Você está na página 1de 186

GEOGRAFIA E TRABALHO NO SÉCULO XXI

Volume 3

Antonio Thomaz Júnior


Marcelino Andrade Gonçalves
Ana Maria Soares de Oliveira
Organizadores

1ª Edição
Presidente Prudente

Editorial - CEGeT

2007
Copyright  do Autor, 2007
ISBN 978-85-60554-01-0

Apoio Técnico: Biblioteca da FCT/UNESP


Editoração: Marcelino Andrade Gonçalves
Impressão e Fotolito: WMPereira Editora ME
Capa: Jorge R. Montenegro Gómez • Moisés Meira Costa •
Luzimar Barreto França Júnior

G31 Geografia e Trabalho no Século XXI / Antonio Thomaz


Júnior, Ana Maria Soares de Oliveira, Marcelino Andrade Gonçalves (Orgs.).
Presidente Prudente: Centelha, 2007.
v.3; 21 cm.

ISBN 978-85-60554-01-0

1. Trabalho 2. Escravidão 3.Reciclagem 4. Capital e trabalho


4. Classe trabalhadora I. Thomaz Júnior, Antonio II. Título.

CDD(18 edição) 334

Editorial

Todos os direitos reservados ao Grupo de Pesquisa


“Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT)
Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP
Presidente Prudente (SP), 2008.

Rua Roberto Simonsen, n. 305


Caixa Postal: 467 – CEP. 19060-900
Presidente Prudente (SP)
www.prudente.unesp.br/ceget
Editorial - CEGeT

Publicações
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. I)
Organização: Antonio Thomaz Júnior ▪ Marcelino Andrade Gonçalves
Geografia Passo a Passo
(Ensaios Críticos dos anos 90)
Antonio Thomaz Júnior
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. II)
Organização: Antonio Thomaz Júnior ▪
Marcelo Dornelis Carvalhal ▪ Terezinha Brumatti Carvalhal

Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. III)


Organização: Antonio Thomaz Júnior ▪
Marcelino Andrade Gonçalves

Revista Pegada
Versões Impressa e Eletrônica
(www.prudente.unesp.br/ceget/pegada.htm)
Próximos Lançamentos
Geografia e Trabalho no Século XXI (Vol. IV)

Relação Capital x Trabalho e Dominação de Classe na


Agroindústria Canavieira Paulista
Ana Maria Soares de Oliveira
Qualificação Profissional e Território do Trabalho
Marcelo Dornelis Carvalhal
Revista Pegada, Volume 9, Número 1, 2008

Pedidos:
ceget@fct.unesp.br ▪ cemosi@fct.unesp.br
Telefone (18) 3229-5388 Ramais: 5543 e 5507 ▪ Fax (18) 3221-8212
SUMÁRIO

Apresentação
Terra e Trabalho no Contexto da Luta de Classes (Reflexões
Introdutórias sobre os casos da Galícia e Espanha).................... 8

Antonio Thomaz Júnior


A Territorialização do Capital Agroindustrial Canavieiro
e a Nova Geografia do Trabalho Migrante no Brasil......... 54

Ana Maria Soares de Oliveira


A Urdidura do Capital e do Trabalho nas Áreas de Cerrado.... 84

Marcelo Rodrigues Mendonça


Uma Questão de Escala. A Escalada da Escravidão Local
Como Resposta à Geografia Econômica Mundial....................... 107

Júlio Cézar Ribeiro


A Reciclagem de Materiais e a Diminuição da Vida Útil das
Mercadorias..................................................................................... 154

Marcelino Andrade Gonçalves


Apresentação

Nessa breve apresentação queremos iniciar o leitor aos textos


que compõem o volume III de Geografia e Trabalho no século XXI e
enfatizar o quanto tem sido gratificante manter as publicações do
Editorial Centelha, sendo, pois, essa coleção expediente fundamental
para o fortalecimento do Grupo de Pesquisa (CEGeT) e ampliação da
interlocução com os demais interessados na temática do trabalho.
Pelo fato de apostarmos nas atividades de pesquisa e
investirmos em todas as frentes para garantir sua consecução, desde a
formação contínua de jovens pesquisadores que iniciam os primeiros
passos na graduação e nas modalidades da pós-graduação, elaboração,
estruturação/coordenação e orientação de projetos, os resultados
comparecem e mostram-se significativos e expressivos.
No entanto, o movimento constante de renovação nos põe
atentos para algumas necessidades imperativas, tais como: execução
cuidadosa das pesquisas propriamente ditas, presença nos principais
fóruns de discussão, sejam acadêmicos sejam no âmbito dos movimentos
sociais, no debate público e portanto na preservação do princípio da
socialização do conhecimento.
É então, oxigenados por meio desses fluidos que não
tergiversamos dos papéis estabelecidos para o Editorial Centelha. E
mais, continuaremos a buscar recursos para a produção independente ou
consorciada, para a divulgação das nossas pesquisas. A ampliação dos
horizontes e dos assuntos de investigação na seara da temática do
trabalho é outro aspecto a ser destacado e que nos garante a conquista de
espaços de interlocução na Geografia e nas demais áreas do
conhecimento. É assim que nos fazemos presentes nesse volume com
alguns dos principais resultados das pesquisas consumadas e em
consecução, nos últimos anos e sem falsa modéstia, nos credenciamos
para oferecer nossas contribuições.
Os recentes rearranjos que o capital agroindustrial canavieiro
tem materializado no território, e a espacialização das plantas fabris e
dos canaviais, tanto nas áreas tradicionais quanto para as áreas novas,
consorciados ou não às investidas de frações do capital internacional,
bem como as artimanhas e políticas que o Estado tem implementado em
apoio aos negócios nesse setor de atividade, inclusive reforçando os
elevados níveis de concentração de riqueza, terra e de capital, revelam as
verdadeiras faces da retórica preservacionista. Para aqueles que
subvertem impetuosamente os interesses coletivos em sementeira para a
acumulação privada e empoderamento político, econômico e territorial,
em nome da produção de combustíveis renováveis, os resultados parciais
da pesquisa de doutorado de Ana Maria, nos possibilita uma tomada de
posição ou posicionamento crítico no interior dos marcos da sociedade
de classes.
Ultrapassando os marcos da denúncia e da mera constatação,
o texto de Júlio Ribeiro comprova e enfatiza, com todas as letras, por
meio dos resultados de uma pesquisa de campo minuciosa, os
mecanismos, rotinas e expedientes utilizados pelo grupo J. Pessoa, um
dos principais representantes do agronegócio canavieiro, no Brasil, como
constrói seu império ao apostar indiscriminadamente na adoção de
procedimentos de contratação de trabalhadores indígenas para o corte de
cana-de-açúcar, fundadas em diferentes expedientes das formas
assemelhadas de trabalho escravo.
Na mesma medida e inspirado nos resultados de minuciosa
pesquisa aos moldes das gerações de geógrafos da velha-guarda,
Marcelo Mendonça nos oferece um texto composto de rica trama
conceitual e teoricamente urdido com foco sobre as ações do capital no
campo, no Brasil, nos tempos de agora. O cerrado goiano nesse texto é
marcado como um bioma que foi incorporado aos desígnios do capital
(nacional e internacional) e toda uma escala de interesses, que ultrapassa
os marcos de sua reprodução restrita como agronegócio da soja, do
milho, do algodão e atinge os verdadeiros elos que se ligam à estratégia
de controle social, atingindo todas as esferas do circuito social, e de
forma decisiva a demarcação de que esse modelo é bom para todos. Fora
disso, não há possibilidade de desenvolvimento social e econômico, e de
outra forma de uso e exploração da terra, e qualquer manifestação em
contrário é sempre mal vista e corre os riscos de perseguição etc.
O tom marcadamente criativo do texto de Marcelino
Gonçalves, nos traz as responsabilidades teóricas e políticas de quem
fundamentou sua exposição em longa pesquisa sobre a inserção do
trabalho no lixo. Por meio dessa insígnia o autor articula de forma
inteligente as falsas defesas da preservação ambiental (leia-se da
natureza) com as ações do capital que sustentam todo o empreendimento
milionário da reciclagem de resíduos sólidos. Daí, expõe esse processo
como exemplo vivo das atuais referências que o sistema metabólico do
capital reaviva para sustentar a diminuição da vida útil das mercadorias,
ao consumismo destrutivo, nos quatro cantos do planeta.
Ainda em relação às marcas dos rearranjos do capital em
nível internacional, nos campos e nas cidades, se enganam aqueles que
nos países que vivenciaram a revolução burguesa – até hoje referência
teórico-político-metodológica para a garantia do desenvolvimento
capitalista – que a questão da terra está resolvida, ou seja, reforma
agrária, as novas formas de organização territorial do campo e do
trabalho são demandas superadas. Antonio Thomaz Júnior, põe em
discussão as experiências das lutas empreendidas pelos movimentos
sociais em diversas Comunidades Autônomas espanholas, que têm à
frente luta pela terra, Reforma Agrária, organização cooperativa do
trabalho e demandas específicas pelo socialismo.
Nossos leitores terão condições de saborear reflexões que
reavivam polêmicas e demarcam posicionamentos no âmbito da teoria e
da práxis política para engrossar o coro da crítica radical à sociedade do
capital.

Os Editores
Terra e Trabalho no Contexto da Luta de Classes
(Reflexões Introdutórias sobre os casos da Galícia e Espanha) ∗

Antonio Thomaz Júnior ∗∗


Aos amigos Anxeles Pinheiro e
Angel Miramontes, pelo apoio fraterno
numa terra distante
1. Introdução

Tamanho é o desafio para abordar o tema proposto. Claro está


que não nos propomos esgotá-lo, tampouco escolher e apontar soluções.
O que apresentamos são algumas reflexões, realizadas através dos
exercícios de pesquisa em que procuramos entender os desdobramentos


Este texto é produto das investigações que realizamos através do projeto de pesquisa
“Reestruturação Produtiva do Capital no Campo e os Desafios para o

Trabalho”, em nível de Pós-Doutorado, junto à Faculdade de Geografia e

História, e do Instituto Universitário de Estudos e Desenvolvimento da Galícia

(IDEGA), da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), sob a

coordenação do professor Rubén Lois Camilo Gonzáles, e com o apoio do

CNPq (uma entidade do Governo Brasileiro voltada ao Desenvolvimento Científico e


Tecnológico), durante o período de outubro de 2004 a setembro de 2005.

Devemos registrar também, que por meio do projeto de pesquisa “Território

Mutante e Fragmentação da Práxis Social do Trabalho“, vinculado à alínea

PQ/CNPq, pudemos, ao longo de 2006, atualizar informações e aprofundar

reflexões teóricas.
∗∗
Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em
Geografia/FCT/UNESP/Presidente Prudente; coordenador do CEGeT
(www.prudente.unesp.br/ceget); pesquisador do CNPq; autor dos livros Por trás dos
canaviais os nós da cana. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002; e Geografia Passo-a-
Passo. Santiago de Compostela: Editorial Centelha, 2005. E-mail:
thomazjrgeo@fct.unesp.br
para os trabalhadores envolvidos diretamente na lavra agrária, sejam
camponeses – campesinos (espanhol) ou labregos (galego) –, sejam
operários (assalariados), na Espanha, tendo em vista os rearranjos mais
recentes no âmbito da PAC (Política Agrícola Comum), OMC
(Organização Mundial do Comércio) e demais órgãos da governança do
capital, em nível internacional.
Podemos argumentar, inicialmente, o quanto se
apresenta atual a questão da terra, mais propriamente
da Reforma Agrária, o acesso aos recursos para
fixação dos trabalhadores e de suas famílias no
campo, na Espanha e, particularmente, na Galícia e
na Andaluzia. No bojo desses posicionamentos, os
trabalhadores reivindicam novo formato de gestão dos
recursos públicos com as atenções para a viabilização
da produção camponesa (lebraga); Reforma Agrária
integral, que revise por completo o modelo
agroalimentário, desde o acesso, a distribuição e o uso
da terra, da água, das sementes, passando pelo modelo
de produção, comercialização e distribuição.
É claro que as mobilizações de massa, garantindo a escala que
temos desse processo, em países como o Brasil, Equador e México, em
se tratando das comunidades do Estado espanhol, somente guardam
alguma semelhança na Andaluzia, devido às ações organizadas do
Sindicato de Obreros Del Campo (SOC), o qual não apenas executa
ocupações de terra e reivindica Reforma Agrária, mas também viabiliza
os assentamentos, a partir da organização de cooperativas.
Poderíamos evidenciar as principais questões discutidas e
deliberadas pelo coletivo que participou do Encuentro de Trabajo “Los
retos de la Reforma Agraria y el acceso a los recursos en el Estado
1
español” , e que resgatou alguns aspectos abordados nas atividades

1 Esse evento foi realizado em Tiana (Catalunha), nos dias 2 e 3 de abril de 2005, tendo
sido organizado pela Ágora (Nord-Sud) e Plataforma Rural e contando com as
seguintes organizações participantes: Sindicato de Obreros del Campo y Medio Rural
(SOC); Coordinadora de Organizaciones Agrarias e Ganaderas (COAG); Sindicato
programadas do Fórum Mundial de Reforma Agrária (FMRA), realizado
de 5 a 8 de dezembro de 2005, em Valência, do qual também
participamos e disponibilizamos trabalho, na seção de posters, da mesma
forma que também inserimos o CEGeT na lista de entidades que
apoiaram o evento.
Sem contar a diversidade de documentos que foram distribuídos,
na oportunidade do FMRA e, mais precisamente, os que estão sendo
disponibilizados no site (www.fmra.org), tais como: documentos finais,
documentos elaborados pela entidade Carta Maior, resumos das Oficinas
(Talleres), Entrevistas, todos ao longo de 2005. Outro aspecto relevante
é que as deliberações do FMRA foram acatadas por esse coletivo
reunido em Tiana, que endossou também os documentos coletivos
elaborados e deliberados nos seguintes eventos: Manifesto de la
Campaña Global por la Reforma Agraria; Conclusiones de la Comisión
de Reforma Agraria de Via Campesina, e da IV Conferencia de Via
Campesina, realizada em São Paulo, em junho de 2004.
Seria difícil de acreditar – se não fosse verdade –, porque, para
muitos, a Reforma Agrária na Europa é questão superada, tratando-se tão
somente de adoção de políticas agrícolas e financiamentos públicos para
garantir renda, o que já está imperando no âmbito da PAC, além dos
esquemas de dominação que atuam no sentido de dificultar a
compreensão, por parte do conjunto dos trabalhadores e de toda a
sociedade, dos problemas que atingem o campo e os trabalhadores
(pequenos agricultores camponeses e assalariados).
Tudo isso contribui para que a questão da terra, ou da Reforma
Agrária propriamente dita, seja percebida pela sociedade como um tema
anacrônico. Mesmo que esteja diretamente afetada pelos problemas em
pauta, esta, por encontrar-se alienada dos mesmos, não faz valer

Labrego Galego (SLG); Assemblea Pagesa; Comissión de Agricultura Campesina de


Plataforma rural; Caritas Española; Coletiu Per L´Horta-Valencia; Coletiu Per L´Horta-
Barcelona; Movimiento Ecoaldeas; Proyecto Escuela de Pastores-Asturias; Proyecto
Noevos Pobladores (Codinse); Veterinarios Sin Fronteras; Entrepueblos; Centro de
Estudios Agrarios Internacionales (CERAI)-Valéncia; Equipo de Economia Agraria-
Universidade de Sevilla.
tampouco seus interesses como consumidora de alimentos, cada vez
mais caros e contaminados. A predominância do material bibliográfico
pesquisado enfatizou que a Reforma Agrária e a questão da terra, os
mecanismos de viabilização das formas de vida camponesa e
comunitária não fazem parte dos planos de lutas e dos objetivos da
maioria das organizações sociais, ou entidades sindicais e associativas,
sejam camponeses, sejam assalariado s (proletários): seja qual for o
ponto de vista, o tema é apontado como superado.
Apesar de prevalecer o distanciamento das organizações dos
trabalhadores, com relação à Reforma Agrária, esse assunto não é
consensual, especialmente entre os camponeses. Isso se confirmou
durante as “3as Jornadas de Consum Responsable”2, oportunidade na
qual também surgiu em cena a necessidade de os trabalhadores
diretamente envolvidos no campo discutirem novas estratégias e modelo
de produção, tendo em vista que, nos marcos do capitalismo, já se
esgotaram as alternativas.
Temos que dizer ainda que, apesar de terem comparecido
avaliações e posicionamentos que referenciaram a situação atual dos
bilhões de camponeses, em todo o mundo, o destrutivismo do capital, as
desigualdades estruturais do comércio internacional, o tom principal dos
debates priorizou o que predomina para as Organizações de Comércio
Justo. Isto é, desenvolver políticas e ações para viabilizar a importação,
distribuição e comercialização de produtos oriundos de organizações
populares do sul (América Latina, África, Ásia). Ainda que haja um salto
de qualidade nessa relação, em favor dos camponeses do sul, ou dos
produtores familiares, o descolamento da dimensão estrutural dos
objetivos do comércio justo evidencia os limites das discussões que se
aproximam da temática da terra. Isso de alguma forma implica a
discussão interna do campesinato europeu, particularmente as denúncias
da situação desigual presente no comércio internacional de produtos
agropecuários e agroindustrializados, em benefício de poucas e grandes

2 Evento realizado nos dias 7 a 9 de abril de 2005, no Centre Cívic Convent de Sant
Agustí, Barcelona, o qual foi organizado pela Xarxa Consum Solidari e pela Federação
de Organizações Comércio Justo “Solidaritat Pau Desenvolupament (Sodepau).
empresas que monopolizam as transações.
Há certo conformismo, combinado com as críticas mais gerais ao
modo de produção e, no âmbito acadêmico e científico, o que se
sobressai é a acentuada indicação para que a opção de desenvolvimento
e de organização social ou de sociedade contemple os princípios da
convivência social-democrata. Haveríamos que discernir um conjunto de
autores que demarcam um eixo de formulação teórico-metodológico em
defesa de modelos ecologicamente sustentáveis de produção e de
ocupação racional da terra, mas ainda limitados para a sinalização de
mudanças na estrutura da sociedade, sendo, pois, os mais conhecidos:
pesquisadores vinculados ao Departamento de Economia, Sociologia y
Política Agrária, da Universidade Politécnica de Valência, tendo à frente
os professores Vicent Garcés e Eládio Arnalte3; o professor Fernando
Oliveira Batista, da Universidade de Bragança, em Portugal; Edelmiro
Iglesias López, do Idega/Faculdade de Ciencias Econômicas, da
Universidade de Santiago de Compostela; Benjamín García-Sanz4, da
Universidad Complutense de Madrid.
Poderíamos também apontar a riqueza temática em torno dos
estudos realizados no âmbito da Associación Española de Economia
Agraria e dos Congressos de Economia Agraria. Todavia, partem do
princípio de que o quadro que se apresenta tem que ser pensado com as
atenções voltadas para as políticas públicas e de desenvolvimento, e que
sejam capazes de racionalizar as aberrações do sistema. Nessa mesma
linha, em nível internacional, o Grupo de Brugge5 (Bruxas) também
pode ser incluído, uma vez que é a referência para vários pesquisadores
espanhóis, portugueses, franceses e de outras nacionalidades, tendo à
frente estudiosos destacados sobre a temática agrária, tais como:

3 São elucidativos os diversos artigos publicados no livro Agricultura y Sociedad en


la España Contemporánea, editado pelo Ministério de Agricultura, Pesca y
Alimentación, de 1999.
4 Vale destacar o livro de sua autoria La sociedad Rural ante el Siglo XXI, publicado
pelo Ministério de Agricultura, Pesca y Alimentación, Madrid, 2a edición, 1999.
5 Mais detalhes, ver: http://www.groupedebruges.org/declaration2001/espagnol.htm
Eduardo Moyano (Espanha), Bertrand Hervieu (França), Fernando
Oliveira Batista (Portugal), Franco Sotte (Itália), entre outros.
Já com enfoque distinto e com direcionamentos diferentes, as
Jornadas de Economia Crítica6 apresentam um amplo e diverso campo
temático e de autores que defendem os referenciais teóricos vinculados
ao marxismo, sendo, pois, o campo e, conseqüentemente, as relações
sociais de trabalho e as instâncias de organização dos trabalhadores,
sejam camponeses, sejam assalariados, não constam das linhas
temáticas, mas se encontram dissolvidos em poucos subtemas e ainda de
forma tributária.
Apesar de as discussões que põem em primeiro plano a questão
da terra, na Europa, estarem se ampliando, ainda se restringem a
determinados segmentos do campesinato do Estado espanhol, muito
mais, neste momento, aos dirigentes e militantes mais dedicados. Na
Galícia, esse assunto é defendido exclusivamente pelo Sindicato Labrego
Galego (SLG); no País Vasco (Euskadi), pelo Euskal Herriko
Nekazarien Elkartasuna (EHNE); na Cataluña, pela Assemblea Pagesa,
que é tributária da dissensão do Sindicato de Unión de Pagesos; e, na
Andaluzia, pelo Sindicato dos Obreros del Campo (SOC), representante
dos operários rurais, que também se inserem no cenário da luta pela terra
e sua ocupação e da Reforma Agrária. Esse fato diferencia o SOC de
todos os demais sindicatos camponeses e de assalariados rurais da
Espanha7 e, segundo informações de que dispomos, destaca-se também
em nível europeu.

2. Os novos elementos da Política Agrícola em vigência

Com as atenções voltadas para as principais demandas da OMC,


a PAC passou por um conjunto de arranjos para adaptar suas receitas aos
gastos, especialmente quanto ao cenário da UE-25, após maio de 2004.

6 Mais detalhes, ver: http://www.ucm.es/info/ec/enlaces/index.htm


7
Esse assunto será objeto de aprofundamento com a vigência de projetos conjuntos
que estão sendo viabilizados, a partir de convênios que estão sendo implementados
entre a UNESP e as Universidades de Almería, Córdoba e Alicante.
Isso se deu de forma vinculada às demandas específicas, porém
combinadas, dos órgãos multilaterais e de fomento do capital (BM, FMI,
BIRD), interessados na intensificação da liberalização dos mercados,
com o fortalecimento das grandes empresas transnacionais do setor agro-
químico-alimentar. Isso, todavia, se juntava aos interesses de
incrementar o uso de sementes modificadas geneticamente ou
transgênicas e insumos químicos, cujo mercado era – e é –
flagrantemente monopolizado pela transnacional americana Monsanto,
com 90% das transações8; e os demais insumos mecânicos, a
comercialização e o processamento das matérias-primas, cada vez mais
concentrados ou ao encargo de apenas três empresas: Cargil, Bunge,
Novartis.
O principal elemento introduzido e que aglutinou os demais em
torno do pacote de itens objeto das reformas foi o Regime de Pagamento
Único (RPU), a ser recolhido uma única vez por ano. O Regulamento
(CE) nº 1782/003, 29 de setembro de 2003, estabelece regras comuns
para os regimes de apoio direto, no âmbito da política agrícola comum
(PAC). Assim, a maioria das OCM´s passa a se enquadrar no RPU por
exploração, desligadas da produção. Esse passou a ser o primeiro pilar
da PAC, em substituição aos procedimentos em vigência até então,
baseados numa série de ajudas diretas relacionadas com a superfície, a
produção ou o número de cabeças de gado. Com essa dissociação, as
ajudas passaram a ser pagas aos produtores totalmente independentes do
tipo de produção, sendo que a soma dos pagamentos diretos para cada
Estado-membro é limitada a parâmetros definidos no âmbito das
resoluções da UE.
Nessa perspectiva, os regimes de ajuda que vão fazer parte do
RPU incidem sobre as culturas de cereais, bovinos, ovinos e caprinos,
leite e produtos lácteos, leguminosas para grãos, forragens secas, arroz,
lúpulo, olivais, azeite, tabaco e algodão9. Todos os agricultores poderão

8 Outras 4 empresas transnacionais dividem os 10% restantes do mercado de sementes


transgênicas: Syngenta, Bayer, Dupont e Dow.
9 Mais detalhes, ver: Unión Europea, (2003, 2004, 2005); UE (publicações eletrônicas):
www.europa.eu.int. Outras fontes: (OCDE) www.oecd.org/departament - (OMC)
candidatar-se a pagamentos diretos, independentemente da sua produção,
para complementar seus rendimentos. No entanto, há uma escala de
prioridades entre os produtos agropecuários, que revela a importância
econômica e política dos produtos, dos produtores, das empresas
agroalimentares e do setor de bens de produção. A título de exemplo,
poderíamos dimensionar os recursos direcionados pelo Feoga-Garantia,
para a Espanha, no ano de 2004 (Tabela 1).

Tabela 1. Distribuição dos Recursos do FEOGA-Garantia, Espanha,


2004. (Alguns Produtos)

Setores Ajudas à Outras Total


Produção Ajudas
Cultivos Herbáceos 1.826.080 2.819 1.828.890
Arroz 98.391 24.896
Açúcar - 55.747* 55.747
Setor Vitivinícola 180.007 295.320** 475.321
Ovino e Caprino 512.626 - 512.626
Gado Bovino 790.017 17.806 807.823
Azeite de Oliva 1.012.477 1.043.530
Total Geral 5.595.912 1.171.558 6.767.470
Fonte: Mapa, 2005
• Restituições à Exportação e indústria agroalimentar
• ** Indústria Agroalimentar e restituições à Exportação

O RPU poderá ser mantido até 2012, tendo em conta


determinados critérios de ecocondicionalidade, tais como manter as
terras em boas condições agrícolas e respeitar as normas em matéria de
saúde pública, fitossanidade e bem-estar dos animais; entretanto, será
reduzido progressivamente por meio da modulação, sendo que essa

www.wto.org.
somente se aplicará às explorações com volume global de ajudas
superior a 5.000,00 de euros, o que significa que, na Espanha, 85% dos
agricultores ficarão isentos e, em Portugal, 95%. Vale ressaltar que, além
de respeitarem os critérios de ecocondicionalidade, os agricultores ou
proprietários devem retirar uma parte das suas terras da produção, com
exceção das áreas utilizadas para a produção biológica ou de produtos
não destinados ao consumo humano ou animal.
De todo modo, as prerrogativas essenciais para o recebimento do
pagamento único estão encimadas no fato de que os agricultores tenham
recebido determinados pagamentos diretos e que as terras que dão direito
ao pagamento único sejam as destinadas às atividades agrícolas. Há
exceções para as culturas permanentes como a vinha, produção de frutas
e produtos hortícolas, e a produção de batatas para consumo de mesa. A
vinculação dos pagamentos futuros aos subsídios que cada exploração
vinha recebendo, no período de referência 2000-2002, consolida o
sistema de castas da antiga PAC.
Serão beneficiados os mesmos que desfrutavam do acesso aos
recursos públicos e que, a partir de então, passarão a dispor do direito ao
pagamento calculado em função dos montantes das ajudas recebidas,
durante o período de referência 200-2002, e do número de hectares na
origem desses pagamentos, ou da superfície da exploração.
O direito de ajuda que passa a compor uma única forma de apoio,
ou o regime de pagamento único (RPU) de um agricultor, divide-se em
direitos de ajuda, tendo por base a média dos recursos diretos
anteriormente recebidos, bem como o referente por área envolvida na
exploração, que pode ser vendido ou cedido com ou sem as terras de
titularidade, ainda que os Estados possam estipular certos limites a essas
transmissões ou ainda aplicar um pedágio sobre as mesmas, o qual
passaria a compor a reserva nacional. No entanto, caso os mesmos não
sejam utilizados durante três anos, são transferidos para reserva nacional
e somente poderão ser remanejados para outro agricultor do mesmo
Estado-membro.
Todavia, sob o argumento de que as Reformas da PAC
direcionam-se, progressivamente, para menos subsídios à produção –
como asseverou o Comissário Fischler – e mais pagamentos diretos aos
produtores (por serviços públicos, manutenção do meio ambiente), na
prática, essa nova metodologia de repasse de recursos públicos e não
propriamente para a produção agropecuária está sinalizando apenas uma
tendência à diminuição dos excedentes de produção. Sem contar que a
introdução do expediente da modulação, nesse pacote de reformas,
enfatiza também o papel do desenvolvimento rural, à base de que
atingiria somente os produtores que recebessem mais de € 5.000,00 em
pagamentos diretos ao ano, acarretando redução de 3% do seu
orçamento, em 2005, 4%, em 2006, 5%, a partir de 2007, até 2013,
quando se anuncia o fim da PAC10.
Considerado como segundo pilar da PAC, o desenvolvimento
rural desfruta de destaque no ambiente de decisões da UE e, pelo que se
aponta, poderá absorver cada vez mais importância, tendo em vista a
intenção de redirecionar os recursos públicos para revitalização do
espaço rural e melhoria das condições de trabalho. Entre as intenções e a
realidade, o que se pode apreender é que estão em marcha novos
referenciais, com o LEADER + ou (LEADER plus), como parte do
Feoga-Orientação.
O fortalecimento da política de desenvolvimento rural, no âmbito
da PAC-2003, pode ser compreendido na sua totalidade, quando
consideramos sua vinculação ao primeiro pilar da PAC, ou dos recursos
advindos do Feoga-Garantia (Tabela 2). Com essa designação, a
intenção é insistir no fato de que se faz necessário avançar nas políticas
no âmbito do desenvolvimento rural, com o propósito de direcionar os
5,35% das dotações dos fundos estruturais, ou € 4,35 bilhões, dos quais à
Espanha cabem € 460 milhões.

10 Esse dispositivo poderá arrecadar €1,2 bilhão por ano, em receitas extras, uma vez
alcançado o percentual de 5%, a partir de 2007. Desse conjunto de recursos arrecadados
com a modulação, 80% serão retidos pelo Estado membro e o restante será gerenciado
pela EU, sendo que apenas ficam fora desses encargos as regiões remotas, que,
inclusive, terão tratamento diferenciado, e os 10 países do PECO, os quais somente
passarão a integrar essa alínea depois que seus níveis de pagamento direto estiverem
alinhados aos dos atuais 15 Estados-membros.
Tabela 2. Recursos Financeiros da PAC para o setor Agropecuário
Espanha (Feoga-Garantia e Feoga-Orientação). (milhões €)

2001 2002 2003 2004


FEOGA-G 6.169,7 5.963,2 6.491,3 6.345,8
FEOGA-O 494,3 738,6 841,8 837,9837,9
Outros 3,1 5,7 5,6 4,1
Total 6.667,1 6.707,5 7.337,7 7.187,9*
Fonte: Mapa, 2005
* A esse montante se acrescentam mais 261 milhões de euros
direcionados para o setor pesqueiro.

A Espanha é apenas superada pela Itália (595 milhões de euros),


Alemanha (700 milhões) e França (760 milhões), sendo estes, pois,
recursos direcionados para projetos inovadores que têm à frente os
grupos de ação local e o intercâmbio de experiências, no âmbito da
cooperação internacional11.
É importante notar que o pagamento direto da PAC, com base na
superfície agrária útil (SAU) e desligado da produção, está inscrito na
caixa verde da OMC. Nela se enquadram os pagamentos diretos,
concepcionados para serem menos distorcivos com respeito aos preços
agrícolas, em comparação à caixa amarela, que compreende ao repasse
anual de apoio, em termos monetários, fixado para produtores agrícolas
em relação a produtores específicos ou não específicos12, e à caixa azul,
que estabelece e referencia as formas de apoio doméstico relativo ao
programa de limitação da produção agropecuária13 (Gráfico 1).

11 Mais informações, ver: www.rural-europe.acidl.be


12 Vale dizer ainda que os compromissos de redução em apoio interno são assumidos
de forma agregada, ou seja os países se comprometem a não exceder o montante
conferido como apoio interno para cada ano do período de implementação (1995-2000
para os países industrializados, e 1995-2004 para os países periféricos.
13 A Caixa Azul é, portanto, o dispositivo que a OMC disponibiliza para dimensionar a
isenção dos compromissos das reduções dos pagamentos, desde que sejam transferidos
Gráfico 1 – O Provável “Esverdeamento” da PAC - (€ bilhões)

Reforma - 2003

41,9
caixa amarela
27

10
(Estimativa 2007/8)

caixa azul

19,9
30

29
Agenda 2000
caixa verde
47,9

19,8

19,9
1999

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

diretamente do orçamento dos governos para os produtores e não por meio de


instrumentos de intervenção de mercado. Entre as políticas enquadradas na Caixa Azul,
destacam-se as de restrição ao uso de terras (set aside) e de pagamentos compensatórios
desvinculados da produção, opção seguida pela UE, a partir da Agenda 2000.
Poderíamos sintetizar esse percurso das reformas da PAC,
admitindo que, na Agenda 2000, decorreu o azulamento da PAC, porque
parte dos pagamentos via preços garantidos (caixa amarela) foram
indexados em pagamentos por área plantada fixa ou unidade animal.
Como a Agenda 2000 não introduziu pagamentos desvinculados, a caixa
verde permaneceu nos mesmos níveis do período de vigência da reforma
(1992-1999).
No entanto, com a introdução do pagamento único para cereais e
carne bovina, a reforma de 2003 reduziu os pagamentos da caixa azul,
transferindo ambos para a caixa verde. Assim, se a Agenda 2000
intensificou o azulamento da PAC, antes e sobretudo de 1992-1999, a
reforma intermediária de 2003 caracterizou-se pelo esverdeamento da
política agrícola comunitária, conforme as exigências da OMC.
Por meio das medidas propostas na reforma intermediária de
2003, objetivou-se uma diminuição da produção e diminuição dos
subsídios às exportações que distorciam o mercado. Mas o que tem que
ser devidamente entendido, porque é onde residem os elementos centrais
de toda a estrutura de dominação de classe da PAC, é o fato de que o
pagamento único é defendido como se não fosse subsídio, com a
ressalva de que, em princípio, está referenciado na recomposição da
perda de renda dos produtores.
Todavia, é exatamente para que se tenha uma baixa artificial dos
preços, motivada para beneficiar a máquina produtiva das grandes
empresas agroalimentares que se beneficiam dos preços baixos e, ao
mesmo tempo, para que os produtores de alimentos que não têm
condições de competir no mercado sejam excluídos, ou seja, para
projetar a eliminação de expressivos contingentes de produtores, por
conta dos baixos preços artificiais e dos elevados custos de produção,
especialmente quando se pensa nos pecuaristas e produtores de leite,
numa clara confrontação com os camponeses. E mais, essa equação
social só se mantém ativa, porque o processo social tem, em seu elenco,
os elementos de afirmação de toda a engrenagem do modelo. No entanto,
os elementos de negação se expressam nessa dinâmica dialética, quando
a própria sociedade e os trabalhadores em particular se dão conta de que
estão totalmente fora do modelo e só são chamados a confirmar sua
exclusão.
O que é certo é que não houve mudanças radicais na condução da
política agrícola, como se anunciava desde Bruxelas, com as Reformas
Intermediárias, pois se reforçaram os princípios orientadores da
produção agrícola para o mercado, sob a manutenção rígida do
barateamento dos preços nos níveis dos custos de produção
internacionais. Isso, pois, funcionou como guia oficial do dumping, sob
o comando dos grandes grupos empresariais, em detrimento da produção
camponesa, aliás, cada vez menos prestigiada e destacadamente excluída
do modelo social da PAC e, conseqüentemente, ameaçou ainda mais a
soberania alimentar dos trabalhadores europeus.
Do conjunto de temas que foram instituídos, nesse pacote de
medidas, vale destacar o modelo de produção intensivo, pois se manteve
intacto em relação às reformas anteriores, apesar dos discursos animados
dos defensores confessos desse receituário de destruição em massa dos
camponeses e camponesas. Os argumentos, sempre seguidos da defesa
da multifuncionalidade da agricultura associada aos modelos
sustentáveis de produção com base no desligamento desta, passam a ser
incorporados em praticamente todas as ações dos gestores públicos na
UE. Portanto, a agropecuária, em sentido geral, e sua inserção no
circuito da produção não mais estariam vinculadas aos preços, mas sim à
recomposição da renda dos agricultores, para recompensar as perdas
oriundas da queda dos preços. Poderíamos sintetizar as principais
medidas nos seguintes itens:
1) ajuda única por exploração (propriedade) para os agricultores
da UE, independente da produção. Poderá ser mantido, de forma
limitada, um elemento de vinculação à produção, a fim de evitar o
abandono da mesma;
2) vinculação das ajudas ao cumprimento das normas ambientais,
salubridade dos alimentos, sanidade dos animais e dos produtos vegetais,
bem-estar dos animais, assim como a obrigatoriedade de manter as terras
em boas condições agronômicas e ambientais (condicionalidade);
3) política de desenvolvimento rural reforçada, que requer mais
fundos da UE e novas medidas para promover a proteção do meio
ambiente, a qualidade e o bem-estar animal, e ajudar os agricultores a
cumprir as normas da UE em relação à produção, a partir de 2005;
4) redução das ajudas diretas (modulação) das explorações de
maior tamanho, a fim de financiar as novas medidas de desenvolvimento
rural;
5) disciplinamento financeiro, para garantir que o pressuposto
agrário fixado até 2013 não seja estourado;
6) revisão da política de mercado da PAC: 6.1) recortes
assimétricos no setor lácteo: o preço de intervenção da manteiga se
reduzirá em 25%, em quatro anos, o que supõe um recorte adicional de
10% em relação à Agenda 2000; 6.2) com respeito ao leite em pó
desnatado, será aplicada uma redução de 15%, em três anos, conforme o
que foi acordado na Agenda 2000; 6.3) redução dos incrementos mensais
no setor de cereais em 50% e a manutenção do atual preço de
intervenção.
Mesmo no âmbito dos setores hegemônicos, há algumas reservas
em relação às teses defendidas na reforma intermediária da PAC. É o
que se revela nos documentos oficiais da Confederação das Indústrias
Agroalimentares da União Européia (CIAA). No entanto, os interesses
estão atrelados ao controle da comercialização e ao controle dos baixos
preços das matérias-primas, assegurado pela elevada sobrecarga de
subsídios e do dumping, sendo, pois, a base imprescindível para a
hegemonização dos mercados. Poderíamos sintetizar em seis pontos os
principais aspectos defendidos pela CIAA, que estão dispersos nos
documentos oficiais, em relação ao apoio à reforma intermediária da
PAC:
1) a política agrícola deve ser igualmente alimentar;
2) deve ser coerente com as outras políticas;
3) a agricultura durável não deve pôr em causa a competitividade
da indústria;
4) a segurança alimentar não deve ser negociável;
5) necessidade de garantir o aprivisionamento da indústria;
6) manter os princípios da solidariedade financeira, como forma
de evitar a renacionalização da PAC.
Não nos surpreendemos com os argumentos apresentados acima,
porque as campanhas de convencimento junto à opinião pública sobre a
necessidade das reformas da Política Agrícola Comum, especialmente
com o fracasso das negociações de Cancún, em setembro de 2003,
evidenciaram que as campanhas midiáticas seriam imprescindíveis para
a UE fazer frente aos equívocos cometidos.
A fúria liberalizante e o império dos pressupostos do mercado
fazem com que os 10%, como já apontamos anteriormente, do que
representam os negócios dos produtos agropecuários em referência ao
conjunto de tudo o que se produz de alimentos sejam potenciados a
cifras mais elevadas. Os interesses em jogo, por parte da eu, reservam-
lhe praticamente intacta a sólida posição que mantém no mercado
mundial de produtos agropecuários, tanto nos movimentos de exportação
quanto de importação, já considerando sua composição alargada para os
25 países (Gráfico 2).
Diante desses pressupostos, poderíamos ponderar que haja
campanhas de convencimento para demover os demais interessados
nessa repartição destrutiva do mercado mundial e dos interesses e
disputas intracapital de que tudo o que estrutura esse projeto de
dominação e de regulação são ações para fortalecer a competitividade
dos produtos europeus e americanos, no mercado mundial. Em alguns
casos, para produtos específicos, utilizam-se de argumentos como
“medidas passageiras e de curta duração”, como encontramos nos
memorandos divulgados na internet pelos líderes europeus e os
defensores dos planos da Farm Bill.

Gráfico 2 – Exportação e Importação de Produtos


Agropecuários (%) – 2004
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
do Norte
Europa

África
América

Oriente
Medio
Exportações Importações Fonte: OMC,
2004; El Pais

O que se põe em questão, diante dessas distorções, é o crescente


descrédito da opinião pública em relação à necessidade de políticas
agrícolas públicas, na Europa. Parte do descrédito dos contribuintes
deve-se à estrutura social da agricultura européia, seu aspecto
multidisfuncional, particularmente por conta de que as milionárias
ajudas da PAC sustentam um modelo de produção intensiva que premia
os médios e grandes produtores e provoca mais desigualdades e
distorções, nos mercados internacionais, em detrimento da produção
camponesa e familiar, como na Espanha, onde se registra o
desaparecimento de 147.000 explorações, entre 1999 e 2003.
As razões desse desajuste não são casuais ou
acidentais. A desigual repartição dos subsídios,
historicamente, tem possibilitado a um conjunto de
grandes empresas comercializadoras/processadoras e
de produtores incomensurável poder de definir as
ações da política agrícola comum (comunitária). Não
seria diferente para a rodada Doha e todas as
negociações que transcorreram, por ocasião da VI
Conferência Ministerial de Hong Kong, em dezembro
de 2005, que teve à frente os interesses dos grandes
conglomerados agro-químico-alimentares. Basta
ponderarmos que os maiores latifundiários e as
principais transnacionais agroalimentares da UE são
os mais beneficiados do modelo de produção intensivo
e destrutivo, das exportações subsidiadas.
Nesse sentido, quando falamos em capacidade
de influenciar e decidir as políticas públicas para a
agricultura, estamos nos referindo à resistência desses
grupos para manter os privilégios em torno da
manutenção dos subsídios à exportação. Concentrados
na França, na Alemanha e na Holanda, esses grupos
põem em prática ações coordenadas, no âmbito da
UE, ameaçando constantemente o funcionamento do
sistema que defendem; porém particularmente
comprometem o futuro de muitas explorações
camponesas e de porte médio em escala empresarial
em países menos competitivos, como a Espanha, mas,
em maior medida, para os camponeses situados nos
países do sul.
A fragilização da PAC, plantada pelas
reformas instituídas pela UE, está motivando a
generalização junto à sociedade de que todos os
apoios públicos são desnecessários, porque
privilegiam grupos seletos. Sem contar os argumentos
de que a “modernização” tecnológica beneficiaria a
diminuição dos preços aos consumidores, diante do
aumento da produção e da produtividade – o que na
verdade não se concretiza –, ainda mais que, com a
fórmula do pagamento direto desvinculado, os
agricultores receberão recursos públicos sem
oferecerem a contrapartida de produzir. Bastaria
ponderarmos, em contraposição, que, na Espanha,
65% das explorações situam-se em áreas
desfavorecidas e de montanha, o que justifica a
necessidade de políticas públicas para financiar a
produção agropecuária, todavia que esteja vinculada
aos princípios e fundamentos da agricultura familiar e
camponesa.
A orquestração dessas medidas, no âmbito das reformas da PAC
e, em especial, da intermediária de 2003, com a introdução do
pagamento direto desligado da produção, assinala a convergência de
interesses que se completam simultaneamente para a sustentação de
diversas ações, no âmbito privado das empresas, do capital e também
dos Estados. Por conseguinte, por meio de políticas específicas, tanto
agrícolas, como industriais, comerciais (para exportação/importação),
emprego – ou, mais propriamente, de desemprego e de exclusão social –
ter-se-á uma nova Geografia da produção agropecuária, no planeta.
A vigência das regras atuais do comércio internacional, ainda
mais com o revigoramento da liberalização proposta para a próxima
reunião de cúpula da OMC – a VI Conferência Interministerial, marcada
para 13 de dezembro em Hong Kong – e dos pilares da PAC (tanto as
políticas de fomento, quanto de desenvolvimento rural), não somente
manterá os privilégios para as poucas empresas agroalimentárias, mas
também o esquema para que estas continuem se abastecendo da
produção das matérias-primas, nas áreas produtoras dos países do sul,
especialmente Brasil, México, Argentina, Índia e África do Sul, por
intermédio de suas filiais deslocalizadas. Esse é outro elemento dessa
intrincada equação social, pois a deslocalização da produção agrícola
fora da Europa está em franca ampliação, sendo esse um dos principais
argumentos utilizados como moeda de troca, nas negociações
internamente à OMC.
Nada mais sugestivo do que as pressões direcionadas por Tony
Blair, nos últimos meses, quando diz que a Europa tem que apostar no
fim da PAC, principalmente com o direcionamento dos recursos da UE
para a agricultura, podendo, assim, substituir, em curto prazo, as
políticas dinamizadoras da produção por políticas regulatórias do
mercado, onde os europeus poderiam buscar os produtos para a
alimentação, mediatizados por processos simplificados pela compra de
produtos.
Os tecnocratas, empresários e políticos afinados com esse ideário
têm argumentado que uma comunidade que só tem 2,1% do PIB
correspondente à agricultura, e uma população ocupada na agricultura
que diminui ano a ano, partindo de 27,6 milhões, em 1950, para 7,6
milhões, em 2000 (Gráfico 3) – representando um decréscimo em
relação ao total de 28,3% para 4,3% respectivamente –, não pode
absorver recursos públicos para manter a estrutura produtiva no campo, à
base de 50% dos recursos totais arrecadados.
Tamanha miopia social e nítida vinculação à exclusividade do
mercado e aos modelos intensivos de produção reúnem argumentos e
projetos de sociedade que, por meio de campanhas publicitárias, tentam
convencer os delegados e demais representantes da UE a apostarem no
modelo comunitário que poderia dirigir a maior parte dos recursos
públicos para educação, saúde, previdência etc. A esses argumentos se
acrescenta o fato de que a modernização tecnológica, no campo, já
permite que apenas ínfimas parcelas das populações dos países-
membros, com exceção de alguns países do PECO, da UE-25, se
vinculem à produção agropecuária (Gráfico 3).
Dessa forma, à Europa ficaria reservado o papel de produzir
mercadorias industrializadas e particularmente exportar serviços para os
quatro cantos do planeta, em troca da produção agropecuária que,
segundo o chanceler inglês, é anti-econômica e dispendiosa para os
contribuintes.
Nota-se que não somente a deslocalização está em marcha, mas
especialmente os esquemas que mantêm os fluxos comerciais e de
produção de matérias-primas para segmentos da produção européia, e
que lhe beneficia do ponto de vista da divisão internacional do trabalho.
Estamos nos referindo às importações massivas de ração animal,
particularmente da soja, razão dos excedentes europeus de produtos
animais, de carnes e de cereais, para os quais a UE não tem nenhuma
vocação exportadora.
Gráfico 3 – População Ocupada na Agropecuária (%) UE–15

60

50

40

30

20

10

Seuécia
Alemanha

Austria

Belgica

Dinamarca

Espanha

França

Grécia
Finlandia

Holanda

Itália

Irlanda

Portugal
Luxemburgo
UE

Reino Unido

1950 2000

Fonte: FAO, 2003.

