Você está na página 1de 60

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

MARILIZ MAZZONI MAGATON BENTO

O DIREITO DE PARIR EM PAZ

Santos

2014
AGRADECIMENTOS

Um caminho é mais que uma simples direção. Ele é envolto de paisagens,


cercas, buracos, atalhos, montanhas, trechos sinuosos e trechos tranquilos. O
caminho certo, nem sempre é o caminho mais fácil, mas a certeza é que é o
caminho que te levará ao teu verdadeiro encontro consigo mesmo.

Assim foi meu caminho pela Universidade Federal de São Paulo, pelo curso de
Serviço Social e pelo universo do parto. Percorrer esses caminhos é ir de
encontro comigo mesma. É colocar óleo na engrenagem da vida para seguir
livre aquilo que vem do coração.

O meu agradecimento é em forma de gratidão. Gratidão enquanto estado de


espírito e cumprimento de alma para alma que me guiaram e me fortaleceram
em meu caminho.

Eu, Mariliz Mazzoni Magaton Bento, bisneta de Joana, neta de Laura e filha de
Darci, sou grata por ter nascido mulher e ter o sangue de vocês em meu
sangue. Gratidão por todas as mulheres que vieram antes, depois e que ainda
estão por vir em nossa família!

Gratidão à Rainha da Floresta, Mestre Ganesha, Pachamama e toda a força


feminina por terem me acolhido em dias de chuva e por terem me guiado nos
dias de sol. Sou grata!

Gratidão à minha família, pelo apoio e por permitir que eu fosse livre em
minhas escolhas e pelos caminhos que eu tenho a percorrer. Sou grata!

Gratidão às companheiras de sonho, de trabalho e de luta no universo do


partejar: Rose Pereira, Driele Alia, Cinthia Pimenta e Cintia Maluf. Vocês foram
peças chave para transformar uma missão de vida em realidade. Sou grata por
cada ensinamento, vocês são minhas eternas mestras.

Gratidão às amigas de vida, de estrada e coração que conquistei nesse


caminho: Gabriela Alves, Jéssika Bertani, Maria Júlia, Carol Shanti, Thais do
Amaral, Maria Clara Psoa, Lais Lima, Agatha, Bárbara, Giovanna.
Gratidão às companheiras de casa, por tornar nosso lar um recanto de respeito
e amizade: Jéssica e Bianca, sou grata!

Sou grata ao Movimento Estudantil do Serviço Social, por aprender com vocês
(mesmo que na maioria das vezes de longe) como se faz a luta, como se
acorda todo dia com o sonho da construção de uma sociedade mais justa e
igualitária.

Gratidão à Profª. Dra. Andrea Almeida Torres, vizinha de apartamento e


pessoa com quem tive a oportunidade de conviver, aprender e admirar cada
dia mais.

Gratidão à orientadora Profª. Dra. Maria Lucia Garcia Mira, sou grata pelo seu
papel e atenção na leitura e releitura do meu trabalho e por compreender meu
universo particular.

Gratidão à Profª. Dra. Cristiane Gonçalves por aceitar de imediato a leitura


desse trabalho e por suas contribuições.

Por fim, a maior gratidão às mulheres que acompanhei como Doula e às


mulheres que contribuíram para a realização dessa pesquisa. Foram vocês e
são vocês que guiam meu caminho. Ter encontrado com cada uma e cada
família que buscaram parir de forma respeitosa e amorosa, me deu ainda mais
força nessa caminhada. Gratidão Sumyre, Izabela, Daniela, Duda, Karla,
Glaucia, Tamires, Thabata, Luiza, Lidiane, Vitória e Odara.
Dedico esse trabalho a todas as mulheres que tiveram
seus partos roubados de si mesmas.
É que tem mais chão nos meus olhos
do que cansaço nas minhas pernas,
mais esperança nos meus passos
do que tristeza nos meus ombros,
mais estrada no meu coração
do que medo na minha cabeça.

Cora Coralina
INTRODUÇÃO

Segundo o relatório global do Fundo das Nações Unidas para a Infância


(UNICEF, 2011) a taxa de cesárea no Brasil é de 44%, tornando-se a maior do
mundo. Os dados oficiais do Brasil (DATASUS, 2011) mostram um percentual
ainda maior, de aproximadamente 54%. A Organização Mundial da Saúde
(OMS) estabelece que apenas 15% dos partos devem ser operatórios
(Organização das Nações Unidas [ONU], 2011).

São dados que se tornam alarmantes, ao se notar que o nascimento


deixou de ser um ato íntimo, natural e espontâneo, e passou a ser um evento
cirúrgico – com hora marcada, de acordo com a disponibilidade e preferência
da equipe técnica. Os dados revelam ainda que o Brasil atingiu nas últimas
décadas níveis de incidência da taxa de cesáreas extremamente elevadas,
superiores aos de qualquer outro país. Tal cenário nos remete a uma séria
discussão, sobre o quanto o corpo das mulheres está sendo tratado de acordo
com a disponibilidade e exigências da equipe técnica, desvalorizando
vontades, direitos e reais necessidades das parturientes.

Para além de um evento médico, o parto carrega em si aspectos


psicológicos, físicos, sociais e culturais. As experiências vividas nesse
momento são expressas no corpo da mulher, que por sua vez se constituí em
um ser social, historicamente e culturamente em construção a partir do
contexto sociocultural que estão inseridas.

Desde meados da década de 1980, a OMS tem assumido uma postura


crítica quanto à excessiva medicalização do parto. Em 1985 a Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS) e os escritórios regionais da OMS na Europa
e Américas, realizaram uma conferência sobre técnicas apropriadas no parto.
Além de discutir as técnicas para o combate ao alto índice de mortalidade
materna e neonatal, reconheceu o corpo feminino como apto a dar a luz, com o
mínimo de intervenções. Reconheceu também o nascimento como um
processo fisiológico, natural e necessário para o bebê. Essa conferência se
tornou um marco no apelo da saúde pública e da defesa de direitos das

1
mulheres, e também em relação ao tratamento do corpo da mulher, apenas
como objeto da ciência e da normativa do discurso da saúde.

Nesse mesmo cenário, a OMS definiu conceitos e práticas adequadas


na assistência ao parto. Em paralelo, muitos movimentos que abordavam a
saúde da mulher começaram a emergir. Destaca-se a importante participação
das usuárias e dos movimentos de mulheres e feministas discutindo a
assistência ao parto, conforme refere Diniz (2005).

Trata-se, assim, de um tema de fundamental interesse para as


mulheres. O meu interesse em torno da temática surgiu no início de 2013 ao
concluir um curso de Doula, realizado no Grupo de Apoio à Maternidade Ativa
(GAMA). No decorrer do ano realizei diversos atendimentos particulares a
gestantes que optavam por vivenciar o momento do parto de uma forma
natural, sem intervenções desnecessárias. Essas mulheres, buscavam também
uma atenção integral e para além da visão de medicalização da gestação e do
parto. Nesses atendimentos, além de trabalhar com o preparo do corpo
feminino para o momento do parto, eram abordados temas pertinentes em
relação à gestação, amamentação, emoções, medos e desejos que a
parturiente carregava do momento de trazer seu bebê ao mundo. Muitas
optavam pelo parto domiciliar, garantindo que nenhum tipo de procedimento
desnecessário e agressivo fosse realizado, assim como carregavam o desejo
de tornar esse momento algo íntimo e significativo. Entretanto, com aquelas
que optavam por ter seus filhos no hospital, era observado que os
procedimentos hospitalares intervinham de forma danosa, invasiva e
desnecessária em seus corpos, tornando o parto um momento invasivo e até
violento.

Ao me inserir no curso de Serviço Social da Universidade Federal de


São Paulo, foi possível apropriar-me de discussões sobre a dominação do
corpo feminino e o quanto, diferentes procedimentos contêm expressões de
violência no momento do parto. Entende-se que podem ser reflexos da
sociedade constituída sob o patriarcado, relacionado ao capitalismo, assim
como, o corpo da mulher poderia haver se tornado objeto de intervenção do
profissional de saúde no ambiente hospitalar. Conforme descreve Gruboski e

2
Guilhem (2006), reflete no ambiente hospitalar uma reprodução das
desigualdades nas relações de poder presentes nos mais variados espaços
sociais.

Foi essa compreensão que me motivou ao estudo de tais questões no


trabalho de conclusão de curso. Diante de todos os aspectos que envolvem o
nascimento, este trabalho se propõe, portanto, a abordar as condições da
mulher parturiente, como protagonista principal do parto. Entende-se que
desigualdade e opressão – seja de gênero, de classe, de raça, entre outras
podem estar presentes nessas relações.

Trata-se de um olhar da perspectiva da totalidade e uma apropriação de


uma leitura política dos procedimentos técnicos. Esta pesquisa busca
compreender em qual momento a parturiente deixa de ter o domínio e a
decisão sobre seu corpo, e o parto passa a incorporar significados de
estranhamento e desrespeito a direitos.

3
CAPÍTULO I

Abre as pernas, que o mundo


quer sair
rodar peão na praça com Rudá
riscar na rua giz de colorir
furar dedo no bolo de fubá
faz força, minha filha, ele quer vir
aperta bem a folha de taiá
pus cebola cortada no seu chá
depois tem banho com bacupari

4
7 dedo... a bardana desinflama
chora, pode chorar, é bom sinal
mais de mil já nasceu da minha mão
10 dedo, vai coroar, chama ele, chama...
sai liso que nem peixe na minha mão
vem plantar a placenta no quintal

Lucas Puntel Carrasco


CAPÍTULO I

O PARTO: HISTÓRIA E PODER

1.1 - Relações de gênero e poder

Compreender as construções acerca do gênero é fundamental para


entender a gênese das expressões da desigualdade entre homens e mulheres.
Desde o princípio da humanidade, e em diversas formas de organizações
societárias, papéis sociais foram atribuídos e divididos entre homens e
mulheres.

Pierre Clastres (1986) em seu texto O Arco e o Cesto realiza uma


análise etnográfica da cultura dos índios Guaiaquis, dando ênfase à dimensão
simbólica que atua na construção dos papéis sociais de gênero entre homens e
mulheres. Esses papéis são demarcados a partir da construção de
instrumentos (o arco e o cesto) que determinaram a função social da mulher e
do homem desde a infância até a morte.

Quase não é necessário sublinhar que o arco, arma única dos


caçadores, é um instrumento exclusivamente masculino e que o
cesto, coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam,
as mulheres carregam. A pedagogia dos Guaiaqui se estabelece
principalmente nessa grande divisão de papéis. Logo aos quatro, ou
cinco anos, o menino recebe do pai, um pequeno arco adaptado ao
seu tamanho; a partir de então ele crescerá a se exercitar na arte de
lançar com perfeição uma flecha. Alguns anos mais tarde, oferecem-
lhe um arco muito maior, flechas já eficazes, e os pássaros que ele
traz para sua mãe são a prova de que ele é um rapaz sério e a

5
promessa de que será um bom caçador. Passam-se ainda alguns
anos e vem à época da iniciação [...]. Isso significa que um pouco
mais tarde ele poderá ter uma mulher e deverá consequentemente
prover as necessidades do novo lar. Por isso, o seu primeiro cuidado,
logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para si um
arco; de agora em diante membro "produtor" do bando, ele caçará
com uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte ou a
velhice o separarão de seu arco. Complementar e paralelo é o
destino da mulher. Menina de nove ou dez anos, recebe de sua mãe
uma miniatura de cesto, cuja confecção ela acompanha atentamente.
Ele nada transporta, sem dúvida; mas o gesto gratuito de sua marcha
— cabeça baixa e pescoço estendido nessa antecipação do seu
esforço futuro — a prepara para seu futuro próximo. Pois o
aparecimento, por volta dos 12 ou 13 anos, da primeira menstruação
e o ritual que sanciona a chegada da sua feminilidade fazem da
jovem virgem uma daré; uma mulher que será logo esposa de um
caçador. Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condição
definitiva, ela fabrica então o seu próprio cesto. E cada um dos dois, o
jovem e a jovem, tanto senhores como prisioneiros, um do seu cesto,
o outro do seu arco, ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim,
quando morre, um caçador, seu arco e suas flechas são ritualmente
queimados, como o é também o último cesto de uma mulher: pois
como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver sem elas.
(Clastres, 1978, p.74-75)

Joan Scott (1986) define gênero em duas partes. Primeira, sendo um


elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos. Na segunda parte, o gênero é visto como uma forma primeira
de significar as relações de poder. Portanto, gênero não é algo natural e
imutável, trata-se de uma “construção social” (Scott, 1986) que se modifica
diante das transformações da própria história, e não se limita apenas ao sexo
feminino e masculino. Dessa forma, conforme aponta Veloso (2003) as
relações de gênero,

Em nossa sociedade, são, em sua maioria, marcadas pelas


desigualdades, expressam a existência de uma forma determinada de
relação entre os diversos sujeitos sociais. Tal padrão de
relacionamento é histórico, ou seja, é construído pela própria
sociedade, seguindo o seu movimento, pelo conjunto de forças

6
sociais que organizam e dão uma direção a esta mesma sociedade.
Deste modo o gênero não é “natural”, não é fixo, imutável ou
intransponível, ao contrário, varia de acordo com as necessidades
particulares de cada sociedade e de cada contexto histórico.
(VELOSO, 2003, p. 6)

Para Soares (2004) quando empregamos o termo gênero, ou relações


de gênero, estamos tratando das relações de poder entre homens e mulheres.

