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MICHELE LOPEZ TOGNINI

DOR CRÔNICA E A VIVÊNCIA DO FEMININO:


Redescobrindo-se através da Dança do Ventre.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO
2007
MICHELE LOPEZ TOGNINI

DOR CRÔNICA E A VIVÊNCIA DO FEMININO:


Redescobrindo-se através da Dança do Ventre.

Trabalho de conclusão de curso como exigência


parcial para graduação no curso de Psicologia,
sob orientação da Prof.ª Dr.ª Flávia Hime.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO
2007
Dedico este trabalho àqueles que me apoiaram em todos os
momentos da minha vida, que me incentivaram nos difíceis, me acolheram
quando achei que não conseguiria prosseguir, que me amaram
incondicionalmente e entre lágrimas e risos, me mostraram o grande valor
da vida: o amor. Meus tão amados pais: Mauro e Maria Del Carmo, pelos
preciosos valores que me ensinaram na vida. Este é um dos frutos do
esforço e dedicação de vocês de uma vida inteira! Obrigada por me
acompanharem nessa vitória e por me mostrarem a força inabalável do
nosso elo. Amo vocês!
AGRADECIMENTOS.

A Deus, por colocar essas pessoas no meu caminho e me iluminar para que eu
pudesse aproveitar o que cada uma ofertava.

À pessoa que incentivou, acreditou e tornou este trabalho viável, que me


mostrou ser capaz, me aliviou os obstáculos e, de fato, fez este trabalho acontecer:
Adrianna Loduca. Obrigada pelo apoio e confiança depositada em mim, pela ânsia de
conhecimento que me despertou sobre o assunto, por me fornecer as pacientes e o
espaço para essa pesquisa, pelos momentos em que me ouviu e aliviou minhas dúvidas e
angústias. Obrigada por me apoiar nas dificuldades e me mostrar os frutos que ainda
estão por vir com este trabalho. Você, ao longo deste ano, plantou uma semente a qual
cultivei com muito carinho e cuidado. Obrigada, verdadeiramente!

À Flavia Hime pelo carinho, força, palavras de incentivo e, principalmente,


por me mostrar como fazer para que essa semente germinasse. Obrigada por acreditar
em mim e entrar de corpo e alma nesta jornada; pela disponibilidade verdadeira. Por ter
me amparado no momento em que fraquejei e por me mostrar que não poderia desistir
daquilo em que tanto acreditei. Acima de tudo, obrigada pelo amor dedicado desde o
primeiro ano e por ter me acompanhado neste último, por ser minha parceira nesta
“gestação” e com todo seu carinho e delicadeza ter minimizado as dores deste parto.
Obrigada por ter feito com que eu acreditasse em mim e seguisse minhas intuições, por
amar e me fazer amar, cada vez mais, esse filho. Obrigada por permitir ser tocada por
ele e por ter entrado numa sintonia profunda comigo.

À Eloísa Penna pela ajuda, incentivo e pelos conhecimentos oferecidos ao


longo destes últimos dois anos: você foi fundamental para a minha formação acadêmica
e pessoal. Obrigada por fazer com que eu me apaixonasse pela Psicologia Analítica.

À Noely Moraes por compartilhar seus conhecimentos em suas aulas e


supervisões que me serviram fortemente para o desenvolvimento deste trabalho.
Obrigada por acender a chama do interesse pela prática clínica.
Agredeço à minha família pelo amor, confiança, motivação e pelo incentivo
que direta ou indiretamente foi prestado. Vocês são minha base, meu porto seguro.
Amo incondicionalmente a todos.

À minha amada avó Hermínia e ao meu querido primo Rodolfo. Sei que,
embora não estejam fisicamente presentes, me acompanham sempre. Obrigada pelos
momentos inesquecíveis que passamos e por aqueles que ainda passaremos.

Aos meus pais que entraram comigo neste desafio e me ajudaram de forma
muito presente e amorosa.

Ao meu irmão Maicol pela força, carinho, amor e amizade dedicados desde o
início de minha vida: te amo!

Aos meus amigos por estarem sempre ao meu lado. Pela paciência e
compreensão da minha ausência neste último ano.

À Sandra Marques pela disponibilidade e por me mostrar que ainda há muito a


ser explorado sobre a Dança do Ventre.

À Carol Louro, minha mãe de dança, por me iniciar nesta arte e me fazer
perceber a seriedade e o valor de sermos portadoras deste maravilhoso instrumento.
Obrigada pela ajuda, reconhecimento, crédito e orientação ao longo de todos esses
anos. Espero que possamos continuar juntas nesta jornada por muito mais tempo.

Às participantes deste trabalho sem as quais este seria empobrecido.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuiram para a minha formação.


“É através do resgate do símbolo do feminino que a existência
se fará possível pela coexistência. A transformação da consciência
universal depende da superação da unilateralidade, do
restabeleciemnto da essência do princípio feminino. Que papel cabe à
mulher desempenhar nesse processo? Que caminhos ela poderá
percorrer nesse sentido?” (Muszkat, 1987, p. 23).
Área de conhecimento: 7.07.10.00-7.
Dor Crônica e a Vivência do Feminino: Redescobrindo-se através da Dança do
Ventre. Michele Lopez Tognini.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Flávia Hime.
Palavras-chave: Dor Crônica; Feminino; Dança do Ventre.

RESUMO.

O objetivo deste trabalho foi pesquisar se a prática de movimentos corporais baseados


na Dança do Ventre contribui para o resgate do Feminino, elevação da auto-estima e melhora da
qualidade de vida, de forma geral, de mulheres com dor crônica, submetidas a um processo
breve em grupo com estrutura vivencial. O trabalho constou de duas etapas: uma teórica e outra
prática em que se buscou, à luz do referencial teórico da Psicologia Analítica, compreender a
questão. O grupo vivencial constou da implementação de movimentos baseados na Dança do
Ventre, discussões sobre o Feminino entre outros temas e viagens de fantasia. Foram realizados
oito encontros, sendo um de apresentação e sete semanais. Inicialmente composto por quatro
mulheres, seguiu com três cuja faixa etária situa-se em torno dos 46 e 56 anos, que passaram por
um programa psicoeducativo de abordagem psicodramática no Centro de Dor do Hospital das
Clínicas de São Paulo. Como instrumentos comparativos do processo utilizamos a representação
grupal da imagem do próprio corpo e o questionário WHOQOL de qualidade de vida.
Concluímos que a Dança do Ventre foi um instrumento muito importante no processo, no
sentido em que possibilitou a essas mulheres o resgate do símbolo do Feminino, reprimido não
apenas socialmente mas por complexos pessoais e também pelo quadro álgico crônico.
Percebemos uma ampliação da consciência global e corporal na comparação das duas
representações das imagens corporais e através de seus relatos, com a análise das viagens de
fantasia identificamos que ocorreu uma elevação da auto-estima, o que possibilitou ao ego a
retomada do senso de eficácia e de prazer pela vida. A análise do WHOQOL demonstrou que
ocorreu alteração em diversas áreas como diminuição de dor e desconforto físico, aumento dos
sentimentos positivos e diminuição dos negativos com relação à vida, diminuição do senso de
dependência de medicação ou tratamentos e melhora nas relações pessoais. Entretanto, não
detectou mudanças significativas na auto-estima e imagem corporal. Pensamos que isso se deve
à lentificação do processo de reestruturação da imagem no psiquismo e que, talvez, seja preciso
um período maior de tempo para registrar tais alterações. O resgate do símbolo do Feminino
colaborou com o encaminhamento do processo de individuação das participantes. Desta forma,
a Dança do Ventre quando inserida neste contexto se mostra uma grande aliada na assistência e
promoção de saúde deste tipo de população.
SUMÁRIO.

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11

CAPÍTULOS TEÓRICOS:

1: A HISTÓRIA DA MULHER..................................................................................... 19
2: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA .......................... 37
3. PRINCÍPIOS: ANIMUS E ANIMA ......................................................................... 53
4. DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E COLETIVA......... 69
5. CONSEQUÊNCIAS DO DINAMISMO PATRIARCAL PARA A PÓS-
MODERNIDADE OCIDENTAL.................................................................................. 84
6. A DANÇA ................................................................................................................. 93
6.1. A DANÇA DO VENTRE ...................................................................................... 98
7. DOR ......................................................................................................................... 113
7.1. RELEVÂNCIA CIENTÍFICA ............................................................................. 113
7.2. DOR – ASPECTOS FÍSICOS .............................................................................. 114
7.3. TEORIA DO CONTROLE DA COMPORTA .................................................... 118
7.4. IMPLICAÇÕES DA TEORIA DO CONTROLE DA COMPORTA E A
RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO TRATAMENTO DE
ALGIAS CRÔNICAS ................................................................................................. 120

METODOLOGIA ..................................................................................................... 131

HISTÓRIA DE VIDA DAS PARTICIPANTES ........................................................ 144

CONTEXTUALIZAÇÃO DA FASE DE CICLO VITAL DAS


PARTICIPANTES ...................................................................................................... 150

RESULTADOS .......................................................................................................... 154

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................. 195


CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 228

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 230

ANEXOS .................................................................................................................... 239


INTRODUÇÃO.

A escolha do tema teve suas peculiaridades e para contextualizá-la precisarei


fazer um breve histórico. A integração de Dança do Ventre e Psicologia me rendeu
muitos questionamentos desde o início da minha formação acadêmica. Após minhas
primeiras experiências nesta arte percebi que a sua prática me remetia a algo muito
maior do que aquelas experiências estéticas, harmoniosas e sublimes; no entanto, ainda
não sabia do quê se tratava. Despertara algo que ainda não compreendia, tampouco
conseguia pôr em palavras, mas me sentia motivada a tocar essa experiência adiante.
Estudei, fiz cursos de formação profissional e me tornei apta a lecioná-la. A partir de
então, fui percebendo que a minha experiência não era única: pude ver que algo também
se manifestava em minhas alunas. A mudança era notória: além da mobilidade corpórea,
tornavam-se mais graciosas, delicadas e femininas.

Quando solicitado, na matéria de Seminários, que optássemos por um tema, logo


pensei: dança! Mas, depois, ponderei que deveria escolher outro, digamos, algo mais
“científico”. Desta forma iniciei meu projeto em outro tema, que também me interessa
muito, mas existia uma inquietação muito grande que não poderia desprezar. Sendo
assim, resolvi focar novamente o tema da Dança do Ventre. Mais tarde fui perceber que
na realidade eu não havia mudado de tema, mas sim, o foco, pois assim como este, o
primeiro abordava a temática do feminino. Também pude perceber que estava com uma
visão muito contaminada, ao pensar que estudar a dança não seria científico. Muito pelo
contrário: hoje percebo que as artes têm muito a ensinar à ciência, principalmente à
Psicologia Analítica, por veicularem manifestações arquetípicas, logo, por falarem sobre
o psiquismo humano.

Ao longo da minha prática como professora, percebi mudanças significativas nas


alunas; nas primeiras aulas muitas delas iam com camisetas largas e, então,
progressivamente apareciam com camisetas um pouco mais justas, depois mais curtas,
até que vinham para a aula com tops, maquiadas e relatavam o quanto estavam se
sentindo mais bonitas e femininas. Isso me fez pensar que existe uma relação entre a
prática da Dança do Ventre e a elevação da auto-estima. No entanto, na época ainda não

11
existiam trabalhos específicos sobre essa relação; mesmo assim muitas mulheres
procuravam e ainda procuram este tipo de dança com o intuito de melhorar a auto-
estima e relação com o corpo.

Sabemos que a prática sistemática desta dança tem o potencial de resgatar elementos
do Feminino na mulher – com Feminino nos referimos ao princípio Feminino, de forma
geral, e não ao gênero ou à feminilidade –, que conforme veremos adiante, foi reprimido
pelo desenvolvimento patriarcal da sociedade (Whitmont, 1991). Através desse resgate
do princípio Feminino, a mulher se depara com sua deusa interior, constelando o
arquétipo da Grande Mãe (Penna, 1993), o que explica o fato de se sentirem mais
femininas e valorizadas; sendo assim, a elevação da auto-estima seria secundária ao
resgate do Feminino.

Outra característica que me intriga na Dança do Ventre é o fato de ter se tornado


repentinamente aceita há aproximadamente três décadas, sendo que antes era
discriminada (La Regina, 1998). Isto não ocorreu unicamente no Brasil, mas em grande
parte dos países ocidentais que presenciaram o boom desta dança quando começou a ser
veiculada em filmes de Hollywood como Alí Babá e os Quarenta Ladrões, por exemplo.
Podemos fazer uma leitura de que esta arte traz valores que faltam à nossa cultura
patriarcal: valores referentes ao princípio Feminino. Este provavelmente seria o motivo
de toda essa repercussão da Dança do Ventre e, também, o motivo pelo qual esta arte
milenar tem sobrevivido até os tempos atuais. Atualmente, vemos muitos homens
incentivando ou até mesmo levando suas companheiras para conhecer e praticar a arte
mas, ainda hoje, vemos alguns destes impondo que só dancem para eles, ou seja, que
não se apresentem nem divulguem sobre a prática da dança para outras pessoas,
principalmente para outros homens: que tentação e que risco é esse que a Dança do
Ventre oferece para eles?

Que poder tão grandioso está envolto na Dança do Ventre que a faz ser capaz de
resgatar aspectos do princípio Feminino em mulheres, as aproximando dos seus
instintos e valores genuínos, promovendo uma ampliação da consciência psíquica e
corporal? Essas, entre outras questões serão mais discutidas ao longo deste trabalho.

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No decorrer deste ano fiz estágio no ambulatório de Dor do Instituto de
Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (IOT-HC/FMUSP), sob supervisão da Prof.ª Dr.ª Adrianna
Loduca. Comecei a me interessar muito sobre o tema da dor e foi quando, ao saber do
meu anseio por estudar a influência da Dança do Ventre no resgate do Feminino e
elevação da auto-estima, a Prof.ª Adrianna me convidou para dar continuidade, com este
foco, ao trabalho que realizou em sua tese de doutorado.

Desta forma, a presente pesquisa partiu de uma constatação realizada ao término


da tese de doutorado da Profª. Drª. Adrianna Loduca, que trabalhou com pacientes com
dor crônica em grupo psicoeducatico de abordagem psicodramática (Loduca, 2007).
Detectou a necessidade de uma continuidade do trabalho, agora com foco direcionado
aos aspectos relativos ao Feminino das mulheres participantes do grupo, e também
visando contribuir para a elevação da auto-estima: elas apresentaram questões nestas
áreas identificadas no término do trabalho psicoeducativo e no follow up realizado após
2 anos.

Atualmente a compreensão da dor exige da equipe de tratamento um olhar mais


amplo, que abarque os aspectos físicos, cognitivos, afetivos, emocionais e
comportamentais do indivíduo sofredor. O modelo biomédico, com sua leitura
embasada em parâmetros físicos e bioquímicos, tem sido deixado de lado e o modelo
biopsicossocial passa a ser o mais adequado, considerando-se que não somente o corpo
físico é que padece, mas todo o organismo, em seus diversos aspectos; biológico,
psicológico e social. A partir deste modelo biopsicossocial evidenciou-se a importância
de tratar doentes de algias crônicas multidisciplinarmente, reconhecendo o indivíduo
como um todo, explorando e investigando a melhor conduta a ser tomada, respeitando
sempre a particularidade de cada caso (Loduca, 2007).

A dor é um evento subjetivo, não conseguimos detectá-la a olho nu, mas sim,
por meio dos relatos e observações de comportamentos do sofredor que expressem tal
desconforto, conhecidos como comportamentos dolorosos. Sendo assim, é de grande
relevância entendermos o que se passa na subjetividade de cada paciente e isto é
viabilizado por meio do trabalho do psicólogo que busca compreender o significado que

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cada indivíduo atribui para sua dor, o impacto desta em seu cotidiano, bem como os
recursos de que o paciente dispõe para o tratamento e enfrentamento da doença.
Identificar esses fatores é muito importante para que haja ressonância entre as condutas
de intervenção e as necessidades de cada paciente, fato que corrobora a adesão ao
tratamento.

Sabemos que aspectos psicológicos podem produzir a percepção da dor ou


aumentar a tolerância à estimulação dolorosa (Lin et al., 2005). Desta forma, para
compreender a dor de cada indivíduo, é preciso extrapolar o âmbito físico, buscando
entender não somente a natureza física do agente causador da dor, como os fatores
psicológicos que podem estar envolvidos de diferentes formas: como causa da doença,
como fatores de manutenção, como consequência da doença, desencadeantes ou
agravantes do problema (Simonetti, 2004).

Pacientes com dor, além das angústias próprias trazidas pelo processo álgico e
pelo tratamento, enfrentam comumente uma questão muito complicada: quando a dor
passa a ser diagnosticada como crônica, isso faz com que aumente o nível de angústia e
tensão, além do fato de gerar uma série de fantasias, principalmente a de incurabilidade.
Nesse sentido, o sofrimento extrapola o aspecto biológico, abrangendo também os
aspectos psicológicos e sociais. Esses pacientes, em geral, são submetidos a uma série
de intervenções nas quais situações de fracasso e sucesso se alternam. Isto faz com que,
em muitos casos, o paciente questione a competência do tratamento e da equipe que o
assiste, o que por sua vez faz aumentar ainda mais a ansiedade, angústias e fantasias em
relação ao seu diagnóstico e prognóstico.

Frente a tudo isso, a presença da dor crônica faz com que a pessoa relacione-se
consigo mesma e com o mundo ao seu redor através de uma máscara, ou um rótulo: o de
sofredor (Loduca 1999b). Pensando o ser-humano afetado biopsicossocialmente,
conseguimos entender que a dor afeta globalmente a vida do sofredor, comprometendo
diversos aspectos de sua existência.

Sendo assim, questões relacionadas ao prazer, tanto corporal quanto pela vida,
tornam-se extremamente limitadas ou, dependendo do caso, até mesmo ausentes. Então,

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a forma como pacientes com algias crônicas relacionam-se com o próprio corpo é muito
marcada pela dor, sendo que o pólo oposto – do prazer –, acaba ficando “esquecido”.
Desta maneira, os pacientes agarram-se a qualquer esperança de extinção da dor, alívio,
ou em último caso tolerância, quando cuidados paliativos tornam-se a única opção.

Conforme veremos melhor adiante, o impacto da dor crônica abrange diferentes


aspectos do cotidiano do doente como: auto-imagem e auto-estima, consciência e
cuidado corporal, rede de apoio social e familiar, projeto de vida, trabalho, entre outros.
Estas áreas estão interligadas, sendo que caso uma esteja mais prejudicada, outras
também serão influenciadas (Loduca & Samuelian 2003).

Atentar-me-ei a discutir e intervir nas áreas referentes à auto-imagem e auto-


estima e consciência corporal, pois existe uma carência acentuada de estudos brasileiros
com pacientes com dor crônica. Loduca (1999a, pp.15-21) identificou que a consciência
corporal destes pacientes fica prejudicada, no sentido em que a atenção encontra-se
totalmente focada na região do corpo aonde dói, diminuindo consideravelmente a
preocupação com resto do corpo, que por sua vez, fica praticamente anulado, pois toda a
sensibilidade e preocupação gira em torno da dor. O autocuidado, então, restringe-se a
comportamentos que evitem desconforto, atentando-se à região dolorosa.

Sendo assim, é de grande relevância ampliar a consciência corporal desses


pacientes, para assim aumentar também seu autocuidado global. Desta forma, ao ser
ampliado o olhar do paciente, permitindo-lhe perceber a importância não somente do
tratamento medicamentoso como dos complementares, a adesão ao tratamento aumenta.
Essa consciência corporal limitada à região de desconforto álgico pode indicar uma
postura mais passiva do paciente, tendo em vista que ele não cuida do próprio corpo de
maneira global; então, ampliar a consciência corporal implica numa alteração do
posicionamento do paciente frente ao tratamento, estimulando-o a adquirir uma posição
de responsabilidade na atuação sobre o próprio tratamento e não apenas a de quem
espera, passivamente, a solução de seus problemas.

Lanço mão de alguns autores para definir e contextualizar auto-imagem ou


imagem corporal. Farah (1995, p.81) define imagem corporal como a “representação

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internalizada no corpo, em relação ao indivíduo que nele vive”. Schilder (1980) afirma
que na constituição da imagem corporal, o pensamento sobre o corpo tem o mesmo
valor quanto a imagem que se faz dele, nesse sentido a imagem própria e a percepção
física são consideradas como elaborações simbólicas semelhantes.

A partir da leitura desses autores percebemos como a imagem corporal ou auto-


imagem nos diz sobre a auto-estima da pessoa, consciência corporal e sobre seu
autocuidado, aspectos estes muito implicados na adesão ao tratamento. Caso o paciente
esteja com a auto-estima rebaixada, sua consciência corporal estará limitada e o
autocuidado diminuirá significativamente, o que por sua vez, implica num rebaixamento
dos cuidados com higiene, do uso de medicação e a falta de participação nas terapias
complementares – fisioterapia, terapia ocupacional, psicoterapia, grupos
psicoeducativos, entre outros. Consequentemente haverá, em geral, uma diminuição da
participação do doente no seu próprio tratamento. Podemos perceber que instala-se um
ciclo vicioso e o intuito do presente trabalho é colaborar com a quebra desse ciclo,
oferecendo novos olhares a partir da conscientização corporal e do contato íntimo com o
princípio Feminino.

Elevar a auto-estima é muito importante para que essa população possa olhar
para si de forma a se permitir entrar em contato com aspectos prazerosos da existência,
extrapolando as vivências dolorosas do adoecimento. Acredito que com essa elevação
possa ocorrer uma melhora na qualidade de vida, no sentido em que a auto-estima
parece repercurtir intensamente nas outras esferas do cotidiano do indivíduo. O conceito
de qualidade de vida aqui adotado segue a definição da Organização Mundial da Saúde
(OMS), a qual afirma que qualidade de vida: “é a percepção do indivíduo de sua
posição na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em
relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (Lin et al., 2005,
p.8).

O objetivo deste trabalho é pesquisar, através do referencial teórico da


Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961), se a Dança do Ventre, devido ao
seu potencial arquetípico, contribui para o resgate de aspectos do princípio Feminino e
elevação da auto-estima em mulheres com dor crônica. Há estudos que apresentaram

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resultados positivos nesta questão (Marques, 1994; Albuquerque, 2000 e Kurbhi, 2001):
no entanto se referem à população em geral e à prática sistemática desta dança. Meu
interesse é justamente compreender se a Dança do Ventre pode ser um bom instrumento
para a população que sofre de algias crônicas e se mostra efetividade em um curto
período de tempo.

O resgate de aspectos do Feminino, além de se tratar de uma questão coletiva


conforme veremos posteriormente, é significativo para o processo de individuação
feminina. Através desse resgate, torna-se possível o acesso ao arquétipo da Grande Mãe
(Penna, 1993) e aos seus potenciais reprimidos, tanto coletiva quanto individualmente
devido a complexos pessoais e, no caso de nossa população, pelo processo álgico
crônico. Penso que a dor crônica seja um fator que afaste seus sofredores do arquétipo
da Grande Mãe, no sentido que a relação com o próprio corpo e a busca por prazeres,
tanto corpóreos quanto pela vida, ficam prejudicados em função de seu amplo impacto.

Trabalhar aspectos do Feminino é um assunto contemporâneo, pois há tempos as


mulheres têm manifestado insatisfações e dificuldades em lidar com sua feminilidade
que, por séculos, foi maciçamente reprimida pela sociedade patriarcal devido à
hipervalorização dos elementos masculinos da experiência – como a objetividade, a
racionalidade, a força – se contrapondo à grande desvalorização dos aspectos femininos
– como a sensibilidade, a priorização do outro, a emoção. Esse processo será discutido
com maiores detalhes nos capítulos teóricos.

Desta forma, o intuito desta pesquisa é gerar conhecimento: na prática clínica,


nos âmbitos terapêutico, profilático e de promoção de saúde; e na pesquisa científica de
modo a explorar a interseção entre três campos: o da dor crônica, da Dança do Ventre e
da Psicologia Analítica. Sua relevância científica se aplica ao fato de que o resgate de
aspectos do Feminino, neste caso, é importante, pois acredito que é uma forma de
quebrar com o ciclo citado anteriormente. Também vale salientar que quando o
indivíduo não se sente bem consigo mesmo, reflexo da auto-estima rebaixada, instala-se
um sentimento de insatisfação e inadequação, aumentando a tensão e o sofrimento, o
que piora a rigidez corpórea e, por sua vez, eleva a intensidade dolorosa.

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Dançar, no âmbito físico é acariciar-se, é permitir receber as massagens
promovidas pelos movimentos sinuosos e vibrantes do quadril em nossos órgãos
femininos como útero e ovários e, também, receber a massagem no coração através dos
movimentos circulares e delicados de tronco. No âmbito emocional é deixar os
movimentos melodiosos e serpentinosos imprimirem uma emoção profunda. É utilizar
todo o potencial feminino e criativo na tradução corporal, emocional e espiritual
trazidos pela bela mistura entre música e dança.

Acredito que ao despertar esses sentimentos e ampliar seus conhecimentos das


próprias potencialidades corporais, deparando-se com uma outra forma de sentirem o
corpo – a prazerosa –, estas mulheres estarão reencontrando (a nível arquetípico)
aspectos do princípio Feminino reprimido, mudando sua relação com os outros e com o
próprio corpo através da ampliação da consciência corporal e da elevação da auto-
estima promovidas pela Dança do Ventre.

Este trabalho constou de duas partes: uma teórica e outra prática. Os capítulos
teóricos foram divididos da seguinte forma: 1. A história da mulher nos diferentes
momentos históricos, 2. Pressupostos teóricos da Psicologia Analítia, 3. Os princípios
Masculino e Feminino (Animus e Anima), 4. O desenvolvimento da consciência
individual e coletiva, baseado nos estudos de Neumann e Whitmont, 5. Consequências
do patriarcado para a pós-modernidade ocidental, 6. A Dança e a Dança do Ventre, 7.
Dor: aspectos físicos e psicológicos, 8. Metodologia, 9. Resultados, 10. Análise e
discussão dos resultados e 10. Considerações Finais.

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A HISTÓRIA DA MULHER.

Este capítulo destina-se à breve descrição do processo histórico pelo qual as


mulheres passaram, visando compreender as mudanças de papéis e visões de mundo que
ocorreram até os dias atuais, pois, como sabemos, em pouco tempo, mais
especificamente neste último século, ocorreram mudanças drásticas em períodos muitas
vezes inferiores a uma década, o que fez com que se instalasse um clima de estranheza e
perplexidade entre uma geração e outra.

O acesso ao mercado de trabalho e aos métodos anticoncepcionais nas últimas


décadas, possibilitaram à mulher contemporânea uma certa dose de liberdade,
autonomia e independência. A partir de então, as relações entre os sexos passaram por
grandes transformações, especialmente no que diz respeito à distribuição do poder,
ocorrendo alterações significativas nos papéis sexuais, assim como nas expectativas
mútuas, conforme apontado por Moraes (1994).

Tais mudanças incentivaram pesquisadores a compreender o que acontecera em


tão pouco tempo para motivar uma verdadeira revolução sexual. Desta forma, estudos
estatísticos e demográficos foram realizados nesses últimos tempos e demostraram que,
de fato, houveram mudanças significativas nas relações de gênero. Moraes (1994)
ressalta que a partir da década de 70 os estudos e pesquisas começaram a enfocar a
mulher como objeto de estudo, e que já na década de 80 percebeu-se a necessidade de
uma avaliação crítica dessa produção. Ocorreram então, encontros e Seminários tanto
em nível nacional como internacional (Costa e Bruschini apud Moraes, 1994).

Moraes desenvolveu sua tese de doutorado buscando compreender as


perspectivas amorosas de mulheres contemporâneas e observou que as mudanças de
gênero também modificaram o ideal de companheiro das mulheres e que a sociedade
ainda não sabe como lidar com as mudanças de papéis das mulheres. Ela declara que: “o
que se constata, hoje, no meu modo de ver, é que a sociedade ainda está perplexa
olhando para o lugar vazio deixado pela mulher na cozinha ou no piano e ainda nem

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conseguiu avaliar as implicações que isto trouxe ao quarto de dormir e aos locais de
trabalho” (1994, p.12).

Hoje em dia é alto o número de mulheres que trabalham fora de casa, que
chefiam famílias e que não atendem mais às expectativas e estereótipos tradicionais
(Moraes, 1994); sendo assim, para compreendermos todas essas mudanças de padrões
de comportamento, expectativas e estereótipos, convido o leitor para uma breve viagem
histórica, iniciando pela fase do matriarcado, percorrendo o patriarcado, para chegarmos
nos tempos atuais, em que vivenciamos a queda deste e um início, ainda tímido, de um
novo padrão: o da alteridade; abordaremos este tema tanto da perspectiva sociológica
quanto psicológica, a ser discutida no capítulo 4. Serão destacadas as mudanças de
atitudes e pensamentos, assim como suas implicações para o mundo contemporâneo.

Segundo Muraro (Muraro & Boff, 2002) há aproximadamente trinta mil anos,
dependendo das regiões, iniciava-se o que atualmente denominamos de matriarcado. Ela
faz referência à Heide Göttner Abendroth, autora que se destacou ao estudar o
matriarcado, e afirma que a partir de 10.000 a.C, as grandes sociedades eram
matriarcais. Isto significa que as mulheres detinham a hegemonia política; eram elas que
mediavam e solucionavam os conflitos ficando, assim, encarregadas de organizar os
grupos sociais. Neste período, homens e mulheres viviam de forma integrada, as
relações eram igualitárias e a mulher era considerada mais próxima dos deuses porque
dela dependia a reprodução da espécie: por este motivo, ao mesmo tempo em que eram
respeitadas, também eram temidas. Este período durou aproximadamente um milhão e
meio de anos e foi governado conjuntamente por homens e mulheres. “Era o tempo das
grandes deusas que inspiraram organizações sociais marcadas pela cooperação, pela
reverência em face da vida e dos seus mistérios” (p.53).

No matriarcado, a natureza era vista como uma totalidade à qual o ser humano
pertencia, e por este motivo deveria viver em harmonia com ela, respeito-a e venerando-
a, pois possuía muitos mistérios que os homens daquela época ainda não entendiam.
Esses mistérios geravam medo e incertezas, pois os prazeres e as angústias, neste
período, eram atribuídos às deusas; os homens – lembrando que aqui a palavra homens
é utilizada como referência para ambos os sexos – tentavam harmonizar-se com suas

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deusas por meio dos cultos: acreditavam que sua sobrevivência dependia delas (Faria
2003). Ainda não se tinha a visão da natureza como um meio a ser conquistado. Muraro
acredita que “As instituições do matriarcado, caracterizadas por grande força
integradora, foram tão significativas que se transformaram em arquétipos e em valores
e, como tais, deixaram incisões na memória genética até os dias de hoje” (Muraro &
Boff, 2002, p 54).

Aparecem então as divindades femininas, através das quais se adora a idéia da


fecundidade. Ísis no Egito, Atana em Creta, Inana na Suméria, Istar na Babilônia e Géia
na Grécia são as representações da Grande-Deusa, ou Grande Mãe.

No período do Paleolítico (Período da Pedra Lascada) o homem torna-se


nômade, sua subsistência é obtida a partir da coleta, da caça e da pesca. Nas
comunidades predominavam a propriedade coletiva dos meios de produção. “O esforço
de previsão e de organização, eminentemente um ato de vontade, fez emergir as
primeiras civilizações do Paleolítico recente (cerca de 30 mil anos a.C.), quando a
população se adensou” (Faria, 2003, p.38).

Com o Paleolítico, as comunidades que antes eram endogâmicas foram aos


poucos tornando-se exogâmicas. Ainda nesse momento não havia pares sexuais
exclusivos, sendo que os coitos ocorriam na mesma época do acasalamento dos animais;
segundo Dupuis (1989) fora dos casamentos coletivos provavelmente existiam
intercursos sexuais endogâmicos.

É no Paleolítico que o ser humano começa a viver da caça e da coleta de


vegetais, atividades realizadas pelo grupo masculino e feminino respectivamente.
Apesar de serem territórios econômicos e sexuais exclusivos, eram complementares:
existia colaboração e divisão de trabalho entre os sexos, pois o homem necessitava do
animal e das plantas para sobreviver. Este aspecto é ressaltado na obra de Badinter
(1986) que afirma que desde o início, homens e mulheres necessitaram e
complementaram um ao outro para o esforço da sobrevivência.

Segundo a análise de Faria (2003, p.37):

21
“A imagem de homem e mulher que aparece no Paleolítico recente – o
homem como caçador e tendo seus domínios fora da caverna, a
mulher como coletora e cuidadora dos filhos – parece que sempre
povoou a raça humana. Essa dimensão de trabalho, calcada no
biológico, na maior força física do homem para atividades brutas e na
capacidade de gerar da mulher, posteriormente serviu como suporte
para os padrões culturais e ideológicos do que é ser homem e do que é
ser mulher”.

Para facilitar a compreensão, retomemos sucintamente alguns dados históricos.


A Pré-história situou-se num período anterior a 3500 a.C e foi divida em três períodos: o
Paleolítico, ou Idade da Pedra Lascada, o Neolítico, ou Idade da Pedra Polida e a Idade
dos Metais. Foi no Neolítico que se iniciou o processo de sedentarização da espécie
humana, formação dos primeiros núcleos urbanos, organização das tribos e
estabelecimento das sociedades matrilineares, pois a função procriadora era reconhecida
somente na mulher. Com o desenvolvimento da agricultura, os locais de caça cederam
espaço aos agrícolas, que eram cultivados coletivamente. Neste período, a mulher era
valorizada e recebia “um reconhecimento por sua sabedoria e seu caráter de criadora,
e, em certas culturas, como na hindu, possuía até sua liberdade sexual. Ela não era de
nenhum homem, não era propriedade” (Faria, 2003, p.42).

Somente quando os nômades se fixam ao solo e se tornam agricultores é que


surgem as instituições e o direito, os homens começam a pensar o mundo e a si próprios
e neste momento, a diferenciação sexual reflete-se na estrutura da coletividade; assume
um caráter singular. Nas comunidades agrícolas a mulher adquiriu muitas vezes um
extraordinário prestígio e esse prestígio se deveu ao fato de que a criança passa a ser
importante numa civilização que precisa de mão-de-obra para o trabalho com a terra. Ao
se instalar na terra e se apropriar dela, este povo viu a necessidade de uma posteridade
para seu patrimônio; desta forma, a maternidade torna-se uma função sagrada e a
mulher passa a desempenhar um papel de extrema importância. Neste período, em que a
procriação parece ser apenas um acidente e as riquezas do solo continuam
desconhecidas, pode-se dizer que misticamente a terra pertencia à mulher, pois o
agricultor ficava admirado com o mistério da fertilidade e entusiasmava-se com a idéia
de ter outras pessoas para cuidar e perpetuar a fertilidade dos campos. Por este motivo é
que destinou-se à mulher o trabalho agrícola, pois acreditava-se que as mulheres tinham

22
o poder de fazer jorrar os frutos dos campos semeados. Acreditava-se que a mulher
possuía um poder mágico sobre a terra.

O Neolítico, então, marcado pela sedentarização, desenvolvimento da


agricultura e criação dos animais, possibilitou o contexto para que o ser humano
pudesse observar como se dava a reprodução. Isto fez com que o poder misterioso de
gerar a vida, até então atribuído unicamente à mulher como algo mágico e sombrio ao
mesmo tempo, fosse lentamente sendo imaginado e generalizado para a raça humana, o
que posteriormente permitiu aos homens o entendimento do seu papel na procriação, o
que por sua vez, diminuiu o poder da mulher e o medo do desconhecido que ela gerava.

Simone de Beauvoir foi uma autora que dedicou-se admiravelmente a


compreender o papel das mulheres na sociedade. Beauvoir nasceu na França em Janeiro
de 1908 e consagrou-se como escritora, filósofa existencialista e feminista. Em “O
Segundo Sexo” (1949), ela reflete criticamente sobre o papel que a mulher foi ocupando
ao longo da história e constata o fato de a mulher ser “escrava da sua própria situação”,
pois não tem passado, não tem história, não tem religião própria, ou seja, não produziu
diretamente nenhuma civilização. Ela fez do patriarcado, acontecimento histórico-
cultural, sua crítica mais radical. Para ela, a mulher representaria um caso particular da
dialética imposta pelos homens; dialética do senhor-escravo o que impediu que a mulher
expressasse sua diferença e elaborasse sua identidade. Desta forma, o homem fez da
mulher a encarnação do Outro, na qual pôde por séculos, projetar seus medos e
angústias.

Beauvoir afirma que desde a época primitiva o homem, como guerreiro,


colocava em jogo a sua própria vida e elevava o prestígio do clã ao qual pertencia, com
isto provava que a vida não era o valor supremo e que ela deveria servir a fins mais
importantes do que a ela própria, portanto, não era dando a vida mas arriscando-a que o
homem se colocava acima do animal. “A maior maldição que pesa sobre a mulher é
estar excluída das expedições guerreiras” (1949, p.84); afirma a autora que a
superioridade é portanto garantida não ao sexo que engendra e sim ao que mata. A
mulher neste período então, é tida à altura dos animais. O fato de poder gerar um
descendente não significava ao povo primitivo nada mais do que uma simples repetição

23
e o valor dado pela sociedade não estava na mera repetição, mas sim, na superação; é
transcendendo à vida pela existência que o homem assegura a repetição da mesma e
consequentemente cria valores.

“Pondo-se como soberano, ele [homem] encontra a cumplicidade da


própria mulher, porque ela é também um existente, ela é habitada pela
transcendência e seu projeto não está na repetição e sim na sua
superação em vista de um futuro diferente; ela acha no fundo de seu
ser a confirmação das pretensões masculinas. Associa-se aos homens
nas festas que celebram os êxitos e as vitórias dos machos. Sua
desgraça consiste em ter sido biologicamente voltada a repetir a Vida,
quando a seus próprios olhos a Vida não apresenta em si suas razões
de ser e essas razões são mais importantes do que a própria vida”
(1949, p.85).

A autora coloca criticamente que o homem, ao arriscar a sua vida, abre o futuro
para o qual a mulher, que é apenas um existente que dá a vida, transcende. Foram os
homens e não as mulheres que fizeram a divisão dos valores femininos e masculinos,
estavam preocupados em manter as prerrogativas masculinas e então criaram um campo
de domínio feminino, para assim, segundo ela, limitar a mulher. Esta então, torna-se
“presa” ao homem que sempre procurou meios de evadir-se de seu destino específico,
inventando ferramentas (para caça, pesca, etc.). Ele passa a ter controle da manutenção
da vida, enquanto que a mulher continua confinada a seu corpo, assim como os animais.

Devido à maternidade, fica naturalizado o fato de a mulher ficar em casa,


cuidando da prole e do trabalho agrícola, enquanto que o homem caça, pesca e guerreia.
A indústria doméstica era também competência das mulheres, elas teciam tapetes e
cobertas, fabricavam vasilhames, comercializavam através de trocas. Desta forma, era
por meio das mulheres que se mantinha e propagava a vida no clã; seus filhos
dependiam de seu trabalho no campo e de suas “virtudes mágicas”, conforme
denominou Beauvoir. Eram as mulheres que cuidavam dos rebanhos, das colheitas, dos
utensílios, sendo assim, a vida do grupo dependia delas. Diante de tudo isso, os homens
as respeitavam, mas também as temiam, pois era na mulher que se resumia toda a
natureza “estranha” e misteriosa.

24
Para Beauvoir, dizer que a mulher era o Outro equivale a dizer que não existia
uma relação de reciprocidade entre os sexos. Terra, Mãe e Deusa, não eram para o
homem um semelhante; era além do reino humano que seu domínio se afirmava, deste
modo, estava fora de seu território e por este motivo é que a mulher lhe era tão
misteriosa e aterrorizadora.

A Grécia antiga, conforme citado anteriormente, inicialmente cultuava Géia:


deusa única e soberana, era considerada a Grande Mãe, a rainha da fertilidade, portanto
a responsável pela fecundidade do solo e das mulheres (Woolger & Woolger, 1987).
Géia era representada pelas mulheres em geral, por este motivo é que se acreditava que
eram as responsáveis pela fertilidade da terra.

No entanto, com o crescimento demográfico e a ocupação mais densa do solo, as


competições entre os grupos e confrontos aumentam substancialmente os atos de
violência. Tem início uma nova época; a Idade dos Metais que representou
aperfeiçoamento das técnicas de metalurgia, o que possibilitou ao ser humano elaborar
instrumentos de trabalho e armas. A resultante disto foi que alguns grupos passaram a
deter a hegemonia sobre outros e as sociedades dividiram-se em classes sociais,
ocorrendo a distinção de trabalho: o trabalho externo passou a ser executado
exclusivamente pelos homens, enquanto que as mulheres ficaram encarregadas dos
afazeres domésticos e da criação dos filhos. Dupuis (1989) afirma que o incremento da
guerra e a valorização do herói guerreiro foram as principais razões para o
estabelecimento da dominância patriarcal.

“A agricultura, por sua vez, que era de exclusiva ocupação da mulher,


com a invenção dos instrumentos para arar a terra, que exigiam mais
força física, foi sendo controlada também pelos homens; a mulher
ficava como um agente secundário na época da semeadura,
participando igualmente dos atos mágicos de fertilização da terra”
(Faria, 2003, p.44).

O término do matriarcado, segundo Muraro (Muraro & Boff 2002), ocorre por
volta de 2000 a.C., podendo variar em algumas regiões. A partir de então teve início a
fase do patriarcado. No entanto, essa passagem demorou aproximadamente mil anos até
se completar. “É fato histórico que a partir de então o mundo começou a pertencer aos

25
homens, fundando-se o patriarcado, base do machismo e da ditadura cultural do
masculinismo” (p.54). A autora atribui essa passagem ao fato de que, provavelmente, a
vontade de dominar a natureza, por todas as dúvidas e angústias que lhe causava, levou
o homem a dominar a mulher, que até então era identificada com a natureza pela
possibilidade da gestação, que já não lhes era mais misteriosa.

“Como decorrência, a própria Mãe Terra vai sendo pouco a pouco


dessacralizada (o que levou muitos séculos), pois poderia ser
dominada pela técnica, e isso leva a uma dessacralização da mulher,
a quem a terra estava relacionada, a qual se torna, ideologicamente,
com o decorrer dos séculos, uma representante da natureza
corruptível e oposta ao Espírito, conotado como masculino” (Faria,
2003, p.44).

No patriarcado, aos poucos os homens foram compreendendo que as riquezas do


solo não eram tão misteriosas quanto se pensava, descobriram que poderiam enriquecê-
lo, que convinha deixá-lo descansar, perceberam que se preparassem a terra de
determinada maneira as sementes germinariam melhor: descobriram portanto, que
possuiam influência sobre a safra e também sobre a procriação e, então, foram se
afastando do pensamento misterioso da influência das mulheres-deusas e guardando
para si o domínio terrestre. Para Beauvoir, a mulher só foi venerada na medida em que o
homem se fazia escravo de seus próprios temores, cúmplice da sua impotência ele se
entregava pelo terror e não pelo amor ao culto à Deusa-Mãe. Frente a seus medos e
inseguranças e com esses novos conhecimentos, o homem não viu outra possibilidade
senão a de destronar a grande Deusa. A mitologia, de diversas regiões, contribui para
essa compreensão quando ilustra que junto à Deusa surge um deus filho ou amante. A
figura masculina não apenas cria, como a sua mãe, mas também age e racionaliza. Passa
a existir, então, o deus soberano, e a totalidade Grande-Deusa, na mitologia grega, se
divide entre deusas e ninfas. Neste período a mulher passa a ser subordinada ao homem
e como é explicitado na mitologia grega, Zeus está acima de tudo e de todos e como
autoridade máxima ele delega funções às suas subordinadas, as deusas e ninfas do
Olimpo, dentre elas Hera (sua esposa), Atená, Afrodite, Ártemis, Deméter e Perséfone.

Beauvoir acredita que a desvalorização da mulher representou uma etapa


necessária na história da humanidade. Segundo a autora, era da sua fraqueza e não do

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seu poder positivo que a mulher tirava o seu prestígio. A mulher passou então a ser
tratada com extrema hostilidade, representando a portadora do mal, do pecado, isso é
evidenciado na figura de Pandora, da mitologia grega, que por sua extrema curiosidade
abre uma caixa libertando e desencadeando todos os males da humanidade. Em Adão e
Eva, a última passa a ser impura e portadora de um corpo que é digno de vergonha, por
ser o lugar do pecado.

A ideologia cristã contribuiu bastante para a opressão da mulher pois, quando


esta se submetia aos preceitos da Igreja, era considerada relativamente honrada.
Entretanto não podia tomar parte do culto, só lhe era permitido o cuidado aos doentes e
socorro aos indigentes. Conforme Beauvoir afirma, São Paulo exige das mulheres
discrição e modéstia, justifica no Antigo e no Novo Testamento a submissão delas aos
homens, afirmando que o homem não foi criado para a mulher, e sim a mulher para o
homem; diz que, assim como a Igreja é submetida a Cristo, a mulher também o deve ser
a seu esposo. No Cristianismo existe o pecado da carne e a mulher é, então, a mais
temível tentação do demônio. Santo Ambrósio ao falar que Eva levou Adão a comer o
fruto do pecado acha justo que a mulher aceite como soberano aquele que conduziu ao
pecado. Assim, a Igreja justificava a inferioridade feminina (Beauvoir, 1949, p.119).

Contudo, mesmo “escravizada” a mulher ainda era respeitada; o marido a


comprava, mas o preço da compra constituía uma renda de que ela era proprietária: o
pai dotava-a, ela recebia parte de sua herança paterna e em caso de assassinato dos pais,
uma parte desta era paga pelo assassino; a poligamia e o adultério eram severamente
punidos e o casamento era respeitado. Essa tradição se perpetuou durante a Idade
Média.

Quando o feudalismo se organiza, a condição da mulher fica incerta. O direito


feudal é caracterizado pela confusão entre soberania e propriedade e entre direitos
públicos e privados: isso explica o fato de a mulher estar nesta fase, ora rebaixada, ora
elevada pelo regime. Até o século XI a mulher não podia ter um domínio feudal, pois
era alegado que não conseguiria defendê-lo. Porém, quando os feudos se tornam
hereditários e patrimoniais isso muda; na ausência de herdeiros, a filha poderia herdar o
feudo. Mas mesmo assim a mulher ainda continuou “presa” ao homem, pois ela

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precisava de um tutor masculino e era o marido que desempenhava esse papel, ele quem
usava o título e que se beneficiava dos bens da esposa: portanto a mulher não deixou,
segundo Beauvoir, de ser o instrumento através do qual a propriedade se transmitia e
não sua possuidora. Esta época foi muito dura para a mulher porque, além do mais, era
permitido ao marido castigar “razoavelmente” sua esposa, o que lhes garantia maus-
tratos, socos e bofetões e elas poderiam até mesmo serem arrastadas pelos cabelos,
assim como na Idade da Pedra.

Esteca (2004) afirma que por volta de 1200 os feudos foram, aos poucos, sendo
substituídos pelas monarquias e isso fez com que as mulheres perdessem o seu poder
sobre as terras na ausência do marido, o que, por sua vez, diminuiu a violência contra
elas. Desta forma, o índice de mortalidade feminina caiu bastante, o que resultou num
elevado número de mulheres; por este motivo os preços pagos a uma noiva cederam
lugar aos dotes pagos à família do noivo.

Nesta mesma época, foram criadas leis escritas que garantiam direitos aos
homens e restrições às mulheres, com isso os homens passam a ter direito à educação, o
que não era permitido às mulheres que aos poucos, ficaram afastadas da cultura e da
política. Conseqüente a este afastamento estrutura-se grande frustração destas, o que fez
com que se interessassem por movimentos heréticos. Exemplo disto é o movimento das
Beguinas: mulheres leigas e celibatárias que fugiam à dominação patriarcal e
ameaçaram a autoridade dos padres de Igreja.

“A reforma gregoriana impôs estrito celibato aos padres, o que


reforçou a misoginia. Então, as mulheres passam a ser vistas como
símbolos do pecado e da tentação, eram as ‘descendentes de Eva’.
Nesta fase, nas igrejas os cultos à Virgem Maria aumentavam na
medida em que crescia o medo da mulher. As mulheres comuns eram
consideradas cada vez mais longe do ideal de mulher. Assim se inicia
na Europa o movimento de caça às bruxas” (Esteca, 2004, p.10).

A partir do século XII as mulheres são definitivamente afastadas da Igreja, e


também perdem o direito de freqüentar e lecionar em universidades. Mesmo em países
como a Itália e a Alemanha, que tinham uma tradição de mulheres intelectuais
destacadas nas áreas da física, medicina, astronomia e direito, e que, portanto, tinham

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permissão para estudar junto aos homens, foram, com o passar do tempo, afastadas.
Esse movimento de expulsão das mulheres do meio acadêmico, iniciou-se no século XII
e em meados do século XIV a proibição já era muito intensa. Na medicina, por
exemplo, elas só poderiam atuar caso algum homem se responsabilizasse pelo trabalho e
ficasse com os créditos.

Segundo Muraro (1997), no período de caça às bruxas, que perdurou por quatro
séculos, entre o XIV e o XVIII, 85% das pessoas que foram executadas por bruxaria
eram mulheres e a maioria delas eram pobres e muitas viúvas ou solteiras. Neste
período as mulheres foram proibidas de receber educação e também lhes foi impedido o
direito à herança; com isso, as viúvas tiveram que ficar sob a guarda de outros homens
da família (geralmente o pai ou irmão) e impedidas de cuidar das suas propriedades. A
caça às bruxas irradiou medo nas mulheres fazendo com que abaixassem a cabeça e
aceitassem a dominação masculina, reproduzindo os novos estereótipos, que serviram
como base para a sociedade moderna. Portanto, é neste período que se fixam os papéis
sexuais vigentes por um longo período da modernidade, na cultura patriarcal, reforçados
pelo mercantilismo e mais recentemente pelo capitalismo; definitivamente não havia
espaço para a mulher.

Com o advento da era industrial, tornou-se necessária a mão-de-obra barata, o


que incentivou as famílias a aumentar a prole. Desta forma, a mulher possuía como eixo
central de sua feminilidade a maternidade, surgindo, então a figura da esposa e mãe
dedicada: este modelo de mulher foi necessário para a constituição da família burguesa.
“Assim, a dona-de-casa passa a ser símbolo da delicadeza, pureza e submissão,
despreparada para as atividades públicas, apta apenas para educar os filhos e cuidar
da casa” (Esteca, 2004, p.14).

No final do século XVIII início do XIX, com a industrialização, deu-se início a


um movimento interessante no que diz respeito ao relacionamento homem-mulher,
principalmente em se pensando no casamento; neste período a propriedade de terra já
não tinha tanta importância: isto fez com que as pessoas tivessem a liberdade de
escolher o(a) parceiro(a) para o casamento baseando-se na atração individual e não mais
nos interesses econômicos e sociais das famílias. Isto deu origem ao movimento do

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amor romântico que tentava tornar compatível a liberdade de escolha amorosa com os
ideais morais cristãos. Para que isso fosse viabilizado, o amor sublime deveria sobrepor-
se ao ardor sexual. “Aliás, o amor efetivamente baseado nas inclinações emocionais e
sexuais do par sempre foi visto com suspeita como base para o estabelecimento de um
vínculo suficientemente duradouro capaz de alicerçar a família, enquanto instituição”
(Moraes, 1994, p.19).

No entanto, uma dura realidade se impôs aos casais apaixonados: os homens


geralmente faleciam antes de suas esposas, atribuindo a estas mulheres, despreparadas
até então, a responsabilidade de sustentar financeiramente sua família, além do
sentimento de frustração por não terem sido realizados os sonhos prometidos pelo amor
romântico. Novamente a mulher se depara com a realidade dos casamentos por interesse
e a frustração do tédio conjugal.

Depois da Revolução Francesa, as mulheres que representavam metade da


população operária do século XIX, eram submetidas a condições desumanas de
trabalho, assim como a dupla jornada – além de trabalharem cerca de quatorze a quinze
horas diárias, receberem o mínimo possível para a sua subsistência, terem menos
direitos e privilégios do que os homens, tinham que encarar o trabalho doméstico,
depois de um exaustivo dia de trabalho. Neste período, a taxa de mortalidade feminina
aumentou muito, devido, além das péssimas condições de vida, ao fato de que o
ambiente de trabalho era propício à contração de tuberculose.

O contexto industrial despertou preocupação de líderes sociais como Karl Marx


e Friedrich Engels, pois o aumento da produtividade implicava numa grande exploração
da classe operária. De tal preocupação nasceu o Manifesto Comunista escrito em 1848
por estes dois autores, encorajando os operários a lutarem contra a opressão.

No entanto, segundo análise de Muraro (1997), Marx não explorou as condições


subumanas às quais as mulheres eram submetidas, pelo contrário, quando se referiu a
elas, culpou-as por seus princípios morais. A autora refere que Marx não levou em
consideração que as mulheres teriam menos chances de entrar no mercado de trabalho, e
que, no caso de trabalharem em fábricas, receberiam menos do que os homens.

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Também em 1848, em Seneca Falls, surge o primeiro movimento feminista em
protesto contra a repressão, reivindicando o retorno das mulheres ao domínio público.
Lutavam pelo direito ao voto, por mais educação e mais direitos.

Muraro (1997) aponta para um paralelo entre o Manifesto Comunista de Marx e


as reivindicações feitas pelas mulheres, afirmando que ambos tinham uma relação direta
com o sistema industrial; Marx pretendia acabar com a sociedade de classes, enquanto
que as mulheres lutavam pelo fim do regime patriarcal, segundo ela mais antigo e
profundo do que a sociedade de classes.

É no século XIX, portanto, que aparece o movimento sufragista, que tinha como
principal objetivo a luta pela conquista do direito ao voto, pois as feministas
acreditavam que este seria uma primeiro passo e que outras conquistas viriam
automaticamente; no entanto, não foi o que aconteceu. As sufragistas também se
envolveram em outras causas sociais, como a luta pela abolição da escravatura e em
movimentos operários a fim de buscar melhores condições para as mulheres que
participavam de muitas greves, tal como as do sindicato de mulheres trabalhadoras da
indústria têxtil (ILGWU), em Chicago, que realizaram uma das maiores greves, em que
mais de trinta mil jovens paralisaram suas atividades por um período de treze semanas.
A integração entre as sufragistas e as operárias foi definitiva para as conquistas
femininas.

No dia 8 de março de 1857, também ocorreu uma grande greve das operárias de
uma fábrica de tecidos de Nova Iorque. Elas ocuparam a fábrica e reivindicaram
melhores condições trabalhistas, tais como: redução na carga diária de trabalho de
dezesseis horas para dez, igualdade de salários entre os sexos, pois as mulheres
recebiam até mesmo um terço do salário de um homem para executar o mesmo tipo de
trabalho, e também um tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Tal
manifestação foi reprimida violentamente. As mulheres foram trancadas dentro da
fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num
ato totalmente desumano. Somente no ano de 1910, durante uma conferência na
Dinamarca, é que decidiu-se que o dia 8 de março seria consagrado como o “Dia

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Internacional da Mulher”, em homenagem àquelas que morreram na fábrica em 1857.
No entanto, apenas em 1975, a data foi oficializada pela ONU na forma de decreto.

O dia 24 de fevereiro de 1932 representou um marco na história da mulher


brasileira, ao se instituir oficialmente o direito feminino de votar e serem eleitas para
cargos tanto no setor executivo quanto legislativo.

Ao refletir sobre a entrada definitiva das mulheres no mercado de trabalho


Muraro (Muraro & Boff, 2002) acrescenta que este fato, ao menos teoricamente, está
fechando o ciclo patriarcal, que iniciou-se conjuntamente com a sociedade escravista,
quando, em suas palavras “as mulheres foram reduzidas à sua função procriadora”
(p.13).

Ao analisarmos a História podemos perceber que somente com a Revolução


Francesa, no início do século XIX, é que ocorre a valorização da família e diferenciação
dos papéis sexuais mas que, mesmo assim, ainda depositavam nas mulheres funções
estritamente domésticas. No período das duas Guerras Mundiais, com a saída dos
homens para lutar nas batalhas, as mulheres tiveram que trabalhar para sustentar a casa
e a família enquanto seus maridos não voltavam; mesmo com a volta destes muitas
mulheres resolveram continuar trabalhando, tiveram que dividir o mercado de trabalho
com os homens, enfrentar discriminações, humilhações e desmoralizações como aceitar
salários menores e jornadas de trabalho mais longas. Isso exigiu da mulher uma postura
mais ativa e comportamentos mais próximos dos que atribuímos ao mundo masculino,
como objetividade, predominância racional, ordem, poder, dentre outros.

Por séculos as mulheres não tiveram voz, restando-lhes a submissão, obediência


e complacência, e, infelizmente, isto ainda ocorre em alguns lugares do mundo, como
por exemplo nos países muçulmanos.

Seria injusto ocultarmos o mérito dos movimentos feministas em grande parte


dessa conquista feminina. Juntamente com o movimento feminista surgiu a
reivindicação da igualdade total entre os sexos, exigindo a extinção dos papéis sociais
determinados por gênero (homens ao espaço público e mulheres alocadas no privado),

32
que impedem que a pessoa se afirme e se expresse de uma maneira mais livre e
igualitária.

O discurso feminista obrigou as sociedades modernas a um profundo


questionamento, pois: “Quando a mulher começou a falar de si, e a partir de si, abalou
muitas convicções que seu silêncio permitira consolidar” (Moraes, 1994, p.7). Podemos
identificar outra contribuição relevante das autoras feministas que apontaram o caráter
social presente na constituição do gênero ao demonstrar a importância da determinação
social na diferenciação sexual, o que possibilitou evidenciar o caráter ideológico de
muitas das afirmações feitas sobre ambos os sexos, o que por sua vez, permite o início
da superação de falsos limites ditados pelo status quo.

Também é preciso destacar outra grande contribuição das autoras feministas que
foi a necessidade de deslocar a unidade de análise da mulher para as relações de gênero,
visto que, segundo a visão feminista, o fato de retratar a mulher como único objeto de
estudo, implica em entendê-la como categoria definida, estática e imutável, atribuindo-
lhe apenas as qualidades inerentes ao sexo feminino, tidas como naturais. Esta forma de
análise, segundo este ponto de vista, alimentaria a desigualdade sexual e a supremacia
masculina.

Sem dúvida, esta é uma das contribuições mais importantes do movimento


feminista, pois nas palavras de Moraes (1994, p.8):

“Algumas das razões de se adotar relações de gênero como unidade


de análise é, em primeiro lugar, tentar mostrar que o gênero é
socialmente constituído e ideologicamente formado. Em segundo
lugar, só se poderia falar da mulher situando-a num contexto de
relações, dentro do qual as definições sexuais são engendradas”.

