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GEOGRAFIA E TRABALHO NO SÉCULO XXI

Antonio Thomaz Júnior


Organizador

Este livro teve o apoio financeiro do Programa de Incentivo à Captação de Recursos, da


Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPP/UNESP), por conta do Projeto
“Território Minado: Metabolismo Societário do Capital e os Desafios para a
Organização do Trabalho”, financiado pelo CNPq, na alínea Universal.

Presidente Prudente
Editorial Centelha - CEGeT
2004
Geografia e Trabalho no Século XXI

Copyright  do Autor, 2004

ISBN 85 904426-2-4

Ficha Catalográfica: Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação da FCT/UNESP


Editoração: Marcelino Andrade Gonçalves
Impressão e Fotolito: Editora Viena

G31 Geografia e trabalho no século XXI / Antonio Thomaz


Júnior (org.). - Presidente Prudente: Centelha, 2004.
v.1 ; 21 cm.

ISBN 85 904426-2-4

1. Questão agrária 2. Cooperativismo 3.Desenvolvimento


rural 4. Mecanização I. Thomaz Junior, Antonio II. Título.

CDD(18 edição) 334

Projeto Editorial Centelha


Todos os direitos reservados ao Grupo de Pesquisa
“Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT)
Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP

Presidente Prudente (SP), 2004.


Rua Roberto Simonsen, n. 305
Caixa Postal: 467 – CEP. 19060-900
http://www.prudente.unesp.br/ceget/centelha

Pedidos através do e-mail:


ceget@prudente.unesp.br

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Geografia e Trabalho no Século XXI

SUMÁRIO

Prefácio

Apresentação ..........................................................................................5

MST, Cooperativismo e território: dinâmica e contradições.............7


Alexandre Domingues Ribas

Questão agrária e desenvolvimento rural: o controle social do


Estado no meio rural brasileiro ..........................................................39
Jorge R Montenegro Gómez

A reestruturação produtiva do capital na agroindústria


canavieira paulista e os desdobramentos para o trabalho ...............69
Ana Maria Soares de Oliveira

O espaço do capital – camaleão. Dimensões do complexo


metabólico-mimetizado do capitalismo monopolista ......................105
Júlio Cézar Ribeiro

A tecnificação no campo: modernização da agricultura e


relações de trabalho ...........................................................................153
Marli Terezinha Szumilo Schlosser

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Geografia e Trabalho no Século XXI

PREFÁCIO

É crescente o número dos geógrafos que se ocupam com o


que vem sendo chamado a geografia do trabalho (no singular, para designar
um campo e não um ramo a mais num saber acadêmico viciado no modismo da criação
e do abandono de ramos segundo o tema da moda). Em geral, são geógrafos de
militância e presença nos movimentos populares da cidade e do campo. Por conta disso,
dispomos hoje desde textos que sistematizam formulações teórico-conceituais nesse
terreno aos que se debruçam já sobre temas concretos do mundo do trabalho no campo e
na cidade brasileiros.
Antonio Thomaz Jr. é um desses geógrafos, dedicando-se ao tema do
trabalho desde os bancos universitários, quando se volta para as questões do campo sob
a inspiração de Ariovaldo Umbelino de Oliveira, um geógrafo posto na origem do
interesse e estudos sobre o assunto do trabalho na geografia brasileira, continuador por
sua vez, como todos nós da sua geração, da militância de geógrafos como Orlando
Valverde e Manuel Correia de Andrade, cuja seriedade e entusiasmo passou para
geógrafos de novas gerações como Thomaz. E que agora Thomaz passa para as
gerações mais novas. A cada ano, Thomaz organiza um evento sobre o trabalho na
geografia e a geografia do trabalho na UNESP de Presidente Prudente, formando, já ele
agora, novas gerações dedicadas à reflexão e pesquisa desse tema.
O livro que o leitor tem nas mãos é o fruto dessa trajetória que vem
dos bancos universitários e prossegue na docência e na pesquisa. É a reunião de um
elenco de textos voltados para o problema do trabalho e da ação do trabalho em áreas
rurais brasileiras, feitos por diferentes estudiosos que vêm lendo pesquisando esse tema
com Thomaz no âmbito das atividades de pesquisa e debate que este organiza num
caráter quase coletivo. É o exemplo do que a seriedade e compromisso podem fazer no
terreno de um saber acadêmico que sempre dividiu-se entre servir ao Estado e servir aos
movimentos por mudanças numa sociedade injusta como a brasileira. E do tipo de
subsídio que ele pode oferecer aos tantos que fora da academia vêm respondendo pelo
pouco de justiça social que entre nós ainda existe, seja na tarefa de construção desse
país com o suor do seu trabalho e nele não são mais que sem-terra, sem-teto e sem-
salário e seja por sua intervenção por uma sociedade brasileira justa e igualitária numa
militância que apesar das conjunturas adversas não esmorece nunca, sempre
empurrando este país para frente com sua crença na sua capacidade de recriá-lo pela
base.

Ruy Moreira

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Geografia e Trabalho no Século XXI

APRESENTAÇÃO
A alegria de apresentar este livro ao público nos faz acreditar que a
dedicação e o envolvimento dos participantes do Grupo de Pesquisa “Centro de Estudos
de Geografia do Trabalho” (CEGeT) alcançou o êxito esperado.
A opção referenciada nos resultados obtidos ao longo dos últimos anos,
particularmente pelos trabalhos de mestrado, não nos estimula a resumir, tampouco
sintetizar o conjunto da obra do CEGeT, mas sim sinalizar as principais marcas dos
primeiros passos da “leitura” geográfica do trabalho.
Tanto é que os dois volumes de Geografia e Trabalho no Século XXI,
deverão enfatizar nossas preocupações com o trabalho, com a classe trabalhadora,
enquanto temática constante da Geografia.
Muito mais do que recorrer à demarcação de uma corrente de pensamento
na Geografia, nosso objetivo é a crítica radical à sociedade do capital e o compromisso
com a emancipação social do trabalho. Portanto, não se trata de constituirmos a
Geografia do trabalho como prática do recorte disciplinar, ou como corrente nova na
Geografia. Devemos apelar sempre para o mundo do trabalho real e não para os limites
da academia ou ao seu horizonte institucional.
Essa marca nos deverá permitir compreender um pouco mais a realização
do trabalho enquanto objeto da Geografia, e definir caminhos e desafios a serem
trilhados pelas pesquisas e refinados por meio do exercício constante da interlocução
junto aos demais pesquisadores, etc.
Portanto apreender as múltiplas determinações do ser social que trabalha,
as contradições que o redefine num constante movimento de territorialização-
desterritorialização-reterritorialização, é o que nos possibilita qualificar a própria
dinâmica geográfica da sociedade, e do trabalho em particular. É o que oferecemos aos
nossos interlocutores.
Perseguindo esses referencias e ao mesmo tempo reconhecendo os limites
para o fortalecimento dessa via, apresentamos para os nossos leitores o Volume I, que
está centrado à questão agrária, e nos sugere reflexões teóricas importantes e oportunas
para o momento.
As reflexões presentes nos dois primeiros textos, demarcam de forma
contundente a luta pela terra e as ações dos movimentos sociais envolvidos diretamente
nesse front da luta, particularmente o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
As prerrogativas para a implantação da Cooperativa, enquanto instância
da luta no interior do MST, são os assuntos enfocados pelo Alexandre, que mostra os
limites e os desafios colocados para os trabalhadores (assentados), cooperativados, que
se envolveram na construção da COCAMP, em Teodoro Sampaio, no Pontal do
Paranapanema.
Já o texto que foca as artimanhas do Estado em privilegiar a mudança de
referência da Reforma Agrária, para o desenvolvimento rural, pode dispor nas reflexões
do Jorge Montenegro, indicações importantes e atuais do debate que precisa ser
aprofundado no Brasil em torno da questão agrária. A despolitização do debate, por

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Geografia e Trabalho no Século XXI

parte dos formadores de opinião vinculados aos setores dominantes, mas sobretudo o
convencimento da sociedade sobre a importância da retirada do Estado dos assuntos de
somenos importância, além de esvaziar a Reforma Agrária, também impõe valores que
defendem a desimportância ou a desnecessidade dos investimentos públicos em algo
superado, em detrimento das experiências do agronegócio. Está em questão, a polêmica
em torno do modelo de desenvolvimento excludente da maioria dos trabalhadores e
privilegiador das empresas rurais, do latifúndio, etc.
Já as atenções sobre as formas de organização do capital em escala
empresarial têm no texto da Ana Maria, o conteúdo do empreendimento produtivo e
organizaional do capital agroindustrial canavieiro em São Paulo, sobretudo os
argumentos que dão sustentação ao discurso modernizante, que não se restringe
exclusivamente à mecanização, mas redefine novos nichos de mercado para os produtos
e subprodutos (interna e externamente), e as conseqüências para os trabalhadores.
Certificação ambiental, seqüestro de carbono, créditos em carbono, biodiesel,
biocombustível (flex fluel), etc., são alguns dos fundamentos que mobilizam o capital a
defender a eficiência da mecanização do corte da cana-de-açúcar em nome do
desenvolvimento ambientalmente sustentado e afinado aos critérios antipoluentes,
vinculados ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto,
sem que a sociedade e os trabalhadores, os sindicatos discutam e definam o assunto,
tampouco outros caminhos alternativos.
Na mesma linha, todavia com abordagem mais direcionada à
compreensão dos mecanismos estruturais do funcionamento metabólico do capital,
sobretudo as instâncias de dominação e de subordinação do trabalho, temos no texto do
Júlio Cézar Ribeiro, a oportunidade de retomarmos aspectos importantes do
funcionamento da agroindústria canavieira no Mato Grosso do Sul, particularmente, a
inserção da mão de obra indígena no corte da cana-de-açúcar na empresa Debrasa, de
propriedade do Grupo J. Pessoa, que se destaca no primeiro escalão da produção
nacional.
Por fim, o texto da Marli Schlosser aborda com muita criatividade os
elementos centrais que viabilizaram o processo de “modernização” da agricultura no
oeste do Paraná e que num passe de mágica se espraiaram pelo território com muita
fluidez. Por meio da metáfora “pelas ondas do rádio” – título original do trabalho – a
autora foi buscar as explicações para os aspectos centrais do “desenvolvimento” dos
princípios capitalistas na agricultura, ou seja, a substituição crescente de braços
humanos por máquinas e por novas formas de produção associadas a novos produtos
com inserção mercadológica, como a soja, o trigo e o milho.
Convidamos a todos para saborearem esse ambiente de crítica e de fértil
discussão geográfica.

Antonio Thomaz Júnior


Marcelino Andrade Gonçalves
Editores

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Geografia e Trabalho no Século XXI

MST, COOPERATIVISMO E TERRITÓRIO:


DINÂMICA E CONTRADIÇÕES∗

∗∗
Alexandre Domingues Ribas

1. APRESENTAÇÃO

Neste texto, objetivamos apresentar uma reflexão sobre o cooperativismo


no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), tendo como
recorte a dinâmica territorial da COCAMP (Cooperativa de Comercialização e
Prestação de Serviços dos Assentados da Reforma Agrária), no Pontal do
Paranapanema1.
O MST, a partir de suas ações político-territoriais, consolidou-se no
Brasil como um dos principais movimentos sociais, fundamentalmente nas décadas de
80 e 90, sendo considerado o principal mediador da luta pela terra e pela reforma agrária
no país. Seu intenso processo de territorialização, sua estratégia de pressão política
centrada nas ocupações de terra (que é o ato ilegal que vislumbra a institucionalização
da legalidade) e, ainda, a capacidade de redimensionar sua luta política e reproduzi-la a
partir de uma malha territorial articulada com uma centralidade político-ideológica e
organizativa, revelam os elementos motivadores e explicativos de tal expressividade.
Ou seja, o MST redimensiona a luta política por meio da solidificação de
sua estrutura organizativa, construindo, via projetos de gestão territorial, a
complexidade de sua experiência e magnitude, que coaduna uma diversidade de


Este trabalho é parte da dissertação de mestrado “Gestão político-territorial dos assentamentos,
no Pontal do Paranapanema (SP): uma “leitura” a partir da COCAMP (Cooperativa de
Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados da Reforma Agrária do Pontal)”, que
desenvolvemos junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP, sob
orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior, sendo que pudemos contar com o financiamento
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
∗∗
Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Câmpus de Francisco
Beltrão; membro do Grupo de Pesquisa “Centro Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT); e
do GETER (Grupo de Estudos Territoriais).

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Geografia e Trabalho no Século XXI

elementos sociais, políticos, ideológicos, doutrinários, simbólicos, organizativos, éticos,


estéticos, comunicativos, etc.
Foi a partir das contradições cristalizadas no âmago da intensificação das
relações capitalistas de produção no campo brasileiro que o MST emergiu, no final da
década de 70, assumindo, por sua vez, uma existência institucional a partir de 1984,
com a realização do I Encontro Nacional, em Cascavel, estado do Paraná. Nesse
contexto, o MST é produto de lutas isoladas que foram se territorializando2 e
espacializando a partir de um processo de desterritorialização movido pela reprodução
ampliada do capital e de sua hegemonização tanto no campo como na cidade.
Entretanto, não se pode encerrar as contradições nesse estágio. Ou seja,
não se pode analisar o MST como um bloco homogêneo e não contraditório, pois a
contradição não está apenas em sua natureza ou na produção de sua existência, mas
também na sua produção e reprodução enquanto movimento social, ou melhor, no
redimensionamento constante de sua luta. Esse é o propósito dessa reflexão: olhar e
analisar o MST como algo que palpita contradições, pois não basta usar a dialética
como um subsídio discursivo, mas como um instrumento de análise do real.
Pois bem, no processo de redimensionamento da luta política no âmbito
do MST, o cooperativismo evidencia-se como um dos pilares da gestão dos
assentamentos rurais, tanto no que tange à garantia da reprodução da existência dos
assentados, como no tocante a demonstrar a viabilidade da reforma agrária.
Nesse sentido, a cooperação agrícola e mais especificamente, sua forma
institucionalizada: a cooperativa revela-se a partir desse processo de redimensionamento
da luta política engendrado pelo MST, no qual este, a partir da conquista do
assentamento, estabelece uma rede de relações que edificam uma necessidade de romper
com a tentativa do governo em encerrar na propriedade o conflito político atinente a luta
pela terra e pela reforma agrária.
A cooperação agrícola nos assentamentos deve ser compreendida a partir
da luta e resistência dos trabalhadores sem-terra, sendo, num primeiro momento, uma
tentativa de minimizar o grau de miserabilidade dos assentados, tendo também, um
conteúdo político-ideológico cristalizado a partir do redimensionamento da luta política
em consonância com um determinado projeto de gestão territorial.
Mas além dessas questões mais gerais, o que nos propomos é analisar a
experiência cooperativista no âmago do MST a partir de sua dinâmica territorial.
Entendemos o território como a tessitura (constituída por nós e redes) que se concretiza

2
O MST inicia seu processo de consolidação entre 1985-1990, territorializando-se pelos estados
da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão,
Goiás, Rondônia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entre 1990-1999 o MST continua seu processo de
territorialização, desencadeando a conquista de assentamentos nos estados do Pará, Distrito
Federal e Mato Grosso (Fernandes, 2000).

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Geografia e Trabalho no Século XXI

a partir da expressão particularizada da reprodução contraditória da sociedade em seus


diversos ritmos, escalas e tempos. Porém, o território, necessariamente, pressupõe
relações delimitadas (não no sentido de fronteiras físicas), que são decorrentes de uma
ação de gestão, dominação e/ou resistência. Portanto, a dinâmica da COCAMP produz
uma tessitura, um território, que é produto das relações intrínsecas a conformação de
sua gestão, dominação e/ou resistência.
Compreender os desdobramentos territoriais da organização cooperativa
no Pontal do Paranapanema e, ainda, identificar suas contradições, eis o objetivo desse
capítulo. Para isso, estaremos resgatando duas “teses” ou questões gerais da Dissertação
de Mestrado defendida pelo autor e já mencionada anteriormente, para que se possa
construir uma problematização a partir dos resultados da pesquisa.

Primeira Tese: O significado político da COCAMP revela-se a partir


da explicitação territorial da luta de classes no Pontal do Paranapanema e, ao
mesmo tempo, sua essência está diretamente relacionada aos desdobramentos
decorrentes da diretriz político-organizativa do MST centrada na
institucionalização/uniformização da cooperação agrícola.

2. CENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ORGANIZATIVA DO MST E


COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

Para fundamentar essa tese, torna-se necessário delinear e explicitar a


relação da COCAMP com a construção histórica e geográfica da organização
cooperativa do MST, bem como os desdobramentos territoriais das contradições
intrínsecas à luta pela terra no país.
A região do Pontal do Paranapanema, como já mencionado por diversos
autores3, tem como um dos traços centrais de sua ocupação a grilagem de terras. Essa
territorialização decorrente dessa ilegalidade jurídica, entre outros fatores, produziu a
intensificação dos conflitos sociais no campo. Nesse contexto, a luta pela terra na região
envolveu uma diversidade de atores sociais, sendo, portanto, um desdobramento
territorial delineado pelo movimento contraditório do processo social.
A expressão territorializada deste processo social dá forma e conteúdo ao
desenho societal dos sem terra no Pontal do Paranapanema e, por conseguinte, à
conformação da COCAMP. Sua existência revela-se no âmago do conflito social,
enquanto resultado de um processo cumulativo de lutas sociais engendradas pelo MST
na região.

3
Mais detalhes sobre a ocupação da região ver: Leite, 1998; Fernandes, 1996.

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Geografia e Trabalho no Século XXI

Assim, são as contradições intrínsecas ao conflito de classes na região do


Pontal do Paranapanema (reconhecidamente latifundista) que nos ajudam a entender a
gênese da COCAMP. Podemos afirmar que a territorialização do MST na região,
cristalizada na conquista dos assentamentos rurais, é que motiva o processo de
redimensionamento de sua luta, ou seja, ao institucionalizar/legalizar a propriedade da
terra, este busca estabelecer e desenvolver uma série de atos e ações pautados na
necessidade de gerir o território. Essa gestão do território/assentamento está diretamente
vinculada a um projeto político-organizativo centralizado (no sentido da proposição
ideológica) nacionalmente. O cooperativismo é um dos eixos de atuação do MST nesse
processo de redimensionamento político-territorial da luta.
A COCAMP foi fundada em 28 de dezembro de 1994, por 291 sócios, na
sede da Fazenda São Bento, no município de Mirante do Paranapanema. Nos primeiros
dois anos de existência da cooperativa esta esteve voltada, exclusivamente, para
atividades vinculadas à formalização de seu reconhecimento institucional. Foi a partir
de meados de 1996 que a cooperativa passou a estruturar-se, tendo como base o
funcionamento de seus projetos agropecuários e agroindustriais4.
As primeiras experiências sobre a organização cooperativa desenvolvidas
pelo MST consistiram nos grupos coletivos, grupos de ajuda mútua, baseados nas
práticas da Igreja Católica. Posteriormente, incentivaram as experiências com os grupos
de máquinas e com as associações. Já no final da década de 80, o MST iniciou suas
experiências com as Cooperativas de Produção Agropecuárias (CPA’s), caracterizadas
por uma gestão inteiramente coletiva dos lotes e da produção.
A partir dessas experiências, a direção do MST entendeu que havia uma
necessidade crescente de potencializar uma cooperação em massa. Essa redefinição
resultou na criação da Cooperativa de Prestação de Serviço (CPS’s) e a partir dessas
novas experiências iniciaram-se as discussões sobre as cooperativas regionais, sendo
que, em 1993, surgiram a COANOL, em Laranjeiras/PR e a COAGRI, em Sarandi/RS.
Em 1994, no Pontal do Paranapanema, surgiu a COCAMP, que resultou de uma série de
discussões para atender grupos de famílias dos assentamentos já existentes (Gleba XV
de Novembro, Água Sumida, Santa Rita, Che Guevara, São Bento e Rosanela).

4
Vale ressaltar que a partir de 1996 a COCAMP passou a desenvolver os seguintes projetos
agropecuários: abacaxi (envolvendo diretamente 138 sócios), maracujá (137 sócios), café (127
sócios) e mandioca (918 sócios). No tocante aos projetos agroindustriais, também a partir de 1996
iniciaram-se as obras para a construção de um “parque industrial”, que seria constituído por:
projeto de silos e armazéns (capacidade de 6 mil toneladas para armazenamento e um barracão de
2500 metros quadrados); empacotadeira de grãos (capacidade de 2 mil quilos por hora); o projeto
da farinheira e da fecularia (a farinheira já estava em funcionamento desde 1997); projeto do
laticínio (produção do leite barriga mole, iogurte, bebida láctea, creme e cinco tipos de queijo);
despolpadeira de frutas, com capacidade para processar 3 mil quilos de frutas por hora.

