Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Volume 3
1ª Edição
Presidente Prudente
Editorial - CEGeT
2007
Copyright do Autor, 2007
ISBN 978-85-60554-01-0
ISBN 978-85-60554-01-0
Editorial
Publicações
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. I)
Organização: Antonio Thomaz Júnior ▪ Marcelino Andrade Gonçalves
Geografia Passo a Passo
(Ensaios Críticos dos anos 90)
Antonio Thomaz Júnior
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. II)
Organização: Antonio Thomaz Júnior ▪
Marcelo Dornelis Carvalhal ▪ Terezinha Brumatti Carvalhal
Revista Pegada
Versões Impressa e Eletrônica
(www.prudente.unesp.br/ceget/pegada.htm)
Próximos Lançamentos
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. IV)
Pedidos:
ceget@fct.unesp.br ▪ cemosi@fct.unesp.br
Telefone (18) 3229-5388 Ramais: 5543 e 5507 ▪ Fax (18) 3221-8212
SUMÁRIO
Apresentação
Terra e Trabalho no Contexto da Luta de Classes (Reflexões
Introdutórias sobre os casos da Galícia e Espanha).................... 8
Os Editores
Terra e Trabalho no Contexto da Luta de Classes
(Reflexões Introdutórias sobre os casos da Galícia e Espanha) ∗
∗
Este texto é produto das investigações que realizamos através do projeto de pesquisa
“Reestruturação Produtiva do Capital no Campo e os Desafios para o
reflexões teóricas.
∗∗
Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em
Geografia/FCT/UNESP/Presidente Prudente; coordenador do CEGeT
(www.prudente.unesp.br/ceget); pesquisador do CNPq; autor dos livros Por trás dos
canaviais os nós da cana. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002; e Geografia Passo-a-
Passo. Santiago de Compostela: Editorial Centelha, 2005. E-mail:
thomazjrgeo@fct.unesp.br
para os trabalhadores envolvidos diretamente na lavra agrária, sejam
camponeses – campesinos (espanhol) ou labregos (galego) –, sejam
operários (assalariados), na Espanha, tendo em vista os rearranjos mais
recentes no âmbito da PAC (Política Agrícola Comum), OMC
(Organização Mundial do Comércio) e demais órgãos da governança do
capital, em nível internacional.
Podemos argumentar, inicialmente, o quanto se
apresenta atual a questão da terra, mais propriamente
da Reforma Agrária, o acesso aos recursos para
fixação dos trabalhadores e de suas famílias no
campo, na Espanha e, particularmente, na Galícia e
na Andaluzia. No bojo desses posicionamentos, os
trabalhadores reivindicam novo formato de gestão dos
recursos públicos com as atenções para a viabilização
da produção camponesa (lebraga); Reforma Agrária
integral, que revise por completo o modelo
agroalimentário, desde o acesso, a distribuição e o uso
da terra, da água, das sementes, passando pelo modelo
de produção, comercialização e distribuição.
É claro que as mobilizações de massa, garantindo a escala que
temos desse processo, em países como o Brasil, Equador e México, em
se tratando das comunidades do Estado espanhol, somente guardam
alguma semelhança na Andaluzia, devido às ações organizadas do
Sindicato de Obreros Del Campo (SOC), o qual não apenas executa
ocupações de terra e reivindica Reforma Agrária, mas também viabiliza
os assentamentos, a partir da organização de cooperativas.
Poderíamos evidenciar as principais questões discutidas e
deliberadas pelo coletivo que participou do Encuentro de Trabajo “Los
retos de la Reforma Agraria y el acceso a los recursos en el Estado
1
español” , e que resgatou alguns aspectos abordados nas atividades
1 Esse evento foi realizado em Tiana (Catalunha), nos dias 2 e 3 de abril de 2005, tendo
sido organizado pela Ágora (Nord-Sud) e Plataforma Rural e contando com as
seguintes organizações participantes: Sindicato de Obreros del Campo y Medio Rural
(SOC); Coordinadora de Organizaciones Agrarias e Ganaderas (COAG); Sindicato
programadas do Fórum Mundial de Reforma Agrária (FMRA), realizado
de 5 a 8 de dezembro de 2005, em Valência, do qual também
participamos e disponibilizamos trabalho, na seção de posters, da mesma
forma que também inserimos o CEGeT na lista de entidades que
apoiaram o evento.
Sem contar a diversidade de documentos que foram distribuídos,
na oportunidade do FMRA e, mais precisamente, os que estão sendo
disponibilizados no site (www.fmra.org), tais como: documentos finais,
documentos elaborados pela entidade Carta Maior, resumos das Oficinas
(Talleres), Entrevistas, todos ao longo de 2005. Outro aspecto relevante
é que as deliberações do FMRA foram acatadas por esse coletivo
reunido em Tiana, que endossou também os documentos coletivos
elaborados e deliberados nos seguintes eventos: Manifesto de la
Campaña Global por la Reforma Agraria; Conclusiones de la Comisión
de Reforma Agraria de Via Campesina, e da IV Conferencia de Via
Campesina, realizada em São Paulo, em junho de 2004.
Seria difícil de acreditar – se não fosse verdade –, porque, para
muitos, a Reforma Agrária na Europa é questão superada, tratando-se tão
somente de adoção de políticas agrícolas e financiamentos públicos para
garantir renda, o que já está imperando no âmbito da PAC, além dos
esquemas de dominação que atuam no sentido de dificultar a
compreensão, por parte do conjunto dos trabalhadores e de toda a
sociedade, dos problemas que atingem o campo e os trabalhadores
(pequenos agricultores camponeses e assalariados).
Tudo isso contribui para que a questão da terra, ou da Reforma
Agrária propriamente dita, seja percebida pela sociedade como um tema
anacrônico. Mesmo que esteja diretamente afetada pelos problemas em
pauta, esta, por encontrar-se alienada dos mesmos, não faz valer
2 Evento realizado nos dias 7 a 9 de abril de 2005, no Centre Cívic Convent de Sant
Agustí, Barcelona, o qual foi organizado pela Xarxa Consum Solidari e pela Federação
de Organizações Comércio Justo “Solidaritat Pau Desenvolupament (Sodepau).
empresas que monopolizam as transações.
Há certo conformismo, combinado com as críticas mais gerais ao
modo de produção e, no âmbito acadêmico e científico, o que se
sobressai é a acentuada indicação para que a opção de desenvolvimento
e de organização social ou de sociedade contemple os princípios da
convivência social-democrata. Haveríamos que discernir um conjunto de
autores que demarcam um eixo de formulação teórico-metodológico em
defesa de modelos ecologicamente sustentáveis de produção e de
ocupação racional da terra, mas ainda limitados para a sinalização de
mudanças na estrutura da sociedade, sendo, pois, os mais conhecidos:
pesquisadores vinculados ao Departamento de Economia, Sociologia y
Política Agrária, da Universidade Politécnica de Valência, tendo à frente
os professores Vicent Garcés e Eládio Arnalte3; o professor Fernando
Oliveira Batista, da Universidade de Bragança, em Portugal; Edelmiro
Iglesias López, do Idega/Faculdade de Ciencias Econômicas, da
Universidade de Santiago de Compostela; Benjamín García-Sanz4, da
Universidad Complutense de Madrid.
Poderíamos também apontar a riqueza temática em torno dos
estudos realizados no âmbito da Associación Española de Economia
Agraria e dos Congressos de Economia Agraria. Todavia, partem do
princípio de que o quadro que se apresenta tem que ser pensado com as
atenções voltadas para as políticas públicas e de desenvolvimento, e que
sejam capazes de racionalizar as aberrações do sistema. Nessa mesma
linha, em nível internacional, o Grupo de Brugge5 (Bruxas) também
pode ser incluído, uma vez que é a referência para vários pesquisadores
espanhóis, portugueses, franceses e de outras nacionalidades, tendo à
frente estudiosos destacados sobre a temática agrária, tais como:
www.wto.org.
somente se aplicará às explorações com volume global de ajudas
superior a 5.000,00 de euros, o que significa que, na Espanha, 85% dos
agricultores ficarão isentos e, em Portugal, 95%. Vale ressaltar que, além
de respeitarem os critérios de ecocondicionalidade, os agricultores ou
proprietários devem retirar uma parte das suas terras da produção, com
exceção das áreas utilizadas para a produção biológica ou de produtos
não destinados ao consumo humano ou animal.
De todo modo, as prerrogativas essenciais para o recebimento do
pagamento único estão encimadas no fato de que os agricultores tenham
recebido determinados pagamentos diretos e que as terras que dão direito
ao pagamento único sejam as destinadas às atividades agrícolas. Há
exceções para as culturas permanentes como a vinha, produção de frutas
e produtos hortícolas, e a produção de batatas para consumo de mesa. A
vinculação dos pagamentos futuros aos subsídios que cada exploração
vinha recebendo, no período de referência 2000-2002, consolida o
sistema de castas da antiga PAC.
Serão beneficiados os mesmos que desfrutavam do acesso aos
recursos públicos e que, a partir de então, passarão a dispor do direito ao
pagamento calculado em função dos montantes das ajudas recebidas,
durante o período de referência 200-2002, e do número de hectares na
origem desses pagamentos, ou da superfície da exploração.
O direito de ajuda que passa a compor uma única forma de apoio,
ou o regime de pagamento único (RPU) de um agricultor, divide-se em
direitos de ajuda, tendo por base a média dos recursos diretos
anteriormente recebidos, bem como o referente por área envolvida na
exploração, que pode ser vendido ou cedido com ou sem as terras de
titularidade, ainda que os Estados possam estipular certos limites a essas
transmissões ou ainda aplicar um pedágio sobre as mesmas, o qual
passaria a compor a reserva nacional. No entanto, caso os mesmos não
sejam utilizados durante três anos, são transferidos para reserva nacional
e somente poderão ser remanejados para outro agricultor do mesmo
Estado-membro.
Todavia, sob o argumento de que as Reformas da PAC
direcionam-se, progressivamente, para menos subsídios à produção –
como asseverou o Comissário Fischler – e mais pagamentos diretos aos
produtores (por serviços públicos, manutenção do meio ambiente), na
prática, essa nova metodologia de repasse de recursos públicos e não
propriamente para a produção agropecuária está sinalizando apenas uma
tendência à diminuição dos excedentes de produção. Sem contar que a
introdução do expediente da modulação, nesse pacote de reformas,
enfatiza também o papel do desenvolvimento rural, à base de que
atingiria somente os produtores que recebessem mais de € 5.000,00 em
pagamentos diretos ao ano, acarretando redução de 3% do seu
orçamento, em 2005, 4%, em 2006, 5%, a partir de 2007, até 2013,
quando se anuncia o fim da PAC10.
Considerado como segundo pilar da PAC, o desenvolvimento
rural desfruta de destaque no ambiente de decisões da UE e, pelo que se
aponta, poderá absorver cada vez mais importância, tendo em vista a
intenção de redirecionar os recursos públicos para revitalização do
espaço rural e melhoria das condições de trabalho. Entre as intenções e a
realidade, o que se pode apreender é que estão em marcha novos
referenciais, com o LEADER + ou (LEADER plus), como parte do
Feoga-Orientação.
O fortalecimento da política de desenvolvimento rural, no âmbito
da PAC-2003, pode ser compreendido na sua totalidade, quando
consideramos sua vinculação ao primeiro pilar da PAC, ou dos recursos
advindos do Feoga-Garantia (Tabela 2). Com essa designação, a
intenção é insistir no fato de que se faz necessário avançar nas políticas
no âmbito do desenvolvimento rural, com o propósito de direcionar os
5,35% das dotações dos fundos estruturais, ou € 4,35 bilhões, dos quais à
Espanha cabem € 460 milhões.
10 Esse dispositivo poderá arrecadar €1,2 bilhão por ano, em receitas extras, uma vez
alcançado o percentual de 5%, a partir de 2007. Desse conjunto de recursos arrecadados
com a modulação, 80% serão retidos pelo Estado membro e o restante será gerenciado
pela EU, sendo que apenas ficam fora desses encargos as regiões remotas, que,
inclusive, terão tratamento diferenciado, e os 10 países do PECO, os quais somente
passarão a integrar essa alínea depois que seus níveis de pagamento direto estiverem
alinhados aos dos atuais 15 Estados-membros.
Tabela 2. Recursos Financeiros da PAC para o setor Agropecuário
Espanha (Feoga-Garantia e Feoga-Orientação). (milhões €)
Reforma - 2003
41,9
caixa amarela
27
10
(Estimativa 2007/8)
caixa azul
19,9
30
29
Agenda 2000
caixa verde
47,9
19,8
19,9
1999
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
África
América
Oriente
Medio
Exportações Importações Fonte: OMC,
2004; El Pais
60
50
40
30
20
10
Seuécia
Alemanha
Austria
Belgica
Dinamarca
Espanha
França
Grécia
Finlandia
Holanda
Itália
Irlanda
Portugal
Luxemburgo
UE
Reino Unido
1950 2000
N
ASTURIAS
PAIS
GALICIA CANTABRIA VASCO
NAVARRA
ARAGON
MADRID
CASTILLA COMUNIDAD
LA VALENCIANA
EXTREMADURA MANCHA BALEARES
MURCIA
ANDALUCIA
CANARIAS
Beneficiários % Recursos
Beneficiários Galícia UE Espanha Galícia UE Espanha
1000 € /Estratos
<5 95,4 78,6 81,6 65,8 17,8 24,1
5 a 10 3,2 9,2 9,1 16,2 13,0 16,7
10 a 20 1,9 6,8 6,0 10,2 19,0 21,0
20 a 100 0,4 5,1 3,1 7,7 37,3 29,1
> 100 0,0 0,3 0,2 0,1 12,9 9,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Média por
Recebedor 56,3 4.458,3 887,1 73,5 % 22.367,0 3.445,4
3
(10 €)
Ajuda Média por - - - 1.307,00 5.015,0 3.882,00
Recebedor
(106 € )
Fonte: Comissão Européia, 2002; López Iglesias, 2004.
15 Os animais, na maioria machos, são abatidos com menos de 10 meses e com o peso
controlado em torno de 200 quilos.
16 Cf. INFORME ATIVIDADE, 2004.
milhões de euros. Todavia, o abate geral totaliza 400.000 cabeças por
ano, correspondendo a uma receita de 150 milhões de euros. O maior
destaque fica para o leite, com uma produção em torno de 2,3 bilhões de
litros, ou 37,0% da Espanha (que representa apenas 3,0% da produção
européia), equivalente a uma receita de 450 milhões, sendo que a
estrutura produtiva também reflete o quadro de desigualdades que vimos
demonstrando para o conjunto europeu e espanhol.
A Tabela 4 nos permite compreender os principais aspectos que
caracterizam a estrutura agrária galega baseada no minifúndio e as
contradições da PAC, que, enquanto política pública, ao invés de
incentivar a produção de leite, associada à produção diversificada de
gêneros de subsistência, nas propriedades galegas que contam com a
dedicação familiar, incentiva o abandono da produção e das terras e o
avanço das áreas de reflorestamento17. Vale lembrar que essas áreas não
se restringem às regiões de monte, tampouco às áreas dos Montes
Vecinais, senão que avançam para as áreas de lavoura. Esse processo se
agrava após os anos 1990, momento em que se registram os maiores
índices de abandono da produção. Por exemplo, somente de 1996 a
1999, partiu-se de 51.517 explorações leiteiras para 37.525. Sem contar
o crescente abandono de terras e a difusão da agricultura a tempo
parcial18 (ATP), amparada na complementação da renda familiar em
duas frentes, em grande medida simultâneas: na realização de trabalho
fora da exploração, não mais somente do chefe de família, e o papel
destacado das pensões dos familiares aposentados.
