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Doutorado em Psicologia
ANSIEDADE
Fortaleza
2020
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Psicopatologia e Psicoterapia.
Fortaleza
2020
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______________________________________________________________
Profa. Dra. Virginia Moreira (UNIFOR) - Orientadora
______________________________________________________________
Profa. Dra. Anna Karynne da Silva Melo (UNIFOR) - Membro efetivo
______________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Maria Maia Viana (UNIFOR) - Membro efetivo
______________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (UERJ) - Membro efetivo
______________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Peres Messas (FCMSCSP) - Membro efetivo
Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz- Fortaleza, CE – 60.811-905 – Brasil - tel: 55 (0**85) 3477-3000
5
AGRADECIMENTOS
À minha família, em especial a meus pais, Taciana e Geraldo, pelo amor, carinho e
apoio incondicional, por me impulsionarem a ir além com a segurança de ter para onde
retornar.
Ao meu marido, Lívio, pelo amor e companheirismo cotidiano, que deram um toque de
leveza e alegria especial durante esse percurso.
Ao Luke, meu filhote de quatro patas e coautor favorito, que esteve ao meu lado na
escrita de todos os capítulos desta tese.
Ao Lucas, amigo que tanto admiro, sou grata pela parceria, disponibilidade e escuta nos
momentos de angústia.
À Márcia, por ter sido fonte de apoio e cumplicidade. Obrigada pelo ombro amigo e
acolhedor em tantos momentos, pelas risadas, conversas e cafés. Sua presença foi
essencial ao longo desse percurso.
À Fernanda, amiga de longa data, com quem tenho dividido novos sonhos e desafios.
Sou grata pela paciência, confiança e por me ensinar, todos os dias, a delicadeza do
cuidado ao outro.
Aos colegas do APHETO, pelas ricas trocas de conhecimento e pelos felizes encontros
compartilhados.
Aos membros da banca, Profa. Dra. Anna Karynne Melo, Profa. Dra. Luciana Maia,
Profa. Dra. Ana Feijoo e Prof. Dr. Guilherme Messas por suas valiosas contribuições na
construção desta tese.
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................11
a consciência absoluta........................................................................................35
e a vulnerabilidade...........................................................................................124
Capítulo 04 – Método..................................................................................................144
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................240
ANEXOS.......................................................................................................................249
REFERÊNCIAS...........................................................................................................265
11
INTRODUÇÃO
põe em dúvida a própria condição de ser dos indivíduos, alterando seus comportamentos
e exacerbando suas emoções. Mas foi apenas em meados do século XIX que a
posteriormente, como transtorno de acordo com o momento em que ela estava inserida.
Havia certa confusão histórica nos estudos dos sintomas da ansiedade, questão que
ainda se faz presente nos dias de hoje. Durante décadas só se conheciam suas aparições
somáticas devido às queixas físicas dos pacientes, as quais eram consideradas como
ansiedade aparecia com mais frequência nas situações da vida cotidiana burguesa
(Clark, 2012).
Após os anos 1820, a ansiedade passou a ser descrita como estado mental
estresse ou como “uma causa potencial de insanidade” (Berrios & Link, 2012, p. 881),
isso a insere timidamente na prática psiquiátrica como sintoma, mas com baixa
Campos & Landeira-Fernandez, 2010; Berrios & Link, 2012). Até então, as neuroses
ampliação deste quadro clássico foi intitulada como novas neuroses e, em seu conjunto,
sintomas somáticos, tais como dor abdominal, náusea, vertigem, tontura, palpitações,
etc. Estes podiam variar e aparecer em combinações diferentes de acordo com aspectos
graves, com alta incidência de mortes e risco de suicídio, a ansiedade foi classificada
etc. (American Psychiatric Association, 2014; Castillo, Recondo, Asbahr & Manfro,
meio aos quadros clínicos que acometem a população (Castillo et al., 2000; Machado et
al., 2016; Brentini, Brentini, Araújo, Aros & Aros, 2017; Mangolini, Andrade & Wang,
2019). Estes transtornos afetam uma vasta quantidade de pessoas e, no Brasil, os dados
sendo eles os sintomas mais presentes nos quadros clínicos mencionados (American
Vale destacar, entretanto, que além dos elevados índices epidemiológicos dos
et al., 2019), embora também possa estar associada ao transtorno bipolar (Kinrys,
Bowden, Nierenberg, Hearing, Gold, Rabideau, Sylvia, Gao, Kamali, Bobo, Tohen,
Guglielmino, Mastromatteo & Cavallaro, 2019), dentre outros, o que aumenta ainda
psicologia (Teixeira, 2006). Além de poder ser considerada uma forma de adoecimento
patológicos. Somado a este fator, nos deparamos em nossa cultura com certa dificuldade
em se lidar com o sofrimento. Como assinala Pinto (2017), “cada vez mais pessoas
séculos, ora como doença orgânica, ora como neurose e, por fim, como transtorno,
Estes, por sua vez, evidenciaram a supremacia dos sintomas e, como afirma Tatossian
(1979/2006), “os sintomas médicos tendem, assim, a serem cada vez mais precisos,
isolados e sempre reconhecíveis por si mesmos” (p. 39-40), haja vista que eles
sinalizam que algo está acontecendo com o sujeito a nível comportamental e expressam
15
experiência vivida.
marcada pela objetividade dos sintomas e por suas características patológicas universais
problema, pois como apontam Messas e Fukuda (2018) ainda não existe um consenso
sobre a natureza do objeto psicopatológico. Esse debate, embora atual, está em vigor há
mente/corpo.
clássica ganham força com a publicação da obra Psicopatologia Geral, em 1913, por
Karl Jaspers. Ao invés de uma incessante busca das causalidades determinantes das
doenças mentais pelas vias mecanicistas do corpo, caberia ao clínico adotar uma postura
(Schneider, 2009; Messas, 2014; Fukuda & Tamelini, 2016). Entretanto, esta
causal e explicativo das ciências empíricas, não alcançando uma ruptura radical com o
Em meados dos anos 1920, inaugurou-se então uma nova abordagem dos
transtornos mentais, cujo objetivo principal era a compreensão dos modos de ser dos
2017).
clínico, uma vez que abrange tanto a proposta psiquiátrica e psicopatológica quanto as
17
psicologia clínica (Bloc et al., 2017; Melo, Araújo, Bloc & Moreira, 2016).
2018).
Vale destacar que aqui não se trata de apontar o tempo objetivo e atrelado à passagem
das horas, mas como fenômeno de ordem pré-reflexiva, atrelado à existência e que se
início com os trabalhos filosóficos de Edmund Husserl (Zahavi, 2015). Para Husserl
vivido. O primeiro é responsável pela contagem das horas e nos auxilia na organização
1
O termo Outro é utilizado por Arthur Tatossian em maiúsculo como alusão à relação intersubjetiva
sujeito/mundo. Nesta tese, optamos por manter a grafia original como foi utilizada por Tatossian.
18
reside nesta última dimensão, o tempo vivido, pois seus traços imanentes nos vinculam
suspenso para acessar o tempo vivido ao elaborar uma análise da consciência do tempo.
relação entre tempo e subjetividade é das mais íntimas, uma vez que a experiência do
corpo, o ego e o alter ego” (Dupond, 2010, p. 69). Isso nos conecta ao mundo e às
2
Os termos mundo vivido, mundo da vida e Lebenswelt são utilizados neste projeto de tese como
sinônimos devido às variações de traduções encontradas em língua portuguesa.
19
psiquiatra Eugène Minkowski (1933/1994), que resgata a noção de tempo vivido como
Lebenswelt de cada sujeito, não pode ser completamente alcançado via mensuração e
consciência psicológica do indivíduo, mas ele pode ser apreendido através de seu
comportamento, seja ele verbal ou não, quer este implique o tempo direta e
indiretamente” (Tatossian, 1975/2012, p. 34). Ele está integrado ao devir, como tempo
fenomenologia clínica se apoia em seu segundo aspecto, que não se resume aos dados
objetivos e materiais do mundo exterior (Fuchs 2007a, 2007b, 2010, 2014; 2019a;
sujeito, constituído “na e pela subjetividade” (Tatossian, 1979/2012, p. 78) que, atrelado
o tempo nasce da nossa relação com as coisas e com o mundo. Ele não pode ser
entendido apenas como um objeto a ser racionalizado, pois compõe a dimensão do ser
1979/2012; 1994).
(Binswanger, 1960/2005; Fuchs, 2001; 2005; 2007a; 2007b; 2010; 2014; Minkowski,
21
contemporâneo.
Se a experiência do tempo nos atrela ao mundo vivido, ela também nos permite
agir e nos movimentar em relação a este mundo, o que nos leva a questionar o seu ritmo
aceleração do tempo social como característica saliente da nossa época” (Boris &
adulterando nossa relação com o tempo e com o mundo. Tal frenesi, oriundo da
repetitiva e incessante por mais, o futuro se esgota e se fatiga devido à constante pressão
por sua presença instantânea e o “presente torna-se profundamente ansioso” (Boris &
Barata, 2017, p. 163) devido ao desejo de algo que ainda não aconteceu. Em tal cenário,
aceleração do tempo vivido, também pode ser concebida como uma expressão do
1950/1980; 1979/2000; Castillo et al., 2000; Pinto, 2006; 2017; Andrade, Pereira,
Vieira, Silva, Silva, Bonisson & Castro, 2019). A primeira faz referência a uma
vivência construtiva, que nos permite lidar com situações de tensão e conflitos. Se, por
experienciada de forma destrutiva, uma vez que nossa experiência de nós mesmo e do
mundo se restringe (May, 1950/1980; 1979/2000; Castillo et al., 2000; Pinto, 2006;
articula com a minha prática clínica como psicoterapeuta, em que me deparei com um
Percebi ser comum, entre os pacientes que atendi, a presença da ansiedade como
23
expressão de uma existência frustrada e inibida, além de sua aproximação com outros
2013) como meio de compreensão do Lebenswelt de cada sujeito. Esta investigação nos
como a ansiedade.
de uma existência aprisionada (Moreira & Chamond, 2012), ela tornou-se o fio
devir, ou seja, pela antecipação do tempo interno e imanente ao sujeito que se encontra
estagnado em sua relação com o mundo (Moreira, 2014). Além de elemento intrínseco,
padrão como doenças ou transtornos. Há algo a mais na dimensão patológica e isso abre
24
(Martins, 1999).
de nossa existência do que uma classificação diagnóstica. Portanto, sua origem não é
apenas patológica como uma doença, mas pática. Há uma dimensão fundamental que a
sustenta, a qual deve ser resgatada para compreendermos este fenômeno e sua relação
(Bloc et al., 2017; Santiago & Holanda, 2013), contribuindo para resgatarmos a
Nesta tese, temos como objetivo geral compreender o tempo vivido na ansiedade
em distintos mundos vividos (psico)patológicos. Para tal fim, propomos como objetivos
discussões teóricas.
27
Capítulo 01
continuidade com outros autores clássicos da área, tais como Merleau-Ponty, Heidegger
e Sartre (Holanda, 2014; Moreira, 2016; Schneider, 2009; Zahavi, 2015). Em conjunto,
al., 2016).
como o palco onde se desvelam as experiências humanas e seus significados, tais como
As Lições são “a única peça até hoje efetivamente publicada das investigações
de Husserl sobre o tempo” (Alves, 1994, p. 19). Esse manuscrito foi elaborado em um
da fenomenologia clínica.
Na última fase dos escritos de Husserl, sobretudo com a obra A crise das
ansiedade.
reflete nossa existência. A análise de seus traços conscientes remonta aos primórdios da
(1928/1994) atribui grande importância a este pensador quando afirma que seus escritos
“devem ainda hoje ser profundamente estudados por quem se ocupe com o problema do
tempo” (p.37), pois os avanços da época moderna a esta questão não foram
temporal dos atos e dos objetos intencionais, sem os quais não se pode resolver o
planeta Terra, a Idade Média, as Guerras Mundiais e etc. Esse tempo é mensurável,
30
traços objetivos que configura o instante agora vivido, com o tempo objetivo do mundo
31
(Husserl, 1928/1994).
Na primeira, percebemos a duração em relação ao objeto (giz), uma vez que o seu rastro
representado.
modo nenhum nele, ele é mais que um conteúdo e, de certa maneira, outra coisa.
empírica, mas aos sentidos apreendidos e descritos na vivência temporal. Esse traço
32
objetivo por meio da consciência. Para isso, Husserl (1928/1994) utiliza como ponto de
como “fonte única da temporalidade” (Pereira Júnior, 1990, p. 73). Nossas percepções
sensoriais sobre os elementos que nos cercam são duplicadas pela imaginação,
diferentes traços e que não podem existir simultaneamente e, por isso, se desdobram no
Quando, por exemplo, soa uma melodia, o som individual não desaparece
por ele excitados. Quando soa o novo som, o precedente não desaparece sem
deixar rastro, senão nós seríamos mesmo incapazes de notar as relações entre os
intervalo de tempo entre o toque de dois sons, uma pausa vazia, nunca, porém, a
alteração, ou seja, ele afirma como conclusão de sua teoria que é impossível perceber a
originárias é presidido como sujeito no momento agora real, mas este só é capaz de
produzir predicados irreais, uma vez que o presente é encarado como um passado
vindouro.
apresentado por Brentano, pois Husserl “recusa que a gênese da temporalidade esteja na
imaginação” (Pereira Júnior, 1990, p. 74). Caso assim fosse, seríamos incapazes de
iminentemente, bem como dos dados que acabaram de se manifestar. Para Brentano, a
nossa fantasia é o fator que nos permite ultrapassar o momento vivido no agora, pois
1928/1994, Zahavi, 2015). Husserl (1928/1994) rejeita essa ideia, pois ela se contradiz
e possuem duração. Seríamos incapazes de ouvir uma música e manter uma longa
nos conteúdos dos sentidos gerados por estímulos. A lei da associação originária
manifesta vivências psíquicas dadas e, portanto, objetivadas. Seria uma teoria acerca da
pertencem ao campo da psicologia e não nos interessam aqui” (p. 49). O aspecto
presentes, uma vez que este autor não diferencia ato, conteúdo de apreensão e objeto
(1928/1994) afirma que os dados temporais de sucessão e duração não são encontrados
35
exclusivamente nos conteúdos primários, mas também nos atos de apreensão e nos
elabora análise acerca dos atos da consciência intencional e de seus objetos, apontando
uma vez que seus dados constituintes não repousam exclusivamente nos conteúdos que
experiências de adoecimento pela via da temporalidade. Ela será retomada por diversos
autores, que apresentaremos no segundo capítulo deste projeto de tese, e nos auxiliará a
consciência absoluta
do presente, pois para ele o instante agora é intuído numa extensão temporal. Isso
Que vários sons sucessivos resultem numa melodia, é possível somente porque a
sequência de processos psíquicos se une <sem mais> numa formação total. Eles
acto total. Nós não temos os sons de uma vez e não ouvimos a melodia graças à
temporais se movimentam num fluxo contínuo, como essa multiplicidade de dados que
se sucedem uns aos outros podem fazer parte simultaneamente do momento presente?
Como o próprio tempo se constituiu e, com ele, a duração e a sucessão? Estes foram os
via de acesso, uma vez que só podemos perceber os objetos temporais se em nossa
através de objetos temporais como o som e a melodia. Ele afirma que cada som tem
uma extensão temporal, sendo percebido como instante agora ao soar. Se tal instante
37
ressoar, origina-se um novo presente e o som anterior torna-se passado. Isso pode
após ouvir a fase atual do som ela não se torna imediatamente recordação. Retemo-la
letras A, B e C, mesmo que focássemos nossa atenção apenas ao último som emitido
(C), encontraríamos em nossa consciência resquícios dos dois primeiros (A e B). O som
C não existe isoladamente em nossa percepção, pois nossa consciência percebe o som C
e também está consciente dos dois sons anteriores. A condição em relação aos sons
‘passados’ A e B não é meramente uma imaginação ou uma lembrança, pois eles estão
manifestam da mesma maneira que o som C, pois não são contemporâneos. A e B foram
ouviríamos apenas sons isolados e diluídos uns nos outros, visto que nossa consciência
bem que ela já não funcione agora como consciência perceptiva ou, dito de um
p. 63)
ao ato concreto dirigido no momento presente ao objeto. É a fonte “com que se inicia a
produção do objeto duradouro” (Husserl, 1928/1994, p. 62). Por ser um dado abstrato, a
impressão originária, por si só, não permite a vivência de nenhum objeto temporal. Ela é
presente em si (Zahavi, 2015). A impressão originária não pode ser encontrada sozinha,
pois está alicerçada num horizonte temporal, cuja consciência é envolvida numa teia de
mutações permanente ao ser acompanhada pela retenção e pela protensão. Estas últimas
são intenções, que nos levam, respectivamente, à consciência da fase que acabou de
acontecer e ao momento quase indeterminado e iminente que está por vir (Husserl,
1928/1994).
anteciparmos o que se sucederá. Esse dado é fruto de nossa experiência com o mundo e
pode ser ilustrado pelas reações de surpresa e espanto (Zahavi, 2015) se, por exemplo,
íamos com tal situação, porque estaríamos antecipando que a árvore não sairia do seu
relações com o mundo que temos, diante de nós, um horizonte de antecipações e, com
elas, protensões.
ocorreu e do que está por vir, mas não devem ser confundidos com as lembranças e as
esses elementos, uma vez que as lembranças e as expectativas refletem atos intencionais
Se voltarmos ao exemplo dos sons (A, B e C), em seu horizonte de sucessões contínuas,
percebemos que as retenções A e B, que acabaram de soar, são distintas das lembranças
mesmo que demarquem a intuição de algo ausente, o que lhes confere um caráter
passado e futuro na relação com a impressão originária, mas se dão ‘ao mesmo tempo’
que ela” (Zahavi, 2015, p. 125). Para complementar essa ideia, encontramos na obra
exemplificada pelo objeto sonoro. Ilustraremos essa relação por meio de nossa
sequência de sons A, B e C. O primeiro som (A) irá soar e será assimilado à consciência
soar o último som, C, o mesmo acontece. C passa a ser intencionado pela impressão
(Zahavi, 2015).
linha vertical (exemplificada em ‘D, C, Cb, Ca) constitui uma etapa passageira da
(exemplificada em A, Ba, Ca e Da) reflete a permanência dos sons, mesmo quando eles
que cada ponto posterior é retenção para cada ponto anterior. E cada retenção é já um
contínuo” (Husserl, 1928/1994, p. 62). Este movimento poderia nos levar a uma cadeia
ininterrupta em direção ao infinito, mas isto não ocorre por que cada retenção traz
consigo o legado do passado, tanto que são nomeadas por Husserl (1928/1994) como
fazem parte do arco intencional no momento presente, pois estão atreladas à consciência
do agora, mas não se confundem com as impressões originárias. Estas são sentidas
objeto percebido ainda possa ser sentido, mas como uma simples ressonância que
Depois de a melodia ter sido tocada, não a temos mais percepcionada como
presente, mas têmo-la ainda na consciência, ela já não é melodia agora presente,
simples opinião, mas sim um facto dado, dado por si próprio, por conseguinte,
1928/1994, p. 68).