Com o advento das pílulas anticoncepcionais, que separou sexualidade de


procrição e a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho, ocorridas nas
décadas de 60 e 70 do século XX, surgiu uma nova mulher: a mulher contemporânea
que não deseja apenas a realização de um relacionamento amoroso, mas também possui
objetivos particulares, uma mulher que não mais vive na sombra do marido, mas, sim,
procura um trabalho criativo.

33
No entanto, o movimento feminista, ao propor igualdade entre os sexos, estava
indiretamente concordando com os ideais machistas que colocaram a mulher numa
posição inferior aos homens; logo, por estarem nessa posição inferior deveriam ser mais
valorizadas e igualadas ao sexo oposto. Malvina Muszkat no livro “Identidade
Feminina” (1987), propõe uma discussão com relação à palavra igualdade, afirmando
que não deve existir igualdade entre os sexos, pois cada um possui sua peculiaridade,
mas sim reciprocidade. Cita como exemplo o mito do ser andrógeno de Platão e afirma
que este à primeira vista pode confirmar a crença de que o encontro entre um homem e
uma mulher se dá na busca de recuperar, um no outro, o seu complemento original.
Ressalta a importância de considerarmos que se trata de um discurso simbólico e, como
tal, deve nos reportar ao mundo simbólico da linguagem mítica, muito diferente do
universo da linguagem convencional.

Nesta entrada para o Terceiro Milênio podemos perceber uma superposição


entre valores arcaicos e modernos: as rápidas transformações tecnológicas, econômicas,
sociais, são acompanhadas pela inércia da subjetividade, acarretando o que Figueira
(1987) denominou “modernização reativa”: a aparência e pós-modernidade revela
padrões arcaicos quando fazemos uma análise mais detalhada: a liberdade de escolha
amorosa esconde, muitas vezes, a busca pelo “príncipe encantado” romântico. A
liberação sexual substituiu o “case-se virgem” pelo “não se case virgem”. E a
possibilidade de optar, que mostraria a verdadeira transformação?

Apesar das mulheres desenvolverem sua autonomia e perseguirem a


independência via trabalho ou carreira, continuam tendo o papel tradicional de mãe-
esposa e dona de casa como central da definição de sua feminilidade, o que denota não
um Feminino transformado, mas expandido (Meirelles, 2001), o que acarreta uma
sobrecarga.

Percebe-se, no entanto, uma procura, por tentativas e erro como se vê na busca


de relações amorosas mais igualitárias, abertas, que devem durar enquanto o amor e a
satisfação persistirem.

34
O rompimento, enquanto possibilidade aberta pelo advento do divórcio, muitas
vezes ocorre por amor: pelo desejo de um vínculo que supra as várias necessidades do
ser humano: de paixão, companheirismo, cumplicidade, etc., que leva a sucessivas re-
invenções de si, num contexto sempre mutável.

A partir desse breve histórico pudemos observar a importância das conquistas


femininas, citadas anteriormente, o que pode nos levar a uma falsa idéia de satisfação e
tranqüilidade. No entanto, apesar das evidentes conquistas sociais que acarretaram
maior liberdade e autonomia para que hoje, como nunca, a mulher pudesse exercer
atividades e comportamentos até então associados ao universo masculino como a
agressividade, a lógica no pensamento, a participação ativa na cultura, a busca pela
satisfação sexual, juntamente com as tarefas maternais e domésticas, a mulher continua
manifestando a sua inquietação, o que demonstra que os moldes do patriarcado já não
nos estão mais servindo. Todavia, conforme apontado por Muraro (Muraro & Boff,
2002), a luta contra o patriarcado não é exclusivamente feminina, mas da humanidade
em geral, que busca recuperar e (re)integrar o feminino que ficou preso na esfera
matriarcal do desenvolvimento humano, em busca não mais de igualdade entre os
sexos, mas sim, de reciprocidade. E é sobre a reciprocidade que Muszkat sabiamente
declara:

“Se substituirmos a idéia de complementaridade pela de reciprocidade


estaremos em melhores condições de entender Platão e a riqueza da
totalidade do Ser. Poderemos devolver ao homem sua condição
essencial: a da realidade interpessoal não como uma conseqüência,
mas como a origem e condição do Ser. A idéia de reciprocidade
permite resgatar homem e mulher como seres antropológicos,
existindo na sua “alteridade”, e cuja realidade interpessoal define a
origem e a condição para a percepção de si mesmo. A identificação de
si mesmo, que só existe através do encontro com o Outro, se realiza
sempre num determinado momento histórico-social entre dois seres na
luta pela sua existência” (1987, p.19).

Embora esteja havendo um declínio do patriarcado, este ainda é dominante na


cultura ocidental. Este período foi muito importante para o desenvolvimento humano,
tendo conseqüências positivas e negativas, as quais discutiremos apropriadamente no
capítulo 5.

35
Moraes (1994) coloca que quando a mulher passa a exigir novos padrões de
comportamento masculino, contesta suas expectativas sobre o seu próprio
comportamento. Desta forma, a mulher passou a fazer parte do processo de definições
dos papéis sexuais e das diferenças de gênero: “Ela passou a falar o que quer para si e
o que espera do Outro. Essas falas femininas ainda estão confusas, mas parecem
apontar que a história, daqui para frente, será escrita por uma parceria bissexual”
(p.15).

Conforme descrito anteriormente, a igualdade dos sexos ao ser “conquistada”


apontou para a necessidade de reciprocidade, descrita muito bem por Muszkat, o que
trouxe questionamentos a respeito do padrão patriarcal, evidenciando a necessidade de
mudança, o que mobilizou a entrada ainda muito lenta no ciclo da alteridade, ciclo este
que solicita uma parceria verdadeira entre homens e mulheres na construção de valores
que ainda estão por vir. A alteridade pressupõe a aceitação do Outro como diferente de
mim, com quem posso compor uma relação de reciprocidade.

Por mais que estejamos entrando no ciclo da alteridade o mundo ocidental ainda
é muito marcado pelo padrão patriarcal. Continua sendo difícil para a mulher
contemporânea viver nesses moldes. É preciso lutar para conquistar seu espaço, para
enfrentar preconceitos, para vivenciar todas as suas possibilidades e potencialidades
enquanto ser humano e para isto é necessário descobrir seu próprio caminho, a mulher
precisa entrar em contato com o seu Feminino perdido, a que teve que abdicar, para
conseguir lidar com um mundo patriarcal, ou seja, acabou desenvolvendo mais seus
atributos masculinos, apropriando-se e fazendo uso das características ligadas ao
princípio Masculino, e muitas vezes desvalendo-se de seu próprio princípio Feminino.
Tais considerações serão retomadas nos capítulos 4 e 5, nos quais discutiremos o
desenvolvimento da consciência individual e coletiva a partir do prisma psicológico e
também as consequências patriarcais para a nossa cultura pós-moderna,
respectivamente.

36
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA.

Carl Gustav Jung propõe um modelo de psique dinâmico, dotado de um sistema


auto-regulador, envolvido por uma complexa combinação de fatores. Trata-se de um
processo que se define pelo pressuposto da totalidade todo-abrangente que envolve
tanto os aspectos conscientes quanto os inconscientes, numa relação de
complementaridade e compensação que necessita de um meio externo para se expressar
e concretizar a meta da sua jornada: a realização do potencial individual. A base
ontológica do paradigma junguiano constitui a concepção de totalidade psíquica,
consciente e inconsciente, que integra os mundos interno e externo, assim como abarca
aspectos pessoais e coletivos por intermédio de uma dimensão simbólica arquetípica
(Penna, 2003).

Para Jung, a energia psíquica flui entre dois pólos opostos os quais denominou
de os contrários. Considerou de fundamental importância que sua teoria psicológica
estivesse baseada no princípio dos contrários, afirmando que uma teoria que não levasse
isto em consideração: “(...) só reconstruiria psiques neuróticas desequilibradas. Não há
equilíbrio nem sistema de auto-regulação sem oposição. E a psique é um sistema de
auto-regulação” (Jung, 2002, p.53). Os conflitos surgem da tensão entre estes pares de
contrários, sem os quais não haveria manifestações energéticas. “(...) Segundo Jung, a
função reguladora dos contrários é inerente à natureza humana e essencial para se
compreender o funcionamento do psiquismo” (Fordham, 1966, p.21).

Jung compreende a psique como o único fenômeno imediato que percebemos.


Deste modo, é a condição para qualquer relação entre o indivíduo e o mundo. Em suas
palavras:

“(...) Tudo o que experimento é psíquico. A própria dor física é uma


reprodução psíquica que experimento. Todas as percepções de meus
sentidos que me impõe um mundo de objetos espaciais e
impenetráveis são imagens psíquicas que representam minha
experiência imediata, pois somente eles são os objetos imediatos de
minha consciência” (1984, p.297).

37
No paradigma junguiano cultura e indivíduo estão sempre em inter-relação,
afetando-se mutuamente; desta forma, a consciência coletiva pode ser entendida como o
conjunto de valores e atitudes presentes em determinada cultura (Faria, 2003). Jung faz
uma analogia à consciência como uma superfície ou película que recobre a extensa área
inconsciente, sendo um produto da percepção e orientação do mundo externo (Jung,
2003). Nas palavras de Stein (2006, p.24): “(...) A consciência é, muito simplesmente, o
estado de conhecimento e entendimento de eventos externos e internos. É o estar
desperto e atento, observando e registrando o que acontece no mundo em torno e
dentro de cada um de nós”.

Veremos no capítulo 4, referente ao desenvolvimento da consciência, que esta


emerge do inconsciente e, aos poucos, vai se discriminando e se separando dele.
Podemos associar a consciência como um foco de luz em meio à escuridão inconsciente
que relaciona os conteúdos psíquicos do mundo externo e interno com o ego,
auxiliando-o na percepção da realidade externa e interna, possibilitando assim, o
desenvolvimento do eu. “(...) não pode haver elemento consciente que não tenha o ego
como ponto de referência. Assim, o que não se relacionar com o ego não atingirá a
consciência. A partir desse dado, podemos definir a consciência como a relação dos
fatos psíquicos com o ego” (Jung, 2003, p.7).

Sendo assim, o desenvolvimento da consciência é de fundamental importância,


pois é a partir desta que o mundo adquire significado. “(...) Sem a consciência reflexiva
do homem, o mundo seria totalmente desprovido de sentido, pois o homem, de acordo
com nossa experiência, é o único ser que pode constatar o fato do sentido” (Jung, 2005,
p.323, grifo do autor). Devido ao caráter focado e seletivo da consciência, esta sempre
se apresentará de forma unilateral, visto a impossibilidade humana de apreender o Todo.
E como o Todo sempre nos escapa, a visão junguiana tenta, justamente, revelar ou
desvelar os elementos que ficaram ocultos, para o coletivo ou para o indivíduo; trata-se,
portanto, de uma busca pela totalidade. A limitação da consciência se deve ao fato de
não ser possível apreender dados simultâneos num mesmo instante. Logo, os elementos
que não são apreendidos permanecem inconscientes, obscuros: “O mundo da
consciência caracteriza-se sobremaneira por uma certa estreiteza; ele pode apreender

38
poucos dados simultâneos num dado momento. Enquanto isso tudo o mais é
inconsciente” (Jung, 2003, p.5).

O ego é visto como o centro e sujeito da consciência e da identidade pessoal.


Forma-se a partir do momento em que o indivíduo passa a ter percepção do corpo e da
existência e, também pelos registros da memória. É o ego que nos dá a sensação de
sermos um processo com início, meio e fim. Para Jung (2003), todos temos uma idéia de
já termos existido e acumulamos uma longa série de recordações, logo, ele aponta esses
dois elementos como os principais componentes do ego, possibilitando-nos considerá-lo
como um complexo de fatores psíquicos que atrai, como um ímã, os conteúdos do
inconsciente. “(...) o ego é uma espécie de complexo, o mais próximo e valorizado que
conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne
indispensável à consciência” (Jung, 2003, p.7). É o ego que se relaciona com as
imagens do inconsciente, com os símbolos, e que portanto, possibilita o auto-
conhecimento e o desenvolvimento da consciência. “(...) O termo ego refere-se à
experiência que a pessoa tem de si mesma como um centro de vontade, de desejo, de
reflexão e ação. Essa definição do ego como o centro da consciência mantém-se
constante do começo ao fim dos escritos de Jung” (Stein, 2006, p.23).

Von Franz (1964) destaca que:

“Tudo acontece como se o ego não tivesse sido produzido pela


natureza para seguir limitadamente os seus próprios impulsos
arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a
totalidade da psique. É o ego que ilumina o sistema inteiro,
permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado.
Se, por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu ego não está
consciente, este talento não se desenvolve e é como se fora
inexistente. Só posso trazê-lo à realidade se meu ego notar. A
totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que
uma totalidade realizada e vivida”(p.162).

O conhecimento que adquirimos sobre as coisas é condicionado pelas limitações


e capacidades da nossa consciência. Desta forma, tudo o que hoje conhecemos a
respeito do inconsciente nos foi transmitido pela nossa consciência, “(...) A psique
inconsciente, cuja natureza é completamente desconhecida, sempre se exprime através
de elementos conscientes e em termos de consciência, sendo esse o único elemento

39
fornecedor de dados para a nossa ação” (Jung, 2003, p.3). Para Neumann (1990), o
estado inconsciente é o estado básico e natural, enquanto que o consciente é um produto
do nosso esforço, que consome libido. No entanto, existe uma força de inércia na psique
que tende a recair na condição inconsciente original. O autor também afirma,
contradizendo Freud, que apesar de sua natureza inconsciente, se trata de um estado de
vida e não de morte.

Para além da película consciente, que recobre a vastidão inconsciente, está o


inconsciente pessoal, também denominado por Jung de sombra. É no inconsciente
pessoal que estão os conteúdos esquecidos ou reprimidos da vivência pessoal do
indivíduo, trata-se de conteúdos com pouca força energética. “O inconsciente pessoal
pertence ao indivíduo; é constituído pelos seus desejos e ímpetos infantis reprimidos,
pelas percepções subliminares, e por inúmeras experiências esquecidas. É exclusivo de
cada um” (Fordham, 1966, p.24). Existe, porém, uma camada inconsciente mais ampla
que diz respeito à coletividade como um todo: “(...) À medida que nos afastamos da
consciência, penetramos numa região mais inacessível, em que se colocaria o mundo
arquetípico, o inconsciente coletivo, fonte das possibilidades humanas, composto de
estruturas inerentes ao ser: os arquétipos” (Faria, 2003, p.30). Nas palavras de Jung:
“(...) coloco o inconsciente como um elemento inicial, do qual brotaria a condição
consciente” (2003, p.6) e “(...) O inconsciente não se identifica simplesmente com o
desconhecido; é antes o psíquico desconhecido, ou seja, tudo aquilo que
presumivelmente não se distinguiria dos conteúdos psíquicos conhecidos, quando
chegasse à consciência” (1984, p.123, grifo do autor).

É importante ressaltar que para Jung o inconsciente não é apenas um lugar do


reprimido, um porão no qual o homem deposita o que não lhe serve, mais do que isso, é
a fonte da consciência e do espírito tanto criativo quanto destrutivo da humanidade
(Fordham, 1966, p.28).

Portanto, o inconsciente pessoal para Jung se formaria através daqueles


conteúdos que já foram conscientes mas esquecidos, ou por perderem sua intensidade,
ou por terem sido reprimidos, em função de uma incompatibilidade com a atitude
consciente. Sendo assim, trata-se de uma camada da psique composta por fatores que

40
poderiam tornar-se conscientes e por aquisições da vida individual, que em nossa
experiência de vida acabamos deixando de lado. Entretanto, aqueles conteúdos que
foram herdados (da mesma forma que os instintos e impulsos), e que nunca estiveram
na consciência, apresentam caráter coletivo, universal e atemporal. Estamos aqui nos
referindo ao inconsciente coletivo; a camada mais profunda da psique. Para Jung esta
camada:

“(...) não deve a sua existência à experiência pessoal, não sendo


portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é
constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e
no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos
ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram
na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas
devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o
inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o
conteúdo do inconsciente coletivo é constituído de arquétipos” (2000,
p.53).

A sombra então, seria uma parte da personalidade composta por elementos


pessoais e coletivos incompatíveis com a atitude consciente e, que por isso, foram
reprimidos; logo, representa uma personalidade parcial e autônoma com tendências
opostas ao ego consciente e se comporta de maneira compensatória a este. Como a
sombra se refere a elementos que não são aceitos pelo ego, este a percebe como
ameaçadora e perigosa. Em linhas gerais, a sombra se refere à parte inferior da
personalidade, aos aspectos primitivos não diferenciados; embora não sejam
necessariamente negativos, são elementos classificados como inferiores porque não
encontraram condições suficientes para se desenvolver. É a atitude da consciência,
moldada pelos valores culturais os quais valorizam certos conteúdos em detrimento de
outros, que determina quais elementos tornar-se-ão sombrios. A sombra também abriga
impulsos criativos, qualidades não reconhecidas, percepções e reações apropriadas.

Para Jung (2002) nenhuma energia é produzida enquanto não houver tensão
entre os contrários; por isso ressaltou a importância de encontrar o elemento oposto ao
da atitude consciente, pois o reprimido deve se tornar consciente para que seja
produzida a tensão entre os contrários. Para ele: “(...) todo consciente procura, talvez
sem perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à

41
obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida” (p.46). Em
outra obra (2000), esclarece que:

“Verdadeiramente, aquele que olha o espelho na água vê em primeiro


lugar sua própria imagem. Quem caminha em direção a si mesmo
corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia
mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face
que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com a
‘persona’, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da
máscara e mostra a face verdadeira. Esta é a primeira prova de
coragem do caminho interior, uma prova que basta para afugentar a
maioria, pois o encontro consigo mesmo pertence às coisas
desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo
à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa própria sombra, e
suportá-la, sabendo que existe, só teríamos resolvido uma pequena
parte do problema. Teríamos, pelo menos, trazido à tona o
inconsciente pessoal. A sombra, porém é parte viva da personalidade
e por isso quer comparecer de qualquer forma. Não é possível anulá-
la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização
(...) O encontro consigo mesmo significa o encontro com a própria
sombra” (p.30-31).

A persona é um elemento fundamental de adaptação do ego frente ao mundo


externo, é uma espécie de máscara de que o ego se utiliza para conseguir se relacionar
com o mundo em resposta à necessidade de adaptação social. “(...) A persona é um
complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma
espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os
outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo” (Jung, 2004,
p.68). É de extrema importância que a pessoa possua uma persona bem estruturada, no
entanto o perigo é o de se identificar apenas com a persona, acreditando ser formado
unicamente por esta, negando a existência de seus aspectos sombrios. Para
viabilizarmos o auto-conhecimento é preciso entrar em contato com os vários aspectos
da nossa psique. Através desse encontro ocorre a ampliação da consciência, o que nos
permite descobrir elementos da própria personalidade, pois outras facetas vão se
mostrando para a persona.

Para Jung, sombra, persona, Self, anima e animus, que veremos em capítulo
posterior, são arquétipos. A palavra arquétipo deriva de arche que significa a matriz ou

42
espécime original e typos que significa um cunho impresso numa moeda (Stein, 2006).
Para Jung (2005) o conceito de arquétipo:

“(...) deriva da observação reiterada de que mitos e contos da


literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem
sempre e por toda a parte. Encontramos esses mesmos temas nas
fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos
que vivem atualmente. A essas imagens e correspondências típicas,
denomino representações arquetípicas. Quanto mais nítidas, mais são
acompanhadas de tonalidades afetivas vívidas... elas nos
impressionam, nos influenciam, nos fascinam. Têm sua origem no
arquétipo que, em si mesmo, escapa à representação, forma
preexistente e inconsciente que parece fazer parte da estrutura
psíquica herdada e pode, portanto manifestar-se espontaneamente
sempre e por toda a parte” (p.352).

Os arquétipos formam a base dos padrões de comportamentos instintivos,


portanto não aprendidos, comuns a toda espécie humana. São disposições típicas, inatas
do inconsciente, de natureza primordial que estruturam as ações, reações, pensamentos e
sentimentos. Herdados da natureza humana estão presentes em todo o tempo e lugar,
não são possíveis de representação imagética, sendo perceptíveis apenas por certas
manifestações típicas na consciência humana, só sendo observados a partir dos efeitos
que geram: as imagens e os motivos arquetípicos. “Os arquétipos são inconscientes e,
por isso, apenas os podemos postular; temos conhecimento deles, porém, através de
certas imagens típicas que se apresentam à psique” (Fordham, 1966, p.26). Teríamos
portanto, além da herança genética, determinante do nosso corpo, uma herança coletiva
universal estruturante da consciência. Jung (2002), esclarece que não são as imagens
propriamente ditas que são herdadas, mas a capacidade de termos tais imagens é que é
passada de geração a geração. Os arquétipos possuem um caráter numinoso, de forte
cunho emocional.

Desta forma, para a Psicologia Analítica o indivíduo não nasce como uma tábula
rasa na qual o mundo vai moldando-o e imprimindo sua marca, pois compreende-se que
o indivíduo possui possibilidades arquetípicas, além do mundo físico e relacional que
estimulam o desenvolvimento dos padrões arquetípicos. “(...) O indivíduo só se torna
humano através das relações – portanto, o arquétipo necessita da relação para ser

43
ativado e constelado” (Faria, 2003, p.32). Os arquétipos seriam, então, formas de
prontidão para a ação e, simultaneamente, criariam emoções:

“O termo (arquétipo) não tem por finalidade denotar uma idéia


herdada, mas sim um modo de funcionamento psíquico, que
corresponde ao modo inato pelo qual o pintinho surge do ovo, o
pássaro constrói o ninho, um certo tipo de vespa pica o gânglio motor
da lagarta, e as enguias encontram o caminho para as Bermudas. Em
outras palavras, é um “padrão de comportamento”. Esse é o aspecto
biológico do arquétipo... Mas a situação muda imediatamente quando
observada de dentro, isto é, de dentro da esfera da psique subjetiva.
Aqui o arquétipo apresenta-se como numinoso, isto é, aparece como
uma experiência de importância fundamental. Toda vez que ele se
reveste de símbolos apropriados, o que nem sempre acontece, coloca
o indivíduo num estado de possessão cujas conseqüências podem ser
incalculáveis” (Jung apud Whitmont, 1969, p.92).

Os arquétipos são núcleos de energia que, quando constelados, exercem forte


atração sobre a consciência, que por sua vez o percebe como uma atividade emocional.
A partir de então, os conteúdos da consciência passam a se relacionar com o arquétipo,
atribuindo-lhe o sentido necessário para que se expressem através da imagem,
possibilitando o surgimento de um símbolo. O termo constelação é utilizado para
indicar uma situação, individual ou coletiva, desencadeadora de um processo psíquico
de atualização de determinados conteúdos. Trata-se de um processo automático, ativado
pelo sistema auto-regulador da psique com o intuito de compensar uma carência ou
unilateralidade da consciência.

Fordham afirma que com o conceito de arquétipo Jung não pretendia afirmar a
hereditariedade da experiência,

“(...) afirma, sim, que o nosso cérebro é moldado e influenciado pelas


experiências da humanidade. É que, “embora a nossa herança
consista em vestígios psicológicos, foram sem dúvida os processos
mentais dos nossos antepassados que imprimiram esses vestígios. Se
eles regressam à consciência no indivíduo, só pode ser na forma de
outros processos mentais; e, apesar de estes processos só se tornarem
conscientes através das experiências individuais – aparecendo
conseqüentemente, como aquisições do indivíduo –, nem por isso
deixam de ser marcas preexistentes, que as experiências individuais
se limitam a “corporificar”. É provável que toda a experiência

44
“impressionante” seja precisamente um mergulho nas profundezas de
um antiqüíssimo e anterior inconsciente” ” (1966, p.25).

A partir da visão junguiana podemos entender o inconsciente como fonte de


possibilidades, que ao que parece, está sempre conectado à relação do indivíduo com o
mundo, visto que, à medida que esta conexão se estabelece, um ou mais dinamismos
arquetípicos são constelados e os símbolos começam a emergir (Faria, 2003). Ao citar
Brandão, Faria relembra a raiz etimológica da palavra símbolo, que advém do grego
symbolon, do verbo symballein, que significa “lançar com”, “arremessar ao mesmo
tempo”, “jogar com”. Na cultura grega, era um sinal de reconhecimento: “um objeto
dividido em duas partes, cujo ajuste, confronto, permitia aos portadores de cada um se
reconhecerem” (p.32).

Os símbolos podem ser entendidos como produtos dessa fonte inconsciente,


sendo que sua função é a de revelar e anunciar ao indivíduo e ao coletivo as direções
necessárias ao seu desenvolvimento.

“(...) o símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais


profundos, que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As
imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da
psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função:
revelar as mais secretas modalidades do ser” (Eliade, 2002, p.8.).

Para Jung, o símbolo é um termo ou uma imagem que, embora nos seja familiar
na nossa vida diária, possui “(...) conotações especiais além do seu significado evidente
e convencional” (Jung, 1964, p.20). Para o autor existe uma distinção rígida entre
símbolo e sinal, ou alegoria:

“Toda concepção que explica a expressão simbólica como analogia


ou designação abreviada de algo conhecido é semiótica. Uma
concepção que explica a expressão simbólica como a melhor
formulação possível, de algo relativamente desconhecido, não
podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica, é
simbólica. Uma concepção que explica a expressão simbólica como
paráfrase ou transformação proposital de algo conhecido é
alegórica” (1991, p.444, grifos do autor).

45
Fordham aponta para a distinção entre símbolo e signo na obra de Jung. Segundo
a autora, “(...) um signo é um substituto ou uma representação de uma coisa real, ao
passo que um símbolo tem um significado mais amplo e exprime um fato psíquico que
não pode ser formulado com maior rigor” (1966, p.23).

Jung (2007) coloca que o símbolo é o mecanismo psicológico transformador da


energia que comporta material consciente e inconsciente e acrescenta que foi o processo
de formação de símbolos que libertou a humanidade dos temores do curso natural das
coisas. Os símbolos atuam como mediadores entre os elementos do inconsciente pessoal
e a consciência, transformando energias antagônicas numa nova forma de energia, ou
seja, ocorre a união dos pares de opostos e a formação de uma nova síntese. Jung
denominou de função transcendente à função criadora dos símbolos. Atribuiu este
nome, pois denota um movimento de integração de processos conscientes e
inconscientes, levando à ampliação da consciência. É uma tentativa de harmonização da
psique, de reconciliar o indivíduo com sua essência e com a totalidade perdida,
ampliando e compensando certa unilateralidade da consciência (Penna, 2003).

Os símbolos são um conceito muito importante na Psicologia Analítica, pois a


premissa de um inconsciente não acessível à observação direta constitui o principal
desafio desta teoria e, é justamente a perspectiva simbólica que permite a acessibilidade
do inconsciente através de suas manifestações. Segundo Penna:

“O conhecimento então é viável através das manifestações


simbólicas, sendo esta a via de todo conhecimento possível na
psicologia analítica” e “(...) Como ponte entre o mundo arquetípico, o
mundo da consciência e o mundo externo, o símbolo se constitui o
fenômeno psíquico apreensível e compreensível” (2003, p.213).

O fator mais indicativo da presença de um símbolo é o aspecto numinoso da


vivência simbólica, porém, existem diversas graduações de numinosidade, o que faz
com que o símbolo possa ser indicado por diferentes graus de mobilização emocional
(Penna, 2003).

Segundo Neumann (1990):

46
“(...) Os símbolos se reúnem em torno da coisa a ser explicada,
compreendida e interpretada. O ato de conscientização consiste no
agrupamento de símbolos ao redor do objeto, todos eles
circunscrevendo e descrevendo, a partir de vários lados, o
desconhecido. Cada símbolo desvela outro lado essencial do objeto a
ser percebido, aponta para outra faceta do seu significado. Somente o
cânone de tais símbolos congregados em torno do centro em questão,
o grupo simbólico coerente, pode levar a uma compreensão daquilo
para que os símbolos apontam e que tentam exprimir” (p.26).

Os símbolos, assim como os sonhos e as fantasias ajudam o ego a significar, a


dar sentido aos fatos, ampliando os limites estreitos e a unilateralidade da vida
consciente. São a melhor expressão possível de algo desconhecido, aparecendo como
representações da psique são projeções de todos os aspectos da natureza humana,
expressando, não apenas, a sabedoria humana acumulada como também seus níveis de
desenvolvimento e de possibilidades futuras. Portanto, podemos apontar duas funções
dos símbolos; a primeira seria a de revelar uma imagem ligada ao inconsciente coletivo
e a segunda de integrar, unificar, transcender as oposições e estabelecer uma ponte de
comunicação entre as dimensões do inconsciente pessoal e da consciência. Desta forma,
os símbolos são os mediadores entre o ego e o Self.

Conforme visto anteriormente, o ego é o centro e sujeito da consciência; da


mesma forma, poderíamos associar o Self como o centro e sujeito da personalidade total
do indivíduo. O Self é o elemento inicial, a fonte principal a partir da qual se forma e se
expande o ego. É ele quem confere ao ego um senso de unidade, formando a base para o
que existe em comum entre o indivíduo e o mundo: “(...) sujeito e objeto, o ego e outro,
juntam-se num campo comum de estrutura e energia” (Stein, 2006, p.138). É o
arquétipo da ordem, da organização da integração e da unificação. Logo, o Self possui
como tarefa manter o sistema psíquico unido e em equilíbrio, é o “(...) centro
transcendente que governa a psique do lado de fora dela própria e circunscreve a sua
integridade” (Stein, 2006, p.152). É um arquétipo primordial, do qual todos os outros
arquétipos e imagens arquetípicas derivam. O Self também aparece na obra de Jung com
a denominação de si-mesmo. Para o autor:

“O si-mesmo é uma realidade ‘sobre-ordenada’ ao eu consciente.


Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituindo por este
fato uma personalidade mais ampla, que também somos... mas não

47
devemos nutrir a esperança de chegar a uma consciência aproximada
do si-mesmo; por mais consideráveis e extensas que sejam as
paisagens interiores e os setores apreendidos pela consciência, não
desaparecerá a massa imprecisa e uma soma desconhecida da
inconsciência, que também faz parte da totalidade do si-mesmo. O si-
mesmo é o centro e também a circunferência completa que
compreende ao mesmo tempo o consciente e o inconsciente: é o
centro dessa totalidade, como o eu é o centro da consciência” (Jung,
2005, p.358).

Inicialmente ego e Self formam uma unidade indiferenciada (Ramos, 1994).


Neumann (1995) denomina essa unidade de Self corporal: “(...) Constitui-se na
delimitada e única totalidade do indivíduo, já considerada à parte de seu implante no
corpo da mãe; ele surge como ser compondo a unidade biopsíquica do corpo” (p.12). O
autor afirma que até, aproximadamente, o primeiro ano de vida o bebê mantêm-se
ligado à mãe por uma espécie de cordão umbilical psíquico: uma união simbiótica e
indiscriminada fundamental para o desenvolvimento do eixo ego-Self, do senso de
confiança no mundo e em si próprio. No início da vida o Self da criança é projetado na
figura da mãe, nesse sentido, a única coisa que a criança sente como sendo dela própria
é o corpo. Como corpo e psique ainda não foram diferenciados nesta fase, as
experiências psíquicas são vividas através do corpo, por este motivo é que a primeira
auto-imagem é idêntica à imagem corporal. Sendo assim, o corpo possui uma
importância muito grande no início da vida, pois é quem recebe as impressões do
mundo: logo, a formação do ego é condicionada pela experiência corporal. Como existe
uma comunicação psíquica muito forte entre a mãe e o bebê e, o Self da criança está
totalmente projetado na mãe, ela é quem realizará para a criança a tarefa da
centroversão.

Ramos (1994), afirma que o corpo é o mediador e delimitador do dentro e fora, é


como um tradutor dos símbolos do Self. Com isso, acredita que os símbolos do Self
podem refletir diretamente no funcionamento do corpo e vice-versa, desta forma, uma
doença pode atuar, portanto, como um símbolo.

Para Neumann (1990), a centroversão é a tendência inata e inconsciente de


organizar os diferentes conteúdos psíquicos, é uma tendência da totalidade de
estabelecer a unidade das suas partes e de coordenar as suas diferenças em sistemas

48
unificados. “(...) A unidade do todo é mantida por processos compensatórios que a
centroversão controla, processos com a ajuda dos quais, o todo se torna um sistema
autocriador e em expansão” e “(...) A centroversão se manifesta no organismo como
regulação do todo, como tendência compensatória e sistematizadora” (p.209).

O conceito junguiano de projeção compreende tal mecanismo como um


deslocamento e depósito de conteúdos ou processos subjetivos em determinado objeto
ou pessoa. É um mecanismo psíquico inconsciente e automático que ocorre sempre que
um aspecto desconhecido da personalidade é ativado. “(...) Se nós é que decidíssemos
projetar alguma coisa, teríamos consciência disso e então, justamente por termos
consciência, ela não poderia ser projetada. Só são projetados conteúdos inconscientes;
no momento em que uma coisa se torna consciente, cessa a projeção” (Stanford, 1987,
p.17). Para Neumann (1990):

“(...) A projeção pressupõe que o projetado, ou seja, aquilo que, por


meio de um ato, foi deslocado para fora, tenha existido antes como
fator psíquico interior. Mas a exterioridade de um conteúdo psíquico,
contrasta com a idéia de projeção, implica a existência, no exterior,
de algo que originalmente não se encontrava no interior da
personalidade. Essa exterioridade de um conteúdo é a sua condição
original; significa que o conteúdo só veio a ser reconhecido como
pertencente à psique num estágio posterior de consciência. Apenas
desse ponto de vista, portanto, é possível diagnosticar como projetado
o conteúdo exteriorizado. Por exemplo, enquanto Deus é
exteriorizado, a sua ação é do “verdadeiro Deus exterior”, embora
uma consciência posterior possa então diagnosticá-lo como uma
projeção da imagem de Deus que habita a psique. A formação e
desenvolvimento da personalidade humana consiste, em larga
medida, em “assimilar” – introjetar – esses conteúdos
exteriorizados” (p.199).

O ego se apresenta como um processo em constante desenvolvimento;


abordaremos esse tema com maior detalhes no capítulo 4, por agora cabe resslatar que
inicialmente, o ego encontra-se imerso no inconsciente; gradualmente, vai se
diferenciando e percebendo os elementos do inconsciente como fragmentos que, aos
poucos vão sendo reunidos e confrontados. A compreensão dos símbolos permite um
constante movimento de oposição e colaboração entre os processos inconscientes e
conscientes, possibilitando uma nova síntese entre esses fragmentos, que por sua vez

49
pode promover a transformação da psique e o aparecimento de uma nova unidade
composta dos elementos anteriormente dispersos, acessando a manifestação da
totalidade: do Self. Este processo foi denominado por Jung de individuação:

“(...) processo através do qual um ser torna-se um ‘individuum’


psicológico, isto é uma unidade autônoma e indivisível, uma
totalidade. A individuação significa tender a tornar-se um ser
realmente individual; na medida em que entendermos por
individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa
unicidade última e irrevogável; trata-se da realização de seu si-
mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda
comparação. Poder-se-ia, pois traduzir ‘individuação’ por
‘realização de si-mesmo’, ‘realização do si-mesmo’ (...) o si-mesmo,
compreende infinitamente mais do que um simples eu ... a
individuação não exclui o universo, ela o inclui” (Jung, 2005, p.355).

A individuação é o processo no qual o indivíduo torna-se quem é em potencial,


portanto, é um processo pelo qual, progressivamente, ele vai se desvelando,
reintegrando seus aspectos, se des-identificando dos outros e do mundo, atingindo sua
singularidade, através da realização mais plena possível do potencial que existe em cada
ser (Self). Esse processo envolve um movimento de ampliação da consciência, à qual o
indivíduo necessita integrar e assimilar conteúdos do inconsciente. Von Franz (1964)
afirma que:

“(...) O processo de individuação é, na verdade, mais do que um


simples acordo entre a semente inata da totalidade e as
circunstâncias externas que constituem seu destino. Sua experiência
subjetiva sugere a intervenção ativa e criadora de alguma força
suprapessoal. Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está
guiando de acordo com um desígnio secreto. É como se algo nos
estivesse olhando, algo que não vemos mas que vê a nós” (p.162).

Portanto, o objetivo da individuação é o de relacionar os vários aspectos da


psique, consciente e inconsciente, para isso é preciso que o ego tome consciência do
Self e perceba não apenas a persona; é preciso que entre em contato com a sombra. “É
importante para a meta da individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o
indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os
outros” (Jung, 2004, p.71). Nesse sentido, a individuação enquanto o reconhecimento de

50
uma incompletude não é a busca da perfeição humana, ou seja, não necessariamente a
meta da individuação será algo socialmente considerado como bom.

Jung formalizou que o processo de individuação ocorre especificamente na


segunda metade da vida, visto que à primeira metade estavam destinadas as tarefas
referentes à jornada do herói, como o desenvolvimento do ego e da persona, incluindo
as tarefas referentes a: auto-domínio, controle do meio ambiente e das emoções,
adaptação aos papéis sociais, libertação da dependência dos pais, capacidade para a
reprodução biológica e desenvolvimento do seu papel no mundo adulto. Já na segunda
metade da vida, a grande tarefa que se apresenta ao ego é a de integrar os aspectos
conscientes e inconscientes, através da realização da unidade psíquica, da busca do
significado da vida, da unificação do ego com o inconsciente e da busca de um potencial
não realizado. Nesse processo o Self torna-se o grande aliado.

Não se trata de uma tarefa fácil, pois nesse confronto consigo mesmo o
indivíduo depara-se com suas limitações, com suas defesas, percebe que sua
personalidade não é linear, que existem outros conteúdos além da persona. Nas palavras
de Stein (2006):

“(...) A individuação inclui mais do que o projeto realizado


individualmente na primeira metade da vida, a saber, o
desenvolvimento do ego e da persona. Quando isso é feito, uma outra
tarefa começa a surgir, porquanto o desenvolvimento ideal de ego e
persona deixou uma considerável soma de material psicológico fora
do quadro consciente. A sombra não foi integrada, a anima e o
animus permanecem inconscientes e, embora tenha sido útil nos
bastidores, o si-mesmo dificilmente foi visto de uma forma direta”
(p.156).

Segundo Stein (2006) é possível fracassar na tarefa de individuação, pois o


indivíduo pode permanecer dividido a vida toda. “(...) A profunda unidade interior num
nível consciente é, de fato, uma proeza rara, embora seja apoiada, sem dúvida alguma,
por um impulso inato muito forte; Jung fala sobre um impulso de individuação que não
é primariamente um imperativo biológico mas, antes, de natureza psicológica” (p.157).

51
O processo de individuação é contínuo e infinito pois, enquanto houver uma
ânsia pelo conhecimento e pela busca do sentido da vida, “(...) o novo se acrescenta ao
velho e o renova e impulsiona novamente ao desconhecido, numa espiral que se estende
para cima, para baixo e para os lados em direção à complexificação e diversificação
infinitas” (Penna, 2003, p.209).

O mecanismo psicológico que viabiliza o processo de individuação é o que Jung


chamou de compensação. Segundo Stein (2006), tanto na primeira quanto na segunda
metade da vida:

“(...) A relação fundamental entre consciente e inconsciente é


compensatória. (...) A tendência do ego é para tornar-se unilateral e
excessivamente confiante em si mesmo. Quando isso acontece, o
inconsciente começa a compensar essa unilateralidade. (...) A função
de compensação consiste em introduzir equilíbrio no sistema psíquico.
Essas compensações são ajustadas precisamente para o momento
presente, e o seu timing é estritamente governado pelo que a
consciência está ou não está fazendo, pelas atitudes unilaterais e
desenvolvimentos da consciência do ego. Com o tempo, entretanto,
essas muitas e pequenas compensações cotidianas somam-se e
convertem-se em padrões, e esses padrões estabelecem a base da
espiral de desenvolvimento para a totalidade a que Jung deu o nome
de individuação” (p.157-158).

O tema da individuação, tanto individual quanto coletiva será melhor abordado


no capítulo 4. A seguir veremos os arquétipos Anima-Animus. Seu entendimento é
fundamental para que possamos compreender o embasamento das determinações sociais
e sexuais da humanidade.

52
PRINCÍPIOS FEMININO E MASCULINO
ANIMUS E ANIMA.

Os termos Masculino e Feminino não somente dizem respeito ao gênero, antes


do que isto, são termos originais, denominados como princípios arquetípicos. Estes
princípios compõem a essência do mundo, estão presentes na natureza e na humanidade
em geral, desta forma não se limitam à divisão patriarcal que restringe o Masculino ao
homem e o Feminino à mulher. Carl Gustav Jung foi o primeiro autor a identificar estes
elementos, reconhecendo que no inconsciente de todos nós sempre existe o pólo oposto
ao sexo. Esta idéia de Jung é encontrada ao longo de todas as suas obras e foi
considerada como a mais fecunda delas.

Considerados como princípios, estes arquétipos referem-se a potenciais que se


expressam simbolicamente, tanto na cultura, como nos indivíduos de ambos os sexos,
Masculino e Feminino estão presentes como potencialidades tanto em homens quanto
em mulheres, com proporções diferentes. São forças construtoras e organizadoras da
vida. “Masculino e Feminino existem em cada ser humano, homem e mulher, como
forças produtoras de identidade e de diferenças. Mas não só. Realizam-se nas muitas
dimensões da realidade total” (Muraro & Boff, 2002, p.75) e “(...) Homens e mulheres
constituem formas simbólicas de expressão desses princípios que, no entanto, sempre
permanecerão muito mais amplos do que a possibilidade de representação que um ser
humano possa lhes dar” (Moraes, 1994, p.13).

Segundo Whitmont (1969) é através da polaridade masculino-feminino que


vivenciamos o conflito universal dos opostos em uma de suas formas mais básicas. Os
conceitos Yin e Yang da filosofia chinesa nos auxiliam na compreensão do Masculino e
Feminino enquanto princípios. Para o autor, Yang é o princípio criativo da energia
iniciadora, representante da ordem, da força, da agressividade, da impulsividade,
rebelião, discernimento e abstração. As características do Yang referem-se ao calor, ao
estímulo à luz, assim como às representações fálicas da espada, da lança, do poder de
penetração que pode, até mesmo, ser despedaçador. É individualizado, pois se manifesta
na disciplina e na separação. É representado como paraíso ou espírito. Positivo, criativo,

53
desperta, luta, mas também destrói e restringe. Já o elemento Yin representa a natureza
e seu ventre escuro. É receptivo, concreto, continente, envolvente, dócil, retraído, frio,
úmido e escuro. Representa o mundo da formação, os impulsos, anseios e instintos, a
sexualidade, é gerador e doador de forma, centrípeto e iniciador. É percebido no
simbolismo da Terra e da Lua, da escuridão e do espaço. É negativo, indiferenciado e
coletivo.

Os termos positivo e negativo não implicam, aqui, qualquer julgamento


valorativo. Positivo descreve uma energia emanadora e iniciadora, assertiva ou ativa,
enquanto que o termo negativo diz respeito a uma energia passiva ou receptiva.

O simbolismo Yang é representado pelas imagens masculinas como o pai, herói


e companheiro, a sabedoria, assim como as imagens da natureza como a águia, o cisne,
o carvalho e a chuva de ouro, enquanto que as imagens simbólicas do Yin abrangem o
mundo da natureza, da vida, das emoções e dos impulsos. A dinâmica Yin refere-se à
fusão e ao envolvimento, diferente da dinâmica Yang que diz respeito à separação e
abstração.

O mundo Ocidental está mais familiarizado com as características do Yang do


que do Yin. A orientação consciente dos homens ocidentais é, majoritariamente,
identificada com o Yang, da mesma forma como os traços inconscientes da mulher o
são. A orientação consciente feminina é, em geral, identificada com o Yin, elemento
que apresenta traços inconscientes nos homens. Esta influência do elemento Yang,
equivalente ao princípio Masculino no inconsciente feminino foi denominado por Jung
de animus, e a influência do elemento Yin, Feminino, no inconsciente masculino
recebeu o nome de anima. Retomaremos esses termos mais adiante. Desta forma, fica
claro que os homens não são encarnações puras do elemento masculino, ou do Yang,
tampouco as mulheres são simples criaturas do elemento feminino Yin, ambos são
constituídos pela relação dual destes elementos. “(...) a masculinidade e a feminilidade
não são determinadas por uma predominância absoluta, mas relativa de um conjunto
de características sobre o outro” (Whitmont, 1969 p.159).

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Wilhelm apud Whitmont (1969) define o Yin como complemento perfeito ao
Yang e ressalta esta função complementar e não opositora; “(...) o complemento, não o
oposto, pois o Receptivo não combate o Criativo, mas completa-o” (p.154).

Tanto Yang quanto Yin possuem expressões estáticas e dinâmicas. O aspecto


dinâmico do Yang é um impulso para a ação, desafiador, combativo, agressivo, fálico,
instigador que luta por realização, conflito e penetração. É auto-afirmação e vontade.
Whitmont (1969) refere-se a este pólo como marciano, relembrando Marte, o deus da
guerra que personifica a agressividade. No entanto, o aspecto estático do Yang se
manifesta como entendimento criativo, reflexão, consciência, discernimento, razão,
discriminação, cognição, significado, disciplina, lei, ordem, abstração e objetividade
não-pessoal. Este aspecto do Yang corresponde ao que Jung denominou de Logos ou
espírito. O pólo dinâmico, dos aspectos de Marte, e o pólo estático, do aspectos de
Logos, expressam a luta pela afirmação e separação individual.

O aspecto dinâmico do Yin corresponde ao que Jung denominou como princípio


de Eros. Eros é relacionamento, desejo de união, de unificação, de envolvimento com as
pessoas, com a concretude da fusão humana e não com a abstração e o entendimento; é
a união pessoal, subjetiva e emocional. O pólo estático do Yin é inerte, indiferente,
gestante e expectante que cria e destrói incessantemente, frio e cego, avesso à disciplina
e à consciência. É impessoal e coletivo. “(...) Ele é receptividade e doação, mas também
apoio e contenção; é vivência emocional e infindável fluxo sonhador do mundo das
imagens, da fantasia e da intuição” (Whitmont, 1969, p.156).

“Podemos encarar a Psicologia do homem como determinada por


vários graus de predominância do Yang manifesto e uma
recessividade ou funcionamento em segundo plano do Yin. Do mesmo
modo, a mulher é caracterizada por uma predominância relativamente
manifesta do Yin e pelo funcionamento em segundo plano do Yang.
Mas é preciso observar que estamos falando da predominância em
vários graus; há aquilo que poderíamos chamar de homens motivados
pelo feminino – ou Yin – e mulheres motivadas pelo masculino – ou
Yang. Além do mais, predominância não deve ser confundida com
consciência” (p.159).

55
Retornemos agora às definições de anima e animus utilizadas por Jung para
representar os opostos existentes inconscientemente em homens e mulheres,
respectivamente. Estes termos foram inspirados no termo latino animare, que significa
animar, avivar. Considerou-os adequados pois, compreendia a anima e o animus como
almas ou espíritos animadores e vivificantes para homens e mulheres (Stanford, 1987).
Por identificar a anima e o animus como elementos essenciais na construção da
estrutura psíquica de todos os homens e mulheres, como personificações dos padrões
humanos gerais, instintivos e inconscientes nos quais se baseiam muitas das
características pessoais, Jung os classificou como arquétipos.

Os arquétipos da anima e do animus se referem àquilo que em cada sexo é o


outro, o oposto, que a princípio se apresenta como incompreensível, como um mundo
que não pode ser completamente conhecido, porém suas facetas podem ser, por vezes,
intuídas ou sentidas.

A anima, portanto, representa o arquétipo Yin no homem, o Feminino que há


dentro dele, embora de modo inconsciente. O animus é compreendido como um análogo
do Yang: a masculinidade inconsciente da mulher.

A anima é uma existência psíquica irracional e consiste em ímpetos e impulsos


anteriores à formação da consciência, ou seja, não são criados pela consciência são pré-
condições: “(...) Devemos enfatizar particularmente esse caráter a priori na medida em
que representa a imagem arquetípica do Feminino em sua forma mais geral como
existe no homem individual e nos homens coletivamente” (Whitmont, 1969, p.168). A
anima representa a imagem arquetípica do Feminino Eterno e aparece em várias
imagens de figuras femininas, desde figuras encantadoras até mesmo assustadoras,
amigáveis ou perigosas, aparece na forma de ninfas, musas, donzelas aflitas, ciganas,
camponesas, figuras sedutoras, santas, mártires, prostitutas, como a Rainha do Paraíso, a
Santa Virgem, entre outros. A anima também pode ser representada por figuras de
animais, principalmente gato, cobra, cavalo, vaca, pomba ou coruja.

“Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas


femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis,

56
as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade
de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso
menos importante, o relacionamento com o inconsciente. Não foi por
mero acaso que antigamente utilizavam-se sacerdotisas (como Síbila,
na Grécia) para sondar a vontade divina e estabelecer comunicação
com os deuses” (von Franz, 1964, p.177).

Este arquétipo representa os impulsos que caracterizam a vida como natural,


espontânea, relacionada aos instintos, aos prazeres da carne, o envolvimento emocional
com outras pessoas ou coisas, à concretude, à Terra. Consiste nos anseios inconscientes
do homem, seus estados de espírito, ansiedades, depressões, medos, aspirações
emocionais, ilusões e desilusões, bem como potencial emocional e relacional, atração à
aventura, à conquista e ao novo. Por ser um elemento inferior no homem – algo
inconsciente opondo-se ao termo superior, consciente –, a anima por vezes invade a
mente consciente, especificamente em situações que exigem respostas emocionais e
instintivas.

Autores como Whitmont (1969) e Neumann (2000) afirmam que o confronto de


um homem com sua anima consiste na grande tarefa do homem adulto, pois exige dele
consciência de suas expectativas autônomas e padrões de resposta pessoais, assim como
o estabelecimento de um relacionamento com o complexo como entidade autônoma, ou
seja, que estabeleça um relacionamento com sua contra-parte feminina interior como
um Tu, capaz de reconhecer os próprios anseios e necessidades e de se adaptar a eles,
canalizando, sempre que possível, seus impulsos de modo que suas expressões sejam
compatíveis com a realidade exterior, bem como com sua ética individual. Isto implica
em, não somente levar em conta os próprios hábitos, exigências e responsabilidades
comunitárias e familiares do meio que o cerca, como também atender às necessidades
daquele elemento que está solicitando à consciência espaço para florescer. Somente
assim, é que um homem relacionado com seu Self pode aceitar e lidar com a alteridade
de outro Self, possibilitando assim, o que Neumann chamou de um autêntico encontro
entre dois indivíduos.

Por intermédio das associações das imagens femininas estruturadas durante a


infância, a Feminilidade Arquetípica se realiza no homem. Essas primeiras imagens
femininas com as quais a criança tem contato não necessariamente referem-se à mãe,

57
mas a qualquer figura que tenha assumido o papel materno, podendo ser a própria, ou
uma irmã, tia, avó, etc. Sendo assim, no aspecto pessoal, ocorre a formação de um
padrão feminino, no qual na fase adulta, a anima poderá se realizar. Se o homem sente
uma influência negativa da mãe, ou da figura feminina que tenha desempenhado tal
papel, sua anima poderá se expressar de maneira irritada, incerta, depressiva, insegura e
susceptível: este tipo de influência foi chamada de anima negativa. Entretanto, caso ele
seja capaz de dominar tais investidas de aspecto negativo, elas poderão ajudá-lo a
fortalecer sua masculinidade. A influência da anima negativa pode provocar uma
espécie de apatia, medo a doenças, impotência ou até mesmo acidentes. Homens
dominados por este tipo de anima podem achar que a vida possuiu um aspecto triste e
opressivo. “(...) Este clima psicológico sombrio pode, mesmo, levar um homem ao
suicídio, e a anima torna-se então o demônio da morte” (von Franz, 1964, p.178).

A anima também pode manifestar-se de modo a tornar o homem extremamente


sentimental, efeminado, podendo ser explorado por mulheres, envolvendo-o em jogos
intelectuais destruidores, “(...) o objetivo secreto do inconsciente ao provocar toda esta
complicação é forçar um homem a desenvolver e amadurecer o seu próprio ser,
integrando melhor a sua personalidade inconsciente e trazendo-a à realidade da sua
vida” (von Franz, 1964, p.180).

Em seu aspecto positivo, a anima é responsável por ajudar o homem a identificar


alguns fatos escondidos em seu inconsciente, assim como sintonizá-lo com seus valores
internos positivos, o que possibilita um contato mais profundo com o seu interior, ela
assume, portanto, o papel de mediador, de guia entre o Self e o mundo interior. Esta
função de guia para o mundo interior só ocorre quando o homem leva a sério os seus
sentimentos, humores, expectativas e fantasias e quando ele consegue expressá-los de
alguma forma, por exemplo através da pintura, escultura, literatura, música ou dança.
Ao trabalhar com calma e atenção estas sugestões da anima, abre-se espaço para que
outros materiais ainda mais profundos do inconsciente venham à tona, possibilitando-
lhe entrar em contato com seu próprio material reprimido e, portanto, primitivo (von
Franz, 1964).

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Os arquétipos da anima e do animus normalmente se expressam sob alguma
forma de estrutura quaternária, pois permeiam quatro estágios de desenvolvimento. O
primeiro estágio é simbolizado na figura de Eva, representando o relacionamento
puramente instintivo e biológico; o segundo estágio do desenvolvimento da anima é
simbolizado pela Helena de Fausto, personificando um nível romântico e estético,
também caracterizado por elementos sexuais. O terceiro é expressado pela imagem da
Virgem Maria: aqui, existe uma elevação do amor à grandeza da devoção espiritual. Por
fim, o quarto estágio é simbolizado pela Sapiência, uma sabedoria que transcende
aspectos como pureza e santidade, podendo ser expresso na imagem de Sulamita dos
Cânticos de Salomão ou de Sophia. Von Franz, no capítulo do livro O Homem e Seus
Símbolos do Jung (1964), adverte que no desenvolvimento psíquico do homem
moderno, o quarto estágio é raramente alcançado e, que, a figura de Mona Lisa seria a
que mais se aproximaria deste tipo de anima (p.185).

O animus enquanto imagem arquetípica do princípio Masculino, representa na


mulher um ímpeto de ação, a capacidade de discriminação e julgamento. Whitmont
acrescenta que quando essas funções não estão próximas do consciente, a mulher julga
as coisas e as pessoas, em especial os homens. O autor também coloca que quando uma
mulher é dominada pelo animus, fica preenchida de preconceitos, tornando-se altamente
dogmática e argumentadora e assumindo uma postura demasiada generalizadora. “(...)
Uma mulher possuída pelo animus não discute para descobrir a verdade, mas para
mostrar que está “certa”, vencer e ter a última palavra. Ela prefere estar certa num
argumento a levar a sério o relacionamento humano. A vida e os homens são julgados e
rejeitados se não se encaixarem nos moldes de suas noções preconcebidas” (Whitmont,
1969, p.179). Von Franz descreve a atuação do animus na mulher como:

“(...) uma convicção secreta “sagrada”. Quando uma mulher anuncia


tal convicção com voz forte, masculina e insistente, ou a impõe às
outras pessoas, por meio de cenas violentas reconhece-se, facilmente,
a sua masculinidade encoberta. No entanto, mesmo em uma mulher
que exteriormente se revele muito feminina o animus pode também ter
uma força igualmente firme e inexorável. De repente podemos nos
deparar com algo de obstinado, frio e totalmente inacessível em uma
mulher” (1964, p.189).

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O animus, tanto quanto a anima, representa um esquema de referências
apriorísticas, ou seja, que nunca foram confrontados pela consciência, sendo que esta
inconsciência não ocorre por repressão. Possui grande capacidade de mobilização e se
expressa com rigidez, inflação, agressividade e sentimento de posse. Este arquétipo
descreve os meios pelos quais os julgamentos femininos são formados: por este motivo
é que para uma mulher esses padrões de julgamento são compreendidos como fatos
óbvios para todos. Um “ataque de animus”, ou seja, quando estes elementos anímicos
estão muito longe do confronto consciente, facilmente ocorre uma invasão, uma
inundação desse elemento que aparece de forma reflexa e hostil. Isto ocorre,
particularmente em situações que solicitem desta mulher características como iniciativa,
agressividade, ação, discriminação, racionalidade e entendimento.

“Quanto menos os impulsos do ego são individualizados na


experiência real, mais compulsivos e poderosos eles se tornam no
animus; quanto mais a mulher sente que tem de ser habitual e
esteriotipadamente passiva e submissa, mais provável é que seu
animus seja compulsivamente hostil” (Whitmont, 1969, p.188).

Assim como a anima, o animus contém tanto o aspecto negativo, expressado por
brutalidade, indiferença, tendência à conversa vazia, às idéias silenciosas, obstinadas e
más, quanto o aspecto positivo que personifica atitudes como a iniciativa, a coragem, a
honestidade e, na sua forma mais elevada assume grande profundidade espiritual; tais
elementos se compreendidos, também podem fazer uma ponte de ligação com o Self,
tornando a mulher consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua posição
objetiva, cultural ou pessoal, ajudando-a, assim, a encontrar o seu caminho para uma
atitude espiritual em relação à vida. No entanto, isto só é possível para a mulher a partir
do momento em que tenha cessado a omissão de opiniões absolutas e, para isso, é
preciso avaliar a inviolabilidade de suas convicções. “(...) Só então estará capacitada a
aceitar sugestões do seu inconsciente, sobretudo as que contradizem as opiniões do seu
animus. Só então, repetimos, é que as manifestações do self hão de chegar a ela e fazê-
la compreender conscientemente o seu sentido” (von Franz, 1964, p.195).

A quaternariedade do animus está representada nas seguintes imagens: o atleta


ou homem musculoso, representando o primeiro estágio do desenvolvimento do animus,

60
é a personificação das forças física e de vontade; ao segundo estágio corresponderia a
imagem do homens de negócios ou executivos pois neste, o animus adquire iniciativa e
capacidade de planejamento; no terceiro torna-se “o verbo” representado por imagens
tais quais o poeta, o professor, o escritor, este estágio retrata o contato com o
pensamento, e a quarta manifestação anímica é simbolizada pelo sábio, representando o
guia de reflexão. Von Franz afirma que este quarto estágio do desenvolvimento do
animus:

“(...) Dá à mulher uma firmeza espiritual e um invisível amparo


interior, que compensam sua brandura exterior. O animus, na sua
forma mais altamente desenvolvida, relaciona a mente feminina com
a evolução espiritual da sua época, tornando-a assim mais receptiva
a novas idéias criadoras do que o homem. É por este motivo que
antigamente, em muitos países, cabia às mulheres a tarefa de
adivinhar o futuro ou a vontade dos deuses” (1964, p.194).

Da mesma forma como a formação da anima no homem recebe um modelo a


partir da relação com a mãe, ou com quem tenha exercido tal papel, o animus da mulher
é modelado e formado a partir do seu relacionamento com figuras masculinas como o
pai ou irmão.