O termo gênero se refere à construção social da identidade sexual,


construção que designa às pessoas diferentes papéis, direitos e
oportunidades, de acordo com o seu sexo; enquanto o sexo se refere
às diferenças biológicas entre homens e mulheres. As diferenças de
gênero são constituídas hierarquicamente: a construção social do ser
homem tem um maior status que a construção social do ser mulher.
(SOARES, 2004, p.113-114).

Ao longo da história, diferentes formas de organizações familiares foram


constituídas. Engels (2002) em seus estudos retoma ao início da história da
humanidade, onde as primeiras formas de organização humanas eram
coletivas, tribais e também matrilineares. Essas formas de organização eram
centradas na figura da mulher, e a descendência só se contava por linhagem
feminina.

Diante da descoberta da agricultura, do tear, da caça e do fogo as


famílias começaram a se fixar cada uma em seu território, pois assim teriam
controle sobre sua produção. Com isso, as famílias passavam a ser
proprietárias dos rebanhos, sua riqueza aumentava e aumentava também a
preocupação de que a herança deveria ser passada aos descendestes.
Começava a emergir as primeiras noções de propriedade privada e também de
organizações familiares constituídas de forma monogâmica1, a fim de garantir
herança aos filhos legítimos.

1
Para Engels (2002, p. 62) a família monogâmica “baseia-se no predomínio do homem, cuja
finalidade expressa é procriar [...]. A monogamia não aparece na história, portanto,
absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher, menos ainda, como a
forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravidão de um
sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado até então na pré-
história”.

7
As riquezas, à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao
homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e,
por outro lado, faziam com que nascesse nele a ideia de valer-se
dessa vantagem para modificar, em proveitos dos seus filhos, a
ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer
enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno.
Esse direito teria que ser abolido, e foi-o (...) sendo substituído pela
filiação masculina e o direito hereditário paterno. (ENGELS, 2002, p.
58-59)

Há nessa fase, a transição do direito materno para o direito hereditário


paterno a fim de que os bens fossem passados diretamente para os filhos da
família. A passagem para o patriarcado, como ressalta Engels, foi mais simples
do que se imagina. Para que fosse assegurada a passagem de bens, houve a
mudança de nome dos filhos, portanto todo filho que nascesse da mulher,
levaria o nome da família do homem. Daí resultou a passagem para o
patriarcado (ENGELS, 2002).

O desmoronamento do direito materno [representou], a grande


derrota da história do sexo feminino em todo mundo. O homem
apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada,
convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em
simples instrumento de reprodução. (ENGELS, 2002, p.60)

Destaca-se que o patriarcado não se constitui no poder do pai sobre


domicílio, mas sim no poder da figura do homem exercido para o domínio da
mulher (ENGELS, 2002). Assim, conforme definição no Dicionário Crítico do
Feminismo, o patriarcado “designa uma formação sociopolítica em que os
homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens.
Patriarcado é, assim, quase sinônimo de dominação masculina ou de opressão
das mulheres” (HIRATA, 2009).

O sistema patriarcal reflete diretamente na reprodução das relações


sociais. Hirata (2009) descreve que sua expressão de poder é reproduzida na
prática da violência física, psicológica e simbólica contra as mulheres para
subjugá-las; no controle sobre o corpo, a sexualidade e a vida reprodutiva das
mulheres; na manutenção das mulheres em situação de dependência

8
econômica e inclusive no âmbito do sistema político e das práticas sociais, de
impedimentos à participação política das mulheres e à obtenção de postos de
comando.

O patriarcado tange a ser uma possível explicação do sistema de


opressão às mulheres, mas não a única (ENGELS, 2002). Diversos registros
históricos comprovam a dominação do corpo feminino, assim como os
inúmeros tabus construídos pelo homem acerca da sexualidade da mulher.

As discriminações ditadas pelo patriarcado são uma forma de violência


de gênero e violam os direitos humanos das mulheres. Diversas são as formas
que se expressam os valores patriarcais sobre o corpo da mulher.

Ao longo dos séculos, construiu-se um modelo social predominante


que vem impedindo a mulher de ser sujeito pleno de sua própria
história. Esse modelo pré determina formas de conhecimento e ação,
na área da saúde inclusive, que evidenciam seu caráter patriarcal
(BRASIL, 2001, p.12).

A referência bíblica “em dor parirás seu filho” é uma indicação de


controle, por parte dos homens, dos processos naturais centrados no corpo da
mulher, descrevendo o momento do parto como um desígnio divino e uma
pena pelo pecado original cometido por Eva.

Ao associar o corpo feminino ao pecado, [a Igreja e o Cristianismo]


abriram o caminho para que o corpo da mulher fosse visto como
sendo instrumento defeituoso e sujeito, então, às intervenções
(salvadoras) da medicina. (www.amigasdoparto.com.br. Acesso em
29 de setembro de 2014. Grifos do autor).

1.2 - Parto: condição feminina sob o poder masculino

O parto não é uma enfermidade a ser curada.


É uma passagem para outra dimensão.
Laura Gutmam

O parto é visto como um objeto de estudo de várias áreas do


conhecimento. Há nele riqueza de significados e uma complexidade que o

9
torna heterogêneo e diversificado em suas análises, seja no âmbito histórico,
cultural, social ou biológico.

Há registros que incorporaram significados místicos ao parto na Idade


Média (Séc. XIII), e grande parte dessa história, na modernidade, foi coberta
por um manto de silêncio. As crenças, os chás, as ervas e os rituais
tradicionais constituíram um cenário regido por parteiras, exclusivamente
mulheres, que realizavam a assistência ao parto baseada em seus
conhecimentos populares e ancestrais, passados de mãe para filha. Diante da
2
fogueira da Inquisição as parteiras foram consideradas bruxas, sendo
acusadas e exterminadas pelo poder dominante da Igreja Católica Romana.

No Brasil, o cenário do parto constitui-se inicialmente com as atividades


das mulheres conforme Brenes (1991) refere:

Tradicionalmente, os partos e seus cuidados eram realizados por


mulheres conhecidas popularmente como aparadeiras, comadres ou
mesmo de parteiras leigas. Estas detinham um saber empírico e
assistiam domiciliarmente as mulheres durante a gestação, parto e
puerpério (como também nos cuidados com o recém-nascido). Na
sua maioria, eram mulatas ou brancas e portuguesas e pertenciam
aos setores populares. A medicina, enquanto instituição incorporou
esta prática (TOSI, apud BRENES, 1991) como uma das suas
atribuições, intitulando-a Arte Obstétrica e denominou de parteiro ou
médico parteiro os profissionais por ela formados. Historicamente,
este processo se deu primeiro na Europa (nos séculos XVII e XVIII)
se estendo ao Brasil, ao se inaugurar as escolas de medicina e
cirurgia na Bahia e Rio de Janeiro, em 1808. (BRENES, 1991 p.135).

A prática das parteiras foi questionada não somente pelo poder


dominante da Igreja, como também pela medicina, que atribuía a frequente
infecção puerperal à falta de higiene e assepsia nos procedimentos (ROHDEN,
2001). O seguinte comentário, do médico Alfredo Nascimento, de 1929, ilustra

2
Apesar da Inquisição não proceder no Brasil com a mesma força que na Europa, sua
passagem é de importante valor para compreender as raízes da negação do “saber médico
popular” dessas mulheres, e posteriormente a gênese da medicina obstétrica convencional
praticada por licenciados, homens. Ambas as áreas do conhecimento caminham associadas,
pois ao mesmo tempo em que se consolida o discurso médico acadêmico, se exclui e
deslegitima o saber popular das parteiras.

10
as atividades das parteiras durante a Colônia 3, assim como a perseguição que
as mesmas enfrentavam:

Mais precário [que o ofício de boticários, barbeiros e sangradores] era


ainda o mister de parteira, exercido por mulheres inteiramente
incultas, brancas, caboclas e negras, apelidadas de Comadres, que,
além de partejarem, curavam das doenças ginecológicas e de outras
médicas e cirúrgicas, elevando-se ao papel de curandeiras, usando
de bruxedos, rezas, benzeduras e outras superstições. As casas que
habitavam tinham à porta, como conhecido emblema indicador, uma
cruz branca; levando debaixo das manilhas cartas de alcoviteiras,
feitiços e pussangas, lá conduziam também, a abandonar nas ruas e
recantos, os produtos das práticas ilícitas e criminosas a que essa
profissão se presta e a que sem escrúpulo se entregava.
(NASCIMENTO apud ROHDEN, 2001, p.75).

Dessa forma a medicina, praticada em maioria expressiva por homens,


vai tomando a frente no gerenciamento da saúde feminina e da reprodução
(ROHDEN, 2001). Apesar do avanço da institucionalização da medicina –
inicialmente no Rio de Janeiro e na Bahia, em 1808 – somente em 1832 as
mulheres passam a ganhar espaço oficial no ensino de Obstetrícia (BRENES,
1991).

Por muito tempo ocorreu um predomínio exclusivamente masculino na


prática obstétrica, “[reivindicando] sua superioridade sobre o ofício feminino de
partejar, leigo ou culto.” (DINIZ, 2005 p.628). A exclusão da figura das parteiras
traz diversas reflexões acerca do poder que os homens exercem
historicamente na medicina ocidental. Para além desse espaço não ser mais
constituídos pelas parteiras há também uma diferenciação sexual frente a
inserção das mulheres na prática da medicina obstétrica no Brasil.

Diante de influências europeias e americanas, no século XX, o modelo


de assistência ao parto no Brasil, oferecia o que Diniz (2005) descreve como
um apagamento da experiência, quando a mulher no processo de trabalho de
parto era totalmente sedada por medicamentos e utilizava-se de instrumentos
3
Uma nota importante que Rohden (2001) traz em seus estudos é de que a prática das
parteiras era vista com o mesmo espanto e atraso com que eram vista a prática indígena.
Historiadores ao retratar esse período, o caracterizam como ‘atrasado’ e de caráter
‘rudimentar’.

11
invasivos que afinava seu colo do útero para a retirada do bebê. A autora ainda
contribui ao esclarecer que “após décadas esse modelo de apagamento da
experiência do parto é abandonado, [diante do alto índice de mortalidade
materna], porém permanece o modelo de assistência com a mulher sendo
processada em várias estações de trabalho de parto (pré-parto, parto e pós-
parto) como uma linha de montagem”. (DINIZ, 2005 p.628. Grifo nosso).

Assim como na indústria, o parto tomou o rumo da produtividade em


massa. Em vez de o parto ser visto como um processo natural na
vida das mulheres e um rito de passagem para a maternidade passou
a ser um procedimento médico de alta complexidade. Como se elas
não fossem capazes de dar a luz sem a ajuda da moderna tecnologia.
Isso fez com que o processo fosse acelerado ou interrompido por
vezes sem necessidade, desrespeitando a individualidade e
necessidades de cada mãe e bebê. (Mayra Calvette, entrevista
Gazeta do Povo em 15 de agosto de 2003).

Nos últimos cinquenta anos, tem havido um rápido aumento no uso de


tecnologias cujo propósito é iniciar, intensificar, regular e monitorar o parto. Ao
longo desse processo, tanto nos países mais desenvolvidos como nos países
em desenvolvimento, a busca por maior qualidade nos serviços de assistência
ao parto tem levado a medicalização do corpo feminino4 e à adoção irrestrita de
procedimentos inadequados, desnecessários, e por vezes perigosos, utilizados
sem avaliação adequada (DINIZ, 2006).

Diniz (2005) aponta que na segunda metade do século XX, após o


abandono do modelo de assistência ao parto supracitado, os hospitais
começaram a aderir à prática obstétrica nas quais as mulheres vivenciariam o
parto conscientemente (sem uso de sedativos), porém sendo imobilizadas, com
as pernas levantadas e tendo o funcionamento do seu útero acelerado ou
reduzido. Nesse mesmo período, “o processo de hospitalização do parto estava

4
“Nas mulheres, a medicalização do corpo feminino se dá sobre todos os seus ciclos vitais:
menstruação, gravidez, parto e menopausa - que passam a serem objetos de intervenção da
medicina, numa produção de ideias que vê o corpo feminino como medicamentosas sobre
estes eventos. Tem-se como herança ideológica desta moral repressora, que alija as mulheres
do conhecimento de seu próprio corpo, a vivência desses fenômenos do ciclo vital feminino por
parte de muitas como algo que é doentio, “sujo” ou temeroso.” (SIMÕES apud AGUIR, 2010,
p.41).