E s t ratos Nº Vacas
1-9 10-19 20-29 30-49 50-99 100- 200-299 330-499 > 4
199
Nº de
Explorações 4.134 9.991 5.231 4.443 2.256 311 36 9
Nº de Vacas 34.665 70.968 85.021 138.126133.126 36.049 7.49 2.401
% Espanha 6,8 14,0 16,7 27,2 26,2 7,1 1,5 0,5 0
Fonte: Unión Européia, 2003.
5. Referências bibliográficas
[...] 99% dos problemas que nós temos são com essas
pessoas vindas de outras partes do país, do norte de Minas e do
Nordeste do país, porque são aliciadas, são trazidas em ônibus
clandestinos, chegam e são amontoados em vários locais, em
∗∗
vários alojamentos [...]
Introdução
∗
Professora da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo; membro do Centro
de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT); doutoranda em Geografia junto à
FCT/UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do professor Antonio Thomaz
Júnior; bolsista FAPESP. E-mail: anasoaresms@gmail.com
∗∗
Trecho extraído da fala do Procurador do Ministério Público do Trabalho de
Uberlândia/MG, durante entrevista concedida em 29/11/2007.
28
A territorialidade é apreendida aqui como vinculada às relações de poder, como um
recurso que pode ser estrategicamente manipulado e modificado, conforme o grupo
social e seus interesses num dado contexto histórico e geográfico. Cf. SACK, apud
Tal atividade, que até final dos anos 1990 estava concentrada nos principais estados
produtores do Nordeste (Alagoas, Paraíba e Pernambuco) e no estado de São Paulo (maior produtor do
país), hoje, passa por um crescente movimento de expansão em outras regiões e estados brasileiros, até
então sem expressão na produção nacional de cana-de-açúcar29, desencadeando assim uma série de
desdobramentos do ponto de vista do trabalho, seja na sua territorialização, seja no aumento da
precarização e da superexploração da força humana que trabalha.
A partir dos anos 2000 a Geografia da cana, no Brasil, vem mudando significativamente.
Desde então, a mobilidade territorial em direção a vários estados do Centro-Sul (Sudeste e Centro-
Oeste), principalmente para os estados de Minas Gerais (com forte presença de usineiros nordestinos),
São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, norte/noroeste do Paraná e norte do Espírito Santo
não só tem sido expressiva, como também tem se intensificado.
31
Esse último caso foi constatado durante pesquisa de campo, junto a um importante
grupo canavieiro de Nordeste. O Grupo Tércio Wanderley, dono da usina Coruripe,
desativou uma de suas unidades em Alagoas (Usina Camaçari) e utilizou os
equipamentos na implantação de outras unidades no Triângulo Mineiro.
Fonte: Pesquisa de Campo e sites especializados – 2007
32
VerIDEANEWS.online.<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8
> Acesso em: 17 jan. 2008.
33
Cf. site do Porto de Santos – Assessoria de Comunicação Social –DCI –
Agronegócios – pág. B4 – 13 de dezembro de 2006. Disponível em:
http://www.portodesantos.com/cgi-local/imprensa/mostrar.pl?1855.
Segundo dados do IDEANEWS-ONLINE34, os grupos estrangeiros aumentaram sua
participação no processamento de cana, no Brasil, de 6,75%, na safra 2005/2006, para 9,21%, na safra
2006/2007, caracterizando assim um aumento de 36% no período. De acordo com a mesma fonte, o
principal grupo estrangeiro a investir no setor é o grupo francês Tereos, o qual, em 2007, era responsável
por 2,53% da produção nacional (ver Quadro 01). A previsão é de que, até 2010, a participação dos
investidores estrangeiros no setor seja de 16%.
34
Cf. IDEANEWS.online.
<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8> Acesso em: 17 jan.
2008.
Fonte: IDEANEWS – online/2008; Pesquisa de Campo/2007.
A crise dos anos 1990 levou inúmeras agroindústrias canavieiras do Nordeste à falência, e
aquelas que permaneceram não foram suficientes para absorver toda a força de trabalho existente. Esse
reordenamento territorial do setor provocou alterações também na dinâmica do trabalho. Por um lado,
reduziu a oferta de emprego e aumentou o desemprego nos locais de onde o capital ou plantas fabris
migraram. Por outro lado, fez crescer a oferta de emprego e, conseqüentemente, de mão-de-obra, em
especial migrante, nos locais onde se territorializaram novamente.
As investigações e o mapeamento que estamos efetuando já nos permitem perceber que o
movimento dos trabalhadores para o corte de cana-de-açúcar no Brasil ocorre, de modo semelhante, para
35
Cf. Jornal Cana – Produção, dados e notícias, p. 38, fev. 2007.
36
E outras pesquisas também destacam isso, a exemplo dos trabalhos da professora
Maria Aparecida de Moraes Silva.
as regiões tradicionalmente produtoras e para as áreas em processo de expansão, inclusive
acompanhando o movimento recente do próprio capital agroindustrial canavieiro, ou seja, a mobilidade
do trabalho está acompanhando o movimento do próprio capital em direção a outros estados do Centro-
Sul37.
É possível apreender ainda que esse movimento não acontece somente entre os estados do NE
e entre estes e os estados do Centro-Sul, mas igualmente no interior dos mesmos, isto é, entre vários
municípios dos principais estados produtores, tanto do Nordeste como do Centro-Sul. No Nordeste, esse
movimento é comum entre os municípios dos três principais estados produtores (Figura 02)38.
37
Cabe destacar que esse mapeamento da mobilidade do trabalho ainda é parcial,
carecendo de mais investigações. O Mapa (Figura 2) foi elaborado com base em
informações preliminares. O mesmo procura mostrar não só o deslocamento dos
trabalhadores de estados do Nordeste e do Norte de Minas Gerais para o Centro-Sul,
mas também que esse deslocamento se dá entre vários municípios e estados.
38
A Fig. 2, supracitada, destaca apenas o movimento recente que vem ocorrendo do
norte do Paraná para os municípios fronteiriços do Oeste Paulista. Sabemos que, no
Centro-Sul, esse processo também ocorre entre os vários municípios, ou seja,
trabalhadores se deslocam para os municípios canavieiros (vizinhos) em busca de
trabalho. No entanto, cabe ressaltar que, em alguns locais, são basicamente migrantes
de outros estados por falta de mão-de-obra local/regional.
Fonte: Pesquisa de Campo e sites especializados – 2007.
39
A leitura que fazemos sobre o processo de territorialização e desterritorialização,
presente na mobilidade do trabalhador migrante cortador de cana, referencia-se
conceitualmente em Haesbaert (2004).
40
Haesbaert (2004, p. 138) ressalta: “Trata-se de uma desterritorialização cotidiana,
onde se abandona, mas não se destrói o território abandonado”.
O movimento migratório, no Brasil, é histórico e de alguma forma esteve associado aos
importantes ciclos produtivos (a exemplo da borracha, do café, do período de consolidação do setor
industrial etc.), coincidindo inclusive com o processo de modernização/mecanização da agricultura, que
provocou uma saída expressiva do homem do campo para a cidade, quer expropriado de suas terras, quer
pela substituição da sua mão-de-obra pela máquina.
Segundo Moreira (2006, p.99), o capitalismo evoluiu com a criação do “mercado de moeda,
de terra e de força de trabalho”. Todos esses mercados estão interligados e a criação de um se apóia na
criação do outro, conduzindo a um mercado global, sendo que o elo principal, nesse contexto, é o
mercado da força de trabalho. O autor destaca, ainda, que as sucessivas metamorfoses que conduzem à
constituição do mercado capitalista apresentam como conseqüência, paralela e contínua, um processo de
mobilidade do trabalho e do capital.
Nesse sentido, é relevante salientar que o fortalecimento e a modernização do setor
canavieiro, em nosso país, com a implantação do Proálcool, na segunda metade da década de 1970,
provocaram um aumento significativo da área plantada com cana, especialmente no estado de São Paulo.
Esse fato gerou uma demanda expressiva de força de trabalho no campo e atraiu trabalhadores de outros
estados brasileiros, especialmente do Nordeste. Desde então, a região canavieira de Ribeirão Preto, que
inclui as Regiões Administrativas de Ribeirão, Barretos, Franca e Araraquara, tem sido o principal pólo
de atração de mão-de-obra migrante para trabalhar nas lavouras de cana do estado de São Paulo. Muitos
desses trabalhadores, de tanto ir e vir, acabam se estabelecendo definitivamente na cidade/região,
trazendo suas famílias ou constituindo outras41.
É interessante ressaltar, em acréscimo, que antes de esse processo de expansão do cultivo de
cana-de-açúcar se intensificar, o movimento migratório de trabalhadores nordestinos ocorria em função
do agenciamento de empresas paulistas. Atualmente, mediante os investimentos e implantação de novas
unidades por grupos nordestinos em vários estados do Centro-Sul, tal processo se acentua sob o comando
desses grupos. Seja indiretamente, por trás da figura do “gato”, do agenciador que busca esse pessoal;
seja diretamente, quando as próprias agroindústrias buscam (há um trabalhador de confiança e que tem
influência sobre os demais, o qual reúne e traz a turma) e contratam. O fato é que muitas
empresas/grupos estão fazendo uso de mão-de-obra migrante, sob a alegação de que falta mão-de-obra
local, nas frentes de expansão.
No estado de Minas Gerais, por exemplo, onde se verifica maior concentração de
empreendimentos de grupos alagoanos, a presença de trabalhadores dos estados nordestinos e, em
especial, de Alagoas é muito expressiva. Tanto de trabalhadores que vivenciam o processo de
desterritorialização e (re)territorialização temporariamente, como de trabalhadores que, de tanto ir e vir,
durante várias safras, se cansam e acabam trazendo suas famílias ou formando outras aqui,
desencadeando assim um novo processo de territorialização42 e, por conseguinte, uma nova configuração
41
A Pastoral do Migrante, sediada em Guariba, tem realizado estudos interessantes
sobre a migração da força de trabalho inserida no corte da cana-de-açúcar.
42
É importante enfatizar que esse movimento de trabalhadores não é aqui
apreendido somente no sentido de mero deslocamento, mas, principalmente, como
uma relação social mediada por diferentes motivos (econômicos, culturais,
ambientais etc). No caso dos trabalhadores migrantes, sobretudo dos cortadores de
cana, consideramos que essa mobilidade ocorre por motivos socioeconômicos ou,
em outras palavras, condicionada pela precarização das condições de vida e de
subsistência dos mesmos e de suas famílias, em seus locais de origem.
espacial expressa nas periferias das cidades, que são palco da mobilidade do capital e do trabalho (Foto
1).
43
Essa é uma realidade que está presente nos municípios canavieiros do estado de São
Paulo e, em especial, na cidade de Ribeirão Preto e região, por exemplo, para onde o
movimento dos trabalhadores migrantes tem sido mais intenso ao longo de várias
décadas. No entanto, esse fenômeno está se revelando também nas outras regiões e
estados do país onde está acontecendo o processo de expansão. Citamos o exemplo da
cidade de Delta/MG, porque foi onde tivemos mais contato com essa realidade, mas,
no Triângulo Mineiro, existem outros municípios, nos quais é possível encontrar
significativo contingente de trabalhadores migrantes com suas famílias, morando em
aglomerados de “barracos” (como eles próprios denominam), construídos nos bairros
periféricos, com a finalidade de abrigar esses nordestinos.
mantimentos e as pessoas ocupam o mesmo espaço.
O desrespeito à condição humana do trabalhador se revela também através da precariedade da
moradia. Quando não é nos alojamentos construídos e mantidos pelas próprias agroindústrias, em suas
terras, são barracos nas periferias pobres das cidades que abrigam esses migrantes44. Em diversos casos,
são muitos trabalhadores praticamente amontoados em pequenos espaços, em condições de higiene
extremamente precárias. Alimentação de má qualidade e, muitas vezes, eles mesmos têm que cozinhar.
Existem alojamentos que não têm instalações adequadas para os trabalhadores dormirem,
guardarem seus pertences, se alimentarem ou terem algum tipo de lazer, quando não estão trabalhando.
Há casos em que o confinamento nos alojamentos reflete até mesmo um sistema de semi-escravidão45.
As empresas que possuem trabalhadores na condição de alojados são sempre resistentes à
entrada de órgãos de fiscalização, como o Ministério Público, por exemplo, do sindicato que representa
esses trabalhadores e até mesmo de pesquisadores (como foi o nosso caso, em várias usinas que
visitamos, no Nordeste). Isso dificulta a defesa dos direitos desses trabalhadores, bem como o
esclarecimento sobre a realidade que cerca as relações de trabalho, no corte manual da cana-de-açúcar,
no Brasil.
Com esse procedimento, as empresas distanciam propositalmente os trabalhadores dos
sindicatos e dos órgãos de fiscalização, cerceando seus direitos trabalhistas e de cidadãos. Isolados em
alojamentos, os trabalhadores não acompanham a dinâmica social das cidades onde estão residindo,
mesmo que temporariamente. Criam-se em torno desses trabalhadores não apenas barreiras territoriais,
mas também limitações que os impedem de exercitarem de forma plena as trocas simbólicas com as
cidades.
Relatórios feitos pela Promotoria Pública e pela Plataforma DHESC46 revelam as péssimas
condições de moradia dos trabalhadores, nos alojamentos das empresas agroindustriais e de
fornecedores, em várias partes do Brasil. Vale destacar aqui um trecho de um desses relatórios, pois nele
fica confirmada não só a precariedade das condições encontradas nos alojamentos, como também a
relutância das empresas em expor esses alojamentos para entidades e pesquisadores.
44
A esse respeito, ver: SILVA, 2006.
45
Sobre esse assunto, Thomaz Júnior (1989) traz ao debate as péssimas condições de
vida dos trabalhadores envolvidos no corte de cana na região de Ribeirão Preto-
Jaboticabal, em meados dos anos 1980, momento da eclosão do movimento de Guariba,
que, inclusive, colocou em questão as formas bárbaras com que os trabalhadores eram
tratados pelos maiores empresários do setor, à época, sendo que hoje esse quadro
persiste, com pioras manifestas.
46
DHESC é uma Plataforma da Relatoria Nacional, que produz/apresenta Relatórios
Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. A Professora Maria
Aparecida de Moraes Silva extraiu alguns trechos desses relatórios apresentados em
Audiências Públicas e os citou no artigo intitulado “A morte ronda os canaviais
paulistas”. In: Revista Reforma Agrária –ABRA. Vol. 33, n.2 – ago.-dez., 2006.
para um corredor interno. A área onde é feita a
lavagem dos utensílios de trabalho é a mesma onde
se lavam as marmitas e onde se obtém água para
consumo individual. A presença de funcionários da
empresa, durante todo o tempo em que estivemos no
alojamento foi intensa, tentando impedir o acesso
livre aos trabalhadores. (DHESC, apud SILVA,
2006, p. 132).
Durante as pesquisas de campo em que visitamos as usinas, notamos um grande cuidado das
pessoas que nos recebem, nessas empresas, com relação seja às visitas às frentes de corte, seja aos
alojamentos. Algumas dizem não ter trabalhadores alojados, outras se limitam a mostrar fotos de
supostos alojamentos (bem cuidados)47, alegando, estrategicamente, que estes ficam muito longe da usina
e, desse modo, não teriam como nos levar até o local, naquele momento, sabendo que não temos
condições de voltar em outro dia, para visitar. Outros funcionários nos levam a um alojamento mais
próximo e mais bem cuidado, a fim de nos “despistar”. Quando permitem a visita ao alojamento, esta é
sempre acompanhada de pessoas de confiança, para que não tenhamos chance de conversar com os
trabalhadores (conforme o trecho do relatório, transcrito acima).
No estado de São Paulo, essa situação não difere muito; apesar da fiscalização do Ministério
Público e da ação de alguns sindicatos mais combativos, ainda existe trabalhador migrante morando em
alojamentos em condições subumanas.