Além disso, o modelo produtivo da PAC, fundado na pecuária


intensiva (bovinos, aves, ovinos, suínos), no leite e na importação de
ração, segue à risca o desligamento entre produção de cereais e os
pagamentos diretos, o que em nada garante a qualidade dos produtos e
tampouco deixa passarem despercebidos os elevados índices de
contaminação dos solos e dos mananciais. Disso se conclui que o
modelo produtivo, baseado no barateamento dos custos, nos ciclos
longos entre produção e consumo, na especulação e nos negócios com os
produtos alimentícios, em nada pode garantir a multifuncionalidade da
agricultura, propósito tão veiculado nos cânones da UE.
A imprensa européia, os boletins informativos da UE, da OCDE,
da OMC e os formadores de opinião simpáticos e defensores da
formulação euro-americana de formatação do planeta à sua imagem e
semelhança noticiaram e apresentaram os cenários de uma UE-25
diferente, mais liberal e “pronta para os desafios do futuro”, todavia
refém da própria incapacidade gerencial. A começar pelo fracasso do
tratado constitucional, que foi rechaçado, na França e na Holanda; a
incapacidade de encontrar perspectivas financeiras para 2007-20013, a
recusa radical da Grã-Bretanha, em relação aos gastos destinados para o
financiamento PAC; e, o mais importante, o balizamento da UE nas
negociações que se dão no interior da OMC, nitidamente favorável ao
abandono das políticas comunitárias do setor agrícola, para ganhar no
setor de serviços.

2.1. Internamente ao Estado espanhol

Quando consideramos a magnitude dos recursos atribuídos às


Comunidades Autônomas, constatamos que somente Castilha e La
Mancha, Extremadura, Andalucia, Castilha e Leon representam 2 euros
de cada 3 euros direcionados pela PAC, ou seja, 66,6% de todos os
recursos, sendo que somente a Andaluzia representa 33,2%, o
equivalente a € 1,57 bilhão, e as duas Castilhas, com 15% cada, e
Extremadura, com 10,0% (Figura 1).
No outro extremo dessa configuração, encontra-se a Comunidade
Autônoma da Galícia, que evidencia de forma marcante a escalaridade
das distorções materializadas com a PAC, particularmente com a
intensificação desse processo, por conta da Reforma de 2003, pois lhe
coube apenas 1,5% do total das ajudas diretas da Espanha – ou 74,0
milhões de euros (Tabela 3).
Figura 1. Espanha – Distribuição das Ajudas Diretas por
Comunidade Autônoma (Média Anual 2000-2003)

N
ASTURIAS
PAIS
GALICIA CANTABRIA VASCO
NAVARRA

CASTILLA LA RIOJA CATALUNYA


Y
LEON

ARAGON

MADRID

CASTILLA COMUNIDAD
LA VALENCIANA
EXTREMADURA MANCHA BALEARES

MURCIA

ANDALUCIA

CANARIAS

Fonte: MAPA (Livro Branco 2004); INE, 2004.


Tabela 3. Distribuição das Ajudas Diretas por Estratos.
Galícia, Espanha e UE - 2001/200114

Beneficiários % Recursos
Beneficiários Galícia UE Espanha Galícia UE Espanha
1000 € /Estratos
<5 95,4 78,6 81,6 65,8 17,8 24,1
5 a 10 3,2 9,2 9,1 16,2 13,0 16,7
10 a 20 1,9 6,8 6,0 10,2 19,0 21,0
20 a 100 0,4 5,1 3,1 7,7 37,3 29,1
> 100 0,0 0,3 0,2 0,1 12,9 9,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Média por
Recebedor 56,3 4.458,3 887,1 73,5 % 22.367,0 3.445,4
3
(10 €)
Ajuda Média por - - - 1.307,00 5.015,0 3.882,00
Recebedor
(106 € )
Fonte: Comissão Européia, 2002; López Iglesias, 2004.

Essas informações revelam, portanto, que 95% dos proprietários


que receberam as ajudas diretas, com referência a 2001, na Galícia,
enquadram-se no estrato de menos de € 5.000,00, correspondendo nessa
mesma faixa, a 66% dos recursos. No estrato de € 5.000,00 a 10.000,00 a
participação do primeiro estrato alcança apenas 4,2%, representando
26,4% dos recursos; acima de € 20.000,00, significam apenas 0,4% dos
recursos. Percebe-se que, embora não haja discrepâncias em termos da
estrutura da distribuição para a UE e para a Espanha, na Galícia, a
quantidade de beneficiários no estrato daqueles que recebem menos de
€5000,00 é muito mais expressiva.

14 A dificuldade em atualizar essas informações nos impediu de apresentar


informações para 2003 e 2004. De todo modo, tendo em vista os estudos realizados, o
quadro representado para 2000 e 2001 pouco difere daquele vivido em 2004 e 2005,
especialmente com a vigência do RPU.
Por outro ângulo, esse quadro pode ser focado considerando-se a
participação das Comunidades Autônomas na produção agrária nacional
(Gráfico 4).

Gráfico 4 – Participação (%) das Comunidades Autônomas na


Produção Agrária Nacional
Cantabria
Madrid
Asturias
Baleares
Pais Vasco
La Rioja
Navarra
Canarias
Murcia
Extremadura
Galicia
Aragón
C. Valenciana
Cast. A
Catalunia
Cast. Leon
Andalucia
0 5 10 15 20 25 30

Fonte: Unión Europea,


No caso da Galícia, é destacável a participação da pecuária, no
conjunto das atividades agrárias, representando 64,0 % do valor total da
produção, com menor ênfase para o setor de carne, mas com crescente
interesse pela produção de carne de ternera15 com a denominação
geográfica protegida de “Ternera Galega”16, que, desde 1989, demarca
um mercado em expansão. Produto demandado sobretudo na Galícia,
Catalunha e demais Comunidades Autônomas, respondeu a 15.000
toneladas de carne, em 2005, com uma movimentação em torno de 70

15 Os animais, na maioria machos, são abatidos com menos de 10 meses e com o peso
controlado em torno de 200 quilos.
16 Cf. INFORME ATIVIDADE, 2004.
milhões de euros. Todavia, o abate geral totaliza 400.000 cabeças por
ano, correspondendo a uma receita de 150 milhões de euros. O maior
destaque fica para o leite, com uma produção em torno de 2,3 bilhões de
litros, ou 37,0% da Espanha (que representa apenas 3,0% da produção
européia), equivalente a uma receita de 450 milhões, sendo que a
estrutura produtiva também reflete o quadro de desigualdades que vimos
demonstrando para o conjunto europeu e espanhol.
A Tabela 4 nos permite compreender os principais aspectos que
caracterizam a estrutura agrária galega baseada no minifúndio e as
contradições da PAC, que, enquanto política pública, ao invés de
incentivar a produção de leite, associada à produção diversificada de
gêneros de subsistência, nas propriedades galegas que contam com a
dedicação familiar, incentiva o abandono da produção e das terras e o
avanço das áreas de reflorestamento17. Vale lembrar que essas áreas não
se restringem às regiões de monte, tampouco às áreas dos Montes
Vecinais, senão que avançam para as áreas de lavoura. Esse processo se
agrava após os anos 1990, momento em que se registram os maiores
índices de abandono da produção. Por exemplo, somente de 1996 a
1999, partiu-se de 51.517 explorações leiteiras para 37.525. Sem contar
o crescente abandono de terras e a difusão da agricultura a tempo
parcial18 (ATP), amparada na complementação da renda familiar em
duas frentes, em grande medida simultâneas: na realização de trabalho
fora da exploração, não mais somente do chefe de família, e o papel
destacado das pensões dos familiares aposentados.

17 A esse respeito, ver López Iglésias, 2004.


18 Cf. LÓPEZ IGLÉSIAS, 1996 e 2004.
Tabela 4. Explorações Leiteiras, segundo Número de Vacas. Galícia
- 2003

E s t ratos Nº Vacas
1-9 10-19 20-29 30-49 50-99 100- 200-299 330-499 > 4
199
Nº de
Explorações 4.134 9.991 5.231 4.443 2.256 311 36 9
Nº de Vacas 34.665 70.968 85.021 138.126133.126 36.049 7.49 2.401
% Espanha 6,8 14,0 16,7 27,2 26,2 7,1 1,5 0,5 0
Fonte: Unión Européia, 2003.

Desse modo, os estratos que compreendem de 1 a 20 vacas,


apesar de expressarem 14.125 explorações, de um total de 63.411,
respondem por somente 105.633 vacas, enquanto os estratos de 30 a 99
vacas compreendem, respectivamente, 6.699 explorações e 271.333
animais, de um total de 508.186.
A escalada desse processo, que ocorre há décadas, ganha maior
dimensão nos últimos vinte anos e caminha crescentemente para uma
quadro preocupante, tendo em vista a conjunção de fatores entre o
distanciamento das políticas públicas para os segmentos familiares em
bases camponesas – que vinculam a produção mercantil com a qualidade
dos produtos – e a diversificação de gêneros alimentícios, e o elevado
grau de envelhecimento do(a)s trabalhadores(as) labrego(a)s
(camponeses) que permanecem à frente das explorações. Assim, o
significado das pequenas unidades produtoras de leite pode ser
dimensionado pelo número de vacas e, conseqüentemente, pela produção
de leite.
A ausência de políticas sociais de amplitude social está
colocando em risco a continuidade da vida comunitária camponesa, na
Galícia, bem como nas demais Comunidades Autônomas, especialmente
as que compõem a Cornija Cantábrica (Astúrias, Cantábria e País
Vasco). Em contrapartida, tem-se a priorização das médias e grandes
propriedades agropecuárias, por meio de ações concretas das políticas da
PAC, que lhes assegura serem as únicas capazes de realizar os
investimentos necessários para responder aos índices de produtividade e
competirem no mercado, para enfrentar o rebaixamento dos preços e as
imposições do mercado mundial.
Por outro lado, a maior parte da superfície ocupada com
atividades agrícolas está vinculada ao cultivo de forrageiras. Isto é, dos
472.000 ha de terra cultivada, na Galícia (15,9% do total), 270.000 ha
(57,2%) estão ocupados para a manutenção do gado, enquanto, para os
cereais, destaca-se o trigo, com 20.000 ha; a uva, com 32.000ha, de que
25% estão vinculados a alguma das cinco denominações de origem
galega (Rias Baixas, Ribeiro, Ribeira Sacra, Valdeorras, Monterrei); a
batata, com 22.600 ha; e as terras dedicadas à horticultura, algo em torno
de 7.500 ha.

3. Territorialidade da Resistência Camponesa na Galícia

Os principais desdobramentos da PAC e, por conseqüência, as


ações do capital na agropecuária na Galícia e, de maneira mais geral, no
campo, em muito estão promovendo mudanças nas formas de uso e nos
vínculos sociais e territoriais entre os trabalhadores, em particular os
labrego(a)s e a terra. O histórico que formatou na Galícia o
minifundismo se compõe de aspectos importantes, para entendermos que
as grandes propriedades fundiárias, desde a romanização, enfrentaram
um abundante campesinato que resistiu e logrou manter seu direito à
terra.
Ou seja, o caráter tardio da romanização e a superficialidade de
suas determinações, na Galícia, resultou na não generalização do sistema
econômico e das formas de produzir características da época, à base da
mão-de-obra escrava, especialmente em grandes latifúndios agrários,
tampouco os valores da sociedade clássica e do mundo antigo. Isso nos
permite entender a permanência das formas autóctones e organização
forense – relação baseada no pagamento do foro –, o mundo rural
tradicional diretamente herdado da cultura castrexa19 e,

19 As pesquisas bibliográficas e entrevistas que realizamos, junto a historiadores,


estudiosos e especialistas na matéria, nos orientam a acatar essas referências para
conseqüentemente, a manutenção das comunidades labregas, ou o
predomínio das comunidades autárquicas de camponeses livres, sem que
falte nessa análise a pouca disponibilidade de terras diante da farta
população camponesa.
É por esse caminho que podemos compreender o papel também
resistente e forte socialmente do cristianismo, que triunfa exatamente nos
meios agrários e assume caráter popular20, particularmente na condução
das movimentações em torno do agrarismo, do início do século XX, e a
maneira específica de organização das parróquias, dos lugares, dos
pueblos, da dispersão populacional. Os 32.000 núcleos de povoamento
ainda hoje existentes (o que corresponde a 1/3 da Espanha) conformam a
organização territorial da sociedade galega. O campo, em particular,
mesmo diante dos ataques mais duros e freqüentes da “modernização”
tecnológica e os vínculos desse propósito com as políticas públicas da
PAC para a agropecuária, ainda resiste, todavia fragilizado e cada vez
mais esvaziado, tendo em vista o elevado índice de abandono das terras,
ou, mais propriamente, o contínuo desmonte dos laços comunitários
labregos, em detrimento da importância de inserir a Galícia na Europa
moderna.
É importante ressaltar que o agrarismo,
enquanto componente importante da história da
Galícia, foi marcante, tanto para os labrego(a)s,
quanto para toda a sociedade, especialmente por conta
das contradições em torno dos papéis que a Igreja
Católica desempenhara e da liderança dos seus
principais quadros, especialmente o padre Basílio
Álvarez, que, nos anos 1910, liderava juntamente com

entendermos os processos sociais que dão sentido e ordem à atualidade social do


trabalho no campo, na Galícia.
20 A esse respeito, há uma rica bibliografia, o que para este momento foge de nossos
objetivos; todavia, é importante frisar o que os historiadores assinalam como
“priscilianismo”, que tem a ver com a influência direta do padre Prisciliano, ou Bispo
de Ávlia (século 4 d.C.), que reinterpretou o cristianismo para as comunidades
camponesas, com base na simplicidade do modo de vida no campo, incentivando a
criação de comunidades que viviam do trabalho agrícola e fugiam da hierarquia.
outros religiosos e intelectuais a resistência contra o
caciquismo. Por meio da “Liga Ación Galega”,
conduzem as lutas que estavam diretamente vinculadas
aos interesses galegos e que vão se somar aos
movimentos nacionalistas nascentes na época, os quais
inspiram ações conjuntas de camponeses e operários,
indo desembocar de forma mais direta nas lutas anti-
foro, já em meados dessa década.
O referencial societário do agrarismo acelerou
as mudanças institucionais, para fazer dos rentistas e
foreiros pequenos proprietários de terra. A estreita
vinculação do campesinato com a terra, ou o apego à
propriedade privada individual, foi o contraponto para
negar as relações sociais que mediavam a dominação
que os proprietários de terras exerciam, por meio dos
foros.
Entretanto, aquela negação para afirmar a
“liberdade” e a manutenção das comunidades
camponesas e a integração da economia agrária
galega, no mercado interno do Estado espanhol,
narcotizaram as possibilidades de superação do estado
de dominação que se abatia sobre os camponeses e a
sociedade, em geral. Portanto, do interior do
agrarismo se vivenciaram as movimentações políticas
dos camponeses, as quais acabaram por influenciar as
organizações sindicais e demais agremiações que
implementaram ações concretas em seu nome. As
características específicas desse processo
permaneceram como referência única ou
predominante, enquanto valores que asseguraram a
vida e o trabalho na terra, sob a referência da
propriedade individual territorialmente marcada pelo
minifúndio, pelas pequenas parcelas de terra
espalhadas, inclusive na mesma parróquia21.
Esses valores e princípios também marcaram o
posicionamento defensivo dos camponese(a)s, que, já
sob a vigência do processo crescente de desmonte da
organização produtiva camponesa, vivenciada mais
intensamente nos anos 1980 e 1990 – que, apesar de
buscarem trabalho no setor urbano para
complementar as despesas da família e daí manterem a
propriedade da terra –, não se envolviam ou
raramente se envolviam nas lutas reivindicatórias dos
operários e dos proletários do setor urbano, tampouco
continuaram a desempenhar as atividades
complementares, como o artesanato e a produção de
ferramentas e utensílios domésticos, que lhes
ocupavam o tempo morto da lida com a terra.
Nesse sentido, desde a luta anti-foro, que
coincide com a ditadura de Primo de Rivera, e que
estava no vértice do que se defendia como
“modernização” da agropecuária galega, se defendia
que a propriedade da terra deveria estar sob o
controle dos labregos e, dessa forma, estes poderiam
ascender aos mercados. Assim, seria garantida a “paz
social” no campo e se neutralizariam as influências
anarquistas e socialistas, que, naquela época (anos 20
e 30 do século XX), eclodiam por toda a Europa. Foi
baseado nesses pressupostos que Primo de Rivera
instituiu o decreto de redenção foral, em 1926, o que
lhe garantiu primazia entre a comunidade camponesa,

21 As fontes bibliográficas utilizadas basearam-se em livros, documentos, coleções


divulgadas nos jornais locais, além das entrevistas por nós realizadas. Diga-se, pois,
que as entrevistas foram muito importantes para que pudéssemos fazer os vínculos
entre as datas, os processos e os fatos nos lugares, tendo em vista a conciliação desse
aprendizado com as visitações nas parróquisa, nos pueblos, nas fincas.
que vivia o flagelo desse expediente, todavia não se
mobilizou em favor dos princípios libertários
defendidos pelos movimentos que compunham a
esquerda independentista, anarquista e, logo depois,
no início dos anos 1930, os socialistas.
Essa clara defesa da Igreja aos pressupostos do ideário liberal da
época e nada revolucionário, do ponto de vista dos trabalhadores,
formatou os valores que, no período da Guerra Civil (que se inicia em
1936), foram abandonados, numa clara adesão aos pressupostos daquilo
que depois veio a se consumar com o franquismo. A Igreja Católica
tratou de influenciar as organizações dos trabalhadores, de tal forma a se
enquadrarem no ideário do que se rotulavam como sindicatos agrários
confessionais, cujo centro das defesas continha a conformação dos
trabalhadores ao ideário do Estado.
As mudanças que foram se operando, ao longo dos tempos,
produziram novas conformações no agro galego, tanto é que, segundo
indicam as informações censitárias, já em meados do século XX, apesar
de conservar características dos séculos anteriores, predomina o fato de
que a maioria dos camponeses são proprietários das terras que cultivam,
tendo praticamente desaparecido o regime foral, ainda que haja terras em
regime de arrendamento ou em parceria (LÓPEZ ANDIÓN, 1999).
São esses aspectos também fundamentais para compreendermos,
em parte, o apego dos camponese(a)s galego(a)s à terra; aliás, esse foi
um dos principais aspectos que nos chamou atenção para o mundo do
trabalho no campo, na Galícia. As informações censitárias têm
constatado que, apesar de haver abandono de terras – sobretudo na
década de 1990 –, as explorações que desaparecem, geralmente as
menores e menos rentáveis, ou que se somam a interrupção de
titularidade (motivada por envelhecimento e/ou aposentadoria), há
permanência das famílias nas casas, seja nelas residindo, seja como a
segunda residência, de sorte que as terras ficam incorporadas a outras
explorações agrárias, por cessão gratuita, arrendamento, parceria, ou
compra, sendo esta última alternativa a de menor ocorrência.
O apego à terra tem que ser entendido também na dimensão da
titularidade e da sucessão do responsável no interior da família, porque
os pais, ainda que estejam à frente das atividades agrárias, não admitem
com facilidade a gestão do empreendimento pelos filhos que os
acompanham e, por outro lado, mesmo que não estejam mais à frente da
exploração, não fazem a transferência das terras para os filhos, a fim de
que possam levar adiante as atividades, até que morram. As explicações
mais convincentes para esse aspecto têm a ver, em primeiro lugar, com o
apego à terra, típico da família camponesa, sendo que a resistência em
vender ou transmitir para os herdeiros relaciona-se com a exigüidade da
disponibilidade de terras, com o tamanho reduzido das explorações
(fincas) e com o significado de possuir terra, no âmbito da comunidade
parroquial, do pueblo. Isso, há séculos, assegura a identidade social, que
só tem sentido na existência territorial do fato de ser camponês (labrego).
Em momento posterior, nós nos ocuparemos desses aspectos,
pois nos parece muito importante a resistência camponesa e a identidade
territorial que a acompanha, como um dos elementos diferenciadores da
trajetória histórica do campesinato, no Brasil, apesar de terra ter também
essa significação; todavia, o componente migrante do camponês
brasileiro, por conta sobretudo do combate aberto com os latifundiários,
e os ingredientes do intenso comércio de terras, fazem com que a
identidade social do campesinato seja produto da luta pela permanência e
pelo acesso à terra.
De todo modo, os componentes fundamentais, impostos pelo
franquismo (1936 a 1975)22, foram destruindo ao longo do período
ditatorial as organizações de base e as identidades sociais e políticas dos
trabalhadores, em geral. Fato é a desvinculação das terras de monte ou,
como se diz localmente, o Monte, da lavra camponesa, ao transformá-lo
em propriedade pública, dos municípios, na grande maioria controlada
pelo poder central e mesmo o privatizando, por meio da venda.

22 Referimo-nos ao período da ditadura militar de Francisco Franco, que se consolidou


após o final da Guerra Civil, (1931-1936), sucedendo o governo de Primo de Rivera e
do general Berenguer, em 1931, com o exílio do rei Afonso XIII.
Com isso, no período franquista, o monte foi usurpado do
convívio dos camponeses/comuneiros, o que inviabilizou, para milhares
de famílias e comunidades, a vida no campo, tendo em vista a
insuficiência das terras para o cultivo e pastoreio (sobretudo das vacas de
leite), associada à pouca extensão das terras (fincas) e o sustento de
todos os membros da família camponesa.
A retomada dos montes para a gestão das comunidades de
vizinhos é, aliás, algo muito característico da Galícia e de Portugal, onde
tem validade o regime de propriedade baseado no direito
consuetudinário e não nos parâmetros do direito romano.
Os papéis historicamente definidos para os Montes Vecinais, na
Galícia, tão bem discutidos por Pereira et al (1999)23, possibilitaram-nos
compreender os significados atuais para os camponese(a)s galego(a)s.
Isto é, os montes não necessariamente são geridos por camponese(a)s,
mas revelam muitas identidades; no entanto, o que predomina é o
vínculo com a terra, sob a forma específica de gestão do território
identificada com o monte, sem a conotação das formas de vida e de
trabalho tipicamente camponesas. A esse respeito, enfatizamos os
aprendizados adquiridos junto às ações da Organização das
Comunidades do Montes Vecinais em Mãos Comuns24, pois muito nos
explicam dos aspectos do passado e das perspectivas de futuro, para o
reordenamento territorial do uso da terra, na Galícia.
Alguns historiadores e pesquisadores apontam a dissociação do
uso e exploração do monte pelas comunidades camponesas e vecinais
como o principal fator, associado à ausência de políticas públicas de
valorização da atividade agropecuária na Galícia, em particular no
período franquista, da crescente e intensa emigração de camponeses para
a América Latina, em especial, para a Argentina, Venezuela, Uruguai e

23 A entrevista que realizamos, junto a Dionísio Pereira, foi fundamental para a


condução da nossa investigação, como pudemos relator no item 3.9 desse relatório.
24 Obtivemos informações, documentos e publicações sobre a OCMVMC, e ainda
temos mais de 20 horas de entrevista, junto aos principais dirigentes, além da
intervenção do presidente da entidade, durante o evento “A Questão da Terra na
Península Ibérica e na Iberoamérica”, que organizamos no período de 26 a 28 de
outubro de 2006.
Brasil, assim como para outras partes do mundo e, conseqüentemente, da
fragilização da produção camponesa, que, quando se soma às medidas
implementadas pela PAC, reflete o quadro de desagregação,
fragmentação, enfraquecimento e desaparecimento das explorações, do
abandono das terras e da diminuição da população camponesa, ano a
ano.
Nesse sentido, a orquestração do desmonte da produção
camponesa não é algo reservado à Galícia ou à Espanha, ou algo
reservado ao destrutivismo da PAC e aos demais países europeus, senão
um processo que se territorializa pelas demais regiões do globo. Como
vimos, esse processo é governado pelos poderosos órgãos de fomento do
capital e dos interesses dos Estados nacionais e das classes dominantes,
que influenciam e teleguiam as políticas públicas de grande parte dos
países, em particular, os temas agrários. As ações contemporâneas de
resistência, expressas nos movimentos camponeses espalhados sobretudo
na América Latina, na África e na Ásia, põem em evidência que continua
sendo equivocado avaliarmos que o posicionamento eurocentrista possa
nos ajudar a entender o mundo de hoje, a escalaridade dos conflitos, a
dimensão das demandas sociais dos trabalhadores desempregados, as
alternativas organizativas, os mundos possíveis etc.
As ações vivas dos camponeses, dos trabalhadores urbanos, dos
desempregados, refazem constantemente os caminhos do enfrentamento
e da rebeldia do conjunto dos trabalhadores, que, portanto, se somam
para enfrentar o destrutivismo da sociedade do capital e para construírem
novos referenciais de sociedade.

4. Reordenamento Territorial no Campo e a Questão da terra

A convergência desses elementos abordados e seus significados


históricos e territoriais para os camponeses, em especial, e para a
sociedade. de maneira geral, nos põem a refletir a complexa trama de
relações que está se apresentando para os trabalhadores, sejam
camponeses, sejam assalariados.
Uma parte dos desafios em relação à dispersão e fragmentação
da ocupação da terra, na Galícia e na Espanha, foi entendida como sendo
corrigível por meio de intervenção do Estado, do poder público, na
gestão do território ou, como é mais usual, do reordenamento do
território rural.
Nessa perspectiva, por meio da concentração parcelária25, estão
sendo implementadas ações para concentrar a terra de trabalho ou a
reestruturação do solo rústico, com a finalidade de aumentar a sua
rentabilidade, objetivando um melhor aproveitamento dos recursos. As
novas funções e determinações das formas de uso da terra rural, como
consta no artigo 56 da Lei 9/2.002, deverão ser delineadas pelo Plano
Geral de Ordenamento Municipal, que delimitará o perímetro do arranjo
da parróquia, do pueblo, assinalando o seu caráter público ou privado.
Mediante o reordenamento racional do terreno, constituem-se
explorações de estrutura e dimensões compatíveis com as formas de uso
e exploração desejáveis pelos interessados, suprimindo, dessa maneira,
as explorações ou propriedades que sejam anti-econômicas, aumentando
sua superfície e oferecendo novas unidades, que possam contar com
infra-estrutura adequada de transportes e comunicação.
Os resultados de algumas ações da concentração parcelária
podem ilustrar a dimensão do minifundismo predominante na Galícia,
pois, segundo López Andión (1999), nas parróquias concentradas, a
magnitude de concentração alcançou 5, 6, 7 vezes o estado original. Ou
seja, a título de exemplo, em um caso concreto, passaram-se de
3.055.287 parcelas (fincas), antes da concentração, para 535.485
explorações reorganizadas, donde o tamanho médio, respectivamente,
passou de 0,1 para 0,56 ha; o número médio de parcelas por proprietário
diminuiu de 10,49, antes, para 1,84, depois. É por esse caminho que

25 A referência fundamental do processo de concentração parcelária é o decreto


118/1.973 de 12 de janeiro, depois refundido à lei de reforma e desenvolvimento
agrário, de 1985, o qual deu origem à promulgação da lei 10/1.985 de 14 de agosto de
Concentração Parcelária para Galícia, que está atualmente em vigor, e também
referenciada na lei 19/1.995 de Modernização de explorações agrárias e o Real Decreto
613/2.001, de 8 de junho.
podemos entender como, na atualidade, existem 1.700.000 proprietários
de terra rural (fincas), na Galícia, para uma população de 2.750.000
pessoas.
Os novos usos do território agrário egresso da concentração
parcelária têm motivado estudos e pesquisas para se conhecer seus
resultados práticos e os desafios que se apresentam, para o
potenciamento dos cultivos forrageiros em geral e, conseqüentemente, os
vínculos com os elementos que compõem as políticas agrárias públicas,
em todas as escalas de ação, vinculadas à PAC. Assim, pode ser possível
dimensionar de que maneira e em que magnitude os resultados da
intervenção no reordenamento territorial, por meio do processo de
concentração parcelária, se juntam ou se vinculam ao processo seletivo
de “modernização” da agricultura, que, de forma generalizada, foi
alardeado em toda a Espanha, nos anos 1980, como o maior trunfo para a
efetiva inserção do Estado na comunidade européia.
A conjugação desses elementos com os demais pressupostos da
PAC e dos rearranjos em marcha, em toda a economia em nível regional
e internacional, é o que pode nos possibilitar compreender que é possível
vislumbrar, mesmo onde predomina o minifundismo, o aumento do
potencial produtivo e da desejável busca racional das explorações (por
meio da concentração parcelária), sobretudo nas comunidades
cantábricas (Galícia, Astúrias, Cantábria, País Vasco).
Os interesses maiores e superiores ao bem-estar dos camponeses
e da sociedade, em geral, sucumbiram diante da fúria comercial e
mercadológica dos grandes produtores franceses, holandeses, alemães e
das grandes empresas do setor agroalimentar, as quais forçaram a
imposição das quotas de produção, especialmente do leite, ou seja,
exatamente o principal produto comercial para os produtores do centro-
norte e noroeste peninsular, com capacidade para produzir muito mais do
que foi delimitado e tendo que aceitar as imposições de Bruxelas,
especialmente quando se considera que a Espanha tem um déficit entre
produção e consumo interno de leite de 2,0 bilhões de litros, além de
capacidade para produzir muito mais.
Todavia, essa equação se fecha, não por argumentos racionais,
mas sim mercadológicos e de controle econômico da regulação mais
geral da sociedade, com base no modelo da UE. Mesmo tendo
capacidade para auto-abastecer-se, é necessário submeter-se ao esquema
de produção e circulação de mercadorias, definido por Bruxelas, em
consonância com os interesses das grandes empresas do setor lácteo e
agroalimentar, em detrimento da exclusão de camponese(a)s do cenário
produtivo.
É nesse processo que se vincula o que está ocorrendo em relação
à supertaxa do leite26, em que o Ministério da Agricultura (MAPA)
aplica multas aos produtores espanhóis, de 22,1 milhões de euros, devido
à superação da cota de produção de leite em 68 milhões de litros, dos
quais 14,6 milhões de euros recaem sobre os produtore(a)s galegos,
equivalente a 43 milhões de litros de leite.
De todo modo, o dispositivo da concentração parcelária, desde o
início de sua vigência, não tem apresentado resultados mais positivos,
principalmente porque raramente está associado a um plano de
ordenamento territorial que favoreça o fortalecimento e a autonomia da
exploração camponesa. Na maioria dos casos, como apontam os estudos,
as visitações e os depoimentos que obtivemos, durante as entrevistas, a
concentração parcelária tem seus objetivos desviados para favorecer
interesses de poucos, que se aproveitam da situação para burlarem a
legislação e praticar a especulação imobiliária com a terra rural, com fins
urbanísticos, na construção de condomínios etc.
É nesse contexto que podemos situar a contemporaneidade da
situação de milhares de camponese(a)s, que, mesmo desejando se manter
na terra para produzir e tirar o sustento da família, convertem-se em
agricultores em tempo parcial, porque têm que buscar fora das
explorações outras atividades para complementar a renda familiar.
Não é o caso, nessa perspectiva, de acreditarmos nas mentiras
veiculadas aos quatro cantos do planeta, pelos meios de comunicação, de
que o(a)s camponeses(as) não querem mais saber de permanecer na terra

26 Em respeito à supertaxa, há uma quantidade demasiada de documentos internos dos


sindicatos, do Ministério da Agricultura, notas de imprensa, recortes de jornais.
e, portanto, as políticas agrícolas têm que privilegiar os mais produtivos
ou, mais propriamente, as empresas rurais que estão respondendo aos
estímulos da “modernização” e da concorrência e, quanto aos demais,
que sejam alvo de políticas públicas de emprego nas atividades
tipicamente urbanas. No limite, é por dentro desse cenário que situamos
o distanciamento cada vez mais crescente entre o número de
proprietários de terras e o de agricultores profissionais, especialmente na
Galícia, onde o apego à terra é muito marcante.
Tamanha irracionalidade, infelizmente, não é privilégio somente
dos europeus ou dos espanhóis, tampouco dos galegos. O que coletamos,
durante essa pesquisa, por meio das diferentes fontes de informação, é
que a sociedade mundial está sendo estimulada a acreditar que o campo
está em vias de acabar e que o(a)s camponeses(as), como obra do
passado, só poderão ser entendidos desde os referenciais contemplativos
e dos saudosismos, mesmo que as próprias estatísticas indiquem que
metade da população do planeta esteja vinculada à terra.
Assim, esses aspectos põem em questão o fato
de que um processo concentrador, ou de concentração
parcelária, também produz implicações para além das
formas de uso agrárias da terra, pois, em
determinadas zonas e por circunstâncias que se ligam
a inúmeros interesses econômicos e políticos, há
mudanças marcantes quanto à destinação das terras,
sem que isso corresponda às reais necessidades do(a)s
camponeses(as), dos moradores. São notórios os
campos de golfe, os condomínios para classe média e
de alto luxo que se espalham por toda a Espanha e que
têm vínculo com os interesses de empresas e grupos de
especuladores e da indústria da construção civil.
O aproveitamento do dispositivo da
concentração parcelaria, para desviar seus objetivos
primeiros, tem mobilizado setores combativos dos
trabalhadores, particularmente as organizações
sindicais camponesas em toda a Espanha. No entanto,
as ações mais direcionadas para medidas um pouco
mais ousadas partem do Sindicato Labrego Galego, do
Sindicato Basco (EHNE) e do SOC também,
considerando-se o conjunto das suas propostas,
mesmo representando os interesses de assalariados
(jornaleiros) e não propriamente camponeses, e outros
que seguem as orientações da COAG.
Entendemos que não se trata de acreditarmos e
nos convencermos, diante das estatísticas, na
diminuição crescente da população trabalhadora
camponesa e na perda de sua importância no valor da
produção, na participação do PIB, devendo a
produção agropecuária ficar ao encargo das empresas
e o campo não necessariamente poderia ser
exclusivamente rural, mas multidimensional.
Tampouco deveríamos acreditar que não se trata da
adoção de medidas que interfiram na estrutura
fundiária, porque a agropecuária necessita de
políticas que garantam boas condições para produzir,
produtores profissionais e tecnificados, financiamentos
(ajudas, subsídios, dependendo do lugar a que nos
referimos), estoques reguladores, preços mínimos etc.
Temos que dar conta de responder com
precisão se se trata de colocar em prática ações no
sentido da concentração parcelária, como o caso
espanhol e galego, mais propriamente, e que sejam
capazes de viabilizar a produção camponesa, reforçar
a fixação das famílias na terra, com boas condições de
trabalho e de vida, ou, do lado oposto, de políticas que
promovam a repartição da terra, que desvinculem a
propriedade da terra do poder dos latifundiários e
especuladores, e, portanto, não se privilegiem medidas
estruturais.
É exatamente nesse vértice que enfocamos a
questão da terra em todo o planeta, nesta virada do
século XXI. Aqui nos reservaremos apenas a destacar
os vínculos existentes entre os principais elementos
que contemplam a questão da terra, como acesso,
condições para produzir, reforma agrária e extinção
dos princípios da propriedade privada.
O que nos motiva a enfatizar esses laços são os
elementos mediadores presentes nos diferentes
territórios em disputa e que têm, na terra, a
centralidade dos conflitos sociais. Como priorizamos
enfocar o processo social a partir da primazia do
conflito social, das contradições imanentes à luta de
classe e que tem, no trabalho, nas suas diferentes
formas de expressão, a centralidade da relação capital
x trabalho, não nos atreveríamos a fazer
generalizações ou dissociarmos os diferentes
significados que a terra tem para o(a)s
trabalhadores(as), nos lugares.
Ao contrário, com as atenções voltadas
exatamente para dimensionar o movimento
contraditório do processo social mais geral, é que
propomos que a questão da terra, somente pode ser
entendida como uma questão, se, de fato, pretendemos
desvendar o estranhamento governado pelas
evidências empíricas dos casos isolados e também as
avaliações apressadas e enrijecidas, nos modelos
interpretativos (prévios), os quais, no fundo, nos
querem fazer crer que a Reforma Agrária é um assunto
para os países do sul (subdesenvolvidos), tendo como
única alternativa a adoção dos pacotes do BM (como a
Reforma Agrária de mercado), e que, na Europa, a
extinção dos camponeses é dada como certa, de sorte
que falar disso é uma “tonteria” (bobagem).
As experiências que vivenciamos, por meio
desse projeto de pesquisa, tais como nossa
participação em eventos, trabalhos de campo,
visitações, entrevistas e o acompanhamento da
bibliografia especializada, nos possibilitaram captar
outra realidade, bem diferente daquela impressa na
maioria dos textos acadêmicos, dos discursos dos
políticos e dirigentes sindicais. Especialmente aqueles
que não estão interessados em captar as mensagens e
as indicações expressas nas manifestações e ações que
demarcam um campo de intervenção, no cenário
sindical em algumas Comunidades Autônomas, como é
o caso do SOC, na Andaluzia, e, em algumas regiões
da França e Itália, como pudemos apreender das
publicações da CPE (Coordenadora Camponesa
Européia)27, da Via Campesina, e das entrevistas que
realizamos junto aos dirigentes dessa agremiação.
Por conseguinte, na Europa, também a questão
da terra se apresenta e põe em “xeque” a produção, o
abastecimento e a qualidade dos alimentos de primeira
necessidade, em meio ao desmonte generalizado da
estrutura produtiva camponesa, vinculada também às
políticas públicas que desprestigiam a produção
autóctone, em detrimento dos circuitos longos, do
mercado internacional, do consumo de insumos
químicos, dos fast foods, da deliberada intenção de
exterminar a resistência camponesa, para facilitar o
despovoamento produtivo, político e cultural dos
campos, em detrimento das novas funções que lhes
estão reservadas. Tudo isso, exatamente, na medida
em que sejam incorporados os valores e os modelos
predefinidos de sociedade e de organização social e
produtiva, como produto da “modernidade”.
27
Coordination Paysanne Européenne.
Claro está, diante do exposto, que a idéia que
se tem é a de que, detendo um potencial tecnológico,
as empresas seriam capazes de produzir alimentos a
baixo custo e os elementos lúdicos da vida rural
poderiam ser mantidos enquanto parte do turismo etc.
Assim, retiram da pauta e massificam campanhas para
vender a idéia de que qualquer ato em contrário é um
retrocesso, é estar contra o moderno e a favor do
arcaico, como, por exemplo, o chamamento da
Reforma Agrária, entendido por esses artífices como
descabido e irreal, ainda mais em termos europeus,
sob o argumento de que o Velho Continente realizou a
revolução burguesa, logo, o que resta a ser feito, a
depender desse ponto de vista, são políticas voltadas
para resolver problemas contingentes de produção. O
restante, desemprego, fome, que seja objeto de
políticas sociais específicas.
Dessa forma, a questão da terra estaria
blindada de qualquer tipo de “ataque surpresa”,
reservando-se às ajudas específicas dos órgãos de
fomento do capital – como BM, FMI – direcionar
recursos para os países do sul, a fim de ajudar a
controlar as ações dos movimentos sociais, contendo
os conflitos sob o controle dos acordos com os Estados
e setores dominantes. O que pretendemos, ao trazer ao
debate os casos espanhol e galego, foi evidenciar que
a questão da terra é viva na Europa, ao contrário do
que os setores conservadores tentam demonstrar.
Ficar passivo diante desse quadro é o que mais
querem os setores hegemônicos da burguesia, o capital
em geral, mas vale indagar se a essa artimanha da
“contra-revolução conservadora” não cabem, por
parte dos trabalhadores e da classe trabalhadora, em
particular, ações criativas que priorizem a
emancipação de classe. Esse, sim, é o caminho em que
devemos apostar e para o qual precisamos direcionar
nossos esforços, nossas pesquisas, para fazermos valer
o sentido histórico do capitalismo, ou seja, ajudar a
construir seu fim, inserindo na agenda dos movimentos
sociais algumas prioridades, tais como: Reforma
Agrária, soberania alimentar, pleno emprego, auto-
gestão, luta pelo socialismo etc. Apesar de incluirmos
terra e trabalho no contexto da luta de classe, como
sugere o título deste artigo, é sempre importante frisar
que esses são elementos desafiadores.