12
instalado em muitos países, mesmo sem que jamais tivesse havido qualquer
evidência científica consistente de que fosse mais seguro que o parto domiciliar
ou em casas de parto” (TEW, apud DINIZ, 2005 p. 628-629). Ainda hoje esse
modelo repercute nos centros de atenção ao parto normal.

Com o avanço da tecnologia, passaram a ser incorporados à cena do


parto diversos meios que distanciam a mulher do seu protagonismo, assim
como, o domínio do seu corpo ao dar a luz. “Separada de seus parentes,
pertences, roupas, dentadura, óculos, a mulher é submetida à chamada
cascata de procedimentos” (MOLD; STEIN, apud DINIZ, 2005 p.629). Diniz
(2005) aponta que “no Brasil, aí se incluem como rotina a abertura cirúrgica da
musculatura e tecido erétil da vulva e vagina (episiotomia), e em muitos
serviços como os hospitais-escola, a extração do bebê com fórceps [...]”
(DINIZ, 2005, p. 629).

A discussão sobre o uso da episiotomia tem circulado frequentemente


na mídia brasileira. Muitos são as reflexões acerca desse procedimento médico
utilizado em sua maioria desnecessariamente e como rotina hospitalar. A
recente pesquisa nacional “Nascer no Brasil” (FIO CRUZ, 2014) retrata que
53% das mulheres que tiveram parto vaginal foram submetidas à episiotomia.

Seu uso é hoje recomendado, no máximo, entre 15% e 30% dos


casos, ou menos, quando houver evidência de sofrimento fetal ou
materno, ou para conseguir progresso quando o períneo é
responsável pelo progresso inadequado. [...] Muitas vezes [os
médicos] se referem a [episiotomia] como “ponto do marido”,
concebido para fazer a entrada da vagina ainda menor após o parto.
Frequentemente complicações decorrentes desse artifício são: dor na
vulva ou vagina, cicatrizes e deformidades, que levam à necessidade
de correção cirúrgica posterior. (DINIZ, 2006, p. 85-87. Grifos nosso).

No Hospital Sofia Feldmal do Sistema Único de Saúde (SUS), em Belo


Horizonte foi reduzida de 60% (1992) o uso da episiotomia nos partos vaginais
para 4% (2014). A mudança ocorreu a partir de uma prática na unidade:
enfermeiras obstetras acompanham os partos normais e não mais os médicos.
Os dados mostram que a queda mais drástica nas episiotomias ocorreu entre

13
os anos de 1998 e 1999 quando foram colocadas enfermeiras em todos os
plantões (BALOGH, 2014).

No processo histórico de construção da assistência ao parto, é possível


observar que a figura da parturiente, quando não excluída, torna-se um objeto
de estudo e intervenções. A medicalização do corpo grávido, o uso abusivo de
tecnologia, as intervenções sem necessidade e em excesso, assim como a
gestação vista a luz da patologia, impera sobre a parturiente uma conotação
em que a mulher não possui capacidade suficiente de compreender e decidir
sobre seu corpo ao parir.

1.3 - Violência Obstétrica: a dor do nascimento

Para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a forma de nascer.

Michel Odent

A morte materna se apresenta como uma expressão da “questão social”


e seus índices são indicadores das condições materiais de existência de um
país, bem como da qualidade de vida de sua população (CARDOSO; SOUZA;
GUIMARÃES, 2010). Conforme dados do DATASUS de 2011, no Brasil, 98%
dos nascimentos acontecem em hospitais, sendo que 53,8% são partos
cesáreos. No entanto, esses números não significam que as mulheres
brasileiras recebam assistência de qualidade (DINIZ, 2006). Segundo o
Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade materna em 2011 foi de 64,8 óbitos
a cada 100.000 nascidos vivos. As altas taxas encontradas se configuram
como uma violação dos direitos humanos de mulheres e crianças e um grave
problema de saúde pública, atingindo desigualmente as regiões brasileiras com
maior prevalência entre mulheres e crianças das classes sociais com menor
ingresso e acesso aos bens sociais.

Diante desse contexto, no que tange a sociedade capitalista, o momento


do parto se transforma de acordo com o contexto sócio histórico no qual a
parturiente está inserida. Expressões da questão social emergem nesse
momento importante da vida sexual da mulher, em forma da desigualdade de

14
gênero, da medicalização do corpo feminino, do uso excessivo de tecnologia.
Para Ianni (2009),

5
A questão social é indissociável da sociabilidade capitalista e
envolve uma arena de lutas políticas e culturais contra as
desigualdades socialmente produzidas. Suas expressões condensam
múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de
gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente
e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da
sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma
dimensão estrutural – enraizada na produção social contraposta à
apropriação privada do trabalho, a “questão social” atinge
visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela
cidadania. (IANNI, apud IAMAMOTO, 2009, p.16).

Frases são repetidamente relatadas por mulheres que deram à luz em


várias cidades do Brasil e resumem parte da dor e da humilhação que sofreram
na assistência ao parto.

“- Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse
jeito, né?” “- Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de
novo.” “- Se você continuar com essa frescura, eu não vou te
atender”. ”“ - Na hora de fazer, você gostou, né?”“ - Cala a boca! Fica
quieta, senão vou te furar todinha.” (Parto do Princípio – Mulheres em
Rede pela Maternidade Ativa, 2012).

Para compreender as cenas de humilhação e dor, no qual as mulheres


estão submetidas ao parir seus bebês, torna-se importante resgatar a definição
dada por Chauí (1985) sobre o que é violência6.

5
“A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da
classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu
reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no
cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir
outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão” (CARVALHO e IAMAMOTO,
1983 p. 77).

6
Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação
hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a
conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior.
Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma
coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando
a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, 1985, p.35)

15
Tratada como um objeto, a mulher que está parindo tem seu corpo e sua
saúde reprodutiva sujeita a intervenções e manipulações pelos profissionais de
saúde, muitas vezes sem o seu consentimento ou sem que seja informada
sobre os procedimentos que serão realizados (AGUIAR, 2004). Pode-se
perceber nestes exemplos o que Chauí (1985) denomina de transformação de
uma diferença - ser mulher, pobre e de baixa escolaridade – em uma
desigualdade que é imbuída de medidas de valor como superior e inferior, com
o objetivo de dominar, explorar e oprimir alguém que é tomado como objeto
das ações do outro e não como sujeito de seus próprios atos e decisões.

Subjaz a este contexto a permanência histórica de uma ideologia


naturalizadora da inferioridade física e moral da mulher, e de sua
condição de reprodutora como determinante do seu papel social,
permitindo que seu corpo e sua sexualidade sejam objetos de
domínio e controle da ciência médica (ROHDEN; VIEIRA; GIFFIN,
apud AGUIAR, 2010).

Para Ianni (2004, p.169) “os atos de violência revelam aspectos


recônditos, insuspeitados e fundamentais de como se formam e transformam
os jogos das forças sociais”. Assim,

A violência está presente e evidente, escondida e latente, em muitos


lugares, nos mais diversos setores da vida social, envolvendo
indivíduos e coletividades, objetividades e subjetividades. É um
fenômeno eminentemente histórico, no sentido de que se constitui no
curso dos modos de organização social e técnica do trabalho e da
produção, das formas de sociabilidade e dos jogos de forças sociais.
Pode atingir um indivíduo isolado ou uma coletividade inteira,
selecionar uns e esquecer outros. Possui conotação político-
econômica e sociocultural, podendo ser principalmente ideológica ou
principalmente física. (IANNI, 2004, p.174)

O termo violência obstétrica ainda não é tipicamente legal na


constituição brasileira. Em países como Argentina e Venezuela, a violência
obstétrica é reconhecida como uma violência de gênero e um crime cometido
contra mulheres, e como tal deve ser prevenido, punido e erradicado.

16
A Lei Nacional nº 26.485, de Proteção Integral para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra as Mulheres nos Âmbitos em que se Desenvolvem
suas Relações Interpessoais, vigente na Argentina desde 2009, conceitua
violência obstétrica como uma modalidade de violência contra a mulher e a
caracteriza como “aquela que exerce o profissional de saúde sobre o corpo e
os processos reprodutivo das mulheres. Expressa no trato desumanizado, no
7
abuso de medicalização e patologização dos processos naturais ”
(ARGENTINA, 2009, p. 4).

A Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da


Violência, vigente na Venezuela desde 2007, define violência obstétrica como
sendo também uma forma de violência de gênero contra as mulheres, e:

Art.15. 13) A apropriação do corpo e processos reprodutivos das


mulheres pelo profissional da saúde, que se expressa no trato
desumanizador, no abuso de medicalização e patologização dos
processos naturais, trazendo consigo perda de autonomia e
capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade,
8
impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres .
(VENEZUELA, 2006, p. 30)

Na maioria das maternidades brasileiras, a mulher não é autorizada a se


movimentar ou escolher a melhor posição quando está em trabalho de parto.
Há também regras e padrões impostos pela própria rotina hospitalar que
impede a sua alimentação e ingestão de líquidos e a entrada na sala de parto
com seus pertences pessoais. Além disso, em diversos hospitais-escola o
trabalho de parto é acompanhado por diversos técnicos, residentes e

7
Texto original. Art.6. e) Violencia obstétrica: aquella que ejerce el personal de salud sobre el
cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en un trato deshumanizado, un
abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales. (ARGENTINA, 2004, p.4)
Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/esp/Ley_de_Proteccion_Integral_de_Mujeres_Argentina.pdf >. Acesso
em: 13 nov. 2014.
8
Texto original Art.15. 13) Violencia obstétrica: Se entiende por violencia obstétrica la
apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se
expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de los
procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente
sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de vida de las
mujeres. (VENEZUELA, 2006, p. 30) Disponível em: <
http://venezuela.unfpa.org/doumentos/Ley_mujer.pdf >. Acesso em: 13 nov. 2014.

17
estudantes, que realizam exames invasivos e frequentes, para verificar o
andamento da dilatação (exame de toque), tornando o corpo da mulher um
objeto de estudo e intervenções.

O ambiente hospitalar torna-se invasivo e não se têm a garantia da sua


privacidade. Tais procedimentos não são recomendados pela Organização
Mundial de Saúde, visto que a autonomia, a segurança, a liberdade e a
privacidade são aspectos fundamentais recomendados tanto pela OMS, como
pelo Ministério de Saúde visando o saldo positivo e integridade da mulher na
experiência do trabalho de parto.

O poder dominante no qual a mulher em trabalho de parto está exposta,


principalmente no âmbito hospitalar, reproduz a opressão, a desigualdade de
gênero e a violência ditada pela sociedade capitalista enraizada no patriarcado.

A suposta fragilidade natural das mulheres, que domina o ideal


machista, inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas de si
próprias (CHAUÍ, 2007). Na assistência ao parto, no modelo tecnocrático, a
tecnologia e o médico são vistos como aqueles que irão salvar a mulher desse
processo e que, portanto, sem eles a mulher não possui capacidade suficiente
de parir.

O protagonismo da mulher é discutido frequentemente no modelo de


assistência ao parto. No ambiente hospitalar, o comando e o controle exercido
pelo profissional da saúde – muitas vezes expresso com o uso irracional das
tecnologias e como forma de dominar e acelerar o trabalho de parto –
desrespeita o parto como um evento altamente pessoal, sexual e familiar da
mulher, no qual ela deveria ter o papel principal e a plena participação nas
decisões acerca do seu corpo e sexualidade.

Na cartilha de recomendações Parto, Aborto e Puerpério – Assistência


Humanizada à Mulher elaborada pelo Ministério da Saúde (2001) observa-se
que,

o respeito à mulher e seus familiares é fundamental: chamá-la pelo


nome (evitando os termos "mãezinha", "dona", etc.), permitir que ela

18
identifique cada membro da equipe de saúde (pelo nome e papel de
cada um), informá-la sobre os diferentes procedimentos a que será
submetida, propiciar-lhe um ambiente acolhedor, limpo, confortável e
silencioso, esclarecer suas dúvidas, aliviar suas ansiedades são
atitudes relativamente simples e que requer em pouco mais que a
boa vontade do profissional. [A cartilha observa e recomenda que], a
atenção adequada à mulher no momento do parto representa um
passo indispensável para garantir que ela possa exercer a
maternidade com segurança e bem-estar. Este é um direito
fundamental de toda mulher. A equipe de saúde deve estar preparada
para acolher a grávida, seu companheiro e família, respeitando todos
os significados desse momento. Isso deve facilitar a criação de um
vínculo mais profundo com a gestante, transmitindo-lhe confiança e
tranquilidade. (BRASIL, 2001, p.38-39. Grifo nosso).

