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Motrivivência Ano XXII, Nº 35, P. 41-61 Dez.

/2010
doi: 10.5007/2175-8042.2010v22n35p41

ACERCA DA INDISSOCIABILIDADE
ENTRE AS CATEGORIAS TRABALHO
E EDUCAÇÃO1

Caio Antunes2

RESUMO

O objetivo deste artigo é traçar algumas linhas fundamentais acerca da relação ontológica
que se estabelece entre as categorias trabalho e educação. A partir das formulações
teóricas de Marx, Lukács e Mészáros, estabelecem-se algumas bases filosóficas para
a explicação do trabalho, compreendido como elemento fundante, como categoria
que torna possível o surgimento do ser social, tanto quanto processo que possibilita
a complexificação deste novo tipo de ser. A partir destas indicações fundamentais,
chega-se à explicação de que o processo formativo, educativo (entendido em seu
sentido mais amplo, como humanização) da humanidade constitui-se do acúmulo
sócio-histórico dos processos de trabalho historicamente relacionados e articulados.
Entretanto, historicamente, ou seja, a partir do ser já tornado social, humano, já não
mais é possível falar em processo de trabalho sem uma menção direta aos próprios
processos educacionais.

Palavras-Chave: Trabalho. Educação. Ontologia. Emancipação.

1 Este artigo é parte (com algumas pequenas modificações) da minha dissertação de mestrado,
intitulada Trabalho, Alienação e Emancipação: a educação em Mészáros, FE/Unicamp, 2010,
sob a orientação do Prof. Dr. Renê Trentin, com bolsa FAPESP. A referida dissertação será
integralmente publicada pela Editora Autores Associados, sob o título A educação em Mészáros:
trabalho, alienação e emancipação, em 2012.
2 Doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Contato: antu-
nescs@uol.com.br
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o primeiro pressuposto de toda a manter-se vivo, reproduzir-se – sig-


história humana é, naturalmente, nifica afirmar que a atividade produ-
a existência de indivíduos
humanos vivos tiva constitui algo ineliminável do
(Marx e Engels) próprio processo de manutenção da
humanidade. Dito de outro modo: a
Para além do que a afir- atividade produtiva é o fator absolu-
mação contida na epígrafe tem de to de todo o processo de produção
imediatamente óbvio, há algo que e reprodução da vida humana,
– muito embora também óbvio – e “absoluto porque o modo de
carece ser explicitado: se para que existência humano é inconcebível
haja história humana é necessário sem as transformações da natureza
que haja vida humana – ou “indi- realizadas pela atividade produtiva”
víduos humanos vivos” –, esta vida (MÉSZÁROS, 2006, p.79).
humana precisa ser, dia após dia, Mas toda e qualquer ativi-
mantida, pois “desde que apare- dade produtiva só se pode materia-
lizar a partir de algo e por meio de
ceu neste planeta, tem o homem
algo. A primeira parte desta asserti-
de consumir todos os dias, antes
va é muito claramente encaminhada
de produzir e durante a produção”
por Marx nos seguintes termos: “o
(MARX, 1971a, p.189).
homem vive da natureza” (MARX,
Deste modo, temos que o
2004, p.84) – o que não é outra
ser humano é “um ser com necessi- coisa senão que a natureza é exa-
dades físicas historicamente anterio- tamente aquilo a partir do quê a
res a todas as outras” (MÉSZÁROS, atividade produtiva se pode tornar
2006, p.79) e que, exatamente por realidade.
conta disto, “precisa produzir a fim Todavia, Marx acrescenta
de manter-se, a fim de satisfazer que, além de viver da natureza,
essas necessidades” (MÉSZÁROS, o ser humano “é uma parte da
2006, p.79). natureza” (MARX, 2004, p.84) 3.
Dizer que o ser humano Tal afirmação traz consigo que,
precisa produzir para manter-se – exatamente em função de ser “uma
alimentar-se, habitar etc., enfim, parte da natureza”, o ser humano

3 “O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num
processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada
com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma,
pois o homem é uma parte da natureza” (MARX, 2004, p.84).
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“é imediatamente um ser natural” vestuário, habitação etc. Prati-


(MARX, 2004, p.127). camente, a universalidade do
Entretanto, ao mesmo tem- homem aparece precisamente
po em que é “imediatamente um ser na universalidade que faz da
natural”, o ser humano “não é ape- natureza inteira o seu corpo
nas um ser natural, mas ser natural inorgânico, tanto na medida
humano” (MARX, 2004, p.128), e em que ela é 1) um meio de
deste modo, “a natureza não está, vida imediato, quanto na me-
nem objetiva nem subjetivamente, dida em que ela é o objeto/
matéria e o instrumento de sua
imediatamente disponível ao ser hu-
atividade vital (MARX, 2004,
mano de modo adequado” (MARX,
p.84).
2004, p.128).
Consequentemente, o ser
Isto que Marx chama de
natural humano tem de fazer ade-
quados – isto é, humanos – os natureza como “corpo inorgânico”
objetos de suas necessidades, tem do ser humano, muito além de
de transformar a natureza por meio significar somente aquilo que é
de sua atividade produtiva, tem de imediatamente dado pela nature-
humanizá-la por meio de seu traba- za, significa algo inerentemente
lho. E assim é resolvida a segunda histórico e material: isto é, o tra-
parte da asserção anteriormente balhador, por meio do trabalho,
formulada. “faz de uma coisa da natureza
É, então, exatamente por órgão de sua própria atividade,
meio de sua atividade produtiva, um órgão que acrescenta a seus
por meio do trabalho, que o ser próprios órgãos corporais, aumen-
humano – que é “uma parte da tando seu próprio corpo natural”
natureza” – afasta-se de sua con- (MARX, 1971a, p.203). Ou ainda,
dição imediatamente animal e faz conforme a explicação de Mészá-
da própria natureza uma extensão ros, o “corpo inorgânico” do ser
de seu corpo, tornando-a assim humano é a “‘natureza trabalhada’
cada vez mais humana, cada vez e a capacidade produtiva externa-
mais social. lizada” (MÉSZÁROS, 2006, p.80),
isto é, “a expressão concreta e a
Fisicamente o homem vive so- materialização de uma fase e uma
mente destes produtos da nature- estrutura historicamente dadas da
za, possam eles aparecer na for- atividade produtiva, na forma de
ma de alimento, aquecimento, seus produtos, dos bens materiais
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às obras de arte” (MÉSZÁROS, fato de que ele é um ser com


