar
os artistas de rua e o centro da cidade.
O primeiro espetáculo de teatro de rua foi Mingau de concreto, de 1996,
elaborado com base em uma pesquisa com as pessoas que povoam o centro da cidade,
mais especificamente o Boulevard da Avenida São João.21 Algumas dessas personagens
transitam pelo que se costuma chamar de submundo: bêbados, malandros, travestis,
migrantes, meninos de rua, grã-finos decadentes, autoridades, religiosos e também a
gente comum que por aí tem de transitar. Esse espetáculo deu projeção ao grupo,
tornando-o conhecido na cidade de São Paulo.


20
O prédio do Tendal da Lapa, um espaço de 6.000 m², foi construído em 1938; durante muito tempo, foi
um entreposto de carnes. Sua ocupação cultural começou em 1989, com o Grupo Teatro Pequeno e,
depois, vieram outros grupos. Em 1992, o espaço foi oficializado como Casa de Cultura. Em 2005, houve
uma tentativa, por parte do governo do Estado de São Paulo, de transformá-lo em uma praça de serviços
do Poupa Tempo. A população e os artistas se mobilizaram e conseguiram reverter esse processo. Em
2007, o prédio do Tendal da Lapa foi tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio
Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Informações disponíveis em:
www.tendaldalapa.blogspot.com. Acessado em: 16/07/2011.
21
O processo de criação desse espetáculo será estudado no próximo capítulo.

ϱϬ

Ao longo de sua carreira, o grupo Pombas Urbanas montou doze espetáculos: Os
tronconenses (1991), Funâmbulo (1993), Mingau de concreto (1996), Ventre de lona
(1998), Uma baleia perto da lua (2000), Buraco quente (2000), Todo mundo tem um
sonho (2001), A parceria que dá certo (2002), Quadrúpedes aquáticos (2003), Bichos
pela paz (2003), Largo da Matriz (2004) e Histórias para serem contadas (2007).
Em 2003, mergulharam em um processo sobre o universo caipira e na história da
formação de São Paulo e criaram o espetáculo Largo da Matriz. Para tanto, viajaram
para mais de quarenta cidades para entrevistar mestres de culturas populares. O
espetáculo era uma homenagem aos quatrocentos e cinquenta anos da cidade de São
Paulo. Este foi também o último trabalho do grupo ao lado de Lino Rojas.
Em 2007, o grupo retomou as ruas de São Paulo com um novo espetáculo,
diferente de todos aqueles que haviam montado. Já estavam no bairro de Cidade
Tiradentes e, como ao longo de sua história sempre buscaram integrar-se à comunidade
na qual estão inseridos, queriam falar sobre aquelas pessoas que cruzavam seu dia a dia.
Foi por meio de um texto do argentino Oswaldo Dragún, escrito em 1957, que
identificaram histórias parecidas com a luta travada pelos moradores daquele bairro.
Tudo era novo, pois nunca haviam montado nada que não tivesse a contribuição deles, e
agora partiam de um texto pronto: Histórias para serem contadas.22 Sem Lino Rojas,
era necessário convidar um diretor. Para esta empreitada, o grupo convidou Hugo
Villavicenzio, grande amigo de Lino Rojas e que viera com ele do Peru para o Brasil no
mesmo ano, em 1975.
Além dos espetáculos, o grupo Pombas Urbanas tem desenvolvido diversos
projetos ao longo de mais de duas décadas de existência. Debrucemo-nos apenas sobre
um, que, por sua vez, desdobra-se em outros tantos projetos: o Centro Cultural Arte em
Construção. Trata-se de um galpão de 1.600 m² alojado na Cidade Tiradentes, extremo
leste da cidade de São Paulo. Este bairro, segundo dados oficiais de 2008, abriga uma
população de 242.077 habitantes23, em uma área de quinze quilômetros quadrados. O
bairro é composto de diversos conjuntos habitacionais, que, no todo, compõem o maior
conjunto habitacional da América Latina, com uma população composta, em sua
maioria, de jovens. Nessa região, o grupo Pombas Urbanas instalou-se em 2004,


22
Haverá uma análise desse espetáculo no próximo capítulo.
23
Fonte: Portal da Prefeitura de São Paulo. Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/subprefeituras/dados_demograficos/inde
x.php?p=12758l. Consultado em: 30/05/2011.

ϱϭ

apresentando-se pela primeira vez no galpão ainda em ruínas no dia 21 de abril,
aniversário do bairro.
Segundo Adriano Mauriz, em entrevista realizada pelo autor dessa dissertação
em 16/03/2008, desde o início da formação do grupo, o foco sempre foi o teatro,
tomando “[...] o jovem como protagonista do desenvolvimento local, cultural e
humano”. No entanto, ao chegarem à Cidade Tiradentes viram-se obrigados a modificar
suas ações e tiveram de criar novos projetos, já que acorreram para o espaço muitas
crianças. Essa adaptação, isto é, a necessidade de atender ao público infantil, levou o
grupo a criar novos projetos e a estabelecer novas parcerias. Entre os projetos vale a
pena citar uma biblioteca comunitária; aulas de música, de grafite; inclusão digital e,
claro, aulas de teatro para crianças e jovens. As parcerias com o governo federal são
relativas ao Ponto de Cultura24, hoje Pontão de Cultura, bem como ao projeto Casa
Brasil25. Junto à iniciativa privada, houve o apoio do Grupo Votorantim que patrocinou
por dois anos (2008-2009) o projeto Semeando Asas na Comunidade.
O projeto Semeando Asas na Comunidade é uma renomeação do projeto que deu
origem ao grupo em São Miguel Paulista em 1989, realizado de forma ampliada, pois
além de capacitar jovens para gerir o próprio projeto e o Centro Cultural Arte em
Construção, por meio de aulas de teatro, produção, iluminação, entre outros, o projeto
foi alicerçado na formação de público, com um circuito que incluía quatro praças da
Cidade Tiradentes, além de programação desenvolvida no galpão, que recebeu
espetáculos do Pombas Urbanas e de convidados ao longo de 2008 e 2009. O resultado
foi colhido no ano seguinte. Apesar de não ter conseguido manter o circuito nas quatro
praças, segundo Marcelo Palmares, na citada entrevista, em 2010 passaram pelas
atividades do Centro Cultural Arte em Construção – entre elas espetáculos, oficinas,
debates – mais de trinta mil pessoas.


24
O Ponto de Cultura é um projeto que faz parte do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura
(Minc), que reconhece as entidades que têm impacto sociocultural nas comunidades, oferecendo-lhes
aportes financeiros para a realização de suas atividades. Não há modelos quanto às instalações físicas ou
de programação desenvolvida. Segundo dados do Minc, de 2010, existem 2.500 Pontos de Cultura
distribuídos por 1.122 cidades brasileiras. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-
de-cultura/. Acessado em: 16/07/2011.
25
Projeto desenvolvido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia: “Com unidades funcionando em áreas
de baixo índice de desenvolvimento humano, o projeto Casa Brasil leva às comunidades computadores e
conectividade, privilegiando ações relacionadas às tecnologias livres aliadas à cultura, arte,
entretenimento, articulação comunitária e participação popular.” Disponível em:
http://www.casabrasil.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=275&Itemid=74.
Consultado em: 16/07/2011. Hoje não há mais esse convênio entre esse Ministério e o Pombas Urbanas,
mas foi uma parceria que permitiu a implantação de uma rede de computadores disponíveis à comunidade
por dois anos, permitindo que os jovens aprendizes lidassem com as novas mídias.

ϱϮ

Existe grande alarde quando se fala da Cidade Tiradentes por causa da violência,
mas o projeto Semeando Asas na Comunidade, segundo Adriano Mauriz e Juliana
Flory, em entrevista concedida ao autor dessa dissertação em 16/03/2008, possibilitou
aos integrantes do grupo apreender como surge a violência. Um dos pontos escolhidos
foi o Conjunto Habitacional Prestes Maia, a Cohab mais antiga da região, com uma
população oriunda principalmente do interior do Estado e que trouxe consigo sua
cultura e suas tradições; por isso o hábito de realizar suas festas na praça.

Figura 3: Espetáculo Histórias para serem contadas – Parque da Água Branca, em São Paulo (SP), 2007.

Fonte: Arquivo do grupo.


Atores: Paulo Carvalo, Marco Kaju, Juliana Flory e Marcelo Palmares.

Em conversa com o grupo, alguns moradores relataram que deixaram de fazer as


festas após a chegada de uma delegacia de polícia ao bairro. Informaram ainda sobre as
condições em que foram “jogados”: suas casas eram pequenas e não tinha espaços
destinados à garagem de carros. Quando os primeiros moradores compraram
automóveis, viram-se obrigados a derrubar as paredes das salas para construir as
garagens. As ruas do bairro são muito estreitas, não comportando sequer o caminhão de
gás e não havia espaços de lazer. Dessa forma, conclui-se que o primeiro gerador de
violência é o próprio Estado, condenando e condicionando esses moradores a uma

ϱϯ

realidade para a qual não estão habituados, e negando-lhes aquilo que tanto cobra
Milton Santos (2000b): o direito ao entorno, que pode dar uma vida digna. O grupo
Pombas Urbanas, por meio de seu trabalho, dialoga com essas realidades e condições,
revelando possibilidades, pois ao se inserir nessas condições e nessas realidades,
discutindo-as, pode vir a desnaturalizar o que foi sendo naturalizado historicamente.
O projeto Semeando Asas na Comunidade integrou de vez o grupo Pombas
Urbanas ao bairro de Cidade Tiradentes. Até o jovem, mais arredio, segundo Juliana
Flory, na entrevista já mencionada, valoriza o empenho do grupo e acompanha sua
programação teatral, pois, segundo ela, “[...] tem muito valor essa situação deles
estarem num lugar juntos e de ter outras pessoas representando para eles”. E essa
situação de estarem juntos é muito importante, segundo Adriano Mauriz, na citada
entrevista, porque “[...] o teatro faz as pessoas se relacionarem na rua”. E ao ampliar a
relação das pessoas, instaura-se a contradição, possibilitando que se veja o mundo com
outros olhos, de forma mais crítica, proporcionando um princípio de desalienação.

Figura 4: Jovens saem em cortejo pelas ruas de Cidade Tiradentes, em São Paulo (SP).

Fonte: Arquivo do grupo.

Mesmo com uma história de mais de duas décadas, a relação do grupo com a
mídia hegemônica nem sempre foi fácil, pois os integrantes do grupo já chegaram a
ouvir que o público daquela região, Cidade Tiradentes, não é um público leitor de
jornal. Por isso, o grupo tem buscado a divulgação de seus trabalhos e ações
principalmente nas novas mídias. Para tanto, o grupo tem incentivado os mais de trinta
jovens que acompanham os projetos desenvolvidos no Centro Cultural Arte em
Construção a se informarem e a se formarem nessas ferramentas – as novas mídias –, e

ϱϰ

eles têm obtido sucesso. Assim, vão criando e escrevendo sua própria história, sem
esperar que façam por eles.
Segundo Adriano Mauriz, o Pombas Urbanas, ao longo desses vinte e dois anos
de existência, foi construindo grandes sonhos. O grupo, por meio de sua história,
demonstra que o teatro, por ser uma ferramenta de comunicação, pode ser utilizado por
qualquer pessoa e em qualquer lugar. Esses atores saíram de São Miguel Paulista,
depois deambularam por São Paulo na tentativa de sobreviver de sua arte, buscando
afirmar-se como grupo junto aos demais artistas da cidade: participaram da ocupação do
Tendal da Lapa; alugaram um apartamento na República, no centro da cidade de São
Paulo, onde moraram juntos; depois alugaram um sobrado no bairro Barra Funda, onde
se tornaram Instituto; e, finalmente, conquistaram, em regime de comodato com a
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), um galpão de 1.600
m² em Cidade Tiradentes, espaço que transformaram no Centro Cultural Arte em
Construção. E ao longo dessa história foram conquistando a emancipação artística.
O grupo Pombas Urbanas tem hoje sete integrantes: Adriano Mauriz, Juliana
Flory, Marcelo Palmares, Marcos Khaju, Natali Conceição, Paulo Carvalho e Ricardo
Big, que além de atuarem profissionalmente em Cidade Tiradentes, quase todos foram
também residir naquele bairro (exceto Adriano Mauriz, morador de São Miguel
Paulista, e Paulo Carvalho, que reside em Ferraz de Vasconcelos), integrando-se ao
cotidiano da comunidade, de maneira a compreender melhor aquele universo. Dessa
forma, escolheram se inserir não apenas como artistas, mas como cidadãos pertencentes
à Cidade Tiradentes.
Atualmente o grupo Pombas Urbanas está desenvolvendo o Projeto Revoada,
contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São
Paulo, no qual está previsto o aprimoramento artístico de seus integrantes, com aulas de
dramaturgia, direção cênica e música. No decorrer do processo de aprendizagem criarão
exercícios cênicos com base no estudo do território humano de Cidade Tiradentes que,
futuramente, resultarão em produção de um novo espetáculo. Além disso, no projeto
consta o intercâmbio com dez grupos teatrais da região. Quanto ao Centro Cultural Arte
em Construção, apesar de não ter sido subvencionado no ano de 2011 nem pelos
poderes públicos nem pela iniciativa privada, manteve os diversos projetos, como o
Somos do Circo, que já vem sendo realizado desde 2005; o Semeando Asas na
Comunidade – programação teatral que ocorre no Teatro Ventre de Lona; Encontro
Comunitário de Teatro Jovem, desenvolvido desde 2008, no qual foi dado o pontapé

ϱϱ

inicial para a criação da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade; Canto das
Letras, processo de aprendizagem coletiva de crianças e jovens que se desdobra em duas
frentes: Letramento com Arte – destinado a crianças dos terceiro e quarto anos das
escolas públicas da região – e Fuxiqueiros, grupo de jovens que adaptam livros infantis
para o teatro e se apresentam nas escolas do entorno do Centro Cultural Arte em
Construção. Quanto à atuação política, o Pombas Urbanas, em sendo um dos fundadores
da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade, tem intensificado as trocas
artísticas com nossos companheiros de continente, seja viajando para outros países ou
trazendo artistas e grupos ao Brasil, como o Corporación Cultural Nuestra Gente e Luz
de Luna, ambos da Colômbia, e Grupo de Teatro Catalinas Sur, da Argentina. O Grupo
tem também apoiado a Rede Livre Leste, formada por jovens grupos teatrais, como os
Filhos da Dita, Trupe ArruaCirco, Cia. do Outro Eu, entre outros. Além disso, tem se
mantido presente em todas as ações do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.
Todas essas atividades dão provas de seu vigor e de sua luta pelo teatro paulistano de
modo que ele possa chegar às camadas populares.

1.3.2 Buraco d`Oráculo circulando pelas Cohabs26

Em 1998, o ator e diretor João Carlos Andreazza, ex-integrante do grupo Fora do


Sério, realizou um projeto em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura na Oficina
Cultural Amácio Mazzaropi. Na época este equipamento cultural situava-se no bairro
Bresser. O projeto consistia na formação de um núcleo de teatro de rua. Os aprendizes
tinham oficinas de interpretação, expressão corporal, canto, técnicas circenses e criação
musical, todas elas voltadas para o espaço aberto. Além disso, havia ainda oficinas de
direção, produção, figurinos e adereços para outras turmas. Todo o projeto durou dez
meses: oito de oficinas, desembocando em uma montagem teatral, e dois meses de
apresentações.
A partir daí nasceu o Buraco d`Oráculo. No início havia cinquenta pessoas no
núcleo de atores; alguns desistiram e, na montagem do espetáculo A guerra santa, havia
trinta e uma pessoas. O espetáculo, livremente inspirado em obra do grupo mineiro
Galpão, Corra enquanto é tempo, discutia a exploração da fé por parte dos líderes
religiosos. O tema era muito pertinente, já que estava próximo da virada do milênio,


26
O autor dessa dissertação é integrante do grupo, dele fazendo parte desde o início de sua história.

ϱϲ

quando, no seio popular, se dizia que o mundo iria acabar. Naquela época, percebia-se
claramente o crescimento de igrejas pentecostais e de escândalos envolvendo as
lideranças de algumas delas. Apesar de os líderes das igrejas pentecostais serem o alvo
principal, o espetáculo não poupava nenhum inescrupuloso, independente da religião. A
guerra santa foi apresentada em São Paulo e em algumas cidades do interior paulista,
como Marília e Sorocaba.
Findo o projeto, a maioria seguiu o seu caminho, mas alguns integrantes
continuaram a se encontrar e a discutir a continuidade do grupo. Conseguiram uma sala
para ensaiar na estação Brás do Metrô, onde depois viriam a fazer apresentações. Nesse
mesmo ano, 1999, o grupo inscreveu-se em outro projeto da Secretaria de Estado da
Cultura: o Ademar Guerra. Deu-se o encontro com o diretor Ednaldo Freire, estudioso
do cômico e do popular. Nesse período, afirmaram-se como grupo e fizeram a opção
pelo teatro de rua. Pesquisaram uma estética e optaram pelo público que residia distante
do centro da cidade, que não tinha acesso ao teatro, pois, como afirma Lu Coelho, atriz
do Buraco d`Oráculo, em entrevista a mim concedida em 05/05/2008, foi o contato com
o público do Brás que impulsionou essa escolha. João Carlos Andreazza havia
apresentado o teatro de rua ao Grupo e Ednaldo Freire fez com que descobrissem sua
linguagem, sua linha de pesquisa e seu público preferencial. Dessa forma, o grupo
tomou consciência de que fazia parte do universo daquelas pessoas, escolhidas como
público de suas obras.
Com Ednaldo Freire e, depois, sem ele, o grupo leu e releu Mikhail Bakhtin,
autor russo que discute a carnavalização presente na obra de François Rabelais,
tomando como referência a cultura popular da Idade Média e do Renascimento.
Segundo Bakhtin (1987), o carnaval seria uma espécie de segunda vida do povo,
baseada no princípio do riso, isto é, o carnaval seria a possibilidade de pôr o mundo de
ponta-cabeça. É do autor russo também o termo realismo grotesco, do qual o Buraco
d`Oráculo se apropriou para falar de sua estética: “[...] encontramos nas manifestações
populares e no chamado realismo grotesco os elementos de expressão de nossa arte”
(ANUÁRIO, 2006: 142). Como o termo grotesco também gera discussões, já que está
associado à escatologia, as aberrações etc., é importante frisar que ele opera por
rebaixamento, daí o grupo ter optado pelo lado crítico dessa categoria estética, que “[...]
propicia um desmascaramento das convenções, rebaixando pelo riso os cânones e o
poder absoluto. A crítica é lúcida, cruel e risível” (ALVES, 2006: 2). Dessa forma, a
carnavalização torna-se um elemento crítico do status quo, da ordem, do oficial. O

ϱϳ

grupo se vale de figuras grotescas, que vão de encontro ao dito bom gosto; utilizam o
baixo corporal como elemento do riso, um riso ambivalente.
Nesse período, entre 1999 e 2001, afirmam-se os três elementos fundamentais na
pesquisa do Buraco d`Oráculo: a rua, como espaço de promoção do encontro; a cultura
popular, inspiradora dos espetáculos; e o cômico, com ênfase na farsa e no realismo
grotesco. O popular é um elemento inspirador do grupo, tantos aquelas práticas vindas
da área rural, como as do ambiente urbano.
No início de sua trajetória, nos seus primeiros passos como grupo, o Buraco
d`Oráculo cumpriu temporada na estação Brás do Metrô com dois espetáculos: Amor de
donzela, olho nela! e Quem pensa que muito engana acaba sendo enganado. Os dois
trabalhos resultaram do encontro com Ednaldo Freire e do estudo da obra de Mikhail
Bakhtin (1987). Depois de alguns meses de temporada, o grupo viu-se obrigado a se
retirar da estação Brás do Metrô, pois pastores evangélicos estavam cobrando do
coordenador daquela estação o mesmo espaço e o mesmo tempo para fazer suas
pregações. Grande ironia, já que o seu primeiro espetáculo, A guerra santa, tinha como
personagens um pastor, uma irmã, um coro e demais evangélicos que visavam
evangelizar aqueles que vinham em busca de cura.
Em 2002, o Buraco d`Oráculo e mais seis grupos fizeram parte da Ação Cultural
Se Essa Rua Fosse Minha.27 Foi nesse ano que o grupo foi para São Miguel Paulista, na
zona leste de São Paulo, buscando desenvolver projetos para aquele público que passava
na estação Brás do Metrô. A criação da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha
caracterizava também a militância do grupo em prol do teatro de rua, um novo estágio
no processo de consciência, já que se tratava de uma ação político-artística que tinha
como objetivos a troca entre os grupos, a criação de um corredor cultural e a
visibilidade do teatro de rua para os demais fazedores de teatro. Mais tarde, o grupo
auxiliou também na fundação e organização do Movimento de Teatro de Rua de São
Paulo28, que reúne hoje diversos grupos que lutam por políticas públicas de cultura para

Ϯϳ
 A iniciativa de criar um coletivo de coletivos, em certa medida, era fruto do momento político do
período, puxado pelo Movimento Arte Contra a Barbárie e pelas discussões em torno da criação da Lei de
Fomento. O convite partiu de Neto de Oliveira, da Farândola Trupe, para que os grupos de teatro de rua
se encontrassem. Juntos os coletivos definiram estratégias de ocupação de alguns bairros da cidade, com
ações contínuas, de maneira a dar visibilidade para o teatro, já que nem a categoria teatral nem o poder
público reconheciam essa modalidade teatral.
28
Finalizada a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, o autor dessa dissertação, que na época também
fazia parte do Núcleo Pavanelli, propôs ao grupo a realização de um seminário no Barracão Pavanelli, em
Tucuruvi. O objetivo do encontro era que os grupos pudessem compartilhar seus problemas e angústias.
Doze grupos participaram: Abacirco e Rodamoinho (11/08/2003), Tablado de Arruar e Pombas Urbanas
(18/08/2003), Bonecos Urbanos e Farândola Troupe (25/08/2003), Circo Navegador e Cia. Pavanelli

ϱϴ

o teatro, bem como pelo reconhecimento, por parte dos gestores culturais, do espaço
público aberto, sobretudo as praças, como equipamento cultural. Os demais grupos que
participaram da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha são os seguintes: Abacirco,
Bonecos Urbanos, Circo Navegador, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli.
Foi também em 2002 que o grupo estreou o espetáculo O cuscuz fedegoso,
síntese do que vinham estudando até aquele momento. Este foi o espetáculo constituído
por elementos grotescos, farsescos e que, mais uma vez, colocava cidadãos comuns em
cena. Tratava-se de quatro tipos na luta pela sobrevivência em uma grande cidade: uma
quituteira (Maria do Cuscuz), um pedinte, uma raizeira (vendedora de ervas medicinais)
e um policial. Este último, a autoridade, um corrupto que dificultava o trabalho dos dois
vendedores (raizeira e quituteira) e espancava o pedinte. Ao assistir a uma apresentação
desse espetáculo, o jornalista Fabiano Nunes afirmou que “[...] o teatro de rua torna-se
uma boa maneira para exorcizar os males e as contradições do comportamento humano”
(2006: 3), isso porque, conforme relata no texto, ele havia escutado de uma senhora do
público que seu filho havia falecido, e comentava que não deveria ficar rindo, no
entanto, a mulher gargalhava. Essa situação demonstra muito bem o realismo grotesco
destacado por Bakhtin, pois há aqui um riso ambivalente. Mesmo na dor, aquela
senhora riu, carnavalizou, exorcizou seus demônios, ainda que por momentos,
contrapondo-se aos absurdos do mundo e da vida.
Assim, é possível dizer que a afirmação desse coletivo como grupo teatral se dá
no período que vai de 2000 a 2002. Nessa época, alguns integrantes abandonaram
outros trabalhos e se dedicaram ao teatro. Amadureceu uma dupla consciência: a de
pertencimento à zona leste da cidade de São Paulo e a política, ao se engajarem com
outros coletivos em ações artísticas e políticas.
Ao chegar a São Miguel Paulista o grupo realizou a Mostra de Teatro de São
Miguel Paulista, com o objetivo de trocar experiências com os grupos teatrais da região.
Até a presente data, 2011, a Mostra já teve seis edições. Foi também por lá, em São
Miguel Paulista, que desenvolveu diversas temporadas nas praças e nas comunidades,
denominando o projeto de Buraco nas Praças, alusão ao grupo e às condições das praças
nas quais se apresentavam. Foi a partir dessas temporadas que nasceu um de seus
principais projetos, o Circular Cohab`s, realizado de 2005 a 2007. Com esse projeto, o


(01/09/2003), Teatro Vento Forte e Grupo Manifesta de Arte Cômica (08/09/2003), ManiCômicos e
Buraco d`Oráculo (15/09/2003). Após a realização do seminário, os grupos passaram a se encontrar
regularmente, denominando-se Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP).

ϱϵ

grupo conseguiu ser selecionado pelas comissões de alguns editais públicos: Prêmio de
Valorização às Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura (SMC),
Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, da SMC. Até então,
sempre tinham trabalhado e criado seus espetáculos com verbas dos próprios atores. Na
época em que foram para São Miguel Paulista eles eram seis: Adailton Alves, Danilo
Cavalcante, Edson Paulo, Lu Coelho, Mônica Martins e Renata Câmara. Hoje, Danilo
Cavalcante, Mônica Martins e Renata Câmara não fazem mais parte do Buraco
d`Oráculo. Com a entrada de novos atores, o grupo permaneceu com seis integrantes, a
saber, os já citados mais Johnny John, Rominson Paulo e Selma Pavanelli, na sua atual
formação. Selma Pavanelli e Johnny John começaram a fazer parte do grupo como
atores convidados nos espetáculos A farsa do bom enganador (2006) e ComiCidade29
(2008), respectivamente.
Se a fase anterior foi de afirmação do grupo, é possível compreender o período
de 2002 a 2006 como uma reestruturação, já que algumas pessoas saíram do grupo e
outras entraram. Ainda nesse período, o trabalho do grupo começou a ecoar pela cidade
e por outras regiões brasileiras, em decorrência dos primeiros prêmios públicos
recebidos e de suas primeiras viagens, como a participação no Festival de Teatro de Rua
de Recife (PE), o que possibilitou a troca de experiência com grupos de outros Estados
do Brasil.
De 2006 a 2008, ocorreu o crescimento artístico. O grupo foi selecionado duas
vezes pela comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São
Paulo, o que permitiu o aprofundamento técnico e artístico, bem como o espraiamento
de suas atividades na zona leste, por meio do Projeto Circular Cohab`s, confirmando a
importância de uma política pública de cultura. No Fomento, os grupos criam seus
projetos de acordo com suas pesquisas e com o que querem realizar, não há modelos.
Assim como o Fomento possibilitou o crescimento artístico do Buraco d`Oráculo, é
possível afirmar também que a cidade de São Paulo tem sido contemplada com um
teatro de altíssima qualidade, graças a esse programa público que, anualmente,
possibilita a realização de trabalhos diversificados produzidos por dezenas de grupos
teatrais.


29
Os espetáculos do Buraco d`Oráculo são os seguintes: A guerra santa (1998), Amor de donzela, olho
nela! (1999), Quem pensa que muito engana, acaba sendo enganado (2000), A bela adormecida (2001),
O cuscuz fedegoso (2002), A farsa do bom enganador (2006), ComiCidade (2008) e Ser TÃO Ser –
narrativas da outra margem (2009).

ϲϬ

O ponto principal do projeto Circular Cohab`s consistia em um circuito teatral
que passou por dezoito comunidades da zona leste30, somando um público de mais de
trinta mil pessoas. Havia ainda no projeto a formação de três núcleos de teatro de rua,
nos moldes do que havia formado o Buraco d`Oráculo em 1998. Nos núcleos, os jovens
tinham aulas de interpretação, corpo, voz, circo, percussão, figurinos e adereços,
durante seis meses e, ao término das oficinas, cada núcleo montava um espetáculo. Foi
durante esse projeto também que o Buraco d`Oráculo passou a publicar o informativo A
gargalhada31 e a realizar o encontro Café Teatral, realizado à tarde, com convidados
que discutiam teatro.
Os núcleos de teatro de rua formados no Projeto Circular Cohab`s deram
resultado, surgindo daí três grupos: Nascidos do Buraco32 (2006), Teatristas Periféricos
(2006) e Trupe Arruacirco33 (2007), pertencentes aos bairros de São Miguel Paulista,
Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, respectivamente. O núcleo da Cidade Tiradentes
teve vida breve, não deu continuidade ao seu trabalho; os demais continuam em plena
atividade. Em 2011, a Trupe Arruacirco acompanhou parte do Projeto Narrativas de
Trabalho.
A realização do Projeto Circular Cohab`s deu aos integrantes do grupo a noção
de relevância do trabalho que desenvolvem junto às comunidades, estimulando-os a
levarem à cena a realidade dessas localidades. Assim surgiu o projeto de comemoração
dos dez anos de existência do Buraco d`Oráculo. Por essa razão, é possível afirmar que,
desde 2002, um projeto sempre se desdobra em outros, em permanente continuidade.
Em 2008, o grupo completou dez anos, sendo selecionado mais uma vez pela
comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Do
projeto constava novo circuito teatral por seis comunidades34, denominado Re-praça.35
Nas comunidades, o grupo recolheu histórias de vida dos moradores e dessas

30
Cohab I, Cohab II, José de Anchieta, Fazenda da Juta, Inácio Monteiro, Jardim Palanque, Jardim das
Oliveiras, União de Vila Nova, Vila Mara, Itaim Paulista, Setor VII G, Praça do 65 (Cidade Tiradentes),
Juscelino Kubitschek, Jardim Pantanal, entre outras.
31
Este informativo, composto de artigos sobre teatro de rua, políticas públicas, além da programação do
Buraco d`Oráculo, chegou à 24a edição, com tiragem de 3.000 exemplares cada uma delas,
disponibilizadas também virtualmente. 
32
Nascidos do Buraco: http://cianascidosdoburaco.blogspot.com/2011/01/historico-da-atuacao-do-grupo-
o-teatro.html. Consultado em: 17/07/2011.
33
Trupe Arruacirco: http://trupearruacirco.wordpress.com/integrantes/. Consultado em: 17/07/2011.
34
Vila Mara, Jardim das Oliveiras, União de Vila Nova, Jardim Lapena, Jardim São Vicente e Prestes
Maia.
35
Trata-se de uma apropriação do título de um poema de Raberuan (1953-2011), poeta e músico de São
Miguel Paulista e amigo dos integrantes do Buraco d`Oráculo: Reinventar a praça, repor/ revitalizar seu
destino/ justificar seus motivos:/ Por quê? Pra quê?/ Reler a história de novo/ rever nas meninas os
meninos que fomos./ Cantar e dançar.../ Brincar na praça do povo!

ϲϭ

localidades, dando origem ao espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem,
cujo processo de criação será abordado no próximo capítulo. Para esse projeto
convidaram diversos profissionais, responsáveis pelo aperfeiçoamento técnico e para a
criação do espetáculo; assim, todo o processo de montagem do novo espetáculo foi
realizado de forma coletiva.

Figura 5: Espetáculo ComiCidade em Cidade Tiradentes, em São Paulo (SP).

Fonte: Arquivo do grupo – Atrizes: Lu Coelho e Selma Pavanelli.


Participação no Projeto Semeando Asas na Comunidade, realizado pelo Pombas Urbanas em 2008.

No que diz respeito à relação do Buraco d`Oráculo com seu público, Edson
Paulo, em entrevista concedida ao autor dessa dissertação em 05/05/2008, afirma que
ela ocorre antes, durante e após as apresentações, confirmando, assim, a importância do
teatro de rua que, além de instaurar essa relação, tem a possibilidade de ir a diversos
lugares. Edson Paulo cita, por exemplo, que muitas pessoas para as quais o grupo se
apresentou, seja no centro da cidade ou na periferia, nunca tinham visto teatro. A rua,
ainda segundo Edson Paulo na mesma entrevista, é “[...] a melhor forma de você
permitir o acesso ao teatro.” Mesmo o teatro de rua tendo a possibilidade de chegar a
muitos lugares, o ator não acredita que esta arte possa chegar a todos, ser
universalizada, já que não há interesse por parte do poder público que ela chegue a

ϲϮ

todos, isto porque não há políticas públicas que deem conta desse trabalho e faltam
grupos dispostos a trabalhar no chamado “circuito alternativo”. Apesar disso, tem
aumentado o número de grupos que buscam a rua como espaço cênico. Segundo Edson
Paulo, isso demonstra inquietação desses grupos, revela a busca por um público
diferenciado, um público que não frequenta as salas teatrais. Para o ator, esse
movimento de os grupos irem para a rua é muito importante para o processo de
acessibilidade dos trabalhadores.
Edson Paulo, na entrevista mencionada, fala também sobre a participação do
público do teatro de rua e de sua interferência nos espetáculos. Pelo fato de se estar
aberto, de se promover o acesso, de se procurar um diálogo direto com o público, faz
com que esse público também se torne dono dessa obra, dono dessa manifestação.
Quanto à relação com a mídia, Edson Paulo, na citada entrevista, é taxativo: “A
gente não tem relação nenhuma!” A prova disso é que durante os mais de dez anos de
grupo foram publicadas apenas duas reportagens em jornais de grande circulação, como
A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O primeiro jornal fez uma pequena matéria
assinada por Valmir Santos sobre a estreia do espetáculo ComiCidade, no centro da
cidade de São Paulo. O segundo jornal fez uma matéria em um de seus cadernos,
Estadão Leste, ainda em 2002, sobre o grupo e a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse
Minha. Essa falta de interesse pelas realizações do grupo está diretamente relacionada à
região onde o grupo está inserido. Por outro lado, o grupo tem viajado bastante, levando
seus espetáculos para outras cidades36, participando de festivais, de mostras, entre
outros. Nessas localidades, em geral, o acesso à mídia é mais fácil. A criação do jornal
A gargalhada é também uma forma de responder a essa falta de espaço na grande mídia.
Como essa publicação é mantida nos projetos com verbas públicas, acaba se tornando
um veículo de divulgação do trabalho do grupo e, ao mesmo tempo, uma prestação de
contas públicas de suas atividades.
Atualmente o grupo tem realizado um estudo teórico sobre a precarização do
trabalho e, na prática, tem criado pequenas intervenções nas quais discute o tema e
experimenta narrativas diferenciadas. O grupo tem mantido o circuito teatral Re-praça,
o Café Teatral e a publicação A gargalhada.
Por fim, é possível afirmar que, desde 2008, os integrantes do Buraco d`Oráculo
têm se dedicado ao estudo de temas políticos e ao aperfeiçoamento técnico-estético de

36
O Buraco d´Oráculo já teve a oportunidade de circular pelas cinco regiões brasileiras, ainda que não
tenha ido a todos os Estados do Brasil.

ϲϯ

seus integrantes, o que vem se refletindo nos espetáculos e no processo de organização
interna, bem como na participação política junto a outros coletivos, não apenas
artísticos, mas também sociais. Dessa forma, o processo de troca com outros coletivos,
bem como seu engajamento político, vem se intensificando. Para os integrantes do
grupo, a arte é vista como uma necessidade humana; logo, direito de todos, daí a
insistência em permanecer junto a essas comunidades. Compreendem também que, em
sendo um direito de todos, a cultura deve ser um dever do Estado. Por isso, os
integrantes do grupo têm se engajado na luta por políticas públicas de cultura.

ϲϰ

2. TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHADORES DE TEATRO NAS
FRANJAS DA CIDADE DE SÃO PAULO

Precisamente a estrutura artesanal da arte cênica, aparentemente


obsoleta e arcaica, resulta em privilégio e superioridade
incontestáveis. O próprio método de produção já distingue o produto.
Texto/contexto: ensaios. Anatol Rosenfeld

Hoje nos constituímos num grupo! Um grupo que é veículo para


continuar buscando, tentando. Um grupo que é o instrumento para se
procurar, se experimentar. Sem ele, as teorias se desvanecem, os
objetivos se diluem e a prática não se faz presente.
Em busca de um teatro popular. César Vieira

Pombas Urbanas e Buraco d`Oráculo optaram por organizar-se em grupo,


criando seus espetáculos para espaços abertos e desenvolvendo seus projetos em uma
determinada geografia da cidade de São Paulo, na qual habita uma imensa quantidade
de populares. Dessa forma, ambos os grupos tomam como público os trabalhadores, a
rua como espaço cênico e o território da zona leste como local estratégico de atuação,
realizando, assim, um trabalho diferenciado que, para melhor entendê-lo, será preciso
compreender alguns conceitos inerentes a essa prática.

2.1. Espaço, território, territorialização e lugar

Segundo Milton Santos, “[...] a globalização da sociedade e da economia gera a


mundialização do espaço geográfico, carregando-o de novo significado” (2008b: 29) e
adquirindo grande importância nas discussões teóricas. Mas o que vem a ser espaço?
Ainda de acordo com o geógrafo,

O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável, de


que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos,
objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e
os anima, ou seja, a sociedade em movimento (2008b: 28).