A violência obstétrica e institucional que a mulher está exposta ao


parir, muitas vezes não é compreendida e nem percebida no momento em que
ela acontece. As mulheres podem não identificar que estão sendo tratadas de
forma violenta e desrespeitosa, ocorrendo o que Saffioti e Almeida (1995)
caracterizam como uma “conspiração do silêncio”, significando que, em geral,
não há denúncia, impedindo, assim tanto de forma qualitativa quanto
quantitativa, que dados sejam revelados, evidenciando a gravidade e a
magnitude desse fenômeno (WOLFF; WALDOW, 2008).

A pobreza nas relações humanas, o uso irracional das tecnologias e a


violência de gênero, leva ao atual cenário contraditório na redução da
mortalidade materna e do respeito aos direitos humanos da mulher. Torna-se
de extrema importância explicitar as diferentes formas de violência, nomeá-las9
e torná-las visíveis, propondo esforços para seu enfrentamento (LISBOA,
2014).

A violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo


onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda
prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que
viole o interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue

9
Chauí (2007) traz uma importante reflexão a cerca daquilo que não se nomeia. Para a autora,
o que não se nomeia torna-se inexistente frente aqueles que não vivenciam o ocorrido. Nomear
a violência que a mulher vivência durante o parto é uma forma de expressar, explicitar e propor
condutas para sua superação.

19
relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e
cultural. (CHAUÍ, 2007, p. 349)

Em fevereiro de 2014, o núcleo especializado de Promoção e Defesa


dos Direitos da Mulher e Associação Artemis em parceria com a Defensoria
Pública do Estado de São Paulo tornou pública uma cartilha no qual observa
que violência obstétrica no parto se constitui em:

 Recusa da admissão em hospital ou maternidade (peregrinação por


leito);
 Impedimento da entrada do acompanhante escolhido pela mulher;
 Procedimentos que incidam sobre o corpo da mulher, que interfiram,
causem dor ou dano físico (de grau leve a intenso). Exemplos: soro
com ocitocina para acelerar o trabalho de parto por conveniência
médica, exames de toque sucessivos e por diferentes pessoas,
privação de alimentos, episitomia (corte da vagina), imobilização
(braços e pernas), etc.;
 Toda ação verbal ou comportamental que cause na mulher
sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade
emocional, medo, acusação, insegurança, dissuasão, ludibriamento,
alienação, perda de integridade, dignidade e prestígio;
 Cesariana sem indicação clínica e sem consentimento da mulher;
 Impedir ou retardar o contato do bebê com a mulher logo após o
parto, impedir o alojamento conjunto mãe e bebê, levando o recém-
nascido para berçários sem nenhuma necessidade médica, apenas
por conveniência da instituição;
 Impedir ou dificultar o aleitamento materno (impedindo amamentação
na primeira hora de vida, afastando o recém-nascido de sua mãe,
deixando-o em berçários onde são introduzidas mamadeiras e
chupetas, etc.) (SÃO PAULO, 2014, p.2).

Dessa forma, observa Soares (2004) que,

O papel do Estado é determinante na construção da igualdade, mas


não só na regulação das leis que coíbem a discriminação, também
como agente de mudanças culturais e das condições de vida das
mulheres, na proposição de políticas que incorporem as dimensões
de gênero e raça (SOARES, 2004, p.113-114).

20
Segundo Maia (apud DINIZ, 2009) no modelo tecnocrático de
assistência brasileiro, para as mulheres do setor público e do privado "só há
duas alternativas de parir: um parto vaginal traumático, pelo excesso de
intervenções desnecessárias, ou uma cesárea, sendo esta uma marca de
diferenciação social e de ‘modernidade’." Dessa forma, conforme observa
Deslandes (2004) a violência representa a antítese do diálogo, a negação do
‘outro’ em sua humanidade e que, portanto, resgatar a humanidade da
assistência ao parto, numa primeira aproximação, é ir contra essa violência,
que atinge expressivamente a população feminina.

CAPÍTULO II

21
Ser bem recebido nesse mundo
fortalece aquele que chega aqui pela primeira vez,
percebendo que não é de violência a primeira lembrança
de seu caminhar pelas entranhas da vida.
Nascer é uma aventura, uma viagem,
uma escolha de entrar no barco,
remar e sair para viver do lado de cá.
Há de ter fé para nascer.
CAPÍTULO II

ASSISTÊNCIA AO PARTO OU LINHA DE PRODUÇÃO?

2.1 - Humanização do nascimento

Segundo o relatório global do Fundo das Nações Unidas para a Infância


(UNICEF, 2011) a taxa de cesárea no Brasil é de 44%, tornando-se a maior do
mundo. Os dados oficiais do Brasil (DATASUS, 2011) mostram um percentual
ainda maior, de aproximadamente 54%. A Organização Mundial da Saúde
(OMS) estabelece que apenas 15% dos partos devem ser operatórios
(Organização das Nações Unidas [ONU], 2011).

Apesar da importante redução nas taxas de mortalidade materna e


perinatal obtidas ao longo do século XX, alguns aspectos da atual
assistência hospitalar ao parto têm sido questionados. Nas últimas
décadas o modelo biomédico de assistência ao parto tem sido alvo de
críticas em função de resultados negativos, decorrentes de sua
medicalização crescente. A perda da autonomia pela mulher, a
intervenção médica excessiva na fisiologia do processo de parturição,
o afastamento da família, o aumento das taxas de cesariana e o
aumento dos custos, entre outros, são exemplos de resultados
indesejados desse modelo (Cochrane Pregnancy and Childbrith
Group; Enkin; OMS apud DIAS; DESLANDES, 2006, p. 351).

22
São dados que se tornam alarmantes, ao notar que o nascimento deixou
de ser um ato íntimo, natural e espontâneo, e passou a ser um evento cirúrgico
– com hora marcada, de acordo com a disponibilidade e preferência da equipe
técnica. Os dados revelam que o Brasil atingiu nas últimas décadas níveis de
incidência, na taxa de cesáreas, extremamente elevados, superiores aos de
qualquer outro país.

Tal cenário nos remete a uma séria discussão, sobre o quanto o corpo
das mulheres está sendo tratado de acordo com a disponibilidade e exigências
da equipe técnica, e não mais a partir de suas vontades, direitos e reais
necessidades.

[...] as tensas e conflituosas relações entre ciência médica e corpo


feminino conformam um campo no qual historicamente vêm se
exercendo relações de poder, opressão e controle político sobre as
mulheres. Dialeticamente, porém, sua resistência à opressão e à
exploração, particularmente no que diz respeito ao corpo e à saúde,
vem gerando novas propostas e práticas de saúde que indicam
radicais transformações nos modelos assistenciais vigentes.
(BARBOSA, 2006, p. 323)

Desde meados da década de 1980, a Organização Mundial da Saúde


(OMS) tem assumido uma postura crítica quanto à excessiva medicalização do
parto. Em 1985 a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e os
escritórios regionais da OMS na Europa e Américas, realizaram uma
conferência sobre técnicas apropriadas no parto.

Além de discutir as técnicas para o combate ao alto índice de


mortalidade materna e neonatal, reconheceu o corpo feminino como apto a dar
a luz, com o mínimo de intervenções. Reconheceu também o nascimento como
um processo fisiológico, natural e necessário para o bebê. Essa conferência se
tornou um marco no apelo da saúde pública e da defesa de direitos das
mulheres (DINIZ, 2005).

Nesse mesmo cenário, a OMS definiu conceitos e práticas adequadas


na assistência ao parto. E definiu condutas que são úteis e que deveriam ser
encorajadas pela equipe técnica. Entre elas destacamos as seguintes:

23
 Plano individual determinando onde e por quem o parto será
realizado, feito em conjunto com a mulher durante a gestação, e
comunicado a seu marido/companheiro e, se aplicável, a sua família;
 Respeito ao direito da mulher à privacidade no local do parto;
 Respeitar a escolha da mulher quanto ao acompanhante
durante o trabalho de parto e parto;
 Não utilizar métodos invasivos nem métodos farmacológicos
para alívio da dor durante o trabalho de parto e parto e sim métodos
como massagem e técnicas de relaxamento;
 Liberdade de posição e movimento durante o trabalho do parto;
 Estímulo a posições não supinas (deitadas) durante o trabalho
de parto e parto.
 Realizar precocemente contato pele a pele, entre mãe e filho,
dando apoio ao início da amamentação na primeira hora do pós-
parto, conforme diretrizes da OMS sobre o aleitamento
materno (OMS, 1996, p.5).

Em paralelo, muitos movimentos que abordavam a saúde da mulher


começaram a emergir. Destaca-se a importante participação das usuárias e
dos movimentos de mulheres e feministas discutindo a assistência ao parto
(DINIZ, 2005). Conforme observa Maia (apud DINIZ, 2009), tal situação:

Demonstra que o acirramento da disputa pelo modelo de assistência


ao parto, com a legitimação oficial do modelo humanizado, ocorre no
mesmo momento em que se acirram as pressões do Estado para
regular a saúde suplementar e no qual se fortalecem as ações de
promoção e prevenção da saúde. Tal timing não seria mera
coincidência, pois seria impossível questionar o modelo de
assistência ao parto sem questionar a lógica de assistência à saúde
no Brasil. (MAIA apud DINIZ, 2009, p.319).

Recentemente o Ministério da Saúde (2004) lançou uma campanha


online na intenção de diminuir os altos índices de nascimentos via operação
cesariana. A campanha elenca o porquê da preocupação com as altas taxas de
cesáreas nos seguintes tópicos:

 120 vezes maior a probabilidade de o bebê ter síndrome de


angústia respiratória;

24
 Cerca de 25% dos óbitos neonatais e 16% dos óbitos infantis
são causadas por prematuridade;
 Triplica o risco de mortalidade materna;
 As mães também ficam sujeitas a complicações como: perda
de maior volume de sangue, infecções puerperais e acidentes
anestésicos. (MS, 2004)

A medicalização do parto é outro ponto questionado no modelo


biomédico e tecnocrático de assistência ao parto. Esse tipo de assistência é
“uma realidade para quase todas as mulheres brasileiras, mulheres de
diferentes classes sociais [e que estão sendo] submetidas a diferentes formas
de medicalização e de assistência inapropriada, refletindo a hegemonia dos
interesses corporativos sobre os interesses de saúde da população e a falta de
regulamentação das práticas”. (DINIZ, 2009, p.319-320).

A humanização da assistência, expressa uma mudança na compreensão


do parto como experiência humana, sendo o termo empregado no início do
século 20, por Fernando Magalhães e Jorge Rezende, profissionais obstetras
(DINIZ, 2005). Vale destacar que há uma diversidade de conceituação e
entendimentos sobre a humanização e que, portanto, há que se adotar uma
posição sobre esse conceito ou princípio norteador da assistência a saúde
(BARBOSA, 2006).

Os autores Griboski e Guilhem (2006) ressaltam um importante olhar


sob a perspectiva de humanização:

O trabalho de parto e nascimento representa funções do sistema


nervoso autônomo e estão, portanto, fora do controle da consciência
e humanizar o parto implica em respeitar a natureza biológica, social,
cultural e espiritual da mulher (Griboski e Guilhem, 2006, p.108).

Dessa forma, a posição a ser adotada nessa pesquisa é a conceituação


descrita por Barbosa (2006), que compreende a humanização,

Para além de um ideal idealizado e romantizado a ser alcançado


mediante esforços ‘humanistas’ individuais, a humanização será aqui
entendida como uma arena de embates políticos entre poderosos
interesses econômicos, científicos e culturais que disputam

25
hegemonias. Ou seja, em nossa visão, a discussão da humanização
não pode estar apartada da compreensão de um sistema social – o
capitalismo em sua etapa neoliberal – que crescentemente
‘desumaniza’ e mercantiliza os indivíduos, seus corpos e relações
sociais. (BARBOSA, 2006, p.325)

Compreender a lógica atual da assistência ao parto é compreender a


lógica da sociedade capitalista. O momento do parto, na sociedade moderna,
deixou de ser um evento natural e passou a ser uma mercadoria. Dessa forma,
o alto índice de cesáreas eletivas 10 é uma expressão real de que o nascimento
passou a ser algo lucrativo. Há nisso uma inversão de valores, onde a saúde
se torna mais importante para o capital e coexiste uma superioridade das
necessidades da instituição sobre as reais necessidades das mulheres. Na
imagem abaixo é ilustrado um quadro de nascimento hospitalar, onde há o
predomínio quase exclusivo de partos via operação cesariana:

Figura 1: Quadro de nascimento hospitalar (Autor Desconhecido)

A sociedade moderna, burguesa ou capitalista pode ser vista como


uma complexa, surpreendente, assustadora e fascinante fábrica. Aí

10
Cesáreas eletivas são aquelas agendadas com antecedência pelo médico e pela gestante,
sem a real indicação e necessidade. Frequentemente são agendadas de acordo com a
disponibilidade técnica ou como uma opção da gestante. Vale destacar, que a cesárea é uma
cirurgia complexa (que salva vidas de mães e bebê em risco) e que não deve ser utilizada
como uma opção ou por convenção da equipe técnica.

