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CORPO-DANÇA:
Ensaiando uma clínica da sensibilização
RIO DE JANEIRO
MAIO/2018
CARLA DO EIRADO SILVA
CORPO-DANÇA:
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada em:
Banca examinadora:
Profa. Dra.:
____________________________________________________________________
Instituição:___________________________________________________________
Assinatura:___________________________________________________________
Prof. Dr.:
____________________________________________________________________
Instituição:___________________________________________________________
Assinatura:___________________________________________________________
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à Angel Vianna por me abençoar com sua presença neste mundo e
nesta época.
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Agradeço à professora Dra. Catarina Resende e ao professor Dr. João Batista por
participarem de maneira tão disponível e atenta na qualificação na qual fizeram
observações e críticas relevantes que me puseram a refletir.
Agradeço aos meus amigos e familiares por não me deixarem cair sempre que
parecia que iria desmoronar.
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RESUMO
6
ABSTRACT
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INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9
2.1 Dança é vida: As experiências dos Vianna, o surgimento do Método Angel Vianna
(MAV) e seus aspectos mais centrais. ............................................................................ 45
2.2 Sentindo de perto: Os elementos que compõem o Método Angel Vianna ....... 652.2.1
“Conscientização do Movimento” .................................................................................. 70
3.2 O corpo em Gestalt-terapia: uma visão estética da clínica psicoterápica ............... 101
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INTRODUÇÃO
Memórias Corporais
Lembro-me nitidamente da primeira vez que me despertou o interesse pela dança. Eu tinha quatro ou
cinco anos e meus pais me colocaram numa creche que ficava a poucas quadras da minha casa na época.
Lá, certa vez, vi fadas.
Várias fadas! Tão graciosas a colocar suas sapatilhas de meia-ponta e ter os cabelos presos em coque.
Vestiam meia-calça e collant rosa-bebê e brincavam alegremente... Cativou-me a forma como se moviam
fazendo pliés na primeira posição com graaaandesport de bras. Nunca tinha visto ninguém se mover
daquele jeito. Fui perguntar para uma delas o que estavam fazendo. Me respondeu que dançava ballet.
Despedi-me de minha nova amiga e foi neste momento, vendo-as ir embora que comecei a sonhar
secretamente que um dia seria bailarina. Fui uma criança solitária... muito tímida e introspectiva.
Meu pai saiu de casa. Éramos apenas eu e mamãe. Mamãe vivia a maior parte do tempo absorta em seus
pensamentos. Tive que aprender a conviver com a solidão dentro de casa. Além da escola não tinha
nenhuma atividade extracurricular. Terminados os deveres de casa me deparava com o desafio: Como
passar o tempo até a hora de dormir?
Minha brincadeira preferida era colocar um CD qualquer no som e começar a dançar!
Fechava a porta do meu quarto e era instantaneamente transportada para um mundo de fantasias onde eu
me transformava em bailarina!
Era viciante dançar.
Cada música me levava para um mundo diferente que me convidava a sentir afetos e com eles me
movimentar. Não pensava em nada, apenas confiava no meu corpo e me alegrava quando descobria um
movimento novo. Ficava horas, horas nessa exploração criativa sem me dar conta do tempo. Me sentia
preenchida por uma alegria inexplicável dos pés até o último fio de cabelo.
Quando dançava no meu quarto nunca me sentia só, não tinha medo de nada, não me sentia inadequada.
Estados de espírito que me acometiam na maior parte do tempo quando não dançava.
Ah! Mas quando dançava tudo o que importava era dançar; sentir a música e viver as mais pungentes
aventuras.
Ao mover-me vinham-me imagens, cores, cheiros, sensações que me demostravam o quanto eu estava
viva.
Uma coisa é acordar, tomar café, dar bom dia para minha mãe:
– Bom dia, mãe!
Ir à escola, conviver com as pessoas, chegar em casa, tomar banho, fazer deveres, brincar, jantar... e
dormir. Outra completamente diferente é sentir-me viva.
Respirando...
Sentindo o chão, a música, o corpo, as dores, os afetos. Suando. Caindo e levantando. Gesticulando.
Criando. Observando o deslocar do meu corpo pelo espaço, pela fantasia dançante do instante presente...
Vivendo.
Me vendo agora, nesse momento, dançando, aqui, lembro daquela menina. Ao dançar ela estava
esculpindo minha maneira de ser, minha maneira de ser...
De agora.
Para que vivamos algo verdadeiramente é preciso implicação. Sobretudo,
implicação corporal. É como corpo que vivemos no mundo.Através de meus olhos
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enxergo as coisas ao meu redor, distingo um sorriso de um pressionar aflito de lábios.
Com os olhos me mostro ou me escondo, me antecipo e coloco os óculos escuros ao
primeiro contato com a claridade solar do meio-dia. Percebo a escuridão da noite e
meus passos se lentificam, meu corpo adquire cautela dentro de casa para não esbarrar
nos móveis ou, se estiver numa rua deserta, procura ampliar a atenção e identificar
qualquer possível sinal de ameaça. Com os olhos sinto a doçura de uma maça bem
vermelha ou sei que uma alface está passada, pelos olhos me aterro as formas da
paisagem que me cerca.
Através de minhas mãos posso tocar diferentes objetos e me servir deles para
meus propósitos, posso afastar um indesejado ou trazer para perto do coração quem me
é amado. É pelo nariz que respiro, amplio ou recolho meus movimentos, acelero a
respiração ao correr, desacelero ao deitar para dormir. Pelo nariz sinto o cheiro do
mundo, sei sensivelmente se uma coisa é agradável ou desagradável, se posso comê-la,
se estou num lugar limpo ou se minha saúde se encontra em perigo... Com os
ouvidosme apercebo do mundo vivo, dos outros seres, posso escutar o cantar de um
bem-te-vi. Posso me proteger de um carro desgovernado que freou bruscamente, posso
entender uma calorosa discussão entre mãe e filho sobre o que se pode ou não se pode
fazer na rua. Com o escutar me conecto aos outros semelhantes, que falam e gesticulam
pensamentos, quereres, posturas e devires frente a realidade presente.
Sou um corpo que se move no mundo e minha relação com ele se dá pelo meu
corpo. Eu e corpo somos um. Eu sou olhos, nariz, boca, ouvidos, mãos, pés, pele,
tronco, braços e pernas. Minhas partes corporais são meus campos de visão e ação, são
minha via de percepção do mundo e de expressão no mundo. Reconheço os outros
iguais ou diferentesde mim, pois eu os afeto e eles me afetam de volta, cada um à sua
maneira, mas todos como corpos no mundo com outros corpos. Todas as expressões de
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nossa singularidade de ser – particularidades corporais, pensamentos, discursos, o que
nos soa familiar e o que nos soa diferente, nossos desafios, qualidades pessoais,
dificuldades, nossa profissão, nossos sentimentos, o que nos é consciente, visível e
perceptível e o que nos é inconsciente, no sentido de invisível, misterioso ou não-
perceptível – a nós se estruturam a partir do nosso ser-no-mundo eminentemente
corporal.
Olho para o mundo e vejo as pessoas deslocadas do próprio corpo, tendo uma
relação de dessensibilização e de objetificação com o corpo, ao invés de viver como
corpo. Observar esse fenômeno acontecer comigo mesma e com tantas pessoas
diferentes, com vidas muitas vezes diversas, me fez pensar que essas formas de relação
com o próprio corpo não partem apenas da própria pessoa, mas que isso, de certa forma,
é aprendido, reproduzido e reforçado no convívio com outras pessoas.
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Expressão utilizada por Merleau-Ponty, ao longo de toda sua obra, para indicar que o corpo reúne as
dimensões de sujeito e objeto, pode ver e ser visto, sentir e ser sentido.
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viver que não passam única e exclusivamente por aí. Isto me levou a questionar: de
onde surgiram essas formas de relação com o corpo? Que fatores fizeram com que elas
se tornassem hegemônicas? E o que elas têm a ver com as dores, ou melhor, com o
sofrimento que sinto e observo muitas pessoas sentirem em seus corpos e, mais
amplamente, em suas vidas?
A primeira coisa que esses questionamentos me levaram a pensar foi que essas
formas deslocadas de relação com o corpo devem surgir de algo que compartilhamos
todos: nosso tempo. Todos, por mais diferentes que sejamos, por mais diversas que
sejam nossas vidas, por mais múltiplos que sejam nossos corpos, compartilhamos uma
espessura temporal e espacial, compomos uma história, coexistimos no mundo, somos
contemporâneos. Pensar no contemporâneo implica pensar nos marcos que, de certo
modo, caracterizam o momento presente na vasta história da humanidade.
O que fica, para mim, na medida em que avanço nessa caminhada acerca da
questão do corpo, é que essas práticas contemporâneas inspiradas nessa perspectiva
produzem em nós uma experiência com o corpo que não passa pelo próprio corpo, mas
que o desloca, o separa de algo que lhe é primordial: sua dimensão sensível, sua
capacidade sensitiva. Nós nos referimos ao corpo como se tivéssemos um corpo e não
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como se fôssemos corpo. Essa maneira de compreender e lidar com o próprio corpo,
como vejo, o dessensibiliza.
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pode conhecer algo indo ao seu encontro, movendo-se em direção a, ou seja, nos
esclarece que só podemos conhecer o mundo com o corpo, ou melhor, sendo corpo.
Para o filósofo (2011), toda ação perceptiva envolve uma ação motora. É preciso
mover-se do lugar conhecido onde se está para que se possa galgar o desconhecido, pois
não somos feitos de matéria exclusivamente pensante, abstrata, mas também somos
corpo; constituídos de carne, ossos, pele, lágrimas, voz, tato, nariz, língua, ouvidos,
olhos, líquidos e afetos. Nossos corpos habitam um tempo e um espaço próprios; são
sínteses afetivo-espaço-temporais; possuem cultura e história e estão em constante
movimento, sempre abertos à experiência, sendo transformados e transformando no
encontro com o mundo e os outros, retomando o passado, o futuro e ressignificando o
presente.
Essa relação entre a clínica, a dança e as práticas somáticas vem sendo explorada
por alguns autores (RESENDE, C., 2008, 2013; RIBEIRO, R. S. T., 2009, 2015;
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MIRANDA, R. M. R., CURY, V. E. 2010; LIMA, D. M., SILVA NETO, N. A., 2011;
LIMA, M. V., GUIMARÃES, S. M., 2014). As interlocuções em sua maioria se dão
com abordagens psicanalíticas, mas também com outras perspectivas. Considerando que
o referencial fenomenológico assim como a perspectiva da Gestalt-Terapia tem grande
ênfase no corpo e uma aproximação com o campo da arte, vislumbramos nesse diálogo
uma especificidade singular que nos move para ampliar esse campo de diálogos entre
psicologia e dança.
O primeiro passo foi pensar sobre o corpo dessensibilizado como uma forma
hegemônica de vivência no contemporâneo e a partir daí explorar possíveis fatores
relacionados ao fenômeno da dessensibilização corporal e suas repercussões no
sofrimento humano, o que é discutido no primeiro capítulo intitulado: “O sujeito
contemporâneo e o corpo dessensibilizado”, onde foram abordadas as questões sobre a
vivência do corpo na contemporaneidade, apontando possíveis fatores que contribuem
para a dessensibilização corporal. O capítulo tem como dois eixos centrais pensar a
vivência do ser como experiência (do corpo enquanto experiência) e pensar a
experiência do corpo que se dessensibilizou.
De acordo com essa exploração primeira, nosso segundo passo foi pesquisar e
discutir a prática da dança compreendida pela MAV como uma via de retomada da
dimensão sensível-senciente do corpo. Assim, no segundo capítulo intitulado: “O
dançar: reflexões a partir da experiência e estudo teórico do Método Angel Vianna”,
nosso objetivo foi apresentar um estudo acerca da MAV, fazendo uma contextualização
histórica do seu surgimento e apresentando os principais elementos que caracterizam
essa metodologia. Também exploramos de forma focal a experiência desta mestranda
durante seu processo de formação pessoal-profissional nesta metodologia tentando
encontrar pontos de contato entre o que se propõe teoricamente e o que se vivencia.
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Em seguida, no terceiro capítulo intitulado “O corpo em Merleau-Ponty e na
Gestalt-Terapia: o sensível e o estético no movimento da existência”buscamos pensar e
discutir a visão fenomenológica de Merleau-Ponty e da Gestalt-terapia acerca da
dimensão sensível e seus diálogos com a estética e a expressão. Essa exploração
dialógica foi inspirada na motivação em pesquisar e discutir a experiência do corpo
dançante como uma possibilidade terapêutica transformadora da corporeidade e com
isso ensaiar alguns apontamentos iniciais do que poderia ser uma clínica voltada para a
prática da sensibilização corporal, incidindo diretamente no fenômeno contemporâneo
de dessensibilização corporal.
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CAPÍTULO 1 - O SUJEITO CONTEMPORÂNEO E O CORPO DESSENSIBI-
LIZADO
Prólogo
Foi assim. Vivendo a vida normalmente que, PÁ! Tropecei na questão do corpo.
Doeu.
E quando meu corpo doeu, meu foco mudou, quase que instantaneamente,
dirigindo-se ao seu encontro. Ao doer o corpo, a atenção, ou seja, a energia vital que
despendia para viver aquela vida – com suas tarefas cotidianas e suas demandas
conhecidas – sofreu uma transformação. O gosto daquela vida já não era mais o
mesmo, sentido através do incômodo de um corpo dolorido que insistia em se fazer
presente em qualquer ação, por mais ínfima que fosse. A dor de meu corpo virou minha
vida pelo avesso, martelando o prego da sua existência nas paredes dos meus passos.
Fosse na vigília, no sono ou no sonho, ele estava lá: meu corpo... Doendo...
Cansada de me queixar da dor, fiz uma coisa que não fazia desde a infância,
quando brincava de dançar: comecei a observar meu corpo. Mais que isso, voltei a
senti-lo. Pela primeira vez, depois de anos, quis encontrá-lo sinceramente e vê-lo. Não
com meus olhos costumeiros e já formatados pelo pensamento. Recusei por um
momento o velho hábito de olhar meu corpo “de fora”, como se fosse possível me
separar dele e o esvaziar de mim a ponto de poder pegá-lo, como quem pega um garfo.
Não; quis tentar vê-lo com meus olhos de carne, de corpo e de alma; meus olhos
perceptivos, sensíveis, fenomenais, afetivos e significantes. Quis lançar sobre meu
corpo um olhar “de dentro”, de dentro da experiência, um olhar-sentindo que
reconhece a vastidão de vida que há nele para ser vivida. E foi aí que parei de rejeitar
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a dor e querer jogá-la fora, como quem dispensa um chinelo havaianas velho e
ressecado que se partiu entre os dedos. E experimentei questionar: de que se trata essa
dor que sinto? Qual é a sua extensão? De onde ela surge? E o principal: o que meu
corpo diz quando dói?
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suposta existência guiada pelo intelecto. Acompanhando a proposta de Imbassaí (2003),
denominamos este fenômeno contemporâneo de dessensibilização corporal. Buscamos
também refletir mais amplamente sobre possíveis formas de experimentar o corpo e de
viver a vida como experiência, pois acreditamos que o fenômeno da dessensibilização
corporal está relacionado com certa restrição das possibilidades de ser.
Muitas vezes temos dificuldade de lidar com nossas existências, com o que nos
surpreende e com o que se apresenta como desafio, e/ou com aquilo que não
compreendemos de imediato e não controlamos, enfim, com tudo que escapa à nossa
forma habitual de lidar com nossas experiências. Quando nosso corpo se encontra
dessensibilizado, muitas vezes acreditamos ser possível eliminar essas dificuldades
existenciais através da manipulação do corpo, como se este fosse um objeto
problemático. Vão nessa direção, por exemplo, as práticas crescentes de medicalização,
que muitas vezes procuram sanar dificuldades do campo vivencial através de um
anestesiamento do corpo. Ao contrário, nos parece que cultivar uma atenção ao corpo,
praticar um estar-em-si-corporal, no sentido de ampliar a presença do ser como
corporeidade-no-mundo-com-os-outros, longe de significar calar as dores e o
sofrimento, poderia contribuir para a apreensão da existência como campo problemático
e complexo. Nesse sentido, as práticas e teorias que promovem uma sensibilização do
corpo poderiam contribuir para um exercício contínuo de cuidado com esse campo
problemático da existência.