Assim, o espaço é também histórico, pois se modifica conforme o movimento da


sociedade que o anima, sendo a somatória da paisagem, do território e da sociedade.
Esses elementos, contidos no espaço, estão em constante relação (SANTOS, 2008a).
Por isso mesmo, são variáveis, isto é, modificam-se conforme “o movimento da
ϲϱ


história”. Assim, “[...] o espaço está sempre em evolução permanente” (SANTOS,
2008a: 28).
Se os meios técnicos e científicos se alteram, isto é, se a ciência se desenvolve
possibilitando a criação de novas ferramentas, de novas técnicas, entre outros
elementos, modifica-se também o espaço, porque é produzido pelo homem. Ou seja, os
homens, conforme os meios disponíveis, agem sobre o espaço, transformando-o de
acordo com as circunstâncias. Assim, “[...] a posição relativa de cada lugar é dada, em
grande parte, em função das técnicas de que é portador o respectivo meio de trabalho”
(SANTOS, 2008c: 58-9). Por isso, na concepção de Milton Santos, os espaços têm
valores diferenciados conforme as técnicas e os meios científicos de que dispõem. De
forma rápida e em escala macro, é possível ilustrar com os considerados países
desenvolvidos e os em desenvolvimento. O mesmo vale para escalas menores, como um
bairro popular quase sem infraestrutura comparado a um bairro destinado às classes
mais abastadas, com toda infraestrutura necessária.
Em sendo o lugar valorado de maneiras diferentes, os homens, ao ocuparem um
território, também são igualmente valorados e valorizados em conformidade ao mesmo,
ainda que esses cidadãos, conforme afirma Milton Santos em O espaço do cidadão
(2000b), tenham as mesmas virtualidades, isto é, tenha a mesma idade, mesma
formação etc. Mas como o objeto de pesquisa proposto são grupos teatrais e o teatro que
fazem, podemos afirmar, grosso modo, que suas obras são valorizadas de acordo com o
espaço que ocupam na sociedade, isto é, conforme seus territórios e público a que se
destinam. Afinal, segundo os valores burgueses da sociedade capitalista, apresentar-se
para as classes abastadas em teatros luxuosos não tem o mesmo “peso” de se apresentar
para trabalhadores em ruas e praças da periferia paulistana. Assim, dependendo do
ponto de vista da análise e das formas dos espetáculos, há valores diferenciados: se visto
pela ótica dominante, é importante o que se produz nos grandes teatros, como, por
exemplo, os musicais e dramas burgueses. Sob a ótica da luta de classes, essas
produções servem apenas para reforçar a ideologia dominante.
O teatro não está separado da sociedade; logo, se ela é cindida em classes, a
disputa e o enfrentamento ocorrem também no campo do simbólico. Para Pierre
Bourdieu (2011), os gostos e as preferências, formados pelo capital cultural (grosso
modo, soma da herança familiar, do que é consumido, mais o que é adquirido com o
conhecimento escolar), criam vinculação social entre os seus, apartando-os dos demais.
ϲϲ


Dessa maneira, o “cisma cultural” entre os populares e as obras eruditas ocorre, entre
outras coisas, porque os populares percebem na criação dessas obras uma lógica que os
afasta.
A experimentação formal – que, na literatura ou no teatro, leva à
obscuridade – é, na opinião popular, um dos indícios do que às vezes,
é vivenciado como o desejo de manter à distância o não iniciado ou de
falar a outros iniciados “passando por cima da cabeça do público”,
para retomar a afirmação de um entrevistado [...] (BOURDIEU, 2011:
36).

Bourdieu afirma que, diferentemente da arte erudita, “[...] o espetáculo popular é


aquele que proporciona, inseparavelmente, a participação individual do espectador no
espetáculo, assim como a participação coletiva na festa” (2011:37). E o teatro de rua,
em geral, é isso, tem o gosto e o sentido de festa, convergindo para as brincadeiras
espontâneas, “[...] cujo desfecho é uma liberação por colocar o mundo social de ponta-
cabeça, derrubando as convenções e as conveniências” (BOURDIEU, 2011: 37). Ora,
algo desse tipo não tende a ser visto com bons olhos por pessoas de “gostos refinados”.
Mas os territórios e o seu uso mudam, para além das distinções. Milton Santos
afirma que as mudanças técnico-históricas se modificam na medida em que a sociedade
vai ampliando suas especializações, ou dito em outros termos, de acordo com a divisão
social do trabalho. Assim, “[...] muda o uso do território, em virtude dos tipos de
produção, reclamados pelas técnicas diretamente utilizadas, e das formas como se
exercem as diversas instâncias de produção” (SANTOS, 2008b: 124). Desse modo, na
medida em que são criadas especializações que requerem novas técnicas e ferramentas,
que tendem a modificar a geografia ao mesmo tempo que ressignificam objetos
geográficos preexistentes. Como exemplo, vale citar a própria cidade de São Paulo que,
ao passar de cidade industrial a cidade de serviços, transformou bairros e criou
paisagens novas, como a região da Marginal Pinheiros e da Avenida Engenheiro Luís
Carlos Berrini, onde foram construídos “prédios inteligentes”, coordenando trabalho,
moradia e lazer em um mesmo espaço. O espaço, o território e os lugares aqui
observados dizem respeito à cidade de São Paulo, que busca ser uma cidade global.
Portanto, houve mudanças na divisão social do trabalho. Os territórios sofreram
modificações e, nessas mudanças, algumas áreas vêm sendo valorizadas e outras,
desvalorizadas. Porém, em todo o século XX, o que mais se fez em São Paulo foi
refazer sua geografia. Aldaíza Sposati destaca que a São Paulo urbana é obra do século
ϲϳ


XX, período em que cresceu quarenta cidades: “[...] a cada dois anos e meio nasceu uma
nova São Paulo nos moldes do que era sua população em 1900” (SPOSATI, 2001: 26).
Segundo Sposati, para se entender essa cidade seria necessário estudar cada um de seus
“pedaços”. A cidade de São Paulo está dividida em noventa e seis “pedaços” (96
distritos), dos quais se destacam São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, bairros
situados na zona leste da cidade onde estão sediados os dois grupos teatrais aqui
analisados, o Buraco d`Oráculo e o Pombas Urbanas.
No que tange à discussão conceitual sobre o território, ainda que ela seja bem
mais discutida pelos geógrafos, vem sendo também cada vez mais debatida por
filósofos, historiadores, psicólogos e economistas. Aqui se pretende dar conta da
conceituação e de sua importância na criação teatral. Desde já, cabe ressaltar que os
sujeitos ocupam os territórios em determinado tempo histórico, relacionando-se uns
com os outros, bem como com os meios técnicos de que dispõem. Da mesma forma,
“[...] o estético e o artístico surgem e se desenvolvem historicamente, e tanto em sua
origem quanto em sua natureza se encontram condicionados socialmente” (VÁZQUEZ,
1999: 57). Por isso, entendemos que a carga semântica (os signos e os significados) de
um território, de um lugar, pode vir a adentrar um espetáculo teatral, mesmo que de
forma inconsciente para seus fazedores. Dessa forma, um espetáculo teatral não
depende apenas dos sujeitos que o produz, mas também dos meios de produção
disponíveis e do lugar em que vivem essas pessoas. Por isso, no caso do teatro de rua,
há uma constante modificação, pois o espetáculo sofre interferências dos sujeitos e dos
lugares, visto que, em certa medida, esse tipo de teatro precisa ser adaptado a novo
espaço em que se apresenta.
Para a discussão sobre o território, dois autores são fundamentais. O primeiro é
Marcos Aurélio Saquet, cujas teses apresentadas em Abordagens e concepções de
território (2010) contemplam um levantamento das principais discussões sobre a
questão territorial dos anos 1950 até a atualidade. No caso da geografia, o autor afirma
que houve o rompimento de uma discussão mais (neo)positivista, passando para
abordagens dialético-materialistas, de cunho marxista, isto é, o território passou a ser
estudado sob a ótica da luta de classes. Saquet afirma também que, a partir desse
período, houve uma retomada da discussão territorial em outras áreas do conhecimento,
como a filosofia, a história e a economia.

ϲϴ


O segundo autor é Rogério Haesbaert, com duas obras – O mito da
desterritorialização (2006a) e Territórios alternativos (2006b) –, nas quais desenvolve
uma discussão acerca dos conceitos de modernidade e de pós-modernidade, e,
sobretudo, do conceito de desterritorialização, tão debatido na atualidade. Segundo
Haesbaert, há um movimento entre territorialização, desterritorialização e re-
territorialização, referenciado pelo autor por meio da sigla T-D-R. O primeiro processo
de desterritorialização, segundo Haesbaert, veio com o surgimento do Estado moderno,
que, ao fixar o homem à terra, o fez de forma despótica, imprimindo “[...] a divisão da
terra pela organização administrativa, fundiária e residencial” (2006a: 194-5).
Esses autores são fundamentais por travarem debate com teóricos de diversas
áreas do conhecimento, como a filosofia, a história, a economia, a antropologia, entre
outras, ampliando, assim, as possibilidades de abordagem. No entanto, isso não facilita
a discussão nem dispensa a pesquisa de outros materiais bibliográficos, mas a seleção
desses autores se justifica também pela identificação com o pensamento deles.
Rogério Haesbaert, ao discutir a amplitude do conceito de território e ao citar as
áreas do conhecimento que se valem desse mesmo conceito, afirma que a geografia
tende “[...] a enfatizar a materialidade do território”; a ciência política enfatiza as
relações de poder; a economia “[...] vê o território como base da produção”; a
antropologia “[...] destaca sua dimensão simbólica”; a sociologia enfoca as “relações
sociais”, e, por fim, a psicologia “[...] incorpora-o no debate sobre a construção da
subjetividade ou da identidade pessoal” (2006a: 37).
O território, é importante que se diga, sempre esteve ligado a um limite espacial
e ao terror (HAESBAERT, 2006a; SANTOS, 2008a), isto é, diz respeito aos limites
(fronteiras) de um Estado e à coerção por ele imposta para manter essas linhas
divisórias. Assim,

O território é uma invenção política do mundo moderno (obra de uma


classe social, executada especialmente para seu próprio benefício). O
termo território, raro até o século XVII, torna-se comum juntamente
com a expansão burguesa, a partir do século XVIII (HAESBAERT,
2006b: 120).

Apenas com o tempo, os limites territoriais ganham conotação mais simbólica,


de maneira que podemos entender, hoje, uma dada região, um lugar (que também têm
significados variados), um bairro, uma comunidade ou mesmo o “pedaço”, também
ϲϵ


como territórios específicos. Para José Guilherme Magnani (1998), o “pedaço”’ é um
território-referência constituído de dois elementos: por ordem espacial e por uma rede
de relações. Dessa forma, o “pedaço” implica sociabilidade e apropriação do espaço;
tem núcleo definido, mas as bordas são fluidas. De qualquer forma, não basta morar no
“pedaço” para fazer parte dele; é preciso fazer parte da sua rede de relações. Assim, por
meio da discussão sobre o “pedaço”, o que se revela acerca do território é que mesmo a
conotação simbólica sempre diz respeito a uma apropriação por parte de alguns grupos
sociais, que criam uma identidade territorial, desenvolvida nos “espaços vividos”
(HAESBAERT, 2006b). Ou seja, para que se torne um território, é preciso que aqueles
que o ocupam dele se apropriem, simbólica e politicamente.
Metodologicamente, é possível abordar o território sob algumas perspectivas,
dentre as quais a econômica, diz respeito as relações de produção e de forças
produtivas; uma dimensão geopolítica, mais relacionada ao poder; uma dimensão
cultural ou simbólico-identitária; e, por fim, outra, mais recente, a partir dos anos 1990,
voltada “[...] às discussões sobre sustentabilidade ambiental e ao desenvolvimento
local” (SAQUET, 2010: 15). Evidentemente, abordagens nessas perspectivas,
dependendo da área de conhecimento que as discutam, tendem a ir mais para um lado
do que para outro; no entanto, elas estão relacionadas. Nessa pesquisa, a abordagem
cultural torna-se mais importante, sem descaracterizar as demais, já que o espaço é
sempre uma produção do homem, e sabemos que, em uma sociedade capitalista, essa
produção é ditada pelo capital.
Mariana Fix, ao tratar de uma parte da cidade de São Paulo, discute o processo
de criação de uma nova centralidadeϯϳ às margens do Rio Pinheiros: “A transformação
de uma região pantanosa na área mais valorizada da cidade é, na verdade, um exemplo
de criação da máquina imobiliária do crescimento” (2007: 28). Dessa forma, o capital
nacional, aliado ao capital estrangeiro, em seus diversos seguimentos como o


ϯϳ
Na cidade de São Paulo, três regiões travam essa disputa: o centro histórico, a região da Avenida
Paulista e região da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, na Marginal Pinheiros. Essa disputa,
travada por meio de associações e outras organizações, tem que ver, principalmente, com os recursos do
município e como eles serão gastos na infraestrutura do lugar, atraindo, com isso, os clientes desejados.
Assim, temos a Associação Viva o Centro, Associação Paulista Viva e o pool de empresários, que
praticam lobby e outras ações, a fim de verem seus objetivos alcançados: “[...] na região mais periférica
do quadrante sudoeste, onde se estrutura o polo mais forte do setor terciário moderno da metrópole, com a
presença crescente de multinacionais, foi onde ocorreu o caso mais grave de exclusão territorial, com a
expulsão de milhares de favelados, muitos dos quais prestando serviços na região, o que atesta no caso
total intolerância quanto às classes populares, quando a única linguagem possível é a do mercado”
(FRÚGOLI JUNIOR, 2001: 62). Cf. também FIX, 2007; FERREIRA, 2007.
ϳϬ


imobiliário, o de serviços, entre outros, produziram o território cujo metro quadrado é o
mais caro da cidade de São Paulo, isso depois de expulsar favelados e modificar leis
municipais. O exemplo serve para ilustrar uma das formas de produção do espaço
urbano.
Em Territórios alternativos (2006b), Rogério Haesbaert, procura sintetizar o
conceito de território, de maneira a englobar as diversas abordagens e as diversas áreas
do conhecimento, entendendo-o como

[...] produto de uma relação de forças, envolvendo o domínio ou


controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica,
ora conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e
contraditoriamente articulados (2006b: 121).

Marcos Aurélio Saquet, em Abordagens e concepções de território (2010), ao


recorrer às teses do filósofo Giuseppe Dematteis, que, no seu entender, fornece “[...] os
elementos basilares do território”, compreendido como “[...] resultado da dinâmica
socioespacial”, englobando “[...] a identidade, as relações de poder e as redes de
circulação e comunicação” (2010: 50). Dessa maneira, a construção de um território
ocorre de maneira dialética, envolve a materialidade dos objetos que o compõe, as
relações econômicas e um eterno fluxo, um constante ir e vir dos sujeitos, que
estabelecem laços afetivos ou não com o meio, constituindo suas identidades nas
relações ou nas disputas com outros sujeitos. Essas relações e disputas são estabelecidas
no tempo e no espaço e, para tanto, utilizam as redes de circulação e a comunicação.
Essa proposição se conjuga com o “pedaço” de Magnani (1998) e, em certa medida,
com o espaço de Certeau (2003), tendo em vista que este entende o território como
espaço praticado.
Na medida em que teatro é comunicação, e, na condição de fenômeno estético,
ao ser apresentado em espaços abertos em determinado território, influencia e por ele é
influenciado. Mas mesmo que esteja apenas apresentando uma obra, o grupo teatral
pode influenciar o imaginário e a afetividade das pessoas em relação ao espaço ocupado
pela obra. A prática teatral que ocorre em espaços públicos abertos pode auxiliar os
cidadãos no que se refere à apropriação simbólica do território; aliás, ele próprio não
deixa de ser uma apropriação do espaço no instante em que o grupo teatral chega com
todos os apetrechos. Assim, o teatro de rua, ao mesmo tempo que se apropria

ϳϭ


simbolicamente de um logradouro público, considerando que este se torna constante em
determinados espaços, pode auxiliar na criação do imaginárioϯϴ do lugar.
Saquet não foge às definições tratadas. Ao assumir que espaço é também
construção social, ele reafirma que o território é um “[...] campo de forças que envolve
obras e relações sociais (econômicas-políticas-culturais), historicamente determinadas”
(2010: 127. Grifo do autor). O autor não desvincula tempo, espaço e território porque,
para ele, são indissociáveis. Ele afirma que “[...] a apropriação e a produção do território
é econômica, política e cultural, a um só tempo” (2010: 127). Assim, Saquet concebe o
território “[...] como um espaço de organização e luta, de vivência da cidadania e do
caráter participativo da gestão do diferente e do desigual” (2010: 129). Dessa forma, os
grupos sociais, ao se colocarem nesse campo de luta, formam os territórios e as
territorialidades.
A territorialização ocorre quando grupos sociais ou alguns sujeitos apropriam-se
de determinado território, em determinado tempo-espaço, isto é, criam significação,
afetividade ou enraizamento social no território. Em sendo o território um campo das
ações dos diversos poderes, portanto, político por definição, a territorialização se dá por
meio de disputas. “A territorialidade não é só o modelo do espaço, mas também as
características dos indivíduos e dos grupos que constituem um território” (GALVÃO;
FRANÇA; BRAGA, 2009: 43). Por sua vez, desterritorialização, segundo Rogério
Haesbaert (2006), tem múltiplas definições. Na pesquisa, adota-se a definição cultural
de territorialização, a saber, apropriação ou valorização simbólica de um grupo em
relação a seu espaço vivido. Logo, desterritorialização seria a perda dos vínculos
identitários com o seu território, que podem ocorrer por questões econômicas, políticas
ou culturais. Como ressalta Marcos Aurélio Saquet, as “[...] forças econômicas, políticas
e culturais também determinam a desterritorialização, a reterritorialização e a
constituição de novas territorialidades, no mesmo ou em diferentes lugares, no mesmo


ϯϴ
Estamos utilizando o termo na concepção empregada por Jean-Jacques Wunenburger, para
quem há duas acepções principais para o termo imaginário: “– uma, restrita, designa o conjunto estático
dos conteúdos produzidos por uma imaginação [...] e que tendem a adquirir certa autonomia, por
repetição, por recorrência para formar, em última análise, um conjunto coerente (a memória como
conjunto de lembranças passivas é uma parte importante de nosso imaginário). [...]
Outra, [...] ampliada – de algum modo integra a atividade da própria imaginação, designa os
agrupamentos sistêmicos de imagens na medida em que comportam uma espécie de princípio de auto-
organização, de autopoiética, que permite abrir sem cessar o imaginário à inovação, à transformação, a
recriações” (2007: 13-4).
ϳϮ


ou em diferentes períodos históricos” (2010: 128). Daí a complexidade do conceito de
desterritorialização.
De forma simplificada, seria possível definir desterritorialização como o
abandono do território (HAESBAERT, 2006a). Mas com as mudanças contemporâneas,
que alteraram nossa concepção sobre tempo, espaço e indivíduo, é possível falar de
desterritorialização “[...] na imobilidade, mas também [de] uma territorialização na
mobilidade” (HAESBAERT, 2006a: 129), isto é, a contemporaneidade, por meio das
mudanças de tempo e de espaço provocadas pelas telecomunicações e pelos transportes
velozes, modificaram nossas relações com o território independente de sairmos ou não
dele. Assim, na concepção de Haesbasert (2006a), no mundo contemporâneo,
estaríamos em constante processo de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização (TDR), o que prejudicaria a formação de uma identidade cultural, já
que ela se daria grandemente em conformidade com o território. Entretanto, a rapidez
das transformações mundiais não ocorre com a mesma intensidade nem na mesma
velocidade em todos os lugares. Para Saquet, “[...] as temporalidades e os territórios são
múltiplos e sobrepostos, determinados pelas forças do local e por forças externas ligadas
às dinâmicas econômica, política e cultural” (2010: 130). Dessa forma, vivemos, ao
mesmo tempo, a processualidade histórica e a relacional, isto é, somos feitos pelo
mundo ao mesmo tempo que o fazemos, mas de acordo com os lugares nos quais
vivemos.
Entretanto, pode-se afirmar que a migração é sempre um processo de
desterritorialização e reterritorialização, seja qual for a dimensão dessa migração: entre
países, entre as unidades federativas, entre as cidades ou, em vários casos, na própria
cidade. Rogério Haesbaert (2006a) lembra ainda que a migração pode ocorrer por
problemas políticos, econômicos, culturais ou ambientais. Por isso, é sempre uma
desterritorialização relativa ou uma desreterritorialização. Ainda segundo o autor, há
que se definir também desterritorialização dos abastados e das classes menos
favorecidas:
Desterritorialização, para os ricos, pode ser confundida com uma
multiterritorialidade segura, mergulhada na flexibilidade e em
experiências múltiplas de uma mobilidade ‘opcional’ [...]. Enquanto
isso, para os mais pobres, a desterritorialização é uma multi ou, no
limite, a-territorialidade insegura, onde a mobilidade é compulsória
[...], resultado da total falta de [...] alternativas, de ‘flexibilidade’ [...]

ϳϯ


em busca da simples sobrevivência física cotidiana” (HAESBAERT,
2006a: 250-1).

Dessa forma, desterritorialização caberia apenas para os excluídos ou para os


“aglomerados de exclusão”, como prefere Haesbaert (2006a). Considerando o aumento
da massa de excluídos sem que necessariamente saiam do lugar, e na medida em que
toda territorialização implica apropriação do espaço, é possível afirmar que, na
contemporaneidade, há desterritorializados nos territórios e territorializados na
mobilidade, como os abastados do mundo global (HAESBAERT, 2006a).
Por fim, em artigo de 2004, Haesbaert afirma que “[...] pensar, como inúmeros
autores nas Ciências Sociais, que estamos imersos em processos de desterritorialização,
é demasiado simples e, de certa forma, politicamente ‘imobilizante’”ϯϵ. Por isso mesmo,
o autor entende que estamos em constante movimento entre territorialização,
desterritorialização e reterritorialização, e que é preciso falar também em
multiterritorialidade. Só assim compreenderemos “[...] a importância estratégica do
espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade”ϰϬ. Ainda no mesmo
artigo, Haesbaert entende que as redes virtuais têm auxiliado na construção de novos
territórios, possibilitando a multiterritorialidade, e que isso nos levará à construção de
outra sociedade, “[...] mais universalmente igualitária e mais culturalmente
reconhecedora das diferenças humanas”. Desse ponto de vista, os sujeitos podem
participar de múltiplos territórios em uma mesma cidade: um território para morar, um
território para trabalhar, outro para estudar; ou, de um mesmo território-lugar, ter acesso
a outros. Mas Rogério Haesbaert negligencia as perdas psicológicas ocorridas a cada
nova desterritorialização, assim como parece esquecer que esse constante trânsito ou, a
falta de chão, é o grande gerador de insegurança na contemporaneidade.
O autor também simplifica a questão ao entender que a multiterritorialidade e a
democratização da internet (democratização para quem?41) possibilitaria a criação de


ϯϵ
Rogério HAESBAERT. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Disponível em:
http://www6.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf. Consultado em: 20/12/2009.
ϰϬ
Idem.
41
O acesso à internet ainda não está garantido para todos os cidadãos. “Enquanto nos Estados
Unidos quase 90 milhões de pessoas têm banda larga e na Grã-Bretanha 70% das escolas secundárias têm
tecnologia wi-fi, na África não passam de três milhões (menos de 1% da população do continente) os que
têm acesso à tecnologia de banda larga. Embora o acesso à internet na América Latina cresça,
semestralmente, a uma taxa média de 25%, somente 6% da população estão conectados” (MORAES,
2008: 56).
ϳϰ


uma sociedade mais igualitária. Os meios não são definidores de uma prática. Assim, o
que pode ser usado para libertar pode, também, ser utilizado para oprimir e dominar.
De qualquer forma, a pesquisa adota o conceito de território em sua acepção
mais cultural ou “culturalista”, como prefere Haesbaert (2006b); ou seja, o território
como fonte de identificação, criador de uma carga afetiva nos sujeitos que o vivenciam,
sujeitos territorializados. Logo, desterritorialização, nessa concepção, faz com que os
sujeitos não criem identidade, percam a “referência simbólica” e transformem o
território em um “não-lugar” (AUGÉ, 2008).
A concepção de não-lugar é do antropólogo francês Marc Augé. Para entendê-lo,
se faz necessário discutir o conceito de lugar, fundamental para a compreensão do
trabalho dos grupos teatrais aqui estudados. Para Augé, o lugar ou, como prefere
chamar, o lugar antropológico, “[...] é simultaneamente princípio de sentido para
aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa” (2008: 51).
Assim, é no lugar que os sujeitos criam os significados para si, bem como é por meio
dos lugares que podemos compreender melhor esses sujeitos, e vice-versa.
Milton Santos entende que os lugares estão sempre mudando “[...] graças ao
movimento social”. Para o autor, lugar “[...] é o objeto ou conjunto de objetos” (2008a:
13). Essa concepção é muito próxima à adotada por Michel de Certeau, ao afirmar que
“[...] o lugar é o palimpsesto” (2003: 310), isto é, o lugar é uma sobreposição de objetos
e de elementos históricos, visto que a cidade se dá por camadas. Entretanto, ao incluir a
relação entre os sujeitos, Certeau entende tratar-se de espaço, não mais de lugar. Por
isso, para ele, “[...] o espaço é um lugar praticado” (2003: 202. Grifo do autor.). Michel
de Certeau e o geógrafo Yi-Fu Tuan têm concepções diferentes acerca do que seja lugar.
Yi-Fu Tuan, sob a perspectiva da geografia humanista, afirma que “[...] o espaço
transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado” (1983: 151). Para
Tuan, “[...] o lugar é segurança e o espaço é liberdade” (1983: 3).
Marcos Aurélio Saquet entende que o lugar tem certa delimitação territorial,
criada pela própria dinâmica social, “[...] centrado em suas tradições e não no ambiente
físico” (2010: 50). Essa concepção aproxima-se do pensamento de Augé e de Haesbaert.
Rogério Haesbaert, em Territórios alternativos, afirma que o lugar, “[...] além de
envolver características mais subjetivas, na relação dos homens com seu espaço, em
geral implica também processos de identificação, relações de identidade” (2006b: 138).

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Marc Augé compreende o lugar “[...] como identitário, relacional e histórico”
(2008: 73); por isso mesmo, o seu contrário é um não-lugar. Augé utiliza a geometria
para estabelecer o lugar, entendendo que ele se faz por retas (ruas), encontros ou
cruzamentos e pelas intersecções (praças). São nos lugares que as “astúcias milenares”
(CERTEAU, 2003) são praticadas. E uma vez praticadas pelos sujeitos, esses lugares
ganham novos significados, sendo, portanto, ressignificados diariamente. Michel de
Certeau afirma que a cidade, fruto da razão moderna, instaura um discurso urbanístico
por meio de uma tríplice operação: produz um espaço que lhe é próprio; estabelece um
“[...] não-tempo ou um sistema sincrônico, para substituir as resistências inapreensíveis
e teimosas das tradições [...]; e cria [...] um sujeito universal e anônimo que é a própria
cidade [...]” (2003: 173). Mas, para Certeau, essa cidade tem se deteriorado, assim como
o discurso que a organiza, isso porque o caminhante se apropria da cidade e, na medida
em que o faz, atualiza as regras por ela impostas. Desse ponto de vista, é possível criar
lugares e instaurar a territorialização.
Por isso, no que tange à ideia de lugar, adotamos a concepção de Augé – lugar
identitário, relacional e histórico –, já que os sujeitos que fazem teatro, ainda que o
façam em lugares diversos, tomam seus lugares como ponto de partida, porque estão na
mente e no corpo. O lugar pode revelar quem somos. Mas vale destacar que uma mesma
pessoa pode “assumir” vários lugares em uma mesma cidade, em uma região ou mesmo
em um bairro (dependendo de sua dimensão), pois o que faz um lugar para o sujeito é a
relação afetiva, são os laços identitários com ele estabelecidos. Desse ponto de vista,
todas as pessoas têm diversos lugares com os quais se sentem “ligados”.
Não obstante, na supermodernidade, com a expansão urbana cada vez mais
desenfreada, os não-lugares são criados constante e permanentemente. Os não-lugares
são “[...] espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio,
lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços” (AUGÉ, 2008: 87). Os
não-lugares são espaços de mediação, mas trata-se de uma mediação contratual, que não
gera vínculos. Se os lugares criam “[...] um social orgânico, os não-lugares criam tensão
solitária” (AUGÉ, 2008: 87). Mais uma vez, o teatro se faz importante, pois, ao ir para a
rua cria novas relações espaciais e gera laços afetivos do público com os lugares nos
quais se apresentam. De que maneira? Tomemos como exemplo um transeunte que
presencia um espetáculo em uma praça pela qual passa todos os dias. Ora, o grupo de
pessoas que assiste ao espetáculo, juntamente com os artistas, modifica a paisagem.
ϳϲ


Logo essa imagem se forma na mente do transeunte, alimentando seu imaginário, pois a
cidade, naquele instante, foi reconfigurada. Se a relação com o espetáculo for prazerosa,
também haverá afetividade envolvida. Provavelmente, ao voltar ao mesmo local, a
imagem da roda voltará à sua mente (ou seja lá qual for a distribuição cênica utilizada
pelo grupo teatral). O mesmo ocorre quando um circo é desmontado em determinado
lugar, modificando a paisagem. Em tese, do ponto de vista físico, a paisagem volta a ser
o que era, embora, subjetivamente, ela tenha sido modificada duas vezes: com a
chegada do circo e com sua partida. Afinal “[...] nunca miramos sólo uma cosa; siempre
miramos la relación entre las cosas y nosotros mismos” (BERGER, s/d.: 14).
Praças, parques e outras áreas abertas propiciam a convivência, embora isso
venha sendo perdido devido à ilusão de que se está mais seguro em espaços fechados,
como shopping centers, um não-lugar por definição, onde os indivíduos são meros
usuários. Hoje cada vez mais é preciso fortalecer os espaços abertos, pois só assim
possibilidades serão criadas para que se tornem lugares. Dessa forma, os sujeitos,
quando reunidos em um mesmo espaço, além de estabelecerem laços afetivos com esses
espaços, poderão se reconhecer na presença do outro. Zygmunt Bauman entende que,
cada vez mais, convive-se com insegurança e medo, em decorrência de uma
“supervalorização do indivíduo”. Por isso vão sendo criadas cada vez mais zonas de
apartação, “zonas fantasmas” (2009: 25-7). Vive-se uma enorme “mixofobia”, isto é, o
receio de se estar em presença física com desconhecidos. Os espaços públicos são locais
privilegiados para o encontro, e à medida que se convive cada vez mais com o outro, o
medo tende a cessar. Como afirma Bauman, “[...] a exposição à diferença transforma-se
em fator decisivo para uma convivência feliz, fazendo secar as raízes urbanas do medo”
(2009: 71. Grifo do autor).
O teatro que ocupa os espaços públicos abertos acolhe a todos e liga, por meio
dos espetáculos, “a realidade à imaginação” (FISCHER, 1973: 123), num encontro entre
cidadãos, que podem voltar a descobrir o prazer da convivência, sem medo, pelo fato de
reconhecerem na diferença de quem está ao seu lado a igualdade de ser humano. Claro
que essa relação se fortalece à medida que o público se reconhece em cena. Em tempos
de medo, cada vez mais é urgente a arte ocupar as ruas, misturar-se com a população,
pois uma arte longe do povo “[...] abre caminho para o rebotalho produzido pela
indústria do entretenimento” (FISCHER, 1973: 118). É preciso fortalecer os lugares,
antes que todos se percam nos não-lugares.
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O teatro de rua cria fissuras nos espaços públicos abertos ao transformar um
local de passagem em um espaço de trocas simbólicas, e o passante em um assistente da
obra teatral. Dessa forma, é uma arte que pode fortalecer os laços identitários dos
cidadãos com sua cidade e com seus diversos “pedaços”, pois, a partir desse encontro, o
transeunte pode lançar novos olhares sobre a paisagem, vendo-se nela, desvendando-a e
sendo desvendado por ela. O teatro de rua, portanto, fortalece o lugar, o espaço do
encontro, além de propiciar o lazer e a reflexão. Em tempos de medo, de isolamento, de
falta de afetividade, é preciso ocupar o espaço público aberto com arte para que se
perceba que há relações para além do mercado.

2.2. Paisagens e imaginários

“Tudo o que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. [...] É formada
não apenas de volumes mas também de cores, movimentos, odores, sons etc.”, define
Milton Santos (2008b: 67-8). Dessa forma, a paisagem é a soma dos elementos naturais
e dos elementos construídos pela humanidade, na qual os seres humanos se incluem e,
por isso mesmo, ela está sempre em movimento, modificando-se a cada instante.
Na cidade, muitas vezes, nossa visão da paisagem é limitada, pois os obstáculos
são muitos, mas nem por isso menos interessante para sua compreensão . Desse modo, a
cidade pode ser entendida como um “texto”; portanto, pode ser lida. Mas tudo que pode
ser lido foi antes escrito. Assim, a cidade é escrita a todo instante com base em seu uso
e em sua apropriação, e quanto mais se aprende a lê-la, mais se é capaz de reescrevê-la.
Sendo a cidade um acúmulo de escritas, a paisagem pode ser entendida, na
definição de Milton Santos (2008a), como uma “escavação arqueológica”; portanto, é
preciso estar atento à sua história, ao seu desenvolvimento, para apreendê-la. A
paisagem materializa diversos pedaços de tempo, de técnicas e de tecnologias. Além
disso, nela estão inscritos “[...] comportamentos econômicos e sociais diversos”
(SANTOS, 2008c: 91). A paisagem é portadora da história da cidade e de sua evolução
técnica; cada parte contém elementos de épocas distintas; é um palimpsesto, constituído
de densas camadas.
O espaço da cidade, em todas as suas paisagens, recebe uma escrita cotidiana, às
vezes mais sutis, às vezes mais radicais. Por isso, Milton Santos compreende o espaço
como mídia, já que “[...] é linguagem e também é o meio onde a vida é tornada
ϳϴ


possível” (2008c: 38. Grifo do autor.). Criamos esses espaços e por eles somos criados;
influenciamos esses espaços e por eles somos influenciados. A cidade está carregada de
signos, todos ideológicos, como afirma Mikhail Bakhtin: “Sem signos não existe
ideologia” (2009: 31. Grifo do autor). A cidade, em sendo fruto da produção humana, é
portadora de ideologia e, portanto, reflete e refrata a realidade. Tudo o que é ideológico,
ainda segundo Bakhtin, tem como lugar o material social produzido pelos homens, “[...]
sendo o meio de sua comunicação” (2009: 35). Assim, o teatro que se coloca no espaço
urbano, em ruas e praças, não pode desconhecer esse fato, pois, dependendo do trabalho
que realiza, pode combater ou reforçar os signos de uma ideologia dominante.
O espaço urbano tende a se homogeneizar, apagar as diferenças; logo, existe
uma imagem da cidade que é construída, e essa imagem é “coercitiva e autoritária”
(FERRARA, 1993). Em contraposição à imagem construída há a realidade da cidade.
Hoje, se São Paulo está sendo construída como cidade global, esconde-se que esse
suposto “global” diz respeito apenas a um de seus “pedaços”, escondendo as mazelas
das periferias. Vende-se a parte pelo todo. O urbano tende a revelar apenas os “[...]
valores, usos e hábitos que unificam as classes” (FERRARA, 1993: 252). Entretanto, é
impossível negar que os bairros populares revelam em suas paisagens uma luta de
classes; na verdade, “[...] a enfatizam, na medida em que essa constante permeia todos
os espaços e ressurgem revitalizados sempre que se reinveste uma divisão desigual do
capital” (FERRARA, 1993: 236). Existe, portanto, uma tensão entre a imagem criada
sobre a cidade e a cidade real.
O teatro de rua, ao se colocar no espaço urbano, trava uma luta entre essas duas
imagens, a cidade imaginada e a cidade real, e o próprio teatro auxilia nesse exercício
de imaginação, bem como no campo de luta entre ambas. Afinal, as pessoas, com base
no que veem, sentem e ouvem, vão formando a imagem da cidade; logo, a cidade real é
uma cidade imaginada. Assim, nesse campo de luta, forma-se a ideia do urbano, que
está relacionado “[...] a um efeito imaginário sobre tudo isso que nos afeta” (SILVA,
2001: X).
Na cidade, as diversas paisagens têm forte aliado na criação do imaginário
urbano, a saber, os meios de comunicação de massa. Para Néstor García Canclini
(2008), existem as cidades do conhecimento – multiculturais – e as cidades paranoicas,
que geram desconhecimento. Segundo o autor, São Paulo se enquadraria nesse segundo
grupo. Os meios de comunicação de massa, cujo discurso tenta dar conta de toda a
ϳϵ


realidade da cidade, ao informar, em vez de gerar o conhecimento, tende a criar
desconhecimento. Assim,

[...] o rádio, a televisão e internet – que são redes parcialmente


deslocalizadas – constroem relatos de localização. Enquanto a
expansão territorial das megacidades debilita a concessão entre suas
partes, as redes comunicacionais levam a informação e o
entretenimento a todos os lares (CANCLINI, 2008: 20-1).