26
se processam coisas, gentes e ideias, sentimentos e atividades,
realizações e ilusões, modo de ser e estilo de vida. [...] E tudo isso faz
parte da mesma engrenagem, do mesmo jogo de forças sociais, da
mesma fábrica da sociedade, da mesma máquina do mundo.
(COWHEY; ARONSON apud IANNI, 2004, p.201).

2.2 – Feminismo e Saúde da Mulher

O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher 11 (PAISM)


(Brasil, 1983) é um marco histórico, sendo a primeira política pública do
Ministério da Saúde que indica a integralidade como preceito básico da
assistência às mulheres. O PAISM foi a primeira proposta oficial do Ministério
da Saúde no sentido da humanização da assistência ao parto, e teve como
parte fundamental no processo de formulação do programa, a atuação dos
movimentos sociais, em especial das feministas. (DIAS; DESLANDES, 2006)

No mesmo período em que foi proposto o PAISM, o movimento feminista


no Brasil conquistou as primeiras delegacias de defesa das mulheres e a
instauração dos Conselhos dos Direitos das Mulheres, em todas as esferas de
governo. Mesmo com os limites e tensões dessas ações, essas iniciativas
marcaram a visibilidade do feminismo e ampliaram a sua densidade política na
conjuntura nacional (GURGEL, 2014).

O feminismo em sua gênese teve suas questões ligadas à maternidade


e a crítica ao patriarcado. Rago (1998) destaca que o feminismo tem
preocupação central de questionar a dominação masculina constitutiva das
práticas discursivas e não discursivas, das formas de interpretação do mundo

11
O PAISM propõe a estratégia de incentivar a mulher ao autocuidado e ao controle da sua
saúde por meio de ações educativas. “O programa é uma forma de possibilitar que as mulheres
interfiram na relação assimétrica que mantinham com os serviços e profissionais da saúde”
(DIAS; DESLANDES, p.362).

27
dadas como únicas e verdadeiras. Nesse sentido, as mulheres reivindicam a
construção de uma nova linguagem, que revele a marca específica do olhar e
da experiência cultural historicamente constituída por elas.

O movimento de mulheres passou a questionar o modelo médico


centrado numa concepção do feminino como condição
essencialmente “defeituosa” e que, com base nesse juízo, tratava o
parto como patológico e arriscado, usando tecnologia agressiva,
invasiva e potencialmente perigosa. Além disso, as feministas
afirmavam que esse modelo suprimia e ignorava as dimensões
sexuais, sociais e espirituais do parto e do nascimento. [Destaca-se]
a perda da autonomia e a expropriação da autoridade das mulheres
sobre a reprodução pelas instituições de saúde, assim como o caráter
desumano da tecnologia usada. (DINIZ, 2000, p. 37)

Dessa forma, o movimento feminista foi pioneiro na crítica de assistência


ao parto como tema político. Destacam-se dois importantes grupos que
participaram de muitas iniciativas de mudanças na assistência ao parto: o
Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que surge em 1981, na cidade de
São Paulo, com a proposta inaugural do resgate da saúde como uma questão
de direito das mulheres, e da compreensão de que as questões pessoais
também são questões políticas. E a Rede pela Humanização do Nascimento
(REHUNA), que surge em 1993, na cidade de Campinas/SP. A REHUNA é
uma organização da sociedade civil que atua em forma de rede de grupos
autônomos, de instituições de pesquisa e de serviços públicos e privados. Essa
rede tem papel fundamental na estruturação do movimento denominado hoje
como “humanização do parto/nascimento”.

Para as feministas, o direito a saúde vai muito além da cura da


enfermidade, pois esse direito implica em bem estar físico, emocional e mental
da pessoa. A saúde influi e é condicionada por todos os aspectos de nossas
vidas, ela é assegurada pela alimentação, educação, habitação e trabalho.
Portanto, não podemos conceber a saúde da mulher como algo desvinculado
do seu papel dentro da sociedade e de sua esfera íntima (Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde, 2000).

28
2.3 – Assistência ao Parto humanizado no Brasil

Frente à demanda crescente da redução do índice de mortalidade


materna e como forma de orientar os rumos da assistência na busca da
construção de uma Política Nacional de Qualificação da Atenção ao Parto, o
Ministério da Saúde lançou os projetos Maternidade Segura, Humanização do
Pré Natal e do Nascimento, o Programa Nacional de Humanização da
Assistência Hospitalar (PNHAH) e em 2004 a Política Nacional de
Humanização – HumanizaSUS. (Brasil, 1996, 2000, 2004 apud DIAS;
DESLANDES, 2006).

Tanto o Projeto Maternidade Segura, como o Programa de Humanização


do Pré Natal e do Nascimento (PHPN), estabelece os princípios e diretrizes da
atenção a ser prestada no pré-natal e nascimento. Exorta estados, municípios
e serviços de saúde a cumprirem seu papel, visando assegurar a cada mulher
o direito de cidadania mais elementar de, ao dar à luz, receber uma assistência
humanizada e de boa qualidade. Para Dias e Deslandes (2006, p.363) “ambos
os projetos envolvem aspectos que vão desde o cuidado médico do ponto de
vista da qualidade técnica da assistência até os aspectos psicossociais das
mulheres em trabalho de parto”.

O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento está


estruturado nos seguintes princípios:

(...) Art. 2º a) toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno


e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério; b) toda
gestante tem direito de saber e ter assegurado o acesso à
maternidade em que será atendida no momento do parto; c) toda
gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta
seja realizada de forma humanizada e segura (BRASIL, 2000 p. 2).

Recentemente, em 2011, também a fim de assegurar à mulher o direito


ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao
puerpério, foi instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde, pelo Ministério
da Saúde, a Rede Cegonha. O programa consiste numa rede de cuidados que

29
visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção
humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério (BRASIL, 2011).

A Rede Cegonha organiza-se a partir de quatro componentes12, um deles


é o Parto e Nascimento. Nesse componente são recomendadas práticas de
atenção à saúde baseada em evidências científicas, definidas pela
Organização Mundial de Saúde (1996), como a deambulação livre, a liberdade
de posição, dieta livre, acompanhante e apoio no parto, contato pele a pele
mãe e recém-nascido, restrição de ocitocina, episiotomia e outros. Além disso,
há incentivo e financiamento de recursos para a construção, ampliação e
reforma de Centros de Parto Normal, Casas de Gestante, Bebê e Puérpera.

Apesar do avanço considerado, que a política e os programas em


direção à humanização ao nascimento alcançaram, muitas mulheres ainda não
são bem informadas, preparadas e respeitadas durante seu parto. Conforme
dados da pesquisa Nascer no Brasil (FIO CRUZ, 2014) poucas mulheres tem a
chance de vivenciar um parto sem intervenções. Dessa forma, é preciso
avançar na esfera mais pessoal da relação entre equipe técnica, parturiente e
sua família, para que a mulher seja acolhida e possa demandar o serviço; seja
livre para fazer perguntas e obter respostas – durante o pré-natal, parto e
puerpério – obtenha vaga nas maternidades; seja respeitada; tenha espaço
para sua dor e vulnerabilidade; possa gritar se assim desejar; tenha assistência
de boa qualidade, com acesso disponível à tecnologia quando necessária; seja
reconhecida como alguém que tem vontades, desejos e necessidades e,
finalmente, que se possa compartilhar com os profissionais os temores,
alegrias e os prazeres da gestação e do parto (HOTIMSKY; RATTNER;
VENANCIO; BÓGUS; MIRANDA, 2002, p. 1310).

Embora haja evidências científicas suficientes para que se realizem


modificações no modelo tradicional de assistência ao parto,
desmedicalizá-lo implica em perda de poder. Abandonar rotinas que
adéquam o trabalho de parto ao modo do funcionamento do hospital
e adotar outros que privilegiam o acompanhamento de sua fisiologia

12
Os quatro componentes no qual a Rede Cegonha se organiza são: I- Pré-Natal, II - Parto e
Nascimento, III - Puerpério e Atenção Integral à Saúde da Criança e IV - Sistema Logístico:
Transporte Sanitário e Regulação (BRASIL, 2011)

30
seria perder o controle do processo da parturição e modificar as
referências do papel do médico neste contexto da assistência (DIAS;
DOMINGUES, 2005, p. 700).

Para pensar em assistência humanizada ao nascimento, portanto, é


necessário um olhar de sensibilidade em direção à atenção em primeiro lugar
da saúde da mulher, priorizando a importância de explorar o tema na
perspectiva de cuidar do ser, acolher mãe e bebê, apoiar uma visão que integra
os aspectos físico, psíquico, emocional e espiritual do ser humano – trazendo
saúde, contentamento na vida, e um bom nascer.

As rotinas da moderna obstetrícia hospitalar são parte de um ritual


carregado de simbologias. Ser levada em cadeira de rodas ou em
uma maca como se estivesse doente, ser submetida a hidratação
venosa que a ‘liga’ ao hospital mostrando sua dependência, e todos
os procedimentos praticados na assistência reforçam as ideias de
que a mulher não é capaz de parir sem a tecnologia médica e de que
seu corpo, sem esse controle, pode trazer riscos para o bebê. No
hospital estarão protegidas, ela e o feto, pela tecnologia ali oferecida
e reafirmada constantemente pela ideia de que o conhecimento
médico é mais importante que seus saberes ou valores (DIAS;
DESLANDES, 2006, p. 355).

Observa-se que, apesar dos esforços em torno da humanização da


assistência, persiste uma assistência onde prevalece o poder e a dominação
na relação entre a equipe técnica e parturiente. Essa dominação recai na
desumanização, constituindo-se em atos de violência que marcam
negativamente a vivência do parto (WOLFF; WALDOW, 2008).

31
CAPÍTULO III

32
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma. Até
quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não
para.

Lenine
CAPÍTULO III

PARIR EM SANTOS

3.1 – ASSITÊNCIA AO PARTO NO MUNICÍPIO DE SANTOS

Segundo dados do Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM), no


estado de São Paulo, até o mês de outubro de 2014, foram registrados 218
óbitos maternos. Entre o total, 10 óbitos foram registrados na Baixada Santista,
sendo que a cidade de Santos liderou o ranking, com 8 registros de óbitos do
total. Portanto, na região da Baixada Santista, o município de Santos encontra-
se com o maior índice de mortalidade materna. Esse dado pode estar sendo
resultado da organização da assistência à saúde, sabendo-se que Santos
conta com o maior número de leitos hospitalares da região.

Em maio de 2014, a Secretaria Municipal de Saúde, lançou o programa


Mãe Santista. O programa é uma iniciativa em busca de garantir assistência à
gestante em toda a gravidez, incluindo pré-natal, parto e puerpério, além do
acompanhamento de bebês até os 24 meses. O Programa Mãe Santista é
desenvolvido em conformidade com o Programa Rede Cegonha, do Ministério
da Saúde. A meta definida pela Secretaria Municipal de Saúde de Santos
busca diminuir os índices de mortalidade materna, fetal e infantil, com
atendimento permanente, multiprofissional, de qualidade e humanizado. Devido

33
ao pouco tempo que está em desenvolvimento, ainda não há dados relevantes
sobre o programa e sobre o alcance das metas definidas.

Atualmente, o município de Santos dispõe de 6 maternidades. Entre elas


3 são públicas e 3 privadas. Em menos de dois anos, a cidade anunciou o
fechamento de dois centros obstétricos: o centro obstétrico do Hospital
Beneficência Portuguesa e o pronto socorro obstétrico da Casa de Saúde.
Ambas alegaram déficit financeiro para a manutenção dos profissionais. No
caso do Pronto Socorro Obstétrico da Casa de Saúde houve reversão da
situação após pressão da Prefeitura Municipal de Santos, junto à Secretaria de
Saúde e também da sociedade civil.

Foi organizado, por gestantes e diversas mulheres e suas famílias, um


ato na porta do hospital Casa de Saúde, reivindicando o não fechamento do
centro obstétrico. Vale ressaltar que o Centro Obstétrico da Casa de Saúde é o
único que atende emergência na cidade e seu fechamento poderia precarizar
ainda mais a assistência ao parto na região.

