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11/4/2019 Folha de S.

Paulo - Artistas 'periféricos' passam despercebidos - 6/12/1994

São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994

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Artistas 'periféricos' passam despercebidos


DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Numericamente a maior exposição internacional já feita no Brasil,


com 70 países e 206 artistas, a 22ª Bienal vai terminar como ilustre
quase-desconhecida no próximo domingo. Tal a profusão e confusão
de informações.
Não haverá aqui tão cedo outra ocasião, por exemplo, para ver arte de
Barbados, Letônia ou Coréia. Para usar o jargão submarxista da
maioria dos curadores, no catálogo da Bienal, as manifestações
"periféricas" (de países à margem do Primeiro Mundo) também
precisam ser avaliadas.
Em especial, as dos artistas originários de países do Leste Europeu e
da ex-URSS –artistas de nações que ainda emergem do passado
coletivista, em que só podiam desenvolver carreira exilando-se ou
realizando encomendas governamentais.
Chamou atenção de muitos visitantes a sala de Ivan Kafka, da
República Tcheca, por exemplo. A obra é "Sobre a Potência
Impotente": 84 pedestais encimados por eletroblocos, ponteiros que
pendulam em ritmo fixo e simultâneo. O título sugere uma leitura
erótica da instalação, que seria uma ironia à incontrolável pulsão
sexual.
Talvez. Pode ser também uma metáfora sobre a ambição humana de
medir e prever todas as coisas, a qual sempre acaba sendo frustrada.
Pode ser, ainda, uma obra sem referências explícitas; quem sabe, um
tratado sobre a verticalidade e sua relação no espaço-tempo.
O que prende o espectador, entretanto, não é mais que a graça de ver
aquilo tudo, como se acha graça (?) em acompanhar o ponteiro dos
segundos do relógio, ou a mera curiosidade de quem pergunta "O que
esse fulano está querendo dizer com isso?".
O assunto do limite do "mensuralismo" humano, da pretensão da
razão –capitalista– em medir e controlar o universo, em suma, da
arrogância antropomórfica, é recorrente nos representantes desses
países. Mapas, réguas e instrumentos técnicos se repetem; alude-se a
conceitos físicos sofisticados.
O assunto parece presente numa das instalações mais enigmáticas da
exposição, a da russa Svetlana Kopystiansky. É difícil arriscar análise
da obra, "O Espaço Universal", que reúne seis mesas de jantar, cada
qual com quatro lugares: dois ocupados por pratos e talheres, dois por
livros abertos. Tudo alinhado, simétrico e paralelo.
Uma interpretação plausível tem como chave o pensamento do
americano Marshall McLuhan, autor de "A Galáxia de Gutenberg":
madame Svetlana está ironizando a cultura verbal, livresca, que
pretende uniformizar o mundo pela ideologia burguesa ocidental.
Mas quem sabe se é isso mesmo? Por que –para ficar em uma única
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dúvida– seis mesas e não quatro ou oito? Será uma referência ao I-


Ching, que usa seis pautas, ou à cabala, que associa o número ao
diabo, ou ao jogo da velha? Mistério.
O húngaro Imre Bukta também parte de estrutura matematicamente
estabelecida, mas seu assunto é mais definível. Sua instalação dispõe
numa parede, alinhadamente, uma sequência de homúnculos feitos de
espigas de milho, e esses homúnculos "seguram" saquinhos com
grãos de milho.
No chão, mais à frente, galochas de borracha deitadas lado a lado.
Duas outras estão em pé, cheias de água; uma mangueira vindo de
uma bomba se encarrega de manter a água borbulhando.
A obra não tem título, mas poderia ser "Os Milhos da Ira". Bukta trata
da condição servil do homem rural na era tecnológica –quanto a isso,
não há dúvidas.
Mas há outras. Por que, por exemplo, as galochas deitadas foram
colocadas obliquamente à parede onde estão os homens-espigas? Por
que não frente a frente, exibindo todo o impacto do conflito
"dialético-histórico" (Marx, de novo) entre as classes sociais? Mais
mistério.
A denúncia do búlgaro Luchezar Boyadjiev, por sua vez, não é tão
evidente. Percebe-se que tem a ver com a tal crítica ao
"antropocentrismo", o que texto no catálogo confirma. Mas que mais?
O título da obra, "Neo-Gólgota", remete à história cristã (Gólgota é o
local onde Jesus teria sido enforcado). Então, suspeita-se, é por isso
que lá estão três enormes ternos suspensos em forma de T na parede.
Há, de cada lado deles, pilhas de travesseiros brancos com inscrições
azuis; nelas, sequências da palavra "Amen" formam figuras
(corações, cruzes).
A suspeita aumenta: esse sujeito está falando do cristianismo, de sua
ênfase no verbo ("No princípio era o Verbo", diz o Velho
Testamento); por outro lado, está dizendo algo sobre aviação –por
extensão, sobre modernidade e conforto (conceitos burgueses), sobre
a ambição humana de voar e se igualar a Deus.
Dadas as pistas, o espectador deduz que a obra tem a ver com um
conflito que o mundo viveria entre a tradição cristã e o presente
materialismo. A instalação de Boyadjiev, de fato, é uma viagem.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados, e não só dos antigos
países socialistas. Latinos e asiáticos também têm um discurso sobre
o capitalismo tecnológico ocidental, embora por outros prismas
(étnico, no primeiro caso; político, no segundo). É uma curiosa
uniformidade a da arte contemporânea –que se diz multicultural.

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