5. Referências bibliográficas

ALVES, G. A. P. O novo e precário mundo do trabalho. São Paulo:


Boitempo, 2000.
AMIN, S.; VERGOPOULOS, K. A questão agrária e o capitalismo.
Trad. Beatriz Resende. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
EL BANCO MUNDIAL. O banco mundial no Brasil. [S.l.]: Grupo del
Banco Mundial, 2007. Disponível em: <http://www.bancomundial.org >
Acesso em: 23 abr. 2005.
COMPÉS LÓPEZ, R. La PAC e el análisis del cambio institucional: la
Economia política de la reforma de la PAC. Valéncia: Universidad
Tecnica de Valéncia, 2005.
CONTINI, E. Agricultura e política agrícola comum da União Européia.
Revista de Política Agrícola, São Paulo, ano 13, n.1, jan./fev./mar.,
2004.
ENGELS, F. O problema camponês na França e na Alemanha. In:
SILVA, J.G.; STOLCKE, V. (org.). A questão agrária. São Paulo:
Brasiliense. 1981. p.59-80.
GONZÁLEZ, R. R. Xeografía, entre cultura e prefesión. Vigo: Ir
Indo, 2004.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AGRICULTURA E
ALIMENTAÇÃO – FAO. Perspectivas a largo plazo: el panorama de
la agricultura. Bruxelas, 2003. mimeografado.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AGRICULTURA E
ALIMENTAÇÃO – FAO. Long-term seires (decennial) agricultural
population & economically active population. In: FAOSTAT - Statical
Database. Disponível em: www.faostat.fao.org/ Acesso: 16 jul. 2004.
KAUTSKI, Karl. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultural. 1986.
INTERMÓN-OXFAN. Echar la puerta abajo. Madrid: Oxfán Briefing
Paper, 2005.
LÊNIN. V. I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1982. (Obras Escolhidas).
LÓPEZ ANDIÓN, X. M. Transformacións nas actividades e na paisaxe
agraria. In: AS PAISAXES DE GALICIA, 4. Santiago de Compostela:
Museo de Povo Galego, 1992.
LÓPEZ IGLESIAS, E. Mobilidad de la tierra y dinámica de las
estructuras agrarias en Galicia. Madrid: MPA, 1996.
LÓPEZ IGLESIAS, E. Análise do impacto en Galicia da reforma
intermedia da PAC e avaliación das diferentes opcións para súa
aplicación. Santiago de Compostela, 2004 (Istituto Universitário de
Estudos e Desenvolvimento da Galicia - IDEGA, Documento Síntese).
MARTÍN, V. O. Los joranaleros hablan de la lucha por latierra em
el sur de la
España del siglo XXI. Málaga: Gráficas Digarza, 2006.
MARTINS, J. S. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história
lenta. São Paulo: Cortez, 1989.
MARX, Karl. O capital. São Paulo: Civilização Brasileira, 1982.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
MAZOYER, M. Defendendo al campesinado en un contexto de
globalización: crise agrícola, crise alimentar e crise geral
contemporánea. Disponível: www.rebelion.org Acesso em: 10 out. 2004.
MONTENEGRO GÓMEZ, J. R.; THOMAZ JÚNIOR, A. Novo sentido
da luta de classe e do controle social no meio rural: uma contribuição à
Geografia do Conflito capital x trabalho. In: Documentos de Traballo,
Xeografia, n.12. Santiago de Compostela, 2003. (Revista do Instituto
Universitário de Estudos e Desenvolvimento de Galiza – IDEGA).
Disponível em: www.usc.es/~idega/docs_trallo/seografia12.pdf
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
ECONÓMICO -OCDE. Agricultural policies in OECD countries:
monitoring and evaluation 2003. Paris, 2003.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Informações estatísticas:
vários anos. [S.l.]: United Nation, 2004. Disponível em:
http://www.onu-brasil.org.br/ Acesso em: 27 nov. 2005.
OTERO, G. Adiós al campesinado? Cidade do México: Editora da
Simon Fraser University, 2004.
PEREIRA, D. et al. O monte comunal na Galicia contemporânea:
uma história de resistência. A Estrada: Edicións Fouce, 1999.
SEVILLA GUZMÁN, E., Agroecología y desarrollo rural
sustentable: una propuesta desde Latinoamérica: en agroecología, el
camino hacia una agricultura sustentable. Buenos Aires: Ediciones
Científicas Americanas, 2002.
THOMAZ JÚNIOR, A. A (des)ordem societal e territorial do trabalho:
(os limites para a unificação orgânica). In: MARQUES, M. I.;
OLIVEIRA, A.U. (org.). Anais. São Paulo, 2004. p. 125-140.
THOMAZ JÚNIOR, A. Reestruturação produtiva do capital no campo,
no século XXI, e os desafios para o trabalho. In: FÓRUM MUNDIAL
SOBRE REFORMA AGRARIA. Santiago de Compostela. Fondo
Documental, 2004b. Disponível em: <http://
www.cerai.es/fmra/archivo/thomaz_junior.pdf > Acesso em: 03 jan.
2005.
THOMAZ JÚNIOR, A. “leitura” geográfica da práxis social do trabalho.
ABALAR, Santiago de Compostela, n.5, 2005a.
THOMAZ JÚNIOR, A. Se camponês, se operário! Limites e
perspectivas para a compreensão da classe trabalhadora no Brasil. In:
THOMAZ JÚNIOR, A.; CARVALHAL, M. D., CARVALHAL, T. B.
(orgs.). Geografia e Trabalho no Século XXI, Volume II. Presidente
Prudente, p.130-167, 2006.
THOMAZ JÚNIOR, A. _Trabalho Mutante, Territórios em Disputa e
Emancipação de Classe! Presidente Prudente, 2007f. Presidente
Prudente, Pegada, V.8, N.1, 2007.
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1998.
THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciência de clase.
Barcelona: Editorial Critica, 1989.
A Territorialização do Capital Agroindustrial Canavieiro e a
Nova Geografia do Trabalho Migrante no Brasil

Ana Maria Soares de Oliveira ∗

[...] 99% dos problemas que nós temos são com essas
pessoas vindas de outras partes do país, do norte de Minas e do
Nordeste do país, porque são aliciadas, são trazidas em ônibus
clandestinos, chegam e são amontoados em vários locais, em
∗∗
vários alojamentos [...]

Introdução

Os rearranjos e as formatações desencadeadas pelo capital agroindustrial canavieiro, nos


últimos anos, decorrem das inúmeras estratégias adotadas por essa personificação do capital. O processo
de reestruturação produtiva, as fusões, as aquisições de empresas e/ou ações de empresas por vários
grupos do setor são exemplos significativos para apreendermos tal processo, na atualidade. Estamos
acompanhando não somente um processo de territorialização de novas unidades, mas também de
desterritorialização de algumas unidades e, sobretudo, de capital, de um estado para outro ou de uma
região do país para outra, gerando, nos locais a que se destinam as unidades fabris e o capital, um
processo de (re)territorialização.
Nesse contexto, a conjuntura política e econômica voltada para a abertura do mercado de
etanol contribui igualmente para a emergência de novas (re)configurações geográficas e espaciais, não
apenas no âmbito do capital, mas também no do trabalho, tendo como grande aliado o Estado.
Esse movimento do capital na seara canavieira vem expressando, portanto, uma nova
territorialidade28 ou, por que não dizer, um novo ordenamento territorial das agroindústrias e das áreas
plantadas com cana.


Professora da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo; membro do Centro
de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT); doutoranda em Geografia junto à
FCT/UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do professor Antonio Thomaz
Júnior; bolsista FAPESP. E-mail: anasoaresms@gmail.com
∗∗
Trecho extraído da fala do Procurador do Ministério Público do Trabalho de
Uberlândia/MG, durante entrevista concedida em 29/11/2007.
28
A territorialidade é apreendida aqui como vinculada às relações de poder, como um
recurso que pode ser estrategicamente manipulado e modificado, conforme o grupo
social e seus interesses num dado contexto histórico e geográfico. Cf. SACK, apud
Tal atividade, que até final dos anos 1990 estava concentrada nos principais estados
produtores do Nordeste (Alagoas, Paraíba e Pernambuco) e no estado de São Paulo (maior produtor do
país), hoje, passa por um crescente movimento de expansão em outras regiões e estados brasileiros, até
então sem expressão na produção nacional de cana-de-açúcar29, desencadeando assim uma série de
desdobramentos do ponto de vista do trabalho, seja na sua territorialização, seja no aumento da
precarização e da superexploração da força humana que trabalha.

1 - O Novo Desenho Territorial da Atividade Canavieira no Brasil

A partir dos anos 2000 a Geografia da cana, no Brasil, vem mudando significativamente.
Desde então, a mobilidade territorial em direção a vários estados do Centro-Sul (Sudeste e Centro-
Oeste), principalmente para os estados de Minas Gerais (com forte presença de usineiros nordestinos),
São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, norte/noroeste do Paraná e norte do Espírito Santo
não só tem sido expressiva, como também tem se intensificado.

Vale ressaltar que, no estado de São Paulo, essa expansão recente


está ocorrendo com mais intensidade na porção oeste, com destaque para
as regiões administrativas de Araçatuba, São José do Rio Preto e
Presidente Prudente. Estudo recente realizado pelo IEA (Instituto de
Economia Agrícola)30 destaca que até 2015 poderão surgir mais 39
usinas no estado. O mesmo estudo prevê ainda que o estado alcançará,
no período, um aumento de cerca de 70% da produção de cana, devendo
este ser decorrente, ao mesmo tempo, da expansão da área plantada e do
aumento da produtividade. No estado de São Paulo, a produtividade
média, que atualmente chega a 90 toneladas por hectare, em 2015 poderá
atingir 130 toneladas por hectare. O que significa dizer, em outras
palavras, que a expansão da produção, neste estado, ocorrerá tanto
horizontalmente (como já estamos acompanhando) como verticalmente,
em virtude dos ganhos de produtividade.

HAESBAERT, 2004, p.87. Desse modo, a territorialidade antes constituída nesses


lugares pela pecuária e por outros cultivos, devido ao poder dos grandes empresários
canavieiros, vem sendo substituída por uma nova territorialidade, a dos grandes
canaviais e unidades processadoras.
29
Verificamos que esse movimento também ocorre dentro do próprio estado de São
Paulo. As regiões do estado onde antes predominavam a pecuária, o cultivo de laranja e
outras culturas, estão sendo tomadas pelo plantio da cana-de-açúcar em ritmo
acelerado.
30
Pastoral do Migrante. Disponível em: <http://www.pastoraldomigrante.org.br/>
Acesso em: 02 jan. 2008.
Em Ribeirão Preto, principal região produtora de cana-de-açúcar
do estado, a expansão horizontal será pouco expressiva, tendo em vista
as áreas cultiváveis já estarem praticamente tomadas pela cana. As áreas
mais próximas, ocupadas com pastagens, laranjais e cafezais, e que estão
sendo substituídas pelos canaviais, estão na microrregião de Barretos.
Desse modo, a produção canavieira na região de Ribeirão Preto tende a
expandir-se mais verticalmente, graças ao avanço da produtividade.
Devemos considerar que as novas configurações geográficas estão associadas, em primeira
instância, ao fato de que os grupos mais tradicionais e capitalizados não só da região Nordeste, mas
também do Centro-sul e, de modo particular, de São Paulo, decidiram direcionar parte do capital
acumulado para outros estados e regiões, sobretudo do Centro-Sul, por meio da aquisição de novas terras
e implantação de novas unidades fabris, da aquisição de unidades já implantadas ou da transplantação de
unidades de propriedade dos mesmos nos estados de origem31 (Fig. 01).

31
Esse último caso foi constatado durante pesquisa de campo, junto a um importante
grupo canavieiro de Nordeste. O Grupo Tércio Wanderley, dono da usina Coruripe,
desativou uma de suas unidades em Alagoas (Usina Camaçari) e utilizou os
equipamentos na implantação de outras unidades no Triângulo Mineiro.
Fonte: Pesquisa de Campo e sites especializados – 2007

Não temos dúvida de que a grande mola propulsora do processo


de expansão recente do setor tem sido a possibilidade de conquista de
um mercado em potencial no exterior (os Estados Unidos, a Europa e a
Ásia, especialmente o Japão), de tornar o álcool uma commodity no
mercado internacional, bem como de expandir o mercado interno do
álcool, estimulado pelo aumento do consumo de carros de modelos
flexíveis (ou bicombustíveis). Porém, não podemos levar em conta
somente a conjuntura política e econômica favorável ao mercado de
etanol, como fator impulsionador desse novo desenho no campo
brasileiro.
Apesar do montante da dívida dos vários grupos e empresas agroindustriais canavieiras, tem
sido indubitável a capacidade de defesa que os estratos de maior poder político e econômico do setor
possuem, a ponto de conseguir transferir recursos originários do capital social, dos cofres públicos para
os cofres privados (por meio de lobbies), além da capacidade de buscar novos empreendimentos,
garantindo, conseqüentemente, novas formas de acumulação e concentração de capital nas mãos de um
contingente seleto de grupos e empresas.
A elevação do preço do petróleo e as discussões em torno da questão ambiental, em nível
mundial, abriram a possibilidade de lançar o etanol no mercado mundial como uma alternativa energética
estratégica. Além disso, o Brasil é destaque nesse cenário como possuidor de tecnologia e condições
edafo-climáticas favoráveis ao desenvolvimento dessa matriz energética, com os menores custos do
mundo. Tais fatores têm incentivado os grupos nacionais a abrirem seu capital e a investirem na
expansão do setor, além de atraírem muitos investidores e/ou grupos estrangeiros interessados em
investimentos que dão bom retorno.
Vale destacar que a abertura de ações por parte dos maiores grupos familiares do setor
canavieiro para associação com outros capitais, até mesmo internacional, é uma estratégia que tem
permitido a vários grupos ampliar o aporte de capital, adquirir maior visibilidade empresarial e se tornar
mais competitivos, no mercado, estimulando-os na aquisição de novos empreendimentos, ou na melhoria
dos já existentes.
O capital estrangeiro que tem sido injetado no setor canavieiro, no Brasil, é originário de
fundos de investimentos e/ou fundos de pensão. O mesmo está investindo significativamente, tanto por
meio da compra de ações de grupos, como pela aquisição direta de empreendimentos, ou implantação de
novos projetos. Os levantamentos (de campo e bibliográfico) que temos efetuado para a pesquisa de
doutorado têm-nos revelado que os investimentos do capital externo, em projetos e aquisição de unidades
agroindustriais canavieiras, estão ganhando mais expressividade nos estados de São Paulo, Mato Grosso
do Sul, Minas Gerais e, recentemente, no Espírito Santo32.
Com a abertura de capitais, o Grupo Cosan, por exemplo, disparou na frente dos demais
grupos brasileiros produtores de açúcar e álcool. Atualmente, vários grupos estrangeiros possuem
participação acionária no capital da Cosan. Em dezembro de 2006, três investidores internacionais
compraram 3,18% das ações do grupo. Os compradores das ações foram a Lewington Pte. Ltd.,
originária de Cingapura, a britânica Commonwealth Carriers S.A. e a Sucres et Denrées (Sucden),
acionista francesa que já detinha 1,7% do capital social do Grupo Cosan33.
Um outro grupo francês, o Tereos, adquiriu 6,3% do controle da empresa, enquanto os
chineses do Kuok Group detêm 4,1%. Além disso, o Grupo Cosan colocou à venda 29,5% de capital do
grupo, que foi negociado em bolsas de valores, dos quais 90% foram adquiridos por estrangeiros. Com
essa aquisição, portanto, os grupos estrangeiros passam a possuir 15,28% do capital acionário da Cosan.

32
VerIDEANEWS.online.<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8
> Acesso em: 17 jan. 2008.
33
Cf. site do Porto de Santos – Assessoria de Comunicação Social –DCI –
Agronegócios – pág. B4 – 13 de dezembro de 2006. Disponível em:
http://www.portodesantos.com/cgi-local/imprensa/mostrar.pl?1855.
Segundo dados do IDEANEWS-ONLINE34, os grupos estrangeiros aumentaram sua
participação no processamento de cana, no Brasil, de 6,75%, na safra 2005/2006, para 9,21%, na safra
2006/2007, caracterizando assim um aumento de 36% no período. De acordo com a mesma fonte, o
principal grupo estrangeiro a investir no setor é o grupo francês Tereos, o qual, em 2007, era responsável
por 2,53% da produção nacional (ver Quadro 01). A previsão é de que, até 2010, a participação dos
investidores estrangeiros no setor seja de 16%.

Quadro 1 – Principais Grupos e Investidores Estrangeiros no Setor Canavieiro no Brasil

Grupos (%) de Investimentos


Participação
Grupo Tereos 2,53% Usina Cruz Alta; Usina Guarani; Cia.
Energética São José; 6,3% da Cosan
Coinbra- 1,88% Usina São Carlos; Usina Cresciumal; Usina
Dreyfus Luciânia; Usina Maracaju; Usina
Passatempo; Usina Estivas; Destilaria
Giasa
Infinity Bio- 0,60% 91% da Usinavi/PR; Alcana/MG/51% da
Energy Cridasa/ES; Disa/ES e Montanha/ES
Kuok Group 0,59% 6,7% da Cosan
Noble 0,26% Usina Petribu Paulista/SP
Sucden 0,20% 2,3% da Cosan
Cargill 0,19% 63% da CEVASA ; Ação da Usina
Itapagipe/MG
ADECO/George 0,19% Usina Monte Alegre/MG + três unidades
Soros em Mato Grosso do Sul (municípios de
Ivinhema e Angélica)
Clean Energy 0,18% 49% da Usaciga/PR
Brazil
Outros 2,59% Investidores estrangeiros donos de 26,8%
das ações da Cosan e de 10% das ações da
São Martinho.

34
Cf. IDEANEWS.online.
<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8> Acesso em: 17 jan.
2008.
Fonte: IDEANEWS – online/2008; Pesquisa de Campo/2007.

O grupo norte-americano Infinity Bio-Energy, que já possui 91%


das ações da USINAVI/PR, está investindo cerca de R$ 85 milhões na
ampliação e modernização da Alcana, destilaria de álcool localizada no
município de Nanuque, vale do Mucuri/MG. Além da ampliação da
Alcana, o grupo Infinity está aumentando a produção da Usina Cridasa,
no Espírito Santo, tendo firmado parceria com a Destilaria Itaúna S.A.,
com quem está construindo igualmente uma nova unidade em
Montanha/ES. Além disso, projeta a construção de uma usina na Bahia.
Segundo o presidente do grupo, a meta é transformar a região de
Mucuri/MG, o norte do Espírito Santo e o sul da Bahia em um novo pólo
sucroalcooleiro35.
O que nos é pertinente, neste momento, não é somente salientar, por meio de dados e fatos,
que a Geografia da cana está mudando, em nosso país, mas, sobretudo, que essa mudança está
provocando transformações também na geografia do trabalho. Até há alguns anos atrás, a maior parte da
mão-de-obra migrante no corte de cana era advinda do norte de Minas Gerais (Vale do Jequitinhonha) e
de alguns estados do Nordeste (Pernambuco, Paraíba e Bahia, por exemplo), que se dirigiam basicamente
para o estado de São Paulo. Hoje, já não é essa a realidade constatada. Além de ter provocado o aumento
do contingente de mão-de-obra migrante, não só para São Paulo, mas para todos os estados do Centro-sul
que estão expandindo a produção canavieira, esse processo de expansão está atraindo trabalhadores de
outros estados do Nordeste. Muitos dos migrantes atuais que contatamos, durante pesquisa de campo, são
provenientes de Alagoas, Maranhão, Piauí e Ceará36.

2 – O Processo de Desterritorialização e (Re)territorialização do Trabalho no Contexto de


Desterritorialização e (Re)territorialização do Capital Agroindustrial Canavieiro (alguns
apontamentos)

A crise dos anos 1990 levou inúmeras agroindústrias canavieiras do Nordeste à falência, e
aquelas que permaneceram não foram suficientes para absorver toda a força de trabalho existente. Esse
reordenamento territorial do setor provocou alterações também na dinâmica do trabalho. Por um lado,
reduziu a oferta de emprego e aumentou o desemprego nos locais de onde o capital ou plantas fabris
migraram. Por outro lado, fez crescer a oferta de emprego e, conseqüentemente, de mão-de-obra, em
especial migrante, nos locais onde se territorializaram novamente.
As investigações e o mapeamento que estamos efetuando já nos permitem perceber que o
movimento dos trabalhadores para o corte de cana-de-açúcar no Brasil ocorre, de modo semelhante, para

35
Cf. Jornal Cana – Produção, dados e notícias, p. 38, fev. 2007.
36
E outras pesquisas também destacam isso, a exemplo dos trabalhos da professora
Maria Aparecida de Moraes Silva.
as regiões tradicionalmente produtoras e para as áreas em processo de expansão, inclusive
acompanhando o movimento recente do próprio capital agroindustrial canavieiro, ou seja, a mobilidade
do trabalho está acompanhando o movimento do próprio capital em direção a outros estados do Centro-
Sul37.
É possível apreender ainda que esse movimento não acontece somente entre os estados do NE
e entre estes e os estados do Centro-Sul, mas igualmente no interior dos mesmos, isto é, entre vários
municípios dos principais estados produtores, tanto do Nordeste como do Centro-Sul. No Nordeste, esse
movimento é comum entre os municípios dos três principais estados produtores (Figura 02)38.

37
Cabe destacar que esse mapeamento da mobilidade do trabalho ainda é parcial,
carecendo de mais investigações. O Mapa (Figura 2) foi elaborado com base em
informações preliminares. O mesmo procura mostrar não só o deslocamento dos
trabalhadores de estados do Nordeste e do Norte de Minas Gerais para o Centro-Sul,
mas também que esse deslocamento se dá entre vários municípios e estados.
38
A Fig. 2, supracitada, destaca apenas o movimento recente que vem ocorrendo do
norte do Paraná para os municípios fronteiriços do Oeste Paulista. Sabemos que, no
Centro-Sul, esse processo também ocorre entre os vários municípios, ou seja,
trabalhadores se deslocam para os municípios canavieiros (vizinhos) em busca de
trabalho. No entanto, cabe ressaltar que, em alguns locais, são basicamente migrantes
de outros estados por falta de mão-de-obra local/regional.
Fonte: Pesquisa de Campo e sites especializados – 2007.

Nesse contexto em que o capital agroindustrial canavieiro se desterritorializa (parcialmente) e


se (re)territorializa em novos locais, nos sentimos, pois, instigados a estudar como esse processo conduz
também à desterritorialização e (re)territorialização dos trabalhadores. Sendo assim, há que se enfatizar
dois processos distintos de desterritorialização. Do ponto de vista do capital, a desterritorialização se dá
num sentido positivo, tendo em vista que os capitalistas, nesse caso, os empresários agroindustriais
canavieiros, encontram os mecanismos abstratos que consubstanciam a acumulação. Do ponto de vista
do trabalho, a desterritorialização ocorre num sentido negativo, já que o trabalhador (nesse caso, o bóia-
fria), embora “livre”, é desprovido dos meios de produção e muitas vezes até mesmo das condições
básicas de sobrevivência, sua e da família, sendo obrigado por força das circunstâncias a vender sua
força de trabalho, reduzindo-se assim à força física para a produção canavieira39.
No universo do trabalhador “bóia-fria”, apreendem-se com mais clareza duas manifestações
do processo de desterritorialização. Vamos considerar como primeiro exemplo o do cortador de cana que
mora nas periferias urbanas (migrante que já fixou residência ou morador local). Esse trabalhador está
em constante processo de desterritorialização e (re)territorialização, tendo em vista que, durante a
entressafra, ele habita a periferia urbana e, enquanto morador urbano, a sua territorialidade passa a ter
uma determinada dinâmica, ou seja, na periferia, ou na cidade, ele pode construir vários territórios e
passar por eles, no decorrer do dia40. O primeiro desses territórios seria o de morador da vila, da
comunidade, onde ele conhece os códigos e estabelece relações com outros moradores. O segundo
território seria o do trabalho, em muitos casos difícil de delimitar, levando-se em conta o fato de que,
num dia, ele pode ser pedreiro, num outro porteiro etc. No período da safra, quer dizer, da colheita de
cana, esse trabalhador se desterritorializa, na medida em que deixa as atividades e os territórios urbanos,
para (re)territorializar-se no trabalho da lavoura de cana, enquanto trabalhador rural assalariado,
portanto, cortador de cana.
O segundo exemplo seria o do trabalhador “bóia-fria” (migrante sazonal/temporário), que se
desloca de vários estados do Nordeste e norte de Minas Gerais para o corte de cana nas lavouras do
Centro-Sul, e que, ao encerrar a safra, retorna ao seu local de origem. Acreditamos que, nesse contexto
de mobilidade, o trabalhador migrante vivencia distintos processos de desterritorialização. O primeiro
ocorre quando ele é privado das suas condições básicas de sobrevivência (sem emprego, expropriado de
suas terras, ou impossibilitado de tirar da terra seu sustento e da família, por conta dos condicionantes
climáticos) e forçado a migrar para as lavouras de cana no Centro-Sul. O segundo processo de
desterritorialização se concretiza frente à precarização das condições de trabalho e de moradia a que esse
trabalhador é submetido. Nesse caso, podemos nos referir, por exemplo, ao trabalhador migrante que
habita (por cinco, seis ou sete meses) em alojamentos encravados no meio dos canaviais, sendo
submetido a condições subumanas.
Desprovido de condições dignas de sobrevivência, de exercer seu direito de cidadania, esse
trabalhador é privado, em muitas situações, do direito de ir e vir e de exercer relações e trocas simbólicas
com outros territórios (como as cidades no entorno das usinas). Além da precarização das suas condições
de trabalho e de existência, ele não tem o controle sobre o novo território, caracterizando-se, assim, uma
“territorialização precária” ou a desterritorialização propriamente dita.
Em outras palavras, diríamos que o trabalhador é desterritorializado, nesse contexto, uma vez
que o controle do trabalho e do território, portanto a sua territorialização, é exercida pelo capitalista
usineiro ou pelo agenciador.

3 - Desterritorialização e Precariedade no Cotidiano do Trabalhador Rural/Migrante no


Brasil

39
A leitura que fazemos sobre o processo de territorialização e desterritorialização,
presente na mobilidade do trabalhador migrante cortador de cana, referencia-se
conceitualmente em Haesbaert (2004).
40
Haesbaert (2004, p. 138) ressalta: “Trata-se de uma desterritorialização cotidiana,
onde se abandona, mas não se destrói o território abandonado”.
O movimento migratório, no Brasil, é histórico e de alguma forma esteve associado aos
importantes ciclos produtivos (a exemplo da borracha, do café, do período de consolidação do setor
industrial etc.), coincidindo inclusive com o processo de modernização/mecanização da agricultura, que
provocou uma saída expressiva do homem do campo para a cidade, quer expropriado de suas terras, quer
pela substituição da sua mão-de-obra pela máquina.
Segundo Moreira (2006, p.99), o capitalismo evoluiu com a criação do “mercado de moeda,
de terra e de força de trabalho”. Todos esses mercados estão interligados e a criação de um se apóia na
criação do outro, conduzindo a um mercado global, sendo que o elo principal, nesse contexto, é o
mercado da força de trabalho. O autor destaca, ainda, que as sucessivas metamorfoses que conduzem à
constituição do mercado capitalista apresentam como conseqüência, paralela e contínua, um processo de
mobilidade do trabalho e do capital.
Nesse sentido, é relevante salientar que o fortalecimento e a modernização do setor
canavieiro, em nosso país, com a implantação do Proálcool, na segunda metade da década de 1970,
provocaram um aumento significativo da área plantada com cana, especialmente no estado de São Paulo.
Esse fato gerou uma demanda expressiva de força de trabalho no campo e atraiu trabalhadores de outros
estados brasileiros, especialmente do Nordeste. Desde então, a região canavieira de Ribeirão Preto, que
inclui as Regiões Administrativas de Ribeirão, Barretos, Franca e Araraquara, tem sido o principal pólo
de atração de mão-de-obra migrante para trabalhar nas lavouras de cana do estado de São Paulo. Muitos
desses trabalhadores, de tanto ir e vir, acabam se estabelecendo definitivamente na cidade/região,
trazendo suas famílias ou constituindo outras41.
É interessante ressaltar, em acréscimo, que antes de esse processo de expansão do cultivo de
cana-de-açúcar se intensificar, o movimento migratório de trabalhadores nordestinos ocorria em função
do agenciamento de empresas paulistas. Atualmente, mediante os investimentos e implantação de novas
unidades por grupos nordestinos em vários estados do Centro-Sul, tal processo se acentua sob o comando
desses grupos. Seja indiretamente, por trás da figura do “gato”, do agenciador que busca esse pessoal;
seja diretamente, quando as próprias agroindústrias buscam (há um trabalhador de confiança e que tem
influência sobre os demais, o qual reúne e traz a turma) e contratam. O fato é que muitas
empresas/grupos estão fazendo uso de mão-de-obra migrante, sob a alegação de que falta mão-de-obra
local, nas frentes de expansão.
No estado de Minas Gerais, por exemplo, onde se verifica maior concentração de
empreendimentos de grupos alagoanos, a presença de trabalhadores dos estados nordestinos e, em
especial, de Alagoas é muito expressiva. Tanto de trabalhadores que vivenciam o processo de
desterritorialização e (re)territorialização temporariamente, como de trabalhadores que, de tanto ir e vir,
durante várias safras, se cansam e acabam trazendo suas famílias ou formando outras aqui,
desencadeando assim um novo processo de territorialização42 e, por conseguinte, uma nova configuração

41
A Pastoral do Migrante, sediada em Guariba, tem realizado estudos interessantes
sobre a migração da força de trabalho inserida no corte da cana-de-açúcar.
42
É importante enfatizar que esse movimento de trabalhadores não é aqui
apreendido somente no sentido de mero deslocamento, mas, principalmente, como
uma relação social mediada por diferentes motivos (econômicos, culturais,
ambientais etc). No caso dos trabalhadores migrantes, sobretudo dos cortadores de
cana, consideramos que essa mobilidade ocorre por motivos socioeconômicos ou,
em outras palavras, condicionada pela precarização das condições de vida e de
subsistência dos mesmos e de suas famílias, em seus locais de origem.
espacial expressa nas periferias das cidades, que são palco da mobilidade do capital e do trabalho (Foto
1).

Foto 1 - Cômodos de alvenaria, onde moram trabalhadores


migrantes.

Uma das faces dessa territorialização precária se configura nos


cômodos inacabados (exemplo ilustrado na Foto 1), que foram
construídos na periferia da cidade de Delta/MG43, exclusivamente para
abrigar trabalhadores migrantes. São vários cômodos, alugados, com
entradas individuais, sendo que em cada um deles mora um trabalhador
sozinho ou com a família. Cada cômodo serve de quarto, sala e cozinha e
no qual a cama, o berço da criança, o fogão com botijão, a geladeira, os

43
Essa é uma realidade que está presente nos municípios canavieiros do estado de São
Paulo e, em especial, na cidade de Ribeirão Preto e região, por exemplo, para onde o
movimento dos trabalhadores migrantes tem sido mais intenso ao longo de várias
décadas. No entanto, esse fenômeno está se revelando também nas outras regiões e
estados do país onde está acontecendo o processo de expansão. Citamos o exemplo da
cidade de Delta/MG, porque foi onde tivemos mais contato com essa realidade, mas,
no Triângulo Mineiro, existem outros municípios, nos quais é possível encontrar
significativo contingente de trabalhadores migrantes com suas famílias, morando em
aglomerados de “barracos” (como eles próprios denominam), construídos nos bairros
periféricos, com a finalidade de abrigar esses nordestinos.
mantimentos e as pessoas ocupam o mesmo espaço.
O desrespeito à condição humana do trabalhador se revela também através da precariedade da
moradia. Quando não é nos alojamentos construídos e mantidos pelas próprias agroindústrias, em suas
terras, são barracos nas periferias pobres das cidades que abrigam esses migrantes44. Em diversos casos,
são muitos trabalhadores praticamente amontoados em pequenos espaços, em condições de higiene
extremamente precárias. Alimentação de má qualidade e, muitas vezes, eles mesmos têm que cozinhar.
Existem alojamentos que não têm instalações adequadas para os trabalhadores dormirem,
guardarem seus pertences, se alimentarem ou terem algum tipo de lazer, quando não estão trabalhando.
Há casos em que o confinamento nos alojamentos reflete até mesmo um sistema de semi-escravidão45.
As empresas que possuem trabalhadores na condição de alojados são sempre resistentes à
entrada de órgãos de fiscalização, como o Ministério Público, por exemplo, do sindicato que representa
esses trabalhadores e até mesmo de pesquisadores (como foi o nosso caso, em várias usinas que
visitamos, no Nordeste). Isso dificulta a defesa dos direitos desses trabalhadores, bem como o
esclarecimento sobre a realidade que cerca as relações de trabalho, no corte manual da cana-de-açúcar,
no Brasil.
Com esse procedimento, as empresas distanciam propositalmente os trabalhadores dos
sindicatos e dos órgãos de fiscalização, cerceando seus direitos trabalhistas e de cidadãos. Isolados em
alojamentos, os trabalhadores não acompanham a dinâmica social das cidades onde estão residindo,
mesmo que temporariamente. Criam-se em torno desses trabalhadores não apenas barreiras territoriais,
mas também limitações que os impedem de exercitarem de forma plena as trocas simbólicas com as
cidades.
Relatórios feitos pela Promotoria Pública e pela Plataforma DHESC46 revelam as péssimas
condições de moradia dos trabalhadores, nos alojamentos das empresas agroindustriais e de
fornecedores, em várias partes do Brasil. Vale destacar aqui um trecho de um desses relatórios, pois nele
fica confirmada não só a precariedade das condições encontradas nos alojamentos, como também a
relutância das empresas em expor esses alojamentos para entidades e pesquisadores.

As condições do alojamento se aproximam a de uma


prisão. Em cada quarto existem 3 ou 4 camas. Os
cômodos não têm janelas e as portas se abrem todas

44
A esse respeito, ver: SILVA, 2006.
45
Sobre esse assunto, Thomaz Júnior (1989) traz ao debate as péssimas condições de
vida dos trabalhadores envolvidos no corte de cana na região de Ribeirão Preto-
Jaboticabal, em meados dos anos 1980, momento da eclosão do movimento de Guariba,
que, inclusive, colocou em questão as formas bárbaras com que os trabalhadores eram
tratados pelos maiores empresários do setor, à época, sendo que hoje esse quadro
persiste, com pioras manifestas.
46
DHESC é uma Plataforma da Relatoria Nacional, que produz/apresenta Relatórios
Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. A Professora Maria
Aparecida de Moraes Silva extraiu alguns trechos desses relatórios apresentados em
Audiências Públicas e os citou no artigo intitulado “A morte ronda os canaviais
paulistas”. In: Revista Reforma Agrária –ABRA. Vol. 33, n.2 – ago.-dez., 2006.
para um corredor interno. A área onde é feita a
lavagem dos utensílios de trabalho é a mesma onde
se lavam as marmitas e onde se obtém água para
consumo individual. A presença de funcionários da
empresa, durante todo o tempo em que estivemos no
alojamento foi intensa, tentando impedir o acesso
livre aos trabalhadores. (DHESC, apud SILVA,
2006, p. 132).

Durante as pesquisas de campo em que visitamos as usinas, notamos um grande cuidado das
pessoas que nos recebem, nessas empresas, com relação seja às visitas às frentes de corte, seja aos
alojamentos. Algumas dizem não ter trabalhadores alojados, outras se limitam a mostrar fotos de
supostos alojamentos (bem cuidados)47, alegando, estrategicamente, que estes ficam muito longe da usina
e, desse modo, não teriam como nos levar até o local, naquele momento, sabendo que não temos
condições de voltar em outro dia, para visitar. Outros funcionários nos levam a um alojamento mais
próximo e mais bem cuidado, a fim de nos “despistar”. Quando permitem a visita ao alojamento, esta é
sempre acompanhada de pessoas de confiança, para que não tenhamos chance de conversar com os
trabalhadores (conforme o trecho do relatório, transcrito acima).
No estado de São Paulo, essa situação não difere muito; apesar da fiscalização do Ministério
Público e da ação de alguns sindicatos mais combativos, ainda existe trabalhador migrante morando em
alojamentos em condições subumanas.
Magalhães (2006)48 destaca a expansão do agronegócio canavieiro, na região Noroeste do
estado, e os seus reflexos na cidade de Palmares Paulista. Segundo ela, essa cidade se transformou numa
cidade-dormitório, em virtude da chegada de um grande contingente de migrantes para trabalhar nas
lavouras de cana da região. A autora ressalta:

Casas superlotadas com aluguéis


superfaturados, pensões e barracões são dormitórios
de trabalhadores que efetivamente têm uma jornada
de trabalho superior a oito horas diárias, sem
contarmos a hora que partem e chegam da pesada
jornada. Cerca de 60 trabalhadores vivem num local
47
Foi o caso da Usina Santa Teresa/PE. O Gerente de Recursos Humanos possui,
estrategicamente, em seu computador, fotos de alojamentos bem cuidados, para mostrar
aos visitantes. Dizemos que essa atitude é estratégica, porque ouvimos do presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquele município que a referida empresa
mantinha trabalhadores em alojamentos com péssimas condições, tendo sido alertada
várias vezes pelo Ministério Público.
48
Juliana G. Magalhães escreveu matéria para o site da Pastoral do Migrante, em
Guariba (SP), cujo título é: A “cidade-dormitório” de Palmares Paulista: a senzala
moderna. Disponível em: http://www.pastoraldomigrante.org.br/artigo14.html.
que possui apenas dois chuveiros quentes. A água
utilizada por eles vem de uma torneira única que se
encontra à frente da casa, obrigando-os a armazená-
la como podem. (2006, p.1).

Esse aumento da demanda de mão-de-obra e, sobretudo, de mão-de-obra migrante49 tem


reforçado nossa atenção, tendo em vista que, quanto mais os grupos/empresas se profissionalizam
(tomando de empréstimo um termo usado pelos próprios representantes do setor), se modernizam e
vestem a máscara de “empresa amiga da criança”, de empresa que tem responsabilidade social e
ambiental, mais elas utilizam o trabalho precário, visto que isso é próprio do capital, em seu processo de
acumulação.
O caráter destrutivo do capital mantém sob seu controle as relações metabólicas que lhes são
próprias, explorando e degradando a natureza, além de precarizar e elevar os níveis de exploração da
força humana que trabalha. Nesse contexto, os direitos dos trabalhadores são negados, são
desregulamentados, são flexibilizados, com um único intuito: dotar o capital do instrumental necessário
para adequar-se à sua nova fase de acumulação50.
A pesquisa tem revelado casos de empresas que têm investido maciçamente em equipamentos
modernos, em sistemas de gestão e certificação de controle de qualidade, em gestão e certificação
ambiental, saúde e segurança do trabalho, visando com isso a obter ganhos de produtividade e capital,
bem como maior competitividade no mercado. No entanto, algumas melhorias que são sinalizadas com
esses sistemas de gestão e certificação se restringem, quando muito, aos trabalhadores da planta fabril.
As reais condições de trabalho no campo são maquiadas, por meio do discurso da
certificação, da empresa que se preocupa com a qualidade ambiental, com a saúde e a segurança dos
trabalhadores. Para elas, é fácil adotar esse discurso, uma vez que se escondem espertamente atrás de
seus prepostos e ainda contam com a vantagem de que seus fornecedores51 não são vistoriados pelas
certificadoras, durante a vigência da certificação, podendo, desse modo, até manipular dados e
informações, para garantir a continuidade da certificação, durante as vistorias internas.
Para burlar a fiscalização, determinadas empresas se aproveitam estrategicamente da figura de
fornecedores, que contratam os “gatos”, os quais, por sua vez, contratam os “subgatos”, que se deslocam
para o Nordeste, a fim de buscar os trabalhadores. Quando esses aliciadores não vão até esses lugares,
ligam para algum conhecido, alguém de “confiança”, e pedem para reunir a turma de trabalhadores e
encaminhar para as usinas do Centro-sul.

49
Por mais que as empresas aleguem que estão investindo na mecanização, a maioria
delas ainda emprega grande contingente de trabalhadores no corte de cana.
50
Cf. ANTUNES, 2001.
51
Com a mão-de-obra nas lavouras de cana-de-açúcar à mercê desses terceiros, a
precariedade do trabalho se expressa por meio de fraudes trabalhistas,
subcontratação de mão-de-obra (falta de registro em carteira, não pagamento dos
direitos trabalhistas, péssimas condições de trabalho e de moradia, horas trabalhadas
a mais etc.).
A perda das condições objetivas de trabalho, em seus locais de origem, impele os
trabalhadores – muitos deles pequenos agricultores, sem condições de produzir na terra por causa da
seca, ou ex-pequenos agricultores, que perderam suas terras para os grandes proprietários, ou filhos de
pequenos agricultores – a procurarem uma condição melhor de trabalho e, portanto, de vida, longe de
suas famílias.
As condições em que muitos desses trabalhadores chegam até as empresas agroindustriais
canavieiras do Centro-sul são seriamente questionáveis. Muitos deles viajam em condições subumanas,
de forma clandestina, agenciados por “gatos”, em ônibus camuflados, para que ninguém consiga
descobrir. Muitas são as denúncias feitas junto aos órgãos de representação e apoio aos trabalhadores
migrantes (como CPT, Pastoral do Migrante, entre outros) de casos como esses, mas nem sempre é
possível efetuar a abordagem e o flagrante52.
Magalhães (2006) salienta, com base em levantamentos feitos pela Pastoral do Migrante, que
80% dos trabalhadores migrantes de Palmares Paulista possuem ligação com aliciadores e fornecedores,
fato que exime as usinas de qualquer responsabilidade sobre os mesmos. Significa dizer que essa
estratégia é adotada para quando as irregularidades relacionadas ao agenciamento, contratação e
manutenção da mão-de-obra em condições precárias forem descobertas, de sorte que as empresas
agroindustriais canavieiras ficam isentas de qualquer culpa.
É fácil responsabilizar terceiros, especialmente quando se trata do “gato”, porque este vive se
escondendo da fiscalização, haja vista sua ação ser considerada crime, no artigo 207 do Código Penal
Brasileiro, que dispõe: “Aliciar trabalhadores, com fim de levá-los de uma para outra localidade do
território nacional. Pena – detenção de 01 (um) a 03 (três) anos, e multa”.
A máscara só cai quando, no local, há uma equipe de fiscalização da Delegacia Regional do
Trabalho atuante, a qual, junto ao Ministério Público do Trabalho, consegue, pelo menos em parte,
destrinchar e denunciar essas manobras e autuar os envolvidos.
Vê-se, pois, que, no universo social e de trabalho em que a maioria desses trabalhadores é
inserida, as condições de vida e de trabalho são extremamente precarizadas. A precarização não se revela
somente nas condições de moradia, de alimentação e de trabalho, mas também nas relações sociais.
Esses trabalhadores são muitas vezes discriminados pelo conjunto da sociedade e pelo poder
público, que neles vêem uma ameaça à tranqüilidade da população local. Eles sofrem preconceito dos
trabalhadores residentes no local, que se sentem ameaçados em seus postos de trabalho, ou seja, os
trabalhadores residentes nos municípios canavieiros paulistas resistem à chegada dos migrantes, por
acreditarem que estes vêm para “tirar” seus empregos.
A discriminação em relação aos trabalhadores migrantes está presente também no meio
sindical. Como expressa a fala de um sindicalista: “O fluxo de migrantes tem impacto direto na tradição
local. O pessoal do oeste de São Paulo já perdeu até o sotaque e reclama que agora nas rádios locais só se
escuta forró (ritmo típico do Nordeste)”53 (RODRIGUES; ORTIZ, 2006, p.04).

