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O Príncipe da
Revolução
O Amante do Tritão livro 3

Copyright © 2018 R. B. MUTTY


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução não
autorizada.

Esta história é parte da série O Amante do Tritão.


Recomenda-se a leitura de O Amante do Tritão e Ondas em
Rebentação antes da leitura deste livro.

Design da capa:
R. B. Mutty

Os modelos da capa são meramente ilustrativos e não


correspondem a nenhum personagem da história.

Para acompanhar os lançamentos de R. B. Mutty siga-a no


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Sumário

Sumário
Glossário
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
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Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
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Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
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Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Cpítulo 90
Epílogo
A história de Levi e Ronan continua em
Agenda dos próximos lançamentos da série
Conheça os livros da série O Amante do Tritão
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Glossário
Começou a se perder na mitologia de O
Amante do Tritão? Confira alguns termos e
definições:

Espécies

Tritões e sereias
Tritões são os machos, sereias as fêmeas.
Em sua forma aquática eles têm uma longa cauda
de golfinho coberta de escamas. Diferente das
sereias e humanos, tritões possuem um gênero
secundário, podendo ser alfas ou ômegas. Eles são
capazes de respirar dentro d’água através de guelras
atrás das orelhas e não conseguem manter a forma
terrestre quando na água. Tritões de sangue puro
precisam do mar para sobreviver e são alérgicos a
alimentos da terra firme. A proporção populacional
entre tritões e sereias é de 10 tritões para cada
sereia.
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Selkies
Uma raça do povo do mar. Diferente dos
tritões, os selkies não possuem escamas e sua cauda
lembra a de uma foca. Sabe-se muito pouco sobre
eles.
Humanos
Chamados pelo povo do mar de inferiores
ou povo terrestre, os humanos são pessoas comuns
que em sua maioria nem suspeita da existência de
tritões. Por serem de uma raça biologicamente
menos evoluída, todos os humanos são ômegas.

Biologia

Omegaverse
O gênero literário no qual O Amante do
Tritão foi vagamente inspirado. Nas histórias
omegaverse a sociedade divide-se entre alfas e
ômegas, onde o ômega é capaz de ficar grávido do
alfa independente de ser homem ou mulher.
Alfa

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Tritões alfas são maiores, mais fortes e em


geral mais dominantes que seus parceiros ômegas.
Seu dever é realizar todos os desejos de seu ômega
grávido e zelar pelo bem-estar do núcleo.
Ômega
Ômegas quase sempre são magrinhos,
delicados e dóceis, embora não se deva confundir
delicadeza com fragilidade. O ômega é capaz de
gerar o bebê do alfa em seu ventre, em uma
gestação que dura nove meses.
Filhote
Todo o povo do mar menor de dezoito anos
é considerado filhote. Eles têm o desenvolvimento
emocional e hormonal de uma criança humana, são
incapazes de sentir prazer ou desejo e têm
capacidade limitada em compreender sentimentos
complexos como o amor. Após o Despertar, o
filhote se tornará alfa ou ômega.
Híbrido
O filho de um tritão com um humano.
Híbridos herdam a maior parte da carga genética do
pai alfa, mas podem adquirir traços do pai humano
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como personalidade, resistência a alimentos


terrestres ou a viver longe do mar. Às vezes
híbridos adquirem a cor dos olhos do pai ômega,
uma das únicas ocasiões em que sua cauda não será
verde. Devido à dominância genética, o filho de
dois híbridos ou um híbrido e um sangue-puro
apaga os traços humanos, gerando um bebê tritão
de sangue puro.
Formas
O povo do mar pode assumir diferentes
formas: aquática, terrestre e feral. Esta última
forma, destinada à defesa ou combate, pode ser
usada fora ou dentro da água e é especialmente
difícil de ser controlada por tritões híbridos.
Despertar
É quando o filhote torna-se um adulto,
podendo ser alfa ou ômega. O desenvolvimento
hormonal e emocional ocorre subitamente, um
processo confuso e assustador para a maioria.
Também é no despertar que o tritão conhecerá seu
predestinado.
Adormecer

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Ocorre em tritões idosos. O chamado


silencia e o tritão torna-se incapaz de se reproduzir,
mas ainda é agraciado por outras dádivas como os
poderes curativos do mar.
Abandono
Em casos extremos o chamado pode
abandonar um tritão, privando-o de seus poderes
curativos, habilidades telepáticas, alertas ao perigo
e todas as suas outras dádivas.
Telepatia
Tritões podem se comunicar
telepaticamente com seus predestinados, e também
com outros tritões de forma mais limitada. Esta é
uma dádiva do chamado que permite aos tritões
conversar embaixo d’água.

Sociedade dos Tritões

Oráculo
Tritões especiais de cauda dourada e a
capacidade única de ampliar os poderes do

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chamado. Aurelian Makaira é o atual oráculo, e


também rei dos tritões.
Chamado
É um mistério.
Egarikena
Capital do reino dos tritões. É uma linda
ilha de cristal com um castelo no topo, onde moram
os reis Hian e Aurelian Makaira.
Predestinação
Evento do Despertar que reúne o casal alfa
e ômega. O casal predestinado pode conversar por
telepatia, sentir as sensações um do outro e até
mesmo ler alguns pensamentos.
Maculador
Aquele que fere um vínculo de
predestinação é considerado um maculador.
Costumam ser severamente castigados.
Núcleo
Unidade familiar do casal predestinado e
seus filhotes.
Clã
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São as diferentes sociedades de tritões,


determinadas a partir do padrão em lilás nas
caudas. Amalonas possuem barbatana lilás,
Trevallys possuem listras no dorso, Kampangos
têm manchas pontilhadas… cada clã possui
algumas outras características únicas, e são
divididos entre castas alta, média e baixa de acordo
com sua importância política.

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Eu posso ver o arco-íris


Em suas lágrimas enquanto elas caem
Eu posso ver sua alma crescer
Através da dor quando elas atingem o chão

SIA – Rainbow

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Capítulo 01

Madhun

Uma revoada de albatrozes pontilhava o céu


rosado do alvorecer. Brisa morna, ondas perfeitas e
céu azul, com poucas nuvens ao fundo. Uma
paisagem colorida e bela camuflando um dia cinza,
sombrio e triste.
Apesar dos olhares estranhos dos vizinhos, eu
gostava de admirar o horizonte exatamente assim:
sentado no telhado de casa onde podia se ver tudo,
de um lado o sol nascendo no mar, do outro a
montanha de cristal, com seu lindo palácio róseo
que cintilava em beleza máxima sob os primeiros
raios matinais.

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Mas não era a beleza da paisagem que tornava


aquele momento especial para mim. Mesmo o
clima pesado na ilha não estragava minha alegria
em estar acompanhado, e pela companhia mais
inesperada de todas.
De tão empolgado, acabei puxando os fios
brancos emaranhados em meus dedos, causando um
resmungo irritado em Ronan.
“Cuidado aí atrás.” Ronan tentou espiar por
cima do ombro com seus profundos olhos
vermelhos. “Você precisa mesmo fazer isso,
Madhun?”
“Quietinho, Ronan. Você sabe que fica lindo de
tranças, e o papai Byron insistiu que eu te deixasse
apresentável. O palácio é um lugar elegante.”
“Ah, sim, elegante é a palavra de ordem para o
dia de hoje.” Ele disse em tom sarcástico. “Quem
não desejaria arrasar corações durante um velório?”
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“Ninguém vai arrasar o coração de ninguém,


nossos pais querem você bem arrumado, apenas
isso.”
Eu lacei mais alguns nós nas tranças e me perdi
na beleza dos fios brancos, que brilhavam
prateados sob a luz do sol. Apesar de barbárico e
descuidado, o cabelo do Ronan fluía macio nas
minhas mãos e exalava um aroma gostoso de sal
marinho.
“Não precisa chamá-los assim, sabe.” Disse
Ronan, após uma longa pausa.
“Chamar o que de quê?” Perguntei, saindo do
transe.
“Esquece.” Ronan bufou. “Termina logo com
isso, eu já me sinto ridículo o suficiente nessa
canga dourada.”
“É um saiote de seda-do-mar, todos da
linhagem real estarão vestindo, é respeitoso.” Eu
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apontei para minha roupa idêntica, mesmo que


Ronan estivesse de costas. “Você fica bem, assim.”
“Não, você fica bem porque sua pele é escura
como petróleo. Eu pareço um dos bibelôs de
porcelana que o Byron acumula pelas estantes da
casa.”
“Mimimi mimi mimimi” Falei no tom de voz
grave do Ronan, segurando-me para não rir.
“Precisamos ter outra conversa sobre a sua pele
branca? O que vem depois, um novo drama sobre
suas escamas vermelhas? Você é lindo, Ronan. É o
tritão mais lindo de Egarikena inteira.”
Eu aqueci um pouquinho ao falar a última parte.
Raramente encontrava ocasião de elogiar Ronan
sem levar um xingão dele, mas nossa, como era
verdade. E naquela posição eu podia apreciar de
perto a perfeição de suas costas largas, trapézios
musculosos, e um par de bíceps que seria capaz de

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me erguer com facilidade.


Não que fosse difícil para qualquer um me
erguer. Meu corpo magrinho e acinturado
denunciava meu destino como ômega desde que eu
vestia fraldas..
E o Ronan… o corpo do Ronan demorou mais a
se desenvolver, mas quando os músculos
começaram a criar volume, a coisa não parou mais.
Aos dezessete anos ele já tinha o corpo que muitos
alfas adultos não sonhariam em ter. Não havia
filhote de ômega que não o admirasse com um
olhar alongado, especialmente aqueles de idade
semelhante que pudessem ser pareados com ele no
despertar… tipo eu.
Se Ronan percebia os muitos olhares, ele nunca
havia demonstrado. Ele preferia enfiar a cauda na
boca de um tubarão do que fazer amizades e já
havia quebrado a mandíbula de um garoto por ter-

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lhe tocado o ombro amigavelmente. Eu era o único


a quem ele permitia uma aproximação maior,
mesmo que fosse o simples ato de trançar-lhe o
cabelo.
Um estalido atrás de nós distraiu meus
pensamentos. Papai Shane subiu a escadinha que
construí na sacada do meu quarto e debruçou-se no
telhado.
“Os meninos, vocês ainda demoram?”
Perguntou ele. “O Byron foi na frente com alguns
irmãos, vocês já conseguiram as flores?”
Eu bati na minha testa, me sentindo um idiota.
“Desculpa, papai. Esqueci completamente.” Eu
me apressei com a trança do Ronan e prendi um
elástico na ponta. “Nós vamos buscá-las o quanto
antes.”
“Como assim, nós vamos?” Ronan rosnou pra
mim.
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“Obrigado, meninos. Eu mesmo iria, mas o


Byron tá mal de verdade.” Disse ele.
Eu sorri ao papai Shane, levantando para descer
com ele. Era estranho vê-lo sem piercings e em seu
cabelo natural cor-de-mel, trajando o mesmo saiote
dourado de todos da realeza. Mesmo morando
metade do tempo em Egarikena o papai sempre
preferiu vestimentas humanas e do tipo mais
exótico, pretas e com correntes e pinos metálicos.
Apenas em ocasiões muito solenes ele vestia-se
como o nosso povo.
Papai Shane desceu primeiro e me segurou a
cada degrau, como se eu ainda fosse uma
criancinha. Ok, eu já havia caído daquela escadinha
umas três vezes, mas em apenas duas quebrei
algum osso. Ele também tentou ajudar Ronan, mas
levou uma rosnada e logo desistiu da ideia.
Assim que seus pés tocaram o chão, Ronan

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seguiu adiante para ir embora e eu rapidamente


segurei sua mão antes que fugisse.
“Nós prometemos buscar as melhores flores,
papai Shane. Nos encontramos no palácio!” Eu
acenei a ele e corri para fora da casa e na direção da
planície, arrastando Ronan comigo.

****

Já fazia um tempo desde minha última visita,


mas a julgar pela limpeza na lápide e pela grama
bem aparada, papai Byron esteve ali há pouco
tempo.
Eu me ajoelhei diante do túmulo e espanei a
leve camada de areia trazida pelo vento. Papai
Byron também espanava as pétalas de cliantus-
vermelho que caíam da enorme árvore sobre nós

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dois, mas estas eu escolhia deixar. Era como se a


natureza das planícies floridas abraçasse papai Isha
e o acolhesse em seus braços.
“Oi, papai Isha.” Eu sorri para a lápide de pedra
rústica, com escritos que o próprio papai Byron
riscou à mão: Aqui Dorme Isha Prakrti, estimado
pai e predestinado.
Ronan bufou e se afastou para arrancar algumas
flores.
Eu brinquei com uma pétala de cliantus
vermelho que havia caído entre os diversos
presentes e oferendas.
“Hoje é um dia bem triste na ilha, pelo visto o
papai Byron já contou ao senhor. O velório será
daqui a pouco então desculpe não ficar muito
tempo, já estamos super atrasados. Tenho poucas
novidades boas… meu último show com papai
Shane foi um sucesso, todos na Bélgica adoraram, é
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um país lindo. Fico feliz em ser útil ao papai Shane,


porque o senhor conhece meus fracassos
trabalhando na peixaria do papai Byron. Enfim, em
nosso próximo encontro lhe trarei novidades
maiores, porque adivinhe só? Meu despertar
ocorrerá em breve, e logo descobrirei o alfa gostoso
que vai ganhar isso aqui.”
Eu apontei para mim mesmo e mordi o lábio de
brincadeira. Em retorno, recebi o som do vento e
das cigarras distantes.
“Já terminou de falar com o humano morto,
Madhun? Porque eu já cansei de arrancar estas
malditas plantas.” Falou Ronan, logo atrás de mim.
Eu me virei a ele e arqueei o canto da boca.
Aquilo era menos um ramalhete, e mais uma bola
de flores tortas e emboladas uma na outra, em um
arranjo tão sofrível que faria o florista Jensen
chorar sangue.

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“Bom trabalho, Ronan.” Eu sorri ao pegar maço


de flores, tentando não soar cínico. “Posso ajeitar
isso no caminho ao palácio. Papai Byron e papai
Shane ficarão felizes.”
Ronan revirou os olhos de novo e seguiu à
minha frente pelo caminho de onde viemos.
Eu o segui, estranhando a aspereza ainda maior
que o normal.
“Tem algo errado?” Perguntei.
“Você não se envergonha? Não que eu veja
sentido em conversar com um túmulo, mas chamar
Shane de papai é um desrespeito com seu pai
ômega. Vocês nem tem o mesmo cheiro.”
Eu franzi a testa, confuso com aquele
comentário.
“Não é desrespeitoso. Isha é o pai que eu
carrego no sangue, e Shane é o pai que eu carrego

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no coração.” Eu disse a ele. “Você pode se recusar


em chamá-los assim, mas Shane e Byron são nosso
núcleo, Ronan. E você é meu querido irmãozinho.”
“Você e Byron cheiram igual, dele você é
filho.” Ronan bufou. “Eu não sou filho de
ninguém.”
Eu olhei para o ramalhete que eu me esforçava
em endireitar, sentindo um peso no coração. Era
raro que Ronan conversasse tanto comigo, eu
deveria agradecer apenas por ele considerar minha
existência, mas apesar de estimar nossas breves e
raras conversas eu não encontrei o que lhe
responder.
Não importava o amor e dedicação dos nossos
pais — que não foi pouca — Ronan nunca os
considerou como família. Me doía imaginar que
talvez ele pensasse o mesmo de mim, mas eu nunca
desistiria do meu irmão. E não era uma simples

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questão de união familiar.


Proteger Ronan era o meu dever. Quase sempre
isso significava protegê-lo de si mesmo, mas as
palavras do papai Byron quando ele me revelou a
verdade nunca sairiam da minha mente, ou da
minha alma.
Eu me perguntava se a proteção de Ronan
envolvia fazê-lo pensar diferente, mas que chances
eu teria? Ronan não era apenas forte e bonito,
também era uma desgraça de tão teimoso.
“Eu tive um sonho, esta noite.” Disse Ronan,
ainda à minha frente.
Meu coração deu um salto. O sol recém nascia
no horizonte e Ronan já havia gasto as palavras de
uma semana inteira. E ainda por cima estava
falando de si mesmo, que dia mais louco.
“Tritões não sonham.” Falei, hesitante.

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“Eu sei. A gente vê água, galáxias, o


chamado… nada daquela bobagem desconexa que
o Shane insiste em nos contar durante o almoço.
Também achei estranho, até pensei que estivesse
despertando, mas não era nada assim…” Ronan
seguiu em silêncio mais um tempo. “Acho que
eram lembranças.”
“Lembranças?” Perguntei.
Ronan concordou com a cabeça, fazendo oscilar
sua trança branca. Havia uma tensão incomum em
seus ombros.
“Era uma manhã como agora, mas chovia.
Tinha areia, som de estouros, e o cheiro de
sangue.” Ronan apertou a cabeça, diminuindo o
ritmo da caminhada. “É difícil lembrar. Havia
alguém deitado na areia, diante de mim.”
“Outro tritão?” Perguntei, intrigado.
“Não. Não sei… o cheiro era estranho e
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familiar ao mesmo tempo… sei lá como explicar.


Mas ele olhou pra mim com esses olhos enormes,
desesperados e tristes, tão vermelhos quanto…”
Ronan suspirou. “Enfim. Talvez fosse sangue. O
lugar lembrava a peixaria do Byron em dia de
muito serviço.”
“Então pode ter sido um sonho.” Eu apressei o
passo para andar ao seu lado, mas Ronan acelerou
na mesma medida e continuou na frente. “Digo,
não um sonho de verdade, mas uma mistura de
lembranças. Talvez o sangue tenha sido mesmo a
peixaria do papai Byron.”
“É… talvez.”
Ronan e eu seguimos em silêncio até o fim da
planície do papai Isha em direção à vila central,
onde começava a longa escadaria de acesso ao
palácio.
Papai Byron contou pouco sobre o passado de
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Ronan, apenas o suficiente para que eu


compreendesse nossas diferenças e parasse de bater
nos filhotes que debochavam de sua cauda
vermelha. Ronan adquiriu cedo a força e caráter
para se defender dos insultos, mas mesmo sendo
um filhotinho magro eu me sentia na obrigação de
defendê-lo, o que sempre me fazia voltar inchado
pra casa.
O que eu sabia era que Ronan Makaira havia
sido adotado ainda bebê, e que sua verdadeira
identidade era Ronan Faroé-Makaira, o príncipe de
dois reinos. Sob a promessa de nunca lhe revelar
nada, eu perguntei o porque de alguém tão nobre
viver conosco, um núcleo de quase-plebeus que
administrava uma pequena peixaria e uma banda. A
resposta ainda me causava arrepios.
Se as memórias de Ronan fossem reais, papai
Byron precisava saber o quanto antes. Eu não

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entendia o porque de guardar segredos, mas se a


vida e a segurança do meu irmão dependiam disso,
eu selaria meus lábios para sempre.
Além de mim e dos meus pais, pouquíssimos
outros conheciam o segredo de Ronan. Um número
que se reduzira após o acidente.
“Precisa passar em algum lugar, antes?” Ronan
me espiou por cima do ombro.
Eu não conseguia me acostumar com um Ronan
tão falante. Olhei desconfiado ao redor e percebi
que passávamos diante do Flying Fish, a casa de
shows onde eu sempre me apresentava com papai
Shane. Quando não havia shows o lugar ainda
funcionava como um bar requintado, e eu nunca,
nunca resistia a comprar um Tornado de Merluza
quando passava na frente. Me surpreendia que
Ronan tivesse percebido isso e me surpreendia
ainda mais sua consideração em me perguntar.

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“Ah, duvido que esteja aberto tão cedo da


manhã.” Falei, seguindo adiante com ele. “Além do
mais, hoje é dia de luto oficial e nenhuma loja vai
abrir. E o senhor Édrilan já deve estar no palácio
com todos os outros.”
“Hm.”
Não trocamos mais nenhuma palavra, nem
durante a longa e extenuante subida ao palácio.
Talvez fosse o mais apropriado, porque quando
chegamos à sala do trono, apesar da grande
multidão, havia apenas silêncio.

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Capítulo 02

Eu farejei a multidão e logo encontrei papai


Shane, solitário em um canto do salão.
“Onde está o papai Byron?” Perguntei.
“Já se reuniu com os outros irmãos. Incrível que
quase todos tenham aparecido tão rápido.” Ele
pegou o buquê das minhas mãos. “Vou levar isto
aqui para ele.”
Eu concordei e esperei com Ronan no espaço
tumultuado, onde centenas de tritões aguardavam
para prestar homenagem enquanto mantinham livre
o corredor central.
Na plataforma oposta à entrada, diante do trono,
descansava um caixão aberto e cercado de flores.

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Trajando sua mais nobre túnica vermelha, o


vovô Arian mantinha-se debruçado na borda,
admirando o interior do caixão com o olhar opaco e
sombrio. Ele parecia estar naquela posição há
muito tempo.
“Não é engraçado? O cara sobrevive a uma
guerra, vive até ficar velho, pra morrer em um
acidente estúpido.” Ronan sussurrou para mim,
com um sorriso debochado.
“Não foi um acidente estúpido. O Rei-General
Hian estava ajeitando as minas aquáticas que
saíram do lugar. Papai Byron pediu que não
comentássemos a respeito.”
“Como eu disse, um acidente estúpido.” Ronan
ergueu-se na ponta dos pés, tentando espiar dentro
do caixão. “Ele parece bem inteiro para alguém que
explodiu.”
“Ele não estava próximo a ponto de explodir
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junto. Você já viu o tamanho daquelas bombas?


Foram projetadas para afundar navios, os estilhaços
podem voar por quilômetros.”
Ronan deu de ombros, pouco interessado.
Pensei em repreendê-lo sobre comentar tão
casualmente algo que deveria ser sigilo, mas logo o
sutil burburinho da multidão calou-se por completo
e todo olharam para a entrada.
O som de cornetas e passos sincronizados
ecoou pelas paredes de cristal. O Exército da Coroa
fez sua entrada, dezenas de alfas Kampango
enormes e musculosos tocando a música fúnebre
que papai Shane lhes ensinou. Conduzindo a tropa,
um ômega ruivo em um elaborado uniforme militar
conduzia a marcha carregando o estandarte de
Egarikena: uma bandeira verde com dois espadartes
cruzando seus focinhos pontudos em torno de flores
e cristais.

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Todos nós fechamos a mão direita no peito,


saudando as tropas que se organizavam diante do
caixão. Precisei cutucar Ronan para que fizesse o
mesmo.
Tenente Fran fincou o estandarte junto aos
arranjos florais, cumprimentou o vovô Oráculo de
forma piedosa e preocupada e logo recuperou a
postura firme, posicionando-se diante de todos
sobre o patamar.
“É com gratidão que o Digníssimo Oráculo-Rei
os recebe aqui hoje, nesta manhã de despedida e
luto.” General Fran deu um longo suspiro. Ele
sempre pareceu um anão cercado de soldados tão
maiores que ele, mas naquele momento ele parecia
grandioso, apesar da tristeza que lhe molhava o
rosto. “O Rei-General Hian foi mais que um rei, foi
mais que um general. Ele foi um tritão generoso e
justo, um pai muito amado por seus vinte herdeiros,

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e um amigo inestimável.”
“Dá pra acreditar nisso? Ele tá chorando.”
Ronan apertava os lábios, segurando-se para não
rir. “No que o General-Rei estava pensando quando
promoveu um ômega a tenente?”
“O Tenente Fran foi subordinado e pupilo do
general durante anos, Ronan, os dois formaram
uma grande amizade. É natural que ele esteja
triste.”
“Quero ver se continua chorando quando for
promovido. Com o Rei-General fora do caminho, o
próximo general será ele. Nada mal para um
ninguém de baixa casta.” Ronan deixou escapar
uma risada.
Eu o fitei com o canto do olhar, um tanto
chocado.
Tenente Fran continuou seu discurso, cada vez
mais sentido. Sua comoção contagiava o público e
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logo muitos choravam quietinhos, lamentando a


morte daquele que junto ao Oráculo-Rei unificou a
sociedade dos tritões em um único grande império.
Em algum momento o Oráculo-Rei conseguiu
forças para afastar-se do caixão. Ele parou ao lado
do tenente e agradeceu suas palavras, então
assumindo o lugar de destaque.
“Agradeço suas palavras, tenente Fran, é uma
imensa dádiva tê-lo em meu exército e em minhas
amizades.” O Oráculo sorriu com tristeza a ele e
então virou-se para nós. “O Rei-General Hian, meu
querido amigo, amante e predestinado, encerrou
seu ciclo de vida, mas sua existência seguirá
adiante em cada um dos nossos descendentes. Foi
desejo do Rei-General reunir todos os filhos em
algum momento, uma festa, certamente, e é meu
castigo que tão esperada reunião se faça em um
momento sombrio. Sei que muitos viajaram de

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longe e é minha dor que alguns não tenham


chegado a tempo. Mas espero que reconheçam
minha gratidão em tê-los aqui comigo.”
O Oráculo Aurelian secou uma lágrima e olhou
adiante, na direção da entrada.
“Digníssimo Oráculo, é improvável que ele
apareça.” Tenente Fran disse a ele.
Concordando com a cabeça, o Oráculo virou-se
para o lado e eu enfim avistei papai Byron, no meio
de uma longa fila com tio Moyren, tio Jensen, e até
o tio Clyon que raramente aparecia na ilha.
“Creio que podemos dar início à cerimônia.” O
Oráculo-Rei pegou algo na faixa de sua túnica.
Uma escama cintilante como ouro.
Sob o silêncio da multidão, o Oráculo deitou a
escama dourada no peito do General-Rei e segurou
sua mão.

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Apesar de eu ser encarregado das refeições


reais e bastante próximo do vovô Arian, poucas
vezes conversei de verdade com o vovô Hian.
Talvez fosse sua personalidade reservada, ou sua
preocupação constante com afazeres militares.
Ainda assim, não evitei chorar quando o vovô
Oráculo lhe disse adeus.
Papai Shane auxiliou o vovô a deixar o salão.
Assim que ele saiu, foi a vez dos vinte príncipes
assumirem seu lugar na plataforma.
Um a um, os vinte irmãos disseram seu breve
adeus ao Rei-General. Por tradição, cada filho
devia colocar sobre o peito do progenitor sua
escama mais bela, para simbolizar a continuidade
de sua vida através da prole.
Assim que tio Jensen terminou sua despedida,
papai Byron ajeitou o ramalhete em meio às outras
flores e colocou no peito do General uma escama

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de um lindo tom verde-escuro. Era uma tortura vê-


lo tão triste.
“Adeus, papai.” Ele beijou a testa do vovô Hian
e desceu da plataforma, dando espaço ao nono
irmão, e ao oitavo, e ao sétimo…
Por último, o segundo irmão Papillon ajeitou
sua escama no começo do pescoço do Rei-General,
completando uma linha de dezenove escamas nos
mais variados tons de verde. Ele deixou a
plataforma e abraçou o Oráculo-Rei, que havia
retornado para espiar a porta, no cantinho do salão.
“Justamente o filho mais importante não
apareceu. Mas que gafe.” Disse Ronan, em tom de
diversão.
“E como poderia? Tio Dylan vive muito longe
de Egarikena.”
“Não deveria. Esta ilha é o reino dele, mesmo
que o palhaço tenha renunciado ao trono ele não
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deixa de ser o primogênito da linhagem real.”


“Você está mais amargo que de costume.” Eu
murchei os lábios, começando a me frustrar.
“Apenas prometa não falar besteiras durante a
despedida dos netos.”
“Até parece que pretendo assistir os duzentos
netos chorando naquele caixão. Você vá em frente,
não é como se aquele cara tivesse gostado de mim.”
“O Rei-General era nosso avô e nunca o
destratou de forma alguma.”
“Pode ser verdade, mas não sou burro. Você
sempre foi o único permitido nos aposentos
particulares e no templo, os reis só autorizavam
minha presença na sua companhia e você sabe o
jeito como me olhavam.”
“Oh, agora você está amargo e paranoico.” Eu o
acotovelei de leve. “Não me diga que está assim
por causa daquele sonho.”
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“Eu estou ótimo. Digo, tirando a parte em que


me obrigaram a assistir o velório de um velho que
não gostava de mim, eu não poderia estar melhor.”
Eu revirei os olhos e suspirei, desistindo de
tentar entender o Ronan. Felizmente não precisei
aguentá-lo muito tempo, porque logo nossos pais
vieram ao nosso encontro.
Papai Byron secou uma lágrima, confortado
pelo abraço carinhoso do papai Shane. Parte da
multidão começou a dispersar e nós consideramos
fazer o mesmo, mas ainda havia a procissão e eu
não escaparia de me despedir pessoalmente. Nessa
parte eu concordava com Ronan, me despedir com
outros duzentos netos me parecia terrivelmente
tedioso.
Antes que eu encarasse meu tedioso dever,
porém, uma voz grave interrompeu a saída dos
súditos.

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“Desculpem o atraso!” Disse uma voz ofegante,


grave como a do papai Byron.
Eu empurrei as pessoas à minha frente para
conseguir ver, tão incrédulo quanto todos ali. Um
tritão de meia idade atravessava o amplo salão, e
pela aparência sua identidade era inconfundível.
Dylan.
O primogênito dos vinte irmãos conseguiu
chegar a tempo, e não apenas isso. De mãos dadas
com ele, o seu predestinado humano o
acompanhava, correndo para acompanhar seus
passos rápidos.
Eu abri a boca em surpresa, sinceramente feliz
pelo vovô Arian. O Oráculo-Rei sorriu pela
primeira vez naquele dia, chorando lágrimas que
não mais carregavam apenas tristeza.
“Dy, você conseguiu aparecer.” Ele correu ao
primogênito e o abraçou apertado, sendo envolvido
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em um abraço igualmente afetuoso. “Este é o seu


predestinado Gabriel? É um prazer imenso
conhecê-lo.”
O humano cumprimentou o Oráculo
timidamente, ainda esbaforido pela longa escadaria
e distraído em observar os arredores. Tudo em
Egarikena devia ser impressionante para ele,
especialmente o palácio de cristal.
Eu não sabia o que esperava, mas o humano da
lenda parecia bem… comum. Terno e gravata
idênticos aos do primogênito, cabelo recuado e
grisalho, ruguinhas marcando os olhos azuis e
expressivos, corpo magro e de pouca altura. Era
incrível que um humano de aparência tão suave
tenha sobrevivido a dois partos, em uma época
onde o nascimento de um híbrido significava a
morte do ômega. Papai Isha certamente não foi tão
forte.

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Tio Dylan encaminhou-se ao caixão do vovô


Hian, já levando na outra mão sua escama verde-
esmeralda.
“Lamento não ter retornado mais vezes.” Tio
Dylan colocou a última escama, a dele sobre a testa
do Rei-General, simbolizando sua importância
como primogênito e responsabilidade em carregar
adiante sua dinastia.
Durante a despedida do tio Dylan o
predestinado Gabriel continuou inquieto,
investigando a multidão. Em certo momento ele
olhou mais ou menos na minha direção e sorriu
brevemente, logo depois sendo puxado por Dylan
em direção ao Oráculo, onde os três começaram a
conversar.
“É impressão minha ou ele sorriu pra mim?”
Perguntou Ronan.
“O que?” Perguntei.
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“O humano do primogênito. Ele sorriu ao me


ver.”
“E lá vamos nós para outro ataque de paranoia.”
Eu forcei o tom de deboche, porque tive a exata
mesma impressão. “É a primeira vez dele em uma
ilha de tritões, é natural que tudo o impressione.”
Nossos pais chegaram ao nosso encontro.
“Seu pai Shane é um grande amigo do Gabriel
Dolinsky. Uma pena eles precisarem partir ainda
hoje, mas já é incrível que tenham chegado a tempo
do velório.” Disse o papai Byron.
“Ainda conversarei com Gabe pelo celular, já
me acostumei a ter uma tela entre eu e… todos os
humanos do planeta.” Papai Shane riu e beijou o
rosto do papai Byron.
“E porque eles precisam partir tão rápido,
exatamente?” Perguntou Ronan. “Se é seu amigo
deveria convidá-lo a jantar. Vocês adoram encher a
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casa com gente insuportável, por que não o humano


da lenda, pra variar um pouco?”
Meus pais se entreolharam e eu suei frio,
sentindo o clima ainda mais pesado.
“Gabe tem lojas muito grandes para
administrar. Vocês conhecem a fama dos humanos,
sempre super ocupados com alguma coisa.” Papai
Shane sorriu para nós e afagou nossos cabelos. “De
qualquer forma, o velório do seu avô não é pretexto
para festas.”
Ronan concordou, com a cabeça baixa e o canto
do olhar na direção da porta lateral, onde tio Dylan
e tio Gabriel conversavam com o vovô Aurelian.
Pela tristeza no rosto do Oráculo eles
obviamente conversavam sobre o funeral, então o
tio Dylan entregou-lhe uma garrafa dourada e o
vovô ficou ainda mais triste. O que era aquilo?
Antes que eu conseguisse espiar melhor, os três
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deixaram a sala do trono e o Tenente Fran assumiu


o resto da cerimônia, convidando os netos a se
despedirem.
Eu torcia por dentro que a maioria dos netos
não pudesse ter comparecido, mas a julgar pela
multidão de filhotes aquele seria um longo, longo
velório.

****

Após enfrentar a maior fila da minha vida, eu


me despedi do vovô Hian e cutuquei Ronan para
que fizesse o mesmo. Ele apenas rosnou e deixou a
fila, mas após tanto tédio e espera ninguém
reclamaria de uma despedida tão rápida.
Quando os netos terminaram de se despedir
algum louco sugeriu uma fila de bisnetos, mas o sol

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já começava a se pôr e ninguém queria um funeral


noturno.
Quatro soldados ergueram os quatro cantos do
caixão e os outros voltaram a tocar seus
instrumentos.
Tenente Fran conduziu as tropas para fora do
palácio e nós seguimos logo atrás, acompanhando
em procissão enquanto o caixão era carregado pela
escadaria da montanha em direção ao mar.
Apesar do caixão ser uma versão mais
comprida do caixão dos humanos, tritões não eram
enterrados. Quando chegamos ao mar, sob a música
de cornetas e tambores, Tenente Fran fechou a mão
no peito e todos nós imitamos o gesto enquanto os
quatro soldados seguiram mar adentro.
As pernas dos soldados dissolveram-se em
espessas caudas de tritão alfa e então todos
desapareceram nas profundezas marinhas. Após
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pouco tempo eles emergiram novamente, desta vez


carregando um caixão vazio.
Vovô Hian havia se tornado um com o mar.

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Capítulo 03

Não apenas tio Dylan viajou de longe para o


funeral. Centenas de súditos e parentes distantes
surgiram para prestar homenagem. Como
consequência, a densa multidão tornava impossível
caminhar por Egarikena. Turistas de colônias
próximas aproveitavam a visita para comprar
lembrancinhas, explorar as trilhas de cachoeira,
adormecer nos campos floridos… uma época de
pesadelo para tritões das profundezas que
precisavam se reproduzir, porque todas as
hospedarias estavam lotadas.
A situação complicou-se para mim também
porque eu queria caçar algo gostoso para o jantar
do vovô Arian, e competir pelas melhores presas já
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era complicado o suficiente sem todas aquelas


bocas a mais.
Para piorar tudo ainda mais, enquanto eu
caminhava com Ronan à beira da praia ouvimos
uma voz gritar.
“Ronan! Ei, Ronan!” Alguém chamou logo
adiante.
Eu avistei tio Dylan conversando com alguns de
seus irmãos, mas os gritos não vinham dele e sim
de seu acompanhante. O humano da lenda que
naquele momento corria até nós.
Ronan travou seus passos e franziu a testa,
completamente surpreso.
“Aquele humano conhece meu nome?”
Perguntou ele.
“Impressão sua.” Eu ri nervoso e o segurei pelo
braço. “Vem, vamos caçar na praia ao norte, deve

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ter menos barulho.”


Mas Ronan não se moveu. Continuou parado e
permitiu que Gabriel viesse ao nosso encontro.
Quando nos alcançou, Gabriel apoiou as mãos
nos joelhos e recuperou o fôlego, então sorriu para
nós super feliz e empolgado.
“Você deve ser o Madhun e… e você é o
Ronan, não é?” Perguntou ele, ainda ofegante.
“Como você me conhece, humano?” Perguntou
Ronan.
Gabriel jogou-se em Ronan e o abraçou
apertado, rindo em profunda alegria.
Meu sangue gelou porque Ronan já havia
arrebentado tritões por muito menos, mas a
surpresa o paralisou. Nunca vi Ronan tão perplexo.
Eu arregalei os olhos na direção do tio Dylan e
implorei que ele percebesse a falta de algo

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importante, tipo o seu predestinado sem um pingo


de bom senso.
“Aaaah, me perguntei durante toda a viagem se
te encontraria! Tira um selfie comigo? Só um, por
favor?”
“Selfie?” Ronan expandiu os olhos para o
celular que Gabe puxou do nada.
Gabriel fotografou aos dois, soltou-se do abraço
e acariciou o rosto de Ronan, estudando-o com seu
olhar brilhante e empolgado. “Como é a vida em
Egarikena? Você é feliz aqui? Te tratam bem?”
Ronan me espiou com o canto do olhar, como
se esperasse alguma resposta de mim. O que eu
podia fazer? Arremessar Gabriel no mar? Era a
única possibilidade que me vinha em mente.
“Não conheço outro lugar. Por que me pergunta
isso?” Ronan afastou as mãos de Gabriel nos
limites de sua pouca delicadeza.
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“Olha esse cabelo, tão longo e branquinho”


Gabriel pescou a ponta da trança do Ronan e
brincou com ela entre seus dedos. “E estes
músculos enormes, você se tornou um tritão
espetacular, tão forte e saudável.”
Por favor, tio Dylan, venha controlar seu
predestinado.
Alheio à situação crítica, tio Dylan discutia
alguma coisa qualquer com seus alguns irmãos e a
tia Babelyn, que vestia seu habitual jaleco cor-de-
rosa sobre o vestido cerimonial. Eu já considerava
de verdade jogar Gabriel no mar, mas uma voz
feminina interrompeu a conversa.
Duas deslumbrantes sereias de longos cabelos
castanhos e olhos verdes se aproximaram de nós.
Pareciam um espelho uma da outra, o mesmo
vestidinho dourado, a mesma maquiagem elegante
e até mesmo alfas iguais entre si, dois Amalonas de

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cabelo loiro-queimado e músculos sólidos.


“Papai Gabe?” Uma delas tocou-lhe o ombro,
sorrindo reluzente.
Gabriel virou-se para elas, e sua alegria já
enorme tornou-se uma verdadeira explosão.
“Rebecca! Penélope! Minhas meninas, que
saudades!!” Gabriel as abraçou apertado e girou no
ar, bastante forte para alguém tão pequeno.
Aquelas sereias não pareciam o tipo que
apreciava brincadeiras infantis, mas elas
permitiram que Gabriel apertasse suas bochechas e
dançasse com elas pela areia, louco de tanta alegria.
“Espero que não tenhamos interrompido sua
conversa.” Disse a outra, enquanto endireitava as
mechas que Gabriel bagunçou, discretamente.
“Fizeram certo em interromper. Olha pra vocês,
tão felizes e lindas. Esses caras respeitam vocês eu

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espero, porque já estão avisadas: qualquer


problema e eu frito cauda de tritão para o jantar.”
“Não precisa repetir isso todas as vezes, papai.
Você adora receber o Dawson e o Jackson nas
reuniões de família.” A primeira abraçou o Jackson.
Ou Dawson, ou sei lá. “Aliás, o senhor precisa
exagerar tanto? Não nos vemos desde o último
Natal.”
“Cada dia é uma infinidade sem as minhas
filhas correndo pela casa, agitando suas fraldas pelo
ar e esfregando purê de peixe no rosto.”
As garotas avermelharam e seus predestinados
seguraram o riso à beira de explodir.
“Nós nunca fizemos isso!” Disse a Penélope, ou
a Rebecca. “Será que podemos mudar de assunto?
Quem são seus novos amigos?”
“Não são novos amigos. Não reconhecem o
cabelo branco? Os olhos vermelhos?” Gabriel
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voltou a brincar com a trança de Ronan, sorrindo


orgulhoso.
A expressão das garotas mudou no mesmo
instante. Elas trocaram olhares discretos com seus
predestinados, que também assumiram uma postura
séria e grave.
“Papai Gabe, que tal conversarmos na praça?
Dizem haver um clube incrível lá perto, com
bebidas que o senhor precisa provar.” Uma das
garotas puxou sua mão.
“Humm bebidas. Eu adoro bebidas!” Gabriel os
acompanhou por uns dez passos então travou e
tentou voltar. “Ah, vocês dois venham conosco,
pago cerveja pra todo mundo!”
“Vamos logo, papai, temos mil histórias das
crianças para contar.” A outra garota segurou sua
outra mão e ambas o arrastaram para longe como se
Gabriel fosse uma criança birrenta.
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Meu coração parecia um terremoto.


“O que acabou de acontecer?” Ronan piscou
rápido, perplexo.
“É uma boa pergunta. Uma excelente,
maravilhosa pergunta.” Eu segurei meu peito
sentindo que iria enfartar. “Hoje é seu dia de caçar
o jantar do núcleo, não é? Vamos caçar na praia
norte. Preciso não ver multidões pelo resto do
mês.”
Ronan concordou e me seguiu em silêncio, mas
eu podia farejar sua desconfiança.
Ai, por que eu estava com um péssimo
pressentimento?

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Capítulo 04

A avalanche de visitantes se concentrava na


praia sul, a mais próxima da vila principal, mas
mesmo na praia norte a movimentação estava
acima do esperado. Diversos tritões mergulhavam e
surgiam em meio aos barcos do porto carregando
pequenas caças ou apenas brincando. Mas logo
notei que não eram turistas, eram apenas moradores
locais que também buscavam fugir do tumulto.
“O que preciso caçar hoje?” Ronan girou os
ombros e alongou seus músculos, andando
entediado nos cascalhos da beira-mar.
“Pode caçar qualquer coisa que agrade nossos
pais. E o vovô Arian está bem deprimido… acha
que conseguimos algo legal pra ele, como uma
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lagosta?”
“Qualquer retardado consegue caçar lagostas.
Se quer puxar o saco daquele canalha loiro, posso
caçar uma lula gigante.”
“Lulas gigantes já estão extintas, ninguém vê
uma há anos.” Eu cocei atrás da cabeça, pensativo.
“Vamos tentar a sorte, penso em um cardápio para
o Oráculo dependendo do que nós encontrarmos.”
“Você adora a palavra nós.” Ronan revirou os
olhos. “Te acompanhei pra me livrar daquele
cardume de tritões barulhentos, mas nunca cacei
em dupla e não pretendo começar agora.”
Eu arqueei minha sobrancelha. Verdade que
Ronan estava mais falante e sociável que o normal,
mas ele pretendia caçar para mim? Quando ele já
realizou favores, por qualquer motivo?
Talvez eu estivesse pensando demais, mas
queria aproveitar a companhia daquele Ronan
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amigável, ou o mais amigável que eu me lembrava


de tê-lo visto. Considerando isso eu ignorei suas
palavras e o acompanhei à beira d’água, no estreito
espaço entre dois barcos atracados.
Ronan entrou na frente. Suas pernas musculosas
dissolveram-se em uma longa cauda de escamas
vermelhas, cintilantes como rubis.
Eu nunca me acostumaria a uma visão tão linda.
Vermelho e branco em lindo contraste, e um saiote
dourado separando as duas cores perfeitas. Ainda
embasbacado pela beleza das costas de Ronan, fui
pego de surpresa quando ele chicoteou água na
minha cara.
“Você é surdo? Vai arranjar o que fazer e me
deixa em paz!”
“Que? Por que?” Eu sequei a água dos olhos
com o pulso. “Precisamos de duas caças, e somos
em dois. Será mais fácil se nós...”
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“Não existe nós!” Ronan esbravejou. “Já


suportei gente o bastante por hoje. Não pense que
estou fazendo um favor, só não quero o Byron me
enchendo os ouvidos com os resmungos dele.”
Ah, então ele queria apenas um pretexto para
vadiar sozinho em alto-mar. Típico do Ronan que
eu conhecia.
“Tente se esforçar, por favor? Quero algo capaz
de animar o Oráculo, mesmo que só um
pouquinho.”
“Você quem manda, faxineiro real.” Ronan
respondeu sarcástico e então mergulhou nas
profundezas.
“Não sou um faxineiro, sou um futuro chef!”
Eu massageei minhas têmporas e voltei para a parte
seca da praia. Como Ronan conseguia ser tão
cansativo?
Pela altura do sol não havia muito tempo para
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caçar, mas decidi confiar nas habilidades do Ronan


e sentei nos rochedos para observar os barcos. Eu
só podia rezar que a caçada distraísse Ronan
daquela conversa com Gabriel.
Escapamos por pouco de uma confusão imensa.
Eu odiava mentir para o Ronan, mas papai Byron
insistiu que eu nunca contasse a verdade. Ordens
diretas do Príncipe Hian II, o atual herdeiro da
coroa. E quem era eu para desobedecer o príncipe?
As ondas da tarde agitaram os barcos, que
balançaram de um lado a outro no cais de
Egarikena. Tritões raramente precisavam de
transporte marinho, exceto aqueles com muita
bagagem ou carga destinada ao comércio. Por este
motivo nosso cais era pouco utilizado, mas para
combinar com a multidão na cidade dezenas de
barcos competiam por espaço nas poucas palafitas
de madeira. Havia até uma lancha super moderna, o

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que explicava a velocidade do tio Dylan em


aparecer, e também nosso veleiro, já limpo e
preparado para a viagem dos meus pais.
“Muitos barcos, né? Enfim um porto que
combine com o tamanho dessa ilha.”
Abraçado nos meus joelhos, eu virei o rosto na
direção da voz. Um tritão adolescente e ruivo
sentou ao meu lado com um sorriso no rosto.
Sebasten Makaira, filho do Tenente Fran e do
décimo primeiro príncipe, Jensen. Nós nunca
fomos muito próximos, apenas caçamos juntos uma
vez ou outra, mas em tempos recentes nossos
caminhos cruzavam o tempo todo.
“Será difícil desenroscar as cordas. Prevejo
muitos barcos colidindo e tritões furiosos.” Eu
respondi a ele.
Sebasten abraçou seus joelhos igual a mim, se
torcendo para esconder o meio das pernas com os
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calcanhares. Ele sempre trajava o avental longo da


floricultura do tio Jensen, então aquele saiote
dourado devia ser desconfortável.
Geralmente Sebasten ria dos meus comentários,
por mais bobos que fossem, mas desta vez ele
manteve o olhar nas ondas, bastante sério.
“Como permite que ele te trate assim?”
Perguntou ele.
“Ele quem?” Eu segui seu olhar para o nada,
demorando a entender. “Tá falando do Ronan?
Você estava nos espionando, Seb?”
Sebasten suspirou e baixou o olhar aos próprios
joelhos, aborrecido.
“Você é o primogênito do seu núcleo. Se exigir
respeito aquele troglodita será forçado a obedecer.”
Eu ri, pensando se deveria me indignar com
aquela intrusão.

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“Meu irmão é difícil de lidar às vezes, mas em


algum lugar dentro dele existe bondade e
consideração. Eu o aceito como ele é.” Eu lhe sorri
com o canto da boca, brincando com o cascalho
gelado sob meus pés. “Agradeço por se preocupar
comigo.”
Sebasten engoliu seco, bagunçado por alguma
coisa que eu disse.
“N-não foi nada, eu só… é, me preocupo
mesmo. Se você fosse meu predestinado eu nunca
permitiria algo assim.”
Eu ri alto, cada vez mais surpreso com a
audácia daquele garoto.
“Como é?” Eu tentei controlar o riso, não
queria parecer rude. “Seb, você não é jovem demais
para falar de predestinação?”
“Tenho dezessete anos e meio!” Ele
avermelhou, frustrado. “Posso não ser uma
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montanha de músculos que nem aquele cara, mas


eu serei um alfa, posso sentir isso. E então…
ahm…”
Sebasten escondeu o rosto nas mãos, ardendo
de vergonha. Eu lutei para não rir porque era tão
fofo.
“Não adianta mentir, Seb, você é anos mais
novo que eu. O chamado une tritões da mesma
idade.” Eu apertei a mão em seu ombro, afetuoso.
De tudo o que poderia ocorrer naquele dia,
aquela conversa estava sendo a maior das
surpresas. Pelo visto minhas muitas esbarradas com
Sebasten não eram simples coincidências, mas eu
precisava ser realista. Não só Sebasten era muito
novo, como seus ombros eram estreitos e o corpo
levemente musculoso. Parecia um meio-caminho
entre alfa e ômega, ele não deveria nutrir interesse
por tritões específicos até seu corpo terminar de

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desenvolver.
“Desculpa por isso, eu… ai, eu pensei tanto no
que dizer e não consigo…” Sebasten parecia à beira
de chorar.
“Fico lisonjeado que tenha me procurado,
Sebasten. No momento certo encontraremos um
tritão perfeito pra você.”
“Eu entendi, não precisa encontrar tantas
formas de me chamar de criança.” Ele me fitou
com o canto dos olhos, duas lindas íris de
esmeralda que contrastavam com as ondinhas
ruivas. “Eu… ahm… escuta, se quiser jantar
amanhã lá em casa…”
Quanta persistência. Segundo os bons costumes
eu deveria rejeitá-lo cordialmente, mas diferente do
Ronan eu quase nunca recebia cortejo de
pretendentes, então era difícil desconsiderar o
convite.
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Antes que eu respondesse, porém, alguém


apareceu à nossa frente pingando água de suas
pernas brancas e saiote encharcado.
“O mar tá uma porcaria hoje, isso vai ter que
servir.” Ronan jogou algo no meu colo, com uma
expressão de desgosto. “O que esse trouxa ruivo
está fazendo aqui?”
Eu ignorei o insulto do Ronan, porque o que ele
trouxe me deixou sem palavras. Uma pequenina
tartaruga. O bichinho debatia suas patinhas nas
minhas coxas, tentando voltar pra água.
“Não podemos servir isso, Ronan.” Eu a peguei
nas mãos antes que caísse e se machucasse.
“O rei adora tartaruga, você mesmo disse isso.
Se acha pouco eu posso conseguir mais umas.”
Ronan cruzou os braços e arqueou a sobrancelha,
aborrecido.
“Tartaruga era o favorito do vovô Hian, o vovô
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Arian sempre preferiu lula. E isto apenas um


filhotinho.” Eu me levantei para devolver a
tartaruguinha ao mar.
“Sim, caçamos apenas animais que já puderam
se reproduzir.” Falou Sebasten.
Antes que eu chegasse ao mar, ouvi os gritinhos
de Sebasten e revirei os olhos. Ele pensou mesmo
que corrigiria Ronan sem apanhar?
“O que você entende de caçar, hein, seu
pseudo-alfa frutinha?” Ronan ergueu Sebasten pelo
braço e bufou na cara dele.
Sebasten, óbvio, apenas estremeceu emudecido,
tencionando o corpo em preparo para a dor.
Nenhum filhote de Egarikena era louco de se meter
com Ronan, isso apenas resultava em uma surra
pior.
“Solta ele, Ronan.” Eu o espiei por cima do
ombro, com meu olhar mais repreensivo.
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“Por que? Esse palhaço nos seguiu desde a vila


e vem achar que sabe mais que eu, ele deve curtir
umas manchas roxas na cara.”
Havia muito pouco a ser feito, eu apenas
suspirei e implorei por dentro que Sebasten
aguentasse uns socos em silêncio.
“Pensa que tenho medo de você, rabo-de-
camarão?” Sebasten debateu o braço até se livrar e
estufou o peito diante de Ronan, como se não fosse
um graveto diante de uma árvore. “Pois saiba que
sou filho do Tenente Fran, um dos tritões mais
poderosos do reino!”
Ah, mas que merda.
O convívio com Ronan me fez acostumar a ver
gente apanhando, mas era uma cena que eu preferia
evitar. Eu dei as costas e me agachei à beira da
água com a tartaruga abanando suas patinhas entre
meus dedos, então sob o som de socos, chutes e
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gritos eu a soltei e assisti nadar para a liberdade.


“Pois vá chorar pro seu papai tenente, seu
bostinha ruivo. Faça ele se envergonhar ainda mais
do filho fracote e inútil, que passa o dia regando
florzinhas.” Ronan deu uma risada fungada, em
deboche. “Um pai ômega militar, um pai alfa
florista e agora você também. Seu núcleo é todo ao
contrário.”
“Que problema tem gostar de flores? Pelo
menos eu gosto de alguma coisa, não sou um otário
soturno que detesta tudo!”
Ainda observando o mar, eu cobri meus
ouvidos e suspirei em frustração. Pelos oceanos,
Sebasten, aprenda a hora de calar a boca.
Mesmo de ouvidos cobertos eu pude ouvir os
golpes e gritos do Sebasten. Eu queria intervir, mas
isso sempre piorava a situação.
“O único otário aqui é você. Fraco demais para
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ser um alfa, robusto demais para ser um ômega. À


essa altura só um milagre consertaria esse seu
corpo. Tenho pena do infeliz que predestinar com
você.” Disse Ronan.
Pelo tilintar do cascalho, Ronan enfim havia
derrubado Sebasten. Aliviado pelo término do
conflito eu me levantei para ajudar Sebasten, ou o
que restou dele. Mas antes que eu me levantasse
por completo alguém contornou o braço na minha
cintura, me ergueu no ar e subiu a parte de trás do
meu saiote.
Eu dei um gritinho agudo e me debati tentando
abaixar o tecido, mas o bíceps forte do Ronan me
mantinha imobilizado.
“Tá vendo isso aqui, palhaço ruivo?” Ronan
deu um tapinha na minha nádega. “Olhe bem para
essa carne pretinha e macia, porque é algo que você
nunca vai ter.”

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“Ronan, mas o que caralhos você tá fazendo?”


Rosnei, esperneando.
“Solta ele, seu desgraçado.” Disse Sebasten.
“Ou o que? Ou vai chorar pro seu papai?”
Ronan deu risada e finalmente me soltou.
Eu desci rápido meu saiote ao lugar, fervendo
de raiva. E minha raiva apenas aumentou ao ver
Sebasten jogado no chão com o rosto inchado e os
olhos úmidos, incapaz de responder à altura todos
aqueles insultos.
“Sebasten, desculpa por isso.” Eu me aproximei
dele para analisar o estrago.
Ronan segurou minha mão.
“Não perca seu tempo com este idiota.” Ronan
me arrastou para a trilha que conduzia à nossa vila.
“Você pode ser um híbrido, mas consegue coisa
melhor que um filhote de Gobio-Gobio.”

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Eu segurei o ar e contei até dez. Precisava me


acalmar. Precisava demonstrar paciência. Eu era
todo o apoio que Ronan aceitava ter, não podia
estourar com ele.
Mas pelos oceanos, como eu estava puto.
“É este seu jeito de demonstrar ciúmes?
Mostrando minha bunda para os outros?”
Perguntei, quando já caminhávamos em meio à
floresta.
“Não é ciúmes, aquele imbecil precisa conhecer
o lugar dele.” Ronan soltou minha mão e alisou o
cabelo molhado para trás, com um sorriso de
diversão no rosto. “Além do mais, fiz um favor a
ele. Quando o idiota despertar terá boas imagens na
memória, para quando estiver trepando com alguém
asqueroso como ele.”
“Sebasten não é asqueroso, ele…” Eu balancei
a cabeça, não fazia sentido continuar com aquilo.
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“O que vamos servir ao Oráculo, agora?”


“Você comeu a tartaruga porque quis. O velho
tem quinhentos serviçais, eles que fritem um peixe,
foda-se.”
“Eu não comi a tartaruga, e nosso avô merece
algo especial. O predestinado dele faleceu, Ronan.
Os dois viveram juntos durante uma vida inteira!”
“Ele não unificou a nação de tritões sendo
frouxo. Você é um príncipe, pare de agir como um
empregado.”
“Príncipe? Posso ser o primogênito do nosso
núcleo, mas somos filhos do décimo irmão.
Consegue imaginar quantos príncipes têm na minha
frente?”
“Tá aí uma lista interessante de se montar. Aí
só precisaríamos matar todos e você seria o rei.”
Eu arregalei os olhos para ele, horrorizado.

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Ronan riu, deliciado com o meu aborrecimento.


“Estou brincando, estou brincando! Digo, o
próximo na fila é Hian II, seria difícil matá-lo sem
saber onde vive. Dizem que ele já está morto e eu
espero que sim, já pensou que ridículo ele aparecer
numa ilha onde nunca pisou e sentar no trono, tipo,
cheguei para reinar, vadias?” Ronan gargalhou.
“Seria trabalhoso demais, mas é bom imaginar. Se
estivéssemos mais altos na linhagem, talvez fosse
uma alternativa viável.”
Eu me mantive bem quieto. O que eu poderia
responder??
“Talvez eu consiga improvisar algo na cozinha
do palácio.” Eu soltei minha mão e mudei o
caminho onde a trilha da floresta bifurcava. “Quer
me ajudar a cozinhar?”
“Até parece. Aquele idiota dourado nem me
deixa entrar no quarto dele, e já reparou como ele
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me olha? Parece que sou, sei lá, a reencarnação do


mal.”
“Você está exagerando.” Eu ergui o canto do
lábio, travessamente. “Voltarei tarde para casa, boa
sorte retornando de mãos vazias para os nossos
pais.”
“Para os seus pais.” Ronan rosnou, e dessa vez
apenas o ignorei e segui ao palácio. Já havia lidado
com drama o bastante em um único dia.

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Capítulo 05

Foi complicado, mas consegui reunir os


ingredientes da cozinha em um delicioso sanduíche
de torrada-coral com ovas de robalo, bife de
caranguejo e salada marinha. Um lanche simples de
preparar, mas a pinça de caranguejo espetada no
centro e o ziguezague de molho-nanquim deu uma
aparência chique ao prato.
Pelo sorriso do vovô Oráculo, ele aprovou a
aparência de sua refeição. Ele abocanhou o
sanduíche e deu um longo gemido de prazer.
Eu sorri aliviado e sentei ao seu lado na cama,
naquele que era o maior e mais lindo quarto do
palácio.

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Era estranho e triste perceber o espaço vazio na


enorme cama de casal, eu aplaudia a coragem do
Oráculo em continuar dormindo ali.
“Sabe, estes alimentos estranhos nunca foram
do meu agrado. Meus filhos tentaram oferecer mil
novidades exóticas e eu sempre rejeitava, preferia o
bom e clássico peixe cru.” O Oráculo sorriu
suavemente, admirando o espaço vazio ao seu lado.
“Mas o tempo muda. Tudo muda.”
“Fico feliz que aprove minha culinária, vovô.”
Eu acariciei seu longo cabelo, um loiro já muito
claro, cheio de fios brancos.
Vovô Arian endireitou as costas na cabeceira da
cama e abocanhou o último pedaço do sanduíche,
estalando nos dentes a saborosa pinça de
caranguejo.
“O velho Hian também aprovaria. Aquele
guloso… se fazia de difícil mas sempre repetia
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todos os seus pratos.” Ele me devolveu o pratinho


vazio. “Ainda é seu desejo ser o chef do palácio?”
“Sim, senhor. Se meu futuro predestinado me
permitir tal capricho, nada me faria mais feliz.”
Vovô Arian riu com fraqueza, os vincos em seu
rosto afundando ao ritmo de sua risada.
“Não o imagino com um predestinado
possessivo, Madhun, um bom garoto como você
conseguirá realizar todos os seus sonhos. Nunca
tivemos um chef oficial no palácio, mas quando
você despertar desejo que se torne o primeiro.”
Eu abri um sorriso emocionado, tremendo de
alegria por dentro.
“Sou eternamente grato, vovô.” Eu inclinei o
corpo em reverência. “Prometo me esforçar cada
vez mais, criar pratos ainda mais elaborados e
revolucionar a culinária do povo do mar. E o
senhor será o primeiro a provar cada novidade.”
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Vovô Arian sorriu com uma estranha sombra


em seu olhar e encostou a cabeça no meu ombro.
Precisei deixar o prato na mesinha de cabeceira
para virar o corpo e acomodá-lo melhor.
Quando deixei o prato, por acaso notei outra
coisa na mesinha. A garrafa dourada que tio Dylan
lhe entregou durante o velório. Não dava pra ler as
letrinhas no rótulo, mas o nanquim do título era
inconfundível: Hian Makaira II.
“Você quer ler?” Perguntou o Oráculo. “Vá em
frente. Eu deveria ter guardado com os outros
documentos oficiais, mas minha força só vai até
certo ponto. Já perdi a outra metade da minha alma,
não consigo aceitar que perdi ainda mais, não por
enquanto…”
Eu peguei a garrafa nas mãos. Ou havia algo
muito pesado dentro, ou o dourado era ouro de
verdade. Pelo brilho intenso, tão semelhante à

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cauda do Oráculo, a segunda opção era mais


provável.
De fato, quando puxei a rolha e agitei de ponta-
cabeça, tudo o que caiu foi um tubinho de papel,
elegantemente preso com uma fita de cetim.
Eu soltei a fita e desenrolei o pergaminho.

Declaração de Renúncia
Eu, Príncipe Hian Makaira II, prole de Dylan
Makaira e Gabriel Dolinsky, venho por meio desta
declaração renunciar meu título de príncipe, e com
ele meu direito ao trono e quaisquer regalias
associadas à nobreza de minha linhagem. Também
declaro ciência do caráter irrevogável de tal
decisão, estando, portanto, removido de toda e
qualquer obrigação monárquica associada à
minha ascendência.

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O chamado é justo, e o chamado é sábio. Que o


chamado seja testemunha da veracidade deste
documento.
Assinado: Hian Makaira-Dolinsky
Testemunhas: Dylan Makaira e Maikon
Makaira-Dolinsky

Eu li a suave caligrafia em nanquim umas três


vezes, como se pudesse ter lido errado. Só podia ser
mentira, alguma brincadeira de mau gosto.
O Oráculo notou minha expressão e soltou o ar
lentamente, relendo a carta por cima do meu
ombro.
“Ele nem tentou me conhecer, ou conhecer a
ilha… Talvez pudesse gostar daqui, se nos desse a
chance de mudar sua opinião…” Sua voz parecia
mais triste a cada palavra. “Como previ, nunca

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conhecerei meu primeiro neto, afinal.”


Apesar da tristeza sincera, era óbvio que o
Oráculo distraía do verdadeiro centro daquele
problema. Um problema ainda maior que a perda
de nosso general e segundo rei.
O Oráculo pegou o pergaminho das minhas
mãos e guardou dentro da garrafa, fechando-a
cuidadosamente.
“Estou velho, Madhun. Não consigo prever seu
destino, que dirá o destino de nosso povo?” Ele
devolveu a garrafa à mesinha e me fitou com
seriedade e cansaço, seus lindos olhos de ouro
tremulando frágeis no rosto pálido, tão branco que
lembrava o do Ronan. “Agora, mais do que nunca
os nossos segredos precisam ser mantidos. Você
não deve permitir que Ronan descubra a verdade,
em hipótese alguma.”
Eu senti um aperto no coração, mas acabei por
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concordar.
“Se o futuro do reino depende disso, eu
obedecerei.” Falei a ele. “Mas não podemos mesmo
dar uma chance a ele, vovô? Ronan é meio bruto…
e grosseiro, e violento, e impulsivo… mas se
conhecê-lo bem, verá suas qualidades. Talvez ele
também só precise de uma chance para mudar sua
opinião.”
O Oráculo arregalou os olhos com certa
surpresa então sorriu, dando uma risadinha fraca.
“É necessário um coração puro para encontrar
pureza no coração alheio, e isto você tem de sobra,
Madhun. Mas não se esqueça que Ronan também
carrega nas veias o sangue dos nossos inimigos.”
Ele voltou a deitar na cama, aninhando a cabeça
nos travesseiros macios. “Além disso, eu sou um
oráculo. Houve uma época em que minha
clarividência era precisa, não estou tão velho a

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ponto de esquecer minhas antigas previsões.”


“Mas se o senhor perdeu seus poderes, isto
significa que Ronan pode ter mudado, certo? Papai
Byron e papai Shane criaram Ronan com todo o
amor possível e eu tento ser o melhor dos irmãos,
por maiores que sejam os desafios.”
O Oráculo observou a luminária do teto,
pensativo.
“Vou lhe contar uma verdade que poucos
sabem, Madhun: Um oráculo não pode prever além
de seu tempo neste mundo.” Ele sorriu com
amargura, acariciando o lugar vazio ao seu lado.
“Eu sou o rei, e eu sou o Oráculo, mas meu coração
é o de um tritão como você ou qualquer outro.
Alguns sentimentos paralisam, assustam, nublam o
julgamento dos melhores de nós.”
Eu franzi minha testa para ele, sem entender
onde ele queria chegar. Vovô Arian sempre foi tão
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altivo e feliz, nunca se deixou abalar pela idade


avançada. Vê-lo assim me destruía por dentro,
especialmente por conhecer a natureza dos tritões.
Poucos tritões viúvos tinham a força do papai
Byron em seguir adiante e reencontrar o desejo de
viver. Eu recém havia perdido um avô, não
suportava a ideia de perder outro.
“Prometo que Ronan nunca descobrirá nada.”
Eu acariciei o rosto enrugado do vovô, tentando
não pensar no quanto esta promessa colidia com as
minhas intenções. “Quando o momento chegar será
seu segundo filho, o tio Papillon, quem subirá ao
trono. O reino que o senhor construiu seguirá firme
em mãos de sua confiança.”
O Oráculo riu de novo, estudando o meu olhar.
“Papillon é como um diamante de cantos
brutos, mas não duvido de sua dedicação em
sustentar meu reino, em último caso.”
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“Em último caso? Vovô, Ronan é…” Eu baixei


minha voz a um sussurro. “Ronan é o único filho
do príncipe… digo, ex-príncipe Hian II. Encerrada
a linhagem de primogênitos do tio Dylan, a herança
do trono passa ao seu segundo filho, Papillon.” Eu
disse a ele.
Vovô Aurelian deu um sorrisinho maroto e
pensativo, como se escolhesse cada palavra que me
dizia.
“Seu despertar ocorrerá muito em breve,
Madhun. Não consigo mais prever, mas ainda
possuo minha intuição de tritão velho.” Ele riu com
doçura. “Procure-me quando se tornar um adulto.
Eu talvez tenha um segredo a mais para contar.”
Um segredo a mais? Minha curiosidade me
pedia para insistir, mas pelo olhar sonolento do
vovô já passava da hora dele dormir. E eu mesmo
precisava jantar, minha barriga doía de fome.

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Não querendo importunar o vovô ainda mais,


eu recolhi o prato e me despedi dele, ansioso em
voltar pra casa. Antes que eu deixasse o quarto,
porém, o som de muitos passos metálicos chamou
nossa atenção à porta.
Para o meu espanto, Ronan apareceu na entrada
do quarto com três enormes guardas reais atrás
dele.
“É sério isso, velhote? Mandou seu exército me
seguir pelo palácio?” Ronan sorriu com cinismo e
beliscou o nariz de um dos soldados, que se
mantinha imóvel com o tridente para o alto,
bastante disciplinado. “Você nunca foi com a
minha cara, mas isso é novidade.”
Eu pensei em ralhar com Ronan por sugerir um
absurdo desses, mas quando olhei de volta ao vovô
notei a mudança em seu olhar. O sono desaparecera
de seu rosto e ele encarava Ronan com o olhar

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enorme, assustado e rancoroso.


Que droga, eu tentava fazer Ronan sentir-se
aceito pelo próprio clã, mas esses exageros do
Oráculo não facilitavam.
“O que veio fazer aqui, Ronan?” Perguntei.
“Shane mandou te chamar antes que o jantar
queime.” Ele bufou, impaciente. “Mas pelo visto
além de garoto de recados sou algum tipo de
criminoso.”
Eu suspirei e torci o lábio para o vovô,
esperando que ele ao menos cumprimentasse
Ronan ou pedisse desculpas, mas ele continuava
paralisado, com uma mistura de medo e raiva
impotente.
“Nossa, adoro quando o papai Shane cozinha.”
Eu forcei um sorriso e segurei Ronan pelo braço,
deixando o quarto com ele. “Tchau, vovô, até a
próxima!”
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O Oráculo não respondeu. A única resposta foi


o som de passos metálicos. Aqueles malditos
soldados continuavam nos seguindo de perto, mas
eu os encarei com meu olhar mais feio e eles… nos
seguiram de longe, parando apenas quando
deixamos o palácio. E ainda assim continuaram na
porta, seus olhares seguindo Ronan até o último
passo na escadaria.
A idade deixava vovô Aurelian cada vez mais
paranoico.

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Capítulo 06

Papai Shane me recebeu com um abraço. Ele já


havia se trocado para um pijama de cetim
vermelho, com um avental de culinária na cintura.
“Humm esse cheiro está de matar.” Eu farejei o
calor do forno, que inundava a casa num delicioso
aroma de pizza. “Como está o papai Byron?”
“Não ótimo, mas melhor. Ele está terminando
de ajeitar a mesa.” O olhar do papai Shane voltou-
se ao Ronan. “Obrigado por chamar o Madhun,
filho. Cumprimentou o seu avô com respeito?”
Ronan grunhiu algum desaforo e entrou em
casa.
Eu decidi mudar logo aquele assunto.

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“Inventei um sanduíche novo, hoje. Aprovado


pelo nosso digníssimo governante.” Eu sorri
orgulhoso. “Mas aposto que o seu jantar será ainda
melhor.”
“É difícil competir com um filho cozinheiro,
mas eu faço o possível.” Papai Shane deu um
tapinha nos meus ombros e entrou comigo em casa.
“Não é sempre que o Byron me deixa cozinhar,
então preciso aproveitar minhas oportunidades, e...
Ah, cara, espero acertar o ponto do Robalo
também, Ronan foi tão prestativo em caçá-lo.”
“Era isso, ou ficar de castigo.” Ronan bufou,
com a cara enterrada em um livro.
“Seja respeitoso com o Shane, por favor.” Papai
Byron o repreendeu.
Meu estômago grunhiu em antecipação. Meus
dois pais cozinhavam maravilhas, mas os raros
jantares do papai Shane eram como tesouros. Não
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era sempre que eu podia apreciar culinária humana


em Egarikena, e eu simplesmente adorava pizza.
Ronan já estava jogado no sofá com cara de
quem detestava o universo. Em contraste, papai
Byron nos sorria satisfeito, feliz em reunir a família
apesar da tristeza dos eventos recentes.
Nossa casa diferia bastante das outras moradias
de tritão. A maioria das casas recentes já continha
encanamentos, mas na nossa também havia energia
elétrica, antena de televisão, celular e wi-fi, embora
com a internet mais torturante e lenta do mundo,
daquelas que testavam os limites da paciência.
Ronan e papai Byron raramente faziam uso dos
aparelhos eletrônicos da casa, mas papai Byron
aprendeu a gostar de televisão. Eu, por outro lado,
não saberia sobreviver sem água quente no
chuveiro e vídeos de YouTube. Desde pequeno eu
acompanhava papai Shane nos shows da Death

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Cannibals, às vezes também com papai Byron, mas


geralmente era apenas eu e meu padrasto
conhecendo o mundo.
Papai Shane me ensinou a amar minha natureza
híbrida e papai Byron nunca incriminou meus
gostos pela cultura humana, permitindo que eu
encontrasse meu próprio equilíbrio interior. Como
resultado da nossa mistura cultural, além de um
aromático peixe assado com algas, nosso jantar
incluía uma enorme e deliciosa pizza de bacon com
brócolis e catupiry, que papai Shane ajeitou com
cuidado no centro da mesa.
Eu precisei fechar a boca ou babaria no chão.
“O jantar está servido.” Papai Shane ajeitou as
jarras de água e de suco de laranja, completando
uma mesa linda, como aquelas de filme de ação de
graças. “Venha comer, Ronan.”
Ronan bufou de raiva, como se levantar do sofá
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fosse o maior sacrifício do mundo.


Eu, claro, sentei correndo e já segurando os
talheres, me controlando para não tocar na pizza
antes que todos estivessem à mesa.
“Como foi o fim de tarde de vocês?” Papai
Byron serviu-se do peixe assado. “Espero que
melhor que o nosso. O humano do primeiro irmão
bebeu algumas taças de Maremoto Abissal e sumiu,
demoramos um tempo até encontrá-lo dormindo
embaixo das mesas do Flying Fish.”
Apesar do tom sério, papai Byron segurava-se
para não rir.
Papai Shane não conseguiu ser tão discreto. Ele
até tentou segurar mas explodiu de tanto dar risada.
“A cara do Dylan… Ele pensou que o Gabe
estivesse morto.” Ele secou as lágrimas de riso. “Os
predestinados das gêmeas precisaram carregar o
Gabe até a lancha, porque o Dylan parecia uma
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arara, culpando o Édrilan por ter servido bebida


demais.”
Eu abocanhei minha fatia de pizza, que estava
tão crocante e saborosa quanto parecia. Nossa, eu
amava bacon.
“Mas até as crianças bebem aquilo… Quantas
taças o Gabriel bebeu?” Perguntei, de boca cheia.
Papai Shane precisou de um tempo para
recuperar o ar, de tanto que ria. Até papai Byron
não aguentou e desatou a rir junto.
“…Duas.” Eles responderam juntos.
Eu comecei a rir também, quase cuspi minha
pizza. Pelos oceanos, como alguém conseguia ser
tão fraco com álcool?
“Já terminei.” Ronan levou o prato para a pia,
sem um pingo de humor no rosto. “Posso me
retirar?”

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Eu e papai Shane trocamos olhares confusos.


Papai Byron se enraiveceu.
“Seu pai Shane preparou esta refeição com
esforço. Demonstre gratidão, por favor.” Pediu ele.
“Ah, Byron, não tem problema, é apenas um
peixe e uma pizza, nada especial.” Disse papai
Shane, embora houvesse certa de mágoa em sua
voz. “Obrigado por jantar conosco, filhão.”
Ronan revirou os olhos e subiu as escadas na
direção de seu quarto.
“Se me permite corrigi-lo, meu amor, você é
frouxo demais com ele.” Disse Byron.
“Você quem é severo demais.” Shane deu de
ombros e abocanhou um pedaço de brócolis. “Ah,
cara, bateu um desespero quando percebi que havia
acabado o orégano, mas salpicar alga-rubra foi uma
boa ideia.”

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“Uma excelente ideia.” Eu me servi de novo.


“Estou falando sério, Shane. Aquele garoto não
tem o direito de te desrespeitar.” Disse papai
Byron, em um tom que conseguia ser submisso e
assertivo ao mesmo tempo.
“Nosso filho recém perdeu o avô, abaixa as
escamas, peixão.” Shane serviu-se de mais pizza e
também repôs o peixe no prato do Byron,
sorridente e pacífico. “Amanhã vamos arrastá-lo ao
ensaio, duvido que ele não se anime. Certo,
Madhun?”
“Ninguém se aborrece ao o som do nosso
metal!” Eu agitei os dedos no peito, como uma
guitarra de ar. “Todos na ilha precisam se animar,
faremos o melhor ensaio de todos!”
“Este é o meu garoto.” Papai Shane piscou pra
mim e papai Byron suspirou, pouco convencido.
Quando terminei de jantar, minha barriga doía.
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Pizza de bacon talvez fosse a melhor das


invenções humanas. Apenas papai Shane e eu
podíamos comer, mas ele sempre cozinhava
porções de quatro pessoas num gesto de boa
educação. Como resultado eu sempre comia até
explodir, incrível como eu conseguia continuar
magrinho.
Eu me ofereci para lavar a louça e deixei tudo
limpinho e guardado em seus respectivos armários.
Quando terminei, encontrei papai Shane deitado no
ombro do papai Byron enquanto os dois assistiam
televisão. Eles me convidaram a assistir com eles,
mas eu me sentia um balão de carboidratos.
Precisava deitar e dormir por umas dez horas.
“Boa noite, meus pais.” Eu beijei a testa de
cada um e segui escadaria acima.
Massageando minha barriga cheia, eu segui
pelo corredor em direção ao meu quarto e então

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ouvi um gemido estranho, meio soluçado.


Eu arqueei uma sobrancelha e recuei alguns
passos. O som vinha do quarto do Ronan, através
da porta entreaberta.
Ronan gritaria comigo se me visse espiando,
mas a curiosidade falava alto.
Suave como uma pluma, eu me aproximei do
quarto escuro e espiei para dentro, onde a faixa de
luz do corredor iluminava a cama.
Sob os lençóis pretos, tão pretos quanto toda a
sua mobília, Ronan abraçava-se aos joelhos todo
encolhido no canto do colchão, tremendo.
“Ronan?” Eu entrei devagar.
Ronan sentou-se num gesto rápido e seus olhos
encontraram os meus, enormes e molhados.
Ele rosnou, mas isso não impediu que eu
entrasse e fechasse a porta atrás de mim,

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preocupado.
“Você estava chorando?” Perguntei.
“Perdeu o amor à vida, Madhun? Este é o meu
quarto.” Disse ele, com a voz meio trêmula.
“O que aconteceu?” Eu sentei ao seu lado na
cama.
Na verdade eu não esperava resposta para a
pergunta. Eu cresci com Ronan desde bebê, sabia
quando esperar palavras e quando esperar gritos e
insultos. Quase sempre eu esperava a segunda
opção.
Então quando Ronan baixou o olhar e permitiu
minha aproximação, realmente me surpreendi.
“E se todos estiverem certos?” Disse ele.
“Sobre o que?”
“Você tem problema mental, seu imbecil?” Ele
rosnou pra mim, seus olhos vermelhos brilhando na
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pouca luz que entrava pela janela. “Tudo o que eu


faço… e agora aquele sonho… E se eu for mau de
verdade?”
Eu abri a boca, perplexo e sem saber o que
responder. Não me passou pela cabeça que no
caminho ao velório Ronan não tivesse me contado
tudo.
“Você não é mau, Ronan, você apenas…
ahm… gasta sua energia negativa de forma meio…
enérgica. Nós vamos trabalhar nisso, você já está
melhorando. Lembra quando a gente era criança e
você quebrou meu braço e meu nariz porque eu
comi suas bolachas? Faz um tempão que você nem
me bate mais.”
Encolhido como uma bola, Ronan voltou a
atenção para o nada. Mas pela sua expressão era
como se visse alguma coisa imaginária.
“O sangue, os gritos, a chuva. Foi horrível,
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Madhun. Aquele homem que morreu na minha


frente… havia algo no olhar dele que nunca vi no
olhar de mais ninguém. Ele não queria morrer. Ele
não podia morrer. E ainda assim…”
Ronan escondeu os olhos nos joelhos e soluçou
baixinho, completamente aterrorizado.
Meu coração doía por ele. Não era justo que
Ronan não soubesse a verdade, mas eu não podia
contar. Meus pais, o príncipe, o rei… todos
contavam comigo para segurar um segredo do qual,
supostamente, dependia a segurança do nosso
reino.
E pela segurança do reino, eu precisava ficar
quieto enquanto meu irmão chorava, prisioneiro de
memórias que ele jamais compreenderia sozinho.
Se havia alguém mau naquele quarto, certamente
não era o Ronan.
Arriscando perder os dedos, eu toquei atrás do
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seu pescoço. Quando ele não tentou me morder eu


completei o gesto, o abraçando de lado.
“Suas memórias estão confusas, Ronan. Este tal
sonho não aconteceu, não é real.” Eu disse a ele,
com o coração dobrado em culpa.
Apesar de aceitar o abraço, Ronan continuou
encolhido e silencioso. Eu não sabia se ele estava
chorando ou não, mas o medo real de ser atacado
torcia meu estômago ainda mais que o excesso de
pizza.
Ronan era uma incógnita para todo mundo,
geralmente só demonstrava sentimentos através de
violência. Após um certo tempo eu desisti de
esperar resposta e me levantei para ir embora.
Mas para meu completo espanto, Ronan
segurou meu pulso e não foi com o intuito de
quebrá-lo.
Eu me virei a ele novamente, estranhando a
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suavidade de seu toque.


“Você…” Ronan gaguejou, com o olhar nos
lençóis. “…Se quiser dormir aqui, não vou te
quebrar ao meio, só dessa vez.”
Oh, nossa.
Eu deveria me solidarizar com a angústia do
Ronan, mas com um convite daqueles foi
impossível não sorrir, com o peito aquecido em
comoção.
“Claro, eu durmo com você.”
Eu entrei embaixo dos lençóis com ele. O
colchão estava quentinho com o calor de seu corpo.
“Não fale como se estivesse me fazendo um
favor.” Ronan grunhiu envergonhado e virou as
costas para mim. “E não tente roubar os lençóis ou
vou esmurrar essa sua bunda.”
Eu concordei segurando o riso, apreciando o

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aroma salino e gostoso da roupa de cama do Ronan.


Meu rosto aqueceu quando notei seu saiote dourado
jogado no chão. Ele estava pelado? Eu não deveria
me importar, mas… nossa, que noite esquisita.
Bem, se tudo ocorresse conforme meus planos,
aquela seria uma situação bem cotidiana. O
interesse dos adultos em dormir juntos atiçava
minha curiosidade, digo, meus pais gostavam muito
de dormir pelados um com o outro, e em breve eu
descobriria o motivo. Pensando nisso eu também
me livrei do meu saiote e abracei Ronan por trás,
aquecido no calor de suas costas largas.
Mais uma vez, para a minha alegria, Ronan não
tentou me agredir. Ele até endireitou o corpo sob os
lençóis, deitando a cabeça no meu braço e
moldando o corpo em um encaixe perfeito contra o
meu.
Com o coração quente e um sorriso no rosto, eu

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fechei os olhos e tentei adormecer.


“Ei, Madhun…” Ronan disse baixinho.
“O que foi, Ronan?”
“Você não mentiria pra mim, não é mesmo?”
Meu coração foi de fogo a gelo em meio
segundo. Eu estremeci, lutando para não
transparecer minha culpa.
“Claro que não, Ronan. Você sempre poderá
confiar em mim.”

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Capítulo 07

Egarikena amanheceu em luto oficial. A


bandeira verde no topo do palácio flamulava a meio
mastro, agitada pela brisa fresca da manhã.
Apesar do luto, diversos amigos já me
aguardavam no Flying Fish, ansiosos em assistir o
ensaio daquela manhã.
Não me surpreendi ao encontrar a Lílian e o
Ílan já nas mesas diante do palco, bebendo largas
canecas de manteiga-do-mar. Como eram filhos do
tio Moyren e do tio Édrilan eles meio que moravam
dentro do clube, vivendo o sonho de beber
coquetéis deliciosos todos os dias.
Eu os cumprimentei com animação, logo

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recebendo elogios para a minha roupa: camisa


branca estilo rede-de-pesca, pulseiras de metal e
calça rasgada nos joelhos. Papai Byron odiava que
eu vestisse calças, temendo que uma eventual
transformação rasgasse minha cauda ao meio, então
eu mesmo recosturava as minhas com linha fina,
que arrebentaria fácil se eu cometesse a idiotice de
cair na água.
De qualquer forma, eu raramente vestia roupas
humanas nos ensaios, mas aquele era um ensaio
especial para mim e pelo visto também aos fãs do
papai, que apareceram em grande número.
Aquele era, afinal, o último ensaio antes da
turnê pela Europa. Meu coração doeu ao me
lembrar disso.
“E então, este show começa quando?” Lílian
jogou os cachos castanhos para trás, já corada pela
bebida.

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Eu abri o estojo sobre a mesa e dele retirei o


meu instrumento: um lindo baixo azul-marinho que
foi presente do papai Shane.
“Não tem momento certo, Lílian. É só um
ensaio, sem vocalista e baterista fica difícil
começar.” Eu disse.
“Nem acredito que ficaremos três meses sem
Shane Velvet, ainda mais nessa época mórbida. Até
as gaivotas pararam de gralhar, já perceberam?”
Ílan riu, brandindo sua caneca no ar.
“Você que é um surdo.” Lílian acotovelou o
irmão mais velho. “Beba alguma coisa, Madhun. O
papai Édrilan recém engarrafou a safra de licor de
anêmona, é de beber e cair no chão. Literalmente.”
“Se eu tocar bêbado de novo acho que papai
Byron arranca minhas escamas.” Eu vesti a alça do
baixo e testei as cordas. “Meu núcleo inteiro vai
aparecer, acreditam? Como se o último ensaio antes
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da temporada não fosse pressão o suficiente.”


“Todo o seu núcleo? Até o Ronan?” Ílan tentou
parecer indignado, mas já estava sorrindo e
lambendo os lábios sem perceber. “Será que ele
vem vestido como você, nessa calça apertadinha?”
“Credo, Ílan. Se controla.” Eu dei risada,
fingindo constrangimento. “Você não desiste,
não?”
“Desistir do quase-alfa mais bonito, forte e
intenso de Egarikena? Eu não bebi tanto assim.”
Ílan piscou pra mim e continuou a beber.
“Bonito? Aquele rabo-de-camarão? Os olhos
dele parecem, sei lá, duas bolas de fogo.” Disse
Lílian.
“Pois aqueles olhos de fogo podem queimar
minha pele quando ele desejar.” Ílan mordiscou os
lábios, se fingindo de tritão adulto. “Você está com
ciúmes porque eu e ele temos dias de diferença de
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idade, e você é uma pirralha que nem deveria


beber.”
“Não posso negar isso.” Ela sorriu contente,
secou sua grande caneca e levantou logo depois.
“Vou pegar mais. Quer alguma coisa do balcão,
Madhun?”
“Depois do show. Tentem não secar o estoque.”
Eu troquei cumprimentos de soquinho com os
dois e subi no palco.
Como não haviam janelas ou iluminação
natural, o Flying Fish sempre parecia igual, mesmo
cedo da manhã. A casa de shows era um dos
poucos lugares com eletricidade. Haviam tubos de
neon contornando as paredes escuras, globos de
discoteca, luzes estroboscópicas e decoração
futurista, que o próprio papai Shane ajudou a
escolher e transportar no nosso veleiro. O balcão
atraía pelo grande paredão de bebidas e banquinhos
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de couro, mas a estrela do lugar era o palco, com


iluminação moderna, camarins, acústica perfeita…
O Flying Fish causaria inveja nos melhores clubes
de humanos.
Eu amava o Flying Fish, e eu amava ser o
baixista da Death Cannibals. Meu sonho nada tinha
a ver com música, mas subir no palco e percorrer o
olhar pela multidão sempre me empolgava, e o
melhor de tudo era participar de algo importante
para o papai Shane. Ele me ensinava a tocar desde
que eu era uma criancinha de fraldas, e eu enfim
alcançava técnica o bastante para não envergonhá-
lo nos espetáculos.
E a melhor parte de tocar na banda era conhecer
diversos países, cada um com sua culinária única.
Uma pena que desta vez as coisas seriam
diferentes.
“Algum problema no seu baixo, filhão?”

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Eu me virei para o lado e avistei papai Shane


subindo no palco, com o tio Yun o acompanhando.
“Apenas terminando de afinar. Tio Yun, você
está incrível!”
Meus olhos brilharam em empolgação porque
meu elogio não poderia ser mais sincero. Papai
Shane sempre vestia-se para arrasar, mas pela
primeira vez tio Yun abandonou seus humildes
quimonos de algodão simples. Aquele yukata lilás
com boá de penas pretas combinava perfeitamente
com o batom escuro e delineador alongado, que
salientava os traços orientais de um tritão Hai-Kui.
Meu comentário fez Yun baixar o rosto
encabulado. Ele apressou-se para a sua bateria e
abaixou seu corpinho magro atrás dela como se
tentasse se esconder dos aplausos.
“Ahm… é meu… minha primeira vez que…”
Ele limpou a garganta e tentou vencer a vergonha.
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“É minha primeira vez acompanhando seu pai em


uma turnê. Me pareceu apropriado combinar nossas
indumentárias.”
Eu não diria que os dois estavam exatamente
combinando, papai Shane parecia um metaleiro e
tio Yun uma mistura de gueixa com visual-kei
gótico. Ambos estavam fantásticos.
Ah, eu queria me bater por não poder ir junto
desta vez, mas não podia deixar minha frustração
transparecer. Aquele ensaio era muito importante
para a banda.
Enquanto meu pai ligava sua guitarra e o meu
baixo nos amplificadores eu admirei nossa modesta
plateia novamente, antes que a luz dos holofotes
tornasse tudo um borrão branco. Lílian e Ílan ainda
bebiam como dois loucos na companhia do
vigésimo príncipe Sheran e outros amigos da nossa
idade. O olhar do Ílan passava pelas mesas do

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canto, onde Ronan estava sentado com papai


Byron.
Com cara de quem preferia morrer a estar ali,
Ronan analisava as próprias unhas.
Mesmo sabendo que papai Byron obrigou
Ronan a comparecer, eu era grato pela presença
dele. Tocar para os meus amigos e família sempre
fervia algo no meu coração, tornando cada música
ainda mais especial.
Quando o ensaio estava prestes a começar
avistei alguém no cantinho oposto do salão,
encolhido entre as cabines e produtos de limpeza.
Era Sebasten, que me observava acuado e discreto.
Ele era presença comum nos shows, mas era a
primeira vez que eu o via durante um ensaio.
Sebasten encolheu-se ainda mais quando notou
ter sido descoberto. Eu sorri e acenei a ele,
sinceramente feliz em vê-lo, e meu gesto lhe deu
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coragem de se aproximar e sentar solitário nas


mesas dos fundos.
Pensei em dizer alguma coisa, mas então as
luzes acenderam num flash e os berros do papai
Shane ecoaram pelos alto falantes.
Então o show começou, e eu dei o melhor de
mim para acompanhar o ritmo de cada música.
Apesar de toda a minha concentração, minha
mente dava voltas sobre meus compromissos
daquela mesma noite.
Talvez eu devesse aceitar um certo convite,
apenas por boa educação.

****

Eu ergui o baixo sobre a cabeça e mergulhei


nos gritos e aplausos de nosso modesto público.
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Papai Shane agradeceu a presença de todos e Yun


aproximou-se comigo na frente do palco. Nós três
acenamos e com isto o ensaio estava encerrado.
Meus dedos doíam de tanto dedilhar as cordas,
mas pelo sorriso do papai Shane eu consegui fazer
tudo direitinho.
“Você foi fantástico, filhão.” Papai Shane
afagou meu cabelo, suado e rouco de tanto se
esgoelar no microfone. “Tem certeza que não quer
tocar conosco? Paris, filho. A Torre Eiffel. Dezenas
de tipos de queijo.”
“Aaaah, não me fala, o senhor sabe que estou
louco pra ir.” Eu cobri os ouvidos com as mãos.
“Peço mil perdões por precisar ficar.”
“Ah, cara… tritões têm uns rituais pirados.
Você não pode fazer esse despertar durante nossa
turnê?”
“Eu não escolho quando despertar, papai. E eu
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preciso estar aqui quando acontecer, o ômega


sempre espera o alfa.”
Papai Shane esfregou a testa. Anos vivendo em
nossa ilha e certas peculiaridades ainda mexiam
com sua sanidade mental.
“Precisa que o Byron fique, então? Ele me
contou que esse despertar é bem… inquietante.
Também posso dar um jeito de encurtar a turnê,
ou…”
“Não, nem pensar. Tio Yun tá super empolgado
de viajar com os senhores, e no fundo o papai
Byron adora passear nas cidades humanas. Vai ser
incrível, papai, quero receber muitas fotos.”
Papai Shane sorriu com complacência e beijou
minha cabeça.
“Sentirei falta do meu melhor baixista. Você é
incrível, filho, vai conseguir o melhor dos
predestinados.”
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“Sou muito grato pelas suas palavras.” Eu


prestei uma breve reverência, então levei um tapão
na bunda. “Ah!!”
Eu virei pra trás num sobressalto.
Lílian quem havia me acertado. Só então
percebi vários dos meus amigos invadindo o palco
e me cercando. Houson, Baiten… até o vigésimo
príncipe Sheran marcava presença, quase tão
bêbado quanto os diversos filhos do tio Moyren.
“Caraaaalho Madhun, vocês são muito fodas.”
Disse Lílian, dobrada de tão bêbada. “Tá bem lindo
essa coisa pai e filho, mas tô doida por umas ondas.
Partiu corrida ao mar!”
Eu nem concordei ou discordei com nada, mas
Lílian saiu correndo mesmo assim, deixando todos
meio perplexos. Manteiga-do-mar sempre a
deixava bem louca.
“Hum… eu encontro vocês na praia. Ainda
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quero falar com o Sebas…” Eu olhei para as mesas


dos fundos, não havia mais ninguém ali. “Pensando
bem, deixa pra lá. O último que chegar vai comer
as escamas da minha bunda!”
Eu entreguei rápido meu baixo ao papai Shane
e saí correndo com os outros, rumo às ondas de
esmeralda das praias de Egarikena.

****

Eu mergulhei até as profundezas marinhas,


minha cauda azul abanando com precisão,
buscando o ângulo perfeito. Então, num gesto
rápido, eu apoiei a barbatana no chão e me
propulsionei para cima, nadando a toda velocidade.
Com as mãos esticadas diante do corpo eu
cortei a água e saltei para o céu. O sol refletiu nas

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minhas escamas azuis enquanto meus amigos


assobiavam e aplaudiam.
No tempo de meio segundo eu caí em um
mergulho perfeito, então voltei a emergir na
companhia do pessoal. Eles me parabenizaram por
superar meu recorde no concurso de saltos.
“Cara, acho que este foi o melhor salto do
mês.” Disse Houson.
“Foi nada, o Kireren Saltou bem mais longe e
ainda deu uma pirueta.” Disse Lílian.
“O Kireren é um Trevally, quem ganharia em
salto com um Trevally? Ele não conta!” Disse
alguém que eu nem lembrava o nome.
“Ei, conta sim!” Kireren se emputeceu e trocou
cotoveladas com o outro cara, logo os dois
trocavam tabefes e brincadeiras estúpidas de quase-
alfas.

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Eu dei risada da confusão, já me preparando


para o próximo grande salto, mas então percebi
Ílan. Ele observava quieto alguma coisa distante, na
areia da praia.
Aquele era o Ronan? O que ele estava fazendo
ali? Com a loucura no final do ensaio eu nem me
despedi dele ou do papai Byron, mas previa que
Ronan se esconderia no quarto para ler ou dormir,
como era seu costume.
“Que safadeza, Madhun. Seu próprio irmão.”
Houson deu um tapinha nos meus ombros. “Mas eu
te entendo, digo, se o meu irmão tivesse um
corpaço desses, até eu ficava secando.”
“Como é que é??” Disse o irmão do Houson.
“Irmão adotivo, rapazes.” Lílian sorriu como
uma sem-vergonha.
Dessa vez eu me irritei, rosnando para ela.

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“Ele é meu irmão, não importa de que tipo.”


Falei.
“Ah, é… então explique seu cheiro, mais cedo.”
Lílian abanou sua cauda verde de sereia Makaira,
sorrindo em diversão. “Sua pele estava todinha
impregnada no cheiro do Ronan.”
Meu rosto aqueceu. Mas que raios, era o que eu
merecia por correr ao ensaio sem tomar banho.
“Não interessa o que eles fazem juntos, Lílian!”
Dessa vez Ílan quem se irritou. “O chamado lê
nossos corações, ele vai perceber o que eu sinto e
então Ronan semeará meu ventre.”
“Não, ele vai semear o meu ventre e eu lhe
darei cinco filhotes de cabelo branco.” Disse
Houson.
“Só cinco? Eu lhe darei dez.” Disse Bren.
“Amadores. Vou ter quarenta filhos do Ronan.”

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Devolveu Ílan.
De repente todo mundo começou a se xingar e
se estapear. Lílian ria de se matar, adorando ver o
circo pegar fogo.
Eu revirei os olhos, ainda cansado do ensaio e
sem paciência para outra discussão sobre o futuro
do Ronan… até porque era óbvio a quem ele
pertenceria.
Com um sorriso orgulhoso eu voltei a olhar na
direção da praia, mas dessa vez não havia ninguém
ali. Uma sensação azeda apertou meu peito quando
lembrei da noite anterior.
Aquele não era o momento de me gabar por
dentro.
“Desculpa, caras. Preciso ir.” Eu disse.
“Já? Mas…” Lílian resmungou.
Eu me desculpei com todos e mergulhei fundo,

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então farejei a água até achar o rastro do Ronan e


nadei veloz ao seu encontro.

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Capítulo 08

A muralha de minas navais que contornava


Egarikena existia desde antes de eu nascer.
Centenas de bombas imensas e esféricas que
flutuavam logo abaixo da superfície, presas ao leito
marinho por espessas correntes de aço.
O círculo de bombas servia de proteção contra
embarcações e também delimitava nosso território.
Ao norte da barreira, um estreito corredor permitia
a passagem de eventuais barcos, como os muitos
que surgiram para o velório do vovô Hian. Sempre
protegida pelo exército, aquela era a única brecha
nas defesas da ilha.
Ou, pelo menos, costumava ser.

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Eu segui o cheiro do Ronan até avistar alguém


vermelho e branco à distância, bem à frente da
imensa bola prateada que era uma das minas.
Ronan ergueu a mão lentamente, até quase
tocá-la.
“O que está pensando em fazer?” Eu disse ao
Ronan, me aproximando devagar. “Vamos voltar
antes que os soldados nos castiguem.”
Ronan sobressaltou-se com a minha presença,
mas não fez questão de se virar para mim. Tão
irritante. Eu me aproximei ainda mais e aos poucos
meu incômodo deu lugar ao medo.
Era a primeira vez que eu me aproximava tanto
de uma bomba. Em sua superfície metálica haviam
dezenas de pinos explosivos, que detonariam a
bomba se pressionados. E Ronan começou a
percorrer o dedo entre eles, como em um joguinho
doentio.
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“Você não me ouviu? Pare com isso!” Eu


segurei seu braço e então percebi algo ainda mais
enervante.
À nossa esquerda havia outra bomba, e outra, e
outra… todas traçando uma linha imaginária até
sumir no horizonte azul, como um paredão da
morte para qualquer marinheiro desavisado. À
nossa direita também haviam bombas, só que muito
mais adiante, após um enorme vão.
Eu desci o meu olhar, hesitante. Entre os corais
e algas coloridas do solo marinho havia uma cratera
negra, cercada de detritos e conchas destroçadas.
“Foi aqui o acidente do vovô Hian…” Falei.
“A barreira estava toda desalinhada.” Disse
Ronan, com uma voz monocórdia e sombria. “Não
foi difícil arrancar as âncoras e prendê-las mais
adiante… Ficou melhor do jeito que eu fiz.”
Boquiaberto, eu soltei o braço de Ronan e
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recuei.
“Você quem mexeu nas bombas.”
Os ombros de Ronan estremeceram. Ele enfim
parou de brincar com os pinos e baixou as mãos,
fechando-as em punhos apertados.
“Eu não sabia que ele tentaria colocar de volta.
Pensei que ficaria melhor de outro jeito, foi um
acidente.”
“Ronan…” Gaguejei, o som do meu coração
ecoando pela água.
Por isso ele estava tão mal, ultimamente? Digo,
os sonhos sangrentos certamente o assustavam, mas
imaginar Ronan guardando um segredo tão
dolorido fazia torcer o meu coração.
Ronan começou a rir.
“Não é ótimo? Aquele velho dourado sempre
me odiou, e agora tem motivos pra isso.” Ele

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ergueu a mão novamente e agarrou a bomba, cada


dedo perigosamente próximo dos pinos
detonadores. “Ele já sabe o que eu fiz, não sabe?
Mandou soldados me perseguirem porque matei o
predestinado dele!”
Eu ergui minhas mãos, gelado de medo e
nervosismo.
“Ronan, solta essa bomba.” Eu disse,
pausadamente. “Ninguém matou ninguém. Foi um
acidente, você mesmo disse isso. O Oráculo está
velho, neurótico, e não tem os poderes que
costumava ter.”
“Você vai contar pra ele, não vai? E aí eu vou
ser preso, ou morto, e todos vão comemorar.”
“Eu não vou, Ronan, eu…”
Ronan puxou a mão em um gesto violento,
causando diversos estalidos metálicos que me
fizeram gritar.
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Eu cobri os ouvidos e me preparei para morrer,


mas a bomba não detonou. Havia apenas diversos
detonadores faltando, e Ronan segurava cada um
entre seus dedos.
Ele enfim virou-se para mim com o olhar sério
e dolorido, tão similar a quando o encontrei
chorando.
“Pois deveria contar! Sou o único tritão de
cauda vermelha, o único de cabelo branco, aquele
que chamam de rabo-de-camarão pelas minhas
costas! Ninguém tem o mesmo cheiro que eu e
meus supostos pais se recusam a dizer de onde eu
vim!”
Ronan gritava mais a cada frase, tremendo tanto
que eu não sabia se era ódio ou esforço em segurar
o choro, provavelmente os dois.
Eu queria abraçá-lo e confortá-lo, mas mais do
que tudo queria afastá-lo das bombas.
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“Vamos conversar em casa, está bem? O que


aconteceu aqui será o nosso segredo.” Eu tentei
tocar a mão que não segurava os detonadores, mas
Ronan afastou-se na mesma medida, se revoltando.
“Que foi? Vai ter pena de mim, só porque fui
fraco por uma noite? Ontem não aconteceu, e isso
aqui não me aborrece em nada! Fodam-se aqueles
malditos reis!!”
Ronan contornou a bomba e disparou pelo
oceano, além dos limites do nosso território.
“Espera, Ronan! Volta!” Eu nadei atrás dele.
Droga, droga, isso era péssimo. Nós não
podíamos abandonar os limites de Egarikena. Papai
Byron nos puniria gravemente se soubesse, mas eu
até preferia uma surra do que ver Ronan em perigo.
Pela altura do sol, nossos pais já haviam partido
pela rota dos navios em direção à Europa. Naquele
momento eu era o único que podia salvar Ronan de
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si mesmo.
O oceano aberto era assustador, sem nenhum
dos cheiros que eu estava acostumado a sentir.
Dificilmente haveria grandes perigos nas
imediações do território, eu só precisava torcer que
nenhum navio humano aparecesse.
Mas aquele não era meu dia de sorte.
Uma longa massa escura bloqueava a luz do
sol, flutuando na superfície. Era um barco de
tamanho considerável e não parecia arrastar
tarrafas, nem nada perigoso.
Ronan também percebeu a embarcação e
desviou seu nado reto para cima, à toda velocidade.
Eu gritei que ele parasse, mas ele saltou para fora
d’água e não voltou.
Aquilo só podia ser uma piada.
Revoltado e com sincera preocupação, eu tomei

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impulso no fundo do mar e disparei para cima, bem


ao lado do casco do navio.
O que raios eu estava fazendo, invadindo um
navio?? Eu não fazia ideia, apenas recuperei as
pernas o mais cedo possível e pousei nas tábuas
molhadas da proa, já cercado pelo som de gritos e
correria.
Minhas pernas tremiam pela adrenalina, mas ei,
consegui não me arrebentar no chão, nem
escorregar e cair diretamente nas turbinas. Eu teria
comemorado meu feito acrobático, mas precisava
controlar uma situação absurda.
Tripulantes corriam por todas as direções, como
baratas sem cabeça. Eles gritavam em pânico,
alguns destravando os botes salva-vidas e outros
jogando-se diretamente no mar. No centro de todos
os gritos, havia também os rugidos e risadas de
alguém bem conhecido.

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Com um bastão nas mãos, Ronan eriçava os


dentes afiados de sua forma feral e tentava golpear
os humanos aterrorizados.
“Fujam! Fujam, humanos inferiores! Tremam
perante o meu poder!” Ronan rugia e gargalhava,
adorando causar o caos naquele simples navio
cargueiro.
Eu bufei. Ronan precisava aprender a
descarregar a raiva de forma mais saudável.
“Já chega, Ronan. Você já fez o seu
showzinho.” Eu desviei de um humano que quase
me atropelou antes de se jogar na água. “Vamos pra
casa, vai acabar machucando alguém.”
“Olha a cara deles.” Ronan gargalhou. “Relaxa,
Madhun. Se contarem a alguém vão pensar que foi
alucinação, ou sei lá. Humanos são estúpidos.”
“Humanos não são estúpidos. Seu pai Shane é
humano. E eu sou meio-humano, também.”
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“Exatamente.”
Todos os humanos abandonaram o navio,
aterrorizados pelos dentes e pupilas afiadas de
Ronan. Um último demorou a criar coragem de
saltar, e Ronan presenteou sua covardia atirando os
pinos de bomba no chão. Eram apenas espoletas,
mas o estouro foi o bastante para abrir um buraco
no deque e evacuar o navio por completo.
Eu me debrucei no parapeito, assistindo os
barcos salva-vidas remarem para a distância.
“Nossa, você é muito babaca.” Falei.
Ronan debruçou-se ao meu lado, ainda rindo.
“Foi engraçado.”
“Não, não foi, Ronan! Alguém podia ter se
machucado, ou se afogado! Entendo que esteja
triste, mas você não pode… o que está fazendo?”
Novamente eu não existia. Ronan já havia me

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abandonado para investigar os contêineres. Eu


sabia que era inútil mandá-lo parar, então apenas o
assisti morder e arrebentar os cadeados.
“Aposto que tem tesouros aqui.”
“Ronan, não.”
“Tesouros inestimáveis.”
Sei lá o que Ronan esperava encontrar, mas
assim que ele escancarou as portas uma chuva de
batatas o soterrou completamente.
Ok, eu precisava admitir, aquilo foi engraçado,
sim.
“Quer ajuda aí?” Perguntei, segurando uma
gargalhada.
Ele arremessou uma batata e eu desviei fácil,
evitando que acertasse a minha cabeça.
Todo atrapalhado e bagunçado, Ronan escavou
seu caminho para a liberdade e jogou o cabelo
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bagunçado para trás. Ele pegou uma das batatas e a


admirou, como nunca tivesse visto uma antes.
“Maravilhosos, estes seus tesouros.” Eu
balancei as pernas no parapeito do barco, me
divertindo.
“Não são maravilhosos… mas podem ser
úteis.” Ele me devolveu o mesmo olhar de
sarcasmo.
Então o idiota abocanhou a batata e mastigou,
transformando meu breve bom-humor em pânico.
“Você é louco, Ronan? Cospe isso!!” Eu corri,
me joguei sobre ele e forcei as mãos em sua
mandíbula, mas ele já havia engolido. Eu arregalei
meus olhos em terror.
Ronan me afastou dele e bateu sua canga
molhada, livrando-se dos farelos e poeira. O sorriso
permanecia em seus lábios.

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“Podem esconder minhas origens, mas tem uma


coisa que posso descobrir sozinho.” Ele lambeu os
lábios e admirou a marca de dentes na batata. “Se
eu for um tritão sangue-puro, cairei morto aqui e
agora.”
Eu me apoiei na parede do container,
estremecendo em profundo horror. Embora alguns
híbridos, como eu, tivessem resistência total a
alimentos da terra firme, todos os tritões sangue-
puro eram alérgicos a eles. E batatas cresciam
embaixo da terra, eram extremamente venenosas.
Ronan passeou pelo barco, analisando os outros
contêineres fechados e chutando as lascas de
madeira que voaram no estouro das espoletas. Meu
coração acelerava mais a cada segundo, como se o
tempo passasse em câmera lenta.
Após pouco tempo Ronan virou para mim,
jogou a batata no mar e começou a rir.

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“É, parece que sou um híbrido, afinal. Pela sua


cara de baiacu eu pensei que…”
As palavras de Ronan foram cortadas por uma
tosse engasgada. Ele caiu de joelhos e cobriu a
boca com as mãos, então filetes de sangue
escorreram do nariz e inundaram seus dedos.
“Ronan!!” Eu ajoelhei ao seu lado e ele cedeu
no meu colo. “Ronan! Ah, pelos oceanos, o que eu
faço??”
A respiração de Ronan acelerou e os lábios se
azularam. Em pânico, eu meti os dedos em sua
garganta e curvei Ronan para baixo. Forçando-o a
vomitar.
Ronan esvaziou o estômago no chão molhado
do navio e continuou amolecido e fraco, respirando
esquisito.
O que mais eu poderia fazer? O chamado não
curava envenenamento, muitos tritões já haviam
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morrido desta forma.


Antes que eu surtasse de vez, a respiração do
Ronan voltou ao normal e seus lábios recuperaram
o tom rosa-pálido de sempre.
“É… isto responde muitas perguntas
importantes.” Disse ele.
Eu comecei a chorar e o abracei apertado.
“Você é um idiota. Arriscou a vida para
descobrir se era um híbrido??” Solucei.
Ronan soltou-se de mim com rispidez e se
levantou. Ele limpou o sangue do nariz com as
costas da mão.
“Uma única mordida não mataria alguém do
meu porte físico, e meu sangue puro não foi a única
descoberta importante.” Ele baixou o olhar para
mim, com frieza. “Você sabia que eu iria me
envenenar.”

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Eu engoli seco, com suor frio descendo pela


espinha. O pânico de antes ainda amolecia meu
corpo e nublava minha capacidade de improviso.
“Como assim, Ronan? Qualquer tritão surtaria
se visse outro comendo veneno.”
“Talvez. Mas seu olhar não era de dúvida,
Madhun, era de certeza. Se você sabe que nenhum
dos meus pais é humano, quanto preciso apostar
que conhece a identidade deles?”
Eu gaguejei, tendo arrepios pelo corpo todo.
Droga, o que seria uma boa resposta? Eu precisava
pensar rápido!
“Na verdade, eu… sim, eu já sabia que você é
um sangue-puro.” Eu me levantei, vencendo a
tremedeira nas pernas. “Mas isso não é óbvio,
Ronan? Eu posso viver semanas longe do mar sem
problemas, enquanto que você desidrata muito mais
rápido.”
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Ronan arqueou uma sobrancelha e guardou as


mãos nos bolsos da canga.
“Nunca reparei nisso.”
Eu suspirei aliviado.
“Isso porque você só repara em si mesmo.
Podemos por favor ir para casa? Aqueles humanos
uma hora vão voltar.”
Ronan concordou e subiu no parapeito do
barco.
“Pode ir na frente, vou comer alguma coisa
qualquer. Duvido que tenha sobrado algo do peixe
assado de ontem.” Disse ele.
“Não seja cabeça dura, Ronan. Quando deixei
de lhe preparar o jantar, durante as viagens dos
nossos pais?” Eu subi no parapeito com ele e juntos
nós saltamos, nossas pernas dissolvendo-se em
longas caudas, uma azul e outra vermelha. “Por

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favor, tente caçar algo que alimente uns… seis


tritões.”
“O ensaio te deixou tão faminto assim? Shane e
Byron já devem ter viajado, caso tenha esquecido.”
“Eu sei, é só que não pretendo jantar em casa.”
Meu rosto aqueceu um pouco.
Ronan me olhou com certa desconfiança. Por
que eu me sentia culpado? Era apenas um jantar
casual com um amigo, e seria grosseiro aparecer de
mãos vazias.
“Como desejar, senhor futuro chef do palácio.”
Ele tirou algo do bolso. “Este seu pretendente gosta
de purê de batatas, como você?”
“Não tenho nenhum pretendente!!” Meu rosto
aqueceu muito. “E por que trouxe essas porcarias?
Não quero ver batatas pelo resto da vida, depois
daquela loucura!”

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“Com quem você pretende jantar?”


“Não é da sua conta!” Eu bufei, envergonhado e
com raiva. Por que a culpa não ia embora?
“Apareça com algum peixe antes do sol se pôr, não
quero me atrasar.”
Ronan concordou e nós seguimos cada um para
o lado. Assim que me vi livre dele eu mesmo quis
invadir um navio e quebrar tudo, fervendo de tanta
raiva.
Quando eu conseguiria entender aquele cara?
Ronan me ignorava, xingava, destratava meus
amigos, e era grosseiro, hostil, cínico e possessivo.
Mas… ah, droga. Será que eu deveria cancelar
o jantar? E se Ronan chorasse de novo? Ele ficaria
tão triste jantando sozinho.
Não, eu não podia deixá-lo controlar minha
vida ainda mais. Não quando minha rotina envolvia
segui-lo e protegê-lo o tempo todo. E além do mais,
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haveria muito tempo livre para passar com ele


agora que não haviam os ensaios ou o serviço na
peixaria. Apenas eu e Ronan, ambos prestes a
despertar, com a casa todinha pra gente…
Meu rosto ferveu como o sol e eu ri
travessamente. Eu precisava controlar minha
imaginação.
Recuperando meu bom humor, eu me apressei
de volta à ilha para comprar temperos no mercado.
Mas claro que Ronan não apareceu com o maldito
peixe. Precisei ir ao jantar de mãos abanando, mas
eu sabia que Sebasten não iria se aborrecer.

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Capítulo 09

Roseiras, tulipas, azaleias… o jardim da casa do


Sebasten era um dos mais lindos de Egarikena.
Dezenas de plantas exóticas e arbustos florais
coloriam o caminho nas mil cores do arco-íris.
Nada mal, considerando-se que a casa ficava aos
fundos da floricultura da família, que àquela hora
da noite já estava fechada.
Um arrepio desceu minha espinha quando bati
na porta. Eu já conhecia os pais do Sebasten, mas
aquela era minha primeira visita a eles. O fato de
tio Jensen ser irmão do papai Byron não somava
tantos pontos ao meu favor, visto que eles não se
falavam muito, e de qualquer forma a maioria dos
habitantes de Egarikena dividia algum grau de
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parentesco.
Foi justamente o tio Jensen quem abriu a porta.
Ele pareceu tão feliz quanto surpreso ao me ver.
“Oi, Madhun. Aconteceu alguma coisa?” Ele
secou as mãos num pano de prato. Seu adorável
avental estampado contrastava com o peitoral
másculo de alfa.
“Ahm… não?” Eu sorri, encabulado. “Mil
perdões pelo inconveniente, devo ter me enganado
sobre um certo convite.”
“Convite?” Tio Jensen franziu a testa.
Alguém correu pela casa e escancarou a porta,
ofegante.
“Madhun, oi!! Nossa eu… eu não pensei que…
ah, desculpa, desculpa! Eu tinha certeza que você
não viria e… ah, desculpa.”
Sebasten? Meu coração doeu ao vê-lo, seu olho

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esquerdo lembrava a cabeça de um polvo-anêmona,


de tão inchado e roxo.
Eu tentei cumprimentá-lo, mas Jensen pôs as
mãos na cintura e afinou os olhos pra ele,
repreensivo.
“Sebasten, você convidou um amigo sem me
avisar?” Perguntou Jensen.
“Não tem problema, tio Jensen. Posso voltar
outro dia, eu peço mil perdões.” Eu curvei o corpo
em uma longa reverência.
“De forma alguma, Madhun, os amigos do meu
filho são sempre bem vindos. Espero não me
envergonhar muito diante do melhor cozinheiro da
ilha.” Jensen voltou para a cozinha, esfregando a
testa em frustração. “Ai, eu não devia ter comprado
o queijo de baleia mais barato…”
Assim que tio Jensen sumiu de vista, Sebasten
mordiscou o lábio de baixo, sorrindo como um
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bobo alegre. Ele abriu caminho como um


cavalheiro e apontou em direção à sala.
“Seja bem vindo, eu… ah… estou tão feliz que
tenha vindo!” Disse ele, muito acanhado. “Aquele à
mesa de jantar é o vovô Jon. Meu pai Fran deve
chegar logo do trabalho, eu espero.”
“Oi, senhor Jon.” Eu cumprimentei o
carpinteiro da ilha, que devolveu o cumprimento
como se nunca tivesse me visto. A memória do
senhor Jon nunca foi lá essas coisas.
Sebasten ajeitou as almofadas de uma poltrona
para que eu sentasse e então sentou-se na poltrona
ao lado, muito tenso e inquieto, mas não de um
jeito esquisito. Na verdade era bem fofo.
Eu cruzei as pernas na poltrona macia e admirei
aquela casa enorme, que talvez fosse a maior de
Egarikena. Três andares com amplos jardins,
quintal com piscina, terraço… e tudo isso para
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apenas quatro moradores.


A vida de um filho de tenente parecia bem
confortável, mas dentre toda a decoração elegante
algo com certeza se destacava: Um grande e
magnífico coral-de-oráculo no centro da mesa de
jantar. Mesmo no ambiente bem iluminado o seu
brilho roubava olhares, tão dourado quanto o coral
em si. Somente um florista talentoso como Jensen
para cultivar algo tão raro e delicado em um
aquário.
Pelo chiado na cozinha acompanhado de um
aroma delicioso, tio Jensen estava fritando peixe ao
óleo de marisco. Senhor Jon ocupava-se em contar
os talheres da mesa, então eu podia conversar com
Sebasten em relativa privacidade. E ele devia
perceber isso, porque nossa, como ele estava
inquieto.
“E então. Você sempre convida seus

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pretendentes para jantar?” Perguntei, com um


sorriso implicante.
Sebasten apertou os lábios em uma linha,
avermelhando ainda mais que o vermelho de seus
cabelos.
“Não. Você é o primeiro e único.” Ele falou
baixinho, a voz sumindo.
Até eu fiquei encabulado, não esperava uma
resposta tão direta. Sebasten era novo e meio
ansioso demais, mas eu curtia tritões que sabiam o
que queriam.
Eu não deveria me esquecer da nossa diferença
de idades, um detalhe pequeno, mas que
impossibilitava nossa predestinação. Ainda assim,
olhando de perto era impossível criticar a aparência
de Sebasten. Claro que ele não era nenhuma
montanha de músculos, mas seus olhos
amendoados e verde-folha mantinham sua beleza
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apesar do hematoma no rosto, e os lábios pálidos


pareciam macios, tão rosados quanto seus mamilos.
Musculoso, nem pensar, mas Sebasten estava longe
de ser asqueroso. Ele era bonito de seu próprio
jeito.
Espera aí, no que eu estava pensando? Eu
comecei a rir sozinho, me sentindo um tonto.
“Obrigado por ter ido ao ensaio.” Falei.
Os olhos de Sebasten iridesceram em alegria.
“Gostou mesmo que eu fui? Digo, você só
convida seus amigos próximos, eu não queria ser
inconveniente.” Sebasten mordiscou o lábio de
baixo novamente, deixando-o num tom mais rosa-
carne. “Gosto de ouvi-lo tocar, você faz o Death
Cannibals brilhar de verdade.”
Tão, tão fofo. Ah, pelos oceanos. Eu era o
futuro ômega, eu quem deveria ser fofo.

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“Baixo é apenas um instrumento de suporte, a


estrela da banda é o meu pai.” Eu sorri. “Posso
ensiná-lo a tocar, uma hora dessas.”
Se Sebasten fosse um poodle, ele estaria
abanando o rabo agora. Seu sorriso ameaçava
rasgar os lados da cara.
“Sério? Sério, mesmo?” Perguntou ele. “Digo,
meu talento é cuidar das flores do papai, mas eu
faria qualquer coisa pela sua companhia, Madhun.
Quero aprender tudo o que é importante para você.”
Eu concordei, percebendo onde ele queria
chegar. A única forma de predestinar com alguém
desejado era aumentar a intimidade ao máximo, e
então contar com a benção do chamado. Isso
considerando-se tritões de idade semelhante.
Não parecia certo alimentar as ilusões absurdas
do Sebasten, mas meu ego estava meio malvado
naquela noite. Era meu primeiro cortejo, afinal.
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“Sou até que bom como baixista, mas já provou


minha lasanha de lagosta? É tão saborosa que
quando o Oráculo experimentou, não vou mentir,
ele chorou de emoção.”
“Sério? Você vai cozinhar pra mim?” Sebasten
empinou os ombros, histérico e nervoso ao mesmo
tempo. “Não posso aceitar, eu vou ser o alfa, eu
quem… quero dizer, se for seu desejo você poderá
cozinhar e preparar banquetes. Eu nunca ficaria no
caminho dos seus sonhos, Madhun. Seus sonhos
são lindos como você.”
Meu rosto aqueceu de novo. Qual o meu
problema? Sebasten era um tritão muito mais novo
atirando elogios exagerados como uma
metralhadora de breguices, com sutileza zero. Eu
deveria achar ridículo.
Talvez aceitar o convite tenha sido um erro. Até
alguns dias antes, Sebasten era apenas um pedaço

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do cenário na minha agitada vida social. Me


assustava notar a mudança em minhas opiniões,
ainda mais quando eu já havia feito a minha
escolha.
Seria crueldade continuar brincando, eu
precisava encerrar nosso joguinho o quanto antes.
“Escuta, Sebasten. A verdade é que eu…”
A porta principal abriu bruscamente e alguém
entrou, seu rosto escondido atrás de um enorme
mapa. Pelos coturnos militares e casaco verde-
musgo, logo o reconheci o tenente.
“Bem vindo de volta, amor!” Tio Jensen
apareceu da cozinha com um sorriso no rosto.
“Como foi o seu dia?”
“Não faz sentido.” Tenente Fran sentou no sofá
à nossa frente e esticou o mapa na mesinha de
centro. “A explosão ocorreu neste ponto, mas
segundo os mapas de defesa a barreira de minas
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passa por aqui, vários metros antes.”


“Papai, nós temos visita.” Disse Sebasten.
“Oi, Madhun.” Tenente Fran nem levantou o
rosto. “Alguém moveu as bombas, teria sido isso?
E se a morte do General não foi um acidente?”
Eu suei frio, mantendo minha melhor cara de
desentendido.
“Fran, podemos esquecer do trabalho só um
pouquinho?” Tio Jensen apareceu com uma
fumegante e aromática travessa de badejo assado.
“Preparei seu favorito e com os melhores temperos,
para não insultar nosso ilustre visitante.”
“Que exagero, tio Jensen.” Comentei, rindo.
Tenente Fran finalmente largou o mapa e foi
ajudar seu predestinado. Ele colocou o aquário na
cristaleira aos fundos para abrir espaço para a
comida.

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“Não é trabalho, Jensen, é a segurança da ilha


que está em jogo.” Tenente Fran sentou seu pai Jon
na cadeira da ponta, ajeitou os pratos
apressadamente, então andou em círculos pela sala.
“Não só perdemos o nosso general, como
ganhamos um rombo nas defesas da praia ao sul. É
questão de tempo até nossos inimigos se
aproveitarem.”
Tio Jensen colocou o jantar na mesa e segurou
Tenente Fran pelo cinto da farda, forçando-o a
parar. Ele afagou seu rosto com doçura e
preocupação.
“Fran, você não fala de outra coisa desde o
acidente. Descanse um pouco, vamos ter um jantar
agradável, só dessa vez.”
Tenente Fran suspirou e permitiu que Jensen o
beijasse, sem correspondê-lo. Assim que Jensen o
soltou, ele voltou para a sala e fechou o mapa em

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um tubo.
“Sirva minha porção em um pote, vou comer no
quartel enquanto analiso os outros relatórios.”
Jensen e Sebasten baixaram o olhar, doloridos e
magoados.
Tenente Fran percebeu e forçou-se a diminuir o
ritmo. Ele chegou em Sebasten e afagou seu cabelo,
mas sua atenção era em mim.
“Madhun, sabe quem pode ter machucado meu
filho?” Perguntou o tenente.
“Que?” Perguntei, surpreso.
“Pai, não precisa…” Sebasten afastou a cabeça,
encabulado.
“Como não precisa? É inaceitável que deixe
outros garotos te machucarem, vou apostar que
nem tentou se defender.” Disse o tenente.
“Eu já disse que foi um acidente, eu caí de uma
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árvore.”
“E desde quando você sobe em árvores?”
Tenente Fran afinou os olhos, mas a expressão
repreensiva no olhar do Jensen o forçou a relaxar o
corpo e a voz. “Você poderia, por favor, retornar
aos treinamentos? Não precisa se alistar, meu
filhote, mas os exercícios dos soldados podem
ajudar com...”
Sebasten se levantou e encarou o pai,
enraivecido.
“Com o que, pai? Com o meu corpo? Nenhum
alfa precisa de exercícios pra ganhar músculos, eu
nasci para ser assim! É como eu sou!”
“Então me diga quem bateu em você.” Disse o
Tenente.
Eu e Sebasten trocamos olhares silenciosos.
Jensen tocou o ombro do Tenente, chamando

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sua atenção. Ele lhe entregou um pote de plástico.


“Tente voltar pra casa antes do sol renascer.
Estou preocupado, Fran. Você pelo menos dorme
nos quartéis?”
“Não é como se eu pudesse comprar minas
navais em um supermercado dos humanos, Jensen.
Quer que eu durma enquanto o inimigo planeja nos
destruir? Um inimigo que nos conhece, mas sobre o
qual não conhecemos quase nada? E tem mais, a
morte daquele filhote Amalona não foi
coincidência, os selkies planejam alguma coisa!”
Eu não compreendia nada daquele assunto nem
sabia como aliviar o clima, mas precisava tentar.
“E se o senhor aprimorasse os armamentos dos
soldados? Se trocar os tridentes por, sei lá, rifles, a
população ficaria mais segura, não é?” Falei,
temendo passar por ignorante.
“O que raios é um rifle? Aliás, não tenho tempo
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pra isso.” Tenente Fran se apressou até a porta. “Se


houver qualquer atividade suspeita nas imediações
eu quero ser avisado, entendido?”
Jensen murchou os ombros, deprimido.
Tenente Fran não aguardou resposta. Ele apenas
beijou a testa do tio Jensen, acenou para nós e foi
embora, fechando a porta ao sair.
Pobre tio Jensen. Ele parecia tão prestes a
quebrar.
“É, parece que hoje somos nós quatro, rapazes.”
Ele forçou um sorriso para nós e puxou uma
cadeira. “Venham, vamos comer antes que esfrie.”
Eu e Sebasten também nos esforçamos para
sorrir e sentamos com tio Jensen e o senhor Jon.
Apesar do breve conflito, logo o clima aliviou e
nós tivemos um agradável jantar. Os temores
culinários do tio Jensen se mostraram totalmente

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infundados, porque o peixe estava no ponto ideal, e


o molho de queijo-de-baleia foi um dos melhores
que já provei. Tio Jensen se empolgou muito
quando lhe pedi a receita.
Mesmo entre as conversas e risadas, havia um
peso no olhar de Sebasten que não se dissipava.
Seria rude pressioná-lo diante de sua família, então
esperei com paciência que o jantar terminasse e os
adultos se recolhessem para continuar nossa
conversa.

****

Eu provei o café que Sebasten havia me


oferecido e tive uma agradável surpresa. Tão
quentinho e delicioso. Café era uma raridade em
Egarikena, eu havia me esquecido totalmente que
Tenente Fran era um híbrido como eu.
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Servido de um copo de água salina, Sebasten


considerou sentar na poltrona, mas optou por sentar
ao meu lado, no sofá.
“Desculpa por antes.” Ele me disse, cabisbaixo.
“Pelo meu pai Fran, eu quero dizer.”
“Obrigado por não dedurar o Ronan. Ele já tem
problemas o suficiente.” Eu inclinei o corpo,
tentando encontrar nossos olhares. “E sinto muito
por não tê-lo ajudado durante a briga.”
“Não sinta. Sou grato que não tenha se
envolvido, teria sido… ainda mais humilhante.”
Eu bebi o café lentamente e espiei na direção
dos quartos. Pelo silêncio, os adultos já estavam
dormindo.
“Seu pai ômega sempre foi assim?”
Sebasten concordou com a cabeça.
“Você já deve ter ouvido os comentários por aí,

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sobre meu pai ter um único filho. Quer dizer,


ninguém mais comenta agora que ele é tenente, mas
adultos são cruéis uns com os outros, mais do que
os filhotes…”
“Que problema tem, você ser filho único?” Eu
dei de ombros, indignado “Adultos precisam se
meter menos nas escolhas dos outros.”
“Não foi uma escolha. Eu quase tive um
irmão.” Sebasten baixou a voz. “Eu não deveria
contar isso…”
“Tenente Fran engravidou uma segunda vez?”
Perguntei.
“Faz muito tempo, eu ainda era um bebê.
Naquela época ele se alistou no exército, por
motivos que nunca entendi direito. E ele se
esforçou muito, muito mesmo. Ele queria ser o
melhor dos soldados.”
Eu expandi meus olhos, em choque.
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“Ele perdeu o bebê.”


Sebasten concordou com a cabeça.
“Papai Jensen nunca o condenou por isso, não
foi de propósito, mas acho que o papai Fran se
sente culpado.”
“Nossa, Sebasten. Eu sinto muito.”
Sebasten coçou o rosto, disfarçando para secar
uma lágrima, ele sorriu para mim com suave
amargura.
“Se o papai Fran tivesse dez filhos, pelo menos
um deles gostaria de treinamentos, e disciplina, e
combates de tridente. Mas ele só tem a mim. Eu
não consigo ser dez ao mesmo tempo.”
Eu descansei a mão no joelho do Sebasten.
“O Tenente não deseja que você seja dez filhos
em um, Sebasten. Ele não se preocuparia se não te
amasse muito.”

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Sebasten concordou com a cabeça, ainda triste.


Ele ergueu o olhar para a mesa de jantar, já limpa e
arrumada. O coral-de-oráculo cintilava seu brilho
dourado e místico, refletindo ondas de luz pelas
paredes da sala.
“Sabe o que dizem sobre corais-do-oráculo?”
Perguntou Sebasten. “Se você preparar um chá e
beber com o seu pretendente, os dois despertarão
juntos e serão predestinados um do outro.”
Eu torci o lábio. Para alguém tão tímido, o
garoto era persistente demais.
“Sabe o que mais dizem? Que o chá é
extremamente tóxico para filhotes jovens demais.”
Eu disse.
“Tenho dezessete anos e meio!” Sebasten
resmungou, e então bravamente colocou a mão
sobre a minha. Seus dedos eram maiores que os
meus, e também quentes e firmes. “Estou disposto
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a correr o risco, Madhun. Não entendo o que é este


amor que os adultos falam, mas é um sentimento
que quero descobrir junto de você.”
Meu coração acelerou. Eu encarei o olhar
determinado do Sebasten e engoli seco, paralisado
pela tensão no ambiente e pela raiva do que eu
estava prestes a lhe dizer.
Droga, por que Sebasten precisava ser tão
teimoso?
“Escuta, Sebasten…” Eu respirei fundo e
segurei sua mão entre as minhas. “Não quero que
arrisque sua vida para ficar comigo.” Eu me
estapeei mentalmente, precisava ser sincero de
verdade. “Não apenas isso. A verdade é que não…
ahm… como explicar…”
Sebasten recolheu a mão. Suas íris verdes
tremularam com lágrimas e ele desviou o olhar
antes que eu visse.
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“O que ele tem de melhor? Os músculos? A


atitude? Porque eu nunca caminharia na sua frente,
Madhun, nem gritaria, nem te humilharia em
público.” Ele soluçou. “Não sou o quase-alfa dos
sonhos de ninguém, mas você seria o meu tesouro.
Eu enfrentaria exércitos e destruiria impérios para
te fazer feliz.”
Meu coração bombeou amargo e eu segurei
com força as minhas lágrimas. Não era meu direito
chorar, eu era um completo idiota.
“Perdão.” Falei.
“Tudo bem… eu precisava tentar.” Sebasten
secou os olhos nas mãos e se levantou. “Você quer
mais um café?”
“Não. É melhor eu ir.” Eu também me levantei
e Sebasten me acompanhou até a porta. “Peço
desculpas novamente.”
“Não se desculpe. Ainda estou feliz que tenha
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vindo.” Ele sorriu para mim com a expressão mais


triste e devastada que já vi em outro tritão. “Eu lhe
desejo a melhor vida do mundo, Madhun.”
Eu inclinei meu corpo em cumprimento.
“Também lhe desejo a melhor vida do mundo,
Sebasten. E que consiga um predestinado melhor
que eu.”
“Isto seria impossível.” Ele suspirou. “Adeus.”
“Adeus, Sebasten.”
Sebasten fechou a porta e eu segui sozinho
pelas ruas silenciosas da noite. A cada passo meu
coração pesou mais e mais, até que precisei sentar
em um banco e chorar.
Papai Shane enganou-se sobre mim. Eu não
valia ouro. Eu valia menos do que nada.

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Capítulo 10

Voltei para casa com o coração dolorido, me


sentindo o pior dos canalhas. Eu mal conhecia
Sebastian, mas odiava imaginá-lo chorando por
culpa minha. Se pelo menos eu tivesse o rejeitado
logo no começo, deixado claro suas chances
inexistentes…
Ai, como eu detestava magoar os outros. Se
papai Shane soubesse o que fiz ele certamente me
repreenderia.
E para completar meu baixo astral, assim que
fechei a porta de entrada avistei Ronan jogado no
sofá, quase pelado e com uma frigideira na barriga,
de onde ele comia alguma coisa enquanto lia um
livro.
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Eu pensava que Ronan não sabia cozinhar, e


pelo fedor de queimado na casa toda eu não estava
errado.
Já me preparando para o pior eu fui verificar a
pia da cozinha, ou tentar vê-la sobre a torre de
louça suja que ocupava os balcões e o fogão. Havia
até pratos quebrados entre os móveis e gordura
respingada nas paredes. Como alguém causava
tanta destruição cozinhando para si mesmo?
“Ficou gostoso o seu jantar?” Eu cruzei os
braços para Ronan, que até então havia ignorado
minha presença. “Eu disse que cozinharia esta
noite.”
“Quando cheguei você tinha sumido. Eu me
virei.” Ronan raspou o garfo e pescou um último
pedaço de peixe. Havia algo estranho naquela cena,
e quando notei o meu sangue ferveu.
“Esta é frigideira de cerâmica antiaderente que
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eu ganhei do papai Shane?” Eu corri até ele e a


arranquei de suas mãos. “Ah, tá toda riscada! Qual
é o seu problema, Ronan?”
Ronan deu de ombros e sentou-se no sofá, se
espreguiçando.
“Eu não tenho problema algum.” Ele bocejou,
jogou seu livro entre as almofadas e levantou para
subir aos quartos.
“Ah, claro, Ronan. Você machuca meus
amigos, nos coloca em perigo, estraga minhas
coisas, mas você é super normal!” Eu bati o pé no
chão. “Sabe o que você é, de verdade? Um
completo egocêntrico!”
Já no meio da escada, Ronan arqueou uma
sobrancelha para mim, por cima do ombro.
“Pelo menos não sou cruel com o sentimento
dos outros.” Ele disse, com desprezo.

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Eu estremeci, igualmente enraivecido e


surpreso.
“Você ouviu minha conversa com Sebasten?”
Perguntei.
“Que Sebasten? Ah, então seu encontro era com
o ruivo asqueroso.” Ronan debruçou-se no
corrimão, exalando desprezo total em seu olhar
vermelho-rubi. “Te seguir pela noite é o último dos
meus interesses, Madhun. Estou falando do que me
disse no navio.”
Eu esfreguei atrás do pescoço, vasculhando as
minhas memórias. Lidar com Ronan era tão
cansativo e confuso. E ainda assim… ah, que raiva!
“Está bravo porque falei que você só pensa em
si mesmo?” Perguntei, e quando percebi no olhar
do Ronan que eu havia acertado, foi impossível
segurar uma risada de frustração. “Sério, Ronan?
Qual comida eu prefiro? Ou meu lugar favorito? A
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cor que eu mais gosto? Meus sonhos, talvez?”


Ronan revirou os olhos e continuou subindo as
escadas.
“Você é um cretino.” Ele me disse.
“Não, você quem é!” Gritei de volta. “E você
sabe disso e não dá a mínima!”
Já na porta do quarto, Ronan bufou e afinou os
olhos na minha direção.
“Pizza de bacon, o telhado da casa, azul e ser
um chef famoso.” Disse ele, então bateu a porta do
quarto.
Eu petrifiquei, meu coração batendo ainda mais
dolorido e vazio.
Que seja. Ronan era um poço de mistérios que
enlouquecia todo mundo. Talvez eu tenha errado
dessa vez, mas Ronan errava com todo mundo o
tempo todo! E que exagero havia em chamá-lo de

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egocêntrico? Eu fiquei longe durante poucas horas


e ele destruiu a casa!
Minha vontade era de quebrar uma cadeira na
parede. Nunca senti tanta raiva, a ponto de querer
gritar. E a pior parte era saber a origem das minhas
frustrações.
Sebasten estava certo sobre Ronan. Ele não
disse nenhuma novidade, e ainda assim meu
coração ardia só de imaginar uma vida sem o meu
irmão adotivo. Sebasten era legal, mas Ronan era
Ronan, e eu era um imbecil.
Um zunido ecoou na mesa de jantar. Era o meu
celular, em meio ao apocalipse de pratos e panelas
sujas.
Eu limpei uma tripa de peixe sobre a tela e
atendi. Era uma chamada de vídeo do papai Shane.
A ligação demorou a pegar, mas aos poucos o
chuvisco ganhou nitidez e revelou alguém
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inesperado. Era papai Byron do outro lado da linha.


Pelos postes de luz e casinhas distantes, ele estava
em algum tipo de vilarejo humano.
“Oi, papai. Como está a viagem?” Eu sentei no
sofá, buscando me acalmar.
“Divertida. Paramos em uma ilha para abastecer
e Yun descobriu que livrarias existem. Ele tentou
roubar todos os livros da loja até Shane explicar
como dinheiro funciona, então ele ofereceu um
broche de diamante ao vendedor. Agora tem pilhas
de livros por todo o veleiro. Vamos torcer que não
afunde.” Papai Byron enfim notou meu olhar, então
desmanchou seu riso. “Está tudo bem? Esperava
vê-lo mais animado.”
Eu queria dizer que sim, mas assim que tentei
os meus lábios tremeram e lágrimas escaparam dos
meus olhos.
“Pai, eu sou um tritão cruel por magoar os
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outros?” Perguntei, esfregando o rosto molhado.


“Cruel? Você?” Papai Byron começou a rir de
novo. “Impossível, filhote. Isso tem algo a ver com
seu despertar?”
Eu concordei com a cabeça, me sentindo
estúpido e angustiado.
“Não faz sentido desejar o que eu desejo, e eu
sei disso, mas já aceitei a decisão do meu coração.”
Eu solucei, devastado. “Apesar de tudo, não quero
ser feliz se isso causar tristeza nos outros.”
Papai Byron murchou o lábio e olhou para os
lados. Ele se afastou até um ponto mais silencioso.
“Vou adivinhar que alguém foi cortejado
recentemente.” Papai Byron notou minha reação
surpresa sorriu de novo. “Sabe, Madhun, nosso
coração às vezes encontra conforto onde deveria ser
mais improvável. Às vezes magoar outra pessoa é o
melhor que você pode fazer por ela.”
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“Como assim?” Eu perguntei.


“Porque assim como o seu coração, o coração
de todo mundo é uma bagunça. Insistir em um
amor impossível, após certo tempo, dói mil vezes
mais que qualquer verdade.” Disse ele. “Você é um
bom garoto, filho, nunca machucaria ninguém por
maldade. O que me leva ao assunto que preciso
tratar com você.”
“Qual assunto?” Perguntei.
A alegria do papai Byron desmanchou um
pouco. Ele continuava feliz, apenas meio…
constrangido. Ele espiou para trás antes de
continuar falando, em tom mais baixo.
“Preste atenção, Madhun. Você já viajou o
mundo, sabe o quanto diferentes culturas podem ser
contrastantes. Existem coisas que tritões
consideram apenas um pouco estranhas… e que
humanos consideram completamente inaceitáveis.”
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Eu bufei e revirei os olhos, sentindo a irritação


voltar.
“Pai! Você prometeu conversar com o papai
Shane sobre isso!” Resmunguei, indignado.
“Eu sei, eu sei!” Papai Byron abanou a mão na
câmera para que eu baixasse a voz. “Vou conversar
apenas se for necessário, então me mantenha
informado. Só não quero que o Shane volte para
casa e encontre os dois filhos trepando na mesa de
jantar.”
“Não se preocupe, a cama do Ronan será mais
confortável.” Eu sorri com o canto da boca,
fazendo papai Byron rir. Mas eu mesmo não estava
no auge do bom humor. “Obrigado pelo apoio,
papai.”
“É uma escolha difícil de aceitar, mas você
sempre pode contar comigo, meu filhote.” Disse o
papai Byron, e então papai Shane chamou por ele
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ao longe. “Precisamos seguir viagem, agora. Ronan


é a origem dos meus fios brancos, mas acredito que
exista um bom alfa naquele coraçãozinho
revoltado. Rezarei que o chamado atenda seu
desejo.”
“Sou eternamente grato.” Eu sorri a ele, então
encerramos a ligação.
Mergulhado no silêncio da casa, eu relaxei as
costas nas almofadas do sofá e suspirei, com o
olhar no teto.
Um bom alfa… Pela estrutura física, Ronan
com certeza era o topo do topo entre os melhores
pretendentes. Será que eu era tão fútil a ponto de
ligar apenas para aparências? Para mim Ronan
sempre foi mais que alguém forte e capaz de
proteger e prover ao seu futuro núcleo. Sua beleza
era como uma muralha a esconder mistérios
igualmente belos. Mistérios que apenas o dono de

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seu coração poderia descobrir, desvendar e amar.


Ai, ai… mas como garantir que o dono de seu
coração seria eu?
Eu derreti no sofá, ainda mais frustrado, então
algo duro arranhou minhas costas.
Aborrecido, eu peguei aquela coisa entre as
almofadas e percebi que era o livro que Ronan
estava lendo. Não parecia as histórias de terror que
ele tanto gostava.
“Culinária para iniciantes - Impressionando
seu parceiro sem destruir a casa.” Eu li o título em
voz alta, perplexo. Eu meio que lembrava desse
livro. Papai Byron presenteou o papai Shane
quando ele tentou flambar camarões e incendiou o
teto da cozinha.
Com uma sensação amarga no estômago, eu
voltei para a cozinha e prestei mais atenção. Pratos
quebrados, talheres caídos pelo chão… tudo em
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pares. Em uma das panelas havia um troço amarelo


no centro e carbonizado ao redor. Eu deslizei o
dedo e provei, confirmando que era purê de batatas.
E cozido com manteiga e pimenta, do jeito que eu
mais gostava.
Eu realmente era um perfeito cretino.
“Ronan?” Eu subi as escadas e abri a porta do
quarto.
Ronan estava deitado de costas para mim,
encolhido como se estivesse dormindo.
Eu sentei ao seu lado, com o olhar nos meus
joelhos.
“Desculpa por antes. Você… aquilo tudo…
você estava tentando cozinhar para mim?”
Por um tempo Ronan não respondeu. Talvez
estivesse mesmo dormindo.
“Até parece, você mesmo disse que jantaria

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fora.” Ele disse. “Só tentei descobrir o que havia de


tão interessante em esquentar comida e é estúpido.
Tocar música, cozinhar… seus hobbies são bobos e
sem sentido.”
“Desculpa.” Eu toquei seu ombro, e Ronan
prontamente se encolheu longe do meu alcance.
“Seu purê de batatas, ahm… passou um pouquinho
do ponto, mas posso ensiná-lo a maneira certa, da
próxima vez.”
“Próxima vez? Que próxima vez? Foi só uma
bobagem, prefiro comer peixe cru como um tritão
normal.” Ronan virou-se na cama para me olhar
nos olhos. “Não sou como você, Madhun. Não
tenho talento para nada, só atraio gente interessada
no meu corpo e nada mais. Todos ou me cobiçam,
ou me odeiam, ou me temem.”
“Gosto de tudo o que você é, Ronan.” Eu sorri a
ele, encabulado. “Nunca imaginei que o jeito dos

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outros te aborrecesse tanto”


“Ah, claro, por que me aborrecer com o
escárnio de uma ilha inteira? Dos meus próprios
avós?” Ele sorriu, cínico.
“Vovô Hian nunca te desprezou, Ronan.”
Respondi, hesitante e incerto. Eu não compreendia
nem os sentimentos do vovô Arian, de quem eu era
muito mais próximo. Por mais dolorosa que fosse a
realidade, era bem possível que Ronan estivesse
certo.
“Você é um péssimo mentiroso, Madhun.”
Ronan suspirou, com o olhar na luminária do teto.
“Vá dormir. Não tô a fim de mais mentiras.”
“Não é mentira. Digo, não precisa ser!” Falei.
Era um simples improviso, mas recuperei a atenção
do Ronan. “Ainda podemos mudar a opinião do
Oráculo. Me ajude a preparar o jantar dele, amanhã.
Cozinharemos algo super especial, com certeza ele
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vai adorar e agradecer seu esforço!”


“Não consigo nem fritar um peixe, Madhun.”
Ronan afinou os olhos.
“Por isso faremos tudo juntos. Caçaremos um
peixe legal, você pode usar sua força para moer os
temperos, vai ficar uma delícia!” Eu alarguei meu
sorriso, cada vez mais empolgado. “O que acha?
Isso pode dar certo!”
Ronan inflou as bochechas, querendo
evidenciar seu profundo incômodo em lidar
comigo. Então ele bufou e virou-se para o canto
novamente.
“Que seja.”
Eu me inclinei sobre ele e beijei seu rosto,
causando um grunhido de revolta.
“Vai ser divertidíssimo, Ronan.” Eu corri à
porta, já fazendo mil planos de cardápio na minha

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mente. “Sairemos na primeira hora de sol para


nossa caçada. Eu mal posso esperar!”
Ronan grunhiu alguma coisa qualquer e fingiu
adormecer.
Contagiado por uma felicidade ainda maior, eu
tomei uma chuveirada rápida e fui dormir, me
aninhando sob os lençóis macios da minha cama.
Era verdade que eu sonhava em me tornar um
chef, mas o meu maior sonho Ronan talvez nem
desconfiasse. E preparando o jantar na companhia
dele meus sonhos andariam um passo mais
próximos da realidade.

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Capítulo 11

Eu mal podia acreditar. Ronan e eu, caçando


juntinhos nos recifes de Egarikena. Seu olhar
compenetrado era lindo de se admirar, assim como
sua espessa cauda de alfa, que remava com vigor
entre os corais multicoloridos.
Ronan detestava companhia e sempre que
possível escapava das refeições em casa, então eu
previa que ele fosse um bom caçador, ou já teria
morrido de fome.
Ele ficaria bravo se eu o corrigisse, mas eu
começava a estranhar os rumos da nossa caçada.
Ronan concordou em preparar lula assada para o
Oráculo, mas apenas peixinhos e camarões
habitavam aquela parte do recife. Talvez seu olfato
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não fosse bom como o meu, mas vê-lo tão


concentrado em alguma coisa era fascinante, então
deixei que vasculhasse as pedras em busca de
ingredientes até minha paciência acabar.
“Ronan, não estou duvidando da sua
capacidade, mas…” Eu mordisquei o lábio,
escolhendo bem as palavras. “Talvez seja melhor
caçar lulas no mar aberto.”
“Não estamos caçando uma lula qualquer.”
Ronan enfiou-se em um túnel estreito e escapou
pelo lado oposto. “Aquele velho vai preferir uma
lula gigante.”
“Não existem mais lulas gigantes, Ronan.” Eu
cocei atrás da cabeça, me perguntando como
escapar daquela situação sem magoá-lo. “Camarões
são legais, também. Podemos pegar alguns, já que
estamos aqui.”
“À vontade.” Disse ele, sem diminuir sua
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concentração.
Ai, ai… um passo de cada vez. Eu já me sentia
extremamente grato por caçar com Ronan, não
podia exigir demais.
Abandonando Ronan em sua ilógica busca por
lulas gigantes, eu peguei meu cesto de caça e
contornei o recife. Em último caso, uma salada de
camarões seria um excelente plano B. Eu poderia
capturar muitos enquanto Ronan não desistisse.
Animado pela minha ótima ideia, eu movi as
guelras e concentrei meu olfato, buscando o aroma
camarões em meio a tantos outros cheiros.
O que farejei, porém, era muito diferente de
camarões. Um arrepio percorreu minha cauda e eu
ergui o olhar bruscamente.
Nada. Apenas corais, anêmonas e água
cristalina até onde a vista alcançava, além de
algumas bombas distantes. Ronan insistiu em caçar
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nos limites do território, e minha empolgação foi


tanta que concordei com aquela péssima ideia.
Talvez fosse paranoia minha, mas tive certeza
que senti um cheiro familiar e ainda assim
desconhecido. Talvez fosse Ronan implicando
comigo. Sim, com certeza Ronan contornou o
recife para me dar um susto, como se não
conhecesse o meu olfato apurado.
“Eu achei.” Disse uma voz atrás de mim.
O susto eriçou minhas escamas. Eu virei para
trás num salto nervoso, então vi Ronan. Em seus
braços ele segurava uma enorme lula branca, que se
debatia à beira da morte.
“Nossa, olha o tamanho dessa coisa.” Eu sorri,
segurando meu peito acelerado. “É a maior lula que
eu já vi.”
“Para um cozinheiro, seu olfato é bem ruim.”
Ele sorriu, arrogante. “Talvez eu devesse ser o
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caçador, de agora em diante.”


“Isso seria incrível!” Eu peguei a lula e soquei
dentro do cesto, lutando para que coubesse. Para
alguém que pensava não ter talentos, Ronan
impressionava bastante quando queria.
Eu não esperava terminar a caçada tão cedo da
manhã. Sobraria tempo para marinar a carne e
misturar temperos frescos, e só de imaginar Ronan
me ajudando eu tinha arrepios de alegria.
Quando fiz dezessete anos senti as esperanças
se esgotarem, mas naquele instante, tão perto do
nosso despertar, Ronan crescia nossa intimidade
como nunca antes. Havia tanta química entre nós,
era impossível que o chamado não nos premiasse
com uma união e muitos filhotes.
Com algum esforço eu consegui fechar o cesto.
Eu o ergui para mostrar ao Ronan, super orgulhoso,
mas então notei que ele olhava adiante, seus olhos
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vermelhos cintilando em espanto.


Eu olhei na mesma direção, e o meu sangue
esfriou como gelo. Não estávamos sozinhos.
Alguém nadou na nossa direção, e o cheiro que
eu senti antes inundou minhas traqueias.
Era uma sereia, magrinha e acinturada como as
sereias de Egarikena, mas aquela era diferente.
Longos cabelos brancos, apesar do rosto de uns
vinte anos, e uma cauda vermelha diferente de
tudo. Não haviam escamas e a ponta era curva e
enrugada, como a cauda de uma foca.
Ronan nadou entre nós dois, defensivo.
“Quem é você?” Ronan estremeceu. “Por que
você tem o meu cheiro?”
A sereia sorriu e aproximou-se de nós, sem
nenhum temor. Se o cabelo e a cauda não deixavam
dúvidas, o vermelho em seus olhos era a

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confirmação final. Aquela não era uma sereia


comum, mas uma selkie, a raça que levou nosso
povo à beira da extinção.
Me ignorando completamente, a selkie tocou o
rosto de Ronan e sorriu em profunda admiração,
“É uma alegria encontrá-lo em boa saúde, meu
príncipe.” Ela disse.
“Príncipe?” Ronan afastou sua mão. “Está me
confundindo, não sou um príncipe.”
Isso era péssimo. Muito, muito péssimo. O
medo do inimigo, do que ela sabia, das coisas que
destruiria se falasse além do necessário… meu
corpo travou enquanto minha mente eletrizava,
enviando pedidos de socorro através das ondas.
Eu segurei Ronan pelo braço e tentei puxá-lo
dali, mas ele nem se moveu.
“Este território não lhe pertence, selkie.” Eu

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falei a ela.
A selkie e Ronan me ignoraram tão
completamente que eu duvidei que tivesse dito
qualquer coisa.
“Um alfa de tão boa forma e postura. Nosso
general alertou sobre o perigo em encontrá-lo antes
do grande momento, mas eu precisava vê-lo, meu
príncipe, palavras são incapazes de medir minha
alegria.” O olhar da sereia cintilou como faíscas de
fogo. “Peço a honra de sua companhia, permita-me
apresentá-lo aos seus iguais.”
“Meus iguais? Existem mais como eu e você?”
Perguntou Ronan.
A selkie franziu a testa em visível
estranhamento, então ela me olhou brevemente e
pareceu compreender tudo.
Uma turbulência na água me jogou para trás. Eu
rodopiei em meio às cortinas de bolhas, atordoado.
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Gritos e estalidos metálicos ecoaram ao meu


redor. Quando reestabeleci meu equilíbrio eu olhei
adiante e avistei dois soldados reais. Um deles
imobilizava os braços da selkie e o segundo
apontava um tridente em seu pescoço.
Ronan arregalou os olhos, assustado, mas talvez
pelo choque ele se manteve quieto e deixou que os
soldados a carregassem.
“Me soltem, seus tiranos escamosos!” Ela
esbravejou.
“É muita audácia invadir nossos mares, selkie.”
O tritão que a segurava fincou as unhas em seus
braços. “Você vem conosco.”
“Príncipe Ronan!” Ela gritou, tentando
encontrar seu olhar enquanto era arrastada.
“Calada!” O soldado do tridente cutucou seu
pescoço, forçando-a a virar para a frente.

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“Quem é você? O que são vocês?” Ronan


moveu a cauda brevemente, inseguro. “O que sou
eu?”
Os soldados se afastaram com ela e por um
instante acreditei que terminaria ali, mas então a
garota mordeu a mão do primeiro e virou-se ao
Ronan novamente.
“Não permita que a manipulação dos tritões o
desvie de seu destino. Você é Ronan Faroé-
Makaira, primogênito de Connor Faroé e Hian
Makaira II.” A selkie tentou escapar, mas ambos os
soldados agarraram sua cauda. “Você é o príncipe
de dois reinos, o Herdeiro dos Sete Oceanos. Não
há ninguém entre as ondas e as fendas abissais que
não lhe deva reverência!”
Os soldados fizeram alguma coisa que fez a
selkie gritar, e então eles sumiram nas profundezas
azuis e o silêncio retornou ao recife de corais. Um

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silêncio entrecortado pelo zunido do meu coração.


“Que garota mais estranha, não é mesmo?” Eu
forcei uma risadinha, à beira de um infarto.
Ronan apenas me deu as costas e desceu ao
fundo do recife. Ele pegou o cesto, que eu nem
notei ter derrubado.
“Talvez ainda dê tempo de preparar isso.”
Ronan agitou a lula dentro do cesto.
“Ahm… é. Ainda é cedo, com certeza dá
tempo.” Eu respirei fundo e tentei me acalmar,
então nadei ao lado de Ronan de volta à ilha. “Uma
lula deste tamanho será o banquete do século. Você
vai ver, o Oráculo terá um troço quando provar
nossa receita.”
Ronan não respondeu. Ele apenas continuou
nadando em silêncio, com o olhar para o nada, e
permaneceu assim até chegarmos em casa.

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Ai… como eu consertaria a situação, dessa vez?

****

O sol terminava de se pôr lá fora. Eu preferia


cozinhar com mais calma, mas Ronan desaparecera
durante toda a tarde e recém havia retornado.
Apesar do atraso e da bagunça na cozinha, os
preparativos seguiam dentro dos planos.
Eu retirei a bandeja quente do forno e tentei
encaixar na bancada da pia. Trabalhar no meio
daquele caos era meio estressante, mas o aroma de
lula assada com temperos frescos derretiam as
minhas frustrações. Nossa caça mal cabia na maior
travessa, enorme e tostadinha pelas brasas.
“Agora só precisamos rechear.” Eu disse ao
Ronan, que me assistia sentado no canto do balcão.

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“Me alcança a panela da farofa de anêmona. Eu


preparei bastante, mas este bicho é tão grande que
talvez…”
“Aquela sereia está morta.” Disse Ronan.
Eu suspirei, com o olhar baixo. Apesar dos
meus esforços o clima entre nós continuava pesado
e sombrio.
“Também senti o cheiro de sangue. Mas o que
esperava, Ronan? Era uma invasora, de um
território inimigo.”
“Qual território?” Perguntou ele.
Eu ajeitei a lula em uma elegante cama de algas
coloridas, me sentindo um rato em um labirinto
sem saída.
Papai Byron e papai Shane me proibiram de
contar, e o Oráculo também. Todos sob o pedido de
Hian II, nosso suposto príncipe. Mas que

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esperanças eles tinham de manter o segredo para


sempre? Quando Ronan predestinasse comigo ele
poderia ler meus pensamentos, de qualquer forma.
E o chamado era testemunha do quanto eu desejava
lhe contar a verdade.
Mas não era meu direito agir por conta própria.
“Não sou o poço de respostas que você
imagina, Ronan. Sou apenas o seu irmão, estou
fazendo o melhor possível apesar das
circunstâncias.” Eu peguei a panela de recheio em
meio às panelas sujas e mexi para não empedrar.
“Vou dizer o que posso fazer: hoje, durante o jantar
do Oráculo, insistirei bastante para que ele conte o
que sabe. E aposto que uma caça tão nobre será um
ótimo incentivo.”
Ronan bufou, incomodado. Talvez contando
alguma piada ele se animasse um pouco? Eu queria
tanto ver seu sorriso novamente, mas antes que eu

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pensasse no que dizer alguém bateu na porta.


“Ah, quem poderia ser, agora?” Eu mesmo me
irritei e entreguei a panela ao Ronan. “Mexa
devagar, não queremos que a farofa empedre.”
Eu fui para a sala e abri a porta. Era o Tenente
Fran em sua farda oficial e coberta de medalhas,
acompanhado de alguns soldados.
“Boa tarde, Tenente.” Eu prestei uma
reverência torta, incerto se deveria tratá-lo pelo
posto militar ou como cunhado do papai Byron.
“Meus pais estão viajando no momento, passarão o
mês em turnê pela Europa.”
“Sei disso, Madhun. Receio não estar aqui para
visitações.” Disse ele, com a postura reta e
disciplinada. “Ronan se encontra?”
Meu olhar foi automaticamente à cozinha e eu
voltei rápido a encarar o Tenente, me sentindo
burro e assustado. Como não notei os tridentes
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antes? E ninguém visitaria os parentes


acompanhado de uma escolta.
“Aconteceu alguma coisa, tio Fran?” Eu
amaciei a voz, me fazendo de bobo. “O Sebasten já
se recuperou? Não foi minha intenção magoá-lo.”
“As questões emocionais do meu filho são de
baixa prioridade, neste momento. Preciso conversar
sobre um certo encontro de vocês, nesta manhã.”
Ele tentou dar um passo adiante e eu
instintivamente bloqueei o caminho.
“Não encontramos nada incomum esta manhã,
tio Fran, nós… ah! Está falando da confusão perto
das bombas? Avistamos alguns soldados por lá,
mas tivemos medo de nos aproximar. Nem imagino
o motivo do confronto.”
Tenente Fran arqueou a sobrancelha e cruzou os
braços, deixando óbvio o quanto eu não estava
enganando ninguém. Ele gesticulou com a cabeça
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para que conversássemos no jardim, longe dos


soldados.
Eu fechei a porta em silêncio e o acompanhei.
O Tenente desmanchou sua postura rígida.
“Entendo o que está fazendo, Madhun, e é
muito nobre de sua parte, mas não esqueça o que
aquele garoto é. Há relatos de que ele escapou para
além dos limites do território, nesta tarde, em
atividades desconhecidas. Os relatórios me
deixaram de cabelo empinado, precisamos
contornar a situação com medidas urgentes.”
Medidas urgentes? Eu murchei os lábios e
afinei o olhar, impassível.
“Vou repetir, eu e meu irmão mais novo não
ouvimos nada. Nós apenas caçamos juntos, e no
momento estamos tentando cozinhar sem
interrupções desnecessárias.”
“Madhun…” Tenente Fran tentou encostar no
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meu ombro e eu recuei, dando-lhe as costas.


“Ronan não é o monstro que vocês pensam, e
hoje provaremos isso de uma vez por todas. Tenha
um bom dia, Tenente.”
Eu bati a porta na cara daqueles idiotas e voltei
para a cozinha.
Ronan havia descido do balcão. Ele estava
fincando os palitinhos na abertura da lula, com rara
delicadeza.
“Você recheou a lula sozinho?” Eu perguntei,
notando com surpresa a panela vazia. “Ficou
realmente bom, Ronan. Eu não teria feito melhor.”
“Não exagere.” Disse ele, sombrio e entediado.
“Falta alguma coisa?”
“Está uma obra de arte! Parece o carro-chefe de
um restaurante cinco estrelas.” Falei, então me
lembrando que Ronan nunca havia deixado

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Egarikena. “Ahm, um restaurante é…”


“Eu sei o que é um restaurante, Madhun.”
Ronan girou os ombros, se espreguiçando, e então
deixou a cozinha. “Diga ao Oráculo que mandei um
oi.”
“Quê? Como assim? Você precisa ir junto,
Ronan, ou como o Oráculo irá te elogiar?”
“Não preciso dos elogios daquele velho
arrogante.”
Ronan subiu para seu quarto e eu corri atrás
dele, mas antes que eu o alcançasse Ronan trancou
a porta.
Droga, tão perto e tão longe de melhorar a
reputação do Ronan. Mas talvez fosse melhor
assim. Sozinho com o Oráculo eu poderia
conversar sobre Ronan, e enfim convencê-lo a
revelar a verdade.

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Capítulo 12

O Oráculo me recebeu com um sorriso fraco e


sincero. Ele endireitou-se na cama e apoiou as
costas na cabeceira, esforçando-se a cada
movimento. Pelo visto havia passado outro dia
inteiro acamado.
Doía ver o meu vovô tão frágil. Desde a morte
de seu predestinado ele parecia envelhecer um ano
por dia.
“Como está se sentindo hoje, vovô?” Eu deixei
a travessa na mesinha de cabeceira,
cuidadosamente tampada por uma redoma de prata.
“Solitário, inútil, cercado de notícias
preocupantes…” Ele esforçou-se em manter

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sorriso. “…mas não quero importuná-lo com meus


resmungos de velho. Como estão as coisas entre
você e Ronan?”
Eu apertei os lábios. O vovô nunca perguntaria
sobre Ronan se não houvesse motivo. Foi bobagem
pensar que estaria desinformado.
“Vovô, precisamos mesmo continuar mentindo?
Entendo os métodos do nosso povo em lidar com
problemas, mas vejo o sofrimento do Ronan, suas
dúvidas que não vão embora.” Eu disse.
O sorriso do Oráculo diminuiu. Ele estendeu o
olhar para o terraço adiante, onde nuvens listravam
o azul noturno do céu.
“Este sempre foi um assunto polêmico, desde o
tempo em que vocês vestiam fraldas. Contar, não
contar? Intervir, deixá-lo livre? Uma única verdade
rege a nossa espécie, Madhun, como já expliquei ao
seu pai Shane tantos anos atrás: O destino de toda
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cachoeira é o oceano.”
“O que isso significa?”
O Oráculo murchou os ombros, parecendo
ainda menor e mais frágil.
“A idade enxugou meus poderes, mas há muito
a ser visto em seus olhos jovens, tão iguais aos do
finado Isha. É o brilho de um afeto que vai muito
além do amor fraternal, algo quase proibido, e
entretanto seu coração é firme, Madhun.” Ele
suspirou. “Não importam os esforços de toda a
nossa espécie, Ronan descobrirá a verdade. O
destino encontrará seu caminho, não importam os
meios.”
Eu curvei os lábios, me sentindo um tanto
aliviado.
“Neste caso vamos agir corretamente, vovô,
contar-lhe tudo o que sabemos. Existe bondade
dentro do Ronan, conhecer suas origens não
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mudará isso.”
“É isso o que pensa?” Perguntou o Oráculo.
“Tenho certeza!” Falei, confiante, então
levantei a tampa da bandeja. “Olha pra isso, foi o
Ronan quem encontrou essa lula. Ele capturou a
maior do recife, especialmente para o senhor.”
“Uma lula gigante, ou pelo menos o filhote de
uma…” O Oráculo sorriu nostálgico e dolorido. “O
velho Hian adorava caçar esses bichos. Então ele
servia para mim e me assistia comer, sorrindo como
um bobo sempre que eu gemia de satisfação. Era
uma culinária simples, mas o verdadeiro gosto não
vinha dos temperos.”
“Perdão se eu lhe trouxe memórias doloridas.”
O Oráculo ajeitou o prato em seu colo e
empunhou o garfo e a faca.
“Não se desculpe. É comum confundir

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memórias doloridas com memórias ruins, mas às


vezes as memórias doloridas também são nossos
maiores tesouros.” Ele disse.
Eu concordei com a cabeça, salivando para o
aroma delicioso de lula e algas temperadas. Eu com
certeza repetiria a receita em casa para o meu
núcleo. Era a minha obra-prima.
Paciente, eu aguardei que o Oráculo provasse.
Ele cortou a pontinha de um tentáculo tostado e
gemeu de prazer ao experimentar. Então começou a
comer de verdade, em garfadas grandes e
entusiasmadas.
“Está gostoso?” Perguntei.
“Uma delícia.” Ele me disse. “Diferente de
tudo, na verdade. O que usou no recheio?”
“Nada muito exótico. Farinha de coral,
anêmonas marinadas com extrato de pepino-do-mar
e…”
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O Oráculo começou a tossir. Eu interrompi meu


falatório e me apressei em bater nas suas costas
para desengasgá-lo, mas sua tosse ficou ainda mais
violenta.
Ai, eu sabia que deveria ter mexido o recheio
sozinho, devia estar cheio de caroços.
“Precisa que eu busque água?” Perguntei a ele.
E então meu sangue congelou.
Sangue. Filetes vermelhos escorriam do nariz e
ouvidos do Oráculo, e seus lábios azulavam
rapidamente. Ele apertou as mãos no peito,
respirando rápido.
“Vovô Arian? Vovô, o que está acontecendo?”
Em pânico, eu pressionei o lençol no rosto do
vovô e tentei estancar o sangue. Seus olhos
dourados e cheios de terror fitavam o prato que
preparei. Ele tentava falar alguma coisa.

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Só então notei o recheio, um creme amarelo que


não lembrava em nada farofa de anêmonas.
Eu passei o dedo e provei o recheio. Purê de
batatas??
“Vovô, preciso te levar para o mar.” Eu o
arranquei debaixo das cobertas e passei o braço por
trás do meu ombro, tremendo tanto que eu não
sabia como o carregaria.
“N…não…. Madhun, escute…” Disse ele, com
a voz gargarejada em meio ao sangue. Seu pescoço
estava tão vermelho quanto a cor de sua túnica.
“Guardas! Guardas, eu preciso de ajuda!” Falei,
correndo com o vovô para os corredores.
E qual era a minha sorte, ao notar o palácio
vazio? Sempre haviam tantos serviçais e soldados,
onde foram parar todos eles?
Lutando para que o pânico não me vencesse, eu

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peguei o vovô nos braços e o carreguei pelos


corredores e escadarias. Meus passos e gritos de
socorro ecoavam pelas paredes do castelo vazio.
A pulsação do Oráculo aumentava rápido. Sem
forças para tossir ele desmaiou nos meus braços,
deixando um rastro de sangue pelo caminho.
Alguém fraco como eu nunca conseguiria
carregar o vovô até a praia. Eu mudei a direção até
o templo subterrâneo, estranhando cada vez mais o
silêncio e ausência do exército.
Minhas forças esgotavam rápido. O vovô era
um ômega magrinho e pequeno, mas eu também
era e eu não conseguiria correr por muito mais
tempo.
Cansado demais, eu tropecei no chão
escorregadio da sala do trono e caí no chão,
derrubando o vovô Arian comigo. Ele rolou pelo
chão já inconsciente, deixando um rastro vermelho
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no piso de cristal.
O que estava acontecendo, e por quê? Eu
preparei tudo direitinho, como que batatas foram
parar dentro da lula?
Espera… não. Não podia ser.
“M… Madhun…” Sussurrou o Oráculo.
Eu engatinhei até ele tremendo e chorando,
completamente impotente.
“Vovô Arian, eu não quis, eu… eu vou te levar
pra água e você vai ficar bem, eu prometo.”
O Oráculo segurou minha mão e murchou os
lábios em sinal que eu me calasse.
“Madhun, ouça com atenção. Para mim é tarde,
mas ainda há esperança para nosso reino.”
“Esperança para nosso reino? Como assim?
Não tem nada errado com Egarikena, vovô. Houve
um mal entendido, mas vai dar tudo certo, só
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precisamos…”
“O reinado de Ronan será o fim de tudo,
Madhun. Você deve fugir e encontrar o outro filho
de Hian II, apenas ele… nosso povo…”
“Hian II tem outro filho? Isso é impossível, o
alfa foi assassinado após o nascimento do Ronan.”
O Oráculo tossiu fraquinho, suas mãos caindo
inertes na piscina de sangue ao seu redor.
“Encontre o único que poderá salvar nosso
reino…” O Oráculo fechou os olhos. “Encontre…
Levi… ah…”
“Mas… mas eu não… vovô? Vovô Aurelian!!”
Eu segurei o vovô em meus braços, mas não
consegui erguê-lo. Diante de meus olhos suas
pernas frágeis e muito brancas se fundiram em uma
longa cauda dourada, seca e sem brilho.
Em choque, eu abracei o vovô e gritei em

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desespero.
Vovô Arian, o Digníssimo Oráculo, havia
falecido em meus braços.
Com o coração disparado e no maior terror de
toda a minha vida, demorei a notar alguém rindo
atrás de mim.
“Então realmente funcionou.” Ronan alisou os
cabelos brancos para trás, com o sorriso mais cruel
que já vi em seus lábios.
“Ronan… por quê?” Eu deitei vovô Arian no
chão e me levantei, trêmulo e incrédulo.
“Precisa mesmo perguntar, Madhun?” Ele
lambeu os lábios, como se saboreasse a cena
mórbida diante de si. “Os sonhos, a reação daquele
humano… e agora uma sereia sacrificou a vida
apenas para que eu soubesse minhas origens. Vocês
pensaram que eu não acreditaria?”

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“Me diga que não fez isso, Ronan. Você é meu


querido irmão mais novo. Você não envenenou o
seu avô, o nosso rei e oráculo.”
“Acredite no que quiser. Você tem um gosto
especial por mentiras, afinal.” Ele me deu as costas.
“Eu adoraria ouvir seus resmungos idiotas, mas
espetáculo lá fora é ainda mais interessante.”
Meus ouvidos latejavam em confusão e pânico,
eu ouvia e ainda assim não conseguia compreender.
Como assim, um espetáculo? E era impressão
minha, ou haviam estouros e gritos distantes?
Eu carreguei o corpo do vovô e o deitei em seu
trono, como se estivesse apenas dormindo.
“Mil perdões, vovô. Precisarei que fique aqui,
por enquanto.” Eu beijei a testa do vovô, o admirei
uma última vez, e então corri para fora do palácio.

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****

Avistando do alto da montanha, aquela parecia


ser uma noite como qualquer outra em Egarikena,
mas meu estômago gelava em uma sensação
terrível e sombria. Algo não se encaixava naquela
paisagem, e não eram apenas os eventuais estouros.
E então os percebi logo adiante, nas tranquilas
águas da praia sul. O pontilhado luminoso de
dezenas de navios enfileirados à distância.
Eu corri escadaria abaixo, com um péssimo
pressentimento.
E para piorar o meu desespero, não precisei
sequer alcançar a praia para confirmar meus piores
pesadelos.
Entre as ruas da cidade, soldados da guarda real
corriam em todas as direções, alguns brandindo

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seus tridentes e outros carregando civis que, eu


notava então, sangravam por diversas partes do
corpo.
Uma luta feroz se encadeava diante da estátua
do Oráculo-Rei. Enormes alfas do clã Kampango
lançando tridentes e ainda assim caindo, inundando
o ar no cheiro terrível de sangue de tritão. O som de
disparos tornou-se ainda mais alto conforme eu me
aproximava.
E então avistei o que nossos soldados tanto
lutavam para conter: Uma tropa furiosa e
determinada, todos de cabelo muito claro ou
totalmente branco, e olhos em diversos tons de rosa
ou vermelho.
Selkies. Centenas deles, e cada um armado com
rifles, revólveres, até metralhadoras. Nossos
soldados caíam um a um como moscas.
“O que são essas coisas?” Perguntou um
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soldado a outro, enquanto carregavam um jovem


ômega ensanguentado.
“Eu não sei! Não deixe que cheguem ao…
Aah!!”
O soldado caiu para trás, causando um grito
assustado de seu colega. O furo em sua testa
transbordou sangue, e logo então suas pernas
tornaram-se uma cauda opaca. O mesmo destino de
tantos outros soldados, corpos e mais corpos por
toda a praça central.
Horrorizado, o outro soldado se viu forçado a
soltar o ômega inconsciente e só então o reconheci.
Ílan??
Eu precisava salvar meu amigo, mas quando
tentei o soldado empunhou seu tridente e eu corri
para segurá-lo.
“Não, vocês não podem vencê-los com esse
tipo de arma!” Eu segurei o soldado pelas costas de
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sua cota de malha. “São armas de humanos. Vocês


precisam evacuar a ilha.”
“Você não é filho do Digníssimo Byron? Saia
daqui, não é seguro.”
Mais disparos. O soldado me puxou para trás de
uma casa, nós dois tão nervosos que podíamos
ouvir o coração um do outro.
Eu tentei escapar, voltar para o Ílan, mas
quando o avistei novamente suas pernas também
haviam se fundido em uma cauda opaca. Ele estava
morto.
“O que eu faço, pra onde eu vou?” Perguntei,
histérico. “O Ronan está bem?”
“Contorne pelos fundos da cidade e encontrará
as tropas do Tenente, eles… Ahh!!”
Sangue respingou no meu corpo, e o soldado
caiu em cima de mim. Ele morreu ainda mais

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rápido que o primeiro.


Ronan… eu precisava encontrar o Ronan!
Tomado de um surto de adrenalina, eu saí de
baixo do soldado e corri a toda velocidade, até o
bairro residencial na periferia da cidade. Eu até
conhecia aquela vizinhança, mas o medo disparava
meu coração a cada esquina. Os disparos pareciam
acontecer bem ao meu lado, como se qualquer um
deles fosse mirado nas minhas costas ou no meu
pescoço.
Por milagre não esbarrei em nenhum selkie até
conseguir avistar o mar, bem adiante, mas
comemorei cedo demais. Assim que cruzei pela
última quadra, dois enormes alfas de cabelo branco
e olhos rosa correram na direção cruzada e nós
colidimos.
Eu caí para trás e ergui meu olhar para eles, que
sorriram como se tirassem a sorte grande. Um deles
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destravou o rifle que carregava e mirou na minha


cabeça.
Exausto e desesperado, eu apertei os olhos e
esperei o pior.
“Cuidado, Madhun!”
O grito e o som de metal batendo me fez abrir
os olhos novamente. Um garoto ruivo brandia seu
tridente no ar, golpeando e assustando os selkies até
que ambos deixaram cair suas armas.
“Sebasten?” Eu me levantei, mal o
reconhecendo em sua forma feral.
Sebasten não teve tempo de me cumprimentar.
Continuou lutando com os selkies muito maiores,
deslizando as lâminas com a ferocidade dos
melhores soldados, mirando em pontos vitais a
cada investida.
Mas havia um limite entre a bravura e a

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estupidez, Sebasten não venceria dois alfas adultos


por conta própria. Eu me aproximei para tentar
ajudá-lo, mas como sempre a minha forma feral
recusava-se a sair.
“Não venha, Madhun. Por favor, fuja!” Gritou
Sebasten.
“Mas…”
“Eu vou ficar bem, mas apenas se….” Sebasten
inclinou-se para trás, mal desviando de uma
dentada brutal. “…apenas se você sobreviver,
também.”
Eu concordei com lágrimas nos olhos.
“Vou buscar ajuda, eu prometo.” Falei, e então
continuei correndo sem olhar para trás.
Um cheiro de carvão penetrou minhas narinas e
foi se tornando mais forte, acompanhado de uma
fumaça negra que bloqueava a luz da lua. Um

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paredão de fogo devorava todas as casas.


“Ronan?” Chamei, enfim chegando à praia.
“Ronan, onde você está?”
Eu apertei os olhos, tentando enxergar na
fumaça densa. Então alguém pôs as mãos nos meus
ombros e eu me virei.
“Ronan?” Falei, quando vi de relance o cabelo
branco. Mas não era ele.
Um golpe pesado acertou minha nuca e eu caí,
desmaiado.

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Capítulo 13

Onde eu estava?
Eu acordei dolorido e atordoado, e assim que
tentei levantar bati a cabeça em algo de metal.
Minha visão recuperou o foco. Não havia mais
fumaça, aliás, as casas ainda queimavam muito
adiante, mas eu estava no meio da areia, na praia
sul. Barras metálicas me separavam da paisagem
que costumava ser paradisíaca.
Eu me agarrei às grades, notando que estava em
uma pequena jaula alinhada a muitas outras. Eu
podia ouvir o gemido e choro dos tritões nas jaulas
vizinhas, alguns dos choros eram de crianças.
Era um bom momento para me desesperar, mas

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então avistei aquele que tanto procurava.


“Ronan!” Chamei, aliviado, mas ele fingiu não
me ouvir. Estava distraído admirando os barcos dos
selkies, logo adiante.
“O que tá acontecendo?” Perguntou Lílian,
espremida em uma cela com um irmão mais velho.
“Cadê o Ílan?”
“Madhun, você veio do palácio? Papai Arian
está bem?” Perguntou Sheran na cela oposta, com
uma voz ofegante. Um tiro em sua barriga não
parava de sangrar.
“Eu… eu não sei.” Gaguejei, pensando em
como lhes dizer as terríveis notícias. Minha atenção
não conseguia desviar da praia.
Tritões e selkies lutavam brutalmente, tingindo
a areia de manchas vermelhas. Soldados da guarda
real, civis e até mesmo príncipes Makaira brandiam
seus tridentes contra os invasores cada vez mais
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numerosos. Uns poucos alcançavam o inimigo e


conseguiam destroçá-los com lâminas e dentes, mas
era óbvia a vantagem das armas de fogo naquele
confronto. Para cada selkie derrotado outros dez
surgiam das profundezas marinhas.
Quando os últimos guardas cederam e tudo
parecia perdido, uma imensa tropa de tritões surgiu
do centro da cidade, carregando o estandarte verde
do nosso povo. Diante de todos eles Tenente Fran
conduzia a marcha, empunhando seu tridente preto
e dourado.
Pela primeira vez os selkies demonstraram
medo. Eram soldados demais, nunca imaginei que o
reino tivesse um contingente militar tão numeroso.
As tropas do reino sequer precisaram atacar.
Era óbvia a vantagem numérica e mesmo com
armas inferiores, cada um dos enormes soldados
parecia disposto a levar dois ou três selkies consigo

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para o inferno. Os selkies recuaram de volta ao mar


e sumiram.
Aquilo foi fácil. Fácil demais. Ao invés de
demonstrar alívio eu fiquei ainda mais nervoso.
Confirmando minhas piores premonições, assim
que o último selkie desapareceu, as águas
começaram a tremer. Tenente Fran organizou as
tropas diante do que parecia ser o princípio de um
maremoto.
E então centenas, não, milhares de pontinhos
brancos surgiram das profundezas, iluminados pelo
fogo do incêndio. Os cabelos brancos de
incontáveis selkies, que marchavam à ilha em
perfeita sincronia de volta à praia. Os primeiros
deles ergueram seus próprios estandartes, que eram
vermelhos e com dois rifles cruzados por trás de
uma foca feroz.
Meu susto foi tanto que demorei a perceber
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quem conduzia a horda inimiga, trajando uma


moderna farda militar preta. Eu nunca havia visto
aquele cara antes, mas seu cabelo era muito longo,
liso e escuro, e seus olhos verde-com-lilás
brilhavam em profunda satisfação para o caos
diante de si.
Só podia haver algum engano. Aquele
magricelo de quase dois metros era um tritão como
nós??
Quando Tenente Fran o avistou, ele afinou seus
olhos verdes no mais puro ódio e expôs os dentes
de navalha.
“Cordelen Trevally.” Rosnou o Tenente.
O cara de cabelo preto sorriu para ele e jogou
para trás os longos cabelos, cuidadosamente presos
em um broche de joia vermelha. Então ele riu
baixinho.
“Você deve ser o Fran. Desculpe, tenho
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dificuldades em lembrar de gente desimportante.”


“E entretanto você lembrou de mim.” Fran
firmou os punhos no cabo de seu tridente.
“Quanta arrogância com o predestinado do seu
melhor amigo.” Ele deu um passo adiante, com um
sorriso confiante e calmo. “Yoshan Amalona te
mandou um abraço.”
Tenente Fran rugiu em fúria, afiando os dentes
e as pupilas em uma expressão bem aterrorizante
para um ômega.
Apesar da altura, o líder inimigo era bem esguio
e de gestos suaves. Outro ômega comandando seu
exército de alfas, e ele não parecia nada afetado ao
percorrer o estreito espaço entre os muitos
cadáveres.
Impassível e tranquilo, Cordelen ergueu a mão
e logo um outro tritão surgiu das águas. Sua farda
militar era um pouco mais simples, mas os longos
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cabelos negros deixavam claro o parentesco entre


os dois. O recém chegado era menos alto,
aparentava uns trinta e poucos anos assim como o
tal Cordelen, e tinha o olhar mais sombrio e
horrorizante que já vi em outro ser vivo.
“Lamento não enfrentá-lo hoje, Fran Gobio-
Gobio. Sei que é a sua obsessão, afinal, trocou a
vida do seu segundo filho por este momento.”
Cordelen riu em deboche.
O Tenente perdeu completamente o auto
controle. Ele ergueu o tridente, e com este sinal
suas tropas avançaram na areia. Ele saltou adiante
já mirando dentes e lâminas em Cordelen, mas o
tritão sombrio bloqueou o ataque com um par de
espadas.
“Como eu disse, um marionete dos Makaira não
merece o meu tempo. Meu querido irmão Zarkon o
manterá ocupado.” Disse Cordelen.

