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CLAUDINEI CHELLES
Presidente Prudente
2016
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CLAUDINEI CHELLES
Presidente Prudente
2016
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Chelles, Claudinei.
C445p Psicanálise e futebol: o jogo como situação sublimatória e (contra)
transferencial no processo formativo / Claudinei Chelles. - Presidente
Prudente : [s.n.], 2016
142 f.
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
ao meu orientador e amigo Professor Doutor Mauro Betti: que exercendo sua função,
me permitiu transitar na exploração de um caminho que escolhi. Nos deslizes me
mostrou os equívocos, os atalhos e me acolheu com sua sempre competência de
mestre e de um ser humano iluminado. Isso tudo, com sua categoria, digna de
Zidane! Um craque acadêmico!;
à Professora Doutora Eliane Gomes da Silva: que além de ser minha madrinha
acadêmica, pela motivação sobre essa tese, juntamente com a pequena Sofia (que
me emprestou seu colchão algumas vezes), me acolheram em sua casa em
momentos importantes, dentre outros, para desenvolver essa tese;
ao Professor Doutor Pierre Normando Gomes da Silva: por sua grande contribuição
dada, tanto em sua vinda para Presidente Prudente, quanto na qualificação, dando
dicas e sugestões pontuais que deram um rumo ao trabalho no momento crítico da
tese;
ao Professor Doutor Walter Roberto Correia: por aceitar o convite e colaborar com
essa tese, além de sua mobilização, que sabemos exigir empenho;
aos Professores Doutores Fernando Donizete Alves, Jocimar Daólio, Ari Fernando
Maia e Manoel Osmar Seabra Junior: que aceitaram estar de prontidão. Os
guardiões;
aos meus padrinhos Acácio Cardoso Filho e José Chelles: por me levar aos 8 anos
ao primeiro jogo de futebol num estádio e por me dar aos 10 anos o primeiro radinho
de pilha para jogar com os ouvidos, respectivamente;
ao narrador Osmar Santos: com quem joguei muitas vezes pelo radinho de pilha;
aos amigos de infância de rua com quem joguei grandes clássicos: “rua de cima”
versus “rua de baixo”, em outras ocasiões nos campinhos dos terrenos baldios pelo
bairro;
às escolas estaduais que estudei: onde joguei numa quadra de esportes pela
primeira vez aos 7 anos, onde tive um ótimo professor de educação física, Prof. José
Natalino Ribeiro; bem como aquelas que dei aulas;
6
à vida!
Muito Grato!
7
Sigmund Freud,
“O Mal-estar da civilização”
(1930, p.147)
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RESUMO
ABSTRACT
This doctoral thesis has been developed at the research line “Practices and
Formative Processes in Education”, Postgraduate Program of Education, in the
Faculty of Sciences and Technology at the State University of São Paulo (UNESP),
Presidente Prudente campus. The sociocultural importance of football, our own
professional experience in this sport modality and the lack of psychoanalytic
approach studies on football that have contemplated children’s, adolescents’ and
youngsters’ “educative process of/in football” constituted this study starting point
scenario. Our general objective was to verify the possibilities of contribution from
psychoanalysis to the “educative process of/in football”. The initial incursion into
psychoanalysis, as proposed by Sigmund Freud, led us to identify, on the one hand,
the theme of the “desire to play”, and on the other, the relationship between the
student-athlete and the teacher-coach, which led us to highlight the concepts of
sublimation and (counter) transference. Then, we try to answer the following specific
questions: how and why could the football game contemplate (propitiate)
sublimation? What is the contribution of (counter) transferential knowledge in the
teacher-coach performance as educator? We verified that football game practice can
be a relevant agent for the occurrence of drive forces sublimation, allowing its
occurrence in a socially acceptable way, which makes the “desire to play”
comprehensive. In relation to the sublimatory aspect, the drive is closely related to
the “death drive”, characterized as an energy that is directed to the accomplishment
of the act of playing football. We have found that, at least partially, the pleasure of
playing is limited when football undergoes the formatting of what is called “sport”,
characterizing constraint in the act of playing, given the rigor and compliance with the
rules. Another relevant aspect in this investigation is the (counter) transference
knowledge that is installed in the teacher-coach performance in relation to the
student-athlete, guided by the mediation between the allowed and the prohibited to
the latter. That is, the teacher-coach acts in strengthening the superego, so that
beyond the football practice conducts are also welcomed. Finally, we suggest the
words “teachercoach” and “studentathlete” to indicate our understanding that the
sports professional must operate in the psychoanalytic understanding of the
“pedagogical act”, which requires going beyond the biomechanical, physiological and
pedagogical aspects of sport, towards an understanding of the unconscious
existence.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................11
1.1 Do “jogo de futebol” à psicanálise ................................................................................16
4 CONCLUSÃO ...........................................................................................................................123
REFERÊNCIAS............................................................................................................................127
11
1 INTRODUÇÃO
1
http://www.dolarhoje.net.br/dolar-comercial.php. Acesso em: 23 de fevereiro de 2016.
12
o fato de que, nessas situações, não vemos possibilidade do desejo de jogar aflorar
exclusivamente pelas recompensas financeiras.
Os atletas que recebem valores financeiros elevados são minoria, mas que
repercutem fortemente devido à espetacularização dos eventos esportivos
promovido pela mídia, forjando a representação de que todos que estão nessa
atividade têm contratos equivalentes aos raros atletas com ganhos muito acima da
média.
Após essa percepção inicial, que não era devido a isso que os atletas
jogavam, surgiu a indagação sobre qual seria a razão principal, pois na maioria das
vezes as condições de treinamento, em muitos dos clubes, não são favoráveis em
decorrência de baixos salários (frequentemente atrasados), além da falta de
visibilidade para a grande mídia. Nas categorias de formação de atletas, nas
chamadas “categorias de base”, os adolescentes e jovens permanecem longe das
suas respectivas famílias ou dos amigos por longos períodos, muitas vezes ficam
vários meses (e, em alguns casos, anos), sem vê-los, assim como há,
concomitantemente, o comprometimento da vida escolar. Ademais, em muitos casos
os atletas deparam-se com a frustração de não jogar e permanecer no banco de
suplentes.
Então, isso nos levou a perguntar: o que o move o atleta a praticar futebol?
De onde vem esse desejo? O questionamento que mencionamos foi corroborado
quando tivemos outras experiências na prescrição e treinamento de atletas de elite,
que ganhavam muito bem, mas para os quais o “querer jogar” predominava.
A preferência dos atletas de futebol pelas atividades em que predomina o
“jogo”, em detrimento das situações do treinamento mais planejadas, ficou
evidenciada nas investigações de Chelles (2002, 2003). A partir de então, buscamos
conhecimentos que pudessem nos dar subsídios para explicar essa motivação
intrínseca e/ou extrínseca do simples ato de “jogar”.
Portanto, partindo dessas percepções e intuições oriundas da nossa
experiência profissional, buscamos referenciais teóricos na psicanálise. E logo de
início verificamos que esse desejo em jogar não é necessariamente a tradução do
prazer. É neste ponto que observamos que o jogar, nos moldes do esporte coletivo,
refere-se a uma instância que transita além do princípio do prazer. Pois o argumento
que o jogar proporciona prazer é apenas superficial, e não se dirige ao âmago da
questão.
13
cargas e intensidade da atividade física, aos fundamentos técnicos, etc., mas que
estimula a discussão e compreensão do significado e valor cultural desses gestos.
Quando, na condição de educadores, ao elaboramos uma proposta
pedagógica, Frost (1974) nos sugere que devemos considerar as características,
necessidades e cuidados em relação aos aprendizes. Partimos do pressuposto de
que o conhecimento oriundo da abordagem psicanalítica pode ser muito importante
para tal. Portanto, nesta investigação buscamos apresentar referenciais que possam
contribuir para a formação e atuação do professor-treinador, pautado na
compreensão do aluno-atleta na situação do jogo de futebol.
Ao longo do estudo, contudo, fomos tomando ciência de que, apesar de
focar no futebol, poderíamos estar aventando qualquer outro esporte. A princípio há
linhas de interface, sobretudo com os esportes coletivos com bola. Porém,
consideramos que o futebol, além de ser um esporte de grande repercussão social
em nosso país (e em muitos outros) tem suas particularidades, evidentemente. Além
do mais, essa investigação assenta-se numa base de vivência própria na
modalidade.