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diversos âmbitos de sua vida – tarefa que cada vez mais se mostra distante e difícil na
vida de todos nós.
Com relação a essa dificuldade, Bondía (2002) coloca que há uma certa postura
(informacional e utilitarista) do sujeito contemporâneo que o impede de viver a vida em
sua forma mais própria, que é a da experiência2. Para compreender melhor o sentido
desta, o autor nos aconselha voltar aos tempos anteriores à ciência e à sociedade
contemporâneas. Durante séculos, o saber humano havia sido entendido como uma
aprendizagem através daquilo que nos acontece, isto é, algo que se adquire através do
modo como alguém responde ao que experimenta ao longo da vida. Nesse contexto, a
experiência não se referiria a natureza das coisas em si, mas ao sentido do que nos
acontece.
Quem vive algumas experiências na vida cultiva um certo tipo de saber, como
afirma Bondía (2002). Trata-se de um saber diferente do saber científico e do saber da
informação, de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho mecanizados. O
saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana; é uma
espécie de mediação entre ambos. O saber da experiência tem uma qualidade
existencial, caracterizada pela relação com a vida singular e concreta de um existente
singular e concreto.
A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos
de nossa própria vida. Se chamamos existência a esta vida própria,
contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma
essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão
nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai
construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que
faz impossível a experiência faz também impossível a existência (BONDÌA,
2002, p. 28).
2
O sujeito geralmente toma sua experiência como signo (também no sentido de input de informação) de
algo supostamente mais real: as coisas e objetos, as tarefas cotidianas, os desafios objetivados como
obstáculos meramente externos... Ou seja, em termos da vivência comum do dia-a-dia, as pessoas não
atentam para a qualidade da experiência e sim para os referenciais, por assim dizer, objetivos e
impessoais que o convívio social transforma em “coisas importantes”.
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Segundo o autor, o sujeito da experiência não é o sujeito da informação, da
opinião, do trabalho, do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Segundo Bondía
(2002), se pesquisarmos em diferentes línguas como se fala da experiência, veremos que
o sujeito da experiência pode ser compreendido como um território de passagem,
marcas, afetações; ou um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, um lugar
que recebe o que chega e que, ao receber, abre lugar; ou ainda, como um espaço de
acontecimentos (op.cit).
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...requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÌA, 2002, p. 24).
Dito tudo isso, podemos nos questionar sobre porque não conseguimos, na maior
parte das vezes, viver nossas vidas como experiência e pensar sobre o que estará
dificultando esse processo. O que se configura como uma grande problemática, a nosso
ver, são as formas hegemônicas contemporâneas de vivenciar a experiência e o corpo
(ou melhor, o corpo-experiência). A experiência humana (em toda a sua amplitude: seja
com o mundo, o próprio corpo ou com os outros) está em segundo plano em relação aos
modos de vida pautados na lógica capitalista da eficácia e do trabalho, no pensamento
intelectualista e nas práticas cientificistas-tecnológicas. A economia capitalista, a
ciência de inspiração positivista e as tecnologias são saberes e práticas orientadoras e
constituidoras de nossa sociedade contemporânea. Essas três linhas de força estão
fortemente presentes em nossa cultura e nas formas contemporâneas de experienciar a
vida, ou seja, de se pensar, relacionar e agir constituindo nossa visão de mundo, do
tempo, do espaço, do outro e de nosso próprio corpo.
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À diferença da concepção sobre a relação entre corpo e consciência
predominante no contemporâneo, Merleau-Ponty (2011) nos oferece a visão de que
nossas experiências, antes de serem racionalizadas pela consciência, são
primordialmente corporais. O filósofo, em sua obra Fenomenologia da Percepção
(1945), desenvolve o argumento de que no pensamento clássico há uma espécie de
restrição da experiência quando se estabelece a primazia da intelectualidade. Podemos
lembrar aqui que o contexto em que a fenomenologia surge é marcado por mudanças
paradigmáticas que ocorrem na virada do século XX. Na tradição clássica, o intelecto
era considerado a fonte de todo saber e a fenomenologia aparece, então, como resposta à
crise da filosofia e da ciência inspiradas nesse pensamento. Para Merleau-Ponty, a
fenomenologia surge da crítica ao afastamento entre experiência e saber, afastamentos
este que se colocava como prerrogativa do juízo e do intelectualismo. Sobre esses
conceitos, o fenomenólogo, discorre da seguinte forma:
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temporal; é campo de presença do eu-corpo (sensível-senciente) envolto em um
horizonte de passado e futuro que me liga ao mundo compartilhado e aos outros corpos
igualmente sensíveis-sencientes. A experiência é nossa ação no mundo; expressão viva
de nosso corpo, é gesticulação corporal dada na situação presente que projeta o ser no
âmbito das possibilidades e insta a criar e transformar a realidade imposta. A
experiência humana é gesticulação, expressão motora que promove uma síntese
temporal, quer dizer, uma práxis que é gênese de sentido. A expressão corporal humana
faz a significação surgir como coisa no mundo (ALVIM, 2015).
Merleau-Ponty (2011) enfatiza o corpo como Leib (corpo vivo) e Körper (corpo
físico, biológico, instância em si mesmo). Para Merleau-Ponty interessa pensar emLeib,
isto é, a dimensão corporal ligada com nosso campo fenomenal, com nossa
corporeidade, movimento, com nossa capacidade sensível-senciente. Por sermos,
inevitavelmente, corpo é que podemos nos encontrar com os outros; podemos nos
dirigir e nos conectar intencionalmente ao mundo; podemos trabalhar, fazer e refazer
mundo e história. Nossa existência é constantemente (re)definida pelas experiências que
vivemos ao longo do tempo. A dimensão da temporalidade é fundamental para pensar a
existência que se configura continuamente em um campo de presença composto por eu-
corpo-outro-mundo, sempre permeado por um horizonte de passado e futuro (ALVIM,
2015).
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são semelhantes às necessidades do Capital e do Estado. Atualmente, a noção de
“conhecimento” compreende essencialmente a ciência e a tecnologia. O conhecimento é
basicamente mercadoria e, por conseguinte, dinheiro: neutro e intercambiável, à mercê
da rentabilidade e da circulação acelerada.
Outro modo de alienação discutido pela autora diz respeito à condição humana
criadora, que se encontra ameaçada e mesmo invisibilizada perante à organização do
trabalho cujo regime explícito de controle do trabalhador converte força de trabalho em
ritmo, tempo e energia corporal. O interesse do capital ao considerar o trabalho nessa
perspectiva é eliminar as resistências e diminuir o tempo do processo de produção. Essa
diminuição produz mais-valia e a gestão permite o controle do tempo, do espaço e do
ritmo do corpo em prol do aumento da produtividade. “O corpo só executa, submetido à
vontade externa e à exigência de sobrecarga. Há uma paralisia da atividade espontânea e
o trabalho deixa de ser práxis. Há perda do direito à trans-forma-ação” (Alvim, 2015, p.
57). Nesse sentido, a realidade do trabalho, longe de se configurar como possibilidade
criadora, trazendo a vivência do “eu posso” (praktognosia), traz a vivência do “eu não
posso” na qual o corpo perde a posse do tempo e do espaço e tem seus movimentos
controlados.
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dormir, etc. A intencionalidade corporal (motricidade) refere-se a um saber e a uma
ação prática e corporal irredutíveis à dimensão representacional consciente ou de ação
racional. É um conhecer sem conhecimento, uma compreensão pré-reflexiva do mundo
pelo corpo que nos possibilita nos movimentar e utilizarmos o espaço circundante sem
termos que pensar previamente sobre como fazê-lo. Dirigir um carro, atender a uma
ligação, escovar os dentes, ligar o computador são exemplos desse conhecimento
prático e encarnado. As noções de esquema corporal e hábito estão além das
contradições de livre arbítrio, vontade, determinismo, ação consciente ou inconsciente
ou até mesmo de sujeito e sociedade. Na ação corporal não há reflexão por parte do
sujeito; toda forma de ação tem como base uma ação corporal pré-reflexiva e pré-
consciente (MERLEAU-PONTY, 2011: ORTEGA, 2008).
O corpo não é apenas uma forma em movimento, muito menos uma vitrine de
logotipos, mas instrumento3 no mundo (Imbassaí, 2003; Merleau-Ponty, 2011).
Instrumento humano de relação com o mundo. É como corpo que nos movimentamos e
comunicamos com o mundo e os outros. Mas o que normalmente acontece é o bloqueio
da comunicaçãorelacionado ao acúmulo de tensões que enrijecem os músculos,
bloqueiam as articulações, restringem os movimentos, afetam a respiração e
comprometem o psiquismo, contribuindo para estressar e dessensibilizar o corpo
(Imbassaí, 2003).
3
A princípio pode parecer estranho caracterizar o corpo como um instrumento. Instrumento para o quê e
de quem? Chamar o corpo assim não seria já dissociá-lo do sujeito? Mas, pensando com Merleau-Ponty,
instrumento tem um sentido específico. O instrumento-corpo é recursivo, não toco sem ser tocada, não
atuo sem ser afetada... O instrumento, então, é o caráter de colocar o “sujeito” imediatamente no mundo e
com o outro. O instrumento não é para o quê, ele é o “quê” e o “quem” ao mesmo tempo.
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submetidos à competição exacerbada em uma cultura que prioriza
mercado/produção/rapidez. Logo, a contrapartida dessa perda de capacidade de sentir é
a hiperestimulação, hiperexcitação que é buscada pelas pessoas no contemporâneo com
festas sem fim, drogas, esportes radicais, sadomasoquismo, violência, etc.
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Mas a dessensibilização corporal não pode ser confundida com ausência de
sensibilidade. O corpo dessensibilizado não é um corpo que não sente, não é um corpo
que não vive experiências. Mas a grande questão é como ele sente e vive atualmente.
Vivemos em um ritmo acelerado, das altas performances e das hiperestimulações. De
acordo com Merleau-Ponty (2011), corpo é presença. O corpo concretiza sua
materialidade no ato de experimentar-se, ou seja, só é real no presente. Na
dessensibilização corporal a dimensão da temporalidade do corpo fica comprometida; o
corpo dessensibilizado vive uma falta de presença, não está no presente. Ou vivemos
nos projetando para um futuro virtual e nos esquecemos do aqui e agora, ou vivemos
agarrados no hábito, no que já passou. A dimensão espacial da corporeidade também é
afetada na medida em que vivemos comprimidos, seja no trabalho em nossas mesas de
computador antianatômicas ou seja em casa cercados por grades, nos transportes
públicos lotados, nas ruas movimentadas e violentas, nas praias lotadas, dentre outros.
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corpo para com ele mesmo. Sentir dor é algo mais profundo do que não sentir nada. São
as pessoas que se sentem doentes que sãocapazes de buscar algo para lhes tirar do
sofrimento. Só elas podem querer investigar o que está acontecendo, e encontrar formas
mais interessantes de viver, nas quais os corpos não sejam apenas experienciados como
algo incômodo, mas como abertura de possibilidade de estar no mundo.
Neste sentido, este trabalho discute a dança como uma destas possibilidades de
trabalhar o estar no mundo. Podemos dizer que de imediato ela não é em si uma
atividade terapêutica, nem se propõe necessariamente a essa finalidade, mas na medida
em que ela convida o corpo a se movimentar, ela lida diretamente com a expressão, pois
exige um trabalho a partir da sensibilidade do corpo. A dança acontece numa dimensão
pré-reflexiva, ou seja, num primeiro momento não é a cognição que está em jogo, mas
um “estar disponível” com os sentidos físicos relaxados e despertos, um aquecer e ativar
da motricidade, da percepção espacial e temporal, da propriocepção, eum convite à uma
atividade com a dimensão sensível-senciente. Imbassaí (2003), ao entrar em contato
com a maneira de Angel e Klauss Vianna ensinarem a dança, coloca que a técnica da
conscientização corporal, a partir da sensibilização, pode se configurar como um dos
caminhos de retomada da qualidade humana de experimentar a vida.
33
1.3 O sujeito cindido e a dessensibilização corporal: A separação mente-corpo
comoherança da filosofia e da ciência
A dessensibilização corporal e a dificuldade de lidar com a experiência tem
também íntima relação com os saberes e práticas científicas e tecnológicas. Importa
aqui pensar o que foi feito da experiência humana com o advento da ciência e das
práticas tecnológicas. O pensamento científico sustentado pelo dualismo sujeito-objeto
(intelectualismo ou empirismo) converteu o mundo em objeto para a ciência, ao mesmo
tempo em que converteu a experiência da vida humana em processos de relação com os
objetos e o ambiente. Ou seja, o domínio da dimensão fenomenal e existencial humana
converteu-se na experiência de um sujeito racional em relação à um mundo tomado
como objeto.
4
Quando falamos aqui em ciência, nos referimos à ciência de inspiração positivista. Ainda que
reconheçamos que existem outras propostas e outros modos de fazer ciência, optamos aqui por nos
concentrar nesse modo específico que, por sua disseminação e por seu lugar de destaque na sociedade
capitalista, traz consequências significativas para as práticas e os corpos contemporâneos.
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Quanto mais a ciência evoluiu e criou áreas de estudo especializadas, mais a
experiência humana foi recortada e afetada por essa lógica de pensamento e prática
racional, dualista e objetificante. O pensamento científico, influenciado pelo
pensamento de Bacon e, mais tarde, de Descartes, junto a muitos outros, mudou a noção
de experiência; transformou-a em método científico, experimento controlado, o que é a
base da dita ciência experimental, como argumenta Bondía (2002). Aqui a experiência
não é mais o instrumento de formação e transformação da vida dos humanos em
singularidade, mas o método da ciência objetiva que se determina a missão de
apropriação e domínio do mundo.
35
Para tais modelos de pensamento filosófico e científico, o corpo sensível sempre
esteve em segundo plano, na categoria de objeto, res extensa, corpo-máquina, matéria
inerte que está submetida ao espírito.
36
A medicina, afirma Ortega (2008), ocupa nos dias de hoje o lugar do universal e
fala em nome da “Verdade”, fornecendo regras de comportamento para todos: “uma
tecnologia do poder sobre a ‘população’ enquanto tal, sobre o ser humano enquanto ser
vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de ‘fazer viver’”, apresentado por
Foucault (2000, p. 294), desenvolveu-se a partir do final do século XIX, no bojo de
estratégias higiênicas, sanitárias, urbanísticas e arquitetônicas e vigora até hoje em
nossa sociedade. Essa tecnologia, afirma Foucault (2000, p. 295) se configura “cada vez
mais como o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver e no ‘como’ da
vida (...) o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar
seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências”.
Relacionado com este ponto está o fato dos corpos tornarem-se paulatinamente
intercambiáveis, devido especialmente aos avanços das tecnologias de transplantes a
partir de órgãos humanos e animais geneticamente modificados (xenotransplantação). A
mercantilização de partes do corpo através de transplantes fetal e de órgãos, a
manipulação genética e as tecnologias reprodutivas, se constituem em negócios
bilionários, de acordo com Ortega (2008).
37
e separado do sujeito produz o entendimento e o reconhecimento de que o corpo é, de
fato, um objeto para o sujeito que, então, torna-se o possuidor do corpo podendo se
servir dele. O corpo vivido transformado em objeto pode, por exemplo, ser modelado
numa academia de musculação, pode ser cortado, suas partes podem ser submetidas a
implantes de próteses, cirurgias plásticas, etc. Essas práticas médicas acompanham e
corroboram num certo sentido o pensamento neoliberal de nossa época, o homem se
pensa livre e autônomo e cuja liberdade se justifica, em parte, pela certeza de poder ter
controle total sobre seu corpo.
O corpo ser visto e tratado como objeto relaciona-se com o regime onde a
contemporaneidade alocou o corpo: biofísico, bio-químico-físico, mecânico. A redução
do corpo aos processos bio-químico-físicos transforma o corpo num objeto físico. O
corpo se tornou uma espécie de produto, um objeto de intervenção como qualquer outra
coisa. Em algo maleável e moldável segundo um ideal de corpo externo ao próprio
sujeito. Em grande parte das vezes, a busca por ‘ter” um corpo diferente do que se é, se
configura como uma imposição social, cultural. Essa busca por um ideal de corpo pode
gerar diversos tipos de adoecimentos ligados tanto à dimensão material do corpo quanto
à dimensão experiencial, de maneira entrelaçada.
