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Humberto José da Rocha

(Organizador)

Étnicos, Milenários e Bandidos


História dos Movimentos Sociais no Sul do Brasil
(Séculos XIX-XX)

Grupo de Pesquisa
Movimentos Sociais
na Fronteira Sul
E ste livro é fruto de estudos no
âmbito do Grupo
“Movimentos Sociais na
de Pesquisa
Frontei-
ra Sul”, vinculado à Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS)
e ao Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq), e corresponde a
resultados prévios de um projeto
de pesquisa desenvolvido a partir
de uma chamada do CNPq, ambos
reunindo pesquisadores de diferen-
tes disciplinas e universidades do
Sul do Brasil. Mobilização social
e luta pela terra podem ser con-
siderados pontos de convergência
entre esses pesquisadores, o que
aproximou o grupo para a proposi-
ção desse projeto de pesquisa.

O espaço de referência para a


discussão é o Sul do Brasil, o qual
atualmente corresponde aos Esta-
dos do Paraná, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul. O referencial
temporal inicial é a Lei de Ter-
ras (Lei n.º 601, de 18 de setembro
de 1850), o avanço das empresas de
colonização e infraestrutura na
região e a consequente alteração
brusca do regime de ocupação da
terra. O marco temporal final é
a ascensão de Getúlio Vargas ao
governo em 1930, representando
outra descontinuidade desse pro-
cesso de acumulação, com a acele-
ração da industrialização e maior
efetividade do Estado no interior
do país mediante a intensificação
da colonização.
Humberto José da Rocha
(Organizador)

Étnicos, Milenários e Bandidos


História dos Movimentos Sociais no Sul do Brasil
(Séculos XIX-XX)

Passo Fundo
2020
© 2020 Acervus Acervus Editora
Todos os direitos reservados Av. Aspirante Jenner, 1274 - Lucas Araújo -
99074-360
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Créditos da capa Ancelmo Schörner (UNICENTRO)
Detalhe de foto de indígenas Kaingang
Eduardo Knack (UFCG)
armados, em São Paulo, 1895. Foto de
Gustav Koenigswald. Disponívl em: Eduardo Pitthan (UFFS – Passo Fundo)
http://docvirt.com/docreader.net/li-
Federica Bertagna (Università di Verona)
vrossp/22390.
Gizele Kleidermacher (Universidad de Buenos Aires)
Foto de Adeodato Manoel Ramos, um
dos líderes caboclos da Guerra do Helion Póvoa Neto (UFRJ)
Contestado, após sua prisão, em 1916. Humberto da Rocha (UFFS – Campus Erechim)
Fonte: http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/ea00641a.pdf.
João Joel Carini (UFSM)
Roberto George Uebel (ESPM)
Detalhe da foto de João Inácio e seu
“bando”, por ocasião de sua apresentação
ao 2º Batalhão de Infantaria, em agosto
de 1927. Fonte: Arquivo Particular
As ideias, imagens, figuras e demais
informações apresentadas nesta obra são de
Castro. Erechim/RS.
inteira responsabilidade de seus autores e
de seus organizadores

CIP – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

E84 Étnicos, milenários e bandidos : história dos movimentos sociais


no Sul do Brasil (séculos XIX-XX) / organizador
Humberto José da Rocha. – Passo Fundo : Acervus, 2020.
592 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-86000-01-6

1. Movimentos sociais - Rio Grande do Sul - Séc.


XIX/XX. 2. Movimentos sociais - História - Rio Grande
do Sul. I. Rocha, Humberto José da, org.

CDU: 981.65

Bibliotecária responsável Jucelei Rodrigues Domingues - CRB 10/1569


Sumário
APRESENTAÇÃO
Bandidos, Milenários e Étnicos: uma unidade de análise para
a história dos movimentos sociais no Sul do Brasil entre os séculos XIX e XX.........5
Humberto José da Rocha

PARTE I - ÉTNICOS
Kondá: um indígena do século XIX..................................................................................39
Clovis Antonio Brighenti

O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) pelas brenhas do Brasil Meridional............65


Luís Fernando da Silva Laroque
Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras do
Aldeamento de Atalaia (Guarapuava – século XIX)......................................................97
Cristiano Augusto Durat
A comunidade quilombola São Roque: resistência e formação de um
território de liberdade. ...................................................................................................147
Ricardo Cid Fernandes
Luana Teixeira

PARTE II - MILENÁRIOS

A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain


e o Império brasileiro.......................................................................................................167
Carina Sartori

Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo experimental no sul do Brasil..195


Cassio Brancaleone
O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina Maurer - Rio Grande do Sul,
Colônia Alemã de São Leopoldo, segunda metade do século XIX............................... 221
Daniel Luciano Gevehr
Marlise Regina Meyrer
Rosane Marcia Neumann
Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes
no Vale do Taquari (Rio Grande do Sul, 1902)............................................................247
Fabian Filatow
Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento.......................275
Henrique Kujawa

PARTE III - BANDIDOS


Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná......................295
Antonio Marcos Myskiw

Paco: herói ou bandido?...................................................................................................339


Marinilse Marina

Adeodato: a demonização do último líder caboclo na Guerra do Contestado..........367


Delmir José Valentini

Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado.........................................391


Arlene Renk
Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência
no Sudoeste do Paraná (1900-1930)................................................................................405
Aruanã Antonio dos Passos
Telegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista
na Colônia Militar do Xapecó.......................................................................................437
Leticia Maria Venson

Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista ...........................................................459


José Antonio Moraes do Nascimento
Paulo A. Zarth
João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra no norte
do Rio Grande do Sul (1927-1930)................................................................................... 481
João Carlos Tedesco
Márcia dos Santos Caron

A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos e o Capitão Belo.....531
Isabel Rosa Gritti

A Coluna Prestes e a Estrada do Colono....................................................................557


Jaci Poli

Sobre os autores e autoras. ............................................................................................581


Apresentação

Bandidos, Milenários e Étnicos:


uma unidade de análise para a história dos movimentos
sociais no Sul do Brasil entre os séculos XIX e XX

Humberto José da Rocha

E ste livro é fruto de estudos no âmbito do Grupo de Pesquisa “Mo-


vimentos Sociais na Fronteira Sul”, vinculado à Universidade Fe-
deral da Fronteira Sul (UFFS) e ao Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e corresponde a resultados
prévios de um projeto de pesquisa desenvolvido a partir de uma chamada
do CNPq, ambos reunindo pesquisadores de diferentes disciplinas e uni-
versidades do Sul do Brasil. A luta pela terra pode ser considerada um
dos pontos de convergência entre esses pesquisadores, o que aproximou o
grupo para a proposição do referido projeto de pesquisa.
Os movimentos sociais representam outro ponto de convergência
ante a inerente complexidade interdisciplinar e multiescalar da aborda-
gem teórico-metodológica. Norbert Elias (2006) propõe a análise sob
a perspectiva de um “processo social”, compreendendo “estágios” que
não podem ser tomados como cortes instantâneos, mas que se estabele-
cem através de surtos em diferentes direções devido à complexidade do
processo. Na mesma linha, porém sob a teoria dos movimentos sociais,
Sidney Tarrow (2009) considera o processo histórico e diferencia os cha-
mados “ciclos de protestos”. Estes englobam eventos de culminância que
são mais do que simples soma desconectada, e sim um período em que as
restrições e reações se acentuam, conformando uma unidade de análise.
Assim, este trabalho implica a análise de um processo histórico de desen-
volvimento econômico, político e cultural no qual, de acordo com Alber-
to Melucci (2001), os movimentos sociais são indicativos de mudanças
nas lógicas dos cursos desse processo.
Mobilizações sociais de contestação e resistência podem ser percebi-
das ao longo da história brasileira. Maria da Glória Gohn (2003) mapeou
as principais mobilizações desde o século XIX, quando lutas esparsas
assinalavam questões sobre escravidão, territórios, tributos, poder públi-
co, regime político e lutas entre categorias econômicas, até o século XX,
quando, com o avanço da democracia e da complexidade das relações
sociais, as pautas se mostraram mais difusas e os atores se voltaram mais
claramente aos direitos humanos. Incluso nesse processo, o Sul do Brasil
apresenta especificidades e similaridades em relação à escala nacional e
global que merecem atenção pelo fato de esta região do país ser um lugar,
por excelência, de emergência de movimentos sociais de repercussões in-
ternacionais.
Os estudos sobre movimentos sociais no Sul do Brasil tendem a uma
concentração maior no período entre as décadas de 1960 e 1990, quando
se registram as mobilizações do Movimento dos Agricultores Sem Terra
(Master) e dos “Afogados”, no Rio Grande do Sul; do Movimento dos
Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (Mastro) e dos atingidos pela
Usina de Itaipu, no Paraná; e as ocupações simultâneas em Santa Cata-
rina. Essas mobilizações resultaram na estruturação de movimentos so-
ciais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e, mais recentes, o Mo-
vimento de Mulheres Camponesas (MMC) e o Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA), os quais, junto com outros movimentos derivados
desse processo, convergiram, em escala mundial, em organizações como
a Via Campesina.
Não obstante a importância desse período e considerando o proces-

6 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


so histórico amplo, a proposta desta coletânea é estudar o Sul do Brasil,
tendo como referencial temporal inicial a Lei de Terras (Lei n.º 601, de 18
de setembro de 1850), o avanço das empresas de colonização e infraestru-
tura na região e a consequente alteração brusca do regime de ocupação
da terra. O marco temporal final é a ascensão de Getúlio Vargas ao go-
verno em 1930, representando outra descontinuidade desse processo de
acumulação, com a aceleração da industrialização iniciando o Brasil no
que Cardoso de Mello (1982) chamou de “Capitalismo Tardio”. Os refle-
xos dessa descontinuidade são percebidos na maior efetividade do Estado
no interior do país mediante a intensificação da colonização, incidindo
em um novo estágio das mobilizações sociais.
Considerando o espaço-tempo da pesquisa, elencamos uma série
de casos que classificamos em três tipos de mobilizações sociais, desdo-
brados em dois subtipos cada: étnicos (indígenas e negros), milenários
(messiânicos e utópicos) e bandidos sociais (bandidos e intrusos). Não
propomos essa categorização para marcar diferenças ou especificidades
entre as mobilizações, mas para vislumbrar uma unidade de análise que
estabelece o processo histórico dos movimentos sociais pela sua especi-
ficidade ideológica, distinguindo-os não em uma perspectiva evolucio-
nista, e sim processual, no sentido de uma genealogia dos movimentos
sociais contemporâneos.
É fundamental que façamos algumas ressalvas sobre a proposta de
trabalho. Primeiro, é preciso ter em vista que, da perspectiva aqui ado-
tada, as mobilizações sociais elencadas não tinham a pretensão – ao
menos conscientemente – de revolucionar o sistema social vigente; pro-
curavam, na verdade, adaptar-se ou perseguir um bem-estar prejudicado
pelo processo de transformação em curso. Segundo, a seleção dos casos
que compõem a unidade de análise foi feita arbitrariamente, de acordo
com a condição do grupo de pesquisadores no momento da pesquisa;
assim, embora haja casos conhecidos – ou novos – da historiografia que
foram preteridos na coletânea, estes poderiam compor trabalhos de mes-
ma monta. Terceiro, essa unidade de análise apresenta tipos e subtipos

Apresentação 7
que não são excludentes, tanto que ocorrem casos em que personagens
podem ser tipificados como bandidos e milenários, por exemplo. Quarto,
a tipificação das mobilizações sociais estabelecidas não pretende engessar
a análise, mas conferir uma unidade que reflete um modo de vida e de
mobilização próprio de um estágio do processo histórico. Finalmente,
não obstante demonstremos elementos de convergência entre as mobi-
lizações, é preciso considerar que cada análise sobre um caso particular
implica referenciais próprios daquele caso, sendo que se oferecem, na
realidade, nesta seção, linhas gerais para a discussão na perspectiva de
um processo histórico amplo.
O espaço de referência para a discussão é o Sul do Brasil, o qual
atualmente corresponde aos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. O processo de ocupação desse espaço pode ser compreen-
dido em quatros ciclos econômicos. A pecuária, o primeiro ciclo, passou
a ser explorada nas áreas de campo do Rio Grande do Sul e do Paraná no
século XVIII, em função da atividade mineradora em Minas Gerais. As-
sim, estabeleceram-se caminhos de tropas (Caminho da Praia; Caminho
de Viamão ou Estrada Real; Caminho das Missões, Palmas ou Geral;
Caminho da Vacaria; e Caminho dos Conventos) que, abertos a partir
desse período, definiram as rotas no Sul do Brasil. Alternando com o
campo, a mata propiciou o ciclo subsequente, da erva-mate, no início do
século XIX, tendo a mão de obra cabocla como elemento fundamental
para a extração. Na década de 1920, a erva-mate já demonstrava sinais
de exaustão, mas a mata ainda tinha madeira para sustentar um novo
ciclo, com a araucária como carro-chefe, explorada pelos colonizadores.
Reduzida a área de mata, a agricultura e a pecuária, intensificadas nas
agroindústrias, passaram a predominar na economia sulina do Brasil na
década de 1950 (BAVARESCO, 2003).
Esse processo histórico, tardio em relação ao restante do país devi-
do ao distanciamento do centro administrativo e econômico do sudeste,
também está vinculado a uma condição fronteiriça, a qual implicou uma
série de conflitos externos, como as Guerras da Cisplatina (1825-28) e do

8 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Paraguai (1865-70), e internos, como as Revoluções Farroupilha (1835-
45) e Federalista (1893-95). Esses conflitos acabaram por estabelecer um
militarismo que refletiu na forma de ocupação da terra e no comporta-
mento beligerante na região.
Depois, a configuração espacial atual, dividindo a região Sul em três
unidades da federação, é resultado de um processo de intensificação da
atuação do Estado brasileiro. A Bula Papal de 1493, os Tratados de Tor-
desilhas (1494), de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777) e a Guerra
da Cisplatina (1825-1828) conformaram principalmente o atual território
do Rio Grande do Sul. A disputa entre Brasil e Argentina, na qual o Bra-
sil teve ganho de causa mediante a arbitragem do presidente dos EUA
Grover Stephen Cleveland (1895), e as subsequentes disputas internas
entre Santa Catarina e Paraná, as quais tiveram desfecho acordado e ho-
mologado somente em 1917, são fatos que definiram os territórios desses
Estados, conferindo os contornos atuais do Sul do Brasil.
O recorte temporal evidencia a perspectiva processual, bem como a
especificidade do período que, nesta coletânea, prioriza o intervalo entre
meados do século XIX e o primeiro terço do século XX. A fundamenta-
ção teórica genérica é aquela referente ao período de transformação na
Europa, cujo ápice se deu no século XVIII. Thompson (1984, p. 57-58)
assinala os anos entre 1688 e 1790 como balizas desse processo de trans-
formação marcado pela ascensão e queda da burguesia agrária no gover-
no inglês. Não se trata meramente de sublinhar o protagonismo de um
grupo no governo, mas, como aponta o autor, “o modo e as relações de
produção que determinaram as expressões políticas e culturais dos cem
anos seguintes”.
O processo histórico europeu registra momentos importantes, tais
como a Lei Negra, na Inglaterra, e a extinção da vaine pâture e do troupeau
à part, na França (THOMPSON, 1987; BLOCH, 2001). Todavia, Bloch
(2001, p. 282) chama a atenção para o fato de que as transformações não
aconteceram instantaneamente, mas mediante “disposições temporárias”
impostas através de restrições em períodos oportunos, como seca, geada

Apresentação 9
ou inundações, ou pela “autorização” de cercamento de alguma área, o
que, aos poucos, foi minando a resistência dos camponeses. Essa passa-
gem da burguesia agrária pelos governos da Europa, a qual foi parte da
transição do capital agrário para o industrial, não se sucedeu de forma
estanque nesses dois casos (Inglaterra e França), tampouco ocorreu si-
multaneamente no resto do mundo.
Quanto ao Brasil, Cardoso de Mello (1982) identifica um processo
semelhante entre os anos de 1888 e 1933, marcados respectivamente pela
abolição da escravatura e pela aceleração do processo de industrialização
do Brasil (a partir de uma estrutura inicial anterior que ganhou espaço
com a crise da agricultura naquele período). Analisando o mesmo perío-
do da perspectiva dos camponeses na política brasileira, Martins (1981)
enfatiza que a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras),
tratou de garantir a continuidade dos ganhos dos fazendeiros que, sem
mais contar com o regime de sesmarias (suspenso desde 1822) e anteven-
do a abolição da escravatura, conseguiriam manter o trabalho livre sob
seu controle. Em outros termos, “antes, o fundamento da dominação e
da exploração era o escravo, agora passa a ser a terra. É a terra, a disputa
pela terra, que trazem para o confronto direto camponeses e fazendeiros”
(MARTINS, 1981, p. 63).
As análises de Cardoso de Mello (1982) e Martins (1981), por
adotarem entendimentos distintos, não coincidem exatamente no recorte
temporal. Embora concordem com o marco inicial da abolição da
escravatura, Martins (1981) resgata a Lei de Terras (1850) e Cardoso de
Mello (1982) registra uma infraestrutura industrial anterior, mesmo que
incipiente. Quanto ao marco final do período analisado, a perspectiva
econômica de Cardoso de Mello (1982) assinala a década de 1930, em
função da aceleração da industrialização, ao passo que Martins (1981),
sob a ótica política, especifica a década de 1950, em consequência das
atuações dos comunistas, trabalhistas e da Igreja Católica na luta pela
terra.

10 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Ponderando as análises referentes à Europa dos séculos XVII e
XVIII, concomitantemente com as análises sobre o caso brasileiro nos
séculos XIX e XX, guardadas as proporções, podemos estabelecer um
recorte temporal que, baseado no levantamento dos casos no Sul do
Brasil, nos sugere um estudo compreendendo meados do século XIX e
o primeiro terço do século XX. Consideramos como marco inicial a Lei
de Terras de 1850, pela mudança importante no regime de ocupação da
terra, e, como marco final, a ascensão de Getúlio Vargas ao governo,
em função da política de aceleração industrial e inserção do Estado no
interior do país.
Os casos selecionados nesta coletânea vão ao encontro do que Levi
(2011) discute no âmbito da micro-história, apontando a relevância da
relação desses casos com a teoria geral. O autor entende essa relação
como “uma parte da construção de um repertório sempre em expansão
do material densamente descrito, tornado inteligível através de sua
contextualização, que servirá para ampliar o universo do discurso
humano” (LEVI, 2011, p. 146). Apresentados o tempo e o espaço do
estudo, passaremos a elencar os casos – e os respectivos referenciais –, de
maneira a vislumbrar uma unidade de análise que ajude na compreensão
do processo histórico dos movimentos sociais no Sul do Brasil.
Essa unidade de análise abarca uma série de ações e mobilizações
sociais dentro de um período histórico mais ou menos determinado,
tendo como eixo uma questão comum que, neste caso, é a luta pela terra.
Sob a perspectiva weberiana, são “ações sociais”, porque o “sentido
visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento dos outros,
orientando-se por este em seu curso” (WEBER, 2012, p. 3). No âmbito
dos movimentos sociais, a “ação” está mais voltada para a perspectiva
individual de uma pessoa ou de um grupo pequeno.
Em um horizonte diferente, a “mobilização” diz respeito a certa
confluência de indivíduos ou pequenos grupos, conferindo algum sentido
para suas ações, sentido este que pode ser analisado tanto pela teoria
da mobilização dos recursos quanto da mobilização política, ou mesmo

Apresentação 11
conjugando-as. O termo “movimento social” seria a consolidação dessa
mobilização no escopo do que apresenta Jasper (2016) ao conceituá-los
enquanto “esforços persistentes e intencionais para promover ou obstruir
mudanças jurídicas e sociais de longo alcance, basicamente fora dos canais
institucionais sancionados pelas autoridades”. Eis o desdobramento que
permite compreender o aspecto processual da análise sem pretender
uma ordem evolutiva entre ação, mobilização e movimento social, mas
evidenciando um processo que distingue iniciativas pontuais, localizadas,
específicas, que buscam responder a questões imediatas, de outras,
continuadas, que visam a mudanças mais profundas.
No conjunto dessa unidade de análise, destacamos, como já
explicitado, três tipos de mobilizações recorrentes no Sul do Brasil nos
séculos XIX e XX, desdobrados em dois subtipos cada: étnicos (indígenas
e negros), milenários (messiânicos e utópicos) e bandidos sociais
(bandidos e intrusos). Essa categorização foi uma forma encontrada
para conferir alguma ordenação na apresentação dos casos, de maneira
a convergir para uma ideia de conjunto que sirva para uma discussão
teórico-metodológica sobre os movimentos sociais no Sul do Brasil
nos séculos XIX e XX. O objetivo é vislumbrar a unidade de análise
em suas partes, não nos detendo no rigor conceitual. O que fizemos foi
introduzir conceitos que ofereçam uma direção inicial e mencionar em
notas algumas das possibilidades de aprofundamento ou variações desses
conceitos genéricos.
A categorização que desenhamos sobre mobilizações étnicas se inspira
no que demonstrou Quijano (2000) sobre os movimentos camponeses na
América Latina. O autor ressalta uma forma de movimento que chama
de “racista”, assim definida:

Os movimentos racistas se definem como movimentos de


rebelião contra a dominação de grupos de origem étnica di-
ferente. A finalidade perseguida supõe, portanto, não uma
mudança da natureza da relação social (dominação), mas a
eliminação de um grupo determinado de dominadores, não

12 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


como governantes, mas como governantes de um grupo ét-
nico diferente. Mais do que em qualquer outro movimento
camponês, a estrutura organizacional e de liderança se rege
por padrões que comandam a estrutura tradicional de paren-
tesco e de “casta” (QUIJANO, 2000, p. 172).1

Então, caracterizamos como étnicas as ações e mobilizações de resis-


tência e luta pela terra empreendidas por indígenas e negros nos séculos
XIX e XX no Sul do Brasil, em função tanto da dominação do trabalho
como da terra. Esses grupos étnicos se organizam em função, sobretudo,
da descendência ou parentesco e procuram resistir à dominação, lutando
por terra à medida que as formas de dominação de trabalho e terra vão
se transformando no decorrer do processo histórico. Essa categoria de
mobilização pode ser analisada a partir de dois subtipos, conforme os
recortes étnicos: indígenas e negros.
Sobre os indígenas, seguindo na proposição geral de Quijano, outra
ressalva que merece registro é que as ações empreendidas no Sul do Brasil
não demonstram o objetivo primeiro de eliminação do grupo dominador.
Certamente, os indígenas resistiram e lutaram por terra; todavia, ao con-
siderar as disputas entre os próprios grupos indígenas, é compreensível
que esses caciques, de certa forma, tenham chegado, às vezes, a ajudar os
dominadores no processo de exploração econômica do Sul do Brasil, seja
na abertura de estradas ou no apaziguamento de áreas de interesse. O que
precisa ser relativizado é que essa relação entre indígenas e não indígenas
não se trata de resistência, submissão ou aliança exclusivamente. Pode-se
analisar, a partir de estudos específicos, que a postura do indígena ganha

1  Esse tipo de mobilização pode ser identificado no Sul do Brasil; todavia, algumas ressalvas
precisam ser feitas em relação ao proposto por Quijano (2000). O autor apresenta as formas de
movimentos sociais segundo dois períodos que teriam como corte temporal a década de 1930.
Não obstante a distinção coincida com o recorte que propomos neste trabalho, o enquadramento
“pré-político” atribuído pelo autor sugere uma ideia evolucionista que se mostra problemática
à medida que elencamos as mobilizações sociais no Sul do Brasil. Mesmo atentando à ressalva
de que cortes temporais não são abruptos e não precisam ser tomados de modo a engessar as
análises, adotamos a tipificação proposta pelo autor no sentido genérico, mas modificando-a
livremente para adequá-la ao contexto e à perspectiva teórica do nosso estudo.

Apresentação 13
inteligibilidade quando essa ajuda, em alguns momentos, também possa
significar ser parte de uma estratégia de resistência, luta ou mesmo sobre-
vivência (LAROQUE, 2000; MOTA, 2009).
Essa perspectiva se manifesta, na nossa coletânea, em três capítu-
los. No texto Kondá: um indígena do século XIX, Clovis Antonio Brighenti
discute essa ambiguidade desde a história do cacique Vitorino Kondá na
região oeste de Santa Catarina, o que evidencia a notoriedade do caci-
que justamente por sua flexibilidade ou habilidade tanto entre indígenas
quanto não indígenas. O texto de Luís Fernando da Silva Laroque, intitu-
lado O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) pelas brenhas do Brasil Meridional,
enriquece a discussão ao relativizar a postura do Cacique Doble entre
alianças e disputas tanto com indígenas quanto com brancos, assinalando
um protagonismo indígena e não mera vitimização frente ao opressor no
Rio Grande do Sul. Já no atual território paranaense, a atuação do Ca-
cique Tigre Gacom é abordada no trabalho de Cristiano Augusto Durat.
No texto intitulado Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras do
Aldeamento de Atalaia (Guarapuava – século XIX), o autor trata da luta pela
terra em uma perspectiva diplomática legal em que o Cacique adentra
em um campo pouco usual no que se refere à luta indígena pela terra no
século XIX.
Seguindo na linha étnica, outro subtipo de mobilização diz respei-
to aos negros. Diferentemente dos indígenas, os quais estavam instalados
nesse espaço quando da chegada e avanço branco, a dominação sobre os
negros começa com o trabalho escravo; com a abolição, eles passam a
lutar por terra. Estudos sobre os casos dos Negros de Casca no atual mu-
nicípio de Mostardas-RS (LEITE, 2002), da Invernada Paiol de Telhas no
município de Guarapuava-PR (BUTI, 2009) e da Invernada dos Negros
no município de Campos Novos-SC (MOMBELLI, 2009) são exemplos
de remanescentes de escravos que acabaram herdando terras dos senho-
res e começaram a lutar pelo direito de uso dessas terras.
Na nossa coletânea, a perspectiva é adotada no trabalho de Ricardo
Cid Fernandes e Luana Teixeira. O texto intitulado A comunidade quilom-

14 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


bola São Roque: resistência e formação de um território de liberdade difere dos
casos mencionados pelo fato de que esse grupo iniciaram a mobilização
não pela doação da terra feita pelos senhores, mas pela resistência à do-
minação escrava na região dos municípios de Praia Grande-SC e Mampi-
tuba-RS. Isso implica um valor, uma identidade, a partir do que a luta se
materializa em um território reconhecidamente quilombola.
Os dois subtipos convergem em elementos que conformam essas
mobilizações, reforçando a natureza étnica e processual da análise. A et-
nicidade advém da organização, sobretudo da descendência e do paren-
tesco. A processualidade – ao contrário do evolucionismo – se evidencia
na continuidade dessas lutas nos dias atuais, inclusive nos mesmos locais
e por descendentes daqueles personagens, mas em estágios diferentes do
processo histórico.
A segunda categoria que compõe nossa unidade de análise parte da
conceituação geral apresentada por Hobsbawm (1970, p. 77), na qual se
estabelece que o milenarismo tem, em sua essência, “a esperança de uma
completa e radical transformação do mundo que recairá no milênio”. Os
fenômenos milenários são caracterizados pelo autor em três tipos distin-
tos: Lazzaretti (Toscana/Itália, a partir de 1875), Anarquista Andaluz
(Andaluzia/Espanha, 1875-1936), e Fasci Siciliano e Comunista Agrário
(Sicília/Itália, a partir de 1893). Os dois primeiros tipos de milenarismos
podem ser identificados em casos ocorridos no espaço-tempo da nossa
pesquisa; todavia, também requerem ajustes pela sua especificidade, su-
gerindo dois subtipos, que chamaremos de messiânicos e utópicos.
As ressalvas acerca dos termos milenarismo e messianismo, segundo
a perspectiva da unidade de análise que pretendemos, se apoiam no que
Queiroz (1977, p. 31) apresenta em uma nota em que explica a questão:

Distinguimos messianismo de milenarismo, em lugar de em-


pregá-los praticamente como sinônimos, como vemos fazer
franceses e ingleses, preferindo hoje o segundo termo ao pri-
meiro. O problema do Milênio é mais vasto do que o proble-
ma do messianismo. Não é apenas por meio de um enviado

Apresentação 15
divino que se pode inaugurar no mundo o paraíso terrestre;
este pode resultar da formação de seitas sem chefes, ou mes-
mo de práticas mágicas adequadas. Por esta razão continua-
remos a falar em movimentos messiânicos e não em movi-
mentos milenaristas; estamos nos detendo apenas numa das
subdivisões do problema do Milênio.

A autora estabelece essa distinção no início do denso trabalho so-


bre movimentos messiânicos no Brasil e no mundo, no qual inclui casos
ocorridos no Sul do Brasil. Na coletânea que ora publicamos, fazemos
essa diferenciação, chamando de utópicas aquelas mobilizações com base
na distinção de Engels entre o socialismo utópico e científico.
Embora o autor reconheça Saint-Simon, Fourier e Owen como pio-
neiros do pensamento socialista, ele ressalvava, ainda em 1877, que “suas
teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da
produção capitalista, a incipiente condição de classe” (ENGELS, 2005,
p. 64-65). Mesmo admitindo a importância dessas iniciativas, Engels
(2005) entendia a necessidade de situá-las no terreno da realidade me-
diante um pensamento científico, o que só seria alcançado com um pro-
cesso histórico de reflexões e lutas no qual essas mobilizações estivessem
na gênese. A anotação que precisa ser feita aqui é que, não obstante se
admita a incipiência dessas mobilizações do ponto de vista da concretude
naqueles termos e momento, não se pode relegar ao devaneio, minimizar
ou desconsiderar essas mobilizações quando se pretende estudar os mo-
vimentos sociais mesmo na contemporaneidade.
Nesse sentido, chamamos de utópicas aquelas mobilizações inspira-
das em ideais de liberdade política, econômica e social que ainda não
tinham uma sistematização que oferecesse condições reais de superação
da sociedade que contrapunham, mas que, como mencionado, estão na
gênese dos movimentos sociais até os dias atuais. Sobre essa categoria de
mobilizações, o trabalho de Carina Sartori, intitulado A Colônia Industrial
do Sahy: os franceses dr. Mure, Derrion e Jamain e o Império brasileiro, mais do
que historicizar o caso emblemático da Colônia do Sahy, no litoral cata-

16 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


rinense, discute os desencontros entre leis e ideais entre personagens do
processo que refletem a tenuidade entre utopia e concretude de um pro-
jeto fourierista. Na mesma categoria, no texto intitulado Colônia Cecília:
considerações sobre o anarquismo experimental no sul do Brasil, Cassio Bran-
caleone apresenta o caso relacionando o elemento ideológico a outros
inerentes aos processos de imigração, colonização e trabalho que permi-
tem compreender essa categoria de mobilização social diferentemente do
sentido pejorativo muitas vezes atribuído a utopia.
Retomando a distinção estabelecida por Queiroz (1977), o outro
subtipo desta categoria milenária, os messiânicos, pode ser analisada par-
tindo da ideia de que aquelas mobilizações sociais perseguem objetivos
“políticos, sociais, econômicos (conforme se localizem os erros neste ou
naquele setor), [que] devem ser, no entanto, religiosamente alcançados,
isto é, por meio de rituais especiais que um enviado divino revela aos
homens” (QUEIROZ, 1977, p. 29). Na nossa coletânea, essa categoria é
estudada diretamente através de três trabalhos, como a seguir.
No texto intitulado O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina
Maurer (Rio Grande do Sul, Colônia Alemã de São Leopoldo, segunda metade
do século XIX), Daniel Luciano Gevehr, Marlise Regina Meyre e Rosane
Marcia Neumann analisam essa mobilização a partir do protagonismo
de uma mulher face a um cenário complexo de imigração e colonização
alemã e disputas políticas e econômicas em que questões de gênero e
religião são elementos férteis não só para aquele caso, mas para leituras
em movimentos sociais na contemporaneidade. O trabalho de Fabian Fi-
latow apresenta outro acontecimento em que o messianismo é central
na análise. Todavia, elementos como a colonização, a Lei de Terras e
questões políticas asseveraram a luta pela terra envolvendo imigrantes
italianos e caboclos, o que deflagrou uma mobilização de cunho messiâ-
nico – isso é discutido pelo autor no trabalho intitulado Monges do Pinhei-
rinho: conflito entre caboclos e imigrantes no Vale do Taquari (RS, 1902). Com-
pletando esse bloco, no trabalho intitulado Monges Barbudos: a construção
individual e coletiva do movimento, Henrique Kujawa retoma a discussão

Apresentação 17
sobre essa mobilização messiânica ocorrida na região de Soledade-RS na
década de 1930 para também evidenciar princípios de protagonismo de
homens e mulheres que, ao lutar pela terra, o fazem à luz de elementos
identitários de gênero, etnicidade e nacionalidade.
O milenarismo, enquanto esperança em um mundo melhor, e a uto-
pia, enquanto força motivadora, são aspectos comuns não somente aos
dois subtipos de mobilizações que destacamos, mas podem ser encon-
trados em certa medida em qualquer movimento social. Mesmo assim,
propomos a distinção entre os milenarismos messiânico e utópico em
função de o primeiro implicar inspiração religiosa através de um messias,
ao passo que o segundo se inspira em projetos idealizados por indivíduos
ou grupos.
Ainda sobre essa categoria de análise, merece explicação o fato de
que não apresentamos, nesse bloco, nenhum trabalho sobre o Contesta-
do (1912-1916), principal mobilização messiânica do Sul do Brasil2. O
Contestado está presente na nossa coletânea; entretanto, optamos por
evidenciar o protagonismo de personagens que não os monges, o que
demonstraremos a seguir, através dos trabalhos de Delmir Valentini e Ar-
lene Renk. O enquadramento dessas discussões no bloco referente aos
bandidos sociais, para além de uma opção metodológica, acentua a flexi-
bilidade conceitual e a riqueza de possibilidades dessa unidade de análise
para os estudos dos movimentos sociais no Sul do Brasil dos séculos XIX
e XX.
A terceira categoria que compõe nossa unidade de análise também
segue na orientação de Hobsbawm (1970, p. 28), o qual sintetiza que “um
homem se torna bandido porque faz alguma coisa que não é considerada
como um crime pelas convenções de sua localidade, mas que o é pelo Es-
tado e pelas normas locais”. O autor destaca ainda três tipos de bandidos
sociais: “ladrões nobres”, “vingadores” e “haiduks”. A partir desses ti-
pos, fazemos relações com outros autores e perspectivas3 e identificamos

2  Para uma aproximação sobre o tema, ver: Queiroz (1966), Monteiro (1974) e Machado
(2004).
3  Das três categorias que selecionamos para compor nossa proposta de unidade de análise, a do

18 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


correspondências, elencando alguns casos ocorridos no espaço-tempo do
nosso estudo. Em função dos elementos envolvidos, pudemos conformar
dois subtipos de bandidos sociais, os quais chamaremos aqui de “bandi-
dos” e “intrusos”.
Com base nos casos elencados, consideramos bandidos aqueles va-
lentões, recorrentemente egressos de guerras do período, envolvidos em
contendas familiares, que atuavam como jagunços de coronéis locais ou
mesmo por indignação com algo que acreditavam ser injusto, agindo com
o intuito de corrigir aquilo que viam como errado; esses aspectos, mes-
clados, compõem a ambiguidade dessas figuras. Um exemplo é o caso
de Zeca Vacariano, dissidente da Revolução Federalista que assaltou o
trem pagador da Brazil Railway Company no atual município de Pinheiro
Preto-SC e foi capanga dos coronéis Manoel Fabricio Vieira, no Paraná,
e Fidêncio de Mello, no oeste catarinense, onde chegou a assumir o cargo
de subdelegado (THOMÉ, 2009)4. Além deste, outros personagens e his-
tórias chegaram a ser relacionados sob essa categoria; no entanto, como
indicamos anteriormente, optamos por uma seleção que cobrisse as varia-
ções da categoria e estivesse ao alcance do Projeto de Pesquisa para este
momento, o que resultou na seleção dos casos a seguir.
O título do texto de Antonio Marcos Myskiw, Santa Cruz: um bandi-
do nada social na história do Oeste do Paraná, já indica a complexidade do
fenômeno do banditismo. Analisando a atuação de Santa Cruz, um para-
guaio capataz de uma obrage no sudoeste do Paraná, o autor revela todo

bandido social é a mais complexa. Mesmo sem aprofundar as variáveis do conceito, podemos
destacar quatro linhas de abordagem e seus principais idealizadores para o estudo dessa categoria:
a) o banditismo enquanto expoente da rebeldia social nas comunidades (HOBSBAWM, 2015);
b) o banditismo político ou aquele mais relacionado com a elite local (BLOK, 1972); o bandido
guerrilheiro, que atua em cenários de disputas entre nações ou grupos internos (VANDERWOOD,
1992); e d) o banditismo enquanto forma de adaptação em cenários de transformação social
(SINGELMANN, 1975). Essas são as principais abordagens não excludentes que ajudam a
orientar a análise sobre os casos específicos.
4  A ausência do caso de Zeca Vacariano em nossa coletânea é digna de registro. Lidar com
bandidos nunca foi tarefa fácil. Ocorreu que a Prof. Dra. Monica Hass, integrante do nosso
Grupo de Pesquisa, empreendeu uma espécie de inquérito sobre o caso, tanto que, na última
pesquisa de campo, ao refazer um dos itinerários do bandido, fraturou um pé. Ausência mais que
justificada, a pesquisa será publicada em outro espaço. À Monica, nossa estima!

Apresentação 19
um contexto de violenta exploração no qual o papel desse bandido assu-
me contornos antissociais, com os próprios mensus e camponeses como
alvos. A ambiguidade da categoria também aparece no texto de Marinilse
Marina. O título Paco: herói ou bandido? anuncia um trabalho que tem
como pano de fundo a imigração, a colonização e as disputas políticas
na região serrana do Rio Grande do Sul nas décadas de 1920-1930, onde
o bandido atuou como capanga, chegando a ser acusado e protegido por
um mesmo grupo político em momentos distintos em função da mobili-
dade política.
Dois outros textos desse bloco refletem a flexibilidade entre as ca-
tegorias que compõem a unidade de análise. Nesses textos, a revolta do
Contestado, de cunho messiânico, é retratada na perspectiva das “lide-
ranças de briga” (MACHADO, 2004). Aqui, trata-se de uma opção me-
todológica de apresentar figuras caboclas que protagonizaram a revolta
normalmente abordada na perspectiva dos monges. No texto intitulado
Adeodato: a demonização do último líder caboclo na Guerra do Contestado, Del-
mir Valentini, analisa o caso do último líder caboclo da revolta do Con-
testado. Para além das características de valente e facínora, recorrentes
nas narrativas sobre esta liderança de briga, o texto busca vislumbrar o
mesmo enquanto sujeito inserido num contexto social de grande transfor-
mação, onde elementos de economia, política e religião se transformam
rapidamente exigindo desses sujeitos movimentos de adaptação, o que
normalmente não acontecia de maneira favorável para essas populações.
Sobre o mesmo movimento, Arlene Renk veicula o texto intitulado Mu-
lheres no Contestado: um território a ser conquistado, no qual a autora, para
além de simplesmente registrar a presença feminina na revolta, assinala
esse protagonismo a partir de uma conjunção de elementos materiais e
culturais próprios daquela sociedade. A liderança dessas mulheres – um
espaço ainda a ser explorado pela História – revela tanto uma estrutura
tradicional hierarquizada quanto aponta possibilidades de relativização
dessa estrutura com essas lideranças.

20 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Os outros dois trabalhos que compõem esse bloco apresentam dois
elementos de fundo para a análise histórica do período, assim como para
estudos contemporâneos. No texto Pacífico nas lides da Justiça: crime e vio-
lência no Sudoeste do Paraná (1900-1930), Aruanã Antonio dos Passos ana-
lisa a atuação de um bandido em suas relações de tipificação legal, com
a comunidade e com a elite local, baseada na qual é percebida uma ideia
de justiçamento que dialoga, mas extrapola, o estabelecido estatal, corro-
borando um momento histórico em que o banditismo é inerente. Fechan-
do o bloco, no texto intitulado Telegrafista Henrique Widikim e a Revolução
Federalista na Colônia Militar do Xapecó, Leticia Maria Venson desenvolve
uma revisão de literatura, suscitando a reflexão acerca do que atualmente
é chamado de fake news. O trabalho permite notar como essa prática já
compunha as relações políticas mesmo quando não se contava com uma
rede global de informação.
O outro subtipo de bandidos sociais que elencamos no Sul do Brasil
corresponde à categoria de intruso. Estes podem até exibir as caracterís-
ticas do bandido genérico; todavia, a questão de terra, especialmente, foi
o que os teria tornado bandidos, em função de medidas adotadas pelo
governo. Alguns exemplos de medidas governamentais são a Lei de Ter-
ras (Lei n.º 601/1850) e a Lei de 20 de março de 1861 (que disciplinava a
extração nos ervais), as quais funcionaram como dispositivos que torna-
ram, de forma abrupta, os até então posseiros e coletores em “intrusos”
dessas terras a partir de então tituladas.
O texto de José Antonio Moraes do Nascimento e Paulo A. Zar-
th resgata o protagonismo de Luiz Minho Flores no texto intitulado Os
Intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista. Esse trabalho discute como a pri-
vatização da terra, sobretudo dos ervais no município de Palmeira das
Missões, no Norte do Rio Grande do Sul, implicou na resistência legal e
armada dos ervateiros ante o cenário de transformação política e econô-
mica que refletia diretamente no seu modo de vida.
O texto de João Carlos Tedesco e Márcia dos Santos Caron segue a
mesma linha. O título João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra

Apresentação 21
no norte do Rio Grande do Sul – 1927-1930 discute o processo de coloniza-
ção através da empresa Jewish Colonization Association (ICA). Ao assentar
imigrantes judeus na Colônia Erechim, a ICA suscitou a mobilização dos
posseiros em um cenário que ainda tinha como pano de fundo resquícios
da revolução de 1923 no Rio Grande do Sul.
Na mesma região, o texto de Isabel Rosa Gritti, intitulado A luta pela
terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos e o Capitão Belo, apresenta
outra história de resistência a partir da colonização da Fazenda Quatro
Irmãos, onde, assim como o Bando do João Inácio, José da Rosa Sutil
(Capitão Belo) liderou uma série de ocupações de terras na região, em
um movimento de resistência à colonização. No município de Barão de
Cotegipe, na cercania, Gaudêncio dos Santos liderou um grupo de luta
pela terra nos mesmos moldes. A peculiaridade desses personagens é a
dissidência de conflitos, como a Revolução Federalista, que os aproxima
da perspectiva do “bandido guerrilheiro”; entretanto, a terra se mostra o
eixo aglutinador dos conflitos.
Fechando esse bloco, no texto intitulado A Coluna Prestes e a Estrada
do Colono, Jaci Poli discute a importância da Coluna, não somente pela
abertura da Estrada do Colono, mas do ponto de vista teórico-metodoló-
gico, da importância desse movimento para a abertura de novos estudos
acerca dos movimentos sociais no Sul do Brasil nas primeiras décadas do
século XX.

***

O exercício de amarrar teoricamente diferentes tipos e os respectivos


subtipos de mobilizações sociais de forma a vislumbrar uma unidade de
análise implica estabelecer um eixo aglutinador dessas mobilizações. A
transformação econômica, política e cultural do período gerou uma tensão
psicossocial entre ideologias distintas. Esses três elementos – transformação,
tensão e ideologia –compõem o que pode ser entendido como um pano de
fundo para a análise de conflitos que marcam uma especificidade que

22 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


distingue os séculos XIX e XX no processo histórico dos movimentos
sociais no Sul do Brasil.
Determinar um espaço-tempo de estudo e tentar categorizar eventos
é tarefa normalmente passiva de críticas e reparos. Ao propormos uma
tipificação das mobilizações sociais no Sul do Brasil cobrindo um espaço
de tempo quase secular, temos consciência da flexibilidade e dinâmica
das datas e eventos nesse processo. Apesar dessa flexibilidade, precisa-
mos delimitar um panorama geral desse processo ao qual correspondem
os casos aqui mencionados.
O Brasil, entre meados do século XIX e o primeiro terço do século
XX, atravessou um período de transformação econômica e política. No
campo econômico, assistiu-se ao predomínio das culturas agroexporta-
doras, sobretudo do café. A abolição da escravatura refletiu na chegada
de imigrantes europeus e na forma de ocupação da terra. A Lei de Terras
de 1850 e a Abolição da Escravatura em 1888 foram elementos que, jun-
tamente com a crise internacional de 1929, a qual repercutiu no declínio
da cafeicultura, marcaram um período de transformação econômica que
alternou apogeu e crise da agroexportação e aceleração industrial (PRA-
DO JÚNIOR, 2006).
No campo político, intimamente ligado ao econômico, observou-
-se o predomínio do grupo político vinculado à agroexportação. Ainda
no período imperial, o militarismo, que procurava assegurar territórios,
também originou uma elite de fazendeiros. O apogeu da agroexportação
conferiu força política, em especial aos cafeicultores paulistas, os quais
ganharam ainda mais força com a Proclamação da República (1889), me-
diante o predomínio dos poderes locais. Isso perdurou até a ascensão de
Vargas ao governo em 1930, quando, progressivamente, um novo grupo
(em particular, urbano-industrial) assumiu o protagonismo político do
país, em parte oriundo do setor agroexportador (FAORO, 1997).
A condição de subsidiário e o baixo valor competitivo dos produtos
da região Sul marcavam uma economia entravada também pela defici-
tária estrutura de transportes (ferroviário e portuário). A proclamação

Apresentação 23
da República foi sui generis no Rio Grande do Sul, por conta da matriz
ideológica positivista que pretendia modernizar a economia e ordenar
a política. As já mencionadas disputas político-militares internas e ex-
ternas, o avanço da elite latifundiária sobre as zonas de mata e a conse-
quente migração de pequenos agricultores para Santa Catarina e Paraná
(“enxamagem”) configuraram um processo de transformação no Sul do
Brasil (PESAVENTO, 1985).
Esse processo de transformação ocorrido no Brasil – sobretudo no
Sul – é de ordem estrutural mundial, acontecendo em espaços, tempos
e formas diferentes. As transformações de ordem econômica, política e
cultural que ocorreram no Brasil eram percebidas na Europa desde os
séculos XVII e XVIII. A transformação é inerente ao processo histórico;
logo, ao centrarmos o foco da análise estabelecendo um espaço-tempo de
referência, deve-se ter em vista que esses limites não precisam ser toma-
dos como cortes abruptos nesse processo histórico. Assim, é importante
resgatar as análises sobre o contexto europeu, buscando compreender ele-
mentos gerais desse processo global.
Tal processo de transformação analisado por Thompson (1998, p.
21) é sintetizado de modo que “podemos entender boa parte da história
social do século XVIII como uma série de confrontos entre uma economia
de mercado inovadora e a economia moral da plebe”. A economia moral
a que o autor se refere compreende um “consenso popular a respeito do
que eram práticas legítimas e ilegítimas na atividade do mercado”, funda-
mentado sob uma “visão consistente tradicional das normas e obrigações
sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunida-
de, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a
economia moral dos pobres” (THOMPSON, 1998, p. 152). Revisitando
esse conceito de “economia moral”, o autor afirma que “nenhum outro
termo parece se oferecer na hora de descrever a maneira como muitas
relações econômicas são reguladas segundo normas não monetárias nas
comunidades industriais e camponesas”. Ele reforça que “essas normas
existem como um tecido de costumes e usos, até serem ameaçadas pelas

24 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


racionalizações monetárias e adquirirem a autoconsciência de ser uma
‘economia moral’” (THOMPSON, 1998, p. 258).
A relação de uma economia moral dos pobres europeus com o modo
de vida dos camponeses do Sul do Brasil pode ser estabelecida, primeiro,
pela perspectiva econômica, depois pela perspectiva cultural. Do ponto
de vista econômico, considerando a predominância dos ciclos do gado
e da erva-mate entre meados do século XIX até a segunda década do
século XX, é importante o fato de essas atividades de tropeirismo e ex-
tração implicarem, em certa medida, um nomadismo que condicionava
um modo de vida próximo aos termos da economia moral de Thompson
(1998).
Já do ponto de vista cultural e na linha da unidade de análise que
queremos identificar no período, a descrição apresentada por Wachowi-
cz (1985) sobre a ética e o modo de vida da população do sudoeste do
Paraná na época é esclarecedora. Relacionando “caboclos, de origem e
gringos”, o autor relata que “os casamentos entre esses agrupamentos
não fizeram demorar” e determinaram uma “mistura” sobre “uma região
de refúgio de bandidos, ou pelo menos fora da lei”. A partir de narrativas
locais, o autor menciona que, ao chegar em uma casa para visita, “era
indispensável bater palmas e gritar: Ô de casa!”, e então “os moradores
bombeavam pelas frestas antes de virem atender”. Isso demonstra uma
cautela própria de uma região de “domínio da pistola, da bata e do pon-
cho-pala”. Por outro lado, depois de estabelecida a relação de amizade
e confiança, era comum o pernoite em casa alheia. Tais relações sociais
foram sintetizadas pelos informantes ao autor como “uma coisa verda-
deira, uma coisa limpa”. A violência, o parentesco e o compadrio estão
intrincados em uma ética que o autor resume na fala de um entrevistado:
“os maiores crimes eram matar para roubar e matar para praticar ou fazer
senvergonhada” (WACHOWICZ, 1985, p. 103-111). Esse consenso ético
que une aspectos econômicos e culturais se assemelha ao antes descrito
sobre os europeus e seria gradualmente prejudicado à medida que a ideo-
logia do melhoramento avançasse sobre o Sul do Brasil.

Apresentação 25
Marc Bloch (2001), ao analisar o mesmo processo na França, assi-
nala que os relatórios dos administradores interpretavam esses costumes
camponeses como “direitos odiosos, bárbaros, que só podiam ter nascido
nos séculos de ignorância, monumentos da condição selvagem e grosseira
a que a humanidade esteve por tanto tempo reduzida”. Ante esse cenário
tido como desolador, eles evocavam argumentos jurídicos, para afirmar
que áreas coletivas seriam contrárias ao direito natural da propriedade, e
argumentos técnicos, para defender que dificultavam o acúmulo de ester-
co, a adubação e, consequentemente, a produtividade agrícola (BLOCH,
2001, p. 274-275).
Raymond Williams (1989, p. 95) menciona Arthur Young e seus An-
nals of agriculture como importante meio de divulgação do que Williams
(1989) chamou de uma “ética ou ideologia do melhoramento” (técnicas
de produção e comercialização) que avançou sobre a Europa do século
XVIII. Nos mesmos Annals, encontram-se registros do próprio Young di-
zendo que preferia que as terras inglesas tivessem afundado no mar ao
invés de causar os danos que causaram aos camponeses tais “melhora-
mentos” (WILLIAMS, 1989, p. 96). Não obstante esse registro pontual,
marcante ficou a força da ideologia do melhoramento.
Retomando a análise do processo no Sul do Brasil, Zarth (2002, p.
21) também menciona os trabalhos de Young, enfatizando que “esse dis-
curso não é apenas uma comparação ingênua entre Brasil e a Europa,
revelando uma preocupação com as relações da economia regional e a di-
nâmica do mercado mundial comandado pela Europa”. O autor concei-
tua o termo modernização se referindo, “fundamentalmente, ao uso de
novas tecnologias e métodos com o objetivo de melhorar a produtividade
agrícola e pastorial” (ZARTH, 2002, p. 22). No mesmo trabalho, o autor
discute o processo de transformação “do arcaico ao moderno”, ocorrido
mediante guerras, escravidão, colonização e exclusão, o que refletiu em
um processo de apropriação das terras no Sul para uso intensivo e acu-
mulação de capital.

26 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Estudos acerca desse processo de transformação adotam diferentes
termos para fazer menção às duas ideologias implicadas no processo. De
um lado, estaria uma ideologia moral, dos tradicionais, arcaicos, primiti-
vos ou rústicos, em detrimento da ideologia do melhoramento, dos mo-
dernos, capitalistas. Qualquer nomenclatura que se adote é passiva de re-
paros; no entanto, tendo em vista que queremos delimitar e caracterizar o
processo histórico dos movimentos sociais em um espaço-tempo, convém
avançar na ideia de “ideologia” para marcar o que entendemos ser o pano
de fundo teórico-metodológico para além do processo de transformação
que marcou esse período.
Geertz (2017, p. 107) abre sua discussão sobre ideologia lembrando
que “uma das pequenas ironias da história intelectual moderna é o fato
de o termo ‘ideologia’ se ter tornado, ele próprio, totalmente ideológi-
co”. Embora estejamos considerando o espaço-tempo do nosso estudo
enquanto um processo de transformação envolvendo duas orientações
ideológicas distintas, o que marca esse período é o fato de a ideologia não
representar – ainda – um elemento de coesão dos grupos sociais.
Aqui, tal como assinala Geertz (2017), adotamos a perspectiva de
Manheim (1986) para conceber a ideologia a partir da Weltanschauung
(visão de mundo) que se estrutura mediante as situações de vida, na linha
de uma “concepção total de ideologia”, segundo a qual nem os indiví-
duos concretos nem o seu somatório abstrato podem ser legitimamente
considerados como portadores desse sistema ideológico de pensamento
como um todo. O autor explica que um indivíduo de uma classe não
experimenta todos os elementos da visão de mundo dessa classe, mas
apenas fragmentos, de acordo com as situações. Ele faz uma advertência
que serve para o nosso trabalho ao diferenciar entre “saber até que ponto
minhas atitudes e meus juízos são influenciados e alterados pela coexis-
tência de outros seres humanos, mas já é outra coisa saber quais sejam as
implicações teóricas do meu modo de pensamento idênticas às de meus
semelhantes, membros do grupo ou do estrato social” (MANHEIM,
1986, p. 84-85).

Apresentação 27
O que pretendemos enfatizar com base nas ideias de Geertz (2017)
e Manheim (1986) é que, quando falamos em ideologia no Sul do Brasil
entre meados do século XIX e início do século XX, estamos nos referindo
a uma visão de mundo. Contudo, tanto Manheim (1986) quanto Geertz
(2017) admitem que processos de transformação em que visões de mundo
distintas estejam em conflito podem alterar a perspectiva ideológica em
função da tensão e desorientação que essas ideologias sofrem. Geertz
(2017, p. 125) afirma que “é justamente a confluência de tensão psicoló-
gica e a ausência de recursos culturais através dos quais essa tensão possa
fazer sentido, uma exacerbando a outra, que prepara o cenário para o
aparecimento de ideologias sistemáticas (política, moral ou econômica)”.
Então, trata-se de um processo que, em relação ao espaço-tempo aqui es-
tudado, condiz com o que Rudé (1982) chama de “ideologia de protesto”.
Ao estabelecer que seu estudo se ocuparia de uma “sociedade de
transição e desses grupos sociais ‘tradicionais’ ainda não consolidados
em classes sociais”, o autor acredita que “uma teoria da ideologia desti-
nada a atender um outro objetivo – definir a luta entre as duas principais
classes antagônicas na sociedade industrial moderna – seria ‘irrelevante’”
(RUDÉ, 1982, p. 24). Então, o autor se propõe a “encontrar uma nova
teoria, ou ‘modelo’ da ideologia de protesto, adequado aos movimentos
‘populares’ da época”. Embora considere as diferenças entre ideologias
de tipos “estruturado ou relativamente estruturado” e outro referente a
“atitudes mais simples, mentalités ou perspectivas”, tal distinção, neste
caso, se mostra inadequada. Assim, ele propõe o conceito de “ideologia
do protesto popular”, explicado da seguinte forma:

A ideologia popular no período que estudamos não é uma


questão apenas interna e propriedade exclusiva de uma
classe ou grupo: isso a distingue, em si mesma, da ideolo-
gia como “consciência de classe” ou sua antítese [...]. É, com
mais frequência, uma mistura, uma fissão de dois elementos
dos quais apenas um é propriedade peculiar das classes “po-
pulares”, sendo o outro imposto de cima por um processo de

28 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


transmissão e adoção de fora. Destes, o primeiro é o que eu
chamo de elemento “inerente”, tradicional, baseado na expe-
riência direta, na tradição oral, na memória folclórica e não
aprendido ouvindo-se sermões ou discursos ou lendo livros.
Nessa fusão, o segundo elemento é o repertório de ideias e
crenças “derivadas” ou tomadas de empréstimo a outros,
que, com frequência, adquire a forma de um sistema mais es-
truturado de ideias, políticas ou religiosas, como os Direitos
do Homem, Soberania Popular, Laissez-faire e os Direitos
Sagrados da Propriedade, Nacionalismo, Socialismo ou vá-
rias versões da justificação pela Fé (RUDÉ, 1982, p. 25).

Sobre essa fusão, o autor adverte não se tratar de uma escala do
simples ao complexo, tampouco uma adição trivial de A + B, mas um
processo que implica três fatores: o elemento “inerente” apresenta base
e predisposição para absorver o elemento “derivado”, o qual, por sua
vez, precisa ser condizente com o anterior e ocorrer nas “circunstâncias”
propícias para a fusão que conformará a nova ideologia popular de pro-
testo. Estabelecida esta ideologia, mesmo que o movimento nela inspira-
do termine, essa experiência não termina, permanece para ser reativada
quando outra circunstância histórica permitir sua volta, que ainda pode
ser sob o incremento de novos elementos inerentes e derivados (RUDÉ,
1982, p. 32-34).
A ideologia popular de protesto se consolida então em situações ao
longo do processo histórico. Essa fusão entre elementos inerentes e deri-
vados se acentua quando a tensão social sobre a qual discorremos antes é
mais aguda. Como apresentamos duas perspectivas ideológicas distintas
– “moral” e do “melhoramento” –, cabe agora explicar como esse confli-
to entre elas acontece sem que tenhamos ainda a clássica ideia de cons-
ciência de classe. Thompson (1984, p. 37-38) adverte que, para estudos
históricos anteriores à sociedade industrial do século XIX, o termo classe
social, no sentido moderno, não pode ser usado. Isso porque é preciso
considerar um processo em que a “luta de classe” é condição sine qua non
para a “consciência de classe”, a qual, finalmente, confere o referencial

Apresentação 29
para a ideia de “classe social”. Nessa fase da luta de classes, o autor assi-
nala que demandas específicas baseadas em questões de família, trabalho
e território desencadeavam “fragmentos de protoconflito”; por ainda não
implicarem consciência de classe, permite-se até mesmo falar em uma
sociedade com apenas uma classe (THOMPSON, 1984, p. 15).
Ao considerar o processo histórico da formação do conceito de
classe social, Thompson (1984) categoriza o século XVIII como um pe-
ríodo de “luta de classes sem classes”. A luta acontece; todavia, a cons-
ciência de classe ainda não está estabelecida, por ser um produto dessa
luta em curso. Logo, a classe, enquanto consequência da consciência de
classe, não existe, até então, em seu sentido moderno. Vejamos, assim,
como essa ideia da “luta de classes sem classes” servirá como fundamen-
to para a compreensão da nossa unidade de análise, englobando os tipos
étnico, milenário e banditismo social em seus subtipos.
O componente étnico é assinalado em estudos sobre a América
Latina (RUDÉ, 1982; QUIJANO, 2000) como elemento fundamental
de mobilização social nos séculos XIX e início do XX. A colonização
europeia determinou o recorte étnico para a questão indígena, servindo
tanto para a compreensão de disputas entre os próprios grupos indígenas
quanto para entender alianças a apoios de caciques e grupos indígenas a
grupos não indígenas, em detrimento de outros grupos rivais indígenas
(LAROQUE, 2000; MOTA, 2006). O mesmo processo de dominação eu-
ropeia estabeleceu o recorte étnico na questão dos negros. A mobilização
tem o componente étnico como principal referencial, e a resistência e a
argumentação da luta pela terra se fundamentam, sobretudo, no paren-
tesco e na descendência (NUER/UFSC, 2006).
Os milenários se caracterizam pela esperança e prática de um mun-
do melhor, ao invés de desequilíbrio instalado. O messias tem sua legi-
timidade ante os seguidores a partir de elementos da própria mitologia
ou fé da comunidade em questão, a qual espera o retorno e pratica o que
prescreve o salvador, como pode ser verificado nos movimentos dos Mu-
ckers, do Pinheirinho, do Contestado e dos Monges Barbudos (DICKIE,

30 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


1996; FERRI, 1975; MACHADO, 2004; KUJAWA, 2001). Já os utópi-
cos, mesmo com inspiração em teorias políticas sistematizadas, como o
anarquismo e o socialismo, esses elementos derivados, nos casos em que
elencamos no Sul do Brasil, se fundiram com elementos inerentes não
no sentido de subverter o processo capitalista em curso, mas de buscar
construir um mundo melhor nas colônias e falanstérios (ROSSI, 2000;
GALLO, 2002).
Os bandidos sociais são, na unidade de análise proposta, os que mais
bem correspondem a essa ideia de luta de classes sem classes. Zeca Vaca-
riano assaltou o trem pagador da empresa colonizadora que expropriava;
no entanto, a motivação foi unicamente o dinheiro de que ele precisava.
Ressalta-se que ele, assim como Paco e, sobretudo, Santa Cruz atuaram
também em favor dos poderosos locais (THOMÉ, 2009; LONDERO,
2011; COLODEL, 1998). Quanto aos intrusos, Minho Flores se revol-
tou em função da limitação dos ervais para extração (NASCIMENTO,
2015). Gaudêncio, embora egresso da Revolução Federalista, sempre re-
clamava terras para a agricultura, e não mudanças políticas (BALDIN,
2017). O Capitão Belo e o Bando do João Inácio tinham nos reflexos da
colonização da Jewish Colonization Association (ICA) o foco da sua revolta
(GRITTI, 2013; TEDESCO; CARON, 2012).
Na perspectiva da unidade de análise, a ideia de luta de classes sem
classes ajuda a compreender a natureza dos movimentos. A ressalva que
precisa ser feita é que não se trata de ações alienadas, atrasadas ou, como
definiu Quijano (2000), “pré-políticas”5. Retomando a ideia de “econo-
mia moral” utilizada para caracterizar o modo de vida das populações do
Sul do Brasil na época, é importante quando Thompson (1998, p. 152)
adverte que, “embora essa economia moral não possa ser descrita como
‘política’ em nenhum sentido mais avançado, tampouco pode ser descrita
como apolítica, pois supunha noções definidas, e apaixonadamente defi-
nidas, do bem estar comum”.

5  Crítica semelhante foi feita também sobre o esquema teórico proposto por Hobsbawm (1970)
ao se apoiar na ideia de movimentos “pré-políticos”. Sobre essa discussão, ver O’Donnel (1979).

Apresentação 31
Então, o que podemos estipular como baliza teórico-metodológica
para esse estágio do processo histórico dos movimentos sociais é que se
refere a uma unidade de análise fundamentada em um processo de trans-
formação que estabeleceu uma tensão entre ideologias que conflitavam
em uma luta de classes sem classes. Dessa forma, o que se reforça é a na-
tureza processual, em detrimento da evolucionista, caracterizando uma
genealogia dos movimentos sociais contemporâneos.

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Apresentação 35
36 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Parte I
Étnicos
Kondá:
um indígena do século XIX

Clovis Antonio Brighenti

V itorino Kondá1, líder de uma facção Kaingang, indubitavelmen-


te, para o Brasil meridional no século XIX, é o nome indígena
que mais aparece nas referências historiográficas e nos docu-
mentos administrativos do Estado. Sua presença e participação juntos às
instâncias formais do poder constituído lhe rendeu uma série de home-
nagens, como nome de ruas, de monumentos, de estádios de futebol, de
rádios, de colégios e, povoa a imaginação de uma população ávida por
heróis, se mesclando com nomes de políticos, colonizadores e “pionei-
ros”. Justamente por ocupar posto de destaque junto as elites coloniza-
doras regionais, seus atos foram duramente criticados pela historiografia
não positivista. Já na segunda metade do século XX, quando a História
Indígena começa fazer-se presente, essa “figura” entra na historiografia
de maneira ambígua. Num primeiro momento, a partir de uma leitura
crítica à historiografia positivista é classificado como “colaboracionista”
e, portanto, criticado por sua conduta. Em um segundo momento são

1  Sobre a grafia do nome, encontramos nos documentos históricos as escritas com “K” e “C”
(Kondá e Condá). Nessa obra optamos em grafar com “K” seguindo as convenções da Asso-
ciação Brasileira de Antropologia que orienta que nomes indígenas devem ser grafados com K.
acionadas outras categorias de análise, como a Nova História Cultural,
no diálogo entre História e Antropologia, para compreendê-lo em seu
tempo, sem a perspectiva inquisidora, mas não isenta da criticidade.
Essas categorias de análises e posicionamentos políticos/ideológicos
também ocupou o imaginário dos próprios Kaingang contemporâneos.
Em 1984 a Escola Isolada Federal Posto Indígena Xapecó, localizada na
aldeia sede da Terra Indígena Xapecó, no município de Ipuaçu (SC), pas-
sou “a denominar-se Escola Isolada Federal Vitorino Kondá e, em 1988,
torna-se a Escola Básica Federal Vitorino Kondá” (GIACHINI e SOUZA
TAVARES, 2015, p.17). Após um processo de estudos efetivados pelos
professores da escola com assessoria do Laboratório de História Indígena
(Labhin) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em que a
figura de Kondá foi reestudada e ressignificada pelos próprios Kaingang,
a escola passou a ser denominada Escola Indígena de Educação Básica
Cacique Vanhkrê, “devido ao reconhecimento que o Cacique Vanhkrê
teve no processo de demarcação da TI Xapecó” (Idem), mas também
pela crítica à conduta de Kondá.
No ano 2000, uma comunidade Kaingang que vivia em situação de
acampamentos nos bairros da cidade de Chapecó, por se considerarem
originários da aldeia que existia no Passo dos Índios, hoje centro da cida-
de de Chapecó, conquistou uma terra próximo a referida cidade. O nome
escolhido pelo grupo foi justamente a do líder Kaingang Vitorino Kondá,
denominada Aldeia Kondá, com 2.300 hectares. Os Kaingang justifica-
ram que a homenagem se deve a bravura do líder Kaingang ao defender
seu grupo, do qual eles se consideram descendentes.
No presente artigo, nossa perspectiva teórica é nos afastar do deba-
te inquisidor sobre sua conduta e analisar historicamente sua inserção
na história do século XIX, buscando elementos que nos permitem com-
preendê-lo manejando um mundo diferente daquele experenciado por
seus antepassados e inserido num contexto de sobrevivência no contexto
colonial, sem ignorar os riscos de sua opção e as implicações que seu
protagonismo resultou para os próprios Kaingang e outros povos na re-

40 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


gião. Recorremos a dois referenciais teóricos para análise. Primeiro, nos
respaldarmos na história social, pendendo para uma micro-história, mas
afastada da perspectiva biográfica. Conforme destacou Schmidt (2012,
p.194) é importante “avaliar a extensão da liberdade individual em di-
ferentes contextos, mesmo diante de sistemas normativos opressivos e
totalizadores” e, há que analisar se a conduta de Kondá “se diferenciou
dos padrões sociais e culturais da época em que viveu” (Idem), ou seja,
por que Kondá agia dessa maneira quando seus pares e outros grupos
da mesma filiação linguística continuavam resistindo ao contato com os
“colonizadores”. Cumpre-nos analisar se sua conduta também pode ser
considerada “resistência”, “protagonista” ou simplesmente “subjugada”
aos interesses do Império e das elites locais. Schmidt busca em Ginzburg
elementos que contribuem para essa análise, enfatizando que “assim
como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibili-
dades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a
liberdade condicionada de cada um” (GINZBURG, 1987, apud SCHMI-
DT, 2012, p. 194).
O segundo referencial de análise é a própria História Indígena, que
afastando-se dos referenciais eurocentrados da História, busca categorias
analíticas próprios, inseridas no contexto local, determinada a ser um ins-
trumento para compreender os povos indígenas em seus contextos. Maria
Regina Celestino de Almeida (2010, p.10), destaca que pesquisas recentes
“tem revelado o amplo leque de possibilidade de novas interpretações so-
bre a trajetória de grupos e indivíduos indígenas”. Essas novas pesquisas
têm revelado indígenas como protagonistas e agentes ativos nos processos
não mais como sujeitos passivos, agindo em função de interesses alheios.
Alerta Almeida (idem) que “a violência da conquista e da colonização
nos os impediu [os indígenas] de agir, mobilizando as possibilidades a seu
alcance para atingir seus interesses que se transformavam com as novas
situações vivenciadas”. Porém essa leitura, longe de um relativista, não
deixa de dimensionar a dramaticidade e a violência do processo colonial.
A escassez de testemunhos é sem dúvida uma lacuna que os historia-

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 41
dores enfrentam ao lidar com determinados recortes temporais e sociais.
Nossos filtros são fundamentalmente os registros oficiais, que em grande
medida são permeados pelo olhar do colonizador, definidos por Carlos
Ginzburg (2012, p. 5) como “filtros intermediários deformadores”. Car-
los Fausto (2000), ao propor uma metodologia para entender o contexto
dos povos indígena “antes do Brasil”, nos alerta para os cuidados que te-
mos que ter com as fontes oficiais, que, “além de lacunas, devem ser lidos
com cuidado. É preciso interpretá-los criticamente, pois neles misturam-
-se os medos e os desejos dos conquistadores, que buscam descobrir ouro,
catequizar os gentios, ocupar a terra, escravizar os nativos” (FAUSTO,
2000, p.8). Não nos olvidemos da memória indígena no tempo presente,
que embora se apresente de maneira, às vezes, contraditória, é uma fonte
que não podemos abdicar.
Para conhecer o sujeito no processo histórico devemos conhecer o
próprio processo que criou o sujeito. Para isso será fundamental entender
o contexto histórico do século XIX, na relação dos Kaingang com os
colonizadores.

Resistência Kaingang no século XIX


Kondá nasceu antes da invasão colonial em seu território. De acordo
com Souza (2015, p.15) ele teria nascido na região conhecida atualmente
como Guarapuava (PR), em 1805. Cinco anos mais tarde sua gente foi
duramente atacada por ordem do Príncipe Regente Dom João VI, fato
que mudaria radicalmente a milenária história do povo Kaingang e da pe-
quena criança que posteriormente receberia o nome cristão de Vitorino.
Portanto o próprio nome - Vitorino Kondá - carrega um pouco da história
de cada mundo, e é nessa conjugação de mundos que ele terá que buscar
seu espaço de sobrevivência e manejar campos cosmológicos distintos.
Sua história iria se cruzar ao longo de quase toda sua vida com Francisco
Ferreira da Rocha Loures, filho do comandante militar de Guarapuava,

42 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


capitão Antonio da Rocha Loures. Os dois crescem juntos, se tornam
amigos, dividiram histórias, mas mantiveram a fronteira da etnicidade
bem delimitada.
A conquista dos Campos de Guarapuava pelo Brasil imperial, em
1810, insere-se na expansão do império português rumo ao oeste, como
um marco da geopolítica governamental contra os domínios e interes-
ses espanhóis, justamente num momento que Espanha encontrava-se
enfraquecida, ocupada por tropas francesas de Napoleão Bonaparte. Na
mesma intensidade das disputas geopolíticas reinava o interesse por mais
terras para a expansão do capitalismo para áreas consideradas virgens.
Os campos gerais ou campos de Guarapuava, espaço propício a pecuária,
estavam ocupados milenarmente pelos Kaingang que haviam expulsado
ao menos 11 expedições militares durante a segunda metade do século
XVIII.
A abrangência de Guarapuava foi descrita pelo padre Chagas Lima
(1842, p.43), capelão da esquadra militar que invadiu o território Kain-
gang em 1810:

De cujo acontecimento resultou ficar o campo com


aquelle nome, o qual depois se deu ao vasto terreno
desde o rio Ytatu (em cujas margens esteve a antiga e
demolida Villa Rica) até as cabeceiras do Uruguai, e
desde a serra dos Agudos até o rio Paraná (...) todos os
terrenos que desaguam no Paraná e formam do outro
lado as cabeceiras do Uraguay, todos comprehendidos
nos limites dessa Capitania [São Paulo].2

Nos séculos XVIII e início do XIX, essa região era habitada quase
que exclusivamente pela população indígena Kaingang. Dizemos quase
que exclusivamente porque havia a população Xokleng que habitava as
cabeceiras do rio Uruguai e do rio Iguaçu. No outro extremo, a noroeste,
viviam os Xetá além da presença Guarani que ocupava as várzeas dos
2  Em todas as citações de textos históricos manteremos a grafia original.

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 43
maiores rios da região. A presença indígena foi considerada pelo Prínci-
pe Regente como região “infestados pelos Índios denominados Bugres,
que matam cruelmente todos os fazendeiros e proprietários (...) [as terras
estão] despovoando, umas por terem os Índios Bugres morto os seus mo-
radores, e outras com o temor que sejam igualmente victimas” (BRASIL,
1891a).
A chegada da Corte portuguesa ao Brasil em março de 1808 alterou
radicalmente a perspectiva de relação com o indígena chamado “Tapuia”.
Diferentemente do Tupi, já cantado, contado, representado e projetado
na arte, literatura e música, o Tapuia rejeitava a penetração violenta do
não indígena em seu território. Ocorre que o território ocupado por esses
indígenas, entre eles os atuais Kaingang e Xokleng, eram espaços estraté-
gicos do ponto de vista da geopolítica com do econômico, tanto na aber-
tura de caminhos para o transporte de animais vacum e cavalar do sul
ao sudeste como para produção agropecuária. Dom João VI não mediu
adjetivos para qualificar essa população a fim de justificar a declaração
da Guerra Justa. Afirmava ele que as pessoas estavam abandonando os
povoados “por terem os Índios Bugres morto os seus moradores, e outras
com o temor que sejam igualmente victimas” (BRASIL, 1891a) e que,
segundo ele, já não havia mais segurança para cruzar pelos caminhos da
região por temor dos ataques indígenas. Dom João VI enaltece as terras
sulistas dizendo que se poderia cultivar “trigos, cevadas, milhos e de to-
das as plantas cereaes e de pastos para gados, mas de linhos canhamos
e de toda a qualidade de linho, assim como de muitas outras preciosas
culturas” (BRASIL, 1891a), mas principalmente havia especulações em
torno da existência metais preciosos.
A catequese, utilizada desde os primórdios da colônia para deixar os
indígenas dóceis aos colonos, já não fazia mais efeito aos Kaingang, não
porque esse povo fosse “bruto”, mas porque a interlocução falhou. A táti-
ca da persuasão, utilizada pelos padres Jesuítas da Província Jesuítica do
Paraguai, que incorporam os Kaingang nas reduções do Guiará, não foi
a mesma usada um século e meio mais tarde pelo governo paulista. En-

44 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tre os anos de 1768 e 1774 o tenente-coronel Afonso Botelho comandou
11 expedições militares aos campos de Guarapuava/Koran-bang-rê e Pal-
mas/Krei-bang-rê na tentativa de conquistar o território Kaingang, “mar-
cadas por encontros aparentemente pacíficos, seguidos de choques e es-
caramuças, até que finalmente, em 1774, Botelho retirou-se da região sem
conseguir seu objetivo: conquistar os campos de Guarapuava” (MOTA;
NOVAK, 2008, p. 49). Se as expedições não conseguiram o objetivo de
conquistar os campos de Guarapuava, todavia, elas foram importantes
para o interesse colonial de conhecer a região, seu relevo e hidrografia, e
especialmente conhecer o indígena que nela habitava.
A transferência da Corte para o Brasil impulsionou o desejo de ocu-
par os campos do sul. Logo que chegou ao país, Dom João VI publicou a
Carta Régia declarando guerra aos indígenas, em 5 de novembro de 1808.
No ano seguinte, uma nova Carta Régia foi direcionada ao governador
de São Paulo com instruções específicas sobre a ocupação dos Campos
de Guarapuava: “Carta Régia – 1º de abril de 1809 – Approva o plano de
povoar os Campos de Guarapuava e de civilizar os índios bárbaros que
infestam aquelle território” (BRASIL, 1891b). A partir de 1810 os Kain-
gang vão sentir os maiores impactos quando as frentes de ocupação pene-
tram intensa e violentamente nos campos de Guarapuava e, em 1839, nos
campos de Palmas, instalando 37 fazendas com mais de 30 mil cabeças
de gado, fundando a vila de Palmas. Destroem a resistência Kaingang do
século anterior, mas não conseguem subordiná-los.
Trinta e cinco anos após fracassada a última expedição de Botelho,
o militar Diogo Pinto de Azevedo foi convocado pelo governador da pro-
víncia de São Paulo para fazer cumprir a Carta Régia. Refez os caminhos
de Afonso Botelho e em 1810 chegou aos campos de Guarapuava com
uma expedição de mais de 300 pessoas, sendo que 200 delas eram solda-
dos. Acompanhava a expedição o padre secular Francisco das Chagas
Lima. Em 10 de junho de 1810 a expedição marchou e, “sem oposição do
gentio”, chegou no dia 17 de junho do mesmo ano, às dez horas da ma-
nhã. Acamparam no lugar denominado Atalaia, último ponto alcançado
pelo capitão Paulo Chaves em 1774.

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 45
O reverendo Francisco das Chagas Lima foi o encarregado da mis-
são de catequizar o indígena. Em sua obra “memórias sobre o descobri-
mento e colônia de Guarapuava” publicada na “Revista Trimestral de
História e Geografia” (CHAGAS LIMA, 1842. p. 52) descreve com de-
talhes os acontecimentos daquele início de século XIX, suas concepções
filosóficas e ideológicas que fundamentavam a prática religiosa a qual
viria a ser adotada com relação ao indígena.
A prática missionária do padre Chagas Lima limitava-se a realizar
sacramentos e a combater e “desterrar d’elles todos os erros da sua crença
e barbaridades”. Para Chagas Lima, os indígenas não “dão mostras de
religião”, ou seja, eram “gentios”.
O dilema enfrentado por Chagas Lima, relatado diversas vezes em
suas “memórias sobre as descobertas” esteve relacionado à frustração
com a insubordinação dos indígenas, a não retidão e o pouco efeito dos
valores morais ensinados no doutrinamento. Sua constante indagação
dos poucos indígenas que permaneciam batizados é a expressão que me-
lhor extrai sua insatisfação com o empreendimento religioso.
As fugas dos Kaingang “aldeados” para os sertões inquieta o repre-
sentante da Igreja Católica nos campos de Guarapuava. Notemos que
diferentemente de outras experiências de aldeamento praticada no Bra-
sil colônia, em que grande parte dos indígenas era transferida para al-
deamentos estranhos ao seu habitat, no caso em estudo o aldeamento
de Atalaia ficava no centro do território Kaingang. Há de se supor que
os indígenas dominavam o território, e esse domínio facilitava a fuga e
o convívio com os indígenas dos sertões: “Assim no anno de 1822 dois
índios já casados e baptizados, segundo o rito catholico, abandonando as
suas mulheres se retiraram para o sertão, e ahi se casaram com outras”
(CHAGAS LIMA, 1842, p. 57).
Nos últimos anos de missão, a frustração toma conta de Chagas
Lima, quando ele percebeu que com a catequese não conseguia converter
os indígenas como desejava. Identifica falhas na própria missão, como a
ausência de mais missionários e auxiliares, a dificuldade da língua, mas

46 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


especialmente “o escasso aproveitamento que tece nos espíritos dos índios”
(grifo nosso) (CHAGAS LIMA,1842, p. 57).
Mesmo com todos os percalços de sua missão, ele não deixa de exal-
tar sua convicção da superioridade dos não indígenas. O problema, se-
gundo Chagas Lima, foi que os Kaingang não tiveram a oportunidade de
perceber as “boas intenções dos brasileiros e reconhecer neles seus liber-
tadores”. Chagas Lima termina seu relato lamentando a idade avançada,
69 anos, afirmando que já não tinha mais forças para continuar traba-
lhando, mas mesmo que as tivesse já não daria mais conta do trabalho em
Guarapuava, “já não se pode só abranger a tudo o que se exige em Guara-
puava dos deveres de seu ministério da missão” (CHAGAS LIMA, 1842,
p. 62), pois contava já com 17 anos de residência e trabalho nesse local
e com 41 anos de sacerdócio. Sua frustração com a missão não permitiu
que percebesse o quanto sua ação foi fundamental para a efetivação da
colonialidade na região. Ele foi responsável por criar indígena “dóceis”
ao colono e, a partir de então, os fazendeiros puderam contar com um
importante aliado para se proteger dos grupos de indígenas que resistiam
bravamente à colonização e o aldeamento e que poderia ser um empeci-
lho à instalação das fazendas, o indígena aldeado. Em oposição ao indí-
gena nos sertões, encontra-se agora o indígena aldeado, cristão e católico.
Ressaltamos que os conceitos de aldeado, cristão católico deve-se tomar
com cautela, porque mesmo esse indígena continuará sua resistência ao
processo colonial, como será o caso de Vitorino Kondá.
Concluída a primeira etapa da conquista do território Kaingang, a
ação volta-se para “limpeza do território”, confinamento do indígena, li-
beração das terras, proteção às fazendas e criação de mão de obra através
dos Aldeamentos Indígenas. O local reservado pelo Estado ao indígena
conquistado era o “aldeamento”. Até a publicação do Regulamento Acerca
das Missões de Catequese e Civilização dos Índios (Decreto n. 426 - de 24 de
julho de 1845), os Kaingang ficaram cercanias das vilas e fazenda, alguns
agrupados em Palmas e outros em Atalaia e a grande maioria nas suas
aldeias, nas bordas nos campos e nas matas.

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 47
Ao referir-se ao Decreto 426, Eunice Paiva e Carmem Junqueira
observam que ele previa mais do que o aldeamento, era a “fixação das
populações indígenas em determinados territórios (...) limitação da ca-
pacidade jurídica dos índios e conseqüente instituição da tutela gover-
namental (...), paternalismo administrativo e burocratização da questão
indígena.” (PAIVA e JUNQUEIRA, Apud MOTA, 1998, p 152).
O Regulamento das Missões orientava para a criação de aldeamen-
tos. Depois de 12 anos da publicação do Decreto 426, o governo da Pro-
víncia do Paraná emitiu o “Regulamento do funcionamento dos aldeamentos
indígenas das províncias do Paraná e Mato Grosso,” (ARQUIVO PÚBLI-
CO DO PARANÁ, 2007) em 25/04/1857. Com base nessa legislação,
foram criadas oito “colônias” indígenas, sendo quatro no Paraná, confor-
me relatório do presidente da província de 1865.
O Regulamento das Missões definia que em cada província deveria
ter um Diretor-Geral, um missionário encarregado exclusivamente da ca-
tequese e, sobre o funcionamento do aldeamento determinava que deveria
ter um diretor, com a graduação honorária de Tenente-Coronel, encarre-
gado de promover a civilização e a “instrução” dos indígenas. Também
havia um inspetor, encarregado de informar sobre o tipo de trabalho que
deveria ser desenvolvido, designar as terras, inspecionar as plantações, re-
partir as tarefas, vigiar sobre a “segurança e tranquilidade” da povoação.
O presidente esclareceu que o inspetor tinha “debaixo de suas ordens a
força militar, na qual alista os índios que se acham em estado de prestar
serviço desta natureza” (FLEURY, 1865, p. 59). Portanto, a necessidade
de contar com milícias indígenas para defesa dos colonos contra os ou-
tros indígenas está presente na legislação da época.
Os diretores tinham por primeiro e mais importante dever esforça-
rem-se para atrair às colônias os indígenas que “vagavam” pelas matas
vizinhas, “empregando para esse fim sempre meios brandos e suasórios,
fazendo-lhes apreciar as vantagens da vida social, oferecendo-lhes brin-
des, tratando-os com a maior indulgência e caridade, e instruindo-os nos
princípios religiosos e nas primeiras letras” (FLEURY, 1865. p. 59). Essa

48 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


era uma recomendação genérica, porque na prática as tratativas eram
para eliminação da população que resistia.
Na província do Paraná, os diretores eram também fazendeiros. O
primeiro diretor Manuel Ignácio do Carmo e Silva tinha fazenda nos
Campos Gerais e, por isso, era acusado pelos fazendeiros locais de não
desenvolver uma política repressiva contra os indígenas. Sendo assim, foi
substituído pelo fazendeiro Francisco Ferreira da Rocha Loures, “muito
mais afinado com os interesses de seus pares de Guarapuava e Palmas”
(MOTA, 2000, p. 153).
Passados vinte anos da edição do referido Decreto, os resultados es-
perados não foram atingidos, na avaliação do presidente da província,
apesar dos “sacrifícios extraordinários” e de elevadas somas de recur-
sos empregados: “Quantas vezes por amor da civilisação dos indígenas
deixaram-se immolar famílias inteiras, que, confiadas na protecção da
sociedade, cultivamos os campos visinhos às mattas infestadas de hordas
selvagens! (FLEURY, 1865, p. 57).
Sequer os indígenas aldeados davam mostras de submeterem-se as
normas da “civilização”, alguns aldeamentos sequer conseguiram ser efe-
tivados devido à resistência Kaingang e Xokleng, como o de São Thomaz
de Papanduva, projetado para ser instalado no limite entre o Paraná e
Santa Catarina às margens da “estrada da Matia, logar denominado Pa-
panduva. O fim principal dessa creação é catechisar os índios Botucudos
[Xokleng] que habitam aquela zona, e evitar suas correrias sobre a Vila
de Guaratuba e algumas povoações da província de Santa Catharina”
(LAMENHA LINS, 1876, p. 97). No mesmo Relatório há o registro de
que foi nomeado o sertanista Joaquim Francisco Lopes encarregado da
direção sob os regulamentos organizados em março de 1876. Sem obter
sucesso em seu objetivo de atrair indígenas, foi extinto em 16 de dezem-
bro de 1877. Segundo o Relatório, a catequese andava muito mal, o di-
retor queixava-se dos empregados e estes, por sua vez, denunciaram o
diretor que permanecia na capital, não havendo no aldeamento um único
índio. O fato é que os Xokleng não demonstravam interesse nas ofertas
dos governos.

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 49
Os indígenas pouco interesse tinham nos aldeamentos, “tanto é que
em 1855, o cacique Virí com seu grupo realiza uma incursão nos Campos
do Chagú, com ordens para submeter os índios daquele lugar aos ditames
de aldeamento projetado para essa região” (LISBOA, p. 66). Consideran-
do o desconhecimento dos sertões, o pouco interesse que eles desperta-
vam no não indígena e a facilidade com que os Kaingang se locomoviam,
não é exagero dizer que em fins do século XIX para cada indígena aldea-
do havia outros 10 fora dos aldeamentos, vivendo em aldeias “livres”,
denominadas Toldos. Pelas evidências nos documentos, esses indígenas
não estavam alheios aos acontecimentos da província, especialmente nas
relações com fazendeiros, posseiros e governo.
Em 1855, o número de indígenas que “viviam como feras” eram
mais de 10 mil, segundo o relatório do presidente da província Joaquim
Bento Junior, (1878. p. 58). Evidentemente que todo dado sobre popula-
ção vivendo fora de aldeamento deve ser tomado com cautela, tendo em
vista os interesses de quem produziu os registros. Havia também os indí-
genas ditos “mansos” que tampouco tinham interesse nos aldeamentos.
Em 1884 o presidente capitão Tourinho ao visitar as colônias militares a
sudoeste, registrou que em Palmas havia três assentamentos de indígenas:
“um próximo à Villa, outro no passo da Balsa, junto a margem esquerda
do Chapecó, e o terceiro no lugar denominado ‘Formiga’ a 3.5 léguas da
colônia, mas não tinha ideia que quanta gente vivia ali”.
Os aldeamentos cumpriam um objetivo fundamental, que era liberar
as terras para as fazendas. Carneiro da Cunha lembra que no século XIX
o Brasil foi caracterizado pela heterogeneidade de três sistemas políticos,
“mas para caracterizar o século como um todo, pode-se dizer que a ques-
tão indígena deixa de ser uma questão essencialmente de mão de obra
para se tornar uma questão de terras” (CUNHA, 1992, p. 132). Observa
a pesquisadora que em determinadas regiões de povoamento antigo a
mão de obra ainda é requisitada, mas na “frente de expansão (...) são sem
dúvida a conquista territorial e a segurança dos caminhos e dos colonos
os motores do processo” (Idem). Essa opinião é partilhada por Maria

50 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Regina Celestino de Almei-
da (2010), ao observar que, a
partir de 1861, o encargo da
catequese e civilização dos
índios passou ao Ministério
dos Negócios, Agricultura,
Comércio e Obras Públicas,
reforçando os argumentos de
Cunha de que no século XIX
a questão indígena passou a
ser uma questão de terras.

Figura 01. Território Kaingang:


campos e historicidade do espaço.
Fonte: LAROQUE apud
FERNANDES, op. cit., 2003, p. 172.
(Mapa redesenhado por Carina dos
Santos Almeida).3

Kondá: entre mansos x bravios


As categorias mansos e bravios são amplamente empregadas pela
literatura historiográfica para classificar os indígenas no período colonial
e imperial. Ela revela os desejos dos colonizadores e a insignificância
que a questão indígena despertava para os projetos coloniais. Essas ca-
tegorias não recebem apoio ou se sustentam na realidade, uma vez que
ambas categorias são resultantes das diferentes estratégias adotadas pe-

3  Optamos por manter o mapa no original; embora a indicação pontilhada não revele a tota-
lidade do território Kaingang, interessa-nos a indicação dos campos como espaço privilegiado
de uso pelos Kaingang. Há presença Kaingang fora do limite pontilhado indicativo do território
Kaingang. Como exemplo, temos as aldeias situadas nos municípios de Porto Alegre/RS (TI
Lomba do Pinheiro, TI Morro do Osso e TI Morro Santana), São Leopoldo/RS (TI Kaingang
em São Leopoldo), Braúna/SP (TI Icatu) e Arco-Íris/SP (TI Vanuíre).

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 51
los povos indígenas. Vitorino Kondá, conforme dito, nasceu no contexto
acima descrito, não era considerado um sujeito que “vivia como ferras”,
tampouco um submetido as condições impostas pelo aldeamento. Para
o presidente da província Augusto da Fonseca (1869) o fato do grupo de
Kondá dominar a língua portuguesa e ser os indígenas mais “evoluídos”,
ainda estariam no estado da barbárie.
Kondá vivia entre mundos distintos, nem “bravio”, nem aldeado e
nem submisso a qualquer regra do Estado. Seu mundo era intercalado
entre os toldos, lugares livres do controle do Estado no vasto espaço ain-
da não usado pelas fazendas e os aldeamentos. Viveu no aldeamento de
Nonoai, requereu terras para sua facção e não titubeou na hora de apelar
para ser atendido em suas demandas. Souza (2015) informa que Kondá
saiu ainda jovem de Guarapuava, com cerca de 15 anos. Instalando-se
nos campos do Pinhão. Após a penetração dos Campos de Palmas pelas
fazendas, ele se instalou naquela região em 1830, compartindo o espaço
com Viri, outro importante líder regional. D’Angelis (2010, p.291) rela-
ta que em decorrência de vitória sobre grupos insubmissos pelo grupo
de Viri, justamente quando Kondá se encontrava ausente, consolidou a
posição de Viri como líder regional perante sua facção e os fazendeiros,
fazendo com que Kondá perdesse parte de seu grupo para o cacique rival.
Esse episódio teria resultado na separação dos grupos.
Encontramos um registro de seu paradeiro no ano de 1840, quando
a expedição de Pinto Bandeira o localizou nas cabeceiras do rio Irani:
“tribo de selvagens, de que já falamos, comandada por Condá, a qual
tantos receios causava, por estar até então estabelecida em uma campi-
na chamada Iranin, a duas léguas do sertão” (BANDEIRA, apud CIMI
REGIONAL SUL, 1984, p. 11). De acordo com Souza (2015) em 1845
Kondá será recrutado por seu amigo de infância e agora Diretor-Geral
dos índios do Paraná, Francisco Ferreira da Rocha Loures, para abertura
da estrada de Palmas a Cruz Alta. A principal função de Kondá nesse
processo será de defender os trabalhadores da estrada contra os ataques
dos índios “hostis”. Pelo êxito da atividade na incursão pela província de

52 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


São Pedro, Vitorino Kondá foi nomeado Capitão dos Índios e permane-
ceu em Nonoai (RS), atuando para aldear os Kaingang da região.
Em 1947 ele ainda aparece no Relatório do presidente da Provín-
cia de São Pedro (Rio Grande do Sul) datado de 05/10/1947 na loca-
lidade de Nonoai, liderando o grupo local e atuando como assalariado
do governo provincial. Sua função era reunir indígenas “dispersos” no
aldeamento, e assim que atingisse um número de 500 pessoas passaria
a receber 50$000 por mês de “gratificação” (CID FERNANDES, 2003,
p.207). Simoniann (1981 apud, FERNANDES 2003, p.207) observa que
essa prática gerou muitos conflitos entre os Kaingang, alguns se desloca-
ram para Nonoai outros voltaram para seus territórios de origem, outros
sequer chegaram a Nonoai. Não há menção sobre os métodos emprega-
dos para convencer os Kaingang a se transferirem para o referido aldea-
mento, porém parece certo que ao levar ao local grupos rivais se tornou
insustentável a presença de Kondá, motivo de seu retorno para a margem
direita do rio Uruguai.
Em 1956, ele já aparece como líder do aldeamento do Xapecó de
acordo com o relatório do Engenheiro Hégréville ao governo provincial
do Paraná (D’ANGELIS & Fókâe 1994, apud PORTAL KAINGANG,
s/d). A que tudo indica permanece líder, porém com pouco prestígio,
dado o número de pessoas que liderava. De acordo com o Relatório do
Presidente da Província Francisco Liberato de Mattos, (1958, p. 05) Vic-
torino Kondá, comandava um pequeno grupo de 48 pessoas; sendo 10
homens adultos, 15 mulheres e 13 menores, ambos os sexos.
É a partir de 1965, com o regulamento das Missões já sendo aplica-
do, quando fica mais evidenciada a insubordinação dos Kaingang “ar-
redios”, Kondá assume papel central. Ele cumpria o papel determinado
pelo presidente da Província Padua Fleury para que os inspetores organi-
zassem forças militares, “na qual alista os índios que se acham em estado
de prestar serviço desta natureza” (FLEURY, 1865, p. 59).
Três caciques atuaram de maneira semelhante e foram considerados
por parte da historiografia como “colaboracionistas”: Estevão Ribeiro do

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 53
Nascimento Veri (seu nome aparece grafado também como Viri ou Viry),
Vitorino Kondá e Francisco Luiz Tigre Gacon. O primeiro localizava-se
no centro-sul da província, no aldeamento de Palmas; o segundo locali-
zava-se na província de São Pedro, no aldeamento Nonoai, porém residiu
também no Chapecó Grande atual Toldo Imbu e Palmas; e o terceiro
residia em Guarapuava. Sobre Virí, relata o vice-presidente em exercício,
Henrique de Beaurepaire, que seria uma calamidade sem sua presença:
“Palmas, onde o cacique Virí e outros, se submettêrão completamente, e
nos tem, desde então, dado irrecusáveis provas de lealdade e dedicação”
(ROHAN, 1956, p. 50).
Em Palmas, sob o comando de Virí, havia 215 pessoas, sendo a
maioria homens maiores de 16 anos (102 pessoas), 68 mulheres e 45 me-
nores de ambos os sexos. (MATTOS, 1958, p. 5). No período de meados
do século XIX, Vivi gozava de poder e prestígio, tanto que em 1855 após
um atacar uma “horda selvagem” que haviam “assaltado” uma fazenda,
vivi trouxe prisioneiras 5 mulheres e 12 crianças que foram “resgatadas”
pelo presidente da província por uma quantia de 100U000rs (ROHAN,
1856, p. 56). Viri não estava satisfeito com seu pagamento, desejava iso-
nomia com o cacique Kondá que recebia gratificação de Capitão: “re-
quereu igual vencimento, declarando que, se não fosse attendido, teria de
se retirar de Palmas. Receiando eu que elle realisasse esse projeto, o que
seria uma verdadeira calamidade para todo aquelle districto, de que é a
unica defeza, mandei lhe dar 15U000 rs. Mensaes” (ROHAN, 1856, p.
56). Além da isonomia, foi sugerido pelo Diretor-Geral que concedesse
fardamento a ele e a seu coronel como agrado.
No final de 1860 a facção liderada por Kondá era considerada como
os “mais adiantados que vi na província (...) Exprimem-se em portuguez
todos os maiores, o que não se dá nos outros que têm vindo a esta capital,
durante a minha administração” (FONSECA, 1869, p. 18).
Dois eram os principais serviços prestados: Um, era atacar, matar ou
fazer prisioneiros, grupos Kaingang ou de outros povos como Xokleng
“insubordinados”; outro, era trabalhar nas obras públicas, que à época

54 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


era basicamente abertura de estradas. Algumas vezes foram recrutados
para resgatar grupos que fugiam dos aldeamentos, conforme destaca Mo-
reira Neto (1972, apud D`ANGELIZ, 2010, p. 288-289) “um grupo de
índios que tentava escapar ao aldeamento foi perseguido por uma escolta
militar ‘e vinte e tantos índios de ambos os sexos, inermes, sem oporem
resistência ativa, foram assassinados’” Essa ação rendeu a Vitorino Kon-
dá 200$000 e foi nomeado “comandante dos índios que reduzisse, o que
dá à sua condição de bugreiro um caráter oficial”
As principais incursões de Kondá foram contra os indígenas “Bo-
tocudos”, como eram chamados os Xokleng à época. O presidente da
província, Antonio Barbosa Gomes Nogueira, na abertura da 2ª sessão
da 5ª legislatura em 15 de fevereiro de 1863, informava aos deputados do
importante trabalho desenvolvido pelo Capitão Vitorino Kondá contra os
Botocudos em Porto União, após o aparecimento do grupo a localidade
“causando terror” na população:

O cacique Vitorino Condá e sua gente para alli dirigi-


ram-se, e, batendo os Butucudos, morreram no com-
bate uns, sendo outros aprisionados. Os prisioneiros
foram offerecidos em troca de algumas pessoas de nos-
sa gente retidas em poder dos Butucudos; porém, in-
felizmente, até hoje nada se tem conseguido, apensar
dos meios brandos que para esse fim se tem empregado
(NOGUEIRA, 1863, p.100) (grifo nosso).

A estrada de Castro para Missões (RS) via Guarapuava e Palmas era


de “80 palmos de largura” e estava a cargo do Diretoria Geral dos índios
Francisco Ferreira da Rocha Loures. Neste trabalho, ele contava com os
indígenas Virí e Kondá, que segundo o Diretor, esses Kaingang, “quando
não estavam envolvidos com o serviço de estradas, se encontravam na
ociosidade”. O serviço era assalariado; ‘Continuam no mesmo estado
os dous [dois] bandos de índios mansos – um sob o comando do cacique

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 55
Virí e outro sob o do capitão Victorino Condá; prestão-se ao serviço de es-
tradas por salário, quando convidados, e fora disto consta que se entregão
a ociosidade”. (ABRANCHES, 1875, p. 30) (grifo nosso).
No relatório de 1875, o presidente da província comemorava o fato
de que desde 1873 não se registrava ataque a Guarapuava – mesmo sob
ameaça de ataques dos indígenas aldeados em São Jerônimo e Jatahy.
Contudo, documenta novas agressões em Rio Negro: “não se pode, po-
rém, dizer o mesmo quanto ao districto de Rio Negro, onde o quarteirão
do Pinheiro foi theatro de várias depredações praticadas por bandos de
índios Coroados que ahi appareceram” (ABRANCHES, 1875, p. 30) (gri-
fo nosso). Não encontramos um só registro do século XIX da presença de
Coroados em Rio Negro, ao contrário, todos os registros referem-se a
“botocudos”, ou seja, os atuais Xokleng.
O prestígio e os serviços prestados tinham seu preço. Informa o Por-
tal Kaingang (s/d) que em 25 de maio de 1869 o diretor do Aldeamento
de Palmas, Pedro de Siqueira Cortes endereçou um ofício ao delegado
Terras Públicas do Paraná, informando que naquela data estava o cacique
Vitorino Kondá acompanhado de “uma porção de índios de sua tribo o qual vai
à presença de sua Excia, o Sr. Presidente da Província pedir um terreno de campo
aqui nesse aldeamento para morarem, e terem seus animais, eles estão morando
em terrenos alheios, e já tenhão sido vexados para sairem do terreno” (SIQUEI-
RA CORTES, 1869, apud PORTAL KAINGANG, s/d). Segue o do-
cumento de Siqueira Cortes, informando ameaça proferida por Kondá,
de “que no caso de não arranjar nada que então garrá o mato o que nos
será muito prejudicial” (Idem). Para Siqueira Cortes o preço deveria ser
pago, porque o Estado não podia abdicar dos valiosos serviços prestados
pelo Kaingang, já que eles de fato representavam a segurança na região,
no vácuo deixado pelas forças oficiais do estado. É importante nos ater
a essa ameaça de “garrá o mato” [fugir para o sertão], porque significa
uma ameaça concreta e algo factível. Porém, mais que isso, ele demons-
trou sua insubordinação à província e, que por mais que colaborasse com
o Estado, jamais abandonou seu universo sociocultural. Ainda sobre as

56 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


demandas territoriais, ele já vinha reivindicando terra para sua facção.
Souza (2015) observa que em 1865, Condá entrou com uma ação na jus-
tiça de Guarapuava, pela invasão de suas terras por fazendeiros (AHMG,
1865). Percebendo que a idade avançava e as terras ficavam cada vez mais
escassas, não teve dúvidas em cobrar do estado parte da dívida que lhe
cabia. Deseja o mesmo tratamento dado aos aldeamentos: terras, escola
e ferreiro.
No dia 05 de dezembro de 1869, foi publicado o Relatório do presidente da
província, Dr. Antonio Augusto da Fonseca, elaborado no dia 01 de se-
tembro daquele ano, onde o Presidente relata que a chegada do grupo de
Kondá a Curitiba.

Apresentou-se nesta capital o cacique Vitorino Condá


com 30 indios, trazendo officio do respectivo director
Pedro Ribeiro de Souza, em que reclamava que se lhes
dessem terras, que não tinham, um ferreiro e um mes-
tre escola. Exigi a respeito, na data de 31 de julho, in-
formações minuciosas do derector geral dos índios que
ainda não as dei. Dirigi-me ao mesmo tempo ao minis-
tério da agricultura pedindo providencias sobre a con-
cessão de terras sem a qual não podem ser satisfeitos os
outros pedidos. A creação de uma escola pode ser feita
pela assembléia provincial independente de interven-
ção do governo geral e estou convencido que a assem-
bléia attenderia devidamente aos intereses da província
se a fizesse (FONSECA, 1869, p. 17).

Kondá faleceu em 25 de maio de 1870 e Virí em 3 de janeiro de 1873.


Quase uma década depois o governo provincial ainda lamentava a perda
desses aliados que “garantiam por mais de uma vez a vida da população
desses municípios, contra agressões dos índios selvagens (MENEZES,
1879, p. 77). Toda a iniciativa, apelo e ameaça de Kondá em buscar ga-
rantir uma terra para sua facção não resultou em efetividade. No mesmo

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 57
documento o Presidente Menezes (1879, p. 77), informou aos deputados
que após a morte de Kondá seu grupo ficou sem direção “e ultimamente
revelaram intenção hostis contra os habitantes das indicadas localidades,
pretendendo justificar esse procedimento com o facto de terem sido es-
bulhados de terrenos nos logares denominados – Atalaya e Sepultura –
terrenos que são de domínio particular”.

Considerações finais
Alguns elementos se sobressaem na análise desse processo. Inicial-
mente há que se considerar o colonialismo e sua efetividade em destruir
a existência dos povos indígenas “como entidades autônomas e autossu-
ficientes” (MOREIRA NETO, 1971, p. 71). Há que se reconhecer a habi-
lidade perversa do colonizador em utilizar indígenas para se opor a seus
pares. Sem esses mecanismos é provável que a colônia não se efetivaria.
Conforme destacado por Cunha (2002), no século XIX é a voracidade
sobre os territórios indígenas que mobilizaria as agências e mecanismos
do colonialismo, o indígena é um elemento a ser eliminado em sua forma
física ou cultural. O fato é que o indígena já não interessa ao Estado Na-
cional. É do século XIX as políticas raciais para transformar esses “sel-
vagens em homens civilizados” (LAMENHA LINS, 1876, p. 97). Mas
não podemos tomar o colonialismo de maneira fatalista ou absoluta, mas
percebê-lo historicamente estabelecido e se movendo nas possibilidades
dadas pelos momentos e contextos.
Kondá é um personagem do povo Kaingang, do tronco linguístico
“Macro-Jê” e família “Jê”. Os estudos sobre a organização social Kain-
gang, nos ajudam a compreender como agiam e se mobilizavam as dife-
rentes facções. Ricardo Cid Fernandes (1998), estudioso da organização
social Kaingang destaca que “os constantes processos de fissão social (...),
fizeram com que estes índios ocupassem grandes porções dos territórios
meridionais do Brasil. As descrições das disputas intertribais sugerem

58 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


que o faccionalismo dirigia a constituição da autoridade política” (FER-
NANDES, 1998, p.40-41). Alerta para rejeitar hipóteses de que o faccio-
nalismo correspondia as metades clânicas (Kamé e Kairu), uma vez que
as mesmas existiam no interior da própria facção. O antropólogo Juan
Bautista Ambrosetti, que estudou os Kaingang na Província de Misio-
nes (AR), concluiu que “estos índios llevan el sentimiento de su independencia
hasta el punto de vivir sus individuos en pequeños grupos, bajo la autoridad casi
nominal de un Cacique” (AMBROSETTI 1894, apud, CID FERNANDES,
1998, p. 41). Fernandes (1998) observa ainda que a postura dos líderes
Kaingang era de chefia com poder e prestígio, se portaram numa relação
equiparada aos chefes não indígenas, no caso os presidentes da província.
Inclusive menciona um episódio no qual Viri exigiu que o presidente da
província o recebesse. Fica muito nítida nessa relação que eles não se
considerados inferiorizados tampouco submissos ou reféns do Estado. O
episódio de Kondá ameaçar voltar as antigas origens caso o governador
não atendesse seu pedido, também é revelador de que ele se considerava
autoridade tal qual o governador.
Os dados destacados nos documentos analisados indicam que os
Kaingang definiram estratégias de afastar-se e defender-se. A teimosia e
resistência ao aldeamento passavam uma impressão, ao comando do Es-
tado, de indígenas bravios e perigosos. No entanto, a ação das diferentes
facções Kaingang foi defender seus pares e seus territórios. Não agiam
motivados por ódio. Os conflitos entre as diferentes facções fazem par-
te da dinâmica sociocultural e política do povo anterior a conquista, no
entanto, essa relação não era de exclusão, mas de complementariedade.
Esse tema foi objeto de estudo do antropólogo francês Claude Lévi-S-
trauss (1991 apud PERRONE-MOISÉS, 2006), destacando que a Amé-
rica Latina é berço de uma cosmologia totalmente nova e diferente, que
ele denominou de “ideologia bipartite dos ameríndios”. Essa cosmologia
ameríndia é um modo dos povos indígenas ver e “pensar o cosmos e a
condição humana”, visão que extrapola a América, também pela diver-
sidade cultural. A ideologia bipartite seria como uma conexão entre os

BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 59
povos. Nessa análise a mitologia dos povos indígenas latino-americanos,
com suas metades clânicas ou o dualismo dos gêmeos fundadores, se
opõem, mas se complementam. Esse aspecto diferencia profundamen-
te o pensamento dos povos indígenas do pensamento da sociedade oci-
dental. Porém, o colonialismo tratou de fazer uso desse mecanismo para
provocar a eliminação dos “diferentes”, já que na cosmologia ocidental o
diferente deve ser submetido ou eliminado.
Após as primeiras décadas de confrontos, os registros de “ataques”
indígenas são mínimos, no entanto, o medo fazia parte da estratégia da
governança: manter a população sempre em alerta e impedir que os indí-
genas pudessem viver livremente em seu habitat.
Equiparar à ação do Estado repressor a atitude de alguns chefes indí-
genas é um tanto equivocado. Com base nos estudos sobre chefias, é pos-
sível concluir que a atitude dos principais líderes indígenas, denominados
colaboracionistas, foi reproduzir a organização social e política do grupo,
porém, nesse momento, com relativa vantagem bélica em virtude do em-
prego de armas de fogo e da retaguarda do Estado. Mas esses indígenas
não deixaram de fazer suas reivindicações e seus enfrentamentos com o
Estado. Ao longo da história encontramos diversos líderes que também
tiveram atitudes de colaborar com o Estado em troca de benefícios para
seus pares. Portanto, mais do que responsabilizar o sujeito indígena, de-
ve-se melhor analisar o papel do Estado repressor, que se utiliza de todos
os mecanismos para dominação e exploração dos territórios indígenas.
Kondá cresceu em contextos distintos de seus pares que lutaram
contra o forte de Atalaia e dos que permaneciam nos campos e sertões.
O mundo desse indígena é bastante distinto dos demais indígenas que
ainda habitavam os sertões. Kondá e outros líderes que participaram do
processo de colonização, seja participando de incursões contra outras fac-
ções, seja fazendo enfrentamento ao não indígena, seja participando dos
aldeamentos, não podem ser tomados como atitudes de líderes passivos
ou manipulados por um colonialismo opressor, mas precisam ser vistos
como protagonistas de seus processos em seus tempos. As condições ob-

60 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


jetivas da colonização e sua cosmologia ou dinâmica sociocultural pos-
sibilitaram alternativas que foram sendo adotadas por cada qual a sua
maneira. Apesar de sua longa convivência com o Rocha Loures, Kondá
demonstrou em todos os momentos que não era “branco”, que não acei-
tava o mundo dos “brancos”. Essa fronteira étnica o diferencia profun-
damente de Rocha Loures, que transformou-se fazendeiro, ao passo que
Kondá lutou pela terra de sua coletividade até o final de sua vida, embora
não conseguira concretizar sua meta, demonstrou que não incorporou a
ideologia colonizadora.
O prestígio conquistado por Kondá no universo Kaingang e no uni-
verso dos não indígenas elevam-no à condição de chefe Kaingang com
expressivo poder e prestígio, tornando-se na principal personagem indí-
gena do século XIX no Brasil Meridional.

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BRIGHENTI,, Clovis Antonio. Kondá: um indígena do século XIX


BRIGHENTI 63
64 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble)
pelas brenhas do Brasil Meridional

Luís Fernando da Silva Laroque

O etnônimo Kaingang na literatura não índia apareceu pela primei-


ra vez em 1867 nos estudos do engenheiro Franz Keller e a partir
de 1882 também nos trabalhos do sertanista Telêmaco Morosini
Borba, do capuchinho frei Luiz de Cemitille e do presidente da Província
do Paraná Visconde Affonso Escragnolle de Taunay (LAROQUE, 2000;
MOTA, 2004).
Segundo Ítala Becker (1975, p. 40), no século XIX, os indígenas
Kaingang ocupavam territórios que se estendiam desde o Rio Uruguai
até o Rio Jacuí, mais precisamente nos limites compreendidos “a noroes-
te, o Rio Piratini; a nordeste, o Rio Pelotas, baixando até o Litoral no
Município de Torres; ao sul, a mata das bacias dos rios Caí, Taquari e Ja-
cuí, isto é, a região entre os meridianos de 50º e 55º oeste de Greenwich,
e os paralelos, aproximadamente, de 27º 50’ e 29º 50’ de latitude sul”. A
Frente de Expansão e Pioneira1 representando os interesses colonizado-

1  A designação destas frentes para a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul do século
XIX deve ser entendida a partir do Martins (1997) e também do trabalho de Cardoso de Oliveira
(1967). Isto é a [...] existência de frentes de expansão da sociedade brasileira é a ideia que, prelimi-
narmente, devemos considerar. A noção de “frente”, acrescida à de “expansão”, indica claramen-
te a característica dinâmica do fenômeno que se quer investigar. É a sociedade nacional, através
res do Império brasileiro avança sobre os territórios indígenas utilizan-
do-se de mecanismos como a abertura de estradas, o estabelecimento de
fazendas, o incentivo à imigração alemã e italiana, a política oficial dos
aldeamentos indígenas, o projeto de catequese jesuítica e a instalação das
companhias de Bugreiros e de Pedestres.
O objetivo do estudo, considerando a intenção de desapropriar os
tradicionais territórios indígenas pelas frentes expansionista e pioneira,
consistiu em selecionar e analisar alguns eventos2 sobre as estratégias e
atuações do Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) e demonstrar uma ló-
gica cultural indígena e o protagonismo histórico Kaingang. A metodo-
logia, com base em aportes teóricos de autores como Clastres (1981),
Sahlins (1990, 2004), Barth (2000), Martins (1997), Stutzman (2009),
Almeida (2012) e Strathern (2014), caracterizou-se por uma abordagem
qualitativa, com análise de conteúdo e de cunho etno-histórico vislum-
brando uma historicidade indígena mesmo manuseando fontes oficiais
produzidas por governantes, diretores de aldeamentos, religiosos, serta-
nistas e viajantes. Os dados foram levantados em documentos no Arqui-
vo Histórico do Rio Grande do Sul e Arquivo Público do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre/RS, no Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisi-
nos, em São Leopoldo/RS e nos acervos documentais e bibliográficos do
projeto de pesquisa “Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia
Hidrográfica do Taquari-Antas/RS” e do projeto de extensão “História
e cultura Kaingang”, ambos coordenados por Luís Fernando Laroque, e
vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvi-
mento da Universidade do Vale do Taquari – Univates, em Lajeado/RS.

de seus segmentos regionais, que se expande sobre áreas e regiões cujos únicos habitantes são as
populações indígenas. Mas esse processo de expansão não é conduzido ao acaso. Interesses eco-
nômicos o conduzem, motivando as populações nele envolvidas”(OLIVEIRA, 1967, p. 55-56).
2  O evento é a interpretação de um acontecimento e isto, muitas vezes, vária. Tendo em vista
que um evento não é somente um acontecimento no mundo, mas sim “a relação entre um acon-
tecimento e um sistema simbólico” (SAHLINS, 1990, p. 191).

66 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Frentes expansionistas e reações indígenas em territórios das
bacias hidrográficas dos rios Taquari-Antas, Caí e Sinos

A atuação Kaingang, juntamente com as suas lideranças observando


e avaliando o avanço das frentes expansionistas em territórios do Brasil
Meridional, tornou-se cada vez mais efetiva desde a primeira metade do
século XIX (LAROQUE, 2000). Relativo à atuação Kaingang, mais pre-
cisamente em territórios das Bacias Hidrográficas dos rios Caí e Taqua-
ri-Antas, relatos de viajantes como é o caso do inglês John Luccok e do
francês Nicolau Dreys são ilustrativos neste sentido. John Luccock, por
exemplo, em uma viagem pelas montanhas de Porto Alegre até Laguna,
realizada entre 1809 a 1813, sobre as incursões guerreiras dos indígenas
informa ter ouvido o seguinte:

[...] destroem tudo quanto pertença a europeus ou descen-


dentes dêles e que lhes caia entre as mãos; nem a vaca, nem
o cão, escapam. Por ultrajes tais, pagam caro, pois que, em
redor das partes colonizadas do distrito, existem fortins ou
postos militares, donde se lhes move contínua guerra de ex-
termínio e saque. Nessa campanha não somente se faz uso
de armas de fogo, como do laço, de cães e de todos os de-
mais estratagemas que se empregam contra animais ferozes
(LUCCOCK, 1975, p.152-153).

Na obra “Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São


Pedro do Sul”, Nicolau Dreys (1961, p. 155) também informa que os
Guaianás (Kaingang) dos Campos de Vacaria, localizados acima da ser-
ra, continuavam ocupando seus tradicionais territórios e a hostilizar os
não indígenas que se aventuravam a penetrá-lo. Neste sentido, tratando-
-se mais precisamente das porções denominadas de Mato Castelhano e
Mato Português visitados por esse viajante, possivelmente entre 1818 e
1827, tem-se:

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 67


ainda que a extensão dêsses matos, em que passa a estrada
geral, permita atravessar cada um dêles no curto espaço de
um dia, todavia o viajante não se aproxima dêles sem receio;
parece que o maior perigo que se pode encontrar na sua lon-
ga derrota aí o aguarda; o certo é que sinistros acontecimen-
tos, reproduzidos de tempo em tempos, e quase sempre no
mesmo lugar, como que abonam êsse receio de por êles tran-
sitar: êsses matos, lançados como duas penínsulas de altos
vegetais através das campinas ermas do Uruguai Superior,
servem como de reduto aos indígenas, para virem ao encon-
tro dos habitantes (DREYS, 1961, p. 68-69).

Os registros oficiais de parte dos intendentes e de agrimensores tam-


bém acenam preocupações das movimentações e os conflitos com os
indígenas. Tratando-se das incursões guerreiras com os Kaingang, um
ofício da Câmara Municipal da Vila do Espírito Santo da Cruz Alta, in-
forma que há mais de cinquenta anos.

os Bugres, que habitam as serras vizinhas, que dominam a


estrada geral do Matto Castelhano e Portuguez naquelle dis-
tricto, continuam com mais ferocidade as suas cruelissimas
excursões sobre aquella mesma estrada, assassinando, rou-
bando os viandantes e attacando as familias em suas proprias
casas, e o que mais contrista é a deshumanidade com que le-
vam seus innocentes filhos, deixando os paes mortos ou tras-
passados da mais pungente dôr, sem esperanças de socorros,
passando ao extremo de vendel-os por escravos, como se vê
na participação referida e é de notoriedade publica neste mu-
nicipio, cujos factos têm incutido um pavor panico aos ha-
bitantes e passageiros de tal natureza que o resultado tem
sido paralysar em grande parte o commercio, diminuir a po-
pulação e pesar sobre a arrecadação publica um gravissimo
prejuizo, acrescendo que, posterior a dita participação, tem
chegado ao conhecimento desta Camara a repetição de no-
vas e lutuosas cenas (OFFICIO de 12/04/1845. In: RIHGRS,
1931, p. 116).

68 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Embora não sejam possíveis generalizações, tem-se indicativos que,
a partir de meados de 1845, algumas parcialidades Kaingang ao perce-
berem que suas incursões guerreiras não estavam conseguindo conter o
avanço da Frente de Expansão e Pioneira, mudaram a estratégia e passa-
ram a cogitar a possibilidade de adotar a política de alianças com os fóg
(não índios). Atitudes Kaingang neste sentido podem ser depreendidas
de um ofício da Câmara de Cruz Alta.

em annos anteriores os selvagens aggrediam quasi constan-


temente, não só os viandantes nas picadas denominadas de
Matto Castelhano e Portuguez, como aos moradores da cos-
ta da Serra de Butucarahy, até os hervaes de Santo Christo;
entretanto é tambem certo que os mesmos selvagens, posto
não tenham deixado no toldo de fazer alguma hostilidade,
todavia estas têm diminuido, e ha um anno, mais ou menos,
elles têm apparecido em diferentes pontos deste municipio
e apresentado disposições para cathechizarem-se (OFFICIO
de 20/05/1846. In: RIHGRS, 1931, p. 117-118).

Corroborando para a questão são também as informações que apa-


recem nas correspondências trocadas entre o agrimensor, engenheiro Al-
phonse Mabilde e o Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul, a respeito da estrada que ligaria áreas do rio dos Sinos e Caí ao
Passo do Pontão, no rio Pelotas. Na correspondência enviada por Mabil-
de ao Presidente da Província, é relatado:

Incumbido pelo Excellentissimo Senhor Tenente General


Francisco Jose de Souza Soares d’Andréa, Presidente da Pro-
vincia da abertura da estrada que segue do Passo do Pontão
ao Passo da Esperança no Rio Cahy, em cujos serviços ac-
tualmente me acho, acontece que os Bugres em numero de
mais de duzentos me tem posto embaraços extraordinarios
na marcha de meu serviço, visto a pouco e mal armada gente
que levo commigo e só com bons modos e dando-lhes roupas,
carne e farinha he que me tem sido possivel conte-los e evitar

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 69


que não fizessem mais desordem entre nós (CORRESPON-
DÊNCIA de 13/03/1850, APRS).

Em resposta ao engenheiro Mabilde, o novo Presidente, Jose Anto-


nio Pimenta Bueno, escreve:

Copia = Nº 280 = O Presidente da Provincia attenta a preci-


zão de não se affugentarem os Indigenas, que tem aparecido,
e querido impedir o seguimento dos trabalhos da abertura
da Picada incumbida ao Engenheiro Alphonse Mabilde, os
quais mediante algumas roupas e mantimentos que se lhes
destribuirão se tem tornado mais razoaveis, não deixando
com tudo de fazer novas exigencias; ordeno por isso ao Sr.
Contador Chefe da Contadoria Provincial, que mande com-
prar os artigos de vestuario constantes na relação junto e as
entregue ao encarregado das obras do Pontão Joaquim An-
tonio de Moraes Dutra, para os conduzir para aquelle lugar
e entregar ao mencionado Engenheiro para os fins referidos,
sendo a despeza feita com estas roupas carregada a mesma
rubrica = Cathequeze e Civilização dos Indios = , embora es-
teja ella já excedida a verba consignada na Lei do orçamento
vigente = Palacio do Governo em Porto Alegre 24 de Abril
de 1850 = José Antonio Pimenta Bueno =

Relação das peças de vestuario a que se refere a Portaria


desta data.
Cincoenta ponchos de brichão.
Cincoenta calças curtas de algodão.
Cincoenta camisas para homem do dito.
Cincoenta chitas para mulher do dito.
Dez peças de algodãozinho.
Duas peças de bavetar para as mulheres.
Dez enchadas.
Dez machados.
Cincoenta facas de cabo de osso.
Dez grosas de missangas.

70 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Secretaria do Governo em Porto Alegre 24 de abril de 1850 =
José Mauricio Fernandes Pereira de Barros = Secretaria do
Governo = (CORRESPONDÊNCIA de 24/04/1850, APRS).

Acessando eventos como estes, nos propomos a refutar a versão mais


tradicional propagada pela historiografia sobre os feitos do colonizador e
evidenciar o protagonismo Kaingang que passou a ser orquestrado pela
lógica cultura indígena. Neste sentido, de um modo geral relacionado às
populações indígenas tem-se:

Entender cultura e etnicidade como produtos históricos, di-


nâmicos e flexíveis, que continuamente se constroem através
das complexas relações sociais entre grupos e indivíduos em
contextos históricos definidos, permite repensar a trajetória
de inúmeros povos que por muito tempo foram considerados
misturados e extintos (ALMEIDA, 2012, p. 23).

Especificamente para o caso destes objetos e utensílios, ofertados


pelo presidente de Província em nome de uma pretensão catequese e civi-
lização, de parte dos Kaingang, passou a ser interpretado como a contra-
partida de alianças que já haviam acenado. Portanto são situações neste
sentido que pretendemos demonstrar com a atuação do Pã’í Mbâng Yo-
toahê (Cacique Doble) e da parcialidade indígena que fazia parte.

Movimentações e relações de alianças e guerras de Yotoahê


(Doble) e da parcialidade Kaingang que liderava na Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul

Nas fontes manuseadas o etnome Kaingang da liderança Doble apa-


rece grafado por Yotoahê, Yu-toahê e Iu-toahê. De parte da grafia não indí-
gena comumente é listado por Doble, Dobre ou Dovre. Supomos que essas
várias nominações e/ou renominações podem ter ocorrido por causa de
duas possibilidades: uma delas em decorrência da confusão sobre o nome

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 71


da referida liderança feita na época pelos registros dos não índios; e a ou-
tra, devido à própria parcialidade Kaingang ter-lhe atribuído mais de um
“jiji há” ou “jiji korég”3.
O entendimento de chefias neste estudo, no caso envolvendo Yotoahê
(Doble), foi tomado como uma rede de relações supralocais e aproxi-
mando-se da proposição de Renato Stutzman (2009, p. 20) ao invés de
“conceber a chefia ameríndia apenas como posição política vazia, [...]
pensar como certas pessoas se tornam chefes, líderes políticos e o que
significa isso”.
De acordo com as narrativas de moradores de Cima da Serra, o Chefe
Yotoahê é “um índio alto, simpático e elegante, já montava bem a cavalo
e fazia, montado, parte das suas excursões” (JACQUES, 1979, p. 101).
Conforme a Relação de 31 de outubro de 1862 (AHRS), o Pã’í Mbâng Yo-
toahê tinha quatro mulheres, conhecidas respectivamente pelos nomes de
Francisca, Maria, Catalicia e Luiza, com as quais possuía vários filhos,
dentre os quais nos é possível relacionar: Penha, João Jangnê, Miguel
Camargo e uma tal de Isabella mencionada por Reinaldo Hensel (1928).
Além disso, Yotoahê possuía laços de parentesco com o Pã’í Mbâng Fon-
gue, de quem era primo (RELATÓRIO de 06/10/1853) e também com
o Pã’í Mbâng Nicafim, que tinha inimizade, mas que era irmão de seu pai
(CORRESPONDÊNCIA de 26/02/1851. In: PÉREZ, 1901).
Aparentava, por volta de 1862, conforme a Relação de 31 de outubro
desse mesmo ano (AHRS), uns sessenta e quatro anos e atuou com muita

3  Referente ao sistema de nominação Kaingang, Juracilda Veiga (1994, p.128-138) informa que
“o nome Kaingang (jiji) é uma identidade social e cerimonial, com o jiji o indivíduo recebe os
papéis sociais e/ou cerimoniais correspondentes ao nome”. Discorre também que quanto mais
“jiji” uma pessoa tenha, melhor é o seu nome. Entretanto esse “jiji”, que também está relacio-
nado ao mundo cosmológico, pode significar tanto nomes bons/bonitos (jiji há), quanto nomes
ruins/feios (jiji korég). Neste sentido uma hipótese levantada pela autora e que consideramos
plausível tratando-se Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble), é que, frente ao processo de contato
com os não índios e as alianças pensadas para com estes, teriam atribuído “o termo há ao ‘nome
português’, isto é, o nome de ‘batismo cristão’, como um ‘bom’ nome para as relações sociais
com os vivos (no caso, os seus dominadores); ao mesmo tempo em que estenderam o uso de ko-
rég para os ‘nomes indígenas’ (do mato), por entender que seria através desses nomes adicionais
de sua cultura que manteriam uma vinculação com o mundo dos seus mortos” (VEIGA, 1994,
p. 138, grifos da autora).

72 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


diplomacia e estratégia, aproximadamente, desde 1837 até 1864, quan-
do, segundo a correspondência de 29 de março de 1864 do Pe. Antonio
de Moraes Branco ao Presidente da Província, Eloy de Barros Pimentel,
faleceu vítima de uma epidemia de varíola (CORRESPONDÊNCIA de
29/03/1864, AHRS).
No que se refere à categoria étnica da liderança em estudo, e das
nominações indígenas ou não que adotou podemos aproximar as refle-
xões proposta por Fredrik Bart no estudo sobre os grupos étnicos e suas
fronteiras.

Uma vez pertencer a uma categoria étnica implica ser um


certo tipo de pessoa e ter determinada identidade básica, isto
também implica reivindicar ser julgado e julgar-se a si mesmo
de acordo com os padrões que são relevantes para tal identi-
dade. Nenhum desses tipos de ‘conteúdos’ culturais deriva de
uma simples lista descritiva de características ou diferenças
culturais; não se pode prever a partir de princípios primários
quais características os atores irão efetivamente enfatizar e
tornar organizacionalmente relevantes. Em outras palavras,
as categorias étnicas oferecem um recipiente organizacional
que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e for-
mas nos diversos sistemas socioculturais (BARTH, 2000, p.
32-33).

Dentre as primeiras informações encontradas na documentação pes-


quisada sobre as movimentações e conflitos com os colonizadores prota-
gonizados por Yotoahê (Doble), período que ainda atuava como Pã’í da
parcialidade liderada pelo Pã’í Mbâng Braga, teria ocorrido em novembro
de 1837, momento que teria realizado correria “na estrada que liga os
Campos do Meio com os de Passo Fundo, em que atacaram e mataram
[...] dois tropeiros, um negro escravo dos mesmos e algumas mulas. A
seguir saquearam tudo que lhes podia servir, inutilizando o resto dos ob-
jetos que não podiam carregar consigo” (MABILDE, 1983, p. 159).

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 73


Em áreas das colônias teuto-brasileiras, fundadas em tradicionais
territórios Kaingang mais precisamente entre os rios dos Sinos e das An-
tas, segundo Becker (1976), há registros indicando que de 1829 até por
volta 1868, ocorreram uma série de incursões guerreiras Kaingang. Vale
salientar que a Feitoria do Linho Cânhamo/São Leopoldo foi o núcleo
inicial do projeto envolvendo a colonização alemã e desde o estabeleci-
mento inicial dos colonos, conflitos com indígenas liderados pelos Kain-
gang Braga, Yotoahé e Nicué, que viviam naqueles territórios passam a
ocorrer. Ilustram a situação, incursões guerreiras dos Kaingang em áreas
da Colônia Feliz, envolvendo a família de Jacó Bohn, em 1843; e a de
Robert Kunzel, em 1858/1859, bem como com holandeses em territó-
rios da Colônia Santa Maria da Soledade contra a família Languendock,
em 1857/1858 e a família de Lamberto Wersteg, em 1868 (LAROQUE,
WEIZENMANN, SCHÄEFFER, 2019).
No que se refere ao faccionalismo intratribal bastante operante entre
o jeito de ser Kaingang, em fins da década de 1830, durante as come-
morações pelo sucesso de mais uma investida guerreira contra os não
índios evidenciou-se a dissidência entre as lideranças Braga e Yotoahê.
Os registros colhidos pelo engenheiro Mabilde a este respeito, conforme
fragmento relatam o seguinte:

Um dos chefes das tribos subordinadas – o mais velho deles


– ultimamente conhecido pelo nome de Doble e apelidado
naquele tempo, entre os coroados, pelo nome de Yu-toahê,
gozava de muito conceito não só entre os demais chefes,
como entre todos os indivíduos das tribos ali alojadas. O nú-
mero de indígenas (mais ou menos 680), que compunham as
tribos, entre os quais se achava a do chefe Doble, regulava
com o número de selvagens das tribos que se achavam di-
retamente sob as vistas do cacique Braga (750 indivíduos).
O cacique principal Braga sempre transmitia suas ordens ao
cacique subordinado Doble, por reconhecer nele aptidão
para executar prontamente as ordens.
Doble, entretanto, aproveitando-se da preponderância que

74 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tinha sobre os demais chefes e os indivíduos das suas tribos,
assim como sobre os companheiros de sua tribo, erigiu-se,
clandestinamente, em cacique principal. Prometeu, aos de-
mais chefes e indígenas de sua tribo, usurpar e tomar para
eles as matas de pinheiros onde se alojavam o cacique princi-
pal Braga com as demais tribos subordinadas. [...]
Após o sucesso na correria anteriormente citada, o cacique
principal Braga organizou a festa com as tribos que se acha-
vam diretamente sob suas vistas e – ignorando a traição do
cacique subordinado Yu-toahê (Doble) – convidou as
tribos das quais era ele um dos chefes, para assistirem à festa.
O traidor Doble, ao receber o convite, premeditou um plano
para realizar a tomada das matas. Tal plano seria bem suce-
dido se a desconfiança própria e natural dos coroados não
tivesse feito nascer, no cacique principal Braga e nos indiví-
duos de suas tribos, a idéia de uma traição.[...]
Como o costume era de assistirem às festas com as armas
perto de si e bem à mão, o cacique Braga suspeitou de alguma
traição, ao vê-los chegar sem armas e, logo os viu aproximar-
-se ordenou, imediatamente, à sua gente que se armasse e que
se conservasse em atitude de defesa até saber o motivo que
levou seus subordinados a virem à festa sem armas – contra
os costumes da Nação e contra os preceitos de prudência que
o caso exigia. O chefe Doble, com a maior dissimulação,
deu umas desculpas que foram aceitas tacitamente, por con-
descendência do cacique principal Braga, que consentiu que
aqueles chefes, e os indivíduos de suas tribos assistissem à
festa – ordenando, entretanto, à sua gente que não largasse
as armas um só instante.
Realizou-se a festa e, no tempo combinado, as mulheres e fi-
lhos das tribos que acompanhavam o chefe Doble foram,
pouco a pouco, retirando-se e entrando no mato, pelo lugar
que tinham vindo. Foram para o lugar onde os homens ti-
nham guardado suas armas para, no caso de um mau sucesso
e de uma fuga provável, elas, mulheres, salvarem e carrega-
rem as armas – caso os homens não pudessem passar por ali,
para assim não perderem as armas.

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 75


Essa retirada das mulheres – muito antes do tempo costuma-
do e sem ordem superior – aumentou a justa suspeita do ca-
cique principal Braga. No meio de um dos cantos, e antes que
o sinal geral combinado por Doble fosse dado para a sur-
presa, um dos coroados traidores desentendeu-se com um
coroado das tribos do cacique Braga e tentou desarmá-lo. Foi
mal sucedido e deu um sinal falso para seus companheiros
de conspiração que quiseram limitá-lo, porém sem sucesso.
Foi o sinal de alarme para as tribos fiéis ao cacique Braga e,
todas a um tempo, gritando a traição, começaram a matar
sem piedade os traidores, fazendo tamanha carnificina que o
resto dos vivos, com custo, puderam escapar para as matas,
juntamente com o seu novo cacique Doble. Foram perse-
guidos até cair a noite.
A festa foi perturbada por uma peleja sanguinolenta em que
o novo cacique Doble perdeu quase metade de sua gente e
perturbou a paz que, até aquele momento, existia entre aque-
las tribos que ficaram, desde aquele momento, divididas em
dois cacicados: um, do cacique Braga e outro, do cacique
Doble que se erigiu em cacique principal dos iludidos derro-
tados (MABILDE, 1983, p. 159-162, grifos nossos).

Após esses acontecimentos a parcialidade do Pã’í Yotoahê, que vivia


na porção sul-sudeste das brenhas (matas de araucárias) ocupadas pelo
Pã’í Mbâng Braga e o restante do grupo que ficou liderando, mais precisa-
mente os territórios entre os rios das Antas e Caí, conforme mapa (Figura
1), foi repelido, juntamente com as famílias Kaingang que o acompanha-
vam, a mudar frequentemente os emã (adeias fixas) e wãre (acampamen-
tos temporários) pelo território a fim de evitar as guerras intra e intertri-
bais, inclusive acarretando movimentações desta parcialidade até áreas
próximas da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai.

76 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Figura 01. Movimentações do Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble)
pelo tradicional território. Fonte: Laroque (2000, p. 151).

Benedito Prezia (1994), ao tratar do papel desempenhado por essa


liderança no artigo “O colaboracionismo Kaingang: dos conflitos inter-
tribais à integração a Sociedade Brasileira no século 19”, sintetiza a si-
tuação que se criou para Yotoahê, que acendeu a categoria de Pã’í Mbâng.

Com um grupo reduzido, retirou-se para a margem direita do


rio Uruguai, tendo que enfrentar a oposição de outras facções
Kaingang, inimigas de Braga e que por sua vez o viam como

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 77


inimigo, pois acreditavam que ainda pertencesse ao antigo
grupo. Assim, Doble viu-se encurralado: de um lado pelos
homens de Braga; de outro, pelos grupos de Nonoai, Condá e
Nicofé, rivais de Braga, de outro, pelo povo de Nhancuiá e de
outro, finalmente, pelos Xokleng, tradicionais inimigos dos
Kaingang (PREZIA, 1994, p. 69, grifo nosso).