Magalhães (2006)48 destaca a expansão do agronegócio canavieiro, na região Noroeste do
estado, e os seus reflexos na cidade de Palmares Paulista. Segundo ela, essa cidade se transformou numa
cidade-dormitório, em virtude da chegada de um grande contingente de migrantes para trabalhar nas
lavouras de cana da região. A autora ressalta:
49
Por mais que as empresas aleguem que estão investindo na mecanização, a maioria
delas ainda emprega grande contingente de trabalhadores no corte de cana.
50
Cf. ANTUNES, 2001.
51
Com a mão-de-obra nas lavouras de cana-de-açúcar à mercê desses terceiros, a
precariedade do trabalho se expressa por meio de fraudes trabalhistas,
subcontratação de mão-de-obra (falta de registro em carteira, não pagamento dos
direitos trabalhistas, péssimas condições de trabalho e de moradia, horas trabalhadas
a mais etc.).
A perda das condições objetivas de trabalho, em seus locais de origem, impele os
trabalhadores – muitos deles pequenos agricultores, sem condições de produzir na terra por causa da
seca, ou ex-pequenos agricultores, que perderam suas terras para os grandes proprietários, ou filhos de
pequenos agricultores – a procurarem uma condição melhor de trabalho e, portanto, de vida, longe de
suas famílias.
As condições em que muitos desses trabalhadores chegam até as empresas agroindustriais
canavieiras do Centro-sul são seriamente questionáveis. Muitos deles viajam em condições subumanas,
de forma clandestina, agenciados por “gatos”, em ônibus camuflados, para que ninguém consiga
descobrir. Muitas são as denúncias feitas junto aos órgãos de representação e apoio aos trabalhadores
migrantes (como CPT, Pastoral do Migrante, entre outros) de casos como esses, mas nem sempre é
possível efetuar a abordagem e o flagrante52.
Magalhães (2006) salienta, com base em levantamentos feitos pela Pastoral do Migrante, que
80% dos trabalhadores migrantes de Palmares Paulista possuem ligação com aliciadores e fornecedores,
fato que exime as usinas de qualquer responsabilidade sobre os mesmos. Significa dizer que essa
estratégia é adotada para quando as irregularidades relacionadas ao agenciamento, contratação e
manutenção da mão-de-obra em condições precárias forem descobertas, de sorte que as empresas
agroindustriais canavieiras ficam isentas de qualquer culpa.
É fácil responsabilizar terceiros, especialmente quando se trata do “gato”, porque este vive se
escondendo da fiscalização, haja vista sua ação ser considerada crime, no artigo 207 do Código Penal
Brasileiro, que dispõe: “Aliciar trabalhadores, com fim de levá-los de uma para outra localidade do
território nacional. Pena – detenção de 01 (um) a 03 (três) anos, e multa”.
A máscara só cai quando, no local, há uma equipe de fiscalização da Delegacia Regional do
Trabalho atuante, a qual, junto ao Ministério Público do Trabalho, consegue, pelo menos em parte,
destrinchar e denunciar essas manobras e autuar os envolvidos.
Vê-se, pois, que, no universo social e de trabalho em que a maioria desses trabalhadores é
inserida, as condições de vida e de trabalho são extremamente precarizadas. A precarização não se revela
somente nas condições de moradia, de alimentação e de trabalho, mas também nas relações sociais.
Esses trabalhadores são muitas vezes discriminados pelo conjunto da sociedade e pelo poder
público, que neles vêem uma ameaça à tranqüilidade da população local. Eles sofrem preconceito dos
trabalhadores residentes no local, que se sentem ameaçados em seus postos de trabalho, ou seja, os
trabalhadores residentes nos municípios canavieiros paulistas resistem à chegada dos migrantes, por
acreditarem que estes vêm para “tirar” seus empregos.
A discriminação em relação aos trabalhadores migrantes está presente também no meio
sindical. Como expressa a fala de um sindicalista: “O fluxo de migrantes tem impacto direto na tradição
local. O pessoal do oeste de São Paulo já perdeu até o sotaque e reclama que agora nas rádios locais só se
escuta forró (ritmo típico do Nordeste)”53 (RODRIGUES; ORTIZ, 2006, p.04).
52
Esse aspecto foi abordado por uma representante da CPT/AL, durante entrevista
concedida em novembro de 2006, bem como por um dos Procuradores do Ministério
Público do Trabalho de Uberlândia/MG, em entrevista realizada em novembro de 2007.
53
Essa fala é de um sindicalista do SER de Andradina (SP). Extraído do Dossiê
intitulado “Em direção à sustentabilidade da produção de etanol de cana de açúcar no
Brasil”. Disponível em: http://www.pastoraldomigrante.org.br/artigo14.html.
O processo de desterritorialização, vivido por grande contingente de trabalhadores migrantes,
é fruto do desenraizamento social e econômico que estes sofrem, em seus locais de origem. Esses
trabalhadores, além de serem expropriados de suas terras e privados de condições básicas de subsistência
junto de suas famílias, ao migrarem para as principais frentes canavieiras são transformados em seres a
quem a condição humana é negada. Além de superexplorados, no processo de trabalho, sofrem ameaças,
retaliações e têm seus direitos trabalhistas e de cidadãos desrespeitados.
54
Durante pesquisa de campo, encontramos, em vários momentos, trabalhadores que
cortam 20, 24 toneladas de cana. No município de Capinópolis/MG, um trabalhador
migrante (de Alagoas), de 29 anos, afirmou, em entrevista, já ter cortado por diversas
vezes 40 toneladas de cana, tendo recebido, por isso, um salário de R$ 2.500,00.
55
Em entrevista concedida durante trabalho de campo realizado em novembro de 2007,
no Triângulo Mineiro.
...não são necessariamente os que têm maior
massa muscular, são os que têm maior resistência
física para a realização de uma atividade repetitiva e
exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na
presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns
casos, e por um período que varia entre 8 a 12 horas
de trabalho diário.
Esses trabalhadores efetuam inúmeros movimentos diários com o corpo, o que ocasiona a
perda de energia. Andam, golpeiam a cana, flexionam-se e carregam peso debaixo de sol forte e com
vestimentas nada confortáveis. Vestidos dos pés à cabeça, eles transpiram muito, perdem água e sais
minerais, o que os conduz à desidratação e provoca a ocorrência de câimbras e mal-estares constantes.
Alguns estudos56 baseados em informações da Pastoral do Migrante têm denunciado a existência de
vários casos de morte de trabalhadores relacionados ao trabalho extenuante no corte de cana. Segundo
Silva (2006, p. 114), devido ao processo de exploração do trabalho, nos canaviais paulistas, no período
de 2004 a 2005 foram registrados 13 casos de mortes envolvendo cortadores de cana.
Com as denúncias de morte feitas pela Pastoral do Migrante, pela imprensa e por
pesquisadores, bem como com o trabalho de fiscalização que vem sendo feito pelo Ministério Público, as
empresas tentam camuflar, de forma estratégica, o dispêndio de energia e o desgaste físico desses
trabalhadores, oferecendo-lhes suplementos energéticos, para reposição de sais minerais57.
Um outro aspecto a ser ressaltado é o sistema de 5/1, adotado por várias usinas, tanto no
Centro-Sul como no Nordeste. Tal sistema, de maneira simplificada, consiste em trabalhar cinco dias
semanais e folgar um, sendo que essa folga deverá ocorrer em qualquer dia da semana, eliminando do
cotidiano dos trabalhadores o descanso nos finais de semana. Como a folga acontece num sistema de
rodízio, vez ou outra coincide com o sábado ou domingo. Vale dizer que, por estarem distantes de suas
famílias e não terem como ficar junto delas, nos finais de semana, os migrantes assimilam esse sistema
mais facilmente do que os trabalhadores locais.
A superexploração da força de trabalho dos cortadores de cana é uma constante, no cotidiano
do processo de trabalho. Além de as empresas estabelecerem uma meta de produção, como condição
para a contratação e a permanência dos trabalhadores, no corte de cana, ainda utilizam determinados
artifícios para estimulá-los a aumentar sua produção. Nesse sentido, podemos mencionar os sistemas de
bonificação e de premiações implantados pelas empresas agroindustriais canavieiras, para agraciar os
trabalhadores que conseguirem cortar mais toneladas de cana/dia. Sem se darem conta de que estão
56
Como, por exemplo, o da Professora Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP) e
do Professor Francisco Alves (UFSCar), sobre a morte dos trabalhadores rurais nos
canaviais paulistas.
57
Fato constatado em pesquisa de campo. No entanto, há que se destacar que o uso
desses energéticos ainda é passível de investigação, tendo em vista não estarmos
certos de sua composição,nem dos efeitos que eles podem causar aos trabalhadores.
sendo tratados como máquinas, esses trabalhadores alimentam falsas expectativas de que, trabalhando
mais, estarão ganhando mais58.
Durante pesquisa de campo, detectamos que algumas empresas já estão abandonando esse
sistema de bonificação e premiação, pelo fato de este ter provocado algumas divergências entre os
trabalhadores, os quais se sentiram ameaçados59. Vê-se, por conseguinte, que a estratégia da premiação
adotada pelas empresas para incentivar o trabalhador a produzir mais e que, em princípio, figura para o
capital como algo positivo, tendo em vista que a premiação de uns pode estimular os outros a também
produzirem mais, está surtindo um efeito contrário, à medida que gera insatisfação entre aqueles que
acham que também merecem uma premiação e não são contemplados. De repente, o que poderia se
reverter em ganhos de produtividade se transforma em insatisfações e divergências internas aos grupos
de trabalhadores, de modo que, assim, “o feitiço se volta contra o feiticeiro”. Nesse momento, o capital
recua, pois, para ele, essa espécie de estímulo incitado e coercitivo só é interessante enquanto se reflete
positivamente, no processo de trabalho.
No âmbito dessa moderna forma de produzir (pautada na automação, na mecanização e em
novas formas de gestão e controle do processo de produção e de trabalho), decorrente do processo de
reestruturação produtiva do capital – e do capital agroindustrial canavieiro, de modo particular –, a
precarização e a superexploração do trabalho se manifestam sob os mais diversos aspectos, seja no
descumprimento da legislação trabalhista, como falta de registro em carteira, intensificação da jornada de
trabalho, baixos salários e/ou fraudes no pagamento da produção por tonelada de cana, desrespeito às
normas de saúde e segurança do trabalhador, precariedade das condições de moradia e alimentação,
metas de produção abusivas e estratégias de estimulação incitada e coercitiva, via prêmios e bônus; seja
por meio da insegurança laboral que se instaura no universo desses trabalhadores, por conta da
mecanização do corte de cana e das pressões sofridas mediante reivindicação de direitos, que ameaçam a
manutenção do emprego.
58
A esse respeito, Thomaz Júnior (2002) denomina de Bingo da Morte o esquema no
qual os trabalhadores são submetidos pelo capital para trabalharem até a exaustão, já
que são remunerados por produção. Nesse sistema espoliativo, que nos remete ao
século XVIII, os trabalhadores – para perfazerem mais rendimentos –estão, de fato, no
entendimento do autor, antecipando sua morte, em vista do grande dispêndio de energia
e desgaste físico, que não têm reposição à altura dos ganhos alcançados.
59
Em depoimentos feitos pelos próprios trabalhadores, durante pesquisa de campo, no
Triângulo Mineiro.
empregadores exercitarem ainda mais suas manobras, intensificando,
assim, o quadro de superexploração da força de trabalho no meio rural.
Tudo isso suscita um repensar sobre toda a orquestração de interesses que fortalece esse
modelo de produção referenciado no agronegócio, que intensifica as contradições e acirra a luta de
classes. Faz-se necessário atentar para alternativas que sinalizem para além do silenciamento e do
distanciamento das lutas, as quais apontam para a resistência a essas condições impostas, qualificar o
enfrentamento com o capital na busca de novos referencias e de um modelo de sociedade para além do
que está posto. As trilhas desse caminho estão sendo traçadas: se chegaremos à concretude... o tempo
dirá!
Referências Bibliográficas
ALVES, F. Por que morrem os cortadores de cana? Disponível
em:<http://www.adital.com.br/site/tema.asp?lang=PT&cod=23&currpag
e=4>. Acesso em: 10 jul. 2006.
ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: Reestruturação
produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre a
metamorfose e a centralidade do mundo do trabalho.
São Paulo: Cortez; Campinas: Editora UNICAMP,
1998.
______ Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a
afirmação e a negação do trabalho. 4.ed. São Paulo:
Boitempo, 2001.
______. A dialética do trabalho: escritos de Marx e
Engels. (Org.). 2.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2005.
ANTUNES, R.; SILVA, M. A. Moraes. (Orgs.) O avesso
do trabalho. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA nº 410, de 28 de dezembro de 2007.
Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2007-
2010/2007/Mpv/410.htm> Acesso em: 20 jan. 2008.
CADERNO DE FORMAÇÃO. A OMC e os efeitos destrutivos da
indústria da cana no Brasil. Recife: CPT/PE, abril de 2006.
DOSSIÊ: Rota da Mobilidade Humana para o Interior Paulista -
2001 – 2003. PASTORAL DOS MIGRANTES/GUARIBA-DIOCESE
DE JABOTICABAL – SP.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos
territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo:
Annablume, 2005 (Coleção Geografia e Adjacências).
IDEANEWS - ONLINE. A cana fez o mundo “redescobrir” o Brasil.
Conjuntura. Disponível em:
<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8> Acesso
em: 17 jan. 2008.
JORNALCANA. Infinity Bio-Energy investirá R$ 85 milhões na
Alcana – Produção, Dados e Notícias – Edição nº158, p. 38, fevereiro de
2007. Disponível em:
<http://www.jornalcana.com.br/conteudo/Edicoes.asp?Edicao=158>
Acesso em: 20 jan. 2008.
MAGALHÃES, J. G. A “cidade-dormitório” de Palmares Paulista: a
senzala moderna. Disponível em:
<http://www.pastoraldomigrante.org.br/artigo14.html >. Acesso em 02
abr. 2007.
MARX, K. O Capital: Livro I; Capítulo VI (inédito). São Paulo: Ciências
Humanas, 1978.
MENEGAT, M. O olho da barbárie. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2006 (Coleção Trabalho e
Emancipação).
MÉZAROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo:
Boitempo, 2006.
MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico?
Por uma epistemologia crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
NORMA regulamentadora de segurança e saúde no trabalho na agricultura,
pecuária silvicultura, exploração florestal e aqüicultura – NR 31(Portaria n.º 86,
de 03/03/05 - DOU de 04/03/05)
NOVAES, J.R.; ALVES, F. (Orgs.) Exploração do
trabalho e luta por direitos na região de Ribeirão
Preto – SP. In: No Eito da Cana. Rio de Janeiro:
FERAESP/UfSCar/UFRJ, 2003.
OLIVEIRA, A. U. Barbárie e modernidade: o agronegócio e as
transformações no campo. Cadernos do XII Encontro Nacional do
MST. São Paulo: MST, 2004.
OLIVEIRA, A. M. S. A relação capital-trabalho na agroindústria
sucroalcooleira paulista e intensificação do corte mecanizado: gestão
do trabalho e certificação ambiental. 2003. 215f. Dissertação (Mestrado
em Geografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente
Prudente, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2003.
______ A reestruturação produtiva do capital na agroindústria canavieira
paulista e os desdobramentos para o trabalho. In: THOMAZ JÚNIOR,
A. Geografia e Trabalho no Século XXI. Presidente Prudente:
Centelha, 2004. Vol. 1. p. 70-104.
______ As Mudanças no Mundo do Trabalho e Movimento Sindical no
Brasil (uma breve reflexão). Revista Pegada, Presidente Prudente, v.01,
n.06, 2005.