Iniciamos com uma busca no site da CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento
de Pessoal no Nível Superior – Ministério da Educação) em seu “Banco de Teses &
Dissertações”, a partir das seguintes temáticas: Futebol, Esporte, Pedagogia do
Esporte, Psicanálise, Transferência, Sublimação, Jogar, Brincar.
Encontramos as teses e dissertações de Bandeira (2012), que investigou a
angústia e o desejo do atleta no processo competitivo; de, Dias (2009) que
investigou as práticas esportivas e sua relação com o contexto histórico e social; e
de Moreno (2005) e Ramirez (2003), que investigaram aspectos transferenciais na
relação treinador-atleta nas modalidades handebol e basquetebol, respectivamente.
Em formato de livros encontramos outros autores, tais como Azoubel Neto (2010),
Martins (2010), Motta (2005), e Bastidas (2002), que estudaram o futebol e
psicanálise, em suas relações com a mitologia, ciências humanas, torcida e
subjetividade, respectivamente.
Porém, apesar da grande contribuição que cada um desses autores
prestou à temática, não apresentaram relações com o processo formativo do/no
futebol, fator imprescindível na ótica educacional que preside nosso interesse em
contribuir com a área de Educação Física, responsável, a princípio, pela formação
do professor-treinador a que nos referimos.
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O esporte foi muito pouco abordado pela psicanálise. Por outro lado,
vem ocupando espaços cada vez maiores na sociedade. [...]
Diferentemente do pequeno espaço dedicado ao tema pela
psicanálise, podemos observar que pensadores relevantes das
ciências humanas dedicaram um papel importante aos assuntos
relacionados com o esporte. Podemos citar Huizinga (1994), que
entende o jogo como uma das principais bases da civilização. Assim,
a escassa produção psicanalítica sobre o esporte não faz justiça à
importância que o tema possui, sobretudo se levarmos em conta,
para o caso brasileiro, o universo do futebol.
Podemos então dizer que o objetivo geral desta tese foi verificar as
possibilidades de contribuição da psicanálise para o processo formativo do/no
futebol que envolve crianças, adolescentes e jovens.
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de si próprio. Isso já nos põe diante da hipótese de que o futebol pode revelar
motivações e emoções que a própria consciência sequer suspeita (WAGNER, 1998).
Sigmund Freud (1856-1939) apresentou uma teoria da dinâmica e
funcionamento da mente humana e um processo exploratório da sua estrutura com a
finalidade de tratar as condutas tidas como compulsivas, caracterizadas por
comportamentos visivelmente sem causa que em alguns casos transformam-se em
realizações prazerosas. Esse método é simultaneamente um processo restrito ao
tratamento de prováveis desequilíbrios da mente e uma teoria psicológica, que atua
nos processos mentais, denominado “inconsciente”. Ou seja, o emprego da
psicanálise tem a intenção de buscar o que estaria escondido além das
exterioridades, o aspecto oculto que explanaria a conduta nitidamente irracional.
Freud utilizou pela primeira vez o termo psicanálise em seu primeiro artigo
“As psiconeuroses de defesa” [1896] (1996), publicado em francês2. Porém, pouco
tempo depois introduziu o termo em outro artigo, já em alemão, que aparece em “A
hereditariedade e a etiologia das neuroses” [1896] (1996), e desse modo o emprego
do termo ‘psicanálise’ consagra-se pelo abandono da catarse3 praticada pela
hipnose e da sugestão, recorrendo à ‘associação livre’4, um tratamento por meio da
fala para obtenção do material psíquico a ser analisado.
Apesar de o termo psicanálise ter sido utilizado por Freud pela primeira vez
nessa época, já havia algum tempo que trabalhava nessa direção, a princípio sob a
influência de Breuer, com quem iniciou seus primeiros passos no caminho da
psicanálise nos “Estudos sobre a histeria” [1893-1895] (1996). Histeria que se
caracterizava como uma doença originada em um trauma psíquico durante a
infância, representada por um afeto descarregado no somático.
As ideias de Freud iniciam-se remontando a pesquisas e observações
clínicas do início dos anos de 1890. O material apresentado difundiu-se em alguns
2
O artigo em francês foi publicado no final de março de 1896, cerca de seis semanas antes da
publicação do artigo em alemão e, consequentemente, tem prioridade no que tange à primeira
ocorrência publicada da palavra ‘psicanálise’. L’hérédité et L’étiologie des névroses, nota do editor
inglês.
3
Tem por intuito em trazer a consciência aspectos afetivos e lembranças recalcadas instaladas no
inconsciente, consequentemente liberando o paciente dos sintomas e neuroses coligados a esse
impedimento.
4
É a passagem do conteúdo manifesto ao latente. É um método que direciona a descoberta do
inconsciente. Consiste em exprimir e evocar, indiscriminadamente, mas num estado consciente, todos
os pensamentos, seja pela palavra, número, imagem, sonho, que ocorram espontaneamente.
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artigos publicados, bem em como diversas cartas a Fliess5, pelo período de quase
três décadas, reconfigurando o mapa da mente, refinando a técnica psicanalítica,
revendo suas teorias sobre as pulsões, sexualidade, arte, antropologia, religião e
cultura (GAY, 2012).
Foi nos “Estudos sobre a histeria” que Freud [1895] citou pela primeira vez
a utilização, no caso da Sra. Emmy, da hipnose, procedimento técnico do método
catártico de Breuer. E, em uma carta a Fliess, em 1887, informa que ao final
daquele ano começou a dedicar-se ao hipnotismo. Vale ressaltar que em seu
“Estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade / análise leiga e outros
trabalhos” [1925] (1996) o emprego do hipnotismo, “desde o começo” não visava
apenas oferecer sugestões com finalidades terapêuticas, mas também com o intento
de acompanhar a história do sintoma desde suas raízes.
Os “Estudos sobre a histeria” frequentemente são considerados como o
ponto de partida para a psicanálise, pois permitem rastrear seus primeiros passos
com uma característica peculiar desses pacientes: a amnésia, que, quando trazida à
luz, de imediato sugere a compreensão que a mente manifesta não é a mente em
sua totalidade, havendo por trás uma mente inconsciente. Então, tornou-se evidente,
desde o seu princípio, que a dificuldade não se encontrava meramente sob a
investigação dos processos mentais conscientes. O instrumento utilizado para esta
finalidade acontecia pela sugestão hipnótica. Porém, nos anos seguintes, Freud
abandonou a utilização dessa técnica e passou cada vez mais a confiar no fluxo das
associações livres. Ainda nos “Estudos”, obra que Freud afirma ter a contribuição
técnica de Breuer, ele tornou público pela primeira vez o conceito de transferência,
que se revelou como um aspecto de importância fundamental para a psicanálise.
O termo “inconsciente” - “das Unbeusste” (“o inconsciente”) no sentido
psicanalítico - fundamental na obra freudiana, tem sua primeira ocorrência publicada
nos “Casos clínicos”, no denominado Caso 1 sobre a Srta Anna O. O termo já havia
sido empregado por Freud e Breuer num rascunho não publicado em 1892. Mas,
também já havia sido utilizado anteriormente por outros, particularmente pelos
filósofos (FREUD, [1895] 1996).
Especificamente no relato sobre a situação da Sra. Emmy Von N. no
denominado Caso 2, Freud [1895] relata que havia perguntado à paciente sobre a
5
Psiquiatra com quem Freud trocava correspondências sobre suas ideias psicanalíticas.
21
origem de sua gagueira e ela lhe respondeu “não sei”. Ou seja, provavelmente tal
resposta fosse verdadeira, mas o que esperamos colocar em exame é que se trata
de algo que transita em nível do inconsciente. Evidentemente a expressão “não sei”
vale para diversas situações, quando, por exemplo, perguntamos para alguém qual
a razão para jogar futebol. Seria muito comum ouvirmos a mesma resposta. Assim,
nossa investigação, caminha, também, nessa trilha.
E então, ao final de 1899, quando anuncia sua obra “A Interpretação dos
Sonhos” [1900-1901] (1996), Freud estabelece os princípios da psicanálise; este
escrito ele considerava a porta de entrada para sua obra.
Uma das mais explícitas apresentações de Freud para o termo ‘psicanálise’
encontra-se no artigo da Encyclopédie, em português, “Dois verbetes de
enciclopédia” [1922] (1996, p.253), onde se refere à psicanálise como: “(1) um
procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis
por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o
tratamento dos distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas
obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova
disciplina científica”.