Observando a cronologia na documentação pesquisada, é possível


que, algum tempo depois, Yotoahê tenha retornado para o território tradi-
cionalmente ocupado pela parcialidade que liderava. Razão disso é que,
por volta de 1845, na localidade de Morro Grande, atualmente na jurisdi-
ção de Caxias do Sul, o referido Pã’í Mbâng, durante suas incursões pela
região, já havia mantido contato com alguns fazendeiros de Cima da Ser-
ra, oferecendo estrategicamente suas mulheres em uma festividade que
organizou com sua parcialidade para aproximadamente vinte ou trinta
rapazes não índios. No desenrolar do festejo, as mulheres4 Kaingang con-
vidaram os moços fóg, que se encontravam desarmados naquele momen-
to, para passearem até uma clareira na floresta e, no momento oportuno,
deram os sinais combinados para que os guerreiros que estavam escon-
didos nas árvores investissem contra os inimigos (GARDELIN, 1969b).
Tendo em vista os conflitos intratribais com as parcialidades Kain-
gang inimigas, o avanço das frentes de expansão, quer seja com a aber-
tura de trilhas e de estradas, quer seja com a intensificação de levas de

4  Vale salientar que a atuação das mulheres tanto dentro do mundo Kaingang como para com as
sociedades envolventes, está presente inclusive no seu mito de origem (BORBA, 1908). Na con-
quista dos Campos de Guarapuava Paraná, o fato das mulheres Kaingang oferecidas, em agosto
de 1810, à comitiva liderada pelo Tenente Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, terem sido
rejeitadas devido a repreensão do padre Chagas Lima, foi tomado como desfeita pelos Kaingang
e motivo para deflagração da guerra (BECKER; LAROQUE, 1999). Também no oeste paulista,
precisamente no território entre os rios Feio-Aguapeí, tem-se a presença da índia Vanuire que, em
1912 e 1913, que atuou como intérprete entre a parcialidade do Cacique Vauhim e o destacamento
militar liderado pelos tenentes Manoel Rabelo e Candido Sobrinho Sampaio, representantes do
Serviço de Proteção aos índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (BARBOSA, [1926],
1947). Portanto, segundo Ricardo Cid Fernandes, Ledson Kurtz de Almeida e Angela Célia
Sacchi (1999, p.11), “a participação política das mulheres deve ser entendida como uma
extensão de seu poder sobre a constituição das Casas Kaingang e que o próprio conceito de
comunidade está vinculado à mulher – Mulher: Casa: Casa: Comunidade”.

78 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


colonos alemães e a fundação dos aldeamentos, o Pã’í Mbâng Yotoahê
(Doble), semelhantes ao que outros grupos indígenas adotaram, também
passou a cogitar alianças com os colonizadores. Isto porque no mês de
abril de 1848, o Sr. Manoel José de Quadros estabeleceu contato com
eles e ofereceu objetos, tais como roupas e ainda ferramentas e sementes,
a fim de que fossem para um Aldeamento (CORRESPONDÊNCIA de
10/05/1848, AHRS).
No que tange a realização de negociações nativas com grupos estran-
geiros, tendo em vista os ideais de prestígio para obtenção de vantagens
para serem orquestradas em benefício das configurações sociohistóricas
das próprias sociedades ameríndias, tem-se o seguinte:

La guerra se articula a la sociedad primitiva en tanto tal (tam-


bién ella es universal), es un modo de funcionamiento. Es la
propia naturaleza de esta sociedad la que determina la exis-
tencia y el sentido de la guerra, que se presenta de antemano
como posibilidad del ser social primitivo en razón del extre-
mo particularismo de cada grupo. Para cada grupo local to-
dos los Otros son Extranjeros: la figura del Extranjero confir-
ma, para culquier grupo dado, la convicción de su identidad
como un Nosotros autónomo. O sea que el estado de guerra
es permanente, porque con los extranjeros sólo se mantienen
relaciones de hostilidad, se realicen o no en una guerra real.
No es la realidad puntual del conflicto armado, del combate,
lo esencial, sino la permanencia de su posibilidad, el esta-
do de guerra permanente en tanto mantiene en su diferencia
respectiva a todas las comunidades. Lo que es permanente,
estructural, es el estado de guerra con los extranjeros que
a veces culmina, a intervalos más o menos regulares, más o
menos frecuentes según las sociedades, en la batalha efec-
tiva, el enfrentamiento directo. El Extranjero es, entonces,
el Enemigo, que a su vez engendra la figura del Aliado. El
estado de guerra es permanente, pero los Salvajes no pasan
todo su tiempo haciendo la guerra (CLASTRES, 1981, p.211).

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 79


Vale salientar que a partir de 1845/1846, o Governo Provincial do
Rio Grande do Sul, aproveitando-se da passagem de jesuítas espanhóis
vindos da Argentina, recorreu à política oficial dos aldeamentos para
reunir os Kaingang em áreas como Guarita, Nonoai e Campo do Meio
(NONNENMACHER, 2000). Conforme relatos dos diretores dos aldea-
mentos, em 1849, já estavam iniciados três Aldeamentos Kaingang na
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e no Campo do Meio,
apresentou-se “unos 90 indios bajo el mando de su capitán Dovre” (Pé-
rez, 1901, p. 499, grifo nosso).
A intenção do governo era de que a parcialidade liderada por Yotoahê
(Doble) fossem para o Aldeia Pontão, na qual se encontravam os padres
Pedro Saderra e Miguel Cabeza. No entanto, tendo em vista o protago-
nismo Kaingang que continuava a avaliar as alianças com o colonizador
em seus próprios termos e o fato de que no Pontão havia parcialidades de
lideranças inimigas, o grupo de Yotoahê (Doble) acenou que inicialmen-
te desejava enviar somente parte do seu grupo, mas para o Aldeamento
Campo do Meio

á donde llegaron 15 dias hace. Ellos son de tal temple que


no se les puede obligar con la fuerza, y es preciso amoldarse
en esta parte á su voluntad: por eso los nuestros, conocida
la resolución firme de los indios, dejaron, con el parecer del
P. Bernardo, el Pontón, y pasaron á residir en el Campo del
Medio, y aqui esperaron la reunión de Dovre, que no tardó á
seguirse (CORRESPONDÊNCIA de 1850. In: Pérez, 1901, p.
527-528) (grifo nosso).

Frente ao exposto e na documentação analisada é possível consta-


tar que o Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble), adotando a lógica das negocia-
ções e relações sociais estipulada pela parcialidade que representava
(CORRESPONDÊNCIAS de 08/03/1850, 14/01/1851, 16/03/1851 e
29/12/1851, AHRS), procurou ludibriar os não índios, obtendo deles os
objetos desejados sob a alegação de que ora se fixariam em Pontão, ora

80 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


em Campo do Meio para poderem movimentar-se pelas brenhas (matas),
conforme interesse do grupo, e praticar incursões guerreiras contra os
fóg e as parcialidades Kaingang inimigas, principalmente as estabelecidas
nos territórios de jurisdição do Aldeamento de Nonoai. Mas é impor-
tante salientar que para os Kaingang as sociabilidades entre o indivíduo
(chefe) e sociedade (parcialidades) não são coisas dicotômicas. Assim, as
relações sociais:

são intrínsecas, e não extrínsecas, à existência humana. As-


sim, ao considerarmos as pessoas como objeto de estudo
antropológico, não podemos concebê-las como entidades
individuais. Infelizmente, a culpada disso é a nossa própria
sociedade. A consequência lamentável de termos concebido
a própria sociedade como entidade foi fazer as relações pare-
cerem secundárias e não primárias para a existência humana
(STRATHERN, 2014, p. 239).

Corrobora neste sentido o relato do engenheiro Aphonse Mabilde,


informa:

Acossado por todos os lados, sem recursos de espécie alguma


Doble, para salvar sua vida e a da pouca gente que lhe resta-
va, outra coisa não poderia fazer senão aldear-se – o que fez
contra a vontade, porém forçado pelas circunstancias. Apre-
sentaram-se, sempre em pequenos grupos mansamente, aos
moradores de Vacaria, Campo do Meio e Passo Fundo, indo
para os lugares que lhes foram indicados pelo governo pro-
vincial (MABILDE, 1983, p. 163, grifo nosso).

É provável que devido a circunstâncias como estas que o Pã’í Mbâ-


ng Yotoahê (Doble) tenha-se contraído alianças com os fóg, integrantes
do governo, para guerrear contra os Kaingang. Este colaboracionismo,
entretanto, tanto na lógica Yotoahê (Doble) e dos demais Kaingang que o
acompanhavam, significou que eles estivessem traindo os indígenas, por-

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 81


que este tipo de procedimento – aliança com outros grupos – trata-se de
algo prescrito na cultura e no próprio mito de origem Kaingang5. Quanto
ao teor e às vantagens dessas negociações, tem-se:

A tribo do Cacique Doble [...] tinha feito um tratado de


assistência com o govêrno e servia de certo modo para pro-
teção contra tribos inteiramente selvagens. Por esse motivo
vinham muitas vezes à capital, onde eram presenteados com
roupas, fazendas, utensílios culinários e instrumentos agrí-
colas (F. W., 1913, p. 86) (grifo nosso).

A título de ilustrarmos o colaboracionismo de Yotoahê, tomamos


uma narrativa envolvendo conflitos e a tomada de prisioneiros fóg (bran-
cos) pelos Kaingang, na qual o referido Pã’í Mbâng atuou ao lado dos não
índios para recuperar os prisioneiros, isto porque a parcialidade Kain-
gang envolvida no conflitos era sua inimiga. Esse evento refere-se, preci-
samente, ao conflito com a família de João Mariano Pimentel, poderoso
fazendeiro no Passo de Santa Bárbara, região entre Bento Gonçalves e
Veranópolis, ocorrido em 05 de agosto de 1851, quando o proprietário

5  Na história dos ancestrais míticos Kaingang contida na narrativa coletada por Telemaco
Borba (1908), é possível identificar diferenças marcantes entre Cayrucrés e Camés. Os primei-
ros, ao abrirem seu caminho para saírem do centro da terra fizeram brotar dele um arroio
que corria para um local plano. Isso possibilitou que os Cayrucrés, quando passassem, con-
servassem os pés pequenos. Enquanto isso, os Camés, para também saírem do centro da
terra, precisaram abrir uma outra vereda, mas através de um caminho pedregoso e de difícil
acesso, o que, conseqüentemente, acarretou-lhes possuírem pés grandes. Quando Cayrucré
fez as antas, os tamanduás, entre outros animais, Camé, visando combatê-los, criou os leões
americanos, as cobras e as vespas. Ora, como os Cayrucré e Camé casaram seus filhos com
mulheres Kaingang, é perfeitamente provável que essas diferenças tenham aumentado e
acarretado guerra entre os grupos. Sendo assim, as guerras deflagradas com os Laklãnõ/
Xokleng, Guarani e depois os não índios, em nosso ponto de vista também foram orques-
trados pelo mito, isto porque além dos ancestrais Cayurucré, Camé e Kaingang, que habitavam
a Serra do Crinjijimbé (Serra Geral), havia ainda os Curutons. Esses últimos precisaram descer
a serra para buscar seus cestos e, por preguiça, não tornaram mais a subir, motivo pelo qual
os Kaingang, com o passar do tempo, passaram a guerrear com estes. Portanto, é possível
que os Kaingang, e neste caso também o Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble), precisando dar um
sentido a sua ordem simbólica, tenham ressignificado a presença dos não índios e também
das demais parcialidades Kaingang quer sejam para estratégias alianças ou como potenciais
inimigos a guerrear.

82 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


se encontrava em Uruguaiana resolvendo negócios sobre o comércio de
muares para as feiras de Sorocaba.
Segundo discorre Mário Gardelin (1969a, p.29), a incursão guerreira
Kaingang deu-se pela manhã, quando a dona da casa, Bárbara Borges
Vieira; os filhos Marcos, Manoel, Perpétua, Francisca, João e Antônio; o
cunhado Serafim e vários negros escravizados encontravam-se despreve-
nidos e ocupados em seus afazeres. O resultado final, além dos guerrei-
ros Kaingang terem se apropriado de roupas, comestíveis, facas, facões e
machados, foi levarem como prisioneiros alguns dos filhos, bem como o
fato do conflito ter levados outros a morte e também alguns escravizados.
Logo após esse episódio, reuniram-se esforços para seguir os indígenas,
mas foi em vão. Frente a isso, Mariano Pimentel teve a ideia de contra-
tar Yotoahê para auxiliá-lo, o qual aceitou prontamente a oferta, pois era
inimigo da parcialidade de Nicué desde a dissidência como Pã’í Mbâng
Braga, que foi responsabilizada pelo conflito. Alguns dias passaram, e
Yotoahê, que já estava no encalço da parcialidade inimiga, alcançou-os
na encosta do rio das Antas e conseguiu resgatar os prisioneiros, porém a
liderança Nicué e seu grupo conseguiram fugir (OLIVEIRA apud GAR-
DELIN, 1969a, p. 29).
Apesar do projeto do governo provincial almejar reunir todas as par-
cialidades Kaingang no Aldeamento de Nonoai por volta de 1853, sem
levar em conta as desavenças e inimizades entre as facções Kaingang, o
Pã’í Mbâng Yotoahê não aceitou e continuou a fazer suas movimentações
pelos Campos de Vacaria (CORRESPONDÊNCIA de 19/03/1853,
AHRS). Em vista disso, e devido à aliança que os integrantes do governo
tinham com os Kaingang de Aldeamento de Guarita, acessaram o Pã’í
Mbâng Fongue, que era primo Yotoahê (Doble) para vir até o Pontão com
o intuito de convencer Doble a aldear-se com os seus no Aldeamento de
Nonoai (RELATÓRIO de 12/12/1853, AHRS).
Devido à insistência governamental e principalmente pela media-
ção de Fongue e seu grupo com quem possuíam uma rede de relações é
que Yotoahê e a parcialidade que liderava avaliando este evento em seus

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 83


próprios termos aceitaram, por volta de 1854, estabelecerem-se no Al-
deamento de Nonoai. Entretanto, durante o deslocamento que faziam do
Pontão para o Aldeamento de Nonoai, o grupo de Yotoahê foi perseguido
e entrou em conflito com uma parcialidade Kaingang inimiga, possivel-
mente do Pã’í Mbâng Pedro Nicafim, situação que acarretou a mudarem
de ideia e retornarem para o território do qual tinham saído. Este acon-
tecimento é registrado no relatório do Presidente da Província, João Lins
Vieira Cansansão de Sinimbú.

O cacique havia com effeito se dirigido para aquelle sitio, mas


infelizmente aconteceu que nesse tranzito do Pontão para
Nonohay, andando a caça foi sua gente batida de surpreza
por uma tribu deconhecida, de cujo encontro resultou fica-
rem alguns feridos, e perderem tudo quanto havião recebido
desta Presidencia como presente.
Desconfiado por esse acto de traição, e suppondo que nascia
de Pedro Nicofé como vingança pela morte de João Grande,
a quem mesmo Doble resgatando a familia allemã do Mun-
do Novo tinha derrotado, desandou caminho e volveo nova-
mente para os mattos do Pontão, que lhe são caros. Em vão
tentarão os mensageiros do Director Oliveira persuadil-o de
tornar a Nonohay, prometteu fazel-o mais tarde, mas segun-
do as ultimas noticias que tenho de Felippe José de Souza, da
Vaccaria, ainda por alli se conserva errante com a sua tribu
[...] (RELATÓRIO de 02/10/1854, p.30-31, grifo nosso).

Outras informações neste sentido são fornecidas pela correspondên-


cia de José Joaquim de Oliveira, diretor do Aldeamento de Nonoai, ao
Presidente da Província, relatando que o Pã’í Mbâng Yotoahê, residente
em Pontão, tinha receio de ir para Nonoai por causa do Pã’í Mbâng Nica-
fim “pedindo por isso ser ali conservado, dando-se-lhe auxilios para poder
trabalhar com a sua gente” (CORRESPONDÊNCIA de 25/10/1854,
AHRS). Há indicativos, porém, que estes auxílios não satisfizeram a par-
cialidade de Yotoahê, uma vez que, em 16 de janeiro de 1855, atravessa-

84 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ram o rio Pelotas e dirigiram-se para Lages possivelmente para negocia-
rem com os fóg (brancos) daquela localidade, segundo depreende-se dos
quesitos contidos na resposta de um ofício do Ministério do Império ao
Presidente da Província de Santa Catarina, Luiz Pereira de Couto Ferraz.

1º Que convindo, attrahir á civilização e ao trabalho taes In-


dios, mormente tendo elles á sua frente o Cacique Dobre,
que já hum pouco domesticado, mostra intenções pacificas,
poderá V. Ex. ordenar se lhes forneça pelo tempo que julgar
razoavel, rações diarias com as admoestações, e incentivos
necessarios, a fim de convencel-os da conveniencia de traba-
lharem para merecerem a contribuição de socorros, de que
careção;

2º Que se elles se recusarem a isso, e obstinadamente pre-


tenderem permanecer em Lages, cumprirá fazer todas as
diligencias para tel-os reunidos nas proximidades de Villa
e em lugar, em que possão pela caça e mesmo pela pesca,
achar tambem por si proprios alguns meios de subsistencia,
a que estejão mais affeitos, continuando-se nas diligencias
de atrahil-os aos habitos de trabalho e civilização, para cujo
fim convirá que V. Ex. quanto antes nomeie pessoa, que lhe
pareça apta com preferencia algum Sacerdote, para servir de
Director provisorio de tal aldeamento (AVISO nº 8 ao Presi-
dente de Santa Catarina de 20/03/1855. In: CUNHA, 1992,
p.235-236, grifo nosso).

Em meados do ano de 1855, todavia, o Pã’í Mbâng Yotoahê e sua par-


cialidade já haviam incursionado movimentações de retorno à Província
de São Pedro, porque, na madrugada do dia 16 de maio do corrente ano,
por sua conta e risco, Yotoahê e seu grupo liderou uma incursão guerreira
ao rancho de José Antônio de Carvalho, mais precisamente sobre a ver-
tente setentrional do arroio Forromeco. O intento final somente não foi
conseguido pelos Kaingang, segundo relata o engenheiro Mabilde (1983),
porque se encontrava na casa mais quatro homens bem armados. O enge-

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 85


nheiro, que percorria a região naquele momento, tomando conhecimento
do episódio, deslocou-se imediatamente com nove homens até o local a
fim de verificar o indício do conflito. Neste intento, sentiu um cheiro de
fumaça que não vinha de muito longe, mas, como já estava anoitecendo,
acampou escondido com os seus até clarear o novo dia, conforme narra:

O dia seguinte, dia 17, amanheceu coberto e só pelas 6 horas


da manhã pudemos ver, no chão, o rastro que os selvagens
deixaram. Continuamos, silenciosamente, nossa marcha e
ainda não tínhamos caminhado trezentas braças, ao subir-
mos um pequeno morro, da chapada do mesmo, avistamos,
sentados de cócoras, ao redor de um pequeno fogo, vinte
selvagens, inclusive o cacique Doble que os capitaneava.
Estavam todos nus como no seu primitivo estado selvático.
Apenas sete daqueles indígenas – como aquele que tinha sido
morto ao pé do rancho – tinham o cabelo tonsurado em for-
ma de coroa, como usam no estado selvagem. Os outros tre-
ze, como o Cacique Doble, tinham cabelo comprido, como
usam depois de aldeados (MABILDE, 1983, p. 168, grifos
nossos).

Na sequência do relato, o engenheiro Mabilde (1983), informa que


o Pã’í Mbâng Yotoahê e os guerreiros que estavam com ele, ao perceberem
que a comitiva se aproximava de onde estavam acampados, botaram-se a
correr pelas brenhas adentro. Relata ainda que os Kaingang foram perse-
guidos por sua comitiva até o limite do rio das Antas, o qual foi atraves-
sado a nado pelos indígenas.
Esses eventos, como vemos, reforçam a hipótese de que o colabora-
cionismo adotado pelo Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble) com os fóg (brancos)
seguia a lógica cultural Kaingang relativa às parcialidades inimigas quer
fossem indígenas ou não. Isto porque de acordo com Marshall Shalins:

O que faz o evento é uma dinâmica do incidente que altera


as relações maiores nele apresentadas – isto é, representa-
das nas pessoas dos agentes sócio-históricos e em seus atos

86 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


sócio-históricos. E o que cria a alteração nas relações maio-
res é o fato de que, nesse incidente de ordem inferior, toda
sorte de considerações além das forças maiores que esses
agentes concretizam, outras forças das quais eles podem não
ter consciência, vêm motivá-los. Outros seres e objetos, com
seus próprios projetos ou causas e seus próprios estilos de
ação, os afetam (SAHLINS, 2004, p. 368).

Tendo ainda em vista, segundo Sahlins (1990), que a história é orde-


nada culturalmente de diferentes formas nas distintas sociedades, tratan-
do-se do objeto em análise, observa-se que Yotoahê (Doble) e sua parcia-
lidade continuava mantendo relações amistosas com aqueles não índios
que haviam contraído alianças. Entretanto, esta situação parecer não ter
sido compreendida por Alphonse Mabilde, que insistia em denunciá-lo às
autoridades provinciais.

Meu empenho era de aprisionar, ao menos, o cacique Dob-


le e conduzi-lo preso no estado em que andava na mata, até
Porto Alegre, levando-o até à presença do Presidente da Pro-
víncia onde, um mês antes, este cacique tinha estado, farda-
do com galões de capitão. Este seria o único meio de desenga-
nar as autoridades a que, por várias vezes, dei conhecimento
das correrias que o perverso cacique Doble praticava, depois
de aldeado, circunstância esta que lhes parecia impossível,
pela confiança que aquele cacique lhes inspirava (MABILDE,
1983, p. 171, grifos nossos).

Um outro autor que também discorre a respeito das estratégias adotadas


pela parcialidade do Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble) em seu colaboracionismo
com os não índios é Francisco Schaden.

Essa horda kaingáng era chefiada pelo cacique Doble, per-


sonalidade excepcional que, sem renunciar aos seus tradi-
cionais modos de vida, tratou de tirar para os seus homens
tôdas as vantagens que, em sua opinião, lhes pudessem advir

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 87


do contacto com o mundo civilizado. Mais de uma vez apre-
sentou-se em Porto Alegre, para discutir a situação de sua
gente com os mais altos funcionários do govêrno da provín-
cia. Êstes por sua vez o tratavam com bastante consideração,
conferindo-lhe o título de brigadeiro. Doble compreendera
muito bem que o govêrno precisava de seus serviços e consi-
derava-se por isso, no direito de exigir mantimentos, roupas,
utensílios de ferro, sementes e outras coisas mais (SCHA-
DEN, 1963, p. 69-70, grifos nossos).

Logo após a incursão guerreira praticada no território do Arroio For-


romeco, o Pã’í Mbâng Yotoahê e seu grupo movimentava-se pelos Campos
de Vacaria e de tempo em tempo, estrategicamente apresentavam-se no
Aldeamento de Pontão (RELATÓRIOS de 30/06/1855, 28/04/1856 e
15/12/1856, AHRS).
Nos primeiros meses do ano de 1862, Yotoahê e a parcialidade que
liderava, que até então encontravam-se no Aldeamento de Santa Isabel,
há pouco tempo extinto pelo Presidente da Província, apareceram na Co-
lônia Militar de Caseros, talvez desejando estabelecer algumas negocia-
ções “declarando-se que queria aldear-se dentro dos limites da Colônia e
dedicar-se com sua gente ao serviço agrícola” (CORRESPONDÊNCIA
de 03/03/1862, AHRS). Entretanto, em meados do ano de 1862, nova-
mente já estavam realizando incursões guerreiras contra os não índios
estabelecidos no tradicional território Kaingang, segundo relata Manoel
Luiz da Silva Pedroso ao engenheiro Mabilde.

Faz hoje dois dias que de improviso topei com o Doble no


mato, o qual andava outra vez em correria, como quando o
encontramos, quando eu ia em campanha de V. S. [...]
Acompanhavam-no quatorze bugres, quase todos daqueles
aldeados, pois já traziam o cabelo comprido como a nossa
gente, o que prova que não são dos bugres bravios, dos quais
havia só dois, entre eles, que traziam o cabelo feito uma co-
roa. Doble, como os mais, andavam nus. [...] Quis falar com

88 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


o Doble, mas quando chamei por ele e que me reconheceu,
principiou a correr como se o diabo o perseguisse, e os outros
bugres também atrás dele. Fugiram para o lado do rio das
Antas e quer me parecer que aquele sujeito passará o rio com
sua gente, para ir fazer das suas acostumadas, lá pelo rio Caí
ou na colônia do Montravel [...]
Todos aqueles bugres iam muito armados com arco e flechas
e todos levavam um cacete, o que é para admirar-se eles leva-
rem cacete quando vão à caça, como sempre dizem, quando
se retiram do seu alojamento. [...]
Previno a V. S. disso para ver, se minha carta chegar a tempo,
se poderá também prevenir os homens lá do Caí para que
possam precaver-se contra aquele malvado Doble que é o
único que anda aqui induzindo os outros bugres para irem
roubar e matar [...] (CORRESPONDÊNCIA de 07/06/1862.
In: MABILDE, 1983, p.173, grifos nossos).

As últimas informações encontradas sobre o protagonismo de Pã’í


Mbâng Yotoahê (Doble) na documentação pesquisa trata-se da Relação
de 31 de outubro de 1862 (AHRS), indicando que a parcialidade da li-
derança Yotoahê, composta de cento e quatorze indígenas, encontrava-se
aldeada na Colônia Militar de Caseros, localizada no Mato Português.
Nessa colônia recebiam alimentos, objetos, entre outros, mas continua-
vam firmes no propósito de não aceitar estabelecerem-se no Aldeamento
de Nonoai e, pelo que relata o Presidente Francisco de Assis Pereira Ro-
cha à Assembleia Provincial, convictos na continuidade do jeito de ser
Kaingang, pois “parece que são perdidos os esforços e despesas que se
tem feito para lhes introduzir o gosto da vida social” (RELATÓRIO de
1862, p. 38-40).
No ano de 1864, na continuidade da aliança e das negociações, o
Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble) e seus guerreiros dirigem-se até Porto Alegre,
a fim de receberem gratificações do Presidente de Província pelos ser-
viços prestados. Contudo, o reconhecimento e retribuição dos “agentes
ditos civilizadores e difusores do progresso”, conforme podemos cons-

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 89


tatar pela Correspondência de 29/03/1864 (AHRS), F. W (1913) e Hen-
sel (1928), foi terem sido presenteados de propósitos as roupas usadas
por soldados que haviam contraído varíola. As consequências disso, ao
retornarem para a Colônia Militar de Caseros, foi um terrível contágio
epidêmico que vitimou muitos Kaingang, inclusive o próprio Pã’í Mbâng
Yotoahê (Doble).

Considerações Finais
A história da Sociedade Kaingang no Brasil Meridional do Século
XIX, semelhante ao que ocorre com outras sociedades humanas, também
apresentou singularidades nas dimensões sociais de um grupo étnico em
movimento e reagiu ao avanço das frentes de extensão e pioneira tendo
por base os arquétipos culturais indígenas. Tomando o trabalho de Maria
Celestino de Almeida para corroborar com esta assertiva tem-se:

Desde a década de 1990, os historiadores no Brasil têm se


voltado para o estudo dos índios, valorizando-os como sujei-
tos dos processos históricos por eles vivenciados. Com base
em abordagens interdisciplinares, as pesquisas atuais cen-
tram o foco da análise nos próprios índios e identificam suas
formas de compreensão e seus objetivos nas várias situações
de contato por eles vividas, levando em conta os interesses e
significados diversos das atuações políticas, socioeconômicas
e culturais dos vários atores em contato (ALMEIDA, 2012, p.
22-23).

Neste sentido, considerando a complexidade dialética entre mudan-


ças/permanências, descontinuidades/continuidades, transformações/
reproduções é que nos propomos a analisar alguns eventos envolvendo
a atuação do Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) e a parcialidade Kain-
gang que liderava. Como resultados da pesquisa, observou-se haver uma
lógica indígena onde os Kaingang aparecem como agentes e não apenas

90 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


como vítimas dos acontecimentos relacionados aos avanços dos meca-
nismos do Estado Nacional brasileiro. Portanto, retomando o objetivo
proposto constatou-se que o Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble), sempre
estivera em contato com outras etnias e no cenário analisado pensou em
seus próprios termos o fato de ter que estabelecer alianças ou deflagrar
guerra, muito embora o contato com as frentes de extensão e pioneira
do século XIX tenha sido algo bastante singular do que vivenciaram até
então juntamente com a parcialidade que liderava.
Conforme visto, vale também reiterar que o colaboracionismo pres-
tado pela liderança Yotoahê aos fóg (brancos) na luta contra os grupos
Kaingang inimigos tinha sua lógica interna e de maneira alguma signifi-
cou que eles estivessem simplesmente traindo o povo Kaingang, confor-
me muitas vezes aparece divulgado na historiografia. Isto é, os conflitos
guerreiros não se davam aleatoriamente e eram muito mais para os Kain-
gang utilizarem-se do que os não índios tinham a oferecer do que guer-
rear sem motivo contra as parcialidades indígenas inimigas. Ilustra esta
situação o fato de não termos identificado nas fontes analisadas conflitos
de Yotoahê (Cacique Doble) com a parcialidade de Fongue, com quem
mantinha aliança, mas incursões guerreiras de Yotoahê contra as parciali-
dades lideradas por Nicafim e Braga foram frequentes.
Concluindo, é possível afirmar que mesmo estabelecendo alianças,
guerras e atualizando elementos da sua cultura, o Pã’í Mbâng Yotoahê (Ca-
cique Doble) e a parcialidade por ele liderada portou-se de acordo com
as pautas culturais do seu grupo étnico e não abriu mão da identidade de
indígenas Kaingang.

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LAROQUE, Luís Fernando da Silva. O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) 95


96 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates
pelas terras do Aldeamento de Atalaia
(Guarapuava – século XIX)

Cristiano Augusto Durat

Não basta mais caracterizar o índio histórico simplesmente


como vítima que assistiu passivamente à sua destruição [...]
importa recuperar o sujeito histórico que agia de acordo com
sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada
tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela per-
cepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam1.

N as últimas décadas, as pesquisas dedicadas à temática indígena


têm demonstrado um avanço considerável no Brasil. Para além
do interesse pela história do encontro de mundos diferentes, en-
tre indígenas e colonizadores, essas novas pesquisas trazem para o “palco
da história” um novo olhar a respeito dos processos históricos aos quais
os povos indígenas foram submetidos ao longo de mais de quinhentos
anos. O diálogo proposto pela história e pela antropologia, ao articular
suas respectivas ferramentas de pesquisa, abre espaço para trabalhos ex-
cepcionais que apresentam metodologias e outros pontos de vista para a

1  MONTEIRO, John Manuel. Armas e Armadilhas. In: NOVAES, Adauto. A Outra margem
do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 248.
escrita de uma nova história indígena. Sobre esse aspecto, Maria Regina
Celestino de Almeida nos diz que

Historiadores e antropólogos têm aceitado o desafio, e de


sua interlocução crescente resultam novas formas de com-
preensão sobre as culturas, as identidades e as relações in-
terétnicas entre povos etnicamente diversos. Questionam e
interpretam documentos históricos com indagações etnoló-
gicas, analisam culturas dos povos e indivíduos, procurando
entendê-las em contextos históricos definidos e articulados
às relações sociais e interétnicas por eles estabelecidas2.

Não se trata apenas de um revisionismo dos períodos históricos em


que os povos indígenas foram retratados de forma negativa – como re-
sistentes à integração imposta pelas autoridades coloniais –, em alguns
casos, esquecidos ou silenciados nos gabinetes e nas histórias nacionais
de outrora. Busca-se mostrar o protagonismo desses grupos indígenas na
atuação em defesa de seu modo de vida, sua cultura, sua organização so-
cial e cosmológica. Sabemos que muitos grupos não deixaram suas ações
e reclamações registradas em livros nem em documentos. Entretanto, os
agentes coloniais, militares e religiosos, os cronistas e viajantes fizeram
suas anotações e é através desses documentos que outros questionamen-
tos podem ser elaborados por pesquisadores orientados pelo uso tanto de
novos conceitos quanto de novas metodologias de análise e interpretação.
Nesse sentido, o escopo documental de fontes históricas sobre os
povos indígenas também se multiplicou. Documentos como Listas No-
minativas de Habitantes, Rol de Paroquianos e de Desobriga Quaresmal,
Atas das Câmaras Municipais, Processos Crimes, Correspondências, Ofí-
cios, Petições e os registros de eventos vitais – os registros de Batismo
e Casamento – são constantemente analisados e interpretados à luz de
novos conceitos, bem como através de novas metodologias. Parte desse

2  ALMEIDA, Maria Regina Celestino. História e Antropologia. In: CARDOSO, Ciro Flama-
rion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012,
p. 166.

98 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


interesse crescente sobre os povos indígenas advém de um refinamento
conceitual relativo às estratégias de determinados grupos étnicos em si-
tuações de contato estabelecido pelas frentes de ocupação.
Um exemplo relevante dessa guinada conceitual sobre os povos in-
dígenas e as consequências do avanço colonial em seus territórios são as
pesquisas desenvolvidas por Steve Stern com as populações andinas. Em
suas reflexões Steve Stern discute o conceito de “resistência adaptativa”,
afirmando que, para cada “ação” empreendida pelos colonizadores, os
povos indígenas apresentaram uma “reação”3.
Esse conceito de “resistência” defendido por Stern se apresenta de
várias maneiras, sendo que a principal característica diz respeito ao prota-
gonismo dos indivíduos na decisão sobre seu modo de fazer parte ou não
daquele modelo de “civilização”, cujo principal caminho passava pela
“catequização”. É certo que alguns grupos indígenas optaram pelo con-
vívio pacífico com a sociedade colonial ao passo que outros decidiram
permanecer no modo de vida tradicional, retardando por algum tempo o
estabelecimento dessas relações. Contudo, aqueles que ficaram juntos aos
povoadores também negociaram e criaram estratégias de sobrevivência e
proteção segundo suas características culturais, sociais e políticas.
Ainda que alguns grupos indígenas tenham aceitado as regras do
jogo em determinado contexto histórico, tornando-se “aliados” das auto-
ridades coloniais, essa situação não reflete a totalidade dos acontecimen-
tos. Assim, para aqueles grupos étnicos mais resistentes aos projetos inte-
gracionistas, criava-se um conjunto de regramentos, cujas consequências
podiam desencadear um conflito na política indigenista conhecido como
“guerra justa”4.
Levando esses elementos em consideração, o conceito de “resistên-
cia adaptativa” permite aprofundar outros aspectos que não foram ana-

3  STERN, Steve J. The Age of Andean Insurrection, 1742-1782: A Reappraisal. In: STERN,
Steve J. Resistance, Rebellion, and Consciousness in the Andean Peasant World, 18th to
20th. The University of Wiscosin Press, 1987, p. 34-93.
4  ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2010

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 99
lisados pela historiografia “oficial” dos povos indígenas. Nesse sentido,
trata-se de inseri-los numa nova cultura historiográfica e, por sua vez,
apresentá-los na condição de protagonistas das suas opções e decisões
junto às autoridades coloniais.
Dessa maneira, este texto se propõe a discutir a história dos Kain-
gang e de sua luta pela retomada das terras do aldeamento de Atalaia,
analisando a trajetória de um personagem pouco conhecido na história
dos índios da região sul, ou seja, Francisco Luiz Tigre Gacom, liderança
indígena residente na vila de Guarapuava, na província do Paraná, no
século XIX.
Francisco Gacom pertence ao povo Kaingang, o maior grupo Jê do
sul do Brasil. O território de ocupação dessa etnia compreende o oeste do
estado de São Paulo, os estados do Paraná, de Santa Catarina e a porção
norte do Rio Grande do Sul. Sua população está estimada em torno de
45.620 mil pessoas, distribuídas em 46 terras indígenas, conforme os da-
dos censitários do IBGE de 2010.5 Conforme os apontamentos realizados
por Luiz Fernando da Silva Laroque, os Kaingang se dividem ao longo
das principais bacias hidrográficas:

[...] dos rios Tietê, Feio, Aguapeí e Paranapanema (São Pau-


lo); Bacias hidrográficas dos rios Tibagi, Ivaí, Piquiri e Iguaçu
(Paraná); e Bacias hidrográficas entre os rios Iguaçu e Uru-
guai (em Santa Catarina). Avançavam pelos territórios das
Bacias hidrográficas dos Rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio
(Misiones na Argentina) e ainda sobre os territórios das Ba-
cias hidrográficas dos rios Sinos, Caí, Taqueri, Jacuí e Uru-
guai (no Rio Grande do Sul)6.

De acordo com a linguista do Summer Institute of Linguistics, Ursula


Wiesemann, existem variações na sua língua, contabilizando cinco diale-
tos, ou seja:

5  https://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaingang. Acessado em 15/05/2017.


6  LAROQUE, Luiz Fernando da Silva. Fronteiras geográfica, étnicas e culturais envolven-
do os Kaingang e suas lideranças no sul do Brasil (1889-1930). Pesquisas/Instituto Anchie-
tano de Pesquisas. São Leopoldo/RS: Unisinos, 2007, p. 9.

100 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Dialeto de São Paulo – entre Tietê e Paranapanema; Dialeto
do Paraná – entre Paranapanema e Iguaçu; Dialeto Central
– entre Iguaçu e Uruguai; Dialeto Sudoeste – ao sul do Uru-
guai, oeste de Passo Fundo e; Dialeto Sudeste – ao sul do
Uruguai, leste de Passo Fundo7.

Além dessas informações linguísticas e sobre as divisões territoriais,


Greg Urban afirma que o grupo iniciou sua migração por volta de 3 mil
anos atrás, a partir dos planaltos próximos aos rios São Francisco e Ara-
guaia, no Brasil central8. Embora haja um marco dessa migração rumo
ao sul, não se sabe exatamente quando teriam chegado na região nem os
motivos que fizeram com que ocupassem as margens dos principais rios
da região sul.
As pesquisas historiográficas sobre Francisco Gacom, apesar de ele
ser um dos principais caciques Kaingang do século XIX, pouco avança-
ram. Ao investigarmos um pouco mais sua trajetória, encontramos um
breve relato no livro As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios
Kaingang no Paraná (1769-1924), de Lúcio Tadeu Mota. Depois de discor-
rer, cronologicamente, sobre os vários embates entre os Kaingang e os
não indígenas, desde o primeiro contato nos anos finais do século XVIII
até as três primeiras décadas do século XX, Mota apresenta um pequeno
relato sobre a indicação de Francisco Gacom para cacique do aldeamen-
to de Marrecas, em 18809. Outra referência sobre Francisco Gacom pode
ser encontrada na tese de Luiz Fernando da Silva Laroque, dedicada ao
estudo das lideranças indígenas Kaingang na região sul do Brasil entre os
anos de 1889 e 1930. Nesse trabalho, Laroque descreve Francisco Gacom
como principal aliado de Paulino Arack-Xó na luta pela posse dos terri-

7  WIESEMANN, Ursula. Os dialetos da Língua Kaingang e Xokléng. Arquivos de Anato-


mia e Antropologia. Rio de Janeiro: 1978, Vol III – Ano III, p. 199. Disponível na Biblioteca Curt
Nimuendajú: http://biblio.etnolinguistica.org
8  URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Ma-
nuela Carneiro da (Org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1992, p. 90.
9  MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kain-
gang no Paraná (1769-1924). Maringá/Pr: Eduem, 2009, p. 265.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 101
tórios do vale do rio Ivaí, chegando inclusive a negociar a demarcação de
terras com as autoridades provinciais10.
A organização espacial dos Kaingang recebeu um novo significa-
do quando Francisco Gacom adotou a vila de Guarapuava como seu
território sócio-político. Metodologicamente, ao partir dessa afirmação,
esta pesquisa se orienta por uma redução de escala de observação. Desse
modo, a vila de Guarapuava surge enquanto espaço inserido em com-
plexas relações sociais e culturais tanto entre os Kaingang ali residentes
quanto na sociedade local. Para Jacques Revel, um dos principais ex-
poentes desse campo de análise, “a aposta da análise microssocial – e
sua opção experimental – é que a experiência mais elementar, a do grupo
restrito, e até mesmo do indivíduo, é a mais esclarecedora porque é a
mais complexa e porque se inscreve no maior número de contextos dife-
rentes”11.
Assim, se um estudo sobre o espaço geográfico e social de Guara-
puava no século XIX se torna indispensável, isso também acontece em
relação à pesquisa da trajetória de Francisco Gacom através de diferentes
contextos. Observe-se que, nas pesquisas das trajetórias de indivíduos de
quaisquer origens sociais, também é preciso assumir a responsabilidade
pela reconstrução do contexto social, ou seja, dos espaços onde eles for-
taleceram e ampliaram suas relações sociais, políticas e culturais:

O indivíduo não tem como missão revelar a essência da hu-


manidade; ao contrário, ele deve permanecer particular e
fragmentado. Só assim, por meio de diferentes movimentos
individuais, é que se pode romper as homogeneidades apa-
rentes (por exemplo, a instituição, a comunidade ou o gru-
po social) e revelar os conflitos que presidiram à formação e
à edificação das práticas culturais: penso nas inércias e nas

10  LAROQUE, Luiz Fernando da Silva. Fronteiras geográficas, étnicas e culturais envol-
vendo os Kaingang e suas lideranças no sul do Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado.
UNISINOS-PPGH: São Leopoldo/RS, 2006, p. 107.
11  REVEL, Jacques. Microanálise e Construção do Social. In: REVEL, Jacques (Org.) Jogos de
Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998, p. 32.

102 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ineficácias normativas, mas também nas incoerências que
existem entre as diferentes normas, e na maneira pela qual
os indivíduos, “façam” eles ou não a história, moldam e mo-
dificam as relações de poder12.

Giovanni Levi destaca a necessidade de preservar o espaço social


em que o indivíduo mantém suas relações sociais. Essas trajetórias indi-
viduais estão imersas em um contexto e ele tem a função de suprir vazios
nas fontes documentais, nas instâncias em que há carência documental
sobre determinado indivíduo. Nesse caso, o contexto em que o indivíduo
pesquisado vive – na medida em que ele for comparado a outros perso-
nagens similares, contemporâneos ao enredo e com trajetórias parecidas
– contribui para a compreensão das estratégias escolhidas na sociedade
nacional. É com esse objetivo que Levi explora em sua escrita “a relação
entre as normas e práticas, entre indivíduo e grupo, entre determinismo e
liberdade ou ainda entre racionalidade absoluta ou limitada”13.
Esses aspectos são fundamentais na pesquisa da trajetória de vida
de pessoas que viveram em contextos específicos e cujas condutas não se
submeteram, por exemplo, aos efeitos desejados pelas imposições norma-
tivas das autoridades imperiais em determinadas regiões – nas quais as
práticas locais e os códigos culturais de determinado grupo apresentaram
certas incoerências e contradições em relação às normas vigentes. Isso
implica observar qual a racionalidade ou quais as opções e estratégias
políticas são permitidas ao indivíduo ou subvertidas por ele na interação
com o grupo ao qual pertence. Os estudos micro-históricos reforçam o
argumento de que a redução da escala de observação se torna um pro-
cedimento importante para ampliar o campo de análise da sociedade da
qual o indivíduo faz parte. Nessa perspectiva, trata-se, então, de identifi-
car as estruturas sociais atribuindo sentidos diferentes para as estratégias
sociais dos indivíduos.

12  LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.) Jogos de
Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998p. 249.
13  LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína.
Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 179.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 103
Aquilo que uma análise macro não conseguiria visualizar exatamen-
te, porque seu objeto de análise não permitiria incluir, entre as hipóteses
de pesquisa, as contradições e as experiências individuais, a micro-his-
tória toma para si a fim de revelar como os processos se desenrolam em
uma determinada localidade e como os indivíduos subvertem uma ordem
previamente estabelecida. A respeito desse campo da história, Henrique
Espada Lima alerta que, se observamos os “argumentos que inspiraram
os trabalhos dos micro-historiadores [...], podemos encontrar um progra-
ma de pesquisa que compreendia muito claramente a necessidade de in-
tegrar as singularidades da realidade histórica com os processos sociais
de grande fôlego e longo alcance”14.
Outro aspecto interessante que tem fortalecido as pesquisas interdis-
ciplinares entre a história e a antropologia surge especialmente através dos
estudos da temática indígena e da abordagem etnohistórica. A etnohis-
tória é um dos campos de possibilidades que, juntamente com a análise
micro-histórica, contribui para o modo de interpretação das trajetórias in-
dividuais, notadamente daqueles personagens que foram silenciados por
outras abordagens históricas. Daí que, na condição de metodologia de
pesquisa, a etnohistória venha conquistando cada vez mais espaço entre
os pesquisadores brasileiros que se dedicam à temática indígena.
Entretanto, deve-se observar alguns cuidados no momento de lan-
çar mão dessa metodologia, uma vez que é preciso dar um passo além
de apenas dominar os métodos da história ou da antropologia. Segundo
Trigger (1982, p. 1-19), “[…] os etno-historiadores devem dominar ainda
a arte de usar essas duas abordagens de maneira integrada”. Ou seja, se
o historiador deve analisar as fontes e questioná-las a fim de entender as
ações dos sujeitos a partir da cultura em que eles estão inseridos, o an-
tropólogo também deve se pautar pela compreensão histórica da cultura
desses sujeitos, suas ações e trajetórias ao longo do tempo.

14  LIMA, Henrique Espada. No baú de Augusto Mina: o micro e o global na história do traba-
lho. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, p. 571-595, jul/dez. 2015, p. 582/583.

104 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A luta pelas terras do aldeamento de Atalaia
Os campos de Guarapuava compreendem atualmente a região cen-
tro-oeste do estado do Paraná. Na virada do século XIX, esses campos
pertenciam à região sudoeste da província de São Paulo e estavam juridi-
camente submetidos à vila de Castro:

Guarapuava fazia parte da 5ª comarca tendo como cabeça


do termo Castro. Esta povoação teve antigamente o nome de
Yapó, por se ter fundado na margem do rio da mesma deno-
minação. Foi fundada no anno de 1788 e depois erecta em
Villa em 1798. O seu districto abarca um extenso território
[...] D’ella se formou um só termo em razão de muito terreno
que abrange. Comprehende quatro Freguezias, a saber: [...]
Jaguaraíba; [...] Ponta Grossa; [...] Tibagi; [...] N. Sra. Do Be-
lém de Guarapuava15.

A partir da segunda metade do século XVIII, essa área foi objeto


de diversas bandeiras exploratórias, quando as autoridades portuguesas,
preocupadas com uma possível invasão dos espanhóis, reuniram esforços
humanos e econômicos para defendê-la e, assim, garantir a expansão dos
domínios portugueses. Nesse momento, acreditava-se que o sucesso do
empreendimento dependia da promoção de uma população estável e pre-
parada para empunhar armas em nome do rei de Portugal. Essas expe-
dições setecentistas através do sertão dos campos de Guarapuava foram
coordenadas por Dom Luiz Antonio Mourão, Morgado de Mateus, que,
além de garantir o domínio sobre esses territórios, também tinha outros
objetivos:

[...] devemos entender que a política adotada pelo governo


foi de expansão de fronteiras, baseadas em expedições mi-

15  MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo.
Ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. São Paulo: Typo-
graphia de Costa Silveira, 1838, p. 72.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 105
litares de defesa, sem dúvida, para incrementar sua política
econômica e social, baseadas nas transformações agrícola e
populacional, visando, assim, ao desenvolvimento daquelas
áreas relativamente vazias. Portanto, o processo de ocupação
e povoamento de Guarapuava não foi espontâneo16.

A primeira tentativa de ocupação da região não se concretizou de


acordo com o projeto das autoridades paulistas. Perto de completar qua-
renta anos, desde que os expedicionários haviam abandonado sua ocupa-
ção, o projeto de povoamento dessa área se fortaleceu com o estabeleci-
mento de Dom João VI no Brasil, em 1808. O príncipe regente, por meio
da Carta Régia de primeiro de abril de 1809, determinou a ocupação e
o povoamento dos campos de Guarapuava. Assim, para chefiar tal em-
preendimento, ele delegou o tenente-coronel Diogo Pinto de Azevedo
Portugal, que, na época, prestava serviços militares em Curitiba. Para a
assistência religiosa dos membros da expedição e para o trabalho tanto
de assimilação quanto de conversão dos indígenas, através da catequese,
designou o padre Francisco das Chagas Lima17.
A expedição chegou aos campos de Guarapuava em 1810. Embo-
ra os indígenas tivessem conhecimento da chegada dos expedicionários
aos seus territórios, o trabalho de catequese e conversão dos Kaingang
começou em 1812, depois que um destacamento militar os encontrou às
margens do rio Cavernoso. Eles foram conduzidos até o alojamento dos
povoadores e lá o padre Chagas Lima imediatamente batizou Francisco
Netxian, primeiro Kaingang a receber o sacramento do batismo no sécu-
lo XIX18.

16  NETTO, Fernando Franco. População, escravidão e família em Guarapuava no século


XIX. Guarapuava/Pr: Unicentro, 2007, p. 48.
17  CARTA RÉGIA 01/04/1809. “Aprova o plano de povoar os Campos de Guarapuava e de
civilizar os índios bárbaros que infestam aquelle território”. In: CUNHA (a), Manuela Carneiro
da (Org.) Legislação Indigenista no Século XIX. São Paulo: Edusp, Comissão Pró-Índio, 1992,
pp.69-72.
18  LIMA, Francisco das Chagas. Livro de Assentos de Baptismo de Pessoas Livres de
Nascimento nº 1: desde 13 de março de 1810 até 4 de setembro de 1867. Arquivo da Paróquia
Nossa Senhora de Belém de Guarapuava, f. 3v.

106 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Somente com a criação da Freguesia de Nossa Senhora de Belém,
em 1819, os alojamentos iniciais passaram a fazer parte do aldeamento
de Atalaia, criado nesse mesmo ano por meio de carta de sesmaria – nes-
tes termos:

Fazemos saber aos que esta nossa Carta de Sesmaria virem


que sendo necessário e mui conforme as Reais Ordens desti-
nar lugares competentes para as lavouras e estabelecimentos
dos Índios, e que quizerem aldear, tendo-se conseguido de-
mover os animos de muitos dos que habitavão nos Sertoens
incultos de Guarapuava a virem se ligar em sociedade, e sen-
do por isso conveniente escolher hum terreno para formar
[...] estabelecimento dos mesmos índios de comum acordo
com o Pe. Francisco das Chagas Lima [...] Temos designa-
do o terreno compreendido entre os Rio Coutinho e Lageado
Grande, havendo por nós por bem conceder aos ditos índios
conversos e convertendo por Carta de Sesmaria [...] para seo
patrimônio, e nellas crearão e a reduzirão a cultura [...] Orde-
namos ao comandante da expedição e mais pessoas a quem o
conhecimento desta pertencer deem posse aos mencionados
índios19.

Com a transferência dos povoadores para um espaço destinado à


fundação da freguesia, o aldeamento ficou sob responsabilidade do ca-
cique e “capitão dos índios” Luiz Tigre Gacom até 1825, quando foi
atacado e destruído por outra facção Kaingang, totalizando 28 mortos;
entre eles, o cacique. Depois desse conflito, o padre Chagas Lima op-
tou por transferir todos os sobreviventes para um local mais próximo da
freguesia, ao qual deu o nome de “Nova Atalaia”. Nos anos seguintes,
os documentos escritos pelas autoridades locais – militares e religiosas
– continuaram tratando por muito tempo os indígenas como aldeados,

19  REPERTÓRIO DE SESMARIAS: Concedidas pelos capitães Generais da Capitania de


São Paulo, desde 1721 até 1821. Secretaria da Educação e Saúde pública. Org. pela Secção His-
tórica do Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo: Typ. do Globo, 1944, Livro 40,
folha 92v.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 107
como se propriamente ainda existisse um aldeamento em Guarapuava.
Em função do conflito de 1825 e enquanto não havia definições exa-
tas sobre os encaminhamentos relativos aos sobreviventes, as terras do al-
deamento de Atalaia ficaram sob a responsabilidade do capitão Antônio
da Rocha Loures.
A documentação sobre os indígenas de Guarapuava reconhece o al-
deamento de Atalaia como sendo o único do gênero naquele território.
O principal documento que atesta sua confirmação é a Carta de Doação
de Sesmaria, datada de 1818. No entanto, analisando outros documentos
do período, em especial um mapa datado de 1811 e uma correspondência
escrita pelo capitão Antônio da Rocha Loures aos camaristas de Cas-
tro, em 1831, é possível constatar a existência de um território chamado
“Sepultura”20. Embora esse local não tenha sido objeto de análise pela
historiografia local, ele é reclamado pelos indígenas remanescentes de
Atalaia como lugar de antiga morada dos seus ancestrais. Entretanto,
a tarefa de identificá-lo e localizá-lo através da documentação existente
não tem sido das mais fáceis, embora um mapa desenhado por Manuel
Soares do Valle, em 1811, seja fundamental para que se possa concretizar
esse interesse.
Naquela época, o território de Sepultura era um lugar conhecido
pelas autoridades locais. Em resposta à Câmara Municipal de Castro,
Antônio da Rocha Loures refletia sobre uma série de questões referentes
aos indígenas de Guarapuava e reafirmava a existência de um território
reservado para reunir os indígenas da região. Entre as informações rela-
cionadas em 1831, é interessante observar a descrição do comandante
sobre essas terras:

eles [os índios] tem hua sesmaria de campos no lugar deno-


minado Sepultura, está se acha devoluta, isto é tenho conser-
vado os animais [...] para os ditos não povoarem, parece ser

20  LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência a Câmara Municipal de Castro. Guara-


puava: 19/09/1831. AESP, C-192, O-987.

108 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


justo que se compre animais e formar hua fazenda naquele
dito lugar reservado para eles21.

E ainda: “este campo está reservado para os índios, segdo versava a


carta Régia de 1809”22.
Entre as pesquisas feitas sobre Guarapuava e sobre o aldeamento
sempre se destacou a existência de apenas uma sesmaria, a de Atalaia.
No entanto, ao elaborar a documentação destinada às autoridades pau-
listas, o capitão Antônio da Rocha Loures menciona que a sesmaria dos
Kaingang era a de Sepultura e não a de Atalaia. Essa estratégia inibia
qualquer possibilidade de permanência, bem como de reclamação de
posse do aldeamento de Atalaia pelos indígenas, visto que as terras já
estavam sendo ocupadas por alguns potentados locais através do regime
de arrendamento.
Nos anos seguintes ao documento citado há pouco, houve uma dis-
puta de âmbito local e provincial sobre os terrenos demarcados para o
aldeamento, tanto de Atalaia quanto dessa nova área denominada Sepul-
tura. O debate recaía sobre o uso e o destino das terras do aldeamento.
Da parte de Antônio da Rocha Loures, era possível perceber certa preo-
cupação em preparar a fazenda a fim de que ela garantisse alguns meios
de sobrevivência para os Kaingang, por exemplo, quando ele mencionava
a necessidade de compra de animais, fosse para suprir suas necessidades,
fosse para promover o comércio23.
Em tese, os lucros obtidos com essas atividades seriam revertidos
para suprir as demandas indígenas – sem que elas onerassem os cofres
públicos, portanto. Foi com estes termos que Antônio da Rocha Loures
prestou informações ao presidente da província de São Paulo em seu re-
latório, datado de 18 de fevereiro de 1834:

Os campos que se demarcou aos indígenas tenho alugado a


várias pessoas, visto que se achaca a maior parte deles de-
volutas, o que fiz declarando ser até última ordem de V.Exa.
para se comprar animais de criar aos indígenas cuja ordem

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 109
já tive dos antecessores de V. Exa. Porém pela falta de rendi-
mento nada tenho obrado, agora tenho tratado sem rezes de
criar, o que sendo do agrado de V. Exa. Efetuarei a compra, é
muito necessário se formar ali uma fazenda para o alimento
dos indígenas, pois segundo o lugar podendo logo dali comer
e então evitar maior despesa a nação para sua subsistência,
pondo-se ali não só as rezes e ovelhas que forem precisas
para o princípio da fazenda, como também algumas éguas
para dali retirarem cavalos para o custeio da mesma. Isto é o
que acho necessário24.

Partindo desse documento, podemos extrair duas informações bas-


tante interessantes sobre a sesmaria dos Kaingang. A primeira questão
a ser destacada diz respeito à afirmação do capitão Rocha Loures sobre
ter havido uma demarcação de terras para o aldeamento. Ou seja, não se
tratava apenas de um papel escrito com as respectivas medidas, mas sim
de uma área bem definida destinada aos Kaingang aldeados. O fato de
ele mencionar que essas terras estavam demarcadas assinala, com base na
legislação da época, que elas já não estavam disponíveis para que outras
pessoas reclamassem sua posse. Contudo, sabemos que essas mesmas leis
não eram cumpridas especialmente quando terras de aldeamentos esta-
vam em questão.
Por outro lado, mesmo com o indicativo do capitão Rocha Loures
de que era fundamental tornar essas propriedades produtivas para que
elas servissem de fontes de recursos para as despesas com os indígenas, a
província de São Paulo, por meio da lei orçamentária de 1836, dispendeu
de um valor considerável “com a cathequese, e civilisação dos indigenas,
e expediente de Guarapuáva 2.700$000.”25
Pelo teor do documento, se a província de São Paulo ainda reserva-
va recursos para a catequese dos indígenas, é possível considerar que a

24  LOURES, Antonio da Rocha. Relatório enviado ao Presidente da Província de São


Paulo. 18 de fevereiro de 1834. AESP, caixa 193, ordem 0988.
25  RIBEIRO, José Cesario de Miranda. Lei orçamentaria nº 40, de 18 de março de 1836. In:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1836/lei-40-18.03.1836.html. Acesso em
01/05/2019.

110 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


compra de animais, por parte do capitão Rocha Loures, tenha sido feita
com essa verba, justamente porque ela também deveria suprir as despesas
com alimentação, roupas e ferramentas destinadas tanto aos Kaingang
aldeados quanto àqueles que se aproximavam da freguesia.
Embora as proposições do capitão Rocha Loures tenham sido con-
sideradas interessantes pelas autoridades da época, nos anos seguintes,
o que se pôde perceber foi exatamente o oposto. Nos primeiros dias de
1839, o juiz de paz26 de Guarapuava, Antônio de Sá Camargo, enviou
uma correspondência ao presidente da província de São Paulo manifes-
tando seu descontentamento com as terras que haviam sido reservadas
para os aldeamentos:

Existindo aqui os ditos terrenos por tanto tempo sem ocu-


padores para que estavam reservadas para os indígenas, há
alguns anos a esta parte que aí se tem estabelecido alguns
moradores, e consta-me que o fizeram com o consentimen-
to do comandante da expedição que arrendou-lhes os ditos
terrenos para o que também consta que estava autorizado,
porem ultimamente tem ocorridos fatos que denotam que os
ditos ocupadores atribuem-se senhores dos ditos terrenos,
para que alguns tem vendido as partes que ocupam a pro-
priedade sua, não reconhecendo que as possuem como sim-
ples arrendatários, o que priva a expedição de um meio de
acomodar os índios que a catequese tivesse sujeitado27.

Além de usar as terras de Sepultura para a criação de animais, o co-


mandante Antônio da Rocha Loures autorizou que elas fossem arrenda-
das pelos moradores da freguesia a fim de que ali fizessem suas lavouras e
invernassem seus animais. De todo modo, o arrendamento das terras dos
aldeamentos causava prejuízos irreversíveis para os indígenas, pois, de
acordo com Marina Monteiro Machado, o arrendamento dava brechas

26  De Acordo com Sposito (Op.cit. p. 78), o juiz de paz ou de órfãos cuidava dos bens e dos
interesses dos indígenas.
27  CAMARGO, Antonio de Sá. Oficio ao Exmo. Sr. Presidente Provincial. 12/01/1839.
AESP, C-192, O-987.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 111
para que ocorresse a invasão desses territórios pelos potentados locais28.
O juiz de paz, ao denunciar a invasão das terras de Sepultura pelos
arrendatários, que se declaravam donos daqueles espaços, também fez a
ressalva de que toda essa negociação – desde o arrendamento até a per-
missão para permanecer nas terras do aldeamento – tinha o consentimen-
to do comandante Rocha Loures. Era ele quem autorizava o arrendamen-
to das terras indígenas e era ele quem se responsabilizava pela cobrança
dos respectivos valores. Resta saber se os lucros eram efetivamente rever-
tidos para os Kaingang. Tudo leva a crer que a denúncia feita pelo juiz
de paz foi inútil, sem que se produzisse qualquer reação das autoridades
provincianas, pois os problemas se acentuaram dia após dia. Já em sua
correspondência, Antônio da Rocha Loures afirmava que não havia mais
“indígenas aqui aldeados, estão auzentes desta aldeia”29.
Essa situação desencadeou o primeiro conflito pela posse das terras
do aldeamento entre os Kaingang e os potentados locais. Em maio de
1836, os Kaingang que estavam mais próximos da freguesia atacaram o
núcleo populacional. A população local estava preparada militarmente
para se defender de qualquer ataque desde 1835, quando o juiz de paz
articulou a defesa da freguesia com os militares estacionados e membros
da sociedade local. Contando com um arsenal militar superior às armas
usadas pelos indígenas, os povoadores mataram 45 Kaingang daqueles
54 que haviam sido relacionados na comunicação enviada às autoridades
paulistas:

Cumpre-me comunicar V. Ex. que o sossego público nesta
povoação foi alterado no dia 1º de maio do corrente, pelas
oito horas da manhã, por um grupo considerável de indíge-
nas que pretendia surpreender-nos graças ao todo poderoso
que tão filantropicamente nos protegeu, os inimigos eram em
número de 54 índios, algumas mulheres e um recém-nasci-
do, a força que empreguei de comum acordo com o juiz de

28  MACHADO, Marina Monteiro. A trajetória da destruição.


29  LOURES, Op. cit., p. 2.

112 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


paz para a defesa desta freguesia foi mais que suficiente para
obstar seus planos hostis, o ponto de vista que traziam os in-
surgentes era ganhar o amago da povoação, o que conhece-
mos perfeitamente. Nenhuma dúvida puzemos em deixá-los
seguir com a condição, porém deporem principalmente as
armas no que não quizeram aceitar, puzeram-se imediata-
mente em atitude de combate flexando logo a um cidadão
que fazia parte da guarda deferida no braço direito. Este in-
sulto deo lugar que a mesma guarda se puzesse em movimen-
to rompendo um vivo fogo contra tais malvados, o combate
durou meia hora pouco mais ou menos, e a vitória foi nossa,
concluída a ação passamos excrupulozamente a examinar o
número de mortos, contamos 45, a excessão de algumas que
se achavam lesados outros sem terem recebidos ofensa algu-
ma com o indígena menor que conseguimos apreende-lo sem
receber ofensa e este entregue ao nosso cuidado30.

Embora os documentos sustentem que, depois das ações repressivas


contra os Kaingang, houve certa tranquilidade na freguesia, esse trecho
também reflete uma visão bem diferente dos argumentos apresentados
pelas autoridades locais. Em nossa compreensão, esse conflito surgiu
como manifestação clara desses grupos locais, formados por indivíduos
vindos de diversas partes lutando constantemente pela expulsão desses
povoadores.
Em 12 de março de 1850, através de um ofício encaminhando ao
presidente da província de São Paulo, o juiz municipal suplente do termo
da vila de Castro transmitiu informações sobre um possível conflito sobre
as terras e os campos denominados “Sepultura”. Ainda que os morado-
res da região já tivessem testemunhado o recebimento do título de vila
de Guarapuava, em 1849, as terras ainda estavam submetidas às auto-
ridades constituídas em Castro. Portanto, as petições e os ofícios eram
encaminhados inicialmente para essa instância e só depois seguiam para

30  LOURES, Antonio da Rocha. Ofício encaminhado ao presidente da Província de São


Paulo. 8 de maio de 1836. AESP, caixa 193, ordem 988, f. 1.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 113
o presidente da província. Nessa ocasião, o juiz municipal solicitava pro-
vidências do diretor geral dos índios em relação ao seguinte fato:

Levo a presença de V. Exa. a cópia inclusa do ofício que em


data de 12 do mês passado me dirigiu o Juiz Municipal Su-
plente do Termo da Vila de Castro, narrando o seu proce-
dimento sobre uma questão de posses de campos e terras
de cultura no lugar denominado – Sepultura – no Distrito
de Guarapuava entre Manuel Moreira dos Santos Junior e
Joaquim Bernardes, conhecido pelo nome de – Bugreiro –, o
qual aconselha e seduz aos indígenas do lugar e a outros pro-
prietários para que por meios irregulares e ilegais reivindi-
quem esses campos e terras, que diz pertence-lhes, e recean-
do o dito Juiz Municipal algum conflito ou sérias desordens
pede providências da parte do Diretor Geral dos Índios desta
Província31.

Nessa ocasião, Theofilo Ribeiro de Rezende ocupava o cargo de che-


fe de polícia interino na província de São Paulo. Como o documento
tratava de uma disputa, cujas consequências poderiam resultar em vá-
rias mortes na vila de Guarapuava, o juiz municipal de Castro, Lourenço
Marcondes Ribas, encaminhou as contendas diretamente para a força
policial. No documento, Marcondes Ribas relatou que, no dia 9 de mar-
ço de 1850, Manuel Moreira dos Santos Junior compareceu em Castro
munido de alguns documentos probatórios de que ele era legítimo pro-
prietário de uma porção de terras no lugar denominado Sepultura e que
um homem, conhecido como Bugreiro, incitava os indígenas residentes
na vila de Guarapuava para que o acompanhassem na ocupação do dito
terreno, afirmando que eles eram de propriedade dos “índios”32. O juiz

31  REZENDE, Theofilo Ribeiro de. Disputa de Terras entre Manuel Moreira dos Santos
Junior e Joaquim Bernardes Bugreiro e Índios. São Paulo: 03 de abril de 1850. AESP – Ar-
quivo Estadual de São Paulo, Código 2454, caixa 19, ordem 18500312, p. 1.
32  RIBAS, Lourenço Marcondes. Ofício encaminhado ao Diretor Chefe de Polícia Interino
desta Província. Castro: 12 de março de 1850. AESP –Arquivo Estadual de São Paulo, Código
2454, caixa 19, ordem 18500312, p. 1.

114 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


municipal fez o seguinte registro no documento encaminhado a Rezende,
conforme o relato de Manuel Moreira:

Consta-me que os Campos denominados Sepultura foram


concedidos aos indígenas pelo Governo, por três vidas, sendo
a 1ª da geração presente; se porém eles tem direito, o que não
contesto, aos ditos Campos, parece-me que deviam lançar
mão dos meios legais e competentes, e não despoticamente,
por pérfidos conselhos do dito Bugreiro, homem proletário e
vagabundo, e quiçá instrumento de algum mal intencionado,
que parece provocar uma desordem para criar óbices a mar-
cha regular da administração da Justiça33.

O estancieiro Manuel Moreira se servia de um conjunto de questões
que nem mesmo a província sabia responder, sugerindo que os indígenas
apresentassem para as autoridades competentes os documentos compro-
batórios de que eram legítimos proprietários das terras dos campos da Se-
pultura. Dessa forma, Manuel Moreira desafiava várias instâncias admi-
nistrativas da província de São Paulo a que elas também apresentassem
os títulos definitivos da terra reclamada pelos Kaingang. Ademais, sobre
o homem cujo apelido era Bugreiro, o dito Joaquim Bernardes, não ob-
tivemos outras informações além daquelas mencionadas no documento,
ou seja, que ele era casado com uma mulher indígena e que vivia entre
eles.
Para auxiliá-lo na intenção de ocupar o campo da Sepultura, Joa-
quim Bernardes contava com o apoio de outros indígenas residentes em
Guarapuava e em Palmas. De acordo com o juiz municipal, o Bugreiro
“aconselha aos incautos indígenas e a alguns canalhas que fugindo de
outros pontos d’esta Província, para ali tem se refugiado, e casado na
família d’aqueles, para cometerem semelhante atentado”34.

33  Idem.
34  Idem.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 115
Ao que parece, Manuel Moreira não apenas convenceu as autorida-
des paulistas sobre a autenticidade dos documentos que apresentou, de-
clarando-se legítimo proprietário das terras que ocupava, como também
abafou o movimento encabeçado pelo bugreiro Joaquim Bernardes. Não
encontramos outras informações sobre o desfecho dessa disputa pelas ter-
ras do aldeamento. Entretanto, esse movimento desencadeou uma série
de outras disputas pela posse dessas terras – agora, sob a liderança de
Francisco Gacom.
Mesmo que houvesse um número considerável de indígenas vivendo
perto da população local, uma boa parte ainda permanecia bem longe
do núcleo populacional e, sempre que possível, atacava as fazendas mais
afastadas da vila, próximas aos seus alojamentos tradicionais. Em um
desses casos, descobrimos que Francisco Gacom exercia uma função so-
cial importante junto aos cargos jurídicos disponíveis para manter e exe-
cutar as leis em vigência.
Em um ataque análogo, o delegado de polícia de Guarapuava, Agos-
tinho José de Almeida Queiroz, buscou auxílio de outro cacique para
convencê-los a não mais empreender invectivas sobre as propriedades da
região. Para isso, optou-se por convocar o cacique Viri, que foi orientado
pelo delegado a buscar meios de persuadir a evitar conflitos. Caso não
entrassem em acordo, Viri poderia pressioná-los a se distanciarem das
propriedades ocupadas pelos fazendeiros35. A fim de supervisionar e de
conter qualquer excesso tanto do cacique Viri quanto de seus guerreiros,
o delegado de polícia determinou que um oficial de justiça os acompa-
nhasse. Ao retornar, o oficial de justiça fez o seguinte relato:

Em consequencia do mandato retro:certifico que acompa-


nhei ao cassique Vyry com sua gente mandados pelo sr. De-
legado de Policia d’esta Villa, para percorrer as margens do
certão do Payquere afim de affugentar os selvagens ou tra-
selos por meio brandos e que encontrando o Cassique Vyry

35  QUEIROZ, Agostinho José de Almeida. Ofício 25 de junho de 1855. Delegacia de Guara-
puava: Mandatos Avulsos, 1855-1861. AMG – Arquivo Municipal de Guarapuava – Unicentro, p. 1.

116 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


vestigios dos selvagens nas imediações do Xangú singuin-
do-os encontrou na estrada oqual os conduzio e tendo ahi
chegado as oito horas da manha do dia 8 de julho, quiserão
os Índios selvagens fugir com nossa vista, porem o Cassique
Vyry adiantando-se os disse que não os hia faze mal porem
busca-los, eles voltando cercarão o mesmo cassique com sua
gente e logo que voltarão do seo assombro, principiarão por
atacar os de Vyry enquanto este se entretinha com hum dos
selvagens afim de convencelo a que o seguisse, então este deo
ordem de empregar força de cujo conflito seguiu de algums
mortos e outros feridos e ficando feridos da gente de Vyry
oito feridos, depois que os selvagens abandonarão seu toldo,
apresionarão cinco indias criadas e dois pequenos, os quais o
conduzio ate esta. Guarapuava, 6 de agosto de 1855. Francis-
co Luiz Tigre, o Ficial de Justiça36.

A partir desse relato, podemos inclusive aprofundar alguns questiona-


mentos em torno da trajetória de Francisco Gacom na vila de Guarapua-
va. Em relação aos conflitos ocorridos entre os Kaingang não aldeados e
os potentados locais, sabe-se que ele não interferiu em nenhum momento
para diminuir ou acabar com os ataques. Pelo contrário, Francisco Ga-
com tinha consciência de que seu alcance como liderança indígena estava
restrito aos Kaingang aldeados. Os grupos locais que orbitavam o núcleo
populacional tinham uma autonomia própria e não se importavam com
os indígenas que haviam aceitado viver perto da sociedade local. Mesmo
assim, alguns deles vinham até a vila em busca de objetos e ferramentas
ou mesmo para visitar parentes que residissem no rocio ou em bairros
próximos.
Ao agir desse modo, ou seja, permanecendo próximo aos povoado-
res e liderando os Kaingang aldeados, Francisco Gacom faz uso de uma
estratégia política interessante. No decorrer dessas situações, percebe-se a
existência de um processo de transformação no seu modo de agir, pois ele
chega a ocupar posições sociais aparentemente “incomuns”, como o car-

36  Idem, p. 2.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 117
go de oficial de justiça, em Guarapuava37. Não identificamos documen-
tos que pudessem nos trazer mais informações sobre como ele chegou
ao posto de oficial – restam algumas perguntas, por exemplo: nomeado
por quem? Suas atividades estavam restritas aos conflitos envolvendo os
indígenas? Quando deixou de exercer esse cargo?
De todo modo, sabemos que, na sua infância, Francisco Gacom con-
viveu com a família do capitão Rocha Loures, seu padrinho de batismo.
Nesse espaço, aprendeu a falar melhor o português, a ler e a escrever. Ao
mesmo tempo que recebia influência sobre seu modo de vida, ele tam-
bém partilhava seus conhecimentos38 com os filhos do capitão, Francisco
Ferreira da Rocha Loures e João Cypriano da Rocha Loures.
Depois de um longo período de silêncio sem que nenhuma legisla-
ção geral para povos indígenas fosse sequer cogitada, no dia 24 de julho
de 1845, o governo imperial publicou o Decreto nº 426, com o título
de “Regulamento acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Ín-
dios”. Ele foi o único documento indigenista de caráter mais geral produ-
zido pelo Império e visava ao restabelecimento de um regramento válido
para todas as questões que envolvessem a temática indígena.
Manuela Carneiro da Cunha ressalta que o “Regulamento das Mis-
sões de 1845” orientava a remoção dos indígenas de seus territórios tra-
dicionais e incentivava a reunião deles em aldeamentos. Além do mais,
autorizava o arrendamento de suas terras para quem quer que pudesse
cultivá-las. Com isso, gradativamente, os potentados locais começaram
a pressionar as câmaras municipais e os governos provinciais a fim de
obterem os terrenos dos aldeamentos, sob o pretexto de que os indígenas
haviam abandonado suas terras39.
Em 1850, o governo imperial promulgou uma lei, a “Lei de Terras”

37  De acordo com a publicação de um memorialista local, Francisco Luiz Tigre Gacom compa-
receu na casa do Major Francisco Manoel de Assis França, juiz municipal e de órfãos, 3º suplente,
no dia 20 de julho de 1858 para prestar promessa de oficial de justiça no Juízo Municipal e de
Órfãos. Entretanto, acreditamos que possa haver um erro no ano em que ele assumiu tal função,
pois o documento que Francisco Gacom assina como oficial de justiça data de 1855. In: TEI-
XEIRA, Benjamin Cardoso. Efemérides Guarapuavanas. Guarapuava, 2002, p. 139.
39  CUNHA, Op. cit., pp. 69-70.

118 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


– Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 –, que pretendia disciplinar o
regime fundiário nacional, em uma clara tentativa de ordenar especial-
mente o processo de aquisição de terras no Brasil. A partir desse mo-
mento, as terras deveriam ser vendidas e não mais concedidas. O Estado
buscava firmar a exclusividade de seus direitos sobre as terras “desocupa-
das”, que, no decorrer dos anos, vinham passando de forma desordenada
para o patrimônio de particulares. Além disso, as autoridades imperiais
também estavam em busca de dispositivos eficazes para vender as terras
devolutas a fim de financiar a imigração40.
Entre suas várias disposições, a Lei de Terras estabelecia que as ter-
ras indígenas não eram devolutas e não necessitavam de legitimação41.
No artigo 12 dessa lei, estipulava-se que, no tocante às terras devolutas,
seriam reservadas “terras para a colonização dos indígenas”42.
Um mês após a promulgação da Lei de Terras, a Decisão Comple-
mentar nº 92, de 21 de outubro de 1850, mandou incorporar aos nacionais
as terras de aldeamentos sempre naquelas situações em que os indígenas
já se houvessem dispersado43. Essa nova política impulsionou outros cri-
térios que despojaram os indígenas desses territórios, juntamente com a
inserção de populações não indígenas nos antigos aldeamentos.
Em Guarapuava, exigiu-se que os povoadores comparecessem dian-
te do padre Braga de Araújo para apresentarem suas declarações de pro-
priedade. Diante disso, as reações seguiam dois sentidos: de um lado, os
povoadores menos abastados vislumbravam uma possibilidade de garan-
tir a posse de sua propriedade, mesmo que ela fosse onerosa; por outro,
essa exigência provocou um certo desconforto nos potentados locais, que
foram obrigados a expor os bens territoriais que possuíam, fosse por pos-
se primária, ocupação, herança ou mesmo por compra. Em um recente
trabalho sobre a Lei de Terras e seu regulamento, Zilma Dalla Vecchia
afirma que

40  SILVA, Op. cit., p. 335.


41  CUNHA, Op. cit., pp. 141-142.
42  CUNHA, Op. cit., p. 67.
43  MOREIRA, Op. cit., p. 163, Cf. CUNHA, Op. cit., p. 145.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 119
De acordo com o Capítulo 9º dessa lei, todos os possuidores
de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade, ou
possessão, eram obrigados legalmente a registrar suas terras
perante o Vigário da Freguesia em que estava localizado o
imóvel (artigo 97). Apresentavam a declaração por escrito,
em duas vias. Uma ficava arquivada na Freguesia, a outra
com o possuidor da terra, o “proprietário”. O Vigário, por
sua vez, recebia as declarações, registrando-as em livros pró-
prios, numerados e rubricados que, posteriormente, eram re-
metidos às autoridades competentes. Daí o nome de Registro
do Vigário44.

Nesse período, os fazendeiros de Guarapuava intensificaram as


movimentações pela ocupação de terras inclusive em lugares mais distan-
tes da vila. Um desses territórios estava localizado a oeste do povoado,
na região conhecida pelo nome de “campos das Laranjeiras”. Curiosa-
mente, os conflitos entre os Kaingang que habitavam esses campos e os
“proprietários” de terra que ali foram se fixando ocorreram com mais
intensidade no mesmo período em que se passou a exigir a apresentação
das declarações de posses ao vigário45.
Na vila de Guarapuava, situação semelhante também causou incô-
modo aos potentados locais, juntamente com a pressão dos Kaingang ali
estabelecidos, que haviam voltado a reclamar a posse dos terrenos dos
antigos aldeamentos de Atalaia e de Sepultura. Aliás, o conflito de inte-
resses que recaía sobre essas terras, em 1850, pode ter sido especialmente
determinante para que os fazendeiros não medissem esforços por decla-
rar a legitimidade de suas propriedades no espaço onde, antigamente, ha-
via sido instalado o aldeamento de Atalaia. Sem dúvida, a Lei de Terras,

44  DALLA VECCHIA, Op. cit. p. 7.


45  [...] mais da metade das declarações registram uma propriedade: 219 das 396 declara-
ções o que representa 55% do total. Sucessivamente, 106 com duas propriedades (27%),
52 com três (13%), 12 com quatro (3%), 06 com cinco (2%) e 01 com sete, a declaração de
número 241, de Francisco Manoel de Assis França. Assim, o Registro do Vigário da Vila
de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava tem registradas 672 propriedades. In: DALLA
VECCHIA, Op. cit., p. 21.

120 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


acompanhada de sua regulamentação funcionou como garantidora da
posse permanente desses territórios pelos invasores de terras.
Mesmo assim, toda essa movimentação dos povoadores a fim de
fazer a declaração de suas propriedades na paróquia possibilitou que os
Kaingang residentes na vila de Guarapuava despertassem para a neces-
sidade de também buscarem algumas maneiras de garantir seus direitos.
É nesse momento que acontece o segundo conflito de interesses sobre a
posse dos campos de Atalaia e de Sepultura:

Venho me queixar contra o Senhor Brigadeiro Francisco da


Rocha Loures e o Senhor Francisco Manoel de Assis França,
Manoel Moreira, Domingos Moreira, Antônio Moreira, Joa-
quim Machado, Cipriano de Campos e mais os filhos desse
homem em nome dos meus companheiros que vieram comi-
go e dos outros que pediram e que ficaram em Guarapuava
porque aqueles homens não tem dó pelos índios como eu e
meus companheiros porque tirarão nossas terras e nos to-
caram para fora e as terras são nossas e nos judiaram e es-
tão morando nelas e tem dinheiro para mandar dominar e
tendo prometido balas e por isso viemos se queixar a V. Ex.
para eles nos entregar os nossos terrenos foram arrendados
por dois anos e pagarão um ano, Francisco índio não rece-
beu esse dinheiro. Curitiba, 13 de janeiro de 1862. Francis-
co Luiz Tigre Gacom, da tribu dos coroados de Guarapuava.
Nós abaixo assinados, certificamos que presenciamos o facto
curioso de se acharem dous índios coroados hum ditando e
o outro escrevendo a representação retro. Curitiba, 13 de ja-
neiro de 1862. Antônio Sá Rodrigues e José Sollares Hegral46.

Enquanto as autoridades provinciais e locais trocavam farpas em


função dos últimos acontecimentos nos campos das Laranjeiras – acu-
sando-se mutuamente e discutindo sobre quem recairia a culpa das 34
mortes ocorridas em tão curto espaço de tempo –, surgiam diante de seus

46  GACOM, Franciso Luiz Tigre. Ofício ao Delegado das Terras Públicas. 13 de Janei-
ro de 1862. Guarapuava: AMG: Arquivo Municipal de Guarapuava, caixa 09, documento 14.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 121
olhos as primeiras reclamações apresentadas por Francisco Gacom ao
delegado de terras públicas do Paraná, denunciando a invasão das terras
do antigo aldeamento de Atalaia. Ao que tudo indica, conforme afir-
mamos anteriormente, a movimentação da população não indígena para
declarar suas posses ao padre Braga de Araújo desencadeou, entre os
Kaingang aldeados, a necessidade usar a legislação em vigor a fim de
favorecer um debate diretamente com o responsável pela regularização
das propriedades no Paraná.
A ida de Francisco Gacom até a capital da província demonstra que
sua argumentação inicial não surtiu efeito sobre as autoridades locais.
Lá, é possível que ele tenha procurado o diretor geral dos índios, brigadei-
ro Francisco Ferreira da Rocha Loures, a fim de que submetesse ao padre
a declaração das terras do antigo aldeamento de Atalaia, que, tal como
sabemos, já na década de 30, estavam arrendadas para alguns potentados
locais.
Desde os tempos coloniais e com muito esforço, as lideranças indíge-
nas aprenderam com que um dos caminhos para garantir sua sobrevivên-
cia física e cultural era lutar pela posse dos terrenos dos aldeamentos e,
ao mesmo tempo, pelo documento que legitimasse sua propriedade sobre
aqueles territórios. Segundo Maria Celestino de Almeida,

Tal solicitação por parte dos índios confirma o que dissemos


anteriormente sobre o aprendizado e apropriação de alguns
códigos portugueses: os títulos de terra eram os papéis ofi-
ciais que iriam lhes garantir a legalidade daquelas terras e
desde cedo aprenderam a valorizá-los. [...] Os índios aprende-
ram a lançar mão dos títulos para dar um embasamento legal
às suas reivindicações, conforme os padrões portugueses47.

É bem provável que Francisco Gacom tenha procurado todos os


meios para garantir a posse das terras do aldeamento. Depois de anos
de convivência com a sociedade local, tendo participado ativamente na

47  ALMEIDA, Op. cit., p. 222.

122 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


dinâmica da vila e ocupando inclusive um cargo público como oficial de
justiça, ele sabia que a possibilidade de garantia da posse definitiva do
território em questão deveria passar pelos trâmites legais da legislação
vigente no período, cuja base estava expressa na Lei de Terras.
É interessante observar o teor das palavras usadas no documento
que Francisco Gacom entregou à diretoria de terras públicas. Depois
de relacionar os nomes dos potentados locais que haviam se apossado
das terras, ele reclamou que, mesmo elas estando arrendadas, seus
arrendatários tampouco haviam pago suas obrigações. Essa informação
permite retomar inclusive outras situações, como o fato de que ele tinha
controle sobre os rendimentos das terras arrendadas. Enquanto isso, ao
se declararem primeiros ocupantes dessas terras – pela “posse primária”
–, os potentados locais davam um passo importante para conseguirem o
título definitivo, desde que, é claro, tivessem cumprido todas as etapas
previstas no regulamento.
Outra questão interessante diz respeito ao modo como Francisco
Gacom reagiu ao disparate desses potentados, ou seja, ao remeter à auto-
ridade constituída na província, à repartição de terras públicas do Paraná
uma reclamação de seus direitos e uma tentativa de resolução de suas
questões. Ao final desse documento, Francisco Gacom afirma ser mem-
bro dos “índios coroados” de Guarapuava, rompendo, assim, com o es-
tereótipo de que eram “índios civilizados”, tal qual se forjou nos escritos
dessa época. Essa questão remete ao conceito de identidade de Tomaz
Tadeu da Silva, ou melhor:

Afirmar identidade significa demarcar fronteiras, significa


fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A
identidade está sempre ligada a uma forte separação entre
“nós” e “eles”. Essa demarcação de fronteiras, essa separação
e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafir-
mam relações de poder: “Nós” e “eles” não são, neste caso,
simples distinções gramaticais. Os pronomes “nós” e “eles”
não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 123
indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por
relações de poder48.

Nesse contexto, Francisco Gacom se estabelecia na posição de re-
presentante dos Kaingang, assumindo sua identidade indígena e, desse
modo, preservando um espaço de negociação a fim de garantir o domínio
sobre terras do aldeamento. Para isso, bastaria que o responsável – nesse
caso, o diretor geral dos índios do Paraná – declarasse que o território do
antigo aldeamento de Atalaia pertencia aos Kaingang residentes na vila
de Guarapuava, conforme o art. 94 do regulamento49.
Por outro lado, como não houve essa declaração, em 1873, os Kain-
gang voltaram a ameaçar a “tranquilidade” dos moradores da vila. Preo-
cupado com a chegada e instalação de vários grupos indígenas ao norte
da vila, isto é, nos terrenos do antigo aldeamento, o presidente da câmara
de Guarapuava comunicou o presidente da província, por meio de um
ofício, que a população estava cada vez mais amedrontada com a possi-
bilidade de ser atacada. Muitos fazendeiros abandonaram suas casas no
rocio e foram proteger suas propriedades, deixando a população menos
abastada vulnerável. O presidente da Câmara, José de Freitas Saldanha,
se manifestou neste sentido:

Ilmo. Exmo Senhor. A Câmara Municipal desta cidade reu-


nida em sessão extraordinária vem expor a V. Excia que se
achão nas matas próximas aos campos deste munícipio ao
norte cerca de 500 índios dos aldeados do Jatahy e S. Geroni-
mo que vierão com o único fim de apossarem-se dos campos
de diversas fazendas deste districto. Estes índios Exmo. Se-
nhor são capitaneados por dois índios manços deste discricto
que conhecem a fundo de todo o município. Presumimos que
eles não podendo realizar o fim que temem muito, tentarão

48  SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000, p. 82.
49  CUNHA, Op. cit., p. 223.

124 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


todos os meios para fazer mal aos moradores das proximi-
dades dos sertões e mesmo poderão tentar algum assalto na
praça. Assim visamos Exmo. Senhor que 200 índios com as
armas de que despõem assaltando a povoação, no estado em
que se acha com deslocamento algum alme de 3 a 4 praças no
quartel sem munição de qualidade alguma ficão senhores da
praça assassinando seus habitantes. Esta cidade é de pouco
pessoal sem de grande parte dos proprietários residentes em
suas fazendas que distão léguas umas das outras, conservan-
do suas casas sempre fechadas. Fosse também boato que de
Palmas já veio o cacique dos índios ali aldeados ajuntar-se
com os 2 indios manços que já referimos e que vem apoz ele
100 ou 200 índios, com o mesmo fim que os outros50.

Não deixa de ser interessante fazer algumas observações sobre a di-


nâmica social nesse contexto de enfrentamento entre a população local e
os grupos indígenas. A primeira questão incide sobre a fuga dos fazendei-
ros para suas propriedades. Isso demonstra, antes de mais nada, o medo
de que esses lugares fossem ocupados pelos Kaingang. Esses potentados
não estavam preocupados, de fato, com a invasão do povoado nem com
as perdas que poderiam sofrer nesse ataque. Aquilo que mais os ame-
drontava era a possibilidade de perder suas propriedades – grandes exten-
sões de terras – para os indígenas.
Diante do ofício assinado pelo presidente da Câmara Municipal, é
possível confirmar nossa hipótese de que Francisco Gacom, mesmo de-
pois de tanto tempo de convívio com a sociedade local, não abandonou
sua identidade indígena. Pelo contrário, é mais provável que ele se apro-
priou daqueles códigos culturais como uma estratégia de sobrevivência.
Além disso, é importante destacar que, segundo esse mesmo docu-
mento, os Kaingang instalados próximos ao rocio da vila estavam sob o
comando de dois “índios mansos”. Isso nos permite pensar que um deles

50  SALDANHA, José de Freitas. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Para-


ná Doutor Frederico José Cardoso de Araújo Abranches. Guarapuava: 05 de agosto de 1873,
ACMG – Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava, Livro Registro de Ofícios nº 2, p. 21.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 125
era Francisco Gacom, inclusive pelo histórico de protagonismo na defesa
da posse dos terrenos do aldeamento.
Francisco Gacom não usou de violência para reclamar a posse das
terras de Atalaia. Em nenhum momento encontramos na documentação
qualquer informação que demonstre que os Kaingang residentes na vila
tenham usado desse subterfúgio para alcançarem seus objetivos. Diferen-
te disso, eles buscavam reclamar, junto às autoridades locais e provinciais,
por seus direitos sobre as terras do antigo aldeamento através dos meios
legais. De todo modo, opera-se uma mudança nas estratégias de luta e
resistência dos Kaingang: eles diminuem os ataques às fazendas da região
e assumem uma postura, por assim dizer, mais diplomática na medida
em que buscam a instância judicial para garantir as terras que historica-
mente lhes pertenciam. Sobre esse assunto somos signatários da assertiva
de Lúcio Tadeu Mota e de Éder da Silva Novak quando afirmam que os

[...] Kaingang estavam pressionando as autoridades provin-


ciais pela retomada de sua Sesmaria em Guarapuava, na pri-
meira metade da década de 1870, também nela começamos
a perceber uma mudança na sua forma de agir. Por toda a
província apareceram indícios dessa nova forma de luta. Não
era mais somente o ataque contra as fazendas e viajantes, e
também não eram apenas as exigências por mais recursos
nos aldeamentos oficiais, agora percebemos a luta pela de-
marcação de suas terras51.

Em 1877, o juiz municipal de Guarapuava, Ernesto Dias Laranjeira


solicitou, por meio uma correspondência, ao presidente da província o
envio de guardas. Tratava-se de uma medida de proteção aos moradores
da vila de Guarapuava. Nesse documento, o juiz assinalava o estado de
tensão vivido pela população depois da reunião de vários indígenas nos
arredores da vila e nos campos de Atalaia. A notícia que circulava entre

51  MOTA, Lúcio Tadeu; NOVAK, Éder da Silva. Os Kaingang do vale do rio Ivaí: história e
relações interculturais. Maringá: Eduem, 2008, p. 70.

126 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


os moradores era a de que essas pessoas se afirmavam “senhores” e le-
gítimos proprietários dos ditos campos. Segundo informações contidas
nessa correspondência, havia mais de 150 “índios mansos” circulando
por essas localidades52.
Em outubro desse mesmo ano, foram os membros da Câmara Mu-
nicipal que se manifestaram sobre esse momento de tensão vivido em
Guarapuava. Com isso, eles reforçavam o pedido realizado alguns meses
antes pelo juiz municipal. Os camaristas solicitaram providências das au-
toridades provinciais a fim de dispensar o grande número de indígenas e
não indígenas que estavam ameaçando a vida das pessoas e a posse de
suas terras. No documento, eles afirmavam que esse movimento não era
composto apenas por indígenas, pois havia

[...] diversos caboclos casados com índias mansas e alguns


índios [...]acha-se fazendo ranchos e roças nos campos de
propriedade de Manoel Xavier Pedroso, residente no Rio
Grande do Sul, e esperão os 200 índios do Campo Mourão e
Jatahy que há pouco estiverão nesta cidade e mais alguns que
vieram de Palmas e outros pontos pa ahy morarem, dizendo
ele q. esses campos lhes pertencem e que dahy so sahirão a
força. Calculo que estes índios e caboclos poderão reunir-se
para mais de 300 pessoas, entre grandes e pequenos.53

Os Kaingang reunidos na propriedade de Manoel Xavier Pedroso


formavam uma grande coalisão de chefes e guerreiros vindos de várias
partes da província para reaver as terras do aldeamento de Atalaia. Jun-
tou-se ao grupo um certo número de pessoas que mantinha algum víncu-
lo com os Kaingang, especialmente homens livres casados com mulheres
indígenas.
Os conflitos e mortes desencadeados ao longo do século XIX, bem

52  LARANJEIRA, Ernesto Dias. Pedido de Reforço Policial. Guarapuava: Arquivo Munici-
pal de Guarapuava, caixa 15, documento 13, 1877.
53  PARANÁ, Arquivo Público do Paraná. Ofício. Curitiba, 12 de outubro de 1877. Documento
manuscrito. Apud: MOTA; NOVAK, Op. cit. p. 72.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 127
como as solicitações, pelos meios legais, de que as terras retornassem
para o domínio dos Kaingang não foram suficientes para que eles, de
fato, as reouvessem. Sob a liderança de Francisco Gacom, eles colocaram
em execução um projeto mais audacioso quando ocuparam as terras do
antigo aldeamento de Atalaia, território muito mais extenso que a pro-
priedade de Xavier Pedroso.
No dia 09 de novembro de 1877, um grupo de potentados locais
compareceu na delegacia de polícia para denunciar, diante da autoridade
competente, que suas propriedades haviam sido “invadidas” por um gru-
po de pessoas que, há tempos, estava se reunindo na região:

Dizem Candido Alves da Rocha Loures, Manoel Moreira dos


Santos, Antônio Rodrigues Fernandes, na qualidade de zela-
dor dos campos e mattos de Manoel Xavier Pedroso, Manoel
Baptista Bello, Domingos Ignácio de Araújo Pimpão, Be-
nedicto Mendes de Ramos, José Antônio de Almeida Fran-
ça, Manoel Pereira do Valle, Generozo de Bastos Coimbra,
Cypriano José de Campos, Joaquim de Souza Barboza Sobri-
nho, Ridaulino José de Oliveira e Dona Laura Rosa de Fran-
ça Loure, moradores neste districto, que são eles senhores e
legítimos possuídores de uns campos com seus competentes
matos, entre os rios Coutinho e Maracujá onde os suplican-
tes tem pelo incontestável direito de possessões, por títulos
legais suas propriedades e fazendas pastorais e de agricul-
tura com moradia habitual a mais de quarenta e cinco anos
sem contestações ou perturbação alguma em seu domínio e
senhorio54.

Novamente, os “proprietários” reforçavam o argumento de que ha-


viam adquirido essas terras há mais de 45 anos e que, desde então, nin-
guém tinha se manifestado contrariamente ao direito que sustentavam ter
sobre essas propriedades. Trata-se, contudo, de um argumento um tanto

54  SUMÁRIO CRIMINAL CONTRA FRANCISCO LUIZ TIGRE GACOM. Guarapua-


va: 09 de novembro de 1877. Arquivo Histórico da Unicentro, Processo nº 877.2.159, caixa 05,
60 p.

128 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


quanto frágil, uma vez que, em 1850, os indígenas residentes na vila de
Guarapuava, sob influência de Joaquim Bernardes, tinham causado in-
cômodo aos moradores ao prometerem retomar as terras perdidas. Como
essa intenção não se concretizou, pouco depois de dez anos, Francisco
Gacom viajou até a capital da província para relatar os abusos cometidos
por alguns potentados locais. Nessa mesma ocasião, ele também solicitou
que as terras voltassem para o domínio dos Kaingang.
Quando iniciamos a elaboração da retomada das trajetórias indivi-
duais e as cruzamos com algumas informações de diferentes fontes do-
cumentais não sabíamos até onde esses dados nos levariam, nem que
estratégias sociais encontraríamos nessa pesquisa. Muito mais do que
apenas identificar as pessoas, precisávamos retomar a questão das suas
atuações na usurpação das terras do aldeamento de Atalaia, pois, afi-
nal, quem eram essas pessoas? Nesse sentido, levamos em consideração
o pensamento de Bruno Latour, segundo o qual “ator” não é somente o
sujeito atuante, mas tudo aquilo que diz respeito a essa pessoa: os objetos,
as instituições, os animais, etc. Em um texto bastante didático sobre os
conceitos defendidos por Latour, Leticia Luna Freire esclarece que

[...] somente podem ser considerados atores aqueles elemen-


tos que produzem efeito na rede, que a modificam e são mo-
dificadas por ela e são estes elementos que devem fazer parte
de sua descrição. Porém, não há como anteciparmos que ato-
res produziram efeitos na rede, que atores farão diferença,
senão acompanhando seus movimentos55.

Nesse caso em especial, o fio condutor da operacionalização do con-


ceito passava pelo o direito de posse das terras do aldeamento de Atalaia.
A terra funcionou como elemento aglutinador do modo de ser Kaingang.
Ela se transformou no objeto que envolveu uma disputa de vários seg-
mentos sociais que discutiam, por um longo período histórico, sobre um

55  FREIRE, Leticia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica.
In: Comum, vol. 11, n. 26, 2006, janeiro/junho, p 55.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 129
direito de posse. Isso acontecia, aliás, desde quando as populações ori-
ginárias foram transferidas para perto da freguesia e continuou até que
elas fossem transferidas para o território de Marrecas. De todo modo, na
medida em que reconstruíamos os atores dessa ampla rede de relações
tecidas em Guarapuava, passamos a identificar aqueles personagens que
tiveram alguma ligação tanto com os Kaingang quanto com as terras que
lhes eram destinadas.
Com a instalação do sumário criminal, identificamos 13 pessoas que
se diziam prejudicadas pela “invasão” de suas propriedades pelos indíge-
nas. Entretanto, fala-se aqui de um contexto de ocupação que não ultra-
passa um período de 45 anos. Muitos tinham comprado suas proprieda-
des de antigos moradores, os quais, de uma forma ou de outra, contavam
com algum documento atestando serem seus legítimos proprietários.
Também havia quem tivesse recebido as terras por herança paterna. Ob-
viamente, essas informações só foram passíveis de identificação através
do registro do vigário, ou seja, através das declarações de terra remetidas
ao padre Braga de Araújo.
Alguns meses depois da “invasão” dos campos de Atalaia e da fina-
lização do sumário criminal em que os potentados locais desistiram da
execução da pena aplicada a Francisco Gacom sob a acusação de invasão
de propriedade e danos materiais, a Câmara Municipal de Guarapua-
va, em ofício, solicitou ajuda ao presidente provincial para dar conta das
necessidades mais urgentes do munícipio. Essa ajuda estava destinada a
resolver a situação dos “índios semi-civilizados” que permaneciam na
vila causando grande temor aos moradores. Depois de uma breve recons-
trução histórica dos primeiros anos do trabalho pastoral do padre Chagas
Lima e do assinalamento de seu empenho em trazê-los para a civilização
por meio da catequese, os camaristas enalteceram as ações promovidas
no passado afirmando que, em consequência delas, a população indígena
de Guarapuava, sob o comando dos caciques Vitorino Condá Facxó, Viri
e Aleixo, não causava transtornos na vila56.

56  OFÍCIO. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Paraná Doutor Rodrigo

130 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Nesse documento, ganha destaque a forma como se buscou desqua-
lificar a atuação política de Francisco Gacom em um passado não tão
distante, ou seja, sustentando que outros caciques teriam influência não
apenas sobre os Kaingang residentes na vila, mas também sobre grupos
que permaneciam distantes, apesar dos conflitos porventura existentes
entre eles. Outro dado interessante desse ofício faz referência à afirmação
de que o cacique Aleixo57 mantinha os indígenas calmos sobre as terras
do aldeamento, garantindo certa tranquilidade para as autoridades locais.
Ao mesmo tempo, isso também servia para reiterar a “insignificância”
das ações de Francisco Gacom. Como se isso não bastasse, ele ainda era
acusado de fazer parte de um grupo de “índios incapazes de commandar
e insensatos izigentes aliciosos do cargo de cacique”58.
Nas passagens seguintes do relatório, os camaristas afirmavam que
os Kaingang continuavam reclamando as terras do aldeamento de Ata-
laia – “o sonho dourado é a posse dos campos de Atalaia”. Obviamente,
a ação de “invasão” dos campos coordenada por Francisco Gacom meses
atrás, em novembro de 1877, não surtiu tanto efeito quanto ele esperava.
Novamente, ele se lançou à procura de outros meios legais para pleitear
a posse dos campos:

[...] eles mesmo reconhecem as necessidades de serem al-


deados e de haver aqui um director que os governe, existe
em mão de uma pessoa rezidente nesta cidade um abaixo as-
signado dos índios a que pede elles um director, que sejam
aldeados, uma escola para seus filhos, um oficial ferreiro e
comprometem-se em chamar para o novo aldeamento dos
índios que vagam nas florestas vizinhas59.

Podemos extrair algumas lições desse trecho. A primeira está rela-

Octavio de Oliveira Meneses. Guarapuava: 23 de maio de 1878, ACMG – Arquivo da Câmara


Municipal de Guarapuava, Livro Registro de Ofícios nº 2, p. 85.
57  Trata-se de Aleixo Caimbry, casado com Alexandrina, filha de Rufina Maria Ninguaxó, por-
tanto, genro de Francisco Gacom.
58  OFÍCIO, Op. cit., p. 86
59  Idem, p. 87.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 131
cionada à atuação do aspecto político nas demandas apresentadas pelos
Kaingang, por exemplo, na medida em que solicitaram que uma pessoa
não indígena fosse nomeada para a administração do aldeamento. Essa
era uma estratégia interessante no contexto do convencimento da impor-
tância da retomada do projeto de um aldeamento em Guarapuava. Os
Kaingang, além da posse do território de Atalaia, exigiam que a provín-
cia destinasse algumas pessoas para trabalhar nesse aldeamento, assim
como acontecia nos aldeamentos imperiais em atividade na região dos
campos gerais, organizados de acordo com as orientações do Regulamen-
to das Missões de 1845.
O outro aspecto relevante diz respeito à comunicação e ao conhe-
cimento que eles tinham tanto sobre aquilo que ocorria nos outros al-
deamentos quanto sobre o investimento que a diretoria dos índios de-
mandava. Por fim, os camaristas não deixaram de registrar que estavam
recolhendo assinaturas entre os Kaingang para encaminhar às autorida-
des competentes a legitimidade de suas demandas. No entanto, não há
como saber quais eram as pessoas que assinaram tal documento.
O fato é que os indígenas, quando recorreram à elaboração de do-
cumentos, assumiram uma postura em consonância com a sociedade da
época. O papel passou a fazer parte das lutas políticas dos Kaingang num
contexto em que um número considerável da população sequer sabia es-
crever seu próprio nome.
Na parte final desse ofício, os camaristas ainda indicaram a locali-
dade de Marrecas como o local mais apropriado para a criação de um al-
deamento destinado os Kaingang. Para eles, a “localidade mais apta para
formar a colônia indígena é um terreno composto de faxinais e terras de
lavoura em boas condições situado apenas a 6 léguas distante da cidade
de Guarapuava”60. Na tentativa de demonstrar interesse pela resolução
do problema indígena, essas autoridades sustentavam que já não exis-
tiam mais terras devolutas próximas da vila para instalar um aldeamento.
De acordo com eles, “seria melhor” assim. Ora, na verdade, pretendia-se

60  Idem.

132 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


que eles ficassem cada vez mais distantes, de modo a restringir qualquer
ameaça de conflitos com a população local.
Após o evento de 1877, Francisco Gacom iniciou uma disputa pelas
terras no campo da diplomacia, exigindo das autoridades locais e provin-
ciais uma solução para o esbulho que seu povo havia sofrido no episódio
das terras do aldeamento de Atalaia. De acordo com Mota e Novak, em
1878, o juiz municipal de Guarapuava, Ernesto Dias Laranjeiras, recebeu
um grupo de indígenas e ouviu suas demandas com o objetivo de, por um
lado, solucionar a questão através da implantação de um aldeamento e,
por outro, de acalmar as ambições que visavam às terras de Atalaia. Nes-
se encontro, o juiz informou aos Kaingang que o presidente provincial
havia autorizado a medição de uma área próxima a Guarapuava61.
Entretanto, o grupo comandado por Francisco Gacom se mostrou
irredutível no propósito de reaver os campos de Atalaia e de Sepultu-
ra. Em 1879, o presidente da província do Paraná, Rodrigo Octavio de
Oliveira Menezes, fez chegar aos membros da Assembleia Legislativa a
informação de que os “índios de Guarapuava” continuavam ameaçando
os habitantes da localidade e exigindo que os fazendeiros residentes nos
territórios do aldeamento lhes devolvessem a posse62. No mesmo docu-
mento, Menezes relatou que o governo imperial autorizou a medição de
um terreno, concernente às terras devolutas, a fim de aldeá-los. Como in-
centivo para essa transferência – ou melhor, como mecanismo de persua-
são –, o presidente provincial autorizou o pagamento de uma gratificação
mensal para os caciques.
No mês de outubro, o presidente provincial nomeou como diretor
dos índios de Guarapuava o juiz comissário, Luiz Daniel Cleve, em con-
formidade com os termos do Regulamento das Missões de 1845. Segun-
do o presidente, Cleve tinha um grande conhecimento do modo de vida
dos indígenas e dos terrenos apropriados para a fundação de um aldea-

61  MOTA; NOVAK, Op. cit., p. 74.


62  MENEZES, Rodrigo Octavio de Oliveira. Relatório do presidente da província do Pa-
raná, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 31de março de 1879. Curitiba/
PR, p. 77.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 133
mento. No relatório provincial de 1880, sob a presidência de Manoel Pin-
to de Souza Dantas Filho, informou-se que o diretor Cleve, na condição
de responsável pelos assuntos indígenas da localidade em questão, havia
realizado elaborado um levantamento do número aproximado de indí-
genas, cerca de 2000, que estavam subordinados aos principais caciques,
“Bandeira, Paulino e Francisco Tigre”63.
Mais ou menos nessa época, o reconhecimento de Francisco Ga-
com enquanto chefe de prestígio entre seus pares e acompanhado por
um número considerável de indígenas resultou na sua nomeação como
cacique dos índios aldeados de Guarapuava, de acordo com a indicação
do diretor Cleve, datada de fevereiro de 188064. Esse reconhecimento por
parte das autoridades provinciais, fez com que ele também aproveitasse o
momento para ampliar seu espaço político em defesa dos interesses dos
Kaingang de Guarapuava.
Logo após sua confirmação como cacique, no mesmo ano e na
companhia de mais dois indígenas chamados Paulino Datahy e Joaquim
Leheren, Francisco Gacom se deslocou até a capital da província para
resolver a questão das terras do aldeamento. Nessa viagem, receberam
alguns objetos totalizando uma despesa de 42$600 com presentes65.
No desdobramento dessa viagem até Curitiba e valendo-se inclusi-
ve do campo diplomático, Francisco Gacom submeteu uma solicitação
ao imperador Dom Pedro II de que as terras do aldeamento de Atalaia
fossem reincorporadas ao patrimônio dos Kaingang de Guarapuava. Por-
tanto, já não se tratava de uma disputa entre os Kaingang e as autorida-
des regionais: Francisco Gacom informava o problema do esbulho dos
territórios tradicionais diretamente ao chefe máximo da nação. Vejamos
o teor das suas demandas:

63  DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Relatório do presidente da província do Pa-
raná, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 16 de fevereiro de1880. Curiti-
ba/PR, p. 42.
64  DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Governo da Província. 21 de fevereiro de 1880.
In: O DEZENOVE de Dezembro. Curitiba, Ano XXVII, nº 2025, p. 2.
65  DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Governo da Província. 07 de abril de 1880. In:
O DEZENOVE de Dezembro. Curitiba, Ano XXVII, nº 2037, p. 2.

134 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Francisco Luiz Tigre, capitão cacique do toldo de índios ca-
techisados denominado Atalaia, do munícipio de Guarapua-
va, por si por seus comandados dirige-se submissamente a
presença de V. M. Imperial, para reclamar pela posse a que
tem direito de uma sesmaria de campo, cujo limite é o se-
guinte: ao norte pela costa do sertão e pelo ribeirão Bracujá
(Maracujá) até a sua foz no rio Lageado Grande ao sul pela
barra acima dos rios Coutinho e Lageado Grande a leste pelo
Coutinho e a oeste pelo rio Lageado Grande, - campo este
que foi doado ao referido toldo por El Rei D. João VI em 10
de setembro de 1818. Logo depois o director dos índios Padre
Chagas teve ordem do Governo Real para aldear os índios
nesse campo, o que fez viesse no mesmo ano fundando uma
povoação que denominou Atalaia, da qual ainda hoje existem
vestigios apezar de ser em 1825 assaltada pelos índios coroa-
dos de cujo combate poucas pessoas pertencentes ao toldo
de que faz parte o supplicante escaparão incendiando esses
índios ferozes toda a povoação que ficou reduzida a cinzas
depois de haverem assassinados quase toda a população es-
capando entre poucos, o diretor Padre Chagas e o suplican-
te que apenas contava com quatro anos de idade. Receiando
ser de novo accomettido pelos celerados inimigos, o director
passou-se com essas poucas pessoas a residir na freguezia de
Guarapuava, onde suppunha estar isento de outra agressão.
Arrendou o campo que occuparam a pessoas estranhas em
1834 e retirando-se para a cidade de S. Paulo, poucos annos
depois aí faleceu, sendo nomeado para substituí-lo o capi-
tão Antônio da Rocha Loures [...] apossou-se iniquamente de
uma grande parte, arrendando o restante a diversas pessoas
que o mesmo modo mais tarde se foram apossando [...] Des-
de então tem o supplicante, sem proveito algum recorrido
desde as autoridades locais até ao Governo da Província em
diversas ephocas e nada até hoje foi decidido, assim Augusto
Senhor dos pobres filhos das brasileiras florestas pressurosos
accudirão ao chamado dos missionários da civilização para
abraça-la e viverem felizes a sobra das liberrimas instituições
do nosso rico país, sentem profundo pezar ao ver alguns ci-

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 135
dadãos quererem extorquir-lhes uma propriedade, legitima-
mente adquirida. Confiados pois no magnanismo sentimento
patriótico e justiceiro que caracteriza a Vossa Majestade Im-
perial e o torna admirado das nações do Mundo Civilizado, o
supplicante, por si e por seus companheiros, tem consciência
de que V. M. Imperial os atenderá, fazendo-lhes inteira jus-
tiça. E. R. M, Curitiba, 22 de maio de 1880. Francisco Luiz
Tigre Gacom66.

Ao se dirigir a Sua Majestade Imperial, Francisco Gacom buscou


convencê-lo de seus argumentos através da retomada de aspectos históri-
cos desde a fundação do aldeamento de Atalaia, sua decadência e invasão
de suas terras pelo capitão Rocha Loures e outros potentados locais. Para
além da mera lembrança de fatos, Gacom voltava a um tema bastante
polêmico da política indigenista de então ao mencionar que os Kaingang
haviam aderido ao sistema da catequese e civilização; eles tinham aceita-
do as regras do jogo, portanto, e assumido o aldeamento como espaço de
convivência e conversão.
Ademais, Francisco Gacom reforçava com suas palavras a mani-
pulação das identidades, ora recorrendo aos argumentos da sociedade
nacional, ora se aproximando das características culturais indígenas, as-
sumindo claramente seu papel como cacique dos Kaingang de Guara-
puava. Essa era uma das principais estratégias dos indígenas na luta pela
garantia e manutenção de seus direitos. Embora alguns estudos não te-
nham reconhecido o protagonismo indígena67, ações como essa demons-

66  GACOM, Francisco Luiz Tigre. Correspondência do cacique Franciso Luiz Tigre Ga-
com ao Imperador do Brasil D. Pedro II. Curitiba, 22 de maio de 1880. APP-Arquivo Público
do Paraná, caixa 026.1, documento 19.
67  Um exemplo desse tipo de interpretação vem de uma dissertação de mestrado sobre os Kain-
gang de Guarapuava em que a autora afirma que Francisco Gacom havia adotado essa forma de
luta política com “os brancos, a persuasão e negociação, métodos utilizados pelos fazendeiros e
adotado por ele para defender a posse dos Campos de Atalaia. In: SANTOS, Zeloí Martins. Os
campos de Guarapuava na política indígena do estado provincial do Paraná (1854/1889).
Guarapuava/PR; Assis/SP: 1999, (Dissertação de Mestrado), UNESP/Assis-UNICENTRO/
PR, p. 161.

136 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tram a amplitude de seus entendimentos sobre os caminhos diplomáticos
na defesa daquilo que percebiam como sendo de seus direitos.
Além de comunicar ao imperador a usurpação das terras do aldea-
mento de Atalaia pelos potentados locais de Guarapuava, Francisco Ga-
com, reclamava que as autoridades locais e provinciais nada faziam para
resolver a questão. Elas eram incapazes de solucionar um problema que
se arrastava há anos, desde os tempos que o aldeamento pertencia à pro-
víncia de São Paulo. De todo modo, essa correspondência chegou até o
Ministério dos Negócios da Agricultura e Obras Públicas, o qual, não
sabendo como proceder, apresentou um ofício à presidência da província
pedindo mais informações sobre a demanda formulada pelo Kaingang68.
Por sua vez, o presidente provincial encaminhou tal solicitação à Câmara
Municipal de Guarapuava através de outro ofício em que procurava obter
mais informações:

Afim de ser circusntanciadamente informado, transmitto à


Câmara Municipal da cidade de Guarapuava, a inclusa cópia
do requerimento que a S. M. o Imperador dirige o cacique
Francisco Luiz Tigre Gacom, allegando direitos que tem à
posse dos campos da Atalaia69.

Quando souberam que Francisco Gacom havia recorrido a Sua Ma-
jestade, o imperador, requerendo que os fazendeiros devolvessem as ter-
ras do aldeamento, as autoridades locais imediatamente se reuniram para
elaborar um documento em que procuravam esclarecer os pontos que
deixavam margens para dúvidas no rol de informações prestadas pelo

68  “Não sendo sufficientes as informações prestadas sobre o requerimento em que o cacique
Francisco Luiz Tigre Gacom alega dirietos à posse dos campos de Atalaia, e transmitidas com o
offício d’essa presidência, datado de junho último, devolvo a V. Ex. os respectivos papéis a fim
de coligir e remeter a esta Secretaria de Estado esclarecimentos circunstanciados e completos.
Deus guarde a V. Ex. In: Ministério dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas
ao Presidente da Província João José Pedrosa. 20 de setembro de 1880. APP – Arquivo Público
do Paraná, volume 285, documento 095.
69  PEDROSA, João José. Ofício à Câmara Municipal de Guarapuava. Curitiba: 21 de agos-
to de 1880. APP-Arquivo Público do Paraná, caixa 26, documento 18.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 137
cacique. Assim, no dia 28 de setembro de 1880, a Câmara Municipal de
Guarapuava, por meio de sua presidência, elaborou uma documentação
e, provavelmente indignados e inconformados com aquilo que julgavam
ser um disparate de Francisco Gacom, os camaristas responderam da
seguinte maneira:

Francisco Luiz Tigre não tem índios aldeados e cathequisa-


dos como allega, tem sua residencia no rocio desta cidade e a
dois annos mais ou menos juntou filhas, netos e genros estes
brasileiros e entendendo que era dono do campo de Atalaia,
abandonarão suas casas e estão estabelecidos no campo de-
nominado rincão da Atalaia. Este índio foi criado e educa-
do pelos povoadores desta comarca e nunca teve commando
conforme diz70.

Sem demora, os camaristas desqualificavam as atitudes e a solici-


tação de Francisco Gacom, afirmando que ele não tinha comando so-
bre outros indígenas e que os poucos que o acompanhavam, na verdade,
eram membros de seu núcleo familiar. De fato, parte das pessoas que
estavam envolvidas na ocupação das terras do aldeamento tinham laços
de parentesco com o cacique, mas isso não necessariamente bastaria para
sustentar que eles não vivessem de acordo com os modos de ser Kain-
gang. Outra informação discordante apresentada pelos vereadores diz
respeito aos números reais da presença indígena naquele ano, tanto em
Guarapuava quanto nos arredores. Além disso, eles também afirmavam
que Francisco Gacom não tinha “índios” aldeados. Ora, alguns meses
antes, quando ele foi nomeado cacique dos índios de Guarapuava, o dire-
tor dos índios Luiz Daniel Cleve dizia que a população indígena contava
com cerca de dois mil indivíduos.
Tratava-se, assim, de uma tentativa decidida de desqualificação dos
argumentos expostos por Francisco Gacom no pedido feito ao imperador.

70  OFÍCIO. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Paraná João José Pedroso.
Guarapuava, 28 de setembro de 1880. AMG-Arquivo Municipal de Guarapuava, Livro de Ofí-
cios nº 2, p. 93.

138 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Buscava-se, portanto, apresentar informações insignificantes de modo a
proteger o direito de propriedade dos fazendeiros sobre os terrenos do
aldeamento. Ao se dedicar ao tema do arrendamento dessas terras, os
membros da Câmara manifestaram desconhecer se, de fato, essas terras
tinham sido arrendadas pelo capitão Rocha Loures, em 1834, aos poten-
tados locais – entre eles o padre Ponciano José de Araújo, Manoel Morei-
ra dos Santos e Francisco Ferreira da Rocha Loures.71
Tal qual exposto anteriormente, sabe-se que os arrendatários não só
se apossaram terras do aldeamento como ainda permaneciam como seus
proprietários, com exceção do padre Ponciano, falecido em 1854. Não
obstante, a Câmara argumentava que “não há disto prova alguma”. Ou
seja, não havia documento que provasse que esses campos tinham sido
invadidos pelos potentados locais usando o arrendamento como pretexto
para sua invasão72.
Por outro lado, esses proprietários se agarravam à lei ao afirmarem
repetidas vezes que haviam ocupado terras devolutas e que, consequente-
mente, tinham adquirido o direito de propriedade pelo princípio legal da
“posse mansa e pacífica”.73 Na verdade, o que se percebe nessa disputa
em torno do direito de propriedade é uma sobreposição de direitos74 sobre
uma mesma terra. Isso fica bastante evidente através da análise da Carta
de Sesmaria dos “índios de Guarapuava”, passando pela Lei de Terras
de 1850, seu regulamento de 1854 e da Lei 1.114, de 27 de setembro de
1860, em que as terras passaram por um processo de desamortização
para que, em seguida, fossem individualizadas ou privatizadas através de
vendas, parcelamentos ou aforamentos75.
Embora essa prática tenha sido gestada no Antigo Regime, ela ainda
tinha influência no direito de propriedade brasileiro, dificultando terrivel-
mente o direito de domínio da terra para os indígenas. De acordo com

71  Idem, p. 93.


72  Idem.
73  Idem.
74  MOTTA, Márcia Maria Menendes. O direito à terra no Brasil: a gestação do conflito
(1795-1824). São Paulo: Alameda, 2009, p. 69.
75  ALMEIDA; MOREIRA, Op. cit. p. 20.

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 139
Maria Celestino e Vânia Moreira, essa situação se agravou com o arren-
damento das terras para os potentados da época e com a criação de vilas
nos aldeamentos, incentivada pelo diretório dos índios de 175776.
De qualquer modo, o encaminhamento do Ministério da Agricultu-
ra para obter mais informações a respeito dos Kaingang de Guarapuava,
devolvendo o pleito à província e depois à Câmara de Vereadores, traz à
tona uma decisão local sobre o grau de indianidade que eles representa-
vam ter. A averiguação de que se tratavam de “índios puros” tinha que ser
aplicada pelos vereadores e deveria demonstrar seu grau de “civilização”.
Evidentemente, esses indígenas “ressocializados” carregavam o estigma
de serem mestiços remanescentes das populações originárias, índios civi-
lizados, misturados à massa da civilização e, portanto, eles não tinham o
direito sobre territórios alcançados pela legislação. Para que seus direitos
fossem reconhecidos, esses “indivíduos e comunidades deveriam viver
isolados em regiões ainda não colonizadas ou apresentar sinais diacríti-
cos contundentes”77.

A presidência da província em 1879, convencida que o go-
verno não podia mais haver aquelles campos fora fundar um
aldeamento ordenou ao juis comissário desta, que medisse
e demarca-se nas proximidades dos rios Marreca e S. Fran-
cisco terras necessárias para este indios e os mais que qui-
sessem sujeitar-se a serem aldeados, o que foi feito sendo a
medição aprovada pelo governo da província e deo director
comesso ao aldeamento não se sujeitando o indio Tigre a ser
aldeado. Esta Câmara assim informando circunstanciada-
mente e os pontos principaes do requerimento de Francisco
Luiz Tigre, diz mais que estes índios e os brasileiros casados
com mulheres de raça indígena, não podem ser considerados
cathequisados e aldeados visto que forão já criados e educa-
dos pelo nosso costume e religião e tem cido sempre consi-
derados com brasileiros, tendo elles individuos qualificando

76  ALMEIDA; MOREIRA. Op. cit. p. 16-17.


77  Idem, p. 21.

140 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


votantes e todos em número de 10 a 12 tem casa de mora-
da no rocio desta cidade. Será uma calamidade se o governo
considerar como não tendo perdido o direito desses campos
por que com essa desizão os indios invadirão aquelles terre-
nos e poderá ser o resultado de muitas mortes, visto que os
proprietários não se quererão sujeitarem a perder as quan-
tias pelas quaes comprarão as partes que possuem.78

Ao final do ofício elaborado pelos camaristas, expõem-se alguns


argumentos um tanto quanto contraditórios. Eles sustentam que esses
indígenas, capitaneados por Francisco Gacom, não podem ser catequisa-
dos e aldeados, pois eles já o foram no passado. A ideia principal dessa
afirmação remete à descaracterização à qual esse grupo teria sido sub-
metido depois de tantos anos convivendo com a população local. Eles
já não tinham mais laços culturais com seu modo de vida tradicional e,
desse modo, haviam perdido o direito coletivo de reclamar pelo território
de Atalaia. Ora, além disso, os membros da Câmara informavam que a
província tinha demarcado um terreno para o aldeamento dos Kaingang
de Guarapuava e que Francisco Gacom tinha negado a transferência de
sua família e de outros que o acompanhavam para o novo espaço. Nesse
sentido, percebe-se que os camaristas, grande parte deles composta por
fazendeiros, não queriam entregar as terras do aldeamento de Atalaia e
sim transferir os indígenas da região para um local mais distante.
Mesmo com todo o empenho do cacique Francisco Gacom em bus-
car os meios legais para a retomada da terra do aldeamento, recorrendo
até mesmo ao imperador a fim de que ele se sensibilizasse com a violên-
cia física e simbólica que seu povo havia sofrido com a invasão das terras
pelos potentados de Guarapuava, em 9 de novembro de 1880, a província
encaminhou ao diretor dos índios, Luiz Daniel Cleve, o título definitivo
das terras demarcadas para o aldeamento de Marrecas. Segundo Mota e

78  OFÍCIO. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Paraná João José Pedroso.
Guarapuava, 28 de setembro de 1880. AMG-Arquivo Municipal de Guarapuava, Livro de Ofí-
cios nº 2, p. 94

DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 141
Novak, essa data marca definitivamente o processo de desterritorializa-
ção dos Kaingang dos campos de Guarapuava79.
Sem receber qualquer resposta ao requerimento apresentado ao im-
perador, Francisco Gacom e os demais indígenas que o acompanhavam
começaram aos poucos migrar para o aldeamento de Marrecas. Tudo
indica que o diretor dos índios Luiz Daniel Cleve fez cumprir os anseios
dos fazendeiros de Guarapuava, desconsiderando as demandas dos Kain-
gang de Guarapuava pela retomada das terras do antigo aldeamento.

Considerações finais
Depois desse percurso, não há como não destacar que a trajetória de
Francisco Gacom e de outros personagens semelhantes traz consigo uma
excelente oportunidade para promover uma revisão da história indígena,
senão da história do Brasil, tal como bem sinalizou John Monteiro – às
vésperas das comemorações dos 500 anos – na citação de abertura deste
texto. É preciso antes de mais nada, demonstrar o protagonismo desses
grupos e a participação ativa de lideranças indígenas lutando para garan-
tir direitos que o estado lhes garantia. As estratégias de sobrevivência dos
Kaingang não se resumiam apenas aos conflitos como forma de resistên-
cia ao projeto de assimilação defendido pelas autoridades imperiais, mas
superada essa fase inicial, as disputas em torno de seus direitos recaíam
no âmbito das relações políticas e diplomáticas, nem sempre como de-
sejavam, mas na maioria das vezes de acordo com seus entendimentos.

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cultura nas aldeias coloniais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2003.

79  MOTA; NOVAK, Op. cit., p. 84.

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DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 145
146 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
A comunidade quilombola São Roque:
resistência e formação de um território de liberdade

Ricardo Cid Fernandes


Luana Teixeira

O s estudos sobre as comunidades negras no estado de Santa Cata-


rina representam um passo importante para o conhecimento, a
compreensão e a valorização da participação desse grupo étnico
na formação histórica e cultural da nossa sociedade. Fator indissociável
da história do Brasil, o período da escravidão atravessou três séculos da
nossa trajetória enquanto nação, acompanhando os diversos ciclos eco-
nômicos. Resultou na fixação de um grande contingente negro africano
que forneceu uma das principais bases de formação e caracterização do
povo brasileiro. Hoje, cinco séculos passados do “Descobrimento” e a
pouco mais de um da abolição, ainda engatinhamos na compreensão da
real dimensão desse processo. Resulta daí a pouca importância que mui-
tas vezes se dá aos grupos afrodescendentes que fizeram parte da constru-
ção do país nos diversos estados da federação.
Em Santa Catarina, escravos de origem africana participaram das
várias etapas de formação do estado. No litoral, a mão-de-obra escrava
foi utilizada desde os primórdios da sua ocupação nas armações baleeiras
e na estruturação dos principais núcleos urbanos. Escravos foram utiliza-
dos também ao longo dos caminhos de tropeiros, que faziam o transporte
de gado e do charque entre o Rio Grande do Sul e São Paulo. Além disso,
a comercialização de escravos em portos como o de Laguna e de Itajaí
movimentava uma parcela importante da economia local.
Ao longo do século XIX, quando o país caminhava para um proces-
so de abolição da escravatura, deu-se início à vinda de contingentes de
imigrantes europeus para ocupar a região sul. No entanto, esse processo
imigratório não impediu a continuidade da utilização da mão de obra
escrava. Mesmo nas colônias, onde a regulamentação proibia a existência
de escravos, existem indícios importantes da sua presença.
Após a abolição, a condição de ex-escravos nunca proporcionou a
esses grupos, na prática, os mesmos direitos que a outros grupos étnicos
aqui estabelecidos. Pelo contrário, muitos foram os estigmas criados e
muitas são as dificuldades encontradas para o reconhecimento verdadei-
ro da sua importância na formação étnico-cultural brasileira.
Em Santa Catarina, esses fatores são agravados frente à sua condi-
ção de grupo minoritário e, por isso, invisibilizado. No entanto, a presen-
ça dos negros na história local e na formação da sociedade é, no mínimo,
tão importante quanto a do açoriano, do imigrante europeu ou do índio.
O desconhecimento e a desconsideração dessa importância representam
uma lacuna na história, que deve ser preenchida com a identificação e
o estudo dos grupos negros do estado. Este é o caso de São Roque, em
Praia Grande/SC, uma comunidade que, nascida no tempo da escravi-
dão, construiu seu território de liberdade a partir de estratégias próprias
de resistência. Hoje São Roque é reconhecida como comunidade rema-
nescente de quilombo pelo Estado brasileiro, isto é, certificada pela Fun-
dação Cultural Palmares (FCP), com território identificado pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e parte integran-
te Termo de Compromisso o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade
(ICMBio), atual administrador do Parque Nacional Aparados da Serra.
O presente artigo aborda a memória e a trajetória de famílias que
constituíram a comunidade São Roque, destacando as condições de re-
sistência construídas no interior do sistema de dominação. As caracterís-

148 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ticas da escravidão nos campos de cima da serra, no Rio Grande do Sul,
e nas planícies do litoral, em Santa Catarina, que autorizavam certa mo-
bilidade aos escravos, foram transformadas em estratégias de formação
de refúgios, de comunidades, de territórios de liberdade. As narrativas e
a documentação pesquisadas mostram a resistência como o valor central
para a origem, para a reprodução e para a sobrevivência da comunidade.
Atualmente, a Comunidade Quilombola São Roque está localizada
nos municípios de Praia Grande (litoral sul do estado de Santa Catari-
na) e Mampituba (litoral norte Rio Grande do Sul). Nesta comunidade
vivem, aproximadamente, 20 famílias que identificam seu passado com
o regime escravista desenvolvido na região serrana, especialmente, com
São Francisco de Paula de Cima da Serra. Com suas grandes extensões de
campos naturais e florestas de araucária, a principal atividade era a pro-
dução pecuária, da qual viviam escravos e senhores que são referidos
pela memória dos membros da comunidade. Os Monteiro, os Nunes e os
Fogaça, afirmam, eram os senhores de seus antepassados escravos. Ora
fugidos, ora ao alcance do domínio senhorial, os trabalhadores no século
XIX desciam dos campos de Cima da Serra para cultivar as férteis vár-
zeas e planícies da região litorânea, na localidade conhecida como Roça
da Estância. Nas encostas da Serra Geral, ao longo dos rios Mampituba,
Josaphaz, São Gorgonho e Faxinalzinho, aos pés da grande formação
rochosa conhecida Pedra Branca, desenvolveu-se a comunidade quilom-
bola São Roque.

A Escravidão na região de São Francisco e Roça da Estância


A formação do Quilombo São Roque remonta ao início do século
XIX, período em que houve transformações profundas na organização
social, econômica e política brasileira. A região Nordeste da Província
de São Pedro do Rio Grande, com sua formação geográfica característica
(os Campos de Cima da Serra) foi integrada nas transformações socioe-

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 149
conômicas do início do século XIX em virtude da produção pecuária
que ali se instalou. A região Sul de Santa Catarina, por sua vez, com sua
formação geográfica característica (escarpas e canyons) esteve relacionada
aos desenvolvimentos econômicos e sociais da pecuária daquela região
serrana. No Nordeste do Rio Grande do Sul, desde o século XVIII, gran-
des áreas de terras foram apropriadas para a criação de gado bovino e
para a produção agrícola. Algumas destas terras foram concedidas como
Sesmarias. Sob estas condições, a população escrava na região foi demo-
gráfica e sociologicamente expressiva.
No século XIX, boa parte dos trabalhadores da região continuava
vivendo sob a condição de escravo. Os registros de batismo realizados
pelo pároco local em 1847 indicam uma média de 33% dos batismos sa-
cramentados no distrito foram de crianças cativas. Vinte e cinco anos
depois, em 1872, cerca de um quinto da população de São Francisco de
Paula vivia nessa condição. Somam-se a esses números, um significativo
contingente populacional livre de ascendência africana, classificada nos
censos do Império como pretos e pardos. Uma análise dos dados refe-
rentes à cor da população na paróquia de São Francisco contribui para a
compreensão da configuração étnica da população na região.

Tabela 01. População da paróquia de São Francisco de Paula de Cima da Serra


segundo a cor. Recenseamento de 1872.

Livres Escravos Total %


Pretos e pardos 1434 1079 2513 46
Brancos 2632 - 2632 48
Caboclos 313 - 313 06
Total 4379 1079 5458 100

Pequenos sitiantes, jornaleiros, lavadeiras, agricultores e agricultoras


negras que viviam de seu trabalho constituíam uma parte importante dos
habitantes dos Campos de Cima da Serra. Alguns nasceram escravos e

150 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


obtiveram a alforria ao longo da vida, outros já haviam nascido livres e
buscavam melhores condições de vida e reconhecimento em uma socie-
dade em que a linha entre escravidão e liberdade era ainda muito tênue.
Nas últimas décadas da escravidão, essa população livre preta e parda,
bem como a gente escravizada que trabalhava nas fazendas e sítios da
região era predominantemente brasileira, sendo que, a maior parte origi-
nava-se da própria província de Rio Grande de São Pedro.
A natividade dos escravos implicava em características peculiares da
escravidão na região, afinal nascer de ventre cativo no Brasil era uma
experiência distinta de ser capturado na África e trazido para uma região
totalmente diferente daquela de origem. Como analisam Reis e Souza:

“[Os escravos nascidos no Brasil] experimentavam com


maior freqüência a face paternalista da escravidão, ao mes-
mo tempo que conheciam melhor os opressores e portanto
sabiam explorar mais habilmente suas fraquezas cotidianas.”
(REIS; SILVA, 1988, p. 45)

Na província de São Pedro uma das faces do paternalismo da es-


cravidão foi a coabitação entre senhores e escravos. Boa parte dos es-
cravos eram, como dizia-se na época, crias da casa. Conforme destaca
Faria (1998), a coabitação entre senhores e escravos implicava na di-
visão cotidiana de espaços comuns. Sendo assim, a proximidade fí-
sica, ao contrário da dicotomia Casa-Grande/Senzala, aponta para
a complexidade das relações de dominação. Essas situações foram
verificadas através da análise dos processos-crime de Jacinto, escra-
vo de Israel Fogaça, e de Roberta, escrava de Maria Trindade Fogaça.
Jacinto Fogaça é reconhecido como um dos antepassados da comunida-
de São Roque; sua memória é capaz de montar genealogias que traçam
as relações de parentesco que os ligam a este antepassado.
A análise das ocupações em São Francisco de Paula também indica
a proximidade entre senhores e escravos. Nas fazendas da região a mão
de obra escrava era empregada principalmente nas atividades manuais e

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 151
domésticas. O recenseamento de 1872 informa quais as funções exercidas
pelos escravos.

Tabela 02. Ocupação dos escravos na paróquia de São Francisco de Paula de Cima
da Serra. Recenseamento de 1872

Ocupações Homens Mulheres


Costureiras - 8
Operários em Madeira 6 -
Operários em Edificações 16 -
Lavradores 241 69
Criados e Jornaleiro 123 -
Serviço Doméstico 44 354
Sem profissão 115 103
Total 545 534

Como podemos observar os escravos em São Francisco de Paula ra-


ramente exerciam serviços especializados. A maior parte dos homens era
lavrador e das mulheres serviçais domésticas. Ao contrário das grandes
fazendas monocultoras, na economia serrana o escravo cumpria funções
variadas. A documentação referente ao processo-crime que envolve Jacin-
to explicita estas características da escravidão na região de São Francisco
de Paula. Consta deste documento que, durante o primeiro interrogató-
rio, quando perguntado sobre sua profissão, o escravo Jacinto respondeu
simplesmente que “trabalha para seu senhor”1. Este possuía roças para as
quais “andava elle [Jacinto] da casa para as rossas [sic] de seu dito senhor, e visse
verço [sic]”. Num segundo interrogatório, no entanto, respondeu Jacinto
que “trabalhava no que seu senhor mandar fazer e é campeiro” − função que
se refere especificamente ao trabalho pecuário2. Jacinto, além de lavrar e

1  APERS, Processo N1871, M56, E 58, Santo Antonio da Patrulha, 1866.


2  O escravo João, que estava recebendo carta de liberdade contratada, é igualmente designado
por campeiro. APERS, Livro de notas e transmissões, São Francisco de Paula de Cima da Serra,
liv. 6, n. 68, fev. 1885 – jan. 1888.

