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H J R (O) : Tnicos Ilenários e Andidos
H J R (O) : Tnicos Ilenários e Andidos
(Organizador)
Grupo de Pesquisa
Movimentos Sociais
na Fronteira Sul
E ste livro é fruto de estudos no
âmbito do Grupo
“Movimentos Sociais na
de Pesquisa
Frontei-
ra Sul”, vinculado à Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS)
e ao Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq), e corresponde a
resultados prévios de um projeto
de pesquisa desenvolvido a partir
de uma chamada do CNPq, ambos
reunindo pesquisadores de diferen-
tes disciplinas e universidades do
Sul do Brasil. Mobilização social
e luta pela terra podem ser con-
siderados pontos de convergência
entre esses pesquisadores, o que
aproximou o grupo para a proposi-
ção desse projeto de pesquisa.
Passo Fundo
2020
© 2020 Acervus Acervus Editora
Todos os direitos reservados Av. Aspirante Jenner, 1274 - Lucas Araújo -
99074-360
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Projeto Gráfico Site: acervuseditora.com.br
Acervus
Conselho Editorial
Créditos da capa Ancelmo Schörner (UNICENTRO)
Detalhe de foto de indígenas Kaingang
Eduardo Knack (UFCG)
armados, em São Paulo, 1895. Foto de
Gustav Koenigswald. Disponívl em: Eduardo Pitthan (UFFS – Passo Fundo)
http://docvirt.com/docreader.net/li-
Federica Bertagna (Università di Verona)
vrossp/22390.
Gizele Kleidermacher (Universidad de Buenos Aires)
Foto de Adeodato Manoel Ramos, um
dos líderes caboclos da Guerra do Helion Póvoa Neto (UFRJ)
Contestado, após sua prisão, em 1916. Humberto da Rocha (UFFS – Campus Erechim)
Fonte: http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/ea00641a.pdf.
João Joel Carini (UFSM)
Roberto George Uebel (ESPM)
Detalhe da foto de João Inácio e seu
“bando”, por ocasião de sua apresentação
ao 2º Batalhão de Infantaria, em agosto
de 1927. Fonte: Arquivo Particular
As ideias, imagens, figuras e demais
informações apresentadas nesta obra são de
Castro. Erechim/RS.
inteira responsabilidade de seus autores e
de seus organizadores
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-86000-01-6
CDU: 981.65
PARTE I - ÉTNICOS
Kondá: um indígena do século XIX..................................................................................39
Clovis Antonio Brighenti
PARTE II - MILENÁRIOS
A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos e o Capitão Belo.....531
Isabel Rosa Gritti
Apresentação 7
que não são excludentes, tanto que ocorrem casos em que personagens
podem ser tipificados como bandidos e milenários, por exemplo. Quarto,
a tipificação das mobilizações sociais estabelecidas não pretende engessar
a análise, mas conferir uma unidade que reflete um modo de vida e de
mobilização próprio de um estágio do processo histórico. Finalmente,
não obstante demonstremos elementos de convergência entre as mobi-
lizações, é preciso considerar que cada análise sobre um caso particular
implica referenciais próprios daquele caso, sendo que se oferecem, na
realidade, nesta seção, linhas gerais para a discussão na perspectiva de
um processo histórico amplo.
O espaço de referência para a discussão é o Sul do Brasil, o qual
atualmente corresponde aos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. O processo de ocupação desse espaço pode ser compreen-
dido em quatros ciclos econômicos. A pecuária, o primeiro ciclo, passou
a ser explorada nas áreas de campo do Rio Grande do Sul e do Paraná no
século XVIII, em função da atividade mineradora em Minas Gerais. As-
sim, estabeleceram-se caminhos de tropas (Caminho da Praia; Caminho
de Viamão ou Estrada Real; Caminho das Missões, Palmas ou Geral;
Caminho da Vacaria; e Caminho dos Conventos) que, abertos a partir
desse período, definiram as rotas no Sul do Brasil. Alternando com o
campo, a mata propiciou o ciclo subsequente, da erva-mate, no início do
século XIX, tendo a mão de obra cabocla como elemento fundamental
para a extração. Na década de 1920, a erva-mate já demonstrava sinais
de exaustão, mas a mata ainda tinha madeira para sustentar um novo
ciclo, com a araucária como carro-chefe, explorada pelos colonizadores.
Reduzida a área de mata, a agricultura e a pecuária, intensificadas nas
agroindústrias, passaram a predominar na economia sulina do Brasil na
década de 1950 (BAVARESCO, 2003).
Esse processo histórico, tardio em relação ao restante do país devi-
do ao distanciamento do centro administrativo e econômico do sudeste,
também está vinculado a uma condição fronteiriça, a qual implicou uma
série de conflitos externos, como as Guerras da Cisplatina (1825-28) e do
Apresentação 9
ou inundações, ou pela “autorização” de cercamento de alguma área, o
que, aos poucos, foi minando a resistência dos camponeses. Essa passa-
gem da burguesia agrária pelos governos da Europa, a qual foi parte da
transição do capital agrário para o industrial, não se sucedeu de forma
estanque nesses dois casos (Inglaterra e França), tampouco ocorreu si-
multaneamente no resto do mundo.
Quanto ao Brasil, Cardoso de Mello (1982) identifica um processo
semelhante entre os anos de 1888 e 1933, marcados respectivamente pela
abolição da escravatura e pela aceleração do processo de industrialização
do Brasil (a partir de uma estrutura inicial anterior que ganhou espaço
com a crise da agricultura naquele período). Analisando o mesmo perío-
do da perspectiva dos camponeses na política brasileira, Martins (1981)
enfatiza que a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras),
tratou de garantir a continuidade dos ganhos dos fazendeiros que, sem
mais contar com o regime de sesmarias (suspenso desde 1822) e anteven-
do a abolição da escravatura, conseguiriam manter o trabalho livre sob
seu controle. Em outros termos, “antes, o fundamento da dominação e
da exploração era o escravo, agora passa a ser a terra. É a terra, a disputa
pela terra, que trazem para o confronto direto camponeses e fazendeiros”
(MARTINS, 1981, p. 63).
As análises de Cardoso de Mello (1982) e Martins (1981), por
adotarem entendimentos distintos, não coincidem exatamente no recorte
temporal. Embora concordem com o marco inicial da abolição da
escravatura, Martins (1981) resgata a Lei de Terras (1850) e Cardoso de
Mello (1982) registra uma infraestrutura industrial anterior, mesmo que
incipiente. Quanto ao marco final do período analisado, a perspectiva
econômica de Cardoso de Mello (1982) assinala a década de 1930, em
função da aceleração da industrialização, ao passo que Martins (1981),
sob a ótica política, especifica a década de 1950, em consequência das
atuações dos comunistas, trabalhistas e da Igreja Católica na luta pela
terra.
Apresentação 11
conjugando-as. O termo “movimento social” seria a consolidação dessa
mobilização no escopo do que apresenta Jasper (2016) ao conceituá-los
enquanto “esforços persistentes e intencionais para promover ou obstruir
mudanças jurídicas e sociais de longo alcance, basicamente fora dos canais
institucionais sancionados pelas autoridades”. Eis o desdobramento que
permite compreender o aspecto processual da análise sem pretender
uma ordem evolutiva entre ação, mobilização e movimento social, mas
evidenciando um processo que distingue iniciativas pontuais, localizadas,
específicas, que buscam responder a questões imediatas, de outras,
continuadas, que visam a mudanças mais profundas.
No conjunto dessa unidade de análise, destacamos, como já
explicitado, três tipos de mobilizações recorrentes no Sul do Brasil nos
séculos XIX e XX, desdobrados em dois subtipos cada: étnicos (indígenas
e negros), milenários (messiânicos e utópicos) e bandidos sociais
(bandidos e intrusos). Essa categorização foi uma forma encontrada
para conferir alguma ordenação na apresentação dos casos, de maneira
a convergir para uma ideia de conjunto que sirva para uma discussão
teórico-metodológica sobre os movimentos sociais no Sul do Brasil
nos séculos XIX e XX. O objetivo é vislumbrar a unidade de análise
em suas partes, não nos detendo no rigor conceitual. O que fizemos foi
introduzir conceitos que ofereçam uma direção inicial e mencionar em
notas algumas das possibilidades de aprofundamento ou variações desses
conceitos genéricos.
A categorização que desenhamos sobre mobilizações étnicas se inspira
no que demonstrou Quijano (2000) sobre os movimentos camponeses na
América Latina. O autor ressalta uma forma de movimento que chama
de “racista”, assim definida:
1 Esse tipo de mobilização pode ser identificado no Sul do Brasil; todavia, algumas ressalvas
precisam ser feitas em relação ao proposto por Quijano (2000). O autor apresenta as formas de
movimentos sociais segundo dois períodos que teriam como corte temporal a década de 1930.
Não obstante a distinção coincida com o recorte que propomos neste trabalho, o enquadramento
“pré-político” atribuído pelo autor sugere uma ideia evolucionista que se mostra problemática
à medida que elencamos as mobilizações sociais no Sul do Brasil. Mesmo atentando à ressalva
de que cortes temporais não são abruptos e não precisam ser tomados de modo a engessar as
análises, adotamos a tipificação proposta pelo autor no sentido genérico, mas modificando-a
livremente para adequá-la ao contexto e à perspectiva teórica do nosso estudo.
Apresentação 13
inteligibilidade quando essa ajuda, em alguns momentos, também possa
significar ser parte de uma estratégia de resistência, luta ou mesmo sobre-
vivência (LAROQUE, 2000; MOTA, 2009).
Essa perspectiva se manifesta, na nossa coletânea, em três capítu-
los. No texto Kondá: um indígena do século XIX, Clovis Antonio Brighenti
discute essa ambiguidade desde a história do cacique Vitorino Kondá na
região oeste de Santa Catarina, o que evidencia a notoriedade do caci-
que justamente por sua flexibilidade ou habilidade tanto entre indígenas
quanto não indígenas. O texto de Luís Fernando da Silva Laroque, intitu-
lado O Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) pelas brenhas do Brasil Meridional,
enriquece a discussão ao relativizar a postura do Cacique Doble entre
alianças e disputas tanto com indígenas quanto com brancos, assinalando
um protagonismo indígena e não mera vitimização frente ao opressor no
Rio Grande do Sul. Já no atual território paranaense, a atuação do Ca-
cique Tigre Gacom é abordada no trabalho de Cristiano Augusto Durat.
No texto intitulado Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras do
Aldeamento de Atalaia (Guarapuava – século XIX), o autor trata da luta pela
terra em uma perspectiva diplomática legal em que o Cacique adentra
em um campo pouco usual no que se refere à luta indígena pela terra no
século XIX.
Seguindo na linha étnica, outro subtipo de mobilização diz respei-
to aos negros. Diferentemente dos indígenas, os quais estavam instalados
nesse espaço quando da chegada e avanço branco, a dominação sobre os
negros começa com o trabalho escravo; com a abolição, eles passam a
lutar por terra. Estudos sobre os casos dos Negros de Casca no atual mu-
nicípio de Mostardas-RS (LEITE, 2002), da Invernada Paiol de Telhas no
município de Guarapuava-PR (BUTI, 2009) e da Invernada dos Negros
no município de Campos Novos-SC (MOMBELLI, 2009) são exemplos
de remanescentes de escravos que acabaram herdando terras dos senho-
res e começaram a lutar pelo direito de uso dessas terras.
Na nossa coletânea, a perspectiva é adotada no trabalho de Ricardo
Cid Fernandes e Luana Teixeira. O texto intitulado A comunidade quilom-
Apresentação 15
divino que se pode inaugurar no mundo o paraíso terrestre;
este pode resultar da formação de seitas sem chefes, ou mes-
mo de práticas mágicas adequadas. Por esta razão continua-
remos a falar em movimentos messiânicos e não em movi-
mentos milenaristas; estamos nos detendo apenas numa das
subdivisões do problema do Milênio.
Apresentação 17
sobre essa mobilização messiânica ocorrida na região de Soledade-RS na
década de 1930 para também evidenciar princípios de protagonismo de
homens e mulheres que, ao lutar pela terra, o fazem à luz de elementos
identitários de gênero, etnicidade e nacionalidade.
O milenarismo, enquanto esperança em um mundo melhor, e a uto-
pia, enquanto força motivadora, são aspectos comuns não somente aos
dois subtipos de mobilizações que destacamos, mas podem ser encon-
trados em certa medida em qualquer movimento social. Mesmo assim,
propomos a distinção entre os milenarismos messiânico e utópico em
função de o primeiro implicar inspiração religiosa através de um messias,
ao passo que o segundo se inspira em projetos idealizados por indivíduos
ou grupos.
Ainda sobre essa categoria de análise, merece explicação o fato de
que não apresentamos, nesse bloco, nenhum trabalho sobre o Contesta-
do (1912-1916), principal mobilização messiânica do Sul do Brasil2. O
Contestado está presente na nossa coletânea; entretanto, optamos por
evidenciar o protagonismo de personagens que não os monges, o que
demonstraremos a seguir, através dos trabalhos de Delmir Valentini e Ar-
lene Renk. O enquadramento dessas discussões no bloco referente aos
bandidos sociais, para além de uma opção metodológica, acentua a flexi-
bilidade conceitual e a riqueza de possibilidades dessa unidade de análise
para os estudos dos movimentos sociais no Sul do Brasil dos séculos XIX
e XX.
A terceira categoria que compõe nossa unidade de análise também
segue na orientação de Hobsbawm (1970, p. 28), o qual sintetiza que “um
homem se torna bandido porque faz alguma coisa que não é considerada
como um crime pelas convenções de sua localidade, mas que o é pelo Es-
tado e pelas normas locais”. O autor destaca ainda três tipos de bandidos
sociais: “ladrões nobres”, “vingadores” e “haiduks”. A partir desses ti-
pos, fazemos relações com outros autores e perspectivas3 e identificamos
2 Para uma aproximação sobre o tema, ver: Queiroz (1966), Monteiro (1974) e Machado
(2004).
3 Das três categorias que selecionamos para compor nossa proposta de unidade de análise, a do
bandido social é a mais complexa. Mesmo sem aprofundar as variáveis do conceito, podemos
destacar quatro linhas de abordagem e seus principais idealizadores para o estudo dessa categoria:
a) o banditismo enquanto expoente da rebeldia social nas comunidades (HOBSBAWM, 2015);
b) o banditismo político ou aquele mais relacionado com a elite local (BLOK, 1972); o bandido
guerrilheiro, que atua em cenários de disputas entre nações ou grupos internos (VANDERWOOD,
1992); e d) o banditismo enquanto forma de adaptação em cenários de transformação social
(SINGELMANN, 1975). Essas são as principais abordagens não excludentes que ajudam a
orientar a análise sobre os casos específicos.
4 A ausência do caso de Zeca Vacariano em nossa coletânea é digna de registro. Lidar com
bandidos nunca foi tarefa fácil. Ocorreu que a Prof. Dra. Monica Hass, integrante do nosso
Grupo de Pesquisa, empreendeu uma espécie de inquérito sobre o caso, tanto que, na última
pesquisa de campo, ao refazer um dos itinerários do bandido, fraturou um pé. Ausência mais que
justificada, a pesquisa será publicada em outro espaço. À Monica, nossa estima!
Apresentação 19
um contexto de violenta exploração no qual o papel desse bandido assu-
me contornos antissociais, com os próprios mensus e camponeses como
alvos. A ambiguidade da categoria também aparece no texto de Marinilse
Marina. O título Paco: herói ou bandido? anuncia um trabalho que tem
como pano de fundo a imigração, a colonização e as disputas políticas
na região serrana do Rio Grande do Sul nas décadas de 1920-1930, onde
o bandido atuou como capanga, chegando a ser acusado e protegido por
um mesmo grupo político em momentos distintos em função da mobili-
dade política.
Dois outros textos desse bloco refletem a flexibilidade entre as ca-
tegorias que compõem a unidade de análise. Nesses textos, a revolta do
Contestado, de cunho messiânico, é retratada na perspectiva das “lide-
ranças de briga” (MACHADO, 2004). Aqui, trata-se de uma opção me-
todológica de apresentar figuras caboclas que protagonizaram a revolta
normalmente abordada na perspectiva dos monges. No texto intitulado
Adeodato: a demonização do último líder caboclo na Guerra do Contestado, Del-
mir Valentini, analisa o caso do último líder caboclo da revolta do Con-
testado. Para além das características de valente e facínora, recorrentes
nas narrativas sobre esta liderança de briga, o texto busca vislumbrar o
mesmo enquanto sujeito inserido num contexto social de grande transfor-
mação, onde elementos de economia, política e religião se transformam
rapidamente exigindo desses sujeitos movimentos de adaptação, o que
normalmente não acontecia de maneira favorável para essas populações.
Sobre o mesmo movimento, Arlene Renk veicula o texto intitulado Mu-
lheres no Contestado: um território a ser conquistado, no qual a autora, para
além de simplesmente registrar a presença feminina na revolta, assinala
esse protagonismo a partir de uma conjunção de elementos materiais e
culturais próprios daquela sociedade. A liderança dessas mulheres – um
espaço ainda a ser explorado pela História – revela tanto uma estrutura
tradicional hierarquizada quanto aponta possibilidades de relativização
dessa estrutura com essas lideranças.
Apresentação 21
no norte do Rio Grande do Sul – 1927-1930 discute o processo de coloniza-
ção através da empresa Jewish Colonization Association (ICA). Ao assentar
imigrantes judeus na Colônia Erechim, a ICA suscitou a mobilização dos
posseiros em um cenário que ainda tinha como pano de fundo resquícios
da revolução de 1923 no Rio Grande do Sul.
Na mesma região, o texto de Isabel Rosa Gritti, intitulado A luta pela
terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos e o Capitão Belo, apresenta
outra história de resistência a partir da colonização da Fazenda Quatro
Irmãos, onde, assim como o Bando do João Inácio, José da Rosa Sutil
(Capitão Belo) liderou uma série de ocupações de terras na região, em
um movimento de resistência à colonização. No município de Barão de
Cotegipe, na cercania, Gaudêncio dos Santos liderou um grupo de luta
pela terra nos mesmos moldes. A peculiaridade desses personagens é a
dissidência de conflitos, como a Revolução Federalista, que os aproxima
da perspectiva do “bandido guerrilheiro”; entretanto, a terra se mostra o
eixo aglutinador dos conflitos.
Fechando esse bloco, no texto intitulado A Coluna Prestes e a Estrada
do Colono, Jaci Poli discute a importância da Coluna, não somente pela
abertura da Estrada do Colono, mas do ponto de vista teórico-metodoló-
gico, da importância desse movimento para a abertura de novos estudos
acerca dos movimentos sociais no Sul do Brasil nas primeiras décadas do
século XX.
***
Apresentação 23
da República foi sui generis no Rio Grande do Sul, por conta da matriz
ideológica positivista que pretendia modernizar a economia e ordenar
a política. As já mencionadas disputas político-militares internas e ex-
ternas, o avanço da elite latifundiária sobre as zonas de mata e a conse-
quente migração de pequenos agricultores para Santa Catarina e Paraná
(“enxamagem”) configuraram um processo de transformação no Sul do
Brasil (PESAVENTO, 1985).
Esse processo de transformação ocorrido no Brasil – sobretudo no
Sul – é de ordem estrutural mundial, acontecendo em espaços, tempos
e formas diferentes. As transformações de ordem econômica, política e
cultural que ocorreram no Brasil eram percebidas na Europa desde os
séculos XVII e XVIII. A transformação é inerente ao processo histórico;
logo, ao centrarmos o foco da análise estabelecendo um espaço-tempo de
referência, deve-se ter em vista que esses limites não precisam ser toma-
dos como cortes abruptos nesse processo histórico. Assim, é importante
resgatar as análises sobre o contexto europeu, buscando compreender ele-
mentos gerais desse processo global.
Tal processo de transformação analisado por Thompson (1998, p.
21) é sintetizado de modo que “podemos entender boa parte da história
social do século XVIII como uma série de confrontos entre uma economia
de mercado inovadora e a economia moral da plebe”. A economia moral
a que o autor se refere compreende um “consenso popular a respeito do
que eram práticas legítimas e ilegítimas na atividade do mercado”, funda-
mentado sob uma “visão consistente tradicional das normas e obrigações
sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunida-
de, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a
economia moral dos pobres” (THOMPSON, 1998, p. 152). Revisitando
esse conceito de “economia moral”, o autor afirma que “nenhum outro
termo parece se oferecer na hora de descrever a maneira como muitas
relações econômicas são reguladas segundo normas não monetárias nas
comunidades industriais e camponesas”. Ele reforça que “essas normas
existem como um tecido de costumes e usos, até serem ameaçadas pelas
Apresentação 25
Marc Bloch (2001), ao analisar o mesmo processo na França, assi-
nala que os relatórios dos administradores interpretavam esses costumes
camponeses como “direitos odiosos, bárbaros, que só podiam ter nascido
nos séculos de ignorância, monumentos da condição selvagem e grosseira
a que a humanidade esteve por tanto tempo reduzida”. Ante esse cenário
tido como desolador, eles evocavam argumentos jurídicos, para afirmar
que áreas coletivas seriam contrárias ao direito natural da propriedade, e
argumentos técnicos, para defender que dificultavam o acúmulo de ester-
co, a adubação e, consequentemente, a produtividade agrícola (BLOCH,
2001, p. 274-275).
Raymond Williams (1989, p. 95) menciona Arthur Young e seus An-
nals of agriculture como importante meio de divulgação do que Williams
(1989) chamou de uma “ética ou ideologia do melhoramento” (técnicas
de produção e comercialização) que avançou sobre a Europa do século
XVIII. Nos mesmos Annals, encontram-se registros do próprio Young di-
zendo que preferia que as terras inglesas tivessem afundado no mar ao
invés de causar os danos que causaram aos camponeses tais “melhora-
mentos” (WILLIAMS, 1989, p. 96). Não obstante esse registro pontual,
marcante ficou a força da ideologia do melhoramento.
Retomando a análise do processo no Sul do Brasil, Zarth (2002, p.
21) também menciona os trabalhos de Young, enfatizando que “esse dis-
curso não é apenas uma comparação ingênua entre Brasil e a Europa,
revelando uma preocupação com as relações da economia regional e a di-
nâmica do mercado mundial comandado pela Europa”. O autor concei-
tua o termo modernização se referindo, “fundamentalmente, ao uso de
novas tecnologias e métodos com o objetivo de melhorar a produtividade
agrícola e pastorial” (ZARTH, 2002, p. 22). No mesmo trabalho, o autor
discute o processo de transformação “do arcaico ao moderno”, ocorrido
mediante guerras, escravidão, colonização e exclusão, o que refletiu em
um processo de apropriação das terras no Sul para uso intensivo e acu-
mulação de capital.
Apresentação 27
O que pretendemos enfatizar com base nas ideias de Geertz (2017)
e Manheim (1986) é que, quando falamos em ideologia no Sul do Brasil
entre meados do século XIX e início do século XX, estamos nos referindo
a uma visão de mundo. Contudo, tanto Manheim (1986) quanto Geertz
(2017) admitem que processos de transformação em que visões de mundo
distintas estejam em conflito podem alterar a perspectiva ideológica em
função da tensão e desorientação que essas ideologias sofrem. Geertz
(2017, p. 125) afirma que “é justamente a confluência de tensão psicoló-
gica e a ausência de recursos culturais através dos quais essa tensão possa
fazer sentido, uma exacerbando a outra, que prepara o cenário para o
aparecimento de ideologias sistemáticas (política, moral ou econômica)”.
Então, trata-se de um processo que, em relação ao espaço-tempo aqui es-
tudado, condiz com o que Rudé (1982) chama de “ideologia de protesto”.
Ao estabelecer que seu estudo se ocuparia de uma “sociedade de
transição e desses grupos sociais ‘tradicionais’ ainda não consolidados
em classes sociais”, o autor acredita que “uma teoria da ideologia desti-
nada a atender um outro objetivo – definir a luta entre as duas principais
classes antagônicas na sociedade industrial moderna – seria ‘irrelevante’”
(RUDÉ, 1982, p. 24). Então, o autor se propõe a “encontrar uma nova
teoria, ou ‘modelo’ da ideologia de protesto, adequado aos movimentos
‘populares’ da época”. Embora considere as diferenças entre ideologias
de tipos “estruturado ou relativamente estruturado” e outro referente a
“atitudes mais simples, mentalités ou perspectivas”, tal distinção, neste
caso, se mostra inadequada. Assim, ele propõe o conceito de “ideologia
do protesto popular”, explicado da seguinte forma:
Apresentação 29
para a ideia de “classe social”. Nessa fase da luta de classes, o autor assi-
nala que demandas específicas baseadas em questões de família, trabalho
e território desencadeavam “fragmentos de protoconflito”; por ainda não
implicarem consciência de classe, permite-se até mesmo falar em uma
sociedade com apenas uma classe (THOMPSON, 1984, p. 15).
Ao considerar o processo histórico da formação do conceito de
classe social, Thompson (1984) categoriza o século XVIII como um pe-
ríodo de “luta de classes sem classes”. A luta acontece; todavia, a cons-
ciência de classe ainda não está estabelecida, por ser um produto dessa
luta em curso. Logo, a classe, enquanto consequência da consciência de
classe, não existe, até então, em seu sentido moderno. Vejamos, assim,
como essa ideia da “luta de classes sem classes” servirá como fundamen-
to para a compreensão da nossa unidade de análise, englobando os tipos
étnico, milenário e banditismo social em seus subtipos.
O componente étnico é assinalado em estudos sobre a América
Latina (RUDÉ, 1982; QUIJANO, 2000) como elemento fundamental
de mobilização social nos séculos XIX e início do XX. A colonização
europeia determinou o recorte étnico para a questão indígena, servindo
tanto para a compreensão de disputas entre os próprios grupos indígenas
quanto para entender alianças a apoios de caciques e grupos indígenas a
grupos não indígenas, em detrimento de outros grupos rivais indígenas
(LAROQUE, 2000; MOTA, 2006). O mesmo processo de dominação eu-
ropeia estabeleceu o recorte étnico na questão dos negros. A mobilização
tem o componente étnico como principal referencial, e a resistência e a
argumentação da luta pela terra se fundamentam, sobretudo, no paren-
tesco e na descendência (NUER/UFSC, 2006).
Os milenários se caracterizam pela esperança e prática de um mun-
do melhor, ao invés de desequilíbrio instalado. O messias tem sua legi-
timidade ante os seguidores a partir de elementos da própria mitologia
ou fé da comunidade em questão, a qual espera o retorno e pratica o que
prescreve o salvador, como pode ser verificado nos movimentos dos Mu-
ckers, do Pinheirinho, do Contestado e dos Monges Barbudos (DICKIE,
5 Crítica semelhante foi feita também sobre o esquema teórico proposto por Hobsbawm (1970)
ao se apoiar na ideia de movimentos “pré-políticos”. Sobre essa discussão, ver O’Donnel (1979).
Apresentação 31
Então, o que podemos estipular como baliza teórico-metodológica
para esse estágio do processo histórico dos movimentos sociais é que se
refere a uma unidade de análise fundamentada em um processo de trans-
formação que estabeleceu uma tensão entre ideologias que conflitavam
em uma luta de classes sem classes. Dessa forma, o que se reforça é a na-
tureza processual, em detrimento da evolucionista, caracterizando uma
genealogia dos movimentos sociais contemporâneos.
Referências
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Apresentação 35
36 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Parte I
Étnicos
Kondá:
um indígena do século XIX
1 Sobre a grafia do nome, encontramos nos documentos históricos as escritas com “K” e “C”
(Kondá e Condá). Nessa obra optamos em grafar com “K” seguindo as convenções da Asso-
ciação Brasileira de Antropologia que orienta que nomes indígenas devem ser grafados com K.
acionadas outras categorias de análise, como a Nova História Cultural,
no diálogo entre História e Antropologia, para compreendê-lo em seu
tempo, sem a perspectiva inquisidora, mas não isenta da criticidade.
Essas categorias de análises e posicionamentos políticos/ideológicos
também ocupou o imaginário dos próprios Kaingang contemporâneos.
Em 1984 a Escola Isolada Federal Posto Indígena Xapecó, localizada na
aldeia sede da Terra Indígena Xapecó, no município de Ipuaçu (SC), pas-
sou “a denominar-se Escola Isolada Federal Vitorino Kondá e, em 1988,
torna-se a Escola Básica Federal Vitorino Kondá” (GIACHINI e SOUZA
TAVARES, 2015, p.17). Após um processo de estudos efetivados pelos
professores da escola com assessoria do Laboratório de História Indígena
(Labhin) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em que a
figura de Kondá foi reestudada e ressignificada pelos próprios Kaingang,
a escola passou a ser denominada Escola Indígena de Educação Básica
Cacique Vanhkrê, “devido ao reconhecimento que o Cacique Vanhkrê
teve no processo de demarcação da TI Xapecó” (Idem), mas também
pela crítica à conduta de Kondá.
No ano 2000, uma comunidade Kaingang que vivia em situação de
acampamentos nos bairros da cidade de Chapecó, por se considerarem
originários da aldeia que existia no Passo dos Índios, hoje centro da cida-
de de Chapecó, conquistou uma terra próximo a referida cidade. O nome
escolhido pelo grupo foi justamente a do líder Kaingang Vitorino Kondá,
denominada Aldeia Kondá, com 2.300 hectares. Os Kaingang justifica-
ram que a homenagem se deve a bravura do líder Kaingang ao defender
seu grupo, do qual eles se consideram descendentes.
No presente artigo, nossa perspectiva teórica é nos afastar do deba-
te inquisidor sobre sua conduta e analisar historicamente sua inserção
na história do século XIX, buscando elementos que nos permitem com-
preendê-lo manejando um mundo diferente daquele experenciado por
seus antepassados e inserido num contexto de sobrevivência no contexto
colonial, sem ignorar os riscos de sua opção e as implicações que seu
protagonismo resultou para os próprios Kaingang e outros povos na re-
Nos séculos XVIII e início do XIX, essa região era habitada quase
que exclusivamente pela população indígena Kaingang. Dizemos quase
que exclusivamente porque havia a população Xokleng que habitava as
cabeceiras do rio Uruguai e do rio Iguaçu. No outro extremo, a noroeste,
viviam os Xetá além da presença Guarani que ocupava as várzeas dos
2 Em todas as citações de textos históricos manteremos a grafia original.
3 Optamos por manter o mapa no original; embora a indicação pontilhada não revele a tota-
lidade do território Kaingang, interessa-nos a indicação dos campos como espaço privilegiado
de uso pelos Kaingang. Há presença Kaingang fora do limite pontilhado indicativo do território
Kaingang. Como exemplo, temos as aldeias situadas nos municípios de Porto Alegre/RS (TI
Lomba do Pinheiro, TI Morro do Osso e TI Morro Santana), São Leopoldo/RS (TI Kaingang
em São Leopoldo), Braúna/SP (TI Icatu) e Arco-Íris/SP (TI Vanuíre).
Considerações finais
Alguns elementos se sobressaem na análise desse processo. Inicial-
mente há que se considerar o colonialismo e sua efetividade em destruir
a existência dos povos indígenas “como entidades autônomas e autossu-
ficientes” (MOREIRA NETO, 1971, p. 71). Há que se reconhecer a habi-
lidade perversa do colonizador em utilizar indígenas para se opor a seus
pares. Sem esses mecanismos é provável que a colônia não se efetivaria.
Conforme destacado por Cunha (2002), no século XIX é a voracidade
sobre os territórios indígenas que mobilizaria as agências e mecanismos
do colonialismo, o indígena é um elemento a ser eliminado em sua forma
física ou cultural. O fato é que o indígena já não interessa ao Estado Na-
cional. É do século XIX as políticas raciais para transformar esses “sel-
vagens em homens civilizados” (LAMENHA LINS, 1876, p. 97). Mas
não podemos tomar o colonialismo de maneira fatalista ou absoluta, mas
percebê-lo historicamente estabelecido e se movendo nas possibilidades
dadas pelos momentos e contextos.
Kondá é um personagem do povo Kaingang, do tronco linguístico
“Macro-Jê” e família “Jê”. Os estudos sobre a organização social Kain-
gang, nos ajudam a compreender como agiam e se mobilizavam as dife-
rentes facções. Ricardo Cid Fernandes (1998), estudioso da organização
social Kaingang destaca que “os constantes processos de fissão social (...),
fizeram com que estes índios ocupassem grandes porções dos territórios
meridionais do Brasil. As descrições das disputas intertribais sugerem
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InfDoc/conteudo/Colecoes/Legislacao/Legimp-A3.pdf. Acesso em: maio 2011.