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As duas tropas colidiram. Tridentes contra


espadas e revólveres, dentes contra dentes, unhas
contra unhas. O Tenente lutou para se desvencilhar
da confusão, alucinado em alcançar o líder inimigo,
mas o tal de Cordelen já caminhava tranquilamente
em direção às jaulas.
Eu e os outros prisioneiros rosnamos de raiva e
medo, esperando qualquer coisa. Mas o líder
inimigo não se aproximava de nós, e sim de Ronan,
que ainda fingia não me ver.
“Ele realmente está morto?” Cordelen
perguntou a ele.
Ronan deu um sorriso discreto, mas orgulhoso.
“Tão morto quanto esses daqui.” Ele fitou os
corpos que boiavam nas ondas.
“Fez um excelente trabalho, príncipe Ronan.
Demonstrou desde cedo seu verdadeiro potencial.”

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Cordelen apoiou a mão em seu ombro em sinal


de aprovação, e mesmo com uma expressão azeda
Ronan permitiu seu gesto. Como era possível?
Ronan era bom, aquilo não podia ser verdade.
“Vão me levar para a minha família, agora?”
Perguntou Ronan.
“O que seria de um príncipe, sem seu reinado?
Quanto antes aniquilarmos estes animais
manipuladores, mais cedo você encontrará seus
parentes selkies.”
Ronan concordou com a cabeça, evitando olhar
para as jaulas bem ao seu lado.
Cordelen mexeu no coldre da farda molhada e
retirou uma arma. Uma pistola diferente de tudo,
vermelha como rubi e de aparência muito antiga,
como as pistolas bucaneiras dos filmes de pirata.
Ele entregou a arma a Ronan, que a admirou
bastante confuso.
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“Esta pistola pertenceu ao seu bisavô, o finado


Imperador Khaligor.” Cordelen sorriu, satisfeito
com as reações de Ronan. “Considere-a uma
herança de família. Se quiser brincar, encontrará
munição em nossos navios.”
Ronan girou a arma nas mãos apreciando-a
como uma joia. Então o tritão sombrio apareceu ao
encontro dos dois, com suas espadas siamesas
pingando sangue.
“General Cordelen, devo eliminar os Makaira
capturados?” Ele passou o olhar por nós,
brevemente.
“Relaxe, meu querido irmão Zarkon. Os
Makaira, como você bem sabe, tem um apreço
especial por jaulas. Deixemos que o sol faça o seu
trabalho.” Cordelen mexeu afetuosamente no
broche em seu cabelo e verificou o relógio em seu
pulso. “Agora vá e agilize suas tropas, o sucesso do

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nosso plano depende da sincronia perfeita.”


Cordelen desembainhou a espada em seu cinto
e retornou com Zarkon para o confronto,
esquecendo-se totalmente de Ronan.
“É sua chance, Ronan!” Lílian pendurou-se nas
barras. “Essas coisas atiram metal. Acerta as costas
dele.”
Ronan olhou para a arma e para Cordelen
algumas vezes.
“Você precisa salvar a gente! Se matar o
general inimigo… eles devem… recuar.” Ofegou
Sheran, cada vez mais fraco.
Ronan ergueu o olhar para os dois, então
desviou o rosto e nossos olhares se encontraram. O
vermelho de suas íris arderam como fogo líquido.
“Deveria ter ficado no palácio, seu traidor
mentiroso.” Disse Ronan.

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“O quê? Eu não menti sobre nada, Ronan.” Eu


me ajoelhei nas barras de metal, buscando uma
posição que não machucasse todo o meu corpo.
“Certas coisas deram errado, eu entendo, mas
podemos consertar tudo. Não é tarde demais.”
Ronan riu como se eu tivesse dito uma piada,
mas não era uma risada alegre. Seu rosto parecia
uma casca encobrindo um interior vazio.
“E pensar que esta ilha inteira me fazia de
otário. Eu não esperava menos dos meus supostos
avós, ou daquela dupla de idiotas melosos que
fingiam ser meus pais. Mas você, Madhun…” Os
lábios de Ronan tremeram.
Então ele ergueu a arma na minha direção.
“Ronan, você está chateado, eu sei, mas eu não
tive escolha! Nós só pensamos no seu melhor, eu
queria te proteger!” Eu escorreguei as mãos nas
barras geladas, espremido como uma sardinha em
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uma lata.
“Me proteger?” Ronan riu alto. “Sabe qual é a
melhor parte? Você conseguiu me convencer que
era diferente. O doce e nobre Madhun querendo
preencher o vazio no meu coração, incapaz de
manipular meus sentimentos com segundas
intenções.”
“Segundas intenções?” Meu sangue gelou ainda
mais. “Ronan, é tudo um mal-entendido. Mantenha-
me preso se está com tanta raiva, mas pelo menos
solte os outros. Aqueles inimigos confiam em você,
deixarão que liberte os civis inocentes.”
Ronan nem pareceu me ouvir. Seu olhar
mantinha-se fixado nos meus, o cano vermelho da
arma mirando certeiro na minha testa.
“E pensar que eu quase caí no seu jogo. Mas o
perdedor é você, Madhun.” Ronan firmou a
segunda mão no punho da arma. Seu indicador
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deslizou sobre o gatilho. “Eu sou o herdeiro de


todos os reinos do mar. Não posso predestinar com
um ômega traidor.”
“Ronan, não!” Eu gritei. “Por, favor, nós
ainda…”
Ronan disparou a arma em um estouro
ensurdecedor. Algo acertou meu rosto e então tudo
escureceu.

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Capítulo 14

Levi
Alguns dias antes

O sol matinal atravessou as frestas da janela,


acertando em cheio os meus olhos.
Eu me espreguicei no colchão macio e virei
para o lado oposto, me aninhando sob os cobertores
como uma lagarta e me protegendo do ar gelado de
setembro. Aquele frio não era nada comparado ao
inverno, mas eu queria dormir por mais dez horas
Claro que meu sossego durou pouco tempo.
“Bom dia, Levi!” Papai Maikon escancarou a
porta do meu quarto e entrou contente, então abriu
as janelas.

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O sol bateu direto na minha cara e eu me


encolhi como um vampiro.
“Mais cinco minutos, pai. Os galos nem
cantaram ainda.” Resmunguei.
“Já cantaram três vezes.” Papai Maikon
arrancou meus cobertores. “Anda, levanta, ou terei
que dar as boas notícias ao seu pai Hian.”
“Boas notícias?” Eu sentei na cama e esfreguei
os olhos, morto de cansaço.
“Você sabe o quanto ele está ansioso. Vai
adorar saber que você desistiu.”
Eu enfim consegui abrir os olhos e espiei meu
pai, que se escorava na parede do meu quarto e
sorria com o canto da boca, me provocando. Pela
altura do sol deviam ser umas cinco da manhã, mas
ele já estava todo vestido em calça jeans, camisa
xadrez, botas e chapéu de palha, pronto para mais
um dia de trabalho. Era raro que acordasse antes de
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mim ou do papai Hian.


“Desisti do quê?” Eu bocejei, me espreguiçando
de novo.
“Como assim, desistiu do quê? Da vaga no
campeonato que você vem treinando como um
louco.” Papai Maikon sorriu travessamente e
verificou o relógio de pulso. “Você só pode ter
desistido, porque a seleção começa em vinte
minutos e aqui está você.”
Eu levantei num salto.
“Ai, meu Deus!! A seleção de equipe!” Gritei,
correndo em círculos pelo meu quarto e tentando
encontrar minhas roupas de apresentação. Na
pressa eu tropecei nos lençóis, desabei no armário,
e voei por cima da minha poltrona, me
arrebentando todo. Em meio à confusão encontrei
meu celular embaixo da cama.
Ai, que maldição! Por que não verifiquei a
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bateria antes de dormir?? Claro que o alarme não


tocou! Onde estava minha blusa do uniforme? E as
meias? O Clint, o Benny e a Elyse me jogariam em
uma fogueira!
Eu tropecei nas minhas próprias pernas e quase
caí de novo, mas papai Maikon me segurou antes
que eu me arrebentasse.
“Devagar, se aparecer roxo em outro ensaio,
seus professores vão começar a achar estranho.”
Ele me entregou um par de tecidos branco e rosa-
pink perfeitamente dobrados. “Não tenho o talento
do Hian com afazeres domésticos, mas lavei e
passei seu uniforme. Espero que esteja aceitável.”
Eu sorri e peguei com ele meu precioso
uniforme, que cheirava gostoso a amaciante floral.
“Obrigado, papai Maikon. Vou me esforçar
muito.” Eu disse a ele.
“Eu sei que vai.” Ele sorriu com uma pontinha
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de tristeza, então foi até minha estante me alcançou


as minhas lentes de contato. “Prometa se divertir.”
“Não vou apenas me divertir. Eu vou ganhar!”
Falei a ele, com meu sorriso mais determinado. “E
então vou esfregar minha aprovação na cara do
papai Hian.”
Papai Maikon não falou nada. Ele apenas olhou
para o chão um tanto chateado, mas eu ignorei ele.
Ninguém baixaria meu astral num dia tão
importante.
Apressado como nunca, eu vesti as primeiras
roupas que encontrei no armário, ajeitei o uniforme
e meus acessórios dentro da mochila, vesti minhas
lentes de contato e disparei para o ginásio da
escola.

****

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Bobcat Hollow, ou Vale dos Linces, era um


minúsculo protetorado de seis mil habitantes no
coração de Dakota do Sul. Ainda assim havia um
longo caminho até a escola. Cinco minutos de
corrida separavam minha casa da entrada da nossa
fazenda, onde um bucólico Bem Vindo ao Rancho
Dolinsky-Makaira estava gravado a fogo em uma
prancha de madeira, sobre os portões.
Conchita e as outras cabras ainda estavam
presas àquela hora da manhã, então não precisei
desviar de nenhuma ou impedir que mastigassem
meus cadarços, o que poupou um tempinho de
corrida.
Louco de pressa e incapaz de conferir as horas
no celular descarregado, eu disparei na estradinha
de terra que separava os campos de milho dos meus
pais e os do vizinho. Os milharais se erguiam até a

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minha altura, com gordas espigas dentro de suas


cápsulas verdes para nos lembrar da colheita que se
aproximava. Eu nem queria pensar na trabalheira
que me aguardava.
Opa, quase me aborreci sem querer. Eu
precisava manter o ânimo, pois naquele dia o meu
destino se dividia em dois, e eu definitivamente
seguiria pelo melhor caminho. E então adeus
cabras, adeus milhos, adeus Bobcat Hollow!
Adeus por alguns dias, pelo menos. Mas era o
bastante para um adolescente de dezesseis anos que
nunca atravessou as divisas do estado.
Recuperado de todo o meu ânimo, eu acelerei
pela poeirenta estradinha até o fim dos campos de
milho, e então diversas construções surgiram
adiante. Não haviam prédios em Bobcat Hollow,
apenas graciosas casinhas baixas com gramados
verdes e cerquinhas brancas. Até as lojas não eram

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maiores que uma casa média. No caminho à escola


havia um minimercado, o açougue, a farmácia e o
cinema, onde talvez coubessem umas cinquenta
pessoas, no máximo. Também havia um parque
com brinquedos de criança, a igreja, a delegacia
onde trabalhava o pai do Benny, e… era isso. Em
menos de dois minutos eu atravessei a cidade
inteira e cheguei na única construção grande de
todo aquele lugar: Bobcat School, a escola onde eu
estudava desde sempre, até porque não haviam
outras opções.
Eu nem precisei procurar meus colegas. Eles
mesmos me encontraram, aliás, mandaram o
coitado do Benny ao meu encontro.
Apesar da manhã fria — eu mesmo vestia um
cachecol e calças compridas — Benny já estava
molhado de suor, com o cabelo loiro todo grudado
na testa. Ele era grande e meio gordo, tipo um urso

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mas com o rostinho de um bebê manhoso. Dava pra


ver que Elyse pegou pesado com ele ainda antes do
treino começar. Isso, ou eu estava mais atrasado do
que pensava.
“Levi, onde você se meteu? Minha irmã quer te
matar e o Clint já te ligou, sei lá, umas oitocentas
vezes. O que houve com o seu celular?” Ele
esfregou o braço também suado na testa.
Eu passei a mochila pelo ombro e contornei a
escola com Benny, em direção aos vestiários que
ficavam logo depois do campo de futebol
americano.
“Fui o último a chegar?” Perguntei.
“Precisa perguntar, Levi? É o dia da seleção,
minha irmã me arrastou para cá às três da manhã
para treinarmos uns últimos movimentos, e ainda
assim encontramos o Gale e a Magda. Parece que
estão treinando desde a meia-noite.” Ofegante e
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nervoso, Benny deu um suspiro e tentou se


acalmar. “A senhora Maple quase colocou a Magda
no seu lugar da nossa formação, mas consegui
convencê-la a esperar.”
“Valeuzão, Benny.” Eu sorri para ele enquanto
corria, pescava meu uniforme de dentro da mochila
e abria a porta do vestiário com o pé, tudo ao
mesmo tempo.
“Somos melhores amigos, não precisa me
agradecer.” Benny deu de ombros e fechou a porta
do vestiário às pressas, porque eu comecei a me
trocar na entrada, mesmo. “Além do mais, com a
Magda na nossa formação eu morreria de vez. O
Clint e o Caleb detestam aquela pequena víbora, eu
teria que levantá-la sozinha, e vou dizer, para
alguém com cinturinha de lipoaspiração, ela podia
perder uns dez quilinhos.”
Benny continuou falando, mas eu não tinha

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tempo para os resmungos dele. Aquele era meu


grande dia, o começo de uma vida incrível e cheia
de glória. Eu precisava estar impecável.
Shortinho branco com listras rosa, camiseta
rosa-pink justa ao corpo com o brasão do Linces
estampado no peito, tênis e meias brancas. O
conjunto todo ainda cheirava gostoso, me fazendo
sorrir ao lembrar do papai Maikon. Ele salvou
minha vida naquela manhã, o que era um motivo a
mais para não decepcioná-lo.
Já vestido no uniforme, eu verifiquei minha
aparência diante do espelho do vestiário. Olheiras
discretas marcavam os meus olhos azuis, mas nada
que pudesse ser percebido de longe. O cabelo não
tive tempo de pentear, então improvisei com os
dedos, alisando as mechas pretas e onduladas para
o lado, do jeito que eu gostava. A correria matinal
havia estampado alguns hematomas nos meus

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bracinhos pardos, mas eu podia fingir que me


machuquei treinando.
Felizmente os homens da equipe não
precisavam de maquiagem, então só precisei passar
uma água no rosto e eu já estava pronto para a
guerra.
Eu quase corria para fora do vestiário quando
Benny limpou a garganta, chamando minha
atenção.
“Não está esquecendo de nada, Levi?”
Perguntou ele, tirando dois pompoms rosa da
minha mochila.
“Ah, é. Que cabeça a minha.” Eu dei risada
com ele e peguei minhas preciosas armas de
batalha.
Agora sim, eu estava pronto para a guerra. Uma
guerra pelo título de melhor líder de torcida!

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****

Elyse acertou seu pompom na minha cabeça.


“Isso são horas de chegar, Levi?” Ela jogou a
cabeleira loira para trás, murchando os lábios em
um beicinho de batom rosa-pink. Como uma
menina do primeiro ano podia ser tão braba?
Eu massageei a cabeça e me desculpei com a
equipe, que não escondia seu profundo alívio em
me ver.
A Bobcat School era uma escola pequena, mas
que contava com diversos clubes esportivos. O
único que obteve renome, porém, foi o nosso clube
de cheerleading competitivo. O semestre letivo
recém havia começado, alguns colegas se formaram
e outros novos surgiram, então a equipe atual

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contava com vinte cheerleaders de diferentes níveis


de habilidade.
Eu entrei para o clube ainda no primeiro ano de
ensino médio por insistência do Benny, que
adorava um pretexto para assistir os caras do
futebol americano. Para a minha surpresa a rotina
de cheerleading alfinetou o meu espírito
competitivo, e ao final do primeiro ano eu havia me
tornado um dos melhores tops da equipe, e o único
do sexo masculino.
A treinadora Maple costumava dizer que eu
transformei a equipe, contagiando todo mundo com
minha fome de vitórias. Um completo exagero,
claro, mas desde que entrei no time nós ganhamos
três competições regionais e também o
impressionante prêmio Best Cheer Dakota do Sul, o
que nos qualificava para o campeonato nacional, o
Best Cheer America.

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Infelizmente muitos bons integrantes se


formaram, incluindo o capitão da equipe, mas nem
tudo eram más notícias naquele que era meu
terceiro e último ano de ensino médio: A irmãzinha
do Benny, Elyse, entrou para o primeiro ano e logo
juntou-se a nós. Por trás de sua aparência de
patricinha se escondia uma menina prodígio, que já
havia conquistado cinco prêmios em ginástica
olímpica no ensino fundamental, e que aprendia as
acrobacias de cheerleading com velocidade
impressionante. Ela também era uma top, então
acabou por se tornar minha discípula.
Nem todos os integrantes desejavam uma vaga
no Best Cheer America, mas haviam ali uns dez
rostos conhecidos. Elyse, que ainda resmungava
comigo sem parar, agitando sua saia de plissê do
uniforme feminino, Will e Kristina, o casal de
namorados que serviam de base para a Elyse, e

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também Benny e Caleb, que eram as minhas bases.


Por fim haviam Gale e Clint, os spotters de nossas
respectivas formações.
Avistar Clint me trouxe um imenso alívio. Ele
era muito alto, atlético, e tão bonito que as novatas
da equipe sempre se batiam pela chance de treinar
com ele. Cabelos castanhos com mechas claras,
olhos cinzas e rosto magro, com os lábios
naturalmente curvados para cima. Nosso ex-capitão
da equipe foi o meu mentor e também comandava o
coração da mulherada, mesmo que elas não
tivessem chance alguma. Ele conseguia as seduzir
mesmo vestindo roupinhas cor-de-rosa, idênticas às
de toda a equipe exceto pela faixa vermelha de
capitão, no braço direito.
Mas meu alívio não vinha da beleza do Clint,
embora os boatos ridículos sobre nós dois não
fossem poucos. Como top, era minha função

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dançar, saltar e ser arremessado no ar pelas bases, e


era função do spotter impedir que eu me
arrebentasse se algo desse errado.
Desnecessário dizer, a confiança do top nas
bases e principalmente no spotter era essencial, e
Clint era o spotter mais competente do time… e
também o mais desavergonhado.
Enfim, eu não precisava pensar em acidentes.
Eu era o melhor e treinei horrores para aquele
momento. Não haveriam acidentes, apenas eu,
Elyse e nossas bases dando o melhor de nós
mesmos, e garantindo nosso lugar nas
eliminatórias!
Sim, não bastava a pressão em competir pelas
finais… as eliminatórias exigiam equipes de apenas
oito pessoas, e nós éramos em pelo menos quinze,
então o primeiro desafio era uma batalha interna
pelo direito de representar o time.

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“Estava gostoso o seu soninho, Levi? Podia ter


dormido mais, chegou apenas para perder seu
tempo.”
Eu arqueei a sobrancelha para a dona daquela
voz asquerosa. Magda, a víbora ruiva acompanhada
de suas bases igualmente revoltantes. Três idiotas
que propagavam o estereótipo de líderes de torcida:
eram invejosos, mesquinhos e pensavam mesmo
que podiam ganhar de mim.
“Uma pena mesmo o meu discípulo sexy ter
aparecido.” Clint estalou um tapa na minha bunda e
cruzou os braços, estufando o peitoral musculoso e
curvando o canto dos lábios. “Agora a chance de
vocês é zero.”
Enojada, Magda jogou pra trás sua cabeleira de
megahair e empinou os lábios de batom vermelho.
“É o que veremos. Boa sorte, vocês vão
precisar.” Disse ela.
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Todo mundo começou a trocar faíscas pelos


olhos.
“A única coisa que precisaremos é de protetor
solar e roupas de banho, para relaxar na praia
depois das eliminatórias de Miami. Não é mesmo,
Levi?” Disse Benny.
Meu coração bateu apertado por um momento,
mas eu logo sorri para eles e agitei meus pompons
rosa-pink.
“É isso aí, nós com certeza vamos para Miami!”

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Capítulo 15

Eu agitei meus pompons em direção ao céu,


cada movimento perfeitamente sincronizado com
Elyse e Magda. Esquerda, direita, cima, um rodopio
e um espacate. Esquerda, direita…
Atrás de nós, as bases e spotters já se
posicionavam em seus devidos lugares, todos nós
entoando nosso grito de guerra.
“Garra! Força! Vai, Linces! Mostre suas garras!
Vai, Linces!” Eu gritava alto e cheio de energia,
cada palavra combinando com um gesto.
Aquele era apenas o aquecimento, mas já dava
pra notar o peso do ambiente. Todos pareciam
ainda mais focados e determinados que o normal,

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não havia pulo alto demais ou grito fora de


sincronia. Cada top agitava seus pompons e
animava a torcida imaginária com a precisão de
uma máquina.
Benny aguardava seu papel cheio de
nervosismo em seus olhos, mas seus gestos eram
firmes e confiantes. Eu não esperava menos dele.
Mesmo sendo meu melhor amigo, ele precisou
treinar muito pelo direito de ser minha base e no
final o treinamento valeu a pena. Eu confiava nele e
em Caleb para me arremessar e amparar até os
saltos mais loucos.
“Cinco, seis, sete, oito, cinco, seis, sete, oito…”
Recitava Clint, logo atrás das bases, se certificando
que nenhum de nós perderia o ritmo.
Era a hora. Eu troquei um rápido olhar com
Elise e Magda e juntos nós saltamos para trás. Uma
pirueta sem as mãos, uma segunda pirueta apoiando

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as palmas no piso de pedra, e então toda a nossa


força em um único salto, no instante em que os pés
tocaram o chão.
Eu me joguei para cima na posição perfeita,
caindo nas mãos de Benny e Caleb, que me
jogaram ainda mais alto.
Agitando os pompons no ritmo perfeito, eu
voei. Por alguns segundos havia apenas o azul do
céu, o sol e as nuvens. Eu e o nada. A definição
mais perfeita de liberdade.
E então eu caí novamente, as pernas firmes
como bastões e os pés juntinhos nas mãos de Benny
e Caleb, em uma perfeita formação de pirâmide.
Ofegante, eu espiei para o lado e sorri para
Elyse. Ela também reinava no topo de sua própria
pirâmide, o que era maravilhoso. Não tão
maravilhoso era Magda, que também seguiu sua
rotina com perfeição.
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Droga, eu não tinha nada contra a Magda


exatamente, mas oito vagas significava que apenas
dois grupos seriam aprovados. Dois tops, dois
spotters e quatro bases. Não havia espaço para a
esnobezinha e seus vassalos nas eliminatórias de
Miami.
A treinadora Maple aplaudiu, sorrindo contente
por trás dos óculos enormes.
“Muito bom, garotos, excelente coro e
sincronia. Terei uma decisão difícil pela frente.”
Ela bateu seu bastão de treino na palma da outra
mão, analisando nossa postura de pirâmide com
toda a calma, testando os limites da nossa estamina
e equilíbrio. “Vamos repetir a rotina completa. Dois
minutos e meio, conforme o tempo exigido pelo
campeonato. E Levi, tente não jogar olho gordo em
ninguém dessa vez. É uma competição interna, mas
um cheerleader deve sorrir para a torcida ao invés

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de trocar faíscas com os colegas de equipe.”


“Sim, senhora.” Eu avermelhei, ao som de
risadinhas do grupinho da Magda.
Ah, minhas pernas e braços queimavam por
ficar tanto tempo naquela posição, e eu nem
imaginava o sofrimento das bases. As mãos do
Benny tremiam sob os meus pés.
A treinadora soprou o apito em seu pescoço e
então sentou no banco à beira do campo de futebol
americano.
“Dois minutos de descanso, enquanto os
rapazes não aparecem.” Disse ela.
Mais do que aliviado, eu cedi meu corpo para
trás e deixei que Clint amparasse minha queda.
Assim que pisei no chão eu pude enfim girar meus
ombros doloridos e exaustos.
“Quais rapazes, treinadora?” Perguntou Elyse,

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com a tranquilidade de quem nem havia começado


a cansar.
Eu também gostaria de saber, mas antes que a
treinadora respondesse diversos rapazes surgiram
do vestiário dos jogadores, todos eles devidamente
trajados com as ombreiras e capacete do uniforme
de futebol americano. Metade deles vestia o
tradicional uniforme mostarda e branco dos Linces,
e a outra metade o uniforme preto dos Texugos
Negros.
“O que é tudo isso, treinadora? Não temos
nenhum jogo marcado para hoje.” Falei, apontando
para as arquibancadas vazias do estádio.
“É um ensaio importante para todos vocês. Os
Texugos Negros de Cherryville concordaram com
uma partida amistosa, então os quero gritando com
tudo em seus pulmões, levantando o astral dos
nossos Linces.”

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Todos na equipe trocaram olhares empolgados,


e o Benny mais do que todos. Ele adorava babar
para os jogadores de futebol americano, e aquela
era basicamente uma partida particular dedicada a
nós.
“Nossa, pode apostar que a próxima coreografia
será a melhor de todas.” Benny bateu as mãos
comigo, super empolgado. “A senhora é demais,
treinadora Maple!”
“Não agradeçam a mim, agradeçam os colegas
de vocês e os Texugos, quando o jogo encerrar.”
Ela apontou o bastão para nós, com fogo no olhar.
“Agora recitem, qual é o dever de vocês?”
“Animar a torcida e levantar a moral dos
Linces!” Gritamos em coro.
“Exatamente! Agora acabou o descanso, vamos
começar do zero! Um, dois, três, quatro, cinco…”
“Vaaaaaai, Linces!”
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****

Nós repetimos a coreografia diversas vezes.


Alguns colegas cometeram deslizes, outros erraram
partes inteiras da dança, mas eu me mantive
focado. Perfeição no mover de cada dedo, na força
dos joelhos antes de cada salto. Eu seria o melhor
da equipe. Do estado. Do país inteiro.
Era inevitável percorrer o olhar pelos outros
grupos. O cansaço começava a nos desgastar e logo
todo mundo já havia cometido algum engano,
exceto eu e Elyse. Eu não me importava dela
ganhar a vaga para Miami. Na verdade meu maior
desejo era disputar junto com ela, mentor e
discípula mostrando aos Estados Unidos que
Bobcat Hollow era muito mais que um pontinho no
centro do país.
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Ainda assim algo não parecia muito certo, e a


sensação aumentava sempre que eu observava o
jogo.
Os Linces ganhavam de dezesseis a nove
quanto o juiz apitou o intervalo, e graças aos céus a
treinadora Maple nos deu um merecido descanso.
Não havia mais músculos nas minhas pernas,
apenas agonia e dor.
“Esta mulher ainda vai matar a gente.” Benny
jogou-se nos bancos e esguichou sua garrafa d’água
no rosto gordinho, tão suado como um cavalo no
sol. “Ela não podia decidir logo e acabar com a
nossa miséria?”
“Você ainda não percebeu, Bernard?” Clint
bebeu sua água e sentou conosco. “A treinadora
não quer escolher apenas pela habilidade, mas
também pela estamina. Nossa vitória no
campeonato estadual foi uma brincadeira perto do

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que será o Best Cheer America.”


“Eu seeeei, mas os meus ombros doem. Se eu
precisar subir o Levi mais uma vez eu vou morrer.”
“Ei, eu nem sou tão pesado assim.” Eu
esguichei minha água na cara dele, segurando o
riso.’
Benny não respondeu a provocação. Ele deixou
a água correr pelo rosto, petrificado e com o olhar
fixado adiante. Eu segui a direção de seus olhos.
Todos os jogadores haviam retornado aos
vestiários, exceto por um. O jogador dos Linces
estava parado no centro do campo como uma
estátua, vidrado na nossa direção.
“Aquele cara tá bem? Quem é o maluco?”
Perguntou Clint.
“E eu sei lá. São todos iguais com aqueles
capacetes enormes.” Disse Elyse.

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O desconforto de antes voltou forte, fazendo


borbulhar o meu estômago.
Não, aquele cara não era igual a todos. Havia
algo estranho que eu não conseguia identificar. Ele
estava muito distante de nós e ainda assim, através
da grade protetora do capacete, duas orbes verdes
inflamavam na minha direção como se suas íris
tivessem brilho próprio.
“Vou lá perguntar o que esse cara quer.” Clint
se levantou, mas antes que fosse ao seu encontro o
cara nos deu as costas e caminhou na direção dos
vestiários.
Enfim eu pude ler seu nome, estampado nas
costas do uniforme.
“Rayner Schwanz… nós temos algum Rayner
aqui na escola?” Perguntei.
Meus colegas balançaram a cabeça, tão
incrédulos quanto eu.
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“Deve ser algum estudante de transferência. O


semestre recém começou, afinal.” Disse Elyse.
“Quem pediria transferência para Bobcat
Hollow?” Benny franziu a testa, e então começou a
rir. “Aposto que o cara é bonitão de rosto, pra
combinar com essa… comissão de trás… uau...”
“Lá vem você, com sua obsessão por jogadores
de futebol americano.” Clint acotovelou Benny,
dando risada. “Desiste, Bernard. Você sabe que os
poucos gays do time são todos caidinhos ou por
mim, ou pelo nariz empinado aqui.”
Percebendo que era comigo, eu enfim desviei o
olhar da entrada do vestiário, onde o misterioso
Rayner havia desaparecido.
“Quem você está chamando de nariz empinado,
Clint?” Resmunguei.
“Ah, ninguém. Apenas o cara que rejeitou cinco
pedidos de namoro, no semestre passado.”
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“Foram sete.” Corrigiu Kris.


“Ouvi falar que foram doze.” Disse Caleb. “E
em três rejeições, a pobre vítima saiu chorando.”
“Eu não rejeitei ninguém!” Gritei, indignado.
“Ok, talvez uns dois, ou três… ou oito. Enfim, que
problema tem? Namorar deve ser a coisa mais
tediosa do mundo!”
“Levi não é metido, ele está em um
relacionamento sério com o cheerleading
competitivo.” Provocou Elyse, em um tom que
podia ou não ser sarcasmo.
“Exatamente. E é um relacionamento muito
saudável e gratificante.” Eu bebi a minha água
calmamente. Esse tipo de conversa só servia para
me irritar.
Os rapazes seguiram falando de romance, sexo
e pegação, mas o tempo todo Benny ficou quieto,
cabisbaixo e com o olhar nos pés. Ele estava
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mesmo tão cansado assim?


O juiz retornou com as equipes de futebol
americano, então a treinadora brandiu seu bastão no
ar.
“Fim do descanso, meus escravos! Engulam o
cansaço e empinem os ombros, se eu flagrar
alguém sem um sorriso no rosto, vai ganhar umas
listras roxas nos braços.”
“Já estou roxo o suficiente.” Sussurrei baixinho,
e então levei uma varetada no outro braço. “Ai!”
“Pelo menos agora vai ficar simétrico.” Clint
riu, caminhando comigo de volta às marcações.
“Como alguém tão coordenado no cheerleading
consegue ser tão estabanado no dia a dia?”
“Tive uma manhã difícil.” Falei, mantendo um
sorriso idiota na cara apenas para não apanhar de
novo.

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A treinadora ajeitou uma filmadora sobre um


tripé e colocou para gravar. Todos nós nos
arrepiamos, pois o que acontecesse dali em diante
seria considerado na hora da seleção. Para piorar, a
treinadora suspendeu o ensaio da coreografia
normal e decidiu se concentrar apenas nas
acrobacias mais avançadas.
Saltos acrobáticos eram o meu ponto mais forte,
ainda assim o nervosismo insistia em voltar. O que
estava acontecendo comigo? Bastava eu piscar e
aqueles olhos verdes retornavam, como se
estivessem impressos no avesso das minhas
pálpebras.
Não havia tempo pra pensar nessas bobagens.
Sob o comando da treinadora eu realizei piruetas,
saltos, estrelinhas e contorcionismos, esticando as
pernas até tocar meu calcanhar na nuca. Logo o
cansaço fez sua parte e eu esqueci aquele cara, ou

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tentei esquecer.
Era difícil não pensar nele enquanto os dois
times jogavam logo à nossa frente. Agora que eu
estava prestando atenção era simplesmente
assustador. O tal Rayner esmagava o time
adversário como se fossem insetos e avançava com
facilidade ao gol. Ele já havia marcado oito dos
doze pontos no segundo tempo, e eu não duvidava
que os pontos de antes também fossem de sua
autoria.
Um bastão acertou minha cabeça e me fez
gemer de dor.
“Em que planeta você está, Levi? Eu pedi uma
pirâmide!” Disse a treinadora.
Eu olhei para trás e percebi todos já em
formação. Caleb, Benny e Clint me aguardavam de
mãos vazias, enquanto que no topo de suas bases,
Elyse e Magda me olhavam como se eu tivesse
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enlouquecido.
“Desculpa, já estou indo.” Falei.
Tentando voltar à realidade eu rodopiei para
trás e pulei, caindo com perfeição nas mãos dos
meus colegas. Eles me estenderam para o alto e eu
imitei a posição das meninas, arqueando as costas
para trás e tocando a ponta do tênis na orelha até
meu corpo formar um círculo.
De todas as posições aquela era a mais difícil de
manter, ainda assim eu mantive o olhar no jogo.
Rayner havia recuperado o controle da bola. Ele a
carregava sob o braço e mergulhava no time rival
como um tubarão avança em um cardume de
sardinhas. Ainda do seu lado do campo ele chutou a
bola com a força de um gorila e marcou mais
pontos.
O juiz apitou e os Linces vibraram em
comemoração, com o placar cada vez mais
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avantajado. Eles tentaram puxar Rayner para a


breve celebração mas novamente ele era uma
estátua na minha direção.
Então ele segurou os lados de seu capacete e
lentamente o removeu.
Cabelos espetados, densos, tão negros que
brilhavam prateados sob a luz do sol. Sua
mandíbula era forte e quadrada com as maçãs do
rosto salientes, e os olhos tão verdes que atraíam a
atenção mesmo à distância. Um tom esmeralda
intenso e vivo, com foco total nos meus próprios
olhos. Era mais do que uma expressão séria e
estoica, eu me sentia… sendo chamado…
Um grito me trouxe de volta. Eu arregalei os
olhos e percebi o chão oscilando sob mim. Não, era
eu quem estava balançando demais. Meu pé tremia
sobre as mãos do Caleb, eu desci rápido a outra
perna mas não tive tempo de apoiá-la. Benny tentou

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agarrar as costas da minha camisa, mas o tecido


escorregou de seus dedos e eu caí rápido demais. O
chão de pedra cresceu diante do meu rosto.
“Levi, cuidado!!”
Em uma fração de segundo, Clint mergulhou
por baixo de mim. Minha cabeça acertou com tudo
os seus braços e o resto do meu corpo desabou
pesado em sua barriga.
“Ah…” Clint gemeu dolorido, perdendo todo o
ar dos pulmões.
“Vocês estão bem?” Perguntou a treinadora.
Todos se reuniram ao nosso redor, muito
preocupados.
Will me puxou pela mão e ajudou a me
levantar. Minha cabeça rodopiava e meu coração
era uma metralhadora.
Caleb também estendeu a mão para Clint e

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tentou levantá-lo, mas Clint gritou de dor e


recolheu o braço.
“Clint, desculpa…” Eu disse, horrorizado.
“O treinamento acabou por hoje, rapazes.” A
treinadora pôs o celular no ouvido.
“Mas e quanto à seleção? Quem vai disputar em
Miami?” Perguntou Magda.
A treinadora ignorou Magda e chamou uma
ambulância.
“Levi, você e seus amigos podem acompanhar
Clint no hospital?” Perguntou ela ao desligar.
Uma lágrima molhou meu rosto enquanto Clint
torcia-se de dor no chão. Eu concordei com a
cabeça, me sentindo pior do que horrível.
A treinadora guardou suas coisas passou sua
bolsa pelo ombro.
“O resto da equipe pode voltar para casa. Vão
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fazer festa e aproveitar o domingo como


adolescentes normais.” Ela suspirou, visivelmente
nervosa. “Decidirei com calma sobre a equipe das
eliminatórias, vocês terão notícias nos próximos
dias.”
Pela primeira vez eu nem queria saber do
maldito Best Cheer America. Para evitar que me
vissem chorando eu desviei o olhar na direção do
jogo, mas não havia mais ninguém ali. O campo
estava totalmente deserto e os placares desligados,
como se Rayner Schwanz fosse apenas uma
alucinação da minha mente.

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Capítulo 16

Após duas horas de espera, Clint enfim recebeu


alta e nos deixamos o hospital.
Kris e Caleb riam animados, sugerindo mil
planos para aquela tarde nublada. Era o jeito que
encontravam de melhorar o astral da equipe, mas
ninguém mais conseguia sorrir.
“Sinto muito por isso, Clint.” Falei, com o
coração torcido.
Clint sorriu e afagou minha cabeça com a mão
engessada.
“É apenas um braço quebrado, meu discípulo
sexy.” ele sorriu confiante. “Fico feliz que você
esteja inteiro.”

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Eu apertei as alças da minha mochila, incapaz


de me acalmar.
“Foi um erro inaceitável. Vou entender se
nunca mais quiser se apresentar comigo.” Falei.
“Todo acrobata cai de vez em quando. A culpa
foi minha por cair de mau jeito, mas é difícil
aprimorar meus salvamentos quando meu top é um
perfeccionista.”
“Você está me inocentando, ou o contrário
disso?” Eu arqueei minha sobrancelha.
Clint deu risada.
“Você sempre se levou muito a sério, sexy. Isto
não é um defeito, mas aprender a errar é tão
importante quanto aprender a acertar.” Clint meteu
a mão no bolso e tirou alguma coisa. “Quando você
entrou na equipe, logo notei que não estava diante
de mais um colega em busca de um hobby
divertido. Você será grande um dia, sexy. E é por
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isso que estou te entregando isso.”


Eu peguei aquela argola de tecido vermelho,
chocado.
“É a sua faixa de capitão da equipe. Não posso
aceitar.”
“Minha carta de aprovação chegou ontem. Você
está falando com o mais novo estudante da
Universidade de Sioux. Minhas aulas começam no
mês que vem.”
Eu arregalei os olhos, sentindo o choro voltar.
“Você não pode ir embora, Clint.” Eu disse,
totalmente devastado.
“Não quero colher milho pelo resto da vida,
você deve entender como eu me sinto. Alguém
gostoso como eu merece uma vida mais
interessante.”
Eu apertei a faixa nas minhas mãos, sentindo

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tremores por todo o meu corpo. Clint foi o meu


mentor, ele me ensinou até mais do que a
treinadora Maple e me incluiu no seu grupo de
pirâmide, uma posição que todos cobiçavam muito.
Por que era eu a voar pelos céus, e ao mesmo
tempo aquele mais aprisionado ao chão?
Apesar de compreender os sentimentos do
Clint, a faixa nas minhas mãos se molhou nas
minhas lágrimas.
“Desculpa, eu realmente não posso. Você
formou uma equipe, auxiliou, conduziu ao topo…
eu só sei treinar e fazer umas acrobacias.”
“Não torture o Levi, Clint. Eu te avisei que ele
não aceitaria.” Disse Caleb.
“Não custava tentar.” Clint deu um suspiro,
pegou a faixa e guardou no bolso. “Foi mal, sexy.
Mas escute o que eu digo, você seria o melhor
capitão do mundo.”
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“Melhor capitão, o Levi? Mande ele escolher


entre duas coreografias, que ele começa a chorar
pior que uma criança.” Kris cutucou minhas
costelas, toda implicante.
“Eu não sei lidar com pressão, tá bom?” Eu
acotovelei a Kris, que riu de se matar. “Até aguento
se for comigo mesmo, mas tomar decisões por um
monte de gente? Eu morreria do coração.”
“Calma, calma, vou achar outro capitão. Agora
pare de chorar, sexy, tô me sentindo um vilão das
histórias de princesa.”
“Valeu, Clint, e desculpa de novo… não nasci
pra ser líder de coisa alguma.” Eu falei, secando as
lágrimas.
“Ei, vocês, sua dupla de deprimidos!” Elyse
arrastou Benny até nós, balançando sua cabeleira
loira e sorrindo animada. “Liguei pro nosso pai
agora, então espantem a cara de funeral porque vai
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rolar!”
“Vai rolar o que?” perguntei, confuso.
“Não estavam ouvindo nossa discussão? A de
despedida do Clint e… ai, meu Deus, não era pra
contar, né?” Ela cruzou as mãos na boca.
“Consegui contar primeiro, sua pirralha
linguaruda.” Clint afinou os olhos, fingindo
indignação. “Pretendo retornar para Bobcat Hollow
com frequência, não preciso de despedidas.”
“Se não quer uma despedida, então vamos
comemorar sua aprovação na faculdade! Estão
todos convocados para uma festa na piscina!” Ela
sorriu animada para o Clint, então afiou seus olhos
como agulhas na minha direção. “E você vai se não
quiser morrer, Levi. Você se diz melhor amigo do
meu irmão e ainda assim nunca nos visitou. Isto é
inaceitável!”
“Seria legal você ir, só dessa vez.” Disse
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Benny, ainda super deprimido com sei lá o quê. “O


tempo tá meio frio, mas podemos ligar o aquecedor
da piscina e encher de boias e brinquedos
coloridos.”
Oh, ótimo. Agora sim eu queria chorar e me
esconder num buraco.
“Endireita esse sorriso, sexy, ou vou pegar
emprestado o bastão da treinadora Maple!” Clint
apalpou minha bunda e me fez gritar. “Elyse tem
razão, faz tempo que não reunimos a equipe em
uma festa. Minha última ordem como capitão é que
você apareça, você precisa aprender a se divertir.”
Eu pensei em dizer que treinar era divertido, e
que até mesmo passear com eles me fazia muito
feliz. Mas eu sentia que testava a paciência de todo
mundo, não queria parecer ainda mais esnobe e
egocêntrico.
“Eu… eu prometo tentar…” Sussurrei, com o
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olhar nos meus pés.


Elyse agitou seus pompons em um gesto de
vitória. Após um treino tão exaustivo e de final tão
trágico, todo mundo precisava relaxar e rir. Eu não
queria desmanchar ainda mais a moral da equipe,
mas também não podia contar sobre a minha
alergia. Eles com certeza não a creditariam.
Uma festa na piscina… Como raios eu
conseguiria a permissão do papai Hian??

****

Quando cheguei em casa nem precisei procurar


meus pais. Pela movimentação no milharal e som
de galhos quebrando, era bastante óbvio onde eles
estavam.
Eu afastei as folhas afiadas e entrei no labirinto

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de plantas. Comparado às plantações vizinhas, o


nosso milharal era bem pequeno, servia apenas para
alimentar nossas cabras ao longo do ano. O
tamanho reduzido dispensava o uso de máquinas, e
ainda assim era grande o bastante para uma colheita
manual longa e cansativa.
Papai Hian estava logo adiante, arrancando as
espigas maduras e jogando em um cesto. Ele
geralmente vestia-se com elegância, especialmente
quando viajava à capital para vender seus quadros,
mas durante a colheita sua roupa era desleixada
como a do papai Maikon: botas altas, calça jeans,
chapéu de palha e um suéter de tricô.
Embora parecesse bem concentrado, papai Hian
logo notou minha presença e virou-se na minha
direção, levemente curioso.
“Por que está de mochila? Hoje é domingo.”
Disse ele.

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“Tive um treino com a equipe.” Eu joguei


minha mochila no chão, me perguntando como
começar aquela conversa.
“Ah, sim, o Maikon me contou. Não costumo
esquecer essas coisas.” Ele deu um suspiro cansado
e puxou um segundo cesto, ainda vazio. “Poderia
me ajudar? Talvez dê pra colher tudo ainda hoje.”
Eu concordei e torci a primeira espiga até
arrebentá-la da planta, angustiado. Papai Hian
costumava ser distante e autocentrado, mas naquele
dia mais do que nunca eu precisava de um sorriso,
qualquer demonstração de que alguém se
importava.
“Eu machuquei um amigo, hoje.” Falei.
“De propósito?” Papai Hian me espiou de
relance, ocupado com os malditos milhos.
“Eu ensaiei aquele salto mil vezes. Nunca caí,
nunca falhei. Eu precisava ser perfeito e não fui.”
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Meus olhos marejaram de novo, mas que droga. “E


o capitão da equipe pagou o preço dos meus
defeitos.”
Eu sequei uma lágrima que escapou e senti uma
mão no meu ombro.
“Você tem o coração doce, filho. Se este cara
perceber isso, certamente não guardará rancor.”
Papai Hian curvou os lábios secos em um
sorrisinho.
Eu concordei, lembrando que Clint realmente
não me odiava por isso. Ainda assim doía tanto.
Percebendo o tamanho da minha tristeza, papai
Hian fechou o cesto e sentou em cima, cansado
demais para alguém que apenas colhia espigas.
“Você é popular, filhote, cheio de amigos,
planos e atividades. Na sua idade eu era obcecado
pelo seu pai Maikon. Se nos trancassem em uma
caixa onde existisse apenas nós dois, ainda assim
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eu teria sido o cara mais feliz do mundo.”


Eu dei uma risadinha amarga. Com certeza o
papai Maikon não dividiria dessa felicidade, mas
melhor nem pensar nisso. Já havia motivos o
suficiente para eu me angustiar.
“A Elyse e o Benny vão dar uma festa hoje. É
uma festa de despedida, eles gostariam muito
que…”
“Os filhos do xerife Thornwall? Aquele com
uma piscina no quintal?” Papai Hian arqueou uma
sobrancelha.
Ai, maldição, a conversa nem havia decolado e
já despencava em parafuso.
“Prometo ficar bem longe da piscina, pai! E eu
não vou beber, vou ficar quietinho no sofá e…”
Papai Hian levantou e jogou as mãos pro ar,
irritado.

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“Não, nem pensar.” Ele me deu as costas e


continuou colhendo milhos. “Já conversamos sobre
isso mil vezes. Você vai perder suas lentes de
contato, ou então cair na água e morrer.”
“Mas pai, eu já tenho dezesseis anos! E essa
minha alergia nem faz sentido, digo, eu procurei na
Internet e não encontrei ninguém com o mesmo
problema!” Eu o persegui pelo milharal, frustrado.
“Não acha que podemos, sei lá, testar de novo? Eu
era só um bebezinho quando…”
“Não é não, Levi! Faz ideia de como foi
terrível? Apenas alguns segundos de banho e você
quase morreu. Tente entender o drama dos seus
pais, quando descobrimos que você é alérgico a
piscinas!”
“E eu também sou alérgico ao mar, banheiras, e
a caixas d’água.” Eu revirei meus olhos. “Pai,
podemos concordar que isso não faz muito

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sentido?”
Papai Hian cruzou os braços e voltou a me
encarar, bravo e meio… assustado?
“Você não vai chegar perto daquela piscina,
Levi. Temos uma colheita para terminar e você
precisa alimentar as cabras. Pode encontrar seus
amigos na aula de amanhã.”
“Pai, por favor…”
“Você quer ficar de castigo?” Gritou ele.
Papai Maikon surgiu em meio às plantas,
trazendo copos e uma jarra de água.
“Ei, ei, eu saio por cinco minutos e vocês já
começam a se matar?” Papai Maikon serviu um
copo e entregou ao papai Hian, que bebeu em goles
enormes e rápidos. Então ele sorriu para mim.
“Como foi o treino hoje, filho? Voltou cedo para
casa.”

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“Eu pretendia me arrumar para uma festa, mas


vamos colher milho! O que mais um adolescente
poderia desejar?” Eu arranquei uma maldita espiga
e joguei no cesto com violência, então agarrei o
cesto pelas alças. “Vou jogar essa porcaria no
depósito.”
Meus pais tentaram me chamar de volta, mas eu
ignorei e segui adiante, para longe daquelas
malditas plantas que só serviam pra esfolar meu
rosto e dar trabalho. Naquele momento todos
deviam estar se arrumando, e a Elyse e o Benny
comprando quilos de salgadinho e doces. E como
eu gastaria o meu domingo? Servindo farelo às
cabras! Que nem sempre!
Ofegante e exausto por carregar o enorme
cesto, eu cheguei na metade do caminho e então
percebi o idiota que eu era. Havia esquecido minha
mochila no meio do milharal.

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Que maravilha precisar voltar após uma saída


dramática, mas aqueles pompons profissionais
custaram toda a minha mesada e eu não queria vê-
los devorados por ratos.
Eu carreguei o cesto até os fundos do galpão
das cabras, onde uma portinhola rente ao chão
conduzia ao depósito de milho. Eu a abri e virei as
espigas na escuridão empoeirada, ansioso em
resgatar minha mochila.
Com tudo devidamente ajeitado eu voltei para
dentro do milharal. Quando ouvi meus pais
discutindo eu diminuí meus passos, curioso por
ouvir o meu nome.
“Se ele prometeu ficar longe da água, então
qual o problema? Na idade do Levi nós misturamos
glitter no meu exame de urina para o médico pensar
que eu era um unicórnio, deixa ele ser adolescente
também.”

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“Nós fizemos o quê?? Enfim, você sabe o que


está em jogo, Maikon. Não lhe arrancaria pedaços
me apoiar de vez em quando. Pensa que eu gosto de
ser o pai malvado?”
“Eu sei que não, mas eu me sinto tão mal por
ele. A competição de Miami se aproxima a cada
dia, e o Levi…”
“Não me fala dessa competição, eu já ouvi mais
do que o suficiente e você sabe o que tem em
Miami, não sabe?” Hian deu um longo suspiro e
escondeu o rosto nas mãos. “O que vamos fazer? A
cada dia fica mais difícil controlar aquele garoto.”
“A coisa sobre piscinas funcionava bem quando
ele era criança.” Pai Maikon deu uma risadinha.
“No que eu estava pensando quando te deixei
inventar uma mentira de tritão? Alergia a caixas
d’água… Eu devo ser um idiota.”
Do que eles estavam falando? Eu me aproximei
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para ouvir melhor, então uma espiga seca estalou


sob os meus pés.
Meus pais olharam direto na minha direção. Ai,
que ótimo, agora sim eu ficaria de castigo.
“D-d-desculpa, eu não quis ouvir nada, só
queria pegar minha mochila.” Falei, acuado como
um coelho.
“Venha aqui, Levi.” Papai Hian murchou os
lábios, bem aborrecido.
“Hian, não exagere com ele…” Pediu papai
Maikon.
Tremendo de nervosismo, eu parei rígido como
um bastão diante do papai Hian. Da última vez que
o vi tão bravo ele me fez raspar o esterco seco do
estábulo.
Sentado sobre o tampo do cesto, papai Hian
cruzou as pernas e os braços, com o olhar nos

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meus.
“Levi, você promete ficar longe daquela
piscina?” Perguntou ele.
Que pergunta era aquela?
“Ahn… sim?” Respondi. “Não vou nem sair da
casa, prometo, posso inventar que estou doente ou
que não sei nadar. Aliás, essa última parte é
verdade.”
“E não vai beber, não vai fumar, não vai perder
suas lentes de contato nem corromper o seu corpo
despreparado?” Perguntou papai Hian.
Eu balancei a cabeça, desconfiado com os
rumos daquele interrogatório.
Papai Hian analisou minha expressão como um
detetive analisa os suspeitos nos filmes de policial.
Ele bufou em desistência e eu percebi que papai
Maikon estava sorrindo novamente.

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“Tá bom, pode ir. ” Os olhos do papai Hian


tremulavam azuis e intensos, extremamente
angustiados. “Divirta-se com os seus amigos.”
Um sorrisão iluminou o meu rosto.
“Obrigado, papai Hian! Obrigado, de verdade!”
Eu o abracei enlouquecido de tanta alegria, passei
minha mochila pelo ombro e corri para casa, já
pensando no que vestir.
Em meio a tantas angústias, finalmente havia
um pouco de esperança dentro de mim. Se papai
Hian autorizou que eu fosse à festa, talvez
permitisse a minha viagem também. Eu só
precisava me comportar e garantir que nada de
errado aconteceria.

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Capítulo 17

Eu imaginava que seria uma festa pequena, mas


quando cheguei nos portões do condomínio avistei
um bando de gente, em sua maioria colegas de
cheerleading ou jogadores de futebol americano.
Eu me aproximei da reunião e achei Clint e
Caleb. Os dois estavam lindos com camisa de
marca e calça apertada, parecidos entre si exceto
pelo gesso no braço do Clint. Era estranho vê-los
tão apresentáveis e não suados e exaustos em seus
uniformes cor-de-rosa. Ainda bem que eu também
caprichei no visual, com uma calça justinha que
empinava a bunda e uma camiseta azul no tom dos
meus olhos. Perfume importado, mechas escuras
caindo pelo lado do rosto… acho que eu não iria
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passar vergonha.
“Algum problema aqui?” Perguntei ao Clint.
“Uau. Tranquem seus ativos em casa, Levi
chegou para passar o rodo.” Clint mordiscou o
lábio, fascinado com a minha aparência.
“Estamos esperando nossa vez.” Disse Caleb.
“É um condomínio chique, a Elyse precisou
organizar uma lista de convidados.”
Ignorando os — muitos — olhares nos meus
glúteos, eu acompanhei a fila e avistei um senhor
uniformizado nos portões do condomínio. Ele
conferia a lista de nomes em uma prancheta.
Logo chegou a minha vez.
“Nome?” Perguntou ele.
“Levi.”
O segurança desceu o lápis pela lista.
“Não tem nenhum Levi na lista. Qual o seu
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nome completo, garoto?”


Os caras do futebol americano começaram a rir
atrás de mim. Eu ia matar a Elyse.
“O sobrenome dele é Dolinsky-Makaira. É um
sobrenome bem único, o senhor não concorda?”
Clint deu um tapinha no meu ombro, com aquele
sorriso que arrancava suspiros das meninas.
“Hum, realmente tem um Dolinsky-Makaira
aqui. Pode passar.”
Eu soltei o ar lentamente. Mais uma vez Clint
salvou minha vida.
O segurança sorriu pra mim quando eu passei.
“Aproveite a festa, senhor Leviathan.”
As risadinhas dos rapazes se tornaram
gargalhadas. Eu avermelhei muito e apressei o
passo até a casa certa.
Eu definitivamente mataria a Elyse.
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****

“Não fique com raiva da Elyse, sexy. Foi só


uma brincadeira” Clint logo me alcançou, e juntos
dos outros caras nós atravessamos os campos
floridos daquele condomínio elegante.
“Ela sabe que eu odeio meu nome. Todo mundo
sabe.”
“É um nome fofo.” Disse Caleb.
“Não, não é. Eu já tenho fama de arrogante e
metido, um nome prepotente desses não me ajuda
em nada.”
“Leviathan é um bom nome.” Clint ergueu o
braço engessado, já coberto de assinaturas. “É uma
honra para mim ter salvo o deus dos oceanos.”
“Não tem graça, Clint!” Eu gritei com ele, mas
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Clint e Caleb apenas riram de se matar.


Eu bufei e segui na frente deles. Não foi difícil
achar a casa da Elyse. Era o lugar com música alta,
spotlights coloridos iluminando o céu noturno e um
monte de gente bebendo no jardim.
O tamanho daquela casa me surpreendeu. Era
tão grande e linda. Por ser um condomínio fechado
não havia nenhuma divisória entre os terrenos,
então dava pra ver tanto os jardins bem cuidados
como o quintal dos fundos, onde se concentrava a
maior parte dos convidados.
Antes que eu chegasse, Elyse me avistou e se
jogou em cima de mim, me abraçando apertado.
“Levi! Eu não acredito que você veio mesmo!”
Ela esperneou os saltos altos, pendurada no meu
pescoço. “Ai, o Benny vai adorar, quem sabe você
não o anima? Ele tá tão aborrecido desde os treinos
da manhã.”
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Eu até queria puxar as orelhas da Elyse, mas


sua alegria logo desmanchou meu aborrecimento.
Aquele vestidinho vermelho combinava
perfeitamente com a cabeleira loira, a deixando tão
linda que nem parecia uma menina de catorze anos.
“O que será que chateou ele? O Benny sempre
foi um poço de alegria infinita, ele até me cansa às
vezes.” Eu disse.
“Boa sorte tentando entrar naquela cabeça dura,
ele está na sala servindo os convidados. Tem
ponche na mesa da cozinha, refrigerantes, gemada
e… aaah, Clint e Caleb, vocês estão uns arrasos!!
Quero tirar mil fotos com vocês!!”
E simplesmente assim, Elyse esqueceu da
minha existência. Era até melhor, precisava admitir
que a situação do Benny me preocupava um
pouquinho.

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****

Até a sala era enorme. Um espaço amplo e


elegante, com muitos sofás e uma varanda com
acesso direto ao quintal dos fundos.
Um estouro molhado me causou um arrepio, e
só então notei que os convidados no quintal
pingavam água e trajavam muito pouco, apenas
sungas e biquínis. Então era ali que a piscina
ficava.
Talvez Benny estivesse dando um mergulho. Eu
me aproximei do exterior da casa então alguém me
chamou. Eu me virei e vi Benny acenando para
mim, bem acomodado no sofá.
“Não acredito em quem estou vendo.” Disse
ele.
“E aí, Benny.” Eu sentei ao seu lado e roubei a

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latinha que ele segurava, então torci a boca ao


provar. “Refrigerante de limão?”
“O que esperava? Meu pai é o xerife da
cidade.” Ele cobriu a boca e aproximou do meu
ouvido, sussurrando. “Se quer beber algo mais
interessante, prove o ponche.”
“Farei isso.” Eu devolvi sua latinha e cruzei as
pernas, bem confortável. “Aconteceu algo no treino
de hoje?”
“Quer dizer, tirando a parte em que você quase
quebrou a cabeça como um ovo?”
“Benny, você fez o que pôde para me segurar. E
eu sei que este não é o motivo, você estava
aborrecido desde antes.”
A gritaria lá fora cortou nossa conversa. Dois
caras arremessaram a Kris na piscina, fazendo
espirrar água em todas as direções.

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A brincadeira deixou Benny ainda mais


sombrio. Ele baixou o olhar para a latinha, girando-
a em sua mão.
“Ei, Levi… você acha que sou feio?”
“Não, por quê?” Eu levantei minha
sobrancelha.
Benny coçou o rosto redondo e cheinho, e eu
até analisei seu corpo procurando o motivo daquela
dúvida. Benny nunca foi chegado em moda, mas
aquela camiseta e calça ficavam bem nele e o
cabelo loiro escovado para trás também era ok.
“Não se faz de cego, Levi. Olha pra todo
mundo. Caras grandes e musculosos, mulheres
magrinhas com peitão e bunda… tá vendo algum
outro cara gordo?”
“Você não é gordo, Benny. Você é… grande. E
forte.” Eu sorri torto pra ele.

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“Grande e forte é um jeito educado de chamar


de gordo, sabia?” Benny inflou as bochechas,
ficando ainda mais redondo.
“Não é verdade… acho. Tem caras gays que
curtem homens grandes.” Eu disse.
“É, eu sei…” Benny suspirou e deitou a cabeça
no encosto do sofá, olhando para o teto. “Desculpa,
eu queria que você viesse pra se divertir, não pra
me ouvir resmungando.”
“E eu vou me divertir. Nós vamos.” Eu sorri
para ele. “Nós somos melhores que tudo isso,
Benny. Os outros caras só falam de namoro, sexo e
essas bobagens sem graça, mas a gente tem mil
assuntos, treinamos juntos o tempo todo, jogamos
videogame, não precisamos ficar chatos que nem o
Will e a Kris, ou a Magda e o Gale, ou o Clint e…
metade dos caras da escola.”
Assim que terminei de dizer isso, meu coração
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apertou com o quanto minhas palavras eram


verdade. A maioria dos meus amigos eu conhecia
desde o ensino fundamental, mas aos poucos cada
um foi formando casais, se afastando, vivendo em
bolhas de namorinhos e encontros românticos.
Benny era meu último amigo solteirão, se ele
também me esquecesse quem mais eu teria?
“Foi mal Levi, eu não quis te chatear também.”
Benny levantou seu corpão do sofá e forçou um
sorriso. “Acho que é apenas um pouco de inveja.
Eu me iludi pensando que meu par perfeito cairia
dos céus num dia qualquer, mas quando um homão
da porra enfim surge do nada, acaba babando por
você que nem todo mundo.”
“Quem? Aquele tal de Rayner?” Perguntei,
estranhando o súbito calor no meu rosto. “Que
besteira, Benny, ele apenas encarou a gente e
sumiu. Com certeza ele já esqueceu que existo.”

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Assim que eu disse isso, a música baixou e a


gritaria e risadas diminuíram. Todos no quintal
olhavam em uma mesma direção e cochichavam
entre si.
“Quem é ele?”
“É algum amigo da Elyse?”
“Não pode ser da cidade. Nunca vi parecido.”
“Ele surgiu hoje no time, joga que nem um
animal, é insano.”
Curioso, eu interrompi a conversa com Benny e
fui para o quintal, então meu coração quase
despencou ao estômago.
No lado oposto da piscina, um cara alto,
musculoso e ridiculamente bonito vasculhava a
multidão com seu olhar de esmeraldas. Ele ainda
trajava o uniforme do futebol americano sei lá por
qual motivo, mas meu Deus, aquela camisa

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apertada salientava cada gominho da barriga e suas


coxas fortes pareciam embaladas a vácuo pelas
leggings, expondo cada relevo de músculo.
Rayner Schwanz. Assim que eu o reconheci ele
também me avistou na multidão e focou o olhar
diretamente em mim, tão intenso que eu me senti
pelado.
“Já esqueceu que você existe, é?” Benny fez um
biquinho, sarcástico mas pouco irritado. Ele me
alcançou os dois copos que estava segurando. “Eu
trouxe ponche pra gente, mas vai lá. Se rejeitar um
homão daqueles eu vou precisar te bater.”
“Quê? Mas não era você quem queria ele?”
“Nem todos os garotos são bonequinhos de
olhos azuis, com pernas finas e firmes como ferro,
e ainda por cima capazes de passar os tornozelos
por trás da cabeça, Levi. Querer e poder, pra mim,
são coisas bem diferentes.”
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“Você só precisa trabalhar sua autoconfiança,


Benny.” Eu sorri pra ele, tentando fingir que
entendia do assunto. Se Benny suspeitasse que eu
ainda era virgem, que eu nunca havia nem beijado
ninguém mesmo após tanto assédio e corações
partidos, acho que ele torceria meu pescoço.
“Vamos fazer o seguinte: eu vou falar de você, e
com certeza o Rayner vai se interessar.”
“Sério?” Benny arregalou os olhos e sorriu,
muito surpreso. “Você faria isso por mim?”
“Namorar deve ser chato, Benny, mas se é tão
importante pra você, eu posso dar uma ajudinha.”
Benny deu um gemidinho super empolgado,
passando olhadelas rápidas pelo Rayner. Ele
gaguejou alguma coisa à beira de surtar, voltou pra
dentro de casa e ficou espiando.
É, meu plano de animar o Benny funcionou
melhor que o esperado. Conversar com
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desconhecidos não era muito a minha coisa, mas eu


podia fazer um esforço pelo meu melhor amigo.
Rayner permanecia imóvel, apenas seus olhos
acompanhando cada um dos meus passos. Alguns
colegas até tentaram conversar com ele, mas foram
prontamente ignorados e logo desistiram. Quando
contornei toda a enorme piscina e cheguei nele, já
não havia muita gente ao redor.
“Ahm… oi.” Meu rosto aqueceu de novo. Que
sensação esquisita. “Aceita ponche?”
O cara baixou o olhar para o copo que eu
estendia a ele, e então voltou a me encarar.
“Por que azuis?” Perguntou ele.
Nossa, que voz grave e confiante. E o cheiro
dele também não era nada ruim. Eu até me
aproximei um pouco demais, tentando reconhecer
de onde eu lembrava aquele aroma. Não parecia
nenhum desodorante que eu conhecesse mas havia
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algo de familiar, era algo salgado e herbal ao


mesmo tempo.
“Azuis o quê?” Perguntei, meio abobado, e
então percebi o óbvio. “Tá falando dos meus olhos?
Sei lá. Porque Deus quis assim?”
O cara nem sorriu para a piadinha idiota. Ele
era tão alto que eu precisava inclinar o pescoço
para olhá-lo nos olhos. Até o calor que ele emanava
era gostoso, como me aninhar diante da lareira no
meio do inverno.
Eu bebi largos goles do meu ponche. Senti que
iria precisar.
“Ahm… então… meus pais são um casal gay,
certo? Um deles é meu pai biológico, então como
os dois tem olhos azuis, posso ser filho genético de
qualquer um deles.” Eu engoli seco, começando a
enjoar pelo nervosismo. A conversa estava ficando
pessoal demais muito rápido, e eu ainda nem havia
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mencionado que meus pais eram primos entre si…


dentre outros segredinhos.
“Interessante.” Ele falou em um tom vago,
pensativo.
“E você? O que sua família veio fazer em
Bobcat Hollow?”
“Vim sozinho.”
“E por quê?”
O cara voltou a me encarar em silêncio. Então
ele finalmente aceitou o ponche e bebeu alguns
goles.
Percebendo que a conversa morreu ali, eu me
virei na direção da piscina, onde diversos colegas
jogavam vôlei e se batiam com espaguetes de
espuma.
Um desconforto latente borbulhou dentro de
mim, e não era apenas pelo olhar devorador do

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Rayner. Percebi que era a primeira vez que eu via


tanta água, com ondas agitadas que cintilavam em
mil cores, iluminadas pelos holofotes e pelas
estrelas. O cheiro de cloro incomodava meu nariz e
ainda assim o ondular me atraía, me fazendo
imaginar a sensação da água envolvendo e
refrescando meu corpo.
“Tem medo?” A voz do Rayner me
sobressaltou. Ele também admirava a piscina, ao
meu lado.
“Medo do quê?” Perguntei, novamente sem
conseguir resposta. “Nunca entrei em uma piscina,
se é o que está me perguntando. Eu provavelmente
afundaria como uma pedra, seria bem vergonhoso.”
Rayner bebeu o último gole de ponche e me
entregou o copo vazio. A forma como ele lambeu
os lábios úmidos causou relâmpagos dentro do meu
peito.

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“Você me verá de novo.” Ele deu as costas e foi


embora.
Ahm… claro que nos veríamos de novo, porque
ele se transferiu para a minha escola. Aliás, como
raios ele entrou no condomínio cercado? E por
quê?
Eu também terminei meu ponche e foquei o
olhar no copo vazio do Rayner, naquela parte
mastigada da borda onde seus lábios carnudos
haviam tocado. Eu não conseguia esfriar meu rosto.
“E então, o que ele disse?” Perguntou Benny.
Assustado, eu balancei a cabeça e endireitei a
postura.
“Quê?” Perguntei, atordoado. “Ah, o Rayner?
Ele… ahm… te achou legal. Ou pelo menos adorou
os meus elogios a você, então acho que tudo deu
certo.”

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Benny bateu palmas, super empolgado e alegre.


“Aaah, que incrível! Anota o que eu digo, Levi,
este é o ano em que eu vou sair da seca!” Disse
Benny. “Caleb insistiu que eu entrasse na piscina,
para fechar o time de polo aquático. Quer jogar
com a gente?”
Eu admirei a água reluzente e profunda, que
parecia balançar no ritmo do meu coração.
“Ahm… é melhor não. Alguém precisa fazer
companhia pro Clint, é meio que culpa minha ele
não poder participar.”
“Tá bom, então. Mas não desapareça porque eu
e a Elyse baixamos muitos filmes. Os mais íntimos
vão virar a noite aqui em casa e você está incluído.”
Eu concordei em ficar e voltei pra dentro da
casa, sem perceber que havia me metido na maior
das roubadas.

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Capítulo 18

Meus olhos doíam.


Aninhado em um dos pufes da sala de vídeo, eu
esfreguei os dedos nas pálpebras tentando me livrar
da sensação arenosa.
Clint deslizou a mão pela base das minhas
costas, tão grudado em mim que era impossível
ficar confortável.
“Já sonolento, sexy? São recém três da manhã.”
Perguntou Clint.
Eu discordei com a cabeça, me sentindo super
trouxa. Minhas lentes de contato ardiam,
implorando para serem removidas após um dia
inteiro de uso.

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Agoniado, eu peguei o colírio de lentes no meu


bolso e pinguei nos meus olhos. O desconforto
diminuiu, mas era apenas temporário. Nunca havia
usado minhas lentes por tanto tempo seguido.
A maioria do pessoal já havia ido embora, então
enfim havia silêncio na casa. Ficamos apenas eu,
Clint e Caleb para assistir os tais filmes que o
Benny baixou.
Elyse e Benny vasculhavam sua lista de filmes
no laptop enquanto Caleb dormia profundamente
no sofá de trás. Eu mesmo dei um longo bocejo,
querendo demais apagar também.
“O xerife Thornwall não vai se aborrecer da
gente ficar?” Perguntei ao Benny.
“Claro que não, meu pai é bem tranquilo.”
Benny passou algum arquivo para sua pendrive.
“Além do mais, ele nem está em casa. Ainda tá
com os turnos invertidos, envolvido na investigação
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do lince gigante.”
“Lince gigante?” Perguntei.
“Em qual planeta você vive, Levi? Aquele
lance dos animais destroçados. Tá na primeira
página dos jornais da cidade.” Disse Elyse. “Nossa,
você faz alguma coisa além de treinar?”
Eu mordi os lábios, envergonhado. Jornal era
coisa de gente velha, não era?
“Não existem linces em Bobcat Hollow. Não
ensinaram na escola que o desmatamento
exterminou todos eles?” Perguntei.
“É, mas parece que algum sobreviveu, e ficou
enorme.” Clint escorregou no pufe, praticamente
sentando no meu colo. “Pelo menos é isso o que
dizem.”
“Sim, ninguém nunca viu o tal lince, mas já
encontraram vários cervos e javalis mortos no

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bosque, todos eles com dentadas redondas no


corpo, e pedaços faltando.”
Eu arregalei os olhos. O bosque de Bobcat
Hollow ficava pertinho da nossa fazenda, era o
local de corrida favorito do papai Maikon, e onde a
gente sempre coletava frutas silvestres e
cogumelos.
Percebendo o horror na minha cara, todo
mundo começou a rir, até acordaram o coitado do
Caleb.
“Relaxa, Levi. A polícia toda tá atrás desse
bicho, logo vão capturar e levar para alguma
reserva. Além do mais, linces são apenas gatos
grandes. O maior deles não deve passar da altura
dos nossos umbigos.” Disse Elyse.
“Um gato violento e da altura do meu umbigo é
algo bem preocupante.” Clint tentava parar de rir e
não conseguia. “Gente, essa história toda é apenas
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um boato. Animais selvagens se matam o tempo


todo, o povo de Bobcat Hollow se assusta com
qualquer coisinha.”
“Foram cinco animais mortos na última
semana, Clint. Animais grandes.” Disse Benny.
“Deve ser pegadinha das crianças. Que tipo de
animal deixa uma mordida redonda?” Perguntou
Clint.
“E que tipo de criança faz cortes redondos em
animais mortos?” Devolveu Elyse.
“Deve ser simples, com um canivete e
paciência.” Disse Clint.
“Gente, e o filme?” Eu perguntei, com a cabeça
latejando. Malditas lentes de contato.
“Calma, meu irmão lerdo não sabe lidar com
tantas opções.” Elyse arrancou a pendrive das mãos
do Benny. “Ah, até que enfim. Me diz que não é

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um filme besta, Benny.”


“É um romance de época, sobre um garoto da
fazenda que descobre ser um príncipe!” Os olhos
do Benny brilharam em empolgação. “Mas ele
também descobre que tem um meio-irmão das
trevas, e é aí que a trama se complica!”
A gente tentou levar a sério, mas acabou dando
risada.
“Que história mais absurda, Benny.” Eu disse.
“Mas parece interessante, acho que… por que estão
me olhando?”
Todos haviam parado de rir e agora olhavam
direto pra minha cara. Clint eriçou o lábio, um tanto
assustado.
“Levi, o que houve com o seu olho?” Perguntou
ele.
“Será que é reflexo da TV?” Benny se

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aproximou para olhar de perto.


Ai, que merda. De qual olho eles estavam
falando? Na dúvida eu cobri os dois e me levantei
num salto.
“Eu preciso ir ao banheiro. Comecem o filme
sem mim!” Falei, enquanto corria às cegas para
bem longe de todo mundo.

****

Que maldição… o quanto será que eles viram?


Trancado dentro do banheiro, eu acendi a luz do
espelho e analisei meu reflexo.
Como eu imaginava, a lente desgastada pelo
uso desceu para baixo do olho. Eu a pincei com os
dedos e consegui remover a pequena rodinha azul.
Eu também removi a outra lente e soltei um
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suspiro de alívio, voltando a olhar para o espelho


com aquela que era minha real aparência. A
aparência de um monstro.
Meu rosto aqueceu em uma vontade enorme de
chorar. Por que eu fui nascer assim, uma aberração
com olhos dourados? E não eram dourados tipo
castanho claro, ou cor de mel, eram dourados
mesmo. Pareciam dois discos de ouro contornando
o preto das minhas pupilas.
O quanto será que meus amigos viram? Eu me
esforcei tanto tempo para manter minha imagem,
não queria perder tudo por conta de um descuido
estúpido. Eu era o melhor atleta da escola, tirava
notas até que mais ou menos, não era popular
demais, mas também nunca fui perseguido… eu
não merecia perder tudo por ser uma aberração dos
olhos de metal.
Tentando segurar o choro, eu lavei as lentes

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com o colírio e tentei colocá-las de volta. Apesar


do protesto dos meus olhos inflamados eu venci a
dor e firmei aquelas porcarias no lugar.
Novamente eu era apenas um típico estudante
de Dakota do sul, de lindos cabelos negros, pele
parda clarinha e olhos azuis como o céu.
Alguém bateu na porta. Eu abri.
“Tá tudo bem?” Perguntou Clint.
“Tudo ótimo.” Eu sequei meu rosto com a mão,
sem saber se era meu colírio ou lágrimas.
“Desculpa, podia avisar o pessoal que fui pra casa?
Não tô muito pra filmes, hoje.”
“Eu posso te dar uma carona, meu pai
emprestou a camionete.”
“Eu já falei que tá tudo perfeito, caralho!!” Eu
gritei, então soltei o ar lentamente. “Desculpa,
Clint. Pode me acompanhar até a entrada do

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condomínio, se quiser.”
“Eu sempre quero, sexy.” Clint piscou pra mim
e nós escapamos furtivamente da casa.
Elyse já havia desligado as luzes externas,
então o condomínio estava um tanto mais escuro.
Eu e Clint atravessamos as alamedas de casas
idênticas procurando a saída, e neste tempo
consegui me acalmar um pouquinho.
“Desculpa ter estourado. É tão difícil me
controlar, às vezes.” Eu disse ao Clint.
“Já conheço bem o seu temperamento, meu
querido discípulo.” Ele deu uma piscadinha pra
mim. “Pode gritar comigo o quanto quiser, eu até
gosto.”
“Para com isso.” Eu ri, sem jeito. “É só que…
os campos de milho, a paisagem plana e infinita,
nenhuma montanha no horizonte… é tudo tão
igual, o tempo todo.”
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“Dá vontade de explodir, mesmo.” Clint riu


com doçura. “Acho que por isso nos damos tão
bem. Quando eu me mudei para cá também pensei
que fosse enlouquecer. Os agitos de Nova York,
trocados pela rotina provinciana de Bobcat Hollow.
Não sei se ter nascido aqui é melhor ou pior.”
“Eu não nasci aqui. Meus pais se mudaram do
Havaí quando eu era bebê. Dá pra acreditar? Trocar
uma mansão em uma ilha paradisíaca por esse
monte de nada?”
“Eles devem adorar cabras.” Clint riu.
Eu também ri e juntos seguimos adiante pela
escuridão do condomínio. Só então notei que
andávamos em círculos em uma parte escura e
silenciosa, sem o menor sinal do portão.
Quando me virei para dar meia-volta, porém,
Clint segurou o meu braço. Seu olhar meigo havia
mudado para algo que me causou arrepios. Mesmo
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na pouca luz dos postes distantes eu notava o


vermelho em seu rosto.
“Ei, sexy… você quer fazer?”
“Quero fazer o quê?” Eu arqueei a testa.
Clint olhou os arredores e me puxou para os
fundos de uma casa qualquer.
Eu debati meu braço, ele estava me
machucando. Clint apenas me soltou diante de uma
mesa de jardim e me forçou a sentar na cadeira.
“Ninguém vai ver a gente aqui. O que você
acha? Vai ser divertido.” Perguntou ele, com um
sorriso travesso.
“Divertido?”
“Eu te ensinei tanta coisa, me deixa te ensinar
sobre isso, também.”
Do que raios ele estava falando? Eu cruzei os
braços e esperei que Clint se explicasse.
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Percebendo que eu não respondia, Clint segurou


meu pulso e forçou minha mão no meio das
bermudas dele, por cima de um relevo bem
saliente.
“Quem diria que eu veria o meu Levi abanando
o rabo para um recém chegado qualquer. Ele não
presta pra você, sexy. Você precisa de alguém que
saiba ensinar.”
Algo duro latejou contra a minha mão e eu
gemi agudo, recolhendo o braço com arrepios de
horror pelo meu corpo.
“É melhor eu ir.” Eu levantei rápido e esfreguei
a mão no lado da roupa, tentando tirar aquela
sensação de mim.
“Ah, qual é, Levi? Que adolescente não dá uns
amassos de vez em quando?” Ele tentou me segurar
de novo e eu desviei. “Desculpa, tá bom? Vamos
com mais calma.”
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Calma?? Calma era a última coisa na minha


mente. Eu saí correndo até os portões, disparei tão
rápido que nem me despedi dos seguranças.
Eu esfreguei tanto a minha mão que até esfolou
a pele. Mas que maldição! Por que todo mundo só
pensava em sexo, e em se pegar, e namorar, e todas
essas besteiras? Se Clint queria fazer isso com os
outros amigos dele, foda-se! Eu não era como os
outros. Eu… eu não abanei meu rabo pra ninguém.
Cansado de tanto correr, eu enfim diminuí a
corrida e caminhei pela escuridão da cidade,[
querendo chorar.
Bobcat Hollow não era conhecida por sua
badalada agitação noturna, então as quadras
estavam um completo deserto, esbranquiçadas pelo
princípio de um nevoeiro. Após atravessar algumas
ruas escuras, porém, eu percebi que não estava
sozinho.

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Duas orbes verdes brilhavam sob a luz da lua.


Rayner me observava discretamente, no estreito
espaço entre a padaria e a igreja.
Eu parei diante dele, frustrado mas curioso. Se
pelo menos ele não tivesse aparecido… ou ido
embora…
Minha vontade era gritar e descontar toda a
minha raiva, mas algo no Rayner acalmou meu
coração. Meu rosto aqueceu de novo.
“Você não dorme, Rayner? Podia ter ficado na
festa. A Kris levou fogos de artifício, foi bem
divertido.”
Sem responder ou reagir às minhas palavras,
Rayner agarrou minha camisa e me puxou para
dentro do beco. Ele bateu minhas costas na parede
gelada.
Atordoado com o susto, eu engasguei assustado
ao notar nossas posições. O peito do Rayner
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esfregava contra o meu, e seu corpo forte me


mantinha imobilizado contra a parede.
Nossa, qual era o problema de todo mundo
naquela noite? Rayner podia ser cheiroso e bonitão,
mas nenhum estranho me tratava com grosseria
sem levar uns socos.
Ainda assim, algo naquela situação me
mantinha imóvel, com a respiração rápida e o rosto
cada vez mais quente. E quando Rayner ajeitou a
perna entre as minhas coxas, quase soltei um
gemido.
“Dá licença? Tô tentando ir pra casa sem ser
molestado pela cidade inteira.” Eu falei, no meu
tom mais cínico.
Rayner deslizou a mão pelo meu ombro e tocou
o lado do meu pescoço, me causando todo tipo de
calafrio. Como um líder de torcida eu estava mais
do que acostumado com caras me agarrando e
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ainda assim nunca senti nada parecido. Não


lembrava em nada o que senti com Clint. Meu
corpo parecia um vulcão querendo explodir.
Para completar o meu fervor, Rayner
aproximou nossos rostos e lambeu os meus lábios.
Eu gemi, enlouquecido e confuso pra caramba.
Pior ainda, eu não conseguia querer ir embora,
hipnotizado pela maciez quente e suave da língua
do Rayner.
Rayner afastou o rosto e manteve nossos corpos
prensados, atento às minhas reações mais
involuntárias.
“É como eu suspeitava.” Ele sussurrou no meu
ouvido. “Seu corpo já está preparado.”
A voz do Rayner causava tornados no meu
estômago. Quando notei eu esfregava o lado
interno das minhas coxas naquele joelho invasor,
provocando-o, querendo mais daquela língua
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quente.
Espera, isso não era certo.
Antes que eu surtasse de vez, eu empurrei o
peito daquele cara e me afastei. Rayner caiu no
chão ficou me olhando do jeito enigmático de
sempre.
“Desculpa, mas já chega. Meu melhor amigo tá
afinzão de você e eu prometi que ia juntar os dois,
então vamos fingir que isso não aconteceu.” Eu
disse a ele.
“Você vai querer mais. É a sua natureza.” Disse
ele, ainda jogado em uma pose bem convidativa.
Ah, disso ele podia ter certeza. Eu já nem sabia
como iria dormir com a lembrança de seu corpo
carimbado no meu, mas eu era um bom amigo e
não podia…
A atenção do Rayner enfim desviou de mim

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para algo no chão. Meu colírio das lentes de


contato.
Droga! Se esse cara também descobrisse meus
olhos bizarros, aí sim eu me enforcaria no estábulo
das cabras.
Em um gesto rápido eu peguei o colírio e me
mandei correndo pra casa.

****

Que noite mais esquisita, eu não sabia se


chorava ou se ria igual a um bobo.
Já morto de sono, eu retirei minhas lentes de
contato no banheiro e então procurei o colírio no
meu bolso, para guardar os dois juntos. Quando
retirei o conteúdo do meu bolso, porém, notei algo
errado.

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“Dois colírios de lente?” Eu franzi a testa,


analisando os dois frascos idênticos.
Não fazia sentido, mas o sono me fez bocejar
alto e os galos já cantavam lá fora. Eu precisava
dormir pelo menos um pouquinho antes da aula
começar.

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Capítulo 19

Que péssima ideia fazer uma festa no domingo.


Eu não conseguia manter os olhos abertos nem
levantar a cabeça da mesa. E meus amigos estavam
num estado igualmente deplorável. Na mesa diante
da minha, Benny chegava até a roncar, sonhando
no meio da aula de biologia.
A treinadora Maple, que também era a
professora daquela disciplina, não deixou barato e
acertou um giz na testa do Benny.
“Senhor Thornwall e senhor Dolinsky-Makaira,
os treinos de ontem foram tão cansativos assim?”
Perguntou ela.
“Não… não senhora…” Benny bocejou e

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continuou dormindo.
Eu consegui manter os olhos abertos, mas por
dentro eu era um zumbi sedento por travesseiros.
“Tentem não envergonhar a turma, bando de
preguiçosos. Hoje temos um novo aluno.”
Oh, quem poderia ser? Óbvio que era o Rayner,
que ainda vestia o mesmo uniforme do futebol e
não demonstrava um pingo de sono. Aliás, acho
que ele nem piscava, apenas ficava me olhando,
sentado na mesa logo atrás da minha.
Eu senti uma breve vergonha pela coisa no
beco, mas o sono falava alto demais. Deixei que o
Rayner encarasse as minhas costas durante toda a
aula e acabei adormecendo num sono profundo.
Um sono que foi interrompido da forma mais
dramática possível.
“É uma pena nossos campeões estaduais

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estarem tão indispostos, terei que anunciar os


escolhidos do Best Cheer America na próxima
aula.” Disse a professora Maple.
Eu e Benny levantamos a cabeça bruscamente.
“A senhora já decidiu? Ah, meu Deus, conta
logo!” Disse Benny, ainda babado nos lados da
boca.
Eu olhei pra fora e notei o sol alto, e também
havia o professor de matemática no canto da sala e
um monte de números no quadro. Eu dormi até
durante o intervalo? Ai, tomara que o papai Hian
não ficasse sabendo.
“Quem vai participar das eliminatórias?” Eu
perguntei.
A treinadora Maple murchou os lábios pra mim,
pensativa, então voltou a sorrir para o resto da
turma.

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“Quero todos da equipe no campo de futebol,


ao fim da aula. O resultado será anunciado na
presença de todos.”
Revirado pela ansiedade, eu esfreguei meus
cabelos e bati os lados do rosto para acordar,
contando os segundos até o final da aula.

****

Eu não era o único nervoso. Todos na equipe


estavam agitados e falantes, andando de um lado a
outro enquanto aguardávamos a chegada da
treinadora. Felizmente Clint não havia aparecido.
Eu não saberia encará-lo depois do que aconteceu.
Quando a senhora Maple chegou, a equipe toda
sentou nas arquibancadas e aguardou sua grande
decisão.

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“Quem diria, uma vez na vida não preciso


mandar vocês se aquietarem.” Ela sorriu implicante
com sua prancheta em mãos. “Sei que todos estão
ansiosos, então não vou demorar. Começando pelas
bases….”
Benny devorava as próprias unhas e até Caleb
suava frio. Eu também torcia demais por eles, por
serem as bases das minhas acrobacias. Em um
mundo ideal, nós três brilharíamos em Miami
juntos.
A treinadora limpou a garganta e começou a ler.
“Bases escolhidas para representar os Linces
nas eliminatórias: Benny, Will, Kris e Caleb.”
Eu, Benny e Caleb gritamos histéricos,
trocando tapas e soquinhos em uma alegria enorme.
Mas a comemoração durou pouco, porque as bases
eram apenas metade da equipe.
“Agora os spotters.” Continuou a treinadora.
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“Gale e Luke.”
Hum… eu não conhecia muito bem o Luke,
mas torcia que o Gale não ficasse na minha
formação. O palhaço era peguete da Magda e a
última pessoa em quem eu confiaria minhas costas.
Eu aplaudi por educação, tentando me lembrar
que a exclusão do Clint não foi culpa minha. Ex-
alunos não podiam participar de competições
escolares, o braço fraturado foi apenas um
adicional.
Então a treinadora falou sobre os tops, e o meu
coração quase escapou pelo pescoço. Eu e Elyse
apertamos firmes nossas mãos, implorando por
dentro que tudo desse certo. Digo, eu certamente
seria escolhido, mas ela era minha amiga. Subir ao
palco com a Magda não seria a mesma coisa.
Só para aumentar nossa histeria, a treinadora
deu um longo suspiro antes de continuar.
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“E os tops selecionados são… Elyse e Magda.”


Eu gritei comemorando a escolha da Elyse mas
logo depois veio o choque.
Espera um momento. Como assim??
“Treinadora, espera!” Eu desci correndo das
arquibancadas e a alcancei. “Tem que haver algum
engano. Eu sou o melhor acrobata da equipe! Clint
e eu conseguimos o troféu estadual praticamente
sozinhos!”
“Não houve engano nenhum, Levi.” A
treinadora abraçou sua prancheta, chateada. “Não
desanima, tá bem? São apenas eliminatórias, se
chegarmos na próxima etapa você será nossa estrela
principal.”
Eu abri a boca em choque, ouvindo os disparos
do meu próprio coração.
“Foi por causa do acidente? Eu nunca caí antes!

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Não é justo! Eu iria treinar um monte, melhorar


aquele movimento até além da perfeição! A
senhora sabe bem disso!”
“Não tem nada a ver com o acidente, Levi. É só
que…” A treinadora mordeu o lábio, desviando o
olhar de mim. “Sinto muito, é o meu dever
selecionar a equipe perfeita, dentro das
circunstâncias.”
“Que circunstâncias?” Eu perguntei a ela,
sabendo que estava chorando e me humilhando
diante de todo mundo. “Que circunstâncias são
essas, treinadora Maple??”
A treinadora estremeceu sob os meus gritos,
visivelmente abalada. Ela não me disse nada, mas
eu notei a culpa em seu olhar, a forma acuada como
escondia suas anotações. Ela não precisava de
palavras para explicar o ocorrido.
As tais circunstâncias, afinal, eram bastante
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óbvias. E assim que percebi eu peguei minha


mochila e corri para casa, chorando e fervendo na
maior raiva da minha vida.

****

Encontrei papai Hian no estábulo das cabras e


já entrei chutando a porta. As cabras assustadas
correram e escaparam para todas as direções.
Meu pai deixou cair o garfo de feno e teve a
audácia de me olhar como se não soubesse meu
motivo de estar ali.
“Você ligou pra escola, não ligou?” Eu gritei.
“Mandou que me rejeitassem para as
eliminatórias!!”
Passado o susto, meu pai afinou os olhos e
apontou o dedo.

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“Você não grite comigo, Lev… cof… cof...”


Papai Hian tossiu engasgado e logo se recuperou.
“É com o seu pai que você está falando.”
“Não dou a mínima! O que vai fazer? Destruir a
minha vida? Porque você já está fazendo isso!”
Papai Hian estava se enfurecendo, eu percebia
isso, mas ele manteve calma e apenas se escorou
nas pilastras do cocho, cruzando os braços.
“Você foi avisado desde o começo, Levi. Seu
lugar é aqui em Bobcat Hollow.” Disse ele.
No fundo eu queria que fosse tudo um mal
entendido. Ouvir papai Hian confirmar minhas
suspeitas abalou meu interior. Lágrimas de tristeza
e ódio queimavam o meu rosto.
Por quê? Apenas por quê? Nada do que fiz
justificava tanta sabotagem. Eu sempre fui um bom
filho. Estava longe de ser o melhor da turma, mas
era esforçado e dedicado ao trabalho da fazenda.
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Até mesmo na festa eu fui obediente, nem


considerei entrar naquela maldita piscina.
E era assim que papai Hian me agradecia.
Tanta frustração mexeu na minha sanidade, eu
comecei a rir e chorar ao mesmo tempo.
“Quer saber, pai? É claro que pra você é tão
fácil destruir o sonho dos outros. Você nem sabe o
que é sonhar, apenas se tranca no seu ateliê e repete
os mesmos desenhos milhares de vezes, e por
algum motivo as pessoas pagam por isso.”
“Não seja atrevido.” Os olhos do papai Hian
tremularam com lágrimas. “Você não tem como
imaginar tudo o que… cof… cof… tudo o que eu
sacrifiquei por você.”
“Não fala de sacrifício! O papai Maikon
sonhava em ser o melhor surfista do mundo e você
arrancou isso dele! E agora você quer fazer o
mesmo comigo! O papai Maikon pode se divertir
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com as cabras e sorrir para essa vidinha de caipira,


mas ele mantém o troféu do vovô Alisson por um
motivo. Algum dia ele vai olhar para trás, perceber
tudo o que perdeu, e então ele vai te odiar.”
Minha raiva era tanta que o meu pai podia
arrebentar minha cara e eu não me importaria. Eu
esperava qualquer coisa, menos a reação que ele
teve.
Paralisado pelo choque, papai Hian cobriu os
lábios trêmulos e desabou a chorar, soluçando triste
e desesperado.
Eu queria continuar bravo, mas ver meu pai se
encolhendo no chão acabou por transformar a raiva
em culpa.
Não… não importava. Eu tinha todos os
motivos para odiá-lo, e já estava na hora do meu
pai ouvir umas verdades.
“Estou indo treinar. Com algum milagre, talvez
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meus amigos ganhem as eliminatórias sozinhos.


Mas provavelmente você destruiu o sonho deles
também.” Eu lhe dei as costas, não suportando ver
o estado em que o deixei.

****

Controle. Equilíbrio. Resistência. Meu suor


pingava na bola de pilates sob o meu corpo,
enquanto eu me mantinha de ponta-cabeça nos
limites da minha estamina.
A bola inflável tremia sob as minhas mãos, e
ainda assim eu permanecia com os braços esticados
na postura perfeita. Cheerleading competitivo era
sobre a perfeição. Eu seria o melhor do mundo, não
importava como.
Alguém apareceu na academia de casa, seus

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passos ecoando suaves no piso emborrachado.


Papai Maikon parou ao meu lado e deu uma
pirueta, então apoiou os pés na parede. Também de
cabeça para baixo, ele olhou nos meus olhos com
um sorriso quieto.
“Eu pensava que os treinos do surfe eram
pesados, mas a vida de líder de torcida não é fácil.”
Disse ele.
Ofegante e com os músculos em chamas, eu
virei o rosto para o lado oposto.
“Como está o papai Hian?” Perguntei.
“Ele já sofreu agressões piores, ficará bem em
algum momento.” Papai Maikon começou a oscilar,
cansando seus braços menos treinados.
“E você não vai brigar comigo? Eu fui horrível
com ele, disse coisas imperdoáveis.” Falei, à beira
de chorar de novo.

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Papai Maikon continuou sorrindo para mim,


mas logo seus braços se renderam e ele precisou
levantar.
Eu desci da minha bola inflável e sequei o suor
na toalha sobre a esteira, enquanto papai Maikon
atravessava a academia. Seus passos pararam diante
da estante de troféus.
Ofegante pelas horas de treino, eu admirei com
ele os diversos troféus e medalhas que ganhei nos
últimos anos em competições de cheerleading. Não
eram muitos, mas um dia eu preencheria todas as
prateleiras.
No meio de todos os prêmios havia o maior de
todos, e o único que não me pertencia. A taça
dourada do campeão do Surfe-Hai, que pertencia ao
vovô Alisson. Apesar da idade, a taça ainda reluzia
como nova, sempre polida e bem cuidada pelo meu
pai.

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Papai Maikon pegou aquela taça nas mãos e


admirou os detalhes, algo que já vi ele fazer muitas,
muitas vezes.
“Sabe, Levi, existem muitos tipos de amor. O
amor da família, o amor pelo que somos ou pelo
que podemos ser… mas o maior desses amores é
também o mais raro e precioso. É o amor que me
uniu ao Hian, e que fez você existir.”
Eu baixei minha cabeça, cada vez mais culpado.
“Você não se ressente? Chegou tão perto de
ganhar um troféu como esse, e então precisou
largar tudo para criar cabras. Uma vida de esforço
por nada.”
“Não vejo assim. Foi o surfe que me aproximou
do Hian e de muitos amigos queridos. Existem
momentos em que os diferentes amores batem de
frente, Levi, e é nessa hora que você descobre o
que é amor de verdade, e o que é simples paixão.”
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“Mas o papai Hian não precisava te fazer


escolher! Eu amo minha vida aqui, e os meus
amigos, mas no Havaí eu com certeza seria feliz
também!” Eu bufei, super frustrado. “Meus colegas
gostam de apostar qual de vocês é meu pai
biológico, e eu brigo com eles por isso, mas é tão
óbvio com quem eu sou parecido. Papai Hian não
tem nada a ver comigo.”
Papai Maikon riu nervoso e devolveu o troféu à
estante.
“Nem todo mundo tem um grande objetivo no
fim do horizonte, algumas pessoas se realizam com
pequenas coisas todos os dias. Hian pensa no seu
bem-estar muito mais do que imagina.”
Meus lábios tremeram. Eu não compreendia
nada, e ainda assim eu me sentia um monstro sem
coração.
“Eu só queria ser o melhor de todos. Por mim.
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Pelo senhor. Este é meu último ano de escola,


minha última chance de ganhar com os Linces. Mas
se eu subir machucando os outros, que glória eu
teria em chegar no topo?”
Papai Maikon afagou meu cabelo, com um
sorriso tranquilo que pouco escondia sua imensa
tristeza.
“O que acha de fazer um cheesecake? É época
de mirtilos silvestres, e você sabe o quanto Hian
ama sorvete de mirtilo. Cheesecake de mirtilo deve
ser bom, também.” Disse ele.
Eu sorri e sequei minhas lágrimas.
“Papai Hian ama qualquer tipo de sorvete.
Quem gosta de cheesecake sou eu.”
“Neste caso, faremos cheesecake de sorvete de
mirtilo!” Papai Maikon bateu uma mão na outra,
como se tivesse tido uma ideia genial. “Vista os
seus tênis de corrida. Podemos aproveitar o tempo
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fresco para um cooper no bosque.”


Eu concordei. Precisava demais esfriar a
cabeça, e treinar com o papai Maikon era sempre
melhor que treinar sozinho.

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Capítulo 20

O bosque de Bobcat Hollow era denso e escuro,


com árvores bem altas e um cheiro gostoso de
eucalipto e mato. Havia chovido poucos dias antes
então o piso de folhas ainda cheirava a terra
molhada e abafava os passos da nossa corrida.
Mesmo antes de eu descobrir o cheerleading,
papai Maikon sempre dedicava algumas horas por
dia para treinar comigo. Juntos nós montamos uma
academia legal na garagem da casa, onde
praticávamos tanto exercícios de resistência física e
musculação quanto atividades mais focadas em
acrobacias, como pilates e ginástica.
Treinar com meus amigos era legal, mas
divertido mesmo era treinar com o meu pai, escapar
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um pouco da tediosa vida de fazendeiro e sonhar


com a vida glamorosa dos grandes atletas.
Acima de tudo, eu era a segunda chance do
papai Maikon ganhar troféus e reconhecimento, e
faria o melhor possível para relembrá-lo da glória
que o papai Hian o fez perder.
Mesmo pensando nisso, as poucas horas de
sono pesaram rápido no meu corpo e eu comecei a
diminuir o ritmo. Papai Maikon logo percebeu
minha falha.
“Hora de descansar um pouquinho.” Ele
diminuiu o ritmo e seguiu andando, nem um pouco
cansado.
Eu queria continuar, mas já havia preenchido
minha cota de discussões para aquele dia. Papai
Maikon odiava que eu treinasse até me machucar
então eu apenas acompanhei sua caminhada no
coração do bosque.
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Os pássaros cantavam nas copas das árvores,


quebrando o silêncio quase completo. Papai
Maikon não havia tocado no assunto da briga, ou
em assunto nenhum, para falar a verdade. Era
desconfortável.
Em algum momento ele ergueu o olhar e sorriu.
“Ah, olha. Há quanto tempo não passamos por
esse carvalho?” Ele apontou para um galho alto,
onde ainda havia um velho pedaço de corda.
“Lembra quando você era pequeno e a gente fez um
bungee-jump?”
“Eu lembro que você fez a corda comprida
demais e eu arrebentei minhas costas no chão.” Eu
falei, começando a rir.
“Verdade. O Hian gritou comigo durante horas,
até ficar sem voz. Foi muito engraçado.” Papai
Maikon disse, entre risadas.
“Eu ainda tenho uma cicatriz pequena, nesse
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ombro aqui.” Eu puxei a gola e mostrei a ele. “Mas


acho que a pior vez foi a pista de kart.”
“Nossa, eu tinha esquecido da pista de kart. Foi
minha melhor obra de engenharia, um circuito
perfeito, que começava no telhado do estábulo e
terminava no milharal.”
“E o kart era um carrinho que você roubou do
supermercado.” Eu quase não segurava as lágrimas
de riso. “O papai Hian estava vendendo quadros em
Sioux, naquele dia. Quando ele voltou eu ainda
estava no dentista, consertando os meus dentes da
frente.”
“Eram dentes de leite, não foi um problema tão
sério.” Meu pai balançou os ombros, como se não
fosse nada, mesmo.
“Sinceramente, não sei como não matamos
papai Hian do coração. Na verdade eu não sei como
sobrevivi à infância.”
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“O Hian se aborrece fácil, mas é o jeito dele se


preocupar. Lembra como ele enlouqueceu de
alegria pela sua vitória no campeonato estadual?”
“E ainda assim, não posso alcançar o topo.” Eu
suspirei, perdendo o breve bom humor. “Se pelo
menos eu entendesse o motivo. Não quero pensar
que o papai Hian é simplesmente mau.”
“Eu sei bem o quanto pais são complicados,
filho, mas quando uma bomba explode quem sofre
mais danos é a própria bomba, entende o que estou
dizendo?”
Deprimido, eu concordei com a cabeça, me
sentindo o pior dos idiotas. Nunca antes eu havia
feito o papai Hian chorar, e a cena devastadora
insistia em repetir na minha cabeça, só pra me
castigar ainda mais.
“Será que o papai Hian vai me perdoar, se eu
pedir desculpas?” Eu perguntei.
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“Só tem um jeito de saber...” Papai Maikon


agachou-se diante de um arbusto e puxou um ramo.
Ele me mostrou as frutinhas azuis com um sorrisão
no rosto. “…preparando um delicioso cheesecake
de sorvete de mirtilo!”
Eu franzi a testa, sorrindo torto.
“Pai, acho que essa receita não existe.”
“Vai existir hoje mesmo! Será o nosso jantar”
Claro que papai Maikon não pensou em coisas
óbvias, como levar um cesto, então ele precisou
tirar a camisa e encher com os mirtilos, como uma
sacola improvisada e pouco cheirosa.
Eu ajudei o papai a debulhar os arbustos, por
acaso espiando seu torso despido. Mesmo longe do
surfe, papai Maikon era uma escultura humana,
com músculos rígidos e bem definidos.
Ai, o mundo era tão injusto. Eu treinava mais
que ele e ainda assim não havia um único relevo no
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meu corpo. Não que eu quisesse ganhar peso, isso


seria uma péssima ideia para um líder de torcida,
mas alguns gominhos na barriga seriam bem
vindos.
O arbusto era menor do que parecia, logo
acabaram os mirtilos. Papai Maikon desceu o
bosque até outro arbusto pequeno, mas aquele
também não seria o suficiente. Lembrando de ter
visto plantas maiores mais ao centro do bosque, eu
me afastei do papai Maikon em minha busca por
mais frutinhas.
Talvez minha memória estivesse enganada,
porque andei vários minutos e só consegui me
perder. Não haviam mirtilos, apenas árvores cada
vez mais densas e com copas altas que bloqueavam
totalmente o sol.
O silêncio começou a me deixar nervoso, como
se alguém estivesse me seguindo. Eu olhei para os

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lados desconfiado, e então um cheiro novo


penetrou minhas narinas.
Que fedor horrível. Eu cobri o rosto com a mão,
enojado pelo odor pútrido e pelo zunido de
milhares de moscas.
Eu não queria voltar pra casa fedendo, mas
quando avistei a tal coisa podre fui vencido pela
curiosidade. Era algo grande e castanho. Ao me
aproximar percebi que era um cervo enorme, com
galhadas do tamanho dos meus braços e olhos
grandes, já esbranquiçados e cobertos de larvas.
O cheiro quase me fez vomitar, mas o que
revirou meu estômago de verdade foi algo no
pescoço: uma dentada redonda não muito grande,
mas bem profunda. Que tipo de animal pequeno
teria uma mandíbula tão poderosa, e a força de
abater um cervo adulto? Além do ferimento no
pescoço haviam outros ainda maiores. Seja lá o que

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matou aquele bicho, também arrancou e comeu


suas pernas traseiras.
Minha curiosidade mórbida foi interrompida
por passos. Entre as árvores, na escuridão, haviam
dois pontos vermelhos e brilhantes.
O que era aquilo? Meu coração acelerou e eu
virei bruscamente, mas no tempo em que eu pisquei
os olhos não havia mais nada.
Uma mão tocou o meu ombro.
“Ei, Levi.”
“Aaaaaah!!” Eu gritei que nem uma menina e
quase caí em cima do bicho podre.
Com o coração zunindo eu me virei para o
papai Maikon, que carregava montes de mirtilos.
“Que bicho nojento. Eu pensava que o lince
gigante fosse viagem do xerife Thornwall, ele tava
bebaço quando me contou.” Meu pai torceu o nariz,

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enjoado mas fascinado. “O Hian vai achar muito


louco! Já pensou ter o esqueleto dessa coisa no
portão da fazenda?”
“Se a gente fizer isso acho que o papai Hian
perde os cabelos.” Eu olhei para trás uma última
vez, onde haviam apenas galhos e folhas. Será que
foi impressão minha? “É melhor a gente ir. Quero
me acertar logo com o papai Hian.”

****

O ateliê do papai Hian era um lugar espaçoso


no sótão da casa, com paredes brancas manchadas
de farelo de carvão e tinta. A luz do pôr do sol
entrava pelas claraboias, iluminando os muitos
quadros e esboços espalhados por toda a parte.
Era um lugar meio caótico, mas considerando-

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se o ateliê de um artista comum, o ateliê do papai


Hian era um luxo de tão limpinho e organizado. O
cheiro era gostoso, uma mistura do perfume do
papai Hian, verniz e álcool de limpeza.
Eu entrei hesitante. Papai Hian me proibia de
entrar quando eu era criança, e quando cresci o meu
interesse passou longe da arte, então raramente eu
aparecia ali. E ainda assim os desenhos eram
sempre os mesmos: riscos ondulados de carvão
contornando círculos brancos, um pontilhado
branco no preto que talvez fosse um céu noturno, e
a elegante assinatura do papai Hian no rodapé.
Meu pai produzia diversas obras por mês,
embora eu precisasse admitir… era tudo quase
igual.
Eu passei o olhar pelo ateliê vazio, me
perguntando onde mais papai Hian poderia estar.
Quando não estava cuidando da fazenda ou

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namorando com o papai Maikon ele estava


criando… e entretanto naquele lugar havia apenas
eu, os montes de desenhos e um pequeno porta-
retratos, com uma foto antiga de nós três.
Eu peguei o porta-retratos, pensando nas
palavras que eu diria ao papai, e acabei o largando
para prestar mais atenção nas suas obras. Por algum
motivo havia poder naqueles desenhos loucos. Era
como se eu já tivesse os visto antes, e não no
sentido deste ser o único trabalho do meu pai. Os
riscos negros e o papel branco contrastavam tanto,
que o papel parecia ter luz própria. Uma luz que me
convidava…
“Ah, por favor, não encoste.” Disse papai Hian,
com a voz frágil e cansada.
Papai Hian estava logo atrás de mim e, para o
meu espanto, a ponta dos meus dedos tocava o
centro branco do maior desenho. Quando eu

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levantei o braço?
“Desculpa, pai.”
“Tudo bem, é que ainda falta o spray secante.”
Ele agitou um frasco e borrifou um líquido meio
fedido no desenho. “Agora está pronto.”
Eu admirei o desenho com o papai, sem
compreender que diferença havia entre aquele e os
milhares de outros. Sentindo voltar um amargor
horrível no meu coração, eu me perguntei como
começar o assunto sem me emocionar.
“Escuta, papai… sobre antes…”
Papai Hian começou a tossir pesado,
interrompendo minhas palavras. Só então fui
prestar atenção em seu rosto.
Seria impossível notar dentro do estábulo
escuro, mas não havia engano. Pequenos riscos
listravam os lábios do papai Hian. Rachaduras e

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pele descamando. O branco de seus olhos mais


lembrava o seu tom de pele.
Aquela tosse começou a me preocupar. Eu
segurei o papai pelos ombros e bati em suas costas.
“Pai, você talvez precise de um médico.” Eu
disse a ele, o ajudando a sentar num dos
banquinhos. “Há quanto tempo está tossindo
assim?”
“Não precisa se preocupar.” Ele afastou minha
mão e curvou os lábios em um sorriso cansado.
“Fico feliz que tenha aparecido.”
“Sério? Não está bravo pelo que eu fiz?”
Papai Hian discordou com a cabeça.
“Você tem razão em tudo o que disse, Levi.
Você e o Maikon têm todos os motivos para me
odiar.” Ele tossiu fraquinho, cobrindo a boca com a
mão.

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“Não é verdade!” Eu toquei seu rosto, tão mais


quente que o normal. “Você me proibiu por algum
motivo, não é? A gente sempre foi uma família
unida, eu sempre tive tudo o que eu quis, então por
quê? Qual a necessidade de me sabotar justamente
onde mais dói?’”
Os ombros do papai Hian tremeram, e ele
começou a chorar de novo.
“Peço mil perdões.” Disse ele. “Se houvesse
qualquer saída, qualquer solução melhor, eu faria
sem olhar pra trás. Eu sinto muito que o meu
melhor não seja o suficiente.”
“Papai Hian…” Eu o abracei e deixei que
chorasse no meu peito.
Talvez fosse burrice minha, mas eu não
compreendia nada. Se pelo menos o papai tentasse
explicar, mas ele sempre foi tão esquivo com as
palavras.
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“O papai Maikon nunca vai te odiar, e nem eu.”


Eu disse pra ele.
“Nosso filho problemático está super certo!”
Papai Maikon entrou sorridente no ateliê,
carregando uma bandeja com pratinhos, bule e
xícaras. “Eu não trocaria meu marido lindo e
teimoso por nada nesse mundo.”
Hian sorriu para o papai Maikon e se esforçou
para controlar as emoções. Ele endireitou-se no
banquinho novamente e arqueou a testa para o
conteúdo da bandeja.
“O que você inventou dessa vez, Maikon?”
Perguntou ele.
Eu tive a mesma dúvida. Em cada um dos três
pratinhos havia uma torre com biscoitos, bolo,
creme e sorvete, tudo coberto por diversas frutinhas
azuis e geleia. Pareciam cogumelos de uma floresta
alienígena.
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“Minha maior invenção, cheesecake de sorvete


de mirtilo! Não precisam se acanhar, tem muito
mais lá na cozinha.”
Eu e papai Hian nos entreolhamos. Ele foi o
mais corajoso e pegou um dos pratinhos, então
levou um pedaço à boca.
“Até que é bem gostoso.” Disse o papai Hian,
surpreso.
Eu também provei e percebi que era verdade. O
creme molenga e doce do cheesecake contrastava
com os biscoitos e com as frutinhas azedas. Era
muito bom.
Papai Maikon deixou a bandeja na mesa e
sorriu super animado, servindo-se de sua própria
porção.
“Vocês dois são a melhor família do mundo.”
Papai Hian lambeu os lábios cobertos de creme.
“Peço perdão por tudo.”
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“Não se desculpe por nada, meu amor, você…


ei, espera. Deixa eu ver seus lábios.”
Ao invés de obedecer Maikon, papai Hian
espremeu a boca e se encolheu como uma criança
birrenta.
Papai Maikon não cedeu fácil. Ele ergueu o
queixo do papai Hian e percebeu as rachaduras.
“Seu teimoso…” Maikon estalou a língua nos
dentes, um pouco aborrecido. “De hoje não passa.”
“Não há motivo para preocupações. Estou em
plenas condições físicas.” Disse papai Hian.
“Na-na-nah. Coma o seu sorvete de cheesecake
e não tente discutir com o seu maridão.” Disse o
papai Maikon, no tom que usava pra me dar
broncas na infância. “Vai ser hoje, e ponto final.”
Papai Hian concordou com a cabeça e
continuou comendo seu doce.

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Do que raios aqueles dois estavam falando?


Melhor eu nem perguntar, devia ser algo
constrangedor.
Após um tempinho emburrado, papai Hian
enfim se animou de verdade, e juntos nós
devoramos a receita louca do papai Maikon.
Quando as estrelas já pontilhavam a noite nós três
deixamos o ateliê, mas antes de sair eu olhei para
trás uma última vez.
O desenho do papai Hian parecia me encarar de
volta, como se as partes brancas fossem, elas
mesmas, estrelas na escuridão do céu.
Estrelas que me chamavam.

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Capítulo 21

Eu me revirei na cama, tentando pegar no sono


apesar da angústia que não ia embora. Meu celular
vibrou no canto do colchão, e a luz da tela me
despertou de vez.

Clint: E aí, sexy.

Minhas mãos tremeram só de ler o nome dele.

Levi: O que você quer?


Clint: A Elyse me contou sobre o resultado.
Você está bem?

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Eu suspirei e mantive a calma. Talvez o


incidente no condomínio tivesse sido culpa minha.
Eu era mesmo desligado sobre romance e coisas do
tipo, podia ter provocado o Clint sem perceber. Não
queria perder o amigo por conta de um mal-
entendido.

Clint: A Elyse me contou sobre o resultado.


Você está bem?
Levi: Estou ok, acho. Agora é focar nas
semifinais, ou sei lá.
Clint: Tá todo mundo bem chocado. Tipo, a
Magda manja muito e é bem legal, mas não faz
sentido escolherem ela no seu lugar. Agora a
piranhazinha tá dando uma festa só para os
amiguinhos bobos dela.

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Levi: Decida-se se ela é legal ou uma


piranhazinha kkk
Clint: kkkkk sei lá, só tô confuso porque a
treinadora me consultou no domingo mesmo, e tu
já estava confirmado.
Levi: Clint se eu passar outra noite em claro eu
vou morrer. Vai dormir, ok?
Clint: Também preciso apagar kkk. Mas
falando sério, eu te conheço, sexy. Deve estar
pensando que mereceu isso de alguma forma, mas
nada disso é justo. Não é tarde demais.
Levi: É tarde sim. São tipo, duas da manhã. E
amanhã tem prova de geografia, porque o mundo
conspira contra a minha paz de espírito.
Clint: Se anima, tá bom? Amanhã combinamos
sobre a viagem.

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Viagem, que viagem? Eu tentei perguntar, mas


Clint já havia saído da conversa.
Completamente acordado, eu levantei da cama
e me espreguicei, considerando fazer alguns
exercícios na academia, mas um som estranho
distraiu minha atenção.
Maaah… Maaaah…
O gemido vinha lá de fora. Eu abri a janela do
meu quarto e olhei para baixo, tentando avistar
qualquer coisa na escuridão da madrugada.
Alguma coisa marrom e branca percorria o
gramado. Conchita? Minha cabra favorita saltitava
contente, fazendo turismo noturno pela fazenda.
Isso era estranho. Papai Hian sempre guardava
todas as cabras à noite, para protegê-las do frio e de
eventuais perigos. Não era uma noite exatamente
gelada, mas eu não podia deixá-la ali. Era culpa
minha que ela tivesse fugido durante o meu
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chilique no estábulo.
Não querendo acordar meus pais, eu vesti um
casaco e deixei a casa a passos leves.
Assim que Conchita me avistou, ela veio
correndo na minha direção e deitou a cabeça no
meu colo, abanando o rabinho.
“Conchita, sua peste, não pode ficar aqui de
noite.” Eu afaguei a testa da cabritinha, com pelos
super macios e dois talos de chifres. “Vem, eu vou
te levar para os seus irmãozinhos.”
Eu ergui Conchita no colo e atravessei os
campos da fazenda, lutando para enxergar qualquer
coisa adiante. Geralmente os postes de luz
acendiam automaticamente, mas para a minha sorte
eles deviam ter quebrado naquela noite. A
penumbra silenciosa me causava arrepios.
“Você trouxe as toalhas?” Sussurrou uma voz
adiante.
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Eu travei meus passos, notando o estábulo logo


adiante. Haviam duas pessoas sussurrando uma
para a outra, mas eu só conseguia ver as silhuetas.
“Maaah…” Conchita se debateu no meu colo,
querendo descer.
“Shh. Quietinha, Conchita.” Eu afaguei seu
lombo e me aproximei.
Os dois homens não tentaram invadir o
estábulo, apenas o contornaram na direção dos
fundos. O mais alto segurava os ombros do mais
baixo, que caminhava a passos difíceis.
Espera, eu reconhecia eles. Eram os meus pais,
o que eles estavam fazendo ali, àquela hora da
noite?
“Não entendo sua teimosia, Hian. Posso
acompanhá-lo sempre que quiser. Eu me preocupo
com a sua saúde.”

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“Odeio isso, é tão ridículo. Por que não consigo


ser mais forte?”
“Você é super forte, meu amor, mas não é
imortal.” Papai Maikon abaixou-se diante do
depósito de milho, então forçou as portas até que
abrissem. “Vem, vou te ajudar a descer.”
“Não estou tão fraco assim. Mas até gosto de
ser carregado no colo.” Hian deu uma risadinha.
“E eu não sei disso?” Papai Maikon também
riu. Os dois trocaram um beijinho, então papai
Maikon levantou papai Hian e o levou para dentro
do depósito.
Mas o que diabos?? Eu já havia descido ao
depósito mil vezes, para pegar a comida das cabras.
Só havia milho, poeira e teias de aranha lá dentro.
“Maah! Maaaah!” Conchita se debateu
violentamente, e no meu estado de espanto eu não
consegui segurá-la. Ela meteu um coice no meu
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peito e saiu correndo, muito assustada.


“Espera, Conchita!” Eu sussurrei e corri atrás
dela, mas a cabra logo sumiu de vista.
Quantas coisas estranhas ainda iriam
acontecer?? Conchita era a cabra mais mansa e
adorável da fazenda. Quando papai Hian viajava,
papai Maikon a deixava dormir no sofá e nós
sempre a criamos como um bicho de estimação.
Não fazia sentido ela se assustar tanto.
Ah, fazer o quê. Eu procuraria por ela quando o
sol nascesse. Naquele momento meu sono enfim
havia retornado e eu precisava demais dormir.
Cansado e confuso sobre muitas coisas, eu
retornei para a casa. Talvez fosse o sono causando
alucinações, mas no caminho pensei ter visto uma
sombra na direção do bosque. Uma sombra que
assistia cada um dos meus passos.

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****

Não consegui encontrar a Conchita. Após


algum tempo procurando precisei me arrumar para
a escola, e eu nunca estive tão desanimado em
reencontrar meus colegas.
Assim que entrei na sala, o clima agitado
transformou-se em um velório. Todo mundo sentou
e baixou a cabeça como se nem tivesse me visto.
Perfeito, já não era constrangedor o suficiente
ser rejeitado das eliminatórias, agora todo mundo
tinha pena de mim. O único a me cumprimentar foi
o Benny, enquanto eu sentava na mesa atrás dele…
e logo à frente da mesa do Rayner.
“Bom dia, Rayner.” Eu disse a ele, e a única
resposta foi seu olhar intenso. Ele fazia alguma
coisa na aula além de ficar me olhando?

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Para piorar, Benny percebeu as olhadas do


Rayner em mim, virou para frente e fingiu ser mais
um a não me conhecer.
Ok, não podia passar daquele dia. Eu faria
propaganda do Benny ao Rayner como o bom
amigo que eu era, e então uniria os dois e encerraria
essa etapa revoltante da minha vida.
“Escuta, Rayner, podemos conversar no
intervalo?” Eu sussurrei para ele.
“Você tem cheiro de cabra.” Ele respondeu.
A turma toda começou a gargalhar e eu me
encolhi na cadeira querendo morrer. Aquele
definitivamente não era o meu dia, ou a minha
semana. Mas eu não seria o melhor cheerleader de
Dakota do Sul se eu não fosse determinado. No
intervalo eu com certeza reuniria aqueles dois.
O professor chegou e a aula prosseguiu
normalmente, tão rápida que logo o sino do
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intervalo tocou e todos correram para o pátio como


um bando de crianças. Rayner seguiu o pessoal do
futebol a passos firmes e confiantes. Pelo menos
agora eu não sentiria olhos no meu pescoço.
A vontade de passar o intervalo bem ali era
forte, mas eu peguei na mochila o sanduíche que
papai Maikon me preparou e então deixei o prédio.
Considerando-se que Rayner vestia o uniforme de
futebol americano até nas festas da madrugada, não
era difícil prever onde ele estava.
Tentando me acalmar, eu saboreei o delicioso
sanduíche de geleia com pedacinhos de mirtilo,
manteiga e creamcheese. O capricho do papai
Maikon só aumentava minha angústia. Ele devia
conhecer bem o sofrimento de perder tudo, e aquele
sanduíche talvez fosse o jeito dele de me fazer
aceitar a realidade. Mas eu nunca aceitaria, nunca
me renderia da forma que papai Maikon se rendeu.

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Assim que terminei meu lanche, eu avistei os


caras do futebol americano no estádio. Rayner era
um deles, o que era ótimo, e Benny os espiava por
trás da arquibancada, o que era irritante.
“Oi, Benny.” Eu disse, o fazendo saltar com o
susto.
“Ah, oi, Levi.” Ele sorriu pra mim, depois
murchou um pouco. “Ahm… isso não é o que está
pensando.”
“É exatamente o que estou pensando.” Eu
arqueei a testa e segurei o riso. “Fique espiando, se
quiser. Vou conversar com o Rayner pra você.”
“Sério?” Os olhos do Benny brilharam. “Tô
chocado, quer dizer, vocês se olham tanto na aula
que eu… nossa, que mal entendido. Você é um
amigão, Levi.”
“Eu sei.” Eu cocei a testa, encabulado e sem
saber por onde começar.
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Para a nossa sorte só haviam uns quatro caras


no campo, treinando arremesso de bola. Entre eles,
Rayner pegava e passava a bola com a precisão de
um robô e a força de um urso, surpreendendo até o
capitão da equipe.
Ai, que vergonha. E só piorava quando
reconheci os outros jogadores e me lembrei das
declarações de amor. Um deles eu fiz chorar em
público, e o outro não voltou à escola por uma
semana. E agora ali estava eu, indo chamar o aluno
novo para uma conversinha particular. Eu devia
parecer uma completa puta.
“Você vai mesmo fazer isso, Levi?” Benny
mastigou as unhas, super nervoso. “Diz pra ele que
eu gosto de pizza. E de coelhos. E daquela banda
louca, a Death Cannibals.”
“Pode deixar, serei mais eficiente que qualquer
Tinder.” Falei, estremecendo.

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Em que situação idiota eu fui me meter.


Envergonhado demais, eu me aproximei do
grupinho e cutuquei o braço do Rayner.
“Ahm… oi.” Eu disse a ele. “Eu… ahm…
Rayner… tem algo que eu…”
O olhar do Rayner voltou-se a mim como dois
raios laser capazes de fritar todos os meus
neurônios. Seu cheiro ainda era aquele vago aroma
salino, tanto de suor quanto de algo mais, um
perfume gostoso e hipnótico.
“Os vestiários ficam daquele lado, Levi.” O
Capitão Borges sorriu com cinismo. “Recomendo a
última cabine da esquerda, é o lugar mais
romântico para a princesa de gelo chupar seu novo
amiguinho.”
É, eu senti essa chegando. Eu de imediato abri a
boca para devolver um desaforo à altura, mas então
Rayner rosnou. Ele literalmente rosnou, como um
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leão, ou sei lá. Os caras se assustaram e até eu quis


sair correndo, mas então o braço forte do Rayner
contornou meu ombro e ele me abraçou,
possessivo.
“Saiam.” Disse Rayner.
Aqueles caras eram os maiores e mais fortes
jogadores da escola, nem pareciam estudantes de
ensino médio, e ainda assim eles fugiram rapidinho,
me deixando a sós para conversar com Rayner no
meio do campo de futebol americano.
Eu não imaginava um lugar menos exposto para
essencialmente vender meu amigo para um machão
misterioso, mas pelo menos ninguém nos ouviria
por acidente.
“Azuis de novo.” Rayner tocou meu rosto,
causando um relâmpago sob a minha pele.
Eu estremeci por vários motivos. Teria ele
descoberto o meu segredo? Impossível, eu sempre
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usava minhas lentes azuis, só tirava em casa.


Espera, eu não podia perder o foco ainda mais
uma vez.
“Rayner, presta atenção. Tenho um amigo
chamado Benny, certo?”
Os olhos do Rayner afinaram como agulhas de
fogo verdes, sempre atentos nos meus, como se ele
conseguisse arrancar minha camada artificial,
enxergar meu verdadeiro eu, e ainda assim não
sentir repulsa.
Eu engoli seco, sentindo algodões dentro da
minha boca. Por que aquele cheiro era tão gostoso?
E era impossível olhar para seus lábios carnudos
sem lembrar do beco, de sua língua percorrendo
meus lábios.
E se uma lambida esquisita ainda tremia minhas
pernas só de lembrar, como seria um beijo de
verdade?
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“O que tem seu amigo Benny?” Perguntou


Rayner.
“Ahm, ele… ele vai competir em Miami.” Eu
disse, sentindo fogo líquido nas minhas veias. Por
que o braço dele ainda estava nos meus ombros?
“As eliminatórias do Best Cheer America.”
Disse ele.
“Você conhece?” Perguntei surpreso.
“Conheço muitas coisas, Leviathan Makaira.”
Eu quase caí no chão só de ouvir meu nome
saindo daqueles lábios, em uma voz tão grave e
firme. Nem o fato dele usar meu nome completo
arruinou aquele momento, ele poderia me chamar
do que quisesse e eu sorriria como um tonto.
Não, não, não. Nossa, meu foco estava um
horror naquela manhã. Eu me afastei um passo e
me livrei de seu toque ardente, decidido a ser tão

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firme quanto seus músculos eram másculos.


“É, pois então… ahm… onde eu estava
mesmo?” Ai, socorro, eu desci o olhar por ele. Será
que ele notou? Suas pernas pareciam duas toras de
músculo sob o shorts esportivo.
“Algo sobre o campeonato na praia de
humanos, que você irá participar.”
“Praia de humanos? Ah, e não, você se
enganou.” Eu cocei atrás da cabeça, ainda mais
envergonhado. “Não fui selecionado. Pelo visto
vou ficar em Bobcat Hollow para sempre.”
“O quê??” Ele rosnou feroz como antes,
fazendo cintilar seu olhar verde e profundo, mas
recuperou a postura super rápido. “Digo, é uma
pena.”
“Sim, infelizmente a Magda ficou no meu
lugar, mas ela é competente e vai fazer uma boa
apresentação.” Eu forcei um sorriso, ainda meio
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assustado.
“Magda, é?” Ele disse, bastante sério.
“Sim, a nossa colega. Ruiva, olhos claros…
enfim, eu queria te falar do Benny. Ele…”
O sinal tocou, anunciando o final do intervalo.
Todos retornaram para a sala de aula e eu fui
forçado a fazer o mesmo, me sentindo o cara mais
lerdo e idiota do planeta.
“E então, o Rayner já me acha gostoso?”
Perguntou Benny, enquanto voltava comigo.
Eu quase respondi, mas uma mensagem no meu
celular me deixou sem palavras.

Maikon: Oi, filho! Seu pai Hian está indo ao


aeroporto de Sioux, então hoje no almoço seremos
só nós dois. Será que ainda dá pra assar aquele
cervo? Beijos do papai <3

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Aeroporto? Ah não. Não o aeroporto!


Quando eu pensava que minha semana não
podia piorar, o universo encontrava novas maneiras
de ferrar com a minha vida.

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Capítulo 22

Que aula infinita. Rayner não desgrudou os


olhos de mim nem durante a prova de geografia,
que eu errei do começo ao fim.
Bem… pelo menos eu podia contar com papai
Maikon pra livrar a minha cara, não era como se
um futuro atleta precisasse perder tempo com
provas. Papai Hian não concordaria comigo, mas
ele não precisava saber. Meu coração ainda ardia
pela sua punhalada nas minhas costas.
Assim que a aula terminou, Rayner me
devolveu o lápis que pegou emprestado para a
prova, com a borracha e até a madeira
completamente mastigados. Quando ele começaria
a trazer mochila, ou qualquer tipo de material?
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Espera aí, era o momento perfeito para


conversar com ele.
Antes que Rayner sumisse que nem sempre, eu
me despedi rápido do Benny e corri atrás dele. Só
consegui alcançá-lo diante do portão de entrada.
“Rayner, sobre antes…” Eu falei, enquanto o
tumulto de alunos quase nos atropelava.
“Já devolvi seu lápis.” Ele disse com desdém,
então me puxou pelo ombro para o lado do portão.
Um gesto simples, mas que eletrizou cada vértebra
da minha coluna.
“Ahm… é, eu sei. Estou falando do intervalo.
Tenho que falar sobre o Benny. Ele é…”
Rayner cruzou os braços com vago interesse,
então uma voz familiar chamou por trás dele.
“Levi, ei, filho! Aqui!” Papai Maikon acenou,
contente.

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Todos os meus colegas me olharam com cara


de deboche, especialmente o Borges e os outros
caras do futebol americano, aqueles trouxas.
"Awwwn, a princesinha de gelo vai voltar com
o papai.” Borges riu ao passar por mim. “Controla
esse seu assanhamento, Levi. Os pais sempre
sabem.”
Sempre sabem o quê? Eu murchei os lábios,
indignado.
“Desculpa, Rayner. Conversamos amanhã.” Eu
acenei pra ele e corri, morrendo de vergonha.
Alheio às risadas dos meus colegas, papai
Maikon me cumprimentou e juntos seguimos para
casa.
“O senhor não precisava ter me buscado.” Falei.
“Eu sei, mas ficar sozinho em casa é tão chato.
Pensei que podíamos correr um pouco.” Papai

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Maikon sorriu com o canto da boca. “E enquanto


corremos, você pode me contar sobre o seu
namoradinho.”
“Ele não é meu namoradinho!” Eu disse,
inflamando de vexame. “Podemos falar sobre
qualquer outro assunto?”
“Certo, nesse caso… como foi sua prova de
geografia?” Perguntou ele, com um sorriso
vitorioso.
Eu revirei os olhos e comecei a correr em ritmo
de cooper, com papai Maikon correndo logo ao
meu lado.
“O nome dele é Rayner, sei apenas isso. Preciso
juntar ele com o Benny, mas é difícil.”
“Porque você não consegue, ou porque não
quer?” Perguntou o papai.
Eu abri a boca para retrucar as indiretas dele,

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mas a pergunta caiu como um tijolo dentro do meu


peito.
“Benny é o meu melhor amigo, sabia? E o
Rayner é, sei lá, um cara qualquer que surgiu do
nada, e que por acaso é absurdamente bonito.”
Papai Maikon riu alto, sem perder o ritmo da
corrida. Ele não disse mais nada por várias quadras,
como se esperasse eu abrir a boca e contar tudo o
que não deveria.
Para a minha frustração, eu de fato não suportei
o silêncio. Era impossível quando meu coração
dava pulos quentes só de lembrar do Rayner,
imaginar onde estaria, e com quem.
“Ei, pai… é normal sentir coisas diferentes, por
pessoas diferentes?” Eu perguntei.
“Como assim?” Perguntou ele.
“Quando o pessoal do futebol americano vem

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falar comigo, eu não sinto nada. Digo, eu fico mal


se eles choram depois, ou se precisam mudar de
escola, ou… enfim, não é culpa minha, eu acho.
Mas então outra pessoa, vamos chamar de Bob, ele
fala comigo e cada palavra é como um trovão.”
“E este Bob, que definitivamente não é o
Rayner, também é um cara bonitão?” Papai Maikon
tremia de tanto segurar o riso.
“Pai, eu estou falando sério!” Eu bufei, me
perguntando por que fui abrir a boca. “Não é só a
voz, todas as minhas sensações, todos os meus
sentidos… existe algo no Ray… ahm, no Bob, que
não existe em mais ninguém. Não existe a mesma
repulsa de quando…”
Eu me engasguei nas minhas palavras. Se eu
contasse que Clint meteu minha mão no pau dele,
era capaz do papai Maikon quebrá-lo ao meio.
Dessa vez papai Maikon não riu. Ele me olhou
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tão intrigado, que eu estremeci pensando que


soubesse demais, ou que tivesse deduzido o que
acontecera.
“Levi, essas sensações que você diz, vêm do
coração ou do seu corpo?” Perguntou ele.
Eu nunca desejei tanto ter um infarto e morrer.
Como papai Maikon entendia tanto com tão poucas
palavras? Borges estava certo, os pais sabem de
tudo.
“É estranho, porque tem caras que conheço há
muito tempo, eu deveria gostar mais do toque
deles, certo? E ao invés disso eu odeio, nunca quis,
e de repente…” Eu escondi o rosto nas mãos,
querendo desaparecer. “Podemos fingir que essa
conversa nunca aconteceu?”
“Tão cedo assim…” Disse papai Maikon, muito
surpreso. Então ele voltou a sorrir com travessura.
“Meu Levi está virando um rapazinho!”
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Eu tropecei na calçada, quase me arrebentando


no chão. Meu pai sabia que eu tinha dezesseis anos,
certo? Tudo bem que eu nunca curti coisas adultas
igual aos meus colegas, não que eu quisesse fazer
coisas adultas com o Rayner, mas se o Rayner
quisesse, eu…
“Quando o papai Hian volta do aeroporto?”
Perguntei rápido, querendo desviar meus
pensamentos o quanto antes.
“Ele já deve estar chegando. E adivinha com
quem?” Papai Maikon sorriu radiante.
“Vovô Michel e vovô Alisson?” Eu sorri
esperançoso.
“Errou.”
“Vovó Leilani e vovô Hugo?” Suor de
nervosismo desceu pelo meu rosto.
“Quê? Eu estaria sorrindo se fossem eles?”

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Perguntou papai Maikon, indignado.


Eu bufei e parei a corrida, esfregando os dedos
na minha testa.
“Pai, por favor tenha piedade da minha alma.”
Implorei.
Papai Maikon parou ao meu lado e gargalhou,
dando tapinhas nos meus ombros suados.
“Anime-se Levi, vai ser super ótimo! O Gabe e
o Dylan morrem de saudades suas.”
Eu bati o pé no chão, enraivecido só de ouvir o
nome.
“Por quê, pai? Você sabe como o vovô Dylan
me trata! Ele é insano! Foi ele quem escolheu a
porra do meu nome!”
“Mas Levi é um nome adorável.” Disse o papai.
“Meu nome é Leviathan.” Eu rosnei.
“Ah, é.” Papai Maikon riu e então continuou
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sua corrida.
Sem muita escolha, eu acelerei meus passos até
emparelhar com ele, e juntos seguimos direto pra
casa. Como papai Maikon havia previsto, o
Lamborghini do papai Hian já estava de volta à
garagem, e descendo as malas do bagageiro estava
a desgraça da minha existência.

****

“Saudações, meu estimado descendente!” Vovô


Dylan estufou o peito e sorriu animado e
imponente, no jardim da frente de casa.
“Oi, vô.” Eu me encolhi atrás do papai Maikon,
mas ele resolveu ser um traidor e me empurrou para
a frente.
Assim que cheguei no alcance de seus braços,

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vovô Dylan me levantou no ar em um abraço


apertado, quase me desmontando.
“Sua prole cresce mais saudável a cada dia,
filhote.” Ele disse ao papai Hian, enquanto me
sufocava contra seu peito despido e ridiculamente
musculoso.
“Sou grato pelos elogios, papai Dylan.” Meu
pai prestou reverência como em um filme dos anos
sessenta.
Vovô Dylan enfim me soltou e eu cambaleei
para trás, atordoado.
As visitas do vovô Dylan eram muito raras, e
ele nunca ficava por muito tempo. Ainda assim,
suas breves aparições transformavam minha vida
regrada em um circo, e ele mesmo era uma
incógnita impossível de desvendar. Para começar,
como o deixaram entrar no avião de sunga? Ele não
sentia frio? E por que raios ele falava tão esquisito
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o tempo todo?
Meu tormento era tão grande que um cutucão
no meu braço acabou me assustando. Era o vovô
Gabe, que também irradiava alegria histérica por
me rever.
“Quando chega a minha vez?” Vovô Gabe
sorriu com falsa humildade, louco pra apertar
minhas bochechas e me abraçar até cairmos no
chão.
Eu sorri para o vovô Gabe e nós nos abraçamos
apertado. Nossa, como eu sentia falta dele! Uma
pena que suas visitas sempre ocorressem com vovô
Dylan de brinde, ou eu o convidaria o tempo todo.
“Como você está, vovô Gabe?”
“Ótimo, maravilhoso! Olha pra você, quase
passando da minha altura!” Ele endireitou a coluna
para comparar, não que fosse difícil passar a altura
do vovô Gabe. Eu continuava sendo o cara mais
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baixo da minha turma. “Como está a escola? E a


coisa dos pompons? E as cabras? Ai, eu quero ver
elas, tem mais filhotinhos? Me diz que tem
filhotinhos!!”
Eu tentei responder às muitas perguntas do
vovô Gabe, satisfeito ao notar que vovô Dylan não
grudou em mim como de costume. Ele havia se
afastado para conversar com meus pais.
Aproveitando a oportunidade, eu coloquei toda
a conversa em dia com o vovô Gabe, que se
maravilhava com tudo, até com os detalhes mais
insignificantes da minha vida. Meus passatempos,
meus treinos, minhas amizades… só não contei da
proibição do papai Hian, óbvio. Seria rude envolver
vovô Gabe em nossas questões pessoais.
Meus avôs mudaram pouco desde a última
visita. Haviam mais fios brancos no cabelo do
Gabe, e o começo de ruguinhas no canto dos olhos.

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Ao contrário do Dylan ele se vestia com elegância,


um terno azul marinho com gravata da mesma cor,
digno do grande empresário que ele era.
Eu nunca entendi o que vovô Dylan fazia da
vida. Ele era tipo uma dona-de-casa na mansão
onde vivia, no Havaí. Embora ele soubesse muito
sobre mim através das fofocas do papai Hian, era
impossível descobrir qualquer coisa sobre ele. Até
onde eu pesquisei, vovô Dylan era apenas um
senhor meio senil que odiava roupas e curtia me
enlouquecer. Como alguém normal como vovô
Gabe gostava dele, este talvez fosse o maior dos
mistérios.
Vovô Gabe contou sobre as minhas tias e
primos, que eu não conhecia pessoalmente, e
também sobre as novidades do vovô Alisson e vovô
Michel. A empolgação do vovô Gabe concedia vida
às histórias mais triviais, o que chegava a doer no

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meu peito.
Tantos de nossos parentes moravam em praias
paradisíacas. Gente interessante, exótica e
divertida. E entretanto a gente criava bodes no meio
do nada e nunca visitava ninguém.
Em algum momento de seu falatório, Gabe foi
interrompido pela voz do vovô Dylan. Meus pais
haviam sumido para dentro de casa, e naquele
momento o cara mais doido e despido de Bobcat
Hollow se aproximava de mim com um cabo de
vassoura em cada mão.
Ai, mas que caralho.
“Como vão seus treinos, Leviathan?” Perguntou
vovô Dylan.
“Vovô, eu sou um líder de torcida, não um…”
Vovô Dylan me ignorou e simplesmente jogou
um cabo de vassoura na minha mão. Vovô Gabe

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sorriu animado e se afastou para assistir. Até meus


pais surgiram para me ver pagar mico.
Ignorando minha expressão de desgosto, vovô
Dylan firmou a postura e empunhou seu bastão
diante do corpo.
“Há tempos não nos reencontramos.” Disse ele.
“Mostre-me tudo o que aprendeu.”
Vovô Dylan saltou em cima de mim, brandindo
o cabo de vassoura no ar. Não eram os movimentos
de um louco estabanado, cada golpe vinha
carregado de cálculo e destreza. Minha experiência
na ginástica permitia reconhecer sua grande
habilidade.
Mas, habilidoso ou não, ele ainda era um velho
senil e quase pelado tentando me acertar com um
cabo de vassoura. Que escolha eu tinha além de me
defender? O cabo desceu na minha cabeça e eu me
protegi com o meu próprio cabo, bloqueando um
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golpe, depois outro ao lado do corpo, e mais um…


“Olha que lindo, o vovô e o netinho brincando.”
Vovô Gabe disse aos meus pais.
Quatro golpes, cinco golpes… o som de
madeira contra madeira atordoava os meus ouvidos,
eu começava a cansar de verdade e meu vô não
dava sinal de parar.
Então vovô Dylan zuniu aquela porcaria alto
demais, parando o cabo a centímetros do meu
pescoço.
Eu estremeci. Qualquer dia desses ele não
conseguiria parar a tempo e eu morreria do jeito
mais idiota da história.
Nervoso, eu sorri pra ele buscando um mínimo
de aprovação, mas ele apenas grunhiu e jogou seu
cabo de vassoura no chão.
“Inaceitável.” Disse ele, me dando as costas.

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Velho idiota. Eu revirei os olhos e também me


livrei daquela arma estúpida nas minhas mãos. Por
que vovô Dylan não podia me convidar pra ler
histórias ou consertar alguma coisa, como um avô
normal? Até papai Hian murchou sua expressão e
era difícil dizer se estava decepcionado comigo ou
com o pai dele.
“Foi bem melhor que da última vez.” Papai
Maikon bateu palmas, fingindo ver sentido naquela
humilhação desnecessária.
“Melhor não é o suficiente.” Disse papai Dylan.
“Aceito que o menino esconda os verdadeiros
olhos, mas negligenciar sua autodefesa é uma
imprudência sem tamanho.” Disse Dylan. “O
tempo de vocês está acabando, não podem desafiar
o destino para sempre.”
Meus pais se entreolharam, sem saber como
responder.

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Que ridículo. E daí que eu preferia esportes


mais graciosos? Aprender técnicas de combate era
o último dos meus interesses e eu não merecia ser
julgado por isso.
Deixando que meus pais ouvissem os chiliques
do vovô Dylan, eu ajudei Gabe com todas as malas
e acomodei tudo no quarto das visitas. Ele até
tentou conversar comigo de novo, mas eu o
dispensei e me tranquei no quarto.
Minha vontade era nunca mais sair, ou pelo
menos esperar que vovô Dylan fosse embora e
parasse de me forçar a atividades esquisitas. Da
última vez ele me presenteara uns cinco livros de
estratégia de guerra e diplomacia aristocrática,
como se eu precisasse daquelas tralhas. Claro que
joguei tudo fora.
Irritado demais, eu deitei na cama e tentei
dormir, mas um som de estalos metálicos

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atrapalhou meu descanso.


Eu abri a janela e avistei os jardins. No mesmo
lugar onde enfrentei o vovô Dylan ele agora lutava
contra o papai Hian, exceto que ao invés de cabos
de vassoura eles usavam garfos de feno.
Meus olhos se expandiram em surpresa. A
velocidade do vovô Dylan contra mim não era nada
perto daquela luta. Ele deslizava pelo chão, saltava,
contornava a arma pontuda nas mãos do papai Hian
e bloqueava lâmina contra lâmina. Ele era mesmo
um senhor de uns sessenta anos?
O maior espanto, entretanto, era o novo
oponente do vovô. Papai Hian combatia com a
fluidez de um rio, desviando dos golpes do vovô
Dylan e buscando brechas para seus próprios
ataques. Vovô Dylan abusava da força e resistência
física, que papai Hian contrabalanceava com
agilidade e atenção, desviando dos golpes mais

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intensos e contra-atacando como se o garfo de feno


fosse uma extensão de seu corpo.
Era um combate violento e absurdamente
perigoso, mas no rosto do papai Hian não havia
medo ou raiva. Ele sorria. Há tempos eu não via
tanto brilho em seu olhar, tanta vida em seus
movimentos. Para o meu pai aquilo não era um
combate, era uma dança.
“Hian! O que diabos vocês estão fazendo??”
Papai Maikon marchou entre os dois, os
interrompendo. “Me entrega isso, não quero
ninguém se machucando!”
O combate acabou se tornando uma briga de
verdade, Papai Maikon sempre foi sensível sobre o
uso de objetos pontudos, então não havia nada
estranho naquela situação. Ainda assim as
memórias do breve confronto mexeram fundo
dentro de mim.

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Saltos enormes, piruetas e acrobacias… havia


algo de muito familiar nos movimentos do papai
Hian. Quantas outras camadas eu desconhecia
sobre ele? E seria por distração minha? Sempre que
vovô Dylan visitava, meu pai deixava de ser um
artista, ou um fazendeiro, ou um chefe de família.
Papai Hian se tornava… feliz.

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Capítulo 23

Meu sossego no quarto durou pouco tempo.


Alguém bateu na porta e eu estremeci em horror,
implorando que não fosse o vovô Dylan com mais
uma loucura.
Felizmente não era ele, e sim o vovô Gabe. Ele
já havia trocado para uma camisetona xadrez com
chapéu de palha e um trigo no canto da boca. Para
um cara tão urbano ele se adaptava rápido à vida no
campo.
“Levi, você sabe da Conchita?” Perguntou ele.
Eu arqueei a sobrancelha, surpreso e bem
preocupado.
“Como assim? Já procurou no estábulo?”

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“Procurei e não vi. Os irmãos dela parecem


muito desamparados, né, Eustáquio?” Vovô Gabe
afagou o bode aos seus pés e diversos outros bodes
apareceram para ganhar atenção.
Nossa, se fosse eu carregando animais de
fazenda pra dentro de casa, acho que papai Hian me
pendurava pelo pescoço. Mas meus avôs
idolatravam as cabras então nas visitas deles
haviam mais bichos dentro de casa do que pastando
no campo. Era meio engraçado.
“Vou procurar a Conchita para o senhor.” Eu
vesti meus tênis. “Por favor distraia o vovô Dylan.
Se ele me encontrar de novo, sabe-se lá o que serei
forçado a fazer.”
“Você é o netinho de estimação do Dylan, Levi,
ele te adora muito.” Vovô Gabe abraçou Eustáquio
e aquele monte de cabras no corredor da casa. “Se
der uma chance, verá que ele é incrível e de bom

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coração. Ele até prefere seus olhos naturais, sabia?


E eu também. Acho lindos.”
“Vocês dizem isso porque são meus avôs.” Eu
verifiquei meus olhos no reflexo da janela,
satisfeito ao notá-los ocultos sob as lentes azuis.
“Prometo não demorar.”
“Volte logo. O Maikon está preparando um
churrasco delicioso com os peixes que o Dylan
trouxe.”
Eu concordei e me apressei na direção do
bosque, um tanto mais nervoso do que aparentava
por fora. Já havia se passado tanto tempo, será que
Conchita nunca retornara?
Ela não estava no estábulo, nem nos campos e
nem escondida no milharal. A última vez que a vi
foi perto do bosque, então pulei a cerca dos fundos
e entrei no meio das árvores, continuando uma
busca cada vez mais tensa.
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Apesar de não curtir o trabalho na fazenda eu


gostava das cabras, e Conchita era especial para
mim. Se ela estivesse em apuros por culpa minha,
eu não sei o que eu faria.
“Conchita!” Eu chamei, cada vez mais fundo
dentro do bosque.
As copas das árvores competiam entre si,
bloqueando o sol e tornando a caminhada cada vez
mais difícil. Apesar do canto dos pássaros eu podia
ouvir meus passos no chão úmido e meio
apodrecido. Cada estalo dos galhos e farfalhas dos
arbustos causava disparos no meu coração.
Eu nunca tive medo do bosque, mas era difícil
esquecer daquele cervo. Acabei passando pelo
mesmo lugar onde o encontrei, mas não havia mais
nada. Aquele devia ser o coração do bosque e não
havia sinal de outros seres vivos, ou pelo menos
nenhum que eu pudesse ver.

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Um par de pontos vermelhos surgiu no canto da


minha visão. Eu virei o rosto e tão rápido quanto
surgiu, o brilho se apagou.
“Con… Conchita?” Eu chamei, abraçado em
mim mesmo.
Os arbustos se agitaram diante de mim e ao
meu redor, me fazendo gemer de susto e tropeçar
para trás. Então algo saltou por entre as folhas, uma
sombra que jogou-se no meu peito e nos derrubou
no chão úmido.
A sombra lambeu o meu rosto e pisoteou na
minha barriga.
“Maaaah!” Conchita abanou o rabinho toda
contente, tentando mastigar o meu nariz.
“Conchita, você quase me matou do coração.”
Eu disse a ela, tentando recuperar o fôlego. Vem, o
vovô Gabe quer muito te…”

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“Aaaahh… Aaah…” Disse uma voz distante.


Com o susto eu acabei empurrando Conchita,
que fugiu assustada na direção oposta aos gemidos.
O que era aquilo? Outra cabra? Parecia uma voz de
mulher, uma mistura de choro e grito.
“Tem alguém aí?” Eu me armei com um galho.
Alguns passos adiante havia uma clareira com
diversos tocos de árvore, esquilos, musgo… e uma
garota ruiva agonizando no chão, com enormes
manchas vermelhas em seu uniforme escolar.
Minhas pupilas se encolheram como pontinhos
em meu rosto aterrorizado. Magda??
“Magda? Magda, o que aconteceu?” Eu corri
até ela e ergui sua cabeça sobre o meu colo.
O sangue tingia o rosto e as roupas de Magda,
tão vermelho quanto a cor de seus cabelos. Ela
espremia os olhos em um gesto de profunda dor e

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fincava as unhas na coxa direita, onde havia um


enorme rasgo.
“Eu… eu não vi… eu não sei…” Gemeu ela,
tentando sentar.
Havia outro corte no braço, e mesmo com todo
o sangue era possível reconhecer o formato.
Mordidas redondas e profundas.
“Droga, meu celular, eu deixei ele e… fica
aqui, tá bom? Aliás, não sei. Você consegue
andar?” Perguntei, completamente surtado.
Ela ergueu o braço ainda inteiro e mostrou seu
próprio celular. Eu o peguei para ligar pra alguém,
mas logo ouvi gritos chamando por ela. Seu
namorado Gale não demorou a chegar, e se
desesperou ainda mais do que eu.
O que havia acontecido ali? Eu não sabia, e
Magda também não havia visto nada. Pelo que ela
contou, estava apenas voltando da escola quando
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alguém pulou nela golpeou sua cabeça. Então ela


acordou toda arrebentada no bosque e pouco depois
eu a encontrei.
Era surreal, e por tantos motivos. Gale não
parava de chorar, e quando a polícia e os
paramédicos chegaram eu precisei responder a mil
perguntas. O xerife Thornwall registrou o caso
como outro ataque do lince gigante.
“Linces fazem isso? Eles arrastam a presa por
quilômetros bosque adentro?” Eu perguntei ao pai
do Benny.
O xerife endireitou o chapéu do uniforme e
verificou suas anotações.
“Linces são um tipo de gato. Gatos brincam
com a comida, o que quer que eu responda?” Disse
ele, visivelmente nervoso. “Policial Ricardo,
acompanhe o garoto Gale ao hospital antes que ele
vomite nas evidências. E você volte pra casa agora,
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Levi. Pedirei que outro policial o acompanhe.”


“Pode deixar, eu volto sozinho.” Falei, mas o
xerife nem respondeu, ocupado em fotografar um
punhado de fios pretos em meio ao sangue.
Com o estômago todo embrulhado, eu desci o
bosque de volta para a fazenda, rezando por dentro
que Magda estivesse bem. Segundo os paramédicos
ela perdera bastante sangue, mas foram apenas
mordidas no braço e na perna, então ela
sobreviveria. Provavelmente.
Quando a fazenda surgiu adiante, os arbustos se
agitaram novamente. Ai, verdade, eu precisava
levar a Conchita. Não era seguro que ela ficasse ali,
eu até pediria aos meus pais para subir a cerca dos
fundos.
Eu estalei os dentes para chamar minha
cabritinha e abaixei no arbusto, mas o que surgiu
por entre as folhas foi algo bem maior, mais
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musculoso e mais… bonito.


“R-R-Rayner? O que raios você tá fazendo
aqui??” Perguntei, abraçado a uma árvore como se
eu fosse uma criança agarrada na perna do pai.
Rayner afinou os olhos pra mim, suas íris
verdes cintilando mesmo na escuridão da floresta.
Havia muita terra em seu rosto e nas roupas de
futebol americano.
Eu sorri nervoso, rezando por qualquer
mudança em sua expressão. Era como falar com um
manequim, e naquele momento eu não estava com
humor pra lidar com mais loucura.
“Você… ahm… você mora aqui perto?”
Perguntei. “Porque é melhor evitar o bosque, o
lince gigante atacou de novo, e foi uma pessoa,
dessa vez.”
“Lince gigante?” Ele arqueou a testa.

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“É, digo, é ridículo você se preocupar com isso,


né, você pode matar um lince no soco, eu acho.
Mas a Magda é miudinha, a coisa terminou mal pra
ela e…” Eu engoli seco. Precisava me acalmar.
“Quer me acompanhar? A fazenda da minha
família é logo ali embaixo, será mais seguro do
que…”
“Tenho plena ciência dos domínios de seu
núcleo, Leviathan Makaira.” Disse Rayner. “Receio
ser necessário recusar o seu convite.”
“Cara, podemos cortar a esquisitice só por
cinco minutos? Você está falando que nem o meu
avô, e vou te dizer, ele é muito pirado, muito
mesmo.”
Rayner continuou me olhando fixamente, como
se cada sílaba precisasse ser bem planejada, ou
como se eu fosse um precioso objeto de estudo.
Qualquer emoção que ele tivesse, conseguia

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disfarçar muito bem sob os olhos intensos e lábios


rosa-pálido.
“Você realmente não sabe nada.” Rayner bufou,
demonstrando uma sutil impaciência. “Como é
possível?”
“Ahm… não tenho as melhores notas da turma,
mas eu me esforço.” Falei a ele, me perguntando
por que estava de conversinha com um cara
enlameado, no bosque onde nossa colega quase foi
esquartejada viva.
Rayner me deu as costas e atravessou os
arbustos até o matagal mais denso. Quando quase
desaparecia ele virou-se para mim uma última vez.
“Investigue o estábulo. Terá as respostas que
procura.” Disse ele, e então desapareceu na
escuridão da floresta.

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****

No grupo de mensagens não se falava em outra


coisa. Meus colegas discutiam o acidente com
preocupação e pânico, especialmente a equipe de
cheerleading.
No pavor do momento claro que não pensei
nisso, mas era um problema enorme. Magda podia
ser meio vaca, mas era uma das melhores tops que
já conheci. Ela competiria junto com a Elyse nas
eliminatórias, e agora havia um rombo na posição
mais importante da apresentação.
Ainda muito chateado, eu me mantive trancado
no quarto, conversando com o pessoal pelo celular.
Eles me pediam mil detalhes impossíveis de
responder, porque o acidente era um completo
mistério. Muitas coisas eram um mistério.
Rayner tinha razão. Eu realmente não sabia
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nada.
Meu celular apitou com uma mensagem
particular. Era o Clint, de novo.

Clint: Você tá bem de verdade? Não viu


ninguém suspeito?
Levi: Eu já respondi mil vezes, não vi nenhum
lince, nem nada, só a Conchita.
Clint: Talvez sua cabra tenha despertado
instintos assassinos kkk
Levi: Não tem graça, Clint >:(
Clint: Tá bom, eu sei… só estou feliz que esteja
bem, meu discípulo sexy <3
Clint: (Eu manteria o estábulo da Conchita
trancado, por precaução kkkkk)

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O humor negro do Clint geralmente me


aborrecia, mas desta vez acabou me lembrando
algo importante.

Levi: Ei, Clint… a fazenda dos seus pais tem


um estábulo?
Clint: Claro que tem, por que?
Clint: Posso te apresentar meu estábulo quando
quiser ( ͡° ͜ʖ ͡°)
Levi: Não pensa besteira. É sobre o depósito no
subsolo, onde se armazena a colheita.
Clint: Hum… não tem subsolo no estábulo
daqui.
Clint: Vamos precisar usar o seu. ( ͡° ͜ʖ ͡°)
Levi: Eu tô tentando falar sério, caralho.
Levi: Ah, quer saber, esquece. As loucuras de
hoje me cansaram, só isso.
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Clint: Aquele seu avô loucão veio visitar, né?


Levi: Nem me fala. Ele trouxe seu próprio
estoque de peixe congelado e umas trinta garrafas
de água, dá pra acreditar nisso?
Clint: Ele parece legal kkkk tenha paciência
com o cara.
Clint: Mudando totalmente de assunto, meu pai
vai emprestar a caminhonete para a viagem. Eu já
montei todo o plano.
Levi: Espera, que plano?
Clint: O plano de viagem, ué. Não seja chato,
Levi, a gente nunca sai desse fim de mundo, viajar
de avião não teria graça nenhuma.
Levi: Ahm… eu perdi a parte da conversa em
que você me explica qualquer coisa?
Clint: Preciso explicar? Você, a Elyse e a
Magda são os únicos tops decentes na equipe, e

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agora a Magda tá nocauteada. Quem você acha


que entrará no lugar dela?

Meus dedos tremeram na tela do celular. Droga,


eu não podia contar a verdade, podia? O Clint me
acharia um completo trouxa, desistindo dos meus
sonhos por frescura do meu pai.
Ainda assim, era verdade. A treinadora poderia
colocar a Melissa ou a Sabrina no lugar da Magda,
mas aquelas duas não diferenciavam um espacate
de um plié. Nossas chances de troféu morreriam
nas eliminatórias, e isso passando muita vergonha.
Pelo bem da equipe, eu podia insistir um pouco.
O humor do papai Hian melhorou muito com a
chegada de seus pais, talvez ele mudasse de ideia se
eu pedisse com jeitinho.

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Levi: Desculpa, Clint. Preciso ir.


Clint: Tranquilo, ainda preciso planejar
algumas rotas. São vários dias de viagem até
Miami então devemos partir amanhã de noite.

Amanhã?? Com o choque até deixei cair o


celular, e a bateria escapou para baixo da cama.
Que inferno. Eu me abaixei e não consegui
alcançar, mas podia montar meu celular mais tarde.
No momento, a minha prioridade era tentar
convencer o papai Hian de novo, então eu apenas
deixei meu quarto e saí procurando pela casa, já
estranhando o silêncio. Meus avós não costumavam
dormir tão cedo assim
Não havia ninguém na sala ou na frente de casa,
e se estivessem no estábulo eu com certeza ouviria
o berreiro das cabras. Meus avôs não se continham
em abraçar todas elas, ainda mais agora que
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Conchita estava de volta.


Talvez eles tivessem saído para fazer compras?
Eu vasculhei a casa toda e a academia sem
encontrar sinal de vida. Quase desistia das buscas
quando ouvi vozes bem distantes, no sótão da casa.
Ah, mas que óbvio. Claro que papai Hian
estava exibindo sua nova série de desenhos
idênticos.
Aliviado em encontrá-los, eu subi ao sótão sem
pensar duas vezes, e então tive um choque.
Eu nunca vi meus pais e meus avôs em um
clima tão sombrio e triste.
Vovô Dylan estava soluçando num canto do
ateliê, enquanto vovô Gabe o abraçava. Meus pais
também pareciam muito abalados.
“O que aconteceu?” Perguntei.
Papai Maikon afagou meu ombro com carinho e

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deu um suspiro.
“Nosso amigo Shane ligou com más notícias. O
seu bisavô Hian, pai do Dylan, faleceu em um
acidente nesta manhã.”
Eu arregalei os olhos, chocado e sem saber
como reagir. Eu nem sabia que eu tinha um bisavô.

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Capítulo 24

Maikon

Nossa, era azar demais. Eu só queria animar o


Hian, e no final convidar o Dylan foi um tiro no cu
de todo mundo.
Agora o Levi estava confuso e Hian ainda pior
do que antes, mas como eu ia saber que o pai do
Dylan ia, sei lá, capotar justamente naquele dia? Eu
nem conhecia o cara, mas entendia a tristeza de
todo mundo. O Dylan, óbvio, porque perdeu o pai
dele, e o tio Gabe porque nunca conheceria um de
seus sogros.
O Hian era um mistério. Tudo o entristecia
ultimamente, mas ele nunca quis conhecer os avôs

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tritões, nem com toda a insistência do Dylan.


Talvez estivesse culpado em saber que agora era
tarde demais? Não, provavelmente ele estava mal
pelo Dylan, os dois eram unidos demais, mesmo à
distância. O luto do Dylan devia destruir o Hian por
dentro.
Eu odiava ver meu Hian triste, detestava
demais, mas minhas ideias estavam acabando.
Quando o Levi brigou com ele, Hian chorou tanto,
mas tanto, que eu quase fui atrás do nosso filho
para umas merecidas palmadas. Mas o Hian
detestava qualquer violência então por ele eu fui
forte, e no final foi melhor assim. Violência apenas
gera mais violência, e não existe maldade dentro do
nosso Levi.
Será que Levi ao menos suspeitava do tamanho
da depressão do Hian? Provavelmente não. Ele era
um bom garoto apesar do temperamento, e nunca

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destrataria Hian se soubesse metade do que ele


perdeu em troca de sua segurança. Talvez este fosse
o nosso castigo por mantê-lo às escuras, mas que
outra escolha havia? Quando subi ao altar com
Hian, em nossos votos matrimoniais, eu jurei a
mim mesmo aceitar toda a sua natureza de tritão,
inclusive sua propensão natural a mentir.
Eu queria demais ser esperto tipo o Shane, ou o
Hian, sei lá, mas pensar não é a minha coisa. Por
mais complicada que fosse a situação, eu só
conseguia sorrir e preparar comidas meio loucas. O
que mais um surfista longe do mar poderia
oferecer?
Mesmo naquele momento, reunido no ateliê
com meu amor e meus sogros, eu só conseguia
abraçar Hian e oferecer meu ombro em consolo. E
ainda assim ele escolheu abraçar o Dylan junto com
o Gabe. De todos ali, o Dylan era quem mais

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precisava de um abraço, e eu não esperava menos


consideração do meu marido teimoso. Hian podia
estar no fundo do poço e ainda encontrava forças
para apoiar quem amava.
A pior parte era que Dylan fazia bem ao Hian,
foi o motivo de eu tê-lo chamado, mas agora ele
precisava ir embora.
“E então, como era esse meu bisavô?” Levi
perguntou pra mim, visivelmente desconfortável.
“Sei lá. Parecido com o Dylan, eu acho?” Eu
respondi pra ele.
“Não podem me contar nem isso?” Levi bufou
e desceu as escadas, indignado. “Tá, que se seja.
Pro inferno com toda essa família.”
Qual o problema daquele menino? Eu
realmente não sabia!
Depois de sei lá quanto tempo, Dylan levantou

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e forçou um sorriso para nós.


“Peço mil perdões pelo meu comportamento.
Estou melhor agora.” Disse ele, embora claramente
não fosse verdade. “Escute, filho…”
“Não precisa, papai. Pode ir, é óbvio que seu
outro pai também precisa do senhor.” Disse Hian.
“Eu não pretendia pedir autorização, apenas
convidá-lo. Sei das suas dificuldades, mas você
sempre será um Makaira e será bem vindo em…”
“Pode parar.” Hian jogou os braços pro ar,
mudando no mesmo instante para uma postura
defensiva. “Eu sou um artista e fazendeiro de
Bobcat Hollow, e apenas isso. Por favor não use
esta tragédia para me subornar. ”
“Este é o avô de quem você ganhou seu nome,
filho.” Disse o tio Gabe, com uma voz doce e muito
cautelosa.

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“Isto é algum complô de vocês dois? Não tenho


nada com os tritões, a minha vida é aqui!” Hian
bateu o pé no chão.
“Peço mil perdões, filhote. Receio, de qualquer
forma, precisar partir agora mesmo. É um longo
caminho até Egarikena, mesmo no auge de meu
nado. É improvável que eu compareça ao velório e
ao funeral, mas ainda assim…”
“Eu sei, pai.” Hian o abraçou de novo. “Mande
um abraço ao seu outro p…ahm… ao vovô Arian,
está bem? Desculpe-se a ele pela minha ausência.”
“E você não vai sozinho, Dylan! Eu vou com
você!” Gabe sorriu como um cabritinho contente.
Apesar da tristeza, Dylan precisou segurar o
riso.
“Agradeço sua gentileza, meu predestinado,
mas…”

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“Sem mas, Dylan! Vamos alugar um jatinho e


depois uma lancha. Chegaremos em poucos dias,
seja lá onde fica sua ilha mágica de tritões!” Os
olhos do tio Gabe brilharam. “Eu nunca conheci
seus parentes. Me deixa ir junto, deixa!”
“Mas… mas um humano em Egarikena…”
Gaguejou tio Dylan.
“Não me venha com essa, Dylan. O Shane vive
naquela ilha e só tem histórias maravilhosas para
contar. Diz que siiiim? Prometo me comportar.”
Implorou Gabe, com seu melhor olhar de
cachorrinho faminto.
Dylan encarou Gabe um tempo, esperando que
ele fosse desistir da ideia, então bufou em
frustração.
“Tudo bem, mas mantenha-se onde eu puder te
ver, em todos os momentos!” Disse Dylan.
“Vou ligar para a empresa aérea agora mesmo!
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Amanhã teremos o melhor jato particular nos


esperando no aeroporto de Sioux!”
Gabe correu pelas escadas do ateliê, super
empolgado. Será que havia esquecido que o motivo
da viagem era um funeral? Porque ele parecia uma
criança em viagem para a Disney.
Hian seguiu para a escada logo atrás do Gabe, e
Dylan o surpreendeu ao chamá-lo de volta.
“Vou ajudar papai Gabe com as malas.” Hian
revirou os olhos, impaciente.
“Em quatro horas, Hian, aqui mesmo.” Dylan
disse com severidade, enquanto olhava as estrelas
pela claraboia.
Hian grunhiu de raiva e desceu as escadas, me
deixando sozinho com Dylan. Do que diabos eles
estavam falando? Não era Dylan quem iria me
contar, então apenas deixei os rapazes com seus
segredinhos e fui alimentar as cabras. Após uma
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tarde inteira aguentando os abraços do tio Gabe,


elas precisavam de um jantar bem reforçado.

****

Ai, meu Deus, que emoção, que emoção!


Minha primeira reunião secreta! Eu não conseguia
parar quieto, era tipo ser um espião dos filmes, só
que ainda mais incrível e louco.
Sentado no banquinho de seu cavalete de
desenho, Hian acompanhava meus chiliques com o
movimento do olhar. O sol já estava nascendo e eu
precisava ordenhar as cabras em poucas horas, mas
quem ligava? Eu era uma mistura de Sherlock
Holmes com o cara do Arquivo X.
“Se acalma, Maikon.” Hian deu uma risadinha,
o que sempre melhorava qualquer situação. “Vai

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acabar se decepcionando quando for uma notícia


boba.”
“Notícias bobas não são secretas, Hian. O que é
tão importante para ser conversado de madrugada?”
“Provavelmente meu pai quer dar alguma
bronca em mim, de novo. Você sabe como ele é.”
“Ele que tente, vou arremessá-lo desta escada.”
Percebendo o susto que causei no Hian, eu comecei
a rir. “É brincadeira, amor. Com certeza vai ser a
mesma história de sempre. Blá, blá, blá, o Levi
precisa disso e daquilo, blá, blá, blá.”
“Ou seja, bronca.” Hian sorriu com o canto da
boca.
Passos na escada interromperam nossa
conversa. Dylan chegou ao ateliê e bufou frustrado
por me ver.
“Filhote, era para ser uma reunião particular.”

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Ele disse ao Hian.


“O senhor sabe que nunca esconderei segredos
do Maikon. O que tiver que contar a mim, ele
também tem irá saber.” Disse Hian, tão pomposo e
autoritário que eu senti um arrepio de desejo. Fazia
tempo que ele não era assertivo assim comigo,
entre as paredes do nosso quarto. Será que pedindo
com jeitinho ele agiria desse jeito na nossa cama?
Dylan murchou os lábios para o meu sorriso
besta e passou reto por mim. Ele sentou no outro
banquinho.
“Você prometeu contar a verdade ao garoto,
Hian. Faz ideia do absurdo que está cometendo?”
Ai, caralho. O Dylan não podia entrar com
calma nesse assunto? Meu Hian estava deprimido,
tadinho, perder o pai não dava ao Dylan o direito de
ser um implicante idiota.
Meu sangue ferveu, mas eu fui um adulto
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responsável e assumi quietinho minha posição de


espécie inferior, deixando que Hian assumisse a
conversa.
“Ele não precisa saber de nada. Levi tem uma
vida normal e feliz aqui em Bobcat Hollow.” Disse
Hian.
“E por quanto tempo? Sua prole já tem
dezesseis anos, o que fará quando ele despertar? E
receber o seu predestinado?”
É verdade, o despertar. Eu abri a boca para
comentar o que Levi disse na saída da escola, mas
Hian logo me cortou.
“Nada indica que Levi despertará como os
tritões. Ele não demonstra nenhum de nossos
poderes, não tem o nosso olfato apurado, ou força
na mandíbula, ou forma feral. Ele é apenas um
humano comum, que por acaso tem um avô tritão.”
“E também uma longa e cintilante cauda
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dourada.” Completou Dylan, sarcástico. “Não


estamos falando de qualquer tritão, Hian. Seu filho
é o próximo grande oráculo do nosso povo, com
poderes além da nossa compreensão. Quando os
outros tritões souberem…”
“Não existe quando! Eles nunca irão descobrir!
Meu filho vai ter o destino que ele mesmo escolher,
a qualquer custo, e eu pago o preço que for
necessário pra isso. Mesmo que ele me odeie eu irei
protegê-lo até o fim!” Hian esbravejou, e um gesto
do Dylan lembrou-o de baixar a voz. Levi e Gabe
ainda estavam dormindo, não muito longe.
Hian tremia de ódio e medo. Eu o abracei de
lado, tentando confortá-lo.
“Tio Dylan, precisamos fazer isso de novo? O
Hian está fazendo o melhor possível pelo nosso
filho. Enquanto o Levi achar que é um humano
comum ele vai ser feliz, curtindo a vida com os

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colegas da escola.”
“É um engano pensar que estão seguros aqui.
Hian não é o único tritão híbrido, capaz de viver
meses longe do mar. Qualquer híbrido dedicado
pode avançar pelo continente se houver um atrativo
grande o bastante. Híbridos de humanos com
tritões, e também de humanos com selkies.
Eu arregalei os olhos, chocado. Não que aquilo
fosse novidade, mas como o Dylan se atrevia a
mencionar a palavra com S? Hian estremeceu nos
meus braços só de ouvir o nome daquela espécie
desgraçada.
“Já que o senhor sabe tanto, por que não
oferece uma alternativa, hein, papai?” Rosnou
Hian, choroso e enfurecido. “Levi é apenas um
estudante, não um profeta místico com o dever de
conduzir toda uma civilização. E isto considerando
a melhor hipótese, dele ser descoberto pelos tritões.

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Se os selkies descobrirem sua existência…”


Aquela linha de pensamento foi demais para o
Hian. Ele começou a soluçar no meio das palavras,
tão assustado que ardia o meu coração.
“Como você mesmo disse, os tritões são a
melhor opção. Entre os nossos ele estará protegido,
ainda mais considerando-se sua importância como
oráculo.” Dylan falou pausadamente, também
sofrendo em machucar o Hian daquele jeito. Eu
meio que entendia ele. Levi merecia saber o que ele
era, afinal isso não era importante na hora dele
fazer as próprias escolhas?
Se eu tomasse o lado do Dylan acho que o Hian
surtaria de vez. Afastar-se do mar e de sua família
prejudicou seu psicológico muito mais do que ele
admitiria. Era verdade que a segurança do Levi
valia qualquer sacrifício, eu mesmo não pensei
duas vezes quanto a desistir do surfe, mas Hian era

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o amor da minha vida. Precisava haver um jeito de


todo mundo ser feliz.
E eu notava no olhar do Dylan que ele pensava
da mesma forma.
Dylan esfregou atrás do pescoço, parecendo
bem nervoso sobre alguma coisa. Devia ser difícil
pra ele ver o Hian assim. Durante a gravidez do
Hian, ele e o Dylan não desgrudavam das lojas de
maternidade. Juntos eles compraram caminhões de
mimos e presentes, passaram horas lendo livros
sobre bebês e escolhendo nomes… todos nas
nossas duas famílias se envolveram na gravidez
feliz que Hian tanto merecia, e durante aqueles
nove meses o Hian foi feliz de verdade.
Mas quando nosso bebê de cauda dourada
nasceu, as coisas logo desandaram. Eu e Hian nem
imaginávamos o que era um oráculo, mas o pouco
que Dylan explicou foi o suficiente para o Hian

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surtar.
No começo não entendi direito, porque tipo,
oráculos são tritões dourados e mágicos e isso
deveria ser super louco, certo? Mas fazia sentido o
Hian se preocupar. Os parentes do Connor Faroé
talvez ignorassem a existência de um bebê
milagroso, nascido fora do vínculo de
predestinação. Mas ignorar um super-tritão mágico
que, pela lei do povo do mar, também pertencia ao
clã Faroé? Nem pensar.
Para os tritões, o mar é tipo um fofoqueiro
chato de um zilhão de litros. No momento em que
Levi entrasse no mar, todos os tritões e selkies
perceberiam sua existência. E como evitar o oceano
morando em uma ilha havaiana? Na época, a única
solução foi fugir. E o que era para ser uma solução
urgente e temporária acabou se tornando a única
vida que Levi conhecia.

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“Hian, meu filhote, é isso mesmo o que você


quer? Rejeitar a sua própria natureza e a do seu
filho?” Perguntou Dylan.
“Eu rejeitaria minha própria vida, se fosse pela
liberdade do Levi.” Hian respondeu prontamente.
Ainda hesitante, Dylan esfregou a testa em um
gesto cansado.
“Como dizem os humanos, filho de peixe,
peixinho é.” Dylan riu com tristeza. “Apesar de
todos os meus erros o que mais desejei em minha
vida foi a felicidade do Gabe e também a sua, Hian.
Espero que um dia Leviathan o perdoe por suas
omissões, e que você também perdoe as minhas.”
Eu e Hian nos entreolhamos, desconfiados.
Como assim, mentiras do Dylan? Quer dizer,
aquele cara mentia pra caralho, como se enganar
humanos fosse o oxigênio dele, mas nunca
imaginei que guardasse segredos do seu precioso
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Hian.
Bem, como o Hian disse, seja lá qual fosse o tal
segredo com certeza era alguma coisinha bem boba
e sem importância.

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Capítulo 25

Noooooossa, que babado mais doido!


Era brincadeira do Dylan, só podia ser, ainda
assim o Hian parecia uma galinha poedeira,
cacarejando em círculos pelo ateliê dele com o
rosto vermelho de raiva.
Geralmente os pitis do Hian me preocupavam,
mas a notícia chegou tão de repente que até eu
fiquei sem ar, então apenas observei Hian desferir
rosnados contra o pai dele, que permanecia tão
calmo que era engraçado.
“Não tem graça nenhuma.” Hian resmungou pra
mim.
Opa, ele estava grudando nos meus

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pensamentos de novo. Hora de pensar coisas


calminhas antes que meu marido tivesse um troço,
mas era tão difícil… Hian ficava uma gracinha
quando estava puto.
“Maikon, pare de se divertir e diga alguma
coisa para o meu pai! Aliás, melhor ainda, jogue-o
no próximo avião de volta para Waikiki! Ou
Egaritenga, ou sei lá!”
“Egarikena, filhote.” Corrigiu Dylan. “Não
deve errar o nome do seu reino.”
“Não tenho reino nenhum, papai! Que
brincadeira idiota foi essa? Se eu fosse um príncipe,
com certeza eu já saberia! Tenho contato com o
Byron, e com os meus cunhados, e com a Babelyn
e o predestinado dela…”
“Cada um deles foi instruído a manter segredo.
Posso ter renunciado ao trono, mas como
primogênito da família real tenho grande reputação
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entre o nosso povo.” Dylan falava cautelosamente,


como se a qualquer palavra Hian fosse arremessá-lo
pela janela. “Entendo que esteja com raiva, mas
preferi que você decidisse seu próprio caminho.”
“E como vou decidir o meu caminho, se não
conheço metade das opções??” Hian gritou, então
arregalou os olhos em indignação. “Espera… o
senhor está tentando me dar uma lição de moral?”
Tio Dylan coçou o rosto, pensando em como
continuar.
“A ironia não me passou despercebida, Hian,
mas receio não ter moral de ensinar-lhe sobre a
honestidade. Com o falecimento do meu pai Alfa o
reino se encontra fragilizado, pois seu avô Hian não
era apenas um dos reis, como também o general do
exército. Adicione a isto a idade avançada do meu
pai Arian e verá a aflição do povo em busca de um
sucessor.”

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“Meu avô Arian é o atual rei de Egarikena?”


Hian deu uma risadinha perplexa. “E eu acreditei
quando o senhor disse que ele era um oráculo. O
que mais, pai? Vai dizer que essa coisa de tritão
dourado e mágico é uma pegadinha, e nós
mudamos para Dakota do Sul por nada?”
“Por que outro motivo Leviathan nasceria de
cauda dourada? Tudo naquele garoto é único, meu
filhote. O primeiro nascimento fora do vínculo de
predestinação, e o primeiro oráculo a nascer antes
da morte do oráculo anterior. Nunca esperei que a
verdade o fizesse fugir para esse monte de erosão e
mato no meio do nada, mas foi uma decisão que
aprendi a aceitar.”
“Calma, meu povo, volta tudo.” Eu pedi aos
dois, antes que Hian cometesse um tritãocídio.
“Então o pai do Dylan é o rei da porra toda, certo?
Mas se é tipo nos filmes, então o Dylan é o

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próximo rei, não é?”


Os dois me olharam daquele jeito enigmático
que os tritões tinham, quando queriam enlouquecer
algum humano. Será que eu falei alguma besteira?
Era um assunto tão complicado, mas eu queria
ajudar o Hian de algum jeito.
“Tem razão, o próximo rei seria eu, mas
renunciei ao cargo. Meu predestinado e minha
prole são a única prioridade que almejo ter.” Disse
Dylan. E percebendo que Hian ia voltar a surtar, ele
o interrompeu. “E não, não posso voltar atrás nesta
decisão. A renúncia é definitiva, e mesmo que não
fosse, sou feliz em proporcionar ao Gabe uma
felicidade que ele jamais encontraria entre os
nossos.”
Caralho… tritões sabiam complicar coisas
simples. Eu me perguntava quantos mal-entendidos
seriam resolvidos se esses caras sentassem para

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conversar mais vezes.


Hian não se divertia com a comédia da situação,
mas eu até compreendia. Dylan havia prometido ser
sincero com o Gabe, entretanto reuniu-se conosco
em segredo, e com certeza Gabe nem suspeitava
que era casado com um príncipe… ou ex-
príncipe… e que ele também era um príncipe,
talvez?
Ahh eu devia ter assistido mais filmes de
princesa quando eu era criança!
Hian percebeu meus pensamentos e bufou de
raiva. Ele ergueu as mãos e trancou o ar, buscando
alguma calma interior.
“Certo, deixe ver se eu compreendi. Meu avô é
um oráculo e um rei, você renunciou o direito ao
trono e deixou pra mim governar uma ilha que eu
nunca vi na minha vida??” Hian falhou em se
acalmar. Na verdade ficou ainda mais puto que
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antes. “Eu tenho mais de trinta anos, pai! E em


trinta anos o senhor nunca pensou que talvez eu
devesse saber que tenho sangue real??”
“Não somente sangue real, filhote. O clã
Makaira é o único com o potencial de gerar
oráculos.”
“Não quero uma aula de genética! Eu quero que
isso seja uma brincadeira de mau gosto!” Disse
Hian.
Apesar dos chiliques do Hian, era óbvio pela
cara do Dylan que tudo aquilo era muito sério.
Eu me controlei ao máximo para não
comemorar, mesmo em pensamento. Meu marido
era um príncipe! Ai, meu Deus, que coisa mais
incrível!
Espera, eu… eu trepei com um príncipe. E um
monte de vezes. Da última vez até mandei o Hian
engolir enquanto me olhava nos olhos. Será que eu
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devia me curvar e pedir desculpas, ou o Hian me


açoitaria pelo abuso? Hum, pensando bem… ser
chicoteado por um príncipe era uma ideia bem
sexy.
“Maikon, se controla…” Hian revirou os olhos
pra mim, avermelhando de vergonha. Sua atenção
logo mudou aos papéis no fundo do ateliê.
Hian agarrou um papel em branco e ajeitou na
mesa de desenho, então abriu um frasco de
nanquim.
“Vai desenhar seu primeiro uniforme da
realeza?” Eu perguntei, me debruçando ao lado
dele. “Faz preto com azul. Não, laranja. Ah, e podia
ter plumas no chapéu, já pensou que louco?”
Pela primeira vez consegui que o Hian desse
risada. Ele deu um beijinho nos meus lábios.
“Não vou desenhar roupas, Maikon.” Ele
desmanchou o sorriso e afinou os olhos para o
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Dylan. “Vou escrever minha própria carta de


renúncia.”
Meu queixo caiu, de tão chocado que eu fiquei.
O tio Dylan não pareceu nada surpreso.
“Será um documento muito formal, vou ajudá-
lo a compor um texto apropriado.” Disse Dylan.
“Fácil assim?” Hian montou o bico de sua
caneta-pena e mergulhou no nanquim. “Não vai
fazer drama e escândalo sobre eu precisar subir ao
trono dos tritões?”
“Seria um tanto hipócrita da minha parte.”
Dylan mordeu o lábio, hesitando antes de
continuar. “Compreendo seus motivos de evitar
Egarikena.”
Hian estremeceu, fazendo respingar nanquim
pelo papel. Fingindo ter sido um simples acidente,
ele disfarçou e pegou um papel limpo.