38
entre o abandono e a retomada da corporeidade como dimensão sensível-senciente.
Todos estamos, em certa medida, sujeitos ao abandono quando nos esquecemos da
implicação corporal inerente ao nosso estar-no-mundo.
39
nossa existência variamos entre momentos de dessensibilização e de sensibilização.
Tanto o estado dessensibilizado quanto o estado sensibilizado não se dão por acaso. Não
se pode pensar em estar inteiramente dessensibilizado ou sensibilizado, não são
condições totalizantes e definitivas, pois a todo momento somos interpelados pelo
mundo, pelos outros, pela cultura, pela história, pelos acontecimentos político-
econômicos, pelo saber científico, pela arte, enfim.
40
também dói. Dor não é sinônimo de dessensibilização, ela pode ser parte do processo de
sensibilização. Existem muitas formas de dor, tantas quanto a singularidade dos corpos.
Mas as dores que concernem ao processo de sensibilização, são diferentes das que
envolvem a dessensibilização. As primeiras são as dores decorrentes do movimento do
corpo, da mudança, da expressão, elas acompanham, em certa medida, o próprio viver.
Viver é doloroso, exige trabalho (no sentido merleau-pontyanopraktognosia), criação.
As segundas são o inverso, elas advêm da falta de movimento, de um movimento
mecânico ou automático, da inércia, da resistência à mudança, da cristalização das
experiências. Pode ocorrer que a dor da dessensibilização aponte para uma crise que
impulsione o início de um processo de sensibilização, mas não é regra.
41
CAPÍTULO 2 – O DANÇAR: REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA E
ESTUDO TEÓRICO DO MÉTODO ANGEL VIANNA
“Dançar é estar inteiro, vivo. Não há como separar a dança da vida”, já dizia
Klauss Vianna (2005). Para ele somos os únicos responsáveis pelo corpo que somos e
somente nós poderemos modificar esse corpo. Do nosso existir enquanto corpo próprio
estabelecemos uma troca com o mundo, uma relação com a vida. O bailarino afirmava
que a vida é a síntese do corpo e o corpo é a síntese da vida e que nós não simplesmente
nos movemos, mas somos o próprio movimento. Nos movemos integralmente, tendo em
nós todas as forças que regem o universo. Quando dançamos, portanto, está dentro de
nós a engrenagem que faz o movimento do mundo. A dança é um modo de existir
consigo e com o outro no mundo compartilhado.
42
De acordo com Jussara Miller (2007) a dança é um modo de existir que não está
limitado ao universo dos bailarinos profissionais, mas é expressividade de todo ser
humano. Ela sublinha essa concepção advinda de Klauss Vianna, que, segundo ela “não
restringiu o seu trabalho a um instrumento apenas para as artes cênicas, mas também
para as atividades da vida diária, como meio de prevenir tensões e estresses
desnecessários” (2007, p. 21). No dançar há a premissa do cuidado e do respeito com o
corpo que, por sua vez, sustentam a descoberta ou a redescoberta do corpo próprio. Por
intermédio da dança pode-se exercitar um estar-em-si-corporal através das percepções e
sensações que emergem durante a execução dos movimentos. Para dançar é preciso que
o sujeito entre em um contato atento e profundo com todo o seu corpo, necessita “estar
presente corporalmente” para que o dançar flua de forma expressiva e espontânea. Ao
movimentar-me, me sinto, me assisto e me torno meu próprio espectador, o “observador
meditante” de meu próprio corpo. Esse cuidado atento com o corpo não deve se
restringir a sala de aula, mas ao se estender para a vida, aí consiste a terapêutica da
dança, segundo Miller (2007). Praticar a dança nos convida a perceber o corpo na rua,
em casa, no trabalho, em qualquer lugar.
A dança, compreendida pelos Vianna, é uma prática que busca abrir espaço para
a criatividade, resultando numa melhor execução e expressão dos movimentos; o que se
consegue primeiramente trabalhando com elementos estruturais básicos do corpo, como
os ossos, músculos, apoios, atenção, respiração e etc. Esse é o convite que a dança, nos
faz –mergulhar na experiência corporal no que ela tem de ressignificador e
transformador de nossa existência.
43
especificamente, do Método Angel Vianna de Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais (MAV)5. Tive contato com essa metodologia ao realizar o Curso Técnico de
Formação de Bailarino Contemporâneo oferecido pela Escola e Faculdade Angel
Vianna (EFAV) durante os anos de 2015 a 2017. As experiências que vivi ao longo do
curso muito me instigaram a pensar e refletir sobre as questões que trago nesta
dissertação de mestrado. Desta forma, neste capítulo a tarefa é trazer para as discussões
do capítulonão apenas uma leitura teórica, mas também trazer a minha experiência
como bailarina contemporânea formada no MAV e o que a prática sistemática dessa
metodologia pôde me trazer de instigações, esclarecimentos e aprendizado acerca do
potencial terapêutico de se trabalhar a corporeidade nessa perspectiva.
5
Discutiremos mais adiante, neste capítulo, o que estamos entendendo como PCV, TKV e MAV.
44
explicitado no primeiro capítulo, eles se deram conta de que os corpos dos bailarinos
estavam dessensibilizados e que a maneira como as aulas de dança, em especial o balé
clássico, eram ensinadas, contribuíam para esse cenário, pois voltavam seu foco e seu
fazer somente para transmitir uma técnica de dança, ou seja, ensinavam a dança como se
fosse uma repetição automática e desimplicada de movimentos específicos sem se
atentarem para os corpos que executavam esses movimentos. Ao contrário disso, para
os Vianna, interessava a repetição consciente, isto é, um repetir com uma postura
investigativa, exploratória de que elementos corporais estão sendo utilizados e de como
estão sendo utilizados para que o movimento aconteça desta ou daquela forma. Para
isso, é crucial que a pessoa esteja relaxada, aquecida e atenta exclusivamente para seu
movimentar. A sensibilização é o que proporciona esse estado de disponibilidade e
abertura para um movimentar atento, um repetir redescobrindo, um dançar expressivo.
A tarefa da sensibilização culmina em toda a pesquisa e elaboração da PCV.
2.1 Dança é vida: As experiências dos Vianna, o surgimento do Método Angel Vianna
(MAV) e seus aspectos mais centrais.
Angel Vianna, nasceu em Belo Horizonte em 1928, filha de libaneses, foi
batizada com o nome Maria Ângela Abras. Sempre buscou o contato com as artes,
tocava piano desde a adolescência e, aos 14 anos, conheceu Klauss Vianna no colégio
Instituto Padre Machado onde estudavam. Em 1947, após assistirem e se encantarem
com um espetáculo de dança do “Ballet da Juventude”, decidem fazer aulas de balé com
45
Carlos Leite6. Em 1948, Angel e Klauss integraram o corpo de baile do Ballet de Minas
Gerais, companhia de Carlos Leite (Miller, 2007). Em 1952, Angel Vianna inicia a
escola de Belas Artes onde teve aulas de pintura com Alberto Guignard7 e teve aulas de
escultura com Franz Weissman8. Sobre a pesquisa corporal de Angel Vianna, Miller
afirma que “a escultura, a música e a dança formam uma tríade que resultou no seu
trabalho corporal” (2017, p.41).
O sujeito sensibilizado pela arte tem uma escuta, uma apreensão do mundo
diferenciada. “Todas essas artes foram muito importantes para mim, porque todas fazem
6
Carlos Leite (1914 - 1995), bailarino brasileiro nascido em Porto Alegre, onde estudara canto, mudando-
se para o Rio de Janeiro, onde estudara arte dramática e balé. Em 1943 vai dançar em Londres, mas com a
eclosão da Segunda Guerra, volta ao Brasil. Em 1945 torna-se o primeiro bailarino do Municipal do Rio
de Janeiro e depois ajuda a fundar o Ballet da Juventude, onde se destaca como maître de ballet,
coreógrafo, diretor de cena e assistente de Igor Schwesoff, diretor da companhia. Em 1948, foi convidado
pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Minas Gerais para montar uma escola: a Escola
de Dança Clássica de Minas Gerais, sediada em Belo Horizonte.
7
Alberto da Veiga Guignard (1896 – 1962), pintor brasileiro; instalou em 1944, a convite do então
presidente Juscelino Kubitschek, um curso de desenho e pintura no Instituto de Belas Artes, em Belo
Horizonte.
8
Franz Weisseman (1911 – 2005) nasceu na Áustria e veio para o Brasil com 11 anos. Tornou-se uma
referência na escultura brasileira. Mudou-se para Belo Horizonte em 1945, onde lecionava aulas de
desenho e escultura. Em 1948, foi convidado por Guignard para dar aulas na Escola do Parque.
46
parte de um trabalho necessário a uma escola de dança”, afirma Vianna (2016, p. 271).
Desde a infância, Angel Vianna tinha o interesse em observar os fenômenos e as
pessoas. Sempre foi muito curiosa, o que a ajudou a abrir um canal de percepção de
mundo aguçado. Em sua observação, a bailarina percebeu que os fenômenos não se
diferenciavam da natureza, do mundo ou dos seres humanos. Ao longo de seu exercício
contínuo de observação, preferiu voltar sua atenção para os seres humanos, focando nas
suas diferenças e na sua movimentação. Quando Angel e Klauss Vianna começam a
fazer aulas de balé clássico, para eles a dança era uma poesia de vida; perceberam na
dança um estar-presente no e com o corpo diferenciado. Começam a se perguntar o que
estava por trás da dança que a fazia ser tão particular aos seus olhos. Nesse momento,
antes mesmo de começarem a ensinar dança, Angel e Klauss já se destacavam nos
espetáculos que dançavam. Eram notáveis bailarinos, detentores de um grande saber
sobre o corpo, a dança e a expressão artística. Vianna (2006, p. 273) afirma: “Renée
Gumiel (bailarina e coreógrafa francesa) na época perguntou para mim e para o Klauss
em qual país nós tínhamos estudado, nós nunca tínhamos saído de Minas e a gente
estudou com nós mesmos, em Minas, e com o Carlos Leite”
47
análise crítica sobre a arte da dança clássica no país, influenciando fortemente o
pensamento daquele meio artístico9.
Em 1961, Angel e Klauss Vianna são convidados para dançar e darem uma aula
no I Encontro das Escolas e Academias de Dança do Brasil, em Curitiba-PR pelo
organizador do evento, Paschoal Carlos Magno10. Como ressalta Enamar Ramos, “Isso
prova que o trabalho desenvolvido em Belo Horizonte havia ultrapassado a fronteira de
Minas Gerais” (2007, p. 66). Nesse momento não existia faculdade de dança, apenas
escolas, com exceção da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que oferecia curso
9
Disponível no Acervo Angel Vianna no site http://www.angelvianna.art.br/vida-e-obra
10
Paschoal Carlos Magno foi um importante ator, diretor, produtor, crítico, autor e animador no cenário
do Teatro brasileiro nas décadas de 1920 a 1960. Fundadordo Teatro do Estudante do Brasil - TEB e
criador do Teatro Duse foi nomeado, em 1962, secretário geral do Conselho Nacional de Cultura.
Paschoal Carlos Magno foi na verdade uma instituição: ele quase chegou a exercer, às vezes, funções que
caberiam a um informal Ministério da Cultura. Não há dúvidas de que o seu entusiasmo revelou talentos
que sem o seu apoio dificilmente teriam desabrochado; e de que raras são, ainda hoje, iniciativas válidas
do teatro brasileiro a que não esteja ligado a alguém que não tenha recebido em algum momento um
empurrão decisivo do patriarca de Santa Tereza" (Michalski, Y., 1989)
48
superior em dança desde 1956. Nesse evento, os Vianna conheceram Rolf Gelewski11.
Gelewski, diretor da Escola de Dança da UFBA, após assistir a performance de Klauss e
Angel como bailarinos, professores e coreógrafos no I Encontro das Escolas e
Academias de Dança do Brasil, convidou-os para serem professores de ballet clássico
na Escola de Dança da Universidade apesar de não possuírem formação em nível
superior. Já era o reconhecimento de Notório Saber12, título que Angel só foi receber
em 2003. Rainer e sua bisavó Erna (avó de Klauss e considerada sogra de Angel)
também se mudam para a Bahia com o casal.
Angel Vianna se refere a Rolf Gelewski como aquele que lhe deu a base de um
conhecimento, pois através dele, ela e Klauss Vianna entraram em contato com técnicas
corporais alemãs, como o trabalho de Rudolf von Laban e de Mary Wigman que,
segundo Enamar Ramos era “muito semelhante ao deles” (2007, p.67). Especificamente
no meio da dança, iniciava-se uma dissidência do sistema tradicional do balé clássico,
com base na necessidade de uma nova relação dessa arte com a realidade. Nesta nova
proposta, o principal seria a existência do bailarino e sua relação com o mundo, em que
o sentimento define o gesto, e o gesto, ao ser realizado, reforça aquele sentimento
(Monteiro, A., B., 1996). O contato dos Vianna com a técnica de Laban para quem a
dança “é uma arte livre, natural e acessível a todos, calcada na busca da essência da
alma humana e independente do virtuosismo clássico” contribuiu bastante para o
desenvolvimento da pesquisa dos Vianna. (op. Cit., p. 29)
11
Dançarino e coreógrafo alemão, naturalizado brasileiro, que foi solista e professor do Teatro
Metropolitano de Berlim, estudou com Mary Wigman (uma das principais criadoras da dança moderna
alemã) e Marianne Vogelsang na vertente expressionista e em 1960 foi convidado para ser diretor da
escola de dança da UFBA. Rolf Gelewski foi responsável pela estruturação do primeiro curso
universitário de dança moderna no Brasil, seu estilo foi influenciado pela “corrente estática” surgida na
Europa Central no início do século XX cujo grande diferencial estava na maneira como o artista vê a sua
arte e a sua relação com o mundo. (Ramos, E., 2007, p. 67)
12
Em 2003, a Universidade Federal da Bahia concede a Angel Vianna o título Doutora Notório Saber,
nas áreas de Conscientização do Movimento, Cinesiologia e Dança. Disponível em:
http://www.angelvianna.art.br/vida-e-obra/a-faculdade/1995-novo-grupo-teatro-do-movimento/1449/
49
permanecerem como professores titulares, mas Angel não quis se estabelecer na Bahia,
pois tinha o desejo deviver novas experiências, viajar mais e conhecer outras culturas e,
a contragosto de Klauss, se mudam para o Rio de Janeiro. Rainer e a bisa Erna voltam
para Belo Horizonte e visitam Angel e Klauss regularmente no Rio de Janeiro.
50
Em junho do mesmo ano, Angel, Klauss e sua amiga Marilena Martins (Nena)
viajam à Europa e aos Estado Unidos utilizando o prêmio Molière, que Klauss havia
recebido em 1972. Durante a viagem, Angel e Klauss conhecem alguns dos criadores de
diferentes práticas de educação somática. Na França reencontram Gerda Alexander em
um curso de Eutonia. Depois viajam para Itália, Espanha e Inglaterra. Nos EUA, visitam
Nova Iorque e participam do Festival de Dança e Teatro de Connecticut. Conhecem de
perto o trabalho de vários coreógrafos, visitam o estúdio de Mercê Cunningham, Martha
Graham e fazem aulas no Stúdio Joseph Pilates, além de assistirem a diversos
espetáculos de dança e teatro.
Angel Vianna só vai fundar sua escola no Rio de Janeiro, na época nomeada de
Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educação – CEPCAE, no ano de 1975 juntamente
com Klauss Vianna e Tereza d'Aquino, na Rua Góes Monteiro, em Botafogo. Esta
escola ficou conhecida como o “Corredor Cultural do Rio de Janeiro”, por onde
passavam os principais artistas e intelectuais cariocas. O espaço atraía profissionais de
diversas áreas, promovendo uma troca constante e interdisciplinar. A proposta do
Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educação foi pioneira nas pesquisas de linguagem
do corpo. Para Angel Vianna, a escola foi fruto da necessidade de um local mais claro
de expressão corporal e de sua busca constante em realizar o trabalho em que
acreditava. Ela se encarregava das aulas de Consciência Corporal e Klauss Vianna
ministrava as de Dança Moderna, enquanto Tereza d'Aquino, as de Balé Clássico.