Ao afirmar que a retenção não produz novos objetos à consciência, mas retém
42
percepção se define como “a fase de consciência que constitui o puro agora” (Husserl,
1928/1994, p. 71). A percepção como dado ideal está limitada à fugacidade do instante
melodia, esta é captada no aspecto total de sua extensão e não som por som. Essa
recordação primária) também estão presentes na percepção dos objetos temporais. “Se
chamarmos (...) percepção ao acto em que reside toda <origem>, que constitui
Essa é uma das descobertas mais significativas da análise do tempo elaborada por
Husserl (Zahavi, 2015), pois no dado instante em que um som é retido, por exemplo, o
temporais – aqueles que em sua estrutura possuem temporalidade – e sua relação com
nossa consciência. Entretanto, devemos ressaltar que a íntima relação entre tempo e
temporais (sons, melodia, etc), pois são regidos pela duração e pela sucessão. É por
meio do fluxo temporal de retenção, protensão e impressão originária que eles tornam-
43
volta para a compreensão dos atos subjetivos que compõem a consciência e sua relação
Esta última, entretanto, não pode ser dada em um tempo constituinte, fluído e
que desliza em seus atos intencionais, pois ela não é correlacionada aos fenômenos que
são constituídos temporalmente (Husserl, 1928/1994). São dois aspectos que não
possuem um denominador comum, por isso reafirmamos que o fluxo absoluto não é
Este fluxo é qualquer coisa que nós nomeamos assim, a partir do constituído,
pode gerar equívocos no sentido de entendê-lo como algo atemporal, ou seja, que não
possui nenhuma conexão com o tempo. No entanto, o fluxo absoluto é sempre atual no
estritamente como uma consciência do tempo e passa a ser entendida como um processo
temporal específico.
estabelecida entre o fluxo absoluto e o tempo subjetivo. Ele afirma que em toda
compõem um fluxo de unidade temporal imanente com duração. Estas unidades “se
intencionais que se organizam num movimento fluido e constante. Ela está atrelada à
objetos temporais, pois usa os atos intencionais em seu lugar no tempo subjetivo
(Zahavi, 2015).
característica dos atos intencionais: são eles que permitem um objeto aparecer e se
mostrar a determinada consciência (Zahavi, 2015). Isto significa que, por serem
constituídos num processo cíclico, os atos intencionais são conscientes de algo distinto
consigo e, por isso, são considerados atemporais. Por possuírem consciência de algo, os
Por mais chocante (se não mesmo absurdo, no início) que pareça ser afirmar-se
que o fluxo da consciência constitui a sua própria unidade, é porém assim (...) E
pode dirigir-se, uma vez, através das fases que, como intencionalidade do som,
consciência fluente desde o começo do som até o seu fim. Todo adumbramento
1928/1994, p. 105).
opostos de uma mesma moeda. Uma é responsável pela formação do tempo imanente e
objetivo, composto pela duração e alteração. A outra auxilia na constituição das fases
humana, nos doa habilidades retentivas e protentivas. Esta última, ao inserir o porvir no
Lebenswelt está entre os temas fundamentais. Este conceito surgiu de sua crítica às
aparece para nós. De tal forma que a “subjetividade criadora da ciência perde seu lugar
na ciência objetiva” (Husserl, 1987/2002, p. 60), uma vez que esta última priorizava o
experiência humana.
vida –, ou seja, “o mundo pré-dado como horizonte de todas as induções com sentido”
transitoriedade (Zahavi, 2015). Por não ser estático, o mundo da vida está
possível por sua dinâmica espaço-temporal que abre o horizonte contínuo do fluxo da
vida.
O mundo da vida, por estar situado na dimensão do tempo, ganha abertura como
mundo da vida escancara a sua característica experiencial imediata, de modo que cada
objetivos da ciência tradicional. Por ser histórico, o encontramos inserido no tempo com
suas tradições passadas, seu presente contínuo e sua possibilidade de futuro aberta no
horizonte da vida.
experienciável, não podendo ser definido como o lugar das idealizações geométricas e
conjuntamente.
O mundo é mundo temporal, espacial, no qual cada coisa tem a sua extensão
corpórea e duração e, em relação a estas, por sua vez, a sua posição no tempo
refere-se somente ao presente. Mas é de antemão visado que este presente tem
2012, p. 130).
Por ser o campo originário das experiências, os dados intuíveis que aparecem no
característica peculiar nos põe em contato contínuo com o mundo factual e, em sua
É por ter o tempo como uma de suas principais estruturas de fundamentação que
o Lebenswelt pode ser definido como mundo predado e, por isso, constante no horizonte
das experiências. Ele não existe em si mesmo, isolado dos dados concretos da realidade,
Quando percebemos algo temos em vigência o ato de perceber, mas este não
(Husserl, 1954/2012, p. 132), em que ele é uma coisa no meio de tantas outras
instante agora, as quais estão sempre em curso e não são sinônimos do mundo. Este se
mostra para nós pela percepção consciente, ao mesmo tempo em que se encontra nos
pequenos fragmentos que a preenchem como núcleo original. “Dessa maneira, o mundo
não estamos sozinhos nesse curso contínuo. Vivemos em mútua relação com outros
eixo estrutural. Em paralelo, nossa subjetividade está sempre em relação aos demais
abertura ao mundo.
tornar compreensível” (Husserl, 1954/2012, p. 137). Ela fornece os laços que integram
agora atual também pode, entretanto, relacionar-se com o seu eu passado, não mais de
agora, justamente, dialogar com ele e criticá-lo, como a outros” (Husserl, 1954/2012, p.
3
Ver item 1.1.3. deste capítulo.
52
experiência do tempo.
horizonte pessoal (e temporal) que abre para a síntese “eu-outro” nas relações universais
Lebenswelt que aparece idêntico a todos os sujeitos, pois sustenta a sucessão das
Definir o que é o mundo vivido é uma das tarefas filosóficas mais árduas, pois
não encontramos nele apenas um juízo objetivo e concreto, e sim uma pluralidade de
significados que variam de sujeito a sujeito (Gentil, 2017; Zahavi, 2015; Ziles, 2002),
mas que se entrelaçam num mundo comum a todos nós. O homem está em seu centro
(Gentil, 2017). Ele não existe como entidade pura em si mesmo, uma vez que este fator
fincada no tempo, reside em situar o desvelamento das experiências por meio de sua
singularmente por cada sujeito ao mesmo tempo em que reverbera nossas experiências
do mundo.
constitui mediado pelo mundo vivido (Lebenswelt) e pela temporalização de sua própria
(Coelho Júnior, 2003; Coelho Júnior & Carmo, 1992). A obra de Merleau-Ponty oferece
(Lebenswelt).
mesmo social” (p. 01). O tema comportamento ganha destaque e, com ele, Merleau-
4
As noções de corpo e carne, oriundas da filosofia de Merleau-Ponty, serão explicadas nos itens
subsequentes deste capítulo em decorrência de sua complexidade.
55
Ponty desconstrói a ausência de conexão entre o mundo material e o abstrato, uma vez
que define o mundo como uma conjuntura de relações amparadas pela consciência.
homem ao mundo.
homem está imerso num mundo material e deve caminhar entre seus objetos. Merleau-
reunidos por essa ciência bastam para contradizer cada uma das doutrinas
atua no campo psíquico com intervenções simbólicas. Em ambas surgem discursos que
essas duas vias ao abrir as portas para a compreensão do comportamento por meio da
subjetividade.
a teoria clássica dos reflexos, estes são fenômenos longitudinais e interligados numa
receptor localmente definido, que provoca, por um trajeto definido, uma resposta”
suas características de forma: movimento, ritmo, espacialidade, etc. Este dado deixa de
lado as formas espaciais e temporais, pois estas não se fixam ou não influenciam os
unidade integrada e dinâmica em sua dimensão total, pois o funcionamento das partes é
analisado separadamente da esfera total que o configura (Melo et al, 2016). Esta
Portanto, assim que deixamos de nos fiar nos dados imediatos da consciência e
nervoso. Sob essa lente, o tempo é percebido por meio das sequências de reflexos, nas
quais o reflexo atual é dependente dos anteriores num processo em cadeia (Merleau-
sucessão dos estímulos; é o fundo sob o qual os estímulos se mostram numa sequência
contínua que escapa a percepção consciente dos indivíduos. Ele não é contextualmente
do mundo, mas apenas como ponte cronológica que conecta os estímulos sensórios.
estudos de Ivan Pavlov sobre reflexo condicionado, que insere a análise dos
Gestalt para inserir novo olhar compreensivo às relações entre o indivíduo e o meio
entendidos como fatos isolados, e sim como arranjos interligados no tempo e no espaço
uma lesão ou uma doença estas não afetam apenas o desempenho do órgão ou do
conhecermos a fisiologia viva inserida pelo sistema nervoso e, com esta ideia, Merleau-
estrutura da teoria da Gestalt não vai além do mundo concreto da física. “De tal forma
percepção, encerrava-se, mais uma vez, no próprio mundo das explicações físicas”
59
(Furlan, 2001, p. 24), em uma segunda teoria também objetiva e materialista que não
(Gestalt), são também uma crítica ao racionalismo como a única forma de apreensão da
Não podemos, após haver rejeitado o dogmatismo das leis, agir como se estas
222-223).
consciência.
60
mediado pelo tempo e pelo espaço. Mas o domínio espacial e o segmento temporal, não
campo das experiências, e a consciência são temas adicionais que aparecem para
1946/2015).
Nesse sentido, deve-se superar o mecanicismo numa direção que leve aos significados
dos processos da vida, pois estes também fazem parte da estrutura total do mundo
percebido.
da dialética viva de um sujeito concreto” (p. 258), a qual será amplamente discutida em
(1942/2006), é “uma rede de intenções significativas” (p. 270) que podem se mostrar
61
com clareza ou que nem sempre emergem nitidamente para si mesmas quando são
amplamente vividas.
dialética humana” (p. 272), pois o homem se define em sua capacidade de recriar as
estruturas já postas, uma vez que o movimento existencial se encontra nos dados
comportamento, mas está em toda parte como integração da existência. Como ela, o
concretude material.
revela os objetos no lugar em que estão e manifesta a presença deles, até então latentes”
(p. 288). Apreendemos os objetos percebidos como coisa “em si” indivisível, mas estas
real. Cada objeto percebido não se reduz às determinações de como ele se mostra “para
consciência rompe com a lógica do tempo linear, pois a descoberta do mundo não se
consciência e à percepção, pois ele existe para a consciência como o “devir histórico
por não seguir uma direção linear e causal, o tempo também é constituído pela
(Merleau-Ponty, 1942/2006).
mundo não é apenas o objeto de uma consciência no instante agora, mas está presente
nela fazendo parte do percurso histórico que a constituiu. Este dado atrela o tempo à
Ponty aponta, brevemente, para uma aproximação ente corpo e percepção, o que insere
nova ramificação para posteriores discussões sobre o tempo. Para o autor, é através do
corpo que entramos em contato com o mundo percebido. O corpo é o mediador de nossa
relação com o mundo. Ele não é experienciado apenas como uma massa material, uma
63
mundo real, sendo a sede dos fenômenos que fundamenta a percepção e a consciência,
tais como o tempo e o espaço, mas esta relação – sobretudo entre corpo e tempo –
escritos posteriores.
continuidade aos estudos sobre a percepção, inaugurando uma nova perspectiva sobre a
experiência do tempo.
que nos atrela ao mundo, a noção de tempo atravessa toda a obra de Merleau-Ponty
mesmo que de forma indireta. O autor, desde as primeiras palavras escritas, sinaliza o
tempo como o caminho que o conduziria à subjetividade, pois todas as experiências “se
por meio da percepção, compondo uma relação ambígua que insere o fenômeno
percepção funda o conhecimento e o tempo é o alicerce que a organiza, uma vez que as
no instante agora.
Entretanto, recordação e percepção não são sinônimas. Esta última possui algo
horizonte tempo. Ele é revivido constantemente nas experiências que traz à tona, pois
tempo que escoa diante o mundo percebido. Estas experiências organizam-se num
(Merleau-Ponty, 1945/2006).
A percepção que temos de um dado objeto o constitui para nós ao mesmo tempo
Percebemos o todo e não apenas aquilo que se mostra diretamente aos olhos. Como
Vemos o objeto em perspectiva a outros como ele, num horizonte que o desvela e
65
(1945/2006) retrata o exemplo de uma casa, a qual poderia ser vista de diferentes
maneiras, dependendo de onde se encontra o observador. Se ele está ao seu lado, dentro
casa que se viu ontem ou anos depois. Ela até pode ser demolida um dia, mas terá
existido em todos os outros. Cada instante fundado no agora solicita que os demais
sejam reconhecidos. Por mais que o olhar humano só coloque em destaque uma das
faces do objeto, é através dele que podemos reconhecer todos os outros. Só alcançamos
1945/2006).
ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e,
como este retém da mesma maneira o passado imediato que o precedeu, o tempo
com o futuro iminente que terá, ele também, seu horizonte de iminência
tempo transforma o presente num ponto fixo que, além de revelar os demais, pode ser
objetivado.
campo das ideias, imutável em todos os tempos e lugares como expressão universal.
distancia da experiência perceptiva que o originou. Ele denota uma posição absoluta,
(1945/2006) destaca ao corpo o papel de arrastar os fios intencionais que nos conectam
ao mundo, nos permitindo conhecê-lo, mas essa função não cabe ao corpo objeto,
corpo vivo e este só pode ser acessado quando considerado em direção ao mundo da
vida.
à vivência intersubjetiva do corpo vivido – ou corpo próprio (Melo et al, 2016). Para
apresenta uma discussão acerca do membro fantasma, pois este não pode ser explicado
67
descrito como a representação de uma parte do corpo que não existe mais como
elemento físico, mas ele ainda é considerado pelo sujeito no horizonte de sua vida ao
ganhar destaque como coisa percebida. Ele é sentido vivamente como existente apesar
de sua ausência concreta, uma vez que o passado é vivido no instante agora como
Por ser engajado no mundo, o corpo torna-se o veículo que enraíza o homem
membro fantasma não é uma recordação ou lembrança. O passado não se distancia, pois
está sempre presente, afinal, somos seres encarnados e estamos ligados à estrutura
O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede de
atravessada pela ambiguidade do corpo, é um dos caminhos que nos permite acessar o
abandonar, uma vez que ele nos compõe. “Sua permanência não é uma permanência no
mundo, mas uma permanência” ao nosso lado (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 134). Ele
existe conosco e, por isso, está à margem de nossas percepções. Por meio dele
adquirimos um ponto de vista sobre o mundo, mas não manejamos o corpo próprio
horizonte. Eles se comunicam por meio do corpo próprio, que é a abertura de contato ao
resgatar suas significações originárias, pois movemos o corpo fenomenal e não o corpo
objeto.
encontra à primeira tentativa porque não se trata para ele de situá-lo em relação
mão enquanto potência de coçar e o ponto picado enquanto ponto a ser coçado
69
está dada uma relação vivida no sistema natural do corpo próprio (Merleau-
O corpo próprio possui uma estrutura temporal, uma vez que ele existe no
presente e nunca pode se tornar absolutamente passado. Isso demonstra que a síntese do
movimento não são ignorados, mas estão atrelados ao presente. A percepção do instante
agora deve reaprender os movimentos anteriores por estar alicerçada nos atuais, o que
vividos, os quais irradiam no tempo e no espaço e nos apercebemos disto por não
corpo se aproxima das obras de artes que desdobram nossos sentidos num fluxo
(Merleau-Ponty, 1945/2006).
Por ser o lugar de apropriação do mundo, o corpo o faz existir para nós ao pôr-se
em evidência (Ferraz, 2009). O elo que construímos com o mundo, mediante esta
relação, não pode jamais ser plenamente rompido. Quando dormimos, por exemplo, não
presente e o futuro, pode tornar o corpo o esconderijo que amarra sua existência, mas
(Merleau-Ponty, 1945/2006).
O corpo nos abre ao mundo e nos põe em situação. Essa abertura permite o
transforma em objeto, pois não rompe com o movimento existencial. Ele é o meio de
integra os aspectos fisiológicos e psíquicos da existência (Ferraz, 2009), uma vez que,
por ser no tempo, o corpo não se fixa como coisa, sendo um eterno recomeço no mundo
de significações.
71
Ponty (1945/2006) afirma que nossa constituição subjetiva é temporal, pois não somos
1945/2006, p. 550). Sob uma lente fenomenológica da ambiguidade, essa definição soa
insatisfatória, pois os eventos temporais não se dão num fluxo de sucessões. O futuro
não é uma consequência do presente, assim como o presente não é causa do passado.
Essa visão linear nos mostra recortes dos acontecimentos temporais, restringindo
perceber que “o tempo supõe uma visão sobre o tempo” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p.
551), distinta daquela do rio que corre. Devemos inverter a perspectiva comumente
aceita sobre o decurso do tempo. O presente não segue em direção ao futuro, pois se
perde no passado. O futuro caminha lado a lado com o presente, e o passado não é a
origem do tempo.
Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o futuro
barco, segue a corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em direção
ao seu porvir, mas o porvir são as paisagens novas que o esperam no estuário, e
o curso do tempo não é mais o próprio riacho: ele é o desenrolar das paisagens
O futuro, assim como o passado, não acontece após, ou antes, do presente, mas
porvir são preexistentes, pois o tempo nasce da relação que estabelecemos com o mundo
1945/2006). As coisas do mundo também são temporais. Elas possuem história, mas são
nosso nome na casca de uma árvore e, anos depois, reencontramos esta marca. Apesar
superfície não detém o poder de voltar no tempo por si só, pois são presentes. Nós
significado. O passado só existe quando é para nós diante nosso mundo. O mesmo
73
ocorre em relação ao futuro, ele passa a existir para nós nos instante presente e pode ser
Diferentemente do passado que nos marca, o porvir ainda não aconteceu e por
isso não nos toca. “O porvir é este vazio que agora se forma diante de meu presente”
presente estabelece com o passado, pois o sentido do porvir precisa existir em nós antes
que o projetemos ao mundo como uma espécie de retrospecção. Essa lógica paradoxal
do tempo nos remete a uma importante inversão de valores, na qual o tempo deixa de
transitando entre o passado e o porvir, pois os funda como objetos imanentes (Merleau-
Ponty, 1945/2006).
inacabamento. Ele necessita de sua síntese como um eterno recomeço em que o antes e
Quando retornamos ao passado, por mais distante que ele esteja, encontramos ali uma
ordem temporal própria, pois reabrimos o tempo no momento em que ele ainda possuía
estado nascente, pois entende esta noção como uma dimensão do ser e não como um
presente e no passado sem que precisemos evoca-lo. “Eu não penso na tarde que vai
chegar e em sua sequência, e todavia ela ‘está ali’, como o verso de uma casa da qual
74
relação intencional que temos com o mundo esboça o estilo daquilo que virá
das retenções e das protensões, como explicado no item 1.1.3 deste capítulo. Merleau-
Ponty (1945/2006) retoma o pensamento husserliano, mas sua grande contribuição foi
vista que Husserl deteve-se mais aos estudos desta última, Merleau-Ponty destacou um
papel mais ativo ao porvir no que tange sua participação no fluxo intencional do tempo.
globais patológicos.
define, pois assim como ele não é uma linearidade de eternas sucessões, ele também não
presente corre ao passado e o futuro ao presente, mas eles não são sucessivos, pois são
diferentes uns dos outros. O tempo é “um ambiente movente que se distancia de nós,
Nós somos a passagem do tempo à medida que a vivemos numa relação ambígua
Nós não dizemos que o tempo é para alguém: isso seria estendê-lo ou imobilizá-
nunca fazem senão explicitar aquilo que estava implicado em cada uma,
possível apenas quando é vivida. O autor nos fala de uma perspectiva ambígua do
tempo, em que a retenção do que já foi nos dá esse movimento no instante agora,
mesmo que à distância. O tempo constituinte e indiviso é o que torna possível a sua
multiplicidade sucessiva num eterno recomeço: “ontem, hoje, amanhã, esse ritmo
cíclico, essa forma constante pode-nos dar a ilusão de possuí-lo por inteiro de uma só
tempo só pode existir para nós por estarmos situados nele. Ele não se mostra à nossa
frente e não podemos vê-lo, da mesma forma que não conseguimos visualizar nossa face
sem a presença de um espelho, mas ele está ali e envolve a totalidade do nosso ser.
