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A noção de essência humana no jovem Marx

The notion of human essence in the young Marx

Paulo Henrique Pereira Mota1

Resumo: Não foram poucos os pensadores da história que tentaram definir a essência humana
ou que, ao menos, apontaram características próprias à essência humana. Aristóteles, por
exemplo, em sua Metafísica, afirmou pertencer à natureza humana o desejo pelo saber, pois
sentimos prazer em contemplar o mundo. Adam Smith, a divisão do trabalho tem origem na
propensão da natureza do homem à troca: a realização do interesse egoísta dos homens
configura-se pela troca, em busca da felicidade particular de cada qual. Nesse sentido, embora
nunca fosse seu objeto direto de estudo, como o filósofo empirista de Tratado da natureza
humana, Marx também não se prescindiu de pronunciar sobre essa questão importante da
história. Assim, animados pela sexta tese sobre Feuerbach, esse escrito objetiva esclarecer o
significado real da sua tese: “a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo
isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”. Uma leitura atenta sobre suas
obras mais filosóficas, conseguimos extrair o plano subjacente à totalidade de sua ontologia. É
certo que compreendemos essa noção de natureza humana de Marx um aspecto fundamental à
sua ontologia materialista, desde suas investigações sobre alienação social até os processos
necessários do capitalismo. Com isso pensamos identificar esse ponto crucial, pois, segundo
György Lukács, o ser social compreendido historicamente como unidade com a natureza
constitui, por assim dizer, o pressuposto da teoria marxiana para toda crítica formulada
posteriormente. Para tanto, entraremos nos principais conceitos dos Manuscritos Econômicos-
Filosóficos e depois em um dos principais criados por Marx de 1846, a saber, o materialismo
histórico, nos concentrando em A Ideologia Alemã.

Palavras-chave: Natureza. História. Essência humana. Marx

Abstract: There were not few thinkers in history who tried to define the human essence or at
least pointed out characteristics proper to the human essence. Aristoteles, for example, in his
Metaphysics, affirmed that the desire for knowledge belongs to the human nature, since we take
pleasure in contemplating the world. Adam Smith, the division of labor has it is origin in the
propensity of man’s nature to exchange: the realization of the selfish interest of men is shaped
by the exchange, in pursuit of his particular happiness. In this sense, as the Scottish empiricist
philosopher David Hume had written a specific treatise on human nature, entitled A Treatise of
Human Nature, Marx also did not dispense with pronouncing on this important question of the
of philosophy. Thus, this writing intends to clarify the real meaning of his sixth thesis on
Feuerbach: “the essence of man is no abstraction inherent in each single individual. In reality, it
is the ensemble of the social relations”. With a more attentive reading of his philosophical
works, we succeed in extracting the whole plane of his ontology. It is true that we understand
his notion of human nature in Marx as a fundamental aspect of his materialist ontology, from his
investigations of social alienation to the necessary processes of capitalism. Considering this we
plan to identify this crucial point, since, according to György Lukács, the social being
understood historically as unity with nature constitutes the assumption of Marxian theory for all
later critics. In order to do so, we will enter into the main concepts of the Economic and
Philosophical Manuscripts and then into one of the main concepts created by Marx of 1846,
namely, the historical materialism, concentrating, consequently, on The German Ideology.

1
Graduando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
phpmota@gmail.com.
A noção de essência humana no jovem Marx

Keywords: Nature. History. Human essence. Marx.

***

1. Homem, trabalho e natureza

Marx tem uma concepção materialista em atividade da unidade da relação do


homem com a natureza, da qual não se refere à mediação contemplativa, mas à
atividade metabólica de transformação da mesma, onde a constituição do homem é ser
parte da natureza. Uma ontologia materialista começa a germinar com isso:

A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza


enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza
significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num
processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do
homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido
senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o
homem é uma parte da natureza. (MARX, 2010, p.84)

É uma relação metabólica, e não dialética, porque: I) não há superação


(Aufhebung) lógica ou histórica de um dos termos opostos a outro; pelo contrário, o
homem se apropria e se relaciona infinitamente com a natureza, permanecendo num
estado de insubmissão, num: “processo contínuo para não morrer”. Sua apropriação da
natureza tem características peculiares na modificação desta última: o trabalhador
efetiva suas potencialidades latentes à natureza. Neste metabolismo, as modificações
ocorrem a partir da passagem da potência ao ato, convertendo valores de uso apenas
possíveis em valores de uso reais. II) Sendo uma interação horizontal, e não vertical,
não se trata de ser uma relação de submissão de um termo para com o outro, como se
enquanto um agisse e transformasse, o outro cederia e pereceria: o ser humano e a
natureza aparecem como um corpo de mútua implicação.
É nesse sentido que podemos afirmar a respeito da “apropriação despossuída” da
natureza. O homem se apropria da natureza sem emergir um reconhecimento de posse
da mesma perante os outros indivíduos. Ora, a apropriação como posse é uma condição
necessária para limitar insensivelmente o relacionamento dos seres humanos com os
objetos produzidos pelos mesmos: o “ter” fundamenta a unilateralidade dos indivíduos,
sem sequer pertencer à totalidade da realidade humana. A apropriação sem possessão é,