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Geografia e Trabalho no Século XXI

A fundação da COCAMP esteve articulada, desde o início, ao projeto


político do MST para a gestão dos assentamentos rurais do Pontal do Paranapanema. A
pretensão era investir na diversificação da produção e organizar a comercialização em
nível regional, sendo que o objetivo da cooperativa seria articular a comercialização
com a diversificação da produção. No final de 2002, a cooperativa contava com 2.220
sócios, englobando 12 municípios da região.
Como já afirmamos, a dinâmica territorial da COCAMP também está
diretamente ligada à estrutura organizativo-administrativa e gerencial do MST, que
garante e reproduz a centralização político-organizativa da organização consolidada em
nível nacional.
Esta, por sua vez, mantém-se, fundamentalmente, a partir da
institucionalização do processo cooperativo, dimensão substancial da diretriz política
propagada pelo MST a partir da década de 90.
É importante destacar que a organização cooperativa no âmbito do MST,
como já afirmamos, deve ser compreendida a partir de seu projeto político de gestão
territorial dos assentamentos, veiculado diretamente aos seus apontamentos estratégicos.
Isso significa que a cooperação agrícola revela-se como um dos desdobramentos do
processo de redimensionamento da luta política engendrada pelo MST. Essa articulação
ocorre a partir da estrutura organizativo-administrativa e gerencial do sistema
SCA/CONCRAB, que consolida uma rede estratégica que articula/subordina as
cooperativas localizadas nos assentamentos com os apontamentos político-organizativos
do MST em nível nacional.
A estrutura organizativo-administrativa e gerencial do cooperativismo no
raio de atuação do MST segue uma dimensão escalar, estando articulada à centralização
política das diversas experiências desenvolvidas nos assentamentos de reforma agrária.
Sendo assim, o primeiro nível dessa dimensão escalar pauta-se nas
cooperativas localizadas nos assentamentos: as Cooperativas de Produção Agropecuária
(CPA´s)5, as Cooperativas de Prestação de Serviços (CPS´s)6 e as Cooperativas de

5
Foram implantas a partir de 1989 e são consideradas pelo MST como uma forma superior de
organização da produção. O que diferencia uma CPA de um grupo de produção coletivizado ou
de uma associação é a sua personalidade jurídica. Isso porque, ao ser registrada como uma
empresa cooperativa, a CPA passa a ser regida pela legislação cooperativa brasileira.
6
Esse tipo de cooperativa tem por finalidade organizar o processo de compra e venda da
produção e de bens de consumo para os associados, além de possibilitar a implantação de
agroindústrias para beneficiar a produção nos assentamentos. Desenvolve estudos direcionados à
viabilidade econômica dos assentamentos, definindo as linhas de produção a serem
desenvolvidas, além de elaborar um planejamento centralizado da produção vinculada à
cooperativa. As CPS´s ainda organizam a assistência técnica aos assentados. Devido a sua
abrangência, as CPS´s dividem-se em: 1) Cooperativa de Prestação de Serviços (envolvem apenas
um assentamento ou alguns assentamentos de um determinado município); 2) Cooperativas de
Prestação de Serviços Regionais (envolvem vários assentamentos de um conjunto de municípios
de uma região)

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Geografia e Trabalho no Século XXI

Produção e Prestação de Serviços (CPPS´s)7. Além destas, a estrutura organizativa do


sistema SCA/CONCRAB envolve as associações e os grupos coletivos que se localizam
nos assentamentos. A articulação política nestes é garantida através dos núcleos de base,
que são os lugares nos quais as discussões, os problemas e as demandas dos assentados
são debatidos.
Essas cooperativas citadas acima garantem a gestão imediata dos
assentamentos numa escala local/regional e estão articuladas a uma Central Cooperativa
dos Assentados (CCA´s), que centraliza todas as outras (CPA´s, CPS´s, CPPS´s) de um
determinado Estado.
Podemos perceber que a tessitura territorial do cooperativismo no âmbito
do MST parte das cooperativas locais/regionais que, por sua vez, estão diretamente
subordinadas a uma cooperativa estadual, que redimensiona, a partir de redes de
relações, seu significado político e organizativo.
As Centrais Cooperativas possuem as seguintes atribuições8: a) coordenar
a comercialização da produção agropecuária das diversas cooperativas e associações,
bem como suas compras (produtos e insumos); b) organizar o transporte da produção
dessas diversas cooperativas, em nível de Estado; c) desenvolver e implantar projetos
agroindustriais; d) coordenar e centralizar o repasse e o planejamento das necessidades
de crédito; e) organizar um Fundo de Crédito Rural para o financiamento das diversas
cooperativas e associações; f) desenvolver programas de fomento a produtos especiais,
que tenham alta rentabilidade e boa demanda de mercado; g) fazer convênios com
governos estaduais para o desenvolvimento de obras de infra-estrutura básica.
Notamos que o papel das Centrais Cooperativa dos Assentados é
justamente ampliar territorialmente o raio de atuação das cooperativas locais,
articulando-as à estratégias uniformes de comercialização e distribuição dos produtos,
tendo como objetivo final potencializar o desenvolvimento da agroindustrialização nos
assentamentos e a inserção mercadológica dos produtos da reforma agrária. Atualmente
existem 9 centrais cooperativas ligadas ao MST, que se localizam nos Estados do
Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo, São Paulo, Bahia, Maranhão,
Ceará e Pernambuco.

7
Essa forma de organização do trabalho e da produção revela-se como uma transição entre uma
CPS e uma CPA. Assim, a partir do momento em que uma CPS avança, no sentido de acoplar a
organização da produção às suas atividades, constitui-se a CPPS. A gestão do lote pode ser de
propriedade do coletivo, se constituindo como área de produção coletiva, ou, a cooperativa se
apropria da terra no qual existem investimentos coletivos e o restante permanece como
propriedade familiar. O planejamento da produção é centralizado e a organização das moradias
não está vinculada ao funcionamento da cooperativa. As CPPS´s também são legalizadas e
registradas na Junta Comercial
8
Cf. MST, 1993.

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Geografia e Trabalho no Século XXI

O quadro organizativo-administrativo e gerencial do Sistema


Cooperativista dos Assentados completa-se a partir da centralização nacional das
cooperativas locais (CPA´s, CPS´s, CPPS´s) e das centrais estaduais (CCA´s) à
CONCRAB (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil),
constituída em 1992.
A CONCRAB, resumidamente, possui as seguintes atribuições: a)
articular e coordenar as políticas gerais (a partir de um planejamento de médio e longo
prazo) para o desenvolvimento agropecuário das cooperativas estaduais e dos
assentamentos; b) organizar uma escola técnica nacional, visando a formar “quadros”
para as cooperativas na área administrativa, financeira e agronômica; c) manter um
departamento de estudos estratégicos para projetos de maior escala, englobando estudos
de mercado e de possíveis agroindústrias; d) viabilizar atividades de exportação e
importação; e) representar os interesses das cooperativas frente aos organismos públicos
e internacionais; f) organizar sua articulação com outras Confederações de Cooperativas
Agrícolas afins.
Em linhas gerais, podemos afirmar que essa estrutura organizativo-
administrativa e gerencial desenvolvida pelo MST objetiva fortalecer o funcionamento
das cooperativas a partir de uma rede escalar de gerenciamento, buscando,
fundamentalmente:
a) potencializar as diversas formas de cooperação agrícola, mantendo,
porém, uma diretriz política centrada no incentivo à
institucionalização do processo cooperativo, via cooperativa. Na
verdade, as diversas formas de cooperação agrícola são,
paulatinamente, substituídas pela territorialização das cooperativas;
b) a diversificação da produção nos assentamentos rurais, objetivando a
garantia não só da subsistência das famílias assentadas, bem como o
beneficiamento e o escoamento de uma produção excedente;
c) uniformizar as estratégias de inserção de mercado, procurando
garantir um poder de barganha maior para os “produtos da reforma
agrária”, além de ser outro mecanismo de soldagem das ações das
cooperativas com os preceitos organizativos do MST em nível
nacional;
d) incentivar e potencializar a agroindustrialização nos assentamentos,
com o objetivo de fechar a cadeia produtiva, requalificando a
produção agropecuária e agregando “preço” nos produtos;
e) organizar a formação de técnicos em cooperativas, permitindo uma
autogestão do trabalho nos assentamentos, ou seja, garantir
gradativamente uma gestão profissional das cooperativas exercita por
assentados.
Esses aspectos destacados acima reforçam a tese de que a dinâmica da
COCAMP, mesmo tendo uma significância que se expressa a partir de uma
singularidade regional, está diretamente vinculada a um projeto de gestão dos
assentamentos que objetiva e produz uma tessitura territorial voltada a cristalização de

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Geografia e Trabalho no Século XXI

uma rede estratégia de articulação entre as ações localizadas (ligadas ao


redimensionamento da luta política) e os preceitos político-ideológicos do MST em
nível nacional, ou seja, a centralização administrativa do sistema SCA/CONCRAB faz
transparecer o objetivo do Movimento em consolidar uma articulação territorial
dependente e subordinada aos seus princípios político-organizativos mais amplos.

A estrutura organizativo-administrativa e gerencial do sistema


SCA/CONCRAB pode ser visualizada a partir da Figura 1.

Figura 1. Organograma da Estrutura Organizativo-Administrativa e


Gerencial do SCA/CONCRAB

ASSENTADOS INDIVIDUAIS

Grupo Associações CPA´s CPS´s CPPS´s Outras


Coletivo formas de
cooperação

Central Cooperativa dos Assentados


(CCA´s)

RS PR SC ES CE BA SP PE MA

CONCRAB

Fonte: MST, 1993.

Portanto, o SCA é a estrutura organizativa que garante a integralização


política da cooperação agrícola no âmbito do MST, pois funciona como um setor do
Movimento, articulando desde os núcleos de base nos assentamentos até a

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Geografia e Trabalho no Século XXI

complexidade da administração cooperativa em nível nacional, por conseguinte estimula


e massifica a cooperação agrícola dentro dos assentamentos, integrando nesse processo
os assentados individuais, sendo que:

O SCA é responsável pela organização de base dos assentados,


pela organização da produção, da tecnologia, da transformação
ou agroindústria, pela boa aplicação do créditob rural, pela
comercialização e, também, pela mobilização social dos
assentados frente a política agrícola do governo, a política
econômica e pelas condições básicas dos assentamentos
(CONCRAB, 1998, p. 9).

As linhas políticas delineadas pelo SCA são as seguintes: a) ser um setor


do MST; b) ser organizado em uma estrutura única; c) trabalhar com todos os
assentamentos e com todos os assentados, independente da forma de cooperação por
estes adotadas; d) contribuir com o conjunto dos setores do MST; e) organizar os
assentados em núcleos de base; f) implementar a agroindústria no campo.
Assim, o SCA cumpre a tarefa de articular as diversas formas de
cooperação agrícola nos assentamentos, desde as mais simples (mutirões) até as mais
complexas (CPA´s). Isso nos permite afirmar que o SCA (enquanto um setor político do
MST) não possui um caráter institucionalizado.
Nesse contexto, é importante destacar que o SCA configura-se como um
setor do MST voltado, fundamentalmente, para a organização da produção e do trabalho
nos assentamentos, tendo como princípio a massificação da cooperação agrícola.
Revela-se enquanto um fundamento político do MST para o gerenciamento das diversas
formas de cooperação, envolvendo a totalidade dos assentados, inclusive os assentados
individuais.
Em contrapartida, a CONCRAB cumpre um papel de centralizar o
processo de institucionalização da cooperação agrícola a partir da difusão das
cooperativas. Isso significa que o funcionamento do SCA vincula-se à dimensão não-
institucionalizada da cooperação agrícola, objetivando incorporar horizontalmente os
assentados. Já a CONCRAB incorpora verticalmente os assentados, a partir de sua
inserção em uma cooperativa (a firma institucionalizada da cooperação).
Entendemos ser necessário deixar um pouco mais claro essa dimensão
institucionalizada da cooperação agrícola, evidenciando como se deu a construção dessa
hegemonização das cooperativas enquanto pressuposto da cooperação no âmbito do
MST. Essa diretriz organizativa produziu rebatimentos importantes na tessitura
territorial da COCAMP, no Pontal do Paranapanema.
Nesse sentido, um primeiro aspecto a ser destacado diz respeito a forma
predominante de cooperação agrícola desenvolvida pelo MST até 1989. Entre 1984 e
1989, a organização da produção nos assentamentos foi marcada por práticas isoladas e
espontâneas de cooperação agrícola, sendo que:

15
Geografia e Trabalho no Século XXI

Poderia afirmar que o paradigma que prevaleceu até 1989


baseou-se na constituição espontânea/induzida de pequenos
grupos de cooperação entre os assentados, paradigma esse
resultante da ação histórica de diversas forças sociais:
comunidades eclesiais de base, associativismo espontâneo entre
vizinhos e parentes, bases de organização social dos sindicatos de
trabalhadores rurais, identidades sociais a partir de referenciais
não-econômicos, etc. O ponto central desse paradigma foi, então,
o pequeno grupo de cooperação, sem a mediação institucional
formal homogênea, para a realização de atividades variadas,
isoladas ou combinadas entre si. O agrupamento das pessoas e
famílias nesses grupos foi determinado por diferentes identidades
sociais [...] raramente políticas (CONCRAB, 1999, p. 28).

A partir de 1989, iniciou-se uma redefinição do cenário da organização da


produção nos assentamentos, cuja a idéia de coletivização foi uniformizada a partir da
proposta organizacional centrada nas Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA´s).
Esse indicativo político-organizativo consolidou um viés “economicista” no
desenvolvimento e na elaboração da proposta de cooperação agrícola do MST. Essa
redefinição centrada na institucionalização homogênea da cooperação agrícola nos
assentamentos provocou alguns desdobramentos políticos para o MST. Assim:

Os novos planos sociais que seriam vivenciados pelas pessoas


pertencentes a esses grupos com práticas sociais produtivas e
vida social coletivizados não derivaram historicamente de um
processo crescente e acumulativo de transformações psico-sociais
a nível das pessoas (padrões de comportamento sociais
reciprocamente reconhecidos), ou seja, não foram desenvolvidos
e consolidados a partir das vivências anteriores das pessoas, das
suas histórias de vida e de trabalho, das suas formas anteriores de
organização e de cooperação, de suas identidades sociais. Houve
uma ruptura política, a partir de fatores ideológicos externos, que
determinou de fora para dentro (a idéia de alguns para a realidade
de muitos) o ensaio das novas relações sociais e a tentativa de
identidade e coesão sociais (CONCRAB, 1999, p. 29).

Isso significa, entre outras coisas, que a diretriz política do MST,


consolidada a partir do início da década de 90, desencadeou uma reorganização de sua
esfera organizativa pois o Movimento passou a adotar e difundir uma proposta de
coletivização que “desconsiderava” as condições histórico-concretas dos assentados, ou
seja, a idéia de coletivização passou a estar imbricada, unicamente, à figura da
cooperativa “essa figura técnico-burocrática passou, então, a ser o ponto focal das
possibilidades de sucesso da cooperação” (Carvalho, In: CONCRAB, 1999, p. 29).
Esse apontamento político-organizativo revela uma contradição
significativa na proposta de cooperação desenvolvida pelo MST, pois ao mesmo tempo

16
Geografia e Trabalho no Século XXI

em que este defende o incentivo às diversas formas de cooperação agrícola


(associações, grupos coletivos, núcleos de produção, etc.), potencializa, através da
institucionalização, a redução dessa pluralidade/diversidade a partir da unicidade
organizacional da cooperativa que provocou alguns desdobramentos políticos para o
MST. O primeiro deles é que a organicidade do MST (sua dimensão organizativa
interna voltada à organização da produção e do trabalho nos assentamentos) passou a
estar unicamente vinculada ao sistema de cooperativas (e não às formas múltiplas de
cooperação), adquirindo, portanto, um caráter fundamentalmente economicista.
Outro desdobramento resultante dessa diretriz organizativa adotada pelo
MST é que o sistema SCA/CONCRAB passou a priorizar a gestão técnico-
administrativa e a viabilidade/eficiência econômica das cooperativas, reduzindo,
conseqüentemente, o processo de formação política dos assentados. Assim, o
significado político da cooperação (propagado no conteúdo discursivo do MST) passa a
ser secundarizado em detrimento da priorização dos aspectos decorrentes de seu
processo de institucionalização.
Nesse sentido, as CPA´s constituíram-se, num primeiro momento,
enquanto expressão concreta da diretriz político-organizativa do MST nos
assentamentos centrada na institucionalização do processo cooperativo. Posteriormente,
para “massificar” a cooperação agrícola, o Movimento passou a potencializar e
fomentar a difusão das Cooperativas de Prestação de Serviços (CPS´s), que teriam uma
abrangência regional, ampliando territorialmente o raio de atuação de seu modelo
institucional.
Dessa forma, no início da década de 90, estrutura-se à rede político-
organizativa do MST, centralizando na CONCRAB, o controle do processo cooperativo
em nível nacional. Isso significa que o funcionamento das cooperativas nos
assentamentos passou a estar articulado com uma Central Cooperativa dos Assentados
(CCA) que, por sua vez, está subordinada/integrada à CONCRAB.
Esse modelo organizativo, como já afirmamos anteriormente, fortalece a
vinculação da gestão dos assentamentos com o projeto político-ideológico propagado
pelo MST. Assim:

O SCA, desde 1992, enquanto expressão da organicidade


possível do MST (mesmo considerando o papel relevante de
outros setores), constituiu-se gradativamente num sistema
técnico-burocrático ideologicamente centralizado, necessário em
função da complexidade das lutas e da organização econômicas
conjunturais em situações adversas, porém insuficiente para dar
conta da organicidade política-ideológica desejável para um
movimento social inserido na luta de classes e cujos objetivos,
desde o Plano Nacional do MST de 1989-93, eram, entre outros,
a construção de uma sociedade socialista (CONCRAB, 1999, p.
34).

17
Geografia e Trabalho no Século XXI

Essa centralização das atividades das cooperativas numa rede estratégica


de ação em nível nacional, bem como a própria uniformidade/institucionalidade da
cooperação agrícola a partir da difusão das cooperativas, resultou em alguns
desdobramentos do ponto de vista da formação política dos assentados.
Dessa maneira, a cooperação nos assentamentos, antes de qualquer coisa,
revela-se como uma faceta do processo de redimensionamento da luta política do MST,
motivada pela necessidade de se organizar a gestão territorial dos assentamentos
conquistados. Ou seja, organização cooperativa expressa-se, fundamentalmente, como
uma alternativa organizativa voltada à minimização do nível de miserabilidade dos
assentados. É, sem dúvida, uma resistência à subordinação da agricultura familiar às
grandes empresas agroindustriais.
Ao mesmo tempo, a diretriz política adotada pelo MST para o
desenvolvimento da cooperação agrícola nos assentamentos, a partir da década de 90,
passou a se fundamentar na unicidade vinculada à dimensão institucional da empresa
cooperativa: a pluralidade da cooperação (revelada pela diferencialidade organizativa
engendrada a partir das condições objetivas e subjetivas dos assentados) foi reduzida a
singularidade da cooperativa.
Nesse contexto, o principal aspecto a ser considerado refere-se ao
significado político resultante desse processo de centralização/institucionalização das
diversas formas de cooperação agrícola. Podemos afirmar que o desdobramento
imediato desse processo revelou-se no distanciamento entre a direção do MST e os
trabalhadores assentados. Isso significa que:

[...] existe na atualidade, como efeito-consequência desse


complexo processo histórico de construção-reconstrução da
cooperação entre os acampados e assentados, uma evidente
debilidade político-ideológica a nível dos quadros intermediários
(Estado, região e assentamento) do MST. Essa debilidade na
estrutura orgânica, em especial nos fluxos relacionados com a
direção político-ideológica, exceptuando-se a frente de massa,
gera uma entropia (degradação da energia organizacional) na
comunicação política entre a direção nacional e a base
representada pelos trabalhadores rurais assentados [...] reduzindo
o processo de luta de classes às lutas imediatistas de
reivindicação e/ou de protesto plenamente identificados com o
projeto social-democrata muito a gosto do reformismo liberal-
burguês (CONCRAB, 1999, p. 38).

Para finalizar esse momento da reflexão, é importante ressaltar que a


cooperação agrícola e sua forma institucionalizada (a cooperativa), expressam a
construção gradual e conflituosa de um projeto de gestão territorial que deve ser
entendido no âmbito do processo de luta e de resistência dos trabalhadores assentados.
A seguir, estaremos evidenciando os desdobramentos político-territoriais
da organização cooperativa no Pontal do Paranapanema, relacionando esse apontamento

18
Geografia e Trabalho no Século XXI

organizacional mais amplo do MST à dinâmica singular da COCAMP. Além disso,


destacaremos o significado da cooperação agrícola a partir da inserção diferenciada dos
assentados e o processo de ideologização intrínseca à sua territorialização.