1 A designação destas frentes para a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul do século
XIX deve ser entendida a partir do Martins (1997) e também do trabalho de Cardoso de Oliveira
(1967). Isto é a [...] existência de frentes de expansão da sociedade brasileira é a ideia que, prelimi-
narmente, devemos considerar. A noção de “frente”, acrescida à de “expansão”, indica claramen-
te a característica dinâmica do fenômeno que se quer investigar. É a sociedade nacional, através
res do Império brasileiro avança sobre os territórios indígenas utilizan-
do-se de mecanismos como a abertura de estradas, o estabelecimento de
fazendas, o incentivo à imigração alemã e italiana, a política oficial dos
aldeamentos indígenas, o projeto de catequese jesuítica e a instalação das
companhias de Bugreiros e de Pedestres.
O objetivo do estudo, considerando a intenção de desapropriar os
tradicionais territórios indígenas pelas frentes expansionista e pioneira,
consistiu em selecionar e analisar alguns eventos2 sobre as estratégias e
atuações do Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble) e demonstrar uma ló-
gica cultural indígena e o protagonismo histórico Kaingang. A metodo-
logia, com base em aportes teóricos de autores como Clastres (1981),
Sahlins (1990, 2004), Barth (2000), Martins (1997), Stutzman (2009),
Almeida (2012) e Strathern (2014), caracterizou-se por uma abordagem
qualitativa, com análise de conteúdo e de cunho etno-histórico vislum-
brando uma historicidade indígena mesmo manuseando fontes oficiais
produzidas por governantes, diretores de aldeamentos, religiosos, serta-
nistas e viajantes. Os dados foram levantados em documentos no Arqui-
vo Histórico do Rio Grande do Sul e Arquivo Público do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre/RS, no Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisi-
nos, em São Leopoldo/RS e nos acervos documentais e bibliográficos do
projeto de pesquisa “Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia
Hidrográfica do Taquari-Antas/RS” e do projeto de extensão “História
e cultura Kaingang”, ambos coordenados por Luís Fernando Laroque, e
vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvi-
mento da Universidade do Vale do Taquari – Univates, em Lajeado/RS.
de seus segmentos regionais, que se expande sobre áreas e regiões cujos únicos habitantes são as
populações indígenas. Mas esse processo de expansão não é conduzido ao acaso. Interesses eco-
nômicos o conduzem, motivando as populações nele envolvidas”(OLIVEIRA, 1967, p. 55-56).
2 O evento é a interpretação de um acontecimento e isto, muitas vezes, vária. Tendo em vista
que um evento não é somente um acontecimento no mundo, mas sim “a relação entre um acon-
tecimento e um sistema simbólico” (SAHLINS, 1990, p. 191).
3 Referente ao sistema de nominação Kaingang, Juracilda Veiga (1994, p.128-138) informa que
“o nome Kaingang (jiji) é uma identidade social e cerimonial, com o jiji o indivíduo recebe os
papéis sociais e/ou cerimoniais correspondentes ao nome”. Discorre também que quanto mais
“jiji” uma pessoa tenha, melhor é o seu nome. Entretanto esse “jiji”, que também está relacio-
nado ao mundo cosmológico, pode significar tanto nomes bons/bonitos (jiji há), quanto nomes
ruins/feios (jiji korég). Neste sentido uma hipótese levantada pela autora e que consideramos
plausível tratando-se Pã’í Mbâng Yotoahê (Cacique Doble), é que, frente ao processo de contato
com os não índios e as alianças pensadas para com estes, teriam atribuído “o termo há ao ‘nome
português’, isto é, o nome de ‘batismo cristão’, como um ‘bom’ nome para as relações sociais
com os vivos (no caso, os seus dominadores); ao mesmo tempo em que estenderam o uso de ko-
rég para os ‘nomes indígenas’ (do mato), por entender que seria através desses nomes adicionais
de sua cultura que manteriam uma vinculação com o mundo dos seus mortos” (VEIGA, 1994,
p. 138, grifos da autora).
4 Vale salientar que a atuação das mulheres tanto dentro do mundo Kaingang como para com as
sociedades envolventes, está presente inclusive no seu mito de origem (BORBA, 1908). Na con-
quista dos Campos de Guarapuava Paraná, o fato das mulheres Kaingang oferecidas, em agosto
de 1810, à comitiva liderada pelo Tenente Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, terem sido
rejeitadas devido a repreensão do padre Chagas Lima, foi tomado como desfeita pelos Kaingang
e motivo para deflagração da guerra (BECKER; LAROQUE, 1999). Também no oeste paulista,
precisamente no território entre os rios Feio-Aguapeí, tem-se a presença da índia Vanuire que, em
1912 e 1913, que atuou como intérprete entre a parcialidade do Cacique Vauhim e o destacamento
militar liderado pelos tenentes Manoel Rabelo e Candido Sobrinho Sampaio, representantes do
Serviço de Proteção aos índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (BARBOSA, [1926],
1947). Portanto, segundo Ricardo Cid Fernandes, Ledson Kurtz de Almeida e Angela Célia
Sacchi (1999, p.11), “a participação política das mulheres deve ser entendida como uma
extensão de seu poder sobre a constituição das Casas Kaingang e que o próprio conceito de
comunidade está vinculado à mulher – Mulher: Casa: Casa: Comunidade”.
5 Na história dos ancestrais míticos Kaingang contida na narrativa coletada por Telemaco
Borba (1908), é possível identificar diferenças marcantes entre Cayrucrés e Camés. Os primei-
ros, ao abrirem seu caminho para saírem do centro da terra fizeram brotar dele um arroio
que corria para um local plano. Isso possibilitou que os Cayrucrés, quando passassem, con-
servassem os pés pequenos. Enquanto isso, os Camés, para também saírem do centro da
terra, precisaram abrir uma outra vereda, mas através de um caminho pedregoso e de difícil
acesso, o que, conseqüentemente, acarretou-lhes possuírem pés grandes. Quando Cayrucré
fez as antas, os tamanduás, entre outros animais, Camé, visando combatê-los, criou os leões
americanos, as cobras e as vespas. Ora, como os Cayrucré e Camé casaram seus filhos com
mulheres Kaingang, é perfeitamente provável que essas diferenças tenham aumentado e
acarretado guerra entre os grupos. Sendo assim, as guerras deflagradas com os Laklãnõ/
Xokleng, Guarani e depois os não índios, em nosso ponto de vista também foram orques-
trados pelo mito, isto porque além dos ancestrais Cayurucré, Camé e Kaingang, que habitavam
a Serra do Crinjijimbé (Serra Geral), havia ainda os Curutons. Esses últimos precisaram descer
a serra para buscar seus cestos e, por preguiça, não tornaram mais a subir, motivo pelo qual
os Kaingang, com o passar do tempo, passaram a guerrear com estes. Portanto, é possível
que os Kaingang, e neste caso também o Pã’í Mbâng Yotoahê (Doble), precisando dar um
sentido a sua ordem simbólica, tenham ressignificado a presença dos não índios e também
das demais parcialidades Kaingang quer sejam para estratégias alianças ou como potenciais
inimigos a guerrear.
Considerações Finais
A história da Sociedade Kaingang no Brasil Meridional do Século
XIX, semelhante ao que ocorre com outras sociedades humanas, também
apresentou singularidades nas dimensões sociais de um grupo étnico em
movimento e reagiu ao avanço das frentes de extensão e pioneira tendo
por base os arquétipos culturais indígenas. Tomando o trabalho de Maria
Celestino de Almeida para corroborar com esta assertiva tem-se:
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1 MONTEIRO, John Manuel. Armas e Armadilhas. In: NOVAES, Adauto. A Outra margem
do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 248.
escrita de uma nova história indígena. Sobre esse aspecto, Maria Regina
Celestino de Almeida nos diz que
2 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. História e Antropologia. In: CARDOSO, Ciro Flama-
rion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012,
p. 166.
3 STERN, Steve J. The Age of Andean Insurrection, 1742-1782: A Reappraisal. In: STERN,
Steve J. Resistance, Rebellion, and Consciousness in the Andean Peasant World, 18th to
20th. The University of Wiscosin Press, 1987, p. 34-93.
4 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2010
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 99
lisados pela historiografia “oficial” dos povos indígenas. Nesse sentido,
trata-se de inseri-los numa nova cultura historiográfica e, por sua vez,
apresentá-los na condição de protagonistas das suas opções e decisões
junto às autoridades coloniais.
Dessa maneira, este texto se propõe a discutir a história dos Kain-
gang e de sua luta pela retomada das terras do aldeamento de Atalaia,
analisando a trajetória de um personagem pouco conhecido na história
dos índios da região sul, ou seja, Francisco Luiz Tigre Gacom, liderança
indígena residente na vila de Guarapuava, na província do Paraná, no
século XIX.
Francisco Gacom pertence ao povo Kaingang, o maior grupo Jê do
sul do Brasil. O território de ocupação dessa etnia compreende o oeste do
estado de São Paulo, os estados do Paraná, de Santa Catarina e a porção
norte do Rio Grande do Sul. Sua população está estimada em torno de
45.620 mil pessoas, distribuídas em 46 terras indígenas, conforme os da-
dos censitários do IBGE de 2010.5 Conforme os apontamentos realizados
por Luiz Fernando da Silva Laroque, os Kaingang se dividem ao longo
das principais bacias hidrográficas:
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 101
tórios do vale do rio Ivaí, chegando inclusive a negociar a demarcação de
terras com as autoridades provinciais10.
A organização espacial dos Kaingang recebeu um novo significa-
do quando Francisco Gacom adotou a vila de Guarapuava como seu
território sócio-político. Metodologicamente, ao partir dessa afirmação,
esta pesquisa se orienta por uma redução de escala de observação. Desse
modo, a vila de Guarapuava surge enquanto espaço inserido em com-
plexas relações sociais e culturais tanto entre os Kaingang ali residentes
quanto na sociedade local. Para Jacques Revel, um dos principais ex-
poentes desse campo de análise, “a aposta da análise microssocial – e
sua opção experimental – é que a experiência mais elementar, a do grupo
restrito, e até mesmo do indivíduo, é a mais esclarecedora porque é a
mais complexa e porque se inscreve no maior número de contextos dife-
rentes”11.
Assim, se um estudo sobre o espaço geográfico e social de Guara-
puava no século XIX se torna indispensável, isso também acontece em
relação à pesquisa da trajetória de Francisco Gacom através de diferentes
contextos. Observe-se que, nas pesquisas das trajetórias de indivíduos de
quaisquer origens sociais, também é preciso assumir a responsabilidade
pela reconstrução do contexto social, ou seja, dos espaços onde eles for-
taleceram e ampliaram suas relações sociais, políticas e culturais:
10 LAROQUE, Luiz Fernando da Silva. Fronteiras geográficas, étnicas e culturais envol-
vendo os Kaingang e suas lideranças no sul do Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado.
UNISINOS-PPGH: São Leopoldo/RS, 2006, p. 107.
11 REVEL, Jacques. Microanálise e Construção do Social. In: REVEL, Jacques (Org.) Jogos de
Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998, p. 32.
12 LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.) Jogos de
Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998p. 249.
13 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína.
Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 179.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 103
Aquilo que uma análise macro não conseguiria visualizar exatamen-
te, porque seu objeto de análise não permitiria incluir, entre as hipóteses
de pesquisa, as contradições e as experiências individuais, a micro-his-
tória toma para si a fim de revelar como os processos se desenrolam em
uma determinada localidade e como os indivíduos subvertem uma ordem
previamente estabelecida. A respeito desse campo da história, Henrique
Espada Lima alerta que, se observamos os “argumentos que inspiraram
os trabalhos dos micro-historiadores [...], podemos encontrar um progra-
ma de pesquisa que compreendia muito claramente a necessidade de in-
tegrar as singularidades da realidade histórica com os processos sociais
de grande fôlego e longo alcance”14.
Outro aspecto interessante que tem fortalecido as pesquisas interdis-
ciplinares entre a história e a antropologia surge especialmente através dos
estudos da temática indígena e da abordagem etnohistórica. A etnohis-
tória é um dos campos de possibilidades que, juntamente com a análise
micro-histórica, contribui para o modo de interpretação das trajetórias in-
dividuais, notadamente daqueles personagens que foram silenciados por
outras abordagens históricas. Daí que, na condição de metodologia de
pesquisa, a etnohistória venha conquistando cada vez mais espaço entre
os pesquisadores brasileiros que se dedicam à temática indígena.
Entretanto, deve-se observar alguns cuidados no momento de lan-
çar mão dessa metodologia, uma vez que é preciso dar um passo além
de apenas dominar os métodos da história ou da antropologia. Segundo
Trigger (1982, p. 1-19), “[…] os etno-historiadores devem dominar ainda
a arte de usar essas duas abordagens de maneira integrada”. Ou seja, se
o historiador deve analisar as fontes e questioná-las a fim de entender as
ações dos sujeitos a partir da cultura em que eles estão inseridos, o an-
tropólogo também deve se pautar pela compreensão histórica da cultura
desses sujeitos, suas ações e trajetórias ao longo do tempo.
14 LIMA, Henrique Espada. No baú de Augusto Mina: o micro e o global na história do traba-
lho. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, p. 571-595, jul/dez. 2015, p. 582/583.
15 MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo.
Ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. São Paulo: Typo-
graphia de Costa Silveira, 1838, p. 72.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 105
litares de defesa, sem dúvida, para incrementar sua política
econômica e social, baseadas nas transformações agrícola e
populacional, visando, assim, ao desenvolvimento daquelas
áreas relativamente vazias. Portanto, o processo de ocupação
e povoamento de Guarapuava não foi espontâneo16.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 107
como se propriamente ainda existisse um aldeamento em Guarapuava.
Em função do conflito de 1825 e enquanto não havia definições exa-
tas sobre os encaminhamentos relativos aos sobreviventes, as terras do al-
deamento de Atalaia ficaram sob a responsabilidade do capitão Antônio
da Rocha Loures.
A documentação sobre os indígenas de Guarapuava reconhece o al-
deamento de Atalaia como sendo o único do gênero naquele território.
O principal documento que atesta sua confirmação é a Carta de Doação
de Sesmaria, datada de 1818. No entanto, analisando outros documentos
do período, em especial um mapa datado de 1811 e uma correspondência
escrita pelo capitão Antônio da Rocha Loures aos camaristas de Cas-
tro, em 1831, é possível constatar a existência de um território chamado
“Sepultura”20. Embora esse local não tenha sido objeto de análise pela
historiografia local, ele é reclamado pelos indígenas remanescentes de
Atalaia como lugar de antiga morada dos seus ancestrais. Entretanto,
a tarefa de identificá-lo e localizá-lo através da documentação existente
não tem sido das mais fáceis, embora um mapa desenhado por Manuel
Soares do Valle, em 1811, seja fundamental para que se possa concretizar
esse interesse.
Naquela época, o território de Sepultura era um lugar conhecido
pelas autoridades locais. Em resposta à Câmara Municipal de Castro,
Antônio da Rocha Loures refletia sobre uma série de questões referentes
aos indígenas de Guarapuava e reafirmava a existência de um território
reservado para reunir os indígenas da região. Entre as informações rela-
cionadas em 1831, é interessante observar a descrição do comandante
sobre essas terras:
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 109
já tive dos antecessores de V. Exa. Porém pela falta de rendi-
mento nada tenho obrado, agora tenho tratado sem rezes de
criar, o que sendo do agrado de V. Exa. Efetuarei a compra, é
muito necessário se formar ali uma fazenda para o alimento
dos indígenas, pois segundo o lugar podendo logo dali comer
e então evitar maior despesa a nação para sua subsistência,
pondo-se ali não só as rezes e ovelhas que forem precisas
para o princípio da fazenda, como também algumas éguas
para dali retirarem cavalos para o custeio da mesma. Isto é o
que acho necessário24.
26 De Acordo com Sposito (Op.cit. p. 78), o juiz de paz ou de órfãos cuidava dos bens e dos
interesses dos indígenas.
27 CAMARGO, Antonio de Sá. Oficio ao Exmo. Sr. Presidente Provincial. 12/01/1839.
AESP, C-192, O-987.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 111
para que ocorresse a invasão desses territórios pelos potentados locais28.
O juiz de paz, ao denunciar a invasão das terras de Sepultura pelos
arrendatários, que se declaravam donos daqueles espaços, também fez a
ressalva de que toda essa negociação – desde o arrendamento até a per-
missão para permanecer nas terras do aldeamento – tinha o consentimen-
to do comandante Rocha Loures. Era ele quem autorizava o arrendamen-
to das terras indígenas e era ele quem se responsabilizava pela cobrança
dos respectivos valores. Resta saber se os lucros eram efetivamente rever-
tidos para os Kaingang. Tudo leva a crer que a denúncia feita pelo juiz
de paz foi inútil, sem que se produzisse qualquer reação das autoridades
provincianas, pois os problemas se acentuaram dia após dia. Já em sua
correspondência, Antônio da Rocha Loures afirmava que não havia mais
“indígenas aqui aldeados, estão auzentes desta aldeia”29.
Essa situação desencadeou o primeiro conflito pela posse das terras
do aldeamento entre os Kaingang e os potentados locais. Em maio de
1836, os Kaingang que estavam mais próximos da freguesia atacaram o
núcleo populacional. A população local estava preparada militarmente
para se defender de qualquer ataque desde 1835, quando o juiz de paz
articulou a defesa da freguesia com os militares estacionados e membros
da sociedade local. Contando com um arsenal militar superior às armas
usadas pelos indígenas, os povoadores mataram 45 Kaingang daqueles
54 que haviam sido relacionados na comunicação enviada às autoridades
paulistas:
Cumpre-me comunicar V. Ex. que o sossego público nesta
povoação foi alterado no dia 1º de maio do corrente, pelas
oito horas da manhã, por um grupo considerável de indíge-
nas que pretendia surpreender-nos graças ao todo poderoso
que tão filantropicamente nos protegeu, os inimigos eram em
número de 54 índios, algumas mulheres e um recém-nasci-
do, a força que empreguei de comum acordo com o juiz de
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 113
o presidente da província. Nessa ocasião, o juiz municipal solicitava pro-
vidências do diretor geral dos índios em relação ao seguinte fato:
31 REZENDE, Theofilo Ribeiro de. Disputa de Terras entre Manuel Moreira dos Santos
Junior e Joaquim Bernardes Bugreiro e Índios. São Paulo: 03 de abril de 1850. AESP – Ar-
quivo Estadual de São Paulo, Código 2454, caixa 19, ordem 18500312, p. 1.
32 RIBAS, Lourenço Marcondes. Ofício encaminhado ao Diretor Chefe de Polícia Interino
desta Província. Castro: 12 de março de 1850. AESP –Arquivo Estadual de São Paulo, Código
2454, caixa 19, ordem 18500312, p. 1.
33 Idem.
34 Idem.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 115
Ao que parece, Manuel Moreira não apenas convenceu as autorida-
des paulistas sobre a autenticidade dos documentos que apresentou, de-
clarando-se legítimo proprietário das terras que ocupava, como também
abafou o movimento encabeçado pelo bugreiro Joaquim Bernardes. Não
encontramos outras informações sobre o desfecho dessa disputa pelas ter-
ras do aldeamento. Entretanto, esse movimento desencadeou uma série
de outras disputas pela posse dessas terras – agora, sob a liderança de
Francisco Gacom.
Mesmo que houvesse um número considerável de indígenas vivendo
perto da população local, uma boa parte ainda permanecia bem longe
do núcleo populacional e, sempre que possível, atacava as fazendas mais
afastadas da vila, próximas aos seus alojamentos tradicionais. Em um
desses casos, descobrimos que Francisco Gacom exercia uma função so-
cial importante junto aos cargos jurídicos disponíveis para manter e exe-
cutar as leis em vigência.
Em um ataque análogo, o delegado de polícia de Guarapuava, Agos-
tinho José de Almeida Queiroz, buscou auxílio de outro cacique para
convencê-los a não mais empreender invectivas sobre as propriedades da
região. Para isso, optou-se por convocar o cacique Viri, que foi orientado
pelo delegado a buscar meios de persuadir a evitar conflitos. Caso não
entrassem em acordo, Viri poderia pressioná-los a se distanciarem das
propriedades ocupadas pelos fazendeiros35. A fim de supervisionar e de
conter qualquer excesso tanto do cacique Viri quanto de seus guerreiros,
o delegado de polícia determinou que um oficial de justiça os acompa-
nhasse. Ao retornar, o oficial de justiça fez o seguinte relato:
35 QUEIROZ, Agostinho José de Almeida. Ofício 25 de junho de 1855. Delegacia de Guara-
puava: Mandatos Avulsos, 1855-1861. AMG – Arquivo Municipal de Guarapuava – Unicentro, p. 1.
36 Idem, p. 2.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 117
go de oficial de justiça, em Guarapuava37. Não identificamos documen-
tos que pudessem nos trazer mais informações sobre como ele chegou
ao posto de oficial – restam algumas perguntas, por exemplo: nomeado
por quem? Suas atividades estavam restritas aos conflitos envolvendo os
indígenas? Quando deixou de exercer esse cargo?
De todo modo, sabemos que, na sua infância, Francisco Gacom con-
viveu com a família do capitão Rocha Loures, seu padrinho de batismo.
Nesse espaço, aprendeu a falar melhor o português, a ler e a escrever. Ao
mesmo tempo que recebia influência sobre seu modo de vida, ele tam-
bém partilhava seus conhecimentos38 com os filhos do capitão, Francisco
Ferreira da Rocha Loures e João Cypriano da Rocha Loures.
Depois de um longo período de silêncio sem que nenhuma legisla-
ção geral para povos indígenas fosse sequer cogitada, no dia 24 de julho
de 1845, o governo imperial publicou o Decreto nº 426, com o título
de “Regulamento acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Ín-
dios”. Ele foi o único documento indigenista de caráter mais geral produ-
zido pelo Império e visava ao restabelecimento de um regramento válido
para todas as questões que envolvessem a temática indígena.
Manuela Carneiro da Cunha ressalta que o “Regulamento das Mis-
sões de 1845” orientava a remoção dos indígenas de seus territórios tra-
dicionais e incentivava a reunião deles em aldeamentos. Além do mais,
autorizava o arrendamento de suas terras para quem quer que pudesse
cultivá-las. Com isso, gradativamente, os potentados locais começaram
a pressionar as câmaras municipais e os governos provinciais a fim de
obterem os terrenos dos aldeamentos, sob o pretexto de que os indígenas
haviam abandonado suas terras39.
Em 1850, o governo imperial promulgou uma lei, a “Lei de Terras”
37 De acordo com a publicação de um memorialista local, Francisco Luiz Tigre Gacom compa-
receu na casa do Major Francisco Manoel de Assis França, juiz municipal e de órfãos, 3º suplente,
no dia 20 de julho de 1858 para prestar promessa de oficial de justiça no Juízo Municipal e de
Órfãos. Entretanto, acreditamos que possa haver um erro no ano em que ele assumiu tal função,
pois o documento que Francisco Gacom assina como oficial de justiça data de 1855. In: TEI-
XEIRA, Benjamin Cardoso. Efemérides Guarapuavanas. Guarapuava, 2002, p. 139.
39 CUNHA, Op. cit., pp. 69-70.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 119
De acordo com o Capítulo 9º dessa lei, todos os possuidores
de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade, ou
possessão, eram obrigados legalmente a registrar suas terras
perante o Vigário da Freguesia em que estava localizado o
imóvel (artigo 97). Apresentavam a declaração por escrito,
em duas vias. Uma ficava arquivada na Freguesia, a outra
com o possuidor da terra, o “proprietário”. O Vigário, por
sua vez, recebia as declarações, registrando-as em livros pró-
prios, numerados e rubricados que, posteriormente, eram re-
metidos às autoridades competentes. Daí o nome de Registro
do Vigário44.
46 GACOM, Franciso Luiz Tigre. Ofício ao Delegado das Terras Públicas. 13 de Janei-
ro de 1862. Guarapuava: AMG: Arquivo Municipal de Guarapuava, caixa 09, documento 14.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 121
olhos as primeiras reclamações apresentadas por Francisco Gacom ao
delegado de terras públicas do Paraná, denunciando a invasão das terras
do antigo aldeamento de Atalaia. Ao que tudo indica, conforme afir-
mamos anteriormente, a movimentação da população não indígena para
declarar suas posses ao padre Braga de Araújo desencadeou, entre os
Kaingang aldeados, a necessidade usar a legislação em vigor a fim de
favorecer um debate diretamente com o responsável pela regularização
das propriedades no Paraná.
A ida de Francisco Gacom até a capital da província demonstra que
sua argumentação inicial não surtiu efeito sobre as autoridades locais.
Lá, é possível que ele tenha procurado o diretor geral dos índios, brigadei-
ro Francisco Ferreira da Rocha Loures, a fim de que submetesse ao padre
a declaração das terras do antigo aldeamento de Atalaia, que, tal como
sabemos, já na década de 30, estavam arrendadas para alguns potentados
locais.
Desde os tempos coloniais e com muito esforço, as lideranças indíge-
nas aprenderam com que um dos caminhos para garantir sua sobrevivên-
cia física e cultural era lutar pela posse dos terrenos dos aldeamentos e,
ao mesmo tempo, pelo documento que legitimasse sua propriedade sobre
aqueles territórios. Segundo Maria Celestino de Almeida,
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 123
indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por
relações de poder48.
Nesse contexto, Francisco Gacom se estabelecia na posição de re-
presentante dos Kaingang, assumindo sua identidade indígena e, desse
modo, preservando um espaço de negociação a fim de garantir o domínio
sobre terras do aldeamento. Para isso, bastaria que o responsável – nesse
caso, o diretor geral dos índios do Paraná – declarasse que o território do
antigo aldeamento de Atalaia pertencia aos Kaingang residentes na vila
de Guarapuava, conforme o art. 94 do regulamento49.
Por outro lado, como não houve essa declaração, em 1873, os Kain-
gang voltaram a ameaçar a “tranquilidade” dos moradores da vila. Preo-
cupado com a chegada e instalação de vários grupos indígenas ao norte
da vila, isto é, nos terrenos do antigo aldeamento, o presidente da câmara
de Guarapuava comunicou o presidente da província, por meio de um
ofício, que a população estava cada vez mais amedrontada com a possi-
bilidade de ser atacada. Muitos fazendeiros abandonaram suas casas no
rocio e foram proteger suas propriedades, deixando a população menos
abastada vulnerável. O presidente da Câmara, José de Freitas Saldanha,
se manifestou neste sentido:
48 SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000, p. 82.
49 CUNHA, Op. cit., p. 223.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 125
era Francisco Gacom, inclusive pelo histórico de protagonismo na defesa
da posse dos terrenos do aldeamento.
Francisco Gacom não usou de violência para reclamar a posse das
terras de Atalaia. Em nenhum momento encontramos na documentação
qualquer informação que demonstre que os Kaingang residentes na vila
tenham usado desse subterfúgio para alcançarem seus objetivos. Diferen-
te disso, eles buscavam reclamar, junto às autoridades locais e provinciais,
por seus direitos sobre as terras do antigo aldeamento através dos meios
legais. De todo modo, opera-se uma mudança nas estratégias de luta e
resistência dos Kaingang: eles diminuem os ataques às fazendas da região
e assumem uma postura, por assim dizer, mais diplomática na medida
em que buscam a instância judicial para garantir as terras que historica-
mente lhes pertenciam. Sobre esse assunto somos signatários da assertiva
de Lúcio Tadeu Mota e de Éder da Silva Novak quando afirmam que os
51 MOTA, Lúcio Tadeu; NOVAK, Éder da Silva. Os Kaingang do vale do rio Ivaí: história e
relações interculturais. Maringá: Eduem, 2008, p. 70.
52 LARANJEIRA, Ernesto Dias. Pedido de Reforço Policial. Guarapuava: Arquivo Munici-
pal de Guarapuava, caixa 15, documento 13, 1877.
53 PARANÁ, Arquivo Público do Paraná. Ofício. Curitiba, 12 de outubro de 1877. Documento
manuscrito. Apud: MOTA; NOVAK, Op. cit. p. 72.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 127
como as solicitações, pelos meios legais, de que as terras retornassem
para o domínio dos Kaingang não foram suficientes para que eles, de
fato, as reouvessem. Sob a liderança de Francisco Gacom, eles colocaram
em execução um projeto mais audacioso quando ocuparam as terras do
antigo aldeamento de Atalaia, território muito mais extenso que a pro-
priedade de Xavier Pedroso.
No dia 09 de novembro de 1877, um grupo de potentados locais
compareceu na delegacia de polícia para denunciar, diante da autoridade
competente, que suas propriedades haviam sido “invadidas” por um gru-
po de pessoas que, há tempos, estava se reunindo na região:
55 FREIRE, Leticia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica.
In: Comum, vol. 11, n. 26, 2006, janeiro/junho, p 55.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 129
direito de posse. Isso acontecia, aliás, desde quando as populações ori-
ginárias foram transferidas para perto da freguesia e continuou até que
elas fossem transferidas para o território de Marrecas. De todo modo, na
medida em que reconstruíamos os atores dessa ampla rede de relações
tecidas em Guarapuava, passamos a identificar aqueles personagens que
tiveram alguma ligação tanto com os Kaingang quanto com as terras que
lhes eram destinadas.
Com a instalação do sumário criminal, identificamos 13 pessoas que
se diziam prejudicadas pela “invasão” de suas propriedades pelos indíge-
nas. Entretanto, fala-se aqui de um contexto de ocupação que não ultra-
passa um período de 45 anos. Muitos tinham comprado suas proprieda-
des de antigos moradores, os quais, de uma forma ou de outra, contavam
com algum documento atestando serem seus legítimos proprietários.
Também havia quem tivesse recebido as terras por herança paterna. Ob-
viamente, essas informações só foram passíveis de identificação através
do registro do vigário, ou seja, através das declarações de terra remetidas
ao padre Braga de Araújo.
Alguns meses depois da “invasão” dos campos de Atalaia e da fina-
lização do sumário criminal em que os potentados locais desistiram da
execução da pena aplicada a Francisco Gacom sob a acusação de invasão
de propriedade e danos materiais, a Câmara Municipal de Guarapua-
va, em ofício, solicitou ajuda ao presidente provincial para dar conta das
necessidades mais urgentes do munícipio. Essa ajuda estava destinada a
resolver a situação dos “índios semi-civilizados” que permaneciam na
vila causando grande temor aos moradores. Depois de uma breve recons-
trução histórica dos primeiros anos do trabalho pastoral do padre Chagas
Lima e do assinalamento de seu empenho em trazê-los para a civilização
por meio da catequese, os camaristas enalteceram as ações promovidas
no passado afirmando que, em consequência delas, a população indígena
de Guarapuava, sob o comando dos caciques Vitorino Condá Facxó, Viri
e Aleixo, não causava transtornos na vila56.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 131
cionada à atuação do aspecto político nas demandas apresentadas pelos
Kaingang, por exemplo, na medida em que solicitaram que uma pessoa
não indígena fosse nomeada para a administração do aldeamento. Essa
era uma estratégia interessante no contexto do convencimento da impor-
tância da retomada do projeto de um aldeamento em Guarapuava. Os
Kaingang, além da posse do território de Atalaia, exigiam que a provín-
cia destinasse algumas pessoas para trabalhar nesse aldeamento, assim
como acontecia nos aldeamentos imperiais em atividade na região dos
campos gerais, organizados de acordo com as orientações do Regulamen-
to das Missões de 1845.
O outro aspecto relevante diz respeito à comunicação e ao conhe-
cimento que eles tinham tanto sobre aquilo que ocorria nos outros al-
deamentos quanto sobre o investimento que a diretoria dos índios de-
mandava. Por fim, os camaristas não deixaram de registrar que estavam
recolhendo assinaturas entre os Kaingang para encaminhar às autorida-
des competentes a legitimidade de suas demandas. No entanto, não há
como saber quais eram as pessoas que assinaram tal documento.
O fato é que os indígenas, quando recorreram à elaboração de do-
cumentos, assumiram uma postura em consonância com a sociedade da
época. O papel passou a fazer parte das lutas políticas dos Kaingang num
contexto em que um número considerável da população sequer sabia es-
crever seu próprio nome.
Na parte final desse ofício, os camaristas ainda indicaram a locali-
dade de Marrecas como o local mais apropriado para a criação de um al-
deamento destinado os Kaingang. Para eles, a “localidade mais apta para
formar a colônia indígena é um terreno composto de faxinais e terras de
lavoura em boas condições situado apenas a 6 léguas distante da cidade
de Guarapuava”60. Na tentativa de demonstrar interesse pela resolução
do problema indígena, essas autoridades sustentavam que já não exis-
tiam mais terras devolutas próximas da vila para instalar um aldeamento.