Conseguimos nos aproximar do tempo no instante agora, já que nessa dimensão ocorre
no ser e no tempo abre o canal de comunicação que temos com o mundo e com nós
mesmos. “Nós temos o tempo por inteiro e estamos presentes a nós mesmos porque
como luz que clareia a subjetividade (Merleau-Ponty, 1945/2006), uma vez que retira
mundo.
si por si’: aquele que afeta é o tempo enquanto ímpeto e passagem para um
Além de tempo efetivo que corre, nós também o conhecemos como fluxo
Merleau-Ponty (1945/2006) não isola o sujeito no fluxo originário. Este se abre a nós
mesmo e inserimos aí nossas reflexões sem rachar a dualidade do tempo. Uma das
Ponty, 1945/2006).
autoria nossa. Não a controlamos da mesma forma que não detemos o poder de
movimentar o sangue que circula em nossas veias, mas uma vez que existimos no
mundo o tempo nos é confluente. Ele jorra em nós e possibilita nos apreendermos a nós
inteiramente passivos, porque somos o surgimento do tempo”. Ele funda a potência que
das coisas para as conhecermos, isso ocorre por meio de nossos sentidos, de nosso
corpo e de nosso campo perceptivo, os quais nos mostram a presença do mundo em nós
mesmos.
se faz como seu projeto. Da mesma forma, o sujeito não se aparta do mundo, pois é ele
quem o projeta. A relação ambígua entre homem e mundo pode ser compreendida
experiência.
78
Homem e mundo são inseparáveis, pois fazem parte de um mesmo tecido que
elementos inseridos no presente, o que marca a unidade do tempo. Ela atravessa nossa
Ponty sobre esta temática é revestida pela análise da intencionalidade elaborada por
Husserl no texto das Lições, a qual se utiliza das retenções, protensões e apresentações
iniciado por Husserl e o tomar como ponto de partida, Merleau-Ponty tece críticas à
que este não é tão evidente para nós quanto aparenta. Vivemos num processo de troca
contínua com as coisas, com os outros e com nosso próprio corpo (Silva, 2011), o que
mútua constituição homem e mundo, para uma ontologia em toda a sua radicalidade
(Ferraz, 2009; Laconte, 2012). Esta se voltará com mais atenção à noção de experiência
devido à questão ontológica de nossa encarnação no mundo (Silva, 2011). Tal passagem
Nós nos configuramos como indivíduos temporais. Mas o que isso significa?
Perguntas rotineiras como “onde estou?” e “que horas são?” anunciam a ausência de um
fato, como se houvesse uma lacuna ou uma fissura na continuidade das coisas que nos
dão certeza do mundo factual, já que o tempo e o espaço são certos, bastaria saber em
essas questões com explicações tradicionais como a concretude da hora do relógio, por
1964/2014). São questões mais amplas, que reverberam naquilo o que acreditamos ver e
“Santo Agostinho dizia do tempo, que este é perfeitamente familiar a cada um,
mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros” (Merleau-Ponty, 1964/2014, p. 15-
5
Conforme apresentado no subitem 1.2.4 deste capítulo.
80
compondo o estofo de nossa existência durável. Ele nos remete ao mundo, uma vez que
as ideias. Ele é “a presença e a latência” (p. 115) que subscreve cada indivíduo. A
histórica no âmbito de uma essência pura, mas nos permeia em relação aos demais
sujeitos que habitam nosso mundo e nos põe em contato com eles.
abre a nós. Nele o tempo pode ser prejulgado sob as dimensões passado, presente e
futuro, mas não se resume a tal perspectiva. “O tempo se vincula por todas as suas
53). O presente, enquanto campo de presença, não se manifesta sem horizonte; ele o
cada novo presente anula o anterior. A experiência do tempo, nesse sentido, remontaria
2012).
assimilamos a lógica do depois. Ela imprime em nós a idealização do porvir por meio
de uma construção retrospectiva, mas que não é suficiente para expressar a plenitude do
todos, que não podemos recusar-lhes, já que todos são diferenças, distâncias –
reside em resgatar a experiência que nos funde às coisas e ao mundo. Não se trata de
buscar algo imediato, misterioso, escondido nas profundezas do ser, pois nossa
percepção se apaga no instante em que ela se torna pura como fator mediado pela
experiência do tempo.
com sua essência, pois tal interrogação pontua “a relação última com o Ser e como
órgão ontológico” (p. 119). É uma questão que não se resume a um horário específico
no tempo, objetivado pela passagem dos minutos e segundos, mas que se abre para algo
como um puro espectador da realidade constituído apenas pelo campo da ideação, pois
“toda ideação, porque é uma ideação, se faz num espaço de existência” (p. 111). O
82
(1964/2014) presume que algo sente e toca este mundo, servindo de ponte a ele. Este
(1942/2006; 1945/2006; 1946/2015; 1964/2014), passa a ser reconfigurada por uma via
transcendental: o caráter irrevogável pelo qual a vida ambígua se faz corpo ou,
Silva, 2011). Eles são um só fenômeno coeso, dialético e vivido como “carne do tempo”
no espaço, como algo que transcorre por baixo de nós, somos tempo e espaço. Eles
constituem o estofo invisível de nossa existência como carne que nos entranha ao
mundo.
83
As coisas, aqui, ali, agora, então, não existem mais em si, em seu lugar, em seu
emitidos no segredo da minha carne, e sua solidez não é a de um objeto puro que
entre elas, e elas se comunicam por meu intermédio como coisa que sente
que abre o mundo de experiências, pois ele nos permite compreender a totalidade que
entre o transcendental e o mundo” (Silva, 2011, p. 168) por meio da síntese que integra
insere a ideia de encarnação ao abordar a existência, uma vez que somos carne e estofo
do mundo. Como afirma Silva (2011), o tempo é a “experiência matriz” (p. 168) que
por meio das presentificações de nossa realidade, as quais nos permitem materializá-lo,
preenchê-lo e ocupá-lo, porém, essa dimensão plana do tempo bloqueia nossa visão,
uma vez que ele se estende para além e, ao buscá-lo, encontramos uma segunda
perspectiva: a das significações. Estas não possuem uma temporalização específica, são
Merleau-Ponty (1964/2014), “um vínculo misterioso” (p. 112) com o tempo, o qual é
de nosso corpo, pois somos tempo do mundo e, entranhados em sua carne, somos tempo
pode ser sobrevoado como algo que existe em si. Temos em torno de nós mesmos um
qual não pode ser reduzida ao racional e imutável por se constituir como experiência
global (Silva, 2011). É nessa experiência total e integrada que nasce a simultaneidade
acontecimento.
consciência e objeto, também não há passado e consciência do passado, uma vez que
experiências.
85
do passado; se, inscrevendo-se em mim, cada presente perde sua carne, se a pura
coincidência com ele, estou separado dele por toda a espessura de meu presente,
“segmentos da carne durável do mundo” (p. 121). O tempo, vivido como estofo do
ao corpo e ao outro como carne do mundo. Esta perspectiva nos abre a possibilidade de
compreensão crítica das experiências de adoecer vividas na ansiedade, uma vez que elas
não se constituem dentro ou fora dos indivíduos, e sim em uma espécie de fronteira
Capítulo 02
preponderante que priorizava os sintomas, retornando à experiência vivida que, por sua
ponte de contato com o mundo. É por meio dela que captamos o movimento de nossa
devir humano, nos permite criar o futuro. Adiante, tratamos sobre a relação paradoxal
fenômenos patológicos ocorreu por meio dos estudos do psiquiatra e psicólogo alemão
Erwin Straus (1935/2000; 1948/1967) sobre o tempo (Araújo, 2000), pois a experiência
contrapõe à ciência moderna, que renegou o conhecimento sensível, já que ele não se
realidade entre mundo interior e exterior, construindo “um abismo entre a consciência e
sendo preparado, por exemplo, teríamos aí uma criação puramente mental de nossa
consciência não poderiam nos afetar. Mas será que a sensação de taquicardia, falta de ar
e medo extremo, dentre outros, tão recorrentes nas experiências de ansiedade não
merecem atenção por parte do pesquisador ou clínico como fenômenos que nos
devir. Nossos sentidos nos carregam consigo (Straus, 1948/1967), pois são as janelas
sinto sem conseguir respirar e com o coração acelerado, estas sensações vividas em
momentos de intensa ansiedade dizem sobre o sujeito que as sente e também sobre o
Como espectador você se encontra no mesmo mundo em que os objetos que viu.
O sujeito desta experiência não é uma consciência pura nem apenas empírica; é
p. 186).
que cada sujeito constrói com o mundo ao seu redor, ao invés de enquadrá-lo como
Os nossos sentidos, como a visão, o tato, o paladar e etc., nos permitem conhecer
integram numa unidade indissociável amarrada pelo laço do tempo, pois tudo o que
ao tempo e, por sermos seres em devir, esta estrutura movente nos permite sentir o
Não é muito difícil dar-se conta de que apenas um ser senciente pode mover-se a
si mesmo; mais difícil é a proposição inversa, a saber, que apenas um ser capaz
de moção espontânea pode ter experiências sensoriais. E, porém, são estas duas
não pode ser alienada por esta (Straus, 1948/1967), atravessando toda a percepção que
construímos do mundo ao nosso redor e de nós mesmos. Há uma relação entre liberdade
e confinamento nesta experiência, uma vez que ela confina toda a possibilidade de
clima da experiência sensorial” (p. 203). Nossos sentidos abrem as portas para
o mundo, e é por meio de alterações nesta estrutural básica das experiências humanas,
originário de nosso contato ingênuo com o mundo. Straus (1935/2000) assinala que a
fenômeno naquilo que ele possui de mais originário, fundamental e pático, pois se
Aproximar-se do mundo sensível, mesmo que ele seja opaco, turvo e embaçado,
nossa experiência, que ganha destaque por sua tentativa de superação da visão dualista
cronológico (ou objetivo) ao construir uma perspectiva que as unifique com a noção de
universal (Moskalewicz, 2017). Mas o tempo em si é maior que tais formalidades, pois
convenções sociais nos permitem marcar nos ponteiros dos relógios o exato instante de
algo, mas não é possível captar com a mesma precisão a simultaneidade do passar das
horas.
A visão unificada que Straus constrói sobre o tempo descreve o tempo objeto
como inseparável de sua vivência subjetiva “graças à sua posição única” (Straus,
tempo (horas, dias, semanas, meses, etc.) a ser quantificado pela racionalidade humana
futuro quanto no passado e, dessa maneira, estabelecer sua própria posição no vasto
dicotomia clássica entre tempo objetivo e tempo vivido ilustra dois lados de uma mesma
92
moeda – a experiência do tempo. Essas duas formas devem manter uma relação de
adoecimento mental. Nesses casos, há uma experiência anormal no tempo vivido que
tempo. Enquanto nos estados depressivos, por exemplo, a balança pende para o passado,
nos estados eufóricos, tais como a ansiedade, o futuro é favorecido (Moskalewicz, 2017;
passou a ser abordado também nesse contexto, pois se buscava acessar o mais
obra Le temps vécu e inaugurou a descoberta do tempo vivido como a principal via de
acesso à compreensão dos transtornos mentais (Fuchs, 2005, 2010, 2014; Tatossian,
(élan) vital como fenômeno temporal atrelado ao devir humano. A experiência do devir,
traz à tona o fenômeno do ímpeto (élan) vital, o qual é responsável por criar “o futuro
diante de nós e é somente ele que o faz” (Minkowski, 1933/2011, p. 97). Nossa
existência ganha direção e sentido por meio de um futuro aberto com inúmeras
ansiedade (Moskalewicz & Schwartz, 2020), uma vez que o futuro se contrai e inibe o
devir humano.
tempo em instantes precisos como segundos, minutos, horas, dias, semanas, etc. (Costa
o tempo a um ponto fixo que deve ser mensurado e quantificado, pois se trata aqui do
nomeado por Minkowski (1933/1994; 1933/2011) como tempo vivido, e a sua descrição
Para isso, precisamos destacar a correlação entre tempo e devir. O tempo é algo
todo lugar, em uma palavra, quando medito sobre o tempo. É o devir” (Minkowski,
porque se encontra, por assim dizer, totalmente dado, não colocando sobre o
futuro, que ainda não aconteceu, esvazia o presente por não ser ainda. O presente, por
sua vez, acaba no instante em que acontece porque não possui extensão e está situado
entre dois ‘nadas’, tornando-se também vazio. A linearidade sucessória entre passado,
presente e futuro reduz o tempo a “um nada situado entre dois nadas” (Minkowski,
(Costa & Medeiros, 2009; Minkowski, 1933/2011), pois o tempo é um dos fundamentos
de nossa existência.
Duração, fluxo e continuidade são os três fenômenos temporais que nos auxiliam
percebermos o tempo nos engolindo como uma areia movediça, ele se estende diante de
esforço da abstração que a experiência do tempo torna-se racional e ele ganha aspecto
associá-lo ao que já foi (retenção) e ao que irá ser (protensão), amarra tal questão ao
mundo. Ele progride e avança para o futuro por ter uma direção. No fluxo do devir,
ímpeto vital.
O futuro e o ímpeto vital estão tão intimamente ligados um ao outro que não são
mais que um. É o ímpeto vital que nos desvela a existência do futuro, que no-lo
dá um sentido, que o abre e o cria diante de nós, esse futuro acerca do qual
chegaremos a saber talvez alguma coisa um dia, de todo modo pouca coisa
necessidade de realizar determinadas ações. Ele abre o futuro diante de nós, cheio de
infinitas possibilidades, sendo anterior aos fatos isolados e específicos das situações de
ímpeto vital é anterior a este movimento, ele não se esgotará quando a pesquisa estiver
do futuro diante de nós e por estar no fundamento de nossa existência, o ímpeto vital
temos a sensação deste ímpeto seguir uma direção específica? Minkowski (1933/2011)
assinala uma característica peculiar deste fenômeno. Ao mesmo tempo em que ele é
ímpeto vital. Seus fragmentos se sucedem, criam uma história e, nesta trama, eles se
encontramos outro para dar continuidade, numa sucessão constante de etapas que reflete
1933/2011).
Ímpeto
Eu Realização
Sem o ímpeto vital nada poderíamos realizar ou buscar. Além deste saldo
que nos deparamos com a ansiedade, vivida na tensão e expectativa de realizarmos algo,
já que nos firmamos como sujeito perante a realização, e não em sua busca.
vital se integra a marcha do mundo, que também é minha como mundo vivido
Minkowski (1933/1994) como contato vital com a realidade. Este possui uma natureza
de acordo com ele só é possível em decorrência do contato vital com a realidade, que
nos põe numa relação de sincronicidade (Minkowski, 1933/1994) com o mundo que nos
cerca num sentido intersubjetivo. Experienciamos um ritmo único, comum a nós – seres
experiências de adoecimento.
fundamental ou o traço gerador dos transtornos mentais. Para conhecer o seu segredo, é
99
clínica, é apontada de forma mais específica pelo psiquiatra francês, de origem armênia,
1980/2012, 1994) dialoga com a noção de mundo vivido (Lebenswelt) para elaborar a
está sempre em estado nascente, uma vez que é tecida no arco intencional que mescla
esconde-se o tempo.
Samuelian, 2006, p. 356). Ele permite que nossas experiências, sempre inacabadas,
transitoriedade. É em seu cerne que nos pomos em relação e, com isso, descobrimos o
1979, 1979/2012). Ela nos permite a aproximação com os elementos constituídos, que já
estão dados e, por isso, podem ser descritos. Mas também existe uma segunda
como sentido para a consciência” (p. 72). Isto implica na busca fenomenológica por
tarefa simples, pois ele se manifesta de forma paradoxal. Para Tatossian (1994),
subjetividade e tempo estão entrelaçados e um não pode ser compreendido sem o outro.
Percebemos que “a intimidade entre o tempo e a subjetividade é tão estreita que é difícil
decidir qual dos dois constitui o outro” (Tatossian, 1994, p. 264, tradução livre), uma
respeito ao enigma do tempo (Pringuey, 2010). Ideia esta discutida, anteriormente, nos
1946/2015, 1964/2014).
psíquicos, mas por outro lado, não se fazendo a não ser com a subjetividade, ele
1979/2012, p. 71-72).
como tempo constituído sem se questionar sobre o seu fundamento (Tatossian, 1979,
1979/2012).
gênese e não apenas suas alterações (Tatossian, 1979, 1979/2012). Tal estrutura foi
temporalidade não é conferida ao sujeito pelo conjunto de sua história” (p. 78), mas ela
está nele, lhe é própria e faz parte de sua ‘tessitura como elemento integrado a cada
dizer sobre si mesmo” (Tatossian, 1994, p. 258, tradução livre). Na identidade humana
das vivências do sujeito, e ambas compõem uma experiência temporal (Tatossian, 1994;
Pringuey, 2010).
compreender a relação que o sujeito estabelece com o tempo como fator atrelado à
experiência que temos do tempo não está contida nessas situações específicas, como
tenta conciliar os estados de permanência e mudança dos eventos vividos por meio da
significação (Pringuey, 2010). Tais eventos não são apenas acontecimentos que ocorrem
possíveis de irromper por sermos sujeitos orientados num fluxo temporal constituinte de
nossa subjetividade. Aquilo que nos distingue dos demais animais, que dá sentido a
nossa vida e que está no cerne de nossas vivências emerge no fluxo do tempo que
externo a nós. Seus eventos e estímulos estariam inscritos numa cronologia mecânica e
De fato, o psiquiatra, que encontra o ser humano depois de ter passado por uma
encontra como um sujeito na alienação em que ele foi constituído, e que são de
de ser dos indivíduos. Tatossian (1994) reafirma a ideia expressada inicialmente por
psicopatologia.
fundamental que se articula com nossa liberdade de vir a ser, o que também repercute
no fenômeno da ansiedade.
perde a sincronicidade com o tempo do mundo, uma vez que “é o vazio do tempo
do tempo estão entre as suas grandes contribuições para o campo dos estudos
o qual repousa na posição ambígua do sujeito no mundo e que nos permite caminhar no
poder em sua essência, pois é alguém que tem a possibilidade de transformar o mundo e
psiquiatra alemão Thomas Fuchs, cujas publicações (Fuchs, 2005, 2007a 2007b, 2010,
sintonia entre o ser vivo e o seu ambiente. É um processo que ocorre comumente a nível
biológico, mas também desponta no plano social. A sincronização ótima, como aponta
Fuchs (2005, 2010), se manifesta no tempo implícito, o qual faz referência à experiência
do tempo que passa despercebida pela reflexão humana. Sua transitoriedade não é
Se nós olharmos para uma criança enquanto evidentemente ela brinca com seus
contínuo como ela. É o tempo que emerge a todo instante em que estamos absorvidos
com algo ao ponto de, paradoxalmente, termos a sensação da ausência do tempo quando
intensidade deste processo reflete uma sincronização plena ao ponto de passado e futuro
O tempo implícito, para Fuchs (2010), demanda duas condições chave para se
experiência do tempo.
numa cadeia temporal contínua, como discutido por Husserl (1928/1994), também
conseguimos manter uma conversação com outras pessoas, escutar músicas ou escrever
6
O tema mencionado foi discutido no primeiro capítulo deste projeto de tese, no item 1.1 referente à obra
de Edmund Husserl.