PORTO DE SANTOS. Estrangeiros compram mais participação
acionária na Cosan. DCI – Agronegócios – página B4. 13 de dezembro
de 2006 – (Assessoria de Comunicação Social). Disponível em:
<http://www.portodesantos.com/cg-local/imprensa/mostrar.pl?1855...>
Acesso em: 22 jan. 2008.
RODRIGUES, D.; ORTIZ, L. Em direção à sustentabilidade da
produção de etanol de cana de açúcar no Brasil. (Dossiê) Disponível
em: <http://www.vitaecivilis.org.br/anexos/etanol_sustentabilidade.pdf>.
Acesso em: 21 de mar. de 2007.
SILVA, M. A. M. Se eu pudesse eu quebraria todas as máquinas. In:
ANTUNES, R.; SILVA, M. A. M. O avesso do Trabalho. 1.ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2004, p.111-141.
______. A morte ronda os canaviais paulistas. In: REVISTA
REFORMA AGRÁRIA, vol. 33- n.2 . São Paulo: ABRA - ago/dez
2006.
SULNEWS. Usina muda a rotina do Vale do Ivinhema. Junho de
2007. Disponível em:
<http://www.sulnews.com.br/ler.asp?id_noticia=10466> Acesso em: 20
jan. 2008.
TOLEDO, M. Estado prevê ‘mar verde’ de cana em 2015. FOLHA
RIBEIRÃO, 02 de Janeiro de 2008. Disponível em:
<http://www.pastoraldomigrante.org.br/> Acesso em: Acesso em: 04
fev. 2008.
THOMAZ JÚNIOR, A. A territorialização do monopólio: as
agroindústrias canavieiras em Jaboticabal (Dissertação de Mestrado).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo,1989.
______. Por trás dos canaviais, os nós da cana. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.
______. Se camponês, se operário! Limites e perspectivas para a
compreensão da classe trabalhadora no Brasil. In: THOMAZ JÚNIOR.,
A.; CARVALHAL, M. D., CARVALHAL, T. B. (Orgs.). Geografia e
Trabalho no Século XXI, Volume II. Presidente Prudente, p.130-167,
2006.
A Urdidura do Capital e do Trabalho nas Áreas de Cerrado ∗
1. Urdindo a prosa...
territorial.
∗
Este texto é parte da tese de doutorado “A urdidura espacial do capital e do trabalho no Cerrado do Sudeste
Goiano
”, defendida em setembro de 2004, e orientada pelo professor Antonio Thomaz
Júnior. Disponível em: http://www.prudente.unesp.br/ceget
∗∗ Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás
, (UFG) - Campus Catalão; membro do Grupo de
Estudos Trabalho e Movimentos Sociais GETeM UFG/Campus de Catalão membro do
( )/ ; Grupo de Pesquisa “Centro de
Estudos de Geografia do Trabalho FCT/UNESP/Presidente Prudente
” (CEGeT)/ .
explicitou mudanças no seio do metabolismo social do capital
Cerrado.
60
Sujeitos sociais que exercem labor e/ou têm na terra as condições essenciais para a
sua sobrevivência material e imaterial.
programas estatais, estimularam os investimentos dos empresários
61
Refere-se às classes sociais trabalhadoras/produtoras que historicamente viveram nas
áreas de Cerrado e constituíram formas de uso e exploração da terra a partir das
diferenciações naturais-sociais, experimentando formas materiais e imateriais de
trabalho, que denotam relações sociais de produção e de trabalho muito próprias e em
acordo com as condições ambientais, resultando em múltiplas práticas sócio-culturais.
pouco produtivas em celeiros agrícolas. O custo social e ambiental da
63
A partir da década de 1980, Goiás se tornou um grande laboratório de políticas de
“compensação social”, atendendo as demandas de milhares de famílias –
trabalhadores/camponeses, que, expulsas do campo, ocupavam de forma desordenada
as áreas urbanas, principalmente as metrópoles (Goiânia e Brasília), mas também nas
médias cidades goianas. A política clientelista conservava o estilo populista, como
forma de amainar as possíveis convulsões sociais e consolidava o novo pacto social
entre as velhas elites oligárquicas e os empresários rurais. O Estado acenava com
estímulos fiscais e infra-estrutura assegurando a modernização conservadora da
agricultura e, concomitantemente, acalentava os trabalhadores/produtores
desterritorializados com políticas assistencialistas (indigência assistida), perpetuando
no poder as elites conservadoras.
trabalhadores, assim como, as diferenciações entre as várias realidades
quanto na cidade.
enquanto milhões clamam por pão para seus filhos. Quando é adotado o
realidade.
humana.
classe trabalhadora.
trabalho.
6. Referências bibliográficas
∗
Este texto, composto por itens do quarto capítulo de nossa dissertação –
concluída em 2002 e sob a orientação do professor Antonio Thomaz Júnior,
põe em questão as características da inserção-exclusão de indígenas no
processo de corte de cana-de-açúcar no Estado do Mato Grosso do Sul,
particularmente no âmbito da Usina e Destilaria Brasilândia S/A (DEBRASA), do
Grupo J. Pessoa.
∗∗
Professor Doutor do Colegiado de Geografia da UFT/Araguaína. E-mail:
jcezarr@hotmail.com
decifrada mediante a capacidade ontológica (analítica e sistematizadora)
de superação das capas da aparência que a parte-todo do lugar-global
possui e, especialmente, as diferenças que o desafiam, por meio do
transmigrar pelas dimensões do singular-particular-universal. Com isso,
a análise métrico-quantitativa cede espaço à dialético-qualitativa e o
real-global se torna inteligível sem que seja sempre necessário o focar de
grandes dimensões territoriais, que só trazem o esquecimento das
diferenças pelo pragmatismo modelístico dos métodos analítico-
quantitativos costumeiramente empregados. Apostamos na idéia de que a
via da escala qualitativa deve ser o meio de averiguação do real e a
expressão territorial cartografada o auxílio formal de representação e
repensar do fenômeno (expresso paisagisticamente), haja vista que
singular, particular e universal não se definem em-si, matematicamente e
como níveis autônomos, correspondendo antes a dimensões
dialeticamente conexas e inerentes funcionalmente à ordem sócio-
territorial.
A parte é a totalidade e a totalidade é a parte.
Na rede técnico-científico-informacional integradora dos
lugares-nós da muito aludida Aldeia Global (que ironicamente nega as
Aldeias Locais), a DEBRASA apresenta-se como centro agroindustrial
atrativo de força de trabalho índia e não-índia na região de Dourados; e
as relações que mantém com o mercado interno e externo, pelos fluxos
aos quais consome e irradia (absorvendo novas espécies agrícolas,
técnicas de cultivo e produção e emitindo seus produtos), a faz participar
da economia transnacionalizada com a particularidade de ter na “semi-
escravidão” (escravidão capitalista não-salariada ou precariamente
salariada) o elo de ligação com outros centros financeiros e
consumidores armados pela geografia econômica global.
Em meio a essa ordem é que os índios começam a adentrar os
portões da Fazenda DEBRASA. Daí por diante enfrentarão árduas
tarefas; sofrerão conseqüências e se voltarão contra os que vêem como
agressores e ameaças, das mais variadas formas.
Não percamos de vista os motivos maiores que levaram à captura
desse quartel operário: pelo contexto de desgraça, como paradoxalmente
no flamejar da centelha da esperança, é que devem ser avaliadas a
(re)ação indígena.
Como recorrência da pressão que lhe recaía de determinados
setores da esfera pública e da sociedade civil, este foi o meio encontrado
pela DEBRASA para substituir e diminuir o contingente de
trabalhadores “brancos” em sua propriedade, porque se disseminava
socialmente a informação da existência de escravidão branca em muitas
empresas (CORREIO DO ESTADO, 10/5/1991, 20-21/6/1992)64,
atraindo a atenção de instituições e da sociedade nacional (ibidem,
22/5/1992) e internacional, despertando inclusive a atenção de
organizações não-governamentais (id. 22/9/1994; O IMPARCIAL,
21/3/2000, p. A3).
Tratava-se de trabalhadores não-indígenas (nordestinos,
mineiros, etc.), que por serem considerados “brancos” pela mídia escrita,
acabaram sendo associados à “escravidão branca”, em relações de
trabalho caracterizadas por maus-tratos, faltas de pagamento e de
condições mínimas de realização do trabalho, proibição de abandonarem
o local pelo não-oferecimento de condução e retenção de documentos,
principalmente.
Continuar lucrando é a meta da DEBRASA, longe, se possível,
da atenção das objetivas da imprensa e dos repórteres;
fundamentalmente da escrita, que crescia significativamente (ARCE,
1997). A crise vinha se fortalecendo (CORREIO DO ESTADO,
5/2/1992) e era preciso medidas drásticas para remediá-la.
A década de 1990 ia-se delineando incerta não apenas ao setor
sucro-alcooleiro como a toda economia, que sentia a crise que se
arrastava desde os anos 1970 e que, aprofundando-se, após lenitivos
lampejos de crescimentos intermitentes, ampliava os índices de
desemprego, como um processo contínuo agravado, sobretudo, no
64
Essa expressão fora utilizada antes, até por membros do governo: em 4 de dezembro
de 1968 o então ministro da Justiça, Gama e Silva, em entrevista a um jornal, assim se
referia às condições de trabalho impostas aos trabalhadores rurais contratados por
empresários de vários cantos do país, taxando-as de “escravidão branca” (JORNAL
DO BRASIL, 4/12/1968 apud FIGUEIRA, 1999, p. 176).
fechamento da década e início do novo milênio (OPINIÃO
SOCIALISTA, 4/2/2000 a 19/2/2000), com o conseqüente lenimento dos
lucros a muitos setores econômicos, encarecimento do custo de vida,
readestramento do trabalhador, intensificação das lutas intracorporativas
e simultâneo esfacelamento do aparato sindical, mais míope às
estratégias de emancipação do ser que trabalha (THOMAZ JR., 2000a,
2000b), entre outras reviravoltas na lógica metabólica do capital e em
sua relação com a fonte do valor (o trabalho humano: substância e
medida dos valores65), cujas taxas médias invariavelmente tendem a se
reduzir quando das crises (COGGIOLA, 1998), repercutindo em
políticas não muito compensatórias por parte da base governamental, que
optou por seguir nos anos 1990 os ditames neoliberais na pessoa de um
Collor: o baluarte e inspirador dum personagem mais competente para o
desmonte dos direitos trabalhistas e desnacionalização de setores
produtivos e infra-estruturais do país, nada menos do que FHC (pessoa
certamente mais invejada por seus feitos do que os precursores das
políticas neoliberais no ocidente, como uma Thatcher na Inglaterra ou
um Reagan nos EUA, devido à velocidade e à magnitude que
alcançavam em curto período de tempo, nos seus dois “reinados”
consecutivos).
Nesse contexto de realização do trabalho, de polissemização da
fonte produtora de valor, ou seja, de multiplicação diferencial do ato
laborativo e dos mecanismos de sua realização, enlaçado à comunhão
funcional dos mecanismos preexistentes de realização do valor, urdidos à
reprodutibilidade macroescalar do capital, assim como dos novos
mecanismos de gestação do novo valor (auto-reproduzido sem nexo
65
Multiplicam-se as discussões sobre as transformações no mundo do trabalho, levada
a cabo pelas modificações nos mecanismos de realização do valor e todas as
implicações redundantes ao chão da fábrica, às organizações dos trabalhadores e, de
maneira geral, em toda a sociedade abarcada pela lógica econômica que extravasa os
muros das unidades produtoras de mercadorias, especialmente a partir da III Revolução
Tecnológica. Ver: ANTUNES, 1995, 2000; BIHR, 1998; GOUNET, 1999; HARVEY,
1993; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001; THOMAZ JR., 2000a, 2000b; MOREIRA,
1995, 2000; CAVALHEIRO, Opinião Socialista, 4/2/2000 a 19/2/2000; ALVES, 1999,
2000.
“aparente” com a base social produtiva, senão com o simulacro
imagético da engenharia política e do marketing externamente criados66),
é que se insere a escravidão humana, parcialmente assalariada ou não-
assalariada, em especial a indígena.
É no padrão de acumulação global do capital que as
multifacetadas situações de produção se ajuntam e, essencialmente,
conseguem se reproduzir. Por que territorialmente mais próxima e menos
experiente política e culturalmente no que atine às regras contratuais e às
artimanhas do jogo político da atmosfera capitalista, mesmo que
informais no plano da jurisdição legal, intensificar o uso da força de
trabalho índia foi a ação buscada por boa parte das empresas de vários
setores econômicos no Mato Grosso do Sul (CORREIO DO ESTADO,
22/5/1992, 22/9/1994, 22/12/1994).
66
Reforçamos aqui a reflexão sobre o poder que tem a imagem no mundo
contemporâneo, tal como Harvey, Castoriadis, Jameson, M. Santos, Gorender e outros
que se debruçaram sobre o assunto apontaram – cada qual a seu modo. A indagação é
se a mesma imagem, num mundo que os pós-modernos caracterizam como imerso em
múltiplos simulacros, não sustenta a especulação que dá origem ao novo valor,
“autônomo”; se ele não é derivativo, entre muitas outras combinações, das imagens que
várias regiões (ou as classes que as regem) se esforçam por criar na economia,
buscando atrair investimentos; logicamente que também amparada em certa
“estabilidade” econômica e potencialidade infra-estrutural, porém, multiplicadas
exponencialmente em relação a essa. A economia contemporânea reproduz-se coligada
à imagem criada de que o acumular sem produzir é mais seguro e rentável. Mas, até
quando? Não à toa vários personagens tentarem sempre que possível a aprovação de
medida de lançamento de imposto sobre o capital especulativo que viaja pelos países
para sugar juros, tentando amarrá-lo, de maneira consistente, à base produtiva, para a
geração duma riqueza empírica que seja capaz de (re)aquecer a economia mundial. Mas
parece que a idéia abstrata de riqueza autoparida descolou-se da materialidade,
pleiteando continuar a se reproduzir nas entranhas dos sistemas computadorizados e
informatizados. Ainda assim, já se sente que nem mesmo esses setores, denominados
de nova economia, demonstram ser os salva-vidas da economia, de superação de sua
crise; os que acreditavam ser um setor ileso às oscilações do mercado, o período
compreendido entre o fim dos anos 1990 e início do novo milênio comprovou não
existir nada seguro de antemão na economia capitalista, pois eram os títulos da Nasdaq
os que mais ficavam no vermelho, abaixo dos da economia clássica (Dow Jones). A
chamada “nova economia” já capengava, enquanto a “velha” há muito definha.
Menos custosos e pouco maliciosos, os índios eram vistos como
mais manobráveis; seres classicamente desprestigiados, desalojados,
discriminados socialmente; tidos como naturalmente inferiores, pobres e
“acostumados” com desconfortos seculares.
Os capitalistas viam tal estratégia como o fim dos transtornos;
sem embargo, como consegui-la senão com a participação da Fundação
Nacional de Apoio ao Índio (FUNAI): aliada importante da burguesia à
(quando) escravidão assalariada.
Numa ponta, tem-se a tétrica situação dos índios nas Reservas,
sobretudo as de Dourados (Horta Barbosa) e Amambaí (Benjamin
Constant), as que mais recorre a DEBRASA; sendo a primeira,
especialmente, a mais caracterizada por precárias condições de
subsistência, com aumento da miséria, fome e desnutrição, além de
arrendamento ilegal de terras a brancos ou índios “fazendeiros” da
própria aldeia67, presenciando-se doenças, prostituição, conflitos de
geração, desrespeito, agressão de capitães (lideranças indígenas que
seguem a risca as ordens do “coronel” administrador do Posto Indígena –
PIN), pressão familiar, aumentos do desespero e dos suicídios, dos
estupros68, entre outras desgraças. Na outra extremidade, punha-se o
estratagema capitalista de suplantação dos problemas pela via única de
sua inserção no universo do trabalho abstrato, que só contribuiu para
piorar a situação.