Um fator muito importante a ser levado em conta e que torna o conhecimento da


anima ou do animus muito difícil, é que estes fatores psíquicos existentes dentro de nós
são, geralmente, projetados. Quando esses arquétipos são projetados em outras pessoas
alteramos profundamente a percepção que temos delas. Em grande medida, os homens
projetam suas animas em determinadas mulheres e vice-versa. Esta projeção é
demasiada importante, pois é a responsável pela aproximação e atração entre os sexos,
bem como pela paixão. Stanford explica a importância da projeção:

“(...) O homem e a mulher são tão diferentes que é preciso um grande


poder de atração para uni-los em primeiro lugar; a projeção produz
essa influência por causa da fascinação com que reveste o membro do
outro sexo. Por essa razão, a maior parte dos relacionamentos de
amor começam com projeção, e isso proporciona vida para que
depois a vida se movimente” (1987, p.31).

61
A anima e o animus possuem forte poder de numinosidade, ou seja, são repletos
de energia psíquica, e por este motivo, tendem a atingir-nos emocionalmente. Devido a
este efeito numinoso, é que tais imagens, quando projetadas, possuem um efeito
semelhante ao magnético, fazendo com que a pessoa portadora da projeção ou nos atraia
de maneira intensa, ou nos cause um alto grau de repulsa (Stanford, 1987, p.22).

Stanford nos atenta para o fato de a projeção destes arquétipos não ser, em si,
boa ou má, pois trata-se de um evento natural que sempre ocorrerá, por mais que
tentemos controlá-los e, que, é através deste recurso que tais elementos tornam-se
visíveis para nossa realidade consciente, surgindo uma oportunidade de conhecermos
mais o nosso mundo interior, “(...) esse é o caminho para chegarmos ao conhecimento
de nossas próprias almas” e “(...) A projeção em si não é boa nem má; o que fazemos
com ela é que deve ser levado em conta” (p.31).

Pelo fato de serem projetados, estes elementos geralmente não são reconhecidos
como pertencentes à própria pessoa, mas quando a projeção é reconhecida, é possível
identificar certos conteúdos da psique que poderiam passar desapercebidamente. “(...)
desde que o fenômeno de projeção seja reconhecido, essas imagens projetadas podem,
até certo ponto, ser recolocadas dentro de nós, pois podemos usar projeções como
espelhos em que vemos o reflexo de nossos próprios conteúdos psíquicos” (Stanford,
1987, p.19). Sendo assim, a capacidade de reconhecer e utilizar as projeções é
extremamente importante para o autoconhecimento; no entanto, tais fatores jamais
poderão se tornar plenamente conscientes a ponto de não se projetarem mais. A
conscientização, diferenciação, desenvolvimento, elaboração e integração destes
arquétipos na psique individual, bem como a elaboração dos opostos de maneira geral,
são imprescindíveis ao processo de individuação.

“(...) O elemento contra-sexual dentro de nós é psicologicamente tão


esquivo que escapa à nossa percepção completa; por isso ele é
sempre projetado, pelo menos em parte. Não há possibilidade de
chegarmos a um conhecimento tão completo de tais realidades, de
modo que a projeção não mais aconteça. Essa é uma meta impossível,
pois a anima e o animus não compartilham a realidade do ego, mas
nos transmitem um modo totalmente diferente de funcionamento
psicológico. No que se refere ao autoconhecimento, trata-se de
utilizar as projeções como espelhos, uma tarefa que é possível

62
mediante o uso dos conceitos psicológicos de Jung” (Stanford, 1987,
p.19).

Na visão de Neumann (2000), é preciso que nos confrontemos, inevitavelmente,


com a numinosidade dos arquétipos da anima e do animus, sem este confronto com a
outra metade, com o “inteiramente outro”, não é possível alcançar o potencial de
maturidade e inteireza da vida, ou seja, não é possível dar continuidade ao processo de
individuação. No entanto, ele ressalta que, para que este confronto verdadeiramente
aconteça, é preciso que a pessoa arrisque toda a sua personalidade, sem nenhum tipo de
reservas.

Neumann (2000, p.260) também diz que especificamente na segunda metade da


vida, durante o processo de individuação, a mulher adquire uma espécie de medo do
princípio Feminino e explica que isso ocorre devido ao fato de que a individuação
implica na descoberta do Self e, por este motivo, exige da mulher uma tarefa árdua, de
extrema complexidade, que é a redenção da dominação do Masculino arquetípico e da
mentalidade patriarcal, assim como valores patriarcais. Ele aponta para a dificuldade
desta descoberta que a mulher faz de si própria, em especial aquelas que tiveram um
casamento moldado nos valores patriarcais, podendo acarretar crises matrimoniais.

Também devemos levar em consideração que além dessa dificuldade de


confrontar e integrar os aspectos inconscientes trazidos pelas projeções da anima e do
animus, dificuldade esta que é comum tanto a homens quanto a mulheres, lembremos
que à tal dificuldade, acrescenta-se o peso da herança histórica ocidental, de uma cultura
maciçamente patriarcal. Nas palavras de Neumann (2000):

“(...) A conseqüência da altivez patriarcal do indivíduo do sexo


masculino para com as mulheres leva à incapacidade de fazer
qualquer contato genuíno com o Feminino, isto é, não apenas com
uma mulher real, mas também com o Feminino em si, com o
inconsciente. No entanto, todas as vezes que um relacionamento
integral com o Feminino permanece não-desenvolvido, isto significa
que, em virtude de seu medo, o indivíduo do sexo masculino não
consegue romper a própria inteireza que também engloba o
Feminino. Assim, a separação da cultura patriarcal do Feminino e do
inconsciente torna-se uma das causas essenciais da crise de medo em
que agora se encontra o mundo patriarcal”(p.254) e

63
“Experienciar a si mesma como tão fundamentalmente diferente dos
valores patriarcais dominantes compreensivelmente enche a mulher
de medo, até ela chegar ao ponto no seu próprio desenvolvimento em
que, por meio da experiência e do amor que liga os opostos, consegue
ver com clareza a totalidade da humanidade como uma unidade dos
aspectos masculinos e femininos do Self” (p.261).

Conforme colocado anteriormente, os arquétipos da anima e do animus possuem


o importante papel de estabelecer uma ponte de ligação entre o ego e o Self, “(...) entre
o aspecto pessoal e o impessoal, bem como entre o consciente e inconsciente” (Jung, E.
1991, p.15). Este grande significado da anima e do animus se deve ao fato de serem
arquétipos, ou seja, pertencem tanto à personalidade individual, quanto ao inconsciente
coletivo. Emma Jung (1991), esclarece que Jung entendia esses arquétipos como
complexos funcionais que se comportam de forma compensatória em relação à
personalidade externa, como se fosse, de certo modo, uma personalidade interna
apresentando determinadas propriedades que faltariam à personalidade externa,
consciente e manifesta. A autora também esclarece que em grande parte, as formas mais
primitivas da masculinidade já foram assimiladas pela mulher ocidental, apontando que
há tempos existem mulheres que encontraram utilidade para algumas características
masculinas em suas vidas femininas, tais como força de vontade, objetividade, atividade
e capacidade de atuação e que tais características foram vividas de forma
completamente feminina. Portanto, segundo a autora, o problema da mulher moderna
está na postura que adquire em relação ao Logos do animus, em relação ao elemento
espiritual masculino, “(...) que parece portanto ser uma absoluta expansão da
consciência, uma maior consciência em todos os campos, um dado e uma exigência
inevitáveis de nosso tempo” (p.18). Ela exemplifica tal fato retratando que, em conjunto
com as últimas descobertas e invenções tecnológicas, surgiu o movimento feminista que
lutava pela igualdade de direitos sociais entre os sexos; segundo a autora,

“(...) A pior excrescência desse esforço – o pedantismo – parece estar


hoje superada. A mulher aprendeu a reconhecer que não pode ser
igual ao homem, que ela antes de mais nada é mulher e deve sê-lo.
Permanece entretanto o fato de que uma determinada quantidade de
espírito masculino amadureceu na consciência das mulheres e deve
encontrar em suas personalidades seu lugar e sua atuação. Conhecer
estas grandezas, ordená-las para que possam agir adequadamente é
uma parte importante do problema do animus” (1991, p.19).

64
Whitmont (1969) analisa o movimento feminista como uma armadilha
característica do animus que deve ser evitada, individual e coletivamente. Com esta
afirmação ele se refere ao comportamento feminista de ao reivindicar direitos iguais
para as mulheres, através da identificação com os valores masculinos, subestima e
elimina a possibilidade de a mulher ser e poder expressar aquilo que realmente é,
enquanto essência. O autor também adverte para o fato de talvez, não existir nenhum
padrão arquetípico aceito pela cultura cristã ocidental que permita e estimule às
mulheres a encontrar sua verdadeira individualidade feminina e ressalta que a rejeição e
repressão dos valores femininos, se comparados aos masculinos, é a herança da nossa
cultura patriarcal. “(...) Isso resultou numa situação em que o problema da individuação
feminina tornou-se uma tarefa pioneira que talvez tenha servido para conduzir a um
novo período de cultura” (p.190).

Para Whitmont, a questão da anima constitui um problema para o mundo


moderno, visto que o medo da anima conduziu gradualmente à repressão do feminino e
das mulheres e que, hoje, esse medo está sendo expressado na intensa masculinização e
na depreciação dos elementos femininos. Foi visto no primeiro capítulo que o mundo
patriarcal restringiu o princípio Feminino à figura da esposa e mãe dedicada, aos
serviços domésticos, o que, na visão de Whitmont, contribuiu para o declínio da auto-
estima da mulher enquanto pessoa identificada com o Feminino e não como simples
imitadoras dos homens.

No livro Retorno da Deusa (1991), obra posterior à Busca do Símbolo (1969),


Whitmont interroga a validade para os tempos atuais da divisão animus-anima a
elementos masculinos inconscientes nas mulheres e femininos, inconscientes nos
homens, proposta por Jung em 1930 e propõe um novo olhar para esses conceitos,
questionando essa divisão assim como a separação Eros-Logos, também proposta por
Jung na qual Eros corresponderia ao elemento feminino Yin e Logos ao elemento
masculino Yang. Whitmont acredita que a associação que a cultura ocidental fez do
masculino Yang ao criativo e do feminino Yin ao receptivo é demasiado estreita e
sugere outras associações, preferindo relacionar ao Yang as idéias de exteriorização,
diversificação, penetração e ação externa, enquanto que ao Yin associar-se-ia a
inerência, unificação, incorporação, atividade e existência.

65
“(...) Jung limitou a anima e o animus às dinâmicas inconscientes de
ambos os sexos. Diante da força de experiências clínicas acumuladas
desde a época de sua formulação original, essa visão não parece mais
válida. Não se justifica mais a alegação de que a anima incorpora
exclusivamente o inconsciente impessoal do homem, e o animus, o das
mulheres. Também não podemos mais sustentar o dogma de que a
consciência, tanto no homem como na mulher, é masculina, e que o
inconsciente é feminino” (1991, p.161).

Jung relacionou Eros ao elemento Feminino considerando-o como uma


tendência à formação de vínculos interpessoais, pois acreditava ser esta uma
característica elementar do princípio Feminino. Identificou Logos ao elemento
Masculino por atributos tais como a atitude, o espírito, a inteligência criativa e
organizadora e o significado. Whitmont ressalta que os estudos de Jung a respeito da
anima e do animus tinham uma natureza preliminar e que mereciam continuidade; no
entanto tais idéias iniciais foram tomadas como verdades finais sobre o assunto durante
os cinqüenta anos seguintes.

Whitmont (1991) questiona essa separação Eros-Feminino e Logos-Masculino


afirmando que o movimento feminino em busca da tomada de consciência cada vez
maior sobre si própria evidenciou que tal conceito não era mais adequado para abarcar a
ampla gama de dinamismos tanto femininos quanto masculinos. O autor relembra que
Eros era uma divindade mitológica masculina e fálica, representante do desejo do toque,
do contato e da posse, é a divindade que motiva a busca pela beleza, pela bondade,
divindade e humanidade ao mesmo tempo em que expressa o desejo voluntarioso, a
libido agressiva extrovertida e o insistente anseio pela união e penetração. Nas palavras
de Whitmont, Eros “(...) É filho da Grande Mãe. Impõe sua própria ordem de conexão e
desejo àquilo que, antes dele, era o vácuo negro primordial” (p.149). Na visão deste
autor, Eros não seria representante do elemento Feminino e, sim, de um aspecto do
Yang referente à extroversão, à masculinidade agressiva.

Para o autor, tanto a força vinculadora quanto o relacionamento não são


qualidades exclusivas do Feminino assim como o espírito também não o é do
Masculino; ele embasa tal afirmação mostrando que o relacionamento é um princípio de
ordem e espaço no tempo e que, embora de maneiras diferentes, a ordem pertence tanto
ao princípio Masculino quanto ao Feminino, enquanto que a força vinculadora se

66
considerada como “(...) a disponibilidade e a capacidade para perceber e apreciar o
outro tal como é, ao mesmo tempo em que se preserva a própria posição genuína diante
da vida e de si mesmo” (1991, p.150). Nos leva a reconhecer e compreender as
características agradáveis e desagradáveis, assim como as aceitáveis e as inaceitáveis.
Desta forma, a força vinculadora é um aspecto elementar na individuação de ambos os
sexos; portanto Whitmont acredita que a força vinculadora e tampouco o
relacionamento caracterizam a consciência exclusiva do Feminino ou Masculino, pois
“(...) São elementos presentes nas necessidades femininas de personalização e
envolvimento, da mesma forma que nos impulsos masculinos para a distância, o
controle, a posse, a competição e o significado” (p.151) .

“Além disso, ao definirmos o Feminino primariamente em termos de


força vinculadora, ignoramos uma profundidade que também é sua
dimensão intrínseca. Pode-se dizer que ela é ativa, transformadora,
isenta de qualquer interesse por vínculos. Equacionar simplesmente o
Yin aos relacionamentos reduz o Feminino a um complexo
relativamente passivo-reativo, para sempre carente de iniciativa.
Creio que essa tenha sido a intenção da tendência cultural
patriarcal” (p.151).

Portanto, para o autor, as qualidades que a anima e o animus representam e a


capacidade que possuem de estabelecer uma relação entre ego e Self não estão limitadas
a um ou outro sexo. Sendo assim, ele afirma que os homens podem ser dominados pela
anima, assim como também o podem pelo animus, da mesma forma em que as mulheres
podem ser dominadas pela anima e não apenas pelo animus. Segundo ele:

“(...) As mulheres podem, como sempre puderam, ser


psicologicamente determinadas em sua dimensão consciente pelo
logos, estando fora de sintonia com seus afetos. Os homens podem ser
imensamente sensíveis ao instinto, aos sentimentos e ao afeto, e
podem estar inteiramente perdidos com respeito ao logos ou a
qualquer outro dos arquétipos masculinos” (p.163).

Como não é possível tanto às mulheres quanto aos homens vivenciar plenamente
todos os afetos e qualidades dos arquétipos feminino e masculino respectivamente,
alguns desses afetos e impulsos básicos inerentes a cada sexo, não vivenciados, tendem
a permanecer inconscientes, não são assimilados e, por não estarem sob controle do ego
são menos refinados e diferenciados do que a persona. Isso significa que esses

67
elementos atuarão de forma inferior, constituindo-se de modos primitivos ou mesmo
obsessivos para compensar ou reagir contrariamente à posição consciente. Desta forma,
uma pessoa independentemente de seu sexo, que tenha uma postura mais masculina, ou
seja, que possua o elemento Yang predominante na persona, necessariamente o
elemento Yin irá se manifestar de forma inferior, e vice-versa.

“(...) Em conformidade com a regra, tudo o que é deixado de fora da


adaptação consciente da cultura reinante da pessoa individual é
relegado para o inconsciente e reunir-se-á em torno da estrutura a
que Jung deu o nome de anima/us. Para um homem extremamente
efeminado, a atitude interior (anima) será masculina em qualidade
porque isso é o que foi deixado de fora da adaptação da persona”
(Stein, 2006, p.125).

Murray Stein (2006) é um dos autores que compartilham dessa idéia proposta
por Whitmont e acrescenta que o fato de algumas mulheres serem mais masculinas em
suas personas ou alguns homens serem mais femininos do que masculinos é algo muito
mais comum nos tempos atuais em comparação a períodos anteriores, mas nem por isso
o pólo oposto ao utilizado pela consciência vai deixar de existir. Existe uma corrente
brasileira (Byington, 1983 e 1986) que prefere denominar anima e animus como faces
de um único arquétipo, não se tratando, portanto de dois arquétipos mas sim, de um
único arquétipo bipolar.

No capítulo que se segue será abordado o processo de densenvolvimento da


consciência, individual e coletiva, no qual retomaremos a questão dos princípios e da
divisão sexual por gêneros.

68
O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E COLETIVA:
DO MATRIARCADO AO PATRIARCADO E SUA ATUAL DECADÊNCIA.

No primeiro capítulo discutimos a história das mulheres a partir de uma


perspectiva social, refletindo sobre os diferentes papéis que exerceram em diferentes
momentos históricos. Agora, nos atentaremos à compreensão do desenvolvimento da
consciência, tanto individual quanto coletiva, para que possamos compreender
psicologicamente tais alterações discutidas a princípio, assim como refletir sobre as
conseqüências de tais transformações, sobretudo as implicações que o patriarcado
trouxe para a sociedade e, principalmente para as mulheres.

Na visão da Psicologia Analítica assim como houve a evolução do corpo


humano, desde os nossos ancestrais humanóides até o presente momento, a consciência
também apresenta um caminho de desenvolvimento. Aqui não estamos falando da
História objetiva e de possíveis fases históricas, mas de dinamismos presentes na
consciência nos diversos momentos de seu desenvolvimento, os quais compõem a sua
estrutura. Esses dinamismos podem aparecer de forma coletiva ou individual (Faria,
2003).

A apreensão desses dinamismos evolutivos da consciência segue a compreensão


de Jung de que “(...) o complexo do ego e a consciência já se apresentam em germe, no
inconsciente, como possibilidades inatas, indicando um movimento arquetípico humano
do Caos primordial para a luz, para uma percepção mais clara de si e do mundo”
(Faria, 2003, p.28).

Autores como Neumann (1990) e Whitmont (1991) compartilharam da idéia de


que o desenvolvimento psicológico do indivíduo repete a história evolutiva da
humanidade, e que, por essa razão, a evolução da consciência por estágios é um
fenômeno humano que diz respeito tanto ao âmbito coletivo quanto individual. Nas
palavras de Neumann: “deve-se considerar o desenvolvimento ontogenético uma
recapitulação modificada do desenvolvimento filogenético” (2000, p.16). Desta forma,

69
os elementos que serão aplicados atribuem-se a estes dois âmbitos, os quais
procuraremos sempre esclarecer e apontar sua interelação.

Os estudos sobre a evolução da consciência compreendem determinadas fases,


iniciando com o momento em que o ego ainda se encontra contido na imensidão
inconsciente, partindo para o momento em que começa a tomar consciência da sua
própria posição e a defendê-la com heroísmo, até o momento em que se torna capaz de
ampliar as suas experiências mediante modificações efetuadas pela própria atividade
passando a participar racionalmente e a exercer controle sobre os “mistérios da vida”,
que nesta fase conforme veremos adiante, já não são mais tão misteriosos.

Erich Neumann foi o primeiro autor a descrever o movimento psicológico de


transformação da consciência do dinamismo matriarcal para o patriarcal, em sua obra
História da Origem da Consciência (1990). A consciência matriarcal é entendida como a
consciência nascente da humanidade, desta forma nomeada em decorrência ao fato de
possuir como arquétipo regente o da Grande Mãe, tido em muitas culturas como o
responsável pelas origens do mundo, simboliza a natureza, a fertilidade, os instintos, os
desejos e emoções, a vida e a morte.

Com o termo matriarcal, no entanto, estamos nos referindo a um estado


psicológico de consciência em que o inconsciente e suas fantasias prevaleceram sobre o
ego e, não ao matriarcado sociológico, defendido por Bachofen no século XIX como um
suposto período em que as mulheres detinham o poder político sobre os homens.

Conforme colocado, inicialmente o ego aparece imerso no inconsciente num


estado de amorfia anônima e justamente por esta imersão inconsciente é que pouco
sabemos e não poderíamos saber muito mais sobre este período. Por tal motivo é que
esta primeira fase do desenvolvimento foi considerada pré-histórica, ou seja, anterior à
história, visto que para existir história é preciso que exista uma consciência de ego
aperceptiva, reflexiva e auto-consciente; por este motivo, também, é que se atribui a
esta fase pré-histórica o caos indiferenciado (Neumann, 1990).

70
Nesta primeira fase não existia diferenciação entre os mundos externo e interno,
pois a psique ainda era idêntica e indistinta do mundo. Essa ligação do ego com o
inconsciente, do homem com o mundo, representam o estado de imersão da consciência
e do ego na psique coletiva que foi denominada por Jung de participação mística. Tal
termo foi utilizado pelo etnólogo Lévy-Bruhl, estudioso das culturas primitivas, para
designar o fato de a psique identificar-se com o mundo externo; segundo este autor,
“acreditava-se que partes da alma poderiam ser roubadas ou encarnadas em animais e
árvores, com os quais o sujeito vivia em estado de identidade” (Faria, 2003, p. 35).

Neumann denominou esse estado de identidade do ego com o inconsciente e o


mundo, portanto com o Self, de urobórico, lembrando a figura mitológica Uroboros do
dragão primordial que engole a própria cauda. Esta figura representa a união dos
opostos, os Pais primordiais representantes dos elementos masculino e feminino, ainda
indiferenciados. Faz alusão a um momento da vida psíquica coletiva, e individual, no
qual ainda não havia separação de opostos: as polaridades estavam unidas e faziam
parte de um todo abrangente; portanto, nesta fase ainda não era possível ao ego aparecer
como um complexo consciente que estabelece uma consciência discriminada. Esta é a
fase pré-histórica da humanidade “(...) na qual o indivíduo e o grupo, o ego e o
inconsciente, o homem e o mundo, estavam ligados de maneira tão indissolúvel entre si
que a lei da participation mystique, da identidade inconsciente, prevalecia entre eles”
(Neumann, 1990, p.195).

“O mundo é experimentado como todo-envolvente e, nele, o homem


experimenta a si mesmo, como um eu, apenas de maneira esporádica
e momentânea. Assim como o ego infantil, vivendo outra vez essa
fase, muito pouco desenvolvido e cansando-se com facilidade, emerge
como uma ilha do oceano do inconsciente apenas ocasionalmente,
voltando a afundar, assim também o homem primevo experimenta o
mundo. Pequeno, frágil e muito dado ao sono, isto é, sobremaneira
inconsciente, ele flutua no instintivo como o animal. Envolto e
sustentado pela Mãe Natureza, embalado nos seus braços, ele é
entregue a ela para o bem e para o mal. Ele nada é; tudo é mundo”
(Neumann, 1990, p.31).

As primeiras funções psicológicas a aparecer tanto no desenvolvimento dos


homens primitivos quanto no da criança são as funções perceptivas, ou seja: a sensação
e a intuição.

71
Seguindo o período urobórico inicia-se o estágio que Neumann nomeou de
matriarcal, conforme apontado anteriormente: é o período regido pelo arquétipo da
Grande Mãe cuja fertilidade ora propicia ora ameaça de incesto e devoração a sua
própria cria. O autor designou de incesto urobórico a tendência que o ego tem de
dissolver-se no inconsciente e de voltar ao estado original de onde surgiu, pois esta fase
urobórica é prazerosa para o ego no sentido em que está livre de tensões (p.202). O
termo incesto é aqui empregado do ponto de vista simbólico denotando indiscriminação;
tal termo se opõe à palavra castração que no sentido simbólico expressa separação,
discriminação.

Seguiremos nossa compreensão dos estágios de desenvolvimento da consciência


a partir das contribuições de Whitmont. Este autor prosseguiu os estudos de Neumann,
em sua obra Retorno da Deusa (1991) na qual reflete detalhadamente sobre o caminho
percorrido entre a consciência matriarcal e a patriarcal, analisando as implicações desta
última para a contemporaneidade.

Whitmont afirma que a consciência se desenvolveu a partir de uma orientação


ginecolátrica, matriarcal e mágica. Com o termo ginecolátrico ele denota a reverência
pelo feminino. O autor acredita que este período estendeu-se, provavelmente, da Idade
da Pedra até a Idade do Bronze.

Ao empregar o termo “mágico”, Whitmont faz alusão à identidade pré-verbal,


simbiótica e unitária características deste período, o qual foi governado pela Grande
Deusa, cujas principais características são a manutenção e a continuidade da ordem
natural bem como seus ciclos intermináveis de nascimento, morte e renascimento.

“(...) Ela é ao mesmo tempo mãe e filha, donzela, virgem, meretriz e


bruxa. É a senhora das estrelas e dos céus, a beleza da natureza, o
útero gerador, o poder nutriente da terra, a fertilidade, a provedora
de todas as necessidades, e também o poder da morte e o horror da
decadência e da aniquilação. Dela tudo procede e a ela tudo retorna”
(Whitmont, 1991, p.60).

72
Na Idade do Bronze, o culto da Grande Deusa atinge o apogeu: as forças divinas
intrínsecas à natureza e ao mundo dos objetos eram adoradas. “(...) Esse culto é o auge
do animismo e da religião panteísta da natureza” (p.61).

Em se tratando do desenvolvimento infantil a fase que corresponderia à era


mágica abrangeria desde o momento em que a criança nasce até os três ou quatro anos
de idade. Ao longo desse período a criança mantém-se num estado de identidade
simbiótica com a mãe e a família que a cerca, sendo assim influenciada pelo
inconsciente da mãe e do grupo a que pertence. As atividades da criança pequena,
imersa nesse inconsciente familiar, são coordenadas pelo instinto, por padrões de ação
fixos e por imitação. Neste período os pais e o grupo exercem grande poder de
sugestionabilidade e numinosidade sobre a criança. Por isso é que a perda da
identificação grupal pode significar a perda da alma e da identidade e, talvez, da própria
vida. Assim também o é para o homem primitivo:

“(...) A história ensina que, no princípio, o indivíduo não existia ainda


como entidade independente, sendo o domínio exercido pela psique
grupal, que não permitia a emancipação de um ego individual.
Reconhecemos essa situação em todas as áreas da vida social e
cultural; em toda parte, há, no início, uma coletividade anônima.
Naquele tempo, imperava eticamente a responsabilidade grupal, pela
qual o indivíduo não existia independentemente do grupo, mas apenas
como parte dele” (Neumann, 1990, p.197).

O tempo acontecia no aqui e agora, ainda não era possível a compreensão de


passado, presente e futuro. Também não existia a separação dos opostos que somente
mais tarde a nossa consciência racional realizou. Portanto não havia diferenciação entre
dentro e fora; corpo, mente ou psique; eu e outro.

A ética e a responsabilidade social como conhecemos atualmente ainda não


existia. Trata-se de um período pré-moral ou amoral em que ainda não existiam regras,
leis e ética individual. A pessoa não se via como um indivíduo, a consciência individual
ainda não emergira, pois estava imersa na psique coletiva. Cada pessoa representava
uma peça que constituía o todo abrangente do grupo; a consciência era grupal; sendo
assim, todas as contingências da vida eram consideradas questões a serem enfrentadas
em grupo. Questões pertinentes ao que hoje chamamos de bom ou mau se definiam, no

73
primeiro caso, pelo que beneficiava ou sustentava a vida do grupo enquanto que no
segundo, era tudo o que propiciava perigo ou terror ao grupo como um todo.

Os eventos aconteciam como manifestações predestinadas de forças muito


poderosas e desconhecidas, ou seja, forças que estavam além do controle humano.
Sendo assim, acreditava-se que não era possível causar ou planejar algum evento
racionalmente, sendo possível, apenas, invocar, aceitar, propiciar e adaptar-se a essas
forças poderosas e desconhecidas e ao destino, dada a inevitabilidade e
incontrolabilidade de tais fatos, não sujeitos a intervenções, mudanças, desafios,
responsabilidades ou compreensão. Tampouco a natureza era vista como um meio a ser
conquistado, mas, sim, como uma totalidade da qual cada ser humano é parte e parcela e
com a qual deve viver em harmonia, respeitando-a e venerando-a.

Neste período, e também em períodos posteriores em sociedades


prevalentemente matrilineares, de uma forma geral, o Feminino e a mulher eram mais
valorizados. Esta recebia um reconhecimento, por sua sabedoria e caráter de criadora,
era identificada com a Grande Deusa e com o poder misterioso da procriação mas, ao
mesmo tempo em que exercia certo fascínio, também suscitava reações de medo.

A partir do momento em que o ego passou a perceber, relativamente, a presença


de outra esfera, inconsciente, é que foi possível manter um certo distanciamento deste e
do mundo, fato que permitiu ao ego descobrir as leis regentes do universo. Foi no
Neolítico que, através da observação do coito animal, possível por sua domesticação, o
ser humano pôde compreender a reprodução e mais tarde imaginá-la nos humanos,
permitindo o entendimento do papel do homem na procriação. Este conhecimento
despolarizou a função mágico-misteriosa da procriação, até então atribuída unicamente
à mulher, conforme destacado no primeiro capítulo.

“Como filho caçula, a consciência do ego precisa primeiro conquistar


o seu espaço próprio e defendê-lo dos assaltos da Grande Mãe
interior e da Mãe-Mundo exterior, para, finalmente, numa luta longa
e sofrida, ampliar esse seu território próprio” (Neumann, 1990,
p.217).

74
A partir dessa nova consciência inicia-se a fase que Whitmont denominou de
mitológica. Esta marca a passagem do mundo ginecolátrico para o androlátrico. Seu
início ainda é dominado pela imagem e pelos ritos da Grande Deusa e dos seus
consortes. Ela ainda é reverenciada em seus diversos aspectos: como fonte geradora de
vida, mãe nutridora e cruel devoradora. Os consortes aparecem como amantes, filhos,
parceiros sexuais e como suas vítimas para o sacrifício. O apogeu dessa fase foi
caracterizado pela divisão do elemento masculino (Yang) em duas partes produzindo
Deuses Gêmeos. Aparecem, então, as imagens de Apolo e Dioniso: o primeiro era o
representante da luz, da vida, da imortalidade, da harmonia e da permanência, enquanto
que o segundo representava a escuridão, a interrupção, a morte e a transitoriedade
(1991). No início esses dois elementos representavam a dualidade de uma mesma
polaridade, distinguiam-se porém não se excluíam; pertenciam a um Grande Círculo
intacto. No entanto, no final da era mitológica essa dualidade transforma-se em
dualismo e ocorre a separação total dos opostos, que não mais considerados como
polaridades, passam a se opor de forma excludente: “Os sexos são separados e se
opõem. A luz se opõe à escuridão; o interior se opõe ao exterior; a vida se opõe à
morte” (Whitmont, 1991, p.68).

Com a separação dos opostos iniciam-se as escolhas, o julgamento, a


valorização e a hierarquização. O ego vai se estruturando e se fortalecendo ao mesmo
tempo em que ocorre a formação da sombra. Esta divisão dos Deuses Gêmeos implicou
uma escolha; a sociedade teve que escolher por um, passando a idolatrá-lo, o que
implicou em matar, rejeitar e reprimir o outro na sombra. As divindades apolíneas e
olímpicas masculinas passaram a ser veneradas, enquanto que os elementos dionisíacos
“femininos e escuros” (Whitmont, 1991, p.68) foram retirados de cena e lembrados
apenas nos mistérios. Posteriormente, na era patriarcal propriamente dita, os elementos
dionisíacos são completamente banidos e seus seguidores caçados como adoradores do
demônio.

A era mitológica representou um passo muito importante no desenvolvimento


humano, pois foi quando a humanidade teve a primeira noção de interiorização e de
afastamento pessoal do que passou a ser concebido como mundo externo e objetivo.
Sendo assim, o indivíduo passou a ter noção de uma existência dividida em duas partes:

75
uma se referia à individualidade; outra, separada desta, que dizia respeito ao mundo e
aos demais. Tal divisão possibilitou uma primeira percepção consciente da alma. É
neste período que se tem o primeiro registro das palavras eu sou: “Eu sou Odisseu”
(Whitmont, 1991, p.68). No entanto, mesmo com a noção de individualidade implicada
num discernimento entre o eu e o outro, no início deste período a ambivalência ainda
prevalece. Os opostos eram inclusivos e não exclusivos. O tempo passado começou a
ser compreendido para o homem mitológico; o tempo, nesta consciência, não dizia
respeito apenas ao aqui e agora, pois era o hoje e o ontem e, além disso, era a
eternidade. A noção espacial se referia àquilo que era dado de modo concreto e
imediato, não existia o conceito de espaço além do que era imediatamente acessível:
“Ou está aqui, ou não existe” (p.69). A realidade abrangia somente o que poderia ser
tocado e visto diretamente.

Segundo a análise de Whitmont (1991), este período provavelmente iniciou-se


no Neolítico, abrangendo a Idade do Bronze e encerrando-se na Idade do Ferro; a idade
das lutas heróicas. Foi no Neolítico que o homem começou a ter conhecimento sobre a
vida natural; começou a raciocinar primeiro a seu próprio respeito e, depois, em escala
crescente, a respeito do mundo à sua volta. Sendo assim, as coisas não mais aconteciam
por acaso, pois já era possível compreender algumas manifestações da natureza. No
entanto, o controle sobre esta ainda parecia muito distante. Com relação ao
desenvolvimento infantil é provável que esta fase ocorra entre os três e sete anos de
idade, período correspondente ao Neolítico, e entre os sete e doze anos, Idade do
Bronze. À Idade do Ferro corresponderia a puberdade e o início da fase androlátrica.
Nas palavras de Whitmont (1991):

“(...) Aos três ou quatro anos, começa a surgir uma pessoa interior,
que passa a dizer eu e a vincular a experiência interior à percepção
exterior. Tornar-se uma pessoa distinta promove, antes de mais nada,
uma consciência social, a percepção consciente de cerimônias e do
que é certo e errado segundo as regras ditadas pela família e pelos
costumes grupais. Dirige-se à sensação de vergonha. Ocorre uma
primeira discriminação de tempo e espaço, centrado no aqui e no
agora. O eu começa a se sentir cada vez mais destacado do corpo e
do mundo externo, e a controlar o desejo e a agressão. A identidade
mágica e a sensação de pertencer a algo cedem terreno ao animismo
e ao pensamento reflexivo, que aos poucos vai se expandindo. As
coisas têm alma, com qualidades humanas e também fantásticas. É

76
possível argumentar com uma bruxa e dela receber conselhos úteis;
logo depois, ela decola e sai voando em sua vassoura. É quando
começa o mundo da música e das palavras, dos contos de fada”
(p.85).

A vida em grupo implica em ordem social, moralidade e noção de ethos. A


moralidade aqui é coletiva, ainda não assume cunho individual. A ordem na era
mitológica dizia respeito à aprovação do grupo e ao respeito aos tabus, pois é neste
período que iniciam-se as regulamentações e o estabelecimento das proibições e
exigências sociais. Este ato canalizou o conjunto de impulsos anti-sociais da era
anterior. Sobretudo tais valores ainda estavam longe do atual senso moral e ético. A
divisão de bom e mau atribuía-se ao que era aprovado pela prática e pela coletividade ou
ao que causa danos ou prejuízos visíveis e que não condizia com os costumes.

“(...) Danificar propriedade do grupo e violar tabus são atos maus,


porque convidam à retaliação de uma força superior, seja ela
emanada de um líder, de um deus ou do demônio. A violação dos
costumes é má, porque leva à rejeição e ao isolamento. A pessoa é
objeto de vergonha, perde a dignidade. No nível mágico, o isolamento
em relação ao grupo é vivido como uma ameaça à própria vida. A
vergonha é uma reação mitológica ao isolamento; entretanto, a
sensação de uma grave ameaça à vida persiste e reverbera nas
profundezas do ser” (p.71).

A tentativa que os homens da era mitológica faziam era de afirmar a consciência


como separada do inconsciente e da natureza, a fim de que pudessem dominar essas
influências sombrias e invasivas, representadas pelas emoções, desejos e impulsos
devoradores. Mas ao subjugar esses elementos a humanidade dessa época abriu mão,
progressivamente, do âmbito feminino em prol do ideal masculino de autocontrole. Isto
é representado pela vitória de Apolo sobre Dioniso, revelando os valores que passavam
a ser importantes tal como a luz, a ordem, a construção, em detrimento da escuridão, do
caos e da destruição. O mundo da Deusa passa a ser visto como caótico e com isso, o
mundo do feminino, da Deusa e de seu consorte Dioniso cede lugar ao Deus, o Pai
soberano, onipresente e onisciente que, conforme veremos adiante, terá o seu posto
tomado pelo eu soberano, momento cristalizado pela famosa frase do filósofo alemão
Friedrich Nietzsche (1844-1900): “Deus está morto!”.

77
Como conseqüência desse afastamento da Deusa, decorre a gradual
dessacralização da Mãe Terra, visto que os homens conseguiram dominá-la com as
técnicas apreendidas na Idade do Bronze. Isto acarreta uma dessacralização do
Feminino e conseqüentemente da mulher, a quem a terra estava relacionada. Com o
passar dos tempos, conforme vimos no primeiro capítulo, a mulher passa a ser a
portadora do mal e por consegüinte, depositária das projeções negativas da Grande Mãe.

Na visão mágico-mitológica nada passa a existir sem que algo equivalente tenha
deixado de existir. Portanto, toda criação requeria um sacrifício. Nestas fases
nascimento e morte eram equivalentes; mútuos aspectos da existência. Originalmente o
sacrifício tinha o significado de devoção aos deuses dos mortos e à Mãe Terra. Era uma
auto-oferta em nome da transformação e da renovação. “O sacrifício aparece como
tema central da maior parte das cosmogonias mitológicas. A psique não-pessoal
percebe o sacrifício como o cerne do processo criativo e como uma condição
fundamental para cada novo passo do desenvolvimento da vida” (Whitmont, 1991,
p.74). Porém, com o advento do patriarcado, o significado do sacrifício muda e passa a
servir como um ritual de purificação do mal e, mais tarde, da culpa.

Vimos que o que é reprimido da mente consciente transfere-se para a sombra.


Esses elementos reprimidos, que neste caso tratam-se dos elementos femininos-
dionisíacos, retornam ao universo consciente através do mecanismo da projeção. Sendo
assim, o mundo dos instintos, dos impulsos sexuais e da ânsia agressiva, foram
projetados no outro que passou a ser visto como o portador do mal, do diabólico;
portanto, esta foi a única forma que os homens dessa época encontraram, além da
destruição destes aspectos tidos como maus, para enfrentar a intensa ameaça destes
frente a seus egos ainda em formação. Nessa tentativa de afirmar a consciência como
órgão separado do inconsciente e da natureza, os homens dessa época projetaram
maciçamente tais elementos nas mulheres, que na lógica patriarcal passaram a serem
vistas como depositárias do mal, que por sua vez deveria ser exterminado, e é no
período patriarcal que as mulheres passam a servir de bode expiatório humano para o
grupo, somente sendo aceito e valorizado, os aspectos de mãe e esposa dedicada.

78
É no final da era mitológica que a agressão, a morte e a destruição deixam de ser
aceitas como aspectos inevitáveis da vida. Sendo assim, o sacrifício como oferta
voluntária deixa de ser possível e a forma encontrada para canalizar a violência
agressiva, então, é justificar os motivos do extermínio das vítimas para o sacrifício e
estipular tabus contra a matança de vítimas escolhidas incorretamente.

Somente no final da era mitológica, com o advento do patriarcado, é que


instaura-se um novo senso ético que transforma em tabu a lei sancionada pelas religiões.

As modificações ocorridas na fase mitológica significaram um passo muito


importante no desenvolvimento psicológico, pois implicaram numa confiança dos
próprios atos favorecendo a sensação pessoal inicial de responsabilidade por eles e a
noção de ética. Como conseqüência, o próximo passo do desenvolvimento trouxe o que
Neumann chamou de “o presente da serpente” (1990, p.65): a vergonha, a culpa e a
ansiedade, fundamentais à individualidade e ao autocontrole. Porém, nesta fase, a
tentação de abandonar tal responsabilidade a fim de diminuir a ansiedade, ainda é muito
grande.

O próximo passo no desenvolvimento da consciência é marcado pela androlatria,


e é caracterizado pela separação dos opostos e seu antagonismo, pelo dualismo. Ao
separar, o ego escolhe, julga e prioriza; conseqüentemente, tudo o que é rejeitado e
excluído é tido como mau. No entanto, essa mentalidade nos fez esquecer que tanto o
bem quanto o mal são aspectos de uma mesma totalidade. Segundo Neumann (1990), o
patriarcado significou uma forma de ver o mundo que está na base da conduta do
homem ocidental e possibilitou a construção de uma civilização estruturada tanto social
quanto economicamente. Portanto, para este autor o patriarcado não se trata unicamente
de uma categoria histórica e sociológica, trata-se de um dinamismo arquetípico
psicológico.

Whitmont correlaciona a fase mental com o que Neumann chamou de


patriarcado. Tal fase é dominada pela persona e refere-se à primeira fase de controle do
ego, da agressão, dos desejos e da natureza interna e externa; ter controle sobre esses
elementos tornou-se uma questão da lei e da ética. A violência e a sexualidade foram

79
consideradas más e, portanto, proibidas exceto em condições regulamentadas por lei,
que permitia a violência agressiva somente aos homens, a serviço do grupo e deveria ser
dirigida exclusivamente contra inimigos, considerados bodes expiatórios.

“(...) São elementos básicos ao patriarcado e ao referencial


androlátrico a rejeição e a desvalorização (a) da divindade feminina
(conseqüentemente dos valores femininos); (b) dos impulsos naturais;
(c) das emoções e desejos espontâneos. Os primeiros vestígios de um
ego consciente são desenvolvidos pelo controle e pela repressão de
impulsos e necessidades subjetivas, ou seja, pela autonegação”
(Whitmont, 1991, p.88).

Somente o perceptível no espaço tridimensional, o que poderia ser percebido


através dos cinco sentidos, foi considerado real nesta fase. A realidade era limitada
apenas ao espacialmente visível, não se referindo mais às percepções da psique. O
tempo passou a ser medido e demonstrado também com relação ao espaço, tanto pelo
movimento da Terra quanto dos ponteiros de um relógio e passou a ser organizado em
passado, presente e futuro. Para o pensamento mental uma idéia não possui o mesmo
nível de realidade do que um objeto, pois a idéia é abstrata, extraída do visível. A partir
dessa compreensão é que o ego toma consciência de si mesmo como um corpo espacial.

A vida passa a não ser mais compreendida como um ciclo interminável de


nascimento, morte e renascimento, pois a existência passou a se limitar ao mundo do
espaço. Desta forma, a vida termina com a morte e a decadência do corpo é visível
espacialmente.

O egoísmo torna-se a característica principal desta fase, em que se crê que o ego
é o único responsável pelos acontecimentos. Desta forma, a força do ego passou a ser
medida ao se levar em consideração a capacidade de fazer prevalecer sua própria
vontade contra a da natureza. O homem passou a vê-la como algo que precisa servir
incessantemente aos seus propósitos egóicos, trazendo-lhe conforto e bem-estar,
poupando-lhe sensações dolorosas e reforçando a idéia de um controle sobre seus
próprios impulsos, necessidades e desejos.

Enquanto na fase mágica, inicialmente, são enfatizadas as funções sensação e


intuição, na fase mitológica observa-se o desenvolvimento das funções sentimento e

80
pensamento embora, ainda não estejam diferenciadas; tampouco estão a sensação e a
intuição. Na fase mental de desenvolvimento essas funções foram separadas, o
pensamento e a percepção sensorial foram cada vez mais valorizados, enquanto o
sentimento e a intuição foram desvalorizados e mesmo reprimidos. A frase cartesiana
“Penso; logo existo” representa tal valorização do pensamento, assim como demonstra a
crença da razão e do pensamento com as únicas fontes da vontade.

No que diz respeito ao contexto religioso, a Deusa, juntamente com seus


consortes, é destronada por um Deus único e masculino, que passa a ser considerado o
Deus-Pai soberano, onipresente e onisciente, depositário do valor supremo e encarnação
de coisas boas e desejáveis.

A partir do Iluminismo, a projeção das leis foram retiradas da figura de Deus, no


sentido em que algumas explicações sobre os mistérios da vida foram encontradas em
leis científicas, como a lei da causa e efeito, por exemplo. O espírito divino passa a ser
substituído pela excelência da razão. Com a “morte de Deus”, o Pai-Soberano abriu
espaço para o Eu-Soberano. As características que não se enquadravam mais a esta
época, como a sexualidade, os desejos carnais, a espontaneidade natural, o Feminino e a
mulher, o canto, a dança e o jogo, foram projetados em Dioniso, transformado, então,
em Diabo (Whitmont, 1991). Tal rejeição dos elementos femininos-dionisíacos resultou
na divisão cartesiana de mente e corpo, divisão esta que serviu como base para a ciência
moderna.

“(...) o arquétipo paterno se sobrepõe ao da Grande Mãe.


Religiosamente, isso significou o reconhecimento de um Deus único e
patriarcal; no aspecto psicológico, significou o desenvolvimento da
consciência cada vez mais distantes de suas origens matriarcais.
Passou a haver, então, um distanciamento do ego em relação à sua
fonte, o Self; em conseqüência, o eu passou a se considerar o centro
da vida psíquica, esquecendo-se, de certa forma, de suas origens na
natureza e na Mãe primordial” (Faria, 2003, p.50).

Embora tenhamos percorrido esse longo processo rumo à individuação, no qual


saímos da Uroboros, vivemos o lado amável e terrível da Grande Mãe, deixamos o
estado de simbiose e lutamos heróicamente contra o dragão e as forças do inconsciente
até chegarmos a um estado de autonomia, independentemente da nossa consciência

81
racional, as dimensões mágicas e mitológicas do inconsciente continuam existindo e nos
influenciando. “(...) Nossa visão de mundo científica, os padrões morais defendidos
pela consciência coletiva, nossas metas pessoais baseadas nesses valores, nascem de
racionalizações e de codificações dos períodos precedentes” (Whitmont, 1991, p.92).

Whitmont alerta sobre a importância de nos darmos conta dessas outras


dimensões que estão imersas e reprimidas pela mente racional. Acrescenta que devem
ser levadas em conta de modo a serem integradas em nossa mente racional, no entanto
ele nos adverte para que não tomemos, unicamente, da nossa versão mental sobre as
coisas, o que resultaria em um desprezo desses níveis, impossibilitando-nos de ver o
mundo e as coisas através de uma maneira diferente de percepção. Para ele, o próximo
passo da evolução da humanidade é justamente reconhecer esses níveis como
capacidades vitais e integrá-los à nossa visão racionalista do mundo, arduamente
conquistada, caso contrário corremos o risco de, ao invés de progredir, regredir a uma
nova barbárie.

“(...) Precisamos dar o próximo passo na metamorfose da


consciência, queiramos ou não. Com base na experiência clínica
individual, aprendemos que o passo seguinte na evolução é inevitável,
conquanto costume ser doloroso. Mas pode ser muito facilitado
quando sua necessidade é aceita e quando se compreende o sentido
de sua direção em termos gerais. No entanto, só nos cabe apreender
esse sentido de sua direção geral” (1991, p.93).

A consciência patriarcal foi extremamente importante para o desenvolvimento


humano, conforme comentado anteriormente, pois possibilitou a dominação da
natureza, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ajudou a controlar os impulsos
desenfreados, permitindo a construção do mundo civilizado. No entanto, o ego foi se
afastando cada vez mais do Self, de suas fontes arquetípicas, o que trouxe sentimentos
de insatisfação e inadequação mediante a construção de novos padrões.

A cultura patriarcal trouxe ao ego um sentimento de expansionismo, que Zoja


(2000) chamou de mito do crescimento, em que a técnica ganhou maior destaque, a
adoração aos mitos ou aos heróis foi substituída pela adoração à mercadoria e à
tecnologia. Para Zoja, esse mito do crescimento ilimitado está essencialmente ligado ao

82
limite; porém, a cultura patriarcal produziu um mundo expansionista e ilimitado.
Segundo o autor o limite “não foi inventado pela civilização e imposto ao instinto. O
contrário é verdadeiro. A vida natural é auto-regulada. As árvores não crescem até o
céu. Por longo tempo o homem naturalmente reproduziu essa necessidade de limites”
(2000, p.11).

Para Whitmont estamos vivendo um momento crítico do desenvolvimento


social, no qual hoje, mais do que nunca nos deparamos com a urgência e dificuldade de
resgatarmos valores do feminino, reprimidos pelo desenvolvimento patriarcal. Para ele:

“(...) Os recursos mágicos, mitológicos e femininos de lidar com a


existência, abandonados há milhares de anos, devem ser agora
necessariamente recuperados pela consciência. Mas, comparada à
passada, a nova consciência precisará ser dotada de maior clareza,
mais liberdade, auto-percepção e uma nova e diferente capacidade de
amar” (1991, p.58).

Através dessas análises torna-se possível pensar na ampla repercussão das


consequências patriarcais para a sociedade moderna e pós-moderna, tanto nos aspectos
negativos quanto positivos. É sobre esse assunto e sobre a nossa responsabilidade
individual frente a uma questão coletiva, referente ao resgate do Feminino em homens e
mulheres, que discutiremos no próximo capítulo.

83
CONSEQÜÊNCIAS DO DINAMISMO PATRIARCAL PARA A PÓS-
MODERNIDADE OCIDENTAL.

Vimos que o desenvolvimento patriarcal e a conseqüente repressão do


Feminino, tiveram muitas implicações para a pós-modernidade. Atualmente estamos
vivenciando a gradual queda do patriarcado e, a tentação para destruir e depreciar tudo
o que a ele está relacionado, nos é muito forte. No entanto, é importante refletirmos que,
apesar das conseqüências desagradáveis, essa etapa foi muito importante para a
evolução humana, nesse sentido, tal dinamismo compreende tanto o aspecto positivo
quanto o negativo.

Conforme vimos, foi necessário o afastamento do ego de sua nascente matriarcal


para o desenvolvimento da consciência; “(...) Conquanto possa ter sido uma atitude
lamentável e até mesmo destrutiva, parece ter sido necessária ao desenvolvimento da
própria consciência do ego” (Whitmont, 1991, p.144), por outro lado, as conseqüências
negativas dessa repressão nos assombram até hoje.

No aspecto positivo, o patriarcado construiu a nossa sociedade civilizada devido


ao pensamento lógico e à ética implícitas nesse padrão de funcionamento, em que os
impulsos inconscientes, carnais e sombrios, maciçamente presentes no matriarcado,
puderam ser em parte controlados. Isto proporcionou o surgimento de leis, regras,
organizações, deveres e obrigações, o que possibilitou a convivência coletiva e a
construção da cultura.

Por outro lado o patriarcado cindiu completamente com elementos da estrutura


anterior, como o contato “com o mundo do feminino, da natureza, da sexualidade e dos
vínculos” (Faria, 2003, p.55), que por sua vez, foram negados e reprimidos por muitos
séculos.

No mundo relacional, criou um grande distanciamento entre o eu e o Outro e


uma discriminação rígida do que é masculino e do que é feminino: isto fez com que os
papéis sexuais fossem vistos de forma estereotipada confundindo princípio com gênero,

84
ou seja, a mulher passou a ser identificada unicamente com o princípio Feminino e o
homem com o Masculino.

Ao nos afastarmos do Feminino, tanto homens como mulheres negaram um


aspecto de sua totalidade, esse distanciamento gerou o sentimento de perda do elo de
ligação com o cosmos, trazendo a sensação de incompletude, de vazio, de um mundo
sem sentido, o qual tornou-nos cada vez mais individualistas e com a ilusão de um
mundo belo, regido apenas pela persona.

“Coube ao homem do patriarcado reprimir seus conteúdos


matriarcais e projetá-los na figura da mulher, seja para persegui-los,
seja para protegê-los, justificando assim uma atitude paternalista e
assumindo o poder sobre o grupo feminino. A cultura incorporou e
promoveu o fenômeno tendendo a torná-lo irreversível” (Muszkat,
1987, p.14).

Ao longo dos capítulos, ficou claro que a fase correspondente ao patriarcado


constituiu um período muito difícil para as mulheres, que receberam diversas projeções
e acabaram servindo de bode expiatório para o grupo; lembremo-nos dos quatro séculos
de extermínio conhecido como a caça as bruxas, além de outras matanças generalizadas.
Apesar disso, as mulheres foram conquistando espaço e conseguiram dar um passo
muito importante: a entrada no domínio público. O movimento feminista foi crucial
para esta reviravolta feminina, possibilitando à mulher que participasse mais ativamente
do meio social e cultural, conquistando seu espaço no mundo patriarcal. No entanto,
percebemos que esse movimento trouxe, na forma de sombra, os valores machistas
desta cultura no sentido em que, segundo Muszkat (1987), as feministas aceitaram e
expuseram a inferioridade feminina quando reivindicaram por direitos “iguais”, pois
somente exige-se igualdade entre os sexos quando um deles é considerado inferior ao
outro.

Nesse sentido o movimento feminista assumiu um papel machista sobre sua


própria condição. A batalha foi vencida e aqui estamos nós, “iguais” aos homens,
lutando agora para resgatar a nossa essência perdida. Galiás afirma que a luta pela
igualdade trouxe uma sensação de sobrecarga para as mulheres, que somaram suas
obrigações: “(...) a mulher foi a luta e venceu, por assim dizer, somou suas obrigações.

85
Além de cuidar do que cuidava, conquistou o direito de ter mais obrigações, dividindo
com o homem as áreas que a ele cabiam. (...) Será que fizemos um bom negócio?”
(2001, p.63).

Acredito que sim; fizemos um bom negócio. Embora tenhamos partido de um


pólo para o outro de maneira muito abrupta, tal mudança foi necessária para o
desenvolvimento social, caso contrário estaríamos, ainda, sendo arrastadas pelos
cabelos. Atualmente lutamos não mais pelo pólo oposto, mas, sim pelo meio termo, no
qual podemos nos valer de nossos atributos femininos e masculinos, porém não se trata
de uma tarefa fácil, pois teremos que lutar contra aquela que nos pareceu nossa maior
inimiga: nossa própria sombra. Fazendo referência ao movimento feminista, Muszkat
afirma que resultaram em alterações sociais a nível da persona, pois:

“(...) não tem comprovado mudanças significativas correspondentes a


nível de consciência individual ou grupal, já que a unilateralidade
continua presente. Pode-se argumentar que o movimento empreendido
não tenha resultado numa integração, mas numa identificação com
conteúdos anímicos (de Animus), provocando, em vez de uma
consciência mais integrada, a exacerbação do enrijecimento e a
exaltação do princípio masculino (...) Mesmo assim, a possibilidade
do livre exercício de condutas “masculinas”, com suas características
próprias de aquisição de poder, livre competição e status social, tem
se mostrado ineficaz no resgate da identidade feminina. Tampouco
tem contribuído para uma nova consciência universal, menos
unilateral” (1987, p.21).

Ao romper com a dicotomia homem-público, mulher-privado, esperava-se uma


transformação da estrutura psíquica tanto dos homens quanto das mulheres: uma
integração dos elementos Feminino e Masculino em ambos os sexos. Mas não foi o que
ocorreu, tampouco vem ocorrendo, pois para conseguir tais vitórias a mulher teve que
entrar muito mais em contato com seus conteúdos anímicos e assumir uma postura que
diz respeito mais ao mundo masculino do que ao feminino; mas apesar de ter
conquistado seu espaço ela não incorporou essas “novas” características à sua essência
feminina, no sentido em que seu ego encontra-se altamente identificado com a persona
patriarcal, masculina. Com isso, a mulher acabou se desvalendo do feminino, da sua
essência primordial.

86
O Feminino não encontrando espaço de expressão, acabou adquirindo caráter
sombrio em grande parte das mulheres pós-modernas. Apesar de ter encontrado seu
“lugar ao Sol”, assumindo hoje, mais do que nunca, atributos anímicos como a
agressividade, a lógica do pensamento, a realização sexual e a participação ativa na
cultura, o que vemos atualmente é uma profunda insatisfação feminina. O momento
atual denuncia a necessidade da integração do Feminino perdido; no entanto ainda
lutamos contra esse fato, buscando “receitas de persona” que prometem o corpo
perfeito, os seios avantajados, o rosto jovial, o orgasmo, o relacionamento perfeito: no
entanto estas receitas não nutrem nossa necessidade principal, nossa fome nunca será
suprida enquanto não encontrarmos o alimento que nos nutrirá o mistério do Feminino
(Woodman, 1980). Perera (1985) destaca que:

“O problema é que nós mulheres muito feridas na relação com o


feminino, quase sempre temos uma persona muito eficiente, uma boa
imagem pública. Crescemos como filhas dóceis do patriarcado,
freqüentemente intelectuais e dotadas daquilo que denominei “egos-
animus”. Lutamos por defender as virtudes e ideais estéticos a nós
apresentados pelo superego patriarcal. Mas enchemo-nos de auto-
rejeição e de uma sensação profunda de feiúra e fracasso quando não
conseguimos satisfazer nem aliviar as exigências de perfeição do
superego” (p.20).

Cavalcanti (1993) comenta o fato de que, no mito original, Lilith foi substituída
por Eva, segundo ela, tal fato indica a forma patriarcal de leitura desse mito. A autora
coloca que Lilith não aceitava passivamente as exigências de Adão, mostrando-se
contrária à preferência sexual dele pela posição tradicional e expressando sua
preferência pela posição na qual a mulher fica por cima do homem, portanto no controle
do ato sexual. Adão reage abruptamente e Lilith, então, deixa o Paraíso, abandonando o
parceiro. O mito retrata que Adão sentiu-se muito solitário com a saída de Lilith, então,
Deus, a partir da costela de Adão, cria Eva, figura que se enquadraria mais aos ideiais
patriarcais religiosos e sociais.

Interessante pensarmos que nossa cultura ocidental optou por Eva, ao invés de
Lilith, mostrando quais os padrões estavam sendo valorizados na época. Em um
segundo momento, Eva deixa de se enquadrar nesses valores, assumindo a posição de
portadora de um corpo digno de vergonha, corpo este que levou Adão (ingenuamente) a

87
cometer o pecado, e que por isso deveria ser castigada. Essa é uma leitura patriarcal do
mito, poderíamos tê-la pensando de outra forma: Eva sendo a responsável pela saída do
paraíso, portanto, da saída da inconsciência; figura que possibilitou o desenvolvimento
social. Porquê esses valores do feminino monstravam-se tão ameaçadores e contrários
ao nosso desenvolvimento?

Fato é que optamos pela razão, pelo progresso e pela ordem, fazendo com que
dentre os diversos atributos femininos, ficássemos com os de mãe e esposa dedicada:
“(...) A livre manifestação da instintividade feminina teve que ser refreada e reduzida,
submetida aos propósitos patriarcais de procriação” (Whitmont, 1991, p.155).