Figura 2 - Ato contra o fechamento do Pronto Socorro Obstétrico Casa de Saúde, 2013 (Autor desconhecido).

Segundo dados do DATASUS (2007) a taxa de operações cesarianas no


âmbito do SUS, no município de Santos é de aproximadamente 67 cesáreas a
cada 100 partos. O índice de cesáreas encontra-se altamente incidente
conforme recomendações da OMS e do Ministério da Saúde. Para a redução

34
dessa taxa, é preciso incentivar o acompanhamento ao pré-natal a fim de que o
parto cesáreo seja realizado sob condições cada vez mais precisas, assim
como incentivar a disseminação de informações a respeito das vantagens do
parto normal em comparação com o parto cesáreo e dos riscos da realização
do parto cesáreo na ausência de indicações precisas. Recomenda-se pactuar e
sensibilizar os prestadores sobre a importância do processo de qualificação da
assistência, de forma com que a mulher seja atendida com respeito às suas
singularidades e fortalecendo o exercício da sua autonomia (ANS; MS, 2004).

3.2 - O CAMINHO METODOLÓGICO

O presente trabalho teve como objetivo discutir, descrever e analisar


como as mulheres exercem sua autonomia durante o trabalho de parto e parto,
no município de Santos. Inicialmente o estudo seria realizado com puerpéras
da Unidade Básica de Saúde do Embaré, a fim de coletar dados sobre como
foram vivenciados seus partos. Entretanto, a Secretaria Municipal de Saúde de
Santos, sem resposta de justificativa, não concebeu autorização para que a
pesquisa fosse realizada na instituição.

Apresentava-se, portanto, o primeiro desafio: quem seriam as


participantes desta pesquisa? Devido minha inserção como Doula na região da
Baixada Santista em 2014, tornei-me próxima a um grupo de gestantes que
militam em prol da humanização do parto/nascimento, o Partejar Santista 13 .
Assim, o presente estudo foi realizado com mulheres, próximas ao grupo
Partejar Santista, que utilizaram a assistência ao parto no município de Santos,
no período de 2009 a 2014, tanto na rede privada como na rede pública.

13
“Conforme entrevista com uma militante do grupo, o coletivo Partejar Santista é uma
organização sem fins lucrativos que atua na Baixada Santista com o intuito de discutir, propor e
acompanhar ações, dentro dos âmbitos político, social e ambiental, voltados à humanização
dos setores e personagens envolvidos no nascer de uma criança - da gestação ao puerpério da
mulher-mãe e o bem estar de sua família. Surgiu em abril de 2014 pelo anseio de um grupo de
mães, mulheres e cidadãos da baixada santista em ajudar a mudar o cenário local, que se
encontra num momento complicado, dos sistemas de atendimento ao parto e suporte à
gestante e sua família.(Joana, 31 anos)

35
As mulheres foram selecionadas observando-se o critério de terem sido
atendidas no município de Santos, nos últimos cinco anos, com faixa etária
entre 25 a 35 anos. Aquelas que aceitaram fazer parte do estudo assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme orientações éticas. Foi
mantida a privacidade das depoentes, respeitando seu anonimato e o sigilo das
informações em seus aspectos éticos. Assim, nos depoimentos utilizados
nesse trabalho, utilizamos nomes fictícios.

Participaram do estudo 4 mulheres, caracterizadas segundo o perfil


descrito acima. Para a obtenção das informações, foram aplicados
questionários abertos enviados e respondidos por email. Os questionários
abertos têm a característica de explorar todas as possíveis respostas a respeito
de um item. Para a aplicação do questionário, foi realizado um encontro
anterior para que as mulheres pudessem entender melhor o que estava sendo
proposto. A escolha pela aplicação do questionário se deu, levando em
consideração, o tempo hábil que teríamos para a conclusão da coleta de
dados.

Como forma de contribuir e enriquecer o trabalho, optamos também por


estabelecer contato com uma integrante do movimento Partejar Santista,
compreendendo que os movimentos de mulheres, historicamente, veem
tornando concreto suas pautas de luta contra a violência, o machismo, a
discriminação, a desigualdade de gênero e a opressão às mulheres.

A metodologia escolhida foi partir de uma abordagem metodológica


qualitativa, visto que o tema se situa no campo do simbólico e do subjetivo. A
pesquisa qualitativa permite uma abordagem para além da descrição do objeto
de estudo, em profundidade, considerando também aspectos que compõem a
construção da realidade que se analisa, sejam estes materiais e/ou sociais.

A pesquisa documental foi realizada por meio do levantamento das


legislações, decretos, portarias, diretrizes e planos de ação que constituem o
acervo de documentos oficiais sobre a Rede Cegonha, Programa de
Humanização do Parto (âmbito federal), Mãe Santista (âmbito municipal);
manual elaborado pelo Ministério da Saúde: “Parto, aborto e puerpério:

36
assistência humanizada à mulher” e a Política Nacional de Humanização do
Nascimento.

Na pesquisa bibliográfica foi observado o levantamento da literatura


especializada, sobre o objeto central deste trabalho: a autonomia da mulher na
condição parturiente com um olhar na perspectiva do gênero. Os conceitos que
referenciam teoricamente este objeto são: Saúde da Mulher, Assistência ao
Parto, Movimento Feminista, Patriarcado e Gênero.

Foram extraídas do estudo três categorias empíricas: “autonomia da


mulher”, “excesso de intervenções” e “humanização da assistência”. A
categoria “autonomia da mulher” ocasionou a discussão relacionada de
“práticas rotineiras”. As categorias empíricas são aquelas construídas com
finalidade operacional, visando ao trabalho de campo (a fase empírica) ou a
partir do trabalho de campo. Elas têm a propriedade de conseguir apreender as
determinações e as especificidades que se expressam na realidade empírica
(MINAYO, 1994, p. 93).

3.3 – MULHERES SABEM PARIR, BEBÊS SABEM NASCER

A gestação, parto e puerpério constituem experiências humanas das


mais significativas, com forte potencial positivo e enriquecedor para todos os
que dela participam. Os profissionais de saúde são coadjuvantes dessa
experiência e nela desempenham importante papel, colocando seu
conhecimento a serviço do bem-estar da mulher e do bebê; ajudando-os no
processo de parturição e nascimento de forma saudável (BRASIL, 2001).

É fundamental que o acompanhamento de trabalho de parto e o parto


sejam momentos de confiança e segurança entre o profissional e a mulher.
Necessário se faz um cuidado com orientações a cada procedimento,
valorizando a participação ativa das parturientes, respeitando o momento da
dor e tornando-as protagonistas de seus partos. Entretanto, nos questionários
respondidos foram encontrados relatos onde a autonomia da mulher não foi
respeitada, assim como sua dor e vulnerabilidade foram tratadas com
indiferença e frieza:

37
Eu não queria ser internada ainda, queria passar o TP em casa, mas
não discordei. O exame mostrava o bebê saudável e as contrações
bem fortes, porém, para mim, ainda eram suportáveis desde que eu
não precisasse ficar deitada. [...] A médica então resolveu romper
minha bolsa, com a desculpa de querer se certificar que não havia
mecônio no líquido amniótico. Eu achei aquilo estranho, mas não
tinha argumentos técnicos para discutir. [...] Fui levada pelos braços
para a sala de parto. Ninguém teve paciência de esperar eu estar
confortável, simplesmente me carregaram. Chegando à sala de parto,
diziam que eu tinha que ficar sentada e imóvel para a anestesia. A
médica falava “grosso” comigo porque eu não conseguia ficar imóvel.
Aplicada a anestesia, fiquei paralisada da cintura para baixo e
totalmente entregue às violências pelas quais passaria. (Frida, 32
anos).

Nota-se nesse relato que mesmo a profissional sendo do sexo feminino,


talvez lhe faltasse habilidade para entender e respeitar as necessidades da
parturiente. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) enfatiza a necessidade de
reconhecer a individualidade e humanizar o atendimento, significando que o
profissional deve estabelecer com cada mulher um vínculo, percebendo o que
precisa e a sua capacidade de lidar com o processo do nascimento.

A perda da autonomia das mulheres durante o parto está relacionada,


principalmente, com a intensa medicalização que o corpo feminino sofreu nas
últimas décadas (BRASIL, 2001). Exemplo dessa situação é quando o
nascimento deixa de ser um evento natural e há o predomínio de partos
agendados, via cesariana:

Além [das situações de violência] que vivenciei, eu era a única


naquele dia que teve um parto vaginal, apesar da maternidade estar
lotada. Ver todas aquelas mulheres ‘cesariadas’, provavelmente sem
necessidade nenhuma, acabou comigo. (Frida, 32 anos)

Vale reforçar, que a cesariana é uma cirurgia complexa que salva vidas
de mães e bebês. Entretanto, há no Brasil uma disseminação de que o parto
cesáreo é mais prático, rápido e menos doloroso. Além disso, o maior
pagamento dos honorários profissionais para a cesárea, a economia de tempo
e a realização clandestina da laqueadura tubária no momento do parto, institui

38
a chamada cultura pró-cesárea na população em geral e entre os médicos
(BRASIL, 2001).

Há uma desmotivação entre obstetras e até mesmo falta de capacitação


para o acompanhamento ao parto normal. Por sua vez, em uma relação
médico-paciente assimétrica, as mulheres têm dificuldade em participar da
decisão do tipo de parto, se sentido menos capacitadas para escolher e fazer
valer seus desejos frente às "questões técnicas" levantadas pelos médicos
(BRASIL, 2001). O depoimento a seguir ilustra a falta de valorização da
participação da mulher nas decisões referente ao tipo de parto, sem poder
emitir seu parecer ou fazer respeitar seus direitos e desejos:

Mesmo tendo feito toda a preparação para o parto normal, lendo tudo
a respeito (inclusive sobre todas as ‘desculpas’ usadas pelos médicos
para fazer a cesárea), neste momento eu tive muito medo. Eu não
havia ouvido o coração da minha filha, fiquei nervosa, querendo
apenas que tudo estivesse bem com ela. A situação é tão grave que,
mesmo quando você toma suas decisões, se empondera, quer fazer
o parto da sua maneira, você fica sem saber se a cesárea foi ou não
necessária. Como existem mil desculpas, e essa cultura estabelecida
de cesárea, até hoje eu não consigo saber, de verdade, se a minha
intercorrência justificaria uma cesárea. (Layla, 32 anos)

Para compreender o nascimento no Brasil, torna-se necessário


compreender a lógica em que a sociedade capitalista está estruturada.
Conforme P. Anderson (apud IAMAMOTO, 2009, p.35), “a lógica capitalista se
expressa essencialmente pela afirmação do mercado como forma suprema de
regulação das relações sociais”. Nota-se que há uma reversão de valores,
onde o parto deixa de ser um evento íntimo e natural e passa-se a agregar
valores de mercado visando à obtenção do lucro. O depoimento de primípara
de 29 anos, a seguir, ilustra melhor esse cenário:

O ginecologista que eu ia há 11 anos negou começar meu pré-natal,


alegando que só iniciaria mediante a garantia de que eu faria o parto
com ele através da entrega de cheques pré-datados, tendo o último
vencimento para antes do parto. Me cobrou R$ 5.000,00 dizendo que
“cada um tem o seu preço”. (Joana, 29 anos)

39
Vários depoimentos reforçaram que os procedimentos hospitalares de
rotina – muitos sem consentimento ou explicação - causaram desconforto nas
mulheres, constrangimento, perda de autonomia e capacidade de decisão
sobre seus corpos.

Foram feitos vários exames de toque no final da gestação [...]. No


tempo em que fiquei na sala de pré-parto entrou enfermeira querendo
fazer tricotomia [raspagem dos pelos pubianos], e duas analgesistas
oferecendo uma “punçãozinha’. Houve asculta dos batimentos
cardíacos do bebê e exame de toque por diversas vezes, tendo eu
sido obrigada a deitar para esses exames, mesmo sendo a posição
mais dolorida. [...] Queria água, meu marido foi buscar e a enfermeira
não deixou. [...] Fui obrigada a ficar na posição de litotomia [deitada
com as pernas para cima]. Havia pessoas que eu não sabia quem
eram (pediatras e enfermeiras). Meu marido sumiu. Fiquei tensa, as
contrações espaçaram e daí a médica me mandou fazer força mesmo
sem contração. Após duas contrações bem espaçadas e a cabeça do
bebê quase sair e voltar, ela fez episiotomia e pediu que a enfermeira
empurrasse o fundo do útero. (Carolina, 34 anos)

Hirata (2009) descreve que a expressão de poder, inerente à imposição


do sistema patriarcal, é reproduzida com a prática da violência física,
psicológica e simbólica contra as mulheres para subjugá-las; no controle sobre
o seu corpo, sua sexualidade e sobre suas vidas. O Ministério da Saúde
(2001) recomenda que salvo raras exceções, a parturiente não deve ser
obrigada a permanecer no leito. Deambular, sentar e deitar são condições que
a parturiente pode adotar no trabalho de parto de acordo com a sua preferência
e, em geral de forma espontânea. As mulheres devem ser apoiadas e
incentivadas na sua escolha.