108
Se eu falo uma frase, não estou apenas retendo o que eu acabei de dizer e
"protendendo" o que vou dizer, mas ao mesmo tempo estou consciente de que
sou eu quem fala e que continuará falando sem ter que parar refletir sobre mim
(1945/2006) e reutilizada por Fuchs (2010), como arco intencional. Este contém uma
energia mental intrínseca a todo organismo vivo que o conduz à ação e ao movimento.
objetivo, os- quais são característicos dos seres vivos em geral” (Fuchs, 2010, p. 04,
tradução livre), mas sua contribuição ao tempo implícito é ceder a ele a energia e a
como o tempo vivido é sentido e nas variações básicas que ocorrem nos estados dos
sujeitos. A conação é a força vital, de caráter individual e relacional com os outros, que
109
sumariamente didática, uma vez que ambas configuram o arco intencional de percepção,
atenção e ação. Estes são a condição básica do eu essencialmente temporal, pois ele
implícito, sob o qual repousa a sincronia entre homem e mundo, elas não são absorvidas
exclusivamente por ele. Alguns hiatos surgem em determinados momentos, tais como as
sincronia anteriormente descrita e o tempo se torna evidente para nós, ou seja, explícito
Na experiência explícita do tempo, o futuro aparece como algo que ainda não
ou desejo de realização (Fuchs, 2005). Isso ilustra que a passagem do tempo passa a ser
Fuchs (2005) aponta que algo semelhante acontece em relação ao passado que,
experimentado como falta, esboça uma lacuna ao separar o presente de algo perdido e
finitude da vida. Por sua vez, esta ilumina a impressão de independência do tempo,
como se ele fosse uma força autônoma a nós e que nos domina (Fuchs, 2010).
homeostase. Como afirma Fuchs (2005), isto ocorre a nível biológico e social, o que
afinidade entre o nosso tempo com o dos outros e do mundo. Cada sujeito experiencia o
tempo com referência explícita ou implícita em relação aos demais (Fuchs, 2005; 2010),
tempo.
Para Fuchs (2005, 2010), a ordem formal e linear passado, presente e futuro não
é suficiente para ilustrar o tempo intersubjetivo, pois este se caracteriza por “uma ordem
relacional de processos que interagem e ressoam uns com os outros” (Fuchs, 2010, p.
consciente aprendida no contato diário que estabelecem com os outros; como parte das
relações da atitude natural e do senso comum. Este simples contato implica em uma
ressonância corporal (Fuchs, 2010), o que atrela as categorias tempo e corpo para o
(Fuchs, 2010, p. 08, tradução livre) e a imersão no fluxo temporal, que ocorre no
referida no campo da fenomenologia, que, como assinala Fuchs (2005, 2010), ocorre
entre o corpo vivido (Leib) e o corpo corporal (Koerper). Tal diferenciação, oriunda da
Fuchs (2005) constrói uma importante relação entre essas duas categorias
sinônimos” (Fuchs, 2005, p. 196, tradução livre). Pode-se considerar o tempo implícito
como uma função do corpo vivido, a qual se desdobra por meio das potencialidades da
experiência corporal que conecta homem e mundo. Por estarmos dentro do tempo,
tornando-se uma ferramenta material ou um empecilho para a ação (Fuchs, 2005, 2010).
Ao cair doente, experimentamos nosso corpo não mais como um meio tácito,
precisa ser reorganizado. Sua reintegração deixa de ocorrer pela síntese passiva do
tempo implícito, uma vez que este foi perdido, e agora se dá como síntese ativa
realizada pelo próprio indivíduo. Para isso, Fuchs (2010) aponta a importância de um eu
Quando o eu pessoal emerge, ele supera a lacuna deixada pelo tempo explícito,
já vivenciou até o momento. Como pontua Fuchs (2010), ele está “retrospectivamente
olhando para o futuro” (p. 06, tradução livre), ao mesmo tempo em que ele compreende
existência, tais como estados de pressa, atraso, apreensão, rapidez, etc., as quais estão
embutidas no ritmo da vida. Por não ser autônomo, o tempo só pode ser experienciado
por estamos em contato intersubjetivo com os outros (Fuchs, 2010), configurando assim
intersubjetiva do tempo.
115
Capítulo 03
CLÍNICA
em decorrência de uma maior presença deste fenômeno na vida cotidiana (WHO, 2017).
Como área que propõe uma compreensão do ser humano em seu atravessamento com o
ampliarmos a discussão sobre a ansiedade para além de uma lente que privilegia seu
A ansiedade tem ganhado lugar de destaque no contexto da saúde pública por ser
comumente entendida como enfermidade pela clínica médica. No Brasil, por exemplo,
população em geral com prevalência de 9,3% (WHO, 2017; Souza & Machado-de-
Souza, 2017).
cotidiano das pessoas e na linguagem coloquial do dia a dia. Tanto que diferentes
(Rodrigues, 2003). Há uma espécie de uso generalizado deste termo e de sua associação
como patologia ou sintoma no cotidiano, o que nos leva a tecer aqui algumas
permitem uma observação direta daquilo que é exteriormente observável. Eles fazem
parte de uma cadeia causal e linear que conduz à inferência de enfermidades somáticas
diferenciada, pois escapam à observação direta. Esta é uma característica comum aos
sintomas psiquiátricos e que não ocorre nos sintomas somáticos (Tatossian, 1978/2016,
nos quadros de ansiedade (American Psychiatric Association, 2014). Eles apontam para
117
1979/2006). Por exemplo, enquanto o sintoma de febre em uma gripe diz diretamente
manifestam de forma isolada e são independentes entre si. Eles podem ser
que não se pode atingir senão pela mediação de aspectos materiais exteriores
tudo aos vividos dos doentes, o sintoma psiquiátrico preferencial não pode ser
outra coisa que a si mesmos” (Tatossian, 1979/2006, p. 39), o que dificilmente ocorre
nos sintomas somáticos. A sua especificidade gira em torno do modo de ser global, do
118
vivido dos pacientes, os quais não podem ser apreendidos por fragmentos ou dados
Dentre eles, há a dificuldade da espera. Esta pode ser entendida como uma parte
primário e essencial, o qual corresponde à forma de ser do paciente em sua relação com
sintomas possuem uma dimensão que aponta para algo basal, estrutural e fundante da
sintomas. Embora estes últimos não possam ser descartados, pois sintoma e fenômeno
Moreira, 2014), discussão esta que será aprofundada no próximo subitem deste capítulo.
para o enquadre da ansiedade como doença. Não é à toa que há um aumento crescente
quais estão “entre os fármacos mais prescritos nos países ocidentais” (Azevedo, Araújo
2003).
buscar alcançar os modos de ser global de cada paciente por meio da compreensão da
desvelar aquilo que está encoberto, o fenômeno” (Bloc & Moreira, 2013, p. 33).
patologia, é algo inerente a todos os seres humanos (May, 1950/1980; Pinto, 2006,
vital, que nos impulsiona diante o fluxo da vida, além de nos mobilizar frente às
Como afirma Pinto (2006), “uma vida sem ansiedade é impossível” (p. 03), pois
ansiedade tem um traço ontológico, anterior à experiência do sintoma, o qual deve ser
americano Rollo May, nomeando-a como ansiedade normal em sua proposta de uma
refere à ansiedade.
A ansiedade normal, como apontada por May (1950/1980), faz parte de nossa
vida cotidiana por meio das expectativas de um futuro ainda por acontecer e diante do
qual não podemos escapar. Ela abre a possibilidade de construirmos formas criativas
Um indivíduo tem ansiedade porque é possível criar – criar o próprio eu, quer
ser o seu próprio eu, assim como criar em todas as inúmeras atividades
alguma. (...) assinalar que a presença da ansiedade significa que um conflito está
p. 379), pois é inerente ao ser e seus significados se desvelam no contato ambíguo com
o mundo.
121
compreensão deste fenômeno de forma mais ampla, o que aponta para uma mudança na
parte do psicopatologista, das experiências” (Messas & Fukuda, 2018, p. 163) dos
paciente (Messas & Fukuda, 2018; Tatossian, 1979/2006; Tatossian, Bloc & Moreira,
2016), pois é uma proposta que resgata o vivido que não cabe no sintoma, sendo este
como o sujeito está sempre entrelaçado ao mundo, é na ambiguidade desta relação que
si, pois, na condição de fenômeno humano, ela vem “causar agitação, perturbar a
sofrimento. Este último, dói, machuca e, devido a estas características, tende a ser visto
como um ‘mal’ a ser extirpado. Tal visão maniqueísta não dá conta da complexidade
desta questão, pois a ansiedade, vivida como sofrimento, não é nem um ‘bem’ e nem
um ‘mal’. Ela abre as portas dos problemas da existência e os põe diante o sujeito,
ligações que podem existir entre as duas, seria voltar a subordinar um fenômeno
quando o sujeito perde o movimento inerente à sua existência. É uma condição atrelada
ao modo de ser global do sujeito, e não ao repertório de sintomas que ele manifesta
(Tatossian, 1979/2006; Bloc & Moreira, 2013; Messas & Fukuda, 2018).
ação, uma vez que o indivíduo se encontra aprisionado, paralisado diante as escolhas de
208).
1953/1988, 1967/1977, 1983/1988) apresenta uma visão dicotômica do ser humano, que
contínuo da existência.
liberdade.
124
devir temporal da pessoa” (Moskalewicz & Schwartz, 2020, tradução livre, 2010). Nela,
há uma compressão do tempo vivido, cujo fluxo se acelera e, ao transcorrer mais rápido,
vulnerabilidade
fenomenologia clínica, esta diferenciação nem sempre é clara e pode tornar difusa a
correlacionam diretamente ao medo (Castillo et al., 2000; Baptista, Carvalho & Lory,
2005; Pinto, 2006; Machado et al., 2016). Estes dois fenômenos caminham de mãos
dadas e tendem a ser confundidos devido aos traços fisiológicos que acarretam nas
pessoas, tais como taquicardia, sudorese, tremores, etc. Estas alterações se dão em
apontam que no medo há uma ameaça clara e vinculada a um ou mais objetos bem
definidos (Pinto, 2006, 2017). Por exemplo, ao sermos abordados por assaltantes,
situação esta que nos afasta da sensação de segurança, podemos sentir o coração bater
mais forte, entregamos rapidamente os bens exigidos ou, até mesmo, procuramos rotas
possível que este objeto seja removível ou administrável (Zevnik, 2017). “Quando
temos medo sabemos o que nos ameaça, somos dinamizados pela situação, nossa
como ilustrado no exemplo sobre o assalto, nosso organismo como um todo se altera
com o intuito de nos protegermos. Reconhecemos o que nos amedronta e somos capazes
Já na ansiedade, ocorre uma antecipação de algo que ainda não aconteceu ou que
já transcorreu, o que ilustra sua relação direta com a experiência do tempo. Logo após o
assalto, podemos ficar atordoados sem saber o que fazer e para onde ir. O coração
de ameaça não está mais visível, mas algo permanece. Ela se torna difusa, e temos
primordial, podendo assumir qualquer forma e intensidade (Pinto, 2006, 2017). Ela
126
atinge o âmago, o fundamento do ser e irradia para tudo ao seu redor. Por que, então,
extremos como ocorre em ataques de pânico, nos quais a ansiedade é vivida como
experiência de medo do próprio medo (Souza, Melo & Moreira, 2020). Esta visão
corrobora em parte com a ideia de que na ansiedade os indivíduos não conseguem fugir
ou enfrentar diretamente as ameaças que os cercam, pois estas são invisíveis uma vez
experiência global do modo de existir do sujeito enraizado no mundo. É uma visão que
existencial enraizado no Lebenswelt” (p. 39). Ela se configura como uma forma de estar
nos gestos, ou seja, nas diversas expressões humanas (Moreira & Chamond, 2012).
significados que se constituem sob o fundo universal de um mundo que já está dado
como realidade.
não temos ‘tempo a perder’ (Han, 2017). Estamos entrelaçados a um mundo cada vez
mais acelerado, modificando nossa relação com o tempo e, por conseguinte, com o
pessoa constrói a si mesma em sua relação com outrem e com o mundo diante a
inquietação de um futuro que ainda não se fez presente. Boris & Barata (2017), no
relação entre tempo e ansiedade, em que ocorre uma constante antecipação do futuro,
tempo corra cada vez mais rápido, sustentando-se no vazio da espera (Boris & Barata,
2017).
sinônimos, ora são utilizadas de forma diferenciada (Pereira, 2003). Estes traços
causa dos radicais latinos destas palavras (Cardoso, 2001) que nascem com as traduções
(Pereira, 2003; Pinto, 2017). Nestes idiomas os termos ansiedade e angústia procedem
do grego agkhô (aperto; estreito), o qual se desdobra no latim em dois verbos distintos
ango (aperto) e anxio (tormento). Essa subdivisão não ocorre no inglês e no alemão, por
Vale ressaltar que o termo anguish, do inglês, pode ser traduzido por angústia, mas seu
o uso do termo ansiedade por não encontrar melhor tradução para o inglês da palavra
alemã angst – que remete à angústia em português. Dado este que nos leva a questionar
angústia faz mais sentido na obra de Rollo May. Mas aqui apontamos a seguinte
angústia nos momentos em que o autor evidencia aproximação e influência dos escritos
da filosofia existencial.
O psiquiatra francês Henry Ey, na obra Études Psychiatriques, afirma que tal
distinção é artificial, pois não pode ser observada claramente na clínica. Em seus
ansiedade mórbida para descrever as variadas formas clínicas dos estados de ansiedade
desordens afetivas.
uma distinção clara entre ansiedade e angústia, mas ressalta a influência americana dos
poderíamos dizer que a ansiedade é uma forma dos estados de angústia? A angústia foi
vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente
tontura. Mas qual é a razão? Está tanto no olho quando no abismo. Não tivesse ele
1944/2017).
nada, pois ao nos darmos conta de que existimos, simultaneamente, nós percebemos que
poderíamos não existir. Este paradoxo põe a existência em ameaça permanente ao não-
(Kierkegaard, 1944/2017; Feijoo, 2011; Feijoo, Protasio, Gill & Veríssimo, 2015).
Cada escolha que fazemos na vida também nos mostra uma perda diante o que
não foi escolhido e, embora tais escolhas afirmem o nosso ser, elas constatam a
inevitabilidade do não-ser. É nesse sentido que a angústia caminha de mãos dadas com
Ser defrontado com a angústia e com o peso da liberdade não é tarefa fácil. Por
se configurar como uma disposição afetiva fundamental (Martins, 1999; Feijoo, 2011;
132
Heidegger, 1927/2015), a angústia é inevitável, mas o ser humano busca saídas para
escapar de suas amarras. Tais fugas foram nomeadas por Kierkegaard (1944/2017)
como não liberdade e por Sartre (1943/2015) como má-fé. Elas são tentativas frustradas
forma sistemática na existência (Ey, Bernard & Brisset, 1989). Mas o sentido aqui
má-fé (Boris & Barata, 2017). Mas quando o tempo é apontado como elemento
mesmo vivido.
ansiedade, pois há uma interseção entre estas experiências que encontra na dimensão do
articula à angústia e funda nosso projeto de ser (Feijoo, 2011). Mas na dinâmica
do tempo que a constitui. Como afirmam Boris e Barata (2017), na ansiedade nos
qual é sentida na urgência do tempo se acelerar. Esta alteração não acontece na angústia,
cujo movimento possui uma profundidade maior com o plano existencial (Cardoso,
2001).
expectativas do que ainda não aconteceu, nos pomos em uma situação passível de
receptividade diante da qual não podemos fugir (Boublil, 2018; Butler, 2011). É um
estado de abertura que nos põe em relação e nos conecta ao mundo a nossa volta. Já o
de acordo com o mundo social e cultural que nos cerca (Butler, 2011) como, por
relaciona com a angústia nesse ponto, pois nos encontramos vulneráveis diante o temor
nos põe fora de nós mesmos, agita nossa existência, nos inquieta. “Há ansiedade em
possibilidade da ansiedade.
estruturação de nossa experiência subjetiva do mundo, uma vez que ela possibilita
135
abertura e transformação. Todos os nossos laços e relações são vulneráveis, não por que
podem acabar a qualquer momento ou por que tem o poder de nos oprimir, mas por
forma empática (Boublil, 2017). Como não prevemos e não controlamos o que vem de
social em que vivemos. Nossa época tem por características a aceleração da vida, dos
modifica o tempo do mundo (Boris & Barata, 2017; Rosa, 2017) e, por conseguinte, o
tempo vivido.
é a toa que a encontramos como ponto central nas publicações de May (1950/1980;
136
1953/2016; 1967/2000) sobre este fenômeno. Todavia, vale ressaltar que em tais
tais como a globalização, o avanço tecnológico, novas formas de trabalho, dentre outros
Rosa, 2017).
estruturas existentes até então por meio dos processos de dinamização, aceleração e
inovação, que transformam suas bases. O curioso paradoxo é que a estrutura dinâmica
Como define Rosa (2017), “uma sociedade é moderna quando apenas consegue
estrutura” (p. XI). Este projeto de modernidade exige a construção de um novo sentido,
A ascensão social e pessoal só seria possível por meio da razão, e quem não se
1967/2000).
prol de uma sociedade tecnicista, o sujeito moderno vive o dilema entre o ter que e o
querer, o desejar, o sentir. Como assinala May (1967/2000), “o dilema humano é aquilo
como sujeito e como objeto. Ambas as capacidades são necessárias” (p. 25). É desta
7
Ver subitem 2.1.
138
Mas esta perspectiva não perdura por muito tempo, uma vez que o modelo
criado pela modernidade passa por novas alterações na segunda metade do século XX.
A estrutura criada até então é alvo de fortes decepções, as quais são evidenciadas pela
vivemos em uma cultura moderna, porém hoje ela possui uma configuração diferente e
contornos diferenciados.