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Desanimando, eu olhei para o porta-retratos no


canto da mesa: eu e Hian abraçando o Levi, nós três
com enormes sorrisos em nossos rostos. Aquele foi
o quinto aniversário do nosso filho, nós fizemos
uma linda festa para os coleguinhas dele, e até o
Shane conseguiu aparecer. Foi ele quem tirou a
foto, enquanto agitava uma galinha de borracha
para fazer o Levi sorrir. Apesar de tantas
dificuldades, dias divertidos assim costumavam ser
bem comuns.
Eu me perguntava se os sorrisos seriam maiores
ou menores, se naquela foto houvesse uma segunda
criança.
Meu coração acelerou com medo que Hian
tivesse lido este pensamento, mas ele já estava
concentrado em escrever, enquanto Dylan ditava
palavras complicadas ao seu lado.
Poxa, não deu nem tempo de curtir a

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novidade… Hian não suportaria ainda mais


pressão, mas só de imaginar meu marido como rei
de uma espécie, chegava a dar um calor. Será que
eu tinha um fetiche por príncipes? Hian ficaria tão
lindo em trajes nobres, batendo seu cetro na cabeça
dos plebeus enquanto me alimentava com
sardinhas, eu despido e acorrentado aos pés do
trono.
“Tio Dylan, as camas do castelo também são de
cristal?” Perguntei.
“Sim, são de cristal e bastante maiores que as
camas humanas.” Respondeu ele.
“Maikon, o que já conversamos sobre a sua
imaginação?” Hian levantou os olhos de sua
escrita.
“Você não precisa ler todos os meus
pensamentos, amor.” Eu sorri com o canto da boca,
o provocando.
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Hian fez um silêncio suspeito e continuou


escrevendo o documento, caprichando em sua linda
caligrafia de nanquim. Com a ajuda do Dylan ele
criou um texto super chique, que gastava mil
palavras pra dizer não quero ser rei de porra
nenhuma.
Apenas quando Hian pingou o último ponto
final, eu olhei para o porta-retratos novamente e o
peguei nas mãos, com um pressentimento meio
esquisito. Hian, Levi e eu. Havia algo que não se
encaixava direito. Não na fotografia, mas naquela
situação.
“Espera, Hian.” Eu franzi a testa, mudando o
olhar entre a fotografia e o documento de renúncia
sobre a mesa.
“O que foi, Maikon?” Hian me deu sua atenção.
“Algo não está certo… digo, se o Dylan
renunciou, e você renunciou… isso significa
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que…” Eu forcei todos os meus neurônios,


tentando juntar os pontos. “…isso significa que eu
nunca vou ser uma princesa!”
Hian desatou a rir, quase se cuspindo em cima
do documento chique.
“Você sempre será uma princesa para mim,
Maikon.” Hian entregou a caneta ao Dylan. “Você
e o papai precisam assinar, como minhas
testemunhas. E Levi assinará um documento igual
assim que acordar. Era nisso que tentou pensar,
certo, meu amor?”
Ah, é. O Levi. A ideia dele como príncipe era
bem mais assustadora que engraçada.
“Bem pensado, filho, mas lembre-se que
filhotes não tem poder de decisão. Apenas adultos
podem renunciar ao trono.” Disse Dylan, enquanto
terminava de assinar.
Hian bufou aborrecido e me entregou o papel e
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a caneta.
“Que seja. Levi renunciará no instante em que
fizer dezoito anos. Com despertar ou sem, o lugar
do meu filho é aqui entre os humanos.” Disse Hian.
Eu concordei e assinei logo abaixo da
assinatura do Dylan, sentindo que a minha letra feia
bagunçou o documento todo, mas Hian não se
importou. Ele apenas enrolou o papel em um
tubinho, prendeu com uma fita dourada e entregou
ao Dylan.
E neste simples gesto, meu marido deixou de
ser um príncipe. Foi um reinado breve, mas eu
nunca me esqueceria dos meus dez minutos de
princesa.

****

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Eu ajudei tio Gabe a carregar as malas. Pela


quantidade de bagagem eles pretendiam ficar uns
cinco dias, talvez a semana inteira, era uma pena
que eles precisassem partir ainda naquela manhã. O
Levi recém havia ido para a escola, e logo o Hian
levaria seus pais de volta ao aeroporto.
Tio Gabe não estava brincando sobre conseguir
o jatinho particular e a lancha. Gente rica podia de
tudo, mesmo. Saindo naquele momento, ele e
Dylan chegariam em Egarikena a tempo do velório.
Ciente da ocasião triste, Gabe tentava ocultar
sua empolgação, mas era só o Dylan sair de perto
que ele começava a sorrir e cantarolar.
“Que inveja. Egarikena deve ser linda demais.”
Eu disse ao Gabe, enquanto ajeitava sua mala no
bagageiro do carro.
“Sim! Já ouviu as histórias do Shane? Tem um
castelo de cristal por onde escorrem cachoeiras, e
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também um monte de flores. Uma pena ele não


poder mandar fotos, mas agora veremos se é
invenção dele.” Tio Gabe abriu um sorrisão. “Um
dia você conhecerá também, Maikon.”
“Duvido muito.” Respondi, um tanto
desanimado.
“Não duvide. O meu peixe demorou quase
quarenta anos para me levar, e veja como ele é
teimoso.”
“Está sugerindo que o Hian não é teimoso?” Eu
comecei a rir.
“Nem pensar, quando meu filho quer ele
empaca igual a uma mula, mas acredito que um dia
a curiosidade vai vencê-lo.” Gabe riu. “Lidar com
peixes exige paciência.”
“Mas é sempre recompensador.” Eu disse.
“Obrigado por terem vindo tão rápido.”

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O sorriso do tio Gabe desmanchou um pouco.


“Acha que o Hian vai melhorar?” Tio Gabe
baixou o olhar. “Eu confio em você, Maikon, o
Hian está sob o melhor cuidado possível, mas sinto
falta dos sorrisos dele, sabe? Não as eventuais
risadas aqui e ali… mas aquela felicidade que vem
do fundo do peito.”
Eu sabia exatamente do que o Gabe estava
falando. Mais do que tudo eu queria a alegria do
meu Hian, e ainda assim ele e Levi se pegavam
pelo pescoço quase todos os dias. Seria má ideia
explicar os motivos sem a autorização do Hian, até
porque nem eu compreendia direito.
A única tristeza que eu entendia era aquela que
também queimava minha alma e me perseguia
todos os dias, às vezes até nos meus sonhos.
“Tio Gabe… é um pedido impossível, eu
acho… mas se encontrar o Ronan…”
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Eu suspirei, tentando não me lembrar. Hian


estava lavando a louça do café com o Dylan, mas
daquela distância ele poderia ler minha mente
quando bem quisesse.
Sorrindo travesso, tio Gabe aproximou o rosto
do meu ouvido.
“Vou descobrir tudo o que puder. Se eu
conseguir, te mandarei uma selfie com ele.”
“Não, não! Hian teria um troço se o senhor
fizesse isso.” Respondi, em pânico.
“Ele não precisa descobrir.” Tio Gabe deu um
tapinha no meu ombro. “Esses tritões adoram
mexer conosco, enganar, ter reuniões secretas no
sótão quando pensam que estamos dormindo… nós
humanos também podemos ter nossos
segredinhos.”
Eu deveria impedir o Gabe, convencê-lo de que
era loucura, mas uma foto do meu Ronan… meu
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querido bebê albino… só de imaginá-lo como o


alfa bonitão que Shane descrevera, eu comecei a
chorar.
“Uma foto seria legal.” Eu sequei minhas
lágrimas na camisa.
“Pode deixar.” Ele sorriu, comovido. “Meu
primeiro netinho… nem imagino como difícil é pra
você, que foi o pai dele.”
Não foi nem um pouco fácil. Só de lembrar dos
olhões vermelhos, cabelinhos de neve e pele macia
e branquinha, meus olhos nublavam. Será que ele e
Levi seriam amigos? Talvez com um irmão mais
velho o Levi fosse ser menos mimado, e o Ronan
aprenderia matemática e inglês na escola, talvez
entrasse no clube de futebol americano e então o
Levi torceria por ele, e eu e Hian assistiríamos a
todos os jogos.
Tio Gabe voltou pra dentro da casa em direção
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ao quarto de hóspedes, onde ainda haviam algumas


malas.
Pouco depois dele sair, uma luz vermelha e azul
piscou adiante. Era uma viatura policial
estacionando nos portões da fazenda.
Enquanto eu me aproximava para atender, o
xerife desligou o motor e desceu do carro.
“Algum problema, xerife Thornwall?”
Perguntei a ele, já chamando Hian através da minha
quase-telepatia. “Aconteceu alguma coisa com o
Levi?”
“Boa tarde, senhor Dolinsky-Makaira. Desculpe
incomodar tão cedo, já garanto que não é nada com
relação ao seu filho. Ou, pelo menos, não
exatamente…” O xerife coçou os bigodes loiros e
pegou alguma coisa dentro da viatura. Um
envelope comum de papel pardo.
Hian chegou correndo, acompanhado pelo
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Dylan.
“Tá tudo bem com o Levi?” Perguntou Hian.
“Seu garoto está bem, policiais não aparecem
apenas para anunciar desgraças.” O xerife deu uma
risadinha, sem esconder sua preocupação. “Me
digam, o Levi comentou algo sobre um certo
encontro no bosque, dois dias atrás?”
“Encontro no bosque? Não, ele não tem
conversado comigo.” Disse Hian.
“Nós às vezes corremos juntos nas trilhas,
talvez ele tenha decidido correr sozinho. É um
garoto bastante atlético.” Eu disse ao xerife,
também estranhando a situação. Levi sempre me
convidava para corrermos juntos.
“Mantivemos certo sigilo durante as
investigações iniciais, mas acredito que tenham
ouvido sobre Magda Crowfield? A colega de escola
do seu filho?”
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“Sim, sim, o rádio não fala de outra coisa.”


Disse Hian. “Vamos subir a cerca dos fundos e
proibir os passeios no bosque, até o lince gigante
ser capturado. Agradecemos sua preocupação,
xerife.”
“Lince gigante?” Perguntou Dylan.
“É uma medida prudente. A garota vai
sobreviver aos ferimentos, graças à ajuda do seu
filho.” O xerife franziu a testa para o choque em
nossas expressões. “Os senhores sabem que foi
Levi quem a encontrou, não sabem? Ao fim da
tarde, no coração do bosque?”
Ai, meu Deus. Como assim? O Levi talvez
guardasse segredo sobre passear no bosque, ainda
mais quando havia um lince à solta, mas esconder
sobre uma garota ferida? A comunicação entre Levi
e Hian nunca foi das melhores, mas eu também era
o pai dele!

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E, entretanto, Levi apareceu no sótão parecendo


ter um assunto importante, e eu o ignorei.
“Seria sobre isso que ele queria falar ontem à
noite?” Hian esfregou a testa, consumido pela
mesma culpa que eu.
O xerife nos olhou como se fôssemos os pais
mais incompetentes do mundo, e era assim que eu
me sentia.
“De qualquer forma, eu gostaria de fazer umas
perguntas a ele. A senhorita Crowfield esteve
inconsciente durante todo o ataque, mas é possível
que Levi tenha visto o culpado.”
“Que diferença faz se o Levi avistou o lince ou
não?” Perguntou Hian. “É trabalho da polícia
capturar aquele bicho, se ele presenciou um ataque
tão violento nós não iremos submetê-lo a mais
estresse.”
O xerife olhou para o envelope em suas mãos,
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pensativo, então respirou fundo e nos encarou um


por um. Hian parecia uma pilha de nervos, Dylan
travou na parte do lince gigante, e eu mesmo
ocultava a mágoa no meu peito. Levi podia ter me
contado, nem que fosse durante o café da manhã.
“Senhores, o que vou revelar é extremamente
confidencial, então peço que mantenham a calma e
a discrição.”
O xerife abriu o envelope e retirou um
envelopinho menor, de plástico transparente. Eu o
peguei nas mãos e estranhei o conteúdo.
“Cabelos pretos?” Perguntou Hian.
“A amostra foi coletada no corpo da garota e no
local do ataque. A senhorita Crowfield é ruiva e,
como devem saber, linces são animais de pelo curto
e castanho.”
Hian pegou o envelope e puxou um fio liso e
não muito longo.
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“É liso demais para ser do Levi. O que significa


isso?” Perguntou ele.
Pela seriedade no ambiente, era óbvio o que
aquilo significava. A brisa matinal pareceu esfriar
ainda mais, enquanto o xerife não desembuchava a
maldita história completa.
Hian devolveu a amostra ao xerife e deu uma
risadinha cínica.
“Não pode ser sério. O rádio disse que a menina
sofreu mordidas. Está me dizendo que uma pessoa
mordeu ela?” Disse Hian.
“Parece loucura, eu sei, são marcas muito
parecidas às encontradas nos cervos e javalis das
últimas semanas.” O xerife guardou a amostra e
desta vez puxou diversas fotografias. “Apesar de
suspeitarmos de um lince, as dentadas redondas
nunca combinaram com nenhum predador
conhecido.”
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Hian pegou as fotos e no instante em que as viu,


seu rosto empalideceu e ele as derrubou no chão.
Dylan precisou segurá-lo ou ele também cairia.
O que aconteceu? Eu abaixei para pegar as
fotos antes que sujassem, e o que vi quase me fez
vomitar.
Quem faria uma barbárie dessas? Os braços e
pernas da garota estavam cobertos de rasgos
redondos, tão profundos que expuseram a carne e
até os ossos.
“Não foi um lince. Não foi nenhum animal da
floresta.” Hian tremia violentamente nos braços do
Dylan, pálido e em completo estado de pânico.
O desespero do Hian me preocupou e
confundiu, mas quando entendi o motivo senti meu
estômago borbulhar como água fervente. Ele já
havia me contado sobre o ataque violento que
sofrera, muitos anos antes. Mordidas redondas por
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todo o corpo, na mesma ocasião brutal em que


engravidou do Ronan.
“Um selkie.” Eu disse, em choque.
“Selkie?” Perguntou o xerife.
Dylan arrancou as fotos da minha mão, enfiou
no envelope e devolveu ao xerife, rápido e
grosseiro.
“Somos gratos pela informação, xerife, mas o
senhor já ouviu o bastante através dos pais do meu
neto. Se o Levi soubesse de algo teria nos contado,
e é impensável que um humano tenha força de
rasgar carne desta forma.” Dylan fechou o portão e
abraçou Hian, protetor. “Boa sorte capturando o tal
de lince, tenha um bom dia.”
“Desculpe tê-los abalado, mas é importante. Se
souberem de qualquer coisa…”
O xerife tentou nos dizer mais alguma coisa,

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mas Dylan agarrou meu braço e nos empurrou de


volta para casa.

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Capítulo 26

Dylan empurrou a mim e ao Hian para dentro


de casa e trancou a porta, deixando o pobre xerife
falando sozinho.
Tá certo, até para os padrões do Dylan, aquilo
foi mais rude que o normal. Às vezes eu, Hian e o
xerife trocávamos conversa no bar, bebendo uma
cervejinha, e o cara era decente apesar de meio
obsessivo pelo trabalho. Não havia motivos para
enxotá-lo daquele jeito.
A pior parte de tudo era que Hian não
conseguia parar de tremer, agarrado aos braços do
Dylan enquanto gemia frases desconexas.
“Eles chegaram… eles vieram pelo Levi… não

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pode ser, papai, não pode…” Murmurou ele, além


de qualquer terror que eu já tivesse visto em seus
gestos.
Assim como eu, Dylan sofria pelo Hian. Eu
imaginava algo grave quando Hian me contou do
estupro violento que sofrera, mas ver os ferimentos
barbáricos nas fotografias tornou sua história ainda
mais real. Minha vontade era de ressuscitar aquele
desgraçado do Connor apenas para matá-lo de
novo. E lentamente, dessa vez.
Dylan afagou o cabelo do Hian e o afastou de
seu peito carinhosamente.
“Filhote, preciso que me escute.” Dylan olhou
fundo em seus olhos. “Não tem nenhum selkie.”
“Como não? Você viu as marcas, pai.” A voz
do Hian tremia. “Precisamos nos mudar o quanto
antes. Maikon, ligue para a escola. Não, eu mesmo
vou lá buscar o Levi. Não o quero longe dos nossos
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olhos em nenhum momento.”


Dylan bufou, e eu reconheci aquele olhar de
quem estava prestes a jogar mais lenha no fogo.
Ah, meu Deus.
“Ahm… filhote, é melhor você sentar.” Dylan
sentou com Hian no sofá da sala. “Como você já
admitiu, Leviathan é frágil, indefeso e
despreparado. Pensando na segurança dele, a Coroa
de Egarikena enviou um agente de sua alta
confiança. Um guarda-costas, se preferir o termo.”
“Você contou aos seus pais sobre o Levi??”
Hian gritou, o que enfim chamou a atenção do tio
Gabe. Ele apareceu arrastando uma das malas,
então as jogou no chão e correu até o Hian quando
notou seu rosto.
“Quem contou o quê? Tá tudo bem, filho? Você
está tão branco.” Tio Gabe acariciou o rosto do
Hian.
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“Nada, papai. Apenas descobri que meu outro


pai contratou um espião para investigar meu filho!
E o idiota atacou uma garota humana e entrou na
mira da polícia!”
Nossa, o Hian devia estar putaço pra jogar os
segredos do Dylan pra cima do tio Gabe. Era
incrível como tritões causavam um barraco
diferente por dia, mas dessa vez não era engraçado,
porque Levi corria perigo de verdade e até mesmo a
segurança do Hian entrou em jogo.
“Por que um tritão atacaria uma pessoa?”
Perguntei, com medo de passar por burro. “Quer
dizer, ele é um espião meio retardado, pra se
entregar desse jeito.”
“Se o xerife encontrar aquele idiota e descobrir
sua natureza, todos nós corremos sérios perigos.”
Disse Hian. “Papai Dylan, você vai encontrar
aquele tritão e sumir com ele ainda hoje.

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Aproveitem o jatinho particular e joguem o idiota


na primeira praia que sobrevoarem.”
“Dylan, que besteira você fez dessa vez?” Gabe
sofria para entender os detalhes da conversa.
“Penso apenas na segurança do nosso neto, meu
predestinado. O agente em questão é um Amalona
híbrido de dezesseis anos, e seu núcleo tem
profunda dedicação à segurança da família real. Ele
teve a honra de receber esta missão, visto que…”
“…visto que ele tem a mesma idade do Levi.
Que coincidência, não é, papai?” Hian fervia de
ódio e mágoa.
“Não entenda errado, Hian. Desconheço o
nome que Garren Amalona escolheu para esta
missão, mas não há segundas intenções além de
proteger Levi. A semelhança de idade permite uma
supervisão constante na escola e nos treinos
esportivos.” Dylan afinou os lábios, começando a
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se estressar. “Que outra escolha eu teria? Meu


tempo aqui é limitado, e vocês se recusam a treinar
a autodefesa daquele menino! Ele é o oráculo,
Hian! Alguém capaz de mudar o rumo de reinos,
curar pragas e prever destinos! Você pode brincar
de vida normal por enquanto, mas em algum
momento Leviathan se verá cercado de grandes
aliados e grandes inimigos, sem meio-termo. E que
chances ele terá de separar um do outro?”
“Dylan, você se controle e não grite com o meu
bebê!” Tio Gabe abraçou Hian ainda mais apertado.
“Ignore esse chato, Hian. Nós dois teremos uma
longa conversa a caminho de Egarikena.”
Eu tive certeza que Hian se acabaria de tanto
chorar. Dylan sabia pegar pesado nas piores horas
possíveis e sua desaprovação era uma avalanche de
pedras no coração dele. Mas o meu marido
manteve-se firme e afastou-se dos braços do Gabe.

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Ele se levantou e endireitou a postura.


“Agradeço, papai Gabe, mas o papai Dylan tem
razão. Eu e Maikon falhamos como pais todos os
dias, e meus erros são especialmente imperdoáveis.
Tudo o que consegui foi a desconfiança e raiva do
Levi, e é peso demais para se jogar nas costas do
Maikon.”
“Não é peso nenhum, meu amor. Paternidade é
uma desgraça pra todo mundo, ainda mais na
adolescência. Você também está fazendo o seu
melhor.” Eu disse a ele.
“Levi não é um adolescente comum, Maikon, e
está mais indomável a cada dia. Talvez um guarda-
costas seja exatamente o que precisamos neste
momento.”
Dylan sorriu para Hian, super aliviado. Ele
levantou e beijou o rosto do filho, orgulhoso.
“Não compreendo o motivo do ataque à
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humana, mas tenha certeza que não foi gratuito.


Amalonas são amplamente treinados na arte da
discrição e cautela, mesmo os mais jovens. Ele
saberá tomar controle da situação ou, em último
caso, pedirá reforços ao próprio clã ou a você
mesmo.”
Hian enfim se acalmou e ajudou com as últimas
malas. Eu saí com o tio Gabe um pouco depois.
“Pelo visto se entenderam. Isso é bem raro.”
Tio Gabe sorriu pra mim. “Não vou conseguir me
despedir do Levi, mas diga a ele que o amo muito.”
“Pode deixar, tio. Ele é meio genioso, mas com
certeza também ama vocês.”
“Tenho minhas dúvidas.” Disse Dylan, com um
sorriso torto. “Peço que evitem contato com
Garren, para não prejudicar sua missão. E me
mantenham informado sobre qualquer novo
incidente.”
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Eu concordei e ajudei os tios para dentro do


carro, enquanto Hian buscava as chaves. Quando
ele passou de volta por mim, eu ganhei um beijinho
no rosto.
“Próxima parada, Aeroporto de Sioux. Parece
que foi ontem que estive lá.” Disse Hian, em tom
de brincadeira.
É, parece que foi ontem que você era um
príncipe e eu era a sua princesa, eu pensei alto
para que ele ouvisse.
Hian deu risada e então entrou no carro. Ele
fechou o cinto de segurança e acenou para mim,
disfarçando o leve tremor pela situação de antes.
Havia algo diferente em seu rosto dessa vez, tipo
um rubor, só que muito sutil.
Antes que eu perguntasse, Hian interrompeu
minha voz.
“Até de noite, meu Maikon. Não esqueça de
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alimentar as cabras.”
“Diga para a Conchita que eu disse adeus. Ai,
como eu amo aquela cabra. Dylan, podemos ter
uma igual?” Disse o tio Gabe.
“Tudo o que meu predestinado desejar.” Disse
Dylan.
Hian manobrou o carro e os três partiram ao
aeroporto. Enquanto isso eu fiquei para trás, como
o típico fazendeiro dono-de-casa que eu havia me
tornado.
Apesar do óbvio nervosismo o Hian conseguiu
sorrir, e esta lembrança aqueceria meu peito até o
seu retorno.

****

O troféu do meu pai brilhou em minhas mãos,


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refletindo o tom castanho da minha pele. Sorrindo


com ternura, eu o devolvi à estante e comecei a
polir os troféus do Levi, deixando-os lindos e
reluzentes do jeitinho que mereciam.
Melhor Cheerleader municipal, 1º Lugar no
Cheer Dakota do Sul… eu ainda me lembrava da
sensação de ganhar meus primeiros troféus. Com
dez anos eu já tinha uma estante cheia de prêmios
de surfe, e cada pequena medalha ocupava um
lugar especial no meu coração.
Hian estranhou sobre eu deixar meus troféus no
Havaí, mas que bem haveria em trazê-los? Na
época da mudança só havia um grande prêmio que
me interessava, e pela minha falta de talento nunca
consegui ganhá-lo a tempo. Era o meu castigo por
não ser o melhor de todos no meu primeiro Surfe-
Hai, e nem no segundo, ou no terceiro. E por fim
minhas chances se perderam.

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Apesar da tristeza, minhas lembranças


voltavam doces e, ao contrário do que Levi
pensava, em momento algum guardei
ressentimento. No momento em que Hian colocou
esta linda aliança no meu dedo, eu pertenci a ele de
corpo e alma. E o que eram alguns troféus, perto da
família mais maravilhosa que eu poderia desejar?
Com a estante devidamente arrumada, eu fui
ajeitar a mesa do café e descansar um pouco.
Minhas costas ainda doíam de tanto limpar o
estábulo e carregar caixas de milho para as cabras,
mas nem pensar que eu deixaria a idade incomodar.
Quando Hian me deixou escolher nossa vida
secreta, cabras me pareceram a ideia perfeita
porque eram tão macias e engraçadas, e eram
mesmo. Hian passava o dia desenhando e Levi
envolvido em suas atividades escolares, sem
Conchita e as outras cabras eu enlouqueceria de

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solidão e tédio.
De qualquer forma, Levi apareceria em breve e
eu mal podia esperar para conversarmos. Talvez ele
enfim contasse sobre o acidente, ou sobre o tal
garoto por quem ele se interessou.
Eu bebi meu café e assisti o tique-taque do
relógio, então enviei uma ao Levi, que não me
respondeu. Era estranho. Ele não costumava se
atrasar ou me ignorar.
Ai, ai… aquele adolescente mimado seria o
motivo da minha calvície precoce. Se eu ficasse
grisalho antes dos quarenta que nem o meu pai,
pode apostar que eu não gostaria nem um pouco.
Um estalo de madeira ao longe atraiu minha
atenção. As cabras sempre baliam agitadas depois
de uma boa refeição, mas elas passaram a berrar
ainda mais que o normal, alegres como quando
recebiam visitas.
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“Levi, você já voltou?” Eu deixei meu café na


mesa e saí da casa.
Não havia ninguém à vista, mas algo não
parecia certo. Desconfiado, eu fui até o estábulo.
Ué. As cabras saltitavam sozinhas em suas
baias, sem o menor sinal de visitantes. Eu
cumprimentei a Conchita e o Eustáquio, dei meia
volta em direção à casa e só então reparei no
depósito de milho. O alçapão estava aberto. Será
que eu esqueci de fechar?
Sem pensar muito nisso, eu fui até o depósito
fechá-lo, mas meu sexto-sentido paterno
continuava apitando. Eu desci as escadas, e qual foi
o meu choque ao notar a porta oculta também
escancarada?
Eu corri em meio à poeira escura, me
enroscando nas teias de aranha e tropeçando no
monte de milhos da última colheita.
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Aquele era o local perfeito para a sala secreta,


Hian me disse ao construí-la, quando Levi ainda era
uma criança de colo. Ninguém nunca investigaria
um depósito de milho.
Mas naquele momento a porta estava aberta e
as luzes azuis da sala adiante iluminavam o interior
do depósito, ondulantes como água.
Eu terminei de escancarar a porta, que mais
parecia uma prancha de madeira igual às outras da
parede. Logo diante de mim estava nosso maior
segredo: Uma gruta artificial com uma piscina de
água cristalina, tratada para manter a mesma
salinidade do mar. Hian mergulhava por algumas
horas sempre que precisava, o mínimo necessário
para preservar sua boa saúde.
Ninguém sabia daquele lugar, nem mesmo o
Dylan. Entretanto, inclinado sobre a borda, Levi
admirava a profundidade ondulante, surpreso e ao

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mesmo tempo indignado.


Ele inclinou-se para a frente um pouco mais, e
eu quase tive um ataque cardíaco. No último
instante eu saltei e o segurei, caindo com ele nas
lajotas do piso.
Levi gritou com o susto, só então notando a
minha presença.
“Pai? O que diabos você está fazendo aqui?”
Ele me perguntou.
“Eu é que pergunto isso, Levi! Como descobriu
esse lugar?” Eu tremia, agitado pela adrenalina. “E
a sua alergia? Pretendia morrer sem que ninguém
percebesse?”
Levi se levantou e bateu os lados do uniforme,
além dos limites da indignação.
“Essa história de alergia é uma mentira ridícula!
Por que temos uma piscina secreta no subsolo??

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Por que ninguém nunca me contou desse lugar?”


Ai, o que eu podia responder? Hian tinha razão,
eu era péssimo em inventar mentiras. Na verdade
eu odiava mentir para o meu filho, mas a segurança
dele dependia disso, ou sei lá. Que história Hian
inventaria, nesse momento?
“Vamos voltar pra cima, está bem? O Hian
levou seus avós no aeroporto, quando ele voltar…”
Eu levantei do chão e suspirei. Precisava ser um pai
decente, uma vez na vida. “Não existe alergia, mas
ainda assim você não pode entrar aí. Acredite, é
para o seu bem.”
“E por que não?” Percebendo que eu não
respondia, os olhos do Levi pesaram em lágrimas e
isso foi como uma faca no meu coração. “Eu teria
sido escolhido para as eliminatórias, mas papai
Hian ligou pra escola e me proibiu de ir. Depois
disso um amigo abusou de mim em uma festa, e eu

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encontrei minha colega ensanguentada no meio do


bosque, mas nada disso importa porque meu
coração não para de bater por um cara louco que
talvez seja um psicopata. Muito obrigado por me
perguntarem!”
Eu pisquei rápido, surpreso e tão dolorido que
eu queria chorar junto.
“Levi, você podia ter nos contado tudo isso.
Somos os seus pais, você pode confiar na gente
para qualquer coisa.”
“Por que eu contaria a verdade, quando tudo ao
meu redor é uma mentira??” Levi despiu a camisa e
os shorts e voltou à margem da piscina. “Fiquem
com seus segredos idiotas, posso descobrir tudo
sozinho.”
“Não, você não pode!” Eu segurei o braço do
Levi e o puxei para trás, mas ele começou a se
debater.
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“Me solta!” Levi forçou-se na direção da água.


Eu e Levi lutamos na beira da piscina, trocando
empurrões e puxões na estreita margem entre a
parede e a água. Levi não competia com a minha
força, mas seus braços eram finos. Se eu forçasse
demais poderia machucá-lo.
Cada vez mais furioso, Levi me encarou cheio
de ódio em seus olhos azuis.
“Eu pensava que você era diferente! Você é um
mentiroso egoísta como o papai Hian!”
Hian, egoísta? Depois de tudo o que ele perdeu
pela nossa paz?
Um estalo seco ecoou pelas paredes do salão, e
só percebi o que havia acontecido quando notei
uma marca vermelha no rosto do Levi, e seu olhar
chocado e magoado na minha direção.
“Desculpa…” Eu gaguejei.

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Paralisado pelo choque, Levi massageou o lado


que eu havia golpeado e soluçou baixinho.
“Quer saber, foda-se tudo isso.” Ele me deu as
costas e correu de volta para a superfície, dolorido
e choroso.
Eu olhei para a minha mão, que ainda
formigava pela força do soco. O que estava
acontecendo comigo? Eu não era assim. Minha
única intenção era que todos fossem felizes.
Sentindo o coração pesar cada vez mais, eu
recolhi as roupas do Levi e me encolhi no cantinho
do subsolo, chorando e torcendo que Hian não
percebesse nada daquilo.
Hian já havia sofrido tanto, e ainda sofria. Se o
mesmo destino aguardasse o nosso filho, eu não
sabia se conseguiria suportar.

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Capítulo 27

Levi trancou-se no quarto e ligou o som no


volume máximo para não ouvir minhas batidas na
porta. Eu só queria pedir desculpas.
Bem, não adiantava me desesperar. Hian
voltaria cansado então eu preparei café quentinho e
bolo de milho, que eu cobriria com gordas bolas de
sorvete assim que ele chegasse.
As horas solitárias e a angústia no fundo do
meu estômago pareciam não terminar nunca, até
que o sol se pôs o ronco do Lamborghini ecoou no
jardim da frente. Eu retirei meu avental de cozinha
e corri para receber o meu marido.
A aparência do Hian não disfarçava o seu

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cansaço. Será que ele e Dylan haviam discutido


novamente? Os últimos dias foram uma sequência
de estresses, eu me preocupava com sua saúde.
Mas, como sempre, eu só podia sorrir e
demonstrar o meu afeto por ele.
“Bem vindo de volta, meu amor.” Eu disse.
Apesar da expressão de zumbi, Hian estava
uma delícia em sua camisa xadrez e calça justinha.
Eu adorava sua forma de se vestir e de arrumar o
cabelo. Mesmo passando dos trinta não havia um
único fio branco na cabeça do meu marido, e ele
continuava tão sexy e perfeito quanto no dia do
nosso casamento.
“Peço mil perdões, precisei te abandonar pelo
segundo dia seguido.” Hian deu um beijinho nos
meus lábios e sorriu, ainda mais corado que antes.
“Este cheiro é bolo?”
“O seu favorito, e com sorvete de chocolate.”
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Eu entrelacei nossos dedos ao entrar na casa.


“Como foi de viagem?”
“Três horas ouvindo papai Gabe falar sobre as
cabras e as últimas traquinagens dos nossos
sobrinhos, e também os discursos do papai Dylan
sobre o Levi precisar disso e daquilo, e sobre o
quanto ele é um pai muito melhor do que eu.” Hian
sorriu com o canto da boca, ofegante. “Foi uma
viagem maravilhosa.”
Hian sentou-se à mesa e eu cortei uma fatia de
bolo, depois a cobri com uma grande bola de
sorvete, calda e biscoitos. No começo do casamento
nós dividíamos as tarefas de forma bastante
tradicional para um casal de humanos, até Dylan
me revelar as funções de um alfa e me acusar de ser
um frouxo. Hian se enfureceu pela audácia dele,
mas eu acabei agradecendo pelo puxão de orelha.
Hian sofria grandes desafios adaptando-se à cultura

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humana, eu podia retornar seu esforço agindo como


um autêntico alfa, o que significava cuidar do
território, alimentar e paparicar o ômega, e proteger
o núcleo de qualquer ameaça. Tarefas que eu
cumpria com grande prazer.
Hian devia compreender as minhas intenções,
era uma alegria vê-lo saborear a minha culinária
duvidosa.
“Tão gostoso…” Ele abocanhou um pedaço do
bolo e gemeu de satisfação. “Levi precisa provar
isso. Esse heavy metal tremendo os vidros da casa
vem do quarto dele?”
Eu me encolhi, sentindo uma agulhada de culpa
no fundo do coração.
Hian descansou a colher no pratinho e me olhou
com paciência, suas íris azuis cintilando como se
penetrassem na minha alma.
“Tem algo que você deseja me contar,
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Maikon?”
“Tem algo que você não descubra sozinho,
entrando na minha cabeça?” Devolvi, um tanto
amargo.
Hian murchou os lábios. Ele odiava ser
contestado, mas que outra resposta eu poderia ter?
“Nós prometemos um ao outro nunca bater no
Levi. O temperamento de vocês dois é um perigo.”
Ele balançou a cabeça, incrédulo, e voltou a comer
seu sorvete. “Mas sou grato que tenha contornado
uma situação difícil. Sua rapidez em agir salvou a
vida do nosso filho.”
A barulheira continuou tremendo a casa por
mais algum tempo, até o próprio Levi cansar e
diminuir o som, mas ainda assim ele permaneceu
trancado no quarto.
“É tão importante, assim esconder a verdade?
Não me olha com essa cara, Hian, já conversamos
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sobre isso mil vezes, mas não vejo motivo em


esconder tanto. Levi pode conhecer sua espécie,
sem necessariamente descobrir que é um oráculo.”
“Seria como uma faísca em um barril de
pólvora, Maikon, você sabe disso. Imagine a você
mesmo na adolescência, descobrindo que pode
virar um peixe. Qual a primeira coisa que você
faria?”
“Eu… ahm… venderia as minhas escamas e
ficaria rico?”
“Não! Você iria procurar algo maior que uma
piscina. No mar aberto os tritões de todo o oceano
perceberiam a sua presença… e também aquela
outra espécie.” Hian estremeceu, com o olhar no
sorvete que derretia.
Eu toquei seu rosto e o fiz olhar para mim.
“Você está melhor sobre antes? Quanto àquelas
imagens da garota?” Eu perguntei.
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“Até que sim. Peço mil perdões por tê-lo


preocupado, foi um choque…” Hian descansou a
cabeça na minha cintura e apreciou o carinho no
rosto. “…mas também foi estranho, digo, acho que
eu ainda estaria encolhido em um canto, se fossem
mordidas de verdade.”
“Como assim?” Eu perguntei.
“Não acho que papai Dylan tenha reparado,
mas quando refleti com mais calma, lembrei algo
diferente naquelas marcas. Eram horríveis e
violentas, sem dúvida o trabalho de um sádico,
mas… sei lá… eram muito redondas, eu acho.”
“O tal de Garren é um tritão jovem, deve ter
uma mandíbula menor.” Eu disse.
“Bem pensado, mas não é apenas isso. Acho
estranho que um tritão tenha machucado uma
estudante, e não porque tritões são piedosos. Se a
garota descobriu o que não podia ela teria sido
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morta, e não apenas ferida.”


“Está dizendo que alguém simulou mordidas na
menina? Quem faria algo assim, e por quê?”
“Eu não sei… ela era parte da equipe de
cheerleading. Talvez exista alguma ligação? Será
que estou pensando demais?”
“Você definitivamente está pensando demais.”
Eu afaguei o cabelo macio do meu lindo marido,
apreciando seus gemidos contentes. “Tritões
diferentes têm mordidas diferentes, não esqueça
que antes da colega do Levi, diversos animais
selvagens também foram atacados.”
“Sim, tritões são caçadores natos. Não me
surpreenderia que um híbrido se alimentasse de
caçadas na terra firme, assim como faria no mar.
Independente disso, o seu tempo longe do mar é
limitado. Os ataques terminarão quando ele precisar
de água.”
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“É verdade, todos nós estamos nos preocupando


de graça.” Eu sentei ao lado do Hian para comer
com ele, então notei que ele já havia cruzado os
talheres no pratinho. “Isto é o suficiente? Você tem
comido tão pouco, nós ainda podemos pedir uma
pizza, ou…”
“Nem pensar, mal consigo terminar essa
porção.” Hian riu e descansou a mão sobre a minha,
na mesa. “Talvez no fim de semana, está bem? Foi
uma semana difícil pra todo mundo e eu sei que o
Levi adora essas comidas nada saudáveis. Nós três
podemos ir em uma pizzaria legal de Sioux.”
“O Levi vai adorar a ideia.” Eu disse,
empolgado pela pizza e também pelo vermelho nas
bochechas do Hian. Podia ter sido impressão
minha, mais cedo, mas agora eu tinha certeza do
motivo e sorria que nem um abobado ansioso.
Hian levantou-se e levou o prato para a pia.

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“Então está combinado. Agora queira me


desculpar, devo deitar mais cedo.” Ele avermelhou
ainda mais, ofegando discretamente e de um jeito
super fofo. “Acredito que aqueles dias se
aproximam.”
Um relâmpago quente desceu até a minha
virilha. Ai, nossa, eu adorava aqueles dias, mas
precisava disfarçar porque Hian se constrangia
profundamente.
“Vou tentar conversar com o Levi, e logo vou
para a cama também.”
Hian concordou, já demonstrando embaraço.
Ele bateu na porta do Levi e não conseguiu
resposta, então apenas foi direto ao nosso quarto e
se fechou lá dentro.
Eu lavei a louça e retirei a mesa, tentando
conter a eletricidade ansiosa dentro do meu corpo.
Ter um marido tritão era a melhor coisa do
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universo, mesmo que Hian não enxergasse isso.

****

Organizar a cozinha demorou mais que o


esperado. Quando enfim terminei eu fui até o
quarto do Levi e bati na porta.
“Filho, por favor abra?” Pedi com jeitinho. “Me
desculpe por hoje. Eu me irritei, mas isso não foi
motivo de te machucar. Por favor, vamos conversar
sobre isso?”
Silêncio total. Eu arrisquei forçar a maçaneta, e
para a minha surpresa desta vez a porta estava
destrancada.
“Levi?” Eu entrei de mansinho no quarto.
Pelo visto demorei demais. Levi já adormecia
profundamente, aninhado sob os cobertores como
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uma lagarta em seu casulo.


“Boa noite, filho.” Eu desliguei o som e então
fechei a porta.
Droga, eu não queria esperar até a manhã
seguinte para me desculpar, mas não havia escolha.
O jeito era empurrar nossa briga para o fundo da
mente, porque outra obrigação familiar me
aguardava.
Felizmente, esta era uma obrigação muito mais
agradável.
Hian já me aguardava na cama, sob os lençóis e
de costas para a porta, fingindo dormir. Eu não
entendia o motivo de tanta vergonha, se aquele era
um período natural dos tritões.
“Cheguei, amor.” Eu despi todas as minhas
roupas e deitei com ele sob os lençóis.
Hian continuou me ignorando, e gemeu alto ao

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sentir minha mão no alto das coxas. Fazia apenas


alguns dias desde a nossa última transa, mas meu
corpo já implorava por alívio e aquela não era uma
noite qualquer.
Hian aninhou suas costas no meu peito, ainda
fazendo pose de quem só queria dormir. Como
entender alguém tão teimoso?? Eu até desci a mão
entre suas nádegas e confirmei o quanto estava
úmido e desesperado por mim.
“Prefere deixar para amanhã? Você quase teve
um troço, da última vez que esperamos.” Eu
perguntei.
“Odeio não conseguir controlar.” Disse ele,
com a voz arfada. “Os problemas com meu pai,
com o Levi, com você… eu não deveria estar
fervendo desse jeito, como um animal.”
Eu beijei atrás do pescoço do meu Hian, aos
poucos grudando nossos corpos. Suas costas
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magrinhas encaixavam perfeitas nos músculos do


meu peito, trêmulas e suadas pela excitação.
“Você não é um animal, e não temos nenhum
problema um com o outro, que eu me lembre.” Eu
disse, entre beijos. “Eu amo que você seja um
tritão.”
“Não, você me ama apesar de eu ser um tritão.”
“Eu amo exatamente tudo o que você é.”
Hian arqueou as costas e roçou a fenda das
nádegas contra o meu pau, me enrijecendo ainda
mais. Ai, como ele conseguia ser tão dramático e
tão safado ao mesmo tempo?
“Como pode não me odiar pelo que eu fiz? Te
arrastei para longe do mar e dos seus sonhos sem
pensar duas vezes.” Resmungou ele, enquanto me
atiçava.
“Eu quem te segui sem pensar duas vezes, e

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nunca olhei para trás. Você e o Levi são o meu


verdadeiro sonho, meu amor, e um sonho que eu
me orgulho de ter realizado. Talvez você devesse
maneirar um pouco nessa leitura de mentes. Está te
deixando paranoico.”
“Prometa nunca me abandonar?” Pediu ele.
“Ei, ei, nós somos predestinados, não somos?
Duas metades da mesma alma.” Eu mordisquei sua
orelha, causando um gemidinho erótico sem o
menor esforço. “Não considere tanto as grosserias
do nosso filho. Lembra de como a gente era, na
adolescência? Lembra como eu era?”
Hian riu baixinho e finalmente virou-se na
cama, de frente para mim. Pelo vermelhão no rosto
e pupilas úmidas e dilatadas, o cio havia chegado
com a potência de um meteoro. Devia ser um
esforço imenso controlar o corpo naquela situação,
mas Hian disfarçava como se fosse capaz de me

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enganar.
“Eu te amo, Maikon.” Ele esfregou os lábios
nos meus, já tendo espasmos.
Nossos lábios tocaram, e eu tornei aquela suave
provocação em um intenso beijo de língua,
abraçando Hian contra o meu corpo para que
sentisse a totalidade do meu cheiro, da textura da
minha pele. Meu mastro esfregou firme contra o
dele, duas barras de ferro atritando uma com a
outra.
Hian gemeu alto na minha boca, devolvendo
carícias igualmente intensas. Ele não demorou nada
a gozar, tendo espasmos deliciosos e melando o
espaço estreito entre nós dois.
Eu afastei nossos lábios e encarei meu delicioso
marido, apreciando seu olhar cada vez mais sedento
e devasso.
“Vira de quatro, meu ômega.” Eu sussurrei em
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seu ouvido.
Hian prontamente se ajeitou na cama, deitando
os ombros no colchão e empinando alto a bunda.
Era o jeito dos ômegas retribuírem os agrados do
alfa, servindo-lhes o próprio corpo como um
objeto. Era um conceito difícil de digerir, mas
havia algo mágico nessa troca. Quando se entendia
a mente de um tritão, sexo deixava de ser apenas
sexo, e passava a ser a união mais extrema e mais
pura entre duas almas.
Já fervendo de tanto tesão, eu me encaixei atrás
do meu maridinho descontrolado. Hian me
aguardava esfregando o peito no colchão, buscando
prazer até no atrito dos mamilos com o lençol.
Mesmo tendo recém gozado o seu pau ainda
pulsava rígido entre as pernas. Foi o primeiro
orgasmo de muitos, e ele sabia disso.
“M…Maikon… rápido… ah…”

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Aquela devia ser a visão do paraíso, A


bundinha redonda e branca do meu Hian totalmente
exposta pra mim, vertendo umidade do centro cor-
de-rosa. Só para provocar eu contornei o dedo em
torno da entradinha, fazendo-a piscar em ansiedade
desesperada.
Era embaraçoso para o Hian, mas meu ego não
conseguia evitar, aquilo era simplesmente
divertido.
“Quer vara, Hian?” Eu perguntei pra ele.
“Mete em mim agora, mete...” Ele rebolou
contra o meu corpo, como se pudesse se empalar
em mim naquela posição.
É, preliminares não eram bem vindas durante o
cio. Eu agarrei o lado das coxas do Hian e emperrei
o corpo pra frente, entrando todo de uma vez no
espacinho apertado.
Hian arqueou as costas em um relâmpago de
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prazer, fincando os dentes em sua fronha para não


gritar. Eu mesmo estava à beira do orgasmo só de
vê-lo daquele jeito, mas me contive com todas as
forças. Aquela ainda seria uma longa noite.
“É uma delícia te comer assim, sabia?” Eu
disse, enquanto metia forte e rápido, fazendo nossas
peles estalarem.
Hian rebolou sua bundinha alargada contra a
minha virilha, sugando o máximo de prazer, se
deleitando com o atrito dos meus pelinhos crespos
em suas nádegas afloradas.
“Não se divirta tanto, seu… ah… seu safado.”
Ele tentou me espiar por cima do ombro,
envergonhado mas travesso. “Eu me sinto uma
puta.”
“Uma puta que só dá pra mim? Admite, é bem
excitante.”
Hian tentou responder e só de sacanagem eu
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meti forte no mesmo instante, fazendo-o gemer


alto.
Ao invés de reclamar, Hian escondeu o rosto no
travesseiro e tentou não morrer de vergonha. Ele
costumava adorar o período do cio, mas ganhou a
crença estúpida de que um pai de família lá pelos
trinta anos não podia ser uma putinha
desavergonhada.
Ou ele simplesmente passou a odiar tudo em
sua natureza de tritão, incluindo as melhores partes.
Excitado demais para pensar, eu arrombei o
rabinho úmido do Hian com toda a força mais
algumas vezes, roçando o relevo da glande em seus
pontos mais sensíveis, e logo seus músculos
contraíram no meu mastro e ele gozou de novo,
tendo lindos espasmos de tesão descontrolado.
Ai, aguenta, Maikon. A vontade de gozar
dentro me consumia, mas ainda havia muito
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trabalho pela frente.


Enquanto Hian gozava eu contornei o braço
pela sua cintura e o masturbei do jeito perfeito, o
fazendo ter chiliques de tanto prazer. Um orgasmo
dentro do outro. Ser um tritão devia ser incrível.
Não dava pra controlar. Eu girei Hian na cama
e o deitei de frente para mim. Queria ver sua cara
quando gozasse ainda mais uma vez.
Retirando forças sei lá de onde, eu continuei
comendo. Suor descia pelo meu rosto, tanto pelo
tesão quanto pelo cansaço.
“Brinca com os seus biquinhos, Hian. Eu sei
que você gosta.”
Mesmo envergonhado, Hian obedeceu na hora.
Ele adorava me fazer um showzinho, o que era uma
tortura ainda maior para os meus hormônios
incandescentes. Ele pinçou os biquinhos cor-de-
rosa e mordeu os lábios de tanto prazer, tudo isso
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enquanto eu ia e vinha dentro dele. Se não fosse o


lubrificante natural, eu já estaria arrancando nossas
peles.
“M…Maikon… Maikon… Maikon…” Ele
sussurrava como um mantra, contraindo os
músculos do corpo todo. Seu rosto parecia um
tomate de tão vermelho, e suas mãos tremiam tanto
que ele mal conseguia beliscar as pontinhas duras.
Um jato branco cobriu sua barriga e escorreu
pelos quase-gominhos. Outro orgasmo.
Ai, era hoje que eu morria.
Uma hora se passou, talvez duas, eu já temia
que o atrito tivesse afinado meu pau quando enfim
ouvi as palavras mágicas.
“Goza em mim, Maikon… ah, me recheia…”
Implorou Hian, já todo coberto no próprio gozo e
quase que em outro planeta.

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Eu obedeci no mesmo instante, aumentando o


ritmo o pouco que faltava para me perder de vez.
Meu corpo já doía tanto que foi um orgasmo
esquisito, mas nossa, também foi gostoso além dos
limites.
Assim que sentiu o calor do meu gozo, Hian
teve ainda mais um orgasmo, se masturbando até
sair uma última gotinha. Como era possível??
Como cabia tanto esperma dentro daquelas bolas??
Enfim exausto, Hian relaxou o corpo e eu saí de
dentro dele. Meu pau parecia envolto em arame
farpado, hipersensível e dolorido.
“Peço… peço mil perdões.” Arfou Hian,
completamente acabado.
“Não tem problema nenhum.” Eu deitei com ele
e beijei seu rosto cansado. “Como eu me saí dessa
vez?”
Hian me fitou com o canto do olhar e deixou
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escapar uma risada.


“O mais perfeito macho alfa.”
Eu ri super satisfeito e me abracei no meu
marido gostoso, descontrolado e melecado por
dentro e por fora.
“Você é o melhor marido do mundo, sabia?” Eu
disse.
“Não, você quem é.” Hian afagou meu cabelo
suado, com o olhar no teto. “Amanhã vamos
conversar com o Levi, nós dois juntos. Talvez ele
mereça um pouquinho da verdade.”
Eu ergui o corpo para olhá-lo nos olhos, muito
surpreso.
“Sério?”
“Você e o papai Dylan têm razão. Levi merece
escolher sua própria cultura, mesmo que decida
viver como um tritão.”

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“Ou como um oráculo.”


“Não, você sabe que isso não!” Hian beliscou o
meu nariz. “Não contaremos nada que comprometa
sua segurança e ele nunca deixará Bobcat Hollow,
mas aquela piscina é tão espaçosa… acho que
posso aprender a compartilhá-la.”
Eu sorri, transbordando em orgulho pelo meu
maridinho lindo.
“Olha só, para quem se considera o pior pai do
mundo, você é, tipo, o melhor pai do universo.” Eu
disse.
“Isto é um completo exagero.” Ele baforou uma
risada triste. “Levi me odeia mais a cada dia.”
Eu decidi ignorar o drama do Hian apenas dessa
vez, tão cansado que eu poderia dormir por uns
cinco dias. Aninhado ao corpo dele eu bocejei alto
e deixei o sono chegar.

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Hian e Levi… os homens da minha vida eram


ao mesmo tempo generosos e birrentos, e com um
coração tão maior do que acreditavam ter. Levi
falou sério quando me considerou igualzinho a ele.
Nem imagino sua reação se soubesse que carregava
a genética dos dois pais, mas uma coisa era certa:
Levi e Hian eram idênticos um ao outro, embora
nenhum deles percebesse isso.
Quem sabe, com a revelação da verdade, eles
enfim percebessem o quanto eram pai e filho.

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Capítulo 28

Levi

Abraçado na minha mochila e com o casaco


caindo dos ombros, eu corri pelas ruas escuras da
cidade.
Meu coração turbilhonava dentro do peito e eu
não conseguia acalmar minha respiração, olhando
para trás o tempo todo como se meus pais
estivessem logo ali, prontos para me deixar de
castigo pelo resto da eternidade.
Apesar do medo, nem pensar que eu voltaria.
Meu único grande temor era que fosse tudo uma
brincadeira idiota do Clint, mas seu carro realmente
estava escondido no matagal atrás da igreja, como

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ele havia prometido.


Isso foi um alívio. Eu não fazia ideia de como
saltar de volta pela janela do meu quarto, e
esconder travesseiros sob os cobertores era o truque
mais antigo do mundo. Se papai Hian investigasse
o meu quarto meus planos dissolveriam como
açúcar na água.
Conforme me aproximei do mato escuro, notei
que Clint não estava sozinho. Ele comia uma maçã
e conversava animado com Benny e Elyse, e todos
sorriram ao me ver.
“Aaaah, alguém me abana! Levi, você também
vai?” Benny me abraçou apertado com seu corpão
gigante e me girou no ar. “Olha isso, Elyse! A
gente pensou que estava ferrado sem a Magda, mas
agora sim vamos ganhar com certeza!”
“O que estão fazendo aqui?” Perguntei, enfim
conseguindo me soltar do abraço.
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“Qual é a surpresa, sexy? Uma aventura pelos


Estados Unidos é mais divertida com várias
pessoas.” Clint deixou fincou seu canivete na maçã
e se aproximou de mim um pouquinho demais.
“Sua aventura particular comigo vai precisar
esperar.”
Eu avermelhei. Não era nada disso, eu só queria
chegar em Miami à qualquer custo e Clint era o
único entre nós com carteira de motorista.
A proximidade do Clint logo me deixou
desconfortável, mas felizmente Elyse cortou o
climão se aproximando ainda mais. Ela levantou a
mão para tocar na minha bochecha dolorida.
“Que hematoma é esse?” Ela estranhou quando
desviei do toque.
“Digamos que fui atingido pela realidade.”
Respondi com um sorriso cínico.
Elyse e Benny se entreolharam sem entender
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nada, e Clint sorriu, saboreando minhas palavras.


Ele mantinha-se perto demais, qual era o problema
dele?
“Quem diria que meu discípulo sexy curte uma
aventura.” Clint cortou uma lasca da maçã e tentou
me fazer comer, quase grudado em mim. “Acho
que gosto desse seu jeito ousado.”
Meus instintos gritaram pra levantar o joelho e
amassar as bolas do Clint, mas quando o meu bom
comportamento trouxe algo de bom?
Eu afinei os olhos para ele e entreabri os lábios,
movendo a língua em câmera lenta ao receber
aquela fruta idiota enquanto o provocava com o
olhar.
“Talvez eu tenha cansado de ser um garoto
bonzinho.” Eu percorri minha atenção pelo sorriso
satisfeito do Clint e pelos olhares desconfiados do
Benny e da Elyse. “E o que seria da minha equipe,
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sem o seu capitão?”


Apesar do clima meio estranho todos
comemoraram a minha participação na viagem,
embora eu suspeitasse que por motivos bem
diferentes.
“Cara, até que enfim notícias boas. Primeiro o
Caleb cancelou a viagem com a gente, com
medinho de que o Clint enterrasse o carro em uma
árvore. Depois a coisa com a Magda, que ainda tá
no hospital… mas agora o Levi é o capitão e vai
competir conosco! Não sei lidar com essa
montanha russa emocional.” Benny abanava a gola
da camisa, já tendo calorões.
“Verdade, eu nem sabia que a treinadora
conversou com ele. Como conseguiu o atestado dos
seus pais, Levi?” Elyse arqueou a sobrancelha.
Meu sangue gelou. Eu gaguejei alguma coisa
para a dupla de irmãos, que me encarava com
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curiosidade.
“Ahm… atestado?” Eu engoli minha maçã toda
atravessada.
“Sim, o documento assinado pela diretora e
pelos seus pais.” Benny tirou um papel no bolso e
mostrou um papel com algumas assinaturas
embaixo. “Não podemos nos inscrever nas
eliminatórias sem isto.”
Minhas pernas tremeram. Ai, como eu era
burro! Claro que um bando de menores de idade
precisaria de autorização para competir no litoral
do país.
Clint passou a mão por trás dos meus ombros.
“Relaxa, sexy. Você deixou o documento
comigo, esqueceu?” Ele me entregou um papel
idêntico ao do Benny.
Eu arregalei os olhos em espanto. Estava tudo

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ali. O texto, a assinatura da diretora e também a do


papai Hian. Como??
“Ufa, tudo certo então.” Benny relaxou os
ombros, aliviado. “Pela cara que você fez, Levi,
pensei que você estivesse fugindo de casa.”
Eu não conseguia entender nada, então apenas
ri nervosamente e guardei no bolso o precioso
documento.
Talvez eu estivesse errado sobre o Clint, ele
sempre foi um grande amigo e só queria o melhor
para mim. Até conseguiu convencer o papai Hian, e
isso era o milagre dos milagres.
A ansiedade em viajar era enorme, então Benny
e Elyse foram logo verificar o bagageiro. Enquanto
que eu fugi apenas com o que coubesse na mochila
escolar, os outros levaram de tudo: comida,
barracas de camping… seria uma viagem muito
louca.
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Eu me aproximei para investigar a bagagem


com eles, mas Clint manteve o braço nos meus
ombros, me aprisionando no lugar. Antes que eu
me soltasse, ele aproximou os lábios do meu
ouvido.
“Não é ótimo ter um pai artista famoso? Foi
bem fácil encontrar os desenhos dele na internet,
cada um com uma linda assinatura embaixo.”
Eu arregalei os olhos, em choque.
“Espera, você… você falsificou a assinatura do
meu pai?”
“Se eu disser que sim, você vai rasgar o
atestado e voltar pra casa?” Ele sorriu como um
gato, atento às minhas menores reações.
Um amargor subiu pelo meu estômago. Fugir
de casa machucaria os meus pais, mas não havia
outra alternativa e pelo menos não era nenhum
crime! Falsificar assinaturas era super errado, eu
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não podia vencer às custas de uma mentira.


Sentindo vir um ataque de pânico, eu me apoiei
na lateral do carro. Logo adiante, Elyse e Benny
cantarolavam empolgados enquanto faziam caber o
fogareiro entre os outros equipamentos.
Eu suspirei e relaxei o corpo, com o olhar no
chão.
“Foi esperto da sua parte. Obrigado, Clint.” Eu
disse.
Ainda grudado em mim, Clint ergueu o meu
rosto para que nossos olhares cruzassem. Havia um
brilho úmido e um pouco assustador em suas íris
cinzas.
“Pode retribuir o favor quando quiser, sexy. E
da forma que achar mais agradável.” Ele fincou o
canivete na maçã e comeu mais um pedaço, então
aproximou seu rosto até eu sentir as cócegas de sua
respiração. “Você nem imagina tudo o que sou
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capaz de fazer por você.”


Eu paralisei não sei se pelo susto, pelo medo,
ou porque não me importava. Eu não queria mais
ser bonzinho, então isso talvez fosse certo? Meu
coração parecia uma turbina.
Clint pareceu se deliciar com a minha falta de
reação e terminou de me prensar contra o carro,
mas assim que nossos lábios roçaram um barulho
no matagal chamou nossa atenção.
Alguém surgiu do mato com passos firmes e
confiantes. Dois olhos verdes cintilaram na direção
dos meus, em uma expressão ilegível e
avassaladora.
O uniforme de futebol americano rasgado e
enlameado contrastava com os cabelos reluzentes,
negros e sedosos do Rayner. Ele caminhava até nós
como um soldado no campo de batalha, tão
confiante que a turbina do meu coração virou
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trovões em uma tempestade.


Clint não parecia tão animado com a súbita
visita.
“O que está fazendo aqui, Rayner? É uma
reunião particular, volte para o seu barraco no
bosque.” Clint estufou o peito diante dele, exibindo
seu porte físico igualmente musculoso.
Barraco no bosque? Aliás, espera, como Rayner
encontrou a gente? Benny e Elyse pareciam ter a
mesma dúvida, boquiabertos pelo estado lastimável
de sua roupa.
Alheio às nossas reações exageradas, Rayner
contornou Clint como se fosse uma simples pedra
no caminho, e então entrou no carro e sentou no
banco de trás.
Nós quatro trocamos olhares, tentando entender
que porra estava acontecendo.

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“A gente convidou o Rayner?” Sussurrou Elyse.


Clint bateu no teto do carro, emputecido.
“Rayner, sai daí agora!” Clint estourou a maçã
contra uma árvore, mas mesmo aquele gesto
estúpido foi completamente ignorado. Rayner
continuava quieto e com o olhar para o nada, como
um cachorro esperando o dono levar para um
passeio. Um cachorro grande, musculoso e viril
com a camisa rasgada nas partes mais reveladoras.
Se havia alguém feliz nessa história toda, era o
Benny. Ele segurou firme o meu braço e abriu um
sorrisão de uma orelha à outra.
“Não sei o que você fez, Levi, mas você é o
melhor amigo do universo.” Ele saltitava de tanta
empolgação. “Viajando juntos o Rayner finalmente
vai me notar! É perfeito!”
É… era perfeito… exceto que Clint estava
agarrando a mão do Rayner e puxando-o para fora
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com toda a força, mas era como mover uma árvore.


“Deixa ele vir junto, Clint.” Eu sorri
timidamente. “Como você disse, uma aventura é
mais divertida com várias pessoas.”
“Mas… mas a escola não dispensou a equipe de
futebol americano! Ele vai reprovar o semestre por
conta de um passeio até a praia? Ele nem trouxe
bagagem!” Disse Clint.
“Eu empresto minhas coisas pra ele.” Eu disse,
entrando no carro pelo lado oposto. “Agora vamos
sumir daqui, temos um longo caminho até Miami”
Clint bufou de ódio enquanto Elyse segurava o
riso. O que era tão engraçado?
Pelo menos a situação esquisita durou pouco
tempo, e logo todos se acomodaram para partir. O
carro do Clint era um Audi conversível, então havia
muito espaço e conforto para todos nós e um cheiro
gostoso de couro novo. Só mesmo um filho de
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fazendeiro para ganhar um carro de luxo no seu


aniversário de dezoito anos.
Elyse sentou na frente, eu e Benny nas janelas e
Rayner entre nós dois, sempre com a coluna reta e
o olhar adiante, tipo um robô, se robôs tivessem um
cheiro salgado e delicioso e o calor corporal de um
vulcão. Eu precisei prender o cinto no Rayner e
meu Deus, quase tive um troço quando a palma da
minha mão roçou na lateral de sua nádega.
Eu precisava admitir, mesmo preocupado com a
reação dos meus pais, aquilo era super empolgante.
Chega de segredos, e de mentiras, e de fazer o
meu melhor possível quando nem mesmo o papai
Maikon me dava valor. Se o orgulho deles era mais
importante que os meus sonhos, então não havia
mais espaço para mim dentro daquela casa.
Clint ligou o motor e então o teto zuniu,
dobrou-se e recolheu-se para dentro do maleiro,
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revelando o céu estrelado.


Nós deixamos os fundos da igreja, as ruas de
Bobcat Hollow e entramos na rodovia federal, onde
enfim aceleramos de verdade e o vento atingiu
meus cabelos.
Eu levantei no banco de trás e ergui as mãos,
deixando que o vento me golpeasse enquanto o
horizonte noturno se estendia adiante, com suas mil
possibilidades.
Benny e Elyse imitaram o meu gesto, nós três
desafiando o vento como faziam os pássaros.
“Preparados para vencer o Best Cheer
America?” Perguntou Elyse.
Eu e Benny nos entreolhamos e trocamos uma
risadinha empolgada, e tal como fazíamos nas
competições, nós respondemos em coro.
“Miami, aí vamos nós!!”

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Capítulo 29

Dylan

Após diversas horas de voo nós enfim


chegamos em uma ilha de humanos.
Eu não conhecia aquele lugar, mas seguindo as
minhas indicações, Gabe me garantiu que aquele
era o lugar mais próximo de Egarikena onde um
avião pudesse pousar. Havia muitas casas brancas e
bem-cuidadas, humanos sorridentes em roupas
coloridas e campos verdes.
Pude tomar um rápido banho de mar enquanto
Gabe nos conseguia nosso próximo meio de
transporte, e o frescor da água foi um alívio imenso
para a minha pele. Mesmo em época chuvosa a

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fazenda do Hian era um pesadelo árido e inóspito


para qualquer criatura com guelras. Era incrível que
ele suportasse a vida naquele lugar.
Doía perceber nos olhos do Hian o peso de uma
vida longe do oceano, mas o que eu podia fazer, se
foi a escolha do meu filhote teimoso? Agora meu
retorno ao papai Arian seria com novas notícias,
quase tão ruins quanto o falecimento de seu par: um
trono novamente rejeitado, e no pior dos
momentos.
Gabe não gostava que eu intervisse em suas
negociações financeiras, então enquanto comprava
a tal de lancha eu passeei pela cidade e fiz algumas
comprinhas, incluindo comida para a viagem e uma
garrafa de ouro. Parecia apropriada para transportar
um documento tão severo quanto uma carta de
renúncia.
Não me surpreendia que Hian renunciasse ao

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trono, apenas me desagradava vê-lo fugir de tudo.


Eu só podia esperar que ele aprendesse com seus
erros antes que fosse tarde demais. Até aquele
demônio surfista cresceu para se tornar um homem
sério e de boas convicções, nunca que eu
imaginaria o meu Hian dependendo
emocionalmente dele, ou de qualquer um.
No fundo, a raiz de tantos problemas era
bastante óbvia. Prometi ao Gabe nunca mais
interferir nas decisões do Hian, mas desfazer-se do
primeiro filhote foi um erro grande demais. Poucos
progenitores suportariam o peso de uma decisão tão
drástica, e Hian não era exatamente um tritão de
cabeça firme, mas claro que ele nunca admitiria o
erro. Ele surtava apenas de ouvir o nome do
primeiro filhote, agia como o dono de todas as
verdades o tempo todo, e violentava com
frequência os pensamentos do seu predestinado,

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mesmo sabendo o quanto este era um


comportamento abusivo.
O convite inesperado do humano surfista
indicava a gravidade da situação. A fim de manter
segredo quanto à sua localização, Hian quase nunca
convidava seus amigos para a fazenda. Nem
mesmo meu pai oráculo conhecia seu paradeiro até
meses antes, quando acabei contando a fim de
conseguir proteção para o Leviathan.
Não bastava fugir do mundo, de todos e até de
si mesmo, Hian comprometia a segurança do meu
neto ocultando dele uma verdade inevitável. Tritões
eram por natureza manipuladores e mentirosos, um
traço de personalidade que eu ainda lutava para
dissolver, mas mentir ao filho sobre a própria
espécie e o próprio destino? Era simplesmente
ridículo. Antes mesmo de subir ao trono, papai
Arian já vivia cercado de soldados e aliados

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poderosos, uma decisão óbvia quando se é uma


entidade divina capaz de curar ferimentos e prever
o futuro. Foram seus poderes de oráculo que
decidiram os rumos da última guerra, e os selkies
certamente aprenderam com esta derrota.
Enquanto vivesse, Leviathan estaria em
constante perigo. Esta era uma realidade que Hian
precisava aceitar o quanto antes, mas como fazê-lo
compreender? Segundo o papai Arian, um oráculo
deve treinar desde a pré-infância, elevando tanto os
seus poderes místicos quanto técnicas de combate.
Entretanto isso, meu neto já tinha dezesseis anos e
sequer sabia que era um tritão!
“Por que está vermelho, Dylan? O tempo longe
do mar queimou sua pele?” Gabe chegou até mim
na beira da praia, então entregou algo na palma da
minha mão. Uma elegante chave com detalhes em
prata. “Comprei a mais rápida que eles tinham.

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Você conhece os oceanos desta região, certo? Acho


que conseguimos chegar amanhã, ao fim do dia.”
Tão rápido assim? Eu sorri para o meu
predestinado, mais do que feliz pela sua
consideração.
“Sou muito grato por sua ajuda, meu
predestinado.” Eu beijei seus lábios. “Lamento que
precise conhecer a ilha em uma ocasião tão
sombria.”
“Quais outras opções eu teria, Dylan? É a
primeira vez que consigo te convencer.” Gabe
acariciou meu rosto. Seu toque era como o ondular
das profundezas marinhas, acalmando até as dores
mais profundas do meu coração. “Sinto muito pelo
seu pai, mas fico feliz que me inclua na sua vida
pelo menos desta vez.”
O que seria de mim sem o meu Gabe? Cada
palavra era uma chama aquecendo o meu coração.
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Só de lembrar o tempo em que nos separamos eu


me questionava como sobrevivi. Gabe era o meu
tudo. Com ele sobrevivi a despedida do Hian e a
despedida das gêmeas. Juntos reaprendemos a viver
em uma mansão igualmente imensa e vazia, de
volta a um tempo distante onde existia apenas nós
dois. A vida nos mudou, o apenas nós dois de
agora nunca seria o mesmo da primeira vez, e ainda
assim a chama do amor permanecia acesa e intensa
em cada gesto, cada sorriso.
Eu beijei os lábios do Gabe e comecei a segui-
lo em direção às docas, mas então meu celular
tocou. Era o Hian.
“Oi, filhote.”
“Pai, o Levi sumiu!”
Eu arregalei os olhos e rapidamente disfarcei,
sorrindo dócil para o Gabe.
“Meu predestinado, se importa de comprar uns
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morangos para a viagem?”


“Quê? Mas você nem come morangos, Dylan.”
“Mas você come, e eu preciso te servir na
boquinha enquanto atravessamos os mares de
esmeralda em nossa lancha particular.”
Gabe deu uma risadinha safada e correu na
direção dos mercados. Assim que ele sumiu de
vista eu voltei ao celular.
“Como assim, ele sumiu?”
“Eu não sei. Ele não desceu para o café da
manhã aí o Maikon chamou ele aí eu também
chamei ele aí eu bati na porta mas não tinha
ninguém e o Maikon bateu nele e eu disse que
nãopodiamasaínãofalamosmaisnissoe…”
“Hian, se acalma! Não consigo entender nada!”
Eu sentei nos cascalhos da praia e tentei eu mesmo
não pensar no pior. “Vamos devagar. Já ligou para

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os amigos dele?”
“O Maikon tá ligando para a cidade inteira.”
Hian soluçou, totalmente histérico. “Ele não está na
escola, nem na sorveteria, e os melhores amigos
dele estão todos viajando para um campeonato
que… ah, pelos sete oceanos…”
“O que foi?”
“Maikon, liga para o Benny.” Ele gritou
afastado do celular, depois voltou. “Tem esse
campeonato de cheerleading que ele queria ir.
Claro que não deixei, porque é em Miami, e… Que
raiva, de onde esse menino puxou tanto
atrevimento?”
Eu me mantive bem quieto enquanto Hian
pirava do outro lado da linha. Maikon disse alguma
coisa que eu não pude ouvir, mas logo Hian repetiu
para mim.
“O amigo do Levi não atendeu, mas o pai dele,
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o delegado com quem conversamos, confirmou que


o Levi está com eles. Estão em um maldito Audi
conversível, dirigindo na direção do mar!”
“Pelo menos é um carro bem confortável.” Eu
disse em tom de brincadeira, e um rosnado do Hian
me forçou de volta à seriedade. “Pergunte com
quem ele está e fique calmo. São adolescentes
fazendo um passeio, vocês podem voar até Miami e
chegar bem antes deles.”
Hian deu um grunhidinho surpreso, como se
não tivesse percebido a simplicidade da solução.
“Ahm… é… podemos fazer isso. Espera, o
Maikon descobriu o nome dos outros colegas.”
Hian afastou-se do celular por alguns momentos e
voltou agitado como um golfinho bêbado. “Ah,
veja que beleza, ele fugiu com os três melhores
amigos e um tal de Rayner, que é o principal
suspeito de ter mutilado uma adolescente.” Ele

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entoou ao máximo a na última frase.


Pelos sons na ligação, Hian estava correndo em
círculos pela casa, considerando quebrar o celular
em alguma parede.
Bem… não fui eu quem quis incluir a genética
do surfista-capiroto na nossa linhagem.
“Hian, filhote, senta e respira fundo.” Eu disse
pausadamente. “Se esse tal de Rayner é o principal
suspeito do ataque, estas são excelentes notícias. É
o guarda-costas do clã Amalona, esqueceu? Ele
está fazendo o seu trabalho, seguindo Levi e
garantindo sua segurança.”
“Mas… mas…”
“Fique tranquilo, tá bem? Comprem uma
passagem bem confortável para Miami e aguardem
seu filhote no local do evento, de preferência com
um chinelo em cada mão. O guarda-costas foi
instruído a proibir qualquer aproximação do
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oráculo com o mar, enquanto for este o seu desejo.”


Hian respondeu alguma coisa, mas apitos no
meu celular me impediam de ouvir. Eu o afastei do
ouvido para ver a tela, onde piscava a foto do
Byron.
“Filhote, depois eu ligo de volta, tem outra
ligação na linha.”
Hian se despediu e eu atendi a vídeo-chamada.
Eu odiava interromper nossa conversa, mas Byron
nunca me ligava então devia ser algo muito
importante.
A imagem do outro lado era um chuviscado
colorido, eles realmente precisavam de uma antena
com sinal melhor em Egarikena. Após alguns
segundos, o chiado na voz e na imagem foi
ganhando clareza e eu me surpreendi ao ver que
não era o Byron, ou ninguém que eu conhecesse.
Era um ômega de longos cabelos ruivos e os olhos
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verde-folha do clã Gobio-Gobio. Ele trajava um


quepe militar e uniforme verde repleto de medalhas
no peito, parecido com o traje militar do papai
Hian.
“Saudações.” Eu disse, um tanto perplexo.
“Saudações, digníssimo Dylan. É uma honra
comunicar-me com o senhor em… ele está me
ouvindo nesta caixinha estranha?” Ele perguntou
para alguém fora da tela. Alguém explicou algumas
coisas e ele voltou a olhar pra mim. “Digníssimo
Dylan, creio que eu lhe deva as devidas
apresentações. Meu nome é Fran Gobio-Gobio,
tenente do exército de seu finado pai. Devo-lhe
meus mais profundos pêsames.”
Tenente Fran… Já ouvi o nome em algumas
conversas. Ele foi discípulo militar do meu pai
durante muitos anos. Pelo tremor em sua voz e
tristeza no olhar, era óbvia sua estima pelo papai

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Hian.
Ainda assim, tritões jamais anunciariam seus
pêsames em uma ligação de celular, ainda mais um
tritão das ilhas como aquele tal de Fran parecia ser.
Pelo fundo da imagem ele sequer estava em
Egarikena, mas em uma ilhota rochosa e árida.
“Qual seria o motivo de seu contato?” Perguntei
ao jovem ômega, que devia ter quase a mesma
idade do Hian.
Tenente Fran olhou para os lados antes de
continuar.
“O digníssimo está na presença de humanos?”
Eu espiei os arredores e confirmei que não,
nenhum humano devia frequentar aquela praia de
cascalhos, tanto que julguei seguro tomar meu
banho ali.
Tenente Fran respirou fundo e eu notei pelo

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mover da câmera que ele também se afastava do


Byron e dos soldados em seu entorno.
“Espero que esteja sentado, ou vai precisar se
sentar. Nossos soldados inspecionavam os oceanos
ao leste, nesta manhã, quando estranharam um
cheiro em uma ilhota nas proximidades. Eles
encontraram isto.”
Tenente Fran baixou a câmera do celular e
focou em algo nos rochedos molhados.
Eu cobri a boca para não vomitar. Era um tritão
alfa, ou o que havia restado de um. Milhares de
caranguejos e larvas caminhavam pela carne
decomposta e azulada, onde algumas costelas já
apareciam. Mal se notava a cor das escamas
opacas… era um tom verde com a barbatana lilás.
“Não faz sentido. Um tritão falecido deveria se
tornar um com o mar.” Eu disse.
“De fato, mas nosso inimigo intencionalmente o
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executou em uma ilhota, onde o chamado não


exerce seu poder. Desta forma seu progenitor não
sentiu a morte.”
“Progenitor? Ele era um filhote? E de que
inimigo estamos falando?” Eu balancei minha
cabeça, completamente atordoado. “Não, mais
importante, por que está me contando isso?”
Tenente Fran demorou com a resposta, criando
coragem para me responder.
“Digníssimo Dylan, este garoto foi atacado e
morto a caminho de uma missão oficial. O
digníssimo Oráculo-Rei o instruiu pessoalmente a
proteger seu bisneto, Leviathan Makaira.”
Era tanta informação que meu cérebro entrou
em pane, mas quando enfim compreendi o meu
sangue congelou como um iceberg e o celular
quase caiu das minhas mãos.
“Então este é…”
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“Sim, digníssimo Dylan. Este é Garren


Amalona.”
“Mas… mas isto não pode ser verdade.” Meus
pelos do pescoço se arrepiaram em um
pressentimento terrível. “Se este é o guarda-costas
do Leviathan, então quem está com o meu neto?”

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Capítulo 30

Yun
Alguns dias depois

O sol matinal brilhava sobre nossas cabeças,


naquele que era nosso terceiro dia de viagem até a
Europa.
Nunca imaginei que seria tão divertido viajar de
barco. Tritões consideravam um meio de transporte
degradante, uma demonstração física da
inferioridade dos humanos com relação a nós, mas
naquele momento o vento agitava as velas brancas
e eu e Shane descansávamos em espreguiçadeiras,
pegando um pouquinho de cor em nossas peles
brancas. Ele bebia algo chamado cerveja e eu

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devorava meu quinto romance desde que invadimos


um território chamado livraria.
Romances eram fascinantes. Mesmo sendo
sobre humanos e suas relações promíscuas, eu não
conseguia parar de ler. Ainda haviam caixas e mais
caixas destes livros no depósito do veleiro, e eu mal
podia esperar para mostrar todos ao Papillon.
Tadinho do meu predestinado… ele parecia tão
assustado quando pedi sua autorização para viajar.
Nós nunca deixamos Egarikena desde que Papillon
me levou para morar com ele, e nenhum de nós
dois jamais visitara um território de humanos. Era
visível sua preocupação de que algo terrível fosse
acontecer comigo, mas meu Papillon era um
tesouro precioso. Ele nunca censurou meus desejos,
então acabou por permitir esta pequena aventura.
Meu coração já começava a doer de saudades,
mas eu precisaria me acostumar. Seria um mês

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inteiro em turnê com a Death Cannibals, e Shane


confiou em mim para ser o baterista. Era assustador
e excitante ao mesmo tempo, Shane e Byron me
instruíram nos mínimos detalhes sobre o que
comer, o que não comer, como agir, o que fazer em
caso de desidratação… Tudo para que nossa estadia
tivesse o mínimo de imprevistos.
Talvez fosse ridículo, mas o medo de me
apresentar para milhares de humanos nem se
comparava ao medo de deixar o palácio. Nunca fui
um tritão exatamente sociável, Shane era o meu
único verdadeiro amigo e eu temia que Byron se
aborrecesse com a minha intromissão. Mas até
mesmo ele me tratava com respeito, como se
tivesse esquecido que eu era um ômega
supostamente estéril, e portanto a escória da nossa
sociedade.
Alguns dias de viagem nos separavam do

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território chamado Paris, e eu já estava me


preparando para a cultura local lendo um livro
francês. A heroína não conseguia se decidir entre o
amigo rico e o amigo atlético, o que era um
conceito tão ridículo quanto divertido. Humanos
enfrentavam dramas tão desnecessários.
Shane quase adormecia ao meu lado quando
Byron apareceu com outra cerveja gelada, que
Shane aceitou com muito gosto.
“Valeuzão, amor.” Shane endireitou o corpo
para beber um gole. Sua pele sensível começava a
suar no leve calor da manhã. “Ofereça algo ao Yun,
também, não seja rude.”
Eu logo gesticulei com a mão para que ele não
se incomodasse.
“Imagina, Shane, tem oceano pra todos os
lados, se eu quiser qualquer coisa posso dar um
mergulho.” Eu disse, encabulado.
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“Tem certeza? Ainda temos bolacha de coral na


cozinha.” Disse Byron.
Ai, era tão embaraçoso ser servido pelo alfa de
outro núcleo. Nossa sociedade simplesmente não
funcionava assim, mas o Byron abria todo tipo de
exceção para agradar o Shane.
Papillon devia sentir meu constrangimento, mas
não se incomodava com os mimos inadequados do
irmão dele. Na verdade ele estava estranhamente
quieto. Pensei que ele me importunaria sem parar
através da nossa telepatia, aquele grandão carente.
Byron sentou-se ao lado do Shane para trocar
beijinhos e então eu retomei minha leitura. No
mesmo instante, o meu estômago rugiu.
Eu apertei as unhas na minha barriga, vermelho
e querendo me matar de vergonha.
Shane e Byron riram da minha cara, o que não
diminuiu em nada o meu desejo de sumir em um
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buraco.
“E-e-eu vou caçar alguma coisinha, acho.”
Falei, fechando apertado o quimono em torno do
meu corpo enquanto eu levantava da
espreguiçadeira.
“É uma boa ideia, podemos caçar juntos.”
Byron disse para mim, depois virou-se ao Shane.
“Nós já voltamos, meu amor.”
Espera, como assim?
Byron não me esperou dizer que sim, nem que
não. Ele apenas subiu no guarda-corpo do veleiro e
saltou entre as ondas verdes, logo desaparecendo
das profundezas.
Eu me debrucei à beira d’água e estremeci, me
sentindo um idiota. Não queria causar incômodo e
estava fazendo o oposto disso. No palácio havia
serviçais que atendiam a mim e ao Papillon com
qualquer refeição que a gente desejasse. Era tão
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inadequado depender do meu cunhado para me


alimentar.
Shane chegou ao meu lado, também se
debruçando na beirada comigo. Ao contrário de
mim, que escondia o corpo todo com meu habitual
quimono, ele trajava apenas uma sunguinha de
praia, óculos escuros, e também cheirava esquisito
a um tal de protetor solar.
“Ah, cara, ele nem perguntou o que eu queria
almoçar. Espero que encontre camarões.” Disse
Shane.
Eu sorri para ele, todo encolhido e com o
coração acelerado.
“Camarões são muito comuns nesta época do
ano, garanto que Byron lhe trará bastante.” Eu
disse, observando o mover das ondas. “Mesmo sem
predestinação, sua ligação com o Byron é notável.
São raros os tritões viúvos que encontram um novo
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amor.”
“Devo ser um cara sortudão, mesmo. Tenho o
melhor marido do mundo, os melhores filhos, e o
melhor dos amigos.” Ele deu um tapinha no meu
ombro, me fazendo contrair cada músculo. “Pensei
que fosse caçar também. O Byron deve estar te
esperando.”
“Ahm... É… eu… eu ia…” Gaguejei,
espremedo as pernas uma na outra. Droga, eu não
queria tocar nesse assunto.
“O que foi?” Shane lambeu a espuma de
cerveja nos lábios.
“Eu… ahm… as coisas que… as coisas que
você sabe…” Eu avermelhei até quase pegar fogo,
e a dor no meu peito formou lágrimas nos meus
olhos. “Não quero que… que mais ninguém
veja…”
“Tá falando da sua cauda? O Byron já sabe,
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você mesmo contou quando ele viu suas pernas por


acidente, lembra?”
Eu concordei, não querendo lembrar daquele
dia constrangedor. Shane convidara a mim e ao
Papillon para aprender sobre um tal de vôlei, e
durante o jogo acabei caindo e revelando demais.
Nunca mais pratiquei esportes depois disso.
De qualquer forma, já me perturbava o bastante
que Byron tivesse visto minhas pernas. Imagina se
também visse a minha cauda?
Sentindo vontade de chorar, eu perguntei ao
Papillon sua opinião através da nossa telepatia, mas
ele não me deu resposta, aquele dorminhoco.
Shane desceu a mão pelo meu ombro e me
abraçou de lado, sorrindo pra mim.
“Cara, tô ligado que tem coisa difícil para um
tritão, mas o Byron é legal. Se ele comentar
qualquer coisa, e duvido que comente, você me
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conta cada palavra e eu estapeio a cara daquele


sem-vergonha.” Disse ele.
“E se ele rir?” Perguntei.
“Ninguém vai rir, não tem nada de engraçado
no que aconteceu.” Shane me disse, um tanto mais
sério. “Mas sei lá, cara, espera ele voltar se preferir.
Quero que esse passeio seja divertido pra todo
mundo.”
Shane falava coisas estranhas de humano. Ele
valorizava coisas como amizade, diversão e amor, e
também considerava Byron, Madhun e Ronan
como seu núcleo — ou família, como ele preferia
chamar. Havia em Shane uma luz que
simplesmente não existia nos membros da nossa
espécie, e foi esta luz que me salvou tantos anos
atrás, quando eu já havia desistido de conviver com
os tritões normais.
Talvez eu devesse dar a esta luz uma nova
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chance de me iluminar.
Meus dedos tremeram em torno da faixa do
meu quimono. Em gestos muito hesitantes eu soltei
o laço e deixei que o tecido cedesse pelos meus
ombros.
Shane sorriu para a minha coragem e segurou
minha roupa. Não era a primeira vez que ele via as
milhares de cicatrizes nas minhas pernas, coxas e
nádegas, mas novamente ele não comentou nada.
Eu era grato por isso.
“Vou avisar o Byron sobre os camarões.” Eu
disse, me equilibrando sobre o parapeito. “Aliás, eu
mesmo consigo uns camarões pra gente. Posso
encontrar uns bem grandes.”
“Divirtam-se lá embaixo.” Shane acenou para
mim e eu saltei, mergulhando na água gelada e
revigorante do oceano.
Eu nem me lembrava a sensação de nadar por
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águas desconhecidas. Mesmo em Egarikena eu


raramente me banhava nos mares públicos, e
justamente pelo problema logo abaixo de mim: uma
cauda verde com largas pintas lilases típicas do clã
Hai-Kui, exceto que não havia beleza alguma em
uma cauda como a minha.
Onde deveria haver o brilho de mil escamas
iridescentes, havia apenas furos e cortes
diretamente na pele. Marcas de uma violência que
arrancou de mim a pureza, a dignidade e a
elegância.
Tritões eram, em sua maioria, criaturas
vaidosas. Era comum que jovens tritões
descamassem para receber seus predestinados,
trocando escamas velhas e secas por uma nova
camada cheia de brilho. Entendia-se em nossa
cultura que a beleza de um tritão não dependia
apenas dos músculos ou da delicadeza, mas

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também da aparência de sua cauda.


Na minha cauda já não restava beleza alguma,
apenas o couro dilacerado que tanto lembrava a
cauda daqueles que fizeram tal atrocidade comigo.
Mesmo após tantos anos — eu era apenas uma
criança quando aconteceu, — a lembrança ainda
estremecia todo o meu interior. Por um instante eu
quis retornar ao veleiro, inventar alguma desculpa
qualquer e nunca mais expor o meu corpo, mas eu
segui bravamente o cheiro do Byron a fim de caçar
com ele. Ele seria o segundo tritão a conhecer
minha amarga realidade, depois do Papillon, e era
aterrorizante imaginar suas possíveis reações.
Eu precisava confiar no Shane e acreditar que
tudo ficaria bem. Humanos escolhiam seus
parceiros, e alguém bondoso como o Shane não
escolheria o Byron se ele fosse capaz de debochar
da minha aparência.

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“Byron, onde você está?” Perguntei, lutando


para seguir seu cheiro. Eu já havia passado por
diversos cardumes de peixes saborosos, e me
perguntava o motivo dele não ter caçado mais
próximo do barco.
Quando enfim avistei os rochedos das
profundezas, também avistei a cauda verde e
cintilante do Byron, que ele abanava sentado e
quieto no leito marinho.
Era uma cauda bonita, não tanto quanto a do
meu Papillon, mas o bastante para me intimidar. O
chamado costumava recuperar escamas arrancadas,
tanto que a descamação estética era uma prática
comum, mas as minhas nunca cresceram de volta.
Talvez fosse porque arrancaram todas de uma só
vez, ou porque…
Ah, tudo menos lembrar disso, agora. Papillon
nunca me condenou pelo meu corpo maculado,

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então não seria eu a me culpar pelo meu próprio


infortúnio.
O que aconteceu comigo não foi culpa minha,
não foi um acidente, e também não aconteceria de
novo. Eu merecia ser feliz apesar do que aconteceu,
foi o Papillon quem me ensinou isso.
“Byron?” Eu me aproximei dele, estranhando o
quanto estava quieto. “Tem alguma caça presa nas
fendas? Precisa de ajuda?”
Um arrepio percorreu meu corpo ao notar a
expressão distante do Byron. Ele olhava para o
nada, como se hipnotizado.
“Algo aconteceu.” Ele disse.
Eu nadei até o seu lado e olhei ao redor,
tentando ver o mesmo que ele.
“Como assim?”
“Não consigo sentir o Madhun.” Disse ele.

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Eu torci o lábio, quase rindo.


“Talvez ele não esteja na água, você mesmo
reclama que o Madhun passa semanas longe do
mar.” Eu corei, me perguntando se devia falar o
resto. “Ou talvez… ele já tenha despertado.”
“Não, ele não despertou. A sensação é outra.”
Como Byron saberia a diferença? Madhun era
seu único filho! Se bem que eu não podia opinar
além do senso comum. Meu conhecimento sobre
progenitores e prole era nulo.
Tritões podiam detectar seus filhotes apenas se
ambos estivessem no oceano, e após o despertar
esta ligação se rompia. Byron era grudado em seu
precioso filho único, ainda assim o pavor em seu
olhar me parecia um completo exagero.
Papillon, meu querido, aconteceu algo, aí na
ilha? Eu perguntei com o pensamento e aguardei
resposta, recebendo apenas silêncio. Papillon,
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chega de dormir! Preciso que verifique o Madhun,


por favor. O Byron está preocupado.
A resposta do Papillon não chegava nunca.
Considerando o quanto aquele preguiçoso dormia,
não era incomum que ele me ignorasse, mas o
medo do Byron começava a me contagiar. Era
como mergulhar em um balde de gelo.
De repente Byron disparou, deixando uma
cortina de bolhas pelo caminho.
O chute da água me fez rolar para trás. Eu me
recompus o quanto antes e disparei até alcançá-lo.
“Byron, pra onde está indo?”
“Conduza o Shane de volta para a ilha dos
livros e proteja-o. Não permita que ele volte para
Egarikena.”
O quê? Eu não conseguia entender nada, mas
antes que eu perguntasse o Byron já havia

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desaparecido, nadando tão rápido que deixaria um


tritão Trevally comendo bolhas.
Papillon? Papillon, me responda, por favor!!
Eu nadei de volta ao barco, e assim que voltei a
minha expressão fez Shane derrubar a lata de
cerveja.
“Yun, cara, aconteceu alguma coisa?” Ele
segurou meu braço, me ajudando a levantar. “O
Byron disse algo malvado? Ah, eu vou encher os
ouvidos dele, aquele cara não pode…”
Ignorando as palavras do Shane, eu corri até o
mastro do veleiro e puxei as cordas, causando um
solavanco que quase nos derrubou. Eu não fazia
ideia de como orçar aquela coisa.
Shane segurou meu braço antes que eu
desatasse o primeiro nó.
“O Byron tá bem? O que houve entre vocês?”

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Eu arfei acelerado, encarando Shane com os


olhos inchados pelo pânico.
E se Byron estivesse certo? E se algo terrível
tivesse acontecido?
“Desculpa por isso, Shane. Nosso show está
cancelado.”
Em um gesto brusco eu empurrei Shane e mordi
as cordas até arrebentá-las. Uma das velas soltou-se
da base do mastro e flamulou com violência,
rasgando com a força do vento.
“Yun, mas o que caralho!! Você tá
completamente louco?” Shane tentou arrancar as
cordas das minhas mãos, mas um humano nunca
venceria a força de um tritão, mesmo que fosse um
ômega.
Meu coração doía pelo Shane, mas eu
estraçalhei todas as cordas até me garantir que não
haveria conserto.
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“Volte para a ilha onde abastecemos. Não tente


nos seguir.” Eu enfiei meu quimono em uma bolsa
de viagem e corri de volta à beirada do barco.
“Nos seguir? O Byron foi para onde?” Shane
correu e conseguiu agarrar meu braço. O temor em
seu olhar era uma faca no meu coração. “Cara, o
motor do veleiro só serve para manobrar, se me
deixarem aqui…”
Não havia tempo, e eu sabia que Shane teria os
recursos de escapar daquela situação. Protegê-lo
também era importante para mim, mas naquele
momento eu precisava encontrar o meu Papillon.
“Sinto muito, Shane.” Eu disse, forçando meu
braço até conseguir me soltar.
Então eu saltei na água e disparei à toda
velocidade de volta para Egarikena.

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Capítulo 31

Só podia ser paranoia do Byron, certo? Então


por que havia uma torre de fumaça subindo da ilha?
Mesmo em velocidade máxima eu não consegui
alcançar o Byron, e isso que nadamos durante
muitas horas. O sol já começava a se por quando
enfim pisei na areia.
Eu vesti meu quimono, vendo um cenário que
quase parou o meu coração.
A água, a areia… tudo estava tingido de
vermelho-sangue. As ondas começavam a enxaguar
o que costumava ser a paradisíaca Praia Sul. Ao
longe, as muitas casinhas coloridas já não
passavam de cubos de carvão, algumas ainda em

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brasas.
Quem… quem podia ter feito isso? Eu desviei
das poças de sangue com meus passos trêmulos.
Um cheiro tenebroso e familiar contaminava todo o
ar e penetrava meus pulmões como fogo e vinagre.

Hahahahah, olha como eles gritam!


Não mate este aqui tão rápido, ainda não
terminei de brincar com ele.
Ei, olha o que encontrei aqui, tem um bebê nos
braços deste escamoso morto.
Ah, que sorte, um brinquedinho a mais pra
gente. Hahahah.

Não… eu não podia lembrar disso agora.


Papillon ainda não respondia meus pensamentos e
eu precisava encontrá-lo. Ele estava dormindo, não
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estava? Eu o encontraria em nosso quarto do


palácio, bem longe do cheiro insuportável de
selkies.
Eu não podia me desesperar, eu não podia.
Eram apenas memórias. O Papillon me garantiu
que eles nunca mais voltariam. E ainda assim,
havia uma bandeira vermelha flamulando no topo
do palácio.
O som das ondas e do estalar de brasas
cortavam o silêncio aterrorizante do que costumava
ser a região mais movimentada de Egarikena.
Eu tranquei o nariz e segui pela praia buscando
qualquer sinal de vida, mas só haviam corpos de
tritões. Diversos alfas Kampangos mergulhados em
seu próprio sangue, alguns já sendo escavados
pelas gaivotas e caranguejos.
Em meio aos muitos cadáveres, avistei um ou
outro de uniforme diferente, casacos grossos e
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longos em tecido preto e com golas peludas. Por


baixo do saiote militar escapava uma cauda de
couro com a barbatana enrugada. Apesar de todo o
sangue dava pra notar algumas partes brancas no
cabelo, e também os olhos vermelhos e abertos para
o nada.
Um selkie! Eu quis gritar e sair correndo. Não
podia ser. Por que eles voltaram, e o que fizeram
com o nosso povo?
Um estrondo metálico fez escapar o grito que
eu segurei a tanto custo. Sentindo o coração no
pescoço eu olhei adiante e avistei Byron. Ele lutava
ferozmente com uma enorme estrutura de barras
metálicas.
Eu corri até ele e logo entendi o motivo,
embora meu cérebro quisesse desligar, se
recusando a aceitar que aquilo era real.
Empilhadas na areia da praia, sob o intenso
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calor da tarde, havia dezenas de jaulas de ferro.


Cada jaula aprisionava um ou mais tritões, e a
maioria já não se movia, ou se debatia com
fraqueza após a prolongada exposição ao sol.
Era de quebrar o coração. Haviam adultos e
muitos filhotes, tanto tritões quanto sereias. Uns
poucos mantinham suas pernas, mas a maioria já
havia desmaiado ou coisa pior, expondo suas
longas caudas verdes no confinamento apertado.
Todos herdeiros do clã Makaira, eu constatei,
tocando o rosto de um tritão pálido e muito
ensanguentado, com a cauda já opaca e sem vida. O
vigésimo príncipe Sheran havia nos deixado.
“Madhun… Madhun, me responde, filho!”
Byron tremeu os punhos na jaula logo ao lado,
usando toda a sua força de alfa enquanto chorava
em desespero.
Eu me levantei rápido e quase dei outro grito.
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Aquele era o Madhun? Eu não o reconheceria pelo


rosto completamente mutilado, mas a pele negra e
cauda azul-celeste não deixavam dúvidas.
“Ainda tem brilho nas escamas. Ele está vivo.”
Eu tentei ajudar Byron a forçar as barras e o calor
do metal me fez gritar de dor. Era como um forno.
“Não conseguiremos abrir assim, ele precisa do
mar.”
Byron concordou, e juntos nós conseguimos
erguer a pesada jaula e carregar até a água.
As ondas envolveram o corpo do Madhun, que
ainda não demonstrava reação alguma.
Horrorizado, Byron chorava e tremia enquanto
jogava água no filho, tentando acordá-lo. Logo o
peito do garoto moveu-se com fraqueza e Madhun
voltou a respirar.
Eu não sabia nem o que dizer ao Byron. Havia
qualquer coisa a ser dita? Os outros prisioneiros
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também necessitavam de ajuda urgente, mas a


prioridade do Byron era a de um pai desesperado.
E eu também tinha preocupações ainda maiores.
Com o peito em chamas por precisar abandoná-
lo, eu deixei que Byron cuidasse do Madhun e corri
em direção ao palácio. Em todo o trajeto não
encontrei ninguém, apenas destroços, carvão e
corpos.
Mas tudo bem, certo? Meu Papillon era forte,
ele com certeza estaria seguro em nossos
aposentos.

****

O incêndio não alcançou o palácio e não


parecia haver danos nas estruturas de cristal, ainda
assim o silêncio me aterrorizava mais do que tudo.

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Eu queria chamar pelo Papillon, mas o cheiro de


selkie nunca esteve tão forte. E se fossem eles a me
ouvir?
E se eles me machucassem de novo?
Vencendo um terror que eu pensei que nunca
mais sentiria, eu corri pelos corredores em direção
aos aposentos, e então ao quarto que pertencia a
mim e ao Papillon.
Meus piores pressentimentos não me
prepararam para o que encontrei: corpos e mais
corpos de soldados selkies espalhados pelo piso de
cristal, diversos deles ainda agarrados a tubos de
metal que eu desconhecia.
No centro daquele tapete da morte, caído contra
a porta do meu quarto, havia o único tritão daquele
cenário de pesadelo, e eu o reconhecia muito bem.
“Papillon! Papillon, meu amor!” Eu corri por
cima dos corpos e caí de joelhos diante dele, então
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dei tapinhas em seu rosto.


Não podia ser real. O corpo do meu amor
estava coberto de sangue e ele não me respondia.
Eu já perdia a luta contra o desespero quando ele
grunhiu alguma coisa e bocejou.
“Hnmmn… Não quero café da manhã.”
Resmungou ele, aninhando a cabeça no meu peito.
Eu franzi a testa, e então dei um longo suspiro
de alívio.
“Você realmente estava dormindo?” Eu
acariciei seu cabelo, apreciando a tranquilidade de
sua respiração.
O conforto mais estranho do mundo relaxou o
pavor no meu coração. O sangue que cobria
Papillon não era o dele, mas das dezenas de selkies
que definhavam ao nosso entorno.
Nas mãos do Papillon ele ainda agarrava firme

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em seu tridente dourado, tão coberto de sangue


quanto ele próprio. Quando entendi aquela cena, só
contive o choro para não acordar o meu querido
predestinado. Ele realmente derrotou todos estes
selkies sozinho, e até os limites de sua própria
força… mas por que?
Um rangido de madeira me fez saltar, quase
derrubando Papillon no chão. E ainda assim ele não
acordou, totalmente exausto.
Engolindo seco, mais nervoso do que nunca, eu
peguei o tridente de suas mãos e empurrei Papillon
cuidadosamente para o lado, até liberar a porta do
nosso quarto. O som vinha de dentro, e nunca que
eu permitiria outro selkie ameaçando o meu
predestinado.
Juntando toda a minha coragem, eu empunhei o
tridente contra o meu corpinho magricelo e chutei a
porta já mirando as lâminas adiante, pronto para

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matar metade do mundo.


O que se seguiu foi uma gritaria aguda e
histérica. Alguém arremessou um travesseiro na
minha cabeça e eu caí para trás.
Não havia selkie nenhum. Nos aposentos que
eu dividia com Papillon se amontoavam dezenas e
dezenas de tritões e sereias ômegas com seus bebês,
todos encolhidos contra a parede da janela, tão
assustados quanto eu.
Um dos ômegas tentou arremessar a mesinha de
cabeceira em mim e felizmente foi logo
interceptado pelo Moyren.
“Calma, calma, é apenas o Yun!” Disse ele,
conseguindo evitar que me arrebentassem com a
minha própria mobília. Moyren virou-se para mim,
tão pálido de medo que eu mal o reconhecia. “Eles
ainda estão lá fora?”
“Os selkies? Não, eu não vi nenhum.” Eu disse,
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ao mesmo tempo assustado e comovido.


Meu Papillon arriscou a vida para salvar os
ômegas e bebês da ilha, aquele bobo inconsequente.
O que seria de mim se acontecesse algo com ele?
Espera, não era o momento de pensar nisso.
“Têm vários tritões aprisionados na praia sul,
eles precisam de ajuda o quanto antes.” Eu disse.
Apesar do medo, os ômegas e filhotes correram
para ajudar. Moyren também tentou passar por
mim, mas eu o segurei.
“O que foi?” Perguntou Moyren.
“Você me ajuda com o Papillon. Ele precisa de
um banho.” Falei.
“Mas…”
“Seu irmão mais velho salvou a todos vocês,
Moyren! Tenha um pouco de consideração, acha
que consigo puxar um tritão deste tamanho até a
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piscina sozinho?”
Moyren arregalou os olhos, espantado com a
aspereza da minha voz. Meu relacionamento com
ele nunca beirou a amizade, na verdade eu achava
Moyren um cretino e ele pensava o mesmo de mim.
Mas eu não podia permitir que Moyren fosse, não
quando três dos corpos aprisionados eram seus
filhos e irmão caçula.
Papillon era grandão, mesmo para um alfa.
Talvez fosse o maior dos vinte príncipes, o que
mais herdou o porte avantajado do finado rei Hian.
Mesmo com a ajuda do Moyren arrastá-lo até a
piscina do meu quarto não foi tarefa simples, mas
após boa dose de esforço nós conseguimos
empurrá-lo para dentro.
“Sou grato pela ajuda.” Eu disse ao Moyren.
“Quantos deles se foram?” Moyren baixou o
olhar, tremendo.
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“Como assim?” Perguntei.


“Não sou um imbecil, Yun. Eu sou o último
para quem você pediria ajuda.” Ele me encarou
com o olhar molhado. “O Édrilan é um deles?”
“Eu… eu não sei.”
Moyren tentou dizer alguma coisa, mas desistiu
e me deu as costas, deixando-me sozinho para
cuidar do Papillon.
A destruição do quarto nem deveria ser uma
preocupação, mas ver tudo reduzido a escombros
doeu como alfinetes na minha alma.
Minha predestinação com Papillon foi…
agressiva, para dizer o mínimo. Se ele fosse
qualquer outro tritão, teria desistido de mim nas
primeiras tantas vezes que bati, arranhei, mordi e
demonstrei meu ódio em tornar-me sua
propriedade. Mas a paciência do Papillon acabou
por vencer nossa guerrilha particular e eu cedi aos
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seus braços sob a condição de vivermos sozinhos,


longe de qualquer um que pudesse ver a
deformação na minha cauda.
Papillon não apenas concordou com meu
capricho, como transformou seu quarto de infância
em um verdadeiro templo de adoração ao seu
ômega. Ele sempre foi tão ridiculamente romântico.
A cama, os lençóis, as luminárias… tudo
construído aos mínimos detalhes para me agradar,
me fazer sentir confortável em sua presença.
E agora tudo estava destruído, pisoteado,
transformado em barricadas nas janelas. Mais uma
vez os selkies arrancavam um pedaço de mim.
O som de bolhas chamou minha atenção para a
piscina. Eu me aproximei da borda e então Papillon
saltou para a superfície de repente, só pra me matar
do coração.
“Não vai sobrar nenhum! Me enfrentem, seus
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diabos vermelhos!” Rugiu ele, afiando os dentes de


sua forma feral.
Então ele me avistou e sua expressão murchou,
dócil como a de um bebê golfinho, embora ele não
escondesse sua confusão em me ver ali.
Passado o susto, eu ajoelhei à borda da piscina,
abracei ele e comecei a chorar, o que só deixou
Papillon ainda mais perplexo.
“Eu nunca mais vou deixar o seu lado, nunca
mais.” Eu solucei, aninhando o rosto na curva de
seu pescoço como se nunca mais fosse sentir aquele
calor e aquele cheiro.
Papillon me abraçou suavemente e afagou meu
cabelo, o que por algum motivo só me fez chorar
ainda mais. Seu toque era tão macio e afetuoso,
Papillon não servia pra matar, ele simplesmente
não nascera pra isso, e aqueles selkies desgraçados
corromperam a doçura dele.
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“Ei, ei, calma, amor…” Papillon sussurrou no


meu ouvido. “Foi bom você estar longe, eu não
suportaria te ver em perigo. Você está bem?”
Se eu estava bem? Eu queria voltar no tempo e
nunca deixar Egarikena, apenas para lutar do lado
dele mesmo com minha pouca força de ômega. Eu
quase perdi aquele que era tudo no meu universo,
só de imaginar o pior eu desabava a chorar ainda
mais.
Papillon não me forçou a acalmar, nem me
deixou sozinho para averiguar a situação da ilha, ou
sequer perguntou sobre os sobreviventes, ou o
paradeiro dos selkies, ou qualquer coisa. Aquele era
o jeito do meu Papillon, enquanto eu estivesse
seguro em seus braços nada mais lhe importava.

****

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Demorou bastante tempo e uns três bules de chá


para conseguirmos nos acalmar. Por fim, as dúvidas
assumiram o lugar do desespero.
Papillon sabia muito pouco sobre o ataque. Foi
uma invasão tão repentina quanto brutal, e ele lutou
durante horas para proteger os ômegas e filhotes.
Apesar da pilha de mortos na frente do quarto, o
confronto principal ocorreu na praia ao sul onde
encontramos as jaulas, e tão rápido quanto
apareceram, os selkies foram embora.
Aos poucos os sons de vida foram retornando
ao palácio. Diversos tritões deixavam seus
esconderijos e rumavam em direção à cidade
carbonizada, todos com o mesmo olhar confuso e
dolorido de quem perdera tudo de repente. Uma
sensação que eu conhecia bem.
Sentado na nossa cama, eu bebi outra xícara de
chá de anêmona que Papillon me preparou. Minhas

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mãos ainda tremiam.


Papillon acariciou meu pescoço com seus dedos
bondosos, como se fosse eu a precisar de conforto.
Não fui eu quem precisou matar dezenas de
inimigos, mas a prioridade do Papillon nunca foi
ele próprio.
“Não dá pra entender… por que terminou desse
jeito?” Perguntou ele.
“Porque selkies são monstros horríveis e sem
alma.” Eu respondi prontamente. “Eles sempre
foram uma bomba-relógio prestes a explodir, os
reis sempre souberam disso.”
“Sim, mas…” Papillon repôs o chá na minha
xícara. “…não me refiro do ataque em si. Por que
eles foram embora?”
“Como assim?” Eu arqueei uma sobrancelha.
“Eles nos pisotearam como insetos, atirando

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coisas com estes tubos de metal. Nada os impedia


de tomar controle de Egarikena.” Papillon observou
o ondular do chá em suas mãos, pensativo. “Se eles
são monstros, não faria sentido matar todo
mundo?”
Meu sangue esquentou de raiva.
“O que está insinuando, Papillon, que eles são
heróis por destruírem a nossa ilha? E eu não quero
nem pensar em quantos tritões foram mortos nessa
maldita invasão!” Eu levantei a voz, indignado.
“Não, amor, eu quis dizer que algo não se
encaixa. Aliás, diversas coisas. Você me contou
sobre o ataque que sofreu na infância, mas nunca
que os seus agressores eram idênticos ao filhote do
Byron.”
O filhote do Byron? A princípio me veio a
imagem do Madhun, ferido e lutando pela vida
naquela jaula desumana. Mas não era dele que
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Papillon estava falando, e mesmo que sem intenção


ele encaixou algumas peças no mistério.
“Ronan…” Eu sussurrei.
Um quebra-cabeças doentio tomou forma na
minha mente, mas antes que eu raciocinasse direito
alguém apareceu na porta do quarto. Era uma
jovem sereia negra de uns dezesseis anos no
máximo, com o cabelo preso em dois pompons e
parcialmente encobertos por um quepe militar. Pelo
tipo de farda ela pertencia ao pelotão de soldados
rasos, o que era um tanto surpreendente. Rei Hian
nunca permitira o alistamento de filhotes.
“Pois não?” Eu me levantei para recebê-la.
“Perdão incomodá-los, digníssimo Papillon
Makaira e Yun Hai-Kui.” Ela curvou-se em uma
reverência severa e disciplinada. “Me chamo
Mareleen Kampango e receio trazer-lhes más
notícias.”
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“O que pode ser pior que tudo isso?” Eu joguei


os braços para os lados, indicando as ruínas no meu
quarto e a fumaça fétida que ainda entrava pela
janela. Isso sem contar a poça de sangue sob as
botas da garota. “Ainda têm selkies na ilha?”
“Não, senhores. Eles desertaram a ilha por
motivos ainda desconhecidos. Tenente Fran e os
alfas capazes de luta partiram em perseguição e
devem retornar em breve.”
Ufa, então havia alfas sobreviventes, também.
Mas isso não diminuía a tragédia da situação, nem
a minha raiva. Se o tenente já estava retornando,
era porque não teve a competência de alcançar um
inimigo em fuga.
“E nós, o que fazemos agora? O que disse o
papai Arian sobre este ataque?” Perguntou
Papillon.
A expressão da menina tornou-se ainda mais
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rigorosa e sombria.
“Receio que seja esta a má notícia que vim lhes
trazer.” Disse Mareleen.
Realmente, nossa situação ainda encontrava
espaços por onde piorar.

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Capítulo 32

O Oráculo estava morto. De todas as tragédias,


esta era a mais difícil de digerir. Dois dias após
meu retorno e eu ainda descia as escadarias dos
meus aposentos esperando encontrá-lo para dar-lhe
bom dia, talvez para provarmos juntos o nosso
desjejum. Mas já não havia oráculo, ou rei, ou o
meu querido sogro que sempre me tratou com
respeito e afeto. O Digníssimo Oráculo Aurelian
fora velado no dia anterior em uma cerimônia
rápida e discreta. Não havia condições de um
grande velório como o do Rei-General quando o
povo da ilha ainda lambia as feridas de suas
próprias tragédias pessoais.
Diversos tritões de colônias próximas surgiram
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para auxiliar os egarikenses, trazendo desde comida


a materiais de construção. Pouco a pouco uma casa
era consertada aqui ou ali, árvores carbonizadas
eram arrancadas e substituídas por mudas. Havia
tanto a ser feito que qualquer esforço parecia
risível, mas nosso povo apreciava qualquer ajuda
que pudesse surgir.
Como eu previra, Tenente Fran retornara de
mãos vazias com os diversos alfas da ilha,
incluindo Édrilan, para o alívio do pobre Moyren
que ainda lamentava a perda de três filhos. O
general inimigo, seus tenentes e a maioria dos
soldados selkies conseguiram retornar ao próprio
território, enquanto que nosso exército foi
plenamente dizimado. Imaginar a festa de
comemoração dos selkies me fazia querer vomitar.
As dúvidas do Papillon também pulsavam na
minha cabeça conforme eu percebia padrões no

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ataque inimigo. Houveram algumas mortes de


civis, mas a grande maioria das vítimas foram os
militares e a linhagem do Oráculo. Príncipes
Zircon, Matteon e Sheran perderam a vida, e
muitos dos netos também se foram.
Não podia ser apenas uma coincidência. Era
uma mensagem.
O maior dos mistérios, porém, não me
surpreendia: o meio-selkie Ronan havia
desaparecido.
Eu sempre suspeitei daquele garoto, mas me
mantive quieto em respeito ao Shane. Ele me
convencera a deixar Ronan em paz, e como eu
discordaria de sua ingenuidade humana? Shane era
bondoso e iluminava a todos com seu jeito de ser,
então permiti que a amizade falasse mais alto que a
intuição. Um erro grave demais, mas eu
dificilmente era o único a tê-lo cometido.

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Papillon não apreciava minha implicância com


o meio-selkie e pediu que eu não insistisse no
assunto. Era justo, considerando que Ronan podia
estar morto, confundido com um inimigo no caos
da batalha, ou talvez os próprios selkies o tenham
abatido ou sequestrado.
Minha intuição se recusava a ser tão idealista,
mas de qualquer forma eu logo descobriria a
verdade. Madhun certamente conhecia o paradeiro
do suposto irmão, e naquele momento Byron e
Babelyn faziam o impossível para recuperar sua
saúde, enquanto eu assistia.
O garoto do Byron ainda não havia acordado,
passava dia e noite dormindo no ofurô aos fundos
da casa, que Byron havia preenchido com a água
curativa do oceano. Para a consulta com sua irmã
mais nova Byron o havia deitado à beira-mar,
esticando sua longa e inerte cauda azul ao longo da

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areia.
Babelyn retirou diversas coisas de sua maleta,
apressada. Ela recém havia retornado à ilha e
Madhun era o primeiro de seus muitos, muitos
pacientes. Eu nunca entendi o porque de uma sereia
formar-se em medicina como os humanos, mas
naquele instante eu não poderia estar mais grato por
ter uma sobrinha tão… exótica.
“Ele acordou alguma vez?” Perguntou ela,
enquanto colocava uns metais esquisitos nos
ouvidos.
O coitado do Byron gaguejou alguma coisa,
com seu olhar fixado no rosto do Madhun… ou no
que restou dele.
Babelyn deu um tapão na bunda do Byron e o
empurrou para trás, assumindo seu lugar ao lado do
garoto ferido.
“Pelos oceanos, Byron! Você continua tão
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lerdo.” Ela abanou o rabo-de-cavalo loiro, entoando


sua voz mais petulante. “O seu filho tá vivo, não
tá? Vamos parar de drama.”
Byron massageou a bunda dolorida,
boquiaberto.
“Mas… mas o rosto dele…”
“A médica sou eu ou você? Vai, sentar com o
Yun, vai, tenho trabalho a fazer.”
Ai, ai… aquela menina não mudaria nunca? O
pobre do Byron realmente concordou e veio sentar
ao meu lado, obediente como um cachorrinho.
Eu era péssimo em confortar os outros, só
apareci porque talvez pudesse ajudar em algo,
ainda assim fiz o esforço de dar uns tapinhas nas
costas do Byron. Era assim que se demonstrava
apoio, certo?
“Vai ficar tudo bem, Byron. É apenas uns

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desses sustos que os filhotes dão na gente.” Eu


disse.
“Como você saberia? Você não tem herdeiro
algum.” Retrucou ele, com grosseria. Ao perceber o
meu espanto magoado ele murchou a voz e deitou a
testa nos joelhos. “Peço mil perdões, você só quer
ajudar.”
É, a intenção era essa, mas eu já suspeitava que
não conseguiria. Para os tritões, um tritão infértil
era a escória das escórias, mesmo um tritão mente-
aberta como o Byron precisava se concentrar para
não me tratar como lixo.
Eu podia relevar o insulto, dessa vez. Era
natural que o estado do Madhun abalasse o Byron
profundamente, e a ausência do Shane só piorava
tudo. Ele conseguiu ser resgatado do veleiro à
deriva e já estava na Europa, de onde ele ligava mil
vezes e o Byron nunca atendia. Eu atendi uma vez

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para dizer-lhe que todos estavam bem, mas Shane


conhecia bem a natureza dos tritões, provavelmente
percebeu a mentira e já devia estar uma pilha de
nervos.
Seria bom que Shane voltasse para apoiar o
Byron, mas enquanto o Papillon se ocupava em
demolir casas destruídas precisava ser eu a exercer
este papel.
A doutora Babelyn pressionou um disco
metálico no peito do Madhun, apertou um balão
preso a uma faixa no antebraço, fez mil exames que
para mim lembravam bruxaria. Medicina humana
era algo muito estranho. Em algum momento ela
até pegou uma pinça e casualmente escavou os
olhos do Madhun, o que deixou Byron à beira de
um chilique.
Após certo tempo ela levantou e livrou-se do
jaleco cor de rosa, derrotada pelo calorão do meio-

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dia. Ela enfim virou-se para mim e para o Byron.


“Foi um tiro à queima roupa, com uma pistola
de uns vinte… não… talvez uns trinta anos atrás.
Seria um tiro fatal, se a arma estivesse carregada.”
Disse ela.
“Uma arma descarregada fez este estrago
todo?” Perguntou Byron.
“Como eu disse, foi uma arma antiga e sem
uso.” Ela levantou a pinça pontilhada de sangue,
mostrando um pedacinho de qualquer coisa na
ponta. “A munição estava podre e molhada, estão
vendo? A arma disparou apenas um pedaço do
cartucho e resquícios de pólvora.”
Eu não sabia o que era pólvora, ou pistola, ou
cartucho, mas Byron parecia entender então apenas
fingi que acompanhava a conversa. Supondo que
pistolas fossem os tubos de metal que o Papillon
comentou, era estranho que um selkie não soubesse
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operá-las direito.
“E quanto ao Madhun, ele vai sobreviver?” A
voz do Byron tremia.
Babelyn franziu a testa como se estranhasse a
pergunta, então sorriu para ele.
“Seu marido é um humano, Byron, mas seu
filhote não. O ferimento é extenso, mas nada que
um mês embaixo d’água não consiga resolver.”
Um mês inteiro?? Nunca ouvi de ferimentos
que precisassem de tanto tempo de recuperação, e
ainda assim Babelyn falava com doçura e
casualidade. Só então acabei entendendo qual era a
dela. De seu próprio jeito, Babelyn queria acalmar
seu irmão mais velho sobre uma situação em que
quase nada podia ser feito.
Para uma sereia tão rude e petulante, Babelyn
realmente escondia um enorme coração.

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“Então é só isso? Os olhos dele vão voltar ao


normal?” Perguntou Byron.
“Hum… eles estouraram como duas uvas, mas
já retirei todos os resquícios de munição e o
chamado já recuperou coisa até pior, teve uma vez
que o pau de um tritão cresceu de novo, sabia? Foi
louco, mas não recomendo testar porque só
acontece às vezes.”
Mais uma vez Byron abriu a boca, chocado e
emudecido.
Babelyn deu risada e passou por nós, não sem
antes meter outro tapão na bunda do Byron.
“O Madhun não é o único precisando de saúde,
décimo irmão. Vá comer alguma coisa, os Gobio-
Gobio da ilha Bariana trouxeram atum para um
exército, o que é apenas modo de dizer. Não temos
mais um exército.” Ela riu como se fosse engraçado
de verdade. “Yun, você cuide do Madhun enquanto
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este idiota aqui se alimenta. Tem a minha


permissão de bater nele, caso me desobedeça.”
“Ahm… ok?” Eu disse.
Enérgica como sempre, Babelyn apressou-se
em guardar seus equipamentos.
“Amanhã volto para verificar o progresso do
Madhun. Ainda tenho tantos pacientes… eu sou
uma obstetra, sabiam? Bem que alguma outra
sereia podia se formar em paramedicina, só pra
aliviar um pouco.” Ela pegou um frasco no bolso e
tomou alguns comprimidos. “Enfim, preciso ir. Se
o Taimen aparecer me procurando, digam que estou
esquiando em Bariloche. Aquele cara não me dá
descanso.”
Eu e Byron nem conseguíamos mais raciocinar,
apenas acenamos e nos despedimos daquela sereia-
tornado.
“Quem é Taimen?” Eu perguntei.
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“O predestinado dela. Pobre jovem, que consiga


chegar na terceira idade antes da loucura.” Disse
Byron, enquanto voltava à beira do mar. Ele pegou
Madhun em seus braços, devolveu para dentro do
ofurô e então… sentou ao seu lado na mesma
posição em que permanecia desde cedo.
“Ei, você lembra as palavras da Babelyn?” Eu
falei, indignado.
“Quais das vinte mil?” Retrucou ele.
“Você não come nada desde que voltamos,
Byron. Eu cuido do Madhun, pode ficar tranquilo.”
Eu disse, mas pela expressão do Byron era óbvio
que não obedeceria. Eu precisava jogar baixo. “Vai,
ou o próximo a insistir será o Shane.”
“Você não faria isso.”
Eu tirei meu celular do bolso do meu quimono.
Estava sem bateria como sempre, mas Byron não
percebeu o blefe e rapidamente se levantou.
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“Me avise sobre qualquer mudança. Volto o


mais rápido que conseguir.” Disse ele.
“Não tenha pressa.” Eu sentei à borda do ofurô.
Mesmo bastante contrariado, Byron partiu em
direção à praça principal, onde barracas
improvisadas distribuíam os suprimentos de
emergência.
Enfim sozinho com Madhun, eu observei o
garoto adormecido sob a água. Seu rosto havia
melhorado muito desde o dia anterior, a pele já
crescia intacta no nariz e na testa, mas a região dos
olhos continuava preocupante. Nem mesmo um
mês inteiro me parecia o suficiente, o chamado
podia mesmo consertar um ferimento tão grande?
Meu coração doía pelo garoto e, eu detestava
admitir, também doía pelo que Byron me disse. Foi
apenas um comentário ácido em um momento de
estresse, eu não deveria considerar, mas e daí que
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eu não tivesse filhos? Isso me tornava um monstro


sem sentimentos, por acaso? Eu podia desconhecer
a dor do Byron como um pai, mas conhecia o temor
em perder quem me era mais importante.
O que seria de nós, dali em diante? Sem a
proteção dos reis, da muralha de bombas, do
exército? Nunca tive apego pelo povo dessa ilha,
apenas pelo Shane, mas para o resto sempre fui o
ômega infértil, o esnobe que se escondia no palácio
longe da plebe, o imprestável mimado. Há tempos
não me agrediam diretamente, mas eu via o
preconceito no olhar de cada um e me faltava a
bondade do Shane para aprender a perdoar. Meu
ressentimento nunca iria embora, então porque não
partir? Tudo indicava que os Makairas foram o
foco da invasão, e meu Papillon era um deles.
Continuar nesta ilha seria como viver com um alvo
em sua cabeça.

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Sim, definitivamente a solução era partir. Não


para Zhang-Qi ou nenhuma outra ilha da aliança,
mas para algum ponto desconhecido no fundo do
oceano. E porque não nessa tal de Europa? Se até o
Byron conseguiu se adaptar, então a vida entre
humanos não podia ser tão difícil.
Enquanto eu pensava no que fazer, ouvi a porta
dos fundos abrindo. Eu me virei, estranhando a
velocidade do Byron em retornar, mas não era ele.
Era apenas um filhote ruivo que eu não lembrava o
nome, mas pelos olhos de esmeralda ele também
era um Makaira. Um dos sobreviventes.
“Madhun…” Gaguejou ele, aproximando-se do
ofurô. “Madhun, você está melhor, hoje?”
O garoto nem sequer me deu oi, mas pela
tristeza em seus olhos achei melhor não criar caso.
“Você é algum amigo dele?” Eu sentei mais
para o lado, para que o rapaz sentasse comigo.
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“Sim, digo, não exatamente.” Ele abaixou a


mão sob a água e tocou o ombro do Madhun, cheio
de sentimento e delicadeza.
Ah, então era esse tipo de amizade. O garoto
parecia jovem demais para ser pretendente de um
quase-ômega, o corpo lembrava o de um pré-
adolescente em termos de desenvolvimento, mas eu
reconhecia sua expressão, o desejo sufocante em
fazer notar seu afeto. Era a forma como Papillon
me olhava tantos, tantos anos atrás, com a diferença
que Madhun não o retribuía com chutes e dentadas.
Ele não retribuía de forma alguma, ainda inerte em
seu sono profundo.
“A doutora Babelyn apareceu mais cedo.
Madhun vai se recuperar por completo.” Eu disse.
“Agradeço por me contar. Na verdade já soube
pelo tio Byron, encontrei ele na fila de
suprimentos.” O garoto sorriu triste, sem tirar os

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olhos do Madhun. “Ele vai pagar caro por isso.”


“Ele quem?” Perguntei, intrigado. “Você viu
quem machucou o Madhun?”
O garoto levantou e secou as mãos no seu
avental com cheiro de plantas. Ah, ele só podia ser
aquele Sebasten, filho do tenente. Ele não parecia
tão estúpido quanto o próprio pai.
“Tenho que voltar pra casa. Papai Jensen
machucou o braço durante o ataque, serei eu a
preparar o jantar.” Ele avermelhou um pouco.
“Ahm… eu poderia trazer um pouco… quer
dizer… não sou um bom cozinheiro, nem nada
assim, mas o Madhun precisa comer, né?”
É, era um bom ponto. Eu não sabia como
alimentar o Madhun, mas não podia deixá-lo passar
fome.
“Madhun vai apreciar sua gentileza, eu
garanto.” Falei, para a alegria do garoto. “Na
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verdade posso conseguir que fiquem juntos durante


a noite. Sei que é território do Byron, mas nós
somos grandes amigos.”
“Sério? Posso ficar?” Os olhos do ruivinho
brilharam. “Meus pais não se importariam, aliás,
meu pai ômega nem perceberia, eu acho.”
“Traga seu cobertor e travesseiros, o paciente é
todo seu.” Eu disse em tom leve, aliviando o clima,
então afinei meus olhos como uma raposa. “Em
troca me diga onde está o Ronan.”
Sebasten foi pego de surpresa, travando o corpo
para a súbita chantagem. Uma reação forte demais
para quem não sabia a resposta.
Em parte eu me sentia péssimo por pressionar
um adolescente deprimido, mas certas informações
eram mais importantes que a ética. A segurança do
meu Papillon estava em jogo.
“Eu… ai… eu não sei… não sei se devo…” Ele
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mordeu a unha do polegar, super nervoso. “O papai


Fran me mandou ficar quieto…”
Ah, então o tenente estúpido mal perdia uma
batalha no próprio território e já começava a
guardar informações? Aquele sem-vergonha ainda
ouviria umas palavrinhas de mim, mas tudo em seu
tempo.
“Será o nosso segredinho, não contarei ao
Byron nem ao Madhun.” Eu agitei minha mão na
água, só para lembrá-lo de seu precioso quase-
ômega.
“Ele… ele foi com eles…” Sebasten sussurrou,
olhando para os lados como se Fran fosse surgir
dos arbustos para meter-lhe um tapão na orelha.
“Ronan foi com quem?”
“Com o general inimigo, aquele que era um
tritão. Eles subiram juntos no navio e foram
embora.”
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Eu já esperava uma informação chocante, mas


aquilo tremeu minhas bases.
“O general inimigo é um tritão?”
“Sim, um tal de Cordelen. Para um imbecil
antissocial, o rabo-de-camarão fez amizade com ele
bem rápido.” Sebasten bufou, tão nervoso quanto
enraivecido. “Eu não conseguia recuperar as pernas
então foi difícil de ver, mas tenho certeza. Ronan
fugiu com eles por vontade própria. Se papai Fran
souber que eu contei eu vou ter que ajoelhar nos
corais, então por favor…”
“Não se preocupe com isso, Sebasten. A última
das minhas intenções é colaborar com aquele
tenente.”
Sebasten franziu a testa para o meu último
comentário, mas acabou sorrindo animado.
“Posso voltar depois do jantar, então? E dormir
cuidando do Madhun?”
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Eu concordei com a cabeça e deixei que os


pombinhos tivessem seu momento juntos. Assim
que Byron voltou eu retornei ao palácio,
preocupado demais com as informações do
Sebasten para cumprir minha parte do acordo.
Byron era legal o bastante, talvez permitisse o
acampamento em seu quintal, mas isso não era
problema meu.
Meu único interesse era garantir a segurança do
meu amado.

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Capítulo 33

Que dia terrível. Lidar com o povo nunca foi


meu ponto forte, mas novamente precisei correr de
cima a baixo pela ilha, ajudando os mais
necessitados com o Papillon. Eu seria egoísta em
reclamar porque meu núcleo, por menor que fosse,
permanecia intacto, e os danos nos nossos
aposentos eram pouca coisa se comparados com as
casas incendiadas. Nem mesmo as galerias
submersas escaparam do ataque, os vários
deslizamentos desabrigaram até mesmo os tritões
das profundezas.
Segundo o Papillon, havia destroços flutuando
pelos túneis e bloqueando diversas passagens, mas
nada que impedisse a Babelyn de montar um
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hospital lá embaixo. Eu não a via desde que tratou


do Madhun a primeira vez, então ela devia estar
bem ocupada.
Papillon também se arrastava em exaustão. Foi
difícil convencê-lo a descansar, mas na escuridão
da noite já não havia muito a ser feito. Nós nos
retiramos aos nossos aposentos, mas aquele bobo
exibido ainda insistiu em me preparar o jantar.
Apesar da minha fome eu o queria perto de
mim, mas acabei concordando e o aguardei sozinho
no quarto. Papillon adorava me agradar e uma boa
refeição faria bem a nós dois.
Enquanto aguardava, eu sentei na cama e tentei
ignorar a mobília toda remendada. Era como se
nossas vidas pudessem voltar ao normal depois do
massacre, e este pensamento era tão esperançoso
quanto assustador. Deveríamos mesmo nos
preocupar em reconstruir uma ilha vulnerável, onde

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metade da população estava na mira de um inimigo


tão mais poderoso?
Sebasten não parecia estar mentindo. Se o
ataque fora orquestrado por tritões,
desconhecíamos o inimigo ainda mais do que eu
imaginava. E Ronan os seguiu voluntariamente,
teria havido algum envolvimento de sua parte?
Não, provavelmente era apenas um adolescente
estúpido fazendo estupidez, o que parecia ser seu
único talento.
Quanto mais eu pensava, mais eu me sentia
montando um quebra-cabeça com metade das
peças. Papillon me repreenderia por gastar meus
neurônios com isso, então empurrei meus
pensamentos ao fundo da mente e despi meu
quimono sujo de serragem e carvão. Em meu
armário havia muitos outros quimonos para
diversas ocasiões então escolhi um bem leve de

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seda lilás, que eu costumava usar para dormir.


Antes que eu me vestisse o Papillon bateu na
porta, mas eu me ocupava em pentear o cabelo no
que sobrou do espelho, então pedi que entrasse.
…E não era o Papillon.
Vestido em seu traje militar completo, Tenente
Fran abriu a porta e travou no lugar, surpreso em
me ver totalmente pelado.
Ah, que droga! Eu rapidamente cobri minha
frente com o quimono. Dane-se que outro ômega
visse minhas partes íntimas, mas as minhas
pernas… ele não podia ver as minhas pernas.
Se Fran reparou em minhas cicatrizes ele
escolheu ignorar, desviando o rosto por tempo o
suficiente para que eu me vestisse. Não me era
confortável receber visitas, ainda mais de pijamas e
para lidar com um dos tritões mais desagradáveis
do reino.
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“O que você quer, Tenente Fran Gobio-Gobio?”


Eu enfatizei o nome de seu clã de baixa casta, me
segurando para não sorrir ao fazê-lo.
“Poupe-me das suas alfinetadas, Yun. O
Digníssimo Papillon se encontra?” Ele deixou seu
quepe na minha penteadeira e sentou no banquinho,
como se a casa fosse dele.
“O meu alfa está preparando o meu jantar no
momento. Quer que eu deixe recado?” Eu sorri o
sorriso mais cínico da minha vida.
“Dispenso.” Respondeu ele, nada abalado. “É
com você mesmo que quero falar.”
Por essa eu não esperava, até perdi um pouco
da pose.
“Comigo?” Perguntei, enervado. Teria Sebasten
contado algo a ele?
“Nossa relação nunca foi das melhores, Yun,

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então serei breve e objetivo.” Disse ele, penetrando


meu olhar com sua expressão severa. “Preciso da
localização da Safira do Oráculo.”
Eu franzi a testa.
“Precisa o quê do quê?” Perguntei.
“Não se faça de bobo para tentar me aborrecer,
seja adulto. Você há anos deixou a ilha de Zhang-
Qi, mas não deve ter esquecido a função do seu
clã.”
A função do meu clã? Do que aquele idiota
ruivo estava falando?
“Quanto tempo livre você deve ter para me
importunar com idiotices, Tenente. Seria
terrivelmente inapropriado guardar segredos em
momentos de guerra, não é mesmo?” Eu disse.
O tenente alisou para trás o cabelo ruivo e
soltou o ar lentamente, como se sentisse uma

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enxaqueca chegando. E eu esperava que fosse uma


das mais fortes.
“Ok, vamos supor que você sofre de amnésia e
esqueceu sua própria ascendência. Se você fosse
um Hai-Kui digno de seu nome, e não um tritão
mimado, hedonista e infértil, onde você esconderia
a Safira do Oráculo?”
Eu rosnei ao Tenente e exibi as presas da minha
forma feral. O desgraçado atrevia-se a me insultar
em meu próprio território, eu queria listrar a cara
dele com as unhas.
“Mesmo que eu soubesse do que raios você está
falando, eu não entregaria nada.” Eu rosnei, me
irritando ainda mais com o quanto ele mantinha a
calma. “Para alguém com uma tropa de informantes
Amalona à sua disposição, você é bem
desinformado. Meu clã foi quase extinto, não é
mais o que costumava ser.”

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“Os selkies culparam o Oráculo pela nossa


vitória na última guerra, e com bons motivos, então
fazia sentido exterminar toda a linhagem de
mentores. Por algum milagre um pequeno filhote
sobreviveu ao genocídio, embora gravemente
ferido, e ele era justamente o sucessor direto do
mentor Daoshin, aquele que treinou pessoalmente o
finado Oráculo Aurelian. Infelizmente o garoto
cresceu sozinho como uma criança selvagem,
privado do amor de um núcleo e da importante
cultura de seu próprio clã.” Tenente Fran sorriu
satisfeito para o espanto enfurecido no meu rosto.
“Preciso continuar, ou já pareço informado o
suficiente?”
Eu rugi de ódio e me forcei a acalmar minha
forma feral. Foi um inferno limpar o sangue dos
meus tapetes e eu não pretendia repetir a
experiência.

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“Você é um canalha.” Eu disse a ele, vermelho


de tanta raiva. “O que meu trisavô Daoshin tem a
ver com essa tal de Safira do Oráculo?”
“Pensei que fosse eu o desinformado.” Tenente
Fran manteve seu olhar de vitória, brincando com o
perigo. “Talvez a joia realmente seja um artefato
perdido, como afirmou nosso finado Oráculo. É
uma perda imensurável, ainda mais se
considerarmos a índole do atual mentor.”
O palhaço estava falando de mim? Eu comecei
a rir sozinho, tendo certeza que o Tenente apenas
brincava com a minha mente.
“Eu, mentor de qual oráculo? Perdemos tudo,
Tenente. Nossas defesas, nossos líderes… Sem um
oráculo que nos conduza é questão de tempo até os
selkies nos erradicarem dos oceanos.” Eu entoei
meu cinismo, porque a essa altura seria humilhante
demonstrar tristeza. “A arte do meu clã se perdeu.

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Mesmo que surgisse outro oráculo, o que é muito


improvável, ninguém seria capaz de treinar o seu
potencial.”
Tenente Fran não respondeu, apenas ficou me
olhando, pensativo.
Eu já estava cansado daquela palhaçada.
“Você não tem casa, Tenente? Pelo menos se
lembra do rosto do seu filho?” Perguntei com
aspereza, ainda incapaz de afetá-lo. Algo em seu
olhar me tirava do sério. “Espero que reconheça a
importância de seu cargo, agora que perdemos
nossos reis. Guardar informações seria uma imensa
irresponsabilidade em um momento tão crítico.”
“Eu quem preciso reconhecer minha
importância?” O tenente riu baixinho e se levantou,
ajeitando seu quepe sobre as mechas ruivas.
“Resolva este seu ressentimento ridículo, Yun, não
pode seguir odiando metade de Egarikena. Este
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ataque arrancou todos nós de nossas bolhas de


conforto, especialmente a você e ao Papillon.”
Ouvir o nome do meu Papillon quase me fez
saltar no pescoço daquele idiota.
“Está tentando nos ameaçar?”
“Pelo contrário. Você não é burro a ponto de
não perceber onde quero chegar, mas estamos todos
cansados e em choque. Deixemos que a realidade
nos acerte um golpe de cada vez.”
Mais alguém apareceu no quarto. Era Papillon,
com uma bandeja de peixe fumegante em suas
mãos. Ele surpreendeu-se com a presença do Fran.
“Estou atrapalhando algum duelo?” Perguntou
ele, com um sorriso brincalhão e um pouco
assustado.
“O Tenente já está de saída.” E nem pense em
oferecer nosso jantar a ele.

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Papillon se arrepiou ao ouvir meus


pensamentos e apenas permitiu que Tenente Fran
marchasse embora, após uma despedida seca e
áspera entre nós dois.
O tenente fechou a porta ao sair.
“E então…” Papillon quebrou o silêncio
pesado. “Vocês se odeiam por algum motivo,
ou…”
“Eu não preciso de motivos pra odiar ningue...
ei, salmão assado! Eu adoro salmão assado.”
Respondi rápido, não querendo mais uma palavra
daquele assunto insuportável. “Sou muito grato,
meu predestinado.”
Papillon sorriu meio torto e a conversa encerrou
por ali. Ele serviu as porções nos pratinhos que
trouxe e juntos saboreamos o delicioso jantar, no
conforto de nosso quarto isolado e tranquilo.

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****

Papillon me envolveu em seus braços largos e


fortes, me aninhando em seu peito. Eu era tão
menor que ele poderia abraçar três de mim e ainda
encontrar os dedos do outro lado. Deitar sobre
Papillon era tão confortável que eu poderia dormir
exatamente assim, sentindo o subir e descer de sua
respiração.
“O que seria essa tal Safira do Oráculo?”
Papillon afagou minhas costas magrinhas, indo do
pescoço à cintura em gestos que para ele eram bem
curtos.
“E eu lá vou saber? Não confio naquele tenente,
espera nossa honestidade quando ele mesmo se
mantém sigiloso.” Eu bufei, incomodado pelo
assunto voltar. “Meu trisavô Daoshin morreu velho
e antes mesmo de eu nascer. Os únicos discípulos
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eram meus avós e meus pais, não preciso lembrar o


que aconteceu com eles.”
“Fran é apenas um tritão, agindo como um
tritão. Você pode mesmo culpá-lo, meu amor?
Talvez ele esteja certo quando sugeriu menos ódio
nesse seu coraçãozinho.”
Ah, raiva, Papillon precisava mesmo ler meus
pensamentos? Se fosse para investigar minha mente
ele poderia voltar mais no tempo, até quando todos
— literalmente todos — me agrediam e
humilhavam pelo simples fato de eu não me
reproduzir.
Há anos que os idiotas de Egarikena não
abusavam de mim na primeira oportunidade, mas
eu sentia que era mais por respeito ao Shane do que
por mim. Enquanto pensassem que eu era infértil,
também pensariam que eu era um lixo e isso nunca
mudaria.

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Não que eu me importasse.


“Ei, meu amor…” Eu usei minha voz mais
manhosa, roçando os lábios em baixo do seu
queixo. “Que acha de irmos embora? Vamos
passear pelo mundo, conhecer ruínas de navios, ou
as civilizações loucas que o Shane nos conta.”
Papillon desceu a mão um pouquinho e subiu o
tecido do meu pijama até expor minha bunda, o que
arrancou um gemidinho de mim. Meu mastro
endureceu rápido contra os gomos da sua barriga.
“Não podemos partir agora, muitos precisam da
nossa ajuda.”
Eu miei em frustração e também por causa dos
arrepios. O dedo do Papillon subia e descia por trás
da minha coxa, provocando e me fazendo molhar.
Minhas nádegas deslizaram uma na outra com a
umidade da minha lubrificação
“Não me provoque, estou tentando falar sério.”
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Eu resmunguei, já rebolando e me esfregando em


seus músculos sólidos, minha pele fervendo em
expectativa. Era impossível não delirar com o meu
Papillon sob mim, arfando rápido como agora e me
deixando louco.
“Ainda não fizemos desde que você voltou.”
Papillon sussurrou no meu ouvido, mordiscando o
lóbulo da minha orelha. “Fiquei meio carente.”
Droga, cada sílaba de sua voz grave era um
espasmo elétrico na minha espinha. Meus olhos
umedeceram em luxúria e desejo, e ao notar a
mesma expressão no Papillon eu soube que já não
havia volta.
…Ou não deveria haver, porque Papillon
desceu os dedos um pouquinho demais, seus
instintos de alfa cedendo ao cheiro da minha
umidade. A ponta de um dedo tocou minha fenda
lubrificada.

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“Não!!” Eu gritei no mesmo instante,


contraindo cada músculo como se atingido por um
balde de gelo.

Mete mais fundo, vamos ver o quanto aguenta.


Grita mais, seu pirralho escamoso.
Hahahahah.

Papillon tirou a mão, mas já era tarde. Meu


corpo tremia e suava e eu não conseguia afastar as
vozes. Eu apertei minha cabeça e tentei, tentei
muito calar as risadas. A dor não era real, Papillon
era o único comigo, ele não me machucaria.
“Ei, ei, calma, Yun.” Papillon conteve o ímpeto
de me abraçar, porque aí sim eu teria um troço. Ele
apenas ergueu as mãos diante de mim, tão
assustado quanto impotente. “Peço mil perdões, eu

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me distraí.”
Minha visão aos poucos recuperou o foco.
Nenhum selkie, nenhuma dor, apenas o meu
Papillon terrivelmente preocupado comigo. De
novo.
“Eu quem peço perdões.” Eu escondi meu rosto
suado nas mãos, ao mesmo tempo envergonhado e
com raiva de mim mesmo. “Você nunca me
machucaria, eu sei disso, por favor não se ofenda.”
Papillon sentou na cama e abraçou meus
quadris suavemente, então beijou o meu rosto.
“Quando eu já me ofendi? Meu descuido que
foi imperdoável, eu conheço as suas limitações.”
Já calmo, eu encarei meu Papillon e torci meu
lábio em um sorriso travesso.
“Você não faz por mal. Seus instintos de alfa
reagem ao meu cheiro, é algo mais forte que nós

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dois.” Eu relaxei em seus braços, lutando muito


para não pensar em onde estava sentado. O pau
enorme do Papillon latejava petrificado embaixo da
minha bunda, molhado pela lubrificação que não
parava de vazar, uma súplica do meu corpo pelo
filhote que nunca pôde gerar.
Se eu broxasse o Papillon se sentiria ainda pior,
então consegui não perder o clima. Pequenos
espasmos de pânico ainda percorriam meus nervos,
mas nem pensar que eu deixaria meu passado
vencer. Ainda mais quando o alfa mais delicioso do
mundo deslizava suas mãos por mim, sedento por
aquilo que apenas eu poderia oferecer.
Papillon precisava de mim e eu precisava dele.
Aquele corpão musculoso me pertencia e eu o
dominaria até o Papillon implorar por mais.
“Precisamos resolver essa sua carência.” Eu
disse, ofegante.

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Papillon pressionou os lábios nos meus em um


beijo urgente e tórrido, explorando minha cintura e
meu peito com seus dedos habilidosos. Uma
pinçada no mamilo me fez gemer alto em sua boca,
tão excitado que meu mastro pingava em sua
barriga, ansioso pela próxima parte.
“Fica de quatro. Agora.” Eu ordenei.
Papillon obedeceu prontamente, nos girando no
colchão com o cuidado de não me derrubar.
Considerando nossas diferenças de tamanho,
acidentes assim aconteciam com alguma
frequência.
Doía quase que fisicamente me afastar do
corpão do Papillon, mas assim que ele se ajeitou eu
me encaixei entre suas pernas e lambi os lábios
para a visão do meu paraíso: a bunda musculosa e
apertadinha do Papillon, já pulsando em
expectativa enquanto ele me espiava por cima do

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ombro.
“Você foi malvado hoje, Papillon.” Eu disse a
ele, com meu sorriso mais devasso. “Era isso o que
você tentou fazer?”
Eu deslizei o polegar pela fenda cor-de-rosa,
repetindo seu gesto, e ainda pressionei um
pouquinho, ameaçando entrar.
“Hnnnn…” Papillon gemeu, deixando de me
olhar para morder a fronha do travesseiro. “Por
favor…”
Meu alfa obediente era demais pra mim. Eu já
queria me empalar em seus músculos firmes, à
beira do meu primeiro êxtase da noite, mas torturar
meu alfa era tão divertido quanto derramar dentro
dele.
Travessamente eu retirei o dedo e apreciei seu
gemido resmungado, mas a frustração do Papillon
não duraria muito tempo. Logo depois eu baixei
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meu rosto, deixando que minha respiração


acariciasse sua parte vulnerável.
Papillon quase pirou, gemendo de ansiedade.
Ele talvez curtisse minha língua até mais que o meu
pau, mas ele não precisaria escolher. Naquela noite
Papillon teria os dois, e eu gastaria nossos corpos
até que não houvesse guerras, ou mortes, ou um
tenente imbecil com suas indiretas ridículas.
Minha vida com Papillon era romântica e
perfeita de seu próprio jeito, e isso ninguém
arrancaria de nós.

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Capítulo 34

Egarikena amanheceu sob o som da chuva. A


água vertia pelas paredes cristalinas do palácio e
percorria os córregos da ilha, levando consigo a
fuligem, a poeira os resquícios finais do sangue da
violência.
Uma semana havia se passado desde a chacina
que mudou a vida de todos. Todas as casas
queimadas haviam sido demolidas e muitos barcos
chegavam com madeira e pedra para a construção
de novas moradias. Ansiosos em deixar o albergue
provisório nas galerias e no Flying Fish, tritões
atarefados percorriam toda a ilha, reformando e
reconstruindo todo o possível. A maioria dos
feridos já apresentava total recuperação e agora
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ajudava nos trabalhos, ansiosos em recuperar a


normalidade de suas vidas.
Alguns outros, porém, precisariam de mais
tempo sob os poderes curativos do mar.
Não havia muita ajuda que um ômega como eu
pudesse oferecer, nem tritões desesperados o
bastante para aceitar o auxílio de um infértil, então
após concluída a limpeza do palácio eu passei a
visitar Madhun. Era algo que eu fazia todos os dias
e Byron parecia apreciar minha companhia, ou
talvez apenas gostasse da comida do palácio que eu
sempre trazia em potes.
Eu, Byron e Sebasten nos revezávamos nos
cuidados do garoto em coma, alimentando e
trocando a água de seu ofurô. Sebasten passava
horas conversando com ele, mesmo que não
pudesse ser ouvido, e Byron arrumava e re-
arrumava seu quarto diariamente como se Madhun

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pudesse acordar a qualquer momento.


E então, na manhã anterior, Madhun finalmente
acordou.
Enfim notícias boas o suficiente para levantar o
astral do Byron. Ou pelo menos tudo ficou ótimo
até o Shane aparecer.
Agora a minha função era cuidar do Madhun
enquanto Shane e Byron se matavam dentro da
casa.
“Nenhuma ligação, Byron! Nenhuma! O que
você acha que eu sou? Eu quase morri do coração,
precisei cancelar a porra da minha turnê e comprar
a porra de um equipamento de mergulho para
conseguir voltar sem explodir naquela maldita
muralha de bombas!”
“Sinto muito pela sua turnê, Shane, eu estava
lidando com um problema de verdade aqui!”

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“Sim, sozinho! Eu tinha o direito de saber e de


estar aqui! Eu sou o seu marido, caralho!” Shane
gritava tão alto que mesmo no quintal eu podia
ouvi-lo de seu quarto no segundo andar. “E onde
está o Ronan? Eu não acredito que você nem
procurou por ele!”
“O que há de estranho nisso? Ele atirou no rosto
do meu filho, podia tê-lo matado.”
“Ronan também é nosso filho e ele pode estar
em perigo. Nós precisamos de ajuda, alguém deve
ter visto onde…”
“Eu só tenho um filho, e o nome dele é
Madhun!!” Gritou Byron.
A conversa silenciou. Meu peito bateu dolorido
pelo sofrimento do Shane, mas não era como se eu
pudesse intervir. E se eu sofria por ele, nem queria
imaginar os sentimentos do Madhun naquele
momento.
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Encolhido dentro do ofurô, Madhun abraçou-se


na própria cauda e suspirou, cheio de tristeza. A
pele do rosto já havia recuperado e agora ele usava
uma faixa branca em torno dos olhos. Sua visão
precisaria de muito mais tempo.
“Eu não deveria ter contado nada.” Disse
Madhun.
“Seria inadequado mentir ao seu progenitor.”
Eu afaguei seu cabelo. “Sinto muito, eu sei que
Ronan era um irmão importante.”
“Ele ainda é!” Disse Madhun. “Eu conheço o
Ronan, ele estava confuso… não estava?”
Os lábios do Madhun tremeram e ele se
encolheu ainda mais. Chorar devia ser dolorido
com os olhos naquele estado.
“Byron será mais receptivo a conversas quando
você melhorar, então mergulhe aí e tente dormir.”

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“É verdade o que Sebasten disse?” Perguntou


Madhun. “Ronan foi embora com os selkies?”
Eu não sabia o que responder. Sebasten era
idiota como o pai militar, de que adiantava comprá-
lo com chantagem se ele mesmo abria a boca para o
namoradinho? Era informação demais para alguém
que passou uma semana em coma.
“Pense que seu irmão e seus pais sobreviveram.
É um tesouro maior do que você poderia imaginar.”
“Perdão, tio Yun. Não quis fazê-lo lembrar de
momentos tristes.” Disse ele. “Fico feliz que você e
o tio Papillon estejam bem, mas meus amigos…
todos eles…”
Pobre filhote. Não havia como animá-lo por
enquanto, então deixei que chorasse quieto em seu
cantinho do ofurô.
Se a vida me ensinou qualquer coisa, era que as
cicatrizes de dentro podiam ser mil vezes maiores
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que as de fora, e algumas nunca parariam de


sangrar.
Mas o Madhun ficaria bem. Ele era mais forte
que eu.
Shane apareceu pelos fundos da casa, sozinho.
Pelo inchaço em seus olhos ele havia chorado
horrores, mas preferi não comentar. Melhor que
Madhun não percebesse.
“Como você está, filhote?” Ele ajoelhou ao lado
do ofurô e afagou o rosto do garoto, analisando de
perto as bandagens.
“Perdoe o papai Byron, ele não queria te
preocupar.” Disse Madhun.
“Não consigo entender a lógica dos tritões, não
consigo…” Shane desviou o olhar de seu filhote
machucado, ameaçando chorar de novo.
“Madhun tem razão, o alfa sempre prioriza o

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bem-estar emocional de seu ômega. Entenda isso


como um gesto de amor.”
Shane me ignorou como se eu nem estivesse ali.
Ah, certo, ele ainda estava bravo comigo também.
Mesmo depois de tantas dificuldades, o medo
de perder meu único e melhor amigo conseguia me
alfinetar profundamente.
“Desculpa.” Eu disse baixinho. “Eu devia ter
contado.”
“Um tritão não interfere no assunto de outros
núcleos, eu conheço essa bobagem toda.” Disse
Shane, repreensivo e triste. “Você é um tritão, Yun,
e eu entendo isso. Mas você também é um dos
meus melhores amigos.”
“Foi um erro imperdoável de minha parte.”
Meu coração espremeu dolorido dentro do peito.
“Peço mil perdões, posso implorar de joelhos se for
a sua preferência.”
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Shane começou a rir. Ele deu um tapinha no


meu ombro.
“Você não deveria se meter, e ainda assim
cuidou do Madhun todos os dias. Valeuzão por
isso.” Ele sorriu para mim. “Ainda estou putaço
com você e o Byron, mas feliz por estarem todos
bem.”
“Não mereço sua amizade, Shane Velvet, mas
sou extremamente grato por tê-la.” Eu lhe devolvi o
sorriso.
“Cara, essa formalidade me deixa bem sem
graça.” Shane alisou o topete para trás e as mexas
voltaram a cair diante do olho. “Sem mais
segredos, tá bom? Vou precisar da sua ajuda para
encontrar o Ronan.”
Madhun estremeceu sob o carinho do Shane e
continuou quieto e encolhido. Será que ele
conhecia os objetivos do Ronan? Talvez o meio-
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selkie tenha lhe contado alguma coisa.


Eu levantei da borda do ofurô e pensei em
convidar Shane a um passeio, para no momento
oportuno contar todas as informações que obtive,
mas antes que eu movesse meus lábios ouvi um
zunido dentro da minha mente.

<<Yun, meu amor, poderia retornar ao palácio?>>

Precisa ser agora, Papillon? Estou no meio de


uma conversa importante. Eu perguntei através de
nossa telepatia.

<<Ahm… receio que sim. Apareça na sala do


trono, o Tenente insistiu que eu o chamasse.>>

Tenente Fran, incomodando o meu Papillon?


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Ah, mas era só o que me faltava.


“Desculpa, eu preciso ir.” Eu disse, me
apressando em direção à cidade.
Então eu cheguei nos jardins da casa e freei
rápido, quase caindo no chão.
Eu voltei rápido e abracei apertado o Shane.
“Obrigado por sua amizade, Shane Velvet.” Eu
disse a ele. “Conte comigo para qualquer coisa.”
Shane ainda segurava o choro, não querendo
deprimir Madhun ainda mais. Mas ao recuperar-se
da surpresa ele sorriu e também me abraçou.
“O que seria da Death Cannibals, se eu não
fosse amigo do melhor baterista do mundo?” Disse
ele.
O sorriso do Shane era tudo o que eu precisava
ver. Talvez ele não voltasse a chorar no instante em
que eu fosse embora.

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De qualquer forma, eu precisava ir. Após uma


rápida despedida eu corri para o palácio, intrigado
sobre o que o tenente estúpido poderia querer
conosco.

****

Papillon e o Tenente aguardavam na parte


elevada do salão, logo diante do trono, mas eles não
estavam sozinhos como eu havia pensado. Um
punhado de outros tritões conversavam entre si, e
eles calaram totalmente ao me ver.
Legal, aquele bando de idiotas decidira me
seguir com o olhar, como se um tritão infértil fosse
um espetáculo de circo. Danem-se todos eles, ser
excluído das rodinhas de conversa não era novidade
alguma pra mim.

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Eu passei reto por todos e subi o par de degraus


que me separava de Papillon e do Tenente. O
nervosismo no olhar do Papillon logo atiçou minha
raiva. Se aquele tenente foi indelicado com o meu
amor eu rasgaria sua cara bem ali, na frente de todo
mundo.
“Saudades da minha companhia, Tenente?
Tudo isso é desejo por mim?” Perguntei.
O Tenente manteve-se austero, com o peito
estufado para tentar parecer mais alto que eu. Em
seus braços ele carregava um tecido vermelho e
dobrado.
“Agradeço pela rapidez, Yun, o assunto
envolve a vocês dois.” Ele voltou sua atenção ao
Papillon e deu um longo suspiro. “Digníssimo
Papillon, o teor desta reunião não deve surpreendê-
lo, e desde já imploro seu perdão pelas minhas
falhas. O incidente com Leviathan Makaira resultou

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de um imperdoável erro de cálculos, e nossa equipe


de inteligência não medirá esforços para resolver
esta dramática situação.”
Papillon concordou com um gesto da cabeça,
apenas aumentando minha confusão. Quem era esse
tal de Leviathan Makaira? E o que aconteceu com
ele?
Nem pensar que eu passaria por burro diante
daquele idiota, então deixei que continuasse seu
discursinho.
“O reino que seu pai unificou é muito amplo,
diverso, e receio que não se sustentará até que a
situação de Leviathan seja resolvida, isto sem
considerar a questão de sua tenra idade. Embora
seja conveniente para nós o desaparecimento de um
certo indivíduo, o trono de Egarikena não pode
permanecer vazio.”
Papillon estremeceu. Eu podia sentir seu medo,
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e ao mesmo tempo sua determinação.


A atenção do Tenente enfim retornou a mim,
com todo o seu habitual desprezo. Ele deixou que o
tecido em suas mãos desenrolasse ao chão, e
quando percebi o que era eu dei um engasgo.
A túnica real de couro-de-selkie. O tecido fluía
suave até o cristal do piso, vermelho e com
rebuscados padrões dourados em fios de ouro e
seda-do-mar. A princípio pensei se tratar das
roupas do finado rei Aurelian, mas o padrão de
desenhos era outro. Carpas e flores de cerejeira, os
símbolos do clã Hai-Kui.
“Não olhe com essa cara, Yun. Papillon
recusou-se a trajar o couro dos nossos inimigos,
mas suponho que você não tenha as mesmas
ressalvas.” Ele contornou os braços em torno do
meu pescoço e vestiu o tecido sobre os meus
ombros, por cima do meu quimono. Era bem mais

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pesado do que parecia.


Eu olhei para baixo enquanto o tenente atava o
laço em torno da minha cintura. Até o corte era
diferente, com relação aos trajes do rei Aurelian. A
faixa larga fazia lembrar um yukata mais do que
uma túnica.
“Isso é alguma piada de mau gosto?” Perguntei.
“Nos chamou até aqui para zombar de nós,
Tenente? Todos sabem que Hian II é o atual
herdeiro! Ao invés de fazer piadas que tal fazer seu
trabalho e ir buscar nosso verdadeiro governante?”
“Yun, meu amor, eu já te contei sobre o Hian II,
ele…” Sussurrou Papillon, tristemente.
“Não me interessa o que ele decidiu!!” Gritei,
tentando soltar o laço nas minhas costas. “Eu me
recuso a seguir adiante com isso. Reis são
populares, e carismáticos, e ocupados com
quinhentas responsabilidades! O que nós
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entendemos disso, Papillon? Como nós…”


Um som estranho ecoou atrás de mim. Eu me
virei e percebi que era o movimento da centena de
tritões que se reunia diante do trono. Com seus
olhares em mim e no Papillon, um a um todos eles
se ajoelharam.
“Vocês têm o direito de renunciar.” Disse o
Tenente, com gravidade. “Podem até mesmo
passear e viver felizes em qualquer lugar do
mundo. Mas diante de vocês estão tritões que
perderam seus reis, suas casas, seus entes queridos.
Vocês, neste momento, são a única esperança de
um povo que já perdeu tudo. Pensem na mensagem
que irão passar, renunciando um trono que já sofreu
duas rejeições.”
Como é? Era este joguinho que o Tenente
queria jogar conosco? Porque era ridículo… não
era? Eu reconhecia diversos daqueles tritões,

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lembrava cada insulto e injúria que sofri ao passar


por eles. Aqueles idiotas não mereciam
esperança… não vinda de mim.
Papillon pôs a mão no meu ombro.
“Yun, não tomarei decisão alguma sozinho.”
Disse ele. “Se quiser ir embora, faremos isso ainda
hoje.”
“Não é justo.” Eu comecei a chorar sem nem
saber se era raiva, ou tristeza, ou medo. “Não é
justo! Nada disso é justo!! Papillon nunca quis isso,
e nem eu!!”
O desespero do Madhun e do Shane voltaram à
minha mente no pior momento possível.
Danem-se os tritões idiotas da ilha, o humano e
o garoto não mereciam nenhum sofrimento, e
mereciam ainda menos a dor que eu conheci tantos
anos atrás. Mas no estado de anarquia em que
Egarikena se encontrava, quem impediria um
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ataque devastador como aquele que exterminou


Zhang-Qi?
“Que seja.” Eu bati o pé no chão, louco de tanta
raiva, e encarei Fran com meu olhar inflamado. “O
que temos que fazer? Beijar um tridente ou coisa
assim?”
“Pensaremos em uma cerimônia apropriada
quando nosso povo tiver um teto para onde voltar.”
Tenente Fran deu um passo para o lado e estendeu
sua mão em direção ao trono de cristal.
“Digníssimo Papillon, por favor.”
Papillon me fitou com o canto do olhar,
temeroso e apreensivo, então deu um passo adiante.
Então, diante daquela centena de testemunhas,
Papillon sentou-se no trono e endireitou as costas,
já ensaiando uma postura de quem sabia o que
estava fazendo.
Eu me encolhi ao lado do trono, como se
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estivesse encurralado por um cardume de


lampreias.
Sem compartilhar do nosso nervosismo —
Aliás, aquele cara possuía qualquer tipo de
emoção? — Tenente Fran colocou-se diante de nós
e fechou o punho diante do peito.
“Digníssimo Papillon Makaira, segundo filho
dos finados reis Hian Makaira e Aurelian Makaira,
em nome de nossos antigos governantes eu lhe
coroo Rei Regente Papillon Makaira, governante
supremo de Egarikena e de todos os povos dos
mares quentes.”
Ai, meus nervos. O medo do Papillon ecoava
dentro de mim, me deixando à beira da histeria.
“E… e quanto a mim?” Gaguejei.
“Você, Yun, será rei enquanto durar o reinado
do Papillon. Pela tradição real você será rebatizado
como Yun Makaira, e governará com os mesmos
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direitos e deveres do seu predestinado.” Disse o


Tenente, sem um pingo da magnitude de antes. E
então ele ajoelhou-se como todos, em uma
profunda reverência a nós dois. “Rei Regente
Papillon Makaira e Rei Regente Yun Makaira, eu
lhes desejo o mais próspero dos reinados.”
Eu e Papillon não movemos um músculo,
apenas trocamos olhares e pensamentos, sem fazer
ideia de como agir ou o que dizer.
Que o chamado tivesse piedade das nossas
almas.

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Capítulo 35

Levi
Alguns dias antes

Montanhas, florestas, plantações que não eram


de milho! Para quem gastou a vida em Bobcat
Hollow, cada minuto de viagem era uma novidade
diferente. Até alguns animais apareciam de vez em
quando, como texugos e coelhos. E eu sempre
apontava pra cada coisinha como uma criança
louca.
Nenhum dos meus colegas conhecia o mar, o
que não significava que nunca tivessem viajado.
Benny e Elyse viajaram à França algumas vezes e
Clint sempre transitava pelos arredores de Bobcat
Hollow acompanhando as entregas do pai. Eu era o
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único caipirão que se impressionava com placas


luminosas e prédios, mas o meu fascínio vencia
fácil meu senso de ridículo.
O primeiro dia de viagem foi exatamente assim:
Eu apontando para tudo o que fosse remotamente
interessante, em parte porque montanhas eram
legais, e em parte porque queria impressionar
Rayner com as minhas descobertas. Em horas de
viagem ele havia falado muito pouco, e nem
respondeu se conhecia o mar ou não. Talvez a
paisagem o impressionasse tanto que ele emudecia
em admiração, mas isso não fazia sentido. Ele
surgira em Bobcat Hollow dias antes da nossa
aventura, de algum lugar ele precisava ter vindo.
Além de mim, Benny também tentava a sorte
com o Rayner, embora sua abordagem fosse um
tanto… diferente.
“Ei, Rayner, ei.” Benny cutucou Rayner, que se

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mantinha estático entre nós dois.


Rayner virou os olhos na direção dele.
Benny sorriu, super feliz por Rayner reconhecer
sua existência.
“Eu… ahm… sabia que eu sei amassar latas de
cerveja com um soco?” Perguntou Benny.
Rayner voltou a olhar pra frente.
É… a gente precisava de aulas sobre como
conversar com homens gostosos. O sol começava a
se pôr, as nuvens preenchiam o céu acobreado, e
nada de conseguirmos conhecê-lo melhor.
Na verdade a pior parte nem eram os constantes
gelos do Rayner. Eu prometi ao Benny que juntaria
os dois de alguma forma, mas não só estava
falhando miseravelmente, como também não
conseguia mais tentar. Benny às vezes me pedia
ajuda com os olhos e eu fingia não ver, porque cada

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cutucada dele no Rayner era um arrepio dentro de


mim.
Por que a ideia daqueles dois juntos me
incomodava tanto?
Nos bancos da frente a conversa parecia mais
animada. Elyse sempre foi a fadinha sociável do
grupo e conversava com Clint sobre mil coisas. Os
dois riam e se entretinham com as músicas do
rádio, embora Clint me espiasse pelo retrovisor o
tempo todo.
Em alguma das espiadas dele eu sorri de volta,
bem sem graça. Aquela estava sendo a viagem da
destruição da minha autoestima. Eu estava sendo
um péssimo amigo pro Benny e não conseguia
perdoar Clint tanto quanto eu gostaria. Nem mesmo
uma amizade nova eu conseguia fazer, porque…
me enraivecia imaginar eu e Rayner em uma
amizade.

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Mas poderia ser pior. O vento fresco do


crepúsculo batia em nossos rostos e os passarinhos
cantavam. Não havia como se aborrecer em um
passeio tão mágico.
E aí uma gota pingou no meu nariz, e mais
uma, então uma tempestade desabou em nossas
cabeças.
Uma simples chuvinha de primavera não
conseguiria estragar nossa viagem… certo?

****

Eu ofeguei pesado e abanei a camiseta,


tentando dissipar o calor. Suor formava na minha
testa e espasmos quentes deslizavam pela minha
espinha.
Não fazia nem dez minutos desde que o início

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da chuva. Clint naturalmente havia subido a capota


do carro e fechado as janelas para que ninguém se
molhasse, mas isso trouxe consigo um problema
bem inusitado.
O carro estava saturado no cheiro do Rayner.
A cada respiro, um novo calorão. Eu lutava
para manter o ritmo da respiração e esconder o meu
desconforto, mas nossa, o que estava acontecendo
comigo?
Era um cheiro distinto, meio salino e sem
nenhum perfume óbvio, mas que atiçava meu olfato
e todos os outros sentidos. Minha pele aflorou tanto
que era impossível ignorar sua coxa pressionada
contra a minha, nossos joelhos atritando a cada
solavanco do carro.
E para completar minha humilhação completa
eu precisei esconder o colo com a minha mochila,
porque eu parecia de ferro lá embaixo.
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De todos os momentos, por que ali, preso em


um carro com os meus amigos? Não era a primeira
vez que eu ficava duro, mas em outras ocasiões eu
podia me resolver sozinho, e também acontecia
sem motivo. Dessa vez era tão óbvio o motivo
daquela reação que eu nem conseguia me
convencer de que era coincidência.
Eu olhei pra fora através dos vidros embaçados,
tentando evitar contato visual com Rayner. Ainda
assim ele aparecia no reflexo, parecendo me
encarar com seus olhos intensos, a mesma
expressão que ele devia fazer me prensando de
quatro no chão, me beijando, arrancando a minha
virgindade.
D…droga, eu ia acabar sujando a roupa. Eu
precisava abrir a janela, ou me jogar do carro,
qualquer coisa. Benny ainda tentava puxar conversa
com Rayner, mas o cara nem o respondia mais,

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atento em mim como se soubesse.


Será que Rayner sentiria nojo se eu mostrasse?
Será que ofereceria ajuda? Eu olhei ao redor
avaliando a situação. Elyse quase adormecia, Clint
bocejava às vezes, meio exausto, mas Benny
continuava animadão, tentando a sorte com o
mesmo macho que ainda explodiria as minhas
bolas. E mesmo que todos estivessem dormindo,
nem pensar que eu me resolveria do lado de todo
mundo.
“Clint… podemos parar um pouco?” Pedi,
ofegante.
“A chuva já vai passar, sexy. Sua bexiga
aguenta uns minutinhos?” Perguntou ele.
Não era bem a minha bexiga que estava em
crise, mas eu concordei com a cabeça e espremi as
pernas, abraçado à minha mochila como se fosse o
último paraquedas de um avião em chamas.
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“E já estamos chegando, também. Espero que


não esteja tudo encharcado.” Elyse verificava o
GPS do celular.
“Já estamos chegando na praia?” Perguntou
Benny. “Porque eu estava falando pro Rayner que
eu bronzeio super rápido, até na chuva eu fico
douradão, é incrível.”
Elyse olhou pro Benny como se ele fosse
demente e achou melhor ignorar.
Clint saiu da rodovia e entrou por uma rua
menor. Uma placa sobre nós dizia Bem Vindos à
Reserva Florestal Michigan.
“Faltam vários dias para a competição de vocês,
então eu e a Elyse concordamos em fazer um leve
desvio.” Clint piscou pra mim pelo retrovisor. “O
que seria de uma aventura sem um acampamento
sob as estrelas?”
Acampamento? Só então lembrei das barracas e
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fogareiro no porta-malas. Óbvio que precisaríamos


acampar, Clint não era um robô capaz de dirigir
sem parar dia e noite, ainda mais com um braço
engessado, mas isso trazia diversos problemas.
“Eu não trouxe uma barraca.” Digo, exceto pela
barraca nas minhas calças.
“Não tem problema, sexy, já disse que eu
pensei em tudo.”
Aquele comentário do Clint me enervou um
pouco, mas dificilmente era o maior dos meus
dramas naquele momento.
O carro entrou pela floresta através de uma
trilha que não parecia ver muito uso. Os solavancos
pelo cascalho me jogavam pra cima do Rayner e
atritavam cada vez mais as nossas peles, me
deixando à beira de um incêndio. Era como sufocar
em um recinto fechado onde tudo era Rayner e seu
cheiro másculo e delicioso.
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Para a sorte de todos, a chuva logo parou e o


céu cor-de-rosa reapareceu.
Clint estacionou em uma área aberta da floresta
onde havia mesas de piquenique e cabines de
banheiro.
“Olha que sorte, o camping todinho pra gente.”
Elyse abriu sua janela e apreciou a paisagem.
Se o lugar era lindo ou não, eu não sabia. Tudo
o que consegui fazer foi abrir a porta e sair
correndo no instante em que o carro parou.
“Eu já volto, vou buscar água.” Gritei, o que
talvez fosse a desculpa mais falsa do mundo.
“Sem levar as garrafas?” Perguntou Elyse.
Eu ignorei ela e os outros e sumi entre as
árvores, tão quente que eu poderia causar um
incêndio florestal.

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****

Ufa, ninguém reparou. Provavelmente.


Dois minutos longe foram o suficiente para o
efeito diminuir. Eu talvez devesse bater umazinha
para relaxar mais rápido, mas não queria me sentir
um depravado. Rayner era bonito e misterioso mas
não merecia ser alvo das fantasias dos outros.
Eu escorei as costas num pinheiro gelado pela
água da chuva e aguardei meu corpo esfriar
sozinho. O ar fresco também ajudava, mas me fazia
tremer. Meu casaco havia ficado no carro, assim
como meu cachecol e luvas. A primavera no centro
americano era praticamente um inverno sem neve,
logo eu precisaria voltar.
Após um certo tempo eu olhei para as minhas
calças. Quase sem volume, ótimo. Eu dei um passo
para retornar ao camping e me surpreendi ao ouvir
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outro par de passos, estes se aproximando de mim.


Por favor, por favoooor, não seja o Clint.
Ah, menos pior. Rayner aproximou-se com o
mesmo uniforme rasgado de sempre, carregando
um tecido grosso por cima do ombro.
Ele parou diante de mim e me entregou o
tecido. Era o meu casaco, bem quentinho e de gola
felpuda.
Eu me encolhi contra o pinheiro, desconfiado.
Aquele cara tinha algum impedimento de voz, ou
só curtia mexer com a minha sanidade? Porque eu
me considerava bem normal antes de sonhar com
ele e ficar duro a troco de nada.
“Você não sente frio?” Perguntei, notando sua
pele exposta sob o uniforme fino. “Pode vestir, se
quiser. Tenho mais roupas dentro do carro.”
Rayner manteve o olhar nos meus. Eu

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começava a cansar de verdade de sua falta de


reação, mas ele enfim aceitou o casaco e o passou
por cima dos ombros. Mesmo sem vestir as
mangas, a minha roupa ficava comicamente
minúscula nele.
Na minha condição hormonal isso talvez fosse
um erro, mas eu fiquei na ponta dos pés e o ajudei,
fazendo um laço com as mangas em torno do seu
pescoço. Sei lá porque, mas vê-lo trajando minhas
roupas me fez sorrir como um tonto.
“Pronto, deve ficar menos frio, agora.” Eu
disse.
“Não faz sentido.” Ele deu um passo contra
mim, me encurralando entre ele e a árvore. “Seu
corpo reage a mim. Por quê?”
Quê?? Eu ri nervosamente, querendo me matar
de vergonha. Então ele havia percebido. E se
percebeu estava ali por um de dois motivos: Ou ele
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queria me socar com os punhos, ou com uma parte


bem diferente do corpo.
E claro que meu pau endureceu de novo com
esse pensamento.
“Rayner, eu…”
Rayner tocou o meu rosto, afagando o lado do
meu nariz com seu polegar firme. Seu olhar
permanecia nos meus, nas lentes azuis que
escondiam meu segredo mais embaraçoso.
Ai, eu queria me entregar. Por mais humilhante
que fosse admitir isso, cada célula do meu corpo
relaxava sob seu toque, querendo descobrir
prazeres que eu nunca senti com outro homem.
Mas era errado.
“Rayner, chega.” Eu pedi com a voz, porque
meu corpo recusava-se a afastá-lo. “Meu amigo
gosta de você, tá bom? Eu não devia ser tão direto

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sobre isso, mas vocês dois são lentos demais e eu


entrei no fogo cruzado por acidente.” Meus olhos
umedeceram, não sei se por excitação ou de raiva
de mim mesmo. “Eu não deveria me sentir assim,
então por favor, vou me sentir horrível traindo meu
melhor amigo desse jeito.”
Eu já nem esperava palavras do Rayner. Aliás,
se ele respondesse com o corpo eu nem ficaria
surpreso. Ele poderia rasgar minha calça, notar o
quanto eu estava duro e então me forçar nos meus
joelhos. Aí ele colocaria o pau pra fora, e ele estaria
super duro também. E ele me mandaria chupar e eu
nem pensaria duas vezes. Provavelmente era
salgado como seu cheiro, e também grosso e com
veias azuis que…
Rayner baforou uma risada e me soltou, me
libertando do meu transe pervertido.
“Seus problemas são todos imbecis assim?”

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Perguntou ele.
“Como é?” Eu pisquei rápido, surpreendido.
“Você valoriza mais a própria imagem do que o
próprio bem estar. Perdoa o que não deve e
promete o que não quer cumprir, apenas para
manter sua imagem de estudante popular.” Rayner
riu com nojo e indiferença. “É ridículo e patético.”
Como é? Quem aquele cara pensava que era,
pra me tratar daquele jeito? Eu abri a boca para
retrucar com meus piores insultos, mas não
consegui nada. Mesmo indignado, cada batida do
meu coração ainda era por aquele cretino.
“Se eu sou tão patético, por que me seguiu até
aqui? Poderia ter me abandonado para adoecer
nesse vento frio.” Algo molhou meu rosto. Que
merda, eu estava chorando. “Eu sou o melhor
cheerleader que Bobcat Hollow já conheceu, tá
bom? Não é porque você é um gostosão musculoso
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que pode me tratar como bem entende.”


“Um garoto tão fútil e pueril… Eu imaginava
uma missão mais difícil, mas é como caçar um
peixe que já está morto.” Ele sorriu com o canto da
boca e deslizou a mão pelo lado da minha cintura.
Missão? Peixe morto? Rayner quase nunca
falava, mas quando abria a boca era pra dizer
absurdos incompreensíveis.
Eu solucei, e dessa vez meu corpo não teve
objeções sobre empurrá-lo. Forcei seu peito com
tanta força que Rayner tropeçou para trás.
“E daí que eu quero ser incrível e popular? Eu
moro em um fim de mundo no meio da puta que o
pariu, como você deve ter percebido! Se eu não for
o melhor, o que me resta? Plantar milho como
todos os outros?”
“Não vejo o motivo da sua raiva.”

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“Claro que não, Rayner! Porque você não me


conhece, e eu também não te conheço!” Eu quase
gritava, chorando lágrimas quentes de frustração.
“Quer saber, eu me perguntava mesmo como
resistir e te deixar pro Benny, mas meu amigo não
merece um idiota que nem você. Fica longe da
gente.”
Eu dei as costas e segui de volta ao camping.
“É isto o que você quer? Continuar vivendo
uma vida falsa?” Perguntou Rayner.
“Minha vida não é falsa!” Eu gritei.
“É isso o que você repete a si mesmo, quando
coloca suas lentes de contato?”
Eu grunhi de ódio. Aquele cretino arrogante!
Que direito ele pensava ter para me esculachar? Ele
iria pagar caro, nem pensar que Clint deixaria
barato quando percebesse as lágrimas nos meus
olhos.
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Quando avistei o carro e meus amigos, porém,


eu parei e respirei fundo, acalmando a dor no meu
peito. Eu não sabia qual era a do Rayner, mas o
problema dele era comigo. Se eu mandasse o Clint
bater nele, eu apenas provaria o quanto ele estava
certo. Sem contar que o Clint estava com o braço
quebrado e, mesmo que não estivesse, Rayner
provavelmente o quebraria ao meio. Seria uma
péssima ideia.
O idiota do Rayner não apareceu atrás de mim,
então após me acalmar eu me reuni com o pessoal,
forçando o meu melhor e mais cativante sorriso.
Eles estavam martelando pinos no chão e
estendendo lonas e cordas no gramado.
“Olha quem voltou. Pegou bastante água,
Levi?” Elyse segurou o riso, cheia te travessura no
olhar.
Eu a ignorei, agradecendo por dentro que Clint

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e Benny não estivessem ouvido. Eu só queria


esquecer Rayner o quanto antes.
Montar barracas parecia bem complicado, então
fui até o Clint para ajudá-lo. Se ele percebeu meu
sumiço com o Rayner ele disfarçou, porque sorria
tranquilo e com leve safadeza, como era o seu
normal comigo.
“Gostou da escolha de acampamento, sexy?”
Ele me alcançou a ponta da corda.
“Ahm… sim.” Eu lacei a ponta nos ganchos
fincados ao chão. “Mas é estranho que o lugar se
chame Reserva Michigan, quando não estamos em
Michigan.”
“Como não?” Clint riu alto. “Eu sei que o céu
está escuro, mas olhe ali adiante.”
Eu ergui o olhar para onde Clint apontava e não
consegui ver nada. Então Clint levantou e acendeu
os faróis do carro. No mesmo instante o meu
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queixo caiu em surpresa.


Água. Muita, muita água cintilando sob o brilho
dos faróis, calma e infinita até onde a vista
alcançava.
“Este é o mar?” Perguntei.
“Claro que não, sexy, ainda temos um longo
caminho ao litoral.” Clint sentou ao meu lado para
descansar e admirar a beleza daquela água infinita.
“Este é o Lago Michigan, o segundo maior lago dos
Estados Unidos e do mundo. Bem impressionante,
não é?”
Eu concordei com a cabeça, mesmerizado. Era
mais do que impressionante, nunca em minha vida
eu avistei algo tão inacreditável.
“Ei, Levi, venha ajudar o Benny com os
hambúrgueres.” Chamou a Elyse.
“Já vou.” Falei, com um sorriso fascinado em

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meu rosto.
Rayner podia ser um completo idiota, mas eu
não permitiria que ele arruinasse nossa aventura.
Ainda havia muito a ser explorado e descoberto, e
com cenários tão incríveis como eu poderia me
aborrecer?

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Capítulo 36

Eu deveria ter planejado esta viagem melhor ou


pelo menos pensado sobre onde dormir, porque
naquele momento eu e meus amigos admirávamos
o resultado dos nossos esforços: Duas lindas
barracas… para cinco pessoas.
Pelas expressões pensativas nos outros, eu não
era o único me perguntando como aquilo
funcionaria. Rayner havia desaparecido desde que
me esculhambou na floresta, mas mesmo sem ele
havia um óbvio problema de logística.
Nem fiquei surpreso quando Clint contornou o
braço engessado pelos meus ombros e deu uma
risadinha macia.

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“Falou, gente, mas o motorista do grupo tá


cansadão. Os dois irmãos podem ficar com sua
barraca, não me importo de dividir a minha com
nosso talentoso top.”
Ai, eu sabia. Até que demorou demais.
Os faróis do carro eram a única iluminação
naquele horário, e não foram o suficiente para
Benny notar o nervosismo no meu rosto.
“Hum… mas e o Rayner? A gente devia
procurar por ele, sabe… e olhem o meu tamanho,
não caberiam três pessoas na nossa barraca. A
Elyse vai ter que dormir com vocês.” Benny tentou
esconder a safadeza em seu sorriso, mas não
conseguiu.
“Não é decente para uma dama dormir com
dois homens, Benny.” Disse Elyse.
“Mas Elyse, eles são gays.” Resmungou Benny.

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Elyse não quis ouvir mais nada, apenas jogou


sua mochila pela fresta da barraca e com isso
declarou seu território.
Ai, e agora? Benny tinha razão, Rayner nunca
caberia com o Benny e a Elyse, e se dormisse
conosco não sei se eu conseguiria fechar os olhos
durante a noite. Não apenas por raiva do Rayner,
mas pelo que Clint poderia fazer comigo,
independente da presença de outro cara.
Que raiva, as provocações do Clint costumavam
me irritar um pouco, mas nunca a ponto de eu
querer evitá-lo. No começo eu até curtia os avanços
dele da forma como curtia os olhares dos outros
caras em mim. Eu era desejável e sabia disso, então
porque não? Gostar de atrair pela minha aparência
não significava que eu era fútil!
Além do mais, Clint era o meu mentor, eu
nunca chegaria ao topo do cheerleading sem a

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ajuda e o apoio dele, e ele era um amigo para todas


as horas quando não queria me dobrar de quatro.
As cantadas pioraram nos últimos dias a ponto dele
exagerar um pouco, mas era um simples mal
entendido que eu poderia resolver quando eu
quisesse. Por enquanto, interessar o cara mais
cobiçado de Bobcat Hollow era uma boa massagem
no meu ego.
Eu esfreguei minha testa quando notei meus
pensamentos. Eu não era fútil, e nem estúpido, e
tinha problemas de verdade. Foda-se que Rayner
não percebesse isso.
A discussão seguiu intensa entre Clint e Benny.
Sei lá como, mas Elyse ainda não havia percebido
as intenções do irmão dela com o Rayner, ou talvez
tivesse percebido e queria ver o mundo queimar.
De qualquer forma, a discussão sobre as barracas
ameaçava se tornar uma briga.

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“Ahm… que tal assim…” Falei, atordoado.


