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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


INSTITUTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA

CARLA DO EIRADO SILVA

CORPO-DANÇA:
Ensaiando uma clínica da sensibilização

RIO DE JANEIRO
MAIO/2018
CARLA DO EIRADO SILVA

CORPO-DANÇA:

Ensaiando uma clínica da sensibilização

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito para obtenção do título de mestre.

Orientadora: Profª· Drª Mônica Botelho Alvim

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


2018

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Carla do Eirado Silva

CORPO-DANÇA: Ensaiando uma clínica da


sensibilização
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito para
obtenção do título de Mestra em Psicologia.
Orientadora: ProfªDrª Mônica Botelho Alvim

Aprovada em:
Banca examinadora:

Profa. Dra.:
____________________________________________________________________
Instituição:___________________________________________________________
Assinatura:___________________________________________________________

Prof. Dr.:
____________________________________________________________________
Instituição:___________________________________________________________
Assinatura:___________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Agradeço com imensa admiração à minha orientadora, Mônica Alvim, que me


acompanha desde a época da graduação, por todo o acolhimento, dedicação, trocas,
ensinamentos, aposta, paciência e força até o último minuto do processo de escrita deste
trabalho.

Agradeço à Capes pelo suporte financeiro que possibilitou a concretização deste


trabalho.

Agradeço à Angel Vianna por me abençoar com sua presença neste mundo e
nesta época.

Agradeço a toda a equipe da EFAV, aos professores do curso profissionalizante


em bailarino contemporâneo, especialmente ao Frederico Paredes por seu olhar sempre
acolhedor, à Marina Magalhães pelas provocações sempre pertinentes, à Jamil Cardoso
pela minuciosa escuta e aposta, à Eraci pelo convite a uma nova relação com o balé
clássico e sua insistência firme e carinhosa, à André Grabóis pelas ricas trocas musicais.

Um agradecimento especial à Marcia Feijó pelas conversas e pelo sorriso


encorajadores, à Andrea Chiesorin pelo apoio e parceria nas mais diversas demandas.

Agradeço amorosamente os meus colegas ultravioletas pelas trocas constantes,


as surpresas, as mais inusitadas vivências compartilhadas, o diálogo intenso e formador,
as risadas, o compartilhar de cada noite por dois anos e meio, os abraços, os olhares: o
simples estar junto

Agradeço imensamente aos meus colegas de pesquisa: Alice, Rafael, Thatiana,


Flávia, Brunara e Bárbara pela a amizade, as parcerias, as discussões calorosas e
amoroso suporte nos momentos mais difíceis, pelas descontraídas dos almoços no
CBPF, o compartilhamento das dificuldades e as comemorações nas vitórias.

Agradeço ao PPGP-UFRJ, aos professores das disciplinas pela acolhida e


iniciação nesta caminhada acadêmica.

Agradeço à Ana e ao Giancarlo da secretaria de pós-graduação da UFRJ pelo


profissionalismo no trabalho e ajuda nas questões burocráticas.

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Agradeço à professora Dra. Catarina Resende e ao professor Dr. João Batista por
participarem de maneira tão disponível e atenta na qualificação na qual fizeram
observações e críticas relevantes que me puseram a refletir.

Agradeço aos meus amigos e familiares por não me deixarem cair sempre que
parecia que iria desmoronar.

Um agradecimento mais que especial e ao meu pai, André do Eirado Silva, e a


AlêRotemberg pelo diálogo sempre animador e pelo amor profundo.

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RESUMO

Inspirado na fenomenologia de Merleau-Ponty e na clínica da Gestalt-terapia aliados à


Metodologia Angel Vianna de Conscientização do Movimento e Jogos Corporais
(MAV), este trabalho intitulado “CORPO-DANÇA: ensaiando uma clínica da
sensibilização” busca refletir sobre a possibilidade de uma clínica psicoterápica voltada
para trabalhar a sensibilização corporal. Percebemos, na contemporaneidade, um modo
de estar no mundo no qual a dimensão sensível corporal está limitada, o que conotamos
como um processo de dessensibilização corporal. Partimos da máxima fenomenológica
de que somos seres-no-mundo-com-os-outros, isto é, nossa existência é eminentemente
experiencial e relacional. Não há como vivermos apartados de nossa situação presente,
englobantedas dimensões temporal, espacial, afetiva, cultural, e de encontro com a
alteridade. Isto significa dizer que estamos entranhados no mundo como corporeidades,
pois é através de nosso corpo que essas dimensões ganham concretude na realidade.
Propomos pensar, a partir das contribuições dessas três linhas de saberes, como
podemos agir em direção à retomada da dimensão sensível-senciente para que haja uma
ampliação das possibilidades de transformação e ressignificação da existência: o
processo de sensibilização. A partir do investimento feito neste trabalho, nossa
exploração essencial de cada saber presente nesse diálogo entre a filosofia de Merleau-
Ponty, a MAV e a clínica da Gestalt-Terapia foi, respectivamente: A)a compreensão de
que o sentido da existência nasce a partir do contato pré-reflexivo do corpo no mundo
com os outros, sendo o corpo vivido nossa via de acesso, descoberta, construção e posse
da verdade singular de nossa existência; B) a constatação de que a MAV oferece um
caminho a partir do movimento para que a expressão gestual criativa surja na união das
dimensões Körper (biológica) e Leib (vivida) do corpo, permitindo trabalhá-las de
modo integrado e não-dicotômico; C) a compreensão da existência como gestaltung, ou
seja, como formação de formas, um fluxo de movimento dado em um campo pessoa-
mundo, onde os critérios de saúde envolvem plasticidade, ritmo e vigor, parâmetros
estéticos que guiam o olhar clínico do terapeuta. Concluímos quetrabalhar a
corporeidade em sua dimensão sensível-experiencial é fortalecer o protagonismo frente
às questões que circunscrevem a existência, configurando-se em uma prática clínica
ampliada onde o terapêutico e o artístico podem dialogar. Nossa proposta de uma clínica
da sensibilização corporal se sustenta na articulação e integração do trabalho da Gestalt-
terapia - que visa essencialmente o resgate do fluxo de awareness para permitir um
movimento existencial plástico e criativo -e do trabalho corporal nos moldes da MAV,
onde a formação artística em dança e a educação somática se dão pela conscientização
do movimento que envolve o trabalho com a dimensão morfológica e funcional da
corporeidade, de modo criativo e não prescritivo. Essa proposta clínico-
artísticapermitepotencializar a presença como corpo sensível e a capacidade de criar
novas possibilidades existenciais, afirmando a retomada do estilo singular de dançar a
vida.

Palavras-chave: Corpo. Dança. Fenomenologia. Gestalt-terapia.

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ABSTRACT

Inspired by Merleau-Ponty’s phenomenology and the clinical practice of Gestalt


therapy, as well as by Angel Vianna’s Methodology for Movement Awareness and
Body Games (AVM), the present work entitled “DANCE-BODY: towards a clinical
practice of sensitivity-building” considers the possibility of a therapeutics aimed at body
sensitivity. We identify in contemporary life a way of being in the world possessing
limited bodily awareness, to which we refer as body desensitization. Our starting point
is phenomenology`s maxim that we are beings-in-the-world-with-others, i.e. our
existence is eminently experiential and relational. We cannot live apart from our present
situation, which encompasses temporal, spatial, affective, cultural as well as alterity-
facing dimensions. Which is to say that we are entangled in the world as corporalities,
for it’s through our bodies that these dimensions become actually concrete. From these
three lines of thought we aim to devise a return to the sensible-sentient dimension in
order to expand our possibilities of transforming and resignifying existence: the process
of sensitization. Through the efforts herein, we have generally traversed the various
knowledges contained in the dialogue between Merleau-Ponty, AVM and Gestalt
therapy thusly: A) understanding that the meaning of existence is born of the pre-
reasoned contact of the body in the world with others, the living body as our means of
access, discovery, building and possession of the singular truth of existence; B)
realizing that AVM offers a path, starting from movement, that allows creative gestual
expression to flourish within the Körper (biological) and Leib (lived) dimensions of the
body, so that they can be worked upon in an integrated, non-dichotomous way; C)
understanding existence as Gestaltung, i.e. shape shaping, a movement flow in the
person-world field, where health criteria include plasticity, rhythm and vigor, aesthetic
parameters that shall guide the therapist’s clinical eye. We submit that to work on
corporality in its sensible-experiential dimension is empowering in the face of the issues
of existence, amounting to an expanded clinical practice with room for a true dialogue
between the artistic and the therapeutic. Our proposal for a clinical practice aimed at
body sensitivity is anchored in the joining together of Gestalt therapy — which
essentially strives to rescue the flow of awareness in order to allow a creative and
plastic existential movement — and AVM-styled body work, wherein artistic training in
dance and somatic education come about as a result of gaining awareness of the
movement around corporality’s functional and morphological dimensions, in a creative,
non-prescriptive way. This clinical-artistic proposal enhances presence-as-sensible-body
and the ability to create new existential possibilities, reaffirming a singular style of life-
dancing.

Key-words: Body. Dance. Phenomenology. Gestalt therapy.

7
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1 - O sujeito contemporâneo e o corpo dessensibilizado ........................... 17

1.1. A noção de experiência e a problemática contemporânea....................................... 19

1.2. A dessensibilização do corpo imerso na lógica econômica-capitalista ................... 26

1.3 O sujeito cindido e a dessensibilização corporal: A separação mente-corpo como


herança da filosofia e da ciência ..................................................................................... 34

CAPÍTULO 2 – O Dançar: Reflexões a partir da experiência e estudo teórico do método


Angel Vianna .................................................................................................................. 42

2.1 Dança é vida: As experiências dos Vianna, o surgimento do Método Angel Vianna
(MAV) e seus aspectos mais centrais. ............................................................................ 45

2.2 Sentindo de perto: Os elementos que compõem o Método Angel Vianna ....... 652.2.1
“Conscientização do Movimento” .................................................................................. 70

2.2.2 “Jogos Corporais” .................................................................................................. 76

2.2.3 Experiências pessoais e coletivas no contato com a MAV no curso técnico de


formação em bailarino/a contemporâneo/a..................................................................... 81

CAPÍTULO 3 – O corpo em Merleau-Ponty e na Gestalt-Terapia: o sensível e o estético


no movimento da existência ........................................................................................... 92

3.1 corporeidade e expressão na fenomenologia de Merleau-Ponty .............................. 93

3.2 O corpo em Gestalt-terapia: uma visão estética da clínica psicoterápica ............... 101

CAPÍTULO 4 - Uma compreensão ampliada da corporeidade em diálogo com a dança:


notas para uma Clínica da Sensibilização..................................................................... 110

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 136

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 140

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INTRODUÇÃO
Memórias Corporais

Lembro-me nitidamente da primeira vez que me despertou o interesse pela dança. Eu tinha quatro ou
cinco anos e meus pais me colocaram numa creche que ficava a poucas quadras da minha casa na época.
Lá, certa vez, vi fadas.
Várias fadas! Tão graciosas a colocar suas sapatilhas de meia-ponta e ter os cabelos presos em coque.
Vestiam meia-calça e collant rosa-bebê e brincavam alegremente... Cativou-me a forma como se moviam
fazendo pliés na primeira posição com graaaandesport de bras. Nunca tinha visto ninguém se mover
daquele jeito. Fui perguntar para uma delas o que estavam fazendo. Me respondeu que dançava ballet.
Despedi-me de minha nova amiga e foi neste momento, vendo-as ir embora que comecei a sonhar
secretamente que um dia seria bailarina. Fui uma criança solitária... muito tímida e introspectiva.
Meu pai saiu de casa. Éramos apenas eu e mamãe. Mamãe vivia a maior parte do tempo absorta em seus
pensamentos. Tive que aprender a conviver com a solidão dentro de casa. Além da escola não tinha
nenhuma atividade extracurricular. Terminados os deveres de casa me deparava com o desafio: Como
passar o tempo até a hora de dormir?
Minha brincadeira preferida era colocar um CD qualquer no som e começar a dançar!
Fechava a porta do meu quarto e era instantaneamente transportada para um mundo de fantasias onde eu
me transformava em bailarina!
Era viciante dançar.
Cada música me levava para um mundo diferente que me convidava a sentir afetos e com eles me
movimentar. Não pensava em nada, apenas confiava no meu corpo e me alegrava quando descobria um
movimento novo. Ficava horas, horas nessa exploração criativa sem me dar conta do tempo. Me sentia
preenchida por uma alegria inexplicável dos pés até o último fio de cabelo.
Quando dançava no meu quarto nunca me sentia só, não tinha medo de nada, não me sentia inadequada.
Estados de espírito que me acometiam na maior parte do tempo quando não dançava.
Ah! Mas quando dançava tudo o que importava era dançar; sentir a música e viver as mais pungentes
aventuras.
Ao mover-me vinham-me imagens, cores, cheiros, sensações que me demostravam o quanto eu estava
viva.
Uma coisa é acordar, tomar café, dar bom dia para minha mãe:
– Bom dia, mãe!
Ir à escola, conviver com as pessoas, chegar em casa, tomar banho, fazer deveres, brincar, jantar... e
dormir. Outra completamente diferente é sentir-me viva.
Respirando...
Sentindo o chão, a música, o corpo, as dores, os afetos. Suando. Caindo e levantando. Gesticulando.
Criando. Observando o deslocar do meu corpo pelo espaço, pela fantasia dançante do instante presente...

Vivendo.
Me vendo agora, nesse momento, dançando, aqui, lembro daquela menina. Ao dançar ela estava
esculpindo minha maneira de ser, minha maneira de ser...
De agora.
Para que vivamos algo verdadeiramente é preciso implicação. Sobretudo,
implicação corporal. É como corpo que vivemos no mundo.Através de meus olhos

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enxergo as coisas ao meu redor, distingo um sorriso de um pressionar aflito de lábios.
Com os olhos me mostro ou me escondo, me antecipo e coloco os óculos escuros ao
primeiro contato com a claridade solar do meio-dia. Percebo a escuridão da noite e
meus passos se lentificam, meu corpo adquire cautela dentro de casa para não esbarrar
nos móveis ou, se estiver numa rua deserta, procura ampliar a atenção e identificar
qualquer possível sinal de ameaça. Com os olhos sinto a doçura de uma maça bem
vermelha ou sei que uma alface está passada, pelos olhos me aterro as formas da
paisagem que me cerca.

Através de minhas mãos posso tocar diferentes objetos e me servir deles para
meus propósitos, posso afastar um indesejado ou trazer para perto do coração quem me
é amado. É pelo nariz que respiro, amplio ou recolho meus movimentos, acelero a
respiração ao correr, desacelero ao deitar para dormir. Pelo nariz sinto o cheiro do
mundo, sei sensivelmente se uma coisa é agradável ou desagradável, se posso comê-la,
se estou num lugar limpo ou se minha saúde se encontra em perigo... Com os
ouvidosme apercebo do mundo vivo, dos outros seres, posso escutar o cantar de um
bem-te-vi. Posso me proteger de um carro desgovernado que freou bruscamente, posso
entender uma calorosa discussão entre mãe e filho sobre o que se pode ou não se pode
fazer na rua. Com o escutar me conecto aos outros semelhantes, que falam e gesticulam
pensamentos, quereres, posturas e devires frente a realidade presente.

É pela boca, que igualmente produzo sons, palavras, exclamações, reticências ou


suspiros que transmite aos sete ventos a minha singularidade de ser. Pelo toque em
minha pele posso sentir a textura dos objetos, do chão, das paredes e dos outros corpos,
percebo a temperatura de uma chaleira ou de um cubo de gelo, sinto a chuva pingar na
cabeça e aperto o passo em direção a uma marquise ou sinto os pelos arrepiarem e
percebo que é a hora de colocar o casaco.

Sou um corpo que se move no mundo e minha relação com ele se dá pelo meu
corpo. Eu e corpo somos um. Eu sou olhos, nariz, boca, ouvidos, mãos, pés, pele,
tronco, braços e pernas. Minhas partes corporais são meus campos de visão e ação, são
minha via de percepção do mundo e de expressão no mundo. Reconheço os outros
iguais ou diferentesde mim, pois eu os afeto e eles me afetam de volta, cada um à sua
maneira, mas todos como corpos no mundo com outros corpos. Todas as expressões de

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nossa singularidade de ser – particularidades corporais, pensamentos, discursos, o que
nos soa familiar e o que nos soa diferente, nossos desafios, qualidades pessoais,
dificuldades, nossa profissão, nossos sentimentos, o que nos é consciente, visível e
perceptível e o que nos é inconsciente, no sentido de invisível, misterioso ou não-
perceptível – a nós se estruturam a partir do nosso ser-no-mundo eminentemente
corporal.

Se nos esquecemos disso e passamos a agir distanciados de nossa existência


como corporeidade em prol de um pensamento dicotômico que cinde mente e corpo,
que separa sujeito de objeto e que instaura visões, compreensões e maneiras de agir e se
comportar inseridas nessa perspectiva, aparecem alguns problemas que aqui
denominamos de dessensibilização corporal. Trata-se, em linhas gerais, de uma
restrição da capacidade de nossa corporeidade,dimensão sensível-senciente1,
experienciar mundo.

Tal restrição se configura, a partir de um olhar clínico, como uma via de


produção de múltiplas formas de sofrimento humano, tanto psíquico, corporal ou
mental, pois entendemos que tais aspectos não podem ser compreendidos
separadamente e independentes entre si. Segundo essa perspectiva aqui abordada, não se
pode falar da experiência a partir de um pensamento que se pretenda exclusivamente
reflexivo, mas somente a partir do campo de experiência, de um corpo situado na
experiência.

Olho para o mundo e vejo as pessoas deslocadas do próprio corpo, tendo uma
relação de dessensibilização e de objetificação com o corpo, ao invés de viver como
corpo. Observar esse fenômeno acontecer comigo mesma e com tantas pessoas
diferentes, com vidas muitas vezes diversas, me fez pensar que essas formas de relação
com o próprio corpo não partem apenas da própria pessoa, mas que isso, de certa forma,
é aprendido, reproduzido e reforçado no convívio com outras pessoas.

Ora, mas se pesquisarmos um pouco na história da humanidade, veremos que a


relação com o corpo não foi sempre assim. E que mesmo hoje há múltiplas formas de

1
Expressão utilizada por Merleau-Ponty, ao longo de toda sua obra, para indicar que o corpo reúne as
dimensões de sujeito e objeto, pode ver e ser visto, sentir e ser sentido.

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viver que não passam única e exclusivamente por aí. Isto me levou a questionar: de
onde surgiram essas formas de relação com o corpo? Que fatores fizeram com que elas
se tornassem hegemônicas? E o que elas têm a ver com as dores, ou melhor, com o
sofrimento que sinto e observo muitas pessoas sentirem em seus corpos e, mais
amplamente, em suas vidas?

A primeira coisa que esses questionamentos me levaram a pensar foi que essas
formas deslocadas de relação com o corpo devem surgir de algo que compartilhamos
todos: nosso tempo. Todos, por mais diferentes que sejamos, por mais diversas que
sejam nossas vidas, por mais múltiplos que sejam nossos corpos, compartilhamos uma
espessura temporal e espacial, compomos uma história, coexistimos no mundo, somos
contemporâneos. Pensar no contemporâneo implica pensar nos marcos que, de certo
modo, caracterizam o momento presente na vasta história da humanidade.

Nesse contexto, alguns saberes e práticas de nossa sociedade chamaram minha


atenção como possíveis pontos de reflexão para pensar sobre os questionamentos acima.
O que acabei observando foi que tanto os saberes quanto as práticas contemporâneas
que lidam com o nosso corpo têm em comum uma epistemologia específica fundada no
pensamento dicotômico entre sujeito e objeto, que cinde mente e corpo, e que cria uma
relação hierárquica na qual o corpo é subjugado pela mente (Merleau-Ponty, 1990;
2011). Isso produzuma visão e conhecimento sobre o corpo humano
predominantemente representacional e dualista. Visto à luz dessa perspectiva, o corpo
se torna um invólucro que só pode ganhar vida se for “preenchido” pela mente ou pela
consciência. Essa forma de compreensão autoriza os saberes e práticas contemporâneas
a lidar com o corpo como se fosse um objeto, uma mercadoria, uma matéria-prima cuja
existência se resume a ser modelável pelo “sujeito racional”. As práticas médicas,
científicas, tecnológicas e de culto ao corpo, na maior parte das vezes, sustentam esta
perspectiva dicotômica (Alvim, 2015; Ortega, 2008).

O que fica, para mim, na medida em que avanço nessa caminhada acerca da
questão do corpo, é que essas práticas contemporâneas inspiradas nessa perspectiva
produzem em nós uma experiência com o corpo que não passa pelo próprio corpo, mas
que o desloca, o separa de algo que lhe é primordial: sua dimensão sensível, sua
capacidade sensitiva. Nós nos referimos ao corpo como se tivéssemos um corpo e não

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como se fôssemos corpo. Essa maneira de compreender e lidar com o próprio corpo,
como vejo, o dessensibiliza.

Seguindo nesta exploração, tendo a pensar que a dimensão ser-corpo, ou seja, a


dimensão sensível-senciente do corpo, fica comprometida na contemporaneidade.
Entretanto, se essa perspectiva contemporânea fosse absoluta, muito do que estou
pensando e vivendo não teria nem chance de se configurar como um possível e uma
realidade na minha existência e nem na de vocês, caros leitores. Felizmente para nós, se
eu posso pensar o que estou pensando ao escrever essas palavras e se vocês são capazes
de me acompanhar, podemos constatar que há brechas nesse pensamento dualista; há
outras epistemologias, linhas de pensamento e práticas a descobrir, explorar e criar.

A brecha que mais me instigou e atiçou minha curiosidade foi a perspectiva


fenomenológico-existencial de um filósofo francês chamado Maurice Merleau-Ponty.
Descobri nele um precioso professor e interlocutor para esta questão, pois ele fala a
linguagem do corpo. Debruçando-me sobre sua obra filosófica, percebi que seus escritos
se enraízam em meu corpo e a vida de meu corpo encontra acolhimento em seus
escritos. Sua filosofia propõe um desvio em relação à essa perspectiva contemporânea
sobre o corpo. Ao longo da minha formação profissional como psicóloga clínica, essa
mudança de perspectiva também se apresentou no contato com a teoria e a prática
clínica da Gestalt-Terapia. Tanto a filosofia merleau-pontyana quanto a abordagem da
Gestalt-terapia compreendem o ser humano de uma maneira ampla e complexa, isto é,
não buscam reduzi-lo a um de seus aspectos somente, mas respeitam e valorizam a
multiplicidade e o caráter paradoxal da existência.

Enquanto nossa maneira usual de compreender o corpo é se referir a ele como


um objeto submetido a um sujeito racional - um apêndice de um intelecto
racionalizante; um instrumento dependente de uma consciência com pretensões
totalizadoras – Merleau-Ponty ousou ao defender que a verdadeira raiz da produção de
conhecimento não está na razão, mas na experiência; que a origem do sentido e dos
saberes humanos não começa no ato de reflexão da consciência, em um pensamento de
sobrevôo, mas no ato corporal de perceber, sentir, experimentar, entrar em contato,
implicar-se, engendrar-se, aproximar-se, viver. Ele nos apresenta a visão de que só se

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pode conhecer algo indo ao seu encontro, movendo-se em direção a, ou seja, nos
esclarece que só podemos conhecer o mundo com o corpo, ou melhor, sendo corpo.

Para o filósofo (2011), toda ação perceptiva envolve uma ação motora. É preciso
mover-se do lugar conhecido onde se está para que se possa galgar o desconhecido, pois
não somos feitos de matéria exclusivamente pensante, abstrata, mas também somos
corpo; constituídos de carne, ossos, pele, lágrimas, voz, tato, nariz, língua, ouvidos,
olhos, líquidos e afetos. Nossos corpos habitam um tempo e um espaço próprios; são
sínteses afetivo-espaço-temporais; possuem cultura e história e estão em constante
movimento, sempre abertos à experiência, sendo transformados e transformando no
encontro com o mundo e os outros, retomando o passado, o futuro e ressignificando o
presente.

A clínica da Gestalt-Terapia preconiza uma compreensão da existência como


dada em um campo. Isso significa que somos uma totalidade mente-corpo engajados em
uma situação presente – o campo organismo/ambiente. Tal como discutiremos adiante,
nessa perspectiva, a temporalidade e a espacialidade caracterizam o sujeito, que se faz e
refaz a partir da experiência no campo. Desse modo, considera-se self ou subjetividade
como contato, um processo de desdobramento espaço-temporal onde a partir do
encontro com a novidade ou diferença do mundo ou do outro, tem início um processo
de criação de sentidos que retoma o fluxo temporal da existência singular daquele
sujeito naquele espaço.

A partir do encontro com o pensamento fenomenológico, com a clínica da


Gestalt-terapia e a prática artística da dança na MAV surgiram alguns questionamentos
que procuro desenvolver ao longo deste trabalho, como por exemplo: Com base na
perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty, como posso compreender o que é
corporeidade? Que tipo de diálogo posso traçar entre o corpo dessensibilizado do
contemporâneo e o corpo sensível que Merleau-Ponty coloca em sua obra filosófica? O
diálogo, entre a fenomenologia, a Gestalt-terapia e a MAV, poderia configurar-se como
uma possibilidade prática “clínica-dançante” que ajudasse esse corpo dessensibilizado a
se reencontrar com sua dimensão sensível-senciente e criadora?

Essa relação entre a clínica, a dança e as práticas somáticas vem sendo explorada
por alguns autores (RESENDE, C., 2008, 2013; RIBEIRO, R. S. T., 2009, 2015;

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MIRANDA, R. M. R., CURY, V. E. 2010; LIMA, D. M., SILVA NETO, N. A., 2011;
LIMA, M. V., GUIMARÃES, S. M., 2014). As interlocuções em sua maioria se dão
com abordagens psicanalíticas, mas também com outras perspectivas. Considerando que
o referencial fenomenológico assim como a perspectiva da Gestalt-Terapia tem grande
ênfase no corpo e uma aproximação com o campo da arte, vislumbramos nesse diálogo
uma especificidade singular que nos move para ampliar esse campo de diálogos entre
psicologia e dança.

Desse modo, nesta dissertação de mestrado, visamos a pensar, a partir de um


diálogo entre a fenomenologia de Merleau-Ponty, a Gestalt-terapia, e o Método Angel
Vianna (MAV) a possibilidade de retomada da dimensão sensível-senciente do corpo
por meio de uma proposta clínica capaz de intervir diretamente no processo de
dessensibilização.

O primeiro passo foi pensar sobre o corpo dessensibilizado como uma forma
hegemônica de vivência no contemporâneo e a partir daí explorar possíveis fatores
relacionados ao fenômeno da dessensibilização corporal e suas repercussões no
sofrimento humano, o que é discutido no primeiro capítulo intitulado: “O sujeito
contemporâneo e o corpo dessensibilizado”, onde foram abordadas as questões sobre a
vivência do corpo na contemporaneidade, apontando possíveis fatores que contribuem
para a dessensibilização corporal. O capítulo tem como dois eixos centrais pensar a
vivência do ser como experiência (do corpo enquanto experiência) e pensar a
experiência do corpo que se dessensibilizou.

De acordo com essa exploração primeira, nosso segundo passo foi pesquisar e
discutir a prática da dança compreendida pela MAV como uma via de retomada da
dimensão sensível-senciente do corpo. Assim, no segundo capítulo intitulado: “O
dançar: reflexões a partir da experiência e estudo teórico do Método Angel Vianna”,
nosso objetivo foi apresentar um estudo acerca da MAV, fazendo uma contextualização
histórica do seu surgimento e apresentando os principais elementos que caracterizam
essa metodologia. Também exploramos de forma focal a experiência desta mestranda
durante seu processo de formação pessoal-profissional nesta metodologia tentando
encontrar pontos de contato entre o que se propõe teoricamente e o que se vivencia.

15
Em seguida, no terceiro capítulo intitulado “O corpo em Merleau-Ponty e na
Gestalt-Terapia: o sensível e o estético no movimento da existência”buscamos pensar e
discutir a visão fenomenológica de Merleau-Ponty e da Gestalt-terapia acerca da
dimensão sensível e seus diálogos com a estética e a expressão. Essa exploração
dialógica foi inspirada na motivação em pesquisar e discutir a experiência do corpo
dançante como uma possibilidade terapêutica transformadora da corporeidade e com
isso ensaiar alguns apontamentos iniciais do que poderia ser uma clínica voltada para a
prática da sensibilização corporal, incidindo diretamente no fenômeno contemporâneo
de dessensibilização corporal.

No último capítulo intitulado: “Uma compreensão ampliada da corporeidade em


diálogo com a dança: notas para uma Clínica da Sensibilização” articulamos Merleau-
Ponty e a clínica da Gestalt-terapia com a perspectiva da MAV, para propor o esboço de
uma clínica da sensibilização.O foco é refletir como esses três saberes podem contribuir
para transformar a compreensão e a vivência do corpo dessensibilizado em direção à
sensibilização, pois oferecem, cada uma sua maneira, uma via de acesso à dimensão
sensível-senciente do corpo.

Dessa forma, propomos pensar através do caminho de pesquisa traçado, como


podemos construir uma clínica que reúna em seu ser-fazer uma visão transdisciplinar e
aberta, inspirada na filosofia, na clínica e na arte como campos de saberes e atividades
potentes e significativos para uma prática terapêutica que não se pretenda ambiciosa e
queria abarcar todo o sentido da existência, mas que seja receptiva, atenta e aberta às
diferentes formas de experiência e possa oferecer, através do trabalho com a dimensão
sensível do corpo, um espaço de profundo contato com a corporeidade fortalecendo e
ampliando a possibilidade de criação, ressignificação e, com isso, transformação dos
sentidos e da existência singular de cada um.

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CAPÍTULO 1 - O SUJEITO CONTEMPORÂNEO E O CORPO DESSENSIBI-
LIZADO

Prólogo

Foi assim. Vivendo a vida normalmente que, PÁ! Tropecei na questão do corpo.

– Mas o que tem “de mais” o corpo? - você poderia me perguntar.

– Nada - eu teria respondido, em um passado não muito distante, quando meu


corpo estava satisfeito sendo invisível para mim. Acontece que de repente deu-lhe na
veneta de ficar visível e ele o fez da maneira mais trivial e que comumente os corpos
fazem.

Doeu.

E quando meu corpo doeu, meu foco mudou, quase que instantaneamente,
dirigindo-se ao seu encontro. Ao doer o corpo, a atenção, ou seja, a energia vital que
despendia para viver aquela vida – com suas tarefas cotidianas e suas demandas
conhecidas – sofreu uma transformação. O gosto daquela vida já não era mais o
mesmo, sentido através do incômodo de um corpo dolorido que insistia em se fazer
presente em qualquer ação, por mais ínfima que fosse. A dor de meu corpo virou minha
vida pelo avesso, martelando o prego da sua existência nas paredes dos meus passos.
Fosse na vigília, no sono ou no sonho, ele estava lá: meu corpo... Doendo...

Cansada de me queixar da dor, fiz uma coisa que não fazia desde a infância,
quando brincava de dançar: comecei a observar meu corpo. Mais que isso, voltei a
senti-lo. Pela primeira vez, depois de anos, quis encontrá-lo sinceramente e vê-lo. Não
com meus olhos costumeiros e já formatados pelo pensamento. Recusei por um
momento o velho hábito de olhar meu corpo “de fora”, como se fosse possível me
separar dele e o esvaziar de mim a ponto de poder pegá-lo, como quem pega um garfo.

Não; quis tentar vê-lo com meus olhos de carne, de corpo e de alma; meus olhos
perceptivos, sensíveis, fenomenais, afetivos e significantes. Quis lançar sobre meu
corpo um olhar “de dentro”, de dentro da experiência, um olhar-sentindo que
reconhece a vastidão de vida que há nele para ser vivida. E foi aí que parei de rejeitar

17
a dor e querer jogá-la fora, como quem dispensa um chinelo havaianas velho e
ressecado que se partiu entre os dedos. E experimentei questionar: de que se trata essa
dor que sinto? Qual é a sua extensão? De onde ela surge? E o principal: o que meu
corpo diz quando dói?

No silêncio e na pausa da contemplação desse corpo que me dói, percebi que a


dor não era (e não é) sempre a mesma. Que ela possuía (e possui) diferentes texturas,
nuances, volumes, entonações, ritmos, cores, enredos, gostos, cheiros, abismos,
incidências, durações, intensidades e até humores. Ao mesmo tempo, percebi que as
dores não são entidades recortadas e independentes: a dor de ralar o joelho, a de estar
cansada depois de um dia ‘normal’ de 12hs de trabalho, a dor de descobrir um câncer,
a de envelhecer, a dor da solidão, de sentir frio ou calor, a dor da derrota, a de amar,
de mudar, da exaustão, do tédio ou de sentir medo. A dor de estar sedentária, de ser
violentada. A dor da angústia e a de digitar. A de raiva de prisão de ventre, de tendinite
ou torcicolo, a dor de mentir, a dor de estar com insônia, a dor de criar, a dor de
chorar, a dor do saber e a do não-saber, a dor do outro e a de todos, a dor de nascer
ou de morrer, a dor sem descanso, a dor de sentir tudo e a dor de não sentir nada.

Elas são todas dores do corpo, que só sentimos se tivermos um corpo, ou


melhor, se formos corpo. E, a cada vez que pausava para escutar a dor que se
anunciava, descobria algo novo sobre mim, sobre a vida, sobre eu-corpo. Isso passou a
ser um exercício diário, mas nem por isso fácil de ser executado, ou óbvio. Sempre um
desafio, sempre um investimento, uma aposta, um risco, uma surpresa e um
aprendizado. Até que o hábito inventivo de sentir o corpo transbordou para outros
corpos. Já não bastava apenas me observar, era uma necessidade incluir os outros
corpos.

Este capítulo propõe uma investigação acerca do sujeito contemporâneo e do


lugar do corpo em sua existência. Queremos pensar como vivemos a partir da
experiência que temos como corpos vivos no mundo. Este trabalho parte da premissa de
que no contemporâneo haveria uma série de fatores que afetam a relação do ser humano
com seu corpo, ou melhor, que por diversas formas afasta o aspecto corporal da
existência humana, produzindo a ilusão de que a corporeidade é secundária a uma

18
suposta existência guiada pelo intelecto. Acompanhando a proposta de Imbassaí (2003),
denominamos este fenômeno contemporâneo de dessensibilização corporal. Buscamos
também refletir mais amplamente sobre possíveis formas de experimentar o corpo e de
viver a vida como experiência, pois acreditamos que o fenômeno da dessensibilização
corporal está relacionado com certa restrição das possibilidades de ser.

Muitas vezes temos dificuldade de lidar com nossas existências, com o que nos
surpreende e com o que se apresenta como desafio, e/ou com aquilo que não
compreendemos de imediato e não controlamos, enfim, com tudo que escapa à nossa
forma habitual de lidar com nossas experiências. Quando nosso corpo se encontra
dessensibilizado, muitas vezes acreditamos ser possível eliminar essas dificuldades
existenciais através da manipulação do corpo, como se este fosse um objeto
problemático. Vão nessa direção, por exemplo, as práticas crescentes de medicalização,
que muitas vezes procuram sanar dificuldades do campo vivencial através de um
anestesiamento do corpo. Ao contrário, nos parece que cultivar uma atenção ao corpo,
praticar um estar-em-si-corporal, no sentido de ampliar a presença do ser como
corporeidade-no-mundo-com-os-outros, longe de significar calar as dores e o
sofrimento, poderia contribuir para a apreensão da existência como campo problemático
e complexo. Nesse sentido, as práticas e teorias que promovem uma sensibilização do
corpo poderiam contribuir para um exercício contínuo de cuidado com esse campo
problemático da existência.

1.1. A noção de experiência e a problemática contemporânea


De acordo com Bondía (2002), o termo experiência pode ter múltiplos
significados. Dentre eles, se destacam os de travessia e ato de experimentar. A palavra
experiência tem também o prefixo “ex”, remetendo à ideia de exterior, estrangeiro,
estranho e existência. Estar vivo é uma dádiva, mas viver pode ser uma experiência
extremamente banal. Experimentar a vida se relaciona com ser capaz de se deslocar dos
lugares habituais e automáticos para se aventurar em um outro lugar: o lugar da
experiência. O sujeito da experiência é aquele que vive sua existência como uma
experiência e, nessa vivência constante, vai tecendo um tipo de saber específico,
vinculado à experiência. Isso implica que o sujeito seja capaz de se apropriar de

19
diversos âmbitos de sua vida – tarefa que cada vez mais se mostra distante e difícil na
vida de todos nós.

Com relação a essa dificuldade, Bondía (2002) coloca que há uma certa postura
(informacional e utilitarista) do sujeito contemporâneo que o impede de viver a vida em
sua forma mais própria, que é a da experiência2. Para compreender melhor o sentido
desta, o autor nos aconselha voltar aos tempos anteriores à ciência e à sociedade
contemporâneas. Durante séculos, o saber humano havia sido entendido como uma
aprendizagem através daquilo que nos acontece, isto é, algo que se adquire através do
modo como alguém responde ao que experimenta ao longo da vida. Nesse contexto, a
experiência não se referiria a natureza das coisas em si, mas ao sentido do que nos
acontece.

Quem vive algumas experiências na vida cultiva um certo tipo de saber, como
afirma Bondía (2002). Trata-se de um saber diferente do saber científico e do saber da
informação, de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho mecanizados. O
saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana; é uma
espécie de mediação entre ambos. O saber da experiência tem uma qualidade
existencial, caracterizada pela relação com a vida singular e concreta de um existente
singular e concreto.

A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos
de nossa própria vida. Se chamamos existência a esta vida própria,
contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma
essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão
nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai
construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que
faz impossível a experiência faz também impossível a existência (BONDÌA,
2002, p. 28).

2
O sujeito geralmente toma sua experiência como signo (também no sentido de input de informação) de
algo supostamente mais real: as coisas e objetos, as tarefas cotidianas, os desafios objetivados como
obstáculos meramente externos... Ou seja, em termos da vivência comum do dia-a-dia, as pessoas não
atentam para a qualidade da experiência e sim para os referenciais, por assim dizer, objetivos e
impessoais que o convívio social transforma em “coisas importantes”.

20
Segundo o autor, o sujeito da experiência não é o sujeito da informação, da
opinião, do trabalho, do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Segundo Bondía
(2002), se pesquisarmos em diferentes línguas como se fala da experiência, veremos que
o sujeito da experiência pode ser compreendido como um território de passagem,
marcas, afetações; ou um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, um lugar
que recebe o que chega e que, ao receber, abre lugar; ou ainda, como um espaço de
acontecimentos (op.cit).