152 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


cuidar do gado ainda realizava outras tarefas, conforme a necessidade.
A descrição da ocupação dos escravos João e Joaquim revelam a mesma
condição de trabalho; os dois realizavam serviços de capatazes, serviços de
roça, negócios e arranjos de vida3.
O controle senhorial em um ambiente caracterizado pela natividade
dos escravos, pela coabitação e por ocupações campeiras, implicou na con-
figuração de um regime escravista com características peculiares. Em São
Francisco, como em outras regiões, um grande número de pais e filhos es-
cravos eram pertencentes ao mesmo senhor ou a mesma família, fato que,
combinado às demais características, permitia certa mobilidade. Neste
contexto, os escravos tinham autorização dos senhores para deslocar-se
no espaço das fazendas, dos campos e das plantações. Muitos deles, mo-
vimentavam-se da região serrana para a região litorânea a fim de cultivar
as terras da localidade conhecida como Roça da Estância4. Na dinâmica
da escravidão em Cima da Serra espaços de trabalho escravo vigiado e
não vigiado se confundiam com espaços de refúgio e resistência.

Resistência e Formação do Quilombo de São Roque


Fugas de escravos foram frequentes desde que os primeiros africanos
escravizados foram trazidos para o continente americano. Em São Fran-
cisco, essa possibilidade foi favorecida devido aos modos como as condi-
ções de trabalho e de domínio eram organizadas no espaço serrano. Nem
todos estavam dispostos a um ato tão radical, mas aqueles que estivessem
podiam contar com as especificidades dessas relações para planejá-las.
No processo movido contra Jacinto encontramos um exemplo desses mo-
vimentos entre estar próximo e longe do domínio senhorial. Um olhar

3  APERS, Livro de Notas e Transmissões, Santo Antônio da Patrulha, Freguezia de São Fran-
cisco de Paula de Cima da Serra, liv. 2, n.65, set. 1860-set. 1865.
4  Trabalhar longe do domínio direto do senhor é uma condição que vem sendo percebida e
estudada pela atual historiografia. Até onde um senhor pode deixar ‘livre’ seu escravo é um limite
construído sobre mecanismos de controle muito sofisticados e falíveis

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 153
sobre os documentos contribui para esclarecer as tensões envolvidas na
mobilidade e na fuga de escravos na região em estudo.
Manoel e Claro eram escravos nascidos em São Francisco. O primei-
ro era escravo de Manoel Jacinto Fogaça. O segundo era escravo de Pedro
de Paula Fagundes. Consta da documentação que, em 1866, quando foi
incendiada a casa de Florencio5, todas as testemunhas concordaram em di-
zer que “a voz geral accusa como perpetrador do crime os dois escravos que andão
foragidos de seus senhores”, ou seja, Claro e Manoel. Ambos eram escravos
fugidos há algum tempo. Longe do domínio de seus senhores, uma grave
desconfiança recaía sobre suas condutas. Mas determinante para a acusa-
ção contra eles foi o fato de terem sido vistos andando pelo povoamento
na véspera do crime.
Não consta dos autos do processo qualquer ação repressiva que bus-
casse recolocá-los sobre domínio senhorial durante sua visita ao povoa-
do. Tampouco, há registro sobre o que estariam fazendo ali (teriam eles
ido apenas para cometer o crime?). O que percebemos é que escravos fu-
gidos, reconhecidos no povoado, transitavam sem que essa aproximação
levasse necessariamente à re-escravização6. Unanimemente apontados
pelas testemunhas como autores do crime, não houve poder particular ou
público que fosse capaz de persegui-los, prendê-los e submetê-los à ação
civil legal.
Três anos mais tarde, Manoel teve o azar de esbarrar em um Inspe-
tor de quarteirão nos caminhos da serra, tendo sido preso e processado.
Manoel ficara, no mínimo, três anos fugido. Segundo seu depoimento,
ele estivera em Laguna (o que na época significa a região sul de Santa
Catarina) e andava armado. Ao ser surpreendido pelo inspetor resistira,
atirando. Acabou baleado e se entregando. Submetido a um processo que
o acusava do assassinato de três pessoas (o que o levaria a pena de prisão

5  A casa de Florêncio José Pereira, identificado como preto, foi queimada enquanto ele estava
viajando a trabalho. Com ele na casa moravam sua companheira, um velho e uma menina de 12
anos. A mulher e o velho foram mortos na hora e a menina foi levada, sendo seu corpo encon-
trado cerca de 10 dias depois em um pântano um pouco distante da casa.
6  Situação semelhante num contexto totalmente diverso ocorria, por exemplo, nos quilombos
da região do Trombetas, no Pará (MATTOSO, 1992)

154 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


perpétua), foi defendido por um advogado pago pelo senhor. A incrimi-
nação de Manoel significaria a perda definitiva de uma valiosa proprie-
dade para este. Tentar recolocá-lo sob seu domínio era a medida mais
comum e esperança daqueles que investiam quantias consideráveis para
obter um trabalhador escravo.
Nesse contexto de instabilidade do poder repressivo característico
de todo o período escravista brasileiro é que surgiram e sobreviveram os
quilombos. Como coloca Mattoso:

“[Os quilombos] brotam repentinamente, mas com a força


do número, numa sociedade de maioria negra e de organiza-
ção política totalmente incapaz de impedir esse tipo de con-
centração marginal” (MATTOSO, 1982, p. 158)

Percebemos no contexto de São Francisco de Paula de Cima da Ser-


ra que a incapacidade de manter os escravos sob vigilância levou ao incre-
mento da necessidade de negociação entre senhores e escravos. Ao falhar
a negociação, a possibilidade de fuga e de formação ou agregação a um
quilombo não era uma utopia distante, mas uma opção real e realizável.
Neste contexto, a região da fronteira entre Santa Catarina e Rio
Grande e, principalmente, a área das escarpas e canyons, foram transfor-
madas em lugar de refúgio escravo. Em 1850, tanto São Roque quanto
Morro Alto (atual município de Osório/RS - Barcellos, 2004) estavam
situadas na área administrativa referente à Santo Antônio da Patrulha.
Neste ano, a Câmara Municipal de Vereadores legislou sobre o exercício
da profissão de capitão do mato:

“Art. 36 – O capitão-do-mato terá direito à gratificação de


5$000 réis pela prisão de cada escravo fugido que apreender
dentro do município e sendo em quilombo 20$000 réis, e
mais um mil réis por cada légua, contada do lugar em que for
feita a prisão a casa de seu senhor ou a cadeia da vila, aten-
dendo-se ao ponto que for mais perto.
Por quilombo entender-se-á a reunião em um lugar oculto de

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 155
mais de dois escravos. Estas gratificações serão pagas pelo
senhor do escravo, ou pessoa autorizada para o fazer”7.

A jurisdição só existia porque havia o precedente social que gerava a


preocupação com o fenômeno. Diante da organização quilombola, me-
didas repressivas deveriam ser tomadas. Determinar em dois o número
de escravos necessário à formação de um quilombo foi uma ação comum
nas jurisdições locais do Brasil (Mattoso, 1982). No caso do Rio Grande
do Sul, Barcellos, seguindo a análise de Maestri, afirma que:

“os quilombos no Rio Grande do Sul mantiveram uma tra-


dição de pequeno porte. Analisando a documentação dispo-
nível sobre a região estudada melhor seria percebermos os
quilombos não propriamente como um local de concentração
de dezenas ou centenas de fugitivos, mas um sistema ou con-
junto interligado de ranchos, para onde os cativos se dirigiam
de forma temporária” (BARCELLOS, 2004: 87).

Essa observação é importante para entendermos a dinâmica social e


populacional que caracteriza a comunidade quilombola de São Roque. A
mobilidade dos escravos fugidos, desertores e outros fugitivos na região
(como também nota Barcellos) gerou um movimento flutuante entre a
população quilombola. É importante perceber que um quilombo não se
constituía isoladamente. Uma rede de relações entre territórios negros
formava-se, invisível ao conhecimento e à ação repressiva oficial. Comu-
nicação, trocas, comércio e ajuda mútua são elementos que marcaram
essas redes. O quilombo de São Roque não foi exceção a este modelo. São
Roque, efetivamente, constituiu-se como uma comunidade quilombola
articulada em um sistema que interligava pontos onde se refugiavam es-
cravos. Dentre esses pontos, um deles ficou registrado tanto na memória
da Comunidade Remanescente de Quilombos de São Roque como nos
documentos de época: o Campo dos Pretos.

7  Citado em Barcellos, 2004, p. 78.

156 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Em 1877, João Batista Feijó realizou o processo de medição de sua
fazenda. Para tanto, foi produzido um mapa que hoje encontra-se no Ar-
quivo Histórico do Rio Grande do Sul8. A Fazenda Josaphaz, com mais
de oito mil hectares, fazia fronteira, entre outras, com as terras da família
Fogaça, reconhecida da comunidade como ex-senhores de seus antepas-
sados. No mapa de medição da fazenda destaca-se a demarcação de uma
área nomeada Campo dos Pretos. Ali foram indicadas habitações e três
estradas: uma ia para Pedra Branca, atual comunidade São Roque.
A toponímia revela o aspecto étnico da ocupação territorial. Uma
estrada demarcada (provavelmente uma picada de montaria) comprova
a ligação física entre Pedra Branca e Campo dos Pretos. A indicação do
local no mapa da Fazenda Josaphaz reforça a ideia de que as autoridades
reconheciam os territórios onde se escondiam escravos e outros margina-
lizados9. A indicação de habitação revela um relativo grau de organiza-
ção, bem como sua antiguidade.
O Campo dos Pretos não existe mais como um local de quilombo.
A memória sobre este território de resistência começa se apagar. A jul-
gar pelos relatos e pelo mapa é possível supor que Campo dos Pretos e
São Roque tenham configurado, no século XIX, uma forma conjunta
de reprodução econômica e cultural, parte de um sistema de resistência
que unia mais de um núcleo populacional. A constituição de territórios
negros no mato, distantes não mais que meio dia de caminhada, permitia
que eles redefinissem suas relações escravistas. Além de uma possibilida-
de definitiva de rompimento, a proximidade com espaços de liberdade
permitia que escravos vivenciassem experiências de liberdade sem desvin-
cular-se dos laços senhoriais.
O processo-crime contra Jacinto, já citado acima, é, mais uma vez
esclarecedor. Jacinto, escravo de Israel Fogaça, fugiu da casa do seu se-
nhor “por cauza de dizavenção e lichas que teve com suas parceiras e irmans”.

8  AHRS – mapas. M 2, G 4, nº 400. Não foi possível encontrar o processo de medição da


fazenda.
9  No mapa, há regiões marcadas por vermelho, entre elas Campo dos Pretos. Não conseguimos
aferir o significado exato dessa diferenciação.

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 157
Permaneceu quatro dias fugido, quando retornou para apresentar-se ao
seu senhor. Imediatamente foi preso, acusado de ter cometido um triplo
assassinato. No primeiro depoimento afirmou que durante o período de
ausência encontrou-se com seus dois irmãos Claro e Manoel montados em
cavalos furtados e assim, como ele, fugidos. Jacinto diz ter tentado per-
suadi-los a retornar aos seus senhores, no que foi atendido por Claro. Este
também foi preso, mas, como já vimos, logo fugiu da prisão. Jacinto foi
indiciado, transferido para Santo Antônio e passou um ano preso até seu
julgamento. Seu senhor empenhou-se em absolvê-lo assinando um docu-
mento garantindo que na noite do crime o escravo ainda estava sob seu
domínio e que este era pacífico e dedicado. A estratégia surtiu resultado
e Jacinto foi absolvido. Dois anos depois, Manoel foi capturado na região
por uma diligência e também foi processado. Como vimos, também rece-
beu ajuda do seu senhor e obteve o mesmo sucesso.
Uma situação evidenciada no processo é o fato de Manoel ter perma-
necido no mínimo três anos fugido e ter sido capturado ainda na região.
Segundo afirmou, o local mais distante que esteve foi em Laguna. Esse
fato se repetiu no caso da escrava Delfina que, anos após ter fugido de seu
senhor, residente em São Francisco, foi capturada nesta localidade10. Per-
cebe-se que a própria região garantia possibilidades de sobrevivência aos
escravos. Obviamente eles não declararam onde estiveram durante todo
o período da fuga11. O silêncio dos documentos, tão comum ao estudo da
escravidão, não explicita seus movimentos. Porém, a organização autô-
noma de escravos fugidos parece evidente ao pensarmos que anos depois
Delfina, Manoel e tantos outros ainda viviam na região de onde fugiram
do domínio de seus senhores.
O caso de Jacinto foi diferente. Ele realizou uma fuga breve, moti-
vada por desavenças pessoais. Um detalhe é importante no depoimento.
Uma testemunha afirma que o motivo da fuga teria sido o temor de ser
castigado por seu senhor devido a uma briga. Nesse caso, tratava-se, por-

10  AHRS, polícia, maço 31.


11  No interrogatório Jacinto é perguntado para onde fugiu, ao que responde vagamente que: “
andou sempre em roda da caza de seu senhor”.

158 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tanto, de uma fuga reivindicatória, na medida em que fugir por quatro
dias pelo medo do castigo, atenta ao seu senhor para não fazê-lo12. Ou
seja, movimentos de uma negociação. Ao retornar, Jacinto foi imediata-
mente preso acusado de triplo assassinato e, ao contrário de seu irmão,
não fugiu.
Esse processo é representativo da diversidade da experiência escrava.
Manoel e Jacinto embora irmãos e crias da casa de uma mesma família,
tiveram opções distintas no momento da fuga. O porquê de um retornar
em breve e o outro resistir a tiros a sua re-escravização não há como sa-
bermos. É notável que as ambas possibilidades se apresentassem para os
sujeitos, bem como a possibilidade de fugir ou manter-se toda a vida sob
o domínio senhorial. As formas de reagir diante de situações extremas de
opressão são, efetivamente, muito variadas.
Jacinto, escravo de Israel Fogaça foi um antepassado da comunidade.
Os Fogaça que até hoje vivem em São Roque são descendentes de Jacinto
Fogaça. Este, não é o mesmo que aparece no processo-crime acima anali-
sado, pois teria nascido em 187313 ao passo que Jacinto, escravo de Israel
Fogaça, segundo se depreende dos autos nascera em 1848. É provável
que o antepassado Jacinto Fogaça reconhecido pela comunidade, seja filho
de Jacinto, escravo de Israel Fogaça indiciado no processo-crime analisado.
Com efeito, “nos tempos antigos eles tinham o hábito de por nos filhos os nomes
dos pais”14. Ademais, segundo a memória dos membros da comunidade,
o pai de Jacinto Fogaça era reconhecido apenas por um apelido, qual seja,
Paquê.

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 159
São Roque: território de resistência e liberdade
As particularidades do regime escravista, durante o século XIX, na
região de São Francisco de Paula de Cima da Serra engendrou relações
fluidas entre senhores e escravos. A análise das fontes documentais é
conclusiva a respeito da efetiva existência de um domínio escravocrata
na região. Os dados censitários expressam que a população escrava de
São Francisco de Paula era proporcionalmente mais significativa do que
aquela da Província do Rio Grande. Fazia parte da configuração da so-
ciedade regional a permissão sobre certa mobilidade dos escravos. Esta,
efetivamente, definia-se como parte legítima da dinâmica econômica da
região, a qual articulava a produção pecuária nos Campos de Cima da
Serra com a produção agrícola na localidade conhecida como Roça da
Estância, na região litorânea. A comunidade quilombola de São Roque
surgiu a partir da justaposição destes três fatores, quais sejam: a presen-
ça do Estado regulamentando o sistema escravista, a efetiva fluidez das
relações de domínio escravocrata na região e a mobilidade legítima dos
escravos.
As famílias que hoje vivem na comunidade São Roque não apenas
identificam suas origens com o regime escravista do século XIX, mas,
sobretudo, reconstroem sua historicidade através de narrativas que con-
têm elaboradas genealogias e referências territoriais precisas. Para além
de uma memória genérica sobre o tempo da escravidão, os moradores de
São Roque indicam quais dentre seus antepassados foram escravos, como
eles viviam, onde residiam e a quais senhores estavam ligados. A forma
como descrevem e analisam sua própria inserção social e histórica revela
que a identidade em São Roque está assentada em uma forte dimensão
comunitária. Ou seja, o reconhecimento da relação de continuidade entre
o ‘tempo dos escravos’ e o tempo presente é derivada da experiência comu-
nitária construída ao longo da história.
A construção da identidade quilombola em São Roque foi formada
na resistência a diversos processos de expropriação territorial e pressão
social ao longo dos anos. A ausência de títulos formais definitivos foi

160 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


da ação expropriatória por parte de proprietários rurais e do próprio Es-
tado. Em 1959, através do Decreto Nº 47.446, o governo do presidente
Juscelino Kubitschek, criou o Parque Nacional de Aparados da Serra.
Em seu artigo 2º o Decreto determinava: “Fica autorizado o Ministério
da Agricultura por intermédio do Serviço Florestal, autorizado a entrar
em entendimento com os proprietários particulares de terras e Prefeitura
local, para o fim especial de promover doações, bem como efetuar as
desapropriações indispensáveis à instalação do Parque”. Os limites do
Parque foram redefinidos em 1972 (Decreto 70296/72) e o outro parque
foi criado em 1992 (Parque Nacional Serra Geral, Decreto 531/92).
Neste contexto, desde o início da década de setenta do século XX,
as indenizações e negociações com o Estado atingiram as terras da co-
munidade São Roque, que passaram a ser alvo do interesse fazendeiros
oriundos da Serra, dos municípios de São Francisco de Paula e Cambará
do Sul. Além das indenizações, as terras e a mão de obra baratas eram o
principal atrativo. Estes novos proprietários são conhecidos pela comu-
nidade como os “de fora”. A pressão dos ‘de fora’ somava-se a pressão
do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que após a
compra de várias áreas em Pedra Branca, impôs severas restrições à per-
manência dos moradores e a manutenção de seus sistemas produtivos. As
pressões externas foram ampliadas com os efeitos da grande enchente de
1974. Muitos tiveram que abandonar suas casas, facilitando a entrada dos
de fora. No início dos anos oitenta houve, ainda, um projeto de constru-
ção de barragens de contenção dos rios Mampituba e Faxinalzinho, que
afastou alguns e impediu o retorno de outros às terras da comunidade.
Mesmo diante destas pressões, com suas terras tomadas pelos de fora
e pelo Estado, São Roque constitui-se como território comunitário onde
foi, e ainda hoje é, elaborado e implementado um projeto de liberdade.
A luta pela defesa de seu território e pela garantia de seus mecanismos
de reprodução física e cultural se consolidou por meio de estratégias e
reivindicações difusas dos moradores em articulação com movimentos
sociais. Como eles próprios descrevem, as primeiras formas de organiza-

FERNANDES,, R. C.; TEIXEIRA


FERNANDES TEIXEIRA,, L. A comunidade quilombola São Roque 161
ção em torno da Associação Comunitária de Pedra Branca, tinham por
finalidade reivindicar políticas e donativos perante o poder público muni-
cipal. Nos anos oitenta, através de ação conjunta com a Igreja católica e
comunidades vizinhas, eles se organizaram na oposição à construção das
barragens que inundariam parte da região.
A organização comunitária, no entanto, ganhou expressão pública
definitiva apenas nos últimos anos com a organização dos moradores em
torno da auto-identificação como comunidade remanescente de quilom-
bo. Em 2004 a comunidade, organizada através da Associação dos Rema-
nescentes do Quilombo São Roque, encaminhou pedido de certificação
junto à Fundação Cultural Palmares. Em 2005, solicitou ao INCRA a
titulação de suas terras. Em 2007 o INCRA publicou a delimitação do
território tradicional da comunidade, indicando que havia sobreposição
com Parques Nacionais. Em 2013, para garantir a permanência em suas
terras e enfrentar a sobreposição com as áreas do Parque Nacional Apa-
rados da Serra e Serra Geral, a comunidade passou a integrar o Termo de
Compromisso com o ICMBio, que foi assinado apenas em 2018. Histo-
ricamente pressionados em suas terras e modos de vida, à margem, mas
também ao abrigo das regras do Estado, a comunidade São Roque sem-
pre lutou por seus direitos. Nesta luta, a identidade quilombola, capaz de
integrar passado e presente, se constituiu em uma dimensão estratégica
de discursos e práticas que dão sentido às memórias e trajetórias de vida,
fortalecendo a resistência e formando continuamente seu território de li-
berdade.

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Parte II
Milenários
A Colônia Industrial do Sahy:
os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
e o Império brasileiro

Carina Sartori

N o dia 11 de dezembro de 1841, o Ministro do Império, Candido


José de Araújo Viana, assinou o contrato que autorizava o fi-
nanciamento e a instalação de uma Colônia industrial francesa
nas terras do Sahy1, região de São Francisco do Sul, Província de Santa
Catarina. No documento, o único responsável pelo empreendimento era
o médico homeopata francês, Benoit-Jules Mure. Dias depois, no porto
do Rio de Janeiro, atracava a embarcação La Caroline, oriunda do por-
to Le Havre, com aproximadamente 93 franceses2. Entre os industriosos
recém-chegados, estavam o lionês Michel-Marie Derrion e o parisiense
Antoine-Joseph Jamain. Estes dois homens, militantes assíduos do meio
fourierista, tinham sido eleitos em abril de 1841 para administrar a insta-
lação de uma comunidade societária nas terras concedida pelo Império

1  O Sahy era uma península banhada pela Baía da Babitonga e que pertencia à paróquia de São
Francisco do Sul. Sua origem territorial administrativa é datada de 1771, quando as Câmaras Mu-
nicipais São Francisco e Guaratuba assinaram o tratado de limites territoriais entre as Províncias
de Santa Catarina e Paraná. No entanto, é somente em 1850, com a assinatura da Lei de Terras,
que o Império e a Assembleia Provincial reconhecem oficialmente, através da lei n.302, a Penín-
sula e a denominam de 2º Distrito do Sahy.
2  VIDAL, Laurent. Ils ont rêvé d’un autre monde. Paris: Flammarion, 2014.
brasileiro. Para a gestão desta, o Statut de l’Union Industrielle3 foi votado
e registrado no mês de maio de 1841. O documento, além de possuir
um manifesto que justifica e encoraja a imigração para o Novo Mundo,
apontando os problemas sociais existentes na velha civilização, descreve
minuciosamente toda a estrutura social e econômica da sociedade. As-
sim, no final do mês de dezembro de 1841, a Corte do Rio de Janeiro e
o próprio Dom Pedro II assistiram a chegada dos franceses industriosos.
Uma cerimônia foi realizada nas instalações do Palácio4 para receber to-
dos aqueles corajosos homens, mulheres e crianças. Por detrás de toda a
cena construída, o que muitos desconheciam era a existência de um de-
sentendimento entre o Dr. Mure e os dois diretores da Union Industrielle,
Jamain e Derrion, acerca do passado saint-simoniano destes dois últimos
e as incoerências existentes no estatuto da dita sociedade. Aliado a tal
fato, estariam as divergências surgidas entre o ideal societário dos france-
ses e as leis do Império brasileiro.
“Saint-simonianos, fouriersitas, falange, sociedade societária, dissi-
dentes, socialistas utópicos ou colonos”. Todos estes termos foram uti-
lizados para narrar a história dos franceses do Sahy. Entretanto, ao se
observar estas designações é importante considerar que os relatos de vida
destes homens carregam rastros de um exílio voluntário vivido pela es-
perança de realizar um sonho, o de erigir uma comunidade societária
industrial.

Negócios com o Império (1841): o Dr. Mure


A chegada de um homem “grand, couleur claire, yeux bleus, nez et bou-
che réguliers, visage rond et barbe régulière5”, médico de profissão, nascido à
Lyon e nomeado Benoit-Jules Mure, ao porto do Rio de Janeiro, deu-se
no final do mês de novembro de 1840. Em seus pertences havia, além do
que se espera de um viajante, um documento assinado e datado “no dia

5  VIDAL, L.. Op. cit., p. 66-77.

168 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


21 de 7mbro 1840 a acta da 1eira l’Union Industrielle de Paris6”, propondo a
instalação de uma comunidade societária industrial - um Falanstério -, e
cartas de recomendação que possibilitassem estabelecer contatos políti-
cos naquele Império. Instalado na Corte, o Dr. Mure contatou o diretor
geral do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, o francês François-Antoine
Picot, com o objetivo de solicitar a inserção do seu “projeto de coloni-
zação, e desejando fazer conhecidos o fim e os meios da sociedade de
mecânicos franceses que formamos em Paris”7. Pouco tempo depois, já
contando com certo apoio de alguns deputados, o “Agente de uma asso-
ciação industrial organizada em Paris” iniciou uma viagem pelo litoral do
Império com a intenção de escolher um local favorável para a instalação
da Comunidade Industrial. O governo, representado pela Secretaria de
Estado e Negócios do Império, indicou as terras ao sul, mais precisamen-
te, a Província de Santa Catarina8. O interesse em colonizar aquela região
não era um acaso, mas, uma preocupação. No começo do ano de 1840, o
engenheiro belga Jules Parigot encontrou minas de carvão nos arredores
das Lagunas9. Logo, além de mão-de-obra para exploração, a presença de
uma Colônia Industrial e de “hábeis operários” poderia acelerar o desen-
volvimento daquelas terras.
De retorno à Corte, em meados de março de 1841, o Dr. Mure anun-
ciou que a comunidade industrial se estabeleceria na península do Sahy,
próximo à vila de São Francisco do Sul, na Província de Santa Catarina.
Para a aquisição destas terras, o médico contou com o apoio do Coronel
Camacho10. Este último, tendo sido deputado eleito na Província e mili-

6  Correspondência do Dr. Mure ao Presidente da Província de Santa Catarina, Sahy, 13 de fe-


vereiro de 1842. AHJ.
7  Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1840. BNRJ.
8  “(..), pela maneira que pôde prestar-se a esta pretensão, recomendando-a [Colônia] ao Presi-
dente da Província de Santa Catharina (...)”. Brasil. Relatório Ministerial do Brasil, Rio de Janeiro,
1840. Disponível: http://ddsnext.crl.edu/titles?f%5B0%5D=collection%3ABrazilian%20Go-
vernment%20Documents&f%5B1%5D=country%3ABrazil Acesso: junho de 2015.
9  Negócios da Provinciais, Fundo Império do Brasil, Série Interior. ANRJ.
10  CUNHA, Rogério Pereira da. “Francisco de Oliveira Camacho: A trajetória de um grande
proprietário em uma região de abastecimento”. In: 4° encontro de escravidão e liberdade no Brasil me-
ridional. Curitiba, 2009.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 169
tar de carreira, conhecia bem os trâmites burocráticos naquela Província.
Além disso, é preciso destacar que Camacho tinha seus interesses já que,
as terras que foram cedidas para erigir a Colônia Industrial pertenciam
a sua família desde os idos de 182711. Um tanto improdutivas devido
às inundações, o nobre deputado sabia que o ato de conceder as terras
para a instalação de uma Colônia lhe permitia solicitar uma indeniza-
ção. Esta negociata, que não é citada nos documentos do Sahy, só ficou
conhecida quando a viúva Camacho foi obrigada a vender certa porção
de terras, após a morte do Coronel12. Do trâmite acerca da indenização,
não se pode saber se o Dr. Mure era ciente. Em todo caso, ele obteve a
concessão das terras de maneira eficaz e o próximo passo era apresentar
o projeto aos deputados na Corte. Caso aprovado, um financiamento pú-
blico seria destinado ao empreendimento e asseguraria a viagem dos seus
compatriotas ao Brasil, bem como, o pagamento de um soldo mensal a
todos os integrantes durante o primeiro ano. Assim, no mês de abril de
1841, a proposta da Comunidade Societária do Sahy foi apresentada ao
recém-empossado Ministro, Cândido José de Araújo Viana e deputados.
A sessão do mês de julho de 1841 da Assembleia dos Deputados
começou com debates um tanto acalorados a respeito dos soldos dos mi-
litares e dos detalhes do orçamento no Império para o período 1842-1843.
Em meio a tais preocupações, as comissões permanentes deviam aprovar,
com certa urgência, quais os projetos que seriam financiados pelo poder
público. Uma vez apreciado, em forma de emendas nas devidas comis-
sões, os projetos eram enviados à comissão de orçamento que deliberaria
sobre a aprovação. Naquele ano, a “Comissão do Comércio, indústria e
artes” foi quem se responsabilizou pela avaliação do projeto da Colônia

11  No ano de 1827 a família do Coronel obteve uma porção de terras devolutas, títulos de ses-
marias, que se localizavam entre a região do rio Cubatão e as terras do Sahy. Cf. CUNHA, R. P..
Op. cit.; MARTINELLO, André Souza. Geografia histórica, discursos espaciais e construção territorial em
Santa Catarina. Tese de doutorado em Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
FFLCH, USP, São Paulo, 2016.
12  “(...) as quais foram concedidas ao seu falecido marido pelo Governo da Província em com-
pensação de outras terras que o mesmo falecido marido concedeu ao Governo para o estabeleci-
mento das Colônias do Sahy”. Cf. CUNHA, R. P.. Op. cit., 2009.

170 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Industrial do Sahy, com o aval do próprio Ministro Araújo Viana. No
entanto, a emenda que possibilitaria a instalação do empreendimento en-
controu alguns problemas.
O primeiro empecilho esteve diretamente ligado aos termos que o
projeto utilizava para solicitar a subvenção ao Império. Numa das reu-
niões da Comissão do comércio, o responsável pela leitura alegou que
a “mesa não se tem prescrito ao governo a obrigação de contratar (grifo
nosso); ela se limita somente a dar-lhe autorização”13. Para o deputado, os
documentos entregues permitiam somente que o Império autorizasse a
implementação da Colônia, sem, no entanto, contratar os seus serviços,
ou seja, financiar o dito projeto de colonização. O detalhe da utilização
das palavras “autorizar e contratar” gerou o questionamento acerca do
“não anui as condições da companhia, não só por não caber em suas
faculdades, como também porque o negócio carece de mais serias in-
vestigações”14. Aqui, é preciso ressaltar que a preocupação do deputado
estava ligada com os debates ocorridos entre 1835 e 1836 acerca da pre-
sença de estrangeiros no território brasileiro e da contratação de colonos.
Naquele período, a Assembleia aprovou a fundação da “Sociedade Pro-
motora da Colonização do Rio de Janeiro15”. Esta sociedade, composta
por acionistas e administrada por uma mesa diretora de oito deputados,
não possuía caráter público e desde a sua aprovação obrigava as demais
empresas interessadas na promoção da colonização no Império a legiti-
mar os seus estatutos e ações no parlamento. Para resumir a contenta, os

13  Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
14  Idem.
15  A Sociedade tinha o objetivo de “promover a vinda de Colonos brancos uteis, a saber:
pagando a despesa do seu transporte, a sua chegada a este porto - mediante convenção ajuste
com os mesmos Colonos - as pessoas com as quais eles tiverem contratado as suas passagens;
proporcionando-lhes emprego ou ocupação acomodada as suas faculdades e misteres; aparan-
do-os nas suas necessidades; e protegendo-os nas suas pessoas e fazenda, com sujeição as leis
do Império do Brasil”. Coleção das leis e decretos do Império do Brasil. desde a feliz época da
sua independência. Sessão de 1836. Rio de Janeiro: Tip. Imp. E. Const. de J. Villeneuve e comp.
1837. p. 09-13; CHRYSOSTOMO, Maria Isabel; VIDAL, Laurent. “Do depósito à hospedaria de
imigrantes: Gênese de um território da espera no caminho da emigração para o Brasil”. In: Revista
Manguinhos, História, Ciências, Saúde, vol.21, janeiro-março 2014.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 171
documentos fornecidos pelo Dr. Mure acerca da Comunidade Societária
do Sahy, que tinha por objetivo ser contratado pelo Império por vias de
l’Union Industrielle de Paris, não estava nas normas burocráticas brasileiras.
É de se imaginar o quanto este debate deixou as mãos do Sr. Ministro ata-
das e quase acabou com as esperanças do Dr. Mure. Porém, dias depois,
o deputado Francisco Ramiro de Assis Coelho apresentou o projeto na
Comissão de orçamento do Império defendendo-o com o argumento que
“a ninguém pareça eu essa despesa vem ser gravosa ao tesouro público,
porque não é donativo, porém apenas uma antecipação, que a Colônia
pede; ela promete reembolsar o tesouro, e a promessa é garantida por três
espécies de caução a que se sujeita16”. Sem aplausos ou vaias, o projeto
não foi votado.
No dia 8 de julho, o deputado paulista Andrada Machado se apre-
sentou favorável à emenda da contratação do Dr. Mure. Em seu discurso,
ele destaca a importância e a necessidade, para o Império, em deixar de
utilizar a “cultura por braças escravas17” e enaltece a ideia do sistema
associativo criado por Charles Fourier. Para Andrada Machado, os ope-
rários franceses representariam uma forma de liberdade para as terras
brasileiras. Não esquecendo as posturas da bancada tradicionalista e ca-
tólica que se fazia presente, o deputado também destacou que mesmo
se as intenções do Dr. Mure eram baseadas nas ideias de Fourier, o seu
“ensaio (...) não vai tocar nem com a nossa religião, nem com o nosso
governo”18. Mais uma vez, a sessão foi encerrada e a emenda ainda não
tinha obtido os votos necessários para a sua aprovação.
No dia seguinte, o Ministro. Araújo Viana entra em cena. Ao come-
çar o seu discurso abordando as questões centrais para o Império, como
o soldo dos militares, num dado momento, utilizando toda a polidez po-
lítica, ele solicita o apoio dos deputados ao projeto do Dr. Mure:

16  Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
17  Idem.
18  Ibidem.

172 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


“Uma emenda foi enviada a respeito da colônia industrial.
Logo que entrei para o ministério, apareceu-me o Dr. Mure.
Tratei de examinar o negócio, e não só pela conversação que
tive com este ilustrado estrangeiro, mas também pelo exame
dos papéis, pela recomendação do nosso enviado especial à
Paris, pelas pessoas que estão assignadas, homens até conhe-
cidos, alguns discípulos da escola politécnica, alguns mestres
e contramestres de grandes fábricas, etc, conheci que a vida
desta gente podia ser muito útil para o país. (...), entendo que
precisamos também desta; por isso disse alguma coisa a seu
respeito no meu relatório, e assento que a câmara prestará
um serviço ao país votando pela emenda “19.

Não contrariando o Ministro, mas seguindo a linha deste e apoiando


os demais colegas que defenderam o projeto, o deputado Carneiro Leão
solicita um destaque:

“Talvez não conviesse declarar que o contrato deva ser cele-


brado com o Dr. Mure, porque obstáculos talvez imprevistos
possam fazer com que se não possa contratar com esse indi-
víduo; (...). Assim eu desejaria, se parecesse conveniente a
ilustre comissão autora da emenda, que a redigisse de modo
que autorizasse o governo para contratar com o Dr. Mure, ou
com outro indivíduo (grifo nosso), o estabelecimento de
uma colônia de industriosos”20.

O adenddum solicitado pelo deputado Carneiro Leão permitia que


o Dr. Mure fosse contratado pelo Império como pessoa física sem, por-
tanto, haver a necessidade de registrar os documentos como era o caso
das Sociedades. Isso quer dizer que a ata da Union Industrielle de Paris foi
desconsiderada e a proposta de uma comunidade baseada nas ideias de
Fourier, tal como defendeu o deputado Andrada Machado, passou a ser

19  Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
20  Idem.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 173
apresentada como Colônia Industrial. Após tantos meandros burocráti-
cos, a emenda da Colônia Industrial finalmente passou no dia 14 de julho
e foi redigida da seguinte forma:

“Com o estabelecimento de uma colônia industrial na provín-


cia de Santa Catarina, ficando o governo autorizado a contra-
tá-la com o Dr. Mure, ou qualquer outro indivíduo (grifo
nosso) em sua falta, desde já, 64:000$. - Ramiro. - Ferreira
Penna. – B. Q. Torrão”21.

No dia seguinte, 15 de julho, ela foi aprovada pelo orçamento do


Império.
O Dr. Mure havia alcançado seu objetivo: conseguir um financia-
mento público, por vias do Império brasileiro, para erigir não uma co-
munidade societária, mas, uma Colônia Industrial. Naquele dia de julho,
uma batalha fora ganha. No entanto, ainda faltava a publicação oficial
e a assinatura do contrato entre as partes. Tais detalhes só poderiam ser
acertados quando todos os debates e votações da Assembleia fossem en-
cerrados. O Dr. Mure teria que aguardar, por certo, alguns meses.
Nos dias de espera, além de comunicar os seus frères em Fourier acer-
ca da conquista, ele também deve ter refletido em como anunciar aos
demais que o projeto de comunidade societária não havia sido aceito tal
qual como fora planejado pelo grupo de Paris em 1840. Quer dizer, obter
a concessão das terras e um financiamento em nome da Union Industrielle
de Paris.

Encontros e destinos em Paris (1840-41): Derrion, Jamain e Mure


No ano de 1840, Michel Derrion encontrava-se instalado “à la rue
de la Vannerie22”, uma região conhecida pela presença operária em Pa-

21  Ibidem.
22  Almanach Social pour l’année 1841. Paris: Librarie Sociale, 1842. p. 157-175.

174 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ris. Na capital, além de exercer trabalhos diversos, a maioria com baixa
remuneração, ele viveu em pequenos apartamentos destinados aos traba-
lhadores. Originário de Lyon, da Croix-Rousse, e filho um fabricant d’étoffes
de soie, Michel Derrion conheceu uma vida mesmo precária. Ao trabalhar
com seu pai, passando uma importante parte do tempo negociando com
os fornecedores e os produtores da seda, ele conheceu a severa hierarquia
social concebida pela Fábrica da Seda e que mantinha os trabalhadores,
chamados de Canuts23, em condições adversas. Estes homens e mulheres
pareciam predestinados a escutar o bistanclac do tear por toda a vida. Já
Michel Derrion, ele herdaria a profissão e a Maison do seu pai. Mesmo
se a sua vida era menos ingrata que aquela vivida pelos Canuts, isso não
o impediu de se aproximar das pregações acerca das ideias de Saint-Si-
mon e Charles Fourier que percorriam as ruas da Croix-Rousse. Aliado
a tal fato, a eclosão das duas Revoltas de Canuts, a primeira em 1831 e
a segunda em 183424, e a violência utilizada para conte-las, por parte do
governo francês, também fizeram com que ele repensasse a hierarquia
estabelecida e o trabalho.

23  A origem do nome Canuts ainda desperta inúmeros debates. No entanto, acerca da vida
destes trabalhadores da seda o que sabe é que as jornadas de trabalho eram de quase 16h, as
pausas eram restritas e destinadas para o descanso. Já os salários, eles eram estipulados pelos
grandes comerciantes da seda e taxados a partir da produção do tecido e da venda deste. Quanto
as condições de vida, habitação, normalmente, os Canuts encontravam-se alojados em pequenís-
simos apartamentos localizados no último andar dos prédios onde se produzia a seda. Numa
tal realidade, não é difícil de supor que novas ideias acerca do trabalho justo tenham chamado
a atenção. Sobre a Fábrica da seda em Lyon aconselham-se as leituras: PIGUET, Marie-France.
“Désignation et reconnaissance: le concours pour « chercher un terme appellatif qui remplace
celui de canut » dans l’Echo de la fabrique”. In: FROBERT, Ludovic (dir.). L’Écho de la Fabrique:
Naissance de la Presse Ouvrière à Lyon. ENS Editions/ Institut d›histoire du livre, 2007.
24  As duas Révolts des Canuts foram um movimento operário que questionava a industria-
lização e os baixos salários pagos. Manifestando-se para obter melhores condições de vida
e de trabalho, os canuts chegaram a tomar o poder da cidade de Lyon. No entanto, eles
foram duramente reprimidos e alguns foram levados a julgamento. Aconselham-se as leitu-
ras: RUDE, Fernand. Les Révoltes des canuts, 1831-1834. Paris: Maspero, 1982.; FROBERT,
Ludovic. Les canuts, ou la démocratie turbulente, Lyon 1831-1834. Tallandier, 2009.; FROBERT,
L.. “Vivre en travaillant ou mourir en combattant - Les révoltes des canuts (1831, 1834)”.
In: Histoire des mouvements sociaux en France, de 1814 à nos jours. Paris: La Découverte, 2014.;
LEQUIN, Yves. Les ouvriers de la région lyonnaise (1848-1914). Presses Universitaires de Lyon,
1977.; RUDE, Fernand. Les Révoltes des canuts, 1831-1834. Paris: Maspero. 1982.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 175
Em 1831, Michel Derrion se engajou ao saint-simonismo. O movi-
mento, estabelecido em Paris, após a morte de Saint-Simon (1825)25 pas-
sou a ser gerido por Prosper Enfantin, Amand Bazard, Olinde Rodrigues
e Michel Chevalier26. Foi este mesmo grupo que reformulou a doutrina,
criou a Igreja saint-simoniana, adotando a alcunha de frère para todos os
integrantes e Père para os responsáveis, e publicou o jornal Le Globe. Em
Lyon, para estabelecer uma Igreja, oradores foram enviados para organi-
zar reuniões e conferências. A doutrina de uma nova “société laborieuse et
pacifique27” devia ser popularizada.
Pouco tempo depois de conhecer os preceitos, Michel Derrion se tor-
nou responsável pela gestão administrativa da Igreja de Lyon e, quando
possível, escrevia artigos para alguns dos jornais operários locais defen-
dendo as ideias saint-simonianas. Em meados de 1834, devido a diver-
gências no movimento e a prisão do Père Enfantin, ele se afasta do grupo.
Porém, ele continua contribuindo com o jornal L’Indicateur publicando
uma série de artigos intitulados “Amélioration Industrielle”. Ao mesmo
tempo, ele coloca em circulação a sua brochura que propõe “l’améliora-
tion de l’industrie et du commerce”28. Nesta, além de abordar as injustiças
que o comércio egoísta exercia sobre os trabalhadores e questionar a real
função dos movimentos e revoltas sociais na vida dos operários, o lionês

25  Cf. BOISSIER, Gaston. Saint-Simon. Paris: Librairie Hachette et Cio. 1892.; PETRE-GRE-
NOUILLEAU, Olivier. Saint-Simon: l’utopie ou la raison en actes. Paris: Payot & Rivages. 2001; DE-
SANTI, Dominique. Les socialistes de l’utopie. Paris: Payot, 1970.
26  Após a morte de Saint-Simon, que conseguia reunir os diferentes ideais que compunham o
movimento, Prosper Enfantin e Saint-Amand Bazard foram nomeados Pères pelas mãos de Ro-
drigues. No entanto, mesmo se ambos partilhavam o título máximo, as diferenças entre os dois
causaram acaloradas discussões no seio da Igreja acerca da concepção hierárquica religiosa do
movimento e do misticismo sexual. Rodrigues e Bazard viam que Prosper Enfantin denegria os
preceitos do Mestre ao propor tais liberdades. Assim, no final do ano de 1831, a ruptura entre os
dois Pères foi inevitável. Rodrigues não tardaria a se retirar da Igreja.
27  Toutes les institutions sociales doivent tendre à l’amélioration progressive, sous le rapport moral, intellectuelle
et physique, de la classe plus pauvre et la plus nombreuse. Tous les privilèges dus au hasard de la naissance doivent
être successivement abolis; et alors chacun doit être classé suivant sa capacité et rétribué suivant ses œuvres : voilà les
moyens. Et de cet ensemble, mis en pratique par les hommes, du jour où comme nous ils sauront l’aimer, naîtra une
association universelle fondée sur un échange d’amour et de travail. Séance Saint-simonienne, Le Précurseur,
Lyon, 9 et 10 mai 1831. BML.
28  DERRION, Michel. Constitution de l’industrie et organisation pacifique du commerce et du travail, ou
tentative d’un fabricant de Lyon. Lyon: Chez Mme Durval Librerie, 1834.

176 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


encoraja a criação de um comércio social. Em 1835, em associação com
o fourierista Joseph Reynier e outros trabalhadores, Michel Derrion abre
a primeira épicerie sociale, também chamada de Commerce véridique et so-
cial29. Algum tempo depois, talvez por influência de Reynier, ele passa a
se corresponder com o grupo fourierista Correspondence harmonienne30, no
qual narra um pouco da sua experiência no comércio social. No ano se-
guinte, mais precisamente no final de 1836, uma crise econômica atinge
a França e, para complicar a situação, a Fábrica da seda passa a perder
espaço para o algodão das Américas. O desemprego, a fome e a falência
atingem todo o território. Sem escolha, a épicerie é obrigada a fechar as
suas portas. Michel Derrion decide partir para Paris.
Nas ruas da capital francesa, o lionês conheceu outros tantos ho-
mens que, assim como ele, havia decido se engajar na proposta de socie-
dade concebida por Charles Fourier31. Muitos deles, decepcionados com
o movimento saint-simoniano, passaram a partilhar a ideia da realização
de um projeto, em que as relações humanas se desenvolvessem a partir
de uma organização social composta por indivíduos com características
diferentes e complementares, agrupados por uma combinação de paixões
- a harmonia universal32.

29  A épicerie propunha encorajar os consumidores a tirar o máximo de proveito do seu po-
der de compra e, assim, modificar o sistema injusto de venda. Nesta ação, Michel Derrion
argumenta acerca da importância em criar um “réseaux d’établissements de distribution, magasins
de vente en détail d’objets de consommation courante: épicerie, boulangerie, soieries et nouveautés” para esta-
belecer uma partilha social, justa e eficaz dos benefícios entre os associados. Para conceber
este comércio, o Lionês, muito provavelmente, se apoiou nas leituras e análises de Charles
Fourier acerca da agiotagem, especulação, fraudes e trabalhos industriais. Cf. BEECHER,
Jonathan. Fourier: Le visionnaire et son monde. Paris: Fayard. 1993.; GAUMONT, Jean. Le commerce
Vérdique et Social (1835-1838) et son fondateur Michel Marie Derrion. Aminiens: Imprimerie Nou-
velle. 1935.
30  Através da troca de correspondências que os fourieristas buscavam encorajar e apresentar as
suas ideias acerca do estabelecimento de ações práticas para a realização da sociedade harmônica
pensada por Charles Fourier.
31  Cf. FOURIER, Charles M.. Le nouveau monde amoureux. Paris: Anthropos. 1967.; FOURIER,
C. Le Nouveau monde industriel et sociétaire ou invention du procédé d’industrie attrayante et naturelle, distribuée
en séries passionnées. Paris: Bossange père. 1829.
32  A ideia do Falanstério era de reunir certo número de pessoas e envolvê-las em atividades
sociais que supostamente permitem que suas paixões e inclinações naturais sejam livremente
expressas. Estes espaços são formados por grupos de produção e consumo em que cada fa-

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 177
Das trocas de correspondências para as ideias de uma sociedade
harmônica, Michel Derrion passou a participar da École Sociétaire33, teve
acesso ao jornal publicado por eles, La Phalange, e frequentou o Institut
Societaire34. Neste meio, ele também conheceu os diretores responsáveis
do jornal Le Nouveau Monde35 com os quais compactuava a ideia de que
os militantes da causa deviam manter uma postura contrária ao envolvi-
mento de qualquer um em partidos políticos. Acerca deste ponto, os fou-
rieristas não tinham uma opinião muito coesa. Por volta de 1836, o de-
bate sobre a presença do fourierismo na política se tornou um problema.
Como solução, alguns dos integrantes da École decidem fundar o Institut.
Victor Considérant36, o principal nome dos fourieristas, continuou vincu-
lado a aquela primeira e alguns anos depois, já engajado no meio político,
ele se elege deputado. Porém, devido a sua postura contrária as práticas
daquele que soe tornaria Napoleão III, ele e uma boa parte dos fourieris-
tas são cassados. Victor Considerant se exila na Bélgica e, em 1852, ele
parte para os Estados Unidos. Quanto ao Institut, gerido por um pequeno
grupo, é a figura de Eugene Tandonnet que se destaca. Diferentemente
de seu frère político, por volta de 1840 ele parte para Montevidéu com o
intuito de difundir as ideias de Charles Fourier. Sem muito sucesso, ele
retorna à França.
Os fourieristas, assim como os saint-simonianos, não possuíam uma
unidade no interior do movimento. Michel Derrion, que chegou à Pa-
ris quando as diferenças de l’École e Institut já haviam sido apaziguadas,
se aproximou dos frères que partilhavam das mesmas aspirações que as

lansteriano exerce várias profissões por alternância, o que lhe permite desenvolver todas as suas
faculdades. A renda é dividida entre capital, trabalho e talento.
33  Cf. BREMAND, Nathalie. “L’Ecole sociétaire - Les premiers socialismes”. In: Bibliothèque
virtuelle de l’Université de Poitiers, março de 2009. Disponível: <http://premierssocialismes.edel.
univ-poitiers.fr/collection/lecolesocietaire> Acesso: janeiro de 2019.
34  Cf. Aux phalanstériens. La commission préparatoire de l’Institut sociétaire, Paris, Impr. de Lottin de
Saint-Germain, 1837. Disponível: <http://premierssocialismes.edel.univ-poitiers.fr/document/
fd4345/viewer> Acesso: janeiro de 2019.
35  Groupe du Nouveau Monde, Le Nouveau Monde, Paris, 1 août 1841. BNF.
36  BREMAND, Nathalie. “Victor Considerant (1808-1893)”. In.: Les premiers socialismes -
Bibliothèque virtuelle de l’Université de Poitiers, 2009. Disponível: <http://premierssocialismes.
edel.univ-poitiers.fr/collection/victorconsiderant>. Acesso: julho de 2018.

178 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


suas. Ou seja, a de realizar a sociedade proposta pelo Mestre. Com tal
objetivo, ele se vinculou ao grupo da L’Union harmonienne que foi forma-
do por alguns dos responsáveis das Correspondences harmoniennes. Michel
Derrion conhecia este último desde o seu tempo em Lyon e os “Unionis-
tas”, como se autonomeavam, ansiavam forjar “la famille, que doit féconder
l’associations”. Assim, para melhor organizar as ações práticas, o grupo
formou uma comissão geral que estabeleceu regras rigorosas e que foram
adotadas no congresso de Cluny, em 1840. No que se refere à participa-
ção nas reuniões, todos deviam se tornar filiados, assinar as folhas de pre-
sença distribuídas e não apresentar mais de três faltas. Sobre a concepção
de projetos societários e a real aplicação, além dos setores comerciais já
visados pelo grupo, a imigração também era considerada. Neste último
ponto, as comunidades fourieristas podiam se estabelecer em qualquer
parte do globo, desde que respeitassem as normas da sociedade harmôni-
ca de Fourier e obtivessem financiamentos próprios e sem vínculos parti-
dários para a instalação.
Numa das tantas reuniões, Michel Derrion conheceu o operário Ja-
main, Rouffinel e o dr. Benoit-Jules Mure. Deste encontro, Jamain foi
aquele que se tornou o amigo cujo qual partilhou “le but unique la réalisa-
tion d’un phalanstére”37. Ambos sabiam que para realizar o Falanstério, a
sociedade societária, os dois possuíam o papel de “transiteurs”38. Ou seja,
eles responsáveis por iniciar a transição da sociedade injusta e egoísta, na
qual viviam, para a harmônica. De certa maneira, o grupo de fourieristas
que compunha o círculo do Institut, l’Union harmonienne e do jornal Le
Nouveau Monde eram obstinados e não foram poucas as vezes que lança-
ram petições e solicitaram financiamentos para a concretização do ideal
falansteriano.

“(…) la science sociale doit se concilier avec toutes les for-


mes de gouvernements civilisés, [...] ne doit spéculer que sur

37  “Bases réglementaires de l’Union”, In: Almanach Social pour l’année 1841, p. 152-156.
38  ARANTES Urias. “Et l’idée organise le monde. Notes sur les fouriéristes dissidents”. In:
Cahiers Charles Fourier, n° 5. 1994. Disponível: http://www.charlesfourier.fr/spip.php?article118.
Acesso: fevereiro 2017.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 179
les améliorations industrielles et jamais sur les changements
administratifs, [et] est toute conciliante en ce qu’elle indique
l’art d’enrichir la masse sans froisser l’individu” 39.

De origem modesta, Antoine-Joseph Jamain nasceu em Paris e pas-


sou uma boa parte de sua vida trabalhando como mécanicien. Engajado,
primeiramente nos ideais saint-simonianos, em 1837, ele funda com de-
mais frères “Le Sociantisme. Union des agents producteurs: capital, travail et
talent”. Pouco tempo depois, já no meio fourierista, ele passa a participar
da Union harmonienne e se torna reconhecido como “principaux artistes et
travailleurs appartenant à l’École sociétaire”. Em 1840, no jornal Le Nou-
veau Monde, ele publica a nota para coletar fundos com o objetivo de
estabelecer um Falanstério. Neste projeto, Michel Derrion é quem lhe
acompanha.

“Mettons-nous à l’œuvre, et le premier phalanstère surgira”.

Benoit-Jules Mure, assim como Michel Derrion, nasceu em Lyon,


em maio de 1809. Oriundo de uma família abastada, ainda muito jovem
sofreu com a tuberculose. Em busca de uma cura para o seu mal, ele
parte à Paris e, por recomendação médica, viaja para as terras quentes da
Sicília onde conhece a homeopatia. Deste encontro, ele decide estudar
medicina. Porém, devido a divergências internas na academia de Mon-
tpellier, ele acaba não obtendo o grau de doutor. Decidido a continuar,
ele passa seu tempo a estudar e a praticar a homeopatia na Itália e em sua
terra natal, Lyon. Por volta de 1840, o Dr. Mure encontrava-se instalado
em Paris e participando das reuniões fourieristas.
Três destinos que se cruzaram a partir de ideais societários. Todos,
ao seu modo, queriam que o Falanstério se erigisse. Michel Derrion, um
comerciante; Antoine Jamain, um mécanicien; e Benoit Mure, o homeo-
pata.

39  Caractère de notre propagande, Le Nouveau Monde, n°11, 20 octobre 1839 apud ARANTES
Urias. Op. cit..

180 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Em março de 1840, o grupo do jornal Le Nouveau Monde depositou
na Chambres legislatives uma petição, publicado nas páginas do jornal40,
que solicitava o financiamento público para a realização de um Falansté-
rio nos arredores de Paris. Apesar deste anúncio ser importante, na mes-
ma edição, a pequeníssima nota que aparece na coluna Faits divers é a
mais importante.

“Mouvement de la souscription phalanstérienne - Nous


comptons 103 souscripteurs aux bureaux du Nouveau Mon-
de. 449 fr. sont déposés à la caisse d’épargne, sans compter
100 fr destinés à l’exécution du projet de M. Jamain  ; Les
engagements pour le jour de la réalisation s’élèvent à 27,800
fr.”.

Naquele ano de 1840 houvera dois projetos de Falanstério. Michel


Derrion, certamente, estava envolvido nos dois. Jamain, ao que tudo
indica, decidiu arriscar seu próprio caminho. Dos dois Falanstérios, foi
exatamente o que era encabeçado pelo parisiense Jamain que deu origem
à imigração para o Brasil. Acerca dos dados específicos do documento,
quase nada se sabe. No entanto, a hipótese mais provável pode ser aven-
tada. A souscription solicitada por Jamain dizia respeito à concepção de
um Falanstério que não tinha um local estabelecido. Como dito anterior-
mente, Michel Derrion e Jamain se conheciam das reuniões Unionistas
e, frente à resposta desfavorável do governo francês, não é difícil de supor
para onde se dirigiu o lionês. Ou seja, Derrion incorporou-se ao grupo
constituído por Jamain. No meio fourierista que participavam, respeitan-
do as devidas instâncias, era normal que os projetos concebidos fossem
apresentados aos frères. Logo, é de supor que o parisiense seguiu as devi-
das e ao apresentar a proposta de um Falanstério baseado na imigração,
alguns fourieristas tenham se interessado, entre eles, o Dr. Benoit-Jules
Mure. Jamain, Michel Derrion e Rouffinel eram trabalhadores ordiná-
rios e o Dr. Mure, um amante dos estudos e das práticas homeopáticas.

40  Faits divers, Journal le Nouveau Monde, Paris, 21 mars 1840. BNF.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 181
Assim, é de se considerar que a ideia de fundar a Union Industrelle de Paris
com um esboço de Estatuto, ou ata, assinado em setembro de 1840, teve
seu princípio numa destas reuniões. Infelizmente, não se sabe ao certo
quem o assinou e se foi realmente votado e aprovado por uma comissão,
como mandava os regulamentos Unionistas. De toda maneira, Jamain,
Derrion e Mure tinham um acordo.
A escolha pelas terras brasileiras41, muito provavelmente, foi tomada
em reuniões e conversas ocorridas com os demais fourieristas, políticos
que frequentavam a École Sociétaire e, quem sabe, por influência da viagem
de Eugene Tandonnet. Aqui, é preciso destacar que nos idos de 1840, a
monarquia brasileira estava encorajando a imigração42. Se o grupo, en-
tão intitulado Union Industrielle de Paris, tinha por objetivo buscar um fi-
nanciamento para a realização do Falanstério, parecia evidente enviar
alguém para estabelecer negociações com o governo do Brasil. Assim,
dentre os que compunham a Union, o Dr. Mure era o mais inclinado a
atravessar o Atlântico, pois além da sua profissão, ele possuía condições
financeiras para custear a viagem ao Brasil. No final de 1840, Benoit-
-Jules Mure embarcou para o Brasil e em suas mãos estavam a ata que
fundou Union Industrelle de Paris, as cartas de recomendação, assim como
toda a responsabilidade de conseguir o financiamento para erigir o futuro

41  O pesquisador Laurent Vidal fez uma excelente analise acerca da escolha das terras brasileiras
pelos franceses fourieristas. Cf. VIDAL, L.. Op. cit., p. 53-75.
42  O debate da imigração e colonização no Brasil, do período regencial até a chegada de Dom
Pedro II ao poder, foi um tema que abordei em minha tese. O objetivo foi o de apresentar a
preocupação, por parte do Império, em criar normas e leis para contratar e regularizar a entrada
de estrangeiros e colonos, bem como, abordar a existência de uma economia atlântica que es-
teve vinculava a empresas privadas de colonização. É importante ressaltar, também, que as leis
e decretos de estrangeiros e colonos foram uma resposta as situações internas do Império que
surgiram em razão de fenômenos internacionais, tais como: a proibição do tráfico de escravos e
a extinção da escravatura nas colônias britânicas. Cf. MELENDEZ, José Juan Pérez. Reconside-
rando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo. In.:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 34. 2014. p. 35-60.; PETRONE, Maria Theresa. Política
imigratória e interesses econômicos ». In: Emigrazione europee e popolo brasiliano, Atti del Congresso
euro-brasiliano sulle migrazioni. São Paulo. 1985. Roma. 1987. p. 257-269, apud IOTTI, Lui-
za Horn. “Imigração e colonização”. In: ANPUH. São Paulo. 2001. Disponível: https://www.
anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Autores%20e%20Artigos/
Luiza%20Horn%20Iotti.pdf Acesso: abril de 2016.

182 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Falanstério. Jamain, Michel Derrion e Rouffinel deveriam organizar os
outros detalhes, tais como: a escolha dos futuros societários e a votação
do estatuto que regeria a sociedade.
Em junho de 1841, o manifesto e o estatuto foram publicados no
jornal Le Nouveau Monde. Sem esquecer as diretrizes do grupo Unionista,
Jamain, Michel Derion e, agora, o médico Arnaud, abordaram o papel
transitório que eles assumiam naquele momento, bem como, estabelece-
ram algumas regras. A primeira era a concepção de sociedade baseada
na construção de indústrias que devia “introduire l’emploi d’agents méca-
niques, qui, suppléant au travail des bras, créeront rapidement de nombreux pro-
duits agricoles”43. Já a segunda estava na ideia de trabalho que não podia
admitir a “l’explotation, ni salariés, ni domestiques, ni esclaves, mais seulement
et uniquement des associés”44. Quanto a administração, esta seria compos-
ta por quinze membros, divididos entre três diretores, que no primeiro
momento de instalação seriam “nommés par les cent premiers signataires du
présent acte45” e depois, a cada ano, seria nomeado outros diretores que
“sont fondés de pouvoir par tous les sociétaires coopérateurs qui sont solidairement
responsables de engagements”46. Para este primeiro momento, os diretores
gerais eleitos foram Jamain, Michel Derrion e Arnaud. Rouffinel fazia
parte dos quinze membros eleitos. Já o nome Dr. Mure, que decidiu par-
ticipar da empreitada e se dirigiu para o Brasil, a suas custas, não figurou
nem mesmo entre os demais societários.

Caminhos Atlânticos: Le Havre, Rio de Janeiro e Sahy


A viagem de Paris ao porto de Havre, quase um dia de barco, foi feita
a bordo do vapor Diavolo47. O trajeto foi programado à partir do trem “à
la rue Saint-Lazare, à Paris; et en vingt-cinq minutes ordinairement on

43  Manifeste et Statuts de l’Union Industrielle, Paris, Siége de la Société, 1841. p.9-16.
44  Idem.
45  Idem, p. 17-30.
46  Ibidem.
47  Journal du Havre, septembre 1841, apud VIDAL, L.. Op., cit., p. 136-144.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 183
parcourt les 18,430 mètres qui séparent cette capitale du Pecq”48. Che-
gando à Pecq, os falansterianos podiam esperar o vapor que lhes era des-
tinado num “belle terrasse borde la rivière”49. Este último, que deve ter sido
provavelmente negociado por algum dos diretores da l’Union Industrielle,
receberia todo o grupo, os quase 93 falansterianos, e ainda recolheria as
bagagens. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, no Rio de Janeiro, o
Dr. Mure corria contra o tempo para poder assinar o contrato da Colônia.
Era final de setembro de 1841.
A chegada ao porto do Havre não deve ter sido muito acolhedora.
Naquele mês, os ventos e o mau tempo foram desfavoráveis à partida
dos barcos. A embarcação responsável por atravessar o Atlântico com os
franceses societários, tinha sua saída prevista para o dia 25 de setembro,
mesmo dia que o vapor Diavolo aportou no bassin du Roi. No entanto, esta
foi adiada devido às inconstâncias do clima. Durante esse período de ven-
tos contrários, os homens, as mulheres e as crianças tiveram que ocupar
suas longas horas de espera com algum afazer. Se as previsões fossem
corretas, eles esperariam apenas alguns dias. Porém, para a surpresa de
todos, a espera no porto do Havre durou quase um mês.
No dia 20 de outubro os barcos começaram a ser liberados um por
um . La Caroline, por sua vez, recebeu a autorização para deixar le Bassin
50

logo após « le commandant du port organize l’ordre des sorties »51. Aos france-
ses, um novo desafio se apresentava: viver os dias a bordo de um barco.
O tempo para atravessar o Atlântico poderia chegar a três meses. Os dias,
vividos entre o convés e o interior da embarcação, poderiam se tornar
longos e extremamente extenuantes. Era preciso encontrar meios para
não adoecer, tanto o corpo quanto a alma.
A falange aportou em terras brasileiras em dezembro de 1841. Neste
longo período, nenhum francês perdeu a vida. Atracados no porto da

48  Guide du voyageur sur les bateaux à vapeur de Paris au Havre, Paris, Béthume et Plon, 1841. p. 03-
05. Disponível: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k84193p Acesso: janeiro de 2017.
49  Idem.
50  Journal du Havre, 2 octobre 1841 ; Journal du Havre, 15 octobre 1841 ; Revue Maritime et commer-
ciale du Havre, 22 octobre 1841, apud VIDAL, L.. Op. cit., p. 145-151.
51  Idem.

184 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


capital do Brasil, a bordo do La Caroline, eles esperavam ser liberados.
Aos poucos, as pirogas, conduzidas pelas “gentes de cor”, aproximavam-
-se com homens que davam ordens para que toda a tripulação e o capitão,
com o seu diário de bordo, apresentassem-se no convés. Era o momento
de averiguar se todos estavam sadios, normas sanitárias do porto, como
também de contar e regrar todas as bagagens e os viajantes, normas da
alfandega. Enquanto todo o trâmite ocorria, é possível supor que alguns
franceses se esforçavam para compreender aquela língua de ritmo can-
tado e carregada de “s, x, ão”. Talvez, eles tentassem associar quaisquer
palavras com a língua materna. Mas é pouco provável que deixassem de
admirar curiosamente as pirogas e os negros seminus que se equilibravam,
utilizando toda a força de seus corpos, para suportar o peso das baga-
gens e controlar a embarcação. Neste mesmo momento de descobertas e
apreensões, no convés do La Caroline, a estranha sensação de peso do cor-
po, de leseira, deve ter abatido alguns dos recém-chegados. Era o começo
do verão nos trópicos que tornava os dias mais longos, as temperaturas
mais elevadas e a umidade mais intensa. Para aumentar ainda mais a
estranheza, o ritmo das marés e os ventos traziam os fortes odores, não
tão agradáveis, que emanavam do mar, ao que se somavam as pequenas
bestas voadoras, que zuniam nos ouvidos.
No dia 30 de novembro de 1841, o Império publicou a Lei n°243 - Fi-
xando a Despesa, e Orçando a Receita para o Exercício do ano financeiro
de 1842-1843. Nela estava a emenda da Colônia Industrial:

“Hey por bem aprovar o contrato que na data de hoje foi ce-
lebrado por Candido José de Araújo Viana, do meu conselho,
ministro e secretário de Estado dos negócios do Império, com
o dr. J. B. Mure, para o estabelecimento de uma colônia in-
dustrial na província de Santa Catarina, sob as condições que
com este baixam, assinadas pelo mesmo ministro e secretá-
rio de Estado, que assim tenha entendido e faça executar com
os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, em 11

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 185
de dezembro de 1841. Com a rubrica de S. M. e Imperador.
Candido José de Araújo Viana”52.


Depois de quase um ano e todas os problemas encontrados, o Dr.
Mure e o Império brasileiro assinaram o contrato da Colônia Industrial
no dia 11 de dezembro de 1841. Numa primeira leitura, o acordo celebra-
do entre as partes parece correto e dentro das normas. No entanto, no dia
9 de julho de 1841, na votação do projeto de emenda, o deputado Carnei-
ro Leão havia solicitado uma pequena alteração no que tange ao texto da
autorização: “contratar com o Dr. Mure, ou com outro individuo [grifo
nosso]”. Este detalhe, contudo, não consta no contrato celebrado no dia
11 de dezembro. Um mero esquecimento ou uma artimanha política? No
caso desta última, quem teria sido o responsável? Apenas perguntas...
O artifício que retirou o termo proposto pelo deputado, “ou com
outro individuo”, residia no claro impedimento em dar o direito a qual-
quer outro francês de negociar ou representar a Colônia Industrial. No
que diz respeito ao recebimento dos socorros pagos no primeiro ano da
instalação, os franceses deviam se dirigir diretamente ao Dr. Mure. Para
complicar um pouco mais a situação, no dito contrato estava especifi-
cado que todos os “colonos” estavam sujeitos a lei de 11 de outubro de
183753. Resumindo, o médico homeopata vinculado ao grupo fourierista
de Paris e que havia viajado para o Brasil com a intenção de representar
os interesses de um grupo de franceses societários, na verdade, se tornou
o responsável - chefe - de uma Colônia. Os frères em Fourier, considera-
dos societários na comunidade proposta e que conviviam “em todas as
ocasiões, provas de que sabem juntar ao amor do trabalho o uso da civi-
lidade, que não exclui nem a franqueza nem a cordialidade54”, palavras

52  BOITEUX, Henrique. “O Falanstério do Saí”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
Santa Catarina. Florianópolis, vol. XII, 1º semestre 1944.
53  Brasil. Coleção de Leis do Império do Brasil de 31/12/1837, vol. 001, col.1. Disponível:
http://legis.senado.leg.br/norma/541072/publicacao/15632760 Acesso: junho 2019
54  Carta de Michel Derrion ao dr. Mure, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de dezembro de
1841. BNRJ.

186 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


de Michel Derrion ao Dr. Mure, a partir daquele contrato eram colonos e
deviam assinar um “Contrato de locação de serviços dos Colonos”.
Naquele dezembro de 1841 tudo havia começado em uma aparen-
te tranquilidade, afinal, todos os franceses foram recebidos pelo próprio
Imperador e seu Ministro no Palácio e, muito em breve, os industriosos
embarcariam para a Província de Santa Catarina. Enquanto a cena se
passava, o Dr. Mure havia recebido uma carta em que era lembrado “que
V. M.ce remeta com urgência a esta Secretária de Estado de Negócios do
Império, uma cópia autentica do contrato que tiver feito com as pessoas
que formarão a Colônia Industrial que vai se estabelecer na península do
Sahy (...)”55. Ele devia assinar um contrato de trabalho com os france-
ses societários, mas, para que isso ocorresse, explicações acerca do outro
contrato, que assinou em próprio nome, deviam ser dadas. Michel Der-
rion e Jamain ainda não sabiam da existência de tais documentos. Os
reais problemas começariam nos dias seguintes ao encontro no Paço.
Talvez por desespero, não saber como explicar toda a situação ou
mesmo por justiça, o Dr. Mure partiu para Santa Catarina levando con-
sigo alguns franceses. Foi somente após este evento, ou a fuga do Dr.
Mure, que Jamain e Derrion tomaram conhecimento das cláusulas do
contrato que foi assinado com o Império e que, também, só poderiam se
estabelecer nas terras da Colônia mediante um contrato de trabalho ava-
lizado. Deixados para trás pelo Dr. Mure, “qui fut notre delegué au Brésil en
vertu d’un acte signé par nous56”, os dois diretores haviam, portanto, propos-
to “des arrangemens pour appraiser notre mécontetement et nous étant entendus
sur presque tous les points”57 acerca do estatuto da Union Industrielle. Numa
tal situação, em que tudo parecia em desordem, é de se supor que tan-
to Michel Derrion quanto Jamain tenham pensado que se os deputados
franceses tivessem concedido o financiamento solicitado em 1840, para
a instalação de um Falanstério na França, nada disso teria ocorrido. A

55  Carta de Candido José de Araújo Viana ao dr. Mure, Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1841.
AHJ.
56  Lettre du Secrétaire de l’Union Industrielle, São Francisco do Sul, 24 février 1842. AHJ.
57  Idem.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 187
comunidade teria sido construída em território francês e todos estariam
juntos dos seus falando, negociando e vivendo o cotidiano em sua própria
língua.

“Nous avons vivement regretté leur départ, car nous aurions


préféré que la France prit l’initiative du mouvement qui doit
régénère le monde”58.

Porém, eles estavam no Brasil. O incidente ocorrido a dois dias da


entrada do ano de 1842, na cidade do Rio de Janeiro, selou a divisão da
Union Industrielle com o Dr. Mure.

Um pouco de concórdia: Jamain, Derrion e Mure


Jamain, Derrion e os demais franceses partiram para São Francisco
do Sul no final de janeiro de 1842. A viagem foi custeada pelo Império e
os demais gastos, como alimentação, hospedagem e roupas, foram, muito
provavelmente, conseguidas com o Consulado da França no Brasil e a
Société de Bienfaisance française59.
O vapor Campista atracou no rio São Francisco no final de janeiro de
1842. A paisagem, bem diferente das grandes cidades nas quais viveram,
não parecia aportar muitas esperanças para que as divergências fossem
resolvidas. Os dois diretores, desde que chegaram, foram ao reencontro
dos demais compatriotas. Os relatos dos integrantes que haviam viajado
para o Sahy na barca La Caroline com Dr. Mure, em dezembro de 1841,
não foram nada agradáveis. Jamain e Derrion souberam que atos de vio-
lência foram cometidos contra algumas mulheres que decidiram ques-

58  Essai au Brésil, Journal Le nouveau Monde, Paris, 1 février 1843. BNF.
59  Fundada em 1836, na rua da Ajuda, n°17, a Société foi concebida em comités eleitos uma
vez por ano, entre os meses de junho e julho. A participação nas reuniões, com voz e voto, era
permitida a todos que pagassem a inscrição. Devido à falta de documentos nos arquivos da atual
instituição, infelizmente, não se pode saber quantos franceses estiveram inscritos e tão pouco o
valor estipulado para a participação na Sociedade.

188 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tionar o esquecimento dos demais compatriotas60 e que, utilizando a for-
ça da Guarda, efetuaram o sequestro de alguns bens comprados no Rio
de Janeiro com os socorros pagos pelo Império. Ao saberem do fatídico
evento, os diretores se dirigiram “sobre o terreno tomar conhecimento
do estado do nosso material”61. Para surpresa, os utensílios de trabalho,
bem como, as demais ferramentas foram encontradas “estragando digo
saqueado uma parte que aparece estar arruinada exposta na praia à chu-
va”62. Em meio a tantas desavenças, a opção mais racional era de buscar
soluções que apaziguassem os ânimos. Assim, os dois diretores tentaram
uma nova negociação com o Dr. Mure.
A conversa com o Dr. Mure, infelizmente, não possibilitou um acor-
do. Sem muitas alternativas e, sobretudo, sem o conhecimento da língua
portuguesa, Jamain e Derrion entraram em contato com as autoridades
competentes para solicitar apoio - Câmara municipal de São Francisco
do Sul e o presidente da Província de Santa Catarina. A resposta, que
veio de Desterro e pela a pluma do inspetor da Colônia, Jerônimo Coe-
lho, foi a de não contestar a autoridade do Dr. Mure. De mãos atadas,
o grupo a favor dos dois diretores, chamados de dissidentes, tomou a
iniciativa de se instalar em terras adjacentes da Colônia do Sahy. Jamain,
Derrion e cerca de outros quarenta franceses se estabeleceram nas terras
do Palmital. Estas, que foram solicitadas à Província por vias de uma
concessão em nome dos diretores gerais da Union, segundo cartas envia-
das nos meses de fevereiro a abril de 1842, ao cabo, foram adquiridas com
fundos próprios63. O grupo, que se negou a assinar o contrato de trabalho
proposto pelo Dr. Mure, buscou constituir nas terras do Palmital seguiu
a forma de organização social proposta no estatuto da Union Industrielle.
Michel Derrion, por sua vez, com o objetivo de defender os interesses dos
frères, foi enviado ao Rio de Janeiro para tentar renegociar com o Impé-

60  Carta de Antônio João Vieira à José da Silva Mafra, São Francisco do Sul, 29 de janeiro de
1842. AHJ.
61  Lettre de Jamain et Michel Derrion à Antônio João Vieira, São Francisco do Sul, 30 janvier
1842. APESC.
62  Idem.
63  Union Industrielle par Joseph Reynier, Journal Le Nouveau Monde, Paris, 1 juillet 1843. BNF.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 189
rio. Na sua ausência, Jamain se tornou o único diretor geral, responsável
por gerir a instalação dos compatriotas e auxiliar na construção de roças
para plantio de quaisquer alimentos. Ele, que esteve na capital de Des-
terro, em meados de fevereiro, para tentar explicar a situação em que os
demais franceses se encontravam, nada conseguiu das autoridades. Ao
seu retorno, provavelmente frustrado da negociação, o parisiense soube
que algumas crianças do grupo perderam a vida devido a falta de viveres
que haviam sido prometidos pelo Dr. Mure. Em desespero, Jamain envia
uma carta para a família Schutel, em Desterro, solicitando medicamen-
tos. Quanto à resposta, até o momento, nenhum dado foi encontrado.
O Império decidiu interromper o envio dos socorros ainda no pri-
meiro trimestre de 184264. Sem os pagamentos e sem outras receitas, a
Colônia do Sahy provavelmente vivia por suas próprias custas, negocian-
do o pouco das produções agrícolas e do corte de árvores. Já o grupo do
Palmital, por não fazer parte da Colônia do Sahy e não ter assinado o
contrato de trabalho, corria o risco de ser condenado a prisão pelo não
cumprimento da lei de Contratos de locação de serviços dos Colonos,
caso o Dr. Mure fizesse uma denúncia legal. Em tal situação, e com uma
dispersão considerável dos compatriotas, após quase cinco meses de desa-
venças, os dois grupos não tiveram outra opção senão aceitar “um arran-
jo tendente a unir os dois estabelecimentos, debaixo da direção principal
do Dr. Mure”65 escrito pelo novo Inspetor o sr. José da Silva Mafra66.
Os anos seguintes trouxeram um pouco de concórdia para os fran-
ceses do Sahy. As querelas foram se apaziguando assim que o Dr. Mure
deixou aquelas terras para se estabelecer no Rio de Janeiro em agosto de
1843. O francês Charles Leclerc, que sempre esteve instalado ao lado do

64  Ministério do Império - Colônia Industrial do Sahy, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 17 de
julho de 1842. BNRJ
65  Ministério do Império, Colônia Industrial do Sahy, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 17 de
julho de 1842. BNRJ
66  Nascido em Desterro, em 1788, no ano de 1842 ele se encontrava em sua 4° legislatura de
deputado. Em meio aos corredores da Assembleia ou nas trincheiras do exército, é de se supor
que o novo Inspetor da Colônia do Sahy e o Coronel Camacho fossem colegas. O relatório da
vistoria da Colônia foi publicado no Jornal do Comércio no dia 17 de julho de 1842.

190 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


médico, se tornou o diretor da Colônia do Sahy. Naquele momento, o nú-
mero de compatriotas no Sahy era de 16 e no Palmital 22. Jamain, após
tanta luta com os poderes e com o Mure, como a ele se referia, deixou as
terras do Sahy em 1844. Ele se instalou no Rio de Janeiro onde se casou
e manteve uma correspondência irregular com os fourieristas de Paris.
Michel Derrion se tornou o “Directeur chargé d’affaires de M. Mure”67 e, em
agosto de 1844, o lionês redigiu um novo Statut que devia reorganizar a
Colônia. O documento foi assinado pelos cinco chefes de família que es-
tavam instalados na região: Michel Derrion, Mangin, Raymond, Marshal
e Charles Leclerc68. No terceiro artigo, pode-se ler “La Société représentée
par son administrateur se propose pour but d’établir progressivement l’association
intégrale selon la théorie de Charles Fourier”69. Os ideais ainda persistiam,
assim como, o desejo de Michel Derrion em construir a sociedade.

“J’attends aussi de connaître les mesures que seront proses


à l’avenir, pour savoir si je peux donner suite aux projets que
j’avais conçus pour la prospérité d’un établissement indus-
triel au Sahy”70.

Porém, segundo as leis do Império e o contrato assinado, a direção


de Michel Derrion era fictícia. O Dr. Mure continuava sendo o único
responsável.
Entre setembro e outubro do ano de 1844, o lionês recebeu um de-
creto imperial, encaminhado pela província, solicitando o envio de um
relatório detalhado da Colônia. O documento, elaborado somente no
mês de dezembro, contém cerca de nove páginas e foi escrito em francês.
As minucias existentes, além de apresentarem uma riqueza impressio-
nante de detalhes, também denota o quanto aquele espaço, outrora visto

67  Lettre de Michel Derrion au Président de la Province de Santa Catarina, São Francisco do
Sul, 26 octobre 1844. AHJ.
68  Copie du Contrat de la Société Industrielle du Sahy, fondé par M. Derrion, Sahy, 15 août
1844. AHJ.
69  Idem.
70  Lettre de Michel Derrion au Président de la Province de Santa Catarina, São Francisco do
Sul, 26 octobre 1844. AHJ.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 191
como uma realização societária, se tornara numa imagem de ruinas e
tristezas. Num último golpe de persistência, um tanto cega devido aos
seus ideais, Michel Derrion continuou instalado no Sahy até janeiro de
1846. Neste ano, ele comunica as autoridades locais a sua viagem ao Rio
de Janeiro. O sonho de uma comunidade societária ou de um Falanstério
havia terminado, ao menos, naquelas terras no sul do Brasil.

De sonhos e frustrações: conclusão


Benoit-Jules Mure, Antoine-Joseph Jamain e Michel-Marie Derrion
eram diferentes e viviam o movimento fourierista de formas distintas. O
primeiro era doutor e um sério defensor da homeopatia; o segundo era
filho de um fabricante de étoffes de soie; e o terceiro, um parisiense, me-
cânico e de origem humilde. Dos três, talvez Jamaim fosse o mais devoto
defensor da sociedade baseada no sistema societário. Michel Derrion,
por sua vez, foi aquele que acreditou nos ideais de sua época sem, por-
tanto, compreender a responsabilidade que a crença num ideal carrega.
Já o Dr. Mure, era aquele que seguia os caminhos pensando em difundir
a homeopatia sem levar em conta o que isso podia causar na sua vida e na
dos outros. Nestas histórias de vida, cruzadas a partir de uma narrativa
atlântica - França e Brasil -, o que representa estes homens é a coragem de
deixar tudo para trás e de se estabelecer numa terra desconhecida somen-
te para realizar um ideal. Diferentes e semelhantes, aos olhos do Mestre
Fourier eles eram irmãos. Entretanto, esse elo fraternal não foi o suficien-
te para controlar o desapontamento entre frères e a frustração, em relação
ao Império brasileiro, causada pelo desconhecimento daquela sociedade.


“Certes Monsieur le Président il est beau de féconder une
colonie ; mais nous notre tâche est plus belle que celle d’un
colon, et c’est pourquoi nous ne voulons pas être colons, ce
que nous voulons le voici ; nous voulons être frère avec vos

192 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


concitoyens nous voulons qu’ils s’initient à nos industries,
car vous le savez Monsieur le président les hommes passent,
mais leurs travaux restant (...)”71.

71  Lettre de Jamain au Président de la Province, São Francisco do Sul, 12 avril 1842. AHJ.

SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 193
194 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Colônia Cecília:
considerações sobre o anarquismo
experimental no sul do Brasil

Cassio Brancaleone

“Deixando em segundo plano a crítica do presente e a glorifi-


cação do futuro, nos dedicaremos a demonstrar, pelo exame
dos fatos e com o experimento, que esse futuro é possível.”

Giovanni Rossi

A história da Colônia Socialista de Cecília, por diante simplesmen-


te Colônia Cecília, fundada nos finais do século XIX no inte-
rior do estado do Paraná por imigrantes italianos, é um episódio
privilegiado para analisar as intersecções entre um período relevante da
formação social do chamado Brasil moderno, obviamente a partir das
coordenadas particulares do sul do país, dos dilemas de nossa questão
agrária e da complexa dinâmica de constituição das raízes do movimento
operário assim chamado nacional que, como o próprio movimento ope-
rário assim chamado europeu, nasceu sob a égide do internacionalismo
(VAN DER WALT & SCHMIDT, 2009). A Colônia Cecília deveria ser
tratada como uma daquelas “escalas obrigatórias” indispensáveis para
qualquer plano de voo comprometido com o estudo sistemático das experiên-
cias de auto-organização social dos trabalhadores e subalternos desenvolvidas no
território brasileiro, que seguramente demanda pontes e conexões (não
mecânicas e lineares) com o período das resistências coloniais, além de
ultrapassar a própria cronologia desta experiência, como veremos mais
adiante.
Este modesto texto pretende reunir e agrupar algumas informações
históricas, políticas e sociológicas cotejadas em estudos clássicos e con-
temporâneos sobre o tema, bem como apontamentos realizados pelo seu
principal incentivador, o médico veterinário, agrônomo, sociólogo e mi-
litante anarquista italiano Giovanni Rossi, que embora tenha vivido no
Brasil quase duas décadas, depois do contato com essas terras e gentes,
manteve o país no âmbito de suas sensíveis preocupações sociais e afeti-
vas. Para tanto, espero estabelecer correlações analíticas entre o processo
de imigração e de formação da classe operária no Brasil, as especificida-
des do processo de colonização do sul do país e o lugar ocupado pelas
chamadas “ideias radicais” no âmbito da cultura política dos trabalhado-
res, com a finalidade de propor algumas hipóteses para a interpretação do
fenômeno de Cecília que contribuam para a superação de alguns mitos
e preconceitos sobre esta experiência em particular e o anarquismo em
geral.

Sobre ideias nas bagagens: complexificando as conexões entre


anarquismo e imigração

Parte da mais mobilizada historiografia estabelecida sobre o nas-


cimento do movimento operário no Brasil (LINHARES, 1977; CARO-
NE, 1979; CRUZ, 1981; BATALHA, 2000; DELGADO, 2000; HARD-
MANN & LEONARDI, 2001) tem se caracterizado pela ênfase em pelo
menos dois elementos. De um lado, a influência decisiva do elemento
estrangeiro e europeu, no qual se destaca a diáspora italiana, como ve-
tor constitutivo das “feições modernas” adquiridas pelas lutas sociais no
país. De outro, o tratamento governamental contínuo, do ocaso do Impé-

196 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


rio à emergência da República, da questão social como questão policial.
Se a segunda questão é de entendimento mais pacífico ou consen-
sual, revelando contornos das dimensões mais repressivas do processo
de construção do Estado Nacional que não são exclusivos do Brasil, a
primeira merece maior cuidado, detimento e ponderação. É inegável o
esforço consorciado realizado pelo governo e as elites econômicas, na
transição do século XIX para o XX, para abastecer o país de mão de obra
estrangeira como parte de uma estratégia eugenista de branqueamento da
população brasileira (COSTA, 1977). Sob tais circunstâncias, estava em
jogo uma concepção generalizada por parte destes atores acerca da infe-
rioridade racial das “gentes de cor”: indígenas, negros e mestiços. Nesse
sentido, era lugar comum localizar no elemento estrangeiro as possibili-
dades de incremento biológico, intelectual, estético, cultural e econômico
para o desenvolvimento da “civilização nos trópicos”.
No entanto, o que a história global do trabalho (LINDER, 2013)
parece demonstrar é que, no caso das resistências ao processo de amplia-
ção do circuito de produção, consumo e mercantilização da economia
mundial, as chamadas ideias dissidentes não foram mecânica e esquema-
ticamente disseminadas de um centro para as margens. Esta ressalva é
fundamental para romper com um mito de origem das formas modernas
de resistência e organização social que, lamentavelmente, acompanha o
raciocínio das teses eugenistas e eurocêntricas, além de retroalimentar lei-
turas mecanicistas, atrasadas e estereotipadas da sociogênese dos movi-
mentos sociais, como as teses marxistas de Hobsbawm sobre banditismo
como etapa “pré-moderna ou pré-capitalista” das lutas sociais.
É certo que os imigrantes trouxeram muito mais do que roupas e
objetos de uso pessoal em suas humildes bagagens (MARAM, 1979;
TURCATO, 2007; BEAL, 2009; ROMANI, 2017). Mas atribuir às suas
“ideias forâneas” o papel de vetor exclusivo da cultura operária e subal-
terna é subestimar e diminuir o papel não só das lutas sociais preexisten-
tes em territórios colonizados (TAIBO, 2018), como também ocultar a
simultaneidade e a coetaneidade do processo de constituição da cultura

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 197
política dissidente que acompanhou a formação do capitalismo como fe-
nômeno global, ou seja, não exclusivamente europeu (LINDEN, 2013).
Tal entendimento é de vital importância pois, apenas assim, é possível
visualizar um denso, diversificado e relativamente bem estabelecido cir-
cuito global de ideias e militantes a partir do qual esta cultura política
tomou forma, corpo e se desdobrou em ações coletivas interconectadas,
embora não emanadas de um centro coordenador e planificador como
afiançado pela episteme marxista-leninista. Muitas das chamadas lutas
de libertação nacional do período vem sendo revisitadas sob outras len-
tes e abordagens epistêmicas, resultando em “inesperadas” ou “curiosas
descobertas” acerca das conexões, por exemplo, entre anarquismo e lutas
anticoloniais (ANDERSON, 2005).
Para o período em questão, de transição do século XIX para o XX, a
expressão moral e programática hegemônica que fundamentava a cultura
política e visão de mundo das classes trabalhadoras (THOMPSON, 1987)
era especialmente o socialismo libertário ou anarquismo1 (VISCARDI &
JESUS, 2007), que albergava uma multiplicidade de sentidos em distintas
circunstâncias e coletividades, tendo no “sindicalismo revolucionário”
seu principal locus de desenvolvimento como luta social (ANTONIOLI,
2004; TOLEDO 2004ab; SAMIS, 2004; BERTHIER, 2014; SANTOS &
SILVA, 2018), no bojo de uma atmosfera de resistência na qual eram
indispensáveis iniciativas auto-organizativas como as caixas/fundos so-
ciais, ateneus, clubes, escolas operárias/comunitárias, imprensa proletá-
ria, etc. O tecido social e comunitário que se produziu com a emergência
dos trabalhadores modernos como classe organizada, no âmbito das cha-
madas populações nacionais, foi indubitavelmente multiétnico ou inter-
cultural em variadas escalas, correndo pelas vias abertas e retroalimenta-
das pelas dinâmicas da imigração (HARDMANN, 2003).
Um aspecto muito sensível que deve acompanhar nossa abordagem
remete ao entendimento da dimensão polissêmica do conceito de socialismo

1  No Brasil, em geral, se desconhece que muitos dos nossos mais emblemáticos escritores, espe-
cialmente aqueles sensíveis aos problemas populares, foram adeptos ou simpatizantes declarados
do anarquismo, como Lima Barreto e Euclides da Cunha.

198 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


no âmbito da cultura operária e intelectual dissidente. Para além de uma
tipologia consolidada na linguagem política da esquerda jacobina institu-
cionalizada que divide o socialismo entre reformista ou revolucionário,
utópico ou científico, é possível identificar uma constelação dinâmica de
valores e representações morais de igualdade, solidariedade, liberdade e
justiça, manifestados circunstancialmente em correntes discursivas que
permitiria com poucos problemas estabelecer a equivalência, a intercam-
bialidade ou complementaridade entre ideias como socialismo, comunis-
mo e anarquismo (CÔRTES, 2006; OLIVEIRA, 2009). Para o período
que nos interessa, o anarquismo deve ser compreendido como uma perspectiva
política oriunda do movimento operário socialista (CORREA, 2015), sendo,
portanto, um socialismo em sua versão antiestatal ou antiautoritária. E
além disso, foi a corrente socialista responsável, no final do século XIX
e em convergência com setores revolucionários do marxismo, pela disse-
minação do conceito de comunismo como equivalente da dissolução do
regime de propriedade privada, e portanto, de comunalização ou socia-
lização dos expedientes econômicos produtores de riqueza ou bem es-
tar material. Deste modo, é notável em textos e discursos de anarquistas
como Giovanni Rossi (1891; 1893), a defesa de uma práxis social anar-
quista cuja finalidade é a criação de uma sociedade comunista libertária.

O Paraná e o Brasil no final do século XIX


A República foi proclamada no Brasil em 1889 através de um golpe
militar. No ano anterior, o país formalizava com a lei Áurea a abolição
da escravatura. As oligarquias latifundiárias apoiaram e incentivaram a
iniciativa golpista de militares positivistas (alguns com ares jacobinos)
como forma de interromper entre outras coisas, o que pareciam ser, para-
doxalmente, tímidos passos reformistas de concessão de direitos sociais
da decadente monarquia brasileira (COSTA, 1977; DELGADO, 2008;
CARVALHO, 2012). A dívida social com o elemento negro constitutivo
da sociedade nacional nunca foi paga, pois a abolição “lenta, gradual e

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 199
segura”, que se estendeu por toda a segunda metade do século XIX, teve
como base a conjugação da lei de terras de 1850 (que bloqueava o acesso
de setores populares às terras devolutas) com o incentivo à imigração
subsequente, destinando grande parcela da população “emancipada” do
trabalho compulsório em condições de vida muitas vezes até mais degra-
dantes.
O país preservou a lógica de suas estruturas coloniais ao se consoli-
dar internacionalmente como território produtor de matérias-primas mo-
nocultivadas nas tradicionais coordenadas das plantantions, com a utiliza-
ção preferencial da mão de obra livre imigrante (ALVIM, 2006). O surto
modernizador acompanhado pelo sucesso da produção de café transferiu
o centro dinâmico da economia para o sudeste, particularmente São Pau-
lo, permitindo o uso pendular de excedentes financeiros para fomentar
processos de industrialização e urbanização dependentes e funcionais à
economia agroexportadora.
A atualização e compatibilização das instituições políticas, culturais
e econômicas típicas da condição colonial às transformações em curso no
sistema-mundo moderno (WALLERSTEIN, 2005), também conhecida
como modernização (conservadora, no nosso caso), culminou em um
processo delicado de reacomodação das elites dirigentes, que em parte
explica as tensões relacionadas à mudança de regime, longe de ser uma
ruptura com o passado ou a condição herdada.
De todo modo, a ampliação dos horizontes de expectativa que a
acompanhou permitiu uma certa pluralização política e intelectual en-
tre as camadas dirigentes que promoveu a criação de novas relações e
vínculos entre estas e as camadas médias e populares. Tal foi o ambiente
de florescimento das intersecções entre modalidades de jacobinismo e re-
publicanismo, vistas de cima e simpáticas a iniciativas operárias e popu-
lares a partir de contraditórias posições ocupadas por elementos da elite
nacional, tanto na estrutura produtiva quanto no interior do aparelho do
Estado (DELGADO, 2008).
O chamado sul do Brasil, mesmo com suas peculiaridades (entre elas
a centralidade da cultura do charque nos pampas como motor econômico

200 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


e seu correspondente imaginário caudilhesco) acompanhou de forma in-
tegrada essas dinâmicas. Os surtos de dissidência e oposicionismo das eli-
tes da região por melhores posições (de poder) jamais colocou em xeque
a situação descrita acima ou apontou para o desenvolvimento de outro
cenário a partir dela.
Os pioneiros que irão fundar a Colônia Cecília adentram fortuita-
mente ao mais novo ente da federação. O Estado do Paraná, recém eman-
cipado (até 1853 integrava a província de São Paulo), juntamente com
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, integra a região sul do Brasil, uma
das partes do país que mais recebeu neste período as correntes migrató-
rias.
No ano de instalação da colônia Cecília, a população total do Pa-
raná se aproximava dos 250 mil habitantes. Destes, cerca de 25 mil resi-
diam em Curitiba. Em Palmeira, cidade na qual se situava, haviam pouco
mais de 10 mil habitantes, dos quais uns 800 eram estrangeiros (MELLO,
1998: 93).
Apesar das alegadas questões de compatibilidade climática, esta área
representava à época parte significativa das zonas agricultáveis disponí-
veis e ainda pouco exploradas economicamente pelo processo colonial
(o que não significa área desabitada: a presença indígena mais ou menos
intermitente, se fazia notar). Tal particularidade permitiu a inserção do
imigrante não apenas como mão de obra assalariada a serviço de grandes
proprietários rurais, como parece ter sido a regra na economia cafeicul-
tora do Vale do Paraíba, mas também como pequenos agricultores, favo-
recendo a formação de verdadeiros enclaves étnicos europeus, que ainda
hoje caracterizam movimentos identitários ou “tradicionalistas” em cer-
tas partes do sul brasileiro.
Do ponto de vista do imigrante, a promessa de melhores condições de
existência e prosperidade difundida pela propaganda governamental bra-
sileira na Europa se chocava com muitos relatos e histórias da vida dura,
particularmente nas atividades assalariadas rurais (TRENTO, 1989).
Advertências desta natureza incentivaram muitos imigrantes a de-
finir Argentina e Uruguai como destinos preferenciais. Mas a longa e

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 201
penosa viagem em embarcações muitas vezes insalubres, com muitas es-
calas pela costa brasileira, praticamente forçava uma parcela desses con-
tingentes a tentar a sorte a meio caminho. Considerando ainda o amplo
desconhecimento a respeito do território existente abaixo de São Paulo
até o Rio da Prata (mesmo agentes governamentais que coordenavam
os fluxos de entrada de imigrantes não possuíam muitos dados sobre os
“sertões do sul”), registrou-se um processo de ocupação dessas paragens
em grande medida aleatório e experimental, que se adaptou bem ao de-
senvolvendo de uma economia dedicada à exploração extrativista madei-
reira, à agricultura, ao cultivo de erva mate e à criação de gado, no qual
foi possível uma relativa coexistência (e colaboração) entre minifúndios e
latifúndios. Este é parte do quadro dessa região do país encontrada pelos
imigrantes italianos que fundariam Cecília no final do século XIX.

Giovanni Rossi (1856-1943): breve retrato de um pioneiro e


semeador anarquista

O italiano Giovanni Rossi, nascido em Pisa, é o principal e mais


ilustre personagem conhecido relacionado à história da Colônia Cecília
(RODRIGUES, 1984; PRADO, 1986; FREITAS, 1991; FELICI, 1994,
MELLO NETO, 1998; LOLLA, 1999; MUELLER, 1999; PALLOTTI-
NI, 2002). Em 1873, contando apenas 17 anos e estudante de medici-
na veterinária, se filiou a uma seção da Associação Internacional dos
Trabalhadores (AIT) em Milão. Naquela oportunidade já se notava sua
“vocação experimentalista” que concorreria para a criação de Cecília: o
jovem Rossi apresentou à AIT um projeto de colônia socialista para ser
implementado na Polinésia, e amargou o silencioso arquivamento da sua
proposta.
Seu primeiro grande trabalho político-literário, Un Comune Socialista,
data de 1878 e está eivado pelo comprometimento social com a supera-
ção da condição miserável e subalterna da classe trabalhadora, desvelan-

202 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


do também suas precoces qualidades de “sociólogo em ato”, expressão
que tomo de Guerreiro Ramos. Escrito em formato de romance, o tex-
to narra o processo de fundação de Poggio al Mare, uma fictícia colônia
socialista fundada no litoral da Itália, com destaque para o minucioso
detalhamento do arranjo organizacional e produtivo do embrião de nova
sociedade, em sintonia com referências icônicas como Charles Fourier e
Robert Owen. O texto conta com a participação do próprio autor como
personagem sob o pseudônimo de Cardias (que seria usado em outras
tantas circunstâncias), e foi dali que se originou o nome da futura colônia
em terras brasileiras: Cecília, a personagem feminina por quem Cardias
se enamorou.
Logo da publicação deste texto, Rossi foi incriminado em um pro-
cesso de agitação política cujo teor da acusação girava ao redor do porte
de instrumento perigoso e letal – no caso, um bisturi, ferramenta indis-
pensável em sua rotina de veterinário. Cumpriu pena de cinco meses em
prisão, integrando a partir daí os arquivos de segurança interna do Estado
italiano, que monitoraria seus movimentos por quase todo o resto de sua
vida.
Em 1882 assumiu uma vaga como médico veterinário em um de-
partamento público em Gavardo, província de Bréscia. Em seu trabalho
naquele local, manifestou a permanente sensação de incômodo pela ri-
gorosa e exagerada vigilância policial. A partir das páginas do jornal La
Favilla, iniciou debate público com outros ativistas socialistas, cujos des-
dobramentos iriam apontar alguns contornos do seu projeto. Solicitou
ao Partido Socialista Revolucionário italiano auxílio na criação de uma
sociedade de capital social por ações indivisíveis e não transmissíveis,
para fins de aquisição de uma porção de terra adequada para inaugurar
uma iniciativa agrícola cooperativista com dez integrantes. Seu principal
argumento naquela ocasião, que afiançaria também a futura Cecília, era
que o experimento, além de possuir valor em si por razões que aprofunda-
remos, poderia figurar como relevante centro de formação e propaganda
socialista.

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 203
Sua modesta projeção nesse meio atraiu a atenção (e a oposição) de
uma das mais destacadas referências do anarquismo: o também italiano
Errico Malatesta. Este liderava uma corrente de opinião do anarquismo
bastante crítica ao “experimentalismo”, apoiado basicamente em dois
elementos. Em primeiro lugar, pelo desvio das energias dos trabalhadores
que deveriam concentrar uma oposição revolucionária direta ao Estado
e ao Capital, estratégica em um contexto de crescimento do movimen-
to operário e de agudas crises econômicas e sociais na Europa. Nesse
sentido remetia a Rossi e demais entusiastas das colônias socialistas o
epíteto de “desertores”. Em segundo lugar, tais projetos de “socialismo
monástico”, como denominava, tenderiam a se diluir em pequenas expe-
riências episódicas e de pouca expressão para a construção de uma “nova
sociedade”, sitiadas pelas lógicas de mercado e da autoridade governa-
mental e, portanto, fadadas ao fracasso. Esta polêmica motivou ásperas e
duras discussões no seio do movimento revolucionário da época, da qual
Rossi nunca se furtou. Uma das frentes criadas por Rossi para rebater
essas críticas, em certa medida, buscando encontrar uma espécie de via
da coexistência das estratégias de luta, foi o jornal de vida curta que fundou,
Lo Sperimentale. Nos seus efêmeros cinco números, publicados na Bréscia
entre 1886 e 1887, Rossi desenvolveu e refinou seus argumentos.
Para tanto insistiu em uma confluência nada estranha à época en-
tre socialismo e ciência. Ao contrário do que afirma a visão generalizada
disseminada pelo marxismo, que deposita em Marx a paternidade desta
conexão contra um suposto “socialismo utópico”, a concepção de um
“socialismo científico” foi cultivada e maturada ao longo do século XIX,
especialmente no ambiente intelectual francês, por autores como Sain-
t-Simon, Fourier, Proudhon e Comte. Fato que produziu implicações
recíprocas (e confusões) típicas do zeitgeit novecentista entre sociologia
e socialismo. A nascente ciência da sociedade, que buscava afirmar um
quadro teórico-metodológico minimamente adequado para interpretar as
“leis gerais” de funcionamento da vida social, como toda ciência positi-
va, também oferecia “inferências” úteis para a elaboração de um progra-

204 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ma racional de mudança (ou condução controlada da mudança) social.
Desta água também bebeu Rossi.
A primeira tentativa de materialização dos planos alimentados por
Rossi ocorreu em 1887 na Cremona italiana, que viu nascer a Associa-
ção Agrícola Cooperativa Cittadella, graças ao apoio de Giuseppe Mori,
deputado italiano da esquerda mazziniana que era proprietário de terras
(BETRI, 1971; MELLO, 1998). Mori cedeu uma fazenda que contava
com trabalhadores assalariados para sua conversão em uma cooperativa
agrária. Rossi figurou como secretário da associação, que contava com
um estatuto de inspiração socialista. Em seus relatos, observa-se a exis-
tência de atritos entre os camponeses mais aferrados a concepções de
mundo religiosas e tradicionalistas, e os trabalhadores tocados por uma
cultura de luta anticlerical ou secularizada que aderiram à proposta. Os
camponeses foram exitosos em criar expedientes para socializar os traba-
lhos agrícolas, mas não a convivência e a conjugação de seus interesses
por meio de canais associativos. Este episódio foi muito relevante para
a reflexão de Rossi a respeito da força inercial dos hábitos e da cultura
tradicional diante da proposta de implementação de projetos de caráter
socializante. Se seu entendimento sobre as raízes reacionárias da família
nuclear monogâmica, de certo modo, já está presente desde sua militân-
cia de juventude, nesse momento ele o completa com a percepção de que
a melhor forma de condução dos projetos experimentais se daria a partir
do recrutamento de trabalhadores socialistas convictos. Obviamente, isto
não obstrui ou vai contra a realização de experimentos como o de Citta-
della, apenas reconhece as dificuldades concretas de promover determina-
das práticas que não estão acompanhadas de seus respectivos valores ou
disposições morais.
De todo modo, o coletivismo dos camponeses alcançou bons resul-
tados práticos, se comparado a sua antiga vida de assalariados. E para
trabalhadores sem formação política, as cooperativas pareciam ser esti-
mulantes instituições com finalidade pedagógica. Isto permitirá que Ros-
si utilize o projeto para fins propagandísticos, com a intenção de inspirar

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 205
outras sociedades e fundos de colonização no interior da Itália, inclusive
considerando-o como uma alternativa viável para frear a emigração de
seus conterrâneos (argumento que utilizará contra a tese da deserção de
Malatesta). Lançou, assim, a proposta de criação da Unione Lavoratrice per
la Colonizzazione Sociale in Italia, que não poupou esforços para conseguir
apoio até mesmo da “burguesia democrática italiana”.
Sua condição de “ideólogo do experimentalismo”, bem como a ami-
zade com Mori, de quem os camponeses não nutriam simpatias, criou
um ambiente de desconfiança interna na cooperativa que obrigou Rossi
a se afastar (os camponeses temiam os avanços dos “socialistas ateus”).
Um episódio pitoresco desencadeou sua saída, quando camponeses da
cooperativa protestaram contra a ausência dos sacramentos católicos na
localidade, em razão de uma das crianças da comunidade não ter sido
batizada (MELLO, 1998: 89).
Em 1899, com o fim de sua participação em Cittadella, Rossi plane-
java visitar algumas colônias coletivistas fundadas no EUA (Kaweah na
Califórnia) e no México (Sinaloa). Mas teria sido dissuadido por um anti-
go companheiro a mudar sua rota para a América do Sul, onde iniciaria a
odisseia da Colônia Cecília. Interessante é que o afastamento de Rossi de
Cittadella pelas razões apontadas não implicou em uma ruptura total com
aquela cooperativa, nem em inimizade com os camponeses. Foram jus-
tamente alguns ex-membros de Cittadella que embarcaram para o Brasil
como parte dos grupos de pioneiros, e a própria cooperativa doou a eles
uma importante soma para iniciar o projeto do outro lado do Atlântico.
A Colônia Cecília teve uma importância crucial para as reflexões de
Rossi sobre seu “anarquismo experimental” (expressão muito acertada
que tomo de Mello Neto). O desenvolvimento de sua concepção de so-
cialismo libertário derivou certamente desta experiência, que nos legou
dois textos fundamentais, reunidos em uma publicação original de 1893
pelo jornal operário Sempre Avanti, de Livorno: Cecília, comunità anarchica
sperimentale – Un episodio d’amore nella Colonia Cecília, do qual extraímos os
principais elementos para interpretar este fenômeno de auto-organização
social, que será apresentado na próxima seção (FELICI, 1994).

206 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Com o ocaso da experiência de Cecília, cujo término coincide com a
explosão da Revolução Federalista no sul do Brasil (1893-1895), no qual
se envolvem alguns ex-cecilianos por vínculos e motivos diversos, Rossi
que não tomou parte direta no conflito (foi “convocado” a servir como
médico dos feridos federalistas no Paraná), passaria um curto período de
tempo escondido da repressão movida pelo governo ao grupo derrotado.
Nesse período de clandestinidade, chegou a cogitar a possibilidade de se
integrar a um grupo de artistas mambembes italianos de teatro de ma-
rionetes e viajar para o nordeste. Entretanto, uma proposta de trabalho
como professor da Escola Superior de Agricultura o levou a se mudar
para a cidade de Taquari (RS), onde viveria entre os anos de 1894 e 1896,
abandonando este posto com outro convite, para dirigir a Estação Agro-
nômica de Rio dos Cedros (Blumenau - SC) entre os anos de 1897 a 1907.
Em 1907 retornou definitivamente para Itália, onde faleceria em
1943. Longe do Brasil, manteve farta e contínua correspondência até 1936
com Ermembergo Pellizzetti, amigo da Estação Agronômica de Rio dos
Cedros, a maior parte dela tratando de questões relacionadas ao universo
da agronomia e zootecnia (PELLIZZETTI, 1971). Viveu seus anos na
Itália modestamente, e como muitos intelectuais do campo popular a ex-
pensa de textos e artigos, no seu caso, remetidos a revistas e jornais espe-
cializados em agricultura. Ali também escreveria um conjunto de ensaios
chamado Il Parana nel XX secolo, assinalando mais uma vez seu vínculo
afetivo com este estado, no qual chegaria a prever o desenvolvimento da
região oeste através da instalação de uma usina hidrelétrica (70 anos an-
tes de Itaipú ser imaginada), que daria passo a constituição de um viçoso
polo urbano, científico e socialista que contagiaria o Paraná: Elettropoli. O
mais curioso é que tal “visão”, no seu relato ficcional, se manifestou por
meio de uma narrativa na qual estavam envolvidos elementos inusitados
para um inveterado homem prático, de vida saudável e cientista, como
tabaco forte, embriagamento com cachaça local e a interlocução com o
espírito de um amigo falecido2 incorporado em um anfitrião desconheci-
2  Se tratava do médico italiano Dr. Grillo, residente de Palmeira, seu grande amigo e patrocina-
dor entusiasta de Cecília.

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 207
do que o recebeu em um local de passagem quando de uma viagem por
aquelas paragens paranaenses (ROSSI, 2000).

A Colônia de Cecília como exercício de imaginação prática


Os estudos sobre a Colônia de Cecília por muito tempo foram pri-
sioneiros da repetição de argumentos, mais ou menos incrementados,
oriundos de obras que tentaram realizar uma espécie de reconstituição
ficcional da história desta experiência, partindo fundamentalmente de
fontes fragmentárias de Rossi ou da memória de descendentes de seus
antigos moradores. O primeiro trabalho que se tem notícia publicado no
Brasil foi o livro de Afonso Schmidt, datado de 1942: Colônia Cecília: ro-
mance de uma experiência anarquista. O próprio autor é bastante honesto ao
reconhecer que não possuía a pretensão de dar conta da fidedignidade da
história, apenas oferecer aos leitores um registro do episódio inspirado
em material histórico disponível. Aproximadamente 30 anos depois seria
publicado o segundo livro brasileiro sobre o tema, bastante amparado
no anterior: O anarquismo da Colônia Cecília, do palmeirense Newton Sta-
dler de Souza. Há um esforço de recuperação memorialista da parte de
Souza, que implica na realização de várias entrevistas com descendentes
de moradores da região, porém sem uma sistemática pesquisa de confe-
rência de dados e informações coletadas nos relatos. O historiador por-
tuguês Edgar Rodrigues, por sua vez, pode ser considerado um elemento
importante na disseminação do conhecimento sobre a Colônia Cecília no
Brasil, dialogando com estas fontes.
É significativo mencionar, entretanto, que fora do Brasil, Cecília che-
gou a adquirir relativa notoriedade ainda em vida, fomentada pelas cor-
respondências pessoais de Rossi e outros companheiros da Colônia, bem
como por um número relevante de notas e artigos publicados em jornais
operários e socialistas de várias partes do mundo, em especial da Itália,
França e EUA. Em 1891 Rossi publicou na Itália a 5a edição do seu livro

208 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Un Comune Socialista, que constava de um impressionante relatório so-
bre o início da experiência no Brasil, complementado em 1893 com suas
análises do processo avançado de desenvolvimento da colônia em Cecília,
comunità anarchica sperimentale – Un episodio d’amore nella Colonia Cecília.
Estes materiais podem ser considerados os mais importantes documentos
de registros históricos disponíveis sobre a experiência.
Muitos outros estudos foram produzidos no Brasil e no exterior de-
pois dos anos 1970, e não é o caso de mencionar todos nesse pequeno
espaço. No entanto, uma bela e sistemática organização destes e outros
materiais podem ser buscados no que considero três grandes textos de
referência: O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare
à Colônia Cecília (1998), do brasileiro Candido de Mello Neto; a primeira
parte da tese de doutorado da italiana Isabelle Felici: Les italiens dans le
mouvement anarchiste au Brésil: 1890-19203 (1994); e o livro da brasileira
Helena Isabel Mueller: Flores aos rebeldes que falharam. Giovanni Rossi e a
utopia anarquista (1999). Baseando-me nessas leituras, me interessa ofere-
cer um curto painel acerca do processo constituinte de Cecília, para em
seguida comentar sobre as especifidades, potencialidades e contradições
deste fenômeno de auto-organização social de trabalhadores no sul do
Brasil.
Depois de mais de um mês de sua saída do porto de Gênova, na
Itália, em 2 abril de 1890 um grupo de pioneiros anarquistas italianos in-
tegrados por Giovanni Rossi, o casal Cattina e Achille Dondelli, Evange-
lista Benedetti, Lorenzo Arrighini e Giacomo Zanetti, chegou na porção
de terras conhecida como Colônia Santa Bárbara, no interior do muni-
cípio de Palmeira (PR). A longa viagem foi penosa e difícil para alguns
dos imigrantes, cujas debilidades atribuídas ao “mal de mar” obrigaram
o grupo a encurtar o destino final que seria Porto Alegre, com intenções
mais ou menos delineadas de alcançar os países platinos. A conexão Rio
de Janeiro – Santos – Paranaguá os levou ao Estado do Paraná, onde

3  Existe em português uma boa versão em formato de artigo desta discussão contida na men-
cionada tese: FELICI, 1998.

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 209
obtiveram junto à Inspetoria de Terras e Colonização informações sobre
a possibilidade de adquirir terras no interior.
Ao contrário do que foi disseminado nas “obras inaugurais” sobre
Cecília, nunca houve encontro entre Rossi e o Imperador Dom Pedro II, e
muito menos doação de terras da parte do monarca brasileiro para fins de
realização de uma exótica experiência anarquista no país. Com exceção
do transporte marítimo, correntemente pago pelo governo para incenti-
var as políticas de imigração, todos os gastos do processo de instalação da
comunidade recém-chegada foram custeados pelos próprios interessados,
implicando até mesmo em endividamento (via parcelamento da compra
de terrenos). Eventualmente, redes de apoio e solidariedade se formavam
nos arredores, entre colonos de mesma ou distinta nacionalidade, para
tornar menos precária a vida dos novos moradores.
Os colonos encontraram no escolhido terreno, batizado de Cecília,
um velho casarão onde se instalaram coletivamente, e tiveram árduo tra-
balho, considerando que eram operários urbanos, para organizar novos
espaços de moradia e iniciar as atividades agrícolas. Os primeiros meses
foram particularmente duros mas, graças ao circuito de solidariedade lo-
cal que foi se constituindo, no qual se destacou a assistência quase per-
manente do médico italiano Dr. Grillo, o grupo conseguiu sobreviver e
manter a expectativa incólume.
Cecília existiu como colônia de intenção socialista entre 1890 e
1894. Sua população variou bastante entre os seis iniciais fundadores e
não mais de 250 pessoas. Ainda na segunda metade do ano de 1890,
Rossi deixaria o Brasil com destino à Itália para realizar propaganda e
campanha de recrutamento de socialistas e trabalhadores com experiên-
cia agrícola para povoar Cecília. Até a segunda metade do ano de 1891,
período em que Rossi esteve ausente, a vida na colônia oscilou bastante:
ingresso e saída de famílias (incluindo membros originários), desastres
no cultivo da primeira horta, dificuldades de relacionamentos entre no-
vos ingressantes e moradores estabelecidos, aglomeração excessiva de po-
voadores, etc. É certo que a chegada dos primeiros lavradores nessa etapa

210 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


permitiu a consolidação dos investimentos agropastoris no território. O
regresso de Rossi, que arregimentou novos companheiros e um pouco de
recursos no exterior coincidiu com o pico populacional e o conseguinte
esvaziamento da colônia. Dos mais de 200 moradores, Cecília passaria a
aproximadamente 60.
Esta reconfiguração populacional permitiu, por outro lado, a solu-
ção de alguns problemas práticos relacionados à ocupação das moradias
e a organização do trabalho. A questão da “falta de mulheres” sempre
foi uma constante na história de Cecília, gerando não poucos impasses
em função das convicções compartilhadas entre muitos companheiros
anarquistas a respeito do “amor livre”, que elucidarei mais adiante. En-
tre 1891 e 1892 um desconforto produzido por uma jovem ceciliana que
mantinha relacionamentos com vários companheiros (alguns casados),
inclusive o próprio Rossi, seria o pivô de descontentamentos da parte de
algumas famílias estabelecidas, produzindo novos cismas.
No ano de 1892 chegou em Cecília o casal Anibale e Adele. Foi tam-
bém o ano em que um dos colonos de origem espanhola fugiu roubando
o fundo comum da colônia. A caixa social consistia em um receptáculo
no qual todos os recursos adquiridos com trabalho, doação ou comér-
cio eram depositados para usufruto comum, segundo as necessidades do
momento e acordos estabelecidos. Mesmo com o furto, lamentado por
todos, os cecilianos não abandonaram essa prática. No auge do inves-
timento coletivo, a colônia chegou a contar com 22 casas de madeira,
barracão com cavalariça, depósito, carpintaria, tanoaria e cozinha com
refeitório, além de uma modesta escola com biblioteca.
O ano seguinte, 1893, foi importante para a história da colônia pois
foi com Adele que Rossi iniciou seu estudo experimental prático de amor
livre, promovendo por um curto período de tempo um relacionamento
poliândrico que envolvia além de obviamente ela, seu companheiro Ani-
bale e um jovem bretão solitário chamado Geleoc.
Ademais dos ruídos gerados pelas questões morais, as dificuldades
materiais assediavam constantemente os cecilianos. O trabalho intenso
e metódico no campo não se convertia em resultados compatíveis com a

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 211
velocidade das mudanças que estavam em curso na região e na capital.
Alguns cecilianos se dedicaram a trabalhar como operários na constru-
ção de estradas e obras públicas nas proximidades, na esperança de obter
mais recursos para sua comunidade. Mas o atraso nos pagamentos e as
infinitas negociações com os responsáveis pelas obras, agravavam a situa-
ção. Um novo fluxo de êxodo se desenhou no horizonte. Por um tempo,
havia um ditado comum em Cecília que dizia: “de um pouco de polenta
e ideal se vive”. Mas o próprio Rossi reconhecia que vivia-se melhor, do
ponto de vista material, sendo explorado pela burguesia na capital do
que como agricultor livre em Cecília. O final de 1893 culminou em uma
grande debandada, que incluía o próprio Rossi.
Alguns poucos moradores continuaram em Cecília, mas as infor-
mações sobre eles praticamente desapareceram com a saída de Rossi.
A revolução federalista agravou a situação dos cecilianos dado que, por
motivos de vínculos étnicos ou de amizade, alguns moradores ou ex-mo-
radores se envolveram com o batalhão ítalo-brasileiro do Dr. Colombo
Leone. Praticamente, se encerrou em 1894 a experiência de Cecília.
O projeto da Colônia Cecília consistiu em uma iniciativa coletiva
de formação de uma comunidade experimental de intenção socialista.
O eixo desta experiência estava organizado ao redor de pelo menos 3
elementos: 1) a organização coletiva do trabalho, do consumo e a aboli-
ção da propriedade privada da terra e dos instrumentos de trabalho; 2) a
promoção de uma vida cultural cosmopolita de auto-formação contínua,
através do debate público nos espaços de trabalho, lazer ou refeição, as
leituras individuais e coletivas, a partilha de informações através de cor-
respondências enviadas e recebidas de várias partes do mundo, etc; e 3)
a proposta de transformação das relações familiares e sexuais através da
ideia de amore libero.
Os dois primeiros elementos, em que pese o assédio da relativa abun-
dância do “mundo exterior” em comparação à precariedade quanto ao
acesso a bens de consumo ou bem estar material na colônia, foram re-
lativamente bem compreendidos, conduzidos e experimentados pelos
cecilianos. Não parecia ser um entendimento de ordem da convicção a

212 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


correlação “propriedade privada” = “riqueza”. A pobreza dos cecilianos
se devia tanto aos impasses dos arranjos internos de sua divisão social do
trabalho (operários não compatíveis com a economia agrícola, alta rota-
tividade de membros) quanto à sua inserção em mundo produtivo que
apresentava maior dinamismo nos centros urbanos com oportunidades
imediatas para indivíduos com seus antecedentes, cientes que ao custo
da miséria de outros operários menos qualificados e trabalhadores rurais
que atuavam nos latifúndios.
O terceiro elemento configurava o obstáculo mais dramático para os
cecilianos. Esta proposta de reforma moral, o principal cavalo de batalha
defendido por Rossi, foi certamente a dimensão mais sensível e complexa
que atormentou a vida cotidiana de muitos colonos. Rossi chegava a con-
siderar a abolição da família como questão mais relevante para a promoção
de uma sociedade igualitária, socialista e anarquista, do que a abolição da
propriedade. Quer dizer, em sua visão, a primeira levaria necessariamente
à segunda, mas o contrário não. Não quero com isso atribuir o esgota-
mento de Cecília às tentativas frustradas de praticar o amor livre. Vários
fatores contribuíram com isso, e os relatos e estudos citados dão conta
dessa compreensão. No entanto, esta me parece uma dimensão privile-
giada para entender o experimento a partir da unidade de análise que
mais interessava e dominava os pensamentos de Rossi: o campo das rela-
ções sociais ou das sociabilidades.
Para Rossi, a família nuclear monogâmica como instituição burgue-
sa possuiria uma função essencial na manutenção da mentalidade e com-
portamento autoritário e capitalista. A família enseja práticas exclusivis-
tas, corporativas, e difunde um sentimento de “querer mais” os seus em
detrimento dos não consanguíneos. Rossi identificava algo de primitivo e
violento nisso. Além do mais, no seu interior, a família reproduzia uma
ordem das coisas baseada na hierarquização do macho provedor (rei),
seguido pela fêmea cuidadora (conselheira do rei), e dos filhos tutelados
(súditos). Um dos aspectos mais relevantes da concepção de amor livre
defendido em círculos socialistas e anarquistas, e promovido por Rossi,
estava assentado na liberdade sexual e econômica da mulher (no caso de

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 213
uma sociedade capitalista, vínculo inseparável). Como Fourier, que ele
bem conhecia e admirava, a emancipação sexual e afetiva da mulher lhe
parecia condição sine qua non para a construção de uma nova sociedade,
com implicações óbvias sobre o remodelamento das relações interpes-
soais e familiares.
Importante mencionar que a proposta de amor livre nunca se apre-
sentou como promiscuidade (ou amor libertino). Para Rossi o bacio amor-
fista ou amplexo anarquista, como também se referia, significava a crítica ao
matrimônio como relação contratual estabelecida pela Igreja e pelo Esta-
do, a vitaliciedade deste vínculo, a abstinência compulsória dos não casa-
dos ou jovens, a escravidão doméstica da mulher e a propriedade dos fi-
lhos. Indivíduos livres se associariam para finalidades diversas, entre elas,
para atender suas necessidades afetivas e sexuais. Estas associações pode-
riam possuir diversas configurações em termos de seus integrantes. Entre-
tanto, o compartilhamento de uma mesma companheira sexual (mulher)
por vários homens, em uma relação séria, responsável e comprometida,
parecia ser para Rossi o mais eficaz remédio contra duas das bases do
patriarcado: a dominação da mulher e a propriedade (patrimônio) dos fi-
lhos.

A modo de conclusão (?)


De vida curta como a grande maioria desses projetos, Cecília inte-
gra a heterogênea constelação de iniciativas populares de auto-organiza-
ção social cujo próprio fracasso não deve consistir em um aprendizado
em si, isolado, do que poderíamos chamar de “via social da revolução4”.
Explico-me: em sintonia com os valores antiautoritários e libertários, os
cecilianos, e muito especialmente Rossi, partilhavam a percepção de que
as mudanças no mundo implicavam em se dispor a produzir novas formas

4  Através deste termo proponho uma forma de compreensão a respeito das duas estratégias
opositoras desenvolvidas no interior do movimento operário moderno na AIT, dividindo estatis-
tas e libertários (BRANCALEONE, 2019).

214 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


de relacionar-se no e com o mundo. É razoável denominar esta concepção
paradigmática, se assim se pode dizer, como o problema da prefiguração
(COLECTIVO ACySE, 2015; BRANCALEONE, 2019). A dissolução
de Cecília se insere no marco da continuidade intermitente e resiliente
desta prática estratégica, produzindo e multiplicando rastros ou ruínas
que ainda estão latentes e vivos, embora se manifestem heterotopicamen-
te a partir de distintas coordenadas e sobre nomes os mais diversos nos
dias de hoje.
Nesta frequência são solidárias e convergentes um conjunto diverso
de iniciativas populares auto-organizadas que se contaminam e se conta-
giam, cada qual com sua vida mais ou menos fugaz e efêmera, mas todas
intensas, cooperando entre si ao emitir energias na forma de desejos, afe-
tos, promessas e impulsos de novas formas de vida que progressivamente
alargam os campos de possibilidade do real.
O anarquismo experimental de Cecília foi uma espécie muito parti-
cular e curiosa de laboratório no sentido de induzir ou estimular relações
sociais ou sociabilidades a partir de determinadas condições materiais e
sociais dadas. Mas não com o propósito de se alcançar a “fórmula” da
nova sociedade, ou uma pretensão alquímica totalitária de “produzir o
homem novo”, que jamais poderá ser manifestar nos parâmetros do cete-
ris paribus da economia política, ou do isolamento experimental. Se a do-
minação e a exploração são lógicas e resultantes sistêmicos de um mundo
heterônomo, a emancipação também precisa operar sistemicamente, con-
trariando qualquer ilusão de robisonadas. Rossi, não era ingênuo a este
ponto. Nas páginas de Lo Sperimentale, Rossi precisou o que ele esperava
das colônias experimentais:

Não se trata de estabelecer nem de mostrar como e qual será,


precisamente, e nos seus mínimos detalhes, a sociedade do
futuro; nem se deve acreditar na solução das questões sociais
por meio de fatores socialistas. Não, o futuro será aquilo que
será, e a questão social virá resolvida pelos desejos […] do

BRANCALEONE,, Cassio. Colônia Cecília: considerações sobre o anarquismo no sul do Brasil


BRANCALEONE 215
desenvolvimento irresistível do espírito humano em todas as
suas manifestações (ROSSI apud MELLO NETO, 1998: 76).

Ou seja, contrariando as acusações frequentes àqueles chamados


pejorativamente como “utopistas”, os objetivos das colônias simples e
honestos: 1) estudar e entender in locus as particularidades e contradi-
ções dos modos de vida passíveis de serem desenvolvidos em condições
socioeconômicas e políticas específicas (“socialistas”, por assim dizer);
2) criar e estimular a produção de ambientes de propaganda e difusão
das ideias libertárias; e 3) favorecer a constituição de cooperativas sus-
tentáveis para financiar atividades do movimento operário. Nada mais
distante do que a recorrente ideia do fundar o “Sião comunista na Terra”.

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220 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


O movimento Mucker e o protagonismo
de Jacobina Maurer
Rio Grande do Sul, Colônia Alemã de São Leopoldo,
segunda metade do século XIX

Daniel Luciano Gevehr


Marlise Regina Meyrer
Rosane Marcia Neumann

A maioria dos historiadores que estudou o desenvolvimento econô-


mico do Rio Grande do Sul1 concorda que, até meados do século
XIX, ele era dominado pela atividade pecuária do Sul do Estado,
com base no latifúndio e no trabalho escravo. A partir da segunda metade
do século, porém, devido ao desenvolvimento da chamada zona colonial,
em especial alemã, configurou-se uma nova dinâmica, regida, em parte,
pelos comerciantes desta área. Estes, ao servirem de intermediários entre
produtor, pequeno proprietário rural livre e mercado consumidor, con-
tribuíram para a redefinição, no Estado, das relações de produção. Além
disso, propiciaram o desenvolvimento de setores médios da sociedade e
ampliaram as possibilidades de mobilidade social.2

1  Sobre o desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul, ver, entre outros, DACA-
NAL, J.H.; GONZAGA, S.; et. al. RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aber-
to, 1979.; PESAVENTO, S. RS: Economia e política. República Velha Gaúcha. Estado
Autoritário e economia. Porto Alegre: Mercado aberto, 1979; SINGER, Paul. Desenvolvi-
mento econômico e evolução urbana. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977.
2  Sobre esta temática, destacamos, entre outros: DACANAL, J.H. (org.); LANDO, A. M.
& GONZAGA, S.; et. al. RS: Imigração & Colonização: cultura, etnicidade e história.
Em julho de 1824, chega a primeira leva de imigrantes alemães no
Rio Grande do Sul, em São Leopoldo. Instalados numa área que era de
propriedade da Coroa, desde o início a demarcação dos lotes de terras
concedidos pelo governo foi problemática. Demora na demarcação, fa-
lhas na medição dos lotes e dificuldades na obtenção dos títulos de pro-
priedades geraram muitos litígios. Segundo Amado (1978, p. 29), “o pro-
cesso de ocupação da terra em São Leopoldo constituiu um emaranhado
de confusões e mal-entendidos e disputas”. A autora afirma também que
essa situação fez com que até 1845 houvessem processos prolongados na
justiça “entre colonos e governo, entre os próprios colonos, e entre estes
e os luso-brasileiros proprietários de terras limítrofes a São Leopoldo”
(AMADO, 1978, p. 30).
Somente em 1848, criam-se leis específicas para colonização. A pri-
meira, de outubro de 1848, define as terras devolutas reservadas para co-
lonização em cada província. Além disso, proíbe a posse de escravos aos
colonos, bem como a obtenção de título de propriedade antes de terem
desbravado o lote por cinco anos (ROCHE, 1969). A segunda, foi a Lei
Geral de 18 de setembro de 1850, que estabelece que a única forma de
aquisição de terras seria através da compra, não mais por concessão.
Entretanto, brechas na lei permitiram que as Províncias tomassem
para si a legislação sobre as terras concedidas pelo governo imperial. As-
sim, segundo a Lei Provincial de 1851, o governo “deve mandar cadas-
trar lotes de 100.000 braças quadradas (48 ha) em todos os núcleos que
serão estabelecidos em terras concedidas pela Lei de 1848” (ROCHE,
1969, p. 102). Esses lotes deveriam ser distribuídos de forma gratuita aos
colonos, acrescido de instrumentos, sementes, ajuda para estabelecimen-
to e ainda indenização da viagem. Porém, este estatuto durou somente
até 1854, quando as terras nas áreas colonizadas não mais serão doadas,
somente vendidas.

Canoas: Ed. ULBRA, 1984; ROCHE, J. A imigração alemã e o Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Globo, 1969. 2v.

222 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Superados os primeiros problemas de instalação dos imigrantes, o
crescimento econômico da região se deu de maneira acelerada:

[...] em 1845 São Leopoldo era uma realidade em termos eco-


nômicos. Os imigrantes, jogados vinte anos antes na mata
virgem, tinham vencido. Estavam vivos e produtivos. Do
ponto de vista governamental, os objetivos imediatos visados
com a fundação da colônia alemã haviam sido alcançados.
[...] O fato concreto é que, apesar dos obstáculos, os 124 imi-
grantes de 1824 haviam se multiplicado para 7.142 em 1845.
(AMADO, 1978, p.38).

Entretanto, os problemas econômicos derivados da questão da terra


permaneceram como um espaço de conflito permanente. É ainda Amado
(1978) que afirma que na segunda metade do século XIX, a alta dos pre-
ços das terras e a concentração da propriedade foram novos problemas
enfrentados pelos imigrantes e descendentes. Esses problemas decorre-
ram de fatores internos, como o próprio desenvolvimento da colônia, a
divisão dos lotes entre os descendentes e a comercialização da terra pe-
los colonos enriquecidos, que passaram a atuar como “especuladores”
imobiliários, e fatores externos, em especial as políticas governamentais
relativas a terra.
O cenário, no qual os conflitos em torno da terra pode ser – resumi-
damente – definido: de um lado, os especuladores adquiriam terras devo-
lutas do governo e dividiam em lotes, para serem revendidos aos colonos,
com grande margem de lucro, de outro lado, os colonos, com suas pro-
priedades reduzidas pelas divisões familiares, acabavam vendendo seus
lotes, a preços baixos, além da dificuldade em obter o registro de proprie-
dade de suas terras, adquiridas no período anterior ao estabelecimento da
Lei de Terras de 1850, que exigia a comprovação da posse legal da terra.
Em 1816, o Tenente Manoel José de Leão adquiriu as terras e ins-
talou a Fazenda Padre Eterno, constituindo-se naquele momento numa
estrutura de latifúndio escravista. Foi apenas em 1842, que a fazenda

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 223
foi leiloada em hasta pública e comprada por João Pedro Schimidt, co-
merciante de Hamburgerberg (atual município de Novo Hamburgo), que,
através da Sociedade Schimidt&Krämer, vendeu os lotes de terra aos co-
lonos alemães entre 1845 e 1869.
Nesse contexto de mudança da relação com a propriedade da terra e
o surgimento dos primeiros imigrantes/descendentes expropriados, eclo-
diu o movimento dos Mucker. Amado (1978) refere que o conflito dos
Mucker ocorreu numa área que permaneceu por muito tempo em litígio.
A área onde se concentravam os Mucker, liderados por Jacobina
Mentz Maurer e, onde também se localizada a casa do casal Maurer,
fazia parte da antiga Fazenda do Padre Eterno. A antiga fazenda, havia
sido adquirida pelos dois colonos, Schmidt e Kraemer, que através da So-
ciedade Schimidt&Krämer, posteriormente dividiram as terras em lotes
e colocaram à venda. Na divisão dos lotes, alguns avanços, nos limites
das propriedades vizinhas, deram origem a um processo litigioso, que fez
com que o clima de tensão nas imediações do morro Ferrabraz, ganhasse
cada vez mais força.
Nesse período, iniciou-se, portanto, a colonização alemã na região,
com a distribuição de pequenos lotes (minifúndios) na região do atual
município de Sapiranga. Entre os colonos que adquiriram terras na Fa-
zenda Padre Eterno3 (Leonerhof, como era denominada por estes colo-
nos) estava o casal Maurer, que fixou residência ao pé do morro Ferra-
braz no ano de 1867, um ano após o seu casamento, ocorrido na Igreja
Evangélica de Hamburgerberg.
Cabe mencionar – ainda que provocando uma pequena quebra na
discussão que focaliza a questão do conflito de terras – que importantes
transformações ocorreram em Sapiranga após 1874, com o desfecho do
conflito, dentre as quais destacamos as mudanças do nome Fazenda do Pa-
dre Eterno para outras denominações como Fazenda Leão, Linha Ferrabraz,
Linha do Verão, Linha da Bica, Terras do Sapiranga, Picada Hartz e Porto Pal-
meira. Estas novas denominações parecem demonstrar uma tentativa de
apagamento do nome Padre Eterno, muito identificado com os Mucker.