Para Laplanche e Pontalis (2001) trata-se de uma disciplina que se
caracteriza por um método de investigação que consiste essencialmente em
evidenciar o significado inconsciente das palavras, atos, produções imaginárias
(sonhos, fantasias, delírios) de um indivíduo. Tal procedimento fundamenta-se,
sobretudo, naquilo que citamos, ou seja, nas associações livres do sujeito, que
afiançam a legitimidade da interpretação, embora a interpretação psicanalítica possa
também ampliar-se para as elaborações humanas que não disponham dessas
associações.
Pavan (2001) cita que a psicanálise, desde seu surgimento, é sem dúvida
alguma determinada como prática, como atividade clínica. Porém, a teorização e a
prática ocorreram simultaneamente. Num primeiro instante, na função de médico, e
em seguida na posição de psicanalista, Freud sustentou ao longo do tempo uma
postura crítica perante os acontecimentos clínicos analisados. Isso permitiu que,
diante de uma atitude prática na procura de resultados terapêuticos,
simultaneamente desenvolvesse conceitos originais sobre os fenômenos observados
que produziram uma teoria designada como “metapsicologia”.
22
6
Conforme Garcia-Roza (2001, p.9 e 10), o termo foi utilizado por Freud, pela primeira vez, numa
carta direcionada a Wilhem Fliess datada de 13 de fevereiro de 1896: “Tenho me ocupado
continuamente com a psicologia – na verdade, com a metapsicologia...”. [...] Ou seja, Freud inicia a
redação de uma série de ensaios que pretendia publicar com o título de “Preliminares a uma
metapsicologia”. Sua intenção com essa série de textos era a de esclarecer e de aprofundar as
hipóteses teóricas da psicanálise, trazendo seus princípios, modelos teóricos e os conceitos da
psicanálise. Trata-se do estudo sobre as relações entre o inconsciente e o consciente para indicar um
saber psicológico que leva em consideração as dimensões do psiquismo.
7
Garcia-Roza (2011), resumidamente menciona Freud referindo-se à metapsicologia como a “bruxa
feiticeira”. Ele acreditava nela mais do que ninguém, já que ela existe. Ou seja, a introdução à
metapsicologia freudiana significa frequentarmos a cozinha da bruxa. Estabelecer oposição entre
23
Era denominada por Freud como metapsicologia por levar em conta sua
teoria referida aos processos inconscientes, posicionando-se além da psicologia da
consciência existente em seu tempo. Nas ciências cognitivas atuais, a ciência de
que os processos cognitivos (processo de conhecer, que envolve atenção,
percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamentos e linguagem) são,
em essência, inconscientes, é amplamente aceita (THÁ, 2004).
Este estudo apoiar-se-á na análise da metapsicologia freudiana a partir do
tema do "prazer em jogar futebol", temática detectada inicialmente no estudo de
Chelles (2002) com jogadores adultos profissionais, e de Macagnan e Betti (2014)
com alunos do ensino fundamental. As conclusões desses autores sugerem que a
prática do jogo de futebol, independente da esfera em que esteja ocorrendo, é
realizada sob uma atmosfera predominantemente prazerosa.
Freud [1920] (1996) menciona que o conjunto da atividade psíquica tem por
finalidade a busca do prazer e a fuga ao desprazer, e disso deriva que os aspectos
associados às lembranças de experiências desagradáveis têm por tendência afastar-
se do nível da consciência.
Laplanche e Pontalis (2001) ressaltam que a concepção freudiana do
desejo refere-se, por excelência ligado aos signos infantis indestrutíveis e, ainda,
não identifica o desejo à necessidade. Ou seja, o desejo é indissociável do
inconsciente e encontra sua realização na reprodução alucinatória das percepções
dos signos desta satisfação.
A situação edipiana8 é então alocada no cenário, exclusivamente no que
alude às identidades das vivências ocorridas na infância. A adolescência, quando
mais habitualmente ocorre a proximidade da escolha dos afazeres profissionais, é
um instante de transformações no qual se realiza a reorganização da identificação e
teoria e clínica, numa condição que uma exclua a outra, significa a negação do próprio projeto
freudiano. Então, aos que insistem em não acreditar, Freud avisa que elas existem. Ao menos a
bruxa metapsicologia.
8
Complexo de Édipo: desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais.
Apresenta-se como na história de Édipo-Rei. Ou seja, desejo da morte do rival que é o personagem
do mesmo sexo, e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Segundo Freud, o apogeu do
complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca
a entrada no período de latência. O termo surge na obra de Freud em 1910, em “Cinco lições de
psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos”. Porém, em 1908, em “Sobre as teorias sexuais
das crianças”, encontra-se a expressão ‘complexo nuclear’, geralmente utilizada como equivalente.
Sobre o esclarecimento sexual, o menino “começa a desejar a mãe para si mesmo, no sentido com o
qual, há pouco, acabou de se inteirar, e a odiar, de nova forma, o pai como um rival que impede esse
desejo; passa, como dizemos, ao controle do complexo de Édipo” (FREUD, [1910] 1996, p.101).
24
o acesso do mundo infantil para a vida adulta, como é o caso de muitos jovens que
optam por participar de processos seletivos com o intuito de tornar-se jogador de
futebol profissional em clubes formadores de atletas, nas chamadas “categorias de
base ou de formação”.
Em “Além do princípio do prazer” [1920] (1996), Freud relaciona a
diminuição de excitação no aparelho psíquico com seu inverso, ou seja, o aumento
dessa excitação representando o desprazer. Ou seja, quanto menor for a tensão no
aparelho psíquico, maior a sensação de prazer para o sujeito. Daí a necessidade
dessa energia pulsional, representada pela tensão da excitação, ser aliviada numa
condição sublimatória9.
Além disso, é preciso examinar a transformação do princípio do prazer em
princípio da realidade. Pois isso não significa o abandono do prazer, mas
caracteriza-se pelo seu adiamento para alcançá-lo por outras vias indiretas, viáveis
em outras condições do mundo externo. Ainda há a relação de prazer e dor, a partir
de “Eros e Tanatos” [1920] (1996) (pulsões de vida e de morte, respectivamente),
que podemos estender à compreensão do jogar esportivo coletivo na vazão da sua
pulsionalidade (agressividade).
Em “Mal-estar na civilização” [1930] (1996), Freud institui uma relação
entre o empenho originado pela renúncia das satisfações pulsionais e a
impossibilidade do sujeito estar feliz vivendo em sociedade. De tal modo, a
formação do superego leva à existência, nos seres humanos, de aptidão para
controlar-se pelas regras e uma possibilidade de dispêndio de energia, já que os
homens “são criaturas entre cujos dotes instintivos deve se levar em conta uma
poderosa quota de agressividade” (FREUD, 1996, p.116). Assim, requer-se que o
esporte, por exemplo, seja instrumento que dê vazão à libido, para que a sociedade
seja parcialmente aliviada da tensão que a barbárie necessita para desencadear-se.
Ou, pelo menos, minimizá-la.
Contudo, não temos a intenção de dar um enfoque exclusivamente
psicanalítico ao processo formativo do/no futebol, mas, sobretudo, procurar
demonstrar a contribuição que a psicanálise pode oferecer à compreensão dos
processos educacionais e formativos envolvidos na prática do futebol,
principalmente, por crianças e jovens.
9
Sublimação – termo abordado no capítulo 2.
25
10
William Shankly, conhecido como Bill Shankly (nascido na Escócia,1913-1981), foi atleta e atuou
dentre outras equipes, na seleção nacional da Escócia (1938-1949). Foi treinador de várias equipes,
mas no Liverpool (equipe inglesa) (1959-1974) teve mais notoriedade. É considerado como um dos
principais treinadores do futebol no Reino Unido em todos os tempos.
26
Para Elias e Dunning (1992), o jogo de futebol, como era praticado nos
tempos passados na Inglaterra e também em muitos outros países, bem como a
maioria dos jogos que utilizavam a bola, era um jogo demasiadamente selvagem.
Apesar de séculos mais adiante, entre 1845 e 1862, no instante que o jogo de
futebol foi introduzido em algumas importante escolas públicas, tornou-se bastante
regulamentado, mas ainda com um nível de violência mais elevado do que nos dias
atuais, apresentando uma dinâmica de tensão bem diferenciada.