Segunda Tese: Os desdobramentos territoriais a partir da


organização cooperativa no Pontal do Paranapanema não expressam um conteúdo
que qualifique significativamente uma diferencialidade (social, política, cultural,
ideológica e organizativa) entre os trabalhadores assentados em sua totalidade
(cooperados e não cooperados).

Essa segunda tese nos motiva a desenvolver uma reflexão que perpassa
por duas questões basilares: a) a questão da luta pela terra e, por conseguinte, da
organização cooperativa no âmbito do MST está diretamente vinculada à questão do
trabalho; b) até que ponto a cooperativa (sistema institucionalizado, burocratizante e
centralizador) pode ser uma ferramenta de luta vinculada á dimensão estratégica de
solapamento das estruturas solidificadas pelo metabolismo societário engendrado e
dominado pelo capital?

3. METABOLISMO SOCIETÁRIO DO CAPITAL E LUTA PELA


TERRA NO BRASIL

A dinâmica/natureza da luta pela terra estrutura-se no bojo da luta de


classes, sendo que o desenho societal dos sem-terra no Brasil deve ser compreendido a
partir dos ritmos e formas cristalizados no âmago da processualidade social (totalidade
histórico-concreta).
Dessa forma, podemos afirmar que um aspecto basilar para a
compreensão da trama societária dos sem-terra no Brasil, refere-se as transformações
recentes no mundo do trabalho, engendradas a partir da reestruturação do capital em
decorrência de sua crise estrutural materializada a partir da década de 70. Ou seja, o
desenho societal dos sem-terra no Brasil possui uma relação dialética com as mudanças
na forma de ser e existir da classe-que-vive-do-trabalho.
Quando falamos em crise estrutural do capital objetivamos evidenciar as
transformações abissais consolidadas no início dos anos 70, quando após um longo
período de acumulação de capitais (auge do fordismo e do pacto keynesiano) inicia-se a
constituição de um “quadro crítico” no modelo de acumulação.
Essa crise estrutural tornou-se evidente a partir da instauração do seguinte
quadro: a) queda da taxa de lucro, resultante de uma redução dos níveis de
produtividade do capital; b) esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista; c)
hipertrofia da esfera financeira; d) maior concentração de capitais graças às fusões entre
as empresas monopolistas e oligopolistas; e) a crise do welfare state ou do “Estado do

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Geografia e Trabalho no Século XXI

bem-estar social”; f) incremento acentuado das privatizações, tendência generalizada às


desregulamentações e à flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força
de trabalho (ANTUNES, 1999).
Esse cenário crítico tinha como fundamento a seguinte tríade: a redução
dos níveis de produtividade do capital, em decorrência da queda da taxa de lucro; o
próprio esgotamento do modelo de acumulação centrado em bases fordista/taylorista9;
consolidação de uma crise fiscal do Estado capitalista.
Em linhas gerais, a crise do capital estruturada nos anos 70 expressa-se
como um desdobramento do próprio sentido destrutivo da lógica do capital, no qual o
modelo de acumulação centrado na horizontalidade do processo produtivo, numa
capacidade do mercado em criar uma demanda a partir do aumento da produtividade,
inicia uma etapa de esgotamento. Assim, ao mesmo tempo em que a estrutura basilar do
processo produtivo entra em crise, seus mecanismos de regulação também passam por
uma (re)organização. Isso explica a crise fiscal do Estado capitalista (welfare state),
traduzida pela retração dos gastos públicos10.
Em meio a este turbilhão o capital, enquanto estrutura hegemonizadora da
base societária, buscou uma reorganização de seus pilares constituidores, tanto a partir
de uma reestruturação produtiva, tentando recuperar seu ciclo reprodutivo, como na
esfera política, com a solidificação do neoliberalismo.
A reestruturação produtiva pautou-se na consolidação das formas de
acumulação flexível, enquanto alternativa ao modelo de acumulação centrado no
binômio fordismo/taylorismo. Nesse sentido, o modelo de acumulação de capital passou
a ter como referência o toyotismo (ALVES, 2000).
O toyotismo, a via japonesa de expansão e consolidação do capitalismo
monopolista industrial, é uma forma de organização do processo de trabalho que surgiu
na fábrica da Toyota (Japão), no período pós-guerra. Seus principais elementos
constituidores são os seguintes: a) produção vinculada à demanda, tendo um caráter
heterogêneo, ao contrário do caráter homogeneizador da produção em série (fordista); b)
o trabalho operário realiza-se em equipe, rompendo com a estrutura parcelaria e
fragmentada do modelo fordista/taylorista; c) o princípio basilar da produção pauta-se
no just in time; d) a estrutura das empresas no modelo toyotista materializa-se em uma
estrutura horizontalizada (terceirização do processo produtivo), ao contrário da estrutura
verticalizada fordista.

9
O binômio taylorismo/fordismo diz respeito ao sistema produtivo e de seu respectivo processo
de trabalho que vigorou na grande indústria durante, praticamente, todo o século XX. Sua
principal característica baseava-se na produção em massa de mercadorias, com uma produção
mais homogeneizada e verticalizada. Esse padrão produtivo centrou-se com base no trabalho
parcelar e fragmentado e na decomposição de tarefas. (Antunes, 1999).
10
Para mais detalhes ver: Antunes, 1999; Alves, 2000; Bihr, 1998; Carvalhal, 2000.

20
Geografia e Trabalho no Século XXI

Vale ressaltar que apesar do toyotismo ter surgido no Japão, sua essência
constituidora expandiu-se rapidamente pelas empresas de outros países, dada a sua
capacidade de garantir uma reestruturação da relação capital x trabalho, propagando
novas formas de gerenciamento e controle do processo produtivo por parte do capital
(ANTUNES, 1999). Isso, porém, não significa que esse processo de reestruturação
homogeneizou-se pelo mundo, ao contrário, essa mudança é lenta e gradual, seguindo
uma diferencialidade territorial. Dessa forma, o modelo toyotista vem expandindo-se
nas últimas décadas, ora hegemonizando-se em alguns países, ora mesclando-se com o
modelo de acumulação taylorista/fordista.
O outro eixo da resposta do capital à crise estruturada nos anos 70 pautou-
se no neoliberalismo. O receituário neoliberal centraliza-se na intensificação da
privatização de praticamente tudo o que havia sido mantido sob controle estatal no
período pós 30; a redução ou até extinção do capital produtivo estatal; o incentivo e o
regramento estruturado na desregulamentação crescente das condições de trabalho e dos
direitos sociais. (ANTUNES, 1999).
Essa reorganização da base societária do capital produziu intensas
transformações no mundo do trabalho ou na forma de ser e de existir da classe-que-vive-
do-trabalho, tais como:
a) diminuição do operariado manual, fabril, típico do modelo fordista e
da fase de expansão da regulação social-democrática;
b) intensificação das formas de subproletarização e precarização do
trabalho, por meio da expansão do trabalho parcial, temporário,
subcontratado e terceirizado;
c) aumento expressivo do trabalho feminino no interior da classe
trabalhadora, expansão esta que assenta-se no universo do trabalho
precarizado, subcontratado, terceirizado, part-time etc.;
d) expansão dos assalariados médios, fundamentalmente no “setor de
serviços”;
e) intensificação gradual da exclusão de trabalhadores jovens e velhos
(45 anos) do mercado de trabalho;
f) intensificação da superexploração do trabalho, incentivado,
substancialmente, pelas formas de acumulação flexível;
g) aumento significativo do desemprego estrutural. Para se ter uma idéia
dessa magnitude, no ano de 2001 tem-se a maior taxa de desemprego
nos Estados Unidos, principalmente pelo crescimento do desemprego
na área industrial (ANTUNES, 1999).

Esses aspectos evidenciam que a classe trabalhadora complexificou-se,


heterogeneizou-se e fragmentou-se.
É no contexto das transformações recentes no mundo do trabalho que
podemos compreender o desenho societal dos sem-terra no Brasil. É importante destacar
que para se compreender a magnitude da luta pela terra no Brasil, torna-se necessário

21
Geografia e Trabalho no Século XXI

considerar a formação camponesa no país, ou seja, as lutas cumulativas que foram


engendradas nos conflitos traduzidos em resistências territoriais.
Entretanto, a formação camponesa no Brasil está diretamente relacionada
à essência constituidora do processo reprodutivo do metabolismo societário do capital
nas últimas décadas, o que Thomaz Júnior (2001), denomina de processualidade social
do mundo do trabalho.
Esse viés analítico permite, inclusive, compreender a complexidade
inerente a trama societária da luta pela terra (como a participação de desempregados e
“marginalizados” urbanos nas ocupações de terra) a partir do trabalho11. Essa é uma
problemática que perpassa, indubitavelmente, pela própria “questão” cidade x campo,
expressão fenomênica que revela a ordenação territorial da tessitura societal da luta pela
terra no Brasil.
Ao mesmo tempo, para se compreender o desenho societal dos sem-terra
temos que considerar as transformações recentes da agropecuária brasileira (redefinição
das relações de trabalho e de produção, “modernização” e industrialização da
agricultura, etc.), que estão diretamente relacionadas com as transformações no mundo
do trabalho. É a partir da desregulamentação do trabalho, da precarização e do
desemprego estrutural que o desenho societal dos sem-terra assume as nuances
específicas do conflito estrutural parametrizado no controle do metabolismo societário
engendrado pelo capital, assim questão da terra deve ser compreendida, segundo
Thomaz Jr. (2001, p. 1):

[...] por dentro da complexa trama societária que contempla não


somente os egressos da terra, os trabalhadores
desterritorializados, ou que ainda se encontram em situação
precária (endividados, como agregados, etc.), porém cada vez
mais, contingentes expressivos de desempregados e trabalhadores
do setor urbano precarizados (part time, terceirizado, temporário,
subcontratado, etc.) que sucumbem à exclusão imposta pela
reestruturação produtiva do capital.

Essa trama societária, natureza constituidora da luta pela terra no Brasil,


está diretamente subordinada à intensificação da concentração fundiária e da
concentração de renda. São esses aspectos, juntamente com a aceleração e expansão da
precarização do trabalho, que nos permite compreender a magnitude e o conteúdo do
desenho societal dos sem-terra no Brasil.
A relação entre as transformações no mundo do trabalho e a luta pela terra
também se evidencia na diversidade dos sujeitos sociais que hoje compõem a
diferencialidade dos movimentos organizados de luta pela terra, revelando a

11
Cf. THOMAZ JR., 2001.

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Geografia e Trabalho no Século XXI

complexidade dos contornos que o conflito fundiário tem assumido no Brasil nas
últimas décadas, principalmente em virtude das transformações recentes da
agropecuária brasileira e das transformações recentes no mundo do trabalho
(precarização, desemprego, etc.). Ou seja, a luta pela terra complexificou-se,
heterogeneizou-se em detrimento da própria processualidade social que expressa a
essência do desenho societal dos sem-terra no Brasil, daí apresentar nuances e contornos
novos em decorrência da complexidade atinente à trama societária assentada a partir
dessas transformações no mundo do trabalho, resultando numa diversidade de sujeitos
sociais que passam a constituir as diversas frentes organizativas de luta, formatando
uma diferencialidade territorial.
Se esta pode evidenciar-se por meio de um processo contraditório e
multifacetado, cuja expressão fenomênica é a própria dimensão territorial que evidencia
a diversidade dos sujeitos sociais envolvidos no conflito, o MST configura-se como
uma das facetas organizativas desse processo. É no tocante a essa complexidade que o
MSt consolidou-se no Brasil, conquistando assentamentos e cristalizando-lhes uma
proposta de gestão.
A organização cooperativa acaba sendo uma proposta de alternativa frente
a situação de miserabilidade dos assentados, situação esta decorrente da precarização do
ser social que trabalha, diretamente vinculada aos contornos da política neoliberal no
país, consolidada a partir da década de 90.
Essa questão que, num primeiro momento, parece estar tão distante do
enfoque da dinâmica territorial da COCAMP, no Pontal do Paranapanema, é
extremamente importante para a compreensão de sua essência. Para se ter uma idéia, um
dos desdobramentos da uniformização da cooperação agrícola a partir da
territorialização das cooperativas foi a cristalização de um distanciamento entre a
direção da COCAMP e os assentados. A pesquisa realizada nos revelou que a
participação dos associados nas assembléias da cooperativa e nas suas decisões é muito
irrisória. Isso se explica porque a uniformização da cooperação agrícola nas
cooperativas, essa dimensão institucionalizada, desconsiderou o contexto histórico-
concreto dos assentados. Mas quem são estes assentados-cooperados?
A pesquisa de campo revelou que cerca de 57% dos cooperados eram,
antes de serem assentados, assalariados (urbanos e rurais). Cerca de 30% eram
arrendatários, significando que existe uma heterogeneidade entre estes sujeitos, sendo
esta produzida pelas próprias metamorfoses da classe trabalhadora, motivadas pela
reestruturação da base societária do capital. Quando se coloca para o assentado a
necessidade de se aliar a uma cooperativa há um rompimento da vinculação ou da
construção de sua inserção coletiva que poderia ser fomentada com outras formas de
cooperação.
Trouxemos essa discussão nesse momento para evidenciar que as
contradições intrínsecas aos desdobramentos da organização cooperativa no Pontal do
Paranapanema estão diretamente relacionadas a uma diretriz político-organizativa do
MST, consolidada na década de 90, que rompe com um contexto histórico-concreto

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Geografia e Trabalho no Século XXI

produzido a partir de uma heterogeneização dos assentados decorrente da


complexificação da forma de ser e de existir da classe trabalhadora.
Se há uma relação entre a organização cooperativa e o mundo do trabalho,
até que ponto a cooperativa pode ser uma ferramenta de luta vinculada a uma estratégia
de rompimento estrutural de uma base societal parametrizada na subordinação do
trabalho frente ao capital?

4. COOPERATIVISMO E LUTA DE CLASSES

Refletir sobre o cooperativismo, e mais especificamente sobre sua


singularidade a partir da base organizativa do MST, nos põe diante de um debate sobre
sua sustentação ideológica, ou melhor, sobre sua relação direta com um projeto da
classe trabalhadora. A questão que suscita refere-se a sua condição enquanto uma
perspectiva tático-estratégica da classe trabalhadora ou enquanto inserção no quadro de
um projeto de reformismo social, revestido do ideário da “terceira via”. Essa discussão,
necessariamente, nos remete a alguns autores clássicos que se debruçaram sobre a
essência do sistema metabólico do capital, suas contradições e a construção histórica de
sua negação/superação.
O cooperativismo, em sua acepção mais geral, pode ser compreendido
como uma estrutura político-organizativa construída a partir de um processo cumulativo
de ações pautadas na tentativa de minimizar o grau de miserabilidade dos trabalhadores
diante da cristalização das relações capitalistas de produção, através de níveis
diferenciados de coletivização. Essa perspectiva organizativa surgiu, fundamentalmente,
no século XIX, na Inglaterra, a partir da contribuição de diversos precursores (Robert
Owen, Charles Fourier, Saint-Simon, Louis Blanc, etc.) e da concretização de
realizações cooperativas (sendo a dos Pioneiros de Rochdale, a mais importante,
constituindo-se como um marco histórico do cooperativismo mundial)12.
A doutrina cooperativa, de uma maneira geral, revela em seus
fundamentos uma dualidade, ou melhor, uma contradição, enquanto proposta de
“reestruturação da sociedade”: a) um caráter de transformação global/estrutural do
sistema metabólico do capital13, devido a sua influência originária pautada nas reflexões
desenvolvidas pelos pensadores utópicos e, b) uma dimensão reformista, calcada na
influência da teoria neoclássica na estruturação de suas propostas.
O cooperativismo, enquanto preocupação teórica e política, está
intrinsecamente relacionado ao processo de hegemonização do metabolismo social
engendrado pelas relações capitalistas de produção que, somados aos desdobramentos

12
Mais detalhes sobre o histórico do cooperativismo e sobre alguns aspectos do pensamento de
seus precursores, ver: Ribas, 2002.
13
Mais detalhes, ver: Antunes, 1999; Alves, 2000; Mészáros, 1999.

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Geografia e Trabalho no Século XXI

oriundos da Revolução Industrial, criaram as condições concretas para o surgimento de


concepções voltadas a uma reestruturação da sociedade, que visavam, em linhas gerais,
melhorar as condições de vida dos trabalhadores, principalmente, os da grande indústria.
Dessa forma, a separação entre a propriedade da força de trabalho e dos
meios de produção, explicitada partir da produção “coletiva” e a apropriação privada
dos “frutos do trabalho”, coloca-se como um condicionante que dimensiona o
surgimento de concepções em torno de práticas associativas, que visam suprimir as
contradições inerentes a esse ordenamento singular de reprodução da sociedade.
Essa é uma faceta substancial da doutrina cooperativa: o seu
distanciamento frente às condições histórico-concretas engendradas no bojo das
contradições inerentes a luta de classes e estruturalmente codificadas na sociedade
capitalista. Desde sua gênese, o cooperativismo esteve vinculado a um fragmento da
classe trabalhadora, a um grupo específico, tendo um caráter de ser um instrumento
voltado a minimização da precarização da classe-que-vive-do-trabalho frente às
mazelas maximizadas com a intensificação da acumulação de capitais centrada na mais-
valia absoluta.
Essa proposição é que nos remete a realizar uma reflexão sobre os
contornos político-ideológicos do debate entre a doutrina cooperativa (centrada no
pensamento de seus precursores) e o “socialismo científico”, sempre tendo como
elemento basilar a construção de uma negação a hegemonização do capital frente ao
trabalho. Enfim, o que queremos é dialogar com autores que crivaram um debate
substancial em torno da natureza e, ainda, da capacidade estratégica do cooperativismo
enquanto um instrumento voltado à emancipação da classe trabalhadora.
Iniciamos esse debate com os precursores da doutrina cooperativista. Em
linhas gerais, o principal objetivo destes era apontar uma alternativa para a situação
social concreta de miserabilidade dos trabalhadores decorrente dos primeiros
desdobramentos da Revolução Industrial. O conteúdo político-ideológico dessa
proposição revela que essa nova estrutura de organização e gestão do trabalho (o
cooperativismo) seria uma forma de evitar que o conflito capital x trabalho chegasse as
vias de fato, através de uma possível união das classes.
Isso seria possível a partir de mudanças na estrutura das empresas, ou a
partir de uma reorganização dos hábitos do consumo (como, por exemplo, Charles Gide,
que entendia que o mal da sociedade era a situação precarizada e desigual do
consumidor perante o novo processo produtivo).
Outro aspecto presente na concepção dos “precursores do
cooperativismo” refere-se a defesa da manutenção da propriedade privada individual
(nesse sentido, podemos destacar, por exemplo, Plockboy), sem ser estritamente
necessário a superação das relações capitalistas de produção.
Isso nos remete a afirmar que o fundamento político-ideológico que dava
sustentação à necessidade de se organizar as associações cooperativas, traduzia-se muito
mais como uma forma ética de solução das mazelas sociais, do que uma proposição de
superação estrutural do controle metabólico do capital sobre a sociedade, claramente

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Geografia e Trabalho no Século XXI

definido com os desdobramentos da Revolução Industrial. O reformismo intrínseco a


essa forma de pensar atravessou séculos e até hoje ronda o cenário social.
É por isso que a principal crítica de base marxiana à doutrina e às práticas
cooperativas direciona-se a esse contorno político-ideológico intrínseco à sua essência,
ou seja, ao fato de que o cooperativismo se apresente como um instrumento que
possibilite uma melhoria das condições econômicas de um determinado grupo social.
Nesse contexto, Marx afirmava que as práticas cooperativistas seriam
insuficientes para a emancipação da classe trabalhadora. Este reconhecia a importância
das experiências cooperativas, pois elas, no seu entender, provaram “[...] que a produção
em grande escala, e segundo as exigências da ciência moderna, pode processar-se sem
que uma classe de senhores empregue uma classe de <braços>; que os meios de
trabalho, para darem fruto, não tem necessidade de ser monopolizados para domínio e
exploração dos trabalhadores” (MARX, et. al., 1979, p. 14).
Já fica evidente, com essa citação, o entendimento do autor sobre a
necessidade da cooperativa propagar/construir a supressão do domínio e controle grados
pelo capital, principalmente, na esfera da dimensão produtiva, mesmo estando esta
diretamente subordinada ao desenvolvimento crescente das forças produtivas.
Mas, em contrapartida, Marx dirige sua crítica às experiências
cooperativas, fundamentalmente, a partir dos limites político-estratégicos revelados por
tal proposta para a emancipação dos trabalhadores por dentro de um projeto de classe.
Esse é o aspecto básico da concepção marxiana sobre as potencialidades da organização
cooperativa, sendo que:

[...] por excelente que seja nos seus princípios e por mais útil que
se revele na prática, a cooperação dos trabalhadores, enquanto
permanecer limitada a um círculo reduzido, enquanto apenas
alguns operários se esforçarem suceda o que suceder no que lhes
pertence, então essa cooperação não será nunca capaz de travar
os monopólios que crescem em produção geométrica; ela não
será capaz de libertar as massas, nem mesmo de aliviar de modo
sensível o fardo da sua miséria (MARX, et. al., 1979, p. 15).