2006, p.80)4. necessidades – de outro modo
Entretanto, mesmo e por não poderia ser chamado de ser
mais que deixe de ser imediatamente natural – e poderes para satis-
fazê-las, sem os quais um ser
um ser natural, “o ser social – em seu
natural não poderia sobreviver
conjunto e em cada um de seus pro- (MÉSZÁROS, 2006, p.152).
cessos singulares – pressupõe o ser
da natureza inorgânica e orgânica” É exatamente o trabalho
(LUKÁCS, 1979, p.17), o que signi- este poder humano por excelência –
fica que “não se pode considerar o “poderes essenciais do homem são
ser social como independente do ser as características e poderes especi-
da natureza, como antíteses que se ficamente humanos, isto é, aqueles
excluem” (LUKÁCS, 1979, p.17). que distinguem o homem das outras
Deste modo, temos que partes da natureza” (MÉSZÁROS,
2006, p.145) – e
o homem deve ser descrito
pensando-se em termos de suas o denominador comum de todos
necessidades e poderes. E am- esses poderes humanos é a socia-
bos estão igualmente sujeitos a lidade5. Mesmo os nossos cinco
modificações e desenvolvimen- sentidos não são simplesmente
to. Em conseqüência, não pode parte de nossa herança animal.
haver nada de fixo em relação a São desenvolvidos e refinados
ele, exceto o que se segue ne- humanamente como resultado
cessariamente de sua determina- de processos e atividades sociais
ção como ser natural, ou seja, o (MÉSZÁROS, 2006, p.145).

4 Esta definição de natureza como “corpo inorgânico” do ser humano parte da relação entre ser
humano e natureza e não de uma ou outra parte tomadas isoladamente. Um pequeno trecho
marxiano (da polêmica travada com Feuerbach) fornece elementos para compreendermos porque,
historicamente, torna-se cada vez mais difícil conceber ser humano e natureza separadamente:
“Feuerbach (...) nunca fala do mundo humano, mas sempre se refugia na natureza externa e, mais
ainda, na natureza ainda não dominada pelos homens. Mas cada nova invenção, cada avanço
feito pela indústria, arranca um novo pedaço desse terreno, de modo que o solo que produz os
exemplos de tais proposições feuerbachianas restringe-se progressivamente. A ‘essência’ do peixe
é o seu ser, a água – para tomar apenas uma de suas proposições. A ‘essência’ do peixe de rio
é a água de um rio. Mas esta última deixa de ser a ‘essência’ do peixe quando deixa de ser um
meio de existência adequado ao peixe, tão logo o rio seja usado para servir à indústria, tão logo
seja poluído por corantes e outros detritos e seja navegado por navios a vapor, ou tão logo suas
águas sejam desviadas para canais onde simples drenagens podem privar o peixe de seu meio
de existência” (MARX e ENGELS, 2007, p.46-7, em nota de rodapé).
5 Socialidade, em Mészáros, tem o mesmo sentido da essência humana marxiana. “A essência
humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto
das relações sociais” (MARX e ENGELS, 2007, p.534, grifos meus).
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Mas esta distinção entre homens que trabalham” (LUKÁCS,


ser humano e natureza, que ocorre 2007, p.230).
por meio do trabalho, configura um Ou, segundo as palavras
processo mais amplo e complexo do de Mészáros:
que pode à primeira vista parecer.
Tomemos as palavras de Marx. a produção [a atividade produ-
tiva] é também uma forma de
Antes de tudo, o trabalho é um consumo social no curso da
processo de que participam o qual o homem é “consumido”
homem e a natureza, processo como simples indivíduo (os po-
em que o ser humano com sua deres dados a ele pela natureza)
própria ação, impulsiona, regu- e reproduzido como indivíduo
la e controla seu intercâmbio social, com todos os poderes
material com a natureza. De- que lhe permitem empenhar-se
fronta-se com a natureza como numa forma humana de produ-
uma de suas forças. Põe em ção e consumo (MÉSZÁROS,
movimento as forças naturais 2006, p.187).
de seu corpo, braços e pernas,
cabeça e mãos, a fim de apro- Mas como é possível algo
priar-se dos recursos da nature- ser, ao mesmo tempo, início e su-
za, imprimindo-lhes forma útil cessão, fundação e continuidade?
à vida humana. Atuando assim Ou como pode ser o trabalho aquilo
sobre a natureza externa e mo- que inaugura e que dá sequência ao
dificando-a, ao mesmo tempo ser humano?
modifica sua própria natureza. Inicialmente, o processo
Desenvolve as potências nela de trabalho é a unidade entre tra-
adormecidas e submete ao seu balho e natureza, processo este que
domínio o jogo das forças na- resulta num objeto – “natureza e tra-
turais (MARX, 1971a, p.202, balho, meio e fim produzem, pois,
grifos meus). desta forma, algo em si homogêneo:
o processo de trabalho e, ao fim,
Exatamente em função o produto do trabalho” (LUKÁCS,
disso, Lukács afirma que “o próprio 2004, p.71).
homem que trabalha é transformado Findo então este processo,
pelo seu trabalho” (LUKÁCS, 1979, o ser humano se depara com algo
p.16) – ou que “com o trabalho, por- não mais imediatamente dado pela
tanto, dá-se ao mesmo tempo, no natureza, mas algo transformado
plano ontológico, a possibilidade pelo trabalho, algo humanizado.
do desenvolvimento superior dos Ou seja: ao final do processo de
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trabalho o trabalhador se defronta medida em que “essencial ao tra-