Para Bondía (2002), o sujeito da experiência se define por sua passividade,


receptividade, disponibilidade e abertura, não por sua atividade. O autor explica que se
trata de uma passividade anterior aos polos ativo e passivo, isto é, o importante é o
caráter de plasticidade do ser humano, de disponibilidade e abertura, pois nós estamos o
tempo inteiro intercambiando os polos ativo e passivo; quando estamos no ato da
experiência nunca estamos completamente em um dos dois polos, mas em um “entre”,
numa tensão que põe sempre a atividade e a passividade em jogo na experiência. Ele
descreve o sujeito da experiência pela “exposição”, pela forma de “ex-por-se” ao que
acontece aqui e agora, com toda a vulnerabilidade e o risco correspondentes. Podemos
pensar na dança como um exemplo dessa passividade que o autor sublinha, já que nela a
atividade criadora dos movimentos é indissociável da experiência que a guia, e que
recebe dela um contexto de atenção e experimentação. Em contrapartida, no
contemporâneo, há uma receptividade própria do corpo dessensibilizado, por exemplo
quando este está submetido aos referenciais consumistas, mas essa receptividade se
refere a uma passividade diferente daquela trazida pelo autor; é mais parecida com uma
submissão do corpo aos padrões de comportamento consumistas.

Algo de fascinante existe na perspectiva do ser da experiência que se expõe


atravessando um espaço perigoso e indefinido, pondo-se à prova e buscando nele seu
momento oportuno. A experiência é a passagem para a existência de um ser que
simplesmente “ex-iste”. O sujeito da experiência é um sujeito que coincide
momentaneamente com aquilo de que faz experiência, pois é um ser experiencial. Ele é
receptivo, interpelado, aberto. A experiência se define pela possibilidade de que algo
nos toque, e para que isso aconteça de modo sensível é necessário um momento de
pausa:

21
...requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÌA, 2002, p. 24).

O inverso dessa possibilidade de pausa ocorreria quando um sujeito tenta


submeter a própria experiência ao seu saber, seu poder e à sua vontade racional, ou seja,
tenta ser autodeterminado, e acaba por se tornar dessensibilizado. O ser humano no
contemporâneo vem perdendo sua capacidade de viver a vida como experiência,
distanciando-se do saber da experiência. É como se essa dimensão importante da
vivência humana estivesse desaparecendo e dando lugar à outra forma de lidar com a
experiência mediada por hábitos automatizados (adquiridos no contato com as
convenções sociais, com a lógica científica-tecnológica, econômica, política e
capitalista) que dificultam uma vivência próxima à experiência – vivência encarnada. A
experiência não seria algo que está “lá” no mundo, onde precisaríamos buscá-la para
vivenciá-la, mas viver a vida como experiência já seria nossa qualidade primordial de
ser: nós somos experiência, ou seja, somos seres experienciais; somos as experiências
que vivemos. Viver a vida como experiência sempre estará disponível para nós.

Dito tudo isso, podemos nos questionar sobre porque não conseguimos, na maior
parte das vezes, viver nossas vidas como experiência e pensar sobre o que estará
dificultando esse processo. O que se configura como uma grande problemática, a nosso
ver, são as formas hegemônicas contemporâneas de vivenciar a experiência e o corpo
(ou melhor, o corpo-experiência). A experiência humana (em toda a sua amplitude: seja
com o mundo, o próprio corpo ou com os outros) está em segundo plano em relação aos
modos de vida pautados na lógica capitalista da eficácia e do trabalho, no pensamento
intelectualista e nas práticas cientificistas-tecnológicas. A economia capitalista, a
ciência de inspiração positivista e as tecnologias são saberes e práticas orientadoras e
constituidoras de nossa sociedade contemporânea. Essas três linhas de força estão
fortemente presentes em nossa cultura e nas formas contemporâneas de experienciar a
vida, ou seja, de se pensar, relacionar e agir constituindo nossa visão de mundo, do
tempo, do espaço, do outro e de nosso próprio corpo.
22
À diferença da concepção sobre a relação entre corpo e consciência
predominante no contemporâneo, Merleau-Ponty (2011) nos oferece a visão de que
nossas experiências, antes de serem racionalizadas pela consciência, são
primordialmente corporais. O filósofo, em sua obra Fenomenologia da Percepção
(1945), desenvolve o argumento de que no pensamento clássico há uma espécie de
restrição da experiência quando se estabelece a primazia da intelectualidade. Podemos
lembrar aqui que o contexto em que a fenomenologia surge é marcado por mudanças
paradigmáticas que ocorrem na virada do século XX. Na tradição clássica, o intelecto
era considerado a fonte de todo saber e a fenomenologia aparece, então, como resposta à
crise da filosofia e da ciência inspiradas nesse pensamento. Para Merleau-Ponty, a
fenomenologia surge da crítica ao afastamento entre experiência e saber, afastamentos
este que se colocava como prerrogativa do juízo e do intelectualismo. Sobre esses
conceitos, o fenomenólogo, discorre da seguinte forma:

O intelectualismo propunha-se a descobrir a estrutura da percepção por


reflexão, em lugar de explica-la pelo jogo combinado entre forças
associativas e a atenção, mas seu olhar sobre a percepção ainda não é direto.
Nós o veremos melhor examinando o papel que a noção de juízo desempenha
em sua análise. O juízo é frequentemente introduzido como aquilo que falta à
sensação para tornar possível uma percepção. (...). Através disso somos
levados para fora da reflexão, e construímos a percepção em lugar de revelar
seu funcionamento próprio; mais uma vez, deixamos escapar a operação
primordial que impregna o sensível de um sentido e que toda mediação lógica
assim como toda causalidade psicológica pressupõem. (...) Enquanto o juízo
perde sua função constituinte e torna-se um princípio explicativo, as palavras
“ver”, “ouvir”, “sentir” perdem qualquer significação, já que a menor visão
ultrapassa a impressão pura e assim volata a ficar sob a rubrica geral do
“juízo”. Entre o sentir e o juízo, a experiência comum estabelece uma
diferença bem clara. O juízo é para ela uma tomada de posição, ele visa
conhecer algo de válido para mim mesmo em todos os momentos de minha
vida e para os outros espíritos existentes ou possíveis; sentir, ao contrário, é
remeter-se à aparência sem procurar possuí-la ou saber sua verdade. Essa
distinção se apaga no intelectualismo, porque o juízo está em todas as partes
em que não está a pura sensação, quer dizer em todas as partes. O testemunho
dos fenômenos, portanto será recusado em todas as partes. (...) o
intectualismo delimita o sentir pela ação, no meu corpo, de um estímulo real.
(...) sentimos como julgamos. (...) se deveria concluir que julgar não é
23
perceber. Ora, se se vê aquilo que se julga, como distinguir a percepção
verdadeira da percepção falsa? (...) Onde estará a diferença entre “ver” e
“crer que se vê”? (...) O fenômeno da percepção verdadeira oferece portanto
uma significação inerente aos signos, e do qual o juízo é apenas a expressão
facultativa” (MERLEAU-PONTY, M., 2011, pp. 60-62)

Para Merleau-Ponty, o estar presente na experiência, isto é, a noção de presença,


não se compõe apenas pelo “explícito” (racionalizável) mas também pelo não-visto. A
presença não significa, nesse sentido, presença à consciência. O não-visto, por sua vez,
não pode ser entendido como oposto ao explícito, mas como uma dimensão deste que
corresponde a um campo pré-reflexivo que está em constante troca com o visto, e que
por isso deve ser incluído na maneira como compreendemos os fenômenos. O percebido
é imanente ao ato de perceber. Tal afirmação se sustenta pelo fato de que a todo
momento, o contato com o mundo convoca uma série de relações que se direcionam a
um além, direcionadas ao passado, ao presente e ao futuro. Esse “além” é uma
transcendência que não se caracteriza por uma separação, mas por uma imanência dual,
ou seja, tudo que é imanente traz consigo uma dimensão de transcendência.

Para Merleau-Ponty (1990), a filosofia teria justamente o papel de constituir um


saber que nem ignore o caráter de condição paradoxal dos fenômenos por meio de um
total fechamento do ser em noções intelectuais (pura transcendência) e nem se perca a
partir dele em uma abertura perceptiva irrestrita (pura imanência/caos). Os dois
elementos, imanente e transcendente, não são tidos como contraditórios, pois trata-se da
construção de uma perspectiva que toma o paradoxo como condição e meio para
reflexão. Não há uma separação prévia entre sujeito e objeto, mundo e indivíduo,
psíquico e biológico. No cerne das diversas filosofias e ciências naturais e humanas,
haveria uma provocação, uma interrogação acerca do incompreensível, do invisível, do
indizível e do caos dos acontecimentos do mundo que alimenta a vontade humana de
querer compreender. Essas questões instam a consciência a se movimentar na direção de
dar sentido ao sem-sentido, de querer completar o que se apresenta como incompleto,
aberto.

Nesse contexto, Merleau-Ponty (2011) propõe que a condição ontológica do ser


humano é ser-corpo-no-mundo-com-o-outro. Nossa existência é dinâmica, é afetiva-

24
temporal; é campo de presença do eu-corpo (sensível-senciente) envolto em um
horizonte de passado e futuro que me liga ao mundo compartilhado e aos outros corpos
igualmente sensíveis-sencientes. A experiência é nossa ação no mundo; expressão viva
de nosso corpo, é gesticulação corporal dada na situação presente que projeta o ser no
âmbito das possibilidades e insta a criar e transformar a realidade imposta. A
experiência humana é gesticulação, expressão motora que promove uma síntese
temporal, quer dizer, uma práxis que é gênese de sentido. A expressão corporal humana
faz a significação surgir como coisa no mundo (ALVIM, 2015).

Merleau-Ponty (2011) enfatiza o corpo como Leib (corpo vivo) e Körper (corpo
físico, biológico, instância em si mesmo). Para Merleau-Ponty interessa pensar emLeib,
isto é, a dimensão corporal ligada com nosso campo fenomenal, com nossa
corporeidade, movimento, com nossa capacidade sensível-senciente. Por sermos,
inevitavelmente, corpo é que podemos nos encontrar com os outros; podemos nos
dirigir e nos conectar intencionalmente ao mundo; podemos trabalhar, fazer e refazer
mundo e história. Nossa existência é constantemente (re)definida pelas experiências que
vivemos ao longo do tempo. A dimensão da temporalidade é fundamental para pensar a
existência que se configura continuamente em um campo de presença composto por eu-
corpo-outro-mundo, sempre permeado por um horizonte de passado e futuro (ALVIM,
2015).

Nesse sentido, se somos ontologicamente corpo-no-mundo-com-o-outro, não há


como a experiência de nós mesmos ser desvencilhada da relação que temos com os
outros e com o mundo. O outro e o mundo me constituem, assim como eu constituo
mundo e outro. Porém há, segundo Merleau-Ponty (2011), uma ambiguidade na
dialética humana criadora de estruturas sociais e culturais, pois ao mesmo tempo em que
realiza uma ação transformadora que as ultrapassa, pode se aprisionar nelas. As
estruturas sociais e culturais que se constituíram historicamente compondo nosso
mundo contemporâneo, têm se caracterizado por perpetuar uma separação do corpo
relativamente ao sujeito. Nossa corporeidade está de tal forma submetida ao modelo de
pensamento e práticas científicos, tecnológicos e capitalistas que ao invés de vivermos
com presença, na plenitude de nossa abertura existencial como corpo vivo (Leib),
expressivo, movente e criativo, temos vivido em grande parte, como corpos
dessensibilizados, sobrecarregados e distanciados de nós mesmos.
25
1.2. A dessensibilização do corpo imerso na lógica econômica-capitalista
Maria Helena Imbassaí (2003) argumenta que o ser humano contemporâneo
está constantemente submetido ao processo de dessensibilização (corporal), originado
pelo estilo de vida pautado nas políticas de mercado/capital/produção dominantes.
Desde crianças somos preparados para sobreviver economicamente, segundo os cânones
de nossa cultura produtivista. A dessensibilização corporal é cultivada e reforçada pela
cultura contemporânea, pelos valores que aprendemos, pelas teses e julgamentos que
compartilhamos em nossas relações interpessoais, pelos discursos políticos e
econômicos, pelo saber científico e pelas práticas tecnológicas. Nas instituições de
ensino e educação, se prioriza o desenvolvimento cognitivo para um melhor
aproveitamento no mercado de trabalho e dificilmente nos é oferecida a oportunidade de
exercitar nossa capacidade humana de entrar em contato com nossa experiência, com
nossa capacidade crítica de corpos-sujeitos que somos, criativos, pensantes, plurais e
complexos.

Alvim (2015) coloca que a contemporaneidade é marcada pela velocidade e por


uma crise nas experiências relativas ao tempo e ao espaço. Vivemos com a constante
sensação de falta de tempo, distanciados do momento presente, presos entre passado e
futuro, ansiosos ou deprimidos, nervosos e indecisos, submetidos ao ritmo veloz do
mundo. A lógica da eficácia que nos impõe uma sobrecarga de trabalho e informações
está na base do pensamento e do comportamento de nossa época contemporânea. Essa
lógica, segundo a autora, produz um tipo de alienação, inspirada na exigência de
produtividade, rapidez e eficácia. Imersos no imperativo de nossa época, regidos pela
pressa que dita nosso ritmo corporal e movimentando-nos cada vez mais depressa,
corremos o risco de nos transformar em corpos-máquinas.

Nos dessensibilizamos, como afirma Alvim (2015), ao sermos hiper-expostos


aos excessos de imagens, informações e estímulos diversificados que nos sobrecarregam
sensorialmente. De acordo com Bondía (2002), o estímulo instantâneo e efêmero é
sempre imediatamente substituído por outro estímulo, de modo que experimentamos
todo acontecimento na forma de choque instantâneo, pontual e fragmentado. A
velocidade com que os acontecimentos são vividos e a obsessão pela novidade
comprometem a conexão significativa entre os fenômenos e afetam a memória, visto
que há uma ininterrupta substituição dos acontecimentos por outros de igual excitação,
26
que não deixam vestígios de sua passagem. Em nossa realidade contemporânea, tudo
nos ativa, estimula, excita, mas dificilmente algo nos toca existencialmente. Somos
seres que lidamos com o tempo como mercadoria, que não podemos perder tempo e
sempre devemos aproveitá-lo, e por não podermos ficar para trás, já não temos tempo
para nada.

A experiência de viver a vida de modo mais encarnado, como afirma Bondía


(2002) é difícil de se realizar em uma sociedade constituída sob o signo da informação e
se torna cada vez mais rara pela falta de tempo e também pelo excesso de opinião. O
problema aqui não reside na quantidade de opiniões, mas no imperativo de concluir que
prejudica o processo encarnado de meditar sobre algo antes de estabelecer um juízo. O
problema não está em ter opiniões, mas em reproduzir opiniões mecanicamente sem
implicação corporal. Tudo acontece aceleradamente. Nesse contexto, a falta de opinião
é muitas vezes sentida como vazio existencial. O ser humano contemporâneo,
informado e cheio de opiniões, tende a ser também consumidor de notícias e novidades,
cada vez mais insatisfeito e pouco capaz de silêncio.

Para Alvim (2015) tornamo-nos corpos anestesiados, objetificados, submetidos à


racionalidade moldada por padrões externos; alienados de presença e corpo. No
contexto capitalista, o trabalho passa a ocupar o lugar de referência máxima na
existência do ser humano contemporâneo, isto é, as pessoas não conseguem se
reconhecer sem se vincular ao trabalho que efetuam.

Nessa situação, os modos de produção capitalista tendem a promover formas de


vida pautadas na lógica da eficácia e produtividade que nos coloca na condição de
corpo-máquina, condição na qual extrapolamos os limites de nossos corpos humanos,
esvaziando aos poucos nossas vidas daquilo que nos dá sentido e cujo significado se
perde em meio à busca pelo sucesso no trabalho. Podemos caracterizar essa situação
como um tipo de esquecimento de si, um distanciamento da corporeidade e da
capacidade criativa e instituinte.

A vida passa a se resumir à sua faceta biológica ou à satisfação das necessidades


consumistas, ambas relacionadas à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Nesse
ínterim, a mediação entre o conhecimento e a vida nada mais é do que a apropriação
utilitária do “conhecimento” para as necessidades que entendemos como “vitais” e que

27
são semelhantes às necessidades do Capital e do Estado. Atualmente, a noção de
“conhecimento” compreende essencialmente a ciência e a tecnologia. O conhecimento é
basicamente mercadoria e, por conseguinte, dinheiro: neutro e intercambiável, à mercê
da rentabilidade e da circulação acelerada.

Como afirma Bondía (2002), ao lado do conhecimento desencarnado surgem


atividades mecanizadas, trabalho e consumo, que se ligam à vida do ser humano por
serem fonte de ganho para custear a sobrevivência e fonte de distração para criar
desatenção sobre a existência massacrante do cotidiano. Nesse sentido, a experiência é
cada vez mais rara pelo excesso de trabalho. No contemporâneo, o ser humano torna-se
uma criatura do trabalho, quer dizer, do trabalho executado pelos corpos mecanizados,
objetificados, anestesiados, assujeitados, hiper-informados e docilizados; trabalho que
pretende conformar o mundo segundo um tipo de saber, de poder e de vontade
apartados de sua dimensão vivencial/corporal. Somos, por vezes, afobados para mudar
as coisas, estamos sempre sedentos do que ainda não é, da hiperatividade e por isso não
respiramos, estamos sempre correndo e, desse jeito, nada de singular pode nos
acometer.

A noção de trabalho para Merleau-Ponty tem um significado diferente do que é


entendido pelo senso comum de nossa época. Para o filósofo, trabalho é ação
transformadora de mundo, são as atividades por meio das quais os seres humanos
podem criar e recriar natureza e realidade físicas e vividas.

Ao discutir trabalho, expressão e criação, Merleau-Ponty está no âmbito de


uma reflexão filosófica dirigida ao sujeito em suas relações com o mundo.
Utiliza-se da categoria “trabalho” quando se refere ao corpo como uma
estrutura que dota o humano do sentido da possibilidade e o projeta no
âmbito da produção de novas estruturas, ação transformadora da natureza. O
trabalho, para ele é praktognosia, práxis que produz conhecimento, instaura
algo, sendo poder instituinte (ALVIM, 2015, p. 55).

A autora discute aspectos relacionados ao mundo do trabalho e afirma que,


desde a ascensão do modelo capitalista, o contexto do trabalho é marcado pelo controle.
Nesse sentido, a organização do trabalho e da produção passa a ser domínio do capital,
que tem por objetivo final controlar os meios de produção, bem como a apropriação das
forças de trabalho para produzir mais-valia. Alvim discute ainda a definição marxista da
28
noção de força de trabalho, que envolve uma totalidade corpo-mente, física-espiritual
que vai além de uma concepção apenas biológica e materialista do corpo, mas leva em
consideração a dimensão da corporeidade; do corpo como Leib.

O mundo do trabalho, regido pela lógica econômica capitalista e da produção


industrial, a temporalidade e a corporeidade humanas entram em jogo ao subsumir a
força de trabalho a serviço do capital que sempre prima pelo aumento infinito da
quantidade de produção. Esse movimento produz um fenômeno alienante na relação do
ser humano com seu corpo e seu trabalho. Com o modelo das linhas de produção, a
mecanização e automação do trabalho, o trabalhador passa a concentrar sua força de
trabalho em uma parte específica do processo, perdendo de vista o todo da produção, o
que o separa do produto final de seu trabalho. A alienação do trabalhador em relação ao
produto de seu trabalho se dá nessa separação entre a concepção e a execução do
trabalho, pois o produto do trabalho aparece como uma coisa em si, objetivada e
distante da ação do trabalhador (Alvim, 2015).

Outro modo de alienação discutido pela autora diz respeito à condição humana
criadora, que se encontra ameaçada e mesmo invisibilizada perante à organização do
trabalho cujo regime explícito de controle do trabalhador converte força de trabalho em
ritmo, tempo e energia corporal. O interesse do capital ao considerar o trabalho nessa
perspectiva é eliminar as resistências e diminuir o tempo do processo de produção. Essa
diminuição produz mais-valia e a gestão permite o controle do tempo, do espaço e do
ritmo do corpo em prol do aumento da produtividade. “O corpo só executa, submetido à
vontade externa e à exigência de sobrecarga. Há uma paralisia da atividade espontânea e
o trabalho deixa de ser práxis. Há perda do direito à trans-forma-ação” (Alvim, 2015, p.
57). Nesse sentido, a realidade do trabalho, longe de se configurar como possibilidade
criadora, trazendo a vivência do “eu posso” (praktognosia), traz a vivência do “eu não
posso” na qual o corpo perde a posse do tempo e do espaço e tem seus movimentos
controlados.

Nosso corpo é possibilidade permanente de invenção de novas finalidades e,


simultaneamente, disposição para vivê-las. Nosso referencial imediato e mais concreto é
o corpo; toda ação, isto é, intencionalidade corporal, em toda e qualquer direção parte
invariavelmente do próprio corpo, seja dirigir um carro, dançar, operar um celular,

29
dormir, etc. A intencionalidade corporal (motricidade) refere-se a um saber e a uma
ação prática e corporal irredutíveis à dimensão representacional consciente ou de ação
racional. É um conhecer sem conhecimento, uma compreensão pré-reflexiva do mundo
pelo corpo que nos possibilita nos movimentar e utilizarmos o espaço circundante sem
termos que pensar previamente sobre como fazê-lo. Dirigir um carro, atender a uma
ligação, escovar os dentes, ligar o computador são exemplos desse conhecimento
prático e encarnado. As noções de esquema corporal e hábito estão além das
contradições de livre arbítrio, vontade, determinismo, ação consciente ou inconsciente
ou até mesmo de sujeito e sociedade. Na ação corporal não há reflexão por parte do
sujeito; toda forma de ação tem como base uma ação corporal pré-reflexiva e pré-
consciente (MERLEAU-PONTY, 2011: ORTEGA, 2008).

O corpo não é apenas uma forma em movimento, muito menos uma vitrine de
logotipos, mas instrumento3 no mundo (Imbassaí, 2003; Merleau-Ponty, 2011).
Instrumento humano de relação com o mundo. É como corpo que nos movimentamos e
comunicamos com o mundo e os outros. Mas o que normalmente acontece é o bloqueio
da comunicaçãorelacionado ao acúmulo de tensões que enrijecem os músculos,
bloqueiam as articulações, restringem os movimentos, afetam a respiração e
comprometem o psiquismo, contribuindo para estressar e dessensibilizar o corpo
(Imbassaí, 2003).

Para Imbassaí (2003), a postura cognitiva, utilitarista e demasiadamente racional


de se relacionar com a vida está intimamente conectada com a dessensibilização
corporal que muitas vezes se manifesta pelas dores corporais, estresse e questões
psicológicas e afetivas diversas, vividas no contemporâneo. A dessensibilização se
caracteriza pela perda gradual da capacidade de sentir, de ter sensações, é um
acontecimento que atinge o ser humano nas sociedades contemporâneas urbanas de
forma significativa. Nós subvertemos nosso tempo psicobiológico, experiencial,
sucumbindo à fadiga e ao estresse relacionados ao fato de estarmos continuamente

3
A princípio pode parecer estranho caracterizar o corpo como um instrumento. Instrumento para o quê e
de quem? Chamar o corpo assim não seria já dissociá-lo do sujeito? Mas, pensando com Merleau-Ponty,
instrumento tem um sentido específico. O instrumento-corpo é recursivo, não toco sem ser tocada, não
atuo sem ser afetada... O instrumento, então, é o caráter de colocar o “sujeito” imediatamente no mundo e
com o outro. O instrumento não é para o quê, ele é o “quê” e o “quem” ao mesmo tempo.

30
submetidos à competição exacerbada em uma cultura que prioriza
mercado/produção/rapidez. Logo, a contrapartida dessa perda de capacidade de sentir é
a hiperestimulação, hiperexcitação que é buscada pelas pessoas no contemporâneo com
festas sem fim, drogas, esportes radicais, sadomasoquismo, violência, etc.

Foucault (2000) desenvolve o conceito de “disciplinas” para se referenciar a um


processo de dominação que toma o corpo como alvo e objeto de poder. Para ele, como
coloca a manipulação, modelagem e adestramento do corpo focados na obediência,
habilidade e multiplicação da força de trabalho compõem o processo de docilização que
transforma o corpo humano em corpo-máquina. Os mecanismos disciplinares visam o
controle minucioso das operações corporais e realizam a sujeição constante de suas
forças impondo uma relação de utilidade-docilidade (Alvim, 2015). Tais disciplinas que
se inserem nas instituições do trabalho também estão presentes nas demais instituições
de nossa sociedade, como na saúde, na educação, na religião e na política. O controle
sobre o corpo acontece em suas dimensões temporais, espaciais, afetivas e relacionais.
As disciplinas buscam controlar intensiva e ininterruptamente as atividades corporais
por meio do esquadrinhamento do corpo: do tempo, do espaço, do movimento
corporais. Entretanto, como foi falado anteriormente, trabalho é ação corporal
(praktognosia), é ato de conhecer por meio de uma práxis motora. Controlar o corpo
tornando-o máquina é tornar o corpo uma espécie de autômato (Alvim, 2015).

No embate diário com a vida, nós, muitas vezes, defendemo-nos fazendo um


pacto com a insensibilidade e a indiferença. Pressionados por resultados imediatos
durante boa parte de nossas vidas, acabamos por banalizá-la, torná-la descartável, assim
como o prazer; confundindo alegria com atordoamento e, continuamente insatisfeitos,
sentimo-nos frustrados, vazios e interiormente sós. Temos medos, e para lidar com estes
erguemos muros, pois nos vemos sem tempo, nem dinheiro para nos cuidar como
gostaríamos. Em muitas situações, não nos aproximamos de nós mesmos e nem de
ninguém, tampouco permitimos que de nós se aproximem. Desconhecemos, por vezes,
nossas sensações mais profundas, esgotamos nossa sensibilidade e passamos a funcionar
mecânica e automaticamente na superfície. Despedimo-nos, aos poucos da alegria de
viver comprometendo nossa organização emocional e delegando ao léu nossa existência
sadia (IMBASSAÍ, 2003).

31
Mas a dessensibilização corporal não pode ser confundida com ausência de
sensibilidade. O corpo dessensibilizado não é um corpo que não sente, não é um corpo
que não vive experiências. Mas a grande questão é como ele sente e vive atualmente.
Vivemos em um ritmo acelerado, das altas performances e das hiperestimulações. De
acordo com Merleau-Ponty (2011), corpo é presença. O corpo concretiza sua
materialidade no ato de experimentar-se, ou seja, só é real no presente. Na
dessensibilização corporal a dimensão da temporalidade do corpo fica comprometida; o
corpo dessensibilizado vive uma falta de presença, não está no presente. Ou vivemos
nos projetando para um futuro virtual e nos esquecemos do aqui e agora, ou vivemos
agarrados no hábito, no que já passou. A dimensão espacial da corporeidade também é
afetada na medida em que vivemos comprimidos, seja no trabalho em nossas mesas de
computador antianatômicas ou seja em casa cercados por grades, nos transportes
públicos lotados, nas ruas movimentadas e violentas, nas praias lotadas, dentre outros.

O corpo dessensibilizado muitas vezes vive acostumado com o estilo de vida


contemporâneo, como se a vida se resumisse a isso. Torna-se distante de suas
sensações, e não tem consciência de sua ignorância. Muitas vezes, não sentir nada é
como “estar tudo bem”. Não sabe que não sente nada e vive na superfície sem arriscar
aprofundar-se nas experiências. Entretanto, por muitas vezes nosso corpo, inconformado
com nosso estilo de vida, nos oferece uma porta de saída através de sintomas e da dor
corporal.

Tragados pelo ritmo trepidante das grandes cidades, embalados na engrenagem


da produção e pressionados pela mídia (que nos induz a transformar o lazer em
obrigação, sem tempo para cultivar amizades, vivência e trocas de afetos), nós, muitas
vezes sedentários, somos dominados pelo estresse em suas manifestações de dores de
cabeça, ansiedade, insônia, fadiga crônica, dores nas articulações, agressividade,
depressão, pânico; fazemos uso indiscriminado de drogas ilícitas, álcool, cigarros e nos
automedicamos com tranquilizantes e analgésicos (IMBASSAÍ, 2003).

Os sintomas e as dores corporais voltam nossa atenção no sentido de tentar achar


uma solução, um tratamento, um mecanismo de parada da dor. Nesse movimento de
tentar parar a dor, muitas vezes,nos encontramos com nosso corpo. As dores muitas
vezes são reações à dessensibilização corporal, pois são uma forma de sensibilidade do

32
corpo para com ele mesmo. Sentir dor é algo mais profundo do que não sentir nada. São
as pessoas que se sentem doentes que sãocapazes de buscar algo para lhes tirar do
sofrimento. Só elas podem querer investigar o que está acontecendo, e encontrar formas
mais interessantes de viver, nas quais os corpos não sejam apenas experienciados como
algo incômodo, mas como abertura de possibilidade de estar no mundo.

Neste sentido, este trabalho discute a dança como uma destas possibilidades de
trabalhar o estar no mundo. Podemos dizer que de imediato ela não é em si uma
atividade terapêutica, nem se propõe necessariamente a essa finalidade, mas na medida
em que ela convida o corpo a se movimentar, ela lida diretamente com a expressão, pois
exige um trabalho a partir da sensibilidade do corpo. A dança acontece numa dimensão
pré-reflexiva, ou seja, num primeiro momento não é a cognição que está em jogo, mas
um “estar disponível” com os sentidos físicos relaxados e despertos, um aquecer e ativar
da motricidade, da percepção espacial e temporal, da propriocepção, eum convite à uma
atividade com a dimensão sensível-senciente. Imbassaí (2003), ao entrar em contato
com a maneira de Angel e Klauss Vianna ensinarem a dança, coloca que a técnica da
conscientização corporal, a partir da sensibilização, pode se configurar como um dos
caminhos de retomada da qualidade humana de experimentar a vida.

Dito isso, podemos nos questionar sobre: como resistir às lógicas


capitalista/produtivista e científica/tecnológica, se não podemos, de fato, escapar
completamente a elas? Afinal, reconhecemos que são lugares aonde, inclusive,
compomos afetos, sendo estes, pertinentes e constitutivos de nossa experiência também.
Consideramos que uma possível saída para esse problema é pensar que sim, não há
como escaparmos dessas forças que nos constituem em certa medida, mas o simples
movimento de observarmos como essas lógicas se inscrevem em nossos corpos, já nos
abre uma pequena possibilidade de escolher entre seguir reproduzindo-as ou não, e
também certo grau de liberdade para inventar formas de resistência, que avaliamos ser
provável, passarem pela sensibilização corporal e pela experimentação do corpo em
contato com a arte, no caso aqui, a dança.

33
1.3 O sujeito cindido e a dessensibilização corporal: A separação mente-corpo
comoherança da filosofia e da ciência
A dessensibilização corporal e a dificuldade de lidar com a experiência tem
também íntima relação com os saberes e práticas científicas e tecnológicas. Importa
aqui pensar o que foi feito da experiência humana com o advento da ciência e das
práticas tecnológicas. O pensamento científico sustentado pelo dualismo sujeito-objeto
(intelectualismo ou empirismo) converteu o mundo em objeto para a ciência, ao mesmo
tempo em que converteu a experiência da vida humana em processos de relação com os
objetos e o ambiente. Ou seja, o domínio da dimensão fenomenal e existencial humana
converteu-se na experiência de um sujeito racional em relação à um mundo tomado
como objeto.

O fato da ciência4, mais especificamente como herança do racionalismo


cartesiano, ter transformado a experiência em experiência de objetos contribuiu para
uma separação entre ser humano e mundo que está presente no campo da psicologia. O
mundo pessoal do ser humano passou a ser sinônimo de mundo interno. Criou-se uma
fenda entre mundo objetivo e mundo subjetivo, isto é, o mundo que o ser humano
experimenta como sendo seu. O pronome “seu” aqui refere-se tanto às experiências
ditas subjetivas (da ordem dos afetos, das sensações, dos gestos corporais, etc.) quanto
às experiências comuns dos seres humanos em meio ao mundo comum. O que passo a
ver pelo filtro confiável da ciência, não é o que o mundo é, pois o mundo objetivo não
possui as qualidades que vejo no mundo. A cor que vejo como extensão colorida, para
os olhos objetivantes da ciência não passa de um comprimento de onda. Passo a
desconfiar do mundo que experiencio com o corpo, pois incorporei o olhar científico e
preciso sempre que a ciência me diga o que é “verdadeiro” quando olho para o mundo.
Entretanto, quando me movimento, não o faço de acordo com a ciência, mas sim com o
mundo que eu-corpo experiencio.

4
Quando falamos aqui em ciência, nos referimos à ciência de inspiração positivista. Ainda que
reconheçamos que existem outras propostas e outros modos de fazer ciência, optamos aqui por nos
concentrar nesse modo específico que, por sua disseminação e por seu lugar de destaque na sociedade
capitalista, traz consequências significativas para as práticas e os corpos contemporâneos.

34
Quanto mais a ciência evoluiu e criou áreas de estudo especializadas, mais a
experiência humana foi recortada e afetada por essa lógica de pensamento e prática
racional, dualista e objetificante. O pensamento científico, influenciado pelo
pensamento de Bacon e, mais tarde, de Descartes, junto a muitos outros, mudou a noção
de experiência; transformou-a em método científico, experimento controlado, o que é a
base da dita ciência experimental, como argumenta Bondía (2002). Aqui a experiência
não é mais o instrumento de formação e transformação da vida dos humanos em
singularidade, mas o método da ciência objetiva que se determina a missão de
apropriação e domínio do mundo.

O que se vê é uma situação paradoxal, segundo o estudioso, onde ocorre uma


inflação de conhecimentos objetivos, uma abundância de artefatos técnicos e uma
enorme pobreza das formas humanas de saber da experiência que já foram muito
presentes. A vida humana está empobrecida e o conhecimento contemporâneo já não é o
saber vivo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo estéril
e descontextualizado da vida, em que já não pode se encarnar.

É preciso evitar confundir experiência com experimento científico. Se o


experimento é genérico, repetível, previsível; a experiência é singular, irrepetível,
incerta, complexa e surpreendente. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso
ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, diálogo,
heterogeneidade e pluralidade. Na experiência não há antecipações, mas há uma
abertura para o desconhecido. Não se pode conhecer o resultado da caminhada a não ser
caminhando (Bondìa, 2002).

Na obra de Merleau-Ponty, está sempre presente o diálogo com duas lógicas de


pensamento distintas, mas que se conectam e interferem diretamente na produção deum
mundo e cujo modo de pensar e de funcionar contribui para o alijamento da experiência
e a dessensibilização do corpo. O intelectualismo faz uma redução do real ao racional e
o empirismo reduz o real ao imediatismo das sensações. Ambas as perspectivas geram
dicotomias entre sujeito e objeto, que tendem a ser resolvidas pelo subjugamento de um
termo pelo outro. O positivismo consiste na adoção pelas ciências humanas do método
científico voltado para o estudo da natureza, baseado em princípios como
matematização, previsão, controle.

35
Para tais modelos de pensamento filosófico e científico, o corpo sensível sempre
esteve em segundo plano, na categoria de objeto, res extensa, corpo-máquina, matéria
inerte que está submetida ao espírito.

Para Merleau-Ponty (2011) , na esteira da tradição fenomenológica, é na


presença corporal que o ser humano e o mundo, tal como os conhecemos, podem co-
emergir. O filósofo nos esclarece que o sentido de algo nasce do intercruzamento do
corpo com o mundo; não é constituído pela pura atividade do “sujeito racional” nem já
está de antemão na facticidade dos objetos. Mas a criação e o ato de significar são como
tentativas corporais de corresponder ao apelo do mundo. Há um “trabalho” corporal de
dar sentido ao mundo que nunca se esgota. Esse “trabalho” (praktognosia), esta ação
criadora é sempre uma ação motora, intercorporal que se dá na percepção e vem do
encontro com o mundo e com os outros. O mundo é antes o que vivo do que o que
penso. O sentido está relacionado ao pré-pessoal, pré-teórico, pré-reflexivo, ante
predicativo. Nisto consiste a reabilitação do sensível: não se trata de um retorno à
interioridade, ao eu-privado, mas ao ato de presentificar-se como corpo, aproximar-se
do que surge na experiência. Merleau-Ponty (1984) afirma que interrogar o sensível é a
grande tarefa da filosofia, pois a relação do corpo com o mundo se dá na ordem do
fenomenal. Ao entrar no chuveiro para banhar-me pego a esponja, o sabão e começo a
ensaboar cada parte do meu corpo. Não o faço porque localizei as partes que queria
ensaboar através de eixos de coordenadas no espaço objetivo, mas porque encontrei
com a mão fenomenal as partes corporais que precisavam ser lavadas. Eu não precisei
procurar minhas mãos para dar início à tarefa de banhar-me, pois minhas mãos não são
objetos a se encontrar no espaço objetivo, mas potências mobilizadas intencionalmente
pela percepção da água, do sabão; dos objetos dados.

O senso comum se submeteu à eficácia da ciência de uma forma desenfreada. O


problema não está na ciência, não se quer aqui fazer um culto contra a ciência.
Entendemos como a pesquisa científica é interessante em muitos aspectos, porém o que
se pretende questionar aqui é a pretensão, muitas vezes disseminada no senso comum,
de que esta pudesse abarcar a extensão da vida humana, pretensão esta que acaba por
esvaziar a experiência do seu sentido próprio e que em última instância não é realizável
de modo totalizante e permanente por nenhum saber específico.

36
A medicina, afirma Ortega (2008), ocupa nos dias de hoje o lugar do universal e
fala em nome da “Verdade”, fornecendo regras de comportamento para todos: “uma
tecnologia do poder sobre a ‘população’ enquanto tal, sobre o ser humano enquanto ser
vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de ‘fazer viver’”, apresentado por
Foucault (2000, p. 294), desenvolveu-se a partir do final do século XIX, no bojo de
estratégias higiênicas, sanitárias, urbanísticas e arquitetônicas e vigora até hoje em
nossa sociedade. Essa tecnologia, afirma Foucault (2000, p. 295) se configura “cada vez
mais como o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver e no ‘como’ da
vida (...) o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar
seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências”.

O discurso da tecno-medicina e das bio-tecnologias contemporâneas, com sua


ênfase na maleabilidade e docilidade do corpo frisam a “construção” do corpo dada em
múltiplos níveis distintos. Os corpos, em primeiro lugar, tornam-se gradualmente
plásticos e maleáveis. Os limites de como o corpo pode ser reconstruído, reformado e
modificado são constantemente expandidos pelo crescimento da indústria da cirurgia
plástica. Em segundo lugar, os corpos tornam-se progressivamente biônicos (por meio
da incorporação de marca-passos, válvulas, placas de titânio, olhos eletrônicos,
implantes cocleares e todo tipo de próteses orgânicas e inorgânicas que marcam cada
vez mais a interface entre a máquina e o corpo).

Relacionado com este ponto está o fato dos corpos tornarem-se paulatinamente
intercambiáveis, devido especialmente aos avanços das tecnologias de transplantes a
partir de órgãos humanos e animais geneticamente modificados (xenotransplantação). A
mercantilização de partes do corpo através de transplantes fetal e de órgãos, a
manipulação genética e as tecnologias reprodutivas, se constituem em negócios
bilionários, de acordo com Ortega (2008).