De acordo com eles, “seria melhor” assim. Ora, na verdade, pretendia-se
60 Idem.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 133
mento. No relatório provincial de 1880, sob a presidência de Manoel Pin-
to de Souza Dantas Filho, informou-se que o diretor Cleve, na condição
de responsável pelos assuntos indígenas da localidade em questão, havia
realizado elaborado um levantamento do número aproximado de indí-
genas, cerca de 2000, que estavam subordinados aos principais caciques,
“Bandeira, Paulino e Francisco Tigre”63.
Mais ou menos nessa época, o reconhecimento de Francisco Ga-
com enquanto chefe de prestígio entre seus pares e acompanhado por
um número considerável de indígenas resultou na sua nomeação como
cacique dos índios aldeados de Guarapuava, de acordo com a indicação
do diretor Cleve, datada de fevereiro de 188064. Esse reconhecimento por
parte das autoridades provinciais, fez com que ele também aproveitasse o
momento para ampliar seu espaço político em defesa dos interesses dos
Kaingang de Guarapuava.
Logo após sua confirmação como cacique, no mesmo ano e na
companhia de mais dois indígenas chamados Paulino Datahy e Joaquim
Leheren, Francisco Gacom se deslocou até a capital da província para
resolver a questão das terras do aldeamento. Nessa viagem, receberam
alguns objetos totalizando uma despesa de 42$600 com presentes65.
No desdobramento dessa viagem até Curitiba e valendo-se inclusi-
ve do campo diplomático, Francisco Gacom submeteu uma solicitação
ao imperador Dom Pedro II de que as terras do aldeamento de Atalaia
fossem reincorporadas ao patrimônio dos Kaingang de Guarapuava. Por-
tanto, já não se tratava de uma disputa entre os Kaingang e as autorida-
des regionais: Francisco Gacom informava o problema do esbulho dos
territórios tradicionais diretamente ao chefe máximo da nação. Vejamos
o teor das suas demandas:
63 DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Relatório do presidente da província do Pa-
raná, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 16 de fevereiro de1880. Curiti-
ba/PR, p. 42.
64 DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Governo da Província. 21 de fevereiro de 1880.
In: O DEZENOVE de Dezembro. Curitiba, Ano XXVII, nº 2025, p. 2.
65 DANTAS FILHO, Manoel Pinto de Souza. Governo da Província. 07 de abril de 1880. In:
O DEZENOVE de Dezembro. Curitiba, Ano XXVII, nº 2037, p. 2.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 135
dadãos quererem extorquir-lhes uma propriedade, legitima-
mente adquirida. Confiados pois no magnanismo sentimento
patriótico e justiceiro que caracteriza a Vossa Majestade Im-
perial e o torna admirado das nações do Mundo Civilizado, o
supplicante, por si e por seus companheiros, tem consciência
de que V. M. Imperial os atenderá, fazendo-lhes inteira jus-
tiça. E. R. M, Curitiba, 22 de maio de 1880. Francisco Luiz
Tigre Gacom66.
66 GACOM, Francisco Luiz Tigre. Correspondência do cacique Franciso Luiz Tigre Ga-
com ao Imperador do Brasil D. Pedro II. Curitiba, 22 de maio de 1880. APP-Arquivo Público
do Paraná, caixa 026.1, documento 19.
67 Um exemplo desse tipo de interpretação vem de uma dissertação de mestrado sobre os Kain-
gang de Guarapuava em que a autora afirma que Francisco Gacom havia adotado essa forma de
luta política com “os brancos, a persuasão e negociação, métodos utilizados pelos fazendeiros e
adotado por ele para defender a posse dos Campos de Atalaia. In: SANTOS, Zeloí Martins. Os
campos de Guarapuava na política indígena do estado provincial do Paraná (1854/1889).
Guarapuava/PR; Assis/SP: 1999, (Dissertação de Mestrado), UNESP/Assis-UNICENTRO/
PR, p. 161.
68 “Não sendo sufficientes as informações prestadas sobre o requerimento em que o cacique
Francisco Luiz Tigre Gacom alega dirietos à posse dos campos de Atalaia, e transmitidas com o
offício d’essa presidência, datado de junho último, devolvo a V. Ex. os respectivos papéis a fim
de coligir e remeter a esta Secretaria de Estado esclarecimentos circunstanciados e completos.
Deus guarde a V. Ex. In: Ministério dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas
ao Presidente da Província João José Pedrosa. 20 de setembro de 1880. APP – Arquivo Público
do Paraná, volume 285, documento 095.
69 PEDROSA, João José. Ofício à Câmara Municipal de Guarapuava. Curitiba: 21 de agos-
to de 1880. APP-Arquivo Público do Paraná, caixa 26, documento 18.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 137
cacique. Assim, no dia 28 de setembro de 1880, a Câmara Municipal de
Guarapuava, por meio de sua presidência, elaborou uma documentação
e, provavelmente indignados e inconformados com aquilo que julgavam
ser um disparate de Francisco Gacom, os camaristas responderam da
seguinte maneira:
70 OFÍCIO. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Paraná João José Pedroso.
Guarapuava, 28 de setembro de 1880. AMG-Arquivo Municipal de Guarapuava, Livro de Ofí-
cios nº 2, p. 93.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 139
Maria Celestino e Vânia Moreira, essa situação se agravou com o arren-
damento das terras para os potentados da época e com a criação de vilas
nos aldeamentos, incentivada pelo diretório dos índios de 175776.
De qualquer modo, o encaminhamento do Ministério da Agricultu-
ra para obter mais informações a respeito dos Kaingang de Guarapuava,
devolvendo o pleito à província e depois à Câmara de Vereadores, traz à
tona uma decisão local sobre o grau de indianidade que eles representa-
vam ter. A averiguação de que se tratavam de “índios puros” tinha que ser
aplicada pelos vereadores e deveria demonstrar seu grau de “civilização”.
Evidentemente, esses indígenas “ressocializados” carregavam o estigma
de serem mestiços remanescentes das populações originárias, índios civi-
lizados, misturados à massa da civilização e, portanto, eles não tinham o
direito sobre territórios alcançados pela legislação. Para que seus direitos
fossem reconhecidos, esses “indivíduos e comunidades deveriam viver
isolados em regiões ainda não colonizadas ou apresentar sinais diacríti-
cos contundentes”77.
A presidência da província em 1879, convencida que o go-
verno não podia mais haver aquelles campos fora fundar um
aldeamento ordenou ao juis comissário desta, que medisse
e demarca-se nas proximidades dos rios Marreca e S. Fran-
cisco terras necessárias para este indios e os mais que qui-
sessem sujeitar-se a serem aldeados, o que foi feito sendo a
medição aprovada pelo governo da província e deo director
comesso ao aldeamento não se sujeitando o indio Tigre a ser
aldeado. Esta Câmara assim informando circunstanciada-
mente e os pontos principaes do requerimento de Francisco
Luiz Tigre, diz mais que estes índios e os brasileiros casados
com mulheres de raça indígena, não podem ser considerados
cathequisados e aldeados visto que forão já criados e educa-
dos pelo nosso costume e religião e tem cido sempre consi-
derados com brasileiros, tendo elles individuos qualificando
78 OFÍCIO. Ofício encaminhado ao presidente da Província do Paraná João José Pedroso.
Guarapuava, 28 de setembro de 1880. AMG-Arquivo Municipal de Guarapuava, Livro de Ofí-
cios nº 2, p. 94
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 141
Novak, essa data marca definitivamente o processo de desterritorializa-
ção dos Kaingang dos campos de Guarapuava79.
Sem receber qualquer resposta ao requerimento apresentado ao im-
perador, Francisco Gacom e os demais indígenas que o acompanhavam
começaram aos poucos migrar para o aldeamento de Marrecas. Tudo
indica que o diretor dos índios Luiz Daniel Cleve fez cumprir os anseios
dos fazendeiros de Guarapuava, desconsiderando as demandas dos Kain-
gang de Guarapuava pela retomada das terras do antigo aldeamento.
Considerações finais
Depois desse percurso, não há como não destacar que a trajetória de
Francisco Gacom e de outros personagens semelhantes traz consigo uma
excelente oportunidade para promover uma revisão da história indígena,
senão da história do Brasil, tal como bem sinalizou John Monteiro – às
vésperas das comemorações dos 500 anos – na citação de abertura deste
texto. É preciso antes de mais nada, demonstrar o protagonismo desses
grupos e a participação ativa de lideranças indígenas lutando para garan-
tir direitos que o estado lhes garantia. As estratégias de sobrevivência dos
Kaingang não se resumiam apenas aos conflitos como forma de resistên-
cia ao projeto de assimilação defendido pelas autoridades imperiais, mas
superada essa fase inicial, as disputas em torno de seus direitos recaíam
no âmbito das relações políticas e diplomáticas, nem sempre como de-
sejavam, mas na maioria das vezes de acordo com seus entendimentos.
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pela Secção Histórica do Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo: Typ.
do Globo, 1944, Livro 40, folha 92v.
DURAT, Cristiano Augusto. Francisco Luiz Tigre Gacom e os embates pelas terras 145
146 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
A comunidade quilombola São Roque:
resistência e formação de um território de liberdade
Tabela 02. Ocupação dos escravos na paróquia de São Francisco de Paula de Cima
da Serra. Recenseamento de 1872
3 APERS, Livro de Notas e Transmissões, Santo Antônio da Patrulha, Freguezia de São Fran-
cisco de Paula de Cima da Serra, liv. 2, n.65, set. 1860-set. 1865.
4 Trabalhar longe do domínio direto do senhor é uma condição que vem sendo percebida e
estudada pela atual historiografia. Até onde um senhor pode deixar ‘livre’ seu escravo é um limite
construído sobre mecanismos de controle muito sofisticados e falíveis
5 A casa de Florêncio José Pereira, identificado como preto, foi queimada enquanto ele estava
viajando a trabalho. Com ele na casa moravam sua companheira, um velho e uma menina de 12
anos. A mulher e o velho foram mortos na hora e a menina foi levada, sendo seu corpo encon-
trado cerca de 10 dias depois em um pântano um pouco distante da casa.
6 Situação semelhante num contexto totalmente diverso ocorria, por exemplo, nos quilombos
da região do Trombetas, no Pará (MATTOSO, 1992)
Referências
BARCELLOS, Daysi Macedo de; Et. Al. Comunidade negra de Morro Alto:
historicidade, identidade e territorialidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.
BOLETIM INFORMATIVO NUER; Quilombos no Sul do Brasil: perícias
antropológicas. Vol. 3, n.3. Florianópolis, NUER/UFSC, 2006
BRUSTOLIN, Cíndia. Lutas pela definição de concepções de justica na construção
do Parque Nacional dos Aparados da Serra - RS/SC. Dissertação (Mestrado em
Carina Sartori
1 O Sahy era uma península banhada pela Baía da Babitonga e que pertencia à paróquia de São
Francisco do Sul. Sua origem territorial administrativa é datada de 1771, quando as Câmaras Mu-
nicipais São Francisco e Guaratuba assinaram o tratado de limites territoriais entre as Províncias
de Santa Catarina e Paraná. No entanto, é somente em 1850, com a assinatura da Lei de Terras,
que o Império e a Assembleia Provincial reconhecem oficialmente, através da lei n.302, a Penín-
sula e a denominam de 2º Distrito do Sahy.
2 VIDAL, Laurent. Ils ont rêvé d’un autre monde. Paris: Flammarion, 2014.
brasileiro. Para a gestão desta, o Statut de l’Union Industrielle3 foi votado
e registrado no mês de maio de 1841. O documento, além de possuir
um manifesto que justifica e encoraja a imigração para o Novo Mundo,
apontando os problemas sociais existentes na velha civilização, descreve
minuciosamente toda a estrutura social e econômica da sociedade. As-
sim, no final do mês de dezembro de 1841, a Corte do Rio de Janeiro e
o próprio Dom Pedro II assistiram a chegada dos franceses industriosos.
Uma cerimônia foi realizada nas instalações do Palácio4 para receber to-
dos aqueles corajosos homens, mulheres e crianças. Por detrás de toda a
cena construída, o que muitos desconheciam era a existência de um de-
sentendimento entre o Dr. Mure e os dois diretores da Union Industrielle,
Jamain e Derrion, acerca do passado saint-simoniano destes dois últimos
e as incoerências existentes no estatuto da dita sociedade. Aliado a tal
fato, estariam as divergências surgidas entre o ideal societário dos france-
ses e as leis do Império brasileiro.
“Saint-simonianos, fouriersitas, falange, sociedade societária, dissi-
dentes, socialistas utópicos ou colonos”. Todos estes termos foram uti-
lizados para narrar a história dos franceses do Sahy. Entretanto, ao se
observar estas designações é importante considerar que os relatos de vida
destes homens carregam rastros de um exílio voluntário vivido pela es-
perança de realizar um sonho, o de erigir uma comunidade societária
industrial.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 169
tar de carreira, conhecia bem os trâmites burocráticos naquela Província.
Além disso, é preciso destacar que Camacho tinha seus interesses já que,
as terras que foram cedidas para erigir a Colônia Industrial pertenciam
a sua família desde os idos de 182711. Um tanto improdutivas devido
às inundações, o nobre deputado sabia que o ato de conceder as terras
para a instalação de uma Colônia lhe permitia solicitar uma indeniza-
ção. Esta negociata, que não é citada nos documentos do Sahy, só ficou
conhecida quando a viúva Camacho foi obrigada a vender certa porção
de terras, após a morte do Coronel12. Do trâmite acerca da indenização,
não se pode saber se o Dr. Mure era ciente. Em todo caso, ele obteve a
concessão das terras de maneira eficaz e o próximo passo era apresentar
o projeto aos deputados na Corte. Caso aprovado, um financiamento pú-
blico seria destinado ao empreendimento e asseguraria a viagem dos seus
compatriotas ao Brasil, bem como, o pagamento de um soldo mensal a
todos os integrantes durante o primeiro ano. Assim, no mês de abril de
1841, a proposta da Comunidade Societária do Sahy foi apresentada ao
recém-empossado Ministro, Cândido José de Araújo Viana e deputados.
A sessão do mês de julho de 1841 da Assembleia dos Deputados
começou com debates um tanto acalorados a respeito dos soldos dos mi-
litares e dos detalhes do orçamento no Império para o período 1842-1843.
Em meio a tais preocupações, as comissões permanentes deviam aprovar,
com certa urgência, quais os projetos que seriam financiados pelo poder
público. Uma vez apreciado, em forma de emendas nas devidas comis-
sões, os projetos eram enviados à comissão de orçamento que deliberaria
sobre a aprovação. Naquele ano, a “Comissão do Comércio, indústria e
artes” foi quem se responsabilizou pela avaliação do projeto da Colônia
11 No ano de 1827 a família do Coronel obteve uma porção de terras devolutas, títulos de ses-
marias, que se localizavam entre a região do rio Cubatão e as terras do Sahy. Cf. CUNHA, R. P..
Op. cit.; MARTINELLO, André Souza. Geografia histórica, discursos espaciais e construção territorial em
Santa Catarina. Tese de doutorado em Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
FFLCH, USP, São Paulo, 2016.
12 “(...) as quais foram concedidas ao seu falecido marido pelo Governo da Província em com-
pensação de outras terras que o mesmo falecido marido concedeu ao Governo para o estabeleci-
mento das Colônias do Sahy”. Cf. CUNHA, R. P.. Op. cit., 2009.
13 Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
14 Idem.
15 A Sociedade tinha o objetivo de “promover a vinda de Colonos brancos uteis, a saber:
pagando a despesa do seu transporte, a sua chegada a este porto - mediante convenção ajuste
com os mesmos Colonos - as pessoas com as quais eles tiverem contratado as suas passagens;
proporcionando-lhes emprego ou ocupação acomodada as suas faculdades e misteres; aparan-
do-os nas suas necessidades; e protegendo-os nas suas pessoas e fazenda, com sujeição as leis
do Império do Brasil”. Coleção das leis e decretos do Império do Brasil. desde a feliz época da
sua independência. Sessão de 1836. Rio de Janeiro: Tip. Imp. E. Const. de J. Villeneuve e comp.
1837. p. 09-13; CHRYSOSTOMO, Maria Isabel; VIDAL, Laurent. “Do depósito à hospedaria de
imigrantes: Gênese de um território da espera no caminho da emigração para o Brasil”. In: Revista
Manguinhos, História, Ciências, Saúde, vol.21, janeiro-março 2014.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 171
documentos fornecidos pelo Dr. Mure acerca da Comunidade Societária
do Sahy, que tinha por objetivo ser contratado pelo Império por vias de
l’Union Industrielle de Paris, não estava nas normas burocráticas brasileiras.
É de se imaginar o quanto este debate deixou as mãos do Sr. Ministro ata-
das e quase acabou com as esperanças do Dr. Mure. Porém, dias depois,
o deputado Francisco Ramiro de Assis Coelho apresentou o projeto na
Comissão de orçamento do Império defendendo-o com o argumento que
“a ninguém pareça eu essa despesa vem ser gravosa ao tesouro público,
porque não é donativo, porém apenas uma antecipação, que a Colônia
pede; ela promete reembolsar o tesouro, e a promessa é garantida por três
espécies de caução a que se sujeita16”. Sem aplausos ou vaias, o projeto
não foi votado.
No dia 8 de julho, o deputado paulista Andrada Machado se apre-
sentou favorável à emenda da contratação do Dr. Mure. Em seu discurso,
ele destaca a importância e a necessidade, para o Império, em deixar de
utilizar a “cultura por braças escravas17” e enaltece a ideia do sistema
associativo criado por Charles Fourier. Para Andrada Machado, os ope-
rários franceses representariam uma forma de liberdade para as terras
brasileiras. Não esquecendo as posturas da bancada tradicionalista e ca-
tólica que se fazia presente, o deputado também destacou que mesmo
se as intenções do Dr. Mure eram baseadas nas ideias de Fourier, o seu
“ensaio (...) não vai tocar nem com a nossa religião, nem com o nosso
governo”18. Mais uma vez, a sessão foi encerrada e a emenda ainda não
tinha obtido os votos necessários para a sua aprovação.
No dia seguinte, o Ministro. Araújo Viana entra em cena. Ao come-
çar o seu discurso abordando as questões centrais para o Império, como
o soldo dos militares, num dado momento, utilizando toda a polidez po-
lítica, ele solicita o apoio dos deputados ao projeto do Dr. Mure:
16 Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
17 Idem.
18 Ibidem.
19 Brasil. Anais da Câmara de Deputados. Sessão de julho de 1841. Disponível: https://www.
camara.leg.br/biblioteca-e-publicacoes Acesso: julho de 2015.
20 Idem.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 173
apresentada como Colônia Industrial. Após tantos meandros burocráti-
cos, a emenda da Colônia Industrial finalmente passou no dia 14 de julho
e foi redigida da seguinte forma:
21 Ibidem.
22 Almanach Social pour l’année 1841. Paris: Librarie Sociale, 1842. p. 157-175.
23 A origem do nome Canuts ainda desperta inúmeros debates. No entanto, acerca da vida
destes trabalhadores da seda o que sabe é que as jornadas de trabalho eram de quase 16h, as
pausas eram restritas e destinadas para o descanso. Já os salários, eles eram estipulados pelos
grandes comerciantes da seda e taxados a partir da produção do tecido e da venda deste. Quanto
as condições de vida, habitação, normalmente, os Canuts encontravam-se alojados em pequenís-
simos apartamentos localizados no último andar dos prédios onde se produzia a seda. Numa
tal realidade, não é difícil de supor que novas ideias acerca do trabalho justo tenham chamado
a atenção. Sobre a Fábrica da seda em Lyon aconselham-se as leituras: PIGUET, Marie-France.
“Désignation et reconnaissance: le concours pour « chercher un terme appellatif qui remplace
celui de canut » dans l’Echo de la fabrique”. In: FROBERT, Ludovic (dir.). L’Écho de la Fabrique:
Naissance de la Presse Ouvrière à Lyon. ENS Editions/ Institut d›histoire du livre, 2007.
24 As duas Révolts des Canuts foram um movimento operário que questionava a industria-
lização e os baixos salários pagos. Manifestando-se para obter melhores condições de vida
e de trabalho, os canuts chegaram a tomar o poder da cidade de Lyon. No entanto, eles
foram duramente reprimidos e alguns foram levados a julgamento. Aconselham-se as leitu-
ras: RUDE, Fernand. Les Révoltes des canuts, 1831-1834. Paris: Maspero, 1982.; FROBERT,
Ludovic. Les canuts, ou la démocratie turbulente, Lyon 1831-1834. Tallandier, 2009.; FROBERT,
L.. “Vivre en travaillant ou mourir en combattant - Les révoltes des canuts (1831, 1834)”.
In: Histoire des mouvements sociaux en France, de 1814 à nos jours. Paris: La Découverte, 2014.;
LEQUIN, Yves. Les ouvriers de la région lyonnaise (1848-1914). Presses Universitaires de Lyon,
1977.; RUDE, Fernand. Les Révoltes des canuts, 1831-1834. Paris: Maspero. 1982.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 175
Em 1831, Michel Derrion se engajou ao saint-simonismo. O movi-
mento, estabelecido em Paris, após a morte de Saint-Simon (1825)25 pas-
sou a ser gerido por Prosper Enfantin, Amand Bazard, Olinde Rodrigues
e Michel Chevalier26. Foi este mesmo grupo que reformulou a doutrina,
criou a Igreja saint-simoniana, adotando a alcunha de frère para todos os
integrantes e Père para os responsáveis, e publicou o jornal Le Globe. Em
Lyon, para estabelecer uma Igreja, oradores foram enviados para organi-
zar reuniões e conferências. A doutrina de uma nova “société laborieuse et
pacifique27” devia ser popularizada.
Pouco tempo depois de conhecer os preceitos, Michel Derrion se tor-
nou responsável pela gestão administrativa da Igreja de Lyon e, quando
possível, escrevia artigos para alguns dos jornais operários locais defen-
dendo as ideias saint-simonianas. Em meados de 1834, devido a diver-
gências no movimento e a prisão do Père Enfantin, ele se afasta do grupo.
Porém, ele continua contribuindo com o jornal L’Indicateur publicando
uma série de artigos intitulados “Amélioration Industrielle”. Ao mesmo
tempo, ele coloca em circulação a sua brochura que propõe “l’améliora-
tion de l’industrie et du commerce”28. Nesta, além de abordar as injustiças
que o comércio egoísta exercia sobre os trabalhadores e questionar a real
função dos movimentos e revoltas sociais na vida dos operários, o lionês
25 Cf. BOISSIER, Gaston. Saint-Simon. Paris: Librairie Hachette et Cio. 1892.; PETRE-GRE-
NOUILLEAU, Olivier. Saint-Simon: l’utopie ou la raison en actes. Paris: Payot & Rivages. 2001; DE-
SANTI, Dominique. Les socialistes de l’utopie. Paris: Payot, 1970.
26 Após a morte de Saint-Simon, que conseguia reunir os diferentes ideais que compunham o
movimento, Prosper Enfantin e Saint-Amand Bazard foram nomeados Pères pelas mãos de Ro-
drigues. No entanto, mesmo se ambos partilhavam o título máximo, as diferenças entre os dois
causaram acaloradas discussões no seio da Igreja acerca da concepção hierárquica religiosa do
movimento e do misticismo sexual. Rodrigues e Bazard viam que Prosper Enfantin denegria os
preceitos do Mestre ao propor tais liberdades. Assim, no final do ano de 1831, a ruptura entre os
dois Pères foi inevitável. Rodrigues não tardaria a se retirar da Igreja.
27 Toutes les institutions sociales doivent tendre à l’amélioration progressive, sous le rapport moral, intellectuelle
et physique, de la classe plus pauvre et la plus nombreuse. Tous les privilèges dus au hasard de la naissance doivent
être successivement abolis; et alors chacun doit être classé suivant sa capacité et rétribué suivant ses œuvres : voilà les
moyens. Et de cet ensemble, mis en pratique par les hommes, du jour où comme nous ils sauront l’aimer, naîtra une
association universelle fondée sur un échange d’amour et de travail. Séance Saint-simonienne, Le Précurseur,
Lyon, 9 et 10 mai 1831. BML.
28 DERRION, Michel. Constitution de l’industrie et organisation pacifique du commerce et du travail, ou
tentative d’un fabricant de Lyon. Lyon: Chez Mme Durval Librerie, 1834.
29 A épicerie propunha encorajar os consumidores a tirar o máximo de proveito do seu po-
der de compra e, assim, modificar o sistema injusto de venda. Nesta ação, Michel Derrion
argumenta acerca da importância em criar um “réseaux d’établissements de distribution, magasins
de vente en détail d’objets de consommation courante: épicerie, boulangerie, soieries et nouveautés” para esta-
belecer uma partilha social, justa e eficaz dos benefícios entre os associados. Para conceber
este comércio, o Lionês, muito provavelmente, se apoiou nas leituras e análises de Charles
Fourier acerca da agiotagem, especulação, fraudes e trabalhos industriais. Cf. BEECHER,
Jonathan. Fourier: Le visionnaire et son monde. Paris: Fayard. 1993.; GAUMONT, Jean. Le commerce
Vérdique et Social (1835-1838) et son fondateur Michel Marie Derrion. Aminiens: Imprimerie Nou-
velle. 1935.
30 Através da troca de correspondências que os fourieristas buscavam encorajar e apresentar as
suas ideias acerca do estabelecimento de ações práticas para a realização da sociedade harmônica
pensada por Charles Fourier.
31 Cf. FOURIER, Charles M.. Le nouveau monde amoureux. Paris: Anthropos. 1967.; FOURIER,
C. Le Nouveau monde industriel et sociétaire ou invention du procédé d’industrie attrayante et naturelle, distribuée
en séries passionnées. Paris: Bossange père. 1829.
32 A ideia do Falanstério era de reunir certo número de pessoas e envolvê-las em atividades
sociais que supostamente permitem que suas paixões e inclinações naturais sejam livremente
expressas. Estes espaços são formados por grupos de produção e consumo em que cada fa-
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 177
Das trocas de correspondências para as ideias de uma sociedade
harmônica, Michel Derrion passou a participar da École Sociétaire33, teve
acesso ao jornal publicado por eles, La Phalange, e frequentou o Institut
Societaire34. Neste meio, ele também conheceu os diretores responsáveis
do jornal Le Nouveau Monde35 com os quais compactuava a ideia de que
os militantes da causa deviam manter uma postura contrária ao envolvi-
mento de qualquer um em partidos políticos. Acerca deste ponto, os fou-
rieristas não tinham uma opinião muito coesa. Por volta de 1836, o de-
bate sobre a presença do fourierismo na política se tornou um problema.
Como solução, alguns dos integrantes da École decidem fundar o Institut.
Victor Considérant36, o principal nome dos fourieristas, continuou vincu-
lado a aquela primeira e alguns anos depois, já engajado no meio político,
ele se elege deputado. Porém, devido a sua postura contrária as práticas
daquele que soe tornaria Napoleão III, ele e uma boa parte dos fourieris-
tas são cassados. Victor Considerant se exila na Bélgica e, em 1852, ele
parte para os Estados Unidos. Quanto ao Institut, gerido por um pequeno
grupo, é a figura de Eugene Tandonnet que se destaca. Diferentemente
de seu frère político, por volta de 1840 ele parte para Montevidéu com o
intuito de difundir as ideias de Charles Fourier. Sem muito sucesso, ele
retorna à França.
Os fourieristas, assim como os saint-simonianos, não possuíam uma
unidade no interior do movimento. Michel Derrion, que chegou à Pa-
ris quando as diferenças de l’École e Institut já haviam sido apaziguadas,
se aproximou dos frères que partilhavam das mesmas aspirações que as
lansteriano exerce várias profissões por alternância, o que lhe permite desenvolver todas as suas
faculdades. A renda é dividida entre capital, trabalho e talento.
33 Cf. BREMAND, Nathalie. “L’Ecole sociétaire - Les premiers socialismes”. In: Bibliothèque
virtuelle de l’Université de Poitiers, março de 2009. Disponível: <http://premierssocialismes.edel.
univ-poitiers.fr/collection/lecolesocietaire> Acesso: janeiro de 2019.
34 Cf. Aux phalanstériens. La commission préparatoire de l’Institut sociétaire, Paris, Impr. de Lottin de
Saint-Germain, 1837. Disponível: <http://premierssocialismes.edel.univ-poitiers.fr/document/
fd4345/viewer> Acesso: janeiro de 2019.
35 Groupe du Nouveau Monde, Le Nouveau Monde, Paris, 1 août 1841. BNF.
36 BREMAND, Nathalie. “Victor Considerant (1808-1893)”. In.: Les premiers socialismes -
Bibliothèque virtuelle de l’Université de Poitiers, 2009. Disponível: <http://premierssocialismes.
edel.univ-poitiers.fr/collection/victorconsiderant>. Acesso: julho de 2018.
37 “Bases réglementaires de l’Union”, In: Almanach Social pour l’année 1841, p. 152-156.
38 ARANTES Urias. “Et l’idée organise le monde. Notes sur les fouriéristes dissidents”. In:
Cahiers Charles Fourier, n° 5. 1994. Disponível: http://www.charlesfourier.fr/spip.php?article118.
Acesso: fevereiro 2017.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 179
les améliorations industrielles et jamais sur les changements
administratifs, [et] est toute conciliante en ce qu’elle indique
l’art d’enrichir la masse sans froisser l’individu” 39.
39 Caractère de notre propagande, Le Nouveau Monde, n°11, 20 octobre 1839 apud ARANTES
Urias. Op. cit..
40 Faits divers, Journal le Nouveau Monde, Paris, 21 mars 1840. BNF.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 181
Assim, é de se considerar que a ideia de fundar a Union Industrelle de Paris
com um esboço de Estatuto, ou ata, assinado em setembro de 1840, teve
seu princípio numa destas reuniões. Infelizmente, não se sabe ao certo
quem o assinou e se foi realmente votado e aprovado por uma comissão,
como mandava os regulamentos Unionistas. De toda maneira, Jamain,
Derrion e Mure tinham um acordo.
A escolha pelas terras brasileiras41, muito provavelmente, foi tomada
em reuniões e conversas ocorridas com os demais fourieristas, políticos
que frequentavam a École Sociétaire e, quem sabe, por influência da viagem
de Eugene Tandonnet. Aqui, é preciso destacar que nos idos de 1840, a
monarquia brasileira estava encorajando a imigração42. Se o grupo, en-
tão intitulado Union Industrielle de Paris, tinha por objetivo buscar um fi-
nanciamento para a realização do Falanstério, parecia evidente enviar
alguém para estabelecer negociações com o governo do Brasil. Assim,
dentre os que compunham a Union, o Dr. Mure era o mais inclinado a
atravessar o Atlântico, pois além da sua profissão, ele possuía condições
financeiras para custear a viagem ao Brasil. No final de 1840, Benoit-
-Jules Mure embarcou para o Brasil e em suas mãos estavam a ata que
fundou Union Industrelle de Paris, as cartas de recomendação, assim como
toda a responsabilidade de conseguir o financiamento para erigir o futuro
41 O pesquisador Laurent Vidal fez uma excelente analise acerca da escolha das terras brasileiras
pelos franceses fourieristas. Cf. VIDAL, L.. Op. cit., p. 53-75.
42 O debate da imigração e colonização no Brasil, do período regencial até a chegada de Dom
Pedro II ao poder, foi um tema que abordei em minha tese. O objetivo foi o de apresentar a
preocupação, por parte do Império, em criar normas e leis para contratar e regularizar a entrada
de estrangeiros e colonos, bem como, abordar a existência de uma economia atlântica que es-
teve vinculava a empresas privadas de colonização. É importante ressaltar, também, que as leis
e decretos de estrangeiros e colonos foram uma resposta as situações internas do Império que
surgiram em razão de fenômenos internacionais, tais como: a proibição do tráfico de escravos e
a extinção da escravatura nas colônias britânicas. Cf. MELENDEZ, José Juan Pérez. Reconside-
rando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo. In.:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 34. 2014. p. 35-60.; PETRONE, Maria Theresa. Política
imigratória e interesses econômicos ». In: Emigrazione europee e popolo brasiliano, Atti del Congresso
euro-brasiliano sulle migrazioni. São Paulo. 1985. Roma. 1987. p. 257-269, apud IOTTI, Lui-
za Horn. “Imigração e colonização”. In: ANPUH. São Paulo. 2001. Disponível: https://www.
anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Autores%20e%20Artigos/
Luiza%20Horn%20Iotti.pdf Acesso: abril de 2016.