Ao final do ano de 1863 a Associação de Futebol dividiu-se, pois a maioria
de seus membros decidiu eliminar as ‘caneladas’ do jogo. Porém, uma minoria de
fundadores afirmavam que essa atitude tornaria o jogo muito suave, opondo-se a
isso. Portanto, dentre outros fatores, esse foi um ponto que conduziu ao
desenvolvimento de dois esportes na Inglaterra: o football association ou futebol e o
raguebi futebol ou rugby. Mais tarde a canelada também foi abolida do rugby,
mesmo se mantendo este mais violento. Na própria Inglaterra, uma multidão de
pobres e trabalhadores também acessou a prática desse jogo, principalmente pelo
“prazer do brinquedo”, já que se tratava de uma invenção que não necessitava de
equipamentos caros e sofisticados para ser “jogado” (ELIAS, DUNNING, 1992;
MARTINS, 2010)
Quando Motta (2005) proclama que todo esporte é uma guerra sublimada,
de imediato ele complementa sobre o futebol que, quanto mais sublimações tiver,
mais adequada será a situação para compreender a demanda geral. O modo como
isso vem se processando tem se transformado ao longo da história; mesmo que
tenha eventualmente ocorrências mais violentas, o esporte é atualmente muito mais
pacífico do que foi na Idade Média.
imediato para outro desprovido do caráter sexual. Quando isso não se torna fato no
histórico de infância, ou seja, na história do desenvolvimento psíquico, verificamos
que essa força poderosa foi utilizada para interesses sexuais. Constata-se a verdade
disso caso venha a acontecer uma estranha falta de desenvolvimento durante a vida
sexual na maturidade, como Freud demonstra em “Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância” [1910] (1996).
Em outros momentos da obra freudiana o termo continua distribuído de
forma difusa e pouco elaborado, como em “Moral sexual cultural e doença nervosa
moderna” [1908], “Introdução ao narcisismo” [1914], “Além do princípio do prazer”
[1920], “O ego e o id” [1923], “O mal-estar da civilização” [1930], conforme
levantamento realizado por Torezan e Brito (2012).
Ainda sobre o termo “sublimação”, temos na “Teoria da Libido”, em “Dois
verbetes de enciclopédia”, Freud [1923] (1996) se refere a um atento exame das
tendências sexuais, considerando a pulsão sexual em sua complexidade. Sua
função objetiva dirige-se à descarga seguida da satisfação. Porém, é capaz de ser
alterada da atividade para a passividade. O objeto não encontra tão ligado à pulsão
como se supunha anteriormente. É facilmente substituído por outro, inclusive
podendo ser traçado pelo próprio eu do sujeito em detrimento a um objeto externo.
O destino mais importante da pulsão parece, de fato, ser a sublimação. As pulsões
se encontram separadamente, com a possibilidade de serem independentes. O
objeto e o objetivo são alterados e então, o que era a princípio uma pulsão sexual,
depara com uma satisfação em algo que não seja mais caracterizado enquanto
sexual. Porém, apresenta uma valorização social ou uma ética superior.
Mais adiante, Freud [1930] (1996), em “Mal-estar da civilização”, afirmou
que a sublimação da pulsão se compõe como fator particularmente evidenciado do
desenvolvimento cultural. Pois é essa cultura que possibilita que as atividades
psíquicas em nível superior, as de ordem científica bem como as criações artísticas,
ou ainda ideológicas, desempenhem função fundamental na vida que participa do
processo civilizatório.
Jean Laplanche é muito citado por ter seu “Vocabulário de psicanálise”,
juntamente com Jean B. Pontalis (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001) na condição de
uma das obras referenciais nos estudos psicanalíticos. Porém o mesmo autor
também nos apresenta um conteúdo amparado por comentários críticos sobre os
eixos fundamentais da teoria psicanalítica. Sua exegese freudiana foi apresentada
30
No exercício do futebol [de uma arte] vê-se mais uma vez uma
atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados - em
primeiro lugar, do próprio futebolista [artista] e, subsequentemente,
de sua assistência ou espectadores. As forças motivadoras dos
futebolistas [artistas] são os mesmos conflitos que impulsionam
outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir
suas instituições. De onde o futebolista [artista] retira sua capacidade
criadora não constitui questão para a psicologia. O objetivo primário
do futebolista [artista] é libertar-se e, através da comunicação de sua
obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados,
oferecer-lhes a mesma libertação. Ele representa suas fantasias
mais pessoais plenas de desejo como realizadas; mas elas só se
tornam futebol [obra de arte] quando passaram por uma
transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem
pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com
uma gratificação prazerosa. A psicanálise não tem dificuldade em
ressaltar, juntamente com a parte manifesta do prazer futebolístico
[artístico], uma outra que é latente, embora muito mais poderosa,
32
repetição, mas também criação, pois não está havendo apenas interiorização, mas
exteriorização através da troca, pelo reconhecimento. Instala-se um trabalho
psíquico aliado à fantasia, que transforma esse mediador mais potente na relação
com o outro:
11
O termo ‘Nirvana’, difundido no Ocidente por Schopenhauer, é tirado da religião budista, onde
designa a ‘extinção’ do desejo humano, o aniquilamento da individualidade que se funde na alma
coletiva, um estado de quietude e de felicidade perfeito. Em “Além do princípio do prazer” (1920),
Freud retomando a expressão proposta pela psicanalista inglesa Barbara Low, enuncia o princípio de
Nirvana como... tendência para a redução, para a constância, para a supressão da tensão de
excitação interna’. ‘O princípio do Nirvana exprime a tendência da pulsão de morte’. Nesta medida, ‘o
princípio de Nirvana’ designa algo diferente de uma lei de constância ou de homeostase: a tendência
35
radical para levar a excitação ao nível zero, tal como outrora Freud a tinha enunciado sob o nome de
‘princípio de inércia’. O termo Nirvana sugere uma ligação profunda entre o prazer e o aniquilamento
(LAPLANCHE, PONTALIS, 2001, p.363-364).
36
atual. Isso acontece devido às resistências da pessoa que se originam do ego. Fica
constatado que há repetição no inconsciente do sujeito, na sua maneira de ser e por
onde ele observa o mundo. Essa repetição manifesta-se também no esporte, e
ocorre de forma involuntária.
Ou seja, conforme Torres (2001), Freud atribuiu ao ato de repetir como
processo compulsivo e inconsciente por intermédio do qual o sujeito busca, na
atualidade, solucionar alguns aspectos que foram vivenciados em situação de
conflito e que no momento encontram-se recalcados. Encontramos um exemplo
disso nos sintomas neuróticos determinados pelos rituais obsessivos, manifestados
como comportamentos estereotipados sem nenhum entendimento do próprio sujeito.
Assim, Nasio (2013) conclui que o inconsciente é a repetição. Pois
frequentemente mencionamos que o inconsciente manifesta-se pela via dos lapsos,
atos falhos, sonhos e chistes. Porém, é muito mais vivo e o autor acredita que o
inconsciente é uma manifestação que ocorre pela linguagem, tratando-se enfim de
uma força propulsora, uma pulsão. É uma força que nos leva a fazermos nossas
escolhas, as mais variadas e decisivas possíveis. Porém existe uma força muito
poderosa que nos leva a repetir. A repetição é uma sadia pulsão de vida, quando
estamos diante da relação afetiva. Porém, quando a compulsividade nos põe diante
de reprodução dos mesmos fracassos, insistentemente, então nos deparamos com a
pulsão de morte. De qualquer forma, independente das condições, o fato é que são
acontecimentos marcantes que constroem nossa existência.