O autor exemplifica com um acidente de trânsito que, ao ser noticiado pela TV


ou pelo rádio, diz respeito a um determinado ponto da cidade; no entanto, “[...] atua
sobre os imaginários e se constitui em reconfigurador de uma totalidade que ninguém
percebe” (2008: 21). Ou seja, algo que é pontual tende a criar uma sensação que se
espraia por toda a cidade. Mais uma vez é a parte pelo todo, e os cidadãos vão criando
um imaginário sobre a cidade, valorizando algumas partes em detrimento de outras. São
esses imaginários também que criam a “mixofobia”; afinal, nunca houve tantos
programas televisivos voltados à violência, sem discutir suas questões geradoras. São
notícias que, no dia seguinte, já não fazem mais nenhum sentido, embora permaneçam
no nosso imaginário.
A arquitetura, cuja história é bem mais antiga, é outro elemento formador do
imaginário da cidade. Ela sempre foi uma arte de massas42 e, portanto, recebida
coletivamente. Ao longo dos séculos seu desenvolvimento vem se ligando cada vez


42
O termo massa é controverso, pois, em geral, é utilizado com outros vocábulos. “De pronto
sobressai como principal característica do termo o sentido de mistura ou amálgama de elementos
indistintos compondo um corpo ou conjunto homogêneo” (ACSELRAD; MOTA, 2011: 7). O termo foi
utilizado por Alexis de Tocqueville para se referir à maioria tirânica que oprime uma minoria, e trazia em
seu bojo a incidência da cultura sobre a política. No início do século XX, alguns teóricos norte-
americanos acrescentaram a palavra massa ao termo comunicação; massa, aí, referia-se a todas as pessoas
que deveriam receber as proposições liberais, mantendo, assim o status quo. Foi contra essa concepção
que os frankfurtianos se opuseram, colocando em dúvida o termo cultura de massa e apresentando a
ideia de indústria cultural. O objetivo era contestar, entre outras coisas, a afirmação de que seja cultura e
de que esta pertença às massas. Nos anos 1960, os estudos culturais ganharam impulso na Inglaterra,
afastando um pouco a ideia dicotômica observada entre cultura superior e cultura inferior ou de massas.
No fim do século XX, com as transformações das novas tecnologias de informação e comunicação, Pierre
Lévy e Gilles Lipovetsky retomaram a problematização do conceito de massa, entendendo que não se
tratava mais do modelo um-todos (comunicação de massa), mas sim do modelo todos-todos
(comunicação em rede) (ACSELRAD; MOTA, 2011). Por fim, há também uma compreensão do ponto de
vista da organização política que entende as massas como a imensidão de trabalhadores que devem ser
organizadas pelos partidos: “Segundo R. Kaganova, Lenin fundamentou teoricamente que o partido
marxista de novo tipo representa a união do socialismo científico com o movimento operário de massas”
(BOGO, 2005: 16). A nossa concepção, na frase, é em relação à totalidade dos habitantes de uma cidade
que tem contato com essa arte e, portanto, congrega uma diversidade de pessoas e de classes sociais.
ϴϬ


mais ao grande capital43, e hoje parece impossível realizá-la em grandiosidade sem os
auspícios do capital. Sua força reside em ser uma arte contemplativa, mas que é também
destinada ao uso: ao mesmo tempo que contemplamos um empreendimento, também
podemos utilizá-lo, ou como afirma Walter Benjamin (1996) em A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, os edifícios confluem para uma dupla recepção: “pelo
uso e pela recepção”, logo, por “meios táteis e óticos”. Ainda segundo Benjamin, a
relação com essas obras é distraída, não há concentração na recepção. “Mas o distraído
também pode habituar-se. Mais: realizar certas tarefas, quando estamos distraídos,
prova que realizá-las se tornou para nós um hábito” (1996: 194-6). Para combater esse
imaginário distraído, Benjamin defende a politização da arte; afinal, é preciso gerar o
estranhamento em relação aos hábitos.
Os meios de comunicação de massa, juntamente com a arquitetura, tendem a
unificar valores, pois visam a formar uma imagem única da cidade. De acordo com
Lucrécia D`Aléssio Ferrara, “[...] paradoxalmente, a imagem do espaço social não
revela, fenomenalmente, uma luta, mas o trânsito de valores, usos e hábitos que unifica
as classes” (1993: 236). É dessa forma que as diferenças são “supostamente” apagadas.
Além disso, as políticas oficiais tendem a reforçar essa suposta homogeneidade,

43
O capitalismo pode ser entendido como um sistema econômico no qual a sociedade é dividida
em classes que produzem mercadorias, cujos meios de produção pertencem à classe dominante, a
burguesia, cabendo aos produtores (os trabalhadores) a venda da sua força de trabalho no mercado. Por
ser um sistema econômico que tem como características a incessante acumulação e a revolução
permanente dos meios de produção, o capitalismo tem passado por inúmeras etapas, a começar pela
acumulação primitiva no século XV. Mas seu desenvolvimento ocorreu a partir da revolução industrial,
no século XVIII, quando passou a existir uma preponderância da produção mecanizada, da urbanização
da sociedade, da ampliação do número de pessoas alfabetizadas, da aplicação do conhecimento científico
na produção e do aumento da burocratização em todos os aspectos sociais. Desse ponto de vista,
sociedade capitalista e sociedade industrial são, em certa medida, sinônimos. No século XIX, o
capitalismo começou uma fase mais territorializadora. Trata-se do capitalismo monopolista, no qual as
grandes corporações uniam-se ao sistema bancário para formar oligarquias financeiras, sempre aliadas ao
Estado-Nação (OUTHWAITE; BOTOMORE, s.d.). No fim do século XX, foi possível observar outra
fase do capitalismo que, por meio de uma política neoliberal, tornou-se cada vez mais fluida, sem pátria,
desterritorializada: “[...] o capital realiza-se de modo cada vez mais pleno como capital singular,
particular e geral, cujas mediações são articuladas por agências, organizações, empresas corporações,
conglomerados, mercados, telecomunicações informáticas eletrônicas ágeis e invisíveis (IANNI, 1998:
135). Nessa nova forma de capital, que tem produzido cada vez mais serviços, em vez de produtos, a
própria cidade converte-se em título financeiro, como alerta Mariana Fix ao tratar do quadrante da região
da Marginal Pinheiros e Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, onde “[...] houve uma espécie de
preparação para um ‘casamento’ entre setores nacional e estrangeiro. Fizeram parte dessa preparação: o
surgimento da demanda pelos novos espaços e uma nova estética, a constituição de um novo padrão de
segregação, a criação de um mercado (ou de um novo valor de uso), o surgimento de um sistema mais
complexo e profissionalizado de promoção imobiliária, a elaboração e implantação de políticas públicas
voltadas para os requisitos desse tipo de capital, o reordenamento de trechos da cidade, particularmente
por meio das chamadas ‘parcerias público-privadas’ [...], e o surgimento de um novo discurso sobre a
cidade que legitima essas práticas, especialmente tendo em conta os conceitos de ‘cidades globais’ ou
‘mundiais’” (2007:19).
ϴϭ


nascendo daí – até por necessidade – os “contra-usos da cidade” (LEITE, 2007) em seus
diversos lugares. Como o poder público tende a regular e a controlar o espaço, nascem
as táticas de contra-usos da cidade. O teatro de rua, ainda que nem sempre seja um
contra-uso, tende a ser malvisto pelo poder público, pois o simples fato de ocupar a rua
e atrair pessoas, em certa medida, desregula o espaço público, que fora pensado apenas
como escoadouro do capital.
Se o território é físico e mental (SILVA, 2001), o teatro que se apresenta nos
espaços públicos abertos fortalece os contra-usos e cria novos imaginários. Ao dialogar
diretamente nas comunidades, trocando experiências com o público, passa a fortalecer
laços identitários. Segundo Lucrécia D`Aléssio Ferrara, a periferia só se torna realidade
social se houver “[...] condições de exercício da cidadania”, o que só é possível com
“[...] intensa intervenção cultural e ambiental” (1993: 125). O teatro de rua, ao dialogar
diretamente com seu público e ao se apresentar nos lugares habitados por essas pessoas,
pode desvelar a ideologia do urbano, revelando as contradições da cidade, criando,
assim, novos territórios. Para tanto, é fundamental que seus praticantes saibam ler a
cidade por meio de sua arquitetura, dos imaginários e das práticas cotidianas. Só assim é
possível se contrapor aos imaginários dominantes; só assim é possível transformar os
territórios vitais “[...] de caos em cosmo” (SILVA, 2001: 18). Desse modo, os
habitantes podem impregnar seus lugares com suas culturas, criando laços afetivos e
sentimento de pertencimento.
A força do teatro de rua reside no manuseio do imaginário. “O imaginário afeta
os modos de simbolizar o que conhecemos como realidade, e essa atividade adere a
todas as instâncias da nossa vida social” (SILVA, 2001: 47). Dessa forma, o teatro de
rua, ao se colocar em determinados espaços e lugares, pode transformar essa realidade.
Explicando melhor, ao criar uma programação continuada em determinada praça, por
exemplo, antes vista como suja, tende a se transformar na praça que tem teatro,
alterando a forma de os cidadãos se relacionarem com ela. O grupo Pombas Urbanas, ao
criar o espetáculo Mingau de concreto no antigo Boulevard da Avenida São João, em
São Paulo (SP), e ao permanecer longas temporadas ali, transformou aquele lugar em
espaço agradável para muitas pessoas, inclusive para os próprios atores, gerando laços
afetivos nos integrantes do grupo. A prova disso é que, a cada novo espetáculo, o grupo
faz questão de voltar àquele lugar. Para os integrantes do Buraco d`Oráculo, o mesmo
ocorre em relação à Praça do Casarão, em São Miguel Paulista. Mas cabe destacar que,
ϴϮ


ainda que exista essa potência de os espetáculos criarem imaginários e gerarem laços
afetivos dos cidadãos em relação aos lugares, isso só ocorre por meio de projetos
contínuos e de uma programação permanente.

2.3. Identidades

A identidade, assim como o território, é pesquisada em diversas áreas do


conhecimento, como sociologia, história, antropologia, psicologia, entre outras. É
possível afirmar que desde que se nasce há, pelo menos, duas identidades: a biológica,
que define o corpo; e a cultural, composta de estímulos recebidos, inicialmente, do
ambiente familiar, por exemplo, e, depois, do “mundo”. Mas tanto nosso corpo quanto
nossa relação com o mundo modificam-se ao longo da vida. Dessa forma, podemos
afirmar que a identidade não é estática, porque ela se transforma ao longo do tempo.
Muitos são os autores, dentre os quais Stuart Hall (2005) e Michel Mafesoli
(2009), que discutem a crise atual da identidade, mas, em tempos de globalização, ela
nunca foi tão importante. Por um lado, se as identidades nacionais estão se esfacelando
(HALL, 2005), por outro, cada vez mais outras identidades vêm se afirmando,
tornando-se necessárias em um movimento de resistência em um mundo globalizado.
Desde já é importante dizer que toda identidade é construída (ORTIZ, 1994;
CASTELLS, 2001; BAUMAN, 2005; HALL, 2005), que se afirma pela diferença.
Assim, é na relação com o outro que se define a identidade. Portanto, “a identidade é
relacional” (WOODWARD, 2009: 9). Logo, a identidade não é a mesma ao longo da
vida dos sujeitos, já que corpo e mente se modificam no decorrer da história de cada
um.
Stuart Hall (2005) debate três concepções de identidades, a iluminista, a
sociológica e a pós-moderna. Ainda que o conceito de pós-modernidade não seja
unanimidade, é essa a terminologia utilizada pelo autor inglês. Para Hall, o sujeito
iluminista é totalmente centrado e unificado. Logo, nessa concepção, a identidade nasce
com o sujeito, bastando apenas desenvolvê-la. O sujeito sociológico nasce da
complexidade do mundo moderno, não é autossuficiente e forma sua identidade numa
“interação entre o eu e a sociedade” (2005: 11). Ou seja, há uma relação entre interior e
exterior, o pessoal e o público, que costura “o sujeito à estrutura” (2005: 12). Essa
concepção se desenvolveu a partir do século XIX. Na terceira concepção, Stuart Hall
ϴϯ


adota o conceito de sujeito pós-moderno, que tem uma identidade “provisória, variável
e problemática”; logo não é fixa nem permanente, definindo-se historicamente. Assim,
os sujeitos teriam diversas identidades ao longo de sua história. Para Hall, “[...] a
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (2005:
13). Desse ponto de vista, é possível pensar como Bauman, ao referir-se a Agnes Heller,
que teria se queixado de estar sobrecarregada de identidades por ser “[...] mulher,
húngara, judia, norte-americana e filósofa” (2005: 19). Ou seja, nessa concepção, as
identidades hoje quase se confundem com papéis sociais.ϰϰ
Dessa maneira, adotando-se a concepção de Stuart Hall, os sujeitos aqui
estudados, pertencentes aos coletivos teatrais do Buraco d`Oráculo e do Pombas
Urbanas, podem se definir como brasileiros, paulistanos, nordestinos, homens,
mulheres, em alguns casos, negros, e pertencentes à zona leste da cidade de São Paulo.
O que Stuart Hall nos apresenta, confirmado por outros autores (BAUMAN, 2005), é
que a identidade nos dias de hoje não é mais vista como unificada, mas sim que está
sempre em processo. Mas, ainda que se concorde que a identidade individual seja um
processo, é possível identificar nos sujeitos de ambos os grupos teatrais fortes laços com
o seu território e com os demais cidadãos que o habitam. Logo, existe aí uma
permanência em sua concepção de mundo, o que reforça seus laços identitários.
Manuel Castells, no livro O poder da identidade (2001), aborda três formas de
identidades, nesse caso, focadas não nos indivíduos, mas nos modos como as
identidades têm forjado os coletivos. Para Castells, cada vez mais a vida é moldada
pelos conflitos da globalização e da identidade. Por isso mesmo, a “sociedade em rede”
tem levado aos “[...] processos de construção de identidade [...], induzindo assim novas
formas de transformação social” (2001: 27). Seu estudo centra-se nas identidades
legitimadoras, de resistência e de projeto.
A primeira identidade apresentada por Castells, a legitimadora, está ligada às
instituições dominantes “[...] e se aplica a diversas teorias dominantes do nacionalismo”
(2001: 24). Para Castells, a nação é uma comunidade imaginada que une pessoas em
torno de uma história e de um projeto político comum. Grande parte dos nacionalismos

ϰϰ
“Newcomb, ao conceituar papel e seu relacionamento com o status (usando a palavra ‘posição’),
indica que ‘as maneiras de se comportar que se esperam de qualquer indivíduo que ocupe certa posição
constituem o papel associado com aquela posição... papéis e papéis prescritos, portanto, não são conceitos
que se referem ao comportamento real de qualquer indivíduo considerado. O comportamento do papel,
por outro lado, refere-se ao comportamento real de indivíduos específicos, à medida que assumem os
papéis’. Dessa maneira, papel é compreendido como ‘comportamento do papel’.” (LAKATOS, 1982: 98).
ϴϰ


foi criado no século XIX, e no Brasil não foi diferente. A ideia de nação forjou-se
naquele período. Entretanto, foi no começo do século XX que se forjou, no caso
brasileiro, a ideia de uma nação fundada com base nas três raças: o índio, o branco e o
negro. Assim, “[...] o que era mestiço torna-se nacional” (ORTIZ, 1994: 41). Foi dessa
maneira, com o viés de dominação, que se tentou apagar as diferenças que existiam
nesse processo de encontro dos três povos, tomando sobretudo a cultura popular como
legitimadora dessa construção (ORTIZ, 1994). Dessa forma, com base nas teses de
Marilena Chauí (2003), criou-se um “discurso competente”, ideológico, para apagar as
diferenças. Afinal, “as ideias não são dominantes porque abarcam toda a sociedade, nem
porque a sociedade toda nela se reconheça, mas porque são ideias dos que exercem a
dominação” (CAHUÍ, 2003: 44). A cultura do povo ganhou o adjetivo de “popular”.
Mas como afirma Chauí:

Quando o “do povo” ruma para o “popular”, o adjetivo tende a


deslizar para outro que encobre efetivamente a contradição e a luta: o
adjetivo “nacional”, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida,
consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade
e que permita a esta última ver-se imaginariamente unificada (2003:
43).

A segunda forma de identidade discutida por Manuel Castells é a de resistência,


criada por atores em “[...] condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação” (2001: 24). Nesse campo estão os movimentos que lutam por melhores
condições de vida, que lutam contra os diversos preconceitos, pelo cumprimento dos
direitos humanos. Para além dos movimentos, encontram-se outros coletivos, que levam
a termo a formação de comunas ou de comunidades (CASTELLS, 2001:25) de
resistência que, em inúmeros casos, podem ser apenas defensivos, por estarem limitados
em suas forças.
Por fim, o terceiro ponto destacado por Manuel Castells é a identidade de
projeto, em que os atores sociais travam uma luta pela mudança da estrutura social. Essa
forma de identidade diz respeito, por exemplo, ao movimento feminista, que trava uma
disputa na contemporaneidade contra o patriarcado, buscando modificar a estrutura sob
a qual foi erigida a sociedade atual.
As identidades de resistência e de projeto podem ser relacionadas, ou seja, um
movimento pode começar como resistência e se encaminhar para um projeto que vise a
ϴϱ


modificar a sociedade. Outro aspecto relevante é que a identidade de resistência pode
ser exercida por coletivos menores. Nesse caso, podemos tomar como exemplo um
grupo teatral, que gera pequenas comunas. As comunas ou comunidades geradas por
pequenos coletivos também podem ser denominadas tribos (CASTELLS, 2001).
Para que não haja confusão entre papel social e identidade, Castells apresenta as
diferenças: “[...] identidades são fontes mais importantes de significado do que papéis,
por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. [...] identidades
organizam significados, enquanto papéis organizam funções” (2001: 23). Desse modo, o
autor deixa claro que a função de um papel social pode ser exercida sem que haja
significação para o ator social; no caso da identidade, ele é movido por outros
princípios, por objetivos ou sentimentos que lhe atribuem significados.
Como as pessoas vivem nos lugares, em constante interação, formam aí redes
sociais. Esse processo auxilia na formação da identidade pessoal, criando uma
identidade territorial. Para Castells, mesmo com o intenso processo de individualização
da sociedade em rede, as pessoas resistem e tendem “[...] a agrupar-se em organizações
comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última
análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal” (2001: 79). Esse processo
pode ser aplicado aos dois grupos teatrais aqui estudados, já que ambos constituíram-se
como grupos na zona leste da cidade de São Paulo e vários de seus integrantes nasceram
e continuam a viver na mesma região; logo seus laços com essa parte da cidade são
afetivos, existe um sentimento de pertencimento. A zona leste é, para os dois grupos,
uma comunidade de vida (nascimento) ou de destino (migração), e isso define ou, no
mínimo, auxilia na formação da identidade. Pode-se afirmar que os integrantes de
ambos os grupos são pessoas do lugar (BAUMAN, 2005).
Zigmunt Bauman, que prefere utilizar a palavra identidade quase sempre entre
aspas, afirma que o termo surgiu “como uma ficção” para homens e mulheres da
modernidade. “Nascida como ficção, a identidade precisava de muita coerção e
convencimento para se consolidar e se concretizar numa realidade” (BAUMAN, 2005:
26). Bauman está se referindo à criação dos Estados modernos, que usaram de muita
coerção para fazer da natividade e do nascimento “[...] o alicerce de sua própria
soberania” (2005: 25). Foram os Estados modernos que determinaram as fronteiras
entre nós e eles, daí decorrendo um dos elementos fundantes das identidades: a
diferença. Por isso, no início da organização dos trabalhadores, ainda no século XIX, a
ϴϲ


luta de classes deveria ser travada para além das fronteiras, constituindo uma
internacional. O que os unificava era a condição de classe, e não as fronteiras de um
país (BOGO, 2005).
Para Renato Ortiz, “[...] toda identidade é uma construção simbólica”; por isso
mesmo não existe “[...] uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades”
(1994: 8-9). Já Kathryn Woodward (2009) entende a identidade como relacional; por
isso sua construção é simbólica e social. A construção da identidade se dá na relação
com o outro, e, nessa relação, a diferença decorre de meios simbólicos. Mas a
identidade também diz respeito às condições sociais e materiais. Se um grupo é
marcado por outro, isto é, se tem força para apartar-se e impor sua cultura, o outro é
excluído de suas relações. Assim, os grupos se dividem em dois: nós e eles.

O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas


cada um deles é necessário para a construção e a manutenção das
identidades. A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a
práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído
e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas
classificações da diferença são “vividas” nas relações sociais
(WOODWARD, 2009: 14. Grifo da autora).

Assim, ainda consoante ao pensamento de Woodward, as narrativas de


telenovelas e da publicidade “[...] podem construir novas identidades [...]. A mídia nos
diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular – o adolescente ‘esperto’, o
trabalhador em ascensão ou a mãe sensível” (2009: 17-8). Os anúncios têm eficácia
quando as pessoas se identificam com eles. Dessa forma, ainda que a propaganda não
crie totalmente a identidade, fornece elementos de identificação e de diferenciação em
relação ao outro. Nessas práticas de significação estão envolvidas relações de “[...]
poder para definir quem é incluído e quem é excluído” (2009: 18). Portanto, os sistemas
simbólicos “[...] fornecem novas formas de se dar sentido à experiência das divisões e
desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e
estigmatizados” (2009: 19). Aqui podemos associar um trágico exemplo dos anos 1980,
quando diversos jovens pobres matavam e morriam por conta de um par de tênis Nike.
Havia uma necessidade de afirmação em uma sociedade que os excluíam. Assim, por
mais que buscassem essa afirmação por meio do “ter”, não se pode esquecer que esses
jovens não “eram”, pois o território é dotado de valor, e esse valor chega àquele que o
ϴϳ


habita. Assim, se a classe trabalhadora é distinta da burguesia, ser da periferia tem valor
diferente em relação ao centro.

As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença.


Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas
simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão
social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade
depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença
– a simbólica e a social – são estabelecidas, ao menos em parte, por
meio de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório aplica
um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja
capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois
grupos opostos – nós/eles (...); eu/outro (WOODWARD, 2009: 39-40.
Grifos da autora).

Desse modo, considerando o território também como um diferenciador, existe a


periferia e existe um centro, e quem vive nesses lugares conhece claramente a diferença
entre ambos, pois sentem na pele a falta e a ausência – falta de infraestrutura e ausência
do poder público. Além disso, sentem o preconceito. E tudo isso contribui para a
definição da identidade daqueles que lá vivem, que vão buscando, por meios táticos,
escapar dos problemas que enfrentam pelo fato de serem da periferia. Criam os
“pedaços dos colegas, dos chegados”; por isso, mesmo quando estão no centro, aqueles
que são do “pedaço” se reconhecem, “[...] venham de onde vierem, trazem na roupa, na
postura corporal, na linguagem, os sinais exteriores de seu pertencimento” (MAGNANI,
1998: 12). E nos “pedaços” estão, sobretudo, os trabalhadores. Por isso, na luta de
classes, se faz necessária a luta contra-hegemônica do simbólico, visando à
emancipação subjetiva dos trabalhadores.
Todos os grupos inseridos nessas comunidades ou “pedaços” podem vir a criar
comunas culturais, por meio de identidades de resistência, como aquelas apontadas por
Manuel Castells. Como afirma Castells, “[...] para os atores sociais excluídos [...], as
comunas culturais de cunho religioso, nacional ou territorial parecem ser a principal
alternativa para a construção de significados em nossa sociedade” (2001: 84). Desse
ponto de vista, pode-se afirmar que os grupos Pombas Urbanas e Buraco d`Oráculo
definiram suas identidades territoriais como identidades de resistência, formando um
sentimento de pertencimento à zona leste da cidade de São Paulo. Mesmo que as
identidades sejam múltiplas, esse não é o único traço a ligar esses dois coletivos. Há

ϴϴ


uma identidade de classe, na medida em que são também trabalhadores e se dispõem a
trocar experiências com outros trabalhadores, sem considerá-los meros “consumidores”
de arte.

2.4. O grupo teatral

Por que artistas fazedores de teatro se juntam em grupo para realizar suas
atividades? Seja por desconhecimento, por ausência documental ou por idiossincrasia
decorrente da natureza classista daqueles que escrevem a “história do teatro” e,
propositalmente, deixam de lado a história dos artistas populares, seja por questões
contingenciais ou decorrente de arbítrio, os artistas populares, sempre se juntaram em
bandos, em grupos. Em sentido popular, andar em grupo ou fazer parte de um grupo é
uma tática de sobrevivência, pois aí se cria uma rede de solidariedade, na qual um
membro tende a fortalecer o outro.
Iná Camargo Costa, alinhada a um pensamento em arte que discute os
pressupostos sociais e estéticos, afirma que a raiz dos grupos teatrais modernos estaria
em André Antoine e as estratégias, no Teatro Livre, formado na estética naturalista. No
Brasil, o Teatro de Arena, segundo a autora “[...] um dos raros casos de nossa
experiência cultural em que as ideias estavam no lugar”45, Iná Camargo Costa coloca o
Teatro de Arena como nosso marco zero do teatro de grupo, já que nele não havia um
investidor, como no Teatro Brasileiro de Comédia. Além disso, a realidade brasileira
começou a adentrar a cena, o que gerou contradições no seio daquele coletivo, pois
propostas mais radicais iriam se destacar no grupo, dando origem aos Centros Populares
de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE): “Por isso podemos dizer
que o Arena é nosso marco zero e que o CPC da UNE é o nosso limite”46.
Luiz Carlos Moreira, diretor do Grupo Engenho – coletivo que surgiu em 1979
e, desde os anos 1990, dirigiu-se à periferia para realizar seus projetos –, no Café
Teatral,47 afirmou que a organização de fazedores de teatro em grupo “[...] não é uma


45
COSTA, Iná Camargo. O teatro de grupo e alguns antepassados. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/pdfs/teatro%20de%20grupo/ina_camargo.pdf. Consultado em
16/05/2011.
46
Idem.
47
O Café Teatral aqui citado ocorreu em 01/09/2010 na Casa d`Oráculo, sede do Buraco
d`Oráculo, grupo que realiza essa atividade desde 2005. O Café Teatral consiste em um debate com um
convidado que discute determinado tema, via de regra, relacionado ao teatro, em volta de uma mesa de
ϴϵ


opção, mas sim falta de opção”, compreendendo que os artistas passaram a se reunir em
grupo exatamente porque não havia empresários dispostos a correr os riscos nesse meio,
pois não há mercado para o teatro. E já que não existe mercado, a única possibilidade de
produzir é em grupo. Ao discorrer sobre o processo de formação dos grupos na cidade
de São Paulo, afirmou que, entre os grupos surgidos nos anos 1970 e 1980, houve a
tentativa de “empresariar” suas produções por meio de empréstimos ou cotizações, isto
é, por meio das cotas de capital, a parte de uma sociedade, o valor líquido com o qual
cada um dos sócios inicia uma empresa. A busca pela profissionalização do trabalho em
grupo, bem como pela autonomia, levou à criação, na cidade de São Paulo, por
exemplo, da Cooperativa Paulista de Teatro48. Dessa forma, os grupos poderiam
produzir seus espetáculos e dispô-los no “mercado”. Mas essa tentativa de criar o tal
mercado nunca deu muito certo e, portanto, o profissional naufragou. Segundo Moreira:
“Profissional é aquele que vende seu trabalho para um produtor, empresário, patrão. Eu
só me defino e existo como profissional na relação com meu patrão. Se ele desaparecer,
eu desapareço” (2010: 34). Desse ponto de vista, em um grupo, não há o profissional, já
que não há patrão, pois não existe mercado; mesmo assim, existem as pessoas que se
juntam em torno do objetivo de criar espetáculos, de fazer teatro.
Aliado ao desejo de fazer teatro, desde o Teatro de Arena, cresceu entre os
artistas a necessidade de falar da realidade brasileira em cena, nasceu “[...] o desejo de
se expressar e não apenas de atuar” (MOREIRA, 2010: 34). Ainda que várias dessas
expressões tenham sido apropriadas pela indústria cultural de massa, como não deixa
escapar o próprio Moreira, ao afirmar que algumas experiências forjadas no Arena
foram parar na televisão, em seriados ou especiais, como o A grande família, de
Oduvaldo Vianna Filho. Embora, naquela época, houvesse uma preocupação política


café. No projeto Narrativas de trabalho, voltado à precarização do trabalho, Luis Carlos Moreira foi
chamado para discutir essa situação a que estão submetidos os grupos teatrais paulistanos e, por extensão,
todo grupo teatral brasileiro.
48
Alexandre Mate, no livro Trinta anos da Cooperativa Paulista de Teatro: uma história de tantos
(ou mais quantos, sempre juntos) trabalhadores fazedores de teatro, escreve sobre as contendas e as
alegrias decorrentes da manutenção de uma cooperativa de artistas: “A história da Cooperativa Paulista de
Teatro – uma cooperativa de produção de trabalho que luta até hoje pela regulamentação de um ramo de
cooperativismo de cultura – caracteriza-se em uma trajetória repleta de contendas, de desentendimentos,
de pertencimentos, de fases distintas e articuladas, de conquistas. [...] Funcionários, diretores, presidentes,
associados, todos juntos lutando pela dignidade do trabalhador ligado às chamadas artes da representação,
agrupado pelos princípios do cooperativismo. Trabalhador do teatro em situação de desemprego
endêmico. Noites não dormidas, decorrentes de tantas preocupações com o tudo faltando ou com o
gigantismo da entidade. Noites maravilhosamente dormidas pela sensação da conquista conjunta” (2009:
17. Grifo nosso).
ϵϬ


por parte de seu criador, isso levou, inclusive, à proibição de alguns episódios por parte
da censura imposta pela ditadura civil-militar.
Portanto, ao se pensar acerca do grupo teatral, organizado de forma artesanal,
vê-se que ele não cabe no sistema capitalista da forma como está posto; por isso a
dificuldade de diálogo com os gestores públicos. Por outro lado, os grupos se veem
obrigados a se enquadrar em outras organizações a fim de participar do sistema como
ele está posto, gerando certa esquizofrenia interna. Organizam-se de forma diferenciada,
mas na prática, e por uma questão de sobrevivência, se veem obrigados a driblarem o
que são de fato. Ou seja, na prática, o grupo é um coletivo composto de diversos
sujeitos que, em certa medida, abrem mão da individualidade em nome da identidade
coletiva; atuam de forma horizontal, não hierarquizada; dominam ou participam de todo
o processo de produção. No entanto, para a sociedade, especialmente para os gestores
públicos, só são reconhecidos como pessoa jurídica que, na atualidade, demanda uma
organização hierarquizada. Assim, criam empresas para poderem participar da
sociedade.
Mas a questão continua: afinal, o que é um grupo teatral? Um grupo teatral é a
união de pessoas em torno de um projeto, de um objetivo comum e, de modo geral, no
ofício aqui apresentado, com organização horizontal. Essa forma de organização
ampliou-se nos anos 1990, época em que surgiram os dois grupos aqui pesquisados.
Vale observar que, embora o grupo Pombas Urbanas tenha sido criado em 1989, sua
estruturação e definição como grupo teatral ocorreu nos anos 1990.
Se o grupo se organiza em torno de uma identidade, de objetivos comuns,
levando para a cena sua realidade e se, em um primeiro momento, a união de pessoas
deu-se na tentativa de produzir e adentrar o “mercado”, é preciso não esquecer também
de outros elementos que nortearam o surgimento dos grupos. O primeiro deles é o
próprio combate ao mercado, uma tentativa de dizer não à “privatização da cultura”
(WU, 2006) e do ser humano. Outro ponto que os grupos passaram a combater foi a
hierarquização relativa ao processo de criação, particularmente contra a hegemonia do
diretor e do autor, de modo que todos pudessem fazer parte do processo de criação e
que nenhuma das partes fosse mais importante que outra, mas sim que caminhassem
juntas com o objetivo de expressar o que coletivamente havia sido definido. É uma
forma de organização, portanto, que exige solidariedade entre seus integrantes. E como
afirma Eliane Ganev:
ϵϭ


[...] a solidariedade é atributo indispensável na perspectiva da
superação da alienação – compreendida como possibilidade de
reapropriação, pelos sujeitos da globalização, da sua riqueza material
e espiritual, ou ainda, como possibilidade de humanização dos
processos pelos quais homens e mulheres objetivam a si mesmos,
corporificando no tempo e no espaço a sua riqueza: humanização dos
sentidos e dos modos de produção social da vida (1999: 33).

Considerando os aspectos já descritos, se o grupo teatral representa, por um lado,


a precarização de trabalho, por outro, o fato de seus integrantes serem donos da própria
mão de obra e estarem organizados horizontalmente, baseados em forte solidariedade
interna, tende a levá-los à desalienação49; que se reflete também em suas criações; estas,
por sua vez, ao se apresentarem como elemento de crítica à sociedade, desnaturalizando
a realidade, tendem a chacoalhar os espectadores em sua visão de mundo.
Assim, do combate à hierarquização e ao mercado, sem deixar de lado a
necessidade de expressar sua realidade, surgem os métodos de criação, primeiramente
coletivos e, depois, o que passou a ser conhecido como processo colaborativo. Sem
pretensão de esgotamento do assunto, passemos à discussão da criação de forma
coletiva ou colaboracionista.
Segundo Luciana Magiolo (2006), os processos de criação coletiva são
desencadeados no fim da década de 1950. Esses processos surgiram com o objetivo de
eliminar as hierarquias nos grupos e do desejo de refletir sobre a realidade, bem como
da vontade de participar das decisões políticas. A criação coletiva foi se aperfeiçoando
nos fóruns de ideias, isto é, em debates que os grupos realizavam com o público, entre
grupos e com estudiosos. Segundo Magiolo, Enrique Buenaventura, do Teatro
Experimental de Cali (Colômbia), é uma das pessoas que sistematizaram as propostas
que se irradiaram pela América do Sul. Para ilustrar um pouco essas proposições, vale
destacar a experiência do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV), grupo paulistano
que nasceu em 1966 e que, desde a década de 1970, realiza seus trabalhos de forma
coletiva. Para César Vieira, no livro Em busca de um teatro popular: as experiências do
Teatro União e Olho Vivo (2007), nesse tipo de proposição quem detém a decisão é
sempre o coletivo, e no caso do TUOV todas as decisões são tomadas por consenso. No
processo coletivo, existem as comissões. César Vieira, em organograma do citado livro
(2007: 118), apresenta quatro comissões: artística, administrativa, espetáculos e cultural,

49
Agradeço ao companheiro Luis Carlos Checchia pela ideia e pelas conversas a esse respeito, pois
elas iluminaram o caminho aqui percorrido.
ϵϮ


sendo que cada uma delas se subdivide em cinco comissões. Tomemos aqui, como
exemplo, o processo de criação de um espetáculo, composto de dez etapas: 1) é eleito
um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem (bumba-meu-boi, marujada
etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base nos dados coletados, organizam as
fichas dramáticas com sugestões de conflitos e de personagens; 5) criação do quadro
dramático ou do roteiro geral, que será entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação
do texto-base; 7) submissão do texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão
cortes, proporão modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do
espetáculo; 9) apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a
possíveis propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são
acrescentadas. Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente.
Após a realização da pesquisa, fica difícil estabelecer diferenças entre o processo
dito coletivo e o colaborativo, a não ser quanto ao surgimento do termo historicamente.
O vocábulo colaboracionista surgiu nos anos 1990, divulgado especialmente pelo Teatro
da Vertigem (São Paulo). Segundo Stela Regina Fischer (2003: 43), nem mesmo o
grupo sabe muito bem a origem do termo. Ainda de acordo com Fischer, foi em
decorrência de certo preconceito em relação ao teatro coletivo desenvolvido nos anos
1970, sob a pecha de amador e anarquista, que fez surgir o termo colaborativo. Se na
prática do teatro coletivo aparentemente não havia sistematização (o que pode ser
questionado pela prática do TUOV e do Teatro Experimental de Cali), o teatro
colaboracionista, por surgir em grupos ligados a universidades, pretendeu se diferenciar
do anterior, ao se apresentar como grupo de pesquisas estéticas e de rigor técnico.
Adélia M. Nicolete afirma que há outros termos na prática contemporânea, mas que
todos apontam para um resultado:

Processo colaborativo, participativo; método coletivo, montagem


cooperativa ou interativa. São muitas as maneiras com que se vem
tentando nomear um processo de construção do espetáculo
contemporâneo que se caracteriza, basicamente, pela equiparação das
responsabilidades criativas (2005: 10).

Diante do exposto, torna-se patente que os grupos, nesse processo histórico,


compreenderam que sua mão de obra e o que produzem lhes pertencem, logo se
conscientizaram também do sistema no qual estão inseridos. Assim, modificaram o seu

ϵϯ


modo de produção e se organizaram em coletivos maiores, isto é, constituíram
movimentos políticos para lutar por políticas públicas que contemplassem a categoria
teatral. E a década de 1990 foi fértil nesse sentido, pois nesse período surgiram o
Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo, no início da década; o Movimento Arte
Contra a Barbárie (que apesar de estar ligado à cidade de São Paulo, ganhou dimensão
nacional ao inspirar outros movimentos); o Movimento Redemoinho e a Rede Brasileira
de Teatro de Rua. Por um lado, se em dado momento da história o chão da fábrica
alienou os trabalhadores, por outro, e de modo dialético, juntou-os, possibilitando sua
organização política, levando-os ao processo de conscientização e de luta; o mesmo é
possível afirmar sobre os trabalhadores do teatro: a ausência de mercado os levou a se
juntarem em grupos, permitindo que refizessem seus processos de criação, bem como
avançassem na luta política.
É possível afirmar, portanto, que o processo em grupo pode favorecer a
conscientização das pessoas que o constitui, seja como sujeitos inseridos em
determinada sociedade, seja como indivíduos pertencentes a uma classe. Afirmamos
que pode, pois o processo não é categórico, mas sim dialético. Como em um grupo
teatral todos são donos da própria mão de obra e participam do processo do início ao
fim, esse caminho não os aparta daquilo que constroem: suas obras. Em tese, esse
processo leva-os à desalienação artística e, consequentemente, à desalienação social,
posto o teatro ser uma atividade social. No entanto, é importante frisar que no sistema
capitalista a desalienação nunca será plena (MARX, 1983).

2.4.1 Alienação e teatro

Alienação em latim se diz alienus (outro), logo, é tudo aquilo que está alheio,
apartado de nós, ainda que tenha sido criado pelos indivíduos.

A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem


alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse
por si mesma e em si mesma [...], não se reconhecem na obra que
criaram, fazendo-a um ser-outro separado dos homens, superior a eles
e com poder sobre eles (CHAUÍ, 1995: 170).