Assim, o autor, mais uma vez, destaca as limitações políticas decorrentes


de uma ação reduzida das práticas cooperativas em alguns setores da sociedade. Nesse
sentido, Marx evidencia a necessidade de se articular a organização cooperativa com o
projeto libertário da classe trabalhadora frente à hegemonia das relações capitalistas de
produção.
Isso porque este entendia que o cooperativismo, mesmo com sua
dimensão de reformismo social, estava, necessariamente, vinculado ao sistema
estrutural de controle/hegemonia do capital frente ao trabalho. Portanto, sua ação era
reduzida tanto socialmente (por aglutinar uma parcela da sociedade) como política e
ideologicamente (já que sua proposição estratégica não estava relacionada a com um
projeto de classe).

26
Geografia e Trabalho no Século XXI

Ainda sobre essa questão da negação da possibilidade de emancipação


dos trabalhadores a partir da organização cooperativa, Rosa Luxemburgo também é
muito taxativa, ao afirmar que “as cooperativas; e em primeiro lugar as cooperativas de
produção, são instituições de natureza híbrida no seio da economia capitalista:
constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca
capitalista” (MARX et. al, 1979, p. 32). Para a autora, o cooperativismo poderia
representar uma oposição ao capital apenas na esfera comercial, não estando
diretamente em oposição ao controle metabólico do capital em sua essência.
Préobrajensky (1979) concorda com os contornos da reflexão de Rosa
Luxemburgo e afirma que a organização cooperativa está submetida às trocas
capitalistas e que, dessa forma, esta só pode apropriar-se de uma parte do lucro
comercial em prol dos seus membros. O autor ainda vai mais longe, quando afirma que
a cooperação, no seio de uma economia capitalista, só pode existir adaptando-se à lei do
valor.
Notamos que há uma similaridade entre os autores considerados, pois
desenvolvem suas reflexões sobre a organização cooperativa tendo como “pano de
fundo” o movimento contraditório intrínseco à processualidade social. Isso se torna
evidente quando Préobrajensky afirma que “A cooperação da produção constitui
pequenas ilhas de propriedade, não social, mas coletiva, dos instrumentos de produção,
ilhas que estão sujeitas na esfera da produção às leis fundamentais da economia
capitalista e que apenas nessa medida existem no oceano das relações capitalistas”.
(MARX et. al., 1979, p. 50)
Nessa mesma direção, vale destacar as contribuições de um dos principais
representantes do pensamento marxista: Lênin. Este entendia que “É certo que num
Estado capitalista as cooperativas são instituições capitalistas coletivas” (MARX et. al.,
1979, p. 43). Percebemos, também, que Lênin revela, claramente, os limites inerentes ao
conteúdo político-ideológico das práticas cooperativas existentes em uma sociedade
marcada pela subordinação estrutural do trabalho ao capital.
Aproveitando um pouco mais das idéias de Marx referentes à organização
cooperativa, podemos destacar que este, indubitavelmente, era contrário a propagação
de normas rígidas e universais para um tutelamento das práticas cooperativas singulares.
Em contrapartida, o autor acreditava (no momento em que estava à frente da Associação
Internacional dos Trabalhadores) que deveria existir uma organização que unificasse os
movimentos operários (entre eles o cooperativo) e, concomitantemente, entendia ser
necessário definir alguns princípios gerais para a organização cooperativa. Esses
princípios seriam os seguintes (MARX et. al., 1979):

a) o cooperativismo deve apontar, na prática, para a substituição da


subordinação do trabalho ao capital pela associação de produtores
livres e iguais;
b) o cooperativismo nunca tornará hegemônico a partir de esforços
individuais, necessitando de mudanças gerais produzidas pelas forças
organizadas da sociedade;

27
Geografia e Trabalho no Século XXI

c) deve haver a consagração de uma parte dos fundos da cooperativa


para a propaganda de seus princípios;
d) qualquer operário empregado deve receber o mesmo salário, seja ou
não associado, como forma de solapar relações de produção
cristalizadas no seio capitalista.

Marx também destaca uma questão teórica fundamental para o


entendimento das práticas cooperativas. Como já afirmamos anteriormente, o
cooperativismo, mesmo em seu viés reformista, possui na sua base doutrinária uma
fundamentação calcada na propagação de um devir, construído a partir da hegemonia do
trabalho sobre o capital. No entanto, há, no nosso entender, uma certa inconsistência
nessa proposição, pois esse projeto de emancipação dos trabalhadores a partir da
eliminação dos capitalistas de uma maneira “positiva”, encontra-se desvinculado da
totalidade contraditória intrínseca ao processo social mais geral.
Em outras palavras, a contradição capital x trabalho é muito complexa,
pois o trabalho do capitalista, na medida em que não resulta do processo de produção
capitalista propriamente dito, não cessa automaticamente com o desaparecimento do
capital, já que não se limita à exploração do trabalho de outrem, mas resulta da forma
social do processo de trabalho, sendo que “as formas engendradas no seio da produção
capitalista passam a existir independentemente do seu caráter capitalista e libertadas das
contradições do capital” (MARX, et. al., 1979, p. 24).
A esse respeito, Mészáros (1995, p. 30) elucida que “O capital não
depende do poder do Capitalismo e isso é importante também no sentido de que o
capital precede o capitalismo em milhares de anos. O capital pode sobreviver ao
capitalismo, é de esperar que não por milhares de anos, mas quando o capitalismo é
derrubado numa área limitada, o poder do capital continua, mesmo que numa forma
híbrida”.
Essa questão nos permite revelar os riscos em se afirmar que relações
associativas/cooperativas estruturadas no interior da totalidade do processo social de
produção capitalista possam expressar, perante a possível eliminação da relação patrão x
empregado, a superação do antagonismo capital x trabalho, pois

[...] dentro das cooperativas o antagonismo entre o capital e o


trabalho encontra-se superado, embora ainda sob uma forma
imperfeita: como associação os, trabalhadores são os capitalistas
deles próprios, o que quer dizer que utilizam os meios de
produção para valorizar o seu próprio trabalho” (MARX, et. al.,
1979, p. 28).

Rosa Luxemburgo endossa essa idéia quando afirma que numa economia
capitalista a troca domina a produção, em virtude da concorrência e que,
conseqüentemente, as cooperativas acabam virando empresas capitalistas devido a seus
associados desempenharem a si próprios o papel de empresários capitalistas.

28
Geografia e Trabalho no Século XXI

Mais uma vez recorremos a Mészáros (1995, p.131) para explicitar que
“O capital é uma força controladora, você não pode controlar o capital, você somente
pode se livrar dele por meio da transformação de todo o complexo de relações
metabólicas da sociedade – é impossível enganá-lo. Ou ele o controla ou você se livra
dele, não há solução intermediária”.
Outro autor que fornece contribuições importantes para a compreensão do
significado político da organização cooperativa é Kautsky (1980). Kautsky entendia que
a cooperação devia ser antes de tudo uma forma de supressão da propriedade privada
individual, daí este chegar a afirmar que a associação cooperativa iria se concretizar a
partir dos trabalhadores que não tinham propriedade, pois entendia que o camponês era
um “fanático” pela propriedade e que:
Não é por intermédio dos que possuem, mas dos que não
possuem, que se fará a passagem à produção cooperativa [...] só o
proletariado vitorioso poderá tomar uma iniciativa de tal
envergadura e estabelecer as condições que permitam a passagem
dos artesãos e camponeses [...] à grande produção cooperativa.
(KAUTSKY, 1980, p. 149).

O autor revela a sua preocupação com a forma específica de consciência


política do camponês, destacando que este se apropriava da cooperativa enquanto forma
de “coletivamente” resolver e satisfazer seus interesses privados. Ou seja, a cooperativa
seria o produto de uma organização conjunta para se conseguir as mesmas vantagens da
grande propriedade capitalista, distanciando-se do caráter de classe da organização, de
sua conexão direta com um projeto político da classe operária.
Nesse ponto específico da reflexão de Kautsky entendemos ser necessário
recuperar alguns elementos singulares da tessitura territorial da COCAMP, no Pontal do
Paranapanema, justamente no que tange a este apontamento político-estratégico da
organização cooperativa. Na pesquisa que realizamos no âmbito da dissertação de
mestrado ficou evidente que os assentados se vinculam à cooperativa com o objetivo de
conseguir, a partir dessa estrutura organizativa, benefícios de uma empresa capitalista.
Ou seja, há um distanciamento latente entre o entendimento da cooperação agrícola
cristalizada a partir das lideranças políticas do MST e seu enraizamento nos
assentamentos.
Além disso, a participação dos assentados nas decisões da cooperativa,
também identificada na pesquisa realizada, é muito irregular, o que “nega”, de certa
forma, uma gestão coletiva do processo produtivo. Isso significa que os desdobramentos
territoriais da organização cooperativa no Pontal do Paranapanema expressam os limites
já evidenciados pelos autores marxistas mencionados acima.
Para fomentar ainda mais o debate político-ideológico sobre o
cooperativismo, estaremos destacando alguns aspectos concernentes a uma “leitura” de

29
Geografia e Trabalho no Século XXI

organização cooperativa centrada no ideário do terceiro setor14, isto é, um setor cuja


lógica e objetivos estariam além do Estado e das empresas de caráter privado, pois não
teriam como fim o lucro, sendo, portanto, consideradas organizações da sociedade civil
que se voltam às camadas mais desfavorecidas da sociedade.
Essa discussão é importante porque “ronda” o ideário discursivo que
legitima o cooperativismo no âmbito do MST e, no nosso entender, aponta para uma
“leitura”, ou melhor, para uma concepção sobre o significado político do
cooperativismo que se desvincula dos pressupostos marxianos e marxistas. Para avançar
nessa discussão vamos dialogar um pouco sobre o conceito de terceiro setor.
Nesse sentido, Gohn (2000, p. 59), afirma que:
Nosso ponto de partida para o entendimento do terceiro setor é
também nosso postulado fundamental: trata-se de um fenômeno
complexo, diferenciado e contraditório. Ele tem gerado um tipo
de associativismo que atua ao nível do poder local e suas
organizações se definem com fins públicos sem fins lucrativos. A
natureza do terceiro setor foi construída nos últimos anos a partir
de transformações no campo das ONGs, dos movimentos sociais
e das associações filantrópicas e comunitárias. A origem dessas
transformações advém tanto de alterações amplas, ocorridas
internacionalmente no mundo da economia e da política, como de
fatores ao nível nacional, advindas de alterações no cenário da
sociedade civil brasileira, especialmente na organização popular,
em mobilizações e participação popular direta, nas décadas de 70
e 80, geradoras de inúmeras ações que vieram a se constituir num
grande acervo de experiência acumulada.

Assim, o terceiro setor, basicamente, revela-se como uma empresa social


solidificada a partir de ações localizadas, sendo um fenômeno complexo, diferenciado e
contraditório. A empresa social seria um empreendimento econômico, pautado em
critérios de eficiência e produtividade e voltado ao desenvolvimento humano, social e
local (PASQUETI,1998).
Existe, atualmente, uma diversidade de autores que comungam dessa
concepção, sendo que, por exemplo, o próprio MST está sendo considerado uma
organização que se destina à proposição de uma reorganização da sociedade, tendo
como substrato à materialização de práticas voltadas para o desenvolvimento regional,
visando a humanização do homem, em detrimento da busca incessante ao lucro.
Percebemos que há um viés filantrópico no bojo dessa concepção e essa discussão nos
remete a entender o “pano de fundo” que a sustenta, pois acreditamos que conceitos
como “capital social” e “empresa social” podem eclipsar uma compreensão do
movimento contraditório da processualidade social, no sentido de nos levar a

14
Mais detalhes ver: Gohn, 2000; Giddens, 2000.

30
Geografia e Trabalho no Século XXI

secundarizar a subordinação hierárquica do trabalho ao capital e o próprio conflito


explicitado no âmbito da luta de classes.
Isso porque, segundo os defensores dessa vertente teórica, o capital, de
repente, pode “estar a serviço dos trabalhadores” e uma empresa (subordinada
estruturalmente à totalidade do processo social) pode, per si, suprimir as contradições
presentes numa relação conflitante, articulando os critérios de eficiência e produtividade
com gestão democrática e “desenvolvimento humano”. Assim:

A maioria das entidades do terceiro setor atua segundo a lógica


do mercado, a partir de articulação de atores ditos “plurais”, não
se coloca a questão da mudança do modelo socioeconômico
vigente, ou a luta contra as forma geradoras da exclusão, e atua-
se apenas sobre seus resultados. O terceiro setor atua para incluir,
de forma diferenciada, os excluídos pelo modelo econômico
(GOHN, 2000, p. 83).

Dessa forma, podemos afirmar que recorrer a esse referencial (pautado no


ideário do terceiro setor) significa desconsiderar a lógica do sistema produtor de
mercadorias estruturado a partir da generalização e hegemonização do valor de troca, ou
da própria conformação do sistema de mediações de segunda ordem, elucidado por
Mézsáros15.
Entendemos que essa discussão sobre o terceiro setor está diretamente
vinculada ao ideário da terceira via16, que representa uma reestruturação ideológica que,
embora aceite valores socialistas arraigados à justiça social, rejeita a política de classe,
defendendo uma espécie de economia mista, com um equilíbrio entre o “aspecto
econômico e o não-econômico da sociedade” (ANTUNES, 1999).
Isso significa que o ideário da terceira via pauta-se, em linhas gerais, na
reestruturação (discursiva e prática) político-ideológica de uma social-democracia
“modernizada”, que consolida suas bases a partir do espectro das conquistas individuais.
A partir disso, as contradições sociais (que não são vinculadas à luta de classes) são
direcionadas para o cenário da distribuição de renda, transformando-se numa questão de
bem-estar social, sendo que a solução para tal impasse estaria centrada no aumento da
competitividade e na desregulamentação das relações trabalhistas.
Com isso, entendemos que ficam evidentes os contornos político-
ideológicos que sustentam a concepção centrada na idéia de terceiro setor, pois, segundo
Gohn (2000, p. 83):

15
Cf. ANTUNES, 1999.
16
Sobre esse assunto, a crítica às teses de Anthony Giddens e o aparato em torno do trabalhismo
de Tony Blair, ver: Antunes, 1999; Bihr, 1998.

31
Geografia e Trabalho no Século XXI

[...] o terceiro setor, ao se declarar como espaço apolítico e atuar


em consonância com as políticas neoliberais excludentes,
favorece o voluntarismo e o individualismo e desfavorece a
mobilização engajada. A solidariedade ganha contornos
durkheimiano – como solidariedade orgânica, anômica; ou
rousseaunismo – como solidariedade gerada pelos sentimentos,
pela compaixão, e não solidariedade social de defesa de
interesses coletivos, presente nas conclamações marxistas à união
dos trabalhadores.

De uma maneira geral, esse é o cenário do debate político-ideológico que


permeia as concepções e as práticas cooperativistas. Iniciamos esse capítulo destacando
os contornos da concepção de cooperação agrícola defendida e propagada pelo MST,
ressaltando, principalmente, sua estrutura organizativo-administrativa e gerencial e,
ainda, o significado político de sua institucionalização. Esse debate, marcado por
fundamentações ideológicas distintas (reveladas a partir dos pensadores de base
marxista e os ideólogos do terceiro setor), vem no sentido de provocar uma reflexão
sobre o conteúdo político do cooperativismo desenvolvido pelo MST no bojo da luta de
classes.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos afirmar que, em sua gênese, enquanto tendência geral, o


cooperativismo foi apropriado enquanto uma condição subjetiva e objetiva de
reformismo social, sendo uma maneira de solucionar as mazelas sociais oriundas de
uma sociedade mediada pela disparidade entre produção e consumo. Esse espectro
pautado no “reformismo social” perdura até os dias atuais, sendo o ideário da terceira
via sua expressão político-intelectual e ideológica.
Como já destacamos, tornou-se fato comum, nos últimos anos, a
classificação da organização cooperativa no âmbito do MST como uma empresa social,
fundamentada a partir dos preceitos político-territoriais do “terceiro setor”. No nosso
entender, essa definição/classificação nos impossibilita de compreender a totalidade
histórico-concreta do movimento contraditório do processo social mais amplo. Isso nos
permite afirmar que o significado político-estratégico e ideológico da organização
cooperativa defendida e propagada pelo MST deve ser compreendido a partir da
dimensão multifacetada, diferenciada e contraditória do trabalho. Dimensão esta que se
revela através dos desdobramentos inerentes ao controle metabólico do capital na
sociedade contemporânea.
Assim, a organização cooperativa, per si, revela-se como um instrumento
político-ideológico insuficiente para a construção coletiva de uma nova sociabilidade
pautada na supressão estrutural do controle do capital sobre o trabalho. Não queremos
negligenciar os avanços resultantes da organização cooperativa no âmbito do MST,

32
Geografia e Trabalho no Século XXI

principalmente pela sua potencialidade em diminuir o grau de miserabilidade dos


trabalhadores assentados e de contribuir para o fortalecimento político-organizativo do
próprio Movimento. O que estamos apontando são suas contradições, pois acreditamos
que a organização cooperativa deve estar diretamente articulada com um projeto
político voltado à emancipação do trabalho frente ao controle metabólico do capital.
Essa é, sem dúvida, uma questão diretamente vinculada com às
perspectivas para o trabalho na sociedade contemporânea. A partir disso, podemos
concluir que os limites político-estratégicos da organização cooperativa no âmbito do
MST revelam a necessidade da articulação dessa proposta específica de gestão
territorial com um projeto de emancipação da classe trabalhadora, sendo que:
[...] isto significa simplesmente que a cooperação não possa ser
um meio, para o camponês, no regime capitalista, de aproveitar
as vantagens da grande exploração, a fim de consolidar e
fortificar a sua propriedade, esta coluna vascilante da sociedade
contemporânea. Compreendo que só poderá salvar-se por
intermédio da produção agrícola cooperativa, o camponês
compreenderá também que uma produção desse gênero só se
realizará onde e quando o proletariado tenha a força de modificar
a forma da sociedade, no sentido de seus interesses. Mas então
ele será socialista. (KAUTSKY, 1980, p. 149).

Essa citação de Kautsky é de fundamental importância para o


entendimento da dinâmica territorial da COCAMP, no Pontal do Paranapanema. Nesse
sentido, algumas considerações são necessárias:
a) a) Sua consolidação é um desafio em longo prazo, isso porque sua
viabilidade tem como significado uma ameaça concreta a classe
latifundista enraizada na região, podendo representar uma alternativa
a um modelo político-econômico desenvolvido há décadas na região.
b) b) Existe uma distância entre a concepção que as lideranças políticas
do MST e os assentados cooperados possuem sobre o conteúdo
político da COCAMP. Enquanto a cooperativa é entendida pelas
lideranças do MST como uma estrutura sócio-econômica que
objetiva, principalmente, fortalecer politicamente o Movimento,
sendo uma alternativa organizativa e estratégica frente ao controle
metabólico do capital; entre os assentados, a cooperativa é vista como
uma estrutura econômica cuja importância pauta-se em sua
potencialidade de aumentar os seus “ganhos” individuais, trazendo as
vantagens de uma empresa tipicamente capitalista (acesso ao crédito,
aumento da remuneração, possibilidade de agroindustrialização e
facilitação da comercialização).
c) c) Entendemos que essa concepção sobre o significado da cooperativa
fundamentada nos critérios de viabilidade e eficiência econômica está
diretamente relacionada com o processo de institucionalização da

33
Geografia e Trabalho no Século XXI

cooperação agrícola incentivado pelo MST a partir do início da


década de 90. Essa diretriz organizativa provocou alguns
desdobramentos políticos e territoriais no Pontal do Paranapanema,
pois, a COCAMP, a partir de 1996, centralizou seu projeto de gestão
dos assentamentos na priorização de um crescimento/expansão
horizontal de suas atividades, incorporando um número significativo
de sócios e estendendo consideravelmente seu raio de atuação.
Os dados referentes à participação dos cooperados nas decisões da
cooperativa, revelaram que esta é mínima, o que significa que já está havendo um
distanciamento entre a base e o corpo diretivo e isso se explica pela abrangência
territorial da cooperativa e por sua complexidade funcional, pois ao priorizar a
unicidade organizativa pautada na cooperativa, secundarizou-se a formação política dos
assentados.
a) Entretanto, é preciso afirmar que, apesar de todas as dificuldades e
limites, a COCAMP vem conseguindo resultados satisfatórios, pois
um grande esforço foi encetado e os resultados estão indo além do
possível (não necessariamente do idealizado), tendo em vista:
[...] as enormes limitações representadas pelas debilidades
estruturais da sociedade brasileira e, em especial, pelas difíceis e
variadas conjunturas que o país vivenciou nesses dez anos que
atingiram de forma contundente o desenvolvimento da produção
e da organização social das classes subalternas do campo, em
especial das possibilidades de democratização da terra e da
riqueza no campo (CONCRAB, 1999p. 29).