224 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A parte lesada uniu-
-se a poderosos comer-
ciantes alemães e com-
praram a área devoluta
que fazia limite com a
Fazenda do Padre Eter-
no, fundando para isso a
Companhia Imobiliária,
Hosking e Miranda. Ao
final, tanto os proprie-
tários da fazenda Padre Figura 01: Localização geográfica do atual município
de Sapiranga, Rio Grande do Sul. Fonte: http://www.
Eterno, quanto os donos da sapiranga.rs.gov.br/pagina/view/15/localizacao.
Cia. Imobiliária, tiveram al- Acesso em 23 jul. 2019.

tos lucros na compra e venda


de terras, sendo que os pequenos colonos foram os principais prejudica-
dos: “compraram seus lotes a preço alto, gastaram dinheiro em processos
judiciais, brigaram seriamente uns com os outros, atormentaram-se du-
rante anos com medo de perder suas terras e alguns ainda tiveram a área
de seus lotes diminuída.” (AMADO, 1978, p. 69).
O desenvolvimento econômico da região, também foi acompanhado
de um crescente processo de urbanização, tanto das próprias áreas de
colonização, quanto da capital, na medida em que esta se tornou um
importante polo comercial, responsável pela maior parte da distribuição
dos produtos coloniais. A historiografia sobre Porto Alegre4 nos indica
que, no final do século XIX, a cidade já se transformara no maior centro
urbano e comercial do Estado. Abrigava uma população variada, atraída
por maiores possibilidades de trabalho ou de investimentos. A capital e

4  Sobre Porto Alegre, destacamos, entre outros: MAUCH, C. (et. al.) (colab.) Porto Alegre
na virada do século 19. Cultura e sociedade. Porto Alegre/Canoas/São Leopoldo: Editora
da Universidade/ UFRGS/Ed. ULBRA/Ed. UNISINOS, 1994.; MACEDO, F. História
de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1993. Coleção: síntese Rio-
-Grandense.; PESAVENTO, Sandra. A burguesia gaúcha: dominação do capital e discipli-
na do trabalho – 1889/1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 225
outros centros urbanos tornaram-se o locus privilegiado de instalação de
uma classe média emergente, dentre a qual se incluía um significativo
número de alemães e/ou seus descendentes.5
O desenvolvimento econômico e urbano resultou em transformações
na estrutura social do Estado. Esta, que até então revelara escassas pers-
pectivas de mobilidade social, tornou-se mais complexa quando o contin-
gente de imigrantes e seus descendentes passou a participar ativamente
da economia. Criaram-se possibilidades de ascensão social, restritas até
então somente aos grandes fazendeiros, os quais, embora tivessem manti-
do o controle político no Estado durante todo o período da Primeiro Im-
pério, perdiam terreno, progressivamente, no campo socioeconômico. Os
novos setores emergentes passaram a merecer atenção dos governantes,
unindo-se muitas vezes a estes, na defesa de interesses comuns.6
A presença de uma elite de origem alemã, foi detectada por Gans
(1996) na Porto Alegre da segunda metade do século XIX. Em seu es-
tudo, a autora revela que a maioria dos teutos da capital eram de nível
socioeconômico médio. O segundo lugar era ocupado pelos de nível alto,
sendo inexpressivo o número de alemães nos setores populares. O grupo
majoritário, setores médios, abrangia um leque amplo de atividades, sen-
do de difícil demarcação. De modo geral, entre eles, encontravam-se ar-
tífices ou mestres de ofício com oficina própria, pequenos comerciantes,
técnicos e professores.
Ao findar o século XIX, algumas camadas da sociedade teuto sul-
-rio-grandense buscavam a aquisição de status,7 acentuando os aspectos
simbólicos do grupo que pudessem defini-lo muito mais pelo seu “ser”

5  Sobre a presença de imigrantes em Porto Alegre, ver: GANS, Magda R. Presença teuta
em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: UFRGS, 1996. Dissertação
(Mestrado em História).
6  Sobre esta questão consultar PÍCOLLO, H. O partido Republicano Rio-Grandense e
os alemães no Rio Grande do Sul. Anais do V simpósio de História da imigração e colo-
nização alemã no Rio Grande do Sul (1982). São Leopoldo: Gráfica Caeté, 1989.
7  Entendido, aqui, o sentido weberiano, ou seja, grupos definidos por “(...) uma certa posição
na hierarquia da honra e do prestígio” BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992. p. 14.

226 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


do que pelo seu “ter”8. Estes, de acordo com Bourdieu (1992, p. 17), “[...]
exprimem sempre a posição social segundo uma lógica que é a mesma da
estrutura social, a lógica da distinção.”
Essa busca de status pode ser inferida das palavras de Roche (1969),
quando analisou as mudanças de comportamento em parte da sociedade
teuto-sul-rio-grandense, a partir da segunda metade do século. Ao se re-
ferir aos comerciantes, o historiador afirma que eles foram separando-se
cada vez mais dos camponeses, para formarem uma classe.9

É verdade que, se foi sua situação estabelecida sobre bases


econômicas, eles a reforçaram com esteios culturais, tomados
de empréstimos por muito tempo ao meio de que haviam
saído, isto é, ao meio germânico. A abastança de que gozavam
permitiu que seus filhos fizessem estudos mais prolongados,
renovassem os contatos com a terra dos avós, quer através
de livros lá editados, quer através de estágios na Alemanha,
ao passo que os colonos dela não conservaram senão uma
imagem que se esbatia cada vez mais; (...) Defensores do
“Deutschtum”, também foram mais sensíveis que os campo-
neses à propaganda pangermanista ou hitleriana. (ROCHE,
1969, p. 583).

Também Amado (1978), ao estudar a organização social da colô-


nia de São Leopoldo, observa que, a partir da segunda metade do século
XIX, o fator que dominou o relacionamento entre os habitantes foi a
posição socioeconômica.

A riqueza e o poder passaram a ser mais importantes que os


laços de parentesco: dois comerciantes ricos não aparenta-
dos tendiam a ser mais solidários e a se identificarem mais

8  De acordo com BOURDIEU, os grupos de status se definem “(...) menos pela posse pura
e simples de bens do que por uma certa maneira de usar estes bens, pois a busca de distinção
pode introduzir uma forma inimitável de realidade da arte de bem consumir capaz de tornar
raro o bem de consumo mais trivial.” (BOURDIEU, 1992, p. 15).
9  ROCHE, (1969) (Op. Cit.) p. 582.

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 227
um com o outro do que, por exemplo, um comerciante e um
colono unido por parentesco. (AMADO, 1978, p. 79).

Tanto para essa autora, como para Roche (1969), a distinção social
dos teutos se processava em oposição ao “colono”, associando, dessa for-
ma, a questão social à dicotomia urbano-rural. A aquisição dos valores
da cultura urbana torna-se, muitas vezes, um distintivo a mais para o
grupo em ascensão social. Autores como Roche(1969) e Willems (1980),
concordam que as ideias contidas no Deutschtum10 propagaram-se a partir
da cidade, de uma classe média intelectualizada11 e que, embora tivesse
havido esforços, principalmente através da imprensa, para atingir a po-
pulação rural,12 a maior receptividade ocorreu entre os setores médios e
altos da sociedade. A maior facilidade de penetração nestes grupos pode
ser explicada através do fato de possuírem, tanto um capital econômico
que possibilita contatos mais seguidos com a Alemanha através de via-
gens, por exemplo, quanto um capital cultural que permitiu um entendi-
mento maior dessas ideias e, por conseguinte, o seu consumo.13
Dessa forma, o Deutschtum pode ser entendido, também, como parte

10  Giralda Seyferth (2011) define o Deutschtum como uma espécie de laço identitário, que
une os imigrantes e seus descendentes através da etnicidade, reafirmando a germanidade, ou
seja, “o jeito de ser alemão no Brasil”.
11  Dentre a classe média intelectualizada das cidades, responsável pela difusão do Deuts-
chtum, destacaram-se os Brumers. Estes compunham um grupo que havia participado das
Revoluções Liberais de 1848 na Europa, onde, devido a perseguições políticas, alistaram-se
como soldados mercenários contratados pelo governo brasileiro para atuarem na campanha
contra Rosas. Nem todos foram realmente para o campo de batalha e, mesmo os que foram,
ao retornarem, estabeleceram-se em grande parte, no sul do Brasil, onde atuaram preferen-
cialmente, no comércio, na educação e na indústria.
12  Grande parte da imprensa teuto-brasileira visando atingir o grupo teuto como um todo,
inclusive os colonos, utilizavam-se de uma linguagem menos coloquial. No entanto, confor-
me nos informa Willems (1980), havia uma distância social e cultural entre os produtores
dos discursos veiculados – mesmo considerando a heterogeneidade de interesses e valores
destes – e alguns setores da sociedade, notadamente, aquela composta pelos pequenos pro-
dutores rurais.
13  De acordo com BOURDIEU (1996), para se apreciar determinadas obras de arte, é
necessário um capital cultural constituído por um conjunto de códigos comuns, adquiridos
na escola ou mesmo na família, que possibilite o entendimento “legítimo” destas obras.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.

228 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


de um “civilizar-se”, cujo termo corresponde, em alemão, de acordo com
Elias (1994), a Kultur.14 O “colono”, embora tenha sido idealizado nos
discursos veiculados pela imprensa teuto-brasileira a partir das últimas
décadas do século XIX,15 representava o atraso econômico, social e cul-
tural, contrastando com a ideia de progresso vinculado ao citadino. Essa
questão foi apresentada por Willems, a partir de um enfoque étnico. Para
ele:

Os teuto-brasileiros desenvolveram uma cultura essencial-


mente rural, ao passo que a população “lusa” representa uma
cultura urbana ou pastoril. Principalmente as cidades exer-
cem, aqui como alhures no mundo, uma fascinação crescente
à medida que o contraste campo-cidade se vai acentuando. É
camponês “pobre”, “bronco”, “mal educado” e “mal vestido”
que admira o citadino “rico”, “bem educado”, “bem vestido”,
com todo o seu “conforto” em matéria de habitação, alimen-
tação, recreação, etc. no nosso caso, esse camponês é o “teu-
to” e citadino é o “luso” (WILLEMS, 1980, p. 126).

A partir desse raciocínio, Willems (1980) afirma que, à medida que o


teuto, identificado com o meio rural, melhorava sua situação econômica,
sua tendência era dirigir-se para as cidades e assimilar o modo de vida da
população urbana que, para ele, era representada pela população lusa.
Essa dinâmica, seguindo ainda o estudo do mesmo autor, levou a uma
progressiva perda, pelos teutos, da cultura germânica, ao mesmo tempo
em que assimilava valores culturais nacionais.
Os teutos citadinos participavam de um processo de “aburguesamen-
to” da sociedade sul-rio-grandense, e visavam identificar-se com o grupo
social dominante da mesma. Nesse sentido, Amado (1978) identifica a
ação dos grupos mais ricos de São Leopoldo, ao final do século XIX, os
quais buscavam um modo de vida que os diferenciasse dos demais, espe-
cialmente dos “colonos”:

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 229
A primeira providência que tomaram foi se afastar fisicamen-
te das Picadas, aonde, já quase não iam e pelas quais come-
çavam a alimentar certo desdém [...]. A segunda providên-
cia foi dotar a cidade de ruas bem traçadas, casas melhores
e maiores, iluminação adequada, administração organizada,
e de tipos de lojas, serviços, e profissionais que a área rural
não conhecia. [...]. A terceira providência foi adquirir novos
hábitos: acordar e dormir mais tarde, mobiliar melhor a casa,
refinar a linguagem, às vezes comprar um ou dois escravos;
apurar a vestimenta e a alimentação, organizar reuniões so-
ciais em casa, participar das sociedades recém-criadas. [...];
as mulheres, limitadas nas cidades ao serviço doméstico, per-
deram a importância econômica que tinham nas Picadas e,
consequentemente, começaram a pesar menos nas decisões
familiares e a abdicar de parte de sua liberdade pessoal, tor-
nando-se mais recatadas e submissas aos pais e maridos [...].
A quarta providência foi criar ou estreitar os laços de paren-
tesco entre os membros mais ricos do município, para refor-
çar a fortuna e aprimorar a linhagem [...] (AMADO, 1978, p.
78).

As transformações econômicas e sociais na Colônia de São Leopol-


do na segunda metade do século XIX, atingiam também as formas e prá-
ticas da religiosidade. Com a imigração, o Brasil recebe pela primeira vez
de forma maciça e oficial, grupos de religiões não católicas. No caso dos
imigrantes alemães, os primeiros eram predominantemente protestantes.
Embora o governo tenha dado algum apoio aos primeiros pastores, seu
culto era apenas tolerado, não implicando em liberdade religiosa.
Os cultos protestantes somente poderiam ser realizados em locais
privados. Além disso, mesmo católicos vindos de diferentes regiões, tra-
ziam na bagagem outras práticas religiosas, distantes do catolicismo pra-
ticado no Brasil. Autores como Dickie (2018), Dreher (1984) e Amado
(1978), afirmam que nesta primeira fase, até os anos 1850/60, o convívio
entre evangélicos e católicos não encontrou nenhuma dificuldade.
Os primeiros padres e pastores que vieram com os imigrantes assu-

230 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


miram tarefas e posturas cada vez mais distantes da religião oficial em
seus países de origem. Não tendo padres e pastores suficientes para aten-
der a população cada vez maior e mais distante do núcleo central de São
Leopoldo, passaram a eleger entre eles pessoas, de mais prestígio, porém
sem formação teológica para ocupar o cargo de pastor.
Segundo Dickie (2018), durante 30 anos desenvolveu-se na colônia
alemã do Rio Grande do Sul, uma religiosidade autônoma em relação às
instituições religiosas. Para a autora, “[...] os colonos produziram signifi-
cados que tinham por bagagem a trajetória percorrida. E ela incluía não
só a experiência específica com as religiões territoriais, mas também as
expectativas que a imigração representava”. (2018, p.187).
Essa situação começa a mudar com o desenvolvimento da colônia,
quando chegaram padres ordenados e pastores formados em teologia. Se-
gundo Dreher (1984), os pastores começaram a chegar a partir da década
de 1860. Quanto aos padres, embora houvesse visitas nas colônias desde
o início, elas eram raras tanto pela distância física e difícil acesso, quanto
pelas diferenças culturais, sendo que os padres ordenados brasileiros não
falavam alemão (DICKIE, 2018).
Padres ordenados alemãs também vão chegar num período poste-
rior. Nesse sentido, tanto padres, quanto pastores chegados a partir dos
anos 1850/60 vão entrar em atrito com as práticas religiosas locais. En-
tretanto, Dickie (2018) defende a ideia de unidade entre os colonos de
diferentes credos até 1850. A autora argumenta que havia uma “expe-
riência unificada dos colonos com a religião” até 1850.
As mudanças ocorridas na colônia, também afetaram os papéis
sociais atribuídos aos diferentes sujeitos. Destacamos aqui entre as mu-
danças com relação ao papel social das mulheres. Os registros sobre as
mulheres imigrantes ou descendentes são, consideravelmente, reduzidos.
Historiadores clássicos da imigração, como Willems16 e Roche17 dedicam

16  WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Nacional, 1980.
17  ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1969.

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 231
poucas linhas em suas obras ao gênero feminino, nas quais transparece
uma imagem da mulher “colona”, em contraste com a “lusa”.
Destacam, entre outras, a capacidade de trabalho da “colona”, a sua
maior liberdade de movimentação social e sua participação nas decisões
econômicas da família. Entre os trabalhos que tratam especificamente
dessa temática destacamos também Magalhães18 e Bonow19, que anali-
sam a construção da imagem da mulher alemã através da imprensa teu-
to-brasileira; Renaux20, que analisa o papel da mulher teuto-brasileira no
Vale do Itajaí; e Meyrer21 que estuda a mulher teuto-brasileira enfatizan-
do a diferenciação social do grupo a partir da educação formal feminina
do período.
Outra referência às mulheres teuto-brasileiras pode ser encontrada
em Amado (1978) em sua obra sobre os Mucker, mas que pouco avan-
çou nessa questão, além do exposto pelos autores clássicos da imigra-
ção. Sobre a mesma temática, podemos citar Gevehr22 que analisa a
dinâmica que envolve a produção das imagens e representações sobre a
líder dos Mucker. O autor valeu-se da discussão dos diferentes veículos de
produção de uma memória sobre Jacobina - desde o final do século XIX
até o início do século XXI, quando ela teve sua imagem glorificada pelo
cinema, com a película Paixão de Jacobina.
Diferentes fatores estiveram articulados no contexto que favoreceu
a emergência do conflito Muckers. As mudanças ocorridas na colônia
alemã de São Leopoldo na segunda metade do século XIX, em todas as

18  MAGALHÃES, Marionilde D. B. Alemanha, mãe-pátria distante: Utopia pan-ger-


manista no sul do Brasil. Campinas, 1993. Tese (Doutorado). Universidade de Campinas.
19  BONOW, Imgart. G. Onde o sabiá canta e a palmeira farfalha. Porto Alegre: PU-
CRS, 1996. Dissertação (mestrado em Letras). Faculdade de Letras. Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
20  RENAUX, Maria Luiza. O papel da mulher no vale do Itajaí: 1850-1950. Blumenau:
FURB, 1995.
21  MEYRER, Marlise Regina. Evangelisches Stift: Uma escola para moças das melhores fa-
mílias. São Leopoldo: UNISINOS, 1997. Dissertação (mestrado em História). Programa de Pós-
-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
22  GEVEHR, Daniel Luciano. Pelos Caminhos de Jacobina: memórias e sentimentos
(res)significados. Tese (doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História,
Centro de Ciências Humanas, UNISINOS. São Leopoldo, 2007.

232 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


suas dimensões – cultural, política, econômica, religiosa – serviram de
pano de fundo ao episódio que pode ser considerado um marco divisor
entre dois modelos de sociedade, que buscava equilibrar-se entre tradição
e mudança.
É nessa linha que propomos aqui perceber de que forma essa liderança
feminina do conflito representava essa dicotomia entre o “costume” ligado
ao poder feminino nos primeiros tempos da colonização, e a “nova”
sociedade que se impunha, com base em outros padrões de relações entre
homens e mulheres. Não mais com base exclusivamente na experiência,
vivência do grupo no processo de instalação, mas também em elementos
externos, que passavam pela idealização do colono(a).

O Movimento Mucker: outra possibilidade de leitura


Os movimentos sócio-religiosos23 ou messiânicos são temas bastan-
tes recorrentes na historiografia brasileira, uma vez que esses movimen-
tos são parte importante do processo de formação do espaço social do
país. De forma especial, na segunda metade do século XIX e primeiras
décadas do século XX esses movimentos, de caráter essencialmente reli-
gioso e social, foram expressivos nas diferentes regiões do Brasil.
A dinâmica desses conflitos permite melhor compreender as desi-
gualdades e os processos de exclusão social dessas comunidades, que se
organizam em torno de um líder espiritual, tradicionalmente representa-
das como violentas, desordeiras e criminosas, ou seja, fora dos padrões de
comportamento estabelecidos pelos grupos dominantes. Cristina Pompa
(1998, p.02) apresenta quatro características principiais “[...] comuns a
todos os movimentos definidos como milenaristas, messiânicos, profé-
ticos, salvacionistas, nativistas, revivalistas, etc.[...]”, por ela definidos
como sócio-religiosos:

1– Uma coletividade que conceptualiza a realidade presente

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 233
como crise e a define como um Tempo (ou um Tempo/Espa-
ço) chegando ao Fim;
2 – a expectativa de uma mudança mais ou menos radical
dessa realidade, mudança definida como salvação e anuncia-
da pelas profecias;
3 – um corpus de crenças e práticas religiosas, tradicionais
ou criadas ex novo, com o qual a coletividade visa realizar a
mudança e inaugurar a nova ordem;
4 – a presença de um ou mais personagens carismáticos, que
a coletividade reconhece como líderes.

O estudo desses movimentos no Brasil seguiu algumas linhas in-


terpretativas centrais. De um lado as interpretações sociológicas tradi-
cionais, que foram expressivas a partir dos anos 1950/60. Os trabalhos
nessa perspectiva buscaram explicações estruturais e analisam os messia-
nismos a partir da categoria central de conflito social, ficando a religio-
sidade relegada a categoria secundária, como superestrutura ideológica.
Esses trabalhos tiveram como uma das principais influências, o estudo de
Hobsbawm (1959) e, entre os brasileiros, Facó (1972) (QUEIROZ, 2005).
Outra referência importante é o trabalho de Maria Isaura Queiroz,
que classifica os messianismos de acordo com “[...] os tipos de socie-
dade nos quais são engendrados”, mas ainda mantendo a supremacia
social sobre o simbólico (QUEIROZ, 2005). Essa autora inova ao tratar
os movimentos também como agentes da mudança social. Para essa ela
todos os movimentos brasileiros possuem caráter reformista, a exceção
dos Mucker (POMPA, 1998).
A renovação dos estudos nesse campo, veio da antropologia que
busca o sentido dos movimentos nas suas expressões simbólicas, sendo
que a religiosidade dos grupos passa a ser entendida dentro de sua pró-
pria lógica, não mais como explicação do social. O movimento é entendi-
do assim como “produto de atores intencionais, cujas metas e estratégias
se mostram coerentes com uma visão de mundo particular e articulada.
Ademais, o universo mítico-religioso adquire a centralidade que não lhe

234 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


foi conferida em outras abordagens” (QUEIROZ, 2005, p.147).
Desse modo, ao definirmos os Mucker como um movimento so-
ciorreligioso pretendemos contemplar o contexto sociohistórico do espa-
ço-tempo que o engendrou, conforme Queiroz (1976), sem, entretanto,
desconsiderar a relevância do simbólico-religioso na produção do sentido
do movimento, que produziu determinadas práticas e ações de ambos os
lados da população envolvida. Destaca-se ainda que, ao contemplarmos
o simbólico, ele não está restrito apenas ao universo do religioso, mas a
todo um universo de bens simbólicos situados de forma genérica no cam-
po cultural. Interessa-nos aqui, de forma especial, os aspectos simbólicos
ligados ao gênero feminino.
É preciso ressaltar a importância de estudos que contemplem a
categoria de gênero como um elemento fundamental na compreensão do
movimento Mucker. Afinal, o conflito, ocorrido no contexto da primeira
Colônia Alemã, fundada pelo império em 1824, foi o único em que se
teve a liderança de uma mulher. Jacobina Mentz Maurer, ousou, em
seu tempo, protagonizando uma luta, pautada pela palavra da Bíblia e,
também, pelas práticas de curandeirismo, exercidas pelo seu marido.
O poder exercido por uma mulher, no contexto do século XIX, no
extremo sul do Brasil, foi interpretado como uma forma de desajuste e
inconformidade com os padrões morais e “de civilidade” de seu tempo. A
protagonista do único movimento messiânico, ocorrido em um ambiente
essencialmente protestante e liderado por uma mulher, foi sufocado pelas
forças oficiais, que em nome “da ordem e do progresso”, se valeram da
força militar, representada pelo Coronel Genuíno Sampaio, que acabou
morrendo em combate, o que reforçou ainda mais a imagem negativa de
Jacobina, apontada como responsável pela morte do coronel.
O movimento messiânico dos Mucker ocorreu entre 1868 e 1874, na
Antiga Colônia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O conflito envol-
veu um grupo de colonos, formado basicamente por imigrantes alemães e
seus descendentes. Esse grupo, constituiu uma seita religiosa24, de caráter

24  Seita provém do grego hairesis, e significa partido. O termo esteve bastante associado aos

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 235
messiânico. A seita, que contava, inicialmente, com cerca de 150 pes-
soas, chegou a agrupar entre 700 e 1000 simpatizantes (AMADO, 1978,
p.128), sendo liderada por Jacobina Maurer, que junto com seu marido
João Jorge Maurer, exercia atividades de curandeirismo e promovia cul-
tos domésticos com leituras e interpretações da Bíblia.
Desde 1873, os integrantes do grupo vinham sofrendo acusações por
parte da população local25 e foram objetos de inquéritos policiais e pri-
sões. Jacobina Maurer também foi alvo de inquérito policial e levada a
reclusão na Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre, enquanto seu
marido teve 45 dias de reclusão, sendo preso novamente meses depois.
A reação ao movimento desencadeou uma série de atos de violência
(incêndios e assassinatos atribuídos aos Mucker e seus seguidores, mas
também violências do mesmo porte por parte dos colonos). O conflito
acaba em 1874, com o extermínio dos adeptos, pelas forças oficiais do
império, lideradas pelo Coronel Genuíno Sampaio. Após o desfecho trá-
gico dos eventos, instalou-se um processo que se estendeu por seis anos
(DICKIE, 2018, p. 22) sendo que todos foram absolvidos, inclusive os
mortos.
O conflito ocorreu ao pé do morro Ferrabraz, lugar que serviu de
moradia de Jacobina e seu marido. Era lá onde Jacobina celebrava os cul-
tos e João Maurer realizava suas práticas de curandeirismo. O Ferrabraz
[cuja grafia também é aceita como Ferrabrás] ficou conhecido em toda a
região, como o “lugar dos Mucker” e teve sua imagem, especialmente até
as primeiras décadas do século XX, associada ao massacre, onde “um
grupo de fanáticos religiosos” acabou exterminado, em nome de uma

protestantes, demonstrando a visão católica do império brasileiro. Na historiografia brasilei-


ra, o termo seita é comumente empregado para identificar os movimentos de caráter mes-
siânicos, enfatizando seu caráter religioso. No caso dos Mucker, o termo seita foi empregado
por diversos autores, para enfatizar o caráter de fanatismo religioso, que seria atribuído à
Jacobina, que seria responsável pela realização de cenas teatrais, com o propósito de enganar
os adeptos e estimular o fervor religioso.
25  Na obra de Schupp, bem como dos principais autores, os detratores do movimento são
descritos como “colonos”. No entanto, esse grupo era composto por, além de moradores
locais de vários segmentos sociais, comerciantes líderes políticos e religiosos.

236 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


falsa fé, sob a liderança de uma “mulher sem moral.”
Jacobina, juntamente com seu marido, João Maurer, praticante de
curas, consideradas milagrosas, liderava o grupo de colonos, denomina-
dos originalmente pelo pastor protestante, de Mucker. Vale lembrar que o
termo Mucker apresenta diferentes significados, como santarrão, embus-
teiro ou até mesmo, fanático religioso. No imaginário coletivo, o termo
pode ser associado ao zumbido das abelhas, o que apontava para o fervor
e o fanatismo religioso. Essa ideia se associa, principalmente a mística
que envolvia a figura de Jacobina que, conforme relatos, era acometida de
desmaios e visões proféticas. Segundo seus detratores, essas cenas eram
intencionais e teatralizadas, para enganar aqueles que compareciam aos
cultos.
Em relação a ela, sabe-se que nasceu em data desconhecida do mês
de junho de 1842, na localidade de Hamburgo Velho, atual município
de Novo Hamburgo – RS. Era filha do casal de imigrantes alemães, An-
dré Mentz e Maria Elisabeth Muller, que, além de Jacobina, possuíam
mais sete filhos. Jacobina foi confirmada em 04 de abril de 1854 na Igreja
Evangélica de Confissão Luterana do Brasil de Hamburgo Velho, onde
viria a se casar com João Jorge Maurer. Foi assassinada em 02 de agosto
de 1874, quando foi descoberta, pelas forças oficiais, em seu esconderijo
na mata fechada, ao pé do morro Ferrabraz.
Sobre suas características físicas pouco sabemos, em razão de não
termos qualquer retrato26 seu, o que torna sua personagem ainda mais
enigmática, despertando o imaginário da população acerca de como se-
ria a imagem real de Jacobina. Como seria seu rosto, seus cabelos, seu
corpo? São perguntas para as quais até o momento não temos respostas
confiáveis, tendo em vista que as descrições feitas sobre ela são bastante
distintas.
Jacobina, quando criança, teve dificuldades na escola, não tendo

26  A única fotografia que representaria Jacobina é aquela atribuída ao casal Maurer, cuja autenti-
cidade é amplamente questionada. Acredita-se que a fotografia não retrate Jacobina e seu marido
João Jorge Maurer. A não existência de uma imagem concreta de Jacobina Mentz Maurer torna
sua personagem ainda mais misteriosa. A fotografia, contudo, é constantemente empregada,
especialmente pela imprensa, para conferir um rosto à personagem.

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 237
conseguido aprender a ler e escrever27. Segundo os diagnósticos do Dr.
João Daniel Hillebrand, Jacobina apresentava, desde criança, sinais de
transtornos nervosos que haviam se agravado em sua fase adulta, quan-
do iniciou a leitura e interpretação da Bíblia28. Segundo o médico, esses
transtornos teriam provocado uma verdadeira mania religiosa e sonambulis-
mo espontâneo.
Hillebrand, que era diretor da Colônia Alemã, apontava o marido
de Jacobina, João Jorge Maurer29, como o responsável pela doença da
mulher, já que, segundo seu entendimento, ele a obrigava a praticar char-
latanismo. Além disso, João Jorge Maurer era descrito pela maioria das
pessoas de sua época como alguém que não gostava de trabalhar.
Agricultor e marceneiro de profissão, Maurer tinha aprendido a
manipular ervas medicinais, que eram empregadas no preparo de chás
e remédios para a cura de várias doenças que assolavam os colonos. A
denominação de “Doutor Maravilhoso” surgiu entre as pessoas que nele
procuravam ajuda e acabou se tornando bastante conhecida na colônia.
Foi, portanto, em torno de Jacobina e João Jorge Maurer que se deu
a organização do grupo dos Mucker. Há, no entanto, inúmeros outros
personagens envolvidos, dentre os quais um nos chama a atenção. Referi-
mo-nos a João Jorge Klein30, cunhado de Jacobina, casado com sua irmã

27  Jacobina aprendeu a ler em alemão já adulta, com o professor Hardes Fleck, sobre quem
pouco sabemos. Jacobina nunca aprendeu a escrever, nem a falar em português.
28  Embora Jacobina seja apresentada na historiografia como analfabeta, devemos repensar essa
afirmação, tendo em vista o fato de que lia a Bíblia e cantava os hinos em alemão.
29  João Jorge Maurer nasceu em 28 de fevereiro (mesma data em que se comemora o aniversá-
rio de Sapiranga) de 1841, em Picada de São José do Hortênsio. Era filho de João Carlos Maurer
e Maria Bárbara Voltz, ambos imigrantes alemães. De acordo com as descrições realizadas por
Carlos Von Koseritz, Maurer era um homem de estatura mediana, boas cores, cabelo e barba louros, olhos
azuis, órgão agradável e modos insinuantes. Sobre sua morte não temos informações precisas, uma
vez que após o desfecho do conflito seu corpo teria sido encontrado em adiantado estado de
decomposição, enforcado na mata do Ferrabraz. Seu corpo foi identificado apenas pelas roupas
que usava e reconhecidas pelo seu alfaiate. Outra versão afirma que Maurer teria fugido e passado
a viver na região da fronteira noroeste do estado.
30  João Jorge Klein nasceu no Hunsrück, Alemanha, no dia 14 de maio de 1820. Era filho de
João Jorge Klein e Maria Ana Klein. Teria chegado ao Brasil em 1854, vindo a exercer a atividade
de pastor na Comunidade Evangélica de Sapiranga no período entre 1858 e 1859, quando em
seguida assumiu a Comunidade de Picada 48, onde permaneceu entre 1859 a 1864, quando foi
sucedido por pastores com formação religiosa. Klein faleceu em 06 de outubro de 1915, com 95

238 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Catarina Mentz. Sobre a atuação de Klein, restam muitas dúvidas, já que
ora é apontado como “mentor intelectual” do grupo, ora - como embora
em seus escritos31- tenha essa atuação desacreditada.
Em obra de referência sobre o tema, Amado (1978) afirma que os
Mucker foram resultado das profundas transformações econômicas, que
romperam com a estrutura da região da Colônia Alemã de São Leopol-
do, em especial a partir de 1845. Até então, os imigrantes alemães viviam
numa situação na qual as diferenças sociais não eram acentuadas, mas no
final do século XIX, se deu um aumento significativo das desigualdades
sociais na área de imigração alemã. Alguns prosperaram e outros – den-
tre eles os Mucker – acabaram excluídos do processo de desenvolvimen-
to. Associado a esse contexto, tem-se o desamparo religioso, uma vez que
as igrejas eram ainda pouco atuantes nas localidades mais distantes da
Colônia. Daí esses colonos voltarem-se para os cultos domésticos promo-
vidos e liderados por Jacobina.
Outra referência sobre o tema é a pesquisa desenvolvida por Dickie
(1996) em sua tese de doutorado, publicada em livro em 2018, que pro-
blematiza a construção dos discursos difamatórios, que buscaram justi-
ficar – e legitimar – o massacre dos Mucker. Através da análise de Autos
do Inquérito, Registros de Terras, Correspondências e Relatórios Provin-
ciais, a autora amplia o debate sobre o tema e apresenta explicações mais
complexas para o conflito. Um dos pontos de destaque em sua análise
é o fato de que o conflito ocorreu em uma área de “identidade étnica
homogênea”, constituída por pessoas da mesma etnia, e provenientes da
mesma “pátria-mãe”, a Alemanha.
Com isso, os discursos das autoridades religiosas e civis procuraram
desvincular os Mucker dos demais colonos, atribuindo-lhes uma origem
“não germânica”, associada a uma espécie de caboclo, que havia sido

anos de idade.
31  Em seus escritos Sobre a história dos “Mucker”, nos anos de 1872 a 1874, João Jorge Klein procura
se inocentar das acusações de que ele teria sido o mentor intelectual dos Mucker. Em seus escri-
tos, procura responsabilizar Jacobina e João Jorge Maurer, assim como as autoridades corruptas
pelo conflito.

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 239
degenerado pelo mundo tropical. Nesse contexto, Jacobina não poderia
ser associada à imagem desejada, da mulher alemã, mas sim, associada
com o “mundo tropical”, considerado selvagem, o que fez inclusive, com
que Jacobina fosse comparada a uma “índia velha”, atestando uma visão
carregada de juízo de valor.
Outro aspecto discutido por Dickie refere-se à atuação das Igrejas
católica e protestante, que se afirmando em defesa da fé e da moral, de-
fendiam que somente padres e pastores eram a fonte da verdade e, por-
tanto, a eles competiam a responsabilidade dos cultos e a interpretação
da Bíblia. Esse último elemento – a interpretação da Bíblia – conferiu à
Jacobina seu caráter mais desqualificador e, até mesmo, criminoso, uma
vez que a mulher que liderava os Mucker não possuía formação para tal.
Este fato serviu também como mote na disputa entre católicos e protes-
tantes na colônia alemã de São Leopoldo.
Nesse sentido, a atitude de Jacobina, de leitura e interpretação da Bí-
blia, era atribuída por Schupp aos perigos do protestantismo, em especial
da mulher protestante, que lendo a Bíblia sem formação adequada era
um perigo para a família, já que esta era de sua responsabilidade: “uma
mulher protestante e analfabeta se arvorava de autoridade sobre a palavra
escrita de Deus” (DICKIE, 2018, p. 272). Associado a isso, o surgimento
de uma nova prática religiosa poderia ameaçar o poder exercido pelas
igrejas oficiais e, consequentemente, o fracasso das missões religiosas na
região de imigração e colonização alemã no sul do Brasil.
A representação dos Mucker como um grupo de fanáticos, liderados
por uma mulher, se deu, na percepção de Dickie, pelo fato destes não se-
rem considerados portadores da cultura alemã, trazida pelos imigrantes
e, também, pela falta de erudição, defendida pela elite germânica. Contri-
buíram significativamente para esse processo de desqualificação dos Mu-
cker, as publicações do jornal Deutsche Zeitung, no qual o intelectual Karl
Von Koseritz, importante representante da intelectualidade germânica do
Rio Grande do Sul, divulgava suas ideias, classificando Jacobina e seus
adeptos como “não alemães”, na medida em que os Mucker representa-

240 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


vam o contrário do que ele considerava como cultura.
Koseritz foi o primeiro a publicar vários textos detratores dos Mu-
cker e, em especial de Jacobina. Como seus escritos foram contempo-
râneos dos acontecimentos, eles serviram como principal fonte para as
narrativas posteriores, em especial o texto de Ambrósio Schupp. Ainda,
segundo Dreher (2017, p. 119), ele “pode ser considerado o inventor dos
Mucker”. Por isso retomaremos aqui, parte de seus escritos, que forne-
ceram para Schupp, um arsenal de (pré)conceitos sobre o movimento e
sobre Jacobina, fundamentando sua narrativa condenatória.
Afinal, os Mucker eram a antítese da ideia que faziam dos colonos
– considerados ordeiros e exemplares – e ao mesmo tempo, elementos
realizadores do futuro da comunidade, responsáveis pela construção da
cidadania brasileira, reservada à “civilizada e religiosa raça alemã” (DI-
CKIE, 2018). Esse processo, contribuiu para que o imaginário coletivo
representasse Jacobina e seu grupo como o não civilizado.
Após o desfecho do conflito, em 1874, os Mucker permaneceram
no imaginário coletivo, como a representação de um passado do qual
ninguém deveria se orgulhar. Ao contrário, os Mucker deveriam servir de
lição, para que os erros do passado jamais voltassem a ser cometidos. É,
precisamente nesse contexto, logo após o final do conflito, que o padre
jesuíta Ambrósio Schupp, recém-chegado da Alemanha, irá percorrer a
Colônia Alemã, em busca dos testemunhos, que serviram de fonte para
sua obra, originalmente escrita e publicada em alemão em 1900 na Ale-
manha, sendo que a primeira edição brasileira é de 1901.
É fundamental lembrar que a obra produzida por Ambrósio Schupp
tem papel singular na difusão das ideias sobre o conflito Mucker e, de
forma mais particular, sobre Jacobina, que conforme percebe-se da
leitura a obra, parece ter recebido atenção especial por parte do autor,
que dedicou grande parte de sua narrativa, à personagem. Além disso, a
obra do jesuíta deu voz a diversos testemunhos, que concederam a ele, o
direito de falar em seus nomes. Dickie observa que na segunda edição,
publicada em Porto Alegre, Schupp
[...] adicionou um prólogo em que reenfatizou a veracidade

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 241
de sua versão e, como “prova”, indicou a anexação de uma
declaração dos colonos que haviam sido seus informantes.
Nela, estes colonos atestam terem acompanhado os aconte-
cimentos “do seu começo até o fim” e, por isso, terem certeza
de que tudo o que Schupp relata em seu livro, “nos mínimos
detalhes, é verdadeiro (SCHUPP, 2018, p. 268).

Com isso, Schupp tem sua versão dos fatos legitimada pelos testemu-
nhos orais, reunidos em suas peregrinações pela Colônia Alemã, além de
ter tido acesso aos autos do processo. Soma-se a isso, o fato de que, até
1957, essa era a única obra de referência disponível sobre o conflito. Ela
formava, junto com os escritos fundantes de Koseritz, “a” narrativa con-
denatória de Jacobina e do conflito. Foi apenas em 1957, que Leopoldo
Petry lançou sua obra, questionando a versão apresentada por Schupp e
propondo uma releitura do conflito.
Ressalta-se ainda o fato da obra ter sido reeditada inúmeras vezes
no Brasil e, em 2004, foi publicada em versão eletrônica pelo Senado
Federal, com acesso gratuito à obra. De acordo com nota publicada, o
“Conselho Editorial do Senado criado pela Mesa Diretora em 31 de ja-
neiro de 1997, buscará editar, sempre, obras de valor histórico e cultural
e de importância relevante para a compreensão da história política, eco-
nômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país” (PORTAL
DOMÍNIO PÚBLICO, 2004).
A versão apresentada pelo jesuíta pode ser considerada, portanto, a
versão oficial dos fatos, no período compreendido entre o final do século
XIX e a primeira metade do século XX, permitindo compreender a sua
importância na formação dos leitores sobre o tema, bem como seu alcan-
ce nas gerações futuras. Para a historiografia a obra constitui-se em uma
fonte fundamental, não só pelo fato do autor ter tido contato direto com
as testemunhas que vivenciaram o episódio, mas por sua declarada par-
cialidade, na defesa tanto dos pressupostos do projeto da Igreja Católica
na colônia alemã de São Leopoldo, quanto na defesa da versão dos co-
lonos detratores dos Mucker. Seu relato, assim, deixa explícito o aspecto

242 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


seletivo da memória do conflito em sua narrativa.
A imagem criminosa de Jacobina, associada à sua “condição de mu-
lher” serviu de instrumento de condenação moral, uma vez que o fato
de ser mulher, foi empregado na narrativa (RICOEUR, 1994) de Schupp,
para condená-la moralmente. A discussão sobre a condenação moral
de mulheres na área de colonização e imigração alemã no Rio Grande
do Sul foi discutida por Gevehr e Rodrigues (2017), revelando que nessa
região, houve uma série de casos de mulheres, vítimas de agressão prati-
cada por homens e que não se calaram.
Ao contrário, a análise de autos de processos e queixas-crime, mos-
traram o quanto a noção de “passividade”, atribuída às mulheres na
Colônia não se sustenta, uma vez que elas nem sempre se calavam. Por
outro lado, os autores afirmam que no caso das mulheres que denuncia-
ram seus agressores, a maioria não conseguiu provar as acusações e, nem
mesmo, teve seus agressores condenados pela justiça, o que revele que a
“condição de gênero” era, sem dúvida, um elemento que pesava contra
as mulheres.
Tendo essas questões como problema, se pode pensar a produção
das narrativas sobre a líder dos Mucker, a partir da sua “condição de
gênero” (STEARNS, 2012) e, como esse elemento identitário – o gênero –
contribuiu para justificar e legitimar sua condição de criminosa e louca,
responsável por vários crimes cometidos por seus seguidores na Colônia
Alemã de São Leopoldo. Assim, loucura, crime e gênero feminino apare-
cem associados na narrativa de Schupp para desqualificar Jacobina.
Adultério, assassinato, infanticídio, roubo e incêndio às proprieda-
des e outros diversos crimes ocorridos na Colônia, tiveram sua autoria
ligada à Jacobina. Ela era, na versão construída pelo padre, a “mandan-
te” de todos os atos criminosos. Através de sua narrativa, num complexo
sistema de significações, Schupp contribuiu para “colocar Jacobina no
banco dos réus” na memória coletiva sobre o evento. Com suas posições
claras, frases e palavras de efeito, produziu a condenação moral e simbó-
lica de Jacobina. O próprio Schupp diz que seu relato é a voz dos colonos,

Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 243
que ele define como inimigos dos Muckers (DICKIE, 2018, p. 268).

Considerações finais
O movimento dos Mucker ainda é uma questão em aberto na histó-
ria da imigração alemã no Rio Grande do Sul, oscilando entre um episó-
dio a ser silenciado e ocultado; um movimento social de colonos aban-
donados no Ferrabraz, que buscaram, via solidariedade, resolver suas
demandas cotidianas; um movimento messiânico, que reunia no seu seio
saberes populares vinculados à cura, na ausência de médicos, somado à
leitura e interpretação da bíblia, na ausência de atendimento religioso;
um movimento criminoso, que provocou inúmeras mortes, liderado por
uma mulher “sem moral”, psicologicamente desequilibrada.
As múltiplas versões e possibilidades de analisar o episódio se sobre-
põe, e permitem afirmar que o movimento emergiu entre um grupo de
colonos, que tiveram problemas na regularização de seus lotes de terra,
o que implicou que se unissem, em defesa de seus interesses comuns,
reclamando por seus direitos. Posteriormente, se unem para resolver de-
mandas comuns do meio rural, como medicina popular e compartilhar
conhecimentos religiosos. A organização e fortalecimento do grupo pode
ser visto como um perigo para colônia, pois poderia colocar em perigo
justo o status reivindicado por uma elite imigrante emergente, e o enfra-
quecimento das instituições religiosas, substituídas pelos livres pensado-
res.
A versão apresentada pelo jesuíta pode ser considerada, portanto, a
versão oficial dos fatos no período compreendido entre o final do século
XIX e a primeira metade do século XX, permitindo compreender a sua
importância na formação dos leitores sobre o tema, bem como seu alcan-
ce nas gerações futuras. Para a historiografia a obra constitui-se em uma
fonte fundamental, não só pelo fato do autor ter tido contato direto com
as testemunhas que vivenciaram o episódio, mas por sua declarada par-
cialidade, na defesa tanto dos pressupostos do projeto da Igreja Católica

244 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


na colônia alemã de São Leopoldo, quanto na defesa da versão dos co-
lonos detratores dos Mucker. Seu relato, assim, deixa explícito o aspecto
seletivo da memória do conflito em sua narrativa.
Finalmente, a obra de Dreher (2017), trazendo Jacobina como per-
sonagem central, com ampla divulgação, contribuiu para popularizar o
tema e abrir possibilidades futuras para novos olhares sobre o movimento.

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246 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Monges do Pinheirinho:
conflito entre caboclos e imigrantes no Vale do Taquari
(Rio Grande do Sul, 1902)

Fabian Filatow

(...) a memória coletiva é não somente uma conquista é também um


instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória
social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de construir uma me-
mória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender
esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifes-
tação da memória. (LE GOFF, Jacques. História e memória. 5ª ed.
Campinas: Unicamp, 2003, p. 470)

Os bandidos sociais são proscritos rurais, encarados como crimino-


sos pelo senhor e pelo Estado, mas continuam a fazer parte da so-
ciedade camponesa, e são considerados por sua gente como heróis,
como campeões, admirados, ajudados e apoiados. É essa ligação en-
tre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão, que torna
o banditismo social interessante e significativo (...). (HOBSBAWN,
Eric. Rebeldes primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 110).

O s Monges do Pinheirinho protagonizaram um acontecimento


histórico, um fato local, mas que esteve inserido num contexto de
transição, mesmo que os envolvidos não tivessem esta percepção
naquele momento. Sua ocorrência recebeu pouco atenção por parte da
historiografia. Ainda é pouco estudado, digo mais, pouco conhecido. Isso
pode explicar a reduzida historiografia existente sobre o assunto.
Ocorreu em 1902, no Vale do Taquari, interior do Rio Grande do
Sul, numa região que atualmente pertence ao município de Roca Sales.
Como na epígrafe acima, a memória dos Monges do Pinheirinho ainda
está por ser escrita, pois até o momento apenas um dos lados envolvidos
registou a sua versão. E, nestas, não faltaram acusações ao grupo dos
monges, sendo muitas vezes, descritos como fanáticos, malfeitores, ban-
didos, criminosos, facínoras, orda, entre outros adjetivos depreciativos.
As origens do grupo estão interligadas com a figura de um monge
de nome João Francisco Maria de Jesus ou simplesmente Monge Chico1,
como era popularmente conhecido. Sobre este personagem do universo
sagrado conta-se que “os crentes em coisas miraculosas afirmavam que
ele [o monge] passava o rio Taquari sem auxílio de canoas, caminhan-
do sobre a superfície das águas.” (A Federação, 12/05/1902, p. 1.) Em
outros relatos, temos que o monge Chico “fazia ferver água para seus
adeptos, sem auxílio de lume, apenas pela imposição das mãos”. (A Fe-
deração, 12/05/1902, p. 1.) Assim, esta figura mística, sobre a qual eram
elencados poderes sobrenaturais, teve significativa importância na forma-
ção do que ficou conhecido na história como os Monges do Pinheirinho2.
Ou seja, inúmeras pessoas que seguiam ou se uniram à crença religiosa
pregada pelo tal monge3 e que teriam se fixado na localidade de nome
Pinheirinho receberam a designação de monges do Pinheirinho, fazendo
alusão tanto a localidade de origem quanto ao líder religioso. Salienta-

1  Nas fontes podemos encontrar a grafia munche. Segundo Karsburg, pode ser uma variação
dialetal da palavra alemã “Mönch” (monge em português). Porém, talvez seja a maneira como os
descendentes de alemães (que viviam em Lajeado e Estrela, municípios próximos de Encantado)
pronunciavam a palavra monge (KARSBURG, 2018a, p. 107, ver nota 6).
2  Em algumas bibliografias encontramos a grafia Monges do Pinheirinho (KARSBURG, 2018a).
Já na obra publicada por Genuíno Antonio Ferri temos a grafia Monges de Pinheirinho (FERRI,
1975). Como entendemos o Pinheirinho como um lugar, um espaço geográfico inserido no Vale
do Taqueri, optamos por nomeá-los Monges do Pinheirinho.
3  Do grupo que seguia o monge sabemos os nomes de poucas pessoas: além do líder, que se
chamava João Maria Francisco de Jesus, temos também João e Antônio Enéias, possivelmente
irmãos, e o filho desse último; uma senhora chamada “Cananeia”, incumbida de tocar o sino da
pequena capela existente no acampamento; e Antônio Lisboa, um dos protetores do grupo ao
lado dos irmãos Enéias; Antônio Lisboa e os irmãos Enéias eram pequenos proprietários da
região de Pinheirinho. (KARSBURG, 2018b, p. 109-110)

248 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


mos que o nome monges do Pinheirinho foi dado ao grupo religioso por
aqueles que não faziam parte do mesmo, e sim, por aqueles que os com-
bateram. A definição pode ser identificada nos documentos produzidos
pela Brigada Militar que foi convocada para combater o grupo que “in-
festava” a região. Até o momento, não localizamos nenhuma fonte docu-
mental que tenha sido produzida diretamente por membros dos monges
do Pinheirinho.
Para melhor compreendermos o cenário onde o conflito ocorreu,
faz-se necessário atentarmos para a composição social da localidade de
Encantado e arredores. Uma área de colonização italiana, composta por
colonizadores italianos e por descendentes. Este fato contribuiu para ge-
rar o conflito que ocorreu entre os seguidores do monge Chico e os imi-
grantes estabelecidos no Vale do Taquari.
Em 1902 a localidade do Pinheirinho estava a uma distância de 8
km4 de Encantado, cidade a qual pertencia. Encantado, por sua vez, per-
tencia a Lajeado. O município de Roca Sales era nomeado Conventos
Vermelhos e fazia parte do município de Estrela. Muçum era um distrito
de Guaporé.5
A memória sobre os monges do Pinheirinho está presente na geo-
grafia da região e está nas lembranças da população dos municípios de
Encantado, Muçum e Roca Sales (Linha Pinheirinho). Apenas como um
exemplo desta permanência da memória dos moradores daquela região,
que perdura no tempo, reproduzimos o relato da família de Giuseppe
Martinazzo6, através das lembranças de Adelle Tereza Martinazzo Ra-
daeli.

Da época em que moravam no Pinheirinho, a família guarda


ainda lembranças traumáticas. Ela foi vítima da tirania e das
loucuras de uma seita de ‘monges’ fanáticos, que sujeitavam

4  THOMÉ, 1967, p. 109.


5  GIARETTA, 2011, p. 9-10.
6  A família Martinazzo é originária do Piemonte, emigrante para a França e Argélia, e finalmen-
te para o Brasil, Rio Grande do Sul.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 249
seus adeptos e os colonos da vizinhança a pesados tributos
e a preitos de reverência inomináveis, sob a ameaça de ter-
ríveis castigos. Eles eram ‘santos’, e por isso o seu próprio
mijo era sagrado... A família Martinazzo, sob terror constan-
te, vivia escondendo-se pelos matos, para fugir à sanha dos
monges (MARTINAZZO, 1992, p. 108).

Estes dados são necessários para que possamos compreender o es-


paço geográfico e social no qual os eventos ocorreram. Partindo-se da
concepção de que o espaço histórico é uma construção efetuada pelos
historiadores, para o estudo aqui proposto, optamos por compreender o
espaço a partir do questionamento que formulamos, a saber, quais fatos
teriam contribuído para a eclosão do confronto entre nacionais e imi-
grantes de origem italiana naquela localidade do Vale do Taquari no dis-
tante ano de 1902? Neste sentido, nosso espaço geográfico incluiu além
do Pinheirinho, outras localidades (colônias naquela época) da região.
A existência de monges taumaturgos no Brasil Meridional apresenta
uma longa trajetória, tendo na figura do eremita italiano João Maria de
Agostini sua fonte de inspiração7. Estudos já foram realizados com o pro-
pósito de analisar a presença destes personagens da religiosidade popular
em diferentes localidades do sul do país8. A identificação com andarilhos
que possuíam conhecimentos sobre o uso de plantas para fins medicinais,
com poderes curativos, que falavam uma linguagem comum ao campo-
nês e que se identificavam com a natureza já foi analisada em ocorrências
como a Guerra do Contestado (1912-1916)9, em Santa Catarina, e o caso

7  Para um maior aprofundamento sobre a trajetória e vida deste personagem indicamos as obras
de FACHEL, 1985; KARSBURG, 2014; THOMAS, 2014.
8  Para uma melhor compreensão da amplitude desta devoção popular ao santo monge no sul
do Brasil indicamos o trabalho de ESPIG; KUNRATH, 2018. Os autores apresentam um mapa
da devoção a São João Maria, fazendo uso dos lugares de memória e fé popular nos estados do
sul do Brasil.
9  A bibliografia referente a Guerra do Contestado e seus desdobramentos é vasta, por isso
optamos por indicar obras recentes que tiveram o santo monge e questões religiosas como foco
de estudo: GALLO, 1999; GOES, 2007; MARCON, 2008; OLIVEIRA, 2012; WELTER, 2018;
LIMA, 2018.

250 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


dos Monges Barbudos (1938)10, em Soledade, no Rio Grande do Sul. Em
1897, na região de Entre Rios, no município de Lages, Santa Catarina,
ocorreu o movimento Canudinho de Lages, que teve um rápido e trágico
final11.
Assim sendo, a ocorrência de um grupo social apresentando carac-
terísticas religiosas autônomas, ou seja, não identificado com instituições
religiosas oficiais, não foi uma exclusividade do Vale do Taquari. Porém,
sua ocorrência pode ser inserida na tradição religiosa do monge, inserin-
do-se no mapa de devoção deste personagem da fé popular. Por isso, o es-
tudo sobre os Monges do Pinheirinho se faz relevante para que se avance
no conhecimento sobre este fato e seus desdobramentos sociais, políticos
e econômicos. Para que se escreva a memória inserindo as motivações
que contribuíram para que estes sujeitos históricos aderissem ao grupo
religioso liderado pelo monge Chico.
Neste sentido, buscamos analisar alguns pontos que teriam motivado
ou contribuído para o conflito militar envolvendo os monges do Pinheiri-
nho e imigrantes italianos, o qual teve a participação da Brigada Militar.
O ápice do evento, o conflito em si, ocorreu num tempo muito curto,
durante o mês de maio do ano de 1902. Neste período, o estado do Rio
Grande do Sul era governado por Antônio Augusto Borges de Medeiros,
do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), então sob inspiração dos
ideais positivistas e pela continuidade do castilhismo que vigorava na po-
lítica gaúcha desde 1893.
As referências deste conflito estão dispersas em documentos oficiais,
na imprensa e nas bibliografias que trataram da história de municípios
daquela região. Estamos convictos de que o estudo mais detalhado do
episódio pode contribuir para uma melhor compreensão das questões so-
ciais e políticas que vigoravam naquele contexto histórico. Com a Lei
de Terra de 1850 vigorava a ampliação da ocupação das terras. Sendo o
foco principal a imigração europeia, no caso específico deste estudo, os

10  FILATOW, 2003, 2015, 2017; KOPP; 2014; KUJAWA, 2001.


11  MACHADO, 2004, p. 173–175.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 251
italianos. Estes imigrantes chegavam para ocupar lotes gerenciados por
empresas privadas e contavam com apoio governamental. No âmbito po-
lítico buscava-se manter o controle e uma paz após conturbado período
marcado pela guerra civil ocorrida entre os anos de 1893 e 189512. Neste
contexto, posseiros e lavradores errantes viam-se excluídos do acesso à
terra, recorrendo, assim, as terras devolutas em busca da sobrevivência.
Todo este cenário irá contribuir para a eclosão do conflito que estamos
analisando.
Dito isto, destacamos que nosso objetivo será analisar alguns destes
documentos que estão disponíveis hoje, oferecendo um leque documen-
tal que possa contribuir com futuras pesquisas, fomentando novos ques-
tionamentos, novas indagações. Que pesquisadores imbuídos de novas
metodologias e abordagens possam contribuir para um maior esclareci-
mento sobre este episódio. Realizaremos esta proposta dialogando com a
historiografia e documentos, buscando elencar os motivos que contribuí-
ram para o uso da violência contra os monges do Pinheirinho.
Ressaltamos que não é nosso intuito realizar um estudo focado na
dicotomia entre o bem e o mal, ou seja, buscando compreender os even-
tos aqui apresentados como uma comprovação de quem teve razão e
quem foi o aproveitador. Queremos sim, analisar e compreender os fatos
no seu contexto, na época em que ocorreram, inserindo-os nas dispu-
tas vigentes. De forma alguma queremos desmerecer os imigrantes e a
formação de origem italiana daquela região, menos ainda criminalizar
a ocorrência do grupo de nacionais que compuseram os monges do Pi-
nheirinho. Buscamos compreender as razões que levaram cada um dos
seguimentos envolvidos a agirem da maneira como agiram. Buscamos
oferecer uma interpretação para o evento ocorrido contribuindo para o
seu esclarecimento.

12  Sobre este episódio político, indicamos SCHIERHOLT, 1989, 1995, para o caso específico
da Revolução Federalista no Vale do Taquari. Moacyr Flores e Hilda Flores produziram um estu-
do intitulado Revolução Federalista na qual foi mencionado o Vale do Taquari (FLORES; FLORES,
2016, p. 109-117). Ver também, GRIJÓ (2010), para um olhar geral sobre os conflitos armados
no período republicano no Brasil.

252 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Gostaríamos de evidenciar o uso de dois conceitos que estão sendo
utilizados neste trabalho para nos referirmos aos membros que faziam
parte do grupo dos monges do Pinheirinho, a saber: caboclos e nacionais.
Os utilizaremos para diferenciá-los dos imigrantes italianos. Assim, fare-
mos uso de caboclos e nacionais por serem conceitos aceitos pela histo-
riografia que se dedica ao estudo das questões agrárias no sul do Brasil.
Ao fazer uso destes conceitos os identificamos com moradores do meio
rural, camponês ou lavradores nacionais.13
Sobre o termo monge, temos que seu uso na imprensa e nas fontes
disponíveis tiveram utilidade de duas maneiras. A primeira foi para iden-
tificar o líder do grupo reunido no Pinheirinho14. A segunda, foi para
nomear os membros do grupo que se estabeleceu na localidade e que
seguia o monge Chico15. Assim, monges do Pinheirinho diz respeito aos
seguidores do monge que estavam no Pinheirinho. Estes sujeitos “não
passavam de leigos sem quaisquer vínculos com entidades monásticas e
nem pertenciam aos quadros da Igreja Católica. Eram homens simples,
‘gente do mato’, caboclos andarilhos (…)”. (KARSBURG, 2018b, p. 88)

Monges do Pinheirinho: nas fontes documentais e na


historiografia

As informações disponíveis sobre os monges do Pinheirinho estão


fragmentadas, temos rastros e vestígios em documentos. Há dados em
obras que foram produzidas para contar a história de municípios, como é
o caso de Estrela e Encantado16. Até onde foi possível averiguar, Genuíno
Antonio Ferri, conhecido como Gino Ferri, realizou o primeiro estudo

13  Sobre os estudos da questão agrária no sul do Brasil, estamos fazendo das obras produzidas
por ZARTH, 1997; 2002; SILVA, 2011; 2016; MACHADO; GERHARDT, 2017.
14  Isso também ocorreu no caso dos Monges Barbudos de Soledade (FILATOW, 2015, 2017).
15  Tanto o líder dos monges do Pinheirinho quanto os demais monges que surgiram em dife-
rentes tempos e lugares, usufruíram do capital simbólico legado pelo eremita italiano João Maria
de Agostini.
16  Confira HESSEL, 1983; THOMÉ, 1967.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 253
histórico tendo como objetivo os acontecimentos ocorridos no Pinheiri-
nho. O livro intitulado Monges de Pinheirinho foi publicado originalmente
no ano de 1975, inserindo-se nas comemorações do Centenário da Imi-
gração Italiana no Rio Grande do Sul.17
Toda produção historiográfica é marcada pelo tempo de sua pro-
dução. Ferri dialogou com as produções e documentos existentes e dis-
poníveis. A obra apresenta alguns problemas para o historiador contem-
porâneo, porém, seu valor histórico deve ser mencionado. Além de ter
disponibilizado ao público o conhecimento sobre o acontecimento18, per-
mitiu acesso a alguns documentos transcritos na sua obra. Preservou a
memória do acontecimento dos monges do Pinheirinho diante dos esque-
cidos nos labirintos da História. Hoje podemos averiguar, contestar e ana-
lisar as fontes mencionadas por Ferri, sejam elas oriundas da imprensa,
dos documentos governamentais ou dos relatos orais obtidos dos antigos
moradores que tiveram contato com os acontecimentos. Toda obra está
fadada a ser questionada, superada, este é o motor que faz a pesquisa his-
tórica avançar. Questionamentos nos fazem compreender o passado cada
vez melhor. Neste sentido, a obra capitaneada por Ferri foi pioneira, mas
precisamos avançar nas discussões teóricas e metodológicas.
Lothar Hessel, na obra O município de Estrela - História e Crônica, fez
uma rápida menção ao ocorrido de 1902, comparando sua ocorrência
com os Mucker.19 Segundo afirmou: “forma-se no distrito de Roca Sales
um núcleo de fanáticos, vindos do distrito de Encantado, ainda municí-
pio de Lajeado, à semelhança dos Mucker de Sapiranga e dos monges do

17  Gino Ferri foi um pesquisador local, nascido em Encantado (RS) no dia 18 de novembro de
1922 e falecido na mesma cidade, aos 93 anos, no dia 27 de outubro de 2016. Foram 27 livros
publicados ao longo de sua trajetória. Era filho de Luiz Ferri e Ergila Bigliardi Ferri, nascido
numa família numerosa, era o décimo primeiro filho do casal. Formou-se Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo e foi funcionário Público Estadual e pro-
fessor universitário.
18  O livro registra a versão dos imigrantes. Estes são tratados como “heróis”.
19  Os Mucker ocorreram no Morro Ferrabrás, entre os anos de 1868 e 1874. Na época inserido
no município São Leopoldo (RS), atualmente pertence ao município de Sapiranga. Os Mucker
foram liderados por Jacobina Maurer e constituíram-se num grupo religioso surgido entre imi-
grantes alemães.

254 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Fão, também município de Lajeado. Correu sangue.” (HESSEL, 1983,
p. 142).
Esta relação entre monges do Pinheirinho e Mucker também foi de-
fendida por Helio Moro Mariante,

(...) ao raiar do século a região do Alto taquari viu-se con-


turbada por um bando de fanáticos, constituídos de famílias
remanescentes dos Muckers (...), procurava reviver nessa re-
gião, na época mata virgem, os efeitos de Antônio Conselhei-
ro, transformando-o em um novo Canudos, ou, mais propria-
mente, dadas suas origens, de Jacobina e João Jorge Maurer,
como réplica do Ferrabraz (MARIANTE, 1972, p. 130).

Lauro Nélson Fornari Thomé, na obra O município de Encantado atra-


vés do tempo, dedicou algumas páginas para relatar o episódio dos monges
do Pinheirinho. Segundo o autor, “em 1902, um grupo de caboclos vindo
de Ilópolis, ou ao menos daquelas bandas, desceram por Anta Gorda e
Barra do Guaporé, vindo a estabelecer-se à margem esquerda do Taquari,
no Pinheirinho, atual município de Roca Sales” (THOMÉ, 1967, p. 108)
A liderança do grupo foi atribuída a José Enéas, que intitulava-se
monge, ou era tido como tal, e que, segundo acreditavam, seria possui-
dor de poderes divinos (THOMÉ, 1967, p. 108). Helio Moro Mariante
também fez referência sobre o líder do grupo. Afirmou que “o bando, sob
chefia de José Enéas, começou a praticar uma série de tropelias, depre-
dações, incêndios e até assassinatos” (MARIANTE, 1972, p. 130). Esta
versão não foi confirmada em outras bibliografias ou fontes consultadas.
Na imprensa identificamos uma pequena diferença entre os nomes do
dito líder, ao invés de José consta nas páginas dos jornais a grafia João
Enéas (A Federação, 12/05/1902, p. 01).
Na imprensa, podemos coletar informações sobre a liderança e a
reunião de pessoas em torno da figura líder do grupo. Na reportagem
intitulada fatos graves pormenores, publicada pelo jornal A Federação, pode-
mos ler:

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 255
(...) no dia 17 do passado, o subdelegado de Encantado, o sr.
Guerino Lucca, preveniu por ofício ao delegado de polícia,
coronel Oscar Karnal, que achava-se acampado na linha Fer-
nando Abbott, à margem esquerda do Guaporé, um monge,
dizendo-se irmão de Antônio Conselheiro e santo como ele.
Esse monge, denominado João Conselheiro, achava-se já ro-
deado de um grupo de homens armados, sendo por isso de
recear algo (A Federação, 12/05/1902, p. 1).

Referindo-se aos aspectos físicos e sua possível origem, temos o rela-


to da família Martinazzo:

A referida seita, liderada por um profeta de barbas brancas,


chamado José Maria, era composta de remanescentes dos
Muckers fanáticos do Ferrabrás, de maragatos fugitivos, de
ervateiros e caboclos deserdados. Tais eram os seus desman-
dos sectários e o perigo que representavam para a região, que
as autoridades municipais, com o apoio decisivo da polícia
estadual, decidiu exterminar o grupo a ferro e fogo (MARTI-
NAZZO, 1992, p. 108).

Numa breve visão sobre o contexto podemos elencar a existência


de questões políticas e sociais. Ou seja, fazia pouco tempo que havia en-
cerrado a Revolução Federalista,20 que deixou, provavelmente, suas mar-
cas na população local; temos o fim trágico dos Mucker, que certamente
era conhecido dos moradores da colônia de Encantado. Por fim, temos
posseiros, ervateiros e caboclos perdendo seus espaços de subsistência, a
terra, para fins do assentamento dos imigrantes italianos.
A escolha por receber imigrantes italianos pode ser verificada nas
lembranças da família Martinazzo.

20  Com a proposta de destacar as possíveis lembranças herdadas da Revolução de 1893-1895


na região do Vale do Taquari, citamos: “O clima revolucionário propiciou a prática comum de
assassinatos, violências, atentados à propriedade, incêndios, roubos e destruição de casas co-
merciais, fabriquetas, moradias, galpões, estrebarias e chiqueiros de porcos. Hordas de bandi-
dos circulavam por toda parte, soltos, impunes, praticando maldades em nome da Revolução”
(SCHIERHOLT, 1995, p. 90).

256 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A família aportou na Província do Rio Grande do Sul no ano
de 1881, após travessia que durou 30 dias, em viagem paga
com dinheiro do próprio bolso. Ocorre que um mês após foi
de novo liberado pelo governo o transporte marítimo gratui-
to dos imigrantes. A família lamentou então essa “perda” de
um dinheiro que muito teria valido para a compra de terras.
Em Porto Alegre receberam instrumentos agrícolas e semen-
tes, em seguida foram despachados para o interior, com leva
de outros imigrantes. O destino da família de Giuseppe foi a
colônia Encantado, no Alto Taquari. Estabeleceram-se num
primeiro tempo na localidade chamada Pinheirinho, à mar-
gem esquerda do rio Taquari, jurisdição de Roca Sales; de-
pois em Santo Antônio, de Encantado; finalmente no Morro
São Luís, de Muçum (MARTINAZZO, 1993, p. 108).

Acreditamos que a questão da imigração italiana não pode ser dei-


xada de lado no caso dos monges do Pinheirinho. O loteamento, a ex-
pansão da ocupação das colônias, tudo firmado nos documentos, gerou
a exclusão do acesso à terra por uma parcela de nacionais, os caboclos.
No que se refere aos membros que compuseram o grupo dos monges
do Pinheirinho, Thomé escreveu: “estavam entregues ao misticismo, an-
davam os componentes desse grupo, - chamados monges pelos morado-
res de Encantado, - apenas em rezas e procissões, arredios ao trabalho.”
E, referente ao número de participantes indicou que “os fanáticos com-
punham-se de 40 a 50 crentes, organizados em grupos, contendo inclusi-
ve mulheres e crianças” (THOMÉ, 1967, p. 108).
Há uma discrepância referente ao número de integrantes do grupo.
As indicações estão entre cinquenta, sessenta ou até duzentos “fanáti-
cos”. Segundo FERRI, “(...) grande número de pessoas corria a ele [o
monge], vindas de toda a parte, onde sua fama já chegara, ultrapassando
o número de 200 fiéis que se acercavam para ouvi-lo.” (1975, p. 59). José
Fraga Fachel, na obra Monge João Maria: recusa dos excluídos, também men-
cionou a presença de 200 pessoas (FACHEL, 1995, p. 61). Rovílio Cos-
ta mencionou um número reduzido de membros do grupo. Partindo da

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 257
correspondência de um agente consular de Encantado, o autor afirmou
que “(...) esse tipo de fanático se faz beijar os pés por parte dos seus 60
sequazes, alegando ser um novo redentor” (COSTA, 1997, p. 181).
Podemos identificar a existência de divergências a respeito das prá-
ticas de violência atribuídas ao grupo religioso. Mesmo não oferecendo
perigo visível, “até aquele momento não constava a existência de delito
algum praticado pelo grupo” (A Federação, 12/05/1902, p. 1), a popu-
lação de Encantado, constituída de agricultores italianos, observavam os
indesejáveis visitantes, os nacionais, com curiosidade e medo, principal-
mente pela divulgação de que os membros do grupo dos monges não tra-
balhavam, logo deveriam sobreviver de assaltos e saques, o que colocou
Encantado em estado de alerta (THOMÉ, 1967, p. 109).
Reinava grande alarme na colônia, temendo que o grupo se con-
vertesse em “núcleo revolucionário” (A Federação, 12/05/1902, p. 1).
Também segundo a imprensa, “o delegado de polícia, na ausência de
fatos criminosos por parte dessa gente, tratou de recomendar de novo
aquele subdelegado que observasse, visto que, se a reunião era simples-
mente religiosa, sem ofensa a sociedade, sem atos criminosos não era de
lei a intervenção” (A Federação, 12/04/1902, p. 1).
Mas o conflito não tardou a ocorrer. O primeiro confronto21 entre ca-
boclos e imigrantes ocorreu em 4 de maio de 1902. Que, segundo THO-
MÉ, foi motivado por um boato.

Soube-se aqui – pelo clássico dizem – que José Enéas e seu


grupo, iria assaltar a casa de José Colombo. Napoleão Maiol-
li, subdelegado do distrito de Roca Sales, comunicou-se com

21  Compondo o grupo que foi combater os monges do Pinheirinho estava o alemão Eduardo
Sattler (caixeiro viajante), que faleceu no conflito; e 14 imigrantes italianos, a saber: Guerino Luc-
ca (Subdelegado de polícia); Pietro Rotta; Giovanni Sanna; Pedro Mottin; Giovanni Ferri (Ho-
teleiro); Silvio Lucanon; Olderigi Bibliardi; Giovanni Lucca (morto no conflito); Pietro Turella;
Hipólito Fontana; Ambrósio Senatori; Napoleão Maiolli Primo (subdelegado); Antônio Valan-
dro; Luigi Ferri (Hoteleiro). Na obra de Ferri (1975) são tratados como “heróis”. Atualmente, na
cidade de Encantado, podemos localizar ruas e praças com os nomes destes imigrantes italianos.
Bem como o destaque no cemitério São Pedro de Encantado para o túmulo de Eduardo Sattler,
que consta na lápide “morrer por defender os amigos”. Na cidade temos os lugares de memória
destinado aos imigrantes, porém, para os caboclos e nacionais, o esquecimento.

258 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Guerino Lucca, colega de Encantado, e organizou uma ex-
pedição tendo por finalidade a ida a Pinheirinho (8 Km de
Encantado) para resolver com os próprios monges a situação
incerta daquele grupo duvidoso. A expedição ficou composta
de 12 pessoas. Os dois subdelegados, Eduardo Sattler (via-
jante de Porto Alegre), João Lucca, Pedro Mottin, João Ferri,
Olderigi Bigliardi, Sílvio Lucca, João Sana, Pedro Turella, to-
dos de Encantado, e sargento Vispo e Pedro Rotta, ambos de
Roca Salles (THOMÉ, 1967, p. 109).

O grupo formado para combater os nacionais partiu de Encanta-


do ao entardecer do dia 3 de maio de 1902. Estavam munidos de pistolas,
espingardas e alguns fuzis de repetição. Estes passaram a noite em mar-
cha e no amanhecer do dia seguinte estavam diante do acampamento dos
monges.
O confronto foi noticiado nas páginas do jornal A Federação:

Os bandidos ocupavam a casa do chefe, João Enéas. (...) Os


bandidos, em número superior a trinta, resistiram, na casa,
à bala e, saindo depois, travaram luta a arma branca. Mor-
reram o caixeiro viajante desta capital Eduardo Sattles que
voluntariamente incorporou-se à escolta, e João Lucca, in-
dustrialista residente em Encantado. Julga-se que o subde-
legado Querino, não tendo ainda aparecido, esteja no mato,
ferido. Os bandidos perderam oito homens, morrendo um
filho de Antonio Enéas, chefe da quadrilha, a qual mudou de
acampamento (A Federação, 6/04/1902, p. 1).22

Após o ocorrido, os moradores de Encantado solicitaram a inter-


venção do governo estadual para reprimir os monges do Pinheirinho. O

22  THOMÉ apresenta outros dados sobre o resultado do conflito: tiroteio que vitimou fatal-
mente 8 pessoas, sendo 6 monges e 2 encantadenses – João Lucca e Eduardo Sattler e deixando
um saldo de mais de uma dezena de feridos. Cf. THOMÉ, 1967, p. 110. No jornal A Federação, de
12/05/1902, p.1, consta um relato com maiores detalhes sobre o conflito ocorrido. Neste identi-
ficamos a descrição das armas brancas utilizadas pelos membros do grupo do monge: “armados
a facão de larga lamina, espadas, armas e paus.”

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 259
segundo confronto ocorreu no dia 21 de maio daquele mesmo ano. Sain-
do de Porto Alegre, foram enviados soldados da Brigada Militar para a
localidade. Estes estavam sob o comando do cel. Ramiro de Oliveira,
que combateu os “fanáticos”, resultando na morte de onze monges (cf.
THOMÉ, 1967, p. 110).
Segundo noticiado no jornal O Taquaryense, a Brigada Militar esteve
em contato com os monges antes do dia 21 de maio.

Passou terça-feira por esta cidade com destino ao municí-


pio de Lajeado uma força de 100 praças da Brigada Militar,
sob comando do major Juvencio de Lemos, (...). A marcha
desse contingente da Brigada prende-se aos sucessos re-
centes ocorridos no Encantado, município de Lajeado, en-
tre uma quadrilha de bandidos composta de algumas deze-
nas de homens, que infesta aquela região (O Taquaryense,
10/04/1902, p. 2).

Segundo publicado no jornal A Federação, sob o título de Bandidos no


Lajeado, “o governo do Estado, tendo tido ciência, ontem, destas ocorrên-
cias, fez seguir hoje, para Lajeado uma força da Brigada, de cem homens,
sob o comando do major Juvêncio Lemos, a fim de dar caça aos bandi-
dos” (A Federação, 06/06/1092, p. 1). Na continuidade desta reporta-
gem consta os nomes dos militares presentes na tropa que seguiu a 1 hora
da tarde, no vapor Taquary: os capitães Candido da Fontoura Pupe e
Francisco Rath, tenentes Javenal Joaquim Teixeira e José Maria Vianna,
alferes Jayme Francisco Rasteiro, Manoel Valentino Cabral, Accacio de
Almeida e Ernesto Moreira Röhring.
A respeito do destino do líder do grupo dos monges após os confron-
tos temos as seguintes informações,

Segundo uns, o chefe dos monges teria fugido, vindo a mor-


rer anos mais tarde, em Arvorezinha. Segundo outros, teria
morrido em Muçum, ou melhor, teria sido morto em Muçum,
pelas tropas da Brigada Militar. Ainda de acordo com a lenda

260 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


formada em torno do episódio, teria o monge José Enéas sido
enterrado de pé, com a cabeça para fora, porque – era cren-
ça – deveria ressuscitar no 5º dia, por ser imortal (THOMÉ,
1967, p. 110).

Segundo FERRI, o assalto das forças militares à cidadela dos mon-


ges resultou na rendição de sete seguidores e na morte do líder do grupo.
“Os sete fanáticos são amarrados por cordas com as mãos às costas. In-
vadida a cabana, foi encontrado, já sem vida, o corpo do Monge Chefe,
juntamente com outros adeptos.” (FERRI, 1975, p. 137)

Na tarde daquele dia do último combate, estando os solda-


dos reunidos no acampamento, já com a presença de vários
curiosos, residentes em Muçum e mesmo de Encantado, os
sete presos, onde se notavam três com mais de vinte anos,
foram compelidos a cavar uma cova a poucos metros da es-
trada, para sepultar seus companheiros mortos no comba-
te. Findo o funéreo trabalho de abertura da cova, os presos
foram forçados a depositar nela os corpos dos companhei-
ros, sendo que, o Monge Chefe foi enterrado de cabeça para
baixo, com os pés para fora, e, para que os animais ou aves
de rapina não se aproximassem, cobriam-nos com paus e pe-
dras. – Assim não há de ressurgir! – comentavam os curiosos
(FERRI, 1975, p. 140).

Na matéria publicada no jornal A Federação do dia 12 de maio de


1902 identificamos a ocorrência de diversas reuniões entre os comandan-
tes da Brigada Militar e o delegado de polícia do município. E mais, di-
versas informações trocadas através de telegramas e cartas entre estes e os
intendentes municipais. Consta ainda, as ordens do comando da Brigada
Militar e seus representantes na localidade. Na parte final da publicação
é possível ler a descrição da crise que havia se instaurado na região, onde
diversos municípios contribuíram com homens e armas para restabelecer
a ordem no município de Encantado.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 261
O fim das operações militares foi apresentado num relatório envia-
do a Antônio Augusto Borges de Medeiros. Neste documento consta a
descrição das ações executadas pela na Brigada Militar. O documento foi
assinado pelo major Juvêncio Maximiliano Lemos.

A ala esquerda do 1º batalhão de infantaria, em virtude de


ordem emanada do vosso governo, seguiu a 6 de maio último
para a zona colonial do Alto taquari, no intuito de bater os fa-
náticos e bandidos que ali perturbavam a ordem pública e de-
predavam a fortuna particular. Foi completo o êxito da força,
que conseguiu exterminar aquela orda, assegurando assim
o sossego dos habitantes da ubérrima região agrícola. Com
medida preventiva ficou destacada, no Encantado, a terceira
companhia, sob o comando do capitão Francisco Rath.23

Por fim, destacamos as Mensagens enviadas à Assembleia dos Re-


presentantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo presidente Borges de
Medeiros. Neste documento há uma menção ao ocorrido em Lajeado.
Na leitura desta fonte percebe-se a necessidade de ressaltar a existência
da ordem interna, a paz fecunda e duradoura no viver rio-grandense. Destaca-se
igualmente que “nenhuma sombra se projeta nos amplos horizontes do
território do Estado. A tranquilidade geral não sofreu a mais leve per-
turbação; a segurança de vida e de propriedade é tão completa quanto
possível.”24
Identificamos que o discurso de Borges de Medeiros estava relacio-
nado com questões políticas do Rio Grande do Sul, porém foi necessário
mencionar o caso de Lajeado, fato que permite presumir que o mesmo
não foi tão insignificante quanto desejava o governo estadual.

23  Relatório apresentado ao Sr. dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, presidente do Esta-
do do Rio Grande do Sul pelo dr. João Abbott, secretário de Estado dos negócios do interior e
exterior em 20 de agosto de 1902. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de Emílio Wiedemann &
Filhos, 1902. (Relatório de 1902 - AHRGS). Relatório do Comandante da Brigada Militar, páginas
179-193.
24  Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.

262 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


No município de Lageado, um bando de malfeitores, congrega-
dos pelas práticas supersticiosas e imorais de um imbecil perigo-
so, chegara a despertar no ânimo de seus laboriosos habitantes
sérias apreensões, tanto maiores quanto tinha crescido a au-
dácia dos criminosos, depois que, travando luta com as auto-
ridades locais, haviam trucidado dois prestantes cidadãos, que
nobremente se expuseram aos golpes homicidas em defesa da
lei e da moral ultrajada. No intuito de restabelecer prontamente
a ordem nessa afastada região, (...) partiu desta capital, a 6 de
maio último, a ala esquerda do 1º Batalhão de Infantaria, sob o
comando do respectivo major fiscal. Após alguns dias de perse-
guição tenaz conseguiu essa força dissolver o ajuntamento dos
malfeitores, sendo capturados alguns deles e perecendo outros
na resistência vã que tentaram ainda impor.25

Encerradas as ações militares contra os monges do Pinheirinho, estes
foram nomeados por Borges de Medeiros como malfeitores, criminosos,
que teriam trucidado cidadãos de Lajeado, pessoas de práticas imorais e
supersticiosas. O discurso político transformou um acontecimento local
numa vitória do Partido Republicano Rio-grandense, que manteve a or-
dem e a segurança no estado gaúcho, ou seja, mantendo a “normalidade
quase perfeita”.26

Caboclos e imigrantes: da terra de subsistência à terra como


mercadoria

A questão agrária também contribui para compreendermos os mo-


tivos do conflito ocorrido entre caboclos e imigrantes no Vale do Taqua-

25  Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.
26  Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 263
ri. Desine Scheid, num artigo publicado em 2003, intitulado Monges de
Pinheirinho conflito social e messianismo no Vale do Taquari, mencionou as
disputas pela posse da terra como sendo um dos fatores que contribuíram
para a eclosão do conflito. O conflito pode ser visto como o resultado das
mudanças que vinham sendo postas em práticas desde o século XIX e
que provocaram alterações no modo de vida do caboclo. Marcio Antônio
Both da Silva oferece uma visão apropriada destas mudanças ocorridas
entre o século XIX e o início do século XX. Segundo o autor,

“Violento”, “preguiçoso”, “degenerado”, “ignorante”, são al-


guns dos adjetivos dirigidos ao caboclo. Embora compondo
parcela considerável da população nacional durante o sécu-
lo XIX, ele era considerado incapaz de propiciar, a partir de
seu trabalho, as condições necessárias ao desenvolvimento
da nação. Esse ponto de vista tinha por base os preconcei-
tos existentes a respeito do seu modo de vida, definido como
“lento” e “desligado” das exigências que o mundo de então
fazia. Economicamente, as perspectivas de vida do caboclo
assentavam-se sobre a prática de uma agricultura de subsis-
tência realizada em grande parte nas áreas ainda não incor-
poradas pela plantation, ou seja, o sertão. Espaço que aos
poucos passou a ser absorvido pela expansão da economia
monocultora e pelo incremento das correntes imigratórias.
Por conseguinte, após as primeiras leis voltadas à extinção
do trabalho escravo (por exemplo, Lei Eusébio de Queiroz,
1850), bem como à promulgação das legislações que dialo-
gavam muito diretamente com os processos que levaram à
abolição (a Lei de Terras de 1850), observa-se um agrava-
mento da situação do caboclo, uma vez que, a partir da meta-
de do século XIX e início do século XX, viu as perspectivas de
manutenção de seu modo de vida cada vez mais diminuídas
(SILVA, 2016, p. 153-154).

Encantado vinha vivenciando, no nascer do século XX, uma expan-


são da ocupação da terra por imigrantes italianos oriundos de outras par-

264 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tes do Rio Grande do Sul, comercializados por empresas privadas de co-
lonização, sob aval do governo estadual. A ocupação de Encantado27 por
imigrantes italianos ocorreu por volta de 1882. Com o passar do tempo,
teve início os conflitos entre estes imigrantes e os caboclos já instalados
anteriormente na região.
Os caboclos produziam erva-mate em sua maioria. Scheid aponta
alguns motivos que podem ter contribuído para a comunidade italiana
não ter aceitado estes caboclos: “não possuírem títulos de propriedade
das terras, registros de nascimento e de casamentos; por não mandarem
seus filhos à escola e, (...) por não pagarem impostos e, por consequência,
não terem direito ao voto” (SCHEID, 2003, p. 71).
No que diz respeito às questões políticas, existia sobre os monges do
Pinheirinho o medo de serem gente oriundas da Revolução Federalista
(1893-1895). Nos jornais que se dedicaram a acompanhar as movimen-
tações do Pinheirinho identificamos notícias que alertavam para o perigo
político vindo da reunião do grupo religioso. Na imprensa podemos lo-
calizar afirmações de que o grupo reunia “rebotalho” federalista, “bandi-
dos”, “indivíduos de má conduta”, pessoas “perdidas para a sociedade”
e diziam mais, que estes tinham o objetivo de subverter a ordem vigente.
Assim, temia-se que os monges do Pinheirinho, caso não fosse combati-
do e exterminado, poderia vir a se tornar um “núcleo revolucionário”.28
Os caixeiros viajantes nomeavam o monge chefe de José Conselhei-
ro, numa nítida referência a Canudos e ao seu líder Antônio Conselheiro.
Acontecimento paradigmático que certamente teve influência nas ações
repressivas colocadas em prática pelo Estado através da Brigada Militar,
que contou com a colaboração de moradores e simpatizantes locais.
A Lei de Terras propiciou o acesso à posse da terra, porém pela com-
pra, excluindo os posseiros deste processo, não considerando o usucapião

27  Para maiores informações sobre a formação histórica de Encantado indicamos THOMÉ,
1967, p. 16-25. O autor apresenta a origem do nome do município, a formação histórica, das
origens, passando pela época em que foi distrito, e por fim, a emancipação.
28  Jornal Alto Taquari, 20 de maio de 1902.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 265
e não deixando defesa jurídica a estes ocupantes das terras devolutas29.
Essa prática acabou “obrigando os caboclos que ocupavam as áreas ribei-
rinhas do rio Taquari a tomar o rumo da região serrana do mesmo vale”
(SCHEID, 2003, p. 71). E mais, intermediada por empresas colonizado-
ras particulares, imigrantes alemães e italianos compraram propriedades
na região do Alto Taquari.

(…) as empresas imobiliárias expulsavam estes posseiros,


quando mediam e vendiam os lotes coloniais aos imigrantes.
Sem títulos de propriedade, sem direitos ao usucapião, sem
qualquer defesa jurídica, desprovidas de quais [quer] recur-
sos, numerosas famílias se embrenhavam nas matas, serra
acima, à procura de terras devolutas para poder sobreviver
(SCHIERHOLT, 1989, p. 121-122).

Estes despossuídos, provavelmente, contribuíram para o aumento


populacional do reduto dos monges do Pinheirinho. Podemos pensar com
Duglas Teixeira Monteiro, que ao efetuar um estudo sobre o milenarismo
na Guerra do Contestado, identificou o que nomeou de desencantamento
do mundo por parte dos caboclos. (MONTEIRO, 2011, p. 29-112) Utili-
zando este conceito, o autor buscou evidenciar as mudanças que estavam
em curso e que este seria um dos motivos explicativos para a reunião dos
caboclos e nacionais nos entornos das Cidades Santas.
Situação semelhante pode ser identificada no período em que eclo-
diu o conflito no Pinheirinho, uma acelerada mudança social e econômi-
ca, ou seja, questões que envolveram a vinda de imigrantes e a ocupação
destes nas terras nas localidades do Vale do Taraqui. A Lei de Terras e a

29  Muitos destes, provavelmente, não tinham conhecimento da necessidade de regulamentar


a posse de suas terras. Em 1900, foi publicado o decreto 313. Esse decreto exigia a legitimação
da posse da terra formalizada a partir de um requerimento do posseiro ao presidente do estado,
especificando nome, idade, naturalidade e estado do requerente, época em que fora constituída
a posse e motivos que haviam levado o posseiro a estabelecê-la; situação da posse, área provável
dos cultivos, todas as confrontações, natureza e descrição das benfeitorias dentre outros. In: Cole-
tânea da legislação agrária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Secretaria da Agricultura do RS, 1961,
p. 75. Apud. SCHEID, 2003, 76.

266 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


exigência documental para a posse legal da propriedade. A transforma-
ção da terra em mercadoria que teria como fim a produção em larga es-
cala para o mercado, deixando de ser um bem para a subsistência. Nesse
sentido, podemos dizer, valendo-nos do estudo de Monteiro, que no Vale
do Taquari, naqueles tempos de 1902, estava em processo de desencanta-
mento do mundo dos caboclos.

Os monges do Pinheirinho sob novos olhares:


a historiografia recente

Na historiografia recente, temos artigos publicados por Alexandre


Karsburg30 nos quais se dedicou a pesquisar os monges do Pinheirinho.
Para o autor, que alterna entre Guerra do Pinheirinho e monges do Pinheiri-
nho para se referir aos conflitos ocorridos em 1902, o evento

(…) foi um o resultado do confronto entre grupos étnicos e


sociais distintos. De um lado imigrantes europeus privilegia-
dos pela política de Estado que disponibilizava terras para a
mão de obra branca para que produzissem para o mercado
através de agricultura familiar; do outro, lavradores nacio-
nais pobres, pequenos proprietários ou posseiros que viviam
da subsistência em terras de mato. (KARSBURG, 2018a, p.
105)

As pesquisas de Karsburg indicam existir uma relação entre o João
Maria de Agostini, vindo da Itália e que esteve no Brasil e no Rio Grande
do Sul na segunda metade do século XIX, como um eremita, e os futuros
agrupamentos religiosos autônomos que ocorrem em diferentes regiões
do sul do país. A estadia de Agostini promoveu uma tradição religiosa,
pois os ensinamentos e as práticas do italiano podem ser identificadas
em diversos grupos religiosos similares ocorridos nas décadas seguintes.31

30  KARSBURG, 2018a; 2018b.


31  KARSBURG, 2018b, p. 89.

FILATOW,, Fabian. Monges do Pinheirinho: conflito entre caboclos e imigrantes


FILATOW 267
Em diversas regiões do Brasil Meridional, e também em outros paí-
ses do continente americano, encontramos referência a seguidores dos
ensinamentos, das práticas de cura e orações atribuídas ao eremita32. Al-
mejando ilustrar sua importância para compreendermos o que ocorreu
no Pinheirinho, já inserindo-o também nesta tradição, mencionamos lu-
gares no Rio Grande do Sul, do século XIX, nos quais sua presença foi re-
gistrada, no Campestre, próximo a Santa Maria e no Cerro do Botucaraí,
nas proximidades do atual município de Candelária.
Assim, para Karsburg, os monges do Pinheirinho seriam um grupo
de beatos andarilhos que se preparava para o Juízo Final, eles estariam se-
guindo os ensinamentos divulgados pelo monge eremita (KARSBURG,
2018a, p. 106).

Apontamentos finais
Enfim, com este estudo preliminar, buscamos demonstrar que para
além da questão religiosa podemos identificar a presença de outros inte-
resses que também contribuíram para os trágicos acontecimentos ocorri-
dos no ano de 1902 em Encantado. A questão da posse da terra, a coloni-
zação da região, a Lei de Terras e questões políticas as quais financiavam
a presença de imigrantes italianos em detrimento dos caboclos da locali-
dade.
Como demonstrado até aqui e com as pesquisas já realizadas, ficou
evidenciado que os monges do Pinheirinho devem ser compreendidos
como um grupo religioso, porém não só isso, temos outras questões atre-
ladas a sua existência.
Devemos levar em consideração, igualmente, as últimas décadas do

32  Ivone Celília D’avila Gallo, em seu estudo sobre os três monges itinerantes da Guerra do
Contestado, referiu-se a esta tradição, originada da presença de João Maria de Agostini, como
uma “religião dos monges”, guiando a conduta social e política dos indivíduos (GALLO, 1999,
p. 91).

268 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


século XIX na região do Vale do Taquari e as transformações que nela
ocorreram, tais como a especulação fundiária, nas terras devolutas ou de
matos do Vale do Taquari e arredores, bem como os desdobramentos que
se seguiram à implantação da Lei de Terras de 1850, fato que alterou por
completo o mundo conhecido de muitos destes posseiros que se encontra-
vam naquelas localidades.
A compra e venda de lotes de terras negociadas por empresas colo-
nizadoras privadas para imigrantes, destacamos aqui o caso dos italianos
que se dirigiram para o Vale do Taquari. Esta expansão territorial da co-
lônia, ou das colônias da região, contribuíram para a desestabilização da
ordem social vigente, promovendo a expulsão de lavradores, caboclos,
nacionais do lugar. Estes partiram para as matas e terras devolutas em
busca da sobrevivência. E com o tempo, até mesmo estas terras passaram
a ser loteadas e vendidas, fato que agravou a situação. Talvez possamos
pensar que a resistência ou a simples presença destes caboclos nestas ter-
ras cobiçadas para o projeto de imigração, tornou-os indesejados, um
obstáculo para o progresso, que naquele contexto político estava atrelado
também com a manutenção da ordem, e para obter este fim fazia-se uso
da violência. Esta violência ficou explícita com a ocorrência do combate
orquestrado pelo Estado contra os monges do Pinheirinho.

Referências
COSTA, Rovílio et al. Povoadores das colônias Alfredo Chaves, Guaporé e Encantado.
Porto Alegre: EST Edições/Correio Rio-grandense, 1997.
ESPIG, Márcia Janete; KUNRATH, Gabriel. Os mapas de devoção a São João
Maria: um estudo sobre lugares de memória e fé popular nos estados do sul do
Brasil. In: MACHADO, Paulo; TOMPOROSKI, Alexandre (Orgs.). Centenário do
Contestado: tempos de muito pasto e pouco rastro. Canoinhas; Florianópolis: Editora
da UnC; Editora da UFSC, 2018, p. 135-153.
FACHEL, José Fraga. O monge João Maria: recusa dos excluídos. Porto Alegre;
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272 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Anexos - Mapas do Vale do Taquari (RS) – 1902

Fonte: Ferri (1975, p. 37 e p. 52).


274 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Monges Barbudos:
a construção individual e coletiva do movimento

Henrique Kujawa

O Movimento dos Monges Barbudos, ocorrido na região de Sole-


dade, mais especificamente no distrito de Coloninha, atual mu-
nicípio de Lagoão, durante a década de 1930, teve o ápice da
repressão policial em 1938. Tratou-se de um movimento de campone-
ses que ressignificam a figura e a doutrina do Monge João Maria como
forma de vivência de religiosidade popular e, principalmente, como ele-
mento identitário e justificador das transformações sociais, econômicas e
culturais vividas pelos camponeses caboclos da região.
O contexto histórico em que ocorre o Movimento é marcado, cen-
tralmente, por três macros elementos. O contexto político da Era Vargas e
suas repercussões no Rio Grande do Sul, com destaque para a Revolução
Constitucionalista de 1932 e a implantação do Estado Novo em 1937,
gerando disputas pelo Governo do Estado, fatos que tiveram desdobra-
mentos na região de Soledade. O segundo, são as mudanças sociais e
econômicas, relacionada, por um lado, pela modernização da pecuária
que reestruturavam os campos(fazendas) de Soledade e, por outro lado,
o avanço da colonização italiana e alemão que avançavam pelas terras
de mata da região, fatores que tornavam a disputa pelas terras mais agu-
das. O terceiro, pela existência de um grupo de camponeses, comumente
caracterizados como caboclos católicos, que pela distância Institucional
da igreja praticavam o catolicismo popular que, por um lado, facilita a
busca simultânea da identidade do Monge João Maria, de Santa Catarina
e de São Francisco, por outro lado, a posição da instituição igreja, pelo
vínculo estabelecido com o Estado Novo, não o defende no momento da
repressão policial.
A historiografia tratou o Movimento de forma diversa, que pode
ser, genericamente, dividido em três perspectivas. A primeira delas ao
tratar o movimento como um grupo de fanáticos, milenaristas que, em
alguma medida representavam um ameaça (VERDI, 1987), a segunda,
que passou a tratá-los como vítimas de uma ação truculenta do Estado
(PEREIA, WAGNER. 1981) e a terceira, que busca compreender o mo-
vimento e, também, a ação de repressão, como resultado do contexto po-
lítico da década de 1930, das disputas econômicas (principalmente pela
terra), sociais e simbólicas. (KUJAWA, 2001; KOPP, 2014)
O movimento dos Monges Barbudos, como via de regra ocorre com
os movimentos sociais, sob a liderança que cumpriram com papeis de
constituição identitária, organizativos, mobilizadores e de resistência. A
primeira liderança a se destacar é Deca França, que dá organicidade ao
movimento ao divulgar o recebimento da visita do Monge João Maria,
que teria ensinado a doutrina e a missão de passa-la adiante. Tácio Fiusa
que se torna o braço direito de Deca, destacando-se no papel de pregador,
mobilizador e aglutinador de novos adeptos. Depois temos a liderança de
duas mulheres a Andreza Alves e Idarcina Costa que, segundo a historio-
grafia, teriam cumprido com um papel mais religioso.
O objetivo deste texto é reconstruir estes elementos para contribuir
na compreensão do Movimento dos Monges Barbudos, dando um des-
taque ao papel cumprido pelas lideranças. Metodologicamente o artigo
é fruto de revisão bibliográfica, documental e pela pesquisa de campo
realizada no final da década de 1990 por ocasião da construção da minha
dissertação de mestrado.

276 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


O texto está dividido, para além da introdução e considerações fi-
nais, em três tópicos. No primeiro, abordaremos o contexto da década
de 1930 e suas repercussões aos fatos em tela, no segundo faremos uma
narrativa dos fatos, e por fim, abordaremos elementos biográficos e da
atuação dos líderes do movimento.

Contexto político da década de 1930 no Rio Grande do Sul


A Revolução de 1930, que marca o começo da Era Vargas1, inicial-
mente tem amplo apoio político e militar do Rio Grande do Sul, através
da Frente Única Gaúcha,2 cenário que muda já no primeiro ano na me-
dida em que os principais políticos do estado discordavam da postura
Varguista de postergar o Estado de exceção. Já em 1931 Borges de Medei-
ros envia uma carta alertando Vargas para manter o programa da Frente
Liberal e a necessidade de convocar uma Assembleia Constituinte.
Fato relevante é que Flores da Cunha, Interventor no Estado do Rio
Grande do Sul, rompe com a Frente Gaúcha, mantendo apoio e fideli-
dade a Vargas. Esta dissidência coloca os gaúchos em lados opostos: o
Interventor Federal no Estado3, com as forças oficiais apoiando o Gover-
no Federal, enquanto grande parte dos políticos da Frente Única Gaúcha
Incluindo Borges de Medeiros e o General Pilla apoiavam os ideais fede-
ralistas liderados por São Paulo.
Ao aproximarmos a escala geográfica de Soledade percebemos que
as disputas políticas são muito mais fortes, ganhando inclusive um cará-
ter bélico com batalhas militares. Um dos principais líderes da Região, o
General Cândido Carneiro Junior (Candoca), assume a posição Consti-

1  Para uma análise do Governo de Vargas bem como discussões historiográficas: AXT, Gunter;
SEELIG, Ricardo Vaz et al. (Orgs.). Da vida para a história: reflexões sobre a era Vargas. Porto
Alegre: Procuradoria-Geral de Justiça, Memorial do Ministério Público, 2005.
2  Composta pelo Partido Republicano e Partido Libertador
3  Flores da Cunha cria um novo o Partido Republicano Liberal, para abrigar os políticos que se
mantiveram fiéis ao governo Vargas.

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 277
tucionalista, organiza uma tropa militar e, em 1932, lança um manifesto4
e inicia a perseguição, na região, dos políticos e militares que se manti-
nham fieis a Vargas e a Flores da Cunha. Por sua vez, o interventor Fede-
ral, ao ser notificado dos atos militares de Candoca5, organiza as tropas
oficias e envia para combate os revoltosos. O confronto ocorre em 13 de
setembro de 1932, no denominado Combate do Fão6, local próximo ao
que ocorreu o Movimento dos Monges Barbudos.
Pelo fato do epicentro militar da Revolução Constitucionalista ter
ocorrido na região de Soledade e um de seus principais líderes ser do
local, as repercussões políticas e sociais se prolongaram para além dos
episódios militares, mantendo-se um clima de divergências, disputas e
perseguições. (FRANCO, 1975; VERDI, 1987).
As animosidades e disputas políticas se ampliam com as eleições
municipais de 1934, disputam o pleito um candidato vinculado a Frente
Única Gaúcha e outro ao Partido Republicano Liberal. Foram muitos os
episódios de violência, perseguição e homicídios ganhando destaque nas
comunicações oficias e na imprensa do estado (FILATOW, 2012). Estes
conflitos estavam irradiados no interior do município, um exemplo é o
relato de João Maria, contemporâneo e participante do Movimento dos
Monges Barbudos, (entrevistado em 1998) contando de conflitos entre
ocorridos em bailes em casa de família (KUJAWA, 2001, p. 54-55).
O contexto se torna mais complexo com o advento do Estado Novo,
em 1937, quando Getúlio Vargas, no intuito de centralizar ainda mais o
poder, destitui o interventor Federal Flores da Cunha e nomeia Daltro
Filho para ocupar tal cargo. Flores da Cunha, temendo a própria sorte
se exila no Uruguai, criando-se boatos de que voltaria para recuperar o
poder sendo que Soledade estariam seus melhores aliados. Neste senti-
do, o Movimento dos Monges Barbudos, mesmo não tendo nenhuma
pretensão política partidária, acaba sendo interpretado, principalmente
pela Brigada Militar, como um rico espaço de movimentação política que
precisava ser reprimido exemplarmente para restabelecer a “ordem” na
região (KUJAWA, 2001).

278 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Cabe destacar que somado ao contexto político de instabilidade, há
uma transformação e reconfiguração econômica, principalmente na ocu-
pação e no valor da terra. Soledade foi um município de grande exten-
são territorial, sendo a maior parte composto por campos cobertos por
gramíneas propícias para a criação de gado e parte, mais próxima da
serra (onde hoje é Tunas, Coloninha, Arroio do Tigre, Bela Vista) que era
composta de matas.
A posse das terras ocorreu em forma de Sesmarias ocupando-se prin-
cipalmente com a pecuária. Com a legitimação das posses, a partir da Lei
de terras de 1850, boa parte das terras de matas, seja pelo pouco interesse
dos pecuaristas, seja pelo entendimento de que a concessão das Sesma-
rias não contemplava as matas7, transformaram-se em Terras Devolutas.
Estas terras eram ricas em Erva Mate e abrigavam caboclos e indígenas
que vivam de coleta, de agricultura de subsistência e até de trabalhos
temporários nas fazendas.
Com a ampliação das áreas das áreas ocupadas por descendentes
de imigrantes, nas primeiras décadas do século XX, estas terras devolu-
tas, mas não desocupadas (DACANAL; GONZAGA,1992), passaram a
ser adquiridas como forma de minimizar a pressão da fronteira agrícola
das colônias já consolidadas. É neste contexto que na região de Sobradi-
nho e dos locais onde eclode o Movimento dos Monges Barbudos passa
a receber um grande contingente de descendentes de imigrantes vindo
da região de Guaporé e Santa Cruz, fazendo uma pressão sobre as ter-
ras ocupadas por caboclos e nem sempre tituladas, ou mesmo pressão
econômica para a compra das que eram tituladas. Além disso, como os
imigrantes chegam novas culturas agrícolas como o plantio do fumo, do
milho, a criação de porcos, com objetivos comerciais, desestruturando a
coleta e a cultura de subsistência desenvolvida até então.

7  Em 10 de agosto de 1852, a Câmara de Cruz Alta, foro administrativo que contemplava a


região de Soledade, manda uma correspondência ao Presidente da Província, destacando que não
admitiria a transformação dos ervais em propriedade privada (FRANCO, 1975).

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 279
Descrição dos fatos
O movimento dos Monges Barbudos tem sua origem em 1935, com
a suposta estadia do Monge João Maria na casa de André Ferreira Fran-
ça, (Deca França), que acabou se tornando um dos principais líderes do
movimento, bem como, o responsável pelo maior período de perseguição
policial uma vez que por meses conseguiu se esconder na região.
Em relação a este episódio cabe destacar dois elementos. O primei-
ro deles o de que a estadia de andarilhos, comerciantes e negociantes
em casa de família era fato corriqueiro, uma vez que, na época, a região
era desprovida de infraestrutura, bem como, de difícil acesso às cidades
maiores como Soledade ou Santa Cruz; quando anoitecia procurava-se a
casa mais próxima para abrigar-se. Além do mais, Deca também era um
comerciante (como veremos no próximo tópico), portanto, não lhe era
estranha esta prática. O segundo, é que o fato de quem seria a identidade
física do personagem que esteve na casa do Deca não é o mais relevante,
uma vez que, para a nossa análise, a centralidade é a forma e a razões que
contribuíram para que os adeptos do movimento resgatassem os ensina-
mentos e a identidade simbólica do Monge João Maria.
O hóspede de Deca teria lhe passado os ensinamentos de ervas que
curavam as doenças e, principalmente, a necessidade de adotar um com-
portamento pacifista, nunca utilizar aramas, preservar a natureza, rezar,
fazer novenas, adorar São Francisco e Santa Catarina. Inclui nos ensina-
mentos, o não plantio de fumo, uma vez que ele prejudicava a saúde.
Entende-se que a doutrina adotada pelo Movimento deve ser anali-
sada de forma contextualizada. A adoção de práticas pacifistas pode ser
entendida no contexto de violência vivido na região (descrito no tópico
anterior). A adoção de uma estratégia beligerante reproduziria práticas
vivenciadas cotidianamente e, principalmente, estavam vinculadas a per-
sonagens econômicos e políticas que não possuíam identidade com o mo-
vimento. A preservação da natureza, das águas, dos rios, o não plantio de
fumo pode ser entendido como uma forma de resistências às transforma-
ções dos processos territoriais e produtivos como a crescente ocupação da

280 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


região por descendentes de imigrantes europeus e a crescente cultura do
fumo que provocava um maior uso das terras e imprimia uma dinâmica
de trabalho não tão comum aos caboclos que viviam na região.
O uso de plantas medicinais, a realização de novenas, rezas nas casas
de família são típicas das práticas de religiosidade popular que, ao mesmo
tempo, em que adotam o Catolicismo como religião oficial, praticam a
doutrina e os rituais de forma adaptada ao seu cotidiano com elementos
culturais próprios. Cabe destacar que a região era assistida pela Paróquia
de Soledade que era atendida pelos Freis Capuchinhos, o que explicaria
a devoção em São Francisco e Santa Catarina. Ao mesmo tempo, a pre-
sença do padre em regiões tão longínquas era esporádica, o que permitia
o reconhecimento da população de outras formas de lideranças religiosas
não institucionalizadas.
A doutrina sintetizada por Deca rapidamente ganhou adesão na
região e sua casa se tornou um ponto de peregrinação, ensinamentos e
rituais religiosos. Andressa Gonçálves, sobrinha de Deca, tornou-se sua
ajudante, nos rituais religiosos e, segundo relatos, era vista pelos mem-
bros como a encarnação de Santa Catarina. Anastácio Desidério Fiuza
(Tácio) também assumiu um papel relevante, inclusive de substituição de
Deca quando ele não estava presente. Idarcina da Costa se constituída
na ajudante de Tácio. As peregrinações, as práticas religiosas e a padro-
nização de comportamento dos membros do Movimento não passaram
despercebidas pelos comerciantes que passavam pela região e pelas auto-
ridades locais.
Por ocasião da Semana Santa de 1938 se espalhou a informação de
que o Monge João Maria estaria presente, de corpo e alma, na igreja de
Santa Catarina em Bela Vista. Já na quinta-feira santa (14 de abril de
1938) havia uma grande movimentação nas estradas de acesso e con-
centração de pessoas na Igreja Santa Catarina. Relatos colhidos em en-
trevistas8 com pessoas que estavam no local demonstram dois elementos

8  As entrevistas foram feitas em 1999 ao João Maria de Jesus, adepto a movimento, que disse
que foi ao local com a esposa doente e a filha pequena e ao Alfredo Lemes, contrário ao movi-
mento e um dos responsáveis por ir até sobradinho para chamar a polícia.

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 281
centrais. O primeiro deles, era a desconfiança da população sobre as con-
sequências da reunião dos Monges Barbudos, a preocupação de quanto
tempo eles iriam ficar no local, como iriam alimentar-se, se não iriam sa-
quear as propriedades para buscar comida, etc. Este temor teria instigado
a comunicarem a polícia de Sobradinho que ainda na noite da quinta-fei-
ra chegou ao local onde o público estava reunido. A segunda questão é a
desproporcionalidade da força e a violência empregada para dispersar a
população. Os mesmos dois informantes (KUJAWA, 2001), embora com
posições divergentes sobre o movimento, relatam que a polícia chegou
atirando e atingiu, entre outras pessoas Tácio Fiusa, um dos líderes do
movimento que foi socorrido mas faleceu na mesma noite.
Após a dispersão na Igreja Santa Catarina, dois outros episódios me-
recem destaque. O primeiro deles, é o velório do Tácio Fiusa e o segun-
do, o processo de perseguição dos seguidores do movimento e do Déca
França que estava refugiado. Em reação ao primeiro, o corpo de Tácio
foi levado na sexta-feira para uma localidade chamada de Rincão dos
Barnabés para o velório, provocando uma nova aglomeração e uma nova
ação polícia (no domingo de Páscoa (17 de abril de 1938) que prendeu
104 pessoas9 e obrigou as demais a se dispersarem do local. Em relação
ao segundo, Deca França não estava entre os presos, por isso, um grupo
de policiais de Santa Maria permaneceu na região revistando todas as
casas e propriedades da região, obrigando a todos cortarem a barba e
negarem a crença e João Maria. Novamente chama atenção dos relatos
de violência, mesmo quem não era adepto ao movimento relatou cenas
de policiais arrancando a barba de que se negasse a obedecê-los. Após
um longo período de perseguição e vigilância (três meses) o grupo de
policiais retornou para Santa Maria, sem ter encontrado o paradeiro de
Deca. Permaneceram dois policiais na região para continuar procurando
o líder, fato que ocorreu no dia 16 de agosto de 1938, quando policiais10

9  KOOP (2014, p.260) nomina 98 nomes de presos.


10  Os policiais eram o cabo Antônio Porto e praça Lucas Campos Galvão, pertencentes ao 3°
Regimento de Cavalaria de Passo Fundo que ficaram em Tunas para o reforço policial com fina-
lidade de reprimir os “fanáticos” após o retorno dos Militares de Santa Maria.

282 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


juntamente com civis armados11 chegaram na casa de Alípio Crespim
mataram a tiros Deca França juntamente com Antônio Mariano dos San-
tos12.
Do ponto de vista policial a morte de Deca representa o fim do movi-
mento, contudo, do ponto de vista social o movimento permanece até os
dias atuais. Na crença das pessoas representadas pelas orações de Monge
João Maria, nas narrativas de pessoas que presenciaram ou participaram
do movimento. A igreja Santa Catarina é símbolo que permanece. A es-
cola retrata o movimento de diferentes formas, inclusive através de tea-
tro. Enfim, como a historiografia demonstra em diversas circunstâncias
a ação policial, mesmo que violenta e a desmoralização dos líderes nem
sempre tem a capacidade de por fim a movimentos sociais. (KUJAWA,
2001).

O papel das lideranças


Este texto faz parte do projeto de pesquisa que aborda o tema de
“Movimentos Sociais no Sul do Brasil: bandidos milenários e mediado-
res”, buscando refletir o papel das lideranças e também a forma como
eles foram vistos pela sociedade da época e também pela historiografia.
Portanto, neste tópico vamos descrever um pouco as características das
quatro principais lideranças do Movimento dos Monges Barbudos13- An-

11  Benedito Paulo do Nascimento, João Elberto de Oliveira, Pedro Guilherme Simon, seu filho
José Henrique Simon, Aparício Miranda. Todos agricultores e moradores da Região de Tunas (6º
Distrito de Soledade).
12  Informações detalhadas podem ser encontradas no processo-crime que tramitou no judiciá-
rio para julgamento dos militares e civis que executara Deca e Antônio Mariano dos Santos. Ver:
RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Processo Crime Sumário contra cabo Antonio Porto,
praça Lucas Campos Galvão, civis Pedro Simon, José Henrique Simon, Benedito Paulo do Nas-
cimento, Aparicio Miranda e João Elberto Oliveira. V. 1 e 2. Escrivania do Juri de Sobradinho.
1938-1942. (APERS)
13  Salienta-se que estas lideranças foram escolhidas pelo protagonismo e, principalmente, pela
visibilidade que obtiveram no desenrolar dos fatos e posteriormente nos registros históricos e
historiográficos. No entanto, como demonstra o estudo realizado por Copp(2014) o movimento
teve outras lideranças, pessoas presas e que de uma forma ou outra cumpriam um papel na rede

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 283
dré Fereira França (Deca); Anatácio Desidério França (Tácio); Andreza
Gonçálves e Idarcina da Costa- e, posteriormente, levantaremos alguns
elementos de análise sobre os papéis cumpridos por eles no movimento e
a forma com que a sociedade e a historiografia os trataram.
As lideranças são tratadas aqui na perspectiva de agentes socias que
estão envolvidos em um contexto social e histórico, muitas vezes, permea-
dos por contradições, mas com ações intencionais que envolvem disputas
de poder e estabelecem redes de relações e legitimações. Na maioria das
vezes, contrapondo ao status quo e buscando legitimar elementos cultu-
rais, sociais e econômicos que, mesmo não explícitos, estão presentes de
forma organizativa e discursiva.
Deca França é considerado a primeira liderança a ter contato com
a doutrina do Santo Monge, fato ocorreu quando em 1935 um andarilho
teria chegado a sua casa e pedido pouso. Como relara João Maria da
Silva14, não se tratava de um cidadão comum, mas sim, do Santo Monge
que teve a preocupação de passar os ensinamentos para o Deca e sua fa-
mília, solicitando que o mesmo fosse porta-voz dos seus ensinamentos e,
também, pudesse ajudar na saúde das pessoas com chás e rezas.
A identidade física da pessoa que teria pousado na casa de Deca,
não foi elucidada pelas pesquisas feitas até o presente momento, sabe-se
que no período em tela era muito comum que comerciantes, andarilhos
e, até mesmo, pessoas que iam visitar parentes, que percorriam grandes
distâncias a cavalo ou a pé recorriam a pouso nos trajetos intermediários.
Portanto, o ato da família de Deca ter concedido pouso para uma pessoa
que não era conhecida, entendida no contexto histórico era comum.
Cabe destacar que inspiração do movimento não foi a identidade fí-
sica, mas sim a identificação dos participantes com a doutrina repassada
para o Deca. A defesa da não violência, a necessidade de atitudes paci-
ficadoras, a valorização das práticas tradicionais de agricultura, o não

de relações sociais, poder e imaginário cultivados pelo movimento.


14  João Maria da Silva, foi um seguidor do movimento, relata que estava presente na quinta feira
santa quando os policiais chegaram na igreja de Santa Catarina. Foi entrevistado em janeiro de
1999 (KUJAWA, 2001).

284 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


plantio do fumo, a utilização de ervas medicinais e a preservação das
águas são respostas ao contexto vivido pelos adeptos do Movimento, em
grande medida de resistência a descaracterização da cultura de subsis-
tência de coleta da erva mate, de pequenas plantações e criações. As mu-
danças trazidas pelo aumento da ocupação da região por descendentes
de imigrantes europeus e novas culturas (fumo), a valorização das terras,
decorrentes deste processo, representavam uma ameaça a forma de vida
dos caboclos.
Até mesmo as práticas religiosas, de rezar nas casas, fazer novenas
pode ser entendida como uma prática comum aos grupos sociais que vi-
viam em regiões mais distantes dos centros urbanos, com pouca assistên-
cia da igreja católica e dos Padres. A região era assistida pela paróquia
de Soledade coordenada pelos Freis Capuchinhos, que visitavam as co-
munidades do interior uma ou duas vezes por ano. Nos intervalos das
visitas dos padres, as práticas religiosas eram coordenadas por lideranças,
rezadores, puxadores de novenas que, não raras vezes, mesclavam práti-
cas do catolicismo oficial com elementos culturais, com o cotidiano e até
a necessidade de dar respostas às questões de doenças, uma vez que, os
recursos médico-hospitalares eram de difícil acesso.
Soma-se a isso o fato que com a intensificação da instalação de des-
cendentes de imigrantes europeus na região, reforça uma hierarquia so-
cial que coloca os caboclos e suas práticas num grau inferior, ultrapassa-
do, sem credibilidade. Neste sentido, mesmo que a “doutrina do monge”
não trouxesse grandes alterações das práticas já vivenciadas, acabava por
dar autoridade e legitimidade. Em outras palavras, como Deca, um ca-
boclo analfabeto, poderia merecer credibilidade, ser escutado e seguido?
Como porta-voz do Monge, Deca supera esta barreira, principalmente
entre o seu grupo social.
Portanto, o papel cumprido por Deca pode ser entendido como uma
síntese que mesclava conhecimento e religiosidade popular, necessidades
sociais e necessidade de legitimação de uma cultura que estava sendo
colocada em xeque com o aumento dos imigrantes europeus.

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 285
A segunda liderança de maior destaque foi Anastácio Desidério Fiu-
za (Tácio), casado com Ana Gonçalves Vieira, tinha aproximadamente
30 anos quando foi morto na Igreja Santa Catarina. Cultivava as terras
do seu pai até 1929, quando conseguiu, junto com o seu irmão comprar
10 ha de terra em sociedade com o seu irmão Aristeu. A propriedade era
encostada com a de seu pai na costa do Rio Despraiado. Tácio vivia da
criação de porcos, plantio de milho e fumo. Além disso, desenvolvia ativi-
dades de comércio, tropeando porcos15 até Lageado, com animais criados
em sua propriedade e dos vizinhos que entregavam-vos sob custódia para
que Tácio comercializasse e trouxesse o valor ganho com a venda. Pos-
teriormente, também passou a comercializar pedras ametistas adquiridas
na região e levadas a Lageado para beneficiar.
Era considerado uma pessoa de extrema confiança nos negócios.
Contudo, nos momentos de diversão, gostava de rinha de galo, carreira
de cavalos e tinha a prática de arrumar confusão em festas. Corriqueira-
mente ia, como intruso, em festas (bailes) de família com o intuito de pro-
mover alguma forma de desavença. Apontado por adeptos e contrários
do Movimento como um homem inoportuno.
Contudo, a sua mulher (Ana) ficou doente, nem mesmo a ida ao
médico resolveu os problemas de saúde. Foi aconselhado, pelo seu sogro
a levá-la até Deca para ver se melhorava. Mesmo descrente, pois não era
um homem religioso, não vendo outra alternativa, foi com a Ana até a
residência Deca, ficando, na casa dele, com a mulher, nos nove dias de
cura. Foi neste tempo de cura que a Ana conheceu as práticas religiosas
e, principalmente as plantas utilizadas para cada “mal”, da mesma forma
Tácio deixou de ser um homem descrente, mudou completamente sua
atitude de festeiro e arruaceiro e tornou-se um grande pregador da dou-
trina dos Barbudos. Tudo indica que após este período Deca, Ana e Tácio
constituíram uma grande identidade.
Tácio não desenvolvia o mesmo papel de curandeiro de Deca, não

15  Condução de porcos a pé ou a cavalo até o frigorífico de Lageado. Consta que a vara (coletivo
de porcos) muitas vezes ultrapassava 100 animais.

286 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


fazia benzimento e nem receitava chás, a sua tarefa era de pregador. Vi-
sitava os vizinhos, ia nas casas rezar, fazer novenas, nos velórios enco-
mendava as almas, fazia batizados, divulgava a doutrina do Monge. Es-
tabelece-se uma distinção de papéis entre os dois, Deca era quem tinha
recebido os ensinamentos e os poderes do Monge, por isso, tinha o poder
de fazer curas, enquanto Tácio, até por ser comerciante e ter maior habi-
lidade de conversa e relacionamento, divulgava o poder de Deca, a reza
e os ensinamentos da doutrina do Monge. É bem provável, que esta dis-
tinção não tenha sido definida racionalmente, contudo, era bem comum
nas relações familiares e de compadrio o estabelecimento e o respeito de
papéis distintos.
É o papel de pregador que nos ajuda a entender o fato de ter sido Tá-
cio quem mobilizou a população para ir até a Igreja Santa Catarina, onde
foi morto na Semana Santa de 1938. Ele visitou várias famílias convocou
para que fossem até a Igreja e conduziu a procissão e as rezas na igreja e,
também, fez o enfrentamento (verbal e simbólico) com a brigada, o que
resultou num tiro que o levou a morte.
Nesta perspectiva, Tácio teve um papel preponderante na constitui-
ção do movimento social dos Monges Barbudos, era uma pessoa bem
conhecida no local tanto pela prática comercial, quando por seu compor-
tamento em festa, após a conversão usou estes atributos para mobilizar e
aglutinar pessoas em torno da doutrina do Monge. Por outro lado, a sua
vida pretérita contribuía para os opositores aumentarem o descrédito e
até ridicularizar o movimento, pois como podia um homem que outrora
tinha fama de festeiro e encrenqueiro tornar-se, tão rapidamente um pre-
gador.
O Movimento dos Monges barbudos também contou com a pre-
sença de lideranças femininas: Andreza Gonçálves e Idalcina da Costa.
Como destaca Copp (2014), as famílias Costas e Gonçálves tiveram papel
importante no movimento dos Monges Barbudos. Famílias com descen-
dência numerosa e com grandes relações de compadrio e casamentos en-
tre si. Um dos patriarcas foi Pedrinho Barnabé, que deu origem ao nome

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 287
de Rincão dos Barnabés, onde foi o velório de Tácio Fiuza, ocasião que
aglutinou um número significativo de seguidores em que formam presas
104 pessoas, dentre eles estavam vários com os sobrenomes Costa e Gon-
çálves.
Andreza era sobrinha de Deca e desempenhava o papel de ajudante
nas tarefas de benzimentos, de realização de chás e de rezas. Verdi (1987)
menciona que era considerada por alguns membros do Movimento a
representante, ou até a encarnação de Santa Catarina. A historiografia
e a documentação têm pouca menção à personagem da Andreza, limi-
tando-a a um papel secundário entre os organizadores do movimento.
Contudo, como demonstram algumas entrevistas (KUJAWA, 2001), os
opositores ao movimento utilizavam a figura dela como desqualificada,
inclusive mencionando que pela sua juventude e beleza era utilizada para
a prática de sexo, sendo um dos grandes motivos de atração de tanta gen-
te nos locais onde ela se encontrava, inclusive na igreja Santa Catarina.
Idarcina da Costa era sobrinha de Tácio Fiuza e também costumava
acompanhá-lo nas visitas às famílias, principalmente nas rezas de terço
e novenas. A historiografia e em Kopp (2014) que faz um minucioso le-
vantamento documentas das pessoas presas por serem adeptos ao movi-
mento, não menciona a prisão ou a perseguição ostensiva a estas duas
mulheres o que pode demonstrar que do ponto de vista policial elas não
simbolizavam os supostos perigos oferecidos pelo Movimento.
O pouco registro documental, da imprensa, da historiografia e im-
portância atribuído pelas forças do Estado e seus tentáculos civis na re-
gião não significa que as lideranças femininas não desempenharam pa-
péis relevantes na estruturação e cotidiano do movimento. Sabe-se que
as práticas de reza, de cozinhar, de fazer os chás e remédios estão dire-
tamente relacionadas ao papel feminino, possivelmente não foi diferente
no contexto dos Monges Barbudos. Vários elementos nos demonstram a
presença feminina, por exemplo, a responsável pela conversão de Tácio
foi a sua esposa que ficou doente e deve ter cumprido com papel decisivo
no convencimento para que Tácio ficasse junto na casa de Deca, não te-

288 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ria sido diferente na influência para que ele se tornasse um pregador do
Movimento. Da mesma forma, Andreza é mencionada como ajudante
de Deca na confecção dos chás e benzimentos, pensando na demanda
que tinha o líder, possivelmente Andreza não era apenas a ajudante, mas
a responsável pelos remédios e acolhimento das pessoas que vinha até a
casa de Deca. A necessidade dos opositores associá-las a “libertinagem”,
ao sexo e a prostituição também é um indício, de um lado, da importân-
cia destas lideranças no imaginário do Movimento, por outro, da prática
de invisibilidade e desqualificação das mulheres, relegando-as a papéis
coadjuvantes.

Considerações finais
Instituições oficiais vinculadas ao Estado, o imaginário social predo-
minante e a historiografia tradicional, tem tratado os movimentos sociais
- vinculados a cultura, a religiosidade, a disputa pela terra - como movi-
mentos fanáticos, milenaristas e até liderados por bandidos, no tocante ao
Movimento dos Monges Barbudos não é diferente.
A origem e justificativa do movimento está vinculado a ressignifica-
ção do Monge João Maria, para constituir a doutrina dos Monges Barbu-
dos contendo elementos das crenças, cultura e necessidades do grupo so-
cial de caboclos. Contudo, as disputas políticas, a postura autoritária do
Estado, os interesses econômicos e a constituição de uma visão racista e
hierárquica e dualista constroem uma justificativa para a perseguição dos
líderes, dos participantes, eliminação das práticas seja de forma violenta
ou de desqualificação dos seus seguidores.
É neste sentido, que entendemos a eclosão do Movimento dos Mon-
ges Barbudos e a justificativa para o ataque a igreja Santa Catarina, a
invasão e prisões de mais de uma centena de pessoas no velório do Tácio
Fiusa, a perseguição e assassinato de Deca França, a perseguição e tor-
tura (obrigando tirar a barba, arrancando baba e bigode com alicate) dos
moradores da região.

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 289
Do ponto de vista das lideranças a entendemos no seu papel indivi-
dual e na representação coletiva dos membros dos movimentos. O papel
de Deca França, como o escolhido pelo Monge para obter o poder da
cura e a responsabilidade de propagar a doutrina, não é um ato essen-
cialmente individual, pois a identidade do monge, representada por ele,
não é física, mas sim, uma incorporação das necessidades, angústias e
religiosidade do grupo. O mesmo ocorre com o Tácio Fiuza. Contudo,
cabe destacar as características individuais que se somam às necessidades
coletivas, construindo uma identidade e capacidade de constituição e mo-
bilização do movimento. O papel de cura de Deca, de pregador de Tácio
e de ajudantes de Andreza e Idarcina demonstram isso.
O destaque a alguns personagens e lideranças do movimento não
o torna, no caso dos Monges Barbudos, personificado. Como bem de-
monstrado por Kopp (2014) havia uma complexa relação de famílias,
casamentos e compadrio que difundia e sustentava o movimento.
Por fim, a atribuição de funções coadjuvante as lideranças femininas,
possivelmente não representam efetivamente o papel por elas cumpridos.
Andreza e Idarcina apontadas como auxiliares de Deca e de Fuiza, possi-
velmente tenham cumprido com o papel de fazer os remédios, acolher as
pessoas, representar o sagrado nas orações e novenas. Da mesma forma
Mulher de Tácio, apresentada como a doente que foi curada por Deca,
possivelmente é a responsável pela sua conversão e transformação do ma-
rido num pregador. A complexidade de resgatar historicamente o papel
de liderança destas mulheres reside no fato de que as forças do Estado
não as reconheciam como ameaças, nem tão pouco a memória oral dos
participantes do movimento reconhecem o efetivo papel cumprido por
elas. Soma-se a isso que o discurso dos opositores, ao tratá-las como pros-
titutas criou um estigma desvirtuando a memória das mesmas.

290 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


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KOPP, Maria da Glória Lopes A chave do céu e a porta do inferno: os monges
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São Paulo: Companhia das Letras,1998.

KUJAWA,, Henrique. Monges Barbudos: a construção individual e coletiva do movimento


KUJAWA 291
292 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Parte III
Bandidos
Santa Cruz:
um bandido nada social na história do Oeste do Paraná

Antonio Marcos Myskiw

B andido. No dicionário Aurélio, a expressão bandido é definida


como “pessoa que pratica crimes”.1 “Bandoleiro”, “facínora”,
“jagunço”, “capanga”, “malfeitor” e “pistoleiro” são outros ter-
mos utilizados para se reportar à figura e/ou ao modus operandi do bandi-
do, sobretudo em áreas rurais. Eric Hobsbawm ao escrever as obras Re-
beldes Primitivos2 e Bandidos3 (a primeira, um ensaio para a segunda obra)
cunhou o conceito de “Bandido Social” para apresentar e defender a tese
de que alguns bandidos e suas práticas cotidianas acabaram por consti-
tuir e fortalecer um conjunto de práticas de “rebeldia camponesa” como
tática/estratégia de enfrentamento às injustiças e violências praticadas
pelos senhores de terras ou seus subordinados contra a população campo-
nesa. A historiografia revisionista e culturalista existente em torno destas
duas obras de Hobsbawm é significativa e, em linhas gerais, evidenciam
as virtudes e limitações interpretativas marxistas em torno dos termos

1  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. “Bandido”. In: Aurélio Junior. Dicionário escolar da
língua portuguesa. 2 ed. Curitiba: Positivo, 2011. p. 130.
2  HOBSBAWM, Eric. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
3  HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
“Bandido”, “Bandido Social” e “Rebeldes Primitivos”. Dentre as limi-
tações está a ausência do tratamento adequado das diferentes tipologias
documentais utilizadas para dar visibilidade aos bandidos e rebeldes; e o
pouco conhecimento da história da América Latina ao se abordar perso-
nagens que, em alguns casos, não viviam e atuavam em áreas rurais (ou
camponesas) mas em áreas de fronteira ou em frentes de exploração e
ocupação territorial em fase inicial.4
Na fronteira Brasil/Argentina/Paraguai (objeto de nossa atenção
neste texto), nas décadas iniciais do século XX, o conflito, a tensão e a
morte levada a cabo pelos bandidos ao longo dos anos parecem ter cul-
minado no desenvolvimento de uma espécie de “cultura da violência”
(valentia, honra, virilidade, vingança) como forma de aceitação social,
respeito e pertencimento a um determinado grupo e status social, sobretu-
do pelos bandidos, jagunços e capangas. A ausência quase total do Esta-
do na fronteira fortaleceu o poder privado e as práticas do mandonismo

4  Dentre as principais obras estão: BLOK, Anton. Peasant and the Brigand: social banditry reconsid-
ered. Comparative Studies in Society and history. Vol. 14, no 4 (sep, 1972), pp. 494-503; HÜNEFELDT,
Christine. “Cimarrones, bandoleros e milicianos: 1821”. Historica, vol III, no 2 (dez). 1979;
RUDÉ, George. A Multidão na História. Estudo dos movimentos populares na França e na Ingla-
terra 1730-1848. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991; SANDOVAL, Armando Moreno. “El
Bandolerismo social revisitado”. El caso de Tolima (Colombia). Historielo. Vol. 4, no 7 (Jan – Jul),
2012, p. 290; SCOTT, James C. “Formas Cotidianas da resistência Camponesas”. Raízes, Campi-
na Grande, vol. 21, n. 1, p. 10-31, jan./jun. 2002; SLATTA, Richard W. Bandidos. The varieties
of latin american banditry. Connecticut: Greenwood Press, 1987; VANDERWWOD, Paul. El
bandidage em el siglo XIX: uma forma de subsistir. In: História Mexicana. Vol. 34, no 1 (Jul. - Sep.,
1984). Entre os pesquisadores brasileiros, destacam-se: AMANTINO, Marcia. O Mundo das
Feras: Os moradores do sertão oeste de Minas Gerais – Século XVIII. São Paulo: Annablume,
2008; CARVALHO, Jose Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão
conceitual”. Dados, vol. 40, no 02, Rio de Janeiro, 2007; FERRERAS, Norberto O. “Bandoleiros,
cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo Social na Amárica Latina”.
História, São Paulo, 22 (2): 211-226, 2013; FLORES, Mariana Flores da cunha Thompson. Cri-
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EDIPUCRS; ANPUH-RS, 2014; GUIMARÃES, Alberto Passos. As Classes Perigosas. Banditis-
mo urbano e rural. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008; MEDRADO, Joana. Terra de vaqueiros.
Relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880-1900. Campinas - SP: Editora da
UNICAMP, 2012; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e Ban-
ditismo no Nordeste do Brasil. Massangá: Recife, A Girafa: São Paulo, 2004; RIBEIRO, José
Iran. “O mato como local de insegurança”. In: História Unisinos. No10. Vol. 02. Maio e Agosto
de 2006; SILVA, Célia Nonata da. Territórios de Mando. Banditismo em Minas Gerais, século
XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

296 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


(a força do mais forte, mediante o uso intenso de bandidos e jagunços)
dos ervateiros argentinos visando defender a ordem, a submissão dos tra-
balhadores mensus, os bens materiais e simbólicos em seus territórios. As
formas de exploração dos recursos naturais (florestas, madeiras e mine-
rais) e mesmo o povoamento estavam, em certa medida, vinculados aos
mandos e desmandos dos ervateiros argentinos que, por sua vez, mol-
daram costumes e códigos de condutas próprios atrelados às práticas da
violência física, moral e psicológica no cotidiano daqueles que habitavam
e trabalhavam (ainda que temporariamente) na região de fronteira. Assim
como os ervateiros argentinos, os bandidos construíram seus espaços de
dominação. Eis o caso do bandido Santa Cruz que, em reconhecimento
às barbáries cometidas contra os trabalhadores mensus, foi elevado ao pos-
to de administrador dos ervais pelo empresário ervateiro argentino Júlio
Tomás Allica, em terras brasileiras.
Relatos de viajantes, memórias de militares e de sertanistas, soma-
dos a relatórios governamentais e matérias de jornais publicados no Bra-
sil, compõe o conjunto de documentos utilizados para contextualizar e
elaborar uma compreensão sobre a região de fronteira Brasil/Argentina/
Paraguai. Trata-se de uma análise qualitativa sem desconsiderar que, para
cada tipologia documental, existe uma ou mais formas de abordagem
teórica, conceitual e metodológica. Escritos ao sabor dos acontecimentos
(vividos e observados) ou produzidos anos após as viagens, tais docu-
mentos são fragmentos de um passado no formato de testemunho e ma-
terializam um olhar (ou representação) sobre a figura dos bandidos e dos
ervateiros argentinos em terras brasileiras; que este olhar deve ser objeto
de questionamento pelos historiadores, pois os viajantes, memorialistas,
militares e jornalistas (intencionalmente ou não) pode ter ocultado ou mi-
nimizado a existência de outros acontecimentos que levariam a releituras
de fatos e acontecimentos. O paradigma indiciário de Carlo Ginzburg5
será utilizado como aporte teórico para desvelar, por meio das narrativas,

5  GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
das letras, 1989.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 297
os meandros da vida cotidiana na fronteira tendo como cenário de fundo
as violências, as formas de escravidão (dívida e sexual) e a morte de pes-
soas, antes, durante e após as temporadas de safras de erva mate.

Terra e erva-mate, mandonismo e banditismo na fronteira

Depois de longos dias de marcha por um caminho escabro-


so, eis-nos enfim numa estrada larga em que a crissiuma não
ousa tolher-nos o passo, nem os tacuaraes mais se dobram
em arcos sobre as nossas cabeças. Caminha-se de cabeça er-
guida, mas a alma curvada ao peso do facto consumado: Os
argentinos são moralmente os senhores daquella zona e os
únicos que della tiram fabulosas vantagens.
Se a estrada é melhorada, se temos plantações e povoados a
admirar, são elles os únicos possuidores.
Foram os argentinos que colonizaram, ainda que adventicia-
mente, o mais rico e fundo sertão do Paraná. Caminhamos
em territorio brazileiro, mas somente ouvimos o dialecto cas-
telhano por toda parte.
(Domingos Nascimento, 25 de maio de 1903).6

Entre abril e junho de 1903, o capitão Domingos Nascimento per-


correu as fronteiras Oeste e Sul do Paraná. Ele integrava uma comitiva
composta pelo general José Bernardino Bormann (chefe da 5ª Região Mi-
litar do Paraná) e o coronel Lino Ramos, que tinham por missão inspe-
cionar as Colônias Militares de Foz do Iguaçu, de Chopim e de Chapecó,
instaladas nas fronteiras do Estado do Paraná a mais de duas décadas.
Quando Domingos Nascimento teceu o relato acima em seu caderno de
notas (que mais tarde seria publicado em formato de livro), a comitiva ha-
via transposto o rio Tormentas, localizado a 2 léguas da povoação de Ca-
tanduvas seguindo o traçado da Picada Geral (também conhecida como

6  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Curitiba: S/Ed., 1903. p. 93.