“Benny e Elyse naquela, Rayner e Clint nessa, e eu
durmo no carro.”
Clint torceu a boca pra mim como se eu fosse o
traidor dos traidores e Benny também não parecia
nada satisfeito. Por que não podia haver uma
solução simples?? Não me parecia sensato que um
cara magrinho e virgem como eu dividisse barraca
com dois homenzões musculosos e excessivamente
bonitos e viris.
Antes que a briga continuasse, porém, Rayner
surgiu do matagal arrastando alguma coisa mole e
muito comprida. Era… metade de uma cobra.
Elyse e Benny morriam de medo de cobras, mas
o choque foi tão grande que todos nós paralisamos,
seguindo Rayner com o olhar enquanto ele
casualmente atravessava o camping. A cobra devia
ser ainda mais longa quando estava inteira, e eu não

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queria imaginar o que aconteceu com a metade


onde a cabeça deveria estar.
Para completar o circo, Rayner simplesmente
entrou na barraca do Clint e sentou lá dentro, sobre
o colchonete dele.
Se havia uma maneira de transformar um
humano em um dragão, Rayner havia a descoberto,
porque só faltava o Clint cuspir fogo.
“Ah, não! Nem pensar! Pode ir saindo daí, seu
esquisitão louco!” Clint se ajoelhou para dentro da
barraca e tentou puxar Rayner pela perna, gemendo
pelo excesso de esforço físico.
Rayner, claro, agia como se estivesse sozinho
em lindos campos floridos, durante uma agradável
manhã de sol. Clint era menos que uma mosquinha
para ele, que rasgou da cobra com os dentes até
sujar o teto da barraca com esguichos de sangue.
“Ahm… e aí… alguém ainda quer dormir com
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o Rayner?” Perguntou Elyse, embasbacada.


Benny levantou a mão até metade do caminho,
então Rayner engoliu o pedaço de cobra crua e ele
abaixou a mão de novo.
Clint transcendeu os limites da própria fúria.
“Seu grandalhão demente! Não podia comer
hambúrguer, que nem todo mundo?” Gritou Clint
por entre os dentes, ainda puxando sua perna com o
braço saudável. “Sai da minha barraca e me deixa
dormir com o meu amigo, seu idiota sem noção
de…”
Rayner deixou sua refeição de lado e enfim
olhou Clint nos olhos. Sua expressão gelou os meus
ossos.
Clint também recuou com o susto, mas já era
tarde. Rayner deixou a barraca com os gestos
brutos de quem mataria alguém naquela noite. Não
tivemos nem tempo de reagir antes que Rayner
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agarrasse Clint pela gola da camisa.


Tudo de horrível poderia acontecer, mas Rayner
apenas empurrou Clint para trás… e então agarrou
o meu braço. Seus dedos fortes espremeram meu
bíceps.
Oi? Quê?
“Meu.” Disse Rayner, o que talvez fossem suas
primeiras palavras com alguém que não era eu.
“Saiam.”
Então Rayner me puxou e me derrubou no chão
da barraca, como se exigir seu parceiro de cama
fosse a coisa mais normal do mundo.
Clint não conseguia recuperar a pose e eu não o
culpava por isso. Algo no olhar do Rayner faria
correr até os adultos mais valentes.
“Não vou deixar meu amigo dormir com um
depravado!” Gritou Clint, o que era um tanto

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irônico.
Pelo olhar do Benny e da Elyse eles também
beiravam o pânico, mas àquela altura da noite eu só
queria paz e descanso, mesmo que fosse na
companhia do maior imbecil do mundo.
“Deixa, pessoal. É só por uma noite” Eu abri
um sorriso exagerado, tremendo por dentro.
“Quanto mais cedo a gente dormir, mais cedo
acordamos para curtir o camping.”
“Levi, você tem certeza?” Perguntou Elyse.
“Certeza absoluta.” Eu fiz sinal de ok com os
dedos. “Sou o capitão ou não sou? Eu dou conta de
qualquer desafio.”
Elyse e Benny pareciam confusos e
contrariados, mas por fim desistiram e foram para a
barraca ao lado.
“Espera aí, e onde eu vou dormir?” Clint cruzou

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os braços diante do Rayner, que protegia a entrada


da barraca como um urso defendia sua toca.
Rayner rugiu pra ele com uma voz que não
parecia humana. Ele recuou um passo para selar
com seu corpo a entrada da barraca, mantendo a
bunda tão perto de mim que eu poderia apertá-la, se
eu fosse insano.
Não sei que expressão Clint viu em seu rosto,
mas ele arregalou os olhos e empalideceu como
papel, recuando pelo descampado escuro.
“O carro. Vou dormir no carro. Vai ser uma
delícia, realmente, ar-condicionado quentinho e
músicas. Quem precisa de barraca?” Gaguejou
Clint.
Clint recuou mais alguns passos antes de dar
meia-volta e correr de volta ao Audi. Ele se trancou
lá dentro e logo depois Rayner virou-se para mim.
Eu mudei rápido o foco do meu olhar,
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observando um cantinho da parede.


Sozinho com o idiota do Rayner… aquele
grosseirão bruto e estranho que pensava pouco de
mim… e ainda assim meu coração acelerava
enquanto ele subia o zíper da porta.
Logo nós dois estávamos enclausurados
naquele espaço apertado, tão quente quanto estava
frio lá fora.
Eu comecei a suar, não sei se pelo calorão ou
pelo fato de que havia uma cobra morta e
mastigada entre os dois colchonetes.
Oh, espera, com certeza era porque Rayner
começou a se despir. O desgraçado retirou meu
casaco de cima de seus ombros e subiu os trapos de
sua camisa, tirando-a por cima da cabeça.
Eu me considerava um cara bem esportivo,
frequentei vestiários masculinos boa parte da minha
vida, mas pelo amor de Deus, nunca vi um
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abdômen tão sólido e bem definido, ou um peitoral


tão rígido, com mamilos cor-de-rosa pequenos
como botões. Tudo isso em um cara louco e
coberto de lama e sangue de cobra.
Meu pau nunca esteve tão confuso sobre como
reagir.
“E então… você pretende me pedir desculpas?”
Perguntei, encolhido no cantinho do meu
colchonete.
“Pelo quê?”
Por ser um imbecil maldoso que me insultou,
rugiu para o meu amigo e comeu uma cobra no
mesmo lugar onde eu pretendia dormir, talvez?
“Por ter me julgado mal.” Escolhi responder.
“Não errei no julgamento de seu caráter,
Leviathan, mas não o culpo. Certamente haveria
conserto para suas atitudes, se esta fosse uma

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possibilidade.”
Eu não interpretei metade do que Rayner disse
porque enquanto ele falava, ele também descia a
bermuda do uniforme. E por baixo ele não vestia
nenhuma cueca.
Até mesmo eu tirei meu casaco, apenas porque
derreteria de tanto calor. Eu precisava me abanar.
Será que Benny ainda ligaria se rolasse alguma
coisa entre eu e Rayner? E se Rayner arrancasse
minhas roupas e me prensasse no chão, será que
poderia ser considerado estupro? Porque eu não
queria, e ao mesmo tempo eu não não queria.
Eu mantive meu olhar no cantinho da barraca,
mas a minha visão periférica me traía o tempo todo.
Se eu visse o meio das pernas do Rayner não sei
como a minha mente reagiria. O meu corpo não
compartilhava da indecisão da minha mente,
porque eu já estava duro como os pinos da barraca.

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Me sentir assim por um cara tão sujo, grosso e


hostil… meu ego definitivamente não precisava
disso. E ainda havia a questão da cobra, que vertia
sangue vívido no chão de lona entre nós dois e
começava a juntar formigas.
“Então você é o lince gigante.” Falei.
Rayner deitou no colchonete oposto, cobrindo
as partes íntimas com o casaco que eu emprestei.
Ah, eu nunca mais lavaria aquela roupa.
Espera, pensamento errado de novo.
Apoiando a cabeça sob as mãos, Rayner
suspirou confortável e me fitou com o canto do
olhar, intrigado.
“Lince?” Perguntou ele.
“Sim, aqueles gatos selvagens. A polícia
pensava que eram ataques de lince, mas era apenas
você se alimentando, certo?”

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“Não sou um lince.”


“E você agrediu a Magda.”
“Quem é Magda?”
“Aquela garota que você quase matou? Um dia
após eu contar que ela pegou meu lugar nas
eliminatórias?”
“Não sei do que está falando.” Ele bocejou,
desinteressado e com o olhar no teto.
Eu suspirei, querendo me sentir enojado por
aquele bicho morto, ou pela sujeira no corpo do
Rayner, ou por seu cabelo duro de quem não
tomava banho há semanas, mas seu cheiro causava
arrepios gostosos em todo o meu ser e era
impossível não reparar em sua beleza. Poucos
pelos, apenas os fios escuros que espiei abaixo do
umbigo, e músculos das coxas tão fortes que eu
precisava perguntar sua rotina de academia.

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Se nem sangue de cobra estragava a beleza


daquele cara, eu podia desistir de evitar meus
sentimentos.
Vermelho como um tomate, eu analisei o
Rayner com mais detalhes, tentando manter o olhar
nos seus olhos e não na pilha de músculos sólidos
que ele era do pescoço para baixo.
“Escuta, Rayner… ahm… você… você já
transou alguma vez?”
Ai, já comecei pagando mico, eu sentia isso.
Óbvio que a resposta seria um sim, e Rayner ainda
devolveria a pergunta e se mataria de rir ao saber
da minha virgindade. Ele já pensava tão mal de
mim, agora além de fútil eu também seria o virjão
ridículo.
“Pergunta se já acasalei? Óbvio que não, tenho
dezesseis anos como você.” Ele arqueou a
sobrancelha. “Não me diga que já se corrompeu?”
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A resposta me surpreendeu tanto que eu


comecei a rir. Aquilo meio que destruía a pior
cantada da história das cantadas, mas havia um
estranho conforto em saber que Rayner era tão
inexperiente quanto eu.
“Eu também nunca fiz.” Falei, morto de
vergonha. “Mas sei lá… tanta gente faz, né?
Então… se tiver curiosidade…”
Rayner riu alto. Era a primeira vez que eu o
ouvia rindo, e era uma risada de puro desprezo e
sarcasmo.
“Sua cultura é tão promíscua quanto dizem os
livros. Por que raios eu macularia o meu corpo com
você?”
Meu coração despencou ao estômago. Eu lutei
contra as lágrimas, mas novamente chorei diante
dele.
“Quer saber, fica com essa barraca imunda e
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fedendo a bicho morto.” Eu me levantei e abri o


zíper da porta, deixando entrar o vento gelado.
“Deve ter espaço dentro do carro.”
“Você ficará onde eu possa te ver.” Vociferou
ele. “Volte aqui agora mesmo.”
Óbvio que eu não obedeci. Clint já havia
desligado os faróis do carro, mas não podia ser
difícil encontrá-lo então eu corri para os campos
abertos, incapaz de ver qualquer coisa na escuridão
da noite.

****

Som de corujas e cigarras, um céu cada vez


mais nublado e o vento que me fazia perguntar por
que raios tirei meu casaco. Vapor branco deixava
meus lábios a cada resfôlego, mas nem pensar que

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eu voltaria. Pelo que eu me lembrava, Clint


estacionara próximo ao lago, então eu precisava
apenas seguir o som das ondas e o encontraria.
Após dez minutos andando, não havia nem
sinal do carro. Se eu fosse menos cabeça dura
poderia usar a lanterna do celular, mas claro que
deixei o celular em casa para não ser localizado.
Retornar à barraca começava a me parecer uma
ideia razoável, mas como eu a encontraria?
Talvez eu devesse gritar. Se Clint ouvisse ele
ligaria os faróis e eu estaria salvo. Mas eu não
queria matar meus amigos do coração e também
sentia que não seria ouvido daquela distância. Eu
não deveria ter andado tanto.
O som da água soava cada vez mais alto e eu
derrapava com frequência no barro úmido da
margem, mas o lago era minha única referência no
escuro, se eu me afastasse estaria perdido de vez.

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Infelizmente, minha estratégia não era tão


inteligente assim. Em certo momento eu tropecei
nas pedras limosas e escorreguei de novo, incapaz
de recuperar o equilíbrio. Meu corpo inclinou para
trás e eu gritei com o susto, caindo para dentro da
água.
Então alguém agarrou o peito da minha camisa,
impedindo a minha queda.
“Você é completamente idiota?” Rayner gritou
na minha cara. “Olha essas suas roupas! Poderia ter
se machucado severamente!”
Eu ainda chorava um pouco, completamente
exausto pelos xingões, e gritos, e principalmente
por demonstrar ao Rayner o quanto ele estava certo
sobre mim.
“Quer saber, Rayner, eu sou fútil sim, tá bom?”
Eu me livrei das mãos dele assim que pisei no
conforto da terra seca. “Eu gosto de ser admirado e
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desejado mesmo que não tenha o menor interesse


em retribuir, e faço escolhas estúpidas para parecer
legal para os outros, e preciso me cercar de amigos
para me sentir confiante, mas sabe o que mais? Eu
sou a porra de um adolescente, caralho! Se eu
quero me preocupar com fofocas e festas isso é
problema meu! Que preocupações você espera de
um estudante de ensino médio? O eventual
genocídio de povos distantes?”
Eu falei tão ávido e enraivecido que perdi todo
o ar dos meus pulmões.
Mesmo na escuridão completa, os olhos verdes
do Rayner fuzilavam os meus, tão sóbrios e
desinteressados quanto sempre.
“Palavras não definem o tamanho da sua
estupidez.” Bufou ele, impaciente. “Tire as suas
calças.”
A primeira resposta não me surpreendeu. A
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segunda explodiu meu cérebro como fogos de


artifício.
“Acho que entendi errado.” Falei.
“Tire essas calças agora. Não me faça esperar.”
Opa, opa, que história era aquela? Pensando
bem, não havia tempo do Rayner se vestir antes de
me encontrar. Ele ainda estava pelado, não estava?
E me mandando fazer o mesmo, no escuro do
quinto dos infernos onde ninguém poderia ouvir
meus gritos.
E o meu pênis traidor adorou perceber isso.
Nunca enrijeci de zero a cem tantas vezes em
um único dia, mas danem-se os meus hormônios,
meu emocional já havia sofrido o suficiente.
“Pensa que vou liberar depois do que me
disse?” Ah, eu ia. Era só pedir de novo. “Implore
agora pelo meu perdão.”

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“Tire as calças, ou eu mesmo arrancarei de


você.” Disse ele.
Nossa, com essa voz bruta era difícil discordar,
né? Mas eu estava sendo obrigado. É,
definitivamente não havia nada de consensual
naquilo. Eu não era um pervertido prestes a dar a
virgindade a um psicopata devorador de animais
selvagens. Não, não, era apenas um óbvio abuso
que eu mal podia esperar para sofrer.
Quando foi que eu fiquei tão ferrado da cabeça?
Tremendo de ansiedade, eu desabotoei meu
jeans e o forcei para baixo, expondo pouco a pouco
as minhas pernas magras ao frio da noite. O tecido
não havia chegado nos joelhos quando Rayner
agarrou os lados do meu quadril e pinçou o elástico
da minha cueca.
“Quantas camadas de roupa você usa? Tire isso
também.”
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“Espera, até a minha cueca? Não vai nem rolar


uns amassos antes? Alguns beijinhos? Porque eu
preciso confessar, também nunca beijei ninguém.
Na verdade é a primeira vez que um homem me
agarra assim, digo, me agarram muito nos treinos
de cheerleading, mas é a primeira vez que me
agarram com essas intenções.”
“Tenho certeza que sim.” Rayner bufou uma
risada e ajoelhou no chão, deslizando consigo as
minhas calças e cuecas até que enroscassem nos
meus tornozelos.
Eu gritei como uma donzela em perigo.
Qual era o jogo daquele cara, me fazer odiá-lo e
desejá-lo vez após vez, tipo uma montanha-russa
sádica? Porque aquilo não era divertido.
Ahm, pensando melhor, o cara mais gostoso do
universo estava ajoelhado bem diante da minha
virilha exposta, certamente com os lábios a
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centímetros da minha vara. Eu nunca implorei tanto


por um pouquinho de luz, uma estrelinha que fosse,
apenas para que eu gravasse na memória a cena
diante de mim.
Receber um boquete antes do primeiro beijo era
uma ordem de eventos meio incomum, mas eu
aceitaria meu destino.
“Faz com carinho, tá bom? É a minha primeira
vez.” Eu disse.
“Não existe um jeito carinhoso de fazer isso.”
Ele descalçou meus tênis e puxou as meias, o que
me parecia um certo exagero.
Ai, onde eu estava me metendo? Eu nunca me
interessei em transar até conhecer o Rayner, mas
esperava uma primeira vez normal. Aquele cara
exalava masculinidade bruta só que eu era um
garoto de família, se ele conseguisse me machucar
com a boca, nem pensar que eu liberaria minha
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parte de trás.
Ok, talvez eu liberasse minha parte de trás
mesmo assim, mas ele teria que pelo menos me
beijar primeiro.
Mesmo na escuridão absoluta, Rayner
conseguiu me despir por completo da cintura para
baixo. Eu congelava e fervia ao mesmo tempo, tão
nervoso quanto jamais me senti.
“O que tenho que fazer, agora?” Perguntei,
ofegante.
“Agora você cai.” Disse ele.
“Quê?”
Então Rayner me empurrou para trás e eu
desabei na água gelada do lago.

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Capítulo 37

Eu desabei como uma pedra e a água do lago


envolveu meu corpo. O susto e a adrenalina me
paralisaram enquanto a confusão tomava conta dos
meus pensamentos.
A primeira coisa que notei era que eu não havia
congelado imediatamente. De fato, estava bem
mais quente dentro da água do que fora. A segunda
coisa que notei era que eu não conseguia mover as
pernas.
Eu continuei afundando e afundando até a lama
do fundo envolver minhas costas. A profundidade
era enorme para uma parte tão rente à margem.
Eu agitei os braços tentando voltar a superfície,

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mas era inútil. Eu não fazia ideia de como nadar,


minhas pernas não obedeciam e meu oxigênio
esgotava rapidamente.
Quando abri os olhos, veio outra surpresa: Eu
conseguia ver claramente, como se fosse um dia de
sol. Haviam peixes gordos nadando muito adiante,
e também algas e detritos flutuando no meu
entorno. Também havia uma coisa comprida e
brilhante, que parecia a escultura dourada de um
peixe.
Espera, isso não fazia sentido. A falta de
oxigênio estava afetando o meu cérebro.
Ainda debatendo os braços como um idiota,
tentando alcançar a superfície logo acima, eu olhei
para baixo novamente.
Aquilo não era uma estátua. Aquilo era…
Aaaaaah, tinha um peixe me devorando!!

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Completamente surtado, eu me agarrei nas


raízes da margem e escalei a toda velocidade,
rebolando na tentativa de me livrar daquela coisa.
Em segundos eu alcancei a borda e engasguei
desesperado, enfim respirando novamente.
O lado de fora continuava escuro como antes
mas eu podia notar a silhueta do Rayner, que
sentou à beira d’água para me assistir morrer.
“Me ajuda, Rayner!! Tem um peixe comendo as
minhas pernas!!” Eu olhei para trás e tentei agitar
os pés, então a enorme barbatana dourada começou
a se mexer. “Aaaah, ele vai me comer inteiro!!!”
“Inacreditável.” Disse Rayner, totalmente
fascinado com aquele peixe monstrão. “É como me
foi descrito, mas vendo pessoalmente… e é mesmo
da cor dos seus olhos.”
Meus olhos? Ah, não! Minhas lentes sumiram
na água. Espera, tudo bem, eu havia trazido várias
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lentes reserva na minha mochila, eu só precisava


não ser comido por um peixe gigante.
Rayner não parecia querer me ajudar, então
comece a chorar desesperado.
Que morte horrível. Devorado vivo e pelado
por um peixe, com meus olhos horríveis expostos
ao mundo enquanto um psicopata idiota ria de mim.
Se eu sobrevivesse eu nunca mais esperaria um
boquete de ninguém. Viveria uma vida de celibato
e entraria para a igreja. Eu só precisava das minhas
pernas de volta.
Rayner enfim segurou meu ombro. Na verdade
ele colocou o pé em cima dele. E então me
empurrou para baixo de novo.
Nunca confie em caras hostis e sombrios que
devoram cobras vivas. Não parecia uma lição que
eu deveria estar aprendendo naquele momento da
vida, mas ali estava eu, pagando com a vida pela
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minha própria estupidez.


Novamente imerso na água sem temperatura eu
debati os braços no ar, gritando e perdendo o pouco
ar dos meus pulmões.
Impressão minha ou eu consegui ouvir meu
próprio grito embaixo da água? Isso era normal?
“Rayner, eu vou morrer!” Gritei, e minha voz
saiu perfeita, embora não parecesse sair da minha
boca.
Quando a vida deixava meu corpo frágil,
Rayner me puxou para cima.
“Qual é o seu problema?” Rosnou ele. “Use as
suas guelras!”
Ele deslizou a mão por trás das minhas orelhas,
e uma sensação incomum me fez repetir o gesto do
outro lado. Havia uma textura esquisita, como o
lado de fatiar de um ralador de queijo. Aquilo não

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costumava existir, será que me cortei no leito


marinho?
“O que é isso?” Perguntei, atordoado e ainda
recuperando o ar.
“Não ajudarei novamente. Aprenda a respirar
ou morra.”
Então ele empurrou minha cabeça para dentro
com as duas mãos, segurando firme nos meus
cabelos e impossibilitando qualquer chance de
fuga.
Eu gritei e supliquei sob a água, implorando por
misericórdia. Guelras eram as coisas atrás das
minhas orelhas? Não fazia sentido. Eu não era um
peixe, a menos que…
Mais uma vez eu olhei para baixo. O peixe
dourado não tinha olhos ou boca. Ele estava
grudado em mim, brotando abaixo da minha
cintura.
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Droga, não recuperei o ar por tempo o


suficiente. Eu podia surtar sobre aquela… ahm…
cauda… depois de surtar sobre as minhas supostas
guelras.
Contrariando todos os meus instintos de
sobrevivência, eu tampei o nariz e a boca e forcei
minha respiração. Uma correnteza gelada inundou
as laterais do meu pescoço, e com ela trouxe um
sopro de vida.
Eu respirei rápido e ofegante, logo tomando
fôlego mesmo sob a água. Eu conseguia respirar!
Quando notei isso eu comecei a rir como um idiota
e a minha risada também ecoou sob a água, como
se saísse direto de dentro da minha mente.
Nossa, quando eu me recuperasse daquele
ataque de risos eu iria enlouquecer como um porco
em dia de abate.
Visão sob a água, resistência ao frio e agora
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guelras. Não era um grande salto de lógica entender


o que era aquilo nas minhas pernas. Ou, melhor
dizendo, o que as minhas pernas haviam se tornado.
Apenas como teste, eu movi os dedos do pé
esquerdo. A barbatana dourada inclinou a pontinha
esquerda. Então balancei meus joelhos — O que
era bem fácil, se eu me lembrasse de movê-los ao
mesmo tempo — como resultado a cauda dourada
abanou com força e me propulsionou até que eu
batesse as costas nas raízes da borda.
Rayner me puxou pelos cabelos de volta à
superfície.
“Olha só quem sobreviveu.” Disse ele.
“Eu sou um tritão.” Falei, totalmente alucinado.
“Eu tenho uma cauda, e eu virei um peixe, e... ah,
meu Deus. Olha isso.”
Eu dobrei os joelhos e mais uma vez não
consegui medir a força. Minha cauda abanou
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vigorosa para cima, fazendo chover uma cachoeira


sobre nós dois.
Rayner deu um resmungo irritado e finalmente
largou meu cabelo.
“Seu pirralho estúpido.” Resmungou ele,
esfregando a água do rosto.
Eu nem liguei para as agressões do Rayner,
porque aos poucos o meu horror se acalmava e em
seu lugar vinham perguntas, respostas, curiosidades
e dúvidas.
Por isso eu não podia entrar na água? Por que
eu mudaria de forma? Eu não sabia nem o que
pensar primeiro. Por que eu era um tritão? Será que
nasci assim, ou era vítima de algum experimento
científico? Por que meus pais escolheram esconder
isso? Digo, óbvio que eu precisaria manter segredo
dos meus colegas, mas eu provavelmente aceitaria
numa boa, era mais fácil do que acreditar que eu
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era alérgico a piscinas. E se eu era um tritão desde


o nascimento, será que meus pais eram tritões
também? Ou apenas o meu pai biológico?
Uma dor de cabeça pinçou meu cérebro. Por
onde começar? O que fazer?
“Como vou competir sem pernas?” Foi a
pergunta que escapou dos meus lábios, embora eu
mesmo admitisse que era uma das mais bobas.
“Você mudará de forma quando sair da água.
Tritões podem assumir a forma aquática quando
desejarem, mas a forma terrestre necessita de chão
seco.”
Então eu sempre pude me tornar um tritão?
Bem, seria difícil tentar mudar de forma sem
imaginar que era realmente possível.
Quando percebi, eu estava racionalizando
aquela revelação com calma demais. Talvez fosse o
choque, mas descobrir minha verdadeira espécie
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era um alívio. Enfim, muitas coisas faziam sentido.


E muitas coisas que faziam sentido antes deixaram
de fazer.
Então eu me transformava em um meio-peixe
sob a água e ganhava uma longa cauda de escamas
douradas, brilhantes como ouro, além de diversas
outras pequenas vantagens. Considerando o quanto
meus pais protegeram este segredo, até que era uma
revelação bem legal.
Minha barbatana movia-se ao menor esforço,
inclusive usando músculos que eu não sabia ter. Era
instintivo e ao mesmo tempo não era, porque no
esforço de me manter com a cabeça emersa eu
comecei a nadar em círculos e balançar o tronco
para a frente e para trás, como um peixe se
debatendo fora da água, só que dentro dela.
“O que mais eu posso fazer?” Perguntei
empolgado, enquanto treinava o abano da minha

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barbatana. “Posso falar com peixes? Disparar raios


de gelo com os olhos?”
“Cada coisa no seu tempo. Você nada como um
imbecil.”
“Então porque não entra para me ajudar, senhor
eu-sou-melhor-que-todo-mundo? Você entende
tanto de tritões, vou apostar que é um também.”
“Não tenho a menor intenção de te ajudar.”
“Ah, é? Porque para alguém que diz isso, você
foi bem prestativo revelando meu verdadeiro eu.”
Eu sorri com implicância, começando a acostumar
meus olhos na escuridão, agora que a lua aparecia
novamente.
Quando eu enfim consegui ver o rosto
aborrecido do Rayner, ele parecia ter duas íris no
olho esquerdo.
“Acho que sua lente saiu do lugar.” Eu me

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inclinei na margem, tentando muito não olhar para


o conteúdo entre suas pernas.
Rayner levantou rápido, cobrindo o olho em
profundo choque. Será que foi o banho que lhe dei
mais cedo? Minhas lentes também escorregavam às
vezes, quando eu lavava meu rosto.
“Espera, me ajuda a sair!” Eu agarrei a grama e
tentei me puxar, mas subir sem o auxílio das pernas
era mais complicado do que parecia.
“Você vai ficar aí.” Ele pegou minhas calças e
jogou por cima do ombro. “Vou levar isso, então
não tente deixar a água ou vai acabar congelando.”
“Mas por quê? Não posso ficar sozinho, eu nem
sei mexer essa coisa!” Eu abanei minha cauda de
novo e a barbatana golpeou atrás da minha cabeça.
“Por isso mesmo.” Rosnou ele, em seu tom
mais cheio de desprezo. “Venho te buscar antes do
sol nascer. Não se aproxime das áreas pantanosas,
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tem armadilhas de pesca, sanguessugas e todo tipo


de peixe carnívoro.”
Meus olhos aqueceram. Aquela dificilmente era
a parte mais frustrante da minha noite, mas foi a
que me fez quebrar.
“Não me deixa sozinho.” Eu solucei. “Eu sei
que pareço ridículo e burro pra você, mas tá escuro,
e eu não tenho pernas, e meu pênis sumiu, e meus
pais mentiram pra mim, e…”
Eu comecei a chorar de verdade. O que eu
menos queria era parecer ainda mais medíocre para
aquele idiota, mas eu não conseguia evitar, era
informação demais.
Rayner bufou com impaciência.
“Volto daqui uma hora, tá bom?” Rosnou ele.
“Até lá, tente caçar um peixe. Se conseguir eu lhe
ensino algumas coisas.”

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Uma hora sozinho era tempo demais, mas


acabei concordando com um gemido choroso.
Os passos do Rayner desapareceram adiante e
logo me vi completamente sozinho na escuridão
noturna, perdido e desamparado.
Quando entrei para a equipe de cheerleading,
logo me empolguei demais e passei a treinar e
treinar por horas, querendo aprimorar todos os
movimentos e ser melhor que qualquer veterano.
Não demorou até eu torcer um tendão e precisar de
semanas em repouso. Foi uma das poucas vezes
que Clint me repreendeu. Ele então ensinou a
visualizar meus objetivos como se fossem um
cacho de uvas: é impossível engolir o cacho inteiro
sem engasgar, mas pegando uma uva por vez é
bastante simples. Eu carreguei este ensinamento ao
longo de todo o meu treino e acabei chegando onde
cheguei.

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Aquele era meu novo cacho de uvas. Não


adiantava pensar em dúvidas sem resposta ou
chorar pela realidade que nunca mais seria a
mesma. No momento, a única uva ao meu alcance
era a promessa do Rayner. Ele era o único que
podia me ajudar, e para isso havia pouco tempo.
Eu precisava de um peixe, e tinha menos de
uma hora para consegui-lo.

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Capítulo 38

Ah, eu detestava peixes!! Detestava o gosto,


detestava a textura, e descobri que também
detestava tentar capturá-los sem nenhum tipo de
ferramenta.
Eu não fazia ideia de quanto tempo havia se
passado, mas aquele desafio era impossível. Os
peixes fugiam no instante em que me enxergavam,
o que era bastante fácil considerando-se que metade
de mim era um rabão dourado e cintilante. Vencê-
los na velocidade também não estava em pauta
quando cada metro de nado era uma vitória por si
só. Coordenar um único membro inferior deveria
ser mais fácil que coordenar dois, mas aquela cauda
chicoteava, rodopiava, enroscava em sacolas
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plásticas, e era tão forte que ao menor descuido eu


me propulsionava de nariz contra o fundo.
Minha única saída era fazer uso do meu cérebro
e encurralar aqueles bichos contra as raízes da
margem. Foi a estratégia que mais me aproximou
do sucesso mas, assim que agarrei um peixinho, o
desgraçado escorregou e deixou apenas escamas
nas minhas mãos.
Teria sido um fracasso completo, mas diferente
do que Rayner pensava, eu era bem esperto e
percebi suas intenções: aquilo era um teste.
Era impossível pegar um peixe usando as
técnicas de um humano, então eu precisava pensar
como uma criatura mitológica. Percebendo nisso eu
desisti dos peixes e me concentrei, buscando dentro
de mim os poderes mágicos que com certeza eu
deveria ter.
E não é que tive algum sucesso?
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Radiante de alegria, eu disparei de volta à


margem e até consegui frear antes de arrebentar a
cara nas raízes. Eu cheguei bem a tempo, porque no
mesmo instante ouvi os passos fortes e confiantes
do Rayner.
Rayner largou minhas roupas na beirada e
suspirou em decepção ao ver minhas mãos vazias.
Ele continuava peladão, apenas com o meu casaco
na cintura, mas daquele ângulo eu podia olhar por
baixo…
“Peixes de lago são lentos, pequenos e fracos. E
ainda assim você conseguiu falhar.” Disse ele.
Eu balancei o dedo em discordância, com meu
sorriso mais orgulhoso nos lábios.
“Nã-nã-não. Tá certo, não capturei um peixe,
mas eu consegui algo muito mais incrível.” Eu
forcei os olhos na escuridão quase completa,
querendo ver sua reação.
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“E o que seria?” Perguntou ele, mantendo o tom


de desdém.
“Não tem graça contar, você precisa ver.” Eu
abanei minha cauda, empolgado. “Entre aqui
comigo, precisamos nadar até o fundo.”
Rayner não respondeu, mas mesmo no escuro
pude notar a tensão em seus músculos. Ele estava
desconfiado, ou só me achava meio burro.
Ai, eu estava super ansioso para mostrar, mas
pelo visto precisaria de paciência.
“Eu tenho um cérebro, tá bom? Não sou
inteligente como você gostaria, mas também não
sou retardado. Você é como eu.”
Rayner petrificou como uma estátua e encolheu
o corpo, parecendo bem assustado. Ele pensava
mesmo que eu não descobriria? Sua descrença nas
minhas capacidades era quase ofensiva.

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“Como você…” Gaguejou ele.


“Eu escondo minhas íris desde criança, Rayner.
O colírio que caiu na noite da festa pertencia a
você, certo? Me lembre de devolvê-lo quando
voltarmos pra casa.”
Rayner absorveu cada palavra como se fossem
facas. Eu o percebia tremer, e sentia que não era
pelo frio.
“A cor dos meus olhos não prova nada.” Disse
ele. “Sou um humano comum infiltrado… digo…
visitando sua cidade natal a fim de fazer novos
amigos.”
O plano dele era fazer novos amigos?? Pelo
visto eu não era o único falhando brutalmente em
meus objetivos. Era até cômico, pensando bem,
mas assustar o Rayner não era a minha intenção.
“Se você é um tritão, eu aposto que tem olhos
super loucos também, então me deixa ver? Por
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favoooor?” Eu sorri dócil como um cachorrinho,


fazendo brilhar minhas íris douradas.
“Maldição… eu nunca deveria ter saído dos
planos.” Rayner perdeu totalmente sua pose
autoritária.
“Isto é um sim?” Perguntei.
“Seria uma infração grave demais, minha
missão nunca…” Ele coçou atrás do pescoço,
desviando os olhos dos meus. “Não, tudo bem. Isso
não muda nada.”
Eu não entendi muito dos resmungos dele, mas
Rayner realmente mergulhou os pés dentro da água
e então entrou por completo, acelerando meu
coração em profundo maravilhamento.
Como eu previa, suas pernas se fundiram em
uma cauda, e sob a água eu podia admirá-la em
detalhes.

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Não era uma cauda comprida como a minha.


Era espessa, sem escamas e com uma textura opaca
que lembrava veludo. A barbatana era a parte mais
diferente, toda enrugada e fechada para dentro.
Uma cauda forte e musculosa como sua metade de
cima, e de um vermelho intenso e escuro como
sangue.
Eu não conseguia desmanchar o sorriso da
minha cara. Era tão fascinante que até demorei a
subir meus olhos para o rosto do Rayner, quando
me maravilhei ainda mais: ele era um lindo tritão
de olhos vermelhos.
Era incrível conhecer outra pessoa com olhos
bizarros, embora a parte mais legal continuasse
sendo a cauda. Qualquer um podia usar lentes
vermelhas, mas aquela cauda de veludo com a
barbatana enrugada? Nem os filmes de Hollywood
conseguiriam recriar algo assim.

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“É deslumbrante.” Eu me aproximei com a mão


estendida, querendo tocar.
“Não, não é.” Rayner recuou num gesto brusco.
Só então notei o temor em seu olhar.
“É sim. E seus olhos também são lindos.”
Quando percebi o que eu estava falando eu
avermelhei no tom de sua cauda. “D-digo, não…
não estou dando em cima de você, pelo menos não
tão descaradamente, é só que… é a primeira vez
que encontro alguém com os mesmos olhos
exóticos. Alguém como eu.”
Rayner nem parecia ouvir meus chiliques. Sua
postura era tensa e defensiva. Então ele curvou os
lábios em um sorriso cínico e triste.
“Olhos vermelhos são comuns entre o meu
povo, embora eu não possa dizer o mesmo sobre o
meu cabelo.” Ele virou as costas para mim. “O que
é tão importante, que precise estragar meu único
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par de lentes?”
Ooooh, é mesmo! O fascínio pela a cauda do
Rayner até me distraiu, mas dessa vez seria eu a
impressioná-lo. Eu fiz um gesto para que ele me
seguisse e nadei até a parte funda, exibindo os
movimentos habilidosos que consegui aprender.
Rayner me acompanhou sem dificuldade
alguma, ondulando o corpo e a cauda como se
fossem uma bandeira flamulando ao vento. Eu
parecia um cachorro se afogando perto de um nado
tão elegante. Rayner subia e descia o quadril com
tanta potência que meu corpo aqueceu e eu precisei
seguir com o olhar no chão, ou pensaria muita
besteira.
“Ahm… e aí… então eu sou tipo uma baleia
com escamas, e você um… peixe de veludo?”
Perguntei, o espiando mais vezes do que meu
coração aguentava. Aquelas costas largas moviam-

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se tão lindamente contra a resistência da água.


“Uma foca.” Corrigiu ele.
“Foca, é, óbvio.” Eu me estapeei mentalmente,
tentando lembrar da imagem de uma foca. Eu
deveria assistir mais Animal Planet. “E que outros
tritões existem? Homens-polvo, ou homens-
tubarão, ou homens-lagosta?”
“Existem aqueles como você, e aqueles como
eu.”
“Ahh, então só dois tipos? Isso é meio chato, eu
imaginava algo tipo A Pequena Sereia, com peixes
falantes e moreias de estimação. Mas a mulher-
polvo do filme era malvada, então melhor que não
existam pessoas-polvo. Já pensou uma espécie
inteira onde todos são malvados?”
Rayner manteve-se quieto e acelerou o nado, a
ponto de eu quase não conseguir acompanhá-lo.

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É mesmo, ele responderia minhas perguntas


apenas se eu passasse no teste. Eu começava a
perder a confiança na minha demonstração, mas
precisava me manter firme. Um mundo de distância
separava meus movimentos dos movimentos do
Rayner, nem em mil anos eu conseguiria pegar um
peixe sozinho.
Apesar de quieto, havia algo em Rayner que me
fazia sorrir. Pela primeira vez encontrei um
semelhante, mas não era apenas isso. Em poucas
horas Rayner foi mais sincero comigo do que meus
pais foram em uma vida inteira. Minha opinião
sobre ele sempre foi confusa. Ele fazia meu corpo,
minha mente e meu coração travarem uma
constante batalha, mas através do Rayner eu
descobria um lado de mim que eu nunca
compreenderia sozinho, mesmo que ele não tivesse
obrigação nenhuma de me contar. Talvez meu

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coração estivesse certo, e isso me trazia bastante


conforto.
Minha moral com Rayner não era das melhores,
mas eu queria demonstrar o melhor de mim e fazê-
lo sentir que não perdia seu tempo comigo.
“Aqui está bom.” Eu disse a ele.
Já bem adiante, Rayner parou e retornou ao
meu encontro. Seus cabelos negros fluíam soltos e
perfeitos ao ritmo da água.
“Não vejo muitos peixes por aqui.” Ele olhou
ao redor.
Aproveitando a distração do Rayner, eu estendi
as mãos e concentrei minha força interior, como
havia feito mais cedo. Precisava funcionar, não foi
tão difícil de conseguir da primeira vez.
Uma aura de luz dourada contornou meu corpo,
iluminando o leito do lago e atraindo a atenção do

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Rayner em mim. Estava funcionando.


Meu brilho dourado refletiu nos olhos
vermelhos do Rayner, que me encarou em profunda
admiração.
Eu mentalizei a luz ao meu redor e permiti que
tomasse forma. Uma a uma, dezenas de fagulhas
desprenderam-se do meu corpo e flutuaram pela
água, crescendo para assumir a forma de águas-
vivas.
Uma água-viva, duas águas-vivas… uma
centena de águas-vivas de luz dançaram ao nosso
entorno, infinitos pontinhos luminosos subindo e
descendo como se estivessem vivos.
Eu temia que fosse um poder estúpido e
comum, mas o assombro no olhar do Rayner fez
desaparecer meus medos. Orgulhoso de mim
mesmo, eu criei mais e mais águas-vivas até que as
profundezas do lago lembrassem o mais dourado
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dos crepúsculos.
Rayner estendeu o dedo para tocar uma das
águas-vivas e seu toque a dissolveu como farelo de
luz.
“Como aprendeu isso? E tão rápido…” Ele
passou o olhar pelos bichinhos luminosos, tocando
aqueles mais próximos e fazendo-os desmanchar
em farelo de ouro. “Parecem as águas-vivas
elétricas dos mares de gelo.”
“Bem legal, né?” Eu perguntei, super animado.
“Não consigo capturar peixes, mas consigo criá-
los.”
“É incrível, parecem vivos…” Rayner esboçou
um sorriso de fascínio e rapidamente o
desmanchou. Ele brandiu o braço em um gesto
ríspido que dissolveu todas as águas-vivas de uma
só vez. “Era só isso o que pretendia me mostrar?”
Eu expandi meus olhos, surpreso com a
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mudança repentina.
“Como assim, só isso? Pensei que acharia
legal!” Resmunguei, deixando que minha aura se
apagasse. “Posso fazer qualquer mágica que você
me ensine.”
“É uma demonstração boba e absolutamente
inútil.” Disse ele. “Além do mais, águas-vivas não
são peixes. Não tenho a obrigação de te ensinar
nada.”
E simplesmente assim, Rayner me deu as costas
e nadou de volta pelo caminho de onde viemos.
“Ei, espera aí!” Eu nadei logo atrás, acertando
minha barbatana em tudo o que encontrava pelo
caminho. Ai, como doía. “Não é justo! Eu fiz o
melhor que eu pude! Se me der mais tempo…”
Rayner me espiou por cima do ombro. Seus
olhos eram como lascas de fogo, um tanto
assustadores e ainda assim deslumbrantes.
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“Já desviei do meu roteiro o suficiente.


Voltaremos para a barraca antes que os humanos
acordem e você fingirá que isso nunca aconteceu.”
Meus olhos aqueceram e uma bola amarga
formou-se na minha garganta. Nenhuma sensação
era mais detestável do que a derrota.
Minhas pernas voltaram quando deixei o lago,
assim como a minha sensação térmica normal. Eu
me vesti tremendo de frio e segurando o choro.
Rayner já estava pelado quando apareceu, então
apenas seguiu adiante para a barraca e me deixou
sozinho. As primeiras luzes da madrugada eram o
suficiente para que eu me encontrasse.
Por que meu coração doía tanto? Eu conhecia a
angústia da derrota, mas sabia dominá-la mais ou
menos bem. O que eu sentia ia além da tristeza por
falhar em um objetivo.
Rayner havia limpado a barraca e a cobra morta
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já não estava ali. No momento em que cheguei ele


já estava deitado contra a parede, coberto apenas
com o meu casaco na cintura.
Pensando que ele já estivesse dormindo, eu
fechei o zíper da barraca e me aguentei o quanto
pude, mas acabei desabando em lágrimas,
soluçando encolhido no canto do meu colchonete.
“Por que raios você está chorando, desta vez?”
Rosnou ele, sem se virar pra mim.
“Por que você acha?” Falei, entre soluços.
“Meus pais mentiram sobre tudo, talvez minha
família inteira soubesse e ninguém me disse nada.
Hoje pela primeira vez alguém foi sincero comigo,
mas você já está mentindo que nem eles.”
Eu chorava mais e mais a cada palavra. Era
ridículo, mas não dava pra parar. Quanto mais eu
pensava no que eu era e em quantas outras coisas
deviam esconder de mim, mais o desespero se
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acumulava, como uma avalanche. Em algum


momento eu compreenderia tudo, papai Hian não
era malvado a ponto de mentir sem motivos, mas
naquele momento era coisa demais.
Rayner sentou-se novamente e virou para mim.
Suas mechas espetadas ainda pingavam e os olhos
vermelhos pareciam ainda mais intensos sob a luz
rósea do alvorecer.
Talvez fosse a minha visão borrada pelo choro,
mas algo na expressão do Rayner me pareceu
diferente de todas as outras vezes. Um breve tremor
no olhar, a mais sutil contração dos ombros…
“Por que você é assim?” Perguntou ele.
Eu esfreguei a ponta do lençol nos olhos.
“Assim, como?”
“Assim… diferente.” Ele pausou entre cada
palavra, pensativo.

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É, eu não precisava ser lembrado do quanto ele


me achava estúpido e fútil e eu nem podia
convencê-lo do contrário. Apenas um completo
idiota demoraria tanto tempo para descobrir que
pertencia a outra espécie.
As turbulências do pânico ameaçavam me
revirar por dentro. Milhares de dúvidas, perguntas,
temores e memórias a serem revisitadas. Até que
ponto a minha vida era uma mentira? Que outras
verdades ainda existiam?
Eu era tão burro e idiota quanto Rayner pensava
que eu fosse. Por algum motivo este era o
pensamento mais dolorido.
“Desculpa, é só que… é muita coisa…” Eu
tentei segurar as lágrimas, odiando a confusão em
seus olhos.
Podia ser especialmente patético, mas talvez a
única coisa ainda no meu alcance fosse a opinião
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do Rayner sobre mim. Eu não queria ainda mais do


seu desprezo. Ele era o único fio me unindo a uma
realidade desconhecida e também aquecia meu
corpo de um jeito assustador e incontrolável.
Apesar do meu desespero os meus hormônios já
começavam a ebulir de novo, era horrível.
“Aquilo até que foi bonito.” Rayner abraçou-se
aos próprios joelhos, com o olhar em algum ponto
do chão.
“Aquilo o que?” Perguntei, entre soluços.
“Suas águas vivas de luz… eu nunca aprendi
sobre nada parecido. Nunca me ensinaram que os
poderes de um oráculo pudessem conter beleza.”
Eu expandi meus olhos para ele, conseguindo
de novo engolir meu choro.
“Oráculo? Você me disse que eu era um tritão.”
O rosto do Rayner clareou além de seu tom

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pálido natural. Ele gaguejou um palavrão e


rapidamente deitou de costas pra mim.
“Não me pergunte idiotices.” Rosnou ele, bem
nervoso. “Vá dormir de uma vez. Precisará de
energia se quiser aprender algumas coisas.”
Enfim, uma surpresa que me fez sorrir.
“Prometo ser um tritão menos imprestável
amanhã.” Eu me aninhei sob os cobertores. “Boa
noite.”
Rayner não respondeu, nem mesmo para
comentar os saltos na minha respiração. Por
extrema força de vontade eu consegui não me tocar
enquanto meu corpo parecia um incêndio. Seria
uma reação comum entre tritões? Eu precisava
resolver logo essa rebeldia hormonal antes que o
Rayner se ofendesse.
Antes de tudo, porém, havia um problema ainda
mais imediato: esconder a verdade dos meus
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melhores amigos, e de algum jeito garantir nossa


vitória nas eliminatórias.

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Capítulo 39

Aquele estava sendo o almoço mais


constrangedor da minha vida.
Nenhuma palavra foi dita durante boa parte da
manhã, nem durante o preparo dos hambúrgueres.
Era possível ouvir o som dos garfos contra os
pratinhos de plástico enquanto Benny, Clint e Elyse
trocavam olhares entre si, ignorando a mim e ao
Rayner como se a gente nem existisse.
Tudo bem, eu admitia que dormir com um
louco musculosão foi esquisito, não era o tipo de
coisa que eu aceitaria até pouco tempo atrás,
embora não tivesse acontecido nada entre a gente.
O lance da cobra também permanecia mal
explicado, mas a parte mais esquisita de todas era o
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próprio Rayner, que surgiu da barraca com seus


olhos naturais vermelhos e não se prestou a
explicar nada para ninguém. E óbvio, ele ainda não
vestia nada exceto pelo meu casaco na cintura.
Talvez eu também devesse ensinar algumas
coisas ao Rayner, mas já havia tantas preocupações
na minha mente que aquele tratamento de silêncio
era apenas um suave incômodo.
“Vocês não podem me ignorar pra sempre.” Eu
disse aos três, que almoçavam encolhidos no canto
oposto da mesa de piquenique. “Não aconteceu
nada entre eu e o Rayner. Alguns caras curtem
dormir pelados, e também curtem devorar animais
silvestres, e são secretamente albinos. Todo mundo
tem fases.”
Hum… não ajudei muito. Meus amigos
pareciam tão mais assustados que eu imaginei suas
reações se eu não estivesse usando meu último par

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de lentes azuis.
Benny terminou seu almoço e levantou.
“Levi, será que podemos conversar?”
Perguntou ele.
Eu concordei e levantei no mesmo instante,
louco para abandonar aquele clima pesado.

****

Benny andou comigo até a beira do lago, longe


dos ouvidos dos outros, então olhou nos meus
olhos.
“Levi, o que está acontecendo?” Disse ele. “E
não me enrola dessa vez, tá bem? Nós somos
amigos.”
Meus pelinhos se arrepiaram. Do que Benny
desconfiava? Que tipos de verdade eu poderia
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contar? Droga, minha cabeça ainda girava com


pensamentos demais. Ainda não havia a menor
clareza no meu raciocínio.
“Desculpa, Benny. Você quer o Rayner e eu
prometi te ajudar.” Eu suspirei, me perguntando por
onde começar. “As coisas estão confusas, tá bom?
Mas ainda posso dar um jeito.”
“Dar um jeito??” Benny jogou os braços pro ar,
exasperado. “Levi, o cara devora animais vivos e
anda pelado por aí. Meu desespero por macho não
vai tão longe, e o seu também não deveria ir!”
Eu cocei atrás da orelha, na pele perfeitamente
lisa onde costumava haver as fissuras das minhas
guelras.
“Então não tá bravo comigo? Digo, eu nem
transei com o Rayner ainda, mas…”
“Como assim, não transou ainda??” Ele quase
gritou a última palavra, me olhando como se visse
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um fantasma. “Levi, o que deu em você? Olha para


o seu rosto inchado, você chorou por quanto tempo,
durante a noite? Foi algo que aquele cara fez? E
você está acobertando ele a troco de quê? Tem algo
muito bizarro sobre ele, digo, o Rayner escondia
aqueles olhos bizarros dele, quem garante que não
escondia mais? Eu sou o único juntando pontos
entre ele e o lince que atacou a Magda?”
“E daí que os olhos dele são diferentes, Benny?
Eu não preciso do seu interrogatório!” Eu gritei.
A mágoa no olhar do Benny fez meu coração
bater dolorido. Minha confiança no Benny talvez
não fosse tudo o que eu pensava, mas ele realmente
via valor em mim. Um valor que eu não merecia.
Que raiva, eu realmente não conseguia discutir,
não quando a minha vida ruía sob os meus pés. O
que poderia continuar igual? O que eu perderia? O
que eu ganharia? Discutir com um colega de escola

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me parecia tão banal diante de tantas revelações.


“Não tem nada errado comigo, Benny.” Eu
forcei um sorriso. “Tem razão, eu chorei um pouco
ontem, mas não pelos motivos que imagina. A
competição mexe com meus nervos às vezes, e o
Rayner me ajudou a acalmar.”
Benny murchou o canto da boca e cruzou os
braços, analisando minha postura como se fosse um
detector de mentiras humano.
“Me diz que não tá apaixonado por aquele cara,
Levi.” Ele franziu a testa, bem preocupado. “Esse
não é você. O Levi que eu conheço não aceitaria
dormir com um estranho, nem ficaria distraído com
o olhar para o nada quando um campeonato se
aproxima. O Rayner pode até ser bonito pra
caralho, mas olha as coisas que ele faz! Um cara
bonzinho como você…”
Ah, aquela palavra me fez interrompê-lo na
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hora.
“Não começa, Benny. O Levi bonzinho morreu
no momento em que eu fugi de casa.” Eu bufei,
incomodado com o choque em seu rosto. “Não
acredito que você não tinha percebido. Nosso ponto
de encontro foi o matagal da igreja. Isso não é uma
pista grande o suficiente?”
“Você… você fugiu de casa?” Benny torceu os
lábios com exagero. “Coitados dos seus pais, Levi!
Você sempre se preocupou com eles, e agora os
caras devem estar morrendo do coração e… espera.
Agora entendi porque o Clint roubou o meu
celular.”
“Clint fez o quê?” Perguntei.
“É, meu pai perguntou se você estava conosco e
pouco depois um número estranho me ligou. O
Clint pegou meu celular antes que eu atendesse e
me mandou ficar quieto. Não acredito que ele é o
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seu cúmplice, Levi, você não é assim!”


“E se eu for? Talvez eu goste disso tudo,
Benny. Talvez eu espere mais da vida do que
plantar milho, alimentar cabras e ir pra escola como
um garotinho obediente, tá bom?” Percebendo o
quanto meu tom de voz assustava o Benny, eu me
forcei a acalmar. “Desculpa, é só que… não sei…”
Minha cabeça doía. O que contar? O que não
contar? Será que Benny conseguiria me ajudar, se
soubesse? Como a Elyse e o Clint reagiriam?
Durante toda a minha vida eu pensei ter certeza do
meu caminho, agora tudo eram dúvidas, dúvidas,
dúvidas.
Pela cara do Benny, cheguei a pensar que a
discussão nunca terminaria. Mas ele forçou um
sorriso e relaxou a postura, apoiando a mão no meu
ombro em um gesto amigável.
“Desculpa ter pedido aquilo sobre o Rayner.
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Nem suspeitei que você também queria ele, mas


não é minha culpa, né? Você nunca ligou nem pras
assanhadas do Clint, eu tive certeza que você era,
sei lá, assexual ou coisa do tipo.”
Assexual, eu? Realmente, colocando dessa
forma até que fazia sentido. Nunca dei a mínima
pra outros caras, mas de repente Rayner aconteceu
e meu pau decidiu recuperar o tempo perdido.
“Não quero preocupar ninguém, Benny.” Eu
sorri para ele. “Foi uma boa ideia passar mais um
dia aqui no camping. Uma tarde de treinos é tudo o
que precisamos.”
“Isso aí, cara!” Benny se animou de verdade,
dessa vez.” Vou chamar a Elyse e o Clint, podemos
ensaiar nossa apresentação e chegar em Miami
afiados como navalhas!”
Eu comecei a concordar com a cabeça quando
vi alguém passando por trás do Benny. Era o
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Rayner, que caminhava casualmente em direção a


lugar nenhum.
“Ahm… desculpa, Benny, mas comecem o
treinamento sem mim. Preciso resolver algumas
coisas.”
“Você, dispensando um treino? Mas…”
Eu ignorei os resmungos do Benny e corri ao
longo da margem, na direção onde Rayner havia
desaparecido.

****

“Não me siga.” Disse Rayner.


Eu apressei o passo até acompanhar ao seu
lado. Naquela parte do parque a margem do lago
encontrava-se diretamente com a floresta densa,
então era meio difícil andar. Qualquer tropeção nas
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raízes e eu voaria para dentro da água.


Rayner continuou seguindo reto como se eu não
existisse, mas eu começava a entendê-lo… talvez.
“Mandei que não me seguisse.”
“Não estou mais seguindo. Estou
acompanhando.” Eu dei um sorrisinho tímido. “O
que vai me ensinar, hoje?”
“Esqueça ontem. Foi estúpido e eu mudei de
ideia.” Rosnou ele. “Volte para os seus amigos,
pretendo caçar algo que não seja asqueroso e
detestável.”
Ah, então pelo menos ele odiou comer uma
cobra viva. Eu não sabia se a informação
melhorava ou piorava tudo.
“Vamos caçar um peixe, então? Aposto que
aprendo rápido te assistindo.” Falei.
“Não.” Ele soltou o casaco da cintura e expôs a

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bunda mais durinha e fantástica que já vi em outro


homem… ou tritão, nesse caso. “Vá embora.”
Sem sequer me olhar nos olhos, Rayner saltou
na água e desapareceu entre as raízes pantanosas.
Sério? Ele pensava mesmo que eu iria lavar
uma louça quando podia aprender sobre mim e
descobrir poderes mágicos? Rayner não sabia com
quem estava lidando.
Após verificar que não havia ninguém nas
proximidades eu tirei a roupa, guardei as lentes no
potinho e me joguei na água, não demorando a
encontrar uma linda cauda de veludo vermelho.
“Que tipo de peixes você gosta?” Dessa vez
consegui alcançá-lo sem arrebentar a cauda nas
pedras. “Porque vou admitir, eu detesto peixe. Mas
talvez eu goste de outras coisas, tipo polvo. Eu
nunca comi polvo. Existem polvos neste lago?”
“Sai daqui.” Disse Rayner.
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Eu murchei os lábios. O que raios aconteceu


para ele mudar tanto? Será que foi minha
choradeira durante a noite? Eu tentei não
incomodá-lo, não era minha culpa se minha vida
revirou do avesso. Na verdade a culpa era
justamente dele, embora eu só tivesse a agradecer
por isso.
Rayner nadou até o fundo, onde a água era
turva e lamacenta. Ele abaixou-se entre as algas e o
lixo do fundo e manteve o olhar adiante, onde
haviam alguns peixes gordinhos.
Eu tentei imitá-lo e nadei lentamente até o seu
lado. Cauda pra cima, cauda pra baixo… uma
sacola de supermercado grudou na minha cara. O
susto me fez debater o corpo até me livrar daquela
coisa, bem a tempo de ver os peixes fugindo para
longe.
Opa.

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Rayner esfregou a testa e suspirou longamente.


“O que raios você quer aprender?” Perguntou
ele.
Meu olhar se iluminou como duas gotas de ouro
líquido.
“Me ensina a disparar lanças de gelo!”
“Por que você é tão idiota??” Perguntou
Rayner, exasperado. “Tritões e selkies não fazem
essas coisas! O único com certos poderes é você, e
ainda assim…”
“O que é um selkie?” Perguntei.
Rayner cobriu a boca com as mãos, grunhindo
em frustração. Era engraçado tirá-lo do sério dentro
do lago, porque seus sentimentos mudavam o sabor
da água. Era como se eu ganhasse sentidos
adicionais e pudesse ver emoções fortes.
Apesar das grosserias do Rayner eu percebia

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seu conflito interior, só não conseguia entendê-lo.


Que dificuldade havia em me ensinar? Seria
divertido.
Felizmente, crescer com papai Hian me
acostumou a lidar com gente teimosa. Determinado
a mudar sua opinião, eu criei uma água-viva de luz
e a fiz dançar até Rayner. O bichinho o contornou e
estalou dourado contra o seu rosto.
“Para com isso.” Rosnou ele.
Claro que eu fiz mais uma vez, segurando o riso
para a fúria crescente do Rayner a cada bichinho
que estourava em seu nariz, no pescoço, nos lábios.
“Me ensine poderes mágicos, Rayner. Você
sabe que quer.” Eu disse, enquanto criava mais e
mais águas-vivas.
Quando o décimo bichinho chegava em seu
rosto, Rayner o estapeou com a mão e virou-se para
mim, com os olhos transbordando em ódio infantil.
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“Não entende que eu não posso?? Nada disso


deveria estar acontecendo!” Ele gritou, frustrado.
“Este lago não tem ligação com o mar, mas em
algum momento meus superiores saberão!”
“Prometo guardar segredo.” Eu fiz minha
melhor cara de cachorrinho pidão, a mesma que eu
fazia quando precisava de cola nas provas. “Quero
saber tudo sobre o que eu sou. Por favor, Rayner.
Você é o único disposto a ser sincero comigo.”
Rayner começou a rir.
“Sincero, eu?” Sussurrou ele, e então
aproximou-se de mim um pouco demais. Nossos
rostos quase se tocaram. “Quer aprender algo útil,
de verdade?”
Minha cauda tremeu em espasmos quentes. O
cheiro do Rayner parecia me massagear nas partes
mais erradas.
“Me ensina tudo, professor.” Eu gemi, subindo
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as mãos para tocar seu peito. Era tão musculoso.


Rayner não demonstrou reação ao meu toque,
apenas afinou os olhos em uma expressão fria e
meio assustadora.
E então ele arrancou uma escama da minha
bunda. A dor me fez gritar agudo que nem uma
criança.
“Ai, por quê??” Resmunguei, massageando a
minha bunda dolorida.
“Leia o seu destino.” Rayner me entregou a
escama dourada.
Eu olhei para a escama nas minhas mãos e
depois para ele, me sentindo um trouxa.
“Ahm… quê?”
“Preveja o seu destino. Não me pergunte como,
só sei que envolve escamas.” Ele deu uma risadinha
triste. “É o melhor que posso fazer por você.”

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“Sério? Eu posso prever o futuro?” Eu suspirei


e deixei que a escama caísse das minhas mãos.
“Não precisa me fazer de idiota, Rayner. Se tritões
pudessem ler o futuro, já teriam dominado o
planeta… ou pelo menos ganhado em todas as
loterias.”
“Nem todos podem. Você é o único.” Disse ele,
sem esconder a surpresa pela minha reação.
“Tá certo, eu sou algum tipo de super-tritão
lendário.” Eu revirei os olhos. “Desculpa te encher,
mas eu esperava descobrir coisas divertidas.
Mesmo que fosse verdade, prever o futuro parece
super chato.”
“Mas é verdade! Você pode prever o destino de
todos os tritões, incluindo o seu próprio!” Disse ele,
ainda mais frustrado.
“Chaaaato.” Falei. “Tem certeza que não
conseguimos lançar raios de gelo ou falar com
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peixes? Aposto que eu consigo, olha só.”


Eu me concentrei e forcei minha energia
interior, fazendo minha aura dourada crescer e se
expandir até envolver as profundezas com intensas
ondas brilhantes.
Rayner apenas assistiu de braços cruzados,
como se olhasse para um imbecil. Veríamos que
riria por último, quando eu…
De repente, Rayner saltou sobre mim e
imobilizou meus braços. O susto fez desaparecer
minha aura.
“Tem alguém lá em cima. É aquele idiota.”
Idiota? Qual deles? Rayner achava todo mundo
idiota.
“Vamos mais para o fundo. Minha luz não
alcança a superfície.” Eu disse.
“Não. Tive uma ideia melhor.” Rayner me

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soltou e nadou de volta à margem.


“O que pretende fazer?” Eu nadei logo atrás.
“Você quer um poder legal e interessante? Vou
lhe mostrar o melhor deles.” Ele sorriu para mim
com o canto da boca. “Quem sabe desta forma você
acredita em mim.”
Um poder legal e interessante? Meu coração
disparou em entusiasmo. Enfim, diversão de
verdade!

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Capítulo 40

Assim que notei quem era o tal idiota, minha


empolgação desapareceu. Eu agarrei Rayner pela
barbatana e o forcei a parar.
Diante de nós, um par de pernas avançava
hesitante para dentro da água. Eu reconhecia o
dono daquelas panturrilhas musculosas, e ao subir
meu olhar também reconheci o rosto do Clint na
superfície. Ele olhava ao redor e fazia sombra nos
olhos com o braço engessado, como se procurasse
por alguém.
“Por que o Clint está aqui?” Perguntei.
“Vou saber? Talvez algum idiota tenha
esquecido suas roupas na beira do lago.”

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Ah, é. Droga, eu devia ter pensado nisso.


“Vamos voltar para o fundo. Logo o Clint
desiste de nos procurar.” Pedi, começando a sentir
um embrulho no estômago.
“Você não tem um pingo de curiosidade? Um
adolescente comum correria para exibir sua cauda
de ouro aos seus amiguinhos.”
É… até que fazia sentido. E ainda assim,
imaginar o julgamento dos meus amigos estremecia
tudo dentro de mim. Talvez eles aceitassem a
minha espécie, mas o esforço dos meus pais em
preservar este segredo desafiava qualquer lógica.
Eles já deviam me considerar um filho horrível, eu
não queria piorar tudo revelando uma verdade que
eu mesmo não compreendia.
“Meus olhos. Não quero ser visto assim.” Eu
apontei para as minhas íris douradas, o que não
deixava de ser verdade.
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“Preciso de um voluntário, e aquele humano


estúpido vai servir.” Rayner debateu a cauda até
soltar-se de mim e então seguiu adiante. “Se ele
reagir mal, podemos simplesmente matá-lo.”
Que piada mais sem graça. Aprender
superpoderes já não parecia tão divertido, ainda
assim eu segui Rayner e rezei que Clint não tivesse
um ataque cardíaco.
Rayner e eu emergimos diante de Clint.
“Olá, humano.” Disse Rayner.
“Aaaah!!!” Clint tropeçou para trás, engatando
os pés nas raízes submersas. Ele lutou para não cair
e arruinar o gesso no braço, tudo isso enquanto
gritava e expandia os olhos na nossa direção.
Oh, nossa, isso não começou bem.
“Clint, se acalma. Tá tudo bem, somos tritões!”
Eu ergui minha barbatana e apontei para ela. “Olha,

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tem escamas.”
A reação do Clint me lembrou daquele filme
com o cara que perseguia crianças com uma
motosserra, só que o cara da motosserra era eu.
“Levi? É você mesmo? E esse cara… vocês
dois… esses seus olhos são assim mesmo?”
perguntou ele, tremendo de tanto pavor.
“Ahm, sim, eu acabei de dizer que somos
tritões. Descobri ontem, mas já sei nadar e
conversar embaixo da água. Bem louco, né?” Eu
acenei com a minha cauda e sorri, como se fosse
uma coisa super normal que não estivesse causando
um enfarto no meu amigo. “Talvez eu possa fazer
acrobacias na água também, já pensou? Tipo um
golfinho amestrado?”
Clint nem me ouviu, só continuou gritando.
Rayner esgotou sua pouca paciência. Ele saiu
da água peladão e agarrou o pescoço do Clint antes
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que conseguisse fugir.


“Você será útil aos nossos propósitos.” Rayner
rosnou para ele, então virou o rosto para mim.
Eu ergui o olhar de sua bunda absolutamente
incrível. Concentração, Levi. Você pode olhar a
bunda do Rayner quando ele estiver dormindo.
“Solta ele, Rayner.” Eu pedi, confuso sobre
aquela situação. “Clint, me desculpa por isso, o
Rayner é meio louco.”
“Não me diga.” Clint parecia à beira de um
colapso nervoso. “O que seu amigo pelado quer
comigo, Levi?”
Eu olhei para o Rayner também esperando uma
resposta, mas diálogos e soluções pacíficas não
eram muito a coisa dele. Ao invés de esclarecer
qualquer coisa, Rayner abriu bem a boca e enterrou
os dentes no gesso do Clint.

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Ok, era nessa hora que eu entrava em pânico


junto com o meu amigo.
“Ai, o que porra, Rayner?? Me solta, seu animal
doente!” Clint debateu todo o corpo, engasgando
para o apertão no pescoço.
Aquele gesso parecia super resistente, mas logo
trincou na mandíbula do Rayner e estilhaçou como
um torrão de açúcar.
Se o Clint já não estava surtado, agora sim ele
entrou em modo pânico total, esperneando e
implorando pela vida enquanto Rayner cuspia
farelo de gesso.
“Rayner, o que deu em você? O braço dele tá
quebrado! O que ele vai fazer agora?”
“Ele não vai fazer nada.” Rayner jogou Clint
em cima de mim. “Você vai.”
Eu tentei segurá-lo, mas eu não era exatamente

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o tritão mais gracioso do mundo. O peso do Clint


me derrubou com ele para o fundo do lago, mas
pelo menos eu consegui subi-lo até a superfície
antes que ele se afogasse e só acertei minha
barbatana na cara dele umas quatro vezes. Até que
eu sabia ser heroico.
“Tá tudo bem, Clint?” Eu afastei seu cabelo
molhado do rosto.
“Se tá tudo bem?? Parece estar tudo bem??
Você é um peixe, Levi! E ele é um peixe, e vocês
vão me comer!” Gritou ele.
Rayner nadou para junto de nós e estapeou água
na cara do Clint, fazendo-o engasgar e tossir.
“Não grite, seu humano tolo.” Ele virou a
atenção para mim. “E você, conserte o braço dele.”
“Oi?” Eu pisquei rápido. Com certeza entendi
errado.

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“Você quer aprender ou não?” Rayner ergueu a


mão do Clint, expondo o ângulo esquisito do seu
braço até Clint urrar de dor. “É apenas um osso
rompido, será simples como uma brincadeira.”
Ah, era o que eu merecia por me envolver com
gente louca. Adeus, vida social. Agora eu era um
peixe dourado com péssimas amizades.
Percebendo ter encontrado o meu limite, eu dei
meia volta para ir embora. Rayner podia ser hostil
comigo, mas envolver outras pessoas não era legal.
Ele que consertasse o braço do Clint, sei lá como.
Eu já havia descoberto minha aura sozinho, podia
descobrir mais coisas sem causar estresse pós-
traumático nos meus amigos.
“Se conseguir, contarei a verdade sobre a sua
linhagem.” Disse Rayner.
Eu parei no mesmo instante.
“Existem mais segredos que você saiba?”
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Perguntei, com o coração palpitando.


“E você nem imagina quantos.” Rayner
balançou Clint no ar, ainda segurando seu braço
fraturado. O som dos ossos raspando um no outro
era… inquietante.
“Tá bom. Pode parar de gritar, Clint. O seu
médico chegou.” Eu sorri para o Clint, tentando lhe
transmitir uma confiança que eu não tinha.
Clint ainda chorava e tremia de medo, mas
concordou com a cabeça e parou de se debater. Era
melhor do que nada.
Isolados num canto escuro do lago, entre as
raízes e troncos retorcidos, nós três começamos a…
sei lá o que Rayner esperava que eu fizesse. E se
envolvesse sangue, ou uma cirurgia? Porque
Rayner precisaria saber que eu odiava sangue. Até
o ângulo torto daquele braço me fazia querer
vomitar, e o pavor do Clint não colaborava para a
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minha tranquilidade.
“E aí… como isso funciona?” Perguntei.
Rayner não me respondeu então precisei seguir
a lógica, se é que existia alguma. Eu toquei a
camisa encharcada do Clint e concentrei minha
energia, revelando meu brilho dourado.
Clint até esqueceu da dor no braço, assistindo
mesmerizado enquanto minha aura se expandia
pela água, nos envolvendo em sua luz mística.
Minhas íris também brilhavam, ainda assim eu
conseguia ver com clareza. Os batimentos
cardíacos do Rayner e do Clint ecoavam com a
mesma clareza do meu próprio coração. Fechando
os olhos eu podia até mesmo ouvir a correnteza do
sangue que pulsava em cada artéria, suas
respirações, o cheiro do nervosismo do Clint e da
apreensão desconfiada do Rayner… eu podia ver
tudo, como se eles fossem eu.
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Assim como os bebês já nascem sabendo


chorar, a resposta refletiu dentro de mim como um
instinto adormecido. Mas não era simples como
reluzir, eu precisava solidificar minha aura em algo
palpável, poderoso, capaz de infiltrar no corpo e
tornar-se um com o ferimento no braço.
Fácil de descobrir como fazer, mas era como
treinar aeróbica por dez horas seguidas. Meu fôlego
se esgotou, minhas mãos ameaçaram ceder, mas eu
me mantive firme naquela posição enquanto
Rayner imobilizava Clint diante de mim.
“O que tá acontecendo?? Que brilho é esse no
meu braço?” Resmungou Clint.
Eu não podia me desconcentrar. Minha pressão
despencou no mais profundo cansaço e ainda assim
eu continuei, libertando todo o poder que havia
dentro de mim até meu corpo clamar desesperado
por descanso. Quando enfim afastei minhas mãos e

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relaxei, o braço do Clint mais parecia um sabre-de-


luz, o que era até que divertido. O brilho dourado
não demorou a apagar.
O brilho deu lugar a um braço retinho e
perfeito. Clint até mexeu os dedos normalmente,
perplexo com o resultado.
“Não acredito que isso funcionou.” Disse Clint.
“Nem eu.” Eu dei uma risadinha nervosa.
“Desculpa o mau jeito… e esse sequestro esquisito.
O Rayner também sente muito.”
“Não sinto.” Corrigiu Rayner. “Mantenha sigilo
sobre o que viu, humano. Considere esta uma
cortesia do Oráculo Leviathan.”
Oráculo Leviathan? Ah, isso soava tão legal.
Ainda assim, isso não mudava o suicídio social que
o Rayner me fez cometer.
“Desculpa pelo susto. Vem, eu te ajudo a sair

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da água.” Eu tentei segurar Clint pelo braço, mas


ele desviou de mim bruscamente.
“Não precisa! Digo, já chega de favores por
hoje.” Clint recuou, tropeçando em si mesmo. “Nós
conversaremos mais tarde sobre… tudo isso.”
“Ok!” Eu sorri e acenei para ele, enquanto Clint
desastradamente deixava a água. Nem mesmo o
frio o fez pensar duas vezes antes de sair correndo
pela floresta, totalmente molhado.
“Seus amigos são meio idiotas.” Rayner franziu
a testa. “Ele deveria ter ficado feliz.”
Será, mesmo? Descobrir a existência de tritões
mágicos me parecia um choque bem grande, ainda
assim meu coração doía. Clint poderia ao menos ter
me agradecido.
Talvez Benny e Elyse reagissem melhor. O
ideal seria criar coragem e mostrar a verdade a eles.
Confiar nos meus amigos era importante... talvez.
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Droga, meu coração batia cada vez mais


dolorido. Era como estar sozinho em um deserto,
lentamente consumido pela solidão.
Rayner voltou para o meu lado. Eu nem percebi
que ele havia mergulhado, e acabei gritando para a
coisa que ele balançou diante do meu rosto.
Era um dos peixes gordos que eu assustei antes.
O bichinho ainda se debatia, sangrando por uma
dentada na cabeça.
“Seu prêmio.” Disse Rayner.
“Detesto peixe! Detesto tudo isso!” Meu grito o
sobressaltou. “Eu quero ser normal!”
“Não gostou de aprender sobre seus poderes
curativos?”
“Não gostei de aprender que estou perdendo
tudo, Rayner! O Clint é um dos meus melhores
amigos e você viu como ele olhou pra mim! Eu

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nem sou mais uma pessoa pra ele!” Falei, com os


olhos molhados. “E se todos reagirem assim? Eu
não sou um monstro, sou apenas um adolescente
comum!”
“Você não é sequer um tritão comum, que dirá
um humano comum.” Rayner abocanhou a barriga
do peixe e mastigou suas entranhas. “Posso ignorá-
lo de agora em diante e você pode fingir que nunca
descobriu nada, mas será apenas uma mentira
conduzindo a um destino inevitável.”
Eu baixei a cabeça e concordei.
“Chega de mentiras. Mesmo que todo mundo
me odeie, eu quero a verdade.” Eu esfreguei água
no rosto, lavando minhas lágrimas. “O que significa
ser um oráculo?”
Rayner engoliu o resto do peixe e segurou
minhas palmas para cima. Só então notei o quanto
meus dedos tremiam. Todo o meu corpo parecia
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feito de espuma.
“Você consumiu energia demais. Descanse por
agora, e à noite lhe ensinarei sua terceira lição.”
“Não aguento esperar até de noite.”
“Você não tem escolha.” Rayner soltou minhas
mãos com suavidade, e aquele simples abandono
fez relampejar dor no meu coração. “Não se
exponha para mais ninguém.”
Como assim, não me expor? Foi ele quem me
mostrou para o Clint, que já devia estar contando
pra todo mundo! E onde raios ele pensava que ia?
Rayner nadou tão rápido que não tive a menor
esperança de alcançá-lo.
Droga, eu não estava em condições de ficar
sozinho e desamparado, mas precisava segurar
minhas lágrimas. Eu provaria ao Rayner que não
era um completo inútil. mesmo que os meus
esforços terminassem de me quebrar por dentro.
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****

Quando voltei ao camping, Benny e Elyse


treinavam sozinhos alguns movimentos
acrobáticos. Eles não sabiam do paradeiro do Clint
e estranharam me ver molhado por baixo das
roupas mais ou menos secas.
Eu provavelmente devia explicações, mas temia
abrir a boca e começar a chorar. E se Clint nos
abandonou ali por culpa minha? Espera, ele não
teria abandonado seu carro, também. Mas Rayner
podia ter me abandonado, e eu teria que lidar
sozinho com tudo.
O que papai Maikon me diria pra fazer? Pela
primeira vez me senti um imbecil por ter fugido
sem celular. Papai Maikon sempre me ajudava, ele
não me odiaria se eu explicasse tudo… mas eu não
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podia esquecer que ele era um cúmplice das


mentiras do papai Hian. Ou talvez fosse o
contrário.
Elyse se preocupou com a devastação no meu
olhar, mas eu me forcei a parecer bem. Ela era
apenas uma garota do primeiro ano e me via como
um mentor. Eu não podia demonstrar fraqueza.
Eu escolhi apenas treinar com ela e Benny, e
após algumas horas de esforço extenuante eu
consegui apagar a mente e me focar no meu único
talento: saltos e acrobacias.
Dane-se a realidade. Dane-se o sumiço do Clint
e do Rayner. Eu alcançaria os céus e mostraria ao
mundo todo o meu potencial como líder de torcida.
“Ei, Levi, eu tô cansando.” Disse Benny, em
algum momento.
“Mais dez minutos.” Respondi, perfeitamente
equilibrado sobre a sua mão direita.
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“Você disse isso uma hora atrás. Meus braços


doem e eu acho que a Elyse virou um pudim. Não
podemos chegar em Miami doloridos e quebrados.”
Uma hora atrás? Eu olhei para o céu e percebi
as primeiras estrelas. Meu corpo pingava suor e
Benny esgotava suas últimas forças para me
sustentar. Até a Elyse se gastou por completo e
ofegava no gramado, parecendo morta.
É, talvez fosse hora de parar. Com a ajuda do
Benny eu voltei ao chão, quase caindo pela
fraqueza nas minhas pernas.
“Será que o Clint tá bem? Ele saiu pra te
procurar, e isso já fazem horas.” Disse Benny.
“Ele me achou, e depois não sei. Deve ter
encontrado algum peguete no camping vizinho,
você conhece ele.” Eu tirei minha camisa molhada
de suor e me abanei.
Benny parecia desconfiado, ou talvez fosse
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exagero meu. Uma boa conversa com Clint


resolveria tudo, e eu ainda ganharia confiança para
revelar a verdade a todos eles.
“Vou procurar o Clint.” Eu disse.
“Aham, sei. É o Clint quem você vai procurar.”
Benny revirou os olhos. “Logo vai escurecer,
vamos todos juntos. A Elyse tem uma lanterna.”
Disse Benny.
“Não precisa. Desculpa preocupar vocês.”
Eu larguei minha camisa na barraca,
espreguicei os músculos cansados e voltei para a
floresta de antes. Não foi minha intenção
aterrorizar ninguém, mas eu nunca perdi um amigo
e nem pensar que Clint seria o primeiro.

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Capítulo 41

“Clint?” Eu gritei por ele dentro da floresta.


“Clint, não precisa se esconder, eu juro que sou
inofensivo.”
Procurar Clint sozinho provou ser uma ideia
horrível. A noite caía rápido, escurecendo o chão já
sombrio da floresta e dificultando meus passos.
Nem mesmo as ondas do lago podiam ser ouvidas.
Eu provavelmente havia me perdido.
Bem, eu poderia procurar pela saída quando o
encontrasse.
“Ei, Clint!” Meus gritos assustaram diversos
pássaros, mas nada do Clint aparecer. Será que ele
realmente havia fugido de mim? Clint não era

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nenhum medroso, nada o assustaria a ponto de


desaparecer.
Passos ecoaram nos arbustos atrás de mim, me
lembrando aquela vez em que procurei Conchita no
bosque. As lembranças me causaram arrepios. Já
pensou se eu encontrasse outra garota
ensanguentada? Eu gritaria até ter um troço.
Mas não havia nenhuma cabra ou garota ferida,
dessa vez. Quem apareceu foi o Clint, com uma
expressão grave e cansada no rosto.
“Então você veio me procurar, sexy.” Ele sorriu
com o canto da boca. “Quem mais veio com você?”
“Eu vim sozinho.” Respondi, super aliviado em
vê-lo. “Desculpa por antes, Clint. Como está seu
braço?”
“Perfeito, como se nunca tivesse quebrado.”
Clint moveu os dedos. “Meu discípulo é cheio de
surpresas.”
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Clint aproximou-se de mim em meio às árvores,


com passos firmes e confiantes. Ele sempre foi um
líder nato, então eu estava acostumado à sua
presença marcante. Ainda assim, algo em sua
postura me fez recuar.
“Foi uma surpresa pra mim também. O Rayner
explicou que…”
“O Rayner, o Rayner, o Rayner. Claro que o
esquisitão seria o responsável por isso.” Clint deu
uma risadinha.
“Rayner não é esquisitão. Ele tem outra cultura
que eu ainda não conheço muito bem. Com a nossa
ajuda ele poderia se adaptar melhor.”
“E por que eu ajudaria aquele cara?” Clint
avançou tanto na minha direção que eu tropecei
para trás e caí de bunda em um toco de árvore.
Apesar da voz séria ele sorria de um jeito
arrepiante. “Como pensa que eu me sinto, Levi,
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depois de tudo o que fiz por você?”


“Nem tudo gira ao seu redor, Clint.”
“Ah, claro que não. Tudo gira ao seu redor.
Ainda lembro de quando você era um pirralho em
seu primeiro dia no clube de cheerleading. De todos
os recém chegados você era o mais estabanado,
mas eu te aceitei na minha formação. Um garoto
com uma bundinha tão sexy não podia cair nas
mãos de outro.”
“Como é que é??” Eu perguntei, chocado.
“E qual foi a minha surpresa, quando você ficou
bom de verdade? E ainda se tornou o melhor da
escola, a ponto de ganhar o campeonato estadual?
Não fiquei com inveja, de verdade, eu decidi fazer
de tudo pra ver onde você chegava, ansioso pelo
dia em que você demonstraria qualquer gratidão.
Você se tornou o melhor do cheerleading, o
passivinho mais cobiçado da escola, o mais
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popular, e agora você também é um tritão dourado


com poderes mágicos! Existe alguma coisa que
você não seja??”
“Você precisa mesmo ser tão idiota, Clint? Eu
me tornei um bom cheerleader graças ao seu
treinamento, admito isso. Que tipo de gratidão você
espera de mim?” Perguntei, cada vez mais
indignado.
“Como você é ingênuo.” Clint apoiou o pé
sobre o tronco onde caí sentado, tão próximo que
eu sentia o bafo de sua respiração. “Rejeição após
rejeição. Meu único consolo era saber que eu não
era o único a ser esnobado. Você descartava os
sentimentos de todo mundo que nem lixo. Nunca
beijou, nunca trepou… um santinho de nariz
empinado, intocável e perfeito. Eu já havia aceitado
essa sua natureza, mas aí aquele ridículo apareceu,
e da noite para o dia você começou a esfregar o

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rabo nele como um putinho sem vexame!”


“Eu nunca fiz isso!” Eu falei, tão perplexo que
minhas palavras embolaram na minha garganta.
Aquilo só podia ser uma brincadeira imbecil do
Clint. Ele se aborreceu com a demonstração de
antes e queria vingança me fazendo chorar.
Clint riu da confusão na minha cara. Ele pensou
que eu não me surpreenderia? Porque ele deveria
ser meu amigo! Era óbvio que Clint me arrastaria
pra cama na primeira oportunidade, mas ele
também sempre respeitou meu desinteresse. As
fantasias do Clint não eram problema meu.
“Eu fui longe demais por você, Levi. Passei
todos os limites para te ver feliz e realizado, e não
para dormir no carro enquanto você trepa com um
gorila albino na minha barraca, em uma viagem
onde eu estou te levando para um campeonato em
que eu consegui te encaixar!”
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Mas que completo idiota. Minha vontade era a


de estapear a cara dele, mas algo no que Clint disse
me confundiu ainda mais.
“Como assim, você me encaixou nesse
campeonato?” Perguntei. “A Magda foi atacada
pelo Rayn… ahm… pelo lince gigante. Eu era o
próximo na lista da equipe.”
Clint gargalhou como um maníaco.
“Sério, Levi? Você tá sedento pela vara do
Rayner mesmo achando que ele atacou a Magda?
Devo dizer, o garoto bonzinho e virginal mudou
bastante nos últimos dias.” Clint segurou meu
queixo, deslizou o polegar pelo meu rosto e lambeu
os lábios, deliciado com o meu medo.
Eu não tinha provas, nem imaginava como foi
possível, mas a expressão do Clint já me dizia tudo.
“Você agrediu a Magda.” Eu disse.

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“Era um plano perfeito, não concorda? Eu só


precisei de um canivete e um punhado de cabelo do
Rayner, algo bem fácil de conseguir no vestiário do
futebol americano. Só precisava imitar as dentadas
nos animais selvagens, deixar algumas evidências
no local do ataque, e então me livraria da Magda e
do Rayner ao mesmo tempo.” Clint ria mais e mais.
“Metade do plano foi um sucesso, mas o que
esperar do pai do Benny? Ele deveria ter prendido o
Rayner no mesmo instante, só que o esquisitão foi
mais esperto e fugiu conosco.”
“Você é um monstro!” Eu tentei me levantar,
horrorizado e furioso.
Clint me empurrou com força, me derrubando
de costas naquele toco duro.
“Não, não, você é o monstro. Agora calma aí,
seu peixinho bravo.” Clint riu baixinho, inclinando-
se por cima de mim. “Eu planejei demais, esperei

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demais. Não entende? Não posso perder um troféu


que sempre esteve tão próximo das minhas mãos.”
“Um troféu? De onde você tira essas… ei!”
Clint deslizou a mão pelo meu peito despido.
Ele alisou minha barriga e então pinçou meu
mamilo entre dois dedos, me fazendo gemer agudo.
Mas que filho da puta. Eu tentei sair de baixo ,
mas nunca venceria a força do Clint. Ele me
mantinha imobilizado em cima daquele toco, com
as pernas sobre as minhas.
“Isso não tem graça, Clint.” Falei
pausadamente, tentando disfarçar o medo cada vez
maior.
Clint admirou meus biquinhos castanhos,
sorrindo com leve decepção.
“Tem razão, não tem graça se você não
aproveitar, também.” Ele desceu a mão,

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percorrendo minha barriga, meu umbigo, e os


poucos pelinhos que conduziam à minha virilha.
“Pode fechar os olhos e imaginar o Rayner. Eu
deixo.”
“Nem pensar.” Eu rosnei, me debatendo sob
ele. “Me deixa ir agora!”
Eu ainda vestia a calça de elástico dos treinos.
Clint facilmente passou a mão por baixo do tecido e
tocou os pelinhos. Seus dedos roçaram na textura
crespa, próximos demais da minha parte mais
intocada.
Clint arfou pesado, quase deitando o corpo
sobre o meu. Eu tentei desviar, mas a dureza dele
prensou entre as minhas coxas, fazendo-o gemer.
“Não faz isso…” Dessa vez a ordem saiu mais
como um soluço assustado. “Somos amigos, Clint.
Você nunca me forçaria a nada.”
“É isso o que pensa que vai acontecer?” Clint
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beijou o lado do meu rosto, roçando os lábios no


canto dos meus. “Não preciso forçar nada, sexy.
Você vai obedecer cada pedido meu, do jeitinho
que eu quiser.”
“Eu não sinto nada por você!” Além de nojo,
pensei em dizer, mas seria má ideia aborrecê-lo
naquele momento.
“Não precisa sentir. Já desisti dos seus
sentimentos, sexy. Aliás, esta parte de você nunca
me interessou.” Clint tirou a mão da minha calça,
mas apenas para forçar o tecido a descer. “Você vai
me beijar e vai me entregar tudo o que eu quiser.”
“Ou o quê?” perguntei, me torcendo todo no
esforço de manter minhas roupas.
Clint riu como se já esperasse aquela pergunta.
Ele tirou o celular do bolso e mostrou um número
desconhecido na tela.
“Pense na alegria dos cientistas. Dois espécimes
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novos para eles investigarem, dissecarem. Esse seu


poderzinho idiota avançaria a medicina em
centenas de anos, e imagina o poder dos outros
tritões. Com certeza aquele Rayner tem uma
família, também. Tantas descobertas a um simples
telefonema de distância.”
Meu coração deu um salto.
“Deixa o Rayner em paz.”
“Relaxa, sexy. Eu faço a minha parte, e você
faz a sua.” Ele largou o celular no chão ainda
sorrindo, com os olhos finos de uma raposa.
Eu concordei com a cabeça, choroso e
tremendo.
“Quer me comer tanto assim, vá em frente.” Eu
disse, amargo. “Só não me machuca, por favor.”
“Eu nunca faria isso.” Clint aliviou o peso sobre
as minhas pernas e baixou o rosto contra o meu. Ele

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selou nossos lábios.


Mas que merda. Aquele era mesmo o meu
primeiro beijo? Eu não queria assim, mas que
escolha eu tinha?
Tentando não chorar, eu cedi à pressão da
língua do Clint e deixei que invadisse a minha
boca. Enquanto me saboreava ele começou a descer
minha calça, expondo minhas partes íntimas ao frio
da noite.
Eu não podia chorar. Se eu irritasse o Clint ele
contaria tudo. Rayner não merecia perder a
liberdade por conta da minha burrice. Até mesmo
os meus pais correriam perigo.
Por mais que fosse cruel e errado, eu realmente
fechei os olhos e segui o conselho do Clint. Rayner
poderia fazer o mesmo comigo, e quando quisesse.
O porte físico do Clint era semelhante, me
concentrando eu podia sentir Rayner em seu lugar,
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descobrindo o meu corpo, recebendo aquilo que eu


nunca entreguei a ninguém.
Mas aquele não era o Rayner.
Ninguém servia para mim além do Rayner.
O meu corpo pertenceria a ele e ninguém mais!
Eu abri meus olhos e percebi tudo em tons
vermelhos. Era um incêndio ou era eu? Havia
gritos, eu já não estava deitado. O vermelho na
minha visão se intensificou e a floresta tornou-se
um borrão.

AAAAAAAAAHHH
Desculpa, eu não… AAAAHHH!!
Para com isso, Levi!!
AAAAAAAAAAAAAAAAAAHHH!!

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Um golpe na minha cara me arremessou no


chão.
“Ai!!” Eu massageei minha bochecha molhada
e dolorida e ergui o olhar na direção do agressor,
enjoado e com um gosto horrível na língua. “Qual é
o seu problema, Rayner?”
Rayner ainda mantinha o punho fechado, seus
olhos vermelhos e profundos me encarando
assustados sob o brilho da lua. Meu resmungo o fez
relaxar os músculos.
“Perdão. Eu já não sabia como te acordar.”
Disse ele.
“Com um despertador, talvez? Que horas são?
Não me lembro de ter adormecido e… espera aí…
estamos na floresta?”
Meu cérebro parecia uma sopa de informações
desconexas. Eu apertei a testa e tentei lembrar de
qualquer coisa, mas só ouvia o eco de gritos, como
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uma miragem auditiva.


Eu cocei o peito, então o fantasma de uma
lembrança fez arrepiar meus pelos. Só podia ter
sido um sonho. Clint não tentaria me estuprar,
simplesmente não era possível.
Rayner manteve-se quieto enquanto eu
recuperava a consciência. O tempo todo ele olhava
para um ponto no chão, então cometi a estupidez de
seguir seu olhar.
Havia um corpo em meio às folhas.
“Clint!!” Eu me ajoelhei diante dele, tomado de
um súbito e horrível desespero. “Clint! Responde,
Clint!”
Eu tentei erguer Clint nos meus braços, mas
sabia que era inútil. Seus lindos olhos cinzas
perdiam-se na direção do céu, inertes e sem vida.
Seus lábios haviam sido arrancados, esparramando
sangue por todo o seu rosto e expondo um sorriso
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cadavérico e tenebroso.
Só então reparei nas suas roupas rasgadas e nos
muitos outros ferimentos, todos profundos e
redondos como marcas de dentes.
“Rayner, o que você fez?” Eu andei para trás,
tremendo de cima a baixo.
“Leviathan, preciso que me escute.” Ele
aproximou-se de mim.
Eu me afastei rápido, suando e arfando à beira
de uma crise de pânico.
“Fica longe! Eu sei que o Clint foi meio sádico,
mas isso é assassinato! Você não pode acobertar
um crime com outro, Rayner!”
Rayner segurou meu braço, me impedindo de
fugir. Seus olhos usualmente frios tremulavam em
preocupação. Na outra mão ele segurava o celular
do Clint, todo salpicado de sangue.

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“Leviathan, não fui eu quem…”


“Não mente, Rayner! Você atacou aqueles
animais, e a Magda, e meu melhor amigo, que
agora…”
Rayner estendeu o celular diante de mim,
mostrando o reflexo da tela. Algo escuro encobria
meu rosto e pingava pelo meu queixo.
Tremendo, eu esfreguei meu queixo molhado e
levantei as mãos diante do rosto. Minhas palmas
estavam cobertas de sangue.
O gosto horrível começou a fazer sentido. Eu
me dobrei e vomitei no meio das plantas.
“Não… não…” Eu gaguejei, com a visão
rodopiando em temor e pânico. “Não é verdade…”
“Tritões híbridos têm graves dificuldades em
controlar sua forma feral. Alguns nunca conseguem
libertá-la, outros perdem o domínio em situações de

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estresse e agem através de puro instinto primal.”


“Eu não fiz isso… eu não fiz…” Eu passei a
mão pelos lábios, fazendo pingar gotas vermelhas
nos meus joelhos.
Um barulho adiante fez Rayner alterar sua
postura. Ele observou alerta as imediações,
mantendo-se próximo de mim. Um facho de luz
iluminou nossos rostos.
“Ah achei eles!” Benny disse à Elyse. “E sim, o
Levi está com o Rayner, você me deve dez
dólare… aaaah!!!”
“Ai meu Deus!! O que houve na sua cara,
Levi?” Elyse cobriu a boca, horrorizada. E seu
pavor nem se comparava ao do Benny, que já havia
descoberto o cadáver aos meus pés.
“Benny, Elyse, eu posso explicar tudo.” Eu me
aproximei deles.

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Aterrorizado, Benny saltou entre eu e Elyse e a


abraçou.
“Não se aproxima!!” Disse ele, apavorado.
Elyse gemia em profundo horror.
“Levi, você é o lince gigante?” Perguntou ela.
“Não pode ser… por quê? Por quê você faria tudo
isso?”
Eu queria explicar o mal entendido, mas o que
mudaria? Eu havia matado um homem. E o olhar
da Elyse e do Benny demonstrava que não havia
nada a esclarecer.
Meus melhores amigos. Um deles morto, e os
outros dois se abraçando, sem dúvidas me
encarando da mesma forma que Clint me encarou
antes de morrer.
“Desculpa, Benny. Nós vamos resolver isso,
ainda temos um campeonato para ganhar.”

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Nenhum dos dois me escutou. Eles apenas


choravam e tremiam enquanto a mistura de sangue
e saliva pingava da minha boca e escorria pelo meu
peito.
“Existem humanos bons e existem humanos
que são verdadeiros monstros. Até o humano mais
dócil carrega o poder de nos destruir.” Rayner
apoiou a mão no meu ombro, em uma tentativa
patética de me confortar. “Os humanos sempre
verão tritões e selkies como monstros, então nossas
espécies jamais devem se misturar. Esta é a sua
terceira lição.”
Minhas pernas amoleceram. Rayner me segurou
antes que eu caísse e começou a me puxar para
longe. Por algum motivo eu resisti. Com o fim das
minhas forças eu travei no lugar, tentando falar
qualquer coisa. Eu precisava me desculpar. Pedir a
eles que entendessem. Mas como ser perdoado por

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algo assim? O gosto do sangue ainda descia pela


minha garganta.
Rayner acariciou o lado do meu pescoço.
“Este já não é mais o seu mundo.” Disse ele.
Eu olhei Benny e Elyse, que permaneciam
encolhidos e aterrorizados, dois coelhinhos diante
de dois lobos. Eu me forcei a dar-lhes as costas, ou
meu coração não suportaria.
“Peçam aos meus pais que me perdoem.” Eu
deslizei os dedos nos olhos e removi minhas lentes
de contato, causando outro gemido assustado nos
dois. “Adeus.”
Não havia nenhum pertence comigo, apenas as
minhas calças de treino, que precisei tirar antes de
saltar na água. Rayner ainda trajava o meu casaco
na cintura e mais nada. Tirando estes pequenos
resquícios de civilização, éramos apenas dois
animais selvagens fugindo para a segurança da
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natureza.
Tudo o que eu conhecia, tudo o que eu era
dissolveu-se naquela noite, como as pernas de um
tritão em contato com a água fria.

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Capítulo 42

Nadamos durante toda a noite e também no dia


seguinte, passando por florestas de algas, cardumes
de peixes prateados, ruínas de barcos e rochedos
com siris e uns peixes compridos, que Rayner
também desconhecia o nome. Ele não parecia
entender muito da fauna daquele lugar, mas disse
que nem se comparava com a beleza dos mares.
O oceano devia ser realmente incrível para
Rayner tratar aquela paisagem com tanto desdém.
Para mim tudo era lindo e novo, eu ainda não
conseguia acreditar que um lago podia ser tão
grande. Bastou nadar para bem longe da margem e
a água tornou-se limpa e cristalina, por onde raios
de luz solar penetravam ondulantes até desaparecer
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no lodo das profundezas.


Era tão lindo que eu quase conseguia me
animar. Quase. O cadáver do Clint insistia em
voltar aos meus pensamentos o tempo todo, assim
como as milhares de perguntas que Rayner
respondia uma a uma, cumprindo sua promessa de
antes.
Ainda assim eram dúvidas demais, e cada
resposta gerava perguntas ainda maiores. O desdém
do Rayner e o desconforto nas minhas partes baixas
não ajudavam em nada.
“Deixa eu ver se entendi. Então você não é um
tritão, mas eu sou?” Perguntei, apertando minhas
mãos no ventre.
“Somos raças diferentes de uma mesma
espécie.”
“Tipo… do jeito que existem poodles e
labradores, mas os dois são cachorros?”
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“Sim, eu acho?” Rayner arqueou a testa. “Tem


algum problema na sua virilha?”
“N-não, tá tudo ótimo.” Eu torci minha cauda e
acelerei o nado, não querendo ser deixado para trás.
“E sobre antes? O que significa eu ser um híbrido?”
“Alguns tritões e selkies são uma mistura entre
espécies. Você é um caso único, porque…” Ele
parou de nadar e virou de frente para mim. “Certo,
vamos parar aqui. Por que está nadando torto?”
Eu avermelhei, apertando a frente da cauda com
ainda mais força e tentando não reparar nos sons
aquáticos ao nosso entorno.
“Não é nada… eu só… faz tempo que não…”
Eu fervi de tanta vergonha. “Preciso fazer xixi.”
Rayner esfregou a testa, perplexo.
“Então faça??” Disse ele.
“Aqui? Eu não posso, seria tão nojento.” Eu me

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torci todo, com a bexiga prestes a explodir.


“Como assim, nojento? Olhe ao seu redor,
todos os peixes que viu fazem xixi dentro da água.
Esse lago é a soma de milhares de xixis!”
“Meu Deus, Rayner! Que coisa mais nojenta de
se dizer!” Eu reclamei, frustrado. “Espera, não me
diga que você… e comigo nadando do seu lado…”
“Sei lá… Talvez?”
“Que horror! Eu não quero nadar nunca mais.”
Eu escondi o rosto nas mãos.
Rayner apenas me olhava completamente
perdido.
“Eu posso me afastar, se preferir. E virar de
costas.” Disse ele.
Eu concordei com a cabeça, sem acreditar que
estava tendo aquela conversa com ele.
Rayner nadou até alguns metros adiante e
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cruzou os braços, de costas para mim.


Precisando me contentar com aquele mínimo de
privacidade eu estapeei a frente do corpo
procurando o que segurar, mas tudo era liso, apenas
uma cortina de escamas douradas.
“Ei, Rayner.”
“O que foi?” Ele rosnou, impaciente.
“Eu… eu não sei fazer xixi.”

****

Aaaaah, que alívio.


Eu dei uma balançadinha lá embaixo e me
espreguicei relaxado, sentindo que havia perdido
uns dois litros.
Rayner salvou minha vida encontrando aquela

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ilhota tão rapidamente. Havia apenas um antigo


farol e uma árvore retorcida, que agora estava bem,
bem hidratada.
Assim que eu terminei, encontrei Rayner
sentado na escada do Farol, com o olhar para o
nada.
“O destino de uma civilização nas mãos de um
garoto que não sabe nem mijar.” Ele sussurrou para
o sol poente, ainda assombrado pela minha
estupidez.
Poxa, não era culpa minha. Ser um tritão era
complicado. Como se fazia xixi sem ter um pênis
para segurar?
“Prontinho.” Eu tentei agir naturalmente, apesar
de estar completamente pelado. “Desculpa te
atrasar sobre… para onde vamos, mesmo?”
“Você não conseguirá atravessar a noite sem
descanso. Ômegas não têm resistência para longas
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viagens.”
“Eu sou um tritão, um oráculo, um híbrido e um
ômega? Nossa, são tantos títulos. O que mais eu
sou? Um profeta? Uma arma de destruição em
massa?”
“Tudo isso.” Rayner riu. Que cara mais
debochado! “Você não saberá dormir nas
profundezas. Será mais seguro ficarmos aqui esta
noite.”
Eu olhei ao redor, onde só haviam pedras e
ervas com espinhos. Rayner só podia estar
brincando.
Rayner levantou e virou-se para a entrada do
farol, onde espessas correntes bloqueavam a porta.
Então ele calmamente mordeu o cadeado e o
rompeu em um estrondo violento.
“Tem alguma coisa que você não consiga
mastigar??” Eu peguei um pedaço da corrente
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dilacerada e finquei os dentes, mas tudo o que


consegui foi uma dor horrível.
Ai… Talvez eu não fosse um tritão muito
poderoso, afinal.
Rayner investigou o interior do farol, voltou e
fez um gesto para que eu entrasse.
“Nenhum cheiro de humanos, mas tem
instalações lá atrás. Talvez sejam do seu agrado.”
Eu soltei a corrente no chão e acompanhei
Rayner para dentro do farol.
Era um lugar empoeirado, com as janelas já
amarelas e tinta descascando das paredes. A
maioria dos móveis estava encoberta por lençóis,
que Rayner puxou para revelar sofás e mesas mais
ou menos conservados.
“Não devíamos invadir. Os donos podem se
chatear.” Eu disse.

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“Prefere dormir no lodo das profundezas, com


camarões entrando pelo seu nariz?” Rayner riu da
careta horrorizada que eu fiz. “Foi o que eu
pensei.”
Sem escolha, acabei ajudando Rayner a
organizar o pequeno espaço. Havia apenas aquela
sala, uma cama de solteiro e a escadaria que levava
ao topo do farol, além de uma porta fechada, nos
fundos.
Eu abri a porta e descobri um banheiro bem
ajeitado, com banheira, pia e vaso sanitário. Por
algum motivo eu me senti mal pela árvore que
molhei lá fora.
“Um verdadeiro palácio. Talvez você passe uns
cinco minutos sem reclamar.” Rayner investigou o
banheiro por cima do meu ombro.
Eu ignorei o comentário e explorei os armários,
me empolgando ao encontrar diversas roupas.
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“Adeus, nudismo desnecessário.” Eu me


empolguei e comecei a verificar cada peça. “Sabe,
essa coisa de virar um peixe é bem legal, mas nem
um pouco prática. Bem que podia existir um tecido
que se transformasse conosco. Eu usaria o tempo
todo.”
Rayner fingiu não me ouvir, então continuei
investigando. Todas aquelas roupas eram grandes
demais para mim, mas uma camisa de flanela
vermelha atraiu minha atenção.
“Veste isso.” Eu entreguei a camisa ao Rayner.
“Não gosto de roupas.” Disse ele.
“Sério? Eu não tinha reparado.” Eu dei uma
risadinha, espiando o meu casaco que quase caía de
sua cintura.
Opa, péssima ideia. Meu corpo não podia se
animar numa hora dessas.

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Rayner ignorou a camisa de flanela e a reação


rebelde na minha virilha, ainda interessado no
interior do banheiro.
“Aquilo é uma piscina?” Perguntou ele.
“É só uma banheira, eu posso descobrir como
ligar. Você prefere água quente ou fria?”
“Água quente é um capricho exclusivo das altas
castas.” Rayner expandiu os olhos.
Eu ri e comecei a investigar as válvulas,
orgulhoso em ser útil pela primeira vez desde…
desde sempre? Minha autoestima não costumava
ser tão baixa.
A água quente preencheu a banheira. Após uma
rápida limpeza ela estava prontinha para uso,
enevoando o lugar com um vapor gostoso que
cheirava a madeira antiga.
Rayner acompanhou o procedimento como se

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eu realizasse um ritual de bruxaria.


“Prontinho. Aproveite seu banho.” Eu estufei o
peito, me sentindo um gênio da engenharia
mecânica.
Rayner passou por mim, livrou-se do meu
casaco e testou a temperatura com a ponta do pé.
Acho que ele aprovou, porque logo depois deitou
dentro da água, dissolvendo suas pernas em uma
longa cauda vermelha que mal cabia dentro da
banheira.
“É agradável. Obrigado.” Disse ele.
Aaah, ele agradeceu. Só podia ser um sonho!
“De nada.” Respondi, tentando me manter
sério. “Ahm… então… vou dormir naquela cama,
eu acho. Parece limpinha, não deve ter baratas.”
Rayner endireitou o corpo, apoiando as costas
na borda e liberando um minúsculo espaço ao seu

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lado.
“Deve se acostumar com sua forma aquática.
Junte-se a mim.” Disse ele. “Ou não me diga que
esgotou todas as suas perguntas?”
Opa, como assim? Eu tinha perguntas, um
bilhão delas, mas não podia fazer isso. Rayner mal
cabia sozinho na banheira, eu precisaria deitar em
cima dele e meus hormônios explodiriam em
colapso total. O simples convite já me forçava a
cobrir a frente com as mãos, rezando a todos os
deuses que Rayner não percebesse a minha ereção.
“Você parece confortável aí. Não tem
problema, podemos conversar amanhã, quando…”
“Venha.” Mandou ele.
Eu baixei a cabeça e obedeci, me torcendo todo
para que ele não visse nada. Eu descansei o meu
peito contra o dele, e logo minhas partes
inadequadas sumiram para dentro da cauda.
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Metade do problema se resolveu sozinho, mas


como controlar a minha respiração?
Eu podia sentir os músculos sólidos do Rayner
contra o meu corpinho magro. Cada gominho de
sua barriga, até a saliência dos mamilos… o tom
mestiço da minha pele sempre foi clarinho, ainda
assim o contraste era enorme. Rayner parecia feito
de leite, corado apenas nos lábios e nos mamilos.
Aquela nova proximidade trazia descobertas
fascinantes. Seu cabelo era espetado quando seco,
mas quando molhado escorria brilhante e bonito, e
Rayner o alisava para trás com os dedos. Seus
olhos brilhavam vívidos, intensos como fogo e tão
belos quanto o vermelho do pôr-do-sol. Seu rosto
inteiro era perfeito como o seu corpo, até mesmo os
lábios pálidos, que se mostravam carnudos,
sedutores e sem nada da severidade dos nossos
primeiros encontros.

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A umidade entre nós dois me fazia deslizar a


cada movimento da respiração do Rayner, e eu não
sabia o que fazer da minha cauda comprida demais.
Seria rude eu enroscar na cauda dele? Eu poderia
deixar a barbatana escorrer pelo chão, mas acabaria
caindo como um peixe encalhado. Aquela coisa era
um trambolho impossível de acomodar.
Mas nada, nada era mais desconfortável do que
fingir que tudo bem, não havia nada de estranho em
deitar sobre um macho extremamente bonito, com
um cheiro que eletrizava todos os poros da minha
pele. Eu esperava que minha transformação
acalmasse meus hormônios, mas a situação apenas
piorou. Era como ferver água em uma panela
fechada. Em algum momento a pressão faria
transbordar.
Rayner não dava a mínima para a minha
respiração errática ou o vermelhão no meu rosto.

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Ele apenas me admirava em silêncio, com os braços


apoiados na borda.
“Isso… isso é normal, para os tritões? Deitar
juntos em um espaço tão apertado?” Perguntei,
ofegante.
“Você ainda está triste.” Disse ele.
Eu franzi uma sobrancelha, estranhando o
comentário.
“Minha vida é uma mentira e eu matei meu
amigo que tentou me violentar. Acho que posso me
entristecer um pouquinho.” Eu sorri com timidez.
“O que aquele garoto fez foi horrível. A
sexualidade dos humanos é primitiva, eles são
promíscuos e movidos por instintos, buscam
satisfação carnal em detrimento da reprodução com
um parceiro apropriado. Ele errou, e ele foi
punido.”

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Um amargor formou-se na minha garganta. Não


consegui mais segurar meu sorriso e me odiei por
isso. Eu não queria perder a pouca moral que
ganhei com o Rayner.
“E se eu não tivesse me defendido? Você teria
me ajudado, ou eu perderia toda a minha
dignidade? Meus objetivos e meus sonhos são
todos estúpidos para você, Rayner, mas… mas eu
realmente queria…”
Eu comecei a chorar que nem o mais completo
dos idiotas.
Rayner tocou o lado do meu rosto e me
acariciou, muito mais suave do que seu corpaço
musculoso sugeria. Ele já não me olhava com o
desdém entediado de sempre.
“Foi um erro de cálculos grande demais.
Percebi que o garoto lhe causaria problemas e quis
te assustar sobre os humanos, mas nunca imaginei
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que ele iria tão longe, nem que você o mataria antes
de mim. Eu precisei fazer uma ligação e me atrasei
demais, peço desculpas.”
Eu solucei, deixando minhas lágrimas pingarem
sobre seu peito.
“A vida toda eu nunca quis ninguém… e agora
eu… por que isso me importa tanto? Foi só um
beijo roubado, tanta gente beija todo mundo e nem
lembra quem foi o primeiro, mas era importante
demais pra mim. Eu queria entregar meu primeiro
beijo pra você.” Eu disse, entre soluços sentidos.
Eu deveria morrer de vergonha por admitir isso,
mas a tristeza superava todo o meu bom senso.
“Desculpa, eu sei que é completamente estúpido.”
Rayner estremeceu sob mim, me admirando
com uma surpresa emudecida. Algo no que eu disse
o assustou.
“Eu não te acho estúpido. Existe humanidade
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demais correndo no seu sangue, é natural que


deseje muitos pretendentes.”
“Mas eu não desejo muitos! Eu nunca quis
ninguém Rayner, então você apareceu e foi como
despencar dentro de um vulcão. Eu sonho você, e
eu respiro você, e tudo o que você é mexe com tudo
o que eu sou.” Eu esfreguei meus olhos inchados,
me acabando de tanto chorar. “Tem algo muito
errado comigo, não tem?”
Rainer deslizou o polegar pelo meu rosto,
secando uma lágrima e me fazendo olhar em seus
olhos.
“Você não é errado, é apenas único. O mais
humano de todos nós.” Rayner afinou os lábios em
uma linha, como se contagiado pela minha tristeza.
“Tudo sobre você contradiz que aprendi. Você
deveria ser violento, cruel… não deveria suportar a
ideia de tocar em mim.”

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Era um comentário incomum, mas de qualquer


forma me relaxou. Eu deslizei a mão na cauda sob
o meu corpo e apreciei a textura suave.
“Eu gosto da sua cauda. É como o forro de uma
caixa de bombons.”
Rayner sorriu e retribuiu a carícia, afagando
meu cabelo com doçura.
“Você é um tritão muito estranho.” Ele disse.
“Venha aqui.”
Eu inclinei meu corpo, aproximando nossos
rostos. Meu coração parecia um terremoto dentro
de mim.
“Rayner…”
“Shh.”
Rayner agarrou meus ombros e grudou nossos
lábios em um beijo intenso e puro. Seu hálito
salgado e refrescante desceu arrepios pela minha

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coluna.
Eu segurei os lados do pescoço do Rayner e me
contorci sobre ele, buscando um prazer que não
tinha por onde escapar. Era uma tortura deliciosa,
lábios e corpos se tocando, trocando calores… eu
até considerei prová-lo com a língua, mas antes que
criasse coragem Rayner me empurrou de volta à
posição de antes.
Ele respirou um pouco rápido, recuperando o
ar, mas não parecia nem um pouco bagunçado,
ainda mais comparando comigo. Meu sangue
parecia pólvora, ameaçando explodir num show de
fogos de artifício.
“Memorize bem este momento, porque foi este
seu primeiro beijo.” Ele avermelhou um
pouquinho. “…E o meu também. Então não chore
mais sobre isso, tá bom?”
Claro que eu chorei de novo, mas dessa vez foi
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com um sorriso nos lábios.


“Tá.” Eu tentei beijá-lo de novo, mas dessa vez
Rayner desviou o rosto, tenso e desconfortável. Era
melhor não abusar da minha sorte. “Ei… você
podia responder uma coisa?”
“Mais uma?”
“Acha que meus pais vão me perdoar, um dia?
Por ter mentido, e fugido, e matado um cara…”
Perguntei.
“Eu não saberia dizer. Progenitores de respeito
costumam valorizar a segurança da prole, ou pelo
menos foi o que notei nos núcleos dos meus
conhecidos. Imagino que os seus pais perdoariam
qualquer coisa, se pudessem tê-lo de volta.”
“E os seus?” Perguntei.
“Os meus o quê?”
“Seus pais também estão preocupados com

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você? Porque se nós somos criaturas marinhas,


você está bem longe de casa.”
Rayner suspirou com o olhar no teto, enquanto
acariciava meus ombros distraidamente.
“É complicado de explicar. Digamos que sou
um híbrido como você, o que significa que cresci
apenas com meu pai alfa. Isso até os meus seis
anos, quando a dor da perda tornou-se insuportável
e meu pai decidiu tornar-se um com o mar.”
Meu coração bateu apertado. Nunca imaginei
uma história tão triste. Só de me imaginar sem um
dos meus pais, eu já queria chorar. Imagina crescer
sem ninguém? E eu ainda enchi os ouvidos do
Rayner com resmungos sobre a minha família. Ele
tinha toda a razão em me achar um idiota.
“Sinto muito.” Eu disse.
“Acontece. É um destino comum para os alfas
viúvos, mas o meu pai poderia ter sido mais
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discreto. Encontrar o corpo não foi a melhor das


minhas experiências.” Rayner riu com angústia e
remorso. Seus olhos tremulavam quando ele voltou
a me olhar. “Ele era como uma montanha de vidro.
Frágil, mas imponente. Precisava vê-lo treinando as
tropas, era o melhor tenente do exército de
Cratília.”
“Você ainda tem carinho por ele.” Eu disse, me
segurando pra não chorar de novo. Minha vontade
era voltar no tempo e abraçar o pequeno Rayner
muitas e muitas vezes.
“Com certeza. Eu sempre o acompanhava nos
quartéis, aprendia sobre fuzis, pistolas, e também
brincava de treinar com ele. Eu era tipo o
mascotinho do pelotão, sempre que nós…” Rayner
calou-se de repente e desmanchou o sorriso.
“Esquece, são apenas bobagens.”
“Não é verdade. Eu quero ouvir.” Falei, tão

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empolgado quanto ele estava segundos antes.


Rayner mordiscou os lábios, encabulado. Era
tão difícil não beijá-lo de novo.
“Depois que… bem… eu fiquei sozinho, a vida
complicou muito. Selkies acreditam na seleção
natural, portanto é ilegal adotar ou auxiliar órfãos.
A vida de um filhote órfão é solitária e brutal, você
enterra os dentes em tudo o que puder ser digerido
e dorme em qualquer fenda onde os tubarões não
alcancem, mas eu me mantive vivo com um único
sonho: um dia eu seria tenente do exército, que nem
o meu pai.”
“Não vai ser difícil pra você.” Eu apalpei o
peitoral dele, que mais parecia uma pedra de tão
volumoso e sólido.
Acho que Rayner sentiu cócegas, porque
começou a rir e se torcer embaixo de mim. Ele
segurou minhas mãos antes que eu provocasse
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ainda mais e admirou os meus dedos, que pareciam


palitos em contraste com os dele.
“Promoções militares não dependem apenas de
músculos. Papai batalhou muitos anos para chegar
tão longe, mas eu pretendo aproveitar todos os
atalhos possíveis. Meu atual cargo como faxineiro
dos calabouços não é muito glorioso, mas um dia o
General Cordelen reconhecerá meus esforços.”
“Ele já deve reconhecer.” Eu ronronei para o
carinho nas minhas mãos. “Afinal ele deve confiar
em você, para te dar uma missão.”
Rayner tencionou o corpo como se tivesse
levado um choque. Ele largou minhas mãos e me
encarou com o olhar enorme.
“Como sabe da minha missão?” Perguntou ele.
“Ué, você mesmo mencionou algumas vezes.”
Eu torci os lábios em um sorriso de provocação.
“Espero que não seja uma missão ultrassecreta,
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porque você é terrível em fechar a boca.”


Rayner permaneceu petrificado, me olhando
como se eu fosse mordê-lo. O que eu disse de
errado? Eu só queria mais afagos, mas não sabia
pedir sem parecer carente.
Pelo visto arruinei alguma coisa, porque Rayner
voltou ao modo emburrado e azedo.
“Está tarde, chega de conversar por hoje.” Disse
ele.
“Mas por quê? Desculpa se eu…” Eu engoli
meus resmungos, precisava ser mais incisivo, se
quisesse ganhar respeito. “Quero te beijar de novo.”
“Óbvio que você quer.” Disse ele. “E é isso o
que mais me preocupa.”
“Por quê?”
Ao invés de responder, Rayner me agarrou e
puxou contra ele, unindo nossas bocas em um beijo

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ainda mais forte que o primeiro, só que apesar da


pegada gostosa eu não consegui curtir muito. Não
havia intensidade, apenas a grosseria de quem não
sabia o que estava fazendo.
Eu tentei acompanhar o mover de seus lábios,
sem entender o porque de tanta raiva. Mesmo
inexperiente, Rayner podia ter alguma noção de
como me agradar, não é?
Rayner me afastou de seus lábios puxando meu
cabelo por trás. Não doeu muito, mas algo nele
mudou e eu não entendia o quê.
“Satisfeito? Agora durma.” Disse ele.
“Tá… tudo bem.” Eu alisei meu cabelo
bagunçado, com o rosto todo vermelho e a minha
cauda tremendo em excitação. Um beijo ruim não
deixava de ser um beijo com o cara mais
deslumbrante e cheiroso do universo. “Boa noite,
Rayner.”
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Eu deitei no peito do Rayner, podendo ouvir o


som acelerado de seu coração. Seu corpo era
quente, grande e confortável, parecia feito para
aninhar alguém pequeno como eu.
Mesmo confortável, seria difícil dormir naquela
posição, ainda mais com o desfecho esquisito da
nossa conversa. O temor em ter estragado tudo
espremia meu coração dolorido, mas as minhas
preocupações logo se acalmaram.
Rayner podia ter se irritado comigo, mas assim
que nos acomodamos ele contornou os braços nos
meus ombros e continuou a me acariciar com seu
toque suave e gentil.
Envolvido pelos seus músculos tão fortes
quanto afetuosos, eu sorri tranquilizado e não
demorei a apagar, carregando nos lábios e nos
pensamentos o sabor do meu primeiro beijo.

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Capítulo 43

O ondular da água embalava meu sono quando


um toque gentil no ombro me fez acordar.
Eu emergi preguiçoso, notando estar sozinho na
banheira. Então abri os olhos e…
“Aaaaaah! O que é isso??” Eu gritei, patinando
na porcelana, tentando fugir e voltando a desabar
dentro da água.
Era um bicho emplumado, preto e verde, de
olhos vitrificados e o bico entreaberto, com a língua
para fora. Rayner o segurava pelas pernas e me
olhava com tédio, esperando eu terminar o meu
chilique.
Eu logo consegui me acalmar e sentei na borda,

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tentando retirar minha imensa cauda de dentro da


banheira.
“Você mencionou odiar peixes.” Rayner
balançou o bicho em sua mão. “Eu trouxe um
marreco.”
Eu estiquei os lábios em uma careta
consternada.
“Será que eu posso ser um tritão vegetariano?”
Perguntei.
Assim que recuperei as pernas, Rayner jogou
aquela coisa no meu colo.
“Alimente-se. Temos uma longa viagem até o
mar.”
Eu derrubei o bicho morto no chão e enrolei
uma toalha na cintura.
“Mar? Tá falando de Miami? Porque acabou
tudo, Rayner. Como posso me apresentar depois de

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tudo o que aconteceu?”


Rayner não deu o menor pensamento ao meu
problema, ele apenas pegou a caça no chão e levou
para fora.
“Se eu preparar à moda dos humanos, você vai
se alimentar?” Perguntou ele.
Eu apertei minha barriga, que roncava por
simples nervosismo. Eu não me alimentava há
quase dois dias e ainda assim a ideia de comer
qualquer coisa me fazia querer vomitar.
A pior parte era que eu já não sabia o motivo da
minha angústia. Seria mesmo porque eu matei o
Clint, ou por causa do ele me disse?
Eu confiei no Clint, no Benny e na Elyse, mas
naquele momento, olhando para trás, era como
assistir a um show de ficção científica na TV ou
lembrar de memórias muito distantes, quando o
mundo inteiro era diferente.
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Me assustava o quão rápido o mundo desabava


ao meu redor, e como ao mesmo tempo novos
pilares surgiam onde eu nunca imaginaria. Levi, o
garoto virgem e desinteressado em romance, agora
se encontrava em uma ilha no meio de um lago,
vestindo apenas uma toalha enquanto um homem
absurdamente lindo juntava galhos em uma
fogueira.
A julgar pela altura do sol, era bem cedo da
manhã. Uma névoa gelada encobria a grama
espinhosa da ilha e me causava arrepios. Só então
notei a roupa que Rayner vestia. Era a camisa de
veludo vermelho que escolhi para ele na noite
anterior. Em torno da cintura ele ainda trajava meu
casaco, um tecido tão curto que quase mostrava
demais.
Ainda ocupado em acender a fogueira, Rayner
percebeu para onde eu olhava e afrouxou o nó das

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mangas.
“Quer seu casaco de volta?” Perguntou ele,
desatando o laço.
“Não, não! Não precisa!” Eu falei, super
vermelho. “ Tem mais roupas no armário, vou
pegar alguma coisa qualquer.”
Rayner franziu a testa com leve confusão e
começou a depenar o marreco morto, como se fosse
a atividade mais comum do mundo.
Meu estômago revirou e eu corri de volta para o
farol. Não suportava mais lidar com morte e
sangue, e Rayner parecia atrair essas duas coisas.
O dono do farol devia ser um cara enorme,
porque a menor camisa que encontrei virou um
vestido em mim. Ainda era melhor do que ficar
pelado, então eu abotoei a frente até os joelhos e
voltei para o Rayner, que àquela altura já havia
limpado sua caça e espetado sobre as chamas.
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“Você tem prática com isso.” Eu me aproximei,


ainda estranhando a frieza em seu olhar. “Digo,
começar fogo é bem complicado. Você bateu duas
pedras, que nem os vikings dos filmes?”
Rayner balançou uma caixinha em suas mãos.
Ah, claro que aquele lugar teria uma caixa de
fósforos, eu era um retardado.
Triste e solitário, eu repassei na minha mente
todas as lembranças possíveis, tentando entender o
porque do Rayner mudar comigo. Ele sempre foi
hostil e silencioso, mas ontem… ele foi outro. Ele
se tornou alguém que confiava em mim.
E a troco de nada, naquela manhã nós
retornamos ao zero.
“Eu errei quando fugi de casa.” Eu disse a ele.
“Apesar de todas as proibições e mentiras, eu amo
a minha família. Minha intenção era apenas
competir nas eliminatórias, então o Clint falsificou
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a assinatura do papai Hian e roubou o celular do


Benny para os meus pais não me acharem, e
então… você sabe.” Eu me abracei nos joelhos,
encolhido ao lado do Rayner enquanto a fogueira
me aquecia.
“Não se desculpe pelo que está além do seu
controle.” Rayner girou o espeto, cuidando para
não queimar a carne.
“Mas eu podia ter evitado, se tivesse ouvido o
papai Hian.” Eu suspirei, me sentindo pior que lixo.
“Eu nunca perguntei qual dos meus pais é meu pai
biológico, mas a verdade é que eu e papai Hian não
temos nada em comum. Ou era o que eu pensava.
Às vezes sinto como se eu fosse filho dos dois.”
Algo no olhar do Rayner mudou por um breve
instante. A emoção da noite anterior ainda existia
dentro dele, como um grito tentando escapar, e que
entretanto agora ele forçava para o fundo, como

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uma muralha de gelo.


Rayner baixou o olhar para o fogo, que refletia
em seus olhos e intensificava os lindos tons de
vermelho.
“Por que um assassino teceria mentiras tão
dolorosas?” Ele perguntou. “Ocultar a própria
paternidade deve causar uma dor imensurável, e
entretanto ele se relegou a uma vida de sofrimento
apenas para te proteger?”
Um assassino? Digo, outro assassino, além de
mim? Eu franzi a testa, me aproximando do Rayner
um pouquinho mais.
“Rayner… você sabe algo que eu não sei?”
Silencioso, quase sombrio, Rayner virou-se
para mim e deslizou a mão pela minha coxa. A
surpresa do seu toque me fez gemer alto. Ele
moveu a mão por baixo do tecido, deslizou o
polegar próximo das minhas partes mais sensíveis e
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por fim descansou a palma na minha barriga.


Ignorando o vermelho no meu rosto e meus
gemidinhos fracos, ele me olhou com gravidade e
certa tristeza.
“Seu corpo é como uma fechadura sem a chave.
Precoce como o de um humano, leal como o de um
tritão. A verdade talvez venha a você, um dia. É um
dos primeiros ensinamentos do chamado.”
“O que é o chamado?” Perguntei, todo
eletrizado e quente.
“É o motivo de você viver em Bobcat Hollow.”
Rayner parecia mais triste a cada palavra. “Você o
conheceria se em algum momento entrasse no
mar.”
Nossa, sério? O que havia de triste nisso? Eu
abri um sorriso empolgado e eufórico, mal podendo
esperar.

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“Por que não disse antes, Rayner? Se esse tal


chamado pode me explicar todas as verdades,
precisamos chegar na praia o quanto antes!”
No meu surto de empolgação eu até esqueci da
mão do Rayner, o que causou outro gritinho
surpreso quando ele me alisou por baixo da camisa,
subindo seus dedos até a altura do meu peito e
expondo completamente minha parte de baixo.
Era embaraçoso, Rayner me deixava duro
demais, rápido demais, e ainda assim ele não
parecia ligar para seu efeito em mim. Ele talvez
estivesse implicando comigo, mas a seriedade em
seu olhar sugeria outra coisa. Algo que eu nem
conseguia imaginar.
Independente de suas intenções, assim que
Rayner pinçou meu mamilo eu vi estrelas.
“A verdade é mesmo tão importante assim?
Você perderia tudo, para descobrir o que você é?”
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Ele sussurrou no meu ouvido.


“Ah… Rayner… isso é um pouco…
exagerado…” Eu tremia demais, vítima da
excitação mais ardente de toda a minha vida.
Rayner aos poucos subia em mim e na mesma
medida eu deitava no gramado, incapaz de conter
meu fervor crescente.
“Você deduziu corretamente, em suas veias
corre o sangue de ambos os seus pais. Você nasceu
do ventre de Hian II, é o primeiro tritão a nascer da
relação de um híbrido com um humano, em um
vínculo de predestinação corrupto e inexplicável.”
Eu tentava compreender Rayner, mas ele
precisava explicar daquele jeito, com a mão cada
vez mais para dentro das minhas coxas? Onde ele
queria chegar com aquilo? Pela calma em seus
olhos ele nem parecia entender o que fazia comigo.
Talvez ele entendesse quando eu melasse a
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barriga dele, mas aí eu me mataria de vergonha, eu


precisava aguentar.
“Então… os dois são meus pais? Está dizendo
que papai Hian engravidou? Mas ele é um
homem!”
“Ele é um tritão híbrido, assim como você. Os
ômegas da nossa espécie carregam no ventre a
semente do alfa. É como geralmente nos
reproduzimos.
Ômega? Rayner já havia mencionado essa
palavra antes. Eu consegui me lembrar mesmo
quando meu corpo se tornava uma segunda
fogueira naquela ilha deserta.
Por um instante, um relampejo de culpa dobrou
meu coração ao meio. Todas as coisas horríveis que
eu disse ao papai Hian, todas as trocas de
hostilidade, o distanciamento dele, as brigas… E
este tempo todo foi ele quem me trouxe ao mundo.
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Mas a verdade sobre papai Hian não era a


revelação mais importante. Eu olhei para baixo e
tentei fechar as pernas, meu tesão ingênuo aos
poucos se tornando medo e assombro.
“Eu também posso carregar um bebê?”
“Quem poderia dizer? Não existe outro como
você, Leviathan.” Rayner deslizou as unhas pelo
interior da minha coxa, me fazendo contorcer em
espasmos quentes. “É dolorido quando eu faço
isso?”
“Dolorido não é exatamente a palavra certa.”
Eu disse, arfando e atento para o meu mastro
petrificado, que Rayner ignorava como se nem
existisse. “Você… não sabe mesmo? Nunca sentiu
prazer?”
Rayner balançou a cabeça, um pouquinho
vermelho, só então entendi o que era aquela
situação, e a resposta era tão mais boba do que
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minha mente pervertida havia deduzido: Rayner


estava curioso sobre o seu efeito em mim.
E se Rayner não fazia ideia do que eu sentia,
então tritões eram ainda mais diferentes do que eu
imaginava.
“Pode tocar ali embaixo.” Eu falei, queimando
de vergonha. “Digo, eu quero que você toque.”
Rayner ajoelhou entre as minhas pernas abertas
e enfim olhou direto para o meu pau. Uma gotinha
úmida escorreu da ponta bem naquele momento, de
tão enlouquecido que eu estava.
“Não posso.” Disse ele. “O chamado não
permite a maculação dos nossos corpos.”
Eu não entendi coisa nenhuma, então apenas ri
com certo atrevimento.
“O que esse tal chamado poderia fazer? Te
castigar por causa de uma massagem?” Perguntei.

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Rayner suspirou, pensativo e triste.


“Acredito que o chamado já esteja me
castigando.”
E simplesmente assim, Rayner se levantou e foi
virar a carne do marreco.
Eu permaneci de pernas abertas no gramado
frio, como o prostituto mais frustrado do mundo.
Rayner só podia estar tirando com a minha cara.
Tentando não gritar de ódio, eu baixei o
camisetão e me sentei todo torto e desconfortável.
Só mesmo o chão gelado para apagar o fogo nas
minhas bolas.
Apesar da frustração, algo em mim não me
permitia sentir raiva do Rayner. Não era a primeira
vez que ele demonstrava fascínio por mim, mesmo
que fosse de forma completamente ingênua. Talvez
Rayner fosse assexual da mesma forma que eu
costumava ser, antes de conhecê-lo? Eu não sabia
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se isso era bom ou desesperador, só esperava


compreendê-lo logo.
Sem reparar na minha cara de angústia
enraivecida, Rayner rasgou uma coxa do marreco e
me entregou.
Eu peguei aquela coisa e fiz um beicinho torto.
Aquilo costumava ser um bichinho feliz da
natureza, eu deveria sentir nojo, mas na verdade o
cheiro era uma delícia, tão quentinho e intenso que
fazia o meu estômago rugir e lembrar da fome.
Desconfiado, eu mordisquei a pontinha e logo
enterrei meus dentes na carne suculenta. Não era
apenas gostoso, era uma delícia. Rayner até
temperou com sal e pimenta, era mil vezes mais
saboroso do que a carne do açougue.
Rayner sorriu brevemente para o meu apetite e
também começou a comer.
“E então…” Eu tentei quebrar o silêncio.
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“Como pretende chegar em Miami?”


“Miami?” Ele me perguntou.
“É, a praia. Você não disse que o mar
responderá as minhas dúvidas?”
Rayner baixou o olhar, atento ao dançar das
brasas.
“Existem trajetos mais rápidos até o mar,
seguindo na direção norte.” Disse ele. “Mas será
uma jornada longa e cansativa. Talvez você prefira
ligar para os seus pais, eles podem te buscar aqui
perto.” Disse ele.
“Não, nem pensar, eles apenas me trancariam
em casa de novo. Eu amo os meus pais, Rayner,
mas eu sempre quis a verdade, viver uma aventura
pelo mundo… Posso até te ajudar a completar sua
missão, o que acha?” Eu sorri e descansei a cabeça
em seu braço. “Vou te seguir para onde quiser me
levar. Eu confio em você.”
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Rayner não respondeu nada, apenas terminou


seu almoço e depois voltou para dentro do farol.
Com uma expressão azeda e vazia ele encheu uma
sacola plástica com tudo o que considerava
importante, fechou bem e guardou em uma
mochila. Ele nem sequer me mandou acompanhá-lo
quando saltou na água, então precisei correr para
acompanhá-lo.
O humor do Rayner alterava rápido demais,
mas descobrindo os seus segredos e sua cultura
talvez eu encontrasse o caminho de seu coração. E
com certeza o chamado me ajudaria com isso.

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Capítulo 44

Após mais um dia de nado, nós finalmente


alcançamos o fim do lago. O treinamento forçado
aprimorou muito a minha natação, pois dessa vez
consegui subir graciosamente nas pedras e
recuperar a forma humana sem me bater em nada.
Rayner saiu junto de mim, revelando seu belo
par de pernas musculosas. Apesar de algumas algas
nas nossas roupas, o tecido resistiu bem ao longo
trajeto. Claro que isso não resolvia o problema do
frio.
Estremecendo pela brisa gelada, eu ergui o
olhar e me assustei. Aquilo ao longe eram
cordilheiras nevadas? E por que os pinheiros
estavam tão brancos, se era começo de primavera?
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“Rayner, onde você nos meteu?” Perguntei,


batendo os dentes.
“Acredito que vocês humanos conheçam este
território como Canadá. Precisaremos andar o resto
do trajeto até o Baía de Hudson.” Rayner esfregou
os braços, também tendo arrepios.
“Canadá, você disse? Mas aqui só tem neve,
nesta época do ano. Não podíamos visitar um litoral
mais quente?”
“Nossa eficiência é maior na água. Infelizmente
os Grandes Lagos terminam aqui.”
Rayner desceu a mochila de suas costas, abriu a
sacola e me passou uma camisa seca. Ele também
vestiu uma, embora aquilo não fosse nem de longe
o suficiente. Eu precisava de um casaco ou eu iria
congelar.
Enquanto trocava as roupas o mais rápido
possível, por acaso vi Rayner também se trocando.
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Não havia sido impressão minha, sua pele


combinava em cor com o tecido vermelho da
camisa molhada.
“Será que a tintura desbotou em você?” Eu me
aproximei e toquei o lado de seu pescoço.
Rayner contraiu os músculos em um espasmo
dolorido e se afastou.
“É pouca coisa. Selkies não foram feitos para
nadar nesta água irritante. Tritões deveriam ser
ainda menos resistentes, mas pelo visto você é
imune.”
Aquilo não me parecia pouca coisa. Eu tentei
verificar a abrasão na pele, mas pela cara do
Rayner eu não conseguiria chegar mais perto.
“Podemos comprar uma pomada na farmácia.”
Eu sorri, apesar de preocupado. “Ou eu posso te
curar com meus incríveis poderes mágicos!”

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“Boa tentativa, mas não funciona assim


conosco.” Rayner deu uma breve risada e passou a
mochila nas costas. “Tritões e selkies precisam de
água marinha para se recuperar.”
Ah, é. Fazia sentido. No caminho até ali Rayner
me explicou algumas coisas sobre o chamado,
sobre como ele recuperava ferimentos, alertava
sobre perigos e até permitia uma certa comunicação
rudimentar entre tritões que se mantivessem dentro
da água. O chamado também sussurrava para todos
os tritões e selkies desde a infância, ensinando
segredos da espécie e o nosso lugar no mundo.
Parecia super legal e divertido, apesar do Rayner
não se empolgar muito a respeito dele. A parte mais
curiosa foi quando perguntei o que era o chamado,
exatamente. Rayner não fazia ideia, assim como
ninguém do povo do mar. Parecia um mistério
super excitante de ser desvendado.

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Rayner seguiu por uma estradinha de neve


pisada e eu corri para acompanhar, tentando
esquecer dos meus pés descalços no chão
congelante.
Percebendo que eu ainda tremia, Rayner me
abraçou de lado contra seu corpo forte. Eu nunca
fiquei tão feliz por passar frio.
“Você não sente frio?” Eu perguntei, tiritando
os meus dentes e soltando vapor branco a cada
respiração.
“Selkies e tritões não são exatamente iguais.
Presumo que minha resistência térmica se
mantenha na forma humana, até certo ponto, ou
talvez eu já esteja acostumado.”
“Então selkies vivem em lugares gelados? Até
que faz sentido. Um documentário que eu assisti
mostrava focas caçando em geleiras.”
“Está comparando meu povo com aquelas
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pragas devoradoras de pinguins?” Rayner arqueou


a testa.
“Não, não, eu só… atchim!” Eu esfreguei meu
nariz gelado, quase me enterrando contra os
músculos quentes do Rayner. “Você disse no
começo que a gente era quase igual, mas pelo visto
os selkies são uma raça bem superior.”
Rayner gargalhou alto. Era a primeira vez que
eu o via rir tanto, e era especialmente embaraçoso
porque ele tentava parar e não conseguia.
“Eu imagino a cara dos seus compatriotas
tritões, se te ouvissem falando essas asneiras.” Ele
esfregou a mão no meu braço, não sei se me
acariciando ou me aquecendo. “Tritões sempre
foram a raça superior. Mais rápidos, mais espertos
e organizados, e geralmente também mais fortes,
isto sem considerar sua vantagem… genética,
digamos assim. A única vantagem de um selkie é

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sua resistência estúpida ao frio.”


“O que você quer dizer com vantagem
genética?”
“Ahm… como explicar de forma que você
entenda…” Rayner olhou alto, pensativo. “A
genética dos tritões e selkies é diferente da humana,
traços físicos não podem pular gerações, entende?
Você nunca poderia nascer com os olhos verdes do
Dylan, por exemplo.”
“Minhas notas em biologia são meio horríveis,
mas acho que entendo. Se eu não fosse um oráculo
eu teria nascido com os olhos azuis dos meus pais,
certo?”
“Não exatamente, é complicado porque você é
único. Em situações normais, os genes humanos em
um tritão híbrido nunca passam adiante. O filhote
de um híbrido com um sangue-puro, ou um filhote
de dois híbridos sempre será um sangue-puro. A
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cauda azul de Hian II é uma herança do pai


humano, então… estou te confundindo, né?”
“Completamente.” Eu comecei a rir,
encabulado.
“Enfim… existe um único gene que sempre
passa adiante, em um clã específico dos tritões.
Esta mutação é capaz de gerar um oráculo, o que
torna os tritões superiores em relação aos selkies.”
“Nossa, sua raça não tem… atchim!… não tem
uma autoestima muito boa.” Eu falei com cuidado,
não querendo insultá-lo por acidente. “Acho
resistência ao frio muito legal, digo, tá sendo muito
útil para você, agora.”
Rayner deu um longo suspiro e parou no meio
do caminho. Ele abaixou na minha frente e colocou
as mãos para trás.
“Seus pés vão acabar congelando. Suba.” Disse
ele.
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Apesar do frio, meu rosto ferveu. Subir nas


costas do Rayner? Sério?
Incrédulo, eu me ajeitei atrás dele e Rayner me
ergueu com facilidade, então seguiu andando.
Os músculos de suas costas emanavam um
calor tão delicioso que eu logo parei de tremer e
comecei a rir.
“O que é tão engraçado?” Perguntou ele.
“Você tem um lado bem doce, quando quer.”
Eu disse.
“E você só percebeu isso agora? Depois do
tanto que eu te ajudei?” Rosnou ele, conseguindo se
ofender com o elogio.
“Existe uma diferença entre afundar minha
cabeça na água e me proteger, sabia?” Eu balancei
meus pés aos lados da cintura dele, super contente.
“Eu me sinto um príncipe a caminho do meu

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palácio.”
Rayner balançou a cabeça, perplexo com as
minhas palavras.
“Pense o que quiser. No seu ritmo nós nunca
chegaríamos a tempo no litoral.”
“Nós temos um prazo para chegar lá? Isso tem
algo a ver com sua missão?” Eu perguntei.
“Digamos que sim.” Disse ele, desanimado.
“Ah, deveria ter falado mais cedo.” Eu olhei ao
redor e avistei apenas pinheiros e montanhas
distantes, até que uma luzinha distante atraiu minha
atenção. “Vire para aquele lado. Estou vendo uma
lanchonete de estrada.”
“Eu te cacei dois pelicanos no caminho para cá
e você já está com fome?”
“Até parece que eu comeria um pelicano cru.
Estou meio faminto, sim, mas não é por causa

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disso. Se tem uma lanchonete nesse fim de mundo,


podemos ter sorte e conseguir carona.”
“Carona?” Rayner tentou me olhar por cima do
ombro.
“Sim, podemos viajar de carro e chegar nesta
tal Baía de Hudson em poucas horas.” Eu sorri, me
sentindo super esperto. “Assim vamos demorar
horas ao invés de dias e você terminará sua missão
super cedo. Com certeza vai ser promovido a
tenente, que nem o seu pai.”
Rayner grunhiu alguma coisa e andou até onde
o caminho bifurcava em dois. Um lado seguia na
direção sem montanhas, provavelmente uma rota
direta ao litoral, e o outro caminho conduzia aos
pontinhos luminosos além da floresta de pinheiros,
onde nossa possível carona nos aguardava. Ele
ficou um tempo parado e indeciso, e por fim seguiu
na direção da lanchonete.

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Ah, graças a Deus. Nadar por horas era até


divertido, considerando-se que a minha cauda era
uma novidade e as paisagens subaquáticas eram
lindas, mas eu morreria de cansaço andando por
dias até a praia. E mesmo de garupa no Rayner eu
acabaria congelando em algum momento.
“Ei, ei, já que vamos parar naquela lanchonete,
podemos pedir poutines e brioches com xarope de
bordo? É a minha primeira vez visitando o Canadá
e, pensando bem, a gente não devia ter passado
pelo controle de fronteira? Eu nem tenho um
passaporte, e se formos presos como imigrantes
ilegais?”
“Você continua falando coisas absurdas.” Disse
ele, no tom sério e frio que eu pensava que não
voltaria mais. “Peça o que quiser. Aquele lugar
deve ter um telefone, também, para que comunique
a sua família.”

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“Tá brincando? E o que eu diria? Oi, papai


Hian, ah, estou ótimo. Assassinei meu amigo e fugi
nadando até o Canadá com um cara que devora
animais vivos. A propósito, os poutines daqui são
maravilhosos.” Eu comecei a rir nervoso só de
imaginar. “É, eu ficaria de castigo pelo resto da
vida.”
Rayner bufou e me desceu de trás dele. Já
havíamos chegado na frente do lugar.
Para uma lanchonete de fim de mundo, aquela
cabana até que era fofa e organizada, apesar de um
pouco cafona. Muitas luzes neon contornavam as
janelas, a porta de vidro e a placa com o nome do
lugar: Le Homard Bleu.
Ai, droga, não bastava a gente ter invadido o
Canadá, nós também invadimos a parte francesa?
Meu francês era terrível, eu sempre tirei as piores
notas da turma até mudar para alemão, onde meu

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desempenho foi ainda pior.


Voltando a tremer de frio, eu me apressei pelo
estacionamento até a entrada, não sem antes reparar
em um único ônibus solitário. Era um desses ônibus
personalizados e coloridos, estampado com o fotos
de jovens mulheres maquiadas, microfones e
muitas notas musicais. Devia pertencer a alguma
banda.
Bem, aquela era nossa única esperança de
conseguir carona, então eu torcia que fossem
pessoas simpáticas, que se apiedassem pelas nossas
roupas precárias. Tudo o que eu vestia era outro
camisetão até os joelhos, e a água do meu cabelo
havia cristalizado como tufos de gelo, então eu já
ficaria feliz se não nos expulsassem daquele lugar.

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Capítulo 45

Eu me apressei com Rayner para dentro da


lancheria, e assim que entrei veio aquele suspiro de
alívio.
O lugar era tão gracioso por dentro quanto por
fora, com garçonetes de avental branco e painéis
acima do balcão mostrando a foto de diversos
pratos. A maioria das mesas estava vazia exceto
pela mais comprida aos fundos, onde um grupo de
senhoras conversava animadamente.
Um delicioso cheiro de pão quente atiçou
minha fome, mas a melhor parte era a temperatura.
O ar condicionado quentinho me fazia considerar
viver ali e nunca mais sair.

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“Nossa, vocês caíram no lago, ou coisa assim?”


Perguntou uma jovem garçonete, bem assustada.
“Mais ou menos isso.” Eu sorri, encabulado.
“Me desculpe pela nossa aparência.”
“Não, imaginem, foi muita sorte chegarem até
aqui andando molhados nesse frio. Vários turistas
simplesmente congelam e só são encontrados no
verão, quando a neve baixa. Ei, aconteceu alguma
coisa com os olhos de vocês?”
Rayner rosnou para ela, e eu apertei a mão dele
para interrompê-lo.
“Ahm, nós… somos artistas de circo.
Estávamos treinando algumas piruetas quando
caímos na água. Sorte que nossas lentes de contato
não sumiram, lentes coloridas são bastante caras.”
“Se vocês consideram sorte cair no lago em
plena primavera canadense, quem sou eu para dizer
o contrário.” A menina estendeu a mão super
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simpática e entregou o cardápio ao Rayner.


“Sentem-se e fiquem à vontade, a gerente os
atenderá em breve.”
Eu e Rayner sentamos na mesa indicada, de
frente um para o outro. Os bancos eram macios e
acolchoados e a vista da janela era linda. As
montanhas de neve realmente impressionavam pela
sua beleza quando o vento não tentava me congelar.
Para a minha surpresa, Rayner até que se
acomodou bem rápido. Pensei que se revoltaria
com o lugar, ou com a conversa agitada nos fundos,
ou com a nossa demora, mas ele apenas deitou o
cardápio na mesa e verificou as opções, bastante
intrigado.
Eu avermelhei e precisei segurar o riso. Apesar
das circunstâncias, aquilo meio que parecia um
encontro. Meu primeiro encontro com o Rayner.
“Não existem restaurantes onde você vive?” Eu
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perguntei.
“Existem diversos restaurantes na superfície,
mas um Schwanz dificilmente seria bem-vindo.
Frequentei umas duas vezes com o meu pai quando
eu era bem pequeno, mas isso porque ele era um
tenente. Promoções militares são uma das únicas
maneiras de ganhar os benefícios da alta casta. E de
qualquer forma…”
Rayner enfim percebeu o quanto estava falando.
Ele corou tão vermelho quanto seus olhos e
escondeu o rosto por trás do cardápio.
“Não precisa ter vergonha, Rayner. Adoro ouvir
tudo o que você me conta.” Eu disse, super
emocionado. Rayner só falava tanto quando estava
relaxado e feliz.
“…Ahm, certo... Existem selkies das
profundezas e selkies da superfície, somos
semelhantes aos tritões neste aspecto, mas existem
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certas distinções. Nos mares gelados é


inconveniente mudar da água para a terra firme
com frequência, o frio de Cratília não se compara à
brisa inconveniente daqui. Por este motivo nossa
separação entre habitantes da superfície e das
profundezas é muito mais rígida. Clãs de baixa
casta vivem quase exclusivamente na água, e a
monarquia, militares de alto escalão e clãs de alta
casta vivem na superfície, em casas aquecidas e
com piscinas de água quente.”
“Nossa, acho que eu nunca te ouvi falar tanto.”
Eu respondi, embasbacado.
Rayner corou de novo e voltou a se esconder
atrás do cardápio.
“São apenas bobagens. Um tritão não tem
motivos de se importar com isso.”
“Eu acho fascinante, mas um pouco injusto. Se
você quiser morar na superfície não pode, apenas
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por causa do seu sobrenome?”


“Não existe uma proibição, é mais tipo… uma
convenção social, eu acho? Os olhares de desprezo
não compensariam o esforço, e isso se o selkie de
baixa casta conseguisse o milagre de comprar uma
casa de superfície. A primeira coisa que os
vendedores verificam é o status do seu clã.” Rayner
me passou o cardápio, deixando transparecer um
sorriso triste. “Não é tão ruim quanto parece. As
casas submersas podem ser até mais confortáveis
que as da superfície, o luxo e o conforto estão
disponíveis para qualquer núcleo que se esforce o
bastante e em nossa forma aquática o chamado nos
protege do frio. O problema não é viver uma vida
inteira nas profundezas ou na superfície. O
problema está em se adaptar…”
Um rugido no meu estômago me forçou a
verificar logo o cardápio. Para a minha sorte

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haviam poutines, e eles pareciam absolutamente


deliciosos.
“Acho que entendi. Você vivia na superfície em
uma vida confortável com o seu pai tenente.
Quando ele morreu, te jogaram na água e disseram
se vira.”
“É, foi basicamente isso.” Rayner riu, dessa vez
com uma doce sinceridade. “Não existem orfanatos
ou proteções sociais em Cratília, qualquer um que
me ajudasse poderia ser preso, mas o General
Cordelen, que é um tritão, desafiou a lei para me
acolher na medida do possível. Ele me considera
um filho adotivo, pode acreditar? Tritões acreditam
em termos estranhos, mas eu devo a minha
sobrevivência ao núcleo dele, eu nunca o
agradecerei o suficiente.”
Uma senhora parou do nosso lado,
interrompendo a fala do Rayner. Era uma idosa

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gordinha de olhos bem azuis e cabelo loiro


grisalho. O crachá no avental dizia Babette
Montagne - Gerente.
Ai, nossa, não podia existir uma mulher mais
francesa que ela. Aquele era o meu momento de
impressionar o Rayner com a minha inteligência.
“Hum… per favore, mademoiselle, uno poutine
com quezo bleu, y una brioche con mapel serupe, y
mon ami vai querere…”
“Eu sei falar inglês, garoto. Quer pedir alguma
coisa, ou apenas passar vergonha com esse francês
tenebroso?”
Rayner cobriu a boca com as mãos e quase
explodiu segurando o riso. Mas que ódio.
“Um poutine com queijo gorgonzola e brioches
com xarope de bordo. E para você, Rayner?”
“Je veux juste une tasse de thé et des bâtonnets

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de poisson, s'il vous plait.” Rayner entregou o


cardápio para a gerente.
“Je vais le fournir, monsieur.” Respondeu ela,
com um sorriso impressionado. “A Marcelle logo
irá trazer seus pedidos. Ah, e peço que perdoem a
barulheira nos fundos, os membros daquela banda
são nossos fiéis clientes e sempre se empolgam
entre suas turnês.”
A gerente voltou para a cozinha e o tempo todo
eu fiquei paralisado, encarando o nada com os
olhos enormes. Eu lentamente me virei para o
Rayner, que casualmente observava a paisagem até
notar o meu assombro.
“O que foi? Você pensou que falavam inglês
americano em Cratília?” Percebendo que meu
choque não passava, Rayner desatou a rir. “O povo
do mar tem um histórico de negociação com
humanos, especialmente os selkies. Diversos clãs

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se especializam no aprendizado de múltiplos


idiomas.”
Eu balancei minha cabeça, tentando resetar o
cérebro. Como aquele cara se impressionava tanto
comigo se ele era muito mais inteligente? Quanto
mais eu aprendia com o Rayner, mais eu me sentia
burro. Era como aprender ao contrário.
“Cratília parece ser um lugar incrível, apesar de
seus problemas.” Eu falei, querendo desviar o
assunto. “Quando você concluir sua missão, quero
que me leve para conhecer. Uma cidade de gelo
deve ser fascinante.”
Rayner travou por um breve instante e seu olhar
vermelho-sangue tremulou na direção dos meus.
“Cratília não é uma cidade, é… digamos que
um estado. Eu cresci em Roori, a capital de
Cratília, mas existem outras cidades espalhadas
entre os dois estados do império, que são Cratília e
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Faerynga.”
Uau, a sociedade dos selkies parecia maior do
que eu imaginava, ainda assim não ignorei que
Rayner desviara do meu comentário. Que problema
poderia haver em visitar sua cidade natal?
Bem, eu podia pressioná-lo depois quanto a
isso. Eu preferia aproveitar seu bom humor e
descobrir tudo o que pudesse.
“Existe um país de tritões, também? Com um
presidente tritão, e tudo o mais?” Eu perguntei.
“O reino dos tritões é uma monarquia
absolutista. Não existem estados ou cidades, apenas
uma capital que suga todos os recursos de colônias
dispersas pelo oceano. É uma estrutura social
primitiva, onde colônias distantes são muitas vezes
abandonadas à própria sorte e ainda assim devem
tributo à Coroa.”
“Nossa, parece horrível, tipo uma versão pior
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do feudalismo.” Eu vasculhei minhas lembranças


da aula de história, torcendo que feudalismo fosse a
comparação correta. “Pelo visto os tritões e os
selkies tem um monte a aprender um com o outro.”
Rayner riu de novo.
“Você realmente fala muitas besteiras.” Disse
ele.
Não me parecia besteira, mas eu nem quis
discutir. O sorriso nos lábios do Rayner me aquecia
até mais que o calor de seu corpo. Todos os meus
problemas, as mentiras dos meus pais, os amigos
que eu perdi, o campeonato que eu nunca venceria,
tudo se tornava distante e quase suportável quando
Rayner conversava comigo.
Era estranho afundar no pior abismo da minha
vida e ao mesmo tempo vivenciar uma alegria tão
nova e tão vibrante. Era como se na companhia do
Rayner eu fosse capaz de qualquer coisa, incluindo
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superar a minha própria ruína.


A garçonete de antes logo apareceu com nossos
pedidos. O molho do poutine fumegava em um
aroma delicioso de carne e salsa e os brioches
pareciam crocantes por fora, ainda escorrendo o
caldo dourado de xarope fresquinho. Só faltava o
meu estômago tocar cornetas de tanta felicidade,
era a minha primeira refeição decente em dias.
Rayner recebeu uma xícara de chá e bastões de
peixe frito. Ele não devia estar faminto depois de
devorar aquele pelicano, mas era um alívio vê-lo
comer comida normal.
Empolgado, eu logo ataquei a comida. Minha
boca quase transbordava batatas quando notei que
Rayner ainda conversava com a moça e recebia
dela uma grande sacola.
“O que tem aqui?” Rayner apertou a sacola, que
parecia bem macia.
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“Vão adoecer andando despidos na rua. Os


clientes sempre esquecem casacos por aqui, então
fiquem com estes. Não são exatamente novos, mas
são os mais quentinhos dos nossos achados e
perdidos.” Disse a garota.
Rayner retirou o conteúdo da sacola, eram dois
sobretudos de lona com gola felpuda. O cinza era
bem grande e o azul era pequeno o bastante para
caber em mim.
“Nossa, obrigado.” Eu falei no lugar do Rayner,
porque ele havia paralisado em surpresa.
“Imaginem, não podíamos deixar um casal tão
lindo congelar lá fora.” Ela sorriu para nós e se
despediu com um gesto da mão. “Deixaremos luvas
e um par de botas na saída, para vocês. Tenham um
bom almoço.”
A garçonete foi embora e eu baixei o meu olhar
para o meu colo, fervendo de tanta vergonha. Eu e
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o Rayner parecíamos um casal?


“Humanos são mais generosos do que me foi
ensinado.” Rayner deixou os casacos na cadeira ao
lado, também um pouco vermelho.
“Talvez porque sejam canadenses.” Eu
belisquei minhas batatas uma por uma, morrendo
de timidez. “Que pena, eu até gostei de ser
carregado nas suas costas.”
“É, é…” Gaguejou ele, também muito
concentrado em seus bastões de peixe. “Posso te
carregar de novo quando quiser. Você é bem leve,
mesmo para um ômega.”
Ai, nossa, o meu rosto aquecia tanto que
poderia incendiar aquela simpática lanchonete.
“Os outros tritões ômega são todos como eu?
Baixinhos e magricelos?”
“Sim, aliás, não exatamente…” Ele bebeu

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largos goles de seu chá, olhando para qualquer


lugar menos para mim. “Você é o ômega mais
bonito e delicado que deve existir.”
O queeeê? Eu cobri as bochechas com as mãos
antes que pegassem fogo.
Completamente embaraçados, nós dois
continuamos comendo com o olhar quase enterrado
em nossos respectivos pratos. Suor descia pelas
minhas costas e o calorão derretia o gelo nos meus
cabelos.
Eu nunca engoli uma porção de batatas tão
rápido e também nem prestei atenção no gosto dos
brioches. Rayner me achava bonito, e eu podia
supor que delicado também fosse uma qualidade
esperada nos ômegas, embora eu me achasse bem
estabanado. Era elogio demais vindo de um cara tão
enorme, viril e perfeito como o Rayner.
“Hum… é melhor eu garantir a nossa carona.”
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Eu levantei mal sentindo as minhas pernas e


cambaleei até a mesa com as diversas senhoras.
Saber que Rayner devia estar olhando pra minha
bunda não me acalmava em nada, eu não me
decidia entre andar reto como uma porta ou rebolar
bastante só pra provocar.
Eu cheguei no fundo da lanchonete e tentei
esfriar meus pensamentos. Apesar de sociável, eu
nunca fui bom em começar conversas com
desconhecidos, ainda mais pessoas bem mais
velhas. Pelo menos a alegria simpática daquelas
senhorinhas não me levantava nenhuma bandeira
vermelha.
“Oi, com licença…” Eu falei, logo roubando a
atenção da mulherada. “Aquele ônibus é de vocês?”
“Pode apostar, garoto!” A mais velha na ponta
da mesa bebeu seu enorme copo de chope, ainda
rindo sobre sei lá o quê. “Pensei que só a gente

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curtisse o poutine desse lugar. O que traz um casal


tão bonitinho pra esse cu de mundo?”
Ai, até as vovós nos confundiam com um casal?
Talvez Rayner e eu combinássemos de verdade,
seria como um sonho se realizando.
Espera, eu precisava me concentrar. Rayner se
chatearia muito em perder tempo a troco de nada.
“É uma história engraçada, na verdade ficamos
presos aqui, e a gente estava pensando…”
“Querem uma carona até a civilização? Eh,
rapaz de olho dourado, encontrou a velharada certa!
Faz tempo que nosso busão não cheira a macho!” A
senhorinha bebeu mais um chope, avermelhando o
rosto de tão bêbada. Apesar da idade ela vestia uma
mini blusa idêntica às da foto no ônibus, mas as
mulheres no adesivo eram jovens e lindas. Os
peitos da senhorinha eram tão murchos e secos que
o tecido despencava até o umbigo.
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Ok, meu alerta vermelho começava a apitar. Eu


me afastei da mesa um pouquinho e todo mundo
desabou de tanto rir.
“Dá um desconto para o garoto, Gigi, vai fazer
ele borrar as calças.” Disse uma outra, também
vestida em trajes pré-adolescentes que mal
encobriam as pelancas dos braços.
“Foi mal, foi mal, esses americanos se assustam
tão fácil.” A tal de Gigi esfregou o braço na boca
molhada e levantou, torta de tão bêbada. “Fechou
então, rapazinho. O próximo show da banda é em
Toronto, tá urbano o bastante pra vocês?”
“Não exatamente. Precisamos chegar na Baía
de Hudson ainda hoje.” Eu disse.
As senhorinhas pararam de rir e se
entreolharam, desconfiadas. Eu me arrepiei com
medo de ter exagerado e me senti super burro. Pelo
menos em Toronto a gente podia continuar de
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ônibus.
“O que porra é Baía de Hudson?” A senhora
Gigi mexeu em seu escandaloso celular com
capinha de vinil vermelho, e então arregalou os
olhos. “Esse monte de água e gelo no norte do país?
Caralho, minha buceta congelou só de ver a foto.”
Eu pensei em concordar, então notei que nem
mesmo eu conhecia a tal Baía de Hudson. Rayner
disse apenas que era um bolsão de água salina e o
acesso mais rápido ao oceano aberto.
“Desculpem se for inconveniente. Toronto
também serve.”
As mulheres nem me ouviram, repassando o
celular e parecendo muito intrigadas.
“Nossa, olha pra essa porra, deve ter pinguim
que não acaba mais.” Disse uma delas.
“Pinguim no Polo Norte, sua velha senil?

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Pinguins vivem no Polo Sul. Aqui deve ter, sei lá,


renas e o Papai Noel.” Disse outra.
“Papai Noel é gostoso pra caralho.” Disse uma
outra, com os olhos sonolentos e chapados.
A mulherada toda começou a rir. Que tipo de
banda essas mulheres deviam ter? Parecia uma fuga
em massa de algum asilo, ou uma excursão para
algum clube de bingo.
Bem, pelo menos aquelas senhorinhas pareciam
legais, apesar de muito agitadas. Se eu chegasse
com tanto bom humor na terceira idade eu já ficaria
bem feliz.
O celular enfim voltou para a líder do grupo, e
após uma conversinha cheia de risos com a amiga
do lado ela jogou o celular na mesa, quase o
afundando em um pote de maionese.
“Ah, foda-se essa buceta. Um pouco de gelo vai
fazer bem pras varizes, né, amigas?” A senhora
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Gigi levantou o copo de chope no ar.


As outras senhoras imitaram o gesto, rindo e
cantarolando bobagens. Elas realmente se divertiam
com tudo.
Satisfeita, a senhora Gigi se levantou e ergueu o
polegar para mim, sorrindo com o que só podia ser
uma dentadura.
“Preparem as malas, dupla de gays, vamos
congelar o rabo na Baía de Hudson!”
Eu sorri para elas e então me virei para o
Rayner, super orgulhoso e também um pouquinho
preocupado.
Onde eu havia acabado de meter a gente?

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Capítulo 46

Meus pressentimentos estavam certos. Assim


que nós partimos em viagem as coisas ficaram bem
esquisitas, bem rápido.
Uma das senhorinhas com as tetas quase no
umbigo assumiu o controle do ônibus, ela parecia
um pouco menos bêbada que as outras, e ria de se
matar até do vento lá fora.
Eram ao todo seis mulheres vivendo naquele
ônibus que parecia bem confortável, apesar de um
tanto bagunçado. Haviam três beliches no fundo,
embora eu não imaginasse nenhuma delas subindo
as escadinhas até a cama de cima, também havia
um banheiro, uma minicozinha, balcão de bebidas,
sofás, e mesas com cartelas de bingo, tudo
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parcialmente coberto com roupas de vinil lustroso,


sutiãs, calcinhas e perucas que fediam a talco.
A cara do Rayner tanto me preocupava quanto
me dava vontade de rir. O pobrezinho espiava os
cantos todo encolhido em seu casacão de capuz
felpudo, apavorado com tantos gritos e risadas.
Eu segurei a mão dele e sorri, tentando lhe
transmitir alguma confiança.
“Ei, Rayner…” Eu tentei dizer algo e fui
interrompido por uma garrafa de vinho, que a
senhora Gigi quase enfiou na cara do Rayner.
“Quanto aborrecimento, lindão! Vamos beber!
Deixa rolar um clima com o seu namoradinho!”
Disse ela, enquanto rebolava seu micro shorts para
o batidão do rádio a todo volume.
“Clima?” Rayner segurou a garrafa,
completamente confuso.

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“Obrigado, mas somos menores de idade.” Eu


tirei a garrafa dele e devolvi para a adega.
A senhora Gigi dobrou-se de tanto rir, quase
caindo com o balanço do ônibus. Reunidas no sofá
do bingo as outras mulheres também se divertiam
demais. Era uma histeria incessante.
“Ai, os garotos de hoje são comportados
demais. Até os gays! Porque vou dizer, no meu
tempo as bichas eram vara na rosca e o resto era
detalhe.” A senhora Gigi pegou o vinho e ela
mesma bebeu do gargalo, quase se cuspindo no
meio das risadas.
Eu e Rayner trocamos olhares, encolhidos e
nervosos.
Cansado de tanta palhaçada e visivelmente
assustado, Rayner sentou-se no banquinho de uma
das mesas e cruzou os braços, vermelho e até mais
constrangido que eu.
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“Quanto tempo até a Baía de Hudson?”


Perguntou ele.
“Ah, jovem, é rapidão. A Adelaide é uma cobra
do asfalto, né, Ade?” Perguntou ela para a
motorista.
“Uma jararaca, como dizia meu terceiro ex-
marido. Que Satanás o carregue.” Ela gargalhou e
desceu a manivela, rugindo a buzina ridícula e
personalizada, que simulava um berro de porco.
A mulherada riu ainda mais.
É, andar descalço pela neve até o Polo Norte
não me parecia tão ruim, agora. Eu sentei ao lado
do Rayner e me surpreendi quando ele colocou a
mão na minha coxa.
Eu cobri a mão dele com a minha.
“Desculpa por isso.” Eu disse.
“Não tem problema. Elas parecem legais, do

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jeito delas.” Ele me disse.


“Tritões e humanos não devem se misturar,
você mesmo disse isso. Eu preciso me esforçar
mais.”
Rayner sorriu e afagou a minha coxa, mas seu
olhar era triste e perdido. Talvez ele pretendesse
passar uns dias românticos comigo, no meio das
florestas de pinheiros, e eu acabei destruindo tudo.
“Eu não deveria ter dito muitas coisas. Você
cresceu entre humanos, não precisa rejeitar uma
realidade para aceitar outra.”
Confuso pela tristeza do Rayner, eu tentei olhar
em seus olhos mas ele virou o rosto, fingindo
admirar a paisagem de pinheiros brancos que
passava pela janela.
“Você está nervoso com o seu prazo? Porque
vai dar tudo certo, Rayner, carros são muito mais
rápidos do que viajar a pé. E vou te ajudar no que
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for necessário até você conseguir ser promovido.


Seu pai teria muito orgulho dos seus esforços.”
“Não, ele não teria!” Rayner gritou na minha
cara, fincando as unhas na minha coxa.
Eu me recolhi com o susto, encarando Rayner
com os olhos enormes. O que eu disse de tão
errado? Minha visão borrou em lágrimas e eu me
segurei muito para não chorar.
Rayner esfregou as mãos no rosto, frustrado.
“Desculpa, eu não quis gritar, eu…”
“Tudo bem, eu sei que estou sendo metido.” Eu
forcei o meu sorriso, envergonhado pelo meu
próprio sofrimento. “Quero dizer, há quanto tempo
nos conhecemos, algumas semanas? Eu não deveria
me intrometer tanto, é só que eu conheço bem a
tristeza em não conquistar seus próprios sonhos.
Papai Maikon perdeu tudo, e agora eu também…
eu queria de verdade que você realizasse seus
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sonhos, Rayner. Você merece conseguir honrar a


memória do seu pai.”
Rayner permaneceu me olhando, silencioso, até
que seus lábios tremeram e o vermelho de suas íris
se intensificou em um brilho úmido.
Será que eu falei mais bobagens? Antes que eu
me desculpasse, Rayner segurou minha mão e
pressionou minha palma contra o calor de seu peito.
“Leviathan, tem algo que você precisa saber.”
Disse ele.
Eu inclinei a cabeça, curioso e muito
preocupado. Nunca na minha vida eu tive a
intenção de fazer o Rayner chorar, e agora eu me
sentia totalmente horrível.
“O que eu preciso saber?” Perguntei.
Rayner respirou fundo e abriu a boca para falar,
então uma barulheira horrível ecoou pelo ônibus,

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fazendo tremer as janelas e derrubar todas as coisas


da mesa.
A senhora Gigi pulou no encosto do sofá com
um microfone na mão. Tanto ela quanto suas
amigas agora se vestiam iguais, com micro blusa e
micro shorts de vinil vermelho e botas de cano até
acima do joelho.
“Boa tarde, meu público!! Bem vindos ao
Expresso Baía Hudson!! Recolham as mesas e
comecem a rebolar, porque é hora de agitar esse
puteiro!!” Gritou a senhora Gigi, enquanto as
outras dançavam atrás em coreografia. “Com vocês
a banda de maior sucesso… de uns quarenta anos
atrás! MC Giromba e as Girombetes!”
Ai, o que raios era aquilo?
Senhora Gigi, que pelo visto era a tal de MC
Giromba, pulou do sofá para a mesa na nossa frente
e começou a cantar.
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Roda a bunda na vara e vai


Roda a bunda na vara e vai
Desce, desce, sobe, sobe
Roda a bunda na vara e vai

Que letra era aquela, meu Jesus? E por que


tinha uma senhorinha de terceira idade rebolando
na nossa mesa? Se eu não entendia nada, imagina o
coitado do Rayner. Não me surpreenderia se ele se
jogasse no oceano mais próximo para nunca mais
voltar.
“A cultura dos humanos é bem… única.” Disse
Rayner, mortificado.
“Eu prometo que nem todos são assim.” Eu
falei.
As senhorinhas se divertiam cada vez mais,
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pulando até o ônibus balançar.


Em algum momento uma das girombetes
segurou minha mão e tentou me puxar.
“Venham se divertir, crianças, vocês são muito
novos pra esse azedume todo.”
“Ahm… a gente tá bem, obrigado.” Eu disse.
“Não se acanhem! Este é o ensaio da maior
banda funk da América do Norte! A velha Gigi é a
MC Giromba mãe, também tem a filha e a neta que
se apresentam nos Estados Unidos. O sucesso vem
da família!”
“Ah, nós… nós…” Eu olhei para o Rayner,
buscando socorro.
“Acho que vamos aceitar o vinho.” Disse ele,
sério e amedrontado.
“Sério?” Eu perguntei a ele.
A senhorinha jogou os braços pro ar, dançando
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até balançar todas as pelancas.


“É isso aí! Com as girombetes, todo dia é dia de
festa!” Ela rebolou até a adega e nos jogou uma
garrafa de vinho ainda cheia.
Nossa, que imprudência enorme. Se a polícia
parasse o ônibus, eu só imaginava a manchete do
jornal: Gangue de idosas é presa por alcoolizar
criaturas mitológicas menores de idade.
A cada dia ficava mais difícil imaginar a
conversa com os meus pais quando eu voltasse. Eu
já me sentiria no lucro ficando de castigo por dois
anos. Do jeito que o papai Hian era, possivelmente
ele me mandaria para um reformatório, ou pior, me
forçaria a morar com o vovô Dylan.
Rayner puxou a rolha com os dentes, bebeu um
gole e me ofereceu.
Oh, bem, não era como se eu nunca tivesse
bebido uma cervejinha às escondidas. O cheiro de
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uva era gostoso, que mal poderia haver em beber


alguns golinhos?

****

Eu saltei no encosto do sofá e roubei o


microfone da Gigi, era a minha vez de dominar
aquele refrão!

Mete, mete, mete, roda.


Põe e mete, afasta e cola.
Sobe, sobe, desce, desce.
Roda a bunda na vara e vai!

As minhas novas amigas aplaudiram,


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empolgadíssimas, então eu aproveitei a plateia e


coloquei em uso meus anos de treinamento em
ginástica. Com as mãos nos joelhos eu desci e subi,
desci e subi que nem na música.

Roda a bunda, roda, roda!


Roda a bunda na vara e vai!

“Roda, roda, mexe, mexe! É isso aí, garoto,


você é o deus do verdadeiro funk!” A MC Giromba
tentou acompanhar minha dança, mas quem era ela,
perto do rei do rebolado? Talvez eu devesse ter
uma banda só pra dançar assim e exibir a
elasticidade do meu corpo.
MC Giromba aceitou o desafio e nós nos
preparamos para o duelo de girar o cabelo, quando
uma das girombetes apareceu com uma bebida

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colorida dentro de um abacaxi.


“Quem quer outro coquetel tropical?”
Perguntou ela.
“Eeeeeu!” Falei, levantando a mão tão rápido
que eu caí para trás do sofá.
Rayner amparou a minha queda e me envolveu
em seus braços, muito carinhoso e protetor. Ai, eu
não merecia um homem tão gostoso.
“Me beija, Rayner.” Eu fiz um biquinho.
“Transforma este garoto em um homem.”
Rayner deu risada e deitou em cima de mim no
sofá, me beijando com vontade enquanto apertava a
minha bunda.
“É assim que você gosta?” Ele perguntou, com
as bochechas bem vermelhinhas.
Eu respondi me esfregando em seu corpo,
agradecendo pelo volume da música esconder meus

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gemidos.
Doidinho de tesão, eu deixei que Rayner me
beijasse e chupasse meus lábios, descobrindo
sozinho como me agradar. Era perfeito demais, mas
provavelmente exagerei ao esfregar minha virilha
em seus gominhos de ator pornô.
Rayner percebeu minha ereção e saiu de cima
de mim, mas antes que eu reclamasse ele me pegou
no colo.
“Você já se divertiu o bastante, agora chega.”
Ele me deitou em uma cama nos fundos e deu um
selinho na minha boca. “Este é o seu beijinho de
boa noite.”
Eu cobri minha boca com as mãos e comecei a
rir que nem uma criança boba. Ganhei outro
beijinho do Rayner. Que dia maravilhoso.
Rayner sentou do meu lado e afagou meu rosto
com ternura, admirando o brilho nos meus olhos.
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Ele devia estar louco por uma reboladinha


particular, apenas nós dois em um quarto bem
confortável e a playlist da MC Giromba tocando ao
fundo. Humm… minhas aulas de ginástica seriam
bem úteis.
Eu apreciei os olhos vermelhos do Rayner e seu
cabelo espetado e meio caído sobre o rosto. Desta
vez ele não desviou o rosto e manteve seu sorriso
quieto e honesto. Ele gostava do que via tanto
quanto eu.
Talvez eu devesse dizer alguma coisa, mas a
minha cabeça girava e era tão difícil parar de rir. Se
eu falasse besteira agora, meu eu sóbrio desejaria
me matar. Eu já sentia que quando a bebida
baixasse eu me arrependeria de muitas, muitas
coisas.
Após um certo tempo, o ônibus balançou e
estacionou em algum lugar.

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“Ei, dupla de gays, nós já chegamos!” Disse a


motorista.
“Porra, Adelaide, podia ter dado mais uma
voltinha, os jovens tavam tendo um momento
deles!” Resmungou a Gigi.
Eu levantei da cama e segui Rayner até a janela.
Na loucura da festa eu pouco reparei na paisagem,
então acabei me surpreendendo completamente.
Tudo era plano e muito branco. Gelo e neve até
onde a vista alcançava, encobrindo a floresta de
pinheiros como se cada árvore fosse uma escultura
de neve. Haviam algumas casas e lojinhas à
distância, e também uma praia nevada que dava
acesso ao lago. A Baía de Hudson parecia o Lago
Michigan em versão polar.
Se minhas aulas de geografia não me falhavam,
uma baía era tipo um lago de água salgada com
uma abertura que conectava com o oceano, então,
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tecnicamente, Rayner e eu enfim havíamos chegado


no mar. Não era exatamente o paraíso tropical que
eu tinha em mente, mas era deslumbrante de seu
próprio jeito.
“Nossa, eu preciso conhecer esse lugar.” Eu me
apressei pelo corredor do ônibus, ainda um pouco
atordoado. “Vamos, pessoal. Aquela cabana parece
ser uma pousada, eles devem ter informações
turísticas.”
A senhora Gigi riu e afagou meu cabelo.
“Foi mal, garoto, mas nossa aventura só chega
até aqui.” Disse ela.
Eu franzi a testa.
“O quê? Como assim? Mas a gente viajou o dia
todo e esse lugar é lindo. Edinalva, não era você
quem queria dar uns pegas no Papai Noel?” Eu
disse.

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“O bom velhinho vai precisar esperar.”


Edinalva recolheu a bagunça pelo chão. “Ainda
temos uma turnê pela frente e já estamos
ridiculamente atrasadas.”
Eu me abracei nas mangas grossas do meu
casaco, sentindo frio apesar da calefação poderosa
do ônibus.
“Vocês não pretendiam conhecer este lugar
conosco? Então por que?”
“Que pergunta mais burra, garoto. Olha pra
vocês, dois pombinhos apaixonados, não
desgrudam o olhar um do outro. Essa velharada
aqui também foi nova um dia.” A senhora Gigi
guardou o microfone no estojo, sorrindo bondosa
para nós dois. “É bom lembrar dos tempos de
pegação, mas furar a lua-de-mel de vocês é forçar a
barra.”
“O que é uma lua-de-mel?” Rayner sussurrou
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no meu ouvido. Eu achei melhor não responder.


“Obrigado. Significa muito para nós,
especialmente para o Rayner, né, Rayner? Não tem
nada a dizer para elas?”
Rayner passou o olhar por cada uma das velhas
senhoras, bem travado e hesitante.
“Não teríamos chegado a tempo, sem sua
ajuda.” Disse ele, meio seco e sombrio.
“Pois é! Dá pra acreditar que deu tudo certo?”
Eu segurei a mão do Rayner e puxei até a entrada,
ainda acalorado pelo vinho. “Meninas, eu vou
morrer de saudade. Vamos nos ver de novo, certo?”
“Apareçam no nosso show, um dia desses. São
o casal mais simpático que já conhecemos.” Gigi
nos acompanhou até a porta e sorriu para o Rayner.
“Não tenho saco pra essa coisa de romance, mas
algumas almas foram feitas para se completarem.”

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Rayner deu um rosnado e forçou a porta a abrir.


Uma ventania gelada imediatamente soprou pelo
ônibus e ele correu para fora mesmo assim,
desaparecendo na névoa branca.
As senhorinhas se encolheram de frio, tão
confusas quanto eu.
“Desculpem, ele faz isso, às vezes.” Eu vesti as
luvas que também ganhei na lanchonete, subi o
capuz do casaco e desci na camada fofa de neve.
“Nos veremos de novo, boa sorte na turnê!”
“Boa sorte para vocês, também!” Dona Gigi
acenou para mim e fechou a porta do ônibus.
O ônibus roncou o motor e acelerou para longe
do estacionamento, desaparecendo pelo mesmo
trajeto de onde veio.
Eu fiquei totalmente sozinho na imensidão
branca, lutando contra a força do vento. Nunca na
vida senti tanto frio do rosto, cada respiração
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parecia esfregar gelo nos meus pulmões.


Pelo menos não havia muitos lugares onde se
esconder e encontrar Rayner seria bem fácil: um
rastro de pegadas conduzia diretamente para a
pousada que eu mencionei antes.
Rayner podia ser rude às vezes, mas eu até que
compreendia. Devia ser empolgante e assustador
chegar tão perto de realizar seu grande sonho.
Seja lá qual fosse a missão dele, devia ser bem
importante para a recompensa ser uma promoção a
tenente. Eu não queria parecer intrometido, mas
com alguma sorte Rayner me contaria alguns
detalhes quando tudo estivesse terminado.

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Capítulo 47

Realmente, Rayner estava dentro da pousada.


Era uma cabana de madeira bastante rústica, dessas
com o telhado bem inclinado para a neve não
acumular. Ele falou brevemente com o cara atrás do
balcão e foi para os fundos do lugar, onde deviam
ser os quartos.
“Você é o acompanhante dele, garoto?”
Perguntou o barbudão com jeito de lenhador. “É
raro recebermos turistas por aqui. Os jovens
preferem praias mais quentes.”
“Onde nós estamos, exatamente?” Eu perguntei.
“Esta é a aldeia de Mowapiskat. Costumava ser
uma reserva indígena há sei lá quanto tempo, mas

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nem os esquimós aguentaram o frio deste lugar.


Agora é apenas um lugarejo de duzentos e nove
habitantes.”
Nossa, um lugar ainda menor que Bobcat
Hollow. Até que as coisas podiam ter sido piores
para mim.
“Nunca pensaram em se mudar?” Eu perguntei.
“E abandonar um lugar lindo desses?” O
barbudão riu e esfregou a cabeça já meio careca.
“Toda a população cresceu aqui, e este é um lugar
lindo e tranquilo. Agora na primavera a baía
começa a descongelar. Precisa ver a cor da água
durante o verão, parece uma dança de pedras
preciosas. E o verde dos pinheiros é algo que não se
vê em lugar nenhum.”
Eu concordei, embora não me imaginasse
vivendo ali. Tudo era gelo, com os raros pontinhos
verdes onde a grama começava a nascer. E algo me
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dizia que até no verão o frio era de congelar os


ossos.
Talvez eu devesse mesmo agradecer pela
cidadezinha onde eu vivi. Não que eu pudesse
voltar, agora que eu era um assassino.
“Qual quarto o meu amigo reservou?” Eu
perguntei, querendo desviar meus pensamentos.
“O único quarto.” Ele riu de novo, fazendo
balançar sua barba. “Ele perguntou sobre navios,
mas é raro ver grandes embarcações no porto daqui.
O que recomendei a ele eu recomendarei a você
também: não deixem a pousada até amanhã. O sol
já está se pondo, vocês da cidade congelariam em
segundos no anoitecer daqui.”
“Pode deixar, obrigado pela preocupação.” Eu
sorri, meio encabulado. “Então, ahm… eu
encontrar meu... amigo. Foi uma longa viagem”
“À vontade, garoto. O café da manhã será
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servido até as dez.”


Eu concordei e segui por onde Rayner havia
sumido. Haviam uma cabine telefônica e uma única
porta no fim do corredor. Eu abri e entrei.
Era um quarto até que bem simpático. Paredes,
chão e teto de madeira, um grosso tapete com a
cabeça e patas de um urso, um candelabro com
imitação de velas no teto e um troféu de cabeça de
rena sobre a lareira. Também havia duas portas que
deviam ser o banheiro e o closet, algumas estantes
e a cama. Uma única cama de casal.
Eu avermelhei muito, ainda mais porque
Rayner estava bem ali, casualmente despindo o seu
sobretudo.
“Aqui é… bem confortável.” Falei, mais para
Rayner perceber minha presença.
Ele nem olhou nos meus olhos, apenas jogou o
sobretudo no sofá e soltou da cintura o meu casaco,
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que agora mais parecia um trapo desgastado.


“Preciso de um banho.” Disse ele, totalmente
despido.
Eu reparei nas irritações vermelhas em suas
costas. Elas haviam diminuído desde a última vez
que vi, mas se Rayner precisava de água salina, um
banho comum apenas pioraria a situação. Além do
mais, o tom de voz dele não me agradava nem um
pouco.
“Será que tem banheira aqui também?” Eu
perguntei.
Rayner abriu a porta do banheiro.
“Não.” Disse ele. E então se trancou lá dentro.
Meu queixo caiu. Esta não era a reação que eu
tinha em mente, mas tudo bem, né? Foi uma
viagem super longa e cansativa, Rayner exagerou
um pouco na bebida e podia estar de ressaca, ele

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devia precisar de silêncio.