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na verdade, o alargamento do horizonte humano em direção à sua atuação multilateral,


ao que antes era compreendido como não humano, como mera determinação objetiva
funcional.
Por um lado, Marx ressalta a importância da natureza para o processo de
efetivação do trabalho: o mundo somente o é assim porque é um resultado da inevitável
transformação da natureza: “O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o
mundo exterior sensível. Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual o
trabalho é efetivo, e a partir da qual e por meio da qual o trabalho produz”. (MARX,
2010, p.81) Ou seja, não há produção de modo geral sem processo do trabalho com a
natureza. Não há trabalho materializado objetivo enquanto o indivíduo não se apropriar
do mundo exterior sensível. A sua produção, por conseguinte, está condicionada pela
vontade e consciência de produzir, distintamente do animal: enquanto este produz
segundo suas necessidades físicas imediatas e sua atividade vital é um com sua
identidade, o primeiro faz da sua atividade vital um objeto a sua vontade, em razão
disso, poderia produzir mesmo livre das determinações próprias à necessidade natural.
A atividade livre do ser humano tem capacidade de produzir não segundo a sua espécie,
mas segundo qualquer espécie. Sua natureza potencializa a liberdade para além das
limitações determinadas pelo corpo físico. Assim: “o animal só reproduz a si mesmo,
enquanto o homem reproduz toda a natureza”. (MARX, 2010, p.84)
Por outro lado, o trabalho tem o estatuto de mediação do homem com a natureza:
é por meio dele que o trabalhador se transforma e se apropria do mundo exterior
sensível. (MARX, 2010, p.90) Embora, como vimos, a produção do homem seja livre, o
proletário somente se efetiva na natureza. Quer dizer, há uma dependência do indivíduo
para com a natureza no âmbito de efetivação de suas potencialidades, apesar dele
próprio ser livre para produzir, a fim de satisfazer suas necessidades biológicas. Não é
por acaso que a sua subsistência dependa da produção, da transformação da natureza,
pela qual o indivíduo exterioriza sua subjetividade, seu trabalho, e assim o objeto
produzido tenha o dever de ser consumado pelo próprio produtor.
Por consequência, o trabalho guarda sua importância na configuração da
existência do homem, no desenvolvimento de suas capacidades humanas e na apreensão
da natureza universal do homem: “longe de se ruma mera atividade econômica, o
trabalho é a ‘atividade existencial’ do homem, sua ‘atividade existencial’, sua ‘atividade
livre’, ‘consciente’ – não um meio de conservação da sua vida, mas um meio de
desenvolvimento da sua ‘natureza universal’”. (MARCUSE, 1978, p.253)

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Ora, a determinação do ser social está em se afirmar sobre o trabalho enquanto


modificação necessária da natureza e atividade material da sensibilidade humana. Tanto
assim o é que essa energia humana constitui a essência subjetiva da propriedade
privada. Mas como seu produto é expropriado por um outro que não ele, ocorrem
implicações sobre os quais o produtor atinge o estado de extrema pauperização. Marx
chama esse fato de alienação. Mas, em verdade, o trabalho compõe a base do ser social:
“quando se fala em propriedade privada, acredita-se estar se tratando de uma coisa fora
do homem. Quando se fala do trabalho, está-se tratando imediatamente, do próprio
homem”. (MARX, 2010, p.89) A alienação do homem parece, dessa maneira, significar
o fato de haver um “roubo” da essência humana, através da performance da atividade
criadora. Quer dizer, a atividade do indivíduo empregada no mundo sensível exterior
determina as relações materiais do primeiro e do segundo. Se assim não fosse, as
produções livres não tornar-sei-iam tamanha vida que passariam a dominar
insensivelmente o trabalhador, sob a figura do capital. Estamos tratando da alienação do
objeto A produção como exteriorização (Entäusserung) do trabalho torna-se distante do
trabalhador quando ele próprio não se reconhece em seu produto e a apropriação do
mesmo encontra-se num ser outro que não ele, como propriedade privada – bem como
um simples sapato até todo um contingente industrial.
Dessa maneira, se lembrarmos do período histórico precedente e de certa
maneira vigente à época de Marx, os proletários ingleses, por exemplo, sob condições
de trabalho eminentemente miseráveis, com jornadas de trabalho de 16 horas, sem
moradia (por serem “trabalhadores livres”), salários calculados para somente a
reprodução da existência enquanto produtores, e não enquanto homens livres
efetivamente, são realidades concretas das quais nosso filósofo tem em seu horizonte de
referência como fundamento empírico de sua crítica à sociedade burguesa2. Em razão
disso que Marx não cansará de descrever a valorização dos produtos, da concorrência,
do capital, em contrapartida da desvalorização dos criadores de todos esses bens, tendo
em vista, com isso, a crítica à economia-política dos teóricos burgueses, que explicavam
as leis do mercado com conceitos unilaterais e abstratos, pois não compreendem a
necessidade das relações do capital entre os homens, bem como o resultado da
concorrência ser a acumulação de capital em poucas mãos (isto é, a restauração do