1975/2009; Han, 2017; Rosa, 2017). No século XX e XXI, estas mesmas características
tantas pessoas sob suas garras que estas já não se deixam parar nem mesmo
pelos seus corpos (a gripe, a perna quebrada, a hérnia de disco não nos param:
Uma vez que a cultura é compreendida como parte do mundo vivido (Moreira,
& Sloan, 2002; Telles & Moreira, 2014), ela também constitui o fenômeno da
ansiedade, pois cairíamos numa relação determinista e linear de causa e efeito. Mas,
a distinção dos dois planos (natural e cultural) é, aliás, abstrata: tudo é cultural
meio dos significados que produz, mas na interseção desse movimento também
constitui mutuamente (Moreira & Sloan, 2002; Telles & Moreira, 2014).
está cada vez mais acelerada (Han, 2017; Rosa, 2017; Tziminadis, 2017). As estruturas
tempo cotidiano e do tempo histórico de nossa época. As atividades que temos para
realizar no dia a dia em termos de velocidade, duração e ritmo não dependem apenas de
141
nós mesmos como atores individuais, mas estão sincronizadas ao tempo social e cultural
de nossa sociedade pós-moderna (Rosa, 2010, 2017; Tziminadis, 2017). É nesse sentido
produtividade. Nas palavras de Han (2017), “o aceleramento de hoje tem muito a ver
com a carência de ser” (p. 46). Somos prisioneiros dessa lógica pós-moderna, que
nos de nós mesmos na urgência da aceleração social, que também é vivida como
aceleração pessoal, mas que se cristaliza numa paralisia frenética presente no fenômeno
o tempo vivido.
cria-se uma rede de conexões instantâneas, facilitada pelo desenvolvimento das novas
lugar.
evidente. A ansiedade gerada por todos os medos que podem devir de uma
maximização de seu desempenho (Han, 2017; Chauvin, 2019). Não se pode parar; não é
tempo vivido e o tempo do mundo, sendo esta perda atrelada à aceleração cada vez mais
Capítulo 04
MÉTODO
Tem como meta tentar entender uma situação social, uma interação específica, um
qualitativa, que auxiliaram a firmar a nossa escolha diante deste caminho metodológico.
informações do campo (Stake, 2011; Creswell, 2010; Flick 2008). Ele mantém o foco
nas percepções e nas experiências dos participantes, bem como em seus próprios
(Andrade & Holanda, 2010; Creswell, 2010) com o objetivo de compreender o tempo
significados das experiências vividas pelos participantes, o que nos permitiu uma
descoberta e desvelamento desse particular fenômeno da realidade” (p. 267), uma vez
que se firma como o estudo do vivido, ou seja, da experiência imediata e de ordem pré-
reflexiva. Mas, para isto, ela precisa de uma base filosófica que a sustente em uma de
participantes e da pesquisadora, pois “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo
etc. É a ideia de um sujeito que não pode ser pensado dissociado do mundo do qual faz
parte, pois está necessariamente ligado a ele (Moreira, 2004; 2009). Estas dimensões
8
Ver capítulo 01, subitens 1.1.3 e 1.2.3.
147
ressaltamos, nesta tese, a necessidade de construir uma visão global do ser humano para
movimento (Moreira, 2004; 2009; 2016). Para acessá-la, buscamos resgatar seus traços
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão
entrelaçado ao mundo, pois é constituído por ele ao mesmo tempo em que o constitui. O
mundo é familiar ao pesquisador, ele o conhece e, para apreendê-lo, deve romper tal
148
teóricos que já existiam por meio de uma mudança de atitude (Moreira, 2004; 2009). Há
tempo, essa ruptura nunca se dá por completo, pois somos o mundo e vice-versa
(Merleau-Ponty, 1945/2006).
definida por seu alcance intenso em pesquisas científicas de fenômenos complexos, uma
vez que o exame minucioso destes permite obter características globais do sujeito e de
seu contexto (Flyvbjerg, 2011). Esse tipo de trabalho é uma das formas mais comuns e
149
ao explorar a história de vida do paciente (Yin, 2015; Stake, 2008; McLeod, 2010).
dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e
o contexto não estão claramente definidos” (Yin, 2015, p. 22). Em outras palavras, o
estudo de caso permite uma visão aprofundada do fenômeno por não o isolar de seu
contexto. É uma perspectiva que pode se alinhar à lente fenomenológica crítica, pois
mundo.
(Lebenswelten) de ambos.
mundo não se resume à soma de objetos. Merleau-Ponty (1945/2006) ilustra tal questão
150
com a metáfora de mãos se tocando: “duas mãos são ao mesmo tempo tocadas e
tocantes uma em relação à outra” (p. 137). Elas se alternam na função de quem toca
sobreposição de uma mão com a outra, a construção dos nossos estudos de casos
participantes no encontro com a pesquisadora, como em uma conversa cujo foco foi
patológicos.
saúde mental tradicional que priorizava o modelo hospitalar (Ferreira, Mesquita, Silva,
(Ferreira et al, 2016). A ampla estrutura dos CAPS abre espaço para a integração de
151
reabilitação de seus usuários para uma melhor qualidade de vida (Brasil, 2014).
De acordo com a portaria 3.088 (Brasil, 2011), o CAPS tipo I é destinado a municípios
ou regiões de saúde entre 20.000 e 70.000 habitantes e funciona em dois turnos (manhã
e tarde) durante os 05 dias úteis da semana. O CAPS tipo II abrange uma maior
inserir um terceiro turno (noite) para a realização de suas atividades. Já o CAPS tipo III
serviço 24h, que funciona inclusive em feriados e fins de semana, e tem como proposta
ocorreu primeiramente com a fundação do CAPS Geral da SER III em 1988 (Quinderé,
Sales, Albuquerque & Jorge, 2010), popularmente conhecido como CAPS Universitário
pesquisa. Esse dado foi percebido desde o primeiro contato com a coordenação do
CAPS Geral da SER III, que tornou possível a realização desta pesquisa devido à
período em que toda a rede de saúde mental do município passava por uma séria
pessoas que apresentavam a queixa da ansiedade em quadros clínicos distintos. Isto nos
mundos vividos (Lebenswelten), que também comporta a interação vivenciada por eles
no espaço terapêutico.
O CAPS Geral da SER III conta com um espaço organizado e regularizado para
atendimento intensivo, semi intensivo, não intensivo, reavaliação, busca ativa, visita
(Fortaleza, n.d).
Para acessar os serviços do CAPS Geral da SER III, os usuários podem buscar
ansiedade seja em sentido geral ou como sintoma. Como aponta o DSM-V (American
Psychiatric Association, 2014), estes termos foram, a saber: medo, pânico, fobia,
angústia, inquietação, ansiedade, etc., e eram localizados nas fichas de anamnese e/ou
sintoma, o utilizamos como ponto de partida que poderá nos levar além, ou seja, ao
“indícios visíveis de qualquer coisa de invisível por natureza” (p. 144). Apesar de
excluírem tudo o que não é a patologia, eles também compõem o vivido global do
vivido na ansiedade.
Os demais critérios de inclusão foram, a saber: pacientes adultos com idade entre
conseguinte, tivemos como critérios de exclusão sujeitos que não possuíam a queixa da
SER III, que não aceitaram participar voluntariamente deste estudo, que não se
O contato inicial com cada participante ocorreu mediante nossa inserção nos
individuais com cada um. Neles, conversamos novamente sobre o que consistia a
terapêuticos: arte, bipolaridade, música terapia e arte terapia, os quais eram coordenados
no CAPS Geral da SER III, tais como psicoterapia de grupo, atendimentos psiquiátricos,
no dia 03 de agosto de 2009. Foi encaminhada ao serviço após consulta médica no posto
155
e iniciou seu acompanhamento no CAPS Geral da SER III no dia 11 de abril de 2003.
Foi uma das primeiras usuárias do CAPS e seu encaminhamento também ocorreu por
meio do posto de saúde de seu bairro. Suas queixas referentes à ansiedade andavam
acompanhadas pelo medo da morte. Rachel foi diagnosticada com transtorno afetivo
terapia.
acompanhamento no CAPS Geral da SER III iniciou no dia 18 de março de 2009, ano
encontros clínicos.
subitem deste capítulo – nos permitiu entrar em contato com o fenômeno do tempo
156
vivido na ansiedade para além do conteúdo da fala dos participantes, pois ele também se
desvelava em seus gestos, durante a espera na recepção, na troca coletiva com os demais
com eles, pois nossa conduta era atravessada pelo olhar clínico, o qual possui traços
dinâmicos e perceptivos.
a coordenadora do CAPS Geral da SER III para nos apresentarmos, bem como à
pesquisa a ser realizada naquele campo. A referida instituição está situada na Rua
da próxima reunião, que ocorreu numa quinta-feira no turno da manhã, com a finalidade
de saúde mental, com abertura de prontuários a serem preenchidos pela equipe que os
acompanha.
O CAPS Geral da SER III consta com mais de 1000 prontuários abertos, dentre
os quais 67 estavam listados como ativos nas atividades semanais dos grupos
sobre a ansiedade nas fichas de triagem inicial e nas folhas de evolução. Estas últimas
realizado. Nesse momento, encontramos algumas dificuldades, pois nem sempre este
preenchimento era feito com informações clínicas dos usuários. Normalmente, redigia-
se apenas sua presença ou ausência nas atividades de grupo, com exceção das consultas
Era comum encontrar a sobreposição de termos tais como ansiedade, medo, pânico,
um total de 18 prontuários nestes dias e turnos. Foram selecionados, então, estes grupos
auxílio dos profissionais do CAPS Geral da SER III. Pudemos nos apresentar aos
momento do convite. Demos início aos encontros clínicos com os 09 usuários restantes,
atuar como voluntários ou não nesta pesquisa. Eles poderiam desistir de sua
participação a qualquer instante sem sofrer nenhum tipo de penalidade. Aqueles que
consentiram em colaborar com esta investigação científica tiveram seus dados pessoais
estaríamos disponíveis para conversar com eles nos dias em que comparecessem aos
que alguns participantes optaram por deixar previamente marcado o horário dos
159
encontros.
por eles naquele contexto e em sua relação com os participantes. Também pudemos nos
aproximar de forma mais natural dos usuários do serviço, dentre eles dos participantes
da pesquisa, ao transitar de forma livre na recepção, na copa, nos corredores e nas áreas
abertas como o jardim. Estávamos misturados no mesmo contexto, e nos sentimos parte
minutos, os convidávamos para uma das salas de atendimento individual como forma de
preservar o sigilo de nossas conversas. Nem sempre o convite era aceito, alguns
postura diante o sujeito que também é constituído pelo mundo (Dutra, 2004).
meados do mês de setembro. Eles tiveram como duração o tempo que os participantes
para falar e expressar suas experiências. Foi neste movimento fluido e contínuo que
existenciais. Após cada encontro clínico, utilizamos um espaço reservado para a redação
vivido como discutido nos capítulos 01 e 02, nos apontou a necessidade de utilizarmos
mundos vividos das participantes, sem desconsiderar seu entrelaçamento com o mundo
vivido da pesquisadora. Foi nesta interseção que pudemos apreender o vivo fenômeno
sujeito e mundo.
Estruturamos este processo com o instrumento chamado encontro clínico, o qual possui
Encontro Clínico
contato com o outro, sobretudo quando este aparece como um prolongamento de nós
constitui-se um terreno comum entre outrem e mim, meu pensamento e o seu formam
um só tecido” (p. 474-475) por meio de uma operação conjunta e sem um único criador.
1964/2014), envolveu a interação da percepção clínica que, “para ser viva e eficaz, não
nascente e que se atualiza a cada novo instante. Característica esta que nos permitiu
Stanghellini et al. (2015), é um “estilo conversacional interativo” (p. 48), uma vez que
expressão de suas experiências. Para isto, recorri a minha formação clínica como
Como esta é uma proposta metodológica com uma dimensão clínica, utilizamos
proximidade, o que me permitiu me colocar no lugar das participantes por meio de uma
atitude empática. Por fim, ao nos distanciarmos de juízos de valor durante os encontros
confusão, desarticulação, etc., promovendo uma maior liberdade para ser, estar e
Relatos Descritivos
etimológico do termo relato se refere ao ato de relatar, ou seja, narrar algo ou alguma
de explicar nem de analisar” (p. 03) como forma de retornar às coisas mesmas, ou seja,
ao mundo experiencial que antecede o conhecimento objetivo, mas do qual esse mesmo
vivida entre participante e pesquisador, pois “o real deve ser descrito, não construído ou
direta de seus significados por meio de nossos atos e juízos. Mais do que narrar o que se
experiência abre as portas para retornarmos às coisas mesmas, ou seja, como afirma
Merleau-Ponty (1945/2006).
após a realização de cada encontro com os participantes. Sua finalidade era escrever
detalhadamente a descrição dos sentidos expressos nas falas e nos gestos dos
texto descritivo.
encontros clínicos e expressá-las textualmente nos relatos descritivos. Este foi um dos
164
Como assinala Merleau-Ponty (1945/2006), “a ciência não tem e não terá jamais
o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma
determinação ou uma explicação dele” (p. 03). Não buscamos explicar ou analisar o
desta pesquisa, uma vez que a racionalidade interpõe-se como uma barreira que separa o
no momento em que saímos dos parênteses e retornamos às hipóteses iniciais que nos
tempo vivido como eixo central da ansiedade em suas expressões em distintos vividos
patológicos.
primeiro passo (1) foi reler sucessivamente os relatos descritivos de cada participante
descrição contida nestes textos. Durante esta releitura, (2) captamos os tons, os
estudo de caso fenomenológico. Por fim, tecemos possíveis (4) articulações teóricas.
emergentes dos relatos descritivos teve como base o próprio vivido das participantes
desta pesquisa bem como o conteúdo proveniente da articulação teórica tecida aí. Para
facilitar a organização textual, optamos por redigir primeiro trechos dos relatos
expressão, podendo promover novas percepções sobre sua vida de forma a lhe promover
saúde mental.
Além dos benefícios, puderam surgir riscos num grau leve durante a realização
expressões de raiva, medos, angústia ao narrar momentos de sua história de vida que
como arquivo de teor sigiloso pela pesquisadora, por um período mínimo de 05 anos
Capítulo 05
fenomenológica realizada no CAPS Geral da SER III como descrito no método9 desta
tese. Com o intuito de facilitar a compreensão dos leitores e nos permitir um mergulho
corpo do texto por meio do uso de aspas. Por fim, tecemos articulações teóricas que
ansiedade.
(Clarice Lispector)
com a mãe, as irmãs e alguns sobrinhos e iniciou seu acompanhamento no CAPS Geral
da SER III no dia 03 de agosto de 2009. Foi encaminhada ao serviço após consulta
9
Ver capítulo 04.
169
persecutórios e alucinações.
Clarice começou a falar e a andar depois dos cinco anos de idade e atribui isto ao
fato de ter sido atacada por um cachorro quando criança. Este machucou sua orelha, e a
participante precisou fazer uma cirurgia reconstitutiva. Aos 26 anos de idade, decidiu
consagrar sua vida a Deus e entrou para convento Toca de Assis. Nesta época, Clarice
acordava durante a madrugada e andava a esmo pelo convento, além de ouvir vozes que
diziam que sua vida não valia nada. Após uma “crise de nervos”, Clarice abandonou a
Toca de Assis e foi encaminhada para atendimento no CAPS Geral da SER III.
transtorno afetivo bipolar (F31). Nova mudança ocorreu em 2016 para esquizofrenia
(F20) e retardo mental leve (F70). Em 2017, Clarice voltou para o diagnóstico F31. Em
2019, após nova avaliação psiquiátrica, foi diagnosticada com transtorno esquizoafetivo
Clarice compareceu mesmo com o cancelamento do grupo terapêutico que teria nessa
data. Ela valorizava os espaços em que podia falar de si e de suas questões, pois ao
junho de 2019. Em nosso último encontro, Clarice agradeceu o espaço de escuta e disse
que sentiria falta, sobretudo por preferir conversas individuais a grupais, mas entendia o
fim da pesquisa. Estava animada com a entrada de novos profissionais – dentre eles
Além dos encontros clínicos, sua assiduidade também era presente nas
atividades do CAPS de modo geral. No início desse estudo, ela participava de 02 grupos
ocorreu com a enfermeira que facilitava o grupo de artes, porém esse grupo ganhou
sorriso no rosto.
171
dos discursos mais presentes em sua fala, sempre se referindo à ansiedade como
ansiedade ocorriam por meio das sensações corporais que a incomodavam tais
não conseguisse descrevê-los, e muitos medos por não saber o que irá acontecer
em sua vida e o que esperar do futuro. Sentia-se assim a cada nova situação ou
Clarice ansiava pelo futuro, ela também o temia e atribuía isto à mordida que
sofreu de um cachorro quando era criança. Para Clarice esta foi a primeira
mudanças.
nervosa ou irritada” (Dalgalarrondo, 2019, p. 646), o que ilustra alguns dos sintomas da
Link, 2012).
experiência vivida na ansiedade de Clarice, eles apontam para alguma coisa além deles
participante uma vez que também se entrelaçam ao seu mundo vivido. É por meio dos
como alguém ansiosa, uma vez que tais sintomas apontam para a ansiedade como uma
experiência vivida no corpo. Esta pode ser configurada como experiência sensorial, as
quais são as primeiras portas de acesso ao mundo e a nós mesmos (Straus, 1948/1967,
comigo, com minha existência, com meu devir. Nela se determina meu tempo
sentir por que estamos em movimento contínuo e ininterrupto em nosso contato com o
sensação se tornava evidente para mim por meio da aceleração de seu ritmo. Ao
la por meio de uma escuta atenta e livre de a priori, ao mesmo tempo em que me
sentidos.
1942/2006, p. 292). O corpo não é apenas matéria, objeto isolado em si mesmo, mas a
1945/2006, 1964/2014).
história, na sociedade. Isso implica afetar e ser afetado, ver e ser visto, sentir e
ser sentido, tocar e ser tocado. Nesse movimento vivo (...) vai se esboçando um
2016, p. 30).
por ela de forma pré-reflexiva e pré-verbal, uma vez que o corpo vibra e ressoa seus
durante o encontro clínico. A aceleração corporal de Clarice aponta para uma correlação
entre tempo e corpo, uma vez que o tempo abre o horizonte de experiências vividas na
Desde o primeiro encontro clínico, Clarice afirmava que tinha um grande sonho
na vida. Ela queria casar, ter filhos e constituir uma família. Ansiava por esse
momento acontecer logo e, ao se dar conta de que esse sonho estava longe de
desejo de ter marido e filhos passou a oscilar. Clarice ora afirmava querer, ora
não. “Eu tenho 41 anos, vou casar pra quê?! Se eu tiver um filho, não vou vê-lo
175
ser adolescente”. As irmãs de Clarice lhe diziam que não valia a pena namorar
Clarice se utilizava do discurso de suas irmãs para inibir suas frustrações diante
tempo. Isto pode ocorrer tanto pelo resgate do passado com a recordação quanto pela
antecipação do futuro, já que o presente é dinamizado por estes dois movimentos (Costa
pelo estado de espera (Costa & Medeiros, 2009; Aho, 2020; Bush, 2020). Ao invés de
se movimentar rumo ao porvir (Minkowski, 1933/1994; Costa & Medeiros, 2009; Bush,
2020), o presente de Clarice se esvaziou e foi invadido pela não realização do futuro,
torna necessária a espera. A espera nos impõe uma estrutura temporal mais lenta,
livre, p. 07-08).