43 Manifeste et Statuts de l’Union Industrielle, Paris, Siége de la Société, 1841. p.9-16.
44 Idem.
45 Idem, p. 17-30.
46 Ibidem.
47 Journal du Havre, septembre 1841, apud VIDAL, L.. Op., cit., p. 136-144.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 183
parcourt les 18,430 mètres qui séparent cette capitale du Pecq”48. Che-
gando à Pecq, os falansterianos podiam esperar o vapor que lhes era des-
tinado num “belle terrasse borde la rivière”49. Este último, que deve ter sido
provavelmente negociado por algum dos diretores da l’Union Industrielle,
receberia todo o grupo, os quase 93 falansterianos, e ainda recolheria as
bagagens. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, no Rio de Janeiro, o
Dr. Mure corria contra o tempo para poder assinar o contrato da Colônia.
Era final de setembro de 1841.
A chegada ao porto do Havre não deve ter sido muito acolhedora.
Naquele mês, os ventos e o mau tempo foram desfavoráveis à partida
dos barcos. A embarcação responsável por atravessar o Atlântico com os
franceses societários, tinha sua saída prevista para o dia 25 de setembro,
mesmo dia que o vapor Diavolo aportou no bassin du Roi. No entanto, esta
foi adiada devido às inconstâncias do clima. Durante esse período de ven-
tos contrários, os homens, as mulheres e as crianças tiveram que ocupar
suas longas horas de espera com algum afazer. Se as previsões fossem
corretas, eles esperariam apenas alguns dias. Porém, para a surpresa de
todos, a espera no porto do Havre durou quase um mês.
No dia 20 de outubro os barcos começaram a ser liberados um por
um . La Caroline, por sua vez, recebeu a autorização para deixar le Bassin
50
logo após « le commandant du port organize l’ordre des sorties »51. Aos france-
ses, um novo desafio se apresentava: viver os dias a bordo de um barco.
O tempo para atravessar o Atlântico poderia chegar a três meses. Os dias,
vividos entre o convés e o interior da embarcação, poderiam se tornar
longos e extremamente extenuantes. Era preciso encontrar meios para
não adoecer, tanto o corpo quanto a alma.
A falange aportou em terras brasileiras em dezembro de 1841. Neste
longo período, nenhum francês perdeu a vida. Atracados no porto da
48 Guide du voyageur sur les bateaux à vapeur de Paris au Havre, Paris, Béthume et Plon, 1841. p. 03-
05. Disponível: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k84193p Acesso: janeiro de 2017.
49 Idem.
50 Journal du Havre, 2 octobre 1841 ; Journal du Havre, 15 octobre 1841 ; Revue Maritime et commer-
ciale du Havre, 22 octobre 1841, apud VIDAL, L.. Op. cit., p. 145-151.
51 Idem.
“Hey por bem aprovar o contrato que na data de hoje foi ce-
lebrado por Candido José de Araújo Viana, do meu conselho,
ministro e secretário de Estado dos negócios do Império, com
o dr. J. B. Mure, para o estabelecimento de uma colônia in-
dustrial na província de Santa Catarina, sob as condições que
com este baixam, assinadas pelo mesmo ministro e secretá-
rio de Estado, que assim tenha entendido e faça executar com
os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, em 11
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 185
de dezembro de 1841. Com a rubrica de S. M. e Imperador.
Candido José de Araújo Viana”52.
Depois de quase um ano e todas os problemas encontrados, o Dr.
Mure e o Império brasileiro assinaram o contrato da Colônia Industrial
no dia 11 de dezembro de 1841. Numa primeira leitura, o acordo celebra-
do entre as partes parece correto e dentro das normas. No entanto, no dia
9 de julho de 1841, na votação do projeto de emenda, o deputado Carnei-
ro Leão havia solicitado uma pequena alteração no que tange ao texto da
autorização: “contratar com o Dr. Mure, ou com outro individuo [grifo
nosso]”. Este detalhe, contudo, não consta no contrato celebrado no dia
11 de dezembro. Um mero esquecimento ou uma artimanha política? No
caso desta última, quem teria sido o responsável? Apenas perguntas...
O artifício que retirou o termo proposto pelo deputado, “ou com
outro individuo”, residia no claro impedimento em dar o direito a qual-
quer outro francês de negociar ou representar a Colônia Industrial. No
que diz respeito ao recebimento dos socorros pagos no primeiro ano da
instalação, os franceses deviam se dirigir diretamente ao Dr. Mure. Para
complicar um pouco mais a situação, no dito contrato estava especifi-
cado que todos os “colonos” estavam sujeitos a lei de 11 de outubro de
183753. Resumindo, o médico homeopata vinculado ao grupo fourierista
de Paris e que havia viajado para o Brasil com a intenção de representar
os interesses de um grupo de franceses societários, na verdade, se tornou
o responsável - chefe - de uma Colônia. Os frères em Fourier, considera-
dos societários na comunidade proposta e que conviviam “em todas as
ocasiões, provas de que sabem juntar ao amor do trabalho o uso da civi-
lidade, que não exclui nem a franqueza nem a cordialidade54”, palavras
52 BOITEUX, Henrique. “O Falanstério do Saí”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
Santa Catarina. Florianópolis, vol. XII, 1º semestre 1944.
53 Brasil. Coleção de Leis do Império do Brasil de 31/12/1837, vol. 001, col.1. Disponível:
http://legis.senado.leg.br/norma/541072/publicacao/15632760 Acesso: junho 2019
54 Carta de Michel Derrion ao dr. Mure, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de dezembro de
1841. BNRJ.
55 Carta de Candido José de Araújo Viana ao dr. Mure, Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1841.
AHJ.
56 Lettre du Secrétaire de l’Union Industrielle, São Francisco do Sul, 24 février 1842. AHJ.
57 Idem.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 187
comunidade teria sido construída em território francês e todos estariam
juntos dos seus falando, negociando e vivendo o cotidiano em sua própria
língua.
58 Essai au Brésil, Journal Le nouveau Monde, Paris, 1 février 1843. BNF.
59 Fundada em 1836, na rua da Ajuda, n°17, a Société foi concebida em comités eleitos uma
vez por ano, entre os meses de junho e julho. A participação nas reuniões, com voz e voto, era
permitida a todos que pagassem a inscrição. Devido à falta de documentos nos arquivos da atual
instituição, infelizmente, não se pode saber quantos franceses estiveram inscritos e tão pouco o
valor estipulado para a participação na Sociedade.
60 Carta de Antônio João Vieira à José da Silva Mafra, São Francisco do Sul, 29 de janeiro de
1842. AHJ.
61 Lettre de Jamain et Michel Derrion à Antônio João Vieira, São Francisco do Sul, 30 janvier
1842. APESC.
62 Idem.
63 Union Industrielle par Joseph Reynier, Journal Le Nouveau Monde, Paris, 1 juillet 1843. BNF.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 189
rio. Na sua ausência, Jamain se tornou o único diretor geral, responsável
por gerir a instalação dos compatriotas e auxiliar na construção de roças
para plantio de quaisquer alimentos. Ele, que esteve na capital de Des-
terro, em meados de fevereiro, para tentar explicar a situação em que os
demais franceses se encontravam, nada conseguiu das autoridades. Ao
seu retorno, provavelmente frustrado da negociação, o parisiense soube
que algumas crianças do grupo perderam a vida devido a falta de viveres
que haviam sido prometidos pelo Dr. Mure. Em desespero, Jamain envia
uma carta para a família Schutel, em Desterro, solicitando medicamen-
tos. Quanto à resposta, até o momento, nenhum dado foi encontrado.
O Império decidiu interromper o envio dos socorros ainda no pri-
meiro trimestre de 184264. Sem os pagamentos e sem outras receitas, a
Colônia do Sahy provavelmente vivia por suas próprias custas, negocian-
do o pouco das produções agrícolas e do corte de árvores. Já o grupo do
Palmital, por não fazer parte da Colônia do Sahy e não ter assinado o
contrato de trabalho, corria o risco de ser condenado a prisão pelo não
cumprimento da lei de Contratos de locação de serviços dos Colonos,
caso o Dr. Mure fizesse uma denúncia legal. Em tal situação, e com uma
dispersão considerável dos compatriotas, após quase cinco meses de desa-
venças, os dois grupos não tiveram outra opção senão aceitar “um arran-
jo tendente a unir os dois estabelecimentos, debaixo da direção principal
do Dr. Mure”65 escrito pelo novo Inspetor o sr. José da Silva Mafra66.
Os anos seguintes trouxeram um pouco de concórdia para os fran-
ceses do Sahy. As querelas foram se apaziguando assim que o Dr. Mure
deixou aquelas terras para se estabelecer no Rio de Janeiro em agosto de
1843. O francês Charles Leclerc, que sempre esteve instalado ao lado do
64 Ministério do Império - Colônia Industrial do Sahy, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 17 de
julho de 1842. BNRJ
65 Ministério do Império, Colônia Industrial do Sahy, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 17 de
julho de 1842. BNRJ
66 Nascido em Desterro, em 1788, no ano de 1842 ele se encontrava em sua 4° legislatura de
deputado. Em meio aos corredores da Assembleia ou nas trincheiras do exército, é de se supor
que o novo Inspetor da Colônia do Sahy e o Coronel Camacho fossem colegas. O relatório da
vistoria da Colônia foi publicado no Jornal do Comércio no dia 17 de julho de 1842.
67 Lettre de Michel Derrion au Président de la Province de Santa Catarina, São Francisco do
Sul, 26 octobre 1844. AHJ.
68 Copie du Contrat de la Société Industrielle du Sahy, fondé par M. Derrion, Sahy, 15 août
1844. AHJ.
69 Idem.
70 Lettre de Michel Derrion au Président de la Province de Santa Catarina, São Francisco do
Sul, 26 octobre 1844. AHJ.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 191
como uma realização societária, se tornara numa imagem de ruinas e
tristezas. Num último golpe de persistência, um tanto cega devido aos
seus ideais, Michel Derrion continuou instalado no Sahy até janeiro de
1846. Neste ano, ele comunica as autoridades locais a sua viagem ao Rio
de Janeiro. O sonho de uma comunidade societária ou de um Falanstério
havia terminado, ao menos, naquelas terras no sul do Brasil.
“Certes Monsieur le Président il est beau de féconder une
colonie ; mais nous notre tâche est plus belle que celle d’un
colon, et c’est pourquoi nous ne voulons pas être colons, ce
que nous voulons le voici ; nous voulons être frère avec vos
71 Lettre de Jamain au Président de la Province, São Francisco do Sul, 12 avril 1842. AHJ.
SARTORI,, Carina. A Colônia Industrial do Sahy: os franceses Dr. Mure, Derrion e Jamain
SARTORI 193
194 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Colônia Cecília:
considerações sobre o anarquismo
experimental no sul do Brasil
Cassio Brancaleone
Giovanni Rossi
1 No Brasil, em geral, se desconhece que muitos dos nossos mais emblemáticos escritores, espe-
cialmente aqueles sensíveis aos problemas populares, foram adeptos ou simpatizantes declarados
do anarquismo, como Lima Barreto e Euclides da Cunha.
3 Existe em português uma boa versão em formato de artigo desta discussão contida na men-
cionada tese: FELICI, 1998.
4 Através deste termo proponho uma forma de compreensão a respeito das duas estratégias
opositoras desenvolvidas no interior do movimento operário moderno na AIT, dividindo estatis-
tas e libertários (BRANCALEONE, 2019).
Referências
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In COLOMBO, E.; COLSON, D. et al. (orgs). História do movimento operário
revolucionário. São Paulo: Imaginário; São Caetano do Sul: IMES, 2004
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1996.
BATALHA, Cláudio H. M. O Movimento operário na Primeira República. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
BEAL, Claudia Feierabend Baeta. “DE PRIMOS, CUNHADOS E ‘ANARQUISTAS
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Bakunin antes da Grande Guerra”. 2014. Disponível em: <http://monde-nouveau.
net/spip.php?article557>. Acesso em: 10/07/2019..
BETRI, Luisa. Cittadella e Cecilia: due esperimenti di colonia agricola socialista. Milão:
Gallo, 1971.
1 Sobre o desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul, ver, entre outros, DACA-
NAL, J.H.; GONZAGA, S.; et. al. RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aber-
to, 1979.; PESAVENTO, S. RS: Economia e política. República Velha Gaúcha. Estado
Autoritário e economia. Porto Alegre: Mercado aberto, 1979; SINGER, Paul. Desenvolvi-
mento econômico e evolução urbana. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977.
2 Sobre esta temática, destacamos, entre outros: DACANAL, J.H. (org.); LANDO, A. M.
& GONZAGA, S.; et. al. RS: Imigração & Colonização: cultura, etnicidade e história.
Em julho de 1824, chega a primeira leva de imigrantes alemães no
Rio Grande do Sul, em São Leopoldo. Instalados numa área que era de
propriedade da Coroa, desde o início a demarcação dos lotes de terras
concedidos pelo governo foi problemática. Demora na demarcação, fa-
lhas na medição dos lotes e dificuldades na obtenção dos títulos de pro-
priedades geraram muitos litígios. Segundo Amado (1978, p. 29), “o pro-
cesso de ocupação da terra em São Leopoldo constituiu um emaranhado
de confusões e mal-entendidos e disputas”. A autora afirma também que
essa situação fez com que até 1845 houvessem processos prolongados na
justiça “entre colonos e governo, entre os próprios colonos, e entre estes
e os luso-brasileiros proprietários de terras limítrofes a São Leopoldo”
(AMADO, 1978, p. 30).
Somente em 1848, criam-se leis específicas para colonização. A pri-
meira, de outubro de 1848, define as terras devolutas reservadas para co-
lonização em cada província. Além disso, proíbe a posse de escravos aos
colonos, bem como a obtenção de título de propriedade antes de terem
desbravado o lote por cinco anos (ROCHE, 1969). A segunda, foi a Lei
Geral de 18 de setembro de 1850, que estabelece que a única forma de
aquisição de terras seria através da compra, não mais por concessão.
Entretanto, brechas na lei permitiram que as Províncias tomassem
para si a legislação sobre as terras concedidas pelo governo imperial. As-
sim, segundo a Lei Provincial de 1851, o governo “deve mandar cadas-
trar lotes de 100.000 braças quadradas (48 ha) em todos os núcleos que
serão estabelecidos em terras concedidas pela Lei de 1848” (ROCHE,
1969, p. 102). Esses lotes deveriam ser distribuídos de forma gratuita aos
colonos, acrescido de instrumentos, sementes, ajuda para estabelecimen-
to e ainda indenização da viagem. Porém, este estatuto durou somente
até 1854, quando as terras nas áreas colonizadas não mais serão doadas,
somente vendidas.
Canoas: Ed. ULBRA, 1984; ROCHE, J. A imigração alemã e o Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Globo, 1969. 2v.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 223
foi leiloada em hasta pública e comprada por João Pedro Schimidt, co-
merciante de Hamburgerberg (atual município de Novo Hamburgo), que,
através da Sociedade Schimidt&Krämer, vendeu os lotes de terra aos co-
lonos alemães entre 1845 e 1869.
Nesse contexto de mudança da relação com a propriedade da terra e
o surgimento dos primeiros imigrantes/descendentes expropriados, eclo-
diu o movimento dos Mucker. Amado (1978) refere que o conflito dos
Mucker ocorreu numa área que permaneceu por muito tempo em litígio.
A área onde se concentravam os Mucker, liderados por Jacobina
Mentz Maurer e, onde também se localizada a casa do casal Maurer,
fazia parte da antiga Fazenda do Padre Eterno. A antiga fazenda, havia
sido adquirida pelos dois colonos, Schmidt e Kraemer, que através da So-
ciedade Schimidt&Krämer, posteriormente dividiram as terras em lotes
e colocaram à venda. Na divisão dos lotes, alguns avanços, nos limites
das propriedades vizinhas, deram origem a um processo litigioso, que fez
com que o clima de tensão nas imediações do morro Ferrabraz, ganhasse
cada vez mais força.
Nesse período, iniciou-se, portanto, a colonização alemã na região,
com a distribuição de pequenos lotes (minifúndios) na região do atual
município de Sapiranga. Entre os colonos que adquiriram terras na Fa-
zenda Padre Eterno3 (Leonerhof, como era denominada por estes colo-
nos) estava o casal Maurer, que fixou residência ao pé do morro Ferra-
braz no ano de 1867, um ano após o seu casamento, ocorrido na Igreja
Evangélica de Hamburgerberg.
Cabe mencionar – ainda que provocando uma pequena quebra na
discussão que focaliza a questão do conflito de terras – que importantes
transformações ocorreram em Sapiranga após 1874, com o desfecho do
conflito, dentre as quais destacamos as mudanças do nome Fazenda do Pa-
dre Eterno para outras denominações como Fazenda Leão, Linha Ferrabraz,
Linha do Verão, Linha da Bica, Terras do Sapiranga, Picada Hartz e Porto Pal-
meira. Estas novas denominações parecem demonstrar uma tentativa de
apagamento do nome Padre Eterno, muito identificado com os Mucker.
4 Sobre Porto Alegre, destacamos, entre outros: MAUCH, C. (et. al.) (colab.) Porto Alegre
na virada do século 19. Cultura e sociedade. Porto Alegre/Canoas/São Leopoldo: Editora
da Universidade/ UFRGS/Ed. ULBRA/Ed. UNISINOS, 1994.; MACEDO, F. História
de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1993. Coleção: síntese Rio-
-Grandense.; PESAVENTO, Sandra. A burguesia gaúcha: dominação do capital e discipli-
na do trabalho – 1889/1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 225
outros centros urbanos tornaram-se o locus privilegiado de instalação de
uma classe média emergente, dentre a qual se incluía um significativo
número de alemães e/ou seus descendentes.5
O desenvolvimento econômico e urbano resultou em transformações
na estrutura social do Estado. Esta, que até então revelara escassas pers-
pectivas de mobilidade social, tornou-se mais complexa quando o contin-
gente de imigrantes e seus descendentes passou a participar ativamente
da economia. Criaram-se possibilidades de ascensão social, restritas até
então somente aos grandes fazendeiros, os quais, embora tivessem manti-
do o controle político no Estado durante todo o período da Primeiro Im-
pério, perdiam terreno, progressivamente, no campo socioeconômico. Os
novos setores emergentes passaram a merecer atenção dos governantes,
unindo-se muitas vezes a estes, na defesa de interesses comuns.6
A presença de uma elite de origem alemã, foi detectada por Gans
(1996) na Porto Alegre da segunda metade do século XIX. Em seu es-
tudo, a autora revela que a maioria dos teutos da capital eram de nível
socioeconômico médio. O segundo lugar era ocupado pelos de nível alto,
sendo inexpressivo o número de alemães nos setores populares. O grupo
majoritário, setores médios, abrangia um leque amplo de atividades, sen-
do de difícil demarcação. De modo geral, entre eles, encontravam-se ar-
tífices ou mestres de ofício com oficina própria, pequenos comerciantes,
técnicos e professores.
Ao findar o século XIX, algumas camadas da sociedade teuto sul-
-rio-grandense buscavam a aquisição de status,7 acentuando os aspectos
simbólicos do grupo que pudessem defini-lo muito mais pelo seu “ser”
5 Sobre a presença de imigrantes em Porto Alegre, ver: GANS, Magda R. Presença teuta
em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: UFRGS, 1996. Dissertação
(Mestrado em História).
6 Sobre esta questão consultar PÍCOLLO, H. O partido Republicano Rio-Grandense e
os alemães no Rio Grande do Sul. Anais do V simpósio de História da imigração e colo-
nização alemã no Rio Grande do Sul (1982). São Leopoldo: Gráfica Caeté, 1989.
7 Entendido, aqui, o sentido weberiano, ou seja, grupos definidos por “(...) uma certa posição
na hierarquia da honra e do prestígio” BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992. p. 14.
8 De acordo com BOURDIEU, os grupos de status se definem “(...) menos pela posse pura
e simples de bens do que por uma certa maneira de usar estes bens, pois a busca de distinção
pode introduzir uma forma inimitável de realidade da arte de bem consumir capaz de tornar
raro o bem de consumo mais trivial.” (BOURDIEU, 1992, p. 15).
9 ROCHE, (1969) (Op. Cit.) p. 582.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 227
um com o outro do que, por exemplo, um comerciante e um
colono unido por parentesco. (AMADO, 1978, p. 79).
Tanto para essa autora, como para Roche (1969), a distinção social
dos teutos se processava em oposição ao “colono”, associando, dessa for-
ma, a questão social à dicotomia urbano-rural. A aquisição dos valores
da cultura urbana torna-se, muitas vezes, um distintivo a mais para o
grupo em ascensão social. Autores como Roche(1969) e Willems (1980),
concordam que as ideias contidas no Deutschtum10 propagaram-se a partir
da cidade, de uma classe média intelectualizada11 e que, embora tivesse
havido esforços, principalmente através da imprensa, para atingir a po-
pulação rural,12 a maior receptividade ocorreu entre os setores médios e
altos da sociedade. A maior facilidade de penetração nestes grupos pode
ser explicada através do fato de possuírem, tanto um capital econômico
que possibilita contatos mais seguidos com a Alemanha através de via-
gens, por exemplo, quanto um capital cultural que permitiu um entendi-
mento maior dessas ideias e, por conseguinte, o seu consumo.13
Dessa forma, o Deutschtum pode ser entendido, também, como parte
10 Giralda Seyferth (2011) define o Deutschtum como uma espécie de laço identitário, que
une os imigrantes e seus descendentes através da etnicidade, reafirmando a germanidade, ou
seja, “o jeito de ser alemão no Brasil”.
11 Dentre a classe média intelectualizada das cidades, responsável pela difusão do Deuts-
chtum, destacaram-se os Brumers. Estes compunham um grupo que havia participado das
Revoluções Liberais de 1848 na Europa, onde, devido a perseguições políticas, alistaram-se
como soldados mercenários contratados pelo governo brasileiro para atuarem na campanha
contra Rosas. Nem todos foram realmente para o campo de batalha e, mesmo os que foram,
ao retornarem, estabeleceram-se em grande parte, no sul do Brasil, onde atuaram preferen-
cialmente, no comércio, na educação e na indústria.
12 Grande parte da imprensa teuto-brasileira visando atingir o grupo teuto como um todo,
inclusive os colonos, utilizavam-se de uma linguagem menos coloquial. No entanto, confor-
me nos informa Willems (1980), havia uma distância social e cultural entre os produtores
dos discursos veiculados – mesmo considerando a heterogeneidade de interesses e valores
destes – e alguns setores da sociedade, notadamente, aquela composta pelos pequenos pro-
dutores rurais.
13 De acordo com BOURDIEU (1996), para se apreciar determinadas obras de arte, é
necessário um capital cultural constituído por um conjunto de códigos comuns, adquiridos
na escola ou mesmo na família, que possibilite o entendimento “legítimo” destas obras.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 229
A primeira providência que tomaram foi se afastar fisicamen-
te das Picadas, aonde, já quase não iam e pelas quais come-
çavam a alimentar certo desdém [...]. A segunda providên-
cia foi dotar a cidade de ruas bem traçadas, casas melhores
e maiores, iluminação adequada, administração organizada,
e de tipos de lojas, serviços, e profissionais que a área rural
não conhecia. [...]. A terceira providência foi adquirir novos
hábitos: acordar e dormir mais tarde, mobiliar melhor a casa,
refinar a linguagem, às vezes comprar um ou dois escravos;
apurar a vestimenta e a alimentação, organizar reuniões so-
ciais em casa, participar das sociedades recém-criadas. [...];
as mulheres, limitadas nas cidades ao serviço doméstico, per-
deram a importância econômica que tinham nas Picadas e,
consequentemente, começaram a pesar menos nas decisões
familiares e a abdicar de parte de sua liberdade pessoal, tor-
nando-se mais recatadas e submissas aos pais e maridos [...].
A quarta providência foi criar ou estreitar os laços de paren-
tesco entre os membros mais ricos do município, para refor-
çar a fortuna e aprimorar a linhagem [...] (AMADO, 1978, p.
78).
16 WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Nacional, 1980.
17 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1969.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 231
poucas linhas em suas obras ao gênero feminino, nas quais transparece
uma imagem da mulher “colona”, em contraste com a “lusa”.
Destacam, entre outras, a capacidade de trabalho da “colona”, a sua
maior liberdade de movimentação social e sua participação nas decisões
econômicas da família. Entre os trabalhos que tratam especificamente
dessa temática destacamos também Magalhães18 e Bonow19, que anali-
sam a construção da imagem da mulher alemã através da imprensa teu-
to-brasileira; Renaux20, que analisa o papel da mulher teuto-brasileira no
Vale do Itajaí; e Meyrer21 que estuda a mulher teuto-brasileira enfatizan-
do a diferenciação social do grupo a partir da educação formal feminina
do período.
Outra referência às mulheres teuto-brasileiras pode ser encontrada
em Amado (1978) em sua obra sobre os Mucker, mas que pouco avan-
çou nessa questão, além do exposto pelos autores clássicos da imigra-
ção. Sobre a mesma temática, podemos citar Gevehr22 que analisa a
dinâmica que envolve a produção das imagens e representações sobre a
líder dos Mucker. O autor valeu-se da discussão dos diferentes veículos de
produção de uma memória sobre Jacobina - desde o final do século XIX
até o início do século XXI, quando ela teve sua imagem glorificada pelo
cinema, com a película Paixão de Jacobina.
Diferentes fatores estiveram articulados no contexto que favoreceu
a emergência do conflito Muckers. As mudanças ocorridas na colônia
alemã de São Leopoldo na segunda metade do século XIX, em todas as
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 233
como crise e a define como um Tempo (ou um Tempo/Espa-
ço) chegando ao Fim;
2 – a expectativa de uma mudança mais ou menos radical
dessa realidade, mudança definida como salvação e anuncia-
da pelas profecias;
3 – um corpus de crenças e práticas religiosas, tradicionais
ou criadas ex novo, com o qual a coletividade visa realizar a
mudança e inaugurar a nova ordem;
4 – a presença de um ou mais personagens carismáticos, que
a coletividade reconhece como líderes.
24 Seita provém do grego hairesis, e significa partido. O termo esteve bastante associado aos
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 235
messiânico. A seita, que contava, inicialmente, com cerca de 150 pes-
soas, chegou a agrupar entre 700 e 1000 simpatizantes (AMADO, 1978,
p.128), sendo liderada por Jacobina Maurer, que junto com seu marido
João Jorge Maurer, exercia atividades de curandeirismo e promovia cul-
tos domésticos com leituras e interpretações da Bíblia.
Desde 1873, os integrantes do grupo vinham sofrendo acusações por
parte da população local25 e foram objetos de inquéritos policiais e pri-
sões. Jacobina Maurer também foi alvo de inquérito policial e levada a
reclusão na Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre, enquanto seu
marido teve 45 dias de reclusão, sendo preso novamente meses depois.
A reação ao movimento desencadeou uma série de atos de violência
(incêndios e assassinatos atribuídos aos Mucker e seus seguidores, mas
também violências do mesmo porte por parte dos colonos). O conflito
acaba em 1874, com o extermínio dos adeptos, pelas forças oficiais do
império, lideradas pelo Coronel Genuíno Sampaio. Após o desfecho trá-
gico dos eventos, instalou-se um processo que se estendeu por seis anos
(DICKIE, 2018, p. 22) sendo que todos foram absolvidos, inclusive os
mortos.
O conflito ocorreu ao pé do morro Ferrabraz, lugar que serviu de
moradia de Jacobina e seu marido. Era lá onde Jacobina celebrava os cul-
tos e João Maurer realizava suas práticas de curandeirismo. O Ferrabraz
[cuja grafia também é aceita como Ferrabrás] ficou conhecido em toda a
região, como o “lugar dos Mucker” e teve sua imagem, especialmente até
as primeiras décadas do século XX, associada ao massacre, onde “um
grupo de fanáticos religiosos” acabou exterminado, em nome de uma
26 A única fotografia que representaria Jacobina é aquela atribuída ao casal Maurer, cuja autenti-
cidade é amplamente questionada. Acredita-se que a fotografia não retrate Jacobina e seu marido
João Jorge Maurer. A não existência de uma imagem concreta de Jacobina Mentz Maurer torna
sua personagem ainda mais misteriosa. A fotografia, contudo, é constantemente empregada,
especialmente pela imprensa, para conferir um rosto à personagem.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 237
conseguido aprender a ler e escrever27. Segundo os diagnósticos do Dr.
João Daniel Hillebrand, Jacobina apresentava, desde criança, sinais de
transtornos nervosos que haviam se agravado em sua fase adulta, quan-
do iniciou a leitura e interpretação da Bíblia28. Segundo o médico, esses
transtornos teriam provocado uma verdadeira mania religiosa e sonambulis-
mo espontâneo.
Hillebrand, que era diretor da Colônia Alemã, apontava o marido
de Jacobina, João Jorge Maurer29, como o responsável pela doença da
mulher, já que, segundo seu entendimento, ele a obrigava a praticar char-
latanismo. Além disso, João Jorge Maurer era descrito pela maioria das
pessoas de sua época como alguém que não gostava de trabalhar.
Agricultor e marceneiro de profissão, Maurer tinha aprendido a
manipular ervas medicinais, que eram empregadas no preparo de chás
e remédios para a cura de várias doenças que assolavam os colonos. A
denominação de “Doutor Maravilhoso” surgiu entre as pessoas que nele
procuravam ajuda e acabou se tornando bastante conhecida na colônia.
Foi, portanto, em torno de Jacobina e João Jorge Maurer que se deu
a organização do grupo dos Mucker. Há, no entanto, inúmeros outros
personagens envolvidos, dentre os quais um nos chama a atenção. Referi-
mo-nos a João Jorge Klein30, cunhado de Jacobina, casado com sua irmã
27 Jacobina aprendeu a ler em alemão já adulta, com o professor Hardes Fleck, sobre quem
pouco sabemos. Jacobina nunca aprendeu a escrever, nem a falar em português.
28 Embora Jacobina seja apresentada na historiografia como analfabeta, devemos repensar essa
afirmação, tendo em vista o fato de que lia a Bíblia e cantava os hinos em alemão.
29 João Jorge Maurer nasceu em 28 de fevereiro (mesma data em que se comemora o aniversá-
rio de Sapiranga) de 1841, em Picada de São José do Hortênsio. Era filho de João Carlos Maurer
e Maria Bárbara Voltz, ambos imigrantes alemães. De acordo com as descrições realizadas por
Carlos Von Koseritz, Maurer era um homem de estatura mediana, boas cores, cabelo e barba louros, olhos
azuis, órgão agradável e modos insinuantes. Sobre sua morte não temos informações precisas, uma
vez que após o desfecho do conflito seu corpo teria sido encontrado em adiantado estado de
decomposição, enforcado na mata do Ferrabraz. Seu corpo foi identificado apenas pelas roupas
que usava e reconhecidas pelo seu alfaiate. Outra versão afirma que Maurer teria fugido e passado
a viver na região da fronteira noroeste do estado.
30 João Jorge Klein nasceu no Hunsrück, Alemanha, no dia 14 de maio de 1820. Era filho de
João Jorge Klein e Maria Ana Klein. Teria chegado ao Brasil em 1854, vindo a exercer a atividade
de pastor na Comunidade Evangélica de Sapiranga no período entre 1858 e 1859, quando em
seguida assumiu a Comunidade de Picada 48, onde permaneceu entre 1859 a 1864, quando foi
sucedido por pastores com formação religiosa. Klein faleceu em 06 de outubro de 1915, com 95
anos de idade.
31 Em seus escritos Sobre a história dos “Mucker”, nos anos de 1872 a 1874, João Jorge Klein procura
se inocentar das acusações de que ele teria sido o mentor intelectual dos Mucker. Em seus escri-
tos, procura responsabilizar Jacobina e João Jorge Maurer, assim como as autoridades corruptas
pelo conflito.
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 239
degenerado pelo mundo tropical. Nesse contexto, Jacobina não poderia
ser associada à imagem desejada, da mulher alemã, mas sim, associada
com o “mundo tropical”, considerado selvagem, o que fez inclusive, com
que Jacobina fosse comparada a uma “índia velha”, atestando uma visão
carregada de juízo de valor.