67
Essa prática crescia velozmente na Reserva Horta Barbosa. A concentração de terras
(ilegal na jurisdição oficial e reproduzida pelo ex-oficial da Polícia Federal que a
administrava, o Sr. Alexandre) aumentava a miséria dos índios, enquanto uma pequena
facção gozava de condições econômicas que permitia elegê-la ao status de
“fazendeiros” indígenas; enriqueciam-se, pois, por tais terras serem destituídas da
obrigação de pagamento de impostos, fazendo aumentar o seu arrendamento para os
não-índios forasteiros. Os índios não possuíam formas de cultivá-la, já que a FUNAI
não lhes prestava assistência. A saída do arrendamento enriquecia os poucos que
possuíam meios de cultivá-la, plantando grãos e estabelecendo a monocultura.
68
Uma das formas de estupro mais conhecidas na Reserva Horta Barbosa era a feira:
cerca de 20 rapazes, reunidos em bando, perseguiam e cercavam uma índia pelas
plantações da reserva, sendo que a ordem de chegada a mesma estabelecia a seqüência
no abuso de seu corpo (MEIHY, 1991).
A falta de subsídios e de vontade política da FUNAI para que os
índios sejam “autônomos” ou auto-suficientes em relação à sociedade
exógena (seja lhes fornecendo subsídios financeiros e ou implementos
agrícolas) é o veio pelo qual se buscava enfraquecer as bases em que
pudessem se amparar. Enfim, esquivando-se e promovendo a inserção
dos índios o quanto antes na sociedade nacional, como um cidadão como
os demais (como defendia o administrador do PIN de Dourados à época).
Aliás, um índio da Reserva Horta Barbosa, trabalhador havia 8
anos na DEBRASA, dizia, em entrevista, que apenas uma vez fora um
representante da FUNAI fazer-lhes visita, saber como estavam,
incluindo-se a fase mais preocupante, quando as denúncias de escravidão
escandalizavam a região e o país: “Eu trabalho aqui há 8 anos e só veio
uma vez, viu nós e foi embora...”.
O “coronel” da Reserva – como os índios identificavam o
administrador – buscava de todas as formas lucrar com a tutela dos
índios; recebia por alugar sua força de trabalho para capitalistas,
inclusive dos que registravam a carteira de trabalho e que, pela
jurisdição, deveriam perder os direitos de tutelado; provavelmente
também lucrava com a permissão ao cultivo das terras da aldeia por
outros que não os índios; ganhava atenção, prestígio e recursos com os
ludâmbulos que visitavam aldeias como a de Dourados (a maior do
Brasil em termos populacionais). Estranho não seria se lucrasse com a
permissão concedida para alguns comerciantes venderem bebidas
alcoólicas nas casas de comércio internas a Reserva; chegou mesmo a
alegar que os índios as buscavam na cidade de Dourados e que era difícil
impedir seu tráfego pela rodovia que a corta a Reserva – uma total
inverdade: era bastante facilitado o acesso de bebidas dentro da mesma,
e mais improvável é o fato do diretor do PIN não ter-se dado conta disso;
em breve lucraria também com a construção erguida pelos índios ao lado
do PIN, onde se apresentariam danças e se realizaria comércio com os
vestígios culturais remanescentes (confecção de colares, arcos e objetos
típicos, que já contavam com materiais não coletados de seu meio, vez
que índios iam sempre à cidade de Dourados comprar elementos
plásticos brilhosos com os quais adicionam as sementes das árvores nos
colares, e mesmo as sementes que não correspondiam ao seu
ecossistema).
Metamorfoseava-se a aldeia douradense quase que num
zoológico; não esporádica era a visita de ludâmbulos (americanos e
alemães, sobretudo), a inspecionar dentes e corpos de índios como o de
animais exóticos, homens pré-históricos. Como era de se esperar: o
administrador da aldeia, que lucrava com esse estado de calamidade,
argumentava serem esses os meios disponíveis para arrecadar recursos
que permitiriam o auto-sustento da Reserva, por serem escassos os
enviados pela União. Esse senhor chegou a tentar manipular os índios no
dia do qüingentésimo aniversário da chegada cabralina: pretendeu levá-
los em massa à praça da cidade de Dourados para apresentarem
encenações e danças típicas e demonstrarem uma “mesma” visão de
repúdio ante os festejos ideológicos disseminados no país. Não perdeu
tempo: tentou fazer do episódio histórico uma chance para criar a boa
imagem; desviando para os aparelhos de Estado a culpa pelo que não
podia ser feito de melhor69, passando a mensagem de que, apesar de
tudo, sua militância pessoal era visivelmente incansável.
Perspectivava, assim, ludibriar os índios e a sociedade regional
com uma suposta dedicação; propagandeando a reserva para atrair
turistas e lucrar com seus “dólares”. Não possuía qualquer preocupação
humana, nem os via como humanos; tratava-os como animais, agredindo
quem quer que fosse, sem hesitação.
Os índios já haviam se apercebido disso; estavam longe de terem
uma relação cordial; a maioria reconhecera a relação que mantinham:
69
Não se sabe se os recursos destinados à época à manutenção da aldeia eram tão
irrisórios, como defendeu o diretor do PIN de Dourados em abril de 2000. Algumas
informações coletadas em entrevistas, com pesquisadores do CEUD/MS, que se
dedicavam à temática indígena, remetiam as cifras a um passado não muito distante a
ordem dos R$ 60 mil. Obviamente que não é muito se se pretendia dar aos índios um
pouco do muito que merecem, mas para uma administração honesta muito poderia ser
feito com a quantia: no mínimo se evitar a fome. Se as cifras recrudesceram não se
soube; se sabe que a miséria, a inoperância e exploração dos tutores aumentaram bem
mais que os recursos financeiros enviados e do que a desvalorização da moeda nacional
presenciava.
recusando-se a participar dos atos da cidade, se negando às danças na
entrada da aldeia após o feito citadino, horas depois, em meio à rodovia,
por mais que seu diretor os tentasse persuadir.
A tensão entre direção e índios era perceptível. O respeito se
(con)fundia ao terror. “Capitães”estavam a espreitar e delatar os
“traidores”; o castigo não tardaria.
Aquele que desafiasse o “coronel”, ousando diminuir sua
responsabilidade, infringindo a hierarquia e riscando sua áurea vaidade,
mesmo tentando conseguir benefícios de pessoas ou organizações em
Dourados, era imediatamente obrigado a deixar temporária e até
definitivamente a aldeia, se não conseguissem merecer a confiança do
“coronel”; como era a situação em fins de abril de 2000, por exemplo,
duma família de terenas que declarou que seu chefe de família fora
afastado da aldeia pelo diretor do PIN, por ter atuado em prol da causa
índia junto aos organismos douradenses às “escondidas”; para o diretor,
um inadmissível desrespeito.
O capital adentrava mais violentamente as aldeias; regia suas
dinâmicas com tamanha brutalidade que muitos as abandonavam na
tentativa de encontrar lugares em que ele se reproduzisse de maneira
menos selvagem, a ponto de não ameaçar a existência.
Empregar-se; acumular fora o dinheiro que pudesse mantê-los se
alimentando na Reserva: assim é que começava a romaria às carvoarias,
empresas ervateiras e sucro-alcooleiras em especial. O diretor do PIN
estimulava essa prática; seus bolsos agradeciam.
70
Destacamos que esses números remetem ao ano de 1999, momento em que o Real
encontrava-se com quotas praticamente equivalentes ao Dólar, antes da desvalorização
e encarecimento do custo de vida. Não seria inadmissível a suposição de que se elevara
o preço pela disposição da força de trabalho indígena para operações externas à
Reserva, seja nas carvoarias ou destilarias, onde eram mais requeridas. Também se sabe
que boa parte ou a totalidade do dinheiro não era revertida aos aldeados e que era
embolsada pelo tutor do PIN; soubemos, via entrevistas, que chegava a ocorrer doações
de cabeças de gado à Reserva de Dourados e que as mesmas ficavam restritas ao alto
escalão dos administradores da aldeia e alguns convidados, em que a presença do índio
era representada pelos fiéis “colaboradores” (capitães) do funcionário da FUNAI, que
ainda permitia que alguns destes pudessem comprar a água-ardente que os entorpecia.
A aldeia já não era mais um local totalmente à parte, de preservação dos valores do
povo índio nos moldes tradicionais; estava contaminada internamente pela lógica
hierarquizante de individualização social dos sujeitos. Quanto menos afeito o diretor do
PIN a algum índio, maiores as chances de perseguição, desprestígio, expulsão e
violência física.
muitas famílias índias se prometiam possibilidades, para elas
miraculosas, de uma nova vida.
No que concernia ao contrato de trabalho na DEBRASA,
apresentava-se “admissível”; nada que assustasse de imediato os que
viviam em mais profunda miséria71; afinal, a idéia do trabalho fabricador
de mercadorias já fazia parte de seu quadro de referência mental,
tornando-se meio de conseguimento da existência para determinada
parcela de índios. Desta feita, pelas cláusulas contratuais da locação de
serviços da DEBRASA, estipulava-se aos trabalhadores rurais
contratados (locatários indígenas) as incumbências nas obrigações de
capina, corte e plantio da cana, como qualquer tarefa extra-oficial
exigida pelo contratante empresarial (locador).
A empresa ia se aproximando do seu objetivo: contenção de
custos e equilíbrio econômico-financeiro.
A mediação foram os índios e o fim projetado era a
modernização técnico-operacional: compra de máquinas colheitadeiras72,
extensão do projeto de irrigação, dentre outras inovações,
informacionais, por exemplo; readequando as forças produtivas pela via
da superexploração da força de trabalho e redução dos custos operativos.
Mas a inserção do índio ao universo de trabalho abstrato não era
invenção específica da década de 1990 no Mato Grosso do Sul, nem
mesmo na DEBRASA, que já a empregava nos anos de 1980 juntamente
71
A Reserva Horta Barbosa, que voltaremos a especificar mais adiante, não era a única
a apresentar esse quadro de miséria. Uma sugestiva matéria do jornal Correio do Estado
citou as mortes por desnutrição, maiormente de crianças, nas reservas da região de
Dourados: as aldeias Panambi e Panambizinho. Ver: “Misérias nas aldeias supera ao
Nordeste. Fome e desnutrição atingem cerca de 900 índios guaranis-kaiowás nas
aldeias Panambi e Panambizinho, principalmente as crianças”
(www.correiodoestado.com.br).
72
Até 1998 a DEBRASA utilizada 2 máquinas colheitadeiras para o corte da cana-de-
açúcar. Perto do fim de 1999 contava com 10 máquinas, cada uma com preço médio
estipulado em R$ 800 mil. Incríveis o acúmulo e o investimento duma empresa de porte
médio. Os índios e nordestinos estavam cumprindo com a sua parte para tão
avolumados capitais. E dizia-se que até o ano de 2001 as duas máquinas ainda
pretendidas cumpririam a meta de mecanização total da colheita.
com a força de trabalho de “brancos” de outras regiões e, muito
provavelmente, já o fazia desde sua fundação73.
Não obstante, a exploração que passou a empreender foi de uma
rudeza absoluta para um momento da história que se roga “moderno” e
por uma sociedade dita “civilizada”; na verdade, passado-presente-futuro
coexistem funcionalmente; muito do que pertenceu ou daquilo que era
considerada antiguidade faz-se modernizado, assim como a modernidade
possui muito de “antiquado”.
Consta como superexploração; lembrando aqui que o que
caracteriza o ato da exploração do trabalhador não é somente o nível das
condições de trabalho existentes mas a diferença estabelecida entre
aquilo que se produz socialmente (sob a forma de mercadoria) e aquilo
que se recebe (em forma monetarizada ou não); o que nos remete à
potencialidade técnica atingida espacialmente pela sociedade. Quanto
maior o abismo entre a riqueza criada e a distância do fabricador,
maiores os índices de exploração da mais-valia, de alienação de sua
energia vital, física e mental.
Daí o motivo de prefixarmos e aperfeiçoarmos a categoria
exploração para superexploração, pois a primeira se dá também em
países ditos centrais, ainda que as populações fruam de mais vantagens e
direitos conseguidos pela luta ao longo do tempo; o que não significa
dizer que não sejam exploradas, simplesmente sinaliza ao fato de ser
menos expressiva a exploração que em outros locais – como ocorre com
os países que possuem uma trajetória de superexploração e escravidão,
balizadas quando ainda da colonização e da qual não conseguem se
73
Há uma delimitação temporal que sugere que a DEBRASA voltou somente no
período posterior a 1990 a utilizar única e exclusivamente o montante de trabalhadores
indígenas (100% da mão-de-obra assalariada); afirmativa que partiu de seu diretor,
João Francisco das Chagas Neto. Todavia, existe farto material jornalístico, referente
ao período pós-90, asseverando que aos índios se mesclavam outros trabalhadores
temporários para contratos de 2 meses (em especial, migrantes nordestinos) (O
ESTADO DE SÃO PAULO, 16/9/1993; FOLHA DE SÃO PAULO, 16/9/1993); fato
que também pudemos comprovar em pesquisas de campo realizadas no final de 1999 e
meados do ano 2000.
livrar, ou seja, onde o capitalismo se faz mais bestial e desenfreado e a
organização político-combativa dos trabalhadores menos consolidada.
Feitos os esclarecimentos, fica mais fácil concordarmos com o
fato de serem as relações de trabalho estabelecidas entre índios e
empresas como designativas de superexploração, seja com o que se
chama de “semi-escravidão”, de precária remuneração, ou de ausência
total de pagamento ao trabalhador.
Então, a redução dos custos apontava para os grupos indígenas.
A menor distância, o favorecimento dos contatos sinalizava às Reservas
de Amambaí e de Dourados, ambas em território sulmatogrossense;
primeira e terceira colocadas em contingente de braços e onde a miséria
marcava sólida presença.
Fontes de mão-de-obra das quais haveriam de jorrar os lucros.
Lugares agrilhoados à lógica do capital, à rede econômica que se
estendia ao plano nacional, devido às ramificações mercantis referentes
ao processamento e distribuição de seus derivados no mercado de
consumo que se desdobrava interna e externamente às fronteiras do país,
uma vez que a DEBRASA, no final dos anos 1990, possuía como
escoadouro de seus destilados os municípios de Ourinhos e Assis no
Estado de São Paulo, e Cuiabá no Mato Grosso; a rota internacional era
o Rio Paraná, ganhando provavelmente países do Mercosul.
Guaranis, terenas e kaiowás: as etnias presentes nos cativeiros de
mão-de-obra das aldeias que se postavam à exploração capitalista.
Os terenas, mais bem adaptados ao mundo “externo”,
mostravam-se mais afeitos com as regras do jogo do trabalhar-escutar. A
subjetividade de seu ser, a representação mental que (lhes) construíam
de si, do meio e do Outro possuíam ingredientes dominantes; foram mais
cooptados (assimilados) pelo sistema, a ponto de negarem suas origens,
se diferenciarem e se distanciarem dos guaranis, enrijecendo diferenças
culturais, coibindo e dilacerando possíveis fusões político-sociais;
embora tenham ocorrido, nas comemorações quincentenárias terenas,
muitas danças, atividades esportivas e tentativa de manutenção de
elementos culturais, verificáveis, por exemplo, nas roupas típicas que
vestiam; parte expressiva dos índios (sobretudo os mais jovens), apenas
assistia passiva e à distância o que se passava – por vezes, quando
perguntados aos jovens o porquê do isolamento aos festejos, as respostas
demonstravam receio e desdém para com os caracteres culturais de sua
gente.