298 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Estrada Velha de Guarapuava) que ligava a Colônia Militar de Foz do
Iguaçu (situada na margem esquerda do rio Paraná) a Guarapuava. O rio
Tormentas ficava a aproximadamente 150 léguas (240 Km) de distância
da Colônia Militar de Foz do Iguaçu, em cujo trecho da picada iniciavam
as florestas de erva-mate exploradas pelo ervateiro argentino Domingos
Barthe.
Junto ao rio Tormentas, Domingos Barthe ordenou a instalação de
um acampamento para abrigar e dar apoio aos mensus (como eram deno-
minadas as pessoas que trabalhavam na extração de erva-mate) argenti-
nos, paraguaios e brasileiros. O rio e o acampamento, aponta Domingos
Nascimento, sinalizavam os limites a leste das terras do ervateiro argen-
tino, em solo brasileiro:

São as terras de Barthe. Parece que estamos em territorio es-


trangeiro! [...] Depois de uma viagem dificillima de vencer,
vendo tropeiros de cutis negra e indianos, alguns bisonhos,
outros maltrapilhos, deparamos sobre o Tormentas com uma
raça bonita e intelligente, trajando roupas decentes, gorro
vermelho à cabeça, faixa vermelha cintando os quadris, um
longo chiripá bordado descendo até os pés, resguardando as
pantalonas dos espinhos e da lama. Trabalham nos hervaes
de Barthe, Entre-rianos e correntinos.7

As características das pessoas acima apresentadas, atrelada às rou-


pas e à conversação em língua espanhola eram outros indícios de que a
presença argentina era efetiva em terras brasileiras na região de fronteira.
A afirmação de Domingos Nascimento de que as terras eram do ervatei-
ro argentino Barthe procede. Em 1901, o empresário argentino constituiu
sociedade com o brasileiro Manoel José da Costa com a finalidade de
adquirir (de forma legal junto ao Governo do Paraná) 35 mil hectares
de terras entre os rios Tormenta e Paz para explorar os extensos ervais
nativos ali existentes seguido de exportação para a Argentina. Em 1892

7  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Curitiba: S/Ed., 1903. p. 93-94.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 299
Barthe comprou as ações de seu sócio brasileiro tornando-se único pro-
prietário das terras e florestas, demarcadas em 19048 e tituladas a Barthe
em 1905 pelo Governo do Paraná.9
Alberto Daniel Alcaraz aponta que Domingos Barthe tornou-se um
empresário de grande vulto político e econômico na Província de Misio-
nes ao investir seus recursos financeiros na expansão da atividade erva-
teira e madeireira no norte da Província de Misiones, no Paraguay e no
Brasil, complementando-se estrategicamente com uma frota de embarca-
ções (barco-vapores) para navegação ao longo da bacia do rio Paraná (ou
Alto Paraná) dedicada ao transporte de pessoas, mercadorias e da produ-
ção ervateira e madeireira nos portos existentes no rio Paraná e em seus
afluentes.10 A iniciativa do ervateiro Domingos Barthe em adquirir terras
visando a exploração de ervais nativos em território brasileiro acabou por
incentivar outros ervateiros e madeireiros argentinos a comprar terras ou

8  Arthur Martins Franco foi o engenheiro que realizou a demarcação das terras adquiridas por
Domingos Barthe (bem como de outros ervateiros argentinos). Os relatos desta empreitada, em
1904, estão no livro Recordações de viagens ao Alto Paraná, de Arthur Martins Franco, publicado em
1973.
9  A possibilidade de estrangeiros ocupar, obter concessão para exploração ou comprar
terras em área de fronteira internacional era vedada pela Lei de Terras de 1850, exceto se
o estrangeiro se inscrevesse como “colono” em algum projeto de colonização destinado a
acolher migrantes (nacionais ou estrangeiros) em áreas de fronteira. Foi a Constituição Bra-
sileira de 1891 que deu nova compreensão sobre as terras devolutas em faixa de fronteira.
No Artigo 64º, da referida Constituição, consta que as terras devolutas em faixa de fronteira
passariam a ser responsabilidade dos Estados “cabendo à União somente a porção do ter-
ritório necessária à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de
ferro federais”. Pouco tempo depois, visando adequar-se à nova Constituição, o Governo
do Paraná aprovou o Decreto-Lei nº 68, de 20/12/1892, que tratava do acesso à terra, da
regularização fundiária e de orientações sobre a colonização de novas áreas de terras por
empresas nacionais ou estrangeiras. As terras devolutas situadas dentro dos limites do Es-
tado do Paraná e de propriedade do Governo só podiam ser adquiridas por compra ou pela
transmissão de seu domínio útil sob a forma de aforamento. O Regulamento 1-A, de 1893,
atribuía competência à Secretaria de Estado dos Negócios de Obras Públicas e Colonização
para cuidar (conservar, medir, dividir, demarcar, descrever, distribuir, registrar, vender, reali-
zar cobrança de aforamento e reserva das terras devolutas, legitimar posses, revalidar sesma-
rias e outros tipos de concessões) das terras públicas que pertenciam ao Estado do Paraná.
10  ALCARÁZ, Alberto Daniel. La gestación de una “elite local” durante la explotación yerba-
tera-maderera en el Alto Paraná (1870-1920) - Domingo Barthe: un representante paradigmático.
Posadas: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social - Universidad Nacional de Misiones,
2013.

300 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


obter concessão de áreas de terras para a exploração de erva-mate nativa
e madeira junto ao Governo do Paraná. Entre 1892 e 1916, as empresas
Nuñez y Gibaja, Compañia de Maderas del Alto Paraná, Petry e Meyer
& Azambuja e o empresário Júlio Thomás Allica adquiriram terras ou
obtiveram concessões para a exploração de erva-mate e madeira na fron-
teira Oeste do Paraná.11 Neste período, o Estado do Paraná vendeu e
titulou 624 mil hectares de terras a empresários ou empresas cuja sede
estava em território argentino.
Domingos Nascimento, em suas memórias de viagem, relatou a for-
ma de contrato realizado entre os ervateiros argentinos e os trabalhado-
res, bem como as condições de trabalho nos ervais:

O trabalhador, herveiro ou plantador, vae ao gerente e contrac-


ta-se para trabalhar.
A casa paga de 10 a 36 pesos, papel argentino, e tem deposito de
fornecimento à beira do caminho. Mas o trabalhador precisa de
mantimentos, roupas e utensílios. A casa fornece o que o con-
tractante exigir: quanto maior o fornecimento melhor. O traba-
lhador sae para o sertão devendo ao fornecedor por um anno e
mais de serviço.
Os preços das mercadorias são fabulosos, de maneira que aquel-
le infeliz quando vai acertar as suas contas já está devendo o do-
bro. Se ousa fugir é agarrado e castigado, tal como aquella cele-
bre escravidão branca das usinas de Mato Grosso. […]
Ouvi contar alguns actos de verdadeira selvageria por aquellas
paragens.
Os próprios trabalhadores, quasi unanimes, me informaram que
esse abastado proprietario [Domingos Barthe] é um homem de
maneiras distinctissimas e tem bom coração; mas lá vive em Po-
sadas, dentro das suas grandezas, rico e descançado, e por isso
de nada sabe do que vae pelos seus hervaes entregues às mãos
de agentes pouco escrupulosos e de pouca alma humanitaria.12

11  YOKOO, Edson Noriyuki. “Gênese do processo da apropriação das terras, o caso das com-
panhias ferroviárias e dos ervateiros no Oeste Paranaense”. In: Anais do VI EPCT. 2011. p. 8.
12  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Curitiba: S/Ed., 1903. p. 94-95.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 301
O pagamento pela temporada de trabalho dos mensus era adiantado,
cuja denominação de época era “antecipo”. Estrategicamente, tal remu-
neração não incluía a alimentação e outras despesas de cunho pessoal
dos mensus, que deveriam ser adquiridos em um armazém de propriedade
da empresa ervateira ou madeireira, podendo ser debitado do saldo a re-
ceber no decorrer da empreitada. Devido ao preço das mercadorias, o en-
dividamento dos mensus tornou-se comum, acarretando uma espécie de
escravidão/servidão por dívida e a prática de violências contra os mensus
pelo não pagamento, ações de resistência e fuga das frentes de trabalho.
Segundo Alberto Daniel Alcaraz, Domingos Barthe e outros empre-
sários ervateiros aproveitaram-se da população pobre e marginal existen-
te ao longo da bacia do rio Paraná em território argentino, paraguaio e
brasileiro utilizando-a como mão de obra. Com o passar dos anos, for-
mou-se uma rede de pessoas que atuavam como agenciadores e contra-
tantes a serviço das obrages recrutando mensus mediante o “‘conchavo’
que generalmente realizaba bajo condiciones fraudulentas em perjuicio
de los trabajadores y em connivencia com algunas autoridades locales
como jueces y jefes de policia entre outros que atuaban como contatos em
el poder local o ayudaban a encubrir la situación”.13 Na medida em que a
população pobre e marginal passou a resistir ao trabalho nas obrages sob
condições sub-humanas análogas à escravidão/servidão na extração de
erva mate e madeira dentro ou fora do território argentino, o uso do po-
der de autoridades locais em Posadas, Corrientes e em outras comunida-
des e povoações junto aos mensus passou a ser prática corriqueira visando
forçar, persuadir e obrigar as pessoas a assinarem contratos de trabalho
junto às obrages sob pena de sofrerem algum tipo de repreensão pública
ou de terem seus supostos direitos subtraídos em função de não concor-
dar a se submeter aos anseios da elite local atrelada à elite empresarial.

13  ALCARAZ, Alberto Daniel. “Domingos Barthe, un representante paradigmático en la ex-


plotación yerbatera-maderera em Misiones”. In: Anais da Jornadas de Investigadores 2015. Po-
sadas, Universidad Nacional de Misiones. p. 6. http://www.fhycs.unam.edu.ar/jinvestigadores/
domingo-barthe-un-representante-paradigmatico-en-la-explotacion-yerbatera-maderera-en-mi-
siones/

302 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Nas narrativas de Domingos Nascimento é possível, ainda que su-
perficialmente, perceber que na frente de expansão econômica, social e
política iniciada pelos ervateiros e madeireiros argentinos na região de
fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil existiram formas distintas de
degradação humana. Como bem aponta José de Souza Martins, é na
fronteira, na frente de expansão e exploração territorial que a degradação
humana torna-se mais visível em função dos encontros e desencontros de
sociedades que vivem no seu limite e, ao mesmo tempo, em formação,
desorganização e reprodução. A degradação do outro era necessária para
viabilizar a existência de quem domina, subjuga e explora.14 Longe de
ser o território do novo e da inovação, na compreensão de José de Souza
Martins, a fronteira se revela

o território da morte e do lugar de renascimento e maquia-


gem dos arcaísmos mais desumanizadores, cujas consequên-
cias não se limitam a seus protagonistas mais imediatos. Elas
se estendem à sociedade inteira, em seus efeitos conserva-
dores e bloqueadores de mudanças sociais em favor da hu-
manização e da libertação do homem de suas carências mais
dramáticas.15

A fronteira é, também, a fronteira do humano cujas “vítimas”16 são


os pobres do campo e da floresta. Domingos Nascimento, em suas narra-
tivas de viagem, apresenta ao leitor algumas destas vítimas, como o preto
Apolinario, ex-praça do exército brasileiro durante a Guerra com o Para-
guai, que residia num galpão no pouso de Catanduvas: “Lá tem elle a sua
plantação de milho e a sua criação de porcos (sancho), em não pequena
escala. É um dos muitos fornecedores de alimentação às tropas que pas-
sam da colônia do Iguassú para a cidade de Guarapuava. É bahiano e

14  MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. 2 ed.
São Paulo: Contexto, 2018.
15  MARTINS, José de Souza. Fronteira…. Op. Cit. p. 13-14.
16  Cf. FREHSE, Fraya. “A Sociologia da vitima como sociologia do espaço”. In: FREHSE,
Fraya (org). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, 2018. pp.
99-121.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 303
fala como uma preta mina”17 contratado pelo ervateiro Domingos Barthe
como plantador de sementes e criador de animais para abastecer os arma-
zéns, que, por sua vez, eram comercializados aos mensus que trabalhavam
nos ervais e aos poucos viajantes que percorriam aquelas picadas rumo à
Colônia Militar de Foz do Iguaçu, ou dela, rumo a Guarapuava.
Após percorrer outro trecho da picada rumo à Colônia Militar de
Foz do Iguaçu, conta Domingos Nascimento que junto ao rio Archime-
des residia o paraguaio Rufino:

Acampamos no rancho do paraguayo Rufino. É um excce-


llente homem e fala regularmente o nosso idioma. Fôra praça
de cavallaria em S. Borja, há muitos annos. Vive ali solitário
trabalhando como barbaro para manter certo equilibrio nos
seus negocios com o patrão. Outros companheiros, argenti-
nos, paraguayos e brazileiros ha que vivem para toda a vida
escravizados sem nunca conseguirem a liberdade.18

O “patrão” era Domingos Barthe. Rufino trabalhava “como barba-


ro” na extração de erva-mate e na manutenção das picadas para “mater
certo equilibrio nos seus negócios”. O trabalho intenso e exaustivo era,
para Rufino, uma forma de evitar o endividamento junto ao patrão, que
poderia transformar-se em escravidão/servidão por dívidas, como ocor-
ria com outros mensus argentinos, paraguaios e brasileiros em terras de
Barthe no Oeste do Paraná. A escravidão/servidão por dívidas e o traba-
lho extenuante eram/são formas de degradação humana.
Nas prosas que teve com trabalhadores mensus quando das paradas
para descanso e pernoite nos acampamentos ao longo da picada em ter-
ras de Domingos Barthe, Domingos Nascimento relata que ouviu “al-
guns actos de verdadeira selvageria por aquellas paragens”:

17  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. p. 90-91


18  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. p. 94.

304 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Pouco tempo antes de nossa passagem por esses acampamen-
tos, um moço (não me recordo se brazileiro ou estrangeiro)
ficara adoentado de um pé, invalidado por alguns dias para
o serviço. Foi mandado trabalhar, e desculpou-se mostrando
grande ferida aberta, vermelha como uma flor de cactus: não
podia caminhar, nem manter-se em pé. Foi immediatamente
despachado e mandado sahir do acampamento. O infeliz não
teve outro remedio que seguir quasi de rastro para a colo-
nia, por um caminho todo coberto de lodaçaes, distante 26
léguas. E o mais notável é o seguinte: pedira duas espigas de
milho para a viagem e lhe foram negadas!19

O moço, referenciado por Domingos Nascimento, ao ser “despacha-


do e mandado sahir do acampamento” nos leva a compreender que o
mensus não possuía dívidas nos armazéns, pois em contrário seria impe-
dido de deixar o acampamento. Resta a pergunta: o mensus havia saldo a
receber pelos trabalhos prestados? A selvageria que saltou aos olhos do
militar viajante era a falta de humanidade e cuidado para com o homem
adoentado; a ausência de vontade por parte do capataz em minimizar
a dor do mensus propondo alguma forma de tratamento à enfermidade;
a falta de compaixão pela penúria a ser sofrida pelo mensus ao ter de se
deslocar “quasi de rastro” até a Colônia Militar de Foz do Iguaçu em
busca de cuidados médicos para tratar o ferimento e moradia temporária;
a indiferença para com o doente quando lhe foi negado espigas de milho
para alimentar-se durante a peregrinação pela picada rumo à fronteira,
quer fosse o “moço” argentino, paraguaio ou brasileiro.
A negação do outro, a degradação humana oi narrada por Domin-
gos Nascimento ao percorrer a fronteira Oeste do Paraná, em 1903.
Tempo esse, em que o Governo do Paraná, com auxílio de empresários
brasileiros, argentinos e ingleses abriam novas frentes de exploração das
florestas, da extração de madeiras e o início da colonização das terras
devolutas ou supostamente devolutas rumo a Oeste, como sinalizava José

19  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. p. 95-96.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 305
Francisco da Rocha Pombo na obra O Paraná no Centenário (1500-1900)
publicada em 1900.20 As memórias de viagem de Domingos Nascimento
ao serem publicadas na forma de livro21 por ocasião da celebração do 50º
Aniversário de Emancipação Política do Paraná, ao narrar, fez saber e
denunciou a fragilidade da região de fronteira e as formas de degradação
humana existente naquela porção do território paranaense.
Ainda que favorável à exploração e colonização das terras frontei-
riças mediante o uso de mão de obra de nacionais ou de estrangeiros,
Nascimento criticava a estrutura do Governo Paranaense por não ter
elaborado leis que viessem ao amparo dos trabalhadores que, ao serem
contratados pelos ervateiros argentinos, eram explorados e viviam em
condições subhumanas: “vejo que as nossas leis não amparam os simples
e os incautos que pela sua ignorância ou necessidades se deixam escravi-
zar e soffrer por espíritos unicamente interesseiros, que do seio de nossas
terras retiram o que de melhor possuem para abandoná-las mais tarde,
sem deixar vestígio sequer de um fructo de trabalho civilizador”.22
O militar viajante teceu ponderações ao modelo de exploração, ocu-
pação e colonização posto em prática pelo Governo do Paraná na frontei-
ra, isto é: não estender o projeto de colonização com imigrantes europeus
à região de fronteira e, em seu lugar, atrair empresários e mercadores
de erva-mate e madeira da Bacia Platina para gerar impostos ao Paraná
mediante a extração e exportação de tais produtos mediante o uso de
barco-vapores rio Paraná abaixo para serem beneficiados e processados
no parque industrial existente em Posadas, Corrientes e Buenos Aires.

Porque esses que por ahi destroçam os gigantes de nossas


florestas e desfolham os nossos hervaes, arruinam as nossas
terras, - não colonizam, não fazem melhoramentos effectivos

20  POMBO, José Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário (1500-1900). 2. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1980. A primeira edição é de 1900.
21  Ver MYSKIW, Antonio Marcos. “Pela fronteira, Domingos Nascimento”. In: A fronteira como
destino de viagem: a Colônia Militar de Foz do Iguaçu (1888-1907). Guarapuava: Editora da Unicentro;
Niterói: Eduff, 2011. pp. 50-55.
22  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. P. 96.

306 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


nos caminhos, não abrem vias de communicação capazes de
enfrentar um transporte commodo e seguro, não instruem as
populações, não edificam, não deixam celleiros como recur-
sos a quem se aventure a essa longa travessia.
Cingem-se apenas ao plantio do milho para o custeio de suas
tropas; só os cargueiros de Barthe elevam-se a 150 muares
palmilhando a estrada do Tormentas ao Porto Carimã; man-
dam melhorar as picadas o quanto baste apenas para a pas-
sagem das suas hervas; a lama infecta desses caminhos e mil
vezes peor do que toda a rede de crissiuma e taquarussu dos
sertões ainda não povoados; edificam ranchos pelos hervaes
e terminada a safra os estroem; ainda mais, e isto é digno
de nota especial – quando o negócio não lhes corre de fei-
ção, suspendem os contractos e despacham da noite para o
dia o misero trabalhador, retormando as roças e os casebres,
deixando-os que sigam algumas vezes sem o mínimo recur-
so para a colônia militar – esse azylo de mendigos. […] Haja
leis reciprocas que garantam os proprietarios do engodo de
empregados indignos e vadios, mas que tambem garantam
aos homens honestos a ganância e da deshumanidade dos
senhores feudaes.23

Os militares alocados na Colônia Militar de Foz do Iguaçu não ti-


nham autoridade para atuar fora dos limites da Colônia. Em muitos ca-
sos, os militares ali assentados ajudavam a acobertar as atrocidades co-
metidas contra os mensus pelos capatazes dos ervateiros e madeireiros. A
Colônia Militar, pelo isolamento político, social e geográfico promovido
pelo Governo Brasileiro e Paranaense, era dependente dos barco-vapores
argentinos para o transporte de pessoas e de uma vasta lista de mercado-
rias para abastecer os armazéns da Colônia Militar e os múltiplos desejos
dos militares. Segundo José Augusto Colodel, a corrupção e a conivência
entre militares e o sistema obragero andavam de mãos dadas na fronteira,
em desfavor dos mensus que trabalhavam nas obrages e dos colonos da
Colônia Militar. “Era um mundo governado por leis próprias e restrito a

23  NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. P. 96-97

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 307
mandos e desmandos de quem tinha poder econômico”, assevera o histo-
riador José Augusto Colodel, que continua:

Como a presença de brasileiros era minoria, cabia aos aven-


tureiros paraguaios e argentinos, contando com a conivência
quase forçada das autoridades governamentais brasileiras ali
destacadas, o exercício da sua própria vontade, que confun-
dia-se com a lei. Neste sentido, a aplicação da própria lei pas-
sava a ser vislumbrada através de parâmetros morais ditados
pela prática cotidiana de quem se inseria nesse universo es-
pecífico de trabalho.24

A região de fronteira longe de ser um lugar que suscitasse uma per-


cepção de futuro, esperança, alegria e fartura, quer pelo dinheiro recebido
em função do trabalho a ser executado, quer pela possibilidade da posse
de um quinhão terras, traduzia-se num espaço em que a intolerância, a
desumanidade, a ganância, o conflito e a morte faziam parte do cotidiano
daqueles que ali viviam, ainda que temporariamente, sob os desígnios
dos ervateiros, madeireiros e seus capatazes.
Entre agosto de 1907 e abril de 1908, o jornalista francês Julião Bou-
vier realizou expedições pelos sertões do Paraná, Paraguai e Argentina.
Na condição de correspondente do periódico A Notícia (Curitiba), Julião
Bouvier redigiu dezenas de textos em língua espanhola sobre a região de
fronteira com o Paraguai e Argentina. Com relação às obrages e seu mo-
dus operandi em terras brasileiras, destacam-se as reportagens “¡Sentinela
Alerta!” (Publicados entre 4 e 6 de fevereiro de 1908) e “El Oeste Para-
nense” (publicados entre 16 e 28 de março de 1908). São escritos em ca-
ráter de denúncia direcionado ao Governo do Paraná sobre a exploração
predatória de erva-mate e madeira por Domingos Barthe, além do supos-
to não pagamento de impostos relativos à comercialização e exportação
para a Argentina e os indícios da prática da escravidão branca dos mensus

24  COLODEL, José Augusto. Obrages e Companhias Colonizadoras. Santa Helena: Editora Edu-
cativa, 1988. p. 60.

308 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


paraguaios, argentinos e brasileiros contratados. Tais escritos somam-se
às memórias de viagens de Domingos Nascimento, apresentadas nas pri-
meiras páginas deste texto.
Em “¡Sentinela Alerta!” Julião Bouvier remete suas ponderações e
críticas ao ervateiro Domingos Barthe, mais precisamente às táticas ado-
tadas e a serem colocadas em prática pelo empresário argentino para su-
postamente burlar o pagamento de impostos:

Barthe es el rey de la miseria humana. Sus trabajos todos,


llevan el sello de su tacañeria harpagonesca. Todo es provi-
sorio em sus estabelecimientos, de modo que al acabar de
saccar la última pieza de madera ó la última hoja de yerba,
solo quedan alli una tapera inservible, unas puentes caidas
y una hecatombe de troncos muertos, de árboles desgajadas
y de roças quemadas y estériles. Cuando retira su gente todo
queda sumergindo em un silencio de muerte; y en essas flo-
restas convertidas em laberintos por los pique e picadas por
donde extrajo la yerba, uma soledad aplastadora persigue al
viajero dias y noches consecutivas sin ensenar-le mas vesti-
gios humanos que unas cruces y unos noques desvencijados,
sin mas recinos que los tigres, el ciclo enpequenecido, la no-
che espantosa y larga; […] El misere corazón humano de esse
hombre endurecido por el egoismo vá mas allá, como voy a
probar. 25
[…] Por rabia y por amor próprio ofendido ha preparado uma
celada para mofarse de Administrador de Aduana de Foz do
Iguazú. Hasta hace pouco dejaba al frente de Santa Helena y
em costa paraguaya las mercadorias destinadas a entrar em
el Brazil de contrabanda. El metodo es viejo, gastado e dema-
siado público. Hasta los peones suyos dicen jugando y en el
deveras al mismo tiempo ‘la mesa de rendas de la Colônia se
ha mudado em Limoi”. Limoi es costa paraguaya.
Esa burla a las autoridades brazileiras no es suficiente para
Barthe. El la quiere hacer em escala mayor. Hé qui su plano.

25  BOUVIER, Julião. “¡Sentinela Alerta!”. A Notícia. Edição nº 698, de 04/02/1908. p. 2.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 309
So pretexto de procurar mejores facilidade de conduccion va
hacer reconocer el rio Iguazú desde arriba del Salto de Santa
Maria, en las cercanias del arroyo Ponta Alta ó João Gualber-
to, hasta laconfluencia del arroyo Tormenta ó del Adelaide,
ó del Izolina, segun la conveniencia. La navegación corre alli
entre la costa Brazilera y la costa Argentina, abajo de la con-
fluencia del Santo Antonio. Y hi esta el golpe, el suave golpe
que Barthe vá dar a los yerbales y a la Mesa de Rendas bra-
zilera.26

Ainda que tais denúncias estivessem atreladas a Domingos Barthe,


o não recolhimento de impostos pela entrada ou saída de mercadorias
via Aduana Fiscal instalada próximo à sede da Colônia Militar de Foz
do Iguaçu parece ter sido uma prática cotidiana entre ervateiros e madei-
reiros argentinos e também brasileiros. Conhecer bem as florestas e rios
facultava aos ervateiros explorar outros ervais e, também, de averiguar
a possibilidade de transportar erva-mate utilizando o curso dos rios que
deságuam no rio Iguaçu, seguindo direto aos portos argentinos que pode-
riam vir a ser fundados acima das Cataratas do Iguaçu.
Julião Bouvier também apresenta aos leitores de A Notícia o lado
preconceituoso de Domingos Barthe com relação à forma de tratamento
dada aos mensus paraguaios e brasileiros:

Antes de seguir mas adelante, conviene decir que Barthe


pertence a esse gremio de insultadores cobardes que lla-
man “macacos-cambás” - los brazileros; lo que no le impide
de destrozar vuestros yerbales, de talarlos al troncos como
mandó hacer e Itacorá afuera de su propiedad […] a los Pa-
raguayos tan sencilles y tan nobles em sua desgracia, él los
llama “brutos selvajes” y puede permitirse essa desfachatez
pues a esos “brutos selvajes” debe su fortuna; sus miliones
representan lágrimas, sudores, esclavitudes y sepulturas pa-
raguayas.27

26  BOUVIER, Julião. “¡Sentinela Alerta!”. A Notícia. Edição nº 699, de 05/02/1908. p. 2.


27  BOUVIER, Julião. “¡Sentinela Alerta!”. A Notícia. Edição nº 700, de 06/02/1908. p. 3.

310 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Os “macacos-gambás” brasileiros eram ex-escravos negros, caboclos
e indígenas das etnias guaranis e kaingangs que habitavam as margens
dos rios e as florestas da região da fronteira, muitos deles atraídos pela
possibilidade de conseguir uma área de terras junto à Colônia Militar
de Foz do Iguaçu; os “brutos selvajes” eram os crioulos paraguaios e
indígenas de etnias diversas, segunda geração de filhos nascidos após a
Guerra entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai e que viviam
às margens dos rios como estratégias de sobrevivência. É importante fri-
sar que a riqueza de Domingos Barthe era resultado, em grande medida,
de lágrimas, suor, escravidão e a morte de paraguaios, sobretudo dos er-
vais explorados por Barthe no Paraguai e Argentina antes de centrar suas
ações em território brasileiro.
Em “El Oeste Paranense” Julião Bouvier explora as condições de
sobrevivência sobretudo dos jovens mensus arregimentados para o traba-
lho nos ervais do Oeste do Paraná sem se preocupar em apontar qual das
obrages havia servido como base da narrativa:

Y llegarán vários “fin de zafra” en que no bajará mas. La pros-


tituta, su marchante em vano lo esperará. Su família misma
extrañará su prolongada ausencia. Aquél esclavo ya no per-
tence al mundo de los vivos. La muerte remató su existencia
em algun toldo situado a 20 ó 30 léguas en el interior de las
selvas.
Habrá muerto joven, tumbado por el chucho, la pulmonia, ó
las tísis galopante. Habrá muerto solo, como un chacal en el
desierto, como un buey viejo en un pantano. Habrá muerto
abandonado de todos, lejos de los suyos, lejos de sus com-
pañeros de cadena obligados a ir al trabajo todos los dias au-
nque sob bajo de lluvia. Habrá muerto sin socorro humano,
sin nadie talvez que cierre sus ojos, sin el mas leve consuolo,
revolcandose sobre una tarima de taquaras, en un toldo azo-
tado por la inclemencia del tiempo, sin una voz cristiana que
murmure a su lado si quiera essas dos palabras, elocuentes y
desgarradoras en essas circumstancias. ¡Pobre amigo!
Y todavia ¡dichoso de el! Si el ojo inquisidor mayordomo al

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MYSKIW 311
verlo febricente, enfermizo y com algunos soplos de vida su-
ficientes para alimentar unos dias mas esa su carcasa anbu-
lante no lo escoje entre los demás sentenciados al mismo fin y
lo aparter como a un animal inútil al servicio, para embocarlo
en el primero vapor y devolverlo a Posadas ó a Villa Encar-
nación como diciendo a esas dos ciudades: “Tomas mi obra:
dalle de comer”.
Detalle Horrible: Ni el 10 por ciento de esos infelices menores
de edad arrastados asi com engaños a la esclavitud alcanza a
cumplir los cuarenta años de edad. Mueren Jovenes. Mueren
arítricos, ó minados por la icterícia, ó llevados como hoje por
la pulmonia contraída sudando bajo las lluvias torrenciales, ó
anémico, ó de acidentes, ó por falta de asistencia medica, de
remedios y de sustento.28

Ao final da safra de extração de galhos e folhas de erva-mate havia


a expectativa de retorno dos mensus às vilas, comunidades e cidades de
origem. No entanto, parte dos mensus (em torno de 10%) não retornariam
por terem morrido em função de doenças e ferimentos causados por in-
setos e animais, acidentes de trabalho, má alimentação e as condições de
trabalho subumana, similar à escravidão. Julião Bouvier denuncia tais
condições de vida e trabalho nos ervais às autoridades brasileiras. De-
nuncia também os distintos mecanismos de arregimentação de mensus em
território argentino para o trabalho nos ervais brasileiros:

Jamás tampoco un solo Sub Prefecto maritimo ha impedi-


do la salida de un vapor negrero por llevar ciento à ciento
cincuenta desgraciados en un espacio de treinta metro cua-
drados que es à lo sumo lo que pueden llevar disponible los
barcos aquellos del tipo del “Feliz Esperanza” de Domingos
Barthe. Se han arreado peones por medio de la policia hacia
el puerto de embarque, se les ha encepado ó castigo à cinta-
razos à bordo, pero jamás una sola autoridad maritima ha

28  BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranense”. A Notícia. Edição nº 738, de 23/03/1908. p. 2.

312 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


subido cumprir com su deber castigando à los verdugos como
lo merecian.
Es que en Posadas y em Villa Encarnación, cuales más, cuales
menos, viven subordinados à los grandes empresarios ó ex-
plorando à la carne humana del Alto Paraná.
Desde la perigurdinera hasta los Gobernadores de Misiones,
todos aprovechan una parte del dinero que el esclavo irá pa-
gar allá en las selvas com sudor y sangre. La altivez do nuestro
caracter, la honradez de nuestra hijas sacrificadas desde las
más tierna edad à los ludibrios de los mayordomos ó emplea-
dos de los empresarios, la dignidad del cargo, la auteridad
del hogar: todo ha ha cedido ao paso ante el avance de essa
degradación moral. Por eso, en esas açougues de Venus nos
hemos acostumbrados de tal modo al juego, al alcoholismo,
al contrabando y à la prostituición que nos encontrariamos
como emigrados en nuestras próprias ciudades si ese sistema
de asquerosa immoralidad social desapariciera repentina-
mente.
[...]
Ya hé dicho que el peón del Alto Paraná una vez a bordo es un
hombre perdido à jamás para el progresso y la civilización.
Vuelva o no vuelva es lo mismo. En el cementerio de vivos
donde lo llevan no hay escuelas, no llegan diarios, no se sabe
nada del mundo externo. Para el, la selva es peor que un car-
cél: es una tumba.29

Julião Bouvier, comparando aos navios negreiros de outrora, chama


a atenção dos leitores para as condições dos barcos-vapores e dos mensus,
muitos deles arregimentados à força pela gendarmeria para o trabalho
nos ervais de Domingos Barthe, de Nuñez y Gibaja, de Júlio Tomás Alli-
ca, de Miguel Matte, de Tomaso Larangeiras (entre outros empresários
ervateiros argentinos, uruguaios e brasileiros) rio Paraná acima, rumo ao
Oeste Paranaense. Não eram só jovens homens. Havia também mulhe-
res e famílias sujeitando-se às condições degradantes de vida e trabalho.

29  BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranaense”. A Notícia. Edição nº 742, de 27/03/1908. p. 1.

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Ainda que viesse a sobreviver ao árduo trabalho na selva (o cemitério dos
vivos, uma tumba em vida), jamais seriam os mesmos ao regressar para
casa em função de tantas adversidades e violências vivenciadas.
Bouvier finaliza o extenso texto “El Oeste Paranense” discorrendo so-
bre as violências e mortes praticadas pelos administradores das obrages ou
pelos capatazes:

Desde que llega al puerto de desembarque ya pertence à essa


esclavitud que solo termina com la muerte. Alli yá no hay
mas carne fresca sinó charqui podrido ólleno de tierra, yá
ho hay leyes que lo ampára, yá no hay cartas que le llegan,
yá no hay progreso que lo alcance, yá no hay gobierno que
lo protege: no hay mas que trabajo penoso, inexorable y mal
retribuido, los mbarigiires, el chucho, el revolver del mayor-
domo, el machete del capataz y la selva para sepultura. […]
Se fuga le meten balas donde quiera que lo encuentran, por-
qué fugó debiendo al patrón. Y muchas veces fugan do hám-
bre ó a causa de malos tratamientos. En el Oeste Paranense,
un tal Alegrini y outros mayordomos de Domingos Barthe
asesinaron a vários peones. Luego, como Barthe tiene em-
presas em la Argentina y en el Paraguay los asesinos pasan
alli com goce de sueldo y estimación del patrón. Y se acabó.
Como yo hablo com pruebas en la mano, voy a citar un he-
cho donde está comprometido em Consul Brasileño em Po-
sadas. En Abril del año pasado, en las Misiones Argentinas
fueran asesinados siete peones em uno solo dia: entre ellos,
dos brasileños y uno menor de edad. Los fuzilaron, ni más,
ni menos.
El crime quedó impune. El Juez era empleado de uma em-
presa yerbatera y se comprende los demás. El Consul Brasi-
leño em Posadas no dió ni un paso, por no quedar mal com
sus amigos y compinches los negreros del Alto Paraná.
Pude conseguir una fotografia de los lugares donde actua la
empresa cuyo mayordomo hizo fuzilar los peones y la entre-
gué junto com outros papelesal Coronel Fernando Prestes
em Itapetininga para que los hiciese llegar al Barón de Rio

314 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Branco, con el fin de que la conducta bochornosa del Consul
Brasileño recibiera su merecido.30

Como descrito por Domingos Nascimento em 1903, alguns anos


depois, nas terras e ervais de Barthe (e de outros ervateiros argentinos
em território brasileiro) a prática da violência fazia parte do cotidiano
dos mensus e suas famílias. Empreender fuga ou resistir às punições e aos
castigos impostos, quase sempre culminava na morte dos mensus pelos
administradores das obrages ou seus capatazes. Como frisou o jornalista
francês, o silêncio na apuração dos casos de assassinatos traduzia-se em
cumplicidade, decorrente dos laços de amizade existentes.
Em 1913 o Departamento Nacional del Trabajo da Argentina nomeou
uma comissão para investigar um conjunto de denúncias de maus tratos,
violências, trabalho análogo à escravidão e relatos de assassinatos ocorri-
dos nas obrages situadas no Alto Paraná, em território argentino, brasilei-
ro e paraguaio. A exemplo das matérias publicadas pelo jornalista francês
Julião Bouvier, entre os anos de 1907 e 1912 vários outros depoimentos
foram publicados nos jornais argentinos La Tarde, El Pueblo e El Noticiero.
Era com base neste arcabouço documental que o inspetor da Divisão de
Inspeção do Departamento Nacional do Trabalho, don José Elias Niklin-
son foi convocado para fazer uma investigação in-loco nos portos de em-
barques de mensus, nas condições das embarcações que os transportavam
e as condições de vida e trabalho nas obrages, cujo relatório foi entregue
em fins de abril de 1914.31
Após quase seis meses percorrendo as obrages no Alto Paraná, o ins-
petor Niklison apontou em seu relatório que as explorações florestais e
ervateiras do Alto Paraná tiveram início de forma desordenada “y en el
transcurso de los años, los defectos y vicios de la iniciación no corrigidos,

30  BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranense”. A Notícia. Edição nº 743, de 28/03/1908. p. 1.
31  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento Nacional Del Trabajo – Investiga-
ción relacionada con las condiciones de vida y trabajo del Alto Paraná. Buenos Aires, 1914. 240
p. O relatório pode ser visualizado através do seguinte link: http://www.trabajo.gob.ar/down-
loads/biblioteca/bdnt/1914_26.pdf Acessado em 20 de agosto de 2019.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 315
han ido tomado mayores proporciones agravando el problema y hacien-
dolo cada dia más dificil” pois o enriquecimento havia se transforma-
do em obsessão por parte dos empresários ervateiros e madeireiros. No
cômputo das ganâncias dos empresários “entró, pues, el salario reducido,
la alimentación escasa y las abrumadoras jornadas impuestas a los tra-
bajadores y, poco después, entró también la substracción que se realizó
por medio de proveedurías deshonestas, de injustas multas, de evidentes
estafas al peón”.32 Na leitura de Niklison, o Alto Paraná vivenciava, ex-
perimentava um estado permanente de desordem, conflitos e violências
em função de uma guerra entre o capital e o trabalho: “Y esa guerra es
prejudicial, dañina cual ninguna outra, porque no tiene objetivos deter-
minados y claros, no es dirigida con habilidad y no tiene plan ni método
en su operaciones, porque no persigue fines veraderamente prácticos ni
útiles.”33
Em território brasileiro, junto à margem esquerda do rio Paraná, o
inspetor Niklison inspecionou o Porto Artaza (de Júlio Tomás Allica), o
Porto São Francisco/12 de outubro (da Compañia Maderas Alto Para-
ná), o Porto Rio Branco (da Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto
Britânia (da Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto Felicidade (da
Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto Santa Helena (de Domingos
Barthe), o Porto Itacorá (de Patricio Moneda) e o Porto Bela Vista (de Hi-
gino Alegre). Nestas obrages, segundo o levantamento de Niklinson, entre
fins de 1913 e início de 1914, aproximadamente 1.700 mensus estavam
trabalhando nas florestas do Oeste Paranaense.34
Entre os temas investigados por Niklison estava: “El conchabo”, a
forma de arregimentar mensus para trabalhar nos ervais do Alto Paraná
na região de Posadas; “O transporte de peones hacia los lugares de traba-
jo”, mais precisamente, as condições dos barcos-vapores “Edelira”, “Es-
paña”, “Salta” e “Iberá” pertencentes Domingos Barthe, Nuñes Y Gibaja
e Juan B. Mola; o “Concepto legal sobre el Antecipo”, praticado pelos

32  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 23.
33  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 25.
34  Ver NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. pp. 44 a 49.

316 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


conchavadores como forma de atrair os mensus; as formas e a dinâmica
de trabalho nas obrages pelos mensus durante e após o período de extração
de erva-mate; “El trabajador del Alto Paraná”, procurando descrever o
tipo físico dos mensus, seus locais de origem, idade e condições de vida
dentro e fora das obrages; a “Alimentación” dos mensus nas obrages; a
“Habitación obrera”, detalhando as condições, higiene, vida e descanso
dos mensus nos barracões que também eram utilizados para guardar os
surrões de erva-mate; “Los salarios” que, em tese, eram pagos aos men-
sus de acordo com as funções que exerciam nas obrages; o custo de vida
nas obrages, cujas despesas eram, em grande parte, feitas nos armazéns
do empresário ervateiro; “Las enfermedades” que se abatiam sobre os
mensus durante a longa estadia nas florestas; os “reglamentos de trabajo”
existentes nas obrages e que os mensus ao aceitarem trabalhar nas obrages
tinham de conhecer e concordar; o “Descanso dominical” atribuido aos
mensus para que pudessem dedicar-se a outros afazeres; “O trabajo de
mujeres y niños”, pois muitas famílias acompanhavam os mensus homens
às obrages; e os “hechos delictuosos” praticados pelos capatazes e mensus
por motivos diversos.
Ainda que muitas denúncias tenham chegado a conhecimento do
Departamento Nacional del Trabajo da Argentina, cujos relatos apontavam
as péssimas condições de trabalho, as violências e as mortes ocorridas nas
obrages do Alto Paraná, o inspetor Niklison sinaliza que após realizar as
inspeções em todas as obrages chegou à conclusão de que “ha se forjado
uma leyenda”:

Los que hablan de cepos, barras y látigos, ignoran en abso-


luto lo que dicen. Los que afirman la existencia de capata-
ces repartiendo garrotazos a los obreros, dan prueba de una
imaginación contraria a la logica más simples. Ya he retrata-
do sumariamente al trabajador del Alto Paraná en la forma
que lo he visto. Es antes el patrón y el conchabador humilde,
dócil, manejable. Otro hombre, con mayor conciencia de la
dignidad humana, no soportaria por cierto lo que él, com im-
ponderable estoicismo, soporta. Pero de ahí a que permita

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 317
sin protesta y sin defensa que se le castigue, que se le hiera
y que sele mate, hay mucha distancia. Es valiente, temera-
riamente valiente y la vida ajena le inspira tanto desprecio
como la própria. Armado siempre de machete y revolver, no
lleva sus armas para manternelas inactivas. Cuando llega
la oportunidad sabe aprovecharlas. El machete obrero se la
hundido alguna vez en la carne de los patrones y hay quienes
conocen las represalías y rebeldías de los peones. Sospechar
que uno, dos o tres capataces pueden apalear impunemente a
cien, doscientos ó trescientos hombres de essa clase, valiente
y bien armados significa ignorar por completo la forma en
que se dearrollan las relaciones entre patrones, capataces y
obreros.35

Ao naturalizar a violência entre mensus/peões, capatazes e obrageros,


o inspetor Niklison assumiu o discurso capitalista e empresarial de que
a violência era necessária para impor a ordem e o funcionamento das
obrages; que a violência possuía um papel importante para com o sistema
capitalista de exploração da mão de obra utilizando formas escravistas de
relações de trabalho. Ainda que o sistema escravista negro tenha deixado
de existir no papel, muitas de suas práticas continuavam a ser utilizadas
agora sobre a população pobre da fronteira que tinha como uma das pou-
cas oportunidades de renda o trabalho nos ervais do Alto Paraná. Era
uma clara relação de sujeição dos mensus aos ervateiros argentinos, como
afirmado por Niklison, supondo que os ervateiros e seus capatazes tives-
sem o direito absoluto sobre o corpo dos mensus, quer fossem homens,
mulheres e crianças, além do presumível direito ao próprio trabalho ao
serem submetidos à humilhação, à tortura, ao castigo e à morte. Traba-
lhavam sob coação, isto é, sob violência física, moral e psíquica.
José de Souza Martins aponta que essas formas coercitivas da explo-
ração capitalista em região de fronteira (frente de expansão e exploração
territorial) “surgem onde o conjunto do processo de reprodução capita-
lista do capital encontra obstáculos ou não encontram as condições so-

35  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 189.

318 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ciais e econômicas adequadas que a assuma, num dos momentos de seu
encadeamento, a forma propriamente capitalista.”36 Trata-se, no entender
de José de Souza Martins, de um contexto em que se opera a “acumu-
lação primitiva do capital” que tem por dinâmica não só coação/coer-
ção dos mensus ao trabalho em condições de violências, mas também de
compreendê-los como “produtos do capital” (mercadoria) na medida em
que eram objetos de atração/comercialização/negociação de sua mão de
obra entre os conchavadores por meio do “antecipo” que, por sua vez,
lucravam e os direcionavam para os empresários ervateiros do Alto Para-
ná. Isso só era possível de ocorrer porque havia escassez de mão de obra
de trabalhadores mensus que se sujeitavam às condições de degradação
humana nos ervais do Alto Paraná. No olhar dos empresários ervateiros,
os mensus somente eram substituíveis, descartáveis na medida em que
ofereciam forte resistências ao poder pessoal dos capatazes e dos empre-
sários ervateiros, quer nos espaços de trabalho ou nos raros momentos de
descanso dominical ou festivos.
Ao discorrer sobre delitos existentes nas obrages e tratando-os como
casos fortuitos, o inspetor Niklison inseriu no relatório o caso do assassi-
nato de um mensus ocorrida no Porto Santa Helena, obrage de Domingos
Barthe em território brasileiro:

En 26 del mismo mês y año [janeiro de 1914], em “Santa


Elena”, - Brasil – establecimiento de Domingos Barthe,
ocurrió outro hecho análogo. Un encargado de trabajos en el
“centro”, reprendió a un “mensu” de apelido Cantero, por su
inconducta em el yerbal, ordenándole el inmediato cambio
de cuadrilla. El peón, dicen las referencias, insultó al encar-
gado y lo agredió machete en mano. Este quiso deternelo,
intimándolo con su revólver. No lo consiguió; el peón, en-
ceguecido, continuó avanzando, hasta que el encargado lo
derribó de un balazo en el pecho. El hecho tuvo lugar en el
lugar denominado Barro Preto, a 14 léguas de la costa, en la

36  MARTINS, José de Souza. Fronteira… Op. Cit. p. 74.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 319
fecha indicada, pero el herido felleció tres días despues en el
puerto de Santa Elena, donde fuera trasladado con el fin de
asistírle mejor.37

Cantero, o mensu, foi assassinado pelo “encarregado dos trabalhos”,


que podia ser o administrador dos ervais de Barthe ou um dos capatazes.
Niklison omitiu informações sobre o assassino e as providências tomadas
por Domingos Barthe para com o desfecho da situação. Acredita-se que
nada foi feito e a morte do mensu Cantero tenha sido utilizado como mais
um “aviso” aos mensus que ousassem resistir às ordens dos capatazes e
dos administradores das obrages de Domingos Barthe. À revelia dos re-
gramentos jurídicos do Brasil, Argentina e Paraguai, as obrages tinham
seus próprios códigos de condutas, muitos deles inscritos no contrato de
trabalho. Niklison transcreveu o contrato de trabalho da obrage de Do-
mingos Barthe utilizado junto aos mensus que dispunham-se a trabalhar
nos ervais de propriedade de Barthe em território paraguaio e brasileiro.
Dentre os artigos que explicitam atitudes de conduta a serem respeitadas
pelos mensus, destacam-se os seguintes:

Art 14º – Nunca podrá trasladarse de un campamento a ou-


tro, sin permiso escrito del patrón o encargado;
Art 15º – Es de su obligación canchar la yerba extraída y obe-
decer estrictamente las órdenes del capataz o encargado;
Art 16º – Si llegase a faltar en su trabajo, sin permiso o auto-
rización del patrón o capataz, pagará $ 1,00 por dia de ma-
nutención;
Art 17º – En caso de abandonar el trabajo definitivamente,
sin la autorización antes dicha, o que pierda la libreta que
debe dársele, bien sea por descuido o intencionalmente, el
patrón podrá hacer castigar a los culpables de acuerdo con
las leyes respectivas.38

37  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 195.
38  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 175 e 176.

320 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Os mensus ao receberem o “antecipo” das mãos dos conchavadores,
em tese, concordavam com contrato de trabalho, as regras de conduta e as
possíveis punições ali impostas. Era vedado aos mensus deslocar-se, mes-
mo em horário de descanso, a outros acampamentos. O deslocamento
era compreendido pelos capatazes como uma possível forma de diálogo e
articulação entre os mensus para o planejamento de formas de resistência,
revoltas e fugas coletivas. O abandono do trabalho ou a perda da cader-
neta de anotações com os gastos nos armazéns das obrages era passível de
punição com castigos físicos.
O abandono ao trabalho, inscrito no artigo 17º, estava atrelado às
fugas de um ou mais mensus geralmente no período final dos contratos
de trabalho ou nos casos em que os mensus que haviam contraído dívidas
nos armazéns da obrage e eram obrigados a permanecer nas florestas do
Alto Paraná para além do mês de setembro trabalhando na extração de
madeira para tentar pagar suas dívidas. A caçada humana aos mensus
que empreenderam fuga por capatazes e seus capangas tinha a função
punitiva aos que fugiram e aos que permaneceram nos ervais, podendo
resultar na morte dos mensus fugidos. Aos que não empreenderam fuga,
a punição e a morte aos mensus capturados traduzia-se em um alerta, um
recado com a intenção de inibir novas fugas e mesmo deserção em massa.
Na tentativa de responder às denúncias de cadáveres encontrados
flutuando ao longo do rio Paraná, Niklison argumenta que possivelmente
resultavam de fugas de mensus das obrages do Alto Paraná:

Pienso también que los cadáveres que algunas veces se han


visto flotar en el rio, no han sido quizás, el resultado de un
crimen, sino de “fugas”, imprudentemente llevadas a cabo y
epilogadas com la muerte del peón. Unas veces por exceso
de confianza de sus aptitudes para la natación; outras por
haberse dado vuelta el madero, la “guabiroa” o la pequeña
balsa de tacuara, a las que con temeridad se entregaron.39

39  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 196.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 321
É possível que muitos dos mensus que empreenderam fuga das obra-
ges tenham utilizado o curso das águas do rio Paraná para chegar ao des-
tino planejado, à povoação, vila ou cidade em que residiam; que alguns
mensus podem ter falecido durante a travessia do rio; que alguns deles po-
dem ter sido capturados ainda na floresta e foram executados às margens
de um afluente do rio Paraná e seus corpos jogados ao rio. São muitas as
possíveis causas da morte de mensus no Alto Paraná.
O comissário de terras Arthur Martins Franco, a pedido do Gover-
no do Estado do Paraná, deslocou-se à fronteira Oeste do Paraná com a
missão de instalar a Coletoria Estadual de Rendas, em 1913. No tempo
ocioso que teve, antes da instalação da Coletoria, decidiu conhecer as
cataratas de Sete Quedas, em Guaíra. Em meados de novembro de 1913
Arthur pôde deslumbrar-se com as cataratas e o barulho das águas. Nos
dias que ali permaneceu, narra o comissário de terras, além de conhe-
cer as instalações da Companhia Mate Larangeira40, ouviu uma história
ocorrida alguns dias antes: uma tentativa de fuga envolvendo peões dos
ervais da Mate Larangeira:

40  A Mate Laranjeira surgiu no final do século XIX, quando o comerciante Thomaz Larangeira
obteve uma concessão do governo imperial para explorar erva-mate no sul de Mato Grosso. A
primeira sede da empresa foi em Concepción, no Paraguai, onde Larangeira também possuía
concessões. Depois, a administração transferiu-se para Campanário, em Mato Grosso, onde o
ervateiro se aliou aos Murtinho - uma família política e economicamente muito influente - e mais
tarde fez sociedade com Francisco Mendes Gonçalves e seu filho Ricardo, que deram notável
impulso aos negócios da empresa, abrindo novos nichos no mercado consumidor de Buenos
Aires. Em 1902, a Mate Laranjeira adquiriu de Francisco Monjoli os direitos de exploração de
um porto acima das Sete Quedas. No mesmo ano, requereu terras ao governo do Paraná para
implantar uma cidade e autorização para abrir estradas até Porto São João e Portón, atual Porto
Mendes. Oito anos depois, já com um porto readequado, armazéns e outras instalações construí-
das na nascente cidade de Guaíra, a Mate Laranjeira passou a operar a nova rota de exportação.
Chatas rebocadas por vapores navegavam pelos afluentes do Rio Paraná (Amambai, Iguatemi,
Dourados e Ivinhema) trazendo a erva de Mato Grosso até Guaíra, de onde o produto seguia por
terra até Porto São João, situado aproximadamente 45 quilômetros ao sul, onde era reembarcado
em chatas com destino ao Baixo Paraná. Em 1923, a empresa inaugurou uma estrada férrea,
entre Guaíra e Porto Mendes, com 60 Km de extensão, para facilitar o transporte de erva-mate
por trem. A ferrovia foi desativada em 1959. Cf. QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. “A COM-
PANHIA MATE LARANJEIRA, 1891-1902: contribuição à história da empresa concessionária
dos ervais do antigo Sul de Mato Grosso”. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 8, n. 1,
jan.-jun., 2015. p. 204-228.

322 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A “peonada” havia promovido um baile e, alta noite, três deles
planejavam uma fuga, utilizando-se do “caximbéu” e trataram
de realizar o plano que haviam combinado, mas, ao chegarem
à crista, não conseguiram vencê-la e a força da correnteza le-
vou o caximbéu e os seus 3 tripulantes para o meio da corre-
deira, abaixo da “Ilhota do Diabo”. […]
Ao amanhecer do dia seguinte, os moradores do porto Guayra
viram, surpresos, ao longe, no meio do leito do Paraná e mais
de um quilômetro da costa, o caximbéu encalhado sobre uma
lage de pedra e os três fugitivos sobre a mesma pedra, com os
pés metidos n’água, a acenarem desesperadamente para terra.
O encarregado ou administrador dos trabalhos do porto, José
Benitez, reuniu o pessoal para resolverem sobre as providên-
cias que deveriam tomar a fim de salvarem os infelizes fugiti-
vos.
Era impossível chegar com qualquer embarcação no ponto
onde eles se achavam. A situação era profundamente angus-
tiosa e desesperadora. Concertaram, afinal, um plano para sal-
va-los, cujo êxito era, porém, muito duvidoso. Consistia esse
plano em fazer descer um bote, tripulado por dois homens e,
preso, acima da crista, na ponta de uma das ilhotas por um
cabo, até alcançar a “Ilha do Diabo”, dali os tripulantes do bote
fariam descer um barril, preso a outro cabo, até alcançar os
desgraçados fugitivos e que a ele deveriam se agarrar, pra se-
rem salvos.
Enquanto tomavam as providências necessárias para o apres-
tamento do socorro projetado, a certa hora do segundo dia, os
“náufragos” sob um sol abrasador davam sinais de que algo
os incomodava, porque estavam constantemente a atender as
pernas e os pés; afinal, ao cair da tarde do segundo dia, dois
deles acenaram para os que, aflitos, em terra, assistiam aquela
cena sobremodo emocionante e jogaram-se na água e desapa-
receram em seguida, levados pela impetuosidade da corrente.
Restava apenas um, que resistia corajosa e desesperadamen-
te aquele tremendo suplício, durante dois dias e duas noites
consecutivas, sem esperança de salvamento. E quando, nessa
manhã do 3º dia iam lagar do porto os botes com o pessoal

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 323
encarregado daquela desesperada tentativa de socorro ao úl-
timo sobrevivente o desventuroso, seguramente desiludido de
qualquer esperança de salvação, acenou para os que, em terra,
assistiam, atônitos, ao desenlace daquela tragédia, o seu últi-
mo adeus de despedida e, empurrando o “caximbéu” para a
correnteza, saltou para dentro dele e desapareceu na voragem
dos saltos.41

Algumas semanas após a estadia de Arthur Martins Franco às ins-


talações da Matte Larangeiras e em Guaíra, o inspetor argentino José
Elias Niklison ali aportou e permaneceu por semanas. As narrativas de
Niklison à estrutura da Matte Larangeira foram alongadas e as únicas
ponderações tecidas quanto aos mensus foi de que naquelas paragens as
condições de vida e trabalho eram melhores do que em outras obrages,
enfatizando a ausência de enfrentamento entre mensus e os capatazes.42
O episódio narrado por Arthur Martins Franco caiu no esquecimento
da comunidade local ou não foi, propositalmente, acolhido pelo inspetor
argentino em seu relatório visando ocultar a prática de violências coti-
dianas e maus tratos aos mensus no Alto Paraná, em território argentino,
brasileiro e paraguaio.

Memórias de um bandido: Santa Cruz


Não sabe-se ao certo em que ano Santa Cruz, capataz dos ervais de
Júlio Tomás Allica no Oeste do Paraná, passou a atuar como administra-
dor da obrage e do Porto Artaza. Até 1914 não há relatos de sua presença
naquela porção do território fronteiriço. A primeira menção a Santa Cruz
foi feita pelo sertanista e topógrafo Carlos Alberto Teixeira Coelho Jú-
nior (ou Coelho Júnior) quando de sua estadia nas florestas do Oeste, en-

41  FRANCO, Arthur Martins. “Segunda viagem, novembro de 1913” In: Recordações de viagem ao
Alto Paraná. Curitiba: editora, 1973. p. 60-61.
42  NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 47.

324 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tre fins de 1919 e os primeiros meses de 1920. Os ervais explorados Júlio
Allica espalhavam-se por uma vasta área entre a margem esquerda do rio
Paraná (onde estava a sede da obrage de Allica, o Porto Artaza) e a bacia
do rio Piquiri, a quase 200 quilômetros do Porto Artaza. A área de terras
adquirida por Júlio Allica junto ao Governo do Paraná em 1908 era de
400 hectares, dividido em duas áreas: a primeira área junto à margem
esquerda do rio Paraná, onde o ervateiro edificou o Porto Artaza43; e a
segunda área próximo ao rio Piquiri. Para ligar as duas áreas de terras, o
Governo do Paraná autorizou o ervateiro argentino a alargar e conservar
uma antiga picada existente, o qual denominou-se de “Picada Allica” e
tinha início na foz do rio São Francisco, no rio Paraná, estendendo-se até
a povoação de Piquery, próximo ao rio Piquiri.44 As terras originalmente
adquiridas por Júlio Allica foram demarcadas em 1914, mas a área de
floresta explorada por ele era muito maior, chegando a Campo Mourão.45
(Ver Figura 01).

43  Segundo Ivo Emer (1991), dentre as obrages que atuaram na região, a obrage de Júlio Allica
foi a que atingiu o mais alto grau de desenvolvimento e organização. Por Alica ter formação em
engenharia, construiu às margens do rio Paraná um lago artificial e chegou a produzir energia
elétrica para consumo próprio. Edificou ainda uma mansão no alto da barranca do rio Paraná.
Implantou uma linha telegráfica que chegou a ter mais de 140 quilômetros de extensão, facilitan-
do a comunicação entre a sede e os inúmeros postos de controle e depósitos de erva-mate no
interior do oeste paranaense (EMER, Ivo Oss. Desenvolvimento histórico do Oeste do Paraná
e a construção da escola. 1991. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Estudos Avançados em
Educação, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1991. p. 65-66).
44  Ver: Lei Estadual n° 781, de 20 de abril de 1908, que autoriza a venda/destinação de terras
a Júlio Tomaz Allica.
45  Para Ruy Christivam Wachowicz (1987) há informações esparças de que Júlio Allica teria
feito acordos para a exploração de erva-mate com a BRAVIACO (Empresa Brasileira de Viação
e Comércio) que era detentora de várias áreas de terras no Oeste do Paraná, entre as regiões dos
atuais municípios de Cascavel e Campo Mourão. (WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obragero,
mensus e colonos: História do Paraná. Curitiba: Vicentina, 1987).

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 325
Figura 01. Oeste do Paraná - Recorte do Mapa do Estado do Paraná, em 1924.
Fonte: http://centrocultural.com.br/items. Acesso em 29/08/2019. Adaptado pelo autor.

Nas memórias de Coelho Júnior, inicialmente Santa Cruz residia


em “Pensamiento”, uma espécie de acampamento central situado entre
o rio Piquiri e a povoação de Campo Mourão, de onde era remetida para
o Porto Artaza a erva extraída e ensacada nos diversos barbaquás. “Aí
residia o ‘mayordomo’, senhor absoluto dos escravos, naquele tempo um
tal Santa Cruz, paraguaio, facínora, algoz impiedoso de seus próprios
patrícios.”46 O termo “mayordomo” era comumente empregado naquele
tempo para referir-se à figura do “mordomo” ou “administrador” geral
dos ervais e sobre o qual recaía toda a responsabilidade sobre os mensus e
o funcionamento da obrage durante o período de extração, cancheamento,
transporte e embarque da erva-mate em barco-vapores rumo a Posadas,
na Argentina. Santa Cruz conquistou fama de “facínora” e “matador” ao
trabalhar como capataz nos ervais de Júlio Allica em terras paraguaias.
Allica, ao casar-se com a irmã de Santa Cruz, Cristofaria Sara Santa
Cruz, parece ter convidado Santa Cruz a assumiu a função de adminis-
trador dos ervais no Brasil.

46  COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba: Editora
Guaíra Ltda., 1946. p. 84.

326 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Coelho Júnior apontou ser estafante e demasiadamente cansativo
o trabalho cotidiano dos mensus nos ervais e que a ideia de fuga, com o
passar dos meses em meio à floresta tendo apenas o domingo como dia
de descanso, passava a atormentar a mente dos mensus:

De facão em punho, feito o seu rancho, o “mensú” embrenha-


-se, de sol a sol, no recesso da mata, a golpear as erveiras, até
completar a tarefa de três a mais arrobas de folhas. Sapeca-
-as, em improvisada fogueira, com rara habilidade, mesmo
em dias de chuva. E, formado o “raido”, colocam-no à cabeça
e o trazem como se fosse o tronco duma estranha árvore mo-
vel – até o barbaquá. […]
Então o cativeiro vai atormentando e sugerindo a ideia de
fuga. Mas fugir por onde se só existe uma estrada com vigias
em postos de vinte em vinte quilômetros? Diversos já paga-
ram com a vida tal temeridade.
Não são poucos os esqueletos encontrados pelas cercanias. E
os “cachorros” - polícia da Empresa – de rifle em punho, es-
tão sempre alertas, adivinhando até os planos dos fugitivos!47

A fuga era um alento à alma. Mas obter sucesso, por sua vez, era coi-
sas rara mesmo àqueles que conheciam bem a floresta, rios e caminhos
terrestres. Coelho Júnior narrou a história de uma menina paraguaia que,
com seus pais, empreendeu fuga na tentativa de evitar ser abusada sexual-
mente pelos capatazes do mayordomo Santa Cruz:

Até que fiquei mulher e o mayordomo me quis. Mandou um
“cachorro” ao nosso rancho, como é costume, buscar-me.
Meus pais deram uma desculpa, protelando minha ida para o
dia seguinte. E à noite, eles que há muito pensavam em fugir,
embrenharam-se pela mata, ao rumo do sol poente, com o
fito de sairmos algum dia, no rio Paraná.
O que padecemos, dias e dias, fome, chuva, frio, intempé-
ries, perseguição de feras – não é possível recordar… Parece

47  COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 84-85.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 327
até que a gente se acostuma a sofrer! E assim, numa pere-
grinação desorientada pelos matagais hostis, foi passando o
tempo, perdendo-se a nossa esperança, esfarrapando-se as
nossas vestes – para um dia, nus e esqueléticos, sairmos na
estrada bem em frente a um posto da Empresa!
Receberam-nos rindo…
Depois fomos recambiados para aqui, e recomeçamos a mes-
ma vida de antes da fuga, com a diferença que meu pai mor-
reu num acidente, minha mãe tem outro companheiro, e eu,
que fui primeiro do “mayordomo”, moro agora num outro
rancho, com outro homem.48

Coelho Junior sinaliza ainda que Santa Cruz mantinha um harém


“com as meninas filhas dos mensus”49 para deleite pessoal e dos capata-
zes da obrage de Júlio Allica. Ser uma “Cunhataí”, expressão que naquele
tempo atribuía-se às prostitutas paraguaias contratadas para entreter o
final de semana dos mensus, ao que dá a entender a história narrada por
Coelho Junior, não era uma escolha, mas a única opção.
Em 20 de outubro de 1924, o tenente João Cabanas chegou em
Guaíra, extremo Oeste do Paraná. Junto com ele, um grupamento de
soldados e civis que compunha a “Colunna da Morte”. Tal “Colunna”
estava intimamente ligada à revolta tenentista (ou movimento tenentista)
iniciado em julho do mesmo ano, em São Paulo. Os desdobramentos des-
favoráveis aos tenentistas em São Paulo obrigo-os a marchar em retirada
para o interior visando a reorganização, recomposição e a ampliação dos
grupamentos via adesão de soldados e civis de outros estados. Em poucas
semanas, João Cabanas e seus combatentes chegaram a Guaíra, no extre-
mo oeste do Paraná, cujos relatos transformaram-se no livro A Colunna da
Morte, publicado em 1927.50

48  COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 86-87.
49  COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 179.
50  CABANAS, João. A Colunna da Morte. Rio de Janeiro: Livr. Ed. Almeida & Torres, 1926. 162
p.

328 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Na madrugada do dia 22 de outubro de 1924, João Cabanas e seu
grupamento iniciaram marcha rumo à povoação de Piquery, situada a
32 léguas do Porto Mendes. Ao amanhecer, relata ter se encontrado com
o ervateiro argentino Júlio Thomás Allica, que regressava dos ervais de
Campo Mourão:

Marchando já durante duas horas dentro da picada e sob a


verdejante abobada da mata secular, avistei rodando em sen-
tido contrário à colunna uma carroça, conduzindo 2 passa-
geiros que fiz deter para informações. Interrogando àquelle
que me pareceu figura principal, soube estar na presença do
Sr. Julio T. Allica, de nacionalidade argentina e senhor do
enorme latifundio que nos rodeava. Regressava dos limites
de seus hervaes em Campo Mourão onde fôra abafar uma re-
volta estalada entre seus empregados.51

A narrativa de João Cabanas sobre o encontro com Júlio Allica é


curta, mas contém informações preciosas. O ervateiro argentino teria se
deslocado a um ponto distante de seu “latifúndio” para, pessoalmente,
por fim a uma revolta organizada por mensus ocorrida nos ervais de Cam-
po Mourão. Quais foram os motivos da revolta? Por quê Santa Cruz e
seus capatazes não conseguiram debelar a revolta? Santa Cruz e os capa-
tazes teriam sido capturados pelos mensus? Quais estratégias foram ado-
tadas pelo ervateiro argentino para dar fim à revolta? São perguntas que
permanecerão sem respostas. Mas o modus operandi do sistema obrageiro
argentino em terras brasileiras para com aqueles que empreendiam fugas,
roubos, revoltas e mortes, era a adoção de distintas formas de violências
contra os revoltosos que poderia culminar em punições diversas ou mes-
mo a morte de uma ou mais pessoas.
Após quatro dias de viagem floresta adentro, João Cabanas e a tropa
de combatentes chegaram à povoação de Piquery, um “pequeno agru-
pamento de umas vinte casas construidas de madeira, é a sede de um

51  CABANAS, João. A Colunna da Morte… Op. Cit. p. 237.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 329
dos departamentos de elaboração de herva matte, na seção norte, dos
grandes hervaes do Sr. Júlio T. Allica.”52 A estadia neste local seria longa,
a ponto de João Cabanas ter determinado que alguns combatentes reali-
zassem expedições na região visando localizar grupamentos de “militares
inimigos”, cuja presença havia sido informada pelo ervateiro argentino
Júlio Tomaz Allica e quando das conversações com o Comando-Geral
em Guaíra. Pouco tempo depois, o capitão Bispo e o tenente Gastão in-
formaram ao tenente Cabanas terem “encontrado no terreno que separa
Dois Corregos na picada do rancho denominado Gavilam, 6 cadaveres e
entre elles 2 de mulheres, todos horrivelmente mutilados, um delles com
a cabeça e as pernas separadas do tronco e que uma das mulheres estava
em estado de gravidez.”53
João Cabanas, após ouvir a população local sobre a chacina, chegou
à “conclusão de que se tratava dos cadaveres de pretensos conspiradores
contra o regimem ferreo em vigor nas propriedades do Sr. Allica. Os cons-
piradores foram cruelmente massacrados pelos capatazes, sob as vistas
do Sr. Allica e do administrador geral Santa Cruz, dias antes da minha
chegada a Piquery”.54 Nas investigações que fez junto à população local,
João Cabanas soube que a “justiça summaria” teria sido obra capitanea-
da por Santa Cruz com auxílio dos capangas Antonio Rojas, Antonio
Romano, Seraphim Fernandez, Antonio Machado (vulgo Severo) e Flo-
rentino Antonio (vulgo Bango).55 O tenente Cabanas registrou em seu
diário que destacou uma patrulha para ir até o Porto Artaza para prender
Júlio Allica, Santa Cruz e outros seis capangas sob a acusação de terem
sido os mentores da chacina. No entanto, a patrulha teria regressado ao
Piquiri apenas com quatro capangas e que teriam sido fuzilados.56 O er-
vateiro argentino era, no entender de Cabanas, mandante e cúmplice nos

330 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


assassinatos. Santa Cruz, por sua vez, era quem teria ordenado a execu-
ção daquelas seis pessoas.
O encontro entre João Cabanas e Santa Cruz ocorreu dias depois,
culminando na prisão do administrador dos ervais, ordenando-lhe que
determinasse aos capatazes “que fossem a todo os ranchos ervateiros e
trouxessem a Piquery a totalidade dos empregados do Sr. Júlio Allica,
naquela secção, inclusive mulheres e crianças, bem assim o gado vaccum
e cavallar.”57 Tendo transcorrido alguns dias, sinaliza João Cabanas, co-
meçaram a chegar os trabalhadores:

[…] uma multidão de mais de mil indivíduos andrajosos, ten-


do cada um em si, os característicos da vida miseravel que
passavam sem mais os rudimentares cuidados de hygiene;
uns bestializados pelos maus tratos, rial alvarmente, olhar
parado, em ponto fixo imaginario. A grande maioria com os
artelhos deformados pelos bichos de pé, faces entumecidas
pela anchilostomiase ou pelo mal de Chagas, movia-se lenta-
mente; mulheres cabisbaixas, quasi inconscientes sofrendo
identicos males, deixando apparecer pelos rasgõesdas saias,
pernas esqualidas; sentavam-se aos grupos pelo povoado,
tendo ao redor crianças côr de ambar, ventres crescidos,
somnolentas e tristes como velhos-chinezes desesperança-
dos da vida.58

O olhar estrangeiro de João Cabanas fez transparecer os aspectos


físicos que denunciavam a magreza dos corpos, decorrentes dos maus
tratos, das doenças, do excesso de trabalho e da deficiência nutricional
dos alimentos consumidos pelos mensus e suas famílias. Mensus nestas
condições teriam como organizar e pôr em ação uma revolta, como aque-
la ocorrida algum tempo antes em Campo Mourão? Os capatazes, teriam
obrigado os mensus (e seus familiares) mais debilitados a deslocarem-se
rumo ao acampamento da Coluna da Morte dando a entender que as
ordens teriam sido cumpridas e que Santa Cruz poderia vir a ser solto?
São perguntas que, mesmo não havendo respostas, acabam por aguçar a

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 331
imaginação do leitor e do historiador.
Para João Cabanas, era necessário detalhar as condições físicas, de
vida e de trabalho dos mensus, em sua maioria, paraguaios em condições
similares à de escravidão. Reforçava-se, com isso, o tom de denúncia que
as terras fronteiriças com a Argentina e o Paraguai estavam abandonadas
por parte das autoridades brasileiras; que era grande a presença de em-
presas ervateiras argentinas na exploração de erva-mate nativa; que havia
um regime de trabalho escravo e o uso da violência era cotidiano sobre os
mensus, capitaneado pelos capatazes.
Os capatazes, ao contrário das condições físicas e mentais dos men-
sus, eram arrogantes, de boa saúde e bem vestidos, aponta Cabanas, que
continua:

[…] finissimos e franjados ponchos ao hombro, vistoso lenço


de seda ao pescoço, botas de estylo carnavalesco, retinindo
as esporas de prata, os famosos capatazes, modernos e sa-
nhudos feitores, sem alma e sem consciência, brutaes até a
violência, encarregados de exhaurir as forças daquelles es-
cravos até o anniquillamento. […] O capataz em materia de
autoridade, é um ser único, sui generis; nelle se concentram
as attribuições que vão desde o soldado de polícia até o Su-
premo Tribunal Federal e possui dentro do cerebro estupido,
um codigo de castigos que começa no ponta-pé e segue até o
fuzilamento, e às vezes a autoridade do brutamontes esten-
de-se também pelos domínios da religião, impondo ao escra-
vo a sua própria crença.59

Na presença de Santa Cruz e dos capatazes, João Cabanas orientou


à população de mensus a migrar rumo ao Porto Artaza e ao Porto Men-
des, pois a região transformar-se-ia numa área de combates entre forças
militares. Um grupo de mensus foi incorporado às fileiras de combatentes
na condição de voluntários. À Santa Cruz e aos capatazes, coube, se-
gundo João Cabanas, além da repreensão verbal e moral, uma “surra de

59  CABANAS, João. A Colunna da Morte… Op. Cit. p. 241.

332 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


espada” e a expulsão do território brasileiro:

Ciente do proceder traiçoeiro de Santa Cruz e com o fim de


quebrar-lhe o prestígio moral perante aquella gente, depois
de severa reprehensão e alguns pannos de espada, desarmei-
-o, bem assim os seus capangas, entregando-os a uma escolta
com ordem de conduzir todos à fronteira, expulsando-os do
território brasileiro.60

Entre fins de 1924 e o terceiro mês de 1925, a intensificação dos


combates entre as forças legalistas e tenentistas em distintas localidades
no Oeste, Sudoeste e Noroeste do Paraná acabou por interferir direta-
mente no funcionamento das obrages instaladas na fronteira Oeste e Su-
doeste do Paraná. A extração de erva-mate foi paralisada na maioria das
obrages. Os mensus foram dispensados ou obrigados a migraram para as
obrages em terras argentinas ou paraguaias, como fizeram os capatazes,
os administradores dos ervais e os empresários ervateiros. Segundo o his-
toriador Ruy Wachowicz, os revolucionários de 1924 “parece que esco-
lheram Allica como bode expiatório. Prenderam, saquearam, destruíram
e queimaram suas propriedades.”61 Tal atitude por parte dos tenentistas
deu-se, em parte, pelo fato de Júlio Allica ter fornecido apoio aos solda-
dos governistas.
Em função da longa estadia na obrage de Júlio Allica, os revolucioná-
rios descobriram que Santa Cruz possuía um cemitério particular no pou-
so que leva seu nome (localidade que ainda hoje denomina-se de “Central
Santa Cruz”, pertencente ao município de Cafelândia/PR) às margens
da Picada Allica onde foram enterradas muitas de suas vítimas. O general
Lima Figueireido ao percorrer o Oeste Paranaense em 1936 (cuja missão
lhe foi confiada por Getúlio Vargas) foi recebido por Júlio Allica no Porto
Artaza. Nos relatos de Lima Figueiredo consta que Allica ainda esperava
indenização por parte do Governo brasileiro com relação à destruição

60  CABANAS, João. A Colunna da Morte… Op. Cit. 246.


61  WACHOWICZ, Ruy. Obrageros, Mensus e Colonos. 2 ed. Curitiba: Vicentina, 1987. p. 61.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 333
feita em suas propriedades quando da revolução de 1924/25:

Don Alica ofereceu-me um “drink” saborosissimo, com um


gosto agri-doce. Mais tarde fui sabedor que a gostosa bebida,
preparada com uva e cana, para adquirir o sabor indefinível
que senti, era míster que um pato morto fosse mergulhado
nela por algumas horas. Sucede com os excursionistas cada
cousa! […] Hoje o velho Alica ainda trabalha com 60 homens
e pensa em abandonar por completo a extração da herva,
para plantar, nas proximidades, batatas, mandioca e milho.62

Lima Figueiredo sinaliza que o temido Santa Cruz também retor-


nou à obrage de Júlio Allica no Oeste do Paraná após o término dos com-
bates e que, algum tempo depois, foi morto numa emboscada armada por
mensus:

Santa Cruz era um verdadeiro monstro. Ali naquele belo


recanto, ele tiranisava pobres empregados, prostituindo es-
posas, estuprando muitas meninas de 8 ou 9 anos de idade,
vergastando a chicote as faces dos seus mensus, muitas das
vezes quasi mortos de fome… […] Santa Cruz para morrer, foi
preciso que uma emboscada lhe fosse armada e que ele não
tivesse o minimo tempo para se defender.
Num arroio denominado Quatro Pontes, colocaram alguns
pregos. Quando de automovel Santa Cruz passava, teve uma
camara de ar furada. Achou o incidente banal e abaixou-
-se para substituir o “pneu” defeituoso. Neste momento foi
inopinadamente derrubado por um possante golpe, dado
com uma barra de ferro. Caiu agonizante, sendo então sua
morte consumada a faca. Quatro homens experimentaram o
fio das suas facas na carcaça do tirano que morria.

334 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Para ocultar o crime, jogaram em cima do cadaver enorme
pilha de herva-mate e calmamente ganharam a fronteira.63

Ao percorrer a picada Allica rumo a povoação de Campo Mourão,


Lima Figueiredo chegou às ruínas da Central Santa Cruz e, ao conversar
com habitantes do local, descobriu que em torno da morte de Santa Cruz
criou-se uma lenda:

Logo depois, numa elevação, avistamos as ruínas da Central


Santa Cruz.
Lindos predios de madeira e depositos de herva estão caindo.
Parece que foram abalados por forte tormenta, soprada do
sul, pois estão completamente adernados para o quadrante
oposto.
Foi logo depois da tempestade creada uma lenda. Rezam os
moradores das redondezas que logo após sua morte, Santa
Cruz apareceu no logar na ocasião do temporal e com um
regimento de diabinhos quebrou tudo, para que ninguém se
aproveitasse do que era seu.
A lenda creou vulto e hoje os viajantes preferem dormir ao
relento, a pernoitar na casa mal assombrada.
O monstro, que mandava naquele recanto a seu talante, in-
fundia, mesmo depois de morto, pavor aos humildes “men-
sus”, que ali ficaram presos à terra onde sofreram.64

Algumas considerações
Acredita-se que a decadência do sistema obragero na fronteira Brasil/
Argentina/Paraguai a partir da década de 1930 tenha resultado na dimi-
nuição dos índices de violência e crimes tendo em vista a atenção dada
pelo governo Vargas e pelo governo do Paraná às regiões de fronteira
incentivando a migração de nacionais; a presença mais incisiva de órgãos
públicos, de policiamento e de defesa da fronteira; a comercialização de

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 335
terras junto a empresas de colonização privadas. Os conflitos e as violên-
cias continuaram a atormentar as lembranças daqueles que haviam tra-
balhado nos ervais e decidiram permanecer vivendo na condição de pos-
seiros ou arrendatários em terras brasileiras. No lugar dos capatazes das
obrages, chegaram os jagunços contratados pelas empresas de colonização
para impor, por meio da violência e da prática de crimes de distintas na-
turezas, uma nova dinâmica no processo de exploração e povoamento da
região de fronteira com migrantes selecionados. Os mensus, os caboclos,
os indígenas e mesmo os bandidos de outrora, aos poucos e ao longo das
décadas de 1930 e 1940, foram inseridos nesta nova dinâmica ou foram
expulsos, não sem resistências e enfrentamentos, para outros lugares em
território brasileiro, argentino e paraguaio.
O banditismo é um tema complexo, assim como os bandidos. A de-
pender do ângulo de abordagem e da documentação a ser estudada, os
bandidos podem ser heróis, vítimas ou vilões. De uma forma ou de ou-
tra, são sujeitos históricos que tiveram importância ímpar na fronteira e,
assim como personagens, desejavam enriquecer e ter poder às custas dos
outros e mediante a prática de violências e crimes. A historiografia sobre
o banditismo, social ou não, aponta que tal prática ocorre num momen-
to de transição pela qual passavam algumas sociedades, no nosso caso,
aquelas ligadas ao coronelismo e ao mandonismo sobretudo em território
argentino, evidenciando um tempo de crises cujo banditismo para além
das fronteiras argentinas foi uma maneira de tentar reequilibrar e reaco-
modar as elites agrárias e empresariais ligadas à economia ervateira e
madeireira.
A documentação explorada aponta que o poder público brasileiro
e argentino estavam cientes das práticas de mandonismo local, banditis-
mo, violências e de escravidão na fronteira; que a omissão por parte dos
órgãos governamentais às denúncias formalizadas no formato de livros,
artigos publicados em jornais e mesmo em relatórios oficiais os tornou
cúmplices das atrocidades cometidas contra as populações fronteiriças,
brasileiras, argentinas e paraguaias. No entanto, essas memórias incô-

336 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


modas demoraram décadas para serem revisitadas e problematizadas a
partir da memória oral e de outros documentos pessoais coletados por
memorialistas e historiadores. É necessário buscar documentos nos ar-
quivos documentais públicos e privados em Posadas e Corrientes, lugar
em que residiam muitos dos ervateiros argentinos que se dedicaram à
exploração de erva mate e madeira em terras brasileiras, no Oeste e Su-
doeste do Paraná. Enfim, há ainda, muita coisa a ser explorada, estudada
e publicada sobre o tema.

MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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338 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Paco:
herói ou bandido?

Marinilse Marina

O governo brasileiro tinha interesse na continuação da coloniza-


ção do estado do Rio Grande do Sul, principalmente em prol do
povoamento das terras devolutas do Nordeste do estado; além
do intuito de branqueamento da população, a agricultura em pequenas
propriedades, o trabalho livre e ainda a defesa das fronteiras. Além disso,
é pertinente destacar que a imigração para o estado sulista foi distinta
da imigração para o estado de São Paulo, que buscava, principalmente,
substituir a mão de obra escrava, preocupação que ocorreu de forma gra-
dual, assim como a abolição de escravatura, com destaque para o ano de
1850 através da Lei Eusébio de Queirós, que proibia a entrada de escravos
africanos no Brasil. Sendo que no mesmo ano (1850), é instaurada uma
importante lei que estabeleceu os parâmetros da imigração italiana.

A Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850, estabe-


lecia os critérios para a estruturação das colônias agrícolas
como também a legitimação das sesmarias existentes. Em 4
de dezembro de 1851, o Governo da Província do Rio Gran-
de do Sul promulgou a Lei nº 229, que em seu artigo nº 9,
“concedia gratuitamente as terras aos colonos provindos da
imigração dirigida” (...). Entretanto, a orientação geral foi
alterada a partir de 1854, com a Lei 504, pela qual a coloni-
zação se faria à base de venda da terra e da indenização das
despesas nos cinco anos subsequentes ao estabelecimento
nas colônias, cabendo à Repartição Geral das Terras Públicas
a delimitação das mesmas. Essa Lei Provincial nº 301 cons-
tituiu-se na Carta de Colonização da Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul, a qual estabelecia os princípios básicos
da colonização (HERÉDIA, 2001, p. 2).

Com esses pareceres, fica evidente que o Brasil buscava preencher


lacunas referentes às novas leis ligadas a questões da terra. Enquanto,
que para Itália, a saída de pessoas em massa, significava uma solução
imediata para a grave crise econômica que a Europa enfrentava. Esse
fator associado às necessidades do Brasil, fez com que se divulgasse na
Europa uma propaganda enganosa e muitas vezes sem escrúpulos, per-
mitida pela Itália. Sendo assim, é evidente que existem muitas lacunas a
serem trabalhadas neste contexto imigratório e emigratório, por muitos
anos este tema foi tratado de forma generalizada, colocando os colonos e
os caboclos1 em um contexto simplista.
Além da questão espacial, compete mostrar um caso específico, re-
lacionado não somente a colônia de Alfredo Chaves, mas outras na serra
gaúcha, que é a figura de Francisco Sanchez Filho, mais conhecido na re-
gião nordeste do Rio Grande do Sul como Paco. Para tanto, é primordial
a compreensão de uma série de fatores que impulsionaram e moldaram
a vida desse homem, visto por alguns como heróis e por outros como
bandido.
Portanto, através do método indiciário, além do entrecruzamento de
fontes, em específico dos jornais da época, apresenta-se um determinado
perfil de Paco, que entra em controvérsia quando comparado aos relatos

1  Não somente os caboclos e os colonos, mas também os indígenas e outros. Neste artigo o
objetivo é focar dois grupos em específico: caboclos e colonos.

340 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


dos colonos, que mostram outra versão sobre esta curiosa figura. Aqui
não cabe defender ou condenar a imagem de Francisco Sanchez Filho,
mas simplesmente demonstrar o outro lado sobre a história de vida deste
sujeito, também enquadrado como “bandido social”. Delimita-se a atua-
ção de Paco como bandoleiro do período de 1912, onde surge o primeiro
processo criminal, até 1930, seu assassinato acontece no início de 1931
(LONDERO, 2011).
Francisco Sanchez Filho provinha de família espanhola, um grupo
minoritário inserido em colônias italianas. A família Sanchez2, ao que
tudo indica, pode ter sido desapropriada de sua terra, pobres e com filhos,
transfere-se da colônia Dona Isabel (atual município de Bento Gonçal-
ves, RS) para Alfredo Chaves, onde Paco passa a trabalhar em casa de
comércio. Posteriormente, com transporte da madeira e seu escoamen-
to, conheceu detalhadamente a região nordeste do estado. Com isso foi
usado pelas elites comerciais e políticas da época em diversas funções,
entre elas: como uma espécie de segurança das casas comerciais e dos
políticos, além de cabo eleitoral, garantindo na região a maioria de votos
do Partido Republicano Rio-Grandense, muitas vezes através da violên-
cia permitida pela própria polícia. Porém houve o momento em que os
interesses se alteraram, principalmente em função da união dos partidos
Republicano, e da Aliança Libertadora (FUG), que até então eram ini-
migos políticos. A unificação aconteceu com o objetivo de levar Getúlio
Vargas ao poder como principal líder do Brasil.
Desta forma, Paco, que anteriormente era visto como um aliado des-
sa elite política, comercial e policial, cometendo diversos delitos em prol
do grupo, passa a ser perseguido e silenciado.

“Os outros” na colônia italiana


Com o passar dos anos e a chegada de inúmeros imigrantes foram
criadas outras colônias além daquelas da serra gaúcha, como exemplo
e delimitação de espaço, está a colônia de Alfredo Chaves. Conforme

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 341


consta no livro “Povoadores das colônias Alfredo Chaves, Guaporé e
Encantado” (1997). A colônia de Alfredo Chaves foi fundada em 1884,
conhecida como Roça Reúna, local compreendido entre os rios da Prata,
Antas, Carreiro, município, então, de Lagoa Vermelha. Sendo que em
18863 chegaram as primeiras famílias italianas, tendo uma expansão po-
pulacional significativa com essa imigração, que ocorreu entre os anos de
1889 a 1893. “Com o decreto de 15 de janeiro de 1898, Alfredo Chaves
desmembrou-se de Lagoa Vermelha que até então fazia parte como 3º
distrito e constituiu-se município” (COSTA, 1997, p. 19). Esta localidade
foi a segunda morada da família Sanchez no Brasil.
Francisco Sanchez Filho era famoso em toda a região nordeste do
Rio Grande do Sul. Uma figura curiosa, temido por muitos, usado pelas
elites da época, inclusive como assassino, bandido cruel para aqueles que
eram contra o Partido Republicano, mas uma espécie de Hobin Hood para
aqueles que não interferiam em suas práticas. “Foram ‘atribuídas’ a Paco
mais de 150 mortes, centenas de furtos e milhares de atos que demonstra-
vam a sua preocupação com o bem-estar dos camponeses” (PARIS, 1999,
p. 175). Sobre a família de Paco, encontra-se diferenças entre as princi-
pais obras analisadas que tratam sobre o assunto4. Sabe-se que era filho
de Francisco Sanchez Collados e Antonia Pilar Buenazella. Conforme
aponta Gustavo Guertler:

Um casal destoava do grupo de italianos. Francisco Sanches


Collados e Antonia Pillar Buenazella eram os primeiros es-
panhóis de que se tinha notícias em Dona Isabel. Aparece-
ram junto com o grupo de Gênova, embora sua origem fosse

3  COSTA (1997), referente a colônia Alfredo Chaves, cita na página 19 da obra que as primeiras
famílias italianas chegaram na localidade de Alfredo Chaves em 1886, mas existem controvérsias
sobre o ano exato da chegada destes imigrantes.
4  Nos detemos em analisar mais profundamente três obras em relação a vida de Paco, que são:
GUERTLER, Gustavo. Paco. Caxias do Sul: Editora Maneco, 2ª edição, 2006. PFEIL, Antônio
Jesus. O trágico fim do bandido Paco. Porto Alegre: EST edições, 1995. PARIS, Assunta De. Memórias:
Bento Gonçalves – 109 anos. Coord. por Assunta De Paris. Prefácio do Irmão Nadir Bonini Ro-
drigues. Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves: Arquivo Histórico Municipal. Porto Alegre:
Editora Suliani, 1999.

342 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


o Chile. Mas se assemelhavam aos demais nas característi-
cas pessoais: tinham entre 35 e 40 anos, duas filhas (Maria e
Dolores) com menos de 10 anos, eram pobres e agricultores
(GUERTLER, 2006, p. 22).

Enquanto no livro “Alfredo Chaves e seus imigrantes” (1997), en-


contramos a família de Paco citada em meio a nomes de outros imigran-
tes de origem espanhola, como: Lopez Gonzales, Barionuevo, Perez,
Fuentes, Gallardo, Gimenes. Este fator por si só já levantaria um estudo
detalhado referente à colonização do Rio Grande do Sul, onde se encon-
tra a citação:

SANCHES, COLODO, Francisco, 40, c. esp., Almeria. Anto-


nia, mulher, 38, Maria Jesus, filha 16; José 13; Ramon, 6;
Dolores, 4; agric. Chegada: 7-2-1889. Estabelecimento: 7-2-
1889. Linha 5º secção M.E.R. das Antas, lote 11, fl. 34, n.
1291-1296 (COSTA, 1997, p. 15).

Já na obra intitulada “O trágico fim do bandido Paco” (1995), o au-


tor comenta sobre o nascimento de Paco.

A 29 de maio de 1889, seis meses antes da Proclamação da


República, nasceu numa das principais ruas de Bento Gon-
çalves, na época formada pelas colônias Dona Isabel e Conde
D`Eu, Francisco Sanchez. Foram seus pais Francisco San-
chez Collados e D. Antonia Buenazella que, desgostosos com
o comportamento (...) do filho que, já na primeira infância,
se havia revelado como portador de um caráter perverso (...)
mudaram-se para o interior da colônia Alfredo Chaves (COR-
REIO DO POVO, 1931 apud PFEIL, 1995).

Em contrapartida, na obra “Memórias: Bento Gonçalves” (1999), a


família Sanchez é descrita.

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 343


Em uma das dezenas levas de imigrantes italianos que chega-
ram à Serra Nordeste do Rio Grande do Sul, em 1886, havia
um casal de espanhóis Francisco e Pilar Sanchez. Eles trou-
xeram duas filhas pequenas, Maria e Dolores. E um terceiro
veio na barriga da mãe, que engravidou durante a travessia
do Oceano Atlântico. Seria o primeiro filho homem e recebia
o nome do pai, como era tradição na família, acrescido da
palavra Filho, Francisco Sanchez Filho viveria 45 anos e se
tornaria uma lenda (PARIS, 1999, p. 177).

Observa-se que existe uma discrepância nas informações. Enquanto


Rovílio Costa (1997) mostra em um levantamento detalhado os nomes
dos primeiros imigrantes de Alfredo Chaves com instalação na colônia
em 1889, citando a família Sanchez e seus filhos, onde ainda não consta
o nascimento de Paco (há não ser que estivesse registrado como José),
o jornal Correio do Povo cita que a família “Sanchez”, havia- se muda-
do das primeiras colônias receptivas de imigrantes italianos para Alfredo
Chaves, desgostosos com o comportamento do filho Francisco Sanchez
Filho (Paco). Já na obra sobre Bento Gonçalves, cita-se que Pilar Sanchez
estaria grávida de Paco.
Portanto, o que se busca apontar nestes curtos trechos, além das di-
ferenças de informações, é a questão da mudança da colônia Dona Isabel
para Alfredo Chaves, afinal teriam simplesmente se mudado impulsiona-
dos pelo desgostoso comportamento do filho que nem aparece nascido
em todos os registros, ou teriam sido desapropriados da “sua terra” em
função da precária condição financeira, e consequentemente da falta de
pagamento do lote?

Nos anos de 1920 não havia quem não conhecesse, na Serra


do Nordeste do Estado, o nome de Francisco Sanchez Filho,
o Paco (...). Nesta época, ele morava em três locais diferen-
tes. No Borgo, nos arredores de Bento, na Quinta Seção na
colônia de Pinto Bandeira, onde residiam seus pais, próximo
da Barranca do Rio das Antas, e na Linha Pereira Horta co-
nhecida como Quinta Magra, devido à baixa qualidade das

344 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


terras. Também andava por Nova Roma, distrito de Antônio
Prado. Todos estes lugares ficam em média, 15 Km de distân-
cia uns dos outros, caminhando por dentro do mato (PARIS,
1999, p. 181).

Através da citação acima, retirada da obra elaborada com docu-


mentos do arquivo histórico de Bento Gonçalves, intitulada “Memórias:
Bento Gonçalves” (1999), observa-se fatores interessantes como a locali-
zação das moradias de Paco e da família, além do nome das localidades
deixar evidente, inclusive, o tipo de solo, quem conhece a região sabe que
o “Borgo” era local de moradia das famílias menos abastadas, o local
chamado de “Barranca do Rio das Antas” também era problemático em
função das cheias do rio e ainda a localidade “Quinta Magra” que so-
mente pelo nome é nítido a pouca fertilidade do solo.
Por conseguinte, ao que tudo indica até o período de 1920, a famí-
lia não se encaixa em um padrão socioeconômico alto, além da possí-
vel desapropriação do primeiro local da instalação da família em Bento
Gonçalves, partindo para uma nova colônia, mas nos faltam dados para
termos total clareza de como ocorreram essas dinâmicas interligadas a
questões da colonização, poucos são os registros que trata da história de
vida daqueles que ficaram à mercê da marginalização colonial. É ironia
considerar que todos os imigrantes, independente da etnia, concretiza-
ram de imediato o sonho de serem proprietários de terra, existem casos
daqueles que não conseguiam quitar a dívida colonial, mas contrariando
esta opinião, o Jornal Correio do Povo (1931) aponta sobre Paco.

Em breve era senhor de três colônias. Logo depois, começava


a construir as suas casas. É curioso saber, entretanto, como
pagava ele os operários de que se servia. Obrigava-os a traba-
lhar e, de noite, mandava-os roubar, nos arredores, galinhas,
porcos, cabritos, etc. Com o produto do roubo, por eles mes-
mos feito, é que os pobres operários recebiam os salários a
que tinham direito (...). (CORREIO DO POVO, 21-02-1931
apud PFEIL, 1995, p. 17).

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 345


Durante o processo de colonização encontram-se famílias com di-
versos filhos. A questão religiosa não pode e não deve ser ignorada nos
estudos referentes a imigração, a falta de instrução, as catástrofes climá-
ticas, as dívidas principalmente com o comércio e com a terra, desde
ferramentas agrícolas até as sementes para o plantio. Portanto, em meio
a todos estes fatores, é evidente que existiram famílias que não consegui-
ram obter a cucagna5 no Brasil, permanecendo em baixo nível socioeco-
nômico. Além disso, de forma distinta, na citação do Correio do Povo,
encontra-se o seguinte relato referente a atitudes de Paco.

Em Nova Roma, Paco ficava no Hotel Campagnoni, contam


os antigos do lugar que por volta de janeiro ou fevereiro de
1930, (...) estava jogando e viu um jovem colono polonês tris-
te num canto. Reconheceu ser o filho de um amigo seu lá da
Quinta Magra, interior de Veranópolis. Perguntou o que se
passava, e o colono lhe relatou que havia jogado e perdido o
dinheiro da venda de uma junta de bois. Paco meteu a mão
no bolso e lhe deu a quantia que havia perdido e o aconse-
lhou: “Não jogue mais. Só quem ganha é o dono da banca”
(PARIS, 1999, p. 187).

Gustavo Guertler (2006), sobre “os Sanchez”: A família evitava o


contato mais profundo com os demais imigrantes da colônia Dona Isa-
bel, fazendo com que a curiosidade em torno do clã aumentasse. “Cir-
culava a história de que Dona Pilar possuía sangue nobre. Os pais dela
teriam sido contrários ao casamento com Francisco Sanches, um pobre
agricultor, e os dois resolveram fugir, primeiro para o Chile e em seguida
para o Brasil” (GUERTLER, 2006, p. 25).
O autor prossegue comentando sobre a vida difícil da família na ser-
ra gaúcha, as dificuldades, a postura do pai de Paco em não se envolver
nas intrigas e bebedeiras da comunidade, mas que a pobreza assolava a
família espanhola. Além disso, também eram caracterizados como ca-

5  Termo que os italianos utilizavam para se referir a uma suposta riqueza na América.

346 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


boclos no meio colonial. Débora de Magalhães Lima, antropóloga que
questiona sobre identidade cabocla amazônica6 explica.

Embora o termo (caboclo) transmita um significado preciso aos


leitores em potencial desses trabalhos acadêmicos, ele deixa
uma pergunta a ser respondida: se é um termo de identificação
do observador, qual é a identidade própria das pessoas às quais
o termo se refere? Os chamados caboclos, isto é, os pequenos
produtores rurais amazônicos, não têm uma identidade coletiva,
nem um termo alternativo e abrangente de autodenominação.
A única categoria de autodenominação comumente empregada
por toda a população rural é a de “pobre” (LIMA, 1999, p. 8).

Mesmo fazendo parte do grupo de imigrantes com o mesmo ideal:


ser proprietários de terra; encontra-se casos em que demonstram, nas
entrelinhas, que existiam diferenciações com base étnica. Neste artigo
não se querer dizer que somente os imigrantes italianos tratavam com
determinada timidez os vizinhos espanhóis, mas que o contrário também
acontecia, conforme já apontamos. Além disso, não é intenção defender
as atitudes de Francisco Sanchez Filho perante a comunidade regional,
mas sim, demonstrar alguns aspectos da rude vida da maioria dos imi-
grantes durante muitos anos após o início da colonização, que também
era agravada em função da dependência daqueles que serviam como polo
dinamizador da economia e das relações nas comunidades agrícolas, que
eram os comerciantes e políticos.

Comerciantes e colonos: simbiose de interesses7


Tratar da região colonial italiana ou alemã sem falar do comerciante
é quase impossível.

6  Apesar de a antropóloga trabalhar com o termo envolto na identidade cabocla amazônica,


considera-se pertinente esta análise como um olhar ao todo.
7  Nesta parte do texto, em específico sobre os comerciantes, partes pontuais foram retiradas da
dissertação de mestrado da autora, que ainda não foi publicada. A dissertação foi defendida em
2016 pela Universidade de Passo Fundo-UPF.

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 347


Ao redor desse ator socioeconômico surgem explicações so-
bre a origem da industrialização da Região Colonial e de ou-
tros espaços de maior amplitude. Ele é o elo de ligação de
inúmeros processos econômicos locais na sua relação com o
mundo externo à colônia (TEDESCO, 2001, p. 45).

O negociante, termo mais utilizado no meio rural, não teria sucesso


sem a sua freguesia, esta representada pelo colono, assim como o colono
dependia do comerciante, formando desse modo uma “simbiose entre o
comércio e a agricultura” (ROCHE, 1969, p. 403). O contexto em que
esses personagens estavam inseridos era desigual, pois existia um número
muito maior de colonos, se comparado ao de comerciantes, sendo assim,
a oferta de produtos agrícolas para as lojas ou casas de comércio era
muito maior que a procura, levando os colonos, em diversas situações,
a receberem valores baixos por seus produtos. Em consequência disso,
nessa simbiose, os colonos trocavam seus produtos pelas mercadorias que
não produziam.
Sabe-se que em muitos locais passaram-se décadas até que as colô-
nias tivessem estradas relativamente boas para o tráfego de carroças, ca-
valos e carreteiros, mas facilmente essas estradas transformavam-se em
lama, tornando o transporte de produtos muito difícil e demorado. Os co-
merciantes, além de proprietários das casas de comércio, eram os donos
das carretas, e no início da colonização, dividiam-se entre o atendimento
nas casas de comércio, e o transporte de mercadorias. Dessa maneira, os
colonos que não tinham condições de arcar com seu próprio transporte
para escoar seus produtos, ficavam na dependência dos comerciantes.
Ou seja, existia um monopólio por parte dos comerciantes e ainda é
pertinente destacar que não é raro evidenciar que muitos italianos inse-
ridos nas áreas de colonização do Rio Grande do Sul vieram para o Bra-
sil com determinado dinheiro para investir no comércio, pois em alguns
casos eram industrialistas ou comerciantes na Europa. Desta forma, já
sabiam que era necessário ter determinado comércio para abastecer as
colônias agrícolas. As casas de comércio e oficinas artesanais estavam li-

348 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


gadas à terra, e como definiu Roche (1969, p. 403), “essa simbiose” direta
entre o agricultor e o negociante manteve-se durante um longo período.
Já João Vicente Tavares Dos Santos (1977, p. 199) afirma que “o cam-
ponês do Brasil meridional define-se como um personagem não especifi-
camente capitalista reproduzido historicamente pelo modo de produção
capitalista”, ou seja, os agricultores ou colonos como chamados na RCI,
produziam para sua subsistência, mas em função das diversas necessi-
dades, inclusive com dívidas voltadas para a questão da propriedade da
terra, em muitas ocasiões, ampliaram sua produção.
A estabilidade financeira dos comerciantes nas colônias agrícolas
proporcionava atrelar os colonos cada vez mais as suas casas de comér-
cio. Eram os comerciantes os que comandavam o transporte das carretas,
além dos moinhos, associações em frigoríficos, evolução do comércio
para indústria, e até mesmo a instalação da energia elétrica. Com a me-
lhoria dos meios de transporte, e o surgimento dos caminhões, muitos
comerciantes aderiam também ao meio de transporte mais eficiente, mas
é interessante, conforme mostrou a longa análise realizada na pesquisa
de mestrado, que era comum, mesmo após se tornarem industrialistas,
manterem em pleno funcionamento as casas de comércio.

A relação entre comerciante e colono, estruturou a formação


de categorias empresariais ligadas a agroindústria, coopera-
tivas, frigoríficos, ao monopólio/ monospônio do comércio
de determinados produtos regionais. As oficinas, as ferra-
rias, as carpintarias, os moinhos, as pequenas destilarias, as
pequenas indústrias têxteis, serrarias, celarias, etc. São ex-
pressões regionais do formato econômico de determinadas
regiões. O comerciante foi o elo integrador desses processos
todos (TEDESCO, 2008, p. 132).

Portanto, os comerciantes foram expandindo seus negócios para ou-


tras cidades, estados, e exportando seus produtos. Percebiam as oportu-
nidades e faziam uso de sua condição financeira para buscar investimen-
tos, mas de acordo com as ideias de Eugenio Lagemann, a relação entre

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 349


imigração e industrialização não é tão espontânea como parte da histo-
riografia tenta justificar, ou seja, os imigrantes europeus (principalmente
italianos e alemães) foram importantes nesse sistema, mas não foram os
pioneiros. Aos imigrantes deve-se reconhecer as especializações de mão
de obra, as ramificações que seu trabalho trouxe e a expansão industrial,
mas não a constituição industrialista no Estado, pois não participaram da
principal economia rio-grandense, que foi a charqueada. Quando esses
europeus chegaram ao sul do país, já existia uma sociedade estabelecida,
o que precisaram fazer foi se engajar nela (LAGEMANN, 1980).
Além do quadro que tentamos brevemente delinear, é fundamental
evidenciar que, além da evolução das bodegas para as casas de comércio,
e em muitas situações destas para a indústria, outro fator foi fundamental
para ascensão socioeconômica dos comerciantes, que foi o engajamento
na política. Para os estudiosos sobre o comércio na zona colonial é co-
mum identificar que muitos comerciantes e seus descendentes fizeram e
ainda permanecem fazendo parte da política no estado do Rio Grande do
Sul. Possivelmente este era o principal elo que interligava os comercian-
tes com inúmeras oportunidades capitais, desde o início, como supostos
agenciadores de terras, como compadres de políticos, consequentemente,
e também em função da influência que exerciam nas comunidades, aden-
trando como próprios políticos.
Desde o início da colonização nos estados sulistas do Brasil surgem
diversos movimentos sociais, principalmente manifestações camponesas,
cujo pano de fundo estava a questão da terra.

Exemplo bem claro disso foram os movimentos camponeses


existentes nos estados do sul do país, Paraná, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul; desde 1873, com a revolta dos Muckers,
no município de São Leopoldo, região de colonização alemã
no RS; em 1902, os Monges do Pinheirinho, no município de
Encantado no RS; depois em 1912, o movimento do Contes-
tado, no interior dos estados do Paraná e Santa Catarina; e
em 1938, o massacre do Fundão que ocorreu entre os municí-

350 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


pios de Sobradinho e Soledade no RS. Portanto a história da
imigração é também história dos conflitos sociais (LONDE-
RO, 2011, pp. 151-152).

Além das manifestações brevemente citadas, o estado do Rio Gran-


de do Sul, passou por diversas mudanças no quadro político, também
propiciando o início de desavenças, como é o caso da Revolução de 1923,
que foi um conflito aramado no Rio Grande do Sul, com duração de 11
meses, que girava em torno do Partido Republicano Rio-grandense, que
apoiava Borges de Medeiros, e a Aliança Libertadora representada por
Assis Brasil. Considerada fraudulenta a reeleição de Borges de Medei-
ros ao cargo de presidente da província, deu-se início a um levante que
também atingiu as colônias distantes de Porto Alegre. Os revoltosos que
acreditavam na luta armada para impedir Borges de Medeiros de assu-
mir o poder, iniciaram assaltos e selvagerias também nas colônias. Então
ambos os lados da política entraram em conflito. Não cabe aqui discutir
razões específicas de cada grupo, mas sim demonstrar generalizadamente
que os ataques atingiam a grande massa populacional. A diferença é que
mesmo os comerciantes sendo prejudicados, contavam com maior apoio
das forças políticas do que o restante da população, pois eram os comer-
ciantes que representavam e muitas vezes conduziam a comunidade onde
viviam, de acordo com seus próprios interesses.
O contexto do comércio foi importante também para a família Sanchez,
não somente na questão econômica de venda de mercadorias, mas também
no que girou em torno do grupo. Após a pacificação da revolta política no
país, a família Sanchez teve mais motivos para celebrar um novo período.

Maria, a filha mais velha, preparava-se para casar. O marido


era o comerciante Serafim Vanelli, de Nova Pompéia, pro-
prietário de um pequeno mercado. Esperavam, com a vira-
da do século, que se desenhasse um cenário auspicioso para
construir uma família, muito diferente das imagens tristes
que os anos anteriores plantaram na memória. Precisavam
apenas de um auxílio para conseguir tocar o negócio de Va-

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 351


nelli, Francisco Sanches sugeriu ao casal levar Paco, que já
estava com 12 anos, era um garoto forte. Maria e Vanelli acei-
taram. O único filho dos Sanches abandonou então a casa da
família, levando consigo uma infância forjada pela desgraça
(GUERTLER, 2006, pp. 34-35).

Conforme Vendrame, “as casas de negócio, localizadas sempre mui-


to próximas às capelas, se caracterizavam como lugares de troca de infor-
mações, as notícias eram transmitidas e as opiniões expostas em acalora-
das discussões” (VENDRAME, 2013, p. 324). Sendo ponto de encontro
da comunidade, ali aconteciam jogos, brigas, e até mesmo mortes, princi-
palmente em função das discussões políticas, e apostas. Portanto, Paco ao
iniciar os trabalhos na casa de comércio do cunhado aprendeu inúmeras
artimanhas.

A cena se repetia outros dias na casa de comércio do cunhado


de Paco. Não fosse o “joguinho das tampinhas”, era o cartea-
do. Eles jogavam essencialmente, quatrilho, mora e escova.
Paco tanto observou o joguinho das tampinhas que desco-
briu o segredo. Na verdade, a semente não deveria ficar em
nenhuma das tampas. Enquanto movimentava-as, deveria
esconder a semente (...). Às vezes, deveria permitir que o
apostador ganhasse somente para incentivá-lo. No carteado,
a solução também era enganar. De preferência escondendo
cartas na bota (GUERTLER, 2006, p. 39).

Conforme demonstra Guertler (2006), Paco, não teve oportunidades


para estudar, viu a comunidade em que vivia passar por diversas crises
econômicas. Alfredo Chaves era um centro dinamizador na derrubada
de árvores, abrigava diversas serrarias, e isto trouxe consequências graves
para a comunidade, entre elas a infestação de gafanhotos que destruiu
as plantações, deixando inclusive o comércio sem poder estocar e conse-
quentemente ofertar produtos. Não bastasse isso, a comunidade percebia
que apesar do dinheiro destinado do então governo de Borges de Medei-

352 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ros para a colônia, muito pouco, ou nada, se viu aplicado na tentativa de
sobrevivência da região, ao invés disso cada vez mais eram aplicados im-
postos, o pouco que se tinha era taxado com o pagamento destas tarifas
(GUERTLER, 2006).
Desta forma, muitos jovens abandonaram o meio rural e passaram a
trabalhar principalmente com o transporte das torras pelo rio, que eram
atravessadas com o objetivo de comércio em localidades maiores. Este
foi o caso de Paco que, em função da grave crise econômica que assolou
os diversos setores da sociedade, teve que buscar renda fora da casa de
comércio do cunhado. Mas ao perceber o entorno do cotidiano, o jovem
Paco aprendeu que uma arma significava mais que autodefesa, significa-
va poder.

Paco: do comércio à política


Por ser conhecedor do meio rural onde vivia e mais com o trabalho
no transporte e derrubada da madeira, aprendeu a conhecer a região e
seus diversos caminhos, seja por terra ou pela água. Paco era uma figura
pertinente aos interesses políticos. E ao mesmo tempo que conhecia os
colonos, apesar de não ter tido a oportunidade de estudar, falava com
fluência o espanhol, herdado da família, o dialeto italiano que aprendeu
na comunidade e, inevitavelmente, o português. Além disso, Paco conhe-
cia o universo comercial, trabalhou com o cunhado e aprendeu todos
os trâmites, além dos jogos que encantavam as comunidades italianas.
Conforme Márcia Londero.

O período de atuação de Paco corresponde à mesma fase de


desenvolvimento capitalista no Brasil, apontada por Hobs-
bawn na Europa Ocidental. Paco atua como bandoleiro
principalmente de 1912 a 1930, espaço de tempo em que, no
Brasil, consolidava-se uma nova fase com o advento da Re-
pública. Esta era a fase em que o Rio Grande do Sul, dentro

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 353


do quadro conjuntural brasileiro, iniciava um investimento,
principalmente por parte do estado, na modernização e capi-
talização do mesmo (LONDERO, 2011, p. 151).

Quanto ao uso das identidades étnicas, Giralda Seyferth defende que


ocorre em diferentes esferas.

A afirmação da etnicidade também ocorre num outro pla-


no: o da reivindicação da cidadania. Apesar do ethos italia-
no, alemão e polonês marcar as identidades, todos se assu-
mem também como brasileiros. Isto é, assumem uma dupla
identificação como cidadãos brasileiros de pleno direito e ao
mesmo tempo diferentes dos outros brasileiros por terem um
ethos específico. Não se trata apenas de uma diferenciação
étnica com base em traços como língua e cultura comuns; as
identidades são marcadas pelo comportamento do indivíduo
dentro e fora do grupo étnico, um comportamento determi-
nado por sua herança nacional (SEYFERTH, 1986, p. 65).

Paco passa a trabalhar prestando serviço aos donos das casas comer-
ciais, além de ter supostamente sequestrado sua primeira esposa, também
filha de comerciantes. Era uma figura diria até que romantizada por al-
guns, estigmatizada por outros, e denegrida conforme os interesses. No
campo das relações conjugais, era o tipo mulherengo, com fama de raptar
as moças que lhe interessavam, tendo diversas uniões, além de muitos fi-
lhos, e apesar de descrito como sequestrador, as supostas esposas o carac-
terizavam como um bom homem e pai amoroso. Já na mídia é divulgado
que:

Em breve, porém, revelou-se, mercê da sua inclinação irre-


sistível pelas mulheres, um D. João Colonial. Simpático, con-
versador, não lhe era difícil insinuar-se no espírito ingênuo
das colonas. Em breve tinha um rosário de aventuras amoro-
sas, todas mais ou menos condenáveis. Violências, estupros,
raptos...Audacioso, não respeitava ninguém: sempre que co-

354 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


metia uma violação acabava espancando o chefe da família
(CORREIO DO POVO, 21-02-1931, p. 12, apud PFEIL, 1995,
p. 14).

Somente esta etapa da vida de Paco já daria uma análise mais pro-
funda.

A sua esposa, dona Maria (...), foi por ele sequestrada da casa
de seus pais, família Fachin, em Veranópolis. Tiveram dez
filhos. Mas contam que teve mais 15 com outras mulheres. O
jogo, lindas mulheres e sua valentia faziam de Paco um ídolo
para os camponeses e um competente cabo eleitoral para os
políticos da época (PARIS, 1999, p. 181).

Novamente surgem controvérsias ao que se refere ao depoimento


das mulheres que viveram com Paco, ele é descrito como amoroso, mas
em contrapartida, a mídia cita que costumava estuprar diversas mulheres
e espancar o patriarca das famílias. Seria medo das mulheres em delatar o
suposto marido, ou de fato, Paco tinha uma personalidade contraditória?
Ainda, conforme os jornais, Paco é citado como violento, mas nos relatos
encontrados no livro comemorativo aos 109 anos de Bento Gonçalves
(1999, p. 181), ele é descrito como “um ídolo para os camponeses”. Es-
tas contradições entre os jornais, e os relatos da comunidade seguem em
diversas esferas.
Paco passa a exercer funções variadas, tanto na região de Alfredo
Chaves, quanto na serra gaúcha, entre elas: proteger comboios, contro-
lar a travessia de mercadorias, e a segurança do comércio, fazendo ami-
zade com muitos bandidos que eram chamados pelos próprios políticos
para perseguir os colonos que eram contrários ao governo de Borges de
Medeiros, do Partido Republicano, sendo Paco um dos cabos eleitorais,
mesmo partido que a maioria dos comerciantes. Conforme Guertler
(2006), “Francisco Sanches Filho tinha crédito com muitos comercian-
tes. Não porque era uma pessoa amiga, mas porque impunha respeito”
(GUERTLER, 2006, p. 58).

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 355


Paco passou a participar ativamente em defesa e garantia de sucesso
dos candidatos ao Partido Republicano e, segundo os jornais da época,
através de ameaças, e agressões físicas mostrava o que acontecia com
aqueles que se posicionavam contra os republicanos. Fazia uso da vio-
lência conforme os interesses da política que o contratava. Portanto, até
o período de 1927 continuava com relações de trabalho tanto com co-
merciantes quanto com políticos, sem precisar se preocupar com a intro-
missão da polícia. “Desta forma, um por um, o bandido Paco quebrou a
cabeça a três eleitores dos mais entusiastas da oposição. Tudo isso na pre-
sença da polícia, que primou pela sua impassibilidade. (...) Com a estreia
do novel cabo eleitoral, Paco foi eleito Intendente” (ESTADO DO RIO
GRANDE, 07-03-1930. Este acontecimento, na época, em 1927, não foi
denunciado, apud PFEIL, 1995, p. 19).
As histórias de violência do famoso bandido chegavam a Porto Ale-
gre, onde as notícias eram relatadas nos jornais: Correio do Povo, Diário
de Notícias, Jornal da Manhã, Estado do Rio Grande, e outros. Enquan-
to o jornal “A Federação”, pertencente ao então Partido Republicano,
mantinha-se discreto quanto aos fatos que envolviam o bandido. Em con-
trapartida aos jornais que colocavam Paco como talvez o principal opres-
sor da comunidade, encontramos o relato de vizinhos da família.

O professor Antônio Franceschini, que foi vizinho da família


de Paco, na Quinta Seção, por mais de 30 anos, ficou feliz
quando soube que há gente que fala hoje que os políticos des-
conheciam a fama de Paco quando o procuravam para que
convencesse os colonos a votar neles. Lembrou que foi então
o promotor de Bento, Dr. Olinto Fagundes de Oliveira Frei-
tas, e Intendente Municipal de 1929 a 1932, quem procurou
Paco por diversas vezes para que ele “trabalhasse nas elei-
ções” (...). Contam que Paco caminhava pelas empoeiradas
ruas de Bento vestindo roupa preta, com os revólveres na cin-
tura e um chicote na mão. Nunca deixava de cumprimentar
ninguém. Era um homem de grande influência na comunida-
de (PARIS, 1999, p. 181).

356 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Apesar do início da carreira de Francisco Sanchez ter sido marcada
pelo apoio dos comerciantes, com o passar dos tempos e o aumento da
audácia do famoso bandido, seu prestígio caí em descredito, pois “a posi-
ção de Paco diante das autoridades a quem prestou seus serviços políticos
se consolida a ponto de, em combinação com o Subintendente de Alfredo
Chaves e Octacílio Vaz, organizar uma quadrilha de assaltantes” (PFEIL,
1995, p. 30). Esta quadrilha tinha como principal meta assaltar as maio-
res casas de comércio da região, sendo, a partir de então, os próprios
comerciantes que passam a denunciar os delitos do bandido.

Os colonos, lembrou o comerciante Pigozzo, vinham do inte-


rior do município para falar com ele na Prefeitura. Resolvia
os assuntos para os agricultores, desde briga de casal até falta
de recursos médicos. “Paco era um homem a favor do Gover-
no”, lembrou o professor Franceschini. Naquele tempo go-
vernava o Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, que tinha
como opositor Assis Brasil. O voto não era secreto. Segundo
analistas políticos, Borges de Medeiros, conseguiu ficar no
poder mais de duas décadas graças à bem montada e lubri-
ficada máquina eleitoral que criou, onde Paco era uma das
peças muito importantes na Serra Nordeste (PARIS, 1999, p.
181).

As histórias de violência do famoso bandido chegavam a Porto Ale-


gre. Desta forma, a imagem do Partido Republicano estava sendo man-
chada, entre outros fatos, pela tentativa de ataque contra o correligionário
contrário ao Partido Republicano, Antônio Tagliari Filho, que relatou o
ocorrido ao Jornal Estado do Rio Grande do Sul, em um artigo intitulado
“Um assassino em plena paz e liberdade”. Vale salientar que o mesmo
Antônio Tagliari Filho, havia sido advogado de defesa de Paco8.

8  Para mais informações sobre o assunto ver: LONDERO, Márcia. Parte III - Do bandido
social ao crime organizado. Paco: um bandido social da Serra gaúcha, 2011. Disponível em:
<http://books.scielo.org/id/ycrrp/pdf/santos-9788538603863-07.pdf>.

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 357


Essa incursão foi telegraficamente denunciada ao Partido
Libertador da Capital, por nosso amigo e correligionário Sr.
Antônio Tagliari Filho, pelo que a polícia dessa terra, 2 meses
após, altas horas da noite, com Paco junto, tenta atraí-lo à
janela de sua casa de residência para alvejá-lo. Não o conse-
guiu, mas arrombou-lhe a janela do escritório, à bala. E tudo
ficou impune (...). Fizeram parte além de Paco, Prazeres e ou-
tros facínoras de igual quilate. Dias depois, Paco afirmou que
fora encarregado, pelas autoridades, de eliminar o Sr. Antô-
nio Tagliari (ESTADO DO RIO GRANDE, 27-02-1931 apud
PFEIL, 1995, p. 30).

Desta forma, pressionado pela elite, o delegado Vaz passa a estra-


nheza com Paco, o ponto auge foi um desentendimento entre ambos após
assalto na casa comercial de Feres Miguel e Irmão (loja Independência)
em Bento Gonçalves, o atrito entre Paco e Vaz, teria se dado em função
da não partilha correta entre o bando que realizou o assalto. Para comple-
tar o desfecho da história, os donos da Loja Independência recorreram a
polícia da capital. Portanto, para o delegado Vaz, tornava-se interessante
assassinar, e não somente prender Paco, já que seu nome estava direta-
mente ligado ao bandoleiro (GURTLER, 2006).
Além disso, mesmo após tantos anos prestando serviços para os po-
líticos do Partido Republicano, a figura de Francisco Sanchez Filho não
interessava mais, já que os borgistas e assisitas uniram forças para levar Var-
gas à presidência da República, na então intitulada Frente Única Gaúcha
(FUG)9. O Governo Vargas, de 1930 a 1945, é dividido em três fases: Go-

9  Algumas questões fomentaram a Revolução de 1930. Entre elas: a queda da bolsa de valores
americana em 1929, que propiciou o declínio da compra do café brasileiro, que eram um dos
pontos altos na economia do país. Além das revoltas tenentistas e as greves operárias que de-
monstravam a insatisfação de parcela significativa da população com o então regime oligárquico.
No período conhecido como Primeira República, ou República Velha, destacavam-se de formas
socioeconômica principalmente as elites de São Paulo e Minas Gerais, o primeiro com destaque
na produção leiteira e o segundo com o café. A famosa política brasileira do café com leite per-
maneceu ativa durante quase todo o período da chamada Primeira República (1889-1930), onde
estes estados se alternavam no poder. Em 1929, era a vez de Minas Gerais subir ao poder, mas
esta hegemonia foi quebrada quando Washington Luís, então presidente, indica o paulista Júlio
Prestes como seu sucessor na presidência da República, criando grande insatisfação por parte

358 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


verno Provisório (1930-34); Governo Constitucional (1934-37); Governo
Ditatorial – Estado Novo (1937-45).
A partir da década de 1930, com a dita união da FUG não era mais
interessante manter todas as equipes políticas que garantiram a suprema-
cia por longo período dos borgistas. Em função disso, era necessário eli-
minar aqueles que poderiam vir a prejudicar a imagem de determinadas
elites da época, entre estas pessoas estava Francisco Sanchez Filho.

A prisão de Paco não seria interessante para o Delegado e


Subintendente Octacílio Vaz. Decidido a passar uma tempo-
rada em Santa Catarina, para amainar a perseguição que a
polícia de Bento Gonçalves vinha lhe fazendo tenazmente,
Paco contrata um carro de aluguel, chegando esta transa-
ção ao conhecimento do Subintendente, que imediatamente
planificou uma emboscada, resultando na morte do próprio
Octacílio Vaz e Waldemar Chaves, comandantes da polícia”
(PFEIL, 1995, p. 32).

Paco foge da emboscada que marca a morte de Octacílio Vaz, o


apoio da população em protegê-lo o favorecia, fazendo com que escapas-
se de diversas tentativas de homicídio. É interessante como a morte de
Octacílio Vaz, que por tempos foi comparsa de Paco, foi noticiada pelo
jornal Estado do Rio Grande.

É importante a notícia publicada no Correio do Povo, do dia


4 de setembro de 1929, provavelmente três dias depois do
conflito: “Tiveram lugar ontem, às 17 horas, as cerimônias

da oligarquia mineira. Criando assim instabilidades entre os apoiadores de ambas as potências


políticas do país, para suprimir tal adversidade, os então representantes dos estados de Minas
Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, aliados com uma parte dos descontentes da revolução te-
nentista, e outros insatisfeitos com os rumos políticos, apoiaram a candidatura de Getúlio Vargas
(RS) como presidente e João Pessoa (PB) como vice-presidente do Brasil, através do apoio da
então Aliança Liberal. A eleição para presidência em 01 de março de 1930 apontou a vitória para
os candidatos: Júlio Prestes e Vital Soares. Com o assassinato de João Pessoal resultante de um
conflito regional, a Aliança Liberal resolve colocar o gaúcho Getúlio Vargas como presidente da
República (FAUSTO, 1995).

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 359


de encomendação e sepultamento do senhor Octacílio Vaz,
delegado de polícia, morto em conflito quando ia prender o
famigerado bandido Paco. Estas cerimônias foram assistidas
por grande massa popular. Tão grande concorrência assim
ainda não se viu na vila. A Intendência Municipal conserva,
em sinal de pesar a bandeira a meio pau, homenagem exten-
siva ao comandante da polícia local, também vítima de Paco”
(ESTADO DO RIO GRANDE, 1931, apud PFEIL, 1995, p. 34).

As principais controvérsias em relação ao que era noticiada em di-


versos jornais se comprova com os relatos dos conhecidos de Paco, onde
os depoentes deixam claro a ajuda que o sujeito recebia dos colonos.

Os colonos que protegiam o Paco também foram pressio-


nados pelas autoridades a revelar o seu paradeiro. Olímpia
Bertalanda, descendente da família que deu abrigo a Paco
na Quinta Seção, depois do episódio do delegado Vaz, con-
tou que “muitos vizinhos nossos perderam tudo porque as
autoridades chegavam e queriam saber onde Paco andava.
Eles diziam que não sabiam e os policiais jogavam fogo nas
coisas”. No final de 1928 Paco foi encontrado em uma das
casas de agricultores que o protegiam – era a família Batiste-
lla, em Pinto Bandeira. Contam que quando a polícia entrou
pela porta ele saiu por um alçapão que dava direto para o
Rio das Antas onde havia um barco à espera. Acuado pelas
autoridades. Paco deitou-se próximo a um tronco de árvore
caído. Um dos soldados o viu e gritou para os seus compa-
nheiros: “olha lá ele correndo”, apontando em outra direção.
Este militar, segundo depoimentos de contemporâneos seus,
era compadre de Paco e o protegeu naquela hora. Novamente
ele refugiou-se nas cavernas nas barrancas do Rio das Antas
(PARIS, 1999, p. 187).

Sendo evidente as boas relações que Paco mantinha com a comu-


nidade em geral, pois no momento que estava jurado de morte, muitos

360 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


colonos e até mesmo parte da polícia o protegiam. Ainda, o famoso ban-
dido também fazia uso de suas artimanhas.

Paco não era só um homem corajoso e rápido de gatilho. Era


também astuto (...) ele não saiu de Bento, porque sua espo-
sa, Maria, estava hospitalizada e a polícia vigiava o hospital,
acreditando que tentaria vê-la. Segundo o Sr. Luiz Zanini,
circulava na cidade, naquela época, o boato de que “ele abri-
ria caminho à bala para ver a mulher”. Mas esta não era a
intenção de Paco. Vestido de mulher ele conseguiu entrar na
enfermaria onde estava a sua companheira. Só foi reconhe-
cido por um dos praças que fazia vigilância no local quando
estava de saída, mas conseguiu escapulir (PARIS, DE, 1999,
p. 184).

Além de poder contar com a ajuda de grande parte da população,


Paco também era astuto e sabia ser um homem que se socializava. Após
o assassinato de Octacílio Vaz, um novo delegado assume a tarefa de
caçá-lo.

(...) Paco seguiu para os limites da cidade e foi bater na casa


do delegado Amadeo Ventorello, que não estava. Tinha ido
lá para matá-lo, relatou o descendente da autoridade. Foi re-
cebido pela esposa do delegado, que o convidou para entrar.
Segundo este descendente, ela não sabia que estava conver-
sando com Paco. “Papearam por longo tempo e depois ele foi
embora. O delegado Ventorello recebeu mais tarde um bilhe-
te de Paco dizendo: O senhor desistiu de me matar depois
que conversei com sua senhora?” (PARIS, 1999, p. 184).

Protegido por alguns e odiado por outros, Paco ficou esquecido por
um determinado período da mídia, escondendo-se nas furnas do rio das
Antas, principalmente após saber que outro bandido havia sido contra-
tado para ajudar em sua caçada, era o famoso bandoleiro e assassino
Antônio Torres. Para Paco era evidente que se não tentasse agir acabaria

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 361


morto, por isso, resolveu escrever uma carta endereçada para as autori-
dades, com a esperança de após tantos serviços prestados poder ser salvo.

Paco endereçou ao chefe da polícia, por intermédio de um in-


fluente político, uma carta, que nunca chegou ao seu destino,
na qual afirmava que estava disposto a se entregar às autori-
dades, com a condição de lhe ser garantida a vida, prontifi-
cando-se ainda, a restituir a seus donos os valores roubados.
Quanto aos crimes de morte, e aí talvez o motivo do extravio
da carta, estava às ordens das autoridades para comparecer
aos tribunais, quando então explicaria a origem dos primei-
ros delitos – agira por ordem de certas autoridades. A estas,
é claro, não convinha a apresentação de Paco, e seus amigos,
que sempre se mostraram, o que não será difícil comprovar,
passaram a ser rancorosos inimigos, instruindo os persegui-
dores para que o matassem (JORNAL DA MANHÃ, 1931,
apud PFEIL, 1995, p. 45).

A carta não chegou ao seu destino e Paco foi assassinado em uma


emboscada no interior de Veranópolis, com 280 tiros em 1931. Sobre as
notícias em relação a sua morte, destacamos.

Depois de morto, em uma emboscada armada pelas autorida-


des na Quinta Magra, em Veranópolis, em 1931, Paco, passa a
ser assunto nos jornais de Porto Alegre. O Diário de Notícias,
em matéria publicada em 28 de fevereiro daquele ano, escre-
ve: “o que foi o velório de celebre facínora – Enquanto sobre
um improvisado leito de morte o terrível bandido dormia o
seu último sono, uma esposa e mais de dez filhos choravam
desesperadamente a morte de seu chefe e protetor. – O curio-
so sabor da “philosophia ingênua” dos que se habituaram à
vida de crime e de aventura, através de uma impressionante
exclamação da viúva de Paco. A Federação, jornal do Partido
Republicano, de Borges de Medeiros, o qual ele defendeu, se-
quer noticiou sua morte. Neste dia falava do bom andamen-
to das relações entre borgistas e defensores de Assis Brasil,
grandes inimigos políticos no passado (PARIS, 1999, p. 189).

362 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Já o jornal Correio do Povo divulgava:

“Paco foi assassinado no dia 20 de fevereiro de 1931 e no dia


seguinte o Correio do Povo estampou em letras garrafais: A
polícia de Alfredo Chaves, em sensacional “caçada”, pôs ter-
mo às aventuras do mais temível bandido que já infestou a
zona colonial” (JORNAL CORREIO DO POVO, 1931, apud
PFEIL, 1995, p. 46).

Paco serviu por décadas aos interesses das elites da região, princi-
palmente dos políticos. Usou da violência em defesa da manutenção do
poder do Partido Republicano, após a união dos partidos de Borges de
Medeiros e Assis Brasil, Paco se tornara uma figura malvista aos novos
interesses da política. Sabia demais, tinha usado todos os atributos em
prol das boas relações da alta sociedade, e poderia manchar ainda mais
a nova imagem que o Rio Grande do Sul vinha construindo na política,
afinal o maior interesse no momento era apoiar Getúlio Vargas na repre-
sentação do Brasil.

Considerações finais
Francisco Sanchez Filho era de família espanhola, um grupo mino-
ritário inserido em um território composto majoritariamente por italia-
nos, sendo caracterizados pelo grande grupo como caboclos. A família
Sanchez, ao que tudo indica, pode ter sido desapropriada de sua terra,
pobres e com filhos se transferem da colônia Dona Isabel para Alfredo
Chaves, onde Paco passa a trabalhar em casa de comércio, após com o
transporte da madeira e seu escoamento, aprendendo a conhecer detalha-
damente a região nordeste do estado, e, portanto, foi usado pelas elites
comerciais e políticas da época em diversas funções, entre elas: como
uma espécie de segurança das casas comerciais e dos políticos, além de
cabo eleitoral, garantindo na região a maioria de votos do Partido Repu-

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 363


blicano Rio-Grandense, muitas vezes através da violência permitida pela
própria polícia. Até o momento em que os interesses políticos se alteram,
em função da união dos partidos Republicano e da Aliança Libertadora
(FUG), a ligação aconteceu com o objetivo de levar Getúlio Vargas ao
poder. Desta forma, Paco que anteriormente era visto como um aliado
destas elites, cometendo diversos delitos em prol do grupo, passa a ser
perseguido e silenciado.
Existem muitas controvérsias nas fontes analisadas, em alguns casos
ele é descrito como um bandido temido pela população local, em outros
ele surge como um sujeito que protegia e lutava pelos direitos dos colonos
que apoiavam seu partido, ainda, foi descrito como estuprador e violento.
Talvez teria se revoltado pela dura realidade que cresceu ou até mesmo
estigmatizado pela mídia, mas faltam inúmeras pesquisas sobre a perso-
nalidade de Francisco Sanchez Filho. Em relação a sua família também
muito pouco foi escrito. Sabe-se que “oficialmente” teve três esposas e
diversos filhos, as fontes relataram que a família de Paco não quer se ma-
nifestar quanto a história desta chamada lenda da região nordeste do Rio
Grande do Sul, inclusive, um projeto cinematográfico sobre a sua vida
não foi autorizado. Talvez a família ainda viva uma dor silenciada.
A intenção foi mostrar que quando tratamos de histórias de vidas, ao
analisar estudos de casos, abrem-se infinitas possibilidades de pesquisa.
Paco se tornou um bandido, pois em muitas ocasiões foi pago para isso,
além de assassino e cabo eleitoral. Não se quer defender suas atitudes,
mas apenas demonstrar que em determinadas situações os marginaliza-
dos pelo sistema social, e em análise, também marginalizados pelo siste-
ma de colonização do estado, que em pouco são estudados, podem op-
tar por uma vida à mercê do crime. Tentou-se demonstrar que Francisco
Sanchez Filho também foi usado pelos homens que ditavam as regras da
sociedade, e após, descartado. Sendo visto por alguns como um herói que
ascendeu socialmente e ajudou os necessitados, e por outros como um
bandido e assassino cruel.

364 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


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maio 2019.

MARINA, Marinilse. Paco: herói ou bandido? 365


366 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Adeodato:
a demonização do último líder caboclo
na Guerra do Contestado

Delmir José Valentini

N os primeiros anos da república brasileira ocorreram movimentos


de contestação e resistência de grande expressão, entre outros,
no Nordeste o episódio de Canudos e no Sul o movimento do
Contestado1. Neste último, a soma de eventos desconectados2 se mate-
rializou no contexto da instalação dos trilhos da ferrovia que ligou o Su-
deste ao Sul do Brasil, através dos projetos de colonização, da extração
industrial e comercial de madeiras, institucionalização de propriedades
privadas, fatores econômicos e culturais que, juntos, foram decisivos na
situação de exclusão, marginalização e de revolta dos antigos moradores
onde ocorreu o Movimento do Contestado.
Sobre o Movimento do Contestado, um dos temas que instigou
estudiosos, pesquisadores e interessados no assunto foram as lideranças e
suas influências. Tanto no contexto anterior, bem como durante o confli-

1  A Guerra do Contestado já foi objeto de estudo de diversas ciências. A própria denominação


sofreu significantes mudanças, sendo denominada de revolta, conflito, genocídio, insurreição,
entre outras ao longo do tempo subsequente as primeiras décadas do Século XX. Oficiamente a
Guerra do Contestado é situada entre os anos de 1912, sendo o ponto inicial o combate do Irani
e o ano de 1916 com a assinatura do acordo de limites entre Santa Catarina e o Paraná.
2  TARROW, Sidney. O Poder em Movimento: movimentos sociais e confronto político: Petró-
polis, Vozes: 2009.
to armado e mesmo depois dos acontecimentos bélicos. Diversas ciências
estudaram a presença de monges, de personagens messiânicos, de curan-
deiros e benzedores presentes no contexto de pouco mais de meio século,
no período que antecedeu a luta armada. Além dos estudos, nas memó-
rias dos seus protagonistas, são constates as referências a estes e outros
líderes que se destacaram nos diversos contextos mesmo antes, durante e
até depois do ano de 1916.
Entre as lideranças destacadas durante o movimento do Contesta-
do, não faltaram líderes transformados em heróis pela historiografia, mas
também é possível buscar os excluídos e marginalizados, não raras vezes
destacados como bandidos, messias, intrusos, jagunços, incautos, desor-
deiros, facínoras ou ainda, como destacou um periódico, por ocasião da
prisão do último líder do Guerra do Contestado: “O demônio está preso,
é ele mesmo, em carne e osso”, referindo-se a Adeodato3.
Adeodato foi o último líder aguerrido, depois de uma sequência
de comandantes desde que principiaram os primeiros ajuntamentos ao
redor do curandeiro de ervas denominado José Maria, que liderou um
grupo de pessoas a partir da festa do Senhor Bom Jesus na localidade de
Taquaruçu, então interior do Município de Curitibanos Santa Catarina,
depois se deslocou para o local denominado Banhado Grande, próximo
do atual município do Irani, este último então fazendo parte da vasta
região dos Campos de Palmas no Paraná.
Depois da morte de José Maria, no ano de 1912, os ajuntamentos
reiniciaram com as visões das virgens e dos meninos de Deus, iniciadas
no final do ano de 1913, tiveram sequência um conjunto de lideranças
que passaram a atuar nos diferentes redutos, as cidades santas4, de dife-
rentes modos. No início com características messiânicas e na expectativa
da volta do monge, porém, de um determinado tempo em diante com a

3  Jornal o Imparcial. Edição do dia 06 de agosto de 1916. Canoinhas – Santa Catarina.


4  Redutos ou cidades santas foram os locais onde se reuniam os sertanejos para rezar e viver
segundo as regras que foram criando em cada situação, dependendo dos líderes, da fartura de ali-
mentos, do entusiasmo religioso, da situação bélica diante das forças que atacaram os moradores
durante o conflito bélico, entre outros.