Na verdade, a cisão mente/corpo (cérebro/corpo, sujeito/corpo) não é apenas


teórica, está em uma relação de interdependência com a maneira como percebemos e
sentimos. Como poderiam surgir teorias sobre nossa natureza se elas fossem
completamente diferentes do que experimentamos? Elas emergem do nosso modo de
experienciar o que se apresenta em nossa percepção e ao mesmo tempo alteram nossa
experiência. A dimensão de pensamento e de percepção na qual o corpo é representado

37
e separado do sujeito produz o entendimento e o reconhecimento de que o corpo é, de
fato, um objeto para o sujeito que, então, torna-se o possuidor do corpo podendo se
servir dele. O corpo vivido transformado em objeto pode, por exemplo, ser modelado
numa academia de musculação, pode ser cortado, suas partes podem ser submetidas a
implantes de próteses, cirurgias plásticas, etc. Essas práticas médicas acompanham e
corroboram num certo sentido o pensamento neoliberal de nossa época, o homem se
pensa livre e autônomo e cuja liberdade se justifica, em parte, pela certeza de poder ter
controle total sobre seu corpo.

O corpo ser visto e tratado como objeto relaciona-se com o regime onde a
contemporaneidade alocou o corpo: biofísico, bio-químico-físico, mecânico. A redução
do corpo aos processos bio-químico-físicos transforma o corpo num objeto físico. O
corpo se tornou uma espécie de produto, um objeto de intervenção como qualquer outra
coisa. Em algo maleável e moldável segundo um ideal de corpo externo ao próprio
sujeito. Em grande parte das vezes, a busca por ‘ter” um corpo diferente do que se é, se
configura como uma imposição social, cultural. Essa busca por um ideal de corpo pode
gerar diversos tipos de adoecimentos ligados tanto à dimensão material do corpo quanto
à dimensão experiencial, de maneira entrelaçada.

O interessante de se pensar nos adoecimentos provenientes desta forma de


experimentar o corpo no mundo é que ao mesmo tempo que eles se apresentam como
problemas, no bojo do incômodo que causam, também habita neles a possibilidade de se
debruçar sobre os sentidos em emergência a partir de uma crise. Uma vez aberto o
caminho de investigação de que sentido sustenta a emergência do adoecimento, o
sentido pode se reconfigurar. Podemos refletir se esses adoecimentos não poderiam ser
compreendidos como mecanismos de resistência, sintomas do próprio corpo a ser
transformado em objeto. O corpo resiste a esse assujeitamento, a ser definido como um
sujeito deslocado e separado dele, que o representa.

Segundo Ortega (2008), o culto ao corpo pode ser compreendido como um


abandono temporário do corpo. A pessoa que cultua O Corpo, o ideal de corpo, e deseja
avidamente modelar-se de acordo; assim promove um abandono do corpo como
sensibilidade. O abandono, tal como compreendemos, não se pode pensar como uma
condição estável e definitiva, mas na experiência estamos continuamente flutuando

38
entre o abandono e a retomada da corporeidade como dimensão sensível-senciente.
Todos estamos, em certa medida, sujeitos ao abandono quando nos esquecemos da
implicação corporal inerente ao nosso estar-no-mundo.

Buscamos frisar com a discussão apresentada neste capítulo, primeiramente, que


o processo de dessensibilização está diretamente relacionado com uma concepção
dicotômica de corpo e mente. Nesta, corpo e mente são vistas como parte extra partes,
constitutivas e definidoras do sujeito, cuja articulação entre elas pressupõe uma
hierarquia da mente em relação ao corpo, que articula o que o sujeito “pensa”, “fala” e
“faz”. Compreendendo esse “pensar” como uma atividade intelectual, estritamente
racionalizante, uma “fala” que é conduzida e dependente desse pensamento e um
“fazer” guiado também por esse pensar. No campo da psicologia comportamental, por
exemplo, considera-se a partir dessa lógica, que o comportamento pode ser objeto de
previsão e controle.

Nas práticas tecnológicas e científicas de inspiração positivista, o corpo vira um


apêndice do pensamento racionalizante e objeto de intervenções diversas. No contexto
do capitalismo, o corpo é explorado em prol da eficiência, do lucro, do produtivismo,
etc.

Essas concepções dualistas que transversalizam os vetores constituintes das


práticas, dos saberes e das experiências contemporâneas descritas neste capítulo
confluem, a nosso ver, para um processo de dessensibilização corporal. O processo de
dessensibilização promove o distanciamento da dimensão sensível-senciente da
corporeidade, a dimensão existencial própria do Ser.

Em suma, podemos pensar uma relação entre o processo de dessensibilização e o


processo de sensibilização a partir de algumas chaves. Uma delas se refere à dinâmica
relacional entre as dimensões mente e corpo. O sujeito dessensibilizado tem uma
relação de posse do corpo, ele tem um corpo. Já o sujeito sensibilizado vive o seu
próprio ser através do corpo, ele não tem um corpo; ele é corpo.O corpo
dessensibilizado tem encarnadaso pensamento dualista e dicotômico sem ter consciência
disso e sem perceber que e capaz de transformação e mudança. Devemos lembrar que as
experiências de ter-corpo e ser-corponão se dão separadas uma da outra, mas estão o
tempo inteiro dialogando na existência humana e acontecem em variados graus. Durante

39
nossa existência variamos entre momentos de dessensibilização e de sensibilização.
Tanto o estado dessensibilizado quanto o estado sensibilizado não se dão por acaso. Não
se pode pensar em estar inteiramente dessensibilizado ou sensibilizado, não são
condições totalizantes e definitivas, pois a todo momento somos interpelados pelo
mundo, pelos outros, pela cultura, pela história, pelos acontecimentos político-
econômicos, pelo saber científico, pela arte, enfim.

A despeito da variação, há uma diferença de qualidade entre as dimensões


existenciais de ser-corpo e ter-corpo que devemos nos atentar. Essa diferença não se
refere a uma distinção entre forte e fraco, mole e duro, passional e indiferente etc; mas a
verdadeira diferença está na liberdade que a sensibilização nos dá para escolher entre
que postura tomar frente as diversas situações de vida. O corpo atento a sua dimensão
sensível-senciente pode até, em uma situação difícil, “escolher” ou “adquirir” uma
aparência de dessensibilização se ele compreender que esta é a melhor forma de lidar
com a situação-problema, mas ele não está verdadeiramente dessensibilizado. Na
dessensibilização isso não é possível porque ela conduz a uma perda de liberdade,
enquanto que na sensibilização há um aumento da condição de liberdade.

Precisamos saber sentir qual o momento que é interessante nos resguardar e


quando podemos nos implicar. Essa dança entre resguardo e implicação é o que nos faz
perceber que somos corpo. O processo de sensibilização corporal nos oferece essa
possibilidade: de poder escolher quando mergulhamos numa experiência e quando
encontramos um limite e compreendemos que é melhor nos resguardar. O corpo
dessensibilizado, acreditamos, por estar de várias maneiras distante dele próprio, não
percebe as pequenas nuances da experiência, não percebe com nitidez a situação onde se
encontra, e assim sua capacidade de escolha de como lidar com o que acontece fica
comprometida.

Poderíamos pensar: “Estrategicamente precisamos nos distanciar um pouco das


coisas porque senão a gente não anda pela rua”, entretanto o que pensamos é que esse
“estrategicamente” faz parte justamente do processo de sensibilização. Pois, senão,
caímos na dicotomia de estar num polo ou no outro, nessa radicalidade que não permite
fluidez, que faz parte da dessensibilização. Acreditamos que, aqui, a questão da dor
corporal colocada no início desse capítulo, pode ser melhor definida. Sensibilizar

40
também dói. Dor não é sinônimo de dessensibilização, ela pode ser parte do processo de
sensibilização. Existem muitas formas de dor, tantas quanto a singularidade dos corpos.
Mas as dores que concernem ao processo de sensibilização, são diferentes das que
envolvem a dessensibilização. As primeiras são as dores decorrentes do movimento do
corpo, da mudança, da expressão, elas acompanham, em certa medida, o próprio viver.
Viver é doloroso, exige trabalho (no sentido merleau-pontyanopraktognosia), criação.
As segundas são o inverso, elas advêm da falta de movimento, de um movimento
mecânico ou automático, da inércia, da resistência à mudança, da cristalização das
experiências. Pode ocorrer que a dor da dessensibilização aponte para uma crise que
impulsione o início de um processo de sensibilização, mas não é regra.

Podemos pensar nas dimensões fenomenológicas da corporeidade. Körper e


Leib. A primeira concerne a uma experiência do corpo como matéria, é o corpo
biológico, o corpo objetivo. Já a segunda é a experiência do corpo fenomenológico, o
corpo vivido da experiência, o corpo sensível. Tanto na experiência de ter-corpo como
na de ser-corpo ambas as dimensões estão lá. E ambos, corpo dessensibilizado e
sensibilizado, experimentam-as em suas experiências. A questão que se coloca aqui é
que o corpo dessensibilizado está tão arraigado na experiência de ter-corpo, de Körper,
que, na maioria das vezes, se torna desatento e distanciado para sua condição de Leib,
de ser-corpo. Já na sensibilização há uma maior atenção e desenvolve-se um cuidado
para ambas as experiências fenomenológicas da corporeidade.

A partir de nossa visita ao tema do corpo dessensibilizado passaremos agora


para a exploração do tema da corporeidade à luz da dança contemporânea tal como
compreendida pelo Método Angel Vianna de Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais, pois entendemos que essa perspectiva acerca do tema do corpo pode ampliar
a discussão no sentido de oferecer uma maneira de compreensão do corpo que escapa às
formas hegemônicas de dessensibilização.

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CAPÍTULO 2 – O DANÇAR: REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA E
ESTUDO TEÓRICO DO MÉTODO ANGEL VIANNA

“Dançar é estar inteiro, vivo. Não há como separar a dança da vida”, já dizia
Klauss Vianna (2005). Para ele somos os únicos responsáveis pelo corpo que somos e
somente nós poderemos modificar esse corpo. Do nosso existir enquanto corpo próprio
estabelecemos uma troca com o mundo, uma relação com a vida. O bailarino afirmava
que a vida é a síntese do corpo e o corpo é a síntese da vida e que nós não simplesmente
nos movemos, mas somos o próprio movimento. Nos movemos integralmente, tendo em
nós todas as forças que regem o universo. Quando dançamos, portanto, está dentro de
nós a engrenagem que faz o movimento do mundo. A dança é um modo de existir
consigo e com o outro no mundo compartilhado.

Depreendemos das palavras de Klauss Vianna (2005) que é preciso desarmar-se


para encontrar o próprio movimento, são os espaços internos do corpo que devem criar
o movimento de cada um. Para dançar, afirma, é preciso toda uma relação com o mundo
a nossa volta. Ao mencionar os “espaços internos do corpo”, acreditamos que Vianna
não só estaria se referindo ao espaço interno do corpo em sua dimensão biológica, mas
pode estar também falando de uma dimensão sensível e fenomenal do corpo. Assim
como Merleau-Ponty (2011), ele compreende corpo como uma totalidade dinâmica e
não-homogênea, ou seja, não separa e antagoniza sua faceta biológica de sua faceta
experiencial. Mas justamente o que o dançar promove é um reconciliar dessas duas
facetas do corpo para que esse corpo seja expressividade, seja arte. Luís Pellegrini
termina sua introdução de “A Dança” de Klauss Vianna, escrevendo:

“Pela dança o homem manifesta os movimentos do seu mundo interior,


tornando-os mais conscientes para si mesmo e para o espectador; pela dança ele
reage ao mundo exterior e tenta apreender os fenômenos do universo. Nessa
tentativa se aproxima cada vez mais de seu Ser mais profundo” (2005, p. 20)

Quando se dança, se move o corpo biológico e também o corpo afetivo, sensível,


significante e criativo. Dançar é um lançar-se no livre fluir entre as experiências de ter-
corpo e ser-corpo. No dançar a separação mente-corpo perde força e esses opostos se
reconciliam.

42
De acordo com Jussara Miller (2007) a dança é um modo de existir que não está
limitado ao universo dos bailarinos profissionais, mas é expressividade de todo ser
humano. Ela sublinha essa concepção advinda de Klauss Vianna, que, segundo ela “não
restringiu o seu trabalho a um instrumento apenas para as artes cênicas, mas também
para as atividades da vida diária, como meio de prevenir tensões e estresses
desnecessários” (2007, p. 21). No dançar há a premissa do cuidado e do respeito com o
corpo que, por sua vez, sustentam a descoberta ou a redescoberta do corpo próprio. Por
intermédio da dança pode-se exercitar um estar-em-si-corporal através das percepções e
sensações que emergem durante a execução dos movimentos. Para dançar é preciso que
o sujeito entre em um contato atento e profundo com todo o seu corpo, necessita “estar
presente corporalmente” para que o dançar flua de forma expressiva e espontânea. Ao
movimentar-me, me sinto, me assisto e me torno meu próprio espectador, o “observador
meditante” de meu próprio corpo. Esse cuidado atento com o corpo não deve se
restringir a sala de aula, mas ao se estender para a vida, aí consiste a terapêutica da
dança, segundo Miller (2007). Praticar a dança nos convida a perceber o corpo na rua,
em casa, no trabalho, em qualquer lugar.

A dança, compreendida pelos Vianna, é uma prática que busca abrir espaço para
a criatividade, resultando numa melhor execução e expressão dos movimentos; o que se
consegue primeiramente trabalhando com elementos estruturais básicos do corpo, como
os ossos, músculos, apoios, atenção, respiração e etc. Esse é o convite que a dança, nos
faz –mergulhar na experiência corporal no que ela tem de ressignificador e
transformador de nossa existência.

Na técnica Klauss Vianna, “os enfoques didáticos, estéticos e terapêuticos


convergem, na prática em sala de aula, em um ambiente no qual todas essas
informações dialogam” (op. Cit., p. 29) o que afirma o potencial da prática da dança
como terapêutica, isto é, como via de acesso a existência em sua qualidade de abertura
como corporeidade.

O saber e prática corporal inovadoresacerca das questões que envolvem o corpo


e a dança fazem parte de toda uma história e trajetória de pesquisa desenvolvida por
Klauss e Angel Vianna. Este capítulo será dedicado a compreensão do corpo e da dança
a luz da Proposta Corporal dos Vianna (PCV), da Técnica Klauss Vianna (TKV) e, mais

43
especificamente, do Método Angel Vianna de Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais (MAV)5. Tive contato com essa metodologia ao realizar o Curso Técnico de
Formação de Bailarino Contemporâneo oferecido pela Escola e Faculdade Angel
Vianna (EFAV) durante os anos de 2015 a 2017. As experiências que vivi ao longo do
curso muito me instigaram a pensar e refletir sobre as questões que trago nesta
dissertação de mestrado. Desta forma, neste capítulo a tarefa é trazer para as discussões
do capítulonão apenas uma leitura teórica, mas também trazer a minha experiência
como bailarina contemporânea formada no MAV e o que a prática sistemática dessa
metodologia pôde me trazer de instigações, esclarecimentos e aprendizado acerca do
potencial terapêutico de se trabalhar a corporeidade nessa perspectiva.

A MAV (Método Angel Vianna) é um método voltado para a dança. O primeiro


currículo criado por Angel Vianna foi o do Curso Técnico e dele originaram-se os
demais currículos (da graduação e das pós-graduações oferecidas atualmente na
instituição). O curso técnico é voltado para a formação de bailarinos contemporâneos e
tem como ponto norteador o fato de que para dançar, precisamos nos conhecer, nossos
próprios corpos, mas também a relação de nossos corpos enquanto pertencente de um
coletivo dançante; conhecer do-que-somos-feitos, isto é, nossa estrutura física e quais
são os limites e possibilidades do nosso movimento no individual e no coletivo. O corpo
tem uma infinidade de movimentações possíveis que surge a partir da (re)conhecimento
de sua estrutura física-anatômica-fisiológica. Nessa perspectiva, torna-se importante
conhecê-la/descobri-la para que nossas possibilidades de expressão sejam ampliadas,
pois qualquer movimento que executamos, não só na área da dança, mas também no
cotidiano e na vida, surge dessa estrutura como expressão de nossa singularidade, faz
parte de quem somos. Dessa maneira, compreender do-que-somos-feitos é um cuidado
de si, uma ação terapêutica de nós para conosco mesmos. Essa ideia de “terapêutica”
desenvolveremos ao longo deste e no último capítulo.

No início de seus percursos na dança, os Vianna observaram que, para dançar, o


corpo precisa ser preparado, ser sensibilizado. Em outras palavras, como já foi

5
Discutiremos mais adiante, neste capítulo, o que estamos entendendo como PCV, TKV e MAV.

44
explicitado no primeiro capítulo, eles se deram conta de que os corpos dos bailarinos
estavam dessensibilizados e que a maneira como as aulas de dança, em especial o balé
clássico, eram ensinadas, contribuíam para esse cenário, pois voltavam seu foco e seu
fazer somente para transmitir uma técnica de dança, ou seja, ensinavam a dança como se
fosse uma repetição automática e desimplicada de movimentos específicos sem se
atentarem para os corpos que executavam esses movimentos. Ao contrário disso, para
os Vianna, interessava a repetição consciente, isto é, um repetir com uma postura
investigativa, exploratória de que elementos corporais estão sendo utilizados e de como
estão sendo utilizados para que o movimento aconteça desta ou daquela forma. Para
isso, é crucial que a pessoa esteja relaxada, aquecida e atenta exclusivamente para seu
movimentar. A sensibilização é o que proporciona esse estado de disponibilidade e
abertura para um movimentar atento, um repetir redescobrindo, um dançar expressivo.
A tarefa da sensibilização culmina em toda a pesquisa e elaboração da PCV.

Se a dança continua compreendida como “técnica” apenas, os corpos


permanecem dessensibilizados e o universo da dança se torna um campo de difícil
acesso, em torno do qual, de acordo com a compreensão aqui exposta referente à obra
dos Vianna, construiu-se o mito – que se perpetua até hoje em outros âmbitos e
maneiras de compreensão da dança – de que para dançar é pré-requisito ter nascido com
“talento” e com um corpo “perfeito”. Baseados nesse mito, muitos bailarinos dedicam
anos de suas vidas a um trabalho árduo com a finalidade de se chegar a um ideal de
corpo ou de técnica de dança, o que muitas vezes, é um caminho direto para frequentes
episódios de lesões corporais. Ao enxergarem isso, brotou nos Vianna o desejo de
investigar a fundo o corpo e a dança no sentido de se inventar uma dança ou “jeito” de
dançar harmônico e coerente com os corpos que se arriscavam a tal.

2.1 Dança é vida: As experiências dos Vianna, o surgimento do Método Angel Vianna
(MAV) e seus aspectos mais centrais.
Angel Vianna, nasceu em Belo Horizonte em 1928, filha de libaneses, foi
batizada com o nome Maria Ângela Abras. Sempre buscou o contato com as artes,
tocava piano desde a adolescência e, aos 14 anos, conheceu Klauss Vianna no colégio
Instituto Padre Machado onde estudavam. Em 1947, após assistirem e se encantarem
com um espetáculo de dança do “Ballet da Juventude”, decidem fazer aulas de balé com
45
Carlos Leite6. Em 1948, Angel e Klauss integraram o corpo de baile do Ballet de Minas
Gerais, companhia de Carlos Leite (Miller, 2007). Em 1952, Angel Vianna inicia a
escola de Belas Artes onde teve aulas de pintura com Alberto Guignard7 e teve aulas de
escultura com Franz Weissman8. Sobre a pesquisa corporal de Angel Vianna, Miller
afirma que “a escultura, a música e a dança formam uma tríade que resultou no seu
trabalho corporal” (2017, p.41).

A respeito das experiências de Angel com o manuseio da argila, Ramos (2007)


comenta que nas aulas de escultura Angel pôde explorar a sensibilidade perceptiva
através do toque e do tato. “Saber o que é muito e o que é pouco para que, pelo toque,
aconteça a descoberta e o saber não é tarefa muito fácil. Essa experiência, que Angel
viveu no manuseio da argila e de outros materiais com os quais fazia esculturas(...)
aproxima-a da Eutonia de Gerda Alexander” (op.cit., p.39). O contato com a música por
meio das aulas de piano que Angel praticava desde adolescência, contribuiu para que ela
aguçasse a percepção da escuta corporal, já as aulas de dança contribuíram,
principalmente, para que ela ampliasse sua percepção espacial e de fluxo de movimento
(Rubin apud Miller, 2007, p.41). Numa entrevista que Angel Vianna deu para a Revista
do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc – São Paulo em maio de 2016, ela comenta
que adorava manipular a argila e outros materiais para fazer esculturas e isso “é igual ao
meu trabalho, se eu toco num aluno, eu manipulo toda a textura, os ossos, a pele” (p.
270-271).

O sujeito sensibilizado pela arte tem uma escuta, uma apreensão do mundo
diferenciada. “Todas essas artes foram muito importantes para mim, porque todas fazem

6
Carlos Leite (1914 - 1995), bailarino brasileiro nascido em Porto Alegre, onde estudara canto, mudando-
se para o Rio de Janeiro, onde estudara arte dramática e balé. Em 1943 vai dançar em Londres, mas com a
eclosão da Segunda Guerra, volta ao Brasil. Em 1945 torna-se o primeiro bailarino do Municipal do Rio
de Janeiro e depois ajuda a fundar o Ballet da Juventude, onde se destaca como maître de ballet,
coreógrafo, diretor de cena e assistente de Igor Schwesoff, diretor da companhia. Em 1948, foi convidado
pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Minas Gerais para montar uma escola: a Escola
de Dança Clássica de Minas Gerais, sediada em Belo Horizonte.
7
Alberto da Veiga Guignard (1896 – 1962), pintor brasileiro; instalou em 1944, a convite do então
presidente Juscelino Kubitschek, um curso de desenho e pintura no Instituto de Belas Artes, em Belo
Horizonte.
8
Franz Weisseman (1911 – 2005) nasceu na Áustria e veio para o Brasil com 11 anos. Tornou-se uma
referência na escultura brasileira. Mudou-se para Belo Horizonte em 1945, onde lecionava aulas de
desenho e escultura. Em 1948, foi convidado por Guignard para dar aulas na Escola do Parque.

46
parte de um trabalho necessário a uma escola de dança”, afirma Vianna (2016, p. 271).
Desde a infância, Angel Vianna tinha o interesse em observar os fenômenos e as
pessoas. Sempre foi muito curiosa, o que a ajudou a abrir um canal de percepção de
mundo aguçado. Em sua observação, a bailarina percebeu que os fenômenos não se
diferenciavam da natureza, do mundo ou dos seres humanos. Ao longo de seu exercício
contínuo de observação, preferiu voltar sua atenção para os seres humanos, focando nas
suas diferenças e na sua movimentação. Quando Angel e Klauss Vianna começam a
fazer aulas de balé clássico, para eles a dança era uma poesia de vida; perceberam na
dança um estar-presente no e com o corpo diferenciado. Começam a se perguntar o que
estava por trás da dança que a fazia ser tão particular aos seus olhos. Nesse momento,
antes mesmo de começarem a ensinar dança, Angel e Klauss já se destacavam nos
espetáculos que dançavam. Eram notáveis bailarinos, detentores de um grande saber
sobre o corpo, a dança e a expressão artística. Vianna (2006, p. 273) afirma: “Renée
Gumiel (bailarina e coreógrafa francesa) na época perguntou para mim e para o Klauss
em qual país nós tínhamos estudado, nós nunca tínhamos saído de Minas e a gente
estudou com nós mesmos, em Minas, e com o Carlos Leite”

Não era nem um pouco comum no cenário da dança, na década de 1950, no


Brasil principalmente, se estudar ossos, articulações, etc. No âmbito artístico, as pessoas
tinham uma certa compreensão da dança e do teatro muito conectada com um ideal de
beleza física e de um virtuosismo corporal: o que importava para o trabalho era o corpo
em cena, o corpo visto da pele para fora e não da pele para dentro. Não existia um
trabalho de educação corporal; não se questionava o que era o corpo. Angel e Klauss
foram os primeiros, no Brasil, a se perguntar sobre isso e começar a construir uma via
de compreensão do que é o corpo que dança ou, melhor, o corpo-dança. Em 1950, após
passar uma temporada de estudos em São Paulo com Maria Olenewa e tendo que
assumir as responsabilidades financeiras da família devido à morte da mãe, Klauss
Vianna passa a dar aulas de balé e trabalhar como assistente de Carlos Leite. É então
que aparecem as primeiras reflexões dos Vianna sobre os destinos da dança no Brasil.
Klauss publica o artigo “Pela Criação de um Balé Brasileiro”, em outubro de 1952, uma

47
análise crítica sobre a arte da dança clássica no país, influenciando fortemente o
pensamento daquele meio artístico9.

Em 1955 Angel e Klauss Vianna se casam.Rainer Vianna, único filho do casal,


nasce três anos depois, em 1958 e em 1959, os Vianna abrem sua escola de dança em
Belo Horizonte, na casa da avó de Klauss, Erna, de origem alemã. A escola chamou-se
“Escola Klauss Vianna” onde praticavam um ensino diferenciado da dança e, no mesmo
ano, fundam sua primeira companhia de dança, o “Ballet Klauss Vianna”. Nesse
momento de sua trajetória de pesquisa corporal, eles tiveram um amigo dentista e
professor de Odontologia da Universidade de Minas Gerais que os ajudava a estudar
anatomia do corpo humano. Uma particularidade da Escola Klauss Vianna para a época
era que pediam para os alunos; crianças, jovens e adultos deitarem no chão e tirarem as
sapatilhas para trabalhar o arco do pé, os dedos, a estrutura óssea e a verticalidade do
corpo. O estudo anatômico lhes concedeu a compreensão da importância de se trabalhar
fortalecendo, mas também flexibilizando o eixo vertical, o ensino deles para a técnica
do balé clássico já era bastante revolucionário para a época. Muitos profissionais do
campo da dança, os criticavam por isso e, muitos anos depois já no Rio de Janeiro,
ainda recebiam críticas da classe artística por defenderem a importância do estudo
anatômico-motor do corpo para a formação de bailarinos, atores, dentre outros.

Em 1961, Angel e Klauss Vianna são convidados para dançar e darem uma aula
no I Encontro das Escolas e Academias de Dança do Brasil, em Curitiba-PR pelo
organizador do evento, Paschoal Carlos Magno10. Como ressalta Enamar Ramos, “Isso
prova que o trabalho desenvolvido em Belo Horizonte havia ultrapassado a fronteira de
Minas Gerais” (2007, p. 66). Nesse momento não existia faculdade de dança, apenas
escolas, com exceção da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que oferecia curso

9
Disponível no Acervo Angel Vianna no site http://www.angelvianna.art.br/vida-e-obra
10
Paschoal Carlos Magno foi um importante ator, diretor, produtor, crítico, autor e animador no cenário
do Teatro brasileiro nas décadas de 1920 a 1960. Fundadordo Teatro do Estudante do Brasil - TEB e
criador do Teatro Duse foi nomeado, em 1962, secretário geral do Conselho Nacional de Cultura.
Paschoal Carlos Magno foi na verdade uma instituição: ele quase chegou a exercer, às vezes, funções que
caberiam a um informal Ministério da Cultura. Não há dúvidas de que o seu entusiasmo revelou talentos
que sem o seu apoio dificilmente teriam desabrochado; e de que raras são, ainda hoje, iniciativas válidas
do teatro brasileiro a que não esteja ligado a alguém que não tenha recebido em algum momento um
empurrão decisivo do patriarca de Santa Tereza" (Michalski, Y., 1989)

48
superior em dança desde 1956. Nesse evento, os Vianna conheceram Rolf Gelewski11.
Gelewski, diretor da Escola de Dança da UFBA, após assistir a performance de Klauss e
Angel como bailarinos, professores e coreógrafos no I Encontro das Escolas e
Academias de Dança do Brasil, convidou-os para serem professores de ballet clássico
na Escola de Dança da Universidade apesar de não possuírem formação em nível
superior. Já era o reconhecimento de Notório Saber12, título que Angel só foi receber
em 2003. Rainer e sua bisavó Erna (avó de Klauss e considerada sogra de Angel)
também se mudam para a Bahia com o casal.

Angel Vianna se refere a Rolf Gelewski como aquele que lhe deu a base de um
conhecimento, pois através dele, ela e Klauss Vianna entraram em contato com técnicas
corporais alemãs, como o trabalho de Rudolf von Laban e de Mary Wigman que,
segundo Enamar Ramos era “muito semelhante ao deles” (2007, p.67). Especificamente
no meio da dança, iniciava-se uma dissidência do sistema tradicional do balé clássico,
com base na necessidade de uma nova relação dessa arte com a realidade. Nesta nova
proposta, o principal seria a existência do bailarino e sua relação com o mundo, em que
o sentimento define o gesto, e o gesto, ao ser realizado, reforça aquele sentimento
(Monteiro, A., B., 1996). O contato dos Vianna com a técnica de Laban para quem a
dança “é uma arte livre, natural e acessível a todos, calcada na busca da essência da
alma humana e independente do virtuosismo clássico” contribuiu bastante para o
desenvolvimento da pesquisa dos Vianna. (op. Cit., p. 29)

Na UFBA eles tinham acesso aos esqueletos humanos do anatômico, e puderam


aprender muito sobre os ossos, base da estrutura corporal. Angel e Klauss
permaneceram de início de 1963 a final de 1964 como professores convidados na Bahia
fazendo uma residência. Completados os dois anos de residência, foram convidados a

11
Dançarino e coreógrafo alemão, naturalizado brasileiro, que foi solista e professor do Teatro
Metropolitano de Berlim, estudou com Mary Wigman (uma das principais criadoras da dança moderna
alemã) e Marianne Vogelsang na vertente expressionista e em 1960 foi convidado para ser diretor da
escola de dança da UFBA. Rolf Gelewski foi responsável pela estruturação do primeiro curso
universitário de dança moderna no Brasil, seu estilo foi influenciado pela “corrente estática” surgida na
Europa Central no início do século XX cujo grande diferencial estava na maneira como o artista vê a sua
arte e a sua relação com o mundo. (Ramos, E., 2007, p. 67)
12
Em 2003, a Universidade Federal da Bahia concede a Angel Vianna o título Doutora Notório Saber,
nas áreas de Conscientização do Movimento, Cinesiologia e Dança. Disponível em:
http://www.angelvianna.art.br/vida-e-obra/a-faculdade/1995-novo-grupo-teatro-do-movimento/1449/

49
permanecerem como professores titulares, mas Angel não quis se estabelecer na Bahia,
pois tinha o desejo deviver novas experiências, viajar mais e conhecer outras culturas e,
a contragosto de Klauss, se mudam para o Rio de Janeiro. Rainer e a bisa Erna voltam
para Belo Horizonte e visitam Angel e Klauss regularmente no Rio de Janeiro.

A chegada de Angel no Rio de Janeiro, em 1965, foi uma época difícil


inicialmente, porque não existia emprego para eles. Ela teve que dançar na televisão,
antiga TV Tupi, tarefa que não a agradava, até que em 1966 foi convidada para dar
aulas na academia da Tatiana Leskova onde permaneceu até 1975.Na escola de Tatiana
Leskova, além das aulas de balé, Angel começou seu trabalho então batizado de
“Expressão Corporal”. Lá, Angel tirava a sapatilha, convidava os alunos a deitarem no
chão, etc., didática de aula que a própria Tatiana Leskova estranhava e desaprovava,
pois aquilo era, de certa maneira, entendido como algo contra a técnica de balé que se
ensinava naquela época no Rio de janeiro, que era e ainda é, em grande parte, pautada
numa compreensão rígida da verticalidade corporal, na qual deitar no chão era algo
impensável, em aula ou no palco, no máximo se fazia uma reverência, um abrir de
pernas e só. Sobre o trabalho na escola da Tatiana Leskova, Vianna comenta “Foi muito
bom, ela me deixava usar o meu trabalho. Às vezes ela via que eu tirava o sapato das
meninas, ela reclamava, mas deixava. Eu tirava porque eu tinha que trabalhar o pé delas
e o ballet naquela época não era concebido sem sapatilhas” (2016, p. 277).

Em 1966, os Vianna já estavam mais estabelecidos no Rio de Janeiro, Angel


dando aulas de dança e Klauss como diretor da escola de balé do Teatro Municipal do
Rio de Janeiro. Em 1973, as argentinas Patrícia Stokoe e Lola Brikman visitam o Rio de
Janeiro para dar aulas de expressão corporal num simpósio no Conservatório Brasileiro
de Música, onde Angel também dava aulas. Os professores, entre eles Angel, são
convidados para participar desse curso teórico-prático. Lola pede para assistir uma aula
de Angel na Escola Tatiana Leskova e fica impressionada com a qualidade do trabalho.
Diz que se parece com a pesquisa de Gerda Alexander. Angel, que não conhecia a
Eutonia, se interessa pelo trabalho de Gerda e fica sabendo do Curso de Verão que é
realizado em Talloires, cidade do sul da França. Ali se iniciaria uma relação muito
especial de Angel com a Eutonia e a própria Gerda Alexander.

50
Em junho do mesmo ano, Angel, Klauss e sua amiga Marilena Martins (Nena)
viajam à Europa e aos Estado Unidos utilizando o prêmio Molière, que Klauss havia
recebido em 1972. Durante a viagem, Angel e Klauss conhecem alguns dos criadores de
diferentes práticas de educação somática. Na França reencontram Gerda Alexander em
um curso de Eutonia. Depois viajam para Itália, Espanha e Inglaterra. Nos EUA, visitam
Nova Iorque e participam do Festival de Dança e Teatro de Connecticut. Conhecem de
perto o trabalho de vários coreógrafos, visitam o estúdio de Mercê Cunningham, Martha
Graham e fazem aulas no Stúdio Joseph Pilates, além de assistirem a diversos
espetáculos de dança e teatro.

Importante ressaltar que toda a técnica de Angel e Klauss começou a ser


desenvolvida antes deles conhecerem a Eutonia. Ao experimentar as aulas de Eutonia,
Angel descobre uma prática realmente parecida com o que ela já pensava, pesquisava e
praticava no Brasil, porém com algumas diferenças. O objetivo geral de ambas, segundo
a bailarina, era o mesmo: o aprofundamento da consciência corporal, mas para Gerda
não fazia diferença se a pessoa iria andar na rua ou dançar. Para Angel isso faz
diferença, pois para ela a dança é um instrumento de conscientização, é o meio mais
próprio de sensibilizar o corpo e intensificar a expressividade corporal. Angel reconhece
no intenso e fluido movimento dançado uma potência de conscientização e de liberdade.
O tema da conscientização é fundamental para as discussões que faremos
posteriormente a partir do diálogo com Merleau-Ponty e a Gestalt-Terapia que estamos
propondo neste trabalho.

Angel Vianna só vai fundar sua escola no Rio de Janeiro, na época nomeada de
Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educação – CEPCAE, no ano de 1975 juntamente
com Klauss Vianna e Tereza d'Aquino, na Rua Góes Monteiro, em Botafogo. Esta
escola ficou conhecida como o “Corredor Cultural do Rio de Janeiro”, por onde
passavam os principais artistas e intelectuais cariocas. O espaço atraía profissionais de
diversas áreas, promovendo uma troca constante e interdisciplinar. A proposta do
Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educação foi pioneira nas pesquisas de linguagem
do corpo. Para Angel Vianna, a escola foi fruto da necessidade de um local mais claro
de expressão corporal e de sua busca constante em realizar o trabalho em que
acreditava. Ela se encarregava das aulas de Consciência Corporal e Klauss Vianna
ministrava as de Dança Moderna, enquanto Tereza d'Aquino, as de Balé Clássico.
51
Segundo Jussara Miller (2007) o CEPCAE também era dedicado a dirigir o Grupo
Teatro do Movimento, criado por ela e Klauss em 1976.

Já em 1970, percebendo o interesse da classe teatral na chamada "Expressão


Corporal", Angel abre uma turma para atores no Estúdio de Tatiana Leskova. E ainda
neste ano, com o patrocínio da Secretaria de Educação e Cultura do Mato Grosso realiza
o curso II Tempo de Teatro – Vivência Corporal, na cidade de Cuiabá, difundindo o
trabalho sobre o corpo do ator. A partir de então Angel recebe inúmeros convites para
dar aulas com temas ligados a conscientização do movimento e “Expressão Corporal”.

A partir de então, os Vianna puderam trabalhar sua compreensão do corpo na


arte em montagens memoráveis do teatro brasileiro. O Grupo Teatro do Movimento foi
criado com o intuito não apenas de divulgar o trabalho realizado no Centro de Pesquisa
Corporal Arte e Educação, como também dar continuidade à pesquisa em dança iniciada
em Belo Horizonte com o Ballet Klauss Vianna (1959-1962). (FREIRE, A, V., 2005;
MAGALHÃES, M., C., 2010; SALDANHA, S., 2009)

O Grupo Teatro do Movimento buscava trabalhar na interface da dança e do


teatro, diluindo as fronteiras entres as artes. Pode ser considerado um precursor da
dança contemporânea carioca, por compreender a dança como um trabalho processual e
não simplesmente uma coreografia formatada a partir de passos pré-determinados.
Como processo de criação coreográfica, o Grupo partia da improvisação e da criação
individual de seus participantes, “no que Angel chama de bailarino pensante e atuante:
aquele que, através do improviso e da criação, diga com o corpo o que tem a transmitir”
(POLO apud RIBEIRO et al: 2010). O coreógrafo tinha o papel de estimular os
bailarinos a criar e, posteriormente, selecionar as melhores cenas, em uma dissolução da
velha hierarquia entre esses profissionais. O Grupo Teatro do Movimento, desfeito em
1979, também rompia com os padrões da dança clássica, acolhendo corpos distintos, ao
invés do corpo de baile tradicionalmente homogêneo. A proposta era possibilitar a
dança de cada um, potencializando a expressão mais singular de cada corpo
(TEIXEIRA, L., 2008).

Em 1980 Klauss e Angel se separam, e em 1983 Angel transfere sua escola, com
a ajuda de Rainer Vianna e Neide Neves para o endereço atual, também em Botafogo.
Neste mesmo ano foi aberto o curso profissionalizante de Dança Contemporânea, em

52
nível de 2º grau, conhecido atualmente como Curso Técnico de Formação em Bailarino
Contemporâneo. E desde a conquista da autorização do Ministério de Educação e
Cultura (MEC) em 2001, a Escola passou a se chamar Escola e Faculdade Angel Vianna
(EFAV).

Em 1992 aos 62 anos, Klauss morre de problemas no coração e deixa uma


grande lacuna nas pesquisas e práticas pioneiras no cenário artístico brasileiro.Três anos
depois em 1995, no Rio de Janeiro, morre, aos 37 anos, Rainer Vianna, bailarino,
coreógrafo, professor e investigador do corpo e da dança. O início da década de 1990
foi um período muito difícil para Angel que, após a morte do filho fica afastada do
trabalho por um ano. Em São Paulo, a Escola Klauss Vianna, inaugurada em 1992, é
fechada. Neste período, Angel sofre uma queda, quebra a perna e passa por uma cirurgia
delicada. A reabilitação da operação é feita por fisioterapeutas e pela terapeuta corporal
Nereida Fontes Vilela. É o momento de aplicar em si mesma os conhecimentos
adquiridos ao longo de sua vida.

Em 1998, acontece o lançamento do livro “Conscientização do movimento: uma


prática corporal”, de Letícia Teixeira, publicado pela Editora Caioá, de São Paulo. Esta
foi a primeira publicação em livro de uma abordagem teórica e prática da consciência
do movimento tal qual foi desenvolvida por Angel Vianna ao longo de seus mais de
vinte anos de atividades no Brasil como professora.