Outro aspecto discutido por Dickie refere-se à atuação das Igrejas
católica e protestante, que se afirmando em defesa da fé e da moral, de-
fendiam que somente padres e pastores eram a fonte da verdade e, por-
tanto, a eles competiam a responsabilidade dos cultos e a interpretação
da Bíblia. Esse último elemento – a interpretação da Bíblia – conferiu à
Jacobina seu caráter mais desqualificador e, até mesmo, criminoso, uma
vez que a mulher que liderava os Mucker não possuía formação para tal.
Este fato serviu também como mote na disputa entre católicos e protes-
tantes na colônia alemã de São Leopoldo.
Nesse sentido, a atitude de Jacobina, de leitura e interpretação da Bí-
blia, era atribuída por Schupp aos perigos do protestantismo, em especial
da mulher protestante, que lendo a Bíblia sem formação adequada era
um perigo para a família, já que esta era de sua responsabilidade: “uma
mulher protestante e analfabeta se arvorava de autoridade sobre a palavra
escrita de Deus” (DICKIE, 2018, p. 272). Associado a isso, o surgimento
de uma nova prática religiosa poderia ameaçar o poder exercido pelas
igrejas oficiais e, consequentemente, o fracasso das missões religiosas na
região de imigração e colonização alemã no sul do Brasil.
A representação dos Mucker como um grupo de fanáticos, liderados
por uma mulher, se deu, na percepção de Dickie, pelo fato destes não se-
rem considerados portadores da cultura alemã, trazida pelos imigrantes
e, também, pela falta de erudição, defendida pela elite germânica. Contri-
buíram significativamente para esse processo de desqualificação dos Mu-
cker, as publicações do jornal Deutsche Zeitung, no qual o intelectual Karl
Von Koseritz, importante representante da intelectualidade germânica do
Rio Grande do Sul, divulgava suas ideias, classificando Jacobina e seus
adeptos como “não alemães”, na medida em que os Mucker representa-
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 241
de sua versão e, como “prova”, indicou a anexação de uma
declaração dos colonos que haviam sido seus informantes.
Nela, estes colonos atestam terem acompanhado os aconte-
cimentos “do seu começo até o fim” e, por isso, terem certeza
de que tudo o que Schupp relata em seu livro, “nos mínimos
detalhes, é verdadeiro (SCHUPP, 2018, p. 268).
Com isso, Schupp tem sua versão dos fatos legitimada pelos testemu-
nhos orais, reunidos em suas peregrinações pela Colônia Alemã, além de
ter tido acesso aos autos do processo. Soma-se a isso, o fato de que, até
1957, essa era a única obra de referência disponível sobre o conflito. Ela
formava, junto com os escritos fundantes de Koseritz, “a” narrativa con-
denatória de Jacobina e do conflito. Foi apenas em 1957, que Leopoldo
Petry lançou sua obra, questionando a versão apresentada por Schupp e
propondo uma releitura do conflito.
Ressalta-se ainda o fato da obra ter sido reeditada inúmeras vezes
no Brasil e, em 2004, foi publicada em versão eletrônica pelo Senado
Federal, com acesso gratuito à obra. De acordo com nota publicada, o
“Conselho Editorial do Senado criado pela Mesa Diretora em 31 de ja-
neiro de 1997, buscará editar, sempre, obras de valor histórico e cultural
e de importância relevante para a compreensão da história política, eco-
nômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país” (PORTAL
DOMÍNIO PÚBLICO, 2004).
A versão apresentada pelo jesuíta pode ser considerada, portanto, a
versão oficial dos fatos, no período compreendido entre o final do século
XIX e a primeira metade do século XX, permitindo compreender a sua
importância na formação dos leitores sobre o tema, bem como seu alcan-
ce nas gerações futuras. Para a historiografia a obra constitui-se em uma
fonte fundamental, não só pelo fato do autor ter tido contato direto com
as testemunhas que vivenciaram o episódio, mas por sua declarada par-
cialidade, na defesa tanto dos pressupostos do projeto da Igreja Católica
na colônia alemã de São Leopoldo, quanto na defesa da versão dos co-
lonos detratores dos Mucker. Seu relato, assim, deixa explícito o aspecto
Gevehr, D. L.; Meyrer, M. R.; Neumann, R. M. O movimento Mucker e o protagonismo de Jacobina 243
que ele define como inimigos dos Muckers (DICKIE, 2018, p. 268).
Considerações finais
O movimento dos Mucker ainda é uma questão em aberto na histó-
ria da imigração alemã no Rio Grande do Sul, oscilando entre um episó-
dio a ser silenciado e ocultado; um movimento social de colonos aban-
donados no Ferrabraz, que buscaram, via solidariedade, resolver suas
demandas cotidianas; um movimento messiânico, que reunia no seu seio
saberes populares vinculados à cura, na ausência de médicos, somado à
leitura e interpretação da bíblia, na ausência de atendimento religioso;
um movimento criminoso, que provocou inúmeras mortes, liderado por
uma mulher “sem moral”, psicologicamente desequilibrada.
As múltiplas versões e possibilidades de analisar o episódio se sobre-
põe, e permitem afirmar que o movimento emergiu entre um grupo de
colonos, que tiveram problemas na regularização de seus lotes de terra,
o que implicou que se unissem, em defesa de seus interesses comuns,
reclamando por seus direitos. Posteriormente, se unem para resolver de-
mandas comuns do meio rural, como medicina popular e compartilhar
conhecimentos religiosos. A organização e fortalecimento do grupo pode
ser visto como um perigo para colônia, pois poderia colocar em perigo
justo o status reivindicado por uma elite imigrante emergente, e o enfra-
quecimento das instituições religiosas, substituídas pelos livres pensado-
res.
A versão apresentada pelo jesuíta pode ser considerada, portanto, a
versão oficial dos fatos no período compreendido entre o final do século
XIX e a primeira metade do século XX, permitindo compreender a sua
importância na formação dos leitores sobre o tema, bem como seu alcan-
ce nas gerações futuras. Para a historiografia a obra constitui-se em uma
fonte fundamental, não só pelo fato do autor ter tido contato direto com
as testemunhas que vivenciaram o episódio, mas por sua declarada par-
cialidade, na defesa tanto dos pressupostos do projeto da Igreja Católica
Referências
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Fabian Filatow
1 Nas fontes podemos encontrar a grafia munche. Segundo Karsburg, pode ser uma variação
dialetal da palavra alemã “Mönch” (monge em português). Porém, talvez seja a maneira como os
descendentes de alemães (que viviam em Lajeado e Estrela, municípios próximos de Encantado)
pronunciavam a palavra monge (KARSBURG, 2018a, p. 107, ver nota 6).
2 Em algumas bibliografias encontramos a grafia Monges do Pinheirinho (KARSBURG, 2018a).
Já na obra publicada por Genuíno Antonio Ferri temos a grafia Monges de Pinheirinho (FERRI,
1975). Como entendemos o Pinheirinho como um lugar, um espaço geográfico inserido no Vale
do Taqueri, optamos por nomeá-los Monges do Pinheirinho.
3 Do grupo que seguia o monge sabemos os nomes de poucas pessoas: além do líder, que se
chamava João Maria Francisco de Jesus, temos também João e Antônio Enéias, possivelmente
irmãos, e o filho desse último; uma senhora chamada “Cananeia”, incumbida de tocar o sino da
pequena capela existente no acampamento; e Antônio Lisboa, um dos protetores do grupo ao
lado dos irmãos Enéias; Antônio Lisboa e os irmãos Enéias eram pequenos proprietários da
região de Pinheirinho. (KARSBURG, 2018b, p. 109-110)
7 Para um maior aprofundamento sobre a trajetória e vida deste personagem indicamos as obras
de FACHEL, 1985; KARSBURG, 2014; THOMAS, 2014.
8 Para uma melhor compreensão da amplitude desta devoção popular ao santo monge no sul
do Brasil indicamos o trabalho de ESPIG; KUNRATH, 2018. Os autores apresentam um mapa
da devoção a São João Maria, fazendo uso dos lugares de memória e fé popular nos estados do
sul do Brasil.
9 A bibliografia referente a Guerra do Contestado e seus desdobramentos é vasta, por isso
optamos por indicar obras recentes que tiveram o santo monge e questões religiosas como foco
de estudo: GALLO, 1999; GOES, 2007; MARCON, 2008; OLIVEIRA, 2012; WELTER, 2018;
LIMA, 2018.
12 Sobre este episódio político, indicamos SCHIERHOLT, 1989, 1995, para o caso específico
da Revolução Federalista no Vale do Taquari. Moacyr Flores e Hilda Flores produziram um estu-
do intitulado Revolução Federalista na qual foi mencionado o Vale do Taquari (FLORES; FLORES,
2016, p. 109-117). Ver também, GRIJÓ (2010), para um olhar geral sobre os conflitos armados
no período republicano no Brasil.
13 Sobre os estudos da questão agrária no sul do Brasil, estamos fazendo das obras produzidas
por ZARTH, 1997; 2002; SILVA, 2011; 2016; MACHADO; GERHARDT, 2017.
14 Isso também ocorreu no caso dos Monges Barbudos de Soledade (FILATOW, 2015, 2017).
15 Tanto o líder dos monges do Pinheirinho quanto os demais monges que surgiram em dife-
rentes tempos e lugares, usufruíram do capital simbólico legado pelo eremita italiano João Maria
de Agostini.
16 Confira HESSEL, 1983; THOMÉ, 1967.
17 Gino Ferri foi um pesquisador local, nascido em Encantado (RS) no dia 18 de novembro de
1922 e falecido na mesma cidade, aos 93 anos, no dia 27 de outubro de 2016. Foram 27 livros
publicados ao longo de sua trajetória. Era filho de Luiz Ferri e Ergila Bigliardi Ferri, nascido
numa família numerosa, era o décimo primeiro filho do casal. Formou-se Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo e foi funcionário Público Estadual e pro-
fessor universitário.
18 O livro registra a versão dos imigrantes. Estes são tratados como “heróis”.
19 Os Mucker ocorreram no Morro Ferrabrás, entre os anos de 1868 e 1874. Na época inserido
no município São Leopoldo (RS), atualmente pertence ao município de Sapiranga. Os Mucker
foram liderados por Jacobina Maurer e constituíram-se num grupo religioso surgido entre imi-
grantes alemães.
21 Compondo o grupo que foi combater os monges do Pinheirinho estava o alemão Eduardo
Sattler (caixeiro viajante), que faleceu no conflito; e 14 imigrantes italianos, a saber: Guerino Luc-
ca (Subdelegado de polícia); Pietro Rotta; Giovanni Sanna; Pedro Mottin; Giovanni Ferri (Ho-
teleiro); Silvio Lucanon; Olderigi Bibliardi; Giovanni Lucca (morto no conflito); Pietro Turella;
Hipólito Fontana; Ambrósio Senatori; Napoleão Maiolli Primo (subdelegado); Antônio Valan-
dro; Luigi Ferri (Hoteleiro). Na obra de Ferri (1975) são tratados como “heróis”. Atualmente, na
cidade de Encantado, podemos localizar ruas e praças com os nomes destes imigrantes italianos.
Bem como o destaque no cemitério São Pedro de Encantado para o túmulo de Eduardo Sattler,
que consta na lápide “morrer por defender os amigos”. Na cidade temos os lugares de memória
destinado aos imigrantes, porém, para os caboclos e nacionais, o esquecimento.
22 THOMÉ apresenta outros dados sobre o resultado do conflito: tiroteio que vitimou fatal-
mente 8 pessoas, sendo 6 monges e 2 encantadenses – João Lucca e Eduardo Sattler e deixando
um saldo de mais de uma dezena de feridos. Cf. THOMÉ, 1967, p. 110. No jornal A Federação, de
12/05/1902, p.1, consta um relato com maiores detalhes sobre o conflito ocorrido. Neste identi-
ficamos a descrição das armas brancas utilizadas pelos membros do grupo do monge: “armados
a facão de larga lamina, espadas, armas e paus.”
23 Relatório apresentado ao Sr. dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, presidente do Esta-
do do Rio Grande do Sul pelo dr. João Abbott, secretário de Estado dos negócios do interior e
exterior em 20 de agosto de 1902. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de Emílio Wiedemann &
Filhos, 1902. (Relatório de 1902 - AHRGS). Relatório do Comandante da Brigada Militar, páginas
179-193.
24 Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.
25 Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.
26 Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo
presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15 de outubro de 1902.
Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª Sessão Ordinária da 4ª legislatu-
ra. Em 20 de setembro de 1902, p. 5.
27 Para maiores informações sobre a formação histórica de Encantado indicamos THOMÉ,
1967, p. 16-25. O autor apresenta a origem do nome do município, a formação histórica, das
origens, passando pela época em que foi distrito, e por fim, a emancipação.
28 Jornal Alto Taquari, 20 de maio de 1902.
Apontamentos finais
Enfim, com este estudo preliminar, buscamos demonstrar que para
além da questão religiosa podemos identificar a presença de outros inte-
resses que também contribuíram para os trágicos acontecimentos ocorri-
dos no ano de 1902 em Encantado. A questão da posse da terra, a coloni-
zação da região, a Lei de Terras e questões políticas as quais financiavam
a presença de imigrantes italianos em detrimento dos caboclos da locali-
dade.
Como demonstrado até aqui e com as pesquisas já realizadas, ficou
evidenciado que os monges do Pinheirinho devem ser compreendidos
como um grupo religioso, porém não só isso, temos outras questões atre-
ladas a sua existência.
Devemos levar em consideração, igualmente, as últimas décadas do
32 Ivone Celília D’avila Gallo, em seu estudo sobre os três monges itinerantes da Guerra do
Contestado, referiu-se a esta tradição, originada da presença de João Maria de Agostini, como
uma “religião dos monges”, guiando a conduta social e política dos indivíduos (GALLO, 1999,
p. 91).
Referências
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Porto Alegre: EST Edições/Correio Rio-grandense, 1997.
ESPIG, Márcia Janete; KUNRATH, Gabriel. Os mapas de devoção a São João
Maria: um estudo sobre lugares de memória e fé popular nos estados do sul do
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Contestado: tempos de muito pasto e pouco rastro. Canoinhas; Florianópolis: Editora
da UnC; Editora da UFSC, 2018, p. 135-153.
FACHEL, José Fraga. O monge João Maria: recusa dos excluídos. Porto Alegre;
Florianópolis: Editora da UFRGS/UFSC, 1995.
FERRI, Gino. Os Monges de Pinheirinho. Encantado: Grafen, 1975.
FILATOW, Fabian. O movimento dos Monges Barbudos: do sagrado à heresia. Rio de
Outras Fontes
A Federação, 06, 08, e 12 de maio de 1902.
A Federação, 04 de junho de 1902.
O Taquaryense, 08 e 10 de maio de 1902.
Jornal do Comércio, 08, 10, 13 de maio de 1902
O Estadão (on line). Guerra do Pinheirinho. 19 de dezembro de 2010. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,guerra-do-pinheirinho,655597,0.
htm>. Acesso em: 02/10/2011.
Jornal Correio do Povo, 07 de maio de 1902.
Jornal Correio do Povo, 06 de abril de 1902.
Jornal Alto Taquari, 20 de maio e 22 de junho de 1902 (Biblioteca Nacional Digital)
Relatório apresentado ao sr. dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, presidente
do Estado do Rio Grande do Sul pelo dr. João Abbott, secretário de Estado dos
negócios do interior e exterior em 20 de agosto de 1902. Porto Alegre: Oficinas
Tipográficas de Emílio Wiedemann & Filhos, 1902. (Relatório de 1902 – Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul)
Mensagens enviadas a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do
Sul pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro e 15
de outubro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas d’A Federação, 1902. Na 2ª
Sessão Ordinária da 4ª legislatura. Em 20 de setembro de 1902. Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul – Documento dos Governantes.
Henrique Kujawa
1 Para uma análise do Governo de Vargas bem como discussões historiográficas: AXT, Gunter;
SEELIG, Ricardo Vaz et al. (Orgs.). Da vida para a história: reflexões sobre a era Vargas. Porto
Alegre: Procuradoria-Geral de Justiça, Memorial do Ministério Público, 2005.
2 Composta pelo Partido Republicano e Partido Libertador
3 Flores da Cunha cria um novo o Partido Republicano Liberal, para abrigar os políticos que se
mantiveram fiéis ao governo Vargas.
8 As entrevistas foram feitas em 1999 ao João Maria de Jesus, adepto a movimento, que disse
que foi ao local com a esposa doente e a filha pequena e ao Alfredo Lemes, contrário ao movi-
mento e um dos responsáveis por ir até sobradinho para chamar a polícia.
11 Benedito Paulo do Nascimento, João Elberto de Oliveira, Pedro Guilherme Simon, seu filho
José Henrique Simon, Aparício Miranda. Todos agricultores e moradores da Região de Tunas (6º
Distrito de Soledade).
12 Informações detalhadas podem ser encontradas no processo-crime que tramitou no judiciá-
rio para julgamento dos militares e civis que executara Deca e Antônio Mariano dos Santos. Ver:
RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Processo Crime Sumário contra cabo Antonio Porto,
praça Lucas Campos Galvão, civis Pedro Simon, José Henrique Simon, Benedito Paulo do Nas-
cimento, Aparicio Miranda e João Elberto Oliveira. V. 1 e 2. Escrivania do Juri de Sobradinho.
1938-1942. (APERS)
13 Salienta-se que estas lideranças foram escolhidas pelo protagonismo e, principalmente, pela
visibilidade que obtiveram no desenrolar dos fatos e posteriormente nos registros históricos e
historiográficos. No entanto, como demonstra o estudo realizado por Copp(2014) o movimento
teve outras lideranças, pessoas presas e que de uma forma ou outra cumpriam um papel na rede
15 Condução de porcos a pé ou a cavalo até o frigorífico de Lageado. Consta que a vara (coletivo
de porcos) muitas vezes ultrapassava 100 animais.
Considerações finais
Instituições oficiais vinculadas ao Estado, o imaginário social predo-
minante e a historiografia tradicional, tem tratado os movimentos sociais
- vinculados a cultura, a religiosidade, a disputa pela terra - como movi-
mentos fanáticos, milenaristas e até liderados por bandidos, no tocante ao
Movimento dos Monges Barbudos não é diferente.
A origem e justificativa do movimento está vinculado a ressignifica-
ção do Monge João Maria, para constituir a doutrina dos Monges Barbu-
dos contendo elementos das crenças, cultura e necessidades do grupo so-
cial de caboclos. Contudo, as disputas políticas, a postura autoritária do
Estado, os interesses econômicos e a constituição de uma visão racista e
hierárquica e dualista constroem uma justificativa para a perseguição dos
líderes, dos participantes, eliminação das práticas seja de forma violenta
ou de desqualificação dos seus seguidores.
É neste sentido, que entendemos a eclosão do Movimento dos Mon-
ges Barbudos e a justificativa para o ataque a igreja Santa Catarina, a
invasão e prisões de mais de uma centena de pessoas no velório do Tácio
Fiusa, a perseguição e assassinato de Deca França, a perseguição e tor-
tura (obrigando tirar a barba, arrancando baba e bigode com alicate) dos
moradores da região.
1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. “Bandido”. In: Aurélio Junior. Dicionário escolar da
língua portuguesa. 2 ed. Curitiba: Positivo, 2011. p. 130.
2 HOBSBAWM, Eric. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
3 HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
“Bandido”, “Bandido Social” e “Rebeldes Primitivos”. Dentre as limi-
tações está a ausência do tratamento adequado das diferentes tipologias
documentais utilizadas para dar visibilidade aos bandidos e rebeldes; e o
pouco conhecimento da história da América Latina ao se abordar perso-
nagens que, em alguns casos, não viviam e atuavam em áreas rurais (ou
camponesas) mas em áreas de fronteira ou em frentes de exploração e
ocupação territorial em fase inicial.4
Na fronteira Brasil/Argentina/Paraguai (objeto de nossa atenção
neste texto), nas décadas iniciais do século XX, o conflito, a tensão e a
morte levada a cabo pelos bandidos ao longo dos anos parecem ter cul-
minado no desenvolvimento de uma espécie de “cultura da violência”
(valentia, honra, virilidade, vingança) como forma de aceitação social,
respeito e pertencimento a um determinado grupo e status social, sobretu-
do pelos bandidos, jagunços e capangas. A ausência quase total do Esta-
do na fronteira fortaleceu o poder privado e as práticas do mandonismo
4 Dentre as principais obras estão: BLOK, Anton. Peasant and the Brigand: social banditry reconsid-
ered. Comparative Studies in Society and history. Vol. 14, no 4 (sep, 1972), pp. 494-503; HÜNEFELDT,
Christine. “Cimarrones, bandoleros e milicianos: 1821”. Historica, vol III, no 2 (dez). 1979;
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terra 1730-1848. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991; SANDOVAL, Armando Moreno. “El
Bandolerismo social revisitado”. El caso de Tolima (Colombia). Historielo. Vol. 4, no 7 (Jan – Jul),
2012, p. 290; SCOTT, James C. “Formas Cotidianas da resistência Camponesas”. Raízes, Campi-
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bandidage em el siglo XIX: uma forma de subsistir. In: História Mexicana. Vol. 34, no 1 (Jul. - Sep.,
1984). Entre os pesquisadores brasileiros, destacam-se: AMANTINO, Marcia. O Mundo das
Feras: Os moradores do sertão oeste de Minas Gerais – Século XVIII. São Paulo: Annablume,
2008; CARVALHO, Jose Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão
conceitual”. Dados, vol. 40, no 02, Rio de Janeiro, 2007; FERRERAS, Norberto O. “Bandoleiros,
cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo Social na Amárica Latina”.
História, São Paulo, 22 (2): 211-226, 2013; FLORES, Mariana Flores da cunha Thompson. Cri-
mes de Fronteira. A criminalidade na Fronteira Meridional no Brasil (1845-1889). Porto Alegre:
EDIPUCRS; ANPUH-RS, 2014; GUIMARÃES, Alberto Passos. As Classes Perigosas. Banditis-
mo urbano e rural. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008; MEDRADO, Joana. Terra de vaqueiros.
Relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880-1900. Campinas - SP: Editora da
UNICAMP, 2012; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e Ban-
ditismo no Nordeste do Brasil. Massangá: Recife, A Girafa: São Paulo, 2004; RIBEIRO, José
Iran. “O mato como local de insegurança”. In: História Unisinos. No10. Vol. 02. Maio e Agosto
de 2006; SILVA, Célia Nonata da. Territórios de Mando. Banditismo em Minas Gerais, século
XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
5 GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
das letras, 1989.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 297
os meandros da vida cotidiana na fronteira tendo como cenário de fundo
as violências, as formas de escravidão (dívida e sexual) e a morte de pes-
soas, antes, durante e após as temporadas de safras de erva mate.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 299
Barthe comprou as ações de seu sócio brasileiro tornando-se único pro-
prietário das terras e florestas, demarcadas em 19048 e tituladas a Barthe
em 1905 pelo Governo do Paraná.9
Alberto Daniel Alcaraz aponta que Domingos Barthe tornou-se um
empresário de grande vulto político e econômico na Província de Misio-
nes ao investir seus recursos financeiros na expansão da atividade erva-
teira e madeireira no norte da Província de Misiones, no Paraguay e no
Brasil, complementando-se estrategicamente com uma frota de embarca-
ções (barco-vapores) para navegação ao longo da bacia do rio Paraná (ou
Alto Paraná) dedicada ao transporte de pessoas, mercadorias e da produ-
ção ervateira e madeireira nos portos existentes no rio Paraná e em seus
afluentes.10 A iniciativa do ervateiro Domingos Barthe em adquirir terras
visando a exploração de ervais nativos em território brasileiro acabou por
incentivar outros ervateiros e madeireiros argentinos a comprar terras ou
8 Arthur Martins Franco foi o engenheiro que realizou a demarcação das terras adquiridas por
Domingos Barthe (bem como de outros ervateiros argentinos). Os relatos desta empreitada, em
1904, estão no livro Recordações de viagens ao Alto Paraná, de Arthur Martins Franco, publicado em
1973.
9 A possibilidade de estrangeiros ocupar, obter concessão para exploração ou comprar
terras em área de fronteira internacional era vedada pela Lei de Terras de 1850, exceto se
o estrangeiro se inscrevesse como “colono” em algum projeto de colonização destinado a
acolher migrantes (nacionais ou estrangeiros) em áreas de fronteira. Foi a Constituição Bra-
sileira de 1891 que deu nova compreensão sobre as terras devolutas em faixa de fronteira.
No Artigo 64º, da referida Constituição, consta que as terras devolutas em faixa de fronteira
passariam a ser responsabilidade dos Estados “cabendo à União somente a porção do ter-
ritório necessária à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de
ferro federais”. Pouco tempo depois, visando adequar-se à nova Constituição, o Governo
do Paraná aprovou o Decreto-Lei nº 68, de 20/12/1892, que tratava do acesso à terra, da
regularização fundiária e de orientações sobre a colonização de novas áreas de terras por
empresas nacionais ou estrangeiras. As terras devolutas situadas dentro dos limites do Es-
tado do Paraná e de propriedade do Governo só podiam ser adquiridas por compra ou pela
transmissão de seu domínio útil sob a forma de aforamento. O Regulamento 1-A, de 1893,
atribuía competência à Secretaria de Estado dos Negócios de Obras Públicas e Colonização
para cuidar (conservar, medir, dividir, demarcar, descrever, distribuir, registrar, vender, reali-
zar cobrança de aforamento e reserva das terras devolutas, legitimar posses, revalidar sesma-
rias e outros tipos de concessões) das terras públicas que pertenciam ao Estado do Paraná.
10 ALCARÁZ, Alberto Daniel. La gestación de una “elite local” durante la explotación yerba-
tera-maderera en el Alto Paraná (1870-1920) - Domingo Barthe: un representante paradigmático.
Posadas: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social - Universidad Nacional de Misiones,
2013.
11 YOKOO, Edson Noriyuki. “Gênese do processo da apropriação das terras, o caso das com-
panhias ferroviárias e dos ervateiros no Oeste Paranaense”. In: Anais do VI EPCT. 2011. p. 8.
12 NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Curitiba: S/Ed., 1903. p. 94-95.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 301
O pagamento pela temporada de trabalho dos mensus era adiantado,
cuja denominação de época era “antecipo”. Estrategicamente, tal remu-
neração não incluía a alimentação e outras despesas de cunho pessoal
dos mensus, que deveriam ser adquiridos em um armazém de propriedade
da empresa ervateira ou madeireira, podendo ser debitado do saldo a re-
ceber no decorrer da empreitada. Devido ao preço das mercadorias, o en-
dividamento dos mensus tornou-se comum, acarretando uma espécie de
escravidão/servidão por dívida e a prática de violências contra os mensus
pelo não pagamento, ações de resistência e fuga das frentes de trabalho.
Segundo Alberto Daniel Alcaraz, Domingos Barthe e outros empre-
sários ervateiros aproveitaram-se da população pobre e marginal existen-
te ao longo da bacia do rio Paraná em território argentino, paraguaio e
brasileiro utilizando-a como mão de obra. Com o passar dos anos, for-
mou-se uma rede de pessoas que atuavam como agenciadores e contra-
tantes a serviço das obrages recrutando mensus mediante o “‘conchavo’
que generalmente realizaba bajo condiciones fraudulentas em perjuicio
de los trabajadores y em connivencia com algunas autoridades locales
como jueces y jefes de policia entre outros que atuaban como contatos em
el poder local o ayudaban a encubrir la situación”.13 Na medida em que a
população pobre e marginal passou a resistir ao trabalho nas obrages sob
condições sub-humanas análogas à escravidão/servidão na extração de
erva mate e madeira dentro ou fora do território argentino, o uso do po-
der de autoridades locais em Posadas, Corrientes e em outras comunida-
des e povoações junto aos mensus passou a ser prática corriqueira visando
forçar, persuadir e obrigar as pessoas a assinarem contratos de trabalho
junto às obrages sob pena de sofrerem algum tipo de repreensão pública
ou de terem seus supostos direitos subtraídos em função de não concor-
dar a se submeter aos anseios da elite local atrelada à elite empresarial.
14 MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. 2 ed.
São Paulo: Contexto, 2018.
15 MARTINS, José de Souza. Fronteira…. Op. Cit. p. 13-14.
16 Cf. FREHSE, Fraya. “A Sociologia da vitima como sociologia do espaço”. In: FREHSE,
Fraya (org). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, 2018. pp.
99-121.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 303
fala como uma preta mina”17 contratado pelo ervateiro Domingos Barthe
como plantador de sementes e criador de animais para abastecer os arma-
zéns, que, por sua vez, eram comercializados aos mensus que trabalhavam
nos ervais e aos poucos viajantes que percorriam aquelas picadas rumo à
Colônia Militar de Foz do Iguaçu, ou dela, rumo a Guarapuava.
Após percorrer outro trecho da picada rumo à Colônia Militar de
Foz do Iguaçu, conta Domingos Nascimento que junto ao rio Archime-
des residia o paraguaio Rufino:
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 305
Francisco da Rocha Pombo na obra O Paraná no Centenário (1500-1900)
publicada em 1900.20 As memórias de viagem de Domingos Nascimento
ao serem publicadas na forma de livro21 por ocasião da celebração do 50º
Aniversário de Emancipação Política do Paraná, ao narrar, fez saber e
denunciou a fragilidade da região de fronteira e as formas de degradação
humana existente naquela porção do território paranaense.
Ainda que favorável à exploração e colonização das terras frontei-
riças mediante o uso de mão de obra de nacionais ou de estrangeiros,
Nascimento criticava a estrutura do Governo Paranaense por não ter
elaborado leis que viessem ao amparo dos trabalhadores que, ao serem
contratados pelos ervateiros argentinos, eram explorados e viviam em
condições subhumanas: “vejo que as nossas leis não amparam os simples
e os incautos que pela sua ignorância ou necessidades se deixam escravi-
zar e soffrer por espíritos unicamente interesseiros, que do seio de nossas
terras retiram o que de melhor possuem para abandoná-las mais tarde,
sem deixar vestígio sequer de um fructo de trabalho civilizador”.22
O militar viajante teceu ponderações ao modelo de exploração, ocu-
pação e colonização posto em prática pelo Governo do Paraná na frontei-
ra, isto é: não estender o projeto de colonização com imigrantes europeus
à região de fronteira e, em seu lugar, atrair empresários e mercadores
de erva-mate e madeira da Bacia Platina para gerar impostos ao Paraná
mediante a extração e exportação de tais produtos mediante o uso de
barco-vapores rio Paraná abaixo para serem beneficiados e processados
no parque industrial existente em Posadas, Corrientes e Buenos Aires.
20 POMBO, José Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário (1500-1900). 2. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1980. A primeira edição é de 1900.
21 Ver MYSKIW, Antonio Marcos. “Pela fronteira, Domingos Nascimento”. In: A fronteira como
destino de viagem: a Colônia Militar de Foz do Iguaçu (1888-1907). Guarapuava: Editora da Unicentro;
Niterói: Eduff, 2011. pp. 50-55.
22 NASCIMENTO, Domingos. Pela fronteira. Op. Cit. P. 96.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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mandos e desmandos de quem tinha poder econômico”, assevera o histo-
riador José Augusto Colodel, que continua:
24 COLODEL, José Augusto. Obrages e Companhias Colonizadoras. Santa Helena: Editora Edu-
cativa, 1988. p. 60.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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So pretexto de procurar mejores facilidade de conduccion va
hacer reconocer el rio Iguazú desde arriba del Salto de Santa
Maria, en las cercanias del arroyo Ponta Alta ó João Gualber-
to, hasta laconfluencia del arroyo Tormenta ó del Adelaide,
ó del Izolina, segun la conveniencia. La navegación corre alli
entre la costa Brazilera y la costa Argentina, abajo de la con-
fluencia del Santo Antonio. Y hi esta el golpe, el suave golpe
que Barthe vá dar a los yerbales y a la Mesa de Rendas bra-
zilera.26
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 311
verlo febricente, enfermizo y com algunos soplos de vida su-
ficientes para alimentar unos dias mas esa su carcasa anbu-
lante no lo escoje entre los demás sentenciados al mismo fin y
lo aparter como a un animal inútil al servicio, para embocarlo
en el primero vapor y devolverlo a Posadas ó a Villa Encar-
nación como diciendo a esas dos ciudades: “Tomas mi obra:
dalle de comer”.
Detalle Horrible: Ni el 10 por ciento de esos infelices menores
de edad arrastados asi com engaños a la esclavitud alcanza a
cumplir los cuarenta años de edad. Mueren Jovenes. Mueren
arítricos, ó minados por la icterícia, ó llevados como hoje por
la pulmonia contraída sudando bajo las lluvias torrenciales, ó
anémico, ó de acidentes, ó por falta de asistencia medica, de
remedios y de sustento.28
28 BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranense”. A Notícia. Edição nº 738, de 23/03/1908. p. 2.
29 BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranaense”. A Notícia. Edição nº 742, de 27/03/1908. p. 1.
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Ainda que viesse a sobreviver ao árduo trabalho na selva (o cemitério dos
vivos, uma tumba em vida), jamais seriam os mesmos ao regressar para
casa em função de tantas adversidades e violências vivenciadas.