ϵϰ


Para Marilena Chauí, em Convite à filosofia (1995: 172-3), há três formas de
alienação na sociedade moderna: a) alienação social, “[...] na qual os humanos não se
reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas”, aceitando-as
passivamente ou se rebelando individualmente contra elas, como se fosse possível
vencer “[...] a realidade que os condiciona”. Em ambos os casos, a sociedade é o outro,
apartada dos sujeitos; b) alienação econômica, na qual aqueles que produzem – os
trabalhadores – “[...] não se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos
objetos produzidos por seu trabalho”, observando-se aí dupla alienação, já que o próprio
trabalhador torna-se mercadoria ao vender sua força de trabalho, sem perceber que,
nesse ato, torna-se coisificado e, depois, o trabalhador-mercadoria produzirá outras
mercadorias com as quais passam a se relacionar cotidianamente, esquecendo-se que em
cada mercadoria foi dispendido trabalho humano. Desse modo, as mercadorias ganham
autonomia, “[...] deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser
vistas como bens em si e por si mesmas”; c) e, por fim, a alienação intelectual, fruto da
separação do trabalho material e do trabalho intelectual. Daí decorre o preconceito de
que o trabalho manual não requer conhecimento, mas tão somente habilidade manual. O
intelectual, por sua vez, pode vir a mergulhar em tripla alienação, pois muitas vezes ele
se esquece que suas ideias decorrem da classe à qual pertence. De igual maneira, ele
ignora que as ideias que produzem visam explicar a realidade na qual ele próprio está
inserido, esquecendo-se de que elas não estão gravadas nessa realidade, como se ele
apenas as descobrisse, acreditando que as ideias existem por si mesmas. “As ideias se
tornam separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: tornam-se um
outro” (CHAUÍ, 1995: 173. Grifo da autora.).
Com base na observação desses pontos, o grupo teatral servirá de referência para
a discussão da alienação econômica e da alienação intelectual observada por Marilena
Chauí, buscando desvelar de que maneira os coletivos teatrais, por estarem organizados
em grupo, teriam mais facilidade de se desalienar.
Ainda que não se possa generalizar, na forma de grupo aqui entendida, não há
venda de força de trabalho entre seus integrantes50, não há patrão, já que se constitui a
partir de indivíduos imbuídos de um desejo de se expressar artisticamente. Como


50
No entanto, em certas condições, porque vivemos em uma sociedade capitalista, nada impede
que o grupo, ao necessitar de determinado serviço, contrate um profissional para um trabalho específico,
transformando-se, assim, em “patrão”. Não obstante, entre as pessoas que compõem o coletivo não há
venda da força de trabalho.
ϵϱ


produtores, os artistas não se coisificam, isto é, não vendem sua força de trabalho nem
se apartam daquilo que produzem, a saber, seus espetáculos. Esse primeiro processo de
desalienação é de fácil compreensão, já que a obra artística tem valor de uso, não de
troca; o espetáculo até pode ser inserido no “mercado” pois, no capitalismo, tudo tende
a virar mercadoria, e, desde os anos 1980, o capital tem investido suas garras de forma
perversa no campo das artes (Cf. WU 2006). No entanto, as obras artísticas, ou parte
delas, visam alimentar “os valores espirituais do homem [que] são, na verdade, aspectos
da plena realização de sua personalidade como um ser natural” (MÉSZÁROS,
2009:175). Elas visam à formação dos sentidos, isto é, têm por objetivo humanizar o
homem, pois não basta nascermos entre os seres humanos; é necessário um processo de
humanização, como afirmou Karl Marx: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho
de toda a história do mundo até aqui” (apud MÉSZÁROS, 2009: 182). Dessa forma, as
obras artísticas só têm sentido para o homem como valor de uso. Ainda que, em algum
momento, a sociedade capitalista solicite que as obras estabeleçam uma relação de troca
– caso em que os artistas são contratados para uma apresentação –, mesmo assim, nesse
momento, os produtores não estão/são apartados da obra teatral, e o espetáculo não
deixa de ser do coletivo teatral, pois seus criadores são produtores e “produto" ao
mesmo tempo. Dessa maneira, a obra jamais ganha autonomia de seus produtores em
forma de mercadoria. Ainda que ela, ao ser apresentada e fruída pelo público, seja
autônoma, ganhando diversos significados para aqueles que a fruíram.
Poderiam nos questionar se, nesse momento, ao venderem seus espetáculos –
posto que os atores são os criadores e, em certa medida, a obra, pois não se pode
realizar um espetáculo teatral sem eles – não estariam vendendo sua força de trabalho?
Segundo Karl Marx, em Salário, preço e lucro (1978), a venda da força de trabalho
ocorreria no sistema assalariado. Marx afirma ainda que: “A força de trabalho de um
homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva” (1978: 81). É o
espetáculo teatral, obra/produto do grupo, que vai ao mercado, pois ele, em tese, é fruto
de criação coletiva. Portanto, não há venda de força de trabalho, mas tão somente
negociação com um produto ou obra artística51, apenas por determinado tempo: a
duração do espetáculo. Essa troca no “mercado” traduz-se em lucro, já que o grupo


51
Não é o caso de discutir aqui que a arte não é mercadoria, pois o exemplo serve apenas para o
entendimento das relações com as quais os grupos lidam. E estamos entendendo produto como obra dos
homens; logo o espetáculo é um produto criado pelo grupo de artistas nele envolvidos. Desse ponto de
vista, toda obra teatral é coletiva.
ϵϲ


teatral permanece como proprietário da obra. Vale salientar que, nessa perspectiva, o
teatro em grupo é um trabalho improdutivo. Marx, ao tomar as proposições de Adam
Smith, define trabalho produtivo como aquele que se troca por capital, “[...] para o que é
preciso que os meios de produção do trabalho e o valor em geral, dinheiro ou
mercadoria, se convertam antes de mais nada em capital e o trabalho em trabalho
assalariado, na acepção científica da palavra” (2010: 151). Essa denominação de
trabalho produtivo ou improdutivo não decorre das características do trabalho, “[...] mas
das formas sociais específicas, das relações sociais de produção no interior das quais o
trabalho se realiza” (MARX, 2010: 151). No entanto, isso não significa que a produção
teatral não possa se tornar um trabalho produtivo:

Um ator, inclusive um palhaço, pode ser, portanto, um trabalhador


produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (de um empresário),
ao qual restitui uma quantidade maior de trabalho do que a que recebe
dele sob a forma de salário, enquanto um alfaiate que vai à casa do
capitalista para arranjar-lhe as calças, criando não mais que um valor
de uso, não é, pois, mais que um trabalhador improdutivo. O trabalho
do ator se troca por capital, o do alfaiate, por lucro. O primeiro cria
mais-valia; o segundo apenas consome lucro (MARX, 2010: 151).

Assim, para Marx, a distinção de trabalho produtivo ou improdutivo se faz “[...]


a partir do ponto de vista do capitalista e não do ponto de vista do trabalhador” (2010:
151. Grifo do autor). O que se percebe é que um mesmo trabalho pode vir a ser
produtivo ou improdutivo. Desse ponto de vista, a produção de um grupo teatral só faz
sentido como valor de uso.
Com relação à alienação intelectual, isto é, a divisão entre o fazer e o pensar,
ainda que alguns grupos mantenham certa divisão entre as funções de atores, diretores,
autores, cada vez mais essas funções se misturam, todos participam da construção da
obra final. E como afirma Marx: “A divisão do trabalho somente se torna uma
verdadeira divisão quando se separam o trabalho físico e o trabalho intelectual” (2010:
138). No entanto, sabe-se que ao longo do processo de qualquer pesquisa ou de criação
de espetáculos em grupo, pensar e fazer se confundem. Há um movimento dialético da
prática para a reflexão, retornando ao fazer em saltos qualitativos. No processo de
criação de um espetáculo instaura-se, portanto, a práxis.

ϵϳ


Por outro lado, no campo intelectual propriamente dito – acadêmicos,
pensadores e outros tantos profissionais que escrevem sobre o trabalho dos grupos ou
registram a história do teatro –, salvo raríssimas exceções, quase não se encontram
publicações voltadas à história do teatro dos grupos populares, bem como de suas
práticas, pois, ao escreverem do ponto de vista da classe dominante, os intelectuais
retiram o que a essa classe não interessa, restando apenas, como nomeou Bertolt Brecht
(2005), um teatro culinário. Em virtude disso, muitos desses intelectuais continuam
alienados. Se “a cena se dividiu”, sobretudo com a ascensão da burguesia, como afirma
Gerd A. Bornheim, travou-se uma luta para reconduzir o teatro ao seu lugar de origem:

Esse processo de marginalização como que condena os teatristas a


uma luta que postula a reinvenção do próprio sentido do teatro, e a
luta solerte, que se prolonga faz já quase um século. Entre nós
também, são as mesmas lutas que eclodem, embora com o atraso de
praxe e assimiladas, nos primeiros anos após a Segunda Guerra, as
lições que nos trouxeram diretores de cena europeus, lutas motivadas
pelas mesmas razões: a realização de um teatro nosso, de cunho
eminentemente popular (1983:11).

Essas duas formas de alienação e seus respectivos processos de desalienação


conduzem os indivíduos e, consequentemente, os grupos, ao processo de desalienação
social, combatendo a primeira forma de alienação. De que forma? A compreensão da
opressão imposta pelo sistema capitalista pode levar ao engajamento social e político,
juntando-os em movimentos políticos e levando-os a uma consciência de classe.
Entretanto, todo esse processo não ocorre de forma rápida, bem como não é suficiente
pertencer a um grupo teatral para que ele ocorra, pois, como afirma Mauro Luis Iasi:

A consciência de classe não está apenas na forma coletiva enquanto


produto ou em suas representações institucionais acabadas, assim
como não pode se reduzir a manifestações individuais que compõem
estas formas coletivas, mas no movimento em que umas se
transformam nas outras (2008: 74).

O processo é dialético, mas a história dos grupos aqui estudada revela


possibilidades. Para Walter Benjamin, em O autor como produtor (1996), o escritor
progressista deve lutar ao lado do proletariado, orientando-se em função daquilo que
seja útil para essa classe. Desse ponto de vista, pode-se afirmar que um teatro que
ϵϴ


escolhe a rua como palco deve fazer seu recorte de classe, e o Pombas Urbanas e o
Buraco d`Oráculo fizeram a escolha dos trabalhadores, na medida em que escolheram
um espaço cênico desprivilegiado pela burguesia. Benjamin, no mesmo ensaio, lembra
o teatro épico brechtiano como um avanço, na medida em que transformou o confronto
com a arte burguesa em coisa sua, isto é, em algo que o outro lado recusa. Nessa
perspectiva, o teatro de rua é avançadíssimo, pois, ao longo da história, sempre esteve
ligado aos populares. É importante frisar que não se está propondo aqui uma
desalienação transcendental por meio do simbólico (BOLOGNESI, 1996), haja vista
que o processo de desalienação aqui discutido se dá em relação àqueles que praticam o
teatro e não em quem recebe, ainda que estes, por meio das obras, possam estranhar um
mundo naturalizado.
Em relação à consciência de classe, Mauro Iasi estabelece três processos,
afirmando que eles ocorrem de forma dialética. Cada momento contém elementos para
sua superação, pois suas formas apresentam contradições que, “[...] ao amadurecerem,
remetem à consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento
se expressa num processo que contém saltos e recuos” (2007: 12). Segundo o autor,
fundamentado nas teses de Karl Marx, a consciência de classe “[...] não se contrapõe à
consciência individual, mas forma uma unidade” (2007:13), na medida em que as
condições particulares sintetizadas levam a uma consciência de classe. Os três processos
de consciência são os seguintes: consciência de si, consciência em si e consciência para
si ou, dito de outra forma, consciência individual, consciência de grupo e consciência
revolucionária.
A primeira forma de consciência é formada a partir do próprio meio; são as
representações que as pessoas têm da vida e de seus atos. Trata-se da inserção no
mundo como pessoa. Apesar de ser uma representação mental do mundo objetivo, é
subjetiva. Sendo assim, é “[...] uma realidade externa que se interioriza” (IASI, 2007:
14). É, portanto, especialmente adquirida no seio familiar. Os sujeitos nascem no
mundo da cultura (BAKHTIN, 2009), isto é, num mundo já feito. Na relação social, o
sujeito internaliza a parte e generaliza-a, de maneira a perceber o todo (mundo) pela
parte (sua vida). “Evidente que aquilo que fica interiorizado não são as relações em si,
mas seus valores, normas, padrões de conduta e concepções” (IASI, 2007: 18). Dessa
forma, o mundo se “naturaliza” e o sujeito forma o senso comum e com ele se
conforma. Mesmo quando toma contato com outras instituições como a escola, o
ϵϵ


serviço militar ou o trabalho, tão diferentes da família (formadora da “personalidade”),
instituições por meio das quais os sujeitos podem vir a adotar um papel ativo, menos
dependente, já que distintas da família, nada garante que o potencial dos sujeitos se
manifeste, podendo tão somente “[...] reforçar as bases lançadas na família” (IASI,
2007: 19). Assim, os cidadãos tornam-se disciplinados, e essa consciência passa a ser
uma forma de alienação, visto que se toma a parte pelo todo. “A ideologia encontra na
primeira forma de consciência uma base favorável para sua aceitação. As relações de
trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de sua
aceitabilidade” (IASI, 2007: 22). O autor afirma ainda que essa alienação não se dá
porque o sujeito está desvinculado da realidade, mas porque a naturaliza, sua visão de
mundo está descontextualizada de sua história.
Claro que podem surgir contradições, o que permitirá que os sujeitos avancem,
pois a família mediatiza aquilo que foi determinado; no entanto, as representações
mentais das forças produtivas são historicamente determinadas e, como as forças
produtivas, transformam-se, geram contradições.

Eis aqui uma contradição insolúvel capitalista: enquanto as forças


produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais
de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem
permanecer estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das
forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as relações
interiorizadas como ideologia e a forma concreta como se efetivam na
realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica (IASI,
2007: 27).

Se há novas relações com o mesmo potencial de interiorização, gerando outros


valores, isso se reflete em condutas variadas, em novos comportamentos. Dessa forma,
os indivíduos buscarão compreender o novo, a despeito dos próprios valores
ultrapassados e arraigados. Surge daí um conflito interno e externo, levando-o a um
estado de revolta que, mesmo assim, ainda não é a sua superação. Como afirma Mauro
Luis Iasi: “As relações podem não ser mais idealizadas; são agora vividas como injustas
e existe a disposição de não se submeter; no entanto, ainda aparecem com
inevitabilidade: ‘sempre foi assim’” (2007: 28). Dessa forma, só em determinadas
condições a revolta pode dar um salto qualitativo e passar para um novo estágio de
consciência. Para tanto, existe uma precondição: o grupo.

ϭϬϬ


Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta,
mas em certas circunstâncias pode ver em outras pessoas sua própria
contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da
primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de
qualidade (IASI, 2007: 29).

Chega-se, assim, à segunda forma de consciência: consciência de si ou


consciência reivindicatória. Ao se perceber parte de um grupo, que luta contra as
mesmas injustiças, o indivíduo começa a vislumbrar mudanças. As lutas sindicais, os
movimentos sociais e culturais são estágios dessa consciência. “O que há de comum
nesses casos particulares é a percepção dos vínculos e da identidade do grupo e seus
interesses próprios, que conflitam com os grupos que lhe são opostos” (IASI, 2007: 30).
Ainda que essa forma de consciência continue a tomar como base as relações imediatas,
já não é mais do ponto de vista do indivíduo, mas sim do grupo, da categoria, podendo,
portanto, evoluir para uma consciência de classe.
Quais são as contradições apresentadas nesse estágio ou nesse processo de
consciência? É evidente que os grupos, as categorias, pela luta, negam as formas de
produção capitalista, e isto pode levar à superação. Entretanto, mesmo negando,
continuam a produzir dentro de um sistema cujas normas continuam as mesmas. Ainda
que avancem em suas conquistas, mesmo que deem diversos passos, são apenas
pequenas reformas. Tome-se como exemplo uma greve de trabalhadores de determinada
categoria, que se organizam e lutam porque tomaram consciência da exploração
imposta. Desse ponto de vista, esses trabalhadores estão se afirmando como classe. Mas
vale destacar que, mesmo que se organizem e saiam vitoriosos dessa luta, os
trabalhadores retomarão seus afazeres em igual modelo de produção. Dessa forma,

[...] o proletário, ao se assumir como classe, afirma a existência do


próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por
ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do
que recebia antes. A consciência ainda reproduz o mecanismo pelo
qual a satisfação do desejo cabe ao outro. Agora, ela manifesta o
inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de um
problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica de
alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas
(IASI, 2007: 31).

ϭϬϭ


Ao considerar as ideias do teatro épico brechtiano, Walter Benjamin, em O autor
como produtor (1996), esclarece que a passagem do senso comum para a consciência
crítica, segunda forma de consciência, pode levar os trabalhadores à falsa ideia de que
dominam as máquinas (estrutura), quando, na verdade, são dominados por ela. Por isso,
na concepção de Benjamin, ao escritor, por exemplo, não cabe apenas escrever, ainda
que seja de forma combativa:

Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O


caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar,
ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo
lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito.
Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à
esfera de produção, ou seja, quanto maior sua capacidade de
transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. (1996: 131-
2. Grifo do autor).

Para tanto, está implícita uma questão pedagógica, ou seja, não se trata apenas
da conscientização individual e do grupo, é preciso engajar outros trabalhadores nesse
processo.
Não se pretende aqui diminuir a força das lutas travadas em greves,
fundamentais para a transformação da consciência. Mas é importante deixar claro que
essas lutas melhoram a vida dos trabalhadores, mas não há transformação do ponto de
vista dos meios de produção e do sistema como um todo. Ainda que os trabalhadores
estejam se afirmando como classe, é urgente que se tornem conscientes de todo o
processo, como afirma Iasi: “Conceber-se não apenas como um grupo particular com
interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante da tarefa
histórica da superação dessa ordem” (2007: 32). Continua o autor:

A verdadeira consciência de classe é fruto dessa dupla negação; num


primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua
posição de classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe,
assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o
capital (IASI, 2007: 32).

Afirma-se, pelo exposto, que os fazedores de teatro, ao se organizarem em


grupo, podem chegar a uma consciência de classe, e acredita-se que muitos chegaram a
esse estágio no processo de conscientização. A prova dessa consciência é que os grupos
ϭϬϮ


teatrais têm se juntado em movimentos reivindicatórios, cobrando do Estado políticas
públicas de cultura, de maneira a criarem melhores condições para si e para que sua arte
chegue aos demais cidadãos e tem também se juntado aos movimentos sócias,
reforçando suas lutas. Por outro lado, percebe-se que ficar apenas nesse estágio (mesmo
sendo fundamental para a luta) não é suficiente para a transformação do sistema no qual
estão inseridos. Claro que essa transformação não cabe ao teatro, embora, como
elemento de disputa do simbólico, tenha papel importante na luta junto aos demais
trabalhadores. Como afirma Rodrigo Dantas: “Entramos aqui nos subterrâneos da luta
de classes, em que a luta pelo domínio da subjetividade antagônica do trabalho se
materializa na luta pelo domínio do inconsciente, do imaginário, da própria produção
desejante do proletariado” (2008: 96).
Quais são os riscos inerentes ao segundo estágio de consciência?
Corporativismo, burocratização ou aristocratização operária – termo utilizado
inicialmente para demonstrar o enriquecimento dos trabalhadores ingleses na época
vitoriana, fazendo com que eles arrefecessem os ânimos na revolução. Depois, o termo
foi generalizado para toda ascensão material por parte de alguns trabalhadores que,
mesmo “enriquecendo”, não deixam sua condição de trabalhador, embora não se
reconheça mais entre os seus (GUIMARÃES; AGIER; CASTRO, 1995). Dessa forma,
a consciência pode levar a uma passividade diante de fatos incontroláveis, podendo,
inclusive regredir, pois como alerta Iasi: “O processo de consciência não é linear, pode
e muitas vezes regride a etapas anteriores” (2007: 33).
Outro ponto a destacar: “O amadurecimento subjetivo da consciência de classe
revolucionária se dá de forma desigual, depende de fatores ligados à vida e à percepção
singular de cada indivíduo” (IASI, 2007: 35). Por isso mesmo pode haver dissonâncias e
disparidades entre alguns indivíduos e sua classe, entre indivíduos e seu grupo. Isto é, o
indivíduo pode atingir a consciência revolucionária até mesmo em um grupo alienado.
“Por isso, o indivíduo que se torna consciente é, antes de tudo, um novo indivíduo em
conflito” (IASI: 2007: 36).

A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa parecer, se


autoproclama a sociedade da harmonia. O indivíduo em conflito é
isolado como se não expressasse uma contradição, mas fosse ele
mesmo a contradição, mais que isso, o culpado por sua existência.

ϭϬϯ


Enquanto isso, o alienado recebe o título de “normal” (IASI: 2007:
37).

É dessa forma que o indivíduo em conflito, ao verificar a ausência de elementos


revolucionários junto à sua classe, pode sofrer “depressão”, como afirma Iasi, ou
regredir até mesmo ao estágio de revolta.
Quais as contribuições de um coletivo teatral? Se o compartilhamento de todo o
processo criativo, bem como de toda a sua organização interna, pode levar os seus
criadores à desalienação, suas obras, seus espetáculos podem suscitar no público o
interesse pela reflexão sobre a realidade na qual estão inseridos. Para diversos autores, a
arte é uma forma de conhecimento do mundo (FISCHER, 1973; VÁZQUEZ, 1978;
BRECHT, 2005; KONDER, 2009). Isto posto, sua importância aumenta ao se colocar
no espaço público aberto, sobretudo com uma abordagem estética realista, em que a
realidade do homem é o ponto de partida de sua criação, sabendo que ela “[...] não é um
dado bruto ou um produto acabado e sim um movimento” (KONDER, 2009: 162); por
outro lado, é importante saber que o conhecimento proporcionado pela arte não é um
conhecimento cientifico.
Quanto ao significado de realismo, podemos tomar os pressupostos de Bertolt
Brecht, que acredita que uma arte realista deve:

• apresentar o sistema da causalidade social;


• escrever do ponto de vista da classe que propõe as soluções mais
amplas para as dificuldades mais urgentes em que se encontra a
sociedade humana;
• destacar, em qualquer processo, os seus pontos de
desenvolvimento;
• ser concreto e possibilitar a abstração (1973: 11).

Em um mundo globalizado, cujos mecanismos de alienação nos bombardeiam


indistintamente, organizar-se em grupo, compartilhando todos os processos vividos
pelos seus integrantes, num processo de autogestão52, é contrapor-se à hegemonia
capitalista; criar obras artísticas críticas, tomando a realidade como ponto de partida, é
colocar-se em disputa simbólica; apresentar essas obras em espaços públicos abertos

52
Rafael Vecchio, no livro A utopia em ação (2007), que aborda a organização da Tribo de
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, afirma que a autogestão se opõe à heterogestão capitalista. Assim, a
autogestão não está atrelada ao lucro, sendo uma prática que acena para uma mudança radical da
sociedade em termos políticos, econômicos e sociais.
ϭϬϰ


visando à troca de experiências é levá-las para o principal campo de batalha, pois é aí
que se pode dialogar diretamente com os trabalhadores.

2.5. A rua e o teatro

A produção literária sobre o teatro de rua é restrita diante da produção do teatro


feito em espaço fechado. Ultimamente, algumas teses têm sido escritas, mas
publicações de livros no Brasil ainda são poucas. Em língua portuguesa, é possível
destacar os seguintes livros: Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 1980 – uma
paixão no asfalto, de André Carreira (2007); Teatro de rua: olhares e perspectivas, de
Narciso Telles e Ana Carneiro (2005); Manual básico para teatro de rua, de Marcos
Cristiano (2005); Teatro de rua, de Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti (1999); Teatro de
rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio, de Licko Turle e Jussara Trindade
(2010); Memória do teatro de rua em Porto Alegre, de Jessé Oliveira (2010); 1a Mostra
de teatro de rua Lino Rojas: entrevistas e imagens, de Sandro de Cássio Dutra (2010).
Para suprir essa escassa bibliografia e tentar registrar seus processos de criação,
alguns grupos, na última década, têm publicado livros, cadernos, revistas e jornais,
enriquecendo a documentação existente; entretanto, essas publicações ainda são muito
restritas às regiões Sul e Sudeste. Dentre esses grupos, sem pretender dar conta de todas
as publicações, podem ser destacados:
• Grupo Galpão, com a obra Grupo Galpão: uma história de risco e rito, de Carlos
Antônio Leite Brandão (2002). O Grupo Galpão edita também a Subtexto – Revista
de Teatro do Galpão Cine Horto;
• Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, com Atuadores da paixão, de Sandra
Alencar (1997), Aos que virão depois de nós: Kassandra in process – o
desassombro da utopia, de Valmir Santos (2005), A utopia em ação, de Rafael
Vecchio (2007), Uma tribo nômade: a ação do Ói Nóis Aqui Traveiz como espaço
de resistência, de Beatriz Brito (2008). Ói Nóis edita também a revista Cavalo
Louco;
• Parlapatões, Patifes e Paspalhões, com Riso em cena, de Valmir Santos (2002);
• Tá Na Rua, com a obra Tá na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem
literatura, ator sem papel, de Licko Turle e Jussara Trindade (2008). Tá na Rua
editou a revista Tá na Rua;
ϭϬϱ


• Buraco d`Oráculo, com a obra Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de
jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade, de Alexandre
Mate (2009). Buraco d`Oráculo edita também o jornal A gargalhada;
• Imbuaça, com A construção da memória: Imbuaça 30 anos, de Lindolfo Amaral
(2008);
• Pombas Urbanas, com Esumbaú, Pombas Urbanas!: 20 anos de uma prática de
teatro e vida, de Neomísia Silvestre (2009). Pombas Urbanas edita também a revista
Semear asas;
• Tablado de Arruar, com Teatro de rua em movimento (s.d.), de Iná Camargo Costa
et al.;
• Núcleo Pavanelli, com a revista A poética da rua;
• Brava Companhia, com Caderno de erros (2009).
O material documental existente, por não ser largamente distribuído, pode
apresentar a falsa ideia de que não há nada escrito sobre teatro de rua, o que pode
caracterizá-lo como desimportante. Só muito recentemente, o debate tem chegado a
algumas instituições acadêmicas; mesmo assim, as pesquisas e os documentos
publicados não dão conta da diversidade existente no Brasil dessa modalidade teatral.
Historicamente, no Brasil, o teatro de rua sempre esteve no seio popular, mais ligado às
manifestações de origem rural. Como tem sido praticado cada vez mais nos grandes
centros urbanos, tem perdido seus vínculos com as tradições de origem rural, sem, no
entanto, perder seu vínculo popular. E o popular urbano é igualmente rico e
multifacetado, pois a própria diversidade de povos da/na cidade de São Paulo, por
exemplo, é muito grande, logo tem grande riqueza cultural. Mas é importante sempre
questionar o que é popular; afinal não basta estar com “o povo” ou apenas denominar-se
popular para o ser de fato, como adverte Marilena Chauí: “[...] não é porque algo está
no povo que é do povo” (2003: 43).
É perceptível, portanto, a grande dificuldade metodológica ao lidar com o teatro
de rua por causa das inúmeras possibilidades estéticas e dos riscos de uma definição
conclusiva. Na cidade de São Paulo, alguns grupos se definem como teatro popular,
outros não, embora quase todos os grupos se inspirem em fontes populares – urbanas ou
de cunho mais tradicional, de origem rural –, e seus espetáculos se destinem a um
público popular.

ϭϬϲ


2.5.1. Definindo teatro de rua

Se atentarmos para algumas manifestações tradicionais da cultura brasileira,


observaremos elementos dramáticos em muitas delas, como a Nau Catarineta – a
brincadeira do boi em suas várias denominações e variantes disseminadas pelo Brasil –,
a Congada etc. No entanto, não podemos denominá-las como teatro de rua nem afirmar
que todo teatro de rua é herdeiro dessas manifestações, ainda que o teatro de rua
praticado em vários estados do Brasil tenha fortes vínculos com essas brincadeiras,
como denominam os seus fazedores (brincantes). Em uma cidade como São Paulo,
metrópole que abriga diversos povos que se influenciaram e se influenciam
culturalmente o tempo todo, os vínculos com as manifestações mais tradicionais
ficaram, de certa forma, esquecidas ou foram transformadas pela urbanidade. Mesmo
assim, não podemos negar as contribuições das brincadeiras dramáticas tradicionais e
sua influência no fazer teatral de muitos grupos.
Não se pode esquecer também a contribuição importante do teatro político, com
raízes no agit-prop (agitação e propaganda) que influenciou os Centros Populares de
Cultura da União Nacional dos Estudantes. Iná Camargo Costa (s/d.: 27) afirma que
quem primeiro realizou espetáculos de agitação e propaganda foram os soldados do
Exército Vermelho, isto é, os soldados da Revolução Russa, em 1917, que se
apresentaram para os soldados alemães. Essa informação, por sua vez, não consta em
Teatro da militância, de Silvana Garcia, que apresenta um histórico no primeiro
capítulo e se refere à importância do teatro: “Em uma Rússia marcadamente analfabeta”
(GARCIA, 1990: 5), tratava-se de espraiar as ideias revolucionárias; era preciso instruir
o povo. Por isso, o que predominou inicialmente foi “[...] a agitação de meeting:
mobilização maciça de propulsão quase espontânea, nascida nas bases operárias e
artísticas e difundida através de diferentes organismos oficiais, partidários e de
trabalhadores” (GARCIA, 1990: 6). Depois essa forma teatral se espalhou por todo o
país. Segundo Iná Camargo Costa, o termo agit-prop foi criado pelos próprios
agitadores, com inúmeras variedades de gêneros e de práticas.

Eles inventaram desde o chamado teatro jornal, feito por estudantes


disso que depois veio a se chamar jornalismo, que encenavam as
notícias na rua, até espetáculos chamados “cabaré de agitação”. O que
vocês puderem imaginar: por exemplo, militantes sindicalistas que
ϭϬϳ


numa assembleia faziam um pequeno número teatral para ilustrar as
diversas propostas, umas contra as outras; cabaré musical, com
paródias de músicas conhecidas ou músicas especialmente compostas;
peças curtas, peças de tamanho médio. [...] a revolução criou a maior
experiência de liberdade que a humanidade conhece até hoje; como
estes artistas não respeitavam nada, nem ninguém, eles faziam
gozação com tudo, com todos e iam de peito aberto para a discussão
(COSTA, s/d: 28-9).

É importante frisar que o excerto de Iná Camargo Costa foi apresentado


oralmente e, posteriormente, transcrito. Por se tratar de transcrição, há certa empolgação
que a oralidade impõe. De qualquer forma, foi o teatro agit-prop que influenciou
sobremaneira os CPCs da UNE, projeto abortado por causa da ditadura civil-militar
brasileira. Para Iná Camargo Costa, o CPC foi o primeiro grupo de artistas que
enfrentou as determinações burguesas e que deixou “[...] de se pensar como um grupo
que vai fazer espetáculos e arrecadar dinheiro na bilheteria, [rompendo] com a condição
de teatro-mercadoria” (s/d.: 38).
Por fim, cabe lembrar também do circo, que tem dado sua contribuição ao fazer
teatral de rua, especialmente os circos de pequeno e médio portes, que sempre criaram
espetáculos destinados a todas as idades e classes sociais. Nesse aspecto, segundo José
Guilherme Cantor Magnani (1998), ainda que o circo se organize como empresa e se
situe entre a indústria cultural de massas e as manifestações espontâneas, ele consegue
impor sua marca, até porque seus artistas vêm de estratos populares e, por questão de
sobrevivência, levam para a cena cada “pedaço” no qual estão inseridos.
São esses elementos aqui abordados que influenciaram e continuam
influenciando o teatro de rua brasileiro. Não raras vezes os grupos misturam todas essas
possibilidades em um mesmo espetáculo, outras vezes se especializam em uma dessas
linguagens.
Toda essa diversidade técnica e estética apresenta dificuldades na definição do
teatro de rua; por isso mesmo, ela não pode ser única, definitiva, para não incorrer no
risco de aprisioná-lo em uma camisa de força. Exatamente por isso, apresentamos as
definições de outros autores para auxiliar o nosso percurso. Por mais que esses autores
utilizem definições às vezes genéricas, nem sempre adequadas a todos os fazedores de
teatro de rua, elas são importantes para demonstrar a amplidão do conceito de teatro de
rua.

ϭϬϴ


Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti afirmam que o teatro de rua estaria ligado ao
rito, à arte e à festa, por isso abarcaria “[...] coisas bastante diversificadas” (1999: 19).
Não é à toa que os autores apresentam exemplos que vão de paradas militares a teatros
de guerrilha. Percebe-se aí a própria origem do teatro (rito) e as manifestações
populares tradicionais (festa). A obra Teatro de rua dá bastante destaque ao The Living
Theatre, ao Bread and Puppet Theatre, ambos sediados nos Estados Unidos da América,
e ao Odin Teatret, da Dinamarca.
Fernando Peixoto (1937-2012), que foi membro do Partido Comunista
Brasileiro, bem como do CPC no Rio Grande do Sul, identificou o teatro de rua com as
“[...] raízes das mais autênticas manifestações da identidade cultural nacional” (1999:
143). Além de ampla a definição, o termo “identidade cultural nacional” é bastante
impreciso, já que toda identidade é uma construção. E, em se tratando de um país como
o Brasil, com longa extensão territorial e acentuada diversidade cultural, torna-se difícil
qualquer tentativa que aponte para uma unidade cultural. Entretanto, cabe destacar a
contribuição de Peixoto ao teatro de rua brasileiro ao inserir um capítulo sobre essa
modalidade teatral no livro de Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti, seguramente um dos
primeiros textos que apresenta o histórico de alguns grupos.
O dramaturgo espanhol Alberto Miralles (1940-2004), no ensaio Novos rumos
do teatro, ao abordar o fazer teatral dos anos 1960 e 1970, afirma que, nesse período,
houve uma violação do espaço físico e da passividade distante do público tipicamente
burguês. Depois de apresentar o teatro do absurdo e o teatro radical norte-americano
(fortemente influenciado por Bertolt Brecht e Erwin Piscator), Miralles afirma que a
radicalidade experimentada nesse período não teve por objetivo refletir a realidade, mas
substituí-la.
Todas essas atitudes vão se cristalizar em ações teatrais que exigirão
uma terminologia que as defina. O teatro de rua, por exemplo,
responde a esse desejo de arte imediata que não necessita do edifício
cultural para abrigar o público, rechaçando a premeditada
convocatória, indo ele à procura do espectador pelas ruas, metrôs,
igrejas, praças e bares. Desse conceito surgiu o happening, que agora
recobra novo vigor. Juntamente com os events de Kirby [...]; todos
eles herdeiros, como o pânico, da “representação sem matizes”
dadaístas (1979: 83-4).

Esse teatro radical que se contrapõe à organização comercial é uma “[...] arte
produzida à sombra, marginalizada e contra o estabelecido” (MIRALLES, 1979: 84). É
ϭϬϵ


importante deixar claro que o autor, apesar de citar vários grupos que se apropriam da
rua, não aborda precisamente o teatro de rua, mas sim as concepções estéticas
vanguardistas desses grupos teatrais, dentre os quais o Performance Group; San
Francisco Mime Troup, Teatro Campesino, Bread and Puppet e The Living Theater.
Isso nos alerta para um problema: o teatro de rua não é o mesmo em todas as épocas.
Além disso, é preciso levar em conta a realidade histórica de cada país, bem como os
recursos técnicos e de produção de que dispõem os grupos, porque os meios de
produção incidem na definição da estética desses grupos. Por fim, cabe lembrar que
Miralles referiu-se ao teatro norte-americano e europeu, portanto, distinto do brasileiro.
A citação de sua obra se faz necessária, no entanto, pela possibilidade de tornar claro
que nem todo teatro de rua se apropria apenas das fontes populares. Quanto à questão da
“marginalidade” aqui apresentada, não há dúvida de que esse é um aspecto presente no
teatro de rua brasileiro, isso porque se opõe a uma forma burguesa – a casa fechada –
que segue a lógica capitalista, já que vende o ingresso e não permite a interferência, e
transgride o espaço aberto – a rua, que supostamente é apenas para escoar as
mercadorias da sociedade capitalista.
Patrice Pavis, em Dicionário do teatro, afirma que o teatro de rua é uma volta às
fontes, sendo um “[...] teatro que se produz em locais exteriores às construções
tradicionais” e que, por muito tempo, “[...] se confundiu com o Agit-Prop” (2005: 385).
O autor faz alusão ao surgimento do teatro no Ocidente, que ocorreu em espaço aberto;
no entanto, faz certa confusão ao identificá-lo com o teatro político ocorrido
principalmente na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e na
Alemanha dos anos 1920. É importante a observação sobre a confusão com o agit-prop,
porque nem todo teatro de rua tem temática política, ainda que o próprio fato de estar na
rua tenha seu contexto político, já que este espaço, segundo Amir Haddad (2008), tem a
possibilidade de recuperar a sua vocação pública perdida, rompendo com os valores
éticos, estéticos e morais da burguesia.
André Carreira, em Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 1980, afirma que
“[...] o teatro de rua abarca todos os espetáculos ao ar livre que optam por ficar fora dos
teatros convencionais e utilizam espaços urbanos apropriados temporariamente para o
fenômeno teatral, permeáveis ao público acidental” (2007: 54). A afirmação simplifica
o teatro de rua, pois não basta estar fora do edifício teatral para ser teatro de rua. Por
outro lado, se é necessário permeabilidade às obras que vão às ruas, é preciso saber
ϭϭϬ


também de que ordem ela é. Trata-se de uma permeabilidade dirigida ou de um
verdadeiro diálogo no qual o público se relaciona por igual? A rua exige porosidade,
abertura para o jogo entre atores e público e, nesse encontro, ocorre a troca de
experiências.
De qualquer forma, todas as definições, em tese, parecem caber para o teatro de
rua em geral. Trata-se de uma criação artística diversificada, muitos grupos estão
ligados às manifestações da cultura popular ou se consideram seus herdeiros. O teatro
de rua é marginal e apropria-se do espaço aberto para se apresentar a um público
inesperado, que passa por aquele local.
À luz do exposto, o teatro de rua pode ser entendido como todo espetáculo
pensado, elaborado e produzido por artistas ou coletivos – organizado ou não em grupo
– visando a apresentá-lo no espaço aberto com o fito de trocar experiências com o
público. Mas isso não quer dizer que um mesmo coletivo não possa atuar em espaços
abertos e fechados; significa apenas que seus fazeres e espaços se opõem em seus
significados, já que o teatro de rua busca seu público, interferindo na geografia,
ressignificando o espaço. Por fim, teatro de rua é uma manifestação artística que utiliza
o corpo e o discurso em espaço aberto a serviço do estético, apropriando-se ou não da
paisagem como cenário, permitindo, assim, a fruição ao público passante.53
A definição aqui adotada também é ampla, mas é preciso prestar um pouco mais
de atenção ao teatro realizado na cidade, em mútua relação entre teatro e cidade, pelo
fato de a pesquisa abordar os trabalhos de grupos que atuam na cidade de São Paulo.
Consequentemente, eles são influenciados pela cultura urbana, na medida em que seus
espetáculos refletem os problemas da cidade ou por eles são permeados.
Nesse sentido, a própria cidade de São Paulo e seus habitantes – público desse
teatro – merece reflexão. Sabe-se que cada região da cidade tem suas características;
melhor dizendo, cada bairro apresenta um público diferenciado com culturas próprias,

53
Alexandre Mate (2009), no livro sobre os dez anos do Buraco d`Oráculo, faz importantes
considerações acerca da fruição ao afirmar que a arte só se transforma em fenômeno estético e social
quando circula, isto é, quando busca a troca individual e coletiva; daí a importância de se colocar no
espaço público aberto (“lugar político por excelência”), permitindo a acessibilidade: “Para ser popular, a
obra precisa ter acessibilidade geográfica – que compreende o espetáculo deslocar-se até onde está o
público [...]; acessibilidade temática – os assuntos e seus modos de exposição, sem concessões e sem
copiar os produtos da indústria cultural, devem trabalhar com alegorias universais [...]; acessibilidade
visual – os elementos ligados à visualidade [...] devem e precisam amparar-se na chamada ‘cultura de
raiz´ [...]; acessibilidade interpretativa – em que os modos comportamentais singulares [...] precisam
apresentar-se de maneira alegóricas” (2009: 31). Para completar a acessibilidade se faz necessário
conhecer o universo cultural dos grupos de pessoas com os quais se quer relacionar. Dessa forma,
permite-se a verdadeira troca de experiência.
ϭϭϭ


podendo vir a influenciar o fazer teatral. Assim, ainda que se busque, por meio de um
espetáculo, atingir a todos na rua, já que se trata de um espaço aberto, democrático e
diversificado – que supostamente abriga a todos sem distinção –, os problemas que
atingem a periferia da zona leste de São Paulo não são os mesmos enfrentados em
Pinheiros, bairro da zona sul. Essas diferenças, dependendo do trabalho do grupo e da
região na qual atua, podem influenciar o seu fazer. Na medida em que o público seja
determinante para a criação dos espetáculos, as particularidades de cada “pedaço” da
cidade e de cada território influenciam na criação dos espetáculos de rua.
O teatro de rua, assim como o de caixa, suscita inúmeras questões, mas a
contingência do espaço aberto, composto de crianças, jovens, adultos, idosos, assim
como de diferentes camadas sociais, demanda tratamento diferenciado, como a criação
de uma obra capaz de dialogar com esse amplo espectro de pessoas. Por isso, o trânsito
corrente com alegorias, que não têm significação literal, mas apontam para diversos
sentidos e significados. É isso que faz do teatro de rua democrático por definição. Além
disso, por não haver cobrança de ingressos, o que seleciona o público é o interesse que o
espetáculo desperta, bem como a disponibilidade de tempo ou não do público passante.
Mas o importante é ter clareza de que, de certa forma, a região, o território, o “pedaço”
em que o grupo apresenta seus espetáculos não deixa de ser escolha também de público.
Em vários casos, mesmo considerando diversas faixas etárias e formações distintas, nem
sempre há diversidade de classes sociais, dependendo da região na qual se está atuando.
Pode-se, na maioria das vezes, e no “cinturão de pobreza” que caracteriza a cidade,
encontrar apenas uma classe social: a dos trabalhadores. Em uma cidade como São
Paulo, que segrega tudo e todos, o grupo de teatro, ao escolher determinada geografia da
cidade para apresentar seu espetáculo, seleciona também o público, mesmo que não
queira.
Não podemos esquecer que há um discurso universalizante da ideologia do
urbano que pretende transformar os processos diferentes em iguais. Afinal, como
adverte Manuel Castells, “[...] o espaço está carregado de sentido”. E ele vai além ao
afirmar que “[...] a distribuição das residências no espaço produz sua diferenciação
social” cujas moradias “[...] estão na base do tipo e do nível das instalações e das
funções que se ligam a elas” (1983: 249). Portanto, quando um grupo se apresenta em
Cidade Tiradentes ou em São Miguel Paulista, bairros periféricos da zona leste da
cidade de São Paulo, ele está selecionando o seu público. E se no centro da cidade a
ϭϭϮ


mistura é maior, ainda assim, dificilmente os espetáculos são vistos por empresários,
banqueiros, mas tão somente por trabalhadores.
Outro fator pouco discutido diz respeito à receptividade da obra. Em uma cidade
como São Paulo, cada vez mais ruidosa, o local escolhido pelo grupo para as
apresentações pode determinar o andamento da obra. O ruído produzido no ambiente
urbano e sua mútua relação com o espetáculo causam efeitos na audiência e interferem
na recepção da obra. Daí a importância de os artistas pensarem no espaço desde o início
da criação da obra, pois algumas escolhas exigirão mais esforço por parte dos atores.
Pode-se apreender daí que a relação do teatro com a cidade, desse ponto de vista, é uma
relação conflituosa, já que o espetáculo, conforme sua estrutura, pode se desenvolver
muito bem em determinado lugar e, em outro, não. Apropriar-se do ambiente, com tudo
o que há nele, territorializar-se é também uma necessidade para seus fazedores.