com o resultado de sua ação; com balho é que nele não apenas todos
a natureza feita humana; consigo os movimentos, mas também os
próprio na forma de objeto; com homens que o realizam devem ser
sua subjetividade objetivada. dirigidos por finalidades determina-
É por isso que, conforme das previamente” (LUKÁCS, 2007,
a afirmação marxiana, “tão logo eu p.232). Tomemos a clássica passa-
tenha um objeto, este objeto tem a gem marxiana que sustenta toda
mim como objeto” (MARX, 2004, esta formulação acerca do caráter
p.128), “o que vale dizer, eu sou teleológico do trabalho6:
afetado por esse objeto, ou, em
outras palavras, estou de alguma o que distingue o pior arquite-
maneira específica sujeito a ele” to da melhor abelha é que ele
(MÉSZÁROS, 2006, p.155). figura na mente sua construção
Mas Lukács afirma ainda antes de transformá-la em rea-
que, “com efeito, é inegável que lidade. No fim do processo do
toda atividade laborativa surge trabalho aparece um resultado
que já existia antes idealmente
como resposta que busca solucio-
na imaginação do trabalhador.
nar o carecimento que a provoca”
Ele não transforma apenas o
(LUKÁCS, 2007, p.229). Isto signifi-
material sobre o qual opera; ele
ca, de modo mais imediato, que é a imprime ao material o projeto
ordem daquilo para o quê a “respos- que tinha conscientemente em
ta” se faz necessária que aponta os mira, o qual constitui a lei deter-
rumos que o trabalho deve tomar. minante do seu modo de operar
Ou, para utilizarmos termos mais e ao qual tem de subordinar sua
amplos: a finalidade da atividade vontade (MARX, 1971a, p.202,
laborativa já está posta, inicial e grifos meus).
idealmente, pelo “carecimento que
a provoca”. Assim, “com justa razão
É este processo que Lukács se pode definir o homem que tra-
chama de “posição teleológica”, ou balha, ou seja, o animal tornado
“pôr teleológico” do trabalho, na humano através do trabalho, como

6 Entretanto, “decisivo aqui é compreender que se está diante de uma duplicidade: numa sociedade
tornada realmente social, a maior parte das atividades cujo conjunto põe o todo em movimento é
certamente de origem teleológica, mas a existência real delas – e não importa se permaneceram
isoladas ou foram inseridas num contexto – é feita de conexões causais que jamais e em nenhum
sentido podem ser de caráter teleológico” (LUKÁCS, 2007, p.230, grifos meus).
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um ser que dá respostas” (LUKÁCS, necessário que o conhecimento de


2007, p.229, grifos meus). Mas o ser determinadas relações de causa e
humano “torna-se um ser que dá efeito presentes na natureza tenha
respostas precisamente na medida atingido já um nível adequado.
em que – paralelamente ao desen- Deste modo, a observação, a
volvimento social e em proporção pesquisa da natureza, é absoluta-
crescente – ele generaliza, transfor- mente indispensável à realização
mando em perguntas seus próprios de qualquer trabalho, sem o que
carecimentos e suas possibilidades aquilo antes concebido ideal-
de satisfazê-los” (LUKÁCS, 2007, mente não se pode concretizar7.
p.229, grifos meus). E daqui depreende-se algo muito
Ser “afetado” pelo objeto importante:
do trabalho, ou estar “de alguma
maneira específica sujeito a ele”, as representações ideais que
significa que o próprio resultado do estão na base das hipóteses
processo de trabalho pode suscitar, cósmicas, físicas etc., estão co-
no ser humano que trabalhou, no determinadas – geralmente, de
trabalhador, uma série de novas maneira inconsciente – pelas
generalizações, a partir das quais representações ontológicas da
novas perguntas poderão ser formu- cotidianidade correspondente;
ladas. Tais perguntas podem gerar representações que, por sua
novos carecimentos – cada vez vez, se encontram intimamente
mais humanos e, por isso mesmo, relacionadas com as experiên-
cada vez menos imediatamente cias, os métodos, os resultados
naturais – que, por sua vez, podem de trabalho em cada oportuni-
engendrar novas respostas, isto é, dade (LUKÁCS, 2004, p.78).
novos e cada vez mais complexos
processos de trabalho. Assim, as generalizações
Mas, para que a posição de feitas a partir das experiências do
finalidade – o pôr teleológico – do trabalho trazem em si a gênese da
trabalho se realize, é absolutamente ciência, ou ainda se “a estrutura da

7 De acordo com Lukács, “a posição de fim se origina em uma necessidade sociohumana; mas, a fim
de que se eleve a uma posição autêntica de fim, a investigação dos meios (isto é, o conhecimento
da natureza) deve ter alcançado um determinado nível, de acordo com esses meios; se tal nível
não foi alcançado ainda, a posição de fim se mantém como um projeto meramente utópico, uma
espécie de sonho, como, por exemplo, foi o vôo desde Ícaro até Leonardo, e durante muito tempo
depois deste” (LUKÁCS, 2004, p.73).
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produção científica é basicamente materiais quanto nas mais com-


a mesma da atividade produtiva plexas e abstratas manifestações
fundamental em geral (principal- espirituais – da arte à filosofia –
mente porque as duas se fundem que constitui o cerne de todo o
em grande medida)” (MÉSZÁROS, processo formativo, educacional
2006, p.98). da humanidade.
Tal afirmação significa que É então exatamente em
“as atividades e necessidades huma- função destas características cons-
nas de tipo ‘espiritual’ têm, assim, titutivas do complexo do trabalho
sua base ontológica última na esfera – tanto como aquilo que desen-
da produção material como expres- cadeia o processo de humaniza-
sões específicas de intercâmbio en- ção (“o animal tornado humano
tre o homem e a natureza, mediado através do trabalho” lukacsiano),
de formas e maneiras complexas” como aquilo que garante e asse-
(MÉSZÁROS, 2006, p.79).
gura a continuidade e complexi-
Por conseguinte, só é
ficação deste processo, por meio
possível que haja humanidade 8
da transmissão de suas aquisições
por intermédio de um processo
históricas – que o processo forma-
de abstração social a partir do ca-
tivo, educacional, do ser social
ráter inerentemente histórico dos
não pode do trabalho ser separa-
resultados dos trabalhos acumula-
dos e relacionados. Processo este do: ou seja, a categoria educação
que, obviamente, tem seu início está ontologicamente ligada à
exatamente nos processos de ge- categoria trabalho.
neralização individuais – sem o Entretanto, ponto de vista
quê todos os avanços e aquisições histórico, também não é possível
individuais se perderiam ao final conceber trabalho sem educação,
da vida daquele ser humano que pois, como bem sabemos, “os ho-
os elaborou. mens fazem sua própria história,
Ou seja, é exatamente mas não a fazem como querem; não
o acúmulo sócio-histórico dos a fazem sob circunstâncias de sua
avanços do trabalho, tanto em escolha e sim sob aquelas com que
suas formas mais imediatamente se defrontam diretamente, legadas e