14
Sobre a tradução de um termo empregado por Freud, Zwick (no texto de FREUD [1930], 2012), em
seu apêndice menciona que apesar do termos controversos pertinentes da tradução, um mereça
uma atenção reservada. Trieb significa ‘impelir, impulsionar, tocar para frente’. A partir do dicionário
comentado do alemão, de Hanns (1996), o termo não é utilizado exclusivamente na linguagem
corrente, mas também em situação comercial, religiosa, científica e filosófica, ganhando sentidos
referentes a algo que toca para frente, não deixa parar, empurrando, colocando em movimento. De tal
modo, “Trieb evoca a ideia de força poderosa e irresistível que impele. Tal como empregado por
Freud, o sentido do termo aponta nessa mesma direção. No Brasil, a tradução do termo Trieb
polarizou-se entre ‘instinto’ e ‘pulsão’, o que é um reflexo evidente do fato de a recepção de Freud em
nosso país ter sido mediada predominantemente pela tradição anglo-saxã (a tradução da tradução de
James Strachey, que emprega instinct) e pela francesa (a leitura de Jacques Lacan em seus
seguidores, que empregam pulsion). Ou seja: não se traduziu Trieb, mas os termos que foram
propostos como seus equivalentes em inglês e francês” (ZWICK, 2012, p.189-190). [...] “Na
construção de seu edifício teórico, contudo, Freud empregou termos correntes e antiquíssimos de sua
língua – um procedimento que tentamos reproduzir na nossa” (ZWICK, 2012, p.191).
40
se considerar a “escuta do texto” para se tornar intérprete, já que ele soube explorar
as palavras ao extremo em suas polissemias e por vezes suas anassemias 15
(TAVARES, 2013).
Para Roudinesco e Plon (1998), o termo pulsão, derivado do latim “pulsio”,
surgiu na França em 1625 para citar o ato de impulsionar. Na versão inicial do texto
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [1905] (1996), Freud recorreu pela
primeira vez à palavra pulsão que se tornou, a partir daí, um grande conceito da
teoria psicanalítica, definido, até então, como a carga de energia situada na origem
do ato motor do organismo e do funcionamento psíquico do inconsciente.
A noção de pulsão foi mencionada em 1905, por Freud, e prontamente
constituiu-se em uma distinção essencial entre “pulsões sexuais” e “pulsões do eu”
ou de autoconservação. Porém, essa dualidade estabelecida entre amor e fome,
com o andamento do surgimento dos conceitos, depara-se com uma tendência a se
desfazer, embaraçando-se um e outro tipo de pulsão. Uma questão levantada para
aquele momento poderia ser se Freud estaria indo na direção de um monismo
pulsional. Quem sabe fosse devido ao fato dele ser profundamente dualista que as
coisas se encaminharam para uma nova dualidade pulsional, que se instalou entre
pulsões de vida e pulsões de morte. Ele ainda imaginou os conflitos desses opostos.
Assim, ressaltamos que dentre o grupo desses dualismos, pulsão de vida e pulsão
de morte tornou-se apenas um dentre os demais. Além disso, tal oposição admite
ampla importância exatamente abalizando seu maior legado: trata-se da “concepção
dicotômica” das relações entre “natureza e cultura” (SANTIAGO; DE PAULA, 2011).
Assim, notamos que a força da pulsão é somática, o objeto é alterável e o
intento é sempre o mesmo, ou seja, aliviar o excesso de tensão. As modalidades de
satisfação estão vinculadas às zonas erógenas, e apenas posteriormente, em
trabalho de síntese, é que as pulsões parciais são submetidas ao comando da zona
genital, interferido no procedimento aspectos psicológicos irredutíveis à maturação
biológica do indivíduo (MEZAN, 2011).
Para Freud, em “As pulsões e seus destinos” ([1915] 1996, p.142), o termo
pulsão acena para um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático,
como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo
15
Noção introduzida por Abraham (1995) para tratar do novo significado que uma palavra comum
adquire no contexto psicanalítico.
41
16
Termo utilizado na Física; trata-se da medida de energia não disponível para a realização de
trabalho ou quantidade de energia ou calor que se perde num sistema físico ou termodinâmico
quando ocorrem mudanças de um estado ou outro desse sistema; (biologia) medida da variação ou
desordem de um sistema (HOUAISS, 2001).
45
esboço de eliminação das pulsões parciais não apenas não funciona como também
pode determinar suas implicações prejudiciais. Assim, de forma mais proveitosa os
educadores podem dirigir a energia que move tais pulsões.
A educação pode ter a ajuda da psicanálise ao demarcar o equilíbrio entre
a liberdade e o regulamento apontado pela autoridade do educador, já que é
indispensável proporcionar ao educando elementos para observar o mundo e o seu
redor. Consequentemente, a compreensão possibilita um novo conhecimento que
pode transformar seu desejo para si e, também, para o social. Ou seja, a
psicanálise propõe esse desvio para fins favoráveis à sociedade. Isso nos direciona
a compreender que a proposta da psicanálise para a educação é de que o educador
possa buscar com o educando o balanceamento da satisfação do individual com as
necessidades do coletivo (SHIRAHIGE; HIGA, 2004).
Freud denominou de sublimação as obras da civilização que são produtos
das pulsões. Longe de ser uma violência da civilização, a pulsão é o destino de
transformar para um objeto. Assim, a pulsão escópica, ou seja, aquela referente à
visão, irá se transformar no desejo de saber pelo viés da curiosidade sexual, isso
quer dizer interesse pela investigação científica. Porém, Freud entende o desvio da
finalidade primitiva sexual da pulsão como o efeito da repressão promovido pela sua
disposição de satisfação (MILLOT, 2001).
A alteração do caminho de uma pulsão do desejo sexual para uma
finalidade socialmente aceita é o que caracteriza a sublimação. Por meio da
constituição da sublimação podemos nos empenhar na realização das atividades,
como cita Shirahige e Higa (2004, p.37), “ ‘espiritualmente elevadas’, como, por
exemplo, as relacionadas com a arte, a ciência, a promoção de valores humanos e
de condições de vida mais favoráveis”. Percebe-se a marca da libido nessas
realizações, por serem promovidas pela energia sexual, embora sua finalidade não
seja necessariamente e diretamente relacionada ao sexo. A satisfação ao se realizar
uma atividade, independente da condição, carrega o registro de sua origem sexual
no comprometimento e no amor com que alguns se aplicam a ela.
De tal modo, aquele educador que esteja apoiado em conhecimento
psicanalítico tem condições de proporcionar ao educando boas situações para que
este libere suas pulsões, ao invés de buscar instrumentos punitivos a fim de coibir
atitudes que não vão ao encontro de um modelo pedagógico pré-estabelecido sem
fundamentação centrada no próprio educando. Partindo desse pressuposto, e
49
17
“Princípio enunciado por Freud, segundo o qual o aparelho psíquico tende a manter a nível tão
baixo ou, pelo menos, tão constante quanto possível a quantidade de excitação que contém. A
constância é obtida, por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela evitação do
que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela defesa contra esse aumento.” Neste sentido,
a noção de constância foi proveitosamente aproximada da noção de homeostase, definida pelo
fisiologista Cannon. Freud introduz ao nível das pulsões um dualismo fundamental e irredutível, as
pulsões de morte tendendo para a redução absoluta das tensões e as pulsões de vida procurando,
pelo contrário, manter e criar unidades vitais que supõem um nível elevado de tensão. (LAPLANCHE,
PONTALIS, 2001, p.356 e 360).”
50
Na maioria das vezes, caso o jogo perca sua seriedade, consequentemente deixará
de ser praticado por seus participantes.
O brincar da criança é apontado pelo anseio que ajuda o seu
desenvolvimento, ou seja, o desejo em transformar-se na pessoa crescida. A criança
muitas vezes brinca ‘de adulto’, repetindo o seu gesto sem razões para ocultar. Já
com relação ao adulto se tem a expectativa que não permaneça brincando ou
fantasiando, porém, agindo sobre a realidade. Para aquele que já se tornou adulto
há a vergonha de suas fantasias, pois são dignas das crianças, e assim proibidas.
De acordo com Vidal (1999a), a criança anuncia suas fantasias, seus
desejos, bem como suas vivências de um jeito simbólico por intermédio dos
brinquedos e jogos. Caso desejemos uma compreensão do jogo da criança,
devemos extrair o significado de cada símbolo separadamente.
Para Freud [1908] (1996), em “O Criador Literário e a Fantasia”, ao brincar,
as crianças inventam um universo digno e moldado ao seu desejo, diferenciando-o
de modo preciso em relação à realidade. É exatamente aquilo que realiza o escritor
criativo ao elaborar um universo de fantasia pelo meio da arte, visto que, mesmo
investindo imensa quantia de emoção, resguarda um afastamento claro com a
realidade. Portanto, esta conexão é o que estabelece a diferença entre o brincar e o
fantasiar (MOURA, 2007).