A tentativa de preservação do passado, principalmente por
aqueles de idades mais avançadas, encontravam a resistência duma
juventude confusa e iludida com a possibilidade de integrar e desfrutar
do imaginário e da cultura da sociedade do mercado. Isso era o que se
passa principalmente com muitos dos terenas (particularmente os que
estavam em idade escolar e que tinham de deslocar-se a Dourados, por
exemplo).
Característica presente nas duas aldeias da Reserva, tanto a
Jaguapirú dos terenas como a Bororo dos Guarani e Kaiowá (essa
segregação étnico-territorial não era absoluta: alguns índios terenas
habitavam o lado Bororo e os Guarani, o lado Jaguapirú); conquanto as
tentativas de preservação da cultura tivessem uma preocupação maior na
aldeia Bororo. Algumas construções típicas dos Guarani confirmavam
esse fato paisagisticamente, embora as residências de madeira fossem a
regra na Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa, além de algumas de
alvenaria, organizadas pelo traçar retilíneo das ruas – o que serve apenas
como um possível indicativo das mudanças, insuficiente para qualquer
conclusão precipitada, a respeito da profundidade e alcance de tais
assimilações em seu universo cultural.
As históricas oposições étnico-culturais dos grupos indígenas
assumiam a contradição inerente ao modo de produção capitalista,
expressa na fragmentação interna ao proletariado, nas clivagens político-
econômicas da sociedade hegemônica, como a que pudemos facilmente
perceber em nível de representação político-sindical.
O diferenciar possuía íntima relação com a capacidade de se
assimilar a cultura e as normas da economia de mercado e, dessa forma,
principalmente de nelas se sobressair, para muitos que experienciavam
essas mudanças. O ser melhor ou mais capacitado perpassava cada vez
mais esse desafio; e os terenas vinham até o momento se mostrando mais
aptos ao destaque que as outras etnias quando o assunto era competir e
acumular terras e posições sociais, penetrando se necessário o mundo da
educação formal exógena – pelo menos é o que era evidente na Reserva
Francisco Horta Barbosa. A diferença interétnica deixava de ser aquela
cultura tradicional para ser tipificada pelas clivagens do regime do
capital.
Tentava-se assim, suprimir no plano cultural toda a
sociodiversidade caracterizadora das populações brasileiras e mundiais
para que o capital pudesse melhor operar a sua forma cultural específica
de tratamento jurídico-legal.
Difícil aos índios (terenas, principalmente) se aperceberem disso
e ou, em se apercebendo, de se convencerem em optar por um
comportamento que não o que assumiam; priorizavam a satisfação das
necessidades imediatas, sem capacidade de se enxergarem no
movimento em que todos estavam imersos, por mais que acreditassem
em posições diferenciadas.
Os capitalistas, sobretudo os da DEBRASA, estabeleciam a
hegemonia e congregavam o quartel do operariado rural.
O quadro de trabalhadores rurais constituía-se excepcionalmente
de homens. Empregar índios tinha suas compensações quando
computados os ganhos no final do processo laborativo, apesar de sua
produtividade ser inferior, se comparada aos trabalhadores não-indígenas
(os índios faziam várias paradas, tomando tereré e fazendo rodas de
conversas, em vários instantes do dia).
A produtividade média de 7,2 ton./dia desse gênero, além de
superior à da mão-de-obra feminina índia, permitia à empresa evitar
imprevistos suscetíveis àquela força de trabalho, como gravidez,
estupros, menor resistência e adaptabilidade ao trabalho no canavial
(bastante penoso aos próprios homens); se por acaso a produtividade
fosse ainda menor por pessoa empregada, necessário era se calcular uma
remuneração igualmente menor, que compensasse a relação produção-
vendagem-lucravidade com os trabalhadores. E é nesse caso que os
índios menores de idade mais sofriam, fosse na primeira ou segunda
metade da década de 1990 (CORREIO DO ESTADO, 21/7/1994).
Desditosos com o futuro a lhes ser reservado em sua permanência
na aldeia e com objetivos concretos de satisfação de seus sonhos de
consumo fora dela, índios de 14, 15 e 16 anos (às vezes, até menos)
deixavam a família, a aldeia e os amigos em busca de algo mais, algo de
melhor; buscavam o emprego que satisfizesse seus sonhos, sua família,
lhe permitindo conhecer outros lugares e outras pessoas; em busca de
algo que preenchesse um vazio ao qual desconheciam origem e que
crescia em seu ser.
Partiam...
Já na empresa, os indígenas menores deveriam trabalhar
obrigatoriamente 8 horas diárias, no corte da cana e na coleta dos
fragmentos ou restolhos deixados pelo terreno; recebiam, por isso, a
denominação de “bituqueiros”. Muito embora seja difícil atribuir a
imaturidade físico-biológica deles através da menoridade etária da ótica
jurídica da sociedade hegemônica, tendo em vista que os índios em seus
14 e 16 anos já contraíam conúbio em proporções expressivas nas
reservas; sendo freqüente o número de divórcios e até a existência de
paternidade. O fato, inelutável, é que seja qual fosse o estado de
maturidade psicológica e de idade mental que possuíam, a pressão era
maior; como também era àqueles considerados de meia idade, índios ou
não.
De nada importava; a introdução do índio decorria dos cálculos
aritméticos e, em menor proporção, da proposta estratégica de
“esquecimento” popular e fuga das objetivas e das páginas da mídia
escrita e dos noticiários da imprensa.
Com isso, a rede estava quase totalmente tecida. Os lugares e os
sujeitos estavam sendo coligados, tornando-se interdependentes. O raio
de influência irradiava-se da empresa; atingia, também, a FUNAI e os
índios das aldeias; conseguia o aval do cacique e se projetava aos
“cabeçantes” e “gatos” (índios eleitos intermediários entre a empresa e
os aldeados).
Os “gatos” ou cabeçantes passavam a ser uma das principais
figuras na coordenação do empreendimento; cabia-lhes a defesa dos
interesses dos locadores, sentir-se importante e fiel à mesma,
prontificando-se em assumir, se e quando necessário, uma posição de
adversidade para com os “semelhantes” aldeados. A aliança de índios
dentro da aldeia (com o dirigente da FUNAI) ou fora dela (em empresas
como a DEBRASA), era o sonho de todo aquele que não media esforço e
popularidade para deixar de ser um miserável, ou pelo menos de passar a
ter modestos privilégios; não havia crise moral e de consciência que
impedisse a mudança de lado, a traição e a denúncia, para o gáudio dos
poderosos chefões do interior. Aqui, a tirania se afirmava projeto
componente da micrológica cotidiana do social índio.
A tirania cumpria o papel lhe imposto pela classe dominante
fundamental, fazendo os sujeitos se digladiarem na lei capitalista de
sobrevivência das espécies.
Destroçada muito da identidade de sua nação étnica, de sua raiz
territorial, de seu espírito comunal, cultural, em troca de posição superior
da hierarquia da gestão da empresa e na remuneração de seus serviços.
Uma tática que aparentava sobrevir tipicamente do paradigma toyotista
de cooptação do operário e sua oposição aos demais, mas que, sob
muitos aspectos, é muito mais antiga; secular, milenar na verdade74.
O toyotismo só veio a firmar enquanto regra a necessidade de
integração total do trabalhador às pretensões burguesas, com ares de co-
participação democrática aos que compunham a “família” da empresa-
casa; extensão da escravidão ao universo subjetivo, por meio do
adestramento e domínio mais sistemático dos pensamentos.
Pelos cuidados com a vigília dos trabalhadores, o controle da
conduta e a denúncia de movimentos de agitações grevistas, ou de seu
desempenho no trabalho, os cabeçantes não-índios receberiam 15% do
74
Não é difícil de se encontrar na literatura artifícios utilizados pelos capitalistas para
opor os trabalhadores, especificamente por meio da diferenciação de seus ganhos, sua
hierarquia funcional e condições materiais de reprodução social, até mesmo entre os
sindicatos. Para uma consulta inicial sugerimos: Bihr, 1998; Hobsbawm, 1987; Ribeiro;
Thomaz Jr., 2001. Mészáros (1993) já demonstrava a arte da manipulação discursiva
entre os gregos, no século IV a.C.; apontando o artifício ideológico da retórica que
objetivava, pela obediência das partes, manter a unidade orgânica do corpo social, com
a harmonia multifuncional das células e órgãos sociais.
salário dos índios; se fossem índios, a tendência seria de uma
percentagem menor.
Aí as vantagens para esse que era o índio indicado pelo diretor do
PIN e pela empresa e que, por isso, mais tinha assegurado o “salário”; os
outros podiam até ficar sem recebê-lo. Não obstante, a esmola do
cabeçante era necessária para desagregar os trabalhadores índios e gerar
uma clivagem político-organizacional. A DEBRASA sabia dessa
importância e, em época de grande pressão sócio-institucional, contava
com o apoio deles para congregar os índios em torno da causa
empresarial, fazendo-os assumir uma contraditoriedade a respeito dos
registros das carteiras de trabalho (VALENTE, Folha de São Paulo,
27/12/1998).
Para o ciclo contratual se fechar, alguns detalhes. A empresa
ainda cedia uma quantia de dinheiro para a família do índio na aldeia em
fins da década de 1990, uns R$ 80,00, antes que ele partisse para a
empresa; espécie de adiantamento a ser ressarcido quando de seu
primeiro dos dois “salários” – se é que viria a recebê-lo! (O que,
posteriormente, em princípios de 2000 mais precisamente, deixou de
fazer, conforme relatos fornecidos pelos próprios índios). Um
procedimento, na verdade, típico da “escravidão por dívida”, tão relatada
por diversos estudiosos brasileiros.
A diretoria da DEBRASA também argumentava que os salários
mensais seriam remetidos às famílias dos índios na aldeia, com o próprio
consentimento do contratado; porém, como essa mediação nem sempre
era firmada, por depender do “cabeçante” para levá-la pessoalmente, o
dinheiro que em muito ajudaria os familiares via de regra não chegava;
ficava com os índios, com os gastos arquitetados pela empresa: como
pagamento das dívidas “assumidas”; ficava pelos bares e copos de
aguardente, consumidos para afastar a dor das saudades e da falta de
tudo, principalmente da esperança e do amor à vida.
Qual a função do álcool para o índio? Escapatória e ou ultimato à
vida que dizem ser valiosa, e que, contudo, a ele se confirmava tragédia
cotidiana. Cela invisível que o prendia a relações desumanas
normalizadas e historicamente arraigadas nas mentes fabricadas como
típicas de uma pseudo-sensatez, mas no íntimo do ser seu, renegadas
instintivamente, ou pela memória como não-contempladoras de seu
desejo de o mais simples e realizado poder tornar o seu Ser? Ou é o
álcool o elo transitório de seu ser atual histórico hegemonicamente
“fabricado” com a memória instintivo-perceptiva de um Eu-Perdido e
inquieto: o pedágio de passagem ou o trânsito a uma fase diferente de
relacionar, viver, sentir?
Seria a tentativa esta de questionamento e ruptura com o dito
normal e reencontro com o seu “eu-individual” (síntese particular de seu
ethos) e coletivamente socializado, que as camadas hegemônicas
abafavam com o intento de a personalidade capitalística ditatoriamente
instituir. Os índios tentavam se reencontrar. O álcool era um dos elos
possíveis, e em meio ao canavial talvez o único meio sensitivo de
redescoberta de seu eu soterrado pelos burgueses, as sanguessugas que
moviam a sua existência com o roubo de sangue alheio.
É proibido o minúsculo sentir descontrolado. Se o álcool faz
brotar sentimentos não permitidos, proibi-o. O que quer a lógica posta é
o sentir compassado, controlado, cadenciado. Qualquer desafio se mostra
inoportuno e impertinente. Rotulado são pelos burgueses como os
malditos estimulantes a reativar o sentir descontrolado: potencialidade ao
refletir indignado, ou então, diminuição no grau de comparecimento e
produtividade do proletariado rural, que seja, pelas marcas dos facões em
seu corpo. Para sentimentos não permitidos, redescobertas do que se
deve estar encoberto, punição é a solução. Isenção: a imposição.
Agora, caminhemos para os fatos empíricos mais visíveis, àquilo
que se põe como vetores do alcoolismo e da mortandade.
Comecemos pelo contrato “oficial”. Sabemos que abarcava,
geralmente, de 60 a 80 dias e incluía assistência médico-hospitalar, entre
outros “benefícios”, como o direito dos índios retornarem à aldeia em
seus dias de festa para comemorações típicas (como o Dia dos Índios); o
que, segundo os próprios índios, nunca ocorria. Além disso, dizia ainda o
dirigente da empresa que a média da remuneração seria de dois salários
mensais, algo próximo a R$ 200,00 (na época, aproximadamente U$
200,00), com os devidos descontos com alimentação, moradia,
transporte, remédios para doenças e acidentes provocados pelo trabalho
(dores de cabeça com a aplicação do veneno, sem qualquer equipamento
de segurança, e as suturas nos cortes provocados pelos facões); podendo
até superar esse nível, o que dependeria exclusivamente de seu máximo
envolvimento e dedicação nas obrigações (sic!).
Belo e colorido quadro esse o pintado pela administração da
empresa em sua agradável sala diretora, não fosse os fatos contraditórios
em meio ao canavial a demonstrarem o quão apócrifas eram suas
palavras.
Necessário faz-se entender os nós da cana, diria Thomaz Jr.
(1996).
Ilhado e impossibilitado de perpetuação de seus costumes, dado o
cansaço resultante das longas jornadas de trabalho – que superavam de
longe as ditas 8 horas diárias –, os índios só poderiam retornar para a
aldeia quando cumprissem com o que se comprometeram a fazer. De
nada importava se a empresa omitia e não cumpria a sua parte; no jogo
de forças, eram os índios que tinham que executar o que estava acordado
no contrato e também o que o extrapolava.
Simples proletários; classe subalterna; dispunham apenas de sua
força de trabalho para vender; os capitalistas dominavam a situação,
criavam regras e as mudavam quando melhor entendessem.
Mal alojados, mal alimentados, mal tratados e mal trapidos.
Obrigados a arcar com gastos superfaturados pela empresa.
Retornando à aldeia, permaneceriam por cerca de 15 dias e
renovariam o contrato (com a FUNAI e a empresa) para um novo
período, também de 60 a 80 dias, caso quisessem ou se outra proposta de
emprego não possuíssem.
Optando por ir, recomeçava a labuta, interrompida somente a
mando da empresa, caso não estivesse cumprindo com rigor suas
funções e se estivesse gerando algum tipo de “problema” (greves e
tumultos); momento em que o dispensava sem qualquer remuneração
extra, relacionada a direitos com indenização trabalhista; inclusive
porque era contratado temporariamente.
Acertar o pagamento até o dia de trabalho é o que muito a
empresa fazia no caso de dispensa, descontando obviamente as
“despesas”.
Assim, deixava a empresa, fosse o motivo: a) a superexploração,
b) péssima remuneração, c) precária alimentação (muitas vezes as sobras
das refeições do restaurante dos trabalhadores da planta fabril, que
chegava estragada em meio ao canavial), d) ou roubo na tonelagem
colhida, e) nos gastos absurdos criados e ampliados na folha de
pagamento, f) na pressão e abusos de violência exercidos pela polícia ou
pelos agentes-feitores da empresa-cativeiro, entre muitos outros fatores.
Entretanto, nada contribuindo por facilitá-la; fato comum não apenas
entre os índios, sendo freqüente entre os não-indígenas (nordestinos,
etc.), pela demora da empresa em acertar as contas; quando executava,
tornava o prejuízo por parte dos fâmulos o maior possível, para que
ninguém mais ousasse desafiá-la.
É a forma da empresa se vingar do trabalhador, deixando “livre”
para ir, mas sem remuneração e quaisquer outros meios de abandoná-la.
Nisto muitos se lançavam à estrada, à sorte; isso quando não o prendiam
de maneira forçosa até que saudassem suas “dívidas”, honrando o
“acordado”.