A sociedade clama por uma integração do elemento Feminino; contudo, as


mulheres, que seriam as principais portadoras desses valores à cultura também estão
muito carente dos mesmos. Galiás (2001) aponta para a necessidade de conscientização
da mulher de sua sombra matriarcal, para que se torne possível a conscientização ética
com relação à Grande Mãe, ética esta fundamental para o desenvolvimento individual e
coletivo, feminino e masculino. Para isso é preciso que abra mão do poder que esta
sombra exerce: o poder da matriarca. A autora também afirma que existe uma
expectativa social para que, passada a juventude em que a mulher pôde desenvolver
mais seu lado masculino, na maturidade: “(...) ela cuide “do que lhe cabe”, do mundo
da Grande Mãe” (p.68). É nesse sentido em que expõe que o papel da mulher no
resgate matriarcal da cultura, é perceber o valor do arquétipo da Grande Mãe: “(...)
perceber de que preciosidade ela tem sido a guardiã” (p.69).

É nesse mesmo sentido que Corbett (1990) ressalta que os atributos da Deusa só
poderão ser reestabelecidos para o coletivo através de ações individuais, nas quais
temos a responsabilidade de alargar nossa percepção, até então masculina a respeito do
Feminino. Segundo ela:

“(...) As mulheres podem ser portadoras desse aspecto vital da


natureza feminina para o mundo. Os homens podem mais uma vez
abrir-se para o aspecto dinâmico do feminino e assim facilitar as
modificações que se fazem necessárias nas estruturas política, social,
econômica e religiosa” (p.214).

88
Jung em uma conferência ocorrida no ano de 1928 (publicada em sua obra
Civilização e Transição, 1954) já apontava a importância da confrontação com a sombra
e integração de alguns elementos, que Whitmont (1991) define como a integração dos
elementos femininos-dionisíacos. Passaram-se 80 anos e cá estamos, no mesmo patamar
apontado por Jung: afinal o que espera o homem pós-moderno?

Tal batalha não é fácil, no entanto, o processo fica ainda mais dificuldado
quando não conseguimos eleger o armamento correto para este confronto. Estamos
tentando, patriarcalmente, combater o patriarcado; ora não é de se surpreender que não
saímos do lugar. Não adianta querer banir tudo o que pertence ao mundo patriarcal, com
isso estaríamos apenas alterando a situação e dando um passo para trás no processo de
individuação. Não é escondendo os valores patriarcais na sombra que conseguiremos
resgatar o Feminino; trata-se de uma integração entre essas duas esferas e não de uma
substituição. Para Muszkat:

“À desmoralização milenar do feminino, nós mulheres hoje temos


procurado reagir heróicamente sem, entretanto, percebermos o
quanto estávamos identificadas com essa desvalorização. Pobres de
recursos provenientes de experiências relativas à nossa própria
natureza, admiradas e seduzidas pelo poder de um masculino
patriarcal, empreendemos a luta anímica já enfraquecidas e caímos
num novo tipo de repressão que constela um quadro antes
característico do homem da nossa cultura: embotamento da
afetividade, desvalorização das funções maternais e domésticas, com
supervalorização da realização intelectual e econômica” (1987, p.29).

Precisamos dar o próximo passo rumo ao desenvolvimento da consciência.


Embora o patriarcado esteja declinando, ainda não conseguimos entrar, de fato no
dinamismo seguinte. Podemos comparar esta fase a que estamos vivendo, com o
período da adolescência: inevitavelmente demos o primeiro passo rumo à Alteridade,
agora, não podemos mais voltar; temos que prosseguir, pois a partir do momento em
que iniciamos nossa jornada no processo de individuação, não temos como retornar ao
início, mesmo porque representaria um grande retrocesso.

A principal tarefa no dinamismo da Alteridade é a confrontação com a sombra,


com tudo aquilo que, um dia, não “quisermos” enfrentar no nosso mundo consciente.

89
Esta confrontação com a sombra é importante para que possamos reintegrar os opostos
masculino-feminino em nossa consciência. Não se trata, portanto, de uma tarefa fácil.
Para Byington, no ciclo da alteridade “a inter-relação do desenvolvimento individual e
coletivo é obrigatoriamente complementar e inseparável” (1983, p.74). Segundo o
autor:

“(...) o Eu caminha para atingir seu potencial pleno de


relacionamento com o Outro e também da sua própria
individualidade. Com isso, a psique extrai o máximo do potencial
simbólico e a polaridade Eu-Outro busca ocupar o centro da
consciência, exercendo uma interação de mutualidade dialética
criativa junto com as demais polaridades, inclusive a polaridade
consciente-inconsciente. (...) O ciclo de alteridade propicia a busca
do desenvolvimento simbólico pleno da consciência em direção ao
apogeu da criatividade artística, científica, religiosa e política do ser-
humano” (Byington, 1983, p.68).

Para Whitmont, tornou-se insustentável arcarmos com a unilateralidade e


esteriotipia psicológica da admissão apenas das virtudes, da identificação do ego
somente com a persona (1991). Ele critica a ilusão patriarcal de que o mundo é
constituído apenas por uma parte boa e agradável, afirmando que é a escuridão que
possibilita a renovação. Justifica que através da integração do Feminino é que
poderemos vivenciar nossa totalidade.

O autor destaca que a humanidade só conseguirá reverter essa atual crise, e sua
conseqüente destruição, como a destruição humana da natureza por exemplo, quando
conseguir, verdadeiramente, resgatar os valores do feminino reprimido: para isso é
necessário se defrontar com tudo aquilo que um dia deixamos de olhar e que ficaram
depositados nas profundezas do inconsciente. Sendo assim, é imprescindível que
homens e mulheres se abram para a integração de tais elementos na consciência, o que
lhes permitirá uma forma de estar no mundo mais plena. Esse é o grande desafio para a
nossa consciência atual.

Sabemos que esta luta é especialmente dura para as mulheres, pois terão que sair
da posição de “filhas do patriarcado” e enfrentar a própria repressão do Feminino, fruto
de sua identificação com os valores patriarcais:

90
“Sendo assim, a mulher, que esteve tanto tempo submetida a essa
enorme força do patriarcado, terá a árdua tarefa de travar uma luta
interna diária em busca do desenvolvimento de sua personalidade.
Como o homem passou séculos massacrando o feminino, ela foi
internalizando um masculino destrutivo, opressor e castrador, uma vez
internalizados esses conceitos, ela mesma assume a tarefa de se
autodesvalorizar” (Ferreira, 2006, p.32).

Depois destas apresentações é natural que nos perguntemos: “Afinal, como


resgatar o Feminino?” Não se trata de uma receita pronta, nem de uma fórmula
matemática, mas de um profundo contato individual com todas as facetas do princípio
Feminino. Este trabalho expõe uma possibilidade, mas não invalida a existência de
outras.

Vimos no capítulo três, referente aos princípios, que tanto o Feminino quanto o
Masculino são arquétipos quaternários. A meu ver, integrar o Feminino seria resgatar
este arquétipo em sua completude: Eva, Helena, Maria e Sophia. Importante
lembrarmos que à Eva atribui-se também Lilith, ou seja, antes de tudo é preciso que
consigamos integrar Lilith à Eva, para assim darmos sequência: “Para ser um mulher,
ou se conhecer uma mulher, há que haver o (re)encontro psíquico tanto com Lilith
quanto com Eva” (Koltuv, 1986, p.36). Para isso é preciso a integração da liberdade,
com o movimento e instintividade de Lilith, de modo que a mulher se torne consciente
de seu próprio poder sedutor (Engelhard, 1999, p.36).

A partir da integração de todas essas faces do Feminino, “(...) é que a


individuação pode ocorrer na mulher, uma vez que aí estará seguindo uma verdadeira
essência e não se subjugando ao controle da lei patriarcal repressora” (Engelhard
1999, p.37).

Somente a partir do resgate individual é que a mulher poderá dividir os valores


de solidariedade e partilha com a coletividade. Nesse sentido, elas têm a
responsabilidade de ao resgatar tais valores e integrar valores tradicionalmente
masculinos aos femininos, em homens e mulheres, salvar a humanidade do processo de
destruição a que se encontra.

91
O próximo capítulo retrata a dança e a Dança do Ventre, bem como seu
potencial arquetípico e a forma como esta se torna uma grande aliada no resgate do
Feminino.

92
A DANÇA.

“A dança é então um modo total de viver o mundo: é a um só tempo, conhecimento, arte e


religião.”
(Garaudy, 1980, p.16).

Segundo Garaudy (1980), a dança sempre foi e continua sendo considerada


como um meio de comunicação e expressão, que se materializa através dos movimentos
do corpo organizados em sequências significativas; a experiência da dança transcede o
poder das palavras e da mímica. Por estar relacionada à magia, religião, trabalho,
festividades, amor e morte trata-se, portanto, não somente de uma arte mas de um modo
de existência. “(...) Os homens dançaram todos os momentos solenes de sua existência:
a guerra e paz, o casamento e os funerais, a semeadura e a colheita”, o autor também
afirma que “Dançar é, antes de tudo, estabelecer uma relação ativa entre o homem e a
natureza, é participar do movimento cósmico e do domínio sobre ele” (pp.13-14). O
autor afirma que a dança surgiu da necessidade humana de estabelecer uma
comunicação com o transcendental, de conhecer o desconhecido, de estar em relação
com o outro; destaca que a dança dá sustentação, força e sentido aos pronunciamentos
verbais e posições do corpo e do espaço e é uma das raras atividades humanas em que o
homem se encontra engajado por completo; é a união do corpo, do espírito e da emoção.
Garaudy acredita que dançar é colocar-se no centro vital das coisas, no ponto em que
começa a brotar o futuro, é participar da invenção deste futuro e da própria liberdade.
Ele faz referência a este tema utilizando-se de uma frase que ficou amplamente
conhecida: “Que aconteceria se, em vez de apenas construírmos nossa vida, tivéssemos
a loucura ou a sabedoria de dançá-la?” (1980, p.13).

Ioshimoto em sua dissertação de mestrado (2000), procurou compreender o


fascínio exercido pela dança identificando que esta leva o bailarino e os espectadores a
uma esfera outra de vivência, religando-nos com a dimensão sagrada da existência. Em
suas palavras:

“(...) a experiência promovida pela dança sugere não se tratar apenas


de uma performance, de uma satisfação estética ou de uma

93
linguagem, mas da busca de uma completude onde, juntos, corpo e
alma atuam com um único objetivo: a totalidade. (...) o senso de
completude, muitas vezes encontrado no âmago da experiência
religiosa, transcende os limites da consciência racional, pois põe o
indivíduo em contato com aquelas forças elementais que o ligam às
características universais da humanidade” (2000, p.58).

Ao comparar a dança com a religião a autora afirma que a primeira revela a


visão de um mundo totalmente significante, no qual a existência individual adquire um
sentido pois, ao dançar o homem estabelece uma relação com a natureza, participa do
movimento cósmico, liga-se a outros homens, a si mesmo, ao mistério e à essência da
própria vida. A partir dessa colocação, a autora afirma que a dança representa uma
possibilidade de transformação da qualidade de vida. Ela compartilha da visão de
Garaudy ao afirmar que: “(...) Dançar é sentir-se participante no mistério da existência.
Não só vivenciar no corpo a sua finitude mas, através dele, alcançar a liberdade, a
sensação de se estar além de si mesmo, o abrir-se para uma multiplicidade de
possibilidades” (2000, p.89). Ioshimoto também destaca que a dança sempre serviu
como um elemento de ligação do homem com um poder que encontra-se além dele,
como a natureza, o divino, reis e princípes, etc.

Afirma que é por intermédio da dança que o homem alcança um estado de


consciência impossível de ser descrito por palavras, pois não se trata apenas da
execução de sequência de movimentos nos quais o corpo se comprime, expande, abaixa,
levanta, mas a dança nos remete a algo mais amplo, com dimensões indefiníveis. “(...) É
como se o homem fosse transportado para fora da realidade cotidiana, transformado
numa besta ou num deus” (p.25).

Em outro momento, Ioshimoto esclarece que a experiência da dança parece


ocorrer além da dimensão consciente da psique; seria portanto, o encontro da
consciência com determinados dinamismos inconscientes (arquétipos) carregados de
considerável carga energética. Como os arquétipos encontram expressão nos afetos,
acabam por proporcionar efeitos numinosos, no entanto, o afeto pode restringir a
consciência do mesmo modo como supereleva a numinosidade de determinados
conteúdos no sentido em que retira sua energia, com potencial para se tornarem
conscientes, permanecendo, assim, obscuros e inconscientes.

94
Sendo assim, o afeto, ao rebaixar a consciência, provoca uma diminuição no
sentido da orientação, o que por sua vez, permite ao inconsciente penetrar e ocupar esse
espaço vazio, enquanto que a consciência ao ser arrebatada passa a ocupar uma posição
secundária, ocorrendo, portanto, uma relativização do ego, bem como das categorias de
tempo e espaço. Com isso, tem-se a sensação de experimentar uma espécie de
entorpecimento no qual o homem se sente transportado para uma nova dimensão
vivencial, despertando no ego, ao mesmo tempo, um certo fascínio com relação às
possibilidades a serem experimentadas e o terror da sua dissolução. É nesse sentido que
Ioshimoto afirma que a dança permite um encontro da consciência com a camada mais
profunda da psique, o inconsciente, obtendo, por consequência, uma manifestação da
função religiosa da psique que sempre busca formas de expressão. Para ela: “Através de
uma atividade corporal podemos, então, vincular a consciência às camadas mais
profundas da psique que pode se revelar com toda sua numinosidade” (p.85).

É essa possibilidade de vivência do “numinoso” que transforma a dança num


símbolo, o qual permite a quem a executa acessar determinados conteúdos do
inconsciente. “A dança vai além da arte: ela representa o mundo individual e coletivo;
é a manifestação das experiências interiores do homem, é a expressão do estado mais
íntimo da alma” (p.23). Porém, ao refletir sobre o tema a autora destaca que ao ser
celebrada a supremacia da técnica, desqualificando e inferiorizando a espontaneidade e
o improviso, banalizando o erótico, exteriorizando o espiritual e a divisão entre ser e
fazer – creio estar se referindo a uma patriarcalização da dança – esta pode perder sua
vitalidade e ter enfraquecido seu poder de evocação do simbólico, do mítico, da
criatividade, da totalidade e das suas fontes genuínas, entretanto, a autora acrescenta:
“(...) Mas, como tudo o que é vivo insiste em se revelar e se realizar, também a dança
procura brilhar na escuridão” (p.118).

Neste sentido, a dança possui a função de re-ligar o indivíduo à dimensão


mágica-mitológica da psique; conforme vimos no capítulo 4 do desenvolvimento da
consciência essa dimensão é encontrada nas primeiras fases da vida humana bem como
nos homens primitivos. É através da execução dos gestos que o corpo dança para agradar
a alma, “(...) Alma que, encontrada, se harmoniza com a grandiosidade dos gestos e da

95
vida, oferecendo a perspectiva do encontro de um novo eixo e centro para a jornada
humana, realizando na existência o mito que a fundamente (individuação)” (p.112).
Sendo assim, a dança é uma expressão do Self, da totalidade do ser. Nas palavras de
Ioshimoto:

“Dançar é embalar a consciência nos braços da dinâmica mágico-


religiosa da psique inconsciente, acalentando e revigorando a alma
com as energias que jorram das fontes mais primordiais de
significado e de vida. Em termos psicológicos, é entregar-se à força
geradora e transformadora das imagens arquetípicas, com toda a
magnitude numinosa que comportam. E esse confronto com o
numinoso é perturbador, pois é caracterizado por uma intensidade
emocional peculiar: ele atua, fazendo ressoar em nós a voz de toda a
humanidade. Por isso, a dança comove e subjuga ao mesmo tempo
que transporta o dançarino, ou mesmo quem assiste sua dança, à uma
outra realidade” (p.114).

Whitmont destaca a relevânica da atividade corporal ao afirmar:

“Ao nos vincularmos à atividade corporal, então ligamos nossa


consciência à dimensão mágica ativa da psique inconsciente. Isso
significa que mobilizamos e canalizamos a energia do afeto primitivo
e indiferenciado (potencialmente obsessivo) para uma forma.
Simultaneamente, a percepção consciente se expande. Aquilo que
denominamos estado alterado de consciência acontece toda vez que
imagens emocionalmente carregadas se vinculam à experiência ou à
atividade corporal. Este estado “magicamente” alterado da
consciência pode produzir mudanças no nível biológico e psicológico,
mudanças que não poderiam ser implementadas apenas pela vontade
ou pela reflexão” (Whitmont, 1991, pp.265-266).

Podemos fazer uma leitura dessa passagem pensando na atividade corporal a


serviço das possibilidades de mudanças e transformação do si-mesmo, no sentido em
que ao integrar determinados símbolos amplia a consciência. Desta forma, podemos
entender que os processos psíquicos, por intermédio da emoção e do sentimento de
plenitude suscitados, estariam vinculados ao ato de dançar, no sentido em que o corpo,
por possibilitar a emergência de símbolos desconhecidos até então, serviria como uma
via de acesso criativa ao inconsciente mágico.

96
Em capítulos anteriores vimos que a sociedade patriarcal precisou se desvaler de
valores e crenças do dinamismo matriarcal para seguir em frente rumo ao caminho da
individuação. Para isso, foi preciso substituir a divindade feminina Grande Deusa por
um Deus único e soberano, cindindo o elemento masculino Yang em duas partes: a
apolínia e a dionisíaca. Nossa sociedade ocidental optou por Apolo relegando Dioniso à
imagem da Besta. É interessante, portanto, notar que o deus que está mais envolvido
com a dança é Dioniso; deus da vegetação e da fertilidade, do êxtase e do entusiasmo
(Brandão apud Ioshimoto, 2000). Por se tratar de um deus andrógeno, resgatar Dioniso
não é apenas retomar o Feminino perdido, integrando-o ou acrescentando-o ao
Masculino, mas reestabelecer uma possibilidade original, apriorística em que o
Masculino e o Feminino encontram-se primordialmente unidos. Desta forma, ao dançar
obtemos uma experiência arquetípica fascinante, ao mesmo tempo em que nos parece
amedrontadora; é possível portanto, compreender o motivo pelo qual Dioniso provocou
inquietações e foi excluído da posição de deus pelo pensamento patriarcal.

Ioshimoto (2000) destaca que o dançar provoca a constelação de Dioniso que,


“(...) desmembrando ou dissolvendo as amarras do poder central do ego, possibilita a
emergência do pneuma disperso no corpo” (p.106). Concomitantemente à vivência
corporal, ocorre a evocação de imagens mentais e emoções que experimentamos
internamente; no entanto, a autora alerta que:

“Para que essas imagens adquiram significado é necessário que a


consciência reconheça suas raízes arquetípicas deixando-se
transformar e ampliar seu alcance participando do processo de
revelação do princípio criativo do inconsciente coletivo. Esta é, na
verdade, a meta almejada no processo de individuação, embora nem
sempre atingida, onde o indivíduo deixa de ser um para si e torna-se
elemento constituinte da humanidade e da totalidade” (p.117).

Ioshimoto (p.30) afirma que para os povos agricultores a dança relacionava-se


com a iniciação, com a fertilidade, cura dos doentes, shamanismo, culto dos
antepassados e à mitologia lunar. Neste sentido, a dança associava-se ao ciclo de vida e
morte. Ela destaca uma dança característica deste período que perdura até os dias atuais:
a Dança do Ventre, executada em rituais de fertilidade, relacionados com o ciclo da

97
Lua, com o sangramento mensal das mulheres e às dores do parto, considerados o elo de
ligação ao mistério sagrado do ciclo de vida e morte.

A DANÇA DO VENTRE:

O nome original egípcio da Dança do Ventre é Raks Sharki ou Raqs El Sharq e


significa Dança do Oriente ou Dança do Leste, fazendo referência à região onde nasce o
sol. Na Grécia é chamada de Chiftitelli, na Turquia de Rakkase, na França de Dance du
Ventre e no continente americano é mais conhecida como Belly Dance ou Dança do
Ventre. Essa denominação deve-se aos movimentos, que são predominantes do ventre e
quadril femininos.

É uma dança designada, unicamente, para o corpo feminino, respeitando e


valorizando seus contornos, a Dança do Ventre enfatiza os músculos abdominais e os
movimentos de quadris e tórax, em uma sensual combinação de movimentos flúidos e
harmoniosos de troncos, braços e mãos com movimentos sinuosos e vigorosos de
quadril. Em geral, é praticada com os pés descalços, mantendo uma tradição egípcia
que crê que a força da terra é captada pelos pés e levada aos quadris, durante a dança.
Embora os movimentos do quadril sejam sua marca diferencial, esta dança trabalha o
corpo como um todo. Penna (1993), discute os benefícios trazidos por esta dança ao
afirmar que o despertar dos sentidos conduz à melhoria da saúde, que os movimentos
de pelve massageiam os órgãos sexuais, melhoram a circulação sanguínea, favorecem
as pernas, coluna, órgãos internos de maneira geral e as gônadas. Melhora a postura do
corpo como um todo, realinhando a pessoa: “(...) A postura do tronco melhora, a
cabeça encontra o seu lugar, os braços ficam mais soltos e alongados. As mãos ficam
mais leves porque os pulsos, assim como as demais articulações do corpo, soltaram-se
graças ao estilo sinuoso e circular do movimento” (p.144). Esta dança também
possibilita à dançarina sentir o próprio ventre como o centro da consciência e como o
centro de gravidade do corpo, desenvolve o senso de dignidade e melhora a auto-
estima, possibilita à mulher perceber o seu próprio valor, favorecendo a forma como
lida com outras pessoas, valores e idéias. “(...) Emocionalmente, essa abertura pode

98
levar à busca de novas relações. Dá gosto pela vida que se apreende através de todos
os órgãos estimulados pelo treinamento” (1993, p.144).

A origem da Dança do Ventre é incerta, existe pouca ou nenhuma documentação


a este respeito o que abriu espaço, então, para diversas versões na tentativa de
contextualizar sua possível origem. Dentre as diversas hipóteses a mais provável, ou
talvez a mais difundida é a de que esta dança teria se originado nos rituais religiosos do
Antigo Egito, em períodos anteriores à Era Faraônica, sendo praticada como forma de
homenagem às divindades femininas associadas à fertilidade. Outra hipótese é a de que
tenha se originado na civilização pré sumérica estabelecida entre os rios Tigre e
Eufrates há dez mil anos, também como um ritual sagrado em honra às divindades
femininas protetoras das águas, das terras, das mães e dos seus filhos, associadas a ritos
de fertilização. “(...) Todas as criaturas eram consideradas filhos da Deusa, louvada em
ritos em que as mulheres dançavam procurando receber a força da Grande Mãe”
(Penna, 1993, p.83). Existe ainda outra hipótese que acredita que esta dança tenha
surgido simultaneamente no Egito, no Pacífico e na Mesopotâmia, região que
atualmente compreende a Síria, Turquia, Irã e Iraque (Peto, 2004).

Embora tenhamos levantado algumas questões referentes à Grande Mãe,


considero relevante esclarecermos melhor o simbolismo deste arquétipo. Neumann em
obra dedicada especialmente à discussão desse tema: A Grande Mãe (2006), esclarece
que “No centro do caráter elementar feminino, onde a mulher contém e protege, nutre e
dá à luz, se encontra o vaso, que é tanto um atributo como um símbolo da natureza
feminina” (p.111). O tipo original do caráter elementar do feminino estaria associado ao
caráter impessoal e transpessoal da Grande Mãe, que possui como símbolo dominante o
vaso redondo. Suas imagens geralmente contemplam ventre e seios espantosamente
grandes, o que impulsionou o autor a considerar essas regiões do corpo como centrais
do vaso-tronco da deusa e como o simbolismo de sua feminilidade. Para Neumann, o
ventre representa de maneira mais enfática o caráter elementar e continente do vaso cujo
o símbolo de entrada é o útero que reflete o mundo inferior ao qual pertencem: “(...) não
apenas as trevas subterrâneas, como a noite e o inferno, mas também os símbolos da
fenda, da caverna, do abismo e do precipício, assim como o do vale e das profundezas,

99
que, em inumeráveis ritos e mitos, desempenham o papel de útero da terra a ser
fecundado” (p.50).

Neumann também destaca que o Grande Feminino não contém somente traços
positivos; a ele incluem-se características como a Mãe Bondosa e a Mãe Terrível, ou
seja, não é apenas o doador e protetor da vida, ele a retém e a retoma, representa ao
mesmo tempo a vida e a morte: “(...) O Grande Feminino contém os opostos e o mundo
efetivamente vive pelo fato de que combina em si a terra e o céu, a noite e o dia, a vida
e a morte” (p.50). Ele acrescenta que a terra e a água são elementos naturais ligados,
essencialmente, ao simbolismo do vaso.

A Grande Mãe respondia às demandas das culturas orientadas pelo dinamismo


matriarcal, no qual predominavam os dinamismos mágico e mitológico, no qual os
contrários ainda não se excluíam cartesianamente. Segundo Penna, este arquétipo é
como um banco de dados “(...) de incontáveis experiências de concepção, gestação,
parto e cuidados maternais registrados no inconsciente” (1993, p.88), e como um
banco de dados pode ser acessado mesmo por nossa consciência patriarcal
dicotomizada.

Em cada região do mundo essa divindade recebeu um nome; Ísis no Egito, Atana
em Creta, Inana na Suméria, Ishtar na Babilônia e Gaia ou Géia na Grécia. No Egito, as
deusas homenageadas pela Dança do Ventre eram Ísis e sua filha Hathor. Penna (1993),
nos fala que as egípicias acreditavam na existência de uma correlação entre os
movimentos do corpo e o estado de espírito; neste sentido, não era preciso técnica para
dançar em homenagem às suas deusas. Esse povo não acreditava na morte como um fim
mas como uma continuidade em outro lado da vida. A autora (1993, pp.112-113),
afirma que os mistérios da vida e da morte eram passados para a população por
intermédio de ensinamentos profundos, acessíveis apenas àqueles que eram iniciados
nos mistérios de Ísis e Osíris. Tal conhecimento era transmitido somente dentro dos
templos ou das pirâmides. A Dança do Ventre faria portanto, parte dos cultos à Ísis,
realizados nesses ambientes sagrados e secretos.

100
Esta ligação da Dança do Ventre com a Grande Mãe encontra-se presente nos
mitos, manifestações de dança em diferentes culturas e em relatos históricos que afirmam
que apenas algumas mulheres conhecidas como sacerdotisas poderiam dançá-la, visto
que o critério de escolha dessas sacerdotisas valorizava o número de filhos de cada
mulher, a expressão de sua feminilidade, assim como a influência que exerciam na
comunidade. Os rituais incluíam oferendas à Deusa como flores de lótus, incensos, frutas
e ervas aromáticas. Acreditava-se que por intermédio do canto e da dança um canal de
comunicação com o divino seria estabelecido, encenavam portanto, a ligação intrínseca
entre os ciclos da natureza e a mulher.

“(...) O cheiro dos incensos, o ritmo acelerado dos tambores e a


exuberância dos movimentos são estímulos fisiopsíquicos intensos,
que podem levar a um estado de transe. Em condições assim ocorre a
soltura das barreiras conscientes do pensamento, favorecendo o
contato com a dinâmica interna. Dessa maneira buscava-se ativar o
arquétipo inerente a todos e evocar a luminosa imagem interna da
Grande Mãe” (Penna, 1993, p.87).

Conforme vimos anteriormente, a sociedade patriarcal reprimiu valores


femininos dentre eles o culto e a valorização dos atributos da Grande Mãe. No entanto,
esses atributos continuam existindo dentro de cada pessoa independentemente do
tempo, pois pressupomos a existência do inconsciente coletivo e a possibilidade da
constelação de determiandos arquétipos. Penna (1993) afirma que embora tenhamos nos
afastado da deusa e substituído seu culto por deuses e depois por um único Deus
soberano, os aspectos da Grande Mãe: “(...) ressurgem nos sonhos, no gosto pela dança
do ventre. Reaparece na atenção pelo corpo, à alimentação, no cuidado com os
animais, plantas, na ecologia” (p.101).

Além de possibilitar um canal de comunicação com o divino, A Dança do


Ventre era usada na iniciação sexual das jovens e na preparação do parto (Peto, 2004,
p.13). Penna (1993) acrescenta que a Dança do Ventre herdada pelas sumérias, acádias,
babilônicas, asiáticas e egípcias de suas ancestrais foi uma forte expressão ritualística e
sagrada da identificação das mulheres com a Deusa, e foi a partir desta dança que essas
mulheres obtiveram força e esperança, aproximaram-se de suas origens e enfrentaram os
medos de gerar e criar filhos saudáveis e de sobreviver às condições rudes da época.

101
Essas mulheres sem qualquer receio ofertavam-se à Deusa e dançavam em sua
reverência:

“Unindo a força das pernas à atitude religiosa adequada, os quadris


largos e soltos com a fé das filhas da grandiosa Mãe, aquelas
mulheres acharam um meio eficiente de afastar parte dos perigos da
gestação e dar vida a filhos cheios de vigor e saúde. Conseguiram
essa preparação treinando a dança à Mãe” (Penna, 1993, p.86).

Com a invasão do povo árabe no Egito em 638d.C., a dança foi incorporada à


cultura árabe, assumindo ares mais festivos e menos religiosos. A sua prática passou a
ser permitida em festas populares e em palácios. O sentido da Dança do Ventre mudou
novamente com a invasão da Turquia ao Reino Árabe. De sagrada e folclórica, passou a
ser considerada uma dança profana – importante ressaltar que a palavra profana tem o
sentido antagônico a sagrado.

Devido ao fato de as mulheres da cultura árabe serem tidas como submissas aos
homens, a única coisa que elas possuem de direito que é só delas, a qual podem usar
quando e quanto quiserem é a Dança do Ventre. Em geral, elas costumam se encontrar
em grupos de amigas ou familiares e dançam umas para as outras, celebrando a
espiritualidade e força femininas, transmitindo beleza e senso de liberdade através da
sua expressão particular. Em tempos anteriores o homem que fosse pego observando-as
dançar era punido severamente, há registros que afirmam que em grande parte estes
burladores recebiam o castigo da cegueira.

Após a invasão árabe no Egito e a conseqüente mistura de culturas, a Dança do


Ventre foi expandida pelo mundo afora graças ao caráter viajante e mercador do povo
árabe. Com esta expansão mundial, a dança sofreu, ao longo dos tempos, diversas
influências, acumulando em cada região diferentes interpretações e significados. As
principais influências que recebeu são provenientes do Ocidente, como por exemplo do
Balé, do Jazz, da Dança Contemporânea e do Flamenco; no entanto, mesmo com tais
influências seu estilo caraterístico se sobressai.

Em apresentações podemos perceber a presença de acessórios específicos como


o(s) véu(s), os snujs – pequenos címbalos metálicos tocados com os dedos –, a espada,

102
a serpente, o punhal, as taças, o candelabro, a bengala, o jarro, o pandeiro, as flores e o
Meleah Laf – lenço envolto ao corpo. As danças com espada, véu(s), punhal e
candelabro são inovações introduzidas recentemente. Tradicionalmente existem apenas
as danças folclóricas da bengala, do jarro e o Meleah. Algumas destas danças com
elementos, tal como a dança da bengala, podem ser acompanhadas pelos homens, com
movimentos masculinos, do Dabcke, dança tipicamente masculina.

No Egito ainda é mantida a tradição de apresentações de Dança do Ventre em


cerimônias de casamento. É comum a dançarina dançar com um candelabro ou com
taças, pois acredita-se que o fogo abrirá caminho para essa nova fase, iluminando os
noivos. Também é muito comum os noivos desenharem as suas mãos no ventre da
dançarina, que por sua vez realiza movimentos serpentinosos e sinuosos de mãos e
braços próximo ao ventre da noiva, fazendo referência aos cultos de fertilidade.

Penna (1993), afirma que um dos objetivos da Dança do Ventre é fazer o com
que o corpo da mulher ondule sinuosamente como as serpentes na terra. Com isso, “(...)
essa chamuscante dançarina transforma-se na expressão da força sagrada que tudo
transmuta e purifica: o fogo” (p.133). A autora destaca que em diversas culturas, a
libido é frequentemente representada pela chama e vista como a energia da vida que
pode ser desperta especificamente por esse tipo de dança: “(...) Segundo antigos
ensinamentos orientais, a libido está “adormecida” ou estocada na base da coluna
dorsal. Ascendendo, espalha-se pelo corpo todo, revitalizando os órgãos” (idem). Cabe
destacarmos alguns pensamentos orientais que acreditam na existência de uma
organização energética responsável pelos processos vitais na base da coluna,
representada pela serpente de fogo: a Kundalini, que ora aparece como deusa feminina,
ora como força primordial assente na base da coluna humana, lhe sendo atribuída à
saúde física e mental (Penna, 1993). Desta forma, o assoalho pélvico do ventre
representaria a sede da Kundalini, que levanta e se expande por todo o corpo,
energizando os chamados chakras da concepção hinduísta antiga.

103
(Disponível em: http://www.salves.com.br/Chakras.html)

Segundo tal concepção, o corpo humano é composto por sete invólucros ou


camadas capazes de organizar as forças de uma pessoa. Esses sete invólucros são
chamados de chakras e considerados como centros de consciência, com isso eles
retratam que a consciência não depende apenas da cabeça e dos processos mentais, mas
também do corpo e destes sete centros que se comunicam entre si e possuem o poder da
auto-regulação. “(...) Somos conscientes e temos uma identidade porque elaboramos as
informações de todas as áreas somáticas, internas e externas” (Penna, 1993, p.75).
Conforme a figura acima nos mostra, esses sete chakras estão distribuídos em torno do
períneo, do sacro, plexo solar, coração, garganta, testa e topo da cabeça. Interessante
notarmos que os três primeiros, bem como a sede da Kundalini, encontram-se no ventre.
A seguir temos uma breve contextualização dos chakras.

Muladhara Chakra – (Chakra básico). Faz a conexão com as energias da


terra, é a sede da Kundalini.

104
Svadhisthana Chakra – (Sacro). É o centro do desejo sexual e da potência
criativa.

Manipura Chakra - (Plexo solar). É o chakra do centro do poder pessoal.

Anahata Chakra – (Chakra do coração). Centro da essência divina e do


amor universal. Equilibra os 3 primeiros com os 3 últimos chakras.

Vishuddha Chakra – (Chakra laríngeo). Fonte da expressão e


comunicação criativa.

Ajna Chakra – (Terceiro olho). Centro dos poderes psíquicos.

Sahasrara Chakra – (Chakra da coroa). É o chakra responsável pela


conexão com a energia divina.

(Disponível em: http://www.neotantra.com/chakras.asp)

Penna acredita que a Dança do Ventre pode propiciar à praticante o


conhecimento de como lidar corretamente com as energias do corpo, representadas

105
pelos chakras, assim como com as representações simbólicas que podem emergir à
consciência. Segundo ela:

“Terra, água, ar e fogo, os quatro elementos básicos da natureza,


segundo os gregos, são desenvolvidos na dançarina. Esses mesmos
elementos foram usados por Jung para representar simbolicamente as
quatro funções da psique humana: sensação, sentimento, pensamento
e intuição, respectivamente. O elemento fogo, criador e
transformador, relaciona-se com o despertar do Kundalini, a serpente
de fogo que se eleva da base ao ápice da coluna dorsal” (p.144).

Interessante pensarmos no poder do ventre de equilíbrar e harmonizar o corpo


como um todo, assim como no que ele é capaz de evocar. Mas afinal, o que constitui o
ventre, o que chamamos de ventre e qual a sua importância no equilíbrio e manutenção
da vida? A região ventral é dividida em três partes; a superior situada entre o diafragma
e os pares de costelas flutuantes, a média que se estende até as cristas ilíacas e a região
do baixo ventre que compreende toda a bacia. A região inferior da pelve é coberta por
um conjunto complexo de músculos interligados (diafragma pélvico) que sustentam as
vísceras, regulam a abertura e o fechamento dos orifícios anal, uretral e vaginal e
estabelecem a relação entre a bacia e as coxas. É no ventre que estão contidos os
principais órgãos dos aparelhos digestivo, excretor e reprodutor.

No assoalho pélvico, além dos órgãos sexuais encontramos uma região sensível
chamada períneo, que se estende da vagina ou do saco escrotal até o ânus. Este nome
possivelmente significa ao redor (peri) do novo (neo) ou ao redor do fogo (ígneo), tais
interpretações associam o períneo com o nascimento do ser biológico e com a origem da
força necessária para a manutenção do equilíbrio vital humano. No ventre da mulher se
localiza o útero, com características específicas como a umidade e o aquecimento que
facilitam as transformações embrionárias que ocorrem dentro dele. Foi o simbolismo do
ventre, bem como a capacidade de perpetuação da espécie e conseqüente continuidade
da vida, que fez com que em tempos longínqüos as mulheres fossem relacionadas com a
fertilização das terras.

A vivência corporal trazida pela Dança do Ventre proporciona a conscientização


dos universos visceral e vegetativo, tornando a mulher mais consciente por exemplo, do

106
seu ciclo menstrual e das alterações corpóreas ocorridas ao longo do mês. Para Marques
(1994): “(...) O ventre, situando-se no meio do corpo, pode através da dança,
proporcionar a condução de impulsos nervosos e energia para a parte superior e
inferior do corpo” (p.28).

Marques (1994) detectou que através dos movimentos sinuosos e repetitivos da


Dança do Ventre seria possível alcançar um estado de alteração da consciência, o qual
possibilita à dançarina o contato com imagens inconscientes.

Além de despertar a consciência da mulher para músculos até então esquecidos e


reprimidos pela cultura patriarcal ocidental, dificilmente percebidos no cotidiano como
os músculos pélvicos, esta dança permite à mulher sentir seu ventre como o centro de
gravidade do corpo e, portanto reorganizar seu tônus muscular global. Desta forma, tal
dança possibilita o contato da mulher com a própria feminilidade, assim como o contato
com o corpo de forma mais harmônica e menos androgenizada (Penna, 1993).

Sendo assim, entendemos a Dança do Ventre como facilitadora da emergência do


princípio Feminino e promotora da integração do corpo e da mente, dicotomizadas pelo
pensamento patriarcal. Mais do que isso, esta dança permite entrar em contato com o
centro gerador e integrador da psique (Self):

“(...) A temática da vida e da morte, do amor e do sofrimento, trazidos


pela dança, tendo que se desfazer do passado para renascer, são
pólos opostos e importantes na integração e desenvolvimento da
consciência. A Dança do Ventre mostra, de forma artística, o mistério
da vida e da morte e como estas dimensões podem estar presentes na
vida de cada mulher” (Marques, 1994, p.26).

Trabalhos como o de Marques (1994), Albuquerque (2000), Ioshimoto (2000) e


Kurbhi (2001) demonstraram que a dança é arquetípica e por esse motivo ao dançar não
se executa movimentos simplesmente, algo a mais acontece em nossa psique que nos
remete a algo muito maior, atuando na libertação do corpo reprimido (Ioshimoto, 2000).
Ioshimoto e Marques deixam implícita a questão do potencial arquétipo da dança –
tanto a dança em geral quanto a Dança do Ventre –, quando afirmam:

107
“(...) A dança retrata dimensões profundas do humano, cujo contato
propicia a atualização do seu potencial através da experiência,
imprimindo-lhe significado. Neste sentido, se for considerada como
uma predisposição herdada (como parece ser) cuja manifestação
ocorre de diversas formas, segundo o desenvolvimento dos grupos
humanos, sua importância se amplia ao estudo do que há de comum
no humano, ao estudo da espécie” (Ioshimoto, 2000, p.54) e

“O fato da Dança do Ventre ter sobrevivido desde tempos remotos da


História em diferentes culturas e com diferentes denominações,
representa um sinal de que possui uma força simbólica que vai além
do pessoal, atingindo as camadas do inconsciente coletivo” (Marques,
1994, p.29).

É relevante pensarmos no motivo pelo qual a Dança do Ventre transcorreu


durante milênios e perdura até os dias atuais exercendo forte atração tanto a quem
pratica quanto a quem assiste. Em função do quê nos sentimos apaixonados e
estranhamente atraídos a um elemento de uma cultura tão distante da nossa? Sabemos
que quando os rituais, como representações cerimoniais baseadas em temas
mitológiocos e arquetípicos, não exercem mais a função de nos re-ligar com o sagrado,
perdem o sentido e deixam de existir em determinada cultura sendo, então, buscadas
novas representações arquetípicas ou interpretações para determinados elementos. Esta
é a explicação para o mesmo tema aparecer com formas variadas. No caso da Dança do
Ventre o que vemos é que a nossa sociedade, carente dos elementos femininos-
dionisíacos, admira-se com os valores antigos e sagrados trazidos por esta dança,
segundo Penna (1993): “(...) Seu significado tem relação direta com os conflitos atuais
e suas relações dependem de que se viva aquele meio antigo de estabelecer contato com
as forças misteriosas do corpo e da natureza” (p.143).

Conforme exposto em capítulos anteriores, atualmente, mais do que nunca, é


urgente resgatarmos valores do princípio Feminino e integrá-los à nossa bagagem
proveniente do desenvolvimento patriarcal, no sentido de nos abrirmos para o contato
com as energias telúricas do próprio ventre, tomando sempre o cuidado para não
banalizar e patriarcalizar com extremas exigências técnicas essa arte que se dispõe a
ajudar-nos a integrar a sombra matriarcal, estabelecendo um equilíbrio entre intelecto,
técnica, emoções e sentimentos, e não utilizá-la como mais um instrumento a serviço da
repressão do corpo e da libido. Desta forma, estaremos seguindo à diante no processo de

108
individuação e entrando de fato no dinamismo da alteridade. “(...) A Dança do Ventre
atravessou milênios e mostra como a mulher pode estabelecer este equilíbrio entrando
em contato com o princípio feminino” (Marques, 1994, p.26). Segundo Penna:

“Importa muito trazer à consciência os aspectos do princípio yin que


ficaram marginalizados e até mesmo selados ao acesso psicológico
das pessoas nesta civilização. Os procedimentos da dança do ventre
são sérios e merecem o respeito das coisas transcendentes e
sagradas. Talvez, assim, o conhecimento e a luz do ventre apareçam
para serem unidos à sabedoria luminosa do coração e da mente no
ser humano” (1993, p.168).

Logo, ao utilizarem-se deste recurso as mulheres se sentem valorizadas, após o


contato verdadeiro com suas raízes essenciais e aconchegando-se a si próprias podem
repensar as agitações e demandas do universo yang.

Woodman (1980), afirma que através da dança a mulher pode renunciar à


possessão do ego, vivenciando o corpo como instrumento por meio do qual o poder
divino pode fluir, possibilitando-lhe o contato com o mistério da vida e da sua essência.

Penna (1993) complementa que são três os canais favorecidos pela prática desta
dança: o da autopercepção, o da percepção do grupo feminino e a compreensão da
ordenação do meio ambiente. Parece que Penna acredita ser este o caminho para a
desvinculação do patriarcado e a entrada efetiva na alteridade, quando afirma que a
partir do desenvolvimento destes três tipos de percepção: “(...) será possível dar sentido
a coisas e situações que antes não se valorizavam. É nessa direção, reavaliando o
processo de vida, hoje, que uma praticante de dança pode recriar o seu mundo pessoal,
mudando com sua mínima parcela a mentalidade coletiva” (Penna, 1993, p.143). Esta
mudança, portanto, ocorreria tanto a nível individual, quanto coletivo.

Conforme discutido, a vivência corporal da Dança do Ventre possibilita ao ego o


contato com o arquétipo da Grande-Mãe e tal contato pode evocar certos aspectos do
princípio Feminino reprimidos. Marques (1994), afirma que as representações
arquetípicas enquanto permanecerem na área psíquica não estarão completamente
desenvolvidas se não forem expressas concretamente, pois: “(...) é da natureza do

109
arquétipo se propor a abranger o corpóreo, o lado material da realidade” (p.29). Desta
forma, “(...) A transformação do ego, que se opera no encontro com este centro – o self
– e que se afirmará à luz do dia, no fim da viagem de retorno, marcará, através da
dança, uma harmonia entre a matéria e o espírito” (Marques 1994, p.32). Estar-se-ia,
portanto, resgatando a natureza instintiva da mulher, que segundo Estés (1994) é
fundamental para a transformação do universo feminino.

Kurbhi acrescenta dizendo que a Dança do Ventre por evocar símbolos


essencialmente femininos e representativos da vivência da mulher com seu próprio
corpo, permite a identificação de áreas de conflito na mulher, seja por fazer emergir
símbolos físicos como a expressão de complexos pessoais relacionados a determinadas
partes do corpo, seja por colocá-la diante de sensações ou percepções suscitadas por
partes do corpo antes inacessíveis a ela por determinações culturais preestabelecidas. “Ao
dar-se conta de novas possibilidades físicas e modificando o que lhe é consciente na sua
relação com o corpo, a mulher mobiliza também no dançar conteúdos inconscientes”
(2001, p.31).

Ao trazer a possibilidade de mudança do relacionamento da mulher com o


próprio corpo e vivência do feminino e ao dar-se conta de novas possibilidades físicas, a
mulher mobiliza conteúdos inconscientes que aparecem na forma de imagens fantasiosas
ou oníricas, promovendo uma relação estreita com o seu centro de consciência. Segundo
Marques (1994), esta dança pode propiciar um estranho sentimento de integração com o
mundo e uma sensação plena de realização. Podemos dizer que ao entrar em contato com
sua essência feminina, o processo de individuação dessas mulheres praticantes da Dança
do Ventre fica favorecido e, segundo Kurbhi isto pode ser sentido de duas formas:

“Parece que o processo de individuação, quando favorecido pelo


trabalho corporal é vivido pelo corpo físico primeiro como uma
grande desorganização dos antigos padrões corporais, e, depois,
como uma nova forma de organização do esquema corporal, que
podemos verificar como ocorrem através destas técnicas expressivas”
(2001, p.28).

Portanto, o aspecto transformador da Dança do Ventre está no fato de que


permite a desconstrução de antigas estruturas físicas da mulher cristalizadas por

110
determinações culturais e complexos pessoais. Também é importante ressaltar que, no
caso das nossas participantes além desses fatores, o Feminino também foi influenciado
pela dor crônica, em que o corpo pode ser entendido como o portador do mal.

A Dança do Ventre então, permite a reconstrução de uma imagem corporal em


que a mulher pode experimentar a integração destas partes, antes dissociadas. Esse tipo
de dança pode ser entendido como promotor da integração corpo-mente, na medida em
que facilita a emergência do princípio Feminino ao remeter a mulher a outra esfera
vivencial. Segundo Schilder (1980), na dança experimentam-se novos estados tensionais
os quais desestruturam uma imagem corporal rígida constituinte do esquema corporal do
indivíduo. Desta forma, a imagem corporal se altera devido à utilização de reflexos
posturais ainda inconscientes para quem dança. O movimento passa a ser, então, o
elemento responsável pelas alterações da imagem corporal, tal mudança gerará uma
alteração na atitude psíquica deste indivíduo.

Farah (1995) usa o termo organização postural para expressar o que acontece
nesta desestruturação-reestruturação da imagem corporal. Para a autora, mudanças no
corpo objetivo ocorrem de forma concomitante a mudanças no modo como o
percebemos subjetivamente. Organização postural pode significar então, tanto as
mudanças anátomo-fisiológicas ocorridas no indivíduo, quanto as suas mudanças
psicodinâmicas sendo assim, tal expressão refere-se à movimentação objetiva e
subjetiva que ocorre no indivíduo.

Fica claro na literatura que a Dança do Ventre promove um (re)encontro com o


Feminino (reencontro porque estamos tratando do Feminino arquetípico, por vezes
adormecido e distante da realidade consciente), tornando a mulher mais integrada e com
melhor bagagem para lidar com o Masculino, tanto interno, por intermédio dos
conteúdos anímicos, quanto externo. No entanto, Marques (1994) adverte que este
caráter sagrado do encontro com o Feminino arquetípico, deve ser preservado de forma
que a dança não fique a serviço do masculino, mas que a sensualidade e a feminilidade
essencial sejam vistas como aspectos integrados à psique da mulher.

111
Nesse sentido, através da atividade corporal da Dança do Ventre podemos
vincular a consciência às camadas mais profundas da psique, que pode se revelar com
toda sua numinosidade. Embora Peto (2004), tenha concluído em sua dissertação de
mestrado que a Dança do Ventre contribui para a melhora da auto-estima e da auto-
confiança de mulheres em assistência num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS),
tendo auxiliado nos seus tratamentos dentro desta instituição, colaborando
consideravelmente na educação corporal, saúde física e mental destas, promovendo
melhorias na qualidade de vida e, conseqüentemente, proporcionando um convívio
melhor em seu meio social e familiar, sabemos que o simples fato de executar os
movimentos desta dança não garante que os aspectos do princípio Feminino sejam
desenvolvidos e conscientizados pois é preciso, além da estimulação corporal, que
exista uma elaboração psíquica sustentando tais mudanças a fim de que não
permaneçam inconscientes (Marques, 1994; Kurbhi, 2001).

Acredita-se que nos primórdios da prática da Dança do Ventre as transformações


subjetivas promovidas fossem compreendidas e integradas sem a necessidade de uma
elaboração externa, pois o contexto dos rituais sagrados à Grande Deusa, por si só
traduzia tais manifestações numa linguagem acessível para a dinâmica matriarcal, ou seja
a própria vivência reforçava o sentimento de unidade com o todo. Segundo Kurbhi
(2001), os conteúdos evocados pela prática desta dança, atualmente “(...) carecem de
rito, de uma filosofia ou de um trabalho simbólico que atribua um significado à
execução dos movimentos e que estabeleça a relação perdida no mundo patriarcal entre
consciente e inconsciente, mulher e feminilidade” (p.92).

Gostaria de encerrar com uma frase de Penna que retoma a importância de


resgatarmos a prática da Dança do Ventre, assim como todo o contexto por ela envolto,
como um recurso de enfrentamento diante às dificuldades da vida:

“(...) As reuniões para dançar podem ser, com há tanto tempo,


oportunidade de trocar informações sobre o corpo feminino, seus
órgãos e ciclos hormonais, suas particularidades. Também se deveria
falar sobre os relacionamentos com homens e filhos, discutir noções
de adaptação e sobrevivência, de modo a reunir a sagrado e o
utilitário, a dor e a alegria” (1993, p.144).

112
DOR: ASPECTOS FÍSICOS E PSICOLÓGICOS.

“A dor continua sendo uma das grandes preocupações da Humanidade. (...)


o homem sempre procurou esclarecer as razões que justificassem a
ocorrência de dor e os procedimentos destinados a seu controle”
(Teixeira & Okada, 2003, p.15).

RELEVÂNCIA CIENTÍFICA:

A Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), em referência a um


capítulo da International Association for the Study of Pain (IASP), divulga os seguintes
dados:

“a dor afeta pelo menos 30% dos indivíduos durante algum momento
da sua vida e, em 10 a 40% deles, tem duração superior a um dia.
Constitui a causa principal de sofrimento, incapacitação para o
trabalho e ocasiona graves conseqüências psicossociais e econômicas.
Muitos dias de trabalho podem ser perdidos por aproximadamente
40% dos indivíduos. Não existem dados estatísticos oficiais sobre a
dor no Brasil, mas a sua ocorrência tem aumentado substancialmente
nos últimos anos. A incidência da dor crônica no mundo oscila entre 7
e 40% da população. Cerca de 50 a 60% dos que sofrem dela ficam
parcial ou totalmente incapacitados, de maneira transitória ou
permanente, comprometendo de modo significativo sua qualidade de
vida” (Disponível em www.dor.org.br).

Lin e colaboradores (2003) afirmam que: “A dor crônica constitui grave


problema de saúde pública e social, resultando em impactos astronômicos na
economia do país e é responsável por aproximadamente 80% das consultas aos
profissionais de saúde” (p.689). Desta forma, a quantidade de estudos nesta área vem
crescendo significativamente; no entanto o Brasil ainda carece de mais estudos.

Teixeira e colaboradores (2003), afirmam que os novos hábitos de vida, o


prolongamento da sobrevida dos doentes com afecções clínicas anteriormente classificadas
como fatais, a maior longevidade das pessoas, as modificações do nosso ambiente, o
aumento de doenças crônico-degenerativas, bem como o reconhecimento de novos quadros
dolorosos e o desenvolvimento da medicina no que diz respeito ao tratamento, podem ser

113
os responsáveis pela maior ocorrência da dor crônica. O autor também destaca que além
“(...) de gerar estressores físicos e emocionais para os doentes e para os seus cuidadores,
a dor é razão de significativo fardo econômico e social para a sociedade” (p.53).

DOR – ASPECTOS FÍSICOS:

Segundo a SBED, existem muitas maneiras de classificação da dor e uma delas é


considerar a duração de sua manifestação. Sendo assim, a dor pode ser classificada de três
formas: aguda, crônica e recorrente.

Dor aguda é aquela que se manifesta transitoriamente durante um período de tempo


relativamente curto, variando de minutos a semanas. Está, em geral, associada a lesões em
tecidos ou órgãos que podem ser ocasionadas por inflamação, infecção, traumatismos e
etc. Quando a causa é corretamente diagnosticada e eliminada ou quando o tratamento
recomendado é seguido corretamente, a dor aguda é eliminada.

A dor crônica, classicamente, é aquela que dura mais de três ou seis meses, mesmo
após o problema que a desencadeou ter sido resolvido. Está quase sempre associada a um
processo de doença, mas também pode ser conseqüência de lesões previamente tratadas.

Já a dor classificada como recorrente apresenta períodos de curta duração que, no


entanto, se repetem com freqüência, podendo ocorrer durante toda a vida do indivíduo,
mesmo sem estar associada a um processo específico.

Outra forma de classificação da dor está de acordo com o mecanismo


fisiopatológico. Basicamente, pode ser dividida em nociceptiva – que compreende dor
somática e visceral –, não-nociceptiva – neuropática, simpaticomimética ou psicogênica.
Abordaremos a nociceptiva, a não-nociceptiva do tipo neuropática e a dor mista, que
envolve aspectos nociceptivos e neuropáticos, pois são os tipos de dor presentes nas
participantes desta pesquisa.

A dor nociceptiva ocorre diretamente por estimulação química e física de


terminações nervosas normais. Esse tipo de dor resulta da ativação de nociceptores – fibras

114
A-delta e C – através de estímulos dolorosos, que podem ser químicos, térmicos ou
mecânicos. Os nociceptores podem ser sensibilizados por estímulos químicos endógenos,
como a serotonina, a substância P, a bradicinina, as prostaglandinas e a histamina. A dor
somática geralmente é bem localizada e descrita pelo paciente como rude, exacerbada ao
movimento – dor “incidental” –; o repouso promove alívio para este tipo de dor. São
exemplos de dor somática: as dores pós-operatórias, ósseas, músculo-esqueléticas,
artríticas e etc. Já a dor visceral é provocada por distensão da víscera oca, “(...) geralmente
é difusa ou referida em áreas distantes do local da lesão (dor referida)” (Lepski &
Teixeira, 2003, p.171). Esses autores explicam que “Os nociceptores distribuem-se por
quase todo o organismo. Entretanto, sua densidade varia. (...) na parede dos vasos e
encéfalo, peritônio e cartilagens, a manipulação dessas estruturas causa dor quando tem
seus vasos locais distendidos” (p.171). Freqüentemente náuseas, vômitos e sudorese se
associam à dor visceral.

A dor neuropática “(...) é a que se manifesta em doentes com lesão sediada no


SNP, medula espinhal, tronco encefálico e/ou encéfalo” (Teixeira, 2003, p.155), foi
definida pela IASP como a “iniciada ou causada por uma lesão primária ou disfunção do
sistema nervoso” (Teixeira, 2003, p.156).

“(...) A dor neuropática pode apresentar caráter bizarro. É vaga,


descrita como queimor ou peso constantes, às vezes lancinante,
picada, laceração, pressão, choque, aperto, latejamento, esmagante,
dilacerante, pontada, câimbra, aperto, “dolorimento” ou cortante
(disestesias), permanentes, episódios ou paroxísticos nas áreas
desaferentadas ou como dormência ou sensação de frio (parestesias).
Pode ser superficial ou profunda. Na maioria das vezes, mais uma
qualidade dolorosa está presente na mesma região ou regiões
diferentes. Habitualmente modifica-se quanto à intensidade e
freqüência de ocorrência em decorrência de eventos externos e
internos ao organismo (estímulos cutâneos, sonoros, visuais, viscerais,
estados de alerta, emoções, modificação do humor, sons ambientais).
O exame clínico pode ser normal ou evidenciar anormalidades
sensitivas” (Teixeira & Okada, 2003, p.343).

A dor neuropática pode ser episódica, temporária ou crônica e não está


necessariamente associada a qualquer lesão detectável. Pode, também, ser conseqüência de
algumas doenças degenerativas que levam a compressão ou a lesões das raízes nervosas,
ao nível da coluna. As anormalidades sensitivas que podem estar associadas a este tipo de

115
dor são: 1- Alodínea, evocada por estímulos classificados como não dolorosos mas que
passam a ser percebidos pelo organismo como extremamente dolorosos, por exemplo
quando o simples toque de um algodão na pele desencadeia dor intensa imediata, 2-
Analgesia, ocorre quando a aplicação de estímulos dolorosos não deflagra a sensação
dolorosa, 3- Anestesia, abolição de percepção de todas as qualidades sensoriais extero e
visceroceptivas, 4- Anestesia dolorosa, dor ocorre em regiões anestesiadas, 5- Causalgia,
dor e queimor constantes, alodínea e hiperpatia em decorrência às lesões traumáticas de
nervos, 6- Disestesias, sensações anormais desagradáveis, evocadas ou espontâneas, 7-
Hiperalgesia, reação exagerada desencadeada por estímulos dolorosos, indica redução do
limiar para estímulos dolorosos, 8- Hiperestesia, é o aumento da sensação durante a
aplicação de estímulos, indica redução do limiar e aumento da reação aos estímulos, inclui
alodínea e hiperalgesia, 9- Hiperpatia, reações anormais, em geral explosivas como
resposta a estímulos dolorosos, repetitivos, em condições que há aumento do limiar à dor,
pode ter manifestação tardia, após a aplicação dos estímulos, ou gerar sensação dolorosa
irradiada, pode estar associada à alodínea e à disestesia, 10- Hipalgesia, sensação dolorosa
tem intensidade menor do que esperada frente aos estímulos dolorosos, 11- Hipoestesia,
diminuição da sensibilidade à estimulação sensitiva, 12- Panestesia, comprometimento da
discriminação espacial de pontos na superfície do corpo submetidos à estimulação tátil,
térmica ou dolorosa, e 13-Parestesias, sensações anormais, evocadas ou espontâneas
(inclui disestesia e outras sensações anormais; em geral, utiliza-se o termo parestesia para
sensações compreendidas como não-desagradáveis como formigamento e adormecimento,
enquanto que disestesia é utilizado para indicar as sensações desagradáveis (Teixeira &
Okada, 2003, pp.343-344).