8 O termo humanidade deve ser compreendido em seu sentido amplo, ou seja, tanto do ponto
de vista da totalidade dos seres humanos vivendo conjuntamente, quanto do ponto de vista das
características humanas de cada um destes seres tomados individualmente.
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transmitidas pelo passado” (MARX, ou seja, sua essência coincide com


1969, p.17, grifos meus)9. sua individualidade – ao passo que
Torna-se, então, mais ade- o ser humano
quadamente mediada a afirmação
segundo a qual o trabalho “é ao faz de sua atividade vital mes-
mesmo tempo a causa da crescente ma um objeto da sua vontade
complexidade da sociedade hu- e da sua consciência. Ele tem
mana criando novas necessidades atividade vital consciente. Esta
não é uma determinidade (Bes-
ao mesmo tempo em que satisfaz
timmtheit) com a qual ele coin-
outras mais antigas (...) e o meio de cide imediatamente. A ativida-
afirmar a supremacia do homem de vital consciente distingue o
(...) sobre a natureza” (MÉSZÁROS, homem imediatamente da ativi-
2006, p.99-100). dade vital animal. Justamente,
Isto fica ainda mais evi- [e] só por isso, ele é um ser ge-
dente se tomarmos que “o animal nérico” (MARX, 2004, p.84)10.
é imediatamente um com sua ativi-
dade vital. Não se distingue dela. É Assim, em virtude de que
ela” (MARX, 2004, p.84) – o que não “a mera individualidade exige ape-
é outra coisa senão que o animal é nas meios para sua subsistência,
imediatamente um com sua espécie, mas não formas especificamente

9 Outro trecho marxiano – de uma carta escrita em 28 de dezembro de 1846, a Pavel Annenkov – é
ainda mais esclarecedor a este respeito: “é supérfluo acrescentar que os homens não são livres para
escolher as suas forças produtivas – base de toda a sua história –, pois toda força produtiva é uma força
adquirida, produto de uma atividade anterior. Portanto, as forças produtivas são o resultado da energia
prática dos homens, mas essa mesma energia é circunscrita pelas condições em que os homens se
acham colocados, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social anterior, que não foi criada
por eles e é produto da geração precedente. O simples fato de cada geração posterior deparar-se
com forças produtivas adquiridas pelas gerações precedentes, que lhes servem de matéria-prima
para novas produções, cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade,
que é tanto mais a história da humanidade quanto mais as forças produtivas dos homens, e, por
conseguinte, as suas relações sociais, adquiriram maior desenvolvimento. Consequência necessária:
a história social dos homens é sempre a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não
consciência desse fato. Essas relações materiais nada mais são que as formas necessárias nas quais
se realiza a sua atividade material e individual” (MARX, 2009, p.245).
10 De acordo com Marx, “o homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando
prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu
objeto, mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se rela-
ciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo
como [com] um ser universal, [e] por isso livre” (MARX, 2004, p.83-4). Ou, segundo as palavras
de Mészáros, um ser genérico é “um ser que tem consciência da espécie a que pertence, ou,
dito de outro modo, um ser cuja essência não coincide diretamente com sua individualidade”
(MÉSZÁROS, 2006, p.80).
50

humanas – humanamente naturais o homem” (MARX, 2004, p.114). E


e naturalmente humanas, isto é, so- aqui é preciso ir devagar.
ciais – de auto-realização” (MÉSZÁ- Inicialmente, a relação do
ROS, 2006, p.80), o ser humano ser humano com a natureza – que
pode ser considerado, então, é mediada pelo trabalho – é sim a
relação da natureza consigo própria
o único ser que pode ter uma tal – ou aquilo que Marx chama, de
“consciência da espécie” – tanto modo bastante complexo, aliás, de
subjetivamente, em sua percep- “o ser-por-si-mesmo da natureza”
ção consciente da espécie a que (MARX, 2004, p.113). Todavia,
pertence, como nas formas ob- recordemo-nos aqui que o ser hu-
jetivadas dessa “consciência da mano não é apenas um ser natural,
espécie”, da indústria e às insti- mas ser natural humano – isto é, his-
tuições e às obras de arte – e as- tórico, social. Isto implica que ele é
sim ele é o único “ser genérico”
sim “uma parte da natureza”, mas
(MÉSZÁROS, 2006, p.80).
é dela uma parte específica, cuja
especificidade é dada exatamente
Obviamente, a caracterís-
pelo trabalho.
tica de “ser genérico” – ou a gene-
Assim, o trabalho se confi-
ricidade – do ser humano é algo de
gura como “o mediador na ‘relação
que só se pode ter consciência em
sujeito-objeto’ entre homem e natu-
sociedade, isto é, de modo ineren-
reza. Um mediador que permite ao
temente social.
homem conduzir um modo huma-
Tendo em vista esta re-
no de existência, assegurando que
lação que se estabelece entre ser
ele não recaia de volta na natureza,
humano e natureza, uma questão
que não se dissolva no ‘objeto’”
poderia aqui ser formulada: se o
(MÉSZÁROS, 2006, p.79). Ou, para
trabalho é aquilo que medeia esta
tomarmos uma passagem clássica:
relação e se o ser humano é “uma
parte da natureza”, então o trabalho
pode-se distinguir os homens
configura uma relação de mediação
dos animais pela consciência,
da natureza consigo própria? pela religião ou pelo que se quei-
Eis a resposta oferecida ra. Mas eles mesmos começam
por Marx: “toda a assim denomina- a se distinguir dos animais tão
da história mundial nada mais é do logo começam a produzir seus
que o engendramento do homem meios de vida (...). Ao produzir
mediante o trabalho humano, en- seus meios de vida, os homens
quanto o vir a ser da natureza para produzem, indiretamente, sua
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própria vida material (MARX e medida que surge e se explici-