Aspectos de uma escravatura ora explícita, ora dissimulada pela
“legalidade” contratual, nutando a captação da mais-valia absoluta com
os anseios de funcionalidade infra-estrutural.
Aos insatisfeitos: a punição física, o encarceramento ou a
liberação dificultada; espécie de lição para os insatisfeitos, “subversivos”
em potencial. Daí que a via mais comum em se deixar a empresa fosse
mesmo o fim do contrato, algumas vezes com o prazo alargado em
relação ao que fora originalmente estipulado.
A situação é mais ou menos esta a que se referiu um índio (que
preferimos não citar o nome), quando lhe perguntado se a empresa
permitia o retorno dos índios insatisfeitos à aldeia de origem: “Deixa, só
que ela não arruma passagem. Tem o nosso companheiro aqui que deu
baixa, mas a empresa não arrumou nem a passagem e segurou o
registro e ele está esperando carona para ir” (19/5/1991).
As regras contratuais possuíam mais limites que garantias aos
trabalhadores.
Para não dizer das isenções que a empresa, por essa tática
adotada (emprego por curto período), se permitia com os trabalhadores,
de todos e quaisquer gastos com encargos trabalhistas, como: INSS,
FGTS, descanso semanal remunerado, etc. O contrato era informal;
possuía registro apenas na Delegacia Regional do Trabalho, sem o
registro efetivo em carteira de trabalho e reconhecimento legal por isso
(Se se permitia, e se exigia o registro, era porque duraria pouco tempo...
O maquinamento espreitava e não era interessante a tantos órgãos
vigilantes desafiar).
É interessante observar que o nível de superexploração dos
trabalhadores na empresa, a conquista de mais-valia, indígena ou não-
indígena, variava ao longo do tempo. O grau de superexploração local
seguia as tendências do setor e do espaço de realização da economia
global, como uma rede interligada cujo problema num lugar-nó se
estendia, afetando os demais. A intensidade da superexploração variava
devido a vários problemas: da concorrência interna ao país com os
produtores paulistas, a concorrência no campo mundial, a queda do
consumo e ou crise de superprodução com a diminuição ou
estrangulamento da capacidade de realização do tempo de giro do
capital, aumento do exército de reserva, ou mesmo a personalidade
daquele que dirige os negócios, em nível microescalar (ou a política
oculta que mostrava preferências pelo diretor que os devia representar).
A única certeza em que se sustentavam, em suma, é que, seja
qual fosse a origem da ameaça à queda da taxa de lucro, seriam os índios
que pagariam por isso; com uma escravidão mais disfarçada ou
plenamente escancarada; entendendo tais fenômenos como contradições
capitalistas, a negação do capital como fenômeno capitalista, o efeito de
sua lógica (auto)destrutiva. Isso inaugurava ou redimensionava a nova
fase ao padrão de acumulação, pois, se na fase áurea da sociedade do
capital, no seu período pós-guerras, se verificou a expansão do mercado
de consumo e de trabalho por motivo da expansão do campo salarial,
com os auspícios do padrão de acumulação fordista, na fase pós-fordista,
por sua vez, quando entrava a sociedade do capital em crise profunda,
verificava-se o adensamento do processo de desproletarização,
dessalariamento, dessindicalização, etc., e simultânea revitalização do
setor especulativo (financeirismo); fazendo com que os setores
produtivos se enfraquecessem em investimentos de médio e longo prazo
e que o setor especulativo, de autovalorização instantânea, se
multiplicasse exponencialmente, de certa forma, à custa daqueles
produtivos; uma contradição que o capital laça sobre si mesmo, sobre as
relações de trabalho que o sustenta.
Mas pretendíamos no momento apenas rabiscar mais alguns
traços sobre essa tese com o objetivo de comprovar as relações múltiplas
e complexas que atravessam o mundo do trabalho; retornemos pois, à
sua explicitação mais empírica, relativa à realidade da empresa
DEBRASA, de que havia pouco tratávamos.
Aquela média de R$ 200,00 “pagos” aos índios, relatada pelo
porta-voz da empresa, era um engodo; nem os trabalhadores não-
indígenas a recebiam (apesar de serem vistos culturalmente como mais
humanos na hierarquia da sociedade brasileira, ou ocidental). A quantia
mediana que chegava em mão índia não ultrapassava os míseros R$
40,00; houve casos, retratados pelos próprios índios, de trabalhadores
receberem R$ 1,50/mês, no final da década de 1990.
O salário do diretor da empresa? Na época, superava os R$ 8 mil.
São muitos os dias de serviço negligenciados pela empresa no
momento do pagamento.
A partir da visão de um índio, que já conseguia melhor entrelaçar
as idéias e os sons na língua portuguesa, ao ser perguntado se estavam
sendo chamados para trabalhar contratados, respondeu:
75
Cabe a menção de que a DEBRASA não consta como exceção na questão de
“omissão” governamental; era essa uma regra nacional. Figueira (1999, p. 176-177)
fornece o exemplo da Wolkswagen, em Santana do Araguaia/PA, no início dos anos
1980, em que foi constatada a presença de trabalho escravo, sendo apenas os
empreiteiros da força de trabalho punidos e, a empresa, após vários anos de burocracia
jurídica, tão-só fora multada.
apenas notificava a relação contratual como ilegal, a dos trabalhadores
que não possuíam o registro da carteira de trabalho – caso da
DEBRASA, a guisa de exemplo.
Foi incomum esse feito na história econômica do Mato Grosso
do Sul. O Estado não podia se opor tanto à lógica do capital com o seu
arranjo oligárquico; Estado que dependia muito dessa classe (a mais
dinâmica na região, responsável por boa parte da captação de impostos)
e que nada mais era do que a personificação da mesma, por meios
diretos, com a infiltração de seus agentes dominantes ou administradores
eleitos ao seu gosto (o que permite a essa classe centralizar o poder
político-institucional, tornando-o a extensão de seu poder econômico).
Em meio a esse arranjo de forças, encontrava-se a força de trabalho em
situação de desvantagem; seriamente ameaçada pela investidura dos
capitalistas de se alçar à maximização dos lucros.
Embora ocorresse a ampliação do número de registros na carteira
de trabalho de índios, constatava-se que os resultados não tinham se
mostrado de muita eficácia, ao passo de vir a abolir definitivamente as
relações de trabalho mais criticadas. Além do mais, notava-se que muitos
dos próprios índios ainda se opunham ao registro, pois além de
compreenderem que isso não significaria o fim dos problemas aos quais
enfrentavam em meio ao canavial, entendiam que seu enquadramento
nos parâmetros empregatícios legais significaria se sujeitar ao grande
risco de perda da tutela conferida pelo Estado. Acrescente-se a isso a
crença que possuíam de que sua inserção individual no universo da
legalidade também contribuiria para fomentar sua “descaracterização” e
ou perda de identidade coletiva (um ponto de vista que, já dissemos,
certamente fora forjado pelos cabeçantes e, por detrás deles, pelos
gestores da DEBRASA). Não obstante a opção adotada impossibilitá-los
de um reclame institucional sobre qualquer direito trabalhista, visto que
se encontravam desguarnecidos juridicamente e à margem das ações da
CLT e de qualquer tipo representação político-sindical; não que a
representação oficial nos sindicatos constitui-se grande ganho: sabia-se
que a atuação dos sindicalistas não se diferenciava das práticas
hegemônicas presenciadas no cenário mundial, e que serviam
principalmente para captar recursos (com a taxa da sindicalização) e
aumentar a clivagem entre os operários, com a hierarquização funcional
e a paralisia político-combativa, assumindo uma postura de conformismo
e resignação (ANTUNES org., 1999, 2000; BIHR, 1998; THOMAZ JR.,
2000a).
Se os sindicatos aos índios de nada valiam, tal como se
apresentavam, se seus “direitos” (eram levados a crer que) se
“anulariam”, então sob que aspecto seria positivo – entendiam alguns
índios – a sua inserção no mercado de trabalho formal? O que mudaria?
Deveriam mesmo confiar que seria unicamente pelo viés da integração
completa no universo da legalidade dos direitos trabalhistas que
conseguiriam garantir a satisfação de suas necessidades imediatas? Ou as
antigas formas de organização autônomas ainda eram mais eficientes aos
seus propósitos? Teriam eles clareza dessas tendências?
Mais incertezas que certezas.
O certo é que de pouco valia a capacidade de representação
intercorporativa demonstrada pelo sindicato base de Rio Brilhante,
pertencente à eclética Federação dos Sindicatos do Mato Grosso do Sul.
A abrangência trabalhista que exercia, englobando todos os
trabalhadores das indústrias de fabricação de álcool e açúcar na região,
redundava em poucos significados práticos aos trabalhadores, porque as
ações de seus líderes continuavam expressivamente míopes e
conservadoras; desta forma, apesar da organicidade interna desse
sindicato se diferenciar das então existentes nos demais sindicatos do
Brasil, que se encontravam organizados em bases corporativas a
segmentar os trabalhadores industriais e rurais e os múltiplos
desdobramentos intersetoriais, os seus passos estavam efetivamente
amarrados à dinâmica do cenário global. Dispunha-se duma
singularidade de arranjo político-institucional de pouca serventia, que
não conseguia avançar para além dos marcos universais embrenhados na
particularidade política nacional.
Assim era Rio Brilhante: município sede duma organização
sindical que agrupava trabalhadores rurais, industriais e condutores;
único reconhecido oficialmente no Brasil a apresentar essa característica,
e que nada sabia fazer a esse respeito.
Assimilava-se politicamente à realidade dos aparatos sindicais do
país.
Na maioria dos sindicatos nacionais o que se via era a
fragmentação representativa, segundo a função de que se ocupava o
trabalhador na cadeia produtiva; sua fragmentação funcional na esteira
produtiva acompanhava e era alavancada pelo seu descolar ideológico do
processo de produção: sua alienação territorial individualizada ante o
mesmo levava, por conseguinte, à segregação e alienação político-
econômico-territorial de todos os demais trabalhadores, de toda a classe
em operação.
As regras de jogo do xadrez institucional, do que se apreendia,
possibilitava ao capital estender seu poderio acima de quaisquer limites
político-territoriais: sem fronteiras operacionais; o Estado garantia os
meios legais para que o capital se organizasse e mantivesse a hegemonia,
com suas ações a extrapolar os limites municipais, em mancha de cana
plantada e contratação de trabalhadores de outras regiões à região em
que se territorializava, por exemplo; possibilidade de manejo que para o
trabalhador não se apresentava nem como miragem (THOMAZ JR.,
1996, 1998; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).
Poderia ser essa uma vantagem política para os trabalhadores
sulmatogrossenses da região em apreço, se não fosse a representação
pluricategorial e metacorporativa uma brecha política mantida às
sombras da militância classista, por parte dos trabalhadores ou das
lideranças sindicais. Não havia base política de lideranças para que fosse
alargada essa fissura; talvez, por isso, o Estado não inferisse a ponto de
extingui-la.
O que se via, então, disse um “baiano” contratado pela
DEBRASA, era que:
4. Palavras finais
5. Referências bibliográficas
∗
Este texto expressa as principais idéias que extraímos de nossa tese de doutorado,
defendida em março de 2006, sob orientação dos professores Antonio Thomaz Júnior e
Antonio Cezar Leal.
∗∗
Professor dos Cursos de Geografia e de História da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul/UFMS, Campus de Nova Andradina; membro do Grupo de Pesquisa
“Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT) )/UNESP/Pres. Prudente; e
do Grupo de Pesquisa “Gestão Ambiental e Dinâmica Sócio Espacial”
(GADIS)/UNESP/Presidente Prudente.
76
De acordo com Miziara (2001), a primeira atividade industrial ligada à reciclagem no
Brasil foi a da indústria de trapos, que iniciou suas atividades em 1896, com um
aumento significativo a partir de 1918, tendo como principal motivo para esse aumento
a Primeira Guerra Mundial, que gerou uma oferta grande do material que poderia ser
recuperado. A recuperação se baseava na desfiação e posterior reaproveitamento dos
fios. Nasce também nesse momento um circuito econômico que passa a envolver o
trabalhador conhecido como trapeiro, que fazia a recolha e o enfardamento desse
material para os depósitos de trapo e para as indústrias da cidade. Atualmente, o
reaproveitamento através da reciclagem se dá em vários tipos de materiais, como o
papel, os plásticos, os metais, etc.
77
A Reciclagem de resíduos sólidos tornou-se uma das principais recomendações
descartados, impede-se o desperdício dos mesmos, economiza-se energia
e diminui-se, em parte, o ritmo crescente dos problemas ambientais
causados pela grande quantidade de resíduos gerados na atualidade, que
em grande parte não têm uma destinação e tratamento correto na maioria
dos municípios brasileiros (JUCA, 2003). Contudo, a principal força
motriz desse setor da economia é a lucratividade.
A expansão das atividades ligadas ao circuito econômico da
reciclagem de materiais no Brasil78 vem ocorrendo em quase todos os
ramos desse setor e tem alcançado números recordes naqueles em que o
processamento industrial dos materiais garante maior ganho, com
perspectiva de uma expansão crescente, como é o caso do papel/papelão
e dos plásticos em geral.
O crescimento da atividade fabril no reaproveitamento dos
diversos materiais recicláveis é concomitante à expansão de toda uma
estrutura que dá suporte e sustenta esse circuito econômico, de maneira
que vemos a ampliação do número e a diversificação dos demais agentes
econômicos que dele fazem parte, sejam os comerciantes de pequenas ou
grandes quantidades de resíduos recicláveis, conhecidos como sucateiros
ou atravessadores, sejam os trabalhadores catadores, envolvidos nesta
atividade das mais diversas formas e situações, nos lixões, nas ruas, nas
centrais de triagem, organizados autonomamente, ou em cooperativas,
associações de catadores etc.
Toda essa dimensão social e econômica territorializa-se em
vários centros urbanos brasileiros, tornando-se uma atividade econômica
que ocupa um expressivo contingente de trabalhadores na atividade da
“catação”, em condições precárias de trabalho, envolvendo uma estrutura
de compra-venda, transporte e armazenamento e pré-processamento
dessas mercadorias, que conforma uma complexa trama de relações.
indicadas pela Agenda 21, documento redigido em 1992 durante a ECO 92.
78
Barciote (1994); Leite (2000); Cortez; (2000). Dados sobre a reciclagem no Brasil
podem ser acessados nos seguintes sítios: http://www.alcan.com.br/;
http://www.tomralatasa.com.br/; http://www.abepet.com.br;
http://www.cempre.com.br.
Trabalhadores que são os responsáveis pelo crescimento dos
índices de recuperação dos resíduos para o setor industrial da reciclagem
dos materiais no Brasil, e também pelo aumento dos lucros obtidos
anualmente por este setor.
Para o entendimento de toda essa complexa organização que
envolve o circuito econômico da reciclagem de materiais, torna-se
necessário também apresentar uma questão primordial, ou seja, a taxa de
utilização decrescente das mercadorias79 no sistema do capital e que está
fundada na diminuição da vida útil destas mercadorias, sejam elas bens
duráveis ou não duráveis. Assim, diminui-se a vida útil das duráveis e
acelera-se o consumo das não duráveis, procurando torná-las cada vez
mais descartáveis.
Para diminuir a vida útil dos bens ditos duráveis, a estratégia
adotada é torná-los mais frágeis fisicamente ou obsoletos antes mesmo
de que se tornem inaptos a realizarem aquelas funções, para as quais
tenham sido projetados e produzidos, tudo isso com a finalidade de
manter uma demanda incessante (MÉSZÁROS, 2002).