Freud ([1908] (1996), p.77) menciona que:
que tem como característica uma experiência criativa de uma experiência espaço-
temporal como uma forma básica de viver.
Quando as crianças que cresceram abrem mão do brincar, tal como ocorre
com os jovens e adultos, começam a usar das situações de devaneios ou sonhos
diurnos, as chamadas fantasias conscientes. Assim, é criada uma condição que é
intensamente investida de forma imaginária, que o indivíduo, com o propósito de se
proteger das cobranças da realidade exterior, acaba por escondê-la (MOURA, 2007).
Assim, Freud ([1908] (1996), p.78) afirma:
18
“No campo analítico, o setting é um espaço que se oferece para propiciar a estruturação simbólica
dos processos de subjetivos inconscientes, reunindo as condições técnicas básicas para a
intervenção psicanalítica.” “Em “Recordar, repetir e elaborar” [1914], Freud faz um histórico do
desenvolvimento da técnica psicanalítica” concebendo o setting analítico enquanto local específico
para o transcorrer da relação analítica (BARROS, 2013, p.71-72).
19
A partir deste ponto, utilizaremos a terminologia “brincar”, pelas razões já expostas anteriormente.
60
relações por meio de novas amizades torna-se viável. Nesse caso, trata-se da
interação egóica da relação estabelecida pela mãe e a criança nas experiências
culturais. Quando as crianças brincam fazem tanto amizades quanto inimizades.
Porém, não conseguem fazer amizades sem brincar, já que por intermédio deste
recurso dão-se as relações emocionais. Os contatos se ramificam apoiando-se no
espaço transicional. Assim, instala-se uma experiência satisfatória dos fenômenos
transicionais equivalente a um êxtase egóico. A terceira área pelo brincar será
proporcionada pelas vivências culturais facilitando a saúde, conduzindo aos
relacionamentos grupais (WINNICOTT, 2000c).
A confiança nos primeiros cuidados é fundamental para o estabelecimento
do espaço transicional e a possibilidade de uma aproximação à realidade
compartilhada. É necessário para a criança um bom início estando junto com a mãe.
Ou seja, a criança confia na mãe, pois internaliza essa boa experiência ao viver com
ela. O desenvolvimento ocorre quando o ser humano sai de um nível de
dependência total e parte para a compreensão da diferença entre o interior e o
exterior. E isso ocorre com a mãe “se desadaptando”, já que ela também tem suas
próprias necessidades. Então, a criança opera a separação entre o self e a mãe
(ABRAM, 2000; WINNICOTT, 1975, 2000c).
leva-se o ser humano pela técnica transicional para a experiência cultural. A criança
transporta para a brincadeira objetos ou fenômenos vindos da realidade externa a
serviço da realidade interna ou pessoal. De tal modo, a criança demonstra um
potencial onírico num meio escolhido na realidade externa. Pois, por intermédio do
brincar, a criança consegue manipular os fenômenos externos utilizando um
significado e sentimento próprio.
Winnicott (1975, p.16) descreveu bastante as implicações dos objetos e
fenômenos transicionais em sua obra “O brincar e a realidade”. A seguir,
apresentamos pontos sobre a qualidade específica do relacionamento entre a
criança e o objeto transicional:
Esta dimensão é denominada por Winnicott por alguns termos, tais como
“terceira área”, “área intermediária”, “espaço ‘transicional’ ou “potencial”, “local de
repouso” ou ainda “localização da experiência cultural”. Os fenômenos transicionais
estão presentes inclusive antecedendo ao nascimento, ou seja, no que refere-se à
formação mãe-bebê. Referem-se à cultura, ao ser e à criatividade. E,
implacavelmente, ao iniciar-se a separação do eu e não eu, ao deixar o momento de
dependência total ou absoluta para dar entrada à dependência relativa, o bebê
necessita dos fenômenos transicionais, inclusive elegendo objetos. Isso ocorre pela
utilização dos símbolos. Então, os fenômenos transicionais estão associados,
impreterivelmente, ao brincar e à criatividade (ABRAM, 2000; WINNICOTT, 2000c).
Em “O Brincar e a Realidade”, Winnicott (1975) descreve o enfoque para o
espaço da relação paciente-terapeuta como um fenômeno transicional, expondo que
o brincar trata-se de uma experiência criadora que se posiciona em determinado
lugar e tempo para se instalar. Porém, isso não ocorreria “dentro”, enquanto uma
realidade psíquica interna, e tampouco “fora” na condição de uma realidade externa,
mas sim como aquilo que ocorre “entre” a relação (STAGLIOTTO, 2008).
O que denominamos enquanto fenômenos transicionais significam as fases
elementares da utilização da ilusão. Trata-se da sustentação para uma intervenção
na dimensão da ordem do simbólico que se instala entre a mãe e a criança. Propicia
simbolizar a falta da mãe e usufrui da primeira vivência na relação com o ato de
brincar. Na terapia, o brincar se insere enquanto o espaço no intermédio mãe-
criança. Ele tem um valor universal:
20
[...] “lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as
realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas”. [...] “situa-se “entre o subjetivo
e aquilo que é subjetivamente percebido”. [...] “É a área que é concedida ao bebê, entre a criatividade
primária e a percepção subjetiva baseada no teste da realidade”. [...] “Essa área intermediária está
em continuidade direita com a área do brincar da criança” (WINNICOTT, 1975, p.12,13,26,29).
67
21
No latim lúdico significa brincadeira, tendo sua origem em “illusio”, propondo a ilusão como esboço
para o real.
68
dominação sobre a natureza. Porém, Klein contradiz, afirmando que nunca viu as
pulsões conduzirem a tal “maldade”, e que a educação como formadora do superego
é em grande parte um engodo.
Sobre sua técnica, Klein (2006b, p. 38) cita que:
E continua:
22
‘Fort’, que a versão inglesa traduz por ‘gone’, particípio passado do verbo to go, ‘ir, partir’, é
advérbio utilizado com o mesmo sentido de nosso complemento circunstancial embora, normalmente
empregado na expressão ‘ir embora’, motivo pelo qual assim o traduzimos (N. do T.) (FREUD,
[1920],1996, p.25).
71
Para Azoubel Neto (2010) boa parte do que é aprendido pelo sujeito ocorre
por intermédio do jogar. É uma relação que estimula o papel do imaginário
possibilitando a criatividade. Essa capacidade é praticamente inata no ser humano.
O bebê, mesmo antes de sua capacidade verbal estruturada, começando a
apresentar esboço de consciência, estabelece relações lúdicas que em algumas
circunstâncias ele mesmo proporciona. Esse caráter de faz de contas é inato e
esbarra ou ultrapassa os limites de cada um.
O educador deve perceber que sua atuação deve ser alterada conforme o
tipo de atividade. Na situação de jogo espontâneo, que é livre, a criança tem prazer
pelo simples ato do brincar. Nesse caso, o educador atua como observador e
mediador dos conflitos. Porém, no jogo dirigido, o educador atua como orientador e
intervém durante a atividade propondo desafios e metas, acrescentando dificuldades
73
Nesse ínterim, Charlot (2000) cita que é necessário uma abertura com o
diálogo (crítico) com as ciências humanas, e que uma sociologia do sujeito, que atua
num conjunto de relações, pode dedicar-se a compreender como o indivíduo se
apropria de seu universo social. Ele não nega a importância do trabalho da
psicanálise sobre o desejo de saber e a relação com o saber. Entretanto, amplia sua
observação sobre o desejo, mencionando como algo a mais que a pulsão, afirmando
que não pode concordar com uma abordagem que pretende fundamentar o desejo
na pulsão, já que se trata de uma perspectiva de interpretação biologizante do
desejo, e que considera o social apenas em outro momento. O Social, para ele, é
fundamental nessa condição; senão, instala-se uma teoria da pulsão na teoria do
desejo.
Contudo, a partir de “Além do princípio do prazer”, Freud [1920] (1996)
amplia a noção de pulsão ao verificar que a compulsão à repetição seria
característica de toda pulsão e nomeia a existência da pulsão de morte. Então,
surge uma nova concepção de pulsão, e com ela uma nova teoria, que juntamente
com a pulsão de vida, determinam o funcionamento psíquico.