Nos anos 2000, o trabalho de Klauss e Angel Vianna é tema de diversos


trabalhos acadêmicos que foram publicados em livro, entre eles “A Escuta do Corpo:
sistematização da Técnica Klauss Vianna”, de Jussara Miller, “Klauss Vianna, do
coreografo ao diretor”, de Joana Ribeiro, “Klauss Vianna, estudos para uma dramaturgia
corporal”, de Neide Neves, “Angel Vianna: a pedagoga do corpo”, de Enamar Ramos,
“Angel Vianna, uma biografia da dança contemporânea”, de Ana Vitória Freire, entre
outros.

No ano de 2005, a Faculdade Angel Vianna inicia uma parceria com a UFBA e
lança a pós-graduação Lato Sensu em “Estudos Contemporâneos em Dança”. O
primeiro curso de pós-graduação aberto em 2007 na EFAV foi o de “Terapia através do
Movimento e Estética do Movimento” devido à inquietude dos muitos psicólogos que
buscaram a EFAV interessados na abordagem da instituição acerca da questão do

53
dualismo corpo-mente. Esse é o curso de pós-graduação que mais solicita a abertura de
turmas da instituição, já tendo 11 anos de atividade. Em 2009, a Faculdade Angel
Vianna amplia a gama de cursos oferecendo a pós-graduação de “Preparador Corporal
nas Artes Cênicas” por conta do trabalho diferencial que os Vianna trouxeram para a
formação de atores no Brasil13. E em 2010, abre os cursos de pós-graduação em
“Metodologia Angel Vianna”, “Sistema Laban/Bartenieff” e “Corpo, Diferenças e
Educação”. Todos esses cursos de pós-graduações foram especificando e aprimorando o
leque de possibilidades práticas que Angel abriu sobre o uso da sua metodologia. Angel
Vianna até hoje, aos 90, continua incansável em sua paixão e comprometimento com a
ampliação e o refinamento do ensino da dança: “Lá no Rio de Janeiro eu abri o curso
técnico, depois a faculdade e agora já temos cinco pós-graduações. E agora, como a
nota da CAPES foi boa, eu quero dar entrada no pedido do Mestrado. Porque não tem
mestrado em dança, a não ser na Bahia” (2016, p. 278).

No mesmo ano da separação dos pais, Rainer Vianna casa-se no Rio de Janeiro
com Neide Neves14, uma das alunas de Klauss. Juntos iniciaram o trabalho de
sistematização da TKV em 1984, posto que Klauss não tinha interesse em escrever
sobre sua pesquisa. A autobiografia escrita por ele em 1990 e reeditada em 2005,
chamada “A Dança”, só se realizou através de muito incentivo e insistência de alunos,
do filho, de parceiros diversos, etc., e acabou sendo escrita em parceria com outro
autor.Angel Vianna não escreveu livros, mas anotou e guardou bastante material ao
longo dos vários anos de sua vida e percurso profissional com Klauss. Segundo os

13 Naquela época, a formação de atores trabalhava bastante a expressão verbal, mas não trabalhava a
expressão corporal dos atores. Esse trabalho de expressão corporal desenvolvido pelos Vianna foi um
fator importante agregado nas atuais formações de teatro do país.
14
Neide Neves, graduada em Letras – Português-Francês, pela PUC-RJ e Doutora em Comunicação e
Semiótica, na área de concentração Signo e Significação nas Mídias, pela PUC-SP, foi aluna de Klauss,
Angel e Rainer Vianna durante 13 anos. Participou com Rainer da organização didática, iniciada na
década de 1980, do que se denomina Técnica Klauss Vianna desde 1992, ano de abertura da Escola
Klauss Vianna, em São Paulo. Ligada à Escola Vianna de pensamento sobre o corpo, atua como
professora e pesquisadora na área de Corpo, Movimento e Dramaturgia Corporal, com atores e bailarinos.
Leciona no Curso de Comunicação das Artes do Corpo, na PUC-SP; no Curso Superior de Teatro e no
Curso de Dança, da Anhembi Morumbi-SP; no Curso de Pós-graduação em Terapia Através do
Movimento, da Faculdade Angel Vianna/RJ e ministra e coordena o Curso de Especialização na Técnica
Klauss Vianna, no COGEAE, PUC-SP. Disponível em: http://neideneves.art.br/site/?p=173

54
professores do curso técnico, ela tem o hábito de guardar papéis. Sua casa, comentam, é
como um museu de sua trajetória15.

Os autores que estudam a proposta corporal dos Vianna diferem em relação à


como se referir a sua obra. Uns chamam de Técnica Klauss Vianna (TKV), outros de
Metodologia Angel Vianna (MAV). Em vista disso, esclareçamos que Angel e Klauss
construíram a pesquisa juntos. Quando, em 1988, o filho, a nora e a neta de Angel,
Tainá, então com cinco meses, mudam para São Paulo, Rainer e Neide desenvolvem
ainda mais o trabalho de Klauss e Angel com o propósito de fazer a sistematização
pedagógica com a denominação de “Técnica Klauss Vianna”.

Quanto à diferença de nomenclatura da obra de Angel, Klauss e Rainer Vianna


ressaltada pelos autores, neste trabalho vamos usar “Proposta Corporal dos Vianna”
(PCV) quando nos referirmos ao trabalho corporal inovador criado conjuntamente pelos
bailarinos. Consideramos que o trabalho dos Vianna produziu direções e princípios
comuns a ambas as vertentes posteriormente sistematizadas e chamadas atualmente de
Técnica Klauss Vianna (TKV) e Método Angel Vianna de Conscientização do
Movimento e Jogos corporais (MAV). Acreditamos que um dos motivos para que haja
diferença de nomenclatura seja o fato de alguns autores serem historicamente mais
ligados a Klauss e Rainer Vianna e outros mais ligados à Angel Vianna. O aspecto
geográfico também contribuiu para isso: em São Paulo usa-se TKV e no Rio de Janeiro
usa-se MAV.

Lembremos que entre as duas perspectivas, TKV e MAV, além de aspectos


comuns, também há diferenças e especificidades, porém nos concentraremos na MAV.
Empregarei o termo MAV especificamente nos casos em que falar sobre as
especificidades desta metodologia e quando me referir à minha experiência, pois é onde
me insiro e me norteio dentro deste campo de compreensão e prática do corpo.

15
Em dezembro de 2012 é lançado o Acervo Angel Vianna, publicado na Internet e distribuído em mídia
digital em bibliotecas públicas do Rio de Janeiro. O projeto, patrocinado pela Secretaria de Cultura da
Prefeitura do Rio de Janeiro, é resultado do trabalho de Angel Vianna, que durante toda a sua vida
guardou documentos, fotos e vídeos sobre sua carreira. O acervo envolveu o trabalho de pesquisadores
durante quase um ano para digitalizar, catalogar e editar todo o material e dar sentido ao website que
reúne e disponibiliza todos os documentos gratuitamente.

55
De acordo com Jussara Miller (2007), Rainer Vianna teve participação direta
tanto na transmissão da técnica quanto em sua aplicação. A sistematização foi uma
grande conquista, pois:

Não se trata, portanto, de aprisionar ou cristalizar o trabalho. Pelo contrário,


com uma sistematização, as bases tornam-se claras e firmes para poder
construir, transformar e pesquisar um caminho. É aí que se encontra o
movimento de uma pesquisa: explicar o trabalho, criando uma discussão
detalhada para mantê-lo vivo e presente para as próximas gerações (Miller, J.,
2007, p.24-25).

Manter este trabalho vivo implica em preservar o que já foi descoberto, pensado
e feito e, sobretudo, manter a abertura para que ele seja experimentado, praticado,
ampliado e ressignificado a partir do seu contato com as novas gerações, novos corpos
de novos tempos, assim como nos ensina Merleau-Ponty quando trabalha a noção de
tradição em seu texto “O filósofo e sua sombra” (1984).Ele nos apresenta a
compreensão de que ser parte de uma tradição seja filosófica ou prática não significa
insistir no já afirmado e conhecido, mas é antes “esquecimento das origens” (p. 239),
isto é, “se quisermos reencontrar o pensamento e a obra, e se quisermos ser fiéis a eles,
só nos resta um caminho: pensar de novo” (p. 242).

Para o filósofo, honrar a tradição da qual pertence, iniciada por Husserl, não
significa continuar afirmando as ideias de seu antecessor, mas partir delas para
“formular – por nossa própria conta e risco – o impensado que acreditamos adivinhar
nelas” (p. 246). O filósofo francês nos convida a compreender a noção de tradição como
um movimento de retomada e avanço; partir do dito e pensar no não-dito criando uma
nova maneira de compreensão do dito e manter a tradição viva, ou seja, contribuindo
para que ela esteja sempre em movimento, se transformando e enriquecendo.

Angel Vianna mantém viva uma tradição de práticas corporais ao abrir um leque
de possibilidades de utilização e compreensão de sua metodologia. Ela nunca definiu
sua prática. Rainer Vianna e Neide Neves, ao escreverem sobre a proposta corporal dos
Vianna, criaram uma ordem de aplicação da técnica que a própria Angel não segue à
risca. Ela trabalha com essa ordem, mas de uma forma aberta e orgânica, tomando a
liberdade de rearranjá-la de acordo com o tema da aula, do curso e com o perfil dos
alunos ou dos profissionais com quem vai trabalhar, dentre outros aspectos. Não é que
56
não exista um planejamento das aulas, entretanto sempre se resguardam aberturas para
que o método flua e se adapte ao que se apresenta.

Nesse sentido, se produziram inúmeras teses sobre seu trabalho em várias áreas
de conhecimentos afins. Como exemplo, podemos citar o caso de uma designer de
cadeiras que fez o curso técnico da EFAV com o intuito de pesquisar a ergonometria
ideal para um corpo que se move. Em conversa com a atual coordenadora da EFAV,
Márcia Feijó, foi uma escolha da própria Angel resguardar uma abertura na maneira
como ela e sua instituição apresentam e transmitem seu pensamento e metodologia, o
que é uma das singularidades de sua obra. Justamente essa abertura é o que permite à
metodologia uma certa “fertilidade”, no sentido de que quem quer que se aproxime
desse método se sinta seguro e à vontade para apropriar-se dela, isto é, de forma a se
permitir um verdadeiro encontro de si com a metodologia e com as questões que
envolvem o corpo; que desses encontros possam surgir modos singulares e
significativos de aplicação da metodologia em seus imperativos existenciais.

A reflexão sobre a metodologia de Angel Vianna e a necessidade de se definir


com mais profundidade o sentido do que o termo “método” significa nesta perspectiva
singular de trabalho corporal, já foi muito discutido dentre os pesquisadores, teóricos,
artistas e pensadores do corpo. Segundo conversas informais na EFAV, soubemos que
por uma década (entre os anos 2000 e 2010, aproximadamente) muito se debatia e
discutia sobre o assunto em encontros, seminários, congressos, salas de aula da
instituição e fora dela, no universo da dança nacional. Decorrente desses encontros foi
produzido, pela Funarte em 2009, um livro chamado “Angel Vianna: Sistema, método
ou técnica?”, organizado pela Suzana Saldanha16 onde encontramos reunidas as vozes

16
Suzana Saldanha é professora de interpretação, improvisação, teatro-dança e atriz, com uma vida
dedicada ao teatro e a educação, com extenso currículo profissional. Graduada em Direção Teatral e
Licenciatura em Educação Dramática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS e Mestre
em Teatro-Educação pela Université Paris VIII- Vincennes. É natural do Estado do Rio Grande do Sul, da
cidade de Porto Alegre. Seu primeiro encontro com Angel, aconteceu na Calle Monroe em Buenos Aires,
onde se encontrava para um mergulho na dança e na consciência pelo movimento, participando de um
trabalho corporal de sensibilização conduzido por Angel, a partir daí, ao longo de seu trajeto profissional,
reencontraram-se diversas vezes, em permanente troca de conhecimentos e afetos. Ministrou durante
muitos anos a disciplina de Expressão Teatral e Dança na Faculdade Angel Vianna. Organizou e publicou
o livro Angel Vianna: Sistema, método ou técnica, FUNARTE, Rio de Janeiro 2009.

57
de diversos autores em torno dessa temática. Exploraremos, agora, algumas dessas
vozes para esclarecermos melhor tal questão.

A própria Angel Vianna, a respeito do uso de sua metodologia, comenta:

O bom de mostrar as etapas do meu trabalho é que fica tudo bem claro. O
‘como utilizá-lo’ vai ficar a cargo de cada um! Os bailarinos vão dançar, os
professores vão ensinar e os terapeutas corporais vão aliviar as dores. Agora,
se quiserem dançar, ser professores e terapeutas de corpo também podem,
vai! O que eu não suporto é esse ‘mexidinho’, que ás vezes fazem com o meu
trabalho! (SALDANHA, S., 2009, p.17)

Bruno Lara Resende (2009b) comenta que qualquer espécie de pesquisa ou


investigação, seja na filosofia, nas artes ou na ciência, necessita de um método, pois é
ele que permite a constituição do objeto de pesquisa e assegura a formulação das
questões pertinentes de modo a orientar o processo criativo. O método, segundo o autor,
“pode ser um conjunto coerente de regras e princípios ou fruto da intuição – e não é à
toa que Bergson fez da intuição o método” (op.cit. p. 24). Ele ainda opina que no caso
da MAV a técnica resume-se em ensinar alguém a percorrer um caminho investigativo
sobre si mesmo; ela é um aglomerado de procedimentos capazes de ensinar alguém a
valer-se do método. Isto significa que o knowhowtorna-se a descrição de um método a
ser apropriado por cada um. Emprega-se um método de investigação cujo resultado é a
formulação de um método a ser ensinado que pode adquirir complexidade e caráter
unitário merecendo o direito de ser considerado um sistema. Resende, B. L. (2009b)
deixa em aberto se a metodologia de Angel é, de fato, um sistema:

O que sei, Suzana, é que Angel soprou nos nossos corpos um novo espírito e
teve papel decisivo no processo de transformação do pensamento sobre o
corpo no Brasil. Não há mais corpo, muito menos modelo de corpo; existem
corpos, unidos em suas múltiplas individualidades apenas por suas
manifestações afetivas. Angel acolheu e abençoou a beleza dos corpos na sua
infinita diversidade, restitui-lhes a alegria do movimento livre e os ensinou a
dança da singularidade expressiva (RESENDE, B. L., 2009b, p. 25)

Acrescentemos ao que disse Bruno Lara Resende que isto pode estar ligado ao
que Merleau-Ponty e Laura Perls chamam de ‘estilo’. A dança, observemos, existe
independente do dançarino, mas cada dançarino, a seu modo, diversifica o sentido do

58
dançar, e ele o faz com sua expressão, o que envolve seu pensamento, seu movimento e
sua emoção: todo o seu ser.

Helena Katz (2009c), argumenta que a separação entre técnica e método não se
sustenta quando se conhece como o corpo funciona e que quando isso se transforma em
tema, passa a ser trabalhado, a princípio e na maioria das vezes, dentro de uma
compreensão dicotômica entre pensar e fazer. Técnica, para o senso comum, é
designada segundo a autora, como “uma atividade prática, associada ao aprimoramento
de alguma habilidade do corpo que, de imediato, é tratada como uma atividade
mecânica, a ser repetida e sem associação com a vida mental” (op. Cit. p. 26). Vale
lembrar que essa perspectiva ordinária compreende corpo separado do pensamento,
teoria de prática e ignora que toda atividade de capacitação sempre envolve o
componente cultural; natureza e cultura não são instâncias apartadas uma da outra, pelo
contrário, estão em constante relação, se co-transformando.

Sabe-se que o cérebro dos nossos ancestrais ficou maior quando seus braços e
mãos foram liberados para outros tipos de atividade, pela conquista da
bipedia. Com uma maior capacidade cerebral, foram tornando-se capazes de
segurar coisas com as mãos, de fabricá-las e de identifica-las. Os usos da mão
se relacionam com a modificação de sua estrutura, a longo do tempo, e com o
aumento do cérebro a ela correlacionado, que permitiu o desenvolvimento de
novas habilidades. Entender que na nossa história evolutiva é a relação
corpo-ambiente que promove a transformação tanto do corpo como do
ambiente nos permite ligar o que existe fora e dentro do corpo. Mais que isso,
pois nos leva a entender como o que está aparentemente fora se torna corpo
(KATZ, H. 2009c, p. 27)

Infelizmente, nem sempre as evidências científicas conseguem desarticular esta


visão dicotômica que ganhou tanta estabilidade e popularidade fazendo com que a
separação entre as atividades atribuídas ao corpo (desenhar, bordar, pedalar, dançar,
etc.) e outras, atribuídas ao pensamento (escrever, estudar, discursar, construir cidades,
etc.), se mantenham. Isso faz com que se compreenda a técnica como conjunto de
saberes prontos e disponíveis para reprodução por imitação e, em se tratando de dança,
como instruções na forma de passos de dança, cristalizados em uma “forma perfeita”,
além de estarem organizados sequencialmente, do mais fácil ao mais difícil. Ora, quem
desejasse dançar deveria aproximar-se deles até ser capaz de executá-los com absoluta
59
perfeição. Angel e Klauss não compartilhavam desta visão tradicional do balé clássico e
da dança em geral, o que serviu de impulso para suas pesquisas em busca de uma outra
possibilidade do dançar.

Katz (2009c) coloca que, do lado oposto da compreensão dual da técnica, estaria
o método. Este é tradicionalmente visto, na dança, como um conjunto de instruções
mais abertas que não parte do passo já existente e desejado em uma forma definida; o
método permite que o corpo esteja mais livre e apto a descobrir seu modo de fazer o
movimento proposto permitindo e incentivando a capacidade criativa dos bailarinos. A
proposta corporal dos Vianna, o trabalho de Feldenkrais, ou mesmo de Rudolf von
Laban, por exemplo, se encaixariam neste segmento: o método. Entretanto, frisa a
autora, se partirmos desse pensamento, onde método e técnica se apoiam na distinção do
modo como o corpo executo os movimentos – sem um modelo pronto ou a partir de um
modelo pronto, respectivamente – ainda estaríamos operando segundo uma visão
dualista e separativa entre as duas definições. Seria mais interessante reformularmos a
questão inicial e refletirmos: não estaria a diferença entre técnica e método na
particularidade das suas situações temporais e não em relação ao uso ou não-uso do
passo? “A proposta aqui é a de que se possa reconhecer como passo todo e qualquer
movimento que se desenha ao longo do tempo (no espaço), qualquer movimento cuja a
sua forma de ser realizado ganha estabilidade e passa a ser reconhecida na sua
singularidade” (op. Cit. p. 28).

Apesar de, muitas vezes, não ser evidente para o sujeito, sentimento e
pensamento estão unidos em qualquer tipo de fazer. E, a forma através da qual esse
fazer se apresenta, na situação em questão, sempre envolve o entrelaçamento: percepção
(sentir), consciência (presença) e cognição (pensamento). Podemos compreender corpo
como algo em constante transformação e interdependência com o ambiente por onde
transita. Por esta via de pensamento, podemos enxergar os passos de dança não só como
formalizadores de ideias acerca do mundo, mas também como unidades criadoras e
articuladoras de diferentes discursos, ou seja, sem mudarmos a forma de um passo
criamos obras distintas e a repetição conduz a um processo de seleção da melhor forma
que cada corpo encontra para lidar com o movimento. Todo fazer produz um saber
prático que ganha forma no/como corpo e todas as formas se colocam de acordo com
princípios gerais que regem a relação corpo-movimento, apresentados ou não como
60
passos codificados de dança, inclusive o movimento que não começa copiando um
passo existente.

Um certo modo específico de se mexer acaba por particularizar-se por meio


das ações praticadas pelo corpo. Princípios gerais são mais estáveis, mas
também estão no eixo do tempo, e em ritmo mais lento, vão transformando-
se, à medida em que o corpo vai repetindo as suas práticas, os seus
experimentos (KATZ, H., 2009c, p. 30).

Klauss Vianna (2005), afirma que na repetição, consciente e sensível é que o


gesto amadurece e passa a ser próprio. Para ele, não se pode dar saltos – existe o dia, a
noite, a semana, o mês, o ano; não temos como suprimir o tempo, sobretudo o tempo
interno do corpo, e que a importância da relação com o tempo diz respeito ao
aprendizado, pois todo aprendizado exige tempo. Nesse sentido, afirmaKlaus, a arte é,
antes de tudo, um gesto de vida. Na proposta corporal dos Vianna, já não há mais
preocupação em seguir uma técnica; passamos da qualidade do “eu danço” para a
experiência presente e pulsante do “sou dança”. Para dominar uma técnica de dança é
preciso incorporá-la inteiramente, enfatiza Vianna, só assim o movimento flui com
naturalidade e o bailarino dança como respira.

Para Katz (2009c), Angel e Klauss Vianna dedicaram-se a explorar os princípios


gerais do movimento priorizando o sujeito, no sentido de que convém a cada um de nós
empreender a aventura de descobrir os saberes do corpo. Interessados na dança que cada
corpo é capaz de realizar, os Vianna, segundo a autora, formularam os princípios gerais
que possibilitariam que isso viesse a acontecer e ambos Angel e Klauss, a seu modo,
chegaram aos ossos, articulações, contato, pele, tempo, peso, resistência, oposição,
espaço, apoios, observação, atenção, toque, presença e consciência. A pesquisadora
finaliza esclarecendo que o conhecimento da existência desses princípios gerais
favoreceria o corpo a melhor explorar o movimento, desimpedindo-o de possíveis
entraves que estivessem ou pudessem vir a impedir esse “conhece-te a ti mesmo”17.

17
Termo referente à maiêutica, método de perguntar, desenvolvido por Sócrates (470 a.C.), com a
finalidade de levar o homem ao conhecimento. Na maiêutica socrática, o professor interroga seus alunos
convidando-os a responder suas provocações com base em seus próprios saberes. Podemos dizer que

61
Jorge Albuquerque Vieira (2009a), afirma que encontramos no trabalho de
Angel Vianna os aspectos sistêmicos, metodológicos e técnicos, mas o que o domina e
valoriza é o seu valor sistêmico e de uma natureza ontológica, pois sua proposta
corporal parte de interrogações mais gerais e fundamentais acerca do ser humano: o que
é o corpo? O que é a dança? e etc. Para esse autor, o corpo é um sistema hipercomplexo,
nunca captado por uma só ciência ou prática. O mais indicado seria falar de sistema
Angel Vianna, pois do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, todo o trabalho
consiste na construção de um sofisticado sistema conceitual e de ações, que tenta
mapear ontologicamente o sistema corpo.

No caso da complexidade humana, vivemos muitas vezes em condições em


que há o acúmulo de restrições “desnecessárias” ou em excesso, o que nos
sobrecarrega também desnecessariamente em nosso dia a dia. O sistema
Angel Vianna visa liberar o corpo de tais restrições, elaborando assim uma
linguagem corporal, que se traduz intersemioticamente em toques, estímulos
aos sistemas musculares, esquelético, etc. Tal sistema pode assim explorar a
potencialidade corporal. (VIEIRA, J. A., 2009a, p. 35)

Nesse sentido, o caráter sistêmico do trabalho corporal em questão possui seu


lado metodológico ao visar fornecer mais graus de liberdade ao corpo humano, mas
sempre respeitando sua natureza relacional e, por fim, de acordo com Vieira (2009a),
tendo o sistema permitido a emergência de um método, este, em suas aplicações e
geração de hábitos, acarreta em uma técnica.

Observamos que, ambos os autores (RESENDE, B.L., 2009b; KATZ, H., 2009c;
VIEIRA, J. A., 2009a) partem do entendimento de que não se deve encarar as
terminologias método e técnica levianamente, calcadas na visão dualista tradicional que
divide o campo do conhecimento entre teoria e prática, pensamento e ação, e cinde o
sujeito em corpo e mente. Mas todos sinalizam que a compreensão de sujeito com a
qual os Vianna trabalham se baseia no paradigma da complexidade, reconhecendo o
caráter múltiplo, fenomenal, diverso e dinâmico da existência humana que não pode ser

Angel e Klauss fizeram de suas instruções uma pedagogia maiêutica, levando cada um a encontrar suas
respostas no e com seu próprio corpo.

62
simplificada e, por isso, exige uma técnica ou metodologia ou mesmo sistema de
trabalho corporal que dialogue e funcione em sintonia com esta perspectiva.

Desse modo, destacamos que Angel coloca no centro do seu trabalho o corpo do
aluno, ou bailarino, ou artista que aparece requisitando seu fazer-saber, isso faz com que
em um olhar e observação da particularidade daquele corpo, a bailarina-pesquisadora
reformule e rearranje todo seu conhecimento adquirido de anos de prática em uma
maneira singular de acolher esse aluno/bailarino/artista e transmitir as informações, de
modo que, mais se aproxime e faça sentido para o que ela intui, sabiamente, que aquele
corpo precisa. Esse “como fazer”, acreditamos, é um ponto importante para se pensar no
aspecto terapêutico que a proposta corporal dos Vianna e, principalmente o MAV pode
oferecer.

Klauss Vianna era inclusivo e tinha um pensamento aberto assim como Angel,
mas a maioria de seus alunos eram artistas e bailarinos, o que contribuiu para que o foco
da sua pesquisa corporal se voltasse para a comunidade artística. Angel, além de
trabalhar com atores e bailarinos, se preocupou em ter um olhar voltado também para as
pessoas não vinculadas ao meio artístico. Nessa direção, podemos citar seu trabalho
com cadeirantes, pessoas com necessidades especiais e na área da saúde mental.
Podemos lembrar o trabalho que Angel Vianna desenvolveu em parceria com a Nise da
Silveira, no IMNS, na década de 1950. Lá ela dava aulas de Dança e Conscientização
Corporal, trabalhava com as questões da deficiência física e da saúde mental. Sobre a
importância do trabalho com a dança e a recuperação motora, Angel Vianna esclarece:

Tem uma coisa que eu gosto que é o trabalho de recuperação motora. Nós
temos essa parte no curso técnico na escola Angel Vianna e existem muitos
alunos que estão no Rede Sarah18, que fizeram dança e se especializaram
nesse tipo de trabalho. Em Belo Horizonte, na época que eu tive a escola,

18
O Centro Internacional SARAH de Neurorreabilitação e Neurociências, inaugurado em maio de 2009,
está localizado na Barra da Tijuca e admite adultos e crianças portadores de lesões congênitas, ou
adquiridas, do sistema nervoso central e periférico. O tratamento proposto inclui o acompanhamento do
processo de reabilitação do paciente e a orientação aos familiares, considerando as particularidades de
cada caso. Os primeiros alunos da Escola Angel Vianna que trabalharam na Rede do SARAH, que Angel
cita entraram na filial de Brasília. Só posteriormente a filial da Barra da Tijuca também acolheu e
valorizou o trabalho desses profissionais. Disponível em: http://www.sarah.br/a-rede-sarah/nossas-
unidades/unidade-rio/

63
vieram duas ou três pessoas me procurar com dificuldades motoras e eu não
disse não. Comecei a ajudar. Uma delas tinha síndrome de Down, hoje todo
mundo conhece esse problema, mas naquela época não era assim. Eu sou
uma das poucas que trabalha com deficiência. Eu estou com uma menina que
eu acho fantástica, ela (...) fez o técnico comigo, a Maria Alice Poppe19. E
essa menina se formou e achou importante mostrar esse trabalho para o
diretor do hospital Sarah. Mas o Sarah depois fez concurso para esse tipo de
profissional e só da minha escola passaram sete alunos. É um trabalho de
recuperação motora através da dança. Eu também era muito chamada para ir
ao Engenho de Dentro, no Instituto Nise da Silveira, eu trabalhava com os
‘doidinhos’ e muitos médicos queriam assistir as minhas aulas lá.Lá na
escola, nós fizemos um lugar especial para as aulas para deficientes, um lugar
plano, porque a escola é muito vertical” (2016, p. 279).

Desde a Escola Klauss Vianna, na década de 1950, em Belo Horizonte,


começaram a aparecer nas aulas de Angel pessoas com algum tipo de comprometimento
físico, recebidas e acolhidas por ela para o aprendizado em dança. Motivada por este
histórico, em 1991, a EAV abre o “Curso Técnico em Recuperação Motora e Terapia
através da Dança”, e começa um extenso trabalho na área da reabilitação do movimento
através da dança. A ideia desse curso veio a partir do desejo de alguns alunos que se
conectaram com a maneira acolhedora com a qual Angel ministrava suas aulas
recebendo todos os tipos de corpos. Ela parte sempre do pensamento que uma aula de
corpo só é boa se for para todos, o professor precisa saber lidar com todos os tipos de
corpos. É nesse sentido que Angel usa a dança como veículo de conscientização
corporal, como meio de se acessar a corporeidade.

A dança é diferente das práticas de educação somática, pois além de oferecer o


exercício de apropriação desse interno do corpo, do aprofundamento do conhecimento
corporal, também oferece a possibilidade de se exercitar o ímpeto criativo, dimensão
primordial de todos os corpos, de todos os seres vivos. Vianna comenta que a arte “é o
grande poder do ser humano, é a capacidade de fazer algo, é o momento de criação. E
eu falo para os alunos: não existe quem não seja capaz de criar, é só acreditar e ter

19
Maria Alice Poppe é bailarina, formada em balé clássico, dança moderna e contemporânea e graduada
em Licenciatura Plena em Dança pela Faculdade Angel Vianna.

64
coragem. Não pode ficar sentado esperando, eu não esperei ninguém me ajudar, se eu
tivesse esperado nada iria acontecer” (2016, p. 275).

A importância da criação que Angel Vianna enfatiza em seu trabalho corporal


dialoga com a noção merleau-pontyana de praktognosia, conhecimento prático que,a
posteriori pode ser amadurecido e trabalhado reflexivamente pelo sujeito e vir a ser um
conhecimento teórico. Merleau-Ponty (2011) afirma que não há como desvincular o
saber formal, intelectual, racional, esclarecido (no sentido de claro a consciência) do
saber sensível, não-consciente, que advém do nosso contato corporal com o mundo
através de nossos sentidos físicos. Essa passagem do saber prático, sensível e pré-
reflexivo para um saber formal, da ordem do pensamento exige uma ação criativa, um
movimentar-se criativamente. Esse movimento, para o filósofo e para a bailarina é
sempre da ordem do corpo, pois corpo e pensamento são inseparáveis.

Acompanhando essa visão, na MAV, a dança é instrumento de conscientização


corporal, isto é, um meio de conhecimento da corporeidade e a dimensão criativa é
fundamental, pois o conhecimento da corporeidade se dá através do exercício criativo.
Criando novas movimentações conhecemos nosso corpo.

Vieira (2003) comenta que é comum a arte não ser considerada como forma de
conhecimento e, menos ainda, como conhecimento científico, mas para o autor, “a arte é
uma forma sofisticada de conhecimento, possivelmente anterior ao que podemos
chamar de conhecimento racional e discursivo” (2003, p. 244) e deve-se insistir na
possibilidade da dança “poder ser estudada de uma forma científica (...) parece-nos, sem
sombra de dúvida, que arte e ciência partilham um núcleo comum, apoiado no que
chamamos usualmente ato de criação” (op. Cit.).

2.2 Sentindo de perto: Os elementos que compõem o Método Angel Vianna

A partir do extrato de uma entrevista com Angel Vianna, podemos destacar alguns
pontos fundamentais dos elementos da MAV.
– E o seu trabalho Angel?

– Eu fui fazendo, pesquisando, descobrindo. Nem pensava em


registrar nada, mas sempre tive muita gente boa por perto, que me
65
questionava, escrevia as minhas aulas, me entrevistava e eu sempre
falando, falando...

– Quais são as etapas do seu trabalho?, pergunto. Angel me


interrompe
e começa a falar forte, com uma convicção de quem realmente
sabe o que faz.

– Olha:
1. A primeira coisa é a observação. A visualização, a memorização
do eu, do outro, do espaço (ambiente).
2. Depois vêm os apoios (“no início dou muita ênfase nos apoios”)
a. Apoios: duros, moles, sem apoio.
b. A consciência dos apoios:
c. no chão
d. nos pés
e. nos ísquios
f. os apoios do corpo no cotidiano
3. A atenção – estar no aqui, no agora, no presente e acordado.
Vivo.
4. As articulações – explorá-las. Expandir os espaços, as dobras.
Pesquisar os movimentos do cotidiano.
5. O tempo – o tempo de cada aluno. É muito importante respeitar
o tempo do aluno. O início, o desenvolvimento e o fim de cada
um.
6. Os cinco sentidos – trabalhar com foco nos sentidos, despertar
os sentidos nos alunos. O ver e o ouvir são importantíssimos,
fundamentais para os atores, os bailarinos em cena.
7. A tridimensionalidade – trabalha com a frente, o lado e atrás. É
presente em todos nós, mas quem conhece bem são as crianças
quando giram.
8. A consciência corporal – é importante que o aluno tenha
consciência
do seu corpo, para poder “dialogar com o outro”.

- E como as pessoas recebem a sua aula?

- Sabe o que elas dizem?

- Eu adoro suas aulas, mas nem é o que você faz, e sim o que
você diz.

- Adoram quando eu falo da organização do corpo e quando dou


tempo para eles se organizarem.
O professor deve começar lentamente dando as orientações
para os alunos. Não deve jogar palavras soltas no ar.
Desde que comecei, meu método é somático. Sempre quis que o
meu aluno tivesse consciência do que estava fazendo, conhecesse
o seu corpo, soubesse organizá-lo obedecendo ao seu tempo e tudo
isso em contato com o ambiente em que estivesse.
No meu trabalho uso a música, escultura, balé clássico, a
consciência do corpo e a expressão corporal.
Sempre fui procurada pelos diferentes: paraplégicos,
tetraplégicos, cegos, pessoas com deficiência visual...
E eu sem saber porque!

(Diálogo entre Suzana Saldanha e Angel Vianna. Grifo nosso. SALDANHA, S. 2009, p.
21-22)

66
A MAV não é específica para um corpo, mas ela é para todos. Encaramos a
MAV como uma proposta pedagógica aberta, ampla e inclusiva. Não foca num suposto
corpo criador, pois todos os corpos já o são. Mesmo aqueles que não tenham a intenção
de usar seus corpos com um objetivo artístico, acabam descobrindo e criando outras
linguagens e maneiras de se expressar, pois a proposta educativa da Angel passa pela
exploração e invenção de uma expressão própria. As aulas de MAV levam em conta um
espaço de descoberta, onde a pessoa experimente coisas novas para ela mesma.

As práticas de educação somática em geral enfocam sua metodologia no


autoconhecimento corporal. A MAV além de oferecer este espaço, também trabalha a
dimensão criativa do corpo; trabalha com a imaginação e com o lúdico, que são alguns
dos aspectos que a diferencia das outras práticas de educação somáticas. Estas têm
como objetivo o aprofundamento do conhecimento da estrutura física do corpo e um
refinamento da propriocepção. A MAV compartilha deste objetivo e acrescenta ainda
outro propósito: a expressão do corpo pela dança, performance, artes cênicas, plásticas,
dentre outras, pois os processos criativos, por mais simples que sejam, são a expressão
da singularidade própria de cada corpo.

Segundo Márcia Feijó, Angel falava de “expressão corporal” ou


“conscientização corporal”, mas com o tempo esses termos mostraram-se insuficientes
(para a própria Angel) para se referir ao trabalho de corpo que Angel Vianna estava
propondo, o que fez com que ela mudasse o nome de seu método para “Conscientização
do Movimento e Jogos Corporais”. Acreditamos que o motivo pelo qual a bailarina
mineira tenha optado por não mais usar as expressões “expressão corporal” e
“conscientização corporal” para se referir à sua metodologia esteja conectado com o
fato da MAV ter se tornado algo maior do que o sentido que tais expressões se referem.

Na época que Angel e Klauss começaram a trabalhar com o público do teatro


fazia sentido se referir aos seus trabalhos nesse ambiente como “expressão corporal”,
pois naquele momento o trabalho dos Vianna com os atores caminhava no sentido de
poder ajudá-los a compreender que o ato de atuar não se localiza apenas no rosto, na
voz, na expressão estritamente falada, mas também abarca o corpo como um todo. A
nomenclatura “expressão corporal” se referia a esse trabalho específico, o que para a

67
época foi uma proposta extremamente inovadora de compreensão e exercício da
interpretação teatral. Todavia, na medida em que a PCV e, principalmente a MAV
foram se ampliando para outros âmbitos de atuação (na própria área da dança e também
em outras áreas de saberes afins, como o das práticas de educação somática, as terapias
corporais, psicoterapias, dentre outros) o próprio método foi se transformando,
ampliando e se tornando mais complexo.

De maneira parecida, observamos que usar a expressão “conscientização


corporal” para denominar o trabalho dos Vianna fez sentido, acreditamos, no momento
em que os Vianna trabalhavam com o público predominantemente formado por alunos
de dança e bailarinos profissionais, pois na época eles viviam o desafio de repensar a
técnica do balé clássico e reinventar a maneira como se compreendia a dança e o corpo
dos dançarinos. Angel e Klauss Vianna quando começam a fazer aulas de balé ainda em
Belo Horizonte como já foi dito, percebem que a os professores de balé em geral se
concentram no virtuosismo do bailarino, na forma perfeita ou supostamente perfeita de
execução dos movimentos, mas não levam em consideração o corpo-bailarino, a sua
maneira particular de dançar.

Os Vianna começaram a questionar essa preocupação exacerbada com o


virtuosismo e com as formas perfeitas do corpo dos bailarinos e se perguntaram: de que
essas formas estão falando? Enxergaram que precisavam ampliar o campo de estudo
para além das técnicas de dança. Começaram observando como o corpo se estrutura, o
que os levou ao estudoda anatomia, fisiologia e cinésiologia humana, no sentido de
aprofundar a potência corporal de autoconhecimento. Ponderamos ser fundamental
marcar que apesar de alguns dos estudiosos da PCV (NEVES, 2008; MILLER, 2012;
KATZ, 2009c) em seus percursos de pesquisa terem iniciado e aprofundado o diálogo
com os saberes científicos, como por exemplo a neurociência, acreditamos que tais
diálogos não sejam centrais para a compreensão da PCV, pois eles partem de um
paradigma interpretativo que pouco se harmoniza com o sentido mais próprio do
trabalho corporal dos Vianna.

Pensamos que as articulações da MAV com as teorias científico-biológicas de


cunho epistemológico positivistas tiveram seu lugar num momento em que a novidade
do trabalho corporal de Klauss e Angel Vianna ainda estava muito pungente e havia

68
uma necessidade dos alunos-pesquisadores de entender mais a fundo do que se tratava.
O discurso científico teve um papel de validação e legitimação da MAV, como podemos
perceber, por exemplo na citação de Katz (2009c) destacada anteriormente neste
capítulo, onde a autora articula o desenvolvimento cerebral com a o desenvolvimento da
capacidade motora das espécies.