52
Esse aspecto foi abordado por uma representante da CPT/AL, durante entrevista
concedida em novembro de 2006, bem como por um dos Procuradores do Ministério
Público do Trabalho de Uberlândia/MG, em entrevista realizada em novembro de 2007.
53
Essa fala é de um sindicalista do SER de Andradina (SP). Extraído do Dossiê
intitulado “Em direção à sustentabilidade da produção de etanol de cana de açúcar no
Brasil”. Disponível em: http://www.pastoraldomigrante.org.br/artigo14.html.
O processo de desterritorialização, vivido por grande contingente de trabalhadores migrantes,
é fruto do desenraizamento social e econômico que estes sofrem, em seus locais de origem. Esses
trabalhadores, além de serem expropriados de suas terras e privados de condições básicas de subsistência
junto de suas famílias, ao migrarem para as principais frentes canavieiras são transformados em seres a
quem a condição humana é negada. Além de superexplorados, no processo de trabalho, sofrem ameaças,
retaliações e têm seus direitos trabalhistas e de cidadãos desrespeitados.

4 – A Superexploração da Força de Trabalho Migrante: retratos da “Cultura” da Barbárie nos


Canaviais Brasileiros

No contexto atual de valorização do capital, que, ao se realizar, revela a face da barbárie, a


superexploração do trabalho se expressa com maior intensidade no conjunto dos trabalhadores migrantes,
haja vista as situações que os conduz ao trabalho nos canaviais paulistas. As dificuldades enfrentadas por
eles e suas famílias, em seus locais de origem (seca, fome, falta de dinheiro...), fazem com que se
submetam às condições impostas por seus empregadores.
Muitos desses trabalhadores vêm para cá sob falsas promessas. São induzidos a acreditar que,
quando chegarem às usinas do Centro-sul, irão ganhar salários acima de mil reais, não vão pagar
moradia, não vão pagar alimentação, a moradia é muito boa etc. O fato é que, no momento em que
chegam ao destino, a realidade é totalmente outra. O Ministério Público do Trabalho tem detectado
inúmeros casos de irregularidades do ponto de vista dos contratos de trabalho e, especialmente, das
condições materiais de sobrevivência dos trabalhadores, que são essenciais para a revitalização da sua
força de trabalho e um direito garantido por lei.
A expectativa de ganhar muito dinheiro e poder dar uma condição de vida melhor a suas
famílias leva esses trabalhadores a se submeterem às elevadas metas de produtividade do trabalho,
impostas pela maioria das empresas. Muitos deles cortam em média de 12 a 15 toneladas de cana por dia
(alguns cortam até mais que isso)54, fazendo com que despendam diariamente uma grande quantidade de
energia, numa tarefa altamente extenuante.
Os trabalhadores nordestinos são preferidos pelas usinas do Centro-sul, não apenas porque
falta mão-de-obra local, mas sobretudo por estes apresentarem mais resistência física e maior
“submissão” às condições impostas. Representantes de usinas já declararam55, inclusive, que preferem
contratar trabalhadores de estados (e regiões de estados) do Nordeste, que são menos politizados,
entenda-se, mais susceptíveis aos ditames do capital e, portanto, menos ameaçadores, do ponto de vista
reivindicativo de direitos, do que os trabalhadores locais.
Alves (2006, p.02) enfatiza que os trabalhadores que apresentam maior produtividade:

54
Durante pesquisa de campo, encontramos, em vários momentos, trabalhadores que
cortam 20, 24 toneladas de cana. No município de Capinópolis/MG, um trabalhador
migrante (de Alagoas), de 29 anos, afirmou, em entrevista, já ter cortado por diversas
vezes 40 toneladas de cana, tendo recebido, por isso, um salário de R$ 2.500,00.
55
Em entrevista concedida durante trabalho de campo realizado em novembro de 2007,
no Triângulo Mineiro.
...não são necessariamente os que têm maior
massa muscular, são os que têm maior resistência
física para a realização de uma atividade repetitiva e
exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na
presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns
casos, e por um período que varia entre 8 a 12 horas
de trabalho diário.

Esses trabalhadores efetuam inúmeros movimentos diários com o corpo, o que ocasiona a
perda de energia. Andam, golpeiam a cana, flexionam-se e carregam peso debaixo de sol forte e com
vestimentas nada confortáveis. Vestidos dos pés à cabeça, eles transpiram muito, perdem água e sais
minerais, o que os conduz à desidratação e provoca a ocorrência de câimbras e mal-estares constantes.
Alguns estudos56 baseados em informações da Pastoral do Migrante têm denunciado a existência de
vários casos de morte de trabalhadores relacionados ao trabalho extenuante no corte de cana. Segundo
Silva (2006, p. 114), devido ao processo de exploração do trabalho, nos canaviais paulistas, no período
de 2004 a 2005 foram registrados 13 casos de mortes envolvendo cortadores de cana.
Com as denúncias de morte feitas pela Pastoral do Migrante, pela imprensa e por
pesquisadores, bem como com o trabalho de fiscalização que vem sendo feito pelo Ministério Público, as
empresas tentam camuflar, de forma estratégica, o dispêndio de energia e o desgaste físico desses
trabalhadores, oferecendo-lhes suplementos energéticos, para reposição de sais minerais57.
Um outro aspecto a ser ressaltado é o sistema de 5/1, adotado por várias usinas, tanto no
Centro-Sul como no Nordeste. Tal sistema, de maneira simplificada, consiste em trabalhar cinco dias
semanais e folgar um, sendo que essa folga deverá ocorrer em qualquer dia da semana, eliminando do
cotidiano dos trabalhadores o descanso nos finais de semana. Como a folga acontece num sistema de
rodízio, vez ou outra coincide com o sábado ou domingo. Vale dizer que, por estarem distantes de suas
famílias e não terem como ficar junto delas, nos finais de semana, os migrantes assimilam esse sistema
mais facilmente do que os trabalhadores locais.
A superexploração da força de trabalho dos cortadores de cana é uma constante, no cotidiano
do processo de trabalho. Além de as empresas estabelecerem uma meta de produção, como condição
para a contratação e a permanência dos trabalhadores, no corte de cana, ainda utilizam determinados
artifícios para estimulá-los a aumentar sua produção. Nesse sentido, podemos mencionar os sistemas de
bonificação e de premiações implantados pelas empresas agroindustriais canavieiras, para agraciar os
trabalhadores que conseguirem cortar mais toneladas de cana/dia. Sem se darem conta de que estão

56
Como, por exemplo, o da Professora Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP) e
do Professor Francisco Alves (UFSCar), sobre a morte dos trabalhadores rurais nos
canaviais paulistas.
57
Fato constatado em pesquisa de campo. No entanto, há que se destacar que o uso
desses energéticos ainda é passível de investigação, tendo em vista não estarmos
certos de sua composição,nem dos efeitos que eles podem causar aos trabalhadores.
sendo tratados como máquinas, esses trabalhadores alimentam falsas expectativas de que, trabalhando
mais, estarão ganhando mais58.
Durante pesquisa de campo, detectamos que algumas empresas já estão abandonando esse
sistema de bonificação e premiação, pelo fato de este ter provocado algumas divergências entre os
trabalhadores, os quais se sentiram ameaçados59. Vê-se, por conseguinte, que a estratégia da premiação
adotada pelas empresas para incentivar o trabalhador a produzir mais e que, em princípio, figura para o
capital como algo positivo, tendo em vista que a premiação de uns pode estimular os outros a também
produzirem mais, está surtindo um efeito contrário, à medida que gera insatisfação entre aqueles que
acham que também merecem uma premiação e não são contemplados. De repente, o que poderia se
reverter em ganhos de produtividade se transforma em insatisfações e divergências internas aos grupos
de trabalhadores, de modo que, assim, “o feitiço se volta contra o feiticeiro”. Nesse momento, o capital
recua, pois, para ele, essa espécie de estímulo incitado e coercitivo só é interessante enquanto se reflete
positivamente, no processo de trabalho.
No âmbito dessa moderna forma de produzir (pautada na automação, na mecanização e em
novas formas de gestão e controle do processo de produção e de trabalho), decorrente do processo de
reestruturação produtiva do capital – e do capital agroindustrial canavieiro, de modo particular –, a
precarização e a superexploração do trabalho se manifestam sob os mais diversos aspectos, seja no
descumprimento da legislação trabalhista, como falta de registro em carteira, intensificação da jornada de
trabalho, baixos salários e/ou fraudes no pagamento da produção por tonelada de cana, desrespeito às
normas de saúde e segurança do trabalhador, precariedade das condições de moradia e alimentação,
metas de produção abusivas e estratégias de estimulação incitada e coercitiva, via prêmios e bônus; seja
por meio da insegurança laboral que se instaura no universo desses trabalhadores, por conta da
mecanização do corte de cana e das pressões sofridas mediante reivindicação de direitos, que ameaçam a
manutenção do emprego.

Como se não bastasse todo esse estado de precarização e de


superexploração da força de trabalho, nos canaviais brasileiros,
recentemente os trabalhadores sofreram mais uma derrota, com a
aprovação da Medida Provisória 410/2007, assinada pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e publicada em 28 de dezembro passado. Ao
permitir a contratação de trabalhadores rurais sem registro em carteira,
por um período de até dois meses, a MP 410/2007 configura uma afronta
aos trabalhadores e uma ameaça aos direitos adquiridos e defendidos
pela Constituição Federal, uma vez que dá abertura para os

58
A esse respeito, Thomaz Júnior (2002) denomina de Bingo da Morte o esquema no
qual os trabalhadores são submetidos pelo capital para trabalharem até a exaustão, já
que são remunerados por produção. Nesse sistema espoliativo, que nos remete ao
século XVIII, os trabalhadores – para perfazerem mais rendimentos –estão, de fato, no
entendimento do autor, antecipando sua morte, em vista do grande dispêndio de energia
e desgaste físico, que não têm reposição à altura dos ganhos alcançados.
59
Em depoimentos feitos pelos próprios trabalhadores, durante pesquisa de campo, no
Triângulo Mineiro.
empregadores exercitarem ainda mais suas manobras, intensificando,
assim, o quadro de superexploração da força de trabalho no meio rural.
Tudo isso suscita um repensar sobre toda a orquestração de interesses que fortalece esse
modelo de produção referenciado no agronegócio, que intensifica as contradições e acirra a luta de
classes. Faz-se necessário atentar para alternativas que sinalizem para além do silenciamento e do
distanciamento das lutas, as quais apontam para a resistência a essas condições impostas, qualificar o
enfrentamento com o capital na busca de novos referencias e de um modelo de sociedade para além do
que está posto. As trilhas desse caminho estão sendo traçadas: se chegaremos à concretude... o tempo
dirá!

Referências Bibliográficas
ALVES, F. Por que morrem os cortadores de cana? Disponível
em:<http://www.adital.com.br/site/tema.asp?lang=PT&cod=23&currpag
e=4>. Acesso em: 10 jul. 2006.
ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: Reestruturação
produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre a
metamorfose e a centralidade do mundo do trabalho.
São Paulo: Cortez; Campinas: Editora UNICAMP,
1998.
______ Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a
afirmação e a negação do trabalho. 4.ed. São Paulo:
Boitempo, 2001.
______. A dialética do trabalho: escritos de Marx e
Engels. (Org.). 2.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2005.
ANTUNES, R.; SILVA, M. A. Moraes. (Orgs.) O avesso
do trabalho. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA nº 410, de 28 de dezembro de 2007.
Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2007-
2010/2007/Mpv/410.htm> Acesso em: 20 jan. 2008.
CADERNO DE FORMAÇÃO. A OMC e os efeitos destrutivos da
indústria da cana no Brasil. Recife: CPT/PE, abril de 2006.
DOSSIÊ: Rota da Mobilidade Humana para o Interior Paulista -
2001 – 2003. PASTORAL DOS MIGRANTES/GUARIBA-DIOCESE
DE JABOTICABAL – SP.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos
territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo:
Annablume, 2005 (Coleção Geografia e Adjacências).
IDEANEWS - ONLINE. A cana fez o mundo “redescobrir” o Brasil.
Conjuntura. Disponível em:
<http://www.ideaonline.com.br/ideanews.asp?cod=46&sec=8> Acesso
em: 17 jan. 2008.
JORNALCANA. Infinity Bio-Energy investirá R$ 85 milhões na
Alcana – Produção, Dados e Notícias – Edição nº158, p. 38, fevereiro de
2007. Disponível em:
<http://www.jornalcana.com.br/conteudo/Edicoes.asp?Edicao=158>
Acesso em: 20 jan. 2008.
MAGALHÃES, J. G. A “cidade-dormitório” de Palmares Paulista: a
senzala moderna. Disponível em:
<http://www.pastoraldomigrante.org.br/artigo14.html >. Acesso em 02
abr. 2007.
MARX, K. O Capital: Livro I; Capítulo VI (inédito). São Paulo: Ciências
Humanas, 1978.
MENEGAT, M. O olho da barbárie. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2006 (Coleção Trabalho e
Emancipação).
MÉZAROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo:
Boitempo, 2006.
MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico?
Por uma epistemologia crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
NORMA regulamentadora de segurança e saúde no trabalho na agricultura,
pecuária silvicultura, exploração florestal e aqüicultura – NR 31(Portaria n.º 86,
de 03/03/05 - DOU de 04/03/05)
NOVAES, J.R.; ALVES, F. (Orgs.) Exploração do
trabalho e luta por direitos na região de Ribeirão
Preto – SP. In: No Eito da Cana. Rio de Janeiro:
FERAESP/UfSCar/UFRJ, 2003.
OLIVEIRA, A. U. Barbárie e modernidade: o agronegócio e as
transformações no campo. Cadernos do XII Encontro Nacional do
MST. São Paulo: MST, 2004.
OLIVEIRA, A. M. S. A relação capital-trabalho na agroindústria
sucroalcooleira paulista e intensificação do corte mecanizado: gestão
do trabalho e certificação ambiental. 2003. 215f. Dissertação (Mestrado
em Geografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente
Prudente, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2003.
______ A reestruturação produtiva do capital na agroindústria canavieira
paulista e os desdobramentos para o trabalho. In: THOMAZ JÚNIOR,
A. Geografia e Trabalho no Século XXI. Presidente Prudente:
Centelha, 2004. Vol. 1. p. 70-104.
______ As Mudanças no Mundo do Trabalho e Movimento Sindical no
Brasil (uma breve reflexão). Revista Pegada, Presidente Prudente, v.01,
n.06, 2005.
PORTO DE SANTOS. Estrangeiros compram mais participação
acionária na Cosan. DCI – Agronegócios – página B4. 13 de dezembro
de 2006 – (Assessoria de Comunicação Social). Disponível em:
<http://www.portodesantos.com/cg-local/imprensa/mostrar.pl?1855...>
Acesso em: 22 jan. 2008.
RODRIGUES, D.; ORTIZ, L. Em direção à sustentabilidade da
produção de etanol de cana de açúcar no Brasil. (Dossiê) Disponível
em: <http://www.vitaecivilis.org.br/anexos/etanol_sustentabilidade.pdf>.
Acesso em: 21 de mar. de 2007.
SILVA, M. A. M. Se eu pudesse eu quebraria todas as máquinas. In:
ANTUNES, R.; SILVA, M. A. M. O avesso do Trabalho. 1.ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2004, p.111-141.
______. A morte ronda os canaviais paulistas. In: REVISTA
REFORMA AGRÁRIA, vol. 33- n.2 . São Paulo: ABRA - ago/dez
2006.
SULNEWS. Usina muda a rotina do Vale do Ivinhema. Junho de
2007. Disponível em:
<http://www.sulnews.com.br/ler.asp?id_noticia=10466> Acesso em: 20
jan. 2008.
TOLEDO, M. Estado prevê ‘mar verde’ de cana em 2015. FOLHA
RIBEIRÃO, 02 de Janeiro de 2008. Disponível em:
<http://www.pastoraldomigrante.org.br/> Acesso em: Acesso em: 04
fev. 2008.
THOMAZ JÚNIOR, A. A territorialização do monopólio: as
agroindústrias canavieiras em Jaboticabal (Dissertação de Mestrado).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo,1989.
______. Por trás dos canaviais, os nós da cana. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.
______. Se camponês, se operário! Limites e perspectivas para a
compreensão da classe trabalhadora no Brasil. In: THOMAZ JÚNIOR.,
A.; CARVALHAL, M. D., CARVALHAL, T. B. (Orgs.). Geografia e
Trabalho no Século XXI, Volume II. Presidente Prudente, p.130-167,
2006.
A Urdidura do Capital e do Trabalho nas Áreas de Cerrado ∗

Marcelo Rodrigues Mendonça ∗∗

1. Urdindo a prosa...

A “leitura” das transformações espaciais no campo brasileiro e

especificamente no Centro-Oeste se referencia no paradigma da

modernização da agricultura, que se tornou o principal viés para a

interpretação do espaço agrário, mediante a implementação das

formas modernas de produção, pautadas nas técnicas e nas

tecnologias, alterando consideravelmente o desenho espacial e

territorial.

A ocupação racional e indiscriminada das áreas de Cerrado,

precisamente a partir da década de (19)70, relaciona-se ao processo

de crise do processo produtivo mundial – padrão de regulação – que


Este texto é parte da tese de doutorado “A urdidura espacial do capital e do trabalho no Cerrado do Sudeste
Goiano
”, defendida em setembro de 2004, e orientada pelo professor Antonio Thomaz
Júnior. Disponível em: http://www.prudente.unesp.br/ceget
∗∗ Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás
, (UFG) - Campus Catalão; membro do Grupo de
Estudos Trabalho e Movimentos Sociais GETeM UFG/Campus de Catalão membro do
( )/ ; Grupo de Pesquisa “Centro de
Estudos de Geografia do Trabalho FCT/UNESP/Presidente Prudente
” (CEGeT)/ .
explicitou mudanças no seio do metabolismo social do capital

(MÉSZÁROS, 2002), mediante a hegemonia do capital financeiro,

possibilitando um crescente endividamento dos “países periféricos” e

a expansão de poucas grandes empresas pelos territórios mundiais.

No Brasil, essa situação pode ser melhor compreendida a partir da

decisão política estatal/privada, de retomar a Marcha para o Oeste,

idealizada desde o século XIX, mas, efetivamente implementada a

partir de Getúlio Vargas, com o objetivo de ocupar os “vazios

demográficos”. A construção de Goiânia, o rodoviarismo e a

construção de Brasília expressam a opção política e econômica de

“ocupar” o centro-norte do país, com prioridade para as áreas de

Cerrado.

Dessa forma, foram construídas as ações políticas

(planejamento econômico), as ações econômicas (capital privado

nacional e transnacional), as ações sociais (melhoria da infra-estrutura

e da qualidade de vida da população local e regional) e as ações

culturais (ideologia do atraso, do isolamento), entre tantas outras


argumentações, com o intuito de criar consensos sociais, em torno da

implementação das atividades modernizantes na agropecuária do

Planalto Central. Essas motivações, no contexto da ditadura militar

praticamente não foram questionadas, possibilitando a

territorialização do capital, negando a trajetória histórica dos

camponeses e dos trabalhadores da terra60 que foram forçados a

adotarem o moderno, a “civilização”, as formas de vida e visões de

mundo centradas no mercado, hegemonizado pelos grandes

complexos agroindustriais e financeiros mundializados.

As transformações espaciais decorrentes dessas investidas culminaram em novas paisagens


nas áreas cerradeiras. Da pecuária extensiva, da agricultura tradicional e camponesa restou muito pouco,
pois a agropecuária moderna com os maiores índices de produção e produtividade do país, expulsou as
“velhas” formas de uso e exploração da terra para as áreas de fronteiras, para as áreas urbanas e/ou para
os fundos de vales que se tornaram refúgios para os camponeses e trabalhadores da terra
desterritorializados. Em Goiás, a (re)arrumação espacial se efetivou a partir da desagregação dos
tradicionais ocupantes de terras que, em sua maioria, se dedicavam à pecuária extensiva. A expulsão dos
camponeses e trabalhadores da terra que praticavam a agricultura camponesa, cedeu o direito de
usufruto àqueles que possuíam capital agroindustrial e experiência acumulada, vindos do sul do país,
onde a agricultura moderna se iniciara a partir da década de (19)50.

Os incentivos creditícios e fiscais, o baixo custo da terra, a

topografia plana das chapadas, o clima favorável, a disponibilidade de

água, a infra-estrutura construída pelo poder público e os diversos

60
Sujeitos sociais que exercem labor e/ou têm na terra as condições essenciais para a
sua sobrevivência material e imaterial.
programas estatais, estimularam os investimentos dos empresários

rurais. Os novos proprietários rurais (muitos movidos pela

possibilidade de reprodução ampliada de capitais, visto que nas áreas

de origem a referida expansão estava dificultada, dentre outros fatores

pela valorização das terras) com tradição no cultivo de grãos chegam

e fazem a política de terra arrasada, impondo valores,

comportamentos e atitudes que negavam as experiências, as vivências

e os saberes dos Povos Cerradeiros61.

A relação com o meio-ambiente sofre brusca alteração,

principalmente nas áreas de chapadas, até então pouco aproveitadas,

pois apresentavam solos pouco férteis para cultivos intensivos e o

excesso de água no período chuvoso, o que dificultava as atividades

agrícolas. Os chegantes, portadores do “progresso”, utilizam o aparato

técnico e tecnológico disponível, mediante a disponibilização das

pesquisas científicas, propiciando a transformação de áreas até então

61
Refere-se às classes sociais trabalhadoras/produtoras que historicamente viveram nas
áreas de Cerrado e constituíram formas de uso e exploração da terra a partir das
diferenciações naturais-sociais, experimentando formas materiais e imateriais de
trabalho, que denotam relações sociais de produção e de trabalho muito próprias e em
acordo com as condições ambientais, resultando em múltiplas práticas sócio-culturais.
pouco produtivas em celeiros agrícolas. O custo social e ambiental da

modernização da agricultura nas áreas de Cerrado, especificamente

nas chapadas goianas permeia a discussão apresentada.

As inovações técnicas e tecnológicas excluíram e excluem


aqueles que não têm formação técnica necessária para o exercício das
novas funções, forçando-os a migrar para outros lugares, em geral áreas
urbanas. Contudo, sabe-se que não há emprego para todos, em função do
“enxugamento” proposto pela reengenharia e pelas alterações no
processo produtivo que, na origem, eliminam postos de trabalho. Nesse
contexto, o discurso da insuficiente qualificação dos camponeses e
trabalhadores da terra é reforçado para mascarar as razões da crise
estrutural do capital, responsabilizando os excluídos pela sua condição
sócio-econômica.
A reestruturação produtiva do capital que vem sendo
implementada em âmbito mundial, mas especificamente nas áreas de
Cerrado, mediante a territorialização acelerada dos agentes do capital
(empresas rurais, agroindústrias etc.), propiciou alterações nas relações
sociais de produção, com profundas mudanças no trabalho e,
especificamente, na ação política dos trabalhadores. A “nova”
organização da produção (flexibilização, desregulamentação etc.) e as
conseqüentes mudanças nas relações sociais de trabalho
(superexploração, sujeição, precarização etc.) ainda não foram
totalmente assimiladas pelas organizações sociais e sindicais (sindicatos
dos trabalhadores, movimentos sociais, cooperativas, associações etc.),
que não conseguiram dar as respostas adequadas às novas investidas do
capital, seja no campo, seja na cidade.
Esse processo produz mobilidade populacional, altera as
relações sociais de produção e introduz novas modalidades de trabalho.
Como resultado das pesquisas de campo observou-se o operador
temporário de máquinas agrícolas, os trabalhadores temporários nas
lavouras de soja, milho, trigo e algodão e, os novos trabalhadores,
“adestrados” para operar os sistemas informacionais das modernas
máquinas e implementos agrícolas que fazem parte da realidade do
agronegócio goiano.
Na pesquisa, buscou-se efetuar reflexões sobre as “leituras” que
vêm sendo realizadas sobre a dinâmica no espaço agrário brasileiro,
precisamente nas áreas de Cerrado, que desconsideram a trajetória
histórica dos Povos Cerradeiros e, desses, principalmente dos
trabalhadores da terra, desterritorializados pela modernização da
agricultura. Alguns pesquisadores questionam sobre o que há de novo no
rural brasileiro, vez que o processo de “urbanização do campo”
promoveu a concentração populacional nas áreas urbanas diante da
expulsão dos camponeses e trabalhadores da terra da terra de
trabalho62. Atualmente, parcela desses sujeitos sociais buscam se
reterritorializar através da luta pela terra e pela reforma agrária,
incorporando-se aos diversos movimentos sociais que lutam pela
reforma agrária, destacando-se o MST – Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra e o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Estes
movimentos sociais concebem a reforma agrária como uma política que
ultrapassa a mera distribuição de terras, questionando o modelo
econômico e energético adotados pelo Estado e pelo capital.

2. modernização da agricultura: territórios em disputa...

As pesquisas que tratam da modernização da agricultura nas


áreas de Cerrado enfatizam as transformações espaciais (sociais e
ambientais) a partir de duas opções teórico-metodológicas. De um lado,
lamentam as mazelas sociais descrevendo e caracterizando,
minuciosamente, a condição imposta aos camponeses e trabalhadores da
terra, sem, contudo, considerar as alternativas viáveis e exeqüíveis que,
historicamente, foram e continuam sendo implementadas pelos Povos
Cerradeiros. De outro, fazem uma apologia ao modelo adotado – o
agronegócio – que assegura produção e produtividade de grãos
essenciais ao “bem-estar da humanidade” e, por isso, sem qualquer
62
Ver MARTINS, J. S. (1986).
possibilidade de ser questionado. Na origem, essas duas abordagens se
assemelham, pois acabam por apresentar um quadro que reforça as
imposições do capital e as estratégias de controle social, não
considerando as perspectivas políticas emancipatórias construídas pelos
trabalhadores. Aos camponeses e trabalhadores da terra que não foram
expulsos restaram as áreas dissecadas (fundos de vales), que não
puderam ser incorporados pela agricultura moderna em virtude das
condições orográficas.
Agora, o campo modernizado no país urbanizado não necessita
da reforma agrária que passa a ser compreendida por vários
pesquisadores como desnecessária e sem sentido. Daí, muitos justificam
o desenvolvimento de atividades rurais não-agrícolas como a agricultura
part-time e a pluriatividade (combinação de atividades agrícolas com
não-agrícolas) que passam a ser apresentadas como a alternativa para os
conflitos fundiários no país. (GRAZIANO DA SILVA, 1999).
A “solução” passa a ser a implementação de atividades não-
agrícolas inseridas a partir do processo de urbanização do meio rural
(moradia, turismo, lazer e outros serviços) consorciadas com atividades
de preservação do meio ambiente e pequenos negócios agropecuários
intensivos (piscicultura, horticultura, floricultura, fruticultura de mesa,
criação de pequenos animais etc.), que buscam “nichos de mercado”
muito específicos para a sua inserção econômica. Essa tese não
considera a existência de uma agricultura camponesa, tampouco a
existência de um ethos de campesinidade (WOORTMAM, 1997) que
perpassa as práticas sociais e culturais de grande parcela dos Povos
Cerradeiros.
Essa argumentação necessita de maiores pesquisas, pois olhar

para os cinturões que cercam as grandes e médias cidades brasileiras,

que de fato, passam a prestar esses serviços (rendas não-agrícolas) e

generalizar para o território brasileiro e, ainda, negar a existência de


milhões de famílias que lutam por terra nesse país, é não conseguir

compreender o território enquanto uma construção sócio-histórica,

permeada por disputas entre as classes sociais e que é necessário

avançar na leitura das transformações espaciais.

As políticas compensatórias metamorfoseadas em

assistencialismo oficial, aqui, compreendido como indigência assistida63

onde estão milhares de famílias, mascaram a complexa situação em que

vivem os trabalhadores que lutam pela terra no Brasil, evidenciando o

processo de concentração da terra e da renda e, acentuando, a exclusão

social para milhões de brasileiros.

A alternativa mais acertada passa pela implementação de uma

ampla reforma agrária que contemple as necessidades desses

63
A partir da década de 1980, Goiás se tornou um grande laboratório de políticas de
“compensação social”, atendendo as demandas de milhares de famílias –
trabalhadores/camponeses, que, expulsas do campo, ocupavam de forma desordenada
as áreas urbanas, principalmente as metrópoles (Goiânia e Brasília), mas também nas
médias cidades goianas. A política clientelista conservava o estilo populista, como
forma de amainar as possíveis convulsões sociais e consolidava o novo pacto social
entre as velhas elites oligárquicas e os empresários rurais. O Estado acenava com
estímulos fiscais e infra-estrutura assegurando a modernização conservadora da
agricultura e, concomitantemente, acalentava os trabalhadores/produtores
desterritorializados com políticas assistencialistas (indigência assistida), perpetuando
no poder as elites conservadoras.
trabalhadores, assim como, as diferenciações entre as várias realidades

geográficas brasileiras. Apontar políticas compensatórias, sem dizer da

urgência da reforma agrária, é não querer, alterar a estrutura

fundiária, base das classes historicamente hegemônicas, tanto no campo

quanto na cidade.

Mais ainda, negar a importância da reforma agrária é não

querer “mexer” na estrutura fundiária e manter os privilégios de classe,

enquanto milhões clamam por pão para seus filhos. Quando é adotado o

termo agricultura familiar negligencia-se essa reflexão, e abandona-se a

perspectiva histórica de luta pela terra, “fechando” os olhos aos

movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, tentando calar,

através da “força da razão”, as vozes sufocadas que teimam em

(Re)Existir (GONÇALVES, 2003), até que a terra seja, de fato, uma

realidade.

Para tanto, é necessário contrapor-se ao discurso do

agronegócio, centrado na incorporação das terras “improdutivas” e/ou

no potenciamento da produção e da produtividade, mediante a


densidade das áreas cultivadas com incremento técnico e tecnológico.

Esse discurso precisa ser desmascarado e ao fazê-lo é urgente reafirmar

a viabilidade social e econômica de uma ampla reforma agrária no país,

com a possibilidade de combinar diferentes usos e modalidades de

exploração da terra, em consonância com as condições edafoclimáticas,

as vivências e as experiências já construídas. Também se torna

necessário denunciar a crescente degradação dos recursos naturais, a

superexploração e a precarização do trabalho.

Ora, pensar uma política agrícola para gerar mais empregos no

campo a partir da modernização capitalista da agricultura, tal qual está

sendo implementada pelas grandes empresas rurais, significa não

perceber que essas medidas atendem apenas aos interesses

expansionistas do grande empresariado e, jamais, significará solução

para os graves problemas vivenciados pelos camponeses e trabalhadores

da terra e, tampouco, para as questões ambientais.

Os postos de trabalho no campo estão sendo reduzidos através

da adoção das técnicas modernas e os “empregos” que surgem não


podem ser defendidos, pois as condições de sujeição e precarização,

assemelham-se àquelas dos primórdios do capitalismo. (ALVES, 2000).

O crescente aumento da subproletarização e da precarização do

trabalho nos faz refletir e ter cuidado com o argumento da geração de

emprego e renda diante de uma espetacularização da miséria e da

pobreza e da constatação das mais degradantes formas de existência

humana.

É preciso indagar até que ponto isso é viável: manter a

superexploração do trabalho no campo sob alegação de que se está

gerando “empregos”. Esse discurso, inclusive realizado por defensores

da esquerda histórica (ANTUNES, 2001), é um engodo e não pode ser

aceito, sob pena de capitularmos frente aos equívocos colocados e,

ainda, reforçarmos a sanha do capital, por meio de um discurso

“humanitário”, onde a contradição viva seja escondida ocasionando um

descomprometimento com a emancipação social.

O processo de deslocamento compulsório dos camponeses e

trabalhadores da terra em direção às cidades, comumente denominado de


êxodo rural, termo ainda utilizado no ensino médio e fundamental,

necessita ser aclarado. Êxodo pressupõe saída, mas não explicita as

razões, fazendo crer que é algo natural e necessário, inclusive para as

famílias migrantes. Assim, o significado do êxodo rural não coloca em

questão o cerne do problema – a expulsão dos camponeses e

trabalhadores da terra de suas terras de trabalho. Dessa forma, utilizamos

o conceito de desterritorialização, por expressar a concretude do

significado sócio-histórico na luta pela terra diante da hegemonia do

latifúndio e, mais recentemente, da empresa rural no campo.

A implementação das empresas rurais modernas com atividades


que demandam intenso uso de tecnologias, não melhorou as condições
de vida dos camponeses e trabalhadores da terra, haja vista a
intensificação da precarização do trabalho e a reedição de diversas
relações de trabalho que implicaram em condições sub-humanas de
existência. As condições degradantes (análogas ao trabalho escravo) de
trabalho possuem diversas razões, destacando-se a concentração da terra,
a inexistência de políticas públicas eficazes, a existência de uma massa
de trabalhadores disponíveis para qualquer tarefa e a omissão das
autoridades competentes.
A partir dessas considerações quer se compreender os desenhos

espaciais através das tramas do capital e do trabalho nas áreas

cerradeiras e demonstrar a preocupação com o outro lado da moeda – a


externalização do trabalho – e as ações políticas dos trabalhadores

frente ao processo de modernização capitalista, materializado através

da modernização da agricultura. Isso implica em fazer “leituras” do

território, a partir do enfrentamento capital x trabalho, com ênfase nas

ações desencadeadas pelos movimentos sociais.

3. heterogeneização, complexificação e precarização do trabalho


A modernização da agricultura possui diferenciações espaço-
temporais em razão das funcionalidades que essas áreas apresentaram
frente o modo de regulação do capital que, a cada momento, exige uma
certa adequação às necessidades do novo padrão de acumulação. O
consorciamento entre diferentes relações sociais de trabalho, desde as
assalariadas até a existência de relações não-capitalistas demonstra a
captura e a imposição das novas formas de produzir com o intuito de
atender a acumulação do capital. Goiás apresenta uma tecnologia
altamente moderna, porém, não se deve pensar que a modernização é
iniciada com o advento das técnicas modernas de produção. A
aceleração desse processo se deu após a adoção em massa das inovações
tecnológicas, mas, a modernização é uma construção e se confunde com
o próprio processo de formação e consolidação do capital industrial e
financeiro. A aceleração técnica promoveu uma justaposição de tempos.
Há que mencionar e se possível decifrar as diferentes inter-
relações entre as formas de trabalho existentes, dentre elas, o
imbricamento entre o trabalho assalariado e as novas formas de gestão
do processo produtivo, centradas na intensificação do trabalho
precarizado, tanto no campo como na cidade. A heterogeneização e a
complexificação do trabalho redefinem a relação cidade-campo a partir
de novos desenhos societais constituídos nesses territórios. As novas
categorias de trabalhadores, assim como as novas formas de
auferir/apropriar renda necessitam ser pesquisadas. Entretanto, há o risco
de visualizar apenas a capacidade transformadora do capital e
secundarizar o trabalho, fato presente na maioria das pesquisas que
desconsideram as múltiplas relações sociais de trabalho, camufladas sob
o escopo da modernização da agricultura, da extração do valor e da
reprodução ampliada do capital.
Nos anos (19)90, a modernização capitalista – capitalismo

industrial e financeiro – provocou alterações no universo do trabalho

propiciando novos sentidos para o trabalho. Algumas mudanças

importantes no trabalho, principalmente nos grandes centros, com o

crescimento da informalidade, são: diminuição dos trabalhadores com

carteira assinada no setor privado e perda do poder aquisitivo;

expansão de formas precárias de trabalho em tarefas subcontratadas,

terceirizadas etc; crescimento do trabalho em tempo parcial, trabalho

domiciliar, entre outros, sem qualquer regulamentação do Estado;

intensa retração do emprego industrial e demissões em massa; crescente

aumento de postos de trabalho no setor de serviços e no comércio,

embora em condições aviltantes.

Isso também chega ao campo, principalmente nas empresas

rurais, que (re)ordenam o uso e as formas de exploração da terra,


implementando novas relações de trabalho, através da participação nos

lucros para alguns trabalhadores, adoção de programas de qualidade

total, obrigatoriedade de cursos de qualificação para o exercício das

atividades mais complexas, orientação sobre o uso dos recursos

naturais, entre outras.

Dessa forma, encontramos nas empresas rurais observadas as


seguintes relações sociais de produção e de trabalho, em acordo com as
tendências enumeradas anteriormente, observadas nas áreas de Cerrado
e, especificamente, nas chapadas goianas.

a) O reaparecimento do trabalho em condições ao trabalho


escravo, do trabalho infantil e do trabalho de idosos sob condições
extremamente precárias nas empresas rurais. Isso é um indicativo de
que houve alterações significativas nas relações sociais de trabalho,
como o revigoramento dos procedimentos que intensificam a
fragilização, a precarização e a superexploração do trabalho.
b) A adoção de formas de gestão flexíveis (participação nos
lucros, trabalho em equipe, parcerias etc.) ao lado da precarização do
trabalho e o não-cumprimento dos direitos mínimos dos
trabalhadores (carteira assinada, férias, 13º salário etc.) são
evidências do paradoxo existente nas grandes empresas rurais.
c) Crescimento da sub-contratação (trabalhadores
temporários) com destaque para alguns cultivos, destacando-se café,
feijão, algodão, cana-de-açúcar e tomate.
d) A crescente terceirização de algumas atividades,
principalmente, as consideradas mais difíceis e menos rentáveis
(serviços domésticos, segurança, manutenção das máquinas e
implementos agrícolas etc.).
e) O incentivo a migração, patrocinado pelos empresários
rurais e até mesmo o financiamento da vinda de trabalhadores para
exercerem atividades periódicas nas empresas rurais. Observamos
duas categorias de migrantes: uma oriunda dos Estados da região Sul
(trabalhadores safristas) que ficam confinados em barracões nas
empresas rurais. E outra, que não é incentivada, mas que chegam à
procura de trabalho, quase sempre, oriundos do Nordeste e que
assumem o trabalho temporário, sendo contratados através da
mediação dos gatos.
f) Fortalecimento das formas degradantes de trabalho
(alojamentos precários, falta de equipamentos de segurança,
condições de trabalho insalubres, alimentação inadequada, entre
outros) para os trabalhadores safristas e de forma piorada para os
trabalhadores temporários.
g) A existência de programas de qualificação e
requalificação da mão-de-obra para os trabalhadores permanentes e,
às vezes, para os trabalhadores safristas.

Além dessas transformações nas áreas de Cerrado, precisamente acerca


da dinâmica das grandes empresas rurais, há que se considerar o crescente
aumento das agroindústrias. Avalia-se que está ocorrendo uma maior
mobilidade das agroindústrias, à medida que as condições locacionais são
relevantes, pois integradas ao sistema de redes, facilitam a instalação de novos
empreendimentos agroindustriais em áreas até então pouco industrializadas.
Assim, cabe aos pesquisadores/intelectuais orgânicos
desmistificar os consensos sociais construídos a partir do discurso
midiático e das políticas públicas, mostrar a realidade do campo no país,
evidenciando a luta dos camponeses e trabalhadores da terra que,
organizados, reivindicam a terra de trabalho como um direito à vida. É
o movimento permanente de idéias, análises e dados empíricos que
enriquece as tramas construídas, demonstrando um olhar panorâmico
sobre a urdidura espacial, as tramas, as teias. Teoria e empiria, forma,
processo e conteúdo permeiam a análise do território a partir da
contradição viva.
Há um ir e vir que pode incomodar o leitor pouco atento.
Contudo, é uma necessidade imperiosa e um esforço construtivo, pois ao
vivenciar a pluralidade de situações encontradas não seria possível
“pinçar” um elemento, como corriqueiramente se faz e verticalizar a
pesquisa. Esse caminho talvez fosse mais fácil, mas não expressaria mais
que profundas e recônditas fantasias geográficas. Pode ser que esteja na
contramão da história – já estive outras vezes –, e que não esteja
respeitando adequadamente os ritos, as convenções e os regramentos
acadêmicos, mas, ao escrever, colocamos idéias em discussão e, isso é
sempre muito arriscado. O mais importante na construção de uma tese
não é necessariamente o produto acabado, mas o processo, a constituição
do ser pesquisador a partir das indagações surgidas no processo da
reciprocidade dialética.

4. A prosa urdida: alguns apontamentos


As transformações espaciais, decorrentes das mudanças aceleradas pela
reestruturação produtiva do capital expressam uma agudização das
contradições, redefinindo a gestão societária do capital e do trabalho. A
estratégia do capital que se efetiva em novas formas de controle social, diante
das alterações no conteúdo da classe social, forjadas no enfrentamento do
capital e do trabalho, implica em novas arrumações espaciais, produto-produtor
da contradição viva e, portanto, também condição para a emancipação social.
Essa nova dinâmica do processo produtivo implicou na retomada dos
movimentos sociais na luta pela terra e pela reforma agrária, apontando a
perspectiva do acesso a terra para de milhares de famílias desterritorializadas
A territorialização do capital e do trabalho no Cerrado goiano e
as tramas espaciais decorrentes – a urdidura do capital e do trabalho –
expressam a vitalidade e as potencialidades dos camponeses,
trabalhadores da terra e demais frações da classe trabalhadora,
acarretando diferentes sentidos para o trabalho. A pluriatividade, as
reivindicações por melhores condições de vida e melhores salários, as
formas comunitárias de organização do trabalho (cooperativas de
trabalhadores, mutirão etc.), a superexploração, a subordinação e a
precarização do trabalho, os assentamentos agroecológicos, entre outras,
expressam os rearranjos produtivos impetrados pelo sistema do
metabolismo do capital e os rebatimentos sobre as instâncias
organizativas dos trabalhadores, tanto no campo quanto na cidade. A
ação dos movimentos sociais implicou numa ampliação das escalas
geográficas enquanto relação social, possibilitando um extravasamento
das fronteiras corporativistas, construídas na aliança com as estruturas
societais, hegemonizadas pelo capital.
Mas, persistem as travagens impostas pelo estranhamento,
impedindo que os trabalhadores concebam o espaço da produção
enquanto um espaço social cheio de possibilidades libertadoras A força
dos movimentos sociais reside no processo permanente de espoliação e
superexploração vivida pelos trabalhadores, que atira todos os dias,
milhares de famílias na indigência assistida. As mudanças no processo
produtivo empurram os trabalhadores para as formas precarizadas de
trabalho, destacando-se a informalidade, o subemprego, as múltiplas
formas terceirizadas e subcontratadas de trabalho e, ainda, a
responsabilização social desses sujeitos sociais pelas crescentes
condições de miserabilidade. Há que se desvencilhar das formas
perversas que tangenciam e determinam as subjetividades dos “homens
simples”, para que possam negar a subjetividade do capital que impregna
os indivíduos sociais e infestam as ações políticas reformistas,
colocando-se como travagens para a emancipação social. O avanço na
ação política está na compreensão da necessidade de ampliar a noção de
classe trabalhadora construindo a uncidade orgânica do trabalho.
Ao pensar a classe trabalhadora a partir das mudanças
propiciadas pela modernização da agricultura, nas áreas de Cerrado,
através da territorialização das empresas rurais, algumas indagações são
pertinentes: primeiro é necessário compreender os camponeses como
classe trabalhadora, mesmo porque na área pesquisada são protagonistas
da maior e mais importante ação política contra o capital. Mas não
apenas por isso, também pelo conteúdo das relações sociais
estabelecidas, diante do surgimento de diversas categorias de
trabalhadores que lutam pela terra, iniciando um gradativo movimento
de diálogo em torno de reivindicações comuns, nesse caso, a terra.
Thomaz Júnior (2002) salienta que vivenciamos um dos
momentos mais críticos para o trabalho e que as mudanças técnicas e
tecnológicas influenciaram sobremaneira a natureza do trabalho,
impondo novos rearranjos e novas funções para uma parcela dos
trabalhadores, uma vez que a maioria está à margem das relações
assalariadas. A desregulamentação de setores estratégicos, as políticas
anti-sindicais e a liberalização comercial impulsionaram a flexibilização
(priorização) das relações sociais nos setores produtivos, possibilitando
um novo poder do capital sobre o trabalho. A partir dos anos (19)80
instaurou-se um novo patamar de desemprego estrutural e a proliferação
do trabalho precário. Nos anos (19)90 “(...) um espectro ronda o
capitalismo mundial – o espectro das novas formas de exclusão social –
e surgem novas clivagens de desigualdades, uma nova pobreza no
interior do centro capitalista.” (Alves, 2000, p. 19).
Isso implica pensar que o capitalismo pode estar moribundo. Isso é
verdadeiro, mas não nos iludamos, pois através das formas perversas de
autoexpansão, esse sistema de produção, propicia a fragmentação, a
complexificação e a heterogeneização do trabalho (THOMAZ JÚNIOR, 2003),
pulverizando as ações políticas. Isso pode ser percebido a partir da divisão
social e espacial do trabalho, que se expressa territorialmente, produzindo uma
reformatação de elevada dimensão para a agricultura brasileira.
Na agropecuária goiana, o trabalho metamorfoseado assumiu
tendências e formas muito diferenciadas, como demonstrado ao longo da
pesquisa, possibilitando questionar a natureza do trabalho e do capital na
contemporaneidade. Os camponeses e os trabalhadores da terra – Povos
Cerradeiros, forjados na ação política, na luta pela terra e pela reforma agrária
apontam a perspectiva histórica de ação política contra o capital. As alterações
nas relações sociais de trabalho, baseadas em princípios mais flexíveis,
configuram-se através da participação nos lucros, na elitização de uma parcela
dos trabalhadores permanentes (qualificados e remunerados adequadamente) e
na intensificação das formas aviltantes de trabalho, diante da intensificação da
precarização do trabalho.