ENGELS, 2007, p.87). ta a práxis social, a partir do ser
natural, tornando-se cada vez
Daqui temos que fora mais claramente sociais. Esse
desenvolvimento, porém, é um
de uma concepção inerentemente
processo dialético, que come-
histórica o processo de humani- ça com um salto, com o pôr
zação do ser humano – ou o en- teleológico do trabalho, não
gendramento da “assim chamada podendo ter nenhuma analogia
história mundial” – não pode ser na natureza. O fato de que esse
de fato compreendido, e “nada processo, na realidade, seja bas-
pode ser afirmado além de que ela tante longo, com inúmeras for-
[a natureza] é idêntica a si mesma” mas intermediárias, não anula a
(MÉSZÁROS, 2006, p.116). existência do salto ontológico
Noutros termos, fora da (LUKÁCS, 1979, p.17).
história – ou sem o conceito de
trabalho ou de atividade produtiva Em outra passagem, o au-
– não é possível diferenciar da na- tor complementa:
tureza o ser humano, e “o vir a ser
da natureza para o homem” torna-se entre uma forma mais simples
algo impossível de ser explicado. de ser (por mais numerosas que
Ainda mais se nos recordarmos sejam as categorias de transição
aqui da elucidativa afirmação de que essa forma produz) e o nas-
cimento real de uma forma mais
Engels segundo a qual “nenhuma
complexa, verifica-se de qual-
mão simiesca jamais construiu um
quer modo um salto; essa forma
machado de pedra, por mais tosco
mais complexa é algo qualitati-
que fosse” (ENGELS, 2004, p.15). vamente novo, cuja gênese não
Isto equivale a dizer que o pode jamais ser simplesmente
ser humano só se pode constituir a “deduzida” da forma mais sim-
partir de uma espécie de salto quali- ples (LUKÁCS, 2007, p.227).
tativo, possibilitado exatamente pela
atividade produtiva, ou que só pode Para melhor compreender-
superar o mero epifenômeno natural mos a maneira pela qual o trabalho
da reprodução biológica imediata configura este salto ontológico, te-
pelo salto ontológico do trabalho. mos de recorrer novamente à pena
Tomemos as palavras de Lukács: lukacsiana:

as formas de objetividade do todas as demais categorias des-


ser social se desenvolvem, à ta forma de ser [o ser social] já
52

possuem, de acordo com sua Neste sentido, é possível


essência, um caráter puramente considerarmos que
social. Suas propriedades, seus
modos de influência, somente o conceito de atividade (traba-
se desenvolvem dentro do ser lho) é logicamente (e historica-
social já constituído; por mais mente) anterior ao conceito de
primitiva que seja sua forma de homem. Mas essa prioridade é,
aparição, esta pressupõe o salto evidentemente, relativa, pois
como um feito já consumado. todos os três membros dessa
Somente o trabalho possui, de relação dialética [ser humano,
acordo com sua essência on- natureza e trabalho] pertencem
tológica, um caráter expressa- ao mesmo todo complexo, e
mente transicional: é, segundo nenhum deles pode ser abstraí-
sua essência, uma interrelação do sem destruir essa relação es-
entre o homem (sociedade) e pecífica como tal (MÉSZÁROS,
a natureza e, certamente tanto 2006, p.117).
com a inorgânica (ferramenta,
matéria-prima, objeto do traba- Aqui, onde parece haver
lho etc.) como com a orgânica uma contradição entre o caráter
(...), mas antes de tudo carac- histórico do trabalho e o trabalho
teriza, no próprio homem que como pressuposto de toda a história
trabalha, a transição do me- humana, podemos ver claramente
ramente biológico ao social”
um aspecto concreto do método
(LUKÁCS, 2004, p.58).
marxiano, no interior do qual existe
uma indissolúvel unidade entre os
Este “salto ontológico” aspectos sincrônicos e diacrônicos.
deve-se, então, exatamente a este Ou, para sermos um pouco mais
caráter “transicional” do trabalho – claros, uma indissolúvel unidade
isto é, ao fato de ser o trabalho uma entre os aspectos temporais e atem-
categoria intermediária entre o ser porais, históricos e estruturais.
biológico e o ser social. O que não Este procedimento meto-
é outra coisa senão que o trabalho dológico capta a profunda articu-
é o elemento ontologicamente lação entre aquilo que é histórico
fundante do ser humano, e que, – que se manifesta de modo especí-
precisamente por conta disso, con- fico, dado historicamente – e aquilo
verte-se – conforme a bela síntese que é estrutural – que pertence,
lukacsiana – na “base dinâmico- portanto, “mais ou menos a todas as
estruturante de um novo tipo de formas de sociedade” (MARX, 2008,
ser” (LUKÁCS, 2007, p.228). p.268). O destaque deve ser dado à
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 53

articulação entre estes aspectos, em de trabalho que a humanidade


virtude de que tem diante de si historicamente
colocada.
não se pode compreender o Assim, aquilo que parecia
“específico” sem identificar – aos olhos tão habituados ao po-
suas múltiplas intercone- sitivismo – uma insolúvel contradi-
xões com um determinado ção, apresenta-se como um fator de
sistema de mediações com- central importância, pois qualquer
plexas. Em outras palavras: movimento prático que se pretenda
devemos ser capazes de ver transformador da realidade objetiva
os elementos “atemporais” necessariamente “tem de apoderar-
(sistemáticos) na temporali- se da matéria, em seus pormenores,
dade, e os elementos tempo- de analisar suas diferentes formas
rais nos fatores sistemáticos de desenvolvimento, e de perqui-
(MÉSZÁROS, 2006, p.109). rir suas conexões mais íntimas”
(MARX, 1971a, p.16)11.
Esta característica do mé- Em síntese, então, temos
todo marxiano possui não só um que, pelo ato de trabalho o ser huma-
fundamento inerentemente prático no se humaniza; ou seja: a natureza
– “o concreto é concreto, por­que é (ou uma parte específica dela) trans-
a síntese de muitas determinações, cende a si própria por meio do ato
isto é, unidade do diverso. Por isso, laborativo. Esta realização humana é
o concreto aparece no pensamen- aquilo que Marx chama – também
to como o processo de síntese” de modo bastante complexo – “o
(MARX, 2008, p.258) – como pos- movimento concebido e sabido do
sui também implicações práticas seu vir a ser” (MARX, 2004, p.105),
cruciais. Sem apreendermos que ou “ato de gênese que se supra-sume
o trabalho alienado, por exemplo, (sich alfhebender Entstehungsakt)”
é uma forma histórica da relação (MARX, 2004, p.128), e que Mészá-
estrutural, ineliminável, entre ser ros chama – de modo não menos
humano e natureza, não há como complexo – de “‘autoconstituição
vislumbrar qualquer possibilidade automediadoramente natural’ ou
de superação da forma alienada ‘naturalmente automediadora’ do