176
Clarice, como sinaliza Husserl (1928/1994), faz parte da unidade de sua experiência e a
põe em contato com o mundo factual como uma espécie de bússola que orienta a vida
cotidiana. A contagem dos anos não é suficiente para a compreensão do tempo vivido
Nossa vida, em essência, possui uma orientação básica que a direciona ao futuro
específicas, a saber: desejo, esperança, prece, ação ética, atividade e espera (Costa &
Medeiros, 2009; Minkowski, 1933/1994). Esta última é experienciada por Clarice como
sofrimento vital atrelado ao vivido da ansiedade por não saber o que irá acontecer com
seus sonhos, uma vez que a espera “engloba todo o ser vivente, suspende sua atividade e
Geral da SER III sofreu alterações. Entre dezembro de 2018 e junho de 2019
este equipamento de saúde mental, bem como os demais do município, ficou com
fata, pois Clarice não sabia se seria ou não atendida devido à elevada demanda.
juventude, tentou consagrar sua vida a Deus ao entrar para a Toca de Assis,
lhe diziam que ela não valia nada e que deveria se matar. Nesse período,
Clarice se sentia perseguida e vigiada por uma das freiras. “Ela está sempre
atrás de mim, me olhando”. Mesmo quando não havia ninguém, Clarice ficava
freira. Clarice pede perdão a Deus e afirma que confia e espera Nele respostas
sobre como deve viver. Ao mesmo tempo, demonstra impaciência, pois espera
há “muito tempo” [ênfase na palavra muito]; há 41 anos, sua vida inteira. Não
sabe se deve casar ou não; ter filhos ou não; e aguarda essa resposta de Deus,
pois Ele deve escolher o seu destino. Ao reiteramos seu sentimento da espera,
Clarice afirmou que estava cansada, que não se importava mais sobre qual
seria a resposta, só queria que ela viesse logo. O lugar do não saber lhe era
em nosso último encontro clínico, Clarice afirmou que não sabia o que fazer da
sentido inverso. Nós vemos o futuro vindo em nossa direção e esperamos que o futuro
se faça presente” (tradução livre, p. 80). Clarice espera conseguir seu atendimento
não ser lançada ao inferno. Durante sua espera há uma contensão das possibilidades de
agir sobre o mundo, tornando a espera é um evento dolorido, sofrido. Embora diferente
angustia intensa; ela é sempre uma espera ansiosa. Isso não é surpreendente,
uma vez que ela é uma suspensão da atividade que é a própria vida (Minkowski,
vivida no convento. Como apontam Goghari e Harrow (2020) há uma alta prevalência
2014; Havrelhuk & Langaro, 2020). Esta mistura situa o transtorno esquizoafetivo em
um campo de fronteira, dificultando o seu diagnóstico (Sallet, Fritzen & Fukuda, 2011).
preenchidas por experiências alucinatórias e delirantes (Sass & Parnas, 2003). No caso
da participante, temos as vozes que lhe dizem que sua vida não possui valor e o delírio
persecutório da freira.
como uma tensão que tenta preencher o vazio impregnado nas fissuras e lacunas que se
abrem no fluxo temporal de sua consciência. É uma ansiedade antecipatória que retira
ser aceita pelas pessoas em geral. Sentia-se “a coitada” em casa por ser
“doente mental”. Era tratada de forma diferente pelos irmãos, pelos sobrinhos e
pela mãe, inclusive com afirmações de que ela era “louca”. Sua mãe não
confiava em deixá-la sair de casa sozinha, pois ela podia ser assaltada, se
180
Percebia que Clarice tinha dificuldade em se expressar. Sua fala era acelerada
pesquisadora, eu era alguém que poderia estar presente para ela em sua solidão
aos espaços grupais do CAPS. Acolhi seu sentimento ao mesmo tempo em que
Clarice diante o seu modo de ser no mundo, o qual é considerado desviante e distante
2005, 2007a, 2007b, 2010, 2014; Stanghellini et al., 2016; Sass et al., 2017).
Para Clarice, o mundo e o outro nem sempre são facilmente acessíveis, o que
outrem, ilustrado no relato descrito pelo medo que sua mãe sente em a participante sair
de casa. Há uma perda de sentido de si, e Clarice tenta preencher este vazio com o
desejo de outrem, que se mistura em sua busca por aceitação. Isto tem um papel
habitado pela expectativa e pelo desejo de ser aceita e de pertencer a esse mundo que
lhe é estranho.
participante questionou se falou “certo”, por exemplo. Nossa tentativa foi de nos
seu mundo vivido. Esta atitude, denominada por Rogers (1957/2008; 1961/2009) de
compreensiva, sobretudo diante dos movimentos e das falas distantes, alheias e por
casamento e por ter filhos. Clarice sentia-se cobrada por vizinhos, conhecidos e
alguns familiares. Sua urgência pelo casamento transitava entre seu desejo
mãos, dizia sentir-se ansiosa com “muitos pensamentos na cabeça”. Por vezes,
dizia não saber o que queria. Clarice sentia-se confusa e ansiosa por um futuro
que ainda não estava ali. "Eu tomo três fluoxetinas por dia e não resolve nada".
tinha muitos medos sobre como seria seu futuro e afirmava que o seu “mundo
nomeada por ela como mundo de sonhos ou mundo de fantasia, e passava horas
seu mundo particular. Sentia-se plena e realizada nesse “mundo de sonhos” que
conversavam. Sentia-se plena e realizada com a vida que tanto sonhou. “Quero
No desejo reside o grande significado da vida, pois ele abre possibilidades para a
realização daquilo que não se tem (Costa & Medeiros, 2009). Próprio à vida em geral, o
como uma categoria temporal relacionada ao futuro. Porém, diferente da espera que
permanece imutável com o passar dos anos, pois perdura com a mesma narrativa e
configuração, a saber: casamento e filhos. Seu “mundo dos sonhos”, atrelado à dinâmica
“pode ser comparado à forma que anima a matéria, pois sem a forma a matéria se
(Costa & Medeiros, 2009, p. 380-381). É no desejo vivido em seu “mundo de sonhos”
que Clarice encontra alento e sentido, mas também o vivencia como frustração quando
acorda e se dá conta da distância entre sua vida real e aquela que sonha alcançar.
cercava. Fugia para o seu “mundo de sonhos”, em que era casada, trabalhava,
não era “doente mental” e morava em sua própria casa, ao mesmo tempo em
que esperava que ele se concretizasse. “Aquilo que o homem sonha, Deus
realiza”. Clarice falava de seus sonhos com urgência, pois queria ser feliz
“logo” apesar de afirmar que precisava esperar o “tempo de Deus”. Mas este é
um tempo diferente do que ela precisava para se sentir bem naquele momento, o
atropelada. Esse mundo é seu espaço de fuga em si mesma, e que lhe ajuda a
O mundo dos sonhos de Clarice parece suprir aquilo que falta em sua realidade
concreta. Ele é parte de seu mundo vivido e, mais do que breves momentos de
“mundo de sonhos” de Clarice é mais vívido. Ele possui um traço de passividade, que
que o próprio futuro, e é por isso que encontramos mais charme na esperança do
encanto na esperança, porque ela abre em grande parte o futuro diante de nós
aperto da espera; ela desvia o contato com o presente imediato e dirige o olhar do eu
para uma instância mais distante” (p. 381). Para além de um otimismo ou pessimismo, a
esperança possui uma dinâmica contemplativa e construtiva que consegue estar presente
sonhos que preenche e dá sentido à sua realidade fragmentada. Longe desse mundo,
tentativa de agir sobre o mundo (real), Clarice atua presa em si mesma (imaginário) e,
como afirma Fuchs (2010), “a realidade congelada da ilusão prende o curso do tempo
livre, p. 20).
encontrar no CAPS, veio falar comigo para dizer que não estava se sentindo
individual, a participante narrou que se sentia mal devido a idade. No dia a dia,
às vezes Clarice percebia que envelhecia, mas entrou em contato com esse
processo de forma mais evidente na passagem dos anos comemorada por seu
187
aniversário. Para Clarice, o tempo estava passando e seus sonhos ainda não
ansiedade, pois tinha “algo na comida” que a tranquilizava. Pedi para Clarice
humanas e o mundo. Entretanto, alguns hiatos podem ocorrer, o que rompe com a
que separa o desejo e a realização (Fuchs, 2005), ou seja, o desejo de seus sonhos e a
seu sofrimento. Disse que resolveu ser freira para viver a religiosidade, mas o
188
convento destruiu sua vida. “Queria voltar no tempo! Se pudesse, não entraria
no convento, onde tudo deu errado”. Clarice ansiava por apagar o passado
“como fazem nos cadernos”. Dizia que, se pudesse apagar o passado, ela
estaria casada e com um filho. Sentia raiva do “maldito cachorro” que a atacou
novelas, etc. “Eu não consigo olhar para a minha irmã e o marido dela quando
estão juntos” como casal, também contava que não conseguia assistir a cenas
românticas em filmes. Pedi que Clarice me descrevesse como era para ela ver
tais cenas, seja na vida real ou no cinema, e a participante contou que sentia
que “o tempo vai passando, passando, passando e eu vou ficando para trás”.
uma vez que o tempo experienciado não existe enquanto coisa em si, como uma
entidade metafísica (Fuchs, 2005, 2010, 2014). Mas antes, a dessincronização do tempo
relação aos outros” (Fuchs, 2010, tradução livre, p. 09). No mundo vivido de Clarice, a
paralisação do tempo vivido ocorre por meio da perda de sincronia com o tempo do
dois últimos encontros clínicos. O que mais lhe angustia, afirma, é "ver o tempo
descrita por ela como "desespero e ansiedade” por não conseguir se mover,
ansiando para que o futuro se faça presente. Nestes encontros, percebi que
ocorreram há vários meses ou anos. Nem sempre ficava claro em seus relatos
mundo vivido da forma como ele nos apareceu, confuso, inibido, paralisado, ansioso e
fragmentado.
deseja agir sobre o mundo, não consegue, pois se encontra como alguém preso em uma
areia movediça. Quanto mais tenta se mover, mais Clarice afunda. É nesse momento
acima por meio da perda de sincronia com o tempo do mundo (Fuchs, 2010), o mundo
vivido de Clarice também nos dá indícios de uma possível segunda forma de alteração
temporal, talvez um pouco mais sutil que a primeira em sua experiência. Durante os
dificultando o nosso acesso ao seu mundo vivido. Este fator tornava confusa para a
Era muito presente nos encontros clínicos com Clarice a participante fazer
Clarice falou de suas frustrações e tristezas por não haver realizado seus
acelerada e, por vezes, desconexa para mim que a ouvia. O tema “pensamentos
ruins” retornou no encontro seguinte, quando Clarice afirmou ser muito difícil
não sucumbir às vozes que a mandavam acabar com sua vida. Clarice resistia a
elas, pois temia o inferno. “Isso é obra do demônio”. Ao lhe perguntar sobre
estas vozes, Clarice dizia que são os pensamentos que lhe invadiam. São tantos
passeava com os cães, punha água nas plantas. Sentia-se bem quando se
profunda tristeza em não ter realizado seus sonhos [casamento], dizia não saber
o que queria para si. “Nem eu sei o que eu quero. Ou é matrimônio ou é vida
consagrada”. As irmãs lhe diziam que casar era ruim, e Clarice passou a
e dizia que foi “muito ruim”. Também não podia trabalhar, pois “o cachorro
pensamentos. É um processo que a participante vivencia como invasão, pois ela própria
não consegue acompanhá-los e nem alcançar seu eixo formativo. Clarice fala destes
atacam – ou a invadem. Seu desejo imediato é se colocar fora de si mesma, longe de tais
invasivos reverberam no encontro clínico por meio de sua fala confusa e também
referência a vozes que lhe apontam o caminho do suicídio. Estas são tidas como algo
afirma Fuchs (2007b), “um pensamento que invade o arco intencional fragmentado
carece do senso de gerência; não é mais meu. Aparece contra a minha intenção e 'me
fala' como se fosse uma força alienígena” (p. 234), como algo de fora e, portanto,
exacerbada e automática de si (Sass & Parnas, 2003; Fuchs, 2007b, 2010; Fuchs &
Pallagrosi, 2018).
193
doença mental, aos seus desejos e as suas expectativas diante a antecipação do futuro. É
ansiedade.
(Rachel de Queiroz)
Rachel, de 57 anos de idade, era usuária do CAPS Geral da SER III desde 2003
atenção primária e era uma das usuárias mais antigas desse equipamento de saúde
em residências.
Sua mãe faleceu quando contava 04 anos de idade e, desde então, Rachel “vivia
de casa em casa”. Ora morava nas casas de famílias para quem trabalhava, ora com as
irmãs. Desde a infância à adolescência, Rachel foi abusada sexualmente pelos cunhados.
Contava para as irmãs sobre as carícias que recebia, mas era chamada de mentirosa e
pai e pela madrasta. Precisava de um lugar para morar, mas não o encontrou na casa
194
paterna, sendo expulsa quando souberam da gestação. Para Rachel, falar sobre seu
sofrido durante os encontros clínicos. Quando a participante trazia estes conteúdos não
encerrar. Tanto que algumas informações sobre esse período de sua vida permanecem
Como foi mãe solo, sem ajuda e sem dinheiro, Rachel deixou o filho bebê para
ser criado por uma de suas irmãs. Rachel precisava trabalhar para mandar dinheiro para
o sustento do filho, mas não podia cuidar dele presencialmente, uma vez que morava na
residência da família onde era doméstica. Hoje, Raquel possui uma relação difícil e
conturbada com esse filho, a quem chamaremos João. Em sua última briga com o filho,
a qual ocorreu durante os encontros clínicos desta pesquisa, Rachel e o João deixaram
de se falar. João afirmou que não a reconhecia como mãe e, em uma mistura de mágoa e
orgulho ferido, Rachel validou que não era mãe dele se ele não a visse assim.
Além de João, Rachel possui também duas filhas – Antônia e Maria. Rachel
casou com o pai de suas duas filhas e viveu com ele um relacionamento abusivo de
ordem física e emocional. Separou-se do pai de suas filhas e, dois anos antes de iniciar
ansiedade e pânico. No início, seu quadro clínico diagnóstico era inconcluso, pois em
não especificada (F29), esquizofrenia (F20), transtorno afetivo bipolar (F31), transtorno
das queixas de ansiedade por parte de Rachel, as quais andavam lado a lado por um
medo contínuo da morte e estavam descritas em seu prontuário. Seu atual diagnóstico é
realização desta pesquisa, Rachel fez uma cirurgia para a retirada de uma hérnia na
apenas 02 encontros clínicos quando isto ocorreu. Apesar desta interrupção, ao retornar
participação ativa e com poucas ausências desde então. Afirmava que gostava de
encontros clínicos com o fim da pesquisa, além do grupo de música, Rachel também
havia dado início ao processo de psicoterapia individual no CAPS Geral da SER III.
vista, sua ânsia era por falar, compartilhar suas histórias e inquietações.
compartilhar com alguém suas angústias. Ela dizia ser uma pessoa ansiosa e
Rachel contou “eu quero tudo logo”, manifestando sua dificuldade em esperar.
Às vezes se percebe assim nos grupos do CAPS, sem paciência, inquieta e com
Rachel contou que essa sensação foi mais forte, pois soube, enquanto aguardava
aguardava notícias. Seu pai veio a óbito no mesmo dia e Rachel foi a última
de mim porque eu tenho problemas mentais. Eles têm medo de como vou
reagir”. Esse foi um dia de espera para Rachel, que ficava “olhando o relógio
estrutura temporal mais lenta, que nos exige respostas com maior ou menor grau de
paciência (Fuchs, 2010, 2019a; Fuchs & Pallagrosi, 2018). No caso de Rachel, a
impaciência prevalece e reverbera em sua dinâmica corporal, uma vez que o corpo é,
afirma Merleau-Ponty (1945/2006), “não é nunca nosso corpo objetivo que movemos,
mas nosso corpo fenomenal” (p. 153). Este é sentiente e movente, pois é o corpo vivido
Como aponta Fuchs (2005, 2010, 2019a), nossas experiências subjetivas são
estarmos conectados ao tempo vivido – ou implícito. Com Rachel não é diferente, uma
vez que diante a ansiedade da espera seu corpo vivido pulsa por movimento.
seu engajamento com o mundo (Moreira, 2014) diante a expectativa de perder um ente
Queria voar para o momento do dia em que a notícia chegaria. Mas, em geral,
sua sensação era inversa. Quanto mais caminhava em direção ao “logo”, mais
afirmava que sua “ansiedade faz parte da depressão”, pois quando está
depressiva, Rachel também se percebe inquieta, não dorme, não bebe, fica mais
porvir, aponta para uma consciência explícita ou objetiva do tempo que se fundamenta
em termos de passado, presente e futuro. (Fuchs, 2005, 2010, 2019a; Fuchs &
presente e o futuro, uma vez que permanece aguardando alcançar o “logo” que nunca
chega.
aguarda o futuro. Como afirma Fuchs (2019a), na lacuna entre o presente e o futuro
presente. Não estamos mais imersos em nossas atividades” (p. tradução livre, 433).
por sua sensação de não sair do lugar. A participante se perde na busca por agir e se
vivido (psico)patológico.
quais são devolvidos para a participante por meio da atitude de compreensão empática
reconhecer-se estagnada em sua relação com o mundo, Rachel aproxima sua experiência
humana.
antes, “às vezes eu chego de manhã cedo; umas 9h, 10h”. Ao lhe indagar a
razão de chegar tão cedo, Rachel contou que sentia “uma coisa, uma agonia”,
mas a princípio não conseguia nomeá-la. Ao tentar descrever tal agonia, Rachel
falou “Como é o nome? Aquela coisa ruim... [pausa] ansiedade. Me sinto muito
ansiosa, me dá uma agonia e eu preciso sair”. Rachel não sabia para onde ir,
sua vontade era de andar sem direção até a ansiedade passar. Desde quando
hérnia. Não sabe quando esta irá ocorrer, pois a cada nova tentativa aparecem
muito medo em fazer a cirurgia. Nem gosta de falar sobre, pois relembra o
medo que sentiu. Seu principal medo era morrer. Hoje, se inquieta ao pensar na
urgência de “correr o mundo”. A espera é vivida como agonia, uma vez que o porvir
trazer o futuro para o presente por meio da possibilidade de ação, preenchendo a lacuna
que se abre neste ponto. Entretanto é um futuro vazio, em que a participante não aponta
noção de ímpeto (élan) vital ou pessoal como proposto por Minkowski (1933/1994) em
sua célebre obra Le temps vécu. Como o ímpeto vital cria o horizonte do futuro a nossa
201
frente, ele doa direção ao devir e nos integra a ele (Minkowski, 1933/1994; Faizibaioff
mundo. O presente é inundado pelo o futuro e Rachel chega ao CAPS, por exemplo,
horas antes do início dos grupos terapêuticos. O curioso é que, enquanto na vida
cotidiana a espera é terrível, ao chegar ao CAPS Rachel se estica nas cadeiras, fecha os
específico, a saber: a morte. Como assinalam May (1950/1980) e Pinto (2006; 2017),
mais elementos. Quando essa ameaça cessa, no caso de Rachel com o fim da cirurgia, o
medo também se estingue. Ele reaparece em sua fala diante a possibilidade do objeto
ameaçador retornar.
mundo”. Rachel afirmava que “era como se eu já tivesse vivido bem muito. Não
dá mais para viver”. Sua perda de ânimo pela vida era justificada, em sua fala,
filhos com quem brigou e que a estava ignorando. Ela tem tentado se manter
202
forte, cercada pela fachada de mulher durona e que não se abate. Entretanto,
por trás dessa máscara, vejo Rachel murchando e seu ânimo passa a transitar
entre o medo da morte, o vazio de sentidos e a angústia, o que abre espaço para
a ansiedade em sua rotina. Rachel sentia uma “agonia” para que as coisas
acontecessem “logo”, que o dia amanhecesse mais rápido, etc; “tudo meu é pra
últimos podem andar acompanhados de quadros de ansiedade (Dörr, 2014; Aho, 2020;
Rós, Ferreira & Garcia, 2020) como ocorre no mundo vivido de Rachel. Esta
aproximação se relaciona com a natureza afetiva destes quadros clínicos, tanto que Dörr
traço de passividade que não depende da vontade do indivíduo, pois está enraizado na
ao vivido depressivo, em que há uma perda de frescor e vitalidade que impregna todos
temporalidade, uma vez que o tempo vivido se encontra inibido, estagnado e sem
direção, esvaziando o seu presente. (Ambrosini, Stanghellini & Raballo, 2014; Fuchs,
ansiedade se desvela sob a forma do medo em o experienciar (Moreira, 2014), tanto que
Rachel tenta fugir para o “logo”, acelerando o tempo. É como se Rachel estivesse
caminhando sob uma fina camada de gelo. A qualquer momento esse fio pode rachar
sob seus pés e a jogar em águas gélidas. Para não sucumbir ao vazio, Rachel corre cada
vez mais rápido embora não consiga sair do lugar. A ansiedade é vivida na tentativa vã
descrever a “agonia”, os medos e as angústias, Rachel se aproxima do vazio que eles lhe
despertam e seu movimento imediato é olhar para o relógio e checar se nosso tempo se
tempo da participante.