2.5.2. Espaço aberto: rompimento e ressignificação

[...] Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de


estar ausente e à procura de um próprio. A errância,
multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa
experiência social da privação de lugar – uma experiência [...]
esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas [...]
compensada pelas relações e os cruzamentos desses êxodos que
se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do
que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a
cidade. A identidade fornecida por esse lugar é tanto mais
simbólica (nomeada) quanto [...] existe somente um pulular de
passantes, uma rede de estadas tomadas de empréstimo por uma
circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um
universo de locações frequentadas por um não lugar ou por
lugares sonhados.
A invenção do cotidiano. Michel de Certeau

Não há dúvida de que uma das maiores especificidades do teatro de rua é seu
locus, o lugar que ocupa como espaço cênico: a rua. É importante ter claro que rua,
nesta pesquisa, significa todo local apto a receber espetáculos, como praças, parques,
ruas, entre outros espaços. Igualmente importante no teatro de rua, que tem sido pouco
utilizada, é a geografia espacial urbana. A cidade, com tudo o que há nela – prédios,
monumentos, esculturas, fachadas, entre outros –, pode ser, em um espetáculo, cenário,

ϭϭϯ


personagem, elemento cênico, não apenas o local da representação. Milton Santos
lembra que “[...] os objetos, força inanimada, não são outra coisa que o veículo das
relações entre os homens” (2000b: 51). Assim, a cidade e seus elementos, como estátuas
de figuras históricas, podem oferecer-se como objetos estéticos e mediadores das
relações humanas, e o teatro de rua pode desempenhar seu papel facilitador no processo
de trocas sociais e simbólicas.
Ao se colocar no espaço público aberto, um grupo teatral rompe e transgride
certa atribuição, tomada como precípua, como a passagem de carros e de pedestres, pois
estes lugares não são vistos como possibilidades de fruição das artes. Mesmo nas
praças, os urbanistas têm abandonado o conceito de convivência humana, já que
existem poucos bancos para se sentar e conversar, apenas diversos corredores por onde
as pessoas devem transitar. Não há nenhum espaço reservado para uma manifestação
artística, com exceção de uma praça ou outra, retirando do cidadão o “direito ao
entorno”, como observou Milton Santos no livro O espaço do cidadão (2000b).
Segundo André Carreira (2007), ao se colocar no espaço público aberto, o grupo
teatral transgride e ressignifica a rua ou a praça, tornando-as locais de fruição, pois,
naquele momento, as pessoas deixam de ser transeuntes e assumem a condição de
público, de assistente do espetáculo. Esses dois aspectos, transgressão e ressignificação,
são importantes também para se observar como o teatro de rua conflita “com as
instituições burguesas” (CARREIRA, 2007: 37). Isto é, as instituições do Estado, que
ao se apropriarem do discurso de que devem zelar e regular o espaço que, em tese, é de
todos, conflitam com os artistas populares. Considerando que a cidade tem a dimensão
de poder e de mercado (ROLNIK, s/d.), o que impera nesse caso é a segunda dimensão,
garantida pela primeira. Nesse sentido, as ruas tornam-se locus privilegiado do capital,
escoadouro de mercadorias.
Se cada época teve seu espaço de representação de acordo com a sociedade
dominante (HADDAD, 2005), a rua hoje, definitivamente, não seria esse espaço. Aliás,
no discurso dominante, a rua é tida como um lugar que deve ser evitado, pois ela deve
ficar livre para sua função primordial na sociedade capitalista, que é a de circulação das
mercadorias. Por isso, dissemina-se o medo e, por conseguinte, as pessoas deixam de
partilhar o mesmo espaço, passando a ver o outro como inimigo. Instaura-se, assim, a
“mixofobia” (BAUMAN, 2009). O teatro de rua permite a relação, faz com que as

ϭϭϰ


pessoas se aproximem umas das outras, sem medo; portanto, reúne, agrega. Dessa
forma, é tido como “perigoso” pelas instituições que regulam os lugares abertos54.
Pode-se afirmar também que o conflito com as instituições dá-se pela
valorização do privado em detrimento do que é público na sociedade contemporânea, já
que, cada vez mais, quem pode pagar tem se isolado em pequenas “ilhas fortes”,
representadas por condomínios fechados e shopping centers, onde o convívio é restrito.
Essa prática da separação, segundo Bauman, só aumenta o medo, quando, de fato, o
inverso é que deveria ser alimentado: “[...] difusão de espaços públicos abertos,
convidativos, acolhedores, que todo tipo de cidadão teria vontade de frequentar
assiduamente e compartilhar voluntariamente e de bom grado” (2009: 50). Entretanto, o
discurso dominante ensina a não se confiar em ninguém; assim, as relações humanas
vão se tornando cada vez mais superficiais e os espaços públicos abertos vão perdendo
sua importância como espaço de convívio. Quem faz teatro de rua, consciente ou
inconscientemente, coloca-se contra essa arbitrariedade, afinal o que primeiro se busca
no espaço aberto é a relação com o público.
Como a cidade, em seus diversos espaços, tem valores diferenciados, o grupo
teatral, ao escolher determinado “pedaço” para desenvolver suas atividades, não pode
negligenciar as influências econômicas, industriais, de consumo, bem como
comunicativas, associativas e culturais. Dessa forma, pode ser lido, mas nem sempre
seu significado condiz com a imagem que se vende dele. Por isso, a criação de um
espetáculo tendo como foco um determinado lugar, ou o desenvolvimento de um projeto
mais amplo em uma região da cidade, precisa ser considerado pelo grupo teatral.
Escolhas geram conflitos, na medida em que determinada opção pode levar o grupo a


54
Recentemente, na cidade de São Paulo, houve grande confusão entre os artistas de rua e a
Prefeitura, que considerou igualmente camelôs e artistas: ambos foram vistos como comércio ilegal, pois
a prática de passar o chapéu foi confundido com a venda de produtos. Tudo começou no momento em que
a Prefeitura instaurou a Operação Delegada em dezembro de 2009, na região central, com o objetivo de
reprimir ao que chamam de comércio ilegal. Trata-se de um convênio entre a Prefeitura e a Polícia
Militar, cujos policiais podem trabalhar nas horas vagas. É, portanto, um “bico” oficial. A operação
iniciou com 250 homens, hoje são 3.500, e estima-se que já retiraram das ruas 15 mil ambulantes. A
confusão teve início quando os policiais começaram a apreender os materiais dos artistas e a prender
alguns deles. Manifestações foram organizadas na Avenida Paulista (SP), para exigir que o Artigo 5o da
Constituição Brasileira fosse respeitado. A Prefeitura convocou os artistas para resolver a questão, e o
resultado foi o Decreto 52.504, de 19 de julho de 2011. Atualmente está tramitando na Câmara dos
Vereadores de São Paulo um Projeto de Lei para regulamentar o uso dos espaços abertos pelos artistas de
rua. O mesmo vem ocorrendo em cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre outras,
onde igualmente se observa a perseguição aos artistas e também estão em processo de constituição de leis
para amparar o que já é um direito constitucional, a saber, o direito à livre expressão intelectual e artística,
independente de censura.
ϭϭϱ


um enfretamento com instituições que “zelam” pelos espaços públicos. Enfrentamentos
e marginalização, além do engajamento histórico por parte de diversos grupos teatrais
de rua, levaram John Downing (2004), especialista em mídia, a apresentá-lo como mídia
radical alternativa, fazendo do teatro de rua uma forma privilegiada de luta contra as
estruturas de poder. O autor utiliza como exemplo os vários grupos ligados a
movimentos sociais nos Estados Unidos da América e o Teatro do Oprimido, de
Augusto Boal.
Assim, entendemos que os fazedores de teatro de rua, sem metáfora, precisam
conhecer e compreender sua cidade, sua geografia e sua estrutura urbana, pois a
paisagem, os monumentos e os lugares fazem parte dos espetáculos e têm múltiplos
significados. A fachada de uma instituição financeira, uma igreja ou um conjunto de
prédios populares podem e devem ser utilizados como elementos simbólicos em um
espetáculo, afinal todos têm significados históricos, sociais, econômicos e culturais.
O teatro de rua apresenta aos seus praticantes imensas possibilidades quanto ao
uso dos elementos supracitados e no que se refere ao próprio espaço, o que fez com que
Rubens Brito afirmasse que “[...] a condição espacial é a essência do próprio teatro de
rua” (2004: 17). Brito afirma ainda que um espetáculo na rua pode oferecer ao público
diversas formas de ver a mesma cena, dependendo de onde cada pessoa se coloque no
espaço. Na caixa, na dita cena à italiana, a frontalidade limita a cena a um ponto de
vista. Quanto às possibilidades de criação, a rua, por ser polimorfa, cria possibilidades
cênicas também polimorfas.
Assim, o que se espera é que o teatro de rua, por meio de seus praticantes,
amplie sua relação com a cidade e com os cidadãos, criando obras que partam da
realidade na qual estão inseridos, pois, como afirma Adolfo Sánchez Vázquez:

[...] ao refletir a realidade objetiva, o artista faz-nos penetrar na


realidade humana. Assim, a arte como conhecimento da realidade
pode nos revelar um pedaço do real, não em sua essência objetiva,
tarefa específica da ciência, mas em sua relação com a essência
humana (1978: 35).

Nesses tempos em que tudo parece mais veloz e a rua é vista como o “espaço da
violência” por onde se deve passar rapidamente, o teatro pode se colocar como
elemento interruptor dessa paranoia moderna, levando o passante a sonhar e a refletir
sobre sua condição de sujeito histórico na cidade.
ϭϭϲ


Por fim, o teatro e a arte em geral são uma necessidade, por isso devem estar em
todos os espaços. O trabalho e a arte assemelham-se, como afirma Vázquez (1978), já
que são atividades criadoras por meio das quais os homens se expressam, o trabalho tem
valor prático-material e a arte, espiritual. Daí sua importância, pois as pessoas
necessitam levar o processo de humanização às últimas consequências. O contato com a
arte faz com que ela fique ecoando no ser humano, pois, diferentemente da mercadoria,
como afirma Janice Caiafa (2000), a arte precisa de um tempo de ressonância. Dessa
forma, o teatro não se esgota ao fim de uma apresentação; demanda tempo de reflexão
para ser ingerido e digerido. Ao refletir sobre o que foi apresentado ou recontar o vivido
diante de um espetáculo, é o cidadão que passa a ser o criador, pois sua recriação não
traduz mais o mesmo espetáculo presenciado, porque é uma “mutação subjetiva”,
impressa por uma marca singular, que irá “engajar outras singularidades”, tornando-o
cada vez mais humano. Como se observa em O narrador, de Walter Benjamin (1996), é
uma experiência que passa de pessoa para pessoa; por isso, como as narrativas orais
populares, os espetáculos de rua, em geral, são concisos e sem psicologismos.
São inúmeras as possibilidades e dificuldades imbricadas no fazer teatral de rua.
Possibilidades de transformar a praça em nova ágora – não no sentido grego, em que
apenas homens adultos e livres eram cidadãos, com direito a voz e voto –, na qual todos
podem discutir a cidade, seus problemas e rumos possíveis por meio dos espetáculos.
Por outro lado, é uma arte de enfrentamento e, por isso mesmo, feita com muita
dificuldade e com pouco reconhecimento por parte das instituições públicas, apesar de
sua existência milenar. Por isso a importância de se registrar as produções do teatro de
rua, que ao longo da história vem se transformando ao beber nas fontes populares
tradicionais, no teatro político, no circo e, atualmente, nas novas tecnologias, e sempre
resistindo. 

ϭϭϳ


3. COMO SERVIR CUSCUZ E MINGAU COM HISTÓRIAS DA OUTRA
MARGEM – OU SERES TÃO CONCRETOS CRIADOS A PARTIR DAS
MARGENS DA CIDADE

Neste capítulo, realizaremos, por assim dizer, a “costura” com os dois anteriores,
visando clarificar como a inserção em determinada geografia cultural da cidade pode
influenciar ou determinar o processo de criação, presente ou não na cena propriamente
dita. Para iniciar, podemos citar como exemplo o grupo Pombas Urbanas, que mesmo
quando esteve na região central da cidade, ocupou o espaço destinado à periferia que,
pelo senso comum e realidade injusta, é dos sujeitos renegados pela sociedade: o
espetáculo Mingau de concreto reflete esse universo.
Uma característica comum aos dois grupos aqui pesquisados é que seus projetos
refletem experiências que se somam e se transformam, o que, por si só, revela a
continuidade de um processo de trabalho, demonstrando, assim, a quem se destina os
seus trabalhos.
Os espetáculos aqui abordados foram criados tomando a rua como espaço
cênico, o que revela, por si só, a vontade de ressignificar a cidade e de buscar o diálogo
com os seus cidadãos. Dessa maneira, os artistas dos dois coletivos buscam a troca de
experiência no sentido bejaminiano.
Por fim, a análise dos espetáculos que se segue é realizada com base nos
materiais disponibilizados pelos grupos e nas entrevistas concedidas ao autor dessa
dissertação. De ambos os grupos, tomamos os primeiros espetáculos, quando estavam se
estruturando coletivamente, e a montagem mais recente. Esse recorte pretende clarificar
a coerência da história de cada grupo, se não do ponto de vista estético, pelo menos em
relação ao seu público. Mas, antes, vejamos dois pontos importantes que dizem respeito
à produção dos espetáculos criados para a rua: a troca de experiências e a relação dos
atores com o público, intimamente ligados.

3.1. Sobre troca de experiência e a relação na rua

O conceito de experiência, que perpassa a obra de Walter Benjamin, é


fundamental para a compreensão da importância dos grupos teatrais que se colocam no
espaço aberto urbano nos dias de hoje, bem como nas comunidades onde buscam
ϭϭϴ


dialogar com a cidade e com os cidadãos. Experiência diz respeito à memória, vínculo
com o passado; tradição é um conhecimento que se acumula e se desdobra. O grupo que
se relaciona com o público e com a cidade instaura uma ponte entre o particular e o
coletivo, estabelecendo fluxos de correspondências com a memória dos cidadãos e da
coletividade (MEINERZ, 2008).
Para Benjamin, vivência (erlebnis), na acepção de presenciar um evento de
forma particular, ligado ao seu cotidiano e apartado da coletividade, se opõe à
experiência (erfahrung), conhecimento que se acumula, desdobrando-se da vida
particular à coletividade, sedimentando as coisas no tempo: “Significa o modo de vida
que pressupõe o mesmo universo de linguagem e de práticas associando a vida
particular à vida coletiva e estabelecendo um fluxo de correspondências alimentado pela
memória” (MEINERZ, 2008: 18). A vivência tem se sobreposto à experiência,
sobretudo em uma sociedade que tem se caracterizado cada vez mais pelo uso de uma
comunicação eletrônica que, se por um lado aproxima, por outro, distância as pessoas,
já que na comunicação mediatizada pela eletrônica não se necessita mais da presença
física de seus comunicantes.
A pobreza de experiência, segundo Benjamin (1996), vem ocorrendo desde o
início do período industrial, e ela se dá porque os meios de produção dominam o ser
humano, e não o inverso, como ocorreu na sociedade medieval. Logo, Walter Benjamin
nos apresenta pessoas alienadas, dominadas pelos meios de produção. Nesse sentido, o
trabalho é elemento fundamental para se entender a experiência aludida por Benjamin.
Numa produção artesanal, o trabalhador é dono e conhecedor de seu modo de produção,
logo, capaz de transmitir suas habilidades, suas experiências. Em seu texto de 1933,
Experiência e pobreza, Benjamin (1996) começa por uma parábola que lia na infância,
na qual um velho, em seu leito de morte, revela aos filhos que há um tesouro em seu
vinhedo. Os filhos cavam a terra para procurar o tesouro e nada encontram, mas quando
vem o outono e as vinhas dão uma produção bem maior se comparada à de outras da
região, descobrem que a felicidade está no trabalho. Nesse momento, compreendem que
seu pai lhes transmitiu uma experiência.
Em outro texto, O narrador, Benjamin, para quem a narrativa é uma forma de
trocar experiências, afirma que os artífices aperfeiçoaram a arte de narrar:

ϭϭϵ


O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na
mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes
de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os
marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os
artífices que a aperfeiçoaram (1996: 199).

Assim, antes de se tornarem mestres, os aprendizes erravam em diversos lugares,


aprendendo, acumulando experiências, até se fixarem como mestre em determinado
lugar. O aprendiz, assim como o mestre, carregava na memória (a mais épica das
faculdades, segundo Benjamin (1996)) e no corpo (o autor destaca a mão como
importante elemento na intervenção narrativa) os saberes, as tradições populares: “O
grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas
artesanais” (BENJAMIN, 1996: 214).
Para Benjamin, a I Guerra Mundial (1914-1918), ao invés de aumentar,
provocou uma pobreza de experiência; por isso o autor refuncionaliza o conceito de
barbárie de maneira positiva, afirmando que as melhores cabeças têm se ajustado aos
novos tempos, demonstrando total desilusão com o seu século. Assumir a barbárie é
possibilitar que o bárbaro construa o novo sem olhar para os lados, pois, entre os
grandes criadores, existem aqueles que operam com base na tabula rasa (BENJAMIN,
1996). Dessa maneira, o teatro de hoje deve ser feito para uma era científica, como
afirmou Bertolt Brecht (2005).
Todos os dias, nos jornais, há uma profusão de notícias sobre o mundo todo, mas
continuamos pobres de histórias surpreendentes, isso porque elas já vêm com as
explicações (BENJAMIN, 1996). Assim, o grupo teatral, ao se colocar na rua, não deve
levar explicações, mas provocações para um debate, forçando o espectador a tomar
posição e a formular sua própria explicação. Dessa forma, conservará o que viu e ouviu,
porque construiu junto. Por isso, um grupo teatral que opta pelo espaço aberto deve
apresentar obras abertas, esponjosas, para que elas sejam um elemento disparador da
troca de experiência. Por outro lado, é necessário analisar a história a contrapelo
(BENJAMIN, 1996), levando à cena os subsumidos, aqueles que não aparecem nos
livros, de maneira que o público identifique seus vínculos com o passado.
Dessa forma, por ser uma produção ainda artesanal, o teatro produzido em grupo
se torna portador dos elementos aludidos por Benjamin (1996), isto é, capaz de portar e

ϭϮϬ


transmitir uma experiência acumulada e ao se colocar no espaço aberto troca com o
público, porque faz seu teatro de maneira conjunta.
Um espetáculo que acontece em espaço fechado, em geral, é divulgado pela
mídia, ou distribuem-se cartazes, filipetas... Há, enfim, uma convocação do público que,
por sua vez, se programa e se prepara para ir assistir ao espetáculo. De modo geral, as
regras estão estabelecidas: chega-se antes, compra-se o ingresso ou se retira o convite,
entra-se na sala e espera-se o terceiro sinal, antes do início do espetáculo. E, antes disso,
ouve-se a solicitação para desligar celulares ou quaisquer outros instrumentos que
possam vir a quebrar o silêncio necessário para a fruição do espetáculo. As regras, em
geral, estão internalizadas; se alguém rompê-las será repreendido pelos próprios
espectadores, que são o guardião das regras e possíveis censores ao seu
descumprimento.
Na rua, ainda que haja convocação, a grande maioria do público é sempre
espontânea. Não há regras pré-combinadas, universalmente aceitas. Elas são
estabelecidas ali no espaço aberto pelos atores e público. O espetáculo se inicia, em
certa medida, com a chegada do grupo teatral, que começa a se preparar, a preparar a
cena e as pessoas para o que vai ocorrer. Estabelece-se uma relação que propicie a
fruição do espetáculo, que pode vir por água abaixo a qualquer momento, pois mesmo
aquilo que foi combinado pode ser rompido, por ser um espaço de todos e, por isso
mesmo, todos podem interferir. Desse ponto de vista, apresentar-se na rua é sempre um
risco e, ao mesmo tempo, é sempre uma assembleia, já que as regras são construídas
coletivamente. De qualquer forma, a observação que se faz aqui não tem juízo de valor,
não se trata de afirmar que um teatro seja melhor do que o outro; trata-se tão somente de
demonstrar as diferenças no que concerne à relação com o público.
Para ilustrar o que se afirmou, vale citar alguns exemplos vivenciados pelo autor
dessa dissertação; todas elas vivenciadas coletivamente pelos demais integrantes do
Buraco d`Oráculo; logo, passível de ocorrer com qualquer grupo que se coloca no
espaço aberto. Os exemplos podem auxiliar na compreensão da relação estabelecida na
rua, visando à formação de um espaço cênico para apresentação de um espetáculo e de
como as interferências do público também constroem o espaço cênico e o espetáculo.
Vale ressaltar que os exemplos não se limitam aos espetáculos aqui analisados.
São nos momentos que antecedem o espetáculo que se constroem as relações,
que se criam afinidades com o lugar e com as pessoas. Nas comunidades, até por
ϭϮϭ


desconfiança dos adultos, quem sempre se aproxima primeiro dos atores são as crianças,
que têm grande curiosidade. No Jardim Palanque, conjunto habitacional em Cidade
Tiradentes, durante a realização do Projeto Circular Cohab`s, em 2007, com o
espetáculo A bela adormecida, muitas foram as crianças que ajudaram a carregar os
objetos cênicos e a montar os adereços. É por meio delas que se chega às demais
pessoas, especialmente em um lugar onde nunca teve nada, como relatou um morador.
Essa primeira aproximação é também espaço educativo para todos. Para os atores, é o
momento de lidar com situações e pessoas em condições diferentes daquelas de seu
cotidiano. Para o público, é o momento, muitas vezes, de entender que a obra não é
efêmera, no sentido de ser apresentada uma única vez. No Jardim Palanque, ao término
da apresentação, muitas crianças queriam levar para casa os adereços do espetáculo, o
que nos levava a explicar que ele seria apresentado em outros lugares e que, por essa
razão, não havia como fazer novos adereços a cada espetáculo. Além disso, o final de
cada apresentação é o momento que o público tem de tocar nos adereços depois de ver
sua funcionalidade em cena, de tocar nos instrumentos musicais. Existe a necessidade
de aplacar, de saciar essa curiosidade e de aprender. Saciada a curiosidade, a relação se
altera nos espetáculos seguintes, isto porque há mais proximidade entre atores e público.
Prova disso é que o público passa a ter mais cuidado com os objetos de cena.
Durante a cena propriamente dita, há diversas interferências, inclusive aquelas
capazes de destruir um espetáculo, afinal estar na rua é sempre andar na corda bamba.
Na temporada no centro da cidade de São Paulo, na Praça do Patriarca, com o
espetáculo A farsa do bom enganador, em 2006, uma moradora de rua entrou em cena
para comprar o tecido que servia de mote para o desenrolar da trama.55 Se a compra
fosse efetivada, o espetáculo findaria. Edson Paulo era o vendedor e Adailton Alves, o
comprador que pretende dar o golpe: comprar fiado e não pagar. A mulher entrou em
cena e começou a jogar com os atores: a cada fala, ela também dizia outra, como se o
diálogo tivesse sido combinado. O público ria muito, pois o jogo dela era ágil, típico do
universo farsesco. Isso foi ótimo porque o espetáculo estava no início. Como havia
muito texto, todos os atores estavam incomodados, certos de que o espetáculo não daria


55
O espetáculo é uma adaptação de A farsa do mestre Pierre Pathelin, de autor desconhecido. É a história
de um golpe dado por um advogado falido em um comerciante, que compra seu tecido, a quem o
advogado pede que venha receber o dinheiro em sua casa. Quando o comerciante chega para cobrar o
dinheiro, o advogado, auxiliado pela esposa, arma o golpe, fingindo-se doente há muito tempo. Logo,
seria improvável que ele fosse o autor da compra do tecido.
ϭϮϮ


certo na rua. A interferência dessa mulher fez com que os atores acreditassem
novamente na peça. Assim como o público gosta das interferências, pois, em certa
medida, desafia-se a convenção estabelecida do que é cena, quem são os atores e quem
é o público, em geral, o próprio público impõe também os limites das interferências.
Nesse dia, após pôr à prova os atores, o público quis também assistir ao espetáculo e a
acompanhar a história. A mulher continuou a interferir, até o momento em que o
público começou a limitar essa interferência com falas do tipo “já deu!”, pedindo
silêncio. A certa altura, a mulher entendeu e ficou na roda como os demais. O limite de
interferência na rua é sempre muito delicado, pois pode “levantar” um espetáculo e pode
também acabar com ele. Por isso, três elementos são frequentemente citados por todos
aqueles que fazem teatro de rua: o bêbado, a criança e o cachorro. Não por acaso, todos
sem limites. O cachorro, por ser animal; a criança, por ainda não ter as regras sociais
internalizadas; e o bêbado, por ter optado por quebrar essas regras por meio da bebida.
Assim, a presença dos três garante o jogo cênico, pois suas interferências provocam
sempre a mudança na cena.
Existem interferências que se tornam personagens no espetáculo. O grupo
Pombas Urbanas apresentava Histórias para serem contadas na Praça do Campo
Limpo, em Campo Limpo, zona sul da cidade de São Paulo, em 2010. No momento em
que o ator Marcelo Palmares representava a personagem do homem que vira cachorro,
ele ganhou a companhia em cena de uma criança, que quis lhe auxiliar. Durante toda a
cena, havia dois seres humanos que se tornaram “cachorros” na vida, o que tornou a
cena ainda mais dura. A criança, devido à sua idade, certamente não tinha dimensão da
crítica estabelecida ali; viu apenas o jogo, a possibilidade de brincar, e foi isso o que ela
fez. No entanto, ao entrar em cena, ela realçou a crueldade a que estava submetida o
personagem de Marcelo Palmares. Essas construções cênicas espontâneas, que ocorrem
por meio do jogo e no momento do espetáculo, sem nenhuma combinação, acontece
frequentemente no teatro de rua.
Se, por um lado, há interferências que tornam o espetáculo mais bonito, mais
crítico ou mais poético, por outro, existem as que não deixam a cena acontecer, mas
nem por isso é menos teatro. Na 2a Mostra Olho da Rua, realizado pela Trupe Olho da
Rua, na cidade de Santos (SP), ocorrida em janeiro de 2011, durante a primeira parte do
espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, momento mais intimista, todo
narrado enquanto se serve um café, a atriz Lu Coelho teve de dividir sua história com
ϭϮϯ


um senhor que também contava a própria história. Assim, não se ouvia o que a atriz
contava nem o que o senhor dizia. A interferência começou como um diálogo: ela dizia
quem era e de onde era, ele fazia o mesmo. Quando a atriz se deslocava em direção a
outras pessoas, o senhor continuava a narrar a própria história. Exemplos desse tipo são
inúmeros, pois “a vida tende a ser mais forte que qualquer arte”. Essa frase foi inserida
no espetáculo, numa clara demonstração que, mesmo quando se parte da realidade, não
se tem a mesma força que a vida.
Ainda como exemplo, o autor dessa dissertação presenciou uma cena que ilustra
a força da vida. IV Overdorse de Teatro de Rua, realizado pelo Movimento de Teatro de
Rua de São Paulo, em 2005. Praça do Patriarca, centro da cidade de São Paulo.
Overdose era uma mostra e também um ato político, com o intuito de chamar a atenção
do poder público para o teatro de rua e para a ausência de políticas públicas para o setor.
Uma atriz participante da programação apresentava uma pequena cena, representando
uma migrante que procurava o marido, provavelmente morto pela violência no campo.
Nas primeiras falas da atriz, uma moradora de rua, aproveitando-se do grande número
de pessoas presentes, ao identificar-se com a violência narrada, quis falar um pouco de
si, da condição a que estava submetida, dando bastante ênfase à violência policial que
sofria quase todos os dias. Evidente que todas as atenções do público presente foram
para a moradora de rua. A atriz, em um primeiro momento, tentou dialogar com ela,
sem êxito. Então, sabiamente, parou e se retirou, aguardando o momento certo para
realizar sua intervenção.
Outro momento importante dessas relações são as conversas com o público,
antes e após as apresentações dos espetáculos. É possível saber quem são as pessoas,
onde moram, o que fazem. Da mesma forma, eles querem saber se só fazemos teatro,
onde moramos, e as conversas tendem a ter vários focos, da trivialidade a assuntos mais
políticos; em ambos os casos (seja ator ou pessoas do público), tudo depende dos
interlocutores. Mas são nas conversas posteriores que é possível ter ideia do impacto da
obra teatral na vida de muitas pessoas. Assim, é possível ouvir desde “eu estava triste,
mas agora estou feliz, porque ri muito” até mesmo “essa é a minha situação. Vocês
falaram de mim”. Mas há relatos mais difíceis e duros, sobretudo no centro da cidade de
São Paulo. Na estreia de A farsa do bom enganador, em 2006, na Praça do Patriarca,
um senhor de meia-idade conversou com os atores do Buraco d`Oráculo. Ele fez
questão de ajudar a recolher o material cênico ao término da apresentação enquanto
ϭϮϰ


falava um pouco de si e de sua desilusão. Disse que estava “indo” se matar, quando se
deparou com a roda e com o espetáculo. Afirmou que tinha rido muito e que isso o
havia enchido de esperança. Todos os integrantes conversaram com ele sobre isso, com
certa incredulidade. O grupo também não havia percebido, caso a história contada fosse
verdadeira, o impacto que um espetáculo pode ter na vida de uma pessoa. Os integrantes
do grupo, ao refletirem sobre isso, se deram conta da responsabilidade que é ir para a
rua apresentar um espetáculo. Na semana seguinte, o homem retornou para avisar aos
atores que havia arrumado um “bico” e que ele estava mais tranquilo. O fato de os
atores terem parado para escutá-lo foi o fundamental, a ponto de aquele senhor ter
voltado para dar “um esclarecimento” sobre si. Isso demonstra que, nessa relação, ainda
que temporária, foram estabelecidos laços afetivos e de confiança.
Há exemplos de obras que apenas provocam o público, embora, por causa da
forma como foram concebidas, elas não permitam interferência, fecham-se em si
mesmas e, evidentemente, bloqueiam a comunicação com os espectadores. Não raras
vezes isso é provocado pela inexperiência de quem está começando. A rua pede obras
porosas, à semelhança de uma bucha que, simultaneamente, absorve e expele água; ao
mesmo tempo que pode ser moldada sobre pressão, é capaz de retomar sua forma
original. Vale destacar um exemplo do próprio Buraco d`Oráculo: o espetáculo
ComiCidade, criado com base nas histórias do kiogen (pequenas farsas japonesas).
Dentre as quatro histórias, havia uma intitulada “Torre de barba”, que apresentava um
homem machista que submetia a mulher a maus tratos. Ela se unia às vizinhas para se
vingar. Nesse momento, as mulheres do público vibravam e indicavam maneiras de elas
se vingarem. Mas os atores faziam ouvidos moucos, pois o espetáculo havia sido
concebido de maneira fechada. Se fosse uma obra porosa, provavelmente as mulheres
do público entrariam em cena para ajudar as atrizes a se vingarem. Por essa limitação
essa é a obra menos apresentada do Buraco d`Oráculo.

3.2. Um Mingau de concreto servido por Pombas Urbanas

O grupo Pombas Urbanas nasceu em São Miguel Paulista, zona leste da cidade
de São Paulo, mas circulou bastante por toda a cidade. Ensaiou em uma escola no
mesmo bairro; ocupou o Parque Chico Mendes, no Itaim Paulista; utilizou uma sala no
Tendal da Lapa, na zona oeste; desenvolveu seus trabalhos em um apartamento no
ϭϮϱ


centro da cidade e em uma casa na Barra Funda, também na zona oeste. No entanto,
apesar de tantas mudanças, o grupo nunca perdeu de vista a sua origem, o seu território,
a sua gente. Adriano Mauriz, integrante histórico do grupo, em entrevista a mim
concedida em 16 de janeiro de 2011, deixou claro que o encaminhamento do grupo para
o centro da cidade visou à profissionalização e à afirmação junto à categoria teatral da
cidade. Nessa busca, o grupo realizou temporadas em alguns espaços consagrados:

Fizemos temporadas na Funarte [Fundação Nacional de Artes], no


TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], no Centro Cultural Elenko
KVA. Sem dúvida, foi uma ótima experiência, mas falávamos: “O que
estamos fazendo aqui?” Vinte pessoas em uma sala de espetáculo, que
depois iam comer sushi. [...] Não estava fazendo sentido a necessidade
de nos afirmarmos no circuito teatral. Na rua sim, fazia sentido.
Aquele monte de gente, que eram populares, gostavam, se divertiam,
participavam... Não ganhávamos um real, mas era maravilhoso!

O que Adriano Mauriz deixou transparecer nas entrevistas concedidas, assim


como os demais atores, é a necessidade de se estar com um público de igual condição
social e de mesma realidade. O que se queria era fazer teatro com os semelhantes, com
quem se pudesse relacionar e discutir, por meio do teatro, o que representava viver em
uma grande cidade. Portanto, o grupo esperava dessa relação momentos significativos
para ambos: público e atores.
Nessa busca, desde o começo de sua história, e devido às condições impostas, o
Pombas Urbanas realizava experimentos na rua. Em 1994, seus integrantes decidiram
levar situações do cotidiano para as ruas de São Miguel Paulista, de forma mais
sistemática. Cagadas Urbanas foi a denominação dada para esse projeto. Começaram
apresentando a experiência no bairro de origem; depois, conseguiram participar do
projeto Artes nas Ruas, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Assim,
levaram Cagadas Urbanas para outros pontos da cidade.
O projeto consistia em pequenas cenas, algumas já apresentadas, como Os
pássaros chorões; outras, como Buchudas, criadas para esse experimento, além de
cenas de Os tronconenses, primeiro espetáculo do grupo. Segundo Adriano Mauriz, em
entrevista já citada, a experiência não foi boa porque as cenas não haviam sido criadas
propriamente para a rua. No entanto, foi no projeto Artes nas Ruas que o grupo
descobriu o espaço aberto como possibilidade de pesquisa cênica. Dessa forma, o que

ϭϮϲ


era apenas uma experiência passou a ser estudado de maneira mais profunda. Dois anos
depois, várias cenas criadas foram reelaboradas e levadas para o espetáculo Mingau de
concreto. De certa maneira, a criação de Mingau de concreto, segundo Adriano Mauriz,
já vinha ocorrendo, sendo gestado desde as oficinas ministradas por Lino Rojas em São
Miguel Paulista, pois algumas personagens do espetáculo foram criadas naquele
processo. O que não existiam eram as situações nas quais essas personagens estavam
envolvidas.
Devido a essa pesquisa contínua, e ainda segundo Mauriz, o grupo sempre
esteve atento ao processo, herança deixada por Lino Rojas. O que ficou claro nas
entrevistas com os atores do Pombas Urbanas é que, além de contínuo, os processos se
misturam, isto é, um espetáculo “contamina” o outro. Marcelo Palmares, em entrevista a
mim concedida em 20 de janeiro de 2011, relembrou que, ao retomar os ensaios de
Mingau de concreto, o espetáculo Histórias para serem contadas modificou-se,
tornando-se mais solto.