5. A apropriação dos saberes-fazeres: novas estratégias do capital


A necessidade de aumentar a produção e a produtividade implicou na
eliminação do desperdício e do trabalho improdutivo através da crescente
incorporação do trabalho imaterial, fazendo com que o trabalhador (sob o
escopo de uma nova ordem produtiva) se sentisse parte da empresa rural e/ou
do empreendimento, assumindo para si as responsabilidades e as tarefas
colocadas para os proprietários dos meios de produção. É preciso investigar
com mais acuidade as formas de trabalho (e as condições de trabalho) para
compreender mais claramente o processo de estranhamento que, propicia a
existência inautêntica, do ponto de vista do trabalho, ao mesmo tempo em que
os trabalhadores incorporam o capital enquanto materialidade e subjetividade.
A ação política emancipatória só será eficaz a partir do momento que esses
trabalhadores construírem subjetividades hegemonizadas pelo trabalho,
negando a subjetividade do capital entranhada na vida material e imaterial dos
homens na sociedade capitalista.
Em tempos de “globalização econômica” a transnacionalização do
capital significa a busca pelas melhores condições para a sua reprodução em
qualquer território, promovendo a guerra dos lugares. (SANTOS, 1999).
Entretanto, o mesmo não ocorre com o trabalho, embora este esteja cada vez
mais internacionalizado, as condições para uma articulação política
universalizante apresentam limitações, inclusive, do ponto de vista geográfico.
Sabe-se que a produção flexível necessita cada vez mais da interação
entre trabalho e ciência, entre execução e elaboração, entre avanço tecnológico
e adequação da força de trabalho. Nesse sentido, a expropriação do
conhecimento dos trabalhadores é algo extraordinário. Os saberes-fazeres
valorizados cumprem um aspecto ideológico e produtivo sem precedentes na
história. Transformados em gestão participativa estes saberes-fazeres são
incorporados como trabalho vivo, agregando maior valor à mercadoria.
A lógica colocada pela reestruturação produtiva do capital promoveu
(re)ordenamentos diferenciados no âmbito do capital, fazendo com que médias
e pequenas empresas entrassem em um processo de falência, enquanto o grande
empresariado se vangloriava que a “salvação da pátria” passava pela
reformulação do Estado e pela abertura econômica. Dessa forma, justificam as
demissões em massa, reduzem salários e pressionam os trabalhadores a aceitar
a desgulamentação das leis trabalhistas, suprimindo direitos sociais. Esses,
atordoados pelas novas imposições do capital e não tendo suporte político,
ideológico e organizacional para dar respostas adequadas e coadunadas com a
classe trabalhadora, tornam-se “presas fáceis”, aos oportunistas e às entidades
de representação comprometidas em manter o pacto social, regulando a relação
capital x trabalho e, jamais, possibilitando uma reflexão sobre as condições de
superação dessa estrutura societal.
A nova conjuntura mundial redefine o mercado de trabalho e as
históricas “bandeiras de lutas” empunhadas pelos sindicatos, partidos políticos
no campo da esquerda e pelo movimento social progressista, colocando para
esses atores sociais, o desafio de defenderem a classe trabalhadora ampliada,
porém multifacetada e fragmentada, diante das múltiplas formas de
externalização do trabalho em condições intensificadas de aviltamento,
degradação e precarização do trabalho.
Assim, os desafios para os trabalhadores estão colocados: desemprego,
subemprego, informalidade e/ou as novas imposições dos patrões, sob um certo
receio da atuação do movimento sindical, que passa a assistir a um descenso
das ações políticas na defesa das reivindicações históricas dos trabalhadores. A
necessidade de alterar “as regras do jogo” com o intuito de elevar os lucros para
o capital, ocasionou medidas que buscavam ampliar o controle social sobre os
trabalhadores e, assim, reduziram custos com mão-de-obra, inclusive,
responsabilizando os trabalhadores pelo próprio desemprego, por não se
adequarem às novas exigências colocadas pelo capital. Essas exigências passam
por um maior despreendimento, aceitando as novas formas de gestão no
processo produtivo (qualidade total, trabalho em equipe, disposição para
aprender, retorno à escola etc.) sob o discurso de que é necessário inovar para
assegurar a competitividade no mercado.
O progresso das técnicas no campo – modernização conservadora da
agricultura – deve ser visto como o fortalecimento das formas de produzir do e
para o capital mediante um maior controle sobre o trabalho. Mas, não se deve
perder de vista o conteúdo civilizatório de que as técnicas e as tecnologias são
portadoras. A questão não está nas técnicas e/ou nas tecnologias em si, mas no
uso que se faz delas, no controle social impetrado pelo capital. A tecnologia em
si não está contra o trabalho, ou contra o trabalhador, mas está a favor do
capital. (THOMAZ JÚNIOR, 1996). Se relegarmos o conteúdo civilizatório,
ainda presente nas técnicas (ou na maior parte delas), estaríamos fragmentando
a realidade e tornando ambíguas, situações que são cada vez mais complexas e
imbricadas.
A integração da cadeia produtiva – complexo agroindustrial –
significou ganhos de produtividade e um maior fortalecimento do controle do
processo de trabalho, entretanto, os avanços técnicos e os ganhos de
produtividade não significaram maior autonomia para os trabalhadores. Ao
contrário, evidenciaram maior dependência e subordinação, além de promover
a agudização da desigualdade social devido à adoção das inovações técnicas e a
ampliação dos cultivos modernos, expulsando os camponeses e os
trabalhadores da terra de suas terras de trabalho.
O capitalismo não se espacializa e se territorializa de forma
homogênea, coexistindo diversas singularidades em função das distintas formas
de uso e exploração da terra. Todavia, a ênfase com que alguns pesquisadores
tratam as inovações técnicas e tecnológicas enquanto redefinidoras da relação
capital x trabalho é preocupante. As inovações tecnológicas são determinantes
em algumas etapas do processo produtivo e aumentam o controle do capital
sobre o trabalho. Assim, uma análise mais substancial é necessária, no sentido
de perceber o aparato ideológico construído e os elementos subjetivos,
incorporados e externalizados pelos trabalhadores em situação de risco, ou seja,
de desemprego iminente. A reestruturação produtiva viabilizada pela
rearticulação do capital mediante os investimentos em tecnologia, promoveram
alterações na forma e na organização do trabalho, ocasionando um novo
universo de cisões e novas disputas pelos territórios.
Nas áreas de Cerrado, coexistem elementos essenciais para se

compreender as transformações pelas quais passa a agricultura

brasileira. O mosaico de usos e formas de exploração da terra,

hegemonizado pelo capital industrial e financeiro, elabora e implementa

distintas formas de controle social sobre o trabalho. O intuito foi

perceber como esse compósito de objetos, signos, símbolos, desejos,

interesses promovem (re)arrumações espaciais, possibilitando formas

diferenciadas de controle do capital sobre o trabalho. E mais, como os

trabalhadores internalizam essas ações/intenções e as reelaboram, com

o objetivo de apontar possibilidades para além daquilo que foi, e, é

estabelecido como imutável, ou seja, a sociedade capitalista. Diversas


mudanças estão ocorrendo, e não se pode tratar campo e cidade como

realidades indissociáveis. É preciso avançar para perceber onde estão

os nexos e qual o sentido, qual a natureza dessas ações que, mediadas

por relações sociais, significam diretrizes para que se possa repensar a

ação dos movimentos sociais.

A identificação das configurações geográficas materializadas no


Cerrado goiano nos possibilitou focar a gestão e o ordenamento territorial,
produto das práticas modernas na agropecuária regional. Diversos
investimentos públicos (construção de estradas e pontes, aumento dos silos para
armazenamento, construção de hidrelétricas, ampliação da eletrificação rural
etc.) foram realizados alterando as paisagens geográficas existentes. Os cultivos
intensivos, principalmente a soja, atraiu as agroindústrias que se beneficiaram
de parte da produção do complexo grãos-carne consolidado nos anos 1980/90,
promovendo mudanças significativas no arranjo societal.
O intrincado e complexo metabolismo social do capital imprime suas
marcas no campo e nas cidades, em todas as dimensões, inclusive, propiciando
visões estereotipadas com o objetivo de assegurar o controle social, a partir dos
trabalhadores estranhados, mas também de parcela dos pesquisadores que não
reconhecem o espaço contraditório das relações sociais capitalistas, construídas
cotidianamente. Ao compreender o campesinato como uma fração da classe
trabalhadora a estrutura do movimento social se altera profundamente,
precisamente, do movimento sindical arraigado à fábrica, entendida como o
locus da produção do valor e, atualmente, vivenciando a perplexidade, diante
das sérias debilidades em assegurar uma ação política transformadora. A
novidade é perceber que as novas formas de controle social do capital sobre o
trabalho alteraram a estrutura interna do modo de vida dos camponeses e
trabalhadores da terra, possibilitando uma nova articulação do movimento
operário com o movimento camponês, reconstituída pelas contradições envoltas
no processo de reprodução do capital, denotando um novo conteúdo das
relações cidade-campo e, certamente, ações políticas de cariz nova e
transformadora.
Daí, a dificuldade colocada pela plasticidade do trabalho, pois

ocorre uma (des)identidade do trabalho no sentido clássico e, ao mesmo

tempo, ainda não foi possível apreender concretamente as novas

manifestações do trabalho, para assim envidar ações políticas

emancipatórias. Quem são os camponeses e os trabalhadores da terra?

Não se pode negar que há dificuldade em denominar esse caleidoscópio

de relações sociais que, consorciadas, porém, diferenciadas compõe a

análise das transformações espaciais nas áreas de Cerrado. Existe uma

diversidade de categorias profissionais, de corporações sindicais, de

segmentos específicos que reivindicam pautas pontuais e não conseguem

se “enxergar” enquanto classe trabalhadora.

É exatamente essa questão que não tem sido enfrentada

teoricamente pelos sindicatos e partidos de esquerda. Quanto aos

movimentos sociais e alguns intelectuais orgânicos, parece haver um

esforço coletivo no sentido de uma reflexão qualitativa, colocando como

desafio pensar as ações políticas que possam agregar as distintas

manifestações geográficas do trabalho e considerar o direito à diferença,


sem, contudo, mutilar o potencial transformador e emancipatório da

classe trabalhadora.

As principais condições para potenciar a ação política – o

enraizamento e o sentido de pertencimento – necessitam ser

interpretadas a partir das relações de poder, dos interesses, da

contradição viva que permeia as múltiplas relações travadas e urdidas

na produção/construção das tramas espaciais. Dessa forma, a análise

geográfica do território surge enquanto construção da vida e das

possibilidades de superação da ordem instituída, centrada na

propriedade privada dos meios de produção, expressão material e

imaterial das formas determinantes de controle do capital sobre o

trabalho.

A conquista da terra significa a “reconquista do território”,

(re)arrumado conforme as necessidades e anseios dos camponeses e

trabalhadores da terra, todavia, ainda engendrado pelos mecanismos de

produção e reprodução do capital. O (re)ordenamento do território

diante da (Re)Existência do trabalho, significa o primeiro passo rumo


ao enfrentamento do estranhamento – negar a subjetividade do capital e

se despir das amarras alienantes – constituindo sociabilidades

solidárias enquanto condição para a emergência do homem novo.

6. Referências bibliográficas

ALENTEJANO, P. R. R. As relações campo-cidade no Brasil do século


XXI. Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 21, jul/dez 2003.
ALMEIDA, R. A. O conceito de classe camponesa em questão. Terra
Livre, São Paulo, v. 2, n. 21, jul/dez 2003.
BOMBARDI, L. M. Geografia agrária e responsabilidade social da
ciência. Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 21, jul/dez 2003.
CÂNDIDO, A. O. Os parceiros do Rio Bonito. 5. ed. São Paulo: Duas
Cidades, 1979.
FABRINI, J. E. Os assentamentos de trabalhadores rurais sem terra
do Centro-Oeste/PR enquanto território de resistência camponesa.
297 p. [Doutorado]. Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade
Estadual de Paulista, Presidente Prudente, 2002.
GONÇALVES, C. W. P. Da geografia às geo-grafias: um mundo em
busca de novas territorialidades. 2003. Disponível em:
<htpp//www.cibergeoagbnacional.com.br/>Acesso em: janeiro de 2004.
MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil - As lutas sociais no
campo e seu lugar no processo político. 4. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1990.
MARX, K. O capital – Crítica da economia política. Tradução de Regis
Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São
Paulo: Contraponto, 2001.
MENDONÇA, M. R. A urdidura espacial do capital e do trabalho no
Cerrado do Sudeste Goiano. 459 p. [Doutorado]. Faculdade de Ciência
e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, 2004.
SILVA, J. G. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas:
UNICAMP, 1996.
THOMAZ JUNIOR, A. Se camponês, se operário! Limites e
perspectivas para a compreensão da classe trabalhadora no Brasil. In:
THOMAZ JR., A. CARVALHAL, M. D.; CARVALHAL, T. B. (Orgs.).
Geografia e trabalho no século XXI. Presidente Prudente: Editorial
Centelha, 2006.
_____. O trabalho como elemento fundante para a compreensão do
campo no Brasil. Revista Candeia, Goiânia: IFAS, v. 4, n. 6, 2003a.
_____. O mundo do trabalho e as transformações territoriais: os limites
da ‘leitura’ geográfica. Ciência Geográfica, Bauru, ano 9, v.9, n.1, jan.
abr., 2003b.
_____. Por trás dos canaviais os nós da cana. São Paulo:
Anablume/Fapesp, 2002.
WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura.
Tradução de P. H. Britto. São Paulo: Cia das Letras. 1989.
Uma Questão de Escala. A Escalada da Escravidão Local
Como Resposta à Geografia Econômica Mundial ∗

Júlio Cézar Ribeiro ∗∗

“Uma coisa de cada vez. Tudo ao mesmo tempo


agora”
(TITÃS, Uma coisa de cada vez).

1. A nova rede espacial na lógica e interdependência dos lugares-nós:


novos elementos à podre lógica elementar

Antes de adentrarmos na questão da escravidão propriamente


dita, faremos um parêntese sobre a questão da escala.
Para além do tradicional parâmetro analítico sustentado em
pressupostos métrico-quantitativos e de fundo cartográfico, cujas
análises partem do lugar encravado-englobado na região e esta numa
mais ampliada escala métrica territorial, e assim sucessivamente,
focalizaremos nossa atenção ao nível metafísico-qualitativo que ela
possui e que tão parcas vezes é averiguada por geógrafos. Se o mundo
está e se faz nos lugares e se o padrão é a repetição hegemonizadora do
global feito local e vice-versa, então a questão da escala deve ser


Este texto, composto por itens do quarto capítulo de nossa dissertação –
concluída em 2002 e sob a orientação do professor Antonio Thomaz Júnior,
põe em questão as características da inserção-exclusão de indígenas no
processo de corte de cana-de-açúcar no Estado do Mato Grosso do Sul,
particularmente no âmbito da Usina e Destilaria Brasilândia S/A (DEBRASA), do
Grupo J. Pessoa.
∗∗
Professor Doutor do Colegiado de Geografia da UFT/Araguaína. E-mail:
jcezarr@hotmail.com
decifrada mediante a capacidade ontológica (analítica e sistematizadora)
de superação das capas da aparência que a parte-todo do lugar-global
possui e, especialmente, as diferenças que o desafiam, por meio do
transmigrar pelas dimensões do singular-particular-universal. Com isso,
a análise métrico-quantitativa cede espaço à dialético-qualitativa e o
real-global se torna inteligível sem que seja sempre necessário o focar de
grandes dimensões territoriais, que só trazem o esquecimento das
diferenças pelo pragmatismo modelístico dos métodos analítico-
quantitativos costumeiramente empregados. Apostamos na idéia de que a
via da escala qualitativa deve ser o meio de averiguação do real e a
expressão territorial cartografada o auxílio formal de representação e
repensar do fenômeno (expresso paisagisticamente), haja vista que
singular, particular e universal não se definem em-si, matematicamente e
como níveis autônomos, correspondendo antes a dimensões
dialeticamente conexas e inerentes funcionalmente à ordem sócio-
territorial.
A parte é a totalidade e a totalidade é a parte.
Na rede técnico-científico-informacional integradora dos
lugares-nós da muito aludida Aldeia Global (que ironicamente nega as
Aldeias Locais), a DEBRASA apresenta-se como centro agroindustrial
atrativo de força de trabalho índia e não-índia na região de Dourados; e
as relações que mantém com o mercado interno e externo, pelos fluxos
aos quais consome e irradia (absorvendo novas espécies agrícolas,
técnicas de cultivo e produção e emitindo seus produtos), a faz participar
da economia transnacionalizada com a particularidade de ter na “semi-
escravidão” (escravidão capitalista não-salariada ou precariamente
salariada) o elo de ligação com outros centros financeiros e
consumidores armados pela geografia econômica global.
Em meio a essa ordem é que os índios começam a adentrar os
portões da Fazenda DEBRASA. Daí por diante enfrentarão árduas
tarefas; sofrerão conseqüências e se voltarão contra os que vêem como
agressores e ameaças, das mais variadas formas.
Não percamos de vista os motivos maiores que levaram à captura
desse quartel operário: pelo contexto de desgraça, como paradoxalmente
no flamejar da centelha da esperança, é que devem ser avaliadas a
(re)ação indígena.
Como recorrência da pressão que lhe recaía de determinados
setores da esfera pública e da sociedade civil, este foi o meio encontrado
pela DEBRASA para substituir e diminuir o contingente de
trabalhadores “brancos” em sua propriedade, porque se disseminava
socialmente a informação da existência de escravidão branca em muitas
empresas (CORREIO DO ESTADO, 10/5/1991, 20-21/6/1992)64,
atraindo a atenção de instituições e da sociedade nacional (ibidem,
22/5/1992) e internacional, despertando inclusive a atenção de
organizações não-governamentais (id. 22/9/1994; O IMPARCIAL,
21/3/2000, p. A3).
Tratava-se de trabalhadores não-indígenas (nordestinos,
mineiros, etc.), que por serem considerados “brancos” pela mídia escrita,
acabaram sendo associados à “escravidão branca”, em relações de
trabalho caracterizadas por maus-tratos, faltas de pagamento e de
condições mínimas de realização do trabalho, proibição de abandonarem
o local pelo não-oferecimento de condução e retenção de documentos,
principalmente.
Continuar lucrando é a meta da DEBRASA, longe, se possível,
da atenção das objetivas da imprensa e dos repórteres;
fundamentalmente da escrita, que crescia significativamente (ARCE,
1997). A crise vinha se fortalecendo (CORREIO DO ESTADO,
5/2/1992) e era preciso medidas drásticas para remediá-la.
A década de 1990 ia-se delineando incerta não apenas ao setor
sucro-alcooleiro como a toda economia, que sentia a crise que se
arrastava desde os anos 1970 e que, aprofundando-se, após lenitivos
lampejos de crescimentos intermitentes, ampliava os índices de
desemprego, como um processo contínuo agravado, sobretudo, no

64
Essa expressão fora utilizada antes, até por membros do governo: em 4 de dezembro
de 1968 o então ministro da Justiça, Gama e Silva, em entrevista a um jornal, assim se
referia às condições de trabalho impostas aos trabalhadores rurais contratados por
empresários de vários cantos do país, taxando-as de “escravidão branca” (JORNAL
DO BRASIL, 4/12/1968 apud FIGUEIRA, 1999, p. 176).
fechamento da década e início do novo milênio (OPINIÃO
SOCIALISTA, 4/2/2000 a 19/2/2000), com o conseqüente lenimento dos
lucros a muitos setores econômicos, encarecimento do custo de vida,
readestramento do trabalhador, intensificação das lutas intracorporativas
e simultâneo esfacelamento do aparato sindical, mais míope às
estratégias de emancipação do ser que trabalha (THOMAZ JR., 2000a,
2000b), entre outras reviravoltas na lógica metabólica do capital e em
sua relação com a fonte do valor (o trabalho humano: substância e
medida dos valores65), cujas taxas médias invariavelmente tendem a se
reduzir quando das crises (COGGIOLA, 1998), repercutindo em
políticas não muito compensatórias por parte da base governamental, que
optou por seguir nos anos 1990 os ditames neoliberais na pessoa de um
Collor: o baluarte e inspirador dum personagem mais competente para o
desmonte dos direitos trabalhistas e desnacionalização de setores
produtivos e infra-estruturais do país, nada menos do que FHC (pessoa
certamente mais invejada por seus feitos do que os precursores das
políticas neoliberais no ocidente, como uma Thatcher na Inglaterra ou
um Reagan nos EUA, devido à velocidade e à magnitude que
alcançavam em curto período de tempo, nos seus dois “reinados”
consecutivos).
Nesse contexto de realização do trabalho, de polissemização da
fonte produtora de valor, ou seja, de multiplicação diferencial do ato
laborativo e dos mecanismos de sua realização, enlaçado à comunhão
funcional dos mecanismos preexistentes de realização do valor, urdidos à
reprodutibilidade macroescalar do capital, assim como dos novos
mecanismos de gestação do novo valor (auto-reproduzido sem nexo

65
Multiplicam-se as discussões sobre as transformações no mundo do trabalho, levada
a cabo pelas modificações nos mecanismos de realização do valor e todas as
implicações redundantes ao chão da fábrica, às organizações dos trabalhadores e, de
maneira geral, em toda a sociedade abarcada pela lógica econômica que extravasa os
muros das unidades produtoras de mercadorias, especialmente a partir da III Revolução
Tecnológica. Ver: ANTUNES, 1995, 2000; BIHR, 1998; GOUNET, 1999; HARVEY,
1993; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001; THOMAZ JR., 2000a, 2000b; MOREIRA,
1995, 2000; CAVALHEIRO, Opinião Socialista, 4/2/2000 a 19/2/2000; ALVES, 1999,
2000.
“aparente” com a base social produtiva, senão com o simulacro
imagético da engenharia política e do marketing externamente criados66),
é que se insere a escravidão humana, parcialmente assalariada ou não-
assalariada, em especial a indígena.
É no padrão de acumulação global do capital que as
multifacetadas situações de produção se ajuntam e, essencialmente,
conseguem se reproduzir. Por que territorialmente mais próxima e menos
experiente política e culturalmente no que atine às regras contratuais e às
artimanhas do jogo político da atmosfera capitalista, mesmo que
informais no plano da jurisdição legal, intensificar o uso da força de
trabalho índia foi a ação buscada por boa parte das empresas de vários
setores econômicos no Mato Grosso do Sul (CORREIO DO ESTADO,
22/5/1992, 22/9/1994, 22/12/1994).

66
Reforçamos aqui a reflexão sobre o poder que tem a imagem no mundo
contemporâneo, tal como Harvey, Castoriadis, Jameson, M. Santos, Gorender e outros
que se debruçaram sobre o assunto apontaram – cada qual a seu modo. A indagação é
se a mesma imagem, num mundo que os pós-modernos caracterizam como imerso em
múltiplos simulacros, não sustenta a especulação que dá origem ao novo valor,
“autônomo”; se ele não é derivativo, entre muitas outras combinações, das imagens que
várias regiões (ou as classes que as regem) se esforçam por criar na economia,
buscando atrair investimentos; logicamente que também amparada em certa
“estabilidade” econômica e potencialidade infra-estrutural, porém, multiplicadas
exponencialmente em relação a essa. A economia contemporânea reproduz-se coligada
à imagem criada de que o acumular sem produzir é mais seguro e rentável. Mas, até
quando? Não à toa vários personagens tentarem sempre que possível a aprovação de
medida de lançamento de imposto sobre o capital especulativo que viaja pelos países
para sugar juros, tentando amarrá-lo, de maneira consistente, à base produtiva, para a
geração duma riqueza empírica que seja capaz de (re)aquecer a economia mundial. Mas
parece que a idéia abstrata de riqueza autoparida descolou-se da materialidade,
pleiteando continuar a se reproduzir nas entranhas dos sistemas computadorizados e
informatizados. Ainda assim, já se sente que nem mesmo esses setores, denominados
de nova economia, demonstram ser os salva-vidas da economia, de superação de sua
crise; os que acreditavam ser um setor ileso às oscilações do mercado, o período
compreendido entre o fim dos anos 1990 e início do novo milênio comprovou não
existir nada seguro de antemão na economia capitalista, pois eram os títulos da Nasdaq
os que mais ficavam no vermelho, abaixo dos da economia clássica (Dow Jones). A
chamada “nova economia” já capengava, enquanto a “velha” há muito definha.
Menos custosos e pouco maliciosos, os índios eram vistos como
mais manobráveis; seres classicamente desprestigiados, desalojados,
discriminados socialmente; tidos como naturalmente inferiores, pobres e
“acostumados” com desconfortos seculares.
Os capitalistas viam tal estratégia como o fim dos transtornos;
sem embargo, como consegui-la senão com a participação da Fundação
Nacional de Apoio ao Índio (FUNAI): aliada importante da burguesia à
(quando) escravidão assalariada.
Numa ponta, tem-se a tétrica situação dos índios nas Reservas,
sobretudo as de Dourados (Horta Barbosa) e Amambaí (Benjamin
Constant), as que mais recorre a DEBRASA; sendo a primeira,
especialmente, a mais caracterizada por precárias condições de
subsistência, com aumento da miséria, fome e desnutrição, além de
arrendamento ilegal de terras a brancos ou índios “fazendeiros” da
própria aldeia67, presenciando-se doenças, prostituição, conflitos de
geração, desrespeito, agressão de capitães (lideranças indígenas que
seguem a risca as ordens do “coronel” administrador do Posto Indígena –
PIN), pressão familiar, aumentos do desespero e dos suicídios, dos
estupros68, entre outras desgraças. Na outra extremidade, punha-se o
estratagema capitalista de suplantação dos problemas pela via única de
sua inserção no universo do trabalho abstrato, que só contribuiu para
piorar a situação.

67
Essa prática crescia velozmente na Reserva Horta Barbosa. A concentração de terras
(ilegal na jurisdição oficial e reproduzida pelo ex-oficial da Polícia Federal que a
administrava, o Sr. Alexandre) aumentava a miséria dos índios, enquanto uma pequena
facção gozava de condições econômicas que permitia elegê-la ao status de
“fazendeiros” indígenas; enriqueciam-se, pois, por tais terras serem destituídas da
obrigação de pagamento de impostos, fazendo aumentar o seu arrendamento para os
não-índios forasteiros. Os índios não possuíam formas de cultivá-la, já que a FUNAI
não lhes prestava assistência. A saída do arrendamento enriquecia os poucos que
possuíam meios de cultivá-la, plantando grãos e estabelecendo a monocultura.
68
Uma das formas de estupro mais conhecidas na Reserva Horta Barbosa era a feira:
cerca de 20 rapazes, reunidos em bando, perseguiam e cercavam uma índia pelas
plantações da reserva, sendo que a ordem de chegada a mesma estabelecia a seqüência
no abuso de seu corpo (MEIHY, 1991).
A falta de subsídios e de vontade política da FUNAI para que os
índios sejam “autônomos” ou auto-suficientes em relação à sociedade
exógena (seja lhes fornecendo subsídios financeiros e ou implementos
agrícolas) é o veio pelo qual se buscava enfraquecer as bases em que
pudessem se amparar. Enfim, esquivando-se e promovendo a inserção
dos índios o quanto antes na sociedade nacional, como um cidadão como
os demais (como defendia o administrador do PIN de Dourados à época).
Aliás, um índio da Reserva Horta Barbosa, trabalhador havia 8
anos na DEBRASA, dizia, em entrevista, que apenas uma vez fora um
representante da FUNAI fazer-lhes visita, saber como estavam,
incluindo-se a fase mais preocupante, quando as denúncias de escravidão
escandalizavam a região e o país: “Eu trabalho aqui há 8 anos e só veio
uma vez, viu nós e foi embora...”.
O “coronel” da Reserva – como os índios identificavam o
administrador – buscava de todas as formas lucrar com a tutela dos
índios; recebia por alugar sua força de trabalho para capitalistas,
inclusive dos que registravam a carteira de trabalho e que, pela
jurisdição, deveriam perder os direitos de tutelado; provavelmente
também lucrava com a permissão ao cultivo das terras da aldeia por
outros que não os índios; ganhava atenção, prestígio e recursos com os
ludâmbulos que visitavam aldeias como a de Dourados (a maior do
Brasil em termos populacionais). Estranho não seria se lucrasse com a
permissão concedida para alguns comerciantes venderem bebidas
alcoólicas nas casas de comércio internas a Reserva; chegou mesmo a
alegar que os índios as buscavam na cidade de Dourados e que era difícil
impedir seu tráfego pela rodovia que a corta a Reserva – uma total
inverdade: era bastante facilitado o acesso de bebidas dentro da mesma,
e mais improvável é o fato do diretor do PIN não ter-se dado conta disso;
em breve lucraria também com a construção erguida pelos índios ao lado
do PIN, onde se apresentariam danças e se realizaria comércio com os
vestígios culturais remanescentes (confecção de colares, arcos e objetos
típicos, que já contavam com materiais não coletados de seu meio, vez
que índios iam sempre à cidade de Dourados comprar elementos
plásticos brilhosos com os quais adicionam as sementes das árvores nos
colares, e mesmo as sementes que não correspondiam ao seu
ecossistema).
Metamorfoseava-se a aldeia douradense quase que num
zoológico; não esporádica era a visita de ludâmbulos (americanos e
alemães, sobretudo), a inspecionar dentes e corpos de índios como o de
animais exóticos, homens pré-históricos. Como era de se esperar: o
administrador da aldeia, que lucrava com esse estado de calamidade,
argumentava serem esses os meios disponíveis para arrecadar recursos
que permitiriam o auto-sustento da Reserva, por serem escassos os
enviados pela União. Esse senhor chegou a tentar manipular os índios no
dia do qüingentésimo aniversário da chegada cabralina: pretendeu levá-
los em massa à praça da cidade de Dourados para apresentarem
encenações e danças típicas e demonstrarem uma “mesma” visão de
repúdio ante os festejos ideológicos disseminados no país. Não perdeu
tempo: tentou fazer do episódio histórico uma chance para criar a boa
imagem; desviando para os aparelhos de Estado a culpa pelo que não
podia ser feito de melhor69, passando a mensagem de que, apesar de
tudo, sua militância pessoal era visivelmente incansável.
Perspectivava, assim, ludibriar os índios e a sociedade regional
com uma suposta dedicação; propagandeando a reserva para atrair
turistas e lucrar com seus “dólares”. Não possuía qualquer preocupação
humana, nem os via como humanos; tratava-os como animais, agredindo
quem quer que fosse, sem hesitação.
Os índios já haviam se apercebido disso; estavam longe de terem
uma relação cordial; a maioria reconhecera a relação que mantinham:

69
Não se sabe se os recursos destinados à época à manutenção da aldeia eram tão
irrisórios, como defendeu o diretor do PIN de Dourados em abril de 2000. Algumas
informações coletadas em entrevistas, com pesquisadores do CEUD/MS, que se
dedicavam à temática indígena, remetiam as cifras a um passado não muito distante a
ordem dos R$ 60 mil. Obviamente que não é muito se se pretendia dar aos índios um
pouco do muito que merecem, mas para uma administração honesta muito poderia ser
feito com a quantia: no mínimo se evitar a fome. Se as cifras recrudesceram não se
soube; se sabe que a miséria, a inoperância e exploração dos tutores aumentaram bem
mais que os recursos financeiros enviados e do que a desvalorização da moeda nacional
presenciava.
recusando-se a participar dos atos da cidade, se negando às danças na
entrada da aldeia após o feito citadino, horas depois, em meio à rodovia,
por mais que seu diretor os tentasse persuadir.
A tensão entre direção e índios era perceptível. O respeito se
(con)fundia ao terror. “Capitães”estavam a espreitar e delatar os
“traidores”; o castigo não tardaria.
Aquele que desafiasse o “coronel”, ousando diminuir sua
responsabilidade, infringindo a hierarquia e riscando sua áurea vaidade,
mesmo tentando conseguir benefícios de pessoas ou organizações em
Dourados, era imediatamente obrigado a deixar temporária e até
definitivamente a aldeia, se não conseguissem merecer a confiança do
“coronel”; como era a situação em fins de abril de 2000, por exemplo,
duma família de terenas que declarou que seu chefe de família fora
afastado da aldeia pelo diretor do PIN, por ter atuado em prol da causa
índia junto aos organismos douradenses às “escondidas”; para o diretor,
um inadmissível desrespeito.
O capital adentrava mais violentamente as aldeias; regia suas
dinâmicas com tamanha brutalidade que muitos as abandonavam na
tentativa de encontrar lugares em que ele se reproduzisse de maneira
menos selvagem, a ponto de não ameaçar a existência.
Empregar-se; acumular fora o dinheiro que pudesse mantê-los se
alimentando na Reserva: assim é que começava a romaria às carvoarias,
empresas ervateiras e sucro-alcooleiras em especial. O diretor do PIN
estimulava essa prática; seus bolsos agradeciam.

2. Assalariando a existência e mercantilizando o ser: a FUNAI em


cena
Dinheiro é um pedaço de papel (A.
ANTUNES e J. BENJOR, Dinheiro).

De instituição reservada ao apoio ao índio, a FUNAI adotava


uma tática aparentemente inquestionável: a inserção funcional do índio
como concidadão nacional pela via da subsunção de sua substância vital,
o trabalho, princípio da vida e da riqueza.
Poucas foram as vezes em que algum administrador negou ser
essa a sua função; poucos os dirigentes que defendiam ardorosamente a
autonomia das nações índias e dos seus territórios; o representante do
PIN douradense não fugia à regra ao integrá-los ao mercado de trabalho,
tornando-os “autônomos”, independentes (leia-se submissos); para
alcançar isso, deu-se prosseguimento à prática reproduzida desde tempos
imemoriais: integrá-los ao mercado de trabalho como alternativa à
cidadania prometida.
Como recorrência da natureza cultural, colonial e exploradora,
resultado da alienação dos proletários, segmentações social e cultural do
benefício unilateral, a FUNAI, representada pela referida pessoa, inseria-
os em troca de vantagens econômicas (Depois surgem propostas de
eliminação da FUNAI: novamente a estória da mudança de siglas, de SPI
a FUNAI e sabe-se lá o que se inventaria).
A Reserva se transformara num grande negócio; um depósito de
força de trabalho disposto a enriquecer o “coronel” e seus capitalistas
consorciados.
A FUNAI pagava por seus serviços ao ceder o aluguel pelos
braços indígenas: algo na ordem de R$ 15,00/dia70; enquanto que para

70
Destacamos que esses números remetem ao ano de 1999, momento em que o Real
encontrava-se com quotas praticamente equivalentes ao Dólar, antes da desvalorização
e encarecimento do custo de vida. Não seria inadmissível a suposição de que se elevara
o preço pela disposição da força de trabalho indígena para operações externas à
Reserva, seja nas carvoarias ou destilarias, onde eram mais requeridas. Também se sabe
que boa parte ou a totalidade do dinheiro não era revertida aos aldeados e que era
embolsada pelo tutor do PIN; soubemos, via entrevistas, que chegava a ocorrer doações
de cabeças de gado à Reserva de Dourados e que as mesmas ficavam restritas ao alto
escalão dos administradores da aldeia e alguns convidados, em que a presença do índio
era representada pelos fiéis “colaboradores” (capitães) do funcionário da FUNAI, que
ainda permitia que alguns destes pudessem comprar a água-ardente que os entorpecia.
A aldeia já não era mais um local totalmente à parte, de preservação dos valores do
povo índio nos moldes tradicionais; estava contaminada internamente pela lógica
hierarquizante de individualização social dos sujeitos. Quanto menos afeito o diretor do
PIN a algum índio, maiores as chances de perseguição, desprestígio, expulsão e
violência física.
muitas famílias índias se prometiam possibilidades, para elas
miraculosas, de uma nova vida.
No que concernia ao contrato de trabalho na DEBRASA,
apresentava-se “admissível”; nada que assustasse de imediato os que
viviam em mais profunda miséria71; afinal, a idéia do trabalho fabricador
de mercadorias já fazia parte de seu quadro de referência mental,
tornando-se meio de conseguimento da existência para determinada
parcela de índios. Desta feita, pelas cláusulas contratuais da locação de
serviços da DEBRASA, estipulava-se aos trabalhadores rurais
contratados (locatários indígenas) as incumbências nas obrigações de
capina, corte e plantio da cana, como qualquer tarefa extra-oficial
exigida pelo contratante empresarial (locador).
A empresa ia se aproximando do seu objetivo: contenção de
custos e equilíbrio econômico-financeiro.
A mediação foram os índios e o fim projetado era a
modernização técnico-operacional: compra de máquinas colheitadeiras72,
extensão do projeto de irrigação, dentre outras inovações,
informacionais, por exemplo; readequando as forças produtivas pela via
da superexploração da força de trabalho e redução dos custos operativos.
Mas a inserção do índio ao universo de trabalho abstrato não era
invenção específica da década de 1990 no Mato Grosso do Sul, nem
mesmo na DEBRASA, que já a empregava nos anos de 1980 juntamente

71
A Reserva Horta Barbosa, que voltaremos a especificar mais adiante, não era a única
a apresentar esse quadro de miséria. Uma sugestiva matéria do jornal Correio do Estado
citou as mortes por desnutrição, maiormente de crianças, nas reservas da região de
Dourados: as aldeias Panambi e Panambizinho. Ver: “Misérias nas aldeias supera ao
Nordeste. Fome e desnutrição atingem cerca de 900 índios guaranis-kaiowás nas
aldeias Panambi e Panambizinho, principalmente as crianças”
(www.correiodoestado.com.br).
72
Até 1998 a DEBRASA utilizada 2 máquinas colheitadeiras para o corte da cana-de-
açúcar. Perto do fim de 1999 contava com 10 máquinas, cada uma com preço médio
estipulado em R$ 800 mil. Incríveis o acúmulo e o investimento duma empresa de porte
médio. Os índios e nordestinos estavam cumprindo com a sua parte para tão
avolumados capitais. E dizia-se que até o ano de 2001 as duas máquinas ainda
pretendidas cumpririam a meta de mecanização total da colheita.
com a força de trabalho de “brancos” de outras regiões e, muito
provavelmente, já o fazia desde sua fundação73.
Não obstante, a exploração que passou a empreender foi de uma
rudeza absoluta para um momento da história que se roga “moderno” e
por uma sociedade dita “civilizada”; na verdade, passado-presente-futuro
coexistem funcionalmente; muito do que pertenceu ou daquilo que era
considerada antiguidade faz-se modernizado, assim como a modernidade
possui muito de “antiquado”.
Consta como superexploração; lembrando aqui que o que
caracteriza o ato da exploração do trabalhador não é somente o nível das
condições de trabalho existentes mas a diferença estabelecida entre
aquilo que se produz socialmente (sob a forma de mercadoria) e aquilo
que se recebe (em forma monetarizada ou não); o que nos remete à
potencialidade técnica atingida espacialmente pela sociedade. Quanto
maior o abismo entre a riqueza criada e a distância do fabricador,
maiores os índices de exploração da mais-valia, de alienação de sua
energia vital, física e mental.
Daí o motivo de prefixarmos e aperfeiçoarmos a categoria
exploração para superexploração, pois a primeira se dá também em
países ditos centrais, ainda que as populações fruam de mais vantagens e
direitos conseguidos pela luta ao longo do tempo; o que não significa
dizer que não sejam exploradas, simplesmente sinaliza ao fato de ser
menos expressiva a exploração que em outros locais – como ocorre com
os países que possuem uma trajetória de superexploração e escravidão,
balizadas quando ainda da colonização e da qual não conseguem se