Ou talvez fui eu mesmo quem exagerou na
bebida? Ai, meu Deus, será que foi isso? Eu não
me lembrava direito dos detalhes, mas eu dancei
funk com um monte de velhinhas e acho que me
esfreguei no Rayner mais de uma vez.
Droga, droga, com certeza era isso. Rayner
devia me achar um bêbado patético, alguma coisa
que fiz superou a tolerância dele e agora Rayner me
odiava.
Ai, eu nunca mais encostaria em álcool. E o
pior era não conseguir lembrar de tudo. Rayner
parecia feliz e meio ébrio durante a nossa viagem.
Ele me beijou, então isso era um bom sinal, ou será
que não? E se foi tipo um beijo de despedida,
porque nunca que ele gostaria de um magricelo
babaca que rebolava e cantava músicas obscenas?
Eu sentei na beira da cama e tive vontade de
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chorar. Se o Rayner me abandonasse naquele fim


de mundo eu não suportaria tanta tristeza.
Quando meus pensamentos não poderiam
piorar, Rayner abriu a porta. Seu olhar era sério e
meio embaraçado.
“O que foi?” Eu sequei rápido uma lágrima.
“Eu… não consigo ligar o chuveiro.” Disse ele.
Apesar do quase desespero, eu acabei sorrindo
e o acompanhei para dentro do banheiro, que era
mais ou menos espaçoso, com um box de vidro
martelado, pia com espelho e vaso sanitário.
O chuveiro era daqueles a gás, com torneira
quente e fria. Eu mexi em cada uma até conseguir
uma temperatura adequada.
“Prontinho.” Eu balancei a manga do casaco,
que acabou molhando um pouco. “Se preferir mais
quente, é só mexer aqui, e…”

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Rayner me abraçou por trás, envolvendo seus


braços fortes em torno do meu peito e descansando
a cabeça no meu ombro. Ele permaneceu naquela
posição, quietinho, enquanto eu entendia cada vez
menos.
Mesmo confuso, um abraço do Rayner era um
abraço do Rayner, então eu relaxei o corpo e tentei
afastar as minhas paranoias de mais cedo.
“Vou te esperar no quarto, tudo bem?” Eu
acariciei o lado do seu rosto, que encaixava
perfeitamente na curva do meu ombro.
Rayner me soltou e concordou com a cabeça,
distante com seus pensamentos.
Eu saí rápido do banheiro antes que acabasse
olhando para onde não devia. Meus hormônios já
começavam a se acostumar com os curtos-circuitos
causados pelo cheiro do Rayner, então eu
conseguia me controlar um pouco.
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Enquanto Rayner tomava banho eu me livrei do


casaco, do camisetão e das botas, me despindo
completamente. Era um alívio tirar aquela roupa
pesada no calorão do ar condicionado e um nudista
como o Rayner não se importaria. Minha
preocupação era apenas sobre a única cama. Como
aquilo iria funcionar?
Enquanto eu pensava em uma solução, um
arrepio percorreu a minha espinha. A ingenuidade
do Rayner não chegaria tão longe, não é mesmo?
Para ele andar pelado era a coisa mais normal do
mundo, mas dividir a mesma cama só podia ter
uma única conotação. Ele deve ter percebido este
problema de logística, certo? E estava tomando
banho para ficar limpinho… para mim.
O meio das minhas pernas ferveu e cresceu, me
fazendo dobrar o corpo e me encolher. Ai, tudo
menos ficar duro. Eu implorei que o meu corpo se

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comportasse só daquela vez. Se o Rayner


percebesse ele me acharia um pervertido sem valor
nenhum.
Eu agarrei o controle remoto na mesinha de
cabeceira e liguei o noticiário da TV. É isso aí.
Televisão iria me distrair o suficiente. Existia mais
no mundo do que o Rayner, seus músculos
perfeitos e nossa iminente noite juntinhos, sob o
calor dos cobertores enquanto a neve caía lá fora.
Socorro, eu nunca cheguei tão perto do êxtase
apenas com a força dos meus pensamentos
descontrolados. Naquele momento o Rayner devia
estar esfregando sabonete nas partes baixas,
também pensando na noite que teríamos juntos,
coladinhos um no outro. Não havia como me
acalmar nessa situação.
Ah, a televisão. Eu comecei a assistir a previsão
do tempo e depois alguma notícia sobre pandas, ou

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sei lá. Será que o Rayner ia lavar o cabelo,


também? Devia ficar bem macio e cheiroso, uma
delícia de agarrar enquanto a gente…
A porta abriu de novo. Rayner saiu peladão e
molhado, como se não entendesse o conceito de
toalhas.
Não deu pra resistir, eu baixei o olhar para o
tufo de pelinhos lá embaixo. O mastro dele era
enorme, bem maior que o meu, e nem sequer estava
rígido. Imagina se estivesse pronto para a ação?
Nem pensar que iria caber, mas dizem que quanto
maior, mais gostoso é, certo? O meu mastro
pulsava mais a cada pensamento.
Rayner olhou brevemente para a cama e
penteou o cabelo com os dedos. Parecia bem
lavado, sim, e o tom negro e úmido refletia o
alaranjado das luminárias.
“Quer que eu durma no chão?” Perguntou ele.
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Eu balancei a cabeça no mesmo instante. Ai, eu


devia ter fingido pensar, não devia? Rayner me
acharia um completo assanhado.
Espera, eu não podia ser covarde pra sempre.
Eu queria, não queria? Talvez a frieza do Rayner
fosse por causa de tanto fingimento da minha parte.
Ele me desprezava por viver uma vida falsa, então
talvez esperasse um convite honesto? Ele queria
que eu me oferecesse? Geralmente era o ativo
quem iniciava, não era? E se eu estivesse
entendendo tudo errado?
“Ei, Rayner, sobre a gente…” Eu gaguejei,
sentindo que meu rosto poderia derreter toda a neve
lá fora.
Uma imagem na televisão travou a minha voz e
os meus pensamentos. Uma foto do Clint aparecia
por trás da âncora do noticiário.
“O corpo do jovem Clint Thawburn foi velado
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hoje, em cerimônia discreta. O jovem, que foi


atacado por lobos em um camping nos Estados
Unidos, foi encontrado já sem vida por seus
amigos. As buscas continuam por um segundo
garoto desaparecido, Leviathan Dolinsky-Makaira,
que foi visto pela última vez procurando a vítima
na Reserva Florestal Lago Michigan. Autoridades
americanas alertam para presença de animais
selvagens que…”
Eu expandi meus olhos, completamente
abismado e sem entender nada.
“Lobos? Como assim? O Benny e a Elyse
viram tudo. Eles sabem que eu fugi com você.” Eu
disse ao Rayner.
“Pelo visto nem todos os seus amigos são
imbecis.” Disse ele.
Eu cobri minha boca com as mãos e comecei a
chorar. Benny, Elyse… eu deveria ter sido um
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amigo melhor.
“…maiores informações estarão disponíveis em
nosso website. E agora as últimas notícias do
esporte! O campeonato Best Cheer America teve
início hoje, em Miami. Competidores dos cinquenta
estados norte-americanos se reuniram para o mais
incrível…”
Eu desliguei a maldita televisão e me joguei nos
cobertores macios, desabando a chorar.
Rayner sentou do meu lado e deslizou os dedos
pelo meu cabelo. Eu aguardei que ele falasse
alguma coisa do tipo era apenas um esporte
estúpido, ou talvez chorar por humanos é ridículo.
Mas ao invés disso ele apenas me afagou.
“Sinto muito pelo ocorrido. Você teria ganhado
este campeonato, com certeza.” Ele disse, com a
voz macia.
Eu me virei na cama para olhá-lo nos olhos.
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“Você acha, mesmo? Nunca assistiu nenhuma


das minhas apresentações.”
“Não, mas eu acompanhei seu ensaio, lembra?
Era difícil jogar aquela bola e assisti-lo ao mesmo
tempo, mas fiz o possível. Seus saltos pareciam
mágica.” Ele deu um leve sorriso. “E você também
rebola muito bem.”
Eu cobri meus olhos, querendo esconder as
lágrimas e a minha vergonha ardente.
“Desculpa, eu nunca mais vou beber.”
“Não se desculpe por ser divertido. Eu errei
muito, em muitas coisas que eu disse.” Rayner
desmanchou o sorriso. “Se fosse possível eu te
ajudaria a recuperar tudo. E eu estaria lá, torcendo
por você na final de todos os campeonatos.”
Meu coração acelerou. De tudo o que Rayner
poderia ter me dito, esta foi a maior das surpresas.
O que houve com o idiota cínico que adorava me
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fazer chorar?
“Talvez não seja impossível, digo, quem matou
o Clint foram os lobos, certo? Quando você
completar sua missão, podemos consertar tudo. Tá
certo, eu ficarei de castigo pelo resto da vida, mas
posso treinar para outros campeonatos. O
cheerleading tem diversas modalidades para
universitários, então eu podia estudar qualquer
coisa, e sei lá… você poderia se mudar comigo
para a faculdade? E os meus pais adorariam te
conhecer, especialmente o papai Hian. Ele é
paranoico com a minha segurança, vai adorar saber
que conheci alguém tão protetor.”
Rayner permaneceu me olhando como se eu
nem estivesse falando nada, mas o brilho em seu
olhar era diferente, como duas janelas de cristal
delicado em uma muralha de pedra.
“Ei, Leviathan… quando eu te beijo… o que

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você sente?” Perguntou ele.


Que pergunta esquisita, mas pela seriedade
amarga do Rayner, ele esperava uma resposta de
verdade.
Eu me sentei ao lado dele na beira da cama e
tentei encontrar seus olhos, que ele agora desviava
de mim.
“É quente e elétrico. No começo parece que eu
vou morrer, e então…” Eu cocei o rosto, pensando
em como descrever. “É tipo morrer e voltar, e então
o calor vira um incêndio com trovões cada vez mais
fortes, meu estômago torce e eu perco o controle da
minha respiração.”
Rayner franziu a testa para mim.
“Parece uma experiência absolutamente
horrível.” Disse ele.
Eu comecei a rir.

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“Desculpa, eu sou péssimo com palavras.


Precisa ver minhas poesias da aula de literatura, eu
quase reprovei duas vezes nessa matéria.” Eu
toquei o rosto do Rayner para que ele não desviasse
de mim novamente. “Te beijar é gostoso, Rayner. É
a melhor sensação que eu já conheci.”
“Apesar dos choques elétricos?” Perguntou ele.
“Os choques elétricos são a melhor parte.” Eu
sorri com o canto da boca.
“Entendo…” Disse ele, apesar da confusão em
seu rosto. “Você gostaria de mais?”
“Eu sempre quero.” Eu disse, aproximando o
meu rosto.
Os lábios do Rayner tocaram os meus, macios,
suaves e bem hesitantes. Ele realmente se assustou
com a minha descrição, o que era um tanto fofo.
Talvez eu devesse avançar só um pouquinho?

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Eu considerei explorar sua boca com a língua,


quando Rayner me surpreendeu. Ele me abraçou
sem desgrudar nossos lábios e nos derrubou na
cama, ficando em cima de mim.
Um gemidinho escapou da minha boca, mais
pela excitação que pelo susto. Eu agarrei seus
cabelos molhados e beijei mais fundo, tremendo ao
perceber nossas posições.
Rayner não gemia ou demonstrava qualquer
grande reação, mas a proximidade dos nossos
corpos era demais pra mim. Mesmo de olhos
fechados eu percebia a distância entre nossas peles,
Rayner estava de quatro sobre o meu corpo,
imitando os movimentos da minha língua e
aprendendo com cada gemido, buscando a técnica
perfeita para me enlouquecer.
Óbvio que o meu pau se tornou uma barra de
aço. Meu medo era que cutucasse o Rayner, isso se

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o dele não me cutucasse primeiro. Acalorado como


eu estava, eu precisava me conter ou as coisas
terminariam muito rápido.
Cada vez mais confortável com a ideia de me
satisfazer, Rayner sugou meus lábios, massageou
minha língua com a dele, acariciou os lados do meu
pescoço e buscou mais dos meus gemidos. Eu não
entendia bem qual era a dele, mas queria que ele
aproveitasse também.
Eu empurrei seus ombros, precisando recuperar
o fôlego.
“Rayner, eu…” Minha voz entalou na garganta.
“Eu… o meu corpo… o meu corpo é seu, pode
fazer o que quiser de mim.”
Os olhos do Rayner tremularam intensos,
surpresos. Ele sabia o significado das minhas
palavras, só não sabia como reagir a elas.
Querendo facilitar as coisas, eu me torci por
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baixo dele e consegui espaçar as pernas, dobrando


os joelhos para os lados de sua cintura.
Era agora. Daquela noite não iria passar. Eu
perderia a minha virgindade, e com o homem mais
lindo e atencioso que poderia existir.
Dessa vez era o Rayner quem parecia à beira de
um troço. Ele continuava de quatro em cima de
mim, seus músculos peitorais torturantemente
próximos dos meus, e ainda assim ele não se
movia. Ele apenas espiou o estreito espaço entre
nós dois, onde o meu mastro já doía em desespero
por qualquer atenção.
Ele voltou a me olhar como se tivesse visto um
alienígena.
“Eu não… não posso… eu…” Gaguejou ele, e
então recuperou a postura firme. “Vai ser
agradável, para você?”
“Vai ser como mergulhar nas nuvens.” Eu
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relaxei a cabeça no travesseiro, inebriado pelo beijo


de antes.
Rayner deslizou as mãos pelo meu corpinho e
sentou entre as minhas pernas. Era embaraçoso
demais vê-lo olhando para a minha ereção, mas
nem pensar que eu voltaria atrás. Eu fiquei
sinceramente curioso com o que Rayner faria,
imaginando o porque de seu olhar pensativo.
Após uns segundos que pareceram durar uma
eternidade, Rayner abaixou o rosto minhas pernas,
deslizando as unhas nas minhas coxas enquanto se
acomodava.
“Aah…” Eu gemi, me contorcendo.
“O que houve?” Ele ergueu o rosto, assustado.
“N… nada… eu… eu gosto quando você
arranha.” Eu respondi.
Rayner soltou uma breve risada e voltou ao que

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estava fazendo: Baixando o rosto bem no meio das


minhas pernas.
Espera, espera, rápido assim? Digo, eu mesmo
quem me ofereci, mas podia rolar mais umas
preliminares antes, não sei. Isso era normal?
Rayner lambeu seus lábios e deslizou
novamente as unhas na minha pele aflorada. Então
ele agarrou a base do meu pau e eu nunca gemi tão
alto na minha vida.
“Tá tudo bem??” Ele se assustou de novo.
“Pelo amor de Deus, continua.” Eu implorei,
me torcendo em expectativa.
Danem-se as preliminares e o comportamento
incomum do Rayner, nada superava a visão
espetacular diante de mim, aquele cara musculoso e
deslumbrante envolvendo a mão na minha parte
mais sensível.

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Passado o susto, Rayner finalmente abaixou a


cabeça, envolvendo a ponta do meu pau em seus
lábios macios e úmidos. O avesso de sua boca
parecia do mesmo veludo de sua cauda, e ainda
mais quente.
Eu cobri a boca e abafei um grito de prazer, ou
aí sim Rayner sairia correndo. Ah, aquilo estava
mesmo acontecendo? Nem parecia real, porque era
gostoso demais. Rayner nem havia começado e eu
já estremecia e arqueava o quadril, querendo me
empalar totalmente na maciez dos seus lábios.
Rayner logo entendeu que eu não morreria nem
nada do tipo, e começou a me chupar de verdade.
Era óbvio o quanto ele não sabia o que estava
sabendo, mas que experiência eu mesmo tinha? Era
meio rápido demais, mas nossa, eu queria mais.
Rayner realmente me mataria de tanto prazer.
Espasmos quentes subiram da minha virilha

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pelo meu corpo. Eu enterrei meus dedos nas


mechas negras do Rayner e afaguei com carinho, o
incentivando a continuar descendo.
A cada chupada Rayner conseguia ir um
pouquinho mais longe e eu não era exatamente bem
dotado, então logo ele chegou na base. A ponta do
meu mastro cutucou o relevo da sua garganta e eu
quase enlouqueci de vez.
“N…não aguento… vou gozar…” Eu falei,
cada vez mais eletrizado.
Justamente quando precisava, Rayner não se
afastou. Ele continuou mamando meu pau como se
tivesse tomado gosto pela coisa. Sua língua
deslizava nas partes certas, e a mão na base
massageava o pouquinho que faltava para o meu
êxtase, às vezes roçando nas minhas bolas sensíveis
e fazendo cócegas nos meus pelinhos.
Não deu nem tempo de afastar o Rayner. Eu
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arqueei as costas e deixei que o prazer explodisse


em mim, gemendo e pegando fogo por dentro.
O calorão enfim apagou e eu relaxei o corpo,
derretendo nos cobertores macios como se eu fosse
feito de algodão.
Rayner levantou e cuspiu na própria mão. Ele
analisou surpreso o creme branco que escorria em
seus dedos.
“Até semente você consegue derramar…” Ele
torceu a boca, meio perplexo e meio segurando o
riso. “O gosto é terrível.”
“Obrigado por não engolir, eu morreria de
vergonha.” Eu disse, com um sorriso cansado e
ofegante nos lábios.
Rayner também sorriu, adoravelmente
encabulado. Então ele percebeu que eu mantinha a
posição de antes, com as pernas espaçadas dos
lados do seu corpo. Ele virou na cama até sentar ao
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meu lado, liberando o espaço para que eu me


esticasse.
Ahm… ok, isso foi inesperado, talvez? Eu
fechei as pernas olhei confuso para ele, que
limpava a mão na barra do lençol.
“Rayner… e você?”
“Eu o quê?” Perguntou ele.
“Você não… hum…” Eu olhei o meio das
pernas dele, onde não havia reação nenhuma. “Quer
saber, deixa pra lá.”
Pensei que Rayner não tivesse me entendido,
mas quando terminou de limpar a mão ele deitou ao
meu lado e manteve seus lindos olhos vermelhos
nos meus.
“Isto é tudo o que posso fazer por você.
Perdão.” Ele acariciou meu rosto.
Nossa, isso me parecia bem… egoísta da minha

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parte, mas se Rayner não conseguia curtir da


mesma forma, seria rude insistir. Talvez eu
conseguisse interessá-lo no futuro, ainda haviam
várias coisas que eu queria descobrir com ele.
O vento intenso da noite começou a bater as
janelas e a vista das vidraças foi totalmente
bloqueada por neve. Rayner levantou para fechar as
cortinas e quando voltou nós nos enfiamos embaixo
dos cobertores.
Resolvendo ser atrevido só mais uma vez, eu
me virei de costas para o Rayner e descansei a
cabeça em seu braço, me encaixando que nem uma
conchinha. E Rayner não apenas esqueceu seus
resmungos como também me abraçou pela cintura,
grudando ainda mais os nossos corpos.
Eu não conseguia apagar meu sorriso. Mesmo
que aquele fosse o lugar mais gelado que eu já
visitei, na minha alma só havia calor. Aninhado no

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corpo do Rayner enquanto esperava o sono chegar,


eu tive a certeza que nossos corações batiam na
mesma sincronia.

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Capítulo 48

Após a loucura da última noite eu dormi tão


rápido que esqueci de tomar banho, então assim
que acordei decidi tomar uma chuveirada, e quem
resistia a enrolar no banho quentinho, enquanto a
neve caía lá fora?
Eu esfreguei xampu no cabelo e passei o
sabonete pelo corpo, em meio ao vapor gostoso do
banho quente.
Para uma pousada tão modesta, até que tudo era
bem confortável. A cama era macia e a pressão do
chuveiro era perfeita, bem diferente daquele
chuveiro pinga-pinga que papai Hian instalou lá em
casa. Os xampus também eram gostosos, o aroma
de cereja tornava a experiência ainda mais
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relaxante.
Minhas pernas não dissolviam apesar de tanta
água, o que era curioso. Devia precisar de muito
mais água para forçar minha transformação, apesar
do Rayner ter comentado que eu podia virar tritão
quando quisesse.
Aquele me parecia um bom momento para
experimentar. Eu nem imaginava como virar um
peixe, então tencionei os músculos e me concentrei,
mas tudo o que consegui foi fazer brilhar as gotas
do chuveiro.
Me transformar devia ser complicado. Eu
pediria ao Rayner que ele me explicasse, ao
acordar.
No momento, o mais importante era ficar bem
perfumado e apresentável. Era meu primeiro banho
decente desde que fugi com Rayner, seria horrível
que ele se acostumasse com a minha aparência de
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mendigo. Eu sempre fui o cara sensual e


provocador da escola e queria ser assim para o
Rayner também.
De tanto pensar nele, as memórias da noite
voltaram e eu comecei a rir, bobo de tanta alegria.
Não importava como aconteceu, eu consideraria
aquela a minha primeira vez. A lembrança de ter
presenteado minha virgindade ao Rayner me
agradava de forma quase primal. Eu me entreguei
para ele e senti, de certa forma, que Rayner também
se entregou para mim. E esta era a melhor sensação
do mundo.
Eu fechei o chuveiro e fui pegar minhas roupas
no gancho da parede, mas só havia o meu casacão
ali. Eu só tinha duas peças de roupa e consegui
esquecer uma delas no quarto.
Tudo bem, não era como se Rayner nunca
tivesse me visto pelado, ainda assim eu enrolei uma

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toalha na cintura antes de sair do banheiro. Era


importante manter um pouquinho de pudor.
Para a minha surpresa a cama estava
desocupada, com os cobertores todos embolados no
chão. Eu percorri o quarto procurando o Rayner,
sem conseguir encontrá-lo.
Que estranho. Ainda eram sete da manhã, se ele
tinha pressa com o café poderia ter me avisado.
Ansioso em encontrá-lo, eu me sequei na toalha
e vesti meu camisetão, que Rayner deixou secando
sobre o aquecedor. Eu vesti também o casaco e as
botas, então fui pegar minhas luvas, na mesa ao
lado da porta.
Quando eu vesti minhas luvas, uma conversa
baixinha atraiu minha atenção. Era a voz do
Rayner, e vinha de fora do quarto. Pelo visto ele
havia tomado o café da manhã sem mim, aquele
sem-vergonha.
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Eu abri a porta para surpreendê-lo, só que a


princípio não vi ninguém. A voz do Rayner vinha
do final do corredor, onde havia a cabine
telefônica.
Ué, com quem Rayner poderia estar falando?
Eu não deveria ouvir as conversas dele, mas
quando ouvi meu nome eu me abaixei e continuei
escutando do lado de fora da cabine, onde Rayner
não podia me ver.
“Não é um trote. Ele está comigo, sim. É uma
aldeia, Mowapiskat. Procure na internet, eu não sei.
Já disse que não é um trote!!” Rosnou ele.
Nossa, quando eu já ouvi o Rayner tão
estressado? Apesar do medo em ser descoberto, eu
me levantei um pouquinho para espiá-lo.
“Eu não estou pedindo nenhum resgate. Não,
também não é um truque. Eu estou com o garoto
seguro e inteiro, então venham buscá-lo agora
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mesmo. Pare de chorar, eu não…” Rayner quase


quebrou o telefone na parede, mas se conteve.
“Envolver a polícia será arriscado para os dois
lados, você sabe disso. Se não chegarem logo...”
A pessoa no outro lado da linha disse alguma
coisa que fez Rayner engasgar. Ele espremeu as
mãos no telefone e abaixou o rosto, tremendo.
“Sim, eu prometo desaparecer da vida dele.
Quando Leviathan acordar eu já estarei longe,
então…” Rayner rosnou furioso, à beira de chorar.
“Não é a porra de uma armadilha, Hian Makaira!!
Aquele pirralho mimado é imprestável como tritão
e como oráculo, parabéns por arruiná-lo, agora
venha encontrá-lo o quanto antes e tranque-o
naquela fazenda que é o lugar dele!”
Meu coração disparou, ácido como vinagre. O
que eu estava ouvindo? Rayner sempre foi rude,
mas não desse jeito. Ele gostava de mim, e até

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conversava comigo e… e me carregava na neve, e


ensinava tudo o que sempre esconderam de mim.
Depois de tudo o que eu me esforcei, eu não
consegui mudar sua opinião? Tudo era novidade
para mim, mas eu estava fazendo o melhor
possível. Como Rayner teve coragem de ligar para
o meu pai? Ele… ele pretendia mesmo me
abandonar?
Droga, as lágrimas inundaram o meu rosto,
Rayner me descobriria se eu começasse a chorar
então eu me afastei lentamente, e ao dobrar a
esquina eu comecei a correr.
“Ah, bom dia, garoto. Dormiram bem? Ali
adiante tem os pães e a torradeira que…”
Eu ignorei o tio barbudo da recepção e
continuei correndo. Assim que eu pisei no lado de
fora as minhas pernas enterraram até os joelhos na
neve fofa, me fazendo tiritar de frio.
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Eu tentei continuar correndo e só me enterrei


cada vez mais na neve. Quando a camada branca
alcançou minha cintura eu já não conseguia mais
avançar, então eu me encolhi no chão e chorei
desesperado, como se navalhas arrebentassem o
meu coração.
Eu realmente era apenas um adolescente
estúpido, mas onde eu errei, exatamente? Aquela
tal missão do Rayner era apenas uma desculpa para
fugir ao oceano e me esquecer? Porque eu queria
conhecer o mundo com ele. Eu o apresentaria a
terra e ele me apresentaria o mar, e seríamos felizes
juntos. A ligação entre nós dois existiu de verdade,
então por quê? Só porque eu não sabia nadar muito
bem?
Eu sequei meus olhos inchados antes que as
lágrimas congelassem no rosto e então olhei para o
céu branco, que ainda soltava alguns floquinhos de

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neve.
Resolver problemas é como comer um cacho de
uvas. Eu precisava lembrar da história do Clint. Ele
foi um imbecil, as coisas terminaram horríveis
entre nós dois, mas seus conselhos sempre foram
sinceros e úteis. Ele me mandaria pensar nos
cachos de uvas. Um grão de cada vez. Um grão de
cada vez.
Minha crise de pânico diminuiu só um
pouquinho, o bastante para eu pensar. Eu peguei
um punhado de neve nas minhas mãos enluvadas e
tentei imaginar como um enorme cacho de uvas. O
que podia ser feito, para o Rayner me perdoar?
Aliás, para começar, qual dos meus erros merecia
um desprezo tão grande? Qual grão de uva eu
comeria primeiro?
Eu dei um longo suspiro, deixando que o ar
gelado refrescasse meu rosto e os meus

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pensamentos. Minha respiração deslizou como uma


nuvem branca diante do meu rosto e se dissipou
logo adiante, revelando a única parte da paisagem
que não era um branco absoluto.
Era difícil de ver por causa da neve alta, mas a
água baía se movia lentamente, num intenso tom
azul escuro e brilhante, ondulando consigo alguns
icebergs distantes.
A água do mar. Era isso! Se eu conseguisse
pescar um peixe, Rayner com certeza não desistiria
de mim!
Eu me levantei e bati a neve dos ombros,
decidindo naquele momento que eu não derramaria
outra lágrima até ter Rayner em meus braços
novamente. Eu era o melhor cheerleader de Bobcat
Hollow, não era? Nunca chegaria tão alto se eu
desistisse na primeira queda.
Naquele momento, Rayner era o campeonato
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que eu precisava ganhar. E pelo afeto dele eu faria


qualquer coisa. Pensando nisso eu continuei
correndo na direção da água, marchando por cima
da neve e afundando de novo, tropeçando, caindo e
me reerguendo até a neve chegar no meu pescoço.
E então eu escavei a neve e continuei avançando.
Andar na neve alta logo extinguiu minhas
forças, mas felizmente a baía não demorou a surgir
diante de mim.
O vento salgado da maresia derretera a neve no
entorno da água, criando uma praia de cascalhos
com uma vista inacreditável para o mar escuro e as
geleiras cintilantes.
Se eu quase congelei emergindo do Lago
Michigan, eu nem queria imaginar como sair
daquela água quase congelada, mas não importava.
Rayner me aqueceria em seus braços quando
percebesse que ainda servia para alguma coisa.

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Sem perder minha determinação, eu deixei


minhas roupas em uma pedra e saltei para dentro da
água.

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Capítulo 49

Eu saltei, mas antes que conseguisse tocar a


água alguém puxou meu braço. Eu caí de barriga
nas pedras geladas.
“Você é completamente louco??” Gritou
Rayner, com os olhos enormes e furiosos. “Por que
está aqui? Consegue imaginar o erro que quase
cometeu??”
Meus olhos nublaram com lágrimas.
“Não, eu não consigo! Eu sei que eu não sirvo
pra você, tá bom, Rayner? Mas o erro é seu em
querer tudo tão rápido! Eu vou aprender e eu vou
ser o melhor tritão, o melhor ômega, o melhor
oráculo, e o melhor… sei lá, são palavras demais.

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Então apenas me assista, eu vou pegar o maior


peixe que você já viu!”
Rayner soltou meu braço, mas a expressão em
seu rosto não me permitiu fugir. Ele parecia
aterrorizado.
Ele me puxou para cima e me fez levantar,
batendo a neve do meu corpo com estupidez e
pressa.
“Eu preciso te tirar daqui.” Percebendo que eu
não me movia ele gritou de novo. “Venha, agora!”
Os berros do Rayner só me fizeram chorar
ainda mais. Onde estava o Rayner legal que
conversou comigo naquela lanchonete, e trocou
beijinhos bêbados em um ônibus de banda, e tirou a
minha virgindade com tanta dedicação e carinho?
Eu só queria entender sem violência e sem gritos.
Minha tristeza era tão devastadora que eu nem
tentei revidar, apenas deixei que Rayner me
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arrastasse pela neve como se eu fosse uma coisa.


Eu ainda estava pelado, então logo o frio
congelou minhas pernas a ponto de eu não
conseguir andar. Rayner me vestiu o mais rápido
que conseguia e se abaixou, oferecendo suas costas.
“Vamos voltar para a pousada, você vai
congelar aqui fora.” Disse ele.
“Eu não vou para lugar nenhum!” Eu respondi
com a voz trêmula e os dentes batendo. “Sério,
Rayner, quem você pensa que é? Tá certo que eu
me entreguei meio fácil, mas isso não é carta
branca para você me tratar de qualquer jeito!”
Rayner nem me ouviu. Quando notou que eu
não subia em suas costas ele apenas continuou me
puxando pelo braço, querendo voltar pela trilha
pisoteada que eu mesmo abri.
“Isso é um erro, tudo isso foi um erro.” Disse
ele, quase histérico. “Precisamos ir embora
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imediatamente.”
“Deveria ter pensado nisso antes de me trazer,
porque…”
Um ronco distante travou Rayner no lugar.
Ainda mais pálido que o normal ele se virou para a
baía, boquiaberto.
Eu também me virei, tentando encontrar o que
havia de tão interessante.
Na imensidão azul e branca do lago havia agora
uns pontos escuros que se aproximavam de nós,
soltando uma linha de fumaça no céu. Era um
barco? Parecia haver uns três deles, mas apenas um
continuou se aproximando da margem.
Os dedos do Rayner estremeceram no meu
braço enquanto ele assistia a aproximação do barco.
Algo me dizia que não era um tremor de frio.
O barco parou na margem então dois homens

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musculosos desceram uma rampa. Eles pareciam


muito jovens para ter um cabelo tão branco, mas
pela distância era difícil dizer. Também era a minha
primeira vez vendo um barco pessoalmente, e o
tamanho era impressionante. Talvez fosse um
navio, eu não saberia dizer, era de metal cinza-
camuflagem com a ponta afiada, tipo aqueles dos
filmes de guerra.
Assim que os tripulantes terminaram de firmar
a rampa, outros dois homens desembarcaram
tranquilamente. O mais velho, que devia ter uns
vinte e poucos anos, vestia um elaborado casaco
preto e dourado com diversas medalhas e um quepe
da mesma cor sobre os cabelos escuros. O garoto
que o acompanhava era até mais novo que eu e
usava um uniforme da mesma cor, embora bem
simples e sem condecorações. Ele não usava quepe,
permitindo que seu longo cabelo cor-de-mel

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flamulasse ao vento, preso por um rabo-de-cavalo


muito baixo, na altura dos ombros.
Enquanto que o mais velho sorria tranquilo para
a paisagem, o mais novo rosnava até para as poucas
gaivotas, emburrado com tudo. Os dois
conversaram um com o outro brevemente e
mudaram de postura quando nos avistaram,
caminhando direto até nós.
“Você conhece eles?” Eu perguntei.
Rayner não respondeu, petrificado como uma
estátua. Parecia até ter esquecido que espremia o
meu braço.
A dupla de desconhecidos aproximou-se mais e
logo eu notei algo incomum. Aqueles olhos… eles
eram que nem a gente. O cara magro de cabelo
chanel tinha as íris verde-com-lilás, e o novinho
musculoso e emburrado tinha uma íris verde e a
outra lilás, em tons bem distintos.
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Quando enfim chegaram em nós o mais velho


acenou para o Rayner e abriu um sorriso animado.
“Rayner Schwanz, meu sobrinho do coração!
Eu não acredito. Não é que você conseguiu
mesmo?” Ele levantou meu queixo com as mãos
enluvadas. “Olha só pra isso. Tão dourados…”
Eu balancei a cabeça e me livrei, já não
gostando daquele cara. O que ele achava que eu
era, para me olhar deste jeito?
“É ele mesmo?” O mais novo descansou as
mãos nas espadas da cintura, pouco impressionado.
“Sim, não há dúvidas, e tudo dentro do prazo.”
O mais velho tirou um relógio do bolso e verificou
a hora. “Neste momento o irmão Cordelen já deve
ter desembarcado em Egarikena. Ai, ainda bem que
não bagunçamos a nossa parte da operação.”
“Não relaxe tão cedo, tio Maron.” O pivete deu
um passo na minha direção, desembainhando sua
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espada. “Podemos comemorar quando este oráculo


estiver devidamente imobilizado.”
Oráculo? A conversa era sobre mim? Mas eu
nunca nem vi aqueles homens!
Sentindo um arrepio ainda mais gelado na
minha espinha, eu virei o rosto para o Rayner.
“Rayner, do que eles estão falando?” Eu
perguntei.
O militar mais velho começou a rir.
“Nossa, ele é tão lento quanto disseram nossos
informantes. Fez um excelente trabalho, soldado
Rayner. A missão era simples, mas de suprema
importância aos objetivos do General Cordelen.
Tenha certeza que seu desempenho não passará
despercebido pelo meu estimado irmão.” Ele deu
uma cotoveladinha no ombro do Rayner, sorrindo
travesso. “Em breve seremos coleguinhas tenentes,
dá para acreditar?”
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“Missões fáceis são um tédio.” O mais novo


revirou os olhos e bufou. “Eu queria lutar em
Egarikena com o meu pai, por que estou aqui com
vocês, no meio do nada, capturando um moleque
burro?”
“Não seja impaciente, Cinnamon. Capturar o
Oráculo é exatamente tão importante quanto a
captura de seu irmão mais velho. Agora guarde
essas suas espadas. Se você se machucar, acho que
o irmão Cordelen arranca as minhas bolas.”
O tal de Maron soltou um par de algemas do
cinto, e foi nessa hora que eu me assustei de
verdade. Aquilo não era uma brincadeira. O meu
corpo quase congelado aqueceu na adrenalina do
pânico.
“Vocês estão enganados, eu não tenho irmão
nenhum!” Eu me debati, tentando escapar das mãos
do Rayner. “Ei, Rayner, fala pra eles. É tudo um

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engano, eu só vim te acompanhar para alguma


missão que…”
Só então a ficha caiu e eu me senti o pior dos
otários. Eu era a missão.
Rayner colocou a mão sobre as algemas que o
mais velho segurava, o impedindo de tocar em
mim.
“Ele é indefeso, não será necessário.” Disse
Rayner.
Maron murchou os lábios, pensativo, e guardou
as algemas de novo.
“Tá, que seja. Traga o garoto para o navio e
vamos embora, quero voltar para casa o quanto
antes.” Ele se espreguiçou, esticando os braços.
“Meu alfa chuchuzinho prometeu me esperar com
um churrasco de albacora e eu aaaaaamo albacora,
sabiam disso?”

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“Vai deixá-lo solto, tio Maron? Mas…”


“Eu sou o tenente, soldado Cinnamon. Quando
você crescer poderá tomar suas próprias decisões.”
Os dois se afastaram de volta ao barco e
continuaram discutindo enquanto eu tentava reunir
meus pensamentos.
“É mentira, não é, Rayner? Você… tudo o que
fizemos juntos…” Eu comecei a soluçar, forçando
o braço até a dor me vencer. “Todo mundo me
enganou a vida toda, mas você… você é o mais
mentiroso de todos!!”
“Sim, eu sou.” Rayner não se abalou em nada
com o meu grito, ele apenas começou a me arrastar
para o barco, mantendo o mesmo olhar frio e
desinteressado de quando nos conhecemos.
O respingo das ondas congelava meus ossos e o
vento machucava o meu rosto. Eram sensações
demais, dúvidas que se emaranhavam em uma
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imensa bola de neve. Até que ponto minha relação


com Rayner foi real? Houve qualquer verdade, pelo
menos na última noite?
Ele foi para Bobcat Hollow apenas para me
capturar?
“Não resista. Vai acabar se machucando.”
Rayner soltou o meu braço já vermelho e agarrou o
outro. Um breve relampejo de emoção tremulou em
seus olhos. “Eu… eu sinto muito por isso.”
“Se sente muito me deixa ir embora! Por que
precisam de mim? O que vão fazer comigo,
Rayner? Você se importa tão pouco assim?”
Rayner rosnou irritado e me empurrou no chão.
Eu caí de costas no único monte de neve
daquela praia pedregosa. Um pouco mais para o
lado e eu teria me arrebentado.
Atordoado demais para me mexer, não consegui

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evitar que Rayner se jogasse em mim e me


agarrasse pela gola do casaco.
“Você não entende que é um prisioneiro? Pare
de resmungar!!” Gritou ele, e então aproximou o
rosto do meu ouvido e sussurrou bem baixinho. “O
General me considera um filho adotivo, esqueceu?
Não se meta em perigo desnecessário, em Cratília
nós resolveremos isso.”
Eu concordei com a cabeça, assustado.
Mais adiante de nós, o cara mais velho apenas
franziu a testa para os gritos do Rayner e continuou
conversando com o garoto.
Rayner continuou sua encenação, me
levantando grosseiramente pela gola do casaco e
empurrando minhas costas para que eu seguisse
andando.
Meu coração batia rápido demais para que eu
raciocinasse, então eu apenas segui andando diante
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dele, nervoso sobre absolutamente tudo. Eu me


sentia um imbecil por acreditar no Rayner ainda
mais uma vez, e algo me dizia que o perigo
desnecessário eram as duas espadas na cintura do
garoto de cabelos longos.
Ou talvez o perigo fosse o próprio Rayner, eu já
não sabia de mais nada.
Embora o barco estivesse logo adiante, a
caminhada pareceu ser a mais longa da minha vida.
Logo os dois estranhos chegaram na rampa de
acesso e aguardaram que Rayner embarcasse
comigo.
“Eu vou admitir, imaginei que ele fosse um alfa
gostosão.” Maron riu, descontraído. “Mas não faria
sentido, não é mesmo? O irmão Cordelen não te
enviaria sozinho para capturar um alfa. Mas para
um ômega ele é super fofinho, vai dar pena trancá-
lo nas celas do porão.”

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“Tenente Maron, como já deve saber, o Oráculo


desconhece suas capacidades de natação. O navio
em si é uma prisão apropriada o bastante.” Disse
Rayner.
“Quer mantê-lo solto durante a viagem?”
Maron arqueou a testa e cruzou os braços,
reflexivo. “Quem sou eu para discordar do filho do
Tenente Baltor? Faça como achar melhor.”
Rayner suspirou aliviado, se é que havia motivo
para alívio naquela situação.
“Sou muito grato, Tenente Maron.” Rayner
cutucou minhas costas para que eu subisse, mas eu
não tive coragem.
“Você sempre foi tão frouxo com prisioneiros.
Por isso eu gosto de você, Rayner, é generoso e
justo como o seu pai costumava ser.” Maron subiu
na frente. “Agora vamos agilizar, ainda precisamos
deixar o Oráculo em Faerynga antes de voltar pra
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casa, fico entediado só de lembrar.”


Rayner estremeceu, paralisando ao meu lado.
“Faerynga? Me foi dito que qualquer
prisioneiro de guerra seria mantido na capital de
Cratília.”
“É, era este o plano, mas o Imperador Macalor
demonstrou interesse especial no Oráculo, e quem
entende os planos daquele cara? Teremos que nos
contentar com o irmão mais velho.”
“De que irmão vocês estão falando?” Eu
perguntei, chocado em perceber que talvez, apenas
talvez, aquela parte não fosse uma mentira.
“Ai, coitadinho, nem isso você sabe?” Maron
afagou minha cabeça, não sei se com cinismo ou
sinceridade, mas eu quis mordê-lo de qualquer
forma. “A verdade não importa agora. Vamos, suba
logo. Nosso soldado coração-de-manteiga
conseguirá um quarto confortável para você.
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Rayner, se apresse.”
Rayner permaneceu calado, boquiaberto,
olhando para mim e para o Maron em total falta de
palavras.
“Sim, Tenente Maron.” Ele segurou minha mão
e juntos avançamos nosso primeiro passo pela
rampa, então a lâmina de uma espada se estendeu
diante de nós.
Ao nosso lado, o garoto de olhos bicolores nos
encarava com ódio e desconfiança, mirando a
lâmina em nossos pescoços e já em postura de
desembainhar a segunda espada.
“Espere, tio Maron. Tem algo errado sobre o
Rayner.” Disse ele.
Maron esfregou a testa.
“Não de novo, Cinnamon. Você é tão paranoico
quanto o seu pai Yoshan. Rayner é o soldado de

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maior confiança do General, o pai dele foi


praticamente uma lenda nos quarteis.”
“Paranoia é a desconfiança dos tolos, e eu não
sou tolo em acreditar no meu sangue de Amalona.
Rayner mudou e ele não seguirá conosco para
Faerynga.”
“O quê? Prefere que ele volte nadando até
Cratília? Cinnamon, vocês dois são soldados e
irmãos, seu laço sanguíneo com o General não
muda a igualdade entre os dois. Demonstre respeito
com o seu colega de tropa!”
“Temos navios de reforço atracados no outro
lado da baía. Agora que completou sua missão,
Rayner não terá ressalvas em fazer uma viagem
mais curta, direto para casa, não é mesmo,
Rayner?” Cinnamon arqueou uma sobrancelha para
ele.
O quê? Não, nem pensar que eu viajaria
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sozinho para essa tal de Faerynga. Só o nome me


parecia assustador, e pelo medo nos olhos do
Rayner eu tinha todos os motivos de me preocupar.
“Agradeço sua cortesia, Cinnamon, mas a
minha missão envolve entregar o oráculo ao
General Cordelen. Devo acompanhá-lo até que os
dois se encontrem, independente de qualquer
alteração nos planos.” Disse Rayner.
“Incorreto. As ordens do Imperador Macalor
são superiores às do meu pai. Como soldado você
já tem conhecimento disso.” Cinnamon aproximou
as lâminas do pescoço do Rayner. “Identifique suas
verdadeiras intenções.”
O que fazer, o que fazer?? O Rayner não podia
ser morto por aquele moleque, podia? E se até ele
corria perigo, o que sobrava para mim? Por que
eles me queriam? Quando eu veria os meus pais de
novo?

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Droga, eu não deveria ter me lembrado dos


meus pais. Os medos deles enfim faziam sentido.
Eu não podia desesperá-los pelo resto da vida por
causa dos meus próprios erros.
Aproveitando a concentração deles no Rayner,
eu me abaixei rápido e saltei em cima do garoto,
golpeando sua barriga com o ombro e roubando sua
espada no mesmo movimento.
“Ai! Mas o que…” O garoto nem chegou a
perder o equilíbrio. Quando ele percebeu sua
espada nas minhas mãos, seus olhos bicolores
ganharam uma nova camada de ódio e ele sorriu.
“Ah, enfim um pouco de tempero nessa missão
estúpida.”
“Cinnamon, precisamos dele inteiro.” Suspirou
Maron, incomodado.
Ignorando as palavras do tio, Cinnamon saltou
para cima de mim com uma postura de combate
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que eu nunca havia visto, nem nos filmes.


Eu desviei de um deslize da lâmina, salvo pela
minha agilidade como cheerleader. Então eu
bloqueei um segundo golpe com a espada roubada
e saltei para o lado, buscando uma brecha para
correr e fugir. Mas fugir para onde?
Prevendo os meus movimentos, Cinnamon
desceu a espada direto contra o meu ombro.
Por muito pouco eu consegui desviar. E agora,
o que fazer? Vovô Dylan ensinou alguma coisa
sobre postura, mas Cinnamon era rápido demais.
Era como um demônio descendo golpe após golpe
em cima de mim, eu mal conseguia desviar de
todos, e os poucos ataques que eu bloqueava
abalavam o meu equilíbrio.
Mais um golpe rasante contra o meu rosto. Eu
bloqueei com o cabo da espada e caí nas pedras.
“Já chega, Cinnamon!” Gritou Maron.
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Cinnamon apenas riu e desferiu outro golpe. A


lâmina chiou no ar e atingiu violentamente o meu
peito, me fazendo gritar de dor.
Eu agarrei o peito do casaco e me torci,
agoniado, me preparando para a morte que logo
chegaria.
Com um olhar de tédio e desprezo, o garoto
abaixou ao meu lado e recuperou sua primeira
espada. Ele guardou as duas armas de volta na
cintura.
“Realmente, uma missão fácil demais.” Ele
rosnou, aborrecido. “Você é nosso prisioneiro,
agora. Se fizer gracinhas de novo, vai conhecer o
lado afiado dos meus brinquedos.”
Alguém apoiou minha cabeça em suas mãos e
me ajudou a levantar. Era o Rayner, e ele parecia
tão preocupado que eu quis chorar em seus ombros
até me acabar.
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Não havia ferimentos em mim, nem o menor


rasgo no meu casaco. Mas a pancada do golpe
ainda doía demais, e não apenas na minha carne.
Eu era um completo imprestável.
“Leviathan, escute…” Disse Rayner.
“Não. Eles já desconfiam o suficiente.” Eu o
empurrei e me levantei sozinho, batendo a neve do
casaco.
“Ceeerto, podemos ir embora, ou mais alguém
quer demonstrar violência gratuita?” Perguntou
Maron. “Rayner, você encontrará o Cadete
Richarles ancorado à duas horas daqui, no sentido
noroeste. Nos encontramos nos quarteis de Roori
para a sua tão esperada promoção.”
Meu coração quase parou e eu sentia que o do
Rayner também.
“Mas… mas Tenente Maron…” Gaguejou

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Rayner.
“Exatamente, por enquanto eu sou o tenente e
sou eu quem dou as ordens por aqui.” Maron tirou
o quepe e ajeitou as mechas da franja, bem
relaxado. “Desculpe seu irmãozinho pelos exageros
dele, está bem? Garanto que os aposentos do outro
navio são igualmente apropriados.”
Não podia terminar assim. Rayner não desistiria
tão fácil, certo? Ele invadiria aquele navio se fosse
necessário e não desgrudaria de mim até me
devolver para a liberdade, para a minha família.
Rayner baixou a cabeça, espremendo os punhos
até esbranquiçá-los.
“Sim, Tenente Maron.” Ele disse. “Por favor,
peço a sua cortesia com nosso prisioneiro. É apenas
um adolescente.”
“Ele, você, o Cinnamon… ai, ai… eu me sinto
um professor de creche, sabiam disso?” Maron
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sorriu e endireitou seu quepe. “Agora volte para


Roori e relaxe. O garoto ficará bem enquanto
estiver nas minhas mãos.”
Rayner concordou e afastou-se de mim em
direção ao nada. Eu contive com todas as minhas
forças o desejo de correr até ele, abraçá-lo e nunca
soltar, implorando que aqueles dois sádicos
compreendessem os nossos sentimentos, mas não
podia. Minha vida de liberdade havia chegado ao
fim, seria injusto arrastar o Rayner para o mesmo
abismo.
Se havia qualquer conforto naquela situação
devastadora, era que pelo menos o Rayner havia,
enfim, realizado o seu grande sonho.

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Capítulo 50

Rickett
Um mês depois

Mais um dia terrível se iluminava diante de


mim, com todas as suas maravilhosas
possibilidades de tornar a minha vida um inferno
ainda pior.
Os soldados da noite recém trocavam de guarda
com os soldados da manhã nos corredores do
Departamento de Defesa. Eles ignoravam
totalmente a minha presença, mas as minhas
memórias daquele lugar não me permitiam relaxar.
Eu detestava aquelas paredes de concreto, tão
semelhantes àquelas do meu antigo cárcere, e óbvio

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que o General sabia disso. Por que outro motivo ele


me chamaria ali se não fosse para foder a minha
vida ainda mais?
Minhas sapatilhas ecoavam discretas nas lajotas
do piso. Através das janelões podia-se ver a neve
infinita lá fora e também algumas casas e o Palácio
de Gelo, que daquela distância quase se confundia
com as geleiras ao longe.
A neve caía pesado no meu caminho ao
Departamento e parou no instante que eu entrei. Era
como se as forças superiores também curtissem me
avacalhar. Até mesmo a dor no meu ventre resolveu
atacar com ferocidade, tornando cada passo uma
tortura.
Eu bati os floquinhos brancos que permaneciam
no ombro do meu casaco e me forcei a endireitar o
corpo, já avistando o meu destino logo adiante:
uma grande porta no final do corredor. Pendurada

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na porta havia uma placa dourada: General


Cordelen Trevally.
Ai, outro espasmo febril incinerou meus
hormônios, me fazendo dobrar em agonia antes de
alcançar a maçaneta. Eu odiava tudo isso. Por que
eu não podia sofrer em paz no meu quarto?
Eu precisava ser forte, a última coisa que eu
queria era aquele tritão desgraçado rindo dos meus
infortúnios.
Conseguindo ignorar a dor por um breve
instante, eu estufei o peito e entrei.
A sala do General Cordelen era um amplo salão
de paredes brancas e vidraças com vista para o mar.
Haviam quadros, esculturas e outras decorações
elegantes, uma grande mesa onde ele trabalhava,
um mapa mundi com diversos alfinetes em uma
mesa redonda, armários com pilhas de documentos
oficiais e também uma mesa de xadrez. E era nesta
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mesa que se encontrava o algoz da minha


existência, que jogava tranquilamente com o seu
predestinado.
O mestre joalheiro Yoshan me avistou assim
que entrei e acenou para mim, sorrindo contente.
Aquele alfa baixinho e cheio de anéis e colares era
o menor dos meus problemas, para ele eu apenas
acenei de volta, então o General virou-se em sua
cadeira. Ele sorriu para mim como uma raposa.
“Ah, Rickett, sua visita me agrada
profundamente. Por coincidência, hoje eu tenho um
pedido a lhe fazer.” O General balançou a peça que
segurava, em um gesto para que eu me
aproximasse.
“Não foi coincidência nenhuma. Você mandou
os seus soldados me encherem o saco em plena
madrugada.”
“Eu fiz isso? Ah, é.” O General e seu
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predestinado trocaram olhares, segurando o riso.


“Relaxe, o favor de hoje é bastante simples. Um
amigo meu está chegando de viagem com seu
núcleo e preciso que você o recepcione. Eu mesmo
faria isso, mas tenho uma guerra para administrar.”
“Vocês não me parecem exatamente ocupados.”
Eu rosnei, apertando minha barriga discretamente.
Maldita queimação idiota.
“Pelo contrário, Rickett. Você ficaria surpreso
com o quanto se pode aprender com uma boa
partida de xadrez.” Yoshan moveu uma peça no
tabuleiro. “Seja bonzinho com o Cordelen, ele tem
grande estima pelos amigos que chegarão hoje.”
Aquele comentário me deixou levemente
curioso. A tolerância dos selkies com um tritão só
chegava até certo ponto, mesmo que fosse um tritão
traidor de seu povo. O General nunca teve grandes
amizades em Roori, então este tal amigo devia ser

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outro tritão. Era uma visita bem ousada,


considerando a guerra entre nossos povos.
Considerando-se a ardilosidade daquele casal,
eles deviam saber exatamente o que esperar dessa
tal visita, então eu apenas liguei o foda-se. Quanto
antes eu cumprisse aquele favor idiota, mais cedo
eu voltaria para a minha cama e agonizaria até
dormir.
“Tá, que seja. Devo buscá-los no porto central
ou nas docas?” Perguntei.
“Eles chegarão à nado, já separei casacos para
todos eles.” General Cordelen levantou e pegou
uma sacola gigante no canto da sala. Ele jogou a
sacola nos meus braços, bloqueando a minha visão
e dobrando as minhas pernas com o peso. “Receba-
os na Praia dos Portais, tudo bem? Eu perguntarei a
eles sobre a sua cordialidade, então não me
decepcione.”

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“S…sim senhor.” Eu rosnei, querendo enterrar


meus dentes naquele pescoço magricelo.
“Ótimo, agora não se mexa. Yoshan, meu amor,
poderia ajudar?”
Yoshan concordou e apareceu por trás de mim.
Ele segurou meu ombrinho magro e com a outra
mão deslizou uma escova de cabelo no meu topete
moicano, forçando-o a cobrir os lados raspados do
meu couro cabeludo.
“Aaah, deu trabalho ajeitar o meu cabelo!”
“Não leve para o lado pessoal, Rickett. Eu amo
o seu estilo, é tipo, nossa, cara, esses espetos
brancos parecem umas estalagmites, mas o
Cordelen não curte, o que podemos fazer? Vamos
admitir que não é muito apropriado para um ômega
de seu status.” Yoshan puxou firme a escova,
desmanchando cada um dos meus lindos espetos.
“Pelo menos você acertou na roupa, não concorda,
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meu amor?”
“A vida no palácio fez bem ao armário dele. É
um lindo sobretudo de cashmere, e parece bem
quentinho.” Cordelen riu, se divertindo com a
destruição do meu visual. “O tom cor-de-rosa até
combina com os olhos, é uma fofura.”
Ah, eu mataria aquele cara. Maldito tritão
implicante, um ômega como ele com certeza sabia
o motivo de eu vestir um casaco tão grosso. O calor
diminuía o desconforto no meu ventre, e o
comprimento ocultava a umidade absurda que
escorria pelas minhas coxas.
“Pronto, Rickett, você está muito cuti-cuti,
digno do nobre ômega que você se tornou.” Yoshan
segurou a minha sacola brevemente para apreciar o
resultado.
“É o ladrãozinho marginal mais adorável de
Cratília.” Disse o General.
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“Eu não sou cuti-cuti e eu não sou adorável!!”


Eu rosnei revoltado e peguei de volta aquele
sacolão imenso, que parecia ter uns cinco casacos
dentro. “Agora com licença, se já terminaram de
me avacalhar, eu tenho um favor imbecil para
cumprir!”
“Não precisa ter pressa. O Yoshan vai trabalhar
agora e eu tenho uma reunião no quartel, então…”
“E então eu vou ser a babá de um monte de
tritões que eu não conheço. Perfeito.” Eu tentei
encontrar a maçaneta por baixo daquela sacola
gigante.
“Você fica mais esperto a cada dia, Rickett.”
Disse o General.
Eu bufei de ódio e nem respondi, apenas deixei
a sala e bati a porta, marchando em direção à praia
enquanto aquela dupla de idiotas ria pelas minhas
costas.
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****

A Praia dos Portais nunca foi muito


movimentada e naquele momento estava deserta,
com uns poucos soldados vigiando nas torres de
guarda e eventuais habitantes emergindo da cidade
submersa e apressando-se em vasculhar suas malas
por casacos quentes. Após a vitória em Egarikena o
povo de Cratília temia uma retaliação, então
preferia se manter na segurança das fendas abissais
ou atrás das muralhas de Roori.
Eu não dava a mínima em esperar além da
segurança dos muros, na beira do mar. Ser
escarnado por inimigos me parecia um excelente
fim para a minha miséria.
Não havia vento, neve ou frio excessivo
naquela manhã de céu limpo. Uns dez graus
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negativos ou talvez quinze. A única agitação era a


das ondas, que se erguiam como imensas torres de
água e golpeavam as paredes de gelo logo adiante,
fazendo a água respingar no meu rosto. O azul
escuro do mar contrastava com o azul quase branco
do céu, e o gelo sob os meus pés mantinha-se
lustroso com o vai-e-vem da água, tão escorregadio
que qualquer movimento me derrubaria para dentro
da água.
Entediado com a espera, eu peguei o pote de gel
no meu bolso e comecei a consertar meu cabelo,
tentando me enxergar no reflexo do gelo. Aquele
general idiota se achava muito esperto, mas ele
nunca conseguiria me dobrar pois meu nome era
Rickett Walrosse, o rei dos becos e dono das ruas, e
não era a minha recente maré de azar que mudaria
isso.
O gelo sob meus pés refletia o rosado do sol,

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servindo como um espelho mais ou menos decente.


Eu espetei o meu moicano para cima até ficar do
jeito que eu gostava e então tirei aquela droga de
casaco rosa.
Mimimi, combina com os seus olhos. Aquele
General que fosse para a puta que o pariu.
O frio golpeou meu ventre como se lava
encontrasse o mar. Eu me encolhi como uma bola e
quase gritei de dor, mas eu preferia assim,
mostrando o meu saiote maneiro de couro preto,
cheio de cintos e fivelas, e também uma jaqueta
combinando, com as ombreiras quadradas e cheias
de pinos e correntes, que combinavam com as
correntinhas no meu pescoço.
Hahah, aquele amigo do General fugiria de
volta pra casa no momento em que me visse. Seria
engraçado.
Após algum tempo de espera e na mira do olhar
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curioso dos guardas, eu avistei uma movimentação


na água. Uma mancha verde se aproximava.
Era um tritão. Na verdade dois deles. Um era
magro e comprido, com uma cauda verde de listras
lilás igual à do General Cordelen. O outro era
imenso, com sua cauda verde e musculosa
salpicada de pontinhos lilás. Se minha memória não
falhava, aquelas eram as marcas de um tritão
Trevally e de um tritão Kampango,
respectivamente.
Os dois alcançaram a margem tranquilamente e
se levantaram, revelando suas pernas. O tritão
magro parecia bastante com o General, tinha o
mesmo cabelo escorrido e preto, mas pelo cheiro
não era nenhum parente. Meu espanto maior foi
com o alfa que o acompanhava: a pele era tão preta
quanto a minha era branca.
O tritão magricelo acenou para as torres de

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vigia, super sorridente apesar dos fuzis nas mãos


dos guardas. Pela tranquilidade de todos o General
já havia alertado de sua visita, não que aquela fosse
uma situação comum.
A alegria do tritão ômega durou pouco tempo,
logo ele lembrou que vestia apenas uma mochila e
uma túnica molhada e se abraçou, uivando de frio.
“Aaaargh, como o Cordelen nunca congelou
neste lugar? Me abraça, Kayman.” O tritão pegou
os brações de seu alfa e os laçou em torno dos
ombros como uma manta. Então ele me notou e
sorriu de novo, me estendendo sua mão trêmula.
“Nossa, um selkie de verdade! Com cabelo branco
e tudo o mais! Muito prazer, meu nome é Enan
Trevally, pastor Enan, para os amigos, e este aqui é
o… o… atchim!!”
Eu cobri o rosto, me protegendo dos respingos
dele. Tritões realmente não resistiam ao menor

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ventinho.
“Sejam bem vindos. Podem me chamar de
Rickett.” Eu bufei e retirei os casacos da sacola.
Realmente só havia dois, embora o casaco do alfa
fosse tão imenso quanto ele. Eu entreguei os
casacões para o casal e esperei que vestissem.
“Aquecidos? Ótimo. Tenho um cochilo para
terminar, então…”
O tritão Enan ajeitou os ombros de seu casacão
e suspirou aliviado e contente, adorando a textura
felpuda do couro de raposa branca. Ele segurou
minha mão antes que eu fosse embora.
“Aaaah, tudo aqui é tão lindo. Olha aquele
paredão de calcário que…”
“Não é calcário, é gelo. São as muralhas que
contornam Roori. O portal de entrada é logo ali.”
“Ah, ahm ok, e aquelas montanhas brancas ao
longe…” Desta vez foi o tal de Kayman falou.
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“São geleiras.” Eu corrigi.


“Ah, geleiras, claro, e tem essa areia macia
também, que…” Enan abaixou para pegar um
punhado e soltou rápido quando percebeu a
temperatura.
“O nome disso é neve.” Eu afinei os olhos,
entediado. “E não, aquilo no céu não é um show de
fogos, é uma aurora polar, um fenômeno que
acontece cedo da manhã, quando eu prefiro estar
dormindo.”
Enan ajudou Kayman a fechar seu casaco e
torceu a boca para mim, descontente.
“Você não é um guia turístico muito bom,
sabia?” Disse aquele tiozinho chato.
“Sério? Que pena! Vocês devem preferir
conhecer sozinhos a capital. Divirtam-se com isso.”
Eu disse, tentando esconder meu tédio e meu
sarcasmo.
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Resolvido o meu problema, eu peguei meu


casaco rosa e dei as costas para aqueles trouxas,
mas o pastor Enan recusou-se a soltar a minha mão.
Eu o espiei por cima do ombro e percebi que
ele ainda sorria, divertindo-se com tudo.
Absolutamente tudo.
“Ah, não exija tanto de si mesmo, Ricky. Eu
também costumava trabalhar com turismo, lá em
Tárnacos. Vamos passear juntos, podemos trocar
mil ideias e nos conhecer melhor! O Kayman tá
doidinho por distração agora que nosso filho
predestinou, né, Kayman?” Disse Enan.
“Nem me lembre disso que eu começo a chorar.
Leon não precisava ter seguido seu ômega até a
Ilha Bariana, mas quem controla aquele jovem? Eu
vou morrer de saudades.”
Enan saltitou de empolgação e laçou seu braço
no meu.
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“Ahh, mas agora também podemos curtir a


vida! Enquanto o Cordelen não dá as caras, nosso
novo amiguinho vai apresentar tudo sobre Runi!”
“Roori.” Eu corrigi de novo. “E eu não tenho a
menor obrigação de…”
“Nossa, como construíram um muro tão alto? E
aquilo à distância é vapor? Tem água quente aqui?
Me diz que tem água quente, se minha única opção
for esta praia, eu juro que vou…”
Pastor Enan continuou falando, enquanto os
dois me seguiam até os portões principais e atraíam
todo tipo de olhares. Eu só podia ser muito trouxão,
mesmo. De que adiantava escandalizar com a
minha aparência, quando meus acompanhantes
eram um cara de cabeleira preta, e outro era preto
por completo?
Enquanto o casal de tritões me seguia eu tive
certeza de uma única coisa: minha maré de azar
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estava longe, muito longe de acabar.

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Capítulo 51

“Aqui vocês podem ver a muralha impenetrável


de Roori. É um monte de gelo empilhado. Aqui tem
os portais e os guardas dos portais. Adivinhem por
que a Praia dos Portais tem este nome.” Sem
esperar que eles contemplassem coisa alguma eu
passei e deixei que corressem atrás de mim. “E
agora temos nossos primeiros invasores. Que medo.
Fujam todos para os bunkers.” Eu continuei,
profundamente entediado.
Enan riu como se aquela tivesse sido uma piada
de verdade.
“Você é engraçado, Ricky. E este lugar é lindo
mesmo, eu troco a névoa cinza de Tárnacos por
essa aurora multicolorida em qualquer dia da minha
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vida. E olha todas aquelas casas uma em cima da


outra! Como é que não cai?”
“O nome daquilo é prédio. Não é possível que
vocês sejam tão…” Eu mordi a língua, lembrando
de que tudo poderia cair nos ouvidos do General.
“…tão exóticos. Essa tal de Tárnacos deve ser
interessante, também.”
“Tudo é interessante, quando admirado do
ponto de vista correto.” Pastor Enan deu de
ombros, admirando um núcleo de selkies que
passeava com seus bebês no parquinho. “Eu amava
o meu trabalho nas piscinas termais do templo, mas
de que serve um templo, sem um oráculo? Aos
poucos os pastores e devotos foram desertando a
ilha, depois também os ferreiros e moradores…
então uns selkies apareceram com um convite
adorável do meu querido amigo Cordelen. Como eu
poderia recusar?”

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Eu fingi continuar entediado, embora só


houvesse assombro dentro de mim. O senhor
Yoshan acertava suas previsões com a precisão de
um relógio. Poupar a vida dos tritões no ataque a
Egarikena foi uma decisão polêmica, mas não havia
necessidade de sujar nossas mãos de sangue além
do necessário. Tritões eram um povo primitivo.
Sem um oráculo para conduzir seus passos, a
sociedade inimiga desmoronaria por conta própria e
os tritões retornariam ao seu estado primal,
dispersos em pequenos núcleos pelo oceano.
O senhor Yoshan nunca planejou uma vitória de
sangue, e sim um massacre moral e psicológico. E,
seguindo as instruções precisas de seu alfa, o
General Cordelen tornou cada previsão uma
realidade.
Agora, ao invés de desgastar nossas tropas em
conflitos desnecessários, nosso povo saboreava as

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láureas da vitória enquanto aguardava com


paciência que o reino dos tritões se autodestruísse.
Eu não sabia dizer se isso era genial ou assustador.
Eu desisti de fugir daqueles dois e os
acompanhei pelas ruas movimentadas do centro de
Roori. Sob a proteção das muralhas, a vida da
cidade era frenética como sempre. Crianças
correndo, pais balançando seus bebês nos
brinquedos da praça, casais saboreando chocolate
quente em um bistrô para híbridos com mesinhas
na rua, e grupinhos de ômegas esnobes deixando o
shopping com muitas sacolas de compras.
Enan e Kayman moviam o olhar seguidamente,
tentando compreender tudo o que viam. Se os dois
primitivos estavam assim em um típico dia de
trabalho, imagina durante o Dia de Adoração ao
Arquiduque, ou até mesmo na noite do Baile Real.
Esses caras ficariam doidos com os balões gigantes

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e as multidões.
Pensando bem, lembrar do baile me trouxe
certa nostalgia. Não que eu me interessasse por
festas ridículas de gente metida, mas porque o povo
sempre se distrai em eventos importantes. No baile
do ano anterior eu enchi os bolsos diversas vezes
apenas passeando entre a multidão, pegando
celulares e joias aqui e ali. Apesar das dificuldades,
aquela época deixou saudades. Qualquer vida era
melhor que a vida onde eu me meti.
“Olhem, tem uma estátua naquele buraco.”
Disse Kayman.
Enan também olhou na mesma direção,
fascinado com o enorme buraco entre o parque e o
palácio, muito mais adiante. No centro do
gigantesco buraco erguia-se um longo pilar com
uma estátua feminina no topo, que também era
muito grande para poder ser vista daquela distância.

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“Esta é a Cratera Magna, de onde Cratília tirou


seu nome. Dizem que a neve nunca cai em seu
interior e a cratera permanece do mesmo tamanho
desde tempos ancestrais. Tudo baboseira, eu tenho
um conhecido que enxuga a cratera depois das
nevascas. Essa mulher eu sei lá.”
“Você realmente é um péssimo guia turístico.”
Pastor Enan riu.
Eu bufei e tentei lembrar qualquer coisa sobre
aquela escultura, mas arte e história nunca foram
temas que me importaram. Não que a estátua fosse
feia, na verdade ela era tão deslumbrante que ao me
mudar para Roori eu costumava admirá-la até
dormir, quando a fome apertava demais e a neve
incessante queimava minha pele pior do que fogo.
Nestas noites em que tudo parecia perdido eu sentia
que era a proteção da estátua que me permitia
sobreviver até o retorno do sol.

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Selkies fêmeas eram raras e belas, mas a estátua


de mármore se destacava: era uma jovem e
lindíssima selkie de cabelos ondulados, que fluíam
por trás da cintura e acompanhavam o pilar até
sumir no fundo da cratera. Ela estava sentada sobre
a cauda, com os olhos fechados e os braços
envolvendo uma trouxinha. O tecido de seu vestido
era tão suave que nem parecia feito de pedra.
“Só sei que ela se chama Roori, o mesmo nome
desta cidade. A estátua existe desde a construção de
Cratília, há muito tempo atrás.”
Pastor Enan deu um tapinha nas minhas costas.
“Olha só, não é que você sabe ser prestativo,
com algum esforço? Eu sabia que você era legal,
Ricky, Conhecendo o Cordelen, ele não mandaria
qualquer um para a nossa recepção.”
É, eu não era qualquer um. Eu era o saco de
pancadas de todo o universo.
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“Vocês querem conhecer o palácio?” Perguntei,


envergonhado. “E o vapor que vocês viram são os
gêiseres das piscinas públicas. Até que são bonitos,
também.”
Pastor Enan sorriu com felicidade humilde e
sincera. Ele parecia ser uma dessas pessoas
magnéticas, que fazem amizade fácil com tudo e
todos. Eu preferia ser cauteloso com pessoas assim,
mas era difícil quando aquela era minha primeira
conversa agradável em muitos dias.
“Quero conhecer tudo sobre Roori e sobre
Cratília, mas temos tempo sobrando para isso.
Agora que somos tritões traidores, suponho que
este é nosso novo lar.” Pastor Enan soava relaxado
demais para quem admitia algo assim. “Me fala de
você, Ricky.”
“É Rickett.” Eu murchei os lábios.
“Não seja hostil, Ricky, nós recém começamos
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a fazer progressos.” Pastor Enan riu com safadeza e


vasculhou sua bolsa. “Espere, espere, eu já sei o
que vai te animar.”
Eu esperava que fosse um travesseiro porque eu
poderia dormir ali mesmo, embaixo do toldo de
alguma loja.
Pastor Enan achou uma coisa comprida e me
entregou.
Eu arregalei os olhos, olhando perplexo para
aquele troço nas minhas mãos. Era… um pênis de
pedra, bem preto e grosso. Parecia um vibrador dos
tempos medievais.
“Não quero essa coisa!” Eu tentei devolver,
indignado.
Aquele pastor tarado apenas riu e levantou as
mãos, se recusando a pegar de volta.
“Ora, ora, encontrei o motivo de tanta raiva.

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Algum jovenzinho está aguardando o alfa por


tempo demais.” Ele dançou ao meu redor,
desviando daquela obscenidade de pedra que eu me
esforçava em tentar devolver. “Considere um
presente diplomático, Ricky. Duas horas de uso por
noite e adeus dor, adeus desconforto. E seu alfa
poderá sentir através da telepatia, pensa que
joguinho gostoso de se praticar à distância.”
Malditos tritões, como conseguiam ser tão
ágeis? Desistindo de entregar aquela coisa, eu
guardei no bolso do casaco. Poderia jogar fora mais
tarde.
“Meus problemas não são da sua conta.” Eu
rosnei, vermelho e tímido.
“Ricky, Ricky, você está falando com a pessoa
certa, e não duvido que o Cordelen pensou nisso ao
planejar nosso encontro. Quando um ômega
desperta, o desconforto do cio…”

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“Não é da sua conta, eu já disse!!” Eu gritei,


fuzilando-o com toda a fúria dos meus olhos cor-
de-rosa. Droga, eu devia ser a ameaça menos
ameaçadora do mundo.
Apesar de ser mais alto e estar acompanhado de
um alfa que poderia me rasgar ao meio, Enan
encolheu os ombros, intimidado. Ou ele apenas
sentia pena de mim.
Meu coração bateu apertado em culpa.
“Desculpem, é só que…” Eu esfreguei a testa,
percebendo que me faltava a coragem de tocar no
assunto. “Vocês queriam saber sobre mim, vamos
falar sobre mim. E o assunto vai ser um tédio,
porque não tenho nada de interessante para contar.
Eu sou apenas um ladrão de peixes que…”
“Espera, espera de novo. Um selkie que rouba
peixes? Não tem peixes o bastante no oceano?”
Enan já estava super fascinado novamente, e
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também segurando o riso. “Kayman, consegue


caçar mais um pinguim para nós? Sinto que esta
história vai ser das boas.”
O grandão concordou e nós seguimos para a
periferia da cidade, onde diversos pinguins podiam
ser vistos nos telhados das casas e embolados
contra o muro para dormir ou chocar seus ovos. Eu
pensei em dizer que caçar pinguins urbanos era
coisa de gente louca, mas eles eram meio que
comestíveis e eu não pretendia gastar meu dinheiro
para alimentar aqueles dois.
“Então, como eu ia dizendo, eu sou um ladrão
de peixes. Ou costumava ser. Os órfãos incapazes
de caçar sozinhos precisam roubar para… enfim.
Eu vivia a louca vida das ruas e tinha a minha
própria gangue. Roubava de dia e apreciava meus
espólios de noite, este tipo de coisa. A maioria dos
selkies adoraria me ver morto, mas nunca me

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passou pela cabeça que o chamado se importaria


com os meus atos.” Eu me encolhi e cobri a cabeça
com o capuz para os vizinhos não me
reconhecerem. Minha reputação já era um lixo, eu
não precisava ser o louco que caçava pinguins
urbanos com tritões nos telhados das casas. “Mas aí
aconteceu o meu despertar e o chamado me juntou
com um imbecil.”
Pastor Enan arqueou a testa.
“Então você já encontrou seu alfa? Qual o
motivo de cólicas tão intensas?” Perguntou ele.
Que ódio. Era tão fácil de perceber? Eu tentei
endireitar o corpo mas as pontadas voltaram
elétricas, febris e tenebrosas. Mais líquido escorreu
e congelou nas minhas coxas e eu gemi, apertando
o meu ventre.
O pastor tentou me ajudar e eu rejeitei,
seguindo o grandão escuro até um pobre pinguim
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que escolheu dormir sozinho em uma varanda.


“Não faz sentido, o chamado não se importa
com roubos, ainda mais se for para sobreviver.”
Pastor Enan brincou com a textura fofa de seu
casaco, pensativo. “Talvez não seja um castigo,
mas um prêmio. Você ainda descobrirá que você e
seu alfa nasceram um para o outro.”
“Ah, você não conhece o nível daquele filho de
uma puta.” Eu rosnei, então senti outra pontada.
Meu pau arranhava contra o avesso do meu saiote
doloridamente, implorando por um alívio que eu
não podia fornecer. “E aquele alfa detestável foi
apenas a crista da onda em uma sequência de
tragédias.”
Minha fala foi interrompida pelo berro
desesperado de um pinguim, seguido de barulhos
úmidos e rosnados de alfa. Kayman abateu o lanche
do casal em poucos segundos, e óbvio que o

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alvoroço atraiu a atenção de todo mundo.


“Nossa, o que são aqueles dois?” Disse um dos
moradores locais.
“Tritões em Roori? O exército sabe disso?”
Disse outro.
“Devem saber, ou teriam morrido bem antes
dos muros. Deve ser coisa daquele general rabo-de-
escama.”
“Não fale assim do General Cordelen. O
Arquiduque pode não gostar.”
“Eu sei, mas… ei, eu conheço aquele punk. É o
garoto que tentou assaltar a joalheria, e que agora
é...”
Antes que o último cara terminasse de falar eu
corri para longe daquela maldita multidão e me
escondi em um beco. Pastor Enan e Kayman me
encontraram logo depois, mastigando pedaços de

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pinguim.
“Joalheria? Você disse que eram peixes.” Pastor
Enan me ofereceu a cabeça do bicho, que eu
enfaticamente recusei.
“Eu cometi erros, tá bom?” Meu rosto
avermelhou como um vulcão. “Quando se passa a
vida roubando para sobreviver, a gente acaba se
acostumando. Após certa idade eu já conseguia
caçar sozinho, mas a adrenalina de roubar e fugir…
eu precisava de mais. Comecei a roubar dinheiro,
celulares, coisas que eu nem precisava. Aí com
dezessete anos eu me mudei para Roori e resolvi
dar o grande salto na minha carreira: eu assaltaria a
maior joalheria da cidade.”
“Mas o que tudo isso tem a ver com…” Pastor
Enan franziu a testa, confuso, então arregalou os
olhos. “Oh. Não. Você não fez isso.”
Eu avermelhei ainda mais. Que merda, agora eu
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seria motivo de piadas daquele tritão também.


Será que eu deveria continuar? O que eu tinha a
perder? Era a primeira vez que eu contava a minha
própria versão dos fatos.
“Então, ahm… era de noite, na breve época do
ano em que o frio noturno não é fatal. Nenhum
selkie é louco de passear nas ruas após o
entardecer, então eu vesti meu casaco mais grosso e
parti para a minha grande empreitada. A joalheria
já estava trancada, mas não foi difícil arrombar a
fechadura. Eu entrei e tentei me encontrar apesar
das luzes apagadas. O frio, o escuro e o silêncio
eram absolutos, exceto por um único som…”
O casal de tritões devorava pedacinhos de
pinguim, profundamente interessados na minha
história. Pastor Enan já devia ter previsto o final da
história, porque segurava-se para não rir.
A minha versão dos fatos deveria ser menos
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ridícula, mas nem mesmo eu conseguia justificar


tanta idiotice da minha parte.
“Eu puxei a primeira gaveta, revelando muitos
anéis, brincos de pedras preciosas e colares de
diamante que brilhavam mesmo na escuridão. Eu
virei tudo na minha sacola e fui para a próxima
gaveta, e para a próxima, entrando cada vez mais
na luxuosa joalheria. O som tornou-se cada vez
mais alto. Shush, shush, shush, shush… foi então
que eu avistei um lindo broche vermelho ao lado da
caixa registradora, pertinho daquele som estranho.”
O pastor Enan não aguentou e baforou uma
risada na parede, respingando tudo com sangue de
pinguim. Por pouco ele não riu direto na minha
cara, talvez eu devesse agradecer por isso.
“Como o Cordelen não te matou? Digo,
continue, continue…” Disse o pastor.
“Vamos lembrar que eu era um filhote, eu não
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fazia ideia de que som era aquele, então pensei que


fosse um pinguim perdido. Eu contornei o balcão
para pegar aquele broche e… Quer saber, eu não
preciso contar os detalhes! Sou apenas um ladrão
burro pra caralho, que não sabia que aquela
joalheria pertencia ao alfa do General!” Eu cobri o
meu rosto, que fervia de tanto vexame enquanto
Enan se abraçava do Kayman e ria de se matar.
“Não sou apenas burro, como também azarado.
Quais as chances deles estarem se chupando nos
fundos da loja ao invés de ir pra casa?”
Pastor Enan dobrava-se de rir. Ele chorava.
Aquele era o melhor dia da vida dele.
“Eu só imagino… hahahah… a cara do
Cordelen quando… ahahahah… você interrompeu
o sessenta-e-nove dele carregando seu precioso
broche e todas as joias em uma bolsa.” Pastor Enan
tentou continuar falando, mas ele ria demais,

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parecia até que ia morrer sem ar. “Ai, continua, que


história maravilhosa.”
“Esta é a história toda. Digo, óbvio que eu
nunca fugiria de um tritão, então o General logo me
imobilizou, amarrou meus braços nas costas e
deitou meu peito no balcão. A barulheira havia
atraído muitas testemunhas, então se ele mesmo
não me castigasse eu iria direto para o poste de
açoite e seria muito pior. O General tremia quando
levantou meu saiote e mirou a cinta nas minhas
coxas, então o senhor Yoshan intercedeu por mim.
Ele sugeriu que o General usasse sua influência
para modificar minha pena.”
“Yoshan te salvou depois que você invadiu a
loja, tentou roubar as joias e arruinou o boquete
dele?” Pastor Enan quase conseguiu parar de rir.
Quase. “Ele não mudou nada.”
“O General realmente não queria me ferir, mas

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nossa, o fervor da raiva dele poderia derreter a neve


das janelas. Ele me arrastou até os calabouços e me
jogou dentro de uma cela qualquer, para ser
libertado apenas no meu despertar. Aquelas paredes
de concreto foram o meu lar por oito longos
meses.”
O pastor finalmente parou de rir.
“Estranho o Cordelen ter sido tão severo. Ele é
um docinho de anêmona-pitanga, que nem o
Yoshan.” Enan pegou um punhado de neve e
limpou o sangue de pinguim no rosto. “Talvez ele
quisesse te proteger. Se continuasse cometendo
crimes graves, em algum momento os soldados te
castigariam de verdade.”
“E eu vou saber? Quando recuperei a liberdade
o General disse que me colocaria no caminho
certo, e pelo visto isso envolve me humilhar o
tempo todo. Acho que a minha predestinação não

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estava nos planos dele, nem de ninguém.” Eu bufei,


me escorando na parede do beco. “Entendem o que
digo sobre ser azarado? Tudo bem, eu cometi
alguns erros e paguei por eles, mas o chamado
certamente me amaldiçoou.”
“Não acho que você tenha sido amaldiçoado,
Ricky. Vou apostar que esta predestinação é seu
merecido prêmio após uma vida de dificuldades.”
O pastor sorriu com doçura.
“Não consigo ser tão otimista.” Eu baixei o
olhar, desanimado.
“É após os maiores incêndios que nascem as
árvores mais floridas, Ricky. Agora veja bem, eu
não atravessei o Oceano Ártico para conhecer um
beco. Me apresenta essa joalheria do Yoshan. Com
sorte encontramos eles acasalando de novo e eu
posso ensinar algumas técnicas.”
Eu dei risada, embora bastante desconfiado.
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Aquilo foi uma brincadeira, certo?


Com um sorriso no rosto eu comecei a
acompanhá-los, então um zunido ecoou dentro da
minha cabeça.

<<Onde caralhos você se meteu?>>

Eu encolhi meus ombros, tão arrepiado que


meu moicano branco empinou ainda mais alto.
“Desculpem, eu preciso voltar ao palácio.” Eu
disse a eles, começando a apressar o passo.
“Palácio? Você não era um ladrãozinho?” Enan
quase corria para me acompanhar.
“Eu sou. Eu era. É uma história longa demais,
posso contá-la outro dia.” Eu comecei a correr e os
espiei por cima do ombro. “A joalheria fica a duas
quadras para lá! Foi legal conhecer vocês, tchau!”
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Os dois acenaram e eu corri ainda mais rápido,


me perguntando os tipos de infortúnio que me
aguardavam daquela vez.

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Capítulo 52

Os guardas abriram os portões do palácio e eu


entrei correndo, curioso sobre o porque do meu
predestinado questionar minha ausência. Foram
palavras breves e rudes, como eram todas as suas
falas comigo, mas era a sua primeira vez me
alcançando por telepatia. Pensando com otimismo,
este seria um sinal de progresso.
O Palácio de Gelo não era literalmente de gelo,
mas era enorme. Duas semanas após o meu
despertar e eu continuava me perdendo pelos
corredores, tentando encontrar os dormitórios. Eu
passei diante das portas fechadas da sala do
reuniões, onde o Arquiduque devia estar em
alguma audiência, depois diante da sala do trono e
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dos painéis de vidro que me separavam da suntuosa


estufa com plantas tropicais. Os corredores depois
eram um labirinto que conduziam à cozinha, salões
de festa, setores administrativos e da criadagem. Os
servos por quem eu passei nem estranharam me ver
passeando pelos banheiros dos funcionários, não
era a primeira vez que eu me perdia por ali.
Frustrado, eu refiz meus passos de volta à
entrada, sentindo falta da favela de iglus onde eu
costumava viver. Aquele maldito lugar gigante era
a minha nova casa, eu precisava me acostumar.
Enfim, um corredor familiar que talvez levasse
aos quartos. Eu mudei minha direção e logo depois
ouvi gritos, risadas distantes e o som de água
agitada.
Eu segui a direção do som e encontrei os jardins
abertos. Diferente da estufa, no jardim não haviam
plantas de verdade, apenas esculturas de gelo no

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formato de árvores, quadras esportivas, bancos,


mesas e até um bar de drinques. Era como um
resort dos humanos, como se via nas fotos de
internet, mas completamente branco. Tudo era de
gelo e neve exceto pelas piscinas térmicas, que
soltavam uma névoa branca e convidativa, com o
aroma da lenha das caldeiras.
E era justamente da piscina esportiva que
vinham os gritos e risadas.
Reconhecendo uma das vozes eu me aproximei,
azedo e com imenso desgosto.
Lá estava ele, meu predestinado idiota jogando
conchobol com um bando de alfas burguesinhos da
alta sociedade.
Apesar de idiota, eu precisava admitir, Ronan
era ágil. Aquele completo estúpido saltava pela
piscina, mergulhava, subia, carregava a concha em
sua cauda de peixe com mais facilidade do que os
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selkies conseguiam com suas caudas preênseis.


Um dos outros alfas — acho que era Ruthor o
nome dele — estendeu os braços musculosos para
bloquear Ronan, que habilmente mergulhou fundo
e jogou a concha por cima de todos, e ainda
golpeou a cara dele com a barbatana ao driblar.
No lado rival, a concha afundou e afundou até
encostar no fundo, marcando um ponto para a
equipe do Ronan.
“Nossa, príncipe Ronan, isso foi incrível!”
Disse o puxa-saco do Ruthor.
“Você deveria entrar pra liga de conchobol.
Tem certeza que nunca jogou antes?” Disse um
outro cara.
“O que esperar do nosso príncipe, além da
perfeição? O cara é foda.” Outro deles deu tapinhas
no ombro do Ronan, muito sorridente.

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“É muito fácil. Talvez seja natural para mim.”


Ronan sorria orgulhoso, adorando ser o centro das
atenções.
Os ridículos trocaram soquinhos de
comemoração, rindo como um bando de crianças.
O outro time recuperou a concha, mas antes que
continuassem a partida todos notaram a minha
presença. Aqueles imbecis sorriram para mim com
cinismo e desprezo, incluindo o Ronan, que
debruçou-se na borda da piscina como se olhasse
para um cocô.
“O que você quer aqui, Rickett?” Perguntou
Ronan.
“Você mesmo me chamou, meu predestinado.”
Eu afinei os olhos, aborrecido.
“Eu não chamei, apenas perguntei onde você
estava, seu ômega burro.” Ronan virou-se para seus
amigos e todos começaram a rir com ele, como se
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aquele imbecil fosse um comediante em um palco.


“Vá gastar seu tempo com suas bobagens de
ômega, estou me divertindo com os meus amigos.”
Desgraçado. Eu morderia as orelhas dele.
Arranharia a cara. Enterraria meus punhos em seu
nariz até quebrar os dedos.
“Como desejar, meu predestinado.” Eu inclinei
o corpo em reverência, retirei o pinto de pedra do
meu bolso e então o abanei para o alto. “Prometo
me gastar com minhas bobagens de ômega, visto
que meu predestinado busca outras formas de
diversão.”
“Oooooohh!” Todos os caras disseram juntos,
trocando olhares impressionados e risadas. Dessa
vez Ronan não gostou nem um pouco.
Eu dei uma risadinha frustrada, buscando
satisfação no olhar revoltado do Ronan. É, não
havia prazer nenhum em humilhar outra pessoa,
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mas o que mais me restava?


Cansado e dolorido demais para trocar farpas
com aquele egoísta, eu dei as costas e voltei para o
calor aconchegante do palácio.
Para a minha surpresa, assim que eu dobrei o
primeiro corredor Ronan chegou em mim e agarrou
meus pulsos, então me prensou contra a parede.
“Que gracinha foi aquela?” Rosnou ele, com
seus olhos vermelhos ardendo em fúria. “Não
envolva os meus amigos nos nossos problemas!”
Nada impressionado, eu deixei que ele bufasse
na minha cara até se cansar. O que ele poderia
fazer? Quebrar meus pulsos e comprometer sua
preciosa reputação?
“Você tem obrigações comigo, meu
predestinado. O meu corpo suplica e o seu também.
Então por favor…” Meus olhos marejaram e eu me
esforcei para não puxar o fôlego. Sentir seu cheiro
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apenas pioraria uma situação já insuportável.


“Seu corpo não me interessa em nada!”
Vociferou ele, o que era uma óbvia mentira. Eu
sentia sua atração pelo meu cheiro. E da mesma
forma ele devia sentir minha dor. “Eu te dei total
liberdade para viver como bem quiser, é um
capricho que muitos ômegas não sonham em ter.”
“Oh, então sou livre para ouvir suas grosserias,
aguentar sua burrice e me angustiar? Que generoso
da sua parte.” Eu murchei a boca, me perguntando
quando aquele imbecil me soltaria. “Se me permite
lembrá-lo, meu querido predestinado, eu sou tão
príncipe quanto você, e divido dos seus direitos e
deveres.”
Ronan largou meus pulsos e riu, perplexo como
se eu falasse as maiores bobagens. Ele alisou os
cabelos molhados para trás e lambeu os lábios, não
sei se por distração ou apenas para aumentar meu

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fervor.
“Rickett, entenda que eu sou melhor que isso.
Eu vou gerar herdeiros quando eu quiser, e se eu
quiser, porque eu não devo satisfação a ninguém.
Nesta cidade eu tenho reconhecimento e amigos,
não vou perder meu tempo saciando instintos
primitivos.” Ele endireitou o saiote molhado na
cintura, atraindo meu olhar para a firmeza de suas
coxas. “Agora, se já cansou de cobiçar o meu corpo
como um animal, os meus amigos…”
Assim que Ronan disse isso, o pessoal da
piscina começou a conversar. Só então notei uma
fresta na janela sobre nós dois, que dava de frente
para a piscina.
“Tão ridículo. Até o príncipe Rickett consegue
meter moral naquele otário.” Disse um deles.
“Foi bom aquele batedor de carteiras ter
aparecido, eu já não suportava sorrir para as
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idiotices daquele trikie. Vocês viram os arremessos


dele? Parece um mamute brutamontes sem
nenhuma técnica.”
“Se acalma, Ruthor, você ouviu o papai.
Precisamos estar do lado certo quando aquele cara
herdar o trono. Pode apostar que os amiguinhos
ganharão os maiores territórios.”
“Eu sei, mas é uma merda. Aquela cauda
asquerosa bateu na minha cara umas três vezes.
Tem escamas soltas na água, olha pra esse nojo!”
“Eeeeeww, é verdade! E tem outra na sua testa
também, Ruthor!”
“Onde, onde? Ahh, tira! Mas que nojo, de quem
foi a ideia de jogar conchobol com aquele trikie?”
Eu fechei rápido a fresta da janela, com o
coração batendo apertado.
Ronan permaneceu congelado por alguns

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instantes, então bufou e deu de ombros.


“Foda-se. Eles nem eram legais, nem nada
assim.” Ronan seguiu adiante na direção dos
quartos.
Eu baixei a cabeça e apertei as mãos no peito,
que parecia forrado de agulhas. Então eu percebi a
burrice em lamentar pelo Ronan. Aquele completo
idiota teve o que mereceu, não teve?
Frustrado e dolorido tanto no corpo quanto na
alma, eu me arrastei dobrado pelos longos
corredores. A porta do quarto do Ronan estava
fechada e eu não pretendia verificar se ele havia
passado a chave. Desistindo de conversar com ele,
eu segui para a porta à frente e entrei no meu
próprio quarto.
Eu deixei a calefação ligada ao sair, então o
calor gostoso acariciou minha pele dolorida. Do
outro lado da janela embaçada os flocos de neve
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voltavam a cair, me causando uma breve ilusão de


sorte. Poucos órfãos conheciam o luxo de um
ambiente aquecido durante as nevascas. Eu mesmo
não conhecia até o fatídico dia em que minha vida
despencou de vez.
Talvez eu devesse ser grato pelo que melhorou.
Os dias encolhido diante da fogueira em um iglu
precário haviam ficado para trás, assim como as
caçadas perigosas e os roubos para não morrer de
fome. Bastava eu tocar a sineta na minha
penteadeira e um mordomo apareceria com caças
nobres da estação.
Não que eu fosse conseguir comer quanto o
meu ventre era um turbilhão de fogo.
Apesar da minha saída ter sido breve, os
serviçais já haviam arrumado minha cama,
enfeitando-a com muitos pares de travesseiros,
almofadas e também um par de toalhas. Um jeito

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bem passivo-agressivo de lembrar que ali deveriam


dormir dois selkies.
Eu joguei aquele monte de porcarias no chão e
tirei o casaco e as roupas, ansioso em me livrar do
atrito. Meu pau já devia estar sangrando de tanto
arranhar nas roupas.
Assim que eu me despi eu também puxei os
cobertores para me enfiar embaixo deles, então
algo caiu do bolso do casaco. Era o pinto de pedra
que o tritão me presenteou.
Eu peguei aquela coisa e a observei com meu
olhar de profundo tédio.
Ah, que se foda. Eu só rezava que aquele tritão
tivesse lavado depois de usar.
Eu ajoelhei em cima da cama e me perguntei
como fazer aquilo. Quer dizer, era bem óbvio
como, mas eu nunca coloquei nada lá atrás nem nas
piores crises e desesperos. Não me parecia certo
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substituir o alfa desta forma, mesmo que fosse uma


solução temporária.
Mas, bem… o Ronan me concedeu liberdade
total, não é mesmo?
Sentindo palpitações de nervosismo, eu levantei
os joelhos e mirei a ponta de pedra lá atrás. Mesmo
longe do cheiro do alfa a expectativa fez escorrer
lubrificante pelas minhas nádegas, me preparando
antes que eu fizesse qualquer coisa.
Droga, aquilo era tão patético. Vermelho de
vergonha eu olhei para baixo, onde meu pau
latejava tão duro quanto nos últimos dias. Eu já
nem lembrava como era vê-lo em descanso, mas eu
podia resolver isso. Meu corpo merecia satisfação,
por mais depravada que fosse.
A ponta redonda cutucou minha entrada úmida.
Era gelado, eu deveria ter aquecido, mas ainda
assim comecei a sentar. Meu anel alargou pouco a
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pouco, deslizando fácil pelos relevos daquele


brinquedo, esticando partes de mim que eu nunca
havia sentido antes.
Já no meio do caminho, eu me contorci de
tesão. Aquilo era gostoso, muito, muito melhor do
que eu havia previsto.
Eu desci um pouco mais e o relevo das veias
massageou um ponto eletrizante dentro de mim.
Era tão bom que eu levantei e desci de novo, e a
sensação retornou ainda mais forte. Uma gotinha se
formou na ponta do meu pau.
Ofegante e muito excitado eu deitei os ombros
no colchão e mantive a bunda no alto, então
comecei a meter e tirar aquele brinquedo, buscando
o ritmo e o ângulo perfeitos.
Aquilo era gostoso demais. Quando eu pensava
não poder melhorar, o prazer alcançava novos
patamares e eu gemia, movendo a pedra tão rápido
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que o meu braço começava a doer. Talvez por


instinto eu fechei os olhos e me concentrei nas
sensações, nas imagens mentais, não demorou até
Ronan invadir os meus pensamentos.
Eu já conhecia bem o corpo do Ronan. Nos
primeiros dias de predestinação ele não ligava de
aparecer pelado depois do banho. Naquele tempo a
gente ainda dividia o mesmo quarto. Era impossível
não babar para os músculos dele, acompanhar com
os olhos cada passo enquanto ele desfilava ao redor
da cama, seus glúteos musculosos contraindo com
o mover das pernas, as saliências nas costas
aprofundando sempre que ele esticava os braços
para se espreguiçar… e isso sem falar no cheiro.
A maior tortura do universo era dormir ao seu
lado, nós dois pelados e duros, e ainda assim sem
resultar em nada. Mas era quando Ronan dormia
que eu podia admirá-lo de verdade. Seu peitoral

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movendo durante a respiração calma, o rosto


pacífico e tão diferente de quando ele estava
acordado, seu pau enorme e grosso, latejando pela
reação aos meus feromônios. O corpo do Ronan
implorava por mim, se desesperava na vontade de
me arrombar, e eu…
Ah, as lembranças fizeram mágica em mim.
Espasmos cada vez mais fortes pulsaram pelo meu
corpo e eu meti cada vez mais rápido, fazendo
ecoar sons úmidos enquanto descia a mão livre até
o meu pau.
Era difícil coordenar as duas mãos, mas… ah…
pelos oceanos… eu gemia e aflorava tanto que eu
tinha certeza que pegaria fogo.
Apertando os olhos para aquele prazer
enlouquecedor, eu me masturbei e senti uma
explosão se acumulando por dentro. Dava medo
mas eu queria, meu corpo implorava por isso.

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Então alguém abriu a porta.


Ainda estremecendo de prazer, eu ergui a
cabeça na direção do invasor. Ronan?
“O que você pensa que está fazendo, seu
idiota??” Ele gritou, fechando e trancando a porta.
“O que parece que estou fazendo? Patinação no
gelo?” Eu respondi, indignado. “Um pouco de
privacidade, por favor?”
Ronan cruzou os braços e expandiu os olhos pra
mim, como se eu fosse o rei dos criminosos. Ahm,
certo, na verdade eu era o rei dos criminosos, mas
não havia crime nenhum em buscar conforto
quando ele mesmo me rejeitava!
Minha frustração era tanta que eu considerei
continuar independente de sua presença, Ronan que
fosse para o quinto dos infernos.
“Você não pode… e com uma pedra? Qual é o

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seu problema?” Ronan gaguejava, exasperado e


confuso.
Só então eu prestei atenção em seu rosto,
totalmente vermelho e começando a verter suor. O
peitoral másculo se movia rápido, ofegante, e eu
não lembrava de ter visto seus mamilos tão
endurecidos, como duas bolinhas cor-de-rosa.
Oooooh, enfim eu entendia tudo.
“Algum problema, meu predestinado? Nossa
ligação telepática o tem incomodado,
ultimamente?” Eu perguntei, sorrindo com o canto
da boca.
“Pare com isso.” Ele rosnou.
“Com o quê? Com isso?” Eu empalei a pedra
em mim até o talo, então tirei e enfiei de novo, com
toda a força, me fazendo arder como a sala das
caldeiras.

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Ronan arfou e gemeu, escorando-se na parede e


cobrindo a boca com a mão para não gritar. Seu
corpo branquelo ganhou tons rosados e seu saiote
cresceu para a frente cada vez mais.
Eu sorri com esta pequena vitória e resolvi
aproveitar a cena. Ver Ronan diante de mim era
bem melhor que imaginar e seu cheiro másculo era
como palha na minha fogueira.
“Excitado, meu amor? Não se preocupe, eu já
estou terminando.” Eu torci o meu corpo na cama
para que ele também visse eu me masturbando,
então continuei de onde havia parado.
“Seu… seu ômega irritante…” Ronan
endireitou os ombros em uma patética tentativa de
se recompor, então ele se aproximou de mim e
afrouxou os lados do saiote, deixando que caísse ao
chão. “É isso aqui que você quer?”
Nossa, essa reviravolta me surpreendeu. Eu abri
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a boca, tão próximo daquele mastro grosso que eu


podia ver o brilho da umidade já escapando pela
ponta.
Meu corpo relampejou por dentro e eu gemi
alto, derramando semente nas minhas mãos e
pulsando lá atrás, ainda alargado pelo brinquedinho
de pedra.
Ronan não curtiu nem um pouco me ver gozar
na frente dele. Aliás, se ele curtiu estava
disfarçando muito bem, porque ele segurou meus
cabelos e me fez olhar direto para o pau dele.
“Pensei que precisasse disso, Rickett, mas foi
engano meu. Você se vira bem com essas suas
porcarias.” Disse ele.
“Não… não é verdade. Foi só um alívio breve,
nada mais, eu prometo.” Eu respondi, muito
atordoado. O cheiro penetrava meus poros igual a
veneno, e ao mesmo tempo que eu odiava o efeito,
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não conseguia querer evitá-lo. “Eu quero o seu,


Ronan. Não me faça implorar ainda mais.”
Ronan começou a rir, como se esperasse aquela
resposta. Por que ele se divertia com isso?
Certamente doía nele, também. Ele gostava de
sentir dor e desespero? Mas por quê?
Ronan segurava os espetos do meu cabelo com
tanta firmeza que começava a doer. Ele aproximou
a virilha ainda mais, até quase cutucar os meus
lábios.
“Tenta enfiar o pau na minha boca e será a
última vez que irá vê-lo.” Eu rosnei pra ele com o
último resquício da minha dignidade.
“Sério, Rickett? Você mutilaria seu querido
predestinado? E eu aqui, pensando em uma
divertida brincadeira de casal.” Ele soltou meu
cabelo, mas permaneceu onde estava. “Vou
permitir que use a boca. Se agradar o seu alfa da
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forma que agrada a si mesmo, eu planto a semente


que você tanto quer, bem fundo e bem gostoso.”
Cada palavra do Ronan me causou um arrepio
diferente. Eu quase gozei de novo só de imaginá-lo
em mim, recheando meu corpo, semeando a vida
no meu interior, metendo firme e forte, da forma
como seus músculos certamente eram capazes. E
tudo o que eu precisava fazer era chupar ele?
Eu apoiei as mãos nas coxas musculosas do
Ronan e então sua postura arrogante desapareceu e
ele tencionou o corpo, nervoso e acuado como se
fosse eu a subjugá-lo. Era como se ele tivesse
medo. Ou culpa. Ou só quisesse ferrar com a minha
mente, o que era mais provável.
“Odeio isso…” Ele sussurrou baixinho,
angustiado.
“Tudo bem, Ronan.” Eu deixei que minha
respiração fizesse cócegas na ponta, ao mesmo
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tempo em que inalava seu cheiro inebriante. “Eu


também odeio nossa predestinação.”
Ronan tentou dizer alguma coisa, mas eu o calei
avançando para a frente. Meus lábios envolveram o
mastro quente em um só movimento e o gosto
inundou minha boca.
Surpreendido, Ronan grunhiu da prazer e
agarrou novamente o meu cabelo, dessa vez com
certa gentileza. Ele afagou atrás da minha nuca
como se quisesse devolver o agrado.
Eu continuei chupando no auge da minha
dedicação. Daquele idiota eu só queria uma única
coisa e eu faria o impossível para conseguir,
mesmo que envolvesse chupar uma vara gigante
quando eu nunca havia feito nada parecido.
Apesar do meu desgosto, eu precisava aceitar
que os gemidos do Ronan eram uma delícia. Ele
podia ser canalha, grosseiro, burro e hostil como
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uma orca, mas vejam só, ele tornava uma raposinha


domesticada sob os cuidados da minha língua ágil.
Tentando acabar logo com isso eu segurei na
base do pau e Ronan gemeu ainda mais alto. Seus
ímpetos de prazer refletiam em mim como um calor
gostoso nas minhas bolas e eu tive certeza de que
naquele ritmo eu gozaria de novo, e sem me tocar.
Lembrando que a pedra continuava dentro de mim
eu comecei a brincar com ela enquanto mamava,
querendo obter meu próprio prazer.
Puta que o pariu, aquilo era bom além de
qualquer limite.
O mastro do Ronan escorregava pela minha
boca, suas veias pulsando contra a minha língua e a
ponta lisa massageando o meu céu-da-boca, indo e
vindo com os espasmos de seu quadril. Eu aprendia
o ritmo aos poucos, avançando até quase engasgar e
então voltando, lambendo a cabecinha para o

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Ronan assistir e então avançando de novo. Até que


era fácil descobrir o jeito certo quando o prazer
dele ecoava dentro de mim.
O brinquedo de pedra incendiava o meu
interior, fazendo meus gemidos reverberarem no
pau do Ronan. Ele nem me mandou parar dessa
vez, deixou que eu tivesse todo o trabalho naquele
prazer conjunto, a soma de duas almas que, da
forma mais esquisita do mundo, se completava
através do êxtase.
Já cansado e à beira de gozar, eu tirei o
brinquedo de mim e comecei a me masturbar,
envolvendo as mãos no meu pau nada volumoso e
movendo rápido, no ritmo em que movia a boca no
Ronan.
Faltava pouco. A gente terminaria juntos. E
então Ronan montaria em cima de mim, prensaria
meus pulsos contra o colchão como ele tanto

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gostava de fazer e me arrombaria até me gastar,


alargando muito além do que aquela pedrinha era
capaz.
Outra explosão tomou conta do meu corpo. Eu
gemi e me contorci, lutando para não morder o
Ronan apesar do fervor descontrolado. Minha
semente molhou o colchão e eu continuei, querendo
mais.
Ronan também gemeu e estremeceu, então um
jato quente esguichou garganta abaixo, me fazendo
engasgar. Eu tentei afastar o rosto para tossir e
Ronan puxou minha cabeça de volta para a frente,
me mantendo empalado.
“Termina.” Disse ele, ofegante. “Você não vai
me enganar. Engole tudo.”
Enganar? Eu só havia me engasgado e naquele
momento estava sufocando.
Sob o olhar frio e aborrecido do Ronan eu me
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forcei a engolir aquele caldo grosso, que desceu


completamente atravessado.
Ronan finalmente me soltou e eu respirei
desesperado, recuperando o fôlego e tossindo,
atordoado pela falta de ar.
Indiferente para o meu sofrimento, Ronan
simplesmente pegou seu saiote e amarrou na
cintura novamente. Então ele me deu as costas e
destrancou o quarto.
“Espe… espera. E… e eu?”
Ronan arqueou a testa como se não soubesse do
que eu estava falando, jogou seu longo cabelo
bagunçado para trás e começou a rir.
“Sei lá, Rickett, foi bem mais ou menos.
Esforce-se mais, da próxima vez.” Ele piscou pra
mim e deixou o quarto, batendo a porta ao sair.
Não. Não, não, não, aquilo só podia ser piada.

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Todo o calor de antes retornou ao meu rosto,


mas dessa vez não havia prazer, apenas a fúria mais
absurda que eu já havia sentido.
Antes que eu quebrasse todo aquele quarto, eu
me joguei na cama e urrei contra o travesseiro até
os meus pulmões queimarem.
Mas que completo filho de uma puta!!!

****

Mais uma noite me remoendo de ódio.


O que fiz para merecer tanta miséria? Eu não
sabia, mas nunca que eu suportaria calado para
sempre. Se Ronan me considerava um ômega
bobinho e fácil de pisotear, ele não imaginava o
banho de gelo que o aguardava.
A parte difícil foi esperar tanto tempo. Assim
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que eu cansei de gritar no travesseiro decidi que


meus dias de dor precisavam chegar ao fim. Eu
conceberia um bebê e encerraria os castigos do
chamado de uma vez por todas.
Já não haviam vozes no palácio, apenas os
eventuais passos firmes dos soldados que
vistoriavam os corredores. Até os mordomos
noturnos já deviam estar dormindo.
Empolgado, eu me permiti inundar no surto de
adrenalina que eu tanto sentia falta. Dane-se os
castigos do chamado e do General, e as palavras
idealistas do pastor e daquele faxineiro que limpava
minha cela. O mundo pertencia aos fortes e eu
podia ser mais forte que qualquer alfa. Meus anos
na bandidagem me treinaram para aquele momento.
Muito silencioso e furtivo, eu peguei as cordas
de lençol que preparei e então deixei o quarto.
Nenhum clique na maçaneta, nenhum estalido na

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madeira do piso. Eu entrei no quarto da frente tão


silencioso quanto saí do meu.
Ronan já estava dormindo, o que era óbvio.
Quando não incomodava o General ou tentava
socializar com selkies idiotas, ele dormia. Ou lia
livros. Ronan não era um cara de muitas atividades.
Eu fechei a porta atrás de mim e me aproximei
na ponta dos pés. Ele até adormecera por cima dos
cobertores, aquilo seria fácil demais.
Segurando o riso para a minha iminente vitória,
eu estiquei a corda diante de mim e calculei minha
investida. Eu precisava ser rápido. Como alfa,
Ronan me superava em força. Como meio-tritão,
ele me superava em velocidade. Meu único amigo
era o elemento surpresa. Quando Ronan se
recuperasse do susto e arrebentasse as amarras eu já
estaria o cavalgando, e nenhum alfa seria louco de
interromper uma boa cavalgada de seu ômega.

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Heheh, eu deveria ter feito isso logo na primeira


noite. Agora a vitória estava a cinco segundos de
distância. Quatro… três… dois…
Espera, o que era aquilo no lado da cama?
Eu não deveria sair dos planos, mas a
curiosidade me venceu. Atento ao sono do Ronan
eu me abaixei diante dele e peguei aquela coisa.
Mesmo na escuridão do quarto aquele objeto
cintilava em tons vermelhos. Era… metade de uma
pistola? Eu nunca havia visto uma arma tão linda,
com o cano em aço vermelho e incrustações de
rubis. Seria uma verdadeira joia se não fossem as
marcas de dentes, o cano torto e o punho quebrado.
A outra metade continuava no chão. Como raios
alguém conseguia quebrar uma pistola ao meio, e
por quê?
“Me desculpe…” Disse Ronan.
Eu levantei rápido e deixei a arma cair com o
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susto. Ainda bem que o tapete abafou o som.


Por um instante eu cometi a tolice de pensar
que Ronan estivesse arrependido por antes, mas
claro que não. Ele estava tentando dormir, tão preso
nos próprios pensamentos que não me percebeu
quase em cima dele.
Pensando bem, olhando mais de perto, havia
um brilho molhado em seu rosto. Lágrimas e mais
lágrimas encharcavam o seu travesseiro enquanto
ele soluçava e tremia.
“Me desculpe, Madhun… por favor… eu não
quis… eu não quis…” Sussurrava ele, entre soluços
e lágrimas.
Mas o que caralhos? Por isso meu alfa separou
nossos quartos? Para ficar chorando madrugada
adentro?
Eu olhei para as cordas de lençol em minhas
mãos, e de novo para ele, então passei as cordas por
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cima do ombro e fui embora.


Meu alfa realmente era um completo idiota.

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Capítulo 53

“Acorde.” Disse uma voz grave.


Eu forcei meus olhos a abrirem e dei um longo
bocejo, então percebi quem era.
Ah, eu ainda estava dormindo. Ronan nunca me
visitaria, ainda mais vestindo saiote de sarja social
azul e cabelo bem penteado para os lados.
Eu fechei os olhos e voltei a dormir, esperando
que o chamado mostrasse visões menos
desagradáveis.
“Acorde, eu disse!” Ele repetiu, rosnando.
Eu forcei meus olhos de novo. Ah, merda, não
era uma ilusão do chamado. Ronan realmente
estava diante da minha cama, segurando uma
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camisa em cada mão.


“Nhghh… que…” Eu esfreguei os olhos e olhei
pra fora, onde o sol recém surgia entre as geleiras
distantes. Mais um dia acordando de madrugada.
Que beleza.
“Qual camisa devo vestir?” Perguntou Ronan,
bem sério e impaciente.
“Que… como assim…” Eu dei um longo, longo
bocejo e cocei os espetos do meu cabelo, todos
amassados pelo travesseiro.
“Tenho uma audiência em breve. Me diga qual
camisa combina com este saiote.”
“Agora porque sou um ômega eu também sou
um consultor de moda? Seu alfa machista do
caralho.”
“Vermelho, então.” Ronan jogou a camisa preta
na minha cara e começou a se vestir diante do meu

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espelho.
Eu joguei a camisa no chão e fiquei assistindo,
mais do que revoltado. Aquele cara tinha qualquer
noção de privacidade, ou respeito, ou bom senso?
A gente não se falava desde que ele quase me
matou engasgado, no dia anterior, mas óbvio que
eu não ouviria um pedido de desculpas.
E também, óbvio, Ronan não contaria nada
sobre a choradeira em seu próprio quarto. Era capaz
dele gritar comigo se soubesse que eu o escutei.
Hunf… não que eu me importasse com aquele
palhaço. As atitudes dele me deixavam curioso, só
isso.
“Posso saber que audiência é essa?” Eu
perguntei, mais intrigado do que gostaria de
admitir. Ronan sempre desaparecia pelos cantos do
palácio, mas, que eu soubesse, ele nunca se
interessou por política nem por qualquer atividade
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útil.
“Vou conversar com o Arquiduque Rhemus.”
Ele abotoou tranquilamente sua camisa vermelha.
Enfim o meu sono desapareceu. Eu levantei
tropeçando pelos cobertores e quase me arrebentei
no chão.
“Espera, o quê?” Eu alisei o meu moicano para
cima, tentando endireitá-lo. “O Arquiduque
Rhemus Moai? Ele é o governante supremo de
Cratília e o selkie mais poderoso do reino, depois
do Imperador!”
“Por que isso te surpreende? Eu sou o Herdeiro
dos Sete Oceanos. Se aquele velho está abaixo do
meu avô Macalor, então também está abaixo de
mim.”
Eu arregalei os olhos, sem acreditar em nada do
que eu ouvia.

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“Ronan, meu predestinado, o que é tão


importante, que precise ser tratado com ele? Por
que não conversa com o General Cordelen? Ele já
te ouviu várias vezes, é possível que…”
“Aquele tritão inútil só sabe desconversar
minhas perguntas. Nunca percebeu a demora dele
com cada resposta? Ele não fala uma sílaba sem
antes debater com o predestinado dele através de
telepatia. É patético.”
Eu odiava aquele general, mas não achava que
telepatia fosse patético. Tornar-se uma única alma
com o predestinado devia ser bonito e romântico, o
auge da confiança mútua. Mas claro que Ronan não
compreenderia algo assim. E ele também tinha seus
motivos para desprezar o General.
Apesar de tudo, as ideias do Ronan eram
loucura. Eu não sabia como funcionavam as
audiências em Egarikena, mas o nosso Arquiduque

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era um selkie ocupado e inacessível. As únicas


vezes em que eu o avistei foram em passeatas de
Adoração ao Imperador, ou em seus raros discursos
para o povo. E ainda assim eu só pude assistir
porque os Walrosse são um clã de alta casta.
Ronan penteou o cabelo com a minha escova,
alisou a franja com o meu gel de cabelo e foi
embora.
Ah, pelos oceanos, o que fiz para merecer tanto
tormento?
Eu olhei na direção da porta, que Ronan não
teve a gentileza de fechar. Então ele iria mesmo
encontrar-se com o Arquiduque? E vestido como
um idiota? Quem raios combina um saiote azul
com camisa vermelha? O Arquiduque o confundiria
com um atendente de lanchonete!
Droga, eu deveria ter sugerido a camisa preta.
Espera, espera! Nada daquilo era problema
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meu! Dane-se que o Ronan passasse vergonha e


humilhação, e talvez ouvisse coisas cruéis e
frustrantes que o fizessem chorar ainda mais
durante a noite. Ele merecia. Ele mesmo me
humilhava o tempo todo!
Ai, mas e se ele fizesse alguma besteira?
Realmente, algum dia ele governaria tanto
Faerynga quanto Cratília, mas por enquanto ele era
apenas um príncipe estúpido e ingênuo tentando
tomar as rédeas de uma situação que ele nem
começava a compreender.
Será que o Arquiduque podia castigá-lo, por
qualquer motivo? Muitos já foram açoitados ou
presos por desacato ou quebra de decoro, e a
distância entre as duas regiões do reino enfraquecia
muito a influência do Imperador sobre os
cratilienses. Não me surpreenderia que o
Arquiduque tratasse um nobre Faroé como um

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cidadão comum, ou pior ainda, como um híbrido de


tritão e selkie, um trikie.
Mas, novamente, isso não era problema meu.
Uma boa surra de couro ensinaria ao Ronan
algumas lições sobre humildade.
É isso aí. Eu não precisava me envolver.
Decidido a viver um único dia agradável, eu me
despi, entrei no banheiro e liguei a água do
chuveiro.
E se Ronan cometesse uma besteira grande?
Não havia limites para a burrice dele, isto era uma
certeza. E se o Arquiduque mandasse executá-lo?
Ah, que ódio!! Eu chutei o box do chuveiro até
quase quebrá-lo e voltei correndo para o quarto.
Meu cabelo estava uma merda, lubrificante
ainda escorria pelas minhas coxas e meu corpo
fedia a suor porque óbvio que eu passei a noite toda
brincando com um pênis de pedra. Quem nunca? E
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ainda assim não dava tempo de me arrumar.


Eu precisava ajudar o imbecil do meu
predestinado.

****

Apesar do palácio ser reservado aos membros


da alta nobreza, o Arquiduque Rhemus preferia
viver isolado, em uma casa modesta e bem
protegida longe dos tumultos do centro de Roori.
Diziam que ele vivia sozinho e que saía apenas para
trabalhar, quando cuidava da administração do
reino ou seja lá o que fazia um Arquiduque.
Assim como o General, o Arquiduque também
trabalhava no prédio do Departamento de Defesa.
A sala de reuniões situava-se no último andar, e era
para lá que eu me encaminhava.

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Já no elevador, eu não conseguia parar quieto,


batucando os pés no chão e verificando mil vezes
se não havia plumas de pinguim no meu melhor
casaco.
Aquilo tudo era assustador demais. Eu
precisava me conscientizar de que eu era um
príncipe, agora. E um dia eu seria imperador, lado a
lado com o Ronan. Encontrar gente importante era
o básico. Além do mais, havia um ponto ao meu
favor: eu era profissional em lidar com gente
escrota. Lidar com o Arquiduque não podia ser pior
do que lidar com o Ronan ou com o General, que
para a minha sorte não esbarrou comigo na entrada
do Departamento.
É, minha sorte começava a mudar para melhor.
Com um sorriso no rosto eu saí do elevador no
andar correto, atravessei a recepção muito elegante
e nem precisei me apresentar para a secretária

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porque eu era Rickett Walrosse, o Príncipe dos Sete


Oceanos, e podia entrar onde eu bem quisesse,
incluindo naquela suntuosa porta com adereços de
ouro ao final do corredor.
“Príncipe Rickett, o Arquiduque encontra-se em
reunião no momento.” Disse um dos guardas ao
lado da porta.
“Agradeço pela informação, soldado, é
justamente comigo que o Arquiduque…”
Eu abri a porta e emudeci.
Realmente, Ronan estava ali, sentado na ponta
de uma longa mesa com o Arquiduque Rhemus à
sua frente. Mas eles não estavam sozinhos. Um
terceiro indivíduo com um broche vermelho nos
longos cabelos negros estava de costas para mim.
Ele virou-se na minha direção assim como os
outros e então sorriu travessamente.
“Rickett, meu meliante favorito! Pretende
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roubar nosso projetor de slides, desta vez, ou talvez


esta tigela de ameixas?” Perguntou o General
Cordelen.
Puta que o pariu.
“Ahm… não… não, eu só…” Eu gaguejei, me
encolhendo contra a porta.
“Por que está aqui?” Perguntou Ronan, em um
tom estranhamente neutro. Ele não estava bravo,
apenas curioso.
“Enfim conheço pessoalmente o nosso mais
novo príncipe. Rickett Walrosse, sua fama precede
sua impressionante ascensão social. Junte-se a
nós.” O Arquiduque estendeu sua mão para a
cadeira ao lado do Ronan e eu quase tive um ataque
cardíaco.
Arquiduque Rhemus Moai. Ele era ainda mais
troncudo visto de perto, quase gordo, com um rosto
redondo e o olho esquerdo castanho. Na metade
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direita do rosto havia uma enorme cicatriz de


queimadura que havia destruído metade do cabelo
branco e seu outro olho. A mesma queimadura
descia pelo pescoço até sumir no casaco e também
havia consumido dois dedos da mão direita e eu
podia supor que parte de seu pé, pois ele sempre era
visto com sua bengala. O Arquiduque sempre se
vestia em trajes muito longos e elaborados, com
coletes de pele e lindas joias forjadas pelo mestre
joalheiro Yoshan, provavelmente para distrair ao
máximo das deformações de seu corpo.
Diziam que o Arquiduque perdera setenta por
cento da pele em uma batalha terrível durante a
primeira grande guerra. Vendo de perto eu não
duvidava dos boatos, só me perguntava como ele
sobreviveu.
Eu sentei ao lado do Ronan, tentando não
parecer assustado. Alguém de alta casta não deveria

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temer a nobreza, mas eu era um Walrosse com


muitas passagens pela polícia, e alguém inteligente
como o Arquiduque certamente se informara sobre
o meu passado.
O Arquiduque parecia calmo. Satisfeito, até. E
o General sorria como durante suas partidas de
xadrez.
“Então, meu jovem príncipe Ronan Faroé… de
que forma pretende gastar meu tempo, hoje?” O
Arquiduque descansou as costas em sua cadeira e
mastigou uma das ameixas.
“Você sabe muito bem, seu velho grotesco! Eu
vim para este monte de gelo que você chama de
reino para conhecer a minha família. Não dou a
mínima para o trono de brinquedo que vocês têm
no palácio, eu exijo ver meu avô, o Imperador
Macalor!” Bravejou Ronan.
Eu esbranquicei.
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Meu predestinado, talvez seja importante


manter os bons modos, se …

<<Vou enfiar bons modos no cu deste palhaço! É a


quinta vez que o filho da puta vai me enrolar!>>

Quinta vez? Então Ronan desaparecia para


conversar com o Arquiduque? Por que encontrar o
Imperador era tão importante, se Ronan não o
conhecia?
“Entendo sua impaciência, jovem príncipe, e
lhe garanto que conhecerá o Imperador no
momento mais oportuno.” O Arquiduque sorriu e
jogou o caroço da fruta na lixeira. “Como já lhe
expliquei, a extrema distância entre Faerynga e
Cratília traz certas fragilidades políticas, que
podem ser reparadas com a presença de um Faroé
que represente…”
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“Enfiem aquele trono no rabo de vocês! Como


Herdeiro dos Sete Oceanos, eu ordeno conhecer a
minha família!!”
Família? Por algum motivo me lembrei do
nome Madhun, e em como Ronan chorava ao
pensar dele.
“Meu predestinado, acalme-se.” Eu segurei a
mão do Ronan, que ele espremia furiosamente na
borda da mesa. “Digníssimo Arquiduque, pedimos
desculpas pela escolha de palavras.”
“Tudo bem, jovem Rickett. Minhas audiências
com Ronan são a parte divertida das minhas
semanas.” O Arquiduque riu e fez um gesto ao
General Cordelen. “General, por favor explique
com palavras ainda mais simples.”
“Sua ordem é uma honra, digníssimo
Arquiduque.” O General levantou e prestou uma
reverência cheio de pompa, como se ele fosse um
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militar sério e não um chato implicante que adorava


me causar miséria. Ele pegou um globo terrestre na
estante e o ajeitou na mesa, convidando todos a se
aproximarem.
“Certo, vamos explicar de novo, Ronan, então
preste atenção desta vez.” O General quase ria, se
divertindo. “Como você lembra, ou eu espero que
lembre, o oceano é dividido em dois reinos: O reino
dos tritões, e o reino dos Selkies. Aqui temos a
capital dos tritões e seu antigo lar, Egarikena.” Ele
apontou embaixo do globo, na parte azul. “…E
aqui temos Cratília.” O general circulou o dedo
ainda mais embaixo, na massa branca que os
humanos conheciam como Antártica. “Apenas
certas regiões de Cratília são habitáveis, então não
é tão grande como parece. Roori fica aqui, no ponto
mais próximo entre Cratília e Egarikena. Um tritão
rápido pode realizar a travessia em dois ou três

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dias, e um selkie em cerca de dez dias.”


“De novo essa merda?” Rosnou Ronan.
“Aqui no centro do mapa temos os continentes
dominados por humanos, e bem aqui em cima…” O
General subiu o dedo até o extremo norte, onde
havia outra massa branca. “Aqui fica o reino de
Faerynga, onde seu precioso vovô se encontra. São
meses e meses de viagem a nado, atravessando o
planeta de uma ponta a outra em território inimigo.
Acho que entende onde eu quero chegar.”
“Eu entendo que vocês são uns covardes
trouxas!” Disse Ronan. “Vocês venceram os tritões,
não venceram? Me consigam um barco e uma
tripulação competente e eu farei esta travessia
sozinho. Ou foda-se, eu posso ir nadando,
também!”
“Você, nadando sozinho nos mares quentes?” O
Arquiduque riu. “Os tritões perderam seu exército,
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é um fato, mas como qualquer um deles reagiria, se


encontrasse um regicida traidor?”
“Regicida traidor?” Ronan expandiu os olhos,
surpreso.
O General passou o braço por trás dos ombros
do Ronan, divertindo-se tanto quanto o
Arquiduque.
“Ah, Ronan, Ronan… uma hora seus atos
entrarão nesta sua cabecinha. Você assassinou dois
reis, que podiam não ser seus avôs, mas eram de
fato seus bisavôs de sangue. Não deve haver
nenhum tritão que não deseje sua morte… além de
mim e do Yoshan, é claro. E não pense que será
visto como herói por aqui, também. Você
exterminou nossos maiores inimigos, mas não
deixa de ser um traidor que esfaqueou o próprio clã
pelas costas. Não há tripulação no mundo que
dividiria um barco com você.”

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Ronan murchou os ombros e se encolheu,


estremecendo. Eu sentia em nossa ligação o medo,
a angústia e um ódio que queimava mais ardente do
que qualquer fogo. E não era um ódio por alguém
ou por alguma coisa. Ronan, com todas as forças,
odiava a si mesmo.
Eu não podia apenas continuar ouvindo.
“Com… com licença.” Eu levantei a mão como
uma criança na escola.
O General e o Arquiduque olharam para mim,
intrigados.
Eu engoli seco, porque não havia pensado em
nada, exatamente. Eu só queria distraí-los do Ronan
um pouquinho.
“Ahm… o Ronan é neto do Imperador Macalor
Faroé, isso é verdade, mas ele também é o herdeiro
de dois tronos, não é? Ele assassi… ahm… perdeu
os bisavôs, mas certamente tem outros parentes no
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lado dos tritões. Por que não conhecer o pai ômega


dele? Hian II abdicou de seu trono sem nunca
conhecer o reino, ele não se importará com
questões diplomáticas.”
Todos silenciaram por completo. Ronan parou
de tremer e olhou direto nos meus olhos, mas agora
seus sentimentos iam muito além do ódio. O medo
em sua alma era aterrador e sufocante.
O General Cordelen riu baixinho e sentou-se na
mesa, ao lado do globo. Seu sorriso era o de uma
criança prestes a abocanhar um enorme de sorvete
de krill.
“Oh, o seu predestinado ainda não te contou,
Rickett? O ex-príncipe Hian II rejeitou Ronan logo
após seu nascimento, não suportou a ideia de ter
um filho metade selkie. E ele ainda implorou um
milagre ao chamado e conseguiu ter um segundo
filho que ele ama com todo o seu coração.”

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Ronan levantou e chutou sua cadeira,


arrebentando-a na parede.
“Foda-se!!” Gritou ele, com os olhos cheios de
lágrimas. “Foda-se aquele imbecil que matou o
meu outro pai! Não dou a mínima pra ele! Eu só
tenho uma família que é o meu avô, o Imperador
Macalor!”
Enquanto Ronan surtava, o General
tranquilamente retirou um lenço do bolso e
entregou ao Ronan.
“Meu estimado príncipe, deve observar sua
postura em reuniões oficiais. É inadequado chorar
na presença da alta nobreza.” O general afinou os
olhos e o sorrisinho.
Ronan baixou o olhar para o lenço, tocou seu
rosto e então percebeu as lágrimas.
“Ronan…” Eu tentei segurar sua mão, me
sentindo afundar em sentimentos negros. Mágoa,
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decepção, ódio, arrependimento. O coração do


Ronan era como um poço negro e profundo, onde
eu poderia cair e nunca mais encontrar a luz.
Assim que sentiu o meu toque, Ronan recuou e
saiu correndo porta afora.
Eu olhei para a porta escancarada. Chocado e
dolorido por dentro. Como alguém mantinha a
sanidade, cultivando sentimentos tão sofridos?
Minha confusão e tristeza tornou-se raiva. Eu
encarei o General com todo o meu ódio, pouco
ligando se ele ferraria a minha vida depois.
“Isso foi cruel.” Eu disse ao General.
“Talvez o jovem nos dê sossego, depois desta
vez. Agradeço sua presença, General Cordelen.” O
velho arquiduque se levantou. Ele era ainda mais
alto do que eu lembrava, até mais alto que o Ronan.
“Devo me retirar para afazeres mais importantes, e
acredito que o senhor também.”
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“A gratidão é minha pela oportunidade,


Digníssimo Arquiduque.” General Cordelen
prestou mais uma reverência.
O Arquiduque pegou sua bengala e lentamente
deixou a sala, arrastando o pé direito.
Minha raiva esfriou e eu passei a me sentir
simplesmente triste. Devastado.
“General Cordelen, isto foi mesmo necessário?”
Eu perguntei a ele, que guardava o globo e outras
coisas de volta ao lugar.
“Ah, Rickett, Rickett… Algumas pessoas estão
tão preocupadas em dançar, que não percebem as
cordas em seus braços e pernas.” O General ajeitou
a cadeira arrebentada e passou um pano na mesa.
“Pessoas assim são impossíveis de respeitar.”
“O Ronan tem defeitos. Muitos, muitos
defeitos. Mas ele também tem sentimentos. Se ele
insiste tanto em conhecer o avô, acredito que seja
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muito importante para ele.”


Após terminar a breve faxina, o General sentou
sobre a mesa diante de mim e então brincou com os
espetos do meu cabelo.
“Eu gosto de você, Rickett. Algumas pessoas
obedecem regras apenas porque regras precisam ser
obedecidas, e outras, mais tolas, desobedecem estas
regras por acharem que desobediência é sinônimo
de liberdade. Mas você é diferente, Rickett. Você
obedece não por submissão, mas para conhecer as
regras do jogo.” O General deslizou a mão do meu
cabelo para o meu rosto, sorrindo ao me acariciar.
“E isto eu respeito profundamente.”
Regras do jogo? Do que aquele doente mental
estava falando? Ele provavelmente só queria me
enlouquecer de novo e eu já estava cansado das
zoeiras dele.
Espera. Na verdade fazia sentido, sim!
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“Aquele seu amigo ainda está em Roori?” Eu


perguntei ao General. “Porque eu estive
pensando… ele iria adorar conhecer as casas-de-
ômega. Eu mesmo nunca estive em uma, pode ser
um passeio divertido.”
O General riu alto, com certeza deduzindo todo
o resto da conversa. A inteligência dele me
assustava.
“Está certo, Rickett. Que informação você
deseja de mim?” Ele balançou as pernas na beira da
mesa, adorando tudo. “Quer tanto assim descobrir
sobre os parentes do seu predestinado?”
“Não, isto não preciso descobrir através de
você. Quero que me conte sobre um tal de
Madhun.”
A expressão do General mudou. Ele
desmanchou o sorriso brevemente, como se tivesse
previsto mil possibilidades e minha pergunta fosse
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a milésima primeira.
“Onde ouviu este nome?” Perguntou o General.
“Ouvi Ronan repetindo este nome enquanto
tentava dormir, e…” Eu me calei. Ah, que burrice!
Eu deveria obter informações, não dá-las de
presente! “Por favor, General. Eu sei que é tolice,
mas… eu quero entender o coração do Ronan.”
O General travou por alguns instantes. Ele
parecia pensativo, mas certamente apenas
conversava com seu predestinado. Diziam que os
Amalonas eram o clã de tritões mais inteligentes e
ardilosos dos oceanos, o que era difícil de acreditar,
considerando-se que o senhor Yoshan era um dócil
joalheiro que sempre evitou envolvimentos
militares, mas na verdade ele foi tão responsável
pela nossa vitória quanto o próprio General.
Passado o estado de transe, o General pegou um
bloquinho no bolso e fez anotações de caneta.
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Então ele arrancou a anotação e passou para mim.


Intrigado, eu tentei pegar o papel. Era uma
sequência de números.
Antes que eu conseguisse pegar, o General
levantou o papel além do meu alcance.
“O quê é isso?” Eu perguntei.
“Como assim, não está vendo?” Ele balançou a
anotação diante do rosto. “Tritões em geral têm
aversão à tecnologia, incluindo nosso genioso
príncipe, mas aqui temos um caso especial. Este é o
número de celular do Madhun.”
Meu coração deu um salto.
“Como o senhor tem isso? Quer dizer, o que
faço com isso? Digo…” Eu balancei a cabeça,
tentando clarear meus pensamentos. “Prometo que
o pastor Enan terá o dia mais divertido de sua vida.
Vamos passear nas casas-de-ômega, nas águas

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termais, até nos clubes de dança, se ele assim


desejar. E eu vou apresentar cada bloco de gelo
como o melhor dos guias turísticos!”
“Eu não duvido da sua dedicação, Rickett.
Mas…” O General quase me entregou o papel e o
recolheu de novo. “…vou querer tudo isto, e uma
coisinha a mais.”
“Que coisinha a mais?” Eu perguntei.
“Quero que coloque sua predestinação em bom
uso. Entre na mente do Ronan, investigue-a.” Ele
sorriu novamente, com um olhar gelado que me fez
tremer. “Descubra tudo o que ele souber a respeito
da Safira do Oráculo.”
O General enfim me entregou o papel, que eu
memorizei antes de guardar no bolso.
O número de celular do Madhun, de alguém
importante para o Ronan… eu precisava pensar
com muita calma antes de utilizá-lo.
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“Eu… eu prometo tentar, eu acho.” Eu disse.


“O mundo é cheio de peões, Rickett. Peões,
peões, peões vivendo a ilusão da independência
enquanto dançam ao som de uma mesma música.
Você não é um peão, Rickett, você é a rainha. E
você sabe qual a função da rainha?”
“Ei, eu posso ser um ômega, mas sou muito
macho, tá me ouvindo?” Eu rosnei, me afastando
dele antes que roubasse o papel de novo.
O General riu alto.
“Você entenderá no momento certo. Agora
sugiro que reencontre seu predestinado e tente
conversar com ele. O Príncipe da Revolução não
mudará os oceanos enquanto se preocupar com
dramas pessoais.”.
Príncipe da Revolução? A única revolução que
Ronan conseguia fazer era dentro da minha
sanidade mental, mas ainda assim eu concordei
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com a cabeça e aceitei a sugestão do General,


embora não imaginasse um mundo onde Ronan
permitisse a minha aproximação. E agora que eu
sabia demais, com certeza nossa relação só
despencaria.
Pelo menos naquele dia eu consegui dar um
passo adiante, e o bilhetinho no meu bolso talvez
fosse a primeira peça para desvendar os enigmas de
seu coração.

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Capítulo 54

Ronan estava lendo um livro em sua cama e


fingiu não perceber quando eu entrei no seu quarto.
Eu fechei a porta e sentei ao seu lado, sem saber
por onde começar.
“Não precisa dizer nada.” Ronan passou a
página de seu livro. “Está aqui para rir da minha
cara, ou para me humilhar com a sua pena?”
O comentário do Ronan me pegou
desprevenido. Teria ele lido a minha mente? Não,
se ele tivesse feito isso, saberia que eu não via
graça alguma e que sentia muitas coisas, menos
pena.
Eu arrisquei me aproximar um pouquinho.

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Aquele livro tinha uma capa estranha, bem escura e


com um homem fumando charuto enquanto
metralhava um monstro verde.
“Você gosta de livros? Porque a Biblioteca de
Roori é bem impressionante. Eu aparecia às vezes
para roub… ahm… passear, e acabava ficando
horas admirando as capas. Os livros de autores
humanos tem capas muito bonitas.”
“Pro caralho com as capas. O conteúdo é a
parte mais importante.” Disse ele, seco e
monocórdio.
Eu me encostei na cabeceira da cama e abracei
meus joelhos, tentando controlar a angústia
devastadora dentro de mim. Eu já não sabia quais
sentimentos eram do Ronan e quais eram meus.
“O General não deveria ter falado daquela
forma.” Eu disse, com o olhar nos meus pés. “E
você não deveria acreditar em tudo. É possível que
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ele apenas quisesse te irritar.”


“E por que ele mentiria? Eu cresci sem
ninguém, diferente de todos e cercado de mentiras.
O General é tão idiota quanto aquele velho
deformado, mas ele não mentiu. Tudo se encaixa
perfeitamente.” Ronan grunhiu uma risadinha triste.
“Mas foda-se tudo isso. Se aquele idiota assassino
nunca quis me conhecer, então ele que queime no
inferno com o seu novo filho.”
Apesar das palavras, a voz do Ronan tremulava.
Ele mantinha o olhar no livro, focando na mesma
página de quando eu apareci, como se eu não fosse
notar o brilho úmido em seus olhos.
“Eu… eu também cresci sem os meus pais,
então eu meio que entendo.” Meu coração bateu
apertado com as lembranças. “A gente vivia em
Trysse, uma vila alguns quilômetros ao leste de
Roori. A famosa Trysse da Avalanche.”

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“Nunca ouvi falar.”


“Ah, é, claro que não, mas qualquer cratiliense
conhece a história. Trysse era um vilarejo pacífico
de pescadores ao pé de uma enorme geleira. Eu não
lembro em detalhes, mas era bonito e meus pais e
irmãos sempre sorriam. E então, quinze anos atrás,
veio a avalanche. Eu fui o único sobrevivente do
meu núcleo.”
Ronan permaneceu em silêncio, folheando as
páginas do livro. Em algum momento ele me olhou
com o canto da visão.
“Seus pais te amaram. Não é a mesma coisa.”
Disse ele, aborrecido. “Estou tentando ler.”
“Desculpa atrapalhar.” Eu me levantei,
cabisbaixo. “Ah, Ronan…”
“O que você quer, agora?” Ele rosnou.
“Aquele outro dia, no meu quarto… eu disse

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que odiava a nossa predestinação.” Eu suspirei,


amargurado. “Aquilo foi uma mentira.”
“Não deveria ser.” Ronan acomodou-se na
cama e voltou ao livro. “Vá embora, esqueça que
existo.”
Eu concordei com a cabeça e, tentando ignorar
o sofrimento crescente na alma do Ronan, eu deixei
o quarto.
Ronan devia estar realmente mal para ter
conversado tanto comigo sem gritar ou trocar
insultos, e eu sentia seu desespero silencioso
quando eu fui embora. O idiota teimoso queria que
eu ficasse, não queria? Mas eu não tinha tempo
para os jogos infantis dele.
Mesmo que fosse uma simples promessa ao
general, um passeio durante a tarde era o que eu
precisava para me animar. E aquele tritão
pervertido do outro dia até que era uma companhia
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bem agradável.

****

Eu devia ter perguntado ao General o endereço


da casa dele. Eu já havia percorrido todo o bairro
nobre de Roori, mas ele podia morar em qualquer
uma daquelas mansões metidas. Também podia ser
que o pastor Enan estivesse na joalheria, mas nem a
pau que eu atravessaria a cidade de novo.
Desistindo de procurar, eu sentei no banco de
uma praça e peguei o celular. Eu tinha poucos
contatos, a maioria eram amigos ladrões que
naquele momento já haviam predestinado e tomado
jeito na vida. Ou então foram açoitados até a
insanidade, ou então presos, ou mortos. Eu preferia
pensar nos que viviam felizes com predestinado e
filhos. Além destes poucos ex-amigos, também
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havia o número do General Cordelen, porque óbvio


que o idiota mexeu no meu celular durante o meu
tempo nos calabouços.
Eu pairei meu dedo sobre o contato. Droga, eu
não queria falar com aquele imbecil além do
necessário, mas também não queria vasculhar a
cidade a troco de nada.
Enquanto eu decidia o que fazer, um som de
risadas atraiu a minha atenção. Alguns caras
jogavam baseball na quadra adiante.
“Sério, mesmo? Tem certeza que não era outro
cara?” Perguntou um deles.
“Eu reconheço o fedor de trikie à distância,
Ropper. Aquele era nosso querido futuro
governante, chorando que nem um filhotinho de
ômega.” Disse o maior deles, e eu o reconheci. Era
o Ruthor. E aqueles outros eram os mesmos idiotas
da partida de conchobol.
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Todos eles riram ainda mais.


“Aquele bebezão não tem senso de ridículo?
Quem corre chorando pra casa, na idade dele? Um
príncipe fraco, burro e escamoso… o Arquiduque
deveria extraditá-lo à Faerynga no primeiro navio e
colocar fim a este vexame.”
“Segundo o meu pai, ainda vamos aguentar o
crianção por um bom tempo. Ele é um elo
diplomático, ou coisa do tipo.”
“E aquele retardado nem deve perceber isso.”
Ruthor dobrava-se de tanto rir. “Olhem para mim,
eu sou o príncipe dos sete oceanos, blá, blá, blá…
pelo menos será fácil conseguir a amizade daquele
nojento chorão. Olha o quanto ele precisa de um
abracinho amigo.”
Filhos de uma puta. Eu marchei para aquele
grupo de imbecis com os meus olhos ardendo de
ódio.
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“Ronan não é nojento e ele tem um coração,


diferente de vocês!” Eu gritei com aqueles ogros,
precisando inclinar o pescoço para olhá-los nos
olhos.
Os idiotas diminuíram a risada, me admirando
com fascínio e surpresa. E eles voltaram a rir
quando Ruthor beliscou a minha bochecha.
“Relaxa, príncipe Rickett. A gente entende o
seu sofrimento.” Ele brincou com as minhas
bochechas que nem se eu fosse uma boneca. “Deve
ser horrível dar a bunda para um trikie, então se
nunca houver um herdeiro ninguém vai ficar
surpreso. Pelo menos você agora pode andar
conosco e os outros filhos de duques. Talvez nossos
predestinados até te convidem para a tarde do
bordado se você der um jeito nesse seu cabelo.”
Tarde do bordado? Aquele imbecil só podia
estar de palhaçada.

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“Peça desculpas ao Ronan.” Eu rosnei.


“Prometa nunca mais destratá-lo e tenha uma
amizade sincera com ele. Por favor.”
Ruthor afastou-se de mim e trocou olhares com
os outros ridículos. Eles desataram a rir de novo.
“Amizade sincera? Com aquele trikie
arrogante? Ronan é apenas um recurso político,
príncipe Rickett, e um bem escamoso e chorão, por
sinal.” Ruthor secou uma lágrima de riso.
Meu sangue ebuliu com o fervor de um gêiser.
Como eles se atreviam? Em um gesto impulsivo eu
arranquei o taco de baseball das mãos do Ruthor e
rugi, expondo os dentes afiados e os enormes
caninos de minha forma feral.
Aqueles alfas imbecis pagariam muito caro pelo
dia em que se meteram com o meu núcleo.

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****

Golpes de água atingiram o meu rosto, me


fazendo acordar.
Eu tentei abrir os olhos, mas apenas um deles
abriu, e pela metade.
Meu estômago doía tanto que eu quis gritar,
mas não tive forças. Aquilo era muito pior que o
cio, era dor física de verdade, como se eu sangrasse
por dentro.
Minha memória escorregava pela minha mente,
eu só lembrava uns poucos detalhes. Alguma coisa
sobre eu encontrar o pastor Enan… mas acabar
encontrando um bando de idiotas… minha cabeça
doía ainda mais que o meu estômago… e eu tentava
engolir o sangue na minha boca, mas sempre
voltava mais. Havia um rasgo na minha língua.

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Eu pisquei meus olhos inchados e consegui


abri-los um pouco mais, reconhecendo o teto da
casa de banho do palácio. A água quente acariciava
as minhas costas e também o meu peito, conforme
alguém molhava as partes mais doloridas.
Só então eu percebi um borrão branco no canto
do meu olhar. Só podia ser uma miragem.
“Ronan… por que você…” Eu tossi pesado,
respingando sangue em seu peito.
“Eu quem tenho perguntas.” Ele bateu água na
minha cara, furioso e assustado. “Por que não me
chamou?”
“Chamei para… ah… para que…?” Eu gemi de
dor. Falar com a língua cortada doía muito.
“Não finja ser ainda mais estúpido! Você calou
a nossa ligação de propósito!”
Ahn, eu fiz o quê? A minha memória retornava

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aos poucos.
“E daí que eu não chamei?” Eu tentei me
sentar, mas meus músculos não obedeciam. “Você
mandou que eu não importunasse. Eu… pensei
que…”
“É isto o que pensa que eu quero, seu ômega
burro? Que você se arrebente?” Os olhos do Ronan
cintilaram em comoção magoada e ele tentou
segurar, mas acabou desabando em um choro
desesperado. Suas lágrimas escorreram pelo meu
peito ferido. “Eu não aguento mais. Não quero que
mais ninguém morra só porque eu sou eu!”
A água salina começou a surtir efeito e eu
consegui forças para segurar a mão do Ronan.
Desta vez ele não me evitou, apenas devolveu o
mesmo toque, entrelaçando nossos dedos. Era
como aquecer as mãos congeladas diante das brasas
de uma fogueira.

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“Obrigado por chorar na minha frente.” Eu sorri


fraco, fechando os olhos para apreciar a cura da
água.
“Como é que é?” Disse Ronan.
“Você me queria longe para me proteger, mas
eu não quero ficar longe, Ronan. Eu quero sofrer
por você, e eu quero sofrer com você, porque nós…
nós somos duas metades de uma mesma alma, não
somos?” Eu acariciei sua palma com o meu
polegar. “Então, por favor… nunca mais chore
sozinho.”
Ronan estremeceu, lutando demais para segurar
as lágrimas, e então concordou com a cabeça. Era
fofo de um jeito super triste.
Já um pouco recuperado, eu levei um punhado
de água aos lábios e bebi. Foi o bastante para
diminuir a dor na boca e interromper o
sangramento. Eu arrebentaria aquele retardado do
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Ruthor por isso. Onde já se viu, um alfa acertando a


cara de um ômega com um taco de baseball? Eu
havia enterrado os dentes na barriga dele e quase
arrancado dois dedos, mas isso não era motivo, né?
Eu enfim consegui me sentar e ter uma noção
melhor de onde estava. Aquela era uma das
banheiras rasas, onde as crianças costumavam
tomar banho. Apesar de ser um local público aos
membros da nobreza, naquele instante só havia eu e
o Ronan em meio ao vapor quente e aconchegante,
com cheiro de madeira e sal.
Minha barriga lembrava a pelagem de uma
foca-pintada, de tantos hematomas pretos na pele
branca. Minha cauda não estava em muito melhor
estado: haviam diversos cortes e pancadas do couro
cor-de-rosa, e pelas dobras tortas da minha
barbatana, os imbecis quebraram os ossos dos meus
dedos dos pés.

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Bem, dificilmente foi a maior surra da minha


vida e eu certamente me recuperaria em poucos
dias. Os machucados doíam, óbvio, mas o que mais
doía era o olhar do Ronan e o seu sofrimento em
me ver daquele jeito.
Eu segurei firme a sua mão, me perguntando o
que dizer a ele, quando notei sua posição. Ele não
estava comigo no conforto da água quente, mas
ajoelhado na borda, sentado sobre os calcanhares.
“Junte-se a mim, meu predestinado.” Eu pedi a
ele.
Ronan balançou a cabeça, espremendo seus
lábios em um sorrisinho triste e derrotado.
“Minhas escamas vão sujar a água.” Ele disse.
Sério? Sério, mesmo? Eu me quebrei ao meio
defendendo aquele idiota pra ele continuar fazendo
pouco de si mesmo?

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“Você vai entrar agora!” Eu puxei a mão dele


bruscamente.
Ronan despencou para a frente, desabando na
água com a graciosidade de um iceberg no efeito
estufa. Suas pernas dissolveram em uma longa
cauda de golfinho, coberta de escamas reluzentes e
bem mais comprida que a minha.
“Qual é o seu problema, seu ômega
revoltante??” Ronan gritou, exasperado e confuso.
Mesmo dentro da água ele tentou recuar e encolher
a cauda embaixo de si mesmo, como se pudesse
esconder algo tão grande.
“Vira de costas.” Eu disse com firmeza.
“Desde quando eu te obedeço?” Rosnou ele.
“Vira de costas agora e empina essa bunda pra
mim.”
“Como é que é?” Ronan arqueou a testa, cada

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vez mais emputecido.


“Você vai obedecer! É uma ordem do seu
ômega!!” Eu gritei.
Ronan murchou o corpo todo tenso, uma reação
tão exagerada eu precisei segurar o riso. Podia ser
que ninguém nunca gritou com ele antes? Me
parecia impossível.
Para a minha surpresa, Ronan realmente me
obedeceu, virando de costas para mim e apoiando
as mãos no fundo da piscina. Ele empinou a bunda
vermelha pra mim e eu precisava admitir, era uma
vista ainda mais interessante do que eu previa.
Ronan parecia bem desconfiado nesta posição,
e teve calafrios de pavor ao sentir minha mão
explorando sua anca lustrosa e escorregadia. Será
que todos os alfas eram medrosos assim? Em sua
forma aquática, Ronan nem sequer tinha nada a
temer.
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…Exceto que eu pincei sua maior escama e


puxei com força, o fazendo berrar de dor.
Ronan apertou a bunda dolorida e virou pra
mim furioso e com lágrimas nos olhos.
“Seu ômega desgraçado! Tá pedindo pra
morrer?” Ele gritou na minha cara.
“Isto vai ficar comigo e eu vou carregar o
tempo todo.” Eu admirei a escama nas minhas
mãos, vermelha como uma joia e também grande e
lustrosa, com um reflexo que cintilava as cores do
arco-íris.
“Pra quê caralhos você quer essa coisa?” Ronan
ainda massageava a bunda, indignado.
Eu afiei meus dentes, mordi um furo na escama
e então passei pela correntinha no meu pescoço,
deixando-a pender sobre o meu peito.
“Você é o meu alfa e eu quero que todos

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lembrem disso.” Eu olhei para ele com gravidade,


para que Ronan não duvidasse das minhas palavras.
“Eu não tenho nojo de você.”
Os lábios do Ronan tremeram de novo. Aquele
cara fazia alguma coisa além de agredir ou chorar?
“Foda-se, faça como achar melhor.” Ele se
levantou e secou-se na toalha. “Não seja retardado
de novo.”
Ronan saiu marchando pra fora da casa de
banho, fingindo-se de revoltado, mas no último
instante em que avistei seu rosto, avistei também
um sutil sorriso.
Meu alfa era infantil, idiota, grosseiro e frágil,
mas havia algo nele que eu não sabia explicar bem.
Talvez fossem os meus hormônios começando a
exigir outra tarde com o brinquedo de pedra, ou
talvez… talvez o coração do Ronan não fosse a
muralha de gelo que aparentava ser.
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Capítulo 55

Ai, eu não queria ter me atrasado tanto. Tudo


bem que eu expliquei a situação ao General e ele
mesmo providenciou que o pastor Enan viesse ao
meu encontro, mas a consulta no médico demorou
muito e eu não conseguia me coordenar com
aquelas muletas. Para piorar, alguns degraus
separavam o portal do palácio e os jardins, e eu
nem imaginava como descer sem me quebrar todo.
Pelo horário no meu celular o pastor Enan já
devia estar mofando de tanto me esperar, e o
General arrancaria o meu moicano se soubesse do
meu atraso. Orgulhoso demais para pedir o auxílio
dos guardas, eu desci a muleta no degrau coberto
de gelo, depois o meu pé saudável, depois a
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segunda muleta, e…
As duas muletas patinaram ao mesmo tempo e
eu voei para a frente, gritando e já prevendo um
reencontro com as piscinas de sal.
Antes que eu me arrebentasse, porém, eu bati o
rosto em algo meio ossudo. Dois braços magros e
fortes contornaram minha cintura e ampararam a
minha queda.
Atordoado, eu olhei para cima e tentei
reconhecer aquele cara, que cuidadosamente me
ajudou nos últimos degraus.
Tenente Zarkon? Era comum avistar aquele
cara na companhia do General Cordelen, ou então
treinando suas tropas em corridas pelas praças da
cidade. Era o irmão mais velho do General e estava
plenamente vestido em sua farda militar preta e
com diversas medalhas novas, que ele ganhou por
atos de bravura na Batalha de Egarikena.
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Apesar de grato, eu não evitei estremecer um


pouco. Aquele tritão era ainda mais aterrorizante de
perto. Era muito alto como o General Cordelen,
com a expressão sempre severa e um olhar tão
intenso e gelado que fazia as geleiras de Roori
parecerem piscinas térmicas. Se não fosse pela
magreza e o rosto fino, ninguém diria que ele era
um ômega.
“Ah… obrig… obrigado, Tenente Zarkon.” Eu
gaguejei.
“Quem fez isso com você?” Ele desceu o olhar
desde os hematomas no meu rosto até as bandagens
no meu pé.
Nossa, era azar demais. Se o Tenente
descobrisse que comecei uma briga, com certeza o
General ficaria sabendo.
“Ah, não foi nada. Nada mesmo. Só uma
situação envolvendo o Ronan, foi culpa minha. Não
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vai se repetir.” Eu quase prestei uma reverência e


acabei me lembrando que eu era um príncipe, então
apenas acenei. Ai, eu precisava aprender sobre
etiqueta, não precisava? “Estou com pressa agora,
agradeço sua preocupação.”
Tenente Zarkon rosnou em desgosto e ele
mesmo prestou uma leve reverência, então seguiu
adiante pelo caminho oposto ao meu.
Hum… por que aquele cara era tão azedo? Eu
não me lembrava de tê-lo visto sorrir uma única
vez.
“Oooi, Ricky! Desculpa demorar, eu me distraí
com… nossa, o que houve aqui?” Pastor Enan
chegou correndo e expandiu os olhos, chocado.
“É uma longa história.” Eu sorri, encabulado.
“Você também chegou agora?”
“Sim, o Kayman pretendia abrir uma forja por
aqui, mas vocês selkies tem uma tal de siderúrgica,
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é este o nome? Fui acompanhá-lo até a fábrica e


nós acabamos nos perdendo lá dentro.” O pastor
coçou o queixo, analisando a minha aparência.
“Não será desconfortável andar assim? Podemos
passear outro dia.”
“De forma alguma. Eu preciso mesmo sair um
pouco daquele quarto.” Eu o acompanhei pelos
jardins do palácio e suas muitas esculturas de
mármore e metal, gazebos românticos e chafarizes
de gelo. “Então seu predestinado não virá
conosco?”
“Pelo fascínio do Kayman com aquelas
máquinas, acho que vai morar naquele lugar. E
além do mais o Cordelen sugeriu que eu
dispensasse ele, e eu não consigo imaginar o
motivo.” Ele riu com safadeza, demonstrando que
ele entendia muito bem, ou pelo menos imaginava
algo próximo dos meus planos.

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Eu avermelhei, começando a pensar duas vezes.


Eu sempre tive curiosidade desde filhote, mas será
que casas-de-ômega eram mesmo tão divertidas?

****

Nooossa, quantas coisas diferentes! Eu nem


imaginava a função de metade dos produtos dos
mostruários, e a outra metade, pelo formato
comprido, dispensava qualquer explicação.
Aquela devia ser a maior casa-de-ômega de
Roori, e também a mais requintada, mas eu já
queria conhecer todas. Há duas horas eu e o senhor
Enan vasculhávamos as estantes, cabideiros e
catálogos daquela loja de paredes escuras e letreiros
neon, e ainda conseguíamos encontrar novidades.
O dono da loja era um ômega de meia idade

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que parecia muito dedicado em atender cada


cliente, mas assim que nós chegamos o pastor Enan
exigiu liberdade total para explorar tudo e abrir
todas as embalagens. E quem era aquele vendedor
para discordar? Ele sorria tão maravilhado com a
visita de um príncipe, que eu agradeci por dentro
não ter assaltado aquela loja no passado.
Em contraste com os produtos em exposição
aquele era um lugar bem discreto, no subsolo ao
fim de uma escadinha que o pastor me ajudara a
descer. Aliás, era um bom momento para eu me
perguntar que tipo de pastor era o pastor Enan,
porque ele balançava pintos de silicone rindo como
uma criança no parquinho.
“Olha isso, Ricky! Estes aqui acendem
luzinhas!” O pastor apertou um botão e o enorme
vibrador cor-de-rosa começou a tremer, reluzir e
girar.

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Alguns dias antes eu talvez tivesse morrido de


constrangimento, mas eu apenas gargalhei e
explorei os brinquedos expostos na parede,
buscando algum ainda mais fascinante.
Talvez fosse por causa daquela pedra, que me
trouxe alívio após semanas de tormento, ou porque
o pastor Enan era uma companhia divertida, mas eu
aprendi a aceitar o ritmo do Ronan. Enquanto ele
não me quisesse, era um alívio saber que eu podia
me virar.
E nossa, eu pretendia me divertir muito.
“Achou algo interessante, aí?” Enan chegou em
mim vestindo um longo vibrador de duas pontas no
pescoço, como se fosse um cachecol.
“Eu não sei… tem estes potes brancos.” Eu
analisei o rótulo cheio de letrinhas. “O que é isso?”
“Ah, estes são comprimidos de supressão de cio
desenvolvidos por uma sereia rabo-de-escama, são
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a última novidade.” Disse o atendente, por trás do


balcão. “Diminui até oitenta por cento do
desconforto do cio. Para ômegas no aguardo do alfa
é uma verdadeira salvação, mas não espere prevenir
uma gravidez.”
“Isso existe? Eu me sinto um trouxa.” Falei,
separando um dos potes. “Coloca na conta do
Tesouro Real.”
“Será uma honra, príncipe Rickett.” O
atendente colocou o pote em uma sacola já repleta
de coisas. Se a guerra não conseguisse falir o nosso
reino, minhas comprinhas conseguiriam.
Eu continuei explorando a loja com o pastor,
rindo de tudo o que a gente encontrava. O pastor
curtia brinquedos mais… penetrantes, por assim
dizer. Alguns dos vibradores me interessaram,
especialmente aqueles que me lembravam o do meu
predestinado, mas a minha maior diversão era

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imaginar o uso dos objetos mais obscuros. Para que


serviam aquelas algemas acolchoadas? E aquele
ovinho que tremia ao fim de um barbante?
Na dúvida, eu joguei tudo na sacola de
compras.
Após horas de diversão lendo a sinopse de
filmes pornô para ômegas, folheando revistas Bad
Alpha e tentando encontrar qual vibrador tremia
mais — e eram aqueles que ligavam na tomada —
eu e o pastor organizamos toda a bagunça e
concluímos as compras por aquele dia.
Eu não saberia dizer quem de nós dois comprou
mais, só que o pastor precisou carregar as duas
sacolas e eu me senti um pouco mal pelo exagero.
Apesar do excesso de peso, pastor Enan
garantiu que não se incomodava e até sugeriu
continuar nosso passeio. Meio sem ideias, eu passei
com ele na feirinha e resolvi ostentar: comprei para
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nós dois espetinhos de narval, um quitute bastante


requintado para uma feira de rua e algo que eu
sempre quis provar quente e fresquinho durante a
infância. Pelo menos eu lembrava de serem
deliciosos quando encontrava nas latas de lixo.
E nossa, os cubinhos de carne tenra eram ainda
mais deliciosos quando preparados na hora, fritos
no óleo da própria baleia narval e cobertos com
flocos de coral-pimenta. Ser rico era bom demais.
Cansados de tanto andar, nós sentamos nas
mesinhas da feira para saborear nosso lanche.
Enquanto comia, acompanhado de um copo de
água salina gaseificada, pastor Enan começou a rir.
“O que foi?” Eu perguntei.
“Você mudou bastante.” Disse ele. “Faz mesmo
poucos dias desde que você era irritante?”
“Eu nunca fui irritante! Você era irritante!”

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“Ah, eu apenas era irritante? Então agora sou


agradável?” O pastor afinou um sorriso travesso.
“Você é tão adorável, Ricky. Já pode admitir, você
gostou do meu presente.”
Eu mastiguei meus cubinhos de narval, murcho
e emburrado. Claro que uma fadinha social como o
pastor Enan nunca me entenderia. Ele não devia
imaginar a solidão, as amizades rasas e breves, o
vazio… tudo para no fim predestinar com um alfa
igualmente distante e desinteressado. Como ele
entenderia o valor de uma conversa amigável,
quando ninguém jamais se importara sobre eu estar
vivo ou morto?
“Eu devia um favor ao General, apenas isso.”
Eu rosnei. “Não sei como vocês conseguem ser
amigos, porque ele é cruel e irritante de verdade.”
“O Cordelen mudou bastante desde que eu o
conheci, ele tem um sonho ambicioso agora, mas

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continua sendo nobre e puro como sempre foi. Eu


fico feliz que ele tenha encontrado um objetivo
pelo qual lutar.” O pastor terminou sua bebida. Ele
realmente gostou daquela simples água com gás.
“Acredito que todos nós somos moldados pelos
nossos sonhos. Eu, por exemplo, quero descobrir
todos os prazeres que o corpo pode nos oferecer. E
você também, Ricky, deve ter muitos sonhos
fascinantes.”
Eu dei risada para aquele monte de bobagem.
Quer dizer, um sonho assim era a cara do pastor
Enan, mas que tipos de sonhos eu teria?
“Sonhos são frescuras de quem não precisa se
preocupar com a sobrevivência.” Eu balancei os
ombros em desdém.
“Ah, não é verdade. As pessoas mais
vulneráveis são aquelas que mais devem sonhar,
afinal, são os sonhos que nos afastam dos

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pesadelos.”
Qual era a daquela baboseira filosófica? Porque
eu não curtia nem um pouco.
“Quer mesmo saber dos meus sonhos? Quando
eu era um filhote congelando no meu maldito iglu
improvisado, eu sonhava que meus pais voltassem
à vida e me levassem de volta para uma casa que já
não existia mais, em uma cidade que havia se
tornado uma pilha de escombros e neve. E então eu
derretia neve em uma tigela com um fósforo e
bebia sonhando que fosse a sopa de polvo da minha
mãe, que ela sempre preparava em noites de
nevasca. Eram estes os meus belos sonhos
patéticos.”
Minha intenção era chocar aquele pastor metido
e fazê-lo calar a boca, mas não consegui nem
assustá-lo um pouquinho. Eu não sabia se ficava
feliz ou puto com isso.

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“A injustiça existe mesmo em todos os


lugares.” Ele brincou com o canudinho do copo
vazio. “Mas não será assim para sempre. Eu
acredito no Cordelen.”
“O que aquele idiota poderia fazer? Aprisionar
todos os bandidos, como fez comigo? Que linda
busca pela justiça.” Eu revirei os olhos e descansei
meu espetinho no guardanapo, enjoado pela minha
própria revolta. “Ele não tentou me ouvir nem me
entender, apenas me jogou naquele calabouço
horrível para morrer de tédio. Se não fosse o
carcereiro que cuidava de mim, acho que eu teria
enlouquecido.”
“Carcereiro?” O pastor Enan arqueou a testa.
“É, era um selkie adolescente que me trazia
comida e passava uma mangueirada na cela,
quando sujava demais. Eu odiava conversar com
ele, mas ele sempre conversava comigo como se eu

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tivesse alguma escolha além de ouvir as bobagens


dele. Mas depois de um tempo, foi como se…” Eu
travei minhas palavras, me perguntando se era
idiota demais comentar aquilo. Pelo interesse do
pastor Enan, eu resolvi arriscar. “…eu não sei… eu
contava os minutos até ele aparecer, e nossa pouca
conversa era o ponto alto dos meus dias… talvez
porque ele fosse minha única companhia, mas era
diferente. Ele ficou órfão quando era pequeno,
assim como eu, e mesmo assim lutava para se
tornar um tenente, alguém importante para a
sociedade. Ele sim, tinha sonhos decentes.”
Pastor Enan ficou tão interessado que eu até me
encabulei.
“Então você gostou dele e predestinou com
outro. Triste, mas comum.”
“Não, não é nada disso! Ele era bem mais novo,
e eu nunca gostei dele no sentido de cortejá-lo. Tá

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certo, ele era um quase-alfa lindo, com raros


cabelos negros, mas o meu fascínio era pela
determinação dele. Nós crescemos em cidades
diferentes, mas a vida de um filhote órfão é a
mesma em qualquer lugar. Entretanto ele quis ser
alguém melhor, e sempre que possível caçava
refeições caprichadas para mim, e fornecia
cobertores quentes, e tentava me convencer das
bobagens que ele acreditava sobre precisarmos ser
o melhor de nós mesmos. Depois dos meus pais, ele
foi o primeiro a acreditar em mim.”
Ah, contar essas coisas era embaraçoso demais,
e quando o pastor deu uma risadinha eu quase quis
sair correndo, ou implorar que ele esquecesse tudo.
Mas ele não estava rindo de mim, exatamente.
“Acho que já entendi porque o Cordelen te
aprisionou.” Disse o pastor. “Valorize esta amizade
com todo o seu coração, Ricky.”

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“Eu e aquele general sádico, amigos? Você


ouviu qualquer coisa que eu contei?” Eu perguntei
indignado, o fazendo rir ainda mais. “Não preciso
de amigos, e nem de afeto, e nem de sonhos! Eu
só…”
Pastor Enan parou de rir e ficou me olhando
intrigado e atento, esperando minha coragem de
continuar.
Eu realmente deveria ter ido pra casa, depois
das compras.
“Ahm… na verdade… eu tenho um sonho,
talvez? Aquele carcereiro… eu gostaria de
agradecê-lo um dia.” Eu sorri com tristeza. “Mas
ele partiu em alguma missão oficial antes da
Batalha de Egarikena e nunca mais voltou. É
melhor que eu não pense muito nisso.”
“É um sonho muito digno.” O pastor sorriu
doce como coral-mel. “Vou torcer que você o
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encontre, algum dia.”


“Obrigado, senhor Enan.” Eu sorri um pouco
mais animado e terminei meu espetinho. Já estava
meio frio, mas continuava delicioso.
Assim que terminamos nosso lanche, o pastor
me acompanhou até o palácio e se ofereceu para
carregar as compras até o meu quarto. Eu preferi
recusar a oferta e pedi o auxilio dos soldados, que
carregaram as compras e tiveram a disciplina de
não comentar sobre um pinto de borracha que
quase caía pela borda.
Meu dia com o pastor Enan foi super agradável,
e com certeza a minha noite seria ainda melhor.
Eram tantos brinquedos que eu nem sabia por qual
deles começar.
Ronan que me aguardasse, porque nossa ligação
entre predestinados estava prestes a se tornar o seu
pior pesadelo, e eu me divertiria ainda mais por
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saber disso.

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Capítulo 56

Eu cronometrei. Ronan suportou exatos trinta e


seis segundos antes de invadir o meu quarto,
vermelho como o próprio rabo.
“Tá certo, seu ômega pervertido, faz ideia de
como eu… o que caralhos é isso?” Ele travou no
lugar ao notar a minha cama, onde eu havia
espalhado todos os meus novos melhores amigos.
“Bem-vindo, meu estimado alfa.” Eu sorri
tranquilamente, como se não estivesse pelado e de
joelhos sobre os cobertores, tentando sentar em um
vibrador particularmente grande. “A que devo a
honra de sua visita?”
Ronan inflou as bochechas, completamente

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travado e em choque. Foi difícil não rir, porque eu


podia sentir seu cérebro explodindo… e outras
partes de seu corpo também.
Mais ou menos recuperado do susto inicial,
Ronan apontou o dedo para a minha cara.
“Você pare agora com essa palhaçada, seu…”
Eu comecei a subir e descer no pau de silicone,
gemendo exagerado para que Ronan ouvisse. E
olha que eu ainda nem havia ligado o motor.
Meus espasmos de prazer refletiram naquele
idiota como um espelho. Ele tencionou o corpo
para a frente e precisou se apoiar na minha
penteadeira, todo dobrado.
“Oh, algum mal estar o aflige, meu alfa?
Gostaria de algum relaxante? Um chá de algas,
talvez?” Eu perguntei, tentando manter a cara de
descaso enquanto subia e descia naquele brinquedo,
fazendo sons úmidos ecoarem pelo quarto.
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“Isso é…” Ronan gemeu e mordeu os lábios,


perdendo a luta para os espasmos. “Isso é um
desrespeito com o seu alfa!!”
“Eu sei! Não é maravilhoso?” Eu abri um
sorrisão e aumentei o ritmo, adorando desmontá-lo
bem na minha frente.
“Pare com isso agora! Eu exijo que se livre
destas… ah…”
“Se importa de resmungar mais alto? É
excitante.” Eu já tremia mais por segurar o riso do
que pelo prazer.
Ronan abriu a boca para gritar comigo e então
murchou a postura. Ele massageou as têmporas
completamente aborrecido.
“Eu estou tentando dormir, seu depravado do
cacete.” Rosnou ele.
“Boa sorte, estou torcendo por você.” Eu

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continuei subindo e descendo, dando uma


reboladinha ao me empalar completamente. Nossa,
eu devia ter comprado um daqueles mais cedo.
Ronan bufou de ódio e abriu a porta para ir
embora. Antes que ele saísse eu o chamei.
“Ei, Ronan!”
“O que foi?” Ele eriçou os dentes para mim.
Eu joguei para ele um dos pintos de borracha,
era branquinho e bem menor que os outros. Ronan
pegou no ar antes de perceber o que era.
“É bem parecido com o meu, quase idêntico, eu
diria. Um presente atrasado pelo ritual de cortejo
que nunca tivemos.” Eu dei uma piscadinha safada
pra ele. “Prometo não contar pra ninguém.”
Ronan arremessou o pinto na parede com tanta
força que ele quicou na parede oposta antes de cair
no chão.

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“Por que eu não posso ter um ômega normal?”


Ele saiu e bateu a porta com toda a força.
“Por que você não merece!!” Eu gritei.
Que cara mais ranzinza, nossa! Mas apesar da
estupidez, a saída do Ronan me trouxe um enorme
alívio. Eu enfim pude estourar dando risada, me
arrependendo de não ter fotografado a cara dele.
De tanto rir eu acabei broxando, mas foda-se.
Eu merecia aquela pequena vingança, e além do
mais, eu começava a entender qual era a do Ronan.
Ele logo voltaria para mim.
E, de fato, exatos dois minutos após sua saída
dramática, Ronan voltou ao meu quarto e trancou a
porta.
“Eu não tenho a menor intenção de me
reproduzir, você ouviu?” Vociferou ele.
Eu concordei com a cabeça, mordendo os lábios

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para não rir.


Enfim minha diversão da noite começaria de
verdade.

****

Ronan estava assustado. Eu podia reconhecer


pelo tremor em sua respiração, pelo eco de seus
sentimentos na minha própria alma, e pelo fato de
que ele estava aprisionado, seus braços musculosos
esticados acima dos ombros e unidos por trás da
cabeceira da cama em lindas algemas de pelúcia
vermelha.
Ele agitou os pulsos, confirmando que sim, eu o
prendi muito bem e ainda deixei a chave sobre a
penteadeira, bem longe de seu alcance.
“Tem certeza de que é o alfa quem usa isso?”

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Perguntou ele.
“Ahm… sim! Claro que sim!” Eu ri nervoso,
ainda abismado com a cena abaixo de mim.
Pelos oceanos, o que era aquele deus nu,
deitado na minha cama? O Ronan sempre foi
gostoso daquele jeito? Mesmo com os joelhos bem
espaçados eu mal conseguia me ajoelhar por cima
da barriga de puro músculo. Os gomos sólidos
massageavam minhas bolas com o ir e vir da nossa
respiração. Nem havíamos começado e eu já não
sabia como me controlar.
Pelo vermelhão no rosto do Ronan ele também
ardia de expectativa. Ou talvez estivesse apenas
morto de vergonha. As duas opções me divertiam.
Eu descansei as nádegas em seus gominhos e
senti o mastro sólido roçar ao longo da minha
coluna. Era como estar faminto e encontrar uma
carcaça de baleia, eu não sabia nem por onde
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começar.
Ao invés de gritar e xingar, Ronan apenas
acompanhava o meu olhar devasso pelo seu corpo.
Com certeza ele não era imune ao cheiro da minha
lubrificação, e senti-lo latejar na base das minhas
costas era um prazer delirante por si só.
Apreciar com os olhos não era o suficiente.
Aquele era o banquete pelo qual eu aguardei
semanas, e eu iria saborear cada pedacinho. Enfim
criando coragem, eu deslizei as mãos pelo seu peito
e belisquei os mamilos cor-de-rosa, torcendo-os de
leve.
“Ah…” Ronan contorceu-se por baixo de mim,
ofegando e gemendo para aquela simples
provocação.
“É gostoso, meu alfa?” Eu apertei um
pouquinho mais e os bicos endureceram entre os
meus dedos, ganhando um tom mais rosa-carne.
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“É estranho.” Ele disse.


Hum, isto era o mais perto que já cheguei de
um elogio, mas não era o suficiente. Eu abaixei o
corpo por cima dele e desta vez fui com a boca. Já
na primeira lambida Ronan gemeu alto,
contorcendo-se tanto que eu quase caí no chão.
“Ei, ei, meu pé ainda está machucado.” Eu
resmunguei, com o queixo encostado em seu peito.
Daquele ângulo o rosto do Ronan era o cúmulo da
fofura, completamente envergonhado e ainda assim
com um olhar de quero mais.
“É difícil evitar, quando você…” Ronan
engoliu seco, corando ainda mais. “Termina logo
com essa merda.”
Ah, que gracinha. Ronan achava mesmo que eu
terminaria tão cedo?
Ignorando o seu pedido irracional eu deitei meu
corpo sobre o dele, querendo ficar bem confortável.
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A parte difícil era não gozar, ainda mais quando


seu mastro deslizou pelo triângulo entre as minhas
coxas e a virilha, latejando contra as minhas bolas
em um desespero louco. Eu sentia os hormônios
sedentos do Ronan. Ele queria me agarrar, me
alargar por dentro, me possuir de todas as formas.
Mas, para variar, o corpo e a mente do Ronan
eram uma bagunça desconexa, como se viver em
conflito interior fosse algum fetiche dele. Por mais
que seu pau implorasse pela minha bunda, eu
precisava respeitar suas vontades.
Havia, afinal, muitas outras formas de me
satisfazer.
Com a mente fervilhando em ideias
interessantes, eu me abracei no pescoço do Ronan e
chupei com gosto seu mamilo esquerdo, depois o
direito, às vezes mordiscando apenas para ouvi-lo
gritar. E não eram gritos de desagrado, aquele alfa

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revoltante curtia mesmo uma dorzinha.


Eu definitivamente pretendia explorar o lado
masoquista do meu predestinado, mas aquela era a
minha noite de brilhar e eu não perderia tempo.
Ainda abraçado, eu subi meus beijos até o seu
pescoço e rebolei, deliciado pelo seu calor, pelo
cheiro de macho, e pelo relevo dos músculos onde
eu esfregava meu pau com vontade.
Ronan manteve-se quietinho como pôde, mas
ele tremia de tesão. Ele até inclinou o pescoço para
o lado, abrindo espaço para mais beijos enquanto
eu movia o quadril cada vez mais rápido, me
masturbando nos gominhos de sua barriga. Não me
passou despercebido que eu me movia igual a um
alfa deveria se mover, e isto só me deixava mais
perto do limite.
“R… Rickett… Ah…” Ronan gemia macio,
com os olhos fechados para apreciar o máximo

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daquilo. Para um alfa tão machista e travado ele até


que era bem liberal.
“Vou gozar na sua barriga, meu alfa.” Eu
sussurrei na base de seu ouvido.
Ronan arqueou o corpo em um espasmo forte,
inflamando meu corpo com o seu próprio tesão. Eu
acelerei o ritmo e me esfreguei com gosto,
pressionando as coxas bem juntinhas em torno do
pau dele. Meu orgasmo acumulou rápido e
explodiu como fogos de artifício, me fazendo
gemer e empoçar o umbigo do Ronan com o calor
da minha semente.
Ah, era bom demais. Eu continuei me
esfregando, querendo que aquele incêndio nunca se
apagasse, mas as brincadeiras solitárias me
ensinaram sobre o meu corpo. Um ômega em
luxúria não se acalmaria com tão pouco.
Ronan ainda arfava pesado sob mim, todo
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suado e trêmulo, quando eu levantei e desta vez


sentei sobre o seu peito.
Ele me encarou com uma decepção meio
desesperada no olhar.
“Ei, Rickett, eu ainda não…”
Eu cobri seus lábios com o meu dedo, o
calando.
“Precisa de alívio, meu querido alfa? Minhas
carícias não lhe são suficientes?”
Ronan expandiu os olhos em confusão
assustada, preocupado com o sorriso felino nos
meus lábios e também com o meu mastro, que logo
endureceu diante de seu rosto, prontinho pra mais.
Incapaz de resistir, eu espiei por cima do ombro
e ri travessamente. A vara do Ronan parecia um
cilindro de aço, com a cabeça tão vermelha quanto
a base era branca, e havia até um certo tom

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arroxeado nas bolas. Oh, aquelas pulsações de


desespero me eram tão familiares.
“Lamento, meu predestinado, não devemos
arriscar uma concepção acidental.” Eu havia
comprado todos os tipos de camisinha, mas ele não
precisava saber disso. “Eu poderia resolvê-lo de
tantas outras formas, mas olha pra isso… meu
corpo precisa de mais.”
Todo desconfortável naquela posição submissa,
Ronan baixou o olhar do meu sorriso travesso até a
minha virilha, onde meu pau também implorava
por mais atenção, ainda brilhante e melado pelo
meu primeiro orgasmo.
Era neste momento que o arrependimento e a
raiva do Ronan ecoariam dentro de mim, me
fazendo rir da minha doce, doce vingança. Mas
novamente Ronan me surpreendeu, a única emoção
emanando daquele coração de pedra era a

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curiosidade. E de forma alguma esta era uma


surpresa ruim.
Eu andei de joelhos sobre o colchão, pelos
lados de seu peitoral rígido e cheio de relevos
musculosos. Quando cheguei pertinho de seu rosto
eu me controlei para não rir, porque aquilo só podia
ser uma fantasia muito louca se tornando real.
Ronan já deveria ter arrebentado a minha cama e
fugido há muito tempo, testar os seus limites era
uma tentação impossível de resistir.
“Vamos ver se esta sua boca serve para algo,
além de me xingar.” Eu disse.
“Mas…” Ronan tencionou, fazendo tilintar suas
algemas acima da cabeça. E ainda assim seu olhar
continuava no meu pau bem menor que o dele, mas
igualmente necessitado. Se o meu predestinado
também testava os limites da minha audácia, ele
estava prestes a se surpreender, e muito.

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“Quero que seja perfeito, então coloque esforço


nisso.” Eu dei uma piscadinha e me aproximei um
pouco mais, até tocar a pontinha em seus lábios
carnudos.
“Rickett, vamos com calma, eu nunca…
hnnnf!”
Eu meti meu mastro naquela boquinha quente e
gemi alto, surpreendido com o quanto era gostoso.
Aquilo pareceu meio rude até para os meus
padrões, mas se Ronan odiasse tanto assim, ele que
me mordesse. E eu sabia que ele não morderia. No
coração do Ronan, agora, só havia ansiedade,
desejo e excitação.
Minha intenção de castigar o Ronan escorreu
como água, mas quem seria eu para reclamar desta
reviravolta?
Ronan demorou um tempo para entender que
sim, eu enterrei meu pau na boca dele e não tinha a
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menor intenção de tirar, então ele finalmente


firmou os lábios no entorno da base. E então ele
afundou as bochechas sugando e movendo a cabeça
ao fazer isso.
Eu quase enlouqueci. Pelos oceanos, como algo
podia ser tão bom? Brincar com aquelas coisas de
silicone nem se comparava. Enfraquecido pelo
prazer, eu apoiei as mãos na cabeceira da cama e
inclinei o corpo a pequena distância que faltava
para me enterrar por completo em sua boca quente.
Ronan grunhiu, mais pela surpresa do que pelo
desagrado. O meu não era longo o bastante para
engasgá-lo, então Ronan apenas continuou
chupando, aprendendo o ritmo que mais me
causava gemidos e procurando repetir, tão dedicado
— ou até mais — do que eu havia sido com ele.
Meu corpo fervia e minha mente se tornava
névoa em uma tempestade elétrica. Transcendendo

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os limites do meu êxtase, eu fechei os olhos e me


concentrei até o mundo fosse apenas aqueles lábios
macios indo e vindo no meu mastro, e a língua ágil
que às vezes lambia a minha ponta, às vezes
deslizava até a base e tentava alcançar minhas
bolas, que até então não haviam tido muita atenção.
Então Ronan queria as minhas bolas, também?
Ele poderia ter. Um alfa lindo como ele poderia me
lamber inteiro, e eu ainda assim imploraria por
mais. Pensando nisso, e já não aguentando a
fraqueza nos meus joelhos, eu tirei meu pau da
boca do Ronan e nem lhe dei tempo de respirar,
apenas sentei em seu rosto e deixei que ele nos
satisfizesse.

<< Porra, tá querendo me matar sufocado?? >>

“Cala a boca e continua.” Eu rebolei no rosto


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dele, apreciando como o relevo do nariz


massageava embaixo da minha vara. Eu bem que
podia gozar naquela posição, bem na testa dele.
Talvez Ronan curtisse isso, também.
Desta vez Ronan nem demorou. Uma sensação
quente e úmida envolveu as minhas bolas e me fez
urrar de prazer. Ele estava me lambendo lá
embaixo, provando minha lubrificação de ômega e
deixando que escorresse como um rio pelo seu
queixo.
Eu levantei o quadril apenas o suficiente para o
Ronan não sufocar e então relaxei a mente,
mergulhando nos sons úmidos de seus lábios nas
minhas partes mais afloradas.
“Ah… Ronan… ah…. Sim….” Eu gemi, me
contorcendo enquanto minhas pernas amoleciam
iguais a esponjas. Eu nunca admitiria até dias atrás,
mas seus olhos, todo o seu rosto, e até mesmo o

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cabelo comprido e bagunçado formavam um


conjunto deslumbrante, e avistar aquela perfeição
em forma de homem bem abaixo de mim, submisso
e imobilizado, era mais do que meus hormônios
podiam suportar. Ele mantinha os olhos fechados
para apreciar o momento mas às vezes também me
olhava com suas íris de rubi, lambendo, sugando e
beijando tanto as minhas bolas quanto pertinho a
minha entrada.
Não deu pra aguentar. Segurei meu pau e para o
lado no mesmo instante gozei, por pouco não
sujando o Ronan.
Eu iria enlouquecer. Aquela língua me
desmontaria por completo.
Ainda me provando, Ronan também grunhiu,
debatendo os braços até quase arrebentar a
cabeceira da cama. A explosão do seu orgasmo
uniu-se à minha, na sensação mais absurdamente

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intensa da minha vida.