Mas mesmo com esses avanços, a cooperativa não está conseguindo


romper com a defesa incessante da propriedade privada individual, pois os cooperados
estão se inserindo numa cooperativa sem alterar suas bases familiares individuais. Isso
significa que o trabalho coletivo revela-se como um projeto em longo prazo, que exigirá
da COCAMP um trabalho de base permanente, de formação política dos assentados.

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38
Geografia e Trabalho no Século XXI

QUESTÃO AGRÁRIA E DESENVOLVIMENTO RURAL:


O Controle Social do Estado no Meio Rural Brasileiro∗

Jorge R Montenegro Gómez∗∗

1. INTRODUÇÃO

No período compreendido entre 1993 e 2003 se consolida uma mudança


considerável na forma em que o Estado brasileiro vai enfrentar os problemas estruturais
do campo. A tradicional questão agrária, paradigma de interpretação desses problemas
em termos do conflito entre capital e trabalho, começa a ser substituída por programas
centrados no desenvolvimento do meio rural e no consenso entre os diferentes grupos
sociais que o habitam. O Estado elimina, sem solucionar, a questão agrária da agenda de
intervenção no meio rural e a substitui pelo discurso e os programas de
desenvolvimento que se configuram em eficazes formas de controle social.
Este argumento constitui o elemento central da nossa discussão neste
texto, que, por outra parte, sintetiza a pesquisa realizada ao longo do nosso mestrado
(2000-2002). Naquela ocasião, a dissertação partia da análise da região Noroeste do
Estado do Paraná, estudando dois aspectos: o embate entre a gestão territorial levada a
cabo pelos grandes proprietários e o “desenho” territorial que desde finais da década de
1980 propõem os integrantes do MST na região, e as políticas de desenvolvimento rural
que a partir da segunda metade da década de 1990 são implementadas nessa área. De
todo esse leque de temas tratados na dissertação, optamos, neste momento, por priorizar
os que configuram uma reflexão sobre a consolidação de uma questão do
desenvolvimento no foco das análises e dos projetos do Estado para o meio rural,
sobretudo, nos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).


Este texto é resulta da dissertação de Mestrado intitulada “Políticas públicas de
desenvolvimento rural e o projeto de reforma agrária do MST no Noroeste do Paraná: uma
contribuição ao entendimento do conflito capital x trabalho, da gestão territorial do Estado e do
controle social do capital”, desenvolvida junto à Universidade Estadual de Maringá (UEM), em
2002, sob a orientação do professor Antonio Thomaz Júnior.

∗∗
Doutorando em Geografia junto a FCT/UNESP de Presidente Prudente, sob a orientação do
professor Antonio Thomaz Júnior; membro do Grupo de Pesquisa “Centro de Estudos de
Geografia do Trabalho” (CEGeT).

39
Geografia e Trabalho no Século XXI

Neste sentido, num primeiro momento, apresentamos as políticas públicas


que foram implementadas no meio rural nessa época (muitas das quais, dois anos
depois, ainda continuam vigentes), o momento em que aparecem e o discurso que as
acompanha, para depois analisar as características principais da estratégia de
desenvolvimento rural de base local em que essas se inscrevem. Finalizamos, refletindo
sobre a intensificação do controle social exercido pelo Estado resultante da
implementação dessas políticas públicas de desenvolvimento rural.

2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO


BRASIL: O MERCADO COMO GESTOR ABSOLUTO DAS
RELAÇÕES SOCIAIS NO CAMPO

Em maio de 1993, o Banco Mundial (BM) avalia alguns convênios


mantidos com o Brasil sobre agricultura no seu relatório nº 11738-BR, intitulado:
Brasil. O gerenciamento da agricultura, do desenvolvimento rural e dos recursos
naturais. Este é nosso ponto de partida.
Segundo Vilela (1997), enquanto na década de 1980 o BM se preocupava
principalmente com questões financeiras nas políticas públicas a serem implementadas,
na década de 1990, “após cada diagnóstico, o Banco procura delinear bases teóricas que
visam a superar as deficiências das políticas analisadas” (p. 5). Assim, o que em um
primeiro momento se apresentam como “recomendações” do BM para reorientar a
política agrária brasileira, se convertem, com a chegada ao governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC) em 1995, na base principal das novas políticas para a
agricultura ao longo de oito anos de governo.
Brevemente, em função da sua importância, destacaremos alguns aspectos
do citado relatório. Em primeiro lugar, sua ênfase no mercado e no senso empresarial
como elementos ordenadores das futuras propostas.

O Banco Mundial vê uma agricultura emergindo no futuro


dirigida pela empresa privada, oferecendo oportunidades para
novos pretendentes e regulada por um conjunto mínimo e neutro
[sic] de intervenções governamentais. [...] O papel ideal do
governo nestes casos é o de retirar as intervenções de todos os
tipos, exceto aquelas que atinjam critérios bem determinados
sobre o que seja bem público, falhas de mercado e proteção
ambiental. O desenvolvimento rural, por outro lado, é mais uma
mistura de atividades pública e privada. O papel primário do

40
Geografia e Trabalho no Século XXI

governo é o de assegurar que as normas, a legislação e os gastos


sejam neutros para o setor rural. O seu papel secundário é intervir
com programas que tenham características semelhantes aos
delineados aqui sempre que o critério para a intervenção, como
mencionado acima, seja atingido. (BM apud VILELA, 1997, p.
7-8).

Esta ênfase no papel secundário do governo é reiterada ao tratar da


reforma agrária. Censurando o dispendioso programa brasileiro de reforma agrária, o
BM, no seu relatório de 1993, começa a fazer propaganda do que anos depois, em 1997,
será implementado no Brasil com nome de Célula da Terra nos estados de Bahia, Ceará,
Maranhão, Minas Gerais e Pernambuco, e que no ano 2000 converter-se-ia no Banco da
Terra17: uma reforma agrária de mercado. “No lugar de uma reforma agrária
administrada pelo governo, uma melhor abordagem seria a reforma através do mercado.
Os beneficiários seriam providos com doações para auxiliá-los na compra de terra” (BM
apud VILELA, 1997, p. 5).
Especialmente significativa é a “recomendação” do BM para que o
governo brasileiro adote essa experiência no âmbito da reforma agrária que o próprio
Banco já vinha impulsionando, em países como: Colômbia, Filipinas e África do Sul.

Uma possibilidade é a compra conjunta de grandes glebas de


terra por um grupo para a implantação de propriedades médias e
pequenas. A provisão de fundos para grupos organizados (por
exemplo grupos em comunidade rural) para efetuar o primeiro
pagamento pela terra, substituiria o crédito e diminuiria os custos
administrativos. [...] Algumas tentativas, neste sentido, já foram
feitas e os resultados deveriam ser avaliados. Além disso, poderá
haver apoio político a tais programas entre os que se opõem à
desapropriação para reforma agrária (proprietários rurais e
conservadores) e entre os representantes do pobre rural. (BM
apud VILELA, 1997, p. 5)

Outro aspecto que o relatório abordava, também seguindo uma linha de


fomento do senso empresarial no campo, é o fomento da agricultura familiar. Criticando
as distorções provocadas pelas políticas anteriores, baseadas em instrumentos fiscais
(como isenções no imposto de renda) e créditos subsidiados, que favorecem
basicamente os grandes proprietários, o BM propõe ajudar os pequenos e médios

17
Apesar de ser criado pela Lei Complementar n. 93, de 04 de fevereiro de 1998, o Banco da
Terra só será regulamentado pelo Decreto n. 3.475, de 19 de maio de 2000 (MINISTÉRIO DO
DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2001)

41
Geografia e Trabalho no Século XXI

proprietários familiares em função de serem mais eficientes na produção e utilização de


recursos e de sua capacidade para criarem empregos, ao tempo que atingiria outro dos
objetivos principais do Banco: combater a pobreza no meio rural, a já existente e a
potencialmente criada pelas distorções da intensificação dos mecanismos de mercado no
meio rural.
Neste sentido, a avaliação destaca que seria necessário acometer
programas de reforma agrária (de mercado, certamente), de colonização e de
desenvolvimento regional com a finalidade de reduzir a pobreza, aliás, essa deveria ser
uma das poucas atividades que o Estado deveria implementar, segundo as diretrizes do
BM (apoiar o setor privado na agricultura e o uso sustentável dos recursos naturais,
seriam as outras duas).
Para consolidar essa aposta na agricultura familiar, no entanto, era
necessário estabelecer qual seria exatamente seu público alvo, ou seja, quem eram esses
agricultores familiares que se constituiriam em foco das novas propostas de políticas
públicas para o campo. Este será um dos objetivos do convênio entre a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), assinado em janeiro de 1994.
Os documentos de 1996 e de 2000, intitulados respectivamente, “Perfil da
Agricultura Familiar no Brasil” e “Novo Retrato da Agricultura Familiar - O Brasil
Redescoberto”, são dois produtos desse convênio e neles encontramos um grande
esforço teórico e metodológico para delimitar a categoria de agricultura familiar no
Brasil. Tanto no estudo de 1996, quanto no de 2000, porém, o critério maior de
definição e diferenciação entre agricultores familiares será o nível de renda18 e sua
posição a respeito do mercado (INCRA/FAO, 1996 e 2000).
As políticas públicas de desenvolvimento rural que serão implantadas ao
longo dos oito anos de governo FHC reforçarão em todo o momento esta orientação
mercantil. Até conquistas políticas alcançadas pelos movimentos sociais rurais
organizados, como o Programa de Credito Especial para a Reforma Agrária
(PROCERA), serão substituídas19 por programas de ajuda à agricultura familiar como
um todo (sem diferenciar o segmento dos assentados via reforma agrária), nos quais o
produtor se integra mais profundamente na lógica do mercado, como o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).

18
Renda Monetária Bruta em 1996 e Renda Total em 2000.
19
Em alguns casos, como o projeto LUMIAR, dedicado à assistência técnica em assentamentos,
simplesmente foram anulados.

42
Geografia e Trabalho no Século XXI

Sob a categoria agricultura familiar, nas políticas implementadas na


segunda metade dos anos 90, convergem os dois eixos marcados pelo relatório do BM
citado anteriormente, o mercado como centro e direcionador e a necessidade da
intermediação do Estado apenas para paliar a pobreza existente e os efeitos perversos
que poderiam surgir. Todavia, essa junção de ambos objetivos se realiza, nas políticas
do governo FHC, com uma hipertrofia do mercado e sem mecanismos corretores desses
efeitos perversos, como se a ação do mercado, por si só, pudesse corrigir e até eliminar
a situação de pobreza do campo brasileiro.
O fomento da agricultura familiar, mediante instrumentos como o
PRONAF ou o Banco da Terra, com sua filosofia de converter o pequeno produtor em
pequeno empresário, seria suficiente, segundo essa nova proposta, para resolver os
problemas de uma desigual estrutura fundiária, de uma injusta distribuição de renda e
riqueza, de uma organização do trabalho que penaliza fortemente os trabalhadores,
enfim para resolver a questão agrária pelas vias do mercado. Erro? Falácia?
No documento “Agricultura Familiar, Reforma Agrária e
Desenvolvimento Local para um Novo Mundo Rural - Política de Desenvolvimento
Rural com Base na Expansão da Agricultura Familiar e sua Inserção no Mercado” de
1999 se sistematiza toda essa proposta do governo FHC para o meio rural.

A proposição central do programa tratado neste documento é a de


promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável, em
nível local e regional, por meio da desconcentração da base
produtiva e da dinamização da vida econômica, social, política e
cultural dos espaços rurais —que compreendem pequenos e
médios centros urbanos—, usando como vetores estratégicos o
investimento na expansão e fortalecimento da agricultura
familiar, na redistribuição dos ativos terra e educação e no
estímulo a múltiplas atividades geradoras de renda no campo, não
necessariamente agrícolas (MINISTÉRIO DO
DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1999, p. 2).

A esta declaração de intenções, que resume muito bem o teor do


documento, acrescentamos dois dos itens listados nos objetivos gerais do programa:
“Contribuir para a erradicação da pobreza rural e redução dos índices gerais de pobreza
no Brasil” e “Proporcionar as condições necessárias para que os agricultores familiares
desenvolvam atividades produtivas em níveis de competitividade, dentro da realidade e
das perspectivas do negócio rural num mundo globalizado” (Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 1999, p. 7). Com tudo isso, fica reforçada a idéia de que
resolver a pobreza dentro do mercado seria possível e compatível com uma estratégia
que tivesse a agricultura familiar como protagonista.

43
Geografia e Trabalho no Século XXI

Vemos, portanto, que na estratégia do governo a agricultura familiar vira


factótum para resolver todos os entraves do meio rural. Dessa forma, a luta dos
movimentos sociais parece ficar sem sentido. Como insistia uma propaganda oficial
veiculada na televisão, “para que forçar a entrada se a porteira está aberta?”. Para que
sofrer ocupando, se pode conseguir-se terra negociando diretamente com os
proprietários? Para que fazer caminhadas ou ocupar prédios públicos em busca de
liberação de recursos, quando o PRONAF, nas suas diversas linhas20, o tornará um
agricultor familiar capaz de concorrer no mercado e fará do seu município um lugar
harmônico com um alto grau de desenvolvimento?
As políticas públicas para o campo implementadas a partir da metade da
década de 1990 têm uma orientação implícita muito forte de combate aos movimentos
sociais rurais reivindicativos e, em geral, de controle social. Além de um amplo leque
de medidas judiciais que procuram criminalizar as ações dos movimentos (como no
caso do MST), paralelamente; as políticas de desenvolvimento rural buscam
desestimular a organização dos produtores mais pobres e sem-terras. Para Carvalho
Filho isto fica bem claro quando analisamos o Banco da Terra, mas, na nossa opinião o
conjunto das políticas implementadas durante o governo FHC, sobretudo no segundo
mandato, merece a mesma avaliação.

O fato é que o Banco da Terra tem o objetivo estratégico de


desqualificar os movimentos sociais organizados —
especialmente, deslegitimar o MST— atuando diretamente no
âmbito econômico dos trabalhadores desorganizados. Assim,
provocaria mudanças na correlação das forças políticas e
ideológicas envolvidas na luta pela terra, beneficiando os
interesses dos latifundiários e subordinando os trabalhadores
rurais. As invasões seriam retidas, os latifundiários receberiam
dinheiro à vista por terra e benfeitorias, e os trabalhadores
ficariam sob o domínio das oligarquias locais, liberadas do
respeito à função social da propriedade rural. Assim é o governo
FHC! A reforma agrária e o desenvolvimento rural com base na
agricultura familiar fazem parte da retórica (CARVALHO
FILHO, 2001, p. 223).

As dimensões dessa estratégia do Estado centrada em políticas de


desenvolvimento rural são diversas. Os objetivos de desenvolvimento para o meio rural
sob parâmetros que reforçam as relações capitalistas se articulam com as medidas que
desprezam e atacam a ação dos movimentos sociais. Neste sentido, os objetivos de

20
O PRONAF compreende três linhas de financiamento: Crédito Rural (Custeio e de
Investimento), Infra-estrutura e Serviços Municipais e Capacitação.

44
Geografia e Trabalho no Século XXI

eliminação do conflito no campo e de reprodução ampliada do capital aparecem


imbricados e servindo como base das novas políticas de desenvolvimento propostas.
Estas duas faces ficam evidentes quando analisamos a produção
acadêmica que estuda os entraves do meio rural. A defesa de uma resolução dos
conflitos estruturais do campo via políticas de desenvolvimento e consenso, portanto,
reformulando a conflituosa questão agrária em termos do consensual desenvolvimento
rural, torna-se majoritária dentro da intelligentsia dedicada ao estudo do meio rural21. A
aceitação de que qualquer ação para resolver os problemas do meio rural deve realizar-
se dentro dos limites do capitalismo e que o único consenso válido deve ser o
promovido e legitimado pelo Estado, são os argumentos principais dessa corrente
majoritária. Assim, qualquer tentativa de superar os estreitos limites da regulação
mercantil no campo e de forçar o Estado a superar seu papel de instrumento de
salvaguarda e promoção do capital, são denunciados como inviáveis e ilegítimos por
essa voz dos supostos expertos22.

21
Neste sentido, nos parece exemplar o número 43 da Revista Estudos Avançados, editada pelo
Instituto de Estudos Avançados da USP, que publicou a finais de 2001 um dossiê dedicado ao
desenvolvimento rural. São 22 artigos que apresentam diversos aspectos e enfoques do
desenvolvimento rural. Nada incomum se temos em conta a prolífica produção nesta área. No
entanto, duas questões nos parecem significativas e até sintomáticas neste caso: por um lado, este
dossiê dedicado ao desenvolvimento rural foi precedido de outro, realizado em 1997 — o número
31 da revista —, dedicado à questão agrária, o que nos mostra como os objetos de interesse e de
estudo têm mudado o foco; por outro lado, nesses 22 artigos do número 43, apesar da abrangência
de temas, abordagens e perspectivas ideológicas, que a revista confessa na editorial, boa parte dos
artigos — as exceções são pontuais — se enquadram em uma aceitação de um paradigma que
“suprime” a questão agrária e o conflito a ele associados do cerne de sua proposta.
22
Neste sentido destacamos os trabalhos de Martins (2000) e de Navarro (2001) dos quais
transcrevemos alguns dos seus argumentos para defender o papel do Estado. Este último autor,
aceitando como premissa que “nesta quadra da história, o padrão econômico e o regime político
que sustentam a sociedade brasileira estariam ancorados no capitalismo e a sua superação, sequer
remotamente, encontra-se no horizonte” (p. 94), defende o papel do Estado “por ser a única esfera
da sociedade com legitimidade política assegurada para propor (e impor) mecanismos amplos e
deliberados no sentido de mudança social” (p. 88). Este aspecto da legitimidade dos poderes
públicos é trabalhado também por Martins, associando-o ao conflito travado entre trabalhadores e
capital: “MST e CPT querem uma reforma agrária que atinja as causas, que são causas históricas,
que se tornaram causas institucionais e políticas, sem, entretanto, oferecerem perspectivas de
saída política para elas no marco da lei e da ordem. Pois, para isso é preciso ganhar eleições e
não as ganhando é preciso estar disponível para a negociação política de questões como
essa” (p. 124. Grifos nossos).

45
Geografia e Trabalho no Século XXI

Com isto, tenta-se eliminar a centralidade da relação antagônica entre


capital e trabalho como forma de entender o que acontece no meio rural e eliminar,
também, sua perspectiva propositiva e emancipatória. Sob a óptica do consenso,
defendido politicamente por autores de reconhecido prestígio, o conflito é relegado
como um instrumento que perdeu sua vigência e que não teria sentido dentro de uma
lógica social transformada. A busca de um acordo institucional amplo sobre os rumos
da sociedade dentro dos limites da ordem estabelecida se imporia, sempre na idéia dos
defensores do consenso, a qualquer tentativa de mudança radical.
No entanto, longe da “paz” que permitiria a construção de acordos e a
instituição do consenso como mecanismo de avanço social, a lógica destrutiva do
capital, sua necessidade de permanente acumulação como estratégia de subsistência e de
domínio e as desmedidas diferenças entre classes sociais, fazem do consenso mais um
instrumento de submissão que o capital utiliza em detrimento do trabalho e dos
trabalhadores.
Seja através da proposta de um Estado onipresente que regule o consenso,
seja mediante a construção de uma sociedade civil forte dentro do capitalismo, com
potencialidade para resolver os desajustes próprios dos processos sociais, em ambos
casos, assistimos ao fortalecimento do status quo e, portanto, à manutenção do controle
do capital sobre o trabalho.
No primeiro caso, em função de que o Estado não é, em nenhum caso,
neutro23, mas sim um órgão ao serviço dos objetivos do capital. No segundo, porque o
horizonte da sociedade civil no âmbito do capitalismo são apenas a legalidade e a ordem
social estabelecidas, em nenhum caso, se alinha com a transformação radical das
relações socioeconômicas24.
Como podemos ver, as propostas que ocupam boa parte da literatura
dedicada a pesquisar os processos sociais no meio rural, se instalam dentro dos limites
estabelecidos pelo sistema dado25. Neste sentido, a possibilidade de ruptura, de mudança
estrutural e de construção de alternativas além do capital, são opções desconsideradas
por essa parte da literatura que mediante o discurso do pragmatismo, realiza um

23
Na crítica que Germer faz do artigo de Martins (2000), citado anteriormente, o autor mostra sua
discordância sobre o papel do Estado. Enquanto na visão de Martins o Estado seria o órgão
adequado para mediar nos conflitos, Germer afirma que na realidade o Estado é representante
“dos interesses coletivos da classe proprietária” (GERMER, 2000, p. 21), e, em geral, alinhado
com as necessidades do capital.