Entretanto para o referencial teórico-metodológico no qual nos encontramos


neste trabalho, compreendemos que isto não seja necessário, pois do ponto de vista
fenomenológico-existencial, o trabalho corporal dos Vianna prescinde de um olhar “de
fora”, da ciência, do cientista para ter seu valor e ser significativo e transformador. Na
citação da própria Angel Vianna, anterior à esta de Katz, ela comenta que gosta que as
etapas do seu trabalho fiquem claras para as pessoas poderem lançar mão delas e viver
suas próprias experiências transformadoras e significativas e, inclusive, a bailarina
afirma não gostar quando fazem um “mexidinho” com seu trabalho. Entendemos que
isto se refira ao que Angel mais prima: a apropriação corporal singular de cada um ao
entrar em contato com seu trabalho. Compreendemos que, para ela, uma das coisas mais
importantes são seus alunos se apropriarem de sua metodologia sendo capazes de se
transformar em protagonistas de seus próprios processos experiencial.

A técnica Klauss Vianna propõe a ação criativa imbricada na ação técnica, ou


melhor, o indivíduo em trabalho técnico está em ação investigativa de sua
relação com o próprio corpo, com o corpo do outro e com o ambiente/espaço,
com a sua percepção aguçada do momento presente para a criação de outro
momento/movimento. Por isso podemos falar de um “corpo em relação’, ou
seja, da atenção do corpo em relação ao todo, ao outro, ao espaço, ao
ambiente, numa rede de percepções (MILLER, 2012, p. 30)

Klauss e Angel Vianna também se atentaram para as contribuições que o contato


com outras linguagens artísticas poderia ter para uma ampliação da capacidade
perceptiva e de criação artística através da dança, da qual emerge o movimento e a
expressividade. A ação investigativa do bailarino/aluno/pessoa como ser-corpo é o que
se busca. Angel incentiva que os bailarinos não sejam apenas intérpretes desta ou
daquelatécnica de dança, mas que sejam intérpretes-criadores, que seus corpos
dialoguem sensível e experiencialmente com as diversas técnicas corporais em direção
ao refinamento de um estilo próprio de perceber, pensar e fazer dança, ou seja, um

69
desabrochar do corpo prenhe de sentido; expressividade do ser. Podemos relembrar as
aulas de escultura que Angel fez e como isso foi significativo para ela enquanto
pesquisadora, coreógrafa, professora e bailarina, como já foi comentado anteriormente.

Entretanto, na medida em que o MAV foi ganhando destaque e outros públicos


começaram a buscar esse trabalho, como por exemplo, pessoas com deficiências
motoras, psicólogos, cegos, dentre outros, novos desafios surgiram e novas descobertas
foram acontecendo e contribuindo para um melhor refinamento e amplificação dos
possíveis usos desta prática corporal.

O corpo tem uma memória muito aguçada, muito presente, registra tudo que
acontece na vida do indivíduo, e esse registro permanece para sempre. O
trabalho de Angel Vianna procura desvendar essa história por meio do
conhecimento do que acontece nesse corpo, com o intuito de não deixar que
essa memória o coloque dentro de um ‘envelope’, impedindo-o de sentir e de
ser expressivo. Por isso a prática foi chamada de Conscientização do
Movimento, por ser o modo pelo qual ela trabalha a expressividade. Angel
Vianna acrescentou a essa conscientização, para dar maior amplitude à
descoberta corporal, um trabalho que ela chama de Jogos Corporais. Nesse
trabalho, pelo relacionamento corporal entre um ou mais atores, aparecem
situações que levam à descoberta de posturas, movimentos, equilíbrios jamais
pensados, estimulados pelo companheiro, incentivando a criação por meio do
autoconhecimento. Assim o trabalho de Angel Vianna é por ela denominado
“Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. (Ramos,2007, p.24-25)

2.2.1 “Conscientização do Movimento”


Enamar Ramos (2007) ao explicitar as bases de conhecimentos que inspiraram
Angel a criar seu método, coloca o conhecimento anatômico-motor como carro chefe.
Os Vianna trabalham bastante com as direções ósseas. Angel, em sua metodologia,
desenha os ossos, ou seja, percorre o movimento corporal enfatizando e respeitando as
direções ósseas com o intuito de que por elas a musculatura mais profunda, de
sustentação, seja livremente movimentada sem que haja ativação muscular dos
músculos mais superficiais.

70
Acreditamos que é o jeito como a prática da dança é transmitida e a forma como
se ensina que faz a MAV ser tão relevante. Não basta ler nos livros como é a
metodologia e ir aplicando, pois há todo um “como” dar a aula, “como” trabalhar um
tema; tem um tom de voz, uma proposta conectada, um campo aberto de experiências
disponíveis que aprofunda o conhecimento dos alunos sobre eles mesmos, sobre seus
corpos cujas dimensões de vida abarcam pensamento, afeto, fala, expressão, história,
cultura e etc. Reconhece-se que em um bom trabalho de conscientização do movimento,
a pessoa que se experimenta, se sente confiante em se entregar. Ela vai tateando,
explorando e descobrindo delimitações, campos e contornos até então desconhecidos.
Não que tais delimitações, campos e contornos estivessem sempre lá “no interior” da
pessoa e ela as reencontrasse no trabalho com a MAV. Mas, para esta perspectiva,
descobrir e pesquisar é criar movimentações novas, é seguir a espiral contínua de
transformação corporal e elevá-la ao seu máximo.

Isso tem a ver com o cuidado com as singularidades corporais que Angel sempre
atentou. Nas aulas que vivenciei no curso técnico, os professores frequentemente
ressaltavam que eles não estavam interessados em transmitir uma técnica de dança de
forma perfeita. Estavam interessados especificamente no processo de cada um. Os
professores e, sobretudo a própria Angel, não têm interesse em saber se a pessoa vai
trabalhar o corpo e vai ser uma estrela da dança, mas querem saber se ela está aberta as
suas quebras de paradigma, se está aberta a se colocar em posição de sair de uma zona
de conforto e poder se (re)descobrir, se transformar. Essa perspectiva de compreensão
do ensino da dança e do trabalho corporal se aproxima da noção de “estilo” na
fenomenologia de Merleau-Ponty e na Gestalt-terapia.

Merleau-Ponty constrói sua obra em torno da teoria da expressão, nesta trabalha


com a perspectiva de dimensões da corporeidade (habitual e atual, universal e singular)
e surge a ideia de que cada pessoa tem um estilo de olhar para o mundo, um estilo
perceptivo, isto é, cada pessoa tem um modo como responde ao mundo, mas seu
entendimento de percepção não é algo que vem de dentro da pessoa, mas vem do
encontro da pessoa com o mundo, e o estilo particular vai sendo construído como
respostas aos apelos do mundo, o que se aproxima do conceito de singularidade.

71
Angel prima pela linguagem corporal. A linguagem do corpo é “a coisa”
primeira. Uma das propostas que a MAV valoriza é uma apropriação da sensibilidade
do corpo de tal maneira que possamos nos exprimir como corpo para além de uma
linguagem apenas falada, ou melhor, que as palavras ganhem mais vida com nossos
corpos. Que a “palavra” enquanto algo ligado a um pensamento reflexivo-categorial,
não seja a única detentora das experiências, das rotulações ou o único meio de
expressão. Essa questão do pensamento tem sido compreendida pela MAV de uma
forma mais ampliada; a dança é o pensamento do corpo. As dimensões de corpo e
pensamento não são separadas. Não precisamos subjugar a dimensão sensível-senciente
em prol de tudo que é racional, claro e consciente. Há uma diferença em se referir à
consciência como representação cognitiva ou como sensibilidade expressiva intrínseca à
corporeidade. O próprio pensamento é corpo, pois não é de todo representacional. O ato
de pensar se apoia na percepção e na sensibilidade corporal, antes de se configurar
como uma ideia clara. Pensamos que, se subtraímos esse primeiro momento do ato de
pensar, nossas ideias ficam empobrecidas, perdem corpo, perdem vivacidade. É como
tirar uma fruta do pé antes dela amadurecer e esperar que esteja doce, macia e viçosa.

Conscientização corporal, aqui, tem antes a ver com “presença”, com habitar o
corpo do que com tomar posse conscientemente e/ou mentalmente do seu corpo.
Colocando em suspensão o caminho do pensamento racional, lógico, a dança livre é o
exercício mesmo do corpo se havendo com toda a sua potência de ser e se descobrindo
no próprio movimento. Essa dança é diferente da dança de palco, pois sabemos que a
dança de palco corresponde a um caminho já percorrido e conhecido pelo bailarino.
Cabe perguntar: em que momento exercitamos a dança livre? Acreditamos que seja nas
aulas de corpo, no movimento pesquisador, espontâneo, na expressão livre de qualquer
pretensão.

Em conversa com Marcia Feijó, a coordenadora explica que no processo


pedagógico do MAV, uma tríade de momentos acontece durante o processo de
formação: no início do percurso começamos com o estudo da anatomia e da cinesiologia
corporal, momento que ela denomina de “estrutura conhecida consciente”. Ao longo do
processo somos sempre convidados a pesquisar praticamente o que cada estrutura
corporal estudada pode fazer em termos de movimentação, momento que Márcia chama
de “devaneio do devir não-consciente”. E, por fim, estudada uma determinada estrutura
72
corporal e feita a pesquisa de movimento a ela vinculada, a coordenadora comenta que a
partir daí podemos “criar linguagens” visitando os dois momentos (a estrutura
consciente e o devir não-consciente). Acreditamos que, ao comentar sobre a criação de
linguagens, Márcia Feijó esteja se referindo ao processo de expressão próprio de cada
indivíduo envolvido com determinado assunto ou tema corporal.

Como exemplo dos momentos descritos por Márcia Feijó, se estamos estudando
a articulação do joelho anatomicamente aprendemos que esta é uma articulação formada
pela parte superior da tíbia, a parte inferior do fêmur e a patela. Essa articulação é capaz
de executar somente movimentos de flexão e extensão, mas não de rotação. Isso seria o
primeiro momento a que Márcia se refere. Aprendemos sobre o assunto de forma
teórica, mas há uma camada de aprendizado sobre nossos joelhos que só podemos
acessar experimentando dobrá-los e esticá-los. Podemos dobrar e esticar de infinitas
maneiras, em várias posições diferentes, deitados, de pé, com uma perna no ar, etc. Aqui
se distingue o segundo momento apontado por Márcia Feijó.

Nessa exploração de movimentos, diferenciamos nuances de movimentações do


nosso joelho e podemos nos servir delas para criar uma sequência de movimentos com
os joelhos compondo uma pequena coreografia, o que seria uma terceira camada de
aprendizado e de descoberta de nossos corpos, no caso, nossos joelhos. Cada momento
do processo pedagógico de formação no MAV se complementam e interferem uns nos
outros de modo que, a cada vez que nos colocamos na tarefa de explorar nossos joelhos,
por exemplo, sempre há mais a aprender, descobrir e criar. Isso se deve, em parte, ao
fato de nossos corpos estarem sempre em transformação, então o aprendizado nunca se
esgota, nem as possibilidades de criação.

A exploração e pesquisa de movimentos é tão vasta que não se esgota nunca, nas
aulas de dança contemporânea que tínhamos na EAV, muitas vezes nos lançávamos no
mais primitivo dos aspectos de nossa movimentação, às vezes, nos sentíamos e nos
comportávamos como bichos, animais. Experiência essa que mais tarde foi discutida em
grupo e comentada pelo nosso professor, Frederico Paredes, como algo não trivial.
Dentro dos estudos da Biologia existe uma vertente chamada Filogenética que se
debruça sobre a questão do desenvolvimento motor das espécies ao longo da evolução.
Por exemplo, desde a motricidade da ameba até a motricidade dos seres humanos há

73
todo um estudo e um aprimoramento. Alguns estudiosos afirmam que existe essa
subdivisão do cérebro em três áreas motoras, o que chamam de cérebro tri-único:
reptiliano – anfíbio – mamífero.

Entretanto essa subdivisão do cérebro tri-único não é estanque, pelo contrário, ao


nos movermos, a ativação cerebral está constantemente percorrendo ambas as áreas e
nós a todo momento, de acordo com a situação motora em que nos encontramos, vamos
refazendo erenovando essas motricidades primárias, isto é, temos todas elas implícitas
em nós e podemos revisitá-las se quisermos. Somos capazes de refazer o todo do nosso
percurso motor de maneira muito potente nessa exploração. Através da dança e dos
jogos corporais é possível revisitar o modo de se movimentar da ameba, por exemplo, e
trazer todo um espectro disso para nossa motricidade refinada (KATZ, H., 2009c;
VIEIRA, J. A., 2009d).

Nessa área de pesquisa biológica, algumas vertentes teóricas afirmam que as


motricidades que foram surgindo ao longo do desenvolvimento das espécies foram se
acumulando e aprimorando, desde os peixes, anfíbios, répteis, mamíferos até os seres
humanos. O nosso corpo humano, por ser o mais complexo, tem a capacidade de poder
acessar todas essas possibilidades de locomoção. Por exemplo, o peixe tem uma
coordenação motora nomeada como coordenação global, pois para se locomover ele
ativa todo o seu corpo de uma vez só, o movimento motor começa na cabeça e vai até a
nadadeira para ele poder ir de um ponto ao outro em forma de zig-zag.

Se formos observar os anfíbios, o sapo, por exemplo, ele tem uma coordenação
motora dita coordenação homóloga, pois para ir de um ponto ao outro no espaço
primeiro ele ativa a parte superior de seu corpo, afastando-a do centro e depois a parte
inferior, trazendo-a para perto do centro, ou seja, ele divide seu corpo ao meio
horizontalmente na ativação do movimento, esse é o movimento de “pular”.
Observando os répteis, um lagarto, por exemplo, ele tem uma motricidade que
chamamos de coordenação homolateral, pois na ativação do movimento de locomoção,
há uma divisão do corpo ao meio de forma vertical, ou seja, primeiro um dos lados se
ativa (direito ou esquerdo) e depois o outro, “afastando-se” “recolhendo-se” do centro
do próprio corpo, esse é o movimento de “rastejar”.

74
Observando os mamíferos, sua motricidade passa pela coordenação
contralateral, isto é, no movimento da locomoção há uma divisão do corpo em diagonal,
em forma de “X”, o cavalo, por exemplo, para dar um passo ele coordena o movimento
de suas quatro patas da seguinte forma: ativa as patas dianteira-direita ao mesmo tempo
que a traseira-esquerda e depois a dianteira-esquerda simultaneamente com a traseira-
direita ou vice-versa. Assim também com os gatos, cachorros, etc.

Já nós, seres humanos, temos uma motricidade que é capaz de acessar todas
essas formas de coordenação motora. Nóstemos todas as possibilidades de coordenação
motoras primárias. O fato de nossa estrutura muscular estar constituída em forma de
espiral nos dá toda essa amplitude de movimentação. Na perspectiva da MAV entende-
se que a direção do trabalho corporal foca muito mais no controle da capacidade de
inibição de algumas estruturas musculares diretamente envolvidas com as diferentes
possibilidades de coordenação motorado que pela ativação de todas ao mesmo tempo,
pois se queremos ser tudo: ser ameba, minhoca, sapo, lagarto, cavalo, peixe, etc.,
estaremos sobrecarregando nosso corpo com múltiplos estímulos motores e acabamos
sem conseguir fazer nada. O corpo fica perdido, ou como Frederico costuma falar, o
corpo fica “vesgo”, nada acontece. Precisamos inibir alguns impulsos para que as
possibilidades de movimento possam aparecer para nós. A motricidade humana trabalha
melhor na inibição do que na ativação da estrutura muscular. Temos a possibilidade de
todas, mas não há como ser tudo ao mesmo tempo e o que fazemos é a transferência de
uma coordenação de movimento para outra enquanto acontece o movimento.

Só que ao nos movermos, não estamossimplesmente alternando entre ativação e


inibição, mas no movimento, nosso corpo passa por uma contínua transformação,
nossas possibilidades de coordenação motora vão se transformando de acordo com a
situação vivida. Se locomover no espaço, não é simplesmente um corpo indo de um
ponto ao outro, mas é o corpo se transformando. O corpo se transforma e por isso ele
passa de um ponto ao outro, ele se move.

A ideia de movimento é central tanto para a MAV quanto para a Gestalt-terapia e


para a fenomenologia de Merleau-Ponty. Nas aulas de MAV somos sempre estimulados
a estranhar e observar minuciosamente o nosso movimento e o movimento do outro.
Nada deve ser encarado como natural, mas sempre como uma construção, um hábito de

75
movimento criado em algum momento de nossas vidas.Merleau-Ponty nos apresenta a
noção de animalidadeque desenvolveu a partir do contato com os estudos de biologia,
em especial a morfogênese, para pensar que Natureza e Cultura estão interligadas.
Nesse sentido, podemos pensar que a natureza não é uma coisa separada da cultura, pois
a ideia comum de natureza é que ela é algo que está dado, constituído
independentemente da experiência humana. A ontologia clássica da natureza na filosofia
pensa numa natureza e no corpo humano como algo concebido por Deus. A tese do
criacionismo pensa de forma semelhante; que a natureza foi dada de fora e é imutável,
mas desde as teorias evolucionistas já começa a se mostrar que não é bem assim.
Merleau-Ponty conversa com a biologia para entender a ideia de morfogênese, isto é,
um movimento da vida de uma formação que está sempre dialogando com o que está
presente em volta, chegando na questão da constituição vs. instituição.

Para o filósofo, falar em constituiçãoconecta-se com uma ideia rígida de


estrutura, para ele é mais adequado falar em instituição de uma estrutura no sentido de
que a realidade está em constante movimento de transformação e que as coisas, os seres,
não são estáticos. O estudo da morfogênese esclarece que todo o movimento de
formação embrionário está em permanente conversa com o ambiente.A ideia de
natureza tradicional fala do vivido como aquilo que aparece para os sujeitos ou, sendo
mais preciso, como aquilo que aparece à consciência, no sentido de que ficamos sempre
com a impressão de que tudo que concerne à natureza, ao biológico é positivo, tem
objetividade e o que é da ordem do fenomenológico, existencial é negativo. Negativo no
sentido de abstrato, perpetuando uma divisão sem sentido. Tal divisão de termos
também parece ser sem sentido para os Vianna, que já estavam desde os primórdios de
suas pesquisas não separando as duas dimensões corporais (biológico e fenomenal).

2.2.2 “Jogos Corporais”


De acordo com Enamar Ramos (2007) os Jogos Corporais são definidos por
Angel Vianna como uma espécie de improvisação que abarca uma criação tanto musical
como teatral.Geralmente são iniciados intuitivamente e, de acordo com a autora, “são de
grande importância para o trabalho proposto por ela e são os responsáveis pela
finalização de todas as suas aulas” (p. 44). Não há uma maneira definida de jogar,
existem infinitas possibilidades de se iniciar um jogo corporal. O crucial são os
76
jogadores estarem dispostos a serem criativos na busca pela (re)descoberta de seus
corpos e deixar fluir a capacidade de criação e invenção, que é inesgotável já que o
corpo tem infinitas possibilidades de movimentação.

Oprimeiroaspecto dos Jogos Corporais que queremos ressaltar, senão o mais


importante, é a participação do outro, seja esse outro um outro corpo e/ou um objeto.
No jogo os participantes têm a oportunidade de experienciar uma movimentação que é
fruto de um relacionamento intuitivo e espontâneo com o outro, como sugere Enamar
Ramos (2007). A intuição, a espontaneidade e a capacidade inventiva são os principais
elementos despertados nos jogadores durante os jogos. Isso ocorre em parte pela
premissa que Angel Vianna coloca de que os participantes precisam, durante o jogo,
responder às proposições de forma rápida, sem que seja exigido deles uma elaboração
mental. “Essa não-preparação (...) dá lugar à espontaneidade e ‘cria uma explosão’ que
nos faz, pelo menos por um momento, esquecer padrões de comportamento já
estabelecidos” (op. Cit. p. 45).

Na ação em jogo os participantes têm a liberdade de agir da maneira que melhor


se apresentar para alcançar o objetivo do jogo em questão. O único compromisso é com
as regras do jogo, que neste caso, são os catalizadores para que a movimentação se
inicie. Tais regras sempre são as mais simples possíveis e os objetivos sempre muito
bem claros para que os participantes não se confundam e possam praticar o aumento da
capacidade perceptiva, liberar as tensões corporais e extrair da experiência com o jogo
algum conhecimento novo sobre seus corpos. “Jogo Corporal é, nas palavras da própria
Angel Vianna, ‘a criatividade em funcionamento para a percepção’” (Ramos, E., 2007,
p. 45)

Como afirma Enamar Ramos (2007), um objetivo central da MAV é sempre


oferecer um espaço de exercício da dimensão criativa dos corpos por meio de trabalhos
de improvisação em todas as atividades propostas. A autora ainda frisa que Angel
Vianna acredita que o maior aprendizado se dá pela via da experiência de cada um,
individual ou coletiva, muito mais do que pela via da transmissão de conhecimento de
uma pessoa para a outra. Não estamos aqui menosprezando o papel do
professor/condutor/facilitador, mas apenas ressaltando que nesse tipo de trabalho
eminentemente prático e experiencial, as orientações dos professores mais experientes

77
têm pouca valia se o próprio aluno não as agarrar para si e pô-las à prova no seu próprio
movimentar corporal, na sua busca e pesquisa pessoais. O professor deve ser um
estimulador do processo de criação/pesquisa/aprendizado do aluno, podendo ajudá-lo a
descobrir seu próprio movimento, sua percepção, sua coreografia e sua dança singular.

Nos jogos corporais não há critérios de certo e errado, aprovação ou


desaprovação, desde de que os participantes tenham como foco conhecer seus corpos,
são livres para agir e criar. Consideramos de suma relevância que os praticantes se
sintam à vontade com liberdade pessoal para se movimentar, pois este é o primeiro
passo para que o jogo aconteça.

Enamar Ramos (2007) esclarece que há uma diferença entre os exercícios de


improvisação realizados na etapa da conscientização do movimento e a improvisação
realizada no âmbito do jogo corporal. No jogo todo o material de improvisação
realizado pelos participantes advém da relação entre eles próprios e não apenas do
trabalho isolado de cada um. Nos jogos corporais busca-se trabalhar um mesmo ponto
de diferentes maneiras e, nessa investigação, a capacidade de observação e atenção
estão em contínua estimulação, pois todo o corpo se volta para perceber o jogo corporal
do outro, suas ações e reações. A autora coloca que é tarefa a ser cumprida durante o
jogo corporal, observar se as articulações, alavancas corporais, a percepção, os sentidos
físicos e a estreita relação destes com nossos músculos estão sendo bem usados no
sentido de sempre buscar um novo aprendizado, um novo caminho a percorrer para se
chegar no mesmo ponto. “Nunca ficar preso ao conhecido”, cita a autora (2007, p.46) é
um lema que Angel Vianna segue constantemente.

O Jogo Corporal é sempre fruto de um relacionamento entre pessoas ou de


pessoas com algum objeto. Ele sempre acontece após o trabalho de conhecimento
corporal vivenciado pelos participantes na etapa da Conscientização do Movimento,
pois o ambiente está propício para o jogo, na medida em que os corpos já passaram por
um relaxamento, aquecimento, pela exploração de um tema e agora estão à vontade e
disponíveis para jogar. O jogo pode ser iniciado de infinitas maneiras utilizando-se para
isso diversos exercícios com o corpo no plano vertical ou em contato com o chão. “ O
importante é permitir que o inesperado se manifeste e os movimentos raros aflorem. A
movimentação livre e contínua impede a cristalização” (Ramos, E., 2007, p.47). Os

78
participantes devem sempre estar essencialmente ligados à estimulação dos sentidos,
visando a uma maior percepção do corpo em movimento. Essa estimulação dos sentidos
está presente desde o começo do trabalho, já na Conscientização do Movimento, desde
o início das aulas, na busca pela (re)descoberta do corpo seja no contato com o chão,
com o ar, com a música, com o corpo do outro, etc. Inclusive, nos Jogos Corporais essa
(re)descoberta corporal se dá de forma mais dinâmica e extensa.Independente do tema
focal de cada vivência corporal na MAV, trabalha-se sempre num duplo movimento de
expansão e recolhimento perceptivos, isto é, sempre se trabalha com áreas específicas
do corpo, mas a proposta é sempre estimular a sensibilização daquela parte sem se
perder de vista a experiência do “todo” corporal e de como cada parte corporal se
articula com as outras partes corporais.

Angel Vianna, segundo Enamar Ramos (2007), considera que é possível


aprender qualquer coisa desde que o ambiente e o indivíduo assim o permitam, isto é,
desde que não haja restrições por parte do ambiente e o indivíduo esteja disponível e
aberto para aprender, o que desmistifica um pouco a ideia de que uma pessoa possa ter
um “talento” para dançar. É nessa linha de pensamento que Angel Vianna trabalha com
o que chamou de Jogos Corporais. Para a bailarina, é experimentando livremente o
corpo que as potencialidades de ser podem vir à tona: o ato de experimentar envolve o
ser humano “intuitivamente como um todo”, segundo a autora (op. Cit. P. 47), tornando
mais evidente para o jogador o entrelaçamento e a não-separação dos planos físico e
intelectual. Em outras palavras, a experimentação nesse tipo de trabalho requer que se
assuma um modo de ser como corporeidade, ser-corpo.

Sendo-corpo o jogo é fluido, espontâneo e estimulante criativamente o que


contribui diretamente para o aumento e o refinamento da capacidade perceptiva, da
motricidade e também para a prática da prontidão e rapidez corporal no momento do
agir e reagir a um estímulo proveniente do jogo, ou seja, uma certa agilidade de
raciocínio20 para encontrar/inventar soluções para as situações que se apresentam no

20
A palavra raciocínio aqui não é compreendida apenas como uma capacidade apenas da ordem do
pensamento estritamente reflexivo e ligado a uma ideia dicotômica de mente ou espírito separado do
corpo, mas, sobretudo, acreditamos, inspirados na tríade: MAV, fenomenologia de Merleau-Ponty e
clínica gestáltica, que o pensamento é corpo e corpo é pensamento; que o pensar é mais uma das n formas
de expressão do nosso ser-corpo, um gesto de nossa corporeidade no mundo.

79
jogo. Pensar e agir, no jogo, acontecem rapidamente, talvez até simultaneamente, para
que aja dinamicidade e não se perca a qualidade de estar sempre “em movimento” no
espaço/tempo entre a pergunta, ou a questão emergente na situação-jogo e a resposta
nascente à essa questão. Enamar Ramos (2007) comenta que a rapidez entre a ação e a
reação dos participantes no jogo é muito importante, pois impede, ou pelo menos,
dificulta, para os participantes que eles caiam na mesmice habitual do movimento de
elaboração mental do que fazer, pois quando isso acontece, o jogo se interrompe, perde-
se a criatividade do momento espontâneo livre de restrições de qualquer ordem.

A criação espontânea é fantástica, afirma Angel. Sendo assim, usar jogos


para atingir o objetivo de criação e conscientização corporal é um meio
válido e pertinente. Angel Vianna procura fazer que, por esse conhecimento
do corpo, os atores descubram a dança que existe neles e permitam que essa
arte faça parte do seu desempenho como atores. Uma dança livre de padrões
que brote exatamente da descoberta de tudo aquilo que está latente,
esperando apenas um pequeno estímulo para aflorar. Klauss, lembra Angel,
dizia com frequência: a bacia que dança, o quadril que dança, fazer uma
dança com o braço, mas sem esquecer o corpo inteiro. (RAMOS, E., 2007,
p.49)

O que a autora comenta na citação acima sobre o trabalho dos jogos corporais
com atores serve para qualquer tipo de público. O jogo acontece enquanto se preserva
esse estado de presença e prontidão corporal fluido, seguro, livre e espontâneo. Quando
há qualquer perturbação deste, é visível para os participantes e também para quem
observa de fora o jogo, há uma espécie de quebra no fluxo e no desenrolar daquela
situação-jogo. No jogo corporal não há planejamento prévio e o jogador deve estar
relaxado e receptivo a todos os estímulos que aparecerem, agir espontaneamente e ser
capaz de se envolver com estímulos de natureza diversa sem se prender a nenhum em
específico, mantendo a percepção ampliada para o micro e para o macro
simultaneamente. Como ressaltaEnamar Ramos, “com essa atitude, antigas estruturas
corporais são destruídas, rearrumadas, desbloqueando os corpos. Todos os sentidos são
aguçados e o corpo, como um todo, fica em estado de alerta permanente” (2007, p. 49).

Devemos arrematar esclarecendo que separamos em subitens a “Conscientização


do Movimento” dos “Jogos Corporais” simplesmente para expor didaticamente as
características mais marcantes de cada etapa da MAV, entretanto essas etapas não
80
acontecem de forma estanque e separadas, uma depois a outra. Na prática não
separamos um momento do outro. Angel evita isso. Para esclarecer, enfim, está tudo
entrelaçado. Na “Conscientização do Movimento” é onde encontramos de modo mais
enfático todo esse estudo da estrutura corporal, anatômico, motor, estudo dos
movimentos, da pele, ossos e apoios, articulações e nos “Jogos Corporais” é onde se
localiza melhor a criação, a dança. Mas não são etapas de trabalho separadas. Porque
mesmo quando você está deitado no chão estudando o seu ombro, Angel pode colocar
uma música e você, no micro movimento,pode dançar com a sua cabeça do úmero
(parte óssea superior do braço que compõe o ombro). Nos parece que há uma ênfase na
questão do aprofundamento do estudo da estrutura do corpo na Conscientização do
Movimento e uma ênfase no projeto criativo e expressivo no momento dos Jogos
Corporais, mas os dois momentos estão sempre juntos dialogando, um entremeado ao
outro, um enriquecendo e alimentando o outro. No exercício da criação aprimoramos a
conscientização do movimento, e no exercício da conscientização do movimento
aprofundamos a potência criativa de nossos corpos.

2.2.3 Experiências pessoais e coletivas no contato com a MAV no curso técnico de


formação em bailarino/a contemporâneo/a.

Dançar a vida não seria, a princípio, tomar consciência de que não somente a vida, mas o universo é uma
dança, e se sentir penetrado e fecundado por essa torrente de movimento, de ritmo e de tudo?

Roger Garaudy

Podemos perceber que em todos os cursos da EFAV as pessoas atestam que


terminaram os cursos de maneira diferente de quando entraram, não há quem não diga
que não passou por algum tipo de transformação, o que não quer dizer que seja um
processo fácil, pois a todo momento nos deparamos com tensões pessoais, sociais,
políticas, econômicas, culturais que agem na contramão do processo de formação e
sensibilização corporal experimentado na EFAV. Muitas vezes em sala de aula eu e
meus colegas do curso técnico conversávamos sobre como era estar na EFAV. Nos
deparávamos com a reflexão de que mais do que estar na escola (que já é em si um lugar
com muita história e memória), é também uma descoberta de cada pessoa e do que é
esse grupo que formávamos; de entender que ele sempre vai mudando a cada dia do

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curso, nessa empreitada louca, suada, massageada que foi estar na EFAV toda noite
juntos, se arranhando, se mordendo, se abraçando e dançando.

Concordávamos que estar na EAV, naquele momento, é resistência, ou seja, é se


apoderar do que se é: corpo, ainda mais nessa época em que a maioria das pessoas estão
cada vez mais distantes do corpo, mais desconectadas delas mesmas, da existência delas
enquanto corpo no mundo com os outros (corpos). Resistir significa não nos deixarmos
virar totalmente máquina e lembrar a cada vez que somos carne, osso, pele, poro,
cabelo, sentimento, todos os sentidos. Sobre o significado da dança, Vianna comenta:
“A maioria das pessoas não sabe que a dança vem de longe, de muitos anos atrás em
que as pessoas dançavam a vida. Hoje ninguém quer dançar a vida, ninguém quer se
mover” (2016, p. 279). Percebemos certa magia em volta da experiência que
construímos juntos ali dotada de muito desejo, de choques, de vontades diferentes e de
particularidades que vão se transformando e se moldando umas às outras. É um
processo maravilhoso de cura, transformação, loucura e criação.

Uma das coisas mais preciosas que aprendi é que o corpo que se experimenta.
Em minha experiência como integrante da turma Lilás do Curso Técnico em Bailarino
Contemporâneo da EAV (vivenciado durante 2015.1 à 2017.1), posso dizer que lá
experimentei o corpo de forma diferenciada da minha maneira cotidiana. O curso se
configura como um espaço onde exploramos o que nossos corpos são capazes de fazer:
onde se pode sensibilizar o corpo, um espaço de ampliação dos sentidos e de descoberta
do próprio corpo.

Em discussões da turma sobre o processo de formação no curso falava-se


corriqueiramente que estar na Angel tem um quê de mistério, necessidade e de vontade.
Tem um quê de habitar o corpo, descobrir mais corpo dentro do corpo. Habitar o chão, a
pele, o ar e os ossos. Descobrir, transformar e criar. Depois de ter vivenciado o curso,
nos sentimos muito mais apoderados dos nossos corpos. Conseguíamos detectar,
perceber de forma mais precisa o que se passa por dentro de nós, e com muito mais
liberdade de escolha do que fazer com o que sentimos de uma forma muito mais
palpável do que antes.

Depois de um tempo vivendo o processo de formação do curso em questão,


muita coisa se revelava para nós tanto coletiva quanto individualmente. Grande parte da

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turma tinha a expectativa inicial de simplesmente retomar o contato com a dança de
alguma forma. Só que na medida em que fomos nos experimentando nas aulas
percebemos como ali se configurava um espaço de muita descoberta, de ampliação da
presença, do aumento da sensibilidade e do contato artístico com nossos corpos. O que
entendíamos por dança também se transformou, ampliou, ganhou mais corpo e mais
detalhes. Os professores nos incentivavam a viver o processo do curso não somente
dentro da sala de aula, mas também nos outros espaços de nossas vidas como, por
exemplo,durante os momentos de lazer, quando passavam como trabalho de casa que a
cada fim de semana tínhamos que assistir a um espetáculo de dança, teatro ou outra
modalidade artística. Entrar nesse universo enriqueceu não só nossos corpos no que se
referia ao trabalho corporal dentro da instituição, mas também fora dela, todos os
âmbitos de nossas vidas eram preenchidos por essa nova postura perante a vida, ou seja,
passamos a compreender o corpo inseparável de sua relação com o mundo e com a vida.
Sentíamos a dança como uma companhia constante em nossas vidas.

Nas conversas de final de curso, comentava-se como nos sentíamos muito mais
donos dos nossos corpos, mais presentes e à vontade com nossos corpos. Quando
olhávamos para como éramos antes de viver as experiências de formação no curso
técnico da EAV refletíamos sobre como vivemos nossas vidas com o corpo anestesiado,
nos conformando em viver no automatismo de nossas ações e no distanciamento de
nossa própria existência, sem nos darmos conta de tudo que podemos ser e fazer quando
trabalhamos nossos corpos e quando nos movimentamos como corpos presentes,
sensíveis e expressivos que somos e já éramos, mas não sabíamos.

entrar na dimensão da presença, comentávamos, trazia a sensação de estar bem


mais altos do que realmente somos. Sempre nos víamos maiores, pois sentíamos que
estávamos maiores e mais potentes do que antes. Todo o processo foi engrandecedor de
diversas formas. As ideias... as ideias sobre o corpo, sobre nosso fazer; aprendemos a
pensar mais em saber como experimentar nossos corpos ao invés de saber aplicar
técnicas; observar as formas e volumes que criamos com nossos corpos. Esse modo de
ser-corpo era palpável e nítido ao nos encontrarmos e nos observarmos com outras
pessoas, com outros corpos. Vivíamos como corpos maiores e mais pensantes.
Sobretudo mais pensantes, pois passávamos a ver tudo com outros olhos, tentávamos
não deixar nada passar, tudo engrandecia junto: o chão, o ar, as paredes, o espaço, o
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tempo, o som, o contato de nossos corpos, nossos movimentos, as sensações, tudo
ficava maior, mais claro, mais nítido, mais vivo; tudo dançava conosco.

A turma Lilás conversava sobre como a EAV mudou nossas vidas. Foi uma
vivência importante no que toca a forma como passamos da postura de ver e
compreender nossos corpos, nosso movimento e começamos a nos vivenciar como
corpos na vida e no mundo uns com os outros. Porque a todo momento em que estamos
com a atenção voltada para nossos corpos, atualmente, estamos estudando, aprendendo,
explorando nossos sentidos. Esse aprendizado é infinito, os sentidos vão muito além do
que se imagina e chegam num lugar muito mais fundo e muito mais longe do que se
pensa – é como uma escavação em que você vai encontrando mais e mais corpo. A
Angel nos deu a pá para cavar e descobrir a imensidão de corpo em nós. E ao mesmo
tempo, essa instrumentalização, esse caminho que encontramos ali, levamos para a vida
e dividimos com as pessoas. E todo esse conhecimento que brota do ser-corpo nos faz
mais presentes e mais felizes.

Por meio das aulas do curso técnico da Angel, uma das coisas queaprendemos
foi sobre onde o movimento começa em nós, sobre onde a nossa vontade se localiza em
nosso corpo, sobre como não necessariamente temos que nos enquadrar em um modelo
de corpo, mas podemos seguir nosso próprio movimento, nossa própria vontade e
descobrir nossa própria dança (e isso é o fundamental para essa noção do ser-corpo que
depreendemos ao experimentar o MAV). Aprendemos, por meio de nossas experiências,
como os músculos se relacionam com as emoções e como neles há guardados
dificuldades emocionais ou memórias de felicidade, o afeto vive e se alastra por todo o
corpo, muscularmente, fisicamente falando. Isso deixa claro que a diferença entre o
corpo e nossa emoção, memória, afetos, dores é nenhuma, porque nós somos isso: o
corpo. Muitos de nós têm a percepção de que antes de passar pelo curso, tínhamos uma
visão mais abstrata das emoções, que não passava pela nossa estrutura física, corporal. E
fomos compreendendo, na prática, que a emoção é corporal e que acessamos, mesmo
sem saber, os estados emocionais através do corpo. Quando nos fazemos presentes no
corpo dilui-se também a separação entre nossa experiência de ser-eu e nosso corpo.

A MAV, inclusive, ao nos trazer essa dimensão de relação para dentro do corpo,
também nos ampliou a dimensão de relação que temos com o outro. E a forma como

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vemos o outro ser. A forma como olhamos no olho do outro e a forma como nos
relacionamos com o outro. A forma como nos encostamos no outro, como abraçamos o
outro e como reconhecemos o outro como ser humano.

Nos trabalhos de avaliação das disciplinas do curso técnico, tínhamos a


oportunidade de fazer uma síntese do processo vivido até aquele momento e de dar uma
significação para aquele conjunto de experiências corporais. Sobre esses momentos
sentíamos que muitos deles nos marcavam como um divisor de águas, nos quais muita
coisa se revelava para nós sobre nosso próprio processo. Realmente colocávamos
nossos corações e nosso ser por inteiro quando criávamos uma dança, nela muitas vezes
ficava claro pra nós e para os outros como os processos experienciados na EAV
reverberavam em nossas vidas. Os professores sempre nos incentivam a termos um
caderno para registrar o que experimentamos no curso. Lembro-me de um trabalho
específico de uma aluna que fez uma coreografia onde ela dava passos saindo do seu
caderno, o que me remeteu aos nossos próprios passos, que dávamos dentro e fora da
EAV.