2
Para saber mais a respeito dos estudos das condições miseráveis dos operários das grandes indústrias
realizadas pelo próprio Marx, vide sua obra O Capital, em especial o capítulo XIII “Maquinaria e grande
indústria”.

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monopólio) etc. Em suma, os conflitos entre os homens, entre os miseráveis de um lado


e os poucos ricos de outro, concebe-se em duas classes sociais antagônicas: dos
proprietários e dos trabalhadores sem propriedade. Marx, pois, descreve:

A alienação do trabalho em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-


econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir; que quanto mais valores criam, mais sem-valor e indigno ele se
torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele
fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que
quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna;
quanto mais rico de espírito de trabalho, mais pobre de espírito e servo da
natureza se torna o trabalhador. (MARX, 2010, p.82)

Tal crítica pede uma teoria da justiça social ligada à reflexão sobre as causas da
desigualdade e da miséria operária.
A alienação, no entanto, não se reduz tão somente ao resultado da energia
humana materializada, mas também no ato da produção: o trabalhador não se afirma em
seu trabalho, nega-se a ele. Essa crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e sua
atividade compreendida como trabalho. Sua ação criadora não desenvolve suas próprias
capacidades e sentidos humanos, mas arruína e mortifica o trabalhador; e o trabalho:
“não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer
necessidades fora dele”. (MARX, 2010, p.83) A estrutura do trabalho como processo de
produção do valor implica a impossibilidade da atividade humana se colocar como
exteriorização de sua Gattungswesen, isto é, de sua essência enquanto gênero humano.
Essa atividade humana pertence a outro e por consequência é a perda de si mesmo. O
objeto criado toma tamanhas modificações sobre a esfera social e natural que: “se torna
uma existência que existe fora dele, independente dele e estranha a ele, tornando-se uma
potência autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta
hostil e estranha”. (MARX, 2010, p.81) Poder-se-ia dizer que esse “outro” tem a
identidade social de capitalista e, de modo geral, os donos das indústrias, os
proprietários das terras e dos meios de produção. Assim, a universalização do indivíduo
torna-se impossível se realizar, uma vez sendo da ordem do impróprio em nós e sua
expressão aparece, antes, como o trabalho alienado.
Essa digressão não foi vazia. Deveu-se para ilustrar razoavelmente o significado
do processo de transformação da natureza como operador da transformação do
trabalhador. Ora, se o proletário produz o progresso da riqueza da sociedade, através do
movimento de seu trabalho, mas, simultaneamente, o seu empobrecimento, então os

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efeitos de sua produção vivifica-se de tal maneira que passa a dominá-lo até a morte.
Herbert Marcuse resume bem esse processo tão verdadeiro:

O trabalhador na sociedade capitalista produz mercadoria. A produção de


mercadoria em larga escala requer capital, grande acumulações de riqueza
empregadas exclusivamente para incrementar a produção de mercadorias. [...]
O operário trabalha para o capitalista a quem ele entrega, pelo contrato
salarial, o produto do seu trabalho. O capital é o poder de dispor dos produtos
do trabalho. Quanto mais o trabalhador produz mais se torna o poder do
capital e mais limitados os meios do trabalhador se apropriar dos seus
produtos. O trabalhador se torna, pois, vítima de um poder que ele mesmo
criou. (MARCUSE, 1978, p. 254-255)