24
Cf. MESCHKAT (2000), e OLIVER COSTILLA (2000).
25
Para aprofundar-se sobre seus argumentos, além de Martins (2000) e Navarro (2001), ver:
Abramovay (1999a, 1999b e 2000), Ricci (1999) e Veiga et al. (2001).

46
Geografia e Trabalho no Século XXI

excelente serviço à inércia do sistema atual e à perpetuação da assimetria da relação


entre capital e trabalho.
Em resumo, a questão agrária, irresoluta no interior do sistema capitalista,
é relegada à via morta, enquanto uma questão do desenvolvimento, pautada na
diversificação produtiva, na transformação do pequeno produtor em empresário rural ou
na formação de uma classe trabalhadora melhor preparada para contribuir com a
acumulação do capital26, entre outras, vai consolidando-se na medida em que recebe as
maiores atenções tanto políticas como teóricas.
Mas, ampliando nosso foco para além dos problemas no meio rural, como
essa estratégia baseada na difusão do discurso e da prática do desenvolvimento, ao
contrário do que promete, se ajusta às necessidades do capital e margina o objetivo de
melhora de um bem-estar social amplo? Como a estratégia do desenvolvimento local,
última panacéia do discurso e da prática desenvolvimentista, mantém o debate sobre a
dinâmica social nos limites de uma sociedade produtora de mercadorias que
promovendo o consumo e o valor de troca afiança o controle sobre a sociedade?

3. DESENVOLVIMENTO RURAL DE BASE LOCAL: NOVA


ESTRATÉGIA DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL

O discurso e a pratica do desenvolvimento foram mudando ao longo dos


cinqüenta anos de seu reinado absoluto na gerência das economias de países, regiões ou

26
A finais dos anos 1990 começa uma suposta autocrítica dentro do BM que tenta abandonar o
lastre do Consenso de Washington, conjunto de regras para acelerar a reprodução do capital que
tinha perdido sua vigência histórica. Joseph E. Stiglitz, ex-vice-Presidente e Economista Chefe do
BM e Prêmio Nobel de Economia 2001, propõe a construção de um novo modelo de
desenvolvimento nos seguintes termos: “A economia é importante: afinal de contas uma das
características que distingue os países mais desenvolvidos dos menos desenvolvidos é o maior
PIB per capita. Todavia, o foco na economia confundiu não só os fins com os meios, mas também
as causas com os efeitos. Confundiu meios com fins, porque o maior PIB não é um fim em si
mesmo, mas um meio para se atingir melhores padrões de vida e uma sociedade melhor, com
menos pobreza, melhor saúde e educação mais avançada” (STIGLITZ, 1998a, p. 3). A (auto)
crítica de Stiglitz, apesar desta retórica do social acima do econômico, mostra sua verdadeira cara
quando afirma ser “preciso [...] uma força de trabalho educada e saudável”, sendo que se reserva o
novo (e minimizado) papel do setor público precisamente à “criação de um ambiente favorável ao
setor privado [...] assegurando que a saúde e a educação estão amplamente disponíveis”
(STIGLITZ, 1998a).

47
Geografia e Trabalho no Século XXI

municípios27. Por exemplo, os aspectos sociais e políticos vão sendo incorporados nas
propostas de desenvolvimento, diante do fracasso acumulado por uma ênfase excessiva
nos aspectos econômicos, como mostra a pobreza dos países da periferia ou os bolsões
de pobreza que aparecem nos países centrais.
Como afirma Reyes, o desenvolvimento compreenderia hoje uma tripla
condição: social, no sentido de acesso a educação, moradia, serviços de saúde,
alimentação, uso racional e sustentável dos recursos e respeito da cultura e tradições no
seu entorno social; econômico, em relação às oportunidades de emprego, satisfação,
como mínimo, das necessidades básicas e uma boa distribuição da riqueza; e político, a
respeito da legitimidade não só em termos legais, mas também em termos de prover à
maioria da população de benefícios sociais (REYES, 2001).
E é nesta interpretação do desenvolvimento que o desenvolvimento local,
nova panacéia, ganha todo seu sentido. A ênfase na melhora da qualidade de vida, na
diversificação produtiva, nos recursos endógenos e na participação que o
desenvolvimento local exibe como suas principais divisas, se adaptam perfeitamente a
essa tripla condição atual do desenvolvimento. Mas agora com a incorporação da base
territorial. O território na escala local vai servir como aglutinador, como ponto de
convergência, dessa tripla visão do “novo” desenvolvimento, ainda que de forma parcial
e unilateral. De forma parcial, porque, por exemplo, o conflito entre capital e trabalho,
conflito este com múltiplos desdobramentos territoriais, não entra a formar parte do
novo paradigma.
O enfoque do desenvolvimento local promovido pelos poderes públicos se
limita a pensar e trabalhar com um território esterilizado de conflitos, um território irreal
impregnado de participação e consensos entre todas as forças sociais. De forma
unilateral, no sentido de que as possibilidades que o território oferece são peneiradas
pelo estreito crivo do capital. As alternativas aceitáveis no reformulado modelo de
desenvolvimento são aquelas que fortalecem a capacidade de concorrência dos
territórios, aquelas que conseguem uma reprodução mais rápida do capital. As
estratégias de desenvolvimento local promovem o fortalecimento de um certo território
de escala local com o intuito de prepará-lo para competir com outros locais vizinhos ou
com outros territórios locais de inserção mercadológica similar dentro da economia
mundial, dinamizando dessa forma a circulação e acumulação do capital.

27
Apenas nos últimos cinqüenta anos vêm se trabalhando com a idéia de desenvolvimento. Não
se trata, portanto, de uma categoria de profundo conteúdo histórico, tampouco de uma categoria
ontologicamente atrelada ao devir da sociedade, como poderia deduzir-se da forma, quase
reverencial, em que a idéia de desenvolvimento é apresentada e trabalhada hoje. Não será até o
discurso de posse do presidente dos EEUU, Harry Truman, em 1949, que o desenvolvimento se
consolide como um elemento importante da teoria e da prática econômica. Para um estudo
detalhado desse processo ver o exaustivo estudo organizado por Sachs (2000).

48
Geografia e Trabalho no Século XXI

Com tudo isso, o local que se toma como fulcro do desenvolvimento é um


local esterilizado de antagonismos, que se define por um projeto de gestão territorial
unívoco onde as possibilidades de mudança via participação social se reduzem a
aspectos complementares ou até insignificantes. Constrói-se assim um local que
partindo da diversidade e diversificação dos recursos endógenos (naturais, econômicos,
sociais, culturais, etc.), na verdade procura uma homogeneidade funcional à expansão
veloz do capital.
O resultado é um local marcado pela disciplina do capital, que interna e
externamente se regula mediante os mecanismos de mercado. A mercantilização de
todas as relações socioterritoriais afeta tanto o comportamento e relacionamento interno
das pessoas que formam parte desse local, como das relações estabelecidas com locais
vizinhos. Este é um aspecto central na concepção do desenvolvimento local, as novas
estratégias desenvolvimentistas buscam articular os aspectos econômicos e sociais
também na dimensão privada.
Atualmente, por toda parte, o espaço público vai sendo reduzido,
acanhado, o Estado vai ficando apenas com algumas parcelas da promoção econômica
—como a segurança monetário-financeira ou a realização das infraestruturas as quais a
iniciativa privada não considera rentáveis—, deixando nas mãos privadas e no mercado
a parte fundamental da regulação econômica e a mercantilização dos elementos de
reprodução da força de trabalho (educação e saúde privadas, por exemplo). A proposta
do desenvolvimento local se inscreve nesta linha, atualizando, também, os mecanismos
de controle social. O bojo da promoção do desenvolvimento teria como base a
“comunhão” entre os diferentes atores sociais (políticos, empresários, trabalhadores),
mas num contexto onde qualquer alternativa antagônica ao sistema capitalista foi
simplesmente banida. Uma cidadania reificada pelo esvaziamento das possibilidades
além do capital assumiria a direção do processo desenvolvimentista, apontando quais
seriam aqueles caminhos mais adequados às possibilidades do território onde moram.
“Maximizar potencialidades e reduzir fraquezas”, esta seria a orientação
principal de qualquer estratégia de desenvolvimento local, com a finalidade de dotá-la
de melhores vantagens competitivas em comparação com outros territórios da mesma
escala.
Com isto, não queremos dizer que o enfoque do desenvolvimento local
seja homogêneo. Na literatura que trata deste tema podem ser observadas tendências
diferentes. A partir do denominador comum da escala local e da articulação entre os
aspectos econômicos e sociais encontramos um leque muito amplo do que é considerado
como desenvolvimento local. O Quadro 1 apresenta um resumo das tendências que se
observam sobre este tema.

49
Geografia e Trabalho no Século XXI

Depois deste percurso por diferentes concepções do que é o


desenvolvimento local, percebemos que ainda não existe um conceito consolidado.
Utiliza-se esta noção, para compreender e traçar caminhos aparentemente muito
diversos. Porém, concordamos com Musyck quando afirma que tais caminhos
enquadram-se “sempre dentro do mercado e do modo de produção do capitalismo
neoliberal” (MUSYCK apud FERRÁS SEXTO; PAREDES, 1999, p. 87).
Buscam-se saídas para as crises contínuas pelas quais atravessa o sistema
produtor de mercadorias. Saídas, no entanto, dentro da lógica do capital, ou seja,
subordinando todas as funções reprodutivas sociais à sua própria expansão e procurando
como finalidade essencial expandir constantemente o valor de troca (ANTUNES, 2000).
O desenvolvimento local é uma dessas estratégias que reformulam, sem modificar
essencialmente, as formas de acumulação do capital.
No arco de propostas apresentadas no Quadro 1, encontramos desde
aquelas mais sintonizadas com a exacerbação dos critérios de mercado como base da
implementação de estratégias de desenvolvimento local28, até àquelas que consideram
critérios como a qualidade de vida, a inclusão social ou a participação da comunidade,
entre outros, na tentativa de “humanizar” o sistema capitalista29.
Mas esse leque se limita a uma continuidade reforçadora ou reformadora
das estratégias que consolidam uma gestão territorial funcional à dominação do capital.
Em nenhum momento se explicita a possibilidade de uma ruptura com o sistema
vigente.
Assim, a maior parte das propostas apresentadas invocam a “cooperação”,
“a capacidade de diálogo entre instituições” (RODRÍGUEZ GUTIÉRREZ, 1996),
“fortalecer a organização social” (DENARDI et al., 2000), a “consolidação da
sociedade civil” (GABAY, 2001). Formas de consenso sem conflito.
Impossível articulação harmônica de interesses antagônicos de classe. Em
nenhum caso questionam a vigente divisão social e sua hierarquização, como se a mera
possibilidade da participação dos trabalhadores na gestão local do desenvolvimento,
fosse suficiente para uma transformação radical em seu favor. Como se os interesses das
classes sociais dominantes não fossem sempre preservados e não tivessem conseguido
virar a seu favor quaisquer tentativas baseadas na participação democrática da
população.

28
Cf. VÁZQUEZ BARQUERO (1993); ROSALES (1998).
29
Cf. RODRÍGUEZ GUTIÉRREZ (1996), DESER (1997); BROSE (2000) e DENARDI et al.
(2000).

50
Geografia e Trabalho no Século XXI

Até porque a participação se reduz ao conjunto de propostas que


consolidam o mercado como unidade de medida de todos os processos sociais. No
Quadro 1, se reflete este fato em várias das propostas apresentadas. A “inserção no
mercado” de que falam Campanhola e Graziano da Silva (1999), a “mobilização do
capital endógeno” de Vázquez Barquero (1993) ou a “atração de investimentos”, o
“apoio às empresas locais” e as “vantagens comparativas” que Rosales (1998) associa
ao desenvolvimento local, mostram a unilateralidade das propostas, o horizonte
achatado das transformações associadas ao desenvolvimento local, a continuidade de
uma relação entre capital e trabalho que relega o segundo às imposições do primeiro.
Neste paradigma do desenvolvimento local, a variável espacial é que vai
servir de imbricação do “consenso social amplo” que este desenvolvimento promove, tal
como exposto nas propostas do Quadro 1 e implementado pelas políticas públicas para o
meio rural que começam a surgir na segunda metade da década de 1990. O território
local ofereceria, segundo alguns autores, a possibilidade de reverter o
processo de

Quadro 1. Principais Características do Desenvolvimento Local


AUTORES PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
J. F. Valcarcel-Resalt (1992) Enfoque integrado / Contemplar tanto o território como a sociedade nele
estabelecida / Mobilizar o potencial endógeno / Processo de
desenvolvimento sustentável
A. Vázquez Barquero (1993) Perspectiva territorial / Inovação / Mobilização do capital endógeno /
Gestão local do desenvolvimento
E. Furió Blasco (1994) “De baixo para cima” / Acabar com as lógicas dominantes de
desestruturação dos territórios e das solidariedades locais
B. Musyck (1995) “[...] particular forma de desenvolvimento regional na
qual os fatores locais, o espírito de empresa local, as empresas locais, ou as
instituições financeiras locais constituem as principais bases para o
crescimento econômico regional, sempre dentro do mercado e do modo de
produção do capitalismo neoliberal”
F. Rodríguez Gutiérrez (1996) Dimensão geográfica / Participação / Cooperação / Capacidade de diálogo
entre instituições / Equilíbrio e coesão territoriais / Dimensões econômica,
cultural, ambiental e política
Departamento Sindical de Qualidade de vida / Articulação com um projeto para toda a sociedade /
Estudos Rurais (DESER) Nem excludente nem seletivo / Considerar questões de gênero, sociais e
(1997) culturais / Gerar emprego e ocupação
M. Rosales (1998) Atração de investimentos / Apoio às empresas locais / Vantagens comparativas
F. Entrena Durán (1999) Identificar as oportunidades de geração de atividades produtivas e de
desenvolvimento ainda não aproveitadas / Incentivar os recursos humanos
e agentes sociais encarregados de levar a cabo as atividades /
Movimentação dos atores socioeconômicos do contexto local
C. Campanhola e J. Graziano Processo de reconstrução social “de baixo para cima” / Necessidades
da Silva (1999) sociais e culturais / Inserção no mercado / Utilização e conservação dos
recursos naturais locais
M. Brose (2000) Melhoria da qualidade de vida / Sustentabilidade / Iniciativa local
R. A. Denardi et al. (2000) Organizar fatores endógenos / Fortalecer a organização social / Aumento
da autonomia local / Reter e reinvestir capitais / Aumentar a inclusão

51
Geografia e Trabalho no Século XXI

social / Regenerar e conservar o meio ambiente


R. E. Gabay (2001) Estratégia de gestão dos governos locais / Descentralização com consolidação da
sociedade civil / Favorecer a estrutura produtiva local
Fonte:Valcarcel-Resalt (1992), Vázquez Barquero (1993), Furió Blasco (1994), Musyck (1995),
Rodríguez Gutiérrez (1996), DESER (1997), Entrena Durán (1999), Rosales (1998),
Campanhola e Graziano da Silva (1999), Brose (2000), Denardi et al. (2000), Gabay (2001).
Organização: Jorge R. Montenegro Gómez

globalização desestruturadora de uma ordem social que perde nesse processo


globalizador sua autonomia, retomando sua organização e gestão territorial30. Ao
mesmo tempo, a reconstrução das solidariedades locais em prol de uma transformação
territorial que eleve a qualidade de vida dos seus membros, centra essa estratégia de
desenvolvimento articulada territorialmente.
No entanto, o apego ao local, se reforça e/ou se constrói a partir da
satisfação dos interesses das classes dominantes, disfarçada de melhoria da qualidade de
vida geral. Interesses que se inscrevem na lógica do capital: acumulação e reprodução.
Após um sentimento localista que pretende elevar esse local a uma posição de vantagem
dentro do sistema socioeconômico vigente, se esconde a necessária concorrência com
outros locais, por ser o mercado o normatizador de quaisquer proposta.
Se no mercado a concorrência é a regra básica, a proposta de
desenvolvimento local, no fundo, não é mais que a adaptação para a escala local da
expansão das relações mercantis, portanto, nada mais que um aprofundamento vertical e
horizontal da concorrência territorial entre locais cada vez melhores dotados em todos
os âmbitos (produtivo, formativo, institucional, etc.) e com uma população cada vez
mais articulada em torno do mito da qualidade de vida no interior de uma comunidade
coesa.

30
Entrena Durán (1999), expressa com clareza este ponto de vista, por outra parte, muito
difundido entre os que defendem apenas um ajuste na dinâmica socioeconômica, política e
territorial como saída para os desequilíbrios existentes. Este autor afirma que as populações do
meio rural estão sofrendo uma “desterritorialização”, que ele entende como a perca de controle
dos processos socioeconômicos globais que dominam a organização e gestão de um território
local, em função do processo de globalização e dos câmbios sócio-econômicos acontecidos em
função de uma lógica desenvolvimentista que pregava para a sociedade agrária uma modernização
que acabara com sua tradicional economia de subsistência. Estes processos têm produzido “uma
erosão das estruturas sociais e das redes relacionais”, “uma desarticulação social” com “profundas
modificações nas formas de estruturação das solidariedades coletivas e nas tradicionais relações
entre as classes sociais” (ENTRENA DURÁN, 1999). Como resposta a esta situação viriam
surgindo, sempre segundo o mesmo autor, iniciativas em busca do desenvolvimento das
comunidades locais encaminhadas à manutenção dessa comunidade, a garantir sua supervivência
e permanência num território, respeitando, ao mesmo tempo, seu meio ambiente. Estas iniciativas
fariam parte do que ele denomina estratégias de desenvolvimento sustentável local.

52
Geografia e Trabalho no Século XXI

Assim, após essa expressão, desenvolvimento local, existe toda uma


construção ideológica funcional à reprodução do capital. Por um lado, a partir da idéia
de desenvolvimento como progresso aceitável universalmente, e por outro lado, a partir
do redimensionamento da escala de implementação das estratégias de reprodução do
capital, escolhendo o local na tentativa de superar os empecilhos que entravavam essa
reprodução. O local, portanto, serviria a um duplo objetivo: aprofundar o controle
exercido pela dinâmica do capital num âmbito territorial menor, porém, mais próximo, e
incorporar algumas demandas originadas pela desestruturação, os desequilíbrios e as
desigualdades produzidas pela própria lógica destrutiva do capital.
Neste sentido, consideramos limitadas as propostas dos autores que vêem
no desenvolvimento local uma maneira de reformar o sistema capitalista. Sua pretensão
de impor controles sociais para a reprodução do capital, sejam estes controles exercidos
pelo Estado, sejam exercidos pela participação ativa da sociedade civil, esquecem da
verdadeira essência do capital, da impossibilidade de poder dominá-lo.
“A crença na possibilidade de controlar o capital”, este é o limite das
propostas que vêem no desenvolvimento local uma via de transformação do sistema
socioeconômico capaz de estabelecer uma relação entre capital e trabalho equilibrada,
não hierarquizada, nem fundamentada na dominação, que seria a situação que marcaria
uma verdadeira melhora na qualidade de vida dos trabalhadores.
Recorremos a Mészáros para aprofundarmos sobre a (im)possibilidade do
controle do capital. Segundo este autor: “[...] o capital não pode ser controlado: ele é o
próprio controlador e regulador do processo de metabolismo social” (MÉSZÁROS,
1997, p. 145). Só conseguiremos livrar-nos dele “por meio da transformação de todo o
complexo de relações metabólicas da sociedade” (MÉSZÁROS, 1996, p.131).
Segundo este autor, o capital antecede ao capitalismo e pode sobreviver a
ele. O capitalismo seria, portanto, apenas, uma fase histórica do processo de dominação
do capital. Assim, enquanto seria relativamente fácil abolir o capitalismo, por meio, por
exemplo, de um levante revolucionário, o capital mantém seu poder se não mudam as
“relações metabólicas da sociedade”. O sistema de metabolismo social do capital o qual
Mészáros caracteriza, articularia três dimensões inseparáveis – capital, trabalho e Estado
–, assim, a emancipação do trabalho não se poderia alcançar “sem simultaneamente
superar o capital e também o Estado” (MÉSZÁROS apud ANTUNES, 2000, p. 22).
A perspectiva supostamente transformadora das estratégias de
desenvolvimento local, incorporando alguns elementos de justiça social ou propondo a
participação do Estado e da sociedade civil como reguladores dos efeitos perversos do
mercado, fica muito aquém da compreensão das mediações desse sistema de
metabolismo social do capital formulado por Mészáros (2000).