Figura 6: Grupo Pombas Urbanas.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Juliana Flory, Marcelo Palmares, Ricardo Big, Natali Santos, Adriano Mauriz, Paulo Carvalho e
Marcos Kaju.

Em 1994, o Grupo ocupava a sala número 7 do Tendal da Lapa, espaço em que


seus integrantes desenvolviam os processos criativos, e os atores continuavam a residir
no bairro de São Miguel Paulista. Adriano Mauriz, na citada entrevista, relembra aquele
período:
Na época, estávamos lendo Funâmbulo de [Jean] Genet. Estudamos
também a vida do autor, que tinha sido menino de rua, abandonado.
Juntou com a história do Tendal da Lapa ter ficado abandonado e,
ainda nesse período, foram pro Tendal várias famílias de

ϭϮϳ


desabrigados: fazíamos teatro para essas pessoas. Lembro de crianças
vindo assistir teatro com uma galinha embaixo do braço... Lembro de
um aborto que teve por lá e a criança foi encontrada no lixo... Tudo
isso vira depois o Ventre de lona: uma criança abandonada em um
teatro abandonado. Não foi propriamente por causa do Tendal, mas
aquilo compõe a nossa vida.

As histórias de abandono marcaram vivamente os integrantes do Pombas


Urbanas. Sobre o abandono, Adriano Mauriz, na citada fonte, afirma:

Conversávamos muito sobre os acontecimentos vividos, e o Lino


[Rojas] tinha uma preocupação muito forte com o entorno e as pessoas
dali. Ele já havia trabalhado com meninos de rua, e observava muito a
rua e quem a ocupava. Havia interesse sobre o abandono. Fomos,
então, para um galpão abandonado [Tendal da Lapa], morávamos em
um bairro abandonado pelo Estado [São Miguel Paulista]. O Lino foi
por opção, mas aquela era a nossa realidade mesmo.

O processo de consciência da origem e de suas mazelas foi fruto do trabalho


desenvolvido com Lino Rojas. Desde o início, o diretor instigava os atores a se
conhecerem, a buscarem suas raízes, tanto no momento de criação como nas rodas de
conversas que iniciavam e encerravam os trabalhos por ele coordenados. Lino Rojas
tinha consciência que as fronteiras latino-americanas não o impedia de ver o continente
como um só, de modo semelhante à declaração dada ao jornalista cubano Andrés D.
Abreu, de o Granma, em 26 de setembro de 2001:

Yo pertenezco a una generación que no vió las fronteras como límites


de nuestros países latinoamericanos. Generación a la que la
Revolución cubana dejó clara la idea de que América Latina es una
sola. Soy de esos que mantiene en vivo la utopía de esos años.

Conocer São Paulo fue encontrar un lugar donde estaban enraizados a


profundidad todos los problemas culturales, raciales y sociales
comunes a nuestros países (Lino Rojas apud ABREU, 2001: 6).

Portanto, Lino Rojas apresentava o grupo social que lhe interessava trabalhar:
marginalizados pelo poder vigente. Tratava-se de reconhecimento, porque se sentia
parte desse grupo. Esse mesmo compromisso foi mantido pelos jovens com quem o
diretor conviveu por quinze anos.

ϭϮϴ


No decorrer do processo de criação de Mingau de concreto alguns integrantes do
grupo andavam pelo centro da cidade, devido à profissão que exerciam. Adriano
Mauriz, por exemplo, era office boy, o que o obrigava a circular pelo centro de São
Paulo, observando as situações e as “personagens” daquele lugar.
A constatação do abandono, a observação das pessoas no centro da cidade e as
formas relacionais de músicas bregas deram origem às personagens Perfume Francês,
Kelly Cratera, Lady Dá, Chiclete de Onça, Evita Peido Fino, Quitéria das Dores,
Ifigênia, Lucinha Pureza e Chin Chon, “[...] um chinês do Paraguai interpretado por
Lino Rojas” (SILVESTRE, 2009: 70). Chin Chon era uma espécie de mestre de
cerimônias que apresentava as personagens e, ao mesmo tempo, cuidava do ambiente,
protegendo os atores. O espetáculo foi apresentado inúmeras vezes no chamado
Boulevard da Avenida São João (centro da cidade), entre os Correios e o antigo
Conservatório Dramático de São Paulo (espaço em que Mário de Andrade deu aulas de
piano).
O processo de criação desse espetáculo ocorreu em espaço aberto, às vezes na
área externa do Tendal da Lapa, às vezes no Boulevard da Avenida São João. Nos
momentos em que estavam construindo as cenas, quem ficava de fora provocava quem
estava dentro, em busca permanente pelo jogo. Adriano Mauriz, na entrevista já citada,
recordou-se de que o grupo observava muito os artistas de rua, como Hélio Santiago,
que se vestia de mulher e trabalhava com a esposa e o filho. O filho e a esposa do artista
vendiam pomadas (o filho fora da roda e a esposa dentro, com Hélio Santiago).
Impressionava, segundo Mauriz, a capacidade que o artista tinha de se relacionar com as
pessoas, próximas e distantes. Mauriz lembra que “[...] ele pegava as coisas da cidade e
colocava na roda” e o momento em que passava o chapéu era o instante em que o artista
fingia estar muito bravo com todos os que lhe assistiam: “Ele ‘oprimia’ o público para
dar dinheiro pra ele. Tudo teatro!” Hélio Santiago, segundo Mauriz, participou duas
vezes das rodas abertas por Mingau de concreto.
Terceiro espetáculo do Pombas Urbanas, Mingau de concreto estreou em 14 de
junho de 1996, com apresentações até julho de 2002. Nove anos depois, o grupo decidiu
retomar o espetáculo, cuja reestreia ocorreu em 5 de março de 2011, na Cidade
Tiradentes, no espaço interno do Centro Cultura Arte em Construção, devido ao mau
tempo. Na primeira versão, faziam parte os atores Adriano Mauriz, Juliana Flory, Kátia
Alexandre, Lino Rojas, Marcelo Palmares, Marta Guedes e Paulo Carvalho Jr. Hoje,
ϭϮϵ


com a ausência de Kátia Alexandre, Lino Rojas e Marta Guedes, incorporaram-se ao
espetáculo Marcos Kaju, Natali Santos, Ricardo Big e Thábata Letícia.
O espetáculo é dividido em oito cenas independentes cuja narrativa episódica
aborda a questão do abandono, da sexualidade e a falta de humanidade daqueles que
organizam a cidade. As personagens pertencem a um mundo negado pela cidade ou por
aqueles cidadãos que nela habitam e reforçam a ideologia dominante. Assim,
desfilavam na realidade apresentada pela peça – e no território no qual estavam
inseridos atores e público no momento de sua criação –, prostitutas, travestis,
negociantes de crianças, valentões, entre outros. O grotesco revela-se nos nomes das
personagens, com funções alegóricas sobre o que fazem essas figuras, negadas e
condenadas pela sociedade, mas que existem, têm vida e histórias amargas, difíceis e
comoventes.

Figura 7: Apresentação no Boulevard da Avenida São João – São Paulo/SP.

Fonte: Arquivo do grupo – Foto: Jonhata Cruz.


Atriz: Juliana Flory como Kely Cratera em cena de Mingau de concreto, espetáculo apresentado na 6a
Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas.

Uma das características fundamentais do teatro de rua é não instaurar hierarquias


entre os atores e o público. Assim, durante a temporada realizada no centro da cidade, a
prostituta da cena era assistida por prostitutas reais; travestis assistiam a si mesmos em
ϭϯϬ


cena, podendo interferir na cena e chegando a contribuir, inclusive financeiramente
algumas vezes, com cheques de seus clientes (SILVESTRE, 2009). Essas personagens
em cena representam uma espécie de grito daqueles cidadãos que compunham a roda,
não obstante, negados socialmente, mas que a cena carnavalizada com o riso festivo,
realçava toda a sua humanidade. Há, portanto, um rebaixamento do mundo dito
superior, que nega aquelas pessoas e situações, mostrando que não há seres acabados,
superiores. Dessa forma, remetem ao utópico, “[...] um mundo em plena evolução no
qual estão incluídos os que riem” (BAKHTIN, 1987: 11). Segundo Mikahil Bakhtin,
não há exclusão na cultura popular, ela é sempre inclusiva.
Apesar de o autor dessa dissertação ter assistido a diversas apresentações desse
espetáculo, a referência apresentada na sequência está relacionada à função realizada em
24 de novembro de 2011, no Boulevard da Avenida São João, inserida na 6a Mostra de
Teatro de Rua Lino Rojas56. O espetáculo ocorreu no mesmo lugar onde o grupo
costumava apresentar-se, mas a cidade passou por inúmeras transformações. Neomísia
Silvestre, no livro sobre os vinte anos do grupo Pombas Urbanas, afirma:

Todos os frequentadores do Boulevard ficaram amigos do grupo, que


chegava com antecedência para preparar o espaço da apresentação e
muitas vezes até lavavam o chão. Ligavam o som bem alto e
iniciavam o preparo do Mingau com cantoria, paquera e brincadeiras
direcionadas a um possível público do espetáculo. O antigo Boulevard
ficava em frente ao Conservatório Dramático Musical, que abrigou a
Semana de Arte Moderna de 22 [sic]. Nas redondezas, havia um
prostíbulo; o Cine-Saci; o Teatro Pornô; a Livraria Bom Pastor, de
temática evangélica; o DJ Bolinha, que vendia CD pirata; o salão de
cabeleireiro Corte Chique e o peruano que vendia pulseirinha. Todos
se tornaram amigos do grupo. Quando a apresentação estava para
começar, esses comerciantes do calçadão, formais e informais,
criavam condições que favoreciam e apoiavam o espetáculo; além de
ceder tomada, guardar o material cênico e improvisar banheiros e
camarins. (2009:78)

56
A Mostra é uma realização do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo em parceria com a Secretaria
Municipal de Cultura da cidade de São Paulo e outras instituições. A programação ocorreu entre os dias
18 e 26 de novembro de 2011, homenageando Ilo Krugli e o Teatro Ventoforte, grupo com 38 anos de
existência. A Mostra contou também com a participação, por ordem de apresentação, do Teatro do
Imaginário (São Luís/MA), Teatro Ventoforte (São Paulo/SP), Grupo Ô Minha Gente (Jacareí/SP), Teatro
do Imprevisto (São José dos Campos/SP), Grupo Chão (São Paulo/SP), Cia. Forrobodó de Teatro e
Cultura Popular (São José do Rio Preto/SP), Cia. 43 de Teatro (São Bernardo do Campo/SP), Grupo
Mototóti (Porto Alegre/RS), Grupo Imaginário (São Paulo/SP), Nativos Terra Rasgada (Sorocaba/SP),
Pombas Urbanas (São Paulo/SP), Circo Navegador (São Sebastião/SP), Teatro de Caretas (Fortaleza/CE)
e Trupe Olho da Rua (Santos/SP).
ϭϯϭ


Hoje, a região está bem diferente: não existe mais a Bom Pastor, onde era o
Corte Chique há uma galeria de artes – a Soso Espaço Cultural. O Conservatório, que
passa por reformas, está sendo agregado à Praça das Artes, conjunto cultural imenso,
com duas entradas, uma pelo Vale do Anhangabaú, outra pela Avenida São João. Mais
acima do espaço em que o grupo se apresentava ainda estão lá os camelôs, e as
prostitutas ainda resistem em seus pontos habituais. Mas a região passa por
transformações, chamadas pelo poder público de “revitalização”, cujo principal objetivo
é a ideia de vender a cidade para turistas internacionais. Afora isso, o público que
prestigiava o espetáculo ainda é o mesmo, constituído de legiões de trabalhadores.
É impressionante a observação atenta do público em relação ao espetáculo no
espaço em que ele foi criado. As músicas utilizadas, que aos ouvidos “mais sensíveis”
podem parecer grosseiras, são um elemento extremamente aglutinador das pessoas
comuns. A preparação dos atores, por exemplo, é iniciada com músicas de Caju e
Castanha, dupla de emboladores que, desde a infância, tocavam nas feiras nordestinas
com pandeiros improvisados a partir de latas de goiabada e hoje são contratados da
gravadora Trama Music. Caju e Castanha, apesar de gravarem forró, permanecem com
suas letras em forma de embolada.
A preparação é o momento da maquiagem e do jogo dos atores com o público, é
também o momento de conquista do espaço na cidade, em meio a uma disputa acirrada,
e, ao mesmo tempo, a criação de um espaço cênico. É o momento de transpor para
aquele espaço físico uma arquitetura irreal, criada com base nas figuras que se
apresentam em nova circunstância. Algumas músicas utilizadas são bastante veiculadas
pela indústria cultural, outras nem tanto, possibilitando, com isso, a inserção de
novidades em meio ao bombardeio midiático.
As figuras/atores que se “montam” aos olhos de todos são um espetáculo à parte.
Ao mesmo tempo, tem-se a possibilidade de estabelecer a relação, a empatia com todos
os presentes naquele espaço. É o momento de aquecer o público, o que é feito quase
sem diálogo57. São gestos insinuantes ou falas ao “pé do ouvido”, para três ou quatro
pessoas. Cada ator ocupa um pequeno tapete, dispostos em círculo, formando uma


57
Aquecer o público, para quem trabalha com teatro de rua, é a relação que se estabelece antes de o
espetáculo começar, seja como ator ou como personagem. Trata-se de um momento muito importante,
pois, de certa forma, um bom aquecimento de público tende a resultar em boa relação durante todo o
espetáculo.
ϭϯϮ


grande roda. Existe certo estranhamento em relação às personagens, mas, ao mesmo
tempo, grande curiosidade.
No dia 24 de novembro, os garis (profissionais que recolhem o lixo em carrinhos
no centro da cidade), que trabalham em dupla, presenciaram o espetáculo. Os
trabalhadores da Praça das Artes colocavam-se nas janelas para ver do alto o que se
passava lá embaixo. Na roda, havia mais de 400 pessoas. O espetáculo foi inundando
todos os sentidos: a audição, por meio das músicas; o visual, por meio das personagens;
e do olfato, pois o cheiro de perfume barato inundava o ar. Já na preparação é possível
vislumbrar todo o potencial do espetáculo: instaura-se um ar de liberdade que rompe
com todos os padrões impostos pela sociedade e pela organização da cidade. Risos os
mais diversos: nervosos, de felicidade, de estranhamento. O poeta Ray Lima, do
Movimento Popular Escambo Livre de Rua, do Ceará, que acompanhou o espetáculo
nesse dia, ficou impressionado com a preparação, pois, para ele, a preparação foi um
grande momento do espetáculo. Marcos Madeirinha, morador de rua que trabalha com
artesanato, no debate após o espetáculo, realizado ali mesmo no Boulevard, fez questão
de falar: “Nós conquistamos o Boulevard da São João. E é isso, o teatro tem de
representar a nossa realidade”.
Após a preparação, as personagens são apresentadas. Na primeira cena, os atores
montam uma espécie de “trem”, com destaque para Kely Cratera (Juliana Flory), uma
mulher que exala sensualidade, embora esteja completamente vestida. Ela submete o
conquistador Perfume Francês (Adriano Mauriz) a seus caprichos. A cena é quase toda
mimada, com poucas falas. Em um vídeo cedido pelo grupo sobre a apresentação
realizada no 9o Festival de Teatro de Curitiba, em 2000, é possível ouvir Lino Rojas
dizer: “O trem, em São Paulo, é um triturador de carne humana.” Pelo fato de a
narrativa ser aberta, o modo como a fala foi dita no decorrer da cena demonstra a ideia
de jogo, considerando que os elementos podem ser acrescentados ou excluidos,
conforme a necessidade. Em todas as demais apresentações presenciadas, não constava
mais essa fala.
Do trem, destacam-se Quitéria das Dores (Thábata Letícia) e Ifigênia (Natali
Santos), que se buscam na roda, até se encontrarem. Ambas, nordestinas, apresentam
histórias de abandono e de maus tratos. A primeira viu na cidade grande e na venda dos
filhos a solução para seus problemas, por isso chamou a segunda para a cidade grande
para “incrementar o seu negócio”. Após melhorar a aparência de Ifigênia e arrumar um
ϭϯϯ


suposto pai para o filho que traz na barriga – escolhido entre aqueles que assistem ao
espetáculo –, Ifigênia sente as dores do parto e é abandonada pela amiga. Seu filho
nasce na rua e é recolhido por outro menino de rua, que lhe oferece cola como alimento:
“Essa cena acontece todos os dias em São Paulo e ninguém faz nada!”, afirma o coro de
atores. A cena é igualmente impactante e bela. Os atores correm à procura de um
médico. Paulo Carvalho assume a postura em forma de maca, a atriz fica na posição de
parto, com um tecido vermelho à mostra. Nesse momento, Adriano Mauriz (criança) dá
uma cambalhota por baixo das pernas de Paulo Carvalho e puxa o tecido vermelho,
como se fosse o cordão umbilical. A criança chora.

Figura 8: Apresentação no Boulevar da Avenida São João, década 1990.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Ator: Adriano Mauriz no papel de uma criança, em cena de Mingau de concreto. Ao fundo, à esquerda,
Lino Rojas como Chin Chon.
Espaço localizado em frente ao Conservatório Dramático de São Paulo, todo pichado. Onde os atores
estão era um círculo de concreto que nivelava o solo e, ao lado, havia torres com iluminação. Por isso, era
um lugar propício para as apresentações teatrais. Atualmente, nem o círculo nem as torres existem mais.

Na sequência, é apresentada a cena das crianças, abordando a primeira


menstruação de uma menina e as possíveis primeiras relações sexuais dos jovens. Na
verdade, não se encena uma relação sexual; apenas apresentam-se diversas brincadeiras
que tornam possíveis tais ilações. Trata-se de uma cena educativa muito divertida.
ϭϯϰ


Juliana Flory, em entrevista a mim concedida em 1o de fevereiro de 2011, afirmou que,
no decorrer da longa temporada, muitos foram os pais que agradeceram pela cena, pois
não sabiam como falar com os filhos sobre o assunto.

Figura 9: Apresentação no Boulevard da Avenida São João, década de 1990.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Juliana Flory (menina) e Paulo Carvalho (menino travestido de menina para enganar a mãe da
amiga) em cena de Mingau de concreto. Ao fundo, a Livraria Bom Pastor.

Após a cena das crianças entram duas “emergentes” (novas ricas) que vão ao
centro da cidade para fazer caridade, e aproveitam para “dar” outras coisas. A cena,
segundo Adriano Mauriz, em entrevista a mim concedida em 16 de janeiro de 2011, foi
modificada após um fato ocorrido durante o processo de criação. Uma assistente social,
após ter cuidado e dado banho em um morador de rua, conhecido como Pelezão,
manteve relações sexuais com ele: “O caso ficou famoso na época”. E, ainda segundo o
ator, “[...] as sofredoras viraram duas ricas que vão fazer caridade e querem dar.” Por
conta disso, percebe-se que à conotação inicial outra se justapôs, conferindo duplo
sentido ao verbo dar. A cena finaliza com a entrada de um pastor (Marcos Kaju) que
tenta convertê-las, mas elas afirmam que a igreja do pastor é apenas para pobres.
Entram dois “malucos”/“drogados” (Adriano Mauriz e Marcelo Palmares), e o pastor
também tenta convertê-los. A todo instante, os “malucos” perguntam qual é a droga do
pastor, pois este, na concepção dos dois, está muito “doido”. Ao final da cena, o
convertido é o pastor. Talvez seja essa a cena mais confusa do espetáculo. Embora
importante, pois desmascara o poder que o pastor teria em exorcizar certos demônios,
ela fica diluída pela loucura dos dois “drogados”. E a questão da droga não é abordada
na cena.

ϭϯϱ


A cena seguinte é a de Evita Peido Fino, travesti argentino que faz dublagem da
música I will survive, de Gloria Gaynor. A personagem é representada por Carlos Big e,
no auge de sua apresentação, entra o ator Paulo Carvalho, de paletó e gravata – o que
foge à concepção de todos os figurinos apresentados até então – e começa a espancar o
travesti. Todos os demais atores seguram Paulo Carvalho, afirmando que se trata de
teatro, e que o rapaz que dança e dubla é um artista. O truque funciona e causa mal-estar
geral no público, que não fica impune à força da cena. Segundo relatos dos integrantes
do grupo, houve apresentações em que pessoas do público entraram em cena para bater
no ator Paulo Carvalho (Cf. SILVESTRE, 2009). Na apresentação realizada em 24 de
novembro de 2011, era possível ouvir pessoas do público esbravejando e chamando o
ator para lutar, fora do espaço cênico. Foi preciso esperar um pouco para que o jogo
teatral se refizesse. Mesmo sendo teatro todo o tempo, o público é surpreendido de tal
maneira que o tom de brincadeira não é recuperado imediatamente.
O desdobramento da cena é precisamente o encontro de dois “machões”. Paulo
Carvalho diz impropérios ao público, chamando Evita Peido Fino de “viado”,
perguntando “como fica a família” e se “não há homem naquele lugar”. Entra Marcelo
Palmares, que representa outro valentão, Chiclete de Onça, afirmando que vai lutar com
Paulão. O jogo teatral se restabelece. O desenrolar da cena leva à revelação de que os
dois “machões”, na verdade, são dois travestis – Lady Dá e Giglione –, que resistem à
revelação, mas são instados por meio de gritos do público (“Assume! Assume!”) a
reconhecer sua condição homossexual perante todos. Na cena, travam um diálogo sobre
o mundo dos travestis e, ao final, Giglione (Paulo Carvalho) vai procurar no público um
namorado para Lady Dá (Marcelo Palmares). Em debates realizados após o espetáculo,
os atores afirmaram que muitas vezes, nesse momento do espetáculo, as pessoas iam
embora. A realização da cena, e alguém ter aceitado entrar na brincadeira, demonstra,
de certo modo – no entender dos atores –, mudança de comportamento na sociedade.
O espetáculo faz com que todos se coloquem diante dos próprios preconceitos. À
primeira vista pode parecer que determinadas questões soem preconceituosas ou que
elas funcionem como elemento reforçador de uma ideologia dominante. Exemplo disso
é o momento em que apresentam a nordestina (miserável e grávida do 13o filho) ou os
travestis com seu linguajar chulo. Mas, analisando o espetáculo e observando as pessoas
atentamente, é possível perceber que as questões são lançadas para o público, que terá
de lidar com o próprio preconceito. A clareza e o posicionamento dessas questões só
ϭϯϲ


foram possíveis porque o espetáculo foi apresentado no lugar em que ele foi criado. É
evidente que isso não o caracteriza como um espetáculo apenas da Avenida São João,
mas de todos os lugares do Brasil, afinal o preconceito está em todas as pessoas e em
todos os lugares. Havia no público um misto de espanto, alegria e horror, característico
da estética grotesca.
O que o grupo Pombas Urbanas propõe com esse espetáculo é o enfrentamento
das questões preconceituosas que todos carregamos, que devem ser encaradas com
extrema liberdade: o espetáculo transforma-se em festa. Cria-se uma espécie de espaço
utópico, sem abandonar a realidade; ao contrário, ela é levada à cena, em forma de jogo,
em que a maioria das pessoas têm de enfrentar os próprios demônios. Parafraseando
uma das falas mais recentes de Amir Haddad: “O espetáculo organiza o mundo, não é
organizado por este”. Dito de outro modo, o grupo faz espetáculos para os valores
éticos, estéticos, ideológicos deste mundo, que podem ser modificados. Trabalham no
presente visando o futuro. “Procuram recuperar para o teatro a sua vocação pública
perdida” (HADDAD, 2008: 155).

Figura 10: Apresentação no bairro de Cidade Tiradentes, em São Paulo (SP), 2011.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Adriano Mauriz e Marcelo Palmares (malucos), Natali Santos e Juliana Flory (motos) em cena de
Mingau de concreto.

Mingau de concreto é também um grito pelo direito à cidade, na acepção


proposta por Henri Lefebvre (2010), isto é, de participação e construção da mesma, com
vistas ao seu usufruto e pelo direito de ir e vir a todos os espaços e por todos os
cidadãos, sobretudo aqueles que a sociedade finge não ver. Atores e público, apesar de
construtores da cidade no sentido material, têm a cidadania negada. Mas no momento
do espetáculo esses mesmos atores e público podem criar outro tempo-espaço,

ϭϯϳ


requerendo a cidade para si, valendo-se das práticas simbólicas e sociais, pois eles
podem se colocar no espaço do jeito que quiserem, relacionando-se com ele de forma
horizontal. Assim, os espectadores despem-se da condição de marginalizados, podendo
desconstruir ou desnaturalizar os preconceitos impostos por uma ideologia dominante e
perversa.
Como afirma Mikhail Bakhtin (1987), se o carnaval nas praças medievais e
renascentistas abolia, ainda que provisoriamente, as diferenças, as hierarquias, as regras
e os tabus, ao mesmo tempo que criava uma comunicação “[...] ideal e real entre as
pessoas”, comunicação essa “[...] impossível de estabelecer na vida ordinária” (1987:
14), Mingau de concreto atinge essa comunicação (por relatos de seus integrantes, não
apenas no dia ao qual nos referimos no início), tanto no centro da cidade de São Paulo
como em tantos outros lugares. O espetáculo somou mais de trezentas apresentações só
na primeira versão. Com sua reestreia esse número só tem aumentado. Segundo
Neomísia Silvestre:
Nunca botaram o grupo para correr, mas a peça sempre causava
polêmica por onde passava. Os espaços teatrais não aceitavam o
Mingau [de concreto] por ser um espetáculo que falava sobre o que
ninguém queria ouvir, muito menos ver. [...] Então, a rua os acolhe, e
o tratamento para com ela era de uma relação intensa e carinhosa
(2009: 79).

Por fim, assim como Silvestre (2009), pode-se afirmar que ainda é uma relação
carinhosa e que a rua e o público continuam a lhes acolher.

3.3. Histórias de Joãos e Josés que lutam diariamente na cidade grande

Nas entrevistas coletadas, os integrantes do grupo Pombas Urbanas que estão


desde o início de sua formação – Adriano Mauriz, Marcelo Palmares e Paulo Carvalho –
afirmam que sempre pensaram em voltar às origens, e essa vontade se manifesta
também por meio de seus projetos, como o Bakirivú58, cujo objetivo era criar um
espetáculo de rua com base na “[...] memória do cidadão paulistano”, como afirma o
texto da peça gráfica, produzida no intuito de captar recursos. Do projeto Bakirivú
constavam também oficinas de teatro em bairros populares antigos, como São Miguel

58
Bakirivú, até onde se pôde apurar, era o nome do Rio Tietê, dado pelos Guainás que habitavam a
Aldeia de Ururaí (São Miguel Paulista/SP).
ϭϯϴ


Paulista (1580), Santo Amaro (1560) e Freguesia do Ó (1618). O Projeto Bakirivú não
chegou a ser realizado porque o grupo não conseguiu captar nenhum recurso. No
entanto, alguns anos depois, outro projeto – Da comunidade ao teatro, do teatro à
comunidade – foi contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de
São Paulo, possibilitando o retorno do grupo à zona leste. Apesar da vontade de retornar
às origens, e também porque a vida é repleta de contradições, Marcelo Palmares, em
entrevista a mim concedida no Centro Cultural Arte em Construção, em 20 de janeiro de
2011, conta um pouco desse processo contraditório.

Figura 11: “O homem que virou cachorro”.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Ator: Marcelo Palmares em cena de Histórias para serem contadas.

Em 2003, o grupo realizava a montagem do espetáculo criado com Lino Rojas,


Largo da Matriz, um “mergulho” na alma do caipira. O espetáculo retomava algumas
proposições do projeto Bakirivú e era, como gostam de afirmar os atores, “[...] um
presente a São Paulo em seus 450 anos” (o espetáculo foi apresentado em janeiro de
2004). Poucos meses antes, o grupo havia recebido um convite para ir à Colômbia, onde
conheceram a sede do Corporación Nuestra Gente Cultural, na cidade de Medellín. O
Nuestra Gente Cultural havia transformado um bordel em espaço cultural para a
comunidade. A viagem contaminou ainda mais os integrantes do Pombas Urbanas,
surgindo o desejo de trabalhar nas comunidades. Naquela época, o grupo tinha uma sede
na Barra Funda. Marcelo Palmares relembra os questionamentos do grupo pelo fato de
estarem na Barra Funda, região ainda muito central, e afirma: “Nós moramos cinco anos
ϭϯϵ


no centro e não havíamos feito um amigo!” Por isso o desejo de voltar a trabalhar junto
às comunidades.
Ao retornar da Colômbia, o projeto apresentado pelo grupo à comissão
responsável pela seleção dos trabalhos a serem custeados pelo Programa Municipal de
Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo foi escolhido, o que permitiu o retorno
do grupo às origens, ao bairro. No projeto apresentado constava a ocupação de um
galpão em Itaquera, que vinha sendo negociado com a Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). O objetivo era ocupar o galpão
por dois anos, ministrar aulas de teatro para os jovens e capacitá-los para que
continuassem administrando o espaço. Mas o galpão em Itaquera era ocupado por uma
associação espírita, e o grupo julgou por bem não misturar as coisas, por sentir certa
resistência dos religiosos em dividir o espaço. O CDHU, então, ofereceu outro galpão
em Cidade Tiradentes.
Havia toneladas de lixo no espaço de 1.600 m², uma enorme dívida de água e
completamente destelhado. Marcelo Palmares relembra da conversa com Lino Rojas:
“O que vocês acharam?”, perguntava o mestre. “Ah!, não tem condições, Lino!” Ao que
Lino respondia: “Vocês não estão entendendo... se a gente quer fazer teatro, o teatro que
a gente faz, as histórias estão aqui”. Retrucaram que era longe. Mas Lino Rojas insistia:
“Longe do quê? Vocês eram de São Miguel Paulista”. Ocuparam o galpão ainda em
2004 e, em claro manifesto, deram-lhe o nome de Centro Cultural Arte em Construção
(CCAC).
Deram adeus ao espetáculo Largo da Matriz, com mais de trinta pessoas –
muitos com sonhos de estrelato – e aportaram em Cidade Tiradentes. Natali Santos e
Ricardo Big, que se aproximaram do Pombas Urbanas no processo de Largo da Matriz,
acompanharam o grupo. Marcelo relata que ainda resistiram por quatro meses, levando
duas horas para chegar ao galpão e mais duas para retornar à casa, na Barra Funda.
Depois mudaram para Cidade Tiradentes.
Em 2005, com a perda de Lino Rojas e sem espetáculos em repertório, o grupo
resolveu se dedicar à estruturação do CCAC, em permanente relação com a
comunidade, por meio de oficinas e pequenas intervenções realizadas na feira livre de
domingo, próximo ao galpão. Marcelo Palmares relembra que começou a haver boatos
de que o Pombas Urbanas havia acabado. Ele lembra ainda do telefonema de Cícero
Almeida, do Teatro Popular União e Olho Vivo, em nome do Movimento de Teatro de
ϭϰϬ


Rua de São Paulo (MTR/SP), informando que o MTR/SP iria realizar uma mostra de
teatro e queriam homenagear Lino Rojas. A única solicitação por parte da família de
Lino Rojas é que tivesse alguma ação descentralizada, o que era também intenção do
MTR/SP. Assim, o encerramento da 1a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, ocorrida
em 2006 – e das edições subsequentes – ocorreu em Cidade Tiradentes. O grupo
Pombas Urbanas, sem espetáculo, começa a preparar cenas de Mingau de concreto para
serem apresentadas aos participantes da Mostra. Marcelo Palmares recorda com
empolgação o momento após a apresentação para os participantes da Mostra Lino
Rojas: “É isso que a gente sabe fazer! É isso que a gente tem de fazer. Precisamos estar
com essa gente. Precisamos voltar a fazer teatro. Vamos procurar um texto”.

Figura 12: Histórias Para Serem Contadas.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Paulo Carvalho (Dentista) e Juliana Flory (Mulher), no centro da roda. Ao fundo, Marcos Khaju
assiste à cena.
Como na rua não há coxia, estabelecem-se as convenções no espaço cênico, determinando o que é e o que
não é esse espaço. Pela convenção, ir para trás da arara de figurinos simboliza estar fora de cena. Há
casos em que os atores apenas se agacham, convencionando que a personagem saiu de cena. No entanto,
mesmo a personagem estando fora de cena, o ator nela permanece pela ausência de coxias.

A empolgação era grande por parte de todos os integrantes, decididos a


retomarem o teatro de rua. O próprio Lino Rojas já havia falado de alguns textos, outros
haviam sido lidos, como Histórias para serem contadas de Osvaldo Dragún. Os
integrantes queriam que fosse alguma história que estabelecesse alguma relação com
Cidade Tiradentes. Ao relerem o texto de Dragún, reconheceram nas histórias e nas
condições expostas uma clara relação com as pessoas da Cidade Tiradentes.
Convidaram Hugo Villavicenzio para dirigir o espetáculo. Quanto à direção, todos os
atores, nas entrevistas a mim concedidas, são unânimes em afirmar que Villavicenzio
foi muito corajoso por ter aceitado dirigi-los. Talvez outros diretores não tivessem
ϭϰϭ


aceitado tal convite pelo fato de o grupo ter sido dirigido única e exclusivamente pelo
Lino Rojas ao longo de quinze anos.
Villavicenzio era amigo de Lino Rojas, trabalharam juntos no Peru no grupo
Cuyac – Cultura y Rebelión (1975-1978)59; no entanto, não tinha experiência com o
teatro de rua, por isso, apesar de importante, não foi um processo fácil. Marcelo
Palmares lembra que “[...] apanharam um pouco na rua com a criação, até que a própria
rua foi modificando o espetáculo”. Mas do que trata Histórias para serem contadas?
O espetáculo apresenta três histórias de pessoas comuns, com uma discussão e
uma crítica aos trabalhos precarizados, apresentando os trabalhadores na luta diária pela
sobrevivência; pessoas simples, quase sempre engolidas pela ferocidade do capitalismo.
Assim, por falta de emprego melhor, vemos um homem virar cachorro. De início,
apenas uma imitação que, aos poucos, vai se transformando, até assumir, de fato, a
animalidade canina. Uma crítica mordaz aos subempregos tão frequentes na cidade de
São Paulo, destinados à população periférica. Como relembra Marcelo Palmares, na
referida entrevista: “Aqui [Cidade Tiradentes], ouvimos histórias de pessoas que ficam
cinco horas dentro de um ônibus lotado, todos os dias”.
A precarização é um problema mundial. Vários são os autores que têm tratado
da crise generalizada do emprego, submetendo os trabalhadores a condições cada vez
piores (Cf. OLIVEIRA, 2005; POCHMANN, 2006). Na história apresentada pelo
espetáculo, o empresário gosta muito de um cachorro que havia morrido. Por isso, ele
procura alguém para substituir o animal. O trabalhador, em busca de emprego, recusa a
oferta em um primeiro momento, mas sua condição de vida o impele a aceitá-la: quer
constituir família e precisa pagar as contas. Com o tempo, se vê apartado de sua
companheira, seu amor, por não conseguir pagar as contas, e vai viver no trabalho: a
casinha do cachorro. As condições materiais precárias e as condições sub-humanas de
trabalho fazem com que o homem adquira, cada vez mais, características caninas. A
cena demonstra que o apartar-se das relações sociais humanizadas animaliza as pessoas,

59
Valmir Santos, que realizou uma pesquisa sobre Lino Rojas no Peru, afirma que “Villavicenzio e Rojas
participavam ativamente do movimento estudantil. Ambos militavam no Cuyac – Cultura y Rebelión
(1975-1978). A expressão quéchua “cuyac” significa “o que ama”, codinome de um poeta guerrilheiro
executado por forças militares, o limenho Eduardo Tello (1942-1965). O Cuyac brandia a revolução por
meio da cultura, levava atividades aos operários nas minas e à população menos desfavorecida. Exibia
documentários, recitava poemas, apresentava esquetes teatrais.” Disponível em:
http://www.portalabrace.org/vreuniao/textos/territorios/Valmir%20Santos%20-
%20A%20milit%E2ncia%20cultural%20nas%20forma%E7%F5es%20pol%EDtica%20e%20art%EDstic
a%20de%20Lino%20Rojas.pdf. Consultado em: 07/11/2011.

ϭϰϮ


é uma demonstração de que não basta nascer entre os humanos para ser um deles. É
preciso humanizar-se, como afirmou Karl Marx:

[...] Somente através da riqueza objetivamente desenvolvida do ser


essencial do homem se cultiva ou nasce a riqueza da sensibilidade
subjetiva humana (...). Porque não somente os cinco sentidos, mas
também os chamados sentidos espirituais – os sentidos práticos
(vontade, amor etc.) –, numa palavra, o sentido humano (...) se
constitui pela existência do seu objeto, pela existência da natureza
humanizada (2010: 135. Grifo do autor).