A obsoletização prematura dos objetos que leva a seu
descarte/substituição alimenta, por exemplo, a expansão de ferros-velhos
dentro dos perímetros urbanos, utilizados para a acumulação dos
materiais presentes nos deferentes objetos para que possam vir a ser
recuperados, comercializados e reciclados. Em alguns casos, geram-se
verdadeiras montanhas de sucata, como no caso dos ferros velhos que
recebem os automóveis, eletrônicos ou móveis já inúteis ou
“envelhecidos”.
79
No capítulo XV, do livro Para Além do Capital, István Mészáros (2002), realiza uma
profunda discussão sobre a taxa de utilização decrescente no capitalismo, mostrando
como ela está diretamente ligada às transformações, aos avanços realizados pela
própria produtividade. (p.639). De acordo com o autor, essa taxa se revela na
proporção variável, sob a qual determinada sociedade utiliza a sua capacidade
produtiva para a produção de bens de consumo rápido em variação à produção de bens
de consumo duráveis ou reutilizáveis, ou seja, ao diminuir a vida útil da mercadoria
acelera-se o ciclo reprodutivo do capital.
No Brasil, a obsoletização precoce tem levado, no caso dos
automóveis e eletrônicos em geral, a um outro fenômeno: o acesso da
camada mais pobre às mercadorias que anteriormente não podiam ser
consumidas. Assim, vimos popularizar o videocassete, à medida que
avança o comércio dos aparelhos e locadoras de DVD’s. Os carros
velhos passam para a propriedade daqueles que não têm renda suficiente
para adquirir um veículo novo. Quem já não ajudou a empurrar um fusca
69 ou uma Brasília 78? Isso, longe de ser uma benesse para os pobres,
para grande parte dos trabalhadores, só demonstra a capacidade que
ainda tem o capital de expandir-se em países com grandes diferenças de
renda como o Brasil. Aqui, o obsoleto ainda pode render algum dinheiro
que complemente a quantia necessária para sua substituição, já que pode
ser objeto de desejo daqueles que nunca poderão ter um novo.
Esse mecanismo, a obsoletização, se junta a outras contradições
existentes dentro do sistema produtor de mercadorias: como basear-se no
desperdício e fazer críticas à devastação ambiental; pregar a qualidade
total dos produtos80 e diminuir a sua vida útil, etc. De acordo com
Antunes (1999, p.51):
80
De acordo com Antunes (1999), a necessidade do capital de ampliar cada vez mais a
produção de valores de troca, torna o projeto de qualidade total uma farsa, já que, o
movimento do capital em direção à garantia da qualidade é na verdade um movimento
em direção à diminuição da vida útil dos objetos. Desta forma a qualidade total não
deve impor-se como empecilho à taxa decrescente do valor de uso, estendendo os seus
efeitos destruidores até mesmo à força de trabalho humana. Todos sabemos o quanto
tem diminuído o tempo de duração das mercadorias, quão rápido tem se tornado o seu
“envelhecimento”, seja o físico, carros e geladeiras que apodrecem em tempos
relativamente curtos. (Geladeiras já não passam de mãe para filho) ou mesmo uma
obsoletização que se dá pela inovação, que torna o objeto velho, sem ter perdido a sua
função, bastam alguns novos botões e uma bela publicidade e, aqueles que podem,
substituem o não velho, mas “ultrapassado” objeto.
destrutividade acabam sendo os seus traços
determinantes.
81
Isso em todos os ramos dos diferentes produtos. Como sabemos a reciclagem é o
reaproveitamento de material através de um processo físico-químico que recupera as
suas potencialidades de uso, tornando-o inservível em servível, e é claro, recuperando
também o valor de troca destas mercadorias.
82
As definições encontradas para resíduos, ou lixo, são muito próximas: a) Resíduo;
Desta forma, o que foi mercadoria com determinadas qualidades
em um circuito específico, assume na condição de resíduo reciclável
outras qualidades, novamente como mercadoria, mas agora dentro de um
outro circuito econômico, que se estrutura e conta com a participação de
outros atores, mas tudo dentro da mesma lógica do capital.
Assim, a geração dessa matéria-prima, o resíduo reciclável, está
ligada diretamente ao consumo de outras mercadorias, que satisfazendo
ou não as necessidades daqueles que a consumiram, geraram sobras,
resíduos.
A satisfação de necessidades não é o objetivo primeiro de
nenhuma mercadoria produzida sob a égide do capital. Para Mészáros
(2002, p.659), como resultado, útil torna-se sinônimo de vendável, pelo
que o cordão umbilical que liga o modo de produção capitalista à
necessidade humana pode ser completamente cortado, sem que se perca
a aparência de ligação.
Neste sentido a produção capitalista não visa primordialmente à
satisfação da necessidade dos produtores diretos, ou de qualquer outro
membro da sociedade. O seu fim é garantir o ímpeto de reprodução do
capital através do consumo, e esta é a racionalidade, a razão que lhe dá
sentido. Daí, pouco interessar a utilidade ou o desperdício das
mercadorias por quem as adquire, desde que ela cumpra a sua função no
sistema do capital. De acordo com Mészáros (2002, p.661):
material ou resto de material cujo proprietário ou produtor não mais considera com
valor suficiente para conservá-lo. b) Lixo; um subproduto do conjunto de atividades
desenvolvidas pela sociedade com o objetivo de atender as suas necessidades de
consumo. (BARCIOTTE,1994)
evidenciando a utilidade da mercadoria em questão
por meio do seu ato de venda, nada mais há com que
se preocupar do ponto de vista do capital. De fato,
enquanto a demanda efetiva do mesmo tipo de
utilização é reproduzida com sucesso, quanto menos
uma mercadoria é realmente usada e reusada (em vez
de rapidamente consumida, o que é perfeitamente
aceitável para o sistema), melhor é do ponto de vista
do capital: já que tal subutilização torna vendável
outra peça da mercadoria.
83
A maior expressão dessa tendência está no crescimento da fabricação e do consumo
de produtos que se encontram em embalagens descartáveis e que geram uma grande
quantidade de resíduos sólidos nos domicílios e que não são aproveitados pelo
consumidor. As embalagens reutilizáveis estão sendo em sua maioria substituídas pelas
ditas descartáveis que facilitam o transporte e a comercialização dos produtos, não
exigindo uma logística de recolha, por exemplo, não obstante, aumentando a
lucratividade das empresas produtoras de embalagens. De acordo com o Engenheiro
Agrônomo Cícero Bley Junior, em palestra realizada durante o II Festival Lixo e
Cidadania, realizado em novembro de 2003 em Belo Horizonte, em 1999, foram
produzidas 5 milhões de toneladas de embalagens, posteriormente descartadas,
transformadas em lixo, gerando, pois, gastos públicos na sua coleta, tratamento e
disposição.
O que temos nesse exemplo, como aponta Mészáros (2002), é o
cumprimento de um destino previamente traçado. Tanto as mercadorias
produzidas e pensadas como suporte ou atrativos para a realização do
consumo de outras mercadorias, as embalagens, quanto as que são
diretamente objeto do desejo, participam de um imenso sistema que
pressupõe a garantia da reprodução ampliada do capital, sendo o
consumo o momento de realização de todo esse processo.
Nesse ato de consumo, é que se realiza o objetivo de todos os
capitais envolvidos na fabricação, transporte e comercialização daquela
mercadoria, composta não só pelo que será de imediato ou
posteriormente consumido, mas também pelo que será rejeitado. Um
rejeito que poderá vir a alimentar um outro circuito econômico, como é o
caso de grande parte dos resíduos recicláveis.
Com a massificação do consumo a prática do desperdício na
sociedade do capital, resultado do aumento da taxa de utilização
decrescente da mercadoria, passa a ser entendida como uma situação
pertinente, mesmo natural, não despertando no conjunto da sociedade
questões que possam colocar em discussão de maneira mais profunda tal
processo, que empenha um conjunto de forças produtivas na elaboração
de um objeto para posteriormente descartá-lo. Se bem que no caso dos
recicláveis que interessam ao mercado, esse desperdício alimenta toda
uma complexa trama de relações que envolve os trabalhadores catadores,
comerciantes e indústrias.
Neste mesmo sentido, se apresenta também como perfeitamente
normal a realidade de que, junto a esse contexto de perdas, se acentuem
os problemas ambientais consorciados à miséria de grande parte da
população mundial84, em todas as escalas. Essa é uma contradição que
84
Sabemos que mesmo nos países em que o capital se encontra em um nível de
desenvolvimento e de organização avançados, não se tem uma distribuição equânime
de renda e nem menos acesso ao que é produzido de forma igualitária pela sociedade.
Na escala mundial, as diferenças entre os que podem consumir e os que não podem são
gigantescas e se apresentam de forma a ressaltar a barbárie em que vivemos. Como
exemplo, temos a sociedade norte americana que, por excesso de consumo de calorias
tem um alto índice de obesidade. Fato que gera graves problemas de saúde nas mais
diferentes faixas etárias, enquanto que em vários outros continentes e mesmo nos
permanece sempre obscura para essa mesma sociedade. É nesta
conjuntura que a taxa de utilização decrescente das mercadorias
demonstra a sua utilidade como artifício para a manutenção do sistema
do capital. Para Mészáros (2002, p.655):
E.U.A. há fome. A face mais destrutiva do atual sistema de produção está expressa
também no consumo da energia produzida no mundo. Os americanos, que perfazem
menos que 5% da população mundial, consomem 25% dos recursos energéticos
disponíveis (ANTUNES, 1999). Se este for o padrão a ser seguido pela humanidade,
logo não haverá recursos suficientes no planeta que garantam a continuidade da sua
existência.
desempenhar outras. Mas qual será o estímulo que levará a esse
reaproveitamento do material antes descartado em forma de resíduos?
Em que base se estabelece a lógica da reinserção desse objeto como
matéria-prima no circuito produtivo, para trazê-lo de volta à “vida” no
sistema reprodutor de mercadorias, para que possa, mais uma vez,
realizar a sua função no processo de reprodução do capital?85.
Para tanto, é preciso dizer que estas mercadorias, os resíduos
compostos por materiais recicláveis, matéria-prima para o processo
produtivo em questão não têm afloramento na natureza, não se
disponibilizam naturalmente nos campos ou em nenhum outro lugar.
Apesar de serem em sua maioria produtos derivados de elementos
encontrados na natureza, não se produz alumínio sem bauxita, etc. Como
dissemos, a sua existência tem correlação direta com o rejeito gerado no
consumo de outras mercadorias e em decorrência da forma como a
sociedade está organizada para sua produção/reprodução.
Com o aumento do consumo e a diversificação dos produtos,
atrelados ao desperdício, se estabelece o aumento da quantidade de
resíduos sólidos gerados. Temos nesse processo a ampliação da
quantidade/qualidade de materiais que podem ser reciclados, posto que
nem todos os resíduos têm esse potencial, ou, ainda que o tenha, essa
potencialidade pode não vir a despertar interesse econômico nos setores
industriais envolvidos com a reciclagem.
Por mais que a reciclagem industrial assuma e se vincule a um
discurso político e ambientalmente correto de preservação ambiental, a
85
Ao procurarmos entender os estímulos para o interesse do capital industrial em se
organizar para gestar a cadeia produtiva da reciclagem de materiais, devemos nos
atentar para a lógica do sistema produtor de mercadorias que está pautada no princípio
de que antes de tudo a produção destas deve ter como fim o consumo. Não qualquer
tipo de consumo, mas o consumo enquanto ação mediada pelo dinheiro e que objetive a
reprodução do capital. Sabemos que a produção de mercadorias no capital não objetiva
a satisfação das necessidades, pois se assim fosse todos os famintos teriam, não só
legitimidade, mas acesso garantido à comida. No entanto, pode-se ter fome em frente à
comida, porém, sem dinheiro não se pode comer e assim para todas as outras
necessidades.
atividade industrial, seja ela qual for, só se realiza ou se estimula com a
garantia do lucro e da reprodução ampliada do capital. E como afirmou
José Tardelli Filho,86 em palestra realizada em 1993, em Seminário sobre
resíduos sólidos, organizado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente
de São Paulo (1993, p. 102):
86
Representante do Sindicato da Indústria da Estamparia do Estado de São Paulo.
A insanidade da lógica do capital chega ao extremo da produção
de mercadorias para a destruição. Temos exemplos na história
contemporânea neste sentido, como o caso do café no Brasil no início do
séc.XX, em que mercadorias que não conseguiram, por motivos
mercadológicos, seja a queda de preços ou diminuição do lucro por parte
dos seus detentores, se realizar no mercado de consumo foram
simplesmente destruídas, queimadas ou enterradas. (FOLADORI, 2001).
O excesso na produção não possibilita que mais pessoas possam
consumir, leva contraditoriamente à destruição, já que a finalidade não é
a satisfação da necessidade mas o imperativo de reprodução do capital.
Não é raro vermos nos noticiários, manifestações de produtores rurais
que realizam protestos despejando litros e mais litros de leite no solo ou
nos cursos d’água, ou ateando fogo a produtos que não alcançam bons
preços.
De acordo com Antunes87 (1999) a pista para o entendimento
dessa questão passa pelo desvendamento da lógica que move (funda) o
capital, qual seja, a da produção voltada para o atendimento da
necessidade de se auto-reproduzir ampliadamente, não estando em
questão as condições sociais, políticas, econômicas e ambientais sob as
quais esse processo se realiza. Para Antunes (1999, p. 26):
87
Antunes (1999) apoiando-se em Mészáros (1995) afirma que: “Essa tendência
decrescente do valor de uso das mercadorias, ao reduzir sua vida útil e desse modo
agilizar o ciclo produtivo, tem se constituído num dos principais mecanismos graças ao
qual o capital vem atingindo seu incomensurável crescimento ao longo da história”.
que trabalha e da degradação crescente do meio
O ferro enferruja, a madeira apodrece. Fio que não é usado para tecer ou
para nosso capitalista trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um
valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma
mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja
mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-las,
mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também
mais-valia.
88
Esses índices estão diretamente ligados à miserabilidade de grande parte da
população, que sobrevive ou obtém um complemento da renda com a catação das
latinhas.
Sabemos que quanto mais complexo é o processo de trabalho na
produção do material que comporá a mercadoria, maior preço ela terá.
Nestes casos, como o do alumínio, os resíduos produzidos após o
consumo das mercadorias que o utilizam de alguma forma, às vezes
como material que dá conformidade à embalagem, terão maiores chances
de reaproveitamento na reciclagem do ponto de vista mercadológico.
Com a lucratividade garantida se podem alcançar índices recordes de
reciclagem, se essa qualidade do material estiver aliada à demanda
crescente e ao baixo custo do trabalho na recuperação dos resíduos da
catação para trazê-los novamente ao circuito.
A ampliação dos índices de recuperação em alguns setores alia-se
também à aceleração do circuito formado pela produção das embalagens
→ consumo → descarte → catação → comercialização → reciclagem
→ nova produção → novo consumo → novo descarte89. Desta forma, a
recuperação pela reciclagem não aponta para um novo uso mais
duradouro. A tendência da aceleração da reprodução do capital pela
diminuição da vida útil das mercadorias mantém-se, alimentando
também a exploração de novos recursos como matérias-primas, já que a
taxa decrescente de utilização das mercadorias leva à ampliação e
aceleração da produção, sobretudo por que há um descolamento desta e
da venda da utilidade das mercadorias. De acordo com Mészáros (2002,
p.660)
89
As latas de alumínio levam em média 45 dias para percorrer esse circuito.
www.latasa.com.br
independentemente de ser ela, na seqüência, sujeita a
uso constante, a pouco ou a nenhum uso.
90
Ver Gonçalves 2006.
paliativas e injustas, já que as ações também paliativas, buscam resolver
ou administrar o problema e não anular a sua lógica fundadora. De
acordo com Thomaz Jr. (2000):
natureza também foi submetida aos efeitos nefastos dessa redução e a crise
3. Referências bibliográficas