51
Segundo Jussara Miller (2007) o CEPCAE também era dedicado a dirigir o Grupo
Teatro do Movimento, criado por ela e Klauss em 1976.
Em 1980 Klauss e Angel se separam, e em 1983 Angel transfere sua escola, com
a ajuda de Rainer Vianna e Neide Neves para o endereço atual, também em Botafogo.
Neste mesmo ano foi aberto o curso profissionalizante de Dança Contemporânea, em
52
nível de 2º grau, conhecido atualmente como Curso Técnico de Formação em Bailarino
Contemporâneo. E desde a conquista da autorização do Ministério de Educação e
Cultura (MEC) em 2001, a Escola passou a se chamar Escola e Faculdade Angel Vianna
(EFAV).
No ano de 2005, a Faculdade Angel Vianna inicia uma parceria com a UFBA e
lança a pós-graduação Lato Sensu em “Estudos Contemporâneos em Dança”. O
primeiro curso de pós-graduação aberto em 2007 na EFAV foi o de “Terapia através do
Movimento e Estética do Movimento” devido à inquietude dos muitos psicólogos que
buscaram a EFAV interessados na abordagem da instituição acerca da questão do
53
dualismo corpo-mente. Esse é o curso de pós-graduação que mais solicita a abertura de
turmas da instituição, já tendo 11 anos de atividade. Em 2009, a Faculdade Angel
Vianna amplia a gama de cursos oferecendo a pós-graduação de “Preparador Corporal
nas Artes Cênicas” por conta do trabalho diferencial que os Vianna trouxeram para a
formação de atores no Brasil13. E em 2010, abre os cursos de pós-graduação em
“Metodologia Angel Vianna”, “Sistema Laban/Bartenieff” e “Corpo, Diferenças e
Educação”. Todos esses cursos de pós-graduações foram especificando e aprimorando o
leque de possibilidades práticas que Angel abriu sobre o uso da sua metodologia. Angel
Vianna até hoje, aos 90, continua incansável em sua paixão e comprometimento com a
ampliação e o refinamento do ensino da dança: “Lá no Rio de Janeiro eu abri o curso
técnico, depois a faculdade e agora já temos cinco pós-graduações. E agora, como a
nota da CAPES foi boa, eu quero dar entrada no pedido do Mestrado. Porque não tem
mestrado em dança, a não ser na Bahia” (2016, p. 278).
No mesmo ano da separação dos pais, Rainer Vianna casa-se no Rio de Janeiro
com Neide Neves14, uma das alunas de Klauss. Juntos iniciaram o trabalho de
sistematização da TKV em 1984, posto que Klauss não tinha interesse em escrever
sobre sua pesquisa. A autobiografia escrita por ele em 1990 e reeditada em 2005,
chamada “A Dança”, só se realizou através de muito incentivo e insistência de alunos,
do filho, de parceiros diversos, etc., e acabou sendo escrita em parceria com outro
autor.Angel Vianna não escreveu livros, mas anotou e guardou bastante material ao
longo dos vários anos de sua vida e percurso profissional com Klauss. Segundo os
13 Naquela época, a formação de atores trabalhava bastante a expressão verbal, mas não trabalhava a
expressão corporal dos atores. Esse trabalho de expressão corporal desenvolvido pelos Vianna foi um
fator importante agregado nas atuais formações de teatro do país.
14
Neide Neves, graduada em Letras – Português-Francês, pela PUC-RJ e Doutora em Comunicação e
Semiótica, na área de concentração Signo e Significação nas Mídias, pela PUC-SP, foi aluna de Klauss,
Angel e Rainer Vianna durante 13 anos. Participou com Rainer da organização didática, iniciada na
década de 1980, do que se denomina Técnica Klauss Vianna desde 1992, ano de abertura da Escola
Klauss Vianna, em São Paulo. Ligada à Escola Vianna de pensamento sobre o corpo, atua como
professora e pesquisadora na área de Corpo, Movimento e Dramaturgia Corporal, com atores e bailarinos.
Leciona no Curso de Comunicação das Artes do Corpo, na PUC-SP; no Curso Superior de Teatro e no
Curso de Dança, da Anhembi Morumbi-SP; no Curso de Pós-graduação em Terapia Através do
Movimento, da Faculdade Angel Vianna/RJ e ministra e coordena o Curso de Especialização na Técnica
Klauss Vianna, no COGEAE, PUC-SP. Disponível em: http://neideneves.art.br/site/?p=173
54
professores do curso técnico, ela tem o hábito de guardar papéis. Sua casa, comentam, é
como um museu de sua trajetória15.
15
Em dezembro de 2012 é lançado o Acervo Angel Vianna, publicado na Internet e distribuído em mídia
digital em bibliotecas públicas do Rio de Janeiro. O projeto, patrocinado pela Secretaria de Cultura da
Prefeitura do Rio de Janeiro, é resultado do trabalho de Angel Vianna, que durante toda a sua vida
guardou documentos, fotos e vídeos sobre sua carreira. O acervo envolveu o trabalho de pesquisadores
durante quase um ano para digitalizar, catalogar e editar todo o material e dar sentido ao website que
reúne e disponibiliza todos os documentos gratuitamente.
55
De acordo com Jussara Miller (2007), Rainer Vianna teve participação direta
tanto na transmissão da técnica quanto em sua aplicação. A sistematização foi uma
grande conquista, pois:
Manter este trabalho vivo implica em preservar o que já foi descoberto, pensado
e feito e, sobretudo, manter a abertura para que ele seja experimentado, praticado,
ampliado e ressignificado a partir do seu contato com as novas gerações, novos corpos
de novos tempos, assim como nos ensina Merleau-Ponty quando trabalha a noção de
tradição em seu texto “O filósofo e sua sombra” (1984).Ele nos apresenta a
compreensão de que ser parte de uma tradição seja filosófica ou prática não significa
insistir no já afirmado e conhecido, mas é antes “esquecimento das origens” (p. 239),
isto é, “se quisermos reencontrar o pensamento e a obra, e se quisermos ser fiéis a eles,
só nos resta um caminho: pensar de novo” (p. 242).
Para o filósofo, honrar a tradição da qual pertence, iniciada por Husserl, não
significa continuar afirmando as ideias de seu antecessor, mas partir delas para
“formular – por nossa própria conta e risco – o impensado que acreditamos adivinhar
nelas” (p. 246). O filósofo francês nos convida a compreender a noção de tradição como
um movimento de retomada e avanço; partir do dito e pensar no não-dito criando uma
nova maneira de compreensão do dito e manter a tradição viva, ou seja, contribuindo
para que ela esteja sempre em movimento, se transformando e enriquecendo.
Angel Vianna mantém viva uma tradição de práticas corporais ao abrir um leque
de possibilidades de utilização e compreensão de sua metodologia. Ela nunca definiu
sua prática. Rainer Vianna e Neide Neves, ao escreverem sobre a proposta corporal dos
Vianna, criaram uma ordem de aplicação da técnica que a própria Angel não segue à
risca. Ela trabalha com essa ordem, mas de uma forma aberta e orgânica, tomando a
liberdade de rearranjá-la de acordo com o tema da aula, do curso e com o perfil dos
alunos ou dos profissionais com quem vai trabalhar, dentre outros aspectos. Não é que
56
não exista um planejamento das aulas, entretanto sempre se resguardam aberturas para
que o método flua e se adapte ao que se apresenta.
Nesse sentido, se produziram inúmeras teses sobre seu trabalho em várias áreas
de conhecimentos afins. Como exemplo, podemos citar o caso de uma designer de
cadeiras que fez o curso técnico da EFAV com o intuito de pesquisar a ergonometria
ideal para um corpo que se move. Em conversa com a atual coordenadora da EFAV,
Márcia Feijó, foi uma escolha da própria Angel resguardar uma abertura na maneira
como ela e sua instituição apresentam e transmitem seu pensamento e metodologia, o
que é uma das singularidades de sua obra. Justamente essa abertura é o que permite à
metodologia uma certa “fertilidade”, no sentido de que quem quer que se aproxime
desse método se sinta seguro e à vontade para apropriar-se dela, isto é, de forma a se
permitir um verdadeiro encontro de si com a metodologia e com as questões que
envolvem o corpo; que desses encontros possam surgir modos singulares e
significativos de aplicação da metodologia em seus imperativos existenciais.
16
Suzana Saldanha é professora de interpretação, improvisação, teatro-dança e atriz, com uma vida
dedicada ao teatro e a educação, com extenso currículo profissional. Graduada em Direção Teatral e
Licenciatura em Educação Dramática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS e Mestre
em Teatro-Educação pela Université Paris VIII- Vincennes. É natural do Estado do Rio Grande do Sul, da
cidade de Porto Alegre. Seu primeiro encontro com Angel, aconteceu na Calle Monroe em Buenos Aires,
onde se encontrava para um mergulho na dança e na consciência pelo movimento, participando de um
trabalho corporal de sensibilização conduzido por Angel, a partir daí, ao longo de seu trajeto profissional,
reencontraram-se diversas vezes, em permanente troca de conhecimentos e afetos. Ministrou durante
muitos anos a disciplina de Expressão Teatral e Dança na Faculdade Angel Vianna. Organizou e publicou
o livro Angel Vianna: Sistema, método ou técnica, FUNARTE, Rio de Janeiro 2009.
57
de diversos autores em torno dessa temática. Exploraremos, agora, algumas dessas
vozes para esclarecermos melhor tal questão.
O bom de mostrar as etapas do meu trabalho é que fica tudo bem claro. O
‘como utilizá-lo’ vai ficar a cargo de cada um! Os bailarinos vão dançar, os
professores vão ensinar e os terapeutas corporais vão aliviar as dores. Agora,
se quiserem dançar, ser professores e terapeutas de corpo também podem,
vai! O que eu não suporto é esse ‘mexidinho’, que ás vezes fazem com o meu
trabalho! (SALDANHA, S., 2009, p.17)
O que sei, Suzana, é que Angel soprou nos nossos corpos um novo espírito e
teve papel decisivo no processo de transformação do pensamento sobre o
corpo no Brasil. Não há mais corpo, muito menos modelo de corpo; existem
corpos, unidos em suas múltiplas individualidades apenas por suas
manifestações afetivas. Angel acolheu e abençoou a beleza dos corpos na sua
infinita diversidade, restitui-lhes a alegria do movimento livre e os ensinou a
dança da singularidade expressiva (RESENDE, B. L., 2009b, p. 25)
Acrescentemos ao que disse Bruno Lara Resende que isto pode estar ligado ao
que Merleau-Ponty e Laura Perls chamam de ‘estilo’. A dança, observemos, existe
independente do dançarino, mas cada dançarino, a seu modo, diversifica o sentido do
58
dançar, e ele o faz com sua expressão, o que envolve seu pensamento, seu movimento e
sua emoção: todo o seu ser.
Helena Katz (2009c), argumenta que a separação entre técnica e método não se
sustenta quando se conhece como o corpo funciona e que quando isso se transforma em
tema, passa a ser trabalhado, a princípio e na maioria das vezes, dentro de uma
compreensão dicotômica entre pensar e fazer. Técnica, para o senso comum, é
designada segundo a autora, como “uma atividade prática, associada ao aprimoramento
de alguma habilidade do corpo que, de imediato, é tratada como uma atividade
mecânica, a ser repetida e sem associação com a vida mental” (op. Cit. p. 26). Vale
lembrar que essa perspectiva ordinária compreende corpo separado do pensamento,
teoria de prática e ignora que toda atividade de capacitação sempre envolve o
componente cultural; natureza e cultura não são instâncias apartadas uma da outra, pelo
contrário, estão em constante relação, se co-transformando.
Sabe-se que o cérebro dos nossos ancestrais ficou maior quando seus braços e
mãos foram liberados para outros tipos de atividade, pela conquista da
bipedia. Com uma maior capacidade cerebral, foram tornando-se capazes de
segurar coisas com as mãos, de fabricá-las e de identifica-las. Os usos da mão
se relacionam com a modificação de sua estrutura, a longo do tempo, e com o
aumento do cérebro a ela correlacionado, que permitiu o desenvolvimento de
novas habilidades. Entender que na nossa história evolutiva é a relação
corpo-ambiente que promove a transformação tanto do corpo como do
ambiente nos permite ligar o que existe fora e dentro do corpo. Mais que isso,
pois nos leva a entender como o que está aparentemente fora se torna corpo
(KATZ, H. 2009c, p. 27)
Katz (2009c) coloca que, do lado oposto da compreensão dual da técnica, estaria
o método. Este é tradicionalmente visto, na dança, como um conjunto de instruções
mais abertas que não parte do passo já existente e desejado em uma forma definida; o
método permite que o corpo esteja mais livre e apto a descobrir seu modo de fazer o
movimento proposto permitindo e incentivando a capacidade criativa dos bailarinos. A
proposta corporal dos Vianna, o trabalho de Feldenkrais, ou mesmo de Rudolf von
Laban, por exemplo, se encaixariam neste segmento: o método. Entretanto, frisa a
autora, se partirmos desse pensamento, onde método e técnica se apoiam na distinção do
modo como o corpo executo os movimentos – sem um modelo pronto ou a partir de um
modelo pronto, respectivamente – ainda estaríamos operando segundo uma visão
dualista e separativa entre as duas definições. Seria mais interessante reformularmos a
questão inicial e refletirmos: não estaria a diferença entre técnica e método na
particularidade das suas situações temporais e não em relação ao uso ou não-uso do
passo? “A proposta aqui é a de que se possa reconhecer como passo todo e qualquer
movimento que se desenha ao longo do tempo (no espaço), qualquer movimento cuja a
sua forma de ser realizado ganha estabilidade e passa a ser reconhecida na sua
singularidade” (op. Cit. p. 28).
Apesar de, muitas vezes, não ser evidente para o sujeito, sentimento e
pensamento estão unidos em qualquer tipo de fazer. E, a forma através da qual esse
fazer se apresenta, na situação em questão, sempre envolve o entrelaçamento: percepção
(sentir), consciência (presença) e cognição (pensamento). Podemos compreender corpo
como algo em constante transformação e interdependência com o ambiente por onde
transita. Por esta via de pensamento, podemos enxergar os passos de dança não só como
formalizadores de ideias acerca do mundo, mas também como unidades criadoras e
articuladoras de diferentes discursos, ou seja, sem mudarmos a forma de um passo
criamos obras distintas e a repetição conduz a um processo de seleção da melhor forma
que cada corpo encontra para lidar com o movimento. Todo fazer produz um saber
prático que ganha forma no/como corpo e todas as formas se colocam de acordo com
princípios gerais que regem a relação corpo-movimento, apresentados ou não como
60
passos codificados de dança, inclusive o movimento que não começa copiando um
passo existente.
17
Termo referente à maiêutica, método de perguntar, desenvolvido por Sócrates (470 a.C.), com a
finalidade de levar o homem ao conhecimento. Na maiêutica socrática, o professor interroga seus alunos
convidando-os a responder suas provocações com base em seus próprios saberes. Podemos dizer que
61
Jorge Albuquerque Vieira (2009a), afirma que encontramos no trabalho de
Angel Vianna os aspectos sistêmicos, metodológicos e técnicos, mas o que o domina e
valoriza é o seu valor sistêmico e de uma natureza ontológica, pois sua proposta
corporal parte de interrogações mais gerais e fundamentais acerca do ser humano: o que
é o corpo? O que é a dança? e etc. Para esse autor, o corpo é um sistema hipercomplexo,
nunca captado por uma só ciência ou prática. O mais indicado seria falar de sistema
Angel Vianna, pois do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, todo o trabalho
consiste na construção de um sofisticado sistema conceitual e de ações, que tenta
mapear ontologicamente o sistema corpo.
Observamos que, ambos os autores (RESENDE, B.L., 2009b; KATZ, H., 2009c;
VIEIRA, J. A., 2009a) partem do entendimento de que não se deve encarar as
terminologias método e técnica levianamente, calcadas na visão dualista tradicional que
divide o campo do conhecimento entre teoria e prática, pensamento e ação, e cinde o
sujeito em corpo e mente. Mas todos sinalizam que a compreensão de sujeito com a
qual os Vianna trabalham se baseia no paradigma da complexidade, reconhecendo o
caráter múltiplo, fenomenal, diverso e dinâmico da existência humana que não pode ser
Angel e Klauss fizeram de suas instruções uma pedagogia maiêutica, levando cada um a encontrar suas
respostas no e com seu próprio corpo.