Seus passos claramente mostravam como as suas e as nossas experiências


enquanto coletivo, tem contribuído para a vida dela e para a nossa também. Estar na
EAV, nesse curso específico, foi um passo que todos escolhemos dar e como é
desafiante dar o primeiro passo, nem sempre é fácil e muitas vezes o damos com
dificuldade. Em seus passos trêmulos e cambaleantes encontrávamos com nossos
próprios passos, com nossas vivências e com o fato delas pouco a pouco irem se
tornando uma base firme na qual podíamos cada vez mais sair em busca de passos
novos tendo a clareza de não saber onde estávamos pisando, mas com a coragem e o
destemor de ir para o desconhecido que é desafiante e maravilhoso. Experimentamos
nossos corpos como nunca imaginamos que pudéssemos fazer.

Claro, tem momentos que eliminamos e outros que ficam conosco, o que faz
parte do processo, porque como pisamos no desconhecido nunca sabemos o que vem
pela frente. Mas tudo é válido para o nosso aprendizado. Poder passar nossa mensagem
em nossas danças, em nossos movimentos, com nossos corpos é extremamente
gratificante, pois quando dançamos, cantamos uma música ou lemos um texto com essa
postura corporal, é algo que fazemos com nosso próprio pensamento e com nosso

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coração. Nosso corpo como um todo se prontifica ali, naquele momento, naquele
espaço. É uma conquista de liberdade. Dar passos para a liberdade, dar espaço para a
liberdade nos envolver, isso já é um passo enorme e todas essas vivências
experienciadas e registradas em nossos cadernos com certeza fazem diferença em
nossas vidas, pois ali temos registrado o que conseguimos explorar comprofundidade
cada aresta de nossa corporeidade, de nossos movimentos. Descobrimos um corpo que
antes realmente não descobriríamos se não déssemos esses passos.

Tudo começa com essa deitada maravilhosa no chão. O contato com a madeira
maciça que nos ancora. Ao deitar no chão deixamostoda distração lá fora e aqui (na
EAV) é o espaço em que nos damos a oportunidade de ser-corpo. Aqui é um espaço de
descoberta, um privilégio. Muitas vezes quando se trabalha o corpo desta maneira não
se tem muito a dizer em palavras, mas a cada dia algo vai germinando em nossa
existência... e com dificuldade. A cada dia vamos descobrindo uma pele ali, uma cabeça
lá e assim criamos um caminho, nosso caminho próprio. Muitas vezes compartilhamos
o sentimento de que esse espaço em particular, essa escola, essa casa que parece estar
fora do tempo tem algo de muito precioso e especial: é onde o corpo pode ser ele
próprio livremente.

O corpo quer começar a se mover. Ao dançarmos sentíamos que estávamos


sempre tentando nos entender, descobrindo nossas articulações o que é assustador e ao
mesmo tempo, curioso e empolgante. A EAV é um lugar para exercitar o estar presente
como corpo. E isso reverbera nas paredes, nas janelas, nas salas e na madeira do chão,
no contato com esse lugar fora do tempo, descobrimos uma força de ser, de viver, de
movimentar que nem sabíamos que existia em nós.

Na EAV cultivamos em nossos corpos um gostar de deitar no chão, quase como


uma necessidade. Aprendemos a nos entregar ao chão como se fosse o nosso amor.
Enamoramos o chão. Sentimos todos os lugares que o chão pressiona em nossos corpos.
O chão relaxa e dá apoio para fazermos coisas que não fazemos quando estamos em pé.
Podemos nos expressar sem sentir tanto “o peso do mundo”, mas sentimos com alegria
o peso do corpo. Essa é uma das coisas que mais me marcou, ver o chão como meu
grande amigo, meu grande apoio. Outra coisa muito interessante em nossa vivência
como turma, foi o fato de ao longo do processo de formação, termos articulado vários

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aprendizados acerca do corpo e do peso, do movimento, da emoção, do sentimento, das
cores e formas, texturas, da escuta, do silêncio, dos olhos fechados, dos olhos abertos,
de observar os outros. Tudo isso, fica dando voltas e voltas e voltas... dentro do corpo, e
ao final íamos definindo alguma linguagem que realmente é nossa. Depois de processar
e acomodar todas aquelas coisas que vão fluindo numa energia, numa dinâmica em
nossos corpos, íamos nos soltando, criando poéticas das pontas dos fios de cabelo até as
unhas dos dedos dos pés...

PONTO FINAL
Sai a tinta da caneta
No papel caminha
Da marcha que forma corneta
Se pensa forte como rainha

Reinará vitoriosa, porém sozinha


A espalhar seu ato significante
Dando sentido pela linha

Tocará um coração infante

O papel, silencioso, observa


A tinta fluir na superfície sua
Se ri desse escrito metido

Sabendo que palavra desverba


No instante mesmo em que alua
Perde o brilho para o ar...

Num suspiro descabido

Desde o início do curso de formação em bailarino contemporâneo da EAV, os


professores sempre nos aconselharam a ter um caderno por perto para anotar nossas
impressões, percepções, dúvidas e descobertas. Adotei para mim esse conselho e
comprei um caderno. A princípio, não podia prever o quão desafiador, difícil e
trabalhoso essa tarefa poderia ser, pois ao longo das escritas fui percebendo que o mais
importante não se tratava de descrever detalhadamente o passo a passodas aulas, mas o
verdadeiro exercício era tentar colocar com palavras o que se vivenciava, sentia, afetava
e reverberava em meu corpo e em minha vida, os ensinamentos e as propostas de cada
disciplina.

Isso requeria um investimento corporal que me pareceu bastante difícil, mas fui
compreendendo que a dificuldade partia de uma tendência antigade querer capturar e
abarcar toda a experiência com as palavras de uma forma linear e pragmática. Mas as

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palavras, muitas vezes, se recusavam a assumir tal papel, o que me deixava enfurecida
até, com raiva de mim mesma, como se eu tivesse uma falta ou um defeito, não fosse
inteligente o suficiente, ou não me dedicasse demasiado às aulas.

Foi então que uma professora de MAV, Marina Magalhães, nos propôs um
exercício de escrita diferente do que eu estava acostumada, que consistia em: após ter
feito nossas aulas, deveríamos ir para casa e, antes de fazer qualquer outra coisa, sentar
em frente a uma folha de papel, ajustar o cronômetro do celular para dez minutos - ou
quinze, ou vinte, na medida em que íamos repetindo esse dever de casa – e começar a
escrever ininterruptamente tudo o que viesse à tona quando refletíamos sobre a
experiência recém-vivida. Não estava permitido ajustar o texto enquanto se escrevia e
tínhamos que ser fiéis aos encadeamentos de nossas ideias a ponto de não nos
preocuparmos se estava inteligível ou não. Apenas confiar no ecoar dos afetos nascidos
daquela experiência e também confiar no movimento do corpo, do braço, da mão que
guia a caneta no papel e imprime nele o que se passou.

Esse exercício, de penoso passou a ser prazeroso para mim, de uma forma
surpreendente. Olhando para ele agora, percebo que passar pela experiência dessa
escrita espontânea, como nomeava Marina, me deu uma força e um senso de convicção
para apostar no meu trabalho artístico que muito me alegra. Essa força e essa convicção
sem medo, percebo, também extravasam para a minha escrita de modo geral e para
minha compreensão dos desafios com que me deparo na vida, de uma maneira geral.
Não que seja fácil, agora, depois de passar por isso, ser mais confiante, determinada,
destemida e tranquila frente àquilo que me atravessa, mas sempre que sinto medo, me
lembro dessa experiência, e esse lembrar traz um conforto.

À BAILA

No avesso da saia
Clamam-se as falanges
Para o in-verso bípede
Das ancas, côndilos e maléolos

Hão de se elevar o travão


E a ginga marcantes
Castelhanos bordados
Por finos alvéolos

É levada a volúpia
Pelo trepidar das castanholas
Nenhuma chance dá às marolas
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Espiralando cresce ar –
Enxurrada!

Expõeface, carnee coração

À baila corre
Libertina
Pau la ti na
In
fil
tra
ção.

No último semestre do curso técnico do qual eu participei, eu e minha turma


tínhamos que planejar, criar, desenvolver, ensaiar e concretizar nosso espetáculo de
formatura. Na primeira semana de aula, ficamos sabendo que apresentar o espetáculo
consistia não somente na parte de pesquisa e criação artística, mas teríamos também que
executar outras funções, como, por exemplo, de nos auto-coreografar, de produção do
espetáculo, entrar em contato com o teatro e reservar a data, criar estratégias de
arrecadação de recursos para pagar os gastos diversos do espetáculo, como o serviço dos
técnicos de iluminação, a figurinista ETC, pensar na iluminação das cenas no palco,
fazer a divulgação da apresentação e assim por diante.

Isso me assustou, porque não entendia como poderia ser capaz de realizar tantas
tarefas em tão curto tempo, mas aconteceu que trabalhar na criação, na ideia do
espetáculo, ensaiar e mergulhar de cabeça na atmosfera de ser bailarina, artista, assumir
esse lugar e aceitar de peito aberto que, nas noites de segunda a sexta, eu não seria
apenas a Carla, mas seria a Carla-em-processo-de-se-tornar-bailarina, encarnar o ser-
artista de uma forma misteriosa, contribuía, e muito, para a disposição e a energia
necessárias para realizar todas as outras tarefas necessárias. Então, nesse momento,
trago esse poema que escrevi sobre o processo de criação de uma das cenas desse
espetáculo, na qual eu pude solar.

Começou com uma ideia borrada de trabalhar com minha saia vermelha. Só sei
que os professores orientadores pediram, no início do processo de criação do espetáculo,
para que cada um de nós revisitasse nossas experiências passadas no curso até então, e
elegêssemos assuntos, trabalhos anteriores, pesquisas de movimento que gostaríamos de
continuar, novas ideias para a pesquisa corporal e/ou temas já experimentados nas aulas
ou nas mostras de dança da escola. Levei a ideia de relembrar minhas experiências
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passadas com a pesquisa corporal para além do tempo do curso e me deparei com as
lembranças de quando dançava flamenco. Refleti sobre como o sentido da dança
flamenca tinha se transformado para mim, influenciado pelas minhas experiências
recentes no contato com a dança que se pensava e praticava na EFAV.

E assim levei a saia vermelha, que foi meu figurino em muitas apresentações de
flamenco, para as aulas de composição coreográfica do espetáculo de formatura com o
desejo de pesquisar os movimentos característicos da técnica flamenca e que moldaram,
de certa forma, minha maneira pessoal de dançar. O que despertava a minha curiosidade
era poder testar a hipótese: “é possível, a partir de um movimento já estruturado e
característico do flamenco, criar uma nova maneira de dançar e experimentar esta
modalidade de dança?” Não só foi possível realizar o solo “À Baila”, como acabei
fazendo uma desconstrução da técnica sem perder a sensação de dançar flamenco e,
sobretudo, pude perceber o jeito que a Carla tinha de dançar esta técnica ao ultrapassar o
código dos movimentos que lhe são característicos e liberar a expressão do meu corpo-
flamenco. Isto permitiu que eu compreendesse e sentisse que estava desenvolvendo um
estilo próprio de me aproximar de qualquer técnica de dança sem perder de vista minha
expressão e o sentido singular que ela traz.

SOPRO CORPO-SOPRO

Soprar a concha
Propagar o vital
Ondulante no vento

Quebrar a inércia do ar
Ver suspiro tomar forma
E virar trovoada
A plenos pulmões

Sem precisar de palavras


Fazer-se presente
Celebrar a existência
De tudo que é vivo e fala

Falar com o ouvido


Ouvir pela boca
“Do som se fez mundo”
Do mundo mudo, só o que se quer
É escutar...

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Voltamos das férias do primeiro ano de formação. Quem nos daria aulas de
MAV a partir dali não era mais o querido professor JamilCardoso, mas a professora
Marina. No primeiro dia de aula nos falou que naquele semestre entraríamos numa nova
etapa da disciplina na qual exploraríamos focalmente cada sentido físico: ouvir,
falar/propagar sons e silêncio, cheirar, provar/comer, olhar, tocar/sentir. Todas as
vivências foram muito especiais e intensas, mas trago aqui uma que particularmente me
tocou. A aula sobre som e silêncio.

Trabalhamos com o ritmo respiratório de diversas formas diferentes, fizemos


pesquisas sobre como tirar som do corpo sem ser pela boca, investigamos o silêncio, e
sobretudo, apreciamos os sons e as vozes dos nossos parceiros de aula. Eu pude
desenvolver uma escuta para o movimento e a expressão do outro que nunca tinha
sequer imaginado que fosse possível.

Através do som ou da ausência dele pudemos nos conectar em outro nível de


sintonia; criávamos ali uma sinfonia corporal coletiva que perpassava todos e cada um
de múltiplas formas e trazendo infinitos sentidos e produzindo emoções variadas. E
passei a escutar as sinfonias e os silêncios férteis em qualquer lugar por onde fosse. Até
sonhei que soprava uma concha gigante e desse sopro saiam as ondas do mar... Em mim
ficou o assombro da força vital que eu não sabia escondida nos sons do mundo. Porque
se escuto um som por mais leve e fugaz que seja, há vida. Se não escuto nada, nem
mesmo o silêncio estufado da pausa tempestuosa, é porque já morri e nem sabia...

91
CAPÍTULO 3 –O CORPO EM MERLEAU-PONTY E NA GESTALT-TERAPIA:
O SENSÍVEL E O ESTÉTICO NO MOVIMENTO DA EXISTÊNCIA

Signo

O toque, do dedo, movimenta.


Passa pela pele arisca.
Refrescando poros como menta,
Escorre, arrepia e arrisca.

Gesta o gesto primeiro,


A bailar pelas curvas do tempo.
Inventa um mundo inteiro,
Misturado à poeira e ao vento.

Enxerga, enfim, o corpo inerte.


Até então bem acomodado...
– Que a mesmice vã não se repita!

De súbito insurge espalmado,


Por aspirar que só se permita,
A magia do sentido desperte.

Carla do Eirado

Neste capítulo procuramos apresentar como a fenomenologia merleau-pontyana


e a clínica da Gestalt-terapia compreendem a existência. Ambas afirmam que existência
é, antes de mais nada, movimento. Tudo que existe se move, desde os átomos até os
planetas e as galáxias. Estar vivo é estar em constante movimento, seja ele lento, a
ponto de se tornar imperceptível, como são os movimentos das placas tectônicas; seja
ele tão rápido a ponto de também se tornar imperceptível, como o é o bater das asas de
uma libélula.

O movimento das nuvens nos traz a chuva, o dos ventos, o sol, o movimento do
mar realça o horizonte e o do tempo traz sabedoria. O movimento dos pulmões nos faz
respirar, o das mãos na terra nos dá o alimento, o movimento das cordas vocais nos
permite a fala, o grito, o canto...Movimentar os pés no chão produz o caminhar,
movimentar as mãos nas cordas de um violão produz música, movimentar o pensamento
produz reflexão. E parar movimenta o silêncio.

Estar vivo envolve uma infinidade de movimentos. Cada movimento apresenta


uma experiência estética diferente que necessita da sensibilidade corporal para existir. É
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na relação do corpo em movimento com o movimento do mundo que surgem as várias
estéticas que compõem os distintos modos de existência. Por exemplo, a maneira como
percebo o vôo da libélula ou o movimento das placas tectônicas me mostram a minha
qualidade sensível de ser. O movimento da libélula é leve e agitado, o das placas
tectônicas é lento, pesado. A libélula me remete à delicadeza e a placa tectônica me
remete à imensidão e dureza. Assim o movimento da existência se passa entre a
sensibilidade e a estética, já que sendo sensível eu con-tato o mundo e o sentido do
mundo me chega através de uma experiência estética.

3.1 corporeidade e expressão na fenomenologia de Merleau-Ponty


E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos.
E com as mãos e os pés.
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la.
E comer o fruto é saber-lhe o sentido.

Fernando Pessoa

A noção fenomenológica que Merleau-Ponty nos apresenta a respeito da


consciência busca escapar aos dualismos e às dicotomias, tal como
discutimosanteriormente. Evitando as armadilhas das tradições empiristas e
intelectualistas, a ideia de que o fenômeno é algo que surge no encontro do sujeito com
o mundo exigiu abandonar a ideia de uma supremacia da razão, a ideia de um mundo
puro e universal onde as formas lógicas seriam constitutivas da verdade, em prol de uma
compreensão da existência situada no mundo; o sujeito como ser-no-mundo. Na busca
de compreender como se dá o nascimento do sentido, a fenomenologia de Merleau-
Ponty, assume o corpo e a percepção como dimensões pré-reflexivas da experiência no
mundo, instaurando uma concepção ampliada de consciência que considera o gesto e o
movimento situados e dirigidos ao mundo como formas de perceber e expressar, dando
sentido a si e ao mundo.

Compreendendo a corporeidade como modo de ser nno mundo, o sujeito e as


subjetividades se fazem e refazem no mundo em um movimento de ir e vir. Ao mesmo
tempo que faço o mundo sou feito por ele.
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No prefácio do livro Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (2011) nos
coloca que a fenomenologia é o estudo das essências, porém diferentemente de outras
filosofias, ela não pensa a noção de essência como algo imutável, mas quer recolocar as
essências na existência, o que significa pensar a noção de essência como o modo pelo
qual nasce o sentido, como algo que está em jogo na existência. O filósofo investiga
como se forma o sentido ou a verdade, partindo da reflexão acerca da relação
consciência/mundo, dentre outras,e é nesse contexto que o fenômeno da percepção e da
corporeidade se situam.

Como afirma Alvim (2014), para Merleau-Ponty a atividade reflexiva parte da


atividade perceptiva. A ação de perceber, que se dá no mundo, é anterior ao pensar
reflexivo. O fenômeno perceptivo é compreendido como um a priori que correlaciona
sujeito-objeto, estes co-emergem do fenômeno perceptivo. Segundo a autora, o filósofo
propõe o primado da percepção como experiência originária criticando, desta forma, o
suposto poder absoluto da atividade reflexiva. “Seu argumento principal afirma a
percepção como modalidade original da consciência. A percepção tem lugar num certo
horizonte, no mundo, envolve presença, apresentação, e não representação” (op. Cit. p.
50). Dupond (2010) acrescenta que o filósofo compreende a percepção em seu sentido
primeiro, isto é, como nossa abertura, iniciação e inserção ao mundo. Segundo o autor,
Merleau-Ponty nos esclarece que não é possível conceber qualquer coisa que não seja
percebível ou percebida.

Mantendo-se na junção da natureza, que é sua base, com a história,


da qual ela é a fundação ou a instituição ao fazer o tempo natural
virar tempo histórico, a percepção é, portanto, o “fenômeno
originário” em que se determina o sentido de ser de todo ser que
possamos conceber (op. Cit. p. 62).

Merleau-Ponty comenta que o fenômeno perceptivo não é da ordem do “eu


penso que” (2011, p. 121), mas que tal fenômeno só é compreensível na perspectiva do
ser-no-mundo e critica as explicações fisiológicas e psicológicas que o desfiguram. O
corpo, por sua vez, é compreendido, segundo o filósofo, como “veículo do ser no
mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se
com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” (op. Cit, p. 122). De acordo
com o filósofo, é como corpo que existimos no mundo. Não há consciência desprendida

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dele, assim como não há mundo sem que esteja habitado por ele. As sensações e
percepções do mundo não devem ser entendidas como dados “capturados” pelos
sentidos físicos e “codificados” pela consciência para que então saibamos nos situar.
Anterior a isso:

Se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é,
no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam
a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei
que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles,
e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo (Merleau-
Ponty, 2011, p. 122).

Tal como discutimos brevemente no primeiro capítulo, o filósofo descreve duas


dimensões do corpo, as dimensõesbiológica (Körper) e fenomenal ou vivida (Leib).
Ainda que sejam duas dimensões que não são concebidas separadamente, o corpo que
Merleau-Ponty toma como centro de sua reflexão é o corpo vivido, sua dimensão
fenomenal, experiencial. Trata-se de uma concepção de corpo, como afirma Alvim
(2014), como “campo de presença” (op. Cit. p. 51) responsável por fazer uma síntese
prática, no sentido de uma operação corporal de abertura de um horizonte perceptivo.
Essa síntese prática corporal que abre o horizonte de significações das coisas, do
mundo, dos outros e da existência, da qual fala a autora, não é da ordem do intelectual
ou conceitual, mas é da ordem de um gestual, um movimento expressivo originário – é
o corpo vivo como um campo perceptivo-prático, como Leib, gesticulação no e para o
mundo.

A experiência corporal é ação no mundo. Ao nos movimentarmos, damos


sentido ao mundo, fazemos sínteses corporais. Essa capacidade corporal é denominada
motricidade pelo filósofo francês e ele a descreve “enquanto intencionalidade original”,
isto é, de início a consciência não é um “eu penso”, mas um “eu posso”.

A consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo. Um movimento é


apreendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o
incorporou ao seu “mundo”, e mover seu corpo é visar as coisas através dele,
é deixa-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem
nenhuma representação. Portanto, a motricidade não é uma serva da
consciência, que transporta o corpo ao ponto do espaço que nós previamente
nos representamos. Para que possamos mover nosso corpo em direção a um

95
objeto, primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso então
que nosso corpo não pertença à região do “em si” (Merleau-Ponty, 2011, p.
193)

É no movimento que me coloco na possibilidade de significar. “A união entre


alma e corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um
objeto, outro sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”
(Merleau-Ponty, 2011, p. 131). Pela motricidade, o conhecimento pode se formar. “O
movimento não é o pensamento de um movimento e o espaço corporal não é um espaço
pensado ou representado” (op. Cit., p. 192). O conceito de praktognosia envolve a
junção de práxis e gnose, ou seja, refere-se a umapráxis (ação motora) que produz
gnose (conhecimento). Assim, a motricidade assume lugar de importância;
apraktognosiaé o modo como acontece a produção de mundo e a produção de sentido,
podendo ser conotada como “trabalho” de criação (Alvim, 2014). Entretanto, o sentido
produzido é sempre provisório posto que é temporalidade, vai se fazendo e refazendo
(Merleau-Ponty, 2011).

Como um sujeito situado, o movimento criador se dá a partir da situação e não a


partir da subjetividade interiorizada. Ao se debruçar sobre a corporeidade, Merleau-
Ponty (2011) distingue dois modos de estar no espaço, ou duas espacialidades: a
espacialidade de posição diz respeito ao caráter físico, mensurável, cartesiano do
espaço. É o corpo entendido como pertencente ao domínio da matéria e dos objetos, dos
cálculos matemáticos; já a espacialidade de situação remete ao corpo fenomenal, ao
modo do ser humano experienciar o espaço, isto é, a situação do corpo frente ao apelo
do mundo, aos sentidos que brotam do encontro com ele, e ao que o clama a agir,
transformar, ressignificar.Espaço corporal e espaço objetivo se conjugam na
motricidade, afetando a compreensão do mundo que se produz. O ser humano, ao
caminhar por um campo aberto, já se vê, a cada passada, imediatamente orientado sem
que precise relembrar e calcular as distâncias percorridas a partir do início de sua
caminhada.

Diz o filósofo: “... longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de
espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo” (2011, p. 149). O espaço
exterior e o espaço corporal formam, por assim dizer, um sistema prático onde o
primeiro é o fundo sobre o qual os objetos podem apresentar-se como alvos de nossas
96
ações. Na ação, a espacialidade do corpo se realiza, isto é, o corpo em movimento
assume ativamente espaço e tempo. O corpo é temporalidade, espacialidade e
capacidade de praktognosia. O fisiológico e o pensamento se imbricam no corpo, a
capacidade reflexiva está ancorada nele; no contato sensível com o mundo e com os
outros. Sem corporeidade nenhum deles se sustentaria.

Merleau-Ponty fala de corpo próprio, segundo Dupond (2010), como sinônimo


de corpo fenomenal, isto é:

(...) a um só tempo é “eu” e “meu”, no qual me apreendo como exterioridade


de uma interioridade ou interioridade de uma exterioridade, que aparece para
si próprio fazendo aparecer o mundo, que, portanto, só está presente para si
próprio a distância e não pode se fechar numa pura interioridade (op. Cit. p.
12).

A experiência do corpo próprio enraíza o espaço na existência e, com ele, o


mundo. O ser-corpo se desdobra na espacialidade, nos sentidos físicos e nas partes
corporais que os acompanham (olhos, nariz, língua, ouvidos, pele, membros, etc.).Os
sentidos não são simplesmente coordenadas. As conexões entre as experiências visuais,
táteis ou motoras que temos de nosso corpo e seus segmentos não se realizam parte a
parte, mas essa tradução está de uma vez por todas em nós: são nosso próprio corpo
(Merleau-Ponty, 2011).

Para Merleau-Ponty a noção de corporeidade se refere a uma tomada de


consciência global da postura do ser-no-mundo. Por intermédio de nossa corporeidade
podemos reconhecer nosso corpo como um todo indivisível cuja percepção dos
diferentes membros se dá de maneira abrangente. Acorporeidade é dinâmica sendo uma
maneira de expressão do próprio corpo no mundo. O corpo existe subentendido por uma
dinâmica situacional, a partir da estrutura de figura e fundo na qual “a figura se perfila
sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do espaço corporal” (2011, p. 147).

O filósofo francês nos esclarece que o corpo faz e se refaz no tempo; ele é
temporalidade assim como é espacialidade. A temporalidade do corpo se dá por meio de
uma dinâmica entre duas dimensões: o corpo habitual e o corpo atual. Acerca delas,
Merleau-Ponty (2011) coloca que o corpo habitual aparece como fiador do corpo
atual.O corpo atual é o nosso corpo presente, o corpo em ato, em sua configuração

97
pessoal, singular, instantânea. Está imbricado na experiência presente, cuja condição de
possibilidade é a do momento presente. Já o corpo habitual é a dimensão do nosso corpo
que aponta para um aspecto de generalidade, universalidade da experiência. Ele reúne
em si a condição de possibilidade dos novos gestos concretizados pelo corpo atual.
Cada gesto concreto só é possível se, simultaneamente com ele, se abre a sua condição
de possibilidade, isto é, o que o faz ser possível. “Se o hábito não é nem um
conhecimento nem um automatismo, o que é então? Trata-se de um saber que está nas
mãos, que só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por uma
designação objetiva” (op. Cit. p. 199).

A dimensão habitual do corpo se faz e refaz no tempo aparecendo interligada


com atos passados e possíveis atos futuros. Um dado do presente arrasta consigo co-
dados da experiência que sustentam a emergência do ato presente. Nesse sentido
podemos dizer que as dimensões corporais, atual e habitual, estão sempre em aberto,
lançadas no tempo e no espaço. O corpo é fluxo, sempre se centrando e descentrando no
desenrolar de suas experiências. O que reconhecemos como nosso corpo presente não é
concreto no sentido de fixo, mas no sentido de uma síntese experiencial-corporal,
sempre se reinventando.

O hábito motor é um hábito perceptivo, assim como nosso campo de visão é


também nosso campo de ação. Quando nos dirigimos aos objetos cotidianos familiares a
nós, fazemos isso diretamente com nosso corpo; os objetos tornam-se extensões do
corpo. Dessa síntese corporal através do hábito o corpo abre mundo; ele é mundo. O
hábito perceptivo é compreendido como aquisição de um mundo. Reciprocamente, todo
hábito perceptivo é em si um hábito motor. “A aquisição do hábito é sim a apreensão de
uma significação, mas é a apreensão motora de uma significação motora” (Merleau-
Ponty, 2011, p. 198). Podemos dizer com isso que a apreensão de uma significação ou
de sentido se faz pelo corpo. Nosso corpo não é secundário ao pensamento – é um
conjunto de significações vividas que caminha para um equilíbrio tensionado, dinâmico,
na medida em que nossos movimentos antigos estão a todo instante se integrando a uma
nova entidade motora a partir do que nos “exige” a situação atual. Desse modo, a noção
de expressão envolve não a colocação como objetividade de algo que vem do interior
subjetivo, mas como uma resposta as exigências da situação.

98
Merleau-Ponty, em seu texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio (1991)
toca no tema das dimensões pessoal e impessoal do corpo no diálogo com a arte. Ele
critica a ideia de Malraux sobre a pintura moderna ser um retorno ao indivíduo e contra-
argumenta dizendo que a pintura avança de forma obliqua na história e que a criação (e
a expressão) não é subjetiva, mas nasce na percepção, ou seja, do encontro com o
mundo. O autor também coloca que a pintura nos convoca a questão: “De que modo
estamos entranhados no universal pelo que termos de mais pessoal? ” (1991, p. 53).

A dimensão pessoal é a nossa forma de responder ao mundo que nos convoca.


Quando o mundo nos interroga, por exemplo, quando estamos aprendendo uma nova
língua, a dirigir ou quando o bebê começa a andar, dizemos que somos pessoalidade,
atualidade, no sentido de que investimos nosso corpo por inteiro na tarefa que buscamos
realizar. Passado um determinado tempo nessa investigação, nos apropriamos da tarefa
em questão e ela não mais se apresenta a nós como novidade, desafio, questão. Mas o
aprendizado conquistado, digerido, agora faz parte da nossa dimensão habitual, de um
fundo de sedimentos que sustenta nossa ação no mundo e que não é mais singularidade,
mas generalidade; um possível para todos e de ninguém em particular. É a região do
familiar, lócus do universal. E essa dimensão universal está em constante transformação
no tempo, no corpo e na história. (Merleau-Ponty, 1991).

Para o filósofo francês, o mundo vivido (lebenswelt) é o mundo compartilhado,


o domínio da história e da cultura, dos sentidos já sedimentados intersubjetivamente e
intercorporalmente(valores, posturas, usos, etc.) num horizonte temporo-espacial
sempre aberto. Nessa abertura, o que nasce de novo “cai” no mundo, cria e recria as
formas pré-dadas. Nesse sentido, Merleau-Ponty (2013) faz uso do diálogo com a arte
para pensar na criação como peça fundamental da experiência. A partir de Alvim
(2014), com base em Merleau-Ponty, podemos pensar o ato artístico como campo de
experiências e os objetos de arte como portadores de humanidade, pois afirma que a
expressão artística não é subjetiva; o artista não é um gênio que cria do nada. A criação
é sempre avanço e retomada das significações já adquiridas, e a obra de arte é a maneira
singular do artista de corresponder aos chamados do mundo, de oferecer às solicitações
mundanas novas significações (Merleau-Ponty, 2012).

99
A partir da compreensão da articulação entre as dimensões pessoal e impessoal
da corporeidade chegamos na noção de estilo que, para o fenomenólogo, surge como
aquilo que conjuga as múltiplas sensações e percepções, e assim, confere ao corpo sua
unidade como totalidade gestual, ou seja,

O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às percepções


visuais da mesma mão, assim como as percepções dos outros segmentos do
corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica num certo
estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma
certa configuração de meu corpo (Merleau-Ponty, 2011, p. 208)

Nesse contexto,o autor aponta que nosso corpo não deve ser comparado aos
objetos físicos:

Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical, são indivíduos, quer


dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo
sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua significação
sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso
corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a
lei de um certo número de termos variantes. (Merleau-Ponty, 2011, p. 210).

A pintura, a dança, as artes são comparáveis à linguagem na medida em que


envolvem o corpo como gesto, ato expressivo, pré-reflexivo. Não existem expressões
fechadas. Merleau-Ponty (1991) marca a ideia de que a expressão não é algo que vem
de dentro e se coloca para fora.Por exemplo, através da fala e da linguagem as palavras
não são ferramentas mortas, mas são vivas. É a própria expressão. E a expressão não é
algo absolutamente novo, mas é possibilidade de se direcionar a um estofo comum de
significações e rearranjá-lo, reinventá-lo, rearrumá-lo.O signo porta um sentido próprio,
mas também resguarda uma dimensão de liberdade na qual há espaço para criação. Para
que o corpo seja expressão é preciso que haja um movimento de descentramento, isto é,
o corpo se movimenta diante de uma situação que o surpreende e o retira do seu lugar
de familiaridade. O ato expressivo se faz corpo e vice-versa na situação presente.

O artista é alguém que se propõe a estar no mundo de um jeito não usual, ele
desata os nós costumeiros das coisas; seu modo de perceber rearruma, deforma e retorce
as significações cotidianas. “A percepção já estiliza” nos diz Merleau-Ponty (1991, p.
100
55). Do movimento de se retirar da maneira ordinária de perceber é que a estranheza do
mundo pode aparecer. E no encontro com aquilo que me é estranho, um “trabalho” de
criação pode se dar. Quando algo me surpreende, me desloca, exige de mim um
movimento criativo no sentido de dar conta da situação, já que uma vez percebido não
há como ignorá-lo. No que diz respeito ao campo da arte, Merleau-Ponty (1991) aponta
que o “trabalho” de criação do artista é sua própria expressão e no desenrolar de seu
ofício, um “estilo” vai se fazendo. O artista tece seu estilo na medida em que investe no
mundo criativamente, corporalmente.

O estilo é nossa maneira singular de adquirir um hábito qualquer, por exemplo,


aprendemos a escrever, mas cada um de nós desenvolveu um traçado diferente ao
escrever. O estilo está intimamente ligado à nossa percepção, ambos são uma atividade
motora e acontecem como passividade/atividade. O estilo não é algo controlável, mas
nasce à revelia do sujeito. É a chave para a questão colocada acima: por meio do estilo
estamos entranhados no universal pelo que temos de mais pessoal, isto é, o estilo não
deve ser entendido como identidade, mas como uma espécie de rastro da relação do ser-
no-mundo. Ele não é um fim em si mesmo, mas um constante recomeço, nossa forma
adquirida de relação no/com o mundo. O estilo é como uma deformação coerente da
norma de viver (norma não é a mesma coisa que lei; sempre se modifica), a qual tem
sua inserção na cultura e na natureza, pois é corpo e o corpo é natureza e cultura. Não há
separação entre ambas. Cada estilo é certa forma de ver e agir com relação ao mundo,
ele apresenta uma perspectiva de mundo e faz um recorte na realidade.

3.2 O corpo em Gestalt-terapia: uma visão estética da clínica psicoterápica

Dentre as abordagens clínicas psicológicas, afirma Alvim (2014), a Gestalt-


terapia foi aquela que ressignificou o pensamento a partir do qual se concebiam as
relações sujeito-mundo. Ela migrou de um paradigma que preconizava o intrapsíquico
para outro que tem em seu cerne a noção de campo ou organismo. A clínica da Gestalt-
terapia, de acordo com a autora, define a psicologia como “o estudo da operação da
fronteira de contato no campo organismo-ambiente enfatizando uma proposta de
psicoterapia que preconize a experiência humana no mundo” (2014, p.199). Nessa
abordagem psicoterápica, a dimensão temporal é definidora do processo existencial no

101
mundo com os outros, pois a noção de contato sinaliza para uma concepção da
existência humana como um desdobramento temporal. Os fenômenos experienciais se
dão na fronteira de contato, conceito gestáltico que não se refere a um lugar
geograficamente definido, mas a um campo de presença de onde brota a vivência do
encontro com a alteridade, a novidade, o estranho ou exótico. O encontro intenso com
uma novidade movimenta a estrutura habitual das coisas, o que convida à criação de um
novo sentido para àquela experiência oferecendo uma nova maneira de organizar os
elementos da experiência.

De acordo com Alvim (2014), a Gestalt-terapia promove uma descentralização e


uma temporalização da noção de self (eu) ao migrá-lo das profundezas do psiquismo
para o campo de experiências ou situação. Self é concebido como uma função de
contato significando que o sentido de si mesmo se faz e refaz na experiência de
encontro com o mundo e na relação com os outros. Para a autora, o ponto principal da
psicoterapia é essa dinâmica de estruturação e desestruturação da situação concreta, isto
é, no aqui e agora, “buscando um trabalho com a experiência, uma presença engajada no
campo psicoterápico, estabelecendo um diálogo que amplie as possibilidades de uma
existência espontaneamente criadora diante da diferença do mundo e do outro” (2014, p.
200).

A história do surgimento da clínica da Gestalt-terapia teve várias contribuições


teóricas, práticas e artísticas. Seus idealizadores tinham ligações com a psicanálise, o
teatro, a literatura, a música, a dança e a filosofia, especialmente a fenomenologia.
Alvim (2014) comenta que as bases fenomenológicas conceituais desta proposta clínica
podem ser apresentadas como constituintes fundamentais de seu caráter de experimente-
ação sendo o diálogo com a obra merleau-pontyana um campo fértil de aproximações,
discussões e ampliação do horizonte desse fazer-pensar psicoterápico. Neste trabalho,
essa informação se mostra bastante pertinente para a trama de significações que
desejamos tecer entre a dança, a clínica e a filosofia. Miller (1992, apud Alvim, 2014, p.
202) chama a atenção para o fato de que os criadores dessa abordagem psicoterápica
“encontraram nas artes uma visão de funcionamento ideal que eles estenderam a toda
atividade humana. Essa visão tornou-se a sua medida de saúde e doença e guiou sua
prática em psicoterapia”.

102
Existem muitas semelhanças entre a história pessoal de Angel Vianna e Laura
Perls, co-idealizadora da clínica da Gestalt-terapia. LauraPerls também praticava
eutonia e técnica de Alexander, tocava piano desde criança. Antes de ser alfabetizada,
Laura já lia partituras de piano. Laura Perls, assim como Angel não se preocupava em
escrever sobre sua pesquisa e seu próprio método. Uma outra semelhança é o fato de
FritzPerls e deKlauss Vianna investirem ambos muito mais no trabalho vivencial e na
transmissão oral e experimental de suas pesquisas, do que escrever sobre e sistematiza-
las. Laura, assim como Angel, também teve um grupo de alunospróximos a ela que
ajudaram na formulação e registro do seu jeito de fazer Gestalt-terapia. Ela também era
dançarina. Enxergar essas semelhanças no percursohistórico pessoal e profissional dos
Vianna e dos Perls é interessante, pois faz aparecer semelhanças em ambas os
saberes:MAV e Gestalt-terapia. O contato com a música, com a dança, com o corpo,
com a eutonia, foram acontecimentos muito importantes na formulação de ambos os
caminhos da criação das duas metodologias. Angel se preocupa com a questão do ritmo,
Laura tinha um piano dentro do consultório e tentava trabalhar o ritmo corporal dos
pacientes quando sentia que o fluxo de sua experiência estava interrompido, não
conseguiam falarouestavam com o fluxo expressivo bloqueado.

“Os conceitos da Gestalt-terapia são filosóficos e estéticos” afirmou Laura


Perls(1992), o que significa dizer que não só a questão da experiência é central, mas
igualmente a forma como ela acontece. A palavra Gestalt provém do alemão e não
possui tradução literal, mas os termos “forma” e “configuração” são os que mais se
aproximam do seu sentido originário. Gestalt-terapia se propõe a ser uma terapêutica da
forma viva ou da configuração do campo de experiências. Sendo ela uma clínica da
experiência busca refazer os significados da existência partindo da experiência corporal
no mundo compreendida como experiência estética.

A forma não emana do sujeito, mas do campo de interação sujeito/mundo,


denominado campo organismo/ambiente.

Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos


que partir da interação entre organismo e seu ambiente. Não tem sentido
falar, por exemplo, de um animal que respira sem considerar o ar e o
oxigênio como parte da definição deste, ou falar de comer sem mencionar a

103
comida, ou de enxergar sem luz, ou de locomoção sem gravidade e um chão
para apoio, ou da fala sem comunicadores. Não há uma única função, de
animal algum que se complete sem objetos e ambiente, quer se pense em
funções vegetativas como alimentação e sexualidade, quer em funções
perceptivas, motoras, sentimento ou raciocínio. (...) Denominemos esse
interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o “campo
organismo/ambiente” (Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. 1997, p. 42)

A noção de campo organismo/ambiente diz respeito ao modo como a Gestalt-


terapia compreende a existência. Tudo se dá a partir do campo, dessa situação onde
sujeito e mundo estão imbricados e onde, a partir do movimento da existência, as
novidades surgem, promovendo um desequilíbrio e exigindo um movimento de
reequilibração, o que descreve o processo de contato.

Para os idealizadores da Gestalt-terapia, diante de uma novidade dada no


encontro do corpo com uma alteridade, nos descentramos, há um desequilíbrio ou uma
desintegração da experiência exigindo um movimento em direção a uma reestruturação
e integração da mesma. Tal encontro acontece na fronteira de contatode organismo e
ambiente, como afirmam Perls, Hefferline& Goodman (1997):

(...) primordialmente a superfície da pele e os outros órgãos de resposta


sensorial e motora. A experiência é função desta fronteira, e
psicologicamente o que é real são as configurações “inteiras” desse
funcionar, com a obtenção de algum significado e a conclusão de alguma
ação. (...) Falamos do organismo que se põe em contato com o ambiente, mas
o contato é que é a realidade mais simples e primeira. (p. 41)

O processo de contato nada mais é do que o movimento de ajustamento


criativopossibilitador da reintegração do corpo-sujeito com o outro, a diferença e o
mundo. Para Alvim (2016), a existência é contato, ou seja, ela é fluxo temporal contínuo
e ininterrupto de que se dá na interação da pessoa com o mundo e o outro tendendo
espontaneamente à geração de formas. Estas são compreendidas, segundo a autora,
como sentidos sempre expressos pelo corpo criados em cada situação, isto é, em cada
campo organismo/ambiente através de gesticulações corporais como, olhares, um
movimentar de ombros, uma fala, um silêncio, um sorriso, etc. Cada forma (gestalt)
exprime uma significação provisória de cada situação específica e, em seguida, a partir

104
do encontro com uma novidade/diferença, se desintegra, convocando um movimento de
criação que assimile tal novidade reintegrando-a e configurando-se como uma nova
forma. Tal processo segue continuamente por toda a vida e a experiência do corpo no
mundo ativa gestos e movimentações que manifestam o sentido em formação no campo
organismo/ambiente em gestalten.

Para a Gestalt-terapia a existência de cada corpo é compreendida como criação,


isto é, a experiência existencial é vista como processo criativo da corporeidade
engajada no mundo. O corpo é um todo complexo composto de órgãos, sentidos físicos,
intuição, crenças, juízo, afetos, representações, memória e etc., inscritos na carne que é
minha e do mundo, segundo Alvim (2016). A autora, com base na obra de Merleau-
Ponty, coloca que o mundo social intersubjetivo e intercorporal está presente no corpo,
no outro e nas coisas como uma espécie de “fundoanônimo que compartilhamos e de
onde brotam em nossa singularidade e liberdade como diferenciação. Ele se apresenta
em nossa corporeidade, em nossos gestos corporais, em nosso modo de perceber, sendo
intrínseco a nossos modos de ser e estar no mundo” (p. 29).

Isso se dá porque o campo não é um construto apenas material, para além de sua
dimensão física, há as dimensões vital ou animal e humana ou sócio-cultural. Da
conjugação das três dimensões surge, no campo como uma totalidade complexa, um
movimento de produção de sentidos que expressa, cria e compartilha sentidos e
significados construindo uma realidade sociocultural ou intersubjetiva, fazendo e
refazendo o sujeito e o mundo (Alvim, 2016).

Nossa experiência estética-perceptiva emerge do campo organismo/ambiente. O


corpo-sujeito é entendido como totalidade gestual surgindo de forma inseparável do
mundo onde habita e coabita com outros corpos.

Na abordagem clínica da Gestalt-terapia, a dimensão criativa da corporeidade


(do Self) é enfatizada e o que se visa é a ampliação da experiência no aqui-e-agora da
relação corpo-mundo, como nos esclarece Alvim (2010). Procura-se preconizar e
proporcionar um espaço de contemplação e admiração da existência bem como o
desvelamento de sentido. A ação criativa é compreendida como expressão, ou seja, um
gesto sensório-motor e espontâneo guiado pelo fluxo de awareness, um saber da
105
experiência que se dá sempre no diálogo com o outro no campo.Para a Gestalt-Terapia
as dimensões sensório e motora são inseparáveis. De acordo com Alvim (2018, no
prelo) o isolamento das funções sensório e motora consiste em uma dicotomia e remete
à interrupção do fluxo de awareness em prol da emergência de um processo reflexivo
que cinde a totalidade organismo/ambiente. De acordo comPerls, Hefferline e
Goodman (1997) há uma cooperação entre percepção, movimento e sentimento, quando
o contato é pleno e sustentado por um fluxo livre de awareness.

A noção de awareness indica uma concepção de consciência que não é da ordem


da representação reflexiva, do juízo ou do conhecimento cognitivo, mas da ordem de
um saber sensível e engajado no mundo. Awareness é saber da experiência (Alvim,
2014b). A noção de experiência é compreendida como fluxo constante de
transformações e crescimento surgidos do contato no campo organismo/ambiente, isto é,
o movimento da existência que se faz e refaz na interação da totalidade organísmica
com o ambiente de forma temporal; formação de gestalten – configurações significantes
de si e de mundo. Deste modo a awareness é concebida como fluxo de experiências no
contato com o diferente. (Silva, Oliveira & Alvim, 2017)

Para Robine (2006), awareness é “conhecimento imediato e implícito do


campo”, envolvendo contato, sentir, excitamento e formação de gestalten que
descrevem um movimento de abertura e afetação pela novidade expressa no/do campo.
A formação de gestalten nada mais é, como afirma Alvim (2013), uma configuração de
sentido que emerge da interação corpo-mundo compondo uma estrutura plástica e
significativa.Awareness é “fluxo da experiência aqui-e-agora que, a partir do sentir e do
excitamento presente no campo, orienta a formação de gestalten, produzindo um saber
tácito” (Alvim, 2014b, p.)

Alvim (2016) comenta que na obra principal dos criadores da Gestalt-terapia,


não há referências diretas que apontem e definam o conceito de corpo, mas que a partir
dos conceitos de campo organismo/ambiente e awareness podemos chegar na
compreensão gestáltica acerca deste ponto. Para a autora, a participação do corpo é
sublinhada mais especificamente na gestalt-terapia ao pensarmos, em primeiro lugar,
que “é como corpo que habitamos o mundo, interagimos, vemos, sentimos, somos
afetados, gesticulamos e nos movimentamos – enfim, fazemos contato” (p. 30) e, em
106
segundo lugar, que “o contato envolve awareness, sentimento e comportamento motor
integrados em um todo no movimento” (p. 30).

Tanto a Gestalt-terapia quanto a fenomenologia de Merleau-Ponty preconizam a


experiência do ser-no-mundo como origem da produção de sentidos e destacam a
corporeidade “como espaço e tempo de nascimento do sentido” (Alvim, 2016, p. 31).
Observando de perto a noção de awareness da Gestalt-terapia percebemos que ela
acontece em três etapas: sentir, excitamento e ação motora. Cada qual abre espaço para
a emergência do próximo. No sentir acontece a afetação aqui-e-agora do corpo no
campo, isto é, o contato com a novidade mobiliza a energia ou excitamento rumo à
formação de uma figura (forma) de significação em meio ao fundo (campo), horizonte
de experiências passadas e porvir. O excitamento mobiliza o corpo e o impele ao
movimento e às gesticulações orientando e manipulando a situação em direção à uma
ação motora em vistas de se restaurar o equilíbrio e assimilar a diferença. Todo esse
processo, de acordo com Alvim (2016) se dá de maneira espontânea, ou seja,em
ummodo intermediário entre atividade e passividade. O modo médio é o termo
empregado em Gestalt-terapia para indicar um tipo de movimento que não é nem
passivonem ativo. Tendo como foco a experiência e a ação, a Gestalt-Terapia enfatiza o
verbo e toma esse termo dos estudos de linguística e da discussão mais especifica sobre
a voz passiva e ativa (Alvim, 2014b).

A compreensão da noção de awareness dialoga bem com a noção


fenomenológica de intencionalidade operante que indica a tendência da consciência
fazer uma síntese temporal espontânea no aqui-e-agora do encontro do sujeito com uma
novidade do mundo. Dessa síntese aparece uma figura indicativa do sentido daquela
experiência que não é da ordem da reflexão, mas não-deliberado, irrefletido e se
expressa em nossos gestos corporais, como destaca ainda a autora. Nesse sentido,
estamos nos referindo a um processo que se dá de modo pré-reflexivo, no âmbito do
corpo e dos sentidos e podemos resgatar nossa discussão inicial sobre os critérios
estéticos.

Percepção e movimento, awareness e comportamento motor são modos


distintos de fazer referência à corporeidade em suas dimensões
indissociáveis. Baseada em critérios estéticos, a Gestalt-terapia entende que

107
quando a awareness é um livre fluir que dirige a formação de Gestalten e
comportamento, o movimento tem elegância, vigor, brilho e plasticidade
(Alvim, 2016, p. 33)

Os critérios estéticos, como elegância, vigor, brilho e plasticidade, longe de


serem meramente características do fluxo de formação de formas, são aquilo mesmo
que define a compreensão de saúde na clínica da Gestalt-terapia. Quando o fluxo de
awareness está interrompido, o movimento é hesitante e perde em plasticidade e vigor.
A neurose é definida como perda de plasticidade e fixação de formas.

A terapia acontece no campo de interação entre cliente e terapeuta, buscando


ampliar a percepção de si com o outro e as formas fixadas a partir da interrupção do
contato, da espontaneidade da ação e da conexão da forma com o conteúdo.

A ampliação do fluxo de awareness é o objetivo do trabalho terapêutico desta


clínicaonde: “... a elegância do movimento depende da força da sensibilidade”, como
afirma Alvim (2016, p. 34). Dessa forma, o fluxo de awareness está desimpedido
quando, diante da diferença, o interesse é vívido e a figura é forte, correspondendo à
necessidade dominante no campo e, com isso, as dimensões do sentir, do excitamento e
a ação motora conduzem a formação de figuras e movimentam o processo de contato.

Como coloca Alvim (2016), nesse caso, a figura ancora o corpo. Este desaparece
aparentemente no fundo da percepção, porém está presente apoiando a ação motora.
Quando o movimento é fluido e organiza bem o processo de contato, isso mantém a
plasticidade da estrutura organismo/ambiente. Segundo Alvim (2016), Laura Perls
afirma que o corpo é um sistema de suporte que promove a sustentação de sua base a
partir da respiração, para que a parte superior fique livre para se orientar e manipular a
situação experiencial.

Vianna (2005) corrobora essa concepção. Para ele, respirarnão se resume à


entrada e à saída do ar pelo nariz. O corpo não respira apenas através dos pulmões, mas
primordialmente a partir do seu movimento de ser-corpo. Somos a cada momento
possibilidade, expansão e recolhimento, cada célula pertencente a nosso corpo é
expansão e recolhimento: esse é o ritmo do universo. Temos todos um ritmo comum
universal e precisamos atuar respeitando esse ritmo. Respirar significa abrir, dar espaço.

108
Imagem muito forte de nossa emoção, a respiração é um dos aspectos corporais que
representa nossa troca com o mundo.

É nesse sentido que Fritz Perls costumava dizer que toda sessão terapêutica
deveria começar pela respiração. De acordo com Alvim (2016):

a respiração é uma função fisiológica que envolve troca constante e intensa


com o ambiente. Quando há excitamento, a respiração se intensifica, o
movimento de abertura é em direção ao mundo é fluido. Quando o
excitamento é inibido, a respiração fica contida, o movimento de expansão
para o mundo se interrompe, o excitamento é sentido como ansiedade. (p. 37)

Quanto maior o suporte, maior é a capacidade criadora e singular do sujeito,


permitindo-lhe desenvolver um estilo próprio. Laura Perls (apud Alvim,2016) define o
estilo como a maneira mais integrada de funcionamento, expressão e comportamento. O
estilo é um modo singular do sujeito fazer contato ea terapia visa desenvolver um estilo,
ou seja, uma forma integrada e integradora de execução e expressão dos movimentos e
da gesticulação.

Como discutimos, Merleau-Ponty (1991) referiu-se ao estilo como uma maneira


singular de perceber, uma singularidade sensório-motora que marca o modo como se
percebe e age, ou seja, um estilo de expressão e criação. Tal como discute Alvim
(2016), “Nesse movimento vivo dado no campo organismo/ambiente vai se esboçando
um modo singular de ser no mundo, de perceber, um estilo motor de andar, ver, falar,
ouvir, se movimentar, capaz de expressão e de transformação” (p. 30). Assim a autora
enfatiza a ideia de Laura Perls da clínica como resgate do estilo pessoal.

Para pensar uma clínica da sensibilização inspirada nas perspectivasmerleau-


pontyana e da clínica da Gestalt-terapia, é necessário ter em vista que o estilo é
sensório-motor e que o movimento e a expressão plásticos envolvem um trabalho com o
corpo que integre as dimensões Körper e Leib, morfológico-funcional e vivida.

109
CAPÍTULO 4 -UMA COMPREENSÃO AMPLIADA DA CORPOREIDADE EM
DIÁLOGO COM A DANÇA: NOTAS PARA UMA CLÍNICA DA
SENSIBILIZAÇÃO

Neste capítulo abordaremos com maior profundidade alguns pontos que já


mencionamos ao longo do trabalho e nos permitem ter uma compreensão ampliada da
clínica, do fazer clínico e da noção de terapêutica a partir do diálogo entre a tríade
composta pela MAV, a fenomenologia de Merleau-Ponty e com a Gestalt-terapia acerca
da questão corporal. Acreditamos que existem algumas noções que melhor evidenciam
pontos de diálogo entre as três áreas de saberes e que costuram a compreensão inicial de
uma clínica da sensibilização. Elas estão articuladas em torno das noções de
conscientização do movimento e de expressão como criação. A noção de ser-corpo ou
simplesmente o corpo é o solo que sustenta a emergência dos outros dois fenômenos
que compõem o processo de sensibilização.

4.1 – Corpo, Conscientização do movimento e expressão como criação: integrando


perspectivas
Os estudiosos do MAV (IMBASSAÍ, 2003; MILLER, 2007; RAMOS, 2007;
MILLER, 2012; NEVES, 2008; TEIXEIRA, 2008) geralmente se referem ao trabalho
de Angel Vianna como um meio de se trabalhar a conscientização corporal. Todavia,
nos questionamos a respeito da ideia de conscientização corporal, pois a própria Angel
Vianna, como vimos, parou de nomear seu trabalho desta forma e passou a nomeá-lo de
conscientização do movimento. Acreditamos que para a bailarina, falar em
conscientização corporal não faz mais sentido, pois para ela não é o sujeito como uma
consciência que precisa se conscientizar de que tem um corpo, mas é o corpo que se
conscientiza dele mesmo a partir do movimento.

No ato espontâneo e prazeroso de se movimentar, o corpo com seus membros,


espaços internos, (articulares, intersticiais e viscerais) e com suas múltiplas maneiras já
adquiridas de se relacionar com o espaço, o tempo e com os outros corpos e objetos,
experimenta sua potência, seus limites, suas cores, texturas e formas. No contato com o
seu movimento e com o movimento do mundo, o corpo amplia sua a capacidade
110
inventiva e criativa. “Brincando” de se movimentar, o ser-corpo aflora e se expande
cada vez mais, com mais vigor, brilho, vida, fluidez e beleza – e no movimentar
culmina o sentido de ser, de viver, das coisas e do mundo compartilhado. O corpo é o
próprio movimento. Quando se movimenta, o corpo aprofunda e atualiza um estilo de
ser. O estilo não é algo fixo e imutável; está sempre se refazendo no tempo e no espaço,
mas ele mantém uma singularidade.

Crucial frisarmos que na perspectiva da MAV, o termo consciência não é


compreendido como uma entidade isolada e independente do corpo; não podemos nos
referir a ela como um substantivo. Não nos referimos à uma consciência exclusivamente
intelectual, prenhe do pensamento racional apenas; e ela não é localizada corporalmente
“na cabeça”. O termo consciência, nesta perspectiva, só pode ser compreendido como
ação, como verbo: conscientiz-ação. É algo que se dá na relação com o mundo, no
contato corporal consigo e entre os corpos.

Nesse sentido, o corpo é conscientiz-ação, um processo perceptivo-motor-


criativo. Ela está na respiração, no movimento interno do corpo, no contato da pele com
o ar, com o chão, com a pele de outrem; está no silêncio atento dos olhos, na escuta da
fala, no calor das mãos, nas gotas de suor, no pulo, no toque, no sorriso, na surpresa, no
choro, no grito, no entrelaçar dos dedos, na ponta das unhas.

Essa noção de conscientização do movimento dialoga harmonicamente com a


noção de percepção e motricidade para Merleau-Ponty e com as noções de campo
organismo/ambiente, contato e awareness para a Gestalt-terapia.

De acordo com o que discutimos anteriormente, para Merleau-Ponty a


consciência é consciência perceptiva, dada por um corpo situado no tempo e espaço. A
conscientização relaciona-se com a capacidade perceptiva, por ele compreendida como
capacidade motora, e o movimento perceptivo também é descoberta, pois a percepção é
o modo como o fenômeno nos aparece. A percepção é um estilo motor de perceber o
mundo, ou melhor, é a forma como o mundo se organiza a partir do corpo situado em
movimento. E isto é origem de sentido e é o ato expressivo em si. O estar vivo, o
movimentar-se, o perceber já é em si expressão.

111
De modo semelhante, para a Gestalt-Terapia, o processo de awareness, como
discutimos, envolve o sentir dado no campo organismo/ambiente, onde se produz um
um fluxo espontâneo de formação de formas emergentes no encontro do corpo com o
mundo na situação presente. O processo de contato envolve uma dimensão sensório-
motora que age como um todo exercendo uma ação criativa que visa o equilíbrio do
campo organismo/ambiente.

Todavia, se o corpo está dessensibilizado, o processo de contato fica


comprometidos. Nessa linha, a neurose é uma forma deformada de perceber, pois nela
há sempre um movimento repetido e cristalizado de “enformar” o mundo, de colocar o
mundo numa fôrma. Na neurose não há espaço para o livre ato de perceber, não há
encontro criativo com o mundo, nem expressão espontânea do ser. Na neurose o sujeito
está sempre “enformando” o mundo, ele fica refém de uma lente perceptiva que
interpreta o mundo ao invés de percebê-lo, fluindo como parte dele. A dessensibilização
corporal é, assim, fator central na neurose.

O grande questionamento da fenomenologia recai sobre a questão do nascimento


do sentido. Para Merleau-Ponty (2011) essa questão está intimamente ligada ao corpo e
ao fenômeno da percepção. De acordo com o filósofo o sentido emerge do campo
perceptivo. O campo é uma dimensão pré-reflexiva, é uma dimensão de afetação, da
ordem do sentir. Sentir ou ser afetado por algo não é reagir a um estímulo. Falar em
reação é ainda estar numa perspectiva dicotômica. Mas, para o filósofo corpo e mundo
são feitos da mesma substância, são da mesma carne. O sentido brota do sentir. É como
corpo que sou sensível, é como corpo que sou movimento, é como corpo que sou
criação. Criação é expressão. Essa dimensão pré-reflexiva, sensível, expressiva é o
próprio ser-no-mundo. É o corpo situado no mundo. Quando falamos de consciência no
movimento, de presença, de awareness, falamos da experiência do corpo imbricado no
mundo. Se o corpo está conectado ao mundo, o gesto é fluido, expressivo. Na conexão
com o campo que o movimento pode emergir.

O processo de conscientização do movimento e jogos corporais promove o


aumento do estado de presença corporal no mundo com o outro, o que contribui para a
expansão do fluxo de awareness. Trata-se da apropriação sensível da imbricação
percepção-motricidade tal como é pensada por Merleau-Ponty na existência concreta.
112
Para essa clínica, a dessensibilização é a origem dos sofrimentos existenciais e a noção
de criação como processo de reconquista da sensibilidade do corpo é o que pode a
transformar a situação de sofrimento existencial em abertura de possibilidades em
direção a uma condição de ser mais saudável.

De acordo com Imbassaí (2003), a prática da conscientização21pode contribuir


para a reversão do fenômeno da dessensibilização por meio de um aprofundamento da
consciência de si, enquanto uma totalidade somatopsíquica. A conscientização não deve
ser confundida com práticas psicologizantes ou fisioterápicas, mas trata-se de um
exercício de autorregulaçãodo tônus muscular e da organização postural, com técnicas
de relaxamento, micromovimentos (músculos, ossos, articulações = consciência mio-
ósteo-articular), criatividade e dança. Seu objetivo é promover a integração da
dicotomia corpo-mente vivida na dessensibilização através do que chama de
sensibilização, ou seja, uma retomada da sensibilidade corporal por meio do trabalho
mais atento e focado com os sentidos físicos.

O princípio da conscientização é o cuidado e a atenção para as sensações, a


dinâmica, a postura, a tonicidade e o equilíbrio do corpo. Na gestalt-terapia, o trabalho
de ampliação do fluxo de awareness dialoga com a proposta da conscientização
apresentada aqui. Imbassaí (2003) esclarece que o cerne do problema dos portadores de
questões álgicas e posturais (quando não são acometidos de trauma por acidente, fatores
genéticos determinantes, e disfunções do sistema extrapiramidal e/ou do cerebelo)
provavelmente deve ser creditado ao estresse crônico e aos maus hábitos corporais que
levam à hipertonia, encurtamento dos músculos posturais da estática (anti-
gravitacionais), comprometendo também o funcionamento dos músculos antagonistas e
o alinhamento correto dos ossos, bem como a flexibilidade das articulações.

Lembramos que hipertonia muscular é aspecto da etiologia da neurose em


Gestalt-terapia. A neurose está conectada com o fato do corpo aparecer como uma
figura e como uma dimensão isolada e não integrada à situação, ou seja, quando há um

21
Embora Imbassaí use a expressão “conscientização corporal”, ela o utiliza com inspiração do trabalho
de Klauss e Angel Vianna e nós fazemos uso de sua importante contribuição ao tema da prática da
sensibilização corporal.

113
rompimento da totalidade mente/corpo/mundo, como afirma Alvim (2016). Com isso,
percebemos que o fluxo de awareness está impedido, o excitamento não pode fluir e a
figura perde sua força e seu interesse. A estrutura figura-fundo não tem muita nitidez
nem vigor e o movimento perde a elegância, tornando-se mecânico e/ou repetitivo. De
acordo com Perls, Hefferline e Goodman (1997), a musculatura se contrai, impedindo o
excitamento de fluir, o que pode culminar em uma forma fixada, em uma espécie de
fisiologia secundária, ou crônica, e inconsciente. A situação se torna neurótica quando
essa fisiologia substitui a espontaneidade motora no processo de contato. Tal
desequilíbrio produz dores intensas, desordens posturais com profundas consequências
sobre o corpo e o psiquismo, particularmente sobre a respiração que é o elo entre corpo
e psiquismo, predispondo ao estresse e formando crispações e rigidez muscular crônica.
O foco da conscientização concentra-se sobre a sensibilização, via que abre as portas da
percepção do corpo (IMBASSAÍ, 2003).

Nesse sentido, de acordo com Imbassaí (2003) trabalhar a qualidade do gesto


passa, simultaneamente, por um trabalho de conscientização. O exercício de
conscientização passa por quatro etapas: espreguiçamento (liberação do excedente de
tensão acumulada no cotidiano), relaxamento consciente (estado de passividade atenta,
entrega), micromovimentos (apreensão do sistema corporal próprio, atenção à postura,
alinhamento ósseo, contato com o chão) e uso do espaço (jogos corporais, brincadeiras
lúdicas, dança livre, expressividade, espontaneidade do corpo). Todos esses são
abordados pelo princípio da simultaneidade do trinômio indissociável neste trabalho,
sentir /mover /pensar que proporcionam a tomada de consciência das conexões entre
esses segmentos assim como sua relação com a coluna vertebral. A motivação do
trabalho de conscientização, para Imbassaí, é atuar sobre o aparato corporal com vistas a
sensibilizá-lo, capacitando o indivíduo a detectar suas tensões e a proceder
adequadamente para regulá-las, podendo perceber que em si há uma energia
impulsionada por um ritmo dinâmico; essa prática estimula, portanto, a propriocepção,
o equilíbrio e o deslocamento do corpo no espaço (IMBASSAÍ, 2003).

O trabalho de conscientização explicitado por Imbassaí e inspirado na MAV


dialoga com a proposta da Gestalt-terapia que propõe restabelecer o fluxo de awareness
para resgatar a espontaneidade compreendida como ações motoras capazes de criar,
orientadas para as figuras formadas a partir da necessidade dominante no campo, que
114
permitem o crescimento e a formação de novas significações, como o foco do processo
terapêutico. Isso dialoga com a noção de expressão para Merleau-Ponty (2011) e com a
valorização da dimensão sensível pelo filósofo.

Um dos elementos mais importantes no trabalho de conscientização é a pele.


Nosso maior órgão, a pele, é o invólucro flexível do corpo e é também de fundamental
importância no trabalho de sensibilização. Sua principal função é a de proteção, mas
também

(...) projetam-se em nossa pele, como sobre uma tela, as variações psico-
fisiológicas das emoções que experimentamos. Enrubescemos de vergonha
ou timidez; empalidecemos de medo; transpiramos de ansiedade; brilhamos
irradiando alegria, ao toque amoroso quando estamos saudáveis (IMBASSAÍ,
2003, p. 53)

Quando somos tocados, especialmente por algum gesto reconfortante, a


estimulação cinestésica pode se constituir num meio eficiente de liberação das
crispações musculares e psíquicas que geralmente deixam o corpo tenso e contraído,
imune às vivências prazerosas. “Por sua expressiva capacidade elástica, a pele é de
fundamental importância para um confortável estar em si corporal” (op. Cit. 2003, p.
54). Não temos acesso às nossas sensações quando estamos crispados, perdemos a
noção de nossos limites e ficamos favoráveis a extrapolar nossas possibilidades,
favorecendo as disfunções causadoras de mal-estar e das dores.

Isso faz de toda a região fronteiriça, a pele, uma potência perceptiva-


conscientizadora, por assim dizer; vemos o mundo de cada ponto e área de nossa pele e
a consciência se estende por toda a sua superfície. Os olhos e ouvidos deixam de ser
órgãos privilegiados na operação perceptiva, tornando-se o corpo inteiro (pele,
membros, órgãos, movimentos, articulações) o fator contribuinte direto na percepção do
mundo, como um único órgão perceptivo, o corpo inteiro percepciona e vê. Em outras
palavras, a percepção do mundo opera-se essencialmente por meios afetivos, pois é o
corpo que se abre para o mundo através da pele, é o corpo sensível e presente às suas
mais finas texturas, intensidades, forças e aos ritmos dos outros corpos. A ideia de pele
trazida aqui dialoga muito bem com o conceito de fronteira de contato da Gestalt-
terapia. Tal como afirmaram Perls, Hefferline e Goodman (1997, p.43)

115
Quando dizemos “ fronteira” pensamos em uma “fronteira entre”; mas a
fronteira - de - contato, onde a experiência tem lugar, não separa o
organismo de seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contém e
protege, ao mesmo tempo que contata o ambiente. Isto é, expressando-o de
maneira que deve parecer estranha, a fronteira de contato - por exemplo, a
pele sensível - não é tão parte do “organismo” como é essencialmente o
órgão de uma relação específica entre organismo e o ambiente.

É na fronteira que o encontro sensível do corpo com o mundo, com uma


novidade que o convida a se mover e criar esteticamente um novo sentido no campo de
experiências. Para que isso aconteça, faz-se necessário o livre fluxo de awareness com o
resgate da espontaneidade e da elegância do movimento de formação de formas.

A conscientização, coloca Imbassaí (2003), é um instrumento pedagógico de


caráter preventivo, porém como sua meta é trabalhar com os elementos constitutivos de
uma organização corpo-mente sadia e em equilíbrio, sua prática pode ser considerada
como uma atividade terapêutica. A regulagem das tensões (pele, toques, relaxamento,
alongamento, micro movimentos, dança livre); a organização da postura (presença da
coluna vertebral, noção de eixo vertical, posições, deslocamento espacial); a percepção
das conexões entre os segmentos; o fortalecimento da dinâmica corpo/mente,
promovido pela inter-relação mover/sentir/pensar proporcionam: a reposição da energia
desgastada pelo estresse; a melhoria das condições posturais, da respiração, da
circulação, da coordenação motora, da propriocepção; o equilíbrio do organismo como
um todo produzindo integração corpo-mental, promovendo saúde e bem-estar.

Corrigir a postura de forma sensível, e não de forma mecânica é o foco da


sensibilização. Tarefa delicada, porque a postura de uma pessoa contém sua história de
vida, traumas físicos e psíquicos, marcas, cicatrizes, mágoas e ressentimentos que, em
menor ou maior escala, a afetam restringindo sua possibilidade de expressão. O corpo
inexpressivo, como afirma Klauss Vianna (2005) é privado de oxigenação e a
expressividade do corpo reside, dentre outros, na respiração, se a cortamos, estamos
cortando nosso cordão umbilical com o mundo.

Essa noção exposta por Klauss Vianna dialoga com a noção de contato e campo
organismo/ambiente propostas pela gestalt-terapia. É preciso dar espaço, um espaço
novo em mim para que surjam coisas novas, novas possibilidades de ser. É preciso
116
desestruturar o corpo daquilo que lhe é familiar, daquilo que sempre se define como
sendo e dando importância à sua condição originária de ser-aí, de presença temporal-
afetiva-espacial. Sem essa desestruturação não surge nada de novo. Desestruturar
significa uma mudança de ritmo. Para acordar o corpo é preciso desestruturar, fazer
sentir esse corpo (VIANNA, K., 2005). A Gestalt-terapia, quando fala da neurose,
aponta que o processo de contato fica enrijecido por conta de hábitos adquiridos e não
renovados. Tal como discute Alvim (2014) a terapia visa provocar um desajustamento
criador, uma quebra da familiaridade neurótica através da frustração do modo
“enformado” de perceber e movimentar-se na existência.

Com a experiência do conflito surge o movimento, como afirmava Klauss


Vianna (2005) é preciso saber jogar com os paradoxos e com a sensação de chegar ao
seu limite. Só depois de nos sentirmos presos saboreamos o exato sabor da liberdade. O
espaço existente entre as oposições gera os conflitos. Duas forças opostas geram um
conflito que gera o movimento. O movimento surgindo se sustenta, reflete e projeta sua
intenção para o espaço. A vida em movimento está nesse espaço, no espaço
intermediário, isto é, na vivência entre o princípio e o fim de um movimento, de uma
expressão do nosso ser. Estar presente a cada movimento, não deixar escapar a intenção
de um movimento enquanto ele se realiza, nem antecipar mentalmente seu fim é a
sabedoria de viver nem tanto lá nem tanto cá. À medida que vamos transformando
nossos espaços, eixos, flexibilidades e equilíbrio, trabalhamos não só nosso corpo
material, mas sobretudo nosso corpo próprio, fenomenológico no qual habita nossa
visão de mundo, nossa ótica das coisas, dos fenômenos e das pessoas.

Para a Gestalt-terapia esse movimento referido por Klauss Vianna é


compreendido como ajustamento criativo. O conflito, para a Gestalt-terapia surge
quando aparece no campo uma alteridade, uma figura que surpreende e desequilibra o
campo. A emergência da figura provoca um movimento criativo do campo em direção à
reestabelecer o equilíbrio, integrando a alteridade ao campo de experiências; pelo
movimento de ajustamento criativo a figura se integra ao fundo e abre espaço para uma
nova figura surgir dando prosseguimento ao fluxo de experiências, a dinâmica de
desequilíbrio e reequilíbrio próprio do movimento do campo, sempre se ajustando
criativamente.

117
O corpo sensibilizado é um corpo que vive na experiência da não-dualidade
mente/corpo. A MAV visa sensibilizar o corpo e, ainda que pareça ser um conjunto de
atividades simples como o tocar a pele, alongar-se, experimentar movimentos, são
transformadoras, nos possibilitam conhecer e desvendar a corporeidade. Na dança,
compreendida pela perspectiva da MAV, há a oportunidade de perceber a
inseparabilidade entre as noções mente/corpo, pensamento/sentimento, eu/outro,
corpo/mundo, etc. Se o corpo próprio é o lóccus do ser-no-mundo, na perspectiva de
uma clínica da sensibilização, o dançar, podemos pensar, é o próprio ser-no-mundo. Os
movimentos vivos e atentos de um ser-em-meio-ao-mundo.

Godard (1995) comenta que as atitudes posturais são como lugares de inscrição
da história e argumenta que a organização gravitacional de uma pessoa se determina por
um punhado complexo de parâmetros singulares, culturais e filogenéticos. Isto é, a
atitude postural da humanidade está baseada tanto no fato histórico da passagem da fase
quadrúpede à fase bípede e no desenvolvimento da marcha, quanto às histórias
particulares inscritas em certos ambientes geográfico-sócio-culturais. Para o ser
humano, o aprendizado da marcha aliado ao aprendizado em paralelo da linguagem,
organiza seu senso de protagonismo e autonomia frente aos imperativos do mundo,
como por exemplo, os caminhos delicados do processo de singularização da criança em
relação à mãe.

Laura Perls (1992), comenta que para ficar de pé, na postura ereta, o corpo
precisa ter base para que haja liberdade com os braços e com a parte superior do corpo
para ver, enxergar de perto e de longe e poder agir no mundo, manipular os objetos do
mundo. Essa base a qual Laura Perls se refere, compreendemos, são como os apoios do
corpo que Angel Vianna sempre traz em seu trabalho como um dos pontos centrais da
MAV para o dançar. No processo de contato com a MAV a pessoa entra em contato e
pesquisa profundamente os apoios do corpo no contato com o chão, no contato com
objetos e outros corpos. Saber como utilizar os apoios do corpo é fundamental no
processo de conscientização do movimento e sensibilização corporal. Do livre jogar
criativo com os apoios do corpo, múltiplas possibilidades de movimentação podem
surgir.

118
Esses elementos todos contribuem para tecer a relação de sentido entre atitude
corporal, expressividade e afetividade para o sujeito, sob a ação flutuante da situação
em que este se insere. A mínima alteração do meio levará a uma alteração da
organização gravitacional do sujeito ou grupo de sujeitos.

“A mitologia do corpo que circula em um grupo social se inscreve no sistema


postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos serve de veículo
para essa mitologia. Determinadas representações do corpo que surgem em
todas as telas de televisão e de cinema participam na constituição dessa
mitologia. A arquitetura, o urbanismo, as visões de espaço e o ambiente no
qual o indivíduo evolui exercerão influências determinantes em seu
comportamento gestual” (GODARD, 1995, p. 21).

As concepções de corpo que moldam uma época, uma cultura, um grupo social,
marcam a organização tônico-gravitacional que acompanha e antevê qualquer gesto ou
atitude corporal.

O despertar da sensibilidade e a tomada de consciência das conexões entre os


segmentos corporais (principalmente os da coluna vertebral) permitem apreender a
estrutura corporal como uma totalidade integrada cuja projeção ocupa espaço. A partir
dessa percepção, individual, é possível perceber que outras estruturas, corpos, pessoas
também se movem e inter-relacionam-se. A observação disso favorece a tomada de
consciência dos outros incluindo-os num corpo com fronteiras invisíveis a serem
compartilhadas por todos: o corpo social. O que se tira disso é a integração entre os
universos particular e coletivo, o que amplia a conscientização para uma prática além de
um simples trabalho com o corpo (IMBASSAÍ, 2003).

A noção ser-corpo, que já mencionamos anteriormente, é fundamental para


compreendermos o sentido de “conscientização” que propomos neste trabalho, pois
desloca a ideia de que “perceber meu corpo”, “tomar consciência do meu corpo” são
faculdades exclusivamente minhas, do sujeito racional. Ao contrário, a noção ser-
corpo nos leva a conceber a consciência como “a vida do corpo” inseparável da
sensibilidade empírica e do sentido ligado a ela, isto é, a estética da existência.
“Conscientizar-se corporalmente” ou “tomar consciência de” passa a ser esse constante
exercício de “estar presente como corpo implicado no campo”. Aqui encontramos um
paralelo com a noção de fluxo de awareness na clínica da Gestalt-terapia. Estar aware é
119
estar atento e presente corporalmente ao campo, ao que está se passando no aqui-e-
agora da experiência. Essa atenção plena emerge da dimensão sensível e estética da
corporeidade. A Gestalt-terapia visa reestabelecer e ampliar o fluxo de awareness, o que
implica justamente fortalecer e aprofundar a sensibilidade e a capacidade expressiva do
ser-corpo.

Enxergamos na MAV e no ato de dançar que a MAV traz um espaço propício


para entrar em contato com a dimensão sensível, praticar esse estar aware e reencontrar
a capacidade criativa do ser. Reconhecemos na prática do movimento dançado a partir
dessa metodologia um convite constante para que o corpo se experimente de forma
integrada, na união das suas dimensões Körper e Leib; para que ele seja pura expressão,
um movimentar liberto de qualquer amarra que inspire sensibilidade e expire criação,
um movimentar de um corpo vivo, vazio fértil, acolhedor de sonhos e semeador de
novas realidades.

Na MAV, o que Angel Vianna chamou de conscientização do movimento e


jogos corporais nós propomos a seguir estruturar de forma resumida e didática em três
processos articulados e duas perspectivas: apreender, explorar e criar; nas perspectivas
do professor e do aluno. Para nós, os processos acontecem em forma de rede, de arranjo
no qual cada um incide sobre o outro e os três tendem a caminhar complementando-se e
diferenciando-se simultaneamente e mutuamente. O avanço em um enriquece,
aprofunda, realça e amplia a experiência dos outros dois e vice-versa. E cada processo
acontece em todas as aulas tanto de maneira focal quanto de maneira global, levando em
consideração a formação como um “todo”, e, podem ser observados a partir de duas
perspectivas diferentes que conjugam tanto um campo de visão e compreensão dos
processos, como também instauram um campo de ação intrínseco e co-emergente
contribuindo para que os processos se deem de maneira coesa.

Tais perspectivas, é preciso que se esclareça, são como grandes e silenciosas


redes de sustentação. São como as fáscias desempenhando um papel sutil, porém
extremamente necessário, pois embora os músculos e os ossos sejam as estruturas de
maior destaque na execução dos movimentos, são as fáscias que ligam, organizam e
articulam tais estruturas, assim como as ligam com os demais órgãos do corpo e
justamente conferem à estrutura corporal o estatuto de “um todo” singular.