Não deixa de ser sintomático que o modo pelo qual os indivíduos se relacionam
com seu mundo exterior, isto é, a natureza, determina o modo como eles se relacionam
entre si: como vimos na ilustração acima, existe a grande parcela da sociedade
desapossada e uma pequena camada cuja identidade social denomina-se dona da
propriedade privada. Quer dizer, o trabalho, próprio ao ser social, na relação do mesmo
com a natureza transforma esta (produção de objetos) e transforma concomitantemente
o próprio produtor (mediante a utilização de seus produtos e o intercâmbio entre os
indivíduos), liberalizando e potencializando as capacidades humanas em nome do
desenvolvimento da liberdade do homem, na relação com a natureza.
Mas tal processo social de produção toma rumos negligentes quando o
desenvolvimento das forças produtivas moldam as relações sociais de produção no
sentido, por exemplo, atual do capitalismo: a distinção integral entre os meios de
produção e a força de trabalho torna inexorável a circulação livre do segundo para
vender-se ao primeiro por meio da troca, da compra e da venda, uma vez considerado –
como tudo passa a ser no modo de produção capitalista – uma mera mercadoria. Ambos
os possuidores de mercadoria, o capitalista (dono do meio de produção) e o trabalhador
(dono da força de trabalho), oferecem suas mercadorias no mercado e a vendem por um
determinado preço3. No caso do trabalhador, ele vende sua força de trabalho. Nesse
sentido, a produção de mercadorias do proletário não se identifica com o mesmo; pelo
contrário, se aliena a ele. O progresso do acúmulo do capital, que nada mais é que o
acúmulo de trabalho (MARX, 2010, p.40), da liberdade da riqueza do capitalista,
também é o progresso da pauperização do restante da população, da servidão humana
em geral. Por que: “Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição puramente

3
Não cabe, aqui, dizer como esse preço é determinado.

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pessoal, mas também uma posição social na produção. O capital é um produto coletivo:
não pode ser posto em movimento senão pela atividade comum de muitos indivíduos e
mesmo [...] de toda a sociedade. O Capital não é, portanto, um poder pessoal; é um
poder social” (MARX, 2012, p.50)
Portanto, se, antes, o resultado da atividade sensível do ser social com a natureza
tenderia à sua emancipação não apenas política ou econômica, mas à sua realização do
homem enquanto homem, sua realização em-si-e-para-si, agora, em razão nos modos
pelos quais se dão suas relações sociais de produção, configura-se tão somente a
servidão humana enquanto normatividade da superestrutura formada. Esse resultado, no
entanto, não se estabeleceu de uma maneira simples e imediata; pelo contrário, é efeito
de um longo processo materialmente histórico. Vejamos esse ponto com calma.

2. Materialismo histórico

Na atividade sensível do ser humano subjetivo particular relacionado à natureza


– do ponto de vista ontológico – enquanto seu mundo exterior ocorre simultaneamente à
relação intercambial entre os próprios indivíduos, na medida em que sempre
compartilharam uma vida comum, uma, por assim dizer, vida individual e comunitária,
transformando organicamente a natureza e constituindo estruturalmente os modos de
relacionamentos sociais entre eles, transformando, com isso, cada indivíduo. O
desenvolvimento desse veemente processo material constitui a história dos homens.
A título de exemplo, pensemos nos homens e suas condições materiais na assim
chamada “pré-história”. Os sujeitos nômades colhem vegetais (enquanto pratica
atividades de plantação de feijão; outro pratica de arroz etc.) e matam animais (um mata
um coelho; um grupo, um boi, e assim por diante) para sobreviverem. Em decorrência
disso, necessariamente modificam as condições naturais já dadas, precedentes à
existência de cada qual: transformam tanto a cada alimentar, quanto o ciclo vital dos
animais. O trabalho constante dessa transformação da natureza determina,
simultaneamente, os indivíduos, uma vez configurado o comércio (Verkher) entre os
mesmos. Nessa prática incessante, condições materiais de existência são engendradas e
as antigas são conservadas para a atualização das forças produtivas e as relações sociais
entre os homens. Daí porque podemos explicitar um momento decisivo da história
conhecido como “revolução neolítica”. No período paleolítico, os grupos nômades não
possuíam moradias fixas; ao passo que, no neolítico, as sociedades humanas

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desenvolveram técnicas de cultivo agrícola e passaram a ter condições de armazenar


alimentos. Isso levou a grupos humanos a se fixarem por mais tempo em uma única
região e a se deslocarem com menor frequência. A condição de nômade começou a ser
abandonada com o desenvolvimento da agricultura: plantar alimentos operou como um
passo decisivo para o domínio da natureza e para o movimento de sedentarização dos
grupos humanos. Nesse sentido, a capacidade de aprimoramento dos exercícios diários
enquanto práticas de subsistência, através da relação metabólica com a natureza dada,
andavam em marcha para o desenvolvimento de instrumentos e técnicas no interior de
suas relações conscientes: uma vez iniciada a atividade, o indivíduo foi aprendendo a
selecionar as melhores plantas para a semeadura e a promover um enxerto de
variedades, de modo a produzir alimentos mais nutritivos. Moradia e formação de
pequenos grupos foram-se necessários para a manutenção esmera dos sistemas agrícolas
enquanto modo mais aperfeiçoado de viver, como saída de condições de vida escassa
para o estabelecimento de modos de vida prósperos.
Assim, nesse exemplo, vemos como o desenvolvimento das forças produtivas
constituíram novos horizontes normativos em modos de sociabilidades antes não
encontradas. É esse desenvolvimento material, conjuntamente ao intercâmbio entre os
indivíduos, que os homens constituem a história, como Balibar diz: “é a produção de
seus próprios meios de existência, a atividade simultaneamente pessoal e coletiva
(transindividual), que o transforma, ao mesmo tempo, que transforma irreversivelmente
a natureza, e assim que constitui a ‘história’”. (BALIBAR, 1995, p.47)
Essa ilustração nos capacita a compreender melhor o significado do
materialismo histórico, ao menos, em A ideologia Alemã4. Para estudar a história, é
preciso, antes de tudo, constatar premissas reais, “bases reais que só podem abstrair na
imaginação”. (MARX, 2007, p.10) A condição necessária para a existência da história é
a existência de seres humanos vivos. Para viver, no entanto, é preciso comer, beber,
vestir, morar e assim por diante: “o primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos
meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material”.
(MARX, 2007, p.21) Satisfazendo essas necessidades primitivas, acontece a criação dos
instrumentos para saciá-las mais facilmente, produzindo novas necessidades. Em
decorrência, os homens passam a reproduzir suas próprias vidas, reproduzindo outros