11 Se nos recordarmos aqui da décima primeira tese sobre Feuerbach – “os filósofos apenas
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX e ENGELS,
2007, p.535) – veremos, dentre outras coisas, que não se coloca a questão de prescindir da filosofia,
muito menos da interpretação do mundo – da qual a filosofia é uma parte importante – e sim de
colocá-las a serviço da transformação prática do mundo.
54

homem” 12 (MÉSZÁROS, 2006, necessidade nova. Nas palavras de


p.175). Marx e Engels:
Se o trabalho caracteriza,
então, este “salto ontológico do o primeiro ato histórico é, pois,
meramente biológico ao social”, a produção dos meios para sa-
um aspecto central deste proces- tisfação dessas necessidades, a
so é que, ao então trabalhar para produção da própria vida mate-
satisfazer suas necessidades, o ser rial, e este é, sem dúvida, um
humano cria necessariamente uma ato histórico, uma condição
complexa série de necessidades fundamental de toda a história,
sociais (não imediatamente bioló- que ainda hoje, assim como há
gicas), igualmente necessárias à sua milênios, tem de ser cumprida
reprodução. diariamente, a cada hora, sim-
plesmente para manter os ho-
De acordo com Mészáros,
mens vivos (MARX e ENGELS,
o ser humano
2007, p.33).
só pode satisfazer essas ne-
cessidades primitivas criando
Isto, de certo modo, nos
necessariamente, no curso de remete à questão ontológica crucial
sua satisfação por meio da sua expressa na distinção conceitual
atividade produtiva, uma com- – que aparece já em Marx – entre
plexa hierarquia de necessida- carência (Bedürfnis) e necessidade
des não-físicas, que se tornam (Notwendigkeit)13. A partir daí te-
assim condições igualmente mos que mesmo aquela necessidade
necessárias à satisfação de suas humana de origem mais biológica,
necessidades físicas originais mais animal – ou aquela carência
(MÉSZÁROS, 2006, p.79). mais imediata – já não pode ser sa-
tisfeita com objetos imediatamente
O primeiro ato genuina- dados pela natureza, o que significa
mente humano é, então – e pre- que já não mais é possível satisfazer
cisamente – a criação da primeira um ser já não mais imediatamente

12 No original o trecho aparece da seguinte maneira: “‘a self-mediatingly natural’ or ‘naturallyself-


mediating self-constitution of man’” (MÉSZÁROS, 1972, p.193).
13 “Bedürfnis é uma carência cuja base está posta na condição biológica do ser humano (comer,
beber, dormir, habitar), o que a vincula a uma falta, assim como também a um desejo, ou seja,
a carência se revela como um componente que, uma vez satisfeito, pode dar, inclusive, origem
à positividade de novas carências, mais sofisticadas (...). Por sua vez, Notwendigkeit está vin-
culada à necessidade lógica, oposta à contingência, que aparece como possibilidade efetiva de
realização a partir da satisfação histórica das carências” (RANIERI, 2004, p.17).
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natural com objetos imediatamente rias – a fome, por exemplo – são


naturais. Ou, para usarmos termos carências humanas. Isto é, tanto
mais amplos: não existe necessida- “a fome que se satisfaz com carne”
de humana natural, original, por cozida, garfo, faca etc., quanto a
mais bruta – ou embrutecida – que “que devora carne crua com ajuda
possa ser; essa necessidade humana das mãos, unhas e dentes”, são
é sempre humana, sempre histórica, inerentemente históricas.
sempre social. A sujeição atual de uma
Tomemos a conhecida enorme parcela da população
passagem marxiana: “a fome é mundial a condições inumanas e
fome, mas a fome que se satisfaz absolutamente indignas de vida
com carne cozida, que se come é algo engendrado e reproduzido
por meio de uma faca ou de um diariamente pelo capital, pois, con-
garfo, é uma fome muito distinta da forme afirma Marx,
que devora carne crua com ajuda
das mãos, unhas e dentes” (MARX, para o homem faminto não exis-
2008, p.248). te a forma humana da comida,
Uma leitura apressada opo- mas somente a sua existência
ria uma fome humana a uma fome abstrata como alimento; pode-
bruta, animal – ou uma necessidade ria ela justamente existir muito
a uma carência. Todavia, a sequên- bem na forma mais rudimentar,
cia da citação é bastante esclarece- e não há como dizer em que
dora a este respeito: “a produção não essa atividade de se alimentar
produz, pois, unicamente o objeto se distingue da atividade ani-
do consumo, mas também o modo mal de alimentar-se”, (MARX,
de consumo, ou seja, produz obje- 2004, p.110).
tiva e subjetivamente. A produção
cria, pois, os consumidores” (MARX, Exatamente em função
2008, p.248)14. disso, se um ser humano se alimenta
Daqui temos que mesmo de carne putrefata encontrada em
as carências humanas mais primá- aterros sanitários15, isso decorre