368 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


presença de líderes e aptidões distintas, tendo encerrado o movimento na
etapa dos líderes aguerridos, sendo Adeodato o último a liderar no reduto
de Santa Maria, São Pedro e São Miguel, encerrando quando, depois de
resistir por quase dois anos, este se entrega no ano de 1916.
Além de destacar o personagem e as atribuições feitas ao último
líder caboclo, neste texto se pretende mostrar que, além das atribuições
feitas aos líderes, principalmente Adeodato, existiram sujeitos inseridos
num contexto social que passou por grandes transformações e resistiram
do modo singular ao novo modelo que se estabelecia, não sem o paga-
mento de um alto custo a ser saldado por muito tempo, principalmente
pelos líderes, mas também por todo o grupo étnico envolvido e os des-
cendentes dos protagonistas do movimento conhecido na historiografia,
entre outras denominações, como Guerra do Contestado.
Na elaboração deste texto, além de referências bibliográficas, fon-
tes orais com depoimentos de remanescentes e descendentes de mora-
dores dos redutos, periódicos da imprensa e arquivo documental, prin-
cipalmente o auto de prisão e perguntas lavrado na Delegacia de polícia
de Canoinhas no dia 02 de agosto de 1916, quando Adeodato foi preso
e, na condição de réu, foi interrogado e deixou um conjunto de respostas
sobre o seu envolvimento na Guerra do Contestado, do acervo do arquivo
público de Canoinhas SC.

Duas décadas de grandes transformações e crise social na


Região do Contestado
Entre o final do Século XIX e o início do XX, profundas transforma-
ções ocorreram no contexto político brasileiro. As mudanças institucio-
nais do sistema monárquico para o republicano brasileiro protagonizaram
um conjunto transformações que alteraram muitos aspectos da sociedade
brasileira. Neste contexto, brasileiros da cidade e do campo vivenciaram
a mudança do regime político e as alterações cotidianas que provocaram

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 369
mudanças agudas. Para os moradores que viviam na atual mesorregião
da fronteira da Mercosul, apesar do isolamento e da distância do centro
decisório político, a instalação de uma ferrovia colonizadora marcou o
início das mudanças estruturais que sacudiram as velhas tradições e mar-
caram um período de crise.
Um projeto iniciado ainda durante o império brasileiro e executa-
do já nos primeiros anos da república foi a construção de uma ferrovia
colonizadora ligando o Sudeste ao Sul do Brasil. Por questões geopolíti-
cas as autoridades perceberam que qualquer estratégia de defesa passava
pela ocupação e pela colonização de regiões historicamente ocupada por
moradores dispersos, criadores de gado, ervateiros e simples lavradores
servidos por caminhos precários, isolados pela distância e sobrevivendo
como posseiros em áreas de fronteiras, constantemente disputadas, envol-
vidas em litígios que vinham desde os tempos das colônias portuguesas
e espanholas, disputas jurídicas protagonizadas no Século XIX pelos es-
tados do Paraná e de Santa Catarina e também envolveu a contestação
com a Argentina na “Questão de Palmas”, arbitrada em favor do Brasil
por um presidente norte-americano no ano de 1895. A construção de
uma ferrovia colonizadora poderia aproximar uma região historicamente
distante da região central brasileira e em constante dúvida quanto a sua
jurisdição.
Entre os aspectos da formação social, encontramos os moradores da
vasta região contestada inseridos numa sociedade pastoril, constituída a
partir da família de um fazendeiro, proprietário de terras, criador de gado
e aglutinador de um grupo maior constituído por escravos, peões e agre-
gados. Oswaldo Rodrigues Cabral descreveu a sociedade pastoril a partir
dos fazendeiros e de uma família do tipo patriarcal, ampliando o círculo
da influência “com a proteção dispensada a vizinhos menos afortunados,
com a solidariedade demonstrada em momentos de dor ou de dificulda-
des, com o compadrio que as relações de boa vizinhança acarretavam
e, assim, unindo laço após laço, passaram a constituir grandes grupos”
(CABRAL, l960. P. 90).

370 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Outra observação e descrição da sociedade pastorial da região con-
testado veio de um general que participou na etapa final da Guerra do
Contestado e pontuou que a estrutura social da região. Destacou ainda o
poderio ilimitado dos proprietários das terras e suas relações com seus su-
bordinados: “E a diferença de condição entre o proprietário e o camarada
era e é de tal sorte manifesta que suas relações em muito se assemelham
às que deveriam existir entre escravos e senhores” (SETEMBRINO DE
CARVALHO, 1916, p. 3).
Outro relato, advindo de um sociólogo, aponta o entendimento so-
bre a formação social existente, as contradições e os modos de tratar com
as diferenças existentes nesta sociedade:

Laços de compadrio e afilhadagem ligavam ainda mais o fa-


zendeiro ao pessoal que não pertencia à própria família; em
certos casos, esses laços envolviam sitiantes e posseiros iso-
lados, que residiam mais ou menos distantes da fazenda.”(...)
“Procurava-se manter, isto sim, o mito de que não havia an-
tagonismo, no interior do grupo, e realmente, a crença de que
o fazendeiro seria o maior e o mais sincero defensor de seus
parentes, compadres e afilhados se conservava até que a vida
se encarregasse de demonstrar o oposto (VINHAS DE QUEI-
ROZ, 1966, p. 39).5

O sistema de compadrio reforçava os laços sociais solidários, cons-


truídos dentro de contextos que encontram similaridades, contradições e
resignações. Neste contexto a presença de benzedores, curandeiros, ere-
mitas e monges também fazia parte do universo religioso cotidiano dos
moradores da vasta região desassistida pelo estado brasileiro. Entre ou-
tros, é possível situar a presença de três monges que palmilharam a região
em distintos contextos. Um primeiro personagem italiano denominado
João Maria de Agostini peregrinou pela América Latina, deixando mar-

5  O sistema de compadrio era comum entre os sertanejos. Para os agregados convidar o fa-
zendeiro como compadre poderia significar proteção, e, em contrapartida, fidelidade para com o
mesmo (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 39).

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 371
cas registradas no Brasil desde Sorocaba SP, Santa Maria e Porto Alegre
RS e na Ilha do Arvoredo em Santa Catarina, depois, palmilhando a
América pela Argentina até morrer no Sul dos Estados Unidos, na épo-
ca, em território pertencente ao México6. A presença deste monge ficou
registrada desde a metade do século XIX até o início do Século XX.
Outro monge, amplamente reconhecido pelas populações interiora-
nas durante o final do Século XIX e início do XX, foi João Maria de
Jesus, sendo atribuído a este uma possível nacionalidade francesa ou sírio
libanesa. Palmilhou a vasta região do sertão do Brasil Meridional, dei-
xando intensas marcas, herdou a memória do anterior, benzeu, curou,
profetizou e batizou por todos os lugares que visitou. Deixou um legado
de fontes de águas consideradas miríficas ou medicinais, cruzeiros erigi-
dos, locais de rezas e uma fabulosa memória das boas obras que realizou.
Um terceiro personagem, representado pelo curandeiro de ervas conheci-
do como José Maria de Santo Agostinho, na véspera do início da Guerra
do Contestado, aglutinou um conjunto de pessoas no contexto da etapa
final da instalação dos trilhos ferroviários na região, protagonizou o com-
bate do Irani no ano de 1912 e liderou os caboclos no primeiro combate
do movimento bélico.
O contexto de abandono da população rural dispersa pelo interior
do Brasil, no início do Século XX, propiciava o surgimento de líderes
de caráter místico e religioso tanto de fora quanto da própria região. As
dificuldades eram amenizadas com as palavras proferidas pelos monges e
as curas depositadas nos benzimentos e nas rezas. Situações de violência
eram cotidianas, injustiças sociais e falta de tranquilidade apontam uma
sociedade de muitos sujeitos e distante de qualquer possibilidade do pro-
gresso, tão preconizado pela geração de militares mentores da proclama-
ção da república no Brasil.
Estudioso do conflito do Contestado, o Sociólogo Duglas Teixeira
Monteiro identificou dois tipos de violência nesta região: a violência cos-

6  KARSBURG, Alexandre de Oliveira. O Eremita das Américas: a odisseia de um peregrino italiano no


século XIX. Santa Maria: Editora da UFSM, 2014.

372 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tumeira, cotidianamente enraizada nas relações estabelecidas entre os
membros do grupo hierarquizado, tendo o proprietário da terra, fazen-
deiro ou coronel como senhor absoluto e detentor do patrimônio fundiá-
rio e os demais membros deste grupo, já descritos anteriormente, todos
subjugados pelo isolamento dos centros urbanos, distância de qualquer
auxílio em termos de assistência para a população regional que viva sem
escolas, igrejas, hospitais, cartórios e delegacias. O outro tipo de violência
identificada pelo estudioso foi denominada de inovadora, surgiu com a
chegada dos trilhos da ferrovia inaugurada na primeira década do Século
XX.
A violência inovadora é identificada pelo sociólogo no modo brus-
co das mudanças ocorridas em pouco tempo, quando o grupo da Brazil
Railway Company passou a atuar na região do Contestado. A empresa
americana recebeu como parte do pagamento pela construção da ferro-
via a concessão de uma área de terras próximas dos trilhos, podendo
desalojar os moradores que não tivessem documentos e registros sobre
as propriedades ocupadas. A segurança da empresa era formada por um
grupo paramilitar que atuou na repressão contra os moradores antigos
que discordassem das decisões oficiais.
A violência inovadora se tornou institucionalizada e a população
pobre do Contestado, já abandonada pelas autoridades, continuou prete-
rida nos contratos, concessões e negócios feitos entre os governantes bra-
sileiros e os dirigentes do poderoso Sindicato Farquhar, que atuou com
a empresa Brazil Railway Company e outras subsidiárias que exploraram
fortemente o ramo madeireiro e colonizador na Região do Contestado7.
A força da Brazil Railway Company se fez presente já no ano de 1909
com o início da instalação de uma gigante serraria na localidade de Três
Barras, município pertencente ao Paraná, mas que depois do acordo de
limites passou para a jurisdição de Santa Catarina. Em 1911 começou a
funcionar o grande complexo industrial e comercial madeireiro que mu-

7  VALENTINI, D. J. Memórias da Lumber e da Guerra do Contestado. Porto Alegre: Letra e Vida –


Chapecó: Editora da UFFS, 2015.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 373
dou o cenário ambiental da região. Em 1910 ocorreu a inauguração da
ferrovia São Paulo – Rio Grande e também foi proferida a terceira sen-
tença do Supremo Tribunal Federal, em última instância, na disputa dos
limites entre os estados de Santa Catarina e do Paraná. No ano de 1911
um fator interno abalou ainda mais a já conturbada região com o fenô-
meno natural da seca da taquara e o consequente flagelo da fome causada
pela superpopulação de ratos. Também foi o ano que ocorreram os pri-
meiros despejos de antigos moradores que ocupavam as terras próximas
da ferrovia. Nesse contexto, surgiu José Maria, o terceiro monge que se
estabeleceu no Irani e, junto com os seus seguidores, protagonizaram o
primeiro combate da Guerra do Contestado.
A continuidade dos conflitos ocorreu com a formação dos redutos
ou cidades santas a partir de dezembro de 1913 e continuou até a campa-
nha final do exército brasileiro, principalmente no reduto de Santa Ma-
ria, onde foi executado um forte cerco militar, com atuação ostensiva no
avanço sobre os redutos, bombardeios e incêndios. Além das mortes nas
marchas e nos ataques, o cerco militar impediu a busca de alimentos e
isso provocou aguda fome, somadas as precárias condições de moradias
(casas improvisadas de taquaras, xaxim, folhas e ramos da vegetação dis-
ponível), as condições de higiene, a população ficou cercada, faminta,
maltrapilha e sem remédios.
A traumática experiência desta fase nos redutos escandalizou a po-
pulação no momento que estes redutários começaram a se entregar para
as autoridades, constituindo levas de pessoas famintas e maltrapilhas, er-
rantes pelos caminhos a procura de autoridades para se entregarem. A
cidade de Canoinhas foi um centro para onde muitos seguiram, nos limi-
tes da resistência humana, muitos morreram por inanição antes de chega-
rem, outros chegavam, ganhavam comida mas nem sempre sobreviviam.
Uma notícia publicada num jornal da época aponta o drama desta
população. Nem todos os que se entregaram nesta cidade tiveram a mes-
ma sorte.

374 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Da cadeia de Canoinhas eram retirados diariamente levas de
desgraçados que se tinham apresentado voluntariamente, e
entregues a Pedro Ruivo, um celerado vaqueano promovido
a herói. Pedro Ruivo conduzia as vítimas para fora da vila e,
na primeira curva do caminho, degolava-as. Os cadáveres fi-
cavam insepultos. Os porcos e os corvos tinham fome (Jornal
O Estado. 18.05.1915).

O genocídio estava em curso, bastava identificar as pessoas como


moradores de redutos para serem condenados sem julgamento, persegui-
dos e rotulados como desordeiros, facínoras, jagunços, fanáticos, impa-
trióticos e outros adjetivos para desclassificar e justificar até a pena capi-
tal. O rótulo de vencidos se impôs e uma triste memória que permaneceu
traumatizada e silenciada entre os moradores dos redutos que consegui-
ram sobreviver.
Foi na etapa final que o último comandante do exército brasileiro,
diante da situação alarmante, iniciou uma troca de telegramas com o
governador do Estado de Santa Catarina, preocupado com a situação e
indagando sobre o destino destes brasileiros que se entregavam maltrapi-
lhos e famintos, mas mesmo com a solicitação formal do Comandante
militar ao governador, através de um telegrama enviado em abril de 1915,
solicitando a colocação dos prisioneiros em colônias da região, a resposta
veio da Inspetoria Federal de Povoamento do Solo, ligada ao Ministério
da Agricultura, informando que não haviam terras disponíveis, sendo as
colônias existentes organizadas para a recepção de imigrantes europeus
(MACHADO, p. 324).
Enquanto os líderes do lado vencedor decidiam o destino dos ven-
cidos, os líderes do outro lado eram responsabilizados pelo movimento,
condenados e execrados. Adeodato, o último comandante que liderou
nos redutos de Santa Maria, São Miguel e São Pedro, quando foi preso,
em abril de 1915, o jornal da cidade de Canoinhas publicou a manchete:
“O demônio está preso, é ele mesmo, em carne e osso”8.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 375
Adeodato: o comandante caboclo demonizado no final da
Guerra do Contestado
Tropeiro, domador, lavrador9 e cantador, Adeodato Manoel Ramos
ou também Joaquim José de Ramos, como ficou conhecido nos redutos,
o último líder da Guerra do Contestado era natural do Cerrito, município
de Lages. Foi com o pai, Telêmaco10 e outros peões, que Adeodato apren-
deu os ofícios necessários para a vida que se levava no início do Século
XX na região do Contestado.
Um antigo morador da região e remanescente da Guerra do Con-
testado se referiu a Adeodato como morador do Rio Doce, próximo a
Trombudo (atual Município de Lebon Régis):

Home véio que se criou ali no Doce, trabaiava na colônia, se


criou ali, criava porco, naquele tempo o povo tudo criava por-
co assim aberto (solto), havia muita fruta de imbuia e pinhão
causo sério, quase não ocupavam o milho pra criar porco.11

Segundo o sociólogo Vinhas de Queiroz, a mudança da família de


Telêmaco do Cerrito para Trombudo ocorreu quando Adeodato tinha 15
anos. Telêmaco era compadre do fazendeiro Manoel Pepes do Vale, onde
o afilhado Adeodato, habilidoso tropeiro e domador se tornou capataz.

Muitas vezes Adeodato conduziu varas de porcos dali para a


zona do Timbózinho, na qual os donos dos animais faziam
negócios melhores. (...) Durante anos foi tropeiro, e ajudava
a conduzir boiadas para Lages e também para Florianópolis.
Conheceu muita gente nessas viagens, aprendeu muita coisa”
(VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 233).

Além de tropeiro, outra habilidade destacada em Adeodato foi a


cantoria. Segundo contou outro morador da região, a capacidade de lide-
rança de Adeodato deve-se também à sua potente voz: “ele se tornou lí-
der porque falava muito era meio cantador, fazia verso repentino, usavam

376 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


muita trova e cantoria repentina daí ele cantava e tinha uma voz muito
boa e com isso ele foi tomando a liderança.12
Sua voz grave e potente impressionou muita gente. Felippe afirma
que era comum entre os sertanejos comunicarem-se através de versos.
A porfia era apreciada como divertimento que agradava os moradores
do sertão. Este recurso, teria sido utilizado por Adeodato até mesmo na
prisão. Euclider Felippe registrou uma das décimas que teria sido recitada
quando Adeodato estava encarcerado:

Quando eu andava sorto me tratavo como irmão


hoje que aqui tô preso eu só fumo se me dão.
Trinta anos vô cantá, relatando as travessura,
que aqui neste processo, acoimaro de diabrura,
me acusando de mir morte, que levei à sepultura,
mas livrei aqui do mundo, dei descanso às criatura.
Bem, agora me despeço, só dos rico, com doçura,
tenho sombra e água fresca, na cadeia tem fartura,
C’um abraço ao meu governo, dexo a minha assinatura
Por LEODATO M. RAMOS, arrespondo nesta artura (FELI-
PPE, 1995, p. 159).

O ingresso de Adeodato nos redutos ocorreu quando o movimento


já havia se alastrado em toda a região, no início, apenas observou.

Assistira de longe, escondido no mato, junto com o seu ami-


go Pedro Carlin ao combate de Caraguatá. Meses depois,
estava no Timbózinho, quando apareceu o piquete de Do-
mingos Crespo, que o levou para o reduto do Bom Sossego,
no tempo de Maria Rosa. Desse modo é que virou jagunço
(VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 233).

Dentro dos redutos, no começo, participou como outro qualquer. A


sua bravura rendeu-lhe um posto no piquete xucro de Francisco Alonso.

12  Depoimento Manoel Francisco Dias.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 377
Segundo depoimento de Antonio Carlos Martins: “Adeodato era lugar
tenente do comandante Francisco Alonso, quando este tombou no Rio
das Antas, Adeodato tornou-se comandante”13. O combate do Rio das
Antas, como ficou conhecido, ocorreu no dia 01 de novembro de 1914 e
o alvo dos sertanejos foi a primeira colônia de imigrantes alemães insta-
lada no Alto Vale do Rio do Peixe pela Lumber. Com baixas de ambos os
lados, na volta para os redutos, o vazio deixado pela morte de Francisco
Alonso, logo foi preenchido por Adeodato.
De imediato, Adeodato não aceitou o cargo. Tratou de consultar
membros da família Crespo, que o haviam levado para o reduto e que o
aconselharam: “Você tenha paciência. Você volte. Você vai ficar de co-
mandante”14 (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 234). Adeodato deci-
diu-se, contou que havia sonhado com João Maria e que este, em sonho,
ordenou que assumisse o Comando-Geral. “Reapareceu em Caçador
munido de uma bandeira branca, bradando vivas e dizendo que era ele o
comandante, ele quem tocava agora”. Voltou para Butiá Verde onde es-
tavam acampados os companheiros do combate do Rio das Antas. “Che-
gou a noitinha gritando vivas, afirmando que “tinha recebido ordens”
gritando que em sonho a Corte Celeste o havia aclamado Comandante
Geral15 (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 234).
Em dezembro de 1914, Adeodato ordenou que o reduto fosse trans-
ferido de Caçador para o vale de Santa Maria. A mudança deveu-se ao
fato de que as forças legais fecharam cada vez mais o cerco e porque San-
ta Maria localizava-se numa área estrategicamente privilegiada. A forta-
leza natural, onde foi organizado o reduto de Santa Maria, aparentava ser
verdadeiramente um “chão sagrado”, uma “cidade santa” que os sertanejos
acreditavam construir.
Desde a data que o General Setembrino assumiu o comando das
forças do governo, até a destruição total do reduto de Santa Maria, in-
cluindo piquetes, guardas e redutos circunvizinhos, foi um período de

13  Depoimento Antonio Carlos Martins.


14  Depoimento Joaquim. Apud: Vinhas de Queiroz. Op. cit., p. 234.
15  Depoimento Porfírio. Apud: Vinhas de Queiroz. Op. cit., p. 234.

378 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


grande mortandade de lado a lado. As guardas e redutos que iam sendo
desalojadas pelas forças oficiais convergiam para Santa Maria, prova de
que destruir Santa Maria, este que só tombou depois da marcha do Co-
mandante Potiguara, com sua coluna, nos momentos decisivos da cam-
panha do exército na Guerra do Contestado.
A tropa de Potiguara, depois de fazer um percurso de 19 léguas, de
Canoinhas até Santa Maria, em dez dias de seguidos combates, atingiu o
âmago da fortificação: alcançaram o coração do reduto de Santa Maria.
A exaustão dos soldados de Potiguara, o grande número de feridos, a
morte do único médico da expedição, de soldados e de oficiais, eram in-
dicadores da situação dramática da tropa. Por outro lado, Adeodato, com
seus homens, ainda tentou impedir a tomada do reduto, concentrando as
enfraquecidas forças contra o exército que já se encontravam no centro
da cidade santa. Foi neste contexto que a coluna sul conseguiu transpor
a forte guarda da entrada do vale, anteriormente intransponível, então
abandonada. A junção das duas colunas assinalou a destruição final do
Santa Maria.
Para Adeodato a batalha estava perdida, mas a guerra ainda não,
enquanto as brasas ainda ardiam em Santa Maria, o comandante rumou
para São Miguel. Ironizou Schuller: “Adeodato se retirou com os seus
valentes para São Miguel. Ficavam os miseráveis para Setembrino matar
e festejar a vitória” (SCHULLER, 1994, p. 290).
Ao contrário das boas lembranças que havia de Maria Rosa, no tem-
po de Caraguatá, no reduto de Santa Maria, o comando de Adeodato foi
marcado por um cotidiano de sofrimento: guerra, fome, doença e morte.
A doença mais grave que acometia caboclos era o tifo, e não foi uma úni-
ca vez que se manifestou de forma epidêmica: “De vinte a trinta mortos
eram levados para o cemitério todo dia. Apareceu também uma ferida-
gem nos lábios e no nariz” (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 241).
Não possuindo roças e impedidos de saírem para coletar frutas, mel
e caçar, os sertanejos não tinham o que comer. Alimentar perto de 5.000
pessoas não era tarefa fácil, com o cerco militar complicou-se ainda mais.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 379
O gado arrebanhado anteriormente e que estava na mangueira, foi sendo
abatido, pois carneavam de dez a doze cabeças por dia, como contou em
seu depoimento um antigo redutário que estevem no Santa Maria: “o
sal terminou por completo. Na tentativa de saciar a fome apelavam para
frutas de imbuia, miolos de xaxim, brotos, mel e caça, o que fosse possí-
vel encontrar nos arredores16. Há unanimidade nos depoimentos quando
afirmam que comiam tudo que fosse de couro, além de cavalos. Manoel
Dias afirmou:

Não enxistia feijão, não enxistia milho, não enxistia carne, o


que é que comiam, miolo de xaxim, porque o miolo de xaxim
(...) nóis partia o xaxim e tacava ponta dum pau assim pra
tirá o miolo pra daí ponhá prá cozinhá prá comê, não existia
nada pra comê, que tristeza.17

Outro depoente recorda apontando que o “tempo” da fome acon-


teceu durante a liderança de Adeodato, portanto, ao contrário da fartura
inicial, das rezas e do tempo do encantamento e da convivência numa
irmandade santa, se chegou numa fase de miséria e de mortes.

No tempo do Adeodato, não tinha o que comer, escasseou


cada vez mais, primeira coisa que tenta é o ataque, não podia
fazer roça e acabando-se os recursos chegou de eles comer
capa de cangaia, bruaca, ligar, essas coisas de couro. O gado
se acabou, comiam carne de cavalo.18

Calcula-se que mais de 3.000 sertanejos se entregaram em janeiro de


1915. Conta o senhor Manoel que “fugiam por causa da doença, fome,

16  “Atribui Paulino Pereira essa fome desesperadora à carência de sal, que veio a faltar por
completo. Acha ele que se houvesse sal qualquer sopa enganaria o estômago. Mas, não havendo,
mesmo pedaços de carne não satisfaziam. As pessoas, fora de si, lambiam o suor próprio ou
alheio, porém não se saciavam. Esta circunstância teria agravado muito a escassez de alimentos.”
(VINHAS DE QUEIROZ, Op. cit., p. 254).
17  Depoimento Manoel Batista dos Santos.
18  Depoimento Manoel Francisco Dias.

380 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


então os que pudessem, não era tudo que fugia, os que podiam escapar
escapavam”.19 Por outro lado, para fugir dos redutos também não era fá-
cil. Quem falhasse na tentativa de fuga enfrentaria Adeodato, podendo
pagar com a pena capital.
Quando foi dissolvida a expedição militar, a guarnição da região
ficou a cargo de reduzidas tropas do exército nas principais cidades da
região, das forças policiais dos Estados de Santa Catarina e do Paraná,
assim como de grupos de vaqueanos. Os sertanejos, reunidos em São
Miguel, tentavam repetir a tática usada anteriormente para conseguir
alimentos. Faziam passeios pelos arredores para arrebanhar gado, man-
timentos, reunir porcos e colher pinhões. Assaltos a fazendas se sucede-
ram. As forças de guarnição de Santa Catarina, que eram comandadas
pelo Capitão Vieira da Rosa, e os piquetes de redutários20 que se choca-
vam esporadicamente. Quase sempre, após rápido tiroteio, os sertanejos
se dispersavam pelas matas.
Nos últimos redutos, Adeodato conseguiu se impor e mandava de
forma incontestável.

A princípio, somente contra os derrotistas, os que tenciona-


vam fugir ou mantinham de qualquer forma ligações com o
inimigo. Logo a seguir o terrorismo exorbitou, e atingiu os
próprios companheiros de crença (VINHAS DE QUEIROZ,
1966, p. 270).

O derradeiro reduto foi São Pedro, nas margens do Rio Timbó, onde
atualmente se localiza a sede do município de Timbó Grande. Apon-
tando com o indicador diz o senhor Manoel: “a casa do Liodato com o
Pai Véio, era bem na igreja católica, ali”21. No último reduto, as regras
de Adeodato continuaram vigorando, atemorizando e controlando com
maior obstinação.

19  Depoimento Manoel Francisco Dias.


20  Redutários é um termo atribuído por Paulo Pinheiro Machado para denominar os moradores
dos redutos ou cidades santas.
21  Depoimento Manoel Batista dos Santos.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 381
Surgiu em São Pedro um tal Pai Velho, também conhecido por Frei
Manoel. Era um negro de barbas brancas, foi apresentado por Adeodato
como sendo o próprio João Maria, numa solenidade típica, com mui-
tas orações e vivas. No dia seguinte a vida voltou ao normal e passou a
ser chamado Pai Velho, tornou-se chefe religioso. Agravaram-se os fatos
quando a fome tornou-se novamente aguda. O espaço foi delimitado para
que ninguém se afastasse do reduto; poucos conseguiam ordem para par-
tir em busca de alimentos. “Aqui o pessoal pediam ordem pra caçar pra
fora e quando vinham era deis, doze, quinze, vinte criança querendo um
pedacinho, ermão quero um pedacinho”.22
Em dezembro de 1915, os moradores do reduto de São Pedro foram
surpreendidos enquanto rezavam. A ação dos vaqueanos foi rápida e o
pânico tomou conta dos moradores. Balearam o Pai Velho na porta da
igreja, morreu logo adiante. Contou o Senhor Miguel sobre os vaqueanos
que participaram do ataque: “uns tanto já eram conhecidos do lugar, ti-
veram nos redutos e depois fugiram, indo se encostá nas força, sabiam as
guarda, tudo onde existia, chegaram fácil”.23
A destruição do último reduto não foi diferente dos anteriores: trans-
pondo cadáveres, incendiando ranchos e saqueando míseros pertences, os
vaqueanos espalhavam o pavor. Escreve Vinhas de Queiroz que: “havia
cadáveres por toda parte, inclusive de crianças e mulheres, porém poucos
eram os prisioneiros. Milhares de fugitivos haviam ganhado o mato em
todas as direções” (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 277).
Adeodato conseguiu escapar, mas não chegou a reerguer novo redu-
to. Por mais que temessem a fúria de Adeodato a maioria dos sertanejos
era constituída por maltrapilhos famintos, muitos doentes e moribundos.
Não foram poucos os que, vencidos pela fraqueza, se deixaram cair pelos
caminhos para morreram sozinhos. São inúmeros os relatos de mortes de
crianças e de adultos, por inanição, os que foram se apresentar às autori-
dades, revelavam a situação lamentável em que se encontravam:

22  Depoimento Manoel Batista dos Santos.


23  Depoimento Miguel Correa de Souza.

382 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Quase loucos de fome, envolvidos em restos de trapos ou in-
teiramente nus, mostrando todos os ossos sob a pele, mais de
1.000 fanáticos se apresentaram na vila de Canoinhas. Nun-
ca o povo dali tinha visto ou sequer imaginado miséria igual
(VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 278).

Adeodato depois de vagar alguns dias pelas matas, com um pequeno


grupo de pessoas famintas, chegou às margens do Tamanduá. Ordenou
aos acompanhantes que atravessassem o rio, subiu num barranco e gri-
tou: - Perdemos a guerra: a guerra está perdida. Quem quiser ir para o
mato vá. Não quero ninguém comigo24 (VINHAS DE QUEIROZ, 1966,
p. 278).
Duas memórias excludentes são constantemente evidenciadas na
Região do Contestado, por um lado, dividindo espaços em altares reli-
giosos, reverenciado como santo, bondade em pessoa ainda permanece a
imagem de João Maria e, por outro, herdeiro de atribuições de selvageria
e dos traumas da etapa final, Adeodato permaneceu como o resumo da
maldade dos caboclos do Contestado.
Paulo Pinheiro Machado observou a constante “demonização”
atribuída ao último líder caboclo nos momentos finais do movimento,
quando as forças públicas representadas pelo exército brasileiro sob o co-
mando de Setembrino de Carvalho, mais as forças estaduais e um grande
contingente de civis denominados vaqueanos que também eram morado-
res da região, cercaram os redutos e passaram a sufocar os redutários que,
famintos e maltrapilhos, passaram a se render em massa25.
Os sertanejos desesperados sabiam que ao se render, quando encon-
trassem os piquetes vaqueanos de Pedro Ruivo em Canoinhas ou Coletti
em Santa Cecília, seriam massacrados sem piedade, por isso, desespera-
damente, precisavam encontram autoridades para terem as famílias e a
vida preservadas. “Esses procedimentos acentuaram o discurso de vitimi-

24  Depoimento Clementino. Apud: Vinhas de Queiroz. Op. cit., p. 278.


25  MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias
caboclas (1912-1916). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 383
zação dos que se apresentavam, semelhante a uma ladainha. Afirmavam
que estavam vivendo à força nos redutos, sob a ameaça violenta e onipre-
sente de Adeodato” (MACHADO, 2004, p. 326).

Tudo indica que as principais lideranças de briga, notada-


mente as ligadas ao “partido” mais radical, foram liquidadas
no final do conflito. Determinadas fontes, como os autos de
perguntas, só foram colhidas durante a campanha de Setem-
brino, entre setembro de 1914 e abril de 1915, quando a maior
parte dos aprisionados era de desertores dos redutos do nor-
te. Apenas dois depoentes – João Melo e Totó – não reprodu-
ziram a ladainha de demonização de Adeodato (MACHADO,
2004, p. 322).

Enquanto os redutários que se entregavam e tentavam salvar suas


vidas e de suas famílias atribuindo a Adeodato a culpa por estarem nos
redutos, geralmente afirmando que haviam sido forçados a irem e perma-
necerem nos redutos, que toda a culpa era de Adeodato, como se obser-
vou nos depoimentos da grande maioria dos que se entregaram, por sua
vez, quando Adeodato foi preso e interrogado, declarou em seus autos de
prisão e perguntas da Delegacia de Polícia de Canoinhas, que ao entrar
nos redutos foi “investido do comando do acampamento a pedido de um
velho, cujo nome ignorava, mas que do qual tinha o retrato”26.
Não há dúvidas que o retrato referido era de João Maria, interessan-
te que em momento algum Adeodato revela o nome, talvez tentando pre-
servar a identidade como fez ao ser perguntado por companheiros que,
embora admitisse a presença nos redutos, não revelava os nomes, apenas
sugeria que não lembrava ou não sabia. Isso também se observa no mes-
mo auto de prisão quando respondeu sobre “fornecimento de munições”

26  Autos de prisão e perguntas lavrado no dia 02 de agosto de 1916 na Delegacia de Polícia de
Canoinhas, quando Adeodato foi interrogado pelo Delegado Francisco Ferreira, remetido ao Juiz
Antônio Selistre de Campos que despacha ao juiz de Curitybanos o preso, os autos e o retrato
que os acompanha. Deodato Manoel Ramos seria enviado para a cadeia de São Francisco do Sul.
03 de agosto de 1916.

384 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


aos redutários dizendo não ter recebido nem quem quer que fosse (quem
seriam os comerciantes) ou como fez ao se referir a Pedro Carlin ou Pe-
dro Mathias, “cujo nome bem certo não sabe”, assim se referindo aos
companheiros com quem estava enquanto ocorria o combate no reduto
de Caraguatá.
Por diversas circunstâncias os atos de Adeodato são recorrentes em
indicar a “culpa” do “velho do retrato”. Contou que matou Aleixo Gon-
çalves porque “esse velho do retrato, isto é, João Maria, disse a ele res-
pondente que as forças legais perseguiam muito os acampamentos por
causa do mesmo indivíduo (Aleixo)”. Na expressão isto é, João Maria,
percebe-se a explicação do escrivão em revelar a identidade do persona-
gem do retrato. Outras mortes também são depositadas no mando deste,
inclusive a de Maria com quem Adeodato foi casado, mas que o mesmo
também não chegou a detalhar como sendo Maria Firmina, apenas citou
como “Maria, filha de Matheus”.
Adeodato revelou que no Reduto de Santa Maria morreram inúme-
ras pessoas “homens, mulheres e crianças, por moléstia e por fome” e que
para calcular o número, que era grande, poderiam verificar “pelo cemité-
rio que lá existe”... Que havia sido batizado com outro nome ao ingressar
nos redutos, passou a ser chamado de Joaquim José de Ramos. Que no
final, esteve acompanhado de vinte companheiros, mas que aconselho-os
a se entregarem para as forças em Poço Preto.
Sozinho esteve “no mato” até que, “cansado desta vida”, resolveu
também se entregar. Revelou que já havia trocado seu revólver por manti-
mentos, o que também aconteceu com as duas últimas espadas, “trocan-
do-as por moranga, milho e farinha” e deixando-se prender pelo Senhor
Modesto Simão Pinto. Interessante que para além deste auto, uma versão
da prisão de Adeodato feita por um antigo redutário (Miguel Correa de
Souza) é idêntica ao que constou no documento oficial. Miguel Correa
de Souza assim contou sobre a prisão de Adeodato:

O Liodato no final garrô o mato e seis meis no mato, só com um


casar de irmão, um moço e um homem [...]

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 385
-Irmão de família? (Delmir José Valentini)
-Não estranhos, só da religião.
Daí eles tavam sofrendo muito no mato, andavam quase nu e
muito mar com fome e sofrendo, aí ele teve uma ideia, mandô
aquele casar de irmão, diz:
- Sabe de uma coisa, vocês tratem de procurá a morada véia de
vocêis que eu vou fazê uma ideia, saia onde saí, eu vou fazê uma
linha aqui e onde saí eu vou me apresentá.
Daí tinha um nego véio daqueles conhecidos dele bastante só
não era jagunço, tava cortando uma lenha lá no Timbozinho,
quando viu o Liodato apresentou-se prá ele, nego véio quase
morreu de susto porque era muito conhecido.
- Mas o senhor por aqui, de repente com fome?
- Nem me fale em fome eu não sei o que é comida faz muitos
dias.
- Então o senhor fica aqui que eu vou ajeitá uma comida ali no
vizinho, e correu no inspetor. Foi reto naquele inspetor e contou:
- O Liodato apareceu ali agora prá mim.
-Mas é o Liodato?
-É, pois se criemo junto, é ele.
-Só ele? sózinho. E não tá armado?
-Não tem nada. Daí pegô uns home ali o inspetor e viero, chegar
cá onde o home tinha ficado não pudero enxergá nada, o inspe-
tor imbrabô com o nego véio.
-Você é um mintiroso que dê-lhe o home aqui, foi mintindo que
tava aqui?
-Pois é, mas ele ficô aqui e agora não tá...
Daí ele falô ali, o Liodato:
-Quem é que disse que eu não tô aqui, não mudei um passo da-
qui.
Depois quando ele falô todos enxergaram, mas tava de acôrdo de
se apresenta, de se entregá, daí pegaram ele, levaram deram de
comê, e conseguiro tirá ele ali por Santa Cecília daí foi prá Curi-
tibanos, mas estorou gente prá tudo quanto foi lado prá vê ele.”27

27  Depoimento Miguel Correa de Souza.

386 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Adeodato foi, sem dúvidas, o líder da Guerra do Contestado que
marcou profundamente a memória dos que presenciaram os aconteci-
mentos. Ainda hoje é o assunto que ocupa muito espaços nas conversas
sobre o tempo dos redutos e mesmo nos estudos. Permaneceu na ima-
ginação do povo, apontado como personagem abominável e, não raras
vezes, culpado pelo fracasso. São trechos de depoimentos:

Conforme o pai contava ele era um homem muito sanguiná-


rio, violento, matava muita gente, criança ele matava só prá
ver morrer.28
E ele matava assim, carneava as pessoas e jogava num chi-
queiro de xaxim, esse que meu pai cansava de contá, cada um
que era morto pelo Liodato era arrastado e jogado ali den-
tro.29

Por outro lado há quem faça afirmações mais amenas sobre o último
líder sertanejo, atribuindo a Adeodato características que fogem da pura
maldade e até certo ponto reconhecem nele certas qualidades de líder e
não raras vezes atribuindo-lhe papel relevante. Para Antonio Carlos Mar-
tins, mesmo admitindo que Adeodato não é bem visto pelos caboclos da
região, e até admitindo que este líder tenha sido cruel, justifica:

O Adeodato ele foi cruel na época mas no momento que havia


muita deserção já das forças jagunças e ele tentando manter
a moral e a luta (...) então ele se utilizou desse terrorismo
dentro dos acampamentos pra manter a luta no momento
que havia muita deserção, pela qual, pela propaganda do
governo, de pedir que eles davam anistia para aqueles que
desertassem.30

28  Depoimento Aristiliano Carlin de França.


29  Depoimento Onorina Dias.
30  Depoimento Antônio Carlos Martins.

VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo


VALENTINI 387
Miguel Corrêa de Souza conta sua visão sobre Adeodato; não vê
necessidade de louvá-lo e nem mesmo condená-lo: “Puis óia que eu não
rezo um Pai Nosso pro Adeodato e não acendo vela porque não sei qual
era o compromisso dele, mas nóis nunca fumo massacrados por ele, nun-
ca.31 Ao comentar sobre declarações de atrocidades cometidas por Adeo-
dato, Miguel afirma que existe muito exagero sobre a violência. Não
nega que tenha existido, mas sublinha que se contam muitas inverdades.
Quando perguntado se Adeodato realmente mandava matar crianças, as-
sim respondeu:

Eu nunca vi, acho que isso era mentira do povo, os carrascos


dele faziam, mas ele não, mas ele saía as vezes tinha uma for-
ma formada o povo rezando e gritando vivas e ele saía com
uma criancinha nos braço correndo pelo meio daquelas for-
mas e ele gostava de andar com criança no cólo.32

Muito embora permaneça a ideia de que Adeodato foi responsável


pelo fracasso do movimento, revelavam-se, à época, alguns aspectos que
contrariavam o senso comum, permeado de concepções deterministas,
quando foi entrevistado por um jornalista da capital, revelou alguns des-
tes. Comenta o jornalista:

Nós, que esperávamos ver nesse instante o semblante per-


verso e hediondo de um bandido, cujos traços fisionômicos
estivessem a denotar a sua filiação entre os degenerados e
os desclassificados do crime, víamos, pelo contrário, diante
de nós, um mancebo em todo o vigor da juventude, de uma
compleição física admirável, esbelto, fronte larga, lábios fi-
nos, o superior vestido de um buço pouco denso, cabelos ne-
gros, olhos de azeviche pequenos e brilhantes, dentes claros,
perfeitos e regulares, ombros largos, estatura mediana, tez
acaboclada e rosto levemente alongado.33

31  Depoimento Miguel Correa de Souza.


32  Depoimento Miguel Correa de Souza.
33  Jornal O Estado. 12. 08. 1916.

388 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


De São Francisco, Adeodato foi levado para Florianópolis para o
interrogatório com o chefe de polícia. Admitiu sua qualidade de Coman-
dante e procurou justificar as mortes que lhe atribuíam, sobretudo de
antigos companheiros, dizendo que “eles pretendiam fugir, contrariando
assim a sua ordem, que não permitia a retirada de pessoa alguma do re-
duto” (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 282).
Adeodato foi julgado e condenado a pena máxima permitida pelas
leis brasileiras. Trinta anos de cadeia. Um sertanejo, entrevistado por Vi-
nhas de Queiroz, disse em seu depoimento que Adeodato, ao sair da sala
do júri, depois de jogar o chapéu para o alto disse: “Trinta anos de cadeia,
eu vou cantar!”34
Não chegou a cantar trinta anos, no dia 03 de fevereiro de 1923 foi
morto em circunstâncias que os documentos oficiais indicam uma tenta-
tiva de fuga e uma execução com dois tiros de revólver que partiram de
um capitão do exército. A análise de documentos podem esclarecer sobre
a morte do último líder caboclo da Guerra do Contestado, cientes de que
os documentos são feitos por pessoas de um tempo, com paixões, inte-
resses e situadas em entendimentos que sempre representam a “verdade”
dos vencedores.
O líder Adeodato, conhecido por alguns documentos oficiais e, prin-
cipalmente pela imprensa do seu tempo, foi e continuará sendo o demônio
em carne e osso. Fez parte dos elementos perniciosos que perturbaram a
ordem e assim justificável a sua condenação e eliminação. Com a morte
de Adeodato, símbolo da maldade dos caboclos, também morreram os
sonhos de fraternidade e convivência numa cidade santa.
Permanece, para muitos, a imagem demonizada de Adeodato e, por
extensão, a todos os que conviveram nos redutos durante a Guerra do
Contestado. Sobrou para os sertanejos a culpa pelo derramamento de
sangue que ocorreu na Região do Contestado. João Maria, José Maria,
Chico Alonso, Adeodato ou outro morador qualquer dos redutos foram
responsabilizados pelo genocídio, condenados ao silêncio, papel reserva-
do aos vencidos na história.

34  Depoimento Guilherme. Apud: VINHAS DE QUEIROZ. Op. cit., p. 282-3.


VALENTINI,, Delmir José. Adeodato: a demonização do último líder caboclo
VALENTINI 389
Referências
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. João Maria: interpretação da campanha do contestado.
São Paulo: Nacional, l960.
CARVALHO. Setembrino Fernando de. Relatório Apresentado ao General de Divisão
José Caetano de Faria, Ministro da Guerra - 1915. Rio de Janeiro: Imprensa Militar,
1916.
FELIPPE, Euclides José. O Último Jagunço. Curitibanos: Universidade do
Contestado, 1995.
KARSBURG, Alexandre de Oliveira. O Eremita das Américas: a odisseia de um peregrino
italiano no século XIX. Santa Maria: Editora da UFSM, 2014.
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das
chefias caboclas (1912-1916). Campinas – SP, Editora da Unicamp, 2004.
MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século. São Paulo: Duas Cidades,
l974.
PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado- Episódios e Impressões. Rio de Janeiro,
1916.
TARROW, Sidney. O Poder em Movimento: movimentos sociais e confronto político:
Petrópolis, Vozes: 2009.
VALENTINI, Delmir José. Memórias da Lumber e da Guerra do Contestado. Porto
Alegre: Letra e Vida – Chapecó: Editora da UFFS, 2015.
VINHAS DE QUEIROZ, Mauricio. Messianismo e conflito social (A guerra
sertaneja do Contestado: 1912-1916). São Paulo: Ática, 1981.

Fontes
JORNAL O ESTADO, Florianópolis, Santa Catarina - JORNAL O IMPARCIAL,
Canoinhas, Santa Catarina. Entrevistados: Manoel Batista dos Santos, Miguel
Correa de Souza, Aristiliano Carlin de França, Antônio Carlos Martim, Manoel
Francisco Dias, Onorina Maria Dias. Arquivo de Canoinhas: Autos de prisão e
perguntas lavrado no dia 02 de agosto de 1916 na Delegacia de Polícia de Canoinhas,
quando Adeodato foi interrogado pelo Delegado Francisco Ferreira, remetido ao
Juiz Antônio Selistre de Campos que despacha ao juiz de Curitybanos o preso, os
autos e o retrato que os acompanha. Deodato Manoel Ramos seria enviado para a
cadeia de São Francisco do Sul. 03 de agosto de 1916.

390 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Mulheres no Contestado:
um território a ser conquistado

Arlene Renk

“Algumas mulheres xucras, decididas, empunhavam


um porrete, ali um porrete de madeira, prontas para
lutar, possuídas de histeria e de cego fanatismo”.
(SACHET; SACHET, 2001, p. 155).

O lhares pelo retrovisor, expressão contrabandeada mas que servi-


rá para seguir este itinerário, dirão o quanto temos naturalizado
o papel do feminino na sociedade e o perigo de transportá-lo a
outros momentos históricos. Um exemplo é a exaltação da Marcha das
Margaridas, atualizada a cada quatro anos, congregando mulheres traba-
lhadoras rurais, combativas, que deixam suas comunidades e agregam-se
à marcha nacional. Outro exemplo é a comemorações do dia 8 de março.
Encontramos uma acumulação de lutas das mulheres com reconhecimen-
to e visibilidade no Brasil contemporâneo. Esses eventos correm o risco
de banalização de interpretação quanto à presença e ao protagonismo
feminino e serem lidos como algo que se repete, uma “rotinização”, não
exatamente do carisma, no sentido weberiano, mas da repetição de even-
tos, como se os tempos atuais pouco diferissem das conjunturas passadas.
De outro lado, não totalmente descolada dessa perspectiva, pode levar à
leitura do papel do protagonismo naturalizado da mulher na sociedade,
mesmo que mulher ande um passo atrás do marido, como exige alguns
códigos comportamentais.
Uma e outra perspectiva têm seus equívocos. O que sabemos são as
relações hierárquicas, talvez mais aprofundadas no mundo rural. A po-
pulação qualificada como “as gentes do fazendeiro e, mais tarde, coronel,
fulano de tal” e seus domínios alcançavam aqueles que viviam à margem
da margem da sociedade, embrenhados nas matas. Isto é, os excedentes
das grandes áreas de pecuária. Se a população era conhecida como “gen-
tes do coronel fulano de tal”, internamente, no grupo familiar, mulheres
e filhos seriam reconhecidos como pertencentes ou no mando do marido.
Nas relações matrimoniais pode ser aplicado o que Mary Bouquet (1984)
tem definido para o papel da mulher, como uma incorporação diferencial
à família em constituição, mas que passará a ser chamada de família do
marido. Foi a mulher do senhor fulano de tal. Em trabalho de campo
essa situação era expressa, pelas mulheres, na década de oitenta, que o
destino de uma mulher era sair do “mando do pai” e “entrar no mando
do marido”. Muitas tiveram por destino serem conhecidas como filhas ou
mulheres de alguém. Outras, mereceram registro de seus nomes. É dessas
mulheres, na Guerra do Contestado, que nos ocuparemos. Ressaltamos
que merecer o registro não significa que outras não tenham desempenha-
do papel de relevância interna e externa.
Este texto procurará abordar enfoques atribuídos às mulheres na
Guerra do Contestado, a partir das produções científicas e literárias já
produzidas. A Guerra do Contestado é tomada como o evento por ex-
celência de ruptura de tempos, em que a população sertaneja do interior
do Brasil, organiza uma nova sociedade pautada em valores religiosos,
éticos, numa grande fraternidade, cujos princípios colidem com o capi-
talismo em expansão e usurpador de suas terras e da vida comunitária.
Constroem suas cidades santas, seus rituais, identificam-se como pelados

392 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


em oposição aos peludos. Os pelados, além do corte de cabelo e barba
usava uma fita branca no chapéu, marco distintivo.
Em diversos momentos os pelados do Contestado foram nomeados,
mais do que isso, categorizados, isto é, como uma categoria de acusação
de jagunços e fanáticos, fato que Machado explicita suas razões:

A expressão “fanatismo” foi empregada por militares, mé-


dicos e jornalistas não só para o movimento do Contesta-
do, mas para uma série de movimentos sociais rurais que
criaram uma linguagem própria, diferente da praticada
pela intelectualidade e pelas classes médias das capitais e
do litoral. Além da deliberada intenção de desqualificação
e infantilização dos sertanejos, mesmo os autores antigos
que procuravam entender de forma próxima as razões dos
rebeldes como o Major Matos Costa, só conseguia ver igno-
rância e abandono. Esta verdadeira barreira cultural - que
impediu muitos pesquisadores que pudessem entender a
vida, a cultura e as ações da população do interior - co-
meçou a ser derrubada com a obra de Maurício Vinhas de
Queiroz (Messianismo e Conflito Social: a Guerra Serta-
neja do Contestado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1966). Vinhas foi o autor com a maior pesquisa empírica
sobre o conflito, empregou o conceito de messianismo para
explicar a expressão cultural e social sertaneja e associou
o movimento sertanejo à crise social no planalto, à ques-
tão de terras e ao abuso dos Coronéis, grandes fazendeiros
(MACHADO, 2012, p. 1).

A Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, cuja concessão foi adqui-


rida pelo Sindicato Faquhar em 1906, foi um dos pontos nevrálgicos para
a eclosão do conflito do Contestado. Cortando o estado, atingia diferen-
tes paisagens. Ao norte, área de colonização europeia, encontravam-se
agricultores independentes. Descendo ao sul, havia pequenos proprietá-
rios e posseiros em relação hierárquica ao grande proprietário. Muitos vi-
viam da subsistência e extração de erva-mate (MACHADO, 2004, p. 75).

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 393
Sobre a origem destes últimos, Oswaldo Cabral afirma que muitos eram
trabalhadores que não mais encontravam trabalho nas fazendas de gado
e, compulsoriamente, deslocavam-se à extração da erva-mate. Como em
todas as comunidades, seguramente, havia relações de entreajuda, e tam-
bém conflitos, mas levavam a vida de todos os dias, até surgir o trem.
Este é o encontro brutal de um Projeto de Grande Escala (RIBEIRO,
2008) com uma sociedade tradicional, no início do Século XX. Alcança
a população que vive às margens não tão às margens, mas 15 km a cada
margem da ferrovia que irrompe sertão a dentro, produzindo nosso Cora-
ção das trevas1. Instaura uma situação colonial, respaldada por leis, papeis
que a lógica camponesa não alcança e que lhe é perversa.
A sociedade, carrega valores androcêntricos, com agenda de sinali-
zações positivas para o heroísmo, a valentia, o destemor, leva a frequen-
tes atos de disputas, rivalidades e brigas entre os elementos masculinos.
Na sociedade medieval, a camada ociosa dos nobres cavaleiros recebia
aplausos pelas lutas e torneios. Ocorrência de atitude de “torneio” ru-
dimentar em sociedade rural no início do século XX seria avaliada et-
nocentricamente como atraso, destempero e o antônimo da ordem e do
trabalho. Se não ambos, mas o primeiro é elucidativo do dístico de nossa
bandeira nacional.
Hoje, ao se falar das mulheres do e no Contestado há uma hagiogra-
fia, com maiores ou menores gradações para algumas delas. Maria Rosa
é a figura que mais ressalta. É nome de centro de formação de movimen-
to social, há dança em sua homenagem, cavalgada homônima. Outra ce-
lebrizada é Chica Pelega, inspiradora de hinos que clamam à luta. Mas
há também aquelas que são transgressoras e heréticas, como Querubina.
Entre esse espectro transitam outras, cuja biografia é traçada e muito há
por delinear. Dizer que a mulher do Contestado teria invisibilidade, tal-
vez seria mais adequado dizer que foram invisibilizadas. O que ocorreu
foi o olhar que a naturalizou como integrante da família, como sombra

1  Coração das trevas é romance de Joseph Conrad a partir de sua vivência na marinha mercante
em viagens ao Congo Belga, apresentando as mazelas do colonialismo.

394 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


do marido. Não foi registrada, não lhe foi atribuído o status de partícipe.
Os registros foram para as excepcionalidades.
Michelle Perrot, em Os excluídos da história, nos remete a pensar em
dois âmbitos de situações de mulheres. Não é a mulher rebelde, a exem-
plo do que Perrot, que luta nos motins pelo preço do trigo, que luta pelo
preço do pão, que se rebela contras máquinas, que encontramos no Con-
testado, mas aquelas do cotidiano, inseridas na vida dos redutos, que se
valem da irreverência frente ao estabelecido. A exemplo da epígrafe do
texto, poderiam ocupar o lugar que seria destinado aos homens, quebran-
do a fronteira e dirigir a luta. Quais são as armas, senão aquelas rudimen-
tares disponibilizadas pela madeira? Da assertiva dos autores da epígrafe,
perdoe-se o etnocentrismo exacerbado, de cujas lentes olhando de longe,
consegue vê-las: “Algumas mulheres xucras, decididas, empunhavam um
porrete, ali um porrete de madeira, prontas para lutar, possuídas de his-
teria e de cego fanatismo”. Aos outros, à alteridade, as categorizações
prescritivas em delimitar o mundo por meio de diagnóstico emprestando
linguajar psiquiátrico: possuídas de histeria e cego fanatismo. Pouco se
sabe da mulher no mundo rural no início do século XX, de modo geral, e
tampouco do interior dos redutos.
Perrot (2006) aponta que a política, a administração pública na Eu-
ropa Ocidental são apanágios masculinos e não foi diferente no Brasil.
Não seria diferente na região serrana de Santa Catarina. Quais eram os
ofícios dessas mulheres? Paulo Pinheiro Machado (2004, p. 69) informa
que no planalto catarinense, tal qual na Campanha, as mulheres muitas
vezes assumiam o comando do sítio ou da fazendo quando da ausência
do marido envolvido no tropeirismo. Além do papel do comando da pro-
priedade, nos papéis femininos constavam o da parteira e da costureira.
Assim é a personagem Delminda, de Geração do Deserto, de Guido Wil-
mar Sassi. Mauricio Vinhas de Queiroz nomina por intendentes as mu-
lheres que não só desempenhavam nos partos o papel de comadres, mas
também conheciam práticas para esconjurar doenças ou atrair felicidade.
Havia também aquelas que eram categorizadas como bruxas. Eram temi-
das, mesmo assim eram procuradas, eram as mandraqueiras.

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 395
Mulheres do Contestado e nos Redutos
Diferentemente de Canudos, imortalizado por Euclides da Cunha
em Os Sertões, o Contestado teve diversos registros, das mais diversas ten-
dências, nas quais, inicialmente, a economia de apontamento foi severa
em relação às mulheres. Aqui e acolá, registra-se uma virgem, uma his-
térica e outro qualificativo de categorização que depreciava tanto os in-
tegrantes, ora apresentados como fanáticos, ora aberração (LUZ, 1952).
Serão os trabalhos acadêmicos realizados a partir de Maria Isaura Pereira
de Queiroz (1957), Maurício Vinhas de Queiroz (1981) e os inúmeros
que se sucederam que dão um tom respeitoso à análise do evento e com
isso permitindo o surgimento da representação feminina. Canudos teve o
registro de caráter literário como uma obra-prima da língua portuguesa e
testemunho de militar e jornalista. Ficou evidente o número de mulheres
e crianças ali presentes, mas merecedoras de descrições discretas e sem
maiores atributos. Poder-se-ia perguntar o que teria ocorrido. Uma even-
tual resposta estaria na lógica seguida por Euclides da Cunha, ao trilhar
a trilogia de Hipollyte Taine: o meio, o homem (Antônio Conselheiro) e
o evento (o combate). Além do determinismo geográfico empregado pelo
estudioso francês, o cerne o trabalho coube ao conselheiro deixando o
povo como agentes secundários.
No Contestado também houve a tentativa de explicar a guerra pela
trilogia de Taine. Oswaldo Cabral (1979) refere-se ao esquema euclidia-
no. O livro fica claramente dividido em três partes: a primeira aborda os
aspectos geopolíticos e a questão dos limites, dando ênfase na configura-
ção geofísica de Santa Catarina e o povoamento; a segunda é dedicada
aos monges e a terceira ao evento, a campanha do Contestado. Há uma
quarta parte com itens de pesquisa. Essas obras, de Euclides da Cunha
e de Oswaldo Cabral, não perdem seu mérito, mas a explicação calcada
no meio não podem levar a um viés determinista. As obras de sociologia
e história posteriores abandonam o modelo encontram outro enredo e
modelo explicativo.
Ao contrário de Canudos, como lembrou, apropriadamente Paulo

396 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Pinheiro Machado, Contestado não houve um único personagem que o
atravesse do início ao fim. Nesse percurso observaremos o espaço do fe-
minino, as hagiografias e as representações iconoclastas. Há uma suces-
são de monges. Inicia por João Maria Agostini, o São João Maria, suce-
de-o outro João Maria, considerado seu irmão e por terceiro José Maria.
No território dos monges, mesmo que não estejam fisicamente presentes,
reinam as videntes virgens.
Temos no Contestado personagens femininas que ocupam posições
estruturais, tais como as virgens, e outras de caráter mundano que fazem
a costura no dia a dia, apontando que, apesar de registros pouco gene-
rosos, exerceram papel importante. Personagens que vem à mente são
virgens como mediadoras. O profeta José Maria, canonizado como santo
popular, transmitindo a mensagem à virgem, como oráculo, que serve de
intérprete. A virgem recebe a mensagem, mas não a levam diretamente
aos fiéis, passa pela mediação de um adulto, em geral seu pai ou avô, al-
guém de seus vínculos consanguíneos, até “perder o aço”, isto é, o descre-
denciamento da qualidade de eleito ou eleita para a mensageira. Ou seja,
o dom não é duradouro. Pode ser interrompido, isto é, perder o aço, o
que implica num processo de substituição. As mulheres do cotidiano, ou
mundanas, profanas, sem poderes sagrados, são muitas vezes categoriza-
das como fanáticas, histéricas e outros qualificativos depreciativos. Nada
dóceis e por isso os rótulos negativos. Na convivência misturam-se. Mas
há o panteão das mulheres enaltecidas, como Maria Rosa e Chica Pelega.
Não é pela primeiridade, mas Teodora é a virgem que inaugura a co-
municação do povo do Contestado com José Maria, morto no Combate
do Irani. Para muitos o profeta não estaria morte e retornaria para condu-
zir e orientar seu povo. Seu grande papel foi a liderança, apesar de ser me-
diada pelo avô, em ordenar a condução do povo a Taquaruçu. Provável
que se as mensagens emitidas por criança/adolescente não teriam recep-
tores e credibilidade em contexto de mundo rural, como aquele. Teodora
a virgem, menina com idade de 12 a 13 anos, com poderes recebidos de
José Maria, e que por sua mensagem, consegue a aglutinação da rede das

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 397
relações do avô para o deslocamento a Taquaruçu, cumprindo as ordens
do Monge. Taquaruçu representaria o retorno do Monge José Maria. As
visões de Teodora das ordens do caminho à cidade santa indicavam que
aguardariam o retorno do monge com o exército encantado de São Se-
bastião. (Machado, 2004, p. 211). Embora as ordens fossem transmitidas
ao público pelo avô, o papel de Teodora é o elemento desencadeador do
deslocamento da população em busca da “terra prometida”.
Médicos2 com pendor a antropólogos veem com reticências e tentam
explicar de cunho patologizado. Luz (1999) escreve que Maria Rosa, uma
das netas de Eusezébio (sic), teria visto José Maria acompanhado de três
homens. Há um equívoco. Não se trata de Maria Rosa. Esta personagem
surgirá adiante). Oswaldo Cabral (1979, p. 220) informa que uma neta
de Euzébio, de nome Teodora, sugestionada certamente pela arraigada
crença familiar, afirmou ter visto José Maria, nos braços de quem dor-
mira quando criança, e que o monge lhe falara. Com maiores ou meno-
res detalhes esse fato é repetido por outros autores. Maurício Vinhas de
Queiroz ao entrevistar Teodora, na década de 60, obteve a informação
que não houvera comunicação com o Monge. Tudo não passaria de ar-
timanha de seus avós. Considerando factível a informação, não se pode
desconsiderar o feito da força de articulação e do capital simbólico que
representou a atuação da virgem e cuja mensagem foi motivadora para o
deslocamento a Taquaruçu, coo ordenara o profeta.
Eusebio, seguindo as orientações de José Maria, abandona a morada
e o comércio, todos os teres e haveres, e ruma com a parentela a Taquaru-
çu [Curitibanos], ponto de convergência dos fiéis (CABRAL, 1979; LUZ,
1999). Estabelece-se uma clivagem entre os inocentes e adultos. Aqueles
e aquelas com possibilidade de ver o Monge e os adultos em estado de
pecado não teriam a graça de vê-lo (SASSI, 2000). Aqui entra em jogo a
personagem que qualificamos de profana, isto é, por não possuir poderes
sagrados, chamada Querubina, esposa de Eusébio. “A mulher de Euzébio,

2  Oswaldo Cabral e Aujour Luz teriam escritos seus livros sobre o Contestado para concorrer
à Cátedra de Medicina Legal da Universidade Federal de Santa Catarina,

398 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


velha crédula e devota fervorosa do monge, acreditou imediatamente,
sem a menor sombra de dúvida, no que menina dizia” (LUZ, 1999, 168).
Esta teria exercido forte influência na arregimentação da população para
o deslocamento à cidade santa e coube a ela, mais tarde, mesmo quando
seu neto Manoel perde o aço articula em conjunto com Adúcia para a
entrada de seu esposo Major Elias Moraes no Movimento para assumir
liderança no reduto de Caraguatá (VALENTINI, 2016, p. 185). Esses
papéis não são habituais no meio rural. Exerceu-os anterior à entrada do
reduto e dentro dele. Observe-se que Querubina pertence a uma genealo-
gia de santos videntes, feminina e masculinas, mãe de Manoel e avó de
Teodora e Joaquim.
Querubina é reiteradamente citada pela posição transgressora em
relação ao frei Rogério Neuhaus, quando de sua visita a Taquaruçu, em
1913, para alertá-los do perigo que corriam ante um ataque das forças
regulares. Na visita de Frei Rogério ao reduto e sua recepção inamistosa
há uma subversão. A hierarquia eclesiástica do clero romanizado defron-
ta-se com o catolicismo herético ou rústico (PEREIRA DE QUEIROZ,
1957) categorizados pela Igreja. Vários são os pontos de afastamento, um
dos quais é a cobrança do dízimo e dos serviços religiosos prestados, em
oposição à plena gratuidade dos ofícios ministrados pelos monges. Se de
um lado, a autoridade religiosa era institucionalizada, por meio de uma
formação de longa escolarização e com delegação para o exercício dos
atos sagrados, de outro, no reduto, quando da entrada de frei Rogério, a
liderança espiritual estava a cargo de um imberbe com doze anos, neto
de Euzébio. Isso representaria uma inversão etária aos olhos externos,
marcado pela ausência de formação e, no entanto, respaldada interna-
mente à medida que Querubina, a avó de Manoel, desacata o religioso,
assegurando-lhe que estes não valem mais nada (SALOMÃO, 2016). Os
pelados estariam em novo século. Contra a intromissão do frei no reduto
constava uma lista de castigos corporais a serem aplicados. Um sacerdote
aplicava sanções morais, mas não castigos físicos. Mas no novo século,
ao religioso estava previsto surras, degolas e a emasculação, sugerida por

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 399
Querubina (VALENTINI, 2016, p. 147; QUEIROZ, 1981, p. 120). Fatos
que não ocorreram, mas representaram a ruptura entre o clero romaniza-
do e o catolicismo popular.
Se Teodora foi a primeira virgem que apareceu, não foi a única. Seu
surgimento foi anterior e no início da constituição do reduto de Taqua-
ruçu. Este constituído surge Maria Rosa, como veremos adiante. Após
orientação de Maria Rosa em seguir para o interior, para vencer as forças
regulares, estabelecem-se redutos de Pedras Brancas, Bom Sossego e pe-
quenos redutos. Nessa pulverização, no vale do Timbozinho destacaram-
-se a virgem Sebastiana Rocha que, depois que decaiu, foi substituída por
Rosa do Thomazinho, também chamada Maria. Esta era casada e mãe
de filhos. Este fato leva a relativizar o conceito de virgem enquanto fato
sexual.
As representações desse Projeto de Grande Escala no coração do
sertão, numa leitura do feminino que beira o picaresco foi retratado por
Sassi (2000), cuja obra inspirou Silvio Back em Guerra dos Pelados, clássico
da filmografia brasileira, sintetizada numa cena antológica em que o per-
sonagem Nenê treina e luta com sua espada de madeira para conseguir
orelhas de peludos, exigência do Imperador Rocha Alves, para consentir
o casamento com sua filha. Zeferina Papuda e seu filho Nenê caminham
dias em busca do dragão de ferro. A estratégia de Zeferina, de que o bi-
cho só andava nos trilhos, é seguir por estes e o encontram na estação de
Erval, onde é tocaiado, ordenando que Nenê o ataque.
“- Disseram que ele só pode caminhar por cima destes ferros, e que
quase não sabe andar para trás. Só anda pra frente. Aqui é bom: barranco
do lado de lá, barranco do lado de cá. Ele não tem por onde fugir. Quan-
do ele aparecer, você [Nenê] avança nele.” (SASSI, 2000, p.70).
Chica Pelega é personagem controverso. Valentini (2016) assegura
ser pouco citada e para alguns nem teria existido. A personagem foi imor-
talizada na literatura, no livro de A. Sanford de Vasconcellos (2008), que
deixa em aberto a existência dessa personagem, mas “algo no Plural”.

400 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Chica Pelega representa mais que tudo, um emblema de luta,
e nesse recado se alicerça a sua maior importância. O sonho
da implantação de um Império Caboclo na região do Contes-
tado assenta-se principalmente no grito em favor do direito
à terra, encontrando no messianismo desesperado agasalho.
Chica Pelega, independentemente da sua existência física,
significa a indignada síntese de uma coletividade injustiça-
da. Porque Chica Pelega é algo no Plural (VASCONCELLOS,
2008, p. 21).

Valentini, ao contrário, tomo como personagem do Contestado. Esse


autor recupera, por meio dos escritos de Euclides Felippe, as entrevistas
e depoimentos de sobreviventes e descendentes do episódio, narrando os
feitos de Roberta Francisca. Chica Pelega, como era chamada, nasceu no
Rio Grande do Sul. Pais eram peões de fazenda. Mudaram-se para área
próxima à Estação Limeira [Joaçaba], onde o pai fora assassinado pela
força de segurança da empresa norte-americana. Francisca Roberta e sua
mãe deslocaram-se a Taquaruçu, onde assume o cuidado pelos enfermos
e manuseio de ervas medicinais, como um traço de sua ligação com o
monge João Maria. As descrições são de uma figura altaneira, cavalgan-
do e empunhando a bandeira branca de cruz verde. Quando o reduto
foi transferido para Caraguatá, as forças do Exército as bombardearam
Taquaruçu e nos destroços ficou Chica Pelega (VALENTINI, 2016, p.
188). É possível amarrar a trajetória de Francisca com a de Teodora. A
primeira mediou a mensagem para o deslocamento a Taquaruçu, cidade
santa, protegida de todos os males. A segunda, no cuidado aos enfermos,
e enquanto local desguarnecido pela retirada a Caraguatá, lá sofre o peso
da artilharia do Exército.
Alçada ao panteão das figuras reconhecidas do Contestado, observa-
mos expressões desse reconhecimento, como os bonecos confeccionados
em Calmon-SC (HOBAL, 2009). No cancioneiro popular, no sentido es-
trito do povo envolvido nos movimentos sociais, não são raros os versos
em sua homenagem. Há uma apropriação pelos movimentos sociais, ro-
marias, por sua luta pela justiça social.

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 401
Diferentemente das demais personagens, Maria Rosa, é vidente e co-
mandante, grau não ocupado por nenhuma das antecessoras. Teria sido
ouvida por todos e consultada por todos. Sob sua liderança ocorreu o
ataque a Caraguatá, no qual o Exército foi derrotado. Segundo Valentini
(2016, p. 189). “No Museu Histórico e Antropológico do Contestado de
Caçador (SC), ao lado de um manequim que representa Maria Rosa, en-
contram-se registros afirmando que Maria Rosa, no reduto de Caraguatá,
chegou a ter sob seu comando cinco mil sertanejos armados”. Anterior-
mente, quando em Taquaruçu previra a necessidade de deslocamento a
Caraguatá. Após a vitória ordena a retirada para o interior, prevendo o
avanço das forças militares, o que resultou nos redutos de Pedras Brancas
e Bom Sossego. No interior do reduto presidia os julgamentos. Juíza para
os casos de conversão ou traição (QUEIROZ, 1981). Disputas de poder
interno representou o descenso de Maria Rosa e ascensão de Chiquinho
Alonso.

Algumas palavras para continuar


O texto não teve a preocupação em tipologizar o registro da pre-
sença das mulheres. O que se levou em conta foi uma sociedade rural,
hierárquica, na qual a dominação se manifestava e estendia seus braços às
relações pessoais e aos bens materiais, tais como as terras. O solapamento
da sociedade tradicional e a construção de uma nova ordem requereu a
participação de todas as camadas. O que surpreende é que nesse contexto
há uma constelação de lideranças, cuja autoridade é oriunda da religião,
da religião popular, ao avesso do catolicismo romanizado. Nem todas
as mulheres apresentadas são oráculos a trazer as mensagens do profeta
José Maria. A vida tem seus traços e trancos e rotina, surge uma Queru-
bina. Quantas não terá havia, e não registradas?
O título do texto tem o propósito provocador de afirmar ser o espaço
feminino um território a ser explorado, mas relacionalmente aos homens

402 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


de “carne e sangue” que construíram os redutos ou fora deles. São narra-
tivas para muitas gerações.

Referências
BOUQUET, Mary. The differential integration of the Rural Family. Sociologia
Ruralis. 24(1), 1984.
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. Florianópolis:
Lunardelli, 1979.
CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Editora Veneta, 2014.
CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Ubu Editora, 2016.
FGV. CPDOC. Guerra do Contestado. Ecos da Guerra. Entrevista com Paulo
Pinheiro Machado. 04 de setembro de 2012. https://cpdoc.fgv.br/contestado/ecos
HOBAL, Michele Aparecida. Paisagens “Contestadas”: o turismo como elemento
transformador do espaço regional – o caso de Calmon, SC/ Brasil. Dissertação
de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Geografia.Universidade Federal do
Paraná. Curitiba, 2009.
LUZ, Aujour Ávila da. Crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos.
Os Fanáticos (Contribuição para o estudo da antropossociologia criminal e da
história do movimento dos fanáticos em Santa Catarina). Florianópolis: UFSC,
1999.
PERROT, Michele. Os excluídos da história. Operários, mulheres e prisioneiros. 4ª.
edição São Paulo: Paz e Terra, 2006
VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e conflito social: a guerra
sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
RIBEIRO, Gustavo Lins. Poder, Redes e Ideologia no Campo do Desenvolvimento.
Novos Estudos Cebrap, v. 80, mar, 2008.
SACHET, Celestino; SACHET, Sergio. Historia de Santa Catarina. O Contestado.
Florianópolis: Editora Século Catarinense, 2001.
SALOMÃO, Eduardo Rizzatti. A devoção ao Divino Espírito Santo no Contestado.
XV Encontro Regional de História. Curitiba: UFPR, Julho de 2016.
SASSI, Guido Wilmar. Geração do deserto. Porto Alegre: Editora Movimento,
2000.
VALENTINI, Delmir Jose. Da cidade santa à corte celeste – memória de sertanejos
e a Guerra do Contestado. Chapecó: Argos, 2016.
VASCONCELLOS, A. Sanford de. Chica Pelega – A Guerreira de Taquaruçu.
Florianópolis: Insular, 2.ed., 2008.

RENK,, Arlene. Mulheres no Contestado: um território a ser conquistado


RENK 403
404 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Pacífico nas lides da Justiça:
crime e violência no Sudoeste do Paraná (1900-1930)1

Aruanã Antonio dos Passos

A história da região Sudoeste do Paraná é marcada por iniciativas


de dominação e controle de seu espaço2. As primeiras iniciativas
que resultaram em uma preocupação para a governamentalidade
ainda no século XIX, incluíram a emergência nessas primeiras décadas
do problema político do território e da soberania nacional. Esses dois ele-
mentos ficam evidentes em relação aos incentivos governamentais para
a migração das levas populacionais do sul, fenômeno esse ampliado com
o governo de Getúlio Vargas, e ainda, a ameaça estrangeira no território
paranaense. Dessa forma, a discussão em torno da governamentalidade é
útil a esse amplo processo, tendo em vista, que a preocupação era muito
mais a de intensificar a ocupação do território do que gerir problemas

1  Os argumentos e conclusões aqui apresentados, com algumas alterações, foram discutidos


em “Leviatã no Sertão: crime, justiça e violência no Interior do Paraná (19010-1940). Curitiba:
Juruá, 2012”, de nossa autoria.
2  Para uma discussão em torno dessa questão: PASSOS, Aruanã Antonio dos Passos; SANZO-
VO, Nair. Saber do espaço e colonização regional: constituição territorial e expedições geográfi-
cas no Sudoeste do Paraná. Revista CONFINS (Paris), N. 37, 2018.
econômicos, jurídicos (criminais) e políticos de populações que seriam
agora objeto de controle3. É nesse contexto que o crime e os criminosos
encontram espaço e certa liberdade dentro do território do Sudoeste.
No entanto, uma vez que a ameaça da soberania era de pequena
monta, até 1940 não se verificou uma preocupação relevante com o con-
trole e gestão dessa população. Por isso, o bandido que vivia no Sudoeste
não era um indesejado ou alguém a ser perseguido ou excluído da socie-
dade, mas indivíduos que desempenharam o papel muitas vezes de “jus-
ticeiros”. Pistoleiros que estavam se estabelecendo dentro de uma ordem
social que não se achava estabelecida, funcionando de modo organizado
e sistematizado, tal qual o intuito de experiências da Colônia Agrícola
General Osório (CANGO) e também do amadurecimento do aparelho
jurídico.
O apoio e ajuda da população aos bandidos no Sudoeste ocorria,
mas não em função de uma contestação de uma dominação orquestrada
pelo Estado ou por um grupo ou classe dominante, mas justamente pela
ausência desses sujeitos tendo em vista a reprodução da vida material jus-
tamente pelas especificidades dessa vida camponesa e de sua população.
Esses bandidos não eram heróis, como os “bandidos sociais”, estudados
por Eric Hobsbawm4; todavia, podiam ir e vir, escapar, estabelecer-se por
algum tempo em algum lugar, realizar pequenos furtos. No cotidiano da
região, os bandidos eram agentes da fluidez, não apenas de localização
e movimentação no espaço, mas também das diversas relações sociais.
Essa característica dá outra forma ao banditismo, que não se encontra,
na maior parte das vezes, nem na lei absoluta do mais forte sobre o mais
fraco, porque o bandido necessita do homem comum, de seu respeito,

3  FONSECA, Ricardo Marcelo. Foucault, o direito e a ‘sociedade de normalização’. In: FON-


SECA, R. M. (Org.). Crítica da Modernidade: diálogos com o Direito. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2005, p.117.
4  Na definição de Hobsbawm: “O ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são pros-
critos rurais, encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer
parte da sociedade camponesa, e são considerados por sua gente como heróis, como campeões,
vingadores, paladinos da Justiça, talvez até mesmo como líderes da libertação e, sempre, como
homens a serem admirados, ajudados e apoiados”. In: HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1976, p.11.

406 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


mais que de sua oposição, nem na marginalização do bandido enquanto
um mal social.

No início do século existiam poucos povoados na região. Um


deles, denominado Canela, teve início em 1919, sendo eleva-
do à categoria de Distrito Judiciário em 1927, com a denomi-
nação de Bom Retiro, onde encontra-se hoje a sede do mu-
nicípio de Pato Branco. Existiam desde 1903 os povoados de
Barracão e Santo Antonio na fronteira da Argentina. Desde o
início do século existia, também, o povoamento de Santana.
Outro núcleo populacional era Campo-Erê, na divisa entre
Paraná e Santa Catarina. Afora esses povoados existiam al-
guns moradores dispersos, inclusive fugitivos da justiça5.

Como haviam poucos povoados, escassez de remédios, alguns ali-


mentos, roupas, devido à dificuldade e distância dos centros comerciais
mais próximos, as relações entre os indivíduos eram profundamente
marcadas por certa solidariedade mesmo com os bandidos. É claro que
mesmo com “(...) o isolamento da sociedade rural, a tenuidade e inter-
mitência de seus relacionamentos, as grandes distâncias geográficas e
o primitivismo geral da vida no campo”6, os papéis sociais se mantêm
distintos e isso, claro, aumenta a visibilidade do bandido dentro dessa
sociedade.

O fator solidariedade é bastante importante nas migrações.


Os fluxos migratórios sempre possuem um caráter de solida-
riedade – pessoas inter-relacionadas em torno de comunida-
des religiosas, por laços de parentesco ou ainda de amizade,
ou mesmo vizinhança7.

5  LAZIER, Hermógenes. Análise histórica da Posse da Terra no Sudoeste do Paranaense.


Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná/ Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1986, p.46.
6  Idem, p.86.
7  BREPOHL, Marion Dias. Arrendantes e Arrendatários no contexto da soja. Região de
cascavel; Paraná – 1960-1980. (Dissertação de mestrado em História – UFPR), Curitiba, 1982,
p.60.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 407
Do início das migrações e do caminho de interiorização da região
os bandidos demarcaram-se no espaço colonial como elementos transver-
sais e difusos no espaço colonial, para depois, passo a passo, perderem
sua relevância nos vínculos sociais. Para Balhana:

Na década de 1920 teve início, em grande escala, a entrada


da corrente povoadora vindo do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina, constituída, principalmente, de agricultores de ori-
gem italiana e alemã. Entraram por Pato Branco, infletindo
depois pelos vales dos rios Chopim, Piquiri e Paraná8

Desses migrantes, segundo Krüger: “muitos deles fugiam das pen-


dengas intermináveis entre ‘chimangos’ e ‘maragatos’ no seu estado”9.
Assim o Sudoeste do Paraná tornava-se um território onde havia pos-
sibilidade de um novo recomeçar, de uma vida nova, um tempo que foi
caracterizado pelo estabelecimento das bases de uma economia de sub-
sistência onde não havia nenhuma estrutura disponível capaz de dar o
mínimo de condições para a fixação desses migrantes:

Deste modo a conjugação dos costumes e da cultura, as di-


mensões relativamente modestas das propriedades, a con-
formação difícil do terreno, a inexistência de meios de co-
municação, a falta de recursos disponíveis, a considerável
homogeneidade das atividades econômicas em toda a área,
sem esquecer as dificuldades tremendas criadas pelos grilei-
ros e aventureiros que campeavam pela região durante mais
de uma década, determinaram que a primeira fase de ocupa-
ção tivesse sido a e implementação de um sistema de subsis-
tência, desvinculado de quaisquer estímulos ou vínculos de
mercado.10

8  BALHANA, Altiva Pilatti (et. al). História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969, p.218.
9  KRÜGER, Nivaldo. Sudoeste do Paraná: história de bravura, trabalho e de fé. Curitiba:
Posigraf, 2004, p.90.
10  PADIS, Pedro Calil. Formação de uma economia periférica: o caso do Paraná. São Pau-
lo: HUCITEC; Curitiba: Secretaria de Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paraná,
1981, p.170.

408 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A expansão do capital na região não ocorreu, simplesmente pelo
fato de que os capitalistas não lhe tinham interesse antes da década de
1940. Essas características de organização econômica estão relacionadas
com a dificuldade de implantação e funcionamento do Estado na região:
“a ocupação das terras sudoestinas encontrou barreiras sólidas no caos
administrativos resultante tanto do conflito de interesses entre a União, o
estado do Paraná e as companhias privadas de colonização, como da mo-
rosidade e inércia do aparelho judiciário”11. A capitalização da terra e as
disputas em torno de seu valor enquanto capital ainda não eram vislum-
bradas, no entanto, a noção de propriedade privada aparece em disputas
judiciais mas ligada a bens de consumo e não à terra propriamente dita.

Trajetória e destino de Pacífico no teatro da verdade


Dentre as características da região que dificultariam a ação da justiça
não encontramos melhores palavras do que as do Juiz ao pronunciar a
sentença contra Pacífico de Pinto Lima e seu filho José de Pinto Lima,
acusador de agredirem o menor Joaquim Félix em 1920:

O presente processo ultrapassou o prazo da lei para conclu-


são, por circunstancias insuperáveis. A razão de ser este ter-
mo judiciário, embora pouco povoado ainda, mais tudo apro-
ximadamente uns cento e cincoenta qilometros de extensão,
cuja extensão quase toda de certões e perigosos; termo que se
confirma com o Estado de santa Catharina e republica Argen-
tina, dando isso logar a imperiosas difficuldaades e demora
em citação de testemunhas; realizando por vezes o official de
justiça, no praso de um mais antecessores no juizado “ver-
dadeiras caçadas de testemunhas”, e outros tantos embara-
ços que só em acontecer, concorrem para que a justiça por

11  COLNAGHI, Maria Cristina. O processo político de ocupação do Sudoeste. In: PAZ, Francisco
(org.). Cenários de Economia e Política. Curitiba: Editora Prephacio, 1991, p.8.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 409
mais solicita e severa no cumprimento de seus deveres, não
possa, infelizmente, dar uma marcha mais rápida na punição
dos criminosos e repressão ao crime. É assim, que tenho o
desprazer amargo de dizer, apezar de meus ingentes esforços
em sentido contrário, este processo com mas de dois mezes
de inicio, somente agora veio a ponto de ser nelle proferido
sentença (sic.)12

Na sentença, ao mesmo tempo reclamatória e justificadora, Antonio


Ribeiro de Brito (juiz) põe à mostra as principais dificuldades encontra-
das efetivamente para o estabelecimento e funcionamento da justiça. Po-
rém, uma camada muito sutil da sua fala e que de certo modo perpassa
e secciona em muitos pontos todo processo não se mostra inteira. A vio-
lência e os perigos da região não se dão necessariamente pela extensão
do território, mas, pela população, sua organização e suas relações nesse
espaço, intermediada por uma aparelhagem que tenta se posicionar como
gestora de uma determinada ordem.
Obviamente que o processo contra Pacifico e José (seu filho), de-
monstra a relação entre uma justiça (dita formal) que tenta se estabelecer
esse “consenso”, esse status quo regulador dessa sociedade a qual se cons-
tituiu historicamente através de uma normalização paralela e que passou
a coexistir com esse aparelho formal repressivo e regulador característi-
co do Estado (justiça). Em outras palavras, é a luta de uma justiça que
busca se naturalizar em uma sociedade organizada sobre o mesmo ou
semelhante princípio de direito, mas que se praticava por outros meios. É
na inexistência desse “pacto consensual” de todos para com todos é que
encontraremos pessoas recorrendo à justiça formal – o que certamente
pode ser o caso do processo contra Pacífico – por não possuir alternativa
ou por não ter condições de responder na mesma moeda. É nesta rela-
ção – e a conclusão deste processo é exemplar nesse sentido – ou melhor,
dizendo, na falha desta mudança de comportamento que agora recorrerá

12  COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-crime


contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 49.

410 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


à justiça institucional (estatal), a qual expressa a vontade de justiça e a
própria noção comum da “justiça cega”.
A fala do Juiz esclarece diversos aspectos que concorriam contra a
aplicação da lei. Aspectos práticos no exercício do ofício de fazer cumprir
a lei, como as distâncias e as dificuldades em se encontrar as testemunhas
e intimá-las para depor. Dessa maneira, quando os acusados tinham con-
dições de contratar um representante legal, a mínima dificuldade poderia
facilitar a defesa e mesmo desqualificar completamente a ação penal. É o
caso do processo contra Pacífico de Lima e José de Lima, em que o advo-
gado encontra espaço para contestar a denúncia e o processo:

Meretissimo Sr.Dr. Juiz Julgador.


Desde o primeiro lance de vista as muitas páginas que com-
põe estes autos, bem circunstanciada ficou a façanha vexató-
ria da nova forma de conto do vigário, intentado por Severia-
no Barboza que, começando com uma queixa a Policia, teve
como resultado, o documento apreciável que se vê no mes-
mo, (...), a sensaboria d’uma comedia, sem origem, engen-
drada pelo menor Joaquim Felix Rodrigues, que representou
no acto, papel de papagaio falante mal ensinado. O comparsa
Severiano Barboza, que levantou a lebre, foi mais longe, pro-
movendo accusação sem comtudo dar a triste tragédia, uma
origem concebível e concludente.
(...)
De tudo o mais que dos autos consta, nem uma prova digna
de sentença, existe contra os accusados, não passando tudo
de um Blaque em proveito próprio, da qual foram os protago-
nistas Severiano Barboza e seu entiado Joaquim Felix Rodri-
gues. Fácil é conjeturar-se: não vai a tempos idos, neste mes-
mo termo, houve uma autoridade que, quando engendrava
suas maquiavélicas perseguições, espalhava a noticia de um
crime; depois intimava-os seus ouvintes a comparecerem em
audiências, e ahi interrogados sobre o que ouviram dizer a
respeito, tanto foi que um bello dia certa testemunha distin-
guiu-se declarando só ter ouvido daquella autoridade; eis o
que se dá com o caso (...) Joaquim Felix Rodrigues aprovei-

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 411
tando-se de leves machucaduras, soube tira partindo, aludin-
do a boa fé de todos os que ouviram sua narrativa, inclusive
os peritos, bem fingindo o deslocamento do punho da mão
direita, deixando porem a fragilidade da mentira, bem palpá-
vel, na parte que diz não haver o mesmo ignorar os motivos
que originaram a aggressão de dois homens fortes e valentes
contra um menor, que a pezar, teve a superioridade de lutar,
e agarrar-se com uma só mão a cerca e uma fazenda de criar
(que todos sabem o que seja) escapando-se a fúria dos ag-
gressores. Que prodígio13!...

O advogado tenta não apenas desqualificar o processo em si, mas


também desqualifica o outro do acontecimento, valendo-se de palavras
chulas, inclusive. Por interferência ou não dessa estratégia de defesa, os
acusados acabaram por ser inocentados. Segundo Teófilo Ribeiro de Re-
zende a morosidade da justiça advém da Província do Paraná e não é um
atributo apenas do Sudoeste:

Irregular e demorada a administração da justiça em quase


toda a Província. Este estado de coisas é devido a não esta-
rem ocupados os lugares de justiça por magistrados efetivos.
Só a comarca de Paranaguá goza da presença de seus magis-
trados: nas outras comarcas servem os substitutos e suplen-
tes dos quais não se pode com eqüidade exigir a regularidade,
desenvolvimento e acerto que são para desejar em tal admi-
nistração. Homens de lavoura ou de comércio inteiramente
estranhos a esta administração se prestam a ordinário a ser-
vir menos por vocação ou gosto do que por condescendência
e mesmo favor, e havendo deficiência de advogados ou de
homens profissionais torna-se-lhes quase impossível o de-
sempenho das funções que aceitam, servindo-lhes também
de obstáculo os enlaces de família, os embaraços e relações
mercantis. Seria pois desejado que todos os lugares fossem

13  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 44.

412 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


preenchidos, e sem interrupções ocupadas por Juízes efeti-
vos”14.

Aqui visualizamos alguns elementos práticos que prejudicavam o


exercício da lei no interior do Paraná no início do século. No interior da
ordenação do processo penal também alguns entraves acabaram fazen-
do toda diferença. No caso do processo contra Raul Teixeira que vimos
anteriormente (conhecido como famoso ladrão de cavalos15), a fala do
promotor desvela um problema de procedimento no auto de corpo delito
bastante importante:

Requeremos a V. Excia, a baixa deste inquérito policial a sub-


-delegacia de origem, para que sejam retificados os 5º e 6º
quesitos do laudo pericil de fls 4 e 4 verso,; pois si a lezão cor-
poral, foi por sua natureza e sede a causa efficiente de morte
(4º quesito) como é possível responder-se affirmativamente
os 5º e 6º quesitos? Francamente fallando, a importância, o
valor jurídico, está nas respostas. Não pode haver dubiedade
nas respostas. Pois têm que ser, sim ou não16.

Os peritos não teriam sido objetivos em seu parecer e diante do pre-


cedente, o advogado de Raul, Cândido M. de Oliveira Netto envia ao Juiz
a seguinte mensagem:

M. M. Juiz
O presente processo, instaurado contra RAUL TEIXEIRA,
denunciado por um crime de homicídio da pessoa de Ireno
Rodrigues da Silva, é, em face do que dispõe a lei, nulo.
Tal nulidade provém do fato de o exame cadavérico de fls. 6,

14  PARANÁ. Relatório que Teófilo Ribeiro de Rezende apresentou ao Vice-Presidente


Beaurepaire Rohan, por ocasião de lhe entregar a administração da Província do Paraná,
em 6 de setembro de 1854. Apud: HISTÓRIA DO PODER JUDICIÁRIO NO PARANÁ.
Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte / Gráfica Serena, 1982, p.37-8.
15  BOCCHESE, Neri França Fornari. Pato Branco sua história sua gente: história de Pato
Branco. Pato Branco: Imprepel, 2004, p. 166.
16  Processo-crime contra Raul Teixeira, 1941, p.12.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 413
que é a peça que prova a materialidade do delito, ser comple-
tamente imprestável.
O 2º, 4º, 5º e 6º quesitos do referido exame cadavérico, ou
melhor, as respostas dadas aos 2º, 4º, 5º e 6º quesitos são
contraditórias. Por elas não se pode saber se a causa da mor-
te da vítima foi propriamente o ferimento, ou se o estado
mórbido anterior do ofendido ocorreu para tal, ou ainda se
a morte resultou não porque o mal fosse mortal e sim por ter
o ofendido deixado de observar o regimen médico-higiênico
reclamado pelo seu estado.
Além do mais, a denúncia também é nula, pois não preenche
os requisitos exigidos pelo Código de Processo17.

Raul Teixeira acaba inocentado e seu advogado parece ter sabido uti-
lizar bem as falhas do sistema, já que ele foge e apenas treze anos depois
presta contas à justiça e daí então vai preso. É claro que nessa afirmação
figura uma hipótese dentre muitas, ela é uma entre as possíveis, porque
o silêncio também rege os processos de significações18, ou seja, diante
de uma década de ausência e silêncio do acusado no processo o efeito
de sentido que é primeiramente desencadeado é da fuga, inclusive para
outro estado, tendo em conta as fragilidades da justiça19.
Diante das necessidades de formalidades inerentes à justiça e as espe-
cificidades locais parece ser bastante confortável aos foragidos, bandidos
e criminosos escapar, estabelecer rotas de fuga e burla dos dispositivos
normativos da maquinaria punitiva, bastante deficitária nesse momento,
mas continuando seu trabalho ainda que frágil, ainda que não ostensivo
e observável por todos no espaço colonial mesmo com fragilidades visí-
veis, como no caso dos Autos de agravo de Petrolino Aliva de Souza que

17  Idem, ibidem, p.20.


18  ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. 6.ed.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2007, p. 60.
19  “O silêncio não é o vazio, ou o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma instância sig-
nificativa. Isso nos leva a compreensão do ‘vazio’ da linguagem como um horizonte e não como
falta”. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. 6.ed.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2007, p.68.

414 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


segundo o processo reclama que lhe foi negado vistas a um inventário. A
sentença do juiz sobre o seu pedido é proferida em 1919, mas apenas em
1936 é determinada a publicação da sentença. O requerimento de agravo
é encerrado porque Sebastião Dias e Gonçalino Silva já eram falecidos
em 1936, quando da publicação da sentença20.
De todo modo, há que se registrar no conjunto que os crimes que
chegam à justiça são de pessoas pobres e de médios proprietários, em am-
bos os casos, com pouca força política e econômica capaz de pressionar
o judiciário. Daí também uma explicação para a morosidade e ineficácia
do aparelho judiciário, uma vez que tais processos, ainda que fundamen-
tais para os indivíduos em questão, não ameaçam a propriedade em gran-
de escala ou a estrutura econômica. Podemos visualizar essas relações
através do tipo de crime que era levado à justiça.

Além das lides: o processo de 1920 e o linchamento de Pacífico


Estado do Paraná, Clevelândia 1920. Ainda não estamos no tempo
dos “heróis” da colonização, perspectiva consagrada pela historiografia
“clássica” sobre a região21. É, sim, o tempo da mata, do sertão. Os pri-
meiros migrantes do sul a chegarem a partir da década de 1920, “foram
(...) Francisco Índio da América Lima, João Ribeiro, José de Campos, a
família Venâncio, Antonio Alves de Andrade, Pacífico Pinto de Lima,
João Macário dos Santos e muitos outros”22.

20  Pedido de Vistas aos Autos requerido por Sebastião Dias e Gonçalino Silva. 1919.
21  Por historiografia clássica consideramos os trabalhos que afirmar uma interpretação que dá
grande peso ao processo de colonização dos migrantes eurobrasileiros e da luta pela terra, espe-
cialmente com a Revolta dos Colonos de 1957. Se, por um lado, essa historiografia desculpou os
testemunhos vivos sobre o processo, por outro ela consolidou uma mitologia do vazio demográ-
fico e do migrante herói. Para uma crítica dessa historiografia indicamos: LANGER, Protásio.
Conhecimento e encobrimento: o discurso historiográfico sobre a colonização eurobrasileira e
as alteridades étnicas no Sudoeste paranaense. Maringá: Revista Diálogos. Vol. 11, n. 3, 2007, p.
71-93.
22  KRÜGER, Op. cit.,. p. 90. Consta ainda, segundo o autor, e baseando-se em pesquisa rea-
lizada pela Câmara Municipal de Pato Branco que Pacífico Pinto de Lima teria sido o primeiro

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 415
Pacífico Pinto de Lima se encontra inserido neste contexto social,
vivenciando esses acontecimentos. A história de sua vida e morte23 é de
grande representatividade na apresentação dos problemas, dos lapsos e
da fragilidade em que o “consenso” exterior a uma administração e regu-
lação pelo Estado – em seu sentido estrito – era operada.
Exatamente em 1920, Pacífico de Pinto Lima e seu filho José de Pin-
to Lima são processados por agressão. Esse documento, somado aos de-
poimentos orais, constitui as marcas documentais deixadas por Pacífico
na história da região. Com uma duração de quase três meses o processo
se inicia em 24/02/1920 com o Exame de Corpo Delito e os depoimen-
tos no mesmo dia dos acusados (Pacífico de Pinto Lima e seu filho José
de Pinto Lima). No Auto do Exame de Corpo Delito, redigido pelo Escrivão,
Pedro Augusto Cardoso e “assegurado” pelo Delegado, Lydio Albuquer-
que deveria responder a nove quesitos fundamentais, segundo o que se
segue:

Primeiro: Si há offensa physica produzindo dôr ou alguma le-


são no corpo, embora sem derramamento de sangue. Segun-
do: Qual instrumento ou meio que a occasionou. Terceiro:
Se foi occasionada por veneno, substancia anesthesicas, in-
cêndio, asphyxia, ou inundação; Quarto: Si por sua natureza
e séde pode ser causa efficiente da morte; Quinto: Si a cons-
tituição ou estado mórbido anterior do offendido concorrem
para tornal-o irremediavelmente mortal; Sexto: Si póde re-
sultar a morte, não por ser mortal a lesão, e sim por deixar
o offendido de observar o regimen medico hygienico recla-
mado porr seu estado; Setimo: Si resultou ou póde resultart

Subdelegado da Vila (p. 96).


23  Fundamentando-se na coleta de depoimentos pertencentes ao Projeto Resgate Histórico
(apoiado pelo então CEFET/PR Unidade Pato Branco), que originou uma produção de obras
acerca da história do Sudoeste e de Pato Branco, dentre elas a série RETORNO em quatro
volumes escritos por Sittilo Voltolini, além do livro de Néri França Fornari Bocchese. A carac-
terística dessas obras é o memorialismo local, onde a crítica teórica e historiográfica não se faz
presente. Ver: VOLTOLINI, Sittilo. Retorno: origens de Pato Branco. Dois Vizinhos, Artepres,
1996; BOCCHESE, Neri França Fornari. Pato Branco sua história sua gente: história de Pato
Branco. Pato Branco: Imprepel, 2004.

416 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


mutilação ou amputação, deformidade ou privação perma-
nente de algum orgão ou membro; Oitavo: Si resultou ou
póde resultar qualquer enfermidade incurável que prive para
sempre o offendido de poder exercer seu trabalho; Nono: si
produziu incommodo de saude que inhabiblite o offendido
do serviço activo por mais de trinta dias24.

O início do processo traz no Auto de Corpo de Delito uma primeira


avaliação dos efeitos da agressão cometida através da análise dos peritos
da gravidade, dos limites e das consequências para o “offendido” (neste
caso Joaquim Félix Rodrigues dos Santos) da agressão em si. Inicia-se já
uma produção de verdade que legitimará e institucionalizará a abertu-
ra de um processo conduzido pelos trâmites da justiça enquanto órgão
“à parte”, independente na sociedade. Na perícia realizada por Olympio
Vergett e João Dario Pacheco constará na redação do Auto pelo Escrivão
Pedro Augusto Cardoso, que:

Em seqüência passaram os peritos a fazer o exame ordena-


do, como se segue: encontraram o punho do braço direito
destroncado em conseqüência de pauladas produzidas por
instrumento contundente, e que portanto respondem aos
quesitos pela forma seguinte: ao primeiro; sim; ao segundo,
instrumento contundente, ao terceiro; quarto, quinto e sexto
não; ao sétimo sim, ao oitavo sim, ao nono; não pode exer-
cer o serviço em trinta dias; e finalmente quanto ao valor dos
danos causados que arbitraram em duzentos mil reis. E são
estas as declarações que em sua consciência e debaixo do ju-
ramento prestado tem a fazêr25.

A primeira verificação presente no exame de corpo de delito diz res-


peito à condição dos peritos, médicos e especialistas, detentores de um sa-
ber capaz de emitir um mapeamento da agressão; e a segunda verificação
presente no exame de corpo de delito é de que esses especialistas fazem

24  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 4.
25  Idem, p.5.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 417
seu parecer sob juramento e “consciência”, ou seja, estão ao fazer seu tra-
balho sob o signo do juramento consciente sob pena de incorrer em crime
de falso testemunho. Esse segundo ponto talvez assuma uma importância
mais que significativa na construção do principal mecanismo discursivo
e estrutural de uma lógica de verdade e psicologia do depoente em cons-
ciência da importância e gravidade de seus atos e palavras, sendo que as
consequências dos mesmos lhe são colocadas sub judice.
Ainda na Delegacia, como é de praxe, os envolvidos são ouvidos
uma primeira vez. Abre-se um Auto de perguntas ao “offendido” e aos
“accusados”. Joaquim Félix (“offendido”), quando:

perguntado qual seu nome, edade, estado, filiação, natu-


ralidade e profissão. Respondeu chamar-se Joaquim Felix
Rodrigues dos Santos, com desoito anos de edade, solteiro,
filho de Luiz Felix, natural do Rio Grande do Sul, jornalei-
ro. Perguntado como se tinha passado o facto em que sahiu
o offendido. Respondeu que no dia quinze do corrente pela
tarde achava-se em casa de moradia de Pacifico de Pinto
Lima ajudando a assignalar uns porcos quando foi agredi-
do a rabo de tatu por Pacifico de Pinto Lima e seu filho José
de Pinto Lima, que também se achava presente, que tendo
José descarregado uma pancada com o rabo de tatu, ele de-
poente, levou o braço para defender-se o que occasionou o
destroncamento do punho. Ele atribuiu o facto da agreção ao
motivo de ter ido elle depoente em casa de João de Quadros
que é desafeto de Pacifico. E como nada mais lhe foi pergun-
tado nem respondido, assigna o presente auto o cidadão João
Dario Pacheco, por não saber elle escrever, depois de lhe ser
lido e achado conforme, o qual vai também assignado pelo
Delegado Lýdio Albuquerque; de que tudo dou fé. Eu Pedro
Augusto Cardoso, o escrivão o escrevi26.

Esta é a versão do agredido Joaquim Félix e que assumirá corpo e


densidade ao longo do processo. Por ora, o que se sobressai destas afir-

26  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 7.

418 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


mações é que a denúncia e a agressão estão, separadas por quase dez dias.
O segundo dado importante é de que Joaquim Félix estaria “ajudando
assignalar uns porcos” quando ocorre a agressão, ou seja, estava traba-
lhando para Pacifico; observe-se que o agredido se denomina jornaleiro
(trabalhador por jornada). O terceiro dado importante é a causa da agres-
são afirmada por Joaquim: a ida dele à casa de um “desafeto” de Pacifico.
Esse terceiro dado entra em conformidade com parte da argumentação
do Adjunto de promotor na denúncia feita junto ao Juiz Municipal.

O Adjunto de Promotor Público deste Município, usando


suas atribuições que a lei confere, vem perante V.S. denun-
ciar aa Pacifico Pinto de Lima, brazileiro, casado, criador, re-
sidente neste Município e a José Pinto de Lima, brazileiro,
sacado, agricultor, residente neste Município, pelo crime que
passa a expor:
Constantes são os boatos de desordens praticadas pelos de-
nunciados, sem que, entretanto, tivessem eles de comparecer
em juízo, se bem que, já tidos no conceito publico como ho-
mens violentos.
Hoje, porem, cabe a esta Promotoria em cumprimento de
seus deveres, denuncial-os, por terem segundo se vê do in-
quérito junto produzido na pessoa de Joaquim Felix Rodri-
gues dos Santos com um chicote “rabo de tatu”, o ferimento
que se acha descrito no auto de corpo delicto de fls (ferimen-
tos grandes).
Da prova testemunhal consta que, o denunciado Pacifico Pin-
to de Lima por diversas vezes tem procedido violentamente
com algumas pessoas, citando dentre elas, o nome de Manoel
Bonifácio carneiro, então negociante n’esta Vila27.

A fundamentação da denúncia do Adjunto de Promotor (Ernesto


de Araújo Góes) baseia-se inicialmente nos “boatos” que a justiça (ins-
trumento: autoridades, magistrados etc.) deve (e é seu dever enquanto
Promotor), averiguar em nome da ordem e da própria justiça (no sentido

27  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 2.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 419
de dar a cada um, o que lhe é de direito), e se for a situação aplicar a lei
(instrumento máximo de normalização e de vida). Tais boatos devem
ser postos sob investigação jurídica para eventual punição, a qual deve
acontecer pelas provas de que ele efetivamente agrediu Joaquim Félix (e
o Auto de Corpo Delicto comprovaria esse argumento), e que o comporta-
mento (detalhe para que apenas Pacífico é citado), de Pacifico é desordei-
ro e violento “com algumas pessoas”.
Denúncia feita, o próximo passo é a inquirição das testemunhas, ao
todo sete são solicitadas pelo Promotor. Essa “fase” do processo se inicia
em 27/02 (três dias após a queixa na delegacia). A Primeira testemunha
(“informante”) é:

Severiano Barbosa de Oliveira, com trinta annos de edade,


casado, lavradôr, natural do Estado de Santa Chatharina re-
sidente neste termo, não sabe ler nem escrever, e aos costu-
mes disse nada testemunha que tendo prestado o comprisso
da lei prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse
perguntado, e sendo inquerido sobre o facto constante na
portaria de folhas duas, que lhe foi lida Disse28: que no dia
quinze do corrente mêz, pela tarde estava em sua casa quan-
do ali chegou o offendido, appresentando um braço destron-
cado e lhe disse, que, estando a ajudar aos accusados a assig-
nalar uns porcos, estes sem motivo plausível, pois entre elles
não havia tido discussão de espécie alguma, foi rapidamente
aggredido a relho e a rabo de tatu pelos accusados pacífico
Pinto de Lima e seu filho Jose, que para defender-se levantou

28  Essa estrutura discursiva se manterá durante toda inquirição das testemunhas, ela é condi-
ção suficiente e indispensável para que se afirme a legitimidade daquilo que o doente afirmará,
sendo que se pode atribuir a essa estrutura discursiva a mesma função do encerramento de todo
depoimento onde basicamente e com pouca ou nenhuma alteração o seguinte: “E como nada
mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo seu depoimento que depois de lhe sêr lido e
achado conforme o assigna o Cidadão (…), por não saber lêr nem escrevêr, com o Delegado, do
que tudo dou fé! Eu Pedro Augusto Cardoso, o Escrivão o escrevi”. Essa estrutura sofre pequena
alteração no caso do depoente saber ler e escrever. Observe-se que a validade do depoimento
realizada é afirmada pela presença das autoridades e de sua conformidade com o método, a for-
ma e as condições com que o depoente declarou o seu conhecimento e sua opinião dentro da
“objetividade” da pergunta que lhe foi feita.

420 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


obraço direito; que o offendido contou-lhe mais que ao saltar
a cerca para escapar-se Jose Pinto de Lima saccou do revol-
ver com o intuito de atiral-o, o que não levou a effeito devido
a intervenção da mulher do mesmo José29.

Essa primeira inquirição das testemunhas tem em vista o estabele-


cimento das condições gerais do acontecimento em questão, através da
percepção mais imediata do fato. Para a análise e compreensão desses
primeiros depoimentos é importante que se sobressaia a descrição indi-
vidual de cada depoente, já que cada uma dessas discursividades cons-
tituirá o maior peso na construção da verdade do processo, interferindo
consequentemente no seu curso e no seu fechamento advindo com a sen-
tença do Juiz. Além do mais, cada uma dessas “intervenções” poderá
acrescentar ou não elementos para as hipóteses e possibilidades em torno
das relações de poder estabelecidas entre a estrutura social e perpassando
a forma jurídica de funcionamento e sua aplicabilidade. A segunda teste-
munha, “João de Oliveira Vianna com quarenta e cinco annos de edade,
viúvo, lavradôr, natural e residente neste Município, sabendo lêr e escre-
vêr (...)”30; feita a apresentação a segunda testemunha afirma o que segue:

(...) no dia desesseis do corrente mez, chegou em sua casa,


Severiano Barbosa de Oliveira em companhia do offendido
e contou a elle depoente que Pacifico Pinto Lima e seu filho
José haviam aggredido a Joaquim Felix a chicote e rabo de
tatu provocando no mesmo o destroncamento do punho do
braço direito; que elle depoente não teve ocasião de ver o of-
fendido. Que sabe não ser a primeira vez, que Pacifico Pinto
de Lima e seus filhos provocaram turbulências, tendo já por
diversas vezes espancado outras pessoas inclusive Manoel
Bonifácio Carneiro, que foi espancado por Pacifico no recinto
desta Villa31.

29  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p.10-11.
30  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920,
p.11.
31  Idem, p.11.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 421
A reputação de desordem e violência evocada pelo Promotor na de-
núncia contra os acusados encontra respaldo no depoimento de João de
Oliveira Vianna, já que não seria a primeira vez que Pacifico teria agredi-
do alguém. A terceira testemunha, Joaquim Norberto Ferreira, “quarenta
e cinco annos de edade,, viúvo, natural e residente neste município, não
sabendo lêr nem escrevêr, lavradôr (...)”32, traz um detalhe a mais a trama
afirmando “que no dia desesseis do corrente mêz, soube que, Pacifico de
Pinto Lima e seu filho José haviam mandado chamar Severiano Barbosa
de Oliveira e como este estivesse na roça, Joaquim Félix Rodrigues dos
Santos foi atender o chamado, sendo nesta occasião aggredido pelos ac-
cusados que lhe produsiram o ferimento que appresenta”. Além, do fato
de que ele “soube que”, (não se sabe como ele soube e em que condições
soube), tem-se que seu depoimento de certo modo complementa e se en-
caixa com o da quarta testemunha: João Bueno de Quadros, “com qua-
renta e três annos de edade, casado, lavradôr, residente neste município,
não sabe lêr nem escrevêr(...)”33, e que, “(...) disse que sabe que Severiano
Barbosa de Oliveira e Joaquim Félix de Oliveira dos santos, retiraram-se
de agregados de Pacifico Pinto de Lima ignorando porem qual o motivo
da retirada dos mesmos”34. Peça importante surge com esse depoimen-
to. Percebemos que pode haver uma relação específica entre Pacifico e
os offendidos Joaquim Félix e Severiano (que é casado com a mãe de
Joaquim Félix). Eles eram agregados de Pacifico. A relação estabelecida
é de trabalho e de obrigação. Qual o motivo que os fez se retirarem da
propriedade de Pacifico? As imposições, cobranças e violência? Ou mes-
mo a exploração do seu trabalho? Ou ainda outro motivo qualquer que
desconhecemos?
A quinta e última testemunha deste primeiro inquérito, João Ribeiro
das Chagas, “(...) com trinta e oito annos de edade, casado, natural des-
te Estado, commerciante residente neste Município sabe lêr e escrevêr

32  Idem, p.11.


33  Idem, p.12.
34  Idem, p.12.

422 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


(...)”35, afirma apenas que, “(...) em dias deste mêz, que não se recorda
passou em sua casa o offendido Joaquim Félix dos Santos appresentando
um sinal no rosto e um braço machucado e que lhe disse ter sido aggre-
dido por Pacifico Pinto de Lima e seu filho José Pinto de Lima”36. Após
os depoimentos iniciais advém o relatório do delegado de imprescindível
importância dentro da lógica interna do processo.

Do presente relatório consta que, no dia 15 do corrente pela


tarde, Pacifico Pinto de Lima e seu filho José Pinto de Lima
conseguiram attrahir a sua moradia ao offendido Joaquim
Felix Rodrigues dos santos, naturalmente de caso pensado
para fugirem as vistas de testemunhas, e o aggrediram a –
chicote produzindo-lhe lesão descripta no auto de corpo de
delicto de folhas duas. Pelo depoimento da testemunha João
de Oliveira Vianna, deduz-se que o accusado Pacífico de Pin-
to Lima, já por outras vezes tem procedido de forma mais
ou menos idêntica e como os accusados tenham incorrido
no artigo 304 do Código Penal da República, o Escrivão faça
remessa destes autos ao Senhor Adjunto de Promotor Públi-
co deste Termo, por intermédio do Meritíssimo Senhor Juiz
Municipal em exercício, para fins de direito37.

Voltamos ao começo do processo tramitante nos moldes tradicionais


da justiça. Voltamos à denúncia do Promotor e a partir de agora toda
uma verdade baseada em provas e evidências transcorrera sobre um fio
tenso que condensa em si a disputa entre defesa e acusação, para uma
finalidade posta: culpado ou inocente. Na defesa é solicitado que se con-
ceda “poderes especiais e gerais para acompanhar todos os termos da
acção criminal” a Luiz Loureiro de Godoy Mello, “brasileiro, casado,
commerciante, residente nesta Villa”. Da parte do “offendido” é escolhi-
do seu “perceptor” Severiano Barboza de Oliveira.

35  Idem, p.13.


36  Idem, p.13.
37  Idem, p.14.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 423
A partir de dezesseis de março de mil novecentos e vinte, inicia-se a
segunda sequência de inquérito. As testemunhas agora não são inquiridas
pelo Delegado, mas pelo suplente de Juiz Doutor Antonio Ribeiro de Bri-
to na presença do escrivão, e do defensor, Luiz loureiro de Godoy Mello.
Nesta segunda sequência de inquirição se intensifica a subjetividade de
cada testemunha no que se refere primeiro ao que sabe sobre os envol-
vidos sua reputação e seu comportamento, e, secundariamente, alguns
outros aspectos como trabalho e relações sociais e de sociabilidades dos
envolvidos com vizinhos, comunidade etc., tendo em vista, obviamente,
a afirmação ou não da reputação de “violentos” dos acusados.
Neste sentido, a primeira testemunha João de Oliveira Vianna, cujo
depoimento contradiz quase que totalmente o que havia afirmado em seu
primeiro depoimento; já que neste, afirma que, “(...) há muito conhece os
denunciados e sabe ter elles boa conduta social que não conhece Joaquim
Félix dos Santos senão há pouco tempo, não podendo assim informar
sobre o comportamento d’ella”38. Adiante é dada a palavra ao defensor
dos acusados que requer que se pergunte à testemunha se é vizinho dos
denunciados e há quantos annos e se durante este tempo teria visto os
denunciados espancarem alguém, ou se a sua família teria já sido desa-
catada pelos denunciados. Respondeu que, “a seis annos reside a duas
léguas de distância dos denunciados; e durante este espaço de tempo não
vira os mesmos denunciados espancarem pessoa alguma em tão pouco
ella testemunha fora com sua família espancados ou desacatados pelos
denunciados”39.
É outro depoimento que se modifica substancialmente. Antes, João
de Oliveira Vianna afirmara que sabia não ser a primeira vez que Paci-
fico e seu filho haviam provocado “turbulências” e que já haviam “por
diversas vezes espancado outras pessoas”. Um detalhe importante é a
distância entre o local de moradia da testemunha em relação ao acusado,
aproximadamente treze quilômetros. Se acontecesse de Pacifico cometer

38  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 22.
39  Idem, p. 23.

424 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


qualquer ato contra outrem seria possível que João de Oliveira Vianna
visse ou ouvisse alguma coisa? Até que ponto seu testemunho poderia,
mesmo sendo contraditório ao primeiro e questionável, assumir valor
dentro do processo?
A segunda testemunha, João Bueno de Quadros, não se contradiz
como João de Oliveira Vianna. Neste caso, surge uma informação até en-
tão inédita. João Bueno de Quadros reafirma a imagem de boa conduta
dos acusados, e ao responder a pergunta do defensor, surge um elemento
muito importante para a defesa dos denunciados posteriormente. Luiz
Loureiro Godoy de Mello solicita que se pergunte a testemunha “se exis-
te ou existiu entre elles e os denunciados alguma desafeição ou inimisade
e se sabe se os denunciados têm ganho fortuna com o seu trabalho onde
residem, ao que a testemunha respondeu que ella testemunha não era
desaffecta dos denunciados e que sabe que os denunciados têm ganho
fortuna com o seu trabalho”40. Aqui já vislumbramos um dos principais
argumentos posteriores da defesa que se baseia nesse ganho de fortuna,
nessa prosperidade pelo trabalho de Pacífico.
A terceira testemunha traz algumas importantes afirmações para a
constituição de algumas hipóteses para a constituição da prova processual.
No depoimento de Severiano Barbosa de Oliveira, destaca-se a afirmação
de que Joaquim Félix era empreiteiro dos denunciados41, e ainda que:

não sabe de nenhuma testemunha occular do facto crimino-


so; que Joaquim Norberto e Francisco Nunes, se queixaram
que os dennunciados detioraram suas roças e mal trataram
sua criação de porcos, que, não sabe ou não conhece na cir-
cunvisinhança pessoas outras espancadas pelos denuncia-
dos, sabendo porem que no logar Villa Nova deste termo
mora um tal Tavares que elle testemunha não conhece mas
sabe ter sido mesmo espancado pelos dennunciados por lhe
ter dito a ella testemunha os mesmos dennunciados42.

40  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 25.
41  Idem, p. 26.
42  Idem, p. 26.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 425
A defesa de Severiano se concentra na seguinte insinuação:

Dada a palavra ao defensor dos accusados, por elle foi re-


querido que se perguntasse à testemunha se Joaquim Felix
é filho de sua mulher e quantos annos tem se vive debaixo
do seu pátrio poder, quem fez a queixa e indicou as testemu-
nhas a autoridade e quanto os dennunciados maltrataram a
criação de Nunes e Joaquim Norberto e bem assim as plan-
tações por elles detioradas; a o que a testemunha respondeu
que a a victima é filho de sua mulher Maria Theodora e conta
com sete annos de edade e há seis annos vive sobre o pátrio
poder delle depoente, que fora elle testemunha que fizera a
queixa do facto criminoso e as testemunhas foram indicadas
ao Delegado de Policia Poe elle depoente, que à seis annos
mais ou menos foi quando o dennunciado Pacífico maltratou
a criação de Joaquim Norberto e dois annos quando detiorou
as roças de Chico Nunes43.

Eis aí mais um forte argumento que constituirá o ataque da defesa


sobre os ofendidos. A hipótese, ou melhor, dizendo, a tese que a defesa
busca sustentar é de que a principal testemunha é diretamente ligada à
vítima. A vítima é o filho de sua mulher; o que ele sabe, sabe somente por
ouvir dizer e que judicialmente não se sustenta por não possuir a prova
jurídica, elemento que pode anular uma sentença. A quarta testemunha
– Laurindo Pinheiro Guarita – apenas afirma esse fio condutor que inter-
liga todas as testemunhas: elas apenas “ficaram sabendo” ou “ouviram
dizer” o que aconteceu, ninguém viu e o fator autóptico está ausente.
Apenas evidências e uma luta discursiva em torno da possibilidade do
crime pelas opiniões testemunhais ao que se refere ao comportamento
dos acusados.
A prova jurídica se situa apenas tangenciada pela sua indução con-
sensual do depoimento testemunhal. A relação de dubiedade e de incerte-
za nas afirmações acaba por somar pontos a defesa. Sendo que o processo

43  Idem, p. 26-27.

426 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


é iniciado pela denúncia, o denunciante através da justiça deverá provar
que está certo, que possui razão bastante para exigir a punição dos cri-
minosos. No entanto, o terreno do possível não é condição única para a
verdade jurídica. Dessa forma, Laurindo Pinheiro (quarta testemunha),
apenas afirma que ficou sabendo do acontecido por que a vítima lhe dis-
se, e que não lhe consta que os denunciados sejam de mau procedimento,
nem tampouco Joaquim Félix. Esses quatro depoimentos acontecem em
16 de março.
O processo passa por uma série de entraves na localização e intima-
ção de testemunhas, sendo que, apenas no dia quatorze de maio a quinta
e sexta testemunhas prestarão seus depoimentos. Antes disso, porém, em
sete de abril de mil novecentos e vinte Luiz Loureiro de Godoy, defen-
sor dos acusados envia documento ao Juiz Municipal, no qual manipu-
lando os diversos códigos jurídicos e interpretando-os, ao seu modo, ele
esforça-se para travar o andamento do processo. Seus argumentos são os
seguintes:

1º que no auto de corpo delicto foi arbitrado valor danno cau-


sado a suposta victima. 2º que a queixa foi feita por Severiano
Barboza de Oliveira, ainda que verbalmente, mas, instruiu-a
conforme sua afirmativa em denuncia deste juízo, pela qual
tornou-se pessoa competente; constituiu advogado para pro-
mover tudo quanto de direito lhe fosse permitido. 3º que,
Severiano Barboza de Oliveira assim, podendo, presumiu-se
autor da causa, promovendo uma acção reipersicutoria (en-
tre os Romanos Lei aquilia). Procurando desfarçadamente
demandar, não uma acção crime, mas uma acção toda civil,
como bem definiu Corrêa Telles, Doutrina das Acções § 438
nota 1 e 1 (a). 4º que tudo o sumario sido promovido na for-
ma do artigo 408 do Código Penal da República, ultrapassou
em delonga ao estatuído em lei, sem que, com tudo transpa-
recesse o menor indicio de criminalidade aos accusados. 5º
que sendo uma acção toda cumulativa conforme Direito dos
Decretais, Corrêa Telles, ensina, em a Doutrina das Acções
§ 457 nota 2 e2 9a), que primeiro se deve conhecer da civil,

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 427
por independêr da acção criminal, não se cumula a acção cri-
minal a civil. E como sendo uma acção de natureza prevista
pela n.I do artigo 205, combinado com a primeira parte do
n.I do artigo 210, o supplicante pede a V.S. que seja ao autor
lançado da accusação, por ter deixado corrêr a revelia, e jul-
gada perempta a acção, depois mandar juntas a presente aos
autos44.

Destaque-se a habilidade do defensor dos acusados. Ele manipula


muito bem a sintaxe própria de um advogado. O Sr. Luiz Godoy utiliza
uma estratégia peculiar e comum no universo do direito, apontando su-
postas irregularidades na ação movida contra Pacífico nos termos da lei.
Simultaneamente valendo-se do Código Civil e do Código Penal, o de-
fensor arrola cinco questões que invalidariam o processo, todas versando
sobre a falha de natureza no processo e ainda, salientando nos primeiros
itens que, Severiano Barboza de Oliveira, autor da queixa, fez-se advo-
gado da vítima, transportou “disfarçadamente” a ação do âmbito penal
para o civil, além de que a ação teria ultrapassado o prazo estabelecido
por lei donde não se comprovou nenhum indício de criminalidade. A
argumentação é coerente e de extrema importância, como verificaremos,
em sua última estratégia ao final do processo e encontra pontos tangen-
ciais na própria sentença do Juiz.
Segue-se mais de um mês do dia em que o defensor dos acusados
solicitou que se juntassem aos autos suas considerações (07 de abril de
1920), até o dia em que o Juiz solicita que se intimem Francisco Faria
Sobrinho, João Ribeiro Chagas e Joaquim Norberto Ferreira, sendo que
apenas o primeiro deveria depor. Na data determinada (14 de maio de
1920), “Francisco Faria Sobrinho com edade de trinta dois annos, ca-
sado, criador residente neste Município, sabendo ler e escrever (...)”45,
afirmou que:

44  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 32.
45  Idem, p. 37.

428 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


(...) vira já não se recorda do tempo o paciente em Villa Nova
deste termo lhe disendo elle que se achava machucado, não
podendo ella testemunha informar-se se os machucões eram
muitos porque a victima estava com a mão enrolada na ti-
póia, que não sabe ingormar se os taes machucões deram
logar a deformidade da mão da victima, sabendo que ella es-
tava se movendo ou andando perfeitamente. Que não ouviu
dizer quem foi autor de taes machucões, que não sabe que é
operário Joaquim Felix Rodrigues, sim que elle trabalhador
rural, que não sabe informar quanto á sua conducta, que para
elle testemunha os denunciados tem boa conducta civil, não
podendo informar de sua conducta contra outros ou contra
a sociedade, que quanto aos actos de violências praticadas
pelo denunciado Pacifico Pinto Lima com relação a Bonifácio
Carneiro, de que allega a Promotoria na denuncia não sabe
informar porque não se achava presente naquella epocha46.

Seu posicionamento é de neutralidade. Diz apenas não se recordar.


Francisco Farias Sobrinho mora em Villa Nova e se Pacífico trabalhava
lá, contratava caboclos e exercia seu poder é bem provável que esta tes-
temunha tenha sido coagida a manter esta postura. Talvez medo, talvez
imposição, ou até mesmo ameaça. Por certo que a pergunta solicitada
que se fizesse a testemunha pelo defensor é emblemática:

Dada a palavra ao Adjunto do Promotor, por elle nada foi re-


querido, dada a palavra aos dennunciados na pessôa de seu
defensôr, por elle foi requerido que se fizesse a testemunha a
pergunta seguinte: se sabe se Joaquim feliz Rodrigues e Se-
veriano Rodrigues constituíram advogado para pleitear inde-
nisação pelos ferimentos que diz aquelle ter recebido, o que
deferido pelo Juiz a testemunha disse não sabêr47.

Esta suposição do defensor dos acusados perpassa praticamente todo


o processo como se fosse uma tese a ser confirmada e que acabará por se

46  Idem, p.37-38.


47  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 38.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 429
confirmar, não deixa de ser uma estratégia de afirmação e legitimação de
uma verdade que se quer estabelecer e se confirmar. A sexta testemunha
– João Ribeiro das Chagas – com trinta e oito anos, casado, comerciante,
sabendo ler e escrever, mantém uma postura muito semelhante à de Fran-
cisco Faria: “neutralidade”. Mas em sua fala se destacam duas coisas.
A primeira diz respeito aos machucados da vítima. João Ribeiro diz ter
visto tais machucados e que eles “não deixariam deformidade na junta
do braço”48 e ainda que, “ella não esta doente49”, além de que segundo
lhe consta a vítima tem bom comportamento assim como os acusados;
e a segunda permeia a questão de Joaquim Félix estar trabalhando para
Pacífico porque ele testemunha não sabe se quando aconteceu o “conflito
vertente trabalhava em serviços pertencentes a Pacífico Pinto de Lima”50.
Caberia a essa altura do processo se questionar que o fato do padras-
to de Joaquim Félix ter se tornado seu advogado. Seria mesmo por inte-
resse, ou pela falta de condições para contratar um? E por que motivo ele
não faz pergunta alguma a nenhuma testemunha durante todo processo?
Isso se deve ao fato de não saber como se portar e agir em tal esfera de
ação social que possui suas próprias regras? São questões importantes e
de difícil resposta.
Em seguida o Ajunto do Promotor solicitou que se desistisse da in-
quirição de uma testemunha (Joaquim Ferreira Norberto), principalmen-
te por este morar em Santa Catarina. Logo após Pacífico e seu filho são
interrogados. Salienta-se nas suas falas que quando perguntados sobre
onde estariam no tempo em que se deu o crime, os dois dizem coisas
muito parecidas, dizem que só souberam do acontecido quando foram
citados em suas roças. Aparentemente soa como se tivessem sido bem
instruídos por um advogado, já que durante todo processo quando se
pronunciam demonstram estar preparados para responderem aquilo que
precisariam responder. Mantêm a coerência, não se equivocam nem se

48  Idem, p. 39.


49  Idem, p. 39.
50  Idem, p. 39.

430 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


contradizem, são claros e seus discursos se encaixam às movimentações
de seu defensor.
O processo chega ao seu percurso final, pois o prazo para a sentença
está se esgotando. Há poucas ou nenhuma prova testemunhal, há sim
indícios. Um último lance, uma última cartada seca e ligeira: Ernesto de
Araújo Goés (Adjunto de Promotor) faz a seguinte requisição:

Em vista das provas dos autos, opino pela condenação dos


indiciados como incursos nas penas do art. 300 do código
Penal da republica. Clevelândia 15 de Maio de 1920. O Adjun-
to de Promotor Publico.
Ernesto de Araújo Goés51 (grifos nossos).

Após o pedido da acusação, feito pelo promotor público, é a vez de


extensamente se argumentar em favor da absolvição dos réus. Luiz lou-
reiro de Godoy Mello (defensor) muito bem municiado e sem negligen-
ciar palavras, afirma categoricamente o que se segue:

Meretissimo Sr.Dr. Juiz Julgador.


Desde o primeiro lance de vista as muitas páginas que com-
põe estes autos, bem circunstanciada ficou a façanha vexató-
ria da nova forma de conto do vigário, intentado por Severia-
no Barboza que, começando com uma queixa a Policia, teve
como resultado, o documento apreciável que se vê no mes-
mo, (...), a sensaboria d’uma comedia, sem origem, engen-
drada pelo menor Joaquim Felix Rodrigues, que representou
no acto, papel de papagaio falante mal ensinado. O comparsa
Severiano Barboza, que levantou a lebre, foi mais longe, pro-
movendo accusação sem comtudo dar a triste tragédia, uma
origem concebível e concludente.
(...).
De tudo o mais que dos autos consta, nem uma prova digna
de sentença, existe contra os accusados, não passando tudo
de um Blaque em proveito próprio, da qual foram os prota-

51  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 42.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 431
gonistas Severiano Barboza e seu entiado Joaquim Felix Ro-
drigues. Fácil é conjeturar-se: não vai a tempos idos, neste
mesmo termo, houve uma utoridade que, quando engendra-
va suas maquiavélicas perseguições, espalhava a noticia de
um crime; depois intimava-os seus ouvintes a comparecerem
em audiências, e ahi interrogados sobre o que ouviram dizer
a respeito, tanto foi que um bello dia certa testemunha dis-
tinguiu-se declarando só ter ouvido daquella autoridade; eis
o que se dá com o caso (...) Joaquim Felix Rodrigues aprovei-
tando-se de leves machucaduras, soube tira partindo, aludin-
do a boa fé de todos os que ouviram sua narrativa, inclusive
os peritos, bem fingindo o deslocamento do punho da mão
direita, deixando porem a fragilidade da mentira, bem palpá-
vel, na parte que diz não haver o mesmo ignorar os motivos
que originaram a aggressão de dois homens fortes e valentes
contra um menor, que a pezar, teve a superioridade de lutar,
e agarrar-se com uma só mão a cerca e uma fazenda de criar
(que todos sabem o que seja) escapando-se a fúria dos ag-
gressores. Que prodígio52!...

Depois dessa argumentação inicial que buscou desconstruir as inde-


terminações e incongruências nas afirmativas, a retórica e persuasão se
revelam extremamente sintonizadas com o perfil de um advogado profis-
sional da área. Segue adiante a principal tese defendida por Luiz Lourei-
ro, segundo a qual:

É inacreditável e no entanto procurou-se provar, isto-é o


queixoso Joaquim Felix Rodrigues segundado por seu pae
adoptivo, procurou dar a tela cores que a não possuía, para
receber, depois de provado, indenização que garantisse-os
para o futuro contra a precisão ou necessidade de trabalhar,
cujos boatos verídicos só a defeza teve conhecimento depois
de inqueridas as testemunhas que disso têm sciencia (...)53.

52  Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 44.
53  Idem, p. 44.

432 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Tudo conspirando contra os inocentes, cobiçados pela avareza da-
queles que desejavam se aproveitar de sua fortuna. Autoridades, peritos,
boatos e a “marcha do processo”. Tudo conspira em uma “trama” surreal
para se tirar proveito de uma situação sem provas, de um processo contra
inocentes. Um grande circo: essa é a imagem construída pela defesa, ha-
bilmente manipulada em nome de uma pretensão injusta e absurda. Um
insulto à justiça.
No dia seguinte (17/maio/1920) a esta última tentativa da defesa, o
Juiz pronuncia sua sentença, descreve então o histórico do processo, seu
início, suas causas, recorre aos códigos jurídicos, demonstrando autorida-
de e “notório saber de causa”, aos moldes da lei e do sistema de produção
de uma verdade legítima apreensível ao senso comum.
Em suas considerações específicas o Juiz argumenta que pela vítima
ter faltado ao exame de sanidade do 31º dia após o acontecido, podia se
deduzir que esta já se encontrava boa. Sua segunda consideração versa
sobre os depoimentos testemunhais que segundo o seu conceito não pos-
suíram nenhuma prova de que o crime foi cometido pelos acusados sendo
ainda que em suas palavras, “não tendo sido provado nenhum outro facto
que desabamos do modo de vida particular delles e também para com a
sociedade”54, sendo que, “portanto julgo improcedente a denuncia do mi-
nistério publico para impronunciar sendo de facto impronunciado tenho
Pacifico Pinto de Lima e José Pinto de Lima, usando das athribuições
que confere o juiz (...)”55.
Pacífico foi inocentado. No entanto, a população que acompanhou
aqueles acontecimentos, perpetrou atos violentos contra ele, castigando-
-o, a seu modo, pelo crime. Se o linchamento ocorreu, como insiste a me-
mória coletiva, certamente este foi um mecanismo de ruptura extrema de
uma ordem em nome de outra ordem e mais intrinsecamente da noção de
justiça, dessa vontade de justiça insipiente. O fato de Pacifico ser lincha-
do se justifica pela atribuição de sua culpabilidade, em relação a este cri-

54  Idem, p. 50.


55  Idem, p. 50.

PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 433
me e outros, não tendo a justiça através de suas ferramentas e estratégias
conseguindo puni-lo, por isto a população mesma o farão a seu modo.
Porém, até a inscrição nos corpos da noção institucional de justiça have-
ria espaço para arbitrariedades como as praticadas por Pacífico desvelam
as possibilidades de um agir que tinha condições de escapar dos limites
de ação da justiça institucional para uma justiça gerida pelo próprio gru-
po social. Como afirma José de Souza Martins, as pessoas lincham para
punir. Assim os linchamentos não são espasmos coletivos desordenados,
“mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionado
o poder das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da
lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos”56.
Inegavelmente, o espírito geral desse pressuposto está presente no
caso de Pacífico e a história de sua vida e morte intermeada pela sua figu-
ração nas arenas da justiça contribuem para que possamos compreender
a lugar da violência em uma sociedade dinâmica em transformação.

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PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 435
436 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Telegrafista Henrique Widikim
e a Revolução Federalista
na Colônia Militar do Xapecó

Leticia Maria Venson

O século XIX para alguns pesquisadores é considerado como o


século das grandes descobertas científicas, possibilitando não
apenas um impulso modernizador, como também uma sensível
ampliação do conhecimento e maior articulação dos espaços, devido a di-
namização dos processos de comunicação1. Destacamos o telégrafo elé-
trico, instalado no Brasil em 18522, que acelerou a comunicação entre as
províncias. Foi instalado na Colônia Militar do Xapecó em 1893, na pro-
víncia do Paraná, nas vésperas da Revolução Federalista e foi responsável
pela tensão estabelecida naquela fronteira. Para Laura Antunes Maciel
“o telégrafo constituiu-se num instrumento e num ramo da administra-
ção pública. Um mecanismo capaz de fazer chegar a palavra do poder em
quase todos os pontos do território”3.