62
simplificada e, por isso, exige uma técnica ou metodologia ou mesmo sistema de
trabalho corporal que dialogue e funcione em sintonia com esta perspectiva.
Desse modo, destacamos que Angel coloca no centro do seu trabalho o corpo do
aluno, ou bailarino, ou artista que aparece requisitando seu fazer-saber, isso faz com que
em um olhar e observação da particularidade daquele corpo, a bailarina-pesquisadora
reformule e rearranje todo seu conhecimento adquirido de anos de prática em uma
maneira singular de acolher esse aluno/bailarino/artista e transmitir as informações, de
modo que, mais se aproxime e faça sentido para o que ela intui, sabiamente, que aquele
corpo precisa. Esse “como fazer”, acreditamos, é um ponto importante para se pensar no
aspecto terapêutico que a proposta corporal dos Vianna e, principalmente o MAV pode
oferecer.
Klauss Vianna era inclusivo e tinha um pensamento aberto assim como Angel,
mas a maioria de seus alunos eram artistas e bailarinos, o que contribuiu para que o foco
da sua pesquisa corporal se voltasse para a comunidade artística. Angel, além de
trabalhar com atores e bailarinos, se preocupou em ter um olhar voltado também para as
pessoas não vinculadas ao meio artístico. Nessa direção, podemos citar seu trabalho
com cadeirantes, pessoas com necessidades especiais e na área da saúde mental.
Podemos lembrar o trabalho que Angel Vianna desenvolveu em parceria com a Nise da
Silveira, no IMNS, na década de 1950. Lá ela dava aulas de Dança e Conscientização
Corporal, trabalhava com as questões da deficiência física e da saúde mental. Sobre a
importância do trabalho com a dança e a recuperação motora, Angel Vianna esclarece:
Tem uma coisa que eu gosto que é o trabalho de recuperação motora. Nós
temos essa parte no curso técnico na escola Angel Vianna e existem muitos
alunos que estão no Rede Sarah18, que fizeram dança e se especializaram
nesse tipo de trabalho. Em Belo Horizonte, na época que eu tive a escola,
18
O Centro Internacional SARAH de Neurorreabilitação e Neurociências, inaugurado em maio de 2009,
está localizado na Barra da Tijuca e admite adultos e crianças portadores de lesões congênitas, ou
adquiridas, do sistema nervoso central e periférico. O tratamento proposto inclui o acompanhamento do
processo de reabilitação do paciente e a orientação aos familiares, considerando as particularidades de
cada caso. Os primeiros alunos da Escola Angel Vianna que trabalharam na Rede do SARAH, que Angel
cita entraram na filial de Brasília. Só posteriormente a filial da Barra da Tijuca também acolheu e
valorizou o trabalho desses profissionais. Disponível em: http://www.sarah.br/a-rede-sarah/nossas-
unidades/unidade-rio/
63
vieram duas ou três pessoas me procurar com dificuldades motoras e eu não
disse não. Comecei a ajudar. Uma delas tinha síndrome de Down, hoje todo
mundo conhece esse problema, mas naquela época não era assim. Eu sou
uma das poucas que trabalha com deficiência. Eu estou com uma menina que
eu acho fantástica, ela (...) fez o técnico comigo, a Maria Alice Poppe19. E
essa menina se formou e achou importante mostrar esse trabalho para o
diretor do hospital Sarah. Mas o Sarah depois fez concurso para esse tipo de
profissional e só da minha escola passaram sete alunos. É um trabalho de
recuperação motora através da dança. Eu também era muito chamada para ir
ao Engenho de Dentro, no Instituto Nise da Silveira, eu trabalhava com os
‘doidinhos’ e muitos médicos queriam assistir as minhas aulas lá.Lá na
escola, nós fizemos um lugar especial para as aulas para deficientes, um lugar
plano, porque a escola é muito vertical” (2016, p. 279).
19
Maria Alice Poppe é bailarina, formada em balé clássico, dança moderna e contemporânea e graduada
em Licenciatura Plena em Dança pela Faculdade Angel Vianna.
64
coragem. Não pode ficar sentado esperando, eu não esperei ninguém me ajudar, se eu
tivesse esperado nada iria acontecer” (2016, p. 275).
Vieira (2003) comenta que é comum a arte não ser considerada como forma de
conhecimento e, menos ainda, como conhecimento científico, mas para o autor, “a arte é
uma forma sofisticada de conhecimento, possivelmente anterior ao que podemos
chamar de conhecimento racional e discursivo” (2003, p. 244) e deve-se insistir na
possibilidade da dança “poder ser estudada de uma forma científica (...) parece-nos, sem
sombra de dúvida, que arte e ciência partilham um núcleo comum, apoiado no que
chamamos usualmente ato de criação” (op. Cit.).
A partir do extrato de uma entrevista com Angel Vianna, podemos destacar alguns
pontos fundamentais dos elementos da MAV.
– E o seu trabalho Angel?
– Olha:
1. A primeira coisa é a observação. A visualização, a memorização
do eu, do outro, do espaço (ambiente).
2. Depois vêm os apoios (“no início dou muita ênfase nos apoios”)
a. Apoios: duros, moles, sem apoio.
b. A consciência dos apoios:
c. no chão
d. nos pés
e. nos ísquios
f. os apoios do corpo no cotidiano
3. A atenção – estar no aqui, no agora, no presente e acordado.
Vivo.
4. As articulações – explorá-las. Expandir os espaços, as dobras.
Pesquisar os movimentos do cotidiano.
5. O tempo – o tempo de cada aluno. É muito importante respeitar
o tempo do aluno. O início, o desenvolvimento e o fim de cada
um.
6. Os cinco sentidos – trabalhar com foco nos sentidos, despertar
os sentidos nos alunos. O ver e o ouvir são importantíssimos,
fundamentais para os atores, os bailarinos em cena.
7. A tridimensionalidade – trabalha com a frente, o lado e atrás. É
presente em todos nós, mas quem conhece bem são as crianças
quando giram.
8. A consciência corporal – é importante que o aluno tenha
consciência
do seu corpo, para poder “dialogar com o outro”.
- Eu adoro suas aulas, mas nem é o que você faz, e sim o que
você diz.
(Diálogo entre Suzana Saldanha e Angel Vianna. Grifo nosso. SALDANHA, S. 2009, p.
21-22)
66
A MAV não é específica para um corpo, mas ela é para todos. Encaramos a
MAV como uma proposta pedagógica aberta, ampla e inclusiva. Não foca num suposto
corpo criador, pois todos os corpos já o são. Mesmo aqueles que não tenham a intenção
de usar seus corpos com um objetivo artístico, acabam descobrindo e criando outras
linguagens e maneiras de se expressar, pois a proposta educativa da Angel passa pela
exploração e invenção de uma expressão própria. As aulas de MAV levam em conta um
espaço de descoberta, onde a pessoa experimente coisas novas para ela mesma.
67
época foi uma proposta extremamente inovadora de compreensão e exercício da
interpretação teatral. Todavia, na medida em que a PCV e, principalmente a MAV
foram se ampliando para outros âmbitos de atuação (na própria área da dança e também
em outras áreas de saberes afins, como o das práticas de educação somática, as terapias
corporais, psicoterapias, dentre outros) o próprio método foi se transformando,
ampliando e se tornando mais complexo.
68
uma necessidade dos alunos-pesquisadores de entender mais a fundo do que se tratava.
O discurso científico teve um papel de validação e legitimação da MAV, como podemos
perceber, por exemplo na citação de Katz (2009c) destacada anteriormente neste
capítulo, onde a autora articula o desenvolvimento cerebral com a o desenvolvimento da
capacidade motora das espécies.
69
desabrochar do corpo prenhe de sentido; expressividade do ser. Podemos relembrar as
aulas de escultura que Angel fez e como isso foi significativo para ela enquanto
pesquisadora, coreógrafa, professora e bailarina, como já foi comentado anteriormente.
O corpo tem uma memória muito aguçada, muito presente, registra tudo que
acontece na vida do indivíduo, e esse registro permanece para sempre. O
trabalho de Angel Vianna procura desvendar essa história por meio do
conhecimento do que acontece nesse corpo, com o intuito de não deixar que
essa memória o coloque dentro de um ‘envelope’, impedindo-o de sentir e de
ser expressivo. Por isso a prática foi chamada de Conscientização do
Movimento, por ser o modo pelo qual ela trabalha a expressividade. Angel
Vianna acrescentou a essa conscientização, para dar maior amplitude à
descoberta corporal, um trabalho que ela chama de Jogos Corporais. Nesse
trabalho, pelo relacionamento corporal entre um ou mais atores, aparecem
situações que levam à descoberta de posturas, movimentos, equilíbrios jamais
pensados, estimulados pelo companheiro, incentivando a criação por meio do
autoconhecimento. Assim o trabalho de Angel Vianna é por ela denominado
“Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. (Ramos,2007, p.24-25)
70
Acreditamos que é o jeito como a prática da dança é transmitida e a forma como
se ensina que faz a MAV ser tão relevante. Não basta ler nos livros como é a
metodologia e ir aplicando, pois há todo um “como” dar a aula, “como” trabalhar um
tema; tem um tom de voz, uma proposta conectada, um campo aberto de experiências
disponíveis que aprofunda o conhecimento dos alunos sobre eles mesmos, sobre seus
corpos cujas dimensões de vida abarcam pensamento, afeto, fala, expressão, história,
cultura e etc. Reconhece-se que em um bom trabalho de conscientização do movimento,
a pessoa que se experimenta, se sente confiante em se entregar. Ela vai tateando,
explorando e descobrindo delimitações, campos e contornos até então desconhecidos.
Não que tais delimitações, campos e contornos estivessem sempre lá “no interior” da
pessoa e ela as reencontrasse no trabalho com a MAV. Mas, para esta perspectiva,
descobrir e pesquisar é criar movimentações novas, é seguir a espiral contínua de
transformação corporal e elevá-la ao seu máximo.
Isso tem a ver com o cuidado com as singularidades corporais que Angel sempre
atentou. Nas aulas que vivenciei no curso técnico, os professores frequentemente
ressaltavam que eles não estavam interessados em transmitir uma técnica de dança de
forma perfeita. Estavam interessados especificamente no processo de cada um. Os
professores e, sobretudo a própria Angel, não têm interesse em saber se a pessoa vai
trabalhar o corpo e vai ser uma estrela da dança, mas querem saber se ela está aberta as
suas quebras de paradigma, se está aberta a se colocar em posição de sair de uma zona
de conforto e poder se (re)descobrir, se transformar. Essa perspectiva de compreensão
do ensino da dança e do trabalho corporal se aproxima da noção de “estilo” na
fenomenologia de Merleau-Ponty e na Gestalt-terapia.
71
Angel prima pela linguagem corporal. A linguagem do corpo é “a coisa”
primeira. Uma das propostas que a MAV valoriza é uma apropriação da sensibilidade
do corpo de tal maneira que possamos nos exprimir como corpo para além de uma
linguagem apenas falada, ou melhor, que as palavras ganhem mais vida com nossos
corpos. Que a “palavra” enquanto algo ligado a um pensamento reflexivo-categorial,
não seja a única detentora das experiências, das rotulações ou o único meio de
expressão. Essa questão do pensamento tem sido compreendida pela MAV de uma
forma mais ampliada; a dança é o pensamento do corpo. As dimensões de corpo e
pensamento não são separadas. Não precisamos subjugar a dimensão sensível-senciente
em prol de tudo que é racional, claro e consciente. Há uma diferença em se referir à
consciência como representação cognitiva ou como sensibilidade expressiva intrínseca à
corporeidade. O próprio pensamento é corpo, pois não é de todo representacional. O ato
de pensar se apoia na percepção e na sensibilidade corporal, antes de se configurar
como uma ideia clara. Pensamos que, se subtraímos esse primeiro momento do ato de
pensar, nossas ideias ficam empobrecidas, perdem corpo, perdem vivacidade. É como
tirar uma fruta do pé antes dela amadurecer e esperar que esteja doce, macia e viçosa.
Conscientização corporal, aqui, tem antes a ver com “presença”, com habitar o
corpo do que com tomar posse conscientemente e/ou mentalmente do seu corpo.
Colocando em suspensão o caminho do pensamento racional, lógico, a dança livre é o
exercício mesmo do corpo se havendo com toda a sua potência de ser e se descobrindo
no próprio movimento. Essa dança é diferente da dança de palco, pois sabemos que a
dança de palco corresponde a um caminho já percorrido e conhecido pelo bailarino.
Cabe perguntar: em que momento exercitamos a dança livre? Acreditamos que seja nas
aulas de corpo, no movimento pesquisador, espontâneo, na expressão livre de qualquer
pretensão.
Como exemplo dos momentos descritos por Márcia Feijó, se estamos estudando
a articulação do joelho anatomicamente aprendemos que esta é uma articulação formada
pela parte superior da tíbia, a parte inferior do fêmur e a patela. Essa articulação é capaz
de executar somente movimentos de flexão e extensão, mas não de rotação. Isso seria o
primeiro momento a que Márcia se refere. Aprendemos sobre o assunto de forma
teórica, mas há uma camada de aprendizado sobre nossos joelhos que só podemos
acessar experimentando dobrá-los e esticá-los. Podemos dobrar e esticar de infinitas
maneiras, em várias posições diferentes, deitados, de pé, com uma perna no ar, etc. Aqui
se distingue o segundo momento apontado por Márcia Feijó.
A exploração e pesquisa de movimentos é tão vasta que não se esgota nunca, nas
aulas de dança contemporânea que tínhamos na EAV, muitas vezes nos lançávamos no
mais primitivo dos aspectos de nossa movimentação, às vezes, nos sentíamos e nos
comportávamos como bichos, animais. Experiência essa que mais tarde foi discutida em
grupo e comentada pelo nosso professor, Frederico Paredes, como algo não trivial.
Dentro dos estudos da Biologia existe uma vertente chamada Filogenética que se
debruça sobre a questão do desenvolvimento motor das espécies ao longo da evolução.
Por exemplo, desde a motricidade da ameba até a motricidade dos seres humanos há
73
todo um estudo e um aprimoramento. Alguns estudiosos afirmam que existe essa
subdivisão do cérebro em três áreas motoras, o que chamam de cérebro tri-único:
reptiliano – anfíbio – mamífero.
Se formos observar os anfíbios, o sapo, por exemplo, ele tem uma coordenação
motora dita coordenação homóloga, pois para ir de um ponto ao outro no espaço
primeiro ele ativa a parte superior de seu corpo, afastando-a do centro e depois a parte
inferior, trazendo-a para perto do centro, ou seja, ele divide seu corpo ao meio
horizontalmente na ativação do movimento, esse é o movimento de “pular”.
Observando os répteis, um lagarto, por exemplo, ele tem uma motricidade que
chamamos de coordenação homolateral, pois na ativação do movimento de locomoção,
há uma divisão do corpo ao meio de forma vertical, ou seja, primeiro um dos lados se
ativa (direito ou esquerdo) e depois o outro, “afastando-se” “recolhendo-se” do centro
do próprio corpo, esse é o movimento de “rastejar”.
74
Observando os mamíferos, sua motricidade passa pela coordenação
contralateral, isto é, no movimento da locomoção há uma divisão do corpo em diagonal,
em forma de “X”, o cavalo, por exemplo, para dar um passo ele coordena o movimento
de suas quatro patas da seguinte forma: ativa as patas dianteira-direita ao mesmo tempo
que a traseira-esquerda e depois a dianteira-esquerda simultaneamente com a traseira-
direita ou vice-versa. Assim também com os gatos, cachorros, etc.
Já nós, seres humanos, temos uma motricidade que é capaz de acessar todas
essas formas de coordenação motora. Nóstemos todas as possibilidades de coordenação
motoras primárias. O fato de nossa estrutura muscular estar constituída em forma de
espiral nos dá toda essa amplitude de movimentação. Na perspectiva da MAV entende-
se que a direção do trabalho corporal foca muito mais no controle da capacidade de
inibição de algumas estruturas musculares diretamente envolvidas com as diferentes
possibilidades de coordenação motorado que pela ativação de todas ao mesmo tempo,
pois se queremos ser tudo: ser ameba, minhoca, sapo, lagarto, cavalo, peixe, etc.,
estaremos sobrecarregando nosso corpo com múltiplos estímulos motores e acabamos
sem conseguir fazer nada. O corpo fica perdido, ou como Frederico costuma falar, o
corpo fica “vesgo”, nada acontece. Precisamos inibir alguns impulsos para que as
possibilidades de movimento possam aparecer para nós. A motricidade humana trabalha
melhor na inibição do que na ativação da estrutura muscular. Temos a possibilidade de
todas, mas não há como ser tudo ao mesmo tempo e o que fazemos é a transferência de
uma coordenação de movimento para outra enquanto acontece o movimento.