14 Recordemo-nos aqui que “a produção [a atividade produtiva] é também uma forma de consumo
social no curso da qual o homem é ‘consumido’ como simples indivíduo (os poderes dados a ele
pela natureza) e reproduzido como indivíduo social, com todos os poderes que lhe permitem
empenhar-se numa forma humana de produção e consumo” (MÉSZÁROS, 2006, p.187), conforme
citamos anteriormente.
15 Para uma “evidência empírica”, ver artigo de Fábio Guibu, publicado em 16 de abril de 1994,
na Folha de São Paulo – também disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/16/
brasil/53.html
56

do fato de que este ser humano é método marxiano, expressos na uni-


humanamente privado do mínimo dade da categoria trabalho. Ao mes-
acesso à humanidade – da qual, mo tempo em que é o ato fundante
inclusive, é herdeiro – e não de do ser humano, o trabalho é, em suas
alguma determinação biológica, diversas manifestações concretas,
situada nalguma carência natural aquilo que assegura a continuidade
arbitrariamente suposta. do cada vez mais complexo processo
Se há uma contradição de humanização.
prática entre carência e necessida- Mas “as ações humanas
de, isto está invariavelmente ligado não são inteligíveis fora de sua mol-
ao fato de que os recursos encon- dura sócio-histórica” (MÉSZÁROS,
2006, p.111). Isto significa que,
trados pelo sistema do capital para
mesmo uma categoria que possui
forjar o conjunto de relações sociais
validade diacrônica, estrutural, ex-
necessárias à sua autoreprodução
tensiva, horizontal, como trabalho
social precisam, acima de tudo e por
só se pode materializar pratica-
meio de potentes movimentos ideo- mente a partir de laços materiais
lógicos, fazer com que necessidades concretos, históricos.
alienadas apareçam como carências Daqui temos que é im-
naturais, isto é, precisam esconder possível a adequada apreensão do
as contradições que existem entre a conceito marxiano de trabalho fora
necessidade dos indivíduos e as ca- de sua totalidade dialética, ou seja,
rências constituídas socialmente16. se não forem levadas em conta as
Aqui novamente salta ao múltiplas mediações específicas,
primeiro plano a relação que se e suas também múltiplas relações
estabelece entre aspectos históricos com o complexo maior do qual são
e aspectos estruturais no interior do partes constitutivas.

16 Esta contradição prática entre carência e necessidade, levada às últimas consequências, se


manifesta na contradição entre luxo e privação – ou abundância e escassez. “O luxo constitui
absoluta necessidade em um modo de produção que cria riqueza para os não produtores, e, que,
portanto, deve dar-lhes formas necessárias para que seja apropriado pela riqueza dedicada somente
ao desfrute. Para o próprio operário, o trabalho produtivo, como qualquer outro, não é mais do
que um meio para a reprodução de seus meios de subsistência” (MARX, 1978, p.77). Mészáros
apresenta esta contradição – de um ponto de vista mais centrado em aspectos históricos – do
seguinte modo: “do mesmo modo como a necessidade natural original é historicamente deslocada
e se torna uma coerção supérflua e intolerável, do ponto de vista tanto do indivíduo quanto do
metabolismo social em geral, também o ‘luxo’ anterior, supérfluo e geralmente inalcançável,
se torna vitalmente necessário, mas não apenas do ponto de vista de indivíduos isolados, mas
sobretudo com relação à reprodução continuada das condições recém criadas da vida social como
tal, pois, através do avanço das forças produtivas, o estritamente natural recua progressivamente
e um novo conjunto de determinações toma seu lugar” (MÉSZÁROS, 2008a, p.150).
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Na acepção marxiana, o fim do processo histórico-social do


trabalho é o elemento constitutivo ser humano: causa da diferenciação
do ser tornado humano e de sua entre ser humano e natureza, meio
socialidade – isto é, do conjunto de constante humanização do ser
de suas relações sociais – e não um social e fim, ou finalidade em si
determinante econômico rígido, do do próprio processo humano, uma
qual tudo deriva mecanicamente. vez que o ser social, em virtude do
Assim, a esfera da economia – ou a longo processo histórico já trilhado,
atividade produtiva – funciona como não mais produz para assegurar sua
momento predominante (übergrei- condição animal, mas sim para,
fendes Moment), ou, para dizer a uma vez assegurada esta sobrevi-
mesma coisa de modo diverso, vência, desenvolver-se livre, isto é,
humanamente – e aqui evidencia-se
se esta [a esfera da economia] é novamente porque, historicamente,
o “determinante último”, é tam- não se pode conceber trabalho sem
bém um “determinante deter- educação.
minado”: ela não existe fora do Se nos recordarmos que
complexo sempre concreto e a própria atividade humana surge
historicamente mutável de me- como “resposta” – conforme citado
diações concretas, inclusive as anteriormente – nos depararemos
mais “espirituais” (MÉSZÁROS com o fato de que toda atividade
2006, p.109). humana, todo trabalho, todo pôr
teleológico, necessariamente con-
Somente a partir de uma figura uma escolha entre alterna-
apreensão ampla do trabalho como tivas – inicialmente derivadas do
o mediador da relação entre ser fato (talvez até óbvio) de “que todo
humano e natureza – tanto em indivíduo singular, sempre que faz
seu aspecto estrutural quanto em algo, deve decidir se o faz ou não”
suas formas históricas, tanto como (LUKÁCS, 2007, p.231).
elemento fundante quanto como Porém, à medida que se
processo de continuidade e com- complexifica a práxis social, se
plexificação, tanto em sua profundi- complexifica o nível sócio-histórico
dade analítica quanto em suas ma- do trabalho, e com isso, consequen-
nifestações práticas, numa palavra, temente, também se complexificam
trabalho em seu sentido ontológico as alternativas dentre as quais os
– é que podemos compreender as seres sociais têm de escolher a fim
razões pelas quais este configura de satisfazer determinados “careci-
tanto a causa, quanto o meio e o mentos” – que se tornam também
58