Quanto ao termo “pulsão”, Freud [1905] (1996) afirma anteriormente em
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” tratar-se de uma articulação da
psicanálise com a biologia. Não que tenha desconsiderado o social no processo do
desejo, mas que a pulsão tem em sua origem uma excitação corporal. Ou seja, a
pulsão havia sido definida como representante psíquico por sucessivas estimulações
de origem endógena, sendo tratada enquanto conceito instalado na fronteira entre o
psíquico e o somático.
79
O homem necessita ceder e aceitar às normas e leis sociais. Pois são elas
que irão permitir, em sua essência fundamental, a sua sobrevivência. O seu desejo e
seu ter são, portanto, relativizados diante de um pensamento moral e ético, vigente e
aceitos pela maioria do grupo social. Assim, a vida em sociedade necessitou instituir
valores, normas, e leis para serem seguidas, além de toda uma variedade de
embasamentos civilizatórios, para a garantia de uma ordem social com capacidade
de proporcionar um mínimo de cooperação entre as pessoas (TORRES, 2001).
82
amorosa, que se diferencia da “positiva” por se tornar mais intensa, revelando sua
direção para a necessidade sexual direta.
Ainda sobre a transferência erótica, muitas vezes referindo-se ao
sentimento de uma mulher pelo analista, apresenta que o sentimento de paixão
pode ser classificado como transferência positiva se permanece em nível moderado,
mas se converte em resistência caso permaneça excessivamente intenso ou caia na
hostilidade. Também considera que o amor de transferência é uma repetição, porém
todo amor se posiciona enquanto uma repetição. Aliás, não existe forma de amor
que não reproduza protótipos infantis. É o aspecto infantil que remete ao amor de
transferência o elemento compulsivo, que permeia o patológico (LAGACHE, 1990).
Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud [1914] (1996) afirma que a
transferência é apenas um fragmento da repetição, pois a repetição é uma
transferência de algo esquecido no passado, existente em qualquer relação na
situação atual. Assim, devemos esperar a compulsão à repetição substituindo o
impulso de recordar. Caso uma transferência positiva se instale de forma branda,
torna-se possível resgatar lembranças do mesmo modo como seria sob efeito de
hipnose. Porém, se a relação avança, a transferência transforma-se em hostilidade
ou é demasiadamente intensificada e, assim parte para o recalcamento.
Sobre os últimos trabalhos concernentes à transferência, é difícil não
mencionar a importância da revisão que Freud realizou. O que ele afirma em “Além
do princípio do prazer” [1920], “Psicologia de grupo e análise do ego” [1921] é
imprescindível, evidentemente. Mas, não há o desenvolvimento da temática como
ocorre em “A dinâmica da transferência”. Isso aconteceu porque seus escritos nas
décadas de 1920 e 1930 foram pouco relacionados diretamente ao assunto. E, além
do mais, Freud não alterou suas concepções essenciais. Ficou corroborado em
“Análise terminável e interminável” [1937] certa resistência na divulgação da
transferência negativa (LAGACHE, 1990).
De acordo com Slavutzky (1991), a ideia de transferência tem diversos
desdobramentos na obra de Freud, dentre elas vale destacar o que impetra sua
universalidade. Ou seja, em qualquer situação que o ser humano se encontra, e não
apenas o neurótico. Porém, para Freud havia uma restrição quando se referia à
transferência do psicótico.
86
fundação de uma pedagogia que prevenisse as neuroses, temos que considerar que
Freud também difundiu a teoria psicanalítica ao expandir conceitos que modificaram
o cenário cultural e científico desde sua época até a contemporaneidade, já que ao
constituir o movimento psicanalítico apresentou diversas conferências, e assim
promoveu discussões com contestações. Mas deixou um rastro de seguidores, tanto
do ponto de vista intelectual quanto emocional, ao seu redor. Portanto, Freud foi um
mestre (SHIRAHIGE; HIGA, 2004).
Surgiu na França durante os anos de 1960 um movimento que se estendeu
ao Brasil de forma menos intensa, um amplo leque de intelectuais de diversas áreas,
entre eles educadores, que promoveu diversos eventos, dentre eles seminários e
cursos na divulgação da psicanálise. Contudo, não se tratava de uma fusão da
educação com a psicanálise. Foram consumidos livros, ouviram-se programas de
rádio e televisão, com intenção de se buscar instrumentos e vias para que se
difundissem informações para contribuir, cada um em seu campo, com o trabalho
que tinham que desenvolver. Nesse movimento tratava-se de uma ideia a mais para
difundir o conhecimento psicanalítico para aqueles que representam a cultura, com
intenção de expandir sua visão do mundo. E, mesmo que a disseminação da
psicanálise em relação à cultura apresente-se ampliada, não atingiu de maneira
expressiva os educadores brasileiros (KUPFER, 1992).
Um respeitável balanço sobre os estudos da primeira metade do século XX
e outros achados na contemporaneidade refere-se ao modo de atuação no campo
educacional, que leva em consideração a seriedade da temática da relação entre o
educador e o educando, levando em conta o conhecimento infantil como uma
situação inconsciente, atemporal, e que seja pertinente tanto para a criança como
para o adulto (ABRÃO, 2006).
Ainda considerando a afirmação de Abrão (2006), é importante atentar-se
para a formação irrestrita do professor e que este profissional atenha seu
conhecimento teórico sobre a temática da psicanálise e suas vivências próprias que
possibilitam a aproximação de suas experiências inconscientes e infantis recalcadas.
De tal modo, esses elementos patrocinariam maior compreensão do educando por
parte do educador, que incidiria em sua atuação como mediador no processo
ensino-aprendizagem.
Bastos (2004) também pondera sobre essa possibilidade do conhecimento
psicanalítico ser cultivado em conjunto à ação educacional, argumentando sobre as
89
objetivo possível (a sublimação) – além disso, deve-se saber que esta é uma ação
inconsciente que está fora de seu controle - ou ao pelo menos impedir o
fortalecimento do processo de recalque que determina a instalação da neurose.
Assim, até certo momento, consentir que a criança vivencie um pouco de sua própria
perversão que pode ser mais bem-sucedida do que determinar uma neurose infantil
que poderia ser alicerce para futuras doenças, conforme menciona Millot (1987,
p.26): “a supressão das pulsões poderosas na criança através de coerção por meios
externos não conduz nem à desaparição de tais pulsões, nem ao seu domínio.
Conduz ao recalque, que predispõe as futuras enfermidades”.
Há que se observar que o processo educacional tem um propósito
tendencioso que busca alinhar a criança a uma ordem estabelecida pela sociedade,
não levando em conta qual é o fundamento dessa intenção. A educação não pode,
mesmo que de modo justificado, colocar-se a serviço de tendências corporativas.
Cabe à educação ter propósitos elevados, que sejam isentas às demandas de
setores predominantes da sociedade. Essa intenção que se pretende oferecer a
educação igualmente se enquadra numa finalidade tendenciosa (FREUD, [1933]
1996).
Mas não se trata da psicanálise recusar qualquer influência na educação.
Aliás, o processo formativo do/no futebol, como abordaremos mais adiante, é um
processo educacional. A função da psicanálise na educação é buscar tornar o ser
humano o mais sadio quanto for ao seu alcance. A psicanálise apresenta nela
mesma pontos revolucionários satisfatórios para garantir que quem se educou sob
sua proposta jamais tomará partido para o lado do recalque.
Sanches (2002) cita que, no instante que a criança tem a percepção que o
processo de aprendizagem é alguma coisa conferida com obrigação a ser
desempenhada, podemos nos encontrar com um movimento de aversão diante à
compreensão do significado da aprendizagem como algo que acontece como uma
invasão. A criança opera nessas condições para defender-se. A renúncia do
aprendizado, em nível do inconsciente, pode ocorrer parcial ou generalizadamente.
Em tais situações, a função do educador é essencial, pois ele pode estabelecer-se
num espelho que só reflete a imagem deteriorada que a criança continuamente se
deparou, ou contradizendo tal situação, cooperar e proporcionar-lhe uma
oportunidade para ser aceita com um ser com potencial.
Em diversas ocasiões, os problemas de aprendizagem não tem relação
com o potencial cognitivo do educando; muitas vezes têm relação com uma resposta
101
acontece se aquele que joga enfrenta a situação com desprezo. Além das restrições
temporais e espaciais, qualquer tipo de jogo é constituído levando-se em conta as
regras que permitem o surgimento da ordem em um ambiente que tenha o tumulto.