75
movimento criado em algum momento de nossas vidas.Merleau-Ponty nos apresenta a
noção de animalidadeque desenvolveu a partir do contato com os estudos de biologia,
em especial a morfogênese, para pensar que Natureza e Cultura estão interligadas.
Nesse sentido, podemos pensar que a natureza não é uma coisa separada da cultura, pois
a ideia comum de natureza é que ela é algo que está dado, constituído
independentemente da experiência humana. A ontologia clássica da natureza na filosofia
pensa numa natureza e no corpo humano como algo concebido por Deus. A tese do
criacionismo pensa de forma semelhante; que a natureza foi dada de fora e é imutável,
mas desde as teorias evolucionistas já começa a se mostrar que não é bem assim.
Merleau-Ponty conversa com a biologia para entender a ideia de morfogênese, isto é,
um movimento da vida de uma formação que está sempre dialogando com o que está
presente em volta, chegando na questão da constituição vs. instituição.
77
têm pouca valia se o próprio aluno não as agarrar para si e pô-las à prova no seu próprio
movimentar corporal, na sua busca e pesquisa pessoais. O professor deve ser um
estimulador do processo de criação/pesquisa/aprendizado do aluno, podendo ajudá-lo a
descobrir seu próprio movimento, sua percepção, sua coreografia e sua dança singular.
78
participantes devem sempre estar essencialmente ligados à estimulação dos sentidos,
visando a uma maior percepção do corpo em movimento. Essa estimulação dos sentidos
está presente desde o começo do trabalho, já na Conscientização do Movimento, desde
o início das aulas, na busca pela (re)descoberta do corpo seja no contato com o chão,
com o ar, com a música, com o corpo do outro, etc. Inclusive, nos Jogos Corporais essa
(re)descoberta corporal se dá de forma mais dinâmica e extensa.Independente do tema
focal de cada vivência corporal na MAV, trabalha-se sempre num duplo movimento de
expansão e recolhimento perceptivos, isto é, sempre se trabalha com áreas específicas
do corpo, mas a proposta é sempre estimular a sensibilização daquela parte sem se
perder de vista a experiência do “todo” corporal e de como cada parte corporal se
articula com as outras partes corporais.
20
A palavra raciocínio aqui não é compreendida apenas como uma capacidade apenas da ordem do
pensamento estritamente reflexivo e ligado a uma ideia dicotômica de mente ou espírito separado do
corpo, mas, sobretudo, acreditamos, inspirados na tríade: MAV, fenomenologia de Merleau-Ponty e
clínica gestáltica, que o pensamento é corpo e corpo é pensamento; que o pensar é mais uma das n formas
de expressão do nosso ser-corpo, um gesto de nossa corporeidade no mundo.
79
jogo. Pensar e agir, no jogo, acontecem rapidamente, talvez até simultaneamente, para
que aja dinamicidade e não se perca a qualidade de estar sempre “em movimento” no
espaço/tempo entre a pergunta, ou a questão emergente na situação-jogo e a resposta
nascente à essa questão. Enamar Ramos (2007) comenta que a rapidez entre a ação e a
reação dos participantes no jogo é muito importante, pois impede, ou pelo menos,
dificulta, para os participantes que eles caiam na mesmice habitual do movimento de
elaboração mental do que fazer, pois quando isso acontece, o jogo se interrompe, perde-
se a criatividade do momento espontâneo livre de restrições de qualquer ordem.
O que a autora comenta na citação acima sobre o trabalho dos jogos corporais
com atores serve para qualquer tipo de público. O jogo acontece enquanto se preserva
esse estado de presença e prontidão corporal fluido, seguro, livre e espontâneo. Quando
há qualquer perturbação deste, é visível para os participantes e também para quem
observa de fora o jogo, há uma espécie de quebra no fluxo e no desenrolar daquela
situação-jogo. No jogo corporal não há planejamento prévio e o jogador deve estar
relaxado e receptivo a todos os estímulos que aparecerem, agir espontaneamente e ser
capaz de se envolver com estímulos de natureza diversa sem se prender a nenhum em
específico, mantendo a percepção ampliada para o micro e para o macro
simultaneamente. Como ressaltaEnamar Ramos, “com essa atitude, antigas estruturas
corporais são destruídas, rearrumadas, desbloqueando os corpos. Todos os sentidos são
aguçados e o corpo, como um todo, fica em estado de alerta permanente” (2007, p. 49).
Dançar a vida não seria, a princípio, tomar consciência de que não somente a vida, mas o universo é uma
dança, e se sentir penetrado e fecundado por essa torrente de movimento, de ritmo e de tudo?
Roger Garaudy
81
curso, nessa empreitada louca, suada, massageada que foi estar na EFAV toda noite
juntos, se arranhando, se mordendo, se abraçando e dançando.
Uma das coisas mais preciosas que aprendi é que o corpo que se experimenta.
Em minha experiência como integrante da turma Lilás do Curso Técnico em Bailarino
Contemporâneo da EAV (vivenciado durante 2015.1 à 2017.1), posso dizer que lá
experimentei o corpo de forma diferenciada da minha maneira cotidiana. O curso se
configura como um espaço onde exploramos o que nossos corpos são capazes de fazer:
onde se pode sensibilizar o corpo, um espaço de ampliação dos sentidos e de descoberta
do próprio corpo.
82
turma tinha a expectativa inicial de simplesmente retomar o contato com a dança de
alguma forma. Só que na medida em que fomos nos experimentando nas aulas
percebemos como ali se configurava um espaço de muita descoberta, de ampliação da
presença, do aumento da sensibilidade e do contato artístico com nossos corpos. O que
entendíamos por dança também se transformou, ampliou, ganhou mais corpo e mais
detalhes. Os professores nos incentivavam a viver o processo do curso não somente
dentro da sala de aula, mas também nos outros espaços de nossas vidas como, por
exemplo,durante os momentos de lazer, quando passavam como trabalho de casa que a
cada fim de semana tínhamos que assistir a um espetáculo de dança, teatro ou outra
modalidade artística. Entrar nesse universo enriqueceu não só nossos corpos no que se
referia ao trabalho corporal dentro da instituição, mas também fora dela, todos os
âmbitos de nossas vidas eram preenchidos por essa nova postura perante a vida, ou seja,
passamos a compreender o corpo inseparável de sua relação com o mundo e com a vida.
Sentíamos a dança como uma companhia constante em nossas vidas.
Nas conversas de final de curso, comentava-se como nos sentíamos muito mais
donos dos nossos corpos, mais presentes e à vontade com nossos corpos. Quando
olhávamos para como éramos antes de viver as experiências de formação no curso
técnico da EAV refletíamos sobre como vivemos nossas vidas com o corpo anestesiado,
nos conformando em viver no automatismo de nossas ações e no distanciamento de
nossa própria existência, sem nos darmos conta de tudo que podemos ser e fazer quando
trabalhamos nossos corpos e quando nos movimentamos como corpos presentes,
sensíveis e expressivos que somos e já éramos, mas não sabíamos.
A turma Lilás conversava sobre como a EAV mudou nossas vidas. Foi uma
vivência importante no que toca a forma como passamos da postura de ver e
compreender nossos corpos, nosso movimento e começamos a nos vivenciar como
corpos na vida e no mundo uns com os outros. Porque a todo momento em que estamos
com a atenção voltada para nossos corpos, atualmente, estamos estudando, aprendendo,
explorando nossos sentidos. Esse aprendizado é infinito, os sentidos vão muito além do
que se imagina e chegam num lugar muito mais fundo e muito mais longe do que se
pensa – é como uma escavação em que você vai encontrando mais e mais corpo. A
Angel nos deu a pá para cavar e descobrir a imensidão de corpo em nós. E ao mesmo
tempo, essa instrumentalização, esse caminho que encontramos ali, levamos para a vida
e dividimos com as pessoas. E todo esse conhecimento que brota do ser-corpo nos faz
mais presentes e mais felizes.
Por meio das aulas do curso técnico da Angel, uma das coisas queaprendemos
foi sobre onde o movimento começa em nós, sobre onde a nossa vontade se localiza em
nosso corpo, sobre como não necessariamente temos que nos enquadrar em um modelo
de corpo, mas podemos seguir nosso próprio movimento, nossa própria vontade e
descobrir nossa própria dança (e isso é o fundamental para essa noção do ser-corpo que
depreendemos ao experimentar o MAV). Aprendemos, por meio de nossas experiências,
como os músculos se relacionam com as emoções e como neles há guardados
dificuldades emocionais ou memórias de felicidade, o afeto vive e se alastra por todo o
corpo, muscularmente, fisicamente falando. Isso deixa claro que a diferença entre o
corpo e nossa emoção, memória, afetos, dores é nenhuma, porque nós somos isso: o
corpo. Muitos de nós têm a percepção de que antes de passar pelo curso, tínhamos uma
visão mais abstrata das emoções, que não passava pela nossa estrutura física, corporal. E
fomos compreendendo, na prática, que a emoção é corporal e que acessamos, mesmo
sem saber, os estados emocionais através do corpo. Quando nos fazemos presentes no
corpo dilui-se também a separação entre nossa experiência de ser-eu e nosso corpo.
A MAV, inclusive, ao nos trazer essa dimensão de relação para dentro do corpo,
também nos ampliou a dimensão de relação que temos com o outro. E a forma como
84
vemos o outro ser. A forma como olhamos no olho do outro e a forma como nos
relacionamos com o outro. A forma como nos encostamos no outro, como abraçamos o
outro e como reconhecemos o outro como ser humano.
Claro, tem momentos que eliminamos e outros que ficam conosco, o que faz
parte do processo, porque como pisamos no desconhecido nunca sabemos o que vem
pela frente. Mas tudo é válido para o nosso aprendizado. Poder passar nossa mensagem
em nossas danças, em nossos movimentos, com nossos corpos é extremamente
gratificante, pois quando dançamos, cantamos uma música ou lemos um texto com essa
postura corporal, é algo que fazemos com nosso próprio pensamento e com nosso
85
coração. Nosso corpo como um todo se prontifica ali, naquele momento, naquele
espaço. É uma conquista de liberdade. Dar passos para a liberdade, dar espaço para a
liberdade nos envolver, isso já é um passo enorme e todas essas vivências
experienciadas e registradas em nossos cadernos com certeza fazem diferença em
nossas vidas, pois ali temos registrado o que conseguimos explorar comprofundidade
cada aresta de nossa corporeidade, de nossos movimentos. Descobrimos um corpo que
antes realmente não descobriríamos se não déssemos esses passos.
Tudo começa com essa deitada maravilhosa no chão. O contato com a madeira
maciça que nos ancora. Ao deitar no chão deixamostoda distração lá fora e aqui (na
EAV) é o espaço em que nos damos a oportunidade de ser-corpo. Aqui é um espaço de
descoberta, um privilégio. Muitas vezes quando se trabalha o corpo desta maneira não
se tem muito a dizer em palavras, mas a cada dia algo vai germinando em nossa
existência... e com dificuldade. A cada dia vamos descobrindo uma pele ali, uma cabeça
lá e assim criamos um caminho, nosso caminho próprio. Muitas vezes compartilhamos
o sentimento de que esse espaço em particular, essa escola, essa casa que parece estar
fora do tempo tem algo de muito precioso e especial: é onde o corpo pode ser ele
próprio livremente.
86
aprendizados acerca do corpo e do peso, do movimento, da emoção, do sentimento, das
cores e formas, texturas, da escuta, do silêncio, dos olhos fechados, dos olhos abertos,
de observar os outros. Tudo isso, fica dando voltas e voltas e voltas... dentro do corpo, e
ao final íamos definindo alguma linguagem que realmente é nossa. Depois de processar
e acomodar todas aquelas coisas que vão fluindo numa energia, numa dinâmica em
nossos corpos, íamos nos soltando, criando poéticas das pontas dos fios de cabelo até as
unhas dos dedos dos pés...
PONTO FINAL
Sai a tinta da caneta
No papel caminha
Da marcha que forma corneta
Se pensa forte como rainha
Isso requeria um investimento corporal que me pareceu bastante difícil, mas fui
compreendendo que a dificuldade partia de uma tendência antigade querer capturar e
abarcar toda a experiência com as palavras de uma forma linear e pragmática. Mas as
87
palavras, muitas vezes, se recusavam a assumir tal papel, o que me deixava enfurecida
até, com raiva de mim mesma, como se eu tivesse uma falta ou um defeito, não fosse
inteligente o suficiente, ou não me dedicasse demasiado às aulas.
Foi então que uma professora de MAV, Marina Magalhães, nos propôs um
exercício de escrita diferente do que eu estava acostumada, que consistia em: após ter
feito nossas aulas, deveríamos ir para casa e, antes de fazer qualquer outra coisa, sentar
em frente a uma folha de papel, ajustar o cronômetro do celular para dez minutos - ou
quinze, ou vinte, na medida em que íamos repetindo esse dever de casa – e começar a
escrever ininterruptamente tudo o que viesse à tona quando refletíamos sobre a
experiência recém-vivida. Não estava permitido ajustar o texto enquanto se escrevia e
tínhamos que ser fiéis aos encadeamentos de nossas ideias a ponto de não nos
preocuparmos se estava inteligível ou não. Apenas confiar no ecoar dos afetos nascidos
daquela experiência e também confiar no movimento do corpo, do braço, da mão que
guia a caneta no papel e imprime nele o que se passou.
Esse exercício, de penoso passou a ser prazeroso para mim, de uma forma
surpreendente. Olhando para ele agora, percebo que passar pela experiência dessa
escrita espontânea, como nomeava Marina, me deu uma força e um senso de convicção
para apostar no meu trabalho artístico que muito me alegra. Essa força e essa convicção
sem medo, percebo, também extravasam para a minha escrita de modo geral e para
minha compreensão dos desafios com que me deparo na vida, de uma maneira geral.
Não que seja fácil, agora, depois de passar por isso, ser mais confiante, determinada,
destemida e tranquila frente àquilo que me atravessa, mas sempre que sinto medo, me
lembro dessa experiência, e esse lembrar traz um conforto.
À BAILA
No avesso da saia
Clamam-se as falanges
Para o in-verso bípede
Das ancas, côndilos e maléolos
É levada a volúpia
Pelo trepidar das castanholas
Nenhuma chance dá às marolas
88
Espiralando cresce ar –
Enxurrada!
À baila corre
Libertina
Pau la ti na
In
fil
tra
ção.
Isso me assustou, porque não entendia como poderia ser capaz de realizar tantas
tarefas em tão curto tempo, mas aconteceu que trabalhar na criação, na ideia do
espetáculo, ensaiar e mergulhar de cabeça na atmosfera de ser bailarina, artista, assumir
esse lugar e aceitar de peito aberto que, nas noites de segunda a sexta, eu não seria
apenas a Carla, mas seria a Carla-em-processo-de-se-tornar-bailarina, encarnar o ser-
artista de uma forma misteriosa, contribuía, e muito, para a disposição e a energia
necessárias para realizar todas as outras tarefas necessárias. Então, nesse momento,
trago esse poema que escrevi sobre o processo de criação de uma das cenas desse
espetáculo, na qual eu pude solar.
Começou com uma ideia borrada de trabalhar com minha saia vermelha. Só sei
que os professores orientadores pediram, no início do processo de criação do espetáculo,
para que cada um de nós revisitasse nossas experiências passadas no curso até então, e
elegêssemos assuntos, trabalhos anteriores, pesquisas de movimento que gostaríamos de
continuar, novas ideias para a pesquisa corporal e/ou temas já experimentados nas aulas
ou nas mostras de dança da escola. Levei a ideia de relembrar minhas experiências
89
passadas com a pesquisa corporal para além do tempo do curso e me deparei com as
lembranças de quando dançava flamenco. Refleti sobre como o sentido da dança
flamenca tinha se transformado para mim, influenciado pelas minhas experiências
recentes no contato com a dança que se pensava e praticava na EFAV.