cada vez mais complexos, cada vez possível que os seres humanos, a
mais humanos. partir de assegurada a supressão
Portanto, “em um sentido das carências e necessidade básicas,
determinado, poderia falar-se aqui, possam conduzir sua existência de
pois, do núcleo ontológico da li- modo cada vez mais (pelo menos
berdade” (LUKÁCS, 2004, p.96), potencialmente) humano.
pois, Com efeito, então, temos
que “a atividade produtiva, imposta
a liberdade, bem como sua pos- ao homem pela necessidade natural,
sibilidade, não é algo dado por como condição fundamental da so-
natureza, não é um dom conce- brevivência e do desenvolvimento
dido a partir do alto e nem se- humanos, torna-se assim idêntica à
quer uma parte integrante – de plenitude humana, isto é, à realiza-
origem misteriosa – do ser hu- ção da liberdade humana” (MÉSZÁ-
mano. É o produto da própria ROS, 2006, p.153, grifos meus).
atividade humana, a qual (...) Estas são as razões de o
termina por ter consequências
trabalho – em suas articulações
que ampliam, de modo objeti-
ontológicas com a educação – ser
vo e contínuo, o espaço no qual
o fundamento da relação que se
a liberdade se torna possível”
(LUKÁCS, 2007, p.241).
estabelece entre aquilo que Marx
chamou de o Reino da Necessidade
e o Reino da Liberdade, ou seja,
Portanto, o trabalho é
tanto o ponto de partida quanto o
exatamente aquilo que garante a
ponto de chegada da formulação
reprodução social diária e imediata
emancipatória marxiana. Tomemos
e também aquilo que torna possível
suas palavras.
ao ser humano – ao conjunto dos se-
res humanos – dedicar-se a ativida-
De fato, o reino da liberdade
des que possibilitem uma existência
começa onde o trabalho deixa
cada vez mais plena, na medida em
de ser determinado por neces-
que é exatamente por intermédio sidade e por utilidade exterior-
dos acúmulos sócio-históricos das mente imposta; por natureza,
realizações e aquisições dos pro- situa-se além da esfera da pro-
cessos de trabalho, cerne de todo dução material propriamente
o processo formativo humano – o dita. O selvagem tem de lutar
que significa que cada nova gera- com a natureza para satisfazer
ção não precisa redescobrir o fogo, as necessidades, para manter e
ou reinventar a roda –, que torna reproduzir a vida, e o mesmo
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tem de fazer o civilizado, sejam Por conta disso, não é de


quais forem a forma de socie- modo algum surpreendente que
dade e o modo de produção. Marx afirme – em uma entrevista
Acresce, desenvolve-se, o reino concedida ao jornal Chicago Tribu-
do imprescindível. É que au- ne, em dezembro de 1878 – que a
mentam as necessidades, mas, passagem dos meios de produção
ao mesmo tempo, ampliam-se à propriedade coletiva seja “por-
as forças produtivas para satis- tanto uma questão de tempo, de
fazê-las. A liberdade nesse do- educação e do desenvolvimento de
mínio só pode consistir nisto: formas sociais superiores” (MARX,
o homem social, os produtores 1987, p.59) – e que Mészáros
associados regulam racional-
afirme que “na concepção mar-
mente o intercâmbio material
xista 17 a ‘efetiva transcendência
com a natureza, controlam-
da auto-alienação do trabalho’
no coletivamente, sem deixar
seja caracterizada como uma ta-
que ele seja a força cega que
refa inevitavelmente educacional”
os domina; efetuam-no com o
(MÉSZÁROS, 2005, p.65).
menor dispêndio de energias
e nas condições mais adequa-
das e condignas com a nature-
za humana. Mas, esse esforço Referências
situar-se-á sempre no reino da
necessidade. Além dele come- ENGELS, Friedrich. Sobre o papel
ça o desenvolvimento das for- do trabalho na transformação
ças humanas como um fim em do macaco em homem. In:
si mesmo, o reino genuíno da ANTUNES, Ricardo (org). A
liberdade, o qual só pode flo- dialética do trabalho: escritos
rescer tendo por base o reino de Marx e Engels. São Paulo:
da necessidade. E a condição Expressão Popular, 2004.
fundamental desse desenvol- LUKÁCS, György. As bases
vimento humano é a redução ontológicas do pensamento e
da jornada de trabalho (MARX, da atividade do homem. In:
1971b, p.942).
LUKÁCS, György. O jovem Marx

17 Há aqui um problema de tradução. A palavra correta a ser utilizada para adjetivar o substantivo
“concepção” seria “marxiana”, ao invés de “marxista”. Eis como o trecho aparece no original: “in
the Marxian conception the ‘positive transcendence of labor’s self-alienation’ is characterized as
an inescapably educational task” (MÉSZÁROS, 2008b, p.241).
60

e outros escritos de filosofia. Reginaldo Sant’Anna. Rio de


Trad. Carlos Nelson Coutinho e Janeiro: Civilização Brasileira,
José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Livro III, vol. VI, 1971b.
UFRJ, 2007, p.225-245. ______. O capital: livro I capítulo VI
______. Ontología del ser social: el (inédito). Trad. Eduardo Sucupira
trabajo. Trad. Antonino Infranca Filho. São Paulo: Ciências
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Herramienta, 2004. ______. O 18 brumário e cartas
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os princípios ontológicos Konder e Renato Guimarães. Rio
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Bauer e Stirner, e do socialismo
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profetas (1845 – 1846). Trad.
com o fundador do socialismo
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e Luciano Cavini Martorano. São
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Janeiro: Civilização Brasileira, New York: Harper Torchbooks,
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sobre os chamados Manuscritos
econômico-filosóficos de Karl
Marx. In: MARX, Karl. Manuscritos
econômico-filosóficos. Trad. Jesus
Ranieri. São Paulo: Boitempo,
2004.

ABSTRACT

The objective of this article is to draw the fundamental outlines of the ontological relation
between the categories labor and education. From the theoretical formulations of Marx,
Lukács and Mészáros, are established some philosophical grounds of the explanation
of labor, understood both as foundational element, as the category that makes possible
the emergence of the social being, and process that enables the complexification of
this new kind of being. From these fundamental indications, follows the explanation
that the mankind’s formative, educational process (understood in its broader sense, as
humanization) is constituted of the accumulation of the sociohistorical processes of
labor, historically related and articulated. However, historically, that is, from the being
already made social, human, it is no longer possible to speak of the process of labor
without the direct mention to the educational processes.

Key-words: Labor. Education. Ontology. Emancipation.

Recebido: fevereiro/2011.
Aprovado: abril/2011.

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