4
Reconhecemos os pressupostos da concepção e materialismo histórico nos seus principais eixos: como a
mudança dos modos de produção e a luta de classes imanente à sociedade civil. No entanto, nos
concentraremos na noção d’A Ideologia Alemã.

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homens. Daí nasce a primeira relação social, a saber, a família: homem, mulher, pais e
filhos. Esses três momentos coexistentes constituem os fatos históricos, o começo e o
avanço da história material dos homens. Por conseguinte, os homens produzem suas
vidas no sentido natural, mas também no sentido social, isto é, a ação conjugada de
vários indivíduos, sejam quais suas condições, seja suas formas e objetivos.
Mas o motor do progresso dessas relações sociais é determinado pelos modos de
produzir (estágios industriais), que são condicionados pelos modos de cooperação
(estágios sociais), que, por sua vez, são condicionados pelas forças produtivas
acessíveis aos homens, devendo, por consequência, estudar a história dos homens em
suas relações e condições materiais determinadas, através da produção e do comércio:
“a massa das forças produtivas acessíveis aos homens determina o estado social, e que
se deve por conseguinte estudar e elaborar incessantemente a ‘história dos homens’ em
conexão com a história da indústria e das trocas”. (MARX, 2007, p.24)
A história da humanidade deve ser elaborada em conexão à história da indústria
e do intercâmbio, história dos modos de produção e de troca. Mas, por sua vez, esta
história dos modos de produção e de troca não será a descrição de sistemas produtivos.
Um modo de produção é sempre atravessado por instabilidades sob a forma de
contradições. Seu desenvolvimento é também a história de sua destruição e é este
movimento contraditório de realização através da destruição de si que dará à história sua
dialética.
Assim, as relações sociais se desenvolvem na medida em que há o aumento da
produção – toda atividade sensível do ser social de transformação da natureza que, por
sua vez, transforma a si mesmo –, simultaneamente, das necessidades e do crescimento
populacional. Em outros termos, na medida em que a história progride. Mais
precisamente, as formas de intercâmbio entre os homens se apresentam como condições
da produção material. Com o desenvolvimento das forças produtivas, a forma de
intercâmbio existente é, por assim dizer, superada por outra nova; e em cada fase, as
condições de intercâmbio correspondem ao desenvolvimento simultâneo às forças
produtivas. A história, portanto, é esse movimento das formas sociais de produção. Se
lembrarmos da ilustração da revolução neolítica, a história realizou-se precisamente
assim.
Esse é um ponto central para distinguirmos o materialismo de Marx de outros
materialistas. Em Marx, o campo do real é a história, isto é, contrariamente ao
materialismo anterior, o real não é a mera empiria, não é o que se aparece a nós através

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da imediaticidade dos sentidos. O real concreto não é a matéria como dado primeiro e
informado, mas os processos que constituem o que se apresenta a nós com a imediatez
da aparência. Esses processos são descritos através de um regime de discurso que
conhecemos por história. Daí porque a primeira tese de Marx sobre Feuerbach será
mostrar o defeito de todo os pensadores materialistas da história:

Até agora, o principal defeito de todo materialismo (inclusive o de


Feuerbach) é que o objeto, a realidade, o mundo sensível só são
apreendidos sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como
atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva.
Em vista disso, o aspecto ativo foi desenvolvido pelo idealismo, em
oposição ao materialismo – mas só abstratamente, pois o idealismo
naturalmente não conhece atividade real, sensível, como tal. (MARX,
2007, p.99)