1  MENDONÇA, Reginaldo. Revista Sintonia: Imprensa e Poder Político no Amazonas


(1939-1943). 2015. 159 f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Amazonas, 2015.
p. 27-28
2  Ibidem, p. 29.
3  MACIEL, Laura Antunes. A Nação por um fio: Caminhos, práticas e imagens da Comissão
Rondon. São Paulo: EDUC/FAPESP, 1998.
O telégrafo utilizava o sistema de códigos desenvolvido por Samuel
Morse, baseado em traços e pontos. Para cada letra e número há uma
sequência de traços e pontos4. Ou seja, era necessário um receptor instruí-
do, que posteriormente encaminhava a mensagem para o destino final.
No caso do Paraná as informações passavam para Curitiba e posterior-
mente para Palmas, para só então chegar a Colônia Militar do Xapecó.
Durante a Revolução Federalista o telegrafista de Palmas era Hen-
rique Widikim, acusado por Bormann de disseminar falsas informações
aos líderes federalistas da região. Com relação a Revolução de um lado
estavam os republicanos adeptos ao positivismo, membros do Partido Re-
publicano Rio-grandense (PRR) e do outro os chamados liberais, que a
partir de março de 1892 fundaram o Partido Federalista Brasileiro (PFB)5.
Os republicanos do Rio Grande do Sul eram liderados por Júlio de
Castilhos e aproximavam as suas aspirações a parcela dos militares, ten-
do como elemento a ligação com o positivismo. Acreditavam que a repú-
blica deveria ser autoritária, comandada por uma elite de sábios técnicos
e apoiados em um programa abrangente que propunha um desenvolvi-
mento capitalista global para o Estado6. Já os federalistas eram grandes
pecuaristas da Campanha, ligados ao comércio e contrabando da zona da
fronteira, constituíam a elite tradicional, muitos com raízes no Império7,
liderados por Gaspar Silveira Martins. Dentre as preposições dos federa-
listas estava o estabelecimento de uma república parlamentar com a atri-
buição de maior poder ao governo central. A principal reivindicação era
o fim do castilhismo, apontado por eles como encarnação de uma tirania
opressiva, cruel e deslocada da opinião pública8.
O presente texto pretende abordar de forma breve e exploratória
as consequências dos falsos telegramas disseminados por Henrique Wi-
dikim a José Bernardino Bormann, diretor da Colônia Militar do Xapecó

4  Ibidem. P.20
5  Ibidem, p. 140.
6  Ibidem, p. 140.
7  OLIVEIRA, Rodrigo. Op., Cit. p. 141.
8  Ibidem. p. 141.

438 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


e a Antônio Prestes Guimarães, federalista, na Província do Paraná, du-
rante a Revolução Federalista 1893-1895.
Como fonte de análise utilizaremos o livro escrito por Bormann in-
titulado Dias Fratricidas: Memórias da Revolução Federalista no Paraná, lan-
çado no ano de 1901. O livro foi publicado em Curitiba pela tipografia
da Livraria Economia Annibal Rocha & Cia, em 1901, dividido em dois vo-
lumes. No presente trabalho nos atentaremos somente a primeira edição
que se encontra no Arquivo Público de Curitiba, com uma versão digita-
lizada no Centro de Memória do Oeste – CEOM, na cidade de Chapecó/
SC. O livro foi escrito para relatar o conflito do ponto de vista de José
Bernardino Bormann, que no período era o responsável por realizar a
defesa na fronteira do Paraná e para se defender dos diversos ataques que
sofreu de militares e moradores do Paraná devido a sua relação ambígua
com os revoltosos.
Em um primeiro momento nos preocupamos em fazer uma breve
contextualização sobre a Revolução Federalista a partir da historiografia
atual sobre a temática e também com o auxílio do livro de Bormann, já
citado anteriormente, para posteriormente analisar Henrique Widikim, o
telégrafo e a Colônia Militar do Xapecó.

Transição Império – República


O período de transição do Império para a República foi marcado por
mudanças sociais, econômicas e políticas. É nesse contexto que eclodiu
a Revolução Federalista, sendo necessário uma contextualização sobre a
situação política do momento da Proclamação e dos primeiros anos da
República a fim de compreender o cenário político nacional, e do Estado
do Rio Grande do Sul, que contribuíram para a eclosão de uma luta ar-
mada, que se expandiu para os estados do Sul do país e contribuiu para a
tensão na fronteira do Paraná.
Com relação ao golpe que iniciou o Governo Provisório (1889-
1891), Deodoro da Fonseca, contou com o apoio e a pressão do Partido

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 439


Republicano que era composto em sua maioria por agricultores, profis-
sionais liberais e proprietários cariocas insatisfeitos com a abolição da
escravidão. O golpe exigiu o estabelecimento de alianças políticas para
a manutenção do poder, porém, no Rio Grande do Sul, os liberais eram
maioria e estavam apoiando a monarquia, diante disso Deodoro exilou
Gaspar Silveira Martins, presidente da província, e nomeou Júlio de Cas-
tilhos9. O que fomentou a rivalidade e a violência entre os republicanos e
federalistas do estado do Rio Grande do Sul.
O Rio Grande do Sul integrou-se tardiamente ao sistema econômico
colonial10, o que afetou a política da província, pois em primeiro mo-
mento os Partidos Liberal e Conservador se alternaram no governo local
durante o Segundo Reinado (1840-1889), com o tempo, o Partido Libe-
ral tornou-se hegemônico, e passou a usufruir sozinho o poder político
provincial11. Com isso surgiu tardiamente os interesses republicanos no
Rio Grande do Sul, com a criação em 1882 do Partido Republicano Rio-
-Grandense, que congregou jovens republicanos de orientação positivis-
ta, sendo destaque Júlio de Castilhos. Ou seja, na época da Proclamação
da República o Partido Republicano local ainda era pequeno e sem força
política12.
Com a Constituição da República de 1891 o sistema federativo foi
instituído e confirmou Deodoro da Fonseca como presidente do país, que
deveria governar até 1894. O presidente concedeu anistia aos exilados po-
líticos e Gaspar Silveira Martins pode retornar ao Rio Grande do Sul13. A
Constituição dava liberdade para os Estados se organizarem, sendo assim
no Rio Grande do Sul, formou-se uma Assembleia Constituinte com-

9  PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. Op., Cit.
10  FRAGA, Gerson; GRITTI, Isabel. Os farroupilhas em três tempos: aspectos da Guerra
dos Farrapos e suas celebrações na imprensa sul-rio-grandense por ocasião de seu centenário e
sesquicentenário. In: RADIN, José; VALENTINI, Delmir; ZARTH, Paulo (Org). História da
Fronteira Sul. Chapecó: Editora da Universidade Federal da Fronteira Sul, 2015. P. 191
11  PRIORI, Ângelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. História do
Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012.
12  Ibidem.
13  Ibidem.

440 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


posta apenas por Deputados do Partido Republicano rio-grandense14. Na
prática a Assembleia instituiu poder centralizado nas mãos do presidente
do Estado e permitiu ao Legislativo apenas funções de análise e apro-
vação de orçamento, ou seja, o Legislativo não tinha mais autonomia.
Em 1892, reformulando o antigo Partido Liberal foi fundado o Partido
Federalista, para ser oposição a Júlio de Castilhos, tendo como um dos
principais líderes Gaspar Silveira Martins.
Com relação aos primeiros anos da República Bormann destaca o
seguinte:

Foi a má política do início do regime republicano a fonte dos


nossos males. Ela derruiu moral e materialmente o país e ex-
tremando os partidos, dividiu, por tanto, profundamente a
família brasileira ao ponto de seus ódios levá-la a luta arma-
da, imprimindo-lhe um aspecto de perversidade repugnante.
[...] Homens completamente desconhecidos foram guinda-
dos até as altas regiões políticas e administrativas, sem com-
petência, e o resultado foi não passarem de títeres nas mãos
dos mais hábeis15.

Ou seja, afirma que o causador da Revolução Federalista foi uma má


política desenvolvida por Deodoro da Fonseca nos primeiros anos da Re-
pública, que dividiu os partidos brasileiros e fomentou a violência parti-
dária, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, entre Federalistas
e Republicanos e destaca a falta de competência dos ministros que faziam
parte do congresso que não souberam mediar a situação. Outro fato que
Bormann destaca é o Golpe de Estado proferido por Deodoro em 3 de
novembro de 1891:

O velho soldado, ferido em seu amor-próprio, sentiu dolo-


rosamente a ingratidão daqueles que julgará sustentáculos

14  Ibidem.
15  BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado do
Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 441


de sua política e, para vingar agravos pessoais, atirou-se ao
congresso, dissolveu-o, perseguiu os oposicionistas; enfim,
opôs à força ao direito sem medir a extensão dos males que
fatalmente produziria esse ato violento, injustificável e im-
prudente16.

Portanto, ao dissolver o congresso e perseguir oposicionistas Deodo-


ro desencadeou diversos fatores que contribuíram para a sua renúncia. A
notícia do golpe se espalhou pelo país de forma rápida e intensa, o estado
do Pará declarou separar-se da União até que o governo entrasse na órbi-
ta da legalidade e o Rio Grande do Sul “Estado em que as paixões políti-
cas são mais intensas, o caráter de seus filhos mais ardente, deu o sinal de
rebate apelando para as armas”17. O Estado do Paraná apoiou o golpe o
que gerou ataques da oposição por meio da imprensa “gladiavam-se com
extremada violência”18. Deodoro acreditava contar com apoio da Mari-
nha, das Forças Armadas e do povo. De acordo com Bormann “confiar
na popularidade é esquecer que nada é mais efêmero, nada mais transi-
tório do que o amor das massas”. Diante das pressões e falta de apoio, o
Marechal renunciou ao poder e seu vice Floriano Peixoto assumiu a Pre-
sidência da República brasileira19. Em primeiro momento a renúncia de
Deodoro restabeleceu os ânimos, porém, as medidas que Floriano tomou
gerou descontentamentos.
Uma das primeiras medidas de Floriano foi exonerar a maioria dos
chefes de governo estaduais que haviam apoiado Deodoro da Fonseca,
o que gerou intranquilidade e feriu a autonomia dos Estados20. Apesar
de, no Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos ter apoiado Deodoro da
Fonseca, a outra facção política local, o Partido Federalista, era radical
na percepção de Marechal Floriano Peixoto o que o levou a apoiar Júlio

16  BORMANN, José B. Op., Cit. P.20


17  Ibidem, p. 21.
18  Ibidem, p. 22.
19  BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado do
Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901.
20  PRIORI, Ângelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. Op., Cit.

442 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


de Castilhos. Promovendo ainda mais rivalidade política entre os federa-
listas e republicanos.
Nesse período, além da eclosão da Revolução Federalista houve a
eclosão da Segunda Revolta da Armada, tendo como um dos líderes Al-
mirante Custódio Melo que se posicionou contrário ao apoio de Floria-
no a Castilhos. Os marinheiros formaram focos de conflito no Rio de
Janeiro e tomaram a ilha de Desterro, aliando-se aos federalistas do Rio
Grande do Sul21. De acordo com Gunter Axt:

O objetivo direto da Revolução era a derrogação da Consti-


tuição estadual de 14 de julho de 1891, que aluía a separação
dos Poderes e facultava ao mandatário reeleições indefinidas,
bem como a remoção de Castilhos do Governo. Se combatia
também, entretanto, o Regimento Eleitoral Alvim e o presi-
dencialismo florianista. Já, para os castilhistas, resistir tra-
tava-se de consolidar a hegemonia republicana positivista e
não parlamentar, além de afastar o fantasma da restauração
monárquica, igualmente temido por Floriano Peixoto22.

Ou seja, tinham como objetivo a revogação da Constituição Esta-


dual e a derrubada de Júlio de Castilhos como governador do Estado,
o que demonstra que o conflito está mais para uma Guerra Civil do que
para uma revolução, pois não pretendia alterar as estruturas sociais, eco-
nômicas ou política da província, visava modificações políticas bem pon-
tuais, de acordo com o interesse do partido. Os castilhistas resistiram,
pois tratava-se da consolidação da hegemonia república.
Como já ressaltamos a Revolução Federalista não se limitou ao Esta-
do do Rio Grande do Sul, ao contrário, se alastrou pelos Estados do Paraná
e de Santa Catarina e nesse contexto abordaremos no próximo subtítulo as
consequências das falsas informações passadas por um telegrafista federa-
lista de Palmas/PR, a José Bernardino Bormann, na Colônia do Xapecó.

21  PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. Op., Cit.
22  AXT, Gunter. A Revolução Federalista (1893-1895): Guerra Civil no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 107-136, 2018. P.115

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 443


O Telegrafista Henrique Widikim e a
Colônia Militar do Xapecó
Com a expansão da revolução para os demais estados, a Colônia Mi-
litar do Xapecó, então Província do Paraná, surge como uma das possi-
bilidades de invasão, pois poderia fornecer armamentos e alimentos para
os revoltosos. A colônia tinha o seu núcleo populacional em Xanxerê
e abrangia os atuais municípios de Xaxim e Faxinal dos Guedes. Era
destinada à defesa da fronteira, devido ao conflito territorial envolven-
do a República Argentina23 e a proteção dos habitantes dos Campos de
Palmas, Erê, Xagú e Guarapuava da incursão dos indígenas24 kaingang,
ditos como bravos do ponto de vista do governo imperial.
No Mapa 01 (na página a seguir) podemos observar a localização
da Colônia Militar do Xapecó e Xopim, ambas instaladas em regiões
de fronteira e de importância territorial para a defesa do território no
século XIX. Compreendemos a fronteira não somente como fronteira
geográfica, mas como fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira
da civilização, fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mun-
do, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem
e sobretudo, fronteira do humano25. Mas que também compartilhavam
coisas em comum, como a ausência do estado, a extração da erva mate,
a comunicação verbal feita através do portunhol, demonstrando que as
relações estabelecidas nas fronteiras são dinâmicas.
O local da instalação da colônia foi considerado estratégico, pois pos-
suía terras próprias para a indústria pastoril e para a agricultura. Porém,
não mantinha comunicações regulares com as vilas próximas e o seu sis-
tema de estradas não contribuiu para gerar o intercâmbio necessário com
a região, o que impossibilitou um maior desenvolvimento econômico
desse estabelecimento do ponto de vista do Ministério da Guerra26. O Mi-
nistério também visava a colonização desse território, pois em meados do

25  MARTINS, José de Souza. Fronteira: A Degradação do Outro nos Confins do Humano. 2.
ed. São Paulo: Editora Contexto, 2016. P.11
26  Ibidem, p. 41.

444 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


século XIX acreditava-se Mapa 01. Localização da Colônia Militar do Xapecó,
Xopim e Iguaçu.
no “vazio demográfico”, Fonte: BOUTIN, Leônidas. Colônias militares na província do
ou seja, desconsideravam Paraná. Separata do Boletim XXXIII do Instituto Histórico,
Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1977. p. 49.
os indígenas e os caboclos
presentes na região.
Apesar das constantes reclamações de Bormann, que ficam eviden-
tes nos Relatórios que fazia para o Presidente da Província do Paraná e
no jornal o Xapecó, redigido pelo próprio em uma tipografia instalada
no estabelecimento, a Colônia ressentiu de verbas para um melhor de-
senvolvimento. O estabelecimento de uma tipografia nos sertões para-
naenses, ainda no século XIX é algo que nos desperta interesse, pois não
era comum que as Colônias Militares tivessem esse tipo de equipamento,
devido ao seu alto custo e a necessidade técnica de saber manusear o ins-
trumento, mas demonstra o poder econômico de Bormann e a sua preo-
cupação com a falta de informações na região. O ministério visava que a
Colônia conseguisse suprir suas despesas, mas não a provia dos recursos
necessários para que isso ocorresse, fato agravado com o encilhamento
no início da República.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 445


De 1882 a 1898 José Bernardino Bormann, militar do exército foi
responsável pela administração da Colônia, era natural de Porto Ale-
gre, Rio Grande do Sul, reconhecido por sua participação na Guerra do
Paraguai27. Sua permanência por quase 20 anos em região de fronteira,
contribuiu para que adquirisse prestígio político e militar no Estado do
Paraná. Pelo estado foi deputado estadual, vice-governador e governador
interino, além de ter exercido a função de Ministro da Guerra durante o
governo de Nilo Peçanha.
Enquanto diretor da Colônia Militar do Xapecó foi responsável pelo
desenvolvimento do estabelecimento, tendo a obrigação de garantir alo-
jamento adequado aos colonos e militares, bem como o fornecimento de
ferramentas e suprimentos essenciais para a sobrevivência dos colonos.
Era responsável por inspecionar todos os trabalhos realizados na colô-
nia, promover a introdução de melhorias e de garantir a segurança dos
colonos28. Ou seja, era o representante da Lei na região, sendo responsá-
vel por administrar aquela população e por fiscalizar e reprimir possíveis
transgressões do ponto de vista do Ministério da Guerra.
Com a propagação da Revolução Federalista e a presença de federa-
listas na Colônia Xapecó, Bormann foi chamado a capital do Estado do
Paraná para dar esclarecimentos. Foi dispensado do cargo de diretor da
Colônia e de comandante da Guarnição e Fronteira de Palmas e transfe-
rido para a segunda classe do Exército, além disso foi expedido uma or-
dem de prisão, tais decisões posteriormente foram revogadas devido a sua
“lealdade a República”29. No decorrer do texto vamos evidenciar a moti-
vação para tal desconfiança e os embasamentos utilizados por Bormann
para fazer sua defesa o que ocasionou na não efetivação das punições.
Devido aos rumores que envolviam sua pessoa e a Revolução, José
Bernardino Bormann, publicou suas memórias, em 1901 sobre os aconte-
cimentos envolvendo os Federalistas e a Colônia que administrava. Sobre
a publicação do livro Bormann diz o seguinte:

27  Ibidem, p. 36.


28  Ibidem, p. 37.
29  Ibidem. p. 28.

446 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Geralmente deixa-se ás gerações futuras o trabalho de narrar os
fatos do passado, porque os contemporâneos desses grandes e
sanguinolentos abalos sociais, contaminados pelas paixões do
tempo, não podem legar aos pósteros uma narração fidedigna,
nem também uma crítica em que a imparcialidade se destaque
fiel e constante. Há, porém, um grande inconveniente em deixar
a um futuro remoto a tarefa de historiar o passado e a própria
História o demonstra. Quantos vultos ilustres têm passado a
posterioridade por muito tempo, por muitos séculos, cobertos
de baldoes, sem que a sua memória encontre, mesmo entre os
seus descendentes, uma defesa que os justifique ou reabilite?30

Essa iniciativa de Bormann em escrever sobre a Revolução Federa-


lista não era somente devido a suposta preocupação com a história, mas
era uma forma de esclarecer para muitos o seu posicionamento enquanto
militar/republicano diretor de uma Colônia Militar na fronteira. Tenta
construir sua memória por meio do livro, o que fica evidente quando
diz o seguinte “Quem por aí, que deseje morrer deixando sobre a pró-
pria memória pairar dúvidas, acusações de crimes inúteis e injustificá-
veis, quando se pode servir a penhor das causas sem se partilhar dos seus
desmandos e desatinos? ”31. Ou seja, há uma tentativa da construção do
imortal32.
Sobre a situação da fronteira de Palmas devido a Revolução Federa-
lista Bormann destaca o seguinte:

Mas, se na capital do Estado, e na maior parte do seu territó-


rio, tudo apresentava um aspecto tranquilizador, não sucedia o
mesmo na Fronteira de Palmas, onde os acontecimentos do Rio
Grande faziam impressão, agitavam o espirito público, segundo
sua importância e gravidade33.

30  BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado do


Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901. p. 09
31  Ibidem, p. 6.
32  ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de Consa-
gração no Brasil. Rio de Janeiro: Lapa/Rocco, 1996.
33  BORMANN, José B. Op., Cit. p. 29

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 447


A agitação na fronteira era consequência da deposição de Júlio de
Castilhos, pois seus amigos e correligionários que constituíam o partido
republicano, eram perseguidos no interior e nas fronteiras do Estado e o
Paraná e a Colônia serviram de refúgio desses republicanos que residiam
na região norte do Rio Grande do Sul34.
Nesse contexto de possível invasão da Colônia Militar do Xapecó
pelos federalistas o telegrafo, instalado as vésperas da Revolução, e se
sobressaiu como uma ferramenta utilizada a favor dos federalistas devido
as falsas informações disseminadas por Henrique Widikim, telegrafista
de Palmas, assim descrito por Bormann:

Um telegrafista de Palmas, exaltado federalista, chamado


Henrique Widikim, quer fosse enganado pelos seus colegas
das estações telegráficas de Curitiba e do interior quer das
estações do Rio Grande, ou quer de motu-próprio, o que pa-
rece mais provável enviava notícias a Prestes Guimarães, te-
legramas falsos de amigos e correligionários deste informan-
do que a revolução tinha irrompido, que Castilhos caiu do
poder e refugiara-se na campanha, onde reunia gente contra
o Marechal Floriano35.

As informações passadas por Henrique Widikim a líderes federalis-


tas da região tencionaram ainda mais a fronteira do Paraná com o Rio
Grande do Sul. Os telégrafos eram espalhados por todo o território e as
informações eram passadas de um para outro até a chegada da informa-
ção ao destinatário final. Os telegrafistas deveriam ser bem treinados, a
fim de conseguir transcrever com êxito as mensagens passadas com o Có-
digo Morse. A maioria das informações recebidas por Widikim vinham
por Curitiba, o que nos faz pensar sobre as intencionalidades desse tele-
grafista. Mesmo que as informações não fossem modificadas ou geradas
por ele, a disseminação era por sua própria conta e risco, o que demonstra
o seu interesse para que elas chegassem a Colônia e a Prestes Guimarães.

34  BORMANN, José B. Op., Cit. p.56


35  BORMANN, José B. Op., Cit. p. 70.

448 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Levantamos a hipótese de que as falsas informações divulgadas por
Widikim tinham o intuito de promover conflitos e invasões na fronteira
de Palmas, o fato de Bormann acreditar ser de “motu-próprio” é devido
a falsas informações divulgadas anteriormente. No decorrer de todo o
livro, Bormann destaca várias vezes em que os telegramas eram falsos ou
que foram divulgados para outras pessoas além dos destinatários, ou seja,
o telegrafista não respeitou a privacidade dos telegramas. As falsas in-
formações tiveram consequências para a Colônia Militar, pois fomentou
a possibilidade de um conflito armado entre a tropa de Antônio Ferrei-
ra Prestes Guimarães, que estava no Goio-Em e forçou José Bernardino
Bormann a tomar um posicionamento, que até o momento constituía-se
em neutralidade. No jornal Xapecó (1892), Bormann, também faz um
comentário sobre o telegrafista:

A população e o comércio desta capital cada vez mais se


ressentem das irregularidades que diariamente se dão na
estação telegráfica. Telegramas que pertencem a uns, vêm
endereçados a outros, de maneira que nem o próprio sigilo
observado em repartições desta ordem pode ser guardado
nos despachos. O serviço de aviso marítimos... isso então é
um Deus nos acuda! Muitas vezes, só depois que os vapores
vão mar em fora é que chega a notícia da sua entrada em Pa-
ranaguá! Chamamos para o caso a atenção do sr. funcionário,
certo de que ele procurara sanar males como esses que apon-
tamos, embora fique o da alteração do sentido e redação de
muitos despachos telegráficos36.

Ou seja, não era só o Diretor da Colônia que estava insatisfeito com


a postura do telegrafista de Palmas, mas toda a região. O fato de ende-
reçar telegramas a outros pode ter sido uma estratégia de divulgação de
informações para terceiros, por exemplo, para os federalistas da região da
Colônia Xapecó, pois quebrava o sigilo entre o telegrama e o real desti-
natário.

36  XAPECÓ. Xanxerê, 7 de março de 1892.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 449


Antônio Ferreira Prestes Guimarães foi, ainda durante a monar-
quia, vice-presidente da Província do Rio Grande do Sul e um dos líderes
maragatos na região de Passo Fundo, chegando a comandar a Divisão do
Exército Libertador Federalista37. Após a deposição de Júlio de Castilhos
em 1891, ocupou a cidade de Passo Fundo e Tomou o poder municipal.
Os republicanos não aceitaram o fato e liderados pelo Coronel Francisco
Marques Xavier Chicuta, que estava na chefia do Partido Republicano em
Passo Fundo38, iniciaram a concentração reunindo-se em armas na sede
do município. Prestes Guimarães, juntamente com Frederico Schultz,
Veríssimo da Veiga e Borges Vieira organizaram a liderança do Partido
Federalista em Passo Fundo, com centenas de adeptos39. O assassinato
de Chicuta provocou o acirramento do confronto no município e levou
Prestes Guimarães e sua família a se retirar para Nonoai, posteriormente
Curitiba40 e na Colônia Militar do Xapecó:

Achava-se ele já emigrado em Palmas quando ali apresen-


tou-se uma escolta comandada por um indivíduo de má nota,
chamado Cassiano, e que outrora fora preso por querer as-
sassinar aquele cidadão, exigindo a sua entrega sem trazer
precatória, sem a menor formalidade usada em tais casos.
Cassiano não ocultava que liquidaria Prestes Guimarães. Este
tratou de refugiar-se na Colônia Militar do Xapecó, dirigida,
então interinamente pelo capitão Arthur Durão, por se achar
ausente o chefe. Dessa localidade Prestes pediu garantias de
vida ao Governador do Estado, e ao Comandante da fronteira
em serviço, então, na Capital Federal41.

A presença de Prestes Guimarães na Colônia foi um dos principais


motivos que fundamentaram a desconfiança de uma possível traição por

37  NASCIMENTO, Welci; DAL PAZ, Santina. Vultos da História de Passo Fundo.
Passo Fundo: Projeto Passo Fundo, 2014. p. 27
38  FERREIRA, Mariluci. A trajetória política de Prestes Guimarães. Passo Fundo: Projeto
Passo Fundo, 2014. p. 56
39  Ibidem, p. 57.
40  Ibidem, p. 59.
41  NASCIMENTO, Welci; DAL PAZ, Santina. Op., Cit. p. 68.

450 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


parte de Bormann que esclareceu a presença de Preste Guimarães e de
outros federalistas na Colônia devido ao seguinte “nessa época tínhamos
ordens para dar proteção a esses emigrados e elas persistiam enquanto
os acontecimentos no Rio Grande apresentavam uma feição puramente
local ou doméstica por consequência, esses fugitivos eram perfeitamente
recebidos e tratados”42. Ou seja, a presença de federalistas na Colônia é
justificada devido a ordens, possivelmente da Província do Paraná ou do
Ministério da Guerra, de abrigá-los, outra questão que justifica tal decisão
é que a “população de Palmas era em sua maioria federalista, de modo
que os emigrados ainda tinham a seu favor as simpatias do povo, e isso
facilitava-lhes tudo”43. Portanto, para manter a tranquilidade da Fronteira
de Palmas, era necessário um bom relacionamento com os federalistas.
De acordo com A República: Órgão do Partido Republicano:

Sabemos com a maior certeza que a Colônia do Chapecó está


cheia de maragatos fugitivos depois da derrota que lhes in-
fringiu o coronel Santos Filho na fronteira do Rio Grande do
Sul com este Estado. O Bravo coronel Bormann os tem aco-
lhido com maior benignidade44.

Bormann tinha ordem de manter a neutralidade até o momento em


que a luta se mantivesse no Estado do Rio Grande do Sul a irradiação da
revolução por outros estados modificou todas as relações mantidas até
então naquela fronteira. A situação de Bormann era complicada, pois
enquanto militar deveria ser leal ao Ministério da Guerra, porém estava
em uma região cheia de federalistas e a Colônia estava muito mais próxi-
ma de Palmas do que de Curitiba e do Rio de Janeiro, por uma questão
estratégica era necessário manter as boas relações com os federalistas de
Palmas, principalmente se levarmos em consideração a vida política de
Bormann no estado.

42  BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado


do Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901. p. 56.
43  Ibidem, p. 72.
44  A REPÚBLICA: Órgão do Partido Republicano. Rio de Janeiro, 6 de junho de 1895. p.1.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 451


Devido as falsas informações contidas nos telegramas José Bernardi-
no Bormann, ocupou desejava ocupar a vila de Nonoai com o intuito de
manter as comunicações entre o Paraná e o Rio Grande do Sul45, sem as
intervenções de Widikim, porém afirma que tinha sob suas ordens apenas
meia dúzia de praças de linha, e para fazer os serviços na colônia reunia
os colonos mais jovens, enfatiza que se tivesse que ocupar militarmente
Nonoai não poderia fazer sem chamar as armas todos os jovens da colô-
nia.
Com relação a Prestes Guimarães:

Prestes Guimarães estava convencidíssimo de que os telegra-


mas noticiavam a verdade; sustentava ativa correspondência
com os seus amigos de Palmas, informando-os dos aconteci-
mentos; escrevera várias vezes ao comandante da fronteira
pedindo-lhe o seu consentimento para transpor o Goio-En,
visto que a luta não era mais local e os seus adversários ar-
mavam-se contra o Governo da União e assim a neutralidade
daquele oficial tornara-se impossível. A fronteira está agita-
díssima46.

Com as falsas informações de Henrique Widikim ficou impossível


para Bormann manter a neutralidade. Com a deflagração do conflito seu
posicionamento seria a favor da República e não dos federalistas. Devido
a ameaça de invasão dos federalistas Bormann construiu um sistema de
fortificação na Colônia, além de convocar todos os homens válidos, cerca
de 300, que foram distribuídos da seguinte forma: 200 praças de infanta-
ria, comandadas pelo capitão honorário Tertuliano Albuquerque, 60 de
cavalaria, sob o comando de João Batista Xavier e 30 para as guarnições
da artilharia, subordinadas ao capitão Vitorino Geolás47. Grande maioria

45  BORMANN, José B. Op., Cit. p. 71.


46  BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado do
Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901. p. 71.
47  XAVIER, Aristóteles. O Centenário do Marechal Bormann. Biblioteca Militar. RJ: Laem-
mert, 1944. p. 107.

452 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


dos convocados não tinha a mínima instrução militar, ou seja, em caso
de ataque seriam facilmente rechaçados. Uma das constantes reclama-
ções de Bormann era sobre as poucas praças militares disponíveis para
aquela Colônia, o que tornava o policiamento da região quase impossí-
vel. Bormann destaca que “A força do exército que guarnecia a colônia
era insignificante: requisitámos mais gente e ordem para arregimentar os
colonos a vista do estado de coisas. Era, então, Comandante do Distrito
o General Sebastião Raymundo Ewerton Quadros, soldado valente”.
Enfatiza a tentativa de contato com o Comandante do Distrito e
com o Governador do Estado, a fim de pedir notícias, porém “o telégrafo
conservava-se mudo para nós, então diretor da Colônia e Comandante da
Fronteira”48. Devido ao histórico de Widikim, possivelmente o telégrafo
mudo foi proposital, a fim de deixar Bormann sem saber do que estava
acontecendo no restante do Estado e o impossibilitando de estabelecer
comunicação com quem pudesse esclarecer a situação.
Com relação à tropa de Prestes Guimarães:

Prestes Guimarães preparava-se, a vista da insistência das


notícias favoráveis, para transpor o Goio-En, e com efeito,
passou o rio a frente de 100 homens; mas, encontrando for-
ças muito superiores retrocedem. A notícia da invasão foi
transmitida para Passo Fundo e Palmeira e rapidamente
destas localidades marcharam forças civis contra o invasor,
e reuniram-se em Nonoai. Não chegaram as respostas dos
vários telegramas dirigidos ao governo pelo Comandante da
Fronteira de Palmas49.

O falso telegrama de Widikim causou muita tensão entre a Colônia


do Xapecó e Prestes Guimarães que só não invadiu o estabelecimento
devido aos poucos homens que José Bernardino Bormann conseguiu reu-
nir e a repressão que sofreu das forças civis de Passo Fundo e Palmeira

48  BORMANN, José B. Op., Cit. p. 71.


49  BORMANN, José B. Op., Cit. p.73.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 453


que rapidamente reuniram-se em Nonoai. De acordo com Bormann “Os
telegramas que levaram esse chefe federalista a invasão, sem dúvida eram
forjados pelos próprios telegrafistas, pois, não é admissível que particula-
res pudessem transmitir notícias falsas e tão alarmantes pelo telégrafo”50.
Portanto o uso do telégrafo como meio de transmissão de informa-
ções sobre a Revolução Federalista causou um impacto muito grande na
Colônia Militar do Xapecó e se demonstrou como um instrumento eficaz
nas disseminações rápidas de falsas informações, que trouxeram prejuí-
zos a Bormann e a Colônia Militar.
O telégrafo elétrico revolucionou o sistema de comunicação no sé-
culo XIX devido a sua alta velocidade na transmissão de mensagens e o
baixo custo51 e trouxe impactos passíveis de análise a população brasileira
e aos conflitos deflagrados no Brasil nesse período como pudemos obser-
var no decorrer de todo o texto.

Conclusões
A transição Império/Republica no Brasil foi turbulenta, o que aca-
bou gerando diversos conflitos, entre eles a Revolução Federalista defla-
grada no Rio Grande do Sul, que se espalhou para os demais estados do
Sul do país. Nesse contexto destacamos o papel do telégrafo nesse con-
flito na região da Colônia Militar do Xapecó e a disseminação das falsas
informações pelo telegrafista federalista de Palmas, Henrique Widikim.
O que nos faz refletir sobre os acontecimentos do século XXI, princi-
palmente nas últimas eleições presidencialistas nos Estados Unidos da
América e no Brasil
Nas eleições presidencialistas dos Estados Unidos (2016) e do Brasil
(2018), um termo muito utilizado e disseminado foi fake news, que traduzido

50  Ibidem, p. 75.


51  TOTH, Pedro. A evolução Comunicativa dos Mecanismos de Busca: do telégrafo à Web
Semântica. Dissertação (Mestrado) – Comunicação Social, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2017. p. 20.

454 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


literalmente da língua inglesa significa notícias falsas. Que consistiu na
distribuição deliberada de desinformação ou boatos via jornal impresso,
televisão, rádio ou nas mídias sociais como Facebook e WhatsApp e tiveram
consequências bem visíveis nas eleições, pois distorceu informações que
prejudicou o debate de ideias e propostas entre os candidatos. Devido as
redes sociais e ao grande número de pessoas com acesso à internet, as
fake news trouxeram prejuízos incalculáveis. Porém, apesar de o termo ser
atual, a prática de disseminação de informações falsas, visando favorecer
um grupo específico é bem mais antiga, como pudemos observar no
presente texto.
As falsas informações disseminadas via telégrafo no final do século
XIX quase deflagraram um conflito bélico que possivelmente teria con-
sequências desastrosas para a região, levando em consideração as forças
militares limitadas disponíveis para fazer a defesa. O conflito somente foi
evitado devido ao pequeno número de pessoas que compunham a tropa
de Antônio Prestes Guimarães em comparação com a tropa, composta
em sua maioria por civis, presente na Colônia Militar do Xapecó e devido
a repressão das tropas de Passo Fundo.
Henrique Widikim continua sendo um personagem que nos desperta
curiosidade, sendo necessário mais pesquisas com essa temática, a fim de
compreender de uma forma mais ampla as motivações que o levaram a
disseminar essas informações. No presente texto nos propomos a exami-
nar a temática de forma inicial, pois nos limitamos a utilizar como fonte
o livro escrito por Bormann. No site do Arquivo Público do Paraná há
um leque considerável de fontes que auxiliam pesquisas que têm como
temática o Estado. O site da Hemeroteca Digital também se apresenta
como uma ferramenta muito importante para pesquisas nas mais varia-
das temáticas, pois o acervo digital disponível é considerável.

VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 455


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VENSON, Leticia M. ATelegrafista Henrique Widikim e a Revolução Federalista na Colônia... 457


458 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Os intrusos resistentes da
Fazenda Boa Vista
José Antonio Moraes do Nascimento
Paulo A. Zarth

E m 1886 uma ação de despejo no município de Santo Antônio da


Palmeira, atualmente Palmeira das Missões, no Norte do Rio
Grande do Sul, gerou sério conflito entre os ocupantes e as autori-
dades encarregadas de expulsar os camponeses que resistiram armados.
Os relatórios e correspondências oficiais afirmam que a resistência ar-
mada tomou o “mau caráter de uma sedição”.1 Este episódio não foi um
caso singular. Ao contrário, insere-se num contexto de graves conflitos
pela terra e acreditamos que a partir dele possamos traçar um panorama
da complexa situação regional do século XIX, envolvendo camponeses
extrativistas de erva-mate, grandes proprietários, forças políticas locais
e os poderes do estado. Numa perspectiva ampla, o tema se insere num
campo de estudos relativo ao mundo rural, que trata das formas de resis-
tência camponesa ao longo da história nos mais diversos locais do plane-
ta. Este artigo é uma abordagem específica sobre um conflito envolvendo
um líder ervateiro e demais camponeses, a partir de fontes documentais

1  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo


Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
coletadas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e no Arquivo Pú-
blico do Rio Grande do Sul.
Tais acontecimentos estão inseridos num contexto social e territorial
em que os lavradores nacionais, também chamados de caboclos nesta
região, ocupavam as terras florestais e eram homens livres, com peque-
nas posses e viviam, além da agricultura de subsistência, da coleta de
erva-mate, nos ervais públicos. Socialmente, estes camponeses podem ser
enquadrados entre aqueles analisados por Maria Izaura Pereira Queiroz,
referindo se “a população que, no campo, não era nem senhor e nem escravo”.2
Eram “homens livres pobres”, pobres, mas não despossuídos como os es-
cravos. Se comparamos com a Europa rural, seriam “homens sem senhor”,
na denominação de Christopher Hill3, ao descrever o surgimento de uma
camada de pessoas que não tinham mais vínculos com as amarras da
sociedade feudal.
Além dos grandes proprietários, chefes políticos e militares, na
freguesia da Palmeira, desde ano de 1824, já existia grande número de
camponeses, atraídos de diversos locais pela “abundância de erva-mate,
a cujo fabrico se dedicavam reunidos em comitivas, trabalhando de mão
comum, dentro dos matos que circulam este lugar onde hoje é a sede da
Paróquia”.4 Aventureiros bem posicionados socialmente, a maioria pro-
veniente da província de São Paulo, se estabeleceram na região adqui-
rindo grandes áreas de terras no comando da fronteira. Paralelamente,
“uma grande multidão de homens pobres, procedente da fronteira sul e
de outros pontos, atraídos pela notícia da extraordinária abundância e
superioridade da erva mate para aí concorreu, procurando arranchar-se
como agregados das grandes propriedades rurais, ou dentro de matos
baldios”.5 Eis a origem da população regional do início do século XIX.

2  QUEIROZ, Maria Izaura Pereira. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e gru-
pos rústicos no Brasil. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Edusp, 1973, p. 10.
3  HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de
1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
4  Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio da Palmeira. 1860. In: SOARES, Mozart Pereira.
Santo Antonio da Palmeira. Porto Alegre: BELS, 1974. p. 112
5  SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto

460 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Mas é preciso acrescentar os povos indígenas, Guarani e Kaingang, traba-
lhadores africanos escravizados e eventuais imigrantes europeus.
As autoridades judiciais se referiram aos camponeses em processo
de despejo como “intrusos resistentes”. O termo intruso passou a ser re-
corrente na documentação após a segunda metade do século XIX, na
sequência da Lei de Terras de 1850 que substituiu a até então prática legal
de fazer roçados na condição de posseiro. O bloqueio do livre acesso à
terra, exigindo dos lavradores comprar as áreas destinadas aos seus ro-
çados, ou legitimar as que já ocupavam antes de 1850, deu início a uma
série de conflitos. No caso desta região, a situação tornou-se complexa
na medida em que viviam milhares de camponeses que se dedicavam ao
extrativismo de erva-mate em terras consideradas públicas pelos municí-
pios, gerando uma situação peculiar no universo legal referente ao uso da
terra. O termo resistente utilizado pelo juiz tem um caráter acusatório,
um sentido de sedição. Por outro lado, a bibliografia sobre o campesinato
incorporou o termo como forma de luta pelo direito de acesso à terra,
num sentido positivo, de protagonismo camponês.
Em relação aos camponeses rebeldes que analisaremos a seguir, não
se trata de uma tarefa fácil enquadrá-los nos casos conhecidos amplamen-
te das grandes rebeliões camponesas, nos termos da bibliografia clássica
sobre o tema. Seriam bandidos sociais, ou rebeldes primitivos, no sentido
analisados por Eric Hobsbawm?6 Teriam consciência de classe campo-
nesa, na tradição historiográfica marxiana? Passariam pelos moldes dos
líderes messiânicos discutidos na bibliografia do Contestado ou Canu-
dos?7 Seriam resistentes dos tipos expostos por James Scott?8 Ou ainda,

Alegre: Typographia da Livraria Universal, 1909. p. 326


6  HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. - São Paulo: Paz e Terra, 2015. HOBSBAWM, Eric J. Rebel-
des primitivos. Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIX
y XX. Barcelona: Editorial Ariel. 1983.
7  QUEIROZ, M. V. de. Messianismo e conflito social: a Guerra Sertaneja do Contestado, 1912-
1916. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado:
a formação e a atuação das chefias caboclas. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004. MONTEIRO, D.
T. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo:
Duas Cidades, 1974.
8  SCOTT, James. The Moral Economy of the Peasant: Rebellion and Subsistence in Southeast

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 461
teriam semelhança com os casos estudados por E. P. Thompson?9 Não
é possível fazer qualquer enquadramento reducionista neste texto, mas
é importante apresentar e analisar a documentação levando em conta as
contribuições da bibliografia mencionada.

As terras de servidão coletiva: ervais de uso comum


O primeiro passo para compreender o panorama social do mundo
rural da região em tela passa pela existência dos ervais públicos, conside-
rados áreas de servidão coletiva, terras de uso comum, na qual os campo-
neses poderiam coletar erva-mate e fazer roçados. Já tratamos deste tema
em outros textos, mas aqui se faz necessário uma breve retomada para
compreensão do artigo10. Segundo correspondência da câmara de Cruz
Alta “todos os ervais encravados nas serras têm considerados públicos,
desde sua instalação em 1835, por meio de suas posturas, fazendo a prin-
cipal parte de suas rendas”.11 O município de Palmeira, ao emancipar-se
em 1875, copiou o código de posturas cruzaltense regulamentando do
mesmo modo o extrativismo de erva-mate em seu território.
Ainda que a atividade extrativista fosse regulamentada pelas câma-
ras municipais e as terras com ervais por elas consideradas sob seu do-
mínio, era possível o livre acesso à terra e sobrevivência para milhares
de pessoas. Em resumo, as câmaras municipais regulamentavam, através

Asia. New Haven: Yale University Press, 1976


9  THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tra-
dicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e
caçadores. 2. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1997.
10  NASCIMENTO, José Antonio Moraes do. Terra de servidão coletiva no Alto Uruguai, da
província do Rio Grande do Sul. História: Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 9, n. 1, jan./jun.
2009. ZARTH, Paulo A. Terras de uso comum nos ervais do Rio Grande do Sul. In: SILVA,
Marcio Antônio Both da; KOLING, Paulo José (Orgs.). Terra e poder: abordagens em História
Agrária. Porto Alegre: FCM Editora, 2015.
11  Correspondência da Câmara Municipal da Vila da Cruz Alta. 10/08/1852. Arquivo Históri-
co do Rio Grande do Sul. (AHRGS). Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. 1852.
Maço 60. Caixa 28.

462 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


do código de posturas, e concediam licenças para explorar os ervais na-
tivos e ao mesmo tempo permitiam que os camponeses fizessem peque-
nas lavouras de subsistência, observando manejo adequado, períodos de
colheita e cuidados com as erveiras. Em troca, a municipalidade cobrava
uma taxa sobre a exportação, constituindo-se na principal fonte de renda
tributária. Para se ter uma ideia da importância do extrativismo de mate,
esta atividade figurou durante décadas como segundo principal item na
pauta de exportações da província, no século XIX, encabeçada pelos pro-
dutos da pecuária.
Existiam diferenças significativas no grupo de ervateiros. Alguns
trabalhavam em parceria e repartiam o produto do trabalho, segundo
Velloso da Silveira “ordinariamente dois ou três ervateiros formam seu
contrato de parceria para a colheita, preparo e venda em comum da erva-
-mate”.12 Outros trabalhavam como peões assalariados temporários para
o dono do engenho. Um personagem importante liderava as comitivas de
coletores, retirava alvará de licença na municipalidade, contratava peões,
organizava a coleta e os procedimentos iniciais do preparo da erva-mate
que consistia em sapecar as folhas e secá-las no carijo. No topo da rede
de coleta, produção e exportação destacam-se os proprietários dos enge-
nhos que industrializavam a erva-mate e encaminhavam para o mercado,
principalmente para Buenos Aires.
O extrativismo de mate foi uma atividade predominantemente de la-
vradores livres, ainda que trabalhadores escravizados dela participassem
eventualmente. Sendo uma atividade sazonal, era propícia para campo-
neses que podiam cuidar de suas roças e produzir para subsistência sem
depender totalmente da coleta.
Ao longo do século XIX, a situação dos ervais foi objeto de contí-
nuas discussões a respeito do manejo do extrativismo. O caráter público,
segundo os críticos, possibilitava que os ervateiros destruíssem as árvores
ao não respeitar o tempo para regeneração da planta, a estação certa de

12  SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios.
Porto Alegre: Typographia da Livraria Universal, 1909. p. 180

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 463
coleta e falta de cuidado com incêndios. Todo o processo era detalhada-
mente regulamentado e fiscais nomeados para controlá-lo, mas de forma
ineficiente, se considerarmos as críticas.13 Apesar destas considerações,
os ervateiros, de um modo geral, contavam com apoio dos vereadores,
proprietários de engenho e comerciantes, conforme pode se observar nos
diversos processos de tentativa de privatização.
Por outro lado, muitos ervais se localizavam em terras privadas, so-
bre as quais as câmaras não tinham controle e geravam discussões sobre
acesso e direitos de propriedade. Inúmeros casos desse tipo constam nos
autos da justiça rio-grandense e revelam os conflitos entre pequenos erva-
teiros, baseados na tradição de livre acesso, e os que se julgavam proprie-
tários privados das terras onde se encontravam áreas com erva-mate. Era
comum grandes estâncias de criação de gado nas quais também se en-
contravam áreas de matas com ervais, explorados com peões e escravos.

O Código de Posturas municipais diante da Lei de Terras de 1850


Os ervais de uso comum, de domínio público, sob controle das mu-
nicipalidades, sofreram forte onda de privatização a partir da Lei 601 de
18 de setembro de 1850. Um dos principais efeitos da lei foi substituir o
conceito de posseiro pelo de intruso. Desde 1822, o acesso à terra poderia
se realizar pela simples ocupação de um terreno de forma mansa e pacífi-
ca, nos termos da época, ou seja, sem contestação de outrem, com a con-
dição de que fossem cultivados. Desta forma, milhares de camponeses
estabeleceram seus roçados de subsistência de forma livre em todo o país.
Diante da exigência de compra das terras, os camponeses que usavam a
tradição de livre acesso, passaram à condição de intrusos, ocupantes ile-
gais, e sujeitos a graves consequências.14

13  Ver sobre este tema a tese de doutorado de GERHARDT, Marcos. História ambiental da
erva-mate. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Florianópolis, 2013.
14  SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campi-

464 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A legislação elaborada em gabinetes distantes demorava muito para
chegar nos confins do mundo camponês, por isso o agrimensor Maxi-
miano Beschoren, trabalhando na região nos anos 1870, observou que
“a população se estabelecia ao acaso, sem perguntar se a terra havia sido
dada ou não. Toda a terra parecia pertencer ao povo.”15
No caso do extrativismo do mate, a Lei de Terras pôs em questão a
legitimidade das câmaras municipais sobre o controle dos ervais nativos,
gerando conflito entre o poder imperial e o municipal. O município esta-
beleceu o direito sobre os ervais através do código de posturas, uma con-
dição vulnerável diante de uma legislação maior como a Lei de Terras,
que não previu tal condição para as áreas com erveiras.
A título de exemplo, são bastante conhecidos os conflitos gerados
pelas tentativas de privatização dos ricos ervais do Campo Novo, ocorri-
dos nos anos 50 e 70 do século XIX. Em 1856 os moradores, coletores e
vendedores de erva-mate elaboraram um manifesto e enviaram à câmara
de Cruz Alta,16 a qual interferiu e conseguiu impedir a apropriação pre-
tendida por um grande posseiro. Mais tarde, em 1879, os habitantes do
mesmo distrito voltaram a ter problemas. Como parte da estratégia de
resistência, elaboraram um abaixo-assinado e o enviaram ao Imperador
e à Câmara Municipal de Palmeiras, reclamando do Juiz Comissário que
estaria privatizando terras com ervais de uso comum.17 O manifesto foi
assinado por 75 pessoas, dentre as quais ervateiros, vereadores, comer-
ciantes e importantes membros da elite local. No decorrer do processo,
diante da contestação do juiz comissário, os vereadores argumentaram
em defesa dos ervateiros tomando por base o Código de Posturas do mu-
nicípio, no qual consta que toda pessoa que conservar limpo ervais nas

nas: Ed. da UNICAMP, 1996


15  BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul
(1875-1887). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989, p. 24
16  Abaixo assinado dos moradores, negociantes e fabricantes de erva-mate de Campo Novo.
12/09/1856. Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. 1858. AHRGS. Maço 61.
Caixa 28
17  Abaixo-assinado enviado ao Presidente e Vereadores da Câmara Municipal de Santo Antônio
da Palmeira. 24/05/1879. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira.
1879. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 465
matas devolutas, tem a “especial preferência no fabrico da erva-mate e,
tendo requerido alvará de licença para limparem e cultivarem ervais de
erva-mate nas matas virgens devolutas, para gozarem da preferência na
colheita da erva”.18

O ervateiro rebelde e o juiz comissário


No contexto das privatizações dos ervais do Campo Novo emerge
um líder ervateiro insurgente. Luiz Minho Flores, um dos signatários do
abaixo-assinado ao Imperador, que confronta as ações do juiz comissário
encarregado de legitimar posses em áreas compreendidas como de servi-
dão pública pelos camponeses extrativistas. O ervateiro aparece com des-
taque nos documentos produzidos pelo juiz comissário Tibúrcio Álvares
de Siqueira Fortes19 que o acusa de proceder de forma criminosa “com
suas consecutivas proclamações em diversos pontos do município onde
possa ser ouvido.”20 Conforme o juiz, o autor aconselhava posseiros a
não legitimar terras as quais teriam direito pela Lei nº 601 de 1850, pois
esta não estaria valendo, “podendo qualquer dentre o povo apropriar de
matos ou terras devolutas, pois que havia sido considerada pela Prince-
sa Imperial em favor do povo ou pobreza deste município, sendo então
desnecessária respeitar os termos.”21 Minho Flores pode ser enquadrado

18  Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira, respondendo o pe-


dido de esclarecimento da Presidência da Província. 4/07/1879. Correspondência da Câmara
Municipal de Santo Antonio da Palmeira. 1879. AHRGS. Maço 97. Caixa 43, Juízo do termo de
Palmeira. Autuação. 11/07/1881. APRS. Processo Nº 10.
19  Tibúrcio Álvares de Siqueira Fortes, oficial da Imperial ordem da Rosa, condecorado com a
medalha da Campanha do Paraguai, Coronel Honorário do Exército por sua Majestade Imperial,
Juiz Comissário de medições deste município por nomeação do Exmo. Senhor Presidente da
Província. In: Auto de Medição da posse do requerente Miguel Rodrigues Vieira e sua mulher
Margarida Correia de Oliveira. Município da Palmeira. N° 1.022. 1878. Arquivo Histórico Muni-
cipal de Frederico Westphalen (AHMFW).
20  Correspondência do juiz comissário Tibúrcio Álvares de Siqueira Fortes ao Presidente da
Província. 5/03/1880. AHRGS. Correspondência da câmara Municipal de Palmeira. 1880. Maço
97. Caixa 43.
21  Correspondência do juiz comissário Tibúrcio Álvares de Siqueira Fortes ao Presidente da

466 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


como uma espécie de pequeno empreiteiro, considerando as referências
aos “trabalhadores de Minho Flores” que aparecem no processo-crime
sobre sua morte em 1881.22
Os argumentos do líder rebelde, segundo este e outros documentos
que a ele se referem, parecem indicar a defesa veemente dos costumes e
da tradição dos camponeses extrativistas em relação ao acesso à terra.
Considerava que as terras utilizadas como servidão coletiva, principal-
mente os ervais, não poderiam ser apossadas e legitimadas.
Essa visão que prioriza o costume e a servidão coletiva, se assemelha
em vários pontos com as observações de E. P. Thompson para a Inglater-
ra rural do século XVIII. Em relação ao uso comum da terra, o historia-
dor escreve que tal prática se estabelece pelo costume: “na interface da lei
com a prática agrária, encontramos o costume. O próprio costume é a in-
terface, pois podemos considerá-lo como práxis e igualmente como lei”.23
De acordo com a Lei de Terras, os ervateiros pobres da região pode-
riam, em princípio, reivindicar a um quinhão de terra, porém o processo
de legitimação das posses era difícil, pois implicava recursos financeiros,
além de um longo processo jurídico para a obtenção do título das terras.
Além disso, como os ervateiros tinham a garantia de trabalho nos ervais
coletivos que estavam localizados em terras públicas e não se preocupa-
ram em legitimar posses onde faziam seus roçados.

Os resistentes da Fazenda Boa Vista


Minho Flores aparece novamente na documentação como protago-
nista da disputa pela posse de parte da fazenda Boa Vista, sendo acusado
formalmente de intruso pela justiça. De acordo com as correspondências

Província. 5/03/1880. AHRGS. Correspondência da câmara Municipal de Palmeira. 1880. Maço


97. Caixa 43.
22  Juízo do termo de Palmeira. Autuação. 11/07/1881. APRS. Processo Nº 10.
23  THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tra-
dicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 86.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 467
do juiz municipal João da Cruz Camara, e autos dos processos, a terra
fora legitimada por Manoel Joaquim Borges em 1878.

Provaram os autores com o título de legitimação da Fazenda


Boa Vista, passado pela secretaria de governo em 28 de feve-
reiro de 1878 e assinado pelo então presidente da província,
Dr. Américo de Moura Marcondes de Andrade e além isso
com a prova testemunhal feitas na dilação probatória, que
são senhores legítimos possuidores da dita fazenda a qual era
ocupada pelos réus e outros agregados.24

O ervateiro contestou a decisão do juízo local e apelou para o tri-


bunal de relação de Porto Alegre, conforme processo aberto em 1881
contra a viúva Anna Belmonte Borges. A fazenda de 119 876 300 metros
quadrados, 11.987 hectares, era coberta parte por campos nativos e parte
de mato com ervais. Pelo que se depreende dos documentos, a disputa
girava em torno das áreas com ervais e do terreno onde habitava a família
Flores. O ponto chave da contestação parece estar nesse argumento: “os
autores chamam a posse não só dos campos como também de todos as
terras de ervais situadas na serra geral com uma extensão de cinco léguas
e onde os autores nunca tiveram posse alguma”25. A denúncia indica que
os autores pretendiam expandir sua fazenda incluindo áreas de mato con-
tíguas aos seus campos, objetivo que foi alcançado através de sentença
favorável da justiça.
Contra isso insurgiu-se o ervateiro que morava na área. Argumenta-
va, de um lado, que era possuidor da terra em que habitava e, por outro,
argumentava que os ervais não poderiam ser apropriados por serem de
domínio público por graça de Vossa Majestade Imperial. Presume- se que
a posse defendida seria apenas uma parte referente a sua morada, a qual
teria comprado de antecessores, conforme documentos anexados. Tais
documentos foram desqualificados pelo juízo por serem considerados de

24  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
25  Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. 12/08/1886.

468 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


duvidosa veracidade.26 O advogado dos Flores argumentou que que as
terras pretendidas foram concedidas pela V. M. o Imperador “para uso
e fruto dos fabricantes de erva-mate pelo aviso de 20 de maio de 1861,
achando-se os réus nessa posse por si e seus antecessores a mais de 20
anos em paz pacífica e sem perturbação alguma” 27 Sobre o aviso do go-
verno imperial, Hemetério Velloso da Silveira, presidente da câmara de
Cruz Alta na década de 1860 e 70, observou que “essa medida foi mais
ilusória do que a da concessão das terras aos voluntários da pátria, que
se alistaram e seguiram para a campanha contra o Paraguai, em 1865”.28
Fato relevante nesse processo é que o proprietário da fazenda era
sogro do Juiz Comissário, Tibúrcio Alves Siqueira Fortes, o mesmo que
entrara em conflito com o líder ervateiro no caso do abaixo-assinado ao
Imperador, mencionado acima. No decorrer do processo o juiz se torna-
ria herdeiro da terra em decorrência do falecimento do pai de sua esposa,
passando a participar do processo através de procuração aos advogados
da família. O processo em questão corria no juízo civil de Palmeira, mas
é relevante o fato do litígio envolver os interesses particulares da autori-
dade encarregada de legitimar as posses da região.29
O juízo da Palmeira reconheceu que a viúva Anna Belmonte Borges
e herdeiros “são senhores e possuidores da mesma fazenda Boa Vista
adquirida pelos antecessores por ocupação primária e pelos autores legi-
timadas na conformidade da lei 601 de 18 de setembro de 1850”.30 Nos
autos do processo os proprietários sustentaram que Minho Flores morava
no local por concessão e favor dos mesmos. Apresentaram uma carta
assinada por Minho Flores na qual pedia licença para usar o campo para
alguns animais pastarem. Se for verídico o documento, ele atesta uma
prática comum de ceder os campos para acolher animais dos vizinhos.

26  Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. Processo 236. 12/08/1886.
27  Tribunal de Relação de Porto Alegre. Apelação cível. APRS. Processo 175. 1881.
28  SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto
Alegre: Typographia da da Livraria Universal, 1909. p. 142.
29  Tibúrcio Alves Siqueira Fortes casou com Mariana Joaquina Borges em 1855, filha de Ma-
noel Joaquim Borges e Anna Belmonte Borges.
30  Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. Processo 236. 12/08/1886.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 469
No entanto, pelas declarações contidas nos autos do processo, não eram
esses campos que estavam em litígio e sim as áreas florestais.
O processo iria se estender por vários anos. Chama atenção o con-
teúdo das declarações do juiz municipal João da Cruz e Câmara contra o
réu, no processo relativo a ação de despejo que não foi acatada pelo erva-
teiro. De acordo com o juiz, Luiz Minho Flores teria usado argumentos
vagos e temerários:

sustentava que os campos eram nacionais, era dos índios que


ali tiveram em Illo Tempore aldeamento e finalmente que lhe
pertenciam por transação feita com Bento Seixas de Britto
que por seu termo os havia comprado de Antônio do Prado.
Chegou mesmo a ter a peregrina ideia de querer chegar à
nossa que tais campos eram de São Sebastião!31

A referência à São Sebastião remete ao sebastianismo corrente na


população camponesa brasileira do século XIX e revela a força da cultura
popular no tratamento dos conflitos do mundo rural.32 O ponto de excla-
mação inserido pelo juiz Câmara pode ser visto como um alerta do risco
desse tipo de argumento. Ainda que os fatos não caracterizem os rebeldes
como líderes messiânicos, é visível a preocupação da autoridade nesse
sentido. Em outros trechos do documento o juiz queixa-se do desprezo
pela legalidade e “do estado anárquico em que se acha este termo”.33 O
juiz informa também que após o reconhecimento legal da família Borges
como proprietários da fazenda, os réus foram citados e receberam dez
dias para desocuparem a terra.34 No entanto, o processo de despejo se es-

31  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara. Correspondências da Justiça de Santo Antônio da
Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
32  ZARTH, P. A.; SILVA, Márcio Both da. Religiosidade popular autoridades e conflitos no
Alto Uruguai In: simpósio nacional do centenário do movimento do Contestado, 2012, Pelotas.
Simpósio nacional do centenário do movimento do Contestado. Pelotas: editora e gráfica univer-
sitária, 2012. v.1. p.175-196.
33  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara. Correspondências da Justiça de Santo Antônio da
Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
34  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43

470 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tendeu até 1886 e envolveu um conjunto de acontecimentos que revelam
a complexidade social e política local. As correspondências e os autos
dos processos na justiça podem ajudar a esclarecer tal situação.

Luis Minho Flores e seu contexto familiar


Um aspecto importante para entender o agente social e histórico
Luis Minho Flores é conhecer suas relações familiares. Casado com Ma-
ximiana Ângela de Moura, com quem teve uma única filha, era genro de
Fidelis Militão de Moura e Theresa Maria de Jesus, uma família impor-
tante no município e pais de 12 filhos. No Registro Paroquial de Terras de
1854 declararam uma área de duas léguas de comprimento por meia de
largura, concedidas pelo Comandante das Missões.35As relações familia-
res não foram muito tranquilas pois, quando faleceu sua sogra em 1869,
Luiz Minho contestou a partilha e recorreu ao judiciário reivindicando a
posse “da escrava de nome Bibiana”.36 Coube a Maximiana uma “parte
de campo no rincão dos Valos”.37
Antes de prosseguir é importante adiantar que Luiz Minho Flores
foi morto com um tiro de arma de fogo em 26 de junho de 1881, no lugar
denominado São Sebastião da Guaryta, município de Palmeiras. Segun-
do testemunhas, o confronto ocorreu no momento em que a vítima e seus
trabalhadores “tiravam erva nos matos de Joaquim Ferreira”, acusado de
ser o autor dos disparos. Pelos depoimentos, já existia rixa entre os dois
homens e o encontro acabou sendo fatal. Um depoente informou que
“eram inimizados mesmo por causa dessas ervas do terreiro de Ferreira,

35  Registro Paroquial de Terras. Cruz Alta. Livro 1. n° 162. APERS.


36  Requerimento ao Juiz. In: Inventário de Theresa Maria de Jesus, sendo inventariante seu
marido Fidelis Militão de Moura. Autuado em 10/06/1869. Inventários. Cartório de Órfãos e
Ausentes. Cruz Alta. APERS. N.127 M.5 E.61 A.1869.
37  Inventário de Theresa Maria de Jesus, sendo inventariante seu marido Fidelis Militão de
Moura. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cruz Alta. APERS. N.127 M.5 E.61 A.1869.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 471
por que sempre Luiz Minho ameaçava a vir tirar as ervas não respeitando
o direito de Ferreira.”38
O autor foi absolvido por unanimidade pelo juri, pois considerou
uma ação de legítima defesa. O processo informa que o acusado da mor-
te era lavrador e, considerando que mantinha erva na propriedade, era
também um ervateiro. Estas evidências indicam que não era um grande
proprietário.
Mesmo que a morte tenha sido circunstancial, o que fica evidente é o
conflito em torno do extrativismo da erva-mate. Minho Flores era conhe-
cido pela defesa do livre acesso aos ervais e, de outro lado, Ferreira, no
caso, agiu em “defesa de sua pessoa e de seus direitos”39, nas palavras do
júri que o absolveu na sessão do júri em 30 de junho de 1884. Este episó-
dio trágico para o líder ervateiro é revelador de sua prática de considerar
de caráter público todos os ervais. O fato do crime acontecer num erval
supostamente privado é indicador do problema do acesso à terra, particu-
larmente aos ervais, do confronto histórico entre livre acesso e controle
privado da terra.

A resistência dos camponeses ervateiros


A morte do líder ervateiro, sem relação aparente com a fazenda em
litígio, não resolveu o caso da fazenda Boa Vista, ocupada por sua família
e outros camponeses que faziam parte de seu grupo. O grupo considera-
do invasor resistiu à ação de despejo em 1882, liderado por Manoel Ma-
chado Soares. O cabeça da sedição, nas palavras do juiz Câmara, opôs-se
“com armas, a que se efetuasse a diligência de despejo arrolada contra
eles, declarando que não reconheciam autoridade alguma com poderes
para os fazer despejar de suas moradas”. Diante dessa resistência, o gru-

38  Autuação. Juízo do termo da Palmeira. 26/06/1881. APRS. Processo Nº 10.


39  Autuação. Juízo do termo da Palmeira. 11/07/1881. APRS. Processo Nº 10.

472 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


po dirigido pelo subdelegado de polícia desistiu de executar a ordem de
despejo.40
Em outro momento do processo, em nova tentativa de despejo, o juiz
relata que diante da resistência armada dos ditos intrusos não foi possível
encontrar oficial e soldados para executar a ação de despejo.

requerendo os autores exequentes mandado de despejo for-


çado contra os executados, este juízo ordenou que se saíssem
na forma da lei, não encontrando porém oficial de justiça que
queiram ir dar cumprimento ao mandado, porquanto era voz
pública que Machado tinha consigo mais de vinte homens ar-
mados para repelir a diligência que fosse a fazenda Boa Vista
para executar o mandado de despejo”.41

Diante dessa situação, sem a força policial disponível na Vila, o juiz


apelou para a Guarda Nacional destacando os devidos regulamentos le-
gais: “oficiei ao Cel. Comandante superior da câmara, requisitando auxi-
lio da Guarda Nacional sob seu comando, visto se tratar de caso previsto
no artigo 11 do código criminal, e na forma do artigo 26 do decreto 5573
de março de 1874.”42 A solicitação de uma força superior fazia parte das
estratégias locais de mobilização policial, revelando os interesses de di-
ferentes grupos poderosos locais. No caso em tela, o juiz acusa o Major
Evaristo do Amaral43 de aconselhar os intrusos para não saírem do campo

40  Autuação. Subdelegacia de Polícia do 2o distrito do termo de Santo Antonio da Palmeira.


23/09/1886. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia do ter-
mo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões (Santo Antonio da Palmeira). AHRGS.
Maço 14. Caixa 7.
41  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
42  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
43  Evaristo Teixeira do Amaral, grande proprietário de terras, comerciante e produtor de er-
va-mate nasceu em Sorocaba, em 1831. Participou da Guerra do Paraguai e foi ativo na política
local como vereador, intendente municipal e deputado provincial nos anos 1880. Coronel da
Guarda Nacional da comarca de Cruz Alta. Ligado ao partido Republicano, foi brutalmente
assassinado numa emboscada em 1892. Ver: ARDENGHI, Lurdes G. Caboclos, ervateiros e
coronéis. Passo Fundo: UPF, 2003.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 473
ocupado e que “os soldados de polícia são em maior parte empregados
no serviço particular e político do dito delegado e do major Evaristo”.44
Seguindo a leitura do processo, em setembro de 1886, a viúva, a
filha e o genro de Luiz Minho Flores já haviam abandonado o local.
De acordo com os oficiais da justiça “não encontraram nenhum deles,
nem coisa alguma que a eles pertencesse, porquanto já há muito tem-
po tinham abandonado a dita morada”.45 No entanto, Manoel Machado
Soares e seu grupo continuavam resistindo.46 Nessa ocasião emitiram um
documento de protesto contra o juiz e entregaram ao subdelegado, nestes
termos:

protestam contra a violência que se pratica, intimando-se


com a força de mandado ilegal para despejar suas proprieda-
des, porquanto nenhum dos abaixo-assinados foram ou são
prepostos ou agregados de Luiz Minho Flores, contra quem
caem unicamente a ação de despejo. Conhecendo que o juiz
que assinou esse mandado, comete uma violência, fazendo
executar uma sentença contra terceiros, que não foram ouvi-
dos nem mencionados na ação competente, protestam contra
o referido juiz venal e corrupto, que é o principal responsável
pelas consequências de semelhante violência e contra os exe-
cutores desse mandado ilegal e declaram que visto estarem
fora da lei, operam violência contra violência pois, todo o ci-
dadão tem o direito a defender suas vidas e propriedades.47

O juiz Câmara escreve que reconheceu a letra do Major Evaristo Tei-


xeira do Amaral, indicando ser ele o redator do documento de protesto

44  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
45  Relatório dos oficiais de justiça. 24/09/1886. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança
Pública. Delegacia de Polícia do termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões. AHR-
GS. Maço 14. Caixa 7.
46  Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia do termo da Palmei-
ra. Diversos. 1886. Palmeira das Missões. AHRGS. Maço 14. Caixa 7.
47  Protesto. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia do
termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões (Santo Antonio da Palmeira). AHRGS.
Maço 14. Caixa 7.

474 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


entregue pelos ocupantes ao subdelegado , “o que o torna cúmplice dos
réus”.48 Em outro trecho do processo, afirma o que a suposta invasão da
fazenda Boa Vista “teve sua origem nos perniciosos conselhos dados pelo
Major Evaristo aos ditos intrusos, somente no intuito de saciar seu ódio
contra a família Borges”.49 Estas denúncias conduzem a questão da terra
para um plano pessoal, desconsiderando a situação crítica de conflitos
instaurado pelas privatizações das terras de servidão coletiva, os ervais
públicos. Outro aspecto relevante do documento dos resistentes é que se
apresentam desvinculados do processo de despejo contra Minho Flores.
Pode ser uma estratégia jurídica ou o grupo estava reivindicando seus
direitos à terra, na qual também viviam e colhiam erva-mate.
O juiz relata ainda que o procurador da família Borges veio ao muni-
cípio acompanhado de dois oficiais de justiça e do Coronel Comandante
da Guarda Nacional da câmara, exigindo o cumprimento do mandado
de despejo. Os executados resistiram sob liderança do “cabeça Machado
e outros indivíduos, entre eles um capanga do major Evaristo, Diretor dos
Índios, com armas em punho obstaram a execução do mandado como
tudo se evidencia do auto de resistência do inquérito policial”50
Pelas declarações do juiz, a participação do major Evaristo do Ama-
ral e seus aliados se destaca como parte importante do processo, pois
atuaram ativamente na defesa dos lavradores ameaçados de despejo. Su-
postamente tal apoio envolveria relações de parentesco entre o delegado
e a família de Minho Flores.

Desde então começam a correr neste município a notícia de


que o major Evaristo do Amaral, atual Diretor dos Índios é
inimigo declarado da família Borges, em comum acordo com

48  Despacho do juiz. 30/09/1886. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Dele-
gacia de Polícia do termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões (Santo Antonio da
Palmeira). AHRGS. Maço 14. Caixa 7.
49  Correspondências da Justiça de Santo Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97.
Caixa 43
50  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 475
o delegado de polícia José Joaquim de Almeida Lisboa que
é casado com uma sobrinha carnal da ré, Dona Maximiana
de Moura Reis, estavam ajeitados para embaraçar o despejo
a toda trama, ora aconselhando os intrusos executados para
não saírem do campo dos autores.

O juiz, diante dessa situação solicita a demissão do delegado:

Peço portanto a Vª Sª pedir a Sª Exª Sr. presidente da


província a demissão do delegado de polícia Lisboa, e mandar
uma força respeitável para fazer a prisão dos sediciosos da
Guaryita e tranquilizar os ânimos em sobressalto pelo esta-
do anárquico em que se acha este termo, devido ao desprezo
com que as autoridades policias encaram as leis, e no não
cumprimento dos deveres que lhes impõe o cargo que exer-
cem”.51

Além do pedido de demissão, João da Cruz e Câmara solicita ao juiz


da Comarca de Cruz Alta “mandar uma força respeitável para fazer a pri-
são dos sediciosos da Guaryta e de tranquilizar os ânimos em sobressalto
pelo estado anárquico em que se acha este termo devido ao desprezo com
que as autoridades policiais encaram as leis”.52
Um fato que chama atenção neste conflito é a participação dos in-
dígenas Kaingang, numa condição subalterna. O major Evaristo Ama-
ral, que era o Diretor dos Índios, os conduziu para a fazenda em litígio
como forma de pressão. Talvez considerando que um dos argumentos de
Minho Flores era que as terras em questão a eles pertenceram em idos
tempos.53 Diz o juiz:

51  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
52  Oficio do juiz municipal João da Cruz e Câmara ao juiz da comarca Miguel Archanjo de
Figueiredo. AHRS Correspondência da justiça de Palmeira. 30/09/1886.
53  Os povos indígenas da região foram confinados em diversas áreas delimitadas em meados
do século XIX, através de acordos entre o governo e as lideranças. Evidentemente perderam o
território, depois de décadas de lutas, mas o confinamento em reservas foi uma alternativa para
não perder tudo. Para administrar a questão indígena o governo criou o cargo de Diretor dos

476 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


não consta oficialmente mas é pública e notório que o Dire-
tor dos Índios, major Evaristo do Amaral, fez vir dos aloja-
mentos em que se acham os bugres, além da fazenda da Boa
Vista duas léguas, grande número deles a título de eles dar
campo e passar revista, e os fez acampar junto a casa do exe-
cutado Machado, onde estiveram muitos dias acampados até
que o Tenente Silvestre, comandante da secção policial, que
[...] publicamente se jacta, os mandou retirar para seus alo-
jamentos dando lhes uma vaca para comerem e aguardente
para beberem54.

A presença dos índios seria, na opinião do juiz, uma estratégia do


Major Evaristo, Diretor dos Índios, para impedir a ação de despejo. Men-
cionando troca de telegramas com o presidente da província, Evaristo te-
ria dito que a área em litigio teria sido “aldeamento de índios e onde ain-
da residem alguns que, sem ter proposto ação alguma de despejo contra
eles, querem ilegal e arbitrariamente tocar para fora dos aludidos campos
reunindo a guarda Nacional para fazer cumprir um mandado ilegal”55
O apoio do Coronel Evaristo Teixeira do Amaral aos camponeses
ervateiros envolvidos nesse caso, revela complexidade das relações entre
diferentes grupos no mundo rural. Evaristo era um grande pecuarista,
comerciante e proprietário de engenho de erva-mate e, portanto, interes-
sado direto no fornecimento de matéria prima para seu estabelecimento.
Os camponeses extrativistas de mate mantinham sólidos contatos com os
comerciantes de mate, pois estes compravam a erva e forneciam-lhes os
produtos de consumo, roupas, alimentos, ferramentas, utensílios domés-
ticos etc.
Os documentos produzidos pelas autoridades policiais e legislativas
de Palmeira evidenciam que Evaristo Teixeira do Amaral mantinha boas

Índios, ocupado nesta data pelo Major Evaristo.


54  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
55  Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 477
relações com a família de Luiz Minho Flores e Moura Reis. O juiz comis-
sário Tibúrcio Álvares da Siqueira Fortes e Laurindo Moreira do Ama-
ral, ambos envolvidos nos processos de privatização dos ervais da região,
faziam parte de outro grupo. É significativo, nesse sentido, o relato de
uma briga generalizada entre os dois grupos, na qual o juiz comissário
Tibúrcio Siqueira Fortes tentou dar um tiro no Coronel Evaristo Teixeira
do Amaral.56
Não é possível, nos limites deste artigo, analisar detalhes sobre as
relações dos camponeses envolvidos na ocupação da fazenda Boa Vista
com os coronéis ou grandes senhores locais. No entanto, parece que o
apoio aos supostos intrusos significava consolidar seu domínio sobre seu
grupo político e ao mesmo tempo contrariar os interesses de seus adversá-
rios. A bibliografia sobre o mundo agrário brasileiro revela as complexas
relações entre grandes fazendeiros, pequenos posseiros e agregados no
século XIX, inerentes aos conflitos pela posse da terra.57
Por fim, os rebeldes camponeses se retiraram, capitulando diante do
poder judiciário e das forças policiais.

Considerações finais
Os camponeses ervateiros, com destaque para Minho Flores, no de-
correr do processo defenderam o livre acesso aos ervais públicos, regula-
mentados pelas câmaras municipais através de concessão e possibilidade
de fazer roçados. Acreditamos que essa forma de extrativismo está basea-
da na tradição e no costume construído pelos primeiros ervateiros que
adentraram as florestas para retirar a erva. Lembrando que o processo de

56  Inquérito Policial. 17/12/1886. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia. Cor-
respondência Expedida. 1881. Palmeira das Missões (Santo Antonio da Palmeira). AHRGS.
Maço 14. Caixa 7.
57  MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do
século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

478 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


coleta do mate é de origem guarani e que muitos camponeses eram seus
descendentes.
O processo de despejo da fazenda Boa Vista revela o confronto entre
a defesa das áreas de servidão pública, nos termos usados pelas câmaras
municipais, e os interesses privatistas amparados pela Lei de Terras de
1850. A luta dos ervateiros de Palmeira das Missões é diferente das lu-
tas entre pequenos posseiros e poderosos senhores de terra, tão comuns
ao longo da história do Brasil. No caso em tela, as municipalidades ao
considerar os ervais de caráter público permitiram o livre acesso ao ex-
trativismo e às roças de subsistência para milhares de camponeses. Ainda
que o Código de Posturas regulamentasse e fizesse algumas exigências,
as condições eram muito melhores do que os obstáculos da propriedade
privada. Por isso é que os camponeses em vários processos utilizaram em
sua defesa a condição de terras de uso comum dos ervais.
Em relação ao ervateiro rebelde, as evidências indicam um campo-
nês com relações familiares e sociais importantes. A capacidade de orga-
nizar equipe de lavradores sob seu comando o situam como uma espécie
de empreiteiro, líder das comitivas de coletores, comum no meio extrati-
vista. A condição de casado com a filha de um grande proprietário e lide-
rança política local, não o transformou em um homem abastado, estando
mais próximo dos camponeses do que dos senhores de terra.
Por outro lado, as relações com coronéis locais foram importantes
para organizar a resistência e impedir a ordem de despejo por um bom
tempo. Nesse sentido, a ação de despejo e a resistência camponesa este-
ve inserida na disputa de poder entre senhores de terras com interesses
políticos antagônicos, o que revela aliança eventual entre camponeses e
coronéis. Ao mesmo tempo revela a atuação dos agentes da justiça, do
legislativo e da ordem policial de acordo com seus interesses privados,
envolvendo familiares e ou aliados.
A morte do líder ervateiro, salvo melhor avaliação, ocorreu de for-
ma circunstancial, sem ligação aparente com o processo de despejo. No
entanto, a tragédia ocorreu justamente num confronto envolvendo o aces-

ZARTH,, P. A.; NASCIMENTO


ZARTH NASCIMENTO,, J. A. M. Os intrusos resistentes da Fazenda Boa Vista 479
so à erva-mate. Por fim, não foi possível esclarecer a participação dos
demais camponeses envolvidos na resistência armada, eram mais de 30
segundo um dos relatos. A substituição do líder morto por outra lideran-
ça merece uma nova investigação e ajudaria a aprofundar a história dos
conflitos rurais nessa região.

480 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


João Inácio e “seu bando”:
intrusões e a luta pela terra no norte
do Rio Grande do Sul (1927-1930)

João Carlos Tedesco


Márcia dos Santos Caron

A parte norte do estado, no início do século XX, era uma região


vista pela esfera estatal como necessária e exemplar para confi-
gurar a propriedade da terra e normatizar relações produtivas.
Buscava-se, assim, evitar os conflitos que se evidenciaram em outras par-
tes do território sulino, bem como viabilizar a produção de excedentes
comercializáveis e a apropriação privada da terra. Intencionava-se, tam-
bém, resolver a questão da intensa presença indígena por meio de aldea-
mentos, os quais denotavam controle social.
A denominada Colônia Erechim possuía, nas primeiras décadas do
século XX, uma grande extensão geográfica, com solos e topografias va-
riadas, rica em matas de madeiras nobres e em ervais nativos, bem como
um importante rio que desembocava no seu limite norte: o Uruguai. Era,
portanto, uma região de reocupação e colonização tardia em razão de
várias questões, dentre as quais a não resolução, até então, da presença
intensa de indígenas kaingang, mas que incorporava uma grande impor-
tância para a esfera pública e para o desenvolvimento econômico e con-
trole social dessa parte do estado (ZARTH, 1997).
A escolha de quem seria contemplado nesse empreendimento co-
lonizador, de controle e regramento social, era um grande imperativo.
Colonos, descendentes de imigrantes, provenientes de outras regiões do
estado, com experiência na terra, nos negócios de comércio, na explora-
ção da erva-mate e da madeira, em indústrias artesanais (moinhos, ola-
rias, agroindústrias do vinho, destilados etc.), foram os eleitos pelo estado
positivista para essa tarefa.
Zarth (1997) ressalta que a colonização oficial se deu na forma de
pequenas propriedades, destinadas aos colonos imigrantes e seus filhos,
muito pouco aos chamados nacionais ou caboclos, não obstante ter havido
várias colônias consideradas mistas. A razão do tratamento, em grande
parte diferenciado, dado aos imigrantes europeus e aos nacionais aconte-
ce porque, para o agente público promotor da colonização, os primeiros
são os encarregados do desenvolvimento agrícola, na política oficial. Já
os caboclos ou nacionais eram vistos como usuários de técnicas agrícolas
obsoletas e, por isso, atrasados e incapazes de incorporar a cultura da
produção de excedentes, ou seja, produzir para vender e, com isso, criar
toda uma rede sinérgica entre a oferta, a intermediação (comerciantes), o
processamento industrial e o consumidor.
Sendo assim, aos colonos imigrantes é delegado o papel de moder-
nizadores da sociedade, o que expressaria a simbologia do progresso so-
cial, econômico e da esfera pública (Estado). A partir da Lei de Terras
de 1850, a terra “[...] passa a ter uma nova concepção: a de ser domí-
nio público, acessível apenas àqueles que podem explorá-la na forma de
mercadoria, passando a representar, essencialmente, poder econômico”
(COSTA, 1977, p. 136). A Lei de Terras de 1850 foi um grande divisor
de águas na configuração agrária, em particular na apropriação privada
da terra no Brasil. Por meio desta lei, pretendia-se disciplinar o acesso à
terra (selecionando e vendendo), bem como impedir/dificultar a popula-
ção mais pobre e, mesmo, alguns imigrantes de se tornarem proprietários.
Depreende-se que, fundamentalmente, a referida lei, dentre os deserda-
dos da terra, dificultou ao caboclo a apropriação dessa, uma vez que pas-
sou a ser mercadoria de compra e venda.

482 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Impedidos ou dificultados de se tornarem proprietários, os caboclos
tornaram-se peões, agregados ou posteiros1 nas grandes propriedades,
nos ervais do norte do estado, nas madeireiras e balsas pelos rios, em
particular o rio Uruguai, como lavrador-meeiro nos pequenos roçados,
derrubador de matas para a preparação da lavoura junto aos proprietários
contemplados pelos projetos de colonização e/ou que se apropriaram, in-
dependentemente da mediação de colonizadoras (as formas foram mui-
tas e, em grande parte, pouco edificantes, inclusive em termos regionais).
Eles foram utilizados, juntamente com muitos indígenas, na confecção
de estradas, pontes, na definição de caminhos alternativos para encurtar
distâncias, bem como em inúmeras outras lides que revelavam saberes,
domínios territoriais, da mata e de outros horizontes do campo artesanal
e da cultura social.
Deve-se ressaltar que o caboclo, como elemento formador do povo
sul-rio-grandense, é, na maioria das vezes, ignorado; considerado uma
figura social ligada aos métodos rudimentares de agricultura e ao extra-
tivismo ervateiro; de pouca importância no progressismo que identifica
os municípios do norte do estado, planejados e constituídos sob o signo
do positivismo.
A história oficial do Rio Grande do Sul exalta os valorosos imigran-
tes, desbravadores, que povoaram e construíram a cultura e a sociedade
rio-grandense, mas raramente se referem àqueles que foram os primeiros
a labutarem na terra, juntamente com os negros e indígenas. No norte do
estado, essa representação foi enfática. A esfera pública, as colonizado-
ras, a Igreja Católica, os comerciantes, o capital industrial voltado ao se-
tor agrícola, os fazedores das histórias regionais, dentre outros elementos,
contribuíram muito para produzir essa representação.
O Partido Republicano Rio-Grandense, nas primeiras décadas do
século XX, sob a égide da filosofia borgista (governador Borges de Me-
deiros, entre 1913 e 1928), o qual foi um dos maiores representantes e fiel
executor do positivismo, difundia a proliferação da livre empresa e a acu-

1  Homem que mora no posto de uma fazenda e que vigia e/ou cuida do gado.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 483
mulação baseada no trabalho assalariado, a valorização do preço da ter-
ra, a diversificação da produção – medidas que notadamente pretendiam
a definitiva inserção do Rio Grande do Sul numa economia moderna e
eficiente, capaz de atender às necessidades de acumulação capitalista, da
qual dependia o desencadeamento de um processo de industrialização
local.
A legislação estadual entre 1889 e 1935 revelava cerca de uma cen-
tena de determinações a respeito destes assuntos, em forma de leis, atos e
decretos do governo (KLIEMANN, 1986). Acompanhando-se esta lógi-
ca, o tratamento a ser dado às questões relacionadas com a terra – meio
de produção fundamental numa economia agropecuária – não poderia
ser diferente do tratamento que era dado às demais questões, em particu-
lar as que tinham ligação com a ordem para o progresso.
É nesse cenário positivista de ordem, de progresso e da efetivação
das colonizações, dos conflitos políticos no estado (entre os defensores
de Borges de Medeiros e os da oposição, adeptos ao candidato Assis Bra-
sil), da estruturação de uma grande colonização para estrangeiros judeus
(ICA) no interior da Colônia Erechim, que surge, publicamente, as ações
e a liderança do caboclo João Inácio.
Na segunda década do século XX, essa colônia, em franco dinamis-
mo na apropriação da terra e produção por colonos de outras regiões,
revelava as contradições e a produção da marginalização dos caboclos
e pequenos camponeses (posseiros e/ou pequenos proprietários, traba-
lhadores expropriados da terra). João Inácio corporifica esse processo
de esbulho e preterimento em sua luta na constituição dos argumentos,
das estratégias de invasões, da luta armada e da insistência junto à esfera
pública para obter terra para si e para os caboclos, pequenos camponeses,
que ele julgava como os portadores natos do direito a terra.
Além do incentivo público na questão, essa parte do estado revelava
ser um espaço para amenizar o problema da pressão pela terra. Por isso,
a colonização foi desenvolvida com muito zelo e controle, porém, não
foi suficiente para evitar conflitos expressivos das suas contradições. João

484 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Inácio e seu “bando” são vistos por alguns da historiografia local como
revoltosos políticos ligados ao movimento revolucionário que convulsio-
nou a região nos anos 1923-1924, mas que, em nosso entender, é um
deliberado desvirtuamento das suas verdadeiras causas.
Entendemos (conduziremos nossa análise e argumentação) que João
Inácio e seu grupo lutavam por terra. Os documentos selecionados para
a pesquisa demonstram que muito mais do que um “reacender” do mo-
vimento revolucionário de 1923,2 a luta de João Inácio tinha o objetivo
de garantir a posse da terra em que ele, sua família e mais oito famílias
viviam na região do Vau Feio, à época, Colônia de Erechim, e mesmo em
terras da Fazenda Quatro Irmãos, colonizada por judeus (ICA).
É nesse sentido que este texto,3 um tanto genérico e panorâmico, de
caráter informativo, busca centralizar a figura de João Inácio no denomi-
nado problema agrário como expressão de suas contradições, ou seja, dos
reflexos e negatividades produzidas pela apropriação privada da terra,
dirigida pelas esferas do estado (Governo e Justiça).
Para tanto, servimo-nos de algumas fontes e recursos, tais como jor-
nais de notícias da época: Diário de Notícias, Correio do Povo, O Nacional
de Passo Fundo, dentre outros que estamparam notícias esparsas. Como
fontes documentais, utilizamo-nos de documentos do Arquivo Histórico
Municipal Juarez Miguel Illa Font (Erechim-RS); do Arquivo Particular
Castro (Erechim-RS) e do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul (Porto Alegre - RS).
Estruturamos o texto, primeiramente, discutindo sinteticamente al-
guns aspectos do processo de colonização no norte do estado com a in-
tenção de demonstrar alguns processos que produziram a exclusão de ca-
boclos e a tentativa de evitar conflitos. Posteriormente, adentraremos em
breve discussão sobre o intruso e a intrusão, seus sentidos, diversidades e
estratégias. O objetivo é identificar o cenário e as relações em que o cabo-
clo João Inácio se vê envolvido e vitimado. Na parte final, localizaremos
o líder João Inácio e seu grupo em suas reivindicações, demandas e luta
pela terra, como expressão de um macroprocesso que revela as contradi-

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 485
ções da propriedade da terra no norte do Estado, a qual, em grande parte,
foi promovida pela esfera pública.

O processo de colonização, os posseiros e as intrusões:


primeiras décadas do século XX no norte do RS

O empreendimento colonizador no norte do Rio Grande do Sul nas


primeiras décadas do século XX não foi muito diferente de outras partes
do estado, em geral, mediado, medido e viabilizado pela esfera privada
(colonizadoras), concedido e controlado pelo Estado em terras conside-
radas devolutas, baseado na dinâmica mercantil, idealizado pela filosofia
positivista, a qual via na normatização e controle da terra pela esfera pú-
blica uma forma de regramento social e modernização produtiva.
Nesse sentido, a terra passa a ser objeto de troca, inserida nas rela-
ções econômicas do estado. De um bem natural, transforma-se em objeto
de troca mercantil. Na medida em que a terra começa ganhar essa feição
capitalista, processos de exclusão são efetivados, novas concepções em
torno de seu uso, manuseio e resultados também; de uma autarquia eco-
nômica de sustento, passa a ser de excedentes comercializáveis, inclusive
como forma de pagá-la ou de compensar seu desembolso.
A Constituição de 1891 deu aos estados (federações) a possibilidade
de gerenciamento e domínio das terras que se tornassem devolutas. O
propósito positivista de Borges de Medeiros, além da centralidade políti-
ca, da ideologia evolucionista aplicada ao horizonte étnico e produtivo,
considerado, na época, moderno, era atender as necessidades de acumu-
lação capitalista para viabilizar os processos industriais. O desenvolvi-
mento agrícola seria fundamental nesse sentido, pois forneceria a maté-
ria-prima para esse setor modelar, geraria poupança interna para também
ser um mercado consumidor de produtos industriais, além de fornecer
alimentos e produtos a preços baixos nos espaços comerciais urbanos.
Por toda a região Norte do estado, no início do século XX, as Co-

486 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


missões de Verificação de Posses, as quais tinham a função de averiguar
as terras para, em geral, torná-las públicas (devolutas), acabaram sendo
uma fábrica de terras (ROCHE, 1969) para as mãos do Estado, pois havia
muitas irregularidades ou alegação dessas, o que facilitava para as mes-
mas passarem para as mãos do Estado a fim de serem comercializadas,
normatizadas em termos burocráticos e funcionais à produção agrícola,
bem como direcionadas à grande demanda existente na região Norte do
estado e, até então, em situação de insegurança. Evidentemente, essas
áreas eram, de preferência, as melhores e mais caras.
Devido a fatores de cunho étnico e de normatização, isso acabou
gerando grande intranquilidade entre os colonos (os que já habitavam
no lugar sentiram o temor de perder as terras apropriadas indevidamente
em relação às novas diretrizes de governo e os que estavam, na época,
chegando), os quais se viram sujeitos aos desmandos e à truculência dos
funcionários do Estado. Esse processo de intervenção estatal revestia-se
com a roupagem de ação moralizadora, que, na verdade, mostrou ser uma
verdadeira grilagem oficial de terras, em grande parte legitimamente ocu-
padas (KLIEMANN, 1986; ZARTH, 2002).
A Colônia Erechim, fundada em 1908, foi rigorosamente planejada
pelo diretor de Terras e Colonização do Estado, Carlos Torres Gonçal-
ves.4 Afirmamos que foi planejada pelo referido diretor, pois, mesmo sen-
do uma das últimas reservas fundiárias do estado, como já mencionamos,
deveria ser modelar no que diz respeito ao controle da esfera pública,
para evitar os problemas advindos em outras experiências de coloniza-
ção. Nesse espaço, haveria necessidade de constituir uma nova territoria-
lidade baseada no produtor familiar, em geral descendente de imigrantes
da região colonial de imigração italiana, alemã e polonesa, uma vez que

4  Carlos Torres Gonçalves iniciou trabalhos como funcionário público no Rio Grande do Sul
em 1898, época em que se tornou grande amigo de José Joaquim Felizardo Júnior, precursor da
difusão da doutrina positivista no estado. Em 1899 foi nomeado para o cargo de 2º condutor na
Secretaria de Obras Públicas, sob ordens do engenheiro João Luis Faria Santos, que por sua vez
era sucessor de José Joaquim Felizardo Júnior na direção do núcleo positivista de Porto Alegre, e
com quem estabeleceu forte amizade. Ver CASSOL, Ernesto. Carlos Torres Gonçalves: vida, obra e
significado. Erechim: Editora São Cristóvão, 2003. p. 28-33.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 487
a diretriz da política de governo aplicada à agricultura era a de produção
de excedentes comercializáveis e com novas tecnologias. Esses sujeitos
seriam companheiros de viagem da estrutura política que se desenhava
com o governador Borges de Medeiros. A produção agrícola de exceden-
tes e a venda de lotes permitiam ao estado angariar fundos financeiros.
Os imigrantes italianos, alemães, poloneses, israelitas chegaram à
região da Colônia Erechim nos primeiros anos do século XX,5 reocupan-
do as terras devolutas até então de uso dos nativos (índios e caboclos) e
também dos negros.6 Ao chegarem, demarcaram fronteiras – tempos e
espaços –, que ficaram registrados como epopeia da colonização e da mo-
dernização do Alto Uruguai, constituindo as chamadas famílias pioneiras.
A agricultura familiar nos moldes europeus passou a ser a grande
opção para esses novos princípios da esfera pública na reconfiguração do
território rural. Era vista como modelar em termos de convivência social,
geração de braços para os trabalhos na terra, difusora de dimensões cul-
turais e religiosas, bem como expressaria um novo formato de concepção
de trabalho desenvolvido de uma forma mais avançada em algumas re-
giões do mundo ocidental. Dentro dessa nova lógica, um grande contin-
gente de população do norte do estado – lavradores pobres, meeiros, pe-
quenos arrendatários, trabalhadores temporários, coletores de erva-mate,
dentre outras categorias – acabou sendo fortemente atingido pela lógica
de apropriação privada e colonizada das terras (RÜCKERT, 1997). Para
Zarth (2002), as fronteiras culturais, os estigmas, as exclusões, em razão
dessa política denominada modernizante, fizeram-se sentir de uma forma
intensa.
Houve grande mobilidade populacional de negros, índios, caboclos
e, mesmo, pequenos agricultores descendentes de imigrantes que viven-
ciavam situações de bloqueio fundiário (quantidade de terra insuficiente
para reprodução de novas unidades familiares, impossibilidade de aquisi-

5  Há registros de outras etnias/grupos migratórios, no entanto, por representarem uma minoria,


não são contemplados nos registros oficiais do município, o que mostra uma lacuna significativa.
6  Informação retirada do site oficial do município de Erechim, www.pmerechim.rs.gov.br. Aces-
so em 13 ago. 2017.

488 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ção, pressão para a migração etc.), com seu consequente empobrecimen-
to. Porém, muitos colonos descendentes de imigrantes iam se constituin-
do na região também como comerciantes, transacionando a produção
local com processos mercantis mais amplos no estado. Com isso, deter-
minados grupos sociais foram se diferenciando dos demais: caboclos,
que tinham maior dificuldades de ascender economicamente, acabavam
reforçando o estereótipo do perigo e que exigiu a normatização e controle
do Estado quando da efetivação da prática colonizadora na região.
As colônias privadas, na realidade, em termos de filosofia política de
governo, no início do século XX, não eram as mais incentivadas, ainda
que alardeadas pela diretoria de terras. O diretor de terras, Torres Gon-
çalves, fazendo parte de uma ala mais humanista no interior da filosofia
positivista, que embasava as ações de governo, lembrava que os nacionaes
estavam sendo preteridos de fato, pois “os vão gradualmente afastando,
não só como elementos industriaes inferiores (de facto o são ainda), mas
como natureza prejudiciais, corpos estranhos que não pesam financeira-
mente, e é preciso expellir” (Secretaria de Estado dos Negócios e Obras
Públicas, RGS, 1917, p. 20 e 21).
Empresas colonizadoras como a Bertei e a Sertaneja comercializa-
ram terras na recém-fundada Colônia Erechim (CASSOL, 2003, p. 27 e
28). No entanto, a Empresa Colonizadora Luce, Rosa & Cia. Ltda. e a
Jewish Colonization Association foram as que tiveram destacada atua-
ção na região. Por volta de 1915, grande parte desse processo colonizador
já estava consolidado na região e atingido seus objetivos em termos polí-
ticos, econômicos e socioculturais.
A região, que até o final do século XIX era considerada inóspita e
atrasada em relação ao restante do estado, adquiriu nova vitalidade eco-
nômica com a construção da ferrovia. Isso foi possível quer seja pelo ágil
escoamento da produção agrícola da região, quer seja pelo deslocamento
dos agricultores das “colônias velhas” em busca de novas terras e opor-
tunidades, a partir de 1907, nas chamadas “colônias novas”. “A mercan-
tilização da terra, a derrubada da mata, o plantio, a produção e a venda

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 489
de excedentes dinamizaram e fizeram evoluir a formação de núcleos que
dominaram o espaço territorial, coordenados pelos ritmos das marias-fu-
maças” (WOLFF, 2005, p. 36).
Em poucos anos após sua fundação, a Colônia Erechim gozava de
grande prestígio no cenário estadual. Os lucros advindos da produção
agrícola e da exploração da madeira, coadunados à facilidade de escoa-
mento dessas produções através da via ferroviária, em muito auxiliaram
a dinamização econômica da colônia. A propaganda do progresso e do
desenvolvimento da colônia serviu de estímulo para que imigrantes es-
trangeiros, bem como colonos oriundos das ditas “colônias velhas”, apor-
tassem às terras do Alto Uruguai, esperançosos de partilharem da fartura
e da prosperidade. Pellanda, ao falar na Colônia Erechim, expressa o
resultado positivo da colonização, a exalta na perspectiva econômica.

O seu desenvolvimento não tem ponto de comparação den-


tro ou fora de nosso Estado, posto que apenas em 8 anos
a sua população aumentou de 32.000 habitantes e a pro-
dução, que era nenhuma, se elevou no mesmo espaço de
tempo a 3.600:000$000, dos quais foram exportados
2.574:000$000. Dez anos apenas depois de fundada, e com
oito anos somente de colonização efetiva, foi elevada á cate-
goria de vila em 30 de Abril de 1918. A área total, medida e
demarcada, desta colônia era de 105.624 hectares, restando
por medir 305.640 hectares em 1912. A sua população em
1921era de 40.650 habitantes dos quais cerca de 9.000 teuto-
-brasileiros. A sua receita nesse ano já atingia 128:100$000
(PELLANDA, 1925, p. 189).

O enaltecimento da fundação da colônia, bem como o destaque


dado à produção e ao movimento econômico alcançados nos primeiros
anos, faz jus às expectativas do governo rio-grandense, comprovando
o princípio positivista de que através da ordem se alcança o progresso.
A frente pioneira, típica da introdução do capitalismo na região Norte/
Nordeste do Rio Grande do Sul, é representada pelos colonos que vão

490 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


para o mato – os “desbravadores” – e que passam a produzir a fim de
formar um mercado interno, utilizando-se de novas tecnologias. Sendo
assim, a divisão da terra em lotes, a construção de estradas, a instalação
do imigrante no mato são os primeiros movimentos da frente pioneira no
Alto Uruguai. A estrada de ferro propicia a chegada de grandes levas de
imigrantes, a montagem de uma rede de comércio e coloca o comerciante
como sujeito econômico e político central.
Esse ethos vai expressar um modo de ser, uma característica comum
que será expressa e difundida em relação a um grupo – o imigrante eu-
ropeu – e que será paradigmático nas ritualidades do progresso da região
e das políticas públicas de configuração agrária, bem como no conjunto
das relações de trabalho, na formatação das famílias como unidades pro-
dutivas e nas ações com a terra. O presidente do estado, Júlio de Cas-
tilhos, corrobora essa nova configuração da terra e da produção nessa
centralizando a figura do colono:

O colono transforma-se logo em pequeno proprietário agrí-


cola, sente de immediato bem estar na sua modesta proprie-
dade, adquire condições de fixidez normal, radica-se affec-
tuosamente ao solo hospitaleiro e fértil que lhe dá o pão para
a família e a prosperidade domestica como promto resultado
do seu trabalho honesto e fructifero, adapta-se facilmente
aos nossos hábitos, familiariza-se em pouco tempo com a
nossa língua, procura, enfim, nacionalizar-se sem nenhum
constrangimento acatando as leis e autoridades com uma
reverencia inalterável, associando-se às nossas alegrias e às
nossas mágoas, como si tivesse nascido n’esta terra privile-
giada.7

Isto posto, o papel da Companhia Colonizadora, em consonância


com o Estado, era de estimular o progresso e produzir civilização na re-
gião, até então considerada selvagem e atrasada. A mata constituía, sem

7  Mensagem do presidente do Estado do Rio Grande do Sul – Júlio de Castilhos – à Assembleia


dos Representantes em 1895. p. 24.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 491
dúvida, um grande desafio ao imigrante. Se por um lado representava a
realização do sonho de se tornar proprietário de terra, por outro trazia
consigo a insegurança de não saber como dominá-la.

Não sabíamos “fazer a roça” cortando primeiramente a vege-


tação baixa com a foice e depois as árvores, deixando secar
tudo para num dia quente incendiá-la. Atirávamos à mata
como a um inimigo, atacando-o com todas as ferramentas de
que dispúnhamos [...] (WEISS, 1949, p. 49).

No processo de incorporação da região à produção capitalista, os


índios e os caboclos foram os primeiros a serem desterritorializados pelo
modelo proposto. Por isso, eles foram se embrenhando cada vez mais
nas matas e nas barrancas do rio Uruguai, local onde até hoje é possí-
vel encontrar redutos indígenas que não aceitaram o aldeamento (como
exemplos Erval Grande, Itatiba do Sul e Mariano Moro). Muitos cabo-
clos foram se desfazendo das porções de terra que o projeto colonizador
(de colônias mistas) lhes tinha auferido.
A observação de Ducatti Neto (1981, p. 76), contemporânea à
criação da Colônia Erechim, salienta que “[...] a excelência das terras e
os favores concedidos pelo governo, atraiu, desde logo, a preferência dos
imigrantes alemães, russos, franceses, austríacos e italianos, tanto que
já em 1909, a população geral da colônia elevava-se a 206 habitantes”.
Diante disso, Torres Gonçalves dizia que “a maioria deles (nacionais)
preferia abandonar suas terras, à simples aproximação do colono estran-
geiro e seguir azares de uma vida errante e aventureira”.8
A imagem de caboclo, diferente da dos “de origem”, foi construída
pelos descendentes de imigrantes nos espaços de migração interna, com
caráter preconceituoso. Na realidade, materializaram elementos que já
vinham sendo desenvolvidos na esfera pública, nas formas de produção,
com características de uma formação social capitalista (propriedade pri-

8  Mensagem à Assembleia dos Representantes pelo presidente A. A. Borges de Medeiros. 3ª


sessão da 8ª legislatura. 29.09.1919, p. 30.

492 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


vada legitimada pelo direito, produção de excedentes, circulação mercan-
til e financeira nas relações sociais etc.), e no meio social como um todo,
sendo, portanto, expressão de um espírito do tempo.
A produção agrícola dos caboclos, prioritariamente voltada ao au-
toconsumo, seu isolamento e não fixação por muito tempo num local, a
forma como produziam na terra e usavam a mata, a pouca importância
dada à apropriação da propriedade privada e suas parcas condições para
adquiri-la, dentre outras, como características da organização social, cul-
tural, econômica e antropológica deles, promoveram diferenciações entre
os estratos socioculturais no espaço agrícola da região.

Figura 01. Definição dos estabelecimentos de colonos na Colônia Erechim


pela Comissão de Terras (1919). Fonte: AHMJMIF, Erechim/RS.

A intrusão e o intruso: resultantes da dinâmica da


colonização e da normatização do acesso à terra

As intrusões existiram no Rio Grande do Sul em pequena escala


durante o período monárquico. No entanto, durante a República Velha
avultou-se de tal forma que se constituiu num problema, enfrentado até

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 493
hoje pelo Estado: “Acredita-se que o estudo desse problema pode desve-
lar, além do exercício de dominação e das formas de resistência, a apa-
rência do que foi e é a questão de terras no Rio Grande do Sul” (KLIE-
MANN, 1986).
Intrusos eram os colonos – nacionais ou descendentes de imigrantes
– que, por não possuírem condições de adquirir terras nos moldes dita-
dos pela Lei de Terras de 1850, nem serem alvo das políticas de coloni-
zação oficiais, estabeleciam-se espontaneamente em terras devolutas ou
em terras não aproveitadas e/ou consideradas não valorizadas (ROCHE,
1969). As intrusões desafiavam a organização e a forma impressa para a
presença numa porção de terra planejada pelos positivistas, uma vez que
geravam ou poderiam ser geradoras de conflitos e desordens. Significava
descontrole e ausência do poder do Estado sobre o bem natural e sobre os
sujeitos que o apropriavam (cobrança de fisco etc.).
A intrusão e o intruso no empreendimento colonizador e na recon-
figuração da propriedade da terra no norte do estado são processos rela-
cionais complexos, dinâmicos, constantes e conflituosos (SILVA, 2016).
Ambos vão além da dimensão étnico-racial; são variadas e expressam
múltiplas situações. Porém, quase sempre estão envoltas na dinâmica da
exclusão do pequeno agricultor, do posseiro expropriado, do colono que
não conseguiu pagar o terreno e/ou foi expulso do empreendimento co-
lonizador. Ao tornar-se “intruso”, o nacional caracterizava-se como de-
sordeiro, o que não condizia com os preceitos positivistas preconizados
então no estado (FERRARI, 2015).
Esse processo de exclusão passou a fazer parte do rol de preocupa-
ções dos dirigentes do estado, visto que a exclusão alimentava a intrusão.
Ao tornar-se “intruso”, muitos, em particular os mais excluídos, como
os nacionais, tornavam-se, aos olhos do Estado, desordeiros, o que não
condizia com os preceitos positivistas preconizados da ordem como pro-
motora do progresso.
Muitos conflitos no cotidiano das relações foram sendo produzidos,
outros mais de expressão organizativa e militar aconteceram. Um exem-

494 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


plo é de um caboclo chamado João Inácio, que, entre os anos de 1927 e
1929, armou-se para garantir posse das terras que intrusava próximo à
Fazenda Quatro Irmãos, então propriedade da Jewish Colonization Asso-
ciation, companhia colonizadora particular então proprietária das terras.
Com o estabelecimento do status de terra devoluta e de coloniza-
ção, todos os que não possuíam a titulação da terra eram considerados
intrusos. Isso obrigava os ocupantes (posseiros ou não) desembolsarem
recursos financeiros para regulamentá-la. “A posse acabava sendo uma
forma de constituir-se em direito potencial à propriedade, confirmada na
própria documentação” (SEYFERTH, 2014, p. 42).
Quem não tinha condição de assim fazer, tornava-se ilegal, quan-
do não criminoso, se porventura resistisse. Em geral, as colonizadoras
inseriam esses ocupantes nas piores terras, ou “no fim da picada”, ou
seja, nas porções com dificuldade de acesso, sem água, topografia monta-
nhosa; terras que poderiam, também, tornar-se “enguiçadas”. Conforme
Renk (1995), o “enguiço” se dá em razão da presença e/ou ocupação de
camponeses considerados, a partir de então, intrusos. Outra forma de
ação das colonizadoras frente à negativa da comercialização das terras
era promover o esbulho, ou seja, limpeza da área (FERRARI, 2015).
Na compreensão da esfera pública e das colonizadoras que recebiam
a concessão para a venda dos lotes, o sistema de posses não lhes dava
o direito da terra, e na impossibilidade ou resistência em relação à sua
aquisição, tornavam-se intrusos, e eram induzidos a sair e/ou buscar ou-
tro espaço de menor valor. Silva (2016, p. 197) diz que a legislação torna
o camponês ilegítimo em seu espaço de terra. “[...] muitas dessas pes-
soas, inclusive imigrantes recém-chegados, realizavam esse movimento
sem a intermediação do Estado e suas agências, assim se estabeleceram
em terras devolutas, de propriedade particular ou indefinida”. A impos-
sibilidade financeira de muitos camponeses transformou-os em intrusos,
independentemente de sua origem social ou étnica. Se comprasse a terra
e fosse proprietário, teria seus direitos reconhecidos (FERRARI, 2015).
O expediente da violência física e moral, bem como o apelo jurídico, fa-

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 495
zia parte da estratégia das colonizadoras para a desintrusagem. Em geral,
era concedido um período que não ultrapassava sessenta dias para liberar
o lote e/ou assinar um termo de compra ou de saída.

A Colônia Quatro Irmãos: cenário de intrusões e espaço de


ação de João Inácio e seu grupo

Como vimos, na Colônia Erechim houve um grande volume de


situações de intrusão. O caso da Fazenda Quatro Irmãos foi paradig-
mático, pois, além de envolver uma colonização estrangeira para judeus
estrangeiros (Jewish Colonization Association - ICA), sua área de mais
de 90 mil hectares abarcava um extenso território no interior da colônia.
Desde seu estabelecimento, foi palco de intensas batalhas judiciais, con-
frontos, conflitos, mediações, contraposições.
A Fazenda Quatro Irmãos, fundada em caráter filantrópico pelo Ba-
rão Hirsch em 1891, tinha como objetivo principal promover a emigração
dos judeus, vítimas de discriminações e perseguições no leste europeu
e Ásia, e transferi-los para países cuja legislação lhes assegurasse uma
existência livre de discriminações (Gritti, 1997). Essa colônia tinha como
objetivo auxiliar e amparar os judeus espalhados pelo mundo que sofriam
violência e discriminação.

Assistir e promover a emigração dos judeus de qualquer par-


te da Europa ou Ásia e, principalmente, de países em que eles
eram submetidos a impostos especiais ou políticos e outras
desvantagens, para qualquer parte do mundo e formar e es-
tabelecer colônias em vários países do norte e do sul da Amé-
rica e outros países, pela agricultura, comércio e outras ati-
vidades. Para realizar estes objetivos, a Jewish Colonization
Association estava autorizada a adquirir qualquer território
fora da Europa através de governos estaduais, municipais ou
autoridades locais, corporações e pessoas (RAKOS, s/d, p.
391).

496 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


No período que antecede a Primeira Guerra Mundial, a ICA fundou
estabelecimentos destinados a reconstruir e revitalizar a infraestrutura
das comunidades judaicas na Rússia e Europa Oriental. Abriu comércio,
escolas agrícolas e fazendas modelos, subsidiou programas de aprendi-
zagens vocacionais e fundou caixas de empréstimo, onde os negociantes
judeus poderiam tomar dinheiro emprestado (GRITTI, 1997).
Para Gritti, a Jewish Colonization Association iniciou sua longa trajetó-
ria de atividades no Brasil, mais especificamente no Rio Grande do Sul
no ano de 1902. Nesse ano, a ICA comprou a primeira propriedade no
estado, uma área de 5.500 hectares, em Pinhal, no município de Santa
Maria. Esse primeiro núcleo judaico no Rio Grande do Sul foi denomi-
nado de Filipson, em homenagem ao então vice-presidente da ICA e pre-
sidente da Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil, empresa
belga arrendatária, na época, da rede da Viação Férrea do Rio Grande do
Sul (CUNHA, 1908, p. 254).
Em 1909, a Jewish Colonization Association expandiu sua área de atua-
ção no Brasil, particularmente no estado do Rio Grande do Sul, por meio
da compra de uma área de 93.985 hectares no então município de Passo
Fundo.
A localização da nova área adquirida pela ICA no estado – a Fa-
zenda Quatro Irmãos – é similar à colônia Filipson. Encontrava-se nas
proximidades da linha férrea São Paulo-Rio Grande, quando ainda em
construção, pela Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil (GRIT-
TI, 1997). Se, por um lado, o governo do estado viu na ação da Jewish a
possibilidade de concretizar alguns dos seus objetivos, como de povoar
as regiões pouco ou nada habitadas, através da imigração, por outro, po-
demos constatar uma afinidade de interesses entre a ICA e a Compagnie
Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil.
Acredita-se que Franz Filipson, vice-presidente da ICA e presidente
da Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer, na época da compra da Fa-
zenda Quatro Irmãos, não desconhecia a riqueza florestal da região, nem
a valorização que a atividade de colonização traria aos terrenos de pro-
priedade da Jewish. É o que podemos constatar se considerarmos que a

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 497
grande quantidade de pinheiros existentes na região era do conhecimento
dos engenheiros da Auxiliaire, que a partir de 1905 tornou-se arrendatária
de toda a rede ferroviária gaúcha (Gritti; Tedesco; Vanin, 2017).
Em 1912, foram instalados os primeiros imigrantes israelitas na Fa-
zenda Quatro Irmãos. Eram imigrantes vindos da colônia Argentina de
Maurício, num total de 33 colonizadores, 14 com famílias e 19 sem suas
famílias. Ao primeiro grupo de 33 israelitas argentinos, seguiu-se, após
três semanas, sessenta famílias vindas da Bessarábia. Dessas famílias,
poucas eram de agricultores preparados. Havia cinco carpinteiros, quatro
ferreiros e dois sapateiros (LESSER, 1989, p. 57).
Do grupo de 43 famílias que deixaram a Bessarábia em abril de 1913
com destino à Quatro Irmãos, Lesser faz a seguinte análise: o primeiro
grupo era composto de 307 pessoas, embora 22 doentes tenham ficado na
Rússia; os 285 que chegaram ao Brasil eram predominantemente homens
(56%), embora imigrantes solteiros estivessem incluídos no grupo, e nin-
guém viajasse sem cônjuge. A proporção por família é um pouco menor
que sete, com homens predominando 3,7 por família, 2,9 femininos. To-
das as famílias eram acompanhadas por crianças, exceto três pares jovens
(LESSER, 1989, p. 57-58).
Gritti (1997) enfatiza que uma das maiores preocupações da ICA
era com a segurança e a preservação de sua posse sobre a fazenda – uma
área total de 93.985 hectares – uma vez que desde o início da ocupação
a fazenda de Quatro Irmãos foi alvo de intrusões. Ressalva também que

a partir de 1927, a Companhia começa a se deparar com uma


nova forma de invasão. As invasões agora têm objetivo polí-
tico bem definido. Os invasores pretendem tomar posse da
área invadida. As invasões, apesar de se apresentarem osci-
lantes quanto à sua intensidade, adquirem caráter de pereni-
dade devido à constância das mesmas (GRITTI, 1997, p. 97).

498 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Figura 02. Planta do município de Erechim que identifica o território da
Fazenda Quatro irmãos. Fonte: ALBUM dos Bandoleiros - Revolução Sul-
Rio-Grandense - 1923. Porto Alegre: Kodak/Barreto & Araújo Editores,
1924, s/p. Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.

As intrusões no interior da fazenda intensificaram-se no período em


que houve contestações sobre a posse dessa. Apresentada por Francisco
Heráclito dos Santos, herdeiro do Barão dos Campos Gerais, afirmava
que a Fazenda Quatro Irmãos havia sido vendida sem seu consentimen-
to. Logo, a contestação da posse da fazenda, em agosto de 1927, apre-
senta-se como determinante nos processos de intrusão em seus limites e
entornos.
Em seu trabalho, Gritti (1997) afirma que as intrusões foram um
estratagema utilizado pelos requerentes da posse da Fazenda Quatro Ir-
mãos – na figura de seu advogado José Dario de Vasconcellos – para que
conseguissem se apoderar de parte da fazenda. Nos documentos pesqui-
sados para este trabalho, acha-se a autorização do advogado de Francis-

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 499
co Heráclito dos Santos, Dr. José Dario de Vasconcellos, autorizando a
intrusão de Ernesto Vieira da Costa, nos seguintes termos:

Passo Fundo, 31 de outubro de 1927. Ilmo Senhor Ernesto


Vieira da Costa. Amigo e Senhor. Pela presente vos autori-
zamos a fazer como agregado, uma casa de madeira nos ma-
tos da Fazenda de Quatro Irmãos e a fazer plantações. Ami-
gos e Criados. (assig.) J. Dario Vasconcellos e Angelo Pretto
(APERS. Porto Alegre, n. 456, maço 13, E 11, 1927).

Perceba-se que meses antes de haver requerido o sequestro da zona


em questão, os advogados de Francisco Heráclito dos Santos já autori-
zavam que os limites da fazenda fossem transpostos, mesmo sem terem
ordem judicial para isso. Sabe-se que a ICA tomou providências extremas
para a expulsão dos intrusos da propriedade: “[...] em 11 de dezembro
de 1927, Marinho Melotto, Severino Alves dos Santos e Jacintho An-
tônio de Borba, por ordem dos Drs. Herculano Araújo Annes e Marcos
Leitchic incendiaram a casa e destruíram tudo que havia nas adjacências
[...]” (GRITTI, 1997, p. 43); o que resultou, em maio de 1928, na prisão
do advogado da ICA Herculano A. Annes e do diretor Marcos Leitchic.
Os requerentes, após esse incidente, passaram a afirmar que estavam
sendo ameaçados em sua posse pela ICA que não reconhecia seus direi-
tos e continuava a explorar os matos e os ervais da zona em questão. O
litígio pela posse da fazenda levou ao sequestro da área, em 7 de maio
de 1928. A ordem assinada por Candido Cony, como 1º suplente do juiz
distrital, determinava:

Proceda o sequestro na posse de terras, casas e lavouras per-


tencentes a Francisco Heráclito dos Santos, situado na Fa-
zenda Quatro Irmãos, nos matos da costa do rio Facão. Fei-
to o sequestro deposite em poder de depositário idôneo [...]
(APERS, Porto Alegre, n. 97, maço 2, E 11, 1928).

Foi a partir do sequestro na zona do rio Facão que a companhia pas-

500 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


sou a enfrentar sérios problemas com intrusos na fazenda. O processo de
contestação de posse, composto de três volumes, e que foi pesquisado no
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, demonstra a preocu-
pação da direção da ICA com o vulto que tomavam as intrusões na fazen-
da, o que também é comprovado pelas correspondências trocadas entre a
sede da fazenda e a direção central da Jewish Colonization Association
em Paris (GRITTI, 1997). O sequestro da parte em litígio implicou que a
justiça nomeasse “depositários judiciais”,9 com o fim de garantir a posse
mansa e pacífica do território. O primeiro a ser nomeado depositário da
zona sequestrada da Fazenda Quatro Irmãos foi Leopoldo Costa, em 7
de maio de 1928. A ele seguiram-se João Lahn dos Reis, João Antônio de
Oliveira e Cysnando Martins (APERS, Porto Alegre.)
Todos os depositários judiciais foram contestados veementemente
pela ICA. Afirmava que todos eram patrocinadores dos diversos intrusos
que adentravam os limites da fazenda, causando prejuízos à empresa.
A companhia sempre deixava muito claro que a situação de sequestro e
litígio da posse da fazenda gerava enormes prejuízos, quer fosse pela in-
segurança que gerava entre os colonos assentados, quer fosse pela explo-
ração que os depositários judiciais e os intrusos faziam na área de matos
e ervais da fazenda – fora da área de sequestro.
Enquanto ocupou seu cargo, que seria a guarda da fazenda
cujas divisas e cuja extensão de mais ou menos 660 m de cir-
cunferência, constam nos autos de sequestro nada menos de
20 intrusos foram encaminhados por ele, e estabelecidos em
vastíssima zona. Em face dessa invasão daninha, da derru-
bada de matos, inclusive ervais, a ICA requer a restituição
de sua posse, respeitado, naturalmente, a área sequestrada
(APERS. Porto Alegre, n 97, maço 2, E 11, 1928).

A fim de comprovar que as intrusões ocorriam não apenas na área


sequestrada pela justiça, mas também em toda a extensão da fazenda, a

9  Num processo litigioso, por “depositário” entende-se aquela pessoa que deve guardar fiel-
mente a posse de determinado bem até que o Judiciário defina o fim que se dará a determinado
bem.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 501
ICA solicitou que vários colonos, moradores da Fazenda de Quatro Ir-
mãos e de ocupações diversas, fossem à delegacia para testemunhar que
os intrusos que infestavam a fazenda agiam não apenas na área em litígio,
mas em toda a extensão da fazenda.
Percebemos que essa realidade de intrusão na fazenda e na área em
litígio revela um tipo de intruso, alguém a serviço de interesses entre dois
grupos que lutavam na justiça pelo direito da terra. A intrusão incorpora
esses processos para além dos excluídos, ou seja, os pequenos agriculto-
res.
A imprensa local, em particular o jornal O Nacional de Passo Fundo,
divulgava que os colonos judeus da Fazenda Quatro Irmãos foram agre-
didos, e suas colônias saqueadas; principalmente no final do ano de 1928,
período em que se sucederam os maiores conflitos na Fazenda Quatro
Irmãos. Ao lerem-se os depoimentos dos colonos que depunham, perce-
be-se que nenhum era judeu. Isso demonstra um certo protecionismo da
companhia em relação aos colonos judeus que por essa foram assentados,
na medida em que não os envolvia na disputa judicial e, consequente-
mente, não os expunha aos comentários da imprensa.
Mesmo assim, num instrumento jurídico produzido pelos autores
da ação, Francisco Heráclito dos Santos e outros, datado de 23 de junho
de 1930, afirmavam que as terras adquiridas pela ICA eram parte da qual
eles não foram indenizados, nem por inventário, nem por dinheiro, por
isso mesmo sendo passível de sequestro. E completaram, em letras garra-
fais: “É essa parte que os judeus, no seu hábito milenário de se apropriar
do alheio, QUEREM PARA SI.”10
A batalha judicial para garantir a posse da Fazenda Quatro Irmãos
estendeu-se até 11 de junho de 1931, quando a justiça determinou que a
fazenda era legitimamente da ICA.
Segundo Gritti, Tedesco e Vanin (2017), havia, na concomitância
de instalação de imigrantes israelitas nos domínicos da ICA, a constante
ocupação de sua propriedade por colonos em busca de terras. No primei-

10  O documento foi transcrito na íntegra. As letras garrafais fazem parte do texto original.

502 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ro período, de 1927 a 1929, época em que as intrusões passam a ter um
caráter político bem definido. Essas estão ligadas à contestação da posse
da fazenda; e o período de 1948 a 1950, momento em que as discussões
chegam até a Assembleia Legislativa do estado e a desapropriação da
própria é proposta.
Nesse contexto, como medida de proteção à sua propriedade, a ICA
decidiu organizar um grupo de homens “chefiados pelo comissário da
Secção para policiar os limites da Fazenda, principalmente nos pontos de
mais fácil penetração e nos lugares mais ricos” (Jornal O Nacional, Passo
Fundo, 3 nov., 1928, p. 2).
As preocupações com a defesa da colônia frente aos intrusos, a di-
reção toma a decisão de usar da própria força para defendê-la. O aviso
publicado na imprensa assim atesta:

Chegando ao nosso conhecimento que certos indivíduos,


instigados por terceiros, pretendem invadir a Fazenda Qua-
tro Irmãos, estabelecendo posses clandestinas, levamos ao
conhecimento público que faremos no caso aplicação do
artigo 502 do Código Civil que diz: o possuidor turbado, ou
esbulhado poderá manter-se ou restituir-se por sua própria
força, HICEM: Três sociedades filantrópicas, HIAS (Hebrew
Imigration Aid Society) de Nova York, ICA (Jewish Coloniza-
tion Association) de Paris e Londres e durante algum tempo,
EMIGDIREKT (Emigrations-Direktion) de Berlin formaram
em conjunto a HICEM para auxiliar os judeus em sua emi-
gração da Europa para diversos países contanto que o faça
logo. Prevenimos mais que nas zonas ameaçadas se encon-
tram empregados nossos encarregados de evitar a invasão
(Jornal O Nacional, Passo Fundo, nov. 1927).

A ICA lançou mão de diversos dispositivos para evitar confrontos e


recorreu ao chefe de polícia em Porto Alegre para que tomasse providên-
cias:

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 503
Nós temos recorrido às expulsões judiciárias e destruição de
ranchos, construídos pelos intrusos, mas estes têm começa-
do a praticar outro sistema: sendo expulsos de um lugar, eles
se transportam para outro, e os novos intrusos ocupam os lu-
gares evacuados; nós temos obtido menos de 60 restituições
judiciárias, cujo resultado é, por assim dizer, nulo. No último
tempo, o número de intrusos começou a aumentar de uma
maneira inquietante atingindo atualmente 200 (ICA, 1930,
apud Gritti, 1997, p. 99).

Em resposta efetiva, o chefe de polícia de Porto Alegre, no início


de 1931, enviou soldados da Força Pública com o intuito de proteger a
colônia e expulsar os intrusos, “para que não se possa acusar em seguida
nossos amigos chefes de polícia do município do delito de abusar dos
poderes” (GRITTI, 1997, p. 100).
Os policiais não podiam permanecer ad infinitum no local, por isso,
as intrusões, os processos judiciais, as estratégias de ocupação foram in-
tensas por vários anos, até início da década de 1950, fato que chamou
a atenção da Assembleia Legislativa do estado, no sentido da discussão
sobre a desapropriação ou não da referida fazenda. Em junho de 1948, a
Assembleia Legislativa aprova a solicitação para que o Governo do Esta-
do avalie a possibilidade de desapropriar a área.
Esse fato ocorreu em razão de uma nova invasão comandada por
José da Rosa Sutil, o “Capitão Belo”, o qual intencionava a distribuição
gratuita dos terrenos ocupados, pois dizia:

Que a terra por ele e seu bando ocupada não é ‘bem legal’ ou
que o registro está viciado, portanto, posse duvidosa e, como
tal, é terra ‘de todos’ que deve ser partilhada entre os atuais
ocupantes. Mas, admite, também, que é terra particular que
ao Estado cabe desapropriar ou comprar para distribuir ou
vender baratinho, sem prazo e sem quotas determinadas de
pagamento (Anais da Assembleia Legislativa do RS, 1949, p.
30).

504 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Segundo Gritti, Tedesco e Vanin (2017), a desapropriação da área
intrusada que pertencia ao município de Getúlio Vargas (emancipado de
Erechim em 1934) não se concretizou, pois a comissão encarregada de
estudar a questão e que era composta pelos deputados Raymundo Fiorelo
Zanin e Godoy Ilha, ambos representantes da região de Erechim, e do
engenheiro agrônomo José Martins, elemento indicado pelo Governo do
Estado, chegou à conclusão de que o alto valor da terra no local deter-
minaria a desapropriação por elevado preço, que somado às custas etc.
oneraria demasiadamente o Estado. Além disso, abrir-se-ia um perigoso
precedente: imediatamente, do dia para a noite, nova área seria intrusada
para forçar o Governo do Estado a novas desapropriações e, assim, até a
desapropriação de toda a área da fazenda, bem como das propriedades
vizinhas.

Venderá terras aos atuais intrusos de suas terras, desde que
o candidato tenha condições financeiras ou credenciais para
garantir o pagamento a prazo. Quanto aos que não dispuse-
rem de meios ou possibilidades de pagamento à vista ou a
prazo, serão retirados da área intrusada, cabendo, ao Estado,
promover a sua locomoção, bem como promover a remoção
dos intrusos que não puderem ou não quiserem adquirir ter-
ra por compra na área intrusada (Anais da Assembleia Legis-
lativa do RS, 1949, p. 545-546).

No processo de contestação de posse da fazenda, que se encontra


no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, são abundantes os
documentos – datados já de 1930/1931 – onde a ICA apresenta testemu-
nhas que comprovam que as intrusões continuavam a dificultar a vida dos
colonos assentados nas terras da Fazenda Quatro Irmãos. Nesses docu-
mentos, os depoimentos dos colonos, que falavam a favor da Companhia,
são contundentes em afirmar que a região de Quatro Irmãos continuava
cheia de intrusos. Além de confirmar que os intrusos se estabeleciam fora
da zona de sequestro, afirmavam que os intrusos vinham armados de fu-
zis, winchester e outras armas. O motivo de se instalarem na fazenda era

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 505
fazer roças e preparar-se para o corte da erva.11 Comprova-se, assim, que,
mesmo com a saída de João Inácio da região, os conflitos continuaram,
havendo serenado apenas depois de 1931, quando a ICA garantiu, de fato
e de direito, a posse da Fazenda Quatro Irmãos.

“Um bandoleiro e novo caudilho” no norte do RS


João Inácio tornou-se paradigmático, no final da década de 1920,
na questão da intrusão e na luta pela terra junto à ICA e ao seu entorno,
em particular na Fazenda Sarandi. Vários estudiosos da Colônia Ere-
chim o referenciaram.12 João Frainer o descreve como “novo caudilho”
(Frainer, 1936), correlacionando-o com a figura de Gaudêncio dos San-
tos, contemporâneo seu e que foi chefe revolucionário, que lutou ao lado
dos maragatos na região do Alto Uruguai. Até o ano de 1927, quando
foi apresentado ao coronel Candido Pinheiro Barcellos, João Inácio era
desconhecido. Em entrevista concedida ao jornal Correio do Povo de Porto
Alegre, em 17 de novembro de 1929, João Inácio contou sua história. Ele
começou contando de onde veio,

Morávamos na colônia Sarandy, e tendo, em 1923, explodido


a revolução, para não aderirmos, fomos, aos poucos, nos reti-
rando até que em 1924 viemos para o município de Boa Vis-
ta do Erechim, onde ficamos 8 famílias, morando. Tratamos
logo de nos colocar, e para isso nos instalamos em terras per-
tencentes a uns judeus, e arrendadas, posteriormente à nos-

11  APERS, Porto Alegre, n. 391, maço 12, e. 11, 1928. Os depoimentos citados foram feitos
por Miguel Vieira dos Santos, João Barroso e Anaurelino Rodrigues da Silva, em 17/06/1930.
Foram inquiridos sobre os intrusos armados que infestavam a fazenda Quatro Irmãos. Além dos
citados, há depoimentos de, pelo menos, mais vinte colonos, todos “brasileiros”, falando sobre
os intrusos.
12  João Frainer; Chico Tasso – pseudônimo do Pe. Benjamin Busato; Juarez Miguel Illa Font;
Antônio Ducatti Neto. Ernesto Cassol escreveu um artigo para a revista Destaque, em 1981,
intitulado “Tapir e Vau feio – a definitiva expulsão do posseiro” tratando especificamente desse
tema.

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sa chegada, a João Pedro Barbosa, vindo de Lagoa Vermelha
(Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 17/11/1929, p. 6).

Rückert traz dados relevantes para a análise do depoimento de


João Inácio; afirma que a Fazenda Sarandi, tanto durante a revolução
de 1923 quanto após o acordo de Pedras Altas, foi território de muitos
embates entre caboclos e as forças oficiais do Estado, que estavam
ao lado da companhia colonizadora.13 A expropriação dos caboclos
da Fazenda Sarandi, de acordo com Rückert, foi um caso exemplar
no que diz respeito à expropriação e marginalização dos camponeses
caboclos, ditos intrusos.

A história oficial não guarda a trajetória da expropriação da-


queles que são expulsos de suas terras. No entanto Vencatto
(1988) apresenta-nos uma versão acerca da expropriação dos
caboclos das terras de matas na Fazenda Sarandy no decor-
rer e após os fatos relativos à Revolução de 23. Apesar de o
autor não explicitar quais as fontes e técnicas de pesquisa
que utilizou (o que pode concorrer para dificultar a susten-
tação da veracidade dos fatos que apresenta), sua vêrsão, até
o momento, parece ser, senão das poucas, a única sobre a
expropriação dos caboclos na Fazenda Sarandy durante a Re-
volução de 23 e a medição e colonização das terras de mata
da área (RÜCKERT, 1997, p. 129).

O depoimento de João Inácio coincide com a delimitação espaço


temporal definida por Rückert na expropriação dos caboclos da Fazenda
Sarandi. João Inácio diz que foi se afastando da Fazenda Sarandi para
não tomar parte na revolução de 1923, saindo definitivamente em 1924,
ano em que, de acordo com Rückert (1997, p, 132), os caboclos foram
expulsos com grande violência e alto índice de mortandade, “[...] sendo
costume levar à sede da companhia – em Sarandi – as orelhas dos cabo-

13  Segundo Rückert, a implantação da colonização particular na Fazenda Sarandi se dá a partir


de 1917, pelos uruguaios Lapido, Mouriño e Mailhos.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 507
clos assassinados, trabalho que é recompensado pelo número de pares de
orelhas cortadas”.
É importante ter presente que, no início da década de 1920, princi-
palmente durante os eventos da Revolução de 1923, a pecha de “bandolei-
ros” recaiu sobre muitos dos elementos revolucionários sul-rio-granden-
ses que se levantaram em oposição à perpetuação de Antonio Augusto
Borges de Medeiros na Presidência do estado do Rio Grande do Sul,
eleito para o quarto pleito seguido, em 1922. Os descontentamentos com
a política estadual englobavam uma série de reivindicações de diversos
revolucionários, bem como a diversidade daqueles que fizeram oposição
armada às forças da Brigada Militar.
Ainda durante o período eleitoral de 1922, no norte do Rio Grande
do Sul, noticiava o jornal A Federação as diligências do bandoleiro Simeão
Machado, que anteriormente aos acontecimentos que se descerravam, já
havia tentado depor o sub-intendente do 6º distrito de Passo Fundo, pró-
ximo à sede da Fazenda Sarandy. Revolucionário da guerra-civil Fede-
ralista de 1893, Simeão Machado, junto ao deputado federalista Arthur
Caetano da Silva, uma das principais vozes da Assembleia da oposição
ao borgismo, foram responsáveis por reunir naquele distrito população
engajada na luta contra o governo estadual.
Nas matas daquela fazenda, latifúndio pertencente aos irmãos uru-
guaios da família Lapidos, Simeão reunira cerca de 400 famílias14 de ca-
boclos emigrados do Contestado, que estavam a intrusar a área e impossi-
bilitar a entrada dos proprietários. A reunião e armamento da população
em significativo número, colocava de sobreaviso as autoridades do muni-
cípio no sentido de instaurar o temor de um novo episódio de conflito se-
melhante ao que houvera ocorrido no Oeste de Santa Catarina e Paraná:

Teme-se e affirma-se que o Sarandy será um futuro contestado de


Santa Catharina, si não se tomar as providencias a respeito. [...].

14  A FEDERAÇÃO. O Pleito presidencial no Estado. Porto Alegre, n. 05, 05 jan. 1923, p. 01-02.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/
docreader/388653/50197. Acesso em: 12 jan. 2019.

508 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Dous dias antes da eleição, Arthur Silva seguiu para o Sarandy e,
auxiliado por Simião Machado e João Bento, conseguiram armar
trezentos homens, não eleitores, afim de “salvar o Rio Grande
pelo voto livre”. Todos os caboclos iam armados, com uma car-
roça carregada de munição, dizem que fornecida por Fidencio de
Santa Catharina; as “tropas” de Caetano levavam um estandar-
te vermelho, “os legionários da liberdade”, uma fita encarnada
no chapéo. Acamparam nas proximidades da séde do Sarandy
e mandaram o seguinte ultimatum ao coronel Faustino Silveira,
delegado de policia [de Passo Fundo] e que fôra sómente com a
sua ordenança, dirigir a eleição nesse districto [...]15

A passagem da notícia de jornal denota a ligação existente entre al-


guns dos revolucionários de 1923 e sobreviventes da Guerra do Contes-
tado (1912-1916), afirmando o destino provável de vários integrantes do
movimento de luta pela terra na região de litígio e sua posterior situação
de intrusos em um dos maiores latifúndios da região norte do estado.
Alguns dos líderes sobreviventes do Contestado, como Zeca Vacariano
e Fabrício das Neves16, juntaram-se à oposição e arregimentaram suas
respectivas tropas em prol da causa federalista.
Condicionar também todos os caboclos à condição de “rebeldes do
Contestado”, talvez tenha sido também uma maneira de desmerecer a
ocupação irregular da fazenda; muito provavelmente a população cabo-
cla da região também estivesse contemplada entre os intrusos da Fazenda
Sarandy. Simeão, ao que parece, foi um dos articuladores das agitações
assisistas, juntamente com João Inácio, naquele distrito de Passo Fundo e
o principal agregador da população cabocla para dentro da área de mata
da fazenda, o que revela um fluxo considerável de pessoas reunidas em
torno, senão da mudança política na governança do estado, certamente
na tentativa de fazer-se legitimar em um espaço de ocupação.