Os autores destacam que a alodínea, a hiperalgesia e a hiperestesia se manifestam


tanto na dor neuropática como na nociceptiva, enquanto que as demais anormalidades
sensitivas descritas acima manifestam-se, apenas, em dores neuropáticas. A dor
neuropática é dividida em central e periférica, a última se refere quando a dor é causada
por anormalidade primariamente do sistema nervoso periférico enquanto que a dor
chamada de central é causada por lesão do sistema nervoso central.

A Agência Americana de Pesquisa e Qualidade em Saúde Pública e a Sociedade


Americana da Dor caracterizam a dor como o “quinto sinal vital”; isto implica no fato de

116
que a dor deve ser registrada e mensurada, da mesma forma como a pressão arterial, a
temperatura e freqüências respiratória e cardíaca. No entanto, se trata de uma experiência
subjetiva com aspectos afetivo-emocionais, ou seja, não é possível observar a dor a olho
nu e ser objetivamente determinada por instrumentos físicos, somente sendo possível
mensurá-la a partir do relato e da observação dos comportamentos dolorosos do sofredor.

Com isso, vários métodos foram desenvolvidos na tentativa de mensurar a


percepção e sensação da dor, bem como seu alívio. Entre estes, a escala mais utilizada no
Grupo de Dor do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IOT-HC/FMUSP) é a escala visual
analógica, na qual é solicitado ao doente que atribua uma nota de zero a dez à sua dor,
sendo que zero refere-se à ausência de dor e dez corresponde à pior dor possível. Neste
sentido a dor leve corresponde àquela situada entre os números 1 e 3, a dor moderada
corresponde aos números 4 a 6, de 7 a 9 a dor é classificada como forte e dez como
insuportável.

No que diz respeito ao tratamento da dor crônica, estabeleceu-se uma seqüência


terapêutica que ficou conhecida como escala analgésica de três degraus, cada um
correspondendo à dor leve, moderada ou forte.

A OMS sugere que o tratamento da dor crônica seja iniciado com analgésicos e
antiinflamatórios comuns, associados a medicamentos adjuvantes, meios físicos e
psicológicos (antidepressivos, neurolépticos, miorrelaxantes, anticonvulsivantes,
corticosteróides, tranqüilizantes e anti-histamínicos) (Degrau 1). Quando as medidas
adotadas no degrau 1 não aliviarem a dor de modo suficiente e a dor for classificada como
moderada utiliza-se opióides fracos como a codeína no tratamento (Degrau 2). Caso a dor
não tenha sido aliviada de maneira suficiente ou já seja inicialmente classificada como
intensa ou muito intensa, mantém-se os mesmos medicamentos do segundo nível,
substituindo os opióides fracos pelos fortes, como a morfina (Degrau 3).

No Grupo de Dor do (IOT-HC/FMUSP), acrescenta-se um quarto degrau no qual


mantém-se todos os medicamentos do terceiro, associado aos meios físicos e psicológicos
e acrescenta-se os procedimentos anestésicos, cirúrgicos e/ou neurocirúrgicos.

117
TEORIA DO CONTROLE DA COMPORTA:

Em 1979, a International Association for the Study of Pain (IASP) definiu dor
como: “uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada à lesão tecidual
real, potencial ou descritas em termos de tal lesão” (Loduca, 2007, p.32). Esta
compreensão de que a dor engloba tanto aspectos físicos quanto psicológicos passou a ser
considerada a partir da teorização de Melzack & Wall, que em 1965 postularam a Teoria
do Controle da Comporta. Até então, a compreensão da dor era pautada unicamente nos
aspectos físicos. No entanto, a partir do século XX, algumas constatações que sugeriram
variações entre os indivíduos quanto à sensação de dor e que, portanto, apontariam uma
influência importante de fatores psicológicos no processo, motivaram esta mudança.
Loduca (1998) explicita tais constatações afirmando que:

• “Os tratamentos para dor, baseados no modelo biomédico tradicional,


não eram efetivos para a dor crônica, levando-se à interrogação de
que deveria existir algo a mais envolvido na sensação de dor, do que
os modelos de resposta à estimulação simples.
• As equipes de saúde, especialmente os médicos, começaram a
observar que indivíduos que apresentavam o mesmo grau de lesão
tecidual não relatavam o mesmo nível de intensidade de dor e as
reações a esse estímulo nocivo não eram homogêneas.
• A presença da dor fantasma em indivíduos que perdiam um membro
do corpo, não encontravam bases físicas capazes de explicar o
fenômeno” (p.20).

A Teoria do Controle da Comporta foi um marco muito importante na


compreensão da dor, que deixou de ser vista como uma sensação e passou a ser
considerada como uma percepção, ressaltando, portanto o caráter individual e subjetivo
desta vivência. Em seu mestrado, Loduca (1998) explica o embasamento desta teoria:

“A informação dolorosa é transmitida ao cérebro através de um


mecanismo análogo a uma comporta; se ela estiver na posição aberta,
a informação será conduzida ao cérebro, mas se estiver parcialmente
aberta, ou fechada, menor quantidade de informações, ou
praticamente nenhuma, chegará a ele. Nesse sentido, a estimulação
não dolorosa, inofensiva, aciona as fibras grossas enquanto o
estímulo nocivo aciona as fibras finas, de limiar mais elevado. A
percepção do processo doloroso depende do equilíbrio entre o input

118
proveniente das fibras grossas e o que circularia pelas fibras finas.
Nessa linha de raciocínio, predominando o afluxo pelas fibras finas,
as vias espinotalâmicas são disparadas e a comporta abre-se, fazendo
com que a dor seja percebida. Já a predominância do afluxo no
sistema de fibras grossas faz com que a comporta mantenha-se
fechada ou parcialmente aberta, ocasionando a ausência ou a mínima
percepção da dor. Pode-se manter a comporta fechada de duas
maneiras: diminuindo a estimulação nociva ou aumentando o estímulo
nas fibras grossas por meio da aplicação de um estímulo mais forte
não nocivo; isso se evidencia quando uma dor diminui de intensidade
ao ser esfregada a região afetada” (p.21).

Em resumo, podemos dizer segundo esta teoria, que a dor está relacionada à
predominância da atividade de fibras nervosas finas em detrimento das grossas,
favorecendo a abertura da comporta. Além dos estímulos nocivos ou não nocivos,
fatores provenientes da atividade central também podem influenciar a abertura ou o
fechamento da comporta, ou seja, a abertura da comporta pode ser provocada quando a
pessoa está tensa, deprimida ou ansiosa. Desta forma, o cérebro interpretará mais
mensagens como dolorosas. Já o fechamento da comporta pode ser favorecido quando a
pessoa está sendo submetida a fatores de ordem física, como medicação ou a fatores
emocionais: sentimentos de felicidade, tranqüilidade e otimismo, ou ainda a fatores
cognitivos, como distração ou concentração.

Embora esta concepção tenha representado um grande avanço, alguns fatores


devem ser apontados, como o fato de não terem sido encontradas evidências que
comprovassem a existência da comporta ou da interação entre os aspectos físicos,
psicológicos e sociais, que por mais que esta teoria tenha proposto uma integração entre
corpo e mente, estes ainda aparecem como processos separados no qual o segundo apenas
influencia o primeiro. Outro aspecto apontado pela autora foi que este modelo ainda
assume bases orgânicas na explicação do seu mecanismo, muito embora reconheça a
importância da experiência individual e dos fatores psicológicos (Loduca, 1998).

Em sua tese de doutorado (Loduca, 2007), a autora afirma que muitos trabalhos
foram realizados, nas últimas três décadas, com o intuito de detalhar mais a Teoria da
Comporta; entretanto, a estrutura original proposta por Melzack & Wall continua sendo
válida. Fazendo referência ao trabalho dos autores Main & Spanswick, Loduca afirma
que esta teoria:

119
“(...) tem sido muito importante nos estudos realizados sobre a
modulação da dor para evidenciar a presença de diversas associações
entre fatores cognitivos, comportamentais, emocionais e ambientais,
como componentes-chave para justificar a plasticidade e
variabilidade de respostas envolvidas na nocicepção e percepção da
dor” (p.29).

IMPLICAÇÕES DA TEORIA DO CONTROLE DA COMPORTA E A


RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO TRATAMENTO DE
ALGIAS CRÔNICAS:

O conhecimento da Teoria do Controle da Comporta exigiu dos profissionais que


trabalham com dor um olhar mais amplo, que abarcasse os aspectos físicos, cognitivos,
afetivos, emocionais e comportamentais do indivíduo sofredor. Diante disto, o modelo
biomédico com sua leitura embasada em parâmetros físicos e bioquímicos, não tem sido
suficiente para abarcar a complexidade do fenômeno doloroso, e o modelo biopsicossocial,
que considera que não somente o corpo físico é quem padece, mas todo o organismo em
seus diversos aspectos: biológico, psicológico e social, passou a ser o mais apropriado.
Esta visão biopsicossocial evidenciou a importância de tratar doentes de algias crônicas
multiprofissionalmente, dando-se preferência à equipes cuja conduta é interdisciplinar;
profissionais de diferentes áreas dialogando, explorando, investigando e trocando
informações a respeito da melhor conduta a ser tomada, sempre respeitando a
particularidade de cada caso.

No entanto este modelo, com freqüência, é dificilmente compreendido por aquele


que procura tratamento para sua dor; os pacientes ainda procuram os centros médicos
esperando receber cuidados embasados na metodologia biomédica: “(...) O doente tem
dificuldade em aceitar que o tratamento exige a sua participação ativa junto à equipe e é
respaldado pelo modelo biomédico que doutrina as relações causais e condutas lineares
para o seu problema, como a remoção das causas, o uso de medicamentos e o alívio da
dor” (Lin et al., 2005, p.6). “O desapontamento com os resultados insatisfatórios das
variadas terapias faz com que os doentes busquem incessantemente serviços assistenciais
e profissionais de saúde dos quais esperam verdadeiros milagres” (Lin et.al, 2003, p.690).

120
A autora e seus colaboradores afirmam que tanto a dor quanto o sentimento de
incapacidade se tornam as principais razões da existência destas pessoas, que passam a se
distanciar, progressivamente das perspectivas de recuperação e reabilitação tanto física
quanto profissional e social, sentimentos como medo e incertezas permeiam suas vidas
com relação ao futuro, com isto eles vão se afastando cada vez mais do meio social e
prolongando o período de afastamento de suas atividades rotineiras, o que limita a
possibilidade de retorno às suas funções anteriores. Ressaltam ainda que, muitas vezes, a
eliminação completa da dor não é possível, portanto o tratamento não deve, unicamente,
objetivar a extinção da dor, mas sim, seu controle, bem como “(...) a exploração dos
potenciais remanescentes e a melhora da qualidade de vida” (p.690). Eles justificam a
atuação interdisciplinar embasada no modelo biopsicosocial através da afirmação:

“(...) Os componentes biológicos, emocionais e sociais dos indivíduos


podem estar tão comprometidos, devido à prolongada duração da
condição álgica, da incapacidade de concorrência de outras situações
causais, que somente o controle da dor não é suficiente para
normalizá-los. A reabilitação deve visar à promoção da melhora da
qualidade de vida e a readaptação e a reabilitação social e
profissional dos indivíduos, o que enfatiza o enfoque interdisciplinar
para contemplar estas expectativas. A identificação dos fatores que
perpetuam e/ou agravam a dor crônica, como anormalidades
posturais, psicocomportamentais e ambientais e, especialmente, a
indução de mudanças de conduta e principalmente o desenvolvimento
de estratégias de enfrentamento ativo ou adaptativo, são fundamentais
no tratamento destes casos” (p.690).

Lin e colaboradores afirmam, portanto, que o tratamento das algias crônicas deve
contemplar os aspectos biológicos e psicossociais envolvidos na doença. Como a dor
possui natureza complexa e multidimensional, o modelo de intervenção a ser adotado deve
ser integrado, de assistência multi ou interprofissional, o que implica numa formulação
individualizada de planos diagnósticos e terapêuticos. Nesse sentido, o objetivo do
tratamento não é apenas proporcionar alívio da dor ou promover a reabilitação física; mais
do que isso, é possibilitar a reintegração social do indivíduo, resgatar a auto-estima, bem
como melhorar sua qualidade de vida. Sendo assim, para estes autores algumas razões da
atuação da equipe de tratamento de doentes com dor crônica são:

“(...) O controle dos sintomas, a melhora do conforto, a modificação


do simbolismo da dor, a normalização ou a restauração das funções

121
psíquicas e sociais dos doentes, a maximização dos potenciais
remanescentes, a prevenção da deterioração das condições físicas e
comportamentais” “(...) o desenvolvimento da autoconfiança, o
encorajamento para a execução de atividades, a eliminação do medo
de que novas lesões possam instalar-se, a correção dos
desajustamentos familiares, sociais e profissionais que contribuem
para o sofrimento e incapacidade, o uso criterioso de medicamentos e
a independência do sistema de saúde são, entre outras as razões da
atuação daqueles envolvidos no atendimento dos doentes com dor
crônica” (2003, pp.690 - 691).

Além disso, também é importante que os doentes recebam orientações com relação
aos efeitos benéficos da atividade física no que diz respeito ao aumento da força física e
flexibilidade, melhora do aparelho locomotor, do condicionamento respiratório e
cardiovascular e do corpo como um todo, em contraposição aos efeitos nocivos da
inatividade. As atividades físicas são consideradas como uma das recomendações mais
importantes “(...) para tratar e reverter sintomas e anormalidades físicas ou psicológicas
em doentes com dor crônica. A melhora do condicionamento não apenas reverte a
síndrome do desuso, como também constitui importante argumento de autocontrole do
aparelho locomotor” (p.691). Os autores indicam a relevância do foco na “(...)
modificação dos hábitos e atitudes de enfrentamento dos processos dolorosos e dos
conflitos cotidianos” (p.700), destacam que para complementar as metas de reabilitação é
necessário atuar na melhora da qualidade de vida, na readaptação às atividades físicas e na
expansão das possibilidades de comunicação interpessoais, de modo a promover
independência e autonomia aos doentes de dor crônica, eles ressaltam a importância de
estimular o doente no desenvolvimento de atividades lúdicas, físicas e culturais (op.cit).

Outra autora que reafirma a importância do trabalho interdisciplinar no tratamento


da dor crônica é Loduca, em suas palavras:

“A dor crônica provoca intenso sofrimento e sensação de


incapacidade no paciente e costuma ser fonte de frustração para os
médicos quando não conseguem a remissão do quadro. A falta de
habilidade das intervenções médicas convencionais reforça a
importância da adoção do modelo interdisciplinar não apenas para a
compreensão da experiência de dor, mas também para a estruturação
do tratamento a ser seguido” (2007, p.30).

122
A Qualidade de Vida (QDV) é um conceito que merece destaque na avaliação do
doente com dor crônica, pois é o parâmetro para as aspirações de melhora, dizendo sobre
as sensações de conforto e bem estar. A World Health Organization Quality Of Life da
Organização Mundial da Saúde (WHOQOL) – (OMS), define QDV como: “a percepção
do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais
ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (Lin et al.,
2005, p8).

Foram desenvolvidos alguns questionários que avaliam a QDV, dentre eles o


WHOQOL, disponível na versão original com 100 questões e na versão breve com 26. A
versão original avalia seis grandes domínios: o físico, o psicológico, o nível de
independência, as relações sociais, o meio ambiente e a espiritualidade (religião e crenças
pessoais). Fazendo referência ao WHOQOL Group, os autores (Lin et al., 2005) destacam
que o termo qualidade de vida relacionada, na área da saúde é utilizado em atribuição às
expectativas subjetivas dos indivíduos nos diferentes aspectos do estado de saúde, como
sintomas, função física, estado emocional e interação social. Trata-se de um questionário
auto-administrado, no qual o doente avalia a qualidade do seu cotidiano, baseando-se em
atividades físicas e psíquicas.

“A importância do uso de escalas que avaliam a QDV se reflete no seu


uso crescente como medida de resultados, podendo auxiliar na
avaliação da eficácia dos tratamentos, na aprovação de novos
medicamentos ou outros métodos de terapia e na avaliação de
programas e distribuição de recursos para pesquisas e assistências,
entre outras” (2005, p.8).

Ao refletir sobre o fato do questionário ser auto-administrado pelo doente, Barros


(2003, p.188) afirma que “(...) a opinião predominante sobre o conceito de qualidade de
vida é a que a define como sendo “a percepção do doente sobre o seu estado físico,
emocional e social”.”.

Para o autor:

“O doente com dor crônica freqüentemente experimenta modificações


dramáticas no seu estilo de vida, que resultam do sofrimento
persistente provocado pela dor, com repercussões sobre o modo como

123
ele percebe a sua QV. Tanto a dor associada ao câncer como a dor
crônica devida a patologias não malignas produzem alterações no
funcionamento diário e nas percepções de bem-estar e satisfação
determinantes da qualidade da existência de uma pessoa” (p.189).

Ele aponta para o fato de que além do próprio sofrimento ocasionado pela dor, o
doente precisa lidar com as frustrações de variados tratamentos que não corresponderam às
expectativas iniciais, os exames com respostas pouco esclarecedoras e as explicações
vagas e insatisfatórias dos médicos com relação ao seu quadro clínico, ou até mesmo a
inexistência de diagnóstico preciso ou do esclarecimento de que nada pode ser feito para
extirpar-lhe a dor. Ele aponta que o convívio crônico pode ocasionar depressão,
sentimentos de incapacidade, desarranjos familiares, dificuldades no trabalho e progressivo
afastamento de suas atividades, o que lhes aponta para a necessidade de passar pelo
estresse dos órgãos públicos de auxíio-doença. A partir de tudo isso, o autor coloca que:
“(...) O desemprego e a inatividade física resultam em comprometimento do
condicionamento físico, atrofia muscular e redução da mobilidade muscular e articular,
com conseqüente perda da capacidade de trabalho (síndrome de desuso), do que acarreta
diminuição da satisfação individual com a QV” (2003, p.189).

Barros (2003) afirma que a preocupação em avaliar a qualidade de vida dos doentes
crônicos é muito importante para a qualificação dos serviços de atendimento, no sentido
em que preocupa-se com a satisfação dos doentes e a otimização de custos com a atenção à
saúde. Coloca que o início dos estudos sobre qualidade de vida acompanhou um
movimento chamado de “humanização” da medicina, que se contrapôs ao tecnicismo
excessivo. Para ele, os estudos de QDV trouxeram como meta principal a preocupação
com o bem-estar dos doentes, em especial os crônicos, provocando “(...) reflexão a
respeito do modelo fragmentado de ensino e prática médica fundamentados no
cartesianismo, ainda presentes nos dias de hoje e revelou a necessidade de modificações”
(p.189).

De acordo com o exposto até aqui, já é possível compreender que a dor,


especialmente a crônica, possui um impacto muito grande na vida do indivíduo por ela
acometido. Embora a dor possua um papel fundamental na auto-preservação da vida,
servindo como uma espécie de alerta para indicar que algo não está operando de acordo

124
com o esperado, solicitando cuidado, nossa sociedade patriarcal procura evitar a qualquer
custo as sensações de dor e desconforto; no entanto, sua ocorrência é inevitável ao longo
da vida. Para se proteger mediante sensações dolorosas, o indivíduo necessita mobilizar
ajuda externa e/ou recursos internos.

Segundo Loduca (1998): “(...) a dor desancora o indivíduo do seu cotidiano, ele
passa a se relacionar consigo mesmo e com o mundo através de uma máscara, a máscara
de sofredor. A dor, nesse sentido, é o pedágio obrigatório que determinará as relações
intra e interpessoais” (p.4). Quando o paciente assume o papel de doente, abrindo mão de
outros papéis que exercia até então em seu cotidiano, ele se afasta tanto das
responsabilidades quanto de atividades prazerosas, destacando a dor como ponto central de
sua vida (Loduca, 2007). A autora destaca os sentimentos de incapacidade física, a perda
progressiva da auto-confiança, o retraimento e distanciamento de relações que
apresentavam papel importante antes do adoecimento, como fortemente presentes nesses
pacientes.

A autora também relata que em sua experiência pôde observar que a dor passava
a interferir menos no cotidiano do sofredor a partir do momento em que ele re-
significasse sua experiência e desenvolvesse novos hábitos e comportamentos. Ela
também destaca que além de procurarem causas para a dor, os pacientes buscam atribuir
um sentido para o seu sofrimento, o que ela destaca como mais significativo (Loduca,
1998).

Com relação ao impacto da dor, Lin e colaboradores (2003) destacam que esta
altera os afetos, interfere no ritmo e qualidade do sono, no apetite e no lazer, evoca
fantasias e emoções até mesmo mais incapacitantes do que as condições do quadro físico:
medos referentes à incapacidade e à desfiguração, incertezas quanto ao futuro,
preocupações com perdas materiais e sociais. Frente a tudo isso, é comum que o indivíduo
perda sua identidade tanto no trabalho, quanto na família e no meio social. Os autores
também destacam que “(...) O processo de mudança da condição normal para a de
incapacidade e dor crônica é desgastante e agrava ou acarreta instalação de sintomas de
depressão, ansiedade, angústia, insegurança e/ou desconfiança” (p.689).

125
Desta forma, percebemos que o impacto da dor crônica abrange diferentes âmbitos
do cotidiano do doente como: auto-imagem, consciência e cuidado corporal, rede de apoio
social e familiar, projeto de vida, trabalho; estas áreas estão interligadas, sendo que caso
uma esteja mais prejudicada, outras também serão influenciadas (Loduca & Samuelian,
2003).

“Os impactos da dor no cotidiano e as repercussões na vida do doente


e de sua família são extremamente importantes. A vivência de dor e
sofrimento é particular e dependem da interação de vários fatores
psicológicos, como momentos do ciclo de vida, traços de
personalidade, humor, curso da história de vida, rede de relações e do
apego” (Lin et.al, 2005, p.10).

É importante destacar a relevância de se investigar os elementos estressores do


início do adoecimento e durante a evolução do caso, pois as mudanças no ciclo de vida do
indivíduo e a presença de estressores são elementos que podem modificar o impacto
psicossocial, a tolerância à dor e a vulnerabilidade.

Por ser a dor um evento subjetivo e por, necessariamente, acompanhar respostas


afetivas é de grande relevância entendermos o que se passa na subjetividade de cada
paciente, o que é viabilizado pelo trabalho do psicólogo que busca compreender o
significado que cada indivíduo atribui à sua dor, os impactos em seu cotidiano, assim
como os recursos que dispõem para o tratamento e enfrentamento da doença. Identificar
esses fatores é muito importante para que haja ressonância entre as condutas de
intervenção e as necessidades de cada paciente, fato este que corrobora para a adesão ao
tratamento; portanto, o papel da avaliação psicológica é detalhar as dimensões cognitiva,
afetiva e comportamental dos indivíduos, identificando o foco de sofrimento e “(...) o
caminho de acesso aos conflitos intrapsíquicos que envolvem a relação entre a
manifestação física da doença e a psicodinâmica individual” (Lin et al., 2005, p.13). “(...)
A construção do significado da dor depende da estrutura de personalidade e do estado
emocional do doente, das crenças e pensamentos que permeiam o seu ambiente sócio-
cultural, bem como dos comportamentos, atitudes e posturas reforçados pela rede social
mais próxima” (p.5).

126
Sabemos que aspectos psicológicos podem produzir a percepção da dor ou
aumentar a tolerância à estimulação dolorosa (Lin et al., 2005); neste sentido, para
compreender a dor de cada indivíduo é preciso extrapolar o âmbito físico, buscando
entender não somente a natureza física do agente causador da dor como os fatores
psicológicos. “A dor é uma resposta afetiva à percepção do estresse que envolve os
sistemas somático, motor e cognitivo e a afetividade, justificando a necessidade de se
analisar os aspectos psicossociais durante a avaliação dos doentes com dor” (Lin et al.,
2005, p.5).

A avaliação psicológica, portanto, precisa abranger as diversas dimensões


influenciadas pela dor. Loduca e Samuelian (2003) indicam as principais dimensões a
serem investigadas:

História de Vida: Buscar levantar acontecimentos que o indivíduo destaca como positivos
e negativos, explorando aspectos referentes ao trabalho, moradia, relacionamentos sociais,
familiares e amorosos, preocupações, perdas, situações traumáticas, bem como eventos da
vida em que se considera realizado ou frustrado.

História do Adoecimento Atual e Experiências Passadas: Questionar sobre crises


anteriores e recursos os quais o indivíduo lançou mão para enfrentar tais situações. Isto nos
dá a informação de como ele se posiciona frente a situações adversas; procura minimizar a
emoção ou busca soluções para o problema? Também é relevante investigar as
expectativas com relação ao tratamento, adesão, ajustamento ao adoecimento crônico,
além de antecedentes mórbidos, gerais ou psiquiátricos, pessoais e familiares.

Cotidiano: Procurar avaliar o impacto da dor na vida do indivíduo nas diferentes áreas
como trabalho, inserção social, lazer, ambiente familiar, vida social e amorosa e atividade
sexual. Identificar as fontes de prazer, alívio e descarga e o quanto elas foram prejudicadas
pelo quadro álgico.

Cognição: Identificar expectativas, fantasias, crenças, receios e fantasias que o indivíduo


possui em relação aos seus problemas, atendo-se para a existência de elementos
estressores. Checar as fontes de motivação e significado de qualidade de vida. Os autores

127
destacam a importância de detectar a presença de crenças disfuncionais e pensamentos
negativos, como a catastrofização, vitimização, culpa, generalização exagerada e a ênfase
no tema da dor, assim como detectar a presença de crenças funcionais como o sentimento
de auto-eficácia, ou seja, crenças nas próprias capacidades de organização e execução de
ações necessárias para lidar com situações estressantes.

Auto-imagem: percepção do indivíduo de si mesmo e a visão que acredita que as outras


pessoas tenham sobre ele, busca pela compreensão da consciência corporal e auto-estima.

Afetividade: Identificar as emoções que permeiam a relação do doente consigo e com os


outros, avaliando o suporte psicossocial.

Projeto de Vida: Quais desejos e metas o indivíduo busca para a sua vida que não estejam
vinculadas ao papel de doente. A maioria dos que sofrem de algias crônicas só conseguem
aspirar à cura da dor, o que indica forte paralisação das outras áreas da vida e anulação de
planos anteriores, em função do adoecimento.

Diante da dor crônica o indivíduo se depara com uma série de elementos


estressores, como o sofrimento, dificuldades físicas, demandas da equipe profissional, dos
próprios procedimentos terapêuticos e da rede social que o cerca, bem como lidar com suas
expectativas e frustrações. Para tanto, precisa mobilizar um conjunto de “estratégias de
enfrentamento”, para passar por essa experiência de forma que consiga preservar sua auto-
estima, equilíbrio mental e o relacionamento interpessoal. Loduca (1998), a partir de uma
revisão na literatura constata uma concordância entre autores com relação à compreensão
dos recursos de enfrentamento como “(...) atos e pensamentos, que permitam resolver
condições aversivas e conflitivas, procurando, assim, diminuir distúrbios
psicofisiológicos” (p.35); tratam-se portanto, de estratégias as quais o indivíduo lança mão
com o intuito de alterar a percepção da intensidade dolorosa e de tolerar ou manejar a dor
de modo a prosseguir suas atividades de vida diária.

As estratégias de enfrentamento podem ser classificadas como ativas ou passivas,


sendo mais ou menos efetivas, a depender de cada indivíduo e de todo o contexto no qual
está inserido. Nesse sentido, a estratégia de rezar pode ser considerada tanto ativa quanto

128
passiva, a depender da ênfase que o indivíduo atribui à sua fé, podendo servir-lhe como
fonte de motivação ou de resignação (Lin et al., 2005, p.7). Os autores destacam que para o
profissional compreender os motivos pelos quais alguns doentes não se sentem capazes de
enfrentar a situação de adoecimento é preciso identificar as estratégias mais utilizadas pelo
indivíduo, possibilitando ao profissional o entendimento dos recursos de que o indivíduo
acredita dispor.

A dor é portanto, um fenômeno complexo, multifatorial e exige postura


compromissada e afetiva dos que se propõe a atender a população acometida por este tipo
de sofrimento. É uma área que vem ganhando significativo destaque, tanto a nível nacional
quanto internacional; no entanto, o Brasil ainda carece de profissionais qualificados e de
mais pesquisas na área.

Frente a tudo isso, percebemos a importância da realização de trabalhos que


visem minimizar a dimensão do sofrimento, almejando a melhoria da qualidade de vida
desses indivíduos.

Acredito que o processo álgico crônico pode fazer com que o indivíduo se
relacione com seu corpo como um Outro estranho, portador do mal e do sofrimento.
Vimos ao longo dos capítulos que a sociedade patriarcal buscou encobrir e reprimir
coisas que considerou como más ou que achou que estavam fora de controle, portanto,
ameaçadoras.

Em meio a todo esse sofrimento, de ampla dimensão e duração incalculável, o


indivíduo pode correr o risco de cindir com este corpo, portando-se se maneira
negligente, ou compensatoriamente, adotar medidas supeprotetoras. Em ambos os
casos, o corpo parece ser entendido como o Outro.

Acredito na relevância de trabalhos que possibilitem ao indivíduo se re-ligar


com seu corpo, de modo a senti-lo como fonte de prazer, desvelando potencialidades
até então encobertas.

129
A Dança do Ventre então, seria um grande instrumento neste sentido,
possibilitando à mulher, após o contato com sua essência, a retomada do senso de
valorização e de auto-eficácia e melhora da auto-estima. De forma lúdica e prazerosa é
uma boa aliada na reversão da síndrome do desuso, atuando no sentido de
complementar as metas de realibilitação, de modo a promover saúde e bem-estar, físico
e psicológico.

130
METODOLOGIA.

Este trabalho tem como objetivo pesquisar se a prática de movimentos corporais


baseados na Dança do Ventre contribui com o resgate de aspectos do Feminino, na
elevação da auto-estima e melhora da qualidade de vida, de forma geral, de mulheres
com dor crônica, submetidas a um processo breve em grupo de estrutura vivencial.

O modelo de pesquisa mais adequado, aqui, é o estudo descritivo qualitativo, no


qual o foco de atenção é a construção de significados por parte dos sujeitos, suas
histórias de vidas e como as percebem (Ludke & André, 1986). A pesquisa qualitativa
abre espaço para a compreensão sobre como as generalizações, discutidas na teoria, se
aplicam nas psiques individuais de determinada amostra: aí encontra-se a riqueza deste
tipo de estudo.

O método de investigação na Psicologia Analítica difere das demais por abordar


os fenômenos psíquicos de forma simbólica arquetípica. Conforme visto no capítulo 2
(Pressupostos Teóricos da Psicologia Analítica), a compreensão dos fenômenos é
alcançada através do pensamento simbólico que viabiliza o acesso à dimensão
inconsciente da psique, de modo a possibilitar a integração consciente inconsciente:
“Como ponte entre o mundo arquetípico, o mundo da consciência e o mundo externo, o
símbolo se constitui o fenômeno psíquico apreensível e compreensível” (Penna, 2003,
p.213).

“Considerando-se que a única forma de conhecer o ser humano é


através de suas manifestações (...) e que o inconsciente não é passível
de observação direta, podendo ser apenas inferido por meio de suas
manifestações simbólicas, o método no paradigma junguiano converge
para uma perspectiva simbólica do conhecimento” (Penna, 2003,
p.170).

Sendo assim, ao pesquisar em Psicologia Analítica, é imprescindível que se


utilize recursos que favoreçam a observação e captação dos símbolos produzidos pela
psique, a fim de facilitar sua compreensão. Existe uma priorização das técnicas
projetivas e expressivas, devido ao fato de se mostrarem mais favoráveis à observação e

131
elaboração simbólica. Nesse sentido, tal pesquisa preocupa-se em investigar as duas
esferas da psique; consciente e inconsciente. Penna (2003, p.184) afirma que:

“O método proposto por Jung para a compreensão do material


inconsciente envolve a decodificação da linguagem simbólica através
da interpretação de seu significado para a personalidade como um
todo. A meta da interpretação é propiciar a integração de conteúdos
inconscientes na consciência, dessa forma ampliando a consciência,
ou seja, produzindo autoconhecimento e favorecendo o processo de
individuação. A integração ou assimilação do conhecimento novo
depende de um processo de elaboração do símbolo pela consciência”.

Tal abordagem exige uma postura participativa do pesquisador com relação ao


pesquisado pois, no processo de observação ambos se transformam, devido à
característica dialogante na qual, através do vínculo estabelecido, realizam-se trocas
entre os sistemas observador e observado; nesse sentido o conhecimento é produzido
pela troca entre observador e observado e pela comunicação entre a esfera consciente e
inconsciente de ambos.

Portanto, nessa perspectiva é importante considerar o pesquisador como parte do


processo de coleta e análise dos dados, que deve estar envolvido mas, ao mesmo tempo,
manter um certo distanciamento, fator que lhe permite, posteriormente, refletir sobre o
que ouviu. Nesse sentido, o pesquisador é co-participante e tem responsabilidade pelo
material produzido. Desta forma, o processo de observação na abordagem junguiana se
define pelas seguintes caractetísticas: “1. relativa às particularidades do objeto de
investigação – psique consciente e o inconsciente; 2. relativa à equação psíquica
(pessoal) do sistema observador; 3. relativa à dinâmica entre o sistema observado e o
sistema observador” (Penna, 2003, p.172).

O material simbólico apreendido deve fazer sentido para a consciência que o


experiencia, para que cumpra com sua finalidade de ampliação da consciência,
encaminhando, portanto, o processo de individuação. Sempre existe a preocupação de
abordar o símbolo em seus dois níveis: referente aos contextos vivencial e histórico
cultural; individual ou coletivo.

132
Neste sentido, a perspectiva simbólica arquetípica do método junguiano permite
a integração entre aspectos da subjetividade e da objetividade, do mesmo modo como
entre individualidade e coletividade.

Nesta pesquisa destacam-se também as questões éticas, pois as informações


obtidas envolvem um elevado grau de intimidade. Foram consideradas as normas
previstas pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96), garantindo sigilo
profissional pelo comprometimento de não divulgar a identidade dos participantes, bem
como a utilização dos registros obtidos apenas no âmbito acadêmico. O termo de
consentimento livre e esclarecido consta em Anexo.

A pesquisadora preocupou-se com a carga emocional mobilizada nos encontros,


de forma a manter-se solícita a eventuais complicações, dispondo-se para outros
contatos, caso necessário, para a elaboração das vivências relatadas, de forma a garantir
a beneficência do trabalho.

A abordagem junguiana ressalta o cuidado ético do pesquisador para com o


sistema observado:

“(...) a ética do observador é fator preponderante e exige dele que


esteja empenhado e comprometido com suas próprias observações,
pois a assimilação de um conhecimento novo (inconsciente), nem
sempre é uma tarefa fácil ou agradável para a consciência” (Penna,
2003, p.176).

Os pilares de sustentação da pesquisa de abordagem junguiana se referem ao


fundamento arquetípico, à amplificação, sincronicidade, teleologia e causalidade.
Busca-se portanto, compreender o tema arquetípico envolvido, o que aconteceu em
outros lugares e épocas que retrata o mesmo tema, o que ocorre atualmente que se
relacione com o tema, às finalidades as quais esse símbolo aponta e o motivo a que
levou essa expressão simbólica, respectivamente. Desta forma, não se trata apenas da
atitude pelo saber sobre as causas de determinado comportamento, pois parte-se da
compreensão da existência de múltiplos fatores influenciando e determinando um
comportamento específico, sejam eles biológicos, psicológicos, econômicos, sociais ou
culturais.

133
Segundo Perera (1985), o profissional que se dispõe a auxiliar outras pessoas na
tarefa de resgate do Feminino deve atuar, quando necessário, como participante deste
processo e trabalhar ao nível mente-corpo, no qual ainda não ocorreu a formação da
imagem e da percepção do outro e: “(...) onde instinto, afeto e percepção sensorial
começam a aglutinar-se, de início, em sensações corporais que podem ser identificadas
para fazer aflorar a lembrança ou a imagem” (p.88). Nesse sentido pode-se utilizar de
técnicas como toque, abraço, trabalho com sons, com o silêncio, com a atenção
afirmativa na qual se espelham os fatos, trabalhos com gestos, cantos, respiração, além
das ações não-verbais como desenho ou dança.

“A esse nível mágico e matriarcal, os elementos rituais são fortes e


devem ser respeitados, e até encorajados. (...) o terapeuta deve guiar-
se pelas conexões afetivas poderosas de transferência e de
contratransferência, e pelas imagens de sonho e fantasia, para sentir
como e para onde o processo quer ir. A atitude terapêutica deve ser a
de permitir ativamente a cada paciente estar consigo mesmo de todos
os modos que forem necessários. Isso pode levar a muitos tipos de
improvisação criativa. Ações, gestos e permissões, tanto simbólicas
como literais, para tocar o pré-ego regredido e oculto, e ajudá-lo a
aprender a sentir-se válido e a confiar” (Perera, 1985, p.88).

A) Participantes.

Partiu-se de uma amostra de quatro mulheres, com faixa etária entre 45 e 56


anos, com dor crônica que participaram do grupo psicoeducativo de abordagem
psicodramática (PAP) da Prof.ª Dr.ª Adrianna Loduca e do follow up dois anos depois
no Gurpo de Dor do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IOT/HC-FMUSP). No entanto,
uma participante não será incluída na análise, devido a constantes faltas por motivos
médicos.

Optou-se por pessoas que já haviam passado pelo grupo psicoeducativo devido a
crença de que, por estarem mais mobilizadas e já terem passado por um processo de
ampliação da consciência, estariam mais preparadas para iniciar uma atividade que

134
exigisse um maior contato com sua natureza e maior abertura para um contato íntimo
consigo mesmas, além do fato de que ao estarem mais mobilizadas aproveitariam
melhor o presente trabalho, em termos de sua curta duração.

Das três participantes que constituiram, então, o grupo, duas encontram-se


afastadas do trabalho devido ao processo álgico crônico (Graça e Elisa*). Graça e
Bianca possuem filhos, a primeira: uma adolescente de 14 anos e a segunda, dois
rapazes com idades entre 23 e 26 anos. Com relação à escolaridade, Bianca completou o
ensino médio, Elisa possui curso superior incompleto e Graça superior completo. Graça
e Elisa exerciam as ocupações de médica e auxiliar de enfermagem, respectivamente,
antes do afastamento pelo INSS. Bianca ainda exerce a função de costureira e prof.ª de
costura. Quanto ao estado civil, Bianca e Graça são casadas enquanto que Elisa é
divorciada.

Bianca e Elisa possuem diagnóstico de dor Nociceptiva que iniciou-se, em


ambos os casos, há 8 anos. Graça, atualmente, foi diagnosticada com dor mista, ou seja,
sua dor possui componentes Neuropáticos e Nociceptivos e se iniciou há 7 anos.
Atualmente apenas Bianca não está vinculada à instituição citada.

B)Procedimento.

As participantes foram contactadas por intermédio da Prof.ª Dr.ª Adrianna


Loduca, psicóloga responsável pelo grupo psicoeducativo e colaboradora do Grupo de
Dor. Foi esclarecido que esta pesquisa se trata de uma continuação do trabalho
realizado, devido a uma constatação da necessidade de realização de um trabalho
voltado para o Feminino e auto-estima destas participantes. Foram realizados oito
encontros, o primeiro no Hospital das Clínicas e os demais no consultório particular da
Prof.ª Dr.ª Adrianna Loduca, cada um teve duração aproximada de uma hora e trinta
minutos.

*
Os nomes utilizados são fictícios.

135
Com relação aos instrumentos utilizados, a idéia original era solicitar às
participantes que realizassem o desenho do próprio corpo em dois tempos: no início e
no término do processo. No entanto a pesquisadora se deu conta de que algumas das
participantes tinham restrições na mobilidade das mãos; optou-se então, pela
representação grupal da imagem corporal através de recursos como revistas, canetas e
colas coloridas, dentre outros. Este procedimento foi adotado devido ao crédito que a
pesquisadora atribui ao processo grupal, no sentido em que tal espaço, possibilitador do
encontro, naturalmente carrega a possibilidade de transformação. Nesse sentido, a
representação grupal pareceu a forma mais apropriada para a leitura daquele grupo em
específico, bem como de suas alterações.

O intuito do desenho do si mesmo ou no caso da representação grupal da forma


como percebem seus corpos, enquanto técnica expressiva, permite saber sobre a auto-
imagem corporal destas mulheres, ajudando na compreensão sobre a maneira como elas
se enxergam e como se colocam no mundo.

Essas produções foram realizadas no terceiro e no oitavo encontros e


comparadas com o intuito de observar se ocorreram alterações na auto-imagem do
grupo como um todo, após o processo.

Outro instrumento utilizado em dois tempos, no segundo encontro e no oitavo,


foi o questionário WHOQOL de qualidade de vida. Conforme vimos anteriormente, o
conceito de qualidade de vida é importante de ser explorado, pois é um parâmetro de
referência para as aspirações de melhora. O instrumento WHOQOL-100 consiste em
cem perguntas referentes a seis diferentes domínios: físico, psicológico, nível de
independência, relações sociais, meio ambiente e espiritualidade/religiosidade/crenças
pessoais. Esses domínios são compostos por 24 facetas. As facetas correspondentes a
cada domínio são:

- Físico: 1. dor e desconforto físico, 2. energia e fadiga, 3.sono e repouso.


- Psicológico: 4. sentimentos positivos, 5. pensar aprender memória e
concentração, 6. auto-estima, 7. imagem corporal e aparência, 8. sentimentos
negativos.

136
- Nível de Independência: 9. mobilidade, 10. atividades da vida cotidiana, 11.
dependência de medicação ou de tratamentos, 12. capacidade de trabalho.
- Relações Sociais: 13. relações sociais, 14. suporte (apoio) social, 15. atividade
sexual.
- Ambiente: 16. segurança física e proteção, 17. ambiente e lar, 18. recursos
financeiros, 19. cuidados de saúde e sociais: disponibilidade e qualidade, 20.
oportunidades de adquirir novas informações e habilidades, 21. participação em
e oportunidades de recreação/lazer, 22: ambiente físico:
poluição/ruído/trânsito/clima, 23. transporte.
- Crenças Pessoais: 24. espiritualidade/religião/crenças pessoais.

Cada faceta é composta por quatro perguntas. Além dessas 24 facetas


específicas, existe uma 25a que abrange perguntas gerais sobre qualidade de vida
(disponível em http://www.ufrgs.br/psiq).

As perguntas são de múltipla escolha e apresentam quatro tipos de escalas, a


depender do conteúdo da pergunta, referentes à intensidade (nada, muito pouco, mais ou
menos, bastante, extremamente), capacidade (nada, muito pouco, médio, muito,
completamente), freqüência (nunca, raramente, às vezes, repetidamente, sempre) e
avaliação (muito ruim, ruim, nem ruim nem bom, bom, muito bom).

A partir do segundo encontro o grupo foi caracterizado por uma estrutura


vivencial, no qual ocorreram discussões e reflexões sobre o tema do feminino, da dor,
dentre outros, e foram realizados trabalhos corporais baseados nos movimentos da
Dança do Ventre, com o objetivo de elevar a auto-estima e resgatar aspectos do
Feminino, que conforme vimos inicialmente, foi reprimido coletiva e individualmente
com o desenvolvimento da sociedade patriarcal e no caso dessas mulheres também
podemos destacar, além dos complexos pessoais, o processo álgico crônico.

Esta dança foi, na maioria dos casos, utilizada como um instrumento


preparatório, a fim de “aquecer” corpo e psique para as discussões e trabalhos
posteriores.

137
Um aspecto fundamental do grupo vivencial é a existência de um espaço
propício para a expressão de vivências, fantasias e sentimentos os quais não se têm a
possibilidade de abordar em outros lugares, nesse sentido esse tipo de grupo assume um
nível de comunicação profundo e espontâneo (Maldonado, 1989). Maldonado afirma
que o grupo vivencial favorece ao máximo a absorção de aprendizagem e de
operacionalização dos conhecimentos.

Cada encontro foi dividido da seguinte forma:

- Aquecimento e alongamento da musculatura a ser solicitada


(aproximadamente 5 minutos).
- Trabalho corporal baseado nos movimentos da Dança do Ventre
(aproximadamente 5 ou 10 minutos).
- Técnicas de relaxamento e alongamento das musculaturas solicitadas
(aproximadamente 5 minutos).
- Discussões, sobre as vivências e outros temas (aproximadamente 1 hora).

Cada encontro foi se configurando com um tema, em geral identificado pela


demanda momentânea das participantes, exceto quando haviam sido planejadas
atividades, o encontro foi mais direcionado. No entanto, em alguns momentos a
pesquisadora precisou se desvaler do planejamento para acolher devidamente a
demanda exposta pelas participantes.

A eleição de uma atividade corporal para o resgate do Feminino, em específico


de uma dança cuja principal característica é o ritual à Grande Mãe, à natureza e
fertilidade, não foi por acaso, pois acredito que para viabilizar o acesso à dimensão
mágica e mitológica da psique seja preciso entrar em contato com o corpo. Segundo
Ferreira:

“(...) a intuição, os instintos, o afeto, o acolhimento, a intimidade com


o outro são características ou dons femininos que vêm através do
corpo e somente através dele poderão ser resgatados. Essa é a
verdadeira natureza da mulher e está na hora de ela apropriar-se
novamente do que é seu, com todo direito” (Ferreira, 2006, p.40).

138
Como vimos, a vivência corporal da Dança do Ventre possibilita ao ego o
contato com o arquétipo da Grande Mãe e esse contato pode evocar certos aspectos do
princípio Feminino, reprimidos até então. Marques (1994) afirma que as representações
arquetípicas enquanto permanecem na área psíquica não estão completamente
desenvolvidas se não forem expressas concretamente.

Neste sentido, através de uma atividade corporal baseada na Dança do Ventre


podemos vincular a consciência às camadas mais profundas da psique, que pode se
revelar com toda sua numinosidade. No entanto, sabemos que o simples fato de executar
os movimentos desta dança não garante que os aspectos do princípio Feminino sejam
desenvolvidos e conscientizados, precisa existir uma elaboração psíquica e não somente
a estimulação corporal, este é o motivo que norteou a decisão pelo grupo vivencial.

A pesquisadora se atentou para que os limites corporais de cada participante


fossem respeitados, garantido a beneficiência do trabalho, excluindo qualquer
possibilidade maléfica por danos físicos ou emocionais.

A hipótese que norteou este trabalho está embasada na idéia de que, na presença
de qualquer estímulo doloroso ocorre um direcionamento intenso de energia psíquica
para o fenômeno dor. Conforme a dor se cronifica, acredito que este direcionamento se
torna cada vez mais acentuado, pois conforme vimos anteriormente a dor tem impacto
em muitas áreas do cotidiano do indivíduo.

Sendo assim, a minha hipótese considera que ao colocar uma tarefa nova a ser
aprendida, que mobilize energia psíquica do ego afim de cumpri-la, parte dessa energia
que estava, até então, polarizada na dor irá se despolarizar, direcionando-se para esse
elemento novo. Com isso, em termos de ego, poderia dizer que haveria uma
mobilização, pois ao despolarizar a energia psíquica da dor e vislumbrar a oportunidade
de aprendizado de uma nova tarefa, o ego depara-se com o sentimento de produtividade
e prazer por ter conseguido realizar determinados movimentos harmoniosos,
esteticamente encantadores e de grande potencial arquetípico. Como consequência
acredito que ocorrerá um fortalecimento egóico, influenciando na auto-imagem corporal
e elevação da auto-estima da pessoa, o que por sua vez, influenciará na forma como

139
percebe a si própria e como se coloca no mundo. Se a recíproca for verdadeira, ao elevar
a auto-estima o autocuidado aumentará. Conforme visto, a elavação do autocuidado
interfere diretamente na forma como a pessoa se coloca frente ao próprio tratamento e
na forma como lida com a dor.

A pesquisadora se manteve atenta para a possibilidade de transformações


objetivas; obtidas por intermédio de sua observação atenta e participativa, dos relatos e
questionários de qualidade de vida (WHOQOL) respondidos pelas participantes no
início e término do processo, e subjetivas, através da análise das representações da
imagem corporal, comparando e identificando possíveis diferenças entre a primeira
representação, feita antes da introdução da prática dos movimentos da Dança do Ventre
e das discussões do grupo, com a segunda.

C)Procedimento para análise dos resultados.

As situações, ações e interações complexas foram analisadas em seus contextos,


a partir do ponto de vista do sujeito, a fim de que se obtivesse uma compreensão do
fenômeno e dos processos envolvidos (Moon, 1990). Desta maneira tornou-se possível
uma melhor reflexão dos comportamentos humanos, sempre considerando seus
significados e intenções (Guba & Lincoln, 1994). Portanto, apesar de não se tratar de
uma população clínica, este trabalho se caracterizou como uma pesquisa clínica, no
sentido em que constituiu-se num processo de conhecimento dos significados os quais o
indivíduo atribui a suas crenças e valores, visando construir os fatos psicológicos dos
quais ele é fonte em uma estrutura inteligível.

Os encontros foram gravados com a permissão das participantes e transcritos na


íntegra. No entanto, devido à extensão dos relatos as transcrições estão apresentadas na
forma de síntese no capítulo dos resultados.

Foram levados em consideração os comportamentos não verbais e as reflexões e


sensações da pesquisadora que, conforme apresentado anteriormente, é co-participante
do processo.

140
Diversas leituras e sínteses das narrativas foram realizadas, a fim de que
obtivéssemos um relato condensado, ao mesmo tempo, dotado das informações mais
significativas.

Foram identificados temas a respeito dos tópicos sob investigação, pois como
afirma Bardin (1979, p.105) “(...) o tema é uma unidade de significação que se liberta
naturalmente de um texto” ou “um feixe de reações (que) pode ser graficamente
apresentado através de uma palavra, uma frase, um resumo” (Minayo, 1998, p.208).

Os conteúdos dos questionários foram tabulados e serão discutidos no capítulo


destinado à análise e discussão dos resultados.

O material produzido foi fotografado com a permissão das participantes, embora


de modo a não revelar suas identidades e encontra-se em Anexo.

Com relação à análise do material simbólico, obtido nas discussões do grupo


vivencial e nos relatos das vivências corporais, preocupou-se em buscar a melhor forma
de alcançar sua compreensão e traduzi-la para a consciência.

O método de compreensão dos fenômenos psíquicos, na abordagem junguiana, é


dividido em quatro etapas interligadas: a primeira se refere à tradução dos símbolos, a
segunda à interpretação desse material, a terceira à elaboração e a quarta consiste na
integração destes na consciência.

Na tradução, o material simbólico é encarado como um texto desconhecido que


deve ser traduzido. Nesse sentido, tal material ainda desconhecido passa por um
processo de decodificação, de mapeamento, no qual se utilizam analogias, associações e
comparações. Este processo procura viabilizar uma ponte de comunicação entre o
conhecido e o desconhecido. As associações e comparações permitem a apreensão dos
aspectos ocultos do símbolo, servindo como preparatórios para a etapa da elaboração.
Nesta primeira fase, o primeiro aspecto a ser considerado é o contexto do símbolo: “(...)
No caso de manifestações simbólicas individuais (sonhos, fantasias, fatos), delimita-se

141
o contexto subjetivo a partir das associações pessoais do indivíduo” (Penna, 2003,
p.190).

Após o material simbólico ter sido traduzido, inicia-se a fase da interpretação,


que é conduzida, fundamentalmente, pelo pensamento simbólico, levantando-se
algumas questões como: qual o tema arquetípico envolvido? Que transformação esse
símbolo anuncia? Que atitude da consciência está sendo compensada? Penna destaca
uma frase de Jung que diz: “qualquer interpretação é uma hipótese, apenas uma
tentativa de ler um texto desconhecido”, ressaltando a importânica de não tomarmos
nossas interpretações como verdades absolutas (Penna, 2003, p.191). A interpretação
simbólica objetiva o autoconhecimento, requerendo aproximação e sintonia entre
consciente e inconsciente, ego e Self; nesse sentido, a interpretação somente é
considerada como válida, quando conduz à elaboração de conteúdos inconscientes, pois
nesta perspectiva:

“Tudo o que experimento é psíquico. A própria dor física é uma


reprodução psíquica que experimento. Todas as percepções de
meus sentidos que me impõe um mundo de objetos espaciais e
impenetráveis são imagens psíquicas que representam minha
experiência imediata, pois somente eles são os objetos imediatos
de minha consciência” (Jung, 1984, p.297).

A terceira fase, referente à elaboração simbólica, se trata de um processo de


assimilação e integração, na consciência, dos elementos inconscientes do símbolo, exige
do ego postura reflexiva, para que seja possível identificar a finalidade e o sentido de tal
mensagem simbólica. Um recurso que viabiliza a elaboração, principalmente no que diz
respeito à compreensão dos aspectos arquetípicos envolvidos, é a amplificação
simbólica, que busca os significados arquetípicos do símbolo, identificando um que faça
mais sentido para a consciência atual. Penna (2003) explica que tal processo, realizado
através de associações e analogias, consiste em ampliar e enriquecer os elementos do
símbolo, visando sua tradução e interpretação. Este processo busca entendimento para
os símbolos individuais a partir da compreensão das formas gerais coletivas, contidas na
subjetividade e particularidade individuais.

142
“(...) Através da amplificação o núcleo arquetípico do símbolo é
vivificado e integrado aos aspectos atuais da consciência, trazendo à
luz um sentido renovador e transformador para a psique que vive o
símbolo, seja em relação a um sonho, fantasia ou vivência existencial
(individual), seja em relação a um mito, conto, ou evento histórico
(coletivo)” (Penna, 2003, p.198).

As técnicas expressivas, em geral, assumem esse objetivo da amplificação,


muitas vezes sendo consideradas como o próprio processo. Nesse sentido, as técnicas
expressivas: “(...) são recursos técnicos alternativos de que se lança mão a fim de
ampliar e aprofundar o entendimento dos símbolos” (Penna, 2003, p.200). Desenho,
modelagem, dança ou imaginação ativa podem ser utilizados com o intuito de se obter
uma leitura amplicatória do símbolo. Para fazer uma leitura amplificatória é necessário
abordar o material por intermédio do pensamento simbólico. O pensamento simbólico
faz uso de analogias, buscando semelhanças e regularidades, identificando, portanto o
tema arquetípico comum subjacente. Penna afirma que:

“(...) Esta forma de pensar congrega as funções da consciência para


rodear o símbolo num movimento circunambulatório, em busca do
sentido mais essencial e profundo deste. Sua função é desvendar os
significados ocultos dos símbolos a fim de alcançar a integração
destes na consciência e, assim, ampliá-la, cumprindo a meta do
processo de individuação. De acordo com Jung, esta é também a
função da ampliação simbólica. Destarte pode-se considerar que o
pensamento simbólico abarca a amplificação em seu sentido
metodológico” (2003, p.202).

143
HISTÓRIA DE VIDA DAS PARTICIPANTES.

Para uma melhor compreensão do processo e da análise é revelante


conhecermos a história de vida de cada participante. Nesse sentido, serão apontados
alguns dados que tenham relação com questões a serem apresentadas na análise;
portanto, trata-se de um pequeno recorte de um todo maior.

Bianca, 54 anos, casada, com dois filhos adultos*.

Possui um diagnóstico de dor Nociceptiva (tem cervicalgia, hérnia de disco


cervical e fusão da coluna; possui duas vértebras grudadas, trata-se de uma dor
somática, músculo-esquelética). Refere ter tido dores na região lombar após o primeiro
parto; teve melhora com tratamento fisioterapêutico, mas o problema retornou na
segunda gestação, tendo passado algum tempo depois. Há aproximadamente oito anos
começou a sentir dores na região cervical. Segundo os médicos, sua dor se atribui à
postura fixa que assume no trabalho, no qual exerce a função de professora de costura.

Em conjunto com a eclosão da dor, embora não associasse incialmente, Bianca


veio a afirmar que, na época, o irmão havia recebido diagnóstico de HIV soropositivo.
Essa informação foi dividida apenas com ela, deixando-a angustiada e com sensação de
grande responsabilidade. Este irmão a preocupa muito, pois além de ser usuário de
maconha desde a adolescência, era alcoólatra e, atualmente, apresenta recaídas
esporádicas; no entanto cada recaída tornou-se extremamente aversiva para a família,
devido ao fato de que ele apresenta sérias convulsões quando bebe.

Em seu discurso percebemos que desde pequena assume a posição de


conselheira e mediadora de conflitos tanto familiares (e continua exercendo esta
função, na família de origem e na atual), quanto de sua rede social próxima; afirmou
que isto a sobrecarregava mas que lhe era muito difícil sair desta posição, pois sentia-se
útil. Sempre na posição de doadora e cuidadora, parece que a dor teve um simbolismo
muito importante. Com relação à teleologia do fenômeno, podemos dizer que apontava

*
Os nomes são fictícios.

144
para seus limites e para a necessidade de investimento em si própria, aumentando sua
atenção com o autocuidado.

No entanto, sair da posição de doadora e assumir a posição de alguém que


também necessita de ajuda não era uma tarefa fácil: Bianca, intimidada a solicitar
auxílio, esperava que os outros ao seu redor descobrissem e satisfizessem suas
necessidades, por conta própria. É evidente que a sensação de frustração e de carência
estavam exacerbadas, quando seus anseios “secretos” não eram satisfeitos.

Conta que teve uma educação muito rígida e queixa-se de a mãe ter sido pouco
afetiva com os filhos, enquanto que o pai colocava-se de forma autoritária; a mãe
acatava suas ordens, não diminuindo a carga de conflitos para com os filhos. Ambos
agrediam verbalmente, de forma intensa, a ela e seus irmãos: dois homens e uma
mulher. É a filha mais velha e afirma sentir-se rejeitada pelo pai, que preferia que o
primeiro filho fosse do sexo masculino.

Desde a infância assumiu a posição de cuidadora de seus irmãos, visto que a


mãe ficava, constantemente, doente e internada em diversos hospitais. Bianca acabou se
responsabilizando pelo cuidado da casa e dos irmãos.

Na adolescência, os conflitos dentro de casa continuaram e os pais passaram a


se agredir fisicamente, relata ter sentido muita vontade de emancipar-se e conta que,
por vezes, desejou a morte dos pais com o intuito de acabar com o clima de brigas e
tensões dentro de casa.

Aos dezesseis anos teve seu primeiro namorado, que viria a ser seu marido.
Devido à rigidez dos pais e à forte vontade de aventurar-se com seu namorado, passou a
viajar às escondidas e, aos 19 anos, engravidou. Fez um aborto com receio da reação
dos pais. Este é um fato muito marcante na sua vida, pois afirma nunca ter se perdoado,
sentindo-se muito culpada. Percebemos o peso que atribui a esse evento quanto o
compara, com relação ao sofrimento, como igual ou pior ao atual quadro álgico.

145
Loduca (2007) afirma que Bianca possuía uma tendência a se manter na posição
de vítima. Embora buscasse realizar-se em outros papéis do cotidiano, o de doente
prevalecia.

A culpa pelo aborto e o ressentimento e raiva atribuídos aos pais devido ao


clima agressivo e conturbado da infância e adolescência, quando não recebeu o cuidado
e afeto que esperava, possivelmente a fizeram adotar uma postura rígida e moralista
perante às normas sociais, bem como uma posição de excesso de zêlo com os pais,
servindo, possivelmente, como uma forma de reparar seu erro (aborto) e aliviar sua
culpa.