Fascinada por uma concepção de matéria desprovida de tempo, o materialismo


até agora não foi capaz de compreender a matéria como práxis. Esta noção de atividade
só foi apreendida, mesmo que de forma abstrata, pelo idealismo, principalmente o
idealismo de Hegel, que se perguntara pelo movimento imanente à experiência. É
através da história que esta atividade pode ser apreendida adequadamente.
A narração da história, aliás, não se anima através da realização dos processos
especulativos do Conceito, imanentes ao seu autodesenvolvimento, ou a mera
contemplação da natureza como que para captar diretamente a essência e o conceito dos
objetos dados pelos sentidos, mas, por exemplo, dizer a existência sensível do bastão
em um dado momento sócio-histórico implica afirmar a atividade pela qual produzira o
bastão. (MARX, 2007, p.22) Todos sabem claramente da impossibilidade das
plantações das cerejeiras nas terras prussianas e, no entanto, a sua existência tornou-se
comum a partir de uma determinada época, quando o comércio entre países e o
progresso das técnicas e dos instrumentos condicionaram a possibilidade da existência
de cerejeiras. Quer dizer, em razão dessa ação, a saber, o comércio, de uma determinada
sociedade em uma determinada época que o sensível emergiu tal como nos aparece. A
verdade do mundo sensível é, assim, essa soma da práxis imanente. A história material,
igualmente, é esse desenvolvimento ativo da totalidade da prática humana, nas suas
determinadas circunstâncias determinadas dos homens:

A história não é senão a sucessão das diferentes gerações, cada uma


das quais explora os metais, os capitais, as forças produtivas que lhe
são transmitidas pelas gerações precedentes; assim sendo, cada

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geração, por um lado, continua o modo de atividade que lhe é


transmitido, mas em circunstâncias radicalmente transformadas, e, por
outro lado, ela modifica as antigas circunstâncias, entregando-se a
uma atividade radicalmente diferente. (MARX, 2007, p.47)

Uma soma das forças produtivas, uma relação com a natureza e os indivíduos,
criada historicamente e transmitida a cada geração por aquela que a precede são
transformadas a partir da massa de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias,
que, por outro lado, são bastante modificadas pela nova geração, mas que, por outro
lado, ditam a ela suas próprias condições de existência que determinam seu
desenvolvimento. (MARX, 2007, p.36) Dessa maneira, o poder de atuação dos homens
sobre a história é limitado por uma força maior que eles próprios, a saber, o tempo. Ou
simplesmente: “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e
espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela
é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”. (MARX, 2011,
p.25)
As relações sociais de produção determinadas pelo desenvolvimento as forças
produtivas evidenciam o modo como uma determinada sociedade se manifesta: política,
direito, religião, cultura, filosofia e toda a superestrutura – formas de Estado e
consciência social. (BOTTOMORE, 2012, p.52)

3. A essência humana

Podemos, doravante, tratar precisamente do significado da essência humana


como conjunto das relações sociais. Na sexta tese sobre Feuerbach, Marx afirma que:
“Feuerbach converte a essência religiosa em essência humana”, e não como o “conjunto
das relações sociais”. Feuerbach, para fundamentar sua tese, é obrigado a (1) “abstrair
do curso da história e a tratar o espírito religioso como uma realidade que existe por si
mesma”; (2) “a considerar o ser humano unicamente como gênero, como universalidade
interna”. Significa que Feuerbach considera a essência humana como um ente abstrato,
pois o trata somente como gênero, uma vida universal interna a cada indivíduo, porém
não está exatamente em cada um. Ele não entende, dirá Marx na sétima tese, que o
espírito religioso não é mais que um produto, e seu pensamento abstrato pertence na
realidade “a uma forma social determinada”. A religião é um produto sócio-histórico;

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uma criação intelectual da qual manifesta o tipo de vida material dos homens, sendo
impossível a hipóstase de Deus subsistente em si e por si.
A essência humana, para Marx, não tem o papel de ser um pequeno sistema
normativo imposto para preceder a existência de cada indivíduo, identificando e
limitando qualquer possibilidade de uma invenção de uma nova natureza, nem
tampouco afirmar que os indivíduos constituem a realidade mais concreta pela qual
todos os universais são predicados, mas sim sintetizar todas as manifestações materiais
– e intelectuais – que configuram as relações múltiplas e ativas entre os indivíduos –
linguagem, trabalho, amor, conflitos etc. Quer dizer, a natureza não está nem
diretamente nem indiretamente em cada indivíduo, como um controle rígido sobre as
flexíveis potencialidades humanas, mas no que está entre as relações sociais dos
indivíduos: as relações sociais definem o que eles têm em comum, ou seja, o “gênero”.
Essas relações definem, de formas múltiplas, o único conteúdo efetivo da noção de
essência aplicada aos homens. Os indivíduos relacionados às suas forças produtivas e as
relações sociais de produção seriam, por assim dizer, a síntese das múltiplas
determinações que o cercam, a fim de constituir o conteúdo dos homens.
Marx, em razão disso, parece deslocar a questão da essência humana para entrar
em cena a concepção da “relação constitutiva”, como Balibar dirá: “Trata-se de pensar a
humanidade como uma realidade transindividual. [...] Não o que está idealmente em
cada indivíduo (como uma forma ou uma substância) ou o que serviria, do exterior, para
classificá-lo, mas o que existe entre os indivíduos em consequência de suas múltiplas
interações”. (BALIBAR, 1995, p.43) Não se trata da relação do indivíduo com o gênero
para pensar a essência humana, mas pensar a multiplicidade das relações: “que são
transições, transferências ou passagens nas quais se faz e se desfaz a ligação dos
indivíduos com a comunidade e que os constitui a eles próprios”. (Idem) Na concepção
da essência humana como transindividualidade, há a reciprocidade do indivíduo com a
comunidade. Nesse sentido, a ontologia de Marx parece se mostrar como uma ontologia
da transindividualidade.
Dizer, por conseguinte, que a essência humana é “o conjunto das relações
sociais” não é descrever um estado de coisas existentes, mas, antes, um processo
incessante de transformação do mundo e do próprio indivíduo, uma “revolução
permanente”, na medida em que, como vimos no materialismo histórico, os homens se
constituem invariavelmente pelo trabalho metabólico com a natureza, herdando, através
das gerações, as condições materiais modificadas e as circunstâncias passáveis e