53
Geografia e Trabalho no Século XXI

A promessa iluminista de progresso, embutida na idéia de


desenvolvimento capitalista, consegue capturar os esforços transformadores em que
apostam os apologistas do desenvolvimento local. O espectro construído em torno da
idéia de um desenvolvimento com base em aspectos sociais, ambientais e humanos,
confunde àqueles que procuram uma transformação por dentro da regulação do capital.
O denominado “capitalismo de rosto humano” não é mais que uma nova careta.
As práticas que verdadeiramente se implementam por trás dos discursos
de renovação do desenvolvimento econômico, continuam na mesma trilha: aumentar
e/ou aprofundar os âmbitos onde os mecanismos de regulação do mercado são as
diretrizes fundamentais. As correções que pontualmente conseguem se impor a esta
dinâmica geral, não revelam uma capacidade de mudança real, apenas soluções
paliativas de curto prazo. O aumento dos níveis de pobreza, desemprego, desigualdade
social ou “perturbação social” são indícios de uma realidade teimosa que mostra a
incapacidade para a transformação dessas propostas apenas reformadoras.
O desenvolvimento seria mais uma das utopias nunca realizadas do
capitalismo. Autores como W. Sachs (2000) e Furtado (1998), nos remetem à seguinte
idéia: o desenvolvimento econômico como mito. No livro organizado por W. Sachs,
Dicionário do Desenvolvimento, se aborda a idéia de desenvolvimento como a
estratégia utilizada, desde finais dos anos 40, para alcançar a “ocidentalização do
mundo” (SACHS, 2000, p. 15).
Segundo este autor, o presidente dos Estados Unidos, Harry S. Truman,
no seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 1949, “referiu-se pela primeira vez ao
hemisfério sul como ‘áreas subdesenvolvidas’” (SACHS, 2000, p. 12). A “corrida” pelo
desenvolvimento sob as diretrizes dos países centrais começa neste momento. Com a
associação da idéia de desenvolvimento à de progresso, se consegue que a expansão da
produção agregada, expressa em termos contábeis e essência dos valores de troca
predominantes, seja tomada como o objetivo fundamental e, em diferentes versões,
adaptada às circunstâncias dos países centrais, dos periféricos ou até, num contexto de
concorrência entre modelos, dos chamados países socialistas.
O sistema global do capital se amplia numa dupla dinâmica, horizontal e
vertical. Se por um lado, o capital vai incorporando cada vez mais territórios na sua
dinâmica, por outro, se intensifica a captura das subjetividades através da invasão de sua
lógica no nosso cotidiano. A imposição da idéia de desenvolvimento se consolida como
uma estratégia que reforça esta dupla dinâmica, expandindo por todo o mundo as formas
de controle dos países centrais.
Celso Furtado, na sua obra O Mito do Desenvolvimento Econômico,
estabelece também essa associação entre desenvolvimento econômico e mito. Pela
contundência com que critica o simulacro que se esconde por trás da idéia de

54
Geografia e Trabalho no Século XXI

desenvolvimento e pela vigência das suas conclusões31, reproduzimos uma extensa


citação desta obra:

[...] o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será


o privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação
do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que
toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao
colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência
da espécie humana [...] o desenvolvimento econômico –a idéia de
que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de
vida dos atuais povos ricos– é simplesmente irrealizável.
Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da
periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às
economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas,
como desconhecer que esta idéia tem sido de grande utilidade
para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes
sacrifícios para legitimar a destruição de formas de cultura
arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de
destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que
reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? Cabe,
portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é
um simples mito (FURTADO, 1998, p. 88-89. Grifos do autor).

A idéia de desenvolvimento, no interior da sociedade produtora de


mercadorias em que vivemos, nos remete à subordinação estrutural do trabalho ao
capital. Seja o desenvolvimento “macro” que dominou a cena internacional desde o
final da 2ª Guerra Mundial ou o desenvolvimento local que se promove no contexto
atual, a estrutura de dominação se mantém. Se o desenvolvimento, como “obrigação”
para os países “subdesenvolvidos”, mostrava limites intransponíveis e “legitimava” uma
situação de dependência, o “novo” desenvolvimento com base local continua, no
fundamental, a repetir as mazelas que acompanham o movimento de reprodução
capitalista, depois de redimensionar seu campo de implementação ao local e de adequá-
lo às idéias da democracia formal vigente (participação reificada).
Os adjetivos como humano, solidário ou sustentável, associados ao
desenvolvimento local, são tentativas de harmonizar a lógica destrutiva do capital em
relação ao gênero humano. Uma tentativa fadada ao fracasso. Por baixo da potenciação
dos recursos endógenos, do fomento à participação da sociedade civil na construção do
desenvolvimento e da inter-relação harmônica com o território local, sub-jaz à lógica da
rentabilidade, da concorrência e do controle social.

31
A obra é de 1974, tendo sido reeditada a primeira parte em 1998, da qual extraímos a citação.

55
Geografia e Trabalho no Século XXI

A ênfase no local, sob o ponto de vista do desenvolvimento, consiste em


fortalecer as potencialidades e minimizar as deficiências numa dinâmica concorrencial
com outros territórios. Envolver toda a comunidade, mobilizando-a na corrida pelo
sucesso como objetivo principal, e ocultando sob o lema comum da melhoria da
qualidade de vida, a satisfação de necessidades reificadas e a diferenciação de
“qualidades de vida” em virtude da classe social de pertença. Esse é o objetivo maior.
As políticas de desenvolvimento local no meio rural que vêm sendo
elaboradas e implementadas a partir da segunda metade dos anos 90 pelo governo FHC
materializam, como já visto, estratégias de expansão do capital pelo campo. Portanto,
nos remetem, em um plano mais geral, aos argumentos utilizados nos parágrafos
imediatamente anteriores: o desenvolvimento como espectro ou mito reforça a estrutura
de dominação do capital sobre o trabalho, também no meio rural. Os instrumentos de
controle social se refinam com esta implementação de políticas públicas de
desenvolvimento rural de base local. O Estado operacionaliza a intensificação de um
controle social tributário das necessidades do capital.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CONTROLE SOCIAL EXERCIDO


PELO ESTADO SE REFORÇA

As formas, os mecanismos e os instrumentos com que o controle


social se (re)organiza na nossa sociedade são diversos e volúveis. O Estado, porém, se
constitui no principal articulador desse controle. Sua aparelhagem se coloca a serviço de
manter a ordem social no interior de parâmetros aceitáveis para permitir a reprodução
acelerada do capital. Nesta última parte do nosso trabalho abordamos, a partir da análise
de três aspectos em que se entrelaçam o controle social, as estratégias do
desenvolvimento local e as políticas públicas para o meio rural dos últimos dez anos,
como o discurso e a prática do Estado implicitamente reforçam o controle sobre a
sociedade. Trata-se, em primeiro lugar, da tão falada participação da sociedade na
implementação da reforma agrária e dos projetos de desenvolvimento rural ligados aos
processos de descentralização. Em segundo lugar, abordaremos o tratamento que as
novas políticas para o meio rural dão para o combate à pobreza. Para finalizar,
apresentamos a consolidação do discurso hegemônico que rege a prática do Estado, o
discurso do “possível”.
Acerca da questão da participação o trabalho realizado por Araújo (1998)
mostra as dificuldades da sua real implementação num meio rural como o brasileiro.
Com base no estudo intitulado “Descentralização e Participação na Reforma Agrária:
Um processo em discussão”, a autora aponta algumas conclusões a respeito da política
de descentralização que acompanha as estratégias de desenvolvimento rural de base

56
Geografia e Trabalho no Século XXI

local, abordando, especificamente, a descentralização da política de reforma agrária e o


fomento da participação que comporta.
Segundo Araújo, as principais razões favoráveis à descentralização que o
citado estudo aponta são:

[...] i) a possibilidade de delegar poder (empowerment) às classes


populares; ii) a ampliação do controle social sobre as políticas
públicas, mais fácil de realizar em nível local que a nível central,
o que reduziria, em caso de sucesso, o poder de oligarquias e
grupos poderosos atuantes em nível local e nacional; iii) a
possibilidade de atender melhor necessidades locais dificilmente
percebidas em nível central e de aproveitar melhor
potencialidades locais também pouco perceptíveis em níveis
superiores; e iv) a implementação de processos educativos de
construção de cidadania e engajamento participativo (ARAÚJO,
1998, p. 25).

Para o caso brasileiro, os principais fatores que vêm impulsionando a


descentralização, segundo Araújo (1998), são “o privilégio que as políticas
governamentais vêm dando à integração competitiva do Brasil na economia mundial em
avançado estágio de globalização”, e a prioridade para os pólos dinâmicos da economia
nacional assumir competências que lhes ofereçam certa autonomia de decisão; “a crise
do setor público e a reforma do Estado”, com tendência a delegar funções às esferas
administrativas inferiores; e as “pressões da própria sociedade, na fase pós-centralização
que marcou o período militar recente, para descentralizar a ação pública e submetê-la a
um maior controle pela sociedade civil”, ainda que, se bem se associa a descentralização
à “democratização dos processos decisórios, favorecendo o fortalecimento do poder
local”, também uma maior descentralização pode desembocar em um maior controle das
oligarquias locais dos aparelhos administrativos públicos (ARAÚJO, 1998).
Depois de um trabalho de campo realizado em todas as regiões do país,
Araújo levantou os “principais receios” que os prefeitos e suas equipes destacaram a
respeito da descentralização da política de reforma agrária: a) transferência de
responsabilidade sem transferência de autoridade e autonomia; b) falta de pessoal
capacitado nos municípios e nas prefeituras para assumir as tarefas delegadas; e c) ação
fundiária dificultada, seja pelo movimento popular, seja pela pressão das oligarquias
locais.
Do lado das lideranças sindicais e populares a descentralização acarretaria
algumas conseqüências negativas: fragmentação da pressão dos movimentos sociais e
do movimento sindical, levando para o âmbito local o conflito e possibilitando um
controle maior por parte das oligarquias locais do processo; instrumentalização da
política fundiária por prefeitos conservadores (a maioria), para atenderem aos

57
Geografia e Trabalho no Século XXI

compromissos locais; discriminação dos municípios com prefeitos de oposição;


centralização das ações nas mãos dos prefeitos (ARAÚJO, 1998).
Como o estudo citado mostra, as dificuldades para implementar uma
política descentralizadora e de participação popular à escala municipal, no Brasil, são
enormes. As diferenças observadas entre as exigências que os municípios deveriam
responder e as reais possibilidades destes, são pouco menos que intransponíveis, pelo
menos em curto e em médio prazo. Igualmente, o monopólio do controle que as classes
dominantes detêm nesse médio rural inviabiliza de fato a construção de instâncias reais
de participação popular.
Por outro lado, Mattos, na sua crítica à descentralização na América
Latina, aponta, além de várias coincidências com o estudo de Araújo no Brasil, uma
circunstância que ajudaria a explicar a tamanha distância entre realidade e objetivos da
descentralização e da participação nos municípios latino-americanos: estariam se
importando modelos que, supostamente, deram certo em países como Espanha ou
França, sob uma realidade completamente diferente (MATTOS, 1990).
Porém, não estamos simplesmente diante de mais uma política trazida de
um contexto diferente, supostamente sucedido, e testada no meio sócio-político
brasileiro. Trata-se da penetração de um pacote completo de políticas que estão tentando
solucionar, ou no mínimo reduzir, a crise estrutural em que o capital está imerso. A
descentralização está em sintonia com o “acanhamento” do Estado e a privatização de
suas funções, ou seja, com o programa de governo neoliberal. Por exemplo, a
preocupação com a participação da comunidade local, certamente, amplia as
possibilidades dos mais interessados e dos mais articulados (empresários e políticos
locais), portanto, acaba fomentando o fortalecimento da gestão empresarial do território.
A construção de uma rede de “solidariedades locais” que promova o desenvolvimento
local empurra, no sistema econômico posto (o capitalismo), à “concorrência territorial”,
ou seja, à necessidade de competir com locais vizinhos, acelerando as formas de
reprodução do capital.
Mattos (1990), nos primórdios do debate sobre descentralização como
forma de promover o desenvolvimento local, já expunha suas dúvidas sobre o
verdadeiro sentido deste debate:
• A descentralização em curso não aumentará a democratização, a
participação, a justiça social e o desenvolvimento local, porque sua
finalidade básica é responder às necessidades colocadas pela reestruturação
do capitalismo;
• Uma simples reorganização territorial e administrativa não é capaz de
transformar uma sociedade, nem de modificar as bases econômicas, políticas
e ideológicas do poder numa sociedade de classes;
• Não existe fundamento teórico ou empírico que respalde a relação entre a
descentralização e os projetos que visam a solucionar os problemas dos
setores populares;

58
Geografia e Trabalho no Século XXI

• A crescente integração global das sociedades impede acreditar na existência


de certa autonomia local que permita desenvolver políticas públicas com
orientação e conteúdos radicalmente diferentes dos predominantes à escala
nacional ou internacional.

Por tudo isto, afirmamos que a descentralização e a participação da


sociedade, por dentro do sistema global do capital, são espectros funcionais à
acumulação capitalista e à subordinação estrutural do trabalho ao capital. A sociedade
“consensual” e “participativa”, onde as classes populares poderiam encaminhar suas
propostas, solucionar seus problemas e garantir a satisfação de suas necessidades, não
existe. Nem as políticas implementadas, nem em geral, o sistema político-econômico
vigente apontam nesse sentido. A participação32 quando todas as alternativas têm sido
“esterilizadas”, esvaziadas de toda possibilidade de mudança estrutural, faz parte do
simulacro funcional à reprodução do capital.
Além da questão da descentralização–participação, as políticas de
desenvolvimento local rural que vêm sendo elaboradas e implementadas para o meio
rural brasileiro apresentam uma aproximação ao problema da pobreza que incorpora
mais uma dimensão da estratégia de controle do Estado.
Segundo os estudos de Veiga (1999) e de Corrêa (2000) a pobreza no
meio rural brasileiro é maior que a urbana em todas as regiões do país, e mais da metade
das pessoas ocupadas na agricultura (quase 60%) no Brasil, estão em situação de
pobreza. Isto nos oferece uma idéia das dificuldades pelas quais atravessa o campo, mas
também dos possíveis efeitos que a implementação de uma política baseada só em
critérios de rentabilidade pode desencadear. Estes estudos, aliás, revelam uma pobreza
no meio rural brasileiro que está em clara consonância com uma estrutura fundiária e
uma repartição da renda e da riqueza extremamente desiguais.
Mas, como as novas políticas de desenvolvimento rural enfrentam esta
situação de pobreza manifesta neste meio? Como já vimos na primeira parte deste texto,
com critérios de mercado.

32
Nesta linha, um interessante trabalho que estuda a questão da participação nas políticas de
desenvolvimento é o de Rahnema (2000), onde o autor aprofunda a idéia de como os interesses
dominantes se apropriam da participação popular, sendo que esta acaba se convertendo em uma
armadilha para envolver as populações em projetos desenvolvimentistas que seguem uma lógica
alheia às suas próprias necessidades.

59
Geografia e Trabalho no Século XXI

Existe um viés desenvolvimentista que enxerga a pobreza como um


dispêndio de recursos humanos e um atentado contra a eficiência econômica33. Nesta
visão, a questão da distribuição de renda e de riqueza seria. mais que uma questão ética
e de justiça social, uma questão de racionalidade econômica. Estudos neste sentido,
concluem que uma distribuição desigual da renda não é um incentivo para o
crescimento econômico, e ainda, uma má distribuição da terra reduz o crescimento de
longo prazo. Justifica-se, com base nestes argumentos, uma política de reforma agrária.
Contudo, essa linha de pensamento afirma que tanto a filosofia como os instrumentos
utilizados para implementar a reforma agrária devem se modificar radicalmente.
Da “via tradicional” da reforma agrária se critica que o processo de
desapropriação de latifúndios improdutivos encarece o custo de transação e repartição
da terra (até o triplo do custo normal), que o modelo foi concebido durante o regime
militar e reflete o papel paternalista e autoritário do Estado, e que nas circunstâncias
atuais este não pode arcar com o volume de gasto que implica a ampliação das metas da
política de reforma agrária (número de assentamentos, volume de créditos, políticas
complementares). Frente a isto, “a participação dos beneficiários em todas as fases do
processo de reforma agrária e reduzir ao mínimo indispensável [...] o papel do governo”
(BUAINAIN, SILVEIRA e TEÓFILO, s. d.), seriam as soluções propostas. Programas
como o Banco da Terra ou o Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural34 seriam as
respostas melhores dimensionadas para estes problemas, configurando uma “reforma
agrária de mercado”.
A estratégia parece clara, ou seja, deixar sob os desígnios do mercado as
funções redistributivas que o Estado não desenvolveu. No entanto, pelas dimensões que
tem a concentração fundiária brasileira, não parece que esta possa ser eliminada, nem
tampouco reduzida, através da simples compra-venda de terras. Ainda mais, quando se
aceita que o mercado possui falhas em um contexto de informação imperfeita.

33
O trabalho de Buainain, Silveira e Teófilo (s. d.) é esclarecedor neste sentido: “O objetivo do
presente trabalho é analisar as opções políticas de redistribuição fundiária no novo contexto de
políticas de distribuição agrária, tomando como referência a superação do círculo vicioso da
pobreza, representado tanto por seus efeitos negativos sobre a eficiência econômica e crescimento
quanto pelo baixo nível de aproveitamento das potencialidades dos agentes econômicos que mais
sofrem restrições do ponto de vista da dotação e acesso a recursos”. A primeira parte da
Conferência sobre a Distribuição e Crescimento Econômico, oferecida em Brasília por Stiglitz
(1998b), desenvolve argumentos similares.

34
O programa de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, aprovado em 7 de março de
2001, se destina à aquisição de imóveis rurais que não poderiam ser contemplados sob outros
programas vigentes (menores de 15 módulos fiscais ou propriedades produtivas). Na página da
internet <http://www.creditofundiario.org.br> estão disponibilizadas mais informações a respeito
deste programa.

60
Geografia e Trabalho no Século XXI

Então, quais seriam as verdadeiras razões desta nova orientação das


políticas agrárias, reconvertidas à políticas de desenvolvimento rural, no caso do
combate ou alívio à pobreza? O controle social das populações pobres que moram no
meio rural através da pressão exercida pelos financiamentos cada vez mais caros35, a
mercantilização de todas as relações (produtivas e da vida cotidiana) que envolvem os
pequenos produtores rurais e o ataque aos movimentos sociais rurais que organizam os
pobres do campo e contestam as políticas governamentais.
Por último, junto aos exemplos da descentralização-participação e do
status da pobreza nas políticas de desenvolvimento rural, apresentamos outra
aproximação às formas de controle social que se efetivam no âmbito do Estado: o
discurso do possível como necessário, ou seja, o discurso dos que apregoam que é
possível impor ao capital limites re-distributivos se re-construímos o papel do Estado na
escala local via fortalecimento do desenvolvimento local e que esta seria uma forma de
melhora real do bem-estar da população no interior do sistema capitalista.
Para apreender este discurso do possível como necessário, tomamos o
estudo que Brose (2000) desenvolve no seu livro “Fortalecendo a democracia e o
desenvolvimento local: 103 experiências inovadores no meio rural gaúcho”. Trata-se da
compilação de diferentes iniciativas implementadas no Rio Grande do Sul sob as
diretrizes de uma estratégia de desenvolvimento local. São experiências plurais, tanto na
proposta como no alvo que querem atingir, sendo catalogadas pelo autor em função do
que ele entende como as cinco “dimensões do desenvolvimento local”: inclusão social;
fortalecimento da economia local; inovação em gestão pública; gestão ambiental e uso
racional de recursos naturais; e mobilização da sociedade.
Essa obra nos oferece um mostruário muito completo das possibilidades
que o local apresenta como ponto de apoio para alavancar uma necessária transformação
na gestão territorial. Sob esta nova perspectiva os atores do desenvolvimento são locais,
pertencentes à comunidade, portanto, pressupõe-se que tenham um conhecimento direto,
profundo e adequado do seu entorno, de suas potencialidades e problemas e que poderão
atingir maior grau no momento de estabelecer um programa de desenvolvimento. No
entanto, as experiências selecionadas por Brose (2000) nos colocam algumas dúvidas36.
Vejamos os principais eixos que se destacam nessas iniciativas:

35
A este respeito ver o estudo de Bittencourt (1999) sobre o Banco da Terra e a comparação que
estabelece Carvalho Filho (2001) entre os financiamentos via PROCERA e via PRONAF.
36
Das 103 experiências apresentadas por Brose (2000) temos nos aprofundado apenas em
algumas que nos parecem paradigmáticas da visão do autor sobre o desenvolvimento local.
Queremos deixar registrado, contudo, que o trabalho de Brose (2000) apresenta um material
muito rico na perspectiva de mostrar diferentes alternativas no interior do discurso e da praticado
desenvolvimento.

61
Geografia e Trabalho no Século XXI

• A inclusão social vista através de melhorias na educação e na saúde que


permitam entrar no mercado de trabalho em ótimas condições;
• O fortalecimento da economia local mediante a busca de nichos de mercado,
a melhora do gerenciamento das pequenas propriedades agrárias e dos canais
de comercialização das produções, o fomento do espírito empresarial e a
diversificação produtiva;
• Uma gestão pública fortalecedora do capital social local, e capaz de
aproveitar os recursos endógenos;
• Uma atuação na área meio-ambiental que prima pela responsabilização da
população através da educação ambiental;
• O fomento da mobilização social em áreas como a promoção econômica, a
cultura e o lazer, e em questões como o voluntariado.