204
Rachel, mãe de três filhos, mora com Maria [a filha mais nova] e com quem tem
uma relação mais próxima. Maria “é a filha que me cria”. Rachel traz esta
afirmação ao descrever Maria como sua cuidadora, pois é quem lhe ajuda com
deles é a mágoa que carrega do filho mais velho, que não a reconhece como
mãe hoje. Quando engravidou dele, Rachel passou a trabalhar como doméstica
para sustentá-lo. Não podia levar o filho para o trabalho, pois dormia lá, e o
em que Rachel se culpou por não o ter criado, diferente do que ocorreu com
suas filhas mais novas. Ao relembrar o passado, Rachel fala de seu futuro sem
com o filho. A participante afirmava que o futuro significa para ela uma mistura
escolhas que a participante fez no passado e de como as experiencia hoje na relação que
de projetar novas ações, uma vez que seu porvir aparece desprovido de sentidos.
205
movimento” (p. 137), pois o tempo vivido encontra-se paralisado sob o peso do passado
que não pode ser modificado. O passado é experienciado como uma espécie de falta
Além da mágoa, Rachel carrega a culpa por não ter criado o filho mais velho,
por fazer acompanhamento psiquiátrico e se sentir “um peso para Maria” [nome
modificado] e até por ter criado as filhas mais novas em comparação a João. Entretanto,
incapacidade para a ação, o não poder; é uma espécie de dívida impagável diante o
É nesse cenário que a ansiedade é vivida por Rachel como expectativa diante a
No segundo encontro clínico com Rachel, a participante relatou uma crise que
Sentiu seu peito fechar, ficou muito mal e chorou em demasia. Não conseguiu os
remédios nos postos de saúde, apesar de sua filha ter procurado em vários
lugares da cidade. Relata que durante a crise sentia todas as coisas ruins de
206
uma vez só, tais como taquicardia, sensação de peso e compressão no peito,
agitação, agonia e medo. “Eu preciso deles nas mãos para garantir que não vou
piorar”. “Nas mãos”, para Rachel, significa saber que os medicamentos estão
por perto, acessíveis para quando ela precisar. Quando está “doente” se sente
sensível, e quando tem “tudo nas mãos” [os medicamentos] melhora, embora às
vivencia durante as crises reverbera em sua fala e em seus gestos. Percebo que
vivida pela participante em sua totalidade, o que nos foi possível por meio da atitude de
reapoderar-se da intenção total” (p. 16), da maneira única de existir, misturada e borrada
inalienáveis por possuírem um sentido comum, já que “meu mundo é sempre assim
estabilidade. Imaginar a falta dos remédios lhe desperta sofrimento e, até mesmo, crises
melhora e às vezes até cura (Czarnobay et al.,, 2018), aliado ao contexto medicalizante
Rachel faz uso também funcionam como uma espécie de rede de suporte e segurança
emocional. Saber que eles estão disponíveis para o seu uso, mesmo que não vá
Rachel como um invólucro [housing], em que a participante se refugia dos medos que
Stanghellini, 2019). Ter os remédios por perto se torna uma premissa básica implícita na
Entretanto, Rachel não concordou com esta alteração. Sente pavor em mexer
nos remédios e fica ansiosa com essa possibilidade, pois se lembra da época em
segundo ela afirma, seu organismo “já está acostumado”. “Ele é médico e sabe
208
tudo, mas não sabe o que eu sinto”. Diferentemente dessa situação, em nosso
que sentiu nesse profissional. “Ele me ouviu e senti que trabalhava com amor”.
Por fazer uso destes psicofármacos há mais de trinta anos, Rachel atribui a eles
lugar central em sua vida. A participante deposita nos medicamentos parte da confiança
obscuro, impossível de ser vivido por carregar consigo a dor e o sofrimento que recorda
das crises passadas. É a antecipação de algo que ainda não ocorreu, vivida no instante
perdê-los marca uma situação-limite para Rachel. Esta noção, oriunda dos estudos de
para discutir o adoecimento mental (Fuchs, 2013, 2019b; Stanghellini, 2019), aponta
existência humana. Sem os medicamentos, Rachel não sabe como viver no mundo por
fluxo de nossas experiências que se desvelam num horizonte temporal impede o total
mesmo que seja feita por um médico, significa ameaçar retirar o chão de seus pés.
pois Rachel, ao falar, fica inquieta, põe a mão sobre o peito e diz sentir-se
“agoniada”. Ao pedir que ela me descreva como é essa agonia, Rachel conta
“É uma pontada; como se meu peito fechasse e apertasse”. Diz que tem medo
de morrer e, ao pensar sobre a morte, sente-se ansiosa por não saber quando e
como morrerá. Além de não saber o que acontecerá consigo Rachel também se
preocupa em como ficará sua família sem os seus cuidados. Tais pensamentos a
estivesse ali, ao seu lado, o que a apavorava. Contou que ficou sem saber o que
fazer como se estivesse paralisada. “Me senti congelada com uma angústia e um
filhos não a compreendiam e não conseguiam entender como é ter a morte ali,
ao lado. Rachel chora e conta que se sente aliviada em poder conversar. Acolho
distinções (May, 1950/1980; Pinto, 2006, 2017; Zevnik, 2017). Enquanto o medo
do futuro.
a sensação de não saber; não saber como seus familiares estarão e o que acontecerá
pensamentos e etc.
vivido de Rachel traz à tona também um terceiro elemento, a saber: a angústia. Esta
capítulo desta tese, a angústia é condição da existência humana e nos põe em contato
Boris & Barata, 2017). Mas distintamente da ansiedade, a qual é vivida como urgência e
Rachel, logo que acorda, busca por movimento. Arruma a casa, lava a louça e
inquieta e ansiosa, e procura coisas para fazer assim “não tem espaço para os
insônia e afirma se sentir “ansiosa para o dia amanhecer logo”. Enquanto pela
211
manhã Rachel tem o ímpeto para ação, à medida que o dia vai se encerrando
sua energia vai se esgotando junto. Seu ímpeto diminui e Rachel diz que sente
“uma tristeza”. Não sabe explicar por que se sente assim à noite, mas percebo
que o fim do dia tem algo de opressor para ela. Rachel diz que sente medo da
la, escuto o sentido de que é a vida que está se findando. Nesses momentos,
Rachel diz sentir forte angústia, ao ponto de não conseguir dormir direito
quando está muito inquieta. “Eu fico me levantando a noite inteira”, e quando
coloquial e, por vezes, passam a descrever estados de humor similares e que podem se
alternar (López-Ibor & Zapino, 2019). A princípio, esse aspecto pode confundir o leitor
em relação ao mundo vivido de Rachel, que ora faz referência à ansiedade e ora à
angústia como vemos no relato acima. Entretanto, sinalizamos aqui algumas distinções
A relação de Rachel com a passagem do dia nos sinaliza para uma mudança
tempo cronológico, sua significação dos turnos do dia se altera a medida que eles
mudam (Fuchs, 2007, 2001, 2014). Durante a manhã há ânimo, agitação e urgência em
viver, em cumprir seus afazeres. É um estado de inquietude vivido por Rachel como
elas não se realizem necessariamente, a noite representa a finitude, o vazio, o nada. Não
se trata aqui da morte concreta, mas de sua versão existencial (Kierkegaard, 1940/2016)
mesmo com milhões de pessoas por perto”. Não sente vontade de ver, falar ou
encontrar com ninguém. Está magoada com as brigas com o filho e carrega a
espelho, sem saber quem eu sou, o que eu sou”. É como se Rachel buscasse se
Rachel, que confirmou sentir-se assim – sufocada. Nesse momento, Rachel fala
participante diz ter “muito medo da morte”. Pensar e falar sobre esse assunto
lhe causa medo, pois não sabe o que acontece depois. Apesar de afirmar que
que não vai fazer nada, pois seu medo de morrer é maior que o desejo pelo fim
dela buscar rede de apoio nesses momentos como o CAPS, sua família e etc.
medo de outra ordem, “é um vazio” (sic) que diz sobre a ausência de possibilidades de
Como assinala Fuchs (2003, 2005, 2010, 2011, 2014) há uma dessincronização
vez que a descontinuidade entre o que se foi (passado) e o que será (futuro) aparta-se do
que se é (agora). Há uma perda de continuidade temporal, vivida como perda de si, e
tão baixa que no início eu não conseguia lhe ouvir; quase um sussurro.
Compartilhei com ela essa impressão, e Rachel, falando um pouco mais alto,
repetiu que em casa havia visto “um litro de álcool; ai me deu uma vontade de
mas não chegou a fazê-lo. Nesse momento, compartilhei com Rachel uma
viver”. Rachel relatou um “cansaço de viver”, pois não tinha forças para se
movimentar; “quase não vinha hoje”. Aponto para a participante que apesar
disso ela veio ao CAPS, e Rachel contou que às vezes percebe duas forças
agindo sobre ela. “Uma me empurra para vir, e a outra me chama pra trás” e
ela se encontra no meio desse conflito sem saber o que fazer, sentindo-se nesses
agitado. Nesse encontro, sua falta de ânimo se apresentava em todo o seu modo
de “um aperto” no peito. Narrou que tem sentido isso ao sair de casa de ônibus;
215
“meus nervos travam”, pois “tenho medo de algo ruim acontecer”. Faz
que “os nervos travam”, todo o seu corpo se enrijece e se tensiona. Rachel se
alguém com quem falar e compartilhar suas angústias. “Vou sentir saudade
contribuído não apenas para esta pesquisa, mas também na história de Rachel.
Esta é descrita por meio de alterações corporais como tensão e enrijecimento diante um
mundo tido como ameaçador pelo cenário de violência que nos é imposto
cotidianamente. Isso é sabido pelos dados do Atlas da Violência 2019, que informa que
já atingimos um nível de violência endêmica nas principais capitais do Brasil tais como
mundano. Ela é constituída entrelaçada a este mundo factual, situado em meio a altos
índices de violência urbana, ao mesmo tempo em que Rachel constitui sua ansiedade
Importante frisar que como seres engajados no mundo, não estamos fixados nele.
Há sempre uma abertura para novas possibilidades, uma vez que o momento presente
tensionamento. Tanto que é prevalente nos encontros com Rachel, bem como com
com alguém as experiências latentes que lhes inquietam. Nesse sentido, o encontro
(Cecília Meireles)
acompanhamento no CAPS Geral da SER III em 2009, quando ocorreu sua terceira
participação nos grupos terapêuticos da instituição, seu quadro clínico foi melhorando.
Cecília é mãe de dois filhos, Ricardo e Joana, frutos de seu primeiro casamento.
217
Hoje trabalha como vendedora em uma feira de frutas com o atual companheiro, Edson.
Cecília mora com Edson e com o seu filho mais velho, Ricardo. A filha mais
nova, Joana, é casada e reside com o marido e a filha de seis anos – neta de Cecília. A
mágoas de ambas as partes. Cecília relata que Ricardo nunca aceitou a separação dos
pais e os conflitos com a mãe pioraram desde que o atual companheiro passou a morar
com eles.
A não de aceitação de Edson não acorria apenas por parte do filho de Cecília,
mas estava presente em toda a família da participante, sobretudo por sua mãe. Esta
queria que a participante permanecesse no casamento com o ex-marido por acreditar ser
sozinha e sem ter a quem recorrer por ajuda, pois vivia um relacionamento abusivo e era
longo de vinte anos. Durante esse período, conviveu com crises de choro, medo e
SER III e afirmou a importância desse processo para conseguir tomar a decisão de
suicidas e foi internada no CAPS 24h durante o período de uma semana. Nessa época,
as brigas com sua mãe, irmãs e filhos se intensificaram devido o início de seu
218
ainda mais desgastantes por eles não aceitarem seu companheiro. A participante não
entende essa incompreensão familiar, pois está com alguém que lhe faz bem e que cuida
Em nosso primeiro encontro clínico, Cecília dizia sentir uma ansiedade muito
forte, que lhe acompanhava constantemente durante quase toda a sua vida, e
primeiro casamento. “Já passei por todas as formas de abuso e violência que
uma mulher pode passar. Físico, sexual e psicológico”. Neste casamento, que
durou mais de 20 anos, Cecília sofreu muitas crises de choro, desespero, medo e
pânico. Tentou fugir várias vezes de casa, mas nunca conseguiu ter êxito. No
ápice do desespero, tentou se suicidar. Fez isso em três ocasiões distintas. Além
do abuso em si, em nosso segundo encontro clínico, Cecília falou sobre a falta
filhos, mas eles conseguiram fugir pela janela para a casa da vizinha onde
queimar no fogão. Esse foi um momento limite, em que Cecília, com a ajuda da
219
contou que ficou aterrorizada e em pânico diante esta situação vivida. O pavor
e a agonia foram tão intensos que renascem durante a sua fala e reverberam em
que nos leva a destacar que a ansiedade, assim como a depressão, é comumente
Kohlsdorf, 2017; Ribeiro, 2017). Para ilustrar essa questão, Zancan e Habigzang (2018)
apontam uma pesquisa realizada numa delegacia no estado do Ceará, em cuja amostra
de 100 mulheres vítimas de agressão e que prestaram queixa, foi encontrado que 78%
entre violência e vulnerabilidade (Lawlor, 2018). Esta, por sua vez, “se refere ao fato de
que os seres humanos possuem um corpo que pode ser danificado” (Lawlor, 2018,
encerrados em nós mesmos, nem quando dormimos (Fuchs, 2019b; Lawlor, 2018). E
esta abertura, condição do devir da existência humana que se estende num horizonte
temporal, é o que nos lança [vulneráveis] sempre ao contato com Outrem e com o
mundo.
É precisamente nesse ponto que a vulnerabilidade habita o tempo, uma vez que
humana” (Lawlor, 2018, tradução livre, p. 02). Isto significa que não temos a opção de
nos fechar ao que estar por vir (protensão) e, em face de uma experiência agressiva e
invasora, como vivida por Cecília, a ansiedade ganha forma sob a antecipação da
situacional (Butler, 2004; Boublil, 2018). Esta distinção é apenas para apontar as
múltiplas facetas da vulnerabilidade humana e sua complexidade, mas são aspectos que
A ruptura com o ciclo da violência vivida por Cecília ocorre após a tentativa de
(Perdigão, 2001; Fuchs, 2013; 2019b). A perda da ilusão desta solidez diante o
221
horizonte temporal do devir abre o caminho para a invasão das protensões e, com isso,
Cecília, em momentos de raiva dizia que o filho não seu e a ameaçava verbal e
ter feito exame de DNA, assim não teria passado por tanta humilhação”. No
culpa não a liberta e marca sua relação com o filho, pois Cecília afirma sentir
que Ricardo sempre foi deixado de lado pelo pai. Conta que sempre tentou
vive hoje uma relação também distante com o filho (precária). “É como se
houvesse um grande muro entre nós dois”. Cecília se agarra com todas as suas
forças a qualquer fragmento, por menor que seja, de afeto do filho e teme o seu
abandono e desprezo. “Se ele sair de casa não precisará mais de mim e não se
também na relação construída entre ela e o filho. Não se tratou de uma violência física,
mas psicológica (Bittar & Kohlsdorf, 2017; Ribeiro, 2017; Zancan & Habigzang, 2018),
2019b).
misturada ao desejo de refazer o que já foi com o teste de DNA para provar a
paternidade do filho. Esta, como assinala Lawlor (2018), é uma das reações possíveis à
Cecília tenta apagar está em relação direta com a abertura ao futuro (diferença,
futuro numa unidade indivisa é a própria abertura de uma existência sempre vulnerável,
experienciando a ansiedade.
realizar suas atividades rotineiras. “Sinto-me regredindo, por que não tenho
vontade de fazer nada”. Cecília encontrava-se sem forças, sem energias. Seu
Cecília reconhece a dificuldade de sair de casa, sabe que não pode correr o
risco de ficar sem acompanhamento e teme perder sua vaga no CAPS. Além da
contra isso em diversos momentos. “Fico melhor quando conto essas coisas pra
Na primeira “crise de nervos” que experienciou, logo após uma briga com o ex-
“O que eu senti não era normal; tinha a sensação de estar ficando louca”. A
fala de Cecília ressoa com amargura e ressentimento, pois sua mãe não
participante com o filho também é cheio de conflitos, o que a faz sentir uma
“dor na alma”. Cecília descreveu sua frustração por nunca ser aceita pela
família. “Tudo o que faço é visto como errado. Estou cansada! (chora)”. Nesse
tensionamento, Cecília vive com medo. Teme a não aceitação, o que irão pensar
e o que pode acontecer. Ao falar, percebo que suas mãos estão trêmulas e
diz que sente algo ruim. Não consegue me descrever o que é o “algo ruim”, mas
Cecília percebeu-se sozinha, sem suporte e apoio. De um lado, tinha o ex-marido como
problemas e questões. O grito de Cecília por ajuda ressoou em silêncio aos ouvidos de
Em outras palavras, ser no mundo significa ser com outrem diante a abertura do
fluxo experiencial que só é possível em face do tempo. Não há uma separação concisa
independentemente umas das outras. Cecília projeta na família a si mesma e retém deles
saber: a aceitação.