O que vemos na cena apresentada pelo ator Marcelo Palmares é um homem


apartado do convívio humano, afastado do mundo social. Dessa forma, até o modo de
ele fazer amor não é mais humano, e seu “carinho” é demonstrado por meio de
mordidas e uivos. Se tomarmos a própria construção de Cidade Tiradentes, será possível
perceber essa apartação social, que, desde o início de sua formação, não levava em
conta nenhuma infraestrutura. Um espaço, como afirma Raquel Rolnik (2002), sem
variedade social, ao se referir aos conjuntos habitacionais populares, cujos moradores
são obrigados a atravessar a cidade, depois de um dia exaustivo, para descansar um
pouco.
Outra narrativa do espetáculo Histórias para serem contadas é a do camelô que
é acometido por uma terrível dor de dente. Considerando que ele ganha a vida “no
grito”, à medida que a dor vai aumentando, ele vai ficando sem condição de trabalhar.
Ao procurar o sistema público de saúde, ele é encaminhado de um lugar para outro, sem
que ninguém solucione seu problema. Desse modo, o camelô é levado a uma condição
cada vez pior: um vendedor que não pode falar; portanto, sem condições de ganhar a
vida. Por conta do agravamento do problema, que transcende a dor de dente, o camelô
se vê obrigado a procurar o sistema de saúde particular. Duas situações muito comuns
não só em São Paulo, mas em todo o Brasil: ao perderem o emprego, inúmeras pessoas
se veem obrigadas a trabalhar na informalidade, perdendo direitos básicos do
trabalhador. Se na cena vemos um trabalhador lutando para se manter saudável e
continuar trabalhando, ao olharmos para a realidade social, não percebemos muita
diferença. Afinal, “no mundo do desemprego estrutural ninguém pode se sentir
verdadeiramente seguro” (BAUMAN, 2001:185).

ϭϰϯ


Apesar de a história não apresentar a trajetória do camelô até aquele momento, é
possível perceber que a situação em que vive não foi escolhida por ele. Afinal, ele não
pode resolver seu problema, sendo espoliado por um dentista que, ao solicitar exames
caríssimos, piora ainda mais seu estado de saúde. Os exames não são indispensáveis
para o bom tratamento, mas uma forma de o dentista ganhar mais dinheiro. Em casa, a
situação do trabalhador também é pouco compreendida. A mulher trabalha como
doméstica e quer que o marido leve dinheiro para casa. Juliana Flory, em entrevista a
mim concedida em 1o de fevereiro de 2011, ao falar sobre um suposto preconceito de
como a mulher é abordada nessa história, apesar de sua discordância, lembra que certa
vez sentiu-se constrangida durante uma apresentação na Praça do Patriarca, no centro de
São Paulo. Na ocasião, o público composto basicamente de homens, instigava o ator
Adriano Mauriz para que ele fosse duro com ela, mas Juliana encarou a situação, e sua
personagem, que é bastante ríspida com o marido, foi mais ríspida ainda, cobrando-lhe
ainda mais. O marido sentiu-se muito mais coagido, sem apoio, sozinho, situação
bastante comum também na atualidade: “[...] precariedade, instabilidade,
vulnerabilidade, é a característica mais difundida das condições de vida contemporânea
(e também a que se sente mais dolorosamente)” (BAUMAN, 2001: 184).
A terceira história é ainda mais comum no Brasil. Trata-se de um “laranja”60 que
quer subir na vida a qualquer custo, sendo responsável por uma grande epidemia na
África, por conta da exportação de produtos podres realizada pela empresa em que
trabalha. Claro que o responsável por tudo será apenas do “laranja” , pois os verdadeiros
culpados jamais serão presos. Essa terceira história foi deixada de lado pelo grupo, que
optou pelas duas primeiras. Se não soubéssemos que o texto tinha sido escrito em 1957
pelo argentino Osvaldo Dragún61, seria bem possível atribuir sua autoria a um grande

60
“[...] intermediário, especialmente no mercado financeiro, que faz transações em nome de um terceiro,
cuja identidade fica oculta” (FERREIRA, 2001: 418).
61
No programa do espetáculo, elaborado em forma de jornal, à semelhança de pequenas matérias, o
Pombas Urbanas apresenta a biografia do autor na notícia Teatro faz denúncia humana nas ruas: “O
dramaturgo Osvaldo Dragún nasceu em 1929 na província de Entre Ríos, Argentina. Desenvolveu um
teatro socialmente comprometido, organizando o Teatro Independente em Fray Mocho. Em 1956 estreou
sua primeira peça, A peste chega de Melos, sobre a invasão da Guatemala. Em 1961 deixa a Argentina e
trabalha em Cuba, México, Venezuela, Peru, Colômbia, Estados Unidos, entre outros países. Em 1962
ganha o prêmio da Casa das Américas pela obra Milagre no mercado velho e em 1966 ganha novamente
o prêmio com Heróica de Buenos Aires. Resgata o Teatro Del Pueblo e funda o Teatro de La Campana. A
partir de 1981 foi um dos protagonistas do Movimento do Teatro Abierto, uma reação cultural contra a
ditadura militar. Em 1988 criou e dirigiu a Escola Internacional de Teatro da América Latina e do Caribe,
em Havana – Cuba. Em 1996 volta para Buenos Aires para aceitar a direção do Teatro Nacional
Cervantes onde organizou o Encontro Ibero-americano de Teatro.” O autor faleceu em 1999 na
Argentina.
ϭϰϰ


dramaturgo brasileiro, com aguçada sensibilidade para captar nossa realidade nesse
início de século XXI.

Figura 13: O camelô e sua dor de dente.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Adriano Mauriz (vendedor/camelô) e Juliana Flory (esposa) em cena de Histórias para serem
contadas.

Os atores identificaram nessas histórias realidades próximas às que passaram a


conviver e ouvir em Cidade Tiradentes. E esse era um dos objetivos: criar um
espetáculo que dialogasse com aquela realidade. Marcelo Palmares, na citada entrevista,
relembra de uma imagem que para ele foi muito forte: jovens que conversavam em cima
do lixo. “Se esses jovens são tratados como lixo, serão ‘lixo’ e tenderão a explodir em
violência. Um bairro sem estrutura vira um depósito de gente”. Como escreveu Bertolt
Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem”62. Marcelo relembra ainda que as pessoas que ele conhecia
– mesmo antes de ele ir morar no bairro – costumavam falar muito sobre a violência em
Cidade Tiradentes. No entanto, quando ele passou a residir no bairro, muitas das
histórias que lhe eram contadas foram sendo desmistificadas. Ele também se lembrou da
infância e da realidade na qual vivia aos cinco anos em Vila Jacuí, em São Miguel
Paulista.


62
BRECHT, Bertolt. Do rio que tudo arrasta. Disponível em:
http://www.astormentas.com/pt/poema/1497/Do%20rio%20que%20tudo%20arrasta. Consultado em:
23/01/2012.
ϭϰϱ


O espetáculo Histórias para serem contadas mergulha na realidade dura e
difícil, e é nessa realidade que o grupo Pombas Urbanas parece se renovar, em diálogo
constante com os jovens das comunidades. Em determinados momentos das entrevistas
alguns integrantes referiram-se ao “ser Pombas”. Marcelo Palmares, ao ser indagado
sobre o que é ser Pombas, afirmou: “É ser periférico, jovem, ser novato em teatro,
entusiasmado, gostar de rock e forró.” Natali Santos e Ricardo Big, que conheceram o
grupo em 2003, largaram tudo para seguir com a trupe. Seguramente, eles são Pombas.
Também é certo que em Cidade Tiradentes há muitos “Pombas”. A prova disso são os
diversos coletivos atuantes no Centro Cultural Arte em Construção, como os Filhos da
Dita, Somos do Circo (projeto que tem revelado jovens artistas circenses), Os
Fuxiqueiros, entre outros.
O processo de montagem do espetáculo Histórias para serem contadas foi
diferente de tudo aquilo que o grupo tinha realizado, sobretudo, como já afirmado, pelo
fato de o diretor vir da prática do teatro em espaços fechados. Talvez por isso a opção
pela disposição da cena em meia-lua. Foi preciso decorar textos, embora nunca tivessem
feito isso antes, porque, segundo os integrantes do grupo, os textos dos espetáculos já
estavam internalizados. Nesse ponto, Palmares tem consciência de que o espetáculo
“[...] não é aberto, é para o público, mas não com o público”. Ele lembra, ainda, que o
processo de retomada dos ensaios de Mingau de concreto tem influenciado Histórias
para serem contadas e, como soe acontecer, a rua vem modificando o espetáculo.
Para o diretor Hugo Villavicenzio, em entrevista a mim concedida em 25 de
outubro de 2010, Pombas Urbanas é um exemplo de superação em constante
transformação. Por isso mesmo, o diretor reconhece as marcas de Lino Rojas em todo o
coletivo. Quanto ao processo de montagem de Histórias para serem contadas,
Villavicenzio afirma que foi possível perceber nos integrantes do grupo todo o
conhecimento prático e teórico compartilhado por Lino Rojas: “Nos ensaios, via-se que
eles tinham uma técnica própria. Eu dava duas propostas e eles vinham com vinte. Eram
muito criativos, como o Lino era, e também muito anárquicos, como o Lino também
era. Porém, muito criativos”. Villavicenzio reconhece também que todos foram muito
dedicados durante o processo de construção do espetáculo.
Hugo Villavicenzio e Lino Rojas chegaram ao Brasil praticamente na mesma
época. Ainda que os caminhos de ambos tenham sido diferentes, Villavicenzio
acompanhou toda a carreira de Lino Rojas. Por isso, ele afirma que Rojas “[...] passou
ϭϰϲ


para o Pombas a sua estética, o seu jeito e a sua capacidade de organização”. No que
tange à organização, muitos são os elogios, por entender que “[...] esse foi o maior
aporte de Lino Rojas ao Pombas Urbanas, isto é, a capacidade de se tornar um grupo
independente e fazer um trabalho bem-feito, com uma função social e política”.
A estreia de História para serem contadas ocorreu em 22 de setembro de 2007,
na Praça do 65, em Cidade Tiradentes (SP). Na época, apenas cinco atores faziam todas
as personagens: Adriano Mauriz, Juliana Flory, Marcelo Palmares, Marcos Khaju e
Paulo Carvalho. Depois, abandonaram uma das histórias e a eles se somaram Natali
Santos e Ricardo Big, que antes participavam apenas da produção. Cenários e figurinos
são de Márcio Tadeu.
Lino Rojas teria muito orgulho de tudo o que o grupo Pombas Urbanas vem
realizando em Cidade Tiradentes. Diariamente, o grupo tem buscado estabelecer um
diálogo com a comunidade por meio de seus espetáculos e pelos projetos realizados no
Centro Cultural Arte em Construção. Apesar da aparente volta às origens, na verdade,
eles nunca saíram dela.

3.4. O Cuscuz fedegoso feito pelo Buraco d`Oráculo

Tomando a realidade de várias pessoas da periferia, nos mais variados aspectos,


com vistas a traduzir o popular urbano, os integrantes do Buraco d`Oráculo observaram
o modo de sobrevivência de inúmeras pessoas simples que moram na periferia e
trabalham em outros lugares, sobretudo no centro da cidade. O foco era principalmente
os trabalhadores informais e a série de violências a que estavam submetidos. O
espetáculo O cuscuz fedegoso foi criado com base nessa pesquisa e apresenta quatro
personagens, duas delas com claros vínculos nordestinos: uma quituteira e uma raizeira
(vendedora de ervas). As demais personagens, um policial e um mendigo, representam,
respectivamente, o poder repressor do Estado e aqueles que estão na denominada parte
inferior da pirâmide social. Vejamos a sinopse do espetáculo:

Dona Maria do Cuscuz vende seus quitutes nas ruas. Essas guloseimas
são preparadas sem qualquer higiene. Entre seus doces destaca-se o
cuscuz feito com fedegoso. Como não encontra comprador, oferece o
cuscuz a um “esmolé” (pedinte), que, ao provar da iguaria, finge
passar mal para não ter de pagar. Desesperada, Dona Maria pede ajuda

ϭϰϳ


à Mãezinha do Quixadá, uma charlatã que vende ervas medicinais. A
“raizeira” irá aplicar toda a sua charlatanice para identificar a suposta
doença do pedinte, procurando, de todas as maneiras, usar seus
medicamentos no coitado, de forma que possa arrebanhar mais
fregueses. Arma-se uma grande confusão, que só acaba com a chegada
do Guarda Chicão, homem violento, que gosta de abusar do poder.
Chicão desce a borracha em todos, para estabelecer a ordem e os
“bons princípios” (MATE, 2009: 94-5).

Figura 14: Apresentação do Buraco d`Oráculo no Parque Raul Seixas, em Itaquera São Paulo (SP), 2006.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atriz: Mônica Martins (Maria do Cuscuz) em cena do espetáculo O cuscuz fedegoso.

Essa é a sinopse em sua redação final, isto é, relativa à última versão do


espetáculo. No entanto, na leitura, é possível visualizar a grande confusão, quase um
vale-tudo para poder ganhar o pão de cada dia. Prova disso é o fato de Maria oferecer
cuscuz ao pedinte na tentativa de chamar a atenção de outros fregueses/público. No
momento em que o pedinte finge passar mal, Maria procura socorro e encontra
Mãezinha do Quixadá disposta a usar todas as suas ervas, por deduzir que Maria pagará
pela “consulta”. Assim, as personagens arrebanham o público para o espetáculo e
chamam a atenção para a situação vivida por essas pessoas.
ϭϰϴ


Diversos foram os atores que participaram do processo de construção do
espetáculo, que funcionou como laboratório para os integrantes do Buraco d`Oráculo.
As invencionices, os achados e expedientes do processo passavam a integrar o
espetáculo. O cuscuz fedegoso permaneceu mais de quatro anos no repertório do grupo,
cuja estreia ocorreu em 21 de setembro de 2002, na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra,
popularmente conhecida como Praça do Forró, em São Miguel Paulista. A estreia
ocorreu no lançamento da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, união de sete
grupos63 teatrais de rua que se propuseram a descentralizar suas atividades. Foi nesse
período que o Buraco d`Oráculo começou a realizar seus projetos em São Miguel
Paulista e região. O espetáculo, em relação aos demais trabalhos dos outros grupos que
propunham a descentralização, era bem diferente esteticamente. Edson Paulo, em
entrevista a mim concedida em 20 de agosto de 2011, recorda-se de uma fala de Lincoln
Rolim, integrante da Companhia Abacirco. Segundo ele, o Buraco d`Oráculo
apresentava uma proposta diferenciada em relação aos demais grupos, mais próxima do
camelô, enquanto os outros grupos tinham uma relação forte com o circo, com números
circenses.
O cuscuz fedegoso teve a direção de Atílio Garret, e o texto é de Edson Paulo,
ator do grupo. O espetáculo estreou com Danilo Cavalcanti (Girió de Alencar), Edson
Paulo (Resmelengo), Mônica Martins (Maria do Cuscuz) e Renata Câmara (Guarda
Chicão), na época todos integrantes do grupo. Na versão final, os atores eram Adailton
Alves (Guarda Chicão), Edson Paulo (Resmelengo), Lu Coelho (Mãezinha do
Quixadá64) e Mônica Martins (Maria do Cuscuz). Ao longo do processo mais dois
atores chegaram a ensaiar, mas nunca participaram propriamente do espetáculo
finalizado: Flávio Laudares e Isaias Cardoso. O primeiro era integrante do Putz! Tipo
Assim..., coletivo existente antes de se formar o Buraco d`Oráculo. O segundo ator
participou do início do processo de montagem, no Tendal da Lapa, em 2001, onde se
iniciaram os ensaios, levados depois para a rua. De forma sucinta, vale lembrar que o
processo de ensaios sempre privilegiou espaços abertos, pois, mesmo no Tendal da
Lapa, o grupo não ensaiava em sala fechada, mas sim em um espaço por onde
circulavam diversas pessoas.


63
Os grupos eram os seguintes: Bonecos Urbanos, Buraco d`Oráculo, Circo Navegador, Companhia
Abacirco, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.
64
A personagem tinha a mesma função de Girió de Alencar; no entanto, a atriz Lu Coelho acrescentou
uma característica de mãe de santo à raizeira.
ϭϰϵ


Figura 15: Apresentação do Buraco d`Oráculo em Cidade Tiradentes (Setor G VII), em 2007.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Mônica Martins, Lu Coelho e Edson Paulo em cena do espetáculo O cuscuz fedegoso.
Nas comunidades, sempre havia muitas crianças. Elas eram as primeiras a querer saber o que ia
acontecer; também eram elas que divulgavam o espetáculo entre os familiares.

Mas a gestação do espetáculo começou bem antes de 2001. Edson Paulo, na


citada entrevista65, relembra que, apesar de não existir propriamente um roteiro ou um
texto, a ideia vinha sendo elaborada desde o Putz! Tipo Assim... Foi em 1997, recorda o
ator, que Flávio Laudares começou a improvisar situações como Maria do Cuscuz. Para
Edson Paulo, foi um processo longo e complexo que durou mais de quatro anos: “Tudo
que discutíamos e íamos amadurecendo, experimentávamos no Cuscuz”. Por isso, o ator
vê o espetáculo como divisor de águas, responsável pelo amadurecimento do grupo e do
trabalho artístico.
Selma Pavanelli, que sempre acompanhou o espetáculo na condição de
espectadora, afirma, referindo-se aos atores, mas sem citar nomes, que “[...] algumas
pessoas não ficavam muito à vontade na rua”. Entretanto, como assistiu ao espetáculo


65
A entrevista foi realizada com todos os integrantes do Buraco d`Oráculo: Edson Paulo, Johnny John,
Lu Coelho e Selma Pavanelli, em 20/08/2011, assim, todas as citações referem-se a essa entrevista.
ϭϱϬ


muitas vezes, acompanhou todo o seu desenvolvimento que, no seu entender, foi
amadurecendo: “Antes [refere-se às primeiras apresentações], era mais uma brincadeira,
uma ‘tiração de sarro’, e o espetáculo foi ficando cada vez mais político”.

Figura 16: Material de divulgação do projeto Circular Cohab`s, julho e agosto de 2007.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Edson Paulo (Resmelengo), Mônica Martins (Maria do Cuscuz), Adailton Alves (Guarda Chicão)
e Lu Coelho (Mãezinha do Quixadá), personagens de O cuscuz fedegoso, agradecem ao público no
encerramento do projeto Circular Cohab`s. Ao fundo, os prédios populares de Santa Etelvina, em Cidade
Tiradentes.

O espetáculo iniciava com um cortejo, uma chegança, elemento muito presente


nas brincadeiras populares. Os atores delimitavam o espaço cênico em forma de meia
arena, e as cenas desenrolavam-se de forma cumulativa, isto é, a cada nova personagem
que adentrava o espaço cênico, formava-se um quadro, uma cena, tudo extremamente
interligado, sequencial, de modo a dar conta do universo tratado. Ao mendigo, por
exemplo, sobrava apenas a astúcia para sobreviver. Às demais personagens, a luta diária
pela sobrevivência fazia com que tentassem “empurrar” suas mercadorias a todo
possível cliente. A autoridade, além de manter a ordem com muita violência, era
extremamente corrupta. Logo, era o trabalho informal que prevalecia na abordagem
temática, e a astúcia se traduzia em tática do popular e elemento que realçava o tom
farsesco do espetáculo. As personagens populares – Maria do Cuscuz, Resmelengo e

ϭϱϭ


Mãezinha do Quixadá (por ordem de entrada em cena) – eram muito picarescas e
carismáticas. Elas estabeleciam grande empatia com o público nas mais variadas faixas
etárias. As crianças gostavam do colorido e riam das estranhas figuras, os adultos
acompanhavam as peripécias e muitas vezes se reconheciam nas situações difíceis e na
opressão praticada pelo policial.
A luta das personagens pela sobrevivência, travada diariamente, ainda é o retrato
da realidade de inúmeros cidadãos paulistanos. O espetáculo, em seu processo de
criação, contou primeiro com as personagens; depois, com as situações. Como a
realidade social é o ponto de partida, dois momentos foram fundamentais para estruturar
o espetáculo: a máfia dos fiscais66 e a violência policial na Favela Naval67, em Diadema.
Mas devido a sua longa permanência em repertório, atravessou outro grande escândalo
sobre o universo da corrupção: o mensalão no Governo Federal68. O espetáculo
abordava exatamente a corrupção instalada nas mais diversas instâncias e a dificuldade


66
A máfia dos fiscais agiu de 1993 a 1999, mas só veio a público em 1998, depois da denúncia de uma
empresária da Vila Madalena que queria abrir uma academia de ginástica e os fiscais da Administração
Regional de Pinheiros cobraram R$ 30.000,00. O caso foi bastante divulgado pela mídia. No início do
ano seguinte, em 1999, vieram a público as denúncias nas Administrações Regionais da Sé e da Mooca,
dessa vez com relação aos camelôs, sobretudo os do bairro do Brás, de quem os fiscais cobravam
propinas mensais. Afonso José da Silva, conhecido Afonso Camelô, foi quem fez as denúncias, após
escapar de um atentado que o feriu gravemente. Depois de forte pressão da mídia, as denúncias
desencadearam uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o caso e cassou o mandato
do vereador Hanna Garib, na época da situação, isto é, do governo de Celso Pitta (1997-2000 – Partido
Progressista Brasileiro). A CPI apurou diversas práticas de corrupção. No caso específico dos camelôs,
apurou-se que os vereadores indicavam os administradores regionais que, por sua vez, trabalhavam com
fiscais que exigiam as propinas. O interessante é que dez anos depois, em 2008, o caso voltou a se repetir
na mesma região, dessa vez na Feira da Madrugada do Brás. Afonso Camelô, que se tornou presidente do
Sindicato dos Camelôs Independentes de São Paulo, foi morto em 15 de dezembro de 2010, com três tiros
no próprio sindicato.
67
No dia 31 de março de 1997 o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão apresentou uma
reportagem que tratava de Direitos Humanos e revelava a violência policial como um claro desrespeito
aos mesmos. A partir de imagens colhidas por um cinegrafista amador apresentava um grupo de policiais
militares que extorquiam dinheiro, humilhavam, espancavam e até mataram pessoas em uma blitz
realizada na Favela Naval na cidade de Diadema/SP.
68
Conhecido como Mensalão ou Esquema de compra de votos de parlamentares, o escândalo ocorreu no
Governo de Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato (2003-2006). O caso veio a público em
maio de 2005 por meio da imprensa e apresentava, inicialmente, um caso de corrupção nos Correios. A
estatal era dirigida por pessoas indicadas pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tinha como
presidente o deputado Roberto Jefferson, que tornou popular o termo “mensalão”. Jeferson denunciou que
a base aliada do Governo Federal, da qual ele próprio fazia parte, recebia periodicamente recursos do
Partido dos Trabalhadores (PT) para apoiar determinadas votações. A Procuradoria Geral da República
denunciou 40 nomes ao Supremo Tribunal Federal, que julgou o caso em 2007. Em 2008 o esquema do
mensalão teve novo desdobramento com a investigação por parte da Polícia Federal, onde se descobriu
que a maior parte dos recursos para o mensalão vinham do Banco Opportunity, dirigida por Daniel
Dantas. Na época do mensalão o Ministro-Chefe da Casa Civil era José Diceu, que foi afastado do cargo e
depois teve seu mandato de Deputado Federal cassado em 1º de dezembro de 2005, ficando inelegível até
2015.
ϭϱϮ


de sobrevivência diante disso tudo, cabendo aos populares utilizar a própria astúcia para
continuar vivos.
Edson Paulo, na citada entrevista, lembra que o escândalo da máfia dos fiscais
era a tônica no período que antecedeu a estreia do espetáculo. Por essa razão, a
personagem do policial visava apresentar ao público o ambiente em que os camelôs
tinham de trabalhar, marcado pela precariedade e corrupção. Por isso, quando o policial
entrava em cena, afirmava que não podiam vender nada naquele lugar, a não ser
“mediante uma boa quantia”. Quando veio a público o escândalo do mensalão, a fala foi
modificada para “um pequeno mensalão”.
Foi com esse espetáculo que o grupo começou a circular para além do bairro de
São Miguel Paulista, o que, na concepção dos integrantes do grupo, fez com que eles
avaliassem melhor sua relação com as comunidades e com o público lá residente. Todos
os atores passaram a entender melhor o que significava estar nessas comunidades e que
precisavam criar projetos para estabelecer uma relação mais efetiva. Em certa medida, a
circulação por outras comunidades, ainda que na mesma região, levou-os à consciência
de pertencimento ao lugar e ao reconhecimento daquelas pessoas e de si próprias. Edson
Paulo, no texto Você já foi a uma COHAB?, no instante em que se dirige à categoria
teatral (ainda que esta não seja citada), revela esses momentos de descobertas. Começa
questionando: “Você já foi ao Jardim Palanque? Sabe onde fica a Praça do 65? O
conjunto Santa Etelvina VII-G?” (2007:7). Depois, o ator fala sobre o encontro que teve
com as pessoas do Jardim Palanque, muitas delas vindas da Vila Prudente, após um
incêndio da favela onde moravam. O Jardim Palanque, apesar de estar próximo da
residência do ator naquela época (Cidade Tiradentes), era desconhecida por ele:

[...] Sem nenhuma sombra de dúvida o local nunca havia recebido


qualquer tipo de manifestação artística, e estar distante de qualquer
programação municipal ou de outro tipo: “por aqui não tem nem show
de comício”, revelou um de seus moradores.
Nosso encontro com esse local deu-se por meio de dois jovens
(Rosário e Jones) líderes comunitários, que na força de seus 19 anos,
sonham, lutam pela implantação de uma biblioteca comunitária e por
atividades que tragam entretenimento, lazer e educação para os seus
habitantes. Vimos nesses jovens e também em nossas apresentações o
quanto é necessário estar fazendo ações, mesmo que pequenas, mas
que quando somadas a outras resultarão em grandes transformações,
se não para um mundo mais justo, servirão para a transformação do
cidadão comum (2007: 7).
ϭϱϯ


Em seguida, no mesmo texto, Edson Paulo reflete sobre a necessidade de
desenvolver um processo contínuo de trabalho com essas comunidades:

Descobrimos locais de grande circulação de público. Dos seis


conjuntos habitacionais percorridos, três tiveram um público acima da
média, o que nos fez refletir sobre a necessidade de um trabalho
contínuo. Alguns espectadores assistiam ao primeiro espetáculo da
janela de seus apartamentos, o segundo do outro lado da rua, o terceiro
como parte da grande roda, no quarto faziam parte daquele
acontecimento e depois queriam mais (2007: 7).

Edson Paulo aborda aqui a aproximação com o público adulto; afinal, as crianças
– ainda sem ou com poucos preconceitos – aproximavam-se sem problemas. As
temporadas do Circular Cohab`s, em cada comunidade, era composta de quatro
espetáculos, um a cada domingo, num total de quatro apresentações ao longo de um
mês. O público aumentava a cada dia, pois se estabeleciam laços de confiança. Em
diversos lugares, os atores ficavam em dúvida quanto ao retorno do público no domingo
seguinte, levando-se em conta que as pessoas estavam cansadas de ouvir promessas
feitas por outras tantas pessoas que não as cumpriam.
Dessa forma, O cuscuz fedegoso verticalizou a relação do grupo na zona leste de
São Paulo e se desdobrou em um processo continuo, pois, ao circular com o espetáculo,
começou a ouvir as histórias dos lugares e das pessoas, passando a se reconhecerem
nessas histórias e a perceberem como essas comunidades vêm sendo construídas por
tantos trabalhadores. O processo gerou afetividade e vontade de aprofundar o
conhecimento sobre os lugares e as pessoas, o que levou seus integrantes a registrarem
as histórias ouvidas, resultando na montagem de Ser TÃO Ser – narrativas da outra
margem.
Como o espetáculo serviu de laboratório69, às vezes havia momentos de crise por
parte dos atores, momentos de não compreensão daquilo que estavam realizando. Nesse


69
Antônio Januzelli (1992) afirma que a atuação exige dois níveis básicos de estudo – o
analítico/reflexivo e o prático/cênico –, sendo que o primeiro diz respeito à história encenada e à realidade
na qual está inserido o grupo, e o segundo trata da preparação do instrumental de trabalho do ator. Para o
autor, o laboratório diz respeito ao segundo caso – a parte prática –, isto é, à possibilidade de os atores
poderem experimentar, aprimorar o corpo, a voz, a emoção etc. e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar e
aprofundar a personagem. Assim, ao tratar o espetáculo O cuscuz fedegoso como laboratório para o
grupo, Edson Paulo o vê como possibilidade de todos os participantes aprofundarem sua relação com a
ϭϱϰ


sentido, duas apresentações foram marcantes, segundo Edson Paulo. A primeira ocorreu
no Centro Educacional Unificado (CEU) São Carlos, em São Miguel Paulista, em
comemoração ao primeiro ano daquele equipamento educacional e cultural. A segunda
se deu em Recife (PE), no 2o Festival de Teatro de Rua do Recife, realizado pelo
Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP-PE). Ambas apresentações
ocorreram em 2005: a primeira na quadra poliesportiva do CEU e a segunda numa
comunidade periférica do Recife, por volta de onze horas da noite. As duas
apresentações foram uma “bagunça” generalizada, o que levou os atores a pensarem que
o espetáculo não comunicava a contento. Essa “bagunça”, em certos momentos, fugia
ao controle dos atores. O fato é que as personagens eram tipos muito fortes que
provocavam o público todo o tempo, e o público respondia na mesma medida. O salto
qualitativo dos atores se deu no momento em que eles compreenderam que faltava mais
jogo com os espectadores; afinal, se eles jogavam e o público correspondia, era preciso
desenvolver as propostas, jogar o jogo. Assim, mesmo com roteiro fixo, o espetáculo se
construía com o público, no momento de sua apresentação. Havia uma ondulação entre
caos e ordem, gestada e desenvolvida no momento do espetáculo. As cenas eram
cumulativas no que se refere ao desenvolvimento da trama, mas também do caos:
entrava uma personagem por vez, formando um quadro que gerava certa confusão. Ao
entrar a terceira personagem, por exemplo, problematizava-se a trama e a confusão
aumentava. Selma Pavanelli, na condição de espectadora, relembra:

O Guarda entrava no momento perfeito, porque estava um caos, e aí


vinha aquela figura que controlava as demais. Ao mesmo tempo, era
menos grotesco, contrastava com as outras personagens... Começava
outra coisa, até se tornar o caos novamente.

Ainda em Recife ocorreu um fato curioso que revelou como o espetáculo ficava
sempre aberto a novas inserções ou modificações. Estavam programadas duas
apresentações no Festival. Depois de assistir à primeira apresentação do espetáculo, o
ator Sérgio Diniz, do Teamu e Cia. (grupo pertencente ao MTP-PE, que organizou o
Festival), cantou uma paródia do funk “Um tapinha não dói”, do grupo Furacão 2000,
música bastante popular nas rádios naquele período. O refrão da música é o seguinte:


rua, com o público e com o tema tratado, ou seja, é o campo para aprofundamento e experimentação de
conhecimentos artísticos e de mundo.
ϭϱϱ


Dói, um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Só um tapinha70

Sérgio Diniz cantou o refrão paródico em alusão à cena do Guarda Chicão e à


sua violência:
GOE71, um tapinha do GOE
Um tapinha do GOE
Um tapinha do GOE
Só um tapinha

Figura 17: Apresentação na Praça do 65, em Cidade Tiradentes em 2007.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Lu Coelho (Mãezinha do Quixadá), Edson Paulo (Resmelengo e Estrombo Severino) e Mônica
Martins (Maria do Cuscuz) em cena de O cuscuz fedegoso.
As personagens conversam com o boneco Estrombo Severino, que explica que passou mal porque queria
a comida só para si, sem enviá-la às tripas, impedindo o processo digestivo. Por meio da comicidade, o
boneco aborda a questão da fome sofrida por Resmelengo.

70
Disponível em: http://letras.terra.com.br/furacao-2000/15575/. Consultado em 26/12/2011.
71
Grupo de Operações Especiais, ligado à Polícia Civil do Estado de São Paulo, criado em 1991. Entre
suas atribuições estão a observância ao cumprimento de mandados de busca e apreensão e o
gerenciamento de crises, como motins e distúrbios civis.
ϭϱϲ


Na segunda apresentação do espetáculo no Festival foi inserido o refrão
paródico, cantado e dançado por Maria do Cuscuz e Mãezinha do Quixadá, enquanto o
policial batia em Resmelengo. Para completar essa cena, havia clara alusão ao episódio
ocorrido na Favela Naval, em Diadema (SP), pois o Guarda Chicão pedia o pé de
Resmelengo para bater em sua sola. O público sempre lembrava o fato pois, no caso da
Favela Naval, os policiais batiam na sola dos pés com um cacetete visando esconder
possíveis escoriações causadas pelos espancamentos.
A estética predominante em todo o espetáculo era a do grotesco, perceptível de
diversas formas no espetáculo. Primeiro, nas próprias personagens, figuras estranhas e
deformadas, como o mendigo que, ao tornar pública sua fome, fazia saltar de dentro de
si o próprio estômago, que conversava com a raizeira e a quituteira. Essas figuras
estranhas, aos olhos de várias pessoas, tornavam-se cômicas, mas também
possibilitavam retratar e refratar a realidade de todos aqueles que assistiam ao
espetáculo e que viviam, em diversos casos, a mesma e dura realidade. O que existia
não era propriamente identificação e, sim, estranhamento. Naquele momento, atores e
público tendiam a tornar-se um único coletivo.
Aqui é possível entender a afirmação de Mikhail Bakhtin: “O porta-voz do
princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta
indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova
constantemente” (1987: 17). Assim, aquelas figuras deformadas eram porta-vozes, por
meio das situações vividas e do riso, de todo o povo (pelo menos do público da
periferia, geralmente oprimido). Tratava-se do realismo grotesco, no qual, ainda
segundo Mikhail Bakhtin (1987), o cósmico, o social e o corporal não se separam.
Edson Paulo lembra que “[...] o espetáculo tinha muita coisa do baixo corporal,
duplos sentidos, mas não tinha palavrão”. Lu Coelho, na mesma entrevista, relembra um
episódio ocorrido em uma das apresentações realizadas no Parque Raul Seixas, em
Itaquera, em que a coordenadora do parque havia conversado com os integrantes do
grupo sobre a recorrência de palavrões no texto. Por essa razão, os integrantes do grupo
repassaram o texto e constataram que não havia nenhum palavrão. Depois disso, os
atores resolveram inserir dois palavrões, utilizando a proposição bakhtiniana do
vocabulário da praça pública, ou seja, falar algo com outras conotações, apontando para
além do que é explícito na fala. Assim, enquanto o policial batia no mendigo e, depois,
solicitava que ele fosse embora, dizia:
ϭϱϳ


POLICIAL – Vais até tua mãe e retornes regenerado.
RESMELENGO – Nossa, que poético! O que quer dizer?
POLICIAL – Vai à puta que te pariu! (Bate no mendigo)
RESMELENGO – E eu espero que o senhor visite os seus infernos
corporais.
POLICIAL – O que quer dizer isso?
RESMELENGO – Vai tomar no cu! (Sai apanhando do policial.)

Figura 18: Apresentação no Boulevard da Avenida São João, em São Paulo, novembro de 2003.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Adailton Alves (Guarda Chicão) e Edson Paulo (Resmelengo) em cena do espetáculo O cuscuz
fedegoso. O policial tortura o mendigo.

Enquanto ocorria o espetáculo, sobretudo na última cena, em que entrava o


policial, as personagens e o público irmanavam-se contra um mundo de opressão. Além
da relação entre populares e polícia, que ao longo da história tem sido pouco amistosa, o
fato de o policial ser a única personagem a representar o poder criava no público um
desejo, ainda que fosse apenas simbólico, de os populares “se vingarem” do poder
instituído que, na sociedade capitalista, tem se caracterizado como um braço da
burguesia, da classe opressora.
Uma característica do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, “[...] a
transferência ao plano material e corporal [...] de tudo que é elevado, espiritual, ideal e

ϭϱϴ


abstrato” (BAKHTIN, 1987: 17). Esse rebaixamento era operado no espetáculo no
momento em que o Guarda Chicão, sem saber, tomava a urina do mendigo. Ao tomar
esse “elixir”, revelava seus impulsos homossexuais e corria atrás do mendigo como se
ele fosse o homem desejado. O mendigo, por sua vez, aproveitava para revidar todas as
“borrachadas” recebidas do policial.

Figura 19: Cartaz de divulgação da primeira circulação pelos conjuntos habitacionais da zona leste da
cidade de São Paulo, em 2005.

Fonte: Arquivo do grupo.


O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) foi o primeiro prêmio público conferido ao
Buraco d`Oráculo. O grupo circulou por seis conjuntos habitacionais e realizou oficinas para os jovens.
Em cada lugar, O cuscuz fedegoso era apresentado duas vezes.

Essa cena levou os integrantes do grupo a discutirem se não estariam reforçando


o preconceito contra homossexuais. Nunca chegaram a um acordo sobre isso, mas
quando a atriz Mônica Martins saiu do grupo, resolveram não mais apresentar o
espetáculo.
O rebaixamento está ligado a uma topografia (terra, órgãos genitais etc.), e a
degradação que se opera nesse rebaixamento não é formal:

ϭϱϵ


Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a
terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo,
nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se
simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor
(BAKHTIN, 1987: 19).

É como se, ao rebaixar o guarda, o povo – naquele momento representado pelos


atores e pelo público – realizasse sua correção pelo renascimento, em que ele (o guarda)
seria melhor. Bakhtin (1987) chama a isso de “corpo social”.
Por meio desse espetáculo, fica claro que o Buraco d`Oráculo cumpria a função
de se aproximar de sua comunidade, como apresentado por Alexandre Mate, no livro
Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos
espaços públicos da cidade, que conta a história dos dez primeiros anos de existência do
grupo:
A manifestação teatral que se aproxima de seu público (sua
comunidade), sem restrições de quarta parede e de fossos de
orquestra; impedimentos econômicos como a cobrança de ingressos;
sem subestimar ou superestimar o público; sem exigir e impor silêncio
sepulcral e contrição absolutos com relação à obra, e tantas outras
exigências, efetivamente separatistas, podem repropor o espetáculo
como festa e como encontro (2009: 30).