Descansando o corpo em cima daqueles lábios
ágeis, eu gritei e gemi o nome do meu
predestinado, e ele também gemia abafado embaixo
de mim, torturado por um orgasmo solitário e sem
um pingo de assistência.
Talvez eu devesse masturbá-lo só um
pouquinho e tornar aquilo ainda melhor?
Ah, dane-se. Aquela seria a minha minúscula
vingança, e eu sentia que Ronan não me odiaria por
isso.
Após a tempestade de trovões que foi nossos
orgasmos se combinando em um só, eu percebi que
havia relaxado totalmente na cara do Ronan então
saí rápido de cima dele, indo sentar no espaço livre
da cama.
Ronan arfou por ar, em uma cena que, para
mim, era indescritível. Ronan estava todo molhado,
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e eu nem sabia dizer o que era saliva e o que era


minha lubrificação. Me agradava pensar que era
uma mistura dos dois.
Após uma breve recuperação, Ronan me espiou
com o canto dos olhos, afinando-os como lascas de
fogo.
“Você é um ômega muito errado.” Disse ele.
“Eu? Você quem é um alfa muito errado.” Eu
devolvi, fazendo um beicinho.
Nós dois ficamos nos encarando, paralisados
tanto pelo prazer quanto pela pergunta que
martelava em todas as camadas de nossas mentes: o
que havia acabado de acontecer?
Então meus lábios tremeram, e os dele também,
e eu comecei a rir enquanto que Ronan conteve-se
em apenas sorrir.
“É… então…” Eu deitei a cabeça em seu bíceps

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e tracei círculos com o dedo em cada relevo de


músculo, admirando a poça de semente nos
gominhos do meu alfa.
“Isto foi esquisito, não foi? Deveria ser
esquisito assim?” Ronan olhava para o teto, bem
perdido e desconfiado, mas ainda assim sorrindo.
“Quem se importa? Acho que é a primeira vez
que você não odeia alguma coisa.” Eu respirei
fundo, apreciando seu aroma de suor salino, tão
perfeitamente misturado ao meu. “Se prefere
normalidade, espere uns… cinco minutos. É, estarei
mais do que pronto para o nosso bebê.”
Ronan riu de novo, desta vez com certo
deboche.
“Cinco minutos é o caralho… ômegas são
mesmo umas máquinas de trepar.” Apesar do
escárnio, ele nem tentou me afastar daquele quase
abraço. Quando Ronan permitiu tanto do meu toque
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antes? “Quanto ao bebê, esqueça. Não vai


acontecer.”
Eu estufei as bochechas, um pouco indignado.
Aquele cafajeste ainda não pretendia ceder? Os
comprimidos de supressão do cio reduziam o mal-
estar do corpo, mas não o da alma, e este Ronan
também podia sentir. Como casal, nós dois
precisávamos nos reproduzir o quanto antes ou os
tormentos do chamado se tornariam gritos
enlouquecedores. Isto sem mencionar o nosso
sangue real e a grande responsabilidade que nosso
título carregava.
Bem, não havia porque insistir tão cedo. Após
tanto progresso com o meu predestinado, a única
esquisitice seria teimar por algo sem urgência.
No momento, tudo o que eu queria era
justamente o que eu já estava fazendo: abraçar o
meu predestinado e me deliciar com o seu cheiro,

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sua presença, os movimentos exaustos de sua


respiração.
“Ahm… Rickett…”
“O quê?” Eu perguntei, sonolento.
“Você pretende me soltar antes de dormir?”
Eu levantei rápido e ri, percebendo Ronan ainda
na mesma posição.
“Desculpa, desculpa.” Eu me apressei até a
penteadeira e voltei com a chave, então me torci
por cima dele procurando a minúscula fechadura
entre seus pulsos. “Seria bem difícil dormir nesta
posição… quer dizer… se você pretende dormir
aqui… eu não me importaria nem um pouco”
Um breve giro da chave e o metal estalou com
um clique.
Ronan abaixou os braços e massageou os
pulsos.

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“Não abuse da sorte.” Ele sentou na cama e se


espreguiçou. “Este seu fogo no rabo não me
deixaria dormir e amanhã cedo tenho outra
audiência. Não posso sair parecendo um zumbi.”
“O que é um zumbi?” Eu lhe entreguei um
lenço e seu saiote, que havia caído para baixo da
cama em algum momento.
“Como assim? Quem não sabe o que é um
zumbi?” Ele arqueou a testa para mim, enquanto
limpava o rosto com o lenço.
“Ahm… eu não sei.” Eu dei de ombros. “É
alguma coisa de tritões?”
Ronan abriu a boca, me encarando espantado
por alguns instantes. Então ele rapidamente se
vestiu e destrancou a porta.
“Não saia deste quarto. Eu já volto.” Ele bateu a
porta atrás de si e sumiu.

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Sozinho no meu quarto caótico, com os lençóis


embolados no chão, gozo na fronha do travesseiro e
vibradores por toda a parte. Mais uma vez uma
certa pergunta retornou à minha mente…
…O que caralhos havia acabado de acontecer?

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Capítulo 57

Nossa, aquela estava sendo a noite das grandes


reviravoltas. Primeiro o Ronan não me agrediu por
usar brinquedos, depois ele quis participar da ação,
e agora… ahm… ele estava lendo para mim? Era
isso mesmo.
No tempo em que Ronan sumiu eu consegui
ajeitar o quarto, mais ou menos. E quando ele
voltou, carregando uma pilha de livros, nós
voltamos para a mesma posição de antes: Eu o
abraçando de lado, desta vez bem confortável
embaixo dos cobertores, e Ronan segurando um
livro entre nós dois, falando com tanta empolgação
na voz, que eu suspeitava que o tivessem trocado
por um irmão gêmeo.
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Depois que a minha desconfiança inicial


passou, eu descobri que gostava bastante daquele
Ronan empolgado.
“E esta é a minha parte favorita, é quando acaba
o combustível do lança-chamas e o Mega-Max
precisa rasgar o pescoço de um zumbi com os
dentes para alcançar o posto de gasolina.” Ele
apontou o canto de uma página.
Eu sorri fascinado, e também com bastante
medo.
“Humanos também conseguem rasgar pescoços
com os dentes?” Eu perguntei.
“Acho que não, o humano que me criou lascou
o dente uma vez, tentando puxar a rolha de uma
garrafa. Patético. O Mega-Max é simplesmente tão
fodão assim. Talvez ele seja um meio-selkie, vai
saber.”
“Você foi criado por um humano? Pensei que
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tivesse dito…”
“Eu disse que não tive família, tá bom?” Ele
rosnou, subitamente aborrecido. “Eles eram só uns
desconhecidos que… sei lá… o humano lembrava
você um pouco, com esse cabelo esquisito e as
roupas de couro, mas é só isso. Quer que eu
continue a história ou não??”
Eu concordei, assustado com a mudança brusca.
O que eu disse para irritá-lo tão rápido?
Talvez fosse um palpite às cegas, mas este tal
humano me parecia uma forte pista sobre o
misterioso Madhun.
Ah, é mesmo! O acordo com o General!
Ronan havia voltado a descrever o livro, então a
oportunidade era perfeita. Tão próximos assim eu
podia explorar as camadas mais profundas da
psique do Ronan e ele não perceberia. Eu nem
imaginava o que seria uma Safira do Oráculo mas,
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se Ronan soubesse, este conhecimento também


seria meu.
Cauteloso, eu fingi me espreguiçar então toquei
seus cabelos macios, ainda meio suados pela nossa
transa louca. Seria tão simples. Ronan estava tão
concentrado em outra coisa. Bastava uma leve
concentração, e eu trairia a pouca confiança que
consegui para repassar conhecimentos que eu não
compreendia.
Meu peito bateu dolorido e eu abaixei a mão,
retornando à posição de antes.
“Estou te entediando?” Perguntou Ronan,
certamente sentindo a minha repentina tristeza.
“Ronan… o que é a Safira do Oráculo?” Eu
perguntei.
Eu pensei que aquele seria o começo de uma
imensa discussão, mas Ronan apenas torceu a testa
e me olhou como se eu fosse um retardado.
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“Que porra é Safira do Oráculo? Algum livro


de zumbi?” Perguntou ele.
Eu dei uma risadinha e balancei a cabeça, me
aninhando ainda mais contra o seu corpo quente.
“Esquece, não é nada.”
Eu deitei a cabeça em seu peito para observar as
letrinhas, tentando juntá-las conforme Ronan
contava a história. Em uma das páginas havia até
uma ilustração, com um humano hiper-musculoso
enterrando uma faca de cozinha no crânio de um
humano podre. Eu decidi naquele momento que eu
nunca, nunca chegaria perto de uma cidade
humana.
“O que acontece depois que o Mega-Max
reabastece o lança-chamas?” Eu perguntei.
“Ah, ele consegue incendiar o hospital
amaldiçoado e o principal ninho de zumbis, mas
quando pensa que venceu aparece o Gigazom, que
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é o líder dos zumbis, e arranca os dois braços do


Mega-Max. O livro três termina assim, mas…”
Ronan vasculhou a pilha de livros à beira da cama e
pegou o próximo livro. “Aqui, no Tripas
Sanguinolentas 4, o Mega-Max consegue braços
biônicos que conseguem lançar mísseis, e então ele
parte em uma jornada de extermínio.”
“Nossa, tudo isso sozinho?” Eu expandi meus
olhos. Por que o General se preocupava com
tritões? Zumbis eram mil vezes mais perigosos!
“Sim, depois que a esposa e o filho são
devorados por zumbis o Mega-Max se torna o
último humano do planeta.” Ronan sorriu pra mim
com entusiasmo. “Ele pode fazer o que quiser,
quando quiser. O mundo é o brinquedo dele.”
“Parece bem solitário.”
“Não é solitário, é radical! Pensa em toda a
liberdade! O Mega-Max não precisa de ninguém
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para ser fortão e poderoso, ele só precisa de armas


grandes e inteligência.”
“Então é isto o que ele vai fazer para sempre?
Matar zumbis?” Eu murchei minha expressão,
começando a doer por dentro. “Pobre Mega-Max.
Espero que um dia ele encontre algum
sobrevivente.”
“Ele até procura, mas eu espero que não.
Estragaria toda a história.” Ronan torceu a boca pra
mim, meio incomodado. “A biblioteca daqui só tem
os primeiros seis livros, mas o Shane me
presenteou os primeiros dez volumes, após uma
viagem idiota. Até agora, nenhum humano vivo.”
Shane? Este era o nome do humano? Ele
parecia gostar muito do Ronan, mas talvez eu
estivesse entendendo errado. Ninguém normal
trocaria um núcleo amoroso por… seja lá o que
Ronan procurava, quando veio parar em Roori.

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Talvez a raiva do Ronan tivesse raízes ainda


mais profundas do que aparentava. Talvez a cura
para o seu sofrimento não dependesse de algo ou
alguém, mas de algo que só existia no mesmo berço
de toda aquela dor, inalcançável por qualquer um
além dele.
“Ei… e depois que o Mega-Max explode a
estação espacial, como ele escapa do vazamento de
plutônio?” Eu perguntei.
Ronan não respondeu. Que ótimo, será que eu
consegui aborrecê-lo de novo? O que eu perguntei
de errado, desta vez?
Estranhando a demora dos resmungos, eu espiei
para cima. Ronan dormia tranquilamente, aninhado
no meu travesseiro e com o braço no entorno dos
meus ombros.
Cuidadoso, eu tirei o livro da mão do Ronan e
deixei na mesinha, então desliguei a luz do abajur.
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“Boa noite, meu predestinado.” Eu me abracei


nele, permitindo que sua respiração calma
conduzisse o meu próprio sono.

****

O sol da madrugada recém penetrava pelas


janelas quando acordei, esbaforido. Estava quente.
O desconforto do calor me mantinha desperto,
enquanto gotas do meu suor empoçavam os lençóis.
Será que a calefação havia quebrado? Ou talvez
os remédios não fossem tão eficientes e o calor do
cio ainda me importunasse, apesar de não haver dor
ou desespero. Estranhando a temperatura vulcânica
da cama eu me virei para o lado e quase caí da
cama. Ronan?? O que o Ronan estava fazendo ali??
Ah, é. A gente trepou esquisito mas gostoso, e

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então ele adormeceu lendo. Era surpreendente que


ainda estivesse ali, e eu sorri ao perceber isso, mas
o vermelhão no seu rosto me preocupava.
Eu encostei a mão em sua testa, me assustando
com a temperatura. Ronan ardia em febre, e ainda
assim dormia mais ou menos tranquilo. Era
raríssimo que um selkie adoecesse, ainda mais um
alfa saudável como o Ronan, então aquilo só podia
significar uma coisa…
Criando coragem, eu deslizei a mão ao longo de
seu peito e da barriga, explorando seu corpo sob o
peso dos cobertores. Após investigar um pouco
mais para baixo, eu contive um gemido para aquele
que era o motivo de seu ardor: O pau do Ronan
parecia um mastro de navio, extremamente rígido e
úmido, pulsante mesmo em seu sono.
Que idiota… ele se fazia de machão quando na
verdade sofria igual a mim, ou talvez mais. Era

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comum que alfas em desespero mergulhassem o


pênis em buracos de gelo até quase necrosá-los,
uma alternativa insanamente dolorida para uma
agonia psicológica devastadora.
Havia diversas formas de acalmar a tortura do
chamado, como ter o primeiro bebê, ou então
distanciando-se muito do predestinado, para além
de suas influências telepáticas e hormonais. Ou
então, claro, aguardando o adormecer do chamado
na idade avançada, ou após a morte do parceiro.
De todas as alternativas, a primeira era a mais
simples e óbvia. Não era como se eu quisesse ser
pai, digo, a ideia não me perturbava, mas era uma
simples questão de pragmatismo. Meu bebê seria
amado e protegido, óbvio, mas a ansiedade em
apaziguar o chamado superava meus desejos pela
paternidade.
Ronan era diferente, e de forma

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incompreensível. Muitos eram os boatos sobre


ômegas que recusavam a semente, uma rebeldia
que causava diferentes reações em diferentes alfas.
Mas um alfa rejeitando inseminar um ômega
receptivo? Havia uma primeira vez para tudo.
Era meio ofensivo, para falar a verdade. O
corpo do Ronan era deslumbrante e perfeito nas
menores curvas, mas eu não era feio. Tá certo que
eu não rebolava e me movia sinuosamente como os
ômegas metidos do clube de bordado, e eu era mais
macho que muito alfa por aí, mas meu corpo era
magrinho e meus olhos grandes e cor-de-rosa. E o
que dizer da minha bunda? Era redonda, macia e
perfeita! Do tamanho ideal para Ronan agarrar e
apalpar enquanto fazia coisas indescritíveis
comigo.
Bem, complicar o simples parecia ser a
especialidade do Ronan. Nosso filhote precisaria

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esperar, mas seu desconforto mexia comigo. Não


de forma telepática, mas por… empatia, talvez? Me
torturava a forma como ele se torcia na cama,
ofegando e tremendo em um sono nada reparador.
Será que todas as suas noites eram assim?
Eu hesitei por alguns instantes então agarrei a
base do mastro, que fervia ainda mais que seu
rosto. De certa forma, aquela situação era culpa
minha. Ronan sabia que meu cheiro o deixaria
ensandecido e ainda assim dormiu comigo, eu não
podia deixá-lo sofrer.
Tentando não acordá-lo, eu sutilmente comecei
a mover a mão, masturbando-o devagar, atento ao
acelerar de sua respiração.
Ronan gemeu macio, ainda meio dormindo.
Aquilo até que era empolgante. Eu comecei a
mover mais rápido, começando a desejar que ele
acordasse para o melhor cenário de sua vida.

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Então Ronan realmente despertou. Ele abriu os


olhos e sentou rápido como um raio.
“Não!!” Gritou ele, brandindo o punho na
direção do meu rosto.
Assustado, eu me inclinei para trás por puro
reflexo. Seu punho deslizou logo adiante, tão
rápido que pude sentir o vento no meu nariz.
Ronan recolheu a mão e enfim encontrou meu
olhar. Seu choque inicial misturou-se ao medo.
“Rickett, desculpa, eu…”
“Você tentou me bater.” Eu falei,
estremecendo.
“Foi… foi um acidente, um impulso! Eu pensei
que estivesse, sei lá, tentando se inseminar em
mim!”
“Isso não é desculpa! Nada é desculpa para me
machucar!!” Eu gritei e levantei da cama, furioso e

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magoado, mas principalmente com medo. Minhas


pernas mal sustentavam o peso do meu corpo.
“Eu nem te acertei, tá bom? Foi sem querer,
eu…”
“Não acertou porque eu desviei, seu alfa
brutamontes!!” Eu bufava de ódio, com lágrimas
escorrendo pelo rosto. “Você teria arrebentado o
meu queixo!”
Ronan estendeu as mãos diante do corpo, como
se fosse ele a precisar se defender de mim.
“Foi sem querer, me perdoe por…”
“Sai do meu quarto.” Eu rosnei. “Sai agora
daqui.”
Ronan se levantou com os lábios trêmulos e a
postura murcha, Se aquele idiota desejava um
ômega para ferir e subjugar, então ele predestinou
com o pior parceiro possível. Eu nunca aceitaria,

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nunca.
Ronan recolheu seus livros e deixou o quarto.
Assim que ele fechou a porta eu sentei na cama e
desabei a chorar.
A vida nas ruas me ensinou a nunca esperar
nada de ninguém. Havia perigos em cada esquina,
desprezo em cada rosto, fome e frio inclementes,
apesar da minha fragilidade de filhote. Eu cresci
para ser forte e nunca mais precisar de ninguém. E
ainda assim, na última noite, eu precisei do Ronan.
Precisei dele com toda a minha alma e eu o tive, da
mesma forma que me entreguei a ele. Uma
necessidade mútua, um desejo mútuo se realizando
ao mesmo tempo. Duas metades de uma mesma
alma se tornando um.
Mas e se fosse tudo uma mentira? Ronan era
aquele com sangue real, seu poder sobre mim ia
ainda além do domínio de alfa. Se ele me desejasse

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como objeto sexual, ou como uma máquina de


bebês, ou como escravo, assim seria.
Ou talvez tivesse mesmo sido um acidente…
lembranças do Ronan desviando do meu toque, me
evitando e fugindo retornaram à minha mente. Será
que fui eu a errar com ele?
Droga, não adiantava ficar chorando até me
desidratar. Eu levantei da cama e passei diante da
penteadeira, quando o reflexo do espelho refletiu
algo vermelho no meu peito.
Eu me virei ao espelho, totalmente despido
exceto pelo meu pé enfaixado. Por baixo das
minhas roupas de couro e penteado maneiro, eu era
um ômega tão frágil e pequeno quanto qualquer
outro, um brinquedo perfeito para um alfa sádico e
manipulador. E entretanto, sobre o meu peito,
aquela escama vermelha espantava meus temores
como paranoias ridículas.

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Eu prometi ao Ronan que nunca me


envergonharia dele, e ele se comoveu com uma
promessa tão simples. Um alfa nunca
compreenderia o medo inerente que todo o ômega
carregava dentro de si, e talvez, da mesma forma,
eu mesmo não compreendesse uma camada muito
profunda do Ronan. Uma camada que ele se
recusava a mostrar.
Mais calmo, eu dei um longo suspiro e
contornei a cama até os armários. Eu ainda
mancava de dor a cada passo, mas um banho salino
era tudo o que eu precisava. Apenas um banho
revigorante e então eu procuraria aquele idiota e o
forçaria a se desculpar de verdade.
Enquanto eu separava roupas para aquela tarde,
eu tropecei com o pé ferido em alguma coisa.
Gemendo de dor, eu peguei aquela tralha. Era um
dos livros do Ronan, o primeiro da coleção. Algo

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me dizia que o esquecimento não foi acidental.


Perfeito. Pelo menos agora eu tinha um pretexto
para aparecer naquela audiência e causar o maior
barraco.

****

Ainda bem que me perdi de novo. Passando


diante da sala do trono eu ouvi vozes familiares, o
que me salvou de uma ida desnecessária até o
Departamento de Defesa.
Eu manobrei minhas muletas em direção às
vozes, que claramente eram o Ronan e o
Arquiduque. Desde quando Ronan entrava na sala
do trono? Ele detestava aquele lugar tanto quanto
detestava qualquer noção de responsabilidade.
O plano era simples, entrar gritando

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escandalizado, acusando aquele idiota de ser um


brocha inútil e incapaz de me inseminar. Se ele
ousasse me contradizer, o livro nas minhas mãos
voaria na cabeça dele. Hora de colocar aquele alfa
abusivo em seu lugar… ou talvez apenas perdoá-lo
com um abraço choroso.
Ai, o que estava acontecendo com a minha
personalidade? O Rickett filhote adoraria causar
escândalo por motivos muito menores, mas eu só
queria que tudo ficasse bem.
Eu entrei casualmente naquela sala, que
tecnicamente também me pertencia, mas quando
ouvi meu nome eu travei as muletas, quase caindo
no chão.
Rápido como um albatroz, eu me escondi atrás
de um dos pilares.
“Sua mudança me surpreende positivamente,
Príncipe Ronan Faroé. Assumindo seus deveres
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reais desde cedo, você construirá as alianças


corretas para sua eventual coroação.” O arquiduque
sorria satisfeito, diante da escadinha que conduzia
ao enorme trono.
Jogado no trono como se fosse o sofá de casa,
Ronan balançou os ombros em desdém enojado.
“Foda-se essa coisa de alianças, sentar nessa
cadeira ainda é melhor que morrer de tédio.” Ronan
bufou com amargor. “…e ter obrigações talvez não
seja tão revoltante assim.”
O Arquiduque riu, alternando sua bengala de
uma mão à outra.
“Falando em obrigações, espero que tenha
resolvido aquela nossa questão. O ômega já carrega
o herdeiro em seu ventre?”
“Tenho tentado muito, mas o cu daquele garoto
parece um pântano venenoso. Não importa a
posição, a semente não floresce.” Disse Ronan.
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“É lamentável e preocupante. Se aquele garoto


for estéril…”
“Rickett não é infértil!!” Ronan sobressaltou a
voz, então limpou a garganta e retornou ao tom
calmo e desdenhoso. “Ele vai proliferar em algum
momento. Tenha paciência.”
“Um mês se completará desde seu despertar,
príncipe Ronan. Sua presença fortalece nossos
vínculos com Faerynga, mas a verdadeira
unificação se fará com um herdeiro Faroé nascido
aqui em Cratília.” O Arquiduque balançou a
cabeça, incrédulo com o azedume do Ronan. “Deve
compreender, príncipe Ronan, que nosso povo
clama por um novo herdeiro, e não por um…
batedor de carteiras da pior categoria. Infelizmente,
dependemos do nascimento do herdeiro para nos
livrar daquele incômodo.”
“Com base em quais acusações?”

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“Você se refere aos arquivos desaparecidos?” O


Arquiduque riu de novo. “Apesar de todas as
qualidades do meu general, ele recusa-se a respeitar
a seleção natural de nossa cultura. Todas as
denúncias contra o garoto, todas as acusações,
condenações e boletins de ocorrência em poder do
exército… tudo se perdeu. Mas um general só pode
brincar de anjo da guarda até certo ponto, novas
acusações podem surgir onde menos se espera.”
“Você não faria isso.” Ronan eriçou os dentes.
O arquiduque removeu um grande broche da
lapela e jogou dentro do bolso, em um gesto
exagerado e sarcástico.
“Opa, meu broche de turmalina sumiu. Quem
poderia tê-lo pego? Oh, onde o mundo vai parar,
permitindo que um ladrão obtenha livre acesso aos
bairros de alta classe?” Disse o Arquiduque.
“Rickett não é um ladrão! Ele é um príncipe, e é
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o meu ômega!” Ronan esbravejou, afinando suas


pupilas e dentes.
“Exato, e como um príncipe ômega ele deve
exercer sua função.” O Arquiduque bateu sua
bengala no chão e deu as costas em direção à saída
lateral. “Seu sangue mestiço não lhe traz a melhor
das reputações, Príncipe Ronan, devemos melhorar
sua imagem pública na medida do possível, e isto
inclui a eliminação de más influências.”
Arquiduque Rhemus foi embora, e assim que
sumiu de vista Ronan mostrou os dedos do meio
para a porta e grunhiu furioso.
“Velho decrépito asqueroso.” Ele rosnou e
encolheu-se no trono, exalando raiva e medo.
Ele olhou adiante e eu me encolhi atrás do pilar,
antes que ele me visse. Com o coração disparado,
eu enfiei a mão por dentro do casaco e observei
minha escama vermelha novamente.
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Ronan realmente era como um oceano profundo


e gelado, em que eu mal conseguia escavar o gelo
da superfície.

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Capítulo 58

Eu imaginava o General Cordelen vivendo em


uma enorme e suntuosa mansão com esculturas de
gelo e piscinas de gêiser, talvez até mesmo uma
estufa com árvores tropicais e flores, mas a casa
diante de mim pouco se diferenciava das outras.
Era bem grande, ainda mais se comparada aos iglus
da periferia, mas não chegava nem perto das
mansões dos duques. Dois andares com estrutura de
metal, concreto e paredes de vidro na sala, de onde
se podia ver o brilho alaranjado de uma lareira e
longos sofás elegantes. O jardim também não era
nenhum labirinto, apenas algumas cadeiras e redes
de onde ele devia apreciar o sol da meia-noite, se é
que aquele idiota apreciava qualquer coisa normal.

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Recém era meio-dia e minhas axilas já ardiam


de tanto me arrastar naquelas muletas, o que era
meio estúpido. Assim que eu terminasse o que
precisava fazer, eu com certeza mergulharia em um
longo banho nos gêiseres salinos para curar de vez
o meu pé machucado.
Eu toquei a campainha e aguardei nervoso.
Logo um mordomo selkie atendeu a porta com um
ar impaciente, então endireitou a postura ao me
reconhecer.
“Príncipe Rickett, sua visita é uma honra.” Ele
prestou uma breve reverência. “Deseja passar
algum recado aos patrões?”
“Se eu quisesse passar recado eu usaria meu
celular, não concorda?” Eu bufei, mal-humorado
pelo desconforto das muletas. “Desculpa, eu quero
ver o General. Preciso conversar pessoalmente.”
“É o dia de folga dos patrões. Lamento,
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príncipe Rickett, tenho instruções de não autorizar


visitas.” Disse ele.
Aquele engomadinho me achava idiota? Claro
que era dia de folga, porque seria simples demais
eu resolver tudo no escritório do Departamento e o
universo ainda conspirava pelo meu tormento.
“Cara, eu sou o Príncipe dos Sete Oceanos, tá
lembrado? Digo, meu predestinado quem é, mas eu
recebi o mesmo título de brinde então sou dono da
porra toda.” Eu troquei o peso de um pé para o
outro, querendo demais sentar. “Me deixa passar, é
um assunto urgente.”
“Lamento muitíssimo, príncipe. Esta
propriedade é particular e, com todo o perdão, o
reino ainda pertence ao Imperador Macalor de
Faerynga.” O mordomo selkie apertava uma mão
na outra, inquieto e culpado. “Perdão pelo grande
inconveniente, adeus.”

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“Mas…”
O filho da puta fechou a porta na minha cara.
Que lindo. Não, sério, alguém merecia dar um
prêmio ao chamado, por foder a minha vida de
tantas formas criativas e espetaculares.
Eu dei meia volta em direção à calçada, mas o
canto do meu olhar mantinha-se atento na direção
da sala, onde o mordomo começou a recolher
algumas garrafas vazias e taças sujas.
Então o mordomo fechou-se em outro cômodo,
provavelmente a cozinha, e no mesmo instante eu
mudei de direção, correndo e mancando até os
fundos da casa.
Aquele mordomo se achava muito esperto, mas
ele não sabia com quem estava lidando. Eu era
Rickett Walrosse, o mais temível ladrão de Roori.
E para um ladrão profissional como eu, janelas
trancadas eram apenas um brinquedo.
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Me certificando que ninguém estava me vendo,


eu engatei minha muleta no parapeito da sacada do
segundo andar e então escalei, suave como uma
pluma e silencioso como um voo de coruja.

****

Aquela sacada pertencia ao mezanino da sala,


que era muito maior e mais elegante do que já
aparentava por fora. Os tapetes coloridos
contrastavam com a mobília branca, decorando o
chão de madeira envernizada. Até as mesinhas
combinavam entre si e havia um cheiro gostoso de
limpeza, perfume de rosas e licor de anêmona. Este
último era bem óbvio porque haviam garrafas pelo
chão do mezanino também, além de diversos potes
vazios que pelo cheiro continham petiscos.
O mordomo não demoraria a subir para arrumar
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esta parte, então eu me apressei para um corredor


lateral, na direção de umas vozes estranhas.
Assim que localizei a porta de onde vinha o
som, eu bati sem pensar duas vezes e dei uma
última ajeitada nos espetos do meu cabelo, que eu
alisei bem alto e com bastante laquê. Chocar o
General começava a se tornar minha segunda
atividade favorita.
O General Cordelen me atendeu no que parecia
ser o seu quarto. Naquele exato instante percebi que
não seria eu a chocá-lo, desta vez.
“Sem visitas hoje, Jabar, eu já solicitei que
não…” Ele avermelhou muito ao perceber que
errou de pessoa. “Rickett, o que está fazendo
aqui?”
Nossa, aquele era mesmo o General? Vê-lo em
trajes casuais já me surpreenderia o bastante, mas o
que era aquele robe de cetim caindo dos ombros?
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Pelo laço torto na cintura, era óbvio que ele vestiu-


se correndo para me atender. Havia um tom
vermelho em seu rosto, brilho de suor nos braços
expostos e o longo cabelo impecável agora
espalhava-se por todos os lados.
Ahm… pensando bem, havia algo de familiar
em sua aparência, igual a… certa vez em uma
joalheria.
Eu avermelhei muito e quis me jogar da sacada,
de preferência para cair de cabeça.
Espera, espera, eu já não era um filhote. Se o
General teve a boa vontade de me receber, eu
precisava me resolver com ele antes de sumir para
nunca mais encará-lo nos olhos.
Apesar da vergonha, eu mantive o olhar nos
olhos meio ébrios do General e lhe entreguei o
papelzinho que mantive no bolso.
O General olhou para o papel nas minhas mãos
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e jogou a franja para trás, tentando parecer menos


bagunçado. Ele arqueou a sobrancelha em leve
curiosidade.
“O que é isso?” Perguntou ele.
“Estou devolvendo aquele número de celular.
Não posso trair a confiança do meu predestinado,
então deixa o nosso acordo pra lá. Eu já decorei os
números mas prometo que não vou ligar nunca.” Eu
suspirei, aborrecido. “O Ronan disse que não
conhece nenhuma Safira do Oráculo, a palavra dele
precisará ser o suficiente.”
O General demorou a processar as minhas
palavras, quando tudo o que eu queria era sumir
dali o quanto antes. Algo enfim clicou dentro da
cabeça dele e ele começou a rir.
“Ah, Rickett, Rickett, mais uma vez você me
fascina. Fique com este número, você passou no
nosso teste.”
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“Teste? Que teste?” Eu perguntei.


“Não ouviu nada do que eu disse após a
audiência? Pessoas que se deixam manipular são
patéticas e entediantes. Eu gosto do seu jeito,
Rickett, mas somos exatamente tão bondosos
quanto o nosso maior ato de generosidade. Eu
precisava testá-lo.”
“Então essa tal de Safira do Oráculo nem
existe?” Eu levantei o tom de voz, indignado.
“É apenas um boato, memórias de criança que o
Oráculo Aurelian repassou aos seus Amalonas e
que certamente não passam de lembranças
distorcidas. De qualquer forma, aquele príncipe
revoltado nunca teria esta informação.”
“Quer dizer que este tempo todo…”
“Rickett, por favor, você é mais esperto que
isso. Se um bombonzinho como você fosse capaz
de violentar a mente do Ronan, poderia descobrir
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sobre o Madhun sem me dever favores.”


Minha vergonha tornou-se raiva. Mais uma vez
aquele general idiota zombava de mim, como se eu
fosse uma peça em seu joguinho obscuro. Ainda
assim, saber que eu manteria aquele número me
trouxe um enorme alívio.
Eu forcei um sorrisinho torto para agradecer o
General, então ouvi os rangidos de uma cama.
“O Ricky já foi? Volta logo, Cor, estou
esfriando.” Disse uma voz manhosa e risonha lá
dentro.
Eu expandi meus olhos em espanto e tentei
espiar para dentro, mas o General bloqueou a fresta
da porta com o corpo, tão corado quanto a minha
cauda.
“Esta é a voz do pastor Enan?” Perguntei.
“Shh, eu te avisei que ele ainda estava ali,

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amor.” Sussurrou uma voz grave, que com certeza


não era a do Yoshan. Kayman??
Risadinhas e rangidos ecoaram pelo quarto,
entre sussurros difíceis de ouvir.
“Parem por um minuto, o garoto vai ouvir.”
Sussurrou o senhor Yoshan.
Eu encarei o General com olhos do tamanho de
pratos.
“Quantas pessoas estão ali dentro?” Eu
perguntei.
“…Algumas.” Ele respondeu, tentando fazer ar
de pouco caso.
Alguém apareceu por trás e abraçou o General
Cordelen pelo pescoço. Era o pastor Enan, que
estava ainda mais bagunçado e vermelho do que
ele, embora não parecesse ser o rubor da vergonha.
Ele emanava um cheiro intenso de licor de

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anêmona e ria para coisa nenhuma.


“Oooooi, Ricky.” Ele apoiou o queixo no
ombro do Cordelen, que tentava a todo custo
ocultar sua completa nudez. “Veio participar do
nosso baile de escamas?”
Eu gaguejei por vários instantes. Mas o que
porra?
“Isso não me parece ser um baile.” Eu respondi.
“Eu disse a mesma coisa.” Falou o General, tão
constrangido que era até engraçado. “Enan, por
favor me deixe controlar a situação, e depois…”
“Controlar, controlar… você exige demais de si
mesmo, Cor. Precisa repensar esta sua relação de
poder com o Ricky.” Enan puxou o laço do robe do
General torcendo-se em risadas. “Você é o general,
ele é o príncipe. Existe aqui uma linda amizade
pedindo para nascer, por que não expor o seu
verdadeiro eu?”
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O General tentou responder, mas então o pastor


puxou seu robe para baixo e o General mal
conseguiu segurá-lo na cintura a tempo.
Eu devia cobrir o rosto, mas meu olhar
congelou em surpresa. Apesar de estreito como
qualquer outro ômega, o torso do General era
firme, com um peitoral sólido e oito gominhos na
barriga. Para um ômega, definir os músculos era
profundamente complicado e desgastante, eram
necessários meses de exercício árduo para
conseguir alguns relevos, e entretanto os bíceps do
General lembravam os de um alfa pequeno. Que
tipo de vida o General teve, exatamente?
O General conseguiu soltar-se do pastor Enan e
subiu o robe, apertando bem o laço da cintura.
“Enan, me lembre de nunca mais comprar
licor.” Disse o General, com uma frustração meio
fingida.

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“O que é lindo deve ser mostrado, não


concorda, Ricky?” O pastor deslizou as mãos pelo
corpo do General, tentando não cair no chão.
“Venha brincar também, e convide o Ronan. Pelas
histórias que o Cor contou, aquele garoto precisa de
um relaxamento espiritual.”
Algo me dizia que não havia nada de espiritual
naquela atividade, mas em respeito ao Enan eu
apenas sorri e discordei com educação.
“Valeu, mas preciso de uma tarde nos gêiseres.”
Eu mostrei o pé enfaixado. “Divirtam-se com…
seja lá o que está acontecendo, aí dentro.”
“Melhoras, Rickett. Agradeço desde já pela sua
discrição.” Disse o General, com um certo tom de
súplica.
Eu deveria ter compaixão, mas ver o General
tão encabulado me fez sorrir com toda a minha
safadeza.
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“Pode contar comigo, General. Ninguém ficará


sabendo das suas surubas secretas. Ou da
bebedeira. Ou que eu vi o senhor pelado, com o
cabelo enroscado no pescoço.” Eu cocei o rosto, me
aproximando. “Isto na sua bochecha é manjar
branco?”
O General surtou e começou a esfregar as
mangas no rosto, tentando limpar uma mancha que
não existia. Algo me dizia que as implicâncias dele
terminaram exatamente ali, naquele instante.
Depois que o General fechou a porta eu olhei
para o papelzinho nas minhas mãos e guardei no
casaco, então senti o livro dentro do mesmo bolso.
Ah, que raiva, esqueci que pretendia pedir mais
um favor… mas nem pensar que eu bateria na porta
de novo. Eles poderiam pensar que eu estava me
convidando.
Um pouquinho aborrecido, eu desci as escadas
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e ignorei os resmungos do mordomo, saindo


casualmente pela porta principal.

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Capítulo 59

Ah, as piscinas de gêiser eram tudo o que meu


corpo precisava.
Eu desci em uma das piscinas ovais, libertando
a minha cauda cor-de-rosa sob a água vaporosa.
Minha transformação soltou as bandagens, que eu
coloquei à margem da água junto às minhas roupas.
Quase derretendo para o calor gostoso, eu
descansei as costas na borda de concreto e apreciei
a vista: Muitos jovens casais namorando nos
diversos outros ambientes, crianças deslizando nos
tobogãs e também um garoto ômega com seu bebê
do outro lado da minha piscina. Alguns selkies de
meia-idade também banhavam nas piscinas mais
distantes e quietas, mas bem poucos idosos. O
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único selkie idoso que eu conhecia era o


Arquiduque e ele nunca se banharia em público.
Que raiva. Eu não queria lembrar do
Arquiduque em um momento tão relaxante. Eu
nunca gostei dele da mesma forma que nunca
gostei de nenhum monarca ou militar, mas nunca o
imaginaria desejando a minha morte. Na minha
ideia ele e o General trabalhavam lado a lado com
objetivos mútuos, afinal eles planejaram a guerra
durante anos e o resultado da primeira batalha foi
um enorme sucesso. Mas pelo visto havia pontos de
conflito, ou pelo menos o General demonstrava
sincero apreço por mim… ao mesmo tempo em que
odiava Ronan, o mesmo Ronan que o Arquiduque
tanto admirava.
Ai, viver na realeza era complicado demais.
Querendo aliviar também a minha mente, eu
torci o corpo e alcancei meu casaco, então

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vasculhei o bolso até retirar o livro.


Eu observei a capa colorida, com o Mega-Max
enterrando uma picareta no crânio de um zumbi,
fazendo explodir sangue em todas as direções. Era
macabro e divertido ao mesmo tempo, eu sorri só
de lembrar da empolgação do Ronan enquanto me
contava os detalhes importantes.
“Tripas… Sanguinolentas….” Eu apertei os
olhos, atento a cada letra do título. Tripas era uma
palavra curta, devia ser a de cima, e a segunda
palavra era gigante. Várias das letras se repetiam,
talvez eu conseguisse juntar os sons iguais? Letras
eram sons, certo?
Eu me concentrei na leitura do título, até que
alguma coisa apertou minha barbatana e me fez
gritar de dor. Por pouco eu não derrubei o livro na
água.
Enraivecido e dolorido, eu deixei o livro de
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lado e rosnei, já me preparando para quebrar o


engraçadinho.
Para o meu espanto, logo notei que não era o
Ruthor ou seus amigos imbecis, mas um pequeno
bebê. O selkiezinho nadava rente ao fundo e
parecia muito curioso com o hematoma na minha
cauda.
“Ei, seu pestinha atrevido.” Eu agarrei o
pirralho e o sentei no meu colo. “É muito feio
apertar a barbatana dos outros, sabia? A pele é
sensível e eu quebrei este ossinho aqui, então…”
O bebê nem ouvia nada, apenas olhava
fascinado para o topo da minha cabeça, cintilando
suas íris castanhas. A julgar pela fofura da cauda,
ele devia ter uns três ou quatro meses. Os pelos
densos da cauda nem permitiam ver o couro por
baixo, e mesmo molhados eram muito macios,
meus dedos desapareciam dentro dos pelinhos, que

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eram tão brancos quanto seu cabelo.


Pensando bem, era a primeira vez que eu
segurava um bebê, e era muito mais agradável do
que eu imaginava. Ou talvez aquele bebê fosse
especialmente meigo, porque ele ria e agitava as
mãozinhas, tentando alcançar alguma coisa.
“Quer brincar com o meu moicano? Pode
encostar, só não…” A criaturinha agarrou meu
cabelo e puxou com força, querendo mastigar. “Ai,
aii!! Não puxa!! Bebê mau! Bebê muito mau!!”
O ômega no lado oposto abanou sua cauda
castanha, nadando ao meu socorro. Certamente era
um pai de primeira viagem, brincando nas piscinas
com sua primeira prole… devia ser divertido.”
“Rhub, querido, você está incomodando este…
ah, nossa, você é o Rickett?” Ele travou no lugar ao
me reconhecer, abismado.
Com o susto eu puxei forte o meu cabelo, me
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libertando do bebê. No que eu estava pensando? Se


aquele cara me acusasse de sequestro, o General
brigaria comigo até meus ouvidos caírem.
“Desculpa, desculpa, eu só estava brincando
com ele, desculpa.” Eu estendi a criança para ele,
surtando por dentro.
O ômega abriu um enorme sorriso.
“Nossa, o Príncipe dos Sete Oceanos brincando
com o meu filho. É uma honra grande demais!”
Eu franzi a testa.
“Como é?” Eu perguntei.
“Por favor, segura ele só mais um pouquinho.
Vou pegar o meu celular.” O ômega disparou até
onde estavam suas coisas e voltou com seu
aparelho. “Sorriam, por favor!”
O que porra estava havendo? Eu não fazia ideia.
Antes da minha predestinação eu apanharia apenas

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por me aproximar das piscinas de gêiser. Havia


piscinas térmicas comuns reservadas aos pobres, e
a alta casta dos Walrosse não me protegia do
escárnio dos verdadeiros nobres. Minha fama de
ladrão também não me ajudava muito, mas eu só
roubei pertences desta piscina umas seis vezes.
Apesar da confusão, eu abracei o bebê e sorri
para a foto. Deve ter sido o sorriso mais encabulado
do mundo, mas pelo sorriso daquele ômega ele
adorou o resultado.
“Nossa, esta foto vai para a parede de retratos
com certeza.” O ômega pegou o bebê e dobrou o
corpo em reverência. “Muito obrigado, príncipe
Rickett. Saiba que rezo diariamente pela sua
fertilidade.”
Eu dei risada, cada vez mais envergonhado e
também um pouco dolorido por dentro. Talvez em
alguma outra realidade eu também estivesse

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acompanhado, aproveitando as poucas horas de sol


com o meu adorável bebezinho. E então eu passaria
horas penteando o cabelo e a cauda, talvez fazendo
um moicano igual ao meu, só para testar as reações
do Ronan.
Ai, que sensação revoltante. Eu nunca me
importei com bebês, e bastava dois minutos
segurando um no colo para eu ficar todo babão.
Meus pensamentos deveriam ser irônicos, mas não
conseguia imaginar uma única situação ruim na
paternidade. Até mesmo limpar fraldas me parecia
divertido… ou pelo menos seria engraçado assistir
Ronan trocando fraldas. Caralho, eu pagaria para
ver isso.
“Seu bebê é uma gracinha.” Eu admiti, com um
sorriso melancólico. “Quanto tempo até a muda?”
“O pediatra calculou dois meses.” O ômega
abraçou o bebê no rosto e esfregou as bochechas

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em sua cauda felpuda. “Vou sentir tanta falta desses


pelinhos fofos, o tempo passa rápido demais.
Pretendo guardar a muda com o cordão umbilical e
os primeiros sapatinhos, mas o meu predestinado
quer transformar em uma almofadinha. Almofadas
de muda são tão clichê, não concorda?”
Eu me lembrei da minha antiga casa, onde
havia um sofá com três almofadas brancas e muito
fofas. Ah, então foi isso o que meus pais fizeram da
minha muda, e da muda dos meus finados irmãos.
“Almofadas são uma ideia adorável. Eu faria o
mesmo e manteria na minha cama.”
“Sério? Ah, se o digníssimo príncipe prefere
assim, vou ceder aos caprichos do meu
predestinado, mas ele que não se acostume,
porque…”
O ômega se calou e olhou assustado para trás de
mim. Antes que eu perguntasse o que havia de
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errado, ele abraçou firme o seu bebê e nadou


embora.
Eu me virei para trás e percebi o senhor
Yoshan, dobrando seu casaco junto ao meu. Ele
entrou na piscina comigo e espreguiçou sua enorme
cauda, muito mais longa que a minha e coberta de
escamas cintilantes, em um degradê que ia do verde
ao lilás.
“Nossa, a água daqui é tão gostosa quanto
dizem. Sei lá, é meio quente demais, mas nesse frio
qualquer calorzinho é gostoso, não concorda?” O
senhor Yoshan me perguntou sorridente, já muito
confortável ao meu lado.
“Terminaram rápido com aquela festinha.” Eu
respondi, meio desconfiado.
“Acho que o Cordelen encabulou demais. Por
baixo das fardas ele é um cara bem tímido e
conservador, não foi culpa sua.”
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Como se eu fosse me importar da culpa ser


minha… Aquele ômega com quem eu quase fiz
amizade fugiu com seu bebê até as piscinas mais
distantes, assim como todos os outros selkies. O
senhor Yoshan era esperto demais para não
perceber o distanciamento de todos, e ainda assim
sorria tranquilo, amigável como ele sempre foi.
Eu me envergonhava da minha raça, às vezes.
Ignorando os olhares apreensivos dos selkies,
Yoshan abanou sua cauda tranquilamente. Ele era
um dos menores alfas que eu conhecia, mas sua
cauda era espessa e musculosa, certamente mais
ágil e veloz que a minha e capaz de rasgar a cauda
de um selkie num único golpe com suas escamas
afiadas. Não era de admirar que a raça dele
subjugou a nossa por tanto tempo.
“Ei, o que é isso?” Ele pegou a escama no meu
peito. “Nossa, que joia incrível! Posso conseguir

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uma corrente de prata, se quiser. Acho que ficaria


ainda mais maravilhosa.”
Eu franzi a testa. Até o senhor Yoshan resolveu
debochar de mim? Pelo sorriso enérgico e calmo,
ele não parecia conter maldade alguma.
“Não é uma joia, é só uma escama do Ronan,
sem valor nenhum.” Eu abracei minha cauda,
corando. “O senhor é o joalheiro mais famoso de
Cratília, deveria saber disso.”
“Uma joia não precisa possuir valor financeiro,
na verdade as joias mais preciosas não tem preço.
Por exemplo, de todas as joias que eu já fabriquei, a
mais preciosa é o meu filhote Cinnamon.”
“Aquele psicopata que quase cortou meu pulso
quando me flagrou roubando um camarão?”
“Este mesmo.” Yoshan riu. “Crescer entre
selkies mexeu um pouco com a cabeça dele, mas
meu filhote tem um coração de ouro. Mal posso
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esperar para revê-lo e perguntar as mil novidades


de sua primeira missão.”
Primeira missão? O selkie de cabelos pretos
mencionou algo assim antes de sumir. Talvez fosse
a mesma missão do Cinnamon, e neste caso ele
também voltaria? Eu quis perguntar, mas não tive
coragem. Para começar, eu nem sabia o nome dele.
Além do mais, aquele faxineiro selkie era um
ninguém de baixa casta, enquanto que Cinnamon
era um soldado filho de general, vigiado de perto
pelos tios tenentes. A sobrevivência de um não
significava a sobrevivência do outro.
O medo apertou o meu coração, mas ao mesmo
tempo eu sorri imaginando nosso reencontro, o
primeiro sem grades nos separando. Será que ele
continuaria sendo o meu amigo?
Perdido nos meus pensamentos, demorei a
perceber o silêncio do senhor Yoshan. E ele era um

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cara que nunca, nunca ficava quieto.


Eu olhei para o lado e meus cabelos de espeto
empinaram ainda mais. Ele estava com o meu livro
nas mãos!
“…quando tudo parecia perdido, Mega-Max
metralhou o pescoço do Hiper-Zumbi, rasgando sua
pele e fraturando três das vértebras apodrecidas.
Sangue rançoso jorrou em direção ao céu, fazendo
chover entranhas no que costumava ser um pacato
estúdio de balé.” Yoshan ficava mais perplexo a
cada palavra lida.
“Ah, por favor, não deixe molhar.” Eu pedi,
estremecendo em nervosismo. “É o livro favorito
do meu predestinado.”
“Por que eu não estou surpreso?” Yoshan riu,
folheando as páginas com interesse. “Prefiro
literatura mais acadêmica, ou os grandes clássicos,
mas livros assim também são divertidos. Qual a sua
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parte favorita?”
Eu deslizei meu corpo pela água, encolhido
como um filhotinho de pinguim no frio da noite.
Aquele estava sendo o meu dia da humilhação e da
vergonha.
“O Ronan mencionou alguma coisa sobre
motosserras… deve ser uma parte legal, eu acho…”
Meu rosto esquentou, e não foi pelo calor da água.
“Rickett, será que você…” Yoshan deslizou
para dentro da água comigo, tentando me olhar nos
olhos. Ele segurava o riso, eu sentia isso. “…você
não sabe ler?”
Eu balancei a cabeça.
“Eu sei que algumas escolas aceitam órfãos,
mas estudar é pra nerds e burgueses estúpidos, não
é? Eu tenho o conhecimento das ruas.”
“Bem que eu senti algo estranho no seu tom de

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voz, mais cedo. Você queria a ajuda do Cordelen,


certo? Desculpa, você apareceu em um momento
meio esquisito, mas eu precisava te encontrar e
descobrir o problema.”
O senhor Yoshan descobriu tudo isso apenas
pelo meu tom de voz? Nossa, eu queria ter metade
da esperteza dele. E também uma fração da
generosidade. O senhor Yoshan costumava assumir
o plano de fundo enquanto o General brilhava nas
passarelas, mas sozinho ele era tão gentil e amável
que mudou minha opinião sobre tritões muito antes
do Ronan surgir em minha vida.
“Acha que o General me ensinaria a ler?” Eu
perguntei, sorrindo tímido.
“Creio que sim, ele se desdobra para ajudar os
órfãos de Roori.” O senhor Yoshan devolveu o
livro à margem e sorriu com o canto da boca. “Mas
vou instruí-lo a recusar seu pedido.”

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“Quê? Mas por quê?” Eu me indignei.


“Porque o Cordelen pode ser um general, mas
também é um tritão em solo de selkies. Auxiliar
órfãos é um crime na cultura local e eu conheço o
sofrimento dele em não poder ajudar o suficiente.
Ele precisa manter a reputação para conseguir um
mundo melhor, onde nenhum órfão jamais se sinta
abandonado.”
“Mas eu nem sou mais um filhote! Eu tenho um
predestinado, sabia?” Eu falei, quase me exaltando.
“Sim, este é o meu segundo motivo.
Compreendo que os problemas do Ronan sejam…
alarmantes, mas ele não deixa de ser a sua outra
metade. O Cordelen tem graves ressalvas com alfas
agressivos, mas todos os ômegas são tesouros
preciosos e inestimáveis. Como um alfa, devo
sugerir que peça ajuda ao Ronan. Ele vai adorar te
ensinar.”

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Nossa, eu nunca imaginei o Ronan fazendo


qualquer coisa por mim, mas também não o
imaginava rejeitando o meu pedido. Lembrar dele
abraçadinho em mim enquanto descrevia a história
me fez sorrir que nem um bobo, de novo.
“Acha mesmo que ele me ensinaria?” Eu
perguntei.
“Eu já fui muito ingênuo um dia, Rickett, mas
aprendi a separar os anjos dos demônios. Ronan
está muito, muito, muuuuuito longe de ser um anjo,
mas sua crueldade é fina e superficial, como uma
casca de ovo.” Yoshan admirou novamente a
escama no meu peito. “Precisava ver a cara daquele
machão invocado quando eu te coloquei ferido e
inconsciente em seus braços. Ele esbranquiçou
mais que a neve recém-caída.”
Então foi o senhor Yoshan quem me encontrou,
e o Ronan quem me carregou para a piscina de

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recuperação? Eu nunca imaginei isso. Por quanto


tempo o Ronan ficou lá, me esperando acordar?
“O senhor tem toda a razão.” Eu abanei a ponta
da cauda, testando o meu ferimento. O hematoma
já estava mais claro e a fratura terminava de
solidificar. “Obrigado por gostar do Ronan, é tão
difícil encontrar alguém que goste de nós dois.”
Opa. Que besteira eu estava falando? Eu me
calei rápido e olhei para o senhor Yoshan, que
sorria tão tranquilo como sempre.
Burro, burro, burro! Eu era o selkie mais burro
do mundo! Nenhum tritão normal deduziria o
complô do Arquiduque apenas com aquele
comentário, mas aquele não era um tritão normal.
O senhor Yoshan com certeza organizava mil peças
em sua mente, formando uma grande imagem
muito além da minha compreensão.
Após alguns segundos de aparente distração,
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Yoshan tocou sua testa e riu.


“Ah, meu predestinado está falando comigo.
Ele e o Enan conseguiram encontrar outro
supermercado com aquele licor.” Ele levantou da
água e vestiu seu casaco. “Preciso voltar.”
“Quê? Você disse que o General ficou tímido,
mas vocês se interromperam porque acabou o
álcool?” Perguntei, exasperado.
“Eu nunca disse que a timidez do Cordelen foi
o motivo da nossa pausa.” O senhor Yoshan acenou
para mim. “Tchauzinho, Rickett, melhoras para a
sua barbatana.”
Frustrado, eu murchei meus lábios como um
asterisco e inflei as bochechas.
O senhor Yoshan podia ser bonzinho, mas sabia
ser tão safado quanto aquele general idiota.

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Capítulo 60

Eu joguei aquelas muletas no lixo e corri até o


quarto do Ronan, mas não o encontrei por lá. Para a
minha surpresa ele ainda estava na sala do trono.
Diante dele, um selkie de roupas simples suplicava
alguma coisa, ajoelhado ao chão.
“Digníssimo príncipe, como eu já expliquei, os
cardumes de atum se afastaram, nenhum peixe
suporta o frio da Laguna Byrr nesta época do ano.
Meus seis filhotes emagrecem a cada dia,
precisamos antecipar a expansão anual dos
territórios de caça.” Disse o selkie.
Ronan bufou e esticou-se de lado, com as
pernas por cima do braço do trono.

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“Eu já entendi da primeira vez. Se acabou o


atum, por que não caçam baleias?” Perguntou
Ronan.
“Baleias caçam atuns, meu príncipe, se não
existem atuns…”
“Está vendo? Um motivo a mais para caçar
todas as baleias. Seus filhos vão adorar, são
deliciosas.”
O súdito estava de costas para mim, ainda assim
eu podia prever sua expressão de profunda
incredulidade. O pobre senhor demorou vários
instantes apenas para formular uma resposta.
“Digníssimo príncipe, creio que vossa realeza
não esteja entendendo o real problema.”
“Baleias são uma caça muito difícil? Então
compre uns filés e coloque na conta da coroa, tem
um supermercado à seis quadras daqui. Recomendo
filé de espadarte com molho de caviar, é um dos
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meus favoritos. O próximo!”


“Ahm… sim… sim, Digníssimo Príncipe
Ronan.” O cara se levantou plenamente confuso e
deu meia volta, passando por mim ao ir embora. A
confusão nos olhos dele me deu um bocado de
pena.
Ronan enfim me avistou e quase sorriu, então
endireitou a postura e manteve a seriedade,
certamente lembrando da nossa discussão.
Meu coração também apertou, mas sentir culpa
não servia para nada.
“Você não é um príncipe muito bom, sabia?”
Eu sorri sem graça, me aproximando.
“Na verdade é bem simples, já resolvi um
monte de problemas, hoje.” Ele devolveu um
sorriso inseguro e nervoso. “Vou ser o melhor
imperador que este fim de mundo já conheceu,
você vai ver.”
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Eu não soube o que responder. Ronan emanava


um alívio tão imenso por simplesmente me rever,
que eu me segurei para não chorar. Eu devia tê-lo
amparado assim que o Arquiduque partiu. Mesmo
conhecendo o passado do Ronan, eu deixei que
pensasse que eu o abandonara durante toda a tarde.
Eu era um completo covarde.
Incapaz de responder com palavras, eu subi
correndo as escadas do trono, o agarrei pela camisa
e puxei contra mim, então eu pressionei nossos
lábios, o que foi super esquisito. Percebi tarde
demais que aquele era nosso primeiro beijo.
Ronan também se assustou pra caralho e me
afastou pelos ombros.
“Não está bravo comigo?” Ele me perguntou.
Se eu estava bravo? Sim, óbvio que eu estava!
O General zombava de mim, eu acidentalmente
flagrei uma orgia de tritões e o Arquiduque
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pretendia me matar. Sem contar que os outros


selkies me odiavam ou me evitavam, eu
provavelmente nunca teria amigos da minha idade.
Mas eu tinha o Ronan, então mesmo que o
universo conspirasse contra mim, eu me sentiria
completo.
“Vamos ter um bebê.” Eu sussurrei contra seus
lábios, o escalando sobre o trono.
“Eu já disse que não!” Ronan protestou.
“Ronan, meu predestinado, nós somos os
Príncipes dos Sete Oceanos, quem são aquele
Arquiduque e o General, perto do que nós podemos
ser? Nós seremos tudo enquanto tivermos um ao
outro.”
“Você não entende? Não quero que mais
ninguém morra...” Ronan apertou meus ombros
com a intenção de me empurrar, mas não encontrou
forças para isso. “…não por minha culpa.”
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O medo crescente no coração do Ronan quase


me fez hesitar, mas eu segui adiante e sentei em seu
colo, de frente para ele. Nenhum de nós vestia nada
por baixo dos longos casacos, então não precisava
muito para acontecer ali. Exatamente ali.
“Vamos fazer, Ronan.” Eu beijei sua bochecha,
depois os lábios que ele espremia muito bem
fechados. “Não importa o que o destino nos
reserva, nós vamos enfrentar juntos.”
Muito hesitante, Ronan desceu as mãos dos
meus ombros para os meus quadris. Ele passou os
dedos por baixo do meu casaco e agarrou as minhas
nádegas úmidas, me fazendo gemer em
antecipação.
“Aqui, no trono real?” Ele franziu a testa.
“Que lugar poderia ser melhor?” Eu sorri em
tom de desafio e passei as mãos em suas coxas,
empurrando para os lados as abas de seu casaco.
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Assim que sentiu-se exposto, Ronan paralisou


de novo. Seu medo transparecia até mesmo no
olhar, mas seu desejo era igualmente forte. Ele
lutava contra os meus feromônios, contra os seus
instintos de alfa, contra o prazer que ele pensava
não merecer. E ao mesmo tempo ele queria. Aquela
ponta dura crescendo entre as minhas coxas eram
testemunha de seu desejo por mim.
“E se tudo der errado?” Perguntou Ronan.
“Só vai dar errado se você deixar o medo
vencer.” Eu beijei seus lábios novamente, e desta
vez Ronan permitiu entrada. Eu saboreei sua língua
quente com a minha e quase encontrei meu ápice
apenas com aquela nova intimidade. “Você tem a
mim, e eu nunca vou te abandonar.” Eu completei,
entre beijos cada vez mais tórridos.
Eu me abracei no pescoço do Ronan e deixei
que meu corpo fervesse sob seus toques. Ele

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apalpava minha bunda com um tesão crescente,


massageando a minha língua invasora com a dele
enquanto buscava algum ângulo que não me
derrubasse no chão.
Ah, aquela demora ia acabar me
enlouquecendo. Suado e pegando fogo, eu girei o
corpo e fiquei de costas para o Ronan. Ele logo
entendeu o recado e mirou o pau no lugar perfeito
enquanto eu sentava.
Eu desci e logo uma pressão esquisita começou
a forçar lá atrás, me alargar, deslizar pelo anel
encharcado e me invadir. Centímetro por
centímetro eu senti o relevo de cogumelo da ponta
e depois das veias, me massageando por dentro na
sensação mais inexplicável do mundo. Ao mesmo
tempo que eu queria gritar de dor eu queria gritar
de prazer.
Meu orgasmo acumulou tão rápido que eu até

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me assustei e contraí as coxas, querendo aguentar


só um pouquinho, pelo menos até processar aquela
situação. Ronan meteu tudo, pulsando quente
dentro do meu rabinho de ômega. Seu pau era tão
imenso que minhas nádegas espaçaram, e ainda
assim não era desagradável. Eu já queria dançar.
“Se acalma, vou acabar… ah… ah… te
machucando…” Ronan tremia, fincando as unhas
no meu casaco grosso.
“Ah, não me faz parar agora, por favor.” Eu
deslizei um pouco mais e sentei no seu colo, enfim
conseguindo relaxar o corpo. Ronan era tão enorme
que eu podia sentir seu volume esticando a pele da
minha barriga. Eu ia gozar. Eu ia gozar demais.
Ronan rosnou baixinho e seu medo dissipou,
derrotado à força pela luxúria, pelo desejo primal
em semear o meu ventre fértil e nos inundar no
prazer mais intenso e íntimo que poderia existir.

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Percebendo que Ronan não resistiria mais, eu


me ergui um pouquinho e sentei de novo, soltando
um gritinho de prazer.
Ai, pelos oceanos, eu ia viciar nisso, não ia?
Demorou, mas Ronan finalmente deixou de ser
chato e me agarrou de verdade. Ele me abraçou por
trás e prensou contra seu corpão de alfa, então
aninhou o rosto na curva do meu pescoço e deu
uma lambida. O calor úmido de sua língua desceu
como um trovão pela minha espinha e eu gozei no
mesmo instante, tremendo e melando todo o avesso
do meu casaco.
Tá certo, havia um pau gigante dentro da minha
bunda, mas perceber Ronan me saboreando e
curtindo aquilo comigo conseguia ser mais erótico
do que qualquer outra coisa.
“Olha onde estamos. Você é doido.” Ele
sussurrou entre lambidas, mordiscadas e chupões,
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enquanto rebolava a virilha para me provocar.


Naquele ritmo Ronan deixaria meu pescoço todo
roxo, mas eu queria. Nada seria mais sexy que
exibir as marcas da nossa luxúria para todos que
quisessem ver.
Acho que Ronan leu meus pensamentos, porque
passou a chupar meu pescoço com vontade. O
calor, os estalidos úmidos e seu aroma masculino
me explodiam por dentro. Eu comecei a subir e
descer no pau dele, tentando encontrar um ritmo
apesar da posição meio esquisita.
E quando não poderia melhorar mais, Ronan
desceu a mão até o meio das minhas pernas, enfiou
por entre as abas do meu casaco e começou a
brincar com o meu pau. Não era uma masturbação,
exatamente. Ele estava me descobrindo, deslizando
o polegar na ponta úmida apenas para umedecê-la
ainda mais, ameaçando fincar a unha no orifício…

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caralho, se ele fizesse isso eu mataria ele. E aquele


breve medinho apenas me excitava mais.
“Sente falta do gosto?” Eu o provoquei,
ofegante e suado enquanto quicava cada vez mais
rápido, até os músculos das coxas arderem.
Como resposta, Ronan tirou a mão do meu pau,
o que foi super decepcionante, então levou o
polegar úmido aos lábios e saboreou novamente, o
que me fez gozar de novo e gemer como um
desesperado. Minhas pernas tremiam como gelatina
e ainda assim eu continuava, delirando na
expectativa em ser preenchido, recheado, semeado.
“Você vai me enlouquecer, alfa.” Eu gemi,
olhando para o lado na tentativa de encontrar
nossos olhares.
Ronan descansou as costas no trono e
estremeceu todo, arfando demais para responder.
Eu nunca odiei tanto ter virado de costas para ele, a
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expressão dele devia ser a coisa mais inacreditável.


Ah, eu teria muitas outras chances de vê-lo olho
no olho enquanto gozava em mim, e comigo, e de
mil formas diferentes, com mil brinquedos
diferentes. Haveria tempo para tudo, mas aquela
primeira vez era sobre mim. Sobre o meu prazer e a
minha fertilidade.
Ronan atingia o limite. Eu sentia isso no fundo
do meu peito e em cada nervo do meu corpo. Nós
gozaríamos juntos desta vez, e se as que ouvi
histórias eram verdadeiras, eu gritaria de tesão para
todos os nobres do palácio ouvirem.
Meus nervos eram trovões e meu sangue fogo
líquido, mas quando tudo explodiria além dos
limites da minha loucura, passos ecoaram no
corredor, diante da sala do trono.
Eu e Ronan travamos no mesmo instante e caí
sentado no seu colo, me empalando de novo.
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“Caralho, quem deve ser?” Eu perguntei.


“E eu sei lá! Levanta, rápido.”
Eu tentei levantar e senti uma pontada de dor.
Minhas pernas trêmulas cederam de novo e o
Ronan tentou ajudar, forçando o meu quadril para
cima. Outra pontada de aguda me fez gemer
dolorido e Ronan me soltou.
“Eu tô preso!” Sussurrei, desesperado.
“Tô vendo isso! Relaxa esse seu cu!” Ronan
sussurrou.
“Relaxar, como? Eu tô trepando na porra de um
trono real e alguém vai aparecer!”
“Não foi ideia minha trepar durante uma sessão
de audiências!”
“Sessão de audiências? Você estava esperando
mais gente??” Eu tentei levantar de novo e a dor só
voltava mais forte.

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“Eu até falei o próximo! E então você furou a


fila e me atacou como um ninfomaníaco!” Ronan
se ajeitou no trono em uma pose quase normal e
fechou o meu casaco por cima do o meu colo e do
meu mastro petrificado.
“O que está fazendo?” Eu sussurrei, em
desespero crescente. “Os passos estão aumentando,
eu preciso…”
“Haja naturalmente.”
Eu endireitei os ombros e forcei um sorriso,
logo então o súdito apareceu. Exceto que não era
um súdito qualquer, mas sim o tenente Zarkon. Ele
trajava o mesmo uniforme elaborado do dia em que
amparou minha queda, completo com uma longa
espada embainhada na cintura.
O tenente parou diante do trono e apoiou um
dos joelhos no chão.
“Saudações, digníssimos príncipes Ronan e
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Rickett. É meu dever informá-los que…” O tenente


afinou os olhos em nossa direção e levantou,
desconfiado. “Por que está tremendo, príncipe
Rickett?”
Eu estava tremendo? Ai, pelos oceanos, eu
tentei me controlar, mas era impossível quando um
caralho gigante cutucava o meu umbigo por dentro.
“Deve ser o frio. Não tem nada inapropriado
acontecendo por aqui. Nada, mesmo.” Eu sorri cada
vez mais nervoso.
“Então por que seu pescoço está roxo?” Ele
rosnou, com o olhar no Ronan.
Puta merda, os chupões! O que eu fazia? O
tenente iria descobrir, e aí o general iria descobrir, e
eu seria a piada de Roori até o fim dos tempos.
Quando eu ameaçava surtar de vez, Ronan me
abraçou contra seu peito, protetor e cuidadoso para
que meu casaco não saísse do lugar.
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“Meu predestinado não lhe deve explicações


sobre a nossa intimidade, tenente.” Ele disse, com a
voz severa e máscula. “Recomendo que encontre
um alfa viúvo para te tratar da mesma forma, você
parece estar precisando.”
Tenente Zarkon rugiu em profundo ódio,
pausando a mão sobre a espada e afinando as
pupilas. Sua forma feral não possuía longos
caninos, mas cada dente era pontudo e serrilhado.
“Qual seria o seu recado para nós, tenente?” Eu
perguntei, sorrindo como um abestado.
O tenente controlou sua fúria e recuperou a
postura formal. Assim como os olhos do General
Cordelen, os dele pareciam a aurora boreal, uma
mistura intensa de verde e lilás. A diferença era
que, enquanto os olhos do General Cordelen
cintilavam vívidos e joviais, no Tenente Zarkon
não havia o menor brilho e suas olheiras escuras

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tornavam sua expressão ainda mais sombria.


“Tenente Maron nos atualizou esta manhã. A
missão em Faerynga foi um sucesso, nossas tropas
estão retornando e devem chegar dentro das
próximas semanas.”
“Vocês fizeram uma missão em Faerynga e não
me convidaram?” Perguntou Ronan, e o tenente
apenas o encarou como se fosse um retardado.
“Agradecemos o aviso, Tenente.” Eu falei,
paradinho como uma estátua pois o menor
movimento me faria gemer. “Ah, me diga, um
filhote selkie de cabelos pretos e corpo de alfa….
Havia alguém assim nesta operação?”
“Rayner Schwanz não embarcou no navio
solicitado e encontra-se foragido, até o presente
momento. Ele foi declarado traidor dos selkies e há
um prêmio de setenta mil fisks pela sua captura.”
O quê? Aquele carcereiro legal e generoso,
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traidor? Não podia ser verdade.


“Qual traição ele cometeu?” Eu perguntei. “E
que missão é esta, afinal?”
“A missão de captura, obviamente. Quanto ao
filhote Schwanz, receio desconhecer qualquer
detalhe. De qualquer forma, o Arquiduque Rhemus
os convida para uma festa em celebração às vitorias
militares do reino.”
O tenente subiu os degraus do trono e eu contraí
os músculos ainda mais. Ele iria descobrir, ele iria
ver tudo!

<<Se acalma, seu ômega demente! Tá


enforcando meu pau! Tá enforcando meu pau!
Aaaaaahhhh!>>

Por fora, Ronan mantinha-se quieto e estóico.

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Sua capacidade de atuação era invejável.


O tenente não parecia ser muito observador. Ele
apenas retirou um envelope da lapela, nos entregou,
e então desceu do patamar do trono novamente.
Ronan pegou o envelope. Era grande e
vermelho, com as focas e fuzis da nossa bandeira
gravadas ao centro, num selo de cera prateada. Eu
nunca vi nada tão elegante.
“Agradecemos o convite, tenente.” Disse
Ronan.
O tenente inclinou o corpo em uma reverência
azeda e afinou os olhos para Ronan por um breve
instante antes de nos dar as costas e ir embora.
Quando ficamos sozinhos, eu enfim consegui
relaxar e Ronan me tirou de cima dele.
Owww, minha bunda doía como se pegasse
fogo.

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Eu massageei minha nádega inflamada e virei


ao Ronan, que encarava assustado o anel arroxeado
na base do próprio pau. No fim de tudo, ele não
gozou uma única vez.
“A gente não deveria implicar com o tenente
Zarkon. Já viu os olhos dele? Ele é aterrorizante.”
Eu disse.
“Foda-se. Você mesmo disse para não sentir
medo de nada.” Ronan levantou mais torto que um
caranguejo. “Puta que o pariu… foi como enfiar o
pau em um fatiador de enguia.”
“Ahm… meu predestinado, se você ainda
quiser… eu poderia…”
“Eu nunca mais vou transar. Chega. Vou virar
celibatário.” Ronan cobriu-se com as abas do
próprio casaco e levantou, andando dobrado.
Era uma piada, eu sabia disso, mas ainda assim
eu me senti um pouco mal por ele. Eu mesmo não
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conseguiria recebê-lo durante dias, com a bunda tão


arrebentada.
“Quando vai ser esta festa?” Eu o acompanhei
até os corredores e em direção aos quartos.
“Pro inferno com essa festa, até parece que eu
vou.” Ele me entregou o envelope em um gesto
estúpido.
Eu alisei o dedo pelo lindo brasão de cera.
Festas de burguesinhos eram estúpidas, mesmo,
não passavam de um pretexto para todos exibirem a
própria fortuna através de roupas e joias caríssimas.
Eu frequentava em segredo para roubar coisas
interessantes, mas agora eu não precisava mais
disso.
Ainda assim… nossa. Nunca me convidaram
para coisa nenhuma, e não seria qualquer festa. Era
a comemoração da nossa primeira vitória sobre os
tritões.
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“Talvez a gente devesse ir…” Eu falei,


estranhando tanta estupidez nos passos do Ronan.
“Por que não convida seu selkie de cabelos
pretos? Ele iria adorar.”
Eu abri a boca, indignado.
“Ah, não. Você, com ciúmes de mim? E por
causa de uma simples pergunta?” Eu nem
acreditava no que estava ouvindo.
“Não é ciúmes! É apenas…” Ronan pensou, e
pensou, e não conseguiu encontrar um sinônimo
para ciúmes. “Você é estúpido.”
“Eu? Só porque eu quis saber se um amigo
estava vivo ou morto? Você quem é estúpido,
Ronan! Parece uma criança, às vezes!”
“Ronan parou de andar, já diante do próprio
quarto. Ele bufou e revirou os olhos,
profundamente aborrecido.

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“Eu não sou uma criança, tá bom? Você pode


ter amigos, é só que eu… quer saber, esquece.”
“Ah, mas eu vou esquecer, sim!” Eu coloquei
as mãos na cintura, indignado. “Vou esquecer do
mesmo jeito que você esqueceu do Madhun!”
A palavra escapou por acidente. Eu estava
cansado, indignado, e com a maior dor no cu que
poderia existir. Em condições normais eu nunca
estouraria daquele jeito, e só de ver a mudança na
expressão do Ronan, o retorno daquele medo
dolorido e devastador, eu soube que havia
exagerado.
“Como descobriu o que eu fiz?” Perguntou
Ronan, à beira de chorar.
“Ronan, desculpa! Eu não sei de nada, é sério.
Não sei o que você fez, só sei um nome, mas se
quiser me contar…”
“Fica longe de mim!!” Ele entrou no quarto aos
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berros, então bateu a porta tão forte que as


luminárias do corredor tremeram.
Poxa… finalmente eu conseguira algum
progresso com o Ronan só para estragar tudo? Por
quanto tempo a nossa relação seria um passo
adiante e dois para trás?
Revoltado, eu considerei entrar no quarto do
Ronan e consertar a situação de algum jeito, mas
em nossa ligação eu não sentia mágoa ou ódio, não
por mim. Ronan me prometeu que nunca choraria
sozinho de novo, mas novamente escolheu sofrer
em solidão. E tudo porque eu fui um insensível
ridículo.
Não adiantava me impor. Ronan precisava de
muito mais que amor, amizade e compreensão. Ele
precisava de um guerreiro, alguém que combatesse
com ele todos os demônios que existiam em seu
coração.

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Eu me fechei no meu quarto e deixei o envelope


sobre a estante, enfiado entre as páginas do livro
que, no fim, eu não consegui ler uma única frase.
Talvez Ronan me desculpasse, se eu pedisse
para ler com ele?
Não, chega de meias soluções, eu já não
aguentava atirar no escuro. A resposta sempre
esteve comigo, no meu bolso, e eu não hesitaria
mais. Por mais que doesse ou me assustasse, eu
precisava de respostas.
Eu peguei o meu celular, digitei os números que
o General me passou e, com os dedos trêmulos e
sem a menor ideia do que dizer, apertei o botão de
vídeo-chamada.

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Capítulo 61

Madhun

Meu celular começou a tocar. Eu o encontrei no


bolso da canga e atendi.
“Alô.” Eu falei, mas ninguém respondeu. Um
arrepio gelado desceu pela minha coluna. “É você,
Ronan? Por favor, volta pra casa. Eu perdoo tudo,
tudo mesmo. O papai Shane chora todos os dias por
você.”
Eu estremeci e algumas lágrimas molharam as
bandagens sobre os meus olhos. Droga, quando eu
iria desistir? O Ronan nunca chegou perto de um
celular, e também nunca deu sinal de vida desde
que foi embora. Ele talvez nem estivesse mais vivo.

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Aquele pensamento apenas aumentou o meu


desespero, então tentei ser menos pessimista.
“Isto é uma vídeo-chamada? Baiten, se for
você, saiba que só teve graça da primeira vez.” Eu
estendi o celular diante do meu rosto, para que ele
me visse. “Sério, pare com as brincadeiras, tudo
bem? Eu não ligo, mas papai Byron pensa que está
zombando de mim.”
O outro lado ainda não respondia. Pelo chiado
ao fundo a ligação continuava, e nem mesmo o
Baiten zoaria comigo por tanto tempo.
A escadinha de madeira rangeu atrás de mim.
Eu desliguei o celular e farejei o ar morno do
entardecer, tentando reconhecer quem estava
subindo.
“Eu imaginei que te encontraria aqui.” Era a
voz do Sebasten. Seus passos tilintaram as telhas e
ele sentou ao meu lado. “O Byron e o Shane estão
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que nem uns loucos te procurando. Você precisa


voltar para a água, ou seus olhos…”
“Não aguento mais morar naquele ofurô,
Sebasten. Eu continuarei minha recuperação,
mas…” Eu suspirei e me abracei nos meus joelhos,
com o coração apertado. “Acho que eu precisava de
um tempo para pensar.”
“Desculpa, eu posso ir embora, se preferir.”
Eu ergui o rosto adiante e deixei que a brisa
atingisse minha pele. Ao longe as gaivotas
gralhavam, retornando aos seus ninhos na
montanha, e em meio ao aroma salino havia um
sutil perfume floral chegando das planícies, um
aroma cítrico e desconhecido, o cheiro do Sebasten,
e outros tantos cheiros que se misturavam ao meu
redor. Até mesmo as telhas inclinadas onde eu
estava sentado, tão rígidas, onduladas e
desconfortáveis, naquele momento me traziam

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nostalgia.
Uma infinita riqueza de sons, aromas e texturas,
e entretanto, diante de mim, havia apenas a
escuridão.
“Seb… como está o dia, hoje?” Eu perguntei.
“Ah, tudo meio normal. As últimas reformas
foram concluídas e o papai Jensen parece um louco
colhendo milhares de rosas para o memorial de
amanhã. Os reis planejaram uma coisa esquisita
envolvendo lançar barquinhos com velas e flores no
mar, um para cada vítima do massacre, e todo
mundo parece ok com a ideia. Meu pai Fran deve
estar ocupado com isso, também, faz três dias que
não vejo ele.”
“Eu fiquei sabendo sobre o memorial. Duvido
que meus pais me deixem ir, não que eu pudesse
apreciar qualquer coisa.” Eu soltei um longo
suspiro. “Mas enfim, não foi isso que eu quis
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dizer…”
Sebasten demorou um pouquinho, pensativo.
Eu sentia o calor de sua mão, muito próxima da
minha e ao mesmo tempo sem me encostar. Era
difícil dizer se a distância era um alívio ou um
incômodo.
“É pôr-do-sol, agora. Tem uma revoada de
albatrozes ao longe, está ouvindo como são
barulhentos? E o mar está super calmo, ondulando
suave e refletindo o dourado do sol, que parece
derreter no fim do horizonte. O céu lembra o jardim
lá de casa, durante a primavera. Lilás como
glicínias, e ao mesmo tempo vermelho como
hibiscos e azul como hortênsias. Mais para cima
brilham as primeiras estrelas e o tom de azul
lembra o das suas escamas, é lindo demais para se
comparar com simples flores.”
Eu sorri, molhando ainda mais as bandagens

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com o peso das minhas lágrimas.


“Eu gosto de como você descreve.”
“O telhado da sua casa tem uma vista linda.”
Respondeu Sebasten.
Por um tempo eu não quis conversar mais nada,
apenas tentei imaginar cada detalhe, buscando
lembranças cada vez mais difusas. Eu já não
lembrava o quanto se podia ver da peixaria do
papai Byron, ou se a escadaria do castelo era
visível, olhando-se para trás. Aos poucos cada
memória se tornava escura e borrada, ou misturadas
com a minha imaginação. Era assustador demais.
Sebasten cobriu a minha mão com a dele, e por
um instante senti voltar o aroma cítrico e
adocicado, que logo se perdeu no vento.
Talvez além de cego, eu também estivesse
alucinando através do olfato.

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“Ei, Seb, você poderia me dizer quem ligou?”


Eu entreguei meu celular para ele.
“Uma vídeo-chamada? Que piada de mau
gosto.” Sebasten cutucou a tela algumas vezes.
“Não é nenhum dos seus contatos. Quer que eu
ligue de volta?”
“Não precisa, deve ter sido um engano.” Eu
peguei o celular de volta e guardei. “É, com certeza
foi alguém que se enganou…”
Sebasten bufou.
“Madhun, aquele idiota não vai…” Ele
engasgou nas palavras. “Eu sei que visito demais e
isto até te incomoda às vezes, mas desta vez te
procurei com um motivo.”
Eu virei o rosto na direção de sua voz.
“Que motivo?”
Sebasten ergueu a minha mão e me fez segurar

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algo liso e gelado. Era cilíndrico e não muito


pesado, com o cheiro cítrico e desconhecido que
senti mais cedo.
“O quê é isso?” Eu cheirei a parte de cima, de
onde saía o gostoso aroma. Obviamente se tratava
de uma garrafa de vidro, mas era o conteúdo que
me intrigava. Eu saberia reconhecer milhares de
ingredientes apenas pelo aroma, mas nunca cheirei
nada parecido.
“É uma garrafa de chá, e eu estou segurando
uma igual, nas minhas mãos.” Sebasten gaguejou
alguma coisa, tremendo a voz. “Não… não é um
chá comum, eu preparei com... Ai, o papai Fran vai
arrancar meus cabelos quando descobrir.”
“Um chá? Até que o aroma é bem gostoso.”
“Sim, eu também fiquei surpreso, porque o
coral-de-oráculo não tinha cheiro de nada.”
Eu me assustei tanto que quase derrubei a
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garrafa.
Só podia ser piada! Um chá de coral-do-
oráculo?? Não, nem pensar, aquele estava sendo o
dia das brincadeiras de mau-gosto.
“Desculpa, Seb, mas você sabe que eu…”
“Eu já sei o que você quer, Madhun, mas eu
imploro que pense em si mesmo. Se você
predestinar com o Ronan, ele pode querer terminar
o que começou.” Sebasten segurou meu braço. Seus
dedos tremiam. “Você sobreviveu por pura sorte, o
Ronan uniu-se aos assassinos do nosso povo e
nunca retornou. Por favor, Madhun, seus
ferimentos atrasaram o seu despertar, mas é uma
tragédia esperando para acontecer.”
“Já chega, Sebasten!” Eu gritei, o fazendo se
encolher.
Minhas bandagens encharcaram a tal ponto que
as lágrimas começaram a descer pelo meu rosto.
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Meus amigos, minha posição como baixista da


Death Cannibals, minha carreira como chef
famoso, e também a predestinação que sempre
desejei… quantos outros sonhos ainda seriam
arrancados de mim? Ainda me restava qualquer
coisa?
Como o Ronan foi capaz de me destruir tanto, e
por que eu não conseguia odiá-lo? Por mais que eu
detestasse a verdade, Sebasten tinha toda a razão.
Talvez eu predestinasse com Ronan e vivesse um
conto de fadas, mas quais as chances disso
acontecer? Papai Shane acabava-se de chorar por
um filho desaparecido, o quanto mais ele choraria
se este mesmo filho matasse o outro? E se eu
morresse, papai Byron perderia a única herança que
papai Isha lhe deixou.
“É loucura, Sebasten. Você é novo demais.” Eu
disse.

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“Tenho quase dezoito anos! Eu tenho treinado


muito, até consegui alguns músculos e minha voz
engrossou um pouquinho, já percebeu?” Perguntou
ele, com o mesmo timbre pré-pubescente que
sempre teve. “Estou longe de ser um Ronan, mas eu
te quero seguro e feliz, Madhun. Além do mais,
lembre as palavras da doutora Babelyn. Mais
alguns dias de água salina e você enxergará
novamente. Você não perdeu tanto quanto pensa.”
“É, eu sei…” Eu segurei apertado a garrafa nas
minhas mãos, tentando parar minhas lágrimas.
“Mas e você, Sebasten? Não é justo que desperdice
sua predestinação. Se permitir que o chamado siga
seu curso natural, você será reunido com o par
perfeito.”
“Você é o meu par perfeito!” Ele respondeu no
mesmo instante, indignado como se fosse um
insulto pensar de outra forma. “Eu sempre te

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desejei, Madhun. Sempre, sempre, sempre. Tudo o


que peço é a chance de fazê-lo sentir o mesmo por
mim. Talvez você nunca me corresponda, e eu sei
disso, mas este é um risco que eu estou disposto a
correr.”
O nervosismo ameaçava devorar as minhas
entranhas. Eu inalei novamente aquele aroma
cítrico, sem acreditar que estava mesmo
considerando aquela insanidade.
Se Ronan me matasse, eu nunca conseguiria
salvá-lo.
A indecisão causou terremotos no meu peito,
mas antes que eu decidisse, a escada rangeu
novamente. Sebasten recolheu apressado a garrafa
na minha mão e agitou algo de pano.
“Madhun, você está aí?” Perguntou o papai
Byron, e logo depois ouvi passos corridos nas
telhas. As mãos enormes do meu pai apertaram
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meus ombros. “Filho, nós te procuramos durante


horas! Que loucura você está fazendo aqui em
cima? Poderia ter caído!”
“Tá tudo bem, tio Byron, eu…” Começou
Sebasten.
“Seus pais ficarão sabendo disso, Sebasten.
Você sabe muito bem que o Madhun precisa de
água marinha.”
“Para com isso, pai! Não foi culpa do Sebasten,
eu fugi sozinho, ele estava me convencendo a
descer.” Eu me levantei indignado e tentei me
soltar, mas papai Byron continuava me segurando
como se eu fosse um idiota imprestável.
“Neste caso, peço perdão ao Sebasten, mas
você não sairá daquele ofurô até recuperar a visão!
Perceba o quanto estamos preocupados, filhote.”
“Eu percebo muito bem, pai.” Eu rosnei,
amargo. “Posso ter cinco minutos com o Sebasten,
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ou está insinuando que ele vai me jogar daqui de


cima?”
Meu pai rosnou de volta, mas acabou cedendo.
Ele odiava qualquer tipo de atrito com aqueles que
amava, e agora que Shane começava a perdoá-lo
ele mantinha-se ainda mais passivo que o normal.
“Cinco minutos e eu o quero de volta na água.
Sua tia Babelyn logo chegará para a sua consulta.”
“Sim, senhor.” Eu suspirei, desanimado. Não
aguentava mais tantos exames e cuidados.
Meu pai desceu do telhado pela mesma
escadinha, que terminava na sacada do meu quarto.
Assim que meu pai foi embora, Sebasten
segurou minha mão e me ajudou a descer, também.
Ele desceu primeiro e me apoiou até que meus pés
encontrassem a segurança do chão.
“Meu pai viu as garrafas?” Eu perguntei.

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“Não, eu escondi na minha sacola.” Sebasten


tentou me segurar de novo, mas eu recusei e segui
sozinho para o meu quarto, já havia decorado bem
a distância entre cada móvel. “Não precisa
responder agora, se não quiser.”
“Sim, eu preciso. Você têm toda a razão, Seb.
Pode ser que Ronan já tenha despertado, mas
aguardar é um risco desnecessário. Eu amo o meu
irmão, mas também amo os meus pais, e eles não
merecem sofrer se algo acontecer comigo.”
“Neste caso, eu voltarei amanhã à noite. Os
adultos estarão todos no memorial, ninguém irá nos
interromper.”
“Sou eternamente grato pela sua paciência.” Eu
inclinei o corpo brevemente.
Sebasten tocou meu rosto e me fez endireitar a
postura.
“Não precisa ser tão formal comigo, Madhun.
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Independente do que decidir, você sempre ocupará


um enorme espaço no meu coração.”
Eu sorri e concordei, sentindo diminuir a dor
excruciante no meu peito.
Não havia a menor necessidade em ser
conduzido ao ofurô, ainda assim eu estendi a mão e
permiti que Sebasten tivesse a alegria em me guiar.
Enquanto eu retornava para aquele claustro
molhado onde vivi minhas últimas semanas, eu
também ouvia o tilintar das garrafas na bolsa do
Sebasten e o meu nervosismo insistia em voltar.
Seja lá o que eu decidisse, só havia uma
certeza: a minha vida nunca mais seria a mesma.

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Capítulo 62

A doutora apertou as bandagens ao redor da


minha cabeça e prendeu com um esparadrapo,
dando um tapinha atrás para sinalizar que estava
pronto.
Eu tateei minhas novas bandagens sequinhas e
confortáveis, embora a pomada de algas ardesse um
pouco.
“Quanto tempo ainda vai demorar?” Eu
perguntei, me acomodando até os ombros dentro do
ofurô aos fundos da casa.
“A pele, as sobrancelhas e os cílios já
recuperaram, sem marcas ou cicatrizes. Os globos
oculares em si já estão normais em aparência, mas

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por precaução manteremos as ataduras.”


“E a minha visão?” Perguntei à doutora.
“Apenas o chamado tem a resposta.” Ela afagou
minha cabeça como se eu fosse uma criança. “Sinto
muito, Madhun, eu sei que é um saco, mas a
medicina humana só alcança um certo ponto. Os
poderes do chamado são um mistério para todos
nós.”
Eu concordei, tentando me lembrar de que eu
tinha sorte. Papai Shane explicou que humanos
nunca sobreviveriam a ferimentos como os meus, e
mesmo que sobrevivessem haveriam sequelas
graves e permanentes. Não era um grande conforto,
mas era tudo o que eu tinha.
“Já conseguiram alguma pista sobre o Ronan?”
Eu perguntei.
“O décimo irmão Byron me proibiu de falar
sobre isso, mas ele é tão dramático, aquele bebê
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chorão. De qualquer forma, não tenho notícia


alguma. Os reis Papillon e Yun decidiram manter a
postura defensiva mesmo após a reconstrução da
ilha, então o próximo movimento será novamente
por conta dos selkies. Como pode imaginar, é uma
decisão meio polêmica.”
“Então precisamos esperar que o Ronan venha
até nós?” Eu perguntei, ainda mais deprimido.
“Ronan é o rei de direito do trono de Egarikena,
se quisesse controlar ou destruir o reino,
encontraria mil formas de fazer isso. E entretanto
ele permanece desaparecido.”
“Talvez ele queira apenas o trono dos selkies?”
Eu perguntei, já sabendo que não fazia sentido. Eu
conhecia Ronan. Ele podia ser cínico e cruel, mas
nunca foi ganancioso. “…Talvez ele não deseje
trono nenhum.”
“Quem entende a cabeça daquele louco?
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Desculpa, eu imagino que seja dolorido, mas


independente das motivações do seu irmão, Ronan
é o nosso inimigo, agora. Ele tentou te matar,
Madhun. E ele assassinou os meus pais.” A voz da
doutora permanecia calma e paciente. “O que quero
dizer é que o retorno dele talvez não seja a melhor
opção. Pelo menos não tão cedo.”
Assim como as opiniões do Sebasten, tudo o
que a doutora dizia também fazia sentido. Ao invés
de desejar o retorno do Ronan, eu deveria torcer
que ele sumisse da minha vida. Apenas assim ele
estaria seguro.
Doía demais pensar na realidade. Doía demais
pensar no Ronan.
Eu estremeci sentindo o choro voltar, então a
doutora estendeu a minha mão e colocou nela um
cone esquisito. Gotas geladas escorreram por cima
dos meus dedos.

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“O que é isso?” Eu farejei um aroma adocicado


e delicioso.
“O tio Gabe soube de um certo acidente que
você sofreu, e mesmo sem saber os detalhes
mandou muitos potes de sorvete. Não cabe mais
nada no freezer da sua casa, é uma loucura.”
Eu lambi o sorvete e me deliciei. Pistache com
cobertura de caramelo. Era um dos meus sabores
preferidos.
“Sou muito grato, tia Babelyn.”
“Eu preciso ir. Tenho um parto híbrido amanhã
cedo ao norte da ilha, e o Taimen insistiu em
comparecer ao memorial, como se a minha vida já
não fosse corrida o suficiente.” A doutora fechou
sua maleta de instrumentos médicos. “Quanto a
você, Madhun, o irmão Byron tem autorização de
arrancar suas orelhas caso você fuja de novo.”
“Sim, senhora.” Eu respondi, meio assustado.
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A doutora foi embora e, pelo canto das cigarras


que ecoava na direção dos bosques, já era hora de
dormir. Eu mergulhei e abracei a minha cauda,
lutando contra a tristeza e a solidão, até que
consegui finalmente adormecer.

****

Enfim havia chegado a noite do memorial.


Os talheres tilintaram contra o prato, conforme
papai Shane organizava meu jantar à borda do
ofurô, em uma mesinha improvisada.
Eu lambi os lábios para o cheiro de pizza.
Desde que voltou para a ilha, papai Shane passou
muito tempo chorando ou discutindo com o papai
Byron. Aquela era a primeira vez que ele
cozinhava, e me animava percebê-lo recuperando o

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próprio bem-estar.
Animado e faminto, eu peguei o garfo e tateei
do outro lado, tentando encontrar a faca. Mas não
havia faca nenhuma. A pizza já estava cortada em
pedacinhos, assim como todas as minhas outras
refeições.
Papai Shane preparou aquela pizza pensando
em mim, e apenas por este motivo eu escondi o
meu aborrecimento. Eu estava cego, não aleijado.
Eu podia cortar a minha própria comida, e pentear
meu próprio cabelo, e caminhar até o banheiro sem
uma escolta.
Paciência. Apenas mais alguns dias, e seria eu a
preparar refeições deliciosas para o meu núcleo,
perfeitamente curado e independente. Pensando
nisso eu comi os quadradinhos de pizza e gemi de
prazer. Papai Shane deveria abrir uma pizzaria, e eu
seria o principal cliente.

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“Tem certeza que ficará bem?” Perguntou o


meu pai. “Precisa de mais bebida? Ou mais
aquecimento na água? Ou de músicas novas no seu
iPod?”
“Estou ótimo, papai Shane. Por favor, não se
atrase por culpa minha. Esta cerimônia é muito
importante para o papai Byron.”
“Sim, logo irei encontrá-lo.” Ele suspirou,
desanimado. “Cara, faz tempo que a gente não sai
junto sem se matar.”
“Você está pronto para perdoar o papai Byron,
e ele percebe isto. Vocês dois precisam desta noite,
ele tem mais maturidade do que aparenta.”
“É você quem tem maturidade demais,
Madhun. Desculpa por tudo isso.”
“Eu fico feliz que estejam se entendendo de
novo. Vocês dois são a minha querida família.” Ou
pelo menos o que restou dela, eu pensei, sentindo
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pontadas no coração.
“Tudo vai se resolver, filho. Farei o que estiver
ao meu alcance.” Os passos do papai Shane se
afastaram em direção à casa. “Seu celular está no
lugar de sempre. Liga se precisar de qualquer coisa,
qualquer coisa mesmo.”
“Pode deixar.” Eu acenei, com um sorriso em
minhas bochechas recheadas de pizza.
Papai Shane foi embora e eu terminei a minha
refeição, já sentindo arrepios nervosos no
estômago.
Durante o dia inteiro eu pensei, refleti e
confabulei sobre as mil possibilidades diante de
mim, mas a verdade é que não havia muito o que
debater. Embora eu não quisesse admitir, já havia
tomado uma decisão no instante em que aquela
garrafa tocou meus dedos.
Ao invés de me acalmar, tanta certeza apenas
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aumentava o meu desespero. E se fosse um erro?


Era uma decisão importante demais para ser
escolhida com tanta facilidade. Eu não sabia nem
dizer se era uma escolha altruísta ou egoísta, e
rezava que fosse uma pegadinha idiota do Sebasten,
embora soubesse que ele nunca brincaria sobre uma
coisa dessas.
Após algum tempo de espera eu ouvi passos se
aproximando de mim. A minha cegueira apurou
minha audição a tal ponto que eu já reconhecia
aqueles passos pesados e meio inseguros. E
novamente o tilintar de garrafas os acompanhava.
“Eles já foram?” Sussurrou Sebasten.
“Olha para quem você está perguntando.” Eu
respondi, em tom de brincadeira.
Sebasten riu, igualmente nervoso.
“As luzes da casa estão todas apagadas, menos
aqui no quintal.”
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“Claro, seria desconfortável jantar no escuro.”


Eu apontei para o meu prato vazio, e nós dois rimos
de novo.
Sebasten recolheu minha louça suja e ajeitou as
garrafas sobre a mesa. Talvez nossa risada fosse
simples inquietação, mas eu gostava da aparente
leveza naquela situação tão séria.
“Eu também trouxe taças, desta vez. Será que é
mais apropriado? É um chá super raro, e você não
imagina o meu malabarismo para esconder o
aquário vazio. Papai Jensen pensa que estou
mantendo no meu quarto para podar os cantos do
coral, eu vou perder o couro da minha bunda
quando ele descobrir.”
Eu peguei uma das taças, que ecoou um som
delicado contra as minhas unhas.
“Taças de cristal. Que elegante.” Eu sorri
provocativo, na direção de sua voz. “Talvez sua
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bunda esteja a salvo, se você predestinar ainda


hoje.”
Sebasten engasgou, mantendo-se em silêncio
um certo tempo.
“Você já se decidiu?” Perguntou ele. “Quer…
quer dizer… eu trouxe tudo isso, mas não pra meter
pressão, nem nada assim, se não quiser eu vou
entender, mas se quiser, nossa, eu vou ficar tão
louco que… ah e tem taças e velas, eu não sei por
que eu trouxe velas, pensando bem. Eu já disse que
o chá é super luminoso e dourado?”
Eu desatei a rir só de imaginar a expressão
surtada que Sebasten devia estar fazendo.
“O ofurô é mais espaçoso do que parece. Entre
aqui comigo.” Eu encolhi a cauda sob o meu corpo
e me espremi no cantinho, abrindo espaço para ele.
Sebasten gaguejou alguma coisa e me obedeceu
igual a um cachorrinho. Suas pernas se
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transformaram em uma enorme cauda que me


espremeu ainda mais contra a borda de madeira, foi
necessário um certo tempo até conseguirmos nos
ajeitar com conforto.
A barbatana do Sebasten descansou por cima da
minha e era uma sensação gostosa. Fazia cócegas, e
ela parecia ser bem maior que a minha. Para
alguém sem torso de alfa, Sebasten compensava
com uma cauda espessa e forte.
A água pareceu mais quente com a entrada do
Sebasten. Eu não sabia se era o calor da minha
vergonha ou do corpo dele. O garoto tremia de
tanto nervosismo.
Talvez fosse melhor para os nervos de todos
que eu não me enrolasse com isso. Eu procurei as
mãos do Sebasten e as segurei.
“Seb, este sacrifício que deseja fazer por mim é
permanente, se os boatos estiverem certos e a gente
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predestinar, eu pertencerei a você até o fim de


nossas vidas.”
“E por acaso isto é ruim? Eu também
pertencerei a você, Madhun, e não vejo sacrifício
nenhum, nisso. Eu te quero, meu maior desejo é
descobrir o amor junto com você.”
“E eu também quero liberdade. Quando minha
visão voltar, quero retomar a minha culinária, e os
ensaios da banda, e tentar reconstruir o que sobrou
da minha vida social.”
“Não teremos nem sequer filhos, se este for o
seu desejo.” Sebasten aproximou-se tanto de mim
que eu senti sua respiração no meu rosto. “Não te
desejei por uma vida inteira para te tornar
miserável, Madhun. Conte comigo para tudo,
sempre.”
Eu segurei a minha risada. Por que imaginei
que haveria uma discussão? Sebasten não mudaria
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nunca, e eu também gostava disso. Gostava muito


mais do que queria admitir.
“Espero que o sabor seja tão gostoso quanto o
cheiro.” Eu senti meu rosto aquecer.
“Gostou do meu perfume? Escolhi
especialmente para hoje e… ah, o chá. Claro. Ah,
espera, isso é um sim??” Perguntou ele, todo
bagunçado.
Eu concordei com a cabeça.
“Se importa de nos servir?”
Sebasten gaguejou um monte de sílabas sem
sentido, tendo chiliques e tremendo tanto, que não
me surpreenderia ele derrubar o chá dentro da água.
De algum jeito Sebasten conseguiu encher
minha taça sem derramar, então também encheu a
dele. O delicioso aroma cítrico nos envolveu, como
se ele mesmo fosse parte da magia daquele líquido.

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Eu segurei a taça nas duas mãos, com o


estômago borbulhando em ansiedade. Será que
funcionaria, mesmo? E se não funcionasse, será que
eu sentiria decepção ou alívio? Droga, eu com
certeza sentiria decepção. Eu queria que desse
certo.
Eu queria ser feliz.
“O que fazemos, agora?” Perguntou Sebasten.
“É você quem deveria saber!” Eu falei, nervoso.
“Acho que apenas bebemos?”
“Sim, tem que ser tudo, e ao mesmo tempo.”
Disse ele.
“Certo. Então no três. Um, dois…”
Eu levei a taça aos lábios e bebi tudo em goles
grandes. A acidez lembrava suco de laranja, mas o
sabor era diferente de tudo. Era gostoso de um jeito
que parecia infiltrar a minha língua e a garganta, e

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da forma como uma pimenta queimaria a pele, o


líquido acariciava e refrescava, parecendo ser
absorvido antes mesmo de parar no estômago.
Após alguns goles, eu consegui beber tudo e dei
um suspiro refrescado, deixando a taça sobre a
mesa. Sebasten fez o mesmo, tilintando sua taça ao
lado da minha.
“Agora só precisamos de muita, muita sorte
para não dar tragédia.” Disse Sebasten.
“Ahm? Como assim, tragédia?” Eu arqueei a
testa.
“Porque eu tenho dezesseis anos.” Ele riu.
“Isso não tem graça!” Eu ri com ele, apreciando
geladinho gostoso que percorria minha pele. “Se
você fosse tão jovem, morreria com certeza. E eu
já… Sebasten?”
Sebasten deitou a cabeça contra o meu peito. Eu

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desviei para o lado e ele caiu como uma pedra para


dentro da água.
Eu o levantei pelos ombros e sacudi, farejando
um cheiro horrível de sangue. Eu passei a mão pelo
rosto do Sebasten e senti o líquido quente escorrer
dos olhos e do nariz. Era uma hemorragia.
Não! Não! Qual era o problema de todo mundo,
se envenenando na minha frente??
“Sebasten, não faz isso comigo! Acorda,
Sebasten! Acorda!!”
Eu dei uns tapas no rosto dele, sem conseguir
nenhuma reação, e o gelado no interior do meu
corpo tornou-se mais intenso e disperso, me
congelando de dentro para fora.
Uma náusea tenebrosa fez rodopiar os meus
sentidos, e mesmo no escuro eu tive a certeza de
que apagaria por completo.

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Capítulo 63

Minha consciência retornou, e com ela a luz.


Eu admirei boquiaberto as galáxias acima de
mim. Eu podia ver! Consegui recuperar a minha
visão, finalmente!
Não. Espera. Mesmo que a minha visão
retornasse, as bandagens nos meus olhos me
manteriam às cegas. E, entretanto minhas
bandagens haviam desaparecido, assim como a
minha canga. Eu estava despido, balançando minha
cauda em uma água calma e ampla, que com
certeza não era o meu ofurô e nem o mar. A
superfície era tão estática que refletia com
perfeição os bilhões de estrelas, que também não
lembravam o céu de Egarikena.
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As estrelas pouco iluminavam o ambiente. O


verdadeiro brilho vinha de baixo: uma estrela
enorme que muito lembrava o sol, incandescendo
no fundo daquele oceano estranho. Sua
luminosidade já aparecera mil vezes durante meu
sono: era o brilho do chamado.
Droga, era óbvio que eu conseguia enxergar,
naquele momento. Nada daquilo era real, apenas
uma ilusão idiota causada pelo meu desper…
Ah, caralho! É mesmo! Eu estava despertando!!
E eu conseguia enxergar, porque aquela era a
minha alma buscando sua outra metade para as
devidas apresentações.
“Sebasten?” Eu rodopiei pela água, perturbando
o espelho perfeito que era a superfície. Meu
coração vibrava como um solo de bateria.
“Sebasten, o seu chá funcionou! Olha pra isso!
Estamos despertando juntos!”

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Apesar do nervosismo caótico eu sorri,


maravilhado que um chá pudesse conter tal magia.
Eu procurei Sebasten por todo o canto naquele
cenário infinito, ansioso em ouvi-lo rindo e
surtando de alegria, mas quanto mais eu procurava,
mais meu sorriso desaparecia.
Estranho. Diziam que a ilusão do despertar era
o primeiro encontro das almas predestinadas, mas
não havia mais ninguém ali.
“Seb? Ei, Seb, onde você está?” Eu gritei, e
minha voz ecoou muitas vezes apesar de não haver
nenhuma parede.
Só então notei algo flutuando na água, muito ao
longe.
Eu nadei em direção àquela coisa, notando que
haviam muitas outras. Eram pontinhos verdes e
brilhantes, como um tapete de esmeraldas.
Quando me aproximei, consegui identificar
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aquelas coisas. Não eram esmeraldas, eram


escamas. Dezenas de escamas verdes flutuando na
água. Era o mesmo tom da cauda do Sebasten.
“Sebasteeeeen!” Eu gritei, então mergulhei e
gritei de novo, nas profundezas. “Sebasten, me
responde!!”
Nada, apenas silêncio.
Eu nadei em desespero cada vez maior, em
direção às profundezas, mas não havia fundo, ou
nenhuma forma de vida, nada. Era apenas água,
estrelas e o brilho quente e misterioso do chamado,
tão distante e luminoso quanto o próprio sol.
Mas no centro daquela bola de luz ofuscante
havia um pontinho preto que diminuía. Não, aquela
coisa não estava diminuindo. Estava se afastando.
“Sebasten!!” Eu gritei e disparei à toda
velocidade.

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O brilho do chamado aumentou mais e mais, até


quase queimar meu corpo e meus olhos. Era muito
quente, nunca ouvi de nenhum tritão tentar alcançá-
lo durante o despertar, mas um pressentimento
horrível sobrescreveu o meu bom senso. Eu nadei e
nadei até minha cauda arder, e então o pontinho
escuro tornou-se mais nítido.
Logo adiante de mim, o corpo do Sebasten
flutuava inerte nas profundezas calmas, lentamente
sendo atraído na direção da luz.
Eu disparei até ele e o abracei, mas meus braços
o atravessaram. Ele permanecia de olhos fechados e
lábios entreabertos, sendo carregado por uma força
invisível enquanto sua cauda soltava rastros de
escamas opacas.
Ele… ele estava morto.
“Seb! Não faz isso comigo, Sebasten!!” Eu
tentei abraçá-lo de novo, em puro desespero, mas
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seu corpo era tão volátil quanto a própria água.


“Por favor, acorda! Você prometeu ser o melhor
alfa do mundo, lembra? Eu vou ser o seu ômega, e
nossas almas se completarão, e nós viveremos
juntos para sempre! Predestinar comigo sempre foi
o seu sonho, não pode desistir agora!!”

Consequências aguardam aquele que erra.


Pois o chamado é sábio, e o chamado é justo.
O fruto que cai cedo da árvore,
Absorvido será pela terra.

Eu olhei ao redor, mas a voz parecia vir de


todos os lugares ao mesmo tempo.
“Sagrado chamado, eu imploro pela sua
misericórdia!” Eu gritei, tentando em vão impedir
Sebasten de alcançar o brilho cada vez mais
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próximo. “Sebasten é bondoso, e tão justo quanto o


chamado poderia desejar. Ele não merece tal
castigo. Eu suplico que o deixe viver!”
O silêncio me envolveu novamente, ainda mais
desesperador.
Então terminaria assim? Não podia ser verdade.
Seb nunca causou mal a uma formiga que fosse, o
único crime dele foi me amar, quando nenhum
filhote deveria nutrir tal sentimento. Ele existia pela
alegria alheia, e entretanto morreria pelo único
desejo egoísta que jamais teve? Que piada mais
cruel era aquela?
As últimas escamas soltaram de sua cauda e a
pele do rosto perdeu o viço. Até os cabelos
ondulantes e ruivos envelheciam vários anos por
segundo, clareando e quebrando, conforme o calor
tornava-se insuportável.
No que eu estava pensando, quando concordei
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com aquela estupidez? Sebasten era tão mais novo


e eu sabia disso, ele nunca me enganou. E
entretanto eu fingi acreditar, e não apenas para
fazê-lo feliz. Eu quis salvar a minha própria pele
para conseguir ajudar Ronan um dia. O único que
merecia morrer era eu e ninguém mais.

O chamado é o equilíbrio de todas as verdades.


A paz. O caos. A vida. A morte.
Para toda a luz, deve haver uma sombra de igual
intensidade.
Entretanto, você almeja a quebra deste equilíbrio.
É este o seu desejo, pequeno?

Meu coração quase escapou pela boca. O


desespero começava e me enlouquecer, ou o
chamado estava falando comigo? Falando
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diretamente comigo?
“Eu desejo que Sebasten sobreviva! Pago
qualquer preço que exigir de mim!” Eu gritei em
direção ao nada.

O pacto foi firmado.


Nova correnteza verterá pelos leitos áridos.
Mas para toda luz, há uma sombra igualmente
escura.
Em minhas lágrimas pelo filho que retorna,
Já não encontrarás a benção da minha cura.

As águas calmas turbilhoaram, dissolvendo e


destruindo tudo ao meu redor. Eu me joguei em
direção ao Sebasten, tentando salvá-lo de seja lá o
que estava acontecendo, mas então tudo começou a
escurecer.
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Eu gritei e ergui minha cabeça, logo


percebendo algo diferente naquela escuridão.
Minha cauda estava enroscada dentro de um espaço
apertado, e as cigarras cantavam ao longe. Os
cheiros de chá e de sangue se misturavam em uma
combinação nauseante.
Então… então eu voltei para a ilha? Eu toquei
meu rosto e senti minhas bandagens, então tateei o
ar até encontrar o par de ombros na minha frente.
“S… Sebasten?” Eu gaguejei, sentindo-o
gelado.
“Madhun?” Disse ele, meio zonzo. E então ele
se jogou em mim, me abraçando apertado. “Ah, eu
nem acredito! Nós despertamos juntos, mesmo! Eu
prometo ser o melhor alfa de Egarikena! Não, de
todo o universo! Eu…”
Sebasten desabou a chorar no meu ombro,
vencido pelas próprias emoções.
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Eu o abracei e também chorei em completo


desamparo, embora fosse por outro motivo. Um
motivo que Sebasten nem suspeitava.
“Sim, nós somos predestinados, agora.” Eu
disse, entre soluços quase incompreensíveis. O
alívio e a alegria eram tão sufocantes, que talvez eu
chorasse para sempre.
E ainda assim, apesar de toda a minha
felicidade, um novo vazio no fundo da minha alma
confirmava o mais terrível dos meus pesadelos.
A minha visão nunca iria retornar.

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Capítulo 64

A situação mudou de dramática para


constrangedora bem rápido.
O que era aquele calor dos infernos, no meio da
minha cauda? Eu tentei ignorar e agir naturalmente
mas, pelos gemidinhos do Sebasten, ele também
começava a sentir mudanças.
Convidar Sebasten para dividir o ofurô comigo
foi uma péssima, péssima ideia.
Para começar, nada daquilo era normal.
Geralmente o despertar era apenas uma prévia, uma
rápida apresentação antes da jornada de encontro ao
ômega, que podia durar entre alguns minutos e
vários dias. Nunca ouvi sobre um casal

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predestinando um diante do outro, então meu


tempo para compreender a situação era
absolutamente zero.
Papai Byron explicou que o despertar era uma
experiência intensa, mas nunca que eu imaginaria
nada perto daquela intensidade. Quer dizer,
descobrir que minha cegueira era permanente
deveria ser um momento chocante e terrível, e
durante cinco minutos realmente foi, mas os
choques elétricos no meu corpo tornavam esta
revelação um pequeno detalhe. Era ridículo. Eu
precisava me segurar para não agarrar o Sebasten e
cheirar seu pescoço, buscando o aroma mais
enlouquecedor e poderoso que eu já havia sentido.
E a cauda dele… cada menor movimento
esfregava as nossas escamas e me fazia tremer de
calor, se é que isso fazia sentido.
O que acontecia, agora? Depois que acalmou

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sua choradeira, Sebasten encolheu-se no canto


oposto do ofurô e eu não conseguia imaginar sua
expressão. Será que estava assustado ou sorrindo?
Teria ele lido a minha mente e descoberto a
maldição que sofri?
“Nossa…” Ele enfim disse, ofegante. “Quando
foi que você ficou tão gostoso, Madhun? Quer
dizer, você sempre foi lindo, mas… nossa…”
Quê? Ele paralisou deste jeito, porque estava
curtindo o meu corpo? Meu rosto aqueceu pela
vergonha, mas eu acabei rindo.
“Pode encostar em mim.” Eu pedi, afagando
seu rosto. “Tudo o que está vendo, agora pertence a
você.”
“Tenho medo dos meus pensamentos, das
coisas que meu corpo está me mandando fazer.”
Ele gaguejava a cada duas sílabas, se arrepiando
todo para o carinho em seu rosto. “Você é precioso
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demais, não quero te machucar e nem fazer


besteira.”
Meu rosto esquentou de novo. Como um alfa
podia ser tão fofo? Se Sebasten continuasse com
isso, eu precisaria guardá-lo em um potinho de
doces.
“Venha. Eu estou pedindo.”
Sebasten aproximou-se de mim, esfregando
nossas caudas a cada menor movimento. A
proximidade fazia cócegas de um jeito engraçado e
novo. Não era ruim, mas com certeza era
assustador.
Eu também começava a temer que meus
pensamentos me descontrolassem.
“Madhun… eu… você é…”
Eu deslizei as mãos pelo seu pescoço e
aproximei seu rosto do meu.

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Nossos lábios tocaram e foi como se um curto-


circuito explodisse dentro do meu sangue. O que
era para ser um beijinho tímido evoluiu no mesmo
instante para algo maior, ardente como um
incêndio. Sebasten e eu nos agarramos e
enroscamos nossas caudas, lutando com nossas
línguas, provando aquele novo gosto, explorando
com dedos e unhas a pele um do outro.
Um fervor que eu nunca antes senti inflamou
minha cauda, e minha cegueira nunca me frustrou
tanto. Eu queria ver Sebasten, analisar seu peitoral
com os olhos da mesma forma que fazia com os
dedos enquanto nossas caudas se enroscavam no
espaço apertado. Ele sempre foi tão firme assim?
Os músculos não eram tão salientes, mas cada um
dos quatro gominhos era sólido, e os sulcos nos
lados do quadril eram rígidos e bem definidos.
Tocá-lo era tão delicioso quanto beijá-lo. Sua pele

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lisa era o carinho perfeito na minha.


Sebasten gemia dentro da minha boca,
emanando felicidade, tesão e desejo. Ler os
sentimentos de outro tritão era estranho, mas
Sebasten era tão honesto comigo e consigo mesmo,
que não havia surpresa alguma. Era agradável e
excitante de sua própria maneira.
“S… Seb…” Eu afastei os lábios por um
segundo e ele foi direto para o meu pescoço,
beijando e mordiscando enquanto suas mãos fortes
exploravam as minhas costas. “Seb, eu não
aguento…”
Sebasten entendeu minha súplica como um
elogio, e de certa forma realmente era. Minha
cauda tremia no desespero em mudar de forma, e
meu corpo inflamava como uma panela de pressão
querendo transbordar. Cada toque e cada beijo
afloravam os meus nervos a níveis insuportáveis,

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me fazendo clamar por mais.


Esfregando sua barbatana na minha apenas para
me surtar, Sebasten enfim afastou a boca, ofegante
e tão trêmulo quanto eu.
“Não tem ninguém lá em casa, agora.” Disse
ele.
“Nem na minha.” Eu mesmo me aproximei de
novo e esfreguei nossos peitos, querendo muito,
muito mais. “Não aguento esperar. Estou
enlouquecendo, Seb.”
Sebasten deu uma risadinha fofa e satisfeita e
então saiu da água. Ele segurou a minha mão.
“Venha, meu lindo ômega.”
Aquilo era loucura. Tanta desgraça acontecendo
na minha vida e eu ia mesmo me entregar daquele
jeito? O cheiro do Sebasten não me deixava pensar
em qualquer outra alternativa, e assim que eu deixei

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a água, uma umidade quente nas minhas nádegas


foi o terremoto final nas minhas prioridades
bagunçadas.
Sebasten era sincero demais sobre os próprios
sentimentos. Talvez eu pudesse aprender com ele e
apenas ceder aos caprichos do meu corpo.
“Você já sabe chegar no meu quarto.” Eu
segurei os ombros do Sebasten e permiti que ele me
pegasse no colo. “Leve-me daqui, meu alfa.”
Sebasten me levantou sem o menor esforço e
me carregou para dentro da casa, rumo ao tão
temido e aguardado ritual de consumação.

****

Será que tudo bem eu morrer de vergonha ali


mesmo, jogado na minha própria cama?

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Meus pais me prepararam para este dia, em


duas conversas muito diferentes mas igualmente
constrangedoras. Eu queria, e ao mesmo tempo
enjoava de tanto nervosismo.
O que eu deveria fazer? Será que eu empinava a
bunda e esperava vir, como qualquer ômega de boa
educação, ou tentava uma abordagem com mais
iniciativa? Eu não fazia ideia, e pelos chiliques do
Sebasten, muito menos ele.
Talvez um meio-termo fosse o mais apropriado.
“Ei, Seb.” Eu sentei nos meus calcanhares e,
com os meus dedos trêmulos, soltei o laço da
minha canga. O tecido caiu para os lados e expôs a
minha frente. “Você gosta do que vê?”
Sebasten soltou um gemido surpreso, em algum
lugar do meu quarto. Ele não parecia estar na
minha cama, e eu começava a suspeitar que estava
em algum cantinho encolhido em posição fetal.
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“C-c-c-claro que eu gosto! Tudo… t-tudo em


você é lindo e p-p-perfeito, Madhun. O seu é bem
grande para um ômega.” Gaguejou ele.
Sério? Eu toquei entre as minhas pernas e só
então senti algo duro, o que não deveria me
surpreender, mas eu dei um gritinho. Cada toque
era um choque elétrico na minha coluna, e a ponta
lisa era especialmente sensível e úmida.
Provavelmente foi apenas um dos elogios
gratuitos do Sebasten, óbvio que ele não devia
conhecer o tamanho de outros ômegas, mas ainda
assim… parecia ser grande. E se o mastro dos alfas
era muito maior, qual seria o tamanho do dele?
“É…ahn… um pouco maior.” Disse ele. “Você
pode descobrir, se quiser.”
Ai, caralho, ele estava lendo meus
pensamentos? Não era justo! Eu era o mais velho
daquele casal, e me preparei para esta noite durante
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muito, muito tempo! Sebasten não podia descobrir


o quanto eu surtava por dentro. Ele mesmo parecia
prestes a sair correndo, eu precisava manter a
situação dentro dos nossos limites.
Tentando conter meu nervosismo, eu foquei no
formigamento da minha pele e no calor pulsante e
embaraçoso entre as minhas nádegas. Eu devia
estar fazendo uma poça de lubrificante nos meus
lençóis, e se meu corpo implorava tanto, não podia
ser tão ruim.
Eu estendi a mão e esperei que Sebasten
entendesse o recado.
Sebasten aproximou-se e colocou alguma coisa
na palma da minha mão. Era quente, roliço e
pulsante. Eu fechei meus dedos ao redor.
Ai, por tudo o que era sagrado, eu esperava
receber a mão dele, e não outra coisa!! O que era o
tamanho daquele negócio? Só podia ser brincadeira
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do Sebasten, e ele colocou uma das garrafas na


minha mão. Exceto que garrafas não tinham veias
pulsantes e quentes. A ponta dos meus dedos nem
se encontravam do outro lado!
“Adeus, minhas pregas, foi um prazer ter
conhecido vocês.” Eu pensei em voz alta,
acidentalmente.
“É grande demais? Desculpa por isso, eu…
ah…” Sebasten estremeceu. “Seus dedos são
macios.”
Eu sorri, começando a me divertir com aquilo.
Curioso pelas reações do Sebasten eu comecei a
mover a mão ao longo do mastro, indo e vindo num
ritmo lento.
Seb apoiou as mãos nos meus ombros e gemeu,
me deixando fazer o que eu bem quisesse. E eu
descobri que queria continuar.
“Está mais molhado que a minha bunda.” Eu
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provoquei, sorrindo travesso. “Você deveria se


orgulhar do tamanho, também.”
“Vou me orgulhar quando estiver dentro de
você.” Ele disse, ofegante. Como alguém conseguia
falar coisas assim com tanta franqueza?? “Você…
você também pode… ali embaixo…”
Fervendo por dentro e por fora, eu demorei a
entender o que Sebasten me dizia, e então toquei de
novo meu próprio mastro, que agora mais parecia
um lápis, comparado com o dele.
Os impulsos elétricos voltaram ainda mais
fortes e eu me percebi à beira de uma explosão.
Abandonando qualquer vergonha eu me masturbei
no ritmo que masturbava o Sebasten, inclinando o
corpo para que ele pudesse me assistir.
“Ah, perfeito…” Gemeu Sebasten, tremendo e
contraindo em espasmos intensos. Será que ele
estava me assistindo? Imaginar me excitava e me
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fazia latejar contra os meus próprios dedos.


Algo iria acontecer, e nossa, eu já previa algo
inacreditável.
“Madhun… ah… outro lado…” Sebasten
fincou as unhas nos meus ombros, louco de tanto
prazer.
“Outro lado o quê?” Eu perguntei, aumentando
o ritmo e também o nosso êxtase compartilhado.
E então tudo explodiu, como fogos de artifício.
Todo o calor do meu corpo inflamou como uma
explosão solar e eu gritei de prazer junto com o
Sebasten. O clímax dele refletia no meu,
duplicando uma sensação tão extrema quanto
deliciosa.
Um creme quente atingiu o meu rosto e pingou
pelo meu queixo, e nem isso estragou o meu
deleite. Ok, incomodou um pouquinho, mas eu
continuei movendo as mãos até meus bíceps
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doerem e o prazer se esgotar por completo.


Eu soltei nossos mastros e ofeguei, tentando
recuperar minha sanidade mental.
Palavras nunca descreveriam o que eu senti,
mas eu já me perguntava como sobrevivi sem
aquilo por tanto tempo. Aqueles novos sentimentos
já se tornavam parte do que eu era e do que eu mais
precisava. Exceto pela chuva de gozo na minha
cara, é claro.
“Desculpa, desculpa! Ah, peço mil perdões!”
Sebasten esfregou um pano na minha testa. “Eu
pedi que virasse para o outro lado, mas… ah,
desculpa.”
Eu sorri e deixei que Sebasten me limpasse.
Semente de alfa cheirava gostoso de um jeito meio
assustador, eu precisava me conter para não lamber,
e apenas o cheiro me fazia enrijecer de novo.
“Foi um bom aquecimento, meu predestinado.”
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Eu disse, em tom de brincadeira. “Espero não tê-lo


gasto completamente.”
“Só estamos começando.” Disse ele, bem mais
confiante que o normal. “Não posso te deixar ter
todo o trabalho.”
Minhas nádegas contraíram só de eu ouvir suas
palavras. Os aperitivos foram recolhidos, chegava a
hora do prato principal.
Eu deitei meus ombros no colchão e empinei
alto a minha bunda, na postura perfeita de
submissão. Chega de inventar, tradições existiam
por um motivo e eu queria ser um típico ômega a
serviço de seu alfa.
Depois de levar um jato de gala na cara eu
imaginava que nada mais me envergonharia, mas
então Sebasten agarrou as minhas nádegas e o
pânico voltou com toda a força.
Isto não podia acontecer. Não antes de eu
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contar a verdade sobre a minha nova condição.


“Sebasten, calma, eu… aaaah…”
Algo alargou a minha entrada, deslizando para
dentro e depois voltando. Não doía o bastante para
ser o mastro gigante do Sebasten. Ele estava
brincando com o dedo.
Eu mordi a fronha e comecei a me tocar de
novo, enlouquecido de tanto ardor.
“Ah, continua. Vou morrer se não continuar.”
Eu implorei, sem um pingo de vexame. Como algo
podia ser tão bom??
“É apertadinho…” Disse ele, enquanto ia e
vinha com o dedo. Pelo ângulo ele estava me
olhando, então abri bem as pernas e permiti que
visse tudo.
A explosão de êxtase voltou rápido, me fazendo
grunhir no travesseiro enquanto me masturbava. Eu

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deveria ser totalmente passivo, mas era impossível


resistir. Que fiasco de ômega eu estava sendo.
“É bom assim, também?” Sebasten colocou um
segundo dedo e pressionou dentro de mim,
apertando um ponto esquisito que me fez urrar de
prazer. “Goza de novo, Madhun. Você é lindo
quando sente prazer.”
Ahh, aquilo era embaraçoso demais. O meu
êxtase e o do Sebasten se misturavam o tempo todo
e ele apreciava muito cada uma das minhas reações,
lendo os meus pensamentos para encontrar meu
ritmo favorito.
“Seeeb… não podemos.” Minha voz mais
parecia um miado de gato. Por acidente eu gozei de
novo, e desta vez nem precisei me tocar.
Tão gostoso e perfeito. Eu queria sentir aquilo
para sempre, mas em certo momento Sebasten tirou
os dedos e me deixou vazio e carente por mais.
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Só que aquele mais nunca chegou. Estranhando


o silêncio eu virei o rosto para trás, arqueando a
testa.
“Algum problema?” Eu perguntei.
“N-não! Tudo certo! Tudo super ótimo!” Disse
Sebasten, novamente elétrico e errático. “Eu sou o
seu alfa, não sou? Posso fazer qualquer coisa, tudo
o que desejar!”
Eu sentei na cama, o que causou mais algumas
pontadas quentes na minha bundinha aflorada. Se
havia um momento para a verdade, era naquele
instante.
“Escuta, Sebasten…”
“Desculpa, eu não estou pronto.” Disse ele,
com a voz chorosa. “Eu sei que eu deveria, e eu
quero muito, de verdade… mas e se eu te
machucar? Eu tenho medo.”

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Eu me surpreendi completamente. E Sebasten


entendeu mal o meu espanto, porque ele começou a
chorar.
“Seb, não tem problema nenhum.” Eu disse.
“Claro que tem! Eu te persegui por um tempão,
e agora que tenho o ômega dos meus sonhos não
tenho coragem de fazer a minha maior obrigação!”
Eu suspirei, comovido pela angústia intensa que
emanava de sua alma. No prazer enlouquecedor da
nossa primeira vez, acabei me esquecendo que
Sebasten era um adolescente.
“Sente aqui, Seb.” Eu dei um tapinha no
colchão ao meu lado e ele me obedeceu. Eu deslizei
minha mão pelo seu rosto molhado. “A função de
um alfa é agradar o seu ômega, e nisto você é
absolutamente perfeito. Vamos esperar.”
“Você não se importa, mesmo? Dizem que os
ômegas sofrem demais com a espera. Eu não quero
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que você sofra, Madhun, e eu quero muito


reproduzir com você, é só que…”
“Seb, a minha cegueira é permanente.” Eu disse
a ele.
Sebasten emudeceu. Pelos toques em seu rosto
eu o senti paralisado, boquiaberto, e por um
instante eu tremi considerando as consequências. E
se minha deficiência mudasse a opinião dele sobre
mim? E se mudasse tudo?
“Mas a tia Babelyn disse seus olhos iriam
melhorar. Você está progredindo, Madhun, em
alguns dias vai enxergar novamente.”
“A situação mudou, Seb.” Eu suspirei,
deprimido. “Você é novo e cheio de sonhos
bonitos, se tornará um grande florista, um dia. Não
quero que desperdice sua vida cuidando sozinho de
um bebê e de um inválido.”
“Mas… mas…” Sebasten segurou minha mão
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em seu rosto, me transmitindo o seu calor. “O que


tem a ver uma coisa com a outra? Madhun, você é
o ômega mais forte e determinado que eu conheço,
um sentido a menos não o impedirá de alcançar as
estrelas. E mesmo que precise de ajuda eu sempre
estarei com você, mesmo que... Droga, você não
merece isso!”
Nós nos abraçamos e eu chorei no ombro do
Sebasten, soltando toda a tristeza que antes não
queria sair. Eu ainda teria muito a chorar e sabia
disso, mas o apoio do Sebasten tornava suportável
aquela imensa dor.
“Eu também vou esperar que você esteja
pronto, Madhun.” Sebasten acariciou minhas
costas, afetuoso e comovido. “Você merece um
núcleo tão iluminado quanto o seu coração.”

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Capítulo 65

Tio Jensen colocou a travessa na mesa e eu


sorri para o maravilhoso aroma: Espadarte cozido
no molho de ostras, além de outros ingredientes que
eu mal podia esperar para experimentar.
“Nossa, papai, outro prato incrível.” Disse
Sebasten, na cadeira ao meu lado. “Se eu soubesse
que existia um cozinheiro em você, teria
predestinado com o Madhun mais cedo.”
“Ei, ei, para começar eu sempre fui um bom
cozinheiro!” Resmungou o tio Jensen. “E esta piada
não tem graça. Ainda estou bravo sobre o coral-de-
oráculo. Era um presente importante para o Fran, e
você teve muita sorte em sobreviver. Um filho
desperto aos dezesseis anos… francamente.”
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Eu me mantive quietinho e esperei que o tio


Jensen servisse o senhor Jon, e então Sebasten
serviria o meu próprio prato. Mais uma vez o tio
Fran almoçaria nos quartéis.
Quatro dias haviam se passado desde o meu
despertar, e eu ainda não havia contado ao Sebasten
sobre os motivos da minha cegueira permanente. E
pelo visto ele não podia ler esta parte da minha
memória porque ele investigava meus pensamentos
o tempo todo, em busca dos meus menores
incômodos. Talvez fosse melhor que ele nunca
soubesse.
A colher de servir tilintou no meu prato e eu
lambi os lábios, deliciado com o aroma quente
ainda mais próximo. Eu procurei meus talheres
para começar a comer e então meu pulso bateu em
alguma coisa.
Tio Jensen deu um gritinho e então houve um

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estouro de vidro no chão ao meu lado.


“Ah, desculpem! Peço mil perdões!” Eu me
abaixei, muito constrangido, e Sebasten segurou
meu braço.
“Foi só um copo, Madhun. Quer que eu limpe,
papai?”
“Tudo bem, relaxem. Acidentes acontecem.”
Tio Jensen recolhia os caquinhos com alguma
coisa.
Meu peito apertou. Era o oitavo objeto que eu
quebrava desde que eu me mudara para a casa do
Sebasten. Pelo menos desta vez o copo estava
vazio, mas ainda assim…
“Eu posso ajudar de alguma forma.” Eu tentei
me soltar do Sebasten e alcançar o local do estouro,
mas ele apenas me segurou com mais força.
“Deixa pra lá, Madhun, vai acabar se cortando.”

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Disse o Sebasten.
“Meu filho tem razão e não precisa se
desculpar, já pedi ao Fran que comprasse mais
copos na volta do serviço.” Tio Jensen foi até a
cozinha jogar os cacos no lixo e depois voltou.
“Precisa de ajuda para cortar sua comida? Sebasten,
ajude ele, por favor.”
“Não preciso de nenhuma ajuda!!” Eu gritei,
batendo os punhos na mesa.
Todo mundo se calou em um silêncio mortal.
“Prazer, meu nome é Jon.” Disse o senhor Jon.
Eu suspirei e me levantei da mesa.
“Perdão. Eu peço mil perdões a todos.”

<<Meu amor, se você for embora o papai vai


chorar.>>

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Droga, eu realmente queria me trancar no


quarto e chorar até o fim da tarde, mas não queria
ser infantil. Não seria justo, ainda mais quando o
antigo núcleo do Sebasten me acolheu com tanta
compreensão.
Eu me desculpei internamente com o Sebasten e
sentei novamente.
“Poderia cortar para mim, Sebasten?” Eu pedi,
resignado.
“Claro, meu amor. Vou servi-lo da conserva de
berinjelas, também. Eu não posso provar, mas é um
grande favorito do papai Fran.”
Os momentos seguintes foram uma sequência
de metais cutucando louça, rangidos de madeira, o
som distante das gaivotas… Certamente não havia
nada importante acontecendo, apenas Sebasten me
ajudando e os outros comendo, ainda assim meu
coração queimava. Era como existir em um mundo
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separado.
“Prontinho.” Sebasten colocou o garfo na
minha mão. Pelo tom de voz ele estava sorrindo,
mas sua alma era pura preocupação. Ele sentia a
minha tristeza e nada podia fazer além de cortar
meu maldito peixe.
Eu provei, e o sabor conseguiu desmanchar boa
parte da minha angústia. A carne suave
desmanchava na boca, e o molho picante e cremoso
complementava a pele crocante de forma
espetacular.
“Mais um prato fantástico, tio Jensen. Obrigado
por todo o seu esforço.” Eu abocanhei mais um
pedaço, e também os acompanhamentos. Nem os
melhores bistrôs de Amsterdã me agradariam de tal
forma.
“Seus elogios me deixam bobo, Madhun. Vou
lhe passar esta receita, também.”
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“Eu agradeço muitíssimo, mas não será de


muita utilidade, agora.” Eu forcei muito o meu
sorriso, enquanto minha vontade de chorar apenas
crescia.
“Como não? Um garoto inteligente como você
passa dançando por qualquer obstáculo. Este
plecativo que o Shane colocou no seu celular
parece bem útil.”
“Aplicativo, papai.” Corrigiu Sebasten. “O
Madhun ainda está aprendendo a usar, mas pode
me passar a receita por escrito, eu vou copiar para o
fichário digital.”
“Nunca vou entender essas coisas de humano.
Você mesmo está aprendendo bem rápido, filhote.”
“Quero aprender tudo o que for relevante ao
meu predestinado.” Disse Sebasten, todo animado e
orgulhoso.
Sebasten e seu pai continuaram conversando e
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eu continuei concentrado no meu peixe, comendo


os cubinhos tão pequenos que pareciam cortados
para uma criança.
Após o almoço, Sebasten ofereceu-se para lavar
a louça enquanto eu aguardava no sofá, e depois
subimos de mãos dadas por dois andares, até o seu
quarto no sótão.
Eu nunca tive a oportunidade de ver o quarto do
Sebasten, mas o lugar era enorme, era um único
cômodo ocupando o andar inteiro exceto pelo
banheiro diante da escada. Devia haver todo tipo de
decoração e mobília antes da minha mudança, mas
Sebasten retirou a maior parte depois que eu quase
quebrei o joelho em uma mesinha.
Pelo menos com um espaço tão amplo eu não
precisava me preocupar em quebrar nada, e os
diferentes tapetes ajudavam a me situar com
relação às escadas, o banheiro e a cama. Pela janela

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aberta o vento trazia o aroma gostoso da floreira, e


também o frescor da tarde.
Mesmo em tão pouco tempo, o quarto do
Sebasten já havia se tornado o meu porto seguro.
Assim que eu senti a cama eu me joguei nos
travesseiros e tive o alívio de poder chorar.
Sebasten sentou ao meu lado e afagou as
minhas costas.
“Agradeço por ter considerado os sentimentos
do papai. Você nem imagina a alegria dele quando
conta aos vizinhos sobre a nossa predestinação. Ele
acha que tenho sorte demais, e eu tenho mesmo.”
“Por quê? Por predestinar com um inútil?” Eu
tentei esfregar os olhos por instinto, mas claro que
as malditas bandagens me atrapalharam. “Desculpa
pela minha grosseria durante o almoço.”
“Eu imagino que seja difícil, meu amor. Você
está fazendo o seu melhor.” Sebasten silenciou,
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pensativo. “O que acha de visitar seus pais? Isto vai


distraí-lo.”
Aquela ideia foi tão boba que eu dei risada.
Depois que a doutora Babelyn confirmou a minha
cegueira permanente, tudo era motivo de conflito e
desespero. Eu não podia ver, mas podia ouvir, e
odiava ser a causa de tanto sofrimento. Foi o
principal motivo de eu escolher me mudar com o
Sebasten, e mesmo esta decisão ainda causava
chiliques nos meus pais.
Ironicamente, desde que eu fugi de toda aquela
choradeira, quem passava os dias chorando era eu.
Sebasten deitou por trás de mim nos cobertores
macios. Ele beijou atrás do meu pescoço e
percorreu as mãos na minha barriga, descendo até
os limites da minha canga.
“Também podemos ficar em casa e eu te
distraio de outras formas.” Ele sussurrou no meu
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ouvido.
Eu ri de novo, sentindo arrepios quentes e uma
súbita umidade lá atrás. Sebasten aprendia rápido
sobre muitas coisas, incluindo como me provocar.
“Por que não os dois? Vou precisar relaxar
muito para não enlouquecer no meu antigo lar.” Eu
virei o corpo de frente para ele e sorri com o canto
da boca.
“Tudo o que desejar, meu amor.” Seb beijou a
minha testa e foi descendo beijos no meu nariz até
chegar nos lábios. “Vou te relaxar tanto que você
vai dormir.”
“Não precisa exagerar!” Eu dei risada, logo
notando o seu tom de brincadeira.
Sebasten ajoelhou ao meu lado e continuou
brincando, passeando suas mãos pela minha barriga
e o meu peito com tanto cuidado e admiração que
eu me senti uma estátua sagrada, ou coisa do tipo.
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Não querendo cortar o barato dele, eu deitei a


cabeça nas minhas mãos e me concentrei nas
sensações, ansioso em descobrir o que me
aguardava.
Sebasten subiu suas mãos pelo meu ventre, a
princípio sem destino certo. Sua carícia era ao
mesmo tempo agradável e revoltante, porque meu
corpo suplicava pelo que ele não queria me
oferecer, por enquanto. Meu lado racional
apreciava aquela intimidade não invasiva, mas dava
uma vontadezinha de implorar sempre que a
saliência em sua virilha me encostava por acaso.
Os dedos curiosos subiram pelas minhas
costelas até o meu peito, e então Sebasten
pressionou os polegares nos meus mamilos, me
fazendo gemer.
Não poder enxergar era assustador e cruel, mas
durante o sexo havia uma vantagem, por assim

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dizer. Cada toque era uma surpresa, eu nunca sabia


para onde Sebasten estava olhando, ou com quais
intenções, então era impossível sentir vergonha.
Claro que eu preferia poder admirar meu
predestinado, conhecer seu corpo com os olhos tão
bem quanto já conhecia com os outros sentidos,
mas me entregar aos seus gestos imprevisíveis me
excitava profundamente.
Quando eu já me contorcia de prazer, Sebasten
largou meus mamilos e logo depois voltou para
eles, desta vez com a língua. Ele chupou meu
biquinho endurecido enquanto suas mãos desciam.
Ele quase descansava o peso do corpo em cima de
mim, me provocando com as esfregadas de seus
quase-gominhos na minha barriga lisa.
“Aaaaah…” Eu agarrei os cabelos dele,
sentindo o sangue arder. Cada lambida do Sebasten
eletrizava meus nervos, causando disparos elétricos

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até o meio das minhas pernas. Meu mastro


endurecia tanto que cutucava o do Sebasten, às
vezes, e ele curtia isso ainda mais do que eu.
Sem parar de chupar meus bicos, Sebasten
soltou a minha canga e a dele, então grudou nossos
corpos, encaixando-se entre as minhas pernas
abertas.
Eu não sabia até que ponto ele chegaria com
isso, mas lacei os calcanhares em torno de sua
cintura, como uma óbvia carta branca para que
fizesse qualquer coisa de mim. Até mesmo me
inseminar parecia aceitável naquele momento, eu
só queria que o prazer nunca acabasse.
“Como você consegue ser tão lindo?” Ele
sussurrou em seu tom de voz mais excitado.
“Vou gozar, Seb.” Eu miei, o abraçando com
força.
Sebasten também me envolveu com um dos
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braços, grudando nossos corpos e selando nossos


lábios. Ele meteu a língua na minha boca e beijou
com vontade enquanto descia o outro braço,
passando-o pela estreita fresta entre as nossas
virilhas.
E enquanto a gente se beijava e o meu corpo
pegava fogo, Seb agarrou meu mastro e o dele e
nos masturbou juntos.
Eu quase pirei. Não conseguia nem coordenar
meus beijos, chupando e lambendo a boca do
Sebasten enquanto o tesão me devorava. Eu gozei
forte contra a sua mão, e com o calor da minha
semente ele também derramou em mim. A mistura
dos nossos êxtases talvez tivesse o melhor cheiro
do mundo.
“Você gostou?” Perguntou ele.
“O que você acha?” Eu devolvi, completamente
derrotado e ofegante.
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Sebasten riu satisfeito e esfregou a mão suja na


cama.
Pobre tio Jensen, desde a minha mudança ele
devia lavar uns três lençóis por dia.
Eu afaguei o cabelo macio do meu
predestinado. Só faltava ele ronronar, de tão
profundamente satisfeito.
“Ei Seb, eu preciso tomar banho?”
Sebasten levantou super preguiçoso. A ideia era
que eu relaxasse até dormir, e não ele!
“Acho que não… posso preparar um banho
quentinho pra gente, mesmo assim.”
“É uma proposta tentadora, mas encontre
roupas limpas e vamos sair. Não posso evitar meus
pais para sempre.”

****
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Meus pais me receberam com um enorme


abraço coletivo.
“Meu filhote, que saudades. Temi que nunca
retornasse aos seus velhos progenitores.” Papai
Byron quase chorava de alegria.
“Eu recém me mudei, papai Byron, por favor
não seja dramático na frente do Sebasten.” Eu pedi,
encabulado.
“Ah, cara, eu ainda não entendo coisa
nenhuma.” Papai Shane finalmente me soltou e
segurou minha mão, conduzindo para dentro da
sala. “Primeiro o Hian com o Maikon, e agora
vocês dois… Qual é a dos tritões namorarem
primos?”
“Não estamos namorando, papai Shane, somos
predestinados. Nosso vínculo de sangue é
irrelevante diante dos planos do chamado.” Eu
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respondi educado, tentando me localizar. Pela


textura do piso aquela era a sala de estar. “Agora
que nos unimos, Sebasten e eu dividimos uma
única alma e também conexões telepáticas e
sentimentais.”
“Saquei, eu acho…” Papai Shane me ajudou a
sentar no sofá, como se eu tivesse desaprendido a
dobrar os joelhos. Eu ignorei o exagero e me
acomodei. “Mas é esquisito pra caralho. Em um dia
tu nem liga pra outros caras, aí de repente foge de
malas feitas pra casa de algum boy. Nada contra
você, Sebasten, tu é muito foda, mas cara, tá tudo
muito rápido.”
“Agradeço sua preocupação com meu
predestinado, senhor Shane, lhe garanto que
Madhun viverá a mais feliz das existências em
minha companhia.” Disse Sebasten.
“Isto é o mínimo que espero, considerando a

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loucura a que você submeteu meu filho. Chá de


oráculo? Vocês dois são loucos!” Papai Byron não
soava nem um pouco contente. “O que importa é
que sobreviveram, eu suponho…”
Papai Shane colocou algo quente nas minhas
mãos. Era café meio morno, em uma xícara de
plástico.
“Sim, Byron, eles sobreviveram, não
precisamos falar disso o tempo todo.” Papai Shane
sentou ao meu lado. “Madhun está passando por
um momento difícil, é normal que faça umas
paradas loucas. Quando voltará a viver conosco,
filhote?”
“Pai, você ouviu qualquer coisa que eu disse?
Eu predestinei, sou um adulto e agora pertenço ao
Sebasten. Se ele me mandar viver num buraco de
esgoto, é lá que irei viver.”
“Eu… eu juro aos senhores que nunca faria
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isso. A escolha de território foi uma decisão


conjunta.” Sebasten começou a tremer. Meus pais
deviam estar fuzilando ele com os olhos.
“Madhun, meu filhote, eu compreendo bem os
sacrifícios de um ômega após o despertar, mas o
Sebasten deve concordar conosco que o seu caso é
especial. Meu irmão Jensen pode atender bem às
suas necessidades, já está acostumado a cuidar do
sogro, mas nada substitui a atenção dos seus pais.
Alguém nas suas condições…”
“Que condições, pai?? Só porque fiquei cego?
Eu não preciso ser cuidado!” Eu gritei, agitando as
mãos num gesto nervoso.
Um pouco do café escorreu pelos meus dedos e
papai Shane deu um grito, surgindo com um pano
na velocidade da luz. O café nem estava quente a
ponto de me machucar.
Eu realmente não deveria ter visitado.
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“Olha só… eu… hum, como explicar…”


Sebasten gaguejou, super intimidado. “É uma
situação nova pra todo mundo. O Madhun não é o
único que precisa se adaptar.”
Eu sorri, positivamente surpreso, e estendi a
mão para que Sebasten entrelaçasse nossos dedos.
“Papai Shane, papai Byron, peço perdão por me
mudar tão rápido, mas não suporto toda a tristeza
que eu causei. Primeiro o sumiço do Ronan, depois
os meus olhos… eu quero superar do meu próprio
jeito.”
“Não mencione o nome daquele...” Papai Byron
respirou fundo. “Peço mil perdões, tentarei exercer
o máximo da minha paciência. Você já foi
devidamente inseminado?”
“Byron, que indelicado!” Gritou papai Shane.
“Sebasten e eu decidimos não conceber.” Eu
sorri nervoso.
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“Onde foi que eu errei na sua educação??”


Byron gritou.
“Byron, mas o que raios??” Devolveu Shane.
O resto do café foi apenas meus pais discutindo
um com o outro e Sebasten tentando ser a voz da
razão e sendo totalmente ignorado. Era ridículo.
“Sebasten, estamos indo embora.” Eu me
levantei e marchei em direção à porta.
Óbvio que minha indignação foi a última coisa
que qualquer um percebeu. A briga terminou, sim,
mas apenas para que todo mundo me amparasse
antes de eu acertar a parede.
“Isso tudo é culpa sua, Byron.” Disse o papai
Shane.
“Minha culpa? Se você aceitasse a
predestinação do seu filho, ele ainda viveria
conosco.”

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“E quando eu o proibi qualquer coisa? Você


quem não aceita nossos sentimentos pelo Ronan!
Quem viveria em uma casa onde um pai rejeita o
próprio filho?”
“Ele matou os meus pais e quase matou o meu
verdadeiro filhote, não me venha com essa
conversa! Maldito o dia em que você me
convenceu a adotá-lo!”
“Eu te convenci? Você mesmo adotou ele, eu
fui apenas o idiota que te seguiu, acreditando que
você tinha um coração!”
“Quem não tem coração é você, querendo
reencontrar aquele assassino!”
Meu coração apertou e eu me encolhi contra a
parede, enquanto todos continuavam me segurando.
Nunca foi tão difícil conter o meu choro. Aqueles
não eram os meus pais, o meu núcleo sempre se
amou, sempre enfrentou junto todas as dificuldades
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e desafios. E então, por culpa minha, tudo


desmoronou.
Se pelo menos eu tivesse verificado o recheio
daquela lula, tudo teria sido tão diferente.
“PAREM COM ESSA BAIXARIA!!”
Eu travei no lugar e meus pais me soltaram
como se tivessem tomado um choque. O grito veio
do Sebasten? Ele sabia gritar?
“Vocês dois não tem vergonha? Ficam
culpando um ao outro, quando nada disso é culpa
de ninguém. O Madhun precisa de vocês não
porque ele é cego, mas sim porque ele tem
sentimentos, e porque ele ama vocês.”
Meus pais ficaram quietos. Em algum momento
um deles começou a chorar e foi embora. Pelos
passos pesados devia ser o papai Byron.
Eu não queria que ninguém chorasse, também.

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“Desculpa, filho. As coisas desabaram rápido


pra caralho, e nós não…” Papai Shane bufou, muito
triste e nervoso. “Seu namor… ahm… predestinado
tem razão, todos nós precisamos nos adaptar. É só
que… desistir é tão difícil…”
“Eu gosto que não tenha desistido do Ronan,
papai Shane. Espero que consigamos reencontrá-lo,
um dia.” Eu sorri na direção de sua voz.
“É difícil pra caralho… tritões mentem até
sobre o café da manhã, como descobrirei
informações de segurança máxima? E tá todo
mundo puto igual ao Byron. Nenhum tritão me
ajudaria.”
“Você vai conseguir, pai. E vocês dois ainda se
entenderão de verdade. Por favor sejam
compreensivos um com o outro.”
“Ah, cara, lá vem você se preocupando mais
com os outros do que consigo mesmo… de quem
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você puxou essa mania besta?”


“De quem será?” Eu dei uma risadinha, o
provocando. “Eu ficarei bem, papai Shane. Todos
nós ficaremos bem, em algum momento.”
Papai Shane ficou quieto. Acho que ele
concordou com a cabeça e então percebeu a
besteira em fazer isso, porque disse um sim meio
atrasado.
Sebasten me abraçou pelos ombros e me deu
um beijinho. Ele enfim emanava uma energia de
contentamento. Ele estava feliz por mim, aquele
bobo.
“Ah, antes de vocês irem…” Papai Shane se
apressou para os fundos da casa e voltou.
“Encomendei isso escondido do Byron, não sei
como ele reagiria… por favor não se magoe, não
precisa usar, se não quiser.”
Ele colocou uma caixa de papelão comprida nas
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minhas mãos.
Eu abri a caixa e puxei um bastão frio. Era de
metal com juntas de plástico. Eu mexi naquela
coisa e estiquei como um telescópio até ficar da
altura da minha cintura.
Um bastão pra cegos? Eu quase chorei de novo,
mas me contive com todas as forças ou o papai
Shane entenderia errado. Da mesma forma que ele
precisava aprender que eu não era um inválido, eu
também precisava aceitar minhas novas limitações.
“Eu agradeço, papai Shane.” Eu disse, sorrindo
apesar da tristeza.
“Não é apenas isso.” Papai Shane pausou,
pensativo. “Entrei em contato com uma escola em
Dublin, e… foi mal, filho, sei lá se é muito cedo,
mas… eles ensinam a usar essa coisa, e ler braile, e
essas paradas todas. Se escolher ir, conseguirei o
melhor apartamento para vocês, pertinho do mar.”
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Eu assenti com a cabeça, segurando firme na


mão do Sebasten.
“Pensaremos a respeito. Sou muito grato pela
ajuda, papai Shane.”
E batucando o meu bastão pela areia da praia,
eu contornei a ilha com o meu predestinado de
volta ao nosso lar.

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Capítulo 66

Eu não esperava uma conversa pacífica com os


meus pais. Eles recém começavam a se entender
quando a notícia da minha cegueira os atingiu, e
agora ambos precisavam reencontrar aquilo que
existia quando se aproximaram pela primeira vez.
Eu não duvidava que eles se acertariam, afinal
papai Byron conseguiu amar o papai Shane depois
do papai Isha falecer. Para os tritões, encontrar um
segundo amor era um feito tão inacreditável que
umas briguinhas de casal eram apenas um deslize
em comparação.
O que eu não esperava era voltar para casa me
sentindo feliz e orgulhoso. Meu predestinado me
defendeu em um momento tão complicado. Era
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uma sensação tão gostosa que eu fiquei repassando


a memória nos meus pensamentos. Sebasten era um
amorzinho.
“Você está começando a se apaixonar por
mim.” Disse Sebasten.
Eu precisei me apoiar no bastão, ou me
espatifaria na areia.
“Quê? Digo, óbvio que sim. Você é meu
predestinado, claro que deve existir amor entre
nós.”
“Predestinação nem sempre significa amor,
Madhun, você sabe disso.” Sebasten quase ria
enquanto falava, completamente feliz. “Você não
escondia seus sentimentos pelo Ronan, e agora que
posso ler seus sentimentos, você esconde ainda
menos. Mas eu também sinto seus sentimentos se
transformando. Ahh, eu sou o tritão mais feliz dos
mares!”
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“Não seja uma criança!” Eu ri, encabulado e


surpreso.
Meus sentimentos pelo Ronan e pelo
Sebasten… será mesmo que o meu coração estava
mudando? Se eu pudesse amar o Sebasten e me
livrar desta culpa, nada me faria mais feliz. Mas
como ficaria o Ronan?
“Seb… acha que o Ronan voltará um dia?” Eu
perguntei hesitante, temendo enciumá-lo.
“Se voltar, será morto. Papai Fran cercou a ilha
com o que restou do exército, e apesar do Rei Yun
ter ordenado que ninguém o machucasse, o
ressentimento de muitos soldados é imenso. Talvez
seja seguro daqui a muito, muito tempo, mas ele
seria burro em voltar agora.”
“Espero que ele tenha encontrado o que
procurava.” Eu suspirei.
“Como pode desejar isso, depois que aquele
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cara…” Sebasten rangeu a porta de entrada e


alguém interrompeu sua fala.
“Ah, Fran, finalmente você voltou, eu preparei
o seu favorito, pudim de… oh, são vocês. Bem
vindos de volta, meus amores.” Disse o tio Jensen.
Sebasten deixou que eu subisse sozinho os
degraus da entrada e eu consegui quase sem
tropeçar, com o auxílio do bastão. Era uma boa
vitória.
“Papai Fran ainda não voltou?” Sebasten
perguntou ao tio Jensen.
“Já é a terceira noite seguida… ele não conta
nada, bloqueia os próprios pensamentos… ah, não
sei o que eu faço daquele homem.” Tio Jensen
ajeitou ou recolheu alguma coisa da mesa, e
arredou algumas outras coisas. Eu odiava nunca
saber o que acontecia. “Perdão, eu não queria
reclamar, sejam bem vindos de volta.”
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A alegria do Sebasten deu lugar à tristeza.

<< Madhun, você se importa de subir sozinho?


Acho que meu pai precisa do filho um pouco.>>

Tudo bem, nos falamos depois. Eu pensei, então


bati o bastão por cada degrau. Era muito
assustador, mas eu me desafiei. Se eu quisesse
ganhar independência, não podia desistir na
primeira escada.
Mais uma vez eu consegui não cair. Com alívio
eu senti o tapete fofo do sótão sob os meus pés e fui
até a cama, onde eu me joguei e apreciei a fofura
dos cobertores, que ainda cheiravam ao perfume
gostoso do Sebasten.
Talvez o tio Jensen tivesse razão. Ser cego não
me impedia de lutar pelos meus sonhos, e talvez

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nessa escola de Dublin eu aprendesse a cozinhar.


Não existiam outros tritões cegos, mas com os
humanos este era um problema comum o bastante,
para que eles adaptassem sua sociedade. Mesmo
sabendo disso, estudar com outros cegos me
parecia deprimente demais. Ou talvez eu ainda
estivesse em negação.
A receita do almoço voltou aos meus
pensamentos. Sebasten disse que copiaria para o
meu celular, então resolvi verificar apenas por
curiosidade. Meu paladar aguçado já havia
identificado a maioria dos ingredientes.
“Localizar celular.” Eu disse.
O celular apitou e eu consegui encontrá-lo em
cima da mesinha.
“Você tem duas chamadas não atendidas.”
Disse o aplicativo de acessibilidade.
Chamadas não atendidas? Devia ser do papai
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Shane. No aborrecimento em precisar encontrá-lo


eu acabei deixando o celular em casa.
“Verificar chamadas não atendidas.” Eu disse.
“Chamada um, número restrito. Chamada dois,
número restrito. Deseja retornar a ligação?”
De novo? Será que era o mesmo cara daquela
vez, no telhado? Meus lábios tremeram enquanto
eu hesitava sobre o que responder.
E então o celular vibrou e apitou na minha mão,
quase me causando um ataque cardíaco.
“Vídeo-chamada de número restrito. Deseja
atender?”
Eu segurei o celular inquieto, tentando bloquear
o som com os dedos.
“…Sim!” Eu respondi.
Os apitos calaram, e então veio o silêncio. Eu
apontei a câmera para o meu rosto e prestei atenção
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no som muito discreto. A princípio pareceu que o


cara havia desligado, mas havia o mesmo som de
vento das outras vezes.
“Quem é?” Eu perguntei.
“Por que você é cego?” Perguntou a voz.
Ahn? Que porra de pergunta era aquela? Ele
não pretendia nem me cumprimentar, primeiro?
“Quem está falando?”
Silêncio de novo. Eu vasculhei a minha mente
por quem pudesse ser o dono daquela voz, mas não
lembrava de ninguém. Pelo timbre agudo era um
ômega, talvez da minha idade. Ou talvez pudesse
ser um alfa pré-adolescente, ou um humano. Raros
tritões utilizavam tecnologia, afinal.
Ou talvez não fosse nem um tritão, e nem um
humano.
“Você conhece o Ronan?” Eu perguntei.

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“Por que você é cego?” Ele repetiu.


Mas que bastardinho irritante. Ninguém lhe
ensinara o quanto é rude importunar
desconhecidos?
Eu só podia ser idiota por levá-lo a sério.
“Vamos trocar perguntas, então.” Eu suspirei.
“Perdi a visão em um acidente… Não. Estou
mentindo. Alguém importante fez isto comigo.
Alguém que tentou me matar.”
“Foi o Ronan?”
Meu coração disparou. Então eu estava certo?
Aquele garoto conhecia o Ronan? Quem era ele,
onde estava, e como eu conseguiria chegar no
Ronan através dele?
Ai, ou talvez ele só tenha usado o nome que eu
mesmo mencionei. Eu não podia demonstrar
emoções tão facilmente.

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“Ei, agora é a minha vez. Você é importante


para o Ronan?” Eu disse.
O garoto começou a rir, perplexo.
“Vai gastar sua vez com uma pergunta tão
estúpida? Por que não pergunta se o Ronan é
importante para mim?”
“Não preciso perguntar isso. Você está me
investigando para aprender sobre ele, então já tenho
esta resposta.”
O garoto falou umas silabas soltas e
desconexas, ele perdia as estruturas com facilidade,
pelo visto.
Imaginar que alguém assim se importava com o
Ronan causou um sorriso no meu rosto.
“Vai saber o que aquele idiota pensa de mim.
Ele nunca me bateu, se é que isto serve como
resposta.”

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“Conhecendo o Ronan, esta resposta diz


muito.” Eu ri, começando a gostar daquele cara. “É
a sua vez, de novo.”
O garoto ficou quieto por algum tempo.
“Chamada finalizada. Deseja desligar a tela?”
Disse a voz robótica do aplicativo.
Não! Não, mas que merda!! Eu mandei o
aplicativo retornar a chamada, mas o número
restrito não recebia ligações.
Ah, caralho. Eu joguei o celular no meu lado e
me derrubei no colchão.
Apesar da frustração, eu não conseguia me
sentir triste. Na verdade eu mantinha um sorrisão
enorme.
Ronan estava vivo, e era precioso para alguém.
“Está rindo sozinho, meu amor?” Sebasten
apareceu no quarto.

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“Acho que conheci o predestinado do Ronan.”


“Quê?” Sebasten derrubou seja lá o que estava
carregando. Não parecia ser quebrável. “Quem?
Quando? É um selkie?”
“Provavelmente.” Eu respondi, perdido nos
meus pensamentos. “Ronan talvez nunca encontre o
que procurava ao ir embora… mas acho que
encontrará algo ainda melhor.”
“Você diz coisas bem estranhas às vezes.”
Sebasten curvou-se e beijou minha testa. “Se a
felicidade daquele imbecil significa a sua
felicidade, então também ficarei feliz por ele.”
Sorrindo em profunda alegria, eu agarrei
Sebasten por trás do pescoço e transformei aquele
beijinho em um profundo beijo de língua. E com
aquele começo esquisito nós passamos horas
fazendo amor.

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****

No fim, acabei esquecendo de perguntar sobre o


tio Jensen. Pensei que o problema entre ele e o tio
Fran se resolveria eventualmente mas, quando
cansamos de nos satisfazer, Sebasten pediu minha
autorização para ficar na sala com seu pai. Óbvio
que eu concordei, me sentindo um tanto culpado. O
conflito dos pais devia afetar Sebasten muito mais
do que ele deixava transparecer.
Eu não queria importunar, então fiquei no
quarto e acabei adormecendo.
Acordei de novo com a porta do quarto batendo
e o choro assustado do Sebasten.
“O que houve, Seb?” Eu sentei rápido, desperto
pela preocupação.
“Meu pai Fran vai ser morto!” Ele sentou ao

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meu lado e chorou desesperado.


“Como é? Me explica isso direito.”
“Eu desci pra conversar com o papai Jensen,
então ouvi os dois brigando na sala e me escondi
pra ouvir. Papai Fran estava furioso porque o
Jensen se forçou nos pensamentos dele e aí
descobriu alguma coisa horrível. Ele disse que os
reis vão matar o papai Fran.”
“Ei, ei, Seb, vamos pensar com calma. O Fran
recém foi promovido a general, ele é importante
demais para correr qualquer perigo.” Apesar do que
eu dizia, eu nunca estive tão confuso. “Os tios Yun
e Papillon são uns doces incapazes de ferir
ninguém, o que o tio Fran teria feito de tão grave?”
“Não sei, os dois não paravam de gritar um com
o outro, pensei que fosse coisa dos seus pais, mas o
massacre afetou a cabeça de todo mundo, meus pais
nunca brigaram desse jeito.” Sebasten ainda
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soluçava e tremia, encolhendo-se nos meus braços.


“O rei Yun detesta o papai Fran, eu não quero que
ninguém se machuque.”
Eu afaguei os cabelos do Sebasten, tentando
encontrar sentido naquela briga. Talvez fosse
exagero do Sebasten, mas eu odiava senti-lo tão
preocupado.
“Sebasten, pense com calma. Nós vamos
resolver isso, mas preciso saber o que você ouviu.
“Só ouvi gritos indignados, algo sobre o papai
Fran agir pelas costas dos reis, cometer atos de
traição.” Sebasten murchou ainda mais, molhando
meu peito com suas lágrimas de desespero. “E se
ele for um inimigo? O melhor amigo do meu pai
traiu o reino para viver com selkies, e se meu pai tá
envolvido com ele, de alguma forma?”
“Duvido muito. O general Fran é o tritão mais
leal ao reino que deve existir. Seja lá no que ele se
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envolveu, deve ser com a melhor das intenções.”


“Então por que o papai Jensen está apavorado,
temendo pela vida dele?”
“É isso o que vamos descobrir.” Eu acariciei
Sebasten até acalmá-lo. “Amanhã nós vamos segui-
lo e resolver esse mistério, ok?”
“Tá.” Sebasten secou as lágrimas. “Desculpa te
aborrecer com os meus problemas, Madhun, meu
antigo núcleo não deveria mais me dizer respeito,
mas eu conheço a que ponto chegam as obsessões
do papai Fran.”
“Nunca se desculpe pelo que sente, meu
predestinado. Você sempre poderá contar com a
minha ajuda.” Eu o acariciei, apreciando o formado
de seu rosto e tentando lembrar sua aparência.
Mesmo triste, Sebasten era bonito e doce. “Quero
que deite comigo e esqueça, por enquanto. Tudo
vai se resolver.”
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Embora meio contrariado, Sebasten concordou


e me abraçou sob os cobertores quentes. As
promessas de um cara cego e quase inútil não
deveriam valer muita coisa, mas Sebasten parecia
aliviado de verdade. Ele não demorou a dormir nos
meus braços, o que me apertou com o peso da
culpa.
Uma armação digna de pena de morte… no que
raios o pai ômega do Sebasten resolveu se
envolver??

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Capítulo 67

O chão nos arredores dos quartéis era lamoso e


escorregadio, com um cheiro enjoativo de água
parada e pântano. Meu bastão não parava de
afundar na lama então precisei engolir o orgulho e
permitir que Sebasten nos conduzisse.
Encontrar o General Fran parecia tarefa
simples, mas eu não havia considerado quantos
soldados treinavam ali diariamente. Àquela hora da
noite todos já estavam dormindo, mas a mistura de
cheiros confundia o meu olfato e mesmo no
silêncio absoluto eu não ouvia voz alguma.
“Tem certeza de que não seremos vistos?” Eu
perguntei ao Sebasten.

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“Estamos passando por trás das barracas, onde


tem uns… manequins de treino, eu acho? Não dá
pra ver nada nessa escuridão, só umas lamparinas
e… ah, desculpa, você tropeçou?” Sebasten me
segurou mais apertado.
Eu mal havia tremido meus passos, mas escolhi
ignorar o excesso de zelo e seguir andando, atento
em cada cheiro que pudesse ser familiar. Em meio
ao canto das cigarras, dava pra ouvir um chiado
muito distante.
“Tem lamparinas naquela direção?” Eu
perguntei.
“Não, mas pela luz branca nas janelas, tem
lâmpadas. A Central de Inteligência instalou
energia elétrica faz um certo tempo.”
“Central de Inteligência?” Eu perguntei,
enquanto Sebasten nos aproximava do local.
“Não sei bem qual é a história, mas a barraca
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parece bem mais nova que as outras barracas


militares. Papai Fran comentou sobre os Amalonas
se reorganizarem durante a guerra, eles
costumavam se comunicar por espiões ou através
das ondas, mas…”
“Shh.” Eu sussurrei, amaciando meus passos.
“Nos esconda perto da janela.”
Sebasten também suavizou sua caminhada e me
conduziu até algum canto, onde o chiado tornou-se
muito mais claro: era um par de vozes.
Eu precisaria confiar no Sebasten quanto ao
nosso esconderijo. Como ninguém apareceu aos
gritos, eu deduzi que era um bom lugar e concentrei
minha audição.
“Aguardei semanas por essa sua expedição para
receber isso? Um maço de papel podre?” Perguntou
o General Fran.
“É muito mais que papel podre. Preste atenção
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nestas anotações.” Disse uma segunda voz, meio


grave e familiar, embora a memória me falhasse.
“Estou vendo que é um diário. Francamente,
Édrilan, eu tenho um inimigo a destruir e preciso
perder tempo com… oh, pelos oceanos.” O General
folheou as páginas. “Não creio. Isto é…”
“Seus olhos não o enganam. É possivelmente o
último registro a mencionar a Safira do Oráculo.”
“Então existe mesmo… e não é um truque?
Este documento é oficial?”
“Você mesmo leu o nome do autor, e o diário
foi encontrado nas ruínas do antigo castelo. As
chances de fraude são remotas, General.”
“Agradeço os esforços de sua equipe, Édrilan.
Minhas investigações enfim ganharam um rumo.”
“Espere, General.” Édrilan engrossou a voz. “É
minha função como Amalona informar os reis

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sobre qualquer atividade suspeita, e chegou ao meu


conhecimento que o Digníssimo Rei Papillon nada
soube desta tal expedição, e que nunca deveríamos
ter cancelado nossa missão inicial de encontrar
Ronan Faroé-Makaira. O que me impediria de
denunciá-lo neste exato momento?”
Sebasten arrepiou-se ao meu lado. Eu segurei
firme a sua mão e permaneci agachado no chão
lamoso, ouvindo cada palavra.
“Nossos novos reis são despreparados e frágeis,
Édrilan, não preciso ser um Amalona para perceber
este fato. Eu sou o único que pode vingar a morte
dos seus filhotes.”
Édrilan rosnou, e mesmo sem poder vê-los eu
senti a imensa tensão no ar.
“Nenhum governante é ingênuo a ponto de
ignorar os afazeres de seu próprio general. Seu
novo ranking o torna tão poderoso quanto visível,
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Fran Gobio-Gobio, e lembre-se que o Digníssimo


Rei Yun é também descendente direto de Daoshin
Hai-Kui. Que o chamado o proteja se ele descobrir
esta insensatez.”
“Os reis dependem dos Amalonas até para polir
as unhas. Foi assim com os Digníssimos Aurelian e
Hian, e assim é com aquela dupla de tolos. Com o
apoio do seu clã, nosso povo se banhará em sangue
de selkie antes que os reis decidam sobre o café da
manhã.”
“Há uma linha tênue entre a bravura e a tolice,
General, e esta é uma lição que muitos aprendem
da pior forma. No fundo de meu âmago eu o
considero um tolo, mas meu predestinado Moyren
chora dia e noite pela prole que nos foi arrancada.
Nossos filhotes merecem vingança.”
“E vingança eles terão, se continuarmos dentro
dos planos.” Os passos do Tenente atravessaram a

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barraca. “Agora devo ir, Jensen não para de gritar


alguma coisa sobre o meu filho ter sumido. Eu amo
o meu predestinado mas, francamente, as
prioridades dele são uma bagunça.”
“Devo guardar o diário no cofre?”
O som dos passos mudou de lajotas para lama.
Sebasten me espremeu contra a parede de lona da
barraca e eu congelei com o coração disparado, sem
saber o quão perto eles estavam.
“Deixe o diário aí e vá dormir também, Édrilan.
Amanhã quero toda a sua equipe esmiuçando cada
letra deste documento. Enquanto não localizarmos
esta pedra, o resgate de Leviathan será uma
completa perda de tempo.”
Leviathan Makaira… Leviathan… Levi… Seria
alguma coincidência? Meu nervosismo não me
permitia pensar direito. O General Fran mal havia
nos parabenizado pela nossa predestinação e eu não
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desejava ganhar a reputação de aquele marginal


que conduzia Sebasten aos caminhos da
espionagem.
Felizmente a conversa se encerrou e os dois se
afastaram até que seus passos desaparecessem
muito adiante.
Sebasten levantou e me ajudou a fazer o
mesmo. O coração dele saltava igual ao meu, não
apenas pela adrenalina mas também por angústia.
“Então é verdade.” Ele sussurrou, soluçando.
“Meu pai é um traidor e os reis vão enforcá-lo!”
Eu toquei os lábios macios do Sebasten, em um
gesto que tanto demonstrava apoio, quanto exigia
silêncio. Telepatia existia por bons motivos.
Nosso objetivo ainda não estava completo.
Seb, eu preciso que se acalme. Você conhece o
Yun, não conhece? Ele é um baterista bonzinho e

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tímido, consegue imaginá-lo enforcando alguém?


Claro que não, e o seu pai é importante demais.
Eles não arriscariam perder seu general em plena
guerra.

<< Mas ele agiu escondido dos reis, e quer alguma


coisa estranha. O que é esta Safira do Oráculo? O
que meu pai pretende, se arriscando desse jeito? >>

É o que vamos descobrir.

Eu me soltei do Sebasten e segui adiante, me


apoiando na parede de lona até encontrar a porta.
Sebasten quase teve um chilique, mas manteve-
se bem quietinho e me acompanhou.
“O que vamos fazer aqui?” Perguntou ele.
“Você vai ler o diário.” Eu encontrei uma
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cadeira e sentei.
O medo no coração do Sebasten ecoou dentro
do meu, mas eu forcei a minha paz de espírito e
permaneci tranquilo. A vida do pai do Sebasten
dependia da gente não fazer besteira, e parecia
haver muito mais em jogo.
Leviathan Makaira… seria ele a tal última
esperança do reino? As últimas palavras do vovô
Aurelian foram uma súplica para que eu o
encontrasse. Alguém do meu próprio clã, e que
entretanto eu desconhecia.
“Ai, o papel tá meio velho, e se desmanchar na
minha mão?” Disse Sebasten.
“Vá em frente, Seb. É importante.”
Sebasten folheou o diário e resmungou alguma
coisa, então começou a ler.

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“Daoshin Hai-Kui - Diário de Treinamento

Dia 784
Mais uma manhã infrutífera. O garoto não
demonstra o menor interesse pelos treinos e sua
indisciplina raramente é cobrada por qualquer um.
Meu dever é treinar nosso jovem oráculo, e não
lidar com os ímpetos infantis de um principezinho
mimado!
A ausência de progresso mostra-se
preocupante. Mais do que negligenciar seus
estudos, o garoto parece estar perdendo seus
poderes. Sei que é pura questão de má vontade,
mas se um oráculo de oito anos não domina sequer
a arte da escamância, como dominará [texto
ilegível]?
Bastou que eu piscasse os olhos e o garoto
fugiu para brincar. [Texto ilegível] não parece
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disposto a castigá-lo, então ocuparei a tarde


montando uma cabana de hóspedes. Meu querido
neto Shunsen chegará em breve, e eu anseio em
conhecer seu predestinado e meu mais jovem
bisneto.

Dia 785
Shunsen cresceu tanto, quase não o reconheci!
Ele se tornou um formidável alfa, com cabelos tão
pretos quanto os meus costumavam ser. O seu
predestinado talvez seja o ômega mais gracioso
que já conheci e o bebê é a mistura perfeita dos
dois: um lindo filhotinho Hai-Kui, como ambos os
pais e seu velho bisavô solitário.
Meu dever com o clã Makaira sempre será a
maior das minhas prioridades, mas interagir com
meu próprio clã trouxe lágrimas de saudades.
Fechando os olhos me vejo retornar os vastos
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campos da ilha Zhang-Qi, com crianças correndo e


pulando nos muitos lagos, em meio à chuva de
pétalas da primavera. Esta cidadela do clã
Makaira também é dotada de inacreditável beleza,
mas nada se compara aos templos e cerejeiras da
minha ilha natal, nem mesmo os mares
paradisíacos, florestas e rochas negras de Orla das
Sereias.”

“Orla das Sereias? Que lugar é esse?” Eu


perguntei.
“Eu não sei. A base do nosso clã não deveria
ser Egarikena?” Sebasten folheou o diário.
“Talvez a gente descubra. Continue lendo.”

“Dia 786
Mais um dia de treinamento, e desta vez

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Shunsen ofereceu sua ajuda. É um treino


importante também para ele, que um dia me
sucederá como mentor e talvez treine o próximo
grande oráculo do nosso povo. Eu rezo ao
chamado que seu eventual discípulo tenha um
mínimo de bom-senso, ou que pelo menos não
esqueça da vida penteando o próprio cabelo. Este
menino é mais vaidoso do que qualquer sereia que
eu já conheci, e a educação que recebe do [trecho
ilegível] não colabora em nada.
Se pelo menos ele ainda tivesse [trecho
ilegível], mas não se pode mudar o passado, e
talvez seja melhor desta forma. Talvez eu esteja
esperando demais de um oráculo que [trecho
ilegível], mesmo que o garoto nem suspeite disso.
Nosso jovem oráculo enfim compareceu, sem
esconder o seu profundo tédio. Sua atividade
envolvia ler o futuro do Shunsen, mas sua

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escamância novamente decepcionou. Ele previu


apenas [trecho ilegível], e então óbvio que fui
crítico! Onde já se viu um oráculo que não
consegue ler o futuro? Shunsen ficou mal quando o
garoto fugiu chorando, mas já não sei como
convencê-lo de suas obrigações. Querendo ou não,
o pequeno Aurelian é o sucessor do trono, e aquele
que garantirá a supremacia eterna da nossa raça.

Dia 787
Hoje tivemos uma audiência com o rei e seus
arquitetos, que nos informaram dos progressos
com a futura capital. Mais uma vez, as opiniões se
mostraram polarizadas. Um projeto utópico como
Egarikena ainda é visto com desconfiança por
muitos, especialmente aqueles que têm apego à boa
e velha Orla das Sereias, ou que simplesmente não
querem respirar o mesmo ar que um bando de

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[trecho ilegível].
Eu, pessoalmente, não vejo diferença alguma.
Shunsen despreza a suntuosidade do projeto dos
reis, e especialmente os métodos de construção
envolvidos, mas como mentores de oráculos não é
nossa função julgar os rumos de nosso reino.
Como espécie e como raça, os tritões [trecho
ilegível], então adaptar-se à uma hierarquia social
com reis, tenentes e escravos é uma tarefa
complexa. Me admira que os Makaira tenham
preservado a união de tantos clãs sem um oráculo
para conduzi-los, mas os tempos de trevas
encontraram seu fim, ou pelo menos é esta a teoria.
A glória ou ruína de nosso povo descansa nas
costas de um garoto mimado e arrogante, que
novamente fugiu de seu treinamento para
infernizar os filhos dos mordomos.
Estarei errando em minha metodologia?

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Shunsen acredita que a maturidade do garoto


chegará com o momento oportuno, então talvez
este seja um exercício de paciência.

Dia 788
Amanhã Shunsen e seu adorável núcleo
retornarão ao nosso lar em Zhang-Qi.
Pensar no adeus aperta meu coração de forma
insuportável. Desde o nascimento do jovem
oráculo, quando requisitaram meus serviços, tenho
convivido com os nobres Makairas, seus soldados
Kampangos, faxineiros Gobio-Gobio e mordomos
[trecho ilegível]. A solidão de ser o único Hai-Kui
me consome por dentro, mas em algum momento
meu sacrifício encontrará recompensa, ou assim
espero.
O garoto fugiu de novo, e desta vez o
Digníssimo [trecho ilegível]. Lógico que o garoto
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detestou ser contrariado e realizou sua pior


escamância até o momento. Ele não conseguiu
sequer prever o nosso jantar de amanhã, mas que
completo absurdo!
Shunsen me proibiu de gritar com o menino e
tentou conversar com ele a sós. Tudo o que ele
conseguiu foi um chute no tornozelo e diversos
insultos e ameaças de morte. Nosso pequeno
Aurelian recusa-se a aceitar seus deveres como
Oráculo, mas seus direitos como príncipe ele
conhece muito bem.
Acho que Shunsen enfim empatizou comigo,
reconhecendo o tamanho do nosso problema. Seu
olhar na joia em meu pescoço apenas aumentou
sua preocupação, e eu mesmo peguei a Safira em
meus dedos murchos para admirar seu brilho.
Meu tempo neste mundo está se esgotando, e a
inocência idealista de Shunsen o tornaria alvo fácil

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das petulâncias daquela criança. Ambos sabemos


que sou o único capaz de libertar todo o seu
potencial, mas como confiar a Safira do Oráculo
para um garoto tão incorrigível?
Amanhã discutirei com o rei a respeito de
novas estratégias. O garoto precisa de disciplina e
Shunsen prometeu me apoiar em qualquer decisão,
pois mais rígida que seja.
Já tive mais filhos e netos do que posso contar,
castigar uma criança é tão difícil para mim quanto
seria para qualquer pai, mas que opções me
restam? Egarikena será concluída em poucos anos
e nós precisaremos de um governante digno de um
trono de cristal.”

Sebasten silenciou e eu cutuquei seu ombro,


ansioso.
“Continue lendo.” Eu pedi.
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“Não tem mais nada.” Ele passou as páginas


diversas vezes. “Todo o resto está em branco.”
“O quê?” Eu peguei o diário nas mãos, como se
fosse fazer qualquer diferença. “Isto realmente é
tudo? E sobre a Safira? E o Leviathan?”
“É um diário bem antigo, o vovô Aurelian era
uma criança.” Sebasten pegou o diário e devolveu à
mesa. “Podemos ir embora? Não quero que o papai
Fran pense mal de você.”
Eu concordei, tentando raciocinar sobre tudo o
que ouvi.
Era estranho imaginar o vovô como uma
criança rebelde, mas a parte mais estranha de tudo
era a existência de um documento escrito. Diferente
das cidades humanas, em Egarikena não existiam
bibliotecas ou livrarias. Tritões aprendiam a ler e
escrever, mas o uso da escrita se resumia a
praticidades, como letreiros de lojas e listas de
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compras. A escrita de diários e livros não fazia


parte da nossa cultura, ou foi isso o que sempre
imaginei, embora fosse algo bem esquisito.
“Destruíram todos.” Disse Sebasten. “Ah,
perdão por ler os seus pensamentos, é só que…
também fiquei nervoso, eu acho. E o papai Fran
comentava essas informações com o papai Jensen,
acabei ouvindo diversas coisas. Foi sem querer.”
“Não há problema algum, peço desculpas pela
minha ignorância.” Eu sorri torto, encabulado e
muito surpreso. “Como assim, destruíram todos os
livros?”
“Quando a guerra acabou, o vovô Aurelian
mandou que empilhassem na praça tudo o que
contivesse letras, e então incendiou.” Sebasten
segurou firme o meu braço enquanto subíamos
alguns degraus, de volta à estabilidade de uma
calçada. “Sei lá por que fariam isso, então talvez

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seja um boato.”
“Na verdade faz todo o sentido. Esta não é a
primeira guerra entre tritões e selkies, entretanto
metade da ilha nem suspeitava que existisse outra
raça marinha, até que esta mesma raça disparasse
fuzis na cabeça de todo mundo.” Eu senti um
arrepio na espinha e abaixei meu tom de voz. “A
informação foi eliminada de propósito.”
“E por que o vovô faria isso?”
“Está me perguntando o porquê de um tritão
mentir?” Eu dei uma risadinha nervosa. “Ele queria
que alguma informação desaparecesse no tempo, eu
acho. Nosso povo foi quase dizimado, então
reconstruir a história seria bem simples, bastava
eliminar os rastros dos que morreram.”
“Meu predestinado, estou ficando com medo.”
Sebasten fez voz de choro. “Aquele diário não
deveria existir e a gente não deveria ter lido.”
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“Você quer salvar o seu pai, não quer,


Sebasten?”
“Papai Fran está controlando os informantes
pessoais dos reis para uso próprio, Madhun. Ler um
diário não salvará o meu pai da forca.” Ele
começou a surtar de novo. “Este tempo das trevas
que o diário mencionou vai se repetir, não vai? Não
temos um oráculo, os moradores abandonam a ilha
todos os dias, e ninguém nos protegerá quando os
selkies voltarem.”
Eu parei diante do Sebasten e segurei firme
suas mãos, inclinando o rosto como se pudesse
olhar em seus olhos.
“Seb, se desesperar não ajudará a ninguém.
Quero que confie em mim e ouça com calma tudo o
que tenho a dizer.” Eu pausei minha fala, me
certificando que não havia vozes ou cheiros de
estranhos por perto. “Acredito que já exista outro

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oráculo.”
Sebasten não respondeu nada, mas eu sentia o
espanto e pânico em sua alma. Uma boa parte de
seus pensamentos questionava a minha sanidade
mental.
“Outro oráculo? Oráculos não existem em
segredo, Madhun, você lembra a sensação de
quando nadava durante as meditações do vovô
Aurelian? A gente sempre sentia a presença dele,
era como ser envolvido por sua luz e sua
benevolência.” Sebasten bufou, esforçando seus
neurônios estressados.
“Eu sei que é estranho, mas...” Eu tentei ligar
todas as informações na minha cabeça. “…mas
tritões mentem o tempo todo.”
Algo encaixou dentro dos meus raciocínios,
causando arrepios por todo o meu corpo.
Para preservar a utopia de Egarikena, vovô
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Aurelian destruiu qualquer registro sobre selkies ou


sobre a guerra. Ele nunca previu o retorno dos
nossos inimigos pois estava destinado a morrer
antes do massacre, então com isso os tritões de
Egarikena viveram uma geração de absoluta paz,
onde guerras e inimizades nunca existiram. Mas
seria impossível desaparecer com uma verdade tão
grande, alguns tritões mantiveram o conhecimento
da primeira guerra, e com ele o medo de que tudo
se repetisse.
E se o novo Oráculo nasceu em um núcleo com
este conhecimento, então…
“O novo oráculo vive escondido, em algum
lugar.” Eu quase gritei, empolgado enquanto as
peças não paravam de se juntar.
“Você ouviu o que eu disse, Madhun? É
impossível. Se houvesse um oráculo apto a
governar ele já estaria no palácio e… banharia

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nosso povo no sangue de todos os selkies.”