Tais regras podem ser explícitas, implícitas, flexíveis ou rígidas, porém são
obrigatórias e devem ser respeitadas por todos aqueles que jogam com a prévia
aceitação de todos. De tal modo, todos que começam o jogo têm conhecimentos das
suas regras e das implicações decorrentes do resultado final.
De tal modo, o jogo necessita ser um componente essencial na situação da
aprendizagem no esporte, a ponto de guiar por completo seu ensino, já que devido
ao seu sistema complexo, sua revelação é aquela com capacidade de pedagogizar
os denominados esportes coletivos de modo dinâmico e sistêmico. Então, fica
evidente a aprendizagem do esporte circundada de particularidades não lineares,
consentindo a constituição de suas destrezas nas situações dos próprios jogos
(GARGANTA, 1998).
Independente de tratar-se de uma situação que ocorra no âmbito escolar,
ou ainda nos ambientes esportivos clubísticos, o esporte coletivo, por garantir a
manifestação do jogo, não deve negá-lo, pois sua essência tem o próprio jogo como
fundamental gênese pedagógica. Por ser o esporte uma manifestação de jogo, o
ensino do esporte coletivo não pode negar sua essência e deve ter no jogo sua
principal gênese do ensino. A pedagogia esportiva deve ser permeada pelo jogo,
essencialmente por suas características complexas e sistêmicas. Pode-se
considerar o jogo como instância maior do esporte, englobando tantas outras
manifestações (FREIRE, 1998b; SCAGLIA, 2003).
Portanto, devemos esperar que o professor-treinador utilize os jogos para o
ensino do futebol, e também que saiba criar um espaço favorável para que suas
propostas sejam percebidas como jogo pelo aluno-atleta. Porém, é necessário que o
aluno-atleta conheça as principais peculiaridades do jogo, possibilitando ao
praticante que o execute plenamente.
O distanciamento dado ao aluno-atleta proporciona maior espaço para que
esse possa atuar por conta e ação própria. Isso surge para caracterizá-lo em uma
das formas de ser autônomo. Todavia, a magnitude desse espaço necessita
permanecer com a percepção do aluno-atleta de que está atestado pela presença
afetuosa e a disponibilidade do professor-treinador para a orientação. Assim, fica
104
Além disso, Lopes (2005) argumenta que, de fato, esses três ofícios se
deparam com restrições em sua ação, a partir do instante que se submetem ao
inconsciente. Essa menção freudiana já deu muito a falar, ou a escrever; aliás, muito
além do que ele mesmo imaginaria. No entanto, tal impossibilidade não se trata de
impraticabilidade e nem fraqueza, já que citar que a educação é impossível é
permanecer no mal-estar que irá permear nossos atos. É necessário constatar que o
ego transita por nossa ação, e que educar pode ser percebido como domínio da
situação, com o engano de que se decide o futuro. Isso vem ao encontro da prática
pedagógica que visa preponderantemente esse domínio, com frequente reparação
do erro, pois ignora a incoerência estrutural desse campo. Discute-se um domínio
imaginário, pois é o inconsciente que possui maior força que as intenções
conscientes.
Cada aluno-atleta deve ser compreendido como sujeito singular. Pois,
propor um processo formativo do/no futebol fundado no jogar não permite uma
mesma intervenção pedagógica para todos. Apesar de que para Mrech (2005) a
questão formativa, quando se refere “a todos”, trata-se de um modelo de educação
que prestigia o social e não a especificidade de cada um. Porém, acreditamos que o
importante é prestigiar a singularidade de cada um, pautado no contexto de vida. E o
ofício de educar não se esgota nunca, pois está constantemente em reformulação.
Devido a isso, não se apresentam regras fixas e cartilhas de ação. Evidentemente,
114
Quanto ao jogar dos adolescentes, Winnicott et al. (1994, p.52) citam que
eles:
se afetar, pela compreensão, por sentimentos que não são, de fato, destinados à
sua própria pessoa.
Ainda sob as investigações de Winnicott, amplia-se e intensifica-se o
legado freudiano. Deste modo, o professor-treinador tem condições de proporcionar
um espaço sublimatório em seu ambiente formativo, compreendendo o aluno-atleta
em sua natureza humana, na direção da correta inclinação de confiança nos outros,
sem sentir-se ameaçado pela aniquilação do verdadeiro eu. Pois, se explana que
todo o comportamento antissocial traz a divulgação de uma obrigação original não
preenchida. No impulso do amor primitivo é possível que deparemos
indubitavelmente uma reação agressiva:
assunto é importante demais para que seja tratado como um tópico lateral e sem a
necessária importância para um debate.
Por conseguinte, torna-se indispensável ressaltar o interesse pela
brincadeira que se estabelece numa ponte entre a realidade externa e o mundo
interno da criança. Todavia, quando a condição não é saudável, nos
relacionamentos há concentração do que é bom no mundo interno, e o que é ruim
projeta-se para fora. Assim, a criança torna-se patologicamente acanhada, pois vive
em seu mundo interno. Ao restabelecer-se, ela torna a relacionar-se com o ambiente
externo, agora repleto de perseguidores, comumente agressivamente. Quando a
criança pequena (mas também podendo ocorrer com adulto) mal conduz os ataques
por parte daqueles que cuidam dela - nesse caso podemos ponderar sobre os
educadores, ou mesmo de seus pais - ela prontamente retrocede à introversão.
Excluindo os períodos de doença, podemos nos encontrar com constância com essa
condição, não sendo apenas uma situação teórica (WINNICOTT, 2000b).
De tal modo, quanto aos jogos de futebol, sua validade é incomensurável
para aquele que o pratica, já que, ao vermos crianças na rua, ou mesmo os adultos
nos campos de várzea, com terra seca sem grama e seus uniformes não tão
uniformes - e aí também podemos incluir os que disputam divisões inferiores dos
campeonatos regionais - jogam como se fosse a última partida da Copa do Mundo. A
tensão da competição é elevada, na mesma proporção, como atesta Tite, treinador
da seleção brasileira:
4 CONCLUSÃO
esporte, tem suas potencialidades muitas vezes diminuídas. Então, notamos que,
pelo menos em parte, o prazer de jogar é reduzido pela formatação que se dá ao
próprio jogo nos moldes do que denominamos "esporte", caracterizado, seja nos
jogos ou nos treinamentos, como recalque, pois minimiza a expressão do ser
humano, dada a rigidez e enquadramento às regras oficiais.
Por outro lado, essa mesma rigidez possibilita ao professor-treinador atuar
na relação com o aluno-atleta no fortalecimento do superego, para o cumprimento
das regras esportivas, por intermédio do “ato pedagógico”, para que outras
condutas, além das inerentes à própria modalidade, também sejam aceitas. Cabe,
então, a esse profissional, atuar numa espécie de negociação, buscando um
equilíbrio entre as forças pulsionais no que se refere à permissão e a proibição dos
gestos nos diversos âmbitos sociais, inclusive no jogo de futebol.
Quanto à agressividade, é necessário que, de um lado, seja desmitificada
do ponto de vista social, já que se trata de um componente inerente à realidade
humana, e, de outro, é preciso diferenciá-la da violência, a qual se caracteriza pela
quebra do vínculo social, o que denominamos atos de "barbárie". Portanto, é
necessário disseminar a energia pulsional em condições apropriadas de
manifestação, como o que ocorre nos jogos e mesmo nos treinamentos do futebol.
Para o professor-treinador, compreender os significados das reações
sublimatória e transferencial irá favorecer sua intervenção pedagógica no processo
formativo do/no futebol, de modo mais adequado às características humanas. Pois o
jogo de futebol contempla uma instância que está além do princípio do prazer,
consequentemente se instalando na repetição, assim como a síntese transferencial
que se dá em sua relação com o aluno-atleta, comumente na repetição das imagos
paternas, sobretudo.
O professor-treinador, ao conhecer melhor as características do aluno-
atleta no que diz respeito aos seus processos sublimatório e transferencial, terá
condições mais apropriadas para atuar nas situações pedagógicas do processo
formativo do/no futebol, minimizando, portanto, o impacto contratransferencial na
relação.
O professor-treinador, ao atuar inconscientemente em relação aos
comportamentos dos alunos-atletas, atribui a eles as causas principais dos
problemas relacionais. Compreender esse contexto do ponto de vista psicanalítico
capacitaria o professor-treinador a melhor posicionar-se em sua função. Em sua
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