E assim levei a saia vermelha, que foi meu figurino em muitas apresentações de
flamenco, para as aulas de composição coreográfica do espetáculo de formatura com o
desejo de pesquisar os movimentos característicos da técnica flamenca e que moldaram,
de certa forma, minha maneira pessoal de dançar. O que despertava a minha curiosidade
era poder testar a hipótese: “é possível, a partir de um movimento já estruturado e
característico do flamenco, criar uma nova maneira de dançar e experimentar esta
modalidade de dança?” Não só foi possível realizar o solo “À Baila”, como acabei
fazendo uma desconstrução da técnica sem perder a sensação de dançar flamenco e,
sobretudo, pude perceber o jeito que a Carla tinha de dançar esta técnica ao ultrapassar o
código dos movimentos que lhe são característicos e liberar a expressão do meu corpo-
flamenco. Isto permitiu que eu compreendesse e sentisse que estava desenvolvendo um
estilo próprio de me aproximar de qualquer técnica de dança sem perder de vista minha
expressão e o sentido singular que ela traz.
SOPRO CORPO-SOPRO
Soprar a concha
Propagar o vital
Ondulante no vento
Quebrar a inércia do ar
Ver suspiro tomar forma
E virar trovoada
A plenos pulmões
90
Voltamos das férias do primeiro ano de formação. Quem nos daria aulas de
MAV a partir dali não era mais o querido professor JamilCardoso, mas a professora
Marina. No primeiro dia de aula nos falou que naquele semestre entraríamos numa nova
etapa da disciplina na qual exploraríamos focalmente cada sentido físico: ouvir,
falar/propagar sons e silêncio, cheirar, provar/comer, olhar, tocar/sentir. Todas as
vivências foram muito especiais e intensas, mas trago aqui uma que particularmente me
tocou. A aula sobre som e silêncio.
91
CAPÍTULO 3 –O CORPO EM MERLEAU-PONTY E NA GESTALT-TERAPIA:
O SENSÍVEL E O ESTÉTICO NO MOVIMENTO DA EXISTÊNCIA
Signo
Carla do Eirado
O movimento das nuvens nos traz a chuva, o dos ventos, o sol, o movimento do
mar realça o horizonte e o do tempo traz sabedoria. O movimento dos pulmões nos faz
respirar, o das mãos na terra nos dá o alimento, o movimento das cordas vocais nos
permite a fala, o grito, o canto...Movimentar os pés no chão produz o caminhar,
movimentar as mãos nas cordas de um violão produz música, movimentar o pensamento
produz reflexão. E parar movimenta o silêncio.
Fernando Pessoa
94
dele, assim como não há mundo sem que esteja habitado por ele. As sensações e
percepções do mundo não devem ser entendidas como dados “capturados” pelos
sentidos físicos e “codificados” pela consciência para que então saibamos nos situar.
Anterior a isso:
Se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é,
no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam
a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei
que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles,
e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo (Merleau-
Ponty, 2011, p. 122).
95
objeto, primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso então
que nosso corpo não pertença à região do “em si” (Merleau-Ponty, 2011, p.
193)
Diz o filósofo: “... longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de
espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo” (2011, p. 149). O espaço
exterior e o espaço corporal formam, por assim dizer, um sistema prático onde o
primeiro é o fundo sobre o qual os objetos podem apresentar-se como alvos de nossas
96
ações. Na ação, a espacialidade do corpo se realiza, isto é, o corpo em movimento
assume ativamente espaço e tempo. O corpo é temporalidade, espacialidade e
capacidade de praktognosia. O fisiológico e o pensamento se imbricam no corpo, a
capacidade reflexiva está ancorada nele; no contato sensível com o mundo e com os
outros. Sem corporeidade nenhum deles se sustentaria.
O filósofo francês nos esclarece que o corpo faz e se refaz no tempo; ele é
temporalidade assim como é espacialidade. A temporalidade do corpo se dá por meio de
uma dinâmica entre duas dimensões: o corpo habitual e o corpo atual. Acerca delas,
Merleau-Ponty (2011) coloca que o corpo habitual aparece como fiador do corpo
atual.O corpo atual é o nosso corpo presente, o corpo em ato, em sua configuração
97
pessoal, singular, instantânea. Está imbricado na experiência presente, cuja condição de
possibilidade é a do momento presente. Já o corpo habitual é a dimensão do nosso corpo
que aponta para um aspecto de generalidade, universalidade da experiência. Ele reúne
em si a condição de possibilidade dos novos gestos concretizados pelo corpo atual.
Cada gesto concreto só é possível se, simultaneamente com ele, se abre a sua condição
de possibilidade, isto é, o que o faz ser possível. “Se o hábito não é nem um
conhecimento nem um automatismo, o que é então? Trata-se de um saber que está nas
mãos, que só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por uma
designação objetiva” (op. Cit. p. 199).
98
Merleau-Ponty, em seu texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio (1991)
toca no tema das dimensões pessoal e impessoal do corpo no diálogo com a arte. Ele
critica a ideia de Malraux sobre a pintura moderna ser um retorno ao indivíduo e contra-
argumenta dizendo que a pintura avança de forma obliqua na história e que a criação (e
a expressão) não é subjetiva, mas nasce na percepção, ou seja, do encontro com o
mundo. O autor também coloca que a pintura nos convoca a questão: “De que modo
estamos entranhados no universal pelo que termos de mais pessoal? ” (1991, p. 53).
99
A partir da compreensão da articulação entre as dimensões pessoal e impessoal
da corporeidade chegamos na noção de estilo que, para o fenomenólogo, surge como
aquilo que conjuga as múltiplas sensações e percepções, e assim, confere ao corpo sua
unidade como totalidade gestual, ou seja,
Nesse contexto,o autor aponta que nosso corpo não deve ser comparado aos
objetos físicos:
O artista é alguém que se propõe a estar no mundo de um jeito não usual, ele
desata os nós costumeiros das coisas; seu modo de perceber rearruma, deforma e retorce
as significações cotidianas. “A percepção já estiliza” nos diz Merleau-Ponty (1991, p.
100
55). Do movimento de se retirar da maneira ordinária de perceber é que a estranheza do
mundo pode aparecer. E no encontro com aquilo que me é estranho, um “trabalho” de
criação pode se dar. Quando algo me surpreende, me desloca, exige de mim um
movimento criativo no sentido de dar conta da situação, já que uma vez percebido não
há como ignorá-lo. No que diz respeito ao campo da arte, Merleau-Ponty (1991) aponta
que o “trabalho” de criação do artista é sua própria expressão e no desenrolar de seu
ofício, um “estilo” vai se fazendo. O artista tece seu estilo na medida em que investe no
mundo criativamente, corporalmente.
101
mundo com os outros, pois a noção de contato sinaliza para uma concepção da
existência humana como um desdobramento temporal. Os fenômenos experienciais se
dão na fronteira de contato, conceito gestáltico que não se refere a um lugar
geograficamente definido, mas a um campo de presença de onde brota a vivência do
encontro com a alteridade, a novidade, o estranho ou exótico. O encontro intenso com
uma novidade movimenta a estrutura habitual das coisas, o que convida à criação de um
novo sentido para àquela experiência oferecendo uma nova maneira de organizar os
elementos da experiência.
102
Existem muitas semelhanças entre a história pessoal de Angel Vianna e Laura
Perls, co-idealizadora da clínica da Gestalt-terapia. LauraPerls também praticava
eutonia e técnica de Alexander, tocava piano desde criança. Antes de ser alfabetizada,
Laura já lia partituras de piano. Laura Perls, assim como Angel não se preocupava em
escrever sobre sua pesquisa e seu próprio método. Uma outra semelhança é o fato de
FritzPerls e deKlauss Vianna investirem ambos muito mais no trabalho vivencial e na
transmissão oral e experimental de suas pesquisas, do que escrever sobre e sistematiza-
las. Laura, assim como Angel, também teve um grupo de alunospróximos a ela que
ajudaram na formulação e registro do seu jeito de fazer Gestalt-terapia. Ela também era
dançarina. Enxergar essas semelhanças no percursohistórico pessoal e profissional dos
Vianna e dos Perls é interessante, pois faz aparecer semelhanças em ambas os
saberes:MAV e Gestalt-terapia. O contato com a música, com a dança, com o corpo,
com a eutonia, foram acontecimentos muito importantes na formulação de ambos os
caminhos da criação das duas metodologias. Angel se preocupa com a questão do ritmo,
Laura tinha um piano dentro do consultório e tentava trabalhar o ritmo corporal dos
pacientes quando sentia que o fluxo de sua experiência estava interrompido, não
conseguiam falarouestavam com o fluxo expressivo bloqueado.
103
comida, ou de enxergar sem luz, ou de locomoção sem gravidade e um chão
para apoio, ou da fala sem comunicadores. Não há uma única função, de
animal algum que se complete sem objetos e ambiente, quer se pense em
funções vegetativas como alimentação e sexualidade, quer em funções
perceptivas, motoras, sentimento ou raciocínio. (...) Denominemos esse
interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o “campo
organismo/ambiente” (Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. 1997, p. 42)
104
do encontro com uma novidade/diferença, se desintegra, convocando um movimento de
criação que assimile tal novidade reintegrando-a e configurando-se como uma nova
forma. Tal processo segue continuamente por toda a vida e a experiência do corpo no
mundo ativa gestos e movimentações que manifestam o sentido em formação no campo
organismo/ambiente em gestalten.
Isso se dá porque o campo não é um construto apenas material, para além de sua
dimensão física, há as dimensões vital ou animal e humana ou sócio-cultural. Da
conjugação das três dimensões surge, no campo como uma totalidade complexa, um
movimento de produção de sentidos que expressa, cria e compartilha sentidos e
significados construindo uma realidade sociocultural ou intersubjetiva, fazendo e
refazendo o sujeito e o mundo (Alvim, 2016).
107
quando a awareness é um livre fluir que dirige a formação de Gestalten e
comportamento, o movimento tem elegância, vigor, brilho e plasticidade
(Alvim, 2016, p. 33)
Como coloca Alvim (2016), nesse caso, a figura ancora o corpo. Este desaparece
aparentemente no fundo da percepção, porém está presente apoiando a ação motora.
Quando o movimento é fluido e organiza bem o processo de contato, isso mantém a
plasticidade da estrutura organismo/ambiente. Segundo Alvim (2016), Laura Perls
afirma que o corpo é um sistema de suporte que promove a sustentação de sua base a
partir da respiração, para que a parte superior fique livre para se orientar e manipular a
situação experiencial.
108
Imagem muito forte de nossa emoção, a respiração é um dos aspectos corporais que
representa nossa troca com o mundo.
É nesse sentido que Fritz Perls costumava dizer que toda sessão terapêutica
deveria começar pela respiração. De acordo com Alvim (2016):
109
CAPÍTULO 4 -UMA COMPREENSÃO AMPLIADA DA CORPOREIDADE EM
DIÁLOGO COM A DANÇA: NOTAS PARA UMA CLÍNICA DA
SENSIBILIZAÇÃO
111
De modo semelhante, para a Gestalt-Terapia, o processo de awareness, como
discutimos, envolve o sentir dado no campo organismo/ambiente, onde se produz um
um fluxo espontâneo de formação de formas emergentes no encontro do corpo com o
mundo na situação presente. O processo de contato envolve uma dimensão sensório-
motora que age como um todo exercendo uma ação criativa que visa o equilíbrio do
campo organismo/ambiente.
21
Embora Imbassaí use a expressão “conscientização corporal”, ela o utiliza com inspiração do trabalho
de Klauss e Angel Vianna e nós fazemos uso de sua importante contribuição ao tema da prática da
sensibilização corporal.
113
rompimento da totalidade mente/corpo/mundo, como afirma Alvim (2016). Com isso,
percebemos que o fluxo de awareness está impedido, o excitamento não pode fluir e a
figura perde sua força e seu interesse. A estrutura figura-fundo não tem muita nitidez
nem vigor e o movimento perde a elegância, tornando-se mecânico e/ou repetitivo. De
acordo com Perls, Hefferline e Goodman (1997), a musculatura se contrai, impedindo o
excitamento de fluir, o que pode culminar em uma forma fixada, em uma espécie de
fisiologia secundária, ou crônica, e inconsciente. A situação se torna neurótica quando
essa fisiologia substitui a espontaneidade motora no processo de contato. Tal
desequilíbrio produz dores intensas, desordens posturais com profundas consequências
sobre o corpo e o psiquismo, particularmente sobre a respiração que é o elo entre corpo
e psiquismo, predispondo ao estresse e formando crispações e rigidez muscular crônica.
O foco da conscientização concentra-se sobre a sensibilização, via que abre as portas da
percepção do corpo (IMBASSAÍ, 2003).
(...) projetam-se em nossa pele, como sobre uma tela, as variações psico-
fisiológicas das emoções que experimentamos. Enrubescemos de vergonha
ou timidez; empalidecemos de medo; transpiramos de ansiedade; brilhamos
irradiando alegria, ao toque amoroso quando estamos saudáveis (IMBASSAÍ,
2003, p. 53)
115
Quando dizemos “ fronteira” pensamos em uma “fronteira entre”; mas a
fronteira - de - contato, onde a experiência tem lugar, não separa o
organismo de seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contém e
protege, ao mesmo tempo que contata o ambiente. Isto é, expressando-o de
maneira que deve parecer estranha, a fronteira de contato - por exemplo, a
pele sensível - não é tão parte do “organismo” como é essencialmente o
órgão de uma relação específica entre organismo e o ambiente.
Essa noção exposta por Klauss Vianna dialoga com a noção de contato e campo
organismo/ambiente propostas pela gestalt-terapia. É preciso dar espaço, um espaço
novo em mim para que surjam coisas novas, novas possibilidades de ser. É preciso
116
desestruturar o corpo daquilo que lhe é familiar, daquilo que sempre se define como
sendo e dando importância à sua condição originária de ser-aí, de presença temporal-
afetiva-espacial. Sem essa desestruturação não surge nada de novo. Desestruturar
significa uma mudança de ritmo. Para acordar o corpo é preciso desestruturar, fazer
sentir esse corpo (VIANNA, K., 2005). A Gestalt-terapia, quando fala da neurose,
aponta que o processo de contato fica enrijecido por conta de hábitos adquiridos e não
renovados. Tal como discute Alvim (2014) a terapia visa provocar um desajustamento
criador, uma quebra da familiaridade neurótica através da frustração do modo
“enformado” de perceber e movimentar-se na existência.
117
O corpo sensibilizado é um corpo que vive na experiência da não-dualidade
mente/corpo. A MAV visa sensibilizar o corpo e, ainda que pareça ser um conjunto de
atividades simples como o tocar a pele, alongar-se, experimentar movimentos, são
transformadoras, nos possibilitam conhecer e desvendar a corporeidade. Na dança,
compreendida pela perspectiva da MAV, há a oportunidade de perceber a
inseparabilidade entre as noções mente/corpo, pensamento/sentimento, eu/outro,
corpo/mundo, etc. Se o corpo próprio é o lóccus do ser-no-mundo, na perspectiva de
uma clínica da sensibilização, o dançar, podemos pensar, é o próprio ser-no-mundo. Os
movimentos vivos e atentos de um ser-em-meio-ao-mundo.
Godard (1995) comenta que as atitudes posturais são como lugares de inscrição
da história e argumenta que a organização gravitacional de uma pessoa se determina por
um punhado complexo de parâmetros singulares, culturais e filogenéticos. Isto é, a
atitude postural da humanidade está baseada tanto no fato histórico da passagem da fase
quadrúpede à fase bípede e no desenvolvimento da marcha, quanto às histórias
particulares inscritas em certos ambientes geográfico-sócio-culturais. Para o ser
humano, o aprendizado da marcha aliado ao aprendizado em paralelo da linguagem,
organiza seu senso de protagonismo e autonomia frente aos imperativos do mundo,
como por exemplo, os caminhos delicados do processo de singularização da criança em
relação à mãe.