Eu sorri, percebendo no tom de voz do Sebasten
que ele acompanhava a minha linha de pensamento.
Nós dois retornamos para casa, continuando
nossa conversa na segurança de nossa telepatia.
Muitas peças ainda não encaixavam. O que era
a Safira do Oráculo, e para que servia? Com certeza
o vovô Arian nunca usou joias nem mencionou
qualquer coisa sobre safiras mágicas. Seja lá qual
fosse sua utilidade, era grandiosa o bastante para
que o general arriscasse a vida em sua procura.
E para utilizar a Safira do Oráculo era
necessário encontrar Leviathan, provavelmente?
Tantos pensamentos causaram a pior das
enxaquecas, então após muito debate eu e Sebasten
nos forçamos a adormecer, atormentados por
teorias e ideias incessantes.

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Não importava se existia ou não uma joia com


poderes desconhecidos. O vovô Arian confiou a
mim o seu último desejo: encontrar Leviathan e
salvar o nosso reino. Uma evidência a mais de que
Leviathan não era um tritão comum.
Talvez realizando o desejo do vovô eu
conseguisse proteger o pai do Sebasten. E talvez eu
também conseguisse me reencontrar com Ronan, de
algum jeito.

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Capítulo 68

Eu não consegui dormir direito. A princípio


pensei que fosse minha preocupação com as
informações do diário, mas havia algo ainda mais
errado. Era como se eu dormisse diante de uma
lareira no meio do verão.
Sonolento, mas incapaz de continuar dormindo,
eu tateei ao meu lado e me abracei nos ombros
despidos do Sebasten. Neste simples gesto o
calorão disparou da minha virilha para todo o corpo
e eu gemi de dor.
“Hnn… peço perdão, eu te chutei dormindo?”
Sebasten virou-se de frente para mim, grunhindo ao
se espreguiçar.

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Eu não consegui responder, senti que qualquer


resposta seria um gemido obsceno. Aquela
sensação era nova e assustadora, mas com sintomas
bem fáceis de reconhecer.
A revolta do cio havia me atingido como uma
explosão vulcânica.
“Não… não foi nada.” Eu sentei na cama,
enquanto faíscas alfinetavam todos os meus nervos.
Eu precisava me afastar do cheiro de alfa.
Sonolento demais para identificar meu
tormento, Sebasten laçou os braços na minha
cintura e roçou acidentalmente no meu mastro, que
estava mais duro do que nunca.
“Aaaah…” Eu cobri a boca e ainda assim não
consegui me calar.
Sebasten deu risada, entendendo errado a
natureza do meu desconforto. Ainda deitado atrás
de mim, ele segurou meu pau e começou a brincar.
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Eu gemi alto, em um prazer tão forte quanto


agoniante. Acabei gozando tão rápido que Sebasten
terminou de acordar e sentou comigo, estranhando
aquela situação.
“Quer uma rapidinha?” Perguntou ele, ainda em
tom de brincadeira. “Ou pode ser uma
demoradinha, porque nossa, tá bem duro, né? É
normal ficar inchado assim?”
“Preciso de uma consulta médica.” Eu levantei
rápido e corri para o banheiro. “Liga pra doutora
enquanto eu tomo banho, tudo bem? E por favor
não entre.”
Sebasten tentou perguntar, mas eu fechei a
porta e abri as janelinhas do banheiro, ansioso por
ar fresco.
Droga, eu imaginava que seria difícil, mas não
tanto assim.
Frustrado, eu liguei o chuveiro e me banhei na
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água quente, às vezes tocando ali embaixo para


verificar o tamanho. Continuava duro e pulsante, e
não do jeito gostoso da minha primeira vez. Era um
calor dolorido e ansioso, um castigo pela
negligência das minhas obrigações primais.
Eu abri o registro até a água cair gelada, e
mesmo tremendo de frio aquela coisa não queria
baixar. E minha parte de trás vertia lubrificante
como uma cachoeira, eu provavelmente ficaria sujo
de novo assim que deixasse o banho.
Mas o pior de tudo era o cheiro. Era gostoso,
irresistível, tão agradável que o meu impulso era
voltar para o quarto, agarrar Sebasten e forçá-lo a
me semear. Era um pensamento horrível e que me
assustava profundamente, mas eu não conseguia
evitar.
Alguns ômegas suportavam semanas deste
tormento em sua espera pelo alfa? Eu não

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imaginava como era possível, e nem como poderia


piorar. Mas o que dizem é que a sensação apenas
piora, e muito.
Eu precisava da semente, precisava tanto que
aquele sótão já não era seguro. Eu nunca me
perdoaria se obrigasse Sebasten a extrapolar seus
limites.
O calor do meu corpo permanecia vívido e
intenso. Eu desisti da ideia do banho e apenas me
enxuguei na toalha e borrifei litros de perfume.
Talvez isto ocultasse o cheiro de alfa.
Eu deixei o banheiro e tateei o armário,
procurando alguma canga de tecido grosso.
“A doutora vai passar aqui em meia hora” Disse
Sebasten, todo tímido. “Ahm… quer ajuda com
alguma coisa?”
“Por favor não venha!” Eu falei alto demais,
assustado comigo mesmo. “Desculpa, Seb. Vai
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passar, eu acho. Ou talvez eu me acostume. Não


sei, não chegue perto.”
A alma do Sebasten pulsou dolorida em tristeza
e culpa. Ele era jovem e inocente, mas não era
burro. Ele certamente aprendera sobre o
funcionamento do corpo de um ômega, e sua
extrema necessidade em cultivar a prole.
Sebasten não queria me machucar, e eu não
queria filhos. Não havia nada a ser ganho cedendo
aos caprichos primitivos dos meus hormônios.
“Desculpa…” Disse Sebasten, com um tom
triste e devastado.
Ai, eu queria demais beijar e abraçar aquele
bobo. Como ele conseguia se culpar tanto, e por
coisas tão além do próprio controle?
“Vou esperar a doutora na sala. Quando eu
voltar, quero que me satisfaça muito e do seu
próprio jeitinho, tudo bem?”
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“Eu… eu talvez consiga fazer a coisa de


verdade, eu acho.”
“Com certeza você consegue, Seb, mas vamos
com calma. Já temos preocupações demais para
adicionar gravidez na nossa lista.” Eu prendi uma
canga de veludo na cintura.
“Tá, eu sei, mas… desculpa de novo.” Ele
resmungou, embora menos desanimado. Seus
pensamentos reviravam na ideia de me satisfazer
muito.
Eu sorri para ele e desci as escadas, animado
pela doutora me visitar tão rápido.

****

A doutora Babelyn piscou algo diante de cada


olho, transformando a completa escuridão em

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completa luz, e depois em escuridão de novo.


“Nenhuma reação das pupilas.” Disse ela,
pensativa e frustrada. “Não compreendo, a cura do
chamado progredia constantemente, e do nada
estacionou. Será que errei nas minhas pesquisas?
São poucos os casos de mutilação ocular em tritões,
mas em todos eles a visão se recupera sem grandes
sequelas.”
Eu fiquei quieto. Se respondesse o motivo, a
doutora não acreditaria.
“Agradeço tudo o que fez por mim, tia Babelyn.
Vou aprender a aceitar, de algum jeito.” Eu sorri
com implicância e ergui o meu bastão. “Olha só,
tenho minha própria bengala de ceguinho!”
“Você é forte, Madhun, vai superar seus
desafios melhor que muitos… ou pelo menos
melhor do que aquele décimo irmão idiota. Qual o
problema do Byron? Como você aguenta aquela
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fábrica de drama?”
Eu ri, sem saber como responder a isso.
A doutora prendeu outra faixa em torno dos
meus olhos e sentou na poltrona diante da minha.
“Ai, ai… precisamos lidar com isso também,
não é mesmo?” Perguntou ela.
“Com isso o quê?”
“Achei que fosse mais dramalhão do Byron,
mas você falou sério sobre não se reproduzir? É
uma surpresa ver meu sobrinho careta desafiando
as ordens do chamado.”
“Não sou careta! E como sabe que eu… oh.”
Eu apertei minhas coxas e cobri o colo com
uma almofada, fervendo de vergonha e também
pela eletricidade tórrida que insistia em queimar
minha pele.
“Não se envergonhe, Madhun, eu sou uma
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médica!” A doutora segurava-se para não rir.


“Deixe-me ver a situação.”
Ah, mostrar minhas partes baixas para uma
sereia não me agradava em nada, ainda mais
naquela… condição crítica. Mas conhecendo a tia
Babelyn, ela não aceitaria um não como resposta.
Hesitante e muito encabulado, eu deixei a
almofada cair e abri minha canga, expondo o
tamanho do meu próprio drama.
“É bem grande, mas é comum que ômegas
híbridos tenham um tamanho mais avantajado, já
que o dimorfismo sexual dos humanos é menos
proeminente.” A doutora vasculhou sua maleta e eu
rezei para os sete oceanos que ela não estivesse
procurando uma agulha de injeção, ou o celular
para tirar fotos. Vindo da doutora Babelyn, tudo
poderia acontecer. “Também diferente dos
humanos, há um período reprodutivo que deve ser

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obedecido. O desconforto diminui após cada


gestação, mas antes da primeira prole o tormento é
insuportável. Nosso povo se reproduz, é o nosso
motivo de existir.”
“Você diz isso, mas dois filhos é pouco para
alguém tão velha.” Eu a provoquei.
“Quem você chamou de velha, seu
malcriado??” Ela rosnou, enfurecida. “Eu pretendia
oferecer ajuda, mas alguém com humor para piadas
pode suportar uma queimaçãozinha infernal e
eterna.”
Ajuda? Como assim, ajuda? Mesmo sem
enxergar eu imaginava a risadinha sádica e
silenciosa da doutora Babelyn enquanto admirava
minha confusão.
Ela chacoalhou alguma coisa. O som lembrava
um pote de balas.
“O que é isso?” Perguntei.
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Ela jogou a coisa no meu colo despido, quase


acertando o meu pau. Aquela demônia queria me
matar de dor?
“São comprimidos de supressão do cio que
estou desenvolvendo. Você será a cobaia da versão
mais recente.”
Eu peguei o potinho na mão e chacoalhei,
intrigado. Tritões nunca adoeciam, então nunca
imaginei que existissem remédios para nós.
“Essa coisa funciona mesmo?” Eu perguntei,
abismado.
“Provavelmente.” Ela riu com travessura. “O
desconforto do cio vai diminuir, libertando da
necessidade de copulação com o parceiro alfa. Em
algum momento o ímpeto reprodutivo do alfa que
se tornará insuportável, mas ei, isto não é problema
da sereia ômega aqui.”
Eu ainda não conseguia acreditar. Claro que
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podia ser uma brincadeira idiota da doutora, mas se


não fosse, ela era um gênio.
“Um remédio desses pode transformar toda a
nossa sociedade.” Eu disse. “Quem são as outras
cobaias?”
“Apenas nós dois, por enquanto. Esta nova
versão foi produzida em menor escala, depois que
precisei jogar fora centenas de comprimidos do
primeiro protótipo.” Ela deu uma risadinha.
“Primeiro protótipo?”
“Pois é, eu tive certeza que calculei direitinho,
então fabriquei um monte para distribuir por aí e
acabar com essa palhaçada de ômegas gritando de
dor pelos cantos. Mas alguns efeitos colaterais a
longo prazo se mostraram… inquietantes. Enfim, o
papai Aurelian solicitou todas as caixas e sumiu
com elas. Eu me pergunto onde foram parar.”
“Que efeitos colaterais eram estes?” Eu
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perguntei, desconfiado como se estivesse vendendo


a minha alma para Satanás.
“Ah, nada grave, apenas algumas moléculas de
alfasterona mal encaixadas nos radicais de
aminoácido. A versão nova bloqueia a agonia sem
modificar a libido do ômega. Você e Sebasten
podem manter uma vida sexual saudável, sem
comportamentos atípicos.”
Eu sorri, super animado. Convidei a doutora
apenas para me distrair dos horrores do cio e acabei
ganhando a solução de todos os meus problemas…
ou pelo menos de um deles.
“Ei, doutora, posso fazer uma pergunta?” Eu
fechei novamente a minha túnica.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Ahm, não, é só que… se o Ronan voltasse…
você tentaria matar ele?”

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A doutora fez uma longa pausa antes de


responder.
“Médicos lutam pela vida, não pela morte.” Ela
disse com secura, enquanto guardava suas coisas.
“Mas não me imagino capaz de perdoá-lo. Nem
uma vida na cadeia pagaria por tudo o que ele fez.”
Eu abaixei a cabeça, sentindo doer o meu
coração. A tia Babelyn era super rude às vezes, mas
também era mais sincera que a maioria dos tritões.
Se nem mesmo ela aceitaria Ronan de volta, não
havia esperança de que os outros o aceitassem.
“E se a guerra terminasse? Digamos, se
existisse algum segredo que mudasse os rumos de
tudo? Tipo alguém especial, ou uma pedra mágica,
talvez?”
“Você é bem grandinho para imaginar pedras
mágicas, Madhun. O tempo é o tempo, e a morte é
a morte. Não importa que a guerra termine, as
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cicatrizes vão permanecer no coração de todos os


que perderam alguém.” A doutora levantou da
poltrona. “Independente da traição do Ronan, esta
guerra ocorreria de qualquer forma. Se ele
conseguisse impedir mais mortes do que permitiu,
talvez… mas é do Ronan que estamos falando.”
Eu concordei, profundamente deprimido.
Ronan preocupava-se apenas consigo mesmo, e
também era o príncipe do reino inimigo. Quais as
chances dele encerrar uma guerra que ele mesmo
estava ganhando?
A doutora passou por mim e afagou minha
cabeça.
“Ei, Madhun, você sabe de algo que eu não
sei?”
“Quê? Não! Não, de jeito nenhum! Não tenho
segredos militares, nem nada!” Eu falei,
surpreendido.
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“Calma, calma.” Ela riu nervosa. “Nosso povo


é visto pelos humanos como criaturas mágicas, mas
a verdade é que somos apenas diferentes. O povo
do mar possui muitas vantagens com relação aos
humanos, assim como possui fraquezas em igual
medida. Pedras mágicas existem apenas nas fábulas
e livros de mitologia.”
Eu concordei e me despedi da tia Babelyn na
porta, então bati minha vareta no chão até encontrar
a escada.
Bastou eu me aproximar do quarto para os
arrepios quentes voltarem. Eu vasculhei o bolso
pelo pote e tomei um comprimido, então o devolvi
ao bolso e senti a textura do meu celular.
Eu peguei o celular e sussurrei baixinho.
“Verificar chamadas não atendidas.”
“Você possui zero chamadas não atendidas.”
Disse o celular.
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Eu suspirei em desânimo e voltei para o quarto.


E se aquele garoto nunca mais ligasse? Eu só queria
conhecer a nova vida do Ronan e nada mais.
Por mais que os problemas empilhassem na
minha cabeça, eu não podia permitir que
destruíssem a minha vida ou me tornassem alguém
amargo. Sebasten não merecia isso.
“Ei, Seb.” Eu fechei a porta do quarto e dei uma
reboladinha até a minha canga cair. “Já decidiu
como pretende satisfazer o seu ômega?”
Sebasten deu um ganidinho surpreso, e logo
seus braços contornaram minha cintura, e eu senti o
calor de beijos no meu pescoço enquanto ele nos
derrubava no colchão.
Sob mil beijos, carícias, e o aroma delicioso de
alfa, eu me permiti derreter e me entregar à luxúria
que meu corpo e minha alma tanto necessitavam.
Enquanto eu tivesse o amor do meu
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predestinado, nenhum problema seria grande


demais e nenhum desafio seria impossível.
E mesmo que sem querer, a doutora Babelyn
talvez tenha me entregado uma possível chave para
o maior dos mistérios.

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Capítulo 69

Eu fechei a última mala e percorri as mãos pelo


armário e sobre as mesinhas, me certificando de
que não havia restado nada.
“Papai Jensen preparou uns trezentos
sanduíches.” Sebasten subiu ao quarto e abriu e
fechou alguns zíperes. “Não consigo fazê-lo
entender que será uma viagem rápida. Tudo bem se
eu levar isso?”
Sebasten colocou um pacotinho na minha mão,
que fez um som de chocalho. Eu reconheci o
conteúdo pelo cheiro.
“Sementes? Parece ter um monte aqui.”
“Foi o outro presente do papai, ele não quer que

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eu esqueça de casa… E nem eu.”


“Acho que permitem sementes no avião.” Eu
suspirei, com o coração apertado. “Me desculpa,
Sebasten. Estou sendo tão egoísta.”
Os lábios afetuosos do Seb estalaram nos meus.
“Floriculturas podem existir em qualquer lugar,
você mesmo disse isso. Eu serei o melhor florista
de Dublin, e você será o melhor estudante.”
Eu dei risada, aliviado com a alegria na voz do
Sebasten. Estudar na Escola Especial de Dublin foi
uma decisão brusca, mas eu sentia que Ronan
estava fazendo o seu melhor, não importava onde.
Eu também queria ser o melhor possível.
Para realizar o último desejo do vovô Arian e
também encontrar a Safira do Oráculo eu precisava,
antes de tudo, recuperar minha independência
perdida.

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Seria uma adaptação difícil para mim e


especialmente para o Seb, mas em Dublin existiam
bibliotecas imensas, que o general Fran nem
conseguiria imaginar. Certamente devia haver
livros de magia e mitologia como a tia Babelyn
mencionou tão casualmente. Se existia mesmo uma
Safira do Oráculo, uma biblioteca de humanos era o
lugar ideal para começar a entendê-la.
“Já empacotamos tudo?” Eu perguntei.
“Acho que sim.” Sebasten deslizou uma mala
pelo chão. “Vem, vamos descer, seus pais já devem
estar terminando o preparo do veleiro. Você precisa
ver como aprendi a velejar direitinho.”
“Em apenas alguns dias? Você é um amor, mas
será o papai Shane quem velejará até o aeroporto
mais próximo.”
“Ué, eu posso me exibir, mesmo assim. Você
segura nos meus quadris enquanto eu domino a
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força do vento!” Sebasten riu.


“Não me parece apropriado na presença dos
meus pais, mas tenho certeza de que seria uma cena
muito sexy.” Eu curvei o lábio em um sorriso
maroto.
Nós descemos ao térreo e Sebasten descansou
as malas na porta de entrada, arfando devido ao
peso.
Para não me sentir super inútil, eu vesti uma
mochila e carreguei uma sacola leve na mão oposta
à que segurava a vareta.
Tio Jensen nos ajudou a abrir a porta.
“Seja atencioso com o meu bebê, Madhun, ele
nunca deixou os limites da nossa ilha e ainda não
sabe arrumar a própria cama sozinho.”
“Pai, não me faz passar vergonha, por favor!”
Resmungou Sebasten.

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“Prometo cuidar bem dele, tio.” Eu segurei a


mão do Seb. “Nós dois cuidaremos um do outro.”
Tio Jensen Segurou o choro e roubou Sebasten
de mim, o fazendo derrubar as malas. Os dois se
abraçaram por um longo tempo, até que Sebasten se
afastou.
“Sentirei sua falta, pai. E também sentirei falta
de todos as flores. Vamos, Madhun?”
Eu concordei, e juntos nós atravessamos os
jardins.
“Ei, esperem!” Disse uma voz adiante.
Sebasten travou no lugar e seu profundo
espanto acelerou meu peito. Aquela era a voz do tio
Fran?
“Pai? Você não tem treinos, de manhã?”
Perguntou Sebasten.
“Tenho dúzias de compromissos importantes,

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mas eles podem esperar. Eu precisava te ver uma


última vez, filhote, e também te entregar isso.”
“Um tridente? Mas eu não.. Espera, pai, este
tridente é seu!”
“Sim, ele me acompanhou desde o primeiro dia
nos quartéis e ceifou a vida de uns dez selkies
durante a invasão. Seu desempenho contra nossos
inimigos foi glorioso e teve o mais nobre dos
motivos.”
“Não vejo glória nenhuma em encerrar duas
vidas, eu só fiz o que precisava para salvar o
Madhun.” Sebasten murchou a voz, estremecendo
com as lembranças. “Como soldado, eu sou tão
inútil quanto sempre fui.”
“Não há verdade alguma nisto, Sebasten. Nem
todos os bons soldados enfrentam carnificinas e
matam inimigos. Alguns soldados lutam com o
coração, trazendo luz e vida onde outros trazem
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escuridão e morte. Como filho, florista e alfa do


meu estimado sobrinho, você é o melhor soldado
do mundo.”
O coração do Sebastian pulsou tão forte e
comovido que eu chorei por ele, inundado em sua
profunda felicidade.
“Obrigado, papai. Prometo cuidar bem desta
preciosa herança.”
“Eu sei que vai. E você, Madhun…”
“Já sei, já sei. Vou cuidar bem do Sebasten e
ensinar tudinho sobre a cultura humana. Papai
Shane nos comprou uma agradável chácara com
piscina e perto do mar, nos subúrbios de Dublin.
Sebasten ficará seguro.”
Tio Fran também abraçou Sebastian, que nem
conseguiu acreditar em um tanta demonstração de
afeto.

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Eu com certeza desvendaria os mistérios da


Safira do Oráculo antes que os reis descobrissem a
traição do tio Fran. Só precisava descobrir como.
Tio Fran insistiu em ajudar com a bagagem e
juntos nós seguimos na direção do porto, onde
meus pais aguardavam no veleiro para nos conduzir
à nossa nova vida.
Eu só lamentava não poder ver a cara dos
comissários de bordo, quando a gente tentasse
embarcar com um tridente no avião.

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Capítulo 70

Rickett

Meu celular tocou na mesinha de cabeceira, me


fazendo saltar do meu cochilo.
Como o Madhun descobriu o meu número? Ah,
eu iria me ferrar!
Espera, não era nenhuma ligação, apenas o
alarme do meu remédio.
Suspirando em alívio, eu abri o frasco de
supressores de cio e tomei um comprimido com um
copo de água.
Ah, estes comprimidos foram a melhor
descoberta da minha vida.
Ainda um pouquinho nervoso, eu verifiquei o
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histórico de chamadas. Foi uma estupidez sem


tamanho ligar para aquele cara com o meu número
pessoal. Apenas quando ele atendeu que fui
perceber a armadilha onde me joguei. O General
nunca se interessou em manipular o Ronan através
de mim, o número do Madhun em si era o
verdadeiro teste. Manter contato com o inimigo era
um crime gravíssimo, passível de prisão. O General
queria testar minha esperteza em manter o segredo
e também testar o meu caráter, afinal qualquer
palavra errada colocaria em xeque nossa vantagem
estratégica.
Era responsabilidade demais. No fundo, acho
que tive certeza de que era um número falso. Seria
típico do General me avacalhar com um número de
tele-peixe, e entretanto o número era real. Como ele
conseguiu o contato de um tritão eu nem conseguia
imaginar, e também não compreendia a confiança

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do General em mim. Foi quando notei que meu


celular não era seguro.
Por sorte eu consegui perceber o truque antes
de dizer qualquer palavra, não que isso me salvasse
por completo. Pelo menos conheci o rosto do
misterioso Madhun, e com ele a maior das minhas
surpresas: ele era cego.
Para a ligação seguinte eu decidi abandonar a
burrice e comprei um celular restrito. A ligação
falhou tantas vezes que eu quase desisti, mas então
ele atendeu. Então tudo o que planejei dizer
explodiu com o meu nervosismo. O cara deve ter
me achado louco, e pra piorar ele era inteligente pra
caralho. Com minhas poucas palavras ele montou o
cenário completo, será que todos os tritões eram
espertos assim, ou eu quem era retardado? Precisei
desligar antes que alguma bobagem me
incriminasse.

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Eu gostaria de ter entendido Madhun da mesma


forma que ele me entendeu. Ele não nasceu cego.
Alguém lhe causou aquele ferimento e, pela tristeza
dele em admitir isso, era óbvio que se tratava do
Ronan.
Por que Ronan chorava por alguém que desejou
morto? E por que a vítima ainda chorava por ele?
E se Ronan não suspeitasse que Madhun ainda
estava vivo?
“Grhn… não puxa os cobertores, seu merda.”
Resmungou Ronan, ao meu lado.
Eu soltei a coberta e Ronan se enroscou nela
como um rolinho de sushi, me deixando exposto ao
frio da noite.
Mas que putão desgraçado. Eu murchei os
lábios e acabei lembrando do nosso último
entardecer juntos, o que dissipou boa parte da
minha raiva.
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Após uns dois dias sem querer conversa, Ronan


acabou perdoando a minha grosseria. Ele nunca
contou nada sobre o Madhun e nem tentou
descobrir como eu sabia o nome, como se recuperar
a minha presença lhe fosse o suficiente. Ronan
continuou com seus supostos afazeres reais e eu
com a tediosa vida que era esperada de um ômega
da realeza. Durante este tempo eu tentei me ensinar
a ler e acabei desistindo.
Por fim, na tarde anterior, eu criei coragem de
pedir ao Ronan que me ensinasse.
Eu ainda não conseguia acreditar no quanto ele
ficou feliz. Ele pensava que eu havia descartado o
livro e ficou estarrecido quando o devolvi a ele,
com as páginas enrugadas de tanto que tentei
entendê-las. Ele me convidou ao seu quarto pela
primeira vez e, aquecido comigo sob os cobertores,
começou a explicar.

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Foi aí que tudo desandou de um jeito bem


esquisito.
Horas ouvindo coisas como Você é idiota, seu
estúpido?, ou então Como alguém é tão retardado
para não saber disso?. Ronan não conseguia
exercer o mínimo de paciência ou boa educação, e
claro que eu não consegui deixar barato e acertei o
livro na cabeça dele.
E de algum jeito nossa briga resultou em
pegação, e nossos corpos esfregando, unhas
riscando a pele e Ronan me beijando com tanta
violência que parecia querer arrancar a minha
língua.
Meu corpo esquentou só de lembrar e eu tentei
compreender como não acasalamos. Era a ocasião
perfeita, e ainda assim uns pensamentos esquisitos
atrapalhavam meu clima. Mesmo naquele instante,
em plena madrugada, meus devaneios insistiam em

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voltar.
A bunda do meu predestinado era tentação
demais.
“Eu também quero me cobrir.” Eu puxei a
orelha daquele idiota que fingia dormir. “Libera o
cobertor ou vou cuspir no seu ouvido, seu babaca.”
Ronan girou o corpo até soltar as cobertas,
continuando de costas para mim. Até que eu estava
aprendendo a domar aquela criatura, não é mesmo?
Eu me aninhei no calor gostoso e impregnado
em seu cheiro, o que apenas atiçou meus hormônios
ainda mais.
Com muita paciência eu esperei o sono voltar,
mas apenas Ronan apagou de verdade.
Ah, por que não aproveitar um pouquinho?
Eu desci a mão pelo relevo de suas costas,
memorizando a rigidez e textura de cada músculo, e

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continuei descendo meu toque, incapaz de me


interromper.
Sorrindo como um desavergonhado, eu enfim
cheguei no meu ponto de obsessão: a bunda
branquela e redondinha do Ronan, tão musculosa
quanto o resto dele. Até que era bem empinada,
para um alfa, e Ronan sempre andava tão reto e
arrogante, como se pedisse atenção para trás,
ostentando a delícia que era seu par de glúteos.
Ronan grunhiu sonolento e espreguiçou o
corpo, continuando a dormir.
Heheh, ele secretamente curtia isso, eu tinha
certeza. Aproveitando a brecha eu deslizei a mão
ainda mais fundo, aconchegando meus dedos na
fenda quente de suas nádegas. Era seco, sedoso e
sem nenhum pelinho. E quando a ponta do
indicador encontrou uma certa textura enrugada, eu
quase gozei. O cuzinho do Ronan parecia bem

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apertado.
Eu considerei bater umazinha enquanto
mantinha meu toque bem ali, naquela entrada
proibida, mas nunca seria o suficiente. Meu
predestinado era delicioso demais, eu merecia usá-
lo até os limites da minha satisfação.
“Ei, Ronan… quer me dar?” Eu sussurrei bem
baixinho.
Ronan resmungou alguma coisa, respirando
suave durante o seu sono.
Aquilo só podia ser um sim! Mal controlando a
minha empolgação, eu pensei em todas as muitas
possibilidades. Meu pau latejava só de eu imaginar
o anelzinho apertado o envolvendo. Ronan devia
ser quentinho por dentro, tão quente quanto o calor
de seus beijos.
Hum, beijos, essa era a melhor ideia de todas.

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Eu deslizei por baixo dos cobertores até alinhar


meu rosto com os dois montinhos de carne. Com
cuidado eu espacei as nádegas e tentei olhar de
perto, mas naquela escuridão não se podia ver nada.
Oh, bem… eu não precisava ver para obter o
que me apetecia.
Arriscando acordar aquele príncipe marrento,
eu empurrei Ronan até que ele deitasse de costas
para cima, e então dei início aos trabalhos.
Eu aproximei os lábios da nádega macia e subi
uma lambida, segurando os meus próprios gemidos.
Era gostoso demais, o meu pau e a minha própria
bunda umedeciam pela excitação extrema,
querendo muito mais que uma provocação.
Com uma das mãos eu espacei bem a nádega do
Ronan, e com a outra eu comecei a me tocar lá
atrás, penetrando um dedo na minha fresta
encharcada e viajando em mil fantasias, dentro da
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minha mente. Tendo espasmos de tanto êxtase, eu


segurei meu orgasmo e continuei lambendo, desta
vez passando direto pelo asterisco enrugado do meu
alfa.
Ronan nem reagiu, o que foi um pouquinho
decepcionante. Eu lambi de novo e grudei os
lábios, avançando em um beijo que, se fosse em
mim, me faria ver todas as estrelas do céu.
Os estalidos úmidos da minha boca no rabo
gostoso do Ronan me deixavam à beira de pirar, era
quase impossível conter minha explosão e ainda
assim eu segui forte e dedicado, saboreando a parte
do meu predestinado que eu mais desejava violar.
O prazer logo transbordou além do meu
autocontrole e eu me masturbei rápido, querendo
aproveitar ao máximo apesar do barulho que eu
estava causando.
Óbvio que abusei da minha própria sorte,
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porque Ronan acordou e a emoção que ecoou em


mim era a de alguém putíssimo.
“Rickett!! Mas o que… ah…” Ronan tentou
virar o corpo, mas tremia demais para isso.
“Empina a bunda pra mim.” Eu mandei.
Espera, o que foi que eu disse? Algo não
parecia muito certo com os meus hormônios. Antes
que eu me desculpasse, porém, Ronan moveu-se
embaixo de mim.
Não. Nem pensar. Ronan realmente estava me
obedecendo??
“Que merda você está fazendo, aí atrás?” Ele
jogou a coberta no chão e espiou por cima do
ombro, super vermelho.
“Vou te fazer gozar.” Eu devolvi, confiante.
“Você… você é louco? Um ômega não… ah…
ah…”

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Heheheh, os gemidos do Ronan eram


divertidos. Eu escolhi ignorar as bobagens
machistas dele e continuei lambendo, o que foi a
melhor decisão de todas.
Eu sentia, através da nossa ligação, o quanto o
meu alfa se excitava com a minha língua. E com
Ronan desperto eu podia brincar de verdade, então
contornei minha mão pelos seus quadris e mexi no
seu mastro, que estava muito mais duro do que eu
previa.
Pode gozar, meu alfa, não tenha vergonha. Eu
falei, através da nossa telepatia. Minha boca estava
ocupada demais, no momento.
“Isso é errado demais.” Ele disse.
Você vai gozar e relaxar bastante esse cuzinho
seco, e então eu vou te comer. Eu pensei,
novamente me assustando com a minha
personalidade.
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Algo realmente não estava certo.


Ronan gemia e se contorcia todo, fincando as
unhas na fronha do travesseiro e torcendo até os
dedinhos dos pés. Seu mastro latejava nas minhas
mãos, tão ansioso por liberação que eu acabei tendo
outro orgasmo.
Em breve minha mão se cobriria na semente do
Ronan, e sua entrada espremeria a minha língua
invasora, pulsando no ritmo de seu clímax
pecaminoso. Eu queria conhecer este lado do
Ronan, seus desejos mais secretos e suas
tolerâncias mais inesperadas.
Mas antes que eu conseguisse fazer Ronan
gozar, ele segurou meu pulso e nos girou na cama,
me derrubando de costas no colchão.
Ronan segurou os meus pulsos em cima da
cabeça e montou em cima de mim.
“Ei, qual é o seu problema?” Eu rosnei na cara
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dele, revoltado.
“Qual é o seu problema?” Disse ele, tão
vermelho e confuso que eu não conseguia me
enraivecer de verdade.
“Eu não sei!!” Eu gritei. “Mas você estava
curtindo, me deixa continuar.”
“Que absurdo. Eu sou o alfa, você é o ômega!
Quem come por aqui sou eu!”
“Ah, olha quem sabe das coisas, o alfa comedor
que não me comeu uma única vez!”
Ronan rugiu na minha cara, expondo seus
caninos ferais.
Eu nem pisquei pra grosseria dele, porque eu
mesmo estava puto pra caralho.
“Me solta.” Eu esbravejei.
“Por que deveria, seu ômega despudorado?” Ele
rosnou, se fazendo de magoadinho. “Eu devia ter te
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expulsado antes de dormir!”


“Mas não expulsou, e agora estamos pelados e
duros na cama, fervendo e com energia para
gastar.” Eu revirei os olhos, sarcástico. “Oh, eu me
pergunto como resolver este problema.”
“Você se acha muito esperto.”
“Não, só te acho burro, mesmo.”
Ronan rugiu como uma besta feroz, fazendo
respingar saliva na minha cara e espremendo meus
pulsos com um pouco de força, só pela ameaça. Ele
que fosse louco de me machucar, porque meus
joelhos já estavam na mira das bolas dele.
“Tudo isso é vontade de me dar, meu alfa?” Eu
provoquei, bem calminho. “Ou é inveja, porque
faço um serviço melhor que o seu?”
“Você vai ver quem faz um serviço melhor,
ômega dos infernos.” Ronan me soltou e saiu de

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cima de mim. “Empina essa bunda agora, e eu não


vou aceitar resistência.”
Ahm… ok? Eu não entendi o tom de ameaça
porque era exatamente o que eu queria desde
sempre, mas deixei que aquele ridículo tivesse a
ilusão de controle e obedeci.
Ronan parou atrás de mim e agarrou minha
bunda com tanta força que eu gritei de susto. E
então ele furiosamente abaixou a cabeça e começou
a me lamber.
Quê?? Eu mordi o travesseiro e gemi de tesão,
mesmo que não entendesse porra nenhuma do que
estava acontecendo.
De algum jeito, Ronan confundiu a si mesmo a
ponto de lamber o meu cu, e quem era eu para
reclamar??
A língua daquele idiota percorria meus pontos
mais sensíveis, massageando atrás das minhas bolas
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e ameaçando penetrar no meu anel úmido. Com


certeza o cheiro do meu lubrificante, imperceptível
para mim, eletrizava o nariz de alfa do Ronan e o
enlouquecia de tanto prazer, e eu gostava deste meu
efeito nele. Ronan gemia contra a minha bundinha
sensível, beijando com a mesma ferocidade com
que beijava meus lábios.
Era delicioso além de qualquer imaginação.
Urrando contra o travesseiro eu gozei uma vez, e
outra, e mais uma, até que uma poça branca
inundou o colchão. E ainda assim Ronan
continuava dedicado, tendo seus próprios orgasmos
que ecoavam dentro de mim. Era loucura demais.

<< E então, ainda se acha melhor do que eu? >>

“Ah… tá bem… bem mais ou menos…” Eu


sorri com implicância por cima do meu ombro.
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“Desse jeito eu… ah… não vou liberar, não…”


Ronan levantou o rosto da minha bunda e secou
a boca com o braço. Seu olhar em mim era o de
uma gaivota à espreita, dois rubis de fogo que
refletiam sua indecisão. Ronan não sabia como
proceder, confundi-lo era fácil demais.
“Você é o meu ômega, se eu quiser te dominar,
eu vou.”
“Estou apavorado.” Eu nem disfarcei meu tom
de sarcasmo.
“Se prepara pra gozar até virar do avesso, seu
atrevido.”
Aquela talvez fosse a ameaça mais bizarra do
universo, mas eu consegui engolir o riso e manter o
olhar de desdém.
“Faça o seu pior.” Eu disse.
Ronan soltou um rosnado de ódio e espaçou

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tanto as minhas nádegas que começou a doer. Antes


que eu reclamasse ele se emperrou para a frente,
enterrando aquele poste de carne de uma só vez,
sem pausa nem misericórdia.
Eu iria matar aquele filho da puta, mas não sem
antes gozar umas trinta vezes.
“O que foi, Rickett? Você aguentou fácil, na
sala do trono.” Ronan me espremeu conta a virilha
dele, só faltava enfiar as bolas, também. “Meu
quarto não é um espaço público o suficiente?”
Esquece, eu não mataria o Ronan, mas com
certeza faria bom uso da mordaça que comprei.
“Meu predestinado, vá com calma…” Eu gemi,
dolorido e meio assustado. “É difícil, assim.”
Ronan continuou paradinho atrás de mim,
enquanto sua vara gigante preenchia metade do
meu ventre, ou era essa a impressão agoniante que
eu tinha, submisso e aprisionado sob o seu corpo
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tão mais forte.


“Você quem é difícil.” Ele falou, estranhamente
sob controle. “Também sinto a sua alma, Rickett.
Você começou curtindo, e agora está odiando.”
Eu franzi a testa. Era difícil pensar com uma
vara gigante dentro de mim, e a intenção do Ronan
não era me forçar? Qual o sentido dele se importar
comigo?
“É degradante, só isso. Não se preocupe com as
minhas bobagens.” Eu ri com timidez e vergonha.
“Eu… eu meio que me sinto um cachorro.”
Ronan bufou, exalando incômodo e raiva.
Pensando ter resolvido o problema, eu relaxei o
corpo e escondi o rosto no travesseiro, esperando
que Ronan me semeasse logo, só que Ronan saiu de
mim completamente e deitou ao meu lado.
“Perdão, meu predestinado, eu o ofendi de

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alguma forma?” Eu questionei, desta vez com


sinceridade.
“Você vai me cavalgar.” Ele disse com uma voz
mandona.
A surpresa quase me paralisou. Eu sorri para
esconder minha comoção.
“Ei, ei, vai me deixar ter todo o trabalho de
novo? Seu alfa preguiçoso.” Eu disse ao subir nele,
mirando o corpo na posição perfeita.
“Não pensa merda, seu ômega problemático do
caralho.” Ronan agarrou firme a minha cintura. “Eu
posso devorar seu rabinho branquelo em qualquer
posição.”
E antes que eu compreendesse o comentário,
Ronan arqueou o quadril para cima, e para baixo, e
para cima, me empalando vez após vez, até eu
gritar de tanto prazer. Apesar da posição incomum,
Ronan continuou me comendo assim por um
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tempão, e quando ele se esgotou foi a minha vez de


tomar controle até as minhas pernas falharem.
Aquela foi a noite em que recebi a semente pela
primeira vez, e também foi uma das melhores
noites da minha vida. Quando finalmente cansamos
o sol já brilhava no fim do horizonte, e novamente
Ronan permitiu que eu dormisse ao seu lado.
A diferença foi que desta vez nós adormecemos
abraçados no calor um do outro.

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Capítulo 71

Faltavam dois dias para a festa e eu ainda não


sabia o que vestir. Eu sempre curti roubar trajes
elegantes nas lojas, mas sempre doava para alguma
criança menor, trocava por comida, ou então algum
outro órfão roubava de mim. Vaidade costumava
ser a última das minhas preocupações, mas como
um príncipe eu não podia passar vergonha. Minha
reputação e a do Ronan já eram uma tragédia total,
e como ele se recusou a me acompanhar na festa,
eu precisava causar uma boa impressão por nós
dois.
Mais uma vez eu percorri meus casacos no
armário. Minhas habituais roupas de couro e pinos
metálicos dividiam espaço com casacões de alta
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costura, que eu apenas comprei porque gastar


dinheiro era incrível. Sobretudos de pele de raposa,
echarpes de couro de mink, dúzias de botas
felpudas dos mais variados modelos… eram roupas
bonitas, embora eu preferisse minhas jaquetas dos
tempos da bandidagem, mas uma festa no palácio
exigia um nível extremo de boa apresentação.
Eu encontrei meu celular na cama e liguei para
General, a fim de convidar o pastor Enan para uma
tarde de compras. Infelizmente levei dois baldes de
água fria: primeiro que o pastor Enan estaria
ocupado o dia todo em uma missão secreta, e
segundo que o General Cordelen adorou a ideia de
fazer compras e insistiu em ser meu acompanhante.
Resumo daquela breve ligação: eu me fodi pra
caralho.

****
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Aquele não era um dia de descanso, e ainda


assim o General Cordelen me seguia animado com
seu traje militar enquanto eu verificava as araras da
Glaciers por alguma roupa que não fosse horrível.
“Ei, ei, Rickett, o que acha desta aqui?”
Perguntou o General.
Eu me virei para olhar e suspirei, aborrecido.
Mais uma túnica cinza e sem graça? A Glaciers era
a loja de departamentos mais genérica de Roori, e
ainda assim o General encontrava roupas
especialmente toscas.
“Meus súditos vão preferir algo mais
chamativo.” Eu disse, na esperança de que a
palavra súditos o fizesse me respeitar um
pouquinho. “O que a família real vestiu nas últimas
festas que você compareceu?”
O general sorriu para mim de um jeito torto e
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meio distante.
“A única realeza de Roori é o Ronan, e por
consequência você também. Quando assumirem o
trono, você inclusive adotará o seu sobrenome
Faroé.”
“Faroé-Makaira.” Eu o corrigi.
“Não sejamos polêmicos hoje, Rickett. Você
não sente honra em ser amigo de gente importante?
Não é qualquer um que escolhe roupas na
companhia de um general.”
“Eu sou um príncipe, quem deveria se sentir
honrado é o senhor.” Eu fiz um beicinho irritado, e
então algo interessante surgiu na minha visão. “Ei,
o que acha desta?”
Eu peguei o cabide e ergui o casaco diante do
meu corpo. Era um lindo casacão vermelho com
gola de pele-de-raposa sintética, diversas fivelas
douradas e rendas nas mangas.
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“É ainda mais escandaloso que este seu cabelo


de asa de gaivota.” O General coçou o queixo,
avermelhando. “E pretende usar um saiote longo
por baixo? É tão curto que mostraria os seus
joelhos.”
“Nossa, o senhor fugiu de alguma seita
religiosa?” Eu brinquei, analisando as costuras da
roupa. “Os ômegas moderninhos vestem casacos
bem mais curtos, mas tem razão… acho que
moderninho não é a escolha ideal, em um baile da
realeza.”
“Acho que a Glaciers não é a escolha ideal.” O
General pegou uma camisa sobre o balcão e torceu
a boca para uma mancha misteriosa. “Ronan
controla a sua mesada tanto assim?”
“Na verdade sou eu quem controla a… ahm…
eu tenho dinheiro.” Eu sorri nervoso, me lembrando
do meu breve encontro com Ronan, naquela manhã.

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Ele pediu nove mil Fisks para fazer alguma coisa e


eu ainda o questionei, embora tecnicamente o
dinheiro fosse dele. Ronan respondeu me
mandando tomar no cu e, sinceramente, acho que
eu mereci. No final eu emprestei oito mil fisks e
pedi o troco.
“Bem, imagino que seja uma quantia adequada,
o povo de Cratília paga impostos consideráveis.” O
General devolveu as roupas ao cabideiro. “Yoshan
está me sugerindo uma loja melhor à duas quadras
daqui. Vamos.”
Eu segui o General pelas ruas brancas de Roori,
atraindo o olhar fascinado de diversos selkies que
nunca avistaram o seu príncipe pessoalmente.
Alguns acenaram para mim e eu acenei de volta.
Comprar roupas até que podia ser divertido.

****
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Nossa, onde foi que o General nos meteu?


Nunca imaginei que existisse uma loja tão elegante
naquela região, ou já teria roubado alguns mimos.
Heheh, não existia tarde demais para se obter
algumas lembrancinhas. Eu me inclinei próximo a
um mostruário de gravatas de seda e o General foi
rápido em estapear a minha mão.
“Rickett, comporte-se!” Repreendeu o General.
“Que tipo de general bate em um príncipe?” Eu
massageei as costas da mão.
“Enan insistiu que eu construíssemos uma
relação de amizade, não torne isso ainda mais
impossível!”
Eu abri a boca, chocado. Então por isso o
General quis passar o dia comigo? Para
supostamente conquistar um amigo? Ele pensava

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mesmo que eu cairia em um truque tão besta?


Ah, aquele cara merecia um barraco, e ele
estava diante do maior barraqueiro do Círculo Polar
Antártico. Mas antes que eu roubasse aquela
gravata apenas para contestá-lo, uma sereia selkie
magríssima e com cílios enormes apareceu e
inclinou o corpo em uma profunda reverência.
“Digníssimo Príncipe Rickett Walrosse, que
honra imensurável recebê-lo em nossa humilde
boutique.” Disse ela.
“Ah… o… obrigado…” Eu cocei atrás da
cabeça, encabulado, e então senti algo macio na
minha palma. Eu estava segurando aquela gravata
chique.
“Por favor, aceite esta gravata como cortesia da
casa, se for de seu agrado. Acredito que o motivo
de sua visita seja a festa de comemoração militar?”
“Não, não precisa, ahm…” Eu respirei fundo e
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devolvi a gravata toda bagunçada ao mostruário,


tentando me lembrar do meu novo eu. Um príncipe
não podia se intimidar com suntuosidades. “Ah,
pois estamos aqui justamente pelos seus melhores
casacos. Couro de fuinha, cintura sob medida…
Não economize dinheiro conosco, porque eu sou o
grandioso príncipe Rickett, e esta comemoração
nem aconteceria sem a genialidade do incrível
General Cordelen.”
A atendente olhou brevemente para o General e
voltou sua atenção para mim.
“Recebemos esta semana um deslumbrante
sobretudo com incrustações de pérolas e paetê-do-
mar, assinado pelo conceitual estilista Rikarr
Seebar. É um modelo numerado prêt-à-porter de
altíssima costura, você será o jovem ômega mais
deslumbrante de toda a Cratília.”
“Só vou levar se for bem caro.” Eu mantive

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meu melhor olhar de eu sei o que estou fazendo.


A sereia prestou reverência novamente e nos
conduziu pela loja, que era um chiquérrimo
ambiente com pé-direito duplo, luminárias de
cristal, casacões fantásticos em manequins hiper-
realistas e paredes de tijolo à mostra, porque
aparentemente esquecer do reboco era algo
elegante.
“Aquela vaca marinha esqueceu de te
cumprimentar?” Eu sussurrei para o General.
“Não tem importância.” O General deu de
ombros e continuou me acompanhando em meio
aos diversos mostruários sofisticados, alguns deles
protegidos por redomas de cristal.
Eu suspirei, meio incomodado, esperando
encontrar logo o tal casaco de um zilhão de fisks,
ou sei lá. Por algum motivo, eu já não me sentia tão
empolgado sobre roupas caríssimas. Pelo menos
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não naquele lugar.


Após percorrer alguns corredores de decorações
pedantes e exageradas, nós chegamos em um amplo
salão bem iluminado e completamente branco. No
centro, sobre uma plataforma, havia o único objeto
em todo o enorme espaço: um suntuoso casaco de
tecido escuro e pedrarias verdes e luminosas. Até
mesmo eu, que não entendia nada de moda, quase
perdi o ar para uma vestimenta tão magnífica.
“Nossa, olha pra isso, General.” Eu cheguei
mais perto e peguei as mangas, abismado pela
qualidade do tecido. “Olha o tamanho dessas
pérolas! E essas rendas muito loucas! E essas
pedrinhas verdes, que…”
Eu passei o olhar pelo General e sua expressão
causou arrepios em mim. Ele estava paralisado e
embranquecido. Dava pra notar seu esforço em
manter a pose firme enquanto ele reparava nas

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pedrinhas do casaco.
Desconfiado, eu percorri o dedo pelos detalhes
verdes da gola, sentindo uma textura bem familiar.
Aquilo não eram pedrinhas.
“Escamas de tritão?” Eu perguntei, em choque.
“É a última tendência, que marcará presença na
próxima Semana da Moda de Roori. Os altos
designers batizaram de paetê-do-mar, disponíveis
nas cores verde, verde-com-lilás e azul.” A sereia
retirou o casaco do manequim e me entregou,
mostrando bem de perto o detalhe das escamas.
“Imagine o glamour em protagonizar sua primeira
festa como príncipe vestindo a última palavra em
moda? Certamente causará uma explosão de
popularidade neste tipo de material.”
Horrorizado, eu passei meu dedo pelas camadas
verde-esmeralda.

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“Não são apenas escamas. É couro de tritão.”


“Costurar escamas uma por uma não causaria o
mesmo impacto. Perceba como uma crítica social,
se preferir. Os tritões ainda hoje vestem o nosso
couro, então por que não brincar com isso, quando
a matéria prima se tornou tão abundante em tempos
recentes?”
Mesmo silencioso e mantendo a boa postura,
General esbranquiçou até lembrar o meu próprio
tom de pele.
Eu joguei o casaco na cara daquela vagabunda.
Que soltou um ganidinho confuso e ficou me
olhando como se minha reação fosse uma surpresa.
“O modelito não lhe agradou, príncipe
Rickett?” Perguntou ela.
“General, entre em contato com seus
subordinados. Quero esta loja pegando fogo antes
do anoitecer.”
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“…Como é?” O General aos poucos escapou do


transe.
“Príncipe Rickett, peço perdão. Se houver
algum outro modelo de seu interesse, ficarei feliz
em…”
“Eu sou o príncipe, não sou? Esta loja vai para
o chão, assim como qualquer outra vendendo
essa… essa… barbárie!” Eu gritei, fervendo de
ódio.
“Príncipe Rickett, eu lamento tê-lo
desagradado.” A sereia começou a chorar lágrimas
pretas, derretendo aquele rímel horroroso. “Não se
deixe manipular por criaturas como essa. Os tritões
nos usaram desde sempre, então…”
“Nós somos melhores que os tritões!! E o meu
general também é, assim como todos os tritões que
abandonaram os mares quentes desejando um
oceano melhor e mais justo! O General Cordelen
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possui mais nobreza do que muitos selkies e você


feriu os sentimentos dele, sua Barbie desalmada!”
Eu marchei para fora daquela espelunca,
fervendo de ódio enquanto aquela ridícula chorava,
abraçada em seu casaco igualmente ridículo.
O General me seguiu para fora da loja.
“Foi uma linda demonstração de poder, Rickett,
mas ameaçar incendiar o comércio dos súditos não
lhe trará muita popularidade.”
“Não foi uma ameaça. Este lugar vai queimar, e
eu quero este tal de Rikarr Seebar nos calabouços.
Você vai fazer isso hoje mesmo.”
“Está tentando mandar em mim? Isto é fofo,
Rickett, mas você ainda não subiu ao trono.” O
general sorriu, fingindo implicância. Aquele idiota
orgulhoso lutava mesmo para esconder sua
gratidão.

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Eu rosnei de ódio. Nunca antes eu me interessei


por títulos, mas agora eu só queria que o Imperador
Macalor capotasse logo, para eu colocar o mundo
no lugar certo.
“Quando eu for imperador ninguém será
proibido de ajudar órfãos e ninguém vestirá o couro
dos nossos inimigos. E todos os tritões do bem
serão bem-vindos, e discriminar os meio-selkies
será o maior dos crimes.”
O General afagou minha cabeça, bagunçando os
espetos que eu empinei com tanto cuidado.
“Seu coração está no lugar certo, Rickett, mas o
cérebro ainda não.” O General seguiu comigo pela
calçada enquanto a neve começava a cair em
nossos ombros. “Me orgulha profundamente notar
o seu crescimento.”
“Sinceramente, para um idiota que só implica
comigo, você não é…”
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<< AAAAAH!! SOCORRO!! Isso dói! É uma


emboscada!! Uma emboscada no meu quarto!!
Aaaaaaahhh!!>>

Meu coração deu um salto. Ronan?? Meu


predestinado berrava em desespero através da nossa
telepatia.
“Foi tudo um truque?” Eu encarei o General,
espantado. “Você me distraiu para atacarem o
Ronan?”
O General pareceu confuso a princípio, então
expandiu os olhos e se encolheu em uma pose
defensiva.
“Rickett, não é o que está pensando. Vamos
passear mais, tem uma loja de sapatos aqui perto.”
“Por que eu não ouvi aquela atendente? Você é

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igual a qualquer outro rabo-de-escama, um


psicopata que só sabe enganar e ser cruel!” Eu
gritei na cara dele, considerando rasgá-lo em
pedaços, mas podia fazer isso mais tarde.
Me sentindo o pior dos trouxas, eu corri de
volta ao palácio, enquanto Ronan não parava de
implorar pela vida.

****

Com o coração na boca, eu disparei pelos


corredores do palácio. Os gritos na minha cabeça
ecoaram com os gritos reais vindos de dentro do
quarto do Ronan.
Eu escancarei a porta e saltei para dentro, já
pegando um dos livros na estante para quebrar na
cabeça do invasor.

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Mas… o que porra estava acontecendo?


Não havia invasor nenhum, quer dizer, exceto
pelo pastor Enan. Ele estava montado em cima da
cauda do Ronan com uma pinça esquisita nas mãos,
e havia escamas vermelhas por toda a cama e
também no chão.
“O que caralhos…?” Eu perguntei.
Ronan me olhou com lágrimas assustadas nos
olhos.
“Socorro, Rickett.” Resmungou ele.
“Nossa, você chamou seu predestinado por
telepatia? Que golpe baixo, Príncipe Ronan,
estragou a nossa surpresa.” O pastor puxou uma
escama da bunda do Ronan, fazendo-o gritar.
Eu deixei o livro cair no chão, perplexo demais
sobre exatamente tudo. O sangue em todas aquelas
escamas me assustava, e a dor do Ronan ecoava

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como alfinetadas no meu próprio peito, mas o


pastor era uma varetinha frágil perto do Ronan. Se
houvesse qualquer perigo real Ronan o destroçaria
em mil partes, ou simplesmente retornaria à sua
forma terrestre.
“Ahm… que tal algumas explicações?” Eu
disse.
“Oi, Ricky! Basicamente, seu predestinado é
um bebê chorão e sem noção de ridículo.” O pastor
riu e puxou outra escama, fazendo Ronan morder a
fronha do travesseiro e debater sua barbatana em
desespero. “Cordelen e eu planejamos uma surpresa
mútua para os dois pombinhos, mas alguém aqui
não sabe lidar com uma dorzinha no pompom.”
“Cuidar da minha aparência não é a mesma
coisa que arrancar meus pedaços, seu cretino
retardado!” Ronan rugiu para o pastor.
Nada impressionado, o pastor puxou uma
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escama enorme na altura das coxas.


Ronan gritou agudo como um bebê.
“Você deveria se envergonhar, Príncipe Ronan.
Qual alfa de respeito predestina sem descamar
antes? Seu ômega é um presente divino que merece
o melhor de você.”
“E o que aquele selkie encapetado entende de
escamas?” Ronan tremia, tentando não chorar. Ele
me encarou como o olhar enorme e úmido de um
bebê-foca. “Manda ele parar, Rickett!”
“Arranque todas as escamas e faça ele engolir.”
Eu afinei os olhos, áspero e entediado.
Ronan continuou resmungando, então eu
apenas fui embora e bloqueei nossa ligação,
sentindo uma pedra no meu peito.
Eu havia cometido um erro terrível.

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****

A nevasca havia intensificado, afastando o povo


das ruas. Uns poucos selkies passeavam com
guarda-chuvas e botas largas de neve pelo bairro
comercial, passando reto por uma figura solitária e
coberta de neve em seu traje negro.
O General permanecia exatamente onde eu o
escorracei com tanta crueldade.
Eu cheguei até ele e uma bola na garganta
travou minha voz. Nós nos olhamos e eu engasguei
com o peso das minhas lágrimas.
“General… eu… eu…” Falei, soluçando.
O General Cordelen afagou meu cabelo de
novo, terminando de bagunçar meu topete.
“Desculpas aceitas, Rickett.” Ele sorriu para
mim. “Que tal visitarmos aquela loja de sapatos?”

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Eu sequei minhas lágrimas antes que


congelassem e lhe devolvi o mesmo sorriso, o
acompanhando para desbravar as muitas lojinhas de
Roori.
O General era tão implicante quanto afetuoso, e
tão rude quanto solidário. Era difícil lidar com ele,
e impossível esquecer de quando ele me condenou
aos calabouços. Mas, diferente do contraste da neve
com seu uniforme, talvez o General não fosse tão
preto no branco quanto aparentava.
Apesar de complicado e muito irritante, o
General Cordelen talvez fosse o meu melhor
amigo.

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Capítulo 72

Levi

O navio balançava e empinava sem parar e as


ondas chicoteavam com força a janelinha redonda
do meu quarto. Pelo visto seria mais uma noite sem
conseguir dormir.
Eu saí debaixo dos cobertores e vesti o casacão
que o Tenente Maron me conseguiu, uma enorme
roupa de couro felpudo e acobreado que eu
esperava que fosse sintético. Eu não queria
depender dos favores dele, mas o sobretudo que eu
vestia antes nunca me protegeria daquele frio. E
aquele sim era o maior frio que eu já havia sentido
na minha vida, nem todas as roupas do mundo
impediam o meu nariz de congelar.
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Eu já considerava pedir calças mais grossas e


outra camada de cobertores, mas preferia evitar. O
tenente sempre foi bastante solícito com os meus
pedidos, mas já haviam se passado duas semanas
desde o meu sequestro e eu temia as consequências
de cansá-lo com os meus caprichos. E isso
desconsiderando aquele pirralho idiota que era
sobrinho dele. Ele não curtia a minha cara desde o
dia um.
Encapotado nas minhas muitas camadas de
roupa eu me aproximei da janelinha do quarto,
minha única ligação com o mundo exterior.
Raramente se podia ver algo além do céu subindo e
descendo, e naquela noite de tempestade a
paisagem era ainda mais tediosa: apenas o preto de
uma noite sem estrelas e as ondas rebeldes
golpeando o vidro.
Os rangidos de madeira e o som de água

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estourando nas paredes me deixaram com vontade


de fazer xixi, mas novamente eu precisava me
segurar. Geralmente era o pirralho quem me
atendia durante a noite e seu humor diminuía ainda
mais durante as tempestades.
Apesar de tudo, talvez eu devesse chamá-lo
mesmo assim. Pedir para usar o banheiro era uma
boa desculpa para conversar, sair um pouco
daquele quarto com cheiro de barril de vinho, ver
outra pessoa que não fosse eu mesmo no reflexo da
janela.
Droga, se eu começava a sentir falta até do
Cinnamon, era porque a demência começava a me
atingir. Dois dias de castigo na fazenda já me
deixavam louco, imagina duas semanas, e em um
maldito navio?? Não havia nem televisão naquele
quarto. Nada! Apenas a cama, um armário e um
frigobar vazio. Não que os soldados albinos –

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selkies como o Rayner – se esquecessem de me


alimentar, mas o que eu podia fazer naquele tédio,
além de ficar comendo até acabar tudo?
Eu olhei para baixo, onde a argola metálica
apertava o meu tornozelo. Uma espessa corrente
ligava aquele grilhão desconfortável a um gancho
no chão. Não havia como soltar a argola ou o
gancho, nem quebrar a corrente como Rayner havia
feito no farol. Eu já havia tentado de todas as
formas.
A porta do quarto era de madeira pesada, com
uma janelinha de grade. Apesar da aparência
resistente os tritões nunca a trancavam, não havia
motivo quando eu mesmo estava acorrentado como
um cachorro. O outro lado era o corredor que
conduzia ao lado externo e também aos outros
quartos e ao banheiro. Pelo que consegui reparar, o
meu quarto era o maior devia pertencer ao capitão

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antes do meu sequestro.


Eu sentei de volta na minha cama, com o olhar
na única lâmpada do teto. Talvez eu devesse ser
grato pelas acomodações confortáveis, mas era
difícil ver o lado positivo da vida quando eu estava
sendo arrastado para um lugar desconhecido, por
militares de uma espécie também desconhecida, e
ninguém me explicava nada. Se pelo menos o
Rayner estivesse ali, ele…
Pensar no Rayner me fez soluçar. Droga, eu não
devia lembrar dele e nem dos meus pais, mas
tentando evitar eu acabei pensando neles mais
ainda, e meus soluços se tornaram um choro triste e
sentido.
Eu me encolhi sobre os cobertores e abracei
meus joelhos, me gastando de tanto chorar. Papai
Hian… Papai Maikon… se um dia eu os
reencontrasse, eu pediria desculpas. Eu nunca

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deveria ter deixado Bobcat Hollow. Por que fui ser


tão curioso? Meus pais erraram em guardar
segredos, mas nunca me quiseram mal. Se eu fosse
menos burro, teria percebido que não mentiriam
sem grandes motivos. E um potencial sequestro
para o Polo Norte me parecia um ótimo motivo
para se proteger um filho.
Cada vez mais choroso eu acabei esticando
demais a corrente, que pinçou dolorosamente o
meu tornozelo magro.
O tilintar metálico transformou minha
depressão em raiva e eu puxei aquela maldita
corrente, como se fosse conseguir arrancá-la do
chão. Tudo o que consegui foi esfolar as minhas
mãos também.
Ai, o que Rayner faria naquela situação? Eu
queria sentir ódio dele, deveria, mas era impossível.
Mesmo que ele tenha esfregado a verdade na minha

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cara eu não conseguia vê-lo como um traidor. O


Rayner era o Rayner. Eu preferia morrer a acreditar
que ele não se importava comigo.
Talvez Rayner conseguisse me salvar de algum
jeito. Mas a verdade era que eu nem alimentava
esperanças. Pelo que entendi nas conversas com o
tenente, Cratília e Faerynga se situavam em cantos
opostos do mundo, raríssimos selkies conheciam
ambos os reinos e nem mesmo o tenente Maron já
havia pisado em Faerynga. Rayner nunca me
encontraria em um lugar desconhecido, até porque
naquele instante ele já devia estar voltando para
Cratília, planejando o grande discurso que faria em
sua promoção a tenente.
Alguém bateu na porta.
“O que está havendo, aí?” Cinnamon espiou
pela janelinha. “Chorando de novo? Você não
desidrata, não?”

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“Estou atrapalhando o sono da donzela?” Eu


devolvi, azedo. “É impossível que tenha me ouvido
com a barulheira das ondas.”
“Exatamente.” Ele rosnou. “Eu não conseguiria
ouvir seus resmungos para ir no banheiro, e
conhecendo o tio Maron ele me faria limpar a sua
sujeira.”
Eu revirei os olhos para aquele motivo ridículo,
quando percebi algo bizarro. Talvez fosse
impressão minha, mas algo no olhar bicromático do
Cinnamon me fazia querer rir.
“Você se preocupou comigo.” Eu falei, tão
surpreso que me esqueci das lágrimas.
“Não me preocupei!” Cinnamon abriu a porta
com estupidez. Em sua mão ele carregava uma
bandeja com dois pratos fumegantes. “Os
cozinheiros prepararam comida demais, e alimentar
o prisioneiro mimado ainda é melhor do que jogar
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comida no lixo.”
“Decida-se se queria me levar ao banheiro ou
me alimentar. Posso acabar pensando que você
sentiu saudades…” Eu provoquei, juntando as
peças daquela situação boba. “…ou poderia ser que
você tem medo de tempestades?”
“Não tenho medo de nada!” Disse ele, então um
solavanco no barco quase o derrubou de susto.
Cinnamon se apressou em descansar a bandeja
ao meu lado da cama, antes que derrubasse tudo.
Eram dois gordos filés de peixe assado com flocos
de alga-rubra em cima.
Embora eu tivesse aprendido a gostar de alga-
rubra — um tempero de gosto intenso, tipo curry
apimentado — eu nunca me acostumaria com
peixes. Apenas o cheiro já me deixou enjoado.
Cinnamon nem ligou para a minha expressão
enojada. Ele sabia que eu me forçaria a comer
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quando a fome apertasse demais. Não havia muitas


outras opções, raras vezes me ofereceram deliciosas
patinhas de caranguejo, e o resto das refeições eram
frutas ou umas esponjas gosmentas com cheiro de
chulé.
Ainda assim, algo naquele cenário era
novidade. Cinnamon sempre ia embora após trazer
minhas refeições, e pela escuridão lá fora devia ser
alta madrugada, não era o horário em que
costumavam me alimentar. Mas a parte mais
estranha era que ele sentou ao meu lado, colocou o
prato em seu colo e saboreou seu peixe,
manuseando com muita elegância o garfo e a faca.
Eu não entendia qual era a do Cinnamon.
Aquele garoto era sério e disciplinado demais para
um adolescente. Às vezes eu o via sorrir para seu
tio, ou quando algum tripulante selkie retornava ao
barco com algum peixe gigante. Mas estes eram

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apenas flashes de acontecimentos que eu conseguia


flagrar pela minúscula janelinha. Perto de mim,
Cinnamon sempre demonstrava a mesma cara de
limão azedo.
Apesar da aspereza desnecessária, Cinnamon
era intrigante. Talvez fosse a solidão afetando a
minha mente, mas ele destoava dos humanos tanto
quanto o Rayner, embora nem sempre da mesma
forma. Assim como Rayner, Cinnamon era
musculoso demais para a idade, com ombros largos
e bíceps grossos, sempre espremidos dentro do
uniforme militar. Suas íris lilases em cima e verdes
embaixo me fascinavam, me fazendo morrer de
vontade de conhecer sua forma aquática, mas se eu
pedisse isso, era capaz de levar outra surra. E
Cinnamon sempre carregava seu par de espadas na
cintura, para que eu nunca esquecesse dessa
possibilidade.

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“Tem alguma coisa na minha cara?” Ele me


perguntou, enquanto mastigava. “Coma o seu
maldito jantar.”
“Desculpa.” Eu desviei o olhar para os meus
joelhos. “Pode comer minha porção, também.”
“Sempre o mesmo drama.” Ele bufou e colocou
o outro prato no meu colo. “Agradeça pela
generosidade do meu tio. Nas masmorras de
Faerynga você terá sorte se conseguir alguma
espinha velha.”
Segurando o choro que ameaçava voltar, eu
pincei o garfo num cantinho do filé e levei aos
lábios. Eu mastiguei lentamente, trancando o ar na
tentativa de não sentir o gosto. A textura parecia
uma mistura de borracha com pomada de cabelo.
“Meus pais devem estar morrendo do coração,
agora.” Eu disse, amargurado.
“Eles sabiam o que esperar com um filho
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oráculo. Hian II não é nenhum tolo para conseguir


escondê-lo durante dezesseis longos anos.”
Cinnamon limpou os lábios elegantemente no seu
guardanapo de pano e então deixou o prato na
mesinha ao lado. “Eu não pensaria mais neles, se eu
fosse você.”
“E acha que é possível? Você não tem pais,
Cinnamon? O que eles pensariam se fosse você a
desaparecer, sequestrado para algum lugar
horroroso?”
“Certamente papai Cordelen e papai Yoshan
enlouqueceriam, mas há um mundo de separação
entre as nossas realidades, Leviathan. Você é o
Oráculo, e eu sou apenas um jovem tritão lutando
pelos sonhos dos meus progenitores.”
“Sonhos?” Eu perguntei, intrigado. Era raro que
Cinnamon conversasse comigo, tudo aquilo era
novidade para mim.

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“Um garoto mimado da fazenda nunca


imaginaria a realidade que meus pais precisaram
enfrentar. O oceano é um lugar sombrio, de
injustiças alarmantes e sofrimentos inacreditáveis,
onde a felicidade de um justifica a desgraça de
centenas. Mas os tempos de guerra e covardia logo
encontrarão seu fim, e meus pais são os emissários
deste novo futuro.”
Pela primeira vez, Cinnamon esboçou um leve
sorriso na minha presença, mas ele não sorria para
mim, e sim para algo que só existia dentro de sua
mente.
Eu quis odiá-lo, e quis desmanchar aquele
sorrisinho estúpido com algum comentário ácido,
mas não consegui. Para aumentar a dor no meu
peito, eu percebi que entendia Cinnamon. Eu
compreendia o esforço e o desejo em devolver a
glória para alguém querido.

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“Seus pais devem ser boas pessoas.” Eu sorri


com tristeza. “Mas um futuro que envolve
sequestros não me parece feliz.”
“Sua captura é um meio para um fim, e nada
mais. Oráculos são o arauto da guerra e da
destruição. A sua existência em si é um obstáculo a
ser eliminado, entende? Enquanto existir um
oráculo, não existirá a paz.”
Entender? Óbvio que eu não entendia! Eu era
apenas um estudante filho de fazendeiros, que por
acaso se transformava em um tritão dourado. Eu
nunca causaria uma guerra ou conflitos de nenhum
tipo. Eu nem sequer conhecia outros tritões, além
daquela dupla de sequestradores!
Minhas mãos tremeram nas bordas do prato
que, a muito esforço, eu consegui limpar. Aqueles
caras só podiam estar confusos. Assim que a gente
desembarcasse nessa tal Faerynga, aquele tal de

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imperador Macalor perceberia o engano e me


deixaria partir. Se havia algum oráculo causador de
destruição, com certeza não era eu.
Cinnamon empilhou os pratos na mesinha e
cruzou as pernas. Ele enganaria bem como um
humano comum, se não fosse a cor dos olhos e a
ausência de calças. O longo casaco militar encobria
suas pernas sempre prontas para a transformação.
“Eu imagino o que esteja pensando, e não, não
há nenhum engano.” Ele balançou as pernas, com o
olhar distraído no teto. “Talvez seja um conceito
inalcançável para alguém que nunca conheceu o
chamado, mas cada tritão e cada selkie carregam
um destino dentro de si, e este destino nos é
revelado através das ondas.”
“Destino?” Eu perguntei, cada vez mais
confuso. Rayner não explicou muito sobre isso,
mas aquela coisa sobre chaves e fechaduras…

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talvez ele estivesse tentando me contar?


“O que digo são apenas resultados rasos de
pesquisas extenuantes. Quando obtém poder, a
primeira ação do oráculo é apagar registros
históricos e manipular informações a seu favor.”
Cinnamon coçou a testa, como se procurasse uma
forma de explicar com palavras simples.
“Então todos os oráculos são maus, é isso o que
quer me dizer?” Eu perguntei.
“Não é uma questão de bondade ou maldade. A
pessoa mais virtuosa do mundo não conseguiria
pausar seus batimentos cardíacos, mesmo se com
isso pudesse salvar mil vidas. O chamado nos
presenteia com a vida, com a cura, com a proteção
e com um destino. O destino da maioria dos tritões
e selkies é reproduzir, multiplicar, proliferar… mas
como todas as forças da natureza, o chamado clama
por equilíbrio. Para cada força de adição deve haver

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uma de subtração.”
O olhar do Cinnamon tornou-se ainda mais
sério e sombrio. Eu suspeitava quanto aos rumos
daquela aula, mas meu coração implorava que eu
não tentasse compreender.
“Por que está me contando isso?” Eu perguntei.
“Para que não guarde ressentimentos.”
Cinnamon levantou e pegou a bandeja. “Seu futuro
nas mãos de papai Cordelen seria breve e
misericordioso, o que talvez não se faça verdade
em Faerynga. Infelizmente, nem mesmo o papai ou
o Arquiduque Rhemus podem reverter uma decisão
do próprio Imperador Macalor, então lhe desejo
boa sorte.”
Cinnamon abriu a porta do quarto e já ia saindo
quando lembrei uma pergunta importante.
“Ei, Cinnamon.” Eu o chamei.

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“Já gastei minhas palavras o suficiente.” Ele me


espiou por cima do ombro, entediado.
“Quando vocês apareceram lá na Baía de
Hudson… quem era aquele irmão, de quem vocês
falavam?”
Cinnamon ficou me olhando com uma
expressão difícil de ler.
“Sua busca pela verdade é tardia, mas
respeitável. De qualquer forma, apenas um tolo
concederia informações sem esperar retorno, então
boa noite.” Ele fechou a porta e foi embora.
“Tá… boa noite…” Eu abracei meus joelhos,
novamente engolido pelo silêncio e pela solidão.
“Obrigado pela companhia.”
Claro que Cinnamon não respondeu, ou sequer
ouviu. Seus passos já ecoavam distantes,
amortecidos pelos sons das ondas que não paravam
de tremer o barco.
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Devastado e choroso, eu tentei processar toda


aquela conversa, mas era como montar um vaso
quebrado com apenas metade dos cacos. O que era
o chamado? Que destino era tão inevitável, a ponto
de decidir a vida inteira de uma pessoa? Pelo que
entendi daquele pirralho enigmático, existia uma
força de prosperidade e uma força de destruição, e
eu era a força de destruição.
Claro que tudo aquilo não passava de um
engano.
Apesar de tantas dúvidas, uma coisa tornou-se
bem clara: meu destino em Faerynga era sombrio.
Se todos os tritões pensavam como aquele pirralho,
então dificilmente eu seria recebido de braços
abertos. Era burrice esperar que Rayner me
salvasse, eu apenas comprometeria a segurança
dele junto com a minha.
O barco sacudia cada vez mais, as luzes do teto

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piscavam, e aos poucos o preto do céu noturno


concedia lugar ao brilho cor-de-rosa do amanhecer.
Mais uma madrugada que poderia muito bem ser a
última. Após duas semanas de viagem, o reino dos
selkies no Polo Norte não podia estar tão longe.
Meu tempo se esgotava.
Eu precisava fugir.

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Capítulo 73

Meu coração não conseguia se acalmar. O sol


surgia em meio às nuvens da tempestade e com ele
se reduziam as minhas chances de fuga.
Enervado, eu tentei raciocinar com calma. Um
grão de uva de cada vez.
Para começar, qual era a minha situação atual?
Acorrentado pelo tornozelo ao chão do barco,
óbvio. Se eu pudesse arrebentar as correntes já teria
fugido há muito tempo, e aqueles caras eram
inteligentes, nunca manteriam a porta destrancada
se não confiassem na força daquelas argolas.
Tenente Maron visitava pouco, e sempre com
pressa para discutir com a tripulação de olhos

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vermelhos ou pelo celular. E se ele tinha um celular


e um barco militar moderno, eu podia deduzir que a
tecnologia deles era semelhante à dos humanos.
Será que injetaram algum GPS em mim? Era
improvável. Eles não pareciam tão preocupados
com a minha fuga.
Espera, verdade! Eles menosprezavam
completamente a minha inteligência! Digo, eu era
meio burro mesmo, mas o próprio Cinnamon me
chamou de um garoto mimado da fazenda. Eles
nem suspeitavam de tudo o que aprendi.
Meu coração acelerou ainda mais, em um surto
de adrenalina. Era um plano ousado, mas não havia
tempo a perder. A tripulação retornaria aos seus
postos com o amanhecer, e esperar a noite seguinte
era um risco grande demais.
A primeira parte seria a mais simples, e ainda
assim eu tremia de medo que descobrissem.

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Bastava que algum curioso espiasse pela janela ou


pela abertura da porta, e sabe-se lá o que fariam
comigo. Eu não queria ser jogado no porão e,
apesar da estranha docilidade do Cinnamon, ele
ainda portava duas espadas e parecia ansioso em
testar suas lâminas na minha cara.
Bem… naquele momento qualquer destino era
melhor do que Faerynga. Rayner estremeceu só de
ouvir o nome. De jeito nenhum que eu me
entregaria sem luta.
Certo, a parte simples do problema: remover
aquelas calças grossas.
Eu me revirei na cama, fingindo ter um
pesadelo caso alguém espiasse o meu quarto.
Agarrando a barra da calça, eu a forcei para baixo e
consegui retirá-la quase totalmente, junto das
cuecas. Uma das pernas continuava enroscada na
argola do meu tornozelo, mas aquilo não seria um

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problema. E o casacão de pele era do comprimento


perfeito para esconder minhas peças a menos.
Um pouco arrepiado pelo frio, eu sentei na
cama e foquei então na parte difícil: me acalmar.
O balanço agitado do navio competia com a
britadeira que era o meu coração. Eu fechei os
olhos e tentei me esquecer de tudo. Esquecer dos
meus pais, dos meus amigos, do cadáver do Clint,
do Rayner, dos meus algozes naquele navio
desconhecido… Pensar sob pressão nunca foi meu
talento, mas não havia tempo a perder.
Com a mente limpa de distrações, eu vasculhei
uma única memória: A sensação daquela noite,
quando Rayner me derrubou no lago.
O som da água me envolveu através das
lembranças. A água fluindo, saltando, me
engolindo para o seu interior, eu subia e descia,
sem peso. Flutuava como se em outra dimensão.
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Eu não fazia ideia se aquilo funcionaria, mas


me concentrei ao máximo. A água do lago, e agora
a água do mar… eu sincronizei o som das minhas
lembranças com o som das ondas contra a minha
janela, e o turbilhão da queda com os solavancos do
barco. A água me envolveu… e a água me
envolvia…
Um calafrio percorreu meu corpo, seguido de
um barulho metálico. O susto me fez abrir os olhos,
atento na direção do som.
Eu… eu mal podia acreditar. Funcionou!!
Abaixo da minha cintura, uma longa cauda
enroscava-se nos cobertores, cintilando suas
escamas de ouro sob os primeiros raios solares. O
barulho metálico foi aquele da corrente, que
despencou ao chão agora que eu não tinha mais
tornozelos.
Aquilo era incrível! Eu consegui mesmo!

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Assumi a forma aquática fora da água! Imagina só


quando eu contasse para o Rayner, ele ficaria louco
de tão impressionado.
Mas antes de mostrar pro Rayner, óbvio, a
minha prioridade era concluir minha fuga.
Bastou um leve pensamento para recuperar
minhas pernas. Vestindo apenas meu casacão sobre
as pernas expostas eu corri até a porta e espiei pela
abertura.
Ninguém acordado ainda. Perfeito.
Silencioso, eu armei os travesseiros sob os
cobertores — um truque que, infelizmente, se
mostrou bastante eficaz — então eu abri a porta
com suavidade, fechei por trás de mim e corri.
Eu até que não era tão burro assim. Em minhas
idas ao banheiro aproveitei para memorizar ao
máximo os corredores daquele lugar. Há duas
semanas eu não avistava o céu sem que houvesse
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um vidro nos separando, mas eu sentia o frio da


brisa e ouvia o ronco das chaminés. Bastava seguir
os sons da minha memória e eu alcançaria minha
liberdade.
Papai Hian e papai Maikon, desculpem-me por
ser um péssimo filho, mas eu consertaria tudo. Eu
voltaria para vocês, e para o Rayner, e tudo ficaria
bem de novo!
Eu disparei pelos corredores estreitos e
oscilantes, sem encontrar ninguém. Todos ainda
dormiam e o barulho das ondas ocultava o som dos
meus passos. Uma curva para a esquerda, uma para
a direita, subir uma escadinha, outra curva para a
esquerda…
Uma portinha de metal surgiu adiante, no
corredor igualmente metálico. Eu a abri, e no
mesmo instante o vento gélido atingiu meu rosto.
Abraçado no meu casaco de pele, eu fechei a
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porta e dei meus primeiros passos adiante,


incrédulo com aquela vista.
Gelo, gelo e mais gelo. Imensos icebergs
dançavam no oceano agitado e negro, chocando-se
um no outro como se competissem para alcançar o
céu.
O amanhecer também era como nenhum outro.
Não havia azul no céu, apenas branco com um sutil
cor-de-rosa na linha do horizonte, onde o sol
também branco surgia e iluminava ondas coloridas
no céu, que pareciam uma mistura de serpentes
com arco-íris.
Meus olhos cintilaram em deslumbramento.
Então esta era a paisagem no extremo do planeta?
Era lindo e assustador ao mesmo tempo.
O navio mais parecia um inseto que caiu num
copo d’água, e ainda assim avançava em ritmo
constante, com sua ponta afiada quebrando
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destruindo os icebergs e abrindo espaço na camada


de gelo da superfície oceânica.
Muito adiante, na direção em que o navio
seguia, havia o único ponto do horizonte que não
acompanhava a agitação das ondas. Era a terra
firme, cheia de picos que talvez fossem montanhas,
talvez fossem geleiras.
O desespero acertou meu estômago como um
tijolo. Aquela só podia ser Faerynga.
Só então eu percebi o quanto eu estava exposto.
Aquela era uma saída de funcionários, que
terminava em uma sacadinha alta de onde se podia
ver todo o deque do navio. E se eu podia ver tudo,
então qualquer tripulante também poderia me ver.
Eu me apoiei na escadinha metálica, quase
congelando os dedos, e então desci o mais rápido
possível. O segundo trecho eu saltei, pousando
habilidosamente na superfície de madeira do
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convés.
O som das ondas tornou-se mais alto, quase
ensurdecedor. Eu olhei para o lado e quase gritei
com a torre de água que se formava bem ali, do
outro lado do guarda-corpo. Qualquer onda
daquelas podia me destroçar, me atingir com tanta
força que eu morreria muito antes de alcançar as
profundezas.
Eu… eu ia mesmo fazer aquela loucura? Fugir
pela água era o plano mais óbvio, mas vendo de
perto a fúria das águas eu comecei a odiar minha
própria impulsividade. Roubar o celular do tenente
teria sido um plano muito melhor.
Tremendo de medo e também de frio, eu agarrei
as barras do guarda-corpo e me equilibrei em cima.
Meu treinamento no cheerleading não era tão inútil
quanto o vovô Dylan fazia parecer. Se não fosse
meu equilíbrio, aqueles solavancos me fariam rolar

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pelo convés como uma bolinha de pinball.


Abaixo de mim, se estendia a visão mais
aterrorizante da minha vida: ondas monstruosas
subindo e descendo, ferozes e pontilhadas com
cacos de gelo. Às vezes o mar parecia estar ao meu
lado, no instante seguinte estava muitos metros
abaixo, e então subia até bloquear o sol e caía para
trás, causando novos paredões de água.
Eu iria morrer. Eu definitivamente iria morrer.
“Ei, o que você…” Um tripulante selkie se
aproximou. O susto me fez olhar para ele, e quando
o cara notou meus olhos dourados ele contraiu os
músculos enormes em uma postura assustada.
“Soldados! Soldados, o prisioneiro escapou!!”
Ahh, que merda! Eu tentei saltar na água, mas
minhas pernas travaram no lugar. Era alto demais,
violento demais, insano demais. Era suicídio.
Algo contornou minha cintura e apertou com
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força. Eram os braços daquele cara.


Não! Não! Eu esperneei e me debati em
desespero enquanto aquele idiota de cabelo branco
me puxava do guarda-corpo.
“Me solta, agora! Me deixa ir!” Eu gritei,
desesperado. Ser capturado novamente seria o fim
de tudo.
“Fique quieto!” O cara me abraçava como se eu
fosse um brinquedo de pano. “Ei, Rochard! Acorde
o tenente, rápido!”
Eu comecei a chorar, desesperado como nunca
me senti antes. Eu não queria apanhar. Não queria
ser jogado nas celas do porão, nem… sabe-se lá o
que aconteceria em Faerynga.
Meus pais não mereciam me perder desta
forma. Eu nunca permitiria.
“Você vai me soltar. Eu sou o oráculo!” Eu

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rosnei para aquele troglodita, me debatendo no


limite das minhas forças.
“E por que você acha que estou segurando?” O
cara riu, debochado e meio nervoso. “Quando o
filhote do general chegar, você… ah, cuidado!”
O cara patinou no piso molhado, perdendo para
minhas esperneadas e as trepidações das ondas. Por
um instante quase escapei, mas nós dois colidimos
contra o guarda-corpo e o cara recuperou a firmeza
dos braços, me imobilizando com tanta força que
eu quase vomitei o meu jantar horroroso.
“Quer virar patê de peixe, seu escamoso burro?
Se nos derrubar na Garganta do Demônio, nem o
chamado reunirá nossos pedaços.”
Eu não me importava. Continuei me debatendo,
tentando alcançar alguma parte que eu pudesse
morder ou arranhar. Qualquer loucura era melhor
do que viver aprisionado, ou coisa ainda pior.
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Uma sombra formou-se sobre nós dois e uma


onda golpeou as costas do cara, o arremessando até
o meio do convés. Nós dois rolamos pelo chão e
ainda assim o imbecil não me soltou.
“Ei, que tumulto é esse, Rupert!” Tenente
Maron marchou em nossa direção, com o cabelo
ainda bagunçado pelo sono. “Já instruí que se
mantivessem nas áreas cobertas, durante… Ah,
Leviathan, como conseguiu fugir?”
Droga, droga! Foi mesmo um esforço inútil? Eu
já não conseguia me mover pelo cansaço e pelo
frio. A água gelada escorria pelo meu corpo, que…
Espera um pouco, eu disse água?
“Me solta agora!!” Eu gritei, usando o limite
das minhas forças para libertar os braços. Tenente
Maron logo nos alcançaria, mas o susto foi o
suficiente para aquele grandão tropeçar de novo.
No instante em que o cara hesitou, eu libertei
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minhas mãos e concentrei todo o meu poder,


canalizando a minha aura através das nossas peles
úmidas.
Luz dourada irradiou pelo meu corpo,
transformando cada gota em ouro líquido,
envolvendo minha pele, meu casaco ensopado, e os
braços daquele cara. Eu precisava de mais. Eu
explodi toda a energia que ainda me restava.
O brilho inflamou em uma explosão de luz.
Tudo ficou branco e o grandão enfim me soltou,
gritando.
Não parecia um brilho tão intenso pra mim, mas
até o tenente gritava e apertava os olhos, incapaz de
abri-los.
Eles ficariam bem, provavelmente. Aquela era a
minha chance.
Movido pela adrenalina e pelo pânico, eu
disparei até a lateral do navio, naquele ponto em
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que eu deveria ter saltado antes. Desta vez eu não


hesitaria. Eu iria nadar como um louco até a
segurança da minha família, e do Rayner, e da vida
que eu nunca deveria ter abandonado.
Eu escalei a proteção, inclinei o corpo para a
frente… e então algo gelado deslizou pelo meu
pescoço, seguido de uma dor aguda e ardente.
Incapaz de baixar a cabeça, eu espiei para baixo
com o movimento dos olhos. A navalha de uma
espada pressionava contra a minha garganta. A
lâmina afiada enterrou-se sutilmente na pele,
formando gotinhas de sangue.
Ao meu lado, Cinnamon começou a rir.
“Como eu previa, você já domina certos
poderes de oráculo.” Ele pressionou a lâmina um
pouquinho mais, me fazendo gritar de dor. “Rayner
nos deve muito mais do que algumas explicações.”
Eu paralisei, precariamente equilibrado naquela
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proteção metálica enquanto o navio enfrentava as


ondas. Qualquer deslize para a frente e aquele
pirralho louco deceparia a minha cabeça.
Tenente Maron aproximou-se de nós, ainda
esfregando os olhos.
“Tudo bem, Cinnamon, você estava certo de
novo. O segundo irmão Cordelen ficará de coração
partido.” Ele conseguiu abrir os olhos, mais ou
menos. “Como conseguiu pensar num plano destes?
Amalonas são assustadores.”
“Por quê? Por que estão fazendo isso?” Eu
perguntei, tentando me afastar da lâmina, mas a
cada movimento Cinnamon pressionava meu
pescoço de novo. “Você tem boas intenções,
Cinnamon, não precisa machucar ninguém para
agradar seus pais.”
Cinnamon riu ainda mais alto e me puxou pelo
braço, então me entregou para uns três homens
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enormes que me imobilizaram completamente.


“Um tolo sempre será um tolo.” Cinnamon
limpou o sangue da lâmina com um lencinho, então
embainhou sua espada. “Acreditou mesmo que eu
era um pobre garoto assustado, buscando
companhia durante o temporal? Já enfrentei chuvas
maiores nos meus treinos matinais.”
Eu estremeci, chocado e congelando de tanto
medo.
“Mas… mas tudo o que conversamos…”
“Você já esqueceu o que eu disse? Apenas um
tolo concederia informações sem esperar retorno.
Eu lhe concedi informações sobre você mesmo, e
em troca você nos concedeu uma informação
igualmente valiosa: Temos um traidor em nosso
meio."
“Então… então era tudo mentira?” Eu
perguntei, com os dentes batendo. A água no meu
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corpo começava a congelar.


“Mentiras são apenas um recurso para obtenção
da verdade.” Cinnamon balançou os ombros em
desdém, com um sorriso satisfeito em seus lábios.
“Eu só precisei convencer meu tio a aprisioná-lo
pelo tornozelo e aguardar que o peixinho mordesse
a isca.”
“E como eu estava demorando demais e a
viagem chegava ao fim, você me atiçou com aquele
monte de bobagens falsas.” Eu rosnei, com meus
olhos queimando em lágrimas.
“Parcialmente correto. Sim, eu precisei balançar
a isca um pouquinho, mas não houveram
inverdades em minhas constatações. Considere esta
uma cortesia do seu arqui-inimigo.”
“E por que eu acreditaria em você agora,
seu…”
“Acredite no que preferir acreditar, mortos não
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fazem uso de informações. Um garoto fútil e tolo


como você não sobreviverá uma semana em
Faerynga.”
Que pirralho mais desgraçado. Eu debati meus
braços, querendo demais arranhar a cara daquele
infeliz, mas os tripulantes não permitiam o menor
dos meus movimentos.
Eu solucei, não conseguindo conter as lágrimas.
O frio ameaçava congelar meus ossos, e o corte no
meu pescoço doía, e eu simplesmente não
conseguia compreender nada. O que era aquele
povo, que mentia com tanta naturalidade?
“Como você pode ser tão cruel?” Eu me virei
para o tenente, que apenas assistia a confusão entre
um bocejo e outro. “Vocês acham que serão felizes,
assim? Entregando paz ao mundo em troca de
torturar um adolescente?”
“Infelizmente, é um mal necessário. Ou foi isso
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o que disse o segundo irmão Cordelen. Mas todos


os selkies detestam oráculos, então se te consola,
você morreria de uma forma ou de outra. O oceano
pertence aos selkies, agora.”
“Como assim, pertence aos selkies?” Eu
perguntei. “Mas vocês são tritões, iguais a mim!”
“Eu economizaria as minhas lágrimas para
Faerynga, se eu fosse você, Arauto da Destruição.
Dizem que as masmorras de Faerynga são tão
profundas que o chamado não alcança, e nem a
maior das chamas pode derreter o gelo das paredes.
O calabouço de Cratília é um hotel de luxo perto
daquele lugar, mas… as coisas são como são.”
Cinnamon me deu as costas e foi embora.
“Prendam-no no subsolo. E com grilhões no
pescoço, desta vez.”
“Ai, ai… o tenente ainda sou eu, sabiam
disso?” Tenente Maron bocejou de novo e acenou a

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cabeça, confirmando as ordens do pirralho. “Mais


um dia até Faerynga, depois meses até Cratília…
hngh… eu só queria a minha cama e um abraço do
meu mozão.”
Tenente Maron foi embora com os outros, de
volta à parte coberta, e os grandalhões seguiram
pelo caminho oposto, até onde havia um alçapão.
Congelando, dolorido e acorrentado nas paredes
de um porão fedido e escuro. Aquele último dia de
viagem conseguiu ser pior que as primeiras duas
semanas, mas em uma coisa Cinnamon tinha razão:
Eu precisava conter minhas lágrimas. Prometi a
mim mesmo que só choraria novamente quando
Rayner estivesse em meus braços, e eu não podia
me esquecer de jeito nenhum. Aquela promessa
talvez fosse minha última ligação com a minha
sanidade quando os tempos sombrios viessem ao
meu encontro.

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Capítulo 74

Eu tive certeza de que iria morrer, mas, por


algum milagre, eu sobrevivi à noite pendurado nas
paredes daquele porão escuro, com goteiras de água
congelante pingando na minha cabeça e escorrendo
pelo meu corpo.
Quando eu já abandonava as esperanças,
tremendo tanto que até meus ossos ardiam,
Cinnamon desceu ao porão com cobertores e um
casaco seco. Então ele me arrastou pelas correntes
até uma cela sem goteiras.
Eu vesti o casacão de pele escura, me aninhei
nos cobertores e tentei adormecer na solidão
escura, implorando para voltar para o conforto da
minha casa, dos meus pais, da minha cidadezinha
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caipira. Eu ainda tremia de frio quando o motor


silenciou e o navio parou de balançar.
Eu me levantei do cantinho onde havia me
encolhido e tentei chegar nas barras da cela, mas já
corrente no meu pescoço era curta demais.
Maron apareceu no porão.
“Bom dia, jovem oráculo!” Maron sorriu e
soltou um longo bocejo “Ai, nem acredito que
chegamos. Teve uma boa noite de sono?”
Eu senti que minha opinião não importava
muito, então fiquei quieto enquanto Maron soltava
os cadeados dos ganchos. Ele deu um puxão nas
correntes me fez andar.
“Vamos lá, jovem. Um, dois, um, dois…”
Brincou ele, animado. “O segundo irmão Cordelen
é tudo no meu coração, mas esta vida de militar
sequestrador de criança não é para mim, sabia
disso?”
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****

Que lugar era aquele? O cenário me


impressionava tanto que muitas vezes eu travei no
lugar, e a cada interrupção Cinnamon quase
quebrava a minha coluna, puxando com violência o
grilhão no meu pescoço.
Apesar da estupidez daquele idiota, ele parecia
tão impressionado quanto eu, reparando em cada
cantinho enquanto me conduzia com seu tio pelas
trilhas de gelo e neve.
Para onde quer que eu olhasse, tudo era branco.
O frio do Canadá nem se comparava ao daquele
lugar, que era muito plano, embora houvessem
imensas cordilheiras no fim do horizonte. O porto
onde descemos era apenas umas palafitas simples e
o nosso barco era de longe o mais moderno, mas
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assim que chegamos no vilarejo a paisagem se


tornou mais complexa.
Havia muitas casas. Ou pelo menos pareciam
ser casas, se eu lembrasse das minhas aulas de
história clássica. Todas as construções eram
sustentadas por pilares cilíndricos e adornados, com
frontões triangulares na parte de cima. Era uma
mistura do que aprendi sobre a Grécia Antiga e
Roma, exceto que as casas, templos, e algo que
lembrava muito o Coliseu eram todos feitos de
gelo. Eu sentiria ter viajado no tempo se não
fossem as dúzias de torres de guarda contornando a
orla, todas de concreto e aço e armadas com
metralhadoras, canhões e rifles.
Também havia um monte de gente, exceto que
nenhum deles parecia exatamente humano. Eles
lembravam bem mais a tripulação selkie do navio,
todos de cabelo branco, alguns muito musculosos e

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outros pequenos e magros. Uma enorme tropa de


homens musculosos marchava em ritmo
sincronizado, enquanto que tropas de homens
menores carregavam cestos de peixe ou caixas
pesadas, a maioria deles com um bebê a tiracolo.
Todos pareciam muito ocupados e também
exaustos, cada um dedicado em atividades árduas e
extenuantes.
Percebendo o espanto cada vez maior do
Cinnamon, eu não consegui segurar minhas
perguntas.
“Vocês também não conhecem este lugar?” Eu
fechei melhor o capuz para me proteger do vento.
“Parcialmente correto. Meu conhecimento de
Faerynga resume-se a relatórios e informações
oficiais.” Disse ele.
Eu espiei os arredores mais uma vez. Apesar de
muito ocupados, o olhar de todos os selkies
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mantinha-se em nós. Uma dupla mais jovem


interrompeu sua corrida e sussurrou entre si, então
um selkie maior gritou com eles, e todos retomaram
seu exercício.
Era impressão minha ou, apesar do frio, todos
ali usavam togas? Eram togas grossas, brancas e
felpudas, eu não duvidaria que fossem de couro de
urso polar, mas andar de pés descalços e com os
braços e joelhos expostos me parecia uma tortura.
Apenas os caras na frente de cada grupo vestiam-se
diferente, com togas longas até os pés e adereços de
ouro.
“Acho que aqueles branquelos nunca viram um
adolescente passeando de coleira.” Eu brinquei,
apelando para qualquer misericórdia naquele
garoto. Mesmo que Cinnamon me soltasse, para
onde eu fugiria? Não adiantava vestir um casacão
gigante se ainda havia uma argola de aço gelado no

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meu pescoço, e aquele negócio devia pesar uns


vinte quilos.
“Somos os primeiros tritões a pisar em
Faerynga. Meça as suas palavras.” Disse ele.
Só então notei que Cinnamon estava com medo.
Um grupo de selkies aproximou-se de nós. Eles
eram do tipo que vestiam adereços na roupa, e
todos possuíam olhos vermelhos ou castanhos e
expressões muito severas.
Maron conversou com aqueles caras num
idioma que eu desconhecia, enquanto Cinnamon
aguardava comigo na calçada. Aquela parecia ser a
periferia da cidade, o que me fazia questionar qual
era o tamanho de Faerynga, exatamente.
Ainda mais importante, eu me perguntava o que
raios aqueles branquelos assustadores queriam
comigo.

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Os caras estranhos seguiram na frente e tenente


Maron veio conversar conosco.
“O Imperador Macalor já está nos aguardando.”
Ele pegou a corrente das mãos do Cinnamon e
voltou-se a um dos marujos. “Rochard, acompanhe
Cinnamon de volta ao navio enquanto eu cuido das
negociações.”
“O quê? Não, nem pensar! Meus pais confiaram
esta missão a mim e eu vou segui-la até o fim!”
Cinnamon tentou pegar a corrente de volta, sem
conseguir.
“Você cumpriu sua missão com sucesso,
Cinnamon, e alguém de sua inteligência deve
imaginar o motivo da minha cautela. Nosso plano
original nunca envolveu Faerynga, não posso
continuar arriscando a segurança do meu sobrinho.”
“Inaceitável! Eu também sou um soldado de
Cratília!” Cinnamon afastou-se com Maron para
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longe da atenção dos marujos, mas próximo de


mim o bastante para que eu ouvisse. “O serviço dos
meus pais é de sumária importância no sucesso
desta guerra, certamente um líder como o
Imperador reconhecerá este fato e nos concederá a
liberdade necessária para a próxima fase de
operações.”
“Não existe próxima fase, Cinnamon. O
controle do Oráculo foi arrancado de nós, qualquer
vitória de agora em diante envolverá simples
superioridade militar.”
“E é por isso que não podemos desistir. Se
convencermos o Imperador Macalor a cooperar
com nossos planos a paz dos oceanos estará ao
alcance das mãos, sem a necessidade de mais
chacinas.”
Maron pensou por um certo tempo, olhou para
onde os caras assustadores nos aguardavam, e então

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deu um longo suspiro.


“Tudo bem, mas eu cuido das negociações. E
por favor, não conte aos seus pais que te deixei
passear por Faerynga. Eles vão me infernizar pelo
resto da vida.”
Cinnamon concordou, e todos nós seguimos por
um caminho de neve empedrada e suja, que
serpenteava no meio da neve fofa até desaparecer
muito adiante, por trás de um morro.
Cada minuto de caminhada vinha acompanhado
de surpresas. Manchas de sangue pela neve,
crianças correndo e gritando enquanto algum
homem gigante as perseguia com açoites. Uma
sereia urrando de dor amarrada em um poste,
enquanto diversos selkies a atingiam com pedras.
Um dos selkies magros carregando um caixote
desmaiou de exaustão e também foi apedrejado,
mesmo inconsciente. Em algum momento alguma

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das crianças fugitivas foi capturada, e seus berros


em meio às chicotadas fizeram até mesmo o tenente
Maron estremecer no lugar.
“Qual é o problema dessa cidade?” Perguntou
Cinnamon, mortificado.
“Sem perguntas, Cinnamon.” Maron estremecia
de cima a baixo, pouco preservando sua postura de
militar. “Vamos entregar este garoto e sumir
daqui.”
Eu cobri a boca, sentindo que o enjoo do
nervosismo me faria vomitar. Se os próprios
habitantes eram tratados desta forma, o que
aconteceria comigo?
“Por favor, não me entreguem pra eles.” Eu
implorei, trêmulo. “Vocês não são ruins, digo,
vocês querem me matar, mas é para conseguir
coisas boas, certo? Não precisam fazer isso
comigo.”
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“S… sim, nós precisamos.” Disse o tenente,


completamente assustado e inseguro.
Até mesmo aquele pirralho sociopata parecia à
beira de sair correndo. E ainda assim eu continuei
sendo puxado como um animal, morro acima.
Quando enfim alcançamos o topo da colina,
todos nós soltamos um suspiro de espanto.
No meio de uma imensa planície de neve, onde
as casas eram apenas pontinhos, havia uma estátua
gigante no formato de uma pessoa. Na verdade
devia ser um selkie, mas o material branco tornava
difícil dizer com certeza. Não era uma figura muito
realista, mas uma mistura de homem com um
templo grego.
A massiva figura masculina, muito imponente e
musculosa, segurava um rifle diante do peito e
sorria com sadismo na direção do mar. Havia
janelas e varandas ao longo dos braços, e a parte de
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baixo era tanto um pedestal enorme quanto uma


fortificação, que brilhava vermelho com o calor de
milhares de tochas.
“Aquilo é… um castelo?” Eu perguntei.
Diferente das outras construções, aquela não
parecia de gelo. Talvez fosse concreto pintado de
branco, ou mármore.
Abismado, Cinnamon demorou a responder.
“Provavelmente correto.” Disse ele, enquanto
prosseguimos com nossa jornada. “É onde
encontraremos o Imperador, afinal.”

****

Apesar das botas felpudas, eu mal sentia os pés


quando chegamos diante do castelo-escultura-troço
de péssimo gosto. O lugar era ainda mais

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assustador visto de baixo. Era como se nós


fôssemos apenas vermes, prestes a ser esmagados
pelo menor descuido daquele gigante.
O pedestal da estátua realmente era uma
fortificação, com muitas tochas nos paredões de
pedra, espirais de arame farpado na parte de cima. e
alguns soldados com fuzis protegendo um amplo
portão de ferro.
Maron mostrou um documento aos guardas e,
após uma breve conversa, os selkies que nos
escoltaram abriram o portão e pediram algo com
um gesto das mãos.
Hesitantes, Maron e Cinnamon entregaram a
eles todas as armas. A tripulação do navio também
foi proibida de nos acompanhar.
Tão assustado que eu poderia enfartar ali
mesmo, eu acompanhei os passos inseguros dos
meus sequestradores rumo à escuridão avermelhada
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do interior.

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Capítulo 75

Após atravessar umas poucas salas de mobília


rústica, a maioria de madeira, pedra ou gelo, nós
chegamos na maior sala até então, com os mesmos
pilares romanos das casas e várias esculturas e
quadros, todas representando o mesmo homem que
dava forma ao castelo.
E aquele mesmo homem estava bem diante de
nós, sentado em um rebuscado trono negro, sobre
um patamar.
A luz tênue das tochas não me permitia ver
direito. A princípio pensei que me faltava algum
poder de tritão que permitisse enxergar no escuro,
mas Maron e Cinnamon estremeciam tanto quanto
eu, aterrorizados pela frieza horrível daquele lugar.
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Apesar das tochas e das janelas fechadas, o salão


parecia ainda mais gelado que o lado de fora e o
cheiro era uma mistura de naftalina, óleo, mofo e
sangue velho, se é que fazia sentido. Era tão
enjoativo que até os meus captores pareciam ter
dificuldades em ignorar.
“Andem logo.” Ordenou um dos soldados
locais para nós três.
Tenente Maron puxou minha corrente e juntos
nós três paramos diante do patamar do trono. Ele e
Maron curvaram o corpo até a testa tocar o chão,
em uma reverência que lembrava os filmes antigos.
“Imperador Macalor, como seus humildes
súditos cratilienses, é uma honra imensurável
conhecê-lo.” Disse o Tenente.
Aquele velho troncudo percorreu o olhar por
cada um de nós. As tochas vermelhas o iluminando
por baixo realçavam ainda mais seus traços
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enrugados e assustadores.
Eu não queria estar ali. Mais do que nunca eu
quis correr, fugir, de algum jeito saltar pelas
janelinhas altas e desaparecer na neve. Morrer
congelado no meio do Polo Norte era um destino
melhor do que… seja lá o que me aguardava.
Aquele homem no trono… tudo nele exalava
crueldade. Era como olhar para a própria morte. Os
olhos vermelho-rubi pareciam absorver a luz das
chamas e os músculos imensos e cabelos curtos
estilo militar lhe conferiam uma aparência
semelhante à dos muitos selkies lá fora, exceto que
este era mais velho, tipo um idoso bem conservado,
e a roupa era a mais elaborada até então: uma longa
toga que lembrava os pelos de um urso polar e
talvez fosse mesmo, ricamente adornada com
broches e medalhas, um cinturão de ouro cravejado
de joias e diamantes e, desafiando qualquer

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temática temporal, duas cintas com balas de fuzil


atravessando o peito.
Após algum tempo nos analisando, o velho
soltou uma risadinha de deboche.
“Então vocês são os ratos do Rhemus.” Ele riu
de novo e fez sinal para um selkie magrinho, que
serviu-lhe de uma taça de alguma coisa. “Aquele
tolo insiste em me desrespeitar. Primeiro admite
vermes escamosos no meu território, financia-os
com o dinheiro dos meus impostos, e agora os
envia à minha capital, para manchar a brancura da
minha neve com o fedor de escamas.”
Apesar da torrente de insultos, Maron e
Cinnamon nem se moveram, permanecendo em
reverência.
Maron levantou o corpo o suficiente para olhar
o Imperador nos olhos. Ele puxou minha corrente
para que eu também me abaixasse, mas nem pensar
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que eu obedeceria. As chances de eu nunca mais


levantar eram bem grandes.
“Digníssimo Imperador, conforme nos foi
solicitado, trouxemos à vossa excelência o maior
dos tributos.”
Maron tentou me puxar de novo, mas a
gargalhada daquele velho o petrificou. Até mesmo
Cinnamon não resistiu e ergueu o olhar, tão
nervoso quanto qualquer pré-adolescente estaria,
naquela situação.
O imperador jogou a mão para o ar em um
gesto de desprezo.
“Matem estes asquerosos e pendurem os
pedaços pelas sete praças de Faerynga.” O
Imperador bebeu de sua taça calmamente,
saboreando com um sorriso o medo em todos nós.
“Já tolerei os insultos daquele insolente do Rhemus
por tempo demais. Deixemos que o povo lembre da
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nossa supremacia enquanto as gaivotas jantam


escamas verdes.”
Cinnamon levantou em um salto, mudando a
postura para aquela de quando me atacou. Ele
percorreu as mãos pelo cinto e branqueou ao não
encontrar suas espadas.
“Inaceitável! Nós somos inestimáveis para o
reino! Para o seu reino!” Gritou Cinnamon
enquanto os selkies em nosso entorno se
aproximavam, destravando seus fuzis. “Nós
servimos ao seu exército e atendemos aos
propósitos do Arquiduque Rhemus, em nome dos
seus próprios objetivos!”
“Cinnamon, calado!” Maron levantou-se
rápido, colocando-se entre Cinnamon e os muitos
fuzis que apontavam para nós. Na confusão ele
soltou minha corrente.
“Não é justo! Meus pais venderam suas almas e
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sua lealdade, traíram sua própria raça em nome da


harmonia nos oceanos!” Cinnamon continuava
gritando com o Imperador. “Se formos executados
aqui, a crise diplomática…”
“Harmonia? Crise diplomática?” O Imperador
continuou rindo, adorando tudo aquilo. O brilho das
chamas em seu sorriso o tornava o próprio
demônio. “Aprenda algo antes de morrer, pirralho
fétido. Apenas uma raça é digna da imensidão dos
oceanos, e o idealismo tolo do Rhemus não
atrapalhará o caminho da minha vingança.”
“Não!” Gritou Cinnamon, com o olhar
vitrificado nos muitos canos de fuzil. “Não, vocês
não podem fazer isso!”
O que estava acontecendo? Aqueles caras não
eram meus inimigos? Por que estavam brigando
entre si?
Eu gostaria de ter nascido mais inteligente, mas
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não adiantava me lamentar. Só havia uma única


maneira de impedir aquilo.
Com o coração quase caindo nos pés, eu
disfarcei o meu pavor e subi o patamar do trono
enquanto descia o capuz do meu casaco.
“Não atirem!” Eu gritei para aqueles monstros
de cabelo branco, e então voltei minha atenção ao
velho. “Eu sou o único que vocês querem.”
Concentrado na pouca umidade no ar, eu
libertei o meu poder e consegui que meus olhos
brilhassem, como duas gotas de luz dourada nas
trevas daquele inferno.
A expressão daquele velho horrível mudou de
escárnio para o mais puro assombro.
“Aurelian? Não...” Ele endireitou a postura,
incrédulo. Seus olhos vermelho-morte refletiam o
dourado dos meus.

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“Meu nome é Oráculo Leviathan e estes tritões


me capturaram como oferenda ao senhor. Deixe
eles partirem, e eu lhe prometo a minha
cooperação.”
Acho que o velho nem me ouviu direito, de tão
abismado com os meus olhos ou com a minha
própria existência. Ele levantou do trono e segurou
meu rosto, inclinando-o para me ver bem de perto.
Eu lutei com tudo o que havia em mim para não
morder aqueles dedos asquerosos, permitindo que o
velho me estudasse como um cavalo de exposição.
Ele subiu o olhar para os tritões acuados logo
atrás de mim.
“Vocês dois, desapareçam na mesma banheira
por onde vieram e mandem um recado àquele idiota
do Rhemus. O próximo rabo-de-escama que
aparecer na minha frente vai preferir mil vezes uma
morte rápida.”
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Os soldados baixaram seus fuzis e retornaram à


posição de antes.
Maron e Cinnamon relaxaram a postura e me
fitaram com surpresa e nervosismo. Cinnamon
tentou me dizer alguma coisa, mas então os dois
selkies de antes surgiram no salão e os conduziram
para fora.
Assim que a porta fechou, o pânico e a vontade
de chorar retornaram com força total. Aquela dupla
de tritões desejava minha morte, mas pelo menos
eu os compreendia, mesmo que só um pouco. E
eles podiam ser ruins, mas não eram terríveis.
Nunca vi em nenhum dos dois o demônio
encarnado que habitava o olhar daquele velho.
Sozinho comigo em seu salão amaldiçoado, o
tal imperador acomodou-se novamente no trono e
bebeu largos goles de sua taça, com tranquilidade.
“O que pretende fazer comigo?” Eu perguntei.
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“Não precisa ter medo, minha mais preciosa


arma de aniquilação. Rhemus foi um completo tolo
em arquitetar sua execução, mas por sorte eu
descobri o plano a tempo de interceptá-lo.” O velho
desceu o olhar por mim, me admirando de forma
muito, muito desconfortável. “Enquanto estiver sob
minha proteção você nunca temerá pela própria
segurança. A menos, é claro, que você esqueça sua
promessa de cooperação.”
Minhas pernas fraquejaram. O que ele queria
dizer com aquilo?
Ignorando minhas lágrimas de pavor, o
imperador fez outro gesto com a mão.
Dois caras surgiram por trás de mim e
agarraram meus braços.
“O quê? Me soltem!!” Eu gritei, esperneando.
“É um garoto valente, tanta força de espírito
poderá se tornar um empecilho. Livrem-no destas
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correntes e tranquem-no na Solitária Zero.”


“O que é o Solitária Zero? Eu prometi
cooperar!” Eu gritei, me debatendo com todas as
forças enquanto aqueles ogros me arrastavam.
“E você vai cooperar, no momento oportuno.
Enquanto este dia não chega, meus calabouços de
gelo serão a maior hospitalidade que um monstro
dourado poderia merecer.”
E com estas últimas palavras o velho retornou à
sua taça de bebida, desprezando meus gritos de
desespero conforme eu era arrastado em direção ao
inferno.

****

Os guardas me arrastaram por corredores


escuros e através de escadas infinitas, que pareciam

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mergulhar nos confins da terra.


Ao longo das escadarias nós passamos por
andares cada vez mais sombrios, com paredes de
rocha e gelo e portinhas estreitas que conduziam a
longos corredores, de onde ecoavam gritos
aterrorizantes e rangidos de metal pesado.
Então aquele era o tal calabouço…
considerando-se a opulência daquele castelo, a
existência de um subsolo tão profundo não deveria
me surpreender. Aquela escada não terminava
nunca, parecia ser fechar em uma espiral cada vez
mais estreita e claustrofóbica.
Quando a largura do corredor mal comportava
uma pessoa por vez, enfim surgiu o último degrau,
e também mais uma passagem de acesso a um
longo corredor com meia dúzia de portas de metal
com janelinhas de grade.
Diferente dos outros andares, neste corredor
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havia uma sétima porta de aço e sem grades, no


centro da porta havia um único numeral: zero.
Eu travei no lugar, o que novamente não me
serviu de nada. Os guardas empurraram minhas
costas e me forçaram a seguir até o fim.
Já diante daquela porta, eu não conseguia sentir
as pernas ou meu próprio coração, embora ele
certamente disparasse. Na minha alma e no meu
corpo existia apenas um pavor excruciante e
tenebroso.
Papai Hian, papai Maikon, Rayner... Por favor,
que o amor de vocês me conceda um milagre.
Qualquer milagre. Eu implorei com todas as
minhas forças.
O guarda de olhos vermelhos passou a chave na
porta, forçou, tremeu a fechadura com violência e
rosnou de ódio.
Ele tirou a chave e mostrou ao colega de olhos
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castanhos, conversando no idioma que eu não


entendia.
O colega dele também tentou e esmurrou a
porta, sem conseguir destrancá-la.
A discussão entre eles tornou-se acalorada,
quase uma briga. Ambos estavam nervosos e
inquietos, talvez com medo de algum castigo por
trazerem a chave errada.
Cada vez mais nervosos, eles vasculharam os
bolsos de suas togas, até que um deles encontrou
outra chave. Os caras brigaram um pouco mais, e
por fim o segundo agarrou meu braço e me arrastou
de volta até metade do corredor. O colega dele usou
a nova chave em uma das portinhas secundárias.
A porta clicou e abriu com um longo rangido.
Do outro lado havia... quase nada, apenas o chão de
concreto, paredes e teto de gelo azulado, por onde
penetrava uma iluminação bem fraca, uma poça
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embaixo de uma goteira que talvez fosse para


beber, banhar ou fazer xixi, e também um cadáver
de tritão idoso, que jazia de cara no chão e a cauda
enfiada dentro da poça.
A visão mórbida me assustou tanto que um
agarrão atrás do meu pescoço me fez gritar. Um
guarda forçou um alicate na argola até conseguir
estourá-la, libertando o meu pescoço já esfolado.
Então o outro apontou para dentro, com o olhar em
mim.
“O quê? Nesta cela? Não, nem pensar, tem um
tritão morto ali dentro e este lugar é menor que o
meu banheiro! Eu mal conseguiria deitar, e olha
que sou bem baixinho.”
Os dois guardas me empurraram para dentro e
bateram à porta.
“Esperem! Não me deixem aqui!” Eu esmurrei
os punhos da porta, quase ensurdecendo com o eco
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metálico. “Onde vou sentar, o que vou comer? Não


posso beber água onde tem um velho morto!”
Ninguém respondeu. Quando a barulheira
metálica cessou, restava apenas o silêncio mais
sombrio e absoluto que poderia existir.
Solitário naquela minúscula caixa de gelo, eu
fiz a única coisa que poderia fazer: Me encolhi no
cantinho e desabei a chorar.

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Capítulo 76

Rickett

O salão de festas do Palácio fervilhava em


atividade. Selkies jovens rindo em torno da mesa de
licores, alfas de meia-idade firmando contatos
sociais e casais apaixonados dançando ao som de
jazz, que a popular banda The Pinnipeds tocava em
um palco iluminado.
Eu não conseguia fechar a boca. Todos os
nobres de Cratília haviam sido convidados, então o
salão de baile estava repleto de selkies em trajes
elegantíssimos. Casacões, coletes e sobretudos de
peles raras, chapéus enormes e elaborados, joias
que reluziam sob o brilho do enorme lustre de
cristal.
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E mesmo com tantas extravagâncias, assim que


eu entrei todos os olhares voltaram-se para mim. A
multidão admirou cada detalhe do meu volumoso
casacão de veludo azul, com enchimento que o
estufava como uma cachoeira até minhas botas de
pelo de marta. A princípio me pareceu uma roupa
fechada demais, mas o General até que tinha bom
gosto. Até o senhor Yoshan participou do meu
make com um anel de rubi personalizado, no
mesmo tom de vermelho que a escama no meu
pescoço. Eles só não conseguiram mexer no meu
cabelo. Meu topete moicano sempre seria a minha
marca registrada.
Intimidado por tantos olhares, eu engoli minha
vontade de fugir e caminhei imponente até o centro
do salão, onde um dos garçons me ofereceu uma
taça de espumante de madrepérola.
Eu beberiquei da elegante tacinha fingindo

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possuir algum requinte, mas na verdade só queria


ficar bêbado. Onde estava o General, ou o pastor
Enan? Não só eu era o centro de todas as atenções
como também era o único cara desacompanhado.
Minhas esperanças de encontrar algum
conhecido eram nulas. Que tipo de ladrão seria
convidado à uma festa no palácio? Eu já me
preparava para uma noite super aborrecida e
solitária quando alguém familiar apareceu.
“Príncipe Rickett! Desculpe importunar, vossa
majestade está absolutamente magnífico!” Disse o
ômega que conheci nas piscinas de gêiser. Ele
mesmo estava fantástico com sua manta de
cashmere e chapéu combinando. “Vestiu-se para
derreter o coração do seu predestinado, não é
mesmo?”
Eu ri, muito encabulado e também surpreso.
Pensei que aquele cara nunca mais me olharia por

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ser amigo de tritões, mas ele até que era ok. E se


realmente me desprezasse por um motivo tão
cínico, eu também não desejaria nem trocar
palavras com ele.
“Onde está o seu bebê?” Perguntei.
“O Rhub? Meu pai ômega concordou em cuidar
dele, por hoje. Faz tanto tempo que não consigo
curtir o meu predestinado… que por sinal também
está terrivelmente atrasado. Por que alfas são tão
vaidosos?”
“Alfas sendo alfas.” Eu forcei o riso. Melhor
nem mencionar que Ronan recusou-se a aparecer,
considerando esta uma festa estúpida com gente
idiota, nas palavras dele.
“Realmente. Mas estou tão feliz em encontrá-lo
aqui. Preciso dizer, não dormi de noite pensando na
minha grosseria. Claro que um futuro imperador
Faroé deve exercer diplomacia, mesmo com os
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rabos-de-escama.”
Eu murchei os lábios, meio indignado, mas
aquela meio que era a opinião enraizada na nossa
cultura. Aquele cara não parecia ser maldoso, ou
pelo menos não intencionalmente.
“Os tritões são meus amigos, na verdade.
Espero poder apresentá-los quando chegarem na
festa, ahm...”
“Oh, mais uma grosseria da minha parte, eu
imploro seu perdão.” O cara quase apertou minha
mão, então acho que lembrou que eu era um
príncipe e beijou meus dedos, o que foi muito mais
esquisito. “Meu nome é Rhomim, primogênito do
duque de Byrr. Acho incrível que faça amizade
com tritões. De verdade. É muita bravura da sua
parte.”
“Qual é a grande surpresa nisso?”
“Por causa do passado entre as nossas raças,
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talvez?” O garoto deu de ombros. “Um príncipe


selkie amigo de tritões é especialmente incrível,
porque pode mudar tudo. Eles talvez até sejam
convidados, no próximo evento.”
Minha breve alegria despencou.
“Como é? O General e os outros não foram
convidados?”
“Eles nunca foram bem vindos neste tipo de
evento, você nunca reparou? Se os tritões de
Cratília são dignos da estima do príncipe então
também serão dignos da minha, mas tente
convencer esta multidão de que eles não são
facínoras parasitando a benevolência do
Digníssimo Arquiduque.”
“Parasitando? Mas esta festa comemora a nossa
vitória em guerra! Uma vitória que o General
Cordelen e o senhor Yoshan arquitetaram
sozinhos!” Eu levantei a voz, ardendo de tanta
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indignação.
Um cara surgiu do nada e passou o braço em
torno da cinturinha do Rhomim, grudando-o contra
seu corpão de alfa.
Ei, eu conhecia aquele completo retardado.
“Opa, opa, quem se atreve a gritar com o meu
predesti… ah, é você, Rickett!” Disse Ruthor, com
a mesma cara de idiota bundão que sempre teve.
“Ruthor, ele é nosso príncipe, não me faça
passar vergonha!” Rhomin livrou-se de seu abraço.
“Ele é só um batedor de carteiras que tirou a
sorte grande.” Ruthor deu risada e uns tapinhas
grosseiros nas costas do predestinado. “Qual é,
Rhomim, não me olha assim, o que ele pode fazer?
Me condenar ao fuzilamento?”
“A título de curiosidade, posso conseguir
exatamente isso.” Eu respondi, entediado. “Mas

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prefiro preservar a munição do reino e resolver


desavenças no braço, como em nosso último
desentendimento na semana passada.”
“Desentendimento?” Rhomim encarou Ruthor e
cruzou os braços, indignadíssimo.”Foi o
Digníssimo Príncipe quem o deixou numa cadeira
de rodas? Você me disse que foi atacado por três
alfas!”
“E eram três alfas enormes!” Ruthor suou frio,
aquele completo abestado. “Libera a minha cara,
Rickett, um duque precisa manter a boa reputação.
Onde está o príncipe trikie, afinal?”
“Não chame o Digníssimo Ronan de trikie, é
tão pejorativo! E você nem sequer tem sangue
nobre, só será duque algum dia porque predestinou
comigo!” Rhomim gritou. “Francamente, Ruthor,
quando você for fuzilado eu assistirei na primeira
fila, comendo flocos de camarão.”

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“Ei, ei, já saquei, tá bom. Faça sua socialização


aí, suponho que este meliante também seja um
contato vantajoso.”
Ruthor foi embora se embebedar com seus
amigos igualmente imbecis e Rhomim deu um
longo suspiro.
“Não sei o que fiz ao chamado para merecer
aquele acéfalo.” Ele atacou um garçom e fisgou
duas tacinhas de espumante. Ele me ofereceu uma
em troca da minha taça vazia. “Vou ter uma longa
conversa com ele. Espero que não desconsidere
uma amizade comigo.”
Amizade? Aquele nobre tão educado e de boa
família, querendo ser visto com alguém como eu?
“Respeite os tritões do reino e podemos ser
amigos, sim.” Eu sorri e beberiquei meu
espumante.
“Ah, nada me deixaria mais honrado. Imagine
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só, nossos muitos filhotinhos brincando juntos!”


Eu cuspi todo o espumante longe.
“É… é… filhotinhos… vamos ter quinhentos
mil…” Eu ri, engasguei e tossi, tudo ao mesmo
tempo.
“Peço perdão pela minha indelicadeza.”
Rhomim me ofereceu seu lenço. “Poderia ser que
os Digníssimos Príncipes ainda não cultivaram?”
“Eu me esforcei muito, tá bom?” Eu soei bem
mais revoltado do que pretendia. Ah, droga de
bebida. “Quando o Ronan semeou meu ventre
pensei que seria o fim dos meus problemas, mas
adivinha? Eu talvez seja infértil!”
“O quê? Mas quantas vezes vocês tentaram?”
“…Uma.” Eu resmunguei, corado e meio
zonzo.
Rhomim tentou segurar, mas estourou rindo.

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Mesmo gargalhando ele era contido e educado, mas


ainda assim…
“Oh, príncipe, tente mais algumas vezes antes
de se desesperar. Eu mesmo precisei de quatro
tentativas, alguns selkies precisam de muito mais.”
“Você não entende, Rhomim. Seu predestinado
pode ser um grosso sem amor à vida, mas ele
conhece seus deveres. Enquanto isso, o Ronan…”
Eu me calei e devolvi o espumante ao garçom,
antes que falasse ainda mais besteira. Eu não queria
começar a chorar no meio da festa por causa
daquele egoísta, que rejeitou me acompanhar no
primeiro grande evento real desde a nossa
predestinação.
Talvez eu mesmo não devesse ter comparecido,
não era como se eu curtisse essas baboseiras de
gente rica, mas eu não queria o Arquiduque
pensando que conseguia me intimidar. Ronan
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compartilhava comigo do mesmo poder político,


embora fosse apenas simbólico, por enquanto. O
Arquiduque Rhemus precisaria aceitar a minha
existência, caso contrário, após a coroação, o
paredão de fuzilamento ganharia uns furos a mais.
Ahm, na verdade acho que eu não conseguiria
executar ninguém, mesmo que fosse um velho
duas-caras tramando a minha morte. Talvez, no
fundo, eu só quisesse causar uma boa impressão
naqueles que eram os meus futuros súditos. O
General ficaria orgulhoso de mim.
Falando nisso, como se atreviam a não convidar
o General para a comemoração de uma vitória que
ele mesmo obteve? Eu fui muito burro em não
reparar o óbvio, que durante nosso passeio ele não
havia comprado nada para si mesmo.
Eu esperava que os tritões não estivessem muito
abalados… mas algo me dizia que eles estavam

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curtindo a noite de seu próprio jeito inadequado e


obsceno.
Perdido nos meus pensamentos, demorei a notar
o silêncio ao meu redor. Todos os burburinhos
haviam calado e os nobres grudaram seu olhar no
portal de entrada, atentos e fascinados.
Até mesmo Rhomim olhava de queixo caído,
quase derrubando sua bebida.
“Nossa, Digníssimo Príncipe Rickett… o que
fez durante a infância, para ser abençoado de tal
forma?”
Eu segui o olhar de todo mundo — até da banda
e dos garçons — e o meu coração quase saltou do
peito.
Ronan. Ele entrou no salão com os ombros
retos e o peito estufado, trajando um longo casaco
de veludo cor-de-vinho com barra e detalhes em
renda prateada. Lenço de seda no pescoço, botas de
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cano alto, luvas brancas, broche na lapela e


abotoadeiras de diamante e rubi, que eu reconhecia
como obras do senhor Yoshan.
Percebendo toda a atenção que roubou, Ronan
encolheu-se no mesmo embaraço inicial que eu
mesmo tive, mas então disfarçou e seguiu em
frente, reto em minha direção.
Quando ele chegou em mim, seu rosto ganhou
tons cor de rosa, o que nem se comparava ao
vermelhão vulcânico que devia estampar minha
cara.
“Ronan, você… você está lindo.” Eu disse.
O olhar do Ronan subia e descia por mim, ele
demorou alguns segundos para escapar do transe.
E óbvio que ele fechou a cara e desviou sua
atenção para algum canto da parede.
“Claro que estou lindo. Eu sou o Príncipe dos

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Sete Oceanos, não quero nenhum palhaço


esquecendo disso.” Rosnou ele, cada vez mais
vermelho. “Você não está horrível.”
Eu abri um sorriso imenso, o que envergonhou
Ronan ainda mais, mas fodam-se as inseguranças
daquele alfa revoltante. Minha vontade era amassá-
lo com um abraço e fazê-lo desfilar apenas para
mim.
“Agradeço a tentativa de elogio, meu
predestinado. Adorei sua trança.”
“Ah, sério? Quer dizer, tanto faz...” Ele
encolheu os ombros, brincando com uma mecha
solta da franja. “Alguém me disse uma vez que
tranças combinavam comigo.”
“E este alguém tem excelente bom gosto.” Eu
lhe estendi minha mão ao som dos saxofones que
voltaram a tocar. “Você me concederia esta
dança?”
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“Já que estamos aqui…” Ronan revirou os


olhos e me entregou sua mão, então percebeu o que
fez e tentou desfazer o gesto, indignado. “Ei, é o
alfa quem deveria…”
Eu fechei os ouvidos para os resmungos do meu
magnífico predestinado e corri o arrastando até a
pista de dança. Centenas de olhares nos seguiram,
com expressões que variavam entre fascínio e
inveja, mas desta vez não havia insegurança
alguma em mim.
Meu nome era Rickett Walrosse, ex-ladrão,
futuro imperador, e também o ômega mais sortudo
de todo o universo.

****

Nós dançamos durante toda a noite, enquanto a

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neve caía lá fora e o calor das lareiras nos mantinha


aquecidos.
Ronan nunca havia valsado e nem eu, mas de
alguma forma nós nunca tropeçamos ou pisamos
nos pés um do outro, nem competimos sobre quem
conduziria quem. Eu apenas descansei a mão em
seu peito e o acompanhei, sincronizando nossos
passos através de uma ligação que nunca percebi
ser tão forte.
A mão do Ronan na minha cintura era firme e
ao mesmo tempo cuidadosa, bem como sua mão
que segurava a minha. A cada giro ou rodopio o
meu casaco estufado traçava círculos no ar, e o
cheiro do Ronan se tornava tudo o que eu queria
sentir.
E eu percebia, pelo sorriso distraído que Ronan
nem percebia ter, que ele deleitava-se da mesma
forma.

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“Agradeço por ter vindo.” Eu disse a ele,


tranquilo como a melodia dos saxofones.
“Você quem é teimoso. Onde já se viu, um
ômega sozinho em uma festa?” Ronan grunhiu,
tentando se irritar. “Você prometeu que estudaria
todas as noites.”
“E prometo retomar meus estudos ainda
amanhã. Quero ler tudo o que você gosta e
descobrir se o Mega-Max fica bem.”
“Claro que ele fica bem. Ele é o Mega-Max!”
Eu dei risada. Quando percebi, já estava
dançando na pontinha dos pés, tentando alcançar
sua altura.
Ronan percebeu a aproximação e por um
instante travou no lugar. Aquele teria sido nosso
primeiro tropeção, mas ele segurou firme por trás
da minha cintura e abaixou a distância que faltava.

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No centro do elegante salão, durante o final da


música, nós dois nos beijamos profundamente.
Eu poderia saborear a língua do Ronan por
horas e horas, e também seu toque, seu relaxamento
em minha presença, seus sentimentos que
floresciam como uma rosa solitária em meio ao
gelo. Mas infelizmente a música parou e alguém
tilintou sua tacinha, no palco da banda.
Ronan separou-se de mim e nós olhamos na
direção dos estalidos, onde o Arquiduque Rhemus
chamava a atenção de todos.
“Saudações, meu estimado povo cratiliense. É
com imensa alegria que os recebo hoje, neste dia de
celebração. Como todos bem sabem, nossos
inimigos dos mares quentes enfim começaram a
pagar por seus terríveis crimes contra a nossa raça.
Esta guerra ainda engatinha seus primeiros passos,
mas a julgar pelos resultados da Batalha de

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Egarikena, nossa redenção se aproxima.” O


Arquiduque equilibrou-se em sua bengala e com a
mão de três dedos levantou seu cálice. “Em breve,
nossos tempos de exílio, frio e humilhação
encontrarão seu fim.”
Todos os convidados ergueram suas taças e
gritaram em comemoração.
“Salve o Digníssimo Imperador Macalor! Salve
o Digníssimo Arquiduque Rhemus” Eles Gritaram.
“Nossa vitória sobre os tritões não é apenas
militar e estratégica, mas também moral. É de
conhecimento comum que nosso inimigo necessite
de uma força espiritual e mística para conduzi-lo, e
foi por subestimar esta força que o finado
Imperador Khaligor pereceu em batalha contra
Aurelian, o Tirano. Após perdas imensuráveis,
muitas das quais nunca iremos recuperar, nós
selkies compreendemos nossas reais prioridades

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para a nossa eventual revanche.”


“Então o velho dourado matou o meu bisavô?”
Ronan me perguntou.
Não deu tempo de responder, porque o
Arquiduque ligou o projetor e a imagem que surgiu
na parede roubou o ar de todos nós.
Era a fotografia de um jovem tritão deitado
inconsciente em um chão de concreto. Seu rosto
mal aparecia sob o capuz de pelagem escura, mas a
cauda dourada tornava óbvio o que ele era. Cada
uma das escamas cintilava sob a luz das tochas,
reluzentes como ouro.
Existia um novo oráculo? E os selkies
capturaram ele? Como e por quê? O General
Cordelen sempre lutou pelo fim da tirania dos
oráculos, não fazia sentido que mantivesse aquele
garoto vivo.
Não, calma, eu conhecia bem o calabouço de
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Cratília e era um presídio subterrâneo comum, com


iluminação elétrica e câmeras de segurança. Aquele
lugar da foto parecia escavado no gelo de forma
bem rústica, e a iluminação por tochas era uma
prova adicional de que algo não estava certo.
“O Oráculo foi capturado pelos faeryngos?
Desde quando eles participam da guerra de
qualquer forma, além de nos fornecendo armas?”
Eu pensei em voz alta.
“Faeryngos? Esse pirralho azarado foi
capturado pelo vovô Macalor?” Ronan parecia bem
confuso.
Eu também não digeria bem aquela imagem. A
metade de baixo era a cauda de um monstro sádico
e sanguinário, mas a metade de cima era a de um
adolescente muito abatido, tão fraco que sequer
conseguia recuperar as próprias pernas.
Todos na festa pareciam compartilhar do meu
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desconforto. Mesmo pertencentes ao mesmo reino,


Cratília e Faerynga desenvolveram-se de forma
muito distinta, prejudicadas pela extrema distância.
Para os faeryngos, aprisionar e agredir um
adolescente devia ser o comportamento normal.
Não que os cratilienses fossem muito diferentes
neste aspecto, mas pelo menos ninguém aqui se
gabaria com fotografias.
Seria esta a tal missão da qual o Rayner
participou? O General mudou de ideia sobre
exterminar todo e qualquer oráculo? E por que o
Imperador Macalor desejava o garoto ainda vivo?
Muitas coisas não se encaixavam.
Passado o susto inicial, os convidados
começaram a aplaudir, e muito. Eles celebraram
como se a captura do garoto fosse um passe livre
para a conquista dos mares quentes… e na verdade
era mesmo.

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“Por um oceano para todos nós!” Gritou o


Duque de Trysse, e foi recebido com ainda mais
aplausos.
“Por territórios mais quentes para os nossos
filhotes!” Gritou o Duque de Byrr.
“Pela nossa tão merecida liberdade!” Gritou de
novo o Arquiduque. “Nossos inimigos serão postos
em seu devido lugar.”
Eu baixei o olhar, sem o menor ânimo de
comemorar.
“Estes velhos querem coisa demais.” Ronan
enfim notou minha raiva. “O que aconteceu?”
Naquele mesmo instante um garçom passou
atrás de mim e eu peguei uma nova taça, então a
ergui para o alto.
“Por um oceano onde todos sejam reconhecidos
por suas conquistas!” Eu bravejei. “E por um

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oceano onde tritões, selkies e meio-selkies possam


coexistir e ser amigos!”
Todos os aplausos se calaram. Os nobres
olharam para mim com expressões de preocupação
e curiosidade, como se eu só pudesse estar
brincando.
Eu baixei minha taça e me encolhi, mais do que
desconfortável.
O Arquiduque começou a rir.
“Nosso jovem príncipe está muito falante, hoje.
Peço o perdão de todos, é natural que um ex-
criminoso encontre dificuldades com certos códigos
de etiqueta.” Disse o Arquiduque.
Eu quis desaparecer dentro do meu casacão
azul, que naquele momento eu odiava em cada
detalhe e pedraria colorida. Eu me sentia um farol
atraindo o escárnio da burguesia inteira.

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Ronan deu uma rosnada e agarrou o pescoço de


um garçom. Ele roubou uma taça e levantou com
tanta estupidez que virou metade do espumante no
chão.
“Para o caralho com o que todos pensam de
mim, qualquer desejo do meu predestinado será a
lei!” Ele fuzilou o Arquiduque e os duques com o
vermelho intenso de seu olhar. “Foda-se que
sejamos apenas príncipes deste fim de mundo. Um
dia este ômega revoltante aqui será tão imperador
quanto eu, então comecem a apoiá-lo porque nisso
vocês todos são excelentes, seu bando de puxa-
sacos hipócritas.”
Além de permanecerem calados, todos
paralisaram. Em poucas frases Ronan conseguiu
falar mais palavrões do que aqueles metidinhos
deviam ouvir em um ano inteiro.
Um único som de aplausos ecoou perto de nós.

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“Pela amizade entre tritões e selkies!” Rhomim


aplaudiu animado, então acotovelou seu parceiro
emburrado e lhe desferiu um olhar congelante.
“Não é uma ótima ideia, amor?”
Arrepiado pelo tom de voz de Rhomim, Ruthor
levantou sua taça.
“Pela amizade entre todos os povos do mar!”
Disse ele.
Os aplausos se multiplicaram e logo todos
estavam brindando e comemorando. Diversos
selkies que eu nunca vi na vida apareceram para me
dar um tapinha no ombro e parabenizar minha
bravura.
Eu sorri, emocionado por tantos, tantos
motivos. O excesso de atenção foi demais para o
Ronan e ele escapou para algum lugar, e eu mesmo
não conseguia cumprimentar tanta gente. Aquelas
pessoas ricas e importantes gostaram da minha
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ideia?
Tão feliz que eu mal continha a minha risada,
eu agradeci ao Rhomim e a todos os que
aplaudiam, então a música recomeçou e eu decidi
procurar meu predestinado.
Quando eu deixei o salão em direção aos
corredores, diversos cratilienses ainda sorriam e
debatiam sobre as minhas palavras, mas havia um
único deles que não abriu o menor sorriso.
Ainda no topo do palco, Arquiduque Rhemus
espremeu as mãos em sua bengala e acompanhou
com o único olho cada um dos meus passos, sua íris
brilhando no mais profundo desprezo que eu já
senti em alguém.

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Capítulo 77

Estufas eram o ambiente mais luxuoso que


poderia existir em Cratília, e o jardim de inverno do
palácio era o maior de todos: um espaço
deslumbrante, tão cheio de verde quanto havia
branco lá fora, e também havia o colorido das
flores, as texturas fofas dos musgos nas árvores e a
aspereza dos arbustos esculpidos.
Na primeira vez em que eu vi aquele jardim,
tive dificuldade de acreditar que pudesse haver
seres vivos tão coloridos em terra firme. O chão
natural de Cratília era puro gelo, então apenas os
mais ricos ostentavam plantas em ambientes
climatizados. Eu já havia roubado algumas casas
com pequenos jardins e vasos floridos, mas apenas
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no palácio haviam árvores, e eram todas lindas e


com aromas deliciosos.
Era a minha primeira vez entrando no jardim de
inverno, então eu fechei a porta de vidro atrás de
mim e apreciei o ambiente quente e muito úmido,
com sons distantes de assobio. Àquela hora, os
poucos passarinhos já estavam recolhidos em suas
tocas.
Em meio às diversas plantas, um alfa lindo e
solitário descansava sobre um dos bancos,
admirando o teto de vidro com vista para a aurora
polar.
“Eu imaginei que fosse te encontrar aqui.” Eu
disse, me aproximando.
“Por quê? Não é como se eu gostasse dessas
plantas idiotas.” Ele me fitou com o canto do olhar
e começou a brincar com uma bolinha roxa,
passando-a de uma mão à outra.
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Eu sentei ao lado do Ronan e observei aquela


coisa, então com as minhas mãos leves eu a roubei
para olhar de perto. Era brilhante e um pouco macia
de apertar.
“Ninguém pensaria em procurá-lo aqui.” Eu lhe
respondi, apertando a bolinha e me assustando
quando soltou um líquido de cheiro doce. “Esta é
uma das ameixas do Arquiduque? Ele não vai ficar
nada feliz.”
“Azar o daquele trouxa. Se ele perguntar, os
passarinhos comeram todas.” Ronan deu uma
risadinha, apontando com os olhos para uma pilha
de ameixas espalhadas pelo chão, sob uma das
árvores.
Talvez eu estivesse vendo além da realidade,
mas Ronan parecia aliviado e feliz com a minha
companhia.
Ronan voltou a olhar para cima, na parte onde
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os feixes ondulantes da aurora se encontravam com


uma luz amarelada e distante.
“O sol nunca vai embora?” Perguntou Ronan.
“Não nesta época do ano. E durante o inverno
ele aparece apenas por alguns minutos à cada tarde,
e a gente provavelmente congelaria saindo a esta
hora.” Eu baixei o olhar para a mão enluvada do
Ronan, tão próxima da minha. “Obrigado por me
defender, antes.”
“São todos uns estúpidos.”
As ondas verdes da aurora polar refletiram no
vermelho do olhar do Ronan. Ele podia ser frio e
rígido como um paredão de gelo, mas nossa, era o
paredão mais lindo que existia em Roori, ou em
todo o reino.
“Ei, meu predestinado…” Eu tentei por minha
mão sobre a dele.

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“Acha que meu pai alfa morreu por um


motivo?” Perguntou ele.
Eu travei meu gesto, surpreso.
“Como assim?”
“Seu amiguinho general com certeza te contou
os detalhes. Meu pai ômega me descartou em uma
ilha onde todos me desprezavam e nunca olhou
para trás. Quando o velho deformado me contou o
que ele fez, que ele matou o meu pai Connor para
unir-se a um humano, eu o odiei mais do que odiei
tudo na vida…” Ronan espremeu os punhos,
tremendo-os sobre os lados do banco.
A alma do Ronan pulsou em uma tristeza
amarga e muito profunda, que parecia emanar do
centro de seu próprio coração. Tamanho rancor ia
muito além de uma mágoa passageira, aquele
sentimento era o cerne de tudo o que Ronan era.
A verdade seria cruel, mas ainda mais cruel
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seria privá-lo da minha sinceridade.


“Depois da morte do meu núcleo eu precisei
lutar para sobreviver com diversos outros órfãos.
Interferir na seleção natural é considerado um
crime em Cratília, então precisávamos nos apoiar
uns nos outros. A maioria dos meus amigos, assim
como eu, perdera os pais naquela mesma avalanche
ou em outro acidente trágico. Também havia alguns
híbridos cujo pai alfa não suportou perda de seu
predestinado humano, ou alguns que tiveram os
pais aprisionados ou executados por algum crime…
nunca ouvi de ninguém ter sido abandonado sem
motivo.”
Ronan deu uma risadinha triste.
“Então sou apenas um idiota azarado com um
pai ômega de merda.”
“Não, não foi o que eu quis dizer…” Eu olhei
para a ameixa em minhas mãos, onde o amassão
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que eu dei revelou o recheio, tão branco e bonito


por baixo da casca negra. “Nenhum pai abandona o
filho sem um motivo muito forte, especialmente
aquele que o carregou no ventre.”
“Um motivo muito forte?” Ronan arqueou uma
sobrancelha.
“É… ahm… como eu posso fazer que um alfa
entenda? Alfas e ômegas são diferentes. A prole
pertence ao alfa, que em teoria é um igual com seu
ômega. Mas alfas tem superioridade física, então…
certas coisas… são mais comuns do que deveriam
ser, entende?”
Ronan continuou me olhando, fingindo
desprezo, mas eu sentia seu esforço e seu fracasso
em conseguir me compreender.
Discutir assuntos difíceis não era a minha coisa,
mas Ronan jamais pediria minha opinião — ou a
opinião de ninguém, realmente — se não fosse
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muito importante.
“Dizem que antigamente… não sei há quanto
tempo… a relação entre alfas e ômegas costumava
ser muito diferente. Não havia o despertar, e o
cheiro de um ômega virgem era irresistível a
qualquer alfa. Ômegas eram pouco mais que
objetos de reprodução e predestinavam com o
primeiro alfa que os violentasse. Era comum que
alfas poderosos possuíssem haréns de ômegas, que
muitas vezes sofriam terrivelmente em celas,
submissos e sem nenhum direito de escolha. E
então o chamado falou e fez valer a nova lei: o
próprio chamado escolheria os pares ideais,
baseado em seus próprios critérios.”
“Que porra é essa? Eu nunca ouvi sobre nada
parecido!” Ronan parecia igualmente desconfiado e
intrigado. “O chamado é só aquela voz irritante de
quando entramos na água, ele sempre fala as

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mesmas coisas. Caçar, reproduzir, blá, blá, blá.”


“Por enquanto sim, ninguém entende bem como
o chamado funciona ou o que ele é, mas acho
normal que um morador de Egarikena compreenda
ainda menos. A ignorância é um mecanismo de
controle.”
“Mas o chamado controla, não controla? Quer
dizer, quem desobedece geralmente se fode, mas
você está dizendo que o chamado é bom?”
Bondade? Era uma pergunta bem complicada.
Eu não odiava ter predestinado com Ronan, mas
será mesmo que impor casais era a resposta
correta?
Ronan parecia cada vez mais perdido, talvez
aquela conversa fosse complicada demais para o
cérebro dele, o que era bom. Eu não gostava de
imaginar como seria a minha vida em tempos
antigos.
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“Enfim, como eu dizia, houve uma mudança


nas leis que regiam nossa espécie, e dentre as
muitas mudanças que trouxeram igualdade e
dignidade aos ômegas, estava esta de que a prole é
responsabilidade do alfa. A intenção era que o
ômega servisse ao alfa com o corpo, e o alfa, em
troca, cuidasse de todo o resto, inclusive da prole.
Mas alguns alfas distorceram as ordens e se
acharam os únicos proprietários de sua ninhada,
vendo nisso uma prova de sua superioridade. E
nada é mais perigoso do que um alfa que se sente
superior.”
Ronan continuou me olhando, tão perdido que
até estragou a seriedade do que eu dizia. Se não
fosse a tensão pelo que eu mesmo contava, eu teria
dado risada do quanto eu consegui confundi-lo.
“O que caralhos isso tem a ver com a minha
pergunta?” Ele franziu a testa, esforçando todo o

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seu cérebro.
“Talvez seu pai ômega estivesse te protegendo,
ou protegendo a vocês dois. Este seria um motivo
forte o bastante.” Eu expliquei pausadamente. Se
Ronan ainda assim não compreendesse, eu
precisaria desenhar.
Ronan permaneceu silencioso, misterioso, com
o olhar em lugar nenhum. O desejo em invadir sua
mente me consumia, mas eu respeitava Ronan. Eu
queria ajudá-lo tanto quanto desejava sua
confiança.
“Eu menti quando disse que cresci sozinho.”
Ele disse, desencontrando nossos olhares. “Um
núcleo de idiotas cuidou de mim desde o começo,
se é que posso chamar de núcleo. O alfa era um
viúvo, o ômega era apenas um humano comum
bem mais velho que o alfa, e o filhote do alfa o
chamava de pai, como se houvesse qualquer

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vínculo de sangue. Pode imaginar algo mais


estúpido?”
Eu sorri, quieto e pensativo.
“Para uma sociedade de monstros, os tritões
têm bastante respeito com o amor.”
“Você ouviu qualquer coisa que eu disse?”
Ronan arqueou a sobrancelha para mim.
“Tritões podem reencontrar o amor, adaptá-lo,
escolhê-lo na medida do possível, expandi-lo para
além das fronteiras de um núcleo. Este é um
tesouro muito valioso, compreender que o amor
não depende do sangue.”
Ronan olhou para a minha cara mortificado,
como se eu fosse um doente mental.
“Só existe vento nesta sua cabecinha de ômega?
Meu cheiro era diferente de todos, aqueles idiotas
nunca foram o meu núcleo!”

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“Então você nunca sentiu o amor de nenhum


deles?” Eu perguntei.
Ronan paralisou ainda mais. Sua tristeza
parecia um tornado elétrico travando guerra com a
raiva e o medo. Era forte demais, cruel demais.
Ronan sempre parecia emburrado e azedo, mas
considerando-se a intensidade de sua dor, era
incrível que ele disfarçasse tanto sem enlouquecer.
Se eu sentisse metade de sua angústia, acho que eu
gritaria até a morte me levar. E eu reconhecia a
origem do pior destes sofrimentos: a morte de
alguém querido, que na verdade conversou comigo
dias antes.
Eu precisava contar, mas como Ronan reagiria?
Eu também sentia medo.
“Ronan, meu predestinado, tem algo que
preciso lhe revelar.” Eu estremeci. “É sobre o
Madhun.”

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“Não fala este nome!” Ele gritou, me


assustando. “Você nunca teve o direito de invadir a
minha mente, então vê se esquece o que descobriu,
está me ouvindo?”
Como é? Eu nunca li a mente de ninguém, mas
era impossível me indignar quando Ronan trazia
tanto sofrimento em seu olhar, e nos gestos, e na
própria voz.
Ele não possuía condições emocionais para uma
notícia tão grande.
“Me desculpe, não farei de novo.” Eu disse.
“Meu pai ômega não me protegeu de porra
nenhuma! Ele é apenas um príncipe mimado e
egoísta, que escolheu ter o filho que quis, com o
idiota que quis, e escolheu até mesmo largar a porra
do trono de Egarikena. Quem ele espera que
assuma aquela merda?” Os olhos do Ronan
brilharam com lágrimas de ódio. “Eu não preciso
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do amor dele ou daqueles idiotas de Egarikena, ou


de ninguém! Eu só tenho um parente vivo, que é o
meu avô Macalor, e um dia eu irei encontrá-lo!”
“Mas ele vive em Faerynga, do outro lado do
mundo!” Eu exclamei.
“Não me interessa. O reino é o mesmo, não é?
Eu vou dar um jeito de atravessar essa porra de
oceano e assumir o único trono que me interessa.”
Eu admirei os lindos arbustos floridos,
pensativo. Atravessar o território inimigo era
permitido apenas para selkies alfas em viagem de
encontro ao ômega, pois o código de honra dos
tritões valorizava a escolha do chamado e não era
tão raro que selkies do sul e do norte
predestinassem entre si. Por ter dezoito anos,
Ronan até poderia enganar o reino inimigo e
atravessar os mares quentes, mas um traidor
regicida jamais completaria a travessia em

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segurança.
Algo pesado caiu nos meus ombros. Era o
casacão do Ronan, bem quentinho e com o cheiro
dele.
“Quer saber, até esse lugar é frio pra caralho.”
Ele deu as costas e voltou para a festa. “Vou te
esperar no nosso quarto, então vê se cansa logo
daquela festa estúpida.”
Eu abracei o casaco do Ronan em torno dos
meus ombros e o assisti ir embora, desfilando a
camisa justinha que ele vestia por baixo, e também
o saiote ajustado nas partes mais perfeitas.
Apesar de preocupado, eu sorri em profunda
emoção e cheirei o perfume na gola, sorrindo.
Então eu me levantei e corri para me despedir dos
meus novos amigos, apressado em ir embora para a
verdadeira diversão daquela noite.
Pelo visto o quarto do Ronan havia se tornado o
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nosso quarto, e já havia passado da hora de eu


demarcar o meu território.

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Capítulo 78

Ah, eu ainda não acreditava no meu final de


noite! Mesmo após a discussão tensa no jardim de
inverno, Ronan me recebeu em seu quarto — opa,
em nosso quarto —, me agarrou, arrancou as
minhas roupas, e… ahh, eu só podia estar vivendo
um sonho!
Alguns selkies riquinhos passando no outro
lado da rua começaram a me olhar estranho, então
desviei meus pensamentos. Eu devia estar com uma
expressão muito abobada.
Desmanchar o sorriso foi uma boa escolha
porque logo depois avistei alguém conhecido se
aproximando. O General Cordelen apareceu
pontualmente no horário que eu solicitei, com uma
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túnica grossa e bem comportada na mesma cor


cinza das botas, gorro e luvas, o conjuntinho
discreto contrastando com seu deslumbrante broche
de cabelo. Pelo visto aquele era um de seus dias
livres.
“Boa tarde, Rickett.” Ele acenou para mim
sorridente, chegando ao meu encontro.
Apesar do meu imenso bom humor eu não
estava disposto a ser enrolado de novo.
“Por que manteve segredo sobre não ter sido
convidado?” Eu perguntei a ele.
“Como é?” Ele enfim me alcançou, na mesma
esquina onde nos reencontramos na tarde de
compras.
“Eu teria feito um escândalo, sabia? Apareceria
naquela festa com todos vocês tritões, e coitado do
idiota que os proibisse de entrar!” Eu ericei meus
dentes, revoltado só de lembrar.
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O General Cordelen enfim compreendeu, e a


confusão em seu rosto mudou para um sorriso
discreto.
“Foi seu primeiro evento como príncipe, meu
jovem Rickett. Deveria aproveitar com garotos da
sua idade.”
“Não é neste ponto que quero chegar, e o
senhor sabe disso! Você e o senhor Yoshan
arquitetaram toda a Batalha de Egarikena sozinhos,
arriscaram tudo e trouxeram ao nosso reino uma
vitória absoluta. Não é justo que sejam desprezados
deste jeito!”
“Muitas e muitas coisas não são justas. Quando
cheguei em Cratília eu vendi minha vida e minha
lealdade ao Arquiduque Rhemus em troca de uma
única coisa: vingança ao Oráculo Aurelian. O
Arquiduque me forneceu o treinamento, o ranking e
o exército necessário, e ainda garantiu uma boa

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escola ao Cinnamon, uma linda loja ao Yoshan e


uma ampla residência para todo o meu núcleo.
Desprezo é um preço pequeno a se pagar, por tudo
o que recebemos.” O olhar bicolor do General
sombreou por um breve instante. “Agora que obtive
meu sucesso, resta-me uma vida de quase
escravidão.”
“O Arquiduque também teve muito a ganhar
com a morte do Oráculo Aurelian, vou apostar que
ganhou muito mais que o senhor!” Eu quase
gritava, indignado com a serenidade daquele cara.
“E agora também existe outro oráculo aprisionado
em Faerynga? Nenhum selkie teria a astúcia de
planejar uma captura tão importante, especialmente
aqueles trogloditas faeryngos. Aquilo também foi
coisa sua!”
“Está correto. A missão de captura envolveu
Maron, Cinnamon, e meu filhote adotivo que talvez

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você lembre, Rayner Schwanz.”


Filhote adotivo? Que droga de termo era esse?
Ronan explicou sobre ter sido criado fora de seu
núcleo, mas para os selkies este conceito não
existia.
“Você odeia oráculos. Sempre quis exterminar
todos, criar um mundo onde o povo do mar possa
viver feliz e livre de tiranias. Entretanto você
entregou um oráculo ao Imperador? Não faz
sentido e duvido que um plano seu tenha
simplesmente falhado. Alguma coisa escapou do
seu controle, não é?”
“Mais coisas do que imagina.” Ele deu de
ombros, deixando transparecer sua tristeza.
“Pare de responder desse jeito vago e irritante!
Você quer ser meu amigo, mas não contou sobre
sua exclusão da festa, ou sobre esta segunda
missão, ou sobre nada de importante! Como quer a
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minha amizade, se você mesmo não confia em


mim?”
O General sorriu de novo e não era por me
achar um pirralho emotivo e descontrolado. Ele
parecia… orgulhoso.
“Tem uma creperia aqui perto que eu sempre
quis conhecer. O que acha de fazermos um
lanche?” Sugeriu ele.
Mas que putão esquivo e mentiroso. Selkies não
eram exatamente sinceros, mas os tritões… que
raça mais repugnante!
Talvez enchendo a barriga aquele cara se
abrisse comigo, mas antes de concordar eu tive uma
ideia brilhante e extremamente divertida.
Eu também queria ser um pouquinho vingativo.
“Podemos comer crepes, mas antes preciso
passar em uma certa loja. Espero que não se

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importe de me acompanhar.” Eu disse a ele,


sorrindo com travessura para a curiosidade em seu
olhar.

****

Eu saltitei por entre os mostruários, procurando


o maior vibrador que eu pudesse encontrar. Logo
eu achei um gigante, quase maior que o mastro do
Ronan, e era todo lilás com glitter e lampadinhas
por dentro.
Segurando o riso, eu apertei a base e liguei o
enorme brinquedo, que começou a girar, tremer,
piscar luzes e até tocar ciranda-cirandinha.
“Olha este aqui, General, o que acha?”
O General permanecia encolhido e apavorado
na entrada da casa-de-ômega, olhando os

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brinquedos com um olhar tão arregalado que


parecia que fossem cobras querendo mordê-lo.
“É bem… interessante.” Ele miou,
absolutamente constrangido.
Eu ri alto, deixando que o vibrador musical
vibrasse no balcão do atendente, que não era louco
unir-se na provocação ao general, mas ele
certamente se divertia.
Como um cara tão casto como o General
Cordelen podia ser melhor amigo do pastor Enan?
O cara enfrentou uma batalha sanguinária em solo
inimigo e não conseguia enfrentar alguns pintos de
borracha.
“Vou comprar este para o senhor. Ou será que
prefere este? É mais gostoso se for parecido com o
natural, qual o tamanho do senhor Yoshan,
exatamente?”
“Creio que não seja da sua conta, príncipe
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Rickett.” Ele avermelhou tanto que seu rosto


lembrava a cauda de um selkie.
“Ah, é, lembrei daquela noite na joalheria. Eu
me envergonhei porque era um filhote, mas
lembrando agora… meu Ronan é bem mais dotado,
mas o senhor até que deu sorte, também.”
“Rickett, podemos por favor ir embora?” O
General agarrou-se no marco da porta como se o
chão fosse desabar.
“Calma, é brincadeira.” Eu sorri com safadeza e
retirei do bolso um potinho vazio. “Eu apenas
preciso de mais um destes.”
Eu não consegui encontrar o mostruário de
supressores do cio, então entreguei o pote vazio ao
atendente, o mesmo senhorzinho ômega da última
vez.
“Ah, isto aqui…” O atendente leu as letrinhas
no rótulo. “Desculpe, garoto, nossos supressores de
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cio estão esgotados.”


“O quê? Como assim? Onde eu encontro
mais?”
“Em lugar nenhum. A vigilância de saúde
decretou que todos fossem queimados depois que o
sétimo alfa prestou reclamações sobre certos efeitos
colaterais. Aparentemente os ômegas ficavam
doidinhos pra meter vara onde não deveriam.”
Desta vez fui eu quem avermelhei, rezando que
o General não tivesse ouvido esta conversa.
“Deve ter sido uma coincidência, eu mesmo
nunca senti vontade de… ahm… eu sou um selkie
de respeito.” Eu sorri nervoso. Ai, droga, eu estava
pensando na bunda do Ronan, não estava? Tão
durinha e redonda e tentadora.
“Ei, ei, se eu julgasse o barato dos outros, não
teria aberto uma casa-de-ômega.” O atendente
aproximou o rosto e sussurrou como um segredo,
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embora só tivesse nós três na loja. “Com remédio


ou sem, é uma prática bem mais comum do que
pensam. Sete reclamações foram bem pouco, perto
de todos os comprimidos que eu vendi. E subiram
as vendas deste plug de rabo de cavalo que…”
“Obrigado informação que eu nunca solicitei!”
Eu segurei o braço do General, ansioso para
arrastá-lo dali. “De qualquer forma, logo o meu
desconforto vai desaparecer sozinho. Até mais!”
Eu corri com o General e nós dois fugimos
daquela loja.
“Rickett, tem algo que deseja me contar?”
Perguntou o General, quando já estávamos na
calçada.
“Eu nunca comi o Ronan! Eu juro! A bunda
dele é absolutamente deliciosa mas eu consegui me
controlar!” Eu falei, histérico.
“Não… isto é… ahm… muito interessante de
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saber… mas estou falando sobre o seu desconforto


desaparecer. Então você e o Ronan…”
Mesmo morrendo de vergonha e com
pensamentos muito pecaminosos, eu acabei
sorrindo em profundo orgulho.
“Sim, eu e Ronan estamos tentando fazer um
bebê.” Eu alisei meu ventre, empolgado. “Talvez
até já tenha acontecido, olha só, tá ouvindo um som
tipo gorororó?”
O general aproximou o ouvido e torceu a boca.
“Creio que você esteja com fome, apenas.”
“É, eu estou… não estou? Sim, estou morrendo
de fome! Muita fome é sinal de gravidez, né?”
“Quando a semente vingar, você não terá
dúvidas. Venha, vamos comer alguma coisa. Pode
convidar o Ronan, é importante que o casal real
seja visto em público.”

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Sério? O General gostaria da presença dele?


Nossa, talvez ele enfim mudasse de opinião e
conhecesse o lado legal do Ronan.
Ei, meu predestinado, você gostaria de…

<<Não.>>

Mas eu ainda nem falei o que…

<<Envolve sair do palácio?>>

Sim, tem uma creperia aqui perto, onde…

<<Não.>>

Eu inflei as bochechas. Quando eu conseguiria


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passear com aquele alfa recluso e viciado em


livros?
Pela minha expressão o General logo concluiu
que Ronan não compareceria. Nós chegamos na
creperia e o garçom nos conseguiu a melhor mesa,
na beira da varanda do segundo andar e bem ao
lado do aquecedor.
Aquele lugar era bonito e bem cuidado, sem
muita decoração ou exageros. O cheiro de crepe de
coral enchia os sentidos mesmo do lado de fora, e
havia várias mesas com casais jovens e suas
crianças rindo e se divertindo. Era o tipo de lugar
que combinava com o General, charmoso e ao
mesmo tempo recatado.
Nós escolhemos nossos pedidos e a comida não
demorou a chegar, para mim um crepe de anêmona-
bulbosa, e para o General um crepe de barbatana de
tubarão. O vapor quente era de atiçar o estômago e

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o sabor conseguia ser ainda mais delicioso.


“E então…” Eu falei, com as bochechas cheias
de crepe. “Vai me explicar este lance do novo
oráculo?”
“Não tenho muito a dizer, você já deduziu boa
parte da situação.” O General mordiscou seu lanche
com tanta elegância que eu até encabulei. “A
execução do novo oráculo na praça de Roori seria
um último golpe na moral do inimigo,
possivelmente evitando novos confrontos diretos.
Infelizmente o Imperador se colocou em nosso
caminho e nossas informações sobre Faerynga são
muito limitadas.”
O General falava aquelas coisas com tanta
calma que o meu crepe desceu arranhando a
garganta. Será que a preservação de tantas vidas
justificava a morte de um adolescente? Eu não
duvidava da crueldade doentia dos oráculos, mas

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aquela fotografia trágica não me saía da mente.


“Os progenitores daquele garoto devem estar
doentes de preocupação. Aliás, todos os oráculos
pertencem ao clã Makaira, não é mesmo? Por que
nunca revelaram os pais dele? Talvez seja algum
parente do Ronan.”
“Receio que este tópico precise aguardar um
crepe de melhor qualidade.” O General lambeu os
lábios, com um sorriso misterioso. “Esta barbatana
nem se compara à dos tubarões dos mares quentes.”
Eu abocanhei o último pedaço do meu crepe,
meio aborrecido. Talvez a recente franqueza do
General tenha me desacostumado à sua natureza
felina. Ele e o senhor Yoshan conversavam a todo
instante por pensamento, eu nunca competiria em
astúcia com dois tritões tão inteligentes, que
calculavam exatamente o que me contar, e quando.
A amizade que o General buscava em mim era
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honesta, ele não era do tipo que fazia amigos


mesmo em condições que seriam extremamente
vantajosas. Seu único bom amigo era outro tritão
ômega que não oferecia a menor utilidade em
termos estratégicos.
A verdade era que o General Cordelen e o
senhor Yoshan eram tão espertos, que não
necessitavam de técnicas baixas como joguinhos de
amizade para alcançar seus objetivos. Se eles
quisessem me usar — quer dizer, ainda mais do que
já usaram — eles não precisariam perder tempo
conquistando a minha confiança.
Partindo do princípio de que aquele era o
princípio de uma amizade verdadeira, eu não podia
estragar tudo insistindo nos segredos sórdidos do
General. Seria um completo desperdício de tempo,
ainda mais quando havia outros assuntos muito
relevantes.

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“Eu conversei com Madhun.” Eu disse.


“Obrigado por me passar o número verdadeiro.”
“Ah, é? Sinceramente, eu considerei muito lhe
passar o número do tele-peixe. Teria sido hilário.”
Como eu suspeitava. Mas que tritão sem-
vergonha.
“Você já sabia o que havia acontecido com
ele?” Eu balancei a cabeça, percebendo que fazia as
perguntas erradas. “Meses se passaram desde o
ataque, entretanto ele permanece cego. Por quê?”
O General pareceu nem ter me ouvido, estava
distraído apontando o cardápio para um garçom.
Assim que o garçom voltou à cozinha, o General
retornou sua atenção em mim.
“Ah, eles tem milk-shake de licor de anêmona,
você acredita? O Enan precisa conhecer este lugar.”
Ele terminou seu crepe com toda a calma do
universo, mas eu conhecia aquele olhar. O
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desgraçado estava ganhando tempo enquanto


debatia possíveis respostas com o senhor Yoshan.
“O chamado possui muitos mistérios, Rickett.
Alguns cidadãos do mar sobrevivem aos mais
terríveis acidentes sem a menor cicatriz, outros tem
menos sorte… outros rompem o equilíbrio.”
“Rompem o equilíbrio?”
“Fazem um pacto, imploram por um milagre…
utilize o termo que preferir. É apenas uma teoria
baseada em vagas observações, mas há alguns
casos pontuais de milagres, ou situações
extremamente improváveis se realizando. Nestes
casos o tritão ou selkie envolvido perde alguma
coisa, geralmente os poderes curativos do
chamado.”
“Foi isso o que aconteceu com o pai ômega do
Ronan? Apenas um milagre o predestinaria com um
humano e causaria o nascimento de uma nova

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prole.” Eu senti arrepios na espinha. “Se Hian II fez


um pacto com o chamado, como você diz… então o
que ele perdeu?”
O general deu uma risadinha enigmática.
“Nota oito pelo esforço, Rickett, mas você se
perde fácil dos objetivos de sua conversa. Um
mestre fantocheiro utiliza sua curiosidade para
despistar o alvo, e não a si mesmo.”
Eu expandi meus olhos. Então aquele passeio
era um teste?
Não, a fase dos testes já havia terminado, e de
alguma forma eu fui aprovado a ponto de merecer a
amizade de tritões extremamente astutos. Aquele
era o meu treinamento.
Mas treinamento para quê? O que o General
queria dizer com mestre fantocheiro?
“Seu pequeno discurso na festa chegou aos

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meus ouvidos.” Prosseguiu o General. “Foi muito


corajoso de sua parte, e também muito tolo.”
“Ah, aquilo… eu poderia pelo menos receber
um obrigado?” Eu murchei a boca, irritado com
tanta frieza.
“De forma alguma, você merece bronca e nada
mais. Enquanto não subir ao trono, você é tão
vulnerável quanto qualquer... Ah, meu milk-shake
chegou!” A atitude do General foi de hostilidade
para maravilhamento em segundos. Ele bebericou
um gole de seu enorme copo colorido e retornou ao
modo sério. “Um bom governante mantém a cabeça
sempre erguida, Rickett. E um ótimo governante
sabe baixar ou levantar a cabeça nos momentos
mais oportunos. Causar polêmica deveria ser o
oposto de seus objetivos, pelo menos enquanto seu
pescoço estiver na mira do Arquiduque.”
Eu engasguei no meu crepe.

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“Então vocês descobriram mesmo o desgosto


dele por mim? E não pretendem fazer nada a
respeito disso?”
“Você tem suas lutas e eu tenho as minhas.
Minha lealdade ao Arquiduque não me permite
ajudá-lo, mas posso ensiná-lo a ajudar a si mesmo.”
Ah… então era este o objetivo de tantos
enigmas? Talvez até fosse, mas havia algo mais. O
General não me entregaria suas respostas com tanta
simplicidade.
“O progenitor ômega do Ronan é irrelevante
neste momento, mas existe alguém que não é.
Todos sabem o quanto o povo do mar é sensível a
veneno e queimaduras, muito mais frágeis do que
os humanos são. O Arquiduque Rhemus perdeu
metade da pele em todo o corpo, e aquelas são
cicatrizes de queimadura. Ele pode ter feito um
pacto com o chamado para sobreviver ao incêndio,

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e portanto não consegue se recuperar das marcas.”


O General me observou com seu sorrisinho
distante e orgulhoso. Certamente ele e Yoshan
teciam mil elogios sobre mim telepaticamente, e eu
não sabia se ficava feliz ou emputecido com isso.
“Nota nove, desta vez. Sua linha de raciocínio é
correta dentro das informações que você tem. Mas
selkies e tritões são igualmente sensíveis ao fogo,
nenhum selkie sobreviveria a queimaduras tão
extensas, com pacto ou sem.” Ele deu uma
risadinha triste, como se lembrasse de algo distante.
“Então como o Arquiduque sobreviveu?”
“Vou precisar tirar seus pontos, Rickett? Pense
por dez segundos. Qualquer criança de Cratília
conhece as histórias da primeira grande guerra.”
Eu pensei um pouco, e realmente precisei de
apenas dez segundos para encontrar a resposta.

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“Não, não faz sentido algum. Está me dizendo


que um oráculo salvou a vida dele?” Eu comecei a
rir, agora tendo certeza de que o General apenas
brincava comigo. “Isso é ridículo. Aurelian, o
Tirano recuperou incontáveis soldados tritões no
campo de batalha, podendo reverter o mais letal dos
ferimentos. Por que raios ele recuperaria um de
seus inimigos?”
“Esta é uma pergunta intrigante, não é
mesmo?” O General bebeu seu milk-shake, com os
olhos finos iguais aos de um gato.
Meu sangue gelou, como se poeira de gelo
circulasse nas minhas artérias. Nem mesmo o
General conhecia esta resposta?
Talvez a solução para os meus problemas com
o Arquiduque estivesse na solução deste mistério,
mas isto seria óbvio demais, o General não
concederia tantas informações para um simples

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joguinho de detetive.
Espera um momento.
O mistério do Arquiduque não era a pergunta.
Era a resposta.
“Eu preciso ir.” Falei, me levantando.
“Obrigado por hoje, General. O Ronan detesta sair
do quarto, então realmente aprecio nossos
passeios… embora a minha cabeça ameace
explodir o tempo todo.”
O General ainda bebia seu milk-shake, então
apenas acenou para mim, com seu sorriso mais
ambíguo.
“Não se esqueça que a peça mais importante do
xadrez é também a mais frágil. Conquistando o
coração de Ronan você será muito mais que um
ventre fértil, Rickett. O Príncipe da Revolução não
mudará os oceanos sozinho.”

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“O que isto significa?” Eu perguntei,


impaciente. Ah, este cara não dava descanso nos
enigmas?
“Nada, nada. Imagino que tenha uma conversa
importante com o seu alfa, então não irei segurá-
lo.” Ele deu uma piscadinha para mim, muito
orgulhoso e contente, mas também com um ar
sombrio. Preocupação? “Espero que encontre o
sentido de tudo em seu devido tempo. Já perdi um
de meus protegidos, não suportaria perder outro.”
Meu coração deu um salto apertado. As
palavras do General soavam tão diferentes, quando
surgiam de seu coração.
“Ei, essas nossas conversas são confusas pra
caral… ahm… pra caramba, mas eu sou Rickett
Walrosse, o maior ladrão que Cratília já conheceu.
Estes joguinhos mentais são brincadeira de criança
perto do meu conhecimento das ruas, então eu até

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que me divirto.”
Eu pretendia apenas animar o General com
aquele elogio, mas quando as palavras saíram da
minha boca, eu percebi que era verdade. Como
órfão eu nunca tive alguém que conversasse
comigo, muito menos alguém que acreditasse no
meu potencial e na minha inteligência. Conversar
com o general, apesar de meio frustrante, também
era divertido de verdade.
Rayner teve muita sorte em ser adotado por
alguém como ele.
“Obrigado pelos ensinamentos, General, e diga
ao Yoshan que gostaria de sua presença em forma
física, da próxima vez.” Eu acenei, feliz em vê-lo
sorrir de novo, embora a tristeza permanecesse ali.
“Até mais!”
E então eu corri para casa, me perguntando
como discutir certo assunto com o Ronan. Uma
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conversa difícil nos aguardava, e eu esperava ter


sensibilidade o bastante para não estragar tudo.

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Capítulo 79

Assim que entrei no quarto, Ronan me agarrou


pela cintura e prensou contra a penteadeira. Antes
que eu compreendesse o ataque súbito ele já estava
encaixado no meio das minhas pernas e bufando
emburrado na minha cara.
“Você demorou bastante.” Disse ele.
Eu me vi forçado a sentar na penteadeira, o que
derrubou diversos vidros e potes de creme que não
existiam até antes da festa. O Pastor Enan
realmente ofereceu uma aula e tanto de cuidados
corporais ao Ronan, porque seu rostinho emburrado
cheirava gostoso a amêndoas.
“Desde quando eu tenho hora para voltar?” Eu

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o provoquei, sem disfarçar que até curtia aquela


posição. “Sentiu saudades, foi?”
Acho que Ronan esperava uma resposta
grosseira para dar início a alguma discussão sem
sentido, mas ele manteve a pose como o melhor dos
atores, rosnando para a minha cara de safado.
“Fiquei esperando para sua aula de leitura.”
Disse ele. Mas que sinônimo adorável para eu senti
saudades, sim! “O que me impede de te comer aqui
e agora?”
“Ahm… as minhas roupas, eu acho?”
Ronan bufou, tentando continuar bravo, mas
qual alfa conseguiria discutir com um ômega tão
fofo e molhado de cio, com as pernas abertas diante
de sua virilha?
Pensando bem… espera um pouquinho… eu
meio que precisava tratar de um assunto
importante.
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“Meu predestinado, tem algo que… ah!!”


Ronan esgaçou a barra do meu casaco,
arrebentando vários botões que pipocaram pelo
chão do quarto. Selkies quase nunca vestiam tecido
entre as pernas, então com apenas isso Ronan expôs
o meu pau a meio mastro, que terminou de
endurecer bem rapidinho quando o dele roçou no
meu.
“Alguma objeção, meu predestinado?” Ronan
sorriu desafiador, lambendo os lábios carnudos.
Pelo amor dos oceanos, que machão sexy da
porra o chamado foi parear comigo.
Eu afastei as pernas à beira de doer e apoiei as
costas no espelho da penteadeira.
“Quer me castigar tanto assim?” Eu devolvi a
provocação, massageando a frente de seu roupão
até libertar o volume pela abertura do tecido.

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Ronan deslizou as mãos pelo meu corpo e


fincou as unhas nas minhas nádegas, me fazendo
soltar gritinhos de ansiedade.
“Eu não pretendia te castigar, mas é uma
excelente ideia.”
E com um gesto rápido, Ronan girou o meu
corpo e encaixou-se atrás de mim novamente. Ele
me penetrou devagar, mas sem pausa, enquanto eu
ainda estava atordoado pela súbita mudança de
posição.
Quando eu olhei para frente, o meu rosto quase
incendiou de vergonha. Eu estava apoiado nos
cotovelos e de frente para o espelho, e podia ver
tanto as minhas expressões quanto as do Ronan
enquanto ele metia em mim.
“Já está molhado assim?” Ronan deslizou fácil
até o fim, me esticando por dentro. “Olha só como
as suas nádegas afastam, como é que não rasga?”
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“Eu vou me vingar por isso.” Eu falei, tentando


desviar os olhos do nosso reflexo. Não que eu
sinceramente odiasse aquilo, mas saber que era
implicância do Ronan mexia com os meus nervos.
Aquele peste sabia o quanto não curtia me
submeter.
“Se é pra me comer esquisito, pelo menos come
gostoso.” Eu completei, só para irritá-lo de vez.
Ronan me comeria gostoso até de ponta-cabeça.
Infelizmente, Ronan também aprendia rápido a
lidar comigo e entendeu minha implicância pelo
que realmente era: um pedido para ser arrombado
com muita, muita dedicação.
Ronan agarrou meu quadril e começou a meter,
estalando a virilha na minha bunda enquanto gemia
baixinho, extasiado.
Eu o admirei pelo reflexo, um pouco bravo por
ele continuar de roupão. A melhor parte do corpo
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do Ronan era seu peitoral forte, que naquele


momento subia e descia em sua respiração rápida,
trabalhando com a mesma força de seus bíceps e
quadril, como se o objetivo de todos os seus
músculos fosse me dar prazer.
Aliás, prazer não definia aquela sensação o
suficiente. Eu gemia, arfava e gritava contra o
espelho, morrendo de vergonha e ao mesmo tempo
adorando encontrar o olhar do Ronan mesmo
naquela posição submissa. Ele estava se deliciando
tanto quanto eu.
O cheiro de alfa e os sons de paf-paf-paf
dominaram o nosso quarto. Era bom demais. Eu
gemia o nome do meu predestinado e, embora ele
tentasse evitar, Ronan também gemia por mim,
sussurrando o meu nome como um mantra onde ele
finalmente encontrava sua paz.
Enquanto nossos corpos se uniam, Ronan

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emanava prazer, consideração e afeto. Percebê-lo


com tais sentimentos era quase tão gostoso quanto
o sexo em si.
“Vou gozar.” Ele grunhiu.
“Não vai nem esperar seu ômega?” Eu sorri
com o canto da boca, desafiando-o através do
reflexo. “Sou mesmo tão delicioso assim?”
“Seu ômega insuportável.” Ronan contornou a
mão pela minha cintura e agarrou o meu pau.
“Ficou segurando de propósito.”
“Claro que sim, eu… aaah…”
Não deu pra continuar implicando. Uma das
desvantagens de ser ômega: o alfa nos desmontava
com facilidade demais. Sentir a mão boba do
Ronan massageando meu pau foi muito mais do
que eu suportava. Eu logo gozei em seus dedos
enquanto ele continuava metendo, e o calor do meu
orgasmo excitou o pouco que faltava para Ronan
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também gozar.
Enquanto curtia seu orgasmo, Ronan manteve o
olhar nos meus através do espelho, e aquela união
conseguia ser tão obscena e íntima quanto o fato de
que ele recheava meu interior com sua semente.
Nosso corpo era um, assim como a nossa alma.
Esgotado pelos tremores do êxtase, eu sorri
para o Ronan por cima do ombro.
Ele deu um tapinha na minha bunda e saiu de
mim, encabulado.
“Agora perdemos tempo de estudo, tem marcas
de dedo no meu espelho e a minha penteadeira está
um nojo.” Ronan me deu as costas e livrou-se do
roupão melecado de semente. “Se pelo menos você
fosse mais pontual!”
“Ah, claro que é culpa minha, meu
predestinado.” Eu respondi sarcástico e me levantei

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todo torto, arrepiado pelo lubrificante e semente


que escorriam ao longo das pernas. Apesar do
desconforto esquisito, meu olhar permanecia no
reflexo… e naquela maravilhosa bunda finalmente
exposta. “Prometo compensar minhas falhas da
melhor forma possível.”

****

Deitado ao meu lado, por cima dos cobertores,


Ronan apontou ao penúltimo parágrafo da página.
“Aqui, tente esta frase.” Disse ele.
Eu apertei os olhos e me concentrei ao máximo,
tentando lembrar o som dos pares de letras. Aquele
estava sendo um dia bem desgastante para os meus
neurônios.
“…Hum… Quando Mega-Max retornou ao

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efidi… ahn… edifício, os zumbis já haviam oco…


ocupado os andares superiores. Ótima notícia,
pensou Mega-Max, enquanto empil… empilhava
caixas de ti… trin… tirni… tiniri… triiiin…”
“Trinitrotolueno, seu ômega burro! Significa
explosivos!” Rosnou ele.
“É uma palavra muito difícil!” Eu reclamei,
indignado.
“Não é difícil porra nenhuma! Você quem é
burro demais para… Aaaaahhh!!!”
Eu apertei o botão na minha mão, mandando
mais uma descarga elétrica no ovinho-vibrador.
Ronan se contorceu na cama, grunhindo todos
os palavrões que existiam.
“Aprenda logo a respeitar seu ômega, ou
começarei a pensar que está gostando.” Eu me
esforcei para manter a cara de bravo, embora eu

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quisesse rir até me dobrar.