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determinantes de serem modificadas, vivificando o movimento da história: “para Marx


de março de 1845, não basta dizer, como Hegel, que ‘o real é racional’ e que o racional
necessariamente se realiza; é preciso que a única coisa real e racional é a revolução”.
(BALIBAR, 1995, p.44) Ou seja, a essência humana está condicionada pela totalidade
das relações sociais e das forças produtivas. A existência contingente da religião, da
democracia, da igreja como racionalização de um modo de produzir, do capitalismo etc.,
então, não é por acaso.
Nesse sentido, a natureza humana parece identificar-se com uma indeterminação
geral, uma constante possível e relativa. Mas Marx resolve essa indeterminação da
natureza humana identificando a práxis como um conceito histórico e sociológico:
produção. Com este conceito (como toda atividade humana de formação e
transformação da natureza), Marx determina mais concretamente – e menos
filosoficamente – a essência humana, já que, como o próprio dirá: “não é a consciência
que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”. (MARX, 2007,
p.20) Ou seja, a produção do ser social (que lhe é inexorável, pois a base do ser social
está intimamente ao trabalho) determina o próprio indivíduo e, simultaneamente, a
sociedade. Produção condicionada pela massa das forças produtivas resultantes de
circunstâncias históricas.
Não à toa que Marx distingue os homens dos animais não pela consciência, não
pela religião, mas porque produzem seus próprios meios de existência e sua vida
material. Pois a produção, tanto o que eles produzem, quanto a maneira como
produzem, fundamenta reflexivamente as manifestações das condições de vida material
dos indivíduos numa dada sociedade: “o que os indivíduos são depende, portanto, das
condições materiais de produção”. (MARX, 2007, p.11) Significa que através das leis,
do modelo de Estado, por exemplo, podemos saber o grau de desenvolvimento das
forças produtivas e as relações sociais de produção de um determinado período
histórico-social. Ora, a maneira como os indivíduos manifestam suas vidas reflete
exatamente o que eles são.
Os homens são homens exatamente a partir do momento que necessitam emergir
formas de interações modificadoras com a natureza, a fim de atender suas demandas
biologicamente inexoráveis, bem como construir instrumentos de sobrevivência, criar
vestimentas, arquitetar moradias e assim por diante, configurando, a contar das
condições de produção dadas e transformadas, uma espécie de sistema racional de
produção de matrizes psicológicas e sociais. Pois, as condições de produção não se

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referem apenas ao modo de “reprodução da existência física do indivíduo”. Elas são,


acima de tudo, a expressão das “formas de vida”, das relações entre os indivíduos e suas
transindividualidades. Pois um modo de produção (basicamente, a totalidade das forças
produtivas e as relações sociais de produção) não é apenas um agenciamento de
processos tendo em vista a produção de bens e de riqueza. Ele é uma forma de vida que
se expressa, inclusive, na dimensão “espontânea” dos hábitos e costumes que
constituem o horizonte do senso comum. A maneira como determino a racionalidade da
produção define a necessidade de certos modos de socializar sujeitos, determinando o
modo de desejar, o modo de comunicação e suas formas de trabalho. O funcionamento
da subjetividade dos indivíduos, da intersubjetividade depende do estado atual da
produtividade em geral, do determinado modo de produção vigente.
Portanto, afirmar que a essência humana é o conjunto das relações sociais está
em transpor todo o contingente de possíveis paradigmas sociais e psicológicos às
determinações das produções dos homens formadas historicamente. Os homens são
conforme suas produções (o trabalho enquanto intercâmbio orgânico com a natureza e
interação entre os indivíduos historicamente constituídos). A hipóstase real da essência
humana como conjunto das relações sociais deve ser compreendida como a mudança
sendo inerente, conforme o movimento da história procede. A maneira pela qual esta
essência se manifesta está nas coisas organizadamente construídas para estruturar a
totalidade das relações sociais dos homens, num determinado período histórico. Daí
porque Marx dirá: “o que é verdade na produção material não é menos na produção
intelectual”. (MARX, 2012, p.41) Não foi por acaso que a primeira cidade da idade
média que teve um comércio de vulto, foi também a primeira a elaborar o direito
marítimo. Ou seja, a necessidade da criação de uma lei sucedeu devido às demandas
sociais de produção de um determinado histórico.