Elisa 56 anos, divorciada, sem filhos.

O quadro álgico se iniciou em 1999. Após pegar um tambor com líquido para
drenagem na hemodiálise, passou a sentir incômodos e limitações no punho e na mão
esquerda; seu diagnóstico é de dor Nociceptiva do tipo somática (músculo-esquelética).
Em 2001, os médicos revelaram a necessidade da realização de uma cirurgia, a fim de
retirar dois cistos. Sua expectativa era a de que após a cirurgia tudo voltaria ao normal;
no entanto, não foi o que aconteceu, seu problema piorou e as dores se intensificaram.
Elisa acredita na hipótese de erro médico em sua cirurgia, pois as dores permaneceram
e perdeu o movimento da mão esquerda.

Sempre muito ativa, afirma se sentir incapacitada devido às restrições de seu


quadro álgico. Lamenta ter se submetido à cirurgia e teme a necessidade de outra,
afirmando que não a realizaria de forma alguma. Encontra-se aflita, pois passou a sentir
dores também na mão direita e queixa-se de insegurança com relação ao auxílio do
INSS, que pode deixar de existir.

Depois da cirurgia, foi afastada do trabalho (exercia a função de auxiliar de


enfermagem no Hospital das Clínicas); relata não ter se conformado com o ocorrido.
No ano de 2002 voltou a trabalhar, sem adaptações; exercia a mesma atividade e, após
seis meses do retorno, apresentou novamente dificuldades na mão esquerda, com edema
e dor. Foi novamente afastada. Passados dois anos, iniciou tratamento com fisioterapia

146
e terapia ocupacional, sem melhoras. Acreditou que seu problema não teria mais fim.
Permanecia afastada do trabalho, o que a deixava angustiada e irritada.

Atribui à ocasião de piora o auge da sua vida, trabalhando muito e cursando


faculdade de Matemática, que precisou interromper em função do quadro. Neste mesmo
período, perdeu familiares queridos em acidente de carro. Queixa-se de não ter recebido
o apoio que esperava do marido o qual alegou que não a acompanharia no velório e no
enterro, pois não poderia faltar no trabalho. Este fato aumentou seu sofrimento e foi
decisivo para o término do casamento de 15 anos, que segundo ela já não estava bem.

Relata que aos dez anos seus pais se separaram, pois a mãe descobriu que ele
tinha outra família. Devido à profissão de motorista, a figura paterna era muito ausente
e mesmo presente parecia não dar atenção e carinho para a família. A mãe sempre
cuidou sozinha da educação das quatro filhas (Elisa é a caçula). Conta que sua
educação foi rígida e que lhes era exigido que limpassem a casa e fizessem as tarefas da
escola. Sua mãe não gostava que freqüentassem a casa dos vizinhos e, por qualquer
desobediência, apanhavam. Chorava freqüentemente, pois tinha um medo acentuado de
que, assim como o pai, a mãe as abandonasse.

Afirma ter feito inúmeras amizades ao longo da vida, no entanto não conseguia
mantê-las devido a sua personalidade “forte” e “briguenta” (sic.).

Na adolescência, a mãe ficou menos autoritária e exigente, tornando-se mais


carinhosa; no entanto Elisa passou a ter conflitos com o pai, com o qual se desentendeu
e perdeu o contato.

Aos 23 anos, teve o primeiro namorado sério, o qual se tornou seu marido.
Relata que, inicalmente, se davam bem mas, quando passou a estudar ele começou a
implicar; isso ocorreu após quatro anos de casados e, segundo ela, a partir de então o
casamento foi declinando. Desconfiava do marido acreditando que, assim como o pai,
ele possuía outras mulheres. Conta que mesmo com a eclosão do quadro álgico ele não
a apoiou, mantendo-se distante mesmo quando realizou a cirurgia.

147
Atualmente mora sozinha e queixa-se de muita solidão. Segundo Loduca
(2007), ao final do programa psicoeducativo, Elisa buscava reinvestir em sua
feminilidade e defender seus interesses frente ao seu meio social, que embora distante
cobrava-a intensamente.

Graça, 46 anos, casada, com uma filha adolescente.

A dor teve início em 2000 e, após muitos tratamentos frustrados, em 2003


passou a ser atendida no ambulatório de Dor do Hospital das Clínicas. Segundo Loduca
(2007), Graça mostrava-se na posição de vítima no início do programa psicoeducativo,
assumindo postura passiva, embora acreditasse na possibilidade de outros meios, além
da medicação e fisioterapia para o alívio de seu desconforto.

Foi exercendo a sua profissão de médica que a dor se iniciou: sofreu forte
agressão de um paciente. Não soube explicar o motivo desta agressão, pois sempre foi
muito solícita e dedicada, mostrando-se incorfomada com o fato. Como conseqüência
do ato, teve lesão cervical e machucou a mão e o braço direito. Relata outra decepção
ao ser diagnosticada e ter sido tratada de forma errôena por um colega; conta ter sido
muito difícil aceitar a incompetência deste. Após o acidente, teve que abandonar a
profissão e iniciou um quadro de depressão. A partir de então, eclodiram conflitos
conjugais, pois o marido cobrava-lhe a postura, até então a única por ele conhecida,
daquela mulher forte e inabalável, que sempre procurou cuidar e proteger os outros.

Graça investiu bastante na profissão, de modo que sua persona identificou-se


totalmente com o papel de médica e cuidadora, desvalendo-se de outras possibilidades
de existência. Neste sentido, a dor a fez questionar sobre outros papéis de que estava
abrindo mão, como o de esposa e mãe: passou a rever seus valores, percebendo que o
carinho e o investimento afetivo eram mais importantes do que a posição de provedora
financeira. Sempre colocou-se como cuidadora adquirindo posição central de quem dá
o suporte financeiro, obscurecendo sua necessidade de apoio de carinho. Queixa-se de
depois da eclosão do quadro álgico, sua rede social ter se esvaziado, tornando-se “um
nada” (sic.).

148
Com relação à história de vida, viveu com os pais e dois irmãos até terminar a
faculdade de Medicina. Então, mudou-se para Santos para fazer especialização. Sua
educação foi muito rígida: relata que o pai se utilizava de palmatória para impôr
respeito, enquanto que a mãe adotava uma postura mediadora de conflitos. Entretanto,
nunca manifestou carinho através de demonstrações físicas.

Quando menina aprendeu com o pai a fazer esculturas na areia, e em conjunto


com a formação médica foi realizando alguns cursos de arte; mais tarde, abriu mão da
arte. Após o acidente retomou tais atividades, com esculturas em argila, papel machê e
arame.

Aos dezoito anos começou a namorar e teve três namorados antes do marido.
Era desejo do pai que fosse freira, nesse sentido não lhe era permitido sair a sós com o
namorado: seus pais acompanhavam-nos em passeios. Apesar da vigilância, perdeu a
virgindade aos 21 anos com o segundo namorado e se decepcionou, pois acreditava que
iriam casar. Em seguida também se decepcionou com o terceiro namorado, sentindo-se
desconfiada. Desde então, havia decidido decidar-se à profissão, não considerando
como hipótese outro relacionamento. Tempos depois conheceu o atual marido enquanto
dava plantão em um hospital. Inicialmente não se interessou, mas depois de algumas
insistências por parte ele, cedeu. Sua família aceitou o fato de ele ser nove anos mais
novo do que ela, mas a família dele não, principalmente a sogra que não se continha em
mostrar sua inquietação. Aos 32 anos casou-se. A filha, apesar dos conflitos familiares
entre Graça e a sogra, foi muito esperada e festejada.

Loduca (2007), afirma que ao término do processo psicoeducativo Graça estava


apreensiva e desanimada com a notícia que havia recebiado há pouco do advogado: o
rapaz que a agrediu processou-a afirmando negligência médica (após espancá-la ele
exigiu que o atendesse) e ganhou o caso adquirindo o direito de receber uma
indenização referente a três salários mínimos. A autora afirma que ao término do
processo, Graça assumira uma posição mais ativa com relação à dor e aos conflitos e
que, seria preciso que revisse sua auto-estima e aprendesse a receber carinho sem se
sentir desconfortável.

149
CONTEXTUALIZAÇÃO DA FASE DO CICLO VITAL DAS PARTICIPANTES.

A faixa etária das participantes do trabalho encontra-se entre 46 e 56 anos.


Considero relevante algumas reflexões sobre o período da meia-idade, a qual Jung
chamou de metanóia, destacando que é nesta fase que de fato ocorre o processo de
individuação.

Sabemos que na segunda metade da vida ocorre uma mudança na direção da


libido: antes voltada para o ego e para o mundo externo (centrífuga), agora dirige-se
para o Self e para o mundo interno (centrípeta). Apesar de Jung considerar que o
processo de individuação ocorre na segunda metade da vida, não podemos descartar os
eventos da primeira metade como pertencentes também deste processo que, afinal, se
incia no nascimento e termina com a morte do indivíduo.

Conforme apontado em capítulos anteriores, o processo de desenvolvimento


psicológico possui várias etapas, mas a grosso modo poderíamos dividí-lo em duas
grandes etapas, referentes à primeira e segunda metades da vida. Na primeira metade, a
energia psíquica encontra-se voltada para fora do indivíduo, com o principal objetivo de
estruturar o ego. Vimos que nesta fase ocorre a separação entre consciência e
inconsciente, o que possibilita o crescimento do ego, sua expanção e complexidade. O
ego possui como principal tarefa discriminar-se tanto do mundo externo quanto do
mundo interno, ou seja, da sua matriz interna inconsciente. Nesta fase, além da
formação e estruturação egóica ocorre, também, a formação da persona. A sombra
ainda não está integrada, Anima e Animus aquirem caráter inconsciente, ainda.

Na segunda metade da vida o grande desafio é integrar os aspectos conscientes e


inconscientes dissociados na primeira metade. Vimos que a dissociação consciente-
inconsciente é de fundamental importância para o desenvolvimento individual e
coletivo (capítulo 4). Agora o ego precisa abrir mão de sua posição central e ceder
espaço para o Self; com isso ocorre a abertura para os aspectos inconscientes,
permitindo a realização da unidade psíquica. “(...) a assimilação de conteúdos externos
suprapessoais leva ao deslocamento do centro, isto é, do ego pessoal, centro da

150
consciência, para o self, centro da psique total” (Neumann, 1990, p. 292). Também são
características desta fase a busca do significado ou do sentido da vida, a busca do
potencial não realizado e a unificação do ego com o inconsciente. O grande desafio
encontra-se no confronto com a sombra e com tudo o que na primeira metade da vida
deixou-se de olhar ou entrar em contato.

O ego conta com o Self como principal aliado nessa busca pela integração dos
elementos inconscientes à consciência; é preciso, então, que o primeiro tome
consciência de suas limitações, defesas, que perceba que a personalidade não é linear e
que não é formado apenas pela persona, por características aceitáveis e desejáveis.

É possível entender que o processo de individuação é infinito, ao pensarmos que


a integridade ocorre quando o Self é realizado na consciência. No entanto, essa
realização nunca se completará, pois sempre existirão novos elementos a ser integrados.
Desta forma, conseguimos compreender que o processo de individuação possui três
aspectos: o primeiro se refere ao fato de ser um processo contínuo de desdobramento da
personalidade, o segundo diz respeito à finalidade deste processo que é a realização da
personalidade genuína e o terceiro se refere à busca da integridade, da totalidade
psíquica.

A partir dessa breve descrição é possível perceber o motivo pelo qual a segunda
metade da vida é tida como um período de dificuldades e, também, porque o ego a
teme. É um período em que começam a aparecer questões não respondidas,
inseguranças, dúvidas, desconfianças e frustrações com relação aos planos da
juventude. É marcado por profundos questionamentos existenciais, que parecem não
cessar enquanto não houver um comprometimento de revisão neste sentido. Segundo
Jung (1984), nesta fase é solicitado do indivíduo que assuma decisões mais seguras
frente a outras questões encontradas na juventude. O autor acredita que as dificuldades
encontradas nesta fase desenvolvimental podem dar uma sensação profunda de solidão,
por outro lado:

“Quanto mais nos aproximamos do meio da existência e mais


conseguimos firmar-nos em nossa atitude pessoal e em nossa posição
social, mas cresce a impressão de havermos descoberto o verdadeiro

151
curso da vida e os verdadeiros princípios e ideais do comportamento”
(Jung, 1984, p.344).

Quando o ego se dá conta do Self pode haver uma grande aproximação com
assuntos de ordem espiritual: “(...) A espiritualidade se torna, na meia-idade, a razão e
o modo como vivemos nossas vidas” (Brennan & Brewi apud Oliveira 2007, p.36).

Oliveira (2007) afirma que a metanóia, para a mulher:

“(...) deve ser encarada como uma fase de múltiplas mudanças; de


união de opostos, de criação de uma nova consciência de si mesma,
prenhe de alegrias, tristezas e medos. Porém, é também uma época de
muitas oportunidades, principalmente para ela aproximar-se de sua
criatividade” (p.37).

Além das dificuldades típicas desta fase, as mulheres não encontram espaço na
sociedade para expôr tais conflitos, no sentido em que existe uma evitação por falar
sobre o tema e uma hipervalorização da juventude, possibilitada pelo desenvolvimento
tecnológico que armou um verdadeiro combate contra o envelhecimento. Oliveira
(2007) reflete sobre a mulher na segunda metade da vida, afirmando que: “(...) A
relação entre ego/Self pode tornar-se mais intensa e os potenciais inconscientes
aflorar, permitindo surgir grandes oportunidades e/ou grandes entraves para seu
crescimento individual” (p.39).

Hollis (2004) afirma que a esta fase, é imprescindível que se enfrente os


complexos, temores e dependências sem o auxílio de terceiros, é o momento de assumir
toda a responsabilidade pelo próprio bem-estar físico, emocional e espiritual, e não
mais atribuir tal feito a outras pessoas.

Em capítulos anteriores vimos que o desenvolvimento da consciência possui


algumas etapas. Para que o processo de individuação possa ser levado adiante, é preciso
que passe por algumas etapas. Aquele ego imerso na unidade psíquica se diferenciou e
utilizou como principal instrumento para essa diferenciação a projeção. A partir de
então, as projeções são, pouco a pouco, retiradas até serem radicalmente extintas, o que
traz uma sensação de um “centro vazio”, expondo o ego ao risco de tornar-se inflado e

152
colocar-se na posição de Deus Opotente, que conforme vimos é a fase na qual a
sociedade pós-moderna se encontra. Estas etapas citadas pertencem à primeira metade
da vida e é quando conseguimos superá-las que entramos nas próximas fases, referentes
ao reconhecimento consciente da limitação do ego, clara percepção dos poderes do
inconsciente e possibilidade de integração desses conteúdos através da função
transcendente e do símbolo unificador, parte-se então para outra etapa, na qual ocorre o
reconhecimento da unidade psíquica e do mundo material, conscientemente (Stein,
2006). Logo, percebemos que para dar continuidade ao processo é fundamental assumir
a responsabilidade pelo próprio destino, desresponsabilizando os outros. No entanto,
vemos o quanto que isto ainda é difícil para a sociedade pós-moderna, que inflou-se de
valores utilitários e pragmáticos.

Oliveira (2007) afirma que na passagem da segunda metade da vida:

“(...) descidas profundas ao inconsciente podem fazer a mulher


reorganizar sua personalidade, iniciar um processo de revisão de
vida, utilizando sonhos, imagens, imaginação, de forma a levá-la a
desenvolver novas atitudes, caminhos pessoais, espirituais. E também
podem fazer com que ela venha a ter crises de depressão, experiências
de ansiedade e de desorganização” ( p. 40).

Sabemos que essas crises citadas pela autora podem ocorrer, pois conforme
vimos, o confronto com a sombra e com as próprias limitações não é uma tarefa fácil;
no entanto, é imprescindível para que o processo de individuação, individual e coletivo,
prossiga.

153
RESULTADOS.

Os encontros foram transcritos na íntegra; no entanto, devido à grande extensão,


optou-se por fazer uma síntese, levantando alguns pontos importantes de cada encontro.

1o encontro:
Foi realizado no dia 02 de Julho de 2007 no Instituto de Ortopedia e
Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (IOT/HC-FMUSP). A pesquisadora (P.) orientou as participantes de que se
tratava de uma pesquisa acadêmica a fim de responder a uma constatação do trabalho
realizado anteriormente que identificou a necessidade do desenvolvimento de um
trabalho voltado para o feminino e elevação da auto-estima de cada uma delas (Loduca,
2007). Foi apresentado o objetivo do trabalho e a pesquisadora disponibilizou-se para
esclarecer as dúvidas que pudessem surgir. Nesta ocasião já foi estabelecido um bom
vínculo entre P. e as participantes, sendo que as últimas demonstraram euforia com o
encontro e com a proposta do trabalho. Colocaram suas angústias com relação à dor,
validaram a proposta do trabalho afirmando que é fundamental que exista um trabalho
voltado para o feminino, pois sentem que se afastaram muito deste em função da dor.
Expuseram suas dificuldades e inibições em expressar a femilidade em uma sociedade
ainda muito machista (sic.).

Posso afirmar que o grupo, de fato iniciou-se naquele dia, através das discussões
ocorridas, do (re)estabelecimento de vínculo entre as participantes e também entre a P.
Foi combinado que o grupo teria início em Agosto e que a pesquisadora retornaria a
contactá-las para marcar o início efetivo.

2o encontro:
Ocorreu no dia 13 de Agosto no consultório da Prof.ª Dr.ª Adrianna Loduca.
Bianca chegou mais cedo do que as demais e, revoltada, contou o quanto se sentiu
humilhada na última consulta médica na qual não recebeu a atenção, tampouco a
orientação desejada. Além do sentimento de humilhação referiu se sentir muito solitária.
Após a chegada de todas, P. relembra os objetivos do trabalho, estabelece o contrato,

154
participantes lêem e assinam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. É
explicado o objetivo e a funcionabilidade do questionário de qualidade de vida
(WHOQOL), a ser aplicado em dois tempos: o primeiro naquele próprio dia e o segundo
no último dia.

Percebeu-se que a principal queixa trazida por elas foi a de se sentirem


globalmente humilhadas, tanto pelos médicos, quanto pela família e rede social
próxima.

Elisa apresenta discurso triste, por vezes, revoltado e com tom melancólico
bastante presente. Mostra-se muito preocupada com o futuro, angustiada por sentir que
as pessoas ao seu redor não dão crédito ao seu sofrimento; sua postura é esperançosa
frente ao processo grupal. Afirma: “(...) tô achando que pra ficar bem, tenho que
esperar mesmo, não adianta então... mas do resto, vou levando...” (sic.).

Graça também se queixa de um forte sentimento de solidão. Relata que os


amigos se afastaram principalmente depois que seu padrão financeiro caiu, segundo ela:
“As pessoas que estavam próximas de mim antes, agora se afastaram. E isso atrapalha
muito a gente né, por que ficamos com um círculo de amizade que é quase um nada né..
Porque a maioria está interessada no que você tem e não no que você é” (sic.). Refere
ter passado por problemas conjugais e que no momento presencia conflitos familiares,
humilhada e sozinha, queixa-se de não ser acolhida e compreendida: “(...) eles não
conseguem entender que estou doente, acham que estou exagerando... me sinto
humilhada, sozinha” (sic.).

Bianca relata ter tido alta médica do Grupo de Dor do Hospital das Clínicas e
que compreendeu o argumento da médica que lhe disse que daria alta, pois seu caso não
tem cura. Diz que embora tenha aprendido a conviver com a dor, ainda não é uma tarefa
simples e que em alguns momentos tem sua situação dolorosa agravada devido a
preocupações familiares que a deixam muito entristecida e, por consequência aumentam
a tensão, favorecendo o aumento da intensidade dolorosa. “(...) quando a dor ataca
muito eu fico.. fico assim insatisfeita.. eu fico.. no sentido que ai meu Deus como é que
eu vou conviver com isso pro resto da minha vida? Tem horas que você se conforma,

155
tem horas que não!” (sic.). Questiona-se sobre o sentido de sua vida e afirma precisar de
ajuda, pois não está aguentando seu sofrimento sozinha: “Eu cheguei num ponto que
falei assim: eu não sei o que fazer, não sei, é os problemas, é a dor que aumenta, que
inferno de vida que você vive! Por mais que você saia, que eu vou pra um lugar ou pra
outro, mas num sei... você volta e parece que a sua vida não dá sentido! Até tava
pensando esses dias, porque eu precisava ver se eu arranjo uma psicóloga pra começar
um tratamento, alguma coisa, porque sozinha não dá... num dá...” (sic.). Bianca
também se queixa de falta de apoio e reclama da exigência das pessoas de que ela tem
que ser forte e o quanto que isso também interfere no aumento da dor: “(...) todo mundo
quer que você seja forte! Você não é forte, poxa, chega uma hora que não dá, aí a dor
aumenta!” (sic.).

Todas trouxeram a questão de não se sentirem acolhidas e de esse fato afetar na


intensidade de suas dores. Graça afirma que com o afastamento das pessoas: “Aí você
acaba tendo... não amigos, você acaba tendo colegas de consultório, de fisioterapia... é
isso que eu tenho tido” (sic.).

P. questiona sobre o que elas acham que o grupo as ajudaria. Respondem que a
troca e o acolhimento seriam os principais auxiliadores. Ressaltam o espaço propiciado
pelo grupo, o qual as participantes possuem, em geral, as mesma questões o que as
permite obter um espaço dialogante e de extravasamento emocional, coisas que,
segundo elas, não ocorrem no espaço da vida cotidiana.

A parte prática do encontro constou de um alongamento da musculatura a ser


solicitada, introdução do movimento redondo de quadril (se trata da execução de
movimentos circulares com o quadril, sempre posicionando o quadril de maneira
encaixada e joelhos semi-flexionados, a fim de evitar lesões) e, por fim, relaxamento da
musculatura e conscientização corporal através da respiração. Apresentaram um pouco
de dificuldade na execução dos movimentos, mas demonstraram estarem se divertindo.

Foi solicitado que, para a próxima semana, levassem roupas confortáveis para a
execução da parte prática do trabalho.

156
Houve a predominância da lamentação e irritação. O grupo interagiu bastante
entre si.

3o encontro:
(20/08/07) Chegaram eufóricas e espontaneamente foram se trocando, colocando
roupas mais confortáveis, conforme havia sido combinado no último encontro. Estava
um clima bastante descontráido.

Bianca fala que, com relação à dor, está a mesma coisa mas que o astral
melhorou um pouco; relata que os finais de semana são difíceis, pois fica muito sozinha
então, para se distrair aumenta a carga de trabalho. No entanto, como é costureira,
assume uma postura fixa por muitas horas, o que aumenta a sua intensidade dolorosa.

Graça conta que bateu bastante argila no final de semana para fazer suas
esculturas, explicou que é necessário tirar o ar de dentro da argila, por isso é preciso
bater nela com um pau. Relata ter se sentido melhor depois disso, pois para ela é como
se estivesse “descontando tudo o que tenho que descontar em alguém na argila” (sic.),
sente-se como se ela própria também estivesse esvaziando, extravasando. Quando
questionada com relação às emoções, responde: “Meu ânimo melhora assim só quando
eu tô fazendo alguma coisa... se tá incompleto eu fico ansiosa... eu sou muito
perfeccionista, tudo que eu fazia tinha que ser muito certinho né.. A minha área é
cirúrgica né, aí tinha dias que eu tinha que operar e aí passava o dia inteiro operando.
Me levavam suco com canudinho pra eu tomar, porque senão eu não parava pra nada...
Mas que nem... agora eu continuo fazendo o que eu gosto, mas ao invés de esculpir no
ser humano eu passei a esculpir no que eu fazia também antes né, com arame e outros
materiais” (sic.).

Inicia-se uma discussão referente às dificuldades que encontram na vida e fazem


a relação entre a preocupação com os problemas e o aumento da intensidade dolorosa.

Elisa divide tanto a sua angústia de ficar sozinha como de iniciar um


relacionamento conjugal; afirma que não daria certo, pois a personalidade é muito
forte.

157
O foco da discussão passa a girar em torno de relacionamentos.

Graça fala dos conflitos com a sogra, que influenciaram sua união conjugal,
deixando-a mais sensível e, com isso, aumentando sua dor.

P. precisou interferir na discussão para propôr a atividade planejada: a


representação grupal da imagem corporal. Dá as instruções para a execução da imagem
de como percebem o corpo delas. A princípio, ficaram receosas e inibidas, perguntaram
se era para fazer uma representação do corpo com relação à dor. Foi respondido que era
para expressarem como percebem o corpo e que poderiam escolher a forma como
preferem fazer tal representação. Foram entregues duas cartolinas, revistas, canetas
coloridas, cola colorida, lã de diversas cores, régua, tesoura e cola. Depois de algum
tempo paradas, começaram a folhear as revistas mas, demoraram para iniciar as
colagens, apresentando bastante dificuldade em entender a proposta. P., percebendo a
dificuldade, preocupou-se em repetir as instruções algumas vezes. Aos poucos, foram se
soltando e iniciaram a atividade.

Mostraram-se muito preocupadas em fazer algo bonito e esta preocupação fez


com que demorassem para terminar a atividade. Depois de alertá-las, algumas vezes,
sobre a falta de tempo, encerraram a atividade e Graça perguntou se não retomaríamos a
atividade na outra semana, pois ainda não estava boa: “Assim... a gente não gosta de
colocar no papel e que a outra pessoa veja uma coisa que você acha que tá feia...”
(sic.).

Utilizaram as duas cartolinas, fazendo duas grandes imagens complementadas


por diversas imagens pequenas. Tais imagens retratavam principalmente o sentimento
de solidão e indicavam a intensa vinculação da imagem corporal com a dor.

P. solicita que dêem um nome para essas 2 imagens que produziram.

Bianca afirma: “Não deixa de ser os estágios da vida da gente né” (sic.)

158
Elisa: “É, viva a vida” (sic.).

Graça indica ‘os estágios da vida’: “Alí o vazio, de você estar gritando e
ninguém pode te ouvir. Alí arte que tá relacionada à tristeza...” (sic.).

Apontam a imagem em meditação e afirmam que esta pessoa parece tranqüila


(Graça), mas que também pode estar pedindo força para o poder superior (Bianca).
Graça continua o pensamento de Bianca, afirmando que pedir força para o poder
superior: “É buscar a força que está dentro da gente e da natureza” (sic.), Bianca
discorda: “Pra mim tá representando mais a concentração, pedindo forças pro poder
superior” (sic.) e Graça completa seu pensamento: “Pra mim tá pedindo força pra gente
mesmo, da natureza, do superior e das outras pessoas” (sic.).

P. questiona-as sobre os sentimentos que emergem quando olham para essas


imagens que produziram.

Graça: “É uma reunião de vários sentimentos...” (sic.)

Bianca: “Estágio da vida eu chamo. Proporciona todos os sentimentos! Triste,


alegre, depressão, deprimido...” (sic.).

Elisa: “É, também acho” (sic.).

Graça acrescenta com “Tranqüilo” (sic.).

Bianca: “Alegre, solitário, né, todas essas expressões” (sic.).

Elisa: “Ah, são vários. Cada momento é uma coisa, cada momento, cada dia é
uma surpresa que pega a gente... É uma caixinha de surpresas... Então tem horas que
eu quero aceitar essa caixinha de surpresas, tem hora que eu não aceito, mas o que eu
posso fazer? Vou tentando assim disfarçar, tem dias né, meu sentimento, mas tem
coisas piores né” (sic.).

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P. pergunta qual a relação que elas fazem entre as imagens produzidas e a forma
como percebem o próprio corpo.

Elisa: “A, de querer colocar tudo pra fora assim, de mudar sabe? Por dentro
mesmo mas a gente não consegue fazer essa transformação... é o que me deixa assim...”
(sic.).

Graça: “Pra mim o que complica não é a dor, mas o medo de sentir a dor!”
(sic.).

Discutem a preocupação antecipatória à dor. Novamente a queixa da solidão


aparece de forma intensa.

P. faz o fechamento e propõe a atividade corporal, que constou de aquecimento,


revisão do movimento redondo e implementação dos movimentos oito e batida lateral
de quadril (no primeiro, realiza-se com o quadril o contorno de um oito deitado;
símbolo do infinito ∞, enquanto que no segundo movimento deixa-se o quadril deslocar
de um lado para o outro acentuando as laterais com uma leve “batidinha”). Executaram
os movimentos de forma mais solta do que na semana anterior. Demonstraram
descontração, riram afirmando ser engraçado realizá-los. Foi realizado um relaxamento
das musculaturas socilitadas. Os movimentos foram executados de forma mais solta e
mostraram-se também menos inibidas.

4o encontro:
(27/08/07). Elisa faltou, avisou com duas horas de antecedência que não iria,
pois estava com problemas intestinais.

Graça chegou antes das outras participantes e questionou P. se não iriam


continuar a atividade da semana anterior: “porque ainda não ficou bom né... tá muito
simples... a gente deveria ter feito um rascunho porque aí quando passasse a limpo
ficaria melhor...” (sic.). Foi respondido que elas não continuariam a atividade e que o
interesse não era pela estética do trabalho, mas, sim, pela espontaneidade da execução.

160
P. havia decidido que, a partir desse encontro, colocaria a parte prática do
trabalho referente aos movimentos da Dança do Ventre, no início dos encontros, sempre
que possível.

Este encontro iniciou-se, portanto, com um aquecimento e com os movimentos


da dança, revisando a batida lateral, o oito e o redondo. Solicitou-se que as participantes
realizassem os movimentos alternadamente, primeiro com os olhos fechados, depois
abertos e que prestassem atenção nos sentimentos suscitados e na possibilidade da
ocorrência de imagens mentais. Também foram orientadas a perceberem o corpo, as
regiões mais solicitadas, a presença de sensações dolorosas ou prazerosas, bem como
alterações na temperatura corpórea ou nos batimentos cardíacos.

Graça não conseguiu fazer os movimentos com os olhos fechados, pois sentiu-se
desequilibrada. Bianca realizou os movimentos das duas formas. P. percebeu que ambas
estavam entregues à atividade e demonstrando satisfação ao realizar os movimentos.

P. questiona sobre como foi a experiência.

Graça: “Pra mim é bom! A gente desperta o nosso lado feminino” (sic.).

Bianca: “É, nos faz imaginar que não estamos mortas, né! Estamos vivas, o que
é isso?!” (sic.), risos.

Ambas não sentiram diferenças na temperatura corpórea ou nos batimentos


cardíacos. Afirmaram sensações prazerosas ao realizá-los e que nesses momentos
esqueciam-se da dor.

Graça afirma que ao realizar tais movimentos tem a sensação de estar sendo
balançada por uma onda. “Dá uma tranqüilidade, ao mesmo tempo em que são
movimentos sensuais! É muito gostoso, parece que estou me ninando... é como se
estivesse cuidando de mim...” (sic.), afirma também que “me sinto mais solta... depois
do acidente fiquei muito dura... é bom perceber que dá para soltar... não sei explicar
mas fico com a sensação de que estou saindo do eixo...” (sic.). Quando questionada por

161
P. sobre a sensação de sair do eixo, relata ser uma sensação muito boa. Afirma que foi
muito importante descobrir que ela é capaz de fazer esses movimentos, pois ficava
olhando as pessoas dançar e não se arriscava com vergonha de fazer errado.

Bianca refere ter gostado mais de realizar os movimentos com os olhos


fechados, pois conseguiu se entregar mais (sic.), disse que fica com a sensação de
suavidade, de uma sensualidade sublime e que descobrir isso nela mesma foi muito
agradável. “É muito bom fazer esses movimentos... puxa, não imaginava... é muito bom
quando desperta algo em você que você achava que estava meio adormecido né...
sempre me valorizei, mas é diferente... esses movimentos mostram uma coisa diferente,
delicada... têm me ajudado muito a me soltar... antes eu pensava xi.... isso aí não é pra
nós, e hoje não! Hoje penso que sim, poxa, todo mundo pode fazer! Independente de
idade, corpo... pode ser magra gorda, acho que não tem nada a ver né! (risos)” (sic.).

P. propõe uma discussão sobre questões relacionadas ao Feminino, explorando


qual a formação que fizeram sobre esse conceito. Pergunta, então o que é Feminino.

Graça: “Pra mim Feminino é beleza, sensualidade, delicadeza, é chamar a


atenção ainda” (sic.).

Bianca: “É mostrar que ainda dá né Graça? Pra mim é sensualidade, mas tem
que ser muito positiva, porque a gente vê coisas por aí que é sensual mas tá um pouco
fora do padrão... vulgar já... então tem que ser uma coisa assim bem delicada” (sic.).

P. pergunta se o Feminino é uma característica das mulheres ou se os homens


também possuem. Elas afirmam que ambos possuem mas que os homens ficam com
receio de assumir esse lado. Bianca foca mais na dificuldade dos homens de aceitarem e
expressarem seu lado feminino e serem tachados de gays, enquanto que Graça analisa
essa dificuldade, principalmente no que se refere à expressão de sentimentos dos
homens devido ao medo que eles têm de as mulheres descobrirem esse lado emotivo e
superá-lo, ela justifica isso com a competição maciça entre os sexos, segundo ela os
relacionamentos atuais não duram muito tempo porque as mulheres aceitaram o encargo

162
de serem as mais fortes no relacionamento, enquanto que os homens não conseguem
aturar tal situação.

Ambas afirmam que as mulheres estão se afastando muito de sua feminilidade e


deixando de se valorizar. A discussão passa a girar em torno da competição existente
entre homens e mulheres, segundo elas resultado da busca intensa da mulher por se
igualar aos homens. Bianca, com tom de lamentação, afirma: “Poxa, mas não se deve
perder a feminilidade da mulher né? Poxa” (sic.).

Outros tópicos foram levantados na discussão como:

1- O que uma mulher precisa nos tempos atuais e o que não precisa?

Bianca: “Eu penso que a mulher tinha que se valorizar um pouquinho mais,
valorizar o feminino, não é no primeiro encontro que você encontra uma pessoa e vai
para cama... sabe o mistério... a magia, já não existem mais...” (sic.).

Graça: “Precisa ter, primeiramente, inteligência, não é para qualquer pessoa


que ela se solta... ela tem que se informar... gostar dela mesma, ser mais forte, ter força
interior e tomar cuidado para não magoar as pessoas” (sic.).

Com relação ao que uma mulher não precisa, Graça comenta: “Primeiro, elas
não precisam serem iguais aos homens... elas não precisam ser machos, não adianta se
comparar ao homem. Se ela acha que tem que ser uma grande empresária, tem que ser
uma pessoa por exemplo, que não se abala com nada, fria e calculista, aí ela vai se
comparar a um homem” (sic.). Bianca diz que a mulher pode fazer as tarefas de um
homem, nunca deixando de ser feminina.

P. coloca, então as próximas questões:

2- Quais as qualidades que vocês consideram que uma mulher tem que ter?

163
Graça: “Precisa, acima de tudo, ser inteligente para poder se valorizar mais e se
aceitar melhor” (sic.). Bianca: “tem que ser mais sensual e menos vulgar...
sensualidade não é sinônimo de vulgaridade, poxa olha o que estamos fazendo aqui!
Isso em nenhum momento é vulgar, muito pelo contrário, é tranqüilo, delicado... isso
sim é que é feminino!” (sic.).

3- Partindo dessa discussão, como vocês se vêem como mulheres? Estão


satisfeitas? Caso não estejam, o que consideram que falta?

Expuseram um forte tom emocional e moralista, afirmando se sentirem


envergonhadas como mulheres, devido à grande desvalorização e promiscuidade dessa
geração; segundo Bianca: “(...) olha eu tenho dó, vou ser sincera com você, tenho dó
dessa geração de vocês, tenho dó! [fala para a P.] gente que dó que me dá, as moças
lindas, maravilhosas, com corpo escultural...” Graça: “Mas abrem a boca...” Bianca:
“É, abrem a boca... aí é uma tristeza... pra começar não chama o parceiro de fulano ou
siclano... é o meu! O meu! Sabe?O que é isso? Perdeu a classe... ficam se xingando...”
(sic.).

P. pergunta o que elas acham que poderia ser feito para diminuir esse sentimento
de vergonha.

Respondem que não sabem e que a única coisa que conseguem imaginar é
orientar os filhos sobre essa questão.

P. devolve a pergunta reforçando o que elas acham que elas próprias poderiam
fazer nesse sentido.

Destacam, então, a valorização do Feminino e o encontro com o Feminino


sensual e delicado, não vulgarizado. Graça fala que as mulheres deixaram de ser
femininas e dá um exemplo de algo que considera ser um sintoma social do afastamento
das mulheres da essência feminna quando afirma: “Porque vocês acham que hoje
muitos homens estão procurando travestis? Porque hoje eles estão muito mais

164
femininos do que as próprias mulheres! Acho que esse é um exemplo de um sintoma
desse afastamento da mulher da sua feminilidade” (sic.).

P. propõe, então que pensem em uma mulher que é um modelo para elas, que
pode ser famosa ou alguma amiga ou parente.

Graça rapidamente responde: “Lady Di... eu me identifico com ela, ela não era
simplesmente um rosto bonito... ela fez muito pelos outros, ela chamou a atenção não
por ser uma princesa, mas pela forma como tratava as pessoas... mesmo com o
problema que ela tinha dentro de casa, ela não deixava de fazer o bem pelos outros,
então foi uma pena ela ter morrido...” (sic.).

Graça destaca o acolhimento, a bondade e vontade de ajudar os outros como as


principais características da Princesa Diana. P. pergunta se essa é uma característica que
ela possui ou se gostaria de ter. Responde: “Eu sempre busquei isso... como médica
consegui expressar isso sim...” (sic.). Expressa o seu lado bondoso, íntegro e de
solidariedade para com as pessoas; relata que ajudar os outros: “É uma coisa que eu
sinto que tenho que fazer, porque a minha criação foi essa, tenho que me manter
íntegra primeiro para mim e depois para os outros. Eu não gosto que me tratem mal,
por exemplo, então eu prefiro não fazer com as pessoas aquilo que eu não gostaria que
fizessem comigo. Foi muito duro o que aconteceu comigo... então não quero que uma
pessoa passe pela mesma coisa” (sic.). Se emociona bastante nesse momento. P. e
Bianca procuram acolher e validar o sofrimento de Graça.

Muito emocionada, Graça conta o quanto essa situação interfere em toda a sua
rede social e familiar e que sua filha está sofrendo muito com a queda do padrão
financeiro da família.

P. retoma a colocação sobre a Lady Di expondo que, talvez, no momento ela se


identifique mais com as pessoas que eram cuidadas pela Princesa do que com a própria.
Graça concorda e afirma que é muito difícil aceitar que precisa ser cuidada. Bianca
coloca que: “O problema é esperar que alguém um dia vá cuidar de você! Me dá uma
insegurança... o meu é o mesmo caso dela... se um dia me acontecer uma coisa de eu ir

165
lá embaixo... não sei o que vai acontecer comigo, sinceramente não vai ter alguém para
cuidar de mim, na família não vou ter! Talvez não porque não queira... porque não
pode mesmo...” (sic.).

P. comenta, então, sobre a importância de cada uma cuidar de sí próprias. Elas


concordam.

Bianca comenta ter pensado na Madre Teresa de Calcutá: “Coitada de mim, não
chego nem aos pés dela, mas às vezes eu me identifico um pouco em relação a cuidar
dos outros... eu me pergunto: será que um dia... às vezes eu fico revoltada, nervosa e
falo: caramba, a minha vida inteira foi cuidar de todo mundo, desde os 12 anos de
idade tive que trabalhar e cuidar de todo mundo! Será que um dia alguém vai cuidar de
mim se eu precisar?! Eu me pergunto, então... às vezes eu falo: Pô, tá parecendo a
Madre Teresa de Calcutá! Só cuida dos outros, só os outros... às vezes eu me ponho
assim... imagina eu nem chego as pés, nem as pés da Madre... mas é uma identificação
muito superficial, mas eu falo... pô... eu sei que ela nunca se perguntou sobre isso... ela
fazia por amor, com amor mesmo, mas às vezes eu me pergunto se será que se eu cair
um dia na cama, alguém vai cuidar de mim? Não sei pra onde ir se isso acontecer...
não sei...” (sic.).

P. acolhe as falas das participantes.

Para encerrar o encontro, P. solicita que falem uma palavra que ficou sobre
aquele encontro. Bianca fala esperança e Graça, coragem.

5o encontro:
(03/09/07). Havia sido programado que a partir do quarto encontro os
movimentos da dança seriam realizados no início; entretanto, diante à demanda por falar
e trocar experiências e sentimentos, P. deixou a atividade para o final, procurou acolher
as demandas trazidas, para tanto, também foi necessário suspender uma atividade
planejada, relativa a questões de gênero. A atividade que havia sido planejada e que
seria discutida era a seguinte: “Imagine que você trocou de sexo: quais as diferenças
que você sente? Como você se sente nesse novo corpo? Quais as diferenças na sua

166
vida? O que você fará de diferente agora que seu sexo mudou? Como você se sente em
relação a essas modificações? Continue a explorar sua experiência de pertencer ao
sexo oposto por mais um tempo... Agora volte e entre em contato com seu corpo e com
seu sexo verdadeiro. Compare a experiência de ser você e de pertencer a outro sexo. O
que você experienciou enquanto estava no outro sexo que não experiencia agora?
Foram agradáveis ou não? O que experiencia agora que não sentiu quando era do
outro sexo? Continue a explorar a sua experiência mais um pouco...”

Bianca relatou estar com muita dor naquele dia e que a tempos sua dor vem
aumentando, o que a deixou preocupada. Faz a associação do aumento da dor com o
aumento da carga de trabalho, porém afirma que se ficar sem trabalhar morre (sic.),
admite que o trabalho tem uma função muito importante no sentido em que: “Eu me
enterro muito no trabalho, uma porque eu tenho que trabalhar, outra porque eu gosto
muito, mas eu sei que por um lado é uma fuga. Apesar de me aliviar muito, sei que uso
do meu trabalho como uma fuga para os meus problemas. Eu percebo... às vezes eu
páro e me analiso... de final de semana que eu fico sozinha eu fico o dia inteiro em cima
de trabalho para extravasar! Então eu fico pensando: será que isso é bom também?”
(sic.). Conta que embora não tenha feito uma faculdade tem o dom para costurar,
diferente de pessoas formadas que vão fazer curso com ela e não conseguem modelar
“Elas conseguiram se formar, mas não conseguem modelar! Cada um tem o seu... eu
nasci para isso” (sic.).

P. ressalta que, ao mesmo tempo, em que o trabalho de Bianca a conforta,


também aumenta a dor, sobrecarregando-a. Demonstra que seria interessante que
pensasse em uma opção de ‘válvula de escape’ que não a sobrecarreguasse tanto. Bianca
conta que algumas vezes vai caminhar para esquecer dos problemas, que alivia mas, que
muitas vezes, não sente vontade de sair.

Graça pergunta aonde Bianca costuma caminhar, pois se fosse em Santos


poderiam caminhar juntas. Graça se queixa de falta de companhia para caminhar,
relembra saudosamente os tempos em que corria no Ibirapuera e que fizera uma turma
de amigos, e conta que a única opção que encontra agora, para não se sentir muito
sozinha ao caminhar, é comprar um MP3 player. Conta que está fazendo uma escultura

167
de arame, à qual dedicou todo o final de semana. Chamou de Êxtase e se trata de um
casal fazendo sexo; seus corpos formam um só: de um lado é a perna de um e a do outro
fica do lado oposto, com os braços também ocorre a mesma integração. Afirma que
depois do acidente incorporou outros materiais na sua arte, como o arame.

Quando questionada sobre como passou a semana, Graça afirma: “Passei bem,
fiquei fazendo essa escultura então, me distraí bastante... com relação à dor... ela tá aí
né, sempre, só que aí nessas horas a gente a deixa para lá...” (sic.).

P. pergunta como Elisa passou a semana, responde: “Eu passei sem sentido”
(sic.), P. pede para explicar mais e ela conta que limpou a casa devido a uma visita da
irmã e que está muito preocupada com um exame que tem que fazer
(eletroneuromiografia), pois teme sentir muita dor, diz: “Ai, enquanto eu não fizer,
enquanto isso não passar, acho que não vou ficar tranqüila” (sic.). Tem medo de ter
que fazer outra cirurgia. Fala que se angustia ao parar e pensar que não fez nada do que
gostaria de ter feito neste ano, P. pergunta o que gostaria de ter feito e ela responde:
“Queria ter viajado mais, ter mais ânimo, sabe assim... nunca viajei sozinha... mas aí
tem aquela coisa... sai mais caro... mas aí eu poderia ir de excursão... tem outras
pessoas, eu faço amizade fácil, mais aí eu penso... ai, pra quê? Só pra ir, ler jornal e
voltar para casa? Eu tô fugindo de uma colega... aí porque depois eu me meto em rolo
e aí não dá! Não quis sair, quis ficar na minha casa e só. Sabe... tem horas que eu
aceito, tem horas que não aceito, agora o meu braço direito tá começando a doer, ai
penso, ai... mas eu não deixo de fazer as minhas coisas. Tenho que dar um jeito, porque
tem horas que não dá e eu não quero deixar de fazer, sabe, que nem limpar a casa... se
o pessoal vai na minha casa e ela tá suja eles não vão entender que é porque eu tô com
dor, vão achar que eu sou uma preguiçosa... aí não dá né! Tenho que pelo menos tentar
botar as coisas em ordem. Vamos ver se semana que vem eu marco outras atividades
para fazer... porque as pessoas me cobram muito...” (sic.). Queixa-se também da falta
de motivação.

Graça comenta que é preciso um “empurrãozinho”, mas que na maioria das


vezes são elas próprias que têm que se dar esse incentivo. Conta que nos momentos em
que se sente muito sozinha procura se distrair com a arte e esquecer por um momento

168
dos problemas. Quando questionada se consegue tal distração responde: “Tem que
esquecer né, de que adianta revirar o passado? Ele não vai voltar. Não dá para
comprar uma coisa nossa entendeu... perdeu, perdeu!” (sic.). Fala das dificuldades que
estão passando e que hoje quem está sofrendo mais é a filha, pois não pode ter as coisas
que quer e também por ter que se afastar dos primos, devido a conflitos familiares: “(...)
no começo foi muito duro pra nós, mas a gente acabou se adaptando, agora é ela quem
ta sofrendo, porque quando é menor se contenta, mas quando é adolescente... quer
confrontar, é difícil!” (sic.).

P. valida e acolhe o sofrimento de Graça.

Com relação à parte prática, P. a dividiu em dois momentos, no primeiro


solicitou que as participantes permaneçam sentadas. Deu as instruções, afirmando que o
exercício seria dividido em duas fases: na primeira, elas ficariam com os olhos
fechados, escutando a música, deixando a mente livre para a ocorrência de imagens e
prestando atenção nos sentimentos e sensações suscitados. Após essa primeira fase as
vivências foram discutidas.

Bianca inicia a discussão afirmando que sua experiência foi ótima. Graça
comenta ter visto a imagem de dançarinas e Bianca fala que viu a imagem da cultura, de
forma geral.

Graça conta ter visto duas dançarinas: uma de Dança do Ventre, outra de Dança
Indiana. Afirma já ter visto apresentações desses dois estilos e considera-os similares.
Diz que na imagem uma complementava os movimentos da dança da outra, conclui ter
sido muito belo. P. indaga-a sobre como foi ver essas imagens e ela responde que o que
lhe ocorreu foi a beleza, tanto da forma dos movimentos quanto do ritmo.

Já Bianca, relata ter ‘viajado’ para o Oriente durante a vivência: “Eu vi muita
coisa... eu vivenciei lá! Foi muito bom... foi uma viagem sabe... fui para o deserto, vi
camelos, sabe aquela feira muito louca deles? Consegui ver muitas coisas e vivenciar a
situação. A dança também consegui vivenciar, foi uma delícia! Muito bom, nossa, uma
tranqüilidade muito gostosa... vivenciei tudo isso com uma tranqüilidade muito boa!”

169
(sic.). Comenta ter sido maravilhoso, ainda mais por adorar viajar. Participantes
afirmam ser um lugar que gostariam de conhecer.

P. aponta para um elemento interessante que Bianca possui, que é através da


imaginação ir para outros lugares. Comenta que esta pode ser uma boa ferramenta para
aqueles momentos em que deseja sair de casa, espairecer mas, que nem sempre encontra
ânimo para isso, desta forma, pode ser uma boa ferramenta. Bianca concorda.

Elisa conta que viu uma claridade e sentiu-se tranqüila, relata ter visto: “(...) uma
montanha que eu ficava me olhando... parada no tempo... (ri)... como uma reflexão”
(sic.) P. pergunta sobre essa reflexão, “Parecia uma coisa assim muito vaga, sabe? Não
sei... tranqüilidade mesmo... parecia que eu precisava ficar naquele lugar, quietinha,
pensando... e foi isso que consegui. Tava precisando encontrar esse cantinho” (sic.).
Interessante esta fala de Elisa, pois nos últimos encontros ela queixa-se de não
conseguir encontrar uma paz, isto parece apontar para um caminho nesta direção.

P. inicia a segunda parte da atividade, solicitando que se levantem. Realiza o


aquecimento da musculatura. Solicita que realizem os movimentos da dança com a
mesma música da primeira parte da atividade. Foi orientado para fazerem-nos da forma
como preferissem: com os olhos abertos ou fechados. Também foi instruído que
deixassem a imaginação solta, atendo-se às possíveis reações físicas e emocionais
suscitadas. Revisa os movimentos anteriormente passados e introduz um movimento de
rotação de tronco. Discussão.

Elisa comenta que fazer os movimentos foi similar a apenas ouvir a música, no
sentido em que a sensação mais evocada foi a de tranqüilidade. Graça concorda e afirma
que fazer esses movimentos: “Acalma a gente” (sic.). Bianca relata: “Pra mim... como
eu tava com os olhos fechados... eu consegui... é como se eu estivesse mesmo dançando,
eu não ví ninguém, como se estivesse no local... engraçado, era um lugar escuro! Era
um lugar meio avermelhado, laranja, não sei se é por causa do reflexo do sofá (risos).
Era um lugar bem escuro...” (sic.). P. indica a fala de Bianca, a qual disse que parecia
que estava dançando; P., portanto, retruca que não apenas parecia, mas que ela estava
dançando! Bianca ri bastante e comenta que estava sozinha, como se estivesse dançando

170
para ela própria, fala que o sentimento que lhe veio foi muito bom. Graça destaca que o
ambiente comentado parece um cenário da “Arábia” (sic.), da novela O Clone, na qual
existia uma cena do pôr-do-sol no deserto. Bianca comenta: “Olha só que gozado... é
verdade... era meio preto, vermelho e alaranjado... era meio quente também... me vi até
de roupa... o que você tá pensando! (risos). Mas era assim eu tava com uma roupa
como se fosse uma cigana... uma cigana, olha que gozado!” (sic.). Graça retruca:
“Olha... quem sabe você não precisa investir mais nessa dança pra encontrar essa
cigana?”, Bianca responde: “É né, quem sabe...” (sic.).

Graça fala que não viu nenhuma imagem, pois não fechou os olhos devido ao
desequilíbrio mas, conta ter sentido muita paz e tranqüilidade.

Graça: “Parece que a gente consegue fazer com que o corpo se separe... é essa a
impressão que dá” (sic.). Interessante essa fala, pois a separação do corpo é um dos
princípios da Dança do Ventre, que busca movimentar uma parte do corpo por vez:
quando movimenta-se o quadril, o tronco não é movimentado, e vice-versa. Entretanto,
isso não foi passado (verbalmente) para elas.

Para Graça, fazer os movimentos desta dança: “É muito prazeroso, tem alguns
movimentos que são mais difíceis, mas nenhum me dá dor, dá uma sensação muito boa
na verdade, dá pra fazer em casa até... eu tenho o CD do Clone, fico colocando e
fazendo em casa... tem sido muito bom para mim” (sic.). Elisa e Bianca também
comentam que treinam os movimentos em casa.

Elisa diz sentir dificuldades com os movimentos: “Eu costumo fazer Tai Chi,
mas eu tenho dificuldade assim de mexer a cintura... meu corpo é terrível mesmo... sou
muito dura...” (sic.). P. interfere e fala que não percebe essa dificuldade de Elisa, apesar
desta frisar bastante que se considera dura, as outras participantes concordam com a
colocação de P. e Elisa então, diz: “É mas acho que devo ter melhorado mesmo... depois
que eu consegui fazer semana passada fui fazer em casa na frente do espelho... e
pensei... nossa que coisa impressionante!” (sic.). Comenta ter ficado surpresa por
conseguir fazer esses movimentos que considera belos. Acrescenta, então: “Nossa... que
nem hoje eu fechei um pouco os olhos e vi uma mulher maravilhosa dançando assim

171
rápido e, eu, queria acompanhar... mas não conseguia (risos)” (sic.). Todas riem e
Bianca fala: “O beleza! A Elisa vai sair bailarina daqui!” (sic.).

Elisa comenta que a mulher que viu era muito bonita e que: “Ela jogava assim o
corpo e eu pensei... ai meu corpo é tão duro, será que eu consigo fazer isso,será que
consigo acompanhar ela? Mas não consegui acompanhar...” (sic.). P. fala que sim, que
Elisa, de alguma forma, estava conseguindo acompanhar esta moça, caso contrário ela
não teria aparecido desta forma, indicando, portanto, um potencial dela com o qual já
está entrando em contato. Concordam.

P. amarra as informações e encerra o encontro.

6o encontro:
(10/09/07). Chegaram bastante eufóricas, trocando a roupa e tirando os sapatos
com agilidade. Iniciou-se, portanto, com os movimentos da dança, retomando todos os
anteriores. As instruções para a atividade também incluíam o exercício de
conscientização sobre as reações suscitadas pela prática.

P. pergunta para as participantes sobre a idéia que tinham da Dança do Ventre.

Bianca: “Eu não tinha nenhuma idéia assim formada... achava bonito mas
nunca fui atrás para fazer... pensava que não era pra mim... afinal já passo dos 50
anos, tenho dor... mas percebi que não é bem assim. Eu não tinha visto nenhuma
apresentação assim pessoalmente, só pela televisão e eu achava muito bonito mas
pensava que seria muito difícil fazer tudo aquilo, ainda mais porque tenho dor né!”
(sic.).

Graça: “Eu fiz um tempo né, mas foi bem diferente do que você tá passando
aqui... lá era só dança e aqui você passa o que está por trás da dança, mesmo sem falar
pra a gente... o que é engraçado, mas a informação chega da mesma forma... mais pela
nossa vivência né... e também aqui a gente vê como que ela pode nos ajudar. Eu não sei
explicar mas acho que existe uma magia muito grande por detrás dessa dança... não sei
bem o que que é. Mas lá aonde eu faço Yoga tem Dança do Ventre também, né, e como

172
é um espaço aberto, a professora sempre puxa uma lona pra elas não ficarem tão
expostas, mas não adianta muito porque a lona é transparente (risos), mas é
impressionante: é começar a tocar a música que já junta um monte de gente em volta...
e não é só homem não, as mulheres também ficam de olho, acho que elas ainda não
encontraram coragem de ir lá dançar, mas ao mesmo tempo não perdem uma só aula...
ficam sempre lá assistindo... e engraçado porque tem tudo quanto é tipo de mulheres
fazendo essa aula, tem gorda, magra, feia, bonita, bem nova, mais madura e quando
elas estão dançando você nem percebe sabe, que fulana é mais gordinha ou que siclana
é feia... parece que elas se transformam. No começo elas ficavam morrendo de
vergonha, ficavam constrangidas, mesmo, de dançarem com todas aquelas pessoas
olhando, mas hoje... ah hoje elas não têm mais vergonha, não estão nem aí se tem
platéia! Mas vou te falar uma coisa... é impressionante... quando a música começa e
elas chacoalham aquelas moedinhas, tudo pára! É muito bonito” (sic.). Acrescenta que
só de olhar a aula dessas mulheres se sente realizada: “(...) só de olhar parece que eu
estou dançando...” (sic.). Comenta que há tempos tem vontade de voltar para a Dança
do Ventre, mas que não procurou por causa da dor e que quando foi comentado no
primeiro encontro que utilizaríamos esta dança como instrumento, ficou maravilhada,
pois: “Eu tinha certeza que eu ía gostar muito, porque você teve o tempo inteiro a
preocupação de fazer uma coisa que a gente pudesse acompanhar... você levou em
consideração a nossa dor, o que não acontece lá fora né e eu imaginava que seria bem
assim mesmo...” (sic.).

Elisa diz que nunca havia pensado em fazer tal dança, pois: “(...) sempre me
achei muito dura, desajeitada... nunca me achei muito feminina, daí achava que seria
muito estranho fazer essa dança. Mas eu sempre achei bonito... foi uma surpresa muito
boa ver que eu consigo fazer e que eu sou feminina sim!” (sic.). Bianca complementa
afirmando: “É verdade... foi uma conquista que a gente não esperava!” (sic.), ela
também afirma que essa experiência parece transportá-la para outro lugar: “(...) poxa,
semana passada eu fui para as Arábias! (risos) que poder é esse que ela tem ein?!
Sabe, de mostrar pra gente que mulher incrível nós temos dentro de nós e que a gente
nem sabia direito” (sic.). Relata que falou para as amigas o quanto essa dança a ajudou
e orientou-as a procurar algum lugar aonde pudessem fazer aulas: “Eu tô falando pra
todo mundo ir atrás dessa dança... nossa se ela foi tão maravilhosa pra gente duvido

173
que não seja para as outras também... poxa sabe, tudo aquilo que conversamos de a
mulher se valorizar... nossa tá aí uma boa opção! Tem coisa mais bonita do que esses
movimentos, do que isso que estamos fazendo?” (sic.).

Elisa segue o raciocínio de Bianca: “Me parece assim que não é só mexer o
corpo... sei lá... parece que é uma coisa muito séria, não é só dança, entende? Parece
assim alguma coisa meio que a mais... não sei explicar porque não conheço direito...
falo assim pela minha experiência aqui... eu nunca tive uma relação assim tão forte
com qualquer outro tipo de dança...” (sic.).

Bianca: “Exatamente! Nossa é isso mesmo... parece que tem algo a mais...”
(sic.).

Graça: “Também acho... parece algo meio religioso assim... não sei se essa é a
melhor palavra pra explicar, mas também sinto algo muito forte, parece que há algo
por detrás dessa dança, além dos movimentos” (sic.).

P. aponta o quanto é interessante elas falarem sobre isso, relembra que, no


início, advertiu-as de que não falaria muito sobre a dança a fim de que explorassem por
si sós e encontrassem um significado para tal atividade. Afirma que é muito interessante
elas terem chegado sozinhas a essa conclusão e que, o que acabaram de falar era,
justamente, o que a P. falaria para elas em determinado momento. Discute, então, a
origem da dança e seu potencial arquetípico (vide capítulo 6).