Enfiar um mini vibrador na bunda do Ronan
estava sendo a maior diversão de toda a minha
vida. E eu consegui encaixá-lo diretamente na
próstata, então a cada grosseria daquele chato…
zap! Uma descarga vibratória em seu ponto mais
vulnerável!
“Vamos… vamos mudar de página…” Ronan
miou fininho, sorrindo tenso como uma porta.
Eu me aninhei no peito quente do meu querido
alfa e me fiz de doce, enquanto ele escolhia uma
nova frase para eu ler.
“A frase mais fácil do livro todo, vê se não
erra.”
“Mega-Max tentou segurar na borda do abismo,
mas sua mão escroeg… escorregou na pedra umida
e…”

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“É úmida! Não umida! Eu gastei duas horas da


minha vida te explicando acentos e proparoxítonas,
você é absolutamente retardado?” Ele gritou.
Eu apertei o botão de novo, e com força, até as
entranhas do meu predestinado fazerem um som de
vrrrrrrr.
“Aaaaaaaaaahhhh!!!” Ele se contorceu como
uma enguia recém-pescada. “Tira essa porra do
meu cu!”
“Você quer porra no seu cu? Eu entendi direito,
meu predestinado?” Desta vez não consegui manter
minha brabeza e comecei a rir. “Tudo bem, pode
admitir seus desejos, eu sou um ômega bastante
aberto a novas experiências.”
“Eu já percebi isso!” Gritou ele, com lágrimas
no canto dos olhos.
Eu desci meu olhar pelo corpo despido e
escultural do meu alfa, parando a atenção em seu
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mastro apenas para envergonhá-lo ainda mais.


Ronan estava duro como uma rocha, seu mastro
latejando para a sensação interna.
“Gostaria de pedir desculpas pelos insultos ou
por me comer na frente de um espelho, meu
querido?”
“Você adorou levar vara que eu sei! Eu não
estou adorando isso!” Esbravejou ele.
“Ah, é? Então me peça para tirar.” Eu deslizei o
dedo pela coxa do Ronan, brincando com o fio
branco que desaparecia entre suas nádegas. “Que
tragédia, desperdiçar um orgasmo tão próximo.”
“Você é o demônio em forma de ômega!” Ele
arrancou o botãozinho de mim e desligou a
vibração. “Pode rir agora, enquanto eu não enfio
isso no seu cu e te faço desfilar na rua.”
“É uma ideia sexy. E depois podemos trepar na
sala do General. Ele tem um sofá fantástico e bem
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fácil de manchar.” Eu puxei a cordinha, começando


a ficar com pena. “Tudo bem, tudo bem… já
brincamos o suficiente hoje, mas por favor cuide
com seus insultos, os meus sentimentos…”
Ronan segurou a minha mão antes que eu
removesse por completo o nosso brinquedinho.
Eu olhei para ele, e ele me olhou, e mesmo sem
trocar palavras eu compreendi totalmente suas
vontades.
Manter a minha seriedade nunca foi tão difícil.
“Preciso tirar isso primeiro. O fio poderia me
machucar.” Eu puxei o ovinho, que escapou da
bunda do Ronan com um estalido úmido. Ele ainda
estava encharcado pelo meu próprio lubrificante,
que eu mesmo havia espalhado nele antes de tudo
começar.
“Se você contar pra alguém, eu juro que…”

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“Vai ser o nosso segredinho de casal.” Eu sorri


de lado, tentando não parecer tão empolgado
quanto eu realmente estava.
Ronan avermelhou demais e desviou o rosto,
fingindo apenas ajeitar o livro na mesinha de
cabeceira. Ele era absurdamente fofo quando se
encabulava deste jeito, e notar a imensa confiança
dele em mim aquecia meu coração… e óbvio que
também aquecia outras partes.
Após alguns dias sem o supressor de cio o meu
desejo descontrolado pela bunda do Ronan
diminuíra, ainda assim… era a bunda do Ronan.
Até o ômega mais conservador do mundo
fantasiaria em meter numa raba dessas.
Foi a vez do Ronan abrir bem as pernas, tenso
como uma escultura de metal.
Eu me ajeitei entre suas pernas e admirei o
cenário espetacular que era aquele ângulo do
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Ronan, ele apenas esperando ser arrombado pelo


seu ômega. Caralho, como era difícil me controlar e
não ir com muita sede ao pote.
“Relaxe, meu predestinado. Prometo que não
vai doer.” Eu tremi os lábios, tentando não rir.
“Ninguém nunca vai saber… a menos que você
engravide. Seria engraçado.”
“Isso pode acontecer??” Os olhos do Ronan se
alargaram do tamanho de dois pires e ele tentou
fugir.
Eu tentei segurá-lo no lugar, como um caubói
em um touro mecânico.
“Estou brincando, estou brincando! Se acalma,
Ronan, posso usar uma camisinha, se você…”
Uma musiquinha interrompeu os solavancos do
Ronan e nós dois olhamos na direção do barulho.
Era o meu celular, que havia caído no chão junto de
todas as coisas da penteadeira.
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“Quem ligaria tão tarde?” Perguntou Ronan.


“Eu não sei.” Eu dei um beijinho na testa do
Ronan e levantei da cama. “Não se atreva a esfriar,
eu já volto.”
Minha mente rodopiava em mil pensamentos
devassos. Ronan queria receber, e se queria, era
porque confiava demais em mim. Era uma sensação
muito quente em diversos sentidos, e tão intensa
que a realidade nem parecia tão real assim.
Eu me abaixei — aproveitando para oferecer
uma linda visão ao Ronan — e então peguei o meu
celular e atendi sem ver quem era.
“Alô?”
“Alô, quem fala?” Perguntou uma voz familiar.
Talvez por causa dos meus pensamentos
enevoados que eu cometi o maior erro que poderia
cometer naquela noite.

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“Madhun?” Eu respondi.

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Capítulo 80

Droga, droga, droga! Por que eu fui dizer o


nome em voz alta?
“Ah, eu suspeitei que fosse você.” Continuou
Madhun. “É o garoto que conhece o Ronan, não é?
Eu só percebi agora que sua primeira ligação
permitia retorno. Por favor não desliga.”
Ronan saltou por trás de mim e arrancou o
celular das minhas mãos.
“Madhun? É você mesmo? Madhun??”
Perguntou Ronan, desesperado.
“Ronan…?” A voz do Madhun tornou-se
chorosa. “Estão te tratando bem? Você está
seguro?”

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“Você está vivo…” Lágrimas desceram pelo


rosto do Ronan. “Madhun… eu… eu nunca quis…”
Eu arranquei o celular das mãos dele.
“Desculpa, Ronan.” Eu disse, e então atirei o
aparelho com toda a força. Meu celular arrebentou
contra a parede, estilhaçando em vários pedaços.
“Não!!” Ronan ajoelhou diante dos cacos,
tentando inutilmente recolocar a bateria.
“Sinto muito, é arriscado demais que vocês
conversem, tanto para você quanto para ele.” Eu
tremia, agoniado pela dor em seu olhar. “Madhun é
importante, você não o quer sendo investigado
pelos outro tritões, ou quer?”
Ronan expandiu seus olhos úmidos e cheios de
mágoa na minha direção. Ele estava desabando por
dentro e a culpa era toda do meu descuido.
“Há quanto tempo você mantinha contato com

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ele?” A dor em sua expressão tornou-se fúria.


“Você sempre soube que o meu irmão sobreviveu?
E não pretendia me contar nada??”
Irmão? Era a primeira vez que Ronan o
chamava assim.
“Eu pretendia contar hoje, Ronan, mas as coisas
ficaram meio… ardentes… desculpa.”
Tremendo, eu me encolhi no canto do quarto
enquanto Ronan fechava o cerco em mim, bufando
de ódio e tristeza. Suas lágrimas me faziam querer
chorar junto, porque era tão, tão dolorido. Eu podia
sentir o afeto no coração do Ronan sendo engolido
por uma névoa cinza, onde tudo era vazio e
solitário.
E ainda assim, em meio às trevas, havia aquela
frestinha de luz que não queria se apagar.
“Por que nunca me contou?” Perguntou ele.
“Madhun não é nada para você, Rickett, não era seu
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direito escondê-lo de mim.”


“Ele está cego, Ronan.” Eu murchei ainda mais
no cantinho entre a parede a penteadeira, com o
coração dolorido e acelerado. “Algum conflito
entre vocês tirou a visão dele. Eu queria prepará-lo
antes de contar.”
Todos os meus ossos tremiam. A fúria do
Ronan transbordava pelos poros de sua pele,
avermelhava até o branco de seus olhos, e eu já
esperava qualquer coisa. Se ele quisesse me
machucar, desta vez eu deixaria.
“É mentira sua, não é? Se Madhun sobreviveu,
o chamado recuperaria qualquer ferimento.”
Eu balancei a cabeça, abraçado em mim
mesmo. Lógico que não gravei fotos da nossa breve
conversa, então eu tinha apenas palavras para
convencê-lo.
“Me desculpe, meu predestinado.”
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Ronan afastou-se de mim e sentou-se ao pé da


cama. Ele apoiou o rosto nas mãos e soluçou
sentido e agoniado.
“Ronan…” Eu gaguejei, incerto sobre o que
fazer.
“Dói que você tenha me enganado, seu ômega
idiota.” Ele me fuzilou com seus olhos de fogo,
cintilantes com o peso das lágrimas. “Mas dói ainda
mais vê-lo assim, com medo do que posso fazer.”
Eu me afastei do canto da parede,
envergonhado de mim mesmo.
“Por favor, me perdoe.” Eu me aproximei e
afaguei seus cabelos rebeldes.
“Eu não quero ser o vilão. Eu não quero, eu
nunca quis!” Ele me abraçou e chorou contra a
minha barriga. “Mas você tem medo de mim, todos
me desprezam, e eu destruí a vida do meu irmão. E
se este for o meu destino?”
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“O destino de ninguém é ser mau, Ronan. O


Madhun ainda te ama, eu tenho certeza disso.”
Ronan continuou chorando no conforto do meu
abraço, e eu nunca me envergonhei tanto das
minhas atitudes. Nossas almas eram uma só e,
entretanto, eu feri Ronan o entendendo errado.
O ódio do Ronan nunca foi direcionado a mim,
em momento algum. Ronan confiava e acreditava
em mim… e também odiava a si mesmo com todas
as forças.
Será que havia qualquer coisa que eu pudesse
fazer? Se pelo menos eu fosse o alvo de tanto ódio
eu poderia mudá-lo, ou mudar a mim mesmo. Mas
como alcançar um coração tão oculto entre mil
espetos de gelo?
“A cegueira do Madhun não é irreversível.
Existe uma cura, mas é bem… improvável.”
Ronan parou de chorar e me olhou nos olhos,
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tão devastado quanto curioso.


Ai, será mesmo que eu deveria contar isso?
Quando o General contou sobre o Arquiduque eu
pensei ter seguido a lógica correta, mas obter
informação era uma coisa, passá-la adiante era
outra. Eu não queria ser imprudente, mas também
não queria ver Ronan em tanto desespero.
“O chamado castigou Madhun de alguma
forma, por algum motivo. Ele perdeu o dom de
cura, mas ainda é possível recuperar sua visão.” Eu
disse pausadamente, tentando escolher bem cada
palavra. “Madhun precisa dos poderes de um
oráculo.”
Ronan franziu a testa, confuso, então começou
a rir cheio de tristeza.
“Ah, mas que bela ironia do destino… Eu
ceguei o meu irmão e a cura dependeria do idiota
que eu mesmo matei! Perfeito!” Ele continuou
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rindo, e então sua expressão congelou. “Calma aí…


o discurso na festa…”
“Sim, existe um segundo oráculo.” Eu afaguei
seu cabelo, feliz por conseguir acalmá-lo. “Ele está
em poder do Imperador Macalor, mas a guerra não
vai durar para sempre. Quando for seguro nós
conseguiremos o oráculo emprestado. Pode
demorar, mas Madhun ficará bem.”
Após alguns segundos de surpresa, Ronan
começou a rir de novo, mas desta vez era uma
risada assustadora, feliz e ao mesmo tempo
maquiavélica.
“Por que esperar? Vamos partir amanhã
mesmo!” Ronan levantou-se da cama e puxou a
mala de cima do armário. “Arrume suas coisas,
Rickett, vamos nos mandar deste fim de mundo.”
Eu acompanhei Ronan com o olhar,
completamente chocado.
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“Não podemos ir embora, Ronan. Meses de


nado em território inimigo, sem a proteção do
exército? É loucura.”
“Loucura por quê? Os tritões estão
reconstruindo seu exército enquanto conversamos.
Será mais seguro partirmos o quanto antes.”
Eu cocei o queixo. Até que fazia sentido, mas…
era meio impulsivo, não era?
“Mesmo sem um exército, eles nos
encontrariam pelo cheiro. A menos que a gente
roube um barco… um barco de passeio, que não
levante suspeitas.” Eu suspirei, sem acreditar que
estava levando aquela loucura a sério. “É melhor eu
consultar o General sobre isso.”
“Para quê? Para ele nos enrolar de novo, que
nem sempre fez? Não acha estranho demais que
alguém como ele busque amizade em você?”
Não, eu não achava estranho, mas de certa
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forma o Ronan estava certo. O General jamais


permitiria nossa viagem para Faerynga porque isso
colidia de frente com seus objetivos. Ele queria que
eu percebesse a utilidade de Leviathan na cura do
irmão do Ronan, mas apenas para que eu parasse de
criar polêmica e assumisse uma postura mais
diplomática, com o objetivo de ganhar acesso ao
oráculo após o fim da guerra. Ganhando o respeito
do Imperador Macalor ele nos presentearia com o
oráculo, nós consertaríamos a visão do Madhun e o
General poderia enfim executá-lo. Todos sairiam
ganhando, do jeitinho que o General gostava.
“O senhor Yoshan presenteou o General
Cordelen com iate, anos atrás, mas o porto de Roori
é vigiado 24 horas pelos soldados. Eles nos
denunciariam.” Eu disse.
“Nós precisamos apenas ser furtivos. Não
percebe, Rickett? Este sim é um sinal do destino!

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Eu vou encontrar a minha verdadeira família e


curar os olhos do Madhun, tudo ao mesmo tempo!”
“Mas…”
“Por favor.” As íris do Ronan tremularam em
angústia. “Estou feliz pela sobrevivência do
Madhun, mas, se você disse a verdade, preciso
reparar o que tirei dele. Não posso consertar tudo
sozinho, meu predestinado, então se eu precisar
implorar…”
Eu cocei atrás do meu moicano bagunçado,
tentando acompanhar a lógica do Ronan. Um plano
tão arriscado necessitava de mais planejamento.
Mas, pensando bem… O General disse que o
Príncipe da Revolução não mudaria o mundo sem a
minha ajuda. E o verdadeiro palácio real situava-se
em Faerynga, de qualquer forma. Nós apenas
anteciparíamos nossa viagem ao nosso trono de
direito, Ronan realizaria o sonho de conhecer o avô
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biológico, e eu escaparia das tramas do Arquiduque


com ainda mais eficiência do que seguindo os
conselhos vagos do General.
“Depois de amanhã. A troca de guarda no porto
ocorre às cinco da madrugada e ainda há muito a
ser feito.” Eu vesti minha roupa apressadamente.
“Embale todas as roupas que conseguir e consiga
toda a comida possível na cozinha do palácio. Diga
que é para um baile de escamas.”
“O que é um baile de escamas?”
“Eu também não faço ideia, só sei que não é um
baile.” Eu fechei o casaco e calcei minhas botas.
“Preciso invadir o armazém de licor.”
“Já está escuro, não é frio demais?” Ronan
jogava nossas roupas na mala de qualquer jeito e
pisava em cima para compactar.
“Relaxa, meu predestinado. Já esqueceu quem
eu sou? Meu nome é Rickett Walrosse, o maior
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ladrão que Cratília já conheceu. Roubar um iate


será o básico do básico.”
Ronan sorriu para mim de um jeito que nunca
sorriu antes.
“Obrigado.” Ele disse.
Eu devolvi a mesma expressão de ternura e
corri para fora do quarto, me preparando
emocionalmente para o maior feito de toda a minha
carreira.

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Capítulo 81

Eu precisava ser silencioso e discreto, mas não


conseguia parar de rir como uma besta alegre. Eu
simplesmente estava tão, tão feliz!
Poucas coisas arruinariam minha felicidade
naquela manhã. No máximo Ronan poderia ter feito
alguma besteira, mas ele realmente estava ali, no
ponto onde combinamos de nos encontrar.
Eu cobri a cabeça com o meu capuz espiei nos
arredores do porto, me certificando de que não
haviam guardas. Haviam muitos comerciantes e
marujos embarcando e desembarcando dos
múltiplos navios, diversos deles transportando
caixotes nos braços ou em carrinhos de mão,
também havia diversos soldados, óbvio, mas eles
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apenas treinavam para eventuais missões marítimas


e não atrapalhariam os nossos planos.
Em meio aos diversos navios de transporte de
carga havia um barco bem menor e mais elegante:
um iate de luxo com pintura branca novinha. O
General não costumava aproveitar muito aquele
brinquedinho caro, ainda mais durante a guerra,
então demoraria um tempo até que sentisse falta.
Surpreso que Ronan tivesse conseguido chegar
sem estragar tudo, eu me apressei ao seu encontro.
No dia anterior nós pouco nos falamos
pessoalmente, ocupados com nossas respectivas
tarefas para a viagem, e eu fui esperto em incumbir
Ronan apenas com funções dentro do palácio. Não
que ele fosse burro — ok, ele era meio burro —
mas este não era o tipo de plano que poderia conter
falhas.
“Ronan, oi!” Eu cheguei nele, que me

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aguardava diante do iate. Pelo cabelo molhado e


cheiro de maresia aquele folgado encontrou tempo
para banhar-se no mar, mas eu estava feliz demais
para criar caso.
“Como você é demorado.” Disse ele, com o
rosto quase encoberto pelo próprio capuz. “Já
terminei há tempos de abastecer este barco
estúpido. E aprender o manual de instruções foi
simples, apesar desse zunido idiota nos meus
ouvidos. Sério, acho que tem a porra de uma abelha
me perseguindo."
Eu sorri ainda mais, até quase machucar os
lados do meu rosto.
Ronan arqueou a testa.
“O que foi?”
Eu não disse nada, só fiquei olhando pra ele
com um sorrisão imenso, esperando que ele se
ligasse.
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Ronan continuava confuso, então dei uma pista,


tocando a minha barriga com as duas mãos.
A expressão do Ronan manteve-se aborrecida
por um tempo, então os músculos do rosto
relaxaram e ele aumentou os olhos, abismado.
“Não.” Ele se ajoelhou e colocou a mão por
cima da minha.
“Sim, meu predestinado.” Eu disse, saltitante de
alegria. “Nós vamos ser papais!”
Ronan estremeceu, suas mãos pareceram se
tornar gelatina.
“É verdade, mesmo?” Ele ergueu o rosto,
sorrindo e desmanchando o sorriso repetidamente.
Seus sentimentos pareciam um redemoinho com
todas as sensações existentes. “Eu… você…. Nós
dois…”
E então Ronan desabou a chorar, quase atraindo

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a atenção dos marujos.


Pelos oceanos, os dutos lacrimais do meu alfa
não encontravam descanso. Eu precisei levantar
Ronan pelos braços antes que alguém desconfiasse.
“Comecei a sentir hoje cedo, enquanto roubava
isto aqui.” Eu entreguei ao Ronan as chaves do
barco. “Só precisei presentear algumas caixas de
licor ao General, e o resto foi brincadeira de
criança.”
Ronan nem ouvia as minhas maravilhosas
aventuras, ele continuava chorando e tremendo,
indeciso entre rir de alegria ou de pânico.
“Eu não sei ser pai, Rickett, e se tudo der
errado? E se eu for terrível e egoísta?”
“Ei, eu também não lembro muito dos meus
pais, mas nós dois temos um ao outro, não temos?
Você será o melhor pai que já existiu, Ronan.”

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Ronan afagou a minha barriga, tentando parar


com toda aquela choradeira.
“Prometo ser um pai melhor do que o meu
jamais foi.” Disse ele.
“Eu sei. E acho que ela também sente isso.” Eu
comecei a rir do novo espanto na cara do Ronan.
“Concentre-se neste zunido que você sente, meu
predestinado. Nós vamos ter uma menina.”
Ronan gaguejou alguma coisa e começou a
chorar de novo. Ah, eu desistia de acalmar aquele
cara.
“Vamos logo, antes que os inspetores
apareçam.”
Ronan segurou meu braço antes que eu subisse
no barco.
“Rickett, não podemos. Você precisa ficar, quer
dizer, eu também, eu acho? Mas então o Madhun…

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mas a nossa bebê é mais importante!” Ele parecia à


beira de um troço. “Vamos esquecer, é perigoso
demais.”
“Eu estou grávido, não aleijado.” Eu me soltei
dele e pulei para dentro do iate, ágil como uma
raposa. “Você quer conhecer seu avô e ajudar o
Madhun, não quer? Podemos voltar antes da minha
barriga começar a crescer.”
“Sua barriga vai crescer… eu vou ser pai… eu
vou ter uma filha!” Ronan marchava em círculos na
frente do barco.
Eu dei risada e fui inspecionar nosso novo
brinquedinho. Quando nossa bebê nascesse, a
minha vida se resumiria a cuidar dela e participar
do clube de tricô com outros ômegas, então aquela
era a minha saideira. A última aventura do grande
ladrão Rickett Walrosse antes de se acomodar à sua
pacata vidinha de pai de família. E esta, sim, seria a

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maior aventura de todas.


“Rickett, espera!” Ronan subiu no barco e
tentou me alcançar.
“Esperar por quê? Olha pra isso, eu nunca
estive em um iate de luxo, tem tantas portinhas e
coisas.”
Ronan parecia engasgado, falando silabas soltas
e cada vez mais vermelho.
“Sério, seu ômega histérico, não desça aí!” Ele
levantou a voz.
Eu desci pelas escadinhas da parte coberta,
curioso sobre tudo. A primeira porta era o banheiro
e aquela ducha seria bem conveniente para nos
banhar sem alertar da nossa presença aos tritões.
Também tinha um vaso, pia… hum… era só um
banheiro comum, na verdade. A porta seguinte
parecia mais interessante.

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“Que nervosismo é este, meu predestinado? Até


parece que você está…” Eu abri a porta, e meus
olhos dilataram em espanto. “…escondendo
alguma coisa.”
Diante de mim estava um quarto de casal, com
cama, estantes e um armário. Era bem menor que
nosso quarto no palácio e com mobília rígida de
ferro, para resistir aos solavancos da viagem, ainda
assim era lindo. Os lençóis, almofadas e cortinas
pareciam novinhos, e eu reconhecia meus potes de
gel e produtos pessoais sobre o toucador, muito
bem organizados.
Mas a maior surpresa era a cama, coberta de
pétalas cor-de-rosa no mesmo tom dos meus olhos,
todas elas contornando uma grande caixa de
presente da mesma cor.
“O que é isso?” Eu perguntei, chocado.
Ronan escorou-se na porta atrás de mim,
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mortalmente envergonhado.
“Ah… não é nada, só uma ideia estúpida que
eu…” Ele suspirou pressionando as têmporas. “Eu
quis fazer uma surpresa, tá bom? Mas você fez uma
surpresa ainda maior e agora não vai ter graça
nenhuma!”
Eu me aproximei da caixa com as pernas
trêmulas e os olhos úmidos, sem saber como me
sentir, ou como reagir. Um presente do Ronan, para
mim? Ninguém nunca me presenteara, e aquele
embrulho, e as pétalas… tudo era tão lindo.
Meus dedos tremiam tanto que eu mal consegui
puxar a fita de cetim. Eu levantei a tampa devagar e
tentei acreditar no que estava vendo.
Dentro havia um enorme peixe roxo e
comprido, todo enroscado. A pele ainda brilhava e
o cheiro era delicioso. Uma presa recém pescada,
que eu nunca havia visto pessoalmente, mas
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reconhecia pelo formato muito comprido.


Eu levantei a cabeça cheia de dentes daquele
peixe, fascinado com o peso e com o tamanho.
Todos os selkies sabiam o significado, embora
ninguém que eu conhecesse tivesse recebido algo
tão precioso.
“Uma lampreia das profundezas. ” Eu disse,
abismado. “É o peixe mais raro e perigoso dos
oceanos, e ainda mais raro nas águas geladas de
Cratília. Como? Quando? Você se machucou?”
“Pfft. Até parece que vou me machucar
pegando uma sardinha dessas.” Ronan deu de
ombros, fingindo desdém. “Todos os malditos
ômegas de Egarikena só falavam nesse bicho, então
sei lá. Pode jogar fora, se não gostou.”
Como assim, se eu não gostei? Não existia
ômega que não sonhasse com um presente tão
valioso. Aquela era a maior demonstração de amor
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que qualquer ômega poderia receber.


Eu havia zombado do Ronan mais cedo, mas
desta vez foi eu quem desabei chorando.
Quando nós predestinamos, Ronan me recebeu
nos calabouços e então nunca mais me deu a menor
atenção. Nenhum abraço, ou sorriso, nada. Foi o
General quem me apresentou ao palácio, e só.
Naquele tempo eu nunca imaginei receber qualquer
coisa do Ronan além de insultos, desprezo e ódio,
muito menos o melhor dos presentes.
“Obrigado.” Eu disse, todo molhado de
lágrimas e me sentindo exagerado e ridículo. “Eu
agradeço do fundo do meu coração.”
Ronan me abraçou por trás e beijou o lado do
meu rosto.
“Você é um ômega chorão demais!”
Resmungou ele, como se tivesse alguma moral para
reclamar. “Eu quem agradeço, por existir.”
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Ah, pronto. Agora sim eu derreti de tanto


chorar, vertendo mais água que uma cachoeira.
O pastor Enan tinha razão desde o começo. Eu
não fui amaldiçoado de forma alguma. Ronan era o
alfa mais precioso que eu poderia merecer, e eu
nunca, nunca, iria decepcioná-lo.
No que dependesse de mim, eu ajudaria Ronan
a realizar seus sonhos, quaisquer que fossem,
porque eu amava aquele grosseiro hostil e mal-
educado. Eu o amava mais do que tudo em minha
vida.

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Capítulo 82

Yun

Mais uma manhã tediosa, naquela que se tornou


a minha nova rotina: ouvir os pedidos da população
sentado em meu próprio trono improvisado, que eu
arrastei para o lado do trono do Papillon. Nem
pensar que eu escutaria resmungos de tritão parado
de pé ao lado do meu predestinado, da mesma
forma que o Rei-General fazia com Aurelian. No
meu reino não tinha essa de rei melhor ou rei pior,
e Papillon curtia esta minha atitude.
Apesar de tudo, eu precisava admitir… a
mobília adicional não combinava direito. Como o
trono de cristal havia sido escavado no mesmo
cristal do chão e do resto da sala ele não podia ser
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movido, então eu sentava meio para o lado, em uma


cadeira de mogno e veludo que rompia
completamente com a centralização do tapete,
luminárias e todo o resto.
Podia ser esquisito, mas eu não dava a mínima
e nem o Papillon, então daquela forma nós dois
assumimos os nossos papéis como reis, no
momento mais dramático e difícil da história de
Egarikena.
Ainda era cedo da manhã e as audiências
começariam apenas depois do almoço.
Normalmente eu e Papillon estaríamos dormindo
ou transando, mas tivemos que acordar cedo para
analisar relatórios militares, projetos arquitetônicos,
e diversos outros textos enormes e assustadores que
precisavam da nossa aprovação.
Eu passei o olho pelo trabalho daquela manhã,
discutindo com Papillon qual problema seria

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resolvido por quem, e no fundo desejando um


imprevisto, qualquer imprevisto, que nos tirasse
daquela pilha de serviços chatos.
E bem… é como dizem: cuidado com o que
deseja.
As portas da sala do trono se abriram e então o
sujeito mais desagradável do universo aproximou-
se de nós, acompanhado de uma jovem garota.
“O que você quer desta vez, Tenente Fran?” Eu
perguntei, entediado.
“Saudações, Digníssimos reis Papillon e Yun.”
Disse o tenente. Ele e a garota empinaram os
ombros em posição de sentido. “Acredito que
devam saber o motivo de nossa visitação.”
“A autorização de uso do exército, correto?”
Papillon folheou os papéis até encontrar o
documento correto. “Nós lemos os detalhes de sua
proposta, Fran, mas o ataque inimigo dizimou 87%
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de nosso contingente, sem que houvesse abates


significativos no lado oposto. Coordenar um
contra-ataque me parece inviável.”
“É mais do que inviável. É um ultraje.” Eu
completei.
“Este número é anterior às revisões militares.
Como podem verificar na terceira página, seis
novas tropas anteciparam sua graduação no Centro
de Treinamento Paang, e o alistamento militar de
egarikenses aumentou eu 57%”
“E devemos nos impressionar com isso,
tenente?” Eu rosnei, revoltado só de lembrar
daquela proposta estúpida, que Papillon me proibiu
de esfregar na bunda e rasgar. “Um aumento de
contingente é natural, quando se força crianças a
combater.”
O imbecil ruivo nem piscou para as minhas
palavras, eu nunca quis tanto arranhar aquele
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narizinho empinado.
“Serviço militar compulsório é atitude padrão
em tempos de guerra, e muitos filhotes encontram-
se aptos ao combate. Não estou exigindo sua
competência, Yun, apenas que autorize esta
operação, e nós mesmos tingiremos de vermelho a
neve de Cratília.”
“Sim, com o sangue de crianças. Das nossas
crianças. Você sequer investigou a tecnologia
deles, ou pretende cutucá-los com gravetos de
novo?” Eu cruzei os braços, indignado com a
audácia daquele filho da puta. “O exército deve se
concentrar na defesa de Egarikena e das colônias
vulneráveis, e não neste… suicídio super-elaborado
que um idiota como você considera uma boa ideia,
Tenente Fran.”
“É General Fran, para a sua informação. Talvez
queira aprender nomenclaturas corretas quando

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estiver lidando com a ira do povo, Digníssimo Rei


Regente Yun.”
“Você está me ameaçando?” Eu ericei meus
dentes.
“Não é uma ameaça, Digníssimos Reis, mas
uma súplica. Nosso povo clama por vingança!”
Disse a menina que o acompanhava.
Minha atenção voltou-se a ela. Era a mesma
sereia negra que nos anunciou a morte do Oráculo
Aurelian. Com o choque da notícia eu não dei tanta
atenção às suas roupas de soldado, mas naquele
momento era impossível deixar passar: eu
reconhecia os trajes longos e verdes, as medalhas e
as estrelas no quepe.
“Promoveu uma criança sereia à tenente?”
Papillon parecia tão chocado quanto eu.
“Tenente Mareleen pode ter apenas quinze
anos, mas seu coração reside no lugar certo.” Disse
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o ruivo idiota.
“Aquele que acompanhava o General Cordelen
era Zarkon Trevally, o tritão que assassinou meu
pai Sanderson diante dos meus olhos.” Os olhos da
menina brilhavam em um ódio profundo demais
para alguém tão jovem, duas íris verdes com lilás
cintilando em fúria e inquietude. “O povo clama
por vingança, vossa majestade, ninguém deseja
aguardar passivamente que o inimigo termine nossa
destruição.”
Uma sereia adolescente no controle de nossas
tropas e um general disposto ao suicídio em massa
em nome da vingança… o que o reino dos falecidos
reis havia se tornado?
Eu arranquei o papel das mãos do Papillon e
rasguei em pedacinhos.
“Proposta recusada.” Eu joguei os papeizinhos
pro ar. “Se tem tanto tempo para torturar crianças
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nos quartéis, General Fran, sugiro que também se


entretenha aprendendo sobre nosso inimigo, que
conta com armas superiores e as estratégias de um
Amalona extremamente perigoso. Se descobrirmos
o senhor atiçando a população a favor de um
confronto, isto poderá, aliás, será considerado um
ato de traição. Tenham ambos um bom dia.”
O General sutilmente contraiu os lábios e
afinou seus olhos. Vê-lo quase perdendo a postura
foi muito gratificante.
“Agradecemos o tempo de vossa Majestade.”
Ele e Mareleen dobraram o corpo em reverência e
foram embora.
Assim que os guardas fecharam as portas,
Papillon soltou um longo suspiro.
“Meu amor, eu sei que vocês se odeiam, mas
não pode ameaçar o General em todas as reuniões.
Não tenho o menor conhecimento militar, e nem
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você. Quem controlaria nossas tropas, além dele?”


“Aquele palhaço está tramando alguma coisa,
posso sentir isso.”
“Ele não mentiu sobre nossa necessidade em
contra-atacar. Se permanecermos com o rabo entre
as pernas enquanto os selkies comemoram, a moral
dos tritões despencará a níveis alarmantes.”
“Olha pra você, falando como um rei de
verdade.” Eu sorri com o canto da boca, um tanto
impressionado, embora ainda aborrecido. “Aquele
idiota treinou dia e noite com o General Hian
durante anos, e ainda assim não aprendeu nada. Se
os finados reis assim desejassem, poderiam ter
exterminado os Selkies quando estes foram
derrotados na última guerra. Entretanto, os
Generais pouparam o inimigo e nos trouxeram uma
era de alegria, prosperidade e paz. O Rei General
Hian jamais buscaria uma nova carnificina apenas

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para subir a moral de seu povo.”


“Eu sei…” Papillon baixou a cabeça, triste e
pensativo. “Mas talvez os tempos sejam outros,
Yun. Aquele ataque-relâmpago teve a intenção de
nos humilhar, é natural que o povo deseje se
vingar.”
“E você acha que o inimigo não previu
exatamente isso? Amalonas são o clã mais ardiloso
dos oceanos, e os selkies tem o apoio de um traidor
especialmente audaz. Ele previu que capturando um
dos filhos de Hian II a proteção ao segundo filho
seria reforçada, então sincronizou um sequestro
duplo em cantos opostos do mundo. Você acha que
podemos ser impulsivos contra alguém assim?”
“Não, mas… se o povo continuar desertando a
ilha e as colônias, como vêm fazendo desde a morte
dos meus pais, logo não teremos um reino para
defender.”

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“Ou seja, ou eles ganham, ou eles ganham.” Eu


bufei, frustrado.
Não importava o ângulo que eu olhasse, eu
precisava aplaudir o plano daquela raça de
desgraçados. Eles conseguiram seu xeque-mate
sacrificando uns poucos peões de ambos os lados.
Revoltado, eu joguei os papeis para um dos
secretários e me levantei.
“Onde vai?” Perguntou Papillon.
“Aquele idiota ruivo estragou o meu dia. Vou
tomar banho e dormir.”
“Mas todos estes documentos…”
“Foda-se! Por que aquele cretino não resolve
tudo, já que ele sabe tantas respostas sobre todas as
verdades? Centenas de tritões morreram por
incompetência dele, e agora ele quer que centenas
de outros morram por incompetência nossa!”

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As portas de entrada escancararam de novo, em


um longo rangido que eu já não suportava ouvir.
“General Fran, o senhor não tem vida? Seu
filhote pode ter partido, mas é um desrespeito com
o seu alfa tudo o que…”
Eu me calei no meio dos meus gritos. Aquele
não era o General Fran, mas um ômega de cabelos
pretos que eu nunca vi na minha vida. Pelo azul em
seus olhos ele era um híbrido, e bastou ver o pânico
no seu olhar para que eu reconhecesse sua
identidade.
Além do mais, o fato de que um humano corria
para acompanha-lo também era uma pista bastante
óbvia.
“Nossas audiências começarão apenas à tarde.”
Disse Papillon. Ele nunca foi muito bom em
deduzir pelas aparências.
O rapaz parou diante de nós muito ofegante,
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precisando se escorar no parceiro bem mais


musculoso. O olhar dos dois era de preocupação e,
no caso do ômega, também incluía uma imensa
dose de desespero.
“Vocês sabem onde está o Levi, não sabem?”
Perguntou o ômega, esbaforido.
“Também é um prazer conhecê-lo, Hian
Makaira II” Eu cruzei os braços. “A que devemos a
visita de um plebeu tão conhecedor das boas
etiquetas?”
“Não me interessa quem são vocês. Isto é um
palácio, e isto é um trono, então vocês tomam as
decisões, certo?” Hian II eriçou seus lábios para
nós, enquanto o humano o segurava para que não
pulasse no meu pescoço. Nota dez pela audácia.
“Meu filho foi sequestrado pelos inimigos de
vocês! Por que ainda não o resgataram?”
Eu troquei olhares com o Papillon, que parecia
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surpreso e maravilhado por enfim conhecer seu


sobrinho mais velho.
E seu sobrinho mais velho era um completo
abestado.
“Samuen, arrume um dos quartos de hóspedes.”
Eu pedi ao secretário. “E consiga alguns guardas
fortes que arrastem estes dois da minha frente.”
“Ahm… sim, majestade?” Samuen continuou
no lugar um tempinho, percebeu que não era uma
brincadeira, e correu para atender meu pedido.
“Nos arrastar daqui? Quem você pensa que é?”
Gritou Hian. “Esta é a ilha do meu pai! Governada
pelo meu clã!”
“E eu sou o Rei Yun Makaira, governante de
Egarikena e de todos os mares quentes, assim como
o meu Papillon.” Eu arqueei minha sobrancelha,
escolhendo devolver petulância com petulância. “É
fascinante que conheça qualquer detalhe de nossa
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cultura, visto que nos desprezou por tantas


décadas.”
“Yun, meu amor…” Papillon disse em tom de
represália. “É uma honra recebê-lo, meu sobrinho
Hian. Muitas são as histórias do primeiro irmão
Dylan sobre as suas conquistas como humano.
Dizem que você é um artista muito talentoso.”
“Sim, o Hian tem obras expostas em diversos
países, e são incríveis!” Disse o humano que o
acompanhava, enquanto sorrateiramente admirava
os detalhes do salão de cristal. “Nós também temos
uma fazenda de cabras, que a mãe do Shane ficou
cuidando para a nossa viagem, né, meu amor?”
“Onde está o Levi??” Hian gritou para nós, sem
nem considerar a existência do parceiro. “Ele é um
garoto inocente que vocês mesmos envolveram
nesta guerra estúpida entre criaturas mitológicas! O
Levi não tem ligação nenhuma com os conflitos

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entre vocês, então eu o exijo de volta!”


“O Oráculo Leviathan tem exatamente tudo a
ver com esta guerra, como teria qualquer outro
oráculo, em qualquer outra era. Recusar-se a aceitar
este fato foi um erro que você cometeu.” Eu
respondi com frieza. “Nós já lidamos com as
consequências de seus fracassos na criação do
primeiro filho, não somos obrigados a enfrentar
seus fracassos com relação ao segundo.”
“Yun, pare com isso.” Disse Papillon.
“Parar com o quê? Se não fosse a covardia
deste cara, ele mesmo poderia resgatar o filho da
forma que achasse melhor, ao invés disso ele jogou
o trono nas nossas costas, e agora quer nos dizer
como fazer o nosso trabalho!” Eu comecei a rir,
perplexo com a magnitude de tamanha afronta. “Ou
quer saber, melhor ainda, a bonita aqui nem
precisaria planejar um resgate porque Leviathan

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estaria seguro conosco, mas aí ele precisaria


reconhecer a existência do Ronan, como faria
qualquer pai com um coração, não é mesmo?”
“Já chega!” Desta vez foi o humano quem
gritou, e logo amaciou a voz, muito triste. “Por
favor… não faça isso com o Hian…”
O humano abraçou Hian, que chorou
desesperado em seus braços, tão fraco que nem
conseguia manter-se em pé.
Hum, esta era a reação que sempre esperei do
idiota ruivo e nunca consegui. Por algum motivo, a
coisa real não era nem um pouco gratificante de se
assistir.
Meu coração bateu apertado, mas eu me
mantive forte. Eu era um monarca e já estava na
hora daquele cara ouvir algumas verdades.
O secretário voltou com dois guardas pouco
depois. Por que eu queria vê-los sendo arrastados,
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mesmo? Eu gesticulei a mão para que os guardas


apenas os acompanhassem.
Tentando consolar o ômega completamente
desesperado, o humano me olhou com seus olhos
escuros e assustados. Por que ele não sentia raiva?
Por que eu não conseguia me sentir bem em
conseguir o que eu queria?
Os guardas auxiliaram os dois para fora da sala
do trono, rumo à ala de hóspedes. O tempo todo, os
soluços apavorados do Hian ecoavam pelas
paredes, cada um era como uma agulha dentro de
mim.
Eu agradeci aos oceanos quando finalmente
fecharam a porta, me devolvendo o tão apreciável
silêncio.
“Ele é tão mimado e egoísta, não é mesmo?” Eu
disse, tentando manter a pose. “O primeiro filho
também desapareceu e ele nem sequer perguntou
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por ele.”
“Não compreendo os motivos dele, Yun.”
Papillon afinou seus olhos para mim, em uma de
suas raras represálias às minhas atitudes. “Mas de
todos nesta ilha, é você quem mais deveria
compreendê-lo.”
Meu peito bateu amargo, envergonhado e
arrependido.
Na fúria do momento, eu sequer lembrei quem
aquele rapaz realmente era. Hian II era o melhor
amigo do Shane desde a adolescência, e alguém
iluminado como Shane escolhia muito bem as suas
amizades.
Eu talvez precisasse fazer aquilo que mais
odiava: pedir desculpas.

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Capítulo 83

Os serviçais do palácio acomodaram os


visitantes no maior quarto de visitas, que talvez
fosse tão espaçoso e elegante quanto o meu próprio
quarto.
Meu coração ainda batia apertado pelo meu
comportamento de antes. Do outro lado da porta
não parecia haver som de choro e isto me acalmava
um pouco, mas eu não sabia como proceder.
Admitir meus erros já seria complicado o bastante,
mas será que um rei devia bater antes de entrar, ou
invadir, ou pedir seu comparecimento na sala de
reuniões? Eu não fazia ideia.
Na dúvida, eu segui o meu coração e bati na
porta, me preparando para ouvir as agressões que
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eu tanto merecia.
“Pode entrar!” Gritou o humano, lá dentro. Sua
voz era tranquila, até um pouco animada, e a
descontração de suas palavras aliviou um pouco
meus nervos.
Eu entrei no quarto sussurrando um pedido de
licença e me surpreendi ao encontrar não apenas
Hian II e seu humano, mas também o Shane. Os
três conversavam entre si nas poltronas diante da
piscina, e silenciaram com o mesmo espanto ao
perceberem que era eu.
Hian tentou desaparecer atrás do humano, ainda
devastado e sem a menor luta dentro de si. Eu o
imaginava como alguém covarde, mas nunca como
alguém tão frágil.
Minha determinação inicial implodiu. Como eu
poderia pedir desculpas? O quanto Shane descobriu
sobre as minhas grosserias? Será que ele
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continuaria sendo o meu amigo?


Quando percebi, eu mesmo me encolhia contra
a parede, em uma pose que, em trágica ironia,
lembrava a postura do próprio Hian II.
Shane sorriu para mim e deu um tapinha no
ombro do outro humano, que já trajava uma das
canguinhas típicas da ilha, que ele devia ter
encontrado no armário.
“Ei, Maikon, quer conhecer as cachoeiras da
ilha?” Perguntou Shane.
“Tem cachoeiras aqui? Ah, nossa, deve ser
incrível demais! O Hian precisa mesmo se distrair
um pouco, e…” A voz do humano foi sumindo,
conforme ele notava o olhar do Shane. “É, a gente
tem coisa pra caralho pra conversar. Você se
importa, Hian? Só uma meia horinha de conversa
entre irmãos.”
“Não precisa pedir autorização, Maikon.
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Divirta-se com o Shane e me conte tudo o que viu.”


Disse Hian.
Maikon concordou, meio encabulado e
constrangido, então acompanhou Shane. Eles
passaram ao meu lado antes de sair.
“Obrigado, Yun.” Shane tocou meu ombro
antes de ir embora.
Ahn? Obrigado pelo quê? Será que foi
sarcasmo? Shane nunca se irritava a ponto de ser
sarcástico, mas talvez eu tenha passado dos limites.
Ou talvez Shane previsse as minhas intenções
com aquela visita. Eu não queria decepcioná-lo.
Maikon passou logo depois do Shane e fechou a
porta. O tempo todo não notei a menor hostilidade
em seus gestos, embora eu tivesse ferido a alma de
seu predestinado. Como eu previa, os amigos do
Shane também irradiavam sua própria luz.

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Agora que estávamos sozinhos, apenas Hian e


eu, chegava o momento de pedir desculpas. Eu
movi os lábios, gaguejando alguma coisa sem
sentido enquanto minha honestidade e meu orgulho
travavam uma guerra entre si.
Hian manteve o olhar no meu brevemente e
então se levantou para investigar as estantes,
tentando distrair-se do peso no ambiente. Ele ainda
vestia a mesma roupa de quando chegou: camisa e
calça sociais, do tipo que devia ser parte de um
conjunto com terno e gravata, ou pelo menos
lembrava muito as capas dos romances de
bilionário que eu adorava ler nas horas livres.
Ninguém em Egarikena se vestia com nada
parecido, e Hian parecia não se importar com o
perigo de vestir calças enquanto transitava à borda
da água.
As roupas, a postura… se não fosse pelo cheiro,

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eu nunca desconfiaria que aquele diante de mim era


um tritão.
“O que é esta coisa?” Hian pegou um objeto de
ferro sobre a mesinha de café.
“Ah, isso? É só um moedor de coral.
Geralmente são usados com corais de tempero, mas
este aqui se usa para chá” Eu peguei das mãos dele
e girei a parte de cima, para mostrar. “Corais de chá
são bastante raros, então ter um desses é
considerado elegante, na nossa cultura.”
“Hm.” Hian apenas seguiu adiante, em direção
ao terraço.
Eu devolvi o moedor à mesinha, tentando não
me irritar. Por que ele perguntou, se não tinha
interesse em aprender?
Determinado a melhorar — ou pelo menos não
piorar — a nossa interação, eu segui Hian até o
lado externo e apoiei os braços no guarda-corpo.
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Diante de nós se estendia mais um colorido


entardecer em Egarikena. Podia-se ver a estátua do
finado Oráculo-Rei, a praça central, muitas casas e,
ao longe, o mar de esmeralda que refletia o
acobreado do sol.
“É como você imaginou?” Eu perguntei, já
preparado para uma resposta do tipo nunca perdi
meu tempo imaginando bobagens.
“É maior.” Disse ele, sombrio e contemplativo.
“Nunca imaginei que houvesse tantos de nós.
Talvez seja culpa minha por nunca prestar atenção
nas histórias do Shane, mas existem parques, lojas,
escolas e até bares. Nunca pensei que… ahm…
vocês fossem tão…”
“Civilizados?” Eu perguntei, menos ofendido
do que pensei que ficaria.
Hian concordou e quase sorriu, envergonhado.
Eu admirei a parte densa da cidade com ele,
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onde centenas de tritões retornavam do trabalho


para suas casas recém-construídas.
“Esta ilha, aliás, toda a organização social que
você está vendo, é muito mais recente do que
aparenta. A Egarikena de hoje não é a mesma de
vinte anos atrás, que também não lembra em nada a
Egarikena da minha juventude. Até pouco tempo
nem existiam bebidas alcoólicas.”
“Devia ser um inferno.” Hian deu risada.
Eu também ri, e juntos nós assistimos as
revoadas de albatrozes retornando para suas tocas.
“Peço perdão por antes.” Eu disse, sem
conseguir olhá-lo nos olhos. “Minhas atitudes
foram injustificáveis.”
“Um rei, se desculpando a um plebeu?” Hian
sorriu com acidez. Ele não tornaria isso fácil para
mim, não é mesmo? “Isto é bem diferente das
histórias da Disney.”
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“Eu nem imagino o que seja isso, mas é


justamente por eu ser um rei, que é imperdoável.
Reis devem unir e apoiar o seu povo, cada vida e
cada opinião são importantes.”
“Também devo me desculpar pela minha
entrada dramática. O Maikon tentou me acalmar
enquanto subíamos aquela escadaria infinita, mas
desde o sequestro do Levi tudo é uma névoa, o
tempo passa, e ao mesmo tempo permanece parado.
Todas as vozes se tornam distantes, é como assistir
a minha própria vida em terceira pessoa.” Hian
tremeu a voz e precisou pausar um momento. “E se
ele estiver com frio, com medo, com fome? Eu
acordo pensando nisso e o pensamento se mantém
até a exaustão me apagar. É impossível dormir
sabendo que o Levi pode estar em qualquer lugar,
implorando por socorro.”
Eu concordei, sentindo a dor do Hian através de

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suas palavras, e ao mesmo tempo me achando um


monstro por não conseguir ter empatia. A dor de
perder um filho certamente era intensa, mas
também era algo tão acima da minha compreensão
que não parecia real. O sequestro de um oráculo era
um problema gravíssimo, causado pela
incompetência fenomenal daquele ao meu lado. Os
erros de Hian II talvez tenham custado muito mais
que a vida de seu filho que, honestamente, ninguém
sensato consideraria vivo.
Leviathan capturado pelos Selkies no extremo
norte do mundo, não era preciso o cérebro de um
Amalona para deduzir que ele havia sido levado
para Faerynga. E conhecendo os poucos relatórios
sobre aquele inferno, ou Leviathan já estava morto,
ou estaria desejando a morte.
E mesmo reunindo cada soldado, sereia e
criança capaz de empunhar um tridente, um

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exército massacrado por Cratília seria reduzido a


nada pela armada imensamente superior de
Faerynga. Nem mesmo o ruivo idiota considerava a
possibilidade de invadir a capital dos selkies.
Apesar de a realidade ser sombria, eu não podia
mandar Hian se esquecer do Leviathan, assim como
não podia mandar Shane se esquecer do Ronan. O
amor de um pai por um filho nunca seria
compreendido por mim.
E tudo porque eu era fraco.
“Como você conseguiu?” Eu pensei em voz
alta, por acidente.
“Consegui o quê?”
Meu rosto aqueceu.
“Isso… O Levi… quer dizer… eu nunca
suspeitei dos seus motivos para abandonar o
Ronan, imaginei que você fosse apenas um idiota

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querendo curtir a vida louca com o namorado


humano, mas então veio a cerimônia coroação e,
por tradição, os conselheiros Amalonas me
informaram de todas as situações relevantes…
incluindo os seus motivos de abandoná-lo.”
Hian demorou um tempo para entender onde eu
queria chegar, então voltou a olhar para o
horizonte, parecendo incomodado.
“Ter motivos não me torna uma pessoa menos
pior.” Hian soltou o ar dos pulmões, aborrecido. O
nome do primeiro filho realmente mexia demais
com ele. “Nunca entendi como o Levi aconteceu.
Foi sorte, ou vai saber. Quem se importa com
detalhes?”
“Não estou falando disso.” Meu rosto aqueceu
ainda mais. “Como você… conseguiu?”
Hian permaneceu calado e distante, como se
nada fosse mais interessante que as nuvens do céu.
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Será que ele havia cansado daquela conversa?


Minha intenção era apenas me desculpar, e de
alguma forma acabei puxando um assunto pesado
demais.
Eu entenderia se Hian me expulsasse do quarto
ou se ele mesmo fugisse de mim. No lugar dele eu
fugiria, mas Hian demonstrou tão pouca reação que
ele parecia nem ter me entendido.
“Sei lá, acho que nunca tive esta dificuldade.
Eu sabia que Maikon nunca me trataria da mesma
forma que o Connor, então eu nunca tive medo.”
Ele suspirou, também corando. “Talvez eu seja
apenas frio.”
“Não acho que você seja frio.” Eu falei
devagar, hesitando a cada palavra. “Você precisou
de muita força para entregar o Ronan, mesmo aos
cuidados de seu melhor amigo, e foi muito forte
em… outras coisas. Eu sempre te achei patético,

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mas veja o que sou…” Eu comecei a rir de mim


mesmo, angustiado. “Existe algo mais patético do
que um rei que não produz herdeiros?”
Hian voltou a me olhar, e algo em sua
expressão mudou, mesmo que só um pouco. Ele
enfim entendeu os motivos daquela conversa, e eu
fui grato por ele não questionar os pormenores.
“Connor Faroé tentou, de todas as formas
possíveis, destruir meu espírito. Se eu me
entregasse aos meus próprios medos estaria lhe
concedendo a vitória.” Hian expôs os dentes,
tremendo de raiva. “Eu me recuso a ser derrotado
pelas memórias daquele canalha.”
“Então você nunca esqueceu?”
“Como eu esqueceria? Não acho que seja uma
questão de esquecer…” Hian acalmou os nervos,
voltando o seu olhar ausente e triste na direção do
nada. “Nunca contei isso ao Maikon, mas acho que
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as memórias sempre vão existir. Se eu não posso


vencer as lembranças, posso ao menos conviver
com elas e tentar ser feliz na medida do possível…”
Se houvesse qualquer adjetivo que definisse
Hian naquele momento, feliz estaria no fim da lista.
Quando não estava surtando ele era quieto, triste e
perdido, ainda mais trágico do que Shane me
descrevera, às vezes. Óbvio que o sumiço de
Leviathan contribuía em grande parte ao seu
tormento.
Percebendo o meu silêncio prolongado, Hian
ergueu seus olhos azuis na direção das primeiras
estrelas.
“Existe qualquer possibilidade, qualquer uma?”
Perguntou Hian. “Envolver a polícia, talvez…”
“Envolver os humanos causaria uma tragédia
sem precedentes, que ameaçaria até mesmo a vida
dos seus pais e de todos os reinos. Tritões e Selkies
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seriam caçados e exterminados, você sabe disso.”


“Desde o sequestro do Levi eu passo dia e noite
aprendendo sobre tritões, selkies, e os conflitos que
causaram seu desaparecimento. Meu pai Dylan
explica tudo o que pode e eu tento aprender,
buscando qualquer brecha ou pista que devolva o
Levi aos meus braços. Precisa haver um jeito, eu
viajei até aqui esperando por respostas. Você é o
rei, não é? Diga-me o que pode ser feito!”
Então aquele era o plano absurdo daquele cara,
aprender em uma semana o que deveria ter
aprendido — e repassado ao filho — durante uma
vida inteira? Enquanto isso, nenhuma pergunta
sobre o Ronan. Nada. Talvez Hian II soubesse um
pouco através do Shane, mas desde o seu ato de
traição Ronan permanecia sumido, poderia estar
vivo ou morto. Shane suplicou que eu investigasse,
mas ele mesmo acabou desistindo quando os

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espiões que enviei à Cratília foram assassinados


pelo caminho.
De qualquer forma, se a minha própria noite de
horrores tivesse resultado em um bebê, eu não sei
se agiria diferente de Hian II. Na verdade eu jamais
conseguiria agir com tanta maturidade, respeitando
os meus próprios limites e as necessidades do bebê
ao mesmo tempo. E era isto o que mais me
enraivecia.
Eu suspirei e dei as costas ao ex-príncipe,
voltando para dentro do palácio.
“Você aprendeu a conviver com memórias
doloridas e reencontrou a felicidade. Aquele
humano parece generoso, ele o ajudará a conseguir
isso de novo.” Eu disse, tentando me manter frio.
“Para todas as finalidades práticas, Leviathan
Makaira será considerado morto nos registros
oficiais.”

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Hian começou a chorar de novo, mas não com o


desespero de antes. Ele compreendia.
Por mais que doesse a perda de um filho, Hian
não suportaria o peso das milhares de mortes que
causaria na tentativa de resgate. Ele era um tritão
inteligente e capaz de pensar vários passos adiante
de cada situação, como esperado de um filho do
Dylan. Mesmo conhecendo tão pouco de nossa
cultura, ele conhecia o significado da palavra
impossível.
Quanto antes Hian II começasse o seu luto,
mais cedo ele reencontraria a força para viver. E
quanto antes eu terminasse o meu, mais cedo eu
consertaria os meus problemas com Papillon.

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Capítulo 84

Quando retornei ao meu quarto, Papillon já me


aguardava na nossa cama. Ele sempre dormia
despido, e com o calor da estação ele havia
cochilado por cima dos lençóis, proporcionando
uma vista de disparar o meu peito.
Eu tranquei a porta com cuidado para não
acordá-lo, troquei meu quimono de couro-de-selkie
por um roupão de dormir e deitei ao seu lado.
Papillon virou-se de frente para mim, menos
sonolento do que eu imaginava.
“Como foi o encontro com o filhote do primeiro
irmão?” Perguntou ele.
Um arrepio percorreu a minha espinha, me

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fazendo rir de nervoso.


“Ah, foi… foi ótimo. Sentimos germinar uma
grande amizade. Eu pedi desculpas, e nós
conversamos sobre os problemas dele, e sobre os
meus, e sobre a ilha… e no fim e disse que
Leviathan estava morto e deixei-o chorando no
terraço.”
“Você fez o quê?” Papillon levantou a voz,
indignado.
“Foi uma conversa pesada, tá bom? Você
queria que a gente se entendesse, então eu pedi
ajuda sobre… certas coisas… que afetaram o meu
bom humor.”
Papillon esfregou a testa, exalando frustração e
incômodo.
“Quem precisa de ajuda neste momento é o
meu sobrinho, e não você. O filho dele foi
sequestrado pelos psicopatas de Faerynga e sabe-se
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lá os horrores que está sofrendo! Não existem


provas de que Leviathan já esteja morto, você
mentiu e desesperou um cara deprimido em um
terraço no topo de uma montanha?”
“Acho que ele não se jogou, já teriam
encontrado o corpo.” Eu dei de ombros e sorri para
o Papillon. “Ei, se quiser tentar, ahm… algo
diferente hoje…”
Papillon deu as costas para mim, revoltado.
“Amanhã teremos um dia cheio. Boa noite,
Yun.”
Eu virei para o lado oposto e também tentei
dormir, angustiado. Aquilo não era justo! Como eu
poderia melhorar uma situação que não tinha
conserto algum?

****

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De manhã cedo o Papillon continuava puto


comigo. Ele preparou e serviu o meu café da manhã
como sempre, mas preferiu não me acompanhar e
seguiu direto aos seus afazeres daquele dia.
Embora dois reis resolvessem mais problemas
do que um só, eu sentia que Papillon não se
agradaria da minha presença.
“Samuen, encontre estes indivíduos e solicite
uma reunião.” Eu anotei em um bilhete e entreguei
ao secretário.
“Sim, Digníssimo Rei Yun.” O secretário
inclinou-se em reverência. “Qual sala de reuniões
devo mandar reservar?”
Eu pensei um pouco e tive uma ideia ótima.
Digo, não ótima no sentido de estragar tudo como
da última vez. Era uma ideia boa de verdade.

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Após combinar brevemente os detalhes, eu


retornei ao quarto e vesti um quimono casual dos
meus tempos de plebeu. Hian não teceu comentário
algum sobre a minha vestimenta, mas trajar o couro
daqueles desgraçados não seria apropriado para o
ambiente descontraído que eu tinha em mente.

****

Eu não demorei muito para me arrumar, ainda


assim todos já estavam presentes quando cheguei,
dividindo uma mesa nos fundos do Flying Fish.
Talvez fosse algo estranho para um baterista
dizer, mas bares me deixavam nervoso. Tocar com
Shane no palco era muito diferente de andar entre
as mesas como um cliente comum, embora o bar
estivesse meio vazio. Depois do massacre pouca
gente encontrava ânimo para se divertir, metade
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dos tritões estava ali apenas para afogar as mágoas.


O clima soturno com música lenta nem
lembrava os tempos do pré-guerra, embora a mesa
dos fundos parecesse um pouco animada.
Eu cheguei meio sem jeito e cumprimentei
Shane, Hian e Maikon, meus convidados daquela
noite. Papillon estava ocupado demais para
comparecer, e Byron…
“Onde está o Byron?” Eu perguntei, me
acomodando na cadeira livre.
“Em casa.” Shane suspirou, com um sorriso
tímido e meio ébrio. “Hoje ele encontrou uns
biscoitos mofados no fundo do armário, que o
Madhun presenteou a ele uns dez anos atrás. Agora
ele quer chorar de saudades por uns cinco dias.”
“Vocês ainda estão de drama, Shane?” Hian
bebeu de sua caneca, que parecia conter manteiga-
do-mar. “Madhun mudou-se para a Irlanda, não
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para Marte. Vocês podem visitá-lo quando


quiserem.”
“Acho normal o Byron sentir saudades, e o
Shane também.” Maikon provou – e desaprovou –
alguns petiscos da tábua de frios.
“É… deve ser difícil despedir-se de dois filhos
quase ao mesmo tempo.” Disse Hian.
Toda a mesa se calou em um silêncio assustado
e constrangedor. Hian era sempre sombrio assim,
ou só de vez em quando? Ele ignorava Ronan com
tanta naturalidade, que quando lembrava de sua
existência Hian desestruturava qualquer situação.
Desta vez eu não seria louco de dizer qualquer
coisa.
“Bem… então…” Maikon gaguejou, hesitante.
“Adorei esta sua roupa, Yun, a realeza de verdade
se veste com tanta elegância. Aquele quimono
vermelho de ontem também era lindo, e meio
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familiar. Era camurça?”


“Não exatamente.” Eu ri nervoso. “E estes
trajes são típicos do meu antigo clã. Sou um
Makaira agora, mas os Hai-Kui vestem-se assim
em seu dia-a-dia.”
“Nossa, que demais. Vocês têm um castelo de
cristal, e roupas loucas, e aquelas cachoeiras muito
doidas atrás da montanha. Egarikena é tipo, um
paraíso de tritões!”
Eu não conseguia acompanhar as palavras
daquele humano. Ele não estava com raiva? Nem
mesmo Shane parecia bravo comigo, só um pouco
chateado. E talvez angústia fosse o estado de
espírito padrão do Hian, porque ele não estava
detestando a minha presença entre eles.
“Também temos extensas galerias subterrâneas,
mas receio que estejam além de seu alcance
humano. O Shane conheceu uma vez com roupas
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de mergulho e o Byron quase morreu do coração.”


“O tanque de oxigênio engatou no teto, mas
consegui me soltar de boas. O Byron nunca mais
me deixou mergulhar, depois disso.” Disse Shane.
“Aaaahh, eu quero conhecer também! O rei
Yun poderia me acompanhar, e aí a gente conversa
sobre a realeza e a vida de príncipe que deve ser
tãaaaao legal. Imagina só, ficar no trono batendo o
tridente na cabeça dos desafetos, e quando algum
mais atrevido aparecesse, era só puxar uma corda e
plosh! Um alçapão se abriria sobre um poço de
tubarões.”
“Maikon, acho que a realeza de verdade não
funciona assim…” Disse Hian.
“É uma ideia brilhante.” Eu disse, fascinado.
“Vou mandar que construam um alçapão hoje
mesmo, mas não entendi a questão dos tubarões.
Por que providenciar comida para os desafetos?
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Não seria melhor um tobogã os conduzindo para


fora?” Eu perguntei.
“Siiiim, seria melhor do que melhor!” Maikon
bateu as mãos na mesa, super empolgado. “E o
outro lado do tobogã sairia no topo da cachoeira!”
“Onde haveria espetos flamejantes no fundo!”
Eu completei, maravilhado.
“Ahm… não, nossa, em qual vítima você está
pensando, exatamente?” Maikon torceu a cara,
então voltou a vibrar com novas ideias. “Podemos
substituir a água do lago por gelatina!”
“Isto não causaria um desastre ambiental?” Eu
perguntei.
“Um desastre ambiental sabor morango.” Disse
Maikon.
Nós dois debatemos fervorosamente nossas
ideias, e a cada novo pensamento vinham mais dez.

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Vestir uma coroa e ser carregado em liteiras, como


eu nunca havia pensado nisso antes?
“Acho que o Maikon fez um novo amigo.” Hian
disse ao Shane.
“Te falei, cara, o Yun é bem da hora, só tem
que ter paciência.” Shane bebeu sua caneca e
lambeu a espuma dos lábios. “Vocês dois vão se
acertar, também.”
“Ah, claro, como não amar o rei que abandonou
nossos filhos à própria sorte?” Hian revirou os
olhos.
Como é que é? Eu interrompi a fala do Maikon
sobre uma tal de guilhotina e afinei meus olhos
para aquele cara revoltante.
“Eu não abandonei ninguém, tá bom? O Ronan
está mais seguro em Cratília do que em nosso
reino, e acredito que Shane já tenha explicado os
motivos.” Eu espiei a reação dos dois, e pelo tremor
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no olhar do Maikon, ele já sabia o suficiente.


“Leviathan foi levado para um infern... ahn... uma
cidade de gelo, e ele não é um simples prisioneiro
de guerra. Nossas tentativas de pagamento de
resgate falharam.”
“Você sabe o que querem com ele?” Perguntou
Maikon.
Eu refleti sobre o que dizer. Minha sinceridade
apenas me trazia problemas, mas o clima já havia
mergulhado em angústia sombria e eu odiava ser
mentiroso como o resto da nossa raça.
“Diferente do que pensam a situação de
Leviathan já nos tirou muitas noites de sono.
Reuniões com nossa equipe de inteligência já se
prolongaram por muitas madrugadas até chegarmos
na conclusão de que, com nossos atuais recursos, o
resgate do Oráculo é inviável. Entendam a
dificuldade de precisar aceitar isto, quando um

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oráculo como Leviathan seria a chave do nosso


sucesso militar.”
“Meu filho não é uma arma de guerra!” Hian
bateu o copo na mesa.
“Sim, ele é. Assim como uma bolha no fundo
do mar o destino de um oráculo é subir ao topo,
para então obter glória para a nossa raça. Não
existe o equivalente selkie de um oráculo, então a
supremacia sempre nos pertenceu.”
“Isto até os selkies descobrirem a tecnologia
humana.” Disse Shane.
“Sim, exatamente. Mas mesmo todos os fuzis
do mundo não poderiam garantir vitória enquanto
houvesse um oráculo no exército inimigo. Com isto
em mente, duas coisas podem ter ocorrido: Ou
Leviathan foi morto, ou...”
...ou será ele a nos matar. Espera aí, eu não
podia responder isso.
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“O que pode ser pior do que a morte do nosso


filho?” A voz do Maikon estremeceu. Ele devia
segurar-se muito para ser forte por dois.
“Muito se desconhece sobre os poderes de um
oráculo. O que poucos sabem é que o Oráculo
Aurelian jamais completou seu treinamento, e ainda
assim massacrou os selkies e garantiu a hegemonia
dos tritões nos mares quentes. Mesmo sem
treinamento algum, o Oráculo Leviathan pode ser
útil ao inimigo.”
Apesar de reconhecer a gravidade nas minhas
palavras, eu permaneci calmo. Talvez os horrores
do massacre tivessem me anestesiado ou talvez
fosse simples negação, afinal, eu e Papillon
governávamos um reino prestes a ruir, não poderia
haver um alvo maior na testa daquele que eu mais
amava.
O sofrimento do Hian e do Maikon, embora

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intenso, não era maior do que o de muitos naquela


ilha. Por mais cruel que fosse a realidade, a perda
de Leviathan como oráculo era um golpe muito
mais devastador do que a perda de um tritão híbrido
que ninguém conhecia a existência.
E ainda assim, apesar das nossas chances
inexistentes, eu não queria me sentir inútil. Aqueles
dois rapazes eram os melhores amigos do Shane. E
eu prometi ao Shane que faria tudo por ele.
“Talvez… e isso é loucura, já vou avisando…
talvez exista um jeito.” Eu disse.
A atenção dos três focou em mim com tanta
intensidade, que eu me arrependi na hora de ter
falado qualquer coisa.
Bem, agora era tarde para voltar atrás. Eu
levantei a mão e chamei o garçom, um ômega
jovem que eu desconhecia.
“Com licença, poderia chamar o dono deste
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estabelecimento?” Eu perguntei.
O garoto se arrepiou todo, temendo ter
desagradado o rei e seus convidados. Não era nada
disso, mas eu não sentia vontade de me justificar.
Pelo sorriso no rosto do Shane, ele deduziu as
minhas exatas intenções. Nosso exército era
incapaz de invadir Faerynga, mas os tritões
possuíam outra arma secreta além do oráculo: um
clã de tritões hiper-inteligentes. O líder da equipe
de inteligência, Édrilan Amalona, já havia me
desiludido sobre as possibilidades de um contra-
ataque, mas nós nunca discutimos as possibilidades
de infiltragem em outro território.
Foi uma decisão arriscada e estúpida enviar
espiões para Cratília, o Amalona traidor Yoshan
desmascarou nossos esforços de localizar Ronan
com a facilidade natural de seu clã, mas Faerynga
situava-se do outro lado do mundo e, a julgar por

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sua extrema xenofobia, era seguro afirmar que não


haveriam Amalonas em seu território.
Era um plano tão louco que poderia funcionar,
só que, para a minha surpresa, não era Édrilan
quem acompanhava o garçom de volta à nossa
mesa, mas o seu predestinado Moyren.
“E aí, Shane. E é um prazer conhecê-los, Hian
II e humano Maikon. Amigos do Shane também
são meus amigos, posso recomendar nossa carta de
vinhos para humanos?” Moyren retirou uma
caderneta do avental.
“Moyren, o seu rei também está aqui!” Eu
rosnei para ele.
“O que você quer, Yun? Você nem bebe.”
Moyren afinou os olhos para mim.
“Cadê o Édrilan? É com ele que preciso falar.”
Eu disse.

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“E eu quem tenho que saber? Se você não o


ocupasse o tempo todo com suas bobagens, ele
poderia ajudar direito aqui no bar. Precisei diminuir
meus horários da creche para dar conta da
clientela.”
“Que bobagens?” Eu franzi a testa. Após o
desastre com os espiões, eu nunca solicitei os
serviços do Édrilan.
“É, aquele seu megaprojeto arqueológico, em
Orla das Sereias. O Édrilan não me conta detalhe
algum, e quem consegue entrar na mente de um
Amalona?” Moyren bufou, aborrecido. “A perda
dos nossos filhos não destruiu o nosso
relacionamento, mas talvez estes segredinhos de
vocês consigam.”
Orla das Sereias? A antiga capital dos tritões?
Do que raios aquele idiota estava falando?
“Tem razão, Moyren, foi uma distração da
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minha parte.” Eu o dispensei com um gesto da mão.


Um pouco confuso, Moyren anotou algum
pedido do Maikon e voltou para a cozinha nos
fundos.
“Qual é o seu grande plano, Yun?” Hian
arqueou a sobrancelha, sarcástico. “Então meu filho
está acorrentado em algum subsolo de gelo
enquanto você brinca de explorar a cidade dos
meus pais?”
“Cidade dos seus pais?” Eu perguntei.
“É, o Dylan e o Gabe se conheceram em Orla
das Sereias, né, Hian? Eu nunca visitei, mas fica no
sul do Brasil. Pelas fotos que o meu pai mostrou, é
um lugar super lindo.” Disse Maikon.
“Sim, é lindo pra caralho. Eu visitei algumas
vezes antes do meu pai Michel mudar-se para
Miami, e as pedras negras são uma loucura. Nunca
vi coisa parecida.” Disse Shane.
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Cidade da infância… pedras negras…


Eu só podia ser muito trouxa.
Em um gesto brusco eu me levantei e marchei
para fora daquele bar.
“Yun, aonde você vai?” Perguntou Shane.
“Construir uma guilhotina.” Eu rosnei de volta.
“Aaah, sério? Que demais, posso ir também?
Quero tirar fotos embaixo da lâmina!” Disse
Maikon.
“Maikon, acalme-se.” Pediu Hian.
Não me importava a companhia daquele
humano, que escolheu permanecer no bar. Só me
importava uma coisa: descobrir a verdade, e punir
qualquer um que se achasse mais esperto que eu.
Eu podia não ter a inteligência de um Amalona,
ou a força de um Kampango, mas eu ensinaria a
qualquer traidor que ninguém, absolutamente
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ninguém, agia pelas costas de Yun Makaira.

****

Sons úmidos ecoaram pelo quarto, enquanto


que eu enterrava minhas unhas nos glúteos
musculosos do Papillon e o fazia gemer por mim.
Eu curtia a forma como o suor escorria de suas
costas largas, embora nossa diferença de alturas
fosse meio frustrante. Minha fantasia era agarrá-lo
por trás do cabelo e meter com ainda mais força,
como se domasse um cavalo pelas rédeas. Papillon
curtia um sexo mais bruto, mas quando se era um
ômega baixinho e magro, nem tudo era possível.
“Ah, ah... Yun...” Gemeu Papillon, contra seu
travesseiro. Meu alfa gostava bem assim, rápido e
com certa grosseria, de preferência com profundos

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e excitantes arranhões em sua bunda apertada.


Minha vara de ômega emperrou-se no interior
quente, e eu senti vir outro orgasmo. Papillon já
transbordava com a minha semente e começou a
masturbar sua imensa vara de alfa, buscando seu
próprio limite em sincronia com o meu.
Eu não estava com humor de falar sacanagens,
então apenas aumentei o ritmo e deixei vir, me
deleitando na explosões extasiantes que apenas
Papillon poderia me proporcionar.
Suando e arfando em seu próprio êxtase,
Papillon contraiu os músculos e estremeceu sob a
minha pegada firme, derramando sua semente de
alfa nos lençóis da nossa cama.
Eu saí de dentro dele e permiti que Papillon
deitasse para descansar.
Papillon suas costas arranhadas no colchão
macio e, ao invés de sorrir e me tecer os elogios de
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sempre, me encarou com certa desconfiança.


“O que foi?” Eu perguntei.
“Não, nada.” Ele disse, tão relaxado quanto
desconfiado. “Não é do seu feitio querer sexo
depois de brigarmos.”
“Não foi uma briga, foi uma constatação da
minha parte. Eu investigarei aquele General e
tomarei providências antes que ele faça qualquer
besteira. Sou tão rei quanto você.”
Papillon bufou, incomodado.
“Quando foi que você ficou tão teimoso, Yun?
Seja lá o que Fran esteja planejando, deve ser pelo
bem do povo.”
“Se fosse, ele não estaria agindo pelas nossas
costas. O que poderia haver de tão interessante, em
Orla das Sereias? Se aquela tal de Safira do
Oráculo existiu mesmo, então é uma relíquia do

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meu clã. Não é direito daquele cara investigar o que


não deve.”
“Não vou discutir sobre isso de novo.” Papillon
levantou da cama, mais cansado do que aborrecido.
Ele vestiu a primeira canga que encontrou e abriu a
porta do quarto. “Vou pegar alguma coisa pra gente
comer.”
“Veja se tem lagostim-azul, ficaria delicioso
com molho de...”
Papillon nem me ouviu e apenas deixou o
quarto. Ok, talvez ele estivesse um pouquinho
aborrecido, sim, mas tudo bem. Era apenas um
sinal para que eu seguisse adiante com meus
próprios planos.
Sentindo o coração acelerar, eu admirei os
lençóis revirados e cheirando à nossa noite de
intimidade. No centro do tecido havia agora uma
mancha branca.
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Eu espiei para os lados e em direção à porta


fechada, e então percorri o dedo naquela mancha. O
creme branco que era a semente do Papillon
escorreu ao longo dos meus dedos, denso e
brilhando úmido.
Para certas coisas eu nunca estaria preparado, e
eu não podia pedir ao Papillon que me submetesse
apesar do meu pânico e das memórias horríveis.
Papillon não merecia sofrer me fazendo reviver um
trauma. Mas ainda havia uma alternativa.
Já começando a chorar em antecipação, eu me
tranquei no banheiro e bloqueei minha mente com
todas as forças.
Hian II era forte, muito mais do que eu jamais
conseguiria ser. E eu não seria jovem por muito
mais tempo.
Beirando o pânico total, eu lutei para fugir das
memórias e abaixei os dedos úmidos de semente
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entre as minhas nádegas.


A sociedade dos tritões se debatia nos últimos
suspiros, como um peixe recém caçado cujo único
destino era servir de comida ao seu predador. Não
havia garantia alguma de que o novo oráculo
conduzisse nossos passos, e se Ronan Faroé não
havia retornado até então, era bem possível que
nunca assumisse o trono. Não o trono dos tritões,
pelo menos.
Pouco podia ser feito além de aguardar a
tragédia inevitável. Ainda assim, todos lutavam. Eu
também queria lutar. Chega de permitir que o meu
passado controlasse toda a minha vida. Eu também
podia fazer a minha pequena parte.
Eu pressionei os dedos atrás de mim, e com o
gesto as memórias duramente afastadas retornaram
para me esmagar. Mas daquela vez eu lutei, e
daquela vez eu venci.

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Para que o reino dos mares quentes se


mantivesse de pé, a família real precisava de um
herdeiro.

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Capítulo 85

Levi

Um rangido metálico me despertou.


Eu sentei devagar e massageei meus ombros,
todo dolorido e desconfortável. A portinhola rente
ao chão da cela estava aberta.
“Já vai…” Eu resmunguei, aborrecido. Eu não
costumava me esquecer de devolver a tigela, mas o
cansaço acabara me vencendo e eu havia
desmaiado sem querer.
Minha tigela estava nas costas do cara morto.
Eu passei a tigela por baixo da portinhola e o
guarda mandou de volta uma outra tigela, cheia de
comida.

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“Obrigado.” Eu torci o nariz para o meu jantar


daquela noite. Mais cascas de lagosta, metade de
um caranguejo e gosma verde. “Ei, quantos dias já
se passaram?”
A portinhola fechou de novo e dois pares de
passos se afastaram pelo corredor. Os guardas
nunca conversavam comigo, mas como sempre
andavam em duplas eu conseguia ouvi-los.
Aprender seu idioma era a única atividade que me
impedia de morrer de tédio.
“Por que alimentamos tão bem este rabo-de-
escama?” Resmungou um deles.
“O Imperador quer ele saudável e disposto. Ele
é nossa arma secreta, afinal.”
“Você é um frouxo, Bernàr. O moleque é
apenas um demônio, como aquele Aurelian também
foi. Espero que tenha a decência de morrer
engasgado.”
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Sério que eles consideravam aquela porcaria


uma boa refeição? Eu nem queria imaginar o
almoço dos outros prisioneiros.
Eu mastiguei as patinhas de caranguejo e me
forcei a engolir até a casca. Meus dentes doíam
mastigando algo tão duro, mas pelo visto meu
estômago conseguia digerir qualquer coisa. O gosto
não era horrível, com certeza era melhor do que
peixe, mas bem que podia ter umas batatas fritas
para acompanhar.
“Quer um pouco, Barnabé?” Este era o nome do
cara morto, em homenagem ao meu cabrito que
tinha pintas grandes e pretas no lombo, da mesma
forma que o cadáver tinha pintas grandes e lilases
na cauda. Ele ainda permanecia na mesma posição
desde que eu cheguei. Nem pensar que eu
encostaria nele.
Barnabé não respondeu. Ele não sabia o que

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estava perdendo, porque olha só para aquele


banquete! Até as pedras na parede oposta pareciam
famintas, me assistindo chupar as patinhas uma por
uma.
Nenhuma das pedras parecia interessada em
conversar comigo e o chão de concreto não acordou
bom humor, porque eu não o escovara
recentemente. Limpar com as mãos era difícil, mas
ainda bem que os guardas davam uma mangueirada
às vezes. Era horrivelmente gelado, mas eu e o
chão ficávamos limpinhos e prontos pra balada.
Caralho… será que eu estava começando a
enlouquecer? Conversar com as paredes e as
goteiras ainda era melhor do que pensar nas
lembranças, então não havia muita escolha.
Assim que terminei o almoço, eu devolvi a
tigela diante da portinhola e recomecei o que fazia
antes de desmaiar.

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O piso da cela era inclinado, então a água


salgada que escorria das paredes se acumulava em
um cantinho. Como eu podia beber a água das
paredes, e pelo fato de que havia uma cauda de
cadáver dentro daquela poça, acabei usando aquele
lugar de banheiro até começar a estranhar algumas
coisas. Primeiro, que aquele acúmulo de água não
era um erro de projeto. Rayner explicou que tritões
e selkies precisavam de água marinha, e eu talvez
fosse a única exceção. Segundo, que a água nunca
permanecia suja por muito tempo, e também não
acumulava a ponto de inundar a cela.
Inspecionando aquela parte do piso com
atenção, eu percebi que não era encostado à parede
como no resto da cela. Havia uma fresta. E se
naquele reino as torres militares ultramodernas
coexistiam com panteões romanos, o que impedia
aquele calabouço medieval de ter um sistema de

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encanamentos?
Meus dedos mal passavam pela fresta estreita,
mas apesar de eu não ser o melhor dos alunos em
ciências sociais, eu entendia um pouco de
saneamento básico: todas as redes de esgoto
terminavam no mar.
Então ali estava eu, com as mãos dentro do meu
penico medieval, canalizando todo o meu poder.
Era arriscado. Qualquer soldado poderia ver os
fachos de luz dourada irradiando pela janelinha da
porta, mas pelas minhas deduções eu era o único
prisioneiro daquele andar. Depois de me alimentar,
todos os guardas sumiam por bastante tempo.
Suor se formou na minha testa. Talvez eu ainda
precisasse de descanso, mas ainda assim eu
continuei, gerando muitas e muitas águas vivas de
luz. Eu sorri para a dancinha delas, conforme cada
água viva sumia por aquela fresta.
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“Vão, e busquem ajuda.” Eu disse para o meu


pequenino exército.
Minha visão logo começou a borrar. Naquele
ritmo eu desmaiaria de novo, mas não podia
desistir. Eu criei centenas e centenas de águas
vivas, esperando que pelo menos uma encontrasse
o caminho do oceano.
E então um som molhado ecoou pela cela. Algo
tipo plosh-plosh-plosh.
O susto me interrompeu. O brilho dos meus
poderes escorreu junto com as águas vivas e a cela
retornou à sua luz azulada e fraca.
Aquele som de plosh-plosh continuava. Eu
olhei para baixo e… era a cauda do Barnabé, se
debatendo na poça de água.
Eu dei um gritinho e logo cobri a boca,
recuando até acertar as costas na parede.

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Mas o que caralho? O cadáver não parava de se


mexer. Logo ele estava movendo a cauda inteira, e
então a ponta dos dedos, e então suas costas subiam
e desciam no movimento de respiração.
Esquece a coisa de falar com pedras. Agora sim
eu estava enlouquecendo de verdade. Eu estava
naquele buraco há pelo menos um mês e aquele
velho nunca havia se movido.
O velho recolheu sua cauda de dentro da água,
transformando-a em um par de pernas tão raquíticas
quanto o resto dele. Com muito esforço ele ergueu-
se nos cotovelos e segurou-se nas paredes,
conseguindo pouco a pouco sentar.
Eu me abracei tremendo mais do que nos dias
do banho de mangueira. Era um zumbi, não era?
Aquele cara ia comer o meu cérebro? Socorro, eu
estava quase me mijando, aquilo não podia ser real.
“Grooohnng….” Grunhiu Barnabé, alisando
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para trás seus longos cabelos brancos. Ele enfim


conseguiu erguer-se nos joelhos e então virou o
corpo de frente para mim, logo depois sentando em
posição de lótus.
Seus olhos encontraram os meus. Se não fosse
um zumbi, ele pareceria um velho bem comum,
enrugado, ossudo, sem nenhuma gangrena ou
pedaços faltando. Sua expressão era até que bem
suave e suas íris muito vívidas para alguém tão
idoso: eram verdes nas bordas e lilases no centro,
nos mesmos tons de sua cauda.
“Ah, é você…” Disse ele, com um sorriso
maravilhado. “O chamado enfim concedeu o meu
milagre.”
“Não coma o meu cérebro.” Eu pedi, enfim
entendendo o que havia feito.
A luz dos meus poderes, a cauda dentro da
água…
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Eu olhei para as minhas mãos e para ele,


repetidamente.
“Ah, meu Deus. Eu te ressuscitei? Eu posso
fazer isso? Eu sou o Jesus dos tritões??” Eu tremia,
mais aterrorizado comigo mesmo do que com
aquele zumbi. “Me desculpa, Barnabé, foi um
acidente, eu juro, já pode ir para o céu de novo, não
me devore!”
“Barnabé?” O velho começou a rir, feliz e
muito fascinado. Ele não conseguia tirar os olhos
dos meus. “Oráculos não têm o poder de devolver a
vida, meu jovem, acho que podemos chamar de…
hibernação. Há muitas décadas eu implorei ao
chamado pela chance de acertar, onde antes eu
havia falhado. Você, jovem Oráculo, é a minha
oportunidade de redenção.”
“R… re… redenção?” Eu gaguejei, abraçado no
meu casaco como se fosse a minha própria vida.

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O velho pegou minha tigela e passou o dedo


curiosamente, então bufou em decepção.
“Podia ter deixado um pouquinho para mim.”
Resmungou ele. “E então, o que se faz dentro desta
caixa? No meu tempo eu dava nome às pedras. O
Winterson não mudou nada, aquele tijolo maroto.”
“…Quê?”
“Perdão, perdão, eu só não vejo ninguém há
tanto tempo, e o oráculo desta geração é um jovem
tão bem apresentável. Outro ômega, espero que
menos genioso…”
Eu não estava entendendo nada. Quem era
aquele velho pelado? O que ele queria? Ele tinha
noção de que ressuscitou dentro de um calabouço
de gelo, certo?
Percebendo o pavor na minha cara, o velho
começou a rir de novo. Havia um certo traço
oriental em seu rosto e, como eu previa, seu cabelo
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era branco pela idade, com uns dois fios pretos na


longa e ressecada franja.
“Onde estão meus modos? Eu nem me
apresentei.” Ao invés de me estender a mão, o
velho sentou nos calcanhares e tocou a testa no
chão, em reverência. “Meu nome é Daoshin Hai-
Kui. É uma honra imensurável conhecê-lo, jovem
oráculo.”
“É… oi…” Eu tirei meu casacão de pele e
entreguei pra ele. Passar frio era melhor do que ver
um velho pelado. “Eu sou Levi Dolinsky-Mak…
ahm… meu nome é Oráculo Leviathan Makaira.”
“Leviathan Makaira…” O velho vestiu o casaco
e sentou-se de novo, repetindo o nome como se
fosse sua música favorita. “Perdão, perdão, peço
mil perdões. Nunca imaginei que meu milagre
fosse ser atendido. Você e eu. Aqui. Não entende?
Desde o seu nascimento o chamado conspirou por

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este nosso encontro.”


“Neste caso, o chamado podia ter conspirado
por um encontro em uma praia tropical.” Eu sorri
com o canto da boca.
O velho riu e concordou com a cabeça. Até que
ele tinha senso de humor.
“Bem, bem… chega de conversa, agora. Você
já tem quantos anos, meu jovem? Não podemos
perder nem mais um dia.”
“Como assim?”
“Sente-se diante de mim nesta mesma pose e
estenda as mãos.” O velho Daoshin mostrou
conforme me explicava. “Vamos iniciar o seu
treinamento.”

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Capítulo 86

Rickett
Um mês depois

O sol despontou no horizonte acobreado,


colorindo o céu em tons de azul cada vez mais
claros.
Eu acordei cedinho exatamente para este
cenário, que sempre esgotava o ar nos meus
pulmões. Era tão lindo. Pessoalmente, os mares
quentes eram ainda mais fascinantes do que nas
fotos da internet.
Sentado na proa do iate, eu permiti que o vento
bagunçasse meu topete e aproveitei a temperatura
amena. Era estranho vestir regata e saiote curto,

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mas também era leve e libertador.


Ronan geralmente dormia por horas a mais do
que eu, mas naquela manhã ele havia acordado
cedo. O meio-selkie mais gostoso do mundo
espreguiçou-se ao deixar as cabines e sorriu ao me
avistar.
“De novo olhando para o sol? O plano é forçar
o oráculo a curar um ômega cego, e não dois.”
“Nosso tempo nos mares quentes está se
esgotando. Em dois dias atravessaremos o Círculo
Polar Ártico, e presumo que o céu de Faerynga seja
tão tedioso quanto o de Cratília.”
“Está falando da aurora polar multicolorida e
dos bilhões de estrelas? Não me parecia nada
tedioso.”
“É diferente, Ronan. A cor do céu… o
alvorecer e o crepúsculo… tudo tem outras cores. E
aquela ilha de humanos que visitamos, com a
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biblioteca? Nunca vi tantas cores em uma paisagem


ao mesmo tempo. É foda demais.”
“Era só um parque com pavões, você não
precisava ter chorado.” Ronan me abraçou por trás
e, com as mãos acariciando meu ventre, admirou o
alvorecer comigo.
“Será que Faerynga é tão branca e cinza quanto
Roori? E se o palácio do seu avô não tiver um
jardim de inverno? Como me lembrarei das
plantas?” Eu perguntei.
Por um tempo, Ronan não disse nada, mas os
seus pensamentos estavam inquietos e nervosos.
“Rickett, você gostaria de viver nos mares
quentes?” Perguntou ele.
O susto quase me derrubou no mar. Ainda bem
que Ronan me segurou.
“Como é? Em território de tritões? É

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impossível, Ronan, eu seria assassinado no


primeiro dia!”
“Rickett, tudo o que está vendo, cada gota de
água, cada bolha e cada onda… tudo isso é nosso.”
Ele beijou meu pescoço. “Nós somos os Príncipes
dos Sete Oceanos, e não há ninguém entre as ondas
e as fendas abissais que não nos deva reverência.”
Um arrepio eletrizou minha coluna, e não era
apenas por causa dos beijos carinhosos do Ronan.
“Ronan, meu amor… você está sugerindo o que
eu acho que está?”
“Aquele trono de cristal me parece
desconfortável pra caralho, mas por que não? Os
idiotas de Egarikena podem protestar durante
alguns meses ou anos, mas nosso exército é
numeroso. Eles precisariam se submeter, cedo ou
tarde.”
“Não quero oprimir ninguém, Ronan… mas se
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todos pudessem fazer as pazes, eu adoraria


governar os mares quentes com você.” Eu
descansei as costas em seu peito e curvei o
pescoço, permitindo que Ronan me cobrisse de
beijinhos. “Acha que em Egarikena aceitariam a
nossa filha?”
“Se não aceitarem, vou destroçar cada imbecil
em quinhentos pedaços…” Percebendo que a
resposta não agradou, Ronan amaciou a voz. “…
gentilmente.”
“Foi apenas uma pergunta boba.” Eu disse, me
lembrando das histórias sombrias de tempos
passados. “Eu jamais colocaria meus pés naquele
lugar amaldiçoado.”
“Construiremos nossa própria capital, então, em
uma ilha menos merda. E você terá um trono bem
macio e confortável.”
“Acho que gostei desta ideia.” Eu dei risada,
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empolgado com a minha própria imaginação. Eu e


Ronan em uma ilha tropical, com paisagens
multicoloridas e mares agradáveis, onde se podia
mergulhar e emergir sem morrer de hipotermia, e
Ronan sempre se vestiria como naquele momento:
apenas com uma canguinha sexy.
“Ei, chega de se esfregar em mim, seu ômega
meloso.” Ronan me apanhou no colo e me
devolveu à segurança do piso do deque. Só então
eu notei o livro em sua mão. “A sua aula começa
mais cedo, hoje.”
Ainda rindo, eu concordei com Ronan e segui-o
até a parte lateral do iate, onde nós ajeitamos os
colchonetes e guarda-sóis compramos na mesma
ilha onde compramos diversos livros, incluindo o
resto da série Tripas Sanguinolentas.
Ronan ficou triste ao descobrir que a história
terminava no volume doze, mas também

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empolgado por descobrir que existia um final. Ao


longo daquele mês e viagem nós relemos a série
desde o começo, passando também pelos vários
livros inéditos.
E enfim restava apenas o último trecho do
último livro: A conclusão das muitas aventuras de
Mega-Max no apocalipse zumbi.
Ronan se fazia de desinteressado, mas acordou
cedo apenas para descobrir o tão aguardado
desfecho.
Ler um trecho tão importante para nós dois me
deixava nervoso, mas eu aprendi muito graças à
dedicação do Ronan e prometi a mim mesmo que
eu faria o meu melhor.

****

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“Depois de limpar a gosma de cérebro do


bastião leste, Mega-Max inspecionou a proteção de
arame farpado e então desceu do enorme muro que
contornava a cidadela. Sua esposa Elinara, uma
loiraça de peitos enormes e sorriso angelical, o
aguardava lá embaixo. Mega-Max deu-lhe um
beijinho nos lábios. Já terminei o conserto das
barreiras, disse Mega-Max, embora a reforma já
não fosse tão necessária: após sua vitória contra o
Zumbi-Multidimensional todos os zumbis do
mundo derreteram por fendas de universos
paralelos .”
Eu pausei a leitura e espiei para o lado, onde
Ronan acompanhava atentamente cada detalhe da
história, deitado no colchonete comigo e com o seu
bíceps servindo de travesseiro para mim.
Nenhum erro de leitura até então. Apesar do
nervosismo eu continuei lendo, tão ansioso quanto

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Ronan pelo grande final. Era até dolorido notar que


faltavam tão poucas páginas.
“Meu pai gostaria de ter uma palavrinha. Disse
Elinara. Prometo que não é nenhuma bronca, desta
vez.
“Mega-Max desconfiou. Ele ainda não
acreditava ter encontrado a lendária Última
Resistência Humana, e descobrir na filha do xerife
um novo e poderoso amor era a maior sorte que
poderia existir. Mas poderia um exterminador de
zumbis biomodificado com braços de canhão e
mandíbula de titânio encontrar a paz naquela
minúscula cidadela? O volume na barriga de
Elinara era assustador e ao mesmo tempo transmitia
toda a esperança que Mega-Max… Ronan, você
está chorando?”
“Não estou!” Ele fungou, amuado. “Continua
lendo essa porra.”

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“Uma maravilhosa surpresa aguardava Mega-


Max. Os recursos da cidadela eram escassos e a
luta pela sobrevivência um desafio diário, ainda
assim os cidadãos reuniram-se para agradecer
Mega-Max por exterminar os todos os zumbis do
mundo: Eles o presentearam com uma casa e um
berço para que ele pudesse enfim recomeçar sua
vida.
“Já em sua nova casa Mega-Max abraçou
Elinara, acariciou o ventre inchado onde Rosaline
crescia a cada dia, então os dois trocaram um longo
beijo. Naquele instante Mega-Max percebeu que
sim, todas as lutas, explosões, desastres nucleares e
fissuras no espaço-tempo que ele causou valeram a
pena. Sua antiga família nunca retornaria a ele, mas
através das boas memórias daquele tempo distante,
Mega-Max encontraria forças para começar do
zero, afinal, a verdadeira felicidade nunca existia

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sozinha.”
Eu fechei o livro segurando as minhas emoções.
Ronan debocharia de mim se eu chorasse por um
personagem fictício. Eu precisava me conter, mas
estava tão feliz pelo Mega-Max.
Estranhando o silêncio do Ronan, eu olhei para
o lado e me choquei. Seus olhos e seu rosto
estavam encharcados, e ele tremia os lábios no
esforço de segurar o choro.
“Até que não foi um final ruim.” Sua tentativa
em parecer desdenhoso era hilária.
“Eu te disse que Mega-Max encontraria o amor
novamente.” Eu deixei o livro de lado, ainda
tentando absorver aquele final tão intenso. “Eu
amei esta história, precisamos encomendar mais
livros assim quando estivermos em Faerynga.
Nosso futuro palácio terá a maior biblioteca dos
mares.”
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“Precisaremos de estantes bem altas. Nossa


pequena Rosaline não poderá ler livros tão
violentos.”
“Rosaline?” Eu franzi a testa e acotovelei
Ronan, segurando o riso. “Não podemos chamar
nossa filha como uma personagem de história de
zumbi!”
“Por que não?” Ronan sentou-se no colchonete
e espreguiçou os ombros, ainda fingindo que não
chorou horrores.
“Simples, é por que…” Eu cocei o queixo,
pensativo. “Na verdade é um nome legal.”
“Claro que é legal, fui eu quem pensou nele!”
Ronan desviou o rosto e fez um beicinho,
avermelhando. “E combinaria com a cor dos seus
olhos.”
Eu me sentei e tentei reencontrar nossos
olhares, para que Ronan notasse o quanto eu sorria
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comovido e animado.
“Sério? Acha que a nossa filha herdará as
minhas íris cor-de-rosa?” Eu perguntei.
“Preciso que ela fique com seus olhos, porque
se ficar com a personalidade, eu estou fodido.”
Resmungou ele.
Eu comecei a rir, imaginando nossa adorável
bebê selkie com a cauda branca e muito peludinha,
olhos cor-de-rosa, e a mesma cara de tédio que
Ronan fazia o tempo todo. Ao invés de falar papai,
sua primeira palavra seria algum palavrão, com
certeza.
Sobrecarregado por pensamentos tão adoráveis,
eu estremeci e comecei a chorar. Ahh, a gente devia
ser o casal mais emotivo e ridículo do mundo.
“Qual o problema dessa vez, seu ômega
exagerado?” Ronan revirou os olhos.

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“A gente escolheu o nome da nossa filha.”


“Caralho, será que tudo te faz chorar?” Ronan
tremia para não fazer o mesmo. “Anda, levanta daí
e vamos…”
Antes que Ronan terminasse a frase, um
solavanco empinou o barco, acompanhado de um
estrondo de madeira.
Ronan patinou para trás e quase caiu no chão.
Eu também me levantei e olhei os arredores,
assustado.
“Você se esqueceu de ligar o piloto
automático?”
“Tenho cara de retardado, seu ômega burro?
Claro que liguei.” Ronan correu para a ponta do
barco, inquieto. “Pode ter sido um iceberg.”
“Será? Ainda nem adentramos os mares
gelados, eu não vi nenhum… o que é isso?”

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Eu me agachei na beirada, onde agora havia um


enorme gancho duplo, com uma corda que
desaparecia nas profundezas do mar.
Um segundo estrondo, ainda mais forte que o
primeiro, sacudiu nosso barco com violência,
fazendo voar nosso guarda-sol.
“Ronan!!” Eu gritei, assustado. Havia um
segundo gancho no lado oposto da proa.
Nosso barco parou de avançar.
“Rickett, tranque-se no nosso quarto e não
saia!” Gritou Ronan.
“Mas o que está acontec… aaah!!”
Alguém saltou da água e aterrissou no nosso
barco, sua longa cauda verde transformando-se em
um par de pernas no momento perfeito. Pela altura
e porte magro, aquele era apenas um tritão ômega
armado com uma primitiva cimitarra.

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Um ômega solitário não seria uma ameaça para


um casal como nós, mas o que me aterrorizou foi
um de seus olhos, aquele que não estava coberto
por um tapa-olho: era o olho verde de um tritão
Makaira. A julgar pela aparência de meia-idade,
aquele só podia ser um dos vinte príncipes.
O ômega riu alto e apontou sua lâmina em
nossa direção, com uma postura exagerada e pouco
eficiente. Ele parecia mais um ator do que um
inimigo.
“Harrrr, marujos, entreguem seu ouro e
pertences se tiverem apreço à…” Ele percorreu seu
olhar por nós e sua postura mudou totalmente. Ele
relaxou os ombros, extremamente perplexo, e
retirou o tapa-olho. Seu segundo olho era
perfeitamente normal, e de um aterrorizante tom
verde-esmeralda. “Pelas barbas de Netuno! É você,
Ronan?”

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Assim que ele disse isso, vários outros tritões


pularam no barco. Havia uns quinze deles, de
diversas idades. O mais velho era um enorme alfa
negro com os mesmos olhos do senhor Kayman, e
aparentava ser o predestinado daquele ômega. Pelo
tom de pele e cheiro, todos os outros eram filhos e
netos daquele casal.
Liderando o grupo, uma sereia de pele parda e
sorriso empolgado apontou seu tridente no pescoço
do Ronan.
“Ouro, joias e diamantes! Apressem-se ou
caminharão na prancha, seus humanos…” Ela
desmanchou o sorriso e abaixou a arma,
percebendo o mesmo que primeiro ômega.
“Vocês… vocês não são humanos.”
“Afaste-se, Debren! Ele é o traidor regicida!” O
alfa negro puxou a sereia para trás de si,
protegendo os outros menores com seu enorme

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corpo. “A brincadeira acabou, voltem todos para a


água.”
“Mas pai, se é o traidor, precisamos capturá-
lo!” Um dos adolescentes arrancou o tridente das
mãos da sereia e avançou em nossa direção. “Não
posso perdoá-lo pelo que fez com Madhun.”
Ronan também tentava me esconder atrás de
seu corpo, mas era impossível, aquele grupo havia
nos cercado completamente.
“Você é o Baiten, não é?” Ronan perguntou ao
tritão que avançava. “Escuta, eu sei que parece
absurdo, mas vocês precisam nos deixar ir! Nós
precisamos chegar em Faerynga para curar os olhos
do Madhun!”
“Curar os olhos do Madhun?” O garoto
começou a rir, cínico e desesperado. “Você tentou
assassiná-lo, rabo-de-camarão. Atirou no rosto do
próprio irmão e fugiu com aqueles que
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exterminaram nosso povo. O inferno não é um


lugar ruim o bastante para você.”
“Eu sei de tudo isso, caralho! E por isso vou
consertar tudo!” Gritou Ronan, cada vez mais
assustado.
“Este é o seu predestinado?” Perguntou o
ômega do tapa-olho.
“Não encostem no Rickett! Façam o que
quiserem comigo, mas deixem ele ir!” Gritou
Ronan.
“É o predestinado, sim.” O grandão alfa
avançou e seus filhotes o acompanharam, fechando
o cerco. “Sua brincadeira rendeu de verdade pela
primeira vez, Clyon. Retornaremos a Egarikena
com os dois príncipes inimigos.”
Ao ouvir isso o ômega murchou ainda mais sua
determinação, o que fez a sereia apertar seu ombro
em um gesto de apoio.
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“Meu pai, devo lembrá-lo que Ronan já não é


seu sobrinho. Ele é o assassino dos seus pais e
desertor do nosso reino. Se permitirmos o seu
encontro com o Imperador Macalor…”
“Eu sei, eu sei, tá bom?” O ômega vestiu
novamente o seu tapa-olho e tentou recuperar a
postura. “Capturem o inimigo!”

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Capítulo 87

Tudo aconteceu muito rápido. Aqueles quinze


tritões pularam em cima de nós, alguns em sua
forma feral, vários deles armados com espadas e
tridentes. Nós não havíamos trazido nenhuma arma,
o que se revelou um erro fatal.
Em pânico, eu me encolhi atrás do Ronan e
abracei meu ventre. Antes eu não ligaria muito
sobre morrer em batalha, os cratilienses
consideravam como a mais honrada das mortes,
mas naquele momento eu era um pai assustado
protegendo o meu bebê.
“Não cheguem perto dele!” Urrou Ronan, com
a voz grave de sua forma feral. Ele era o maior alfa
depois daquele tritão negro, mas mesmo um alfa
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forte e feral não era páreo contra tantos inimigos.


A gente iria morrer.
Estrondos, estouros, golpes de metal contra
metal e de madeira contra ossos. Dentes batendo ou
rasgando carne e o cheiro nauseante de sangue
tingindo o ar.
Encolhido como uma bola, eu não tinha
coragem de erguer o meu olhar, mas os gritos e
troca de golpes aterrorizavam cada célula do meu
corpo. Sentindo os meus pés molharem, eu olhei
para baixo. Era uma poça de sangue se expandindo
por baixo de mim e espalhando por todo o deque
até escorrer no mar.
Outro par de pés apareceu na minha visão. Era
a sereia filha daquele casal. Ela eriçava os dentes
pontudos enquanto erguia uma adaga sobre a minha
cabeça.
Sem escolha, eu invoquei a minha forma feral e
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saltei para trás, meus olhos cor-de-rosa afinando


como os de um gato e minhas presas crescendo até
abaixo do queixo. Se fosse para salvar minha filha
eu rasgaria o pescoço daquela sereia e de todos os
outros.
A sereia — Acho que era Debren o nome dela?
— Não perdeu tempo e pulou em cima de mim.
Eu nem sabia o que estava acontecendo, o
pânico e a adrenalina envenenavam o meu corpo.
Agarrado naquela sereia eu rolei pelo chão
ensanguentado, nós dois desferindo dentadas e
socos, e ela tentando apunhalar meu rosto na menor
das brechas. Diferente daquele ômega, ela parecia
talentosa de verdade e possuía a determinação para
vencer.
A sereia bateu minhas costas no chão e subiu
em cima de mim. Eu segurei seus pulsos no último
instante, a impedindo de decepar minha cabeça.

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“Alguns deles são seus filhotes, não são?” Eu


forçava ao máximo suas mãos para longe de mim.
“Não queremos machucar ninguém, vão embora,
por favor!”
“Ousa dizer isto, depois desta emboscada tão
traiçoeira?” Ela rugiu em fúria e livrou a mão que
segurava o punhal. “Morra.”
Emboscada? Antes que eu perguntasse, ela
ergueu o punhal acima da cabeça e então um jato
de sangue esguichou no meu rosto.
Apavorado, eu escapei de baixo dela enquanto
seus olhos perdiam o brilho e sua expressão
relaxava com morbidez.
Ela ergueu as mãos para uma longa lâmina de
espada, que atravessava o seu pescoço por trás.
Antes que conseguisse segurá-la, seus braços
penderam para os lados do corpo e suas pernas
femininas fundiram-se em uma longa cauda verde e
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salpicada de lilás. As escamas perderam o brilho, e


apenas então a lâmina deslizou de volta e ela pôde
ceder ao chão, desprovida de qualquer vida.
Meio cego pelo sangue nos meus olhos, eu
sequei o rosto nas costas da minha mão e olhei para
cima, onde um tritão de olhos sombrios limpava
casualmente a sua espada ensanguentada.
“Tenente… Tenente Zarkon?” Eu gaguejei,
com o coração quase saltando pela boca.
O Tenente voltou seu olhar de gelo para mim
por um breve instante, embainhou sua espada e me
deu as costas, caminhando em direção à ponta da
proa.
Trêmulo, eu me apoiei no guarda-corpo e
consegui me levantar. Só então eu avistei o horror
ao meu redor.
Corpos e mais corpos. O ômega do tapa-olho, o
alfa negro, todos os jovens e até as crianças jaziam
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embebidos no próprio sangue, com suas caudas


opacas enroscadas uma na outra e enormes talhos
de lâmina em suas partes vitais.
Ronan? Ainda bem que não demorei a avistá-lo.
Ele estava vivo e tão encolhido quanto eu mesmo
estava, abraçado nos próprios joelhos e com o olhar
vitrificado na direção dos mortos.
Zarkon chegou até ele e o fitou por cima, cheio
de ódio e desdém.
“Por que não lutou?” Perguntou Zarkon.
Ronan não respondeu. Ele tremia demais,
completamente mortificado.
Zarkon chutou o ombro do Ronan com
violência e o derrubou para trás.
“Por que não lutou para matar, seu bastardo
covarde? Por que não protegeu o seu ômega?”
“Eles morreram… todos eles... Todos

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mortos…” Ronan segurou os lados da cabeça


balançou o corpo, chorando lágrimas de pavor.
“Sim, e ainda estariam vivos se não fosse esta
ideia imbecil de vocês.” Zarkon voltou a olhar para
mim. “Meu irmão Cordelen não consegue nem
mais dormir, no que raios estavam pensando?”
“Eu não sei, eu não sei.” Eu comecei a soluçar.
“Desculpa que ele tenha te mandado nos buscar,
não achamos que...”
“Não estou aqui por ordens dele. Pelo contrário,
meu irmão implorou que eu me mantivesse longe
de Faerynga após depoimentos muito preocupantes.
De qualquer forma, eu cheguei tarde demais.”
“Não é tarde de mais!” Eu gritei, histérico e
mais aterrorizado do que jamais estive. “Nós vamos
voltar, certo Ronan? Eu nunca quis nenhuma morte,
não achei que fossem nos encontrar!”
“Estamos em território inimigo em plena
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guerra. Achar não é o suficiente.” Ele afinou seus


olhos com desprezo, observando as ondas
vermelhas que se espalhavam ao redor do barco.
“Nossa presença já foi anunciada aos oceanos.
Retornar não é uma alternativa.”
“Então o que vamos fazer?” Perguntou Ronan.
Zarkon foi até o gancho na borda e fincou sua
espada até arrebentar a corda. Ele repetiu o gesto
do outro lado e o iate voltou a avançar.
“Nós seguiremos adiante para os mares gelados
do norte.” Ele nos deu as costas e seguiu na direção
das cabines. “Talvez a idiotice de vocês não nos
mate até chegarmos lá.”
“Ahm… Zarkon…” Eu o chamei, quando ele
passou por mim. “O General… ele está muito
decepcionado comigo?”
Zarkon ignorou a minha pergunta e passou reto.

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“Limpem esta nojeira e se recomponham.”


Disse ele.
Eu e Ronan nos olhamos, nós dois cobertos de
sangue da cabeça aos pés e com tripas e membros
dilacerados encobrindo o chão entre nós dois.
Desta vez, ironicamente, a gente não chorou.
Nem quando juntamos os pedaços de um jovem
filhote e devolvemos ao abraço do mar. Talvez
fosse o choque, mas provavelmente era porque a
gente não tinha direito algum de lamentar.

****

Nos dias que se seguiram Ronan e eu pouco


falamos um com o outro, ambos abalados e muito
deprimidos pelo que aconteceu. Com o iate sob o
controle do Tenente Zarkon nós conseguimos

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adentrar os mares gelados em pouco mais de um


dia, por milagre escapando de novos conflitos.
Mesmo na segurança do território aliado, nosso
estado de espírito combinava com a nova previsão
do tempo: uma tormenta horrível e cinza, com
ondas que alcançavam o céu e redemoinhos que
pareciam sumir nas profundezas do inferno.
Abraçado no Ronan, eu tentava não despencar
da nossa cama enquanto o barco sacudia como se
fosse de papel.
“Meu predestinado, não consigo dormir desse
jeito.” Eu segurei a minha boca, desnorteado. “Na
verdade, acho que vou vomitar.”
“Vou pegar seus remédios de enjoo.” Ronan
tentou levantar da cama, sendo derrubado
repetidamente. “E também vou conversar com
aquele militar idiota. Ele pilota barcos igual a um
imbecil.”
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“Não brigue com o Tenente, ele foi gentil em


assumir o controle. O piloto automático seria inútil
nesta tempestade.” Meu estômago borbulhou mais
alto que o som das ondas estourando contra as
paredes. “Além de que… este enjôo não é da
gravidez.”
“Então o que posso fazer? Ahh!” Ronan caiu no
chão ao meu lado no pior momento possível.
Eu segurei a boca até o limite, mas acabei
virando o estômago do avesso no que deveria ser o
chão, mas agora era o coitado do meu predestinado.
“Caralho, Rickett!! Mas que porra!!” Ronan
levantou o mais rápido que conseguiu, todo
vomitado com os caranguejos do meu jantar.
“Descuuulpa.” Eu me levantei completamente
zonzo. Aquele sacolejo do iate acabaria me
matando. “Acho que preciso de ar.”
“E eu preciso de um banho. Tenta não cair da
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porra deste barco.”


Eu nem imaginava como tomar banho em uma
situação daquelas, mas Ronan trancou-se no
banheiro então eu me arrastei pelos corredores
estreitos, em direção à cabine de comando.
Zarkon manuseava o timão com técnica e calma
impressionantes, como se aquela tempestade fosse
apenas uma desagradável brisa.
“Quando este sacolejo vai parar?” Eu perguntei,
agarrado nas paredes.
“A Garganta do Demônio é conhecida pela
tempestade perpétua.”
“Então estas ondas gigantes são normais?” Eu
olhei para fora e logo me arrependi. As torres de
água eram tão imensas que bloqueavam a vista do
céu. Era impossível dizer se era dia ou noite
quando a única luz era o flash dos relâmpagos,
seguido do estrondo tenebroso dos muitos trovões.
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“Como os barcos de Faerynga deixam o porto, com


tantos icebergs?”
“A frota marinha do Imperador é composta de
navios quebra-gelo militares.”
“Então a gente não precisaria de um navio
quebra-gelo? O que acontece se estes icebergs
caírem no iate?”
“Vamos todos morrer.”
A calma do Tenente Zarkon arrepiava meus
ossos ainda mais do que o frio. Eu ainda não sentia
falta dos meus casacões quando precisei voltar a
usá-los, e o próprio Tenente Zarkon usava uma das
roupas quentes que emprestei. Era impressionante
que ele tivesse alcançado nosso barco a nado,
tritões do clã Trevally mereciam sua fama de os
tritões mais rápidos dos oceanos.
Apesar da presença do Tenente ter garantido
nossa sobrevivência, aquela também era uma
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situação amarga e triste. O General Cordelen se


esforçou muito me mostrar alguma coisa, e se ele
estava tão preocupado quanto o tenente sugeria, era
porque eu entendi tudo errado.
Eu só podia rezar que o General não desistisse
de mim após uma falha tão grande.
“Uma luta de cada vez.” Disse Zarkon.
“Como é?”
“Vocês desejaram chegar em Faerynga e assim
o fizeram. As consequências são uma preocupação
para depois.”
Eu concordei com a cabeça, sem acreditar que
uma fala do Zarkon tivesse melhorado o meu
humor.
Em breve Ronan conheceria o seu tão estimado
avô de sangue e nós conseguiríamos o Oráculo para
curar os olhos do Madhun. Nosso plano não ia

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muito além disso, eu só sabia que oráculos eram


quase indefesos longe da água. Uma boa jaula em
um navio militar decente seria tudo o que
precisávamos, e então forçaríamos o demônio
dourado a recuperar o irmão do Ronan.
E então Ronan conseguiria dissipar as sombras
no seu coração.
“Falta muito para chegarmos?” Eu perguntei.
“Do que está falando?” Zarkon arqueou a testa.
“Eu acabei de dizer que chegamos.”
Surpreso, eu tentei avistar qualquer coisa pelos
janelões da frente, que as ondas golpeavam sem
descanso.
Muito adiante, além da névoa cinza e trovões, o
céu dava sinais de abrir. E quase sumindo no
horizonte havia uma massa branca semelhante aos
muitos icebergs, mas aquela não se mexia.

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Diante de nós estava a capital do nosso reino. A


maior de todas as cidades Selkies, Faerynga.
Pela primeira vez desde o ataque dos tritões eu
consegui sorrir.
“O Ronan vai adorar saber!” Eu falei,
cambaleando de volta em direção ao nosso quarto
para lhe dar as boas notícias.

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Capítulo 88

Tenente Zarkon manobrou o barco na baía de


Faerynga, impassível apesar dos muitos olhares em
nossa direção.
Apesar de feliz, Ronan não comentou nada ao
descer do barco e seguir pelas palafitas até o fim do
porto. Apesar da alegria em encontrar seu avô
Macalor, o extermínio daqueles tritões deixou um
gosto amargo nas nossas bocas.
Muito ainda me surpreendia com relação àquele
confronto. No princípio imaginei que Zarkon e
Ronan tivessem lutado juntos, e ainda assim em
grande desvantagem numérica. Mas Zarkon matou
todos aqueles tritões sozinho, enquanto Ronan
tremia de pavor.
Ronan não era exatamente virtuoso, mas eu
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nunca o imaginei como alguém medroso, e também


não fazia sentido. Na Batalha de Egarikena ele
certamente viu centenas de corpos e ainda assim
nunca pareceu incomodado com as lembranças. Sua
única grande tristeza era Madhun, e reparar este
único erro era o motivo de estarmos ali.
Um grupo de selkies alfas veio ao nosso
encontro. Eles trajavam togas longas e espessas,
mas que não cobriam boa parte do corpo. Algo
sobre o olhar deles arrepiou até os meus ossos.
“Nomes e finalidade.” O alfa que parecia ser o
chefe perguntou ao Ronan, com uma prancheta em
mãos.
“Eu sou Ronan Faroé-Mak… Ronan Faroé, e
estes são meu predestinado Rickett Walrosse e o
Tenente Zarkon Trevally.”
“Um tritão…” Disse o selkie, surpreso.
Zarkon respondeu com uma rosnada, apertando
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as mãos nas espadas em seu coldre.


O selkie voltou à guarita e conversou com
alguns outros. Eles fizeram algumas ligações
telefônicas enquanto a gente aguardava no frio, e
então aquele mesmo selkie retornou.
“Bem-vindos à Faerynga.” O selkie anotou
algumas coisas e estendeu a mão para que a gente
seguisse adiante. “Mantenham o escamoso onde
possam vê-lo. Não nos responsabilizamos por
qualquer acidente.”
Zarkon afinou os olhos para ele e seguiu logo
atrás de nós, em direção a uma cidade com casas
estranhas de gelo e altas torres de vigilância a
contornando, estas de concreto e arame farpado,
com holofotes e fuzis aparecendo pelas janelinhas.
Nervoso e querendo quebrar o silêncio, eu dei
uma risadinha tímida.
“Os muros de Cratília são impenetráveis, mas
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Faerynga também investe na segurança, né?


Qualquer tritão que sobreviva à tempestade não
escaparia de todos aqueles fuzis.” Eu disse.
“Muros são para covardes. Meu avô Macalor
quem é inteligente de verdade. Chegou, morreu.
Simples.” Ronan riu nervoso, tão desconfortável
quanto eu.
“Prestem mais atenção.” Disse Zarkon. “Os
fuzis daquelas torres não estão apontando para o
mar.”
Eu e Ronan erguemos o rosto para o alto e
percebemos que era verdade. Cada metralhadora,
rifle e fuzil apontava para dentro, na direção onde
milhares de selkies marchavam em sincronia e
realizavam tarefas primitivas, como arrastar pedras
imensas e carregar jarros pesados. Os grupos que
não carregavam nada estavam ou correndo ou
lutando entre si, fazendo espirrar sangue a cada

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chute e soco enquanto ninguém fazia nada a


respeito.
Algo naquele lugar simplesmente não parecia
certo.
Ronan parecia tão assustado quanto eu, mas
disfarçava e nos conduzia confiante pela cidade.
O tempo todo as palavras do General Cordelen
retornavam aos meus pensamentos. Ele era
implicante e enigmático demais, mas eu não queria
tê-lo decepcionado. De seu próprio jeito, ele quis
me mostrar algo importante. Algo que falhei em
perceber.
O General desprezava o Ronan, isto não mudou
mesmo quando eu consegui seu respeito. Segundo
ele, Ronan era inapto a governar a própria vida e
ainda menos aos sete oceanos. Ele não queria
Ronan no poder, então tentou me ensinar a
manipulá-lo.
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Mas e se eu o tivesse entendido errado? Eu não


queria manipular Ronan, e inteligente como era o
General, ele teria percebido isto logo no começo.
O príncipe da revolução mudaria os oceanos,
realizaria os sonhos de igualdade pelos quais o
General tanto sonhou. Em meu convívio com ele e
os outros tritões, e também aprendendo sobre as
marcas no coração do Ronan, eu aprendi a desejar o
mesmo.
Mas o Ronan… talvez eu não quisesse enxergar
algo que o General sempre percebeu: ele era
acomodado demais, e ainda mais frágil do que
aparentava. Ronan aceitou seu papel como herdeiro
mais por conveniência que por desejo de governar,
e nunca se preocupou em causar revolução alguma.
Ele só tentou causar mudanças em dois momentos:
nas audiências com súditos, para me impressionar,
e durante a festa, para me defender.

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Talvez fosse deste tipo de manipulação que o


General estava falando? Eu me tornaria o incentivo
necessário para que o príncipe da revolução
mudasse o mundo enquanto eu agia pelas sombras,
sendo um ômega e nada mais?
Não, nem pensar. O próprio General Cordelen
era um ômega valente e progressista que lutou
muito para chegar ao topo. Ele jamais educaria
outro ômega para assumir uma posição secundária
e submissa. Ele nunca teve esperanças no Ronan,
sempre o considerou quebrado demais e treinou a
minha inteligência para que eu governasse por dois.
Espera… e se o General também nunca quis
que eu governasse por dois?
E se, este tempo todo, o tal príncipe da
revolução que o General Cordelen tanto almejava
não fosse o Ronan?

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“O mundo é cheio de peões, Rickett. Peões,


peões, peões vivendo a ilusão da independência
enquanto dançam ao som de uma mesma música.
Você não é um peão, Rickett, você é a rainha. E
você sabe qual a função da rainha?”

“Ei, Ronan, acho melhor voltarmos.” Eu


segurei na manga de seu casaco, assustado com os
gritos horríveis que vinham de dentro de um
galpão.
“Por que caralhos eu voltaria agora? A gente
atravessou o mundo pra chegar aqui!” Rosnou ele,
impaciente.
Eu recolhi minhas mãos e segui dois passos
atrás, com o coração rápido e dolorido. Fazia tempo
que Ronan não me tratava com estupidez.
“Desculpa…” Eu abaixei a cabeça e continuei o
seguindo.
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Lembrando o conselho do Tenente Zarkon, eu


distraí meus pensamentos antes que tivesse uma dor
de cabeça. Nosso objetivo ali era conhecer o
Imperador e pegar o oráculo emprestado. O depois
era o depois.
Eu só esperava que Ronan não se decepcionasse
muito.

****

Se fosse em qualquer outra ocasião eu morreria


de rir com o exagero daquele cenário. Um castelo
em forma de selkie? Era sério isso? Os funcionários
conseguiam frequentar aquele lugar sem ter um
ataque de riso?
Aquele castelo ridículo funcionaria bem como
uma paródia, mas assim que entramos eu percebi

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que a coisa era séria. Paredes escuras, tochas,


soldados mal-encarados nos acompanhando com o
olhar… parecia o cenário de um filme de época.
Zarkon não demonstrava reação nenhuma
àquela arquitetura bizarra, e Ronan passava o olhar
por todos os detalhes do corredor com uma
expressão mesmerizada e empolgada.
“O vovô também gosta de preto. Tal avô, tal
neto, não é mesmo?” Disse ele, adorando a
experiência.
Eu concordei com a cabeça, me sentindo mal
pelo Ronan e por toda aquela situação. Ronan
gostava de preto, mas nem considerou protestar
quando eu troquei seus móveis escuros pelos meus,
em cores mais leves. Ronan não tinha apego por
sua cor favorita, assim como não tinha apego por
muitas, muitas coisas.
E no esforço em proporcionar ao Ronan pelo
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menos alguém por quem se apegar, eu talvez tenha


cometido o maior dos meus erros.
Eu estendi a minha mão e segurei os seus dedos
macios.
“Ei, meu predestinado… se por acaso alguma
atitude te desagradar, saiba que eu sempre vou
existir para você.”
Ronan retribuiu o gesto, segurando a minha
mão com carinho.
“Que nervosismo é esse, Rickett? Meu avô
deve ser foda pra caralho, olha pra esse castelo
loucão! Ele vai adorar te conhecer.”
Eu concordei com a cabeça, nauseado por tanta
insegurança. Não era a opinião do Imperador em
mim o que mais me preocupava.
Logo nós chegamos a uma grande porta de
folhas duplas, que os guardas nas laterais

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empurraram para nos abrir passagem.


Do outro lado da porta, ao final de um longo
tapete preto, havia um patamar com um trono.
Sentado neste trono havia um velho selkie em uma
pose descontraída e entediada que lembrava o jeito
do Ronan sentar. O velho usava uma longa toga
adornada por pedrarias e o cabelo branco quase
raspado, iluminado pelo brilho laranja das muitas
tochas.
“Vovô Macalor?” Ronan soltou minha mão e
avançou hesitante, então apressou seu passo na
direção do trono. “Vovô, eu atravessei o mundo
para te conhecer. Sou eu, o seu neto de sangue,
Ronan Faroé!”
Eu e Zarkon logo alcançamos Ronan, enquanto
o Imperador nos analisava com serenidade.
“Ronan, é? O filho do meu finado Connor?”
Perguntou ele.
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O olhar do Ronan brilhava e seu sorriso era


diferente de todos os sorrisos que eu já havia visto.
Havia uma sinceridade pura, a alegria em realizar
um sonho que talvez sempre tivesse existido.
“Sim, sou o filho de Connor Faroé e… enfim.
Este é o meu predestinado, Rickett Walrosse.”
O Imperador endireitou a postura para nos olhar
direito, dando uma risadinha calma.
“E este, se o fedor não me engana, é outro
parente daqueles tritões atrevidos. Mas eu gosto
deste aqui, ele tem os olhos de quem sabe como o
mundo funciona.”
Eu tive a impressão de ouvir Zarkon rosnando,
enquanto apertava as bainhas vazias onde suas
espadas costumavam estar.
“Ahm… sim, este é o Tenente Zarkon e…
nossa, esse castelo é muito impressionante, como
conseguiu construí-lo no formato do seu corpo?
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Porque parece demais o senhor, só que mais


jovem.” Ronan empolgava-se cada vez mais. “Acha
que poderíamos sair alguma hora, vovô? Quero
conhecer o nosso reino, e quem meu pai foi. Ele
tinha um quarto neste castelo?”
O Imperador gargalhou alto, interrompendo as
perguntas do Ronan.
“Claro, aposto que meu querido netinho
adoraria um momento a sós com o seu velho vovô,
aqui.” Ele sorriu cheio de cinismo. “Diga-me,
Ronan Faroé, acha que me mantive imperador
sendo um completo tolo?”
Ronan franziu a testa, confuso.
“Não estou entendendo.” Disse ele.
“Recebi uma ligação do Arquiduque Rhemus,
dias atrás. Ele me alertou de sua fuga, e de que
surgiria ao meu encontro trazendo um usurpador.”

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Meu coração deu um salto.


“Usurpador?” Eu perguntei. “É mentira do
Arquiduque! Meu nome é Rickett Walrosse, e eu
sou o predestinado do Ronan!”
“Realmente, seu cabelo é tão ridículo quanto
dizem os depoimentos.” O Imperador riu do choque
nas nossas expressões. “Devo dizer, meu querido
neto, forjar uma emboscada para roubar o meu
trono enquanto mantém seu verdadeiro ômega na
segurança de Cratília foi um plano aceitável. O
vovô está orgulhoso.”
“Roubar o seu trono? Não, esta nunca foi a
minha intenção!” Ronan alterou-se a tal ponto, que
alguns guardas se aproximaram. “Eu não quero este
reino, ou reino nenhum! Minha única vontade era te
conhecer!”
“E eu não sou nenhum usurpador!” Eu falei,
igualmente indignado.
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“Ah, é…” O Imperador pegou um cálice com


um dos serviçais e bebeu lentamente, saboreando
tanto o licor quanto as nossas reações. “Então diga-
me, predestinado do Ronan, serão verdade os
depoimentos sobre os senhores dormirem em
quartos separados?”
Eu e Ronan nos entreolhamos, surpresos demais
para pensar direito.
“Nós… nós dormimos juntos, algumas vezes!
Meus móveis até mudaram para o quarto do Ronan,
e as minhas roupas também, peça que qualquer um
verifique!” Eu disse.
“E quando foi a última vez que saíram em
público juntos? Como um jovem casal
predestinado, tenho certeza de que haverá muitas
testemunhas do relacionamento de vocês.”
Meu sangue esfriou como o vento lá fora. Ao
meu lado, Ronan tremia de angústia e hesitação.
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“Eu não gosto muito de sair de casa.” Disse


Ronan.
O Imperador riu ainda mais, quase cuspindo o
licor.
“Um conselho do vovô Macalor, meu querido
neto, quando inventar uma mentira, pense
cuidadosamente em todos os detalhes, ou ao menos
tenha a decência de improvisar corretamente.” O
Imperador cruzou as pernas, se divertindo. “O
garoto apresentaria volume no ventre, se eu lhe
arrancasse as roupas? Ou alguma marca de sua
disciplina?”
Ronan e eu paralisamos, nenhum de nós fazia a
menor ideia do que responder, e Zarkon escolheu
permanecer ainda mais calado que o normal.
“Ele… Rickett é meu predestinado e eu… eu
amo ele…” Gaguejou Ronan, profundamente
perplexo.
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“Já tive o bastante desta falácia!” O Imperador


ergueu a mão e diversos guardas enormes nos
cercaram e agarraram Ronan pelos braços.
Gritando em protesto, Ronan se debateu e
tentou morder e chutar, enquanto era carregado
para longe de mim.
“Solta ele! O Ronan é o seu neto e nunca o
enganaria! O único mentiroso é o Arquiduque
Rhemus!” Eu gritei, mas antes que conseguisse
correr até o Ronan, dois pares de mãos agarraram
meus pulsos.
Eu tentei me desvencilhar, mas aqueles dois
guardas esticaram meus braços e me mantiveram
no lugar, enquanto os outros pararam com Ronan
ao lado do Imperador.
Ronan e eu trocamos olhares confusos e
aterrorizados. O que estava acontecendo, e por quê?
Por que caralhos o Arquiduque faria isso conosco,
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quando gostava tanto do Ronan?


Espera… Não era o Ronan que o Arquiduque
pretendia tirar de jogo.
“Tenente Zarkon, estou correto?” Perguntou o
Imperador. “Prometi um destino horrível ao
próximo escamoso que sujasse o meu tapete, mas a
você abrirei uma exceção, se provar agora a sua
lealdade.”
Imobilizado em posição de cruz, eu tentei
espiar por cima do ombro. Zarkon estava logo atrás
de mim, recebendo suas espadas com o mesmo
soldado que as recolheu.
Zarkon empunhou as espadas e me encarou.
Seu olhar mórbido e afundado nunca me pareceu
tão frio.
“Tenente Zarkon, eu sou o verdadeiro príncipe
ômega! Conte a ele! Você deverá lealdade a mim,
um dia!”
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“Minha única lealdade é com os meus irmãos.


Eu não posso morrer aqui.”
E então uma dor aguda e horrível queimou os
lados do meu peito.
Eu olhei para baixo, onde agora havia duas
lâminas brotando através do meu casaco, fazendo
pulsar jatos vermelhos no tapete. O calor do sangue
inundou o meu corpo e escorreu pelas minhas
pernas.
“Rickett!! Não!!! NÃO!! Rickeeeeett!!” Ronan
chorava, gritava e se debatia em completo
desespero enquanto cada vez mais guardas
apareciam para segurá-lo.
“Este trikie idiota assumirá o trono quando eu
estiver devidamente morto. Tranquem-no com o
oráculo no último andar do calabouço.”
Minha visão borrou e escureceu, e os gritos do
Ronan se tornaram um chiado distante.
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Ronan... Rosaline... me desculpem...

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Capítulo 89

Eu abri os olhos e avistei o pontilhado


ondulante de diversas bolhas, que subiam das
profundezas para desaparecer na superfície
distante.
Atordoado, eu apertei as laterais do meu peito,
que ardiam como se pegassem fogo. Quando eu vi
as duas perfurações, a minha memória voltou.
“Ronan!!” Eu gritei, olhando ao redor.
Espera aí, onde eu estava? Aquele era o fundo
do mar, embora não tivesse a quietude habitual das
profundezas. Um borbulhar agitado e distante
ameaçava me ensurdecer.
De qualquer forma, o barulho não era

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importante, mas sim um pequeno zunidinho que


ecoava na minha alma.
Atormentado por milhares de sensações, eu
sentei na minha cauda sobre o leito marinho e
abracei meu ventre, sentindo um amargo alívio.
Minha pequena Rosaline ainda estava viva.
O que havia acontecido, exatamente? Eu
precisava encontrar o Ronan, ele devia estar
apavorado.
Vencendo a dor excruciante nas minhas laterais,
eu abanei a cauda para voltar, e só então notei que
não estava sozinho. Um tritão com uma longa
cauda verde de listras lilases aguardava ao meu
lado, enquanto polia a lâmina de uma espada.
Zarkon. Aquele traidor.
Enlouquecido de tanta raiva, eu expus meus
caninos e olhos demoníacos da minha forma feral,
me preparando para destroçá-lo.
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“Poupe-se do esforço. Deve gastar sua energia


para fugir.” Ele disse calmamente.
“Tudo isso aconteceu por culpa sua. Por que
não contou a verdade? Você sabe quem eu sou! Me
viu junto com Ronan diversas vezes e sabe da nossa
filha!”
“Os calabouços de Faerynga são profundos e
gelados, além do alcance do chamado e de qualquer
telepatia. Aquele alfa cruel já não poderá agredi-
lo.”
Me agredir? Ronan era meio grosso às vezes,
mas isto não era motivo para sabotá-lo de tal
maneira.
“Foi o General Cordelen quem planejou isto?”
Eu dissipei minha forma feral, sentindo agulhadas
de dor no meu coração e nos ferimentos que já
encolhiam.
“Dois cortes precisos entre as costelas e a pele.
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Muito sangue e nenhum risco à vida, se o resgate


for rápido o suficiente. Se eu fiz o meu trabalho, foi
porque você não fez o seu.”
“O seu trabalho era proteger a nós dois!!” Eu
gritei.
“E ambos estão vivos, não estão? Assim como a
jovem herdeira.” Zarkon baixou o olhar para o meu
ventre. “Isolado dos poderes do chamado, o alfa
abusivo pensará que está morto. Fuja e reconstrua a
sua vida.”
Aquele cara não podia estar falando sério.
Abusivo, o Ronan? Eu queria vê-lo, eu precisava
salvá-lo!
O borbulhar ensurdecedor me irritava cada vez
mais. Eu olhei para trás procurando a origem do
barulho e quase tive um infarto.
Logo atrás de mim havia uma imensa fenda
abissal, tão profunda que mesmo o meu olhar de
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tritão não conseguia avistar o fundo. Espiralando na


direção das profundezas, um massivo redemoinho
zunia e devorava tudo ao seu redor com poder e
fúria aterrorizantes.
“A Garganta do Demônio…” Eu sussurrei,
abismado. Então era assim que parecia, visto de
baixo. Era igualmente assustador.
“Infelizmente é o único caminho de volta. Dê
um jeito de sobreviver. Seu reino e a sua filha
dependem da sua determinação.” O General abanou
sua cauda verde e firmou as mãos nos cabos das
espadas.
“Como assim? Você quer que eu entre ali?
Sozinho? Nem pensar, Tenente Zarkon, você
precisa vir comigo!”
“Impossível.” Ele virou de costas para mim e
assumiu uma postura defensiva. “Eles já
descobriram o truque.”
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Assim que o Tenente disse isso, dezenas de


sombras surgiram nas águas escuras e turbulentas.
Selkies musculosos e de expressões severas, cada
um deles apontando rifles híbridos e bestas na
nossa direção.
“Você é louco, Zarkon! Nós dois precisamos
fugir!”
“Vou segurá-los pelo tempo que for necessário,
meu príncipe.” Zarkon me olhou por cima do
ombro. Pela primeira vez havia um sorriso em seu
rosto. “Peça ao Cordelen que me perdoe.”
E então Zarkon golpeou sua cauda veloz contra
o meu peito e me arremessou para trás.
Eu caí no abismo e fui sugado para o fundo.
Nem remando com todas as forças eu conseguia
vencer a violência das águas.
Enquanto eu afundava, Zarkon disparava como
um torpedo, dilacerando um selkie, depois outro, e
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mais um. Mas para cada selkie morto, outros três


surgiam.
Quando a escuridão da profundidade terminava
de me engolir, tudo o que pude ver foi a sombra do
Zarkon travando e se contorcendo em uma névoa
vermelha, enquanto que centenas de disparos
atravessavam seu corpo.
“Zarkoooon!!”

****

Um flash dourado reluziu através das minhas


pálpebras fechadas.
Eu abri meus olhos com esforço. Havia uma
coisa dourada diante de mim? Eu ergui a cabeça
para ver melhor, mas o meu nariz a cutucou e
transformou em farelo de ouro.

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Uma alucinação? O meu corpo doía muito,


como se eu tivesse caído em um espremedor de
peixe. Destroços e areia cobriam as minhas costas
e, apesar dos rasgos no meu peito terem fechado,
agora hematomas e esfolões encobriam meu corpo
inteiro.
Ofegante e exausto, eu sentei por cima da
minha barbatana e esfreguei os olhos, tentando me
livrar da areia. Só então a lembrança do que
ocorreu retornou à minha mente: Eu sendo
arrastado e jogado contra icebergs, rochas, e tudo
mais o que existia naquelas águas inóspitas. Eu
tentei vencer a correnteza até as minhas forças se
esgotarem, e então acordei ali.
“Tenente Zarkon?” Eu olhei para trás, farejando
na esperança de encontrar um cheiro conhecido.
Nenhuma presença além de mim naquelas rochas
abissais e quase totalmente escuras. Nem mesmo

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camarões ou peixes sobreviviam naquelas


profundezas e a pressão da água nas minhas
costelas quebradas tornavam cada suspiro uma
tortura.
Sozinho e desamparado, eu levantei minha
correntinha em minhas mãos trêmulas e admirei a
escama vermelha do Ronan, enquanto eu chorava.
Foi tudo culpa minha. Se eu tivesse sido menos
burro, Ronan ainda estaria comigo. E aquela
família de tritões não teria morrido, e nem o
Zarkon.
Tudo o que me restava era aquele pequeno
zunidinho assustado no meu ventre. A vida da
Rosaline dependia de mim, eu não podia me
arriscar de novo. Ronan odiaria que eu arriscasse a
segurança da nossa filha, mesmo que fosse para
salvá-lo.
E se eu morresse tentando voltar para Faerynga,
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o sacrifício do Zarkon teria sido em vão.


Em meio ao meu choro desamparado, um brilho
cintilou muito distante, intenso o bastante para me
distrair do meu desespero.
Será que era um peixe-lanterna? Minhas guelras
não detectavam nenhum cheiro movimento que
indicasse um ser vivo. Eu me levantei e nadei ao
encontro daquela coisa dourada.
“Uma água-viva elétrica?” Eu franzi a testa,
curioso.
Algo não parecia normal sobre aquela
criaturinha solitária. Arriscando levar um choque,
eu toquei na parte de cima e ela dissolveu-se em
poeira cintilante.
O que era aquilo? Eu tentei apanhar o farelo nas
mãos, mas este desapareceu por completo,
devolvendo à fenda abissal sua escuridão absoluta.

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Eu olhei ao redor, reconhecendo mais um brilho


muito, muito distante. Eu segui aquela luzinha, e
depois outra, como se as águas-vivas formassem
uma trilha ao longo daquela fenda.
Em um certo momento, a fenda desembocou
em uma grande planície marinha, com diversas
algas polares e estrelas do mar, todas elas
iluminadas por um intenso e ofuscante brilho
dourado que vinha de cima.
Eu olhei para o alto na direção do brilho, e o
meu queixo caiu em profunda surpresa.
Centenas de milhares de pontinhos dourados
dançando em sincronia, como em um cardume de
luz. Nem o maior cardume de sardinhas teria tantos
indivíduos. Era como se as galáxias criassem vida e
dançassem no fundo do mar.
E no centro desta galáxia de águas-vivas, havia
um selkie.
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Meu coração deu um salto e eu me escondi


atrás de uma rocha, temendo que ele tivesse me
visto. Os selkies de Faerynga conseguiram me
encontrar? Eu não queria ser morto, eu precisava
proteger a minha filha.
Surtado, eu demorei a notar que reconhecia
aquele cheiro. O pânico no meu sangue deu lugar à
curiosidade.
Eu nadei em direção àquele selkie até perceber
o ondular de seus cabelos pretos.
Rayner Schwanz… o que ele estava fazendo
ali? Digo, era óbvio que estava cutucando as águas
vivas e esfarelando-as uma por uma… mas por
quê?
Concentrado em cutucar as águas vivas, Rayner
espetou o dedo em uma e deu um gritinho irritado.
Aquela não se dissolveu e apenas fugiu, irritada.
Rayner massageou o dedo dolorido e
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finalmente me percebeu ali. Nossos olhares se


cruzaram na mesma expressão de surpresa e
desconfiança.
“Você é o ladrãozinho…” Disse Rayner.
“E você é o faxineiro.” Eu sorri, e meu sorriso
logo se desmanchou. A lembrança da época em que
agradecê-lo era um objetivo importante retornou
com amargura. Aquele selkie tentou me mostrar
que eu podia ser muito mais do que um bandido, e
tudo o que consegui foi causar um monte de mortes
e o aprisionamento do meu grande amor.
Rayner já não estava prestando atenção em
mim. Ele havia retornado à sua atividade de cutucar
os bichinhos, dissolvendo alguns e se eletrificando
em outros.
“E então? Imagino que já tenha predestinado.”
Disse ele. “Como é o rapaz de sorte?”
Eu concordei e nadei até ele, tentando entender
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o objetivo daquela bobagem.


“Genioso. Terrível. Amável. Eu não diria que
ele tem muita sorte, mas eu não o trocaria por
nenhum outro neste mundo.” Eu respondi, de
cabeça baixa. “E ainda assim eu estraguei tudo.”
“Somos dois.” Ele sorriu para mim com
tristeza. “Mas eu vou consertar tudo, de algum
jeito. Aquele pirralho desmiolado também deve…
ai!!… deve estar se esforçando.”
Pirralho desmiolado? Rayner era um tanto mais
jovem que eu, com certeza ainda era um filhote,
então do que raios ele estava falando?
Espera aí, o brilho dourado… nossa, poderia ser
possível?
“Rayner, a sua missão era capturar o Oráculo,
correto?” Eu o segui pela nuvem de pontinhos
dourados, enquanto ele mal considerava minha
existência. “Será que… você se apaixonou por
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ele?”
Rayner travou no lugar e virou-se para mim,
com a luz das águas-vivas expondo o vermelho em
seu rosto.
“Filhotes não se apaixonam.” Disse ele,
estranhamente encabulado. “Aquele garoto que
nasceu com defeito, despertou cedo demais e agora
eu me corrompi e o chamado vai me amaldiçoar!
Aliás, já deve ter me amaldiçoado, porque as águas
vivas daquele cara se misturaram com águas vivas
de verdade! Quais as chances disso acontecer?”
Ah, então era por isso que ele estava testando
uma por uma. A trilha correta talvez conduzisse ao
oráculo, mas ele estava do outro lado da Garganta
do Demônio.
“O Oráculo está aprisionado no andar mais
profundo do calabouço de Faerynga, onde o
chamado não alcança. Meu predestinado também
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está lá.”
“No andar mais profundo?” Ele expandiu os
olhos, absorvendo o significado das minhas
palavras. “Como eu vou salvá-lo? Talvez
implorando ao General Cordelen…”
“Não, não volte para Cratília! Tem um prêmio
alto pela sua cabeça, Rayner. Não sei o que
aconteceu, mas se voltar só conseguirá sua própria
cela do outro lado do mundo.”
Nós dois nos olhamos, nervosos, perdidos e
incapazes de raciocinar direito. A única certeza em
nossas mentes também era a mais assustadora: Já
não havia lugar para nós, nem nos mares quentes e
nem nos mares gelados.
E por mais assustadora que fosse a minha
própria situação, eu só conseguia pensar no meu
predestinado.
“Rayner…” Eu o encarei com lágrimas nos
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olhos. “Por favor, eu sei que a gente mal se


conhece, mas me ajuda a salvar o Ronan!”
“Ronan Faroé? Você predestinou com o
príncipe mestiço? Você é um príncipe??”
Eu concordei com a cabeça, laçando as mãos
sobre o meu ventre.
“Sim, eu sou… e aqui cresce a Princesa dos
Sete Oceanos.”
Rayner expandiu os olhos, agora com simples
piedade e preocupação. Eu não precisava me
explicar mais. Todos conheciam o destino de um
ômega prenhe sem o seu alfa para realizar o ritual.
“Nós vamos dar um jeito.” Rayner golpeou a
água com o braço, dissolvendo muitas águas-vivas
de uma só vez. “Vamos resgatar Leviathan e o
Príncipe Ronan, mesmo que gastemos meses de
planejamento.”

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Meses? Eu comecei a soluçar. Eu não queria


esperar meses pelo Ronan, eu o queria ao meu lado
naquele instante, me abraçando, falando grosserias
idiotas apenas para me provocar, me amando
apesar de tanta névoa em seu coração.
“Os selkies de Faerynga ainda estão me
caçando, e imagino que você também esteja na lista
deles.” Eu massageei os hematomas no meu braço.
“Um bom amigo me disse uma vez que um bom
governante mantém a cabeça sempre erguida, mas
um ótimo governante sabe baixar ou levantar a
cabeça nos momentos oportunos.”
“E este é o nosso momento de aceitar a
derrota.” Rayner espremeu os punhos fechados,
exalando a mais profunda frustração em precisar
admitir isso.
Eu me forcei a parar de chorar. Desespero não
devolveria Ronan aos meus braços.

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Nenhum de nós dois disse mais nada, porque a


única saída, naquele instante, era dolorida demais
para ser anunciada em palavras.
Humilhados e com nossos corações em
pedaços, Rayner e eu abandonamos a nuvem de
águas vivas e desaparecemos na escuridão
oceânica, rumo a um futuro incerto.

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Capítulo 90

Levi

Nossa, aprender poderes de oráculo era bem


mais divertido quando o meu professor era um
selkie gostoso. Ter aulas com um velho enrugado e
meio louco não era a mesma coisa, mas eu não
tinha o direito de reclamar. Mestre Daoshin até que
era um cara legal, e qualquer companhia era melhor
que a solidão daquelas quatro paredes.
“Você não está se concentrando!” Daoshin
bateu a tigela na minha cabeça.
“Ai! Desculpa, ioga me dá sono!” Eu massageei
minha cabeça dolorida.
“Não é ioga, seu moleque indisciplinado! É a

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ampliação de seus poderes latentes!” Daoshin


esfregou as mãos no rosto. “O que fiz para merecer
um segundo oráculo rebelde?”
“Foi só uma distração, estou pronto para mais
dez horas de… ficar sentado com o olhar na
parede.”
“Ótimo, ótimo, então faça isso e conecte-se
com o seu interior, você perceberá que…”
Passos na escadaria arrepiaram a nós dois.
Mestre Daoshin rapidamente devolveu meu casaco,
deitou no chão e assumiu sua forma aquática,
mantendo a exata mesma pose de quando estava
morto.
Eu me levantei e espiei a janelinha da porta, na
ponta dos pés. Os guardas haviam recém trazido o
meu almoço, era muito incomum que retornassem
tão cedo. Será que era o dia da mangueirada? Eu
nem estava tão sujo assim.
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“Caralho, Bernàr, onde estava essa chave,


afinal?” Disse o guarda de olhos castanhos.
“Tinha caído na caixa de ganchos, dá pra
acreditar?” O de olhos vermelhos tilintou o que
devia ser molho de chaves. “Acha que devemos
transferir o garoto?”
“Pfft. Foda-se, não é como se aquele velho
tivesse energia para descer até aqui. E nossa nova
princesa merece aposentos dignos, não concorda?”
O primeiro riu, cheio de sarcasmo. “Vai logo, eles
já estão chegando.”
Assim que ele disse isso, gritos horríveis
ecoaram da escada e foram se tornando mais altos.
Uma massa de soldados tentou passar pelo
corredor estreito, todos eles carregando um cara
que se debatia e lutava com todas as forças.
“Rickeeeett!! Me soltem seus desgraçados!!
Rickett!! O meu Rickett!! Me deixem ir!!” Disse o
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cara no meio. Eram tantos guardas que eu não


conseguia vê-lo.
“Cala a boca, seu merda!!” Um dos soldados o
golpeou com as costas de uma arma. “É esta a cela,
mesmo?”
“Podem deixar o resto conosco.” Disse um dos
guardas.
Após muita gritaria, golpes e chutes, os
berreiros do cara diminuíram e os soldados
retornaram em marcha para a superfície.
O que estava havendo ali? Eu tentei espiar, mas
a minha única visão era de parte da escada e a cela
desocupada à minha frente.
Após pouco tempo, o estrondo metálico de uma
porta batendo e trancando ecoou pelo corredor. Já
não havia gritos, apenas uma risadinha contente.
“Tudo bem rasgar as roupas dele? O cara vai

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congelar, acorrentado daquele jeito.”


“Ele é filho do Connor, ele aguenta.” Disse o
guarda de olhos castanhos. “Além do mais, você
deu uma conferida naquela bundinha? Não foi
apenas o rosto que o meu primo passou a ele.”
“Que nojo, Ripple! Ele é um alfa, igual a nós!”
“Ah, Bernàr… quando se é um alfa viúvo, a
gente se vira como pode.” O guarda deu de ombros
enquanto passava diante da minha cela. Ele focou a
atenção em mim e desmanchou o sorriso. “O que
está olhando?”
Eu desci e me encolhi por trás da porta,
querendo a todo custo evitar encrenca.
Eles continuaram se afastando.
“Acha que aquele ômega era um usurpador,
mesmo?”
“Até parece que eu me importo, Bernàr. Vamos

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cair fora daqui, este lugar fede a peixe.”


Os guardas subiram as escadas, e apenas
quando o som de passos desapareceu eu consegui
voltar a respirar.
Daoshin endireitou o corpo e sentou-se
novamente, em posição de lótus. Ele certamente
ouvira tudo, mas permanecia pacífico e sereno.
“O que acabou de acontecer?” Eu perguntei.
“Apenas o chamado buscando sua noção de
equilíbrio.” Ele apontou ao chão diante dele, para
que eu me sentasse. “Para cada luz deve existir uma
sombra de igual intensidade.”
Eu me sentei na mesma pose do mestre, lutando
para entender o que ele dizia.
“Disseram-me uma vez que oráculos são o
arauto da destruição. Isto faz de mim a sombra?”
Eu perguntei.

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“Suas perguntas terão respostas quando seu


coração estiver pronto para recebe-las. No
momento a prioridade é treinar sua alma, para que
possa suportar o peso de seu real destino.”
“E qual seria este meu destino?”
Mestre Daoshin riu como se esperasse aquela
exata pergunta. Ele torceu o corpo para trás e
começou a mexer nas pedras rentes ao chão.
“Nos meus anos de cárcere, antes da
hibernação, eu chamava esta pedra aqui de Shinsen.
É o nome do neto que sempre guardarei no meu
coração. Shinsen era um alfa lindo, alto, de sorriso
tímido. O sonho de qualquer ômega Hai-Kui em
idade de predestinação. Mas a beleza de Shinsen
era apenas uma casca da qual ele pouco se
orgulhava. Sua verdadeira virtude era a pureza de
seu coração.”
Ao dizer isso, o velho Daoshin forçou a pedra
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com seus dedos murchos. Eu reparei então que


aquele não era um ponto qualquer da parede.
Enquanto esteve caído o seu corpo bloqueava
aquela fileira de pedras. E a pedra que ele puxava
era a maior delas.
A pedra tremeu e esfarelou as bordas de gelo
em seu entorno. Mestre Daoshin continuou
puxando com jeitinho e paciência.
“Eu já era um velho quando me jogaram aqui.
Os selkies me torturaram, agrediram, mataram
diante de mim aqueles que me eram mais preciosos.
E ainda assim eu nada contei a eles, porque você
entenderá, meu jovem, que o destino é um rio em
constante movimento. E um oráculo é nada menos
que a confluência de todos estes milhares de rios.
Alguém de tamanha importância deve ser protegido
e treinado até o momento certo, não importam os
sacrifícios.”

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O mestre Daoshin enfim conseguiu soltar a


pedra. No fundo do espaço cintilava um intenso
brilho azul.
Com um sorriso sereno e nostálgico, Daoshin
apanhou a coisinha brilhante em suas mãos e
mostrou para mim. Era um pingente. A joia azul
emanava uma luz sobrenatural e diferente de
qualquer coisa que eu já tivesse visto, pulsando no
mesmo ritmo do meu coração.
Era loucura total, mas assim que aquele brilho
azul refletiu no dourado dos meus olhos, eu senti
como se uma parte do meu corpo estivesse sendo
devolvida a mim.
O mestre sorriu com uma felicidade comovida e
humilde.
“Na condição atual, sua alma é pequena demais
para um potencial tão grande, ainda mais se
considerarmos a quantidade de sangue humano em
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suas veias. Mas tempo livre nós temos de sobra,


não é mesmo? Precisaremos de muito treino até que
esteja pronto.”
“Pronto para quê?”
Os olhos de Daoshin curvavam-se com seu
sorriso, refletindo tons azuis e dourados.
“Para aquele que deveria ser o destino de todos
os oráculos. Jovem Leviathan, você se tornará a
nova voz dos mares.”

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Epílogo

Madhun
Seis meses depois

Eu percorri meus dedos pela textura pontilhada


da última página.
“Joia dos oceanos… Poderes místicos…” eu lia
em voz alta, quase esperançoso sobre aquele trecho
em particular. Mas óbvio que não era nada de útil,
apenas outro conto de fadas humano sem nenhum
embasamento na cultura dos tritões.
Eu terminei aquele livro e o peso das páginas
grossas fez um som de ploft ao fechar por
completo. Livros em braile eram imensos e difíceis
de carregar, mas o pessoal da escola já havia se

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acostumado comigo dançando pelos corredores,


tentando não derrubar pilhas imensas de material de
estudo.
Compenetrado no quinto livro daquele
entardecer, eu só me interrompi ao sentir uma mão
no meu ombro.
“Deixa eu adivinhar, outro livro de astrologia.”
Meu colega Cody deu uma risadinha. “A biblioteca
já vai fechar, Madhun.”
Eu passei o dedo no meu relógio de pulso e,
realmente, eu havia passado outra tarde inteira
pesquisando.
Apressado, eu me levantei e peguei meu bastão
pendurado atrás da cadeira. Pelo som de papel
mexendo, Cody estava me ajudando a empilhar
meus livros.
“Vai levar todos estes? Como alguém tão
magro consegue carregar tantos?” Perguntou ele.
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“Não, hoje não levarei nenhum. Tenho um certo


compromisso em casa.”
“Um compromisso com aquele ruivo gostoso?”
“Ei, ei! Sim, o compromisso envolve o
Sebasten, mas não do jeito que está pensando.”
“Ahh, não mexe com a minha curiosidade!”
Você é muito misterioso, Madhun, sempre lendo
esses livros de hippie. Seu namorado jardineiro
paz-e-amor tem pinta de hippie, mas você? Qual é a
deste O Poder das Pedras em Nossas Almas?”
“Apenas uma bobagem para gastar meu tempo”
eu respondi sorrindo, mas não deixava de ser
verdade.
Meses de pesquisa e uma boa verba gasta na
impressão em braile de qualquer livro que fosse
vagamente relevante. Nenhuma única menção à
Safira do Oráculo, apenas umas poucas pistas que
talvez fossem simples fantasia.
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“O pessoal da turma B nos chamou para uma


festa de halloween… quer dizer, eles pediram para
eu convidar você e o Sebasten, então posso me
incluir no convite, certo? Eles são as pessoas mais
legais da escola, diz que posso acompanhar vocês!”
Disse Cody.
Eu comecei a rir, seguindo a textura do chão até
sair da biblioteca.
Assim como eu, Cody era legalmente cego, mas
com seus óculos gigantes ele se virava o suficiente
sem precisar de um bastão. Apesar disso, claro que
um adolescente enérgico como ele não dispensaria
a companhia do Bongo.
Assim que pensei nisso, um cachorro se jogou
em cima de mim, me derrubou no chão e começou
a lamber minha cara.
“Bongo, menino mau, solta ele!” Cody puxou
seu cão guia para longe de mim. “Desculpa
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Madhun, eu até amarrei ele na saída da biblioteca…


não entendo a obsessão dele por você.”
“Acho que tenho cheiro de comida.” Eu ajeitei
meus óculos escuros e massageei as bochechas
daquele são-bernardo travesso. “O que você acha,
Bongo, eu tenho o gosto de um churrasco de
salmão super mal passado?”
Bongo soltou um lado grosso e contente.
Cody me ajudou a levantar e, com Bongo enfim
sob controle, me acompanhou pelo Campus da
escola.
Segundo diziam, os jardins da Escola Especial
de Dublin eram magníficos, o que era meio irônico,
considerando-se que metade dos alunos possuía
alguma deficiência visual. Pelo menos Sebasten
conseguiu se encontrar rápido, mesmo em uma
cultura tão diferente: ele era o mais novo jardineiro
da escola, e seu talento já atraia a atenção de toda a
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alta sociedade de Dublin. Muitas eram as propostas


para que ele trabalhasse em mansões particulares e
parques turísticos importantes.
Sebasten, é claro, mantinha seu emprego onde
pudesse ficar perto de mim. Ele plantou as
sementes do Tio Jensen ao longo do trajeto entre a
escola e a nossa casa, para que eu pudesse seguir o
aroma nostálgico de nosso primeiro lar.
“Que milagre o Sebasten não estar te
esperando, hoje. Quer que eu te acompanhe até em
casa?” Perguntou Cody.
“Valeu, Cody, mas não precisa.” Eu falei
distraído, enquanto verificava meu celular.
“Você tem zero chamadas não atendidas.”
Disse a voz robótica do aplicativo.
Eu suspirei e guardei o celular no bolso. Sei lá
por que eu ainda tentava. Aquele garoto nunca mais
ligou e eu mesmo não conseguia mais ligar de
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volta. Minha breve troca de palavras com Ronan


era tudo o que eu tinha para apaziguar minha
saudade e eu precisava me contentar com isso.
Se havia qualquer conforto sobre o sumiço do
Ronan era saber que ele estava feliz e seguro, com
um predestinado que parecia ser amável.
“Esperando alguma ligação?” Perguntou Cody.
Nem percebi que ele ainda me seguia.
“Não, eu... enfim. Compre uma roupa legal pra
festa de Halloween, nada de suspensórios, desta
vez. E se o pessoal da turma B implicar eles vão ter
que se meter comigo.”
“Valeuzão, Madhun. Espero ver vocês lá, senão
até segunda-feira.”
“Até!”
Eu continuei meu caminho pelos campos,
ouvindo o som dos diversos pássaros e dos meus

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passos abafados pela grama. Mesmo após seis


meses ainda era esquisito vestir sapatos por tanto
tempo, e o uniforme rebuscado de estudante
sufocava um pouco se comparado com minhas
cangas tradicionais ou até mesmo com as roupas de
roqueiro que eu costumava vestir nas turnês.
Aquelas calças não moldavam a minha bunda como
eu gostaria e aquilo me tirava do sério.
Pelo menos o Sebasten me achava gostoso no
terno e gravata escolar, então tudo bem. Nada me
deixava mais contente do que retornar de uma aula
frustrante ou de pesquisas infrutíferas, para então
ser agarrado e dominado com força na nossa cama.
Era gostoso demais, assim como era gostoso
apalpar o corpo do Sebasten e percebê-lo evoluir
tão rápido. Sebasten estava se tornando um
homenzão delicioso por fora, da mesma forma que
se tornou por dentro.

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Mas apesar de tantas mudanças, as partes boas


do Sebasten continuavam ali. Ele era bom,
generoso e paciente. Sempre concordava com as
minhas ideias por mais loucas que fossem, e
mesmo quando sugeri a reunião, ele não reclamou
muito.
Eu mesmo precisava admitir, se não tivesse
confiado ao Sebasten a tarefa de reunir a todos, eu
mesmo teria desistido da ideia. Era loucura demais.
E se eu fosse ridicularizado?
A julgar pelo canto de certos pássaros noturnos,
já devia ser quase noite. Eu precisava seguir adiante
com a ideia porque provavelmente todos já estavam
me aguardando.
Eu peguei o bonde e desci na parada da
chácara. Após pouco tempo de caminhada,
Sebasten chegou ao meu encontro.
“Ah, meu amor, desculpa. Eu pretendia te
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esperar na parada, mas aí… ah, eu servi os canapés


do jeito que você pediu.”
“Então o pessoal já chegou?” Meu coração deu
um salto. Seria a minha primeira vez encontrando
outros tritões desde que nos mudamos, e eu quase
não conhecia a maioria deles.
“Sim, só está faltando você.” Seb entrelaçou
nossos dedos e nós seguimos pelas ruas calmas do
subúrbio. “Descobriu algo interessante, hoje?”
“Descobri que o meu ascendente é peixes, e que
minha cor da sorte aos domingos é azul-
jabuticaba.” Eu dei risada. “Não, não descobri nada
de útil.”
“Então qual é o motivo desta reunião, mesmo?”
Sebasten suspirou, percebendo minha preocupação.
“Madhun, meu amor, você estava blefando, não
estava?”
“…Talvez.” Eu dei uma risadinha tensa. “Mas
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não é porque descobri pouco, que nunca


descobriremos coisa alguma. Já sabemos, por
exemplo, que a Safira do Oráculo tem poderes
místicos.”
“Sim, aprendemos isto no mesmo livro que
ensina a fazer peixinhos de papel machê. Desculpa,
Madhun, eu sei que é muito importante, mas livros
de humanos não parecem levar nossa cultura muito
a sério. Eles pensam que tritões cantam para
seduzir vítimas. Acho que se eu tentasse cantar, eu
quebraria os vidros da casa com a minha voz.”
“Não temos escolha, Seb, você lembra a última
carta do tio Jensen. Se os reis proibiram o General
Fran de deixar a ilha, eles já desconfiam de algo.”
“Você acha que descobrindo os mistérios desta
pedra sozinhos nós vamos impedir alguma coisa?
Meu pai Fran está enlouquecido desde que a notícia
do oráculo aprisionado se espalhou. Todos querem

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uma operação de resgate, medidas drásticas que ele


não pode ou não quer atender. O foco do General é
destruir Cratília, quando o povo quer invadir
Faerynga e resgatar Leviathan. Tudo isso com um
exército minúsculo e armamentos primitivos.”
“Não sei se podemos fazer qualquer diferença,
Seb, mas você é um jardineiro e eu sou um tritão
cego. Estamos fazendo o nosso melhor.”
Sebasten resmungou baixinho e eu senti em
nossa ligação sua mágoa pelas minhas palavras.
Eu puxei Seb pelo pulso e o fiz parar diante de
mim, então eu subi a mão até seu rosto, alisando-o
na tentativa de visualizar o amadurecimento de suas
feições.
“Não tem nada errado em você ser um
jardineiro, Seb, pelo contrário. Acho lindo tudo o
que construiu para nós. Esta vida pacífica, nós dois
juntos… eu não poderia ser mais feliz.”
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Sebasten não respondeu, contendo uma resposta


tão ácida que transpareceu em seus pensamentos.
Nem mesmo com o Ronan? Ele queria me
perguntar, e como sempre preferia evitar um
conflito.
Meu predestinado tinha preocupações tão
bobinhas, às vezes.
“Ei, Sebasten, quando nossos convidados forem
embora, o que acha de irmos ao cinema?”
“Ao cinema? Mas… mas você…”
“Eu posso ouvir, sabia? E cinemas são um
programa bem romântico para os humanos. Eu sei
que você sempre quis entrar em um.”
“Posso escolher o filme, também?” Perguntou
ele.
“Claro que sim. E também podemos trocar
beijinhos no escuro.”

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Sebasten deu uma risadinha contente,


dissipando quase toda a mágoa em seu coração.
Talvez eu devesse deixar a conversa morrer ali,
havia pressa para receber nossos convidados, mas a
cada vez que Sebasten se magoava o meu peito
pulsava mais apertado e dolorido. Sebasten era o
cara mais dócil que poderia existir, pelo menos
comigo, e eu me sentia um cretino por me
aproveitar disso. Eu merecia ouvir umas verdades
de vez em quando, da mesma forma que Sebasten
merecia ouvir uma verdade em especial.
“Seb, o que eu vou dizer agora talvez seja cruel,
mas… Eu hoje sinto alívio sobre não ter
predestinado com o Ronan, porque meu amor por
ele… não era um sentimento que um irmão devesse
nutrir por outro. Mas eu cresci vendo o amor dos
meus pais e seria muita hipocrisia da minha parte se
eu não acreditasse no segundo amor.”

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“Segundo amor?” Perguntou ele.


“O que eu quero dizer é que eu te amo,
Sebasten, então, por favor, não se compare com
mais ninguém. Você é a outra metade da minha
alma, se continuar achando tão pouco de si mesmo,
eu também terei que pensar que não sirvo pra
nada.”
“Você… você me ama? Eu ouvi isso direito?”
“Ahm, sim? Eu já disse outras vezes, não
disse?” Eu busquei nas minhas memórias. Será que
eu realmente fui horrível a ponto de nunca ter dito?
Pelo visto sim, porque Sebasten irradiava tanta
alegria que parecia à beira de explodir.
Soltando uma risadinha travessa, Sebasten
empurrou o meu peito até prensar minhas costas
contra um muro. Pela textura de tijolos era a mureta
que contornava o terreno da casa. Antes que eu
compreendesse direito, ele apertou seu peito
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musculoso contra o meu e meteu os lábios na


minha boca.
Eu dei um beijinho rápido e desviei o rosto,
segurando o riso.
“Seb, não podemos enrolar as visitas ainda
mais.”
“Ah, mas o meu predestinado disse que me
ama! Não posso ter dez minutinhos para
comemorar?”
Eu torci a boca, incrédulo, mas também me
divertindo.
“Dois minutos.” Eu disse.
“Cinco.”
“Três.”
Sebasten deslizou as mãos pela minha cintura e
agarrou minhas nádegas, massageando com
vontade até me fazer gemer.
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“Três minutos… vou aceitar o seu desafio.” Ele


sussurrou grave e quente contra o meu ouvido, me
causando todo tipo de arrepio.
Quando Sebasten se tornou alguém tão sexy? Já
não havia uma atitude daquele tritão que não
tremesse as minhas bases.
Derrotado pelos meus hormônios, eu relaxei o
corpo contra a mureta e permiti que Sebasten se
divertisse.
Eu não saberia comparar com uma relação
normal, mas a minha intimidade com Sebasten
era… única. Desprovido da minha visão eu só
podia contar com os meus outros sentidos, e
Sebasten se utilizava disso para me enlouquecer.
Dedos suaves acariciando a minha cintura, unhas
fincando nas minhas coxas, uma língua quente
deslizando pelo meu estômago. Cada toque era uma
surpresa excitante, e o aroma masculino do Seb

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complementava a experiência. Ele se dedicava


demais, a um nível quase obsessivo, mas era por
esta obsessão que eu aprendi a me apaixonar.
Como ômega, eu sempre duvidei da
possibilidade em ser feliz sem filhotes. Alfas
inseminavam, ômegas cultivavam, e então ambos
cuidavam da prole. Era como sempre funcionou a
nossa sociedade. Quanto mais filhos, mais respeito
e mais felicidade ao casal.
Após tantos meses de predestinação com
Sebasten eu podia dizer, com toda a certeza, que
era possível descobrir a felicidade apenas como
casal. E esta felicidade era imensa, pura e
abençoada.
O chamado reclamava, óbvio. Cada mergulho
no mar era um tormento diferente. Mas com
aqueles supressores de cio da tia Babelyn eu podia
aguentar um pouquinho de tormento cerebral de

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vez em quando.
Um toque inusitado retornou meus pensamentos
ao mundo real. Sebasten havia aberto o meu zíper.
“Ei…” Eu resmunguei, tateando para a frente e
o flagrando na mais indecente das posições.
Sebasten estava ajoelhado no gramado, diante das
minhas pernas.
“Ainda tenho um minuto e quarenta segundos.”
Ele disse, com um tom petulante.
Eu baforei uma risada e afaguei seus cabelos
ruivos, deixando escapar um gritinho excitado
quando ele puxou meu pau para fora da cueca.
“Se você parar na metade, não vou ficar
contente.” Eu disse.
Seb não respondeu, já estava mesmerizado com
o meu mastro duro, masturbando a base e dando
beijinhos na ponta.

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Eu cobri a boca para não gritar, fervendo igual


a um vulcão.
Seb não demorou em abocanhar a coisa toda,
movendo rápido a cabeça e sugando quase que com
força, como uma máquina de me dar prazer.
Ah, pelos oceanos, eu não pretendia que aquilo
fosse um desafio, seria humilhante gozar tão rápido
assim.
A julgar pelo tremor nos dedos do Seb e os
gemidos reverberando contra o meu mastro, ele não
dava a mínima para o meu embaraço, estava
concentradíssimo em sua rapidinha mais rápida do
mundo.
Eu encostei a nuca na mureta e fechei os olhos,
não que fizesse qualquer diferença. Ah, como eu
pude querer outro além daquele ruivo
desavergonhado?
Sebasten recuou a cabeça e passou a chupar só
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a ponta, estalando a língua e fazendo todo tipo de


som úmido. Ainda bem que eu sempre levava uma
cueca reserva na mochila, porque aquela já havia
virado uma piscina.
Quantos segundos faltavam, dez? Meu fogo
competia com a minha raiva, porque eu já queria
desistir da reunião, abaixar de quatro e mandar
Sebasten me comer. Há pouco tempo ele havia
criado coragem de me penetrar, e mesmo usando
camisinha a sensação era a melhor do universo.
Lembrar da vara gigante do Sebasten me
alargando foi a faísca que faltava. Eu gozei nos
lábios do meu predestinado, que bebeu tudo como
se fosse leite.
Ofegando pesado, Sebasten se levantou e eu
ouvi um som de zíper fechando, que não era o meu.
Pelo cheiro, Seb conseguiu gozar de novo apenas
pelo prazer em me extasiar. Eu nunca descobriria

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como era possível.


“E com cinco segundos de sobra.” Ele me
provocou.
“Me diz que estamos no jardim de casa, e não
na calçada.” Eu disse, ofegante.
“Estamos entre a nossa macieira e o muro, não
sentiu o cheiro?”
“Ah, sim, Seb. Inalar o doce aroma de maçãs
era a minha prioridade, enquanto você engolia o
meu pau.” Eu vasculhei a minha mochila, rindo
com sarcasmo. “Espero que meu lubrificante não
tenha passado pra calça, ou posso dizer adeus à
minha pouca autoconfiança nesta reunião.”
Sebasten me ajudou enquanto eu trocava para
uma cueca seca e endireitou a bagunça que ele
causou no meu uniforme.
“Viu só? Nem demorou...” Seb entregou o meu

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bastão e seguiu comigo pelo nosso amplo jardim


que florescia pela primeira vez. “...e não é como se
tritões se importassem com essas coisas.”
“Nós vivemos em Dublin agora, Seb. Certas
coisas precisam ser diferentes.” Eu suspirei,
relaxado demais para conseguir me frustrar. “Eles
vão sentir o nosso cheiro e vai ser super óbvio, não
vai?”
“Meu predestinado, como um alfa, eu posso lhe
afirmar uma coisa… os alfas dentre os nossos
convidados já sentiram seu cheiro desde o nosso
primeiro beijo.”
O meu rosto quase pegou fogo. Qual era a
potência do meu cheiro de ômega, exatamente?
Sebasten abriu a porta de entrada e logo
diversas vozes nos recepcionaram. Pelo visto eles
estavam bem confortáveis nos sofás da sala.
“Até que enfim voltaram, hein?” A voz da tia
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Babelyn soava tão implicante e atrevida quanto


sempre foi. “Se eu não conhecesse vocês, diria que
estavam acasalando em algum canto do jardim.”
“Não foi impressão sua. A grama no joelho do
Sebasten insinua uma felação recente.” Disse um
cara mais velho, cuja voz eu não reconhecia.
“Eu sei disso, Taimen, por isso eu tentei fazer
uma piada!” Babelyn bufou, e eu podia imaginá-la
esfregando a testa em cansaço.
Mesmo morto de vergonha eu tentei
cumprimentá-los, mas alguns bebês começaram a
gritar nos fundos da sala. Muitos bebês.
“Ah, Babelyn! Seu projeto de anticristo está
batendo nos nossos filhos!” Reclamou a gêmea
mais brava, acho que a Penélope.
“Deixa o Glen apanhar um pouco, vai criar
caráter.” Disse a Rebecca… provavelmente?

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“Meu amor, acho que é no Aberdeen que o


Zeon está treinando tiro ao alvo.” Disse um
homem.
“Ah, no meu Aberdeen? Babelyn, controle
agora esta sua criança! Pelos oceanos, quem
presenteia um bebê com estilingue?”
“Deixa as crianças brincarem, até hoje nenhuma
delas perdeu os olhos!” Babelyn engasgou no que
estava dizendo. “Ah, com todo o respeito,
Madhun.”
Eu tentei responder, mas logo o assunto se
tornou alguma outra coisa, todo mundo discutindo
ao mesmo tempo e eu sem conseguir registrar quem
falava o quê. As gêmeas e os gêmeos soavam muito
parecidos.
Por mais que eu tentasse ser independente,
aquela situação era um pouco demais para um cara
cego, até mesmo porque ninguém ali estava
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acostumado a lidar comigo.


Seb me puxou para o canto e explicou a cena
toda.
“Eu pedi que deixassem os filhotes com um
cuidador, mas agora tem várias crianças em um
engradado com brinquedos que o Dawson trouxe. E
todos os convidados estão aqui: A Babelyn e o
Taimen, a Rebecca e o Jackson, e a Penélope e o
Dawson.”
Eu suei frio. Não esperava ter reputação para
reunir todos estes tritões. E as gêmeas eram
ninguém menos do que filhas do primogênito
Dylan. Mesmo fora da linhagem real, sua influência
não podia ser ignorada.
“Como está sua saúde, Madhun Makaira?”
Perguntou uma voz de homem. “Ah, peço mil
perdões. Meu nome é Jackson Amalona. Seu
convite nos é uma honra, e também um enigma.”
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Eu apertei a mão daquele cara. Ele parecia


muito educado e um pouco rigoroso. Nada muito
diferente dos poucos Amalonas que eu conheci.
“E eu sou Dawson Amalona. Muito prazer.” Ele
também me cumprimentou. Sua mão era
exatamente igual à do irmão. “Receio que enigma
seja uma palavra muito forte, primeiro irmão
Jackson. Se lembrarmos a ascendência de Sebasten
Makaira, os objetivos de tal encontro tornam-se
elementares.”
Os sentimentos do Sebasten pulsaram com uma
tristeza amarga, mas ele disfarçou bem e atravessou
a sala. Pelo tilintar de louça ele estava preenchendo
a bandeja com os petiscos que eu havia preparado
mais cedo.
Ah, é, eu não podia ficar apenas parado como
um bobo medroso. Todas aquelas pessoas
importantes estavam ali por solicitação minha, e

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três delas eram Amalonas. Qualquer deslize na


minha lógica e eu perderia por completo o respeito
deles.
“Então… ahm…” Eu me encolhi todo, parado
como um idiota e sem saber para onde virar o rosto.
E se eles me achassem patético, por ser cego? As
gêmeas e a tia Babelyn eram sereias brilhantes, e
seus predestinados herdaram a inteligência típica de
seu clã. Parecia um caminho óbvio solicitar o
auxílio deles nas minhas investigações, mas diante
de tanta gente importante eu me sentia pequeno,
patético e uma completa fraude.

<< Tenha coragem, meu amor. Se eles não o


levarem a sério, então eles são os Amalonas mais
burros dos oceanos. >>

O comentário do Sebasten me fez rir. Talvez


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fosse bobagem, mas aquela reunião era tudo o que


eu podia fazer por ele, e para restaurar a paz no
reino.
“Eu sei que imaginam por que chamei todos
aqui, e... ahm... a verdade…” Eu comecei.
“A verdade é que o atrito crescente entre a
monarquia e o exército pode ser o prenúncio de
uma guerra civil, algo que nosso reino, em seu
estado de fragilidade e ameaça, jamais suportaria
sem graves sequelas, das quais nosso inimigo
Selkie facilmente se aproveitaria.” Disse Dawson.
“Com a estabilidade do nosso reino em jogo, a
maioria dos Amalonas aliou-se ao General Fran, o
que gera um vasto desequilíbrio de forças. Mesmo
com milhares de vidas em jogo, vocês assumiram o
objetivo extremamente pessoal de proteger o pai de
Sebasten Makaira. Não lhes parece inapropriado
lutar pela segurança de um general perfeitamente

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apto não só a se defender sozinho, como também a


derrubar o nosso reino?” Disse Jackson.
Eu… eu simplesmente não soube o que
responder. Aqueles caras eram espertos, óbvio que
sabiam muito mais do que eu, sobre diversas
coisas. Eu era apenas um cozinheiro cego, o que eu
poderia oferecer para que tudo não desabasse?
“O General Fran se envolveu em uma situação
muito arriscada. Infelizmente é improvável que
escape de graves punições por traição, mas…
ahm… ele quer uma pedra mágica, certo? E se ele
mobilizou tantos Amalonas atrás de pistas, deve ser
algo muito importante.” Eu disse.
“A Safira do Oráculo é apenas uma lenda.
Édrilan está perseguindo um mito por simples troca
de favores com o General e seus subordinados não
percebem isso, são uma vergonha para o nosso
clã.” A voz do Jackson soou mais grave e severa.

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“Se quiséssemos ouvir bobagens sobre pedras


mágicas, não teríamos abandonado o Centro de
Inteligência de Egarikena.” Dawson falava com um
tom de voz de quem também revirava os olhos,
impaciente. “Acreditar nesta safira significa
acreditar que nosso finado Oráculo-Rei Aurelian
foi fraco, destreinado e incompleto. É um ultraje e
um desrespeito pelo grande herói ele foi.”
“Mas e se for real? Nós não sabemos nada
sobre oráculos anteriores! E se o Oráculo Aurelian
ocultou esta informação de propósito?” Eu
perguntei.
“Não permitirei que falte respeito com o nosso
finado rei!” Disse Dawson. “Você pode ser um
descendente direto, jovem Madhun Makaira, mas a
lealdade sanguínea nos diz muito pouco após a
traição imperdoável de Yoshan Amalona.”
“Dawson, vocês prometeram não falar do meu

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irmão.” Sussurrou Taimen.


“Silêncio não mudará o que seu irmão mais
velho fez! Ele se aproveitou da bondade de Édrilan
e do General Fran para escapar e planejar nossa
ruína! Por culpa dele as coisas chegaram neste
ponto!” Gritou Jackson.
“Mas... o Yoshan t-t-t-talvez tivesse seus m-
motivos...” A vozinha gaga do Taimen quase
desaparecia.
“Vocês aí respeitem o meu predestinado, ô
ataque dos clones!” Gritou Babelyn.
“Um traidor é um traidor, e devemos invadir
Cratília para assassinar Yoshan, Ronan e qualquer
outro traidor em solo inimigo.” Disse Dawson.
“Eu ouvi direito, Dawson? Ronan é o filhote do
Hian, o nosso querido irmão!” Gritou Rebecca.
“Ronan deve ser respeitado pela escolha que

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fez, por isso devemos esquecer dele, invadir


Faerynga e resgatar o Oráculo Leviathan, antes que
nosso irmão perca todos os cabelos.” Disse
Penélope.
“Minha predestinada está correta. Executando o
imperador Macalor, nós garantiremos a dominância
de nossa raça!” Dawson começou falando e
terminou gritando, porque a competição de vozes
era alta demais.
“Dane-se aquele imperador! Yoshan manchou o
nome de nosso clã e pagará com a vida!” Jackson
tentava gritar mais alto que os outros.
“Mas… mas ele é o meu i-i-irmão…” Os
sussurros do Taimen mal eram ouvidos em meio à
gritaria.
A gritaria fez os bebês chorarem e até mesmo
eu cobri os ouvidos, atordoado. Ai, pelos oceanos,
no que eu fui me meter?
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“Ei, gente!” O vozeirão do Sebasten calou todo


mundo. “Eu sei que meu pai tá metido em umas
coisas horríveis, mas o Madhun quer muito mais do
que salvar um general. Nós dois queremos ver o
nosso reino feliz e em paz de novo!”
O minidiscurso do Sebasten calou todo mundo.
Mas não era um silêncio de respeito e aceitação, era
um silêncio perplexo e consternado, como se
ninguém acreditasse que pudesse haver um tritão
nobre e idealista depois de tudo o que sofremos.
“É, o Sebasten não está errado. Todo mundo
quer coisas diferentes, e por isso estamos em
guerra, certo? Mas e se todos nós pudéssemos
querer a mesma coisa, como durante a primeira
guerra entre tritões e selkies?”
“Era diferente, havia um oráculo.” Explicou
Dawson, mais calmo. “Tritões são uma espécie
conduzida pelo chamado e pelo destino. Somos

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péssimos em querer ou fazer escolhas, eu serei o


primeiro a admitir isso. Com um oráculo traçando
nossos objetivos, logicamente nos tornamos
invencíveis.”
“Mas devo lembrar que o novo oráculo está
morto, congelado em algum presídio de Faerynga.”
Disse Dawson.
“Não há provas de que nosso sobrinho está
morto!” Gritou Rebecca.
A gritaria recomeçou. Talvez fosse mesmo um
esforço perdido. E talvez houvesse um oráculo,
talvez não. Talvez Ronan decidisse invadir
Egarikena e assumir seu trono, ou talvez não. Os
reis talvez executassem o General Fran e causassem
uma guerra civil, ou talvez não.
Tritões eram, realmente, os piores do mundo
em tomar decisões.
Tudo indicava que nossa sociedade dissolveria
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até tornar-se nada. O chamado nunca nos instruiu a


organizar hierarquias ou construir reinos. O
chamado nos mandava reproduzir e sobreviver,
apenas. Sem um oráculo, nós pouco a pouco nos
reduziríamos a animais aquáticos.
Em meio à gritaria que Sebasten mal conseguia
acalmar, eu ouvi o toque da campainha.
Que estranho… eu com certeza não havia
convidado mais ninguém. Será que era o Cody? O
que ele pensaria da baixaria acontecendo na minha
sala?
Ansioso por dispensá-lo antes que ouvisse algo
comprometedor, eu me apressei à porta e girei a
maçaneta.
Eu nunca, nem em meus devaneios mais loucos,
poderia ter adivinhado quem era. E nem o quanto
esta visita mudaria o destino dos oceanos.

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O Príncipe da Revolução
FIM

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A história de Ronan e Levi


continua em

O Amante do Tritão Livro 4

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Agenda dos próximos


lançamentos da série

1. Operação Macho Alfa – A História de


Babelyn
2. A Última Aurora – A História de ?????
3. ????? - ?????
4. O Arauto da Destruição – O Amante do
Tritão Livro 4

Acompanhem a página http://fb.me/rbmutty para


ficar por dentro de cada lançamento e novidade!
Também participe do grupo Leitores da R. B.
Mutty para discussões, debates e teorias sobre a
série e seus muitos mistérios.

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Conheça os livros da série O


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