Bouvier finaliza o extenso texto “El Oeste Paranense” discorrendo so-
bre as violências e mortes praticadas pelos administradores das obrages ou
pelos capatazes:
30 BOUVIER, Julião. “El Oeste Paranense”. A Notícia. Edição nº 743, de 28/03/1908. p. 1.
31 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento Nacional Del Trabajo – Investiga-
ción relacionada con las condiciones de vida y trabajo del Alto Paraná. Buenos Aires, 1914. 240
p. O relatório pode ser visualizado através do seguinte link: http://www.trabajo.gob.ar/down-
loads/biblioteca/bdnt/1914_26.pdf Acessado em 20 de agosto de 2019.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 315
han ido tomado mayores proporciones agravando el problema y hacien-
dolo cada dia más dificil” pois o enriquecimento havia se transforma-
do em obsessão por parte dos empresários ervateiros e madeireiros. No
cômputo das ganâncias dos empresários “entró, pues, el salario reducido,
la alimentación escasa y las abrumadoras jornadas impuestas a los tra-
bajadores y, poco después, entró también la substracción que se realizó
por medio de proveedurías deshonestas, de injustas multas, de evidentes
estafas al peón”.32 Na leitura de Niklison, o Alto Paraná vivenciava, ex-
perimentava um estado permanente de desordem, conflitos e violências
em função de uma guerra entre o capital e o trabalho: “Y esa guerra es
prejudicial, dañina cual ninguna outra, porque no tiene objetivos deter-
minados y claros, no es dirigida con habilidad y no tiene plan ni método
en su operaciones, porque no persigue fines veraderamente prácticos ni
útiles.”33
Em território brasileiro, junto à margem esquerda do rio Paraná, o
inspetor Niklison inspecionou o Porto Artaza (de Júlio Tomás Allica), o
Porto São Francisco/12 de outubro (da Compañia Maderas Alto Para-
ná), o Porto Rio Branco (da Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto
Britânia (da Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto Felicidade (da
Compañia Maderas Alto Paraná), o Porto Santa Helena (de Domingos
Barthe), o Porto Itacorá (de Patricio Moneda) e o Porto Bela Vista (de Hi-
gino Alegre). Nestas obrages, segundo o levantamento de Niklinson, entre
fins de 1913 e início de 1914, aproximadamente 1.700 mensus estavam
trabalhando nas florestas do Oeste Paranaense.34
Entre os temas investigados por Niklison estava: “El conchabo”, a
forma de arregimentar mensus para trabalhar nos ervais do Alto Paraná
na região de Posadas; “O transporte de peones hacia los lugares de traba-
jo”, mais precisamente, as condições dos barcos-vapores “Edelira”, “Es-
paña”, “Salta” e “Iberá” pertencentes Domingos Barthe, Nuñes Y Gibaja
e Juan B. Mola; o “Concepto legal sobre el Antecipo”, praticado pelos
32 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 23.
33 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 25.
34 Ver NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. pp. 44 a 49.
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MYSKIW 317
sin protesta y sin defensa que se le castigue, que se le hiera
y que sele mate, hay mucha distancia. Es valiente, temera-
riamente valiente y la vida ajena le inspira tanto desprecio
como la própria. Armado siempre de machete y revolver, no
lleva sus armas para manternelas inactivas. Cuando llega
la oportunidad sabe aprovecharlas. El machete obrero se la
hundido alguna vez en la carne de los patrones y hay quienes
conocen las represalías y rebeldías de los peones. Sospechar
que uno, dos o tres capataces pueden apalear impunemente a
cien, doscientos ó trescientos hombres de essa clase, valiente
y bien armados significa ignorar por completo la forma en
que se dearrollan las relaciones entre patrones, capataces y
obreros.35
35 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 189.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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fecha indicada, pero el herido felleció tres días despues en el
puerto de Santa Elena, donde fuera trasladado con el fin de
asistírle mejor.37
37 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 195.
38 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 175 e 176.
39 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 196.
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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É possível que muitos dos mensus que empreenderam fuga das obra-
ges tenham utilizado o curso das águas do rio Paraná para chegar ao des-
tino planejado, à povoação, vila ou cidade em que residiam; que alguns
mensus podem ter falecido durante a travessia do rio; que alguns deles po-
dem ter sido capturados ainda na floresta e foram executados às margens
de um afluente do rio Paraná e seus corpos jogados ao rio. São muitas as
possíveis causas da morte de mensus no Alto Paraná.
O comissário de terras Arthur Martins Franco, a pedido do Gover-
no do Estado do Paraná, deslocou-se à fronteira Oeste do Paraná com a
missão de instalar a Coletoria Estadual de Rendas, em 1913. No tempo
ocioso que teve, antes da instalação da Coletoria, decidiu conhecer as
cataratas de Sete Quedas, em Guaíra. Em meados de novembro de 1913
Arthur pôde deslumbrar-se com as cataratas e o barulho das águas. Nos
dias que ali permaneceu, narra o comissário de terras, além de conhe-
cer as instalações da Companhia Mate Larangeira40, ouviu uma história
ocorrida alguns dias antes: uma tentativa de fuga envolvendo peões dos
ervais da Mate Larangeira:
40 A Mate Laranjeira surgiu no final do século XIX, quando o comerciante Thomaz Larangeira
obteve uma concessão do governo imperial para explorar erva-mate no sul de Mato Grosso. A
primeira sede da empresa foi em Concepción, no Paraguai, onde Larangeira também possuía
concessões. Depois, a administração transferiu-se para Campanário, em Mato Grosso, onde o
ervateiro se aliou aos Murtinho - uma família política e economicamente muito influente - e mais
tarde fez sociedade com Francisco Mendes Gonçalves e seu filho Ricardo, que deram notável
impulso aos negócios da empresa, abrindo novos nichos no mercado consumidor de Buenos
Aires. Em 1902, a Mate Laranjeira adquiriu de Francisco Monjoli os direitos de exploração de
um porto acima das Sete Quedas. No mesmo ano, requereu terras ao governo do Paraná para
implantar uma cidade e autorização para abrir estradas até Porto São João e Portón, atual Porto
Mendes. Oito anos depois, já com um porto readequado, armazéns e outras instalações construí-
das na nascente cidade de Guaíra, a Mate Laranjeira passou a operar a nova rota de exportação.
Chatas rebocadas por vapores navegavam pelos afluentes do Rio Paraná (Amambai, Iguatemi,
Dourados e Ivinhema) trazendo a erva de Mato Grosso até Guaíra, de onde o produto seguia por
terra até Porto São João, situado aproximadamente 45 quilômetros ao sul, onde era reembarcado
em chatas com destino ao Baixo Paraná. Em 1923, a empresa inaugurou uma estrada férrea,
entre Guaíra e Porto Mendes, com 60 Km de extensão, para facilitar o transporte de erva-mate
por trem. A ferrovia foi desativada em 1959. Cf. QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. “A COM-
PANHIA MATE LARANJEIRA, 1891-1902: contribuição à história da empresa concessionária
dos ervais do antigo Sul de Mato Grosso”. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 8, n. 1,
jan.-jun., 2015. p. 204-228.
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encarregado daquela desesperada tentativa de socorro ao úl-
timo sobrevivente o desventuroso, seguramente desiludido de
qualquer esperança de salvação, acenou para os que, em terra,
assistiam, atônitos, ao desenlace daquela tragédia, o seu últi-
mo adeus de despedida e, empurrando o “caximbéu” para a
correnteza, saltou para dentro dele e desapareceu na voragem
dos saltos.41
41 FRANCO, Arthur Martins. “Segunda viagem, novembro de 1913” In: Recordações de viagem ao
Alto Paraná. Curitiba: editora, 1973. p. 60-61.
42 NIKLISON, José Elías. Boletín del Departamento… Op. Cit. p. 47.
43 Segundo Ivo Emer (1991), dentre as obrages que atuaram na região, a obrage de Júlio Allica
foi a que atingiu o mais alto grau de desenvolvimento e organização. Por Alica ter formação em
engenharia, construiu às margens do rio Paraná um lago artificial e chegou a produzir energia
elétrica para consumo próprio. Edificou ainda uma mansão no alto da barranca do rio Paraná.
Implantou uma linha telegráfica que chegou a ter mais de 140 quilômetros de extensão, facilitan-
do a comunicação entre a sede e os inúmeros postos de controle e depósitos de erva-mate no
interior do oeste paranaense (EMER, Ivo Oss. Desenvolvimento histórico do Oeste do Paraná
e a construção da escola. 1991. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Estudos Avançados em
Educação, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1991. p. 65-66).
44 Ver: Lei Estadual n° 781, de 20 de abril de 1908, que autoriza a venda/destinação de terras
a Júlio Tomaz Allica.
45 Para Ruy Christivam Wachowicz (1987) há informações esparças de que Júlio Allica teria
feito acordos para a exploração de erva-mate com a BRAVIACO (Empresa Brasileira de Viação
e Comércio) que era detentora de várias áreas de terras no Oeste do Paraná, entre as regiões dos
atuais municípios de Cascavel e Campo Mourão. (WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obragero,
mensus e colonos: História do Paraná. Curitiba: Vicentina, 1987).
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Figura 01. Oeste do Paraná - Recorte do Mapa do Estado do Paraná, em 1924.
Fonte: http://centrocultural.com.br/items. Acesso em 29/08/2019. Adaptado pelo autor.
46 COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba: Editora
Guaíra Ltda., 1946. p. 84.
A fuga era um alento à alma. Mas obter sucesso, por sua vez, era coi-
sas rara mesmo àqueles que conheciam bem a floresta, rios e caminhos
terrestres. Coelho Júnior narrou a história de uma menina paraguaia que,
com seus pais, empreendeu fuga na tentativa de evitar ser abusada sexual-
mente pelos capatazes do mayordomo Santa Cruz:
Até que fiquei mulher e o mayordomo me quis. Mandou um
“cachorro” ao nosso rancho, como é costume, buscar-me.
Meus pais deram uma desculpa, protelando minha ida para o
dia seguinte. E à noite, eles que há muito pensavam em fugir,
embrenharam-se pela mata, ao rumo do sol poente, com o
fito de sairmos algum dia, no rio Paraná.
O que padecemos, dias e dias, fome, chuva, frio, intempé-
ries, perseguição de feras – não é possível recordar… Parece
47 COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 84-85.
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até que a gente se acostuma a sofrer! E assim, numa pere-
grinação desorientada pelos matagais hostis, foi passando o
tempo, perdendo-se a nossa esperança, esfarrapando-se as
nossas vestes – para um dia, nus e esqueléticos, sairmos na
estrada bem em frente a um posto da Empresa!
Receberam-nos rindo…
Depois fomos recambiados para aqui, e recomeçamos a mes-
ma vida de antes da fuga, com a diferença que meu pai mor-
reu num acidente, minha mãe tem outro companheiro, e eu,
que fui primeiro do “mayordomo”, moro agora num outro
rancho, com outro homem.48
48 COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 86-87.
49 COELHO JÚNIOR, Carlos Alberto Texeira. Pelas selvas e rios do Paraná… Op. Cit p. 179.
50 CABANAS, João. A Colunna da Morte. Rio de Janeiro: Livr. Ed. Almeida & Torres, 1926. 162
p.
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dos departamentos de elaboração de herva matte, na seção norte, dos
grandes hervaes do Sr. Júlio T. Allica.”52 A estadia neste local seria longa,
a ponto de João Cabanas ter determinado que alguns combatentes reali-
zassem expedições na região visando localizar grupamentos de “militares
inimigos”, cuja presença havia sido informada pelo ervateiro argentino
Júlio Tomaz Allica e quando das conversações com o Comando-Geral
em Guaíra. Pouco tempo depois, o capitão Bispo e o tenente Gastão in-
formaram ao tenente Cabanas terem “encontrado no terreno que separa
Dois Corregos na picada do rancho denominado Gavilam, 6 cadaveres e
entre elles 2 de mulheres, todos horrivelmente mutilados, um delles com
a cabeça e as pernas separadas do tronco e que uma das mulheres estava
em estado de gravidez.”53
João Cabanas, após ouvir a população local sobre a chacina, chegou
à “conclusão de que se tratava dos cadaveres de pretensos conspiradores
contra o regimem ferreo em vigor nas propriedades do Sr. Allica. Os cons-
piradores foram cruelmente massacrados pelos capatazes, sob as vistas
do Sr. Allica e do administrador geral Santa Cruz, dias antes da minha
chegada a Piquery”.54 Nas investigações que fez junto à população local,
João Cabanas soube que a “justiça summaria” teria sido obra capitanea-
da por Santa Cruz com auxílio dos capangas Antonio Rojas, Antonio
Romano, Seraphim Fernandez, Antonio Machado (vulgo Severo) e Flo-
rentino Antonio (vulgo Bango).55 O tenente Cabanas registrou em seu
diário que destacou uma patrulha para ir até o Porto Artaza para prender
Júlio Allica, Santa Cruz e outros seis capangas sob a acusação de terem
sido os mentores da chacina. No entanto, a patrulha teria regressado ao
Piquiri apenas com quatro capangas e que teriam sido fuzilados.56 O er-
vateiro argentino era, no entender de Cabanas, mandante e cúmplice nos
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imaginação do leitor e do historiador.
Para João Cabanas, era necessário detalhar as condições físicas, de
vida e de trabalho dos mensus, em sua maioria, paraguaios em condições
similares à de escravidão. Reforçava-se, com isso, o tom de denúncia que
as terras fronteiriças com a Argentina e o Paraguai estavam abandonadas
por parte das autoridades brasileiras; que era grande a presença de em-
presas ervateiras argentinas na exploração de erva-mate nativa; que havia
um regime de trabalho escravo e o uso da violência era cotidiano sobre os
mensus, capitaneado pelos capatazes.
Os capatazes, ao contrário das condições físicas e mentais dos men-
sus, eram arrogantes, de boa saúde e bem vestidos, aponta Cabanas, que
continua:
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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feita em suas propriedades quando da revolução de 1924/25:
Algumas considerações
Acredita-se que a decadência do sistema obragero na fronteira Brasil/
Argentina/Paraguai a partir da década de 1930 tenha resultado na dimi-
nuição dos índices de violência e crimes tendo em vista a atenção dada
pelo governo Vargas e pelo governo do Paraná às regiões de fronteira
incentivando a migração de nacionais; a presença mais incisiva de órgãos
públicos, de policiamento e de defesa da fronteira; a comercialização de
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
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terras junto a empresas de colonização privadas. Os conflitos e as violên-
cias continuaram a atormentar as lembranças daqueles que haviam tra-
balhado nos ervais e decidiram permanecer vivendo na condição de pos-
seiros ou arrendatários em terras brasileiras. No lugar dos capatazes das
obrages, chegaram os jagunços contratados pelas empresas de colonização
para impor, por meio da violência e da prática de crimes de distintas na-
turezas, uma nova dinâmica no processo de exploração e povoamento da
região de fronteira com migrantes selecionados. Os mensus, os caboclos,
os indígenas e mesmo os bandidos de outrora, aos poucos e ao longo das
décadas de 1930 e 1940, foram inseridos nesta nova dinâmica ou foram
expulsos, não sem resistências e enfrentamentos, para outros lugares em
território brasileiro, argentino e paraguaio.
O banditismo é um tema complexo, assim como os bandidos. A de-
pender do ângulo de abordagem e da documentação a ser estudada, os
bandidos podem ser heróis, vítimas ou vilões. De uma forma ou de ou-
tra, são sujeitos históricos que tiveram importância ímpar na fronteira e,
assim como personagens, desejavam enriquecer e ter poder às custas dos
outros e mediante a prática de violências e crimes. A historiografia sobre
o banditismo, social ou não, aponta que tal prática ocorre num momen-
to de transição pela qual passavam algumas sociedades, no nosso caso,
aquelas ligadas ao coronelismo e ao mandonismo sobretudo em território
argentino, evidenciando um tempo de crises cujo banditismo para além
das fronteiras argentinas foi uma maneira de tentar reequilibrar e reaco-
modar as elites agrárias e empresariais ligadas à economia ervateira e
madeireira.
A documentação explorada aponta que o poder público brasileiro
e argentino estavam cientes das práticas de mandonismo local, banditis-
mo, violências e de escravidão na fronteira; que a omissão por parte dos
órgãos governamentais às denúncias formalizadas no formato de livros,
artigos publicados em jornais e mesmo em relatórios oficiais os tornou
cúmplices das atrocidades cometidas contra as populações fronteiriças,
brasileiras, argentinas e paraguaias. No entanto, essas memórias incô-
MYSKIW,, Antonio M. Santa Cruz: um bandido nada social na história do Oeste do Paraná
MYSKIW 337
338 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Paco:
herói ou bandido?
Marinilse Marina
1 Não somente os caboclos e os colonos, mas também os indígenas e outros. Neste artigo o
objetivo é focar dois grupos em específico: caboclos e colonos.
3 COSTA (1997), referente a colônia Alfredo Chaves, cita na página 19 da obra que as primeiras
famílias italianas chegaram na localidade de Alfredo Chaves em 1886, mas existem controvérsias
sobre o ano exato da chegada destes imigrantes.
4 Nos detemos em analisar mais profundamente três obras em relação a vida de Paco, que são:
GUERTLER, Gustavo. Paco. Caxias do Sul: Editora Maneco, 2ª edição, 2006. PFEIL, Antônio
Jesus. O trágico fim do bandido Paco. Porto Alegre: EST edições, 1995. PARIS, Assunta De. Memórias:
Bento Gonçalves – 109 anos. Coord. por Assunta De Paris. Prefácio do Irmão Nadir Bonini Ro-
drigues. Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves: Arquivo Histórico Municipal. Porto Alegre:
Editora Suliani, 1999.
5 Termo que os italianos utilizavam para se referir a uma suposta riqueza na América.
Paco passa a trabalhar prestando serviço aos donos das casas comer-
ciais, além de ter supostamente sequestrado sua primeira esposa, também
filha de comerciantes. Era uma figura diria até que romantizada por al-
guns, estigmatizada por outros, e denegrida conforme os interesses. No
campo das relações conjugais, era o tipo mulherengo, com fama de raptar
as moças que lhe interessavam, tendo diversas uniões, além de muitos fi-
lhos, e apesar de descrito como sequestrador, as supostas esposas o carac-
terizavam como um bom homem e pai amoroso. Já na mídia é divulgado
que:
Somente esta etapa da vida de Paco já daria uma análise mais pro-
funda.
A sua esposa, dona Maria (...), foi por ele sequestrada da casa
de seus pais, família Fachin, em Veranópolis. Tiveram dez
filhos. Mas contam que teve mais 15 com outras mulheres. O
jogo, lindas mulheres e sua valentia faziam de Paco um ídolo
para os camponeses e um competente cabo eleitoral para os
políticos da época (PARIS, 1999, p. 181).
8 Para mais informações sobre o assunto ver: LONDERO, Márcia. Parte III - Do bandido
social ao crime organizado. Paco: um bandido social da Serra gaúcha, 2011. Disponível em:
<http://books.scielo.org/id/ycrrp/pdf/santos-9788538603863-07.pdf>.
9 Algumas questões fomentaram a Revolução de 1930. Entre elas: a queda da bolsa de valores
americana em 1929, que propiciou o declínio da compra do café brasileiro, que eram um dos
pontos altos na economia do país. Além das revoltas tenentistas e as greves operárias que de-
monstravam a insatisfação de parcela significativa da população com o então regime oligárquico.
No período conhecido como Primeira República, ou República Velha, destacavam-se de formas
socioeconômica principalmente as elites de São Paulo e Minas Gerais, o primeiro com destaque
na produção leiteira e o segundo com o café. A famosa política brasileira do café com leite per-
maneceu ativa durante quase todo o período da chamada Primeira República (1889-1930), onde
estes estados se alternavam no poder. Em 1929, era a vez de Minas Gerais subir ao poder, mas
esta hegemonia foi quebrada quando Washington Luís, então presidente, indica o paulista Júlio
Prestes como seu sucessor na presidência da República, criando grande insatisfação por parte
Protegido por alguns e odiado por outros, Paco ficou esquecido por
um determinado período da mídia, escondendo-se nas furnas do rio das
Antas, principalmente após saber que outro bandido havia sido contra-
tado para ajudar em sua caçada, era o famoso bandoleiro e assassino
Antônio Torres. Para Paco era evidente que se não tentasse agir acabaria
Paco serviu por décadas aos interesses das elites da região, princi-
palmente dos políticos. Usou da violência em defesa da manutenção do
poder do Partido Republicano, após a união dos partidos de Borges de
Medeiros e Assis Brasil, Paco se tornara uma figura malvista aos novos
interesses da política. Sabia demais, tinha usado todos os atributos em
prol das boas relações da alta sociedade, e poderia manchar ainda mais
a nova imagem que o Rio Grande do Sul vinha construindo na política,
afinal o maior interesse no momento era apoiar Getúlio Vargas na repre-
sentação do Brasil.
Considerações finais
Francisco Sanchez Filho era de família espanhola, um grupo mino-
ritário inserido em um território composto majoritariamente por italia-
nos, sendo caracterizados pelo grande grupo como caboclos. A família
Sanchez, ao que tudo indica, pode ter sido desapropriada de sua terra,
pobres e com filhos se transferem da colônia Dona Isabel para Alfredo
Chaves, onde Paco passa a trabalhar em casa de comércio, após com o
transporte da madeira e seu escoamento, aprendendo a conhecer detalha-
damente a região nordeste do estado, e, portanto, foi usado pelas elites
comerciais e políticas da época em diversas funções, entre elas: como
uma espécie de segurança das casas comerciais e dos políticos, além de
cabo eleitoral, garantindo na região a maioria de votos do Partido Repu-
5 O sistema de compadrio era comum entre os sertanejos. Para os agregados convidar o fa-
zendeiro como compadre poderia significar proteção, e, em contrapartida, fidelidade para com o
mesmo (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 39).
16 “Atribui Paulino Pereira essa fome desesperadora à carência de sal, que veio a faltar por
completo. Acha ele que se houvesse sal qualquer sopa enganaria o estômago. Mas, não havendo,
mesmo pedaços de carne não satisfaziam. As pessoas, fora de si, lambiam o suor próprio ou
alheio, porém não se saciavam. Esta circunstância teria agravado muito a escassez de alimentos.”
(VINHAS DE QUEIROZ, Op. cit., p. 254).
17 Depoimento Manoel Batista dos Santos.
18 Depoimento Manoel Francisco Dias.
O derradeiro reduto foi São Pedro, nas margens do Rio Timbó, onde
atualmente se localiza a sede do município de Timbó Grande. Apon-
tando com o indicador diz o senhor Manoel: “a casa do Liodato com o
Pai Véio, era bem na igreja católica, ali”21. No último reduto, as regras
de Adeodato continuaram vigorando, atemorizando e controlando com
maior obstinação.
26 Autos de prisão e perguntas lavrado no dia 02 de agosto de 1916 na Delegacia de Polícia de
Canoinhas, quando Adeodato foi interrogado pelo Delegado Francisco Ferreira, remetido ao Juiz
Antônio Selistre de Campos que despacha ao juiz de Curitybanos o preso, os autos e o retrato
que os acompanha. Deodato Manoel Ramos seria enviado para a cadeia de São Francisco do Sul.
03 de agosto de 1916.
Por outro lado há quem faça afirmações mais amenas sobre o último
líder sertanejo, atribuindo a Adeodato características que fogem da pura
maldade e até certo ponto reconhecem nele certas qualidades de líder e
não raras vezes atribuindo-lhe papel relevante. Para Antonio Carlos Mar-
tins, mesmo admitindo que Adeodato não é bem visto pelos caboclos da
região, e até admitindo que este líder tenha sido cruel, justifica:
Fontes
JORNAL O ESTADO, Florianópolis, Santa Catarina - JORNAL O IMPARCIAL,
Canoinhas, Santa Catarina. Entrevistados: Manoel Batista dos Santos, Miguel
Correa de Souza, Aristiliano Carlin de França, Antônio Carlos Martim, Manoel
Francisco Dias, Onorina Maria Dias. Arquivo de Canoinhas: Autos de prisão e
perguntas lavrado no dia 02 de agosto de 1916 na Delegacia de Polícia de Canoinhas,
quando Adeodato foi interrogado pelo Delegado Francisco Ferreira, remetido ao
Juiz Antônio Selistre de Campos que despacha ao juiz de Curitybanos o preso, os
autos e o retrato que os acompanha. Deodato Manoel Ramos seria enviado para a
cadeia de São Francisco do Sul. 03 de agosto de 1916.
Arlene Renk
1 Coração das trevas é romance de Joseph Conrad a partir de sua vivência na marinha mercante
em viagens ao Congo Belga, apresentando as mazelas do colonialismo.
2 Oswaldo Cabral e Aujour Luz teriam escritos seus livros sobre o Contestado para concorrer
à Cátedra de Medicina Legal da Universidade Federal de Santa Catarina,
Referências
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Ruralis. 24(1), 1984.
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. Florianópolis:
Lunardelli, 1979.
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CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Ubu Editora, 2016.
FGV. CPDOC. Guerra do Contestado. Ecos da Guerra. Entrevista com Paulo
Pinheiro Machado. 04 de setembro de 2012. https://cpdoc.fgv.br/contestado/ecos
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transformador do espaço regional – o caso de Calmon, SC/ Brasil. Dissertação
de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Geografia.Universidade Federal do
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Os Fanáticos (Contribuição para o estudo da antropossociologia criminal e da
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PERROT, Michele. Os excluídos da história. Operários, mulheres e prisioneiros. 4ª.
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VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e conflito social: a guerra
sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
RIBEIRO, Gustavo Lins. Poder, Redes e Ideologia no Campo do Desenvolvimento.
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SACHET, Celestino; SACHET, Sergio. Historia de Santa Catarina. O Contestado.
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SALOMÃO, Eduardo Rizzatti. A devoção ao Divino Espírito Santo no Contestado.
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SASSI, Guido Wilmar. Geração do deserto. Porto Alegre: Editora Movimento,
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Florianópolis: Insular, 2.ed., 2008.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 407
Do início das migrações e do caminho de interiorização da região
os bandidos demarcaram-se no espaço colonial como elementos transver-
sais e difusos no espaço colonial, para depois, passo a passo, perderem
sua relevância nos vínculos sociais. Para Balhana:
8 BALHANA, Altiva Pilatti (et. al). História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969, p.218.
9 KRÜGER, Nivaldo. Sudoeste do Paraná: história de bravura, trabalho e de fé. Curitiba:
Posigraf, 2004, p.90.
10 PADIS, Pedro Calil. Formação de uma economia periférica: o caso do Paraná. São Pau-
lo: HUCITEC; Curitiba: Secretaria de Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paraná,
1981, p.170.
11 COLNAGHI, Maria Cristina. O processo político de ocupação do Sudoeste. In: PAZ, Francisco
(org.). Cenários de Economia e Política. Curitiba: Editora Prephacio, 1991, p.8.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 409
mais solicita e severa no cumprimento de seus deveres, não
possa, infelizmente, dar uma marcha mais rápida na punição
dos criminosos e repressão ao crime. É assim, que tenho o
desprazer amargo de dizer, apezar de meus ingentes esforços
em sentido contrário, este processo com mas de dois mezes
de inicio, somente agora veio a ponto de ser nelle proferido
sentença (sic.)12
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 411
tando-se de leves machucaduras, soube tira partindo, aludin-
do a boa fé de todos os que ouviram sua narrativa, inclusive
os peritos, bem fingindo o deslocamento do punho da mão
direita, deixando porem a fragilidade da mentira, bem palpá-
vel, na parte que diz não haver o mesmo ignorar os motivos
que originaram a aggressão de dois homens fortes e valentes
contra um menor, que a pezar, teve a superioridade de lutar,
e agarrar-se com uma só mão a cerca e uma fazenda de criar
(que todos sabem o que seja) escapando-se a fúria dos ag-
gressores. Que prodígio13!...
13 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 44.
M. M. Juiz
O presente processo, instaurado contra RAUL TEIXEIRA,
denunciado por um crime de homicídio da pessoa de Ireno
Rodrigues da Silva, é, em face do que dispõe a lei, nulo.
Tal nulidade provém do fato de o exame cadavérico de fls. 6,
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 413
que é a peça que prova a materialidade do delito, ser comple-
tamente imprestável.
O 2º, 4º, 5º e 6º quesitos do referido exame cadavérico, ou
melhor, as respostas dadas aos 2º, 4º, 5º e 6º quesitos são
contraditórias. Por elas não se pode saber se a causa da mor-
te da vítima foi propriamente o ferimento, ou se o estado
mórbido anterior do ofendido ocorreu para tal, ou ainda se
a morte resultou não porque o mal fosse mortal e sim por ter
o ofendido deixado de observar o regimen médico-higiênico
reclamado pelo seu estado.
Além do mais, a denúncia também é nula, pois não preenche
os requisitos exigidos pelo Código de Processo17.
Raul Teixeira acaba inocentado e seu advogado parece ter sabido uti-
lizar bem as falhas do sistema, já que ele foge e apenas treze anos depois
presta contas à justiça e daí então vai preso. É claro que nessa afirmação
figura uma hipótese dentre muitas, ela é uma entre as possíveis, porque
o silêncio também rege os processos de significações18, ou seja, diante
de uma década de ausência e silêncio do acusado no processo o efeito
de sentido que é primeiramente desencadeado é da fuga, inclusive para
outro estado, tendo em conta as fragilidades da justiça19.
Diante das necessidades de formalidades inerentes à justiça e as espe-
cificidades locais parece ser bastante confortável aos foragidos, bandidos
e criminosos escapar, estabelecer rotas de fuga e burla dos dispositivos
normativos da maquinaria punitiva, bastante deficitária nesse momento,
mas continuando seu trabalho ainda que frágil, ainda que não ostensivo
e observável por todos no espaço colonial mesmo com fragilidades visí-
veis, como no caso dos Autos de agravo de Petrolino Aliva de Souza que
20 Pedido de Vistas aos Autos requerido por Sebastião Dias e Gonçalino Silva. 1919.
21 Por historiografia clássica consideramos os trabalhos que afirmar uma interpretação que dá
grande peso ao processo de colonização dos migrantes eurobrasileiros e da luta pela terra, espe-
cialmente com a Revolta dos Colonos de 1957. Se, por um lado, essa historiografia desculpou os
testemunhos vivos sobre o processo, por outro ela consolidou uma mitologia do vazio demográ-
fico e do migrante herói. Para uma crítica dessa historiografia indicamos: LANGER, Protásio.
Conhecimento e encobrimento: o discurso historiográfico sobre a colonização eurobrasileira e
as alteridades étnicas no Sudoeste paranaense. Maringá: Revista Diálogos. Vol. 11, n. 3, 2007, p.
71-93.
22 KRÜGER, Op. cit.,. p. 90. Consta ainda, segundo o autor, e baseando-se em pesquisa rea-
lizada pela Câmara Municipal de Pato Branco que Pacífico Pinto de Lima teria sido o primeiro
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 415
Pacífico Pinto de Lima se encontra inserido neste contexto social,
vivenciando esses acontecimentos. A história de sua vida e morte23 é de
grande representatividade na apresentação dos problemas, dos lapsos e
da fragilidade em que o “consenso” exterior a uma administração e regu-
lação pelo Estado – em seu sentido estrito – era operada.
Exatamente em 1920, Pacífico de Pinto Lima e seu filho José de Pin-
to Lima são processados por agressão. Esse documento, somado aos de-
poimentos orais, constitui as marcas documentais deixadas por Pacífico
na história da região. Com uma duração de quase três meses o processo
se inicia em 24/02/1920 com o Exame de Corpo Delito e os depoimen-
tos no mesmo dia dos acusados (Pacífico de Pinto Lima e seu filho José
de Pinto Lima). No Auto do Exame de Corpo Delito, redigido pelo Escrivão,
Pedro Augusto Cardoso e “assegurado” pelo Delegado, Lydio Albuquer-
que deveria responder a nove quesitos fundamentais, segundo o que se
segue:
24 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 4.