Para o Buraco d`Oráculo, foi um encontro com os seus. E no espetáculo ocorria


a festa, a carnavalização, a inversão de um mundo opressor, ainda que durasse apenas o
tempo da apresentação do espetáculo, mas que certamente os fazia extravasar as
energias, que vinham a público durante a função. O espetáculo era um encontro com os
seus e no seu “pedaço”. Por isso, das oitenta apresentações do espetáculo, sessenta e
sete foram realizadas na zona leste da cidade de São Paulo, região onde moram e atuam
os integrantes do Buraco d`Oráculo.

3.5. Histórias de um sertão urbano

Se com o espetáculo O cuscuz fedegoso se pode afirmar que os integrantes do


Buraco d`Oráculo mergulharam no território (ainda que nele residisse) da zona leste,
sobretudo com a circulação propiciada pelo projeto Circular Cohab`s, o processo de
construção do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem levou-os a uma

ϭϲϬ


extensa pesquisa sobre a identidade daquele povo, permitindo aprofundar o
conhecimento sobre sua gente e sua classe e, por extensão, sobre eles próprios. Lucélia
Coelho, em entrevista concedida ao autor, confirma essa proposição:

O Ser TÃO Ser dizíamos que já estava dentro de nós, porque vinha
dessa relação, dessa troca com a comunidade. Só que a dimensão do
público ainda não tinha aparecido, e o espetáculo nasce dessa agonia
de vermos essas pessoas em cena, como protagonistas de suas
histórias.

Selma Pavanelli, na mesma entrevista, destaca a ideia de pertencimento: “Isso


ficou claro quando percebi que não estamos fazendo a história deles, mas sim a nossa.
Quando estamos ali atuando, é uma carga de muita gente”.
É possível afirmar que o processo de pesquisa e de criação do espetáculo
propiciou o salto qualitativo aos integrantes do grupo, no que concerne à consciência de
classe, ao perceberem que a própria história é também a do outro, e que a história do
outro, quando pertencente à mesma classe, é também a sua.
Segundo Edson Paulo, esse é o processo criativo “mais autoral” do grupo.
Perguntado sobre como tudo começou, Selma Pavanelli explica:

Ele não começou, veio vindo. É um processo que vem se formando,


como todos os nossos projetos. Revisitar a nossa história, nos
identificar com as pessoas nos lugares que nós apresentamos. Somos
nós. E se pergunta: onde estou nessa situação?

Ao completar dez anos, em 2008, o grupo Buraco d`Oráculo começou um


processo de coleta de relatos, mesclando-os com as histórias de vida de seus integrantes,
criando, assim, o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, com estreia
em 2009. A pesquisa é resultante de todas as histórias ouvidas desde o momento em que
começaram a circular pelos conjuntos habitacionais em 2005 e, até mesmo, das histórias
ouvidas desde 2002, em São Miguel Paulista (e desde sempre no seio familiar).
Diante de acervo tão rico, o coletivo optou por representar as próprias
comunidades, tomando como recorte a escassez de moradia. No espetáculo, há três
instâncias relativas aos espaços visitados ao longo da pesquisa: uma ocupação de terra,
uma favela e um conjunto habitacional.

ϭϲϭ


Figura 20: Apresentação na Praça do Casarão – Vila Mara/São Miguel Paulista, em São Paulo (SP),
2009.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atores: Adailton Alves, Lu Coelho, Edson Paulo, Johnny John e Selma Pavanelli em cena do espetáculo
Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem.
Apesar de pouco escura, a foto é significativa por ser da estreia do espetáculo, em 2009, na comunidade
de Vila Mara, um dos locais onde o grupo recolheu as histórias. Depois, retornaram diversas vezes à
mesma praça.
A cena retratada é o momento de enfrentamento da polícia com aqueles que ocupam um terreno. A
comunidade mencionada foi construída por meio da luta de ocupação e da construção em mutirão ou
autoconstrução.

Um elemento característico das personagens são os movimentos de


desterritorialização e de territorialização, a saber, deixar seu lugar de origem e se
apropriar de outro território (HAESBAERT, 2006a). Afinal, as personagens são todas
migrantes que se encaminham para uma grande cidade, vindas especialmente do interior
do Nordeste do Brasil. Portanto, nesse processo migratório, a quase totalidade das
pessoas entrevistadas passaram pelo processo T-D-R (territorialização,
desterritorialização e reterritorialização), ou seja, apropriaram-se de um território,
perderam-no e se apropriaram de outro. Mesmo na migração interna, isto é, na própria
cidade, o movimento T-D-R ocorre, pois numa cidade como São Paulo, em que foram

ϭϲϮ


coletadas as histórias, quando ocorre a mudança de um bairro para o outro, ainda que
em menor intensidade, é sempre um processo desterritorializador, já que cada “pedaço”
é muito peculiar (SPOSATI, 2001). Também não se pode esquecer que, pela imensidão
de São Paulo, tanto em termos populacionais como em extensão territorial, existem
muitos “estrangeiros” na própria cidade. São pessoas que, não raras vezes, nascem,
crescem e tornam-se adultas conhecendo apenas uma ínfima parte da cidade.
O processo de desterritorialização nunca é fácil nem tranquilo. Nesse sentido,
Rogério Haesbaert (2006a e 2006b) deixa de analisar as perdas psicológicas dos
sujeitos. Para ilustrar essas perdas, o ator Johnny John relembra, na citada entrevista,
que, em 2010, o Jardim Pantanal, localizado na região do Itaim Paulista, tinha passado
por enchentes e, em seguida, por um processo de desapropriação para a construção do
maior parque linear do mundo. Ao entender que suas histórias são também as histórias
dessas pessoas, e que o espetáculo trata de uma luta política por moradia, o grupo se
dispôs, como fez em outros momentos, a realizar uma apresentação com o intuito de
reunir pessoas, nessa região, com vistas a enfrentar o governo do Estado de São Paulo a
fim de deter o processo de desapropriação. Relembra Johnny John:

Talvez essa seja a coisa mais forte para mim, no Ser TÃO Ser, saber
que a nossa história é deles, e que a deles é nossa. Voltar àquela região
onde apresentamos o espetáculo e onde ocorreram várias enchentes
[Vila Nova Itaim]. O quanto foi forte para eu caminhar nas ruas e ver
casas destruídas. Esse ano [2011], a enchente foi menor; mesmo assim
era possível ver alguns lugares ainda com água... Eu entrei na casa de
um senhor, um lugar que parecia um sítio e tinha uma árvore com
quarenta anos de idade, que é o tempo que ele está ali. Ele mora bem
próximo ao Rio [Tietê] e, do outro lado, as máquinas já estavam
trabalhando. E conversarmos sobre a retirada das pessoas daquele
lugar e do quão forte é a relação deles com aquele lugar. Ele até falava
de sair, mas queria uma quantia suficiente para poder ir para um lugar
digno. Mas aí, você pensa, mesmo se derem um bom dinheiro, você
analisa o quanto essas pessoas vão perder. Porque é muito
significativo aquele lugar para eles. E tudo isso... essas histórias, eu
analiso, o quanto foram me construindo. (Grifo nosso).

O espetáculo trata da questão da moradia, tomando por base as histórias de vida


coletadas em cinco comunidades da zona leste da cidade de São Paulo72, adotando,

72
As comunidades são: Vila Mara, União de Vila Nova, Cohab Prestes Maia, Jardim Lapena e Jardim
Ipê.
ϭϲϯ


nessa coleta, a metodologia da história oral, já que nesse processo a “história de vida
pode ser considerada um relato autobiográfico, mas do qual a escrita – que define a
autobiografia – está ausente” (FREITAS, 2006: 21). E como toda pessoa é um ser
social, cada narrativa apresenta um ponto de vista sobre a realidade vivida e acerca
dessas comunidades.

Figura 21: Mapa dos bairros por onde costuma circular o Buraco d`Oráculo.

Fonte: MATE, Alexandre. Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos
pelos espaços públicos da cidade. São Paulo, 2009: 101.

Mesmo tratando da questão relativa à moradia, Edson Paulo, na entrevista,


lembra que foi o processo que se encaminhou para isso, não foi uma determinação
desde o início:
O legal é que nunca dissemos assim: vamos falar da terra, da questão
da moradia. Não. Queríamos um espetáculo que falasse das pessoas,
do entorno de nossa convivência. Aí a moradia era muito presente
para essas pessoas e para nós. O mote era as pessoas. E depois de um
momento turbulento no processo73, achamos nosso porto seguro em


73
Edson se refere ao conflito ocorrido com o então diretor Paulo de Moraes que, segundo todos os
integrantes do grupo, não compreendeu ou não entendeu muito bem a realidade na qual essas pessoas
ϭϲϰ


nós mesmos, partindo de nossas histórias, não no sentido egocêntrico,
mas no sentido de que em nossas histórias tem muito das histórias
dessas pessoas, e vice-versa: somos moradores da zona leste, somos
migrantes ou filhos de migrantes, buscamos também nosso chão. É o
espetáculo que mais fala da gente!

Apesar de adotar a metodologia da história oral, que tem como finalidade criar
fontes históricas (FREITAS, 2006), o espetáculo é obra ficcional, ainda que centrada na
realidade. No processo de criação, tomou-se a liberdade de mesclar histórias e
acontecimentos, de maneira a enriquecer as cenas e as personagens. Dessa forma, é
possível afirmar, assim como fez Marcelo Soler (2010), que uma obra realizada com
base em material histórico presentifica o passado, sem, no entanto, reproduzir a
realidade. É uma forma de apresentar um ponto de vista sobre essa realidade. E uma
obra artística é sempre resultante da experiência do seu tempo histórico (FISCHER,
1973), tomando ou não a realidade como elemento criativo, isto porque somos sujeitos
históricos inseridos em determinado tempo e espaço, em determinadas condições
históricas e sociais.
Essa forma de criação, denominada por Marcelo Soler (2010) de teatro
documentário, que faz questão de lembrar ter sido Erwin Piscator “[...] o primeiro a
explicitar uma forma teatral com essa denominação” (SOLER, 2010: 48), pode também
simplesmente ser chamada de teatro épico. Afinal, Piscator foi um dos criadores dessa
“forma teatral” que rompeu com o drama, a fim de que a realidade, em todas as suas
possibilidades, pudesse caber na cena teatral. Segundo Soler, que apesar de defender a
proposição de um teatro documentário, estaríamos “[...] diante de um gênero fortemente
épico, tanto pela preocupação com a discussão sociopolítica, como pelo caráter
narrativo, anti-ilusionista e fragmentado do discurso” (2010: 72). Por tudo isso,
preferimos afirmar que o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem é um
espetáculo épico sobre a realidade de muitos cidadãos que habitam a parte leste da
cidade de São Paulo e, também, uma reflexão e uma refração sobre a realidade social
presente em todas as grandes e médias cidades brasileiras. Aprendemos com Bertolt
Brecht, em Cenas de rua, que “[...] o objetivo da representação é possibilitar uma


estavam inseridas e, por isso, não conseguiu encaminhar o processo da maneira que o grupo gostaria,
provocando uma cisão entre o Buraco d`Oráculo e o diretor. Assim, os integrantes realizaram a
dramaturgia e a direção que, neste caso, ficou a cargo do autor desta dissertação.
ϭϲϱ


apreciação crítica da ocorrência. Os meios de que se serve correspondem a este
objetivo” (2005: 102).
O espetáculo é dividido em quadros que se sucedem, apresentados em dois
lugares. O primeiro quadro é o das memórias. É narrativo, e foi experimentado de várias
formas. Todos os atores desenvolveram uma narrativa na qual mesclavam parte de sua
história pessoal com as histórias ouvidas. No processo, cada ator ficou em um
determinado ponto. Concluída a narração, os atores se encontravam, em alusão às suas
vindas de diversos lugares. Depois, o espetáculo foi apresentado por estação ou
processionalmente, com o público e os atores seguindo em cortejo. Em determinado
momento, eles paravam e, a cada novo ponto, um ator contava a própria história. Mas o
que permaneceu foi a escolha de um ponto onde todos os atores nele se reúnem. Dois
deles (Edson Paulo e Lu Coelho) contam suas histórias, enquanto isso, vai sendo
preparado um café, logo servido ao público. O café foi inserido na cena devido a
necessidade de aguçar outros sentidos para além do visual e do auditivo, a saber, o
olfato e o paladar que, com as histórias, provocam a rememoração no público. Nesse
sentido, é possível afirmar que o espetáculo cria possibilidades de suspensão do tempo,
de modo que o público possa relembrar situações vivenciadas.
Depois desse quadro, atores e público deslocam-se para outro ponto, como
forma de representar a mudança de lugar: a saída de uma cidade em direção a outra. É a
chegada na cidade grande. No ponto escolhido, desdobra-se o restante do espetáculo, a
saber, uma ocupação de terra, uma favela e um conjunto habitacional popular. O
espetáculo não se atém à determinação de tempo, mas, pelos lugares ocupados, pelos
figurinos e pelas músicas, é perceptível uma abrangência de tempo bastante grande.
Nesta etapa do espetáculo, a primeira parte refere-se à chegada dos migrantes e à
ocupação da terra, o que os leva ao enfrentamento com a polícia, no qual uma pessoa
morre. Depois da morte da personagem, representada por Lu Coelho, são inseridas falas
reais de pessoas que estão em ocupações, lutando por moradia. Mesclar ficção e
realidade, por meio de falas gravadas, provoca distanciamento, no sentido brechtiano,
ou seja, propõe aos espectadores a reflexão, ao invés da identificação com a
personagem, subsumindo na emoção. “A atitude do espectador não será menos artística
por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural
do que quando realizado na prática” (BRECHT, 2005: 110).

ϭϲϲ


Figura 22: Os migrantes chegam à cidade.

Fonte: Arquivo do grupo.


Atores: Johnny John, Adailton Alves, Lu Coelho, Edson Paulo e Selma Pavanelli em cena de Ser TÃO
Ser – narrativas da outra margem. A apresentação ocorreu no centro da cidade de São Paulo, no
Boulevard da Avenida São João, entre o Centro Cultural dos Correios e o antigo Conservatório Dramático
de São Paulo, em 2009, na temporada de estreia.

Mas este não é um único elemento de distanciamento no espetáculo. Músicas são


utilizadas como complemento à dramaturgia, ao mesmo tempo que produzem um corte
nos acontecimentos em cena. Para Martin Eikmeier (2009), que se dedica à música na
Companhia do Latão, compreende que, no século XX, as artes políticas usaram a
música buscando romper com as tendências dominantes, isto é, apenas como elemento
que reforça a emoção. Outros recursos são a utilização da quebra da cena para narrativas
diretas realizadas pelos atores e não pelas personagens, uso de documentos reais, o que
leva o espectador a compreender a presentificação na cena do real (SOLER, 2010).
Na cena seguinte, a da favela, há uma exposição da luta travada entre o direito à
moradia e a especulação imobiliária. Duas personagens – Costela (Johnny John) e
Buchada (Edson Paulo) – realizam os preparativos do espaço para a festa de casamento
desse segundo personagem. Para tanto, necessitam fazer um “gato”74 para iluminar a
festa, que deve ocorrer próximo a um campo de futebol. No entanto, Costela informa
que o campo vai desaparecer porque ali será construído um shopping. A personagem de

74
Neste caso, ou na acepção aqui adotada, trata-se do uso da corrente elétrica sem o devido pagamento.
ϭϲϳ


Lu Coelho tenta mobilizar a comunidade para que os moradores não sejam despejados;
no entanto, na hora da festa do casamento, começa a desapropriação, e as máquinas
começam a derrubar “os barracos”.

Figura 23: Apresentação no Campus da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (SP), 2011.

Fonte: Arquivo do grupo.


Festa na favela enquanto é distribuída a carta de despejo. A carta é um documento oficial, por muito
tempo utilizado em despejos na cidade de São Paulo. Dentre os absurdos recomendados na carta, existe a
solicitação para que “retirem as crianças do meio do caminho” e avisem no trabalho que terão de se
ausentar.

Essa luta ocorre diariamente em São Paulo e em outros lugares do mundo, como
afirma Mariana Fix: “No caso do setor imobiliário, eles são responsáveis por
empreendimentos que aumentam a concentração de renda e a segregação espacial, e
direcionam os fundos públicos em benefício próprio” (2007: 150). Essa é a lógica do
capital, que utiliza o Estado, em todas as suas instâncias – unidades federativas e
municípios –, no concernente ao que se tem denominado “parcerias” público-privadas.
Mas, conforme alerta o geógrafo David Harvey em seu livro Espaços de esperança: “A
parceria entre o poder público e a iniciativa privada significa que o poder público entra
ϭϲϴ


com os riscos e a iniciativa privada fica com os lucros. Os cidadãos ficam à espera de
benefícios que nunca chegam” (2006: 190). E continua:

[...] Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola


irracionalidade de tudo o que não seja o mercado. E todas as
instituições que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa
foram suprimidas ou [...] reduzidas à submissão. Nós, o povo, não
temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar
(HARVEY, 2006: 205).

A terceira cena transcorre em um conjunto habitacional popular que, em geral,


são prédios construídos pelos governos de plantão sem a participação popular. Esses
imóveis, via de regra, são minúsculos apartamentos. Ainda que representem avanços do
ponto de vista da urbanização, seu entorno, na maioria das vezes, não conta com
infraestrutura. Na verdade, não passam de pequenas “caixas” destinadas à moradia. Por
isso mesmo, as personagens se comunicam através de janelas.
O que se constatou no processo de pesquisa foi que nesses espaços – talvez pela
ausência de participação –, as pessoas tendem a ressaltar o individualismo, em lugar do
coletivismo dos outros espaços (ocupação e favela). Apesar da imensa quantidade de
pessoas, é como se elas vivessem isoladas. Nesse sentido, as políticas de governo
cumprem mais uma vez o papel do capital, desagregando o coletivo. Como afirma
Bauman: “Com os fatores supraindividuais moldando o curso de uma vida individual
longe dos olhos e do pensamento, o valor agregado de ‘unir forças’ e ‘ficar lado a lado’
é difícil de ser reconhecido” (2008: 17). Mais à frente, insiste o autor:

Os tempos de combate direto entre o “dominante” e o “dominado”,


corporificado em instituições panópticas de vigilância e doutrinação
diárias, parece ter sido substituído (ou estar em curso de ser
substituído) por meios mais limpos, elegantes, flexíveis e econômicos.
[...] O descomprometimento é o mais atrativo e praticado jogo da
cidade hoje em dia (BAUMN, 2008: 20).

Trata-se, é claro, da própria lógica do capital, a saber, ver-nos uns aos outros
como adversários. E como nos conjuntos habitacionais as pessoas não lutaram juntas,
como em boa parte das demais comunidades, elas não criam laços umas com as outras.
Mas Bauman se refere também à precarização a que estamos todos submetidos.

ϭϲϵ


“Empilhar” pessoas em prédios populares, em geral construídos em lugares muito
afastados de tudo, quase sem nenhuma infraestrutura, é também reflexo desse jogo de
precarização. Por meio de uma música coletada no movimento social, os atores
finalizam o espetáculo convidando o público para a luta, chamando a atenção de todos
para que se vejam e percebam que são muitos: “Se o povo soubesse o valor que ele tem,
não aguentava desaforo de ninguém!”

Figura 24: Janelas da Cohab.

Fonte: Arquivo do Grupo.


Atriz: Selma Pavanelli em cena do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem.

Todo o processo de construção do espetáculo foi muito rico e contraditório ao


mesmo tempo. No entanto, os atores tomaram consciência de que a arte precisa cumprir
sua função social. “Como um ramo social, coletivo de arte, o teatro enfatiza a mudança
social, em como o mundo pode ser mudado e em porque ele precisa ser mudado”
(PRENTKI, 2009: 25). Lucélia Coelho expressou-se nesses termos na entrevista citada:
“Não existe não querer mudar essa realidade”. Interessado por mudanças, o teatro pode
cumprir o papel contra-hegemônico; por isso, a atriz entende que “[...] precisamos cada
vez mais da teoria, não para virarmos papagaios, mas para falarmos com a mesma força
que o inimigo”. No entanto, certa angústia permanece, pois querem mais. Ao longo da
entrevista, percebe-se um certo tom angustiante na fala de todos, mas reproduzo aqui
apenas a de Edson Paulo:

Eu ainda me sinto incomodado, porque tomamos consciência, mas o


que estamos fazendo para mudar a realidade? A circulação, o contato
com essas pessoas é uma ação? É. As discussões? É. Mas eu acho que
ainda falta algo mais contundente, e aí não sei se é pelo espetáculo...
Se despertamos, como é que agimos nisso? Será que também não
ficamos acomodados?

ϭϳϬ


Durante a entrevista, Lucélia Coelho afirma que “[...] não se pode entrar em
desespero”. Selma Pavanelli, por sua vez, afirma que “[...] não sabem construir o novo,
mas têm plena certeza de que não querem o que está aí”. Johnny John refere-se à
necessidade de “[...] algo prático, para além do espetáculo”. Edson Paulo arremata: “O
processo de Ser TÃO Ser nos deixou ‘malucos’ e, com certeza, toda essa
conscientização veio no decorrer desse processo”. Em última análise, essas afirmações
servirão para demonstrar o esclarecimento dos atores com relação à realidade na qual
estão inseridos, confirmando a máxima de Julian Beck, que afirma que o teatro deve
servir para esclarecer, pelo menos, quem faz. Ou ainda: “O teatro é um meio
comunitário para tentar compreender a vida. [...] Por isso, é preciso fazer teatro. Hoje,
diria, acima de tudo fazer teatro de rua para mudar a vida de todos os dias [...]” (Apud
CRUCIANI; FALLETTI, 1999: 90).
A arte que o Buraco d`Oráculo tem buscado praticar, como lembra Edson Paulo,
é aquela “[...] como o do poema Nova poética, de Manuel Bandeira”:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.


Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem
engomado, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-
lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:


Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por
cento e as amadas que envelheceram sem maldade
(BANDEIRA, 1993: 205).

No entanto, isso não significa que os atores estão preocupados apenas com o
conteúdo a ser levado para os espetáculos. A questão técnica não é deixada de lado.
Todos eles falaram sobre a necessidade de apropriação do seu instrumental de trabalho,
seu corpo e sua voz. “O processo deixou claro que nós precisamos ter propriedade e
qualidade no que estamos fazendo para levar ao público o que queremos. Não dá para
levar qualquer coisa e de qualquer jeito”, afirma Edson Paulo. Por isso mesmo, desde

ϭϳϭ


2008, os atores vêm estudando percussão com Celso Nascimento, canto com Melissa
Maranhão e trabalho de corpo com Paulo de Moraes, em 2007, interrompido em 2009 e
retomado em 2011, com Elizete Gomes. Para Lu Coelho, é por meio de sua arte que ela
fala com o mundo. Por isso, é preciso estar bem preparado, “porque um discurso
político, você vai lá e diz. Agora o espetáculo é diferente, precisa de preparo”, afirma a
atriz.

Figura 25: Apresentação no Parque Santa Amélia, Itaim Paulista, em São Paulo (SP), 2010.

Fonte: Arquivo do grupo.


Atores: Adailton Alves, Selma Pavanelli, Johnny John, Edson Paulo e Lu Coelho. Atores caminham com
caixotes nas costas.

O processo de criação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem


levou o grupo a um novo processo, sobre o qual está debruçado, a saber, a precarização
do trabalho. Essa foi uma tentativa de os integrantes do grupo buscarem entender por
que essas pessoas estão nessas comunidades, isto é, porque elas estão na base da
pirâmide social, ocupando postos precários de trabalho? Mas isso é outra história.

ϭϳϮ


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O geógrafo David Harvey, com base em uma proposição utópica dialética –


entendendo dialética como “[...] algo capaz de abordar de modo direto e aberto a
dinâmica espaço-temporal” (2006: 262) – e colocando o ser humano na condição de
arquiteto – este como alguém que molda os espaços e lhes confere utilidade social,
significados estéticos e simbólicos75 –, propõe que tomemos as capacidades e
potencialidades humanas adquiridas ao longo de nossa evolução, com vistas à criação
de uma alternativa ao sistema capitalista. Para tanto, entende que será necessária muita
imaginação, pois toda realidade nasce primeiro na mente, como já afirmara Karl Marx:

“[...] o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que o


arquiteto concebe na mente sua construção antes de transformá-la em
realidade. Ao final do processo do trabalho obtém-se um resultado que
já existia na imaginação do trabalhador desde o começo” (apud
HARVEY, 2006: 263).

As proposições de Harvey nos servem para balizar a imaginação do trabalhador


em um determinado território: a zona leste paulistana. Se inicialmente diversos bairros
foram construídos como “depósitos de gente”, como afirmou Marcelo Palmares, em
entrevista a mim concedida em 20/01/2011, as proposições apresentadas por Harvey
comprovam a capacidade imaginativa dos trabalhadores. Esses mesmos trabalhadores
têm criado alternativas que, ainda que não suplantem o sistema capitalista, criam
“espaços de esperança” (HARVEY, 2006), na medida em que se reinventam a todo
instante. E a cultura e a arte têm dado sinais estimulantes. Desse ponto de vista, se bares
foram criados como locais propícios a gerar violência, são reinventados por meio de
saraus, tornando-se verdadeiros “centros culturais” e locais de convivência.
No que tange aos dois grupos aqui estudados, eles também criam seus espaços
de esperança ao travarem um diálogo com os trabalhadores e, sobretudo, por levarem à
cena os problemas e as angústias dessas pessoas e de seus lugares, e fazem isso porque
também sentem o mesmo na própria pele. Nesse sentido, são arquitetos que travam uma
luta para reinventar a própria cidade que habitam, como afirma Henri Lefebvre: “A arte,


75
Afirma Harvey: “Conceber a nós mesmos como ‘arquitetos de nosso próprio destino e de nossa própria
sorte’ é adotar a imagem do arquiteto como metáfora de nossa condição de agentes no curso de nossas
práticas cotidianas e, por meio delas, efetivamente preservar, construir e reconstruir nosso mundo da
vida” (2006: 263).

ϭϳϯ

também reconhecendo suas condições iniciais, dirige-se para um novo destino, o de
servir à sociedade urbana e à vida cotidiana nessa sociedade” (2010: 7). E como
Lefebvre afirma que a própria cidade é uma obra, os dois grupos têm lutado pela
participação nessa obra coletiva, ao lado dos demais trabalhadores.
Se a periferia tem destaque nas obras de ambos os grupos, não é porque diz
respeito apenas a uma determinação geográfica, mas a uma condição social imposta
pelo sistema capitalista e pela sua divisão social e espacial. Assim, a periferia está tanto
nos arrabaldes como no centro da cidade. A periferia e os seres periféricos é o que está
apartado da cidade, sem direito a seu uso, levando os trabalhadores a mais uma forma
de alienação. Como afirma Lefebvre em O direito à cidade: “Com a ‘suburbanização’
principia um processo, que descentraliza a cidade. Afastado da cidade, o proletariado
acabará de perder o sentido da obra. [...] A consciência vai se dissipar” (2010: 25).
Dessa forma, o teatro de rua, considerando-o como uma ação descentralizadora que
pretende chegar até os apartados dos “centros”, pode ganhar um sentido conscientizador
ao discutir a organização e a produção dessa obra chamada cidade. Assim, muitos são os
espetáculos que podem restituir a imaginação aos trabalhadores, tornando-os produtores
da cidade.
Nesse aspecto, os espetáculos Mingau de concreto (Pombas Urbanas) e Ser TÃO
Ser – narrativas da outra margem (Buraco d´Oráculo) são obras que se inserem como
disputa daqueles que foram negados pela cidade. E nesse particular é possível evocar
Maurice Halbwachs, que acredita que a evocação das coisas, dos lugares – no primeiro
espetáculo, a vida das personagens e o lugar que elas habitam e, no segundo, a
construção dos bairros populares – é uma maneira

[...] de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada às


mesmas coisas. Em outras palavras, existe uma lógica da percepção
que se impõe ao grupo e que o ajuda a compreender e a combinar
todas as noções que lhe chegam do mundo exterior: lógica geográfica,
topográfica, física, que não é outro senão a ordem introduzida por
nosso grupo em sua representação das coisas do espaço [...] (2008:
61).

Assim, os espetáculos podem servir como representação coletiva dos sujeitos


subsumidos da história; logo, desnaturaliza o que está naturalizado. E como somos
bombardeados cotidianamente com informações que não nos dizem respeito – elemento

ϭϳϰ

importante na dominação –, os espetáculo são a contrainformação do que está ou pode
vir a ser naturalizado.
As diversas informações que recebemos diariamente, das quais não participamos
da produção, criadas a partir do ponto de vista hegemônico (nem sempre percebidas e
compreendidas dessa forma), fazem com que, em geral, não percebamos as influências
dessas informações em nossos hábitos cotidianos e, assim, acreditamos pensar
livremente. Mas aprendemos também com Maurice Halbwachs que “[...] é assim que
em geral a maioria das influências sociais a que obedecemos permanece desapercebida
por nós” (2008: 65). E seguimos vivendo com essas “verdades” produzidas, que muitas
pessoas passam a reproduzi-las como se fossem suas.
O espetáculo na rua pode cumprir papel importante nessa contraposição, pois à
medida que se coloca como um espaço de troca de experiências possibilita o choque
entre a memória individual e a memória histórica. Para Halbwachs, “[...] nossa memória
não se apóia na história aprendida, mas na história vivida” (HALBWACHS, 2008: 78-
9). Assim, nessa contraposição proporcionada pelo espetáculo, é a história de vida do
espectador que se confronta com o que está sendo apresentado. Ao apresentar atitudes,
situações, lugares que dizem respeito ao público, a cena permite que ele se confronte
consigo a partir do que vê. Os espetáculos podem também gerar o sentimento de
pertencimento a uma classe por meio do reconhecimento de si e dos demais à sua volta.
Nesse sentido, criam possibilidades múltiplas de olhar e reinventar o local em que vive.
A cidade nos aparece como panorama; logo, como um simulacro, como afirma
Michel de Certeau (2003), em que aqueles que praticam a cidade não podem lê-la, ou
sempre nos aparece como leituras parciais, embora tomadas como um todo. Os
espetáculos são, portanto, uma possibilidade de leitura com outro ponto de vista; ao
mesmo tempo, são também apropriações do território, do lugar, que, ao serem
apropriados, são ressignificados como espaço de troca simbólica.
Não por acaso, os espetáculos Mingau de concreto e Ser TÃO Ser – narrativas
da outra margem acontecem em roda, sem planos diferenciados com o espectador. A
roda, ainda que seja considerada uma forma de o ator dar as costas à cidade (TELLES,
2005), é também a possibilidade de comunhão, isto é, cria uma comunidade (no sentido
de comum a todos) e uma assembleia no decorrer do espetáculo. A roda é um princípio
presente em diversas manifestações populares. Nela se pode criar um espaço apartado
da cidade, ao mesmo tempo em que dela se apropria. Lidia Kosovski, em artigo sobre os
artistas populares de rua, afirma:

ϭϳϱ

As investigações teatrais europeias e americanas, revolucionárias em
nosso século [XX] conservam, em várias medidas, a marca sedentária
do palco italiano em seu corpo. Das marcas do palco estão livres
apenas as expressões legitimamente populares: as nascidas de liturgias
religiosas, o carnaval ou os artistas “natos”, os histriões de rua, os
camelôs, os artistas eternamente sem-teto, cuja única ferramenta é o
seu corpo, e cuja “casa”, como a do pássaro, é modelada pelo próprio
peito, que, ao apertar e comprimir materiais, os tornam gentis até
agregá-los; assim, os artistas de rua agregam, com a matéria do seu
afeto, as pessoas em torno de si. E é justamente nestas fontes que,
inúmeras vezes, grande parte dos “exilados espontâneos” do teatro de
nosso século irá beber, tanto ética como esteticamente (2005: 11-2).

Os integrantes de ambos os grupos, ainda que não “natos”, têm como influência
esses mestres, e por não terem os “vícios” de formações de escolas técnicas, estão mais
livres para se apropriarem dessas formas livres, criadoras de afetos. Assim, a roda
possibilita essa criação de afetos ao dar origem à comunidade ao mesmo tempo que se
estabelece como resistência à cidade. A roda cria, portanto, territórios alternativos, “[...]
em contraposição ao ‘espaço liso’, homogeneizante, imposta pela ordem social e
política dominante” (HAESBAERT, 2006b: 13). Se a territorialização ocorre por meio
de diversas construções e apropriações, que podem ser concretas como simbólicas do
espaço, a roda é uma territorialização que ocorre especialmente para trocas simbólicas,
um espaço comum para que atores e público se conheçam e se reconheçam. A roda é
um território afetivo que cria possibilidades de a classe se reconhecer como tal:

Somos estranhos uns aos outros, mas buscamos constantemente


resguardar um espaço dentro da urbe onde sejamos comuns e
conhecidos, onde nossos signos encontrem reciprocidade. Somos
habitantes desta confusa rede metropolitana, mas forjamos uma
cartografia particular de seu traçado. Nossos roteiros e deslocamentos
se inscrevem em um intricado jogo de disputas, proibições e limites
espaciais (HAESBAERT, 2006b: 94).

E quando os grupos tomam seus territórios, seus lugares, seus “pedaços”, bem
como as angústias e os problemas a que estão submetidos os seus, isto é, quando tomam
a própria identidade e levam-na à cena, a identificação é maior. Não no sentido de
aceitar prontamente, mas no sentido de se ver em cena; logo, pertencente à discussão.
Nesse momento, o espetáculo instaura a assembleia. E a roda favorece isso, já que o

ϭϳϲ

público não apenas assiste à cena, mas se vê no outro, vê a cena e quem está com ele no
jogo. A roda é, nesse sentido, a pausa de um deslocamento que possibilita o encontro
entre os seus. Ao mesmo tempo, o espetáculo, ao abordar questões que dizem respeito a
uma classe, instaura a contradição nos sujeitos que participam daquele momento. Eles
poderão sair dali modificados para o espaço da vida real. Assim, o espetáculo pode vir a
ser, no sentido dialético, um salto qualitativo na vida dos espectadores.
Quanto aos outros dois espetáculo, O cuscuz fedegoso (Buraco d`Oráculo) e
Histórias para serem contadas (Pombas Urbanas), eles não foram concebidos para
ocorrer em roda; no entanto, isso não impediu, por diversas vezes, que a própria
dinâmica da rua levasse à formação de rodas. Ambos os espetáculos abordam a temática
da sobrevivência na cidade. Se os espetáculos anteriores se inserem no campo da
memória, estes travam uma discussão sobre o que é viver numa cidade na condição de
trabalhador precarizado. Dessa forma, esses espetáculos confirmam a tese de Elie
Konigson:
O lugar teatral é, em última análise, o cruzamento onde se encontram
exacerbados os desejos, as utopias, as imagens mentais. Não obstante,
ele participa da apoteose ou da negação da cidade, o lugar teatral
permanece no centro de toda interrogação sobre o passado, o presente
e o futuro do espaço urbano (apud CARDOSO, 2008: 84).

Dito em outros termos: a luta de classe não está apartada das artes e, por isso, a
arte não pode ser apenas para privilegiados, mas sim para todos. E os artistas devem se
colocar na disputa pelo direito ao seu acesso ao lado dos demais trabalhadores, visando
a uma sociedade justa e igualitária. Assim, na rua, onde não se paga pela informação
nem pela fruição, instaura-se a ágora, espaço privilegiado de discussão daqueles que,
em geral, estão apartados do acesso de qualquer natureza, das decisões e de quase todos
os debates. É preciso que os artistas tomem para si o alerta de Iná Camargo Costa:

[...] enquanto os trabalhadores europeus desde 1863 têm


absolutamente claro que não se pode separar a luta política da luta
cultural, aqui no Brasil a cultura não apenas é monopólio da classe
dominante como ainda é instrumento de domesticação do dominados
(2004: 274).

É nessa luta que os grupos aqui estudados estão inseridos, afinal são também
trabalhadores, que se veem fazendo arte para outros trabalhadores. Ambos os grupos
veem também a arte como um direito de todos, por isso lutam também pelo seu acesso,

ϭϳϳ

pois os demais trabalhadores só verão o teatro como algo a que têm direito, como algo
que lhes pertencem, se os fazedores se reconhecerem na cena e se estiverem em espaços
acessíveis, e a rua é um bom lugar para isso.
Historicamente, a periferia paulistana e, em específico, a zona leste da cidade de
São Paulo, foi sempre o destino dos trabalhadores, sobretudo daqueles mais simples.
Por isso, quanto mais nos distanciamos do centro (aí, sim, geográfico), mais
encontramos pessoas condenadas a residirem em bairros com pouca infraestrutura, sem
acesso às artes e a tudo o mais a que têm direito.
Os grupos que escolheram desenvolver seus projetos nesses lugares optaram
pela contramarcha da mercadoria. É o caso dos dois grupos aqui estudados – Pombas
Urbanas e Buraco d`Oráculo – que têm levado à cena pessoas comuns, analisando a
história a contrapelo e trocando experiências com os seus. No entanto, o fato de os
grupos dialogarem com a classe trabalhadora e tomarem o ponto de vista dessa mesma
classe não os fazem porta-vozes de ninguém, isso porque eles próprios também são
trabalhadores e sentem em igual intensidade as angústias dos demais trabalhadores. Por
essa razão, não pretendem ser vanguarda, querem apenas trocar experiências, dialogar
com os seus, buscando alternativas e formas de suportar e também modificar o mundo
em que vivem e, ao fazerem isso, colocam-se também em luta com eles.

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Entrevistas
Adriano Mauriz e Juliana Flory – Pombas Urbanas em 16/03/2008.
Adriano Mauriz – Pombas Urbanas em 16/01/2011.
Edson Paulo e Lu Coelho – Buraco d`Oráculo em 05/05/2008.
Juliana Flory – Pombas Urbanas em 01/02/2011.
Marcelo Palmares – Pombas Urbanas em 20/01/2011.
Marcos Kaju, Natali Santos e Ricardo Big – Pombas Urbanas em 16/02/2011.
Paulo Carvalho Jr. – Pombas Urbanas em 08/02/2011.

Sites consultados
http://buracodoraculo.blogspot.com
http://cianascidosdoburaco.blogspot.com
http://circularcohabs.blogspot.com
http://mtrsaopaulo.blogspot.com
http://trupearruacirco.wordpress.com
www.buracodoraculo.com.br
www.casabrasil.gov.br
www.pombasurbanas.org.br
www.tendaldalapa.blogspot.com
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