73
Há uma delimitação temporal que sugere que a DEBRASA voltou somente no
período posterior a 1990 a utilizar única e exclusivamente o montante de trabalhadores
indígenas (100% da mão-de-obra assalariada); afirmativa que partiu de seu diretor,
João Francisco das Chagas Neto. Todavia, existe farto material jornalístico, referente
ao período pós-90, asseverando que aos índios se mesclavam outros trabalhadores
temporários para contratos de 2 meses (em especial, migrantes nordestinos) (O
ESTADO DE SÃO PAULO, 16/9/1993; FOLHA DE SÃO PAULO, 16/9/1993); fato
que também pudemos comprovar em pesquisas de campo realizadas no final de 1999 e
meados do ano 2000.
livrar, ou seja, onde o capitalismo se faz mais bestial e desenfreado e a
organização político-combativa dos trabalhadores menos consolidada.
Feitos os esclarecimentos, fica mais fácil concordarmos com o
fato de serem as relações de trabalho estabelecidas entre índios e
empresas como designativas de superexploração, seja com o que se
chama de “semi-escravidão”, de precária remuneração, ou de ausência
total de pagamento ao trabalhador.
Então, a redução dos custos apontava para os grupos indígenas.
A menor distância, o favorecimento dos contatos sinalizava às Reservas
de Amambaí e de Dourados, ambas em território sulmatogrossense;
primeira e terceira colocadas em contingente de braços e onde a miséria
marcava sólida presença.
Fontes de mão-de-obra das quais haveriam de jorrar os lucros.
Lugares agrilhoados à lógica do capital, à rede econômica que se
estendia ao plano nacional, devido às ramificações mercantis referentes
ao processamento e distribuição de seus derivados no mercado de
consumo que se desdobrava interna e externamente às fronteiras do país,
uma vez que a DEBRASA, no final dos anos 1990, possuía como
escoadouro de seus destilados os municípios de Ourinhos e Assis no
Estado de São Paulo, e Cuiabá no Mato Grosso; a rota internacional era
o Rio Paraná, ganhando provavelmente países do Mercosul.
Guaranis, terenas e kaiowás: as etnias presentes nos cativeiros de
mão-de-obra das aldeias que se postavam à exploração capitalista.
Os terenas, mais bem adaptados ao mundo “externo”,
mostravam-se mais afeitos com as regras do jogo do trabalhar-escutar. A
subjetividade de seu ser, a representação mental que (lhes) construíam
de si, do meio e do Outro possuíam ingredientes dominantes; foram mais
cooptados (assimilados) pelo sistema, a ponto de negarem suas origens,
se diferenciarem e se distanciarem dos guaranis, enrijecendo diferenças
culturais, coibindo e dilacerando possíveis fusões político-sociais;
embora tenham ocorrido, nas comemorações quincentenárias terenas,
muitas danças, atividades esportivas e tentativa de manutenção de
elementos culturais, verificáveis, por exemplo, nas roupas típicas que
vestiam; parte expressiva dos índios (sobretudo os mais jovens), apenas
assistia passiva e à distância o que se passava – por vezes, quando
perguntados aos jovens o porquê do isolamento aos festejos, as respostas
demonstravam receio e desdém para com os caracteres culturais de sua
gente.
A tentativa de preservação do passado, principalmente por
aqueles de idades mais avançadas, encontravam a resistência duma
juventude confusa e iludida com a possibilidade de integrar e desfrutar
do imaginário e da cultura da sociedade do mercado. Isso era o que se
passa principalmente com muitos dos terenas (particularmente os que
estavam em idade escolar e que tinham de deslocar-se a Dourados, por
exemplo).
Característica presente nas duas aldeias da Reserva, tanto a
Jaguapirú dos terenas como a Bororo dos Guarani e Kaiowá (essa
segregação étnico-territorial não era absoluta: alguns índios terenas
habitavam o lado Bororo e os Guarani, o lado Jaguapirú); conquanto as
tentativas de preservação da cultura tivessem uma preocupação maior na
aldeia Bororo. Algumas construções típicas dos Guarani confirmavam
esse fato paisagisticamente, embora as residências de madeira fossem a
regra na Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa, além de algumas de
alvenaria, organizadas pelo traçar retilíneo das ruas – o que serve apenas
como um possível indicativo das mudanças, insuficiente para qualquer
conclusão precipitada, a respeito da profundidade e alcance de tais
assimilações em seu universo cultural.
As históricas oposições étnico-culturais dos grupos indígenas
assumiam a contradição inerente ao modo de produção capitalista,
expressa na fragmentação interna ao proletariado, nas clivagens político-
econômicas da sociedade hegemônica, como a que pudemos facilmente
perceber em nível de representação político-sindical.
O diferenciar possuía íntima relação com a capacidade de se
assimilar a cultura e as normas da economia de mercado e, dessa forma,
principalmente de nelas se sobressair, para muitos que experienciavam
essas mudanças. O ser melhor ou mais capacitado perpassava cada vez
mais esse desafio; e os terenas vinham até o momento se mostrando mais
aptos ao destaque que as outras etnias quando o assunto era competir e
acumular terras e posições sociais, penetrando se necessário o mundo da
educação formal exógena – pelo menos é o que era evidente na Reserva
Francisco Horta Barbosa. A diferença interétnica deixava de ser aquela
cultura tradicional para ser tipificada pelas clivagens do regime do
capital.
Tentava-se assim, suprimir no plano cultural toda a
sociodiversidade caracterizadora das populações brasileiras e mundiais
para que o capital pudesse melhor operar a sua forma cultural específica
de tratamento jurídico-legal.
Difícil aos índios (terenas, principalmente) se aperceberem disso
e ou, em se apercebendo, de se convencerem em optar por um
comportamento que não o que assumiam; priorizavam a satisfação das
necessidades imediatas, sem capacidade de se enxergarem no
movimento em que todos estavam imersos, por mais que acreditassem
em posições diferenciadas.
Os capitalistas, sobretudo os da DEBRASA, estabeleciam a
hegemonia e congregavam o quartel do operariado rural.
O quadro de trabalhadores rurais constituía-se excepcionalmente
de homens. Empregar índios tinha suas compensações quando
computados os ganhos no final do processo laborativo, apesar de sua
produtividade ser inferior, se comparada aos trabalhadores não-indígenas
(os índios faziam várias paradas, tomando tereré e fazendo rodas de
conversas, em vários instantes do dia).
A produtividade média de 7,2 ton./dia desse gênero, além de
superior à da mão-de-obra feminina índia, permitia à empresa evitar
imprevistos suscetíveis àquela força de trabalho, como gravidez,
estupros, menor resistência e adaptabilidade ao trabalho no canavial
(bastante penoso aos próprios homens); se por acaso a produtividade
fosse ainda menor por pessoa empregada, necessário era se calcular uma
remuneração igualmente menor, que compensasse a relação produção-
vendagem-lucravidade com os trabalhadores. E é nesse caso que os
índios menores de idade mais sofriam, fosse na primeira ou segunda
metade da década de 1990 (CORREIO DO ESTADO, 21/7/1994).
Desditosos com o futuro a lhes ser reservado em sua permanência
na aldeia e com objetivos concretos de satisfação de seus sonhos de
consumo fora dela, índios de 14, 15 e 16 anos (às vezes, até menos)
deixavam a família, a aldeia e os amigos em busca de algo mais, algo de
melhor; buscavam o emprego que satisfizesse seus sonhos, sua família,
lhe permitindo conhecer outros lugares e outras pessoas; em busca de
algo que preenchesse um vazio ao qual desconheciam origem e que
crescia em seu ser.
Partiam...
Já na empresa, os indígenas menores deveriam trabalhar
obrigatoriamente 8 horas diárias, no corte da cana e na coleta dos
fragmentos ou restolhos deixados pelo terreno; recebiam, por isso, a
denominação de “bituqueiros”. Muito embora seja difícil atribuir a
imaturidade físico-biológica deles através da menoridade etária da ótica
jurídica da sociedade hegemônica, tendo em vista que os índios em seus
14 e 16 anos já contraíam conúbio em proporções expressivas nas
reservas; sendo freqüente o número de divórcios e até a existência de
paternidade. O fato, inelutável, é que seja qual fosse o estado de
maturidade psicológica e de idade mental que possuíam, a pressão era
maior; como também era àqueles considerados de meia idade, índios ou
não.
De nada importava; a introdução do índio decorria dos cálculos
aritméticos e, em menor proporção, da proposta estratégica de
“esquecimento” popular e fuga das objetivas e das páginas da mídia
escrita e dos noticiários da imprensa.
Com isso, a rede estava quase totalmente tecida. Os lugares e os
sujeitos estavam sendo coligados, tornando-se interdependentes. O raio
de influência irradiava-se da empresa; atingia, também, a FUNAI e os
índios das aldeias; conseguia o aval do cacique e se projetava aos
“cabeçantes” e “gatos” (índios eleitos intermediários entre a empresa e
os aldeados).
Os “gatos” ou cabeçantes passavam a ser uma das principais
figuras na coordenação do empreendimento; cabia-lhes a defesa dos
interesses dos locadores, sentir-se importante e fiel à mesma,
prontificando-se em assumir, se e quando necessário, uma posição de
adversidade para com os “semelhantes” aldeados. A aliança de índios
dentro da aldeia (com o dirigente da FUNAI) ou fora dela (em empresas
como a DEBRASA), era o sonho de todo aquele que não media esforço e
popularidade para deixar de ser um miserável, ou pelo menos de passar a
ter modestos privilégios; não havia crise moral e de consciência que
impedisse a mudança de lado, a traição e a denúncia, para o gáudio dos
poderosos chefões do interior. Aqui, a tirania se afirmava projeto
componente da micrológica cotidiana do social índio.
A tirania cumpria o papel lhe imposto pela classe dominante
fundamental, fazendo os sujeitos se digladiarem na lei capitalista de
sobrevivência das espécies.
Destroçada muito da identidade de sua nação étnica, de sua raiz
territorial, de seu espírito comunal, cultural, em troca de posição superior
da hierarquia da gestão da empresa e na remuneração de seus serviços.
Uma tática que aparentava sobrevir tipicamente do paradigma toyotista
de cooptação do operário e sua oposição aos demais, mas que, sob
muitos aspectos, é muito mais antiga; secular, milenar na verdade74.
O toyotismo só veio a firmar enquanto regra a necessidade de
integração total do trabalhador às pretensões burguesas, com ares de co-
participação democrática aos que compunham a “família” da empresa-
casa; extensão da escravidão ao universo subjetivo, por meio do
adestramento e domínio mais sistemático dos pensamentos.
Pelos cuidados com a vigília dos trabalhadores, o controle da
conduta e a denúncia de movimentos de agitações grevistas, ou de seu
desempenho no trabalho, os cabeçantes não-índios receberiam 15% do

74
Não é difícil de se encontrar na literatura artifícios utilizados pelos capitalistas para
opor os trabalhadores, especificamente por meio da diferenciação de seus ganhos, sua
hierarquia funcional e condições materiais de reprodução social, até mesmo entre os
sindicatos. Para uma consulta inicial sugerimos: Bihr, 1998; Hobsbawm, 1987; Ribeiro;
Thomaz Jr., 2001. Mészáros (1993) já demonstrava a arte da manipulação discursiva
entre os gregos, no século IV a.C.; apontando o artifício ideológico da retórica que
objetivava, pela obediência das partes, manter a unidade orgânica do corpo social, com
a harmonia multifuncional das células e órgãos sociais.
salário dos índios; se fossem índios, a tendência seria de uma
percentagem menor.
Aí as vantagens para esse que era o índio indicado pelo diretor do
PIN e pela empresa e que, por isso, mais tinha assegurado o “salário”; os
outros podiam até ficar sem recebê-lo. Não obstante, a esmola do
cabeçante era necessária para desagregar os trabalhadores índios e gerar
uma clivagem político-organizacional. A DEBRASA sabia dessa
importância e, em época de grande pressão sócio-institucional, contava
com o apoio deles para congregar os índios em torno da causa
empresarial, fazendo-os assumir uma contraditoriedade a respeito dos
registros das carteiras de trabalho (VALENTE, Folha de São Paulo,
27/12/1998).
Para o ciclo contratual se fechar, alguns detalhes. A empresa
ainda cedia uma quantia de dinheiro para a família do índio na aldeia em
fins da década de 1990, uns R$ 80,00, antes que ele partisse para a
empresa; espécie de adiantamento a ser ressarcido quando de seu
primeiro dos dois “salários” – se é que viria a recebê-lo! (O que,
posteriormente, em princípios de 2000 mais precisamente, deixou de
fazer, conforme relatos fornecidos pelos próprios índios). Um
procedimento, na verdade, típico da “escravidão por dívida”, tão relatada
por diversos estudiosos brasileiros.
A diretoria da DEBRASA também argumentava que os salários
mensais seriam remetidos às famílias dos índios na aldeia, com o próprio
consentimento do contratado; porém, como essa mediação nem sempre
era firmada, por depender do “cabeçante” para levá-la pessoalmente, o
dinheiro que em muito ajudaria os familiares via de regra não chegava;
ficava com os índios, com os gastos arquitetados pela empresa: como
pagamento das dívidas “assumidas”; ficava pelos bares e copos de
aguardente, consumidos para afastar a dor das saudades e da falta de
tudo, principalmente da esperança e do amor à vida.
Qual a função do álcool para o índio? Escapatória e ou ultimato à
vida que dizem ser valiosa, e que, contudo, a ele se confirmava tragédia
cotidiana. Cela invisível que o prendia a relações desumanas
normalizadas e historicamente arraigadas nas mentes fabricadas como
típicas de uma pseudo-sensatez, mas no íntimo do ser seu, renegadas
instintivamente, ou pela memória como não-contempladoras de seu
desejo de o mais simples e realizado poder tornar o seu Ser? Ou é o
álcool o elo transitório de seu ser atual histórico hegemonicamente
“fabricado” com a memória instintivo-perceptiva de um Eu-Perdido e
inquieto: o pedágio de passagem ou o trânsito a uma fase diferente de
relacionar, viver, sentir?
Seria a tentativa esta de questionamento e ruptura com o dito
normal e reencontro com o seu “eu-individual” (síntese particular de seu
ethos) e coletivamente socializado, que as camadas hegemônicas
abafavam com o intento de a personalidade capitalística ditatoriamente
instituir. Os índios tentavam se reencontrar. O álcool era um dos elos
possíveis, e em meio ao canavial talvez o único meio sensitivo de
redescoberta de seu eu soterrado pelos burgueses, as sanguessugas que
moviam a sua existência com o roubo de sangue alheio.
É proibido o minúsculo sentir descontrolado. Se o álcool faz
brotar sentimentos não permitidos, proibi-o. O que quer a lógica posta é
o sentir compassado, controlado, cadenciado. Qualquer desafio se mostra
inoportuno e impertinente. Rotulado são pelos burgueses como os
malditos estimulantes a reativar o sentir descontrolado: potencialidade ao
refletir indignado, ou então, diminuição no grau de comparecimento e
produtividade do proletariado rural, que seja, pelas marcas dos facões em
seu corpo. Para sentimentos não permitidos, redescobertas do que se
deve estar encoberto, punição é a solução. Isenção: a imposição.
Agora, caminhemos para os fatos empíricos mais visíveis, àquilo
que se põe como vetores do alcoolismo e da mortandade.
Comecemos pelo contrato “oficial”. Sabemos que abarcava,
geralmente, de 60 a 80 dias e incluía assistência médico-hospitalar, entre
outros “benefícios”, como o direito dos índios retornarem à aldeia em
seus dias de festa para comemorações típicas (como o Dia dos Índios); o
que, segundo os próprios índios, nunca ocorria. Além disso, dizia ainda o
dirigente da empresa que a média da remuneração seria de dois salários
mensais, algo próximo a R$ 200,00 (na época, aproximadamente U$
200,00), com os devidos descontos com alimentação, moradia,
transporte, remédios para doenças e acidentes provocados pelo trabalho
(dores de cabeça com a aplicação do veneno, sem qualquer equipamento
de segurança, e as suturas nos cortes provocados pelos facões); podendo
até superar esse nível, o que dependeria exclusivamente de seu máximo
envolvimento e dedicação nas obrigações (sic!).
Belo e colorido quadro esse o pintado pela administração da
empresa em sua agradável sala diretora, não fosse os fatos contraditórios
em meio ao canavial a demonstrarem o quão apócrifas eram suas
palavras.
Necessário faz-se entender os nós da cana, diria Thomaz Jr.
(1996).
Ilhado e impossibilitado de perpetuação de seus costumes, dado o
cansaço resultante das longas jornadas de trabalho – que superavam de
longe as ditas 8 horas diárias –, os índios só poderiam retornar para a
aldeia quando cumprissem com o que se comprometeram a fazer. De
nada importava se a empresa omitia e não cumpria a sua parte; no jogo
de forças, eram os índios que tinham que executar o que estava acordado
no contrato e também o que o extrapolava.
Simples proletários; classe subalterna; dispunham apenas de sua
força de trabalho para vender; os capitalistas dominavam a situação,
criavam regras e as mudavam quando melhor entendessem.
Mal alojados, mal alimentados, mal tratados e mal trapidos.
Obrigados a arcar com gastos superfaturados pela empresa.
Retornando à aldeia, permaneceriam por cerca de 15 dias e
renovariam o contrato (com a FUNAI e a empresa) para um novo
período, também de 60 a 80 dias, caso quisessem ou se outra proposta de
emprego não possuíssem.
Optando por ir, recomeçava a labuta, interrompida somente a
mando da empresa, caso não estivesse cumprindo com rigor suas
funções e se estivesse gerando algum tipo de “problema” (greves e
tumultos); momento em que o dispensava sem qualquer remuneração
extra, relacionada a direitos com indenização trabalhista; inclusive
porque era contratado temporariamente.
Acertar o pagamento até o dia de trabalho é o que muito a
empresa fazia no caso de dispensa, descontando obviamente as
“despesas”.
Assim, deixava a empresa, fosse o motivo: a) a superexploração,
b) péssima remuneração, c) precária alimentação (muitas vezes as sobras
das refeições do restaurante dos trabalhadores da planta fabril, que
chegava estragada em meio ao canavial), d) ou roubo na tonelagem
colhida, e) nos gastos absurdos criados e ampliados na folha de
pagamento, f) na pressão e abusos de violência exercidos pela polícia ou
pelos agentes-feitores da empresa-cativeiro, entre muitos outros fatores.
Entretanto, nada contribuindo por facilitá-la; fato comum não apenas
entre os índios, sendo freqüente entre os não-indígenas (nordestinos,
etc.), pela demora da empresa em acertar as contas; quando executava,
tornava o prejuízo por parte dos fâmulos o maior possível, para que
ninguém mais ousasse desafiá-la.
É a forma da empresa se vingar do trabalhador, deixando “livre”
para ir, mas sem remuneração e quaisquer outros meios de abandoná-la.
Nisto muitos se lançavam à estrada, à sorte; isso quando não o prendiam
de maneira forçosa até que saudassem suas “dívidas”, honrando o
“acordado”.
Aspectos de uma escravatura ora explícita, ora dissimulada pela
“legalidade” contratual, nutando a captação da mais-valia absoluta com
os anseios de funcionalidade infra-estrutural.
Aos insatisfeitos: a punição física, o encarceramento ou a
liberação dificultada; espécie de lição para os insatisfeitos, “subversivos”
em potencial. Daí que a via mais comum em se deixar a empresa fosse
mesmo o fim do contrato, algumas vezes com o prazo alargado em
relação ao que fora originalmente estipulado.
A situação é mais ou menos esta a que se referiu um índio (que
preferimos não citar o nome), quando lhe perguntado se a empresa
permitia o retorno dos índios insatisfeitos à aldeia de origem: “Deixa, só
que ela não arruma passagem. Tem o nosso companheiro aqui que deu
baixa, mas a empresa não arrumou nem a passagem e segurou o
registro e ele está esperando carona para ir” (19/5/1991).
As regras contratuais possuíam mais limites que garantias aos
trabalhadores.
Para não dizer das isenções que a empresa, por essa tática
adotada (emprego por curto período), se permitia com os trabalhadores,
de todos e quaisquer gastos com encargos trabalhistas, como: INSS,
FGTS, descanso semanal remunerado, etc. O contrato era informal;
possuía registro apenas na Delegacia Regional do Trabalho, sem o
registro efetivo em carteira de trabalho e reconhecimento legal por isso
(Se se permitia, e se exigia o registro, era porque duraria pouco tempo...
O maquinamento espreitava e não era interessante a tantos órgãos
vigilantes desafiar).
É interessante observar que o nível de superexploração dos
trabalhadores na empresa, a conquista de mais-valia, indígena ou não-
indígena, variava ao longo do tempo. O grau de superexploração local
seguia as tendências do setor e do espaço de realização da economia
global, como uma rede interligada cujo problema num lugar-nó se
estendia, afetando os demais. A intensidade da superexploração variava
devido a vários problemas: da concorrência interna ao país com os
produtores paulistas, a concorrência no campo mundial, a queda do
consumo e ou crise de superprodução com a diminuição ou
estrangulamento da capacidade de realização do tempo de giro do
capital, aumento do exército de reserva, ou mesmo a personalidade
daquele que dirige os negócios, em nível microescalar (ou a política
oculta que mostrava preferências pelo diretor que os devia representar).
A única certeza em que se sustentavam, em suma, é que, seja
qual fosse a origem da ameaça à queda da taxa de lucro, seriam os índios
que pagariam por isso; com uma escravidão mais disfarçada ou
plenamente escancarada; entendendo tais fenômenos como contradições
capitalistas, a negação do capital como fenômeno capitalista, o efeito de
sua lógica (auto)destrutiva. Isso inaugurava ou redimensionava a nova
fase ao padrão de acumulação, pois, se na fase áurea da sociedade do
capital, no seu período pós-guerras, se verificou a expansão do mercado
de consumo e de trabalho por motivo da expansão do campo salarial,
com os auspícios do padrão de acumulação fordista, na fase pós-fordista,
por sua vez, quando entrava a sociedade do capital em crise profunda,
verificava-se o adensamento do processo de desproletarização,
dessalariamento, dessindicalização, etc., e simultânea revitalização do
setor especulativo (financeirismo); fazendo com que os setores
produtivos se enfraquecessem em investimentos de médio e longo prazo
e que o setor especulativo, de autovalorização instantânea, se
multiplicasse exponencialmente, de certa forma, à custa daqueles
produtivos; uma contradição que o capital laça sobre si mesmo, sobre as
relações de trabalho que o sustenta.
Mas pretendíamos no momento apenas rabiscar mais alguns
traços sobre essa tese com o objetivo de comprovar as relações múltiplas
e complexas que atravessam o mundo do trabalho; retornemos pois, à
sua explicitação mais empírica, relativa à realidade da empresa
DEBRASA, de que havia pouco tratávamos.
Aquela média de R$ 200,00 “pagos” aos índios, relatada pelo
porta-voz da empresa, era um engodo; nem os trabalhadores não-
indígenas a recebiam (apesar de serem vistos culturalmente como mais
humanos na hierarquia da sociedade brasileira, ou ocidental). A quantia
mediana que chegava em mão índia não ultrapassava os míseros R$
40,00; houve casos, retratados pelos próprios índios, de trabalhadores
receberem R$ 1,50/mês, no final da década de 1990.
O salário do diretor da empresa? Na época, superava os R$ 8 mil.
São muitos os dias de serviço negligenciados pela empresa no
momento do pagamento.
A partir da visão de um índio, que já conseguia melhor entrelaçar
as idéias e os sons na língua portuguesa, ao ser perguntado se estavam
sendo chamados para trabalhar contratados, respondeu:

Sim. E receber cada 30 dias e ainda mandar dinheiro


pra nossa família. Mas eles atrasam tudo e descontam
os R$ 50,00 já no primeiro pagamento. Assim, não
tem jeito pra mandar dinheiro pra nossa família. Não
sobra nada. Em 2 meses que estou aqui, o primeiro
recebi em 18 dias; agora, só recebi 14 dias. E eles
nunca pagam o mês inteiro. Sempre pagam 8 pra um,
14 dias pra outro, 5 dias pra outro... (19/5/1999).

Nesta passagem vê-se o roubo das diárias trabalhadas. Ao qual


também vinha somar-se os gastos abusivos com alimentação e moradia,
R$ 30,00, R$ 33,00, respectivamente; mesmo que a alimentação
chegasse pior que lavagem aos trabalhadores. Para os trabalhadores da
planta fabril a alimentação sempre era razoável, porque nesse também se
alimentam, de vez em quando, gerentes e demais funcionários de alto
escalão da empresa. No mais, o que se depreendia é a forte segregação
sócio-territorial dos trabalhadores, por que: “No refeitório, a
alimentação vem até que razoável. Mas, quando vai pro campo e pro
alojamento, já vai bem ruim”, confirmou um dos trabalhadores
“baianos”, de 23 anos. Não era difícil imaginar a alimentação que
chegava aos índios, se a dos “baianos” já se mostrava bastante
imprópria; o que não poucas às vezes geravam tumultos e paradeiros,
embora a pressão e repressão também fossem fortes.
Além dos custos com o transporte e o lazer, que variavam
conforme o balanço de suas contas e a ganância do objetivo pela
antecipação do maquinamento do campo; sem contar, as pesquisas e
informatização do sistema e remanejamento técnico e profissional do
quadro de funcionários, já que a DEBRASA montou uma equipe
especial para se encarregar da supervisão intersetorial, buscando o
melhor controle da produção; investindo também na educação
audiovisual dos trabalhadores e contribuindo, com esse tipo de
formação-educação, com os moradores da Vila Industrial (medidas
típicas do paradigma toyotista), situada nas adjacências da sede.
Alguém definitivamente estava pagando por isso: índios e não-
índios.
Não foi sem motivo a cobrança pela utilização das águas do rio
(um riacho) para nado ou banho (FOLHA DE SÃO PAULO, 16/9/1993).
Tão pouco as taxas mensais pelo direito de usufruto do campo de
futebol, que não passava de um pasto com bambus unidos em retângulo;
ou da televisão disponível para os trabalhadores não-indígenas, quer a
utilizassem ou não.
Interessante que no contrato constasse o acesso a um complexo
poli-esportivo, com piscinas, quadras e campos de futebol de boa
qualidade e à disposição de todos os funcionários; ideologia igualitária e
fraternal capitalista expressa apenas no contrato. A empresa não
dispunha da infra-estrutura de lazer que ostentava na cláusula contratual,
e mesmo se a possuísse certamente não a disponibilizaria a todos,
indistintamente. O pouco de que dispunha servia de exemplo: com a
hierarquia funcional corporativa e o preconceito étnico-social a servir de
empecilho, gerando uma fragmentação territorial e cobrança de taxas
exorbitantes por “utilidades” não usufruídas.
Falácia de igualitarismo. Tudo é diferenciado, fortalece o
preconceito.
Separavam-se primeiro os índios dos trabalhadores “baianos”;
depois, se segregavam os próprios índios, para que a condição
vivenciada na aldeia se reproduzisse no canavial. Tudo para que
sentissem desagregados politicamente.
Assim, podia o capital ordenar o território e os sujeitos que nele
operavam: todos com o mesmo fim (o corte da cana), embora
individualmente (alienados objetiva e subjetivamente daquilo e daqueles
com os quais trabalham).
Aqui, a diferenciação cultural se fortalecia sob parâmetros
classistas. O capital “incorporava” diferenças culturais; tornando-as uma
clivagem proletária. A diferença tinha nova função. O capital
permanecia hegemônico. Não havia consciência proletária suficiente
para ameaçá-lo; quando muito, ocorriam paradeiros de trabalhadores
agrupados em torno de questões imediatistas (salários, alimentação, etc.),
sem fundo estratégico mais abrangente. Às vezes, as pequenas
conquistas em meio ao difícil contexto de politização, no mundo do
trabalho, já representavam significativa vitória.
Essa geografia segregacionista dirigia os índios aos alojamentos
mais distantes; suas condições eram mais precárias. Tratava-se de
instalações insalubres: os beliches eram imundos, os colchões rasgados e
sem qualquer higiene, a fonte de limpeza e o esgoto fisiológico era o
riacho ou os buracos que fugiam à vista; o mau cheiro, constante; as
moscas eram as companhias, formavam uma nuvem negra a se mover no
ar; havia lixo médico-hospitalar nas proximidades, em contatos
constantes com adultos e crianças. Não havia instalação elétrica, água
encanada, iluminação ou saneamento básico; sequer ventilação
adequada.
Assim eram os (des)alojamentos dos índios, entre tantas outras
calamidades que o dia-a-dia e a adaptação paulatina “encobria”.
Alimentava-se mal, dormia-se mal e trabalhava-se muito.
No final das contas, ainda eram acusados de se renderem à
aguardente; embora, tivesse quem a vendesse.
Os alojamentos dos índios eram piores que os barracões dos
“baianos” (que também tinham alagoanos, paulistas, mineiros, etc.);
estes eram de alvenaria, enquanto que os dos índios eram grandes
galpões de madeira sempre superlotados. Apesar disso, a situação
também era calamitosa; tais quais os índios, os “baianos” se
amontoavam um por sobre o outro, em finas armaduras de concreto que
se assemelhavam às estantes, a tentar tocar o teto.
Outro dado importante é que os alojamentos dos “baianos”
possuíam energia elétrica; conquanto, a maioria não encarasse isso como
vantagem, pois tinham de pagar a taxa pelo “uso” da televisão do núcleo.
Também se apresentavam superlotados e com substancial desconforto,
ainda que sob condições evidentemente “melhores” das que viviam os
índios; absolutamente nada que justificasse a quantia mediana de R$
33,00/mês descontada de ambos os grupos; tão menos dos índios.
Mas no papel tudo parece belo.
Obrigado a pagar para viver mal, para não comer, descansar e
dormir dignamente, o índio se desgastava no dia-a-dia dos facões, no
corte da cana intercalado entre uma dose de aguardente e um ferimento
corporal; o que o afastava do trabalho, fazendo com que necessitasse de
cuidados médico-hospitalares no posto localizado na Vila Industrial.
Pelo tratamento e remédios consumidos na farmácia, consorciada à
empresa, a despesa de 50% a ser descontada na folha do pagamento –
isto formalmente, porque na totalidade dos descontos que “acumulava”,
os gastos com os remédios certamente estavam inclusos.
Já pelos dias sem trabalhar, ainda que por lesão em atividade e
sem a ocorrência de alcoolismo – acidentes bastante corriqueiros, pela
empresa não oferecer os equipamentos de seguranças mínimos exigidos
por Lei –, não se tinha notícias de que os trabalhadores poderiam
restabelecê-los. Encontravam-se à margem de qualquer informação de
como fazê-lo, desconheciam os mecanismos para tal, muitos eram
trabalhadores iniciantes no universo capitalista do trabalho abstrato e a
empresa nada fazia para esclarecê-los e muito menos para ajudá-los. Era
bem provável que nem os mais conscientes de seus direitos (baianos,
alagoanos ou mesmo algum paulista que nela chegou a operar) tentassem
obter essa quantia; isso envolveria deslocamento à cidade de Três
Lagoas, segundo uma enfermeira de plantão; o que a empresa em nada
facilitava. A DEBRASA não se importa com o que dispunha de sobra:
após certo período (5 dias, geralmente) dispensava o trabalhador ferido;
repondo a peça avariada.
Informalidade e precariedade desse acordo mantidas graças ao
“reconhecimento”, juridicamente indevido e insuficiente, da Delegacia
Regional do Trabalho (DRT), vez que os índios não possuíam carteira de
trabalho e, por conseqüência, nenhum direito trabalhista assegurado.
O diretor da empresa – como seria esperado – dizia ser dos índios
a escolha pela informalidade, como forma de não perderem os direitos de
possibilidade de permanência na Reserva, como tutelados do governo –
só não dizia que agia junto aos cabeçantes para fazer “suas cabeças”
nesse sentido (VALENTE, Folha de São Paulo, 27/12/1998). Mesmo se
fosse verdade essa opinião, do diretor da DEBRASA, não se podia negar
a lucratividade que a circunstância empregatícia lhe ofertava, à margem
de uma “possível” fiscalização sindical, dos encargos trabalhistas e das
normas do mundo do trabalho rural, prescritas pela CLT.
Muitos eram os índios que trabalham com registro em carteira,
sobretudo após a forte pressão de instituições que assumiam celsa atitude
ante a questão, como o Ministério Público e CIMI, por exemplo.
A realidade de fins da década de 1990 não era a mesma que a de
seu início. No entanto, isso em nada implicava em abandono da Reserva,
ainda que a lei asseverasse tutoria sobre índios não-integrados à
sociedade (do mercado de trabalho e da exploração).
Vários dos próprios diretores de Postos Indígenas evitavam que
isso ocorresse; de seus braços alugados arrecadavam o dinheiro corrupto
proveniente da escravidão. Não se tratava de qualquer interesse em se
tentar manter sua sobrevivência com o assalariamento e/ou escravidão
objetiva e subjetiva; estavam longe dessas preocupações sociais;
permitiam sua estadia “ilegal” na Reserva simplesmente porque
lucravam com isso; nenhum desses senhores (como o diretor Alexandre)
jamais foi ver de perto as condições que enfrentavam os índios que
tutelavam, nas empresas.
Caso pretendessem os índios se favorecer por essa opção, na bem
da verdade, se abria margem à empresa para a sua maior exploração.
Mas, como dito, o que era comum nos anos que se seguiram a
1980 na DEBRASA, em fins da década de 1990 começou a mudar: a
pressão anterior que recaia em intensidades maiores sobre a fiscalização
dos “brancos” migrantes, passou a se dimensionar da mesma forma para
aos índios.
O Ministério Público começou a travar um luta jurídica para que
os trabalhadores indígenas contratados possuíssem sua carteira de
trabalho assinada, após muitos escândalos de práticas de “semi-
escravidão” exercidas com os trabalhadores indígenas na DEBRASA e
em outras empresas do Mato Grosso do Sul.
Era esse um fato comum. Para isso é que foram criadas
comissões móveis de fiscalização das relações de trabalho no mundo
agrário do Brasil. A Comissão Permanente de Fiscalização das
Condições de Trabalho nas Carvoarias e Destilarias de Mato Grosso do
Sul, fora fundada para fazer vistorias em empresas e fazendas acusadas
de aliciar trabalhadores e submetê-los a regime de trabalho semi-escravo,
com índios ou não-índios; levando às instâncias trabalhistas
governamentais o que se passava no mundo agrário sulmatogrossense e
no Brasil, como um todo (VILELA; CUNHA, 1999).
Deveriam ser “irremediavelmente” proibidas essas práticas de
trabalho desumanas (escravidão não-assalariada), pois se o capitalismo
até o momento a quase tudo resistiu (às contrapartidas revolucionárias),
a democracia burguesa, e os teóricos social-democratas, nesse mundo
contemporâneo, precisavam zelar pela ordem que acreditam ser possível
monitorar e, com o amparo forte da lei e um executivo imparcial, mais
harmonicamente perpetuar; daí seus múltiplos esforços para se combater
uma prática que não condiz com o que pregam ideologicamente, ao
mesmo tempo em que tentam calar as bocas de teóricos radicais que
identificam as raízes dos problemas mais a fundo do que em superfície
aparentam.
Mas a realidade contratual da DEBRASA mudara. Já não mais se
contratava sem a carteira profissional e o reconhecimento jurídico-
oficial; o que não era o mesmo que dizer que os índios estivessem livres
da superexploração do trabalho ou mais imunes às leis internas da
empresa; pelo contrário, a empresa teve que aceitar essas condições
devido à pressão e “perseguição” que sofria de várias instituições.
Foi uma forma de ganhar tempo e desviar a atenção da mídia e
dos órgãos fiscalizadores e “punitivos”, em meio à “atmosfera
democratizante internacional” que, qual perfume, exalava dos países
centrais, por força de ONG´s e outros organismos políticos que exigiam
reformulações nas políticas econômicas, sociais e ecológicas, no mundo.
Atmosfera, a da social-democracia, que, dessa forma, surgia como
artifício ideológico sustentado pelas próprias camadas dominantes de
que realmente a situação precisava mudar, em meio ao crescente
descontentamento internacional, embora pouco soubessem sobre o que
fazer, além de parecerem sensíveis a tais questões.
Todavia, é importante se dizer que, apesar de aparentar fenômeno
global, tal atmosfera vaga pelo planeta com velocidades as mais diversas
e algumas regiões do globo jamais conseguirão, sobre solo capitalista,
senti-la pairando. No Brasil mesmo, apesar da forte orientação político-
institucional, tendente à vertente teórico-ideológica da social-democracia
(que confundia discursos que iam desde políticos de esquerda ao do
presidente da FIESP, por exemplo), o que se via geralmente nada mais se
afigurava do que uma convergência ideológica. O problema surgia
quando se começava a discutir os meios de remediar ou solucionar os
fatos, acalmando as agitações sociais: aí a atmosfera social-democrata
brigava com o solo capitalista, mais arenoso e infértil política e
economicamente na periferia do planeta; enfrentavam-se o céu e a terra.
A necessidade de acumulação é que movia as empresas e não
qualquer humanismo universal. Os homens eram atendidos quando
possível, em certos “lugares” (regiões ou questões pontuais), como um
elemento complementar àquela meta central. O capital está sempre em
primeiro plano no sistema capitalista. Não deviam ser invertidas as
ordens dos valores, entendendo o real de ponta cabeça.
A DEBRASA é prova disso. A escravidão (pouco) remunerada
ou não-remunerada era imprescindível à realidade terrena (infra-
estrutura), não importavam o que os céus cogitassem.
A fórmula continuava a ser a mesma enquanto a meta de
modernização técnica não fosse atingida; só se camuflavam as ações
com pistas falsas de melhora e adequação da unidade para o trabalhador.
Pouco pode ser feito em relação a isso. Descobriu-se que a
“semi-escravidão” juridicamente ilegal prosseguia, ainda que em ritmos
mais “amenos”; quase impossível algo além de multas poderem ser
quitadas, e na maioria das vezes isso era o muito que se fazia75; quase
que impossível ainda era o fato de que essas multas viessem a ser pagas
por qualquer empresa que fosse.
Rara era a possibilidade de alguma instituição, em algum
momento, propor uma interdição de qualquer empresa, ousando desafiar
o capital. A sua aprovação então, estava fora de cogitação (CORREIO
DO ESTADO, 9/9/1994).
Geralmente isso se dava quando se modificava a correlação de
forças nas agências estatais, como a Delegacia Regional do Trabalho,
que se nalguns momentos propunha interdição, noutros, quando muito,

75
Cabe a menção de que a DEBRASA não consta como exceção na questão de
“omissão” governamental; era essa uma regra nacional. Figueira (1999, p. 176-177)
fornece o exemplo da Wolkswagen, em Santana do Araguaia/PA, no início dos anos
1980, em que foi constatada a presença de trabalho escravo, sendo apenas os
empreiteiros da força de trabalho punidos e, a empresa, após vários anos de burocracia
jurídica, tão-só fora multada.
apenas notificava a relação contratual como ilegal, a dos trabalhadores
que não possuíam o registro da carteira de trabalho – caso da
DEBRASA, a guisa de exemplo.
Foi incomum esse feito na história econômica do Mato Grosso
do Sul. O Estado não podia se opor tanto à lógica do capital com o seu
arranjo oligárquico; Estado que dependia muito dessa classe (a mais
dinâmica na região, responsável por boa parte da captação de impostos)
e que nada mais era do que a personificação da mesma, por meios
diretos, com a infiltração de seus agentes dominantes ou administradores
eleitos ao seu gosto (o que permite a essa classe centralizar o poder
político-institucional, tornando-o a extensão de seu poder econômico).
Em meio a esse arranjo de forças, encontrava-se a força de trabalho em
situação de desvantagem; seriamente ameaçada pela investidura dos
capitalistas de se alçar à maximização dos lucros.
Embora ocorresse a ampliação do número de registros na carteira
de trabalho de índios, constatava-se que os resultados não tinham se
mostrado de muita eficácia, ao passo de vir a abolir definitivamente as
relações de trabalho mais criticadas. Além do mais, notava-se que muitos
dos próprios índios ainda se opunham ao registro, pois além de
compreenderem que isso não significaria o fim dos problemas aos quais
enfrentavam em meio ao canavial, entendiam que seu enquadramento
nos parâmetros empregatícios legais significaria se sujeitar ao grande
risco de perda da tutela conferida pelo Estado. Acrescente-se a isso a
crença que possuíam de que sua inserção individual no universo da
legalidade também contribuiria para fomentar sua “descaracterização” e
ou perda de identidade coletiva (um ponto de vista que, já dissemos,
certamente fora forjado pelos cabeçantes e, por detrás deles, pelos
gestores da DEBRASA). Não obstante a opção adotada impossibilitá-los
de um reclame institucional sobre qualquer direito trabalhista, visto que
se encontravam desguarnecidos juridicamente e à margem das ações da
CLT e de qualquer tipo representação político-sindical; não que a
representação oficial nos sindicatos constitui-se grande ganho: sabia-se
que a atuação dos sindicalistas não se diferenciava das práticas
hegemônicas presenciadas no cenário mundial, e que serviam
principalmente para captar recursos (com a taxa da sindicalização) e
aumentar a clivagem entre os operários, com a hierarquização funcional
e a paralisia político-combativa, assumindo uma postura de conformismo
e resignação (ANTUNES org., 1999, 2000; BIHR, 1998; THOMAZ JR.,
2000a).
Se os sindicatos aos índios de nada valiam, tal como se
apresentavam, se seus “direitos” (eram levados a crer que) se
“anulariam”, então sob que aspecto seria positivo – entendiam alguns
índios – a sua inserção no mercado de trabalho formal? O que mudaria?
Deveriam mesmo confiar que seria unicamente pelo viés da integração
completa no universo da legalidade dos direitos trabalhistas que
conseguiriam garantir a satisfação de suas necessidades imediatas? Ou as
antigas formas de organização autônomas ainda eram mais eficientes aos
seus propósitos? Teriam eles clareza dessas tendências?
Mais incertezas que certezas.
O certo é que de pouco valia a capacidade de representação
intercorporativa demonstrada pelo sindicato base de Rio Brilhante,
pertencente à eclética Federação dos Sindicatos do Mato Grosso do Sul.
A abrangência trabalhista que exercia, englobando todos os
trabalhadores das indústrias de fabricação de álcool e açúcar na região,
redundava em poucos significados práticos aos trabalhadores, porque as
ações de seus líderes continuavam expressivamente míopes e
conservadoras; desta forma, apesar da organicidade interna desse
sindicato se diferenciar das então existentes nos demais sindicatos do
Brasil, que se encontravam organizados em bases corporativas a
segmentar os trabalhadores industriais e rurais e os múltiplos
desdobramentos intersetoriais, os seus passos estavam efetivamente
amarrados à dinâmica do cenário global. Dispunha-se duma
singularidade de arranjo político-institucional de pouca serventia, que
não conseguia avançar para além dos marcos universais embrenhados na
particularidade política nacional.
Assim era Rio Brilhante: município sede duma organização
sindical que agrupava trabalhadores rurais, industriais e condutores;
único reconhecido oficialmente no Brasil a apresentar essa característica,
e que nada sabia fazer a esse respeito.
Assimilava-se politicamente à realidade dos aparatos sindicais do
país.
Na maioria dos sindicatos nacionais o que se via era a
fragmentação representativa, segundo a função de que se ocupava o
trabalhador na cadeia produtiva; sua fragmentação funcional na esteira
produtiva acompanhava e era alavancada pelo seu descolar ideológico do
processo de produção: sua alienação territorial individualizada ante o
mesmo levava, por conseguinte, à segregação e alienação político-
econômico-territorial de todos os demais trabalhadores, de toda a classe
em operação.
As regras de jogo do xadrez institucional, do que se apreendia,
possibilitava ao capital estender seu poderio acima de quaisquer limites
político-territoriais: sem fronteiras operacionais; o Estado garantia os
meios legais para que o capital se organizasse e mantivesse a hegemonia,
com suas ações a extrapolar os limites municipais, em mancha de cana
plantada e contratação de trabalhadores de outras regiões à região em
que se territorializava, por exemplo; possibilidade de manejo que para o
trabalhador não se apresentava nem como miragem (THOMAZ JR.,
1996, 1998; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).
Poderia ser essa uma vantagem política para os trabalhadores
sulmatogrossenses da região em apreço, se não fosse a representação
pluricategorial e metacorporativa uma brecha política mantida às
sombras da militância classista, por parte dos trabalhadores ou das
lideranças sindicais. Não havia base política de lideranças para que fosse
alargada essa fissura; talvez, por isso, o Estado não inferisse a ponto de
extingui-la.
O que se via, então, disse um “baiano” contratado pela
DEBRASA, era que:

O sindicato nunca vem aqui. Uma vez vieram e


fizeram uma reunião. Quando a gente ficou sabendo,
eles já tinham ido embora. Mas nos avisou. Eu fui
numa, mas eles só ficam falando bestage lá, aí eu fui
embora (19/5/1999).