120
Os três processos se dão em torno do corpo. A expressividade própria da
corporeidade e a criação como linguagem corporal emergem da situação ou campo
pessoa-mundo a partir do diálogo com outras corporeidades no mundo. Os três
principais processos no trabalho da MAV são:

1) Apreender: entrar em contato com a dimensão morfológica e funcional da


corporeidade (anatomia, fisiologia, cinesiologia em experimentação).
2) Explorar: atenção e percepção prático-reflexiva do movimento corporal já
em exploração expressiva.
3) Criar: compor ativamente uma linguagem própria do movimentar-se
singular no mundo e/ou com outras corporeidades presentes.
E as duas perspectivas nesse processo são:

1) Do professor: o “como” dar a aula, o “como” abordar e conduzir o


aprendizado envolvidos nesses processos.
2) Do aluno: a sua implicação nesse aprendizado visando a apropriar-se dos
saberes e da sua própria experiência corporal que culmina no
desenvolvimento do estilo singular de dançar e de ser, o processo de
apropriação de cada corpo.
Na perspectiva do professor – Este processo envolve uma atenção acolhedora
para a singularidade do processo de cada aluno ao mesmo tempo que expõe a teoria de
modo a incentivar o engajamento e o protagonismo de cada aluno acerca de seu
processo de apreensão, exploração e criação. O professor assume uma postura de
interlocutor, de parceiro ou guia e sobretudo de provocador nos processos da turma.
Como o professor já passou muitas vezes por este processo, ele detém um olhar
sensibilizado para os diferentes corpos de modo que fica claro para ele como pode
ajudar no crescimento, no desenvolvimento e na formação de cada aluno ao longo do
curso. Ele abre espaço para o aluno perceber e se apropriar de sua potência na
constatação de seus limites de criação e movimentação, inclusive é peça fundamental na
introdução do aluno em sua própria perspectiva de visão, ação e compreensão crítica e
autoral sobre seus próprios passos. Saber seus limites é potente no sentido de: somente
quando nos damos conta deles e quando eles ganham definição e contorno para nós,
podemos aceitá-los em direção a uma nova possibilidade de movimento e assim,
paradoxalmente, nos servimos deles como alavanca para ao mesmo tempo que os

121
aceitamos e reconhecemos, criarmos nosso estilo próprio de expressão e movimentação
capaz de ressignificá-los e transformá-los em outra coisa, como por exemplo, uma obra
artística.

Angel Vianna comenta em entrevista com Suzana Saldanha (que abordamos no


item 2.2 do segundo capítulo):

O professor deve começar lentamente dando as orientações para os alunos.


Não deve jogar palavras soltas no ar. (...) Sempre quis que o meu aluno
tivesse consciência do que estava fazendo, conhecesse o seu corpo, soubesse
organizá-lo obedecendo ao seu tempo e tudo isso em contato com o ambiente
em que estivesse. (Saldanha, 2009, p. 21-22, grifo nosso.)

Nesta citação fica clara a postura desejada para o professor na MAV. Qual seja,
começar lentamente respeitando como cada aluno chega na formação, ou seja, atentando
para suas demandas, questões, inquietações, desejos, limitações, automatismos e
preconceitos. Dar tempo para o aluno encarnar uma postura receptiva para as
transformações que advêm da formação: saber se colocar na perspectiva das relações
temporais e espaciais e poder dar ênfase ao contato com o ambiente e as outras
corporeidades.

Na perspectiva do aluno – Este processo tri-faciado envolve inicialmente a


exposição, a observação, a visualização atenta ao eu, ao outro e ao espaço através do
contato com os saberes anatômico, fisiológico e cinesiológico de uma forma viva no
processo de movimentar-se. Isto envolve tanto uma pausa para refletir sobre o
conhecimento exposto como também a análise deste em cada corpo. Podemos pensar
que este processo implica na apropriação mesma de um conteúdo geral ou impessoal
acerca do corpo enquanto conceito transformado num conteúdo experiencial do corpo
como singularidade pessoal, ou seja, ao estudar uma articulação, ainda que passemos
inicialmente pela introdução teórica, o estudar só ganha volume e concretude real
quando vivenciado diretamente por cada corporeidade. Sendo assim, não é o saber
teórico informativo que está em jogo e sim o saber experiencial. O primeiro serve para
alargar nossa percepção inicialmente ignorante da articulação como tal em nosso corpo.

Ao explorar expandimos os espaços, as dobras e pesquisamos os movimentos


sobretudo os cotidianos, naturalizados, estranhando-os e assim conscientizando-se

122
corporalmente dos elementos que sustentam a experiência de movimento, tais como os
apoios duros e moles (ossos e músculos) em contato com o chão, a ausência de apoio, a
atenção desperta, a respiração, o trabalho com foco nos cinco sentidos físicos, a
tridimensionalidade do corpo (frente, lados e trás), o diálogo com a participação do
outro.

O processo se dá em uma repetição atenta e consciente onde o crucial é uma


repetição que transforma e complexifica a experiência da movimentação
proporcionando sempre uma apropriação da temática pesquisada de forma inventiva e
inovadora que aponta para o surgimento do estilo e da expressão corporal singular em
cada movimento ou conjunto de movimentos (coreografia). No processo encontra-se
com seus dramas, seus hábitos de movimento adquiridos sem saber, ou seja, seus
paradigmas. Quebras de paradigma e saídas para fora da zona de conforto são inerentes
à dinâmica da exploração.

No criar, já estando estabelecida a apropriação singular do conteúdo da temática


em pauta tanto pela apreensão quanto pela exploração, o corpo tem agora concretamente
elementos para dar sentido, afetar, transformar e expressar sua existência de maneira
potente e artística. Está pronto para jogar com as outras corporeidades e instituir
concretamente uma nova realidade.

Passar pelo processo de formação na MAV envolve a descoberta implicada no


surgimento de “algo” que é corporeidade primeira e não mais informação teórica ou
ferramenta para um sujeito. Isto implica numa transformação de postura: de ter-corpo
para ser-corpo naquela temática específica explorada em sala de aula. Mas essa
transformação, revela duas faces importantes do processo de sensibilização que culmina
na criação de um estilo próprio. Essas faces aparecem em duas frases famosas que
Angel costuma sublinhar a respeito do seu trabalho, em primeiro lugar: a linguagem do
corpo é “a coisa” primeira e a dança é o pensamento do corpo. Compreendemos que
nestas duas afirmativas o que está em jogo é a dimensão de criação e expressividade do
corpo. Criação e expressão, aqui, não são tidos como dois fenômenos distintos e
separados, mas estão intimamente entrelaçados, senão unidos e indistinguíveis como as
duas metades de uma laranja.

123
No capítulo anterior havíamos dito que da perspectiva da Angel a MAV é para
todos, ela é inclusiva. Não é uma metodologia a ser aplicada em artistas apenas. Pois, se
a coisa é a linguagem do corpo e ela é (exprime) pensamento, isto vale para todos os
corpos, sejam eles quais forem. E, em se tratando de linguagem e pensamento do corpo,
é para outras corporeidades que essas expressões existem. Há uma frase célebre da
bailarina Angel Vianna que compreendemos estar intimamente ligada com esta
perspectiva de visão e ação: “O maior filósofo é o Corpo”. Compreendemos que esta
frase aborde justamente a conquista dessa perspectiva enquanto postura frente a
existência em geral.

A corporeidade como lócus da experiência existencial, como pilar de nossa


inserção no mundo, de nossa possibilidade concreta de diálogo com os outros e
interação com as coisas: ela e somente ela nos dá recursos para o ato de filosofar em seu
ser mais íntimo – debruçar-se sobre o sentido do ser-das-coisas, de si-mesmo, do mundo
e do outro, sair de uma posição convencional de compreensão do que está naturalizado
para poder enxergar novas formas de significar e se mover. Isto é perguntar: qual o
sentido das relações que nos constituem em meio a esses diversos entes e os constituem
para nós? Essa perceptiva reúne as outras duas clareando o aspecto primordial de nossa
corporeidade. O ser-corpo é relação, tanto de si para consigo quanto dele para com as
coisas, o mundo e os outros.

Na tradição Zen existe o koan, uma pergunta feita para quebrar a rigidez da
visão. O mestre bate uma mão espalmada contra a outra e pergunta ao
discípulo: “Qual é o som que surge de apenas uma das mãos? ”. Não há
resposta possível. Batemos a mão espalmada sobre uma mesa, depois sobre
um livro, na parede e em uma cadeira. Cada objeto produz um som diferente.
É fácil identificar o som de cada um. Batemos então uma mão contra a outra.
Seria o som apenas de uma das mãos? Sendo ambas iguais, a qual delas
pertence o som quando batemos palmas? Se o som pertence a ambas, o
mesmo se dá quando batemos na mesa, no livro, na parede e na cadeira. Mas
nossa interpretação foi sempre a de que o som pertencia ao objeto tocado.
Sempre nos pareceu que era uma característica dele. Essa é a forma mais sutil
de contaminação mental do processo cognitivo, a que implicitamente atribui
realidade separada a objetos e observador. Todas as características que
podem ser encontradas em objetos, nomeadas ou classificadas, são o
resultado desse tipo de simplificação: a crença em que o objeto pode revelar

124
características próprias. Em nenhum momento consideramos que qualquer
característica é apenas uma espécie de interpretação automática de um
processo de relação (Samten, 2001, p. 41, grifo nosso.)

A partir desse exemplo budista, podemos compreender que nossa singularidade


de ser-corpo já é “em si” compreender o papel dessas relações como rede de originação
interdependente do sentido de todas as coisas que nos rodeiam e que participam de
nossa existência. Nosso corpo é um emaranhado de relações e nossos sentidos físicos
são a “mão” que “pega” as experiências a partir das relações. Existimos e circulamos no
mundo como corpos sensíveis e abertos às experiências – sem corpo não há mundo,
coisas e outros. Esta perspectiva do corpo na MAV, para nós, exprime diretamente a
concepção fenomenológica merleau-pontyana acerca da corporeidade e do lugar central
da percepção, da motricidade e da expressão nos acontecimentos existenciais, pois esses
conceitos, que constituem para o filósofo a corporeidade, são intrinsecamente
relacionais.

A partir da exploração desses pontos de contato passamos agora para a última


parte deste trabalho, onde traremos algumas reflexões em formato de notas que nos
permitam esboçar nossa compreensão de uma clínica da sensibilização.

4.2 - Notas para uma clínica da sensibilização


Clínica da sensibilização pelo movimento individual e coletivo consiste na
integração entre a conscientização do movimento e jogos corporais com a postura
clínica do Gestalt-terapeuta baseada os conceitos teórico-holístico-estéticos da Gestalt-
terapia: teoria de campo organismo/ambiente, ciclo de contato, fronteira de contato,
ajustamento criador, fluxo de awareness.

Nota 1: a perspectiva do terapeuta e do cliente na clínica da sensibilização


como a conjugação das perspectivas de professor e aluno para a MAV e de Gestalt-
terapeuta e cliente na clínica da Gestalt-terapia.

125
Tanto a dança quanto a clínica, como a compreendemos, são processualidades,
se dão de forma dinâmica, como processos de criação.

Na Gestalt-terapia o terapeuta trabalha com o que o cliente traz para a sessão,


não há uma diretividade definida, a iniciativa é, em sua maioria do cliente, a partir dos
elementos trazidos o terapeuta convida o cliente a se perceber e a criar um novo
desfecho para a sua questão. Já na MAV o professor não é ortodoxo, mas tem uma
pedagogia. Tem uma diretividade. Todavia, na proposta de uma clínica da
sensibilização, o intuito é que o artista-terapeuta também trabalhe com o material
trazido pelo cliente; o material trazido pelo gesto sensível, eminentemente corporal do
cliente, a partir de um convite a uma exploração x do corpo proposta pelo terapeuta. Há
uma diretividade não-definida, que não é impositiva – é convidativa. A partir de um
convite numa direção de movimento, o cliente pode aprofundar sua pesquisa e nisso ele
amplia sua percepção sobre sua corporeidade, se conhece melhor, reconhece sua
potência criativa e pratica a liberdade, pois agora que ele pesquisou e descobriu várias
possibilidades de movimentação dentro daquela temática proposta, pode escolher entre
qual caminho de movimento investir sua atenção, sua energia em direção ao lapidar de
sua expressão, seu estilo.

Para dançar é preciso se conhecer, conhecer o corpo, do que ele é feito, como se
estrutura, se articula, se apoia para se movimentar, desde os movimentos mais básicos.
Quais os limites e possibilidades de movimento, tanto no individual como no coletivo.
(Re)conhecimento da estrutura bio-anatomo-fisiológica. Isso amplia as possibilidades
de expressão, pois o movimento cotidiano não está/precisa estar desvinculado do
movimento artístico/dançado/criativo. Ambos são expressões da singularidade do ser.
Conhecer-nos, experimentar-nos, pesquisar movimentos é um cuidado de si, no sentido
terapêutico, pois atua no nível da expressão, da criação singular de sentidos.

O terapeuta da clínica da sensibilização deve, assim como Angel Vianna,


trabalhar de forma aberta, sem seguir à risca uma ordem de aplicação da metodologia de
intervenção artístico/terapêutica, pois o primordial do trabalho é poder estar com o
corpo disponível para perceber o campo e se adaptar ao que surge como demandas
daquele público específico, daquele tema explorado. A ordem de sistematização, esse
“como fazer” não é mais importante do que se apresenta na situação presente. O “como”

126
precisa ser capaz de se atualizar conforme o que se apresenta. Quando o processo de
sensibilização já está na carne do cliente, encarnado em seu corpo, a condução da
prática corporal se liberta das amarras dos pré-requisitos. O processo de sensibilização
não deve ser encarado como linear, mas como um conjunto de direções possíveis que
reservam um espaço para a criação, para serem rearrumadas e combinadas de acordo
com a configuração do campo. A Gestalt-terapia também dialoga com essa perspectiva
de abertura, de poder perceber o que surge na situação clínica, para que então uma
direção e uma ação se tornem possíveis. Em uma clínica da sensibilização, as visões e
as metodologias de intervenção, tanto da MAV quanto da Gestalt-terapia, devem servir
ao corpo, e não o inverso.

Na MAV o convite é entrar em contato com a dimensão anatomo-motora,


funcional com o intuito de criar e desenvolver um estilo de dançar; na clínica o foco é
aprofundar a singularidade, seu estilo de criar para o enfrentamento e ressignificação
das questões trazidas pelo cliente. Na GT não tem diretividade, mas no olhar do
terapeuta ele olha a expressão corporal do cliente, como o corpo do cliente aparece para
ele, mas isso não é anatomia e fisiologia, etc. Isso se apresenta de alguma forma, mas
como? Muito mais pela dimensão sensível do terapeuta se deixar afetar pelo movimento
do cliente, pelo como ele chega no consultório e convidá-lo a se perceber. O Gestalt-
terapeuta não o convida aos moldes de um processo pedagógico. Ele convida o cliente a
se perceber compartilhando com o cliente o modo como ele próprio, terapeuta, se
percebe. E perguntando para o cliente como ele se vê, naquele momento.

Para essa clínica da sensibilização, o foco do trabalho é o corpo que está em


trabalho. A partir do olhar sensibilizado do terapeuta, há um reconhecimento da
particularidade desse corpo e uma intuição aguçada do que se precisa trabalhar. O
terapeuta adapta e rearranja seu conhecimento e experiência advindo do seu próprio
processo de sensibilização em uma maneira singular de acolher o corpo do cliente de
forma que a proposta terapêutica faça sentido para o cliente na situação de vida onde se
encontra. Na dança, Angel Vianna costuma dizer que uma aula de corpo só é boa se for
para todos. Da mesma maneira, a clínica da sensibilização não prescinde um espaço que
possa receber os diferentes corpos. Esse “para todos” não é no sentido de uma
generalidade uniforme, mas no sentido de uma abertura para as singularidades.

127
O “como” se ensina na MAV e o “como” clinicar na clínica da sensibilização
passa pela compreensão de que o fazer clínico é um campo aberto de experiências
disponíveis que aprofunda o conhecimento dos corpos sobre eles mesmos. Se o trabalho
de conscientização do movimento for bem feito, a pessoa consegue se entregar à criação
individual e coletiva.

Descobrir e pesquisar são a criação de novas movimentações que promovem a


quebra de paradigmas, proporcionam o convite à saída da zona de conforto do que é
familiar e conhecido para o desconhecido, estranho. No movimento de arriscar correr o
“perigo” de viver uma nova experiência, dá-se a ressignificação da existência.

O contato com outras linguagens artísticas, para alguns Gestalt-terapeutas


enriquece a sua maneira de clinicar. Na MAV esse contato também é muito bem-vindo,
pois, como comenta Angel Vianna (2016), “A arte é o grande poder do ser humano, é a
capacidade de fazer algo, é o momento de criação”. Quanto maior o contato
diversificado com a arte, mais a corporeidade é enriquecida, trabalhada, sensibilizada.

Nota 2: o lugar do corpo.

Dançar, trabalhar o corpo pelo movimento na sua qualidade artística, aumenta a


capacidade perceptiva, amplia a motricidade, aumenta a capacidade de prontidão, de
estar aware, potencializa a capacidade criativa, aumenta a agilidade no receber a
demanda e agir conforme a demanda da situação, diminui a dúvida, a deliberação que
retira o corpo da situação, que o “des-situa”. No movimento sensibilizado pensar e agir
acontecem juntos, simultaneamente. No jogo isso fica mais claro, pois a rapidez e a
dinâmica dificultam a formas enrijecidas de entrar no movimento automático habitual.
O “parar para pensar” mata a criatividade, para a Gestalt-terapia, interrompe o ciclo de
contato e compromete o fluxo de awareness. Na MAV, a linguagem corporal é a
capacidade expressiva a partir da sensibilidade do corpo para além da palavra falada,
isto é, baseada no pensamento reflexivo e a dança é pensamento do corpo, no sentido de
um pensamento sensível, pré-reflexivo, inventivo, expressivo e criador.

Na MAV, focar no trabalho com uma parte do corpo sempre implica não se
esquecer do “todo”, é sempre um explorar dinâmico e não focal. Com o exercitar do

128
movimento de uma parte, a investigação do que aquela parte consegue fazer semi-
isoladamente, a percepção da parte e do “todo” se aprofunda e complexifica. Desse
modo, todo o corpo se reconfigura, se transforma num “todo” mais detalhado
sensitivamente.

Para dançar, o corpo precisa ser preparado, isto é, sensibilizado. Como vimos
anteriormente, a contemporaneidade está permeada por formas dessensibilizadas de ser.
Desta forma, preparar o corpo significa estar disponível para conhece-lo, explorá-lo nas
suas diversas dimensões e também arriscar-se a criar, interagir com outros corpos,
observar, sentir e praticar um pensamento sensível do corpo. Nesse sentido, a questão
da repetição consciente e sensível torna-se fundamental no processo de sensibilização.
Repetir um movimento não quer dizer reproduzir o que já foi feito, mas significa um
repetir investigativo, exploratório, um repetir observando, um repetir que ao mesmo
tempo é um pensar-inventando, refletir-criando. Essa maneira sensível de repetição cria
sentidos novos para o movimento ao invés de apenas reproduzir; os movimentos do
repetir investigativo ganham lugar, sentido, uma ordem, uma qualidade expressiva,
compondo “um dizer pelo corpo”, uma coreografia. O repetir sensível carrega memória,
afeto, sentido, pensamento etc. Não é um imitar, é sempre retomada e descoberta. A
dança reduzida a uma técnica (pronta, acabada) reforça a dessensibilização. Da mesma
forma, a clínica entendida como um psicologismo, um sistema de etapas a serem
seguidas também reforça essa dessensibilização. A dança e a clínica podem ser
compreendidas como arte e ressignificação da existência, capazes de transcender o
sofrimento quando vividas como caminho de ser, aberturas possíveis. O corpo
sensibilizado possui uma escuta e uma apreensão do mundo diferenciadas.

A dança é um meio de conscientização, é o meio mais próprio de sensibilização


e intensifica a expressividade corporal, inclusive amplia a liberdade de escolha e
mudança.

Elementos importantes da MAV para a clínica da sensibilização:

- Observação (eu, outro, espaço/ambiente): Atenção (presença), estar aqui, no


agora, vivo, acordado.

129
- Consciência dos apoios do corpo (duros, moles, sem apoio) no chão, nos pés,
nos ísquios, no corpo todo, no movimento dançado ou não (no cotidiano). A consciência
corporal: é preciso conhecer o próprio corpo para poder dialogar com o outro.

- Expansão dos espaços articulares: pesquisar os movimentos do cotidiano,


comuns, básicos.

- Ampliar o conhecimento anátomo-motor, praticar o desenhar das direções


ósseas no espaço corporal e do ambiente. Ativação e inibição dos diferentes grupos
musculares no movimento.

- Trabalhar os cinco sentidos: olhar, ouvir, cheirar, provar, tocar, despertar os


sentidos para sua qualidade de sensibilidade, potências de “dar sentido”, . Os sentidos
físicos não são apenas sensações, mas eles são sensíveis, eles carregam estéticas e
sentidos, abrem possibilidades de ser.

- Trabalhar a tridimensionalidade (frente, lado, atrás): Aqui percebemos a


importância da espacialidade do corpo no trabalho corporal e no dançar. Quando nos
movimentamos trabalhamos a espacialidade do corpo e a espacialidade do mundo.O
corpo esculpe o espaço no seu movimento.

- Estar atento ao tempo de apropriação do processo por cada corpo.A


apropriação singular do material trabalhado por cada corpo. Como cada corpo lida e
cresce, vibra, se expande no contato com a dança e a MAV é análogo a como cada
cliente se apropria do seu próprio caminhar artístico-terapêutico na clínica da
sensibilização.

- Trabalhar com a imaginação, o lúdico, o mais importante é a expressividade de


cada corpo.

- Estar sempre atento e em contato com o ambiente.

Nota3: Integraçãodo trabalho clínico da Gestalt-terapiacom a dimensão


morfológico-funcional do corpo como proposto pela MAV.

Na clínica tradicional não há investimento em trabalhar com a dimensão


funcional-morfológica da corporeidade, a clínica não entra em contato com isso. Não se
130
pensa na anatomia. Propomos, numa clínica da sensibilização, trabalhar a dimensão
anátomo-motora do corpo, pois compreendemos que o biológico e o sensível não são
separados, inclusive, um dá suporte para que o outro exista. Uma dimensão alimenta a
outra. Desse modo, trabalhar com os ossos, músculos, articulações, fáscias, vísceras,
pele, etc., é um extravasar, um elevar ao máximo o convite do Gestalt-terapeuta para o
cliente “sentir como está no momento agora enquanto fala sobre tal questão”. O
movimento do corpo na pesquisa de movimento ou no movimento dançado como
compreendido na MAV, exige que o corpo faça uma imersão em sua capacidade pré-
reflexiva.

A experimentação livre do corpo em movimento contribui para a


(re)descoberta/criação das potencialidades de ser. Torna mais evidente o entrelaçamento
e a não-separação dos planos físico e mental, afetivo e biológico, corporal e intelectual e
assim por diante.

A emoção se ancora no corporal, os afetos estão alastrados pelo corpo, o que


significa que podemos acessar estados emocionais ao movimentar ou não-movimentar
(que também é uma forma de movimento) o corpo.

Nota 4: O processo de sensibilização corporal proposto pela MAV desemboca,


sem dúvida, na relação íntima do singular com o comum. Assim, podemos suspeitar que
a fenomenologia de Merleau-Ponty e a Gestalt-terapia são complementares à MAV
para exprimir esse acontecimento: a retomada do estilo pessoal.

O estilo próprio, para Merleau-Ponty (1991) liga o universal com o que temos de
mais singular. Cada corpo possui um estilo perceptivo/motor. O estilo se forma em
resposta às interpelações do mundo. A expressão está ligada às dimensões habitual e
atual da corporeidade (esfera individual) e as dimensões universal e pessoal (esfera
coletiva).

Ser intérprete-criador, dialogar sensível e experiencialmente com cada técnica de


dança. Dialogar sensível e experiencialmente com cada âmbito da vida = terapêutico.
Em direção ao refinamento de um estilo próprio.Criando novas movimentações

131
conhecemos a corporeidade. Criar é sempre retomada do que já existe e avanço, é
rearrumar, ver de outra forma, perceber o invisível escondido no visível.

O que reconhecemos como nosso corpo não é concreto no sentido de fixo, mas é
sempre síntese experiencial, sempre se reinventando. O corpo é fluxo de experiências,
sempre se centrando e descentrando conforme a configuração do campo.

O estilo é o que conjuga as múltiplas sensações e percepções, conferindo ao


corpo sua integralidade como totalidade gestual. As artes, a dança, nesse caso, são
linguagens na medida em que envolvem o corpo como gesto, ato expressivo. Cada estilo
é um modo de ver e agir com relação ao mundo e aos outros, ele apresenta uma
perspectiva de mundo e faz um recorte na realidade. O ato artístico e a expressão
artística não são subjetivos, quando o artista se expressa ele oferece novas significações
às velhas solicitações mundanas.

A expressão não é algo absolutamente novo, mas possibilidade de se direcionar a


um estofo comum de significações e rearrumá-lo, rearranjá-lo, reinventá-lo, recriá-lo. O
signo resguarda um sentido próprio e também guarda uma abertura, uma dimensão de
liberdade na qual há espaço para a criação. O corpo se expressa, para a Gestalt-terapia,
quando algo novo surge no campo que o descentraliza e ele se movimenta diante da
situação que o surpreende e que o tira do seu lugar de familiaridade. A expressão é o
movimento do corpo em busca de um novo lugar que reestabeleça, o equilíbrio da
situação presente. De acordo com a Gestalt-terapia, expressão é o movimento de
ajustamento criador, processo de desajustamento da condição habitual cristalizada e a
criação de uma nova condição. O artista é aquele que se propõe a estar no mundo de
modo diferenciado, não usualmente. Seu modo de expressão retorce as significações
cotidianas. Da mesma maneira, esse é o convite que o artista-terapeuta faz ao cliente na
clínica da sensibilização. O processo clínico aqui é oferecer um espaço para que o
cliente se descubra artista da sua própria caminhada existencial.

No trabalho de criação do corpo o estilo vai se fazendo e refazendo, o que


implica na constante atualização dos modos de sentir, perceber, dar sentido e agir. O
constante surgimento e atualização do estilo pessoal cria as estéticas de ser, de viver a
existência. O estilo que é nossa maneira singular de adquirir um hábito que pode ser
motor, sensorial, perceptivo, reflexivo, sensível e etc. O estilo não é algo totalmente

132
controlável pela pessoa, mas surge da interação corpo-mundo-outro, o estilo singular
não deve ser compreendido como identidade ou personalidade, mas como rastro da
relação ser-no-mundo situado. Não é um fim em si mesmo,; é eterno recomeço.

Nota 5: A importância do trabalho corporal no coletivo.

A MAV proporciona um caminho para acessarmos a dimensão do “para dentro


do corpo” e ao acessá-la, a dimensão da relação com o outro também é ampliada, pois
em certa medida eu e outro somos feitos da mesma carne. Se amplio meu conhecimento
sobre eu-corpo, me aproximo do ser-corpo do outro, adentro com maior facilidade no
“seu mundo” e posso compartilhar mundo com ele.

Presença, na perspectiva da clínica da sensibilização, é habitar o corpo de corpo,


não de consciência. A conscientização pelo movimento baseia-se na prática do estado
de presença, plenitude efêmera do momento presente na situação. É estar desperto,
relaxado, acordado, disponível, atento. Nos jogos corporais também há a prática da
presença na relação direta com o outro (seja outro corpo, seja um objeto) A relação com
o objeto aqui não é distanciada, mas é sensível, o objeto torna-se um ser que me
convoca, me afeta, me interpela igualmente como um ser vivo ou um outro corpo me
afetaria. A movimentação no âmbito do jogo coletivo, do dançar junto, da pesquisa-
investigativa coletiva é fruto de um relacionamento intercorporal intuitivo e espontâneo.
Intuição, espontaneidade e capacidade inventiva são os principais elementos
despertados e desenvolvidos nos corpos durante o jogo, (a partir de um jogo entre
corpos com direções as mais simples, amplas e claras, acontece uma determinada
pesquisa/criação de movimentos). Restringir para expandir. Uma direção não limita a
capacidade criativa, mas a potencializa.

A qualidade de agilidade de pensamento também é um elemento trabalhado no


processo de sensibilização a partir da pesquisa coletiva. A agilidade de pensamento
consiste em exercitar o desapegar, durante o jogo, os padrões de movimentos pré-
estabelecidos e investir na no trabalho de improvisação. Um lema que Angel Vianna
costuma dizer é “nunca ficar preso ao conhecido”. A improvisação é a criação
espontânea direcionada para o desafio imediato da situação de pesquisa, seja individual
(atrelada ao momento de conscientização do movimento) ou coletiva (atrelada ao
133
momento de jogo, pesquisa coletiva com outros corpos ou com objetos). Ela surge do
estado de presença corporal. Sem atenção, disponibilidade e abertura para/no campo,
não há improvisação.

...

Alvim (2014), traz a noção de proposição, maneira como Lygia Clark22 nomeia
seu trabalho artístico, para dialogar com a noção de experimentação, que a autora
desenvolve no âmbito da clínica psicológica da Gestalt-terapia. Segundo a autora, a
noção de proposição coloca que o artista propõe algo com sua obra partindo de uma
ideia ou pensamento tendo a finalidade de permitir a expressão do espectador, que a
artista plástica vai nomear de espectador-autor, pois o espectador torna-se um coautor
quando este experimenta a obra de arte e acaba por expressar, a sua maneira, a
proposição do artista.

Assim Lygia, de acordo com Alvim, “mostra o quanto considera que a abertura e
a diferença fazem parte da natureza do trabalho” (2014, p. 147). A noção de
experimentação, inspirado na noção de proposição de Lygia Clark e na fenomenologia
de Merleau-Ponty, surge da inquietação da autora em relação à uma parte da
comunidade de terapeutas da Gestalt-terapia entender as intervenções terapêuticas como
“experimentos”, no sentido de ações técnicas prontamente estruturadas, o que seria
desconsiderar o caráter organísmico e complexo da experiência humana e da situação
terapêutica. A partir daí a autora propõe discutir o trabalho psicoterápico da Gestalt-
terapia em seu caráter de experimentação.

22
Lygia Clark foi uma importante artista brasileira, pintora e escultora. É uma das fundadoras do Grupo
Neoconcreto e participou da sua primeira exposição em 1959. Dedicou-se à exploração sensorial em seus
trabalhos como A Casa É o Corpo, de 1968. Reside em Paris entre 1970 e 1976, nesse período sua
atividade se afasta da produção de objetos estéticos e volta-se sobretudo para experiências corporais em
que materiais quaisquer estabelecem relação entre os participantes. Retornando para o Brasil em 1976
Lygia se dedicou ao estudo das possibilidades terapêuticas da arte sensorial e dos objetos relacionais. A
poética de Lygia Clark caminha no sentido da não-representação e propõe a desmistificação da arte e do
artista e a desalienação do espectador, que finalmente compartilha a criação da obra. Na medida em que
amplia as possibilidades de percepção sensorial em seus trabalhos, integra o corpo à arte, de forma
individual ou coletiva. Finalmente, dedica-se à prática terapêutica. A artista destaca-se sobretudo por sua
determinação em atravessar os territórios perigosos da arte e da terapia. Disponível em:
https://www.escritório dearte.com/artista/lygia-clark

134
Consideramos que o ato terapêutico inaugurado pela Gestalt-terapia –
centrado na experimentação – explicita seu caráter fenomenológico, ao
mesmo tempo em que revela um fundo invisível, uma espécie de corpo
habitual enredado com a arte que dirige seu olhar sobre o fenômeno humano,
atravessando-o por referenciais estéticos. Ao se basear na experimentação,
fazendo uma passagem da explicação para a experiência, a Gestalt-terapia
propõe que o ato terapêutico seja um campo de experiência. Como propôs
Merleau-Ponty e como fez Lygia Clark com o espectador, convida a
psicoterapia a mergulhar na natural ambiguidade do mundo, para
ressignificar a existência (ALVIM, 2014, P. 257)

Acreditamos que, assim como a Gestalt-terapia, está no cerne da MAV o


oferecimento de um espaço de ressignificação da existência humana a partir do contato
artístico/terapêutico com o corpo no ato de dançar.

135
CONCLUSÃO
Nós privilegiamos a linguagem discursiva, mas a linguagem verdadeira é a linguagem da
energia: é por meio dela que o mundo opera. O mundo não troca palavras, o mundo se movimenta pelo
sinal das energias.

Lama PadmaSamten

No presente trabalho refletimos sobre os elementos constitutivos da MAV


aliados ao pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty e à prática clínica da Gestalt-
terapiapoderem abrir a possibilidade de um caminho terapêutico focado na
sensibilização corporal como uma forma interessante, relevante e direta de se trabalhar
as questões corporais advindas do processo de dessensibilização.

Vimos que a MAV não é em si uma clínica, pois é voltada, principalmente, para
a formação em dançae também para aperfeiçoar o trabalho de profissionais de áreas
afins como atores, artistas do circo, terapeutas corporais, dentre outros. Embora os
diferentes autores que estudam esse método já tenham compreendido que está prática
artística tem potencial para ser terapêutica, há muito ainda a se desenvolver sobre como
o aspecto terapêutico se dá efetivamente. Esta pesquisa procurou contribuir para este
campo de estudo.

Teoricamente, pudemos compreender a questão da dessensibilização corporal de


uma forma ampliada, pensando possíveis fatores que contribuem para que a experiência
corporal contemporânea se dê de forma dessensibilizada. Pudemos também pensar, de
forma metodológica e experiencial, sobre os elementos bases da MAV delineando os
principais pontos de articulação com a fenomenologia e a clínica. Apresentamos as
visões fenomenológica merleau-pontyana e gestáltica acerca da corporeidade,
desenhamos as primeiras ideias sobre a articulação entre as três áreas de saberes na
direção de pensar na possível construção de uma clínica que preconize a prática da
sensibilização corporal como via de retomada da dimensão sensível-senciente do corpo.

O que pudemos levantar como principal ponto de reflexão e discussão foi o fato
de, na perspectiva da MAV, ou seja, no contexto onde esta metodologia nasceu, a
questão da dessensibilização corporal é compreendida como uma dificuldade ao livre
desenvolvimento do aluno em sala de aula e é encarado como desafio a ser transposto
136
ao longo da formação do artista/bailarino. O artista/bailarino, dentro desta perspectiva,
podemos compreender, está formado quando seu corpo está sensibilizado e pode criar
livre e espontaneamente.

Entretanto, num contexto clínico, a questão da dessensibilização corporal se


configuracomo sofrimento existencial e é o ponto alvo do trabalho terapêutico. Nesse
sentido, propusemos iniciar a reflexão sobre se poderíamos construir uma clínica da
sensibilização ao adotar o método de ação pedagógico da MAV, aliássemos a ele o
olhar clínico da Gestalt-terapia e a compreensão da corporeidade oferecida pela
fenomenologia merleau-pontyana.

Mônica Alvim afirma a abertura dialógica da Gestalt-terapia para acolher, em


contextos diversos, as mais diferentes visões, estratégias e recursos de condução do
tratamento, estando essa perspectiva aberta ao diálogo com as artes e a filosofia.

Esse modo de considerar a corporeidade na clínica gestáltica é capaz de


nortear diversas formas metodológicas adotadas ao longo de um processo
terapêutico ou até mesmo de uma sessão de terapia. As intervenções
terapêuticas podem, assim, assumir diversas formas, de acordo com o estilo
do terapeuta e os recursos disponíveis no fundo de sua experiência. (Alvim,
2016, p. 53)

O próprio Merleau-Ponty, ao longo de sua obra, faz um diálogo muito estreito


com as artes (principalmente a pintura moderna) e com a psicologia. Assim, neste
trabalho buscamos seguir pelo mesmo caminho: o de pensar a dança compreendida pela
MAV de uma forma ampla, fazendo-a dialogar com a psicologia gestáltica e com a
fenomenologia merleau-pontyana, pois percebemos que a compreensão de cada uma
acerca do corpo pode enriquecer e contribuir para a compreensão das outras duas e vice-
versa e isso é frutífero para se pensar uma clínica centrada em estimular a corporeidade
e a criação de um estilo próprio de ser-no-mundo.

Não pretendemos, neste trabalho, fazer uma leitura de uma pela outra, mas
apontando os pontos de diálogo e as diferenças, fazer surgir um campo fértil de
questõese reflexões para se pensar efetivamente numa proposta clínica que trabalhe na
interface dessas áreas de saber e que vise a sensibilização corporal, isto é, a retomada da
dimensão sensível-senciente do corpo.

137
Acreditamos que este trabalho possa contribuir para o campo de estudo já
existente sobre práticas clínicas ampliadas. Um ponto que não foi esclarecido no
trabalho, mas que se configura como um possível caminho de continuação desta
pesquisa é pensar sobre se as perspectivas (do Professor, do Aluno e do Corpo) que
compõem a compreensão da MAV poderiam ser transformadas com o intuito de fazer
surgir a perspectiva do Terapeuta e do Cliente (e do Corpo, contextualizado, agora, num
contexto terapêutico) de uma Clínica da Sensibilização que acolhesse as corporeidades
em um setting terapêutico possivelmente fruto da articulação entre a MAV, a Gestalt-
terapia e a Fenomenologia de Merleau-Ponty.

Compreendemos que os objetivos dos três campos de saber, embora sejam


colocados de maneiras singulares dialoguem entre si e tendem a ir numa mesma direção.
Merleau-Ponty quis recolocar a essência na existência por meio de uma construção
filosófica de pensamento onde a Percepção, a Motricidade, a Expressão/Criação e o
Estilo são os fenômenos principais que delineiam nossa existência e aderência no
mundo e tais fenômenos nascem de nossa corporeidade. Na Gestalt-terapia o objetivo
principal é ampliar a capacidade do fluxo de awarenessno campoorganismo/ambiente.
Tais conceitos base desta clínica, como vimos, fazer referência direta à corporeidade, à
questão da percepção, da motricidade e da expressão/criação, sendo anunciado pela
própria Laura Perls que a clínica deveria ser um espaço de descoberta e refinamento de
um estilo singular de fazer contato no mundo com os outros.

A MAV, por sua vez, compreende o corpo a prática da dança através sob a
mesma ótica. Quando Angel fala do trabalho de conscientização do movimento, está
falando desse sensibilizar trabalhando através dos sentidos físicos e do movimento
espontâneo do corpo com o objetivo da criação e descoberta de um modo único de
dançar. O trabalho dos jogos corporais realça ainda mais a aposta desta metodologia no
movimento criativo e expressivo do corpo e acrescenta a dimensão do diálogo, da
relação com outras corporeidades, pois também comunga da compreensão
fenomenológica e gestáltica de que não vivemos sozinhos no mundo, mas sempre em
relação com.

Pensar numa clínica da sensibilização é pensar concretamente numa clínica que


ultrapasse o paradigma da doença e passe a compreender o ser humano pelo que tem de
potente e vital, que trabalhe com uma paradigma da saúde, da sensibilidade corporal,
138
que estimule a criação, ofereça o convite a uma nova compreensão da vida, não mais
dependente de um pensamento dicotômico, mas de um saber corporal pré-reflexivo, que
estimule o ser-artista, o estranhar em busca de uma nova perspectiva do instituído, “o
brincar” corporal, a investigação do movimento focada muito mais no próprio prazer da
descoberta. Um lugar onde possamos ser humanos, aceitar os limites sem enxerga-los
como limitações, mas sempre atentos para o que é possível no momento presente.

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