P. pergunta se elas acham que existe relação desses movimentos com o


Feminino anteriormente discutido.

Bianca: “Nossa, totalmente!”, Graça concorda e ressalta que: “Os desenhos dos
movimentos se parecem muito com as curvas do corpo da mulher... são delicados, tudo
a ver!” (sic.). Elisa concorda e conclui que por ser uma dança delicada e sensual só pode
ser praticada por mulheres. Bianca e Graça comentam que deve ser muito feio homens
dançando a Dança do Ventre. P. explica sobre a dança árabe masculina (Dabcke).

174
P. solicita que destaquem em que sentido elas acham que a prática desses
movimentos as beneficiaram.

Bianca: “Olha... essa dança me fez ver que eu ainda sou capaz de seduzir, tanto
os outros quanto eu mesma, me fez sentir mais valorizada e acho que consegui colocar
isso pra fora... as pessoas têm notado diferença... por isso que falo que acho que todas
as mulheres têm que fazer... nossa é muito importante, ainda mais hoje em dia que as
mulheres perderam muito a feminilidade...” (sic.).

Graça: “Concordo com tudo isso que ela falou e acho que pra mim também teve
uma função de levantar a minha auto-estima, nossa tô me sentindo muito mais mulher!
Mais harmônica, sem contar o bem que me fez ver que eu sou capaz sim de fazer esses
movimentos... diferente de antes que eu achava que não dava pra fazer mais nada...
Fiquei com medo de doer, mas eu nem lembro da dor quando estou fazendo esses
movimentos... a sensação é tão boa que dá para esquecer da dor” (sic.).

Elisa: “Pra mim também sabe... mas acho que o que mais ficou para mim foi ter
conseguido fazer... eu sempre me achei dura, foi muito legal ver que eu consigo fazer e
que eu me sinto muito bem fazendo! Não gostaria de parar, nossa me ajudou muito...
até a me soltar mais... tô saindo mais, fui até dançar nesse final de semana... parece
que eu encontrei a paz que tava procurando... e isso me deixou muito mais leve e feliz!”
(sic.).

P. amarra a discussão e parte para a segunda parte do encontro. Esclarece que


será realizada uma viagem de fantasia. Desta forma, introduz um relaxamento como
preparação para a atividade. O relaxamento teve as seguintes instruções:

P. “Feche os olhos, procure ir se desligando dos barulhos de fora da sala, dos


pensamentos externos, aos poucos vá se desligando dos barulhos de dentro da sala...
procurando prestar atenção nos sons do seu corpo. Como está seu corpo? Preste
atenção na sua respiração, procure deixá-la mais lenta, respire fundo inspirando o
máximo que puder, retenha um pouco o ar e solte tudo de modo a esvaziar bem o
pulmão. Repita mais duas vezes. Agora respire normalmente, percebendo o caminho

175
que o ar percorre desde suas narinas até chegar ao pulmão e então, perceba o caminho
da volta do ar. Procure perceber como estão seus batimentos cardíacos, como está o
seu corpo como um todo... procure ficar relaxada para iniciaremos nossa viagem”
(sic.).

“Imagine-se caminhando numa floresta. Preste atenção à sua volta, como é esta
floresta? As árvores são grandes, pequenas, como estão distribuídas? A mata é aberta
ou fechada a ponto de você ter que abrir o caminho? Perceba a temperatura do
ambiente, a paisagem... têm animais a sua volta, de que tipo? Há frutas ou flores?
Perceba se você está sozinha ou acompanhada... Sinta o cheiro dessa floresta.... Mais
adiante você observa uma trilha... percorra-a.. Você encontra dificuldades no caminho
ou não? Continue seguindo a trilha... você percebe que ela sobe uma montanha, suba-
a. Você vai subindo a montanha com facilidade, sem qualquer dificuldade física.
Continue subindo e explore as sensações que lhe ocorrem. Adiante você se depara com
uma pedra, pare e sente um pouco para descansar. Depois de descansar um pouco,
levante-se e continue subindo... Ao chegar no topo da montanha você se depara com
uma gruta e interessa-se por entrar; entretanto, percebe que existe um vale muito
grande que separa a montanha aonde você se encontra da gruta. Você, então,
transforma-se em um pássaro e voa em direção à gruta. Explore a sensação de voar...
como é ser um pássaro? Como você é, de que tamanho, cor, como são suas asas?
Explore mais um pouco essa sensação. Ao chegar na gruta, torne-se você mesma e
entre nela. Como ela é? Qual a temperatura do ambiente? É seca ou úmida? Dá para
ficar em pé ou é preciso ficar abaixada? Explore um pouco a gruta... mais adiante você
vê um foco de luz e decide por seguí-la.... você se depara com uma porta... ela está
aberta ou fechada, trancada ou encostada? Ultrapasse a porta... você se depara com
um salão muito grande... como é esse salão, o que existe nele, há outras pessoas alí?
Observe um pouco o ambiente... de repente você se depara com um objeto que lhe
chama muito a atenção, como ele é, lhe é familiar? Explore esse objeto em todos os
ângulos, perceba sua cor, textura, tamanho, peso, sinta seu cheiro... você sabe qual é a
utilidade desse objeto? Leve-o consigo, dê mais uma olhada para o salão e se despeça
dele. Ao sair do salão uma pessoa a aborda, preste atenção nesta pessoa e procure
perceber como ela é, identifique seu sexo, idade e se lhe é familiar. Tal pessoa diz que
você tem permissão para levar o objeto; no entanto, deve deixar algo em troca que não

176
pode ser dinheiro... o que você deixa? Pense um pouco... Entregue seu objeto, despeça-
se dessa pessoa, saia do salão e volte para a gruta. Perceba como é o caminho da
volta... você volta pelo mesmo que foi ou existem caminhos diferentes? Vá, aos poucos,
saindo da gruta... ao sair, olhe para trás e despeça-se dessa experiência... respire fundo
e volte a tornar-se um pássaro. Voe em direção à montanha de onde saiu. Como é o
caminho de volta, como você se sente? O pássaro da volta é o mesmo pássaro da ida?
Se for diferente, preste atenção nas diferenças... Aonde você aloja o objeto adquirido?
Explore mais um pouco a sensação de voar... Você chega na montanha e pousa. Agora
torne-se você mesma e desça a montanha. Você se utiliza da mesma trilha pela qual
subiu? Como é a sensação de descer a montanha? Dê mais uma volta pela floresta,
explore-a bem... existe alguma coisa que você não notou antes? Aos poucos você vai se
despedindo da floresta e voltando para a sala. Como é este retorno, que sentimentos lhe
ocorrem? (Esta viagem de fantasia foi inspirada em algumas opções do livro Tornar-se
Presente, 1988).

Chegando na sala perceba sua respiração, os batimentos do seu coração, as


sensações que lhe ocorrem, escute os sons do seu corpo, agora perceba os barulhos da
sala, os barulhos de fora da sala... devagar vá mexendo os dedos das mãos... os dedos
dos pés. Faça o movimento que o seu corpo quiser e quando se sentir preparada abra
os olhos”.

Discussão dos elementos da fantasia:

Graça conta que sua floresta era bem grande, com bastante flores e animais e as
árvores eram bem altas. Relata que sentiu dificuldade em subir a trilha, pois não tinha
levado corda (sic.). Fala que sentia-se cansada e com dores mas que não queria desistir
de subir. Afirma que descansar na pedra foi fundamental para obter força para continuar
a subida. Chegando no topo da montanha relata ter tido bastante vontade de ir para a
gruta e que transformou-se num falcão branco e preto. Ao chegar na gruta, esta era
quente e úmida. Conta que gostou de andar por ela, que se sentiu muito bem, seguiu o
rastro de luz que deu numa porta semi-aberta. Refere não se lembrar da parte do salão,
do objeto, tampouco da pessoa. Fala que só se lembra do caminho para sair da gruta,
que tinha uma bifurcação que não havia notado anteriormente, após um breve momento

177
de dúvida relata ter decidido prosseguir pelo caminho da esquerda, que lhe pareceu
certo, pois a conduziu para a saída (sic.). Saiu da gruta e se transformou novamente no
falcão, mas agora este era todo branco. Relata que a sensação de voar foi a melhor
sensação durante toda a viagem de fantasia e que a sua vontade era de voar mais. Fala
que ao voltar quis voar mais um pouco, mas que por isso teve que descer muito rápido,
refere ter achado estranha essa descida, pois foi muito abrupta. Fala que não deu tempo
de dar uma última volta na floresta, pois já tinha que voltar para sala. Afirma que por
ela, continuaria mais tempo voando.

Bianca afirma que sua floresta tinha um mato rasteiro, com poucas árvores, não
tinha animais, tampouco estava acompanhada. Não lhe pareceu difícil subir a trilha, mas
era muito longa. Ao chegar no alto da montanha, ficou admirada com a paisagem e não
pensou duas vezes sobre a idéia de atravesar o vale para chegar à gruta. Ao se
transformar no pássaro, tornou-se um urubú, grande, preto e feio (sic.). Com relação à
sensação de voar, afirma ter sido muito prazerosa e tranqüila, que lhe deu um
sentimento de liberdade muito grande. Ao chegar à gruta e tornar-se ela própria, afirma
não ter gostado da experiência, pois a gruta era: “muito apertada, eu tinha que ficar
agachada, aí não conseguia nem me mexer direito... tava quente e bem úmido, aí foi me
dando uma sensação muito ruim... eu não gosto desses lugares muito apertados... me dá
tipo uma claustrofobia, sabe?” (sic.). Relata ter percorrido um pouco a gruta, mais pela
orientação da P. do que por vontade própria. Ao observar a luz, afirma que a seguiu e
encontrou uma porta antes da orientação da P., disse que a porta estava fechada e que
não conseguiu abri-la. Quando foi dada a instrução para entrar no salão, disse que a
partir desse momento não viu mais nada, que por vezes se esforçou mas, foi em vão.
Quando solicitado que saíssem da gruta, relatou ter sentido um alívio muito grande, mas
que foi extremamente difícil sair de lá: “ai, sei lá... era muito apertado, eu não
conseguia sair direito... tinha que ir bem devagarzinho... olha foi difícil viu (risos), foi
um parto sair dalí, viu (risos)” (sic.). Fala que na volta, o pássaro era outro: uma
andorinha branca, menor e bem mais leve do que o urubú. Conta que voar foi mais fácil,
pois se sentia mais leve. Também afirmou que a experiência foi muito boa e que se
sentiu melhor no vôo da volta do que no da ida. Descer da montanha foi fácil e a
floresta estava aparentemente igual.

178
Elisa relata que a sua floresta possuía uma mata muito fechada e que era preciso
abrir caminho com uma foice. Fala que não viu ninguém na floresta, nem flores, mas
que tinham alguns animais. Disse que foi muito difícil subir a montanha e que antes que
a P. falasse, ela já estava sentada na pedra tomando água de sua garrafinha. Fala que
continuou a subir e que transformar-se num pássaro foi uma sensação muito boa. Diz
não conhecer o nome do pássaro mas fala que era todo branco [a participante é negra]
com as pernas longas e finas e o bico amarelo; fala que já viu esse pássaro mas que não
sabe o nome. Conta que não gostou de entrar na gruta, que estava sufocada porque
estava muito quente e molhada. Fala que logo quando entrou tinha uma pedra e por lá
ficou durante o processo. Afirma não ter explorado a gruta mas que viu a porta, mesmo
assim, e, quando solicitado que passassem pela porta, conta que tentou mas que não
conseguiu. No entanto, afirma que encontrou um objeto do lado de fora da porta, era
uma planta: “Ai parecia um bambuzinho assim, tudo espetadinho, era a coisa mais
linda que eu já vi!” (sic.). Conta ter tido muita vontade de levar a planta mas, quando
soube que deveria deixar algo em troca preferiu não levar. No caminho da volta, era o
mesmo pássaro, relata uma sensação de alívio e de leveza que faziam-na não ter vontade
de voltar: “não queria voltar para os problemas de sempre, queria ter continuado
voando” (sic.). Mas desceu, seguindo a instrução. Fala que as coisas estavam iguais e
que o caminho da volta estava mais fácil, pois a mata já estava aberta. Gostaria de ter
voado mais, a sensação era muito boa mas, sentiu que teve que voltar devido à
orientação da P.

P. discute esses elementos com elas, apontando para o aspecto transformador


que apareceu em todas, de diversas formas, relatando que isso dá indícios do quanto que
o processo grupal tem sido transformador e mobilizador para elas (os detalhes sobre a
interpretação dada constam no capítulo referente às análises e discussões dos
resultados).

P. solicita que cada uma diga uma palavra sobre o encontro. Graça fala
liberdade, Bianca e Elisa riem e afirmam que queriam falar essa mesma palavra. Bianca
pensa por um tempo e fala esperança e Elisa, paz.

7o encontro:

179
(17/09/07). Prática dos movimentos (revisão de todos e introdução do “e”).

Graça fala da sensação de paz e leveza despertadas pelos movimentos.


Acrescenta: “Acho que pelo fato de estarmos fazendo uma coisa assim pra gente que
nos faz sentir mais femininas, mais mulheres, algo que é prazeroso que me sinto bem
fazendo, isso me traz uma leveza!” (sic.). Para Bianca: “A leveza dos movimentos passa
uma tranqüilidade e a música também ajuda, né, todo esse clima, bem diferente daquele
clima agressivo de academia, aqueles professores gritando...” (sic.).

P. questiona sobre como é fazer esses movimentos tendo dor. Bianca: “Pra mim,
por enquanto tá dando, não tá incomodando não, apesar de eu estar tendo muita dor
esses últimos tempos, tô a base de dorflex, ontem não tava assim nem conseguindo me
mexer! Mas não está me atrapalhando” (sic.). Elisa: “Pra mim também tá dando pra
acompanhar porque é assim um ritmo tranqüilo, que tá dando muito bem pra
acompanhar. A dor que me dá durante é uma dor suportável, porque essa dor eu tenho
constante mesmo. Mas está me ajudando muito a relaxar, porque eu estava muito tensa,
então pra mim está sendo ótimo esse exercício” (sic.).

Bianca fala de questões que apareceram devido ao uso contínuo de remédios


“Por causa dos remédios eu ganhei um refluxo, ganhei gastrite, agora o médico disse
que eu não posso tomar mais nenhum remédio. Como que eu não posso? Tô tomando
dorflex desde sexta-feira. Num tô com condições de ficar com dor” (sic.).

Graça comenta: “Estou indo na fisioterapia, estou gostando porque estão me


orientando uns alongamentos mais corretos pra mim, de forma que estimulem melhor
os músculos e não como os que eu estava fazendo que estavam machucando mais ainda.
Tô gostando bastante!” (sic.). Bianca valida o discurso de Graça ao dizer “É importante,
porque não dá pra ficar parada, né!” (sic.).

Elisa afirma não saber o que será da sua vida: “(...) me sinto sem chão assim,
por causa do INSS” (sic.). Discutem medicação, dificuldades em marcar consultas e
exames em instituições públicas.

180
Elisa comenta que acredita que não tem alta do H.C devido à cirurgia que fez lá
e que segundo ela teve erro médico. Fala também do medo que sente de ter que fazer
outra cirugia: “(...) porque aí sim é que eu não vou ter volta!” (sic.).

Bianca fala do refluxo, que o gastro falou pra não operar de forma alguma.
Graça pergunta o que ela tem e fala que sua mãe tinha o mesmo diagnóstico, fez a
cirurgia e ficou ótima. Revoltada, Bianca fala que o médico falou pra ela não tomar
medicação nenhuma. “Falei que tinha enxaqueca, dor crônica, que não posso ficar sem
remédio. Ele respondeu: põe batata, pepino, reza, faça qualquer coisa, mas remédio
você não pode tomar mais!” (sic.).

Aos poucos elas vão encerrando o assunto e P. propõe a atividade planejada.

As instruções do relaxamento introdutório à atividade foram as mesmas da


semana anterior. A atividade proposta é uma viagem de fantasia e foi apresentada com
as seguintes instruções:

“Imagine que você está andando por uma casa, perceba como é esta casa, se é
grande ou pequena, como é a aparência desta casa, parece ser nova ou antiga, está
bem cuidada ou precisa de reparos? Explore mais a casa... Você se depara com um
corredor comprido, caminhe até o final dele. Lá você encontra uma porta, abra-a. Ao
abrir a porta você percebe uma escada e vai descendo cuidadosamente, está escuro, vá
tateando o ambiente até encontrar o interruptor de luz; acenda-a. Existem muitas
coisas guardadas nesse cômodo, explore o ambiente e esses objetos guardados... Você
vê um espelho grande, de corpo inteiro, e mais adiante um baú. Abra este baú... nele
você encontra diversas fantasias, todas as fantasias e acessórios possíveis estão nesse
baú. Explore mais essas fantasias... escolha uma e vá para a frente do espelho.
Observe-se, como você está? Vá aos poucos tirando a sua roupa e vestindo a fantasia,
como é fazer essa troca? Agora fantasiada, olhe-se novamente no espelho... como você
se sente com essa fantasia? Você se parece com alguém? Agora, você vai viver um
pouco da vida dessa pessoa na qual você se fantasiou. Vá para algum lugar onde você
acha que essa pessoa iria. Como é esse lugar, como você se sente nele? Explore
bastante essa experiência, faça o que você achar que essa pessoa faria... aos poucos vá

181
se despedindo desse lugar e voltando para aquele cômodo de onde saiu. Olhe-se mais
uma vez no espelho, despeça-se dessa experiência e tire a roupa aos poucos. Olhe para
si, como se sente tendo voltado a ser você mesma? Vista-se com sua própria roupa, vá
até o baú e guarde a fantasia, feche-o, caminhe em direção às escadas, apague a luz,
suba as escadas e feche a porta. Percorra o caminho de volta. Preste atenção na casa,
existe algo de diferente ou que não tivesse notado antes? Devagar vá saindo da casa e
voltando aqui para a sala” (sic.).

As mesmas orientações da última semana foram dadas para a saída da


imaginação.

Discussão dos elementos da fantasia. Graça afirma que sua experiência “Foi
como um filme, gostaria de ficar mais!” (sic.).

Elisa fala: “Não sei se é porque faz tempo que eu não vou na minha prima em
Sorocaba... então a casa era grande, era a casa dela. Inclusive ela estava lá, a casa
tava cheia. Aí na hora da fantasia, eu não ví a fantasia assim, só imaginei já na hora
que eu estava vestida com ela, não consegui ver com que roupa estava antes, não
consegui ver a fantasia no baú, quando ví já estava vestida” (sic.). Segundo Elisa, sua
fantasia era uma saia “(...) até eu achei que fiquei meio gorda com ela, porque olhei no
espelho e falei: nossa, como eu engordei. Daí o lugar que eu imaginei era um salão
com um monte de gente esperando para dançar. Aí quando eu cheguei, me pegaram
para dançar, não consegui ver quem era mas eu dançava com alguns parceiros, e
quando começamos a dançar todo mundo também dançou, era meio que uma espécie de
dança de salão assim...” (sic.). Conta que usava uma fantasia de odalisca de cor
vermelha com bastante brilho. Relatou que a casa era igual a da prima, o corredor e até
mesmo o porão. Para ela, a experiência foi muito boa (sic.), conta que não queria voltar
e colocar a sua própria roupa: “(...) é uma coisa tão boba assim... mas tava tão bom, que
na hora de voltar pra realidade eu não queria, eu queria continuar alí. É que nem
quando eu viajo, eu me sinto outra pessoa, mas quando volto é muito ruim. Eu sou
assim, se pudesse ficar um longo tempo vestida com a fantasia eu ficaria!” (sic.).

182
Bianca afirma que a casa que imaginou era a casa que sempre quis ter: “(...) a
casa espaçosa que eu gostaria de ter e não tenho (risos). Era bem gostosa, não muito
grandona... ai era do jeito que eu gostaria de ter, com quintal... não tinha móveis, tava
vazia, não consegui ver móveis na sala. Antes de você pedir pra entrar no corredor eu
já estava no corredor, era uma casa assim com um corredor interno e depois uma
lateral externa que era a garagem. Eu tava no corredor, comecei a andar, aí era
primeiro uma sala, depois um quarto, outro quarto. Dava a impressão de que na
esquerda também tinha outro quarto... quando eu desci, as escadas não eram internas,
eram externas como se eu tivesse saindo da casa, indo por um outro quarto embaixo. A
impressão que dava é que era uma casa com um terreno baixinho. Aí entrei... nesse baú
tinha muita coisa... tinha bastante tralha, eu consegui pegar uma fantasia, era de
odalisca azul-marinho com bastante brilho também, aí me vesti e fui para um local que
era um palco, parecia um teatro e eu me vi dançando a Dança do Ventre mesmo, não vi
muita gente, só algumas pessoas na fileira da frente, os demais não consegui ver... ai,
eu tava tão elegante!” (sic.). Relata que essas pessoas que a estavam assistindo não
eram conhecidos seus e que a experiência “(...) foi muito boa, gostei! Acho que já uniu o
que estamos fazendo aqui... gostei, foi muito bom! O interessante é que eu não consegui
ver nítido assim os quartos, entrar e ver os quatro cantos, ou vê-la mobiliada, era uma
coisa assim meio... a minha visão não conseguia ver os quatro cantos... não conseguia
ver como estou olhando aqui. Não era muito nítido” (sic.).

P. aponta para o fato de as duas participantes terem tido uma experiência com a
dança.

Graça diz que a casa que imaginou era antiga, de estilo colonial com todos os
móveis muito bem trabalhados. “Eu caminhava e, quando eu desci no porão, tinham
muitas coisas guardadas, tinha teia de aranha, era como um depósito... tinha poltrona
de balanço, coisas de antigamente. Os móveis também eram de estilo colonial, o
espelho tinha aquela moldura trabalhada, cheia de frufus... era um lugar assim como se
tivesse voltado no tempo. Aí eu achei bonita uma fantasia de princesa... tinha coroa
também, tudo... Aí eu coloquei a fantasia e ela ficou tão bonita que eu não queria
tirar!” (sic.). Bianca e Elisa concordam e afirmam que não queriam ter tirado a roupa,
P., então, comenta que quando as instrúi para voltarem, não precisam o fazer se não

183
quiserem, afinal é a imaginação delas, o que lhes permite continuar a imaginar por mais
algum tempo, ou ficar mais em determinado local.

Graça conta que a sua sensação não era de ter se transformado apenas na
aparência externa: “(...) parece que quando você coloca uma roupa assim você se
transforma mesmo, você entra nessa realidade, transforma tudo. Até o rosto mudava. Aí
quando você disse para a gente ir para aonde essa pessoa iria, eu voltei pra casa, aí
que eu fui ver que tinham vários quadros de pessoas que moravam alí, que eu não tinha
visto antes... aí eu fui vendo os quadros e vi o de uma moça... a moça que tava no
quadro usava a mesma roupa da princesa então parecia que eu tinha incorporado ela.
Por isso que eu acho que eu não queria ter voltado! Porque era uma sensação
gostosa... apesar de ser antigo... eu achava que ali era um lugar que eu nunca poderia
ter estado. E alí parecia que era a minha casa só que eu não sabia disso até ver o
quadro” (sic.). P. pergunta qual foi a sensação que lhe veio quando se deparou com o
quadro da princesa, responde: “No começo deu uma impotência... num sabia que aquilo
ali seria meu realmente... porque é uma coisa que nunca aconteceu antes. E eu não
queria sair de lá, mas ao mesmo tempo que lá estava bom eu senti que tinha que sair
mesmo assim de lá, que eu não poderia mais viver ali. Então pode ser que seja um coisa
que aconteceu e que foi embora, passou... sei lá um déjà vu...” (sic.). Relata que se
sentiu incompleta ao tirar o vestido.

P. comenta que esse sentimento de não querer ir embora pode ocorrer, pois pode
indicar que elas encontraram um espaço delas, um espaço interno e é natural, portanto,
que não queiram abrir mão desta conquista. Bianca fala: “É verdade, poxa, é a casa que
eu sempre busquei, que sempre sonhei!” (sic.). P. afirma que Bianca trouxe a casa que
sempre quis ter, Elisa, a casa que faz muito tempo que não vai e que gosta bastante e
Graça, uma casa que não conhece mas à qual se sente pertencente.

P. justifica o motivo da sua escolha pelo uso das viagens de fantasia, pois
fornece dados de como esse processo está sendo assimilado por elas, além do fato de
que elas respondem muito bem a esse tipo de atividade. Afirma que estão falando hà
algum tempo de transformações e que essas vivências parecem seguir esse caminho
(articula e analisa os encontros – vide capítulo de análises e discussão dos resultados).

184
P. dá as instruções para que elas tragam, na próxima semana, uma imagem que
corresponda a forma como estão percebendo o próprio corpo atualmente, depois do
processo do grupo. Ressalta a importância de levarem pois, a partir de cada imagem
individual será formada uma imagem do grupo. Participantes anotam para não esquecer.

8o encontro:
(24/09/07). O encontro iniciou com um aquecimento, foram dadas as seguintes
intruções:

“Caminhem pela sala, refletindo sobre o processo do grupo, como foi para
vocês, pensem nas etapas... no modo como se sentiram durante todo o processo do
grupo. Pensem no que vocês acham que o grupo ajudou, no que não ajudou... pensem
nas discussões que fizemos, nos movimentos que aprendemos, em todo o processo...
Dentre os movimentos que aprendemos, escolha um de que mai gostou... o que a fez
escolher este movimento e não outro? Agora pense em como você está ao término desse
processo, se ocorreu alguma alteração... pense na sua relação com o próprio corpo,
sentiu alguma diferença? Quando já tiver pensado sobre essas coisas, devagar vá
parando em algum lugar da sala...” (sic.).

Graça estava com dor intensa naquele dia, pois havia errado na conta dos
remédios e estava sem medicação. Fez a atividade sentada com os olhos fechados.

P. perguntou se estavam bem e, após confirmação de todas, prosseguiu


solicitando que uma por vez fizesse o movimento que escolheu e explicasse o motivo
pelo qual escolheram, bem como o sentimento suscitado por aquele movimento em
específico. A expressão de todas era alegre, até mesmo Graça, que estava com bastante
dor, mostrava-se animada.

Elisa começa, falando que escolheu o movimento oito. P. Pede para que ela o
faça. Executa-o e diz que o escolheu porque sente que este, em específico, deixa seu
corpo totalmente relaxado e que ela sente um grande alívio quando o faz, no sentido em
que sente como se diminuísse a tensão de seu corpo: “É assim, uma coisa boa, que

185
parece que me despreende dos maus pensamentos. Traz uma sensação muito boa... uma
sensação de felicidade!” (sic.).

Bianca, sorrindo, fala que escolheu o mesmo movimento. Executa-o e afirma


que o escolheu, pois sente que dá formas ao corpo da mulher e que a faz lembrar das
curvas do corpo feminino, também diz: “Me deixa mais solta, me sinto assim, bastante
sensual! Dá uma sensação muito boa, parece que me solta... é como se soltasse todos
os meus parafusos (risos), todos aqueles parafusos que me deixam dura no dia-a-dia,
eu solto quando estou fazendo esse movimento. É muito bom!” (sic.).

Graça escolheu dois movimentos: o oito e o movimento circular de tronco, fala


que os escolheu, porque sente que soltam a “armadura” que ela teve que construir em
função da dor (sic.). Diz que são movimentos muito sensuais, pois mexem com as duas
áreas mais femininas do corpo: a mama e o quadril. “São movimentos de ondulação,
clíclicos, acho que eles tem muito a ver com os ciclos da dor que vem e vai, mas ao
contrário da dor esses movimentos cíclicos e ondulantes me trazem calma e paz. Sinto
que preciso fazê-los apesar, ou melhor: além da dor!” (sic.). Acrescenta que tudo o que
faz dói, que independente do que faça sempre está com dor mas, que aprendeu que a dor
não pode tomar conta da sua vida e que não vai deixar de fazer as coisas de que gosta e
que sente como importantes por causa da dor. Comenta que esses movimentos da Dança
do Ventre foram uma grande descoberta desta forma, afirma não quer abrir mão deste
ganho em função da dor (sic.).

Todas concordam e reafirmam que não querem deixar de fazer os movimentos


nem em função da dor, nem em função dos outros problemas da vida.

Graça conta que, hà algum tempo, está com uma música na cabeça e que
enquanto fazia a mentalização e os movimentos, essa música ficou muito forte na
cabeça, diz que gostaria de cantá-la para todas que estavam alí. Trata-se de uma música
do grupo Jota Quest que diz: “Ei dor, eu não te escuto mais... você, não me leva a nada!
Ei medo, eu não te escuto mais... você não me leva a nada!”

Outras participantes concordaram e cantaram a música juntas.

186
Graça mostra uma reportagem que a fez pensar sobre muitas coisas e quis levar
para dividir com as colegas; entrega para P. e pede que leia para todas.

P. (lendo a reportagem):

“Ultimamente, quantas vezes você tem reclamado de você mesma? Do que não
está acontecendo na sua vida? Se você anda se sentindo sem vontade para nada, sem
motivação, se desagradando frente ao que o seu espelho reflete, achando tudo sem
graça... Então é a hora de apostar mais em você, na sua capacidade de sentir a vida, de
estar de bem com ela.

É hora de refletir sobre como vai a confiança em seu modo de pensar e enfrentar
problemas, pois quando conseguimos nos encarar de frente e nos conhecer melhor, é
quando temos a real chance de nos sentirmos realizados e felizes. Quando você começa
a se sentir inseguro, sem auto-confiança, desvalorizado, se desrespeitando, agindo e
pensando negativamente, atuando com severas críticas consigo mesmo, sentindo-se
cheio de dúvidas e se vendo feio e vivendo para agradar os outros, esquecendo-se de
você, cuidado você certamente está vivendo as características da baixa auto-estima!
Então, proponha uma conversa franca com você mesmo, investige de onde podem estar
vindo esses sentimentos, será que não tem, bem lá no fundo, escondidinho, um elevado
senso de sentimento de culpa, de abandono, de rejeição, de carência, de frustração, de
vergonha, de timidez, de medo, de raiva, ou um sentimento de inferioridade e
principalmente de perda de independência, financeira e emocional?

Essa conversa franca o vai ajudar a detectar a origem da baixa auto-estima,


facilitando assim uma abordagem mais assertiva e adequada na melhora desse quadro.
A baixa atuto-estima, muitas vezes vem desde a infância, a partir de como as outras
pessoas nos tratam. Quando criança pode-se alimentar ou destruir a auto-confiança.
Auto-estima baixa, geralmente está relacionada a falsos valores e crenças e a
necessidade de aprovação dos nossos pais. Por outro lado, conforme vamos nos
desenvolvendo, senão aprendermos a nos valorizar, a nos defendermos e ficarmos

187
incondicionalmente do nosso lado, poderemos sofrer desses desagradáveis sentimentos
e sensações.

O que fazer, então? Aprenda a se conhecer melhor, aprenda com suas


experiências passadas, com seus erros, respeite suas vontades. Trate-se com amor e
carinho, acredite que você merece ser amado. Faça coisas que lhe proporcionem
prazer, perceba suas qualidades, seja seu mehor amigo. Arrisque coisas novas,
estabeleca suas metas de vida, alimente-se de forma saudável, tire um tempo para
você. Seja flexível frente aos fatos, tenha momentos agradáveis com as pessoas que
gosta, aceite-se como você é. Harmonize seu lar, tenha atenção com você, seja
gentil consigo próprio de forma positiva e amorosa. Pare de reclamar de tudo e
aceite a vida e as pessoas como elas são. Tenha contato com a natureza, converse
com Deus.

Esses novos padrões de pensamento, vão lhe ajudar e muito na elevação da auto-
estima e lembre-se: sua mente é extremamente poderosa. Todas as informações podem
ser conduzidas no nosso inconsciente, ajudando-o a diminuir a ansiedade e o estresse. Já
é comprovado cientificamente que 95% do que se diz a si mesmo é computado como
verdadeiro pelo nosso cérebro; partindo desses dados não é difícil entender porque as
auto-sugestões podem modificar radicalmente as nossas reações somáticas ou
psicológicas diante de certas situações. Portanto, agora é a hora de fazer uma pergunta:
Você está feliz, de bem com a vida e consigo mesmo? Caso a resposta seja negativa,
procure ajuda profissional e jamais esqueça que a pessoa mais especial e importante no
mundo é você!” – Rita de Cássia Martins Couto, psicóloga.

Participantes gostaram muito da mensagem. P. valida o fato de Graça ter levado


a reportagem, participantes falam que o que a reportagem mostra, é justamente o que
vem acontecendo no grupo: dizem que estão aprendendo a se valorizar mais.

P. pede para mostrarem as imagens que levaram. Bianca é a primeira a


apresentar. Levou três paisagens e mostra, em primeiro lugar, uma que parece ser a
propaganda de um condomínio de alto padrão, mostra a fachada do condomínio com
uma área verde muito ampla e bela, diz que se identifica com aquela imagem pois,

188
embora nunca tenha tido baixa auto-estima, o processo do grupo reforçou a sua beleza
interior e permitiu-lhe mostrar mais de sua natureza; mas outra coisa que chamou sua
atenção na imagem, é o fato de o tempo estar nublado. Associa que embora as coisas
estejam mais belas, harmônicas e atrativas para os outros, a nebulosidade mostra a
presença da dor, embora seja uma característica secundária (sic.). Afirma que esses dois
lados existem nela, e que provavelmente permanecerão a existir. No entanto agora, a
dor aparece como pano de fundo à uma grande beleza. Disse que escolheu as outras
duas imagens pelo mesmo motivo e voltou mais a atenção para uma imagem que
mostrava uma bela praia, o mar azul bem claro e límpido, com uma onda muito grande.
Disse que depois do grupo parece que entrou em contato com sua verdadeira natureza e
que, por isso, é que decidiu levar imagens da natureza, mas disse também que a dor
ainda é um aspecto que parece desarmonizá-la. P. então, a questiona sobre o lugar em
que estaria, responde que na onda. P., então, pergunta se estaria no meio dessa onda ou
se estaria surfando nela. Bianca responde que às vezes se sente imersa por essa onda,
fazendo uma analogia à dor, afirma que apesar de estar no meio daquela onda muito
grande, sabe que possui recursos para tentar sair dessa situação, o que em tempos
anteriores não aconteceria: “(...) acho que antes eu morreria engolida pela onda da
dor” (sic.).

P. discute essas imagens, chama a atenção para uma frase contida na primeira
imagem que Bianca trouxe: “É o homem voltando a ocupar a sua verdadeira natureza”.
P. retoma a frase de Bianca que disse que parecia ter entrado em contato com sua
natureza através do grupo. Bianca responde: “É verdade, puxa ta vendo como as coisas
são? Eu ví essa frase aqui e nem pensei em cortá-la porque achei tão bonita, mal eu
sabia que estava dizendo sobre mim!” (sic.).

Elisa levou uma imagem e um texto no qual escreveu: “Eu estou percebendo o
meu corpo, atualmente, mais leve, estou conseguindo relaxar mais para resolver os
problemas atualmente complicados. Não estou com o corpo prendido tanto como tinha
antes. Sentia dores mais fortes para ir resolver algumas coisas pendentes” Antes de
mostrar a imagem falou que a tinha escolhido, pois o grupo a fez perceber como ela
realmente é, mostrando-lhe coisas que tinha deixado de lado em função da dor, mas que
dizem respeito à sua identidade. Escolheu esta imagem, pois acredita que agora que

189
conseguiu resgatar essas coisas; seria importante passar isso a diante para seus amigos e
familiares. A imagem trazida é uma propaganda de cadernos infantis com a seguinte
frase: “Amor e Felicidade. Os melhores presentes que você pode dar a alguém”. Ela
afirma que reencontrou sua felicidade, alegria e amor pela vida e que acha justo passar
isso adiante, sorrindo e saindo mais com as pessoas.

Outras participantes validam para Elisa que ela sempre foi uma mulher com
força de espírito e que transmitia alegria de viver a todos mas, que de fato, estava muito
apagada nos últimos tempos. Afirmaram estarem felizes por esta conquista da colega.

Graça levou algumas imagens e disse que não gostaria de deixá-las, perguntou
se P. poderia tirar cópias. Foi respondido que sim. Em primeiro lugar, ela mostrou uma
imagem a qual chamou de mandala energética: é uma representação complexa do fluxo
das correntes energéticas dos diversos centros (chakras) do corpo, além dos setes
principais. Associa esta imagem às ondas de vibração da dor que se irradiam pelo corpo
todo. Falou que não ía levar tal imagem mas, como estava com muita dor, lembrou-se
dela e quis mostrar a forma como representaria sua dor. As outras imagens são
fotografias de um catálogo de pinturas de determinado pintor; afirmou que no início do
processo se sentia como a personagem 1: distante do mundo, afirmou que em alguns
momentos se sentia como uma outra personagem 2: desolada. Mostra uma 3a
personagem, falando que antes de começar o grupo não se sentia mais daquela forma,
mas que por muito tempo foi assim que se sentiu: sem esperanças, como se não existe
solução para os seus problemas. Então, mostra a última imagem que representa a forma
como se sente ao término do processo do grupo. Afirma se sentir mais mulher, mais
protegida e cuidada, representada pela personagem 4, que é a única adulta e a única que
não está sozinha. Esta imagem retrata uma mulher despida, cobrindo apenas os seios e,
se assemelha muito à figura de Vênus. Está rodeada por 9 anjinhos e contempla uma
expressão de êxtase e prazer, mostrando sua feminilidade madura, ao mesmo tempo
delicada. Essas são as associações feitas por Graça, que diz ter escolhido-a por se
identificar muito com essas imagens, principalmente com a última, no sentido em que o
grupo a possibilitou entrar em contato com sua essência feminina, encontrando uma
feminilidade suave, sublime e delicada (sic.). Afirma se sentir cuidada e amparada,
associa os anjinhos aos membros do grupo.

190
Bianca e Elisa validam o processo de Graça e elogiam a beleza das imagens
trazidas.

É solicitado a elas que, da mesma forma como na primeira vez, façam uma
imagem do grupo, a partir dessas imagens individuais. Como Graça pediu para P.
xerocar as imagens, foi combinado o lugar aonde ela gostaria que suas imagens fossem
coladas, posteriormente.

P. pede para que cada uma dê um nome para a imagem que produziram. Bianca:
“Em busca... mas não sei te dizer exatamente do quê” (sic.). Graça completou: “Eu
diria busca interna” (sic.), Bianca: “Isso... é uma busca interior” (sic.), Elisa concorda
e acrescenta: “Me passa a idéia de renovação da vida” (sic.).

Bianca fala que sempre interferiu muito na vida dos pais e que hoje, depois do
grupo, percebe que não pode mais influenciar a vida deles, relacionando esse
afastamento a uma possibilidade de alívio da tensão. Entretanto, ainda se sente
angustiada de não interferir: “Apesar de eu saber que é melhor para mim e para eles
que eu deixe eles viverem a vida deles, ainda é muito difícil para mim... me sinto como
se estivesse abandonando eles.” (sic.).

Ao término da colagem foi dada as instruções para a replicação do WHOQOL.

Posteriormente, foi pedido para que cada uma completasse a seguinte frase: O
que mais ficou deste grupo para mim foi...

Elisa: “Mais um aprendizado diferente, assim, né” (sic.). P. pergunta do que


seria esse aprendizado e ela responde: “Ai de tudo, dessa dança que eu só via e agora
sei que consigo fazer e tenho vontade de continuar, achei muito bom, levantou a minha
auto-estima” (sic.).

Bianca diz que o que mais ficou para ela do grupo foi: “A conquista. Uma
conquista de novos horizontes, da esperança, fortalecimento... de uma serenidade. De

191
algo que me parecia distante, coisa que se você não tem um grupo, parece que você se
sente tão desprotegida. Quando a gente fica muito afastada do grupo como a gente
ficou, parece que aquela chama, que ele acendeu, de esperança, vai se apagando... aí
quando você volta acende novamente! Foi o companherismo, ter um grupo que
compartilha das mesmas questões e enfrentar os obstáculos juntas, isso pra mim foi
maravilhoso! Poxa isso aqui que fizemos com a dança... eu não conhecia e confesso
que até tinha um pouco de preconceito, mas quando fui vendo que não era o que eu
imaginava e que era uma coisa que estava alí para me ajudar, foi delicioso... e poder
fazer isso em grupo foi muito bom... é difícil você encontrar um grupo que se encaixa,
que se entenda, que você se sinta acolhida sabe, porque lá fora é difícil falar de tudo
isso que falamos aqui...” (sic.).

Graça: “É, as pessoas não querem ouvir os problemas... só querem farra, daí
quando vêem que você têm problemas elas se afastam... acham que você é o chato... o
chato da turma!” (sic.). Afirma que para ela o que mais ficou do grupo foi a melhora da
sua auto-estima (sic.). Participantes concordam.

Elisa fala que a sua forma de se colocar no mundo mudou depois do grupo, no
sentido em que: “(...) eu consegui achar aquela pessoa que eu era antes, que sempre
fui... consegui encontrar a minha paz e felicidade” (sic.).

Bianca propõe que continuem a se reunir quando o grupo acabar, combinam de


viajar para a praia juntas.

Bianca fala que, embora pareça jovem e aparentemente bem, as pessoas sempre
querem tapar o seu sofrimento com tais justificativas o que a faz não se sentir acolhida e
relata que os grupos são ótimas opções. Participantes concordam.

Bianca também comenta que o grupo reforçou a idéia de feminino, no sentido


em que ainda é possível entrar em contato com um feminino que não seja vulgar. Para
Elisa: “Também acho que pra mim reforçou. Tem horas que a gente esquece de olhar
para o corpo da gente, ou passar a mão na gente mesma, me sentir sabe... são coisas

192
que antes eu não dava muita importânica não, viu, e agora eu vejo a importância que
tem e como me faz bem” (sic.).

Bianca acrescenta que: “Nunca tive essa preocupação de achar que eu tava
esquecida de mim mesma, sempre fui cuidadosa, vaidosa, não tinha a auto-estima
baixa, mas esse processo me reforçou a mulher que tava um pouco adormecida, acho
que pela dor ou pelos problemas, não sei... sabe, de me mostrar que poxa, olha como
você ainda é capaz, como você ainda é uma mulher atraente, olha o que o seu corpo
pode fazer que você nunca tinha imaginado que seria capaz! Pô ainda tô viva!” (sic.).

Graça: “Pra mim o que mais ficou foi quando você ensinou algumas partes da
dança que mexem com o corpo, de um jeito que a gente vai se revelando, nossa isso foi
incrível pra mim!” (sic.).

P. pergunta, dentre o que disctutimos no processo, o que acham que é possível


incorporar no cotidiano delas.

Bianca: “A todo momento, no meu caso, eu lembro é uma coisa engraçada, eu tô


assim andando na rua, em qualquer lugar e penso assim, poxa vida... ah ta! Tava
fazendo o movimento da dança! (risos) Tava andando em oito sabe? (risos). Logo, logo,
vou dar um show! (risos). Sabe, parece que uma parte minha falou assim: oi, corpo, eu
ainda tô aqui, ainda existo, tô acordada, não tô mais dormindo!” (sic.).

Elisa conta que ficou mais leve e confiante em si: “No final de semana fui numa
festa gaúcha, quando que eu sei dançar música gaúcha? (risos). Antes eu não iria nem
chegar perto... mas dessa vez pensei ah, porque não? Aí o moço me ensinou um pouco,
eu dançei, usei um pouco do que aprendi aqui... me senti tão bem!” (sic.).

Bianca: “Não sei se vocês sentem assim, mas me dá a impressão de que a gente
aceita melhor o corpo da gente, você fala, tenho barriginha mas e daí?!” (sic.). Graça e
Elisa concordam.

193
Bianca continua, dizendo: “Acho que esses movimentos trouxeram isso de
aceitar o corpo do jeito que é e, também, ajudou a gente a não se afastar mais tanto do
Feminino; poxa a gente não pode fazer isso! É a nossa natureza, por mais doença que a
gente tenha, por mais dor que a gente tenha, a gente tem não pode apagar esse lado,
tem que lembrar do nosso Feminino!” (sic.).

Graça afirma que: “O mais lindo dessa dança é que ela respeita uma coisa que é
única da mulher: as curvas! Os homens não têm essas curvas, só nós. Que nem minha
filha de 14 anos, ela já tá com um corpão de mulher, já tá mais alta do que eu, daí
quando a gente passa, todo mundo mexe com ela, aí quando dizem: que saúde, ein, ela
olha pra mim e fala: é pra você né, mãe? (risos)” (sic.). Relata que: “Acho que as
pessoas estão muito bitoladas em revista, em um ideal. Como quando as pessoas iam
me consultar levavam a revista e falavam que queriam que eu as deixasse daquele jeito
e às vezes, aquele jeito não é possível, mas quando a pessoa coloca aquilo na cabeça
não tem quem tire, só que isso não tem fim... a pessoa nunca vai estar satisfeita, por
isso que eu acho que essas pessoas precisam de um tratamento, como este que fizemos
aqui” (sic.). Bianca responde: “É, precisa mesmo” (sic.).

Todas afirmam quererem levar os movimentos da dança para seus cotidianos.

Bianca fala que: “(...) esses movimentos me fazem tão bem... não quero correr o
risco de me afastar de mim mesma, de deixar o meu feminino morrer!” (sic.), outras
participantes concordam, Elisa acrescenta: “Agora eu tô olhando pra todos aqueles
meus vestidos guardados que eu ía jogar fora, pensei: porque não usar se me deixam
tão bonita, tão feminina?” (sic.).

P. encerra o encontro fazendo uma ligação entre todos os encontros.

194
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.

Os encontros foram analisados de forma global, levantando-se pontos centrais.


Foram analisados a forma como estavam no início do trabalho, o processo por que
passaram, as transformações sofridas, os instrumentos utilizados e a forma como
terminaram o processo. Embora a preocupação da análise seja com o processo de forma
geral, considero relevante uma breve reflexão sobre cada encontro, sobre os objetivos
iniciais e se foram ou não alcançados∗.

Os objetivos que permeavam o primeiro encontro eram: a apresentação da


pesquisadora, da proposta do trabalho, das participantes, o levamento e esclarecimento
de dúvidas, estabelecimento de contrato e do vínculo entre a profissional e as
participantes, bem como da retomada do vínculo existente entre elas. Pode-se dizer que
foram alcançados e que o andamento do encontro superou as expectativas da
pesquisadora, no sentido em que não era esperado que já houvesse uma mobilização
para discussões, que abrangeram e levantaram demandas referentes ao Feminino e sua
dificuldade de expressão, tanto pela dor crônica quanto pela “masculinização” social.
Neste encontro, a pesquisadora se posicionou de forma a acolher a demanda levantada,
possibilitando que aquele espaço tivesse uma função terapêutica. Foi estabelecido um
bom vínculo entre a perquisadora e as participantes e, elas retomaram o vínculo entre si.
Mostraram-se muito interessadas no tema, o que nos dá indícios de que identificaram o
objetivo deste trabalho como algo relevante em seus processos, atribuindo sentidos
individuais a um tema que diz sobre o coletivo e sobre aquele grupo em específico.

Os objetivos do segundo encontro englobavam questionar o atual momento de


vida das participantes, de como passaram depois do follow up do trabalho realizado pela
Prof.ª Dr.ª Adrianna Loduca, visando compreender o que ocorreu neste período e
também identificar suas principais demandas. Também havia sido planejado revisar os
objetivos do trabalho atual, assinaturas do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, a aplicação do questionário de Qualidade de Vida (WHOQOL), bem como
o estabelecimento do vínculo e a introdução de um movimento da Dança do Ventre.


A síntese dos encontros encontra-se no capítulo dos resultados.

195
Tais objetivos foram alcançados e observou-se uma forte demanda por falar e trocar
experiências.

Já os objetivos do terceiro encontro eram o de obter a imagem do próprio corpo,


acolher a demanda por falar, reforçar o vínculo e introduzir novos movimentos da
Dança do Ventre, retomando o anterior. Podemos dizer que foram alcançados.

O objetivo do quarto encontro era discutir aspectos relacionados ao Feminino,


visando identificar possíveis conflitos e compreender a influência da dor no Feminino
destas mulheres. Este encontro se revelou muito significativo para a compreensão de
suas dinâmicas e de como o processo estava sendo sentido: desta forma foi possível
responder ao objetivo.

No quinto encontro, objetivou-se trabalhar questões referentes à relação entre


gêneros e à conscientização da influência dos movimentos da dança em seus corpos e
psiques. Devido a mobilização das participantes e à identificação de forte demanda por
falar e trocar experiências e sentimentos, a pesquisadora acolheu tais necessidades e
suspendeu a atividade planejada, bem como deixou a parte prática para o final do
encontro. Nesse sentido o objetivo inicial do encontro foi parcialmente alcançado;
entretanto foi possível obter dados relevantes sobre o processo.

Já no sexto encontro, o intuito era fazê-las entrar mais em contato com o


potencial da dança e seus benefícios e identificar a possibilidade de transformações
psíquicas através de uma viagem de fantasia que retrata elementos do Feminino. Pode-
se dizer que foi alcançado.

O sétimo visava explorar melhor, através da viagem de fantasia, a relação com o


próprio Feminino, evocado durante o processo. O objetivo também foi alcançado neste
encontro.

Por fim, esperava-se no oitavo encontro estimular a elaboração de todo o


processo, fazendo-as refletir sobre as fases que passaram, os benefícios que
encontraram, sobre como foi participarem e o quê consideram que seria possível levar,

196
incorporando o que viveram lá, a suas práticas cotidianas. Também havia sido planejada
a replicação do WHOQOL e da representação grupal da imagem corporal. Esses
objetivos foram alcançados.

Conforme exposto nos capítulos teóricos, vimos que a formação do eixo ego-
Self, a partir do qual se desenvolve o senso de confiança no mundo e em si próprio,
depende, basicamente, do investimento de carinho e atenção que a criança recebe da
mãe, ou de quem tenha exercido esse papel, no início de suas vidas (Neumann, 1995).

Nas histórias das nossas participantes percebemos a presença de muitas


agressões, físicas ou verbais, o que pode ter feito com que, ao invés de entrarem em
contato com o afeto e receptividade do mundo, encararam-no como cruel e ameaçador
para suas vidas. Os modelos femininos podem ter sido percebidos como omissos, ou
hostis, possivelmente fazendo-as integrar apenas o lado negativo do princípio Feminino.
As figuras masculinas também aparecem como hostis, omissas ou, ainda, agressivas,
possibilitando a identificação com um animus negativo, rígido, controlador e poderoso.

Diante de um modelo fraco de Feminino, no que diz repeito ao Feminino global


que contém o lado positivo e o negativo – que Neumann (2006) chamou de o Grande
Feminino –, ou até mesmo um Feminino masculinizado, essas mulheres possivelmente
se identificaram mais com os atributos do princípio masculino Yang, abrindo espaço
para uma influência anímica predominante na atitude consciente. Nesse sentido,
percebemos uma dificuldade de relacionamento com o Feminino anterior à eclosão do
quadro álgico.

Se assumirmos a idéia de que uma mulher pode ser influenciada tanto pelo
animus quanto pela anima (Whitmont, 1991; Stein, 2006 e Byington, 1983, 1986),
podemos dizer que a atitude consciente de nossas participantes, de maneira geral,
recebeu uma maior influência dos aspectos anímicos, relegando boa parte dos aspectos
do elemento Yin Feminino à sombra. Como vimos, a repressão do Feminino ocorre não
somente por influências e determinações sociais, mas também por complexos pessoais –
neste caso podemos falar que na ausência de um modelo feminino investidor e afetivo
que possibilitasse o desenvolvimento saudável do senso de confiança e auto-confiança,

197
bem como a percepção de um mundo positivo e não somente hostil e ameaçador; essas
mulheres podem ter se identificado com o lado negativo do princípio Feminino – e
também pela dor crônica, que acredito que tenha sido um elemento reforçador da
dicotomia patriarcal, no sentido em que o corpo pode ser percebido como maléfico,
como sinômino de sofrimento e como o portador do mal, correndo-se o risco de ser
entendido como algo que deva ser evitado e desinvestido ou, de maneira compensatória
ser superprotegido. Diante essa situação, como fica a relação dessas mulheres consigo
mesmas?

Percebemos em suas histórias de vida uma dificuldade em lidar com o


Feminino, de forma geral, com suas animas, no sentido em que foram adotando formas
de ser muito mais baseadas no que diz respeito ao universo masculino. Mesmo sendo
esta uma tendência social, ao olharmos atentamente para suas histórias, percebemos que
essa identificação anímica teve funções muito importantes na manutenção de suas
integridades egóicas. A persona super adaptada, eficaz, controladora e rígida,
identificada nessas três mulheres, ocultava, justamente, seus aspectos menos
trabalhados, mais frágeis: o Feminino e seu aspecto primordial que carrega os pólos
positivo e negativo. Mantiveram sua fragilidade, seus sentimentos de inutilidade, seus
descontroles e ímpetos selvagens e agressivos, tão escondidos que acreditaram que
jamais as assombrariam. Entretanto, o adoecimento trouxe a inevitabilidade dessa
confrontação.

Sabemos que quanto mais unilateral for a nossa atitude consciente tanto quanto
será cruel a confrontação com o outro lado, inferior e inadaptado. Essa confrontação é
muito dura para o ego e torna-se ainda mais quando ocorre em um momento de grande
vulnerabilidade, permeado por medos e incertezas frente a um diagnóstico que não
esclarece dúvidas e inquietações. Também devemos somar aqui o momento do ciclo
vital no qual se encontram, referente à segunda metade da vida, que também é
vivenciada de forma dolorosa pelo ego.

Nesse sentido, é de extrema relevância a realização de trabalhos que auxiliem no


fortalecimento egóico, encorajando-o a seguir em frente, enfrentar esta árdua batalha,

198
dar continuidade e encontrar um sentido para sua existência, possibilitando a realização
da meta da sua jornada: a individuação.

Em conjunto com o controle, rigidez e demonstração de força e eficácia, essas


mulheres adotaram o papel de cuidadoras como o norte de suas vidas. Embora o
cuidado seja uma característica associada ao Feminino, vemos que lançaram mão deste
como forma de satisfação anímica, de controle e poder sobre a rede social próxima e
também sobre suas vulnerabilidades. Provavelmente, essa atitude vem compensar uma
dificuldade de cuidarem de si próprias e de sairem da posição de controle e poder,
permitindo serem cuidadas. Porém, com a eclosão do quadro álgico essa tarefa ou foi
impossibilitada, ou passou a ser vista como um fator de intensa sobrecarga. Entretanto,
a dificuldade de sair dessa posição é muito grande.

Acreditamos que a motivação, disponibilidade e interesse por elas manifestos


sobre o objetivo do presente trabalho indique que sentiram-no como demandas suas. A
isso atribuímos o mérito do trabalho de grupo psicoeducativo da Prof.ª Dr.ª Adrianna
Loduca que possibilitou um espaço de acolhimento para seus sofrimentos em que
pudessem re-significar o simbolismo do quadro álgico e atribuir-lhe sentido. Por minha
leitura, podemos dizer que ocorreu um fortalecimento egóico, bem como possibilitou a
ampliação da consciência, no sentido em que mostrou ao ego outras possibilidades além
da persona. Isso pode ter feito o ego perceber a existência de uma dimensão totalizante;
o Self, favorecendo que se desse conta de que não está sozinho em sua jornada. Essa
experiência fez com que chegassem mais mobilizadas e “aquecidas” e menos
defendidas para este trabalho, possibilitando que fosse vivido de forma intensa e que
apresentasse resultados significativos em um curto período de tempo.

Também é importante destacar o fato de já existir um vínculo positivo entre


elas, permitindo uma fertilidade nos encontros. Para a teoria junguiana, o próprio
encontro analítico carrega o potencial transformador. Aqui, cabe lembrar das reuniões
de grupo femininos* aonde dançava-se como um ritual de homenagem e agradecimento
à vida e à Grande Mãe; era a forma que encontraram de acessar e de se re-ligarem à
dimensão mágica-mitológica da psique (Penna, 1993). Sendo assim, o espaço do grupo

*
Vide capítulo da Dança.

199
deste trabalho pode ser entendido como propiciador e receptor do princípio Feminino,
agora adentrando em terras fecundas e preparadas.

A proposta de um grupo que discutisse, refletisse e elaborasse as vivências da


Dança do Ventre, do contato com o arquétipo da Grande Mãe e do resgate do Feminino,
foi pautava na visão de Jung de que: “(...) não pode haver elemento consciente que não
tenha o ego como ponto de referência. Assim, o que não se relacionar com o ego não
atingirá a consciência” (2003, p.7).

A visão junguiana entende o corpo como um instrumento fundamental para a


formação da consciência. Sendo assim, pensamos ser muito importante que os
elementos a serem integrados à consciência passem, de alguma forma, pela percepção
corporal. A partir desse entendimento a Dança do Ventre foi eleita como principal
instrumento para o resgate e integração de aspectos do elemento Feminino além, claro,
de seu potencial arquetípico e do potencial prazeroso do corpo, reprimidos.

Sabemos que depois do término de um processo psicoterapêutico, caso não


sejam feitas manutenções – o que nem sempre é possível –, é inevitável que alguns
ganhos se percam; no entanto, esses ganhos permanecerão como potencialidades. Entre
o período referente ao término do trabalho de Loduca (2007) e o contato para este, essas
mulheres se depararam com alguns obstáculos, por vezes corriqueiros, fazendo com que
dessem um passo para trás. Com isso, sentimentos negativos com relação à vida e ao
próprio processo de adoecimento retornaram. Desta forma, as participantes chegaram
para o presente trabalho com queixas referentes à humilhação e solidão. Seus egos
encontravam-se, mais uma vez, enfraquecidos e a dor aparecia como questão central em
suas vidas. Parece ter assumido uma função de bode expiatório, ao mesmo tempo em
que facilitou reflexões típicas da segunda metade da vida, como vemos em seus
discursos: questões referentes à busca do sentido da vida, à confrontação com elementos
sombrios e a necessidade de revisão dos planos de vida.

No início do processo percebemos que estavam fragilizadas e desencorajadas


com relação à existência. No discurso de Elisa: “(...) tô achando que pra ficar bem,
tenho que esperar mesmo, não adianta então... mas do resto, vou levando...” (sic.),

200
percebemos como a dor ocupou o espaço central em sua vida, deixando as outras áreas
vulneráveis, que passam a ocupar uma posição secundária, no sentido em que o foco
está na dor, enquanto que as outras áreas assumem papel de “resto”. Frente a isso, Elisa
se sente pequena, impotente e assume uma posição mais passiva: “(...) tenho que
esperar mesmo, não adianta então...” (sic.).

Em seus discursos conseguimos identificar, com facilidade, o impacto


multidimensional da dor, abrangendo a vida social, financeira, relações amorosas e
familiares, auto-estima, projeto de vida e outros. Evidenciam-se sentimentos de
descrença e frustração e, por vezes, colocam-se na posição de vítima, oscilando entre
sentimentos melancólicos e revoltados com relação quadro álgico.