Entretanto, no depoimento de Frida, 32 anos, demonstra-se que as


orientações do Ministério da Saúde foram utilizadas de modo inadequado ou
quase não levadas em consideração:

O bebê estava alto e eu, em posição litotômica, não conseguia fazê-lo


descer. Fazia muita força e era acusada de não estar fazendo força
suficiente. A médica me disse, em tom de acusação, por entre um
sorrisinho sarcástico, que se eu não tivesse pedido analgesia eu

40
poderia ficar de pé para ajudar meu filho a nascer. Pedi que
chamassem meu marido, que ele me seguraria, mas ela riu e disse
que não podia. Ela pediu ao anestesista que empurrasse o fundo do
útero, e ele, que não sabia fazer a manobra maldita, me impedia de
respirar e de fazer força. Eu tentava avisar que não estava
funcionando, mas a médica apenas me mandava fazer força e parar
de falar. (Frida, 32 anos)

Segundo Diniz e Chacham (2006, p. 81) “durante o trabalho de parto e o


nascimento deve haver um motivo válido para interferir no processo natural. O
motivo deve estar ligado a complicações da mulher ou da criança”.

Desde meados do século XX, sob a crença de que facilita o nascimento


e preserva a integridade genital da mulher, a episiotomia vem sendo usada
como procedimento hospitalar de rotina. Entretanto, já existem evidências
científicas suficientes que recomendam a abolição da episiotomia de rotina. As
autoras, citadas anteriormente, afirmam que “não há justificativa para a
episiotomia de rotina: ela não traz benefício para a mãe nem para o bebê,
aumenta a necessidade de sutura do períneo e o risco de complicações pós-
parto, trazendo dor e desconforto desnecessários” (DIAS; CHACHAM, 2006,
p.85). No relato a seguir, além da episiotomia de rotina, é ilustrado o excesso
de intervenção que a parturiente foi exposta ao parir14:

Fiz mais três forças e o bebê coroou. Nisso, a médica me avisou que
tinha cortado um “poquinho” o meu períneo, porque precisou. Nem
sequer me perguntou se podia. Mais umas forças e Rafa nasceu.
Meio apático, meio dormindo, até hoje não sei dizer. Mas desconfio
que pela manobra de fundo de útero que passei, somada à anestesia,
sua vitalidade ao nascer não tenha sido plena. O cordão foi cortado
imediatamente e ele foi levado para longe de mim, onde chorou pela
primeira vez, um chorinho desesperado de medo, tenho certeza. Meu
marido, que o acompanhou, diz que ele foi aspirado e que aquilo foi
uma violência enorme com um ser tão indefeso. [...] Enquanto isso,
eu passava pela sutura da episiotomia que, segundo a médica, tinha
sido pequena. Apenas 5 pontinhos, ela dizia. Para um bebê de 2,750
kg para quê “episio”? Podia ter deixado nascer e se tivesse

14
Convém ressaltar que essas intervenções não são recomendadas nem pelo Ministério da
Saúde e nem pela OMS. Sendo assim, são práticas altamente invasivas tanto para a mulher,
como para o bebê.

41
laceração, eu nem ia sentir, tava anestesiada mesmo. A enfermeira
veio me ajudar a tomar banho e acabei desmaiando no banheiro.
Queria acabar logo com aquilo, queria ficar limpa e sozinha com meu
filho, pegá-lo no colo. (Frida, 32 anos).

Em maio de 2014, o Ministério da Saúde tornou público a Portaria nº


371, no qual determina que se o bebê estiver em boas condições de saúde,
deve ir direto para o colo da mãe ao nascer nos hospitais do SUS (Sistema
Único de Saúde). A portaria segue as recomendações da OMS que prevê
ainda que o recém-nascido seja amamentado na primeira hora de vida e que o
clampeamento do cordão umbilical seja feito após cessadas suas pulsações (1
a 3 minutos).

A amamentação deve ser incentivada na primeira hora de vida do bebê.


Muitas mulheres, por serem mães pela primeira vez, necessitam de auxílio e
orientação nesse momento. É necessário compreender a singularidade de
cada mulher, assim como, respeitar o tempo individual que ambos, mãe e
bebê, necessitam para se habituarem à lactação. A cobrança e a má
orientação podem transformar a amamentação em cenas de stress, não
cuidado e também perda da autonomia da mulher. O depoimento a seguir
ilustra melhor tal situação:

Me cobravam (as enfermeiras) amamentação a cada 3 horas. Diziam


que eu deveria acordar a bebê, mesmo eu dizendo que já havia
tentando muitas vezes sem sucesso. Havia muita cobrança, mas
nenhuma se dispôs a orientar a pega correta, por exemplo. Entendo a
atitude das enfermeiras quanto à amamentação como violência
psicológica. (Carolina, 34 anos)

Anteriormente a data da publicação da Portaria mencionada, Carolina de


34 anos, teve sua bebê levada para longe do seu colo nos primeiros minutos
de vida. Ainda é comum nas maternidades brasileiras os bebês serem
separados de suas mães logo que nascem:

O cordão foi cortado imediatamente e, possivelmente, a placenta


tracionada, pois não percebi. Mas quando perguntei, ela [a médica]
disse que já havia saído. Colocaram minha filha enrolada em um
pano sobre minhas pernas e após alguns minutos a levaram.

42
Trouxeram a bebê já vestida e enrolada na manta. Não sei dizer
quanto tempo depois. (Carolina, 34 anos)

Segundo o Ministério da Saúde (2001) o processo de humanização do


nascimento, envolve necessariamente mudança de atitudes,

Inicialmente do profissional de saúde que é parte integrante da


equipe que presta atenção integral a esta mulher, revendo seus
conceitos, deixando de lado seus preconceitos, para favorecer um
acolhimento completo, técnico e humano à mulher. Envolve também
a mudança de atitude da instituição, que deve estar estruturada e
preparada para esta nova postura, incentivando, favorecendo,
estimulando, treinando e controlando seus profissionais para o
desempenho destas tarefas. Além disso, as instituições devem
também estar administrativa e estruturalmente preparadas para o
processo, amparadas e suportadas por normas e diretrizes emanadas
pelas instituições responsáveis pela saúde no país. (BRASIL, 2001, p.
65)

Conforme Dias e Domingues (2005) a humanização da assistência ao


parto implica:
Que a atuação do profissional respeite os aspectos da fisiologia da
mulher, não intervenha desnecessariamente, reconheça os aspectos
sociais e culturais do parto e nascimento, e ofereça o necessário
suporte emocional à mulher e sua família, facilitando a formação de
laços afetivos e o vínculo mãe-bebê (DIAS; DOMINGUES, 2005,
p.700).

As autoras ainda contribuem ao mencionar alguns aspectos que se


referem à autonomia da mulher durante o parto. Como, por exemplo: a
elaboração de um plano de parto15 que seja respeitado pelos profissionais que
assistirem a mulher; a efetivação do direito de ter o acompanhante de sua
escolha; serem informadas sobre todos os procedimentos a que serão

15
A elaboração do Plano de Parto é uma das recomendações da OMS que visa dar autonomia
a mulher durante o trabalho de parto e parto. Esse documento é uma lista construída pela
mulher, em parceria com a equipe médica ou doulas, ainda no pré-natal. No plano de parto
inclui-se, por exemplo, o lugar onde a mulher quer ter o bebê, quem estará presente na hora do
parto, quais os procedimentos médicos que a mulher aceita e quais ela quer evitar para ela e
para o bebê, a posição em que deseja parir, se ela quer se alimentar durante o trabalho de
parto e como ela deseja que o ambiente seja preparado (pouca luz, silêncio, músicas, etc). O
documento deve ser assinado pelo técnico que irá assistir ao parto e pela gestante, que irá se
responsabilizar por qualquer dano negativo que suas decisões possam acarretar.

43
submetidas; e de ter os seus direitos de cidadania respeitados (DIAS;
DOMINGUES, 2005).

A falta de humanização no atendimento a mulher que está parindo deixa


marcas profundas e difíceis de serem esquecidas. Do momento que se
caracteriza com extrema importância na vida da mulher e da família,
permanecem na memória do corpo e das emoções cenas de violência:

O pediatra de plantão no dia da alta foi um grosso comigo. Queria ir


embora para minha casa. Só nela, junto ao meu filho, me senti segura
para começar minha maternagem. Ficou pra mim [do parto] a certeza
de que se o processo fisiológico do parto tivesse sido respeitado e eu
tivesse sido assistida por um profissional verdadeiramente
humanizado [...], eu poderia ter tido um parto mais satisfatório, sem
ter sido exposta e sofrido tantas intervenções desnecessárias. (Frida,
32 anos)

Com o relato de suas impressões sobre seu parto: Layla de 32 anos


ilustra o que diversas mulheres passam ao parir: “durante [o parto] foi muito
assustador. [...] Infelizmente, o que ficou registrado foi um misto de o pior e o
melhor momento da minha vida, quase concomitantes”.

Atualmente na Baixada Santista existem profissionais que realizam o


parto domiciliar. Tem aumentado cada vez mais, as mulheres e famílias que
buscam essa opção, entretanto ainda há preconceitos e enfretamentos para a
aceitação plena desse exercício. Carolina de 34 anos que relatou,
anteriormente, ter sido submetida a procedimentos desnecessários e invasivos,
optou por parir sua segunda filha no ambiente domiciliar:

Minha segunda filha nasceu num parto natural domiciliar, por opção e
também por falta de opção (local com atendimento adequado). Foi
muito rápido (menos de duas horas). Ela nasceu comigo em pé, no
chuveiro. [...] Foi perfeito, e daí tirei qualquer dúvida sobre alguma
possível incapacidade que eu pudesse ter tido para expulsar o bebê
no primeiro parto. A natureza é perfeita, só é preciso que a deixem
agir. (Carolina, 34 anos).

44
Dessa forma, observa-se que o grande desafio que se coloca para todos
os profissionais que prestam a assistência ao parto, é o de minimizar o
sofrimento das parturientes, tornando a vivência do trabalho de parto e parto
em experiências de crescimento e realização para a mulher e sua família.

Conforme destaca Dias e Domingues (2005, p. 702), “acreditamos em


uma nova abordagem que estimule a participação ativa da mulher e seu
acompanhante, que priorize a presença constante do profissional junto da
parturiente, que preconize o suporte físico e emocional” de forma com que a
mulher e os envolvidos passem por esse momento sem carregar cenas de
violência e desrespeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao me inserir no curso de Serviço Social da Universidade Federal de


São Paulo, foi possível a apropriação de discussões sobre a dominação do
corpo feminino e o quanto os procedimentos utilizados excessivamente no
momento do parto, contêm expressões de violência.

As expressões de violência podem ser entendidas como violência de


gênero e como reflexo de uma sociedade instaurada sobre o sistema patriarcal,
estruturada nas bases do capitalismo. Afinal, conforme descreve Gruboskr e
Guilhem (2006), reflete no ambiente hospitalar uma reprodução das
desigualdades nas relações de poder presentes nos mais variados espaços
sociais.

Compreende-se que os dados expostos durante o trabalho são


históricos, portanto, provisórios. Pois, ter como ponto de partida do estudo a
realidade, se faz necessário dimensionar os aspectos concretos para um
âmbito em constante movimento e transformação.

Encaro essa pesquisa como o começo de uma aproximação, a luz do


Serviço Social, frente aos desafios na implantação de uma política de fato
humanizada ao nascimento. Vale lembrar que historicamente as mulheres são

45
submetidas a procedimentos que violam seus direitos humanos no âmbito da
saúde. Assim, esse estudo demarca e assume a posição de que a assistência
ao parto tem a necessidade de ser escrita pela voz das mulheres e pela
constante atualização de uma medicina baseada em evidências, não se
limitando apenas a aplicação de regras e procedimentos padrões. Afinal, o
corpo da mulher não é um objeto que permanece estático e igual em todos os
casos. O parto e os corpos carregam em si universos diferentes que devem
ser compreendidos de forma individual– sejam esses universos espirituais,
culturais ou socialmente diferentes.