ansiedade, presente em seus gestos, movimentos e mãos trêmulas não consegue ser
presente também nas alterações dos ritmos corporificados (Fuchs, 2003, 2010; Aho,
Cecília vive hoje um relacionamento diferente e sente que pode contar com o
atual companheiro. “Ele é alguém que me ajuda quando preciso e que está
sempre ali para mim”. Entretanto, a convivência entre Edson, o filho Ricardo e
os afazeres da casa. “Ele não se responsabiliza com nada, nem com as próprias
roupas. Tem tudo de mão beijada”. Ao mesmo tempo em que Cecília reclama da
uma profunda dor quando não é retribuída em afeto. “É uma dor na minha
“É como se eu tivesse que escolher entre ele e o meu filho”. Está confusa,
angustiada e não sabe o que fazer. Esse ciclo retroalimenta cada vez mais o
solução que a família encontrou para resolver este dilema foi dividir a casa em
suas e deixar uma das residências com Ricardo. Mas Cecília, ao falar sobre
a deixa ansiosa. Diz que esse é o seu grande problema. Ao tirar o filho de casa,
Cecília sente que está escolhendo o companheiro. Mas se não fizer isso, estaria
sempre recai, Cecília traz sua ansiedade e a descreve como algo que se
"Eu não sei explicar. Só sabe como é quem passa por isso. É rápido como um
A “dor na alma” de Cecília tem como pano de fundo o horizonte do tempo que
sustenta a relação da participante com outrem e com o mundo. Uma vez que a existência
humana se constitui na projeção das possibilidades que vislumbramos para nós mesmos
Aho, 2020), o agora para a participante é restrito diante uma única possibilidade
relacional, a saber: evitar o abandono e a solidão ao tentar resgatar o afeto do filho sem
precariedade não é definida apenas como uma ausência ou miséria, mas é “a privação
227
dolorosamente sentida de uma identidade adequada e honrada para aqueles que sentem
vergonha, descrédito, anonimato e que lutam para existir mais por si do que para os
vínculos mais fortes o mundo precário de Cecília entra em colapso (Fuchs, 2013;
Cecília e também se configura como uma situação-limite, a qual aponta para um status
forma implícita e servem para nos dar conforto, segurança e facilitar a nossa habitação
no mundo. Elas nos confortam com a [ilusória] sensação de proteção e defesa, tais como
valores, significados e etc., que construímos na relação com outrem e com o mundo
existencial é situada na ideia de “Se eu fizer tudo por meu filho, ele me retribuirá com
início da obra. Desde então a participante tem se queixado cada vez mais de
em seu modo de falar, cada vez mais acelerado, no tensionamento de seu corpo
não conseguir conversar com o filho sobre a decisão de divisão das casas. Quer
que ele seja independente, mas não quer mandá-lo embora. Cecília também
sofre ao imaginar a reação de sua família (mãe e irmãs), pois sabe que será
medo do filho morar sozinho. “Será que ele vai se alimentar direito? E se ele
ficar doente? Eu não vou saber por que ele não me conta nada”. Mas à medida
para mim e percebo que sua ansiedade recai por outros lugares. Além da perda,
Cecília teme mudanças. “Gosto das coisas estáveis, sempre do mesmo jeito”. A
expectativa do que virá por não saber precisamente o que será e como irá
ansiedade dá lugar à perda de vivacidade. Mais do que o medo do filho ficar só,
a agonia de Cecília diz sobre sua própria solidão. Entretanto, ao descrever sua
ansiedade Cecília conta que tem tudo a ver com essa reforma, pois "é uma
229
não apresenta um único gatilho ou disparador. Como aponta Zevnik (2017), a ansiedade
talvez até ausente” (p. 236). Para Cecília, a ansiedade alterna entre diversos elementos,
não se fixando em um ou outro objeto, pois não diz respeito apenas à situação manifesta
vista pessoal e singular, a ansiedade pode ser descrita como “uma experiência de
social” (Zevnik, 2017, tradução livre, p. 236). À primeira vista este movimento se
diante a expectativa misturada ao medo do filho não conseguir se cuidar da forma como
familiar, o que nos permite uma maior proximidade com o seu modo de funcionamento.
motivos específicos. “Estou ansiosa por que briguei com meu filho”; “Estou ansiosa por
que a mudança vai iniciar”, etc., sendo estes os elementos que primeiramente apareciam
(Moreira, 2004; 2009; 2013; 2014; 2016) no mundo vivido de Cecília, percebemos
230
durante os encontros clínicos que sua falta de confiança no futuro reflete algo anterior,
saber: transtorno misto do tipo ansioso e depressivo (F. 41.2). Aqui percebemos,
Cecília transita entre elas. Isto é possível pois há um eixo comum, que se sustenta na
ameaçadores. Como assinala Tatossian (1977/2016), “é porque esta confiança lhe falta
que o depressivo é incapaz de mudar” (p. 35). É nesse sentido que qualquer perspectiva
Cecília lida com uma relação frustrada com o filho, que não se comunica com
10
Referência ao segundo de estudo de caso fenomenológico desta tese, em que a co-relação entre
depressão e ansiedade também foi apresentada e discutida.
231
ela. Passa o dia isolado no quarto, só sai para comer, não conversa e não se
preocupa em saber com ela está. “É como conviver com um estranho, mas ele é
meu filho”. Ao mesmo tempo em que diz que eh o jeito dele, gostaria de fazer
frustração, e Cecília não sabe lidar com eles. A dificuldade de convivência gera
seu filho). Ao vê-la sofrer, o marido toma suas dores e confronta o filho, o que
mesma casa. Percebo que Cecília sente um peso insuportável ao ficar entre os
dois. “Tenho que escolher entre eles”. Escuto o verbo “ter” ser dito com muito
peso, uma obrigação que não deveria estar ali, e devolvo isto para a
participante. Cecília pausa, silencia sua fala e, após alguns instantes, responde
que não quer fazer essa escolha, pois quer dividir o amor entre ambos e não
optar por um deles. Sente que não é justo para ela estar desse jeito e se culpa
por se sentir assim. Nesses momentos, sente vontade em acabar inclusive com a
própria vida.
Para Cecília, o futuro se desvela por meio de uma única possibilidade, a saber: a
escolha entre o atual companheiro e o filho. Assumir o lugar dessa escolha significa
sustentar uma perda impossível para a participante. Vale destacar que não é a perda da
pessoa concreta o que está em questão, uma vez que Cecília deposita em Outrem [mãe,
marido, filho, etc.] a confiança que lhe falta. Como destaca Tatossian (1977/2016), ao
não esperar muita coisa de si, Cecília “não pode mais do que esperar muito de outrem,
de quem ela tenta obter aprovação e amor” (p. 35). É uma espécie de estratégia de
232
dessa dualidade, sem poder realizar nenhuma das duas opções. Nesse sentido, a
sua solidão, pois ninguém a compreende. Não tem espaço em nenhum lugar
para conversar sobre essas questões, e se sente grata em poder falar comigo.
Solidão e ansiedade são os pontos centrais da fala de Cecília. Por não ter com
angustia, uma espécie de sufocamento, que vira um desespero, uma ânsia por
algo que não sabe o que é. “Eu vou enchendo e enchendo até explodir”, e
Cecília sente isso, sobretudo em seu corpo. Às vezes pensa em morrer, mas hoje
se contenta em dormir. Dorme muito para não lidar com seus problemas, para
não se sentir triste, angustiada e ansiosa, pois é difícil lidar com o peso de tais
233
sensações corporais, tais como gastura, náusea, tremores e insônia. Este último
de alerta.
tornavam quase que visíveis para nós. Esse é um dado curioso, pois o tempo não possui
entrelaçamento da relação e, aqui, esta foi vivida na dinâmica do encontro clínico com
Cecília.
noção metafórica de carne, que nos entranha ao mundo e nos funde a ele uma vez que a
Merleau-Ponty (1964/2014, p. 111) nos fala. Carne e tempo são fenômenos coesos, que
traço de materialidade, a experiência do tempo se torna visível para nós nos encontros
234
Cecília.
ansiedade ocorre pela forma do sono. Dormir torna-se seu meio de escape; condição
Em nosso nono encontro clínico, Cecília trouxe que se sentiu ansiosa durante
descrever como percebia isto, Cecília traz as sensações corporais como ponto
respirar. No último domingo, comemorou-se o dia das mães, mas seu filho a
tornasse visível para mim, não por meio de sua fala, mas de seu corpo, o que me
encontra aprisionada não apenas em sua vida, mas também em seu corpo. No
suas mãos, que se apalpam e apertam num gesto circular. Esse movimento se
com mais força, como se seus músculos das mãos contraíssem. Comunico esta
percepção para Cecília, e aponto que ela parece literalmente presa em suas
temporalizando seu corpo por meio de tremores nas mãos, aceleração cardíaca, dentre
outros. Isto se dá, pois o “corpo é um ‘corpo de ressonância’, uma caixa de ressonância
e o contato, no instante agora, com tais questões compartilhadas ao longo dos encontros
clínicos.
vive a ansiedade apenas internamente. Esta atravessa o seu ser, suas relações com a
família, consigo mesma, com o trabalho e também durante o próprio encontro clínico, o
que só é possível por que Cecília não está sob o tempo, mas é o tempo no estofo e na
que as mãos de Cecília aparecem como o reflexo de suas angústias, seus medos e suas
conseguir agir sobre a vida e tomar uma decisão em relação a sua família, Cecília age
CAPS da SER III em sua vida. “É um dos únicos momentos em que eu realmente
olha para o relógio e diz ter pedido a noção do tempo. “Passou tão rápido
hoje!”. Antes de sair da sala, compartilha comigo que também se sente aliviada
quando conversarmos. “Falar a ajuda. Jogo pra fora essas coisas ruins que
palavras, a unidade temporal básica que constitui nossa consciência presente, como
(1945/2006), perde sua sincronia e o porvir invade o agora, ocupando todo o seu espaço.
inquietações do futuro que se impõe sobre a participante a paralisa diante o peso vivido
invasão do futuro.
assinala Fuchs (2005, 2010, 2014) ocorre uma espécie de sincronização plena, em que
passado e futuro não se distinguem no agora. Nesse breve momento, atravessado pela
238
No encontro clínico seguinte, Cecília trouxe que tem acordado muito ansiosa e
angustiada, com muitos pensamentos (embora ela não tenha explicado quais)
que a invadem, mas à medida que o dia vai passando ela encontra outras coisas
para fazer e essa agonia diminui um pouco. Nesse momento traz novamente o
CAPS e o grupo de música. Cecília diz que é difícil sentir o que sente, mas que o
grupo de música a ajuda. Ela se sente mais relaxada quando canta e pode,
grupo, libera todas as tensões e descarrega o peso que vive, sentindo-se menos
ansiosa e mais aliviada. "Ás vezes essa agonia quer voltar, mas eu foco aqui no
continuidade da unidade temporal. Esta, como discutida por Fuchs (2010), é a primeira
incertezas e expectativas do futuro, mas ao cantar consegue se reconectar com este fluxo
Estudos apontam (Conceição, Almeida, Oliveira & Ribeiro, 2020; Ribeiro &
Biffi, 2020) que a musicoterapia tem sido um recurso amplamente utilizado nos serviços
retém resquícios do que acabamos de ouvir (retenção) e antecipa indícios do som que
momento presente, Cecília retorna a este ponto de integração do arco intencional de sua
CONSIDERAÇÕES FINAIS
base o Lebenswelt.
encontros clínicos com a pesquisadora por meio das alterações rítmicas nos gestos, nos
movimentos e nas falas das participantes. A alteração da velocidade das palavras que
241
fluíam sem sentido e direção de Clarice, a ânsia por movimento em “correr o mundo” de
de adoecer na ansiedade.
fenomenológica ou em seu eixo contemporâneo. Supomos que isto se deu por duas
Diante o exposto, os estudos sobre a ansiedade nesta tese, embora inseridos em distintos
incursão da fenomenologia clínica diante esta questão cada vez mais presente no cenário
A ansiedade, apesar de não ser originária do século XXI, tem ganhado maior proporção
Entendemos que resgatar essa discussão nos lança em um percurso de compreensão dos
perspectiva crítica da experiência de adoecer. Esta nos aponta para a necessidade de sair
Eu/Outrem/Mundo.
242
cada vez mais acelerado. Nos estudos de casos fenomenológicos das participantes desta
existência e, para compreendê-la, resgatamos os sentidos dos modos de ser global por
encontros clínicos. Foi um método que nos permitiu o distanciamento de uma relação
sujeito/objeto para, assim, alcançarmos os modos de ser global dos sujeitos em seu
Este foi um ponto central de nossa construção metodológica, pois foi nesta intersecção
sensível às experiências compartilhadas por Clarice, Rachel e Cecília foi facilitado por
243
autenticidade, as quais foram desenvolvidas pelo psicólogo americano Carl Rogers. Isto
facilitou uma troca genuína com as participantes da pesquisa, pois nos permitiu
caminhar de mãos dadas em seus mundos vividos ao encorajar o contato com suas
experiência. Foi um movimento que ocorreu de forma natural pela própria configuração
semanalmente, também nos permitiu um mergulho profundo nos mundos vividos das
importante para a compreensão do tempo vivido na ansiedade, uma vez que, ao avançar
em direção ao futuro, o devir o abre diante de nós. Como o ímpeto vital tem a
A aceleração do tempo vivido esteve presente nos três casos clínicos desta tese.
como vivenciam esse mundo por meio da inquietude da espera, da busca por
nos encontros clínicos por meio de uma dificuldade de acessar e, por vezes, entender as
nessas lacunas; nos fragmentos da consciência temporal da participante. Tanto que era
hiperreflexiva de Clarice, uma vez que a participante perdia o senso de gerência sobre si
mesma ao ser invadida pelo fluxo de sua própria consciência sob a forma de delírios.
em que este último aparentemente corria mais devagar, impossibilitando Rachel de sair
de sua existência. Entretanto, era uma experiência paradoxal, pois Rachel permanecia
246
paralisada, uma vez que a ansiedade vivida na busca por movimento antecipava um
porvir sem sentido e sem direção. Constatamos que a ansiedade vivida na aceleração do
devido à perda de direção diante um futuro vazio. Mais do que a tentativa de alcançar o
vivido. É nesse sentido que defendemos nesta tese que ansiedade e angústia são
no vivido de Rachel como duas faces de uma mesma moeda. Encontramos estes
participante entre o filho e o marido. Enquanto para Rachel a invasão do porvir que lhe
retirava do contato com o agora vazio se dava sem sentido e sem direção, Cecília era
invadida por um fluxo de protensões que lhe apontavam uma única possibilidade, ou o
da violência vivida pelas participantes. Essas retiraram o chão de seus pés e, sem o
insuportável, o que passou a ser vivido como ansiedade. Com Cecília, a vulnerabilidade
que o futuro ficava constrito diante uma única possibilidade e a ansiedade emergia
vivido patológico e estas diferenças emergem como uma co-experiência, cujo eixo
Rachel e Cecília como forma de contribuição para uma fenomenologia clínica do tempo
vivido na ansiedade.
compartilhadas no encontro clínico. Estar com o outro diz de um processo dialético sem
vivido. Este é o laço que amarra e integra nosso horizonte experiencial entrelaçado ao
mundo, tanto em seus aspectos universais quanto singulares. Assim, a ansiedade possui
qual abre nossa condição de vulnerabilidade. Estar ansioso é estar em maior contato
com a vulnerabilidade.
249
ANEXOS
250
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
Prezado(a) Participante,
tempo na ansiedade. Nós estamos desenvolvendo esta pesquisa porque queremos saber
O convite para a sua participação se deve a você fazer parte do grupo de pacientes
Ao participar desta pesquisa você irá relatar suas experiências de vida, de forma
livre e espontânea. Por meio das descrições de suas vivências, poderei compreender
como o tempo vivido se aproxima da ansiedade. Não utilizarei nenhuma pergunta que
direcione o conteúdo de sua fala, pois o intuito deste estudo é você possa se expressar
livremente.
Durante sua fala, estarei lhe ouvindo atentamente e não irei considerar conteúdos
teóricos sobre a ansiedade ou o tempo, pois meu interesse é conhecer sua experiência.
Nossos encontros terão duração livre, de acordo com sua disponibilidade de tempo e
necessidade de diálogo. Informo que será mantido sigilo do material resultante desses
você tem plena autonomia e liberdade para decidir se quer ou não participar. Você pode
desistir da sua participação a qualquer momento, mesmo após ter iniciado o(a)/os(as)
você. Não haverá nenhuma penalização caso você decida não consentir a sua
solicitar do pesquisador informações sobre sua participação e/ou sobre a pesquisa, o que
poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.
Somente o pesquisador responsável e sua equipe saberá que você está participando desta
pesquisa. Ninguém mais saberá da sua participação. Entretanto, caso você deseje que o
seu nome / seu rosto / sua voz ou o nome da sua instituição conste do trabalho final, nós
respeitaremos sua decisão. Basta que você marque ao final deste termo a sua opção.
Todos os dados e informações que você nos fornecer serão guardados de forma sigilosa.
Tudo que o(a) Sr.(a) nos fornecer ou que sejam conseguidas por DADOS PESSOAIS,
dados e informações será armazenado em local seguro e guardados em arquivo, por pelo
menos 5 anos após o término da pesquisa. Qualquer dado que possa identificá-lo será
omitido na divulgação dos resultados da pesquisa. Caso você autorize que sua voz seja
ninguém saberá que é sua. Caso você autorize que sua imagem seja publicada, teremos
o cuidado de anonimizá-la, ou seja, seu rosto ficará desfocado e/ou colocaremos uma
tarja preta na imagem dos seus olhos e ninguém saberá que é você.
falar, choro, expressão de raiva, medo, angústia ao narrar momentos de sua história de
253
vida que ocasionem sofrimentos diversos. Eles serão reduzidos a fim de minimizar seu
impacto aos participantes por meio de estratégias desenvolvidas pela pesquisadora. Por
será encaminhado(a) por Camila Pereira de Souza para Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) Geral da regional II, situado na Rua Capitão Francisco Pedro, 1269 – Rodolfo
de algum gasto resultante da sua participação na pesquisa e dela decorrentes, você será
acompanhantes, quando for o caso, para a sua vinda até o centro de pesquisa.
8. ESCLARECIMENTOS
Se você tiver alguma dúvida a respeito da pesquisa e/ou dos métodos utilizados
Fortaleza, Ce. O Comitê de Ética tem como finalidade defender os interesses dos
confidencialidade e da privacidade.
COÉTICA
Desenvolvimento e Inovação.
9. CONCORDÂNCIA NA PARTICIPAÇÃO.
assinar este documento que será elaborado em duas vias; uma via deste Termo ficará
seu representante legal, quando for o caso, deve rubricar todas as folhas do Termo de
Caso o(a) Senhor(a) deseje que seu nome, seu rosto, sua voz ou o nome da sua
11. CONSENTIMENTO
TCLE, teve oportunidade de fazer perguntas, esclarecer dúvidas que foram devidamente
explicadas pelos pesquisadores. Ciente dos serviços e procedimentos aos quais será
submetido e, não restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu
pesquisa.
__________________________________________________
___________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
___________________________________________________
Impressão dactiloscópica
257
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