Laura Perls (1992), comenta que para ficar de pé, na postura ereta, o corpo
precisa ter base para que haja liberdade com os braços e com a parte superior do corpo
para ver, enxergar de perto e de longe e poder agir no mundo, manipular os objetos do
mundo. Essa base a qual Laura Perls se refere, compreendemos, são como os apoios do
corpo que Angel Vianna sempre traz em seu trabalho como um dos pontos centrais da
MAV para o dançar. No processo de contato com a MAV a pessoa entra em contato e
pesquisa profundamente os apoios do corpo no contato com o chão, no contato com
objetos e outros corpos. Saber como utilizar os apoios do corpo é fundamental no
processo de conscientização do movimento e sensibilização corporal. Do livre jogar
criativo com os apoios do corpo, múltiplas possibilidades de movimentação podem
surgir.
118
Esses elementos todos contribuem para tecer a relação de sentido entre atitude
corporal, expressividade e afetividade para o sujeito, sob a ação flutuante da situação
em que este se insere. A mínima alteração do meio levará a uma alteração da
organização gravitacional do sujeito ou grupo de sujeitos.
As concepções de corpo que moldam uma época, uma cultura, um grupo social,
marcam a organização tônico-gravitacional que acompanha e antevê qualquer gesto ou
atitude corporal.
120
Os três processos se dão em torno do corpo. A expressividade própria da
corporeidade e a criação como linguagem corporal emergem da situação ou campo
pessoa-mundo a partir do diálogo com outras corporeidades no mundo. Os três
principais processos no trabalho da MAV são:
121
aceitamos e reconhecemos, criarmos nosso estilo próprio de expressão e movimentação
capaz de ressignificá-los e transformá-los em outra coisa, como por exemplo, uma obra
artística.
Nesta citação fica clara a postura desejada para o professor na MAV. Qual seja,
começar lentamente respeitando como cada aluno chega na formação, ou seja, atentando
para suas demandas, questões, inquietações, desejos, limitações, automatismos e
preconceitos. Dar tempo para o aluno encarnar uma postura receptiva para as
transformações que advêm da formação: saber se colocar na perspectiva das relações
temporais e espaciais e poder dar ênfase ao contato com o ambiente e as outras
corporeidades.
122
corporalmente dos elementos que sustentam a experiência de movimento, tais como os
apoios duros e moles (ossos e músculos) em contato com o chão, a ausência de apoio, a
atenção desperta, a respiração, o trabalho com foco nos cinco sentidos físicos, a
tridimensionalidade do corpo (frente, lados e trás), o diálogo com a participação do
outro.
123
No capítulo anterior havíamos dito que da perspectiva da Angel a MAV é para
todos, ela é inclusiva. Não é uma metodologia a ser aplicada em artistas apenas. Pois, se
a coisa é a linguagem do corpo e ela é (exprime) pensamento, isto vale para todos os
corpos, sejam eles quais forem. E, em se tratando de linguagem e pensamento do corpo,
é para outras corporeidades que essas expressões existem. Há uma frase célebre da
bailarina Angel Vianna que compreendemos estar intimamente ligada com esta
perspectiva de visão e ação: “O maior filósofo é o Corpo”. Compreendemos que esta
frase aborde justamente a conquista dessa perspectiva enquanto postura frente a
existência em geral.
Na tradição Zen existe o koan, uma pergunta feita para quebrar a rigidez da
visão. O mestre bate uma mão espalmada contra a outra e pergunta ao
discípulo: “Qual é o som que surge de apenas uma das mãos? ”. Não há
resposta possível. Batemos a mão espalmada sobre uma mesa, depois sobre
um livro, na parede e em uma cadeira. Cada objeto produz um som diferente.
É fácil identificar o som de cada um. Batemos então uma mão contra a outra.
Seria o som apenas de uma das mãos? Sendo ambas iguais, a qual delas
pertence o som quando batemos palmas? Se o som pertence a ambas, o
mesmo se dá quando batemos na mesa, no livro, na parede e na cadeira. Mas
nossa interpretação foi sempre a de que o som pertencia ao objeto tocado.
Sempre nos pareceu que era uma característica dele. Essa é a forma mais sutil
de contaminação mental do processo cognitivo, a que implicitamente atribui
realidade separada a objetos e observador. Todas as características que
podem ser encontradas em objetos, nomeadas ou classificadas, são o
resultado desse tipo de simplificação: a crença em que o objeto pode revelar
124
características próprias. Em nenhum momento consideramos que qualquer
característica é apenas uma espécie de interpretação automática de um
processo de relação (Samten, 2001, p. 41, grifo nosso.)
125
Tanto a dança quanto a clínica, como a compreendemos, são processualidades,
se dão de forma dinâmica, como processos de criação.
Para dançar é preciso se conhecer, conhecer o corpo, do que ele é feito, como se
estrutura, se articula, se apoia para se movimentar, desde os movimentos mais básicos.
Quais os limites e possibilidades de movimento, tanto no individual como no coletivo.
(Re)conhecimento da estrutura bio-anatomo-fisiológica. Isso amplia as possibilidades
de expressão, pois o movimento cotidiano não está/precisa estar desvinculado do
movimento artístico/dançado/criativo. Ambos são expressões da singularidade do ser.
Conhecer-nos, experimentar-nos, pesquisar movimentos é um cuidado de si, no sentido
terapêutico, pois atua no nível da expressão, da criação singular de sentidos.
126
precisa ser capaz de se atualizar conforme o que se apresenta. Quando o processo de
sensibilização já está na carne do cliente, encarnado em seu corpo, a condução da
prática corporal se liberta das amarras dos pré-requisitos. O processo de sensibilização
não deve ser encarado como linear, mas como um conjunto de direções possíveis que
reservam um espaço para a criação, para serem rearrumadas e combinadas de acordo
com a configuração do campo. A Gestalt-terapia também dialoga com essa perspectiva
de abertura, de poder perceber o que surge na situação clínica, para que então uma
direção e uma ação se tornem possíveis. Em uma clínica da sensibilização, as visões e
as metodologias de intervenção, tanto da MAV quanto da Gestalt-terapia, devem servir
ao corpo, e não o inverso.
127
O “como” se ensina na MAV e o “como” clinicar na clínica da sensibilização
passa pela compreensão de que o fazer clínico é um campo aberto de experiências
disponíveis que aprofunda o conhecimento dos corpos sobre eles mesmos. Se o trabalho
de conscientização do movimento for bem feito, a pessoa consegue se entregar à criação
individual e coletiva.
Na MAV, focar no trabalho com uma parte do corpo sempre implica não se
esquecer do “todo”, é sempre um explorar dinâmico e não focal. Com o exercitar do
128
movimento de uma parte, a investigação do que aquela parte consegue fazer semi-
isoladamente, a percepção da parte e do “todo” se aprofunda e complexifica. Desse
modo, todo o corpo se reconfigura, se transforma num “todo” mais detalhado
sensitivamente.
Para dançar, o corpo precisa ser preparado, isto é, sensibilizado. Como vimos
anteriormente, a contemporaneidade está permeada por formas dessensibilizadas de ser.
Desta forma, preparar o corpo significa estar disponível para conhece-lo, explorá-lo nas
suas diversas dimensões e também arriscar-se a criar, interagir com outros corpos,
observar, sentir e praticar um pensamento sensível do corpo. Nesse sentido, a questão
da repetição consciente e sensível torna-se fundamental no processo de sensibilização.
Repetir um movimento não quer dizer reproduzir o que já foi feito, mas significa um
repetir investigativo, exploratório, um repetir observando, um repetir que ao mesmo
tempo é um pensar-inventando, refletir-criando. Essa maneira sensível de repetição cria
sentidos novos para o movimento ao invés de apenas reproduzir; os movimentos do
repetir investigativo ganham lugar, sentido, uma ordem, uma qualidade expressiva,
compondo “um dizer pelo corpo”, uma coreografia. O repetir sensível carrega memória,
afeto, sentido, pensamento etc. Não é um imitar, é sempre retomada e descoberta. A
dança reduzida a uma técnica (pronta, acabada) reforça a dessensibilização. Da mesma
forma, a clínica entendida como um psicologismo, um sistema de etapas a serem
seguidas também reforça essa dessensibilização. A dança e a clínica podem ser
compreendidas como arte e ressignificação da existência, capazes de transcender o
sofrimento quando vividas como caminho de ser, aberturas possíveis. O corpo
sensibilizado possui uma escuta e uma apreensão do mundo diferenciadas.
129
- Consciência dos apoios do corpo (duros, moles, sem apoio) no chão, nos pés,
nos ísquios, no corpo todo, no movimento dançado ou não (no cotidiano). A consciência
corporal: é preciso conhecer o próprio corpo para poder dialogar com o outro.
O estilo próprio, para Merleau-Ponty (1991) liga o universal com o que temos de
mais singular. Cada corpo possui um estilo perceptivo/motor. O estilo se forma em
resposta às interpelações do mundo. A expressão está ligada às dimensões habitual e
atual da corporeidade (esfera individual) e as dimensões universal e pessoal (esfera
coletiva).
131
conhecemos a corporeidade. Criar é sempre retomada do que já existe e avanço, é
rearrumar, ver de outra forma, perceber o invisível escondido no visível.
O que reconhecemos como nosso corpo não é concreto no sentido de fixo, mas é
sempre síntese experiencial, sempre se reinventando. O corpo é fluxo de experiências,
sempre se centrando e descentrando conforme a configuração do campo.
132
controlável pela pessoa, mas surge da interação corpo-mundo-outro, o estilo singular
não deve ser compreendido como identidade ou personalidade, mas como rastro da
relação ser-no-mundo situado. Não é um fim em si mesmo,; é eterno recomeço.
...
Alvim (2014), traz a noção de proposição, maneira como Lygia Clark22 nomeia
seu trabalho artístico, para dialogar com a noção de experimentação, que a autora
desenvolve no âmbito da clínica psicológica da Gestalt-terapia. Segundo a autora, a
noção de proposição coloca que o artista propõe algo com sua obra partindo de uma
ideia ou pensamento tendo a finalidade de permitir a expressão do espectador, que a
artista plástica vai nomear de espectador-autor, pois o espectador torna-se um coautor
quando este experimenta a obra de arte e acaba por expressar, a sua maneira, a
proposição do artista.
Assim Lygia, de acordo com Alvim, “mostra o quanto considera que a abertura e
a diferença fazem parte da natureza do trabalho” (2014, p. 147). A noção de
experimentação, inspirado na noção de proposição de Lygia Clark e na fenomenologia
de Merleau-Ponty, surge da inquietação da autora em relação à uma parte da
comunidade de terapeutas da Gestalt-terapia entender as intervenções terapêuticas como
“experimentos”, no sentido de ações técnicas prontamente estruturadas, o que seria
desconsiderar o caráter organísmico e complexo da experiência humana e da situação
terapêutica. A partir daí a autora propõe discutir o trabalho psicoterápico da Gestalt-
terapia em seu caráter de experimentação.
22
Lygia Clark foi uma importante artista brasileira, pintora e escultora. É uma das fundadoras do Grupo
Neoconcreto e participou da sua primeira exposição em 1959. Dedicou-se à exploração sensorial em seus
trabalhos como A Casa É o Corpo, de 1968. Reside em Paris entre 1970 e 1976, nesse período sua
atividade se afasta da produção de objetos estéticos e volta-se sobretudo para experiências corporais em
que materiais quaisquer estabelecem relação entre os participantes. Retornando para o Brasil em 1976
Lygia se dedicou ao estudo das possibilidades terapêuticas da arte sensorial e dos objetos relacionais. A
poética de Lygia Clark caminha no sentido da não-representação e propõe a desmistificação da arte e do
artista e a desalienação do espectador, que finalmente compartilha a criação da obra. Na medida em que
amplia as possibilidades de percepção sensorial em seus trabalhos, integra o corpo à arte, de forma
individual ou coletiva. Finalmente, dedica-se à prática terapêutica. A artista destaca-se sobretudo por sua
determinação em atravessar os territórios perigosos da arte e da terapia. Disponível em:
https://www.escritório dearte.com/artista/lygia-clark
134
Consideramos que o ato terapêutico inaugurado pela Gestalt-terapia –
centrado na experimentação – explicita seu caráter fenomenológico, ao
mesmo tempo em que revela um fundo invisível, uma espécie de corpo
habitual enredado com a arte que dirige seu olhar sobre o fenômeno humano,
atravessando-o por referenciais estéticos. Ao se basear na experimentação,
fazendo uma passagem da explicação para a experiência, a Gestalt-terapia
propõe que o ato terapêutico seja um campo de experiência. Como propôs
Merleau-Ponty e como fez Lygia Clark com o espectador, convida a
psicoterapia a mergulhar na natural ambiguidade do mundo, para
ressignificar a existência (ALVIM, 2014, P. 257)
135
CONCLUSÃO
Nós privilegiamos a linguagem discursiva, mas a linguagem verdadeira é a linguagem da
energia: é por meio dela que o mundo opera. O mundo não troca palavras, o mundo se movimenta pelo
sinal das energias.
Lama PadmaSamten
Vimos que a MAV não é em si uma clínica, pois é voltada, principalmente, para
a formação em dançae também para aperfeiçoar o trabalho de profissionais de áreas
afins como atores, artistas do circo, terapeutas corporais, dentre outros. Embora os
diferentes autores que estudam esse método já tenham compreendido que está prática
artística tem potencial para ser terapêutica, há muito ainda a se desenvolver sobre como
o aspecto terapêutico se dá efetivamente. Esta pesquisa procurou contribuir para este
campo de estudo.
O que pudemos levantar como principal ponto de reflexão e discussão foi o fato
de, na perspectiva da MAV, ou seja, no contexto onde esta metodologia nasceu, a
questão da dessensibilização corporal é compreendida como uma dificuldade ao livre
desenvolvimento do aluno em sala de aula e é encarado como desafio a ser transposto
136
ao longo da formação do artista/bailarino. O artista/bailarino, dentro desta perspectiva,
podemos compreender, está formado quando seu corpo está sensibilizado e pode criar
livre e espontaneamente.
Não pretendemos, neste trabalho, fazer uma leitura de uma pela outra, mas
apontando os pontos de diálogo e as diferenças, fazer surgir um campo fértil de
questõese reflexões para se pensar efetivamente numa proposta clínica que trabalhe na
interface dessas áreas de saber e que vise a sensibilização corporal, isto é, a retomada da
dimensão sensível-senciente do corpo.
137
Acreditamos que este trabalho possa contribuir para o campo de estudo já
existente sobre práticas clínicas ampliadas. Um ponto que não foi esclarecido no
trabalho, mas que se configura como um possível caminho de continuação desta
pesquisa é pensar sobre se as perspectivas (do Professor, do Aluno e do Corpo) que
compõem a compreensão da MAV poderiam ser transformadas com o intuito de fazer
surgir a perspectiva do Terapeuta e do Cliente (e do Corpo, contextualizado, agora, num
contexto terapêutico) de uma Clínica da Sensibilização que acolhesse as corporeidades
em um setting terapêutico possivelmente fruto da articulação entre a MAV, a Gestalt-
terapia e a Fenomenologia de Merleau-Ponty.
A MAV, por sua vez, compreende o corpo a prática da dança através sob a
mesma ótica. Quando Angel fala do trabalho de conscientização do movimento, está
falando desse sensibilizar trabalhando através dos sentidos físicos e do movimento
espontâneo do corpo com o objetivo da criação e descoberta de um modo único de
dançar. O trabalho dos jogos corporais realça ainda mais a aposta desta metodologia no
movimento criativo e expressivo do corpo e acrescenta a dimensão do diálogo, da
relação com outras corporeidades, pois também comunga da compreensão
fenomenológica e gestáltica de que não vivemos sozinhos no mundo, mas sempre em
relação com.
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REFERÊNCIAS
140
FREIRE, A. V. Angel Vianna: uma biografia da dança contemporânea. Rio de
Janeiro: Dublin, 2005.
MILLER, J. Qual é o corpo que dança? Dança e educação somática para adultos e
crianças.São Paulo: Summus, 2012.
141
_____________________,A percepção do outro e o diálogo. In: MERLEAU-PONTY,
M. A prosa do Mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 215-237.
PERLS, L. Living at the boundary. Nova York: The Gestalt Journal Press, 1992.
142
RIBEIRO, R. S. T. Sensorial do corpo: via régia ao inconsciente. Niterói, 2009.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UFF/ PPGP.
VIANNA, A.Entrevista com Angel Vianna. [Maio de 2016]. São Paulo: Revista do
Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Entrevista concedida a Isaura
Botelho, Juliano Azevedo e Rosana Elisa Catelli. n. 2, p. 270-279
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