Esse estudo se justificou como um meio para inserir uma discussão, no


âmbito do Serviço Social, sobre a temática que acompanha a humanidade do
seu princípio e para além: o nascimento. Instigando-nos a pensar quais
relações que se estabelecem nesse momento e como são expressas diante da
mulher que dá a luz. Entendendo a necessidade de aprofundamento, assim
como, de “abrir novos espaços para a emergência de temas não pensados, de
campos não problematizados, de novas formas de construção das relações
sociais não imaginadas pelo universo masculino”. (RAGO, p.93, 1998).

Diante de todos os aspectos que envolvem o nascimento, o objetivo foi


abordar as condições da mulher parturiente como protagonista principal do
parto, livre para o exercício de sua autonomia. Tratada sob o olhar na
perspectiva da totalidade, frente à construção histórica da assistência ao parto.
Assim como, a apropriação de uma leitura política dos procedimentos técnicos.
Entendeu-se que a desigualdade e opressão – seja de gênero, de classe, de
raça, entre outras podem estar presente nas relações que se estabelecem
durante o trabalho de parto e parto.

Vale ressaltar que tanto o Ministério da Saúde, como a OMS, tem


marcado um posicionamento crítico frente às recomendações na assistência ao
parto. Os inúmeros esforços, em grande parte, são frutos do movimento
feminista que luta pelo direito à saúde da mulher. Compreendendo que o direito
à saúde vai muito além da cura da enfermidade, implicando em bem estar
físico, emocional e mental. Destaca-se, portanto, o movimento das mulheres
como essencial e de extrema importância na crítica à assistência ao parto.

46
Como consequência da opressão, desigualdade e da excessiva
medicalização do corpo feminino, nota-se que as mulheres que participaram
dessa pesquisa podem não ter exercido sua autonomia frente às decisões
referentes ao tipo de parto e procedimentos a que estavam sendo submetidas.
Muitas foram submetidas a procedimentos dolorosos e na maioria das vezes
não informadas sobre o que estava sendo realizado. O parto, que deveria ser
algo íntimo e altamente pessoal, acarretou em momentos de estranhamento e
desrespeito a direitos. Afinal, durante o trabalho de parto, não se teme apenas
a dor, mas o modo como as mulheres serão assistidas na dor (HOTIMSKY,
2002).

Diante do contexto da assistência ao parto no município de Santos, com


um número extremamente elevado da taxa de cesárea, nota-se que o parto
pode ter se tornando algo lucrativo e tratado de acordo com as vontades e
interesses da instituição. Há nisso uma inversão de valores, onde a saúde se
torna mais importante para o capital e coexiste uma superioridade dos
interesses da instituição sobre as reais necessidades das mulheres.

Na esteira do movimento pela humanização da assistência ao parto, se


faz necessário questionar cada um dos procedimentos de rotina como temas
políticos, não apenas técnicos e supostamente neutros pela sua cientificidade.
Os procedimentos subtem as mulheres, em nome de uma suposta “segurança”,
à cena de humilhação e inferioridade.

Por fim, as mulheres têm necessidades de saúde específicas e os


corpos femininos são mais do que fábricas. É necessário situar a mulher como
sujeita de suas decisões e não como simplesmente um objeto reprodutor.
Chamando a atenção de que o modelo de assistência ao parto pode vir a
reproduzir os esquemas historicamente constituídos de dominação sobre as
mulheres, mantendo-as alienadas dos seus processos naturais, seus próprios
corpos e afastando-as do direito de parir com paz e em paz.

47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Janaína. Violência institucional em maternidades públicas:


hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. São
Paulo, 2010.

ARGENTINA. Ley de Proteccion Integral Para Prevenir, Sancionar y


Erradicar La Violencia Contra Las Mujeres En Los Ambitos En Que
Desarrollen Sus Relaciones Interpersonales, 2009. Disponível em:
http://www.oas.org/dil/esp/Ley_de_Proteccion_Integral_de_Mujeres_Argentina.
pdf. Acesso em 13 nov. 2014

BALOGH, Giovanna. Hospital do SUS reduz episiotomia ao tirar médico do


parto normal. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 de out. 2014 [online]
Disponível em: http://maternar.blogfolha.uol.com.br/2014/10/24/hospital-do-sus-
reduz-episiotomia-ao-tirar-medico-do-parto-normal/ Acesso em 8 de nov. 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS.


Indicadores e Dados Básicos (DATASUS) [online] – Brasília, 2014.
Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/f08.def
Acesso em 8 de nov 2014

48
_____. Ministério da Saúde. Programa de Humanização no Pré-natal e
Nascimento. Brasília, Ministério da Saúde, 2000.

_____. Parto, Aborto e Puerpério – Assistência Humanizada à Mulher.


Ministério da Saúde, 2001.

_____. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Ministério da Saúde


(Org.). Taxa de parto cesáreo. Brasília, 2004. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/qualificacao_saude_suppdf/Atenc_s
aude2fase.pdf. Acesso em 11 nov. 2014.

BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século


XIX. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 7, n. 2, 1991 . Disponível em
http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X19910002
00002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 6 set. 2014.

ABESS (Org.). Formação profissional: trajetória e desafios. São Paulo,


Cortez, 1997. (Edição Especial).

CHAUÍ, Marilena. Ética e Violência. Teoria & Debate. São Paulo, Fundação
Perseu Abramo, 1998.

_____. Cultura e Democracia: O Discurso Competente e outras falas. São


Paulo, Editora Cortez, 2007

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1986.

CARDOSO, Luzia; SOUZA, Mirian; GUIMARÃES, Roberto. Morte materna:


uma expressão da “questão social”. Serviço Social e Sociedade, São Paulo,
n. 102, abr/jun 2010. p. 44-68, Editora Cortez

DESLANDES, Suely Ferreira. Análise do discurso oficial sobre a


humanização da assistência hospitalar. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde
Coletiva, 2004; 9:7-14.

_____ Humanização dos Cuidados em Saúde: Conceitos, Dilemas e


Práticas. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2006.

49
DIAS, Marcos; DOMINGUES, Rosa. Desafios na implantação de uma
política de humanização da assistência hospitalar ao parto, Ciência e
Saúde Coletiva, 2005 vol. 10 n.3, p. 699-705.
.
DINIZ, Simone. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento, Ciência e Saúde Coletiva, 2005 vol. 10 n.3, p.
627-637.

_____. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev. bras.


crescimento desenvolvimento humano, São Paulo, v. 19, n.
2, ago. 2009. Disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010412822009000
200012&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 24 ago. 2014.

_____; CHACHAM Alessandra. O "corte por cima" e o "corte por baixo": o


abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo. Questões Saúde
Reprodutiva, 2006.

ENGELS, Friederich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do


Estado, São Paulo: Ed. Centauro, 2002.

GÊNESIS 3,16. A bíblia sagrada. 2a ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do


Brasil; 1993. p.5.

GURGEL, Telma. Feminismos no Brasil contemporâneo: apontamentos


críticos e desafios organizativos. Temporalis: Revista da Associação Brasileira
de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABPESS), Brasília, v. 27, n. 14, p.57-
76, jan./jun. 2014. Semestral.

GRIBOSKI, Rejane; GUILBEM, Dirce. Mulheres e profissionais de saúde:


imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto Cont.
Enferm. 2006; 15(1): 107-114.

GUTMAN, Laura. Maternidade e o encontro com a própria sombra. São


Paulo, Ed. Best Seller, 2010.

50
HOTIMSKY, Sonia; RATTNER, Daphne; VENANCIO, Sonia . et al. O parto
como eu vejo...ou como eu o desejo? Expectativas de gestantes, usuárias
do SUS, acerca do parto e da assistência obstétrica. Cad. Saúde Pública,
Rio de Janeiro, set-out, 2002, p.1003-1311

HIRATA, Helena; Laborie, Françoise; Le Doaré, Hélène; Senotier, Danièle


(Orgs) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo, Ed. UNESP, 2009.
Verbete: Patriarcado

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na cena contemporânea. In


Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília:
CFESS/ABEPSS, 2009.

_____; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil:


esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo, Cortez, 1983

IANNI, Octavio. Capitalismo, Violência e terrorismo. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2004

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa


qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Tecnologia apropriada para


partos e nascimentos. Recomendações da Organização Mundial de
Saúde. Maternidade Segura. Assistência ao parto normal: um guia prático.
Genebra: WHO, 1996.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Alerta sobre alto percentual


de cesarianas. Disponível em: <http://www.onu.org.br/unicef-alerta-sobre-alto-
percentual-de-cesarianas-no-brasil/>, acesso em 25 jun. de 2014.

RONDEN, Fabíola. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina


da mulher. Rio de Janeiro: Editora Fio Cruz, 2001.

SAFIOTTI, Heleieth; ALMEIDA, Sueli. Violência e gênero: poder e impotência.


São Paulo: Revinter, 1995.

51
SCOTT, Jonh. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. Revista
Educação & Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, jul./dez./ 1995.

SILVA, Ana; SIQUEIRA, Arnaldo. O valor do suporte à parturiente: um


estudo da relação interpessoal no contexto de um Centro de Parto
Normal. São Paulo, 2006

SOARES, Vera. Políticas Públicas para a igualdade: o papel do Estado e


diretrizes. In: Políticas Públicas e igualdade de gênero. São Paulo:
Coordenadoria Especial da Mulher, 2004, p.113-114.

UNICEF. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Guia dos Direitos da
Gestante e do Bebê. São Paulo: Globo, 2011.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu,


Campinas, n. 11, p. 89-98, 1998.

VELOSO, Renato. Notas introdutórias sobre o debate das relações de


gênero. In Revista Universidade e Sociedade. São Paulo: Sindicato Nacional
dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, 2003.

VENEZUELA. Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida


libre de violencia, 2007. Disponível em:
http://venezuela.unfpa.org/doumentos/Ley_mujer.pdf. Acesso em 13 nov 2014.

WOLFF, Leila Regina; WALDOW, Vera Regina. Violência Consentida:


mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17,
n. 3, p.138-151, jul./set. 2008. Bimestral.

52
APÊNDICES

APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO: MULHERES QUE UTILIZARAM A


ASSISTÊNCIA AO PARTO NO MUNICÍPIO DE SANTOS

Nome:

Idade:

Quantos filhos você tem?

Tipo de parto:

Idade gestacional na data do parto:

Local do parto:

1. Conte como foi seu pré natal:


2. Quantos médicos acompanharam seu pré-natal?
3. Como você planejou o seu parto?
4. Você se sentiu satisfeita? Descreva e dê nota de 0 a 5
5. Descreva como foi o seu parto, desde que deu entrada no hospital/casa
de parto até receber alta.
6. Você presenciou situações de violência (psicológica e/ou física) à
parturiente? Descreva
7. Se você pudesse teria o momento do seu parto de outra forma?

53
8. Como foi antes, durante e o que ficou registrado para você sobre o seu
parto?
9. Considerações adicionais

APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO –


TCLE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO


TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Convidamos o (a) Sr (a) para participar da Pesquisa “O Direito de Parir em


Paz”, sob a responsabilidade do pesquisadora Maria Lúcia Garcia Mira, a
qual pretende compreender em qual momento a parturiente deixa de ter o
domínio e a decisão sobre seu corpo, e o parto passa a incorporar significados
de estranhamento e desrespeito a direitos. Sua participação é voluntária e se
dará por meio de entrevista com roteiro previamente definido. O risco
decorrente de sua participação na pesquisa é do não sigilo referente as
informações que não autorizar a transcrição . Se você aceitar participar, estará
contribuindo para uma melhor compreensão sobre o que as mulheres no
município de Santos enfrentam ao utilizar a assistência ao parto. Se depois de
consentir em sua participação o Sr (a) desistir de continuar participando, tem o
direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da
pesquisa, seja antes ou depois da coleta dos dados, independente do motivo e
sem nenhum prejuízo a sua pessoa. O (a) Sr (a) não terá nenhuma despesa e
também não receberá nenhuma remuneração. Os resultados da pesquisa
serão analisados e publicados, mas sua identidade não será divulgada, sendo
guardada em sigilo. Para qualquer outra informação, o (a) Sr (a) poderá entrar
em contato com o pesquisador no endereço Rua Silva Jardim, 133/136 – Vl.
Mathias ou poderá entrar em contato com o Departamento Saúde, Educação e
Sociedade, na Universidade Federal de São Paulo, Rua Silva Jardim, 133/136
– Vl. Mathias, telefone (13) 38783731.

Consentimento Pós–Informação

54
Eu,___________________________________________________________,
fui informada (o) sobre o que o pesquisadora quer fazer e porque precisa da
minha colaboração, e entendi a explicação. Assim, concordo em participar do
projeto, sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair quando quiser.
Este documento é emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e
pelo pesquisador, ficando uma via com cada um de nós.

Data: ___/ ____/ _____

______________________ __________________________
Assinatura do participante Assinatura da pesquisadora

55

Você também pode gostar