25 Idem, p.5.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 417
seu parecer sob juramento e “consciência”, ou seja, estão ao fazer seu tra-
balho sob o signo do juramento consciente sob pena de incorrer em crime
de falso testemunho. Esse segundo ponto talvez assuma uma importância
mais que significativa na construção do principal mecanismo discursivo
e estrutural de uma lógica de verdade e psicologia do depoente em cons-
ciência da importância e gravidade de seus atos e palavras, sendo que as
consequências dos mesmos lhe são colocadas sub judice.
Ainda na Delegacia, como é de praxe, os envolvidos são ouvidos
uma primeira vez. Abre-se um Auto de perguntas ao “offendido” e aos
“accusados”. Joaquim Félix (“offendido”), quando:
26 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 7.
27 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 2.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 419
de dar a cada um, o que lhe é de direito), e se for a situação aplicar a lei
(instrumento máximo de normalização e de vida). Tais boatos devem
ser postos sob investigação jurídica para eventual punição, a qual deve
acontecer pelas provas de que ele efetivamente agrediu Joaquim Félix (e
o Auto de Corpo Delicto comprovaria esse argumento), e que o comporta-
mento (detalhe para que apenas Pacífico é citado), de Pacifico é desordei-
ro e violento “com algumas pessoas”.
Denúncia feita, o próximo passo é a inquirição das testemunhas, ao
todo sete são solicitadas pelo Promotor. Essa “fase” do processo se inicia
em 27/02 (três dias após a queixa na delegacia). A Primeira testemunha
(“informante”) é:
28 Essa estrutura discursiva se manterá durante toda inquirição das testemunhas, ela é condi-
ção suficiente e indispensável para que se afirme a legitimidade daquilo que o doente afirmará,
sendo que se pode atribuir a essa estrutura discursiva a mesma função do encerramento de todo
depoimento onde basicamente e com pouca ou nenhuma alteração o seguinte: “E como nada
mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo seu depoimento que depois de lhe sêr lido e
achado conforme o assigna o Cidadão (…), por não saber lêr nem escrevêr, com o Delegado, do
que tudo dou fé! Eu Pedro Augusto Cardoso, o Escrivão o escrevi”. Essa estrutura sofre pequena
alteração no caso do depoente saber ler e escrever. Observe-se que a validade do depoimento
realizada é afirmada pela presença das autoridades e de sua conformidade com o método, a for-
ma e as condições com que o depoente declarou o seu conhecimento e sua opinião dentro da
“objetividade” da pergunta que lhe foi feita.
29 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p.10-11.
30 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920,
p.11.
31 Idem, p.11.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 421
A reputação de desordem e violência evocada pelo Promotor na de-
núncia contra os acusados encontra respaldo no depoimento de João de
Oliveira Vianna, já que não seria a primeira vez que Pacifico teria agredi-
do alguém. A terceira testemunha, Joaquim Norberto Ferreira, “quarenta
e cinco annos de edade,, viúvo, natural e residente neste município, não
sabendo lêr nem escrevêr, lavradôr (...)”32, traz um detalhe a mais a trama
afirmando “que no dia desesseis do corrente mêz, soube que, Pacifico de
Pinto Lima e seu filho José haviam mandado chamar Severiano Barbosa
de Oliveira e como este estivesse na roça, Joaquim Félix Rodrigues dos
Santos foi atender o chamado, sendo nesta occasião aggredido pelos ac-
cusados que lhe produsiram o ferimento que appresenta”. Além, do fato
de que ele “soube que”, (não se sabe como ele soube e em que condições
soube), tem-se que seu depoimento de certo modo complementa e se en-
caixa com o da quarta testemunha: João Bueno de Quadros, “com qua-
renta e três annos de edade, casado, lavradôr, residente neste município,
não sabe lêr nem escrevêr(...)”33, e que, “(...) disse que sabe que Severiano
Barbosa de Oliveira e Joaquim Félix de Oliveira dos santos, retiraram-se
de agregados de Pacifico Pinto de Lima ignorando porem qual o motivo
da retirada dos mesmos”34. Peça importante surge com esse depoimen-
to. Percebemos que pode haver uma relação específica entre Pacifico e
os offendidos Joaquim Félix e Severiano (que é casado com a mãe de
Joaquim Félix). Eles eram agregados de Pacifico. A relação estabelecida
é de trabalho e de obrigação. Qual o motivo que os fez se retirarem da
propriedade de Pacifico? As imposições, cobranças e violência? Ou mes-
mo a exploração do seu trabalho? Ou ainda outro motivo qualquer que
desconhecemos?
A quinta e última testemunha deste primeiro inquérito, João Ribeiro
das Chagas, “(...) com trinta e oito annos de edade, casado, natural des-
te Estado, commerciante residente neste Município sabe lêr e escrevêr
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 423
A partir de dezesseis de março de mil novecentos e vinte, inicia-se a
segunda sequência de inquérito. As testemunhas agora não são inquiridas
pelo Delegado, mas pelo suplente de Juiz Doutor Antonio Ribeiro de Bri-
to na presença do escrivão, e do defensor, Luiz loureiro de Godoy Mello.
Nesta segunda sequência de inquirição se intensifica a subjetividade de
cada testemunha no que se refere primeiro ao que sabe sobre os envol-
vidos sua reputação e seu comportamento, e, secundariamente, alguns
outros aspectos como trabalho e relações sociais e de sociabilidades dos
envolvidos com vizinhos, comunidade etc., tendo em vista, obviamente,
a afirmação ou não da reputação de “violentos” dos acusados.
Neste sentido, a primeira testemunha João de Oliveira Vianna, cujo
depoimento contradiz quase que totalmente o que havia afirmado em seu
primeiro depoimento; já que neste, afirma que, “(...) há muito conhece os
denunciados e sabe ter elles boa conduta social que não conhece Joaquim
Félix dos Santos senão há pouco tempo, não podendo assim informar
sobre o comportamento d’ella”38. Adiante é dada a palavra ao defensor
dos acusados que requer que se pergunte à testemunha se é vizinho dos
denunciados e há quantos annos e se durante este tempo teria visto os
denunciados espancarem alguém, ou se a sua família teria já sido desa-
catada pelos denunciados. Respondeu que, “a seis annos reside a duas
léguas de distância dos denunciados; e durante este espaço de tempo não
vira os mesmos denunciados espancarem pessoa alguma em tão pouco
ella testemunha fora com sua família espancados ou desacatados pelos
denunciados”39.
É outro depoimento que se modifica substancialmente. Antes, João
de Oliveira Vianna afirmara que sabia não ser a primeira vez que Paci-
fico e seu filho haviam provocado “turbulências” e que já haviam “por
diversas vezes espancado outras pessoas”. Um detalhe importante é a
distância entre o local de moradia da testemunha em relação ao acusado,
aproximadamente treze quilômetros. Se acontecesse de Pacifico cometer
38 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 22.
39 Idem, p. 23.
40 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 25.
41 Idem, p. 26.
42 Idem, p. 26.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 425
A defesa de Severiano se concentra na seguinte insinuação:
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 427
por independêr da acção criminal, não se cumula a acção cri-
minal a civil. E como sendo uma acção de natureza prevista
pela n.I do artigo 205, combinado com a primeira parte do
n.I do artigo 210, o supplicante pede a V.S. que seja ao autor
lançado da accusação, por ter deixado corrêr a revelia, e jul-
gada perempta a acção, depois mandar juntas a presente aos
autos44.
44 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 32.
45 Idem, p. 37.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 429
confirmar, não deixa de ser uma estratégia de afirmação e legitimação de
uma verdade que se quer estabelecer e se confirmar. A sexta testemunha
– João Ribeiro das Chagas – com trinta e oito anos, casado, comerciante,
sabendo ler e escrever, mantém uma postura muito semelhante à de Fran-
cisco Faria: “neutralidade”. Mas em sua fala se destacam duas coisas.
A primeira diz respeito aos machucados da vítima. João Ribeiro diz ter
visto tais machucados e que eles “não deixariam deformidade na junta
do braço”48 e ainda que, “ella não esta doente49”, além de que segundo
lhe consta a vítima tem bom comportamento assim como os acusados;
e a segunda permeia a questão de Joaquim Félix estar trabalhando para
Pacífico porque ele testemunha não sabe se quando aconteceu o “conflito
vertente trabalhava em serviços pertencentes a Pacífico Pinto de Lima”50.
Caberia a essa altura do processo se questionar que o fato do padras-
to de Joaquim Félix ter se tornado seu advogado. Seria mesmo por inte-
resse, ou pela falta de condições para contratar um? E por que motivo ele
não faz pergunta alguma a nenhuma testemunha durante todo processo?
Isso se deve ao fato de não saber como se portar e agir em tal esfera de
ação social que possui suas próprias regras? São questões importantes e
de difícil resposta.
Em seguida o Ajunto do Promotor solicitou que se desistisse da in-
quirição de uma testemunha (Joaquim Ferreira Norberto), principalmen-
te por este morar em Santa Catarina. Logo após Pacífico e seu filho são
interrogados. Salienta-se nas suas falas que quando perguntados sobre
onde estariam no tempo em que se deu o crime, os dois dizem coisas
muito parecidas, dizem que só souberam do acontecido quando foram
citados em suas roças. Aparentemente soa como se tivessem sido bem
instruídos por um advogado, já que durante todo processo quando se
pronunciam demonstram estar preparados para responderem aquilo que
precisariam responder. Mantêm a coerência, não se equivocam nem se
51 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 42.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 431
gonistas Severiano Barboza e seu entiado Joaquim Felix Ro-
drigues. Fácil é conjeturar-se: não vai a tempos idos, neste
mesmo termo, houve uma utoridade que, quando engendra-
va suas maquiavélicas perseguições, espalhava a noticia de
um crime; depois intimava-os seus ouvintes a comparecerem
em audiências, e ahi interrogados sobre o que ouviram dizer
a respeito, tanto foi que um bello dia certa testemunha dis-
tinguiu-se declarando só ter ouvido daquella autoridade; eis
o que se dá com o caso (...) Joaquim Felix Rodrigues aprovei-
tando-se de leves machucaduras, soube tira partindo, aludin-
do a boa fé de todos os que ouviram sua narrativa, inclusive
os peritos, bem fingindo o deslocamento do punho da mão
direita, deixando porem a fragilidade da mentira, bem palpá-
vel, na parte que diz não haver o mesmo ignorar os motivos
que originaram a aggressão de dois homens fortes e valentes
contra um menor, que a pezar, teve a superioridade de lutar,
e agarrar-se com uma só mão a cerca e uma fazenda de criar
(que todos sabem o que seja) escapando-se a fúria dos ag-
gressores. Que prodígio52!...
52 Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima. 1920, p. 44.
53 Idem, p. 44.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 433
me e outros, não tendo a justiça através de suas ferramentas e estratégias
conseguindo puni-lo, por isto a população mesma o farão a seu modo.
Porém, até a inscrição nos corpos da noção institucional de justiça have-
ria espaço para arbitrariedades como as praticadas por Pacífico desvelam
as possibilidades de um agir que tinha condições de escapar dos limites
de ação da justiça institucional para uma justiça gerida pelo próprio gru-
po social. Como afirma José de Souza Martins, as pessoas lincham para
punir. Assim os linchamentos não são espasmos coletivos desordenados,
“mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionado
o poder das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da
lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos”56.
Inegavelmente, o espírito geral desse pressuposto está presente no
caso de Pacífico e a história de sua vida e morte intermeada pela sua figu-
ração nas arenas da justiça contribuem para que possamos compreender
a lugar da violência em uma sociedade dinâmica em transformação.
Referências
BALHANA, Altiva Pilatti (et. al). História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969.
BOCCHESE, Neri França Fornari. Pato Branco sua história sua gente: história de
Pato Branco. Pato Branco: Imprepel, 2004.
BREPOHL, Marion Dias. Arrendantes e Arrendatários no contexto da soja.
Região de cascavel; Paraná – 1960-1980. (Dissertação de mestrado em História –
UFPR), Curitiba, 1982.
COLNAGHI, Maria Cristina. O processo político de ocupação do Sudoeste. In: PAZ,
Francisco (org.). Cenários de Economia e Política. Curitiba: Editora Prephacio,
1991.
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-
crime contra Pacifico Pinto de Lima e José de Pinto Lima, 1920.
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-
crime contra Raul Teixeira, 1941.
FONSECA, R. M. (org.). Crítica da Modernidade: diálogos com o Direito.
PASSOS,, Aruanã Antonio dos. Pacífico nas lides da Justiça: crime e violência no Sudoeste...
PASSOS 435
436 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
Telegrafista Henrique Widikim
e a Revolução Federalista
na Colônia Militar do Xapecó
4 Ibidem. P.20
5 Ibidem, p. 140.
6 Ibidem, p. 140.
7 OLIVEIRA, Rodrigo. Op., Cit. p. 141.
8 Ibidem. p. 141.
9 PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. Op., Cit.
10 FRAGA, Gerson; GRITTI, Isabel. Os farroupilhas em três tempos: aspectos da Guerra
dos Farrapos e suas celebrações na imprensa sul-rio-grandense por ocasião de seu centenário e
sesquicentenário. In: RADIN, José; VALENTINI, Delmir; ZARTH, Paulo (Org). História da
Fronteira Sul. Chapecó: Editora da Universidade Federal da Fronteira Sul, 2015. P. 191
11 PRIORI, Ângelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. História do
Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012.
12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 Ibidem.
15 BORMANN, José B. Dias Fraticidas: Memórias da Revolução Federalista no Estado do
Paraná. Curitiba: Typ. Da Livraria Economia Annibal Rocha e Cia, 1901.
21 PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana; AMÂNCIO, Silvia; IPÓLITO, Veronica. Op., Cit.
22 AXT, Gunter. A Revolução Federalista (1893-1895): Guerra Civil no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 107-136, 2018. P.115
25 MARTINS, José de Souza. Fronteira: A Degradação do Outro nos Confins do Humano. 2.
ed. São Paulo: Editora Contexto, 2016. P.11
26 Ibidem, p. 41.
37 NASCIMENTO, Welci; DAL PAZ, Santina. Vultos da História de Passo Fundo.
Passo Fundo: Projeto Passo Fundo, 2014. p. 27
38 FERREIRA, Mariluci. A trajetória política de Prestes Guimarães. Passo Fundo: Projeto
Passo Fundo, 2014. p. 56
39 Ibidem, p. 57.
40 Ibidem, p. 59.
41 NASCIMENTO, Welci; DAL PAZ, Santina. Op., Cit. p. 68.
Conclusões
A transição Império/Republica no Brasil foi turbulenta, o que aca-
bou gerando diversos conflitos, entre eles a Revolução Federalista defla-
grada no Rio Grande do Sul, que se espalhou para os demais estados do
Sul do país. Nesse contexto destacamos o papel do telégrafo nesse con-
flito na região da Colônia Militar do Xapecó e a disseminação das falsas
informações pelo telegrafista federalista de Palmas, Henrique Widikim.
O que nos faz refletir sobre os acontecimentos do século XXI, princi-
palmente nas últimas eleições presidencialistas nos Estados Unidos da
América e no Brasil
Nas eleições presidencialistas dos Estados Unidos (2016) e do Brasil
(2018), um termo muito utilizado e disseminado foi fake news, que traduzido
Jornais
A REPÚBLICA: Órgão do Partido Republicano. Rio de Janeiro, 6 de junho de
1895.
O ESTADO DO PARANÁ. Curitiba, 25 de setembro de 1925.
XAPECÓ. Xanxerê, 7 de março de 1893.
2 QUEIROZ, Maria Izaura Pereira. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e gru-
pos rústicos no Brasil. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Edusp, 1973, p. 10.
3 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de
1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
4 Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio da Palmeira. 1860. In: SOARES, Mozart Pereira.
Santo Antonio da Palmeira. Porto Alegre: BELS, 1974. p. 112
5 SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto
12 SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios.
Porto Alegre: Typographia da Livraria Universal, 1909. p. 180
13 Ver sobre este tema a tese de doutorado de GERHARDT, Marcos. História ambiental da
erva-mate. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Florianópolis, 2013.
14 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campi-
24 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
25 Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. 12/08/1886.
26 Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. Processo 236. 12/08/1886.
27 Tribunal de Relação de Porto Alegre. Apelação cível. APRS. Processo 175. 1881.
28 SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto
Alegre: Typographia da da Livraria Universal, 1909. p. 142.
29 Tibúrcio Alves Siqueira Fortes casou com Mariana Joaquina Borges em 1855, filha de Ma-
noel Joaquim Borges e Anna Belmonte Borges.
30 Ações cíveis de execução. Juízo do termo da Palmeira. APRS. Processo 236. 12/08/1886.
31 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara. Correspondências da Justiça de Santo Antônio da
Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
32 ZARTH, P. A.; SILVA, Márcio Both da. Religiosidade popular autoridades e conflitos no
Alto Uruguai In: simpósio nacional do centenário do movimento do Contestado, 2012, Pelotas.
Simpósio nacional do centenário do movimento do Contestado. Pelotas: editora e gráfica univer-
sitária, 2012. v.1. p.175-196.
33 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara. Correspondências da Justiça de Santo Antônio da
Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
34 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43
44 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
45 Relatório dos oficiais de justiça. 24/09/1886. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança
Pública. Delegacia de Polícia do termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões. AHR-
GS. Maço 14. Caixa 7.
46 Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia do termo da Palmei-
ra. Diversos. 1886. Palmeira das Missões. AHRGS. Maço 14. Caixa 7.
47 Protesto. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia do
termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões (Santo Antonio da Palmeira). AHRGS.
Maço 14. Caixa 7.
48 Despacho do juiz. 30/09/1886. In: Inquérito Policial. Secretaria de Segurança Pública. Dele-
gacia de Polícia do termo da Palmeira. Diversos. 1886. Palmeira das Missões (Santo Antonio da
Palmeira). AHRGS. Maço 14. Caixa 7.
49 Correspondências da Justiça de Santo Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97.
Caixa 43
50 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
51 Ofício do juiz João da Cruz e Câmara, 3º suplente. Correspondências da Justiça de Santo
Antônio da Palmeira. 30-09-1886. AHRGS. Maço 97. Caixa 43.
52 Oficio do juiz municipal João da Cruz e Câmara ao juiz da comarca Miguel Archanjo de
Figueiredo. AHRS Correspondência da justiça de Palmeira. 30/09/1886.
53 Os povos indígenas da região foram confinados em diversas áreas delimitadas em meados
do século XIX, através de acordos entre o governo e as lideranças. Evidentemente perderam o
território, depois de décadas de lutas, mas o confinamento em reservas foi uma alternativa para
não perder tudo. Para administrar a questão indígena o governo criou o cargo de Diretor dos
Considerações finais
Os camponeses ervateiros, com destaque para Minho Flores, no de-
correr do processo defenderam o livre acesso aos ervais públicos, regula-
mentados pelas câmaras municipais através de concessão e possibilidade
de fazer roçados. Acreditamos que essa forma de extrativismo está basea-
da na tradição e no costume construído pelos primeiros ervateiros que
adentraram as florestas para retirar a erva. Lembrando que o processo de
56 Inquérito Policial. 17/12/1886. Secretaria de Segurança Pública. Delegacia de Polícia. Cor-
respondência Expedida. 1881. Palmeira das Missões (Santo Antonio da Palmeira). AHRGS.
Maço 14. Caixa 7.
57 MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do
século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.
1 Homem que mora no posto de uma fazenda e que vigia e/ou cuida do gado.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 483
mulação baseada no trabalho assalariado, a valorização do preço da ter-
ra, a diversificação da produção – medidas que notadamente pretendiam
a definitiva inserção do Rio Grande do Sul numa economia moderna e
eficiente, capaz de atender às necessidades de acumulação capitalista, da
qual dependia o desencadeamento de um processo de industrialização
local.
A legislação estadual entre 1889 e 1935 revelava cerca de uma cen-
tena de determinações a respeito destes assuntos, em forma de leis, atos e
decretos do governo (KLIEMANN, 1986). Acompanhando-se esta lógi-
ca, o tratamento a ser dado às questões relacionadas com a terra – meio
de produção fundamental numa economia agropecuária – não poderia
ser diferente do tratamento que era dado às demais questões, em particu-
lar as que tinham ligação com a ordem para o progresso.
É nesse cenário positivista de ordem, de progresso e da efetivação
das colonizações, dos conflitos políticos no estado (entre os defensores
de Borges de Medeiros e os da oposição, adeptos ao candidato Assis Bra-
sil), da estruturação de uma grande colonização para estrangeiros judeus
(ICA) no interior da Colônia Erechim, que surge, publicamente, as ações
e a liderança do caboclo João Inácio.
Na segunda década do século XX, essa colônia, em franco dinamis-
mo na apropriação da terra e produção por colonos de outras regiões,
revelava as contradições e a produção da marginalização dos caboclos
e pequenos camponeses (posseiros e/ou pequenos proprietários, traba-
lhadores expropriados da terra). João Inácio corporifica esse processo
de esbulho e preterimento em sua luta na constituição dos argumentos,
das estratégias de invasões, da luta armada e da insistência junto à esfera
pública para obter terra para si e para os caboclos, pequenos camponeses,
que ele julgava como os portadores natos do direito a terra.
Além do incentivo público na questão, essa parte do estado revelava
ser um espaço para amenizar o problema da pressão pela terra. Por isso,
a colonização foi desenvolvida com muito zelo e controle, porém, não
foi suficiente para evitar conflitos expressivos das suas contradições. João
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 485
ções da propriedade da terra no norte do Estado, a qual, em grande parte,
foi promovida pela esfera pública.
4 Carlos Torres Gonçalves iniciou trabalhos como funcionário público no Rio Grande do Sul
em 1898, época em que se tornou grande amigo de José Joaquim Felizardo Júnior, precursor da
difusão da doutrina positivista no estado. Em 1899 foi nomeado para o cargo de 2º condutor na
Secretaria de Obras Públicas, sob ordens do engenheiro João Luis Faria Santos, que por sua vez
era sucessor de José Joaquim Felizardo Júnior na direção do núcleo positivista de Porto Alegre, e
com quem estabeleceu forte amizade. Ver CASSOL, Ernesto. Carlos Torres Gonçalves: vida, obra e
significado. Erechim: Editora São Cristóvão, 2003. p. 28-33.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 487
a diretriz da política de governo aplicada à agricultura era a de produção
de excedentes comercializáveis e com novas tecnologias. Esses sujeitos
seriam companheiros de viagem da estrutura política que se desenhava
com o governador Borges de Medeiros. A produção agrícola de exceden-
tes e a venda de lotes permitiam ao estado angariar fundos financeiros.
Os imigrantes italianos, alemães, poloneses, israelitas chegaram à
região da Colônia Erechim nos primeiros anos do século XX,5 reocupan-
do as terras devolutas até então de uso dos nativos (índios e caboclos) e
também dos negros.6 Ao chegarem, demarcaram fronteiras – tempos e
espaços –, que ficaram registrados como epopeia da colonização e da mo-
dernização do Alto Uruguai, constituindo as chamadas famílias pioneiras.
A agricultura familiar nos moldes europeus passou a ser a grande
opção para esses novos princípios da esfera pública na reconfiguração do
território rural. Era vista como modelar em termos de convivência social,
geração de braços para os trabalhos na terra, difusora de dimensões cul-
turais e religiosas, bem como expressaria um novo formato de concepção
de trabalho desenvolvido de uma forma mais avançada em algumas re-
giões do mundo ocidental. Dentro dessa nova lógica, um grande contin-
gente de população do norte do estado – lavradores pobres, meeiros, pe-
quenos arrendatários, trabalhadores temporários, coletores de erva-mate,
dentre outras categorias – acabou sendo fortemente atingido pela lógica
de apropriação privada e colonizada das terras (RÜCKERT, 1997). Para
Zarth (2002), as fronteiras culturais, os estigmas, as exclusões, em razão
dessa política denominada modernizante, fizeram-se sentir de uma forma
intensa.
Houve grande mobilidade populacional de negros, índios, caboclos
e, mesmo, pequenos agricultores descendentes de imigrantes que viven-
ciavam situações de bloqueio fundiário (quantidade de terra insuficiente
para reprodução de novas unidades familiares, impossibilidade de aquisi-
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 489
de excedentes dinamizaram e fizeram evoluir a formação de núcleos que
dominaram o espaço territorial, coordenados pelos ritmos das marias-fu-
maças” (WOLFF, 2005, p. 36).
Em poucos anos após sua fundação, a Colônia Erechim gozava de
grande prestígio no cenário estadual. Os lucros advindos da produção
agrícola e da exploração da madeira, coadunados à facilidade de escoa-
mento dessas produções através da via ferroviária, em muito auxiliaram
a dinamização econômica da colônia. A propaganda do progresso e do
desenvolvimento da colônia serviu de estímulo para que imigrantes es-
trangeiros, bem como colonos oriundos das ditas “colônias velhas”, apor-
tassem às terras do Alto Uruguai, esperançosos de partilharem da fartura
e da prosperidade. Pellanda, ao falar na Colônia Erechim, expressa o
resultado positivo da colonização, a exalta na perspectiva econômica.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 491
dúvida, um grande desafio ao imigrante. Se por um lado representava a
realização do sonho de se tornar proprietário de terra, por outro trazia
consigo a insegurança de não saber como dominá-la.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 493
hoje pelo Estado: “Acredita-se que o estudo desse problema pode desve-
lar, além do exercício de dominação e das formas de resistência, a apa-
rência do que foi e é a questão de terras no Rio Grande do Sul” (KLIE-
MANN, 1986).
Intrusos eram os colonos – nacionais ou descendentes de imigrantes
– que, por não possuírem condições de adquirir terras nos moldes dita-
dos pela Lei de Terras de 1850, nem serem alvo das políticas de coloni-
zação oficiais, estabeleciam-se espontaneamente em terras devolutas ou
em terras não aproveitadas e/ou consideradas não valorizadas (ROCHE,
1969). As intrusões desafiavam a organização e a forma impressa para a
presença numa porção de terra planejada pelos positivistas, uma vez que
geravam ou poderiam ser geradoras de conflitos e desordens. Significava
descontrole e ausência do poder do Estado sobre o bem natural e sobre os
sujeitos que o apropriavam (cobrança de fisco etc.).
A intrusão e o intruso no empreendimento colonizador e na recon-
figuração da propriedade da terra no norte do estado são processos rela-
cionais complexos, dinâmicos, constantes e conflituosos (SILVA, 2016).
Ambos vão além da dimensão étnico-racial; são variadas e expressam
múltiplas situações. Porém, quase sempre estão envoltas na dinâmica da
exclusão do pequeno agricultor, do posseiro expropriado, do colono que
não conseguiu pagar o terreno e/ou foi expulso do empreendimento co-
lonizador. Ao tornar-se “intruso”, o nacional caracterizava-se como de-
sordeiro, o que não condizia com os preceitos positivistas preconizados
então no estado (FERRARI, 2015).
Esse processo de exclusão passou a fazer parte do rol de preocupa-
ções dos dirigentes do estado, visto que a exclusão alimentava a intrusão.
Ao tornar-se “intruso”, muitos, em particular os mais excluídos, como
os nacionais, tornavam-se, aos olhos do Estado, desordeiros, o que não
condizia com os preceitos positivistas preconizados da ordem como pro-
motora do progresso.
Muitos conflitos no cotidiano das relações foram sendo produzidos,
outros mais de expressão organizativa e militar aconteceram. Um exem-
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 495
zia parte da estratégia das colonizadoras para a desintrusagem. Em geral,
era concedido um período que não ultrapassava sessenta dias para liberar
o lote e/ou assinar um termo de compra ou de saída.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 497
grande quantidade de pinheiros existentes na região era do conhecimento
dos engenheiros da Auxiliaire, que a partir de 1905 tornou-se arrendatária
de toda a rede ferroviária gaúcha (Gritti; Tedesco; Vanin, 2017).
Em 1912, foram instalados os primeiros imigrantes israelitas na Fa-
zenda Quatro Irmãos. Eram imigrantes vindos da colônia Argentina de
Maurício, num total de 33 colonizadores, 14 com famílias e 19 sem suas
famílias. Ao primeiro grupo de 33 israelitas argentinos, seguiu-se, após
três semanas, sessenta famílias vindas da Bessarábia. Dessas famílias,
poucas eram de agricultores preparados. Havia cinco carpinteiros, quatro
ferreiros e dois sapateiros (LESSER, 1989, p. 57).
Do grupo de 43 famílias que deixaram a Bessarábia em abril de 1913
com destino à Quatro Irmãos, Lesser faz a seguinte análise: o primeiro
grupo era composto de 307 pessoas, embora 22 doentes tenham ficado na
Rússia; os 285 que chegaram ao Brasil eram predominantemente homens
(56%), embora imigrantes solteiros estivessem incluídos no grupo, e nin-
guém viajasse sem cônjuge. A proporção por família é um pouco menor
que sete, com homens predominando 3,7 por família, 2,9 femininos. To-
das as famílias eram acompanhadas por crianças, exceto três pares jovens
(LESSER, 1989, p. 57-58).
Gritti (1997) enfatiza que uma das maiores preocupações da ICA
era com a segurança e a preservação de sua posse sobre a fazenda – uma
área total de 93.985 hectares – uma vez que desde o início da ocupação
a fazenda de Quatro Irmãos foi alvo de intrusões. Ressalva também que
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 499
co Heráclito dos Santos, Dr. José Dario de Vasconcellos, autorizando a
intrusão de Ernesto Vieira da Costa, nos seguintes termos:
9 Num processo litigioso, por “depositário” entende-se aquela pessoa que deve guardar fiel-
mente a posse de determinado bem até que o Judiciário defina o fim que se dará a determinado
bem.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 501
ICA solicitou que vários colonos, moradores da Fazenda de Quatro Ir-
mãos e de ocupações diversas, fossem à delegacia para testemunhar que
os intrusos que infestavam a fazenda agiam não apenas na área em litígio,
mas em toda a extensão da fazenda.
Percebemos que essa realidade de intrusão na fazenda e na área em
litígio revela um tipo de intruso, alguém a serviço de interesses entre dois
grupos que lutavam na justiça pelo direito da terra. A intrusão incorpora
esses processos para além dos excluídos, ou seja, os pequenos agriculto-
res.
A imprensa local, em particular o jornal O Nacional de Passo Fundo,
divulgava que os colonos judeus da Fazenda Quatro Irmãos foram agre-
didos, e suas colônias saqueadas; principalmente no final do ano de 1928,
período em que se sucederam os maiores conflitos na Fazenda Quatro
Irmãos. Ao lerem-se os depoimentos dos colonos que depunham, perce-
be-se que nenhum era judeu. Isso demonstra um certo protecionismo da
companhia em relação aos colonos judeus que por essa foram assentados,
na medida em que não os envolvia na disputa judicial e, consequente-
mente, não os expunha aos comentários da imprensa.
Mesmo assim, num instrumento jurídico produzido pelos autores
da ação, Francisco Heráclito dos Santos e outros, datado de 23 de junho
de 1930, afirmavam que as terras adquiridas pela ICA eram parte da qual
eles não foram indenizados, nem por inventário, nem por dinheiro, por
isso mesmo sendo passível de sequestro. E completaram, em letras garra-
fais: “É essa parte que os judeus, no seu hábito milenário de se apropriar
do alheio, QUEREM PARA SI.”10
A batalha judicial para garantir a posse da Fazenda Quatro Irmãos
estendeu-se até 11 de junho de 1931, quando a justiça determinou que a
fazenda era legitimamente da ICA.
Segundo Gritti, Tedesco e Vanin (2017), havia, na concomitância
de instalação de imigrantes israelitas nos domínicos da ICA, a constante
ocupação de sua propriedade por colonos em busca de terras. No primei-
10 O documento foi transcrito na íntegra. As letras garrafais fazem parte do texto original.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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Nós temos recorrido às expulsões judiciárias e destruição de
ranchos, construídos pelos intrusos, mas estes têm começa-
do a praticar outro sistema: sendo expulsos de um lugar, eles
se transportam para outro, e os novos intrusos ocupam os lu-
gares evacuados; nós temos obtido menos de 60 restituições
judiciárias, cujo resultado é, por assim dizer, nulo. No último
tempo, o número de intrusos começou a aumentar de uma
maneira inquietante atingindo atualmente 200 (ICA, 1930,
apud Gritti, 1997, p. 99).
Que a terra por ele e seu bando ocupada não é ‘bem legal’ ou
que o registro está viciado, portanto, posse duvidosa e, como
tal, é terra ‘de todos’ que deve ser partilhada entre os atuais
ocupantes. Mas, admite, também, que é terra particular que
ao Estado cabe desapropriar ou comprar para distribuir ou
vender baratinho, sem prazo e sem quotas determinadas de
pagamento (Anais da Assembleia Legislativa do RS, 1949, p.