4. Conclusão

Para Marx, a base da essência humana é uma certa atividade sensível peculiar
própria ao ser humano, a saber, o trabalho. Este como categoria fundamental da relação
metabólica do homem e natureza, o qual forma uma unidade, e não uma cisão – bem
como Hegel que compreendia a ideia de separação da natureza e da sociedade. O ser
social emerge no seio da natureza quando transforma por meio do seu trabalho,
dinâmico, para nela e com ela produzir sua própria existência, ou seja, tudo aquilo de

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que precisa socialmente para viver. Significa, com isso, que o materialismo de Marx é
um materialismo prático, e não idealista. Daí porque a sociedade ser o resultado
histórico da ação recíproca dos homens, e não a realização segundo os desejos
particulares de cada indivíduo. O intercâmbio dos indivíduos concomitante ao
desenvolvimento histórico e ativo de transformação do mundo exterior estrutura a
totalidade humana da sociedade em suas forças produtivas e relações sociais de
produção. Nesse sentido, a essência humana se manifesta na racionalidade da produção
material e intelectual, como o conjunto dessas relações sociais.
Lembremos a marcante passagem do colapso do momento histórico da idade
média, da sociedade feudal para a sociedade burguesa. Os senhores ingleses expulsaram
muitos camponeses do campo, e a estes camponeses só restou ir oferecer nas cidades a
única coisa de que dispunham: sua mão de obra. Fatores materiais como estes mudaram
toda a história. Quando alguém, respaldado na nova lei de propriedade da cidade,
afirma: a partir de agora, as pessoas que por séculos extraíram lenha desta floresta não
poderão mais fazer pelo simples fato de que a lei me garante a propriedade desta
floresta, há uma ruptura. No entanto, essas condições possibilitaram a existência de
homens livres, não subordinados a senhores feudais.
A essência do homem parecia consistir na relação entre a servidão de muitos
camponeses para poucos senhores feudais livres e as forças produtivas pouco
tecnológicas, bem como a manutenção do trabalho simples na agricultura, a roça, o
pastoreio e o arado, num estado cujo poder teológico-político predominava. Assim
compreendemos melhor a famosa passagem do prefácio da Contribuição à Economia
Política:

Na produção social de sua vida, os homens estabelecem determinadas


relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a uma determinada fase do
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da
vida social, política e intelectual em geral. (MARX, 2008, p. 47)

A estrutura econômica não é tida como o conjunto das instituições, mas como a
soma total das relações sociais de produção estabelecidas entre os homens. A sociedade
burguesa entrou em cena com uma revolução nas produções e nas relações. Em lugar de

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exploração que as políticas religiosas mascaravam, implantou-se uma exploração aberta;


transformou a atividade escrava em trabalho livre assalariado, desde o sapateiro ao
médico e professor. Daí porque Marx dirá: “a burguesia não pode existir sem
revolucionar continuamente os instrumentos de produção, e por conseguinte, as relações
de produção, isto é, o conjunto das relações sociais”. (MARX, 2012, p. 41) A essência
humana se manifesta, assim, em conformidade ao conjunto das relações sociais na
experiência do desenvolvimento materialmente histórico da humanidade. Não havia
coerência na idade média, por exemplo, em reconhecer a liberdade de um homem
somente pelo fato de ser humano, bem como acontece na modernidade.
Vale concluir, pensando nas palavras da última tese sobre Feuerbach, se o
objetivo da transformação do mundo, para Marx, não é em última instância um meio
determinado da emergência de uma nova essência humana.

Referências

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BOTTOMORE, Tom. (editor). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2012.
FREDERICO, C. O Jovem Marx. 1843-1844: as origens da ontologia do ser social. São
Paulo: Expressão Popular, 2009.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007.
LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARCUSE, H. Razão e Revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978.
MARX, K. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
_____. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular,
2008.
_____. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Lafonte, 2012.
_____. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
_____. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
_____. O capital: Crítica da Economia Política. Livro I: o processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
PAULA, M. F. Espinosa e Marx: A Potência do Pensamento e a Inteligibilidade do
Real. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.30, p.67-74, jan-jun 2014.

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