Descompasso base-lideranças. O resultado do processo:


“Sindicato tem, mas só paga. Não usa”, como completou certo
trabalhador.
“Os índios são naturalmente preguiçosos. Não gostam muito de
trabalhar...”. Que tal essa frase, do presidente do sindicato base de Rio
Brilhante? Sindicato de base regional que possuía ações tão ou mais
fragmentadas que aqueles encravados sob os marcos político-
institucionais municipais; sindicato que possuía um raio territorial mais
amplo de abrangência – operando em toda a região de Rio Brilhante,
abarcando, pois, a DEBRASA – e que assemelhava-se à regra do país.
Estes eram os termos ou as condições conjunturais e regionais
com as quais a empresa se deparava, e re-arrumava, fechando seu ciclo
contratual. Universo que, benéfico aos empresários, fazia dos sindicatos
instrumentos de notória inoperância representacional à defesa dos
interesses dos trabalhadores (índios e não-índios), sem função maior que
arrecadamento de “contribuições sindicais”.
Sem maior ganho político, sem quem a isso se dispusesse, os
índios, após o trajeto percorrido de seu local de origem, desta forma
adentravam e abandonavam a propriedade da DEBRASA.
No final da década de 1990, eram algo em torno de 1.300 os
indivíduos que trabalhavam no período de safra, compreendido entre os
meses de maio-abril e outubro-novembro.
A empresa, de sua parte, assemelhava-se a um cativeiro, quer
com os hilotas brancos (cujo número diminuiu sem deixar de existir) ou
com os índios arregimentados.
Uma fortaleza é o que parecia.
Nos inevitáveis combates oriundos de refutações de salários,
greves e paralisações empreendidas, os trabalhadores pleiteavam
melhorar as condições de trabalho e alimentação e diminuir a exploração
aviltante.
Quando pequenas as conquistas, tinha-se mais propícia a adesão
indígena às estatísticas da morte; apesar de algumas agências estatais e
não-estatais (como as organizações não-governamentais) atuarem no
sentido da supressão desses fatos que marcavam e marcam o interior do
país.
Participam direta e indiretamente desse movimento a OAB/MS
(Ordem dos Advogados do Brasil – seção regional), por vezes algumas
secções da DRT (Delegacia Regional do Trabalho), a SEBEM
(Secretaria Municipal do Bem-Estar Social), o Ministério Público e,
principalmente, a imprensa e o órgão especialmente montado para atuar
nesse sentido: a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização
das Condições de Trabalho nas Carvoarias e Destilarias no Estado do
Mato Grosso do Sul; além de algumas agências internacionais, dentre as
quais destacamos o CAFOD (Catholic Fund For Overseas
Development), que possui sede em Londres e que ajudava
financeiramente o CIMI/MS, como igualmente, o Trócaire, União
Européia, Christian Aid, Misereor e Bilance, Anistia Internacional
(MANGOLIM et al., 1997, p. 11), subsidiando algumas publicações,
divulgando a realidade índia e ajudado a criar uma pressão sobre o
governo brasileiro no exterior. Esporadicamente, surgiam também
momentos para a discussão desta e de outras questões que aturdiam o
mundo contemporâneo, como na “ECO-92” (Conferência mundial sobre
o meio ambiente), realizada no Rio de Janeiro.
Sem sombra de dúvidas, contudo, as principais instâncias
interventoras eram aquelas formadas pelos próprios índios, que
instigavam as ações das demais, como o CAPOIB (Conselho de
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil), sediado em
Brasília ou outras organizações indígenas que se proliferavam no Brasil.
Além do “Movimento Indígena, Negro e Popular”, com representantes
de minorias negras, indígenas e com participação de partidos políticos,
de sindicatos, etc.
Um crescente da participação popular em movimentos sociais.
Do lado indígena não era diferente.
As denúncias, sobretudo as efetuadas pela Comissão de
Investigação, se não reverberaram em multas, sempre postergadas por
processos jurídicos, e muito menos em punições mais contundentes,
serviam para aumentar a pressão social.
O que se passava na realidade do trabalho sulmatogrossense era
notícia.
Os proprietários de jornais, esquerdistas ou oportunistas, viviam
da venda da mercadoria informação. Ofereciam, pois, resistência e
influíam em sua dinâmica, o que se dava mediante ações civis e
denúncias de multas acumuladas pela empresa (CORREIO DO
ESTADO, 17/9/1993; O ESTADO DE SÃO PAULO, 16/9/1993).

Multas que, se por um lado não mostravam significativa


importância a ponto de abolir essa prática, de outro, serviam para
coagular forças e modificar em alguns aspectos as formas em que essa
se processava. Geralmente tendiam a ser procrastinadas infinitamente
ou negociadas inescrupulosamente, a exemplo do que fez a empresa
sucro-alcooleira Cachoeira (CORREIO DO ESTADO, 20/10/1992),
acusada não somente por maus-tratos, como de assassinato dum
trabalhador pelo gerente, com tiro na cabeça, em fins da década de
1980 e início dos anos 1990.
Modificar essa trama foi o objetivo maior desses atores sociais;
enfrentar essa questão significava, na sua ótica, defrontar-se com a rede
de relações em que os índios compareciam como nó central, buscando
desamarrar ligações inconcussas, contrariando a lógica e os interesses
do capital sucro-alcooleiro e das carvoarias.
Até que essa meta se concretizasse em realidade empírica, a
DEBRASA continuava suas operações de aliciamento de índios,
inclusive menores de idade; necessidade que o empresariado do setor
alcooleiro defendia por sofrer fortes concorrências dos produtores
paulistas.
A verdade é que pouco importa quem representava a
concorrência; concorrência é a marca de um sistema de privilégios para
poucos e miséria à maioria; concorrência sempre haverá na sociedade
de mercado.
Pensar por essa ótica, de que o problema está na concorrência, é
pensar por dentro da lógica do sistema e acusar o caso como anomalia
passageira, como harmonia possível de ser estabelecida, quando
assistíamos a freqüentes casos de semi-escravidão jurídica processada
por capitalistas no Brasil e no exterior (como o caso da Venezuela,
como noticiara uma agência de televisão, sobre uma ocorrência no final
do ano 2000; ou o outro caso, também nesse período, de manutenção de
trabalho infantil, de crianças de 14 anos, em regime “semi-escravo”,
numa empresa sucro-alcooleira do Nordeste, numa cidade do
Pernambuco).
Alegavam os empresários que, tão logo acumulassem capital
suficiente, seriam eles invertidos no maquinamento, na compra de
colheitadeiras que substituiriam a mão-de-obra migrante sazonal de
índios, bem como na sua modernização e capacitação infra-estrutural à
produção do açúcar; conjeturando, por meio da diversificação da
produção, a possibilidade de diminuição da instabilidade no mercado:
meta também seguida pelas outras destilarias (CORREIO DO ESTADO,
25/7/1994).
Na opinião dos empresários, o que restaria àqueles que
pressionavam e ou se contrapunham a esse trajeto operativo, seria o
desemprego e a quebra de todos os laços estabelecidos; “prejuízo”, por
conseguinte, que se estenderia aos contemplados mais diretamente por
essa rede: os índios e a FUNAI.
Enquanto essa metamorfose infra-estrutural não passasse de
ameaça para fato empírico, a empresa levava adiante suas operações.
Prosseguia a passos largos a arregimentação dos índios, ou seja, sua
constante des(re)territorialização das aldeias, rumo à DEBRASA: local
de dinâmicas sociais diferentes que “dividem” e transformam
paulatinamente seu ser.
De tanto estar em vários cantos, sem neles se sentir pertencente,
o índios sentiam a confusão aumentar em seu ser.
Em meio ao processo hegemônico (embora não-homogêneo) de
pasteurização social universal, levado a cabo pelo trânsito que
vivenciavam entre esses diferentes “mundos do trabalho”, os índios se
viam parcialmente imersos na sociedade do capital: a um outro ritmo de
trabalho, costumes e hábitos; os quais, ao seu modo, passavam a
assimilar, tornando-os também seus.
Nem em sonho (literalmente) poderiam os índios de tudo se
manter a margem.
Expressemos como se processava a relação dos indígenas com a
Vila Industrial.

3. A “invasão” dos índios e o contato com a comunidade da Vila


Industrial

Desterritorializados, desambientalizados e transplantados à Vila


Industrial, sofrendo todas as conseqüências que isso acarretava, muitos
índios tinham ainda de se deparar com a forma de organização específica
do local; enfrentando, em não poucas ocasiões, o preconceito sócio-
cultural e sendo submetidos à lógica do capital, ao modo de vida e aos
abusos que muitos dos moradores realizavam com eles, devido
geralmente à falta de conhecimentos a respeito dos símbolos e das
mediações que compunham a sociedade de mercado (fenômeno a se
passar dominantemente com o significado e o valor das notas de
dinheiro, com as regras contratuais estabelecidas com a empresa e a falta
de domínio da língua oficial).
Até que tenham aprendido a lidar com essas questões (quando
aprendiam), acumulavam decepções e experiências negativas, acrescidas
das saudades de seu povo, do cansaço com o trabalho e da insatisfação
com os seus salários, os quais percebiam serem baixos por nada sobrar
aos familiares que ficaram na aldeia à sua espera.
Por estratégia empresarial, eram os índios alojados
separadamente da Vila, em meio ao canavial. Os seus “deveres”, todavia,
eram bem mais amplos; impossibilitados eram pela empresa de
participarem das festividades e comemorações que ocorriam na Vila;
“proibida” pela empresa também era a venda de bebida alcoólica,
especialmente para os índios “já que eles arrumam muita confusão” (eis
a visão hegemônica entre moradores, comerciantes e policiais que
habitavam o lugar – ainda que tal regra não fosse levada a sério pelos
próprios não-índios comerciantes).
Os índios sofriam também com a discriminação dos habitantes da
Vila, que reproduziam a postura dos dirigentes e administradores da
empresa; principalmente as mulheres, que os viam como baderneiros e
bêbados, seres violentos que “pertencem a uma outra cultura”.
Paisagem perceptiva que também não chegava a ser muito destoante da
dos pregadores religiosos, maiormente, os católicos, sempre
prontificados a dar a benção de seu Deus no início de safra para a
DEBRASA, para que fossem verdes os seus lucros, não lhes
preocupando a ausência índia, por ordem da empresa; imaginem então se
se preocupariam com o que estava a se passar no coração do canavial.
Estímulos e ações negativas cruzavam constantemente o caminho
dos índios.
Não que eles tivessem chegado imunes a essa crueldade, haja
vista que os casos de alcoolismo, estupros, brigas, assassinatos e
suicídios eram fatos razoavelmente comuns nas aldeias de origem. A
falta dos meios à manutenção de sua subsistência nas reservas (terras,
sementes, etc.), o descaso das esferas públicas e a marginalização sócio-
cultural, já haviam penetrado e remodelado a forma de sua organização
social. Passava essa realidade agora, tão-somente a fazer parte do
cotidiano da DEBRASA, contudo, com crueldade multiplicada.
Quando aceitavam se deslocar para a Vila, há algumas poucas
centenas de metros das suas instalações industriais e outras mais de seus
alojamentos, apenas ampliavam seu descontentamento e sua violência
àqueles também oprimidos pelo sistema; uns projetavam os seus
problemas nos outros: digladiando-se entre si índios e não-índios, ou
seja, as populações flutuantes (as andorinhas indígenas) e as fixas (os
moradores da Vila Industrial), permanecendo uns com opiniões
contrárias aos outros.
Os itinerantes eram tratados como forasteiros; eram trabalhadores
sazonais vistos como ameaça à “ordem” da comunidade. A distância
comparecia, à vista dos moradores da Vila, o melhor meio de se coexistir
com a população errante.
A ignorância índia para com os valores culturais hegemônicos
eram motivos de boas vendas; qualquer que fosse a lição que lhes tivesse
utilidade, tentava-se capitalizar com o ensinamento. Afinal de contas,
estavam de passagem; como pensavam os que desconheciam seus
valores (para os “brancos”, os ensinos formal e o informal eram
marginais em mentes índias, que viviam no mais repleto estado de trevas
intelectual).
Não freqüentavam a Escola DEBRASA, sediada na Vila
Industrial e nem participavam do Tele-curso 2000, veiculado em fins
do século passado – não importava à população da Vila se isto se
dava por opção, falta de opção, falta de tempo, ignorância, ou
quaisquer outros motivos que desanimassem os índios.
Daí o fato de a escola, que levava o nome da empresa e que
não esporadicamente recebia auxílios de materiais que lhe permitia
funcionamento harmonioso com a mesma, possuir como
freqüentadores os filhos dos moradores da Vila e de fazendas
próximas que para lá se locomoviam para receberem o ensino de
primeiro grau; os que objetivavam continuidade, a cidade se punha
como única possibilidade.
Na hinterlândia territorial em que a DEBRASA detinha
hegemonia, na Vila Industrial ou em suas cercas propriamente, era
possível se encontrar moradores ou funcionários que estudavam até
em municípios do Estado de São Paulo, cursando o nível superior em
universidades particulares de Presidente Prudente.
Mas isso era para os poucos não-índios (brancos?) que
dispunham de dinheiro e, essencialmente, aqueles em que a vontade
ainda não fora assassinada pelo preconceito discriminador e
hierarquizante que intentava submetê-los, sem descanso, a uma segunda
humanidade: de classe subalterna e conformada. Os índios,
principalmente os guaranis e kaiowás, estavam fora dessa realidade,
não se sentiam estimulados a trilhar o caminho da educação formal,
mas também não queriam parar de caminhar; só não acreditavam
fielmente que ao fim de tal percurso educacional atingiriam o que
estavam a procurar.
A escola não servia a essas andorinhas, mormente com os
objetivos e os mecanismos que possuíam. Tempo ou energias faltariam
para poder prosseguirem a contento, com tamanho esforço: físico,
mental e psicológico, para agüentar as dificuldades de relacionamento.
O meio indígena na empresa devia ser o canavial. Se consumia
na Vila, que voltasse posteriormente aos seus aposentos; o desejo de
muitas das pessoas era que permanecessem invisíveis aos olhos da
comunidade; o máximo que podiam sentir para com os mesmos era
pena, mas até essa relação se mantinha via “equilíbrio distante”.
Estavam aquém, no final da década de 1990, da preocupação
imediata de sua única vereadora (sem partido político), que tentava
atuar em prol da construção de infra-estrutura viária e de esgoto para
os moradores fixados no local (aliás, mesmo no município de Dourados,
poucos eram os vereadores que buscavam melhorar a situação dos
índios aldeados).
Infelizmente, a grande maioria também não podia se furtar a
esse trabalho, sob pena de, não obtendo outro, ver ainda mais agravada
a sua situação. Foi o que nos disse em fins de 1999 um índio kaiowá de
17 anos que se encontrava alojado, e doente, na DEBRASA, nela
prestando os seus serviços no corte de cana queimada havia pelos
menos 4 anos; momento em que assegurou serem corriqueiros os casos
de índios adoecidos por “disenteria e febre, gripe” e, perguntado se
ainda estudava, respondeu que “não, parei na 5ª série”; sobre se
pretendia voltar a estudar: “Não, eu quero é trabalhar mesmo aqui na
Usina e, na aldeia, não quero mais ficar (...). Porque é muito ruim e não
tem trabalho, e não ganha dinheiro” (19/5/1999).
Mas essa não era visão única; houve casos em que índios mais
“velhos” afirmaram que, na DEBRASA, nunca mais voltariam a pisar
os pés: essa a opinião de índios mais experientes, que já haviam
trabalhado em outras empresas – ao contrário do jovem citado, que
sempre, em 4 anos, trabalhara na DEBRASA – e que, por comparação,
entenderam não ser a DEBRASA digna de seus serviços; planejavam
assim, mudar de empresa para continuar a manter a subsistência. Para
outros, que não nutriam essa possibilidade, indagados se gostavam de
trabalhar na DEBRASA, com um sorriso nada alegre respondiam que:
“Se num gostar... Tem que gostar”.Era esse o movimento da
engrenagem; eram essas as peças da estrutura, seus feitos e defeitos.

4. Palavras finais

O choque cultural, a modificação no conteúdo do trabalho, o


apartamento dos seus, como a impossibilidade de continuar sendo o que
eram, aliada à impossibilidade de serem o que lhes era figurado como
melhor, redundou em transtornos os mais variados (até suicídios de
corpo e alma, pois, antes de morrerem de fome já definhavam de
tristeza).
A polissemia do trabalho abstrato como a análise da esfera da
circulação no centro da economia, não teriam qualquer valia senão para
que entendêssemos a nós mesmos: olhar nos olhos índios para nos
enxergarmos; ele é o outro negado; uma possibilidade do humano; sob
muitos aspectos, o nós melhorado.
Bem que gostaríamos que a situação aqui narrada fosse obra de
um passado, de geografias socialmente apagadas, mas constantemente
nos deparamos com noticiários sobre a reprodução de trabalho escravo e
não-salariado no Brasil e no mundo, como denúncias de massacres de
índios na Amazônia pela cobiça das riquezas e de seus territórios.
O que, infelizmente, garante a atualidade desse trabalho, que
demonstra que há muitos “Outros 500” sobre a realidade brasileira que
precisam ser redescobertos.

5. Referências bibliográficas

ALEMÃO protesta em defesa de índios. O Imparcial. Presidente


Prudente, 21 de mar. 2000, p. A3.
ALVES, G. Trabalho e mundialização do capital. Londrina: Práxis,
1999.
____. O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo,
2000.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez, 1995.
____. (org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. Perdizes:
Boitempo, 1999.
____. Os sentidos do trabalho. Perdizes: Boitempo, 2000.
ARCE, E.R. Suicídio Guarani. Dourados: UFMS/CEUD, 1997.
BARBOSA, F. (org.). Clássicos da poesia brasileira. São Paulo: Klick,
1997.
BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998.
BRASIL é o 3º do mundo em desemprego. Opinião Socialista. ano V,
nº 89, 4/2/2000 a 19/2/2000.
CACHOEIRA usa “esquema PC” em negociação de dívida. Correio do
Estado. Campo Grande, 20 de out. 1992.
CAVALHEIRO, A.E. Direitos trabalhistas na mira do governo. Opinião
Socialista. ano V, nº 89, 4/2/2000 a 19/2/2000, p. 4.
COGGIOLA, O. Introdução à teoria econômica marxista. São Paulo:
Viramundo, 1998.
CRISE atinge indústria do álcool. Correio do Estado. Campo Grande, 5
de fev. 1992.
DEBRASA multada em CR$ 34 mil por contratação de indígenas.
Correio do Estado. Campo Grande, 17 de set. 1993.
DENUNCIADA escravidão em usina. Na destilaria Cachoeira,
trabalhadores estariam sendo vítimas de escravidão branca. Correio do
Estado. Campo Grande, 10 de maio 1991.
DESTILARIAS ainda aliciam trabalhadores. Correio do Estado.
Campo Grande, 22 de dez. de 1994.
DRT prepara processo para interditar duas carvoarias. Correio do
Estado. 9 de set. 1994.
EMPRESA é multada por aliciar grupos de índios. O Estado de São Paulo.
São Paulo, 16 de set. 1993.
EMPRESAS mantêm trabalho escravo no MS. Adultos e crianças devem aos
patrões mais do que recebem; destilaria cobra até por banho de rio. Folha de
São Paulo. São Paulo, 16 de set. 1993.
FIGUEIRA, R.R. Condenados à escravidão. In: BALDUÍNO, D.T. (org.).
Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1999, p.
165-208.
GOUNET, T. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São
Paulo: Boitempo, 1999.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. Ipiranga: Loyola, 1993.
HOBSBAWM, E.J. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
ÍNDIOS menores são explorados em destilarias. Correio do Estado.
Campo Grande, 21 de jul. 1994.
MANGOLIM, O. et al. Por que os Guarani e Kaiová se suicidam?
Campo Grande: CIMI/MS, 1997.
MEIHY, J.C.S.B. Canto de morte Kaiowá. São Paulo: Loyola, 1991.
MÉSZÁROS, I. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Ensaio,
1993.
MOREIRA, R. Os períodos técnicos e os paradigmas do espaço do trabalho.
Ciência Geográfica. Bauru: AGB, nº 16, p. 4-8, maio/ago. 2000.
____. Da região à rede e ao lugar. Revista Ciência Geográfica. Bauru:
AGB, nº 6, 1995.
MS produz 44,21% a mais de açúcar. Correio do Estado. Campo
Grande, 25 de jul. 1994.
OIT discute semi-escravidão em carvoarias. Correio do Estado. Campo
Grande, 22 de set. 1994.
PF instaura inquérito contra destilaria. Correio do Estado. Campo
Grande, 22 de maio 1992.
RIBEIRO, J.C.; THOMAZ JR., A. Entre a sepultura e a trincheira.
Revista Paranaense de Geografia. Curitiba: AGB, nº 6, p. 25-49, jun.
2001.
SOCORRO, pedem alagoanos de destilaria. Correio do Estado. Campo
Grande, 20-21 de jun. 1992.
THOMAZ JÚNIOR, A. Por trás dos canaviais, os (nós) da cana. São
Paulo Annablume/Fapesp, 2002.
____. “Leitura geográfica” e gestão política na sociedade de classes.
Boletim Gaúcho de Geografia. Porto Alegre: AGB, Ijuí: UNIJUÍ, nº
24, p. 31-42, 1998.
____. Reestruturação produtiva do capital e qualificação do
trabalho. Presidente Prudente, 2000a (mimeo).
____. Qualificação do trabalho: adestramento ou liberdade? Revista
Pegada. Presidente Prudente: CEGeT, vol. 1, nº 1, p. 5-16, set. 2000b.
VALENTE, R. Desemprego atinge 4000 índios no MS. Folha de São
Paulo. São Paulo, 27 de dez. 1998.
VILELA, R.B.V.; CUNHA, R.M.A. A experiência do Grupo Especial de
Fiscalização Móvel no combate ao trabalho escravo. In: BALDUÍNO,
D.T. (org.). Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Loyola, 1999, p. 35-41.
A Reciclagem de Materiais e a Diminuição da Vida Útil das
Mercadorias ∗

Marcelino Andrade Gonçalves ∗∗

A recuperação dos mais diferentes tipos de resíduos para o


reaproveitamento dos diversos materiais dos quais são compostos,
através do processo de transformação físico-química que tem como
finalidade devolver a alguns destes materiais as qualidades perdidas na
ação de utilização ou de consumo, conhecido como reciclagem76, tem,
sem dúvida, ganhado notoriedade nas últimas décadas no Brasil e no
mundo.
Essa atividade, que começa o novo século como uma “grande
novidade” da indústria brasileira, mobilizando diversos ramos industriais
e tendo a adesão de vários setores da sociedade neste processo,
sobretudo vem ganhando simpatizantes e apoiadores pelo fato de que ao
reciclar77 alguns tipos de materiais que compõem os resíduos


Este texto expressa as principais idéias que extraímos de nossa tese de doutorado,
defendida em março de 2006, sob orientação dos professores Antonio Thomaz Júnior e
Antonio Cezar Leal.
∗∗
Professor dos Cursos de Geografia e de História da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul/UFMS, Campus de Nova Andradina; membro do Grupo de Pesquisa
“Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT) )/UNESP/Pres. Prudente; e
do Grupo de Pesquisa “Gestão Ambiental e Dinâmica Sócio Espacial”
(GADIS)/UNESP/Presidente Prudente.
76
De acordo com Miziara (2001), a primeira atividade industrial ligada à reciclagem no
Brasil foi a da indústria de trapos, que iniciou suas atividades em 1896, com um
aumento significativo a partir de 1918, tendo como principal motivo para esse aumento
a Primeira Guerra Mundial, que gerou uma oferta grande do material que poderia ser
recuperado. A recuperação se baseava na desfiação e posterior reaproveitamento dos
fios. Nasce também nesse momento um circuito econômico que passa a envolver o
trabalhador conhecido como trapeiro, que fazia a recolha e o enfardamento desse
material para os depósitos de trapo e para as indústrias da cidade. Atualmente, o
reaproveitamento através da reciclagem se dá em vários tipos de materiais, como o
papel, os plásticos, os metais, etc.
77
A Reciclagem de resíduos sólidos tornou-se uma das principais recomendações
descartados, impede-se o desperdício dos mesmos, economiza-se energia
e diminui-se, em parte, o ritmo crescente dos problemas ambientais
causados pela grande quantidade de resíduos gerados na atualidade, que
em grande parte não têm uma destinação e tratamento correto na maioria
dos municípios brasileiros (JUCA, 2003). Contudo, a principal força
motriz desse setor da economia é a lucratividade.
A expansão das atividades ligadas ao circuito econômico da
reciclagem de materiais no Brasil78 vem ocorrendo em quase todos os
ramos desse setor e tem alcançado números recordes naqueles em que o
processamento industrial dos materiais garante maior ganho, com
perspectiva de uma expansão crescente, como é o caso do papel/papelão
e dos plásticos em geral.
O crescimento da atividade fabril no reaproveitamento dos
diversos materiais recicláveis é concomitante à expansão de toda uma
estrutura que dá suporte e sustenta esse circuito econômico, de maneira
que vemos a ampliação do número e a diversificação dos demais agentes
econômicos que dele fazem parte, sejam os comerciantes de pequenas ou
grandes quantidades de resíduos recicláveis, conhecidos como sucateiros
ou atravessadores, sejam os trabalhadores catadores, envolvidos nesta
atividade das mais diversas formas e situações, nos lixões, nas ruas, nas
centrais de triagem, organizados autonomamente, ou em cooperativas,
associações de catadores etc.
Toda essa dimensão social e econômica territorializa-se em
vários centros urbanos brasileiros, tornando-se uma atividade econômica
que ocupa um expressivo contingente de trabalhadores na atividade da
“catação”, em condições precárias de trabalho, envolvendo uma estrutura
de compra-venda, transporte e armazenamento e pré-processamento
dessas mercadorias, que conforma uma complexa trama de relações.

indicadas pela Agenda 21, documento redigido em 1992 durante a ECO 92.
78
Barciote (1994); Leite (2000); Cortez; (2000). Dados sobre a reciclagem no Brasil
podem ser acessados nos seguintes sítios: http://www.alcan.com.br/;
http://www.tomralatasa.com.br/; http://www.abepet.com.br;
http://www.cempre.com.br.
Trabalhadores que são os responsáveis pelo crescimento dos
índices de recuperação dos resíduos para o setor industrial da reciclagem
dos materiais no Brasil, e também pelo aumento dos lucros obtidos
anualmente por este setor.
Para o entendimento de toda essa complexa organização que
envolve o circuito econômico da reciclagem de materiais, torna-se
necessário também apresentar uma questão primordial, ou seja, a taxa de
utilização decrescente das mercadorias79 no sistema do capital e que está
fundada na diminuição da vida útil destas mercadorias, sejam elas bens
duráveis ou não duráveis. Assim, diminui-se a vida útil das duráveis e
acelera-se o consumo das não duráveis, procurando torná-las cada vez
mais descartáveis.
Para diminuir a vida útil dos bens ditos duráveis, a estratégia
adotada é torná-los mais frágeis fisicamente ou obsoletos antes mesmo
de que se tornem inaptos a realizarem aquelas funções, para as quais
tenham sido projetados e produzidos, tudo isso com a finalidade de
manter uma demanda incessante (MÉSZÁROS, 2002).
A obsoletização prematura dos objetos que leva a seu
descarte/substituição alimenta, por exemplo, a expansão de ferros-velhos
dentro dos perímetros urbanos, utilizados para a acumulação dos
materiais presentes nos deferentes objetos para que possam vir a ser
recuperados, comercializados e reciclados. Em alguns casos, geram-se
verdadeiras montanhas de sucata, como no caso dos ferros velhos que
recebem os automóveis, eletrônicos ou móveis já inúteis ou
“envelhecidos”.

79
No capítulo XV, do livro Para Além do Capital, István Mészáros (2002), realiza uma
profunda discussão sobre a taxa de utilização decrescente no capitalismo, mostrando
como ela está diretamente ligada às transformações, aos avanços realizados pela
própria produtividade. (p.639). De acordo com o autor, essa taxa se revela na
proporção variável, sob a qual determinada sociedade utiliza a sua capacidade
produtiva para a produção de bens de consumo rápido em variação à produção de bens
de consumo duráveis ou reutilizáveis, ou seja, ao diminuir a vida útil da mercadoria
acelera-se o ciclo reprodutivo do capital.
No Brasil, a obsoletização precoce tem levado, no caso dos
automóveis e eletrônicos em geral, a um outro fenômeno: o acesso da
camada mais pobre às mercadorias que anteriormente não podiam ser
consumidas. Assim, vimos popularizar o videocassete, à medida que
avança o comércio dos aparelhos e locadoras de DVD’s. Os carros
velhos passam para a propriedade daqueles que não têm renda suficiente
para adquirir um veículo novo. Quem já não ajudou a empurrar um fusca
69 ou uma Brasília 78? Isso, longe de ser uma benesse para os pobres,
para grande parte dos trabalhadores, só demonstra a capacidade que
ainda tem o capital de expandir-se em países com grandes diferenças de
renda como o Brasil. Aqui, o obsoleto ainda pode render algum dinheiro
que complemente a quantia necessária para sua substituição, já que pode
ser objeto de desejo daqueles que nunca poderão ter um novo.
Esse mecanismo, a obsoletização, se junta a outras contradições
existentes dentro do sistema produtor de mercadorias: como basear-se no
desperdício e fazer críticas à devastação ambiental; pregar a qualidade
total dos produtos80 e diminuir a sua vida útil, etc. De acordo com
Antunes (1999, p.51):

A qualidade total torna-se, ela também, a negação da


durabilidade das mercadorias. Quanto mais
“qualidade” as mercadorias aparentam (e aqui
aparência faz a diferença), menor tempo de duração
elas devem efetivamente ter. Desperdício e

80
De acordo com Antunes (1999), a necessidade do capital de ampliar cada vez mais a
produção de valores de troca, torna o projeto de qualidade total uma farsa, já que, o
movimento do capital em direção à garantia da qualidade é na verdade um movimento
em direção à diminuição da vida útil dos objetos. Desta forma a qualidade total não
deve impor-se como empecilho à taxa decrescente do valor de uso, estendendo os seus
efeitos destruidores até mesmo à força de trabalho humana. Todos sabemos o quanto
tem diminuído o tempo de duração das mercadorias, quão rápido tem se tornado o seu
“envelhecimento”, seja o físico, carros e geladeiras que apodrecem em tempos
relativamente curtos. (Geladeiras já não passam de mãe para filho) ou mesmo uma
obsoletização que se dá pela inovação, que torna o objeto velho, sem ter perdido a sua
função, bastam alguns novos botões e uma bela publicidade e, aqueles que podem,
substituem o não velho, mas “ultrapassado” objeto.
destrutividade acabam sendo os seus traços
determinantes.

O avanço da taxa de utilização decrescente das mercadorias


amplia também o descarte e a geração de resíduos, especialmente nos
lugares onde há grande concentração de consumidores. Sem contar que
esse processo está inscrito numa lógica de consumo que força a
aquisição de objetos que muitas vezes serão posteriormente inservíveis
para quem os adquire, como acontece com grande parte das embalagens.
Neste caso, ao comprar ou consumir determinados produtos que
serão ou não, de imediato, utilizados para a satisfação de alguma
necessidade, adquiri-se também os invólucros que os protegem ou os
tornam mais atrativos, a(s) sua(s) embalagem(s), que não são o principal
interesse do sujeito consumidor, que diante da sua “inutilidade” o
descarta. No entanto, todo esse aparato utilizado como embalagem faz
parte, compõe o preço final da mercadoria, que é a materialização de
uma imensa gama de forças produtivas organizadas socialmente e que ali
estão concretamente expressas.
Na atualidade, grande parte dos resíduos descartados, seja
resultado do consumo rápido (como as embalagens), ou do consumo de
um bem de vida útil relativamente longa, já foi em algum momento
objeto de industrialização, já passou por um processo de transformação
industrial mais ou menos complexo, dependendo daquilo que se
consome, sendo parte de uma lógica de produção e reprodução que
envolve diretamente a utilização/exploração e a organização do trabalho
humano.
Essa é a lógica da reprodução do próprio sistema produtor de
mercadorias e que não está pautada, ao contrário do que alguns
acreditam, em uma racionalidade que não permite o desperdício. Ao
contrário, desperdiçar pode ser interessante, mesmo que seja destrutivo.
O desperdício ganha mesmo “incentivos” legais. Algumas mercadorias
têm prazo de validade instituída legalmente, ou seja, passado o prazo
estipulado deverá ser substituída. Importante destacar que esses prazos
de validade estipulados legalmente, são os tempos do capital, a
legislação não obriga a indústria a produzir mercadorias que tenham vida
útil prolongada. Os legisladores, nesse e em outros casos, sofrem a
“pressão”, para estipular a durabilidade.
O crescente desperdício indica o aprofundamento da separação
entre o esforço produtivo que objetiva atender as necessidades humanas
e aquele que tem como finalidade a reprodução do capital
ampliadamente. E as conseqüências destrutivas desse processo são
potencializadas à medida que aumenta também a concorrência entre os
capitais. O maior exemplo disto está na destruição e na precarização das
condições de vida da força humana que trabalha e na expansão do
processo de degradação do meio ambiente na atualidade. Desta forma,
tanto os trabalhadores como as matérias-primas utilizadas para produção
das mercadorias são meios de reprodução do próprio sistema destrutivo
do capital. (ANTUNES, 1999).
O fato de que a atual organização social para a produção
demanda e utiliza um esforço conjunto, que consome/explora energia e
vida humana, não significa um consumo coletivo e igualitário dos frutos
desta mesma produção, não estabelece como prioridade do que foi
produzido a satisfação das necessidades humanas. A lógica do capital,
sob a qual esta mesma sociedade está organizada, define que o objetivo
da produção das mercadorias é satisfazer a necessidade de reprodução do
próprio sistema.
Para Marx (1988, p.45):

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo,

uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz

necessidades humanas de qualquer espécie. A

natureza dessas necessidades, se elas se originam do

estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa.

Aqui também não se trata de como a coisa satisfaz a


necessidade humana, se imediatamente, como meio

de subsistência, isto é, como objeto de consumo, ou

se indiretamente, como meio de produção.

Cada coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser

encarada sob duplo ponto de vista, segundo

qualidade e quantidade. Cada uma dessas coisas é

um todo de muitas propriedades e pode, portanto ser

útil sob diversos aspectos. Descobrir esses diversos

aspectos e, portanto, os múltiplos modos de usar as

coisas é um ato histórico.

É interessante ressaltar que essa mercadoria da qual estamos


tratando de forma mais específica e que faz parte de um determinado
circuito econômico (os resíduos compostos por materiais recicláveis)
serve de matéria-prima para a indústria da reciclagem e tem
características muito peculiares, se pensarmos o modelo de produção
vigente, pois utiliza como substrato para movimentar e reproduzir o
capital nessa cadeia produtiva, algo que outrora já fora industrializado,
consumido e depois descartado81, considerado inservível, transformado
em resíduo ou em lixo82.

81
Isso em todos os ramos dos diferentes produtos. Como sabemos a reciclagem é o
reaproveitamento de material através de um processo físico-químico que recupera as
suas potencialidades de uso, tornando-o inservível em servível, e é claro, recuperando
também o valor de troca destas mercadorias.
82
As definições encontradas para resíduos, ou lixo, são muito próximas: a) Resíduo;
Desta forma, o que foi mercadoria com determinadas qualidades
em um circuito específico, assume na condição de resíduo reciclável
outras qualidades, novamente como mercadoria, mas agora dentro de um
outro circuito econômico, que se estrutura e conta com a participação de
outros atores, mas tudo dentro da mesma lógica do capital.
Assim, a geração dessa matéria-prima, o resíduo reciclável, está
ligada diretamente ao consumo de outras mercadorias, que satisfazendo
ou não as necessidades daqueles que a consumiram, geraram sobras,
resíduos.
A satisfação de necessidades não é o objetivo primeiro de
nenhuma mercadoria produzida sob a égide do capital. Para Mészáros
(2002, p.659), como resultado, útil torna-se sinônimo de vendável, pelo
que o cordão umbilical que liga o modo de produção capitalista à
necessidade humana pode ser completamente cortado, sem que se perca
a aparência de ligação.
Neste sentido a produção capitalista não visa primordialmente à
satisfação da necessidade dos produtores diretos, ou de qualquer outro
membro da sociedade. O seu fim é garantir o ímpeto de reprodução do
capital através do consumo, e esta é a racionalidade, a razão que lhe dá
sentido. Daí, pouco interessar a utilidade ou o desperdício das
mercadorias por quem as adquire, desde que ela cumpra a sua função no
sistema do capital. De acordo com Mészáros (2002, p.661):

Se baixarmos o valor de uso de uma mercadoria, ou


criarmos condições para que ela só possa ser
consumida “parcialmente e com menos proveito”,
esta prática, não importa o quanto seja censurável de
qualquer outro ponto de vista, tal como no caso
anterior, não afetará o seu valor de troca. Uma vez
que a transação comercial tenha ocorrido, auto-

material ou resto de material cujo proprietário ou produtor não mais considera com
valor suficiente para conservá-lo. b) Lixo; um subproduto do conjunto de atividades
desenvolvidas pela sociedade com o objetivo de atender as suas necessidades de
consumo. (BARCIOTTE,1994)
evidenciando a utilidade da mercadoria em questão
por meio do seu ato de venda, nada mais há com que
se preocupar do ponto de vista do capital. De fato,
enquanto a demanda efetiva do mesmo tipo de
utilização é reproduzida com sucesso, quanto menos
uma mercadoria é realmente usada e reusada (em vez
de rapidamente consumida, o que é perfeitamente
aceitável para o sistema), melhor é do ponto de vista
do capital: já que tal subutilização torna vendável
outra peça da mercadoria.

E é de acordo com essa lógica de desperdício que o que era


mercadoria, ou suporte de realização de uma outra mercadoria –
sabemos, por exemplo, que não se compram refrigerantes sem
embalagem, mesmo que este não seja o seu objeto de interesse - passa a
ser no momento do seu descarte, inservível, lixo, perdendo totalmente a
sua função, passando então neste contexto a ser entendido como
dispensável83.
Mas o que acontece com esses objetos no momento em que deles
nos desfazemos? Sofrem alguma transformação físico-química, ou
passam a sofrer de algum mal que nos atingirá se com ele
permanecermos?

83
A maior expressão dessa tendência está no crescimento da fabricação e do consumo
de produtos que se encontram em embalagens descartáveis e que geram uma grande
quantidade de resíduos sólidos nos domicílios e que não são aproveitados pelo
consumidor. As embalagens reutilizáveis estão sendo em sua maioria substituídas pelas
ditas descartáveis que facilitam o transporte e a comercialização dos produtos, não
exigindo uma logística de recolha, por exemplo, não obstante, aumentando a
lucratividade das empresas produtoras de embalagens. De acordo com o Engenheiro
Agrônomo Cícero Bley Junior, em palestra realizada durante o II Festival Lixo e
Cidadania, realizado em novembro de 2003 em Belo Horizonte, em 1999, foram
produzidas 5 milhões de toneladas de embalagens, posteriormente descartadas,
transformadas em lixo, gerando, pois, gastos públicos na sua coleta, tratamento e
disposição.
O que temos nesse exemplo, como aponta Mészáros (2002), é o
cumprimento de um destino previamente traçado. Tanto as mercadorias
produzidas e pensadas como suporte ou atrativos para a realização do
consumo de outras mercadorias, as embalagens, quanto as que são
diretamente objeto do desejo, participam de um imenso sistema que
pressupõe a garantia da reprodução ampliada do capital, sendo o
consumo o momento de realização de todo esse processo.
Nesse ato de consumo, é que se realiza o objetivo de todos os
capitais envolvidos na fabricação, transporte e comercialização daquela
mercadoria, composta não só pelo que será de imediato ou
posteriormente consumido, mas também pelo que será rejeitado. Um
rejeito que poderá vir a alimentar um outro circuito econômico, como é o
caso de grande parte dos resíduos recicláveis.
Com a massificação do consumo a prática do desperdício na
sociedade do capital, resultado do aumento da taxa de utilização
decrescente da mercadoria, passa a ser entendida como uma situação
pertinente, mesmo natural, não despertando no conjunto da sociedade
questões que possam colocar em discussão de maneira mais profunda tal
processo, que empenha um conjunto de forças produtivas na elaboração
de um objeto para posteriormente descartá-lo. Se bem que no caso dos
recicláveis que interessam ao mercado, esse desperdício alimenta toda
uma complexa trama de relações que envolve os trabalhadores catadores,
comerciantes e indústrias.
Neste mesmo sentido, se apresenta também como perfeitamente
normal a realidade de que, junto a esse contexto de perdas, se acentuem
os problemas ambientais consorciados à miséria de grande parte da
população mundial84, em todas as escalas. Essa é uma contradição que

84
Sabemos que mesmo nos países em que o capital se encontra em um nível de
desenvolvimento e de organização avançados, não se tem uma distribuição equânime
de renda e nem menos acesso ao que é produzido de forma igualitária pela sociedade.
Na escala mundial, as diferenças entre os que podem consumir e os que não podem são
gigantescas e se apresentam de forma a ressaltar a barbárie em que vivemos. Como
exemplo, temos a sociedade norte americana que, por excesso de consumo de calorias
tem um alto índice de obesidade. Fato que gera graves problemas de saúde nas mais
diferentes faixas etárias, enquanto que em vários outros continentes e mesmo nos
permanece sempre obscura para essa mesma sociedade. É nesta
conjuntura que a taxa de utilização decrescente das mercadorias
demonstra a sua utilidade como artifício para a manutenção do sistema
do capital. Para Mészáros (2002, p.655):

A taxa de utilização decrescente assumiu, na


atualidade, uma posição de domínio da estrutura
capitalista do metabolismo socioeconômico, não
obstante ao fato de que, no presente, quantidades
astronômicas de desperdício precisem ser produzidas
para que se possa impor à sociedade algumas das
suas manifestações mais desconcertantes.

O desperdício é expressão da taxa decrescente de utilização, que


abrevia a vida útil das mercadorias e gera uma grande quantidade de
resíduos, de coisas que não servem mais para quem as dispensa. No
entanto, sabemos que esse objeto, agora sem utilização, não perdeu as
suas características físico-químicas, nem sua forma corpórea deixou de
ser fruto de trabalho humano socialmente organizado. O que acontece é
que ele está no momento de seu descarte, posto fora de um contexto
social e econômico que lhe dava sustentação enquanto objeto útil e
ingressa em outro contexto socioeconômico e político.
Esse mesmo objeto é que mantém suas qualidades físico-
químicas, contém em si trabalho humano incorporado, mas é
considerado no momento do descarte sem valor de uso, por isso sem
valor de troca traz, pela qualidade inerente ao material do qual foi
produzido e pelo avanço da técnica de reciclagem, a qualidade de ser
recuperado, seja para cumprir a mesma função, ou mesmo para

E.U.A. há fome. A face mais destrutiva do atual sistema de produção está expressa
também no consumo da energia produzida no mundo. Os americanos, que perfazem
menos que 5% da população mundial, consomem 25% dos recursos energéticos
disponíveis (ANTUNES, 1999). Se este for o padrão a ser seguido pela humanidade,
logo não haverá recursos suficientes no planeta que garantam a continuidade da sua
existência.
desempenhar outras. Mas qual será o estímulo que levará a esse
reaproveitamento do material antes descartado em forma de resíduos?
Em que base se estabelece a lógica da reinserção desse objeto como
matéria-prima no circuito produtivo, para trazê-lo de volta à “vida” no
sistema reprodutor de mercadorias, para que possa, mais uma vez,
realizar a sua função no processo de reprodução do capital?85.
Para tanto, é preciso dizer que estas mercadorias, os resíduos
compostos por materiais recicláveis, matéria-prima para o processo
produtivo em questão não têm afloramento na natureza, não se
disponibilizam naturalmente nos campos ou em nenhum outro lugar.
Apesar de serem em sua maioria produtos derivados de elementos
encontrados na natureza, não se produz alumínio sem bauxita, etc. Como
dissemos, a sua existência tem correlação direta com o rejeito gerado no
consumo de outras mercadorias e em decorrência da forma como a
sociedade está organizada para sua produção/reprodução.
Com o aumento do consumo e a diversificação dos produtos,
atrelados ao desperdício, se estabelece o aumento da quantidade de
resíduos sólidos gerados. Temos nesse processo a ampliação da
quantidade/qualidade de materiais que podem ser reciclados, posto que
nem todos os resíduos têm esse potencial, ou, ainda que o tenha, essa
potencialidade pode não vir a despertar interesse econômico nos setores
industriais envolvidos com a reciclagem.
Por mais que a reciclagem industrial assuma e se vincule a um
discurso político e ambientalmente correto de preservação ambiental, a

85
Ao procurarmos entender os estímulos para o interesse do capital industrial em se
organizar para gestar a cadeia produtiva da reciclagem de materiais, devemos nos
atentar para a lógica do sistema produtor de mercadorias que está pautada no princípio
de que antes de tudo a produção destas deve ter como fim o consumo. Não qualquer
tipo de consumo, mas o consumo enquanto ação mediada pelo dinheiro e que objetive a
reprodução do capital. Sabemos que a produção de mercadorias no capital não objetiva
a satisfação das necessidades, pois se assim fosse todos os famintos teriam, não só
legitimidade, mas acesso garantido à comida. No entanto, pode-se ter fome em frente à
comida, porém, sem dinheiro não se pode comer e assim para todas as outras
necessidades.
atividade industrial, seja ela qual for, só se realiza ou se estimula com a
garantia do lucro e da reprodução ampliada do capital. E como afirmou
José Tardelli Filho,86 em palestra realizada em 1993, em Seminário sobre
resíduos sólidos, organizado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente
de São Paulo (1993, p. 102):

Para abordar o aspecto da reciclagem das

embalagens de um modo geral, temos que entender

três fatores principais: os aspectos tecnológicos; os

aspectos relativos à recuperação dos materiais, e,

finalmente os aspectos do mercado, pois sem

mercado de nada adianta a tecnologia e o material.