30).
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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fazer roças e preparar-se para o corte da erva.11 Comprova-se, assim, que,
mesmo com a saída de João Inácio da região, os conflitos continuaram,
havendo serenado apenas depois de 1931, quando a ICA garantiu, de fato
e de direito, a posse da Fazenda Quatro Irmãos.
11 APERS, Porto Alegre, n. 391, maço 12, e. 11, 1928. Os depoimentos citados foram feitos
por Miguel Vieira dos Santos, João Barroso e Anaurelino Rodrigues da Silva, em 17/06/1930.
Foram inquiridos sobre os intrusos armados que infestavam a fazenda Quatro Irmãos. Além dos
citados, há depoimentos de, pelo menos, mais vinte colonos, todos “brasileiros”, falando sobre
os intrusos.
12 João Frainer; Chico Tasso – pseudônimo do Pe. Benjamin Busato; Juarez Miguel Illa Font;
Antônio Ducatti Neto. Ernesto Cassol escreveu um artigo para a revista Destaque, em 1981,
intitulado “Tapir e Vau feio – a definitiva expulsão do posseiro” tratando especificamente desse
tema.
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TEDESCO 507
clos assassinados, trabalho que é recompensado pelo número de pares de
orelhas cortadas”.
É importante ter presente que, no início da década de 1920, princi-
palmente durante os eventos da Revolução de 1923, a pecha de “bandolei-
ros” recaiu sobre muitos dos elementos revolucionários sul-rio-granden-
ses que se levantaram em oposição à perpetuação de Antonio Augusto
Borges de Medeiros na Presidência do estado do Rio Grande do Sul,
eleito para o quarto pleito seguido, em 1922. Os descontentamentos com
a política estadual englobavam uma série de reivindicações de diversos
revolucionários, bem como a diversidade daqueles que fizeram oposição
armada às forças da Brigada Militar.
Ainda durante o período eleitoral de 1922, no norte do Rio Grande
do Sul, noticiava o jornal A Federação as diligências do bandoleiro Simeão
Machado, que anteriormente aos acontecimentos que se descerravam, já
havia tentado depor o sub-intendente do 6º distrito de Passo Fundo, pró-
ximo à sede da Fazenda Sarandy. Revolucionário da guerra-civil Fede-
ralista de 1893, Simeão Machado, junto ao deputado federalista Arthur
Caetano da Silva, uma das principais vozes da Assembleia da oposição
ao borgismo, foram responsáveis por reunir naquele distrito população
engajada na luta contra o governo estadual.
Nas matas daquela fazenda, latifúndio pertencente aos irmãos uru-
guaios da família Lapidos, Simeão reunira cerca de 400 famílias14 de ca-
boclos emigrados do Contestado, que estavam a intrusar a área e impossi-
bilitar a entrada dos proprietários. A reunião e armamento da população
em significativo número, colocava de sobreaviso as autoridades do muni-
cípio no sentido de instaurar o temor de um novo episódio de conflito se-
melhante ao que houvera ocorrido no Oeste de Santa Catarina e Paraná:
14 A FEDERAÇÃO. O Pleito presidencial no Estado. Porto Alegre, n. 05, 05 jan. 1923, p. 01-02.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/
docreader/388653/50197. Acesso em: 12 jan. 2019.
15 Idem.
16 A FEDERAÇÃO. Soledade. Porto Alegre, n. 27, 31 jan. 1923, p. 04. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/388653/50388.
Acesso em: 12 jan. 2019.
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
TEDESCO 509
As diligências de Simeão Machado mantêm-se sendo noticiadas
pelo periódico castilhista, principalmente em sua atuação na Revolução
de 1923, quando coordena ataques a sede do distrito de Sarandy, “rou-
bando então armas, munição, chapéos, capaz, roupas feitas e até cavallos,
internando-se após nos matos da fazenda”17, onde também cometeram
assassinatos18, motivando a reação de colonos instalados em Erechim e
Nonoai, que armaram-se e juntaram-se às forças legalistas no combate
aos bandoleiros e suas depredações19. Sobre o paradeiro de Simeão Ma-
chado após o conflito, poucas informações pudemos apurar, assim como
acerca dos ex-integrantes do movimento do Contestado em intrusão no
norte do Rio Grande do Sul. Após a pacificação do movimento revolu-
cionário de 1923, depredações continuaram a ser registradas por elemen-
tos “bandoleiros”, remanescentes do movimento que não se renderam às
ordens de cessar fogo e aos acordos de paz. Nos distritos do município
de Erechim, entre os anos de 192520 e 1927, são recorrentes os pedidos de
aumento da força policial para o combate do banditismo que se mantinha
atuante nas regiões mais distantes do centro do município, em lugares de
mata ou de difícil acesso, bem como à colônia Quatro Irmãos.21 É nesse
cenário de conflitos e tensões políticas no interior e no entorno da Fazen-
da Sarandi que João Inácio também se destaca.
Na entrevista ao jornal Correio do Povo, João Inácio revela informa-
ções que são importantes para se compreender a posterior ação que irá
17 A FEDERAÇÃO. Passo Fundo. Porto Alegre, n. 102, 02 maio 1923, p. 03. Hemerote-
ca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/50957. Acesso em: 12 jan. 2019.
18 A FEDERAÇÃO. Sediciosos em dissolução. Porto Alegre, n. 105, 07 maio 1923, p. 03. Heme-
roteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/50980. Acesso em: 12 jan. 2019.
19 A FEDERAÇÃO. Notícias de Passo Fundo. Porto Alegre, n. 109, 11 maio, 1923, p. 03. Heme-
roteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/388653/51007. Acesso em: 12 jan. 2019.
20 Telegrama enviado pelo intendente do município de Boa Vista do Erechim, Pedro Pinto, ao
presidente do estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros. Boa Vista do
Erechim, 05 nov. 1925. AHRS. Fundo Câmaras Municipais.
21 Telegrama enviado pelo intendente do município de Boa Vista do Erechim, Pedro Pinto, ao
presidente do estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros. Boa Vista do
Erechim, 1925. AHRS. Fundo Câmaras Municipais.
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TEDESCO 511
boscados no matto e estupidamente espancado, espesinhado por
patas de cavallo, ficando com o hombro direito deslocado. Os co-
lonos Jayme Fligel e Isaac Raski, á noite também ao regressarem
ao lar, tiveram identica aggressão desses bandidos.
De todos esses factos foram lavrados autos de corpo de delicto, ao
que nos informaram.
Disse-nos, quem nos deu essas informações que os próprios trens
do ramal ferreo da Jewish têm sido alvejados, sendo que uma noi-
te foi obstruída a linha com o fim de sinistrar o comboio.
[...]
Em vista desses factos de selvajeria e banditismo mais desenfrea-
do, determinou o dr. Desembargador Chefe de Polícia ao Dr. Pra-
do Sampaio, sub-chefe de polícia desta região, que investigasse so-
bre o assumpto aconselhando as medidas repressivas necessarias.
Sabemos que o inquerito foi terminado, sendo os autos remettidos
a chefatura de policia em Porto-Alegre (Jornal O Nacional, Passo
Fundo, 01/12/1928).22
22 Importante informar que o jornal O Nacional de Passo Fundo, tinha em sua direção o Dr.
Herculano Araújo Annes, advogado da Jewish Colonization Association no processo de contestação
de posse da fazenda
23 Os jornais pesquisados são Diário de Notícias, O Boavistense, Sul Brasil, Comércio, O Nacional,
Gazeta. Todos os recortes encontram-se na coleção “Subsídios para a História de Erechim”,
compilados por Aldo A. de Castro e parte do arquivo particular da família Castro.
24 O JORNAL. Procurando normalizar a situação em Erechim. Rio de Janeiro, n. 2684, 04 set. 1927,
Embarque de força
Seguiram ontem, para Erechim, os srs. Major Joge Pellegrino
Castiglione, 2ºs tenentes Pompílio Quites, Júlio Figueira e
Vicente Alves da Silva e 50 praças do 1º regimento de cavala-
ria da Brigada Militar aqui aquartelado.
Essa força vai a fim de se incorporar a outras que se acham
naquela região, com o objetivo de operarem contra o grupo
de salteadores que infestam aquele município, consoante se
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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vê do nosso serviço telegráfico de hoje (Sul Brasil. Santa Ma-
ria, 13/12/1928).
25 Uma análise detalhada dos processos judiciais que envolveram a Colônia ICA está em nos-
so texto. Ver TEDESCO, João Carlos; CARON, Márcia. Intrusões no Alto Uruguai gaúcho: o
caso do bando de João Inácio. Revista Estudos Ibero-Americanos (PUCRS), v. 38, p. 161-185, 2012.
26 Cópia do memorial encaminhado a Getúlio Vargas que se encontra arquivado na obra de
Aldo A. Castro. Foi nesse compêndio que se teve acesso ao memorial, ali reproduzido na íntegra.
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[...]
Ultimamente surgem notícias de depredações e assassinatos
na zona de Vau Feio, atribuindo-se a autoria deles a João
Inácio e seu grupo. O governo de v. exa. fez seguir forças para
o local para fins repressivos, as quais, segundo as recentes
notícias, destroçou com aquele grupo. Não queremos ab-
solutamente defender João Inácio e sua gente, mas temos
razões que assentam naqueles antecedentes, para vacilar
em crer na apregoada origem desses acontecimentos. Não
duvidamos, entretanto, que João Inácio e sua gente se te-
nham deixado influenciar por alguém, visto como sabemos
que aquele, ultimamente, tinha entendimento com várias
pessoas. Em outubro do corrente ano, esteve ele em Passo
Fundo, onde teve um entendimento com o advogado Dr. Da-
rio de Vasconcellos e Souza, que com os senhores Manoel
Maia e Angelo Preto, mantém uma demanda em torno da
parte da fazenda Quatro Irmãos, com a companhia Jewish
Colonization Association. Nessa ocasião, sabemos que João
Inácio recebeu daquele advogado uma carta habilitando-o
como agregado de seu constituinte nas terras por ele (João
Inácio) desde muito ocupadas com o consentimento tácito
da Companhia. [...]
Boa Vista do Erechim, 21 de dezembro de 1928 (grifo nosso).
27 A FEDERAÇÃO. De Erechim. Porto Alegre, n. 283, 11 dez. 1928, p. 06. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/388653/65429.
Acesso em: 12 jan. 2019.
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O jornal A Manhã, também do Rio de Janeiro, em dezembro de 1928,
estampava uma notícia dando ênfase à forte presença militar na região
de Erechim para “darem um choque mortal na pirataria”, a qual, “anda
empestada por bandoleiros, tão ferozes que estão a despovoar a região.
[...] eles conturbam villas, campos e lavouras”.28
Figura 05. João Inácio na região do Vau Feio, norte do RS, por ocasião de sua apresentação
ao 2º Batalhão de Infantaria, agosto de 1927. Fonte: Arquivo Particular Castro. Erechim/RS.
28 A MANHÃ. Dobrarão a parada? Rio de Janeiro, n. 1021, 14 dez. 1928, p. 02. Hemerote-
ca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/docrea-
der/116408/7945. Acesso em: 12 jan. 2019.
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TEDESCO 519
Os mediadores deixam implícito, no texto, que impossível seria João
Inácio manter-se durante tanto tempo embrenhado nos matos e resis-
tindo contra o contingente de forças do governo, contando com poucos
companheiros para lutar a seu lado, se não tivessem o patrocínio/ajuda
de outras pessoas que lhe enviavam dinheiro e munição. Nesse ponto fica
claro que o apoio financeiro vinha de Passo Fundo, cidade onde morava
e trabalhava o advogado que representava os requerentes da posse da fa-
zenda – José Dario de Vasconcellos.
Retoma-se, aqui, o memorial enviado ao presidente do Rio Grande
do Sul no final de 1928, no qual o Partido Liberal local denunciava que
João Inácio agia por acordo com o advogado que mantinha uma ação de
contestação de posse da Fazenda Quatro Irmãos – José Dario de Vascon-
cellos – residente em Passo Fundo; o mesmo acusado diversas vezes pela
Jewish Colonization Association de ser o patrocinador das intrusões na fa-
zenda. Na conclusão do processo de contestação de posse da fazenda, já
datado de agosto de 1931, portanto fora da delimitação temporal imposta
por esta pesquisa, aparece um requerimento do advogado da ICA, Her-
culano Annes. O requerimento é um pedido de cumprimento da ordem
do juízo, já que a ação de contestação de posse concluiu-se em junho de
1931. Nesse documento, Annes diz que
Illa Font, ao não especificar nada mais sobre o caso do Vau Feio,
reforça o caráter agrário da luta empreendida por João Inácio quando
afirma que frequentemente se relaciona luta de João Inácio com conota-
ções políticas e que, “[...] no entanto, a única exigência do chefe caboclo
para depor as armas mostrou que a realidade era outra: já que não lhes
reconheciam o direito às terras que moravam, dessem-lhes outras para
trabalhar e viver” (ILLA FONT, 1986, p. 297).29
29 Várias notícias de jornais do Rio de Janeiro, de Santa Catarina e do Rio Grande do
Sul estampavam matérias enfatizando o perigo a que estavam expostos os colonos e os
comerciantes da Colônia Erechim, bem como os habitantes da ICA; A demonização e a
contraposição às ações de João Inácio eram a tônica. Ver CORREIO DA MANHÃ. Erechim,
no Rio Grande, assediada por um grupo de bandoleiros. Rio de Janeiro, n. 10.412, 14 dez. 1928, p.
08. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira. Disponível em: http://memo-
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“Santa Rosa do Buricá, quem não presta vai prá lá!”30
A “pacificação” do Vau Feio implicou a saída de João Inácio e sua
gente das terras que ocupavam. O acordo firmado com o major Leopol-
dino Silva e também com o coronel Candido Barcellos, em consonância
com o Governo do Estado, fizera com que o bando de João Inácio fosse
se estabelecer na colônia de Santa Rosa.
Foi a partir de 1915, com a colonização de Santa Rosa – então mu-
nicípio de Santo Ângelo – que o governo passou a estender ao colono
nacional as vantagens concedidas ao estrangeiro, iniciando a implanta-
ção de colônias mistas. Essa mistura fazia-se interessante aos olhos do
governo, pois ao mesmo tempo em que impedia a formação dos temidos
“quistos étnicos”, permitia aos colonos nacionais tornarem-se “bons co-
lonos” a partir dos exemplos daqueles.31 Em relatório apresentado por
João Dahne – funcionário da Comissão de Terras da colônia Santa Rosa
– ao Governo do Estado, têm-se noção do expressivo número de colonos
nacionais no conjunto da população da colônia, não deixando dúvidas
quanto à condição originária de intrusos dos mesmos:
32 DAHNE, João. Transcrito no Relatório do Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas. 27
de agosto de 1919, p. 431-432. IN: PERES, op. cit., p. 9.
33 J ornal Correio do Povo. Porto Alegre, 17/11/1929, p. 6.
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Quintino Thomaz, Candinho Meirelles, Caetano Rodrigues dos Santos e
Hermogenes Siqueira. Reitera também que são oito famílias, 53 pessoas
ao todo, mas que durante o tempo em que ficaram embrenhados no mato
chegaram a dizer que o grupo era formado por 85 homens.34
Quando indagado se está satisfeito de estar instalado na colônia San-
ta Rosa, João Inácio respondeu:
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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posse da terra foi o fator mais importante no desenrolar dos conflitos no
Vau Feio.
Pelas notícias veiculadas na imprensa da época há que se pensar que
a retirada de João Inácio e seu grupo dos matos de Vau Feio e das redon-
dezas de Quatro Irmãos resolveu o problema das intrusões na fazenda.
Após o assentamento do grupo de João Inácio em Santa Rosa, a impren-
sa não mais noticiou os conflitos em Quatro Irmãos, nem fez referência
aos intrusos que “infestavam” a região. No entanto, as intrusões conti-
nuaram, bem como os conflitos entre os representantes da companhia
e os intrusos. Note-se o requerimento encaminhado por José Chrispim
Dias para o intendente de Erechim, Attilano Machado.
Considerações finais
Vimos que as intrusões na Fazenda Quatro Irmãos foram intensas
desde sua fundação, intensificadas no período de 1927/1929 sob a ação
de João Inácio. Essas devem ser entendidas num contexto amplo que en-
volveu as questões de terra no norte do Rio Grande do Sul. Os horizontes
jurídicos, políticos, militares, bélicos e sociais estão imbricados num am-
plo processo de configuração capitalista da terra, que começou no norte
do estado a partir do século XX.
João Inácio e sua gente ocupavam, desde 1927, data que se apre-
sentaram ao 2º B. I. da Brigada Militar, a região do Vau Feio, limítrofe
da Fazenda Quatro Irmãos. Essa ocupação não era legitimada e acon-
tecia “com o consentimento tácito da Companhia” (Memorial enviado
ao governo do estado do Rio Grande do Sul pelo Partido Liberal local
em 21 de dezembro de 1928). A pesquisa demonstrou que ao tomar co-
nhecimento de o advogado José Dario de Vasconcellos estar distribuindo
“autorizações” para a ocupação da terra, João Inácio também entrou em
acordo com ele, a fim de legitimar a terra que ocupavam. A ação do
TEDESCO,, J. C.; CARON, M. S. João Inácio e “seu bando”: intrusões e a luta pela terra...
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grupo de João Inácio fica, então, diretamente ligada à questão da terra.
Acreditando estarem defendendo seu direito de posse, foi que pegaram
em armas.
O caso do “bando” de João Inácio foi peculiar por ter alcançado
repercussão em nível estadual, sendo amplamente discutida pela mídia,
principalmente os jornais, também porque, para dar combate ao grupo,
foi mobilizado um grande contingente da Brigada Militar do estado. Na
realidade, estava em questão todo um processo normatizador da terra sob
a égide do estado positivista, a fim de promover o progresso e a seletivi-
dade de quem deveria trabalhar nela.
O grupo do João Inácio, denominado de intrusos, poderia abrir um
precedente muito grande de total controle na normatização agrária e
agrícola do estado. Por isso, precisava ser resolvido e não permitir abrir
precedentes e demonstrar fragilidade no regramento e da mediação das
colonizadoras na região. No entanto, o próprio Estado, em alguns mo-
mentos, titubeou e/ou eximiu-se da resolução do problema. Nos docu-
mentos do Arquivo Histórico Juarez Miguel Illa Font, foi encontrado
um requerimento encaminhado ao governo estadual pelos “intrusos das
terras da Companhia Rio Grandense”, no qual solicitavam legitimação
de posse da terra por eles ocupadas, ao qual o despacho dado pelo presi-
dente do estado em 25/04/1928 foi “nada há a definir, por não serem de
propriedade do Estado as terras a que se referem” (AHMJMIF, Erechim-
-RS. Caixa 94G. Livro de Despachos e Requerimentos).
João Inácio e seu grupo corporificam a luta cabocla e/ou de campo-
neses deserdados da terra frente aos horizontes capitalistas que se dese-
nhavam nas relações de produção e de apropriação dessa. Na realidade,
sua luta é expressiva das contradições desse sistema, porém, quer também
ser beneficiado por esse. Como diz Hobsbawm (2017, p. 223), “as ações
do bandido social tradicional podem ter valor simbólico, mas se voltam
contra os símbolos e, sim, contra alvos específicos [...], não são dirigidas
contra o ‘sistema’, mas, sim, contra o xerife [....]”.
O “bandido” João Inácio, na esteira da narrativa Hobsbawm (2017,
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GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 533
tivamente, se consolidam e se propalam. Também é particularmente in-
teressante destacar que no território correspondente à Colônia Erechim,
se fazem presentes dois agentes colonizadores, quais sejam: o Estado,
através da colonização oficial, e a presença das Companhias Coloniza-
doras, promotoras da colonização privada, no caso a ação da Jewish Co-
lonization Association, responsável pela imigração e colonização judaica
na região e da Companhia Colonizadora Luce e Rosa (GRITTI, 2004).
Atualmente, Erechim ostenta o título de Capital da Amizade, segun-
do seus defensores, deve-se ao fato da inexistência de relações conflituo-
sas e desarmônicas no processo inicial da constituição da Colônia Ere-
chim, e da continuidade dessas relações na atualidade. O estudo por nós
realizado sobre a imigração polonesa no Rio Grande do Sul nos permite
discordar de tal afirmativa. No caso específico da Colônia Erechim, os
imigrantes poloneses e seus descendentes foram vítimas de preconceito,
assim como os negros, os caboclos, os indígenas, os comunistas e outros
grupos. Este preconceito se enraizou e se propalou no tempo e no espaço
e das mais diferentes formas.
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 535
com imigrantes que, por serem agricultores, garantem o bom
aproveitamento das terras. (AHRGS. In: GRITTI, 2004, p.
118-119).
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 537
Comentando a inauguração em Quatro Irmãos, em maio de 1924,
do Cemitério do Combate (ainda hoje um marco histórico da Revolução
de 1923) em homenagem às vítimas do combate de Quatro Irmãos, Frai-
ner escreveu em 1936:
A luta de Gaudêncio dos Santos não foi compreendida por seus con-
temporâneos, ou a ignoraram. Verdade que ela ocorre no período da Re-
volução de 1923/24 e que Gaudêncio era um “chefe menor” no grupo
dos maragatos. Porém, temos alguns elementos para afirmar que a luta
de Gaudêncio e seus companheiros fora maior. Lutaram por terra e traba-
lho. É o próprio Gaudêncio quem nos diz na carta que escreveu em 6 de
fevereiro de 1926 aos Coronéis Pedro Pinto de Souza, João Cancio Bas-
tos, Theodoro Silveira e ao Dr. Amynthas Maciel. Escreveu Gaudêncio:
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 541
fôrça se ia dissolver, sem outra preocupação, de todos os seus
membros, do que â volta ao trabalho e ao lar. Infelizmente,
não podemos vive ainda sem alguma cautella e por isso nos
conservamos mais ou menos approximados. A nossa grati-
dão pelo govêrno é grande, porque afinal, alêm das garantias
que elle nos prometteu, entregou-nos terras onde pudésse-
mos nos entregar ao trabalho agrícola (JORNAL DIÀRIO DE
NOTÌCIAS, Porto Alegre, 1926, nº 294).
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 543
trício. Foram aí todos presos e, depois de lhes serem tirados
os revolvers, únicas armas que possuíam, foram amarrados
aos cavalos e, então interrogados. Perguntaram a Gaudêncio
onde estava sua família. O ex-chefe revolucionário respondeu
que estavam em Vaca Branca, mas que fossem busca-la com
cautela[...] Ouvindo isso, o comandante da patrulha mandou
que Gaudêncio e seus companheiros, amarrados como esta-
vam aos cavallos, se afastassem um pouco, no que foi obe-
decido. Em seguida o piquete extendeu linha e preparou as
armas para o fuzilamento: Em face dessa attitude da força,
Gaudêncio gritou: Não me façam isso: estou garantindo por
um passaporte do 6º (JORNAL DIÀRIO DE NOTÌCIAS, Por-
to Alegre, 1927, nº 3).
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 545
adquire a Fazenda Quatro Irmãos no então município de Passo Fundo, a
quem também pertencia a Colônia Erechim até 1908. A Fazenda Quatro
Irmãos, como diz o nome, fora comprada de quatro irmãos, em 1909, e a
instalação dos imigrantes judeus inicia em 1911. A ICA era responsável
pelo recrutamento, transporte e assentamento dos mesmos. A Jewish en-
cerra seu longo período de atuação na Fazenda Quatro Irmãos em 1962,
quando acaba a atividade de exploração florestal e de venda de terrenos.
Durante todo período em que esteve na Fazenda, isto é, de 1909 até 1962,
a Companhia instala apenas 453 famílias judias nos seus 93.985 hectares.
O assentamento de 453 imigrantes e seus familiares não significa a per-
manência dos mesmos na Fazenda, uma vez que o êxodo foi constante e
permanente.
Durante todo o período
Figura 04. Mapa da Fazenda Quatro Irmãos.
Fonte: Gritti (2004). de permanência da Jewish
Colonization Association em
Quatro Irmãos a preocupação
com a segurança dos 93.985
ha de sua propriedade esteve
presente e se efetivava de for-
ma mais ou menos intensa
de acordo com a quantidade
de intrusos e da organização
dos mesmos. As medidas to-
madas pela ICA para comba-
ter as ocupações constantes e
crescentes, e, portanto, pro-
teger sua propriedade, foram
variadas: a vigilância armada,
a reintegração de posse via ju-
dicial e a destruição das cons-
truções e plantações dos “in-
trusos”, formação de milícia,
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 547
“que a terra por ele e seu bando ocupada não é ‘bem legal’
ou que o registro está viciado. É, portanto posse duvidosa
e, como tal, é terra ‘de todos’ que deve ser partilhada entre os
atuais ocupantes. Mas, admite, também, que é terra particular
que ao Estado cabe desapropriar ou comprar para distribuir
ou vender ‘baratinho’, sem prazo e sem quotas determinadas
de pagamento (Assembleia Legislativa do RS. ANAIS,1949,
v. 25, p. 531).
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
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Após muitas discussões na Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul em torno da ocupação da Fazenda, a criação de uma Comissão
para estudar a possibilidade de desapropriação da área intrusada é pro-
posta e aprovada em junho de 1948. Após intensos debates e estudo da
questão, a desapropriação da área intrusada não é aprovada, pois a Co-
missão responsável por estudar a questão, chega à conclusão de que:
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 551
E o melhor para estes homens, excetuados os ‘profiteurs’ e
os delinquentes, seriam colônias agrícolas onde se tornasse
possível readapta-los e traze-los ao trabalho fecundo, ordei-
ro, sistemático.1
Figura 06. Capitão Belo e a retirada dos “intrusos” das terras da ICA.
Fonte: Jornal Diário de Notícias. Porto Alegre, 25/jun./1949, p. 16.
Considerações finais
A ocupação do solo na Colônia Erechim, não diferiu das demais
regiões do Rio Grande do Sul. O assentamento dos imigrantes europeus
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 553
e seus descendentes como proprietários de terra gerou a exclusão dos que
aqui estavam, isto é, dos nacionais. Esse processo de inclusão/exclusão
gerou conflitos pela posse da mesma. Conflitos estes, nem sempre en-
tendidos como de luta pela inclusão ao processo produtivo via acesso à
terra. Podemos afirmar que os anos iniciais de ocupação do solo na então
Colônia Erechim foram conflituosos, de luta pelo acesso à terra. Os con-
flitos ocorreram tanto nas áreas pertencentes ao Estado, como nas das
Companhias Colonizadoras. Nestas últimas eles foram mais intensos.
Os casos brevemente discutidos acima, o do “Capitão Belo” e o do
Gaudêncio dos Santos, permite compreender a luta pela posse da terra
por parte dos dela excluídos no processo de assentamento dos imigrantes
e descendentes europeus. O assentamento destes provocou a exclusão dos
que há mais tempo ocupavam essas terras e dela retiravam sua subsistên-
cia. A inclusão/ exclusão ocorre tanto nas chamadas terras devolutas,
quanto nas das Companhias Privadas de Colonização. O conflito envol-
vendo Gaudêncio dos Santos e o “Capitão Belo” provam isso. Não foram
os únicos casos deste período. Aluta pela inclusão à terra não cessou, ela
tomou outras formas. Ela se dá via sindicatos, associações e movimentos
sociais. É a reação provocada pela exclusão.
Referências
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ângulos pela bibliografia, pelos jornais e pela memória. Trabalho de Conclusão de
Curso. Universidade Federal da Fronteira Sul. Erechim, 2017.
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GRITTI, Isabel. Imigração Judaica no Rio Grande do Sul: a Jewish Colonization Association
e a Colonização de Quatro Irmãos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1997.
GRITTI,, Isabel Rosa. A luta pela terra na Colônia Erechim: Gaudêncio dos Santos...
GRITTI 555
556 ROCHA, Humberto José da (Org.). Bandidos, Milenários e Étnicos
A Coluna Prestes e
a Estrada do Colono
Jaci Poli
Considerações finais
Um primeiro aspecto a ser ressaltado é a grande persistência da Co-
luna Prestes em sua caminhada de contestação à ordem estabelecida, as-
sentada no poder de mando da oligarquia paulista do café que, muito pela
arrogância, considerava-se o centro de tudo no Brasil, desconsiderando o
Bibliografia
BARROS, João Alberto Lins de, Memórias de um Revolucionário, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1953, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994.
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1926.
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LIMA, Lourenço Moreira, Marchas e Combates: a coluna invicta e a revolução de
outubro, Volume 01, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1931.
Carina Sartori
Doutora em História Contemporânea, cotutela internacional entre La Ro-
chelle Univeristé e Unesp-Assis. Mestra em História, especialista em Re-
lations internationales et histoire du monde Atlantique, pela La Rochele
Université, Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa
Catarina e Bacharel-Licenciada em História também pela UFSC.
Cassio Brancaleone
Possui licenciatura em Sociologia e bacharelado em Antropologia pela Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora (2003). Mestrado em Sociologia pelo Ins-
tituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2005) e doutorado em
Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012). Atual-
mente é professor do curso de Ciências Sociais e Coordenador Adjunto do
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Uni-
versidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim. Tem experiência na
área de Sociologia e Teoria Política, com ênfases em Sociologia Política,
atuando principalmente nos seguintes temas: Democracia, Autogoverno e
Autogestão; Sociabilidades Emergentes; Movimentos Sociais Latino-ameri-
canos, Estudos Des/Anticoloniais e Anarquismo.
Delmir Valentini
Doutor em História, área de concentração em História das Sociedades Ibé-
ricas e Americanas, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Mestre em História, área de concentração em História do Brasil,
também pela PUC-RS. Graduado em Filosofia pela Universidade Católi-
ca de Pelotas. Atuou como Professor de Ensino Fundamental e Médio na
Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, na UNOESC (Uni-
versidade do Oeste de Santa Catarina - Campus de Joaçaba SC), na UnC
(Universidade do Contestado - Campi de Caçador, Curitibanos e Concórdia
SC). Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal da Fron-
teira Sul - UFFS, Campus de Chapecó-SC. É membro do Grupo de Inves-
Fabian Filatow
Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Possui licenciatura, bacharelado e mestrado
em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professor de História na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul e na
rede municipal da Prefeitura de Esteio/RS.
Henrique Kujawa
Doutor em ciências sociais (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo da IMED (PPGAR-
Q-IMED). Pesquisadora bolsista de produtividade da Fundação Meridio-
nal e recém doutor da FAPERGS. Pesquisador sobre a Teoria da Justiça de
Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desenvolvimento e demo-
cracia e do Grupo de Pesquisa de Teoria e História da Habitação e da Cidade
(THAC-IMED).
Jaci Poli
Graduado em Estudos Sociais, licenciatura plena, pela Universidade Comu-
nitária Regional de Chapecó - UNOCHAPECÓ (1976), realizou estudos de
Pós Graduação ao nível de Especialização em História, pela Universidade
Federal de Santa Catarina e ao nível de Mestrado em História pela Univer-
sidade Federal do Paraná - UFPR. Realizou um processo de formação com-
plementar na área da economia social e de desenvolvimento local através da
Universidad Nacional General Sarmiento, de Buenos Aires, Argentina. Tem
experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República,
História Econômica Geral e do Brasil, Introdução aos Estudos Históricos,
História da América, História Regional e Formação Econômica, Social e
Política do Brasil. Experiência na área de Desenvolvimento Local e Territo-
rial e na produção de material didático para educação de jovens e adultos.
Professor no Instituto Federal do Paraná, Campus Capanema.
Luana Teixeira
Doutora em História na Universidade Federal de Pernambuco (2016). Mes-
tra em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (2012) e Mestra em História Cultural pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Investiga temas ligados ao
Marinilse Marina
Doutoranda no curso de História pela Universidade de Passo Fundo – UPF.
Tendo como orientadora da tese, a professora doutora Rosane Márcia Neu-
mann. Bolsista Fapergs. Autora do livro: Casar bem: estratégias matrimo-
niais e econômicas na Região de Colonização Italiana do Rio Grande do
Sul (1906-1970), Editora UPF (2019). Desenvolve pesquisa com ênfase na
Paulo A. Zarth
Mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense.
Trabalhou na UNIJUÍ e na Universidade de Passo Fundo. Foi professor vi-
sitante pela CAPES na Universidade Federal da Fronteira Sul. Pesquisa te-
mas relacionados à história do mundo rural, história ambiental e ensino de
história
os séculos XIX e
Sul do Brasil
XX, permite uma unidade de análise
envolvendo diferentes casos. O protagonismo de indígenas como
entre