15  Idem.
16  A FEDERAÇÃO. Soledade. Porto Alegre, n. 27, 31 jan. 1923, p. 04. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/388653/50388.
Acesso em: 12 jan. 2019.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 509
As diligências de Simeão Machado mantêm-se sendo noticiadas
pelo periódico castilhista, principalmente em sua atuação na Revolução
de 1923, quando coordena ataques a sede do distrito de Sarandy, “rou-
bando então armas, munição, chapéos, capaz, roupas feitas e até cavallos,
internando-se após nos matos da fazenda”17, onde também cometeram
assassinatos18, motivando a reação de colonos instalados em Erechim e
Nonoai, que armaram-se e juntaram-se às forças legalistas no combate
aos bandoleiros e suas depredações19. Sobre o paradeiro de Simeão Ma-
chado após o conflito, poucas informações pudemos apurar, assim como
acerca dos ex-integrantes do movimento do Contestado em intrusão no
norte do Rio Grande do Sul. Após a pacificação do movimento revolu-
cionário de 1923, depredações continuaram a ser registradas por elemen-
tos “bandoleiros”, remanescentes do movimento que não se renderam às
ordens de cessar fogo e aos acordos de paz. Nos distritos do município
de Erechim, entre os anos de 192520 e 1927, são recorrentes os pedidos de
aumento da força policial para o combate do banditismo que se mantinha
atuante nas regiões mais distantes do centro do município, em lugares de
mata ou de difícil acesso, bem como à colônia Quatro Irmãos.21 É nesse
cenário de conflitos e tensões políticas no interior e no entorno da Fazen-
da Sarandi que João Inácio também se destaca.
Na entrevista ao jornal Correio do Povo, João Inácio revela informa-
ções que são importantes para se compreender a posterior ação que irá

17  A FEDERAÇÃO. Passo Fundo. Porto Alegre, n. 102, 02 maio 1923, p. 03. Hemerote-
ca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/50957. Acesso em: 12 jan. 2019.
18  A FEDERAÇÃO. Sediciosos em dissolução. Porto Alegre, n. 105, 07 maio 1923, p. 03. Heme-
roteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/50980. Acesso em: 12 jan. 2019.
19  A FEDERAÇÃO. Notícias de Passo Fundo. Porto Alegre, n. 109, 11 maio, 1923, p. 03. Heme-
roteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/51007. Acesso em: 12 jan. 2019.
20  Telegrama enviado pelo intendente do município de Boa Vista do Erechim, Pedro Pinto, ao
presidente do estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros. Boa Vista do
Erechim, 05 nov. 1925. AHRS. Fundo Câmaras Municipais.
21  Telegrama enviado pelo intendente do município de Boa Vista do Erechim, Pedro Pinto, ao
presidente do estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros. Boa Vista do
Erechim, 1925. AHRS. Fundo Câmaras Municipais.

510 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


desempenhar: vieram em famílias (oito famílias) e se instalaram em terras
pertencentes a uns judeus, e que posteriormente foram arrendadas [...] (Jornal
Correio do Povo, Porto Alegre, 17/11/1929, p. 6). Essas informações são
também encontradas no arquivo particular organizado por Aldo Castro.
Nesse arquivo encontra-se um memorial enviado ao presidente do estado
do Rio Grande do Sul, Getúlio Dorneles Vargas, em 27 de dezembro de
1928, o qual diz que João Inácio ocupava desde muito tempo as terras na
Fazenda Quatro Irmãos com o consentimento tácito da Companhia. Implica
dizer, então, que após sair da Fazenda Sarandi em 1924, João Inácio foi
se estabelecer na região do Vau Feio, ocupando também terras pertencen-
tes à Jewish Colonization Association. É importante pontuar que a região
denominada Vau Feio foi limítrofe da Fazenda Quatro Irmãos.
As primeiras referências às ações incomuns na Fazenda Quatro Ir-
mãos na imprensa local são de novembro de 1928. Atente-se para que,
nessa época, a ação de contestação de posse movida por Francisco Herá-
clito dos Santos contra a ICA desde 1927, conforme vimos anteriormen-
te, chegava ao ápice, com o decreto que determinou o sequestro de parte
da fazenda chamada Linha Facão. Em primeiro momento, não se encon-
tra referência a nomes dos causadores das desordens que ocorreram, nem
às agressões. A imprensa de Passo Fundo assim descrevia:

Situação anormal em Quatro Irmãos


Ultimamente, de um mez e meio pra cá, se tem registrado em
Quatro Irmãos diversos e extranhos attentados á pessoas e bens
de seus moradores. No mez passado, ao regressar para a sua resi-
dencia, em companhia de uma filha, foi agredido na estrada, por
indivíduos a cavallo, e espancado o colono Leon Tabachnanki.
Dias depois, o colono Jacob Hockstein soffreu identica e barbara
agressão.
No dia 4 do mez p.p. diversos indivíduos armados de fusil e facões
ameaçaram a família do colono José Miguel Glock, em sua própria
casa.
Em 10 do p. findo, o colono Ignácio Mermenstein, ao regressar da
igreja para sua casa, foi também atacado por dois salteadores em-

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 511
boscados no matto e estupidamente espancado, espesinhado por
patas de cavallo, ficando com o hombro direito deslocado. Os co-
lonos Jayme Fligel e Isaac Raski, á noite também ao regressarem
ao lar, tiveram identica aggressão desses bandidos.
De todos esses factos foram lavrados autos de corpo de delicto, ao
que nos informaram.
Disse-nos, quem nos deu essas informações que os próprios trens
do ramal ferreo da Jewish têm sido alvejados, sendo que uma noi-
te foi obstruída a linha com o fim de sinistrar o comboio.
[...]
Em vista desses factos de selvajeria e banditismo mais desenfrea-
do, determinou o dr. Desembargador Chefe de Polícia ao Dr. Pra-
do Sampaio, sub-chefe de polícia desta região, que investigasse so-
bre o assumpto aconselhando as medidas repressivas necessarias.
Sabemos que o inquerito foi terminado, sendo os autos remettidos
a chefatura de policia em Porto-Alegre (Jornal O Nacional, Passo
Fundo, 01/12/1928).22

A partir de setembro de 1927, passaram a ser constantes na imprensa


– tanto local quanto em nível estadual23 –denúncias contra “desordeiros”
que agiam nas proximidades da Fazenda Quatro Irmãos. Um jornal do
Rio de Janeiro, em setembro de 1927, denunciava a presença de bandolei-
ros no norte do Rio Grande do Sul, chefiados “por um tal João Inácio”.
Descrevia o jornal que batalhões da Brigada do Estado foram designadas
para Erechim, para a região do Vau Feio, “onde encontravam-se embre-
nhados nas matas, 9 homens e 3 rapazes, com 22 mulheres e 20 crian-
ças. O grupo obedecia à chefia de João Inácio”. O jornal dava ênfase ao
trabalho de controle dos conflitos pela terra do governador Borges de
Medeiros.24

22  Importante informar que o jornal O Nacional de Passo Fundo, tinha em sua direção o Dr.
Herculano Araújo Annes, advogado da Jewish Colonization Association no processo de contestação
de posse da fazenda
23  Os jornais pesquisados são Diário de Notícias, O Boavistense, Sul Brasil, Comércio, O Nacional,
Gazeta. Todos os recortes encontram-se na coleção “Subsídios para a História de Erechim”,
compilados por Aldo A. de Castro e parte do arquivo particular da família Castro.
24  O JORNAL. Procurando normalizar a situação em Erechim. Rio de Janeiro, n. 2684, 04 set. 1927,

512 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Em dezembro de 1928 teve início o envio de tropas da Brigada Mili-
tar, a fim de debelarem o grupo de desordeiros. A repressão a esses indi-
víduos pretendia ser exemplar:

Nestes últimos dias agravou-se a situação do município de


Erechim. O grupo de bandoleiros referidos no telegrama acima
renovaram as suas incursões pelo município, tendo assaltado
a Fazenda Quatro Irmãos. Em vista disso, a chefia do Estado
tomou enérgicas providências para restabelecer a tranquilida-
de em Erechim. Assim é que ontem seguiu desta capital, em
trem especial para Erechim, um contingente de Brigada Militar
composto de 103 praças, sendo 48 do grupo de metralhadoras.
Comandando essa força especial, seguiu o capitão Annibal
Kintznel.
A oficialidade foi composta dos tenentes Alberto Barcellos,
Anato Feio, Tácito dos Santos, Aureliano Gomes e Hugo Be-
lenzanni.
De outros pontos do Estado tem também seguido para Ere-
chim, forças da Brigada (Diário de Notícias, 14/12/1928).

Veja-se que não há referência a determinado grupo ou nomes de


chefes que estariam à frente dos “bandoleiros”. Segue o relato do jornal
na ação das forças de repressão do estado:

Embarque de força
Seguiram ontem, para Erechim, os srs. Major Joge Pellegrino
Castiglione, 2ºs tenentes Pompílio Quites, Júlio Figueira e
Vicente Alves da Silva e 50 praças do 1º regimento de cavala-
ria da Brigada Militar aqui aquartelado.
Essa força vai a fim de se incorporar a outras que se acham
naquela região, com o objetivo de operarem contra o grupo
de salteadores que infestam aquele município, consoante se

p. 32. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.


bn.br/DocReader/110523_02/33724. Acesso em: 12 jan. 2019.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 513
vê do nosso serviço telegráfico de hoje (Sul Brasil. Santa Ma-
ria, 13/12/1928).

A referência mais contundente ao nome de João Inácio surge no


jornal Correio do Povo, de 14 de dezembro de 1928. A notícia diz que o
grupo era formado de “[...] mais de cem homens, bem armados e muni-
ciados [...]” (Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, p. 8). Diversos confron-
tos aconteceram entre as forças da Brigada e os “bandoleiros”, sem que
o grande contingente de oficiais conseguisse pôr fim às atividades desses.

A situação em Quatro Irmãos


Continuam a fervilhar boatos sobre a situação de Quatro-Ir-
mãos; entretanto não se sabe, ainda de certo, sobre as opera-
ções militares empreendidas pelo governo do Estado, contra
o grupo de bandoleiros que infesta os matos daquela região.
Mesmo no povoado de Quatro-Irmãos as notícias são vagas,
parecendo que se guarda sigilo sobre o desenvolvimento das
ocorrências.
Para Palmeira veio da capital do Estado um destacamento
de 50 praças da Brigada Militar, o qual, depois de reforçado
por elementos civis, em regular número, dirigiu-se para as
margens do rio Passo Fundo. Crê-se que se pretende, por ali,
cortar a possível retirada dos bandoleiros para Nonohay.
A pedido da Jewish Colonization Association, foi destacado
no povoado um contingente de vinte homens da Brigada Mi-
litar, a fim de guarnecê-lo, pois temia ali um ataque inespe-
rado. Esse destacamento é comandado por um oficial (Jornal
O Nacional, Passo Fundo, 19/12/1928).

Todos os artigos anteriormente citados fazem referência aos bando-


leiros na região de Erechim. No entanto, no jornal Nacional de Passo
Fundo, as notícias sempre se referem especificamente à Quatro Irmãos.
Sabe-se que Herculano A. Annes, diretor do jornal, era o advogado da
ICA na ação de contestação de posse da fazenda. O pedido de guardas
na sede da fazenda, citado pelo jornal, confere com o pedido feito no pro-

514 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


cesso de contestação, onde a ICA solicita guarda para garantir a “posse
mansa e pacífica” fora dos limites determinados pelo sequestro de posse
da zona próxima ao rio Facão.25
Ainda em dezembro, uma comissão do Partido Libertador (PL) lo-
cal encaminhou-se a Porto Alegre a fim de conferenciar com o presidente
do estado sobre a situação em Erechim. Ocorria que um grupo do Par-
tido Republicano Rio-Grandense acusava os integrantes do PL local de
envolvimento com João Inácio. Relembravam que os membros do Par-
tido Libertador tiveram parte na apresentação de João Inácio, em 1927,
ao 2º B. I. e que o movimento de João Inácio teria se “levantado” graças
aos discursos inflamados dos libertadores. Os membros do PL local dei-
xaram em mãos do presidente do estado um Memorial26 no qual falavam
dos episódios do Vau Feio nos seguintes termos:

CASO JOÃO INÁCIO


[...]
Sabendo a Aliança Libertadora que, no caso, não se trata-
va de revolucionários, e sim de miseráveis patrícios que se
escondiam nos matos por terem sido perseguidos e tocados
de suas casas que também foram queimadas, - no intuito de
pacificar o município, propôs ao governo do Estado fazer a
apresentação de João Inácio e seus companheiros, removida
ou dissolvida a força irregular e enviando para Boa Vista do
Erechim um contingente da Brigada efetiva.
[...]
Afinal, em 3 de agosto de 1927, tinha lugar, nas margens do
Rio Erechim, a apresentação daqueles que eram acusados de
revolucionários, ao todo nove homens e três meninos. Des-
de então, periodicamente, fazia a situação circular boatos no
sentido de fazer criar um novo levante de João Inácio, boatos
esses sempre desmentidos.

25  Uma análise detalhada dos processos judiciais que envolveram a Colônia ICA está em nos-
so texto. Ver TEDESCO, João Carlos; CARON, Márcia. Intrusões no Alto Uruguai gaúcho: o
caso do bando de João Inácio. Revista Estudos Ibero-Americanos (PUCRS), v. 38, p. 161-185, 2012.
26  Cópia do memorial encaminhado a Getúlio Vargas que se encontra arquivado na obra de
Aldo A. Castro. Foi nesse compêndio que se teve acesso ao memorial, ali reproduzido na íntegra.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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[...]
Ultimamente surgem notícias de depredações e assassinatos
na zona de Vau Feio, atribuindo-se a autoria deles a João
Inácio e seu grupo. O governo de v. exa. fez seguir forças para
o local para fins repressivos, as quais, segundo as recentes
notícias, destroçou com aquele grupo. Não queremos ab-
solutamente defender João Inácio e sua gente, mas temos
razões que assentam naqueles antecedentes, para vacilar
em crer na apregoada origem desses acontecimentos. Não
duvidamos, entretanto, que João Inácio e sua gente se te-
nham deixado influenciar por alguém, visto como sabemos
que aquele, ultimamente, tinha entendimento com várias
pessoas. Em outubro do corrente ano, esteve ele em Passo
Fundo, onde teve um entendimento com o advogado Dr. Da-
rio de Vasconcellos e Souza, que com os senhores Manoel
Maia e Angelo Preto, mantém uma demanda em torno da
parte da fazenda Quatro Irmãos, com a companhia Jewish
Colonization Association. Nessa ocasião, sabemos que João
Inácio recebeu daquele advogado uma carta habilitando-o
como agregado de seu constituinte nas terras por ele (João
Inácio) desde muito ocupadas com o consentimento tácito
da Companhia. [...]
Boa Vista do Erechim, 21 de dezembro de 1928 (grifo nosso).

No texto grifado, fica claramente expresso que o propósito de João


Inácio não era reavivar o espírito da referida revolução, até porque tanto
uma quanto a outra possuíam conotações diversas. O que pretendia João
Inácio e sua gente era garantir, de forma pacífica ou não, a área de terra
que ocupavam no Vau Feio, mesmo dentro dos limites da Fazenda Qua-
tro Irmãos.
Em tom quase irônico, Castro deixa entender que todos os fatos que
ocorreram naquele final de 1928 e que estavam sendo todos atribuídos a
João Inácio e sua gente, dificilmente poderiam ser somente de sua auto-
ria, tanto assim que em 19 de dezembro de 1928 seguiram para Vau Feio
as tropas enviadas pelo governo. Eram em torno de trezentos homens

516 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


armados, que deram com-
bate a João Inácio e sua
gente.
Os jornais diziam,
então, que havia sido des-
troçado o bando de João
Inácio, havendo morrido
seis homens e uma mu-
lher do grupo. Em contra-
partida, apenas um solda-
do havia chegado a óbito.
Os demais indivíduos do
grupo teriam se embre-
nhando na mata para fu-
gir da morte (Jornal Cor-
reio do Povo, Porto Alegre,
20/12/1928). A manche-
te do jornal anunciava
que, “em um assalto, as Figuras 03 e 04. Acima, o Coronel Emiliano do
forças da Brigada Militar Nascimento em viagem ao Vau Feio, em agosto de 1927.
Abaixo, João Inácio (à direita, de camisa branca) e seu
destroçaram o bando de grupo na região do Vau Feio, em agosto de 1927.
Fonte: Arquivo Particular Castro. Erechim/RS.
João Inácio. Considera-se,
com isso, virtualmente ex-
tinto o movimento”.
O jornal A Federação, órgão do governo do estado, demonizava a
figura e o bando do João Inácio. Várias matérias em 1928 foram estam-
padas nesse sentido. Numas dessas, dizia o jornal: “João Inácio, ex-re-
volucionário, nos últimos tempos vem praticando saques, depredações e
assassinatos [...]. O bando de fascinoras compõe-se de 19 homens conhe-
cidos e outros desconhecidos; infestam o lugar denominado Vau Feio”.27

27  A FEDERAÇÃO. De Erechim. Porto Alegre, n. 283, 11 dez. 1928, p. 06. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/388653/65429.
Acesso em: 12 jan. 2019.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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O jornal A Manhã, também do Rio de Janeiro, em dezembro de 1928,
estampava uma notícia dando ênfase à forte presença militar na região
de Erechim para “darem um choque mortal na pirataria”, a qual, “anda
empestada por bandoleiros, tão ferozes que estão a despovoar a região.
[...] eles conturbam villas, campos e lavouras”.28

Figura 05. João Inácio na região do Vau Feio, norte do RS, por ocasião de sua apresentação
ao 2º Batalhão de Infantaria, agosto de 1927. Fonte: Arquivo Particular Castro. Erechim/RS.

No início de 1929, a situação continuava tensa e problemática em


Quatro Irmãos. O jornal Nacional de Passo Fundo, que veiculava cons-
tantemente notícias sobre a Fazenda Quatro Irmãos, em 17 de janeiro de
1929, continuou trazendo notícias sobre os intrusos em Quatro Irmãos:
“Continuam os salteadores a agir em Quatro Irmãos”. Afirmava o dito artigo
do jornal que o alvo dos salteadores era, agora, os capatazes da fazenda

28  A MANHÃ. Dobrarão a parada? Rio de Janeiro, n. 1021, 14 dez. 1928, p. 02. Hemerote-
ca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/116408/7945. Acesso em: 12 jan. 2019.

518 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


e funcionários da ICA. Acusavam a municipalidade de Erechim de nada
estar fazendo para solucionar o problema e asseveram que iriam nova-
mente se dirigir ao governo do estado (Jornal O Nacional, Passo Fundo,
17/01/1929). Como sempre, a redação do jornal O Nacional de Passo
Fundo não fala, nem afirma que essas ações foram praticadas por ordens
de João Inácio.
A partir de fevereiro de 1929, os jornais de circulação local passaram
a fazer referências a “badernas” na região de Erechim, relacionando-as
novamente com João Inácio. Jornais como A Federação, Diário de Notícias,
Sul-Brasil, O comércio e Correio do Povo são contundentes em atribuir os
crimes, saques e mortes ao bando de João Inácio. Passaram a relatar tam-
bém, a partir de março de 1929, que o contingente de militares voltaria a
Erechim para dar combate aos bandoleiros, o que de fato aconteceu, não
de forma tão intensa quanto em dezembro de 1928 quando o contingente
militar chegou a quinhentos homens.
A partir de 1930, a esfera pública passou a mediar negociações que
visavam garantir a retirada de João Inácio e sua gente do Vau Feio, prin-
cipalmente por meio de Leopoldino Silva e Emiliano Paulo do Nasci-
mento.
Constante no discurso dos dois mediadores da rendição de João Iná-
cio é a fala de que ele agia “[...] sob a inspiração de interesses ocultos”
(Jornal A Gazeta, Passo Fundo, 06/09/1929, p. 4). Pois, então, de que
interesses ocultos estariam falando? Nesse mesmo artigo publicado no
jornal Gazeta de Passo Fundo, em setembro de 1929, os mediadores dão
conhecimento de que o grupo de João Inácio era formado por

[...] mais ou menos 26 homens, armados de fuzis Mauser,


com abundante munição, armamento esse que, com dinhei-
ro, lhes é remetido de Passo Fundo. [...] o grupo tem um
bem organizado serviço de espionagem entre os que habitam
naquelas redondezas, contra os quais nada praticam, o que
não acontece com os colonos que são pilhados em seus bens
e ameaçados em sua vida (Jornal A Gazeta, Passo Fundo,
06/09/1929).

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 519
Os mediadores deixam implícito, no texto, que impossível seria João
Inácio manter-se durante tanto tempo embrenhado nos matos e resis-
tindo contra o contingente de forças do governo, contando com poucos
companheiros para lutar a seu lado, se não tivessem o patrocínio/ajuda
de outras pessoas que lhe enviavam dinheiro e munição. Nesse ponto fica
claro que o apoio financeiro vinha de Passo Fundo, cidade onde morava
e trabalhava o advogado que representava os requerentes da posse da fa-
zenda – José Dario de Vasconcellos.
Retoma-se, aqui, o memorial enviado ao presidente do Rio Grande
do Sul no final de 1928, no qual o Partido Liberal local denunciava que
João Inácio agia por acordo com o advogado que mantinha uma ação de
contestação de posse da Fazenda Quatro Irmãos – José Dario de Vascon-
cellos – residente em Passo Fundo; o mesmo acusado diversas vezes pela
Jewish Colonization Association de ser o patrocinador das intrusões na fa-
zenda. Na conclusão do processo de contestação de posse da fazenda, já
datado de agosto de 1931, portanto fora da delimitação temporal imposta
por esta pesquisa, aparece um requerimento do advogado da ICA, Her-
culano Annes. O requerimento é um pedido de cumprimento da ordem
do juízo, já que a ação de contestação de posse concluiu-se em junho de
1931. Nesse documento, Annes diz que

[...] a partir de 1927 os métodos empregados pelos apelan-


tes para fazer posse de Quatro Irmãos foram tão “pacíficos
e mansos” que ninguém ignora que por duas vezes destaca-
mentos da Brigada Militar tiveram que estacionar no local.
Os apelantes, dizendo-se proprietários da fazenda, ofereciam
e davam terras a todo aquele que os quisessem, sem cogitar
de extensão. Destarte conseguiram introduzir em Quatro Ir-
mãos quase duas centenas de desocupados, contra os quais
nada valeram os mandados de restituição de posse concedi-
dos à ré pelo juízo de Erechim.
Foi preciso que a chefatura de polícia desta capital, impres-
sionada pelo número de atentados e crimes que se pratica-
vam a bem da ordem pública, depois de examinar convenien-

520 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


temente o assunto, mandasse dissolver o numeroso grupo já
formado, no qual existiam já não poucas armas de guerra.
(APERS. Porto Alegre, nº 97, maço 2, E 11, 1928).

De certa forma, entende-se que o advogado da companhia esteja se


referindo ao grupo de João Inácio, que durante os anos de 1927/1929
lutou para garantir a posse da terra onde estavam até então. Cabe citar no
encerramento deste item da pesquisa as observações feitas por Illa Font.
Em nota no final do capítulo dezesseis da obra Serra do Erechim ressalva
que durante o tempo em que foi funcionário da Comissão de Terras – sob
ordens de Aminthas Maciel – esteve no Vau Feio e lá conversou com co-
lonos que conviveram com João Inácio, fazendo a seguinte observação:

[...] no espaço de meio ano (1934/35), em caráter funcional,


visitou muitos colonos e caboclos que conheceram João Iná-
cio, inclusive Hortêncio Martins, homem cinqüentenário,
que era vizinho e compadre. Alguns escritores têm abordado
o episódio do Vau Feio superficialmente e fora do seu verda-
deiro enfoque, conectando-o a movimentos revolucionários
ocorridos no município ou a simples atos de bandoleiros co-
muns (ILLA FONT, 1986, p. 214).

Illa Font, ao não especificar nada mais sobre o caso do Vau Feio,
reforça o caráter agrário da luta empreendida por João Inácio quando
afirma que frequentemente se relaciona luta de João Inácio com conota-
ções políticas e que, “[...] no entanto, a única exigência do chefe caboclo
para depor as armas mostrou que a realidade era outra: já que não lhes
reconheciam o direito às terras que moravam, dessem-lhes outras para
trabalhar e viver” (ILLA FONT, 1986, p. 297).29

29  Várias notícias de jornais do Rio de Janeiro, de Santa Catarina e do Rio Grande do
Sul estampavam matérias enfatizando o perigo a que estavam expostos os colonos e os
comerciantes da Colônia Erechim, bem como os habitantes da ICA; A demonização e a
contraposição às ações de João Inácio eram a tônica. Ver CORREIO DA MANHÃ. Erechim,
no Rio Grande, assediada por um grupo de bandoleiros. Rio de Janeiro, n. 10.412, 14 dez. 1928, p.
08. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memo-

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 521
“Santa Rosa do Buricá, quem não presta vai prá lá!”30
A “pacificação” do Vau Feio implicou a saída de João Inácio e sua
gente das terras que ocupavam. O acordo firmado com o major Leopol-
dino Silva e também com o coronel Candido Barcellos, em consonância
com o Governo do Estado, fizera com que o bando de João Inácio fosse
se estabelecer na colônia de Santa Rosa.
Foi a partir de 1915, com a colonização de Santa Rosa – então mu-
nicípio de Santo Ângelo – que o governo passou a estender ao colono
nacional as vantagens concedidas ao estrangeiro, iniciando a implanta-
ção de colônias mistas. Essa mistura fazia-se interessante aos olhos do
governo, pois ao mesmo tempo em que impedia a formação dos temidos
“quistos étnicos”, permitia aos colonos nacionais tornarem-se “bons co-
lonos” a partir dos exemplos daqueles.31 Em relatório apresentado por
João Dahne – funcionário da Comissão de Terras da colônia Santa Rosa
– ao Governo do Estado, têm-se noção do expressivo número de colonos
nacionais no conjunto da população da colônia, não deixando dúvidas
quanto à condição originária de intrusos dos mesmos:

O número de famílias de nacionais que existia na região já


colonizada, quando foi fundada a colônia, era cerca de 547,

ria.bn.br/docreader/089842_03/37883. O PAIZ. Remanescentes de antigas masorchas assolam


Erechim. Rio de Janeiro, n. 16.126, 14 dez. 1928, p. 02. Hemeroteca Digital da Biblioteca
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Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/882038/2358. O ESTADO. Os sucessos
de Erechim. Florianópolis, n. 4380, 21 dez. 1928, p. 01. Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/098027_02/14491
JORNAL DO BRASIL. O cangacismo no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, n. 305, 21 dez.
1928, p. 11. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://
memoria.bn.br/docreader/030015_04/71316.
30  Segundo PERES, op. cit., p. 8, este dito jocoso traduzia o desprezo para com os nacionais e
a visão das matas da região de Santa Rosa como antro de bandidos, que se tornou corrente na
época da colonização e durante muito tempo depois.
31  PERES, op.cit. p. 11.

522 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


estando hoje todos com sua situação regularizada. Nenhu-
ma só família se retirou da colônia, ao contrário, vindas de
outros municípios, entraram e estão localizadas convenien-
temente na colônia cerca de 600 famílias de nacionais. As-
sim, pois, quase 2/3 da população da colônia compõem-se
de nacionais.
Às que já estavam residindo na região, bem como às vindas
de outros municípios e que não dispõe de recursos, é-lhes
feita concessão de um lote com abatimento no preço de 20%
facilitando-se ainda o pagamento em serviços prestados nas
estradas em construção. Uma Terça parte dos nacionais que
já estão com a situação regularizada terminaram já o paga-
mento de seus lotes, e os outros estão todos influídos para
fazerem o mesmo, e continuam trabalhando nas estradas da
colônia.32

Atente-se para que Dahne se refere apenas à região já colonizada, ou


seja, à parte efetivamente organizada e colonizada, não se refere à to-
talidade da colônia Santa Rosa. De acordo com Peres, em 1919 a colô-
nia Santa Rosa registrava um total de 74.036 ha colonizados e cerca de
62.000 ha ainda disponíveis para colonização. João Inácio e as famílias
que lhe acompanhavam chegaram à colônia Santa Rosa em 23 de se-
tembro de 1929 e oficializaram o acordo com o governo do estado em 5
de novembro do mesmo ano.33 As informações sobre o assentamento do
grupo de João Inácio na colônia de Santa Rosa são conhecidas através da
entrevista que o mesmo concedeu já instalado na colônia de Santa Rosa e
publicada no jornal Correio do Povo de 17 de novembro de 1929.
Na entrevista constam o nome de todos os participantes do gru-
po: João Ignácio, Antonio Januário, Lucio Ignácio, Alcides Antonio
Ferreira Prestes, Onecio Ignácio, Pedro Candinho Meirelles, João Ma-
ria Meirelles, Vicente Rodrigues dos Santos, Fermino Florencio Nunes,

32  DAHNE, João. Transcrito no Relatório do Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas. 27
de agosto de 1919, p. 431-432. IN: PERES, op. cit., p. 9.
33  J ornal Correio do Povo. Porto Alegre, 17/11/1929, p. 6.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 523
Quintino Thomaz, Candinho Meirelles, Caetano Rodrigues dos Santos e
Hermogenes Siqueira. Reitera também que são oito famílias, 53 pessoas
ao todo, mas que durante o tempo em que ficaram embrenhados no mato
chegaram a dizer que o grupo era formado por 85 homens.34
Quando indagado se está satisfeito de estar instalado na colônia San-
ta Rosa, João Inácio respondeu:

A proposta do coronel Barcellos de parte do governo veio ao


encontro dos nossos desejos: sairmos dai para outro ponto
do estado. O armamento, assim como a munição que pos-
suíamos, entregamos a essa autoridade no mesmo dia. Estou
satisfeito em vir para Santa Rosa, depois aqui há mais cabo-
clos e é nesse meio que nós estamos bem. Si ficassemos onde
estávamos, as perseguições continuavam e a luta por certo
teria também que continuar.35

Na mesma entrevista, João Inácio disse dos motivos que o levaram,


juntamente com seus companheiros, ao combate:

[...] passamos para a Fazenda dos Quatro Irmãos, no muni-


cípio de Passo Fundo, que segundo consta, pertence também
aos judeus. Ali continuaram e com mais vigor as persegui-
ções de que estávamos sendo vítimas.
Começou, então, a crescer o nosso amor próprio de brasi-
leiros. Não tínhamos terras, não tínhamos nada e vivíamos
sempre enxotados por esses que menos direitos tinham do
que nós (grifo nosso).

Porque não pediam terras ao governo?


Porque achamos sempre difícil conseguir. É um assunto que
depende do centro, e nós sem meios...
João Ignácio proferiu essas palavras com verdadeira tristeza
e esperou nossa pergunta.

34  Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 17/11/1929, p. 7.


35  Ibidem.

524 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Tiveram muitos combates?
Fomos atacados várias vezes e várias vezes fomos obrigados
a resistir a luta, travando combate com a Brigada e a polícia
em número muitas vezes superior ao nosso. As nossas armas
no início eram de caça, depois, à medida que se realizavam os
combates íamos nos armando de fuzis e cartuchos de guer-
ra... e assim nos mantivemos até o fim.
Sempre fugíamos à luta, porém a perseguição era às vezes tão
intensa que nos obrigava a resistir.
Várias vezes queimaram os nossos ranchos e as nossas famí-
lias acompanhavam a nossa marcha, sofrendo todas as priva-
ções e sacrifícios a que estivemos sujeitos durante esse longo
tempo.
João Ignácio não se vangloria dos sucessos que por ventura
houvesse conquistado na luta. Se brigaram foi porque a pres-
são os obrigava, repete frequentemente.

E como se alimentavam, embrenhados na serra dos


Quatro Irmãos?
Responde um filho de João Ignácio:
Com os produtos das nossas lavouras.
Acrescentou este que passaram quatro meses sem sal e que
a perseguição contra eles era tal que nem os produtos conse-
guiam colocar em Quatro Irmãos, pois ninguém comprava.
João Ignácio retoma o fio da palestra e acrescenta que em 18
do corrente fez 10 meses que estavam encerrados nos matos,
sem poderem sair.36

A respeito de Gaudêncio dos Santos, João Inácio diz: “Nunca ti-


vemos ligação alguma com o Gaudêncio. Soubemos que houve quem
pensasse que pertencíamos ao mesmo grupo. Éramos apenas conhecidos
particularmente.”37 Através do depoimento de João Inácio, que se per-
petuou através da entrevista concedida ao jornal, pode-se perceber que a

36  Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 17/11/1929, p. 7.


37  Idem.

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 525
posse da terra foi o fator mais importante no desenrolar dos conflitos no
Vau Feio.
Pelas notícias veiculadas na imprensa da época há que se pensar que
a retirada de João Inácio e seu grupo dos matos de Vau Feio e das redon-
dezas de Quatro Irmãos resolveu o problema das intrusões na fazenda.
Após o assentamento do grupo de João Inácio em Santa Rosa, a impren-
sa não mais noticiou os conflitos em Quatro Irmãos, nem fez referência
aos intrusos que “infestavam” a região. No entanto, as intrusões conti-
nuaram, bem como os conflitos entre os representantes da companhia
e os intrusos. Note-se o requerimento encaminhado por José Chrispim
Dias para o intendente de Erechim, Attilano Machado.

Ilmo Sr. Cel. Attilano


Tem esta o fim de pedir-vos para interceder junto ao Cel.
Claudino N. Pereira, para não ser recolhido este destacamen-
to da Brigada, pois o diretor da Jewish recebeu um telegrama
dele dizendo que em vista de ter saído os bandoleiros, que ia
recolher o destacamento para seus postos, mas é muito cedo
para isto, isto é como que colher as frutas ainda verdes, pois
existe esta questão aqui na fazenda, cheia de intrusos que são
despejados de um lugar e vão para outro e vivem provocando
as pessoas que sabem que são a favor da companhia. Aqui
no povoado eles não vem, mas é pela presença de soldados
da Brigada, mas o momento que não tenha e já eles estarão
provocando desordem.
Sem outro motivo subscrevemo-nos
José Chrispim Dias.
Quatro Irmãos, 19 de novembro de 1929.38

Quando do encaminhamento desse requerimento ao intendente de


Boa Vista do Erechim, João Inácio e sua gente já estavam assentados na
colônia de Santa Rosa. Com isso fica demonstrado que as intrusões e os
“atos de violência” na Fazenda Quatro Irmãos não foram atos executa-

38  AHMJMIF, Erechim-RS. Caixa 4B, maço 8.

526 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


dos apenas pelo grupo de João Inácio. A preocupação da ICA com as
intrusões continuou sendo intensa, principalmente enquanto a posse da
fazenda estava sendo contestada.
Gritti (1997) afirma que as intrusões continuaram sendo uma cons-
tante no território da fazenda. Entre os anos 1948 e 1950 as intrusões
em Quatro Irmãos avultaram-se, chegando as discussões na Assembleia
Legislativa, ocasião em que foi proposta a desapropriação da área intru-
sada da fazenda. Mas essa proposta não chegou a se efetivar “uma vez
que o deputado que propôs a desapropriação da Fazenda, posteriormente
suaviza sua condição de adversário da Companhia” (Gritti, 1997, p. 144).
Mas esse tema da desapropriação é outro assunto, João Inácio já saiu de
cena na região, não obstante ter sido o pioneiro na luta pela terra no inte-
rior dos projetos de colonização e na categorização externa do ser intruso.

Considerações finais
Vimos que as intrusões na Fazenda Quatro Irmãos foram intensas
desde sua fundação, intensificadas no período de 1927/1929 sob a ação
de João Inácio. Essas devem ser entendidas num contexto amplo que en-
volveu as questões de terra no norte do Rio Grande do Sul. Os horizontes
jurídicos, políticos, militares, bélicos e sociais estão imbricados num am-
plo processo de configuração capitalista da terra, que começou no norte
do estado a partir do século XX.
João Inácio e sua gente ocupavam, desde 1927, data que se apre-
sentaram ao 2º B. I. da Brigada Militar, a região do Vau Feio, limítrofe
da Fazenda Quatro Irmãos. Essa ocupação não era legitimada e acon-
tecia “com o consentimento tácito da Companhia” (Memorial enviado
ao governo do estado do Rio Grande do Sul pelo Partido Liberal local
em 21 de dezembro de 1928). A pesquisa demonstrou que ao tomar co-
nhecimento de o advogado José Dario de Vasconcellos estar distribuindo
“autorizações” para a ocupação da terra, João Inácio também entrou em
acordo com ele, a fim de legitimar a terra que ocupavam. A ação do

TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 527
grupo de João Inácio fica, então, diretamente ligada à questão da terra.
Acreditando estarem defendendo seu direito de posse, foi que pegaram
em armas.
O caso do “bando” de João Inácio foi peculiar por ter alcançado
repercussão em nível estadual, sendo amplamente discutida pela mídia,
principalmente os jornais, também porque, para dar combate ao grupo,
foi mobilizado um grande contingente da Brigada Militar do estado. Na
realidade, estava em questão todo um processo normatizador da terra sob
a égide do estado positivista, a fim de promover o progresso e a seletivi-
dade de quem deveria trabalhar nela.
O grupo do João Inácio, denominado de intrusos, poderia abrir um
precedente muito grande de total controle na normatização agrária e
agrícola do estado. Por isso, precisava ser resolvido e não permitir abrir
precedentes e demonstrar fragilidade no regramento e da mediação das
colonizadoras na região. No entanto, o próprio Estado, em alguns mo-
mentos, titubeou e/ou eximiu-se da resolução do problema. Nos docu-
mentos do Arquivo Histórico Juarez Miguel Illa Font, foi encontrado
um requerimento encaminhado ao governo estadual pelos “intrusos das
terras da Companhia Rio Grandense”, no qual solicitavam legitimação
de posse da terra por eles ocupadas, ao qual o despacho dado pelo presi-
dente do estado em 25/04/1928 foi “nada há a definir, por não serem de
propriedade do Estado as terras a que se referem” (AHMJMIF, Erechim-
-RS. Caixa 94G. Livro de Despachos e Requerimentos).
João Inácio e seu grupo corporificam a luta cabocla e/ou de campo-
neses deserdados da terra frente aos horizontes capitalistas que se dese-
nhavam nas relações de produção e de apropriação dessa. Na realidade,
sua luta é expressiva das contradições desse sistema, porém, quer também
ser beneficiado por esse. Como diz Hobsbawm (2017, p. 223), “as ações
do bandido social tradicional podem ter valor simbólico, mas se voltam
contra os símbolos e, sim, contra alvos específicos [...], não são dirigidas
contra o ‘sistema’, mas, sim, contra o xerife [....]”.
O “bandido” João Inácio, na esteira da narrativa Hobsbawm (2017,

528 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


p. 217), é expressivo do camponês tradicional, que representa um tipo
de sociedade velha que luta contra a nova, “como paladinos dos pobres
rurais”, frente a uma nova configuração da propriedade e uso da terra,
rebelou-se contra a ordem social que o excluía ou, como diz Hobsbawm
(2017, p. 209), “uma alienação em relação a ela, um conhecimento da
justiça”; revela a consciência do universo moral do camponês, por isso,
imprimia luta e resistência, publicizou a importância da terra para deter-
minadas categorias que sempre viveram e interagiram com ela, dentre
elas os caboclos; demonstrou a consciência da propriedade privada e sua
expropriação, a importância da luta, inclusive com os instrumentos pos-
síveis para os deserdados dessa: as armas, estratégias de desqualificação
do grupo por mediadores midiáticos locais e também em nível estadual,
comprometidos e vinculados ao capital fundiário e às formas novas de
apropriação desse bem natural, que alijava grandes contingentes de tra-
balhadores; uma estratégia de luta carregada de preconceitos, mas que
revela uma forte tendência que se arrasta até hoje na determinação de
quem é que deve ser contemplado e incluído nas políticas de terra no
estado brasileiro.

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530 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A luta pela terra na Colônia Erechim:
Gaudêncio dos Santos e o Capitão Belo

Isabel Rosa Gritti

P or um longo período, a luta pela terra na Colônia Erechim, criada


em 1908, fora negligenciada pelos estudiosos da história regional.
Tinha-se o entendimento de que neste território, caracterizado por
uma significativa diversidade étnica e cultural, decorrente do processo de
colonização, o acesso à terra se dera de forma tranquila. Só mais recente-
mente essa questão vem sendo investigada. Estudos ainda reduzidos, evi-
dentemente, mas que tem trazido a questão para o debate. Provavelmente,
o fato de a história da Colônia Erechim ter sido contada dominantemente
por autodidatas e memorialistas (o que não a desmerece) baseados nos
Relatórios Governamentais explique tal abordagem.
Desejamos neste artigo demonstrar que a luta pela terra, e o conse-
quente processo de exclusão da posse da mesma, se deu intensamente.
A fixação dos imigrantes europeus das mais diversas nacionalidades na
área correspondente à Colônia Erechim foi conduzida pelo Estado, do
Rio Grande do Sul e pelas Companhias Privadas de Colonização, em-
bora essas também estivessem sob a orientação da Diretoria de Terras e
Colonização do Estado.
A instalação dos imigrantes provocou conflitos, exclusão, isto é, luta,
tanto nas áreas administradas pelo Estado quanto nas áreas das Compa-
nhias Privadas. Necessário destacar que nos territórios pertencentes às
Companhias Colonizadoras Privadas, a luta pela terra se deu de forma
mais intensa. Mostraremos isso através de uma breve discussão de dois
desses conflitos, o liderado por Gaudêncio dos Santos, na região do Ta-
pir, no hoje município de Barão de Cotegipe e o comandado pelo Capitão
Belo, na Fazenda Quatro Irmãos.

A ocupação do solo na Colônia Erechim


Quando a Colônia Erechim é criada em 1908, e mesmo, quando de
sua emancipação em 1918, o Estado do Rio Grande do Sul era governa-
do a partir dos princípios positivistas, definidos pelo filósofo francês Au-
gusto Comte, e, presentes na Constituição Estadual. É neste período em
que o Estado é administrado pelo Partido Republicano Rio-Grandense
– PRR – que o maior número de núcleos coloniais foi criado.
Apesar de o núcleo colonial ter sido criado pelo Estado, e plane-
jado pelo engenheiro positivista Carlos Torres Gonçalves que fora por
um longo período (1899/1935) responsável pela Diretoria de Terras e
Colonização órgão da Secretaria de Obras Públicas (CASSOL, 1978), os
conflitos pela luta da terra se fizeram presentes, como de resto em todo o
território gaúcho. A regulação e a normatização do solo eram propósitos
do governo positivista, apesar disso, os conflitos foram inevitáveis e se
expressaram de diferentes maneiras, dos recursos judiciais, às ocupações.
A área pertencente à Colônia Erechim era um dos últimos espaços
considerados “devolutos” e, portanto, a ser integrado na lógica capitalista
de produção. Nédio Piran nos diz que:

É a última, não só por situar-se mais distante do centro de


ocupação (a estância) e da capital do Estado (Porto Alegre),
mas também por seu relevo bastante movimentado (aciden-

532 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tado, onde a erosão regressiva dos rios é intensa), especial-
mente na porção Norte, junto ao Vale do Rio Uruguai (pouco
atrativa ao latifúndio criador, portanto. Além desses limitan-
tes, acrescente-se seu difícil acesso. [...]. Enfim, reduto últi-
mo dos indígenas (encurralados pelo avanço da colonização
em outras regiões) que persistiam de diferentes formas à sua
desterritorialização e dizimação (PIRAN, 2001, p. 21).

O fato de ter sido uma colônia planejada evitou que se repetissem


aqui os problemas apresentados e vivenciados pelos imigrantes nos de-
mais núcleos coloniais do Estado do Rio Grande do Sul. Não ocorreram
aqui conflitos entre imigrantes e funcionários do Estado responsáveis
pela administração dos núcleos coloniais, conflitos estes decorrentes da
falta de moradia e da consequente demora dos mesmos nos barracões à
espera de assentamento, da lentidão na demarcação do lote, condições
estas radicalmente opostas às propaladas pelos agentes das companhias
imigratórias, no continente europeu com o objetivo de recrutar imigran-
tes para o trabalho agrícola no Brasil.

A criação da Colônia Erechim deu-se a partir de argumentos


apresentados pelo Diretor de Terras e Colonização, Carlos
Torres Gonçalves, de que as terras disponíveis nas Colônias
Ijuí e Guarani eram insuficientes para a colonização. Além
disso, fundamentava sua proposta na fertilidade do solo e na
grande procura de terras por particulares que aí estavam se
estabelecendo de forma tumultuosa e cuja instalação neces-
sitava ser regularizada (SPONCHIADO, 2000, p. 118).

Quando os imigrantes europeus e descendentes chegam à Colônia


Erechim, já estão presentes neste território os indígenas e os chamados
caboclos. Grupos estes que vão disputar com os demais a posse da terra.
Estas diferentes culturas passam a conviver cotidianamente no proces-
so de construção da sobrevivência. Nessa convivência, criam-se relações
sociais, econômicas, políticas, culturais, ideológicas e afetivas que grada-

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 533
tivamente, se consolidam e se propalam. Também é particularmente in-
teressante destacar que no território correspondente à Colônia Erechim,
se fazem presentes dois agentes colonizadores, quais sejam: o Estado,
através da colonização oficial, e a presença das Companhias Coloniza-
doras, promotoras da colonização privada, no caso a ação da Jewish Co-
lonization Association, responsável pela imigração e colonização judaica
na região e da Companhia Colonizadora Luce e Rosa (GRITTI, 2004).
Atualmente, Erechim ostenta o título de Capital da Amizade, segun-
do seus defensores, deve-se ao fato da inexistência de relações conflituo-
sas e desarmônicas no processo inicial da constituição da Colônia Ere-
chim, e da continuidade dessas relações na atualidade. O estudo por nós
realizado sobre a imigração polonesa no Rio Grande do Sul nos permite
discordar de tal afirmativa. No caso específico da Colônia Erechim, os
imigrantes poloneses e seus descendentes foram vítimas de preconceito,
assim como os negros, os caboclos, os indígenas, os comunistas e outros
grupos. Este preconceito se enraizou e se propalou no tempo e no espaço
e das mais diferentes formas.

Figura 01. Planta da Colônia Erechim em 1913.


Fonte: Arquivo Histórico Municipal Juarez Miguel Ila Font.
A visão dos administradores da Colônia Erechim, em relação aos
imigrantes, é extremamente positiva. São os responsáveis pela prosperi-
dade e pela harmonia construída na colônia. A presença dos indígenas,
dos caboclos, isto é, dos agora posseiros expulsos de suas terras, não se
faz presente nas ações dos referidos administradores.
A prosperidade e a presença de bons elementos na Colônia Erechim
são destacadas pelo chefe da mesma, Severiano de Souza e Almeida. Da
mesma forma que destaca a estabilidade do imigrante, isto é, poucos,
muito poucos abandonaram a Colônia Erechim. Cabe destacar que esta
avaliação refere-se aos imigrantes assentados pelo Estado, e não aos as-
sentados pelas Companhias privadas, como é o caso da Jewish Coloniza-
tion Association, ou da Luce & Rosa.
Escreve Severiano de Souza e Almeida em 1914:

Confirmando o meu telegrama de 1º do corrente a V. Excia, o


Sr. Dr. Secretário, em resposta a um que recebi sobre a ima-
ginária saída de imigrantes para a República Argentina cum-
pre-me levar ao vosso conhecimento que semelhante notícia
não tem fundamento algum, pois os imigrantes em geral,
quer do povoamento, quer espontâneos, acham-se muito sa-
tisfeitos e entusiasmados aqui, os quais de modo algum pre-
tendem retirar-se da Colônia, de que, é um testemunho o fato
de a maioria deles ter feito chamada de parentes, cujos pedi-
dos tenho dirigido ao Inspetor de Povoamento nessa capital,
para o devido encaminhamento dos mesmos a esta Colônia,
de forma que, procedendo eles assim, não têm naturalmente
intenção de retirar-se e, sim, de definitivamente permanece-
rem nos lotes em que se estabeleceram.
Vindo nas grandes remessas de imigrantes, como sabeis, gen-
te de toda a espécie, inclusive especuladores que já tem esta-
do em núcleos coloniais de Minas Gerais, São Paulo e Paraná,
não é de admirar que apareça algum elemento péssimo, que
em parte alguma fica, sendo que o bom elemento é estável e
por isso permanece nos lotes que lhe são destinados, nestas
condições a Colônia Erechim conta em quase sua totalidade

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 535
com imigrantes que, por serem agricultores, garantem o bom
aproveitamento das terras. (AHRGS. In: GRITTI, 2004, p.
118-119).

O rápido desenvolvimento da Colônia Erechim é destacado por Jean


Roche, que afirma que a mesma bateu todos os recordes de rapidez de
desenvolvimento. Erechim “ficará, pelo menos, como um dos exemplos
mais significativos de impulso demográfico que se deve à colonização.
É verdade que esta se realizou ao longo da via-férrea Santa Maria – São
Paulo, o que lhe permitiu escoar imediatamente os produtos agrícolas
com facilidade excepcional na história das Colônias rio-grandenses”
(ROCHE,1969, V. I, p. 281).
A ocupação da área territorial correspondente à Colônia Erechim,
através da instalação dos imigrantes como pequenos proprietários pro-
dutores de alimentos, possibilitaria a criação de toda uma infraestrutura,
como estradas, escolas, hospitais, o que valorizaria sensivelmente a re-
gião e a tornaria mais atrativa aos imigrantes que almejavam tornarem-se
proprietários. Tal infraestrutura fora construída com o trabalho dos imi-
grantes, do poder público e das Companhias Privadas de Colonização.
Economicamente, a Colônia Erechim prosperou rapidamente, como
nos diz Jean Roche e os Relatórios da Diretoria de Terras e Colonização
enviados aos Governador do Estado. No entanto, isso não significa au-
sência de conflitos. Não ocorreram aqui conflitos entre os imigrantes e a
Diretoria de Terras e Colonização, mas conflitos pela terra. Pouco tempo
depois de sua emancipação, Erechim vê-se envolvido pela Revolução de
1923.Em seu território ocorreram intensos combates, como o de Quatro
Irmãos e o do Desvio Giarreta. Além disso, os revolucionários maragatos
tomam posse da administração municipal, provocando a fuga dos Repu-
blicanos. Toma posse em nome do Comando Revolucionário o Capitão
Themistocles Celso Ochoa, em 12 de abril de 1923. Segundo João Frai-
ner, fator fundamental para que tais combates ocorressem no território
do Município foi a existência da ferrovia, por onde transitavam tanto
maragatos quanto chimangos, ou federalistas e republicanos.

536 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Vários conflitos pela posse da terra na Colônia Erechim ocorreram
no período inicial de sua constituição. O de Gaudêncio dos Santos, obje-
to de nossa discussão neste texto, e concomitante ao processo Revolucio-
nário de 1923-1924. Daí, não ter sido percebido como tal, e pela pouca
importância dada a ele pelos estudiosos da história regional. O mesmo
aplica-se ao liderado por João Inácio. O movimento de luta pela terra
comandado pelo Capitão Belo, contemporâneo dos outros dois, recebe
destaque da imprensa local e estadual. O destaque deve-se ao fato do
mesmo ocorrer em terras de Companhia Privada de Colonização, e não
nas chamadas terras devolutas, como o de João Inácio e Gaudêncio dos
Santos.
Apesar de o conflito liderado pelo Capitão Belo não ter sido o úni-
co ocorrido no latifúndio da Jewish Colonization Association foi o que ga-
nhou maior destaque pela amplitude das discussões desencadeadas em
torno dele. O debate chega até a Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul. Porém, o tratamento dado aos ocupantes da área pertencente a
Jewish, quer seja pela imprensa, como pelos debates na Assembleia é a
de vagabundos que desejam desestabilizar a ordem e o desenvolvimento
da Companhia e, consequentemente, do município. Foram raros os mo-
mentos que foram reconhecidos como trabalhadores em busca de terras
para trabalhar. Inclusive, após o acordo entre o Estado, a Companhia
Colonizadora e os ocupantes, poucos deles foram assentados, a maioria
continuou jogada à própria sorte.
A luta pela posse da terra ocorreu nas áreas colonizadas pelo Estado
e pelas Companhias Privadas de Colonização, no caso a Luce Rosa e a
Jewish Colonization Asssociation. Contudo, os conflitos foram mais in-
tensos nas áreas ocupadas pelas Companhias Privadas. O assentamento
dos imigrantes europeus provocou a exclusão dos ocupantes, conhecidos
como posseiros. O preço pago por eles em nome da modernização que
requeria a legalização da propriedade amparada pela Lei de Terras de
1850 foi elevado e nunca reparado. Assim, temos que, para João Frainer
estes movimentos de luta pela terra não passavam de paixões políticas.

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 537
Comentando a inauguração em Quatro Irmãos, em maio de 1924,
do Cemitério do Combate (ainda hoje um marco histórico da Revolução
de 1923) em homenagem às vítimas do combate de Quatro Irmãos, Frai-
ner escreveu em 1936:

Infelizmente apesar da paz, as paixões políticas continuaram


a perturbar a vida do município, sendo digno de registro, os
tristes episódios de João Gaudêncio e João Inácio.

Essa ideia de que João Gaudêncio e João Inácio estivessem ligados à


Revolução de 1923/24 fez que se negasse os conflitos ligados à posse da
terra na Colônia Erechim. Verdade que Gaudêncio esteve envolvido no
movimento de oposição a Borges de Medeiros, mas seu objetivo maior
era terra para nela trabalharem, tanto que, em 1924, recusa continuar
lutando ao lado dos caudilhos revolucionários.

Figura 01. Vista Parcial de Boa Vista de Erechim na Década de 1920.


O B Fonte: Arquivo Histórico
s andoleiros G
de Municipal
audêncio Juarez
dosMiguelSIla Font.
antos

538 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A presença da ferrovia contribui de forma decisiva para que a região
da então Colônia Erechim estivesse envolvida nos conflitos estaduais e
nacionais de maior amplitude. São exemplos, a Revolução de 1930 e a de
1923/24 no Rio Grande do Sul. Esta última está presente no imaginário
da população, como um período de muito medo e violência, uma vez que
as propriedades, principalmente as mais afastadas, eram saqueadas, quer
seja por Federalistas quer seja por Republicanos. Os rebeldes formaram
colunas espalhadas por todas as regiões do Estado. Aqui, o líder revolu-
cionário era Felipe Portinho “As principais colunas rebeldes eram a de
Leonel Rocha, na região de Palmeira; de Felipe Portinho, no Planalto do
Nordeste; Honório Lemes na Fronteira Sudoeste; Estácio Azambuja no
Centro-Sul e José Antônio Neto (Zeca Neto) no Sul[...]” (FERREIRA,
apud MENEGATI; CARRARO, 2002, p. 18). E, é claro, as forças legalis-
tas também se faziam presentes, e os embates se sucediam.
Na obra O Combate no Desvio Giareta, os autores atentam para a
tomada de Boa Vista do Erechim (atualmente Erechim) pelos Maragatos.
“O General Portinho, que invadiu o Estado pelo Pinhal, município de
Lagoa Vermelha, estava acompanhado de sua tropa – 700/800 homens”.
(MENEGATI; CARRARO, 2002, p. 18).
Segundo Menegatti e Carraro, em 12 de março de 1923, Portinho
tomou a cidade de Erechim, dando liberdade a 13 presos da cadeia públi-
ca e prendeu os policiais na própria cadeia, apreendendo o armamento.
Após um período de grande agitação, e pelo fato de as tropas maragatas
estarem se hospedando na região, no dia 12 de abril de 1923, ocorre a
nomeação do maragato Themístocles Celso Ochoa como administrador
da cidade, que permanece no cargo até 18 de Setembro de 1923. Esse fato
não estava agradando Borges de Medeiros, que, obviamente, não via com
simpatia a cidade sendo administrada por seus opositores, os maragatos.
Assim é que assina decreto de emancipação de Erechim, e determina ao
General Firmino de Paula “a retomada da cidade” (MENEGATI; CAR-
RARO, 2002, p. 20).
A Região do Tapir,
onde encontrava-se, em
1923, o grupo lidera-
do por Gaudêncio dos
Santos, localiza-se no
Município de Barão de
Cotegipe, distante aproxi-
madamente 18 quilôme-
tros do centro da cidade,
e 40 quilômetros de Ere-
chim. No ano de 1914,
Figura 02. Localização de Barão de Cotegipe no
iniciou-se o povoamento Rio Grande do Sul. Fonte: Wikipédia.
do Tapir, conhecido pelo
relevo extremamente aci-
dentado, mata fechada, e
alguns moradores. Situa-
-se ao Norte do Municí-
pio de Barão de Cotegipe,
fazendo divisa com Itati-
ba do Sul, ao norte, com o
município de São Valen-
tim, mais a Oeste, o Rio
Guatapará e o Lambedor.
É um local montanhoso,
pedregoso, consequente-
mente de difícil cultivo.
Sobre o Tapir, Bru-
na Baldin nos diz que as
terras não eram escritu-
radas, documentadas, o
que evidencia o problema
da legalidade na posse da Figura 03. Município de Barão de Cotegipe
com destaque para a região do Tapir.
Fonte: Baldin (2017, p. 37).
terra. Consequentemente, mais tarde o imigrante compraria a terra e
exigiria a escritura juntamente ao Poder Público. Desta maneira, o Tapir
se constituiu como uma válvula de escape, com mistérios e segredos por
detrás de uma mata fechada e de uma natureza deslumbrante, que por al-
gum tempo foi palco de conflitos envolvendo duas forças oposicionistas,
de um lado o grupo liderado por Gaudêncio dos Santos, os maragatos, e
do outro lado a Força do Governo, os Chimangos (BALDIN, 2017).
O padre Benjamim Busato, um dos pioneiros no registro da história
da região de Erechim, escreve:

[...] de repente o Tapir ficou sendo o reduto armado inquie-


tando e assustando a região toda. E estradas para entrar no
Tapir? Só trilhos. Trilhos tipo labirinto. E imensa mata, ale-
vantada, em faixa larga, cobrindo precipícios e sangas com
poucos e difíceis váus. Existia, porém, uma corrente ininter-
rupta de pombeiros levando e trazendo notícias. Tapir era
um acampamento misterioso, sinistro, perigoso (BUSATO,
1968, p.20).

A luta de Gaudêncio dos Santos não foi compreendida por seus con-
temporâneos, ou a ignoraram. Verdade que ela ocorre no período da Re-
volução de 1923/24 e que Gaudêncio era um “chefe menor” no grupo
dos maragatos. Porém, temos alguns elementos para afirmar que a luta
de Gaudêncio e seus companheiros fora maior. Lutaram por terra e traba-
lho. É o próprio Gaudêncio quem nos diz na carta que escreveu em 6 de
fevereiro de 1926 aos Coronéis Pedro Pinto de Souza, João Cancio Bas-
tos, Theodoro Silveira e ao Dr. Amynthas Maciel. Escreveu Gaudêncio:

Sou forçado a vir a presença dos dignos amigos, por motivos


que muito interessam a união e a concórdia do povo de Ere-
chim, mesmo para evitar explorações que se fazem em torno
do meu obscuro nome e de humildes companheiros. Já disse
uma vez quando aqui veio o dr. Amynthas Maciel, que ficáva-
mos certos de não sermos mais perseguidos, e que a minha

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 541
fôrça se ia dissolver, sem outra preocupação, de todos os seus
membros, do que â volta ao trabalho e ao lar. Infelizmente,
não podemos vive ainda sem alguma cautella e por isso nos
conservamos mais ou menos approximados. A nossa grati-
dão pelo govêrno é grande, porque afinal, alêm das garantias
que elle nos prometteu, entregou-nos terras onde pudésse-
mos nos entregar ao trabalho agrícola (JORNAL DIÀRIO DE
NOTÌCIAS, Porto Alegre, 1926, nº 294).

Não encontramos nenhuma foto de Gaudêncio dos Santos, mas lo-


calizamos em Meu Erechim Cinquentão uma descrição de Gaudêncio dos
Santos feita pelo Padre Benjamim Busato. Os autores que fazem referên-
cia ao conflito do Tapir, fazem a mesma descrição de Gaudêncio, e todas
elas são publicações posteriores à do Padre Busato. Segundo ele:

Gaudêncio era de estatura reforçada, amorenado, com bar-


ba pouca e rala, cabelo preto, liso. Devia ser descendente da
nossa indiada charrua. Olhar vivo, esperto, sempre descon-
fiado, enxergando tudo, possuía visão fulminante do que se
passava ao redor. Num golpe de vista penetrava no fundo da
alma de quem se aproximasse. Sabia qualquer coisa de es-
crita e contas. E era inteligente. Não era de índole má. Não
tolerava absolutamente o crime, nem a injustiça. Um buena-
cho enérgico. Sabia mandar e determinar. O ótimo serviço
de patrulha de observação nos pontos mais indicados prova
a capacidade de comando. Seu braço direito era Laudelino,
irmão mais novo, solteiro. Mais delgado, de movimentos ra-
pidíssimos, audaz e calmo ao mesmo tempo (BUSATO, 1968,
p. 21).

A importância da conquista de terra para nela trabalharem e garantir


a subsistência também é expressa por Gaudêncio na carta que escreve ás
autoridades do Município de Erechim a quem Tapir pertencia. Prossegue
o líder maragato:

542 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Depois do acordo que, por intermédio do dr. Amynthas, fize-
mos com o coronel Travassos, jamais pensamos em alterar a
ordem e é completamente mentira que tivéssemos dito que
não respeitaríamos as autoridades, porque isso seria em pre-
juízo nosso, visto que teríamos de abandonar as terras que o
governo nos cedeu, e nas quais temos fixado residência (JOR-
NAL DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Porto Alegre, 1926, nº 294).

O rebelde Gaudêncio e seu grupo confiavam no acordo feito com


as autoridades. E, se ele, Gaudêncio, e seu grupo rompessem o mesmo,
deveriam abandonar as terras que acabaram de conquistar e aí se estabe-
leceram. Cumpriu com o acordo feito, tanto que, ao noticiar o assassinato
do líder rebelde o Jornal Diário de Notícias entendeu como traição o
assassinato de Gaudêncio em março de 1926. O acordo que Gaudêncio
havia feito com o 6º Corpo Auxiliar fora rompido pelo 30, uma vez que
o 6º retornou a Passo Fundo. Noticia o jornal:

Quando foi das negociações: entre o tenente-coronel Travas-


sos Alves, então comandante do sub-sector, e Gaudêncio dos
Santos, este comprometteu-se a não mais pegar em armas
contra o governo, recebendo, como recompensa, terras para
serem povoadas. Gaudêncio começou a povoar as collonias
que lhe haviam sido cedidas, porêm logo em seguida elemen-
tos do 30º ou a elle ligados, começaram a provocar distúrbios
em Tapyr com o intuito de demonstrar ao Governo que Gau-
dêncio continuava em armas, rompendo assim, o pacto que
fizera (Jornal Diário de Notícias, Porto Alegre, 1927, nº 33).

Possegue o jornal, descrevendo o momento em que Gaudêncio é


capturado:

Iam Gaudêncio e sua gente de confiança pela estrada de Boa


Vista com o fim de se apresentar quando foram surpreendi-
dos no logar denominado Lageado do Laço por uma patrulha
do 30º corpo auxiliar, comandado pelo official Manoel Pa-

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 543
trício. Foram aí todos presos e, depois de lhes serem tirados
os revolvers, únicas armas que possuíam, foram amarrados
aos cavalos e, então interrogados. Perguntaram a Gaudêncio
onde estava sua família. O ex-chefe revolucionário respondeu
que estavam em Vaca Branca, mas que fossem busca-la com
cautela[...] Ouvindo isso, o comandante da patrulha mandou
que Gaudêncio e seus companheiros, amarrados como esta-
vam aos cavallos, se afastassem um pouco, no que foi obe-
decido. Em seguida o piquete extendeu linha e preparou as
armas para o fuzilamento: Em face dessa attitude da força,
Gaudêncio gritou: Não me façam isso: estou garantindo por
um passaporte do 6º (JORNAL DIÀRIO DE NOTÌCIAS, Por-
to Alegre, 1927, nº 3).

Figura 04. Única cruz de Ferro


Atualmente, não encontramos
existente em 2000 no Cemitério de nenhum vestígio material na região
Tapir. Fonte: Baldin (2017).
que fora palco do conflito. Até
2004, existiam alguns resquícios do
“cemitério do combate”. Hoje, plan-
tações ocupam o espaço que outrora
fora palco de um movimento quase
desconhecido, porque não estudado.
As poucas referências ao mesmo in-
serem-se nas Histórias de Erechim,
e veem tal movimento como parte
da Revolução de 1923/24, a que es-
palhou medo e violência, segundo a
memória da população do hoje Mu-
nicípio de Barão de Cotegipe.
A luta de Gaudêncio dos San-
tos, assim como, a de João Inácio e
do Capitão Belo ocorrem nos anos
iniciais da formação social da Colô-
nia Erechim, e são concomitantes à

544 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


instalação dos imigrantes das mais diversas nacionalidades. É a inclusão
provocando a exclusão. Enquanto os imigrantes estão sendo incluídos no
processo produtivo, com o acesso à terra, os nacionais e/ou caboclos são
excluídos.
A luta de Gaudêncio dos Santos, assim como, a de João Inácio e do
Capitão Belo ocorrem nos anos iniciais da formação social da Colônia
Erechim, e são concomitantes à instalação dos imigrantes das mais di-
versas nacionalidades. É a inclusão provocando a exclusão. Enquanto os
imigrantes estão sendo incluídos no processo produtivo, com o acesso à
terra, os nacionais e/ou caboclos são excluídos.

A Jewish Colonization Association e o “Capitão Belo”


A intrusão de terras esteve presente na Colônia Erechim como uma
forma de luta pelo acesso à mesma, quer seja, nos territórios de domínio
do Estado ou das Companhias Privadas de Colonização. Nestas últimas,
de forma mais intensa, tanto na periodicidade quanto pelo número de
intrusos. O caso mais amplamente conhecido é o do “Capitão Belo” na
Fazenda Quatro Irmãos, de propriedade da Companhia inglesa Jewish
Colonization Association, mais conhecida como ICA.
A Jewish Colonization Association fora criada, em 1891, pelo Ba-
rão Hirsch, um rico judeu responsável pela construção de ferrovias no
continente asiático. Desta forma, tinha conhecimento das perseguições
e violências que os judeus residentes no leste europeu e, particularmen-
te, no Império Russo sofriam. Ele decide, então, que a única alternativa
era assentá-los em regiões onde pudessem viver livremente. Para tanto,
cria, em 1891, a ICA e, neste mesmo ano, instala imigrantes judeus em
terras argentinas. Em 1896, quando da morte de Hirsch, a Jewish elege
um novo conselho administrativo. Como vice-presidente é eleito Franz
Phillipson, que é presidente da Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au
Brésil arrendatária da rede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Em 1902, a ICA expande sua atuação para o Brasil, e, em 1909,

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 545
adquire a Fazenda Quatro Irmãos no então município de Passo Fundo, a
quem também pertencia a Colônia Erechim até 1908. A Fazenda Quatro
Irmãos, como diz o nome, fora comprada de quatro irmãos, em 1909, e a
instalação dos imigrantes judeus inicia em 1911. A ICA era responsável
pelo recrutamento, transporte e assentamento dos mesmos. A Jewish en-
cerra seu longo período de atuação na Fazenda Quatro Irmãos em 1962,
quando acaba a atividade de exploração florestal e de venda de terrenos.
Durante todo período em que esteve na Fazenda, isto é, de 1909 até 1962,
a Companhia instala apenas 453 famílias judias nos seus 93.985 hectares.
O assentamento de 453 imigrantes e seus familiares não significa a per-
manência dos mesmos na Fazenda, uma vez que o êxodo foi constante e
permanente.
Durante todo o período
Figura 04. Mapa da Fazenda Quatro Irmãos.
Fonte: Gritti (2004). de permanência da Jewish
Colonization Association em
Quatro Irmãos a preocupação
com a segurança dos 93.985
ha de sua propriedade esteve
presente e se efetivava de for-
ma mais ou menos intensa
de acordo com a quantidade
de intrusos e da organização
dos mesmos. As medidas to-
madas pela ICA para comba-
ter as ocupações constantes e
crescentes, e, portanto, pro-
teger sua propriedade, foram
variadas: a vigilância armada,
a reintegração de posse via ju-
dicial e a destruição das cons-
truções e plantações dos “in-
trusos”, formação de milícia,

546 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


presença de destacamentos da Brigada Militar, dentre outros expedientes.
Em abril de 1930, a direção da ICA, sediada em Quatro Irmãos, relatava
para a Direção Central, a dificuldade do controle, a intensa movimenta-
ção de intrusos, bem como suas estratégias no interior da referida fazen-
da:

Nós temos recorrido às expulsões judiciárias e destruição


de ranchos, construídos pelos intrusos, mas estes últimos,
aconselhados pelo Senhor Vasconcellos têm começado a
praticar outro sistema: sendo expulsos de um lugar, eles se
transportam para outro, e os novos intrusos ocupam os lu-
gares evacuados; nós temos obtido menos de 60 restituições
judiciárias, cujo resultado é, por assim dizer, nulo. No último
tempo, o número de intrusos começou a aumentar de uma
maneira inquietante atingindo atualmente 200 (AHJSP-SP.
In: GRITTI, 2004, p. 130).

Como dissemos, as ocupações no latifúndio da Jewish Colonization


Association foram constantes e permanentes. Porém, neste texto, nos de-
teremos na discussão somente de um desses momentos de ocupação da
Fazenda Quatro Irmãos. Período este de 1948 a 1950, quando os debates
em torno da questão atingem maior amplitude, chegando a se discutir
a proposta de desapropriação da Fazenda na Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul. Nos Anais de 1949, a ocupação da Fazenda, segundo
relatos feitos por membros da Companhia, continua sendo resultado da
“manipulação” de adversários dela. Assim, temos que:

Esta nova ocupação da Fazenda Quatro Irmãos fora coman-


dada por José da Rosa Sutil, conhecido como o “Capitão
Belo”. Segundo a Companhia ele recebia ordens de antigos
arrendatários, cujo contrato fora rescindido pela Compa-
nhia. Nos Anais da Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul de julho de 1949, encontramos uma breve descrição
do objetivo do “Capitão Belo”. O “Capitão Belo” propaga-
va a distribuição gratuita dos terrenos ocupados, pois dizia

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 547
“que a terra por ele e seu bando ocupada não é ‘bem legal’
ou que o registro está viciado. É, portanto posse duvidosa
e, como tal, é terra ‘de todos’ que deve ser partilhada entre os
atuais ocupantes. Mas, admite, também, que é terra particular
que ao Estado cabe desapropriar ou comprar para distribuir
ou vender ‘baratinho’, sem prazo e sem quotas determinadas
de pagamento (Assembleia Legislativa do RS. ANAIS,1949,
v. 25, p. 531).

O “terror” estabelecido pelo “Capitão Belo”


A capa de um jornal da época sugere a dimensão que ganhou a pre-
sença do Capitão Belo na região:

Figura 05. Fonte: Jornal Diário de Notícias. Porto Alegre, 20 de jun.1949.


Em junho de 1949, ano da discussão da desapropriação da Fazen-
da, o jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, desloca uma equipe de
reportagem até a propriedade da ICA para acompanhar o desenrolar da
questão, e, é, claro, divulgar a sua análise sobre as ocupações executadas
pelos caboclos em busca de terras.
As análises feitas pelo Diário de Notícias deslegitimavam toda a luta
dos ocupantes do latifúndio da Jewish, pois, reforçava a ideia de que ela
estava sendo injustamente ocupada, uma vez que os mesmos não eram
dignos de um pedaço de terra para dela retirarem sua sobrevivência, dado
que:

Valhacoutos de malandros, vadios e até foragidos da justi-


ça, põe em sobresalto a zona do planalto médio-Derrubadas
e queimadas criminosas de pinheiros, para plantar milho e
feijão – José da Rosa Sutil, vulgo ‘capitão Belo’ é o chefe
absoluto dos perigosos intrusos, e cobra ‘taxas de localiza-
ção’ aos candidatos -Carpinteiros, açougueiros, pedreiros,
e até um professor, entre os intrusos -De como a notícia da
desapropriação da ‘Fazenda Quatro Irmãos’ provocou uma
corrida para o arroio Facão e negociatas altamente rendosas
-Serrarias invadidas e depredadas pelos intrusos-Daqui só
sairemos pela força, declara o ‘capitão Belo’” (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, POA, 20 JUN, 1949).

A referência à depredação de serrarias é um indicativo da interrup-


ção do processo produtivo dominante, e, único na Fazenda Quatro Ir-
mãos, por parte da ICA, uma vez que os poucos imigrantes judeus lá
residentes tem uma produção agrícola exígua. A única responsável pela
exploração florestal é a Jewish, e, diga-se, sem nenhuma preocupação
com o replantio das mesmas. A década de 1950 é o período de intensa
exploração florestal na região da então Colônia Erechim. Essa madeira é
exportada, e a ICA é acusada de não apenas extrair, mas também de ser
um “entreposto comercial”.

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 549
Após muitas discussões na Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul em torno da ocupação da Fazenda, a criação de uma Comissão
para estudar a possibilidade de desapropriação da área intrusada é pro-
posta e aprovada em junho de 1948. Após intensos debates e estudo da
questão, a desapropriação da área intrusada não é aprovada, pois a Co-
missão responsável por estudar a questão, chega à conclusão de que:

[...], o alto valor da terra no local determinaria a desapro-


priação por elevado preço, o qual, somado ás custas, etc.,
oneraria demasiadamente o Estado. Além disto, abrir-se-ia
um perigoso precedente: imediatamente, do dia para a noite,
nova área seria intrusada para foçar o Governo do Estado a
novas desapropriações, e assim, até a desapropriação de toda
a área da fazenda, bem como das propriedades vizinhas (As-
sembleia Legislativa do RS. ANAIS, 1949, v. 25, p. 539).

Para a Comissão, a fórmula encontrada para a pacificação foi a ven-


da direta dos terrenos pela Jewish. Assim, a venda seria mais rápida,
dispensaria uma demorada tramitação burocrática e seria menos oneroso
ao Estado. Acreditavam que desta forma criaria obrigações a todos os
envolvidos, ao Governo, à Companhia e aos intrusantes.
A Companhia obriga-se demarcar e vender as terras com preços e
prazos razoáveis aos intrusos que tiverem condições de pagar pela mes-
ma. Ao Estado, coube a tarefa de remover os intrusos que não puderem
ou não quiserem comprar terras da Companhia. O Estado cederá uma
área de cinco alqueires no máximo, em qualquer lugar onde houver terra
disponível, sob condição de permanência e inalienabilidade, bem como
transporte, mudança e instalação inicial.
O acordo foi parcialmente cumprido. Apenas 70 famílias foram ins-
taladas nas terras do Estado. Umas 100 famílias ficaram desabrigadas. O
jornal de Erechim A Voz da Serra de julho de 1949, publicava.

Muito os jornais da capital têm falado sobre este delicado as-


sunto, tendo mesmo o Diário de Notícias afirmado que tudo

550 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


estava sendo resolvido amigavelmente, tendo a ICA fornecido
a condução para levar toda a gente para as terras oferecidas
pelo Governo do Estado no Município de Palmeira e Iraí. En-
tretanto, tal afirmativa não corresponde a verdade. Existem
completamente desamparadas algumas famílias no relento e
outras recolhidas por piedade por moradores daquela zona e
abrigados em modestas choupanas (Jornal A Voz da Serra,
Erechim, 28 julho, 1949. AHMJMILF – Erechim/RS).

A defesa do latifúndio é constante no jornal Diário de Notícias. A


presença do repórter na região do conflito só contribuiu para reforçar a
ideia de que lutar pela posse da terra era impedir o progresso e instalar
a desordem. Os colonos nacionais, os chamados intrusos, na visão dos
articulistas do referido jornal, não eram dignos de serem proprietários.
A venda de lotes por preços módicos e a longo prazo aos ocupantes tam-
bém é questionada pelo repórter na publicação de 15 de junho de 1949,
e sempre acompanhadas de uma imagem portadora de negatividade da
luta. Diz o jornal:

É preciso ter em mente que o fato em si, não deixaria de


encerrar seus perigos, entre os quais avultaria o de esti-
mular outras intrusagens, capitaneadas por intrusadores
profissionais. Além disso, a venda pura e simples talvez não
solucionasse o problema. Os intrusos são, na sua virtual tota-
lidade, inadaptados e desajustados sociais.

Continua a mesma reportagem dando o tom já mencionado, porém,


com o acréscimo da desqualificação e estigma:

De posse da terra, ficariam na situação de aprendizes de fei-


ticeiro, sem saberem o que fazer com o que lhes foi colocado
às mãos. Doentes, carcomidos pela sífilis, viciados no álcool
e amolentados na ociosidade, não têm disposição e aptidão
pra o trabalho. Isso se verifica facilmente pelas roças mo-
finas que plantaram na zona intrusada de Quatro Irmãos.

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 551
E o melhor para estes homens, excetuados os ‘profiteurs’ e
os delinquentes, seriam colônias agrícolas onde se tornasse
possível readapta-los e traze-los ao trabalho fecundo, ordei-
ro, sistemático.1

O Diário de Notícias está presente durante todo o período da discus-


são e da solução parcial da questão como demonstramos acima. Consi-
dera ter exercido um papel fundamental na solução do conflito, uma vez
que foi mediador de tal solução. É o que a manchete de capa do dia 25 de
junho de 1949, nos diz.

Figura 06. Capitão Belo e a retirada dos “intrusos” das terras da ICA.
Fonte: Jornal Diário de Notícias. Porto Alegre, 25/jun./1949, p. 16.

552 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


No texto publicado na mesma edição do jornal acima, fica claro o
papel desenvolvido pela grande imprensa, ou seja, legitimar o latifúndio:

As reportagens do DIÁRIO DE NOTÍCIAS sobre a tensa situação


existente na Serra do Facão constituíram fator decisivo na solução
do caso. Lida aos chefes dos intrusos reunidos em assembleia no
arraial do ‘capitão Belo’, os nossos repórteres persuadiram os mais
cordatos a se retirarem do local para as terras que lhes foram ofe-
recidas pelo Governo do Estado, por intermédio da Secretaria da
Agricultura nos municípios de Iraí e Três Passos.Com a defecção
da massa dos intrusos e de muitos dos lugares-tenentes de José
da Rosa Sutil, partiu-se a espinha dorsal da organização armada
que o ‘capitão Belo’ criara a fim de oferecer resistência cruenta às
autoridades incumbidas de executarem a sentença de despejo.
E assim, à madrugada de quinta-feira última, o destacamento da
Brigada Militar enviado ao local, sob o comando do tenente Aqui-
no, estendeu um círculo de aço em torno do arraial do ‘capitão
Belo ‘ e seus principais asseclas, de vez que os demais já haviam
voltado à razão, em consequência das reportagens do DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, que lhes haviam sido lidas. [...]. Isolados da influência
subversiva do ‘capitão Belo’, os demais intrusos retiraram-se entre
demonstrações de alegria, pois teve lugar uma confraternização
entre os ‘sequestras’ e os dirigentes da ICA, sob os auspícios do
DIARIO DE NOTÍCIAS.
O conflito é resolvido de uma maneira tão “amigável” que a Jewish
Colonization Association e o jornal Diário de Notícias oferecem
uma confraternização aos “intrusos”. A Companhia e o Jornal têm
motivos para comemorar. A Jewish continua com seu latifúndio
intocável e o jornal legitimou tal comportamento. Os ocupantes,
ou intrusos, continuaram na sua grande maioria jogados a sua
própria sorte.

Considerações finais
A ocupação do solo na Colônia Erechim, não diferiu das demais
regiões do Rio Grande do Sul. O assentamento dos imigrantes europeus

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 553
e seus descendentes como proprietários de terra gerou a exclusão dos que
aqui estavam, isto é, dos nacionais. Esse processo de inclusão/exclusão
gerou conflitos pela posse da mesma. Conflitos estes, nem sempre en-
tendidos como de luta pela inclusão ao processo produtivo via acesso à
terra. Podemos afirmar que os anos iniciais de ocupação do solo na então
Colônia Erechim foram conflituosos, de luta pelo acesso à terra. Os con-
flitos ocorreram tanto nas áreas pertencentes ao Estado, como nas das
Companhias Colonizadoras. Nestas últimas eles foram mais intensos.
Os casos brevemente discutidos acima, o do “Capitão Belo” e o do
Gaudêncio dos Santos, permite compreender a luta pela posse da terra
por parte dos dela excluídos no processo de assentamento dos imigrantes
e descendentes europeus. O assentamento destes provocou a exclusão dos
que há mais tempo ocupavam essas terras e dela retiravam sua subsistên-
cia. A inclusão/ exclusão ocorre tanto nas chamadas terras devolutas,
quanto nas das Companhias Privadas de Colonização. O conflito envol-
vendo Gaudêncio dos Santos e o “Capitão Belo” provam isso. Não foram
os únicos casos deste período. Aluta pela inclusão à terra não cessou, ela
tomou outras formas. Ela se dá via sindicatos, associações e movimentos
sociais. É a reação provocada pela exclusão.

Referências
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ângulos pela bibliografia, pelos jornais e pela memória. Trabalho de Conclusão de
Curso. Universidade Federal da Fronteira Sul. Erechim, 2017.
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(1900-1950). 2ª. ed. Erechim: Edelbra, 2003
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e a Colonização de Quatro Irmãos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1997.

554 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


ILLA FONT, Juarez Miguel. Serra do Erechim – tempos heróicos. Erechim: Empresa
Gráfica Carraro, 1983
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ROCHE, Jean. A Colonização Alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora
Globo,1969.

GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 555
556 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
A Coluna Prestes e
a Estrada do Colono

Jaci Poli

O território Sudoeste do Paraná possui algumas características que


lhe são muito peculiares e, embora tenha poucos atrativos natu-
rais que o tornem centro de atenções em relação as outras regiões
do país, passou por processos que afirmaram sua identidade regional e
social.
Situado na região de fronteira com a Argentina, sua história está
marcada pela disputa de territórios, desde a invasão de portugueses e es-
panhóis na América. Tomando como referência a microrregião de fron-
teira com a Argentina, formada atualmente pelos municípios de Capane-
ma, Planalto, Realeza, Pérola do Oeste, Bela Vista da Caroba, Pranchita,
Santo Antônio do Sudoeste, Bom Jesus do Sul e Barracão, podemos
afirmar que sua identidade passou por diversos momentos: a) território
espanhol, até os Tratados de Madrid e Santo Ildefonso, quando passou a
ser disputado entre as duas metrópoles, tornando-se território português;
b) território Argentino, na disputa entre os dois países até a definição dos
limites em 1895; c) território catarinense até a definição de limites entre
os dois estados brasileiro em 1916, após a guerra do Contestado.
Foi parte da Espanha, junto com a Argentina e o Paraguai, até os
processos de independência na América Latina, foi território Argentino,
juntamente com Bernado de Irigoyen, Colônia Vanda, San Antônio e
Comandante Andresito até o ano de 1895, e foi território catarinense
até 1916, quando o presidente Wenceslau Brás mediou um acordo entre
os dois Estados (Paraná e Santa Catarina) para formação das fronteiras
entre os estados.
Hoje essa região convive com a sua realidade de fronteira, tanto in-
ternacional com os municípios argentinos, como nacional entre os esta-
dos de Santa Catarina e Paraná, buscando construir uma relação que, em
determinados momentos, é lugar de separação, e, em outros, é espaço de
integração.

Definiram-no como território brasileiro


A região Sudoeste do Paraná, na sua trajetória histórica, tornou-se
território brasileiro a partir de 1895, quando foi decidida a Questão de
Palmas, a partir da mediação do presidente dos Estados Unidos.
De acordo com os Artigos Declaratórios da Demarcação de Frontei-
ras entre os Estados Unidos do Brasil e a República Argentina, assinados
em 04 de outubro de 1910, a demarcação das fronteiras estabelecidas na
solução da Questão de Palmas foi realizada em 1903 e 1904, sendo defi-
nidos os marcos divisórios na fronteira entre o Oeste de Santa Catarina e
o Sudoeste do Paraná com a Argentina no ano de 1903.
Além das definições territoriais que o acordo trouxe, certamente
houve momentos de conflitos identitários entre a população local, nos
territórios brasileiro e argentino. Estes sofriam com a disputa territorial e
passavam a vivenciar a fronteira como espaço de rivalidade e de separa-
ção. A vivência de uma contradição entre integração e separação ainda
é pouco estudada e configura um desafio para os historiadores da região,
dos dois lados da fronteira, construir laços e produzir identidades capa-
zes de torná-la única.

558 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Decidiram que seria paranaense
Observando-se o Mapa de Santa Catarina de 1892 e o Mapa do Pa-
raná de 1911, pode-se verificar que os territórios do Sudoeste do Paraná
e do Oeste de Santa Catarina ainda estavam em disputa, pois as regiões
constavam nos dois territórios.
O Mapa do Paraná incluía a região Oeste de Santa Catarina, tendo
seus limites ao sul no Rio Uruguai, fazendo fronteira com o Rio Grande
do Sul.

Figura 01. Mapa do Paraná de 1911. Fonte: www.tjpr.jus.br.

No mapa de Santa Catarina estava incluída a região Sudoeste, com


as fronteiras com o Paraná definidas pelo Rio Iguaçu.

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 559
Provavelmente, se formos buscar os mapas da região de Misiones, na
Argentina, antes de 1895, encontraremos mapas incluindo esse território
com parte daquele país, o que seria muito interessante para uma pesquisa
posterior.

Figura 02. Mapa de Santa Catarina de 1892.


Fonte: www.brasil-turismo.com/santa-catarina/mapas

Mais tarde, em 1916, a partir de mediação do presidente do Brasil,


Wenceslau Brás, os Estados de Santa Catarina e do Paraná decidiram a
localização de suas fronteiras. Depois de muitas mortes e destruição pro-
vocadas pela Guerra do Contestado, personagens populares, intitulados
caboclos, em sua busca por terra, confrontam-se com a estrutura de dois
estados e do governo federal no contexto de uma disputa por um territó-
rio ainda pouco explorado e desconhecido, tanto pelo Paraná, quanto por
Santa Catarina. Sua principal atração à época poderia ser a exploração
da madeira nas áreas concedidas em função da construção da estrada de
ferro de São Paulo ao Rio Grande, além do ramal oeste a leste no Paraná.
Após a solução do conflito, os dois estados passaram a buscar a ocu-
pação e a garantia da posse do território recém-conquistado.

560 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Enquanto eram definidas as fronteiras entre os estados do Paraná e
de Santa Catarina, o Brasil já começava a viver as turbulências provoca-
das pela primeira Guerra Mundial e as crises econômicas que a acom-
panhavam. Neste ínterim ocorriam: Greve geral em São Paulo em julho
de 1917, o fortalecimento do movimento sindical anarquista no Brasil,
a revolução russa de outubro de 1917, a intensificação dos movimentos
populares e socialistas.
Presume-se que, no Sudoeste do Paraná, poucas pessoas acompa-
nhavam essa conjuntura internacional e, tampouco, conhecimento da
realidade brasileira, especialmente pelo isolamento em que viviam.
Certamente poucos moradores dessa região tinham conhecimento
do movimento tenentista, que contestava a eleição de Artur Bernardes,
e se movimentava em busca dos ideais de uma política sem corrupção e
sem o mandonismo da oligarquia agrária.
Esse tenentismo (FAUSTO, 2015) ficou conhecido pelos seus levan-
tes, especialmente pelo levante do Forte de Copacabana e pela sua re-
jeição à política dos governadores, que tinham como protagonistas os
estados de São Paulo e Minas Gerais, foi protagonista de alguns momen-
tos históricos, especialmente por uma contestação diferenciada que pro-
vocou muitas reações no Brasil: a marcha da Coluna Prestes, de caráter
tenentista, e que vagou pelo Brasil por quase 25.000 km sem nunca ser
derrotada pelo exército brasileiro.

A Coluna Prestes e sua passagem pelo Sudoeste Paranaense


No ano de 1925 a Coluna Prestes, ainda em sua fase inicial passou
pelo Oeste de Santa Catarina e pelo Sudoeste do Paraná em sua marcha
para se encontrar com os tenentistas vindos de São Paulo, que aguarda-
vam acampados em Catanduvas e Santa Helena, no Paraná.
Esse movimento, de caráter militar, não é muito conhecido da po-
pulação e muitos historiadores o inserem no debate do tenentismo sem

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 561
dar-lhe destaque, desconsiderando sua especificidade e sua condição de
movimento de contestação ao poder instituído, especialmente ao presi-
dente da República, Artur Bernardes. Anita Prestes, na introdução de seu
livro “Uma epopeia brasileira – a Coluna Prestes” afirma que a adesão
de Luiz Carlos Prestes ao comunismo, bem como o rompimento de seus
ideais tenentistas, culminou no esquecimento do movimento.
Propomos uma discussão sobre o papel dos participantes da Coluna
Prestes na constituição da região de fronteiriça, Sudoeste do Paraná e
Argentina. Para tal, o arcabouço teórico está constituído pelos seguintes
autores:

• Os dois volumes do livro “Marchas e Combates: A coluna invic-


ta e a revolução de outubro”, de Lourenço Moreira Lima, escrito
em 1928 e publicado em 1931. Lourenço participou em todo o
trajeto da Coluna e fez um relato bem detalhado de todas os mo-
mentos vividos nos mais de 25.000 km de marcha.
• Livro “Memórias de um revolucionário”, de João Alberto Lins
de Barros, publicado pela Editora Civilização Brasileira em
1953, que tem o caráter de diário da Coluna Prestes. O autor par-
ticipou de todo o movimento e foi companheiro de Luiz Carlos
Prestes desde o Rio Grande do Sul até a desmobilização quando
entram na Bolívia, milhares de quilômetros depois.
• Tese de doutorado de Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Car-
los Prestes, publicada em livro com o título “A Coluna Prestes”,
pela Editora Brasiliense. O livro consultado é da 2ª Edição, de
1991.
• De Domingos Meirelles, o livro “As noites das grandes foguei-
ras – uma história da Coluna Prestes”, publicado pela Editora
Record, em sua 1995, em sua 2ª edição.
• Livro de Anita Leocádia Prestes com o título “Uma epopeia bra-
sileira – A Coluna Prestes” publicado pela editora Moderna, em
1995.

562 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


• Livro de Memórias de Paulo Cavalcanti intitulado “O caso eu
conto como o caso foi: da Coluna Prestes a Queda de Arraes”,
da Editora Alfa-Ômega, publicado em 1978.
• O livro “A Coluna Prestes – Análise e Depoimentos” de Nel-
son Werneck Sodré, publicado em 1978 pela Editora Civilização
Brasileira.
• O livro da Coleção História em Aberto, da Editora Scipione, pu-
blicado em 1992, escrito por Luiz Maria Veiga com o título “A
Coluna Prestes”.
• Livro de autoria de Neil Macaulay, de título “A Coluna Prestes –
Revolução no Brasil”, publicado em 1977, pela editora Difel. O
livro consultado está na segunda edição.
• Livro de Renato Mocellin, da coleção Lutas de nosso Povo, da
Editora Brasil, com o título “Coluna Prestes: a grade marcha”.
• Livro de Eliane Brum, sob o título “Coluna Prestes: O Acesso
da Lenda”, publicado pela Editora Artes e Ofícios, que se trata
de um resgate da memorias sobre a Coluna Prestes relatado pela
repórter que percorreu os 25.000 km da marcha.

A partir das leituras desse conjunto de obras foi possível acompanhar


de forma intensa a trajetória desse movimento em seus mais de 24.000
km pelo Brasil, até a sua dispersão na Bolívia e, de forma mais pontual
em relação ao objetivo do trabalho, descortinar a trajetória da Coluna
Prestes desde sua entrada em Santa Catarina até sua chegada ao Oeste
do Paraná, passando por Capanema e pelo atual Parque Nacional do
Iguaçu, abrindo um caminho que se perpetuou como Estrada do Colono.
Desde Porto Feliz, comunidade atualmente denominada Mondaí,
em Santa Catarina, até a travessia do território formado pelo atual Par-
que Nacional do Iguaçu, a Coluna passou por locais pouco habitados e
pouco conhecidos, tanto dos revoltosos quanto dos governos estaduais.
Partindo dos dois volumes do livro de Lourenço Moreira Lima, publica-
dos em 1931, com o título “Marchas e Combates (A Coluna Invicta e a

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 563
Revolução de Outubro)” e do livro “Memórias de um Revolucionário”
de João Alberto Lins de Barros, pode ser acompanhada a trajetória da
marcha, que promove a abertura de um caminho na mata espessa para
a travessia do território, estabelecendo o traçado da Estrada do Colono,
que se tornou objeto de disputa entre as populações dos municípios lin-
deiros ao Parque Nacional do Iguaçu e os órgãos ambientais. O Mapa
elaborado em 1928 e publicado em 1931 por Lourenço Moreira Lima,
segue, no percurso entre Barracão e a região Oeste do Paraná, o trajeto
da rodovia reconhecida pelo governo do Estado do Paraná em seu Mapa
Rodoviário de 1926.
Embora as localizações geográficas não sejam muito precisas no
mapa da Coluna Prestes, há uma clareza de que, ao atravessar o Rio Igua-
çu, seguiu por um caminho através do espaço onde posteriormente seria
criado o Parque Nacional do Iguaçu.
O Mapa Viação do Estado do Paraná, publicado em 1925/1926
apresenta o traçado do caminho que coincide com a descrição da Estrada
do Colono e que segue a linha do roteiro da caminhada da Coluna Pres-
tes para atravessar o território para ir ao encontro do General Isidoro e
suas tropas, que estavam estacionadas no Oeste do Paraná, sendo parte
dela em Catanduvas e o restante na região de Foz do Iguaçu.
O presente trabalho investiga a passagem da Coluna Prestes e sua
importância para a definição do traçado da Estrada do Colono, a partir
das descrições contidas nos mapas e nas narrativas produzidas nas déca-
das de 1920 e 1930, afirmando sua preexistência em relação à criação do
Parque Nacional do Iguaçu.
No entanto, para caracterizar esse espaço de disputa que ainda per-
manece é fundamental compreender a Coluna Prestes e suas motivações,
ligando historicamente a região Sudoeste do Paraná com os aconteci-
mentos que mobilizaram o Brasil durante a década de 1920.

564 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Figura 03. Mapa Viação do Estado do Paraná - 1925-1926.
Fonte: Arquivo Público do Paraná.

Figura 04. Mapa da Marcha da Coluna Prestes apresentado no livro Marchas e


Combates, Volume 01, de Lourenço Moreira Lima, em sua primeira edição, de
1931. Fonte: Livro Marchas e Combates, de Lourenço Moreira Lima, Vol 1, p. 30.

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 565
A sociedade brasileira na primeira fase da República
O estudo do tenentismo no Brasil, e da Coluna Prestes como sua ma-
nifestação mais duradoura, somente é possível tomando como ponto de
partida a estrutura da sociedade brasileira durante o período republicano,
que os historiadores classificam como República Velha, que se estende de
1889, com a sua proclamação, até 1930, quando ocorre a sua maior crise
e sua transformação em detrimento aos governos oligárquicos.
Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes, líder do mo-
vimento tenentista e da Coluna que leva seu nome, inicia sua tese de
doutoramento com uma análise da sociedade brasileira, em que salienta
a inexistência de condições de surgimento de contestações ao poder das
oligarquias.

A esmagadora maioria da Nação era composta pelas popula-


ções rurais, submetidas ao domínio dos “coronéis”, cujo po-
der fora mantido graças ao funcionamento dos mecanismos
estabelecidos pela “política dos governadores”, instaurada no
quadriênio Campos Sales. Viviam num mundo à parte, sem
nenhuma participação na vida política nacional, a não ser a
do voto de cabresto depositado nas urnas a mando do che-
fe político local, do qual eram totalmente dependentes. Não
havia como esperar que viesse a surgir dos setores rurais um
movimento que pudesse questionar o poder das oligarquias
dominantes. As massas rurais continuavam a engrossar a
clientela dos donos das terras, sem a menor condição de in-
fluir nos acontecimentos nacionais (PRESTES, 1991, p 72).

No entanto, é necessário reconhecer que a sociedade brasileira apre-


sentava graus cada vez mais acentuados de violência, especialmente no
campo, onde as disputas pela terra eram cada vez mais acirradas. Confor-
me Lígia Osório da Silva (2008), “a violência sempre foi e continua sendo
uma presença constante no campo” (SILVA, 2008, p. 278) acordo com a
autora, as primeiras décadas do período republicano tiveram característi-
cas muito próprias, especialmente em relação ao coronelismo.

566 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


No cerne da problemática coronelista estava a questão da
permanência do poder privado, em crescente contradição
com a influência do poder público. Os remanescentes do pri-
vatismo eram, no entanto, alimentados pelo poder público,
em razão do regime representativo de base eleitoral ampla,
que deu uma importância toda especial ao voto rural. Como
representante do mandonismo local, o coronel exercia sua
influência, paternal se possível e coercitiva se necessário,
sobre as camadas mais pobres da população que vivia fre-
quentemente como agregada nas terras dos poderosos locais
(SILVA, 2008, p. 279).

No contexto dessa sociedade houve muitos movimentos sociais no


campo e que foram duramente reprimidos pelo Estado, especialmente
porque sua característica fundamental era a luta pela terra, que era a base
do poder dos coronéis. Dentre os movimentos sociais do campo que se
caracterizaram pelos conflitos agrários que se converteram em confron-
tos armados, normalmente atingindo a população mais pobre, podemos
citar a Guerra do Contestado, que ocorreu justamente no espaço da dis-
puta territorial entre os estados de Santa Catarina e do Paraná, conforme
explicitado na introdução deste trabalho.
Essa sociedade brasileira começou a viver, na década de 1920, mo-
mentos de contestação ao poder oligárquico, que dominava o Estado no
Brasil, podendo ser citados a Semana da Arte Moderna e todo o processo
de renovação intelectual que a caracterizou, a criação do PCB – Partido
Comunista do Brasil, em 1922, sob influência da Revolução Russa de
1917, e a pressão para a escolarização da população, que era majoritaria-
mente analfabeta.

Além disso, o próprio desenvolvimento capitalista em curso


no país ia gerando usa sociedade mais complexa e diversifi-
cada, em que as novas forças sociais e políticas começariam
a exigir que seus interesses e reivindicações fossem ouvidos
e atendidos. Não só os grupos oligárquicos marginalizados
pela hegemonia paulista buscavam formas de articulação e

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 567
pressão, visando à conquista de maiores espaços institucio-
nais que lhes permitissem participar das decisões políticas e
econômicas, como também o proletariado e as camadas mé-
dias urbanas passavam a tentar influir nos acontecimentos
políticos, ensaiando novas formas de mobilização e organi-
zação, ainda que incipientes. Abria-se um período de impor-
tantes lutas grevistas, principalmente em São Paulo e Rio de
Janeiro (PRESTES, 1991, p. 63).

Ao mesmo tempo, a base econômica brasileira continuava a ser


agroexportadora e recebendo os incentivos para o aumento da produção,
a respeito da quantidade enorme de estoques existentes.
Conforme Prestes (1995), a política governamental favorecia ao au-
mento da superprodução de café, sem a existência de mercados para ab-
sorvê-lo.

O café excedente era comprado pelos governos dos estados


que o produziam (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro),
cujos estoques do produto aumentavam assustadoramente,
enquanto os lucros dos cafeicultores ficavam garantidos. E o
povo pagava a conta, pois essa política de valorização do café
levava à desvalorização da moeda brasileira e ao aumento
dos produtos de consumo popular. A economia do país, an-
corada na agroexportação de alguns poucos produtos como
o café, a borracha, o algodão e o cacau, dependia, em grande
medida, das oscilações do mercado internacional. Assim, nos
momentos de crise do capitalismo mundial, a economia bra-
sileira era duramente afetada (PRESTES, 1995, p 19).

Essa política do governo brasileiro privilegiava a oligarquia que se


mantinha no poder e deixava o restante da população completamente de-
samparada. Foi durante os mais de 40 anos da República Velha que essa
política predominou no Brasil e, embora os focos de industrialização que
já apareciam no país, permaneceu dependente de um produto agrícola de
exportação como única fonte de divisas para o país.

568 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


O Movimento Tenentista no Brasil
Quando se discute a caracterização do movimento tenentista en-
quanto movimento social, a primeira constatação é de que ele nunca se
reconheceu pelo nome de “tenentismo”. Foi um fenômeno brasileiro da
década de 1920, que se estruturou no meio do exército, que sempre foi
sustentáculo da oligarquia agroexportadora do Brasil.
Pode ser considerado um movimento social? Ou apenas pode ser
considerado um movimento de rebelião militar em busca do poder polí-
tico?
Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes, em sua tese
de doutorado, remodelada em livro, analisa a trajetória do movimento
tenentista, que foi marcado profundamente pela ação de seu pai. Seus
questionamentos podem servir de referência para o início deste trabalho.

O tenentismo vinha preencher o vazio deixado pela falta de li-


deranças civis aptas a conduzirem o processo revolucionário
brasileiro que começava a sacudir as já caducas instituições
políticas da República Velha. Os “tenentes” substituiriam os
inexistentes partidos políticos de oposição aos governos oli-
gárquicos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes. Semelhan-
te constatação leva-nos a novas indagações: quais seriam as
causas determinantes da ação dos “tenentes”? O que os mo-
via? Por que uma parte da juventude militar partia para a
rebelião, apesar de pertencer a uma instituição estatal como
o exército, cuja função sempre fora a defesa dos interesses
das classes detentoras do poder político? Se, por suas origens
sociais, os “tenentes” provinham das camadas médias urba-
nas, por que motivo não se formaram lideranças civis que
pudessem cumprir o papel desempenhado pelo tenentismo
(PRESTES, 1991, p 73)?

João Alberto Lins de Barros, em seu livro “Memórias de um Revo-


lucionário” descreve o início daquilo que chama de movimento revolu-
cionário a partir da disputa presidencial, quando uma carta aberta de um

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 569
dos candidatos, Sr. Artur Bernardes, foi publicada e era ofensiva aos mi-
litares (BARROS, 1951, p. 19). A revolta dos militares se deu a partir da
jovem oficialidade, que posteriormente seria denominada de “tenentes”.

Ao malogro do movimento armado seguiram-se as prisões e


transferências de unidades. Cinco meses de detenção fizeram
de mim um bom revolucionário. O convívio, na prisão, com
outros oficiais mais esclarecidos em política, ensinou-me
muita coisa. O Capitão Joaquim Távora tornou-se nosso lí-
der […] Falava bem e argumentava com fatos novos para nós,
oficiais jovens e bisonhos na política (BARROS, 1953, p. 21).

A crítica à política da época, especialmente em função da domina-


ção da oligarquia cafeeira e o insucesso dos levantes ocorridos no Rio
de Janeiro levaram a um segundo levante, em 1924, em São Paulo. Sem
condições de enfrentar a estrutura do Estado e o exército, os rebelados
de São Paulo dirigem-se ao interior do Paraná para fugir de uma derrota
iminente contra as forças armadas da república.
No Rio Grande do Sul o levante tenentista teve vários focos, mas se
concentrou em São Luiz Gonzaga, próximo de Santo Ângelo, longe das
ferrovias e do alcance do exército legalista, de onde partiu em direção ao
Paraná, para encontrar-se com a coluna de São Paulo.

A passagem pelo Sudoeste do Paraná


A Coluna Prestes fugia do Rio Grande do Sul onde era perseguida
pelo exército do governo gaúcho e seu grande objetivo era chegar até Foz
do Iguaçu onde encontraria o grupamento que havia saído de São Paulo.

Os rebeldes moviam-se com dificuldade por Santa Catarina,


deslocando-se a pé – pois haviam perdido quase todos os ca-
valos ainda na região do Rio Uruguai -, a uma velocidade de
marcha que não superava os 20 – 30 quilômetros diários.

570 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Finalmente em 7/2/1925, a Coluna atingia a cidadezinha de
Barracão (Paraná), na fronteira oeste de Santa Catarina […]
Na espera de armas e munição, os revolucionários gaúchos
permaneceriam durante um mês e meio na região fronteiri-
ça do Paraná com Santa Catarina, desenvolvendo uma típica
guerra de guerrilhas (PRESTES, 1991, p. 161).

No livro que é considerado como um diário da Coluna Prestes, João


Alberto Lins de Barros (1953) afirma aliviado com a chegada a Barracão,
depois de uma estafante trajetória, mas com a decepção de não encontrar
as tropas paulistas, que tinham se comprometido em abrir um caminho
para chegar a Iguaçu.

Chegamos, finalmente, a Barracão. Era uma importante eta-


pa vencida à custa de grandes sacrifícios. Lá esperávamos en-
contrar a tropa paulista que prometera vir esperar-nos para
nos conduzir à Iguaçu. A picada, porém, ainda não estava
terminada. Desde o início de nossa marcha, desde que aban-
donamos São Luís (rumo ao Norte), deveriam os revolucio-
nários em Foz do Iguaçu, no Paraná, ter começado a abertura
do caminho para Barracão. A tarefa era mais dura do que eles
pensavam e o trabalho, entregue a poucos homens, não ren-
dia. Falava-se de um velho caminho que não fora encontrado.
A floresta densa e as serras eram obstáculos incríveis que não
podiam ser transpostos com a facilidade que a princípio se
imaginara (BARROS, 1953, p . 76).

A permanência em Barracão se estendeu para mais de um mês em


função da dificuldade em conseguir avançar, especialmente porque, daí
para diante, praticamente não havia moradores e nem estradas ou pica-
das conhecidas que pudessem seguir para chegar a Foz do Iguaçu.
Uma das questões que precisa ser analisada é a contradição entre
a narrativa da Coluna em relação à sua passagem pelas localidades e a
narrativa das comunidades onde a Coluna chegava. Sem dinheiro e com
necessidade de se alimentar, a Coluna ia saqueando as comunidades, re-

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 571
quisitando tudo o que encontrassem pela frente. Carne e diversos tipos de
mantimentos, todos eram tomados da população.
O olhar da Coluna sobre a chegada a Barracão difere da perspectiva
daqueles que lá já estavam. No livro “Coluna Prestes: o avesso da lenda”,
de Eliane Brum, a perspectiva dos moradores da comunidade foi a da
chegada de um bando de saqueadores. Impotentes para combatê-los e
sem instrumentos para buscar proteção contra eles, a população foge de
suas casas e de suas terras, em direção à Argentina, em busca de prote-
ção para suas vidas, embora tendo que deixar para trás suas casas e seu
patrimônio.

A cidade paranaense de Barracão em nada lembra hoje o lu-


garejo deserto e atrasado descoberto pelos revoltosos ao ocu-
par a região durante um mês e meio. Na aurora daquele ano
de 1925, a população disparou para a Argentina e só voltou
quando não havia rastro das botas gaúchas na terra fértil do
Paraná. Foi um tempo de fartura para os rebeldes. Comeram,
beberam e dormiram enquanto os moradores buscavam bis-
cates para sobreviver ao exílio forçado na Argentina. “Quan-
do voltou, não existia mais gado e o comércio estava saquea-
do”, conta Sílvio de Andrade, 76 anos, um homem que só foi
conhecer as armas na II Guerra mundial, ao integrar a Força
Expedicionária Brasileira (FEB) (BRUM, 1994, p. 41).

A descrição do heroísmo de quem vivia a Coluna contrasta de for-


ma muito forte com o olhar das populações que são atingidas pela sua
passagem. Por essa razão, as lembranças da Coluna Prestes na região
nem sempre retratam o movimento de luta pela transformação da política
nacional, mas se concentra na destruição e na violência sofrida quando
de sua passagem.
A tropa tenentista que vinha do Rio Grande do Sul tinha certeza de
que, ao chegar em Barracão, encontraria um caminho aberto pela mata
densa da região. No entanto, o sonho desse caminho se esvaiu, pois as

572 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tropas paulistas não estavam em condições de dar cobertura às tropas
vindas do Rio Grande do Sul.
Sem a abertura do caminho por parte das tropas vindas de São Pau-
lo, restou à Coluna, vinda do Rio Grande do Sul, promover a abertura
da estrada.

Começamos nós mesmos a avançar de Barracão, na rota de Foz


do Iguaçu, a abrir caminho a fim de apressarmos a junção de
nossas tropas. Uma turma de cinquenta homens experimenta-
dos trabalhava agora com afinco pelo nosso lado. Nós nos en-
contrávamos praticamente engarrafados. Enquanto não abrís-
semos aquele trilho, não seria possível o prosseguimento da
marcha para o Norte. Mesmo assim calculamos que o trabalho
levaria um mês, tais as dificuldades do terreno (BARROS, 1953,
p. 76).

O caminho foi aberto e a passagem em direção a Iguaçu permitiu


que a Coluna seguisse seu caminho. O sonho de encontrar a coluna vinda
de São Paulo era acalentado pela necessidade de armas, pela maior segu-
rança do movimento e pela possibilidade de produzir um impacto maior
no Estado brasileiro, cujo governante fora objeto de tanta repulsa por
parte dos rebelados. No entanto, toda a perspectiva otimista da marcha se
esvaía com a queda da posição mantida pelos paulistas em Catanduvas.

Quando, finalmente, a picada para Iguaçu ficou pronta, Prestes


mandou-nos evitar qualquer contato com o inimigo e reiniciar a
marcha para o Norte. […] Mas a sorte ainda dessa vez nos traiu.
A junção das duas forças rebeldes parecia não ser bafejada pelo
destino. Justamente quando eu começava, tranquilo, a atraves-
sar o Rio Iguaçu, recebi comunicação de Prestes para não perder
um instante e ativar a passagem. Catanduva, a principal posição
dos revolucionários paulistas, acabava de capitular depois de
renhido combate, deixando-nos praticamente a mercê da tropa
do governo. Toda a nossa gente fora chamada às pressas a fim
de nos proteger a passagem (BARROS, 1953, p. 79).

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 573
As expectativas de reforços não podiam ser atendidas, pois a situa-
ção dos rebeldes vindos de São Paulo parecia cada vez mais desesperado-
ra, uma vez que suas posições estavam fragilizadas pelas perdas e pelas
derrotas. No entanto, ainda ocorriam adesões, embora com bem menos
condições de influenciar positivamente na situação da Coluna.
Para além das questões de apoio à Coluna Prestes, observa-se nos
livros algumas narrativas de um outro caminho aberto, partindo da loca-
lidade de Benjamin Constant em direção ao sul, para encontrar a coluna
vinda do Rio Grande do Sul.
No entanto, os principais autores que descrevem a passagem da Co-
luna pelo Rio Iguaçu, passando pela área do atual Parque Nacional do
Iguaçu, afirmam a construção da picada pela própria coluna vinda do
Rio Grande do Sul.
Meirelles (1996) afirma que o caminho foi construído por Fidêncio
de Mello depois de ter visitado o General Isidoro, considerado como um
dos maiores líderes do movimento revolucionário.

O único reforço recebido pelos revolucionários desde que


entraram no Paraná fora a visita do coronel revolucionário
Fidêncio de Mello, amigo pessoal do general João Francisco,
e conhecido fazendeiro na região do Contestado, que aguar-
dava em Barracão a chegada das tropas comandadas por Luís
Carlos Prestes. Em conversa com Isidoro, em Foz do Iguaçu,
Fidêncio havia prometido ajudar os rebeldes no sul. Ele le-
vara 50 dias para abrir uma picada de Benjamin Constant,
no Paraná, a Santo Antônio, em Santa Catarina, para que
fosse estabelecida a ligação entre paulistas e gaúchos (MEI-
RELLES, 1996, p. 348).

O papel desse “revolucionário” Fidêncio de Mello, no entanto, foi


interpretado de forma muito diferente no livro de Leocádia Prestes, que
se fundamentou nas entrevistas, memórias e anotações de Luiz Carlos
Prestes, o seu pai.

574 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Neste momento de grandes dificuldades para os revolucioná-
rios, Prestes recebe a visita do “coronel” Fidêncio de Mello,
fazendeiro da região do Contestado, que prometera ao ge-
neral Isidoro, em Foz do Iguaçu, prestar ajuda aos rebeldes.
Fidêncio de Mello comprometia-se a colaborar com a coluna
gaúcha. Mas, diante do avanço inimigo, os soldados desse
“coronel”, que se dizia revolucionário, acabariam debandan-
do junto com o seu chefe rumo à Argentina, deixando o flan-
co esquerdo da Coluna a descoberto. Prestes seria forçado a
manobrar com rapidez e, apelando para o destacamento de
Siqueira Campos, organizar uma rápida retirada novamen-
te em direção a Barracão, de onde as tropas haviam partido,
na tentativa de golpear o general Randon pela retaguarda
(PRESTES, 1991, p. 163).

Aparentemente o que ocorreu com a Coluna neste momento foi uma


mudança de rumos em relação aos seus objetivos. Com a debandada do
aliado, houve necessidade de recuar e buscar um novo caminho, não mais
objetivando atacar os inimigos da Coluna, mas tencionando conseguir se
resguardar de uma derrota que poderia ser fatal.
Por essa razão, a picada Benjamin, que havia sido aberta, provavel-
mente por Fidêncio de Mello, foi abandonada e a Coluna passou a buscar
um caminho que possibilitasse chegar ao encontro do que restava das
tropas do General Isidoro sem muitos confrontos com as forças governa-
mentais.
Wachowicz (1987) também aponta a abertura da picada Benjamin,
que teria sido aberta de Benjamin Constant a Santo Antônio, buscando
encontrar as tropas de Prestes.

Fidêncio de Mello guarnecia pois o flanco direito dos revolu-


cionários. O papel de Fidêncio no flanco direito, era o mes-
mo do exercido no flanco esquerdo por Cabanas: golpear as
linhas de abastecimento. Não havia porém uma estrada que
comunicasse as forças revolucionárias, que estavam em Ca-
tanduvas, com as de Fidêncio, no ex-contestado. Foi por isso

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 575
aberta por Fidêncio uma picada, que ia de Benjamim Cons-
tant em direção ao sul, rumo a Sto. Antônio (WACHOWICZ,
1987, p. 119).

Entre os diversos autores que falam deste momento da Coluna, po-


de-se citar Cabanas, que também fala de Prestes na travessia do Rio Igua-
çu, mas reporta apenas o momento de encontro entre Prestes e o general
Costa, já em Benjamin, que seria p início do caminho por onde tria pas-
sado Prestes.

Momentos depois, presente a officialidade, o general M. Cos-


ta deu-nos a honra de informar que no dia 3 tinha ido a Ben-
jamin, bocca da picada que ia ter a Barracão, receber e confe-
renciar com o coronel Luiz Prestes, alli chegado, precedendo
a coluna rio-grandense que com a maior abnegação e illudin-
do a perseguição do exército governista, havia atravessado
o Estado de Santa Catharina tendo já passado o rio Iguassú
(CABANAS, 1926, p. 325).

A incerteza persiste no que se refere ao fato de a Coluna Prestes ter


passado pela estrada do Colono em seu traçado existente quando do seu
fechamento por ordem judicial, ou se passou por outro local, diferente
daquele traçado, parece ser uma forma de negar que esse trajeto, entre os
municípios atuais de Capanema e Serranópolis do Iguaçu, tenha existido
antes da criação do Parque Nacional do Iguaçu. É o debate feito por Dias
(2006), que tenta desqualificar a teoria da passagem da Coluna Prestes
como uma das evidências da existência de um caminho entre os dois
locais.

Aliás, a dúvida quanto à relação entre a picada aberta pela


Coluna Gaúcha e a origem da Estrada do Colono fica maior
quando analisamos atentamente o seguinte relato sobre a
passagem dos militares rebelados pelo Rio Iguaçu, feito por
Lourenço Moreira Lima 29: “A 28 [de março de 1925], a Co-
luna iniciou a travessia do rio Iguaçu, perto da barra do rio

576 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Floriano Peixoto [...]” (apud LAZIER, 2003, p. 192). Ao con-
sultarmos o mapa do PNI, constatamos que a barra (foz) do
Rio Floriano não coincide com o ponto de início da Estrada
do Colono, isso significa dizer que os soldados teriam que se
deslocar, a partir do ponto de travessia (Rio Floriano), apro-
ximadamente vinte quilômetros em direção ao oeste, mar-
geando o Rio Iguaçu, até o local onde se encontra o início da
estrada, na divisa com o município de Capanema, tarefa des-
provida de sentido, considerando a urgência de chegar até a
localidade de Benjamin e a necessidade de abrir uma picada
no meio da mata (DIAS, 2006, p. 42).

Afirmamos categoricamente que, pelos traçados dos mapas dese-


nhados por vários autores que acompanharam e narraram as peripécias
da Coluna Prestes, é que a localização exata pode não ser possível, e nem
os vestígios tenham perdurado no tempo para confirmar ou negar essa lo-
calização, mas não existe dúvida que a travessia da Coluna Prestes se deu
através do atual Parque Nacional do Iguaçu, saída de Barracão, passando
por Santo Antônio e se dirigindo em direção a Foz do Iguaçu.
Na comparação entre os mapas apresentados neste trabalho, em par-
ticular o Mapa Rodoviário do Paraná de 1925-1926 e o Mapa publicado
em 1931 por Louenço Moreira Lima, constatam-se evidências de que a
passagem existiu e tem uma história muito longa, que pode remontar ain-
da ao século XVI, quando da criação das Reduções Jesuíticas do Guairá,
especialmente a Redução Jesuítica de Santa Maria, cuja localização exa-
ta poderá ser buscada através das investigações históricas.

Considerações finais
Um primeiro aspecto a ser ressaltado é a grande persistência da Co-
luna Prestes em sua caminhada de contestação à ordem estabelecida, as-
sentada no poder de mando da oligarquia paulista do café que, muito pela
arrogância, considerava-se o centro de tudo no Brasil, desconsiderando o

POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 577
restante da sociedade, como se fosse um mero complemento, sem signifi-
cado, para seu domínio.
Outro ponto que pode ser questionado é a ausência do debate sobre
a Coluna Prestes quando se estuda a Revolução de 1930. Há uma razão
explicitada pelos próprios autores participantes da Coluna que estabelece
como um dos elementos para o esquecimento a opção de Prestes pelo
Comunismo, palavra e posição que até hoje provoca arrepios à direita
política, especialmente aos militares.
Diante de tais aspectos, vale questionar: Um movimento social? Ou
uma rebelião militar? Uma aventura heroica a partir do olhar de quem
participa. Sem embargo, na visão das comunidades por onde passaram, o
mais sórdido saque, violações e atrocidades.
As ações da Coluna culminaram na a abertura de um caminho, que
pode ter sido no mesmo lugar onde se localizava a estrada do colono,
consolidava uma passagem pela região que, hoje, é o Parque Nacional do
Iguaçu. Contudo, não seria mero preciosismo a discussão sobre a exati-
dão da trajetória como coincidente com a estrada do colono?

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POLI,, Jaci. A Coluna Prestes e a Estrada do Colono


POLI 579
580 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Sobre os autores e autoras
Antonio Marcos Myskiw
Possui graduação em História pela Universidade Estadual do Oeste do Pa-
raná (2000), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminen-
se (2002) e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense
(2009). Atualmente é docente (Associado D, nivel 1) da Universidade Fe-
deral da Fronteira Sul. Tem experiência na área de História, com ênfase em
História Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: oeste e su-
doeste do paraná, fronteira, conflitos agrários, história agrária e coloniza-
ção. Recentemente passou a pesquisar a história da Educação no Sudoeste
do Paraná, além dos temas “Caminho do Colono” e “Ditadura Militar” no
Sudoeste do PR. Diretor Geral do Campus Realeza, da UFFS, entre julho
de 2015 a julho de 2019. Membro efetivo do Programa de Mestrado em
História, da UFFS, Campus Chapecó “Fronteiras, Migrações e Sociedades”.

Arlene Anelia Renk


Doutora e Mestre em Antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, respectivamente, em 1997 e 1990. Graduada em Le-
tras pela UFPR. Professora titular da Unochapecó. Docente Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais, na Linha Sociedade,
Ambiente e Sustentabilidade. Integra o Corpo Docente Permanente do Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito, atuando na Linha Direito, Cidadania
e Socioambientalismo. Participa como colabora do Programa Profissional
Programa Stricto Sensu da Unochapecó, Políticas Públicas e Dinâmicas Re-
gionais, na qualidade de professora colaboradora. Tem experiência em pes-
quisa e orientação na área de cidadania, socioambientalismo, antropologia
rural, territorialidades, participação e controle social.
Aruanã Antonio dos Passos
Possui graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (2006),
mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná (2009) e douto-
rado em História pela Universidade Federal de Goiás (2016) com período
sanduíche na Universidade de Lisboa. Atualmente é professor da Universi-
dade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) campus Pato Branco e ava-
liador externo de cursos de graduação do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Tem experiência na área de
História, com ênfase em História Intelectual e dos Intelectuais e História das
Ideias no Brasil Império e República, atuando principalmente nos seguintes
temas: Teoria da História e Historiografia, Intelectuais, Violência, Justiça e
Crime, Escola do Recife, Tobias Barreto e Sílvio Romero.

Carina Sartori
Doutora em História Contemporânea, cotutela internacional entre La Ro-
chelle Univeristé e Unesp-Assis. Mestra em História, especialista em Re-
lations internationales et histoire du monde Atlantique, pela La Rochele
Université, Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa
Catarina e Bacharel-Licenciada em História também pela UFSC.

Cassio Brancaleone
Possui licenciatura em Sociologia e bacharelado em Antropologia pela Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora (2003). Mestrado em Sociologia pelo Ins-
tituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2005) e doutorado em
Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012). Atual-
mente é professor do curso de Ciências Sociais e Coordenador Adjunto do
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Uni-
versidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim. Tem experiência na
área de Sociologia e Teoria Política, com ênfases em Sociologia Política,
atuando principalmente nos seguintes temas: Democracia, Autogoverno e
Autogestão; Sociabilidades Emergentes; Movimentos Sociais Latino-ameri-
canos, Estudos Des/Anticoloniais e Anarquismo.

582 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


Clovis Antonio Brighenti
Professor de História das Sociedades Indígenas e da América Latina na Uni-
versidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA. Coordenador
do Centro Interdisciplinar de Antropologia e História. Possui graduação em
História - licenciatura plena - UNOESC - Campus Chapecó (1995). Doutor
em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História na Uni-
versidade Federal de Santa Catarina/UFSC (2012). Mestrado em Integração
da América Latina pela Universidade de São Paulo - USP (2001). Pós-gra-
duado em Comunicação Social pela Universidade São Francisco - SP (1996).
Pós-graduado em ecumenismo e Diálogo Inter-religioso, pelo Instituto Teo-
lógico de Santa Catarina (2009). É colaborador do Conselho Indigenista
Missionário do qual foi membro entre 1988 a 2014; assessora e desenvolve
pesquisas junto às comunidades indígenas Guarani e Xokleng Laklãno nas
temáticas fundiárias, políticas indigenistas e educação escolar. Atua com
projeto de extensão com comunidades Guarani no Brasil, Argentina e Para-
guai. É assessor do Conselho Continental da Nação Guarani - CCNAGUA
(Argentina. Bolívia, Brasil e Paraguai).

Cristiano Augusto Durat


Licenciado em História pela Universidade do Centro-Oeste do Paraná (UNI-
CENTRO/PR), Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo(U-
PF/RS) e Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC-SC). Professor adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul(U-
FFS), campus de Laranjeiras do Sul. Pesquisador do Laboratório de Arqueo-
logia, Etnologia e História (LAEE/UEM) e do Laboratório de História In-
dígena (LABHIN/UFSC). Atua como professor dos cursos de licenciatura
em Educação do Campo: Ciências Humanas e Sociais, Pedagogia e Ciências
Sociais – Licenciatura e Bacharelado, onde também exerce a função de coor-
denador adjunto deste curso.

Sobre os autores e autoras 583


Daniel Luciano Gevehr
Doutor em história (2007) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNI-
SINOS). Possui graduação em história (2000) e mestrado em história (2003)
pela mesma Universidade. É Professor Titular do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Regional (PPGDR - FACCAT), onde também
atua como Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) Instituições, Ordenamento
Territorial e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Regional. É, tam-
bém, coordenador do NIEMI - Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migrató-
rios e Identidades, em parceria com universidades do Brasil e do exterior. É,
também, coordenador de Área do Programa Residência Pedagógica (PRP-
-Capes) do Curso de História da FACCAT. Seu campo de investigação pri-
vilegia, atualmente, as questões que envolvem a problemática do patrimônio
cultural, da educação patrimonial, da memória, das sensibilidades, da pro-
dução dos espaços urbanos, educação e formação docente. Pesquisa, ainda
sobre as representações de raça, etnia e gênero. Tem experiência na área de
história, educação e desenvolvimento regional, atuando principalmente nos
seguintes temas: história do Brasil e do Rio Grande do Sul, história dos mu-
nicípios, movimentos migratórios históricos e contemporâneos, movimento
Mucker, patrimônio cultural, espaços urbanos, memória, representações e
relações de gênero, raça e etnia e processos identitários.

Delmir Valentini
Doutor em História, área de concentração em História das Sociedades Ibé-
ricas e Americanas, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Mestre em História, área de concentração em História do Brasil,
também pela PUC-RS. Graduado em Filosofia pela Universidade Católi-
ca de Pelotas. Atuou como Professor de Ensino Fundamental e Médio na
Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, na UNOESC (Uni-
versidade do Oeste de Santa Catarina - Campus de Joaçaba SC), na UnC
(Universidade do Contestado - Campi de Caçador, Curitibanos e Concórdia
SC). Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal da Fron-
teira Sul - UFFS, Campus de Chapecó-SC. É membro do Grupo de Inves-

584 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


tigação sobre o Movimento do Contestado (GIMC), que reúne pesquisado-
res de várias instituições brasileiras e possui certificação junto ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atua no
ensino, na pesquisa e na extensão em temas de História da Mesorregião da
Grande Fronteira do Mercosul, Ensino de História em Pedagogia e História
da Guerra do Contestado.

Fabian Filatow
Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Possui licenciatura, bacharelado e mestrado
em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professor de História na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul e na
rede municipal da Prefeitura de Esteio/RS.

Henrique Kujawa
Doutor em ciências sociais (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo da IMED (PPGAR-
Q-IMED). Pesquisadora bolsista de produtividade da Fundação Meridio-
nal e recém doutor da FAPERGS. Pesquisador sobre a Teoria da Justiça de
Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desenvolvimento e demo-
cracia e do Grupo de Pesquisa de Teoria e História da Habitação e da Cidade
(THAC-IMED).

Humberto José da Rocha


Mestrado em História Regional pela Universidade de Passo Fundo (UPF).
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP). Professor no Mestrado em História da Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS). Líder do Grupo de Pesquisa “Movimentos Sociais na
Fronteira Sul” (UFFS/CNPq). Temáticas: Barragens; Movimentos Sociais.

Sobre os autores e autoras 585


Isabel Rosa Gritti
Graduada em Estudos Sociais pelo Centro de Ensino Superior de Erechim,
(1982). Especialização em História da Educação Brasileira Contemporânea
(1988). Mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio Grande do Sul (1992) e Doutorado em História do Brasil pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002). Atuou como
Coordenadora Adjunta da Coordenadoria Regional de Educação do Estado
do Rio Grande do Sul - 15ª CRE/Erechim/RS, no período de 2000 a 2002.
Atualmente é Professora Adjunta da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS); membro da Diretoria da Obra Promocional Santa Marta (Voluntá-
ria) Foi Professora da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI Campus de Erechim) e Professora Adjunta da Universi-
dade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Tem experiência na área de
História, Pedagogia, Gestão Ambiental, Imigração e Colonização Europeia
no Brasil, com ênfase nos temas: imigração, colonização polonesa, coloniza-
ção judaica, companhias colonizadoras (Jewish Colonization Association) e
Relações Interétnicas.

Jaci Poli
Graduado em Estudos Sociais, licenciatura plena, pela Universidade Comu-
nitária Regional de Chapecó - UNOCHAPECÓ (1976), realizou estudos de
Pós Graduação ao nível de Especialização em História, pela Universidade
Federal de Santa Catarina e ao nível de Mestrado em História pela Univer-
sidade Federal do Paraná - UFPR. Realizou um processo de formação com-
plementar na área da economia social e de desenvolvimento local através da
Universidad Nacional General Sarmiento, de Buenos Aires, Argentina. Tem
experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República,
História Econômica Geral e do Brasil, Introdução aos Estudos Históricos,
História da América, História Regional e Formação Econômica, Social e
Política do Brasil. Experiência na área de Desenvolvimento Local e Territo-
rial e na produção de material didático para educação de jovens e adultos.
Professor no Instituto Federal do Paraná, Campus Capanema.

586 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


João Carlos Tedesco
Doutor em Ciências Sociais - Unicamp; pós-doutor pela Universidade de
Milão (2011); professor da Universidade de Passo Fundo e, em particular,
do Programa de Pós-graduação (mestrado e doutorado) em História. Pes-
quisador produtividade CNPq; ocupa-se dos seguintes temas de pesquisa:
memória e História, movimentos sociais, imigração e colonização.

José Antonio Moraes do Nascimento


Professor de História, com graduação em História pela Universidade Fede-
ral de Santa Maria (1997), especialização em História do Brasil pela mesma
Universidade (1998), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul (2000) e doutorado em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2007). Tem experiência na
área de Ensino de História, História Moderna e História do Brasil, com ên-
fase em história social e desenvolvimento regional.

Leticia Maria Venson


Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História PPGH
da Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS - Campus Chapecó. Bol-
sista Capes pelo Programa Demanda Social. Graduada em Licenciatura em
História pela Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS - Campus Cha-
pecó (2018). Tem experiência na área de História, com ênfase em História
Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: sudoeste paranaense
e oeste catarinense, colônia militar, fronteira, povoamento e colonização.

Luana Teixeira
Doutora em História na Universidade Federal de Pernambuco (2016). Mes-
tra em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (2012) e Mestra em História Cultural pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Investiga temas ligados ao

Sobre os autores e autoras 587


patrimônio cultural, História do Brasil (séculos XIX e XX), escravidão e
pós-abolição. Atualmente desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado na Univer-
sidade Federal de Santa Catarina.

Luís Fernando da Silva Laroque


Professor e pesquisador na Universidade do Vale do Taquari – Univates, La-
jeado/RS, atua no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvi-
mento e no Curso de Licenciatura em História. Possui graduação em Estu-
dos Sociais e História, mestrado e doutorado em História (área de Estudos
Históricos Latino-Americanos) pela UNISINOS. Os temas que trabalha são:
populações indígenas, identidade étnica, história ambiental, terra/territoria-
lidade e história regional do Brasil.

Márcia dos Santos Caron


Licenciada em História pela Universidade Regional Integrada do Alto Uru-
guai e das Missões (2005) e Mestre em História pela Universidade de Passo
Fundo (2009). Atualmente é professora titular da Universidade Regional In-
tegrada do Alto Uruguai e das Missões e Assessora Pedagógica da Pró-Rei-
toria de Ensino da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões, auxiliando nos Programas PIBID e Residência Pedagógica. Atua
principalmente na formação de professores, com os seguintes temas: His-
tória da Educação, Diversidade/Multiculturalismo, Educação em Direitos
Humanos. É membro do Fórum Municipal de Educação de Erechim (De-
creto Municipal nº 4.285, de 9 de dezembro de 2015).

Marinilse Marina
Doutoranda no curso de História pela Universidade de Passo Fundo – UPF.
Tendo como orientadora da tese, a professora doutora Rosane Márcia Neu-
mann. Bolsista Fapergs. Autora do livro: Casar bem: estratégias matrimo-
niais e econômicas na Região de Colonização Italiana do Rio Grande do
Sul (1906-1970), Editora UPF (2019). Desenvolve pesquisa com ênfase na

588 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


emigração italiana para a América Latina e suas particularidades nos se-
guintes temas: redes sociais, estratégias migratórias, trajetórias familiares,
e as mulheres como impulsionadoras da economia no Universo migratório
camponês.

Marlise Regina Meyrer


Possui graduação em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(1993), Mestrado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(1997) e Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (2008). É professora adjunta da Escola de Humanidades
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no Programa de
Pós-graduação e na Graduação em História. Especialidade na área de Histó-
ria do Brasil República, e atua principalmente nos seguintes temas: represen-
tação, imigração alemã, imagem, imprensa, gênero e memória. Coordena o
Grupo de Estudos de Gênero e História das Mulheres e lidera o Grupo de
Pesquisa do CNPq intitulado “História, cultura e gênero nas revistas impres-
sas na América Latina no século XX”. Também participa do grupo de pes-
quisa do CNPq, “Imprensa e circulação de Ideias nos séculos XIX e XX”, no
qual coordena a linha “Imprensa brasileira e suas conexões nas Américas”.
Atua também como editora da revista discente do Programa de Pós-Gradua-
ção em História da PUCRS - Oficina do Historiador.

Paulo A. Zarth
Mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense.
Trabalhou na UNIJUÍ e na Universidade de Passo Fundo. Foi professor vi-
sitante pela CAPES na Universidade Federal da Fronteira Sul. Pesquisa te-
mas relacionados à história do mundo rural, história ambiental e ensino de
história

Ricardo Cid Fernandes


Possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal

Sobre os autores e autoras 589


do Rio Grande do Sul (1992), mestrado em Social Anthropology - MPhil
University of Cambridge (1995), mestrado em Antropologia Social pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (1998) e doutorado em Ciência Social
(Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2003). Atualmente é
professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná. Tem experiên-
cia na área de Antropologia, com ênfase no estudo de sociedades tradicio-
nais (indígenas e quilombolas) no Sul do Brasil, atuando principalmente nos
seguintes temas: relações interétnicas, etnohistória, política indígena, etnolo-
gia, territorialidade tradicional e estudos de impacto socioambiental.

Rosane Marcia Neumann


Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Realizou estágio de Pós-Doutorado no Lateinamerika-Institut (LAI),
da Freie Universität Berlin, Alemanha. Professora do Curso de Graduação e
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fun-
do. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Núcleo de Estudos de História da
Imigração (NEHI).

590 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos


A transformação econômi-
ca, política e cultural do perío-
do gerou tensões entre ideologias
distintas. Esses três elementos –
transformação, tensão e ideologia
– compõem o pano de fundo para
análise de conflitos que marcam
uma especificidade que distingue
os séculos XIX e XX no processo
histórico dos movimentos sociais
no Sul do Brasil. Logo, elencamos
uma série de casos que classifica-
mos em três tipos de mobilizações
sociais, desdobrados em dois sub-
tipos cada: étnicos (indígenas e
negros), milenários (messiânicos e
utópicos) e bandidos sociais (bandi-
dos e intrusos). Essa categorização
permite vislumbrar uma unidade de
análise que estabelece o processo
histórico dos movimentos sociais
pela sua especificidade ideológica,
distinguindo-os não em uma pers-
pectiva evolucionista, e sim proces-
sual, no sentido de uma genealogia
dos movimentos sociais contempo-
râneos.

Humberto José da Rocha


Organizador
O estudo das mobilizações sociais no

os séculos XIX e
Sul do Brasil
XX, permite uma unidade de análise
envolvendo diferentes casos. O protagonismo de indígenas como
entre

Kondá, Doble e Tigre Gacom, o banditismo de Paco Sanchez, a


brutalidade de Santa Cruz ou as incursões do Bando do João

Inácio, as mobilizações dos Monges do Pinheirinho, dos Monges


Barbudos, dos Muckers ou do Contestado, as experiências da
Colônia Cecília e do Falanstério do Say, são alguns dos casos
que compõem essa unidade. Uma genealogia dos movimentos sociais

precisa considerar esses casos no sentido de compreender um

processo histórico que se desenvolve na concomitância de fatores

econômicos, políticos e culturais que ajudam a compreender não

apenas aquele período em sua especificidade, mas como esse processo

confluiu para o estado das coisas na contemporaneidade.

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