Uma outra contradição está no fato de que a produção crescente


de mercadorias e a geração de resíduos sólidos, de lixo, revelam uma
expansão desigual do consumo entre os diferentes grupos sociais, pois
sabemos ser relativamente pequeno o número de pessoas no Brasil, e
mesmo no mundo, que, têm poder de consumo que lhes possibilite um
padrão de vida confortável e que permite o acesso aos principais bens
produzidos.
Ao contrário, esse fato demonstra uma face concentradora e
destrutiva do modo capitalista de produção, que mesmo mantendo
grande parte dos seres humanos sem nenhuma ou com pouca
possibilidade de satisfazer suas necessidades básicas através do consumo
mediado pelo dinheiro, eleva sobremaneira a sua produtividade,
mantendo o poder de consumo, por parte daqueles que estão em
condições sociais e econômicas de fazê-lo, cada vez mais intenso.

86
Representante do Sindicato da Indústria da Estamparia do Estado de São Paulo.
A insanidade da lógica do capital chega ao extremo da produção
de mercadorias para a destruição. Temos exemplos na história
contemporânea neste sentido, como o caso do café no Brasil no início do
séc.XX, em que mercadorias que não conseguiram, por motivos
mercadológicos, seja a queda de preços ou diminuição do lucro por parte
dos seus detentores, se realizar no mercado de consumo foram
simplesmente destruídas, queimadas ou enterradas. (FOLADORI, 2001).
O excesso na produção não possibilita que mais pessoas possam
consumir, leva contraditoriamente à destruição, já que a finalidade não é
a satisfação da necessidade mas o imperativo de reprodução do capital.
Não é raro vermos nos noticiários, manifestações de produtores rurais
que realizam protestos despejando litros e mais litros de leite no solo ou
nos cursos d’água, ou ateando fogo a produtos que não alcançam bons
preços.
De acordo com Antunes87 (1999) a pista para o entendimento
dessa questão passa pelo desvendamento da lógica que move (funda) o
capital, qual seja, a da produção voltada para o atendimento da
necessidade de se auto-reproduzir ampliadamente, não estando em
questão as condições sociais, políticas, econômicas e ambientais sob as
quais esse processo se realiza. Para Antunes (1999, p. 26):

Quanto mais aumentam a competição e a

concorrência inter-capitais, mais nefastas são suas

conseqüências, das quais duas são particularmente

graves: a destruição e/ou precarização, sem

paralelos em toda era moderna, da força humana

87
Antunes (1999) apoiando-se em Mészáros (1995) afirma que: “Essa tendência
decrescente do valor de uso das mercadorias, ao reduzir sua vida útil e desse modo
agilizar o ciclo produtivo, tem se constituído num dos principais mecanismos graças ao
qual o capital vem atingindo seu incomensurável crescimento ao longo da história”.
que trabalha e da degradação crescente do meio

ambiente, na relação metabólica entre homem,

tecnologia e natureza, conduzida pela lógica

societal subordinada aos parâmetros do capital e do

sistema produtor de mercadorias.

A partir do raciocínio apresentado, podemos nos atentar para as


dimensões dessas conseqüências que atingem principalmente a classe
trabalhadora. Levando-se em conta que a taxa decrescente do valor de
uso das mercadorias, implica na subutilização das potencialidades
produtivas empregadas e consequentemente na desvalorização da força
de trabalho, que passa também a ser, como mercadoria, considerada
descartável. Isso porque todo o potencial desenvolvido e empregado na
produção de determinada mercadoria será descartado, inutilizado, assim
que esta cumprir a sua função enquanto valor de troca. Todas as horas de
vida aplicadas e voltadas para a sua produção irão também para o lixo.
Todo um potencial criativo humano, aliado à técnica, é capturado
e aplicado na produção de algo que acabará rejeitado.
No entanto, houve toda uma orquestração para que ela fosse
produzida, e uma parte desta mesma sociedade, aquela obrigada a viver
da venda da sua força de trabalho, empenhou sua vida nesse processo de
criação, produzindo coisas que não terão utilidade, o que aponta para
mais uma contradição no sistema metabólico do capital.
A contradição que nos salta aos olhos nesse processo, e que
causaria confusão a qualquer um que não procurasse entendê-la no
movimento de produção/reprodução do capital, é a de que a sociedade
está organizada sob um sistema produtivo que obriga uma classe social,
a que vive da venda da sua força de trabalho, a produzir sem objetivar
consumir a sua produção, levando o conjunto desta mesma sociedade a
adquirir nos mercados objetos que não terão serventia alguma, mas que
participam da composição do preço final de determinada mercadoria que
irá lhe satisfazer determinada necessidade. Para Mészáros (2002, p.663):

Conseqüentemente, não importa quão absurdamente perdulário possa ser um

procedimento produtivo particular; contanto que seu produto possa ser

lucrativamente imposto ao mercado, ele deve ser saudado como

manifestação correta e apropriada da “economia” capitalista. Assim, para

dar um exemplo, temos uma situação em que 90% do material e dos

recursos de trabalho necessário para produzir e distribuir uma mercadoria

lucrativamente comercializável – digamos um produto cosmético: um creme

facial – sigam, física ou figurativamente, diretamente para a lata do lixo da

propaganda eletrônica como um tipo qualquer de embalagem (implicando,

apesar de tudo, custos efetivamente reais de produção) e apenas 10% sejam

dedicados ao preparo químico que supostamente deve conceder os

benefícios reais ou imaginários do próprio creme ao comprador.

Apesar dos absurdos gerados pelo sistema produtor de


mercadorias, as contradições existentes e que envolvem a sociedade na
atual forma de organização para produção, comandada pela lógica
societal do capital, apesar de se fortalecerem e de se colocarem cada vez
mais presentes na cotidianeidade de toda sociedade, tendem a ser
compreendidas, quando percebidas, como intransponíveis, assim como
insuperável seria a forma de organização para a produção que gera tais
contradições, ou ainda, como tendo causas naturais, portanto, se
resolveriam no decorrer do próprio processo que as gera.
As críticas realizadas a respeito do processo destrutivo em que se
encontra envolvida toda a humanidade são vistas, muitas vezes, como
desprezíveis e sem nenhuma razão de ser, pois para aqueles que
acreditam na solução dos problemas pelo movimento do próprio sistema,
que crêem na dissolução destas contradições com o passar do tempo,
mesmo mantendo-se intacta a lógica de todo o sistema do capital,
colocar em questão a lógica do sistema atual é pôr em questão todas as
“benesses” alcançadas até o momento. Seria voltar a viver nas cavernas.
Para Berrios (2002, p.28):

Para todos que estamos dentro da economia de


mercado, furtar-nos do modelo capitalista imperante
seria desafio praticamente inatingível; todos os
nossos atos cotidianos, toda a produção de bens e
serviços estão comandados pela ordenação
capitalista da qual não se pode escapar. Não
obedecer aos chamamentos da publicidade, à
aquisição de objetos realmente necessários e
duráveis, resistir às vendas promocionais, ao
impedimento do consumo de mercadorias
descartáveis, ao cerceamento das vendas
convidativas e promocionais e de todos os desafios
que colocam os empresários que desejam
incrementar a produção e as vendas, são objetivos
muito improváveis de conseguir.

Desta maneira, questões como o crescente consumismo e o


desperdício alimentado atualmente pelo processo baseado na taxa
decrescente de utilização das mercadorias, que é uma das formas de
garantia de sobrevivência e de reprodução ampliada do capital e,
conseqüentemente, da atual forma de organização social para a
produção, que tem desdobramentos negativos dos mais variáveis para
esta mesma sociedade e seu meio ambiente, são aparentemente
insolúveis, mesmo que sejam decifráveis. Daí, muitas vezes alguns
teóricos tomarem a atual situação como sendo insuperável, apesar de
todos os problemas que apresenta. Para Scarlato e Pontin (1992, p.104):

Chegamos a um ponto de desenvolvimento no qual


recuar é quase impossível ou impraticável, em
grande parte devido à natureza e à complexidade dos
interesses envolvidos [...] Mesmo assim, é inegável
que a crise ecológica remete a uma crise de valores
humanos. E porque nem sempre a lógica determina a
decisão, dilemas desta natureza são muito difíceis de
serem equacionados.

A fuga das amarras e dos tentáculos do capital seria impossível.


Deste ponto de vista, consumir as mercadorias seria quase como um
preceito da natureza humana no atual contexto, deixar de fazê-lo seria
improvável ou até inadmissível. Assim, para alguns, a modificação e o
fundamento da sociedade em outras bases que não a da lógica do
desperdício da produção não seria possível, dados, os “avanços”
alcançados.
Ao abordar o tema da impossibilidade do controle da ação
depredatória do capital, que levaria, de acordo com algumas
interpretações, ao “retorno à caverna”, Mészáros (2002) argumenta que
o problema não está em discutir a possibilidade do retrocesso, ou parar
com os avanços técnicos e tecnológicos trazidos pelas transformações no
modo de produção capitalista, que geram novas necessidades e novas
mercadorias a todo o momento. A questão que se põe é a incapacidade
do sistema de tolerar os limites e observar as conseqüências dos
processos desencadeados e suas implicações, que podem trazer grandes
problemas, em todos os sentidos, em longo prazo para a humanidade
como um todo, pois é clara a impossibilidade de sustentar a crescente
degradação humana e ambiental causada por esta forma de organização
para produção.
A não observância dos limites é, para Mészáros (2002, p.256),
um problema prático fundamental e sem solução dentro da estrutura do
capital. Neste sentido, não se trata de um defeito que possa ser corrigido,
sendo na verdade o resultado de determinações e contradições
imanentes. Para o autor, o sistema realmente não sabe onde parar.

Em outras palavras, o problema é que, na estrutura


desse sistema, não pode haver critérios objetivos
quanto ao tipo de metas produtivas a serem adotadas e
perseguidas, e quais outras poderiam a longo prazo,
revelar-se bastante problemáticas. Além disso, a
ausência de tais critérios não é de modo algum
acidental, pois, enquanto os limites do capital não
forem atingidos, a questão de divisar uma alternativa
ao “aumento das Necessidades da Vida sem qualquer
Necessidade” parece ser totalmente desprovido de
qualquer significado prático.

Desse modo, o sistema capitalista gera inumeráveis necessidades,


criando meios para que alguns poucos tenham a necessidade satisfeita e
passem a pensar ser impossível viver sem criar novas necessidades,
impedindo a observância dos limites. Por comodidade podemos aceitar
passivamente a idéia de que não deve haver fronteira para esse
movimento. No entanto, o não deve ter, não significa que não haja
limite. MÉSZÁROS (2002)
O fato é que, mesmo que haja todo um aparato ideológico,
político, econômico e de mídia que sustente a atual forma do sistema
produtor de mercadorias, nos impressiona a maneira de como escapa,
para muitos, a contradição entre a crescente produção e o aumento da
exclusão de camadas cada vez maiores da sociedade, do acesso aos bens
produzidos.
O que vemos é que para grande parte dos que têm acesso e poder
para o consumo, é descalabro, uma impropriedade, escapar do apelo ao
consumo dos objetos cada vez mais novos e “necessários”. Sem pensar,
no entanto, que grande parcela da sociedade escapa, e mesmo sem
querer, está fora da possibilidade de consumir os bens básicos para a sua
reprodução, como por exemplo, os alimentos.
No entanto, os que se encontram sem possibilidade de participar
da “grande festa do consumo” são lembrados e sempre fazem parte dos
discursos generalizantes que procuram distribuir a “culpa” pelos
problemas causados por esta mesma lógica destrutiva. Como nos lembra
Rodrigues (1998, p.206):

Os resultados são amargos: a industrialização e o

acesso aos produtos industrializados são um luxo

exclusivo de pequena parcela da população

mundial. Porém os efeitos destrutivos da produção

atingem a todos os habitantes do planeta,

especialmente os extratos mais pobres,

demonstrando outra face da mesma moeda. São

excluídos das “benesses” mas incluídos nos

problemas e considerados grandes poluidores.

Na sociedade regida pela lógica do capital, temos uma


“distribuição” das responsabilidades e culpabilidades sobre os problemas
gerados. Portanto, aqueles que também vivem e se reproduzem em
condições totalmente desiguais e que estão à margem da “grande festa
do consumo” são considerados igualmente responsáveis. Os empresários
e industriais que controlam os processos produtivos, exploram o trabalho
e lucram com a produção e a comercialização das mercadorias podem
ser entendidos, nessa divisão simplista de responsabilidades, como pares
daqueles que não possuem outra coisa que não a si mesmos.
Junto à fome vemos crescer o desperdício do que é produzido. E
como forma de lucrar e amenizar o desperdício das mercadorias nota-se
o crescimento dos ramos industriais que se especializam na recuperação
daquilo que após o consumo torna-se lixo. A reciclagem e o
reaproveitamento de diversos materiais que compõem os resíduos se
apóiam, contraditoriamente, em um discurso de preservação ambiental.
Ou seja, reaproveitamos o que desperdiçamos.
Esse fato nos permite perceber que o processo
produtivo/destrutivo do capital envia para o lixo uma grande quantidade
de energia passível de ser recuperada, ou seja, energia em forma de
objeto que não foi totalmente utilizada, ou não se exauriu com consumo
da mercadoria. A indústria da reciclagem se estrutura para recuperar e
colocar no mercado o que foi descartado, claro que nesse processo
recuperando o seu valor de troca. É fato que com isso há diminuição do
desperdício dos materiais, porém, somente nos setores e até o momento
em que o capital empregado estiver sendo reproduzido ampliadamente.
O benefício ambiental, neste caso, é uma causa menos importante.
Desta forma, para compreender o processo que envolve a recolha
dos resíduos, a expansão da reciclagem e o retorno dos materiais ao
circuito econômico como mercadoria, precisamos analisar o processo
social e econômico sob o qual ele se configura, de maneira que
possamos esclarecer as “motivações” da reciclagem de materiais em um
contexto histórico e social em que o capital procura perpetuar a sua
reprodução, verticalizando a sua ação destrutiva sobre o trabalho e,
claro, sobre a classe trabalhadora, neste caso específico, com
implicações diretas ao conjunto de trabalhadores envolvidos diretamente
no circuito econômico da reciclagem, que atuam na catação/recolha da
matéria prima “lixo”.

2.1 Trabalho vivo na catação do trabalho morto

O aprofundamento da tendência à diminuição da vida útil das


mercadorias e o crescente desperdício, são elementos importantes para
que possamos entender o problema relacionado à geração de resíduos
sólidos em geral - o desemprego - e compreendermos também as
determinações e contradições que envolvem o circuito econômico da
reciclagem dos materiais e o trabalho na catação dos resíduos
recicláveis.
Isso porque, se, como apresentamos, a lógica reprodutiva do
capital pressupõe encurtar a vida útil e obsoletizar as mercadorias a fim
de acelerar e expandir o processo reprodutivo do capital, o que
estimularia então a recuperação dos materiais presentes em alguns tipos
de resíduos sólidos?
Como vimos, há uma diversificação das técnicas, dos processos
industriais e das formas de coleta e aproveitamento dos resíduos em
questão, o que implica em uma heterogeneização das formas de
utilização/exploração do trabalho para esse fim, fato este que estimula a
constituição de uma complexa organização de compra, venda e de
circulação dessas mercadorias, lucrativa para alguns.
Organização esta que se baseia em relações econômicas formais e
informais, dependendo do momento e dos agentes envolvidos neste
circuito, e na exploração do trabalho na catação dos resíduos recicláveis.
No entanto, se a tendência é diminuir, encurtar ao máximo a vida
útil das mercadorias, não seria um contra-senso criar formas para
recuperar parte delas? Ou seria mesmo uma tentativa de diminuir os
efeitos do desperdício gerado por um descarte ainda prematuro?
Em nossa compreensão, essa expansão tem como motivo
principal, claro, a possibilidade que os empresários enxergam de
reproduzir ampliadamente o seu capital ao empregá-lo nesse setor. Mas
quais seriam os fatores garantidores dessa lucratividade, em um circuito
econômico que lida com o que foi descartado, transformado em lixo?
A nosso ver, são duas as dimensões a serem analisadas para que
possamos compreender essa lucratividade. Uma delas é relativa ao
trabalho empregado na catação dos recicláveis realizado pelos catadores,
que nas situações mais adversas separam aqueles que interessam para o
mercado, da massa total do lixo. A outra é a possibilidade de recuperar o
trabalho já materializado nesses objetos, “mercadorias”.
Discorreremos sobre a primeira. Como sabemos, os trabalhadores
catadores são no Brasil a base de um imenso circuito econômico, o da
reciclagem de materiais, porém, mesmo tendo um papel ativo e
importante, pois, são os responsáveis por recuperar essas matérias-
primas do meio do lixo onde estavam “perdidas”, trabalham em
péssimas condições e são mal remunerados, não tendo nenhum vínculo
formal com os outros agentes que atuam no setor, sucateiros,
recicladores, etc..
Desta forma, a exploração de seu trabalho em condições
insalubres, precárias e com a utilização de instrumentos rudimentares,
garante que a mercadoria recolhida por eles, e que retorna ao circuito
mercantil, possa ser comprada a um preço que permita o seu
processamento e posterior comercialização, mantendo uma atraente
margem de lucro, que variará de acordo com as especificidades de cada
material, em momentos econômicos específicos.
Se os trabalhadores catadores mantivessem uma relação
trabalhista formalizada com as indústrias recicladoras ou com os
atravessadores, se realizassem o trabalho de catação e de separação em
local e em condições técnicas e de salubridade adequadas, tudo isso
representaria aumento dos custos e, conseqüentemente, a diminuição dos
lucros, ou mesmo a inviabilidade de alguns desses empreendimento. Daí,
considerarmos ser ambientalmente incorreto reciclar nesses moldes em
que o trabalho é explorado e mantido precarizado no limite,
representando riscos à saúde dos trabalhadores catadores.
Pode-se imaginar o quanto custaria para os
compradores/atravessadores garantir as botas, as luvas, as máscaras e os
veículos adequados para coletar e transportar os resíduos recicláveis, na
substituição dos pesados carrinhos que são empurrados pelas ruas, e o
que isso representaria na sua lucratividade e no consumo de wisk
semanal.
Neste setor, as pequenas mudanças que acontecem no sentido de
melhorar o processo de trabalho na catação e triagem dos recicláveis,
ocorrem quase sempre a partir da constituição e instrumentalização das
cooperativas de catadores. Estas organizações são quase sempre frutos
de investimentos feitos a partir de doações e de políticas públicas, além
do próprio trabalho dos catadores, não representando custos para as
empresas envolvidas. Mesmo os custos da formalização do trabalho nas
cooperativas recaem sobre os trabalhadores, que pagam os impostos com
parte do rendimento obtido com o trabalho.
Ou seja, o aprofundamento das condições precárias em que
desempenham suas atividades, representa a certeza do aumento da
lucratividade dos setores industriais ligados à reciclagem.
A segunda dimensão a ser analisada é que a recuperação, através
do processo de reciclagem, não revitaliza só as propriedades físicas e
químicas dos materiais que compõem determinado objeto, que se tornou
resíduo, mas revigora também o valor atribuído pelo trabalho utilizado
em sua produção anterior, e que nele continua incorporado. A
recuperação do valor de uso dos materiais que compõem os resíduos
tende a trazê-los com amplas possibilidades de uso ao mundo das
mercadorias, objetivando recuperar o seu valor de troca. De acordo com
Bihr (1999, p.126):

Em primeiro lugar, o capitalismo só se interessa por


um valor de uso à medida que ele é suscetível de
preencher uma função de suporte de uma relação de
troca. Portanto, somente à medida que nele se acha
valor materializado, que ele é produto de um trabalho
humano.

Neste aspecto, podemos afirmar que apesar da taxa de utilização


decrescente atingir todas as mercadorias, conservando a potencialidade
de reaproveitamento em vários resíduos, nem todos serão recuperados,
mesmo sendo fruto do trabalho humano e compostos por materiais
potencialmente recuperáveis. Só aqueles que reunirem as “qualidades”
necessárias como: tecnologia disponível para recuperação, geração
contínua e em grande escala, mercado de consumo garantido e trabalho
precário empregado, grande número de trabalhadores disponíveis, baixos
custos e lucratividade no empreendimento, farão parte desse grupo
seleto.
Neste contexto, o que os trabalhadores catadores recolhem nos
lixões e nas ruas não é um lixo qualquer, um objeto qualquer, mas
produtos que têm trabalho humano incorporado e que possuem
determinado valor de uso e posteriormente de troca, para indústria da
reciclagem, o que possibilita a sua comercialização.
Assim, aquele objeto que era ou compunha determinada
mercadoria, e em um outro contexto social e econômico foi considerado
lixo, a partir da apropriação feita pelo catador que irá trocá-lo por
dinheiro, recolocando-o novamente em um circuito econômico, passará
por um processo de reciclagem, valorização e assumirá novamente
variadas possibilidades de uso, retomando e ampliando o seu papel no
mundo das mercadorias.
Mas é claro que no momento em que esses objetos/resíduos são
apropriados pelos catadores para fins de comércio, já têm seu valor como
mercadoria, mesmo que seja irrisório. É claro que não se trata de uma
mercadoria de interesse amplo, grande parte da sociedade não se
interessa e não vê utilidade nos resíduos recicláveis, por isso os
descartam.
Estas mercadorias, os resíduos compostos por materiais
recicláveis, ao serem levadas para as indústrias recicladoras, passarão
por um processo de transformação. O processo de trabalho na indústria
possibilitará uma renovação das condições físicas e químicas dos
materiais, conferindo-lhes a potencialidade de novas aplicações e usos
(GONÇALVES, 2000).
O que foi mercadoria, produto do trabalho humano, e tornou-se
lixo assume novamente, em uma condição mais ampla, o seu valor de
uso, ampliando após a sua renovação o seu potencial como valor de
troca. Nesse sentido, o trabalho vivo revitaliza essas mercadorias. Para
Marx (1988, p.146):

O ferro enferruja, a madeira apodrece. Fio que não é usado para tecer ou

fazer malha é algodão estragado. O trabalho vivo deve apoderar-se dessas

coisas, despertá-las entre os mortos, transformá-las de valores de uso apenas

possíveis em valores de uso reais e efetivos.


No entanto, a recuperação do valor de uso real e efetivo, no caso
dos materiais contidos nos resíduos recicláveis, não objetiva
prioritariamente a satisfação de uma determinada necessidade social. O
objetivo do capital empregado nesse processo de recuperação dos
valores contidos nos resíduos é criar, como afirma Bihr (1999), um
suporte para a realização do valor de troca, seguindo a lei geral do
sistema capitalista. Os fabricantes de materiais reciclados buscam
colocar à venda uma mercadoria com valor maior do que os custos
exigidos para produzi-la. Nas palavras de Marx (1988, p.148):

para nosso capitalista trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um

valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma

mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja

mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-las,

os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou seu bom

dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma

mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também

mais-valia.

Desta forma, encontramos o elemento mais “atrativo” para o


capital empregado no processo industrial de reciclagem e do capital em
geral, apontado aqui por Marx (1988), que é a produção de mais-valia, a
apropriação do trabalho não pago utilizado no processo produtivo das
mais variadas mercadorias. Inclui-se aí os processos de reciclagem dos
materiais.
Nesse caso específico da reciclagem dos materiais contidos nos
resíduos de objetos e de embalagens, além de apropriar-se do trabalho
não pago aos trabalhadores inseridos ativamente no processo fabril de
reciclagem, apropria-se também do trabalho já incorporado nos resíduos
recicláveis (GONÇALVES, 2000).
Para que as mercadorias existam como tal, podem ser realizadas
várias etapas, mais ou menos complexas dentro de um determinado
contexto histórico, para chegar a um determinado produto que possa ser
consumido diretamente ou que sirva de base para produção de uma outra
mercadoria.
Assim, da preparação da terra ao plantio de árvores das quais se
retirará a celulose, ou da extração da bauxita até a produção do alumínio
e sua aplicação na fabricação de outros objetos, temos uma variedade de
ações e de emprego de trabalho socialmente organizados e combinados,
que possibilitam a geração do produto final, uma mercadoria qualquer,
que após o consumo pode vir a tornar-se inservível e ser descartada, mas
que como qualquer outra teve, como afirma Marx (1988, p.148) o seu
valor determinado pela quantidade de tempo trabalho necessário nela
materializado:

Sabemos que o valor de toda mercadoria é


determinado pelo quantum de trabalho materializado
em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho
socialmente necessário à sua produção. Isso vale
também para o produto que nosso capitalista obteve
como resultado do processo de trabalho. De início,
tem-se, portanto, de calcular o trabalho materializado
nesse produto.

Então, ao passar novamente pelo processo de trabalho na


indústria da reciclagem, os materiais que compunham os resíduos podem
voltar a ser utilizados/consumidos. Nesse processo de reutilização, o
capital absorve-se de todo trabalho anteriormente incorporado nos
materiais, que outrora compuseram os resíduos que faziam parte de uma
determinada mercadoria. Esse trabalho materializado também será
apropriado, decomposto na forma de resíduo, sucata, etc.
Neste aspecto, existem algumas interpretações que apontam para
as benesses da reciclagem de materiais como um processo que poupa
energia. Além de lucrativo é também benéfico para o ambiente, já que
colaboraria para a diminuição da degradação ambiental através do
reaproveitamento, evitando a exploração de novas fontes de matéria-
prima. Como exemplo, Calderoni (2002, p.179 ) refere-se à reciclagem
das latas de alumínio no Brasil, que tem alcançado índices88 maiores que
o de países avançados:

A lata de alumínio é o material reciclável mais valioso.


Cada tonelada alcança preço superior a cinco vezes o
do plástico, o segundo em valor.
A produção de alumínio é eletro-intensiva. Para se
obter uma tonelada do alumínio requerido para a
produção da lata de alumínio são necessários 17,6 mil
kWh.
A economia de energia propiciada pela reciclagem da
lata de alumínio é muito elevada. Alcança 95% do total
requerido para a produção a partir da matéria-prima
virgem: com a reciclagem, o consumo de energia cai
para apenas 700 kWh por tonelada.

O consumo de energia evitado, nesse caso e em outros processos


de reciclagem de materiais, se deve na verdade à absorção do trabalho
materializado anteriormente, na fabricação dos materiais utilizados na
confecção das diferentes mercadorias, ou seja, na absorção da energia já
contida e não na economia de energia, é desse processo que se extrai
parte dos lucros das indústrias da reciclagem.

88
Esses índices estão diretamente ligados à miserabilidade de grande parte da
população, que sobrevive ou obtém um complemento da renda com a catação das
latinhas.
Sabemos que quanto mais complexo é o processo de trabalho na
produção do material que comporá a mercadoria, maior preço ela terá.
Nestes casos, como o do alumínio, os resíduos produzidos após o
consumo das mercadorias que o utilizam de alguma forma, às vezes
como material que dá conformidade à embalagem, terão maiores chances
de reaproveitamento na reciclagem do ponto de vista mercadológico.
Com a lucratividade garantida se podem alcançar índices recordes de
reciclagem, se essa qualidade do material estiver aliada à demanda
crescente e ao baixo custo do trabalho na recuperação dos resíduos da
catação para trazê-los novamente ao circuito.
A ampliação dos índices de recuperação em alguns setores alia-se
também à aceleração do circuito formado pela produção das embalagens
→ consumo → descarte → catação → comercialização → reciclagem
→ nova produção → novo consumo → novo descarte89. Desta forma, a
recuperação pela reciclagem não aponta para um novo uso mais
duradouro. A tendência da aceleração da reprodução do capital pela
diminuição da vida útil das mercadorias mantém-se, alimentando
também a exploração de novos recursos como matérias-primas, já que a
taxa decrescente de utilização das mercadorias leva à ampliação e
aceleração da produção, sobretudo por que há um descolamento desta e
da venda da utilidade das mercadorias. De acordo com Mészáros (2002,
p.660)

Como resultado, novas potencialidades produtivas se


abrem para o capital, cujo sistema não sofrerá qualquer
conseqüência se a relação de alguém com um dado
produto for caracterizada pela taxa de utilização
mínima ou máxima, pois essa taxa não afeta em
absolutamente nada a única coisa que realmente
importa do ponto de vista do capital, a saber: que uma
certa quantidade de valor de troca foi realizada na
mercadoria em questão através do próprio ato de venda

89
As latas de alumínio levam em média 45 dias para percorrer esse circuito.
www.latasa.com.br
independentemente de ser ela, na seqüência, sujeita a
uso constante, a pouco ou a nenhum uso.

Esta objetividade, de reproduzir-se ampliadamente é que desperta


o interesse capitalista na reciclagem de alguns tipos de materiais,
fomentando a territorialização de toda a infra-estrutura para recuperação
dessas mercadorias.
Uma estrutura que estende os seus tentáculos para além da planta
fabril, manifestando-se no trabalho dos catadores de rua, no trabalho nos
lixões, nos barracões dos atravessadores e das cooperativas de catadores.
Esse exército de trabalhadores movimenta um circuito que envolve a
triagem e transporte dessas mercadorias dentro das mais diferentes
cidades, lugares de geração e concentração dessa matéria-prima, os
resíduos sólidos recicláveis, que vão para dentro das indústrias de
reciclagem e retornam das mais diferentes formas para um novo
consumo.
A territorialidade das suas atividades de catação, triagem,
transporte e reciclagem dos resíduos obedece a uma lógica que
diversifica as formas de manifestação do fenômeno, combinando
elementos e determinações econômicas mais gerais com as
especificidades econômicas e sociais locais90. Desta forma, toda essa
infra-estrutura e as relações estabelecidas entre os agentes envolvidos se
expressa diferenciadamente de um local para outro, levando a
heterogeneidade das formas de exploração e subordinação do trabalho
envolvido, quantitativa e qualitativamente, explorando mulheres,
crianças e homens.
Neste contexto, em que a reciclagem dos materiais aparece como
uma forma eficiente de reprodução do capital, devemos estimular e
discutir novos sentidos para a reciclagem e para a diminuição dos
impactos ambientais causados pela sociedade de consumo e nos atentar
para a possibilidade de transformação da estrutura e da lógica de
organização para a produção injusta e irracional, sob a qual estamos
organizados. Caso contrário, as medidas implantadas serão meramente

90
Ver Gonçalves 2006.
paliativas e injustas, já que as ações também paliativas, buscam resolver
ou administrar o problema e não anular a sua lógica fundadora. De
acordo com Thomaz Jr. (2000):

Trata-se de colocar em xeque a estrutura organizacional da sociedade,

enraizada sob os postulados capitalistas que se fundamentam na redução

sistemática do valor de uso à simples função de suporte de valor de troca,

sendo que o trabalho se constitui em uma das fontes de valor de uso e a

natureza também foi submetida aos efeitos nefastos dessa redução e a crise

ecológica como enunciado na mídia através dos periódicos e nos ambientes

acadêmicos e políticos, deve nos estimular a um repensar do próprio

movimento da sociedade. (p.16)

Não queremos dizer que a reciclagem não seja interessante do


ponto de vista da recuperação dos materiais. Entretanto, entendemos que
a compreensão da trama que envolve a tensa relação na qual a sociedade
contemporânea está envolvida, uma tensão que se expressa na forma de
pobreza, miséria, exclusão e degradação ambiental, não deve ter como
resolução soluções paliativas.
A complexidade e a dificuldade às quais nos referimos nos
remetem a assumir que o sistema capitalista, que determina a lógica da
relação sociedade-natureza, tem por princípio a destruição. O objetivo é a
produção de mercadorias, tem-se a dinâmica da natureza e do trabalho
totalmente subordinados ao capital (Mészáros, 2002).
Nesse aspecto, destacamos que a reciclagem de materiais também
revela um aspecto destrutivo da sociedade capitalista, a transformação
em lixo de uma imensa quantidade de trabalho utilizado para produzir
mercadorias, acentuando o processo de diminuição da vida útil das
mesmas. Uma aceleração que representa um aumento de consumo, mas
não necessariamente a inserção de novos consumidores no circuito. Para
Mészáros (2002, p.684):

Enquanto a taxa decrescente pode intensificar


lucrativamente, ou melhor, multiplicar o número de
transações no círculo já dado, não há razão alguma
para se correr o risco de “ampliar a periferia da
circulação”. Conseqüentemente, vastas porções da
população podem ser seguramente ignoradas pelos
desdobramentos capitalista, mesmo nos países
“avançados”, para não mencionar o resto do mundo
mantido em subdesenvolvimento forçado.

A taxa de utilização decrescente não se limita aos produtos do


trabalho, afeta as mercadorias de forma geral, inclui nesse rol o próprio
trabalho, acelerando o desemprego, acentuando a miséria entre os
trabalhadores.
Desta forma, no circuito econômico que envolve todas as ações
voltadas para a reciclagem dos materiais no Brasil, sobretudo no que diz
respeito ao trabalho sob o capital, temos um duplo desperdício: o
trabalho morto incorporado nos resíduos descartados e o trabalho vivo
dos catadores, que são forçados a irem para os locais de disposição de
lixo. O trabalho vivo dispensado, buscando o trabalho morto descartado
para continuar a dar vida ao sistema que os execra.
Claro é que as estratégias utilizadas para a recuperação dos
resíduos recicláveis que vão alimentar os processos industriais não se
limitam ao trabalho do catador nos lixões, servem-se também de outras
formas de exploração/organização do processo de trabalho para esse fim,
daí a formação das Cooperativas de Catadores e das centrais de triagem e
compostagem. Isso não representa aumento dos custos no processo
produtivo.

Para não concluir


A precarização do trabalho do catador se faz então fato marcante nesse circuito econômico.
Quanto mais precária a situação em que se realiza essa atividade, quanto mais próximo ao limite da
sobrevivência ela se estabelecer, maior será a lucratividade do capital aplicado nesse setor. O trabalho do
catador nos lixões é simplesmente um meio que, se não produz diretamente valor, ajuda a recuperar para o
circuito econômico os valores que haviam se transformado em lixo. Assim, como elemento que atua entre o
processo que gera desperdício e o que se ocupa da revalorização de algumas mercadorias, o trabalhador
catador é colocado no mesmo patamar que o lixo e ali muitas vezes se confunde com ele.
Além dos elementos mencionados, o circuito econômico, que envolve a reciclagem e que ganha a
sua expressão territorial mais visível na atividade dos trabalhadores catadores, envolve ainda os poderes
públicos dos municípios, que, como vimos, estão inclinados a buscar a solução mais rápida, mas nem sempre
a de menor custo para os problemas relacionados ao lixo e aos trabalhadores catadores. Geralmente as
intervenções são pontuais e não consideram a complexidade dos problemas.
Em alguns casos, para o fim do trabalho da catação nos lixões, a solução adotada é o cercamento
e a expulsão dos trabalhadores, uma medida que diminui os problemas das prefeituras com órgãos ambientais
fiscalizadores, relegando aos catadores a sua própria sorte. Utilizando-se do discurso de que há uma
obrigatoriedade de fazer cumprir a lei, as prefeituras se eximem de qualquer responsabilidade com os
transgressores, que nestes casos são os catadores. Sem dúvida essa será uma tendência das administrações
públicas para lidar com esse problema, sobretudo porque não dispõem de pessoal capacitado para pensar
alternativas e querem resolver rapidamente o problema. Desta forma, sem organização e ação política para
reivindicar outra postura por parte das administrações públicas, os catadores não poderão ter acesso nem
mesmo ao trabalho no lixo.

Neste sentido, os catadores precisam perceber e colocar para toda


a sociedade as contradições que envolvem o negócio da reciclagem,
explicitando, por exemplo, que para o capital, o processo de reciclagem é
um meio de reprodução ampliada, que nada tem a ver com a proteção
ambiental, mas que se apropria dessa faceta. Deixando claro que quando
há diminuição dos ganhos, a utilização dos resíduos recicláveis como
matéria-prima deixa de ser atraente, o capital volta a sua atenção para a
exploração de matéria-prima virgem, independentemente dos impactos
que isso poderá causar para o meio ambiente.
Há ainda um outro elemento, que é a taxa de diminuição da vida
útil das mercadorias que são produzidas para durarem menos ou para
serem descartadas. Daí, mesmo com o crescimento dos índices de
reciclagem dos materiais não há diminuição da exploração de matéria-
prima virgem para produção de novas mercadorias. O consumo
destrutivo continua a acelerar e a demandar por uma produção também
destrutiva.
A taxa de utilização decrescente não fica restrita às mercadorias
produtos do trabalho, atinge todas as outras de maneira geral, incluindo-
se a própria força deste, que como qualquer outra mercadoria poder ser
subutilizada, aprofundando a precarização das condições de trabalho.
Desta forma, mesmo entendendo que a reciclagem dos materiais
desempenha um papel importante na diminuição dos problemas relativos
ao lixo, acreditamos que deveríamos trabalhar para a redução da
quantidade de resíduo gerada, seja pela reutilização dos objetos, pela
diminuição do consumo por parte daqueles que podem consumir, posto
que grande parte dos brasileiros não tem renda para isso, seja pela
resistência à situações como a obsoletização de objetos ainda em
condições de uso, contraposição ao apelo do consumismo. Situação que
nos coloca o problema de trabalhar pela redução do consumo por parte
de alguns e lutar para que tantos outros possam fazê-lo, de forma a
satisfazer suas necessidades básicas.
Na solução dessa equação está na mudança do próprio modo de
produção vigente, que estabelece padrões inaceitáveis de consumo para
alguns e relega a outros à miséria absoluta.

3. Referências bibliográficas

ANTUNES, R. Os sentidos do Trabalho: ensaios sobre a afirmação e


a negação do trabalho. São Paulo: BOITEMPO, 1999.
BARCIOTE, M. L. Coleta seletiva e minimização de resíduos sólidos
urbanos: uma abordagem integradora. TESE. São Paulo. Faculdade
de Saúde Pública da USP, 1994.
BERRIOS, M.R. O Lixo Nosso de Cada Dia. In: J. O; Braga, R. e
Carvalho,de F.P. (organizadores). Manejo de Resíduos: Pressuposto
para a Gestão Ambiental. Rio Claro: LPM - Deplan-IGCE-
Unesp/Campus de Rio Claro, 2002.
BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo,
1999.
CARVALHAL, M. D, A dimensão territorializante da qualificação
profissional em São Paulo: a ação dos sindicatos. Tese. Presidente
Prudente/Unesp, 2004.
GINO, E.L.S., GARCEZ, L.M.A., SILVA, S.R.M. Os catadores que
sobrevivem do lixo no município de Presidente Prudente. Presidente
Prudente, Instituição Toledo de Ensino, 1999. Monografia.
GONÇALVES, M. A. A Territorialização do trabalho informal: um
estudo a partir dos catadores de papel/papelão e dos camelôs em
Presidente Prudente – SP. Dissertação. UNESP, Faculdade de Ciências
e Tecnologia, Presidente Prudente, 2000.
GONÇALVES, M. A. O Trabalho no lixo. Tese (Doutorado em
Geografia) – UNESP, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente
Prudente, 2006.
GRIMBERG, E; BLAUTH, P. Coleta seletiva: reciclando materiais,
reciclando valores. In: POLIS. São Paulo: IE, Formação e Assessoria
em Políticas Sociais, Nº 31, 1998.
LEAL, A.C; THOMAZ JR, A; GONÇALVES, M. A. A reinserção do
lixo na sociedade do capital: uma contribuição ao entendimento do
trabalho na catação e na reciclagem. Anais do 9 Enc. de Geógrafos de
la América Latina: Mérida, México, 2003.
LEAL, A. C; et all. Resíduos Sólidos no Pontal do Paranapanema.
Presidente Prudente: Centelha, 2004.
LEITE. T. M. de C. Reciclagem de resíduos sólidos no Brasil. Anais
do IX Ecuentro de Geógrafos de América Latina. Mérida, México, 2003.
LEGASPE, R.L. Reciclagem: a fantasia do eco-capitalismo. Um estudo sobre a reciclagem promovida
no centro de São Paulo observando a economia informal e os catadores. São Paulo: Dissertação
(Mestrado) – FFLCH, USP, 1996.

LOGAREZZI. A. Contribuições conceituais para o gerenciamento de


resíduos sólidos e ações de educação ambiental. In: LEAL, A. C; et all.
Resíduos Sólidos no Pontal do Paranapanema. Presidente Prudente:
Centelha, 2004, p. 219 - 246
MARX, K. Trabalho Assalariado e Capital. São Paulo: Global, 1980.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo/Unicamp,
2002.
MIZIARA, R. Nos rastros dos restos: as trajetórias do lixo na cidade
de São Paulo. São Paulo: EDUC, 2001.
MORAES, S. P. A função do catador de lixo na gestão de resíduos: o
lixo como instrumento de resgate social. 2003. mimeo.
MOREIRA, R. As novas noções do mundo (geográfico) do trabalho. In:
Rev. Ciência Geográfica, (Seção Bauru/AGB), Ano VII-Vol III, no20 .
Set/Dezembro 2001. p.10 - 13.
MOURA. L. Los hombres basura. Bilbao/Espanha: Iralka, 1997.
NARDIN, M; PROCHNIK, M; CARVALHO, M, E, de. Usinas de
reciclagem de lixo: aspectos sociais e viabilidade econômica. In:
BNDES, Um Banco de Idéias - 50 Anos Refletindo o Brasil. Brasília:
Governo Federal, 2002.
RODRIGUES, A. M. Produção e consumo do e no espaço. São Paulo:
HUCITEC, 1998.
SANCHES,S. P. O comércio de rua e o trabalho informal no bairro
do Brás – SP. Monografia. Depto de Geografia. Rio Claro/Unesp, 1997.
SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: HUCITEC, 1997.
SCARLATO, F.C; PONTIM, J.A. Do nicho ao lixo. São Paulo: Atual,
1992.
SMITH, N. Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1986.
THOMAZ Jr, A. Leitura’ Geográfica e Gestão Político-Territorial na
Sociedade de Classes. Boletim Gaúcho de Geografia, n.24. Porto
Alegre: AGB/Porto Alegre, 1998.
THOMAZ Jr. A. Reflexões introdutórias sobre a questão ambiental para
o trabalho e para o movimento operário nesse final de século. In:
Revsita Ciência Geográfica, Ano VI- Vol II, no16 vol. Maio/Agosto
2000a. p.15 - 21
THOMAZ Jr, A. Por uma geografia do trabalho. PEGADA, Revista
Eletrônica: CEGeT, (Número especial)
2002a.http://www2.prudente.unesp.br/ceget/pegada/pegesp2.htm
THOMAZ Jr, A. O mundo do trabalho e as transformações territoriais:
os limites da “leitura” geográfica. PEGADA, Revista Eletrônica:
CEGeT, 2002b. ISSN 16763025.
http://www2.prudente.unesp.br/ceget/pegada/peg2n3.htm
ZANIN. M; SHIMBO, I; AMORIN D. A economia solidária e formas
de organização de empreendimentos na cadeia da reciclagem. São
Carlos, 2005. mimeo.

Você também pode gostar