Sabe-se que a situação de adoecimento pode instalar ou agravar crises pré-


existentes (Filho & Burd, 2004); foi o caso de Graça, cujo processo álgico agravou
crises familiares, em especial com a sogra: “Ela me diz que eu não sou mais nada, que
não sou mais médica, que agora a única coisa que sou é aleijada” (sic.). A dor agravou
as dificuldades de relacionamento e o clima de tensão com a sogra, que não apoiou sua
união matrimonial desde o início: “Ela sempre disse que eu não servia para ele, que
preferia que ele fosse casado com uma faxineira do que comigo. Mas quando eu
trabalhava e a situação financeira estava boa e podíamos ajudá-la, ela não batia assim
de frente, mas depois, ela fez questão de mostrar que estava por cima” (sic.).

A seguinte fala de Bianca mostra uma questão que levantaram por se sentirem
incomodadas com a cobrança social para que sejam fortes; no entanto, não foi uma
característica que sempre mostraram ao coletivo? “(...) todo mundo quer que você seja
forte! Você não é forte, poxa, chega uma hora que não dá, aí a dor aumenta!” (sic.). A
dor pode ter exercido duas funções: a de mostrar o outro lado para o ego, de que não
pode lidar com tudo sozinho e que precisa sair da posição central e outra, que lhe dá o
consentimento e permissão para mudar sua forma de ser, sinalizando para o outro a
fragilidade e necessidade de cuidado.

Essa fala de que não dá para ser forte o tempo todo mostra que seus egos já se
deram conta de que existem outros lados além da persona e que o papel de cuidadoras

201
não é o único possível. A partir dessa percepção, inciou-se um conflito entre sair da
posição de cuidadoras e o desejo de serem cuidadas. Expressam bastante esse desejo e
reclamam de não ter ninguém para exercer essa função. Entretanto, será que de fato elas
abrem espaço para isso? Será que elas, verdadeiramente, aceitam sair da posição central
de controle e poder e revelar suas fraquezas e necessidades de cuidado e carinho?
Parece que não. Porém, a existência desse conflito já sinaliza um movimento da psique
de ampliação de consciência, pois segundo Jung: “(...) não há equilíbrio nem sistema de
auto-regulação sem oposição. E a psique é um sistema de auto-regulação” (2002,
p.53).

Com relação às expectativas no início do grupo, expressaram justamente o


interesse por um espaço no qual pudessem mostrar suas fragilidades e receber cuidados,
ao mesmo tempo em que pudessem se sentir cuidando umas das outras. Essa abertura
para receberem cuidados e cuidar pode nos revelar uma disponibilidade e/ou
necessidade psíquica para o contato com o arquétipo da Grande Mãe.

Elas mostraram-se conscientes de suas defesas e do papel que a dor possui em


suas vidas; no entanto, ainda ficam confusas com relação a tomar uma atitude frente a
isso. Todas mostraram possuir mecanismos de enfrentamento, a princípio adaptados;
porém percebemos que não o são ao analisar, atentamente, suas repercussões. Bianca
costuma aumentar a carga de trabalho como uma forma de esquecer de seus problemas,
assim como Graça que se dedica à execução de obras de arte com o mesmo objetivo.
Como assumem uma postura fixa por um longo período de tempo, acabam tendo suas
dores acentuadas, ficando mais fragilizadas. Já Elisa, pessoa bastante sociável,
encontrou no isolamento um recurso, mas este também não se mostra adaptado no
sentido em que aumenta sua angústia e fortalece seu sentimento de solidão, o que
também a deixa fragilizada.

Vemos, em nossas participantes, uma preocupação exacerbada com o meio


externo, indicando um intenso locus de controle externo. Essa grande necessidade de
aprovação externa pode compensar um sentimento de menos valia, de inadequação ou
rejeição, possivelmente instalados na infância; seria, portanto, uma forma de compensar

202
uma carência afetiva do início da vida: desta forma, aceitaram o encargo de fazer para
os outros o que gostariam que tivessem feito a elas.

A identificação com o lado negativo do animus aprisiona e inibe o potencial


criativo Feminino que, por contraposição, acabou assumindo um aspecto sombrio.
Conforme veremos adiante, a identificação com o Feminino parece ter ocorrido de
forma estereotipada.

Com relação à primeira representação da imagem corporal, apareceram


elementos como a natureza, elementos que as auxiliam no enfrentamento minimizando a
dor e, também, destacaram a figura de Athina Onassis como representante do Feminino.
Interessante pensarmos que Athina sempre foi considerada um “patinho feio”, pois
apesar de rica e poderosa, era considerada feia e gorda, mas recentemente, deu a volta
por cima e se transformou, agora sendo considerada magra, bonita, amada e poderosa.
Parece que, ao colocarem essa mulher como representante do Feminino, se identificam
com o desejo de aliar atributos tipicamente femininos aos tipicamente masculinos, sem
perder com isso poder e prestígio.

Os elementos da natureza apareceram como uma forma de fuga, no sentido em


que afirmaram sentir vontade de ir para aqueles lugares quando a dor está muito forte.
Os elementos que apontaram como minimizadores da dor – reuniões com amigos,
ginástica, meditação, apreciação da arte, da moda, entre outros – não são utilizados por
elas. Conseguem identificar fatores de melhora, além da esfera física unicamente, porém
não conseguem colocá-los em prática. A imagem de uma mulher gritando, o deserto e
uma frase de divulgação de cerveja – A garota é quente, a cerveja é gelada. Bendito seja
o choque térmico – foram associadas à dor, pois afirmam que se sentem como a figura:
gritando sem que ninguém possa ouvir. A frase da cerveja estaria mais associada com o
tipo de dor, em especial a neuropática, que ora esquenta, ora gela e em geral manifesta-
se na forma de queimor ou choque. Bianca faz uma associação com o deserto no sentido
em que a dor parece ressecá-la por dentro: “(...) às vezes me sinto seca como um
deserto” (sic.). As respostas ao inquérito também foram muito voltadas para a dor e suas
implicações: isso demonstra o forte impacto que possui na constituição de suas imagens
corporais.

203
Segundo Ramos (1994), o corpo pode ser entendido como o mediador e
delimitador do dentro e fora, atuando como um tradutor dos símbolos do Self.
Importante lembrarmos que os símbolos são uma tentativa de harmonização da psique,
de reconciliar o indivíduo com sua essência e com a totalidade, ampliando e
compensando certa unilateralidade da consciência (Penna, 2003). Preocupamo-nos com
que nossas participantes pudessem vivenciar, em seus corpos abatidos e doloridos, a
possibilidade de tradução do símbolo do Feminino, possibilitando o auto-conhecimento
e conseqüente encaminhamento do processo de individuação. Com isso, tornou-se
possível trazer potenciais inconscientes a seus egos, fragilizados, de forma a auxiliarem
a se sentirem mais completos e unificados. Por isso, a preocupação de que houvesse um
constante trabalho de elaboração desse material simbólico, pois sabemos que para algo
se tornar consciente e posteriormente integrado, é imprescindível que o ego tome
conhecimento desse material.

Podemos identificar esse processo de tomada de consciência do ego e da sua


conseqüente mobilização emocional diante da numinosidade desse elementos, ao longo
do processo. Diria que o quarto e o quinto encontros foram os “divisores de águas” da
experiência. A partir destes elas foram se conscientizando do que estava acontecendo,
percebendo que o arquétipo da Grande Mãe estava se constelando, foram se sentindo
mais femininas, valorizadas e confiantes. Passaram a ter uma relação mais intensa com
a dança, dando-se conta dos benefícios que esta poderia lhes oferecer. Vemos isto na
seguinte fala de Graça: “(...) desperta o nosso lado feminino” (sic.) e de Bianca: “É, nos
faz imaginar que não estamos mortas, né! Estamos vivas, o que é isso?!” (sic.). Esta
fala de Bianca expressa o quanto sentia o Feminino distante de sua atitude consciente.
Lembremos que não necessariamente isso se deva à eclosão do quadro álgico, mas
certamente foi exacerbada por este.

Cabe ressaltar que Elisa precisou faltar no quarto encontro, por este motivo não
está incluída na discussão.

A partir do quarto encontro as participantes passam a fazer o contraponto entre


prazer e dor e a perceber a dança como um instrumento para o prazer, despolarizando-as

204
do contexto doloroso. Graça demonstra ter entrado em contato com o arquétipo da
Grande Mãe e com seu potencial de auto-cuidado quando relata que ao executar os
movimentos da Dança do Ventre tem a sensação de que: “parece que estou me
ninando... é como se estivesse cuidando de mim...” (sic.). Fazem a relação entre
tranqüilidade e sensualidade, experienciando a última de forma sublime e não
ameaçadora. Isso aparece na fala de Bianca, que afirma que os movimentos trazem uma
sensação de suavidade, entrega e de uma sensualidade sublime e não vulgarizada.

Foi se tornando possível ao ego, gradualmente, retomar seu senso de auto-


eficácia devido à satisfação por conseguir cumprir a tarefa proposta; segundo Bianca:
“É muito bom fazer esses movimentos... puxa, não imaginava... é muito bom quando
desperta algo em você que você achava que estava meio adormecido, né...” (sic.). A
retomada do senso de eficácia é importante para o fortalecimento egóico e elevação da
auto-estima.

Ao mesmo tempo em que essas transformações foram ocorrendo, foi possível


identificar quais valores destacavam do Feminino. Trouxeram elementos relativos ao
esperado socialmente: aí podemos perceber uma visão estereotipada do Feminino, no
sentido em que destacam as características da beleza, delicadeza e sensualidade sem
vulgaridade, podendo revelar certa visão masculina com relação ao Feminino. Graça
foca muito o lado masculinizado da mulher, a competitividade e superação entre os
sexos. Bianca apresenta um tom moralista com forte cunho emocional, afirmando sentir
vergonha pela classe feminina devido à grande desvalorização e promiscuidade da
geração atual. Essa posição unilateral e com alto teor afetivo parece indicar a presença
do mecanismo psicológico da projeção, em que Bianca desloca para o mundo externo
seus conteúdos psíquicos desconhecidos, portanto, inconscientes (Neumann, 1990).
Essa atitude de projetar a desvalorização do Feminino em outras mulheres pode indicar
um sentimento profundo, encoberto, de desvalorização própria, de dívida com o seu
Feminino, possivelmente associado ao aborto realizado na adolescência, ainda não
elaborado.

Percebemos que, embora estivessem entrando em contato com o Feminino de


forma mais solta e menos rígida, quando solicitado que racionalizassem sobre o tema,

205
retomaram sua forma unilateral, de fortes influências anímicas na apreensão deste
princípio. Isso é evidenciado também nas perguntas que dizem respeito ao que uma
mulher precisa e não precisa nos tempos atuais. À primeira, Bianca responde que é
preciso se valorizar mais e Graça afirma que a mulher atual precisa ter mais
inteligência, força interior – atributos do animus – e tomar cuidado para não magoar as
outras pessoas; aqui percebemos um estereótipo do Feminino, valorizando aspectos
como a bondade e o altruísmo. Com relação ao que uma mulher não precisa, afirmam
que é se comparar aos homens, segundo Graça: “(...) elas não precisam ser iguais aos
homens... elas não precisam ser machos, não adianta se comparar ao homem. Se ela
acha que tem que ser uma grande empresária, tem que ser uma pessoa por exemplo,
que não se abala com nada, fria e calculista, aí ela vai se comparar a um homem”
(sic.). Aqui percebemos também um estereótipo do Masculino. Interessante pensarmos
que essa postura questionada por Graça, foi justamente a que assumiu durante a sua vida
e, com a eclosão do quadro álgico associada à sua fase do ciclo vital e aos trabalhos
psicoterapêuticos realizados, parece ter ocorrido uma ampliação da consciência, que foi
facilitada ao ser acolhido e aceito o símbolo do Feminino. Ela se dera conta do outro
lado que sua persona, moldada pelos valores masculinos, ocultava.

Com relação às qualidades que uma mulher precisa ter, Graça aponta novamente
a inteligência que deve ser utilizada para se valorizar e se aceitar mais e Bianca fala que
as mulheres precisam ser mais sensuais e menos vulgares. A primeira expõe apenas o
que diz respeito ao racional e a segunda, coloca a sensualidade atentando-se para que
não seja vulgar, o que também exige um processo racional, seletivo, que eleja
sensualidade e não vulgaridade.

Quando solicitado que citassem uma mulher que consideram como um modelo,
ambas destacam mulheres cuidadoras, que dedicaram suas vidas para cuidar dos outros:
Princesa Diana, destacada por Graça e Madre Teresa de Calcutá, idealizada por Bianca.
Ambas se identificaram com as personas de cuidadoras e não com as mulheres em si.
Graça fala que o cuidado foi uma característica que conseguiu realizar enquanto médica;
já Bianca coloca essa característica como um peso, como um fardo que carrega desde os
doze anos de idade. Graça se emociona bastante ao relembrar do acidente e deixa
implícita sua indignação com o ocorrido, salientando suas características altruístas e de

206
compaixão com o próximo. Se sente impotente frente a esta situação, lamenta-se por se
sentir sozinha e por não saber com quem contar. Se este é seu modelo de mulher,
conseguimos entender sua angústia quando se depara com a impossibilidade de exercer
o que considerava ser seu maior valor. Em seu discurso, parece que a identificação atual
gira mais em torno das pessoas cuidadas pela Princesa Diana do que com a própria.

Bianca deixa claro que sente o papel de cuidadora como um fardo muito grande,
ao mesmo tempo em que assume esse papel e o destaca como sendo um modelo de
mulher a ser seguido. Fica clara a dificuldade de ambas de abrir mão dessa posição de
controle e poder, mesmo sabendo que este papel de “mártir cuidadora” tornou-se
insustentável nos dois casos. Mostram também uma dificuldade de assumirem suas
fragilidades e necessidades de receber cuidado.

No decorrer do processo, aos poucos, foram entrando em contato com seus


potenciais de auto-cuidado.

Embora Elisa tenha faltado a esse encontro, nota-se que acompanhou o ritmo das
outras participantes no seguinte.

No quinto encontro, Elisa se queixa de falta de sentido na vida e demonstra sua


vontade de que os outros percebam que está doente e permitam que não faça as
atividades do lar esperadas; ao mesmo tempo, não expõe essa situação. Nota-se uma
preocupação intensa com a opinião dos outros e uma grande necessidade de aprovação:
provavelmente isso se instalou ainda na infância e pode estar compensando um medo de
ser abandonada, assim como o foi pelo pai. Elisa afirma não ter feito nada este ano do
que gostaria; quando questionada sobre o que gostaria de ter feito, responde: “Queria
ter viajado mais, ter mais ânimo, sabe assim... nunca viajei sozinha... mais aí tem
aquela coisa... sai mais caro... mas aí eu poderia ir de excursão... tem outras pessoas...
eu faço amizade fácil... mais aí eu penso... ai, pra quê? Só pra ir, ler jornal e voltar
para casa...” (sic.). Percebemos uma dificuldade em tomar uma posição mais ativa
frente a suas vontades, aparece bastante o conflito entre querer e não querer; podemos
falar que diante aos conflitos e angústias pessoais, não apenas relacionada à dor, mas à
sua fase de desenvolvimento do ciclo vital e também questões pessoais, seu ego pode ter

207
vivenciado um sentimento de solidão frente à constatação do Self e ainda não descobriu
nele um aliado.

A experiência do quarto encontro nos deu a informação de que já estava


ocorrendo uma ampliação da consciência, devido ao contato com o símbolo do
Feminino. Pela constatação de que através do processo racional a tendência dessas
participantes é voltar para a forma unilateral, anímica e um tanto quanto machista,
resolveu-se que o caminho mais apropriado para compreender as transformações, bem
como entender como estão sendo percebidas pelo Self, seria tirar o ego da posição de
mediador, deixando o Self se expressar por meio de elementos inconscientes, evocados
em imaginações não induzidas ou viagens de fantasia.

No quinto encontro, então, percebe-se que a relação destas participantes com a


Dança do Ventre se intensificou mais. Primeiramente foi solicitado que ouvissem
determinada música de Dança do Ventre, com os olhos fechados, atentando para a
ocorrência de imagens. Na segunda parte da atividade foi solicitado que executassem os
movimentos da dança na mesma música utilizada na primeira parte. Graça relata ter
visto na primeira parte duas mulheres dançando, uma a Dança do Ventre e outra a
Dança Indiana. Afirma que seus movimentos eram muito belos e complementares. Essa
imaginação parece indicar a integração de duas facetas femininas suas que se unem em
algo belo, numa demostração de que a psique de Graça está apontando outras
possibilidades além da persona de médica, única aceita até então. Na segunda parte,
relata não ter visto nada, pois não conseguiu fechar os olhos devido a uma forte
sensação de deseqüilíbrio, mas referiu ter sentido bastante tranqüilidade, o que nos faz
pensar que essa ampliação de consciência trouxe ao ego uma sensação serena, não
ameaçadora.

Bianca primeiramente “viajou” para o Oriente, entrando em contato com essa


cultura distante. Depois, se viu dançando sozinha em um cenário escuro, avermelhado,
alaranjado e quente. Graça faz associação com o pôr-do-sol do deserto, mostrado na
novela O Clone; Bianca concorda afirmando ser isto mesmo. Dançava, portanto, a
Dança do Ventre durante o pôr-do-sol com roupas de cigana, num cenário não muito
nítido mas que se assemelha a um deserto. Isso parece remeter a um contato com a

208
essência do Feminino, com a natureza, numa espécie de ritual. Segundo Whitmont
(1969), imagens de ciganas são representações arquetípicas do Feminino Eterno. Desta
forma, percebemos que Bianca entrou em contato com sua anima, constelando o
arquétipo da Grande Mãe e entrando em contato com sua verdadeira natureza.

Elisa a princípio percebeu uma claridade e se viu, em momento reflexivo,


sentada numa montanha: “(...) parecia que eu precisava ficar naquele lugar, quietinha,
pensando... e foi isso que consegui. Tava precisando encontrar esse cantinho” (sic.). No
decorrer deste encontro, parece que o ego de Elisa foi se tranqüilizando e percebendo o
Self não mais como algo ameaçador, agora se sentindo acolhido e pertencente a uma
totalidade, parece ter havido uma aproximação entre ego e Self; segundo Neumann
(1990) esta abertura para os aspectos inconscientes permite a realização da unidade
psíquica, pois: “(...) a assimilação de conteúdos externos suprapessoais leva ao
deslocamento do centro, isto é do ego pessoal, centro da consciência para o self, centro
da psique total” (p.292). Na segunda parte, conta ter visto uma mulher muito bonita
dançando com agilidade, ficou admirada com a beleza e sensualidade desta mulher; essa
imaginação parece indicar que entrar em contato com a essência feminina pode ser algo
belo que lhe traga conforto e a faça se sentir pertencente e acolhida.

Nesse encontro todas afirmaram que estava sendo bastante prazeroso fazer os
movimentos da dança, identificando como um recurso positivo. Também comentaram
estarem surpresas por descobrir esse potencial, o que nos faz pensar num fortalecimento
egóico, fazendo-as se sentir mais valorizadas e confiantes em si próprias.

No sexto encontro demonstram perceber a numinosidade e o potencial


arquetípico envolto na Dança do Ventre quando afirmam que têm a sensação de que não
se trata apenas de uma dança (Elisa), de que há algo a mais, falam da magia e do poder
hipnótico que possui (Graça) e de como que essa experiência pode resgatar o senso de
valorização, como afirma Bianca: “(...) foi uma conquista que a gente não esperava!
(...) poxa, semana passada eu fui para as Arábias! (risos) que poder é esse que ela tem,
ein?! Sabe, de mostrar pra gente que mulher incrível nós temos dentro de nós e que a
gente nem sabia direito” (sic.). Com relação aos benefícios, comentam que as fez ver o
quanto são capazes de seduzir os outros e a si próprias, sentindo-se mais valorizadas

209
(Bianca), de elevar a auto-estima (Graça) e de retomada do senso de eficácia e de
sentido pela vida (Elisa). Até esse encontro, não havia sido discutido o motivo da
eleição desta dança neste contexto, tampouco seus benefícios, o que fortalece a idéia de
que se trata de uma arte com grande potencial arquetípico, atingindo e mobilizando a
psique com toda sua numinosidade.

A primeira viagem de fantasia foi utilizada no sexto encontro. O tema evocado


diz respeito ao Feminino (gruta) e devido a suas etapas é possível compreender como a
psique percebe esse contato, se houve ou não transformações e como o processo está
ocorrendo. Serão levantados alguns aspectos que nos auxiliem na compreensão deste
material simbólico e as viagens serão analisadas de forma objetiva, ampliando apenas
alguns símbolos centrais. Cabe lembrar que essa viagem consta de três etapas: a
primeira abrange o processo até chegar na gruta, a segunda a experiência na gruta e a
terceira é referente ao caminho de volta, depois dessa experiência.

Apesar de ter sido instruído que na subida da montanha não sentiriam


dificuldades físicas, Graça comenta ter sentido muita dificuldade, pois não havia levado
corda (sic.). De acordo com Cirlot (2007) a corda é um símbolo de ligação e conexão,
podendo se referir a um caminho interior e sagrado que une a consciência exterior
(intelectual) do homem a sua essência espiritual. Talvez isso indique que Graça já
identificou a necessidade de ascensão, de se re-ligar ao Self, mas ainda não conseguiu
realizá-la, no sentido em que não carregava a corda, embora, mesmo assim, tenha
conseguido subir a montanha. Falou que parar e descansar na pedra foi fundamental;
lembremos de sua fala com relação ao seu perfeccionismo, que a assombra para que
termine suas obras, ou, em períodos anteriores, não permitia que parasse, pelo menos
um pouco, suas cirurgias para se alimentar; parece ter havido uma transformação e uma
conscientização de suas necessidades, tal como parar e desansar para assim conseguir
prossegir, podendo demonstrar uma retirada gradual do foco da meta externa para a
atenção interna, levando em consideração suas vontades e necessidades. Conforme
vimos, essa mudança de foco é muito importante para o desenvolvimento na segunda
metade da vida (Stein, 2006). Na ida à gruta, transformou-se num falcão branco e preto.
De acordo com Chevalier (1993), o falcão pode representar o Deus Hórus Egípico;
portador do olho que tudo vê; tanto em Chevalier quanto em Cirlot o falcão aparece

210
como despedaçador do corpo de lebres (símbolo da lascívia); nesse caso significaria a
vitória sobre a concupiscência, ou seja, a vitória do princípio Masculino sobre o
princípio Feminino. Também cabe ressaltar a objetividade deste animal que visualiza
suas presas a uma longa distância e apanha-as em um movimento rápido e certeiro. Este
elemento pode indicar que os valores masculinos atuam ainda de forma intensa em seu
psiquismo. No entanto, foi a única participante que gostou da experiência de estar na
gruta. No caminho de volta relata ter se deparado com uma bifurcação que não tinha
visto antes, após um breve momento de dúvida, escolhe pelo caminho da esquerda que
lhe pareceu correto, pois a conduziu aonde queria. Segundo Chevalier, o lado esquerdo
representa o princípio Yang, o Céu e o lado honroso, já Cirlot acrescenta que para todas
as civilizações do Mediterrâneo anteriores à nossa era, a esquerda significava a direção
da morte. Depois do contato com o Feminino ela segue para a esquerda, para o lado
masculino que ao mesmo tempo representa o lado da morte. De que morte estamos
falando? Na volta, o falcão estava todo branco, parece ter deixado alguns elementos
para trás. Conta que a sensação de voar foi muito boa e que gostaria de ter voado mais;
será que essa experiência com o vôo eqüilibrou um pouco a sua atitude unilateral
consciente?

Bianca conta que sua trilha para chegar à gruta era muito longa, não era difícil,
mas teve que percorrer um longo percurso. Afirma que no caminho para a gruta se
transformou num Urubú. Embora não tenha encontrado o simbolismo desta ave, cabe
lembrar que se alimenta de coisas podres. Geralmente em bandos, “anunciam” animais
mortos ou em processo de morte. Talvez possamos associar o Urubú com o peso que
Bianca atribui ao aborto realizado na adolescência, como se desde então carregasse algo
podre em seu interior. Afirma que voar foi prazeroso e a deixou tranqüila; no entanto, a
experiência na gruta não foi boa: sentiu-se sufocada, pois era muito quente, úmida e
molhada (sic.): será que essa experiência foi angustiante por tê-la tirado da posição de
controle? Comenta ter andado pela gruta devido à orientação da pesquisadora e não por
vontade própria, o que pode demonstrar uma dificuldade de se responsabilizar por suas
próprias vontades e não apenas seguir o desejo alheio. Embora a experiência na gruta
não tenha sido encarada como agradável, parece ter promovido mudanças; percebemos
isto na transformação do pássaro: ela foi como Urubú e voltou como andorinha, branca,
menor e mais leve (sic.). Afirma ter sido mais fácil o vôo da volta. Segundo Cirlot,

211
andorinha é uma ave consagrada a Ísis e Vênus: seu Self pode indicar com essa imagem
que ela está entrando em contato com o arquétipo da Grande Mãe e com o princípio do
Feminino, fazendo-a ficar mais leve e sentir-se livre daquele contexto de podridão.

Elisa afirmou que a mata de sua floresta era muito fechada e que, para passar,
teve que abrir caminho com uma foice. Cirlot afirma que a foice aparece como um
atributo de Saturno e das alegorias da morte. O autor coloca que as armas curvas, em
geral, são lunares e femininas, enquanto que as retas são solares e masculinas, podem
estar associadas ao caminho secreto para o “ultra-mundo”, comportando o lado da
mutilação e da esperança de renascimento, nesse sentido carrega a idéia de sacrifício.
Elisa desbrava seu caminho, sobe a montanha e pára para beber água, que segundo
Cirlot é símbolo do inconsciente, do Feminino e está associada à sabedoria intuitiva.
Após revigorar-se desses elementos, prossegue. Transforma-se num pássaro branco com
bico amarelo e pernas finas. Também se sentiu sufocada na gruta, que estava muito
quente e úmida, logo, optou por ficar sentada numa pedra. Encontrou uma planta –
símbolo do mistério da morte e da ressurreição (Cirlot, 2007), portanto, da
transformação –, afirma que: “(...) era um bambuzinho assim tudo espetadinho, era a
coisa mais linda que eu já vi” (sic.). No entanto, quando soube que para levar a planta
tinha que deixar alguma coisa em troca, não quis levá-la. Isso pode demonstrar sua
dificuldade de se deprender das coisas e de aceitar uma troca, ou então, de aceitar levar
alguma coisa boa da vivência, o que reforça a idéia de que elas não conseguem se
colocar na posição de quem recebe algo, seja afeto, carinho ou alguma coisa que
consideraram interessante. Afirma que o vôo de volta foi melhor, pois se sentia mais
leve e aliviada, não queria voltar. Conta que o caminho de volta foi mais fácil, pois a
mata já estava aberta. Essa imaginação parece mostrar que Elisa também conseguiu
entrar em contato com elementos do Feminino e se apropriar destes, mas que para isto é
preciso sacrificar outros elementos. Também se evidenciou que ainda lhe é muito difícil
aceitar receber algo, mesmo identificando a coisa nova como boa, atraente e portadora
de potencial de transformação.

Todas contam que gostariam de ter voado mais, porém seguiram as instruções da
pesquisadora isso vem a demonstrar, novamente, o lócus de controle externo
exacerbado e, para se adequarem a essas solicitações, descartam seus desejos. É

212
importante destacar o fato de todas terem parado e retomado a imaginação no mesmo
momento. Isto pode demonstrar uma grande sintonia entre elas, inclusive a nível
inconsciente, o que provavelmente ocorreu devido à aproximação com a dimensão
mágica-mitológica da psique, possibilitada pela prática da dança (Ioshimoto, 2000),
pelo constante trabalho de elaboração através das discussões e pelo próprio encontro
terapêutico do grupo vivencial. Interessante pensarmos que esta parte da fantasia dizia
respeito ao fato de elas poderem levar algo consigo da vivência, possivelmente
sinalizando uma dificuldade de receberem e, portanto, de sair da posição de doadoras ou
de aceitarem receber algo positivo, o que parece reforçar a identificação com o papel de
“mártir cuidadora”, identificado no quarto encontro.

A segunda viagem de fantasia ocorreu no sétimo encontro e evocava conteúdos


referentes a desejos internos, possibilitando ao Self que se expressasse de maneira mais
livre sobre a forma como a psique total destas mulheres estava percebendo e
assimilando o processo.

Na imaginação, Elisa vai para a casa de uma prima, onde há muito não vai e
sente vontade de ir. Escolhe uma fantasia de odalisca, de cor vermelha com bastante
brilho e vai para um salão de baile aonde era esperada para que a festa tivesse início:
parece se tratar de uma figura importante. Lá dança em pares com alguns rapazes, indica
ser uma mulher atraente que desperta interesse em vários homens. Esta parece ser uma
mensagem que reforça a sua atual busca, validando o valor de se (re)encontrar com seu
Feminino, aguçando sua feminilidade e sensualidade, percebidas pelos outros,
valorizada e comemorada em uma grande festa. A dança em pares também pode indicar
que está ocorrendo uma integração entre aspectos femininos e masculinos. Aqui
também aparece uma preocupação externa, mas o inconsciente parece validar essa
busca, acalmando-a ao mostrar que esse “encontro” com o Feminino será bem recebido
pela sociedade. Isso salienta a afirmação de Galiás (2001) de que existe uma expectativa
social de que na maturidade, a mulher entre em contato com seu Feminino e com o
valor do arquétipo da Grande Mãe.

Bianca vai para a casa que considera como a casa dos seus sonhos, espaçosa e do
jeito como sempre quis. Ainda não estava mobiliada. Acreditamos que possa indicar que

213
Bianca conquistou um espaço muito desejado; entretanto, ainda não se apropriou deste.
Esta “apropriação” pode revelar uma aproximação do ego com o Self, no sentido em
que vai acolhendo elementos inconscientes dissociados a fim de preencher sua atitude
consciente, realizando potencialidades, até então ocultas. Escolhe uma fantasia também
de odalisca azul-marinho, com bastante brilho e vai se apresentar em um teatro diante
um público desconhecido. Dança a Dança do Ventre e afirma ter se sentido muito bem
com isso. Ao que tudo indica (e também de acordo com a sua própria fala), parece estar
havendo uma integração desse elemento Feminino. Também percebemos, como em
Elisa, um reconhecimento e validação social para essa busca, talvez como respostas à
sua necessidade de aprovação externa.

Graça encontrou um espaço próprio aonde não esperava encontrar. Em sua


imaginação, após se vestir de princesa, quando solicitado que fossem para algum lugar
onde acham que a personagem a qual se fantasiaram iria, ela volta para a casa aonde
estava e nessa volta descobre através de um quadro que aquele espaço era seu. A
princípio sente-se impotente, depois se sente mais completa e afirma que queria ter
ficado mais na vivência, embora sinta precisar sair. Essa experiência parece retratar a
sensação do ego ao deparar-se com o Self: a princípio se sente impotente quando
percebe que não é o centro absoluto. Depois, se sente mais completo ao compreender
que não está sozinho em sua jornada, pois existe uma dimensão que ao mesmo tempo
em que lhe confere um senso de unidade, forma a base para o que existe em comum
entre o indivíduo e o mundo (Stein, 2006). Com relação à sensação que Graça teve de
precisar sair da casa, pode remontar à compreensão do ego de que precisa sair do centro
da consciência, ou então, revelar uma dificuldade em lidar com essa sensação de
completude. O contexto épico pode demonstrar que, para que consiga de fato integrar
esse seu lado “princesa” e encontrar seu espaço, talvez seja preciso resgatar elementos
de um passado distante, possivelmente anterior à medicina.

No oitavo encontro, após a vivência, é solicitado que escolham um movimento


da dança de que mais gostaram. Todas escolhem o movimento oito (∞) e Graça elege
dois movimentos: o oito e o de rotação de tronco. De acordo com Chevalier (1993), o
oito é o número universal do equilíbrio cósmico, símbolo da ressurreição, da
transfiguração e anúncio da era futura eterna. A oitava carta do tarô de Marselha é A

214
Justiça, símbolo da completude totalizante e do equilíbrio. Cirlot (2007) complementa
que o oito é a forma central entre o quadrado – ordem terrestre – e o círculo – ordem da
eternidade – por isso, é um símbolo de regeneração. Tem relação com as duas serpentes
do caduceu de Hermes, a Uroboros – representante da união dos opostos –, neste
sentido, o oito expressa o equilíbrio das forças antagônicas.

As participantes afirmam que escolheram o oito, pois este traz paz, tranqüilidade
e promove um alívio e descarga de tensão (Elisa), dá formas ao corpo da mulher e solta
os “parafusos” que as enrijecem (Bianca) e dissolve a armadura que construíram em
função, mas não apenas, da dor (Graça). Graça também comenta que, tanto o oito
quanto o movimento de rotação de tronco valorizam as áreas mais femininas do corpo
da mulher: o quadril e os seios.

O oito, seria portanto, um elemento de integração. Dois pólos opostos se unem e


integram um movimento cíclico e contínuo. Este processo infinito nos remete ao
processo de individuação no qual é preciso entrar em contato com o pólo oposto e
integrá-lo à atitude consciente, num movimento dialético, de tese, síntese e antítese,
intermináveis, que nos remetem à ampliação da consciência e, conseqüentemente, ao
desenvolvimento (von Franz 1964, Jung 2004 e Stein 2006). Segundo Penna (2003), o
processo de individuação é infinito, pois enquanto houver uma ânsia pelo conhecimento
e pela busca do sentido da vida: “(...) o novo se acrescenta ao velho e o renova e
impulsiona novamente ao desconhecido, numa espiral que se estende para cima, para
baixo e para os lados em direção à complexificação e diversidade infinitas” (p.209).

Assim como no processo de individuação, na execução do oito é preciso passar


por várias etapas, em um movimento cíclico de constante transformação em que precisa
entrar em contato com o outro lado, fundir, discriminar e voltar a fundir novamente, de
modo que integre esses elementos. Diferente do movimento circular do redondo, o qual
inicia e termina no mesmo local, no oito parte-se de um ponto estático já fora do eixo do
corpo, contorna o desenho a caminho do centro, parte-se para o pólo oposto, fundindo
esses dois pólos no centro e, então, parte-se novamente para o ponto de partida,
reiniciando o processo.

215
Ao que tudo indica, essas mulheres conseguiram resgatar parte de suas animas
reprimidas, despolarizando a atitude masculina da consciência, fazendo com que se
sentissem mais leves, tranqüilas e valorizadas. É importante ressaltarmos que a função
da anima e do animus é fazer uma ponte de ligação entre o ego e o Self (Jung E., 1991)
e que por isso nunca serão totalmente conhecidos, a ponto de se integrarem totalmente à
consciência e não se projetarem mais (Stanford, 1987).

Percebemos que foi possível através deste trabalho, despolarizar a energia


psíquica do foco da dor e redirecioná-la a possibilidades prazerosas da existência. Isso
aparece quando Graça comenta estar com uma música na cabeça, há algum tempo,
cantando o refrão de uma música do grupo Jota Quest que diz: “Ei dor, eu não te escuto
mais, você não me leva a nada”. As outras participantes concordam e se emocionam
cantando juntas.

Analisado as imagens individuais que levaram como forma de representação do


modo como estavam percebendo seus corpos, Bianca demonstra ter encontrado sua
natureza, sua essência feminina; embora a dor ainda exista, aparece de forma
secundária, abrindo espaço para a demonstração da beleza desse encontro. A frase que
ela não corta da imagem (É o homem voltando a ocupar a sua natureza), parece,
justamente, remontar a esse encontro. Suas viagens de fantasia foram revelando que o
símbolo do Feminino estava sendo integrado e bem recebido em sua psique.

Elisa foi se posicionando de forma mais ativa e, ao entrar em contato,


progressivamente, com o Feminino, conseguiu encontrar a paz que tanto procurava e
resgatar valores de sua identidade que estavam perdidos: isso é explicitado pela imagem
e pela frase que traz, relatando estar mais tranqüila e ter encontrado o amor e a
felicidade, achando justo dividir isso com os próximos. O que essa vontade pela divisão
vem mostrar? Seria uma forma de mostrar que apesar de ter sido bom, ela ainda não
consegue lidar com esse ganhos, ou será uma forma de mostrar para sua rede social que,
apesar da dor, consegue resgatar seus valores? Lembremos da importância que todas as
participantes dão para a validação externa e que, embora sua rede esteja mais distante,
Elisa se sente muito cobrada, principalmente pelas irmãs para que participem de suas
decisões.

216
Graça mostra a forma como representaria sua dor utilizando uma imagem
complexa dos chackras do corpo, não apenas os sete principais. Faz uma analogia à uma
energia que circula e irradia por todo o corpo. As outras imagens mostram o percurso
até entrar em contato com sua essência feminina. As primeiras imagens, por serem
juvenis, indicam um certo distanciamento do Feminino sensual e maduro, assim como
demonstram certa insatisfação e solidão, enquanto que a quarta mulher parace estar
satisfeita e “entregue” à situação. Ela permite ser cuidada pelos anjinhos e demonstra
gostar disso. Parece que Graça se deu conta de que pode permitir ser cuidada e que isso
pode ser muito prazeroso. Associa os anjinhos com os membros do grupo ao relatar que
se sentiu cuidada e, que esse cuidado, possibilitou a emergência desse aspecto de seu
Feminino.

Nas imagens que trouxeram, a dor ou não aparece (Elisa) ou aparece como um
elemento secundário, diferente da primeira representação. Embora tenham sido
oferecidos os mesmos materiais da outra vez, desta elas não os quiseram usar, lançando
mão apenas das imagens que levaram. Parece ter havido um redirecionamento da
energia psíquica, no sentido em que suas imagens corporais não estão mais tão
vinculadas ao contexto doloroso. Percebe-se que conseguiram resgatar elementos
prazerosos, saindo da posição de doentes, identificando e integrando outras formas de
ser à atitude consciente, o que nos faz pensar que houve uma ampliação da consciência.

A representação da segunda imagem grupal parece comprovar a hipótese de que


a atividade corporal da Dança do Ventre é capaz de despolarizar a energia psíquica da
dor, (re)integrando elementos prazerosos à atitude consciente, promovendo um senso de
auto-eficácia para o ego que, por sua vez, fica mais fortalecido. O nome que deram para
a imagem retrata justamente este processo. Bianca nomeou-a como Em Busca, Graça
completou com Busca Interna e Elisa falou Renovação da Vida: expressam portanto, um
resgate de elementos inconscientes que possuem como potencial a renovação da vida no
sentido em que, ao trazer elementos inconscientes à consciência esta é renovada com
conteúdos “novos”. Nesse sentido, elas vivenciaram a sensação prazerosa de
completude, trazendo esperança e força para o ego, num movimento de ampliação de
consciência.

217
Parece que, ao término do processo, passaram a adotar uma postura mais ativa
com relação aos outros e a si próprias; isso evidencia-se na fala de Bianca que afirma ter
compreendido que não pode mais interferir tanto na vida dos pais, pois sente que se
sobrecarrega e os sobrecarrega também; no entanto afirma ser muito difícil se afastar
pois, além da sensação de estar abandonando-os, sente-se inútil. Elisa também passou a
ter uma postura mais ativa frente a sua rede social, deixando de se isolar tanto e Graça
procurava lugares para expôr suas obras, buscando fazer desta uma atividade com fins
lucrativos.

Relataram sentir-se mais atraentes e sedutoras, identificando melhoras na auto-


estima. Pensamos que o contato com as raízes femininas, de fato, faz com que se sintam
mais valorizadas, atraentes e fortalecidas, melhorando a relação com o próprio corpo e a
forma como se percebem. Bianca afirma que o grupo foi muito importante pela
conquista da esperança, do fortalecimento e da serenidade pela vida. Elisa afirma ter se
surpreendido ao perceber que consegue fazer os movimentos, descristalizando sua idéia
de que era dura. Pensamos que a rigidez não estava, como ela diz na cintura, mas na sua
relação com seu Feminino. Graça afirma que o mais importante para ela do grupo, foi
ter conseguido melhorar a sua auto-estima. Todas mostraram-se surpresas ao conseguir
realizar esses movimentos, o que nos diz que de fato ocorreu um fortalecimento egóico
e retomada do senso de eficácia. Falam da importância da atenção e valorização do
próprio corpo e da feminilidade, de maneira geral.

Bianca destaca a importância deste trabalho ter ocorrido em grupo, falando que
o processo grupal acende uma chama. Lembremos que a experiência do grupo anterior
(Loduca, 2007) foi muito significativa também nesse sentido.

Graça fala que a Dança do Ventre mexe com o corpo: “(...) de um jeito que a
gente vai se revelando, nossa foi incrível para mim!” (sic.). Essa fala expressa muito
bem o potencial arquetípico desta dança de, ao trazer elementos sombrios para a
consciência (principalmente o símbolo do Feminino), promove uma ampliação desta,
auto-conhecimento e o encaminhamento do processo de individuação no qual o
indivíduo vai tornando-se o que é em potencial, vai desvelando (ou revelando como

218
Graça afirmou) seu potencial genuíno, tornando-se uno com o universo. A fala de
Bianca também demonstra o quanto encontraram nesse processo uma forma de
manterem-se próximas de si mesmas: “(...) não quero correr o risco de me afastar de
mim mesma, de deixar meu feminino morrer!” (sic.).

Análise e discussão dos dados do questionário WHOQOL:

Os questionários de qualidade de vida (WHOQOL) foram analisados a partir do


programa estatístico SPSS. Foram analisados os dados do grupo como um todo e não os
resultados individuais, pois atentamo-nos e investimos desde o princípio na relevância
do encontro em grupo e não com desempenhos individuais. A partir dessa análise
obtivemos os seguintes dados:

Coleta de dados N Média Desvio Padrão

FACETA 1 Primeira Coleta 3 16,00 1,00


Segunda Coleta 3 14,67 2,08

FACETA 2 Primeira Coleta 3 11,67 1,53


Segunda Coleta 3 11,33 1,53

FACETA 3 Primeira Coleta 3 12,67 2,31


Segunda Coleta 3 13,33 2,08

FACETA 4 Primeira Coleta 3 12,67 0,58


Segunda Coleta 3 14,33 1,15

FACETA 5 Primeira Coleta 3 12,33 3,21


Segunda Coleta 3 12,33 2,52

FACETA 6 Primeira Coleta 3 14,33 2,52


Segunda Coleta 3 14,67 2,31

FACETA 7 Primeira Coleta 3 15,00 3,61


Segunda Coleta 3 15,33 3,21

FACETA 8 Primeira Coleta 3 16,00 3,46


Segunda Coleta 3 12,33 0,58

FACETA 9 Primeira Coleta 3 14,33 2,52


Segunda Coleta 3 14,00 3,61

219
FACETA 10 Primeira Coleta 3 12,00 1,73
Segunda Coleta 3 13,00 2,00

FACETA 11 Primeira Coleta 3 15,00 4,36


Segunda Coleta 3 13,33 1,53

FACETA 12 Primeira Coleta 3 14,00 3,46


Segunda Coleta 3 13,67 2,08

FACETA 13 Primeira Coleta 3 11,00 2,65


Segunda Coleta 3 15,00 2,00

FACETA 14 Primeira Coleta 3 12,67 1,15


Segunda Coleta 3 14,00 2,65

FACETA 15 Primeira Coleta 3 10,00 2,00


Segunda Coleta 3 10,33 3,79

FACETA 16 Primeira Coleta 3 12,33 1,53


Segunda Coleta 3 13,33 2,08

FACETA 17 Primeira Coleta 3 14,67 4,16


Segunda Coleta 3 14,33 2,08

FACETA 18 Primeira Coleta 3 10,67 3,51


Segunda Coleta 3 10,67 2,31

FACETA 19 Primeira Coleta 3 13,00 2,65


Segunda Coleta 3 13,67 1,53

FACETA 20 Primeira Coleta 3 14,33 2,08


Segunda Coleta 3 14,00 2,00

FACETA 21 Primeira Coleta 3 12,33 2,08


Segunda Coleta 3 15,00 1,00

FACETA 22 Primeira Coleta 3 12,67 1,53


Segunda Coleta 3 12,67 1,15

FACETA 23 Primeira Coleta 3 12,00 1,00


Segunda Coleta 3 13,00 1,73

FACETA 24 Primeira Coleta 3 15,00 0,00


Segunda Coleta 3 15,33 0,58

FACETA 25 Primeira Coleta 3 13,33 2,08


Segunda Coleta 3 14,33 0,58
DOMÍNIO 1 Primeira Coleta 3 10,78 1,26

220
Segunda Coleta 3 11,33 0,88

DOMÍNIO 2 Primeira Coleta 3 12,47 1,42


Segunda Coleta 3 13,67 1,45

DOMÍNIO 3 Primeira Coleta 3 12,33 2,75


Segunda Coleta 3 12,83 1,61

DOMÍNIO 4 Primeira Coleta 3 11,22 1,35


Segunda Coleta 3 13,11 1,64

DOMÍNIO 5 Primeira Coleta 3 12,75 1,63


Segunda Coleta 3 13,33 1,26

DOMÍNIO 6 Primeira Coleta 3 15,00 0,00


Segunda Coleta 3 15,33 0,58

TOTAL Primeira Coleta 3 100,00 0,00


Segunda Coleta 3 100,00 0,00

Lembremos que esse instrumento é composto por seis domínios (físico,


psicológico, nível de independência, relações pessoais, ambiente e aspectos
espirituais/religião/crenças pessoais) e cada domínio é formado pelas seguintes facetas:

Domínios Facetas
1. dor e desconforto físico,
Físico 2. energia e fadiga e
3. sono e repouso.
4. sentimentos positivos,
5. pensar, aprender, memória e
concentração,
Psicológico 6. auto-estima,
7. imagem corporal e aparência e
8. sentimentos negativos.

221
9. mobilidade,
10. atividades da vida cotidiana,
Nível de Independência 11. dependência de medicação ou de
tratamentos e
12. capacidade de trabalho.

13. relações sociais,


14. suporte (apoio) social e
Relações Pessoais 15. atividade sexual.

16. segurança física e proteção,


17. ambiente e lar,
18. recursos financeiros,
19. cuidados de saúde e sociais:
disponibilidade e qualidade,
Ambiente 20. oportunidades de adquirir novas
informações e habilidades,
21. participação em e oportunidades de
recreação/lazer,
22. ambiente físico:
poluição/ruído/trânsito/clima e
23. transporte.

Apectos espitituais/religião/crenças 24. espiritualidade/religião/crenças


pessoais pessoais.

Existe uma 25a faceta com perguntas gerais sobre qualidade de vida.

A partir desses dados, percebemos que só não ocorreram alterações nas facetas 5
(Pensar, aprender, memória e concentração), 18 (Recursos financeiros) e 22 (Ambiente
físico: poluição/ruído/trânsito/clima). Todas as outras facetas mostraram alterações:

222
embora em alguns casos sejam quase imperceptíveis, percebe-se que o processo, mesmo
com seu curto período de tempo, teve ampla repercussão, interferindo em áreas as quais
não se esperava atuar. Interessante pensarmos que a faceta 5 não computou alterações,
visto que o grupo foi um espaço em que puderam refletir e elaborar algumas questões,
bem como aprender coisas novas. Com relação à memória e concentração, queixaram-se
da falta de, em alguns momentos. Cabe lembrar que alguns medicamentos para dor
influenciam nestas últimas areas citadas.

Ocorreram alterações mais significativas nas facetas 1 (dor e desconforto físico),


4 (sentimentos positivos), 8 (sentimentos negativos), 11 (dependência de medicação ou
de tratamentos), 13 (relações pessoais), 14 (suporte/apoio social) e 21 (participação em
e oportunidades de recreação/lazer). O questionário demonstra que as participantes do
grupo relataram diminuição da dor e desconforto físico, acredito que isso se deva à
despolarização da energia psíquica do foco da dor, à influência das emoções positivas
no alívio da dor – lembremos da teoria da comporta – e também, pelo fato de se
sentirem acolhidas e cuidadas. Também houve aumento dos sentimentos positivos com
relação à vida e diminuição dos sentimentos negativos, penso que isso pode ter ocorrido
por encontrarem um sentido para aquela atividade. Os dados mostram sentirem
diminuição da sensação de dependência de medicação ou tratamentos, melhora das
relações pessoais e do suporte social e maior interesse de participação em atividades de
lazer e recreação. Parece ter ocorrido uma retomada de posição mais ativa frente ao
próprio processo.

Apesar de percebemos, através da comparação das representações das imagens


coporais e pelo relato das participantes, o questionário não apresentou alterações
significativas nas facetas 6 (auto-estima) e 7 (imagem corporal e aparência física).
Algumas hipóteses foram levantadas a fim de responder essa questão: inicialmente
pensamos que é possível que o psiquismo leve um tempo maior para assimilar e
reorganizar as alterações ocorridas, desta forma seria necessário um período maior de
tempo para que essas alterações pudessem ser computadas objetivamente. Também nos
questionamos se as perguntas destas áreas do questionário avaliariam alterações a curto
prazo. As perguntas utilizadas são as seguintes:

223
Auto-estima.
F6.1 O quanto você se valoriza?
F6.2 Quanta confiança você tem em si mesmo?
F6.3 Quão satisfeito você está consigo mesmo?
F6.4 Quão satisfeito você está com suas capacidades?

Imagem Corporal.
F7.1 Você é capaz de aceitar a sua aparência física?
F7.2 Você se sente inibido(a) com sua aparência?
F7.3 Há alguma coisa em sua aparência que faz você não se sentir bem?
F7.4 Quão satisfeito você está com a aparência de seu corpo?

Pensamos que talvez seja necessário um período maior de tempo para que essas
perguntas possam avaliar alterações significativas.

Conforme vimos, a tarefa desenvolvimental da sociedade pós-moderna é a


entrada, verdadeira, no dinamismo da alteridade. Para que isso se viabilize é
imprescindível a confrontação com a sombra e a aceitação de que nossa personalidade
não é formada apenas por atributos positivos. Whitmont (1991) deixa claro que através
da integração do Feminino é que poderemos vivenciar nossa totalidade.

No capítulo 5, refletimos sobre o que seria integrar o Feminino, hipotetizando


que seria integrar os quatro aspectos deste arquétipo: Eva, Helena, Maria e Sophia. Mas
antes de tudo é necessário integrar Eva e Lilith. Para tanto, é preciso que a mulher se
torne consciente de sua capacidade de sedução (Engelhard, 1990).

Percebemos que ocorreu um movimento para a conscientização desse lado


sedutor de nossas participantes. Bianca afirma ter sido muito bom descobrir que ainda é
capaz de seduzir tanto os outros como a si própria. Também identificamos esse
“encontro com Lilith” nas viagens de fantasia, em que entrou em contato com sua
anima, representada pela imagem da cigana, depois pela experiência de se transformar
em uma andorinha após ter entrado na gruta e, também, na viagem em que vestiu-se de
odalisca e foi apresentar a Dança do Ventre, expondo esse potencial sedutor para seus

224
expectadores. As imagens que trouxe no final do processo, que representam a forma
como percebe seu corpo atualmente, retratam um (re)encontro com sua natureza
feminina.

Nas últimas imagens que Graça levou, percebemos que conseguiu entrar em
contato com esse potencial sedutor, o que a fez se sentir mais valorizada e cuidada. Mas,
as outras imagens também demonstram que para que isso ocorresse, foi preciso
enfrentar suas fraquezas e descrenças. Esse reconhecimento dos aspectos femininos
também apareceram em suas fantasias, lembremos aquela em que Graça vê duas
mulheres dançando a Dança do Ventre e a Dança Indiana de forma complementar, cabe
ressaltar que ambas as danças são muito femininas. Na última viagem de fantasia,
parece ter entrado em contato com seu lado romântico, delicado, de notável realeza: seu
lado princesa.

Elisa verbaliza que se deu conta da importância de cuidar de sua feminilidade.


Também parece ter havido um (re) encontro com Lilith em suas viagens. Primeiro viu
uma mulher muito bonita dançando a Dança do Ventre e sentiu vontade de acompanhá-
la. Depois, ela vai abrindo caminho para este Feminino com a foice e, por fim, se veste
de odalisca e parte para uma grande festa na qual era esperada como figura principal e
convidada a dançar com vários parceiros, como uma mulher sedutora.

Percebemos que os movimentos da dança possibilitaram o resgate de aspectos


do Feminino, o que favorece o processo de individuação de cada uma destas
participantes. Isto pode ser vivido, inicialmente, como uma desestruturação “me sinto
como se estivesse fora do eixo” (sic. Graça) ou “é como se soltasse os meus parafusos”
(sic. Bianca). No entanto, elas sentiram tal desestruturação de forma prazerosa, como se
tal contato descristalizasse a rigidez que adotaram em função da identificação anímica e
do processo álgico crônico.

Segundo seus relatos iniciais, percebemos que existia, de maneira global, uma
forte identificação do ego com a persona de “mártir cuidadora”. Nesse sentido, seus
potenciais de autocuidado, auto-realização e prazer pela vida estavam, em
contraposição, na sombra. Ao resgatarmos aspectos do Feminino e a auto-estima, tais

225
potenciais ressurgiram à consciência, possibilitando ao ego a utilização de outras
personas, dentre elas a de mulher que busca por satisfação pessoal.

Para viabilizar o resgate do Feminino é preciso criar um contexto ritualístico que


(re)ligue a psique consciente com a dimensão mágica-mitológica (Perera, 1985),
fornecendo espaço para que possa ocorrer a constelação do arquétipo da Grande Mãe.
Isso não significa uma regressão, mas sim uma integração desses elementos, até então
sombrios, consequenciando a ampliação da consciência e favorecendo o
encaminhamento do processo de individuação. A Dança do Ventre, portanto, foi um
instrumento fundamental nesta tarefa.

Ao longo do processo foram observadas alterações na forma como se


apresentavam: inicialmente usavam muitas roupas pretas ou cinzas e, a partir do
terceiro encontro passaram a utilizar roupas mais coloridas. Bianca cortou os cabelos,
Graça passou a se bronzear e Elisa, que sempre estava com o cabelo preso, passou a
deixá-lo solto.

Quando elogiadas pelas mudanças, relatam maior vontade de se arrumar,


afirmando ser um reflexo do processo grupal que elevou sua auto-estima.

Esses dados nos faz pensar que o processo do grupo as auxiliou a entrar em
contato e resgatar alguns aspectos do Feminino. Evidente que o processo não se encerra
aqui, mas foi dado o primeiro passo para que descobrissem esse potencial para que
agora, sozinhas, possam prosseguir neste belo empreendimento pela descoberta e
apropriação de suas essências.

Percebemos que se deram conta da importância e da possibilidade de cuidarem


de si, de investir em seus próprios processos. Isso nos faz concluir que este trabalho teve
ressonâncias não somente a nível terapêutico, mas também profilático.

Afirmamos que o objetivo deste trabalho foi alcançado, pois através da prática
de movimentos da Dança do Ventre em contexto de grupo vivencial breve, foi possível

226
resgatar aspectos do Feminino, elevar a auto-estima e contribuir, de maneira geral, com
a qualidade de vida destas participantes. Este trabalho mostrou-se portanto, um
importante aliado na atenção e promoção de saúde deste tipo de população.

227
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Este trabalho é fruto de uma profunda indagação e do entusiasmo de uma pessoa


que se envolveu intensamente com o tema e que acreditou que algo poderia ser feito
neste sentido. Antes de tudo, é uma realização pessoal que alimenta e fecunda planos
profissionais futuros.

O percurso não foi fácil. Me deparei com obstáculos que me desanimaram e


outros que incentivaram. Fui muito criticada por pessoas que afirmavam que não
deveria ter colocado um objetivo alto num trabalho de graduação e que, portanto, não
conseguiria realizá-lo. Por alguns momentos acreditei nessas pessoas pensando que, de
fato, não seria capaz, mas depois encontrei forças para seguir adiante percebendo que
não poderia desistir daquilo em que tanto acreditava e amava. Também houve aqueles
que questionaram a relevância do tema; estes, em especial me impulsionaram a investir
intensamente neste trabalho de modo a mostrar a sua riqueza.

Foi com muito amor e perseverança que coloquei esse “filho” no mundo e,
apesar das dificuldades, é com muito orgulho e satisfação que o apresento. Agora, seu
processo de individuação se iniciou e cabe a mim dar continuidade ao seu
desenvolvimento.

Este trabalho não encerrou com o TCC, pelo contrário: apenas iniciou-se. Houve
uma continuidade e espero divulgar novos resultados em breve. Os dados aqui
apresentados são apenas um “recorte” da grande amplitude deste trabalho, apenas uma
peça de um complexo mosaico que merece ser olhado e analisado com maior
profundidade, em outro momento.

Compreendi que um trabalho é finalizado não porque o assunto se esgotou, mas


pela inevitabilidade da confrontação com o prazo de entrega. Foi muito difícil encerrá-
lo, pois acredito que ainda há muito a ser explorado, ampliando cada uma das áreas
apreendidas pela riqueza dos discurssos e vivências dos encontros do grupo.

228
Sabemos da carência de estudos brasileiros com indivíduos que sofrem de algias
crônicas e este mostrou sua importância na atenção e promoção de saúde deste tipo de
população. Ainda há muito a ser feito, mas espero que possa ter ampliado a visão de que
é possível oferecer para tal população algo a mais do que aquilo que se preza pelo
modelo biomédico e, para isso, é preciso que o psicólogo se deixe envolver e tocar pelo
afeto do encontro no qual busca-se facilitar ao outro que atribua sentido à sua
existência, através do contato verdadeiro com sua essência.

229
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São Paulo. (IOT/HC-FMUSP) (abril-dezembro de 2007) e do Congresso Interdisciplar
de Dor (Cindor-2007, 10 e 11 Maio).

238
ANEXOS:
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ________________________________, RG__________________, declaro, por


meio deste termo, que concordei em ser entrevistado (a) na pesquisa de campo referente
ao projeto intitulado “Dor Crônica e a Vivência do Feminino: Redescobrindo-se através
da Dança do Ventre”, desenvolvido pela Faculdade de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Fui informado(a), ainda, que a pesquisa é orientada
pela Profa. Dra. Flavia Arantes Hime, a quem poderei contatar a qualquer momento que
julgar necessário através do telefone 36708320. Afirmo que aceitei participar por minha
vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de
colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui infomado (a) dos objetivos estritamente
acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais é resgatar o feminino visando elevar a
auto-estima.
Fui também esclarecido (a) de que os usos das informações por mim oferecidas estão
submetidas às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde, do
Ministério da Saúde. Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de
entrevista a ser gravada. Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta
prejuidicado (a), poderei contatar o pesquisador responsável ou seu orientador, ou ainda
o Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP. A pesquisadora principal do estudo me
ofereceu uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Fui ainda
informado(a) de que posso me retirar deste estudo a qualquer momento, sem qualquer
prejuízo.

São Paulo,__________________________________________

Assinatura da participante:___________________________________

Assinatura do(a) aluno(a) pesquisador(a):________________________

Assinatura da orientadora:____________________________________
PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM CORPORAL –
INÍCIO DO PROCESSO:
SEGUNDA REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM CORPORAL –
TÉRMINO
DO PROCESSO:

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