Um catálogo das possibilidades aceitáveis pelo sistema socioeconômico


vigente, apresentadas como se fossem as necessárias para superar os entraves que
impedem o pleno bem-estar da sociedade. Transformações funcionais à reprodução do
capital com a cumplicidade, através da insistente idéia de participação de toda a
população.
Além das dificuldades que o sistema têm em aceitar uma participação
questionadora que vai à raiz dos problemas, a tentativa de incorporar a sociedade como
um todo na dinamização do sistema global do capital, se reflete nas orientações que
fundamentam as experiências de desenvolvimento local resenhadas.
Com este fim, estreitam filas os seguintes aspectos: os investimentos em
formação e saúde para qualificar profissionalmente a “nova geração” de trabalhadores
sintonizados com uma estrutura produtiva renovada; o fortalecimento das
potencialidades locais para assegurar um lugar privilegiado dentro de um mercado
profundamente competitivo; as relações mais estreitas entre o público e o privado como
forma de valorizar o local na corrida, junto a outros territórios, pelos prêmios do êxito
(desde mais emprego, até melhorias quantitativas da qualidade de vida); o emprego do
meio-ambiente como um recurso a mais na reprodução do capital e no controle social
(via socialização de responsabilidades); e a desativação de qualquer resquício de
conflito e de reivindicação na mobilização social, que fica presa às questões culturais e
a um entendimento asséptico de valores como a solidariedade (do qual o voluntariado é
um exemplo).
No final, assistimos, como fica claro a partir das diretrizes principais das
experiências catalogadas por Brose (2000), a um fortalecimento de aspectos essenciais
para a reprodução do capital, como a concorrência. Ainda que isto aconteça por
caminhos novos, como são o fortalecimento do capital social (relacionado com um
pacto entre a esfera pública e a privada com o objetivo de inserir-se com êxito nas
demandas do sistema global do capital), do capital intelectual (no sentido de reforçar
aspectos como a formação) e do capital simbólico (valorizando o patrimônio e a cultura

62
Geografia e Trabalho no Século XXI

como produtos a serem oferecidos no mercado e, ao mesmo tempo, elementos sobre os


quais criar uma identidade).
Em definitivo, assistimos à novas formas de controle social que, como já
vimos na questão da participação popular na construção de uma estratégia de
desenvolvimento ou as novas formas de entender e combater a pobreza, servem à
racionalidade acumulativa do capital. Ainda incorporando aspectos sociais e políticos,
além dos econômicos, as novas estratégias que têm como base o desenvolvimento local
continuam salvaguardando as necessidades do capital e combatendo (com sutileza ou, se
for preciso, pela força) qualquer tentativa de construir formas embrionárias de mudança
social real para além da lógica do capital.
Neste ponto, Mészáros nos ajuda a questionar a viabilidade dessas
mudanças apregoadas como necessárias dentro das possibilidades que o capital oferece,
O capitalismo, que foi o único sistema a atingir um domínio do mundo em sua
totalidade, é ao mesmo tempo, um sistema destrutivo. Cada avanço da produção traz consigo o
seu oposto. Do ponto de vista da lógica do capital, o consumo equivale à destruição. Um sistema
que se viabiliza pela auto-reprodução em escala crescente, necessariamente se choca contra
barreiras, de forma destrutiva em si e por suas implicações. O capital necessita expandir-se
“apesar” e em detrimento das condições necessárias para a vida humana, levando aos desastres
ecológicos e ao desemprego crônico, isto é, destruição das condições básicas para a reprodução
do metabolismo social (MÉSZÁROS, 1997, p. 153).

A utopia, hoje, consiste em pensar que mantendo o atual status quo de


submissão geral às necessidades de reprodução do capital ou que pequenas (e
humanizadoras) modificações de percurso serão suficientes para evitar o colapso de seu
sistema global.
Kurz (1999) apresenta, no âmbito do contexto internacional, os caminhos
pelos quais vêm se dando, e se darão no futuro, esses processos de destruição do
sistema,

[...] o Ocidente encontra-se diante do mesmo problema que já


rebaixou o Sul e o Leste ao status de grandes perdedores. Quanto
mais diminui a capacidade aquisitiva global, real ou produtiva,
em virtude da destruição mediada pela concorrência, de recursos
e capital, e quanto mais se intensifica a luta entre os vencedores
restantes, tanto mais cedo têm de ficar para trás na corrida da
produtividade, também dentro da OCDE, economias nacionais
inteiras, caindo abaixo do nível global da rentabilidade
entrementes alcançado (KURZ, 1999, p. 123).

A tentativa de “salvar” o “meu” local dotando-o de maior capacidade de


concorrer com o “local” vizinho, que é a essência desse desenvolvimento local proposto
pelo Estado através das políticas públicas que viemos analisando, revela uma estratégia

63
Geografia e Trabalho no Século XXI

de cegueira de médio e longo prazo. A lógica do capital, baseada na concorrência, é


destrutiva em sua essência. Nos permitimos trazer outra observação de Mészáros, com o
intuito de dar um passo a mais. Não só a lógica do capital é, por natureza, destrutiva,
como, o controle social que se estabelece a partir desta lógica é insustentável,
O capital –uma vez que opera sobre a base da míope racionalidade do estreito
interesse individual, do bellum omnium contra omnes –a guerra de cada um contra todos– é um
modo de controle, por princípio, incapaz de prover a racionalidade abrangente de um adequado
controle social (MÉSZÁROS, 1987, p. 30)
A re-interpretação da questão agrária em termos de desenvolvimento rural
se inscreve na tentativa de atualizar as formas em que o Estado tenta regulamentar a
dinâmica do meio rural. Eliminar o conflito, promover o consenso, ampliar os
instrumentos de participação popular, combater a pobreza..., são algumas das variáveis
privilegiadas no discurso do desenvolvimento rural de base local. No entanto, quando
confrontado com a realidade do meio rural do país, esse, discurso apenas mascara a
intensificação da lógica do capital no campo. A redução do conflito consiste na
eliminação dos “conflituosos”37, o consenso se constrói a partir das alternativas
restringidas pelas necessidades do capital, a participação popular choca com uma
estrutura de dominação no meio rural que impede aos trabalhadores uma simetria real
de poder com as classes dominantes, a pobreza tenta ser erradicada com estratégias
mercantis que exacerbam os desequilíbrios e as desigualdades...
Vemos, portanto, que o discurso do desenvolvimento rural com sua
promessa de melhoras para todos, sua retórica do progresso ilimitado e seu papel auto-
proclamado de modernizador do meio rural, em realidade, não passa de um mecanismo
de fortalecimento do controle social promovido pelo Estado na sua função de estrito
protetor das necessidades crescentes do capital.
Depois deste embate, manter a questão agrária como paradigma de estudo
dos problemas do campo exige-nos novas análises sobre a força interpretativa do
conflito, sobre os termos em que hoje esse conflito se define, sobre os mecanismos de
controle social que os consensos propostos incorporam e em definitivo, que nos
atualizemos e re-dimensionemos a questão agrária num meio rural impregnado do
discurso do desenvolvimento. Mas isso deverá ser matéria de outras pesquisas, a nossa
chegou apenas até aqui.

37
Essa eliminação se efetiva via desqualificação através dos meios de comunicação, via
implementação de políticas públicas que anulam a força da organização em movimentos sociais
críticos ou, como podemos ver nos relatórios que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) elabora
cada ano sobre a violência no campo, via eliminação física das pessoas “conflituosas”. Na página
da internet da CPT, <http://www.cptnac.com.br>, podem consultar-se esses relatórios.

64
Geografia e Trabalho no Século XXI

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l

69
Geografia e Trabalho no Século XXI

A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL NA


AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA PAULISTA E OS
∗∗
DESDOBRAMENTOS PARA O TRABALHO

Ana Maria Soares de Oliveira∗

1. APRESENTAÇÃO

Com o presente texto nos propomos debater as repercussões da


reestruturação produtiva do capital em seu movimento geral e, particularmente, do
capital sucroalcooleiro paulista, bem como o rebatimento desse processo sobre o
trabalho. Extraídas de pesquisa recentemente concluída, essas reflexões deverão nos
permitir compreender os principais aspectos que comparecem nas redefinições
promovidas pela reestruturação produtiva do capital e os desdobramentos para os
trabalhadores envolvidos na agroindústria canavieira em São Paulo.
Discutir a questão do trabalho no contexto das redefinições tecnológicas
porque passa o capital produtivo sucroalcooleiro paulista, se insere num contexto maior
de discussões e reflexões que não envolve somente esta pesquisa, mas um conjunto de
trabalhos de outros pesquisadores, (geógrafos) que estão se enveredando pelo caminho
da reflexão acerca de uma “Geografia do trabalho”, tendo como mola propulsora para
nosso engajamento na temática do trabalho, a constituição do Centro de Estudos de
Geografia do Trabalho (CEGeT) e as interlocuções efetuadas com pesquisadores de
outras áreas do conhecimento, que também se dedicam a essa temática38.
O eixo principal de nossas reflexões é a relação capital x trabalho, nesse
contexto de redefinições tecnológicas pelas quais passa a agroindústria sucro-alcooleira
no Brasil e, de modo particular no território paulista, levando em consideração as

∗∗
Este texto resulta do nosso trabalho de mestrado, “A relação capital-trabalho na agroindústria
sucroalcooleira paulista e a intensificação do corte mecanizado: gestão do trabalho e certificação
ambiental”, defendida em junho de 2002, junto ao programa de Pós-Graduação em Geografia da
FCT/UNESP/Presidente Prudente, e sob a orientação do professor Antonio Thomaz Júnior.


Mestre e doutoranda em Geografia pela FCT/UNESP/Presidente Prudente; Professora da Rede
Pública Estadual de Ensino; membro do Grupo de Pesquisa “Centro de Estudos de Geografia do
Trabalho” (CEGeT). E-Mail: anamso@stetnet.com.br
38
Neste particular, as Jornadas sobre o Trabalho realizadas nos últimos quatro anos, constituem
um exemplo de interlocução e de fortalecimento de nossas reflexões.

70
Geografia e Trabalho no Século XXI

diferentes escalas de mediações (sociais, políticas, econômicas, etc) que envolvem tanto
o capital como o trabalho, suas processualidades nos lugares, as dinâmicas e
manifestações territoriais, pois ao enfocarmos geograficamente o trabalho, tentamos
compreendê-lo como expressão metabólica entre a sociedade e a natureza, posto que
este exerce papel fundamental na redefinição do processo social e na construção e
reconstrução do espaço geográfico.

2. INTRODUÇÃO

Estamos vivendo numa era de profundas transformações


socioeconômicas, as quais se associam às mudanças que se configuram na dinâmica do
modo de produção capitalista e se refletem diretamente na relação capital-trabalho.
Verifica-se nesse contexto, a quebra da rigidez da forma de produção
fordista e o cenário que nos é apresentado de redefinições tecnológicas e de novas
formas de gestão e de controle do processo produtivo e do trabalho pelo capital, no qual
se impõem novos arranjos sócio-espaciais e territoriais, com referenciais tecnológicos e
ambientais postos para o capital e para o trabalho de forma diferenciada.
Essas inovações tecnológicas abriram caminho para a flexibilização da
produção e das relações de trabalho nas empresas, implicando na segmentação da força
de trabalho e na divisão social do trabalho interempresas (que assumem a forma de
subcontratadas). Estes dois movimentos, por sua vez, têm conduzido à redução de
trabalhadores permanentes e ao aumento do contingente de trabalhadores temporários.
O setor sucroalcooleiro também passa por esse processo de mudanças,
cujos desdobramentos apresentam contornos gerais definidos, ou a definir, mas que
apontam para uma etapa de intensificação da produção e acumulação de capital.
Temos, portanto, um processo de intensificação do grau de diferenciação
entre as empresas do setor, atrelado às inovações tecnológicas que se voltam para o
incremento da qualidade e da produtividade da matéria-prima, envolvendo a
intensificação do corte mecanizado, a automação e as novas formas de gestão e controle
do trabalho que, por sua vez, incrementam a segmentação e superexploração da força de
trabalho.
Nesse contexto, a intensificação da divisão técnica do trabalho, faz
emergir novos tipos de trabalhadores, redefine o mercado de trabalho e impõe novos
desafios às entidades de representação dos trabalhadores. O capital se fortalece,
reestruturando-se tecnológica e politicamente, enquanto o trabalho alienado no
(re)fracionamento técnico-corporativo tem dificuldades para viabilizar ações político-
organizativas do ponto de vista de classe.
Com a intensificação do corte mecanizado da cana crua, por exemplo,
estas questões se tornam evidentes. A segmentação da força de trabalho, assim como a
divisão social do trabalho, expressa através das empresas terceirizadas, estão
contribuindo para a redução dos trabalhadores “fixos” (contratados diretamente pelas

71
Geografia e Trabalho no Século XXI

empresas) e para o aumento do contingente de trabalhadores terceirizados, com


contratos de safra, na maioria das vezes precários.
As novas tecnologias buscam cada vez mais obter o máximo de
flexibilidade em relação aos processos de produção, pois flexibilizar a produção para o
capitalista, é buscar, através da segmentação e diferenciação dos produtos, uma forma
de permanecer no mercado cada vez mais saturado e seletivo.
Desse modo, a flexibilidade da força de trabalho coloca-se no centro da
questão, visto que tem atingido em cheio a centralidade do trabalho, reduzindo o poder
de reivindicação e de luta da classe trabalhadora. “É a flexibilidade relativa à legislação
e regulamentação social e sindical”, na qual se insere a discussão acerca da flexibilidade
nos contratos de trabalho, ou seja, a variabilidade do emprego, dos salários, dos horários
e locais de trabalho no interior e fora da empresa. Essa flexibilidade da força de trabalho
expressa a necessidade que o capital tem de subsumir o trabalho assalariado à sua lógica
de valorização, através da sublevação da produção de mercadorias. Por isso, a
acumulação flexível se sustenta na flexibilidade dos processos de trabalho. Sendo assim,
pode ser compreendida como a capacidade plena adquirida pelo capital para domar e
submeter a força de trabalho, caracterizando o “momento predominante” da
reestruturação produtiva (ALVES, 2000, p. 24-25).
Estas mudanças em curso têm dificultado a aglutinação de forças, pois a
existência de vários segmentos (trabalhador parcial, temporário, terceirizado, informal,
etc.), muitos deles sem qualquer representação sindical, torna cada vez mais distante a
consolidação de uma “consciência de classe” dos trabalhadores.
Os trabalhadores e o movimento sindical apresentam grandes dificuldades
para apreender as novas formatações e territorialidades que o processo de reestruturação
produtiva do capital tem produzido. Os sindicatos, estruturados nos princípios fordistas
e tayloristas que constituíram a base para a identificação corporativa do trabalho,
pautando-se em categorias profissionais, não conseguem assimilar a horizontalização
gerada pelas mudanças desencadeadas com base em novos modelos de organização da
produção, pautados nos princípios toyotistas. Como afirma Thomaz Jr.:

o sindicalismo, sem horizontalizar-se, também não se projeta a


buscar um significado particular para contemplar a classe
trabalhadora, que deve compreender hoje, desde os ‘estáveis’ até
o conjunto dos trabalhadores que estão inseridos no universo da
economia informal, ‘terceirizados’ e desempregados ou sub-
empregados, por conta dos arranjos do capital (2000, p. 11).

Por um lado, o processo de fragmentação, heterogeneização e


complexificação da classe trabalhadora coloca em questionamento o sindicalismo

72
Geografia e Trabalho no Século XXI

tradicional corporativista e burocrático. Por outro lado, torna mais difícil a organização
sindical de outros segmentos da classe-que-vive-do-trabalho.39
O processo de desestruturação do mundo do trabalho se acentua no
contexto de reestruturação produtiva do capital, expressando-se nas formas precarizadas
de trabalho já apontadas anteriormente e causando insegurança no que concerne aos
salários, níveis de emprego, etc, e também na representação da classe trabalhadora40.
Esse quadro de insegurança que se instalou no mundo do trabalho deixa
os sindicatos em posição defensiva. Mediante a adoção de inovações tecnológicas e
organizacionais no processo produtivo, conseqüentemente, tem havido a intensificação
do trabalho morto, provocando a diminuição ou inibição da oferta de emprego e também
da renda do trabalhador (esta última associada a precarização do trabalho), fazendo com
que os sindicatos recuem, enfraquecendo suas ações reivindicatórias nas negociações e
no embate com o capital.
Alves (2000, p. 85), ao enfocar a crise pela qual o sindicalismo moderno
passa, alega que esta não tem se dado somente no plano socioinstitucional, (aspecto
considerado como dessindicalização ou ainda como redução da sindicalização da
representação de classe, mas também assume grande dimensão no âmbito político-
ideológico, que se carateriza pela integração dos sindicatos à lógica mercantil, limitando
a práxis sindical ao horizonte da mercadoria, que procura garantir na maioria das vezes
“tão-somente melhor preço da força de trabalho”.
Nesse contexto, a dimensão classista é abandonada em prol de práticas
sindicais, que se voltam para a mera preservação de interesses de segmentos que já se
encontram organizados. Seria o mesmo dizer que, “em vez de as entidades sindicais
articularem interesses gerais da classe, agregando a classe como um todo, elas tendem a
promover apenas articulações verticais de categorias assalariadas” (ALVES, 2000, p.
89) .
Enfim, o estranhamento a que estão submetidos os trabalhadores e suas
instâncias de representação, fragiliza os mesmos de modo crescente, “tendo em vista a
fragmentação corporativa que segue os parâmetros da intensificação da especialização e
da divisão técnica e territorial do trabalho”, que impede que a subjetividade do trabalho
se capilarize e se fortaleça a ponto de extrapolar os limites que o corporativismo impõe
e, finalmente se compreender enquanto classe (THOMAZ JÚNIOR, 2003, p. 04).
É preciso atentar para as especificidades intrínsecas à organização
técnico-produtiva e organizacional do capital e às tendências que sinalizam para
redefinições tecnológicas e mercadológicas. Mas, considerando o cenário em questão, é
necessário atentar também para os desafios que se apresentam para os trabalhadores e
entidades sindicais, especialmente quando nos deparamos com um quadro de

39
Mais detalhe, ver: Antunes, 1997.
40
Esta questão também é abordada por Mattoso, 1995.

73
Geografia e Trabalho no Século XXI

concepções político-ideológicas divergentes, tanto nas entidades sindicais de base,


como nas instâncias sindicais superiores (federações). Com a fragmentação corporativa
e territorial, o entendimento do trabalho enquanto classe é dificultado em um jogo de
disputas políticas e territoriais intra e intersindical, que se materializa nas dissensões e
nas novas formas de organização política dos trabalhadores, a exemplo da FERAESP e
da FERCANA (ambas representando os trabalhadores rurais assalariados ligados ao
corte de cana), criadas a partir de divergências políticas internas à FETAESP)41.
Os enfrentamentos políticos e as disputas territoriais travadas entre os
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e os Sindicatos dos Empregados Rurais, se
expressam na duplicidade de representação dos trabalhadores ligados ao corte de cana
que, por sua vez, se assenta na dúplice territorialidade dos sindicatos nos municípios-
sede. Portanto, para alavancar um projeto estratégico de luta para além do capital e
construir uma conscientização quanto ao pertencimento de classe, é preciso extrapolar
os limites da estrutura e organização sindical oficializada pelo Estado, e sobretudo
superar as divergências que contribuem para piorar o quadro de fracionamento
corporativo.
O espectro diferencial em que está assentada a agroindústria sucro-
alcooleira paulista, tem por base tanto a atuação como o envolvimento do capital, do
Estado e do trabalho, que se manifestam através do reordenamento político-econômico
do capital, dos regramentos e das referências instituídas pelo Estado e seus
desdobramentos para o trabalho.
A busca do entendimento das especificidades e ações políticas que
envolvem os trabalhadores e suas instâncias de representação, do desvendamento da
expressão territorial da relação capital-trabalho e do entendimento acerca das táticas e
estratégias adotadas pelo capital, especialmente no âmbito do setor sucroalcooleiro, no
seu processo de reestruturação produtiva, cujos reflexos se fazem sentir na subjetividade
do trabalho e na relação metabólica do homem com a natureza, constitui-se a meta
principal de nossa reflexão.

3. A CAPTURA DA SUBJETIVIDADE DO TRABALHO NO


CONTEXTO DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS E DAS NOVAS
FORMAS DE GESTÃO E CONTROLE DO PROCESSO DE
PRODUÇÃO E DE TRABALHO

41
FERAESP (Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo);
FERCANA (Federação dos Empregados Rurais Assalariados no Corte de Cana); FETAESP
(Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo).

74
Geografia e Trabalho no Século XXI

Assim como a sociedade que, em cada momento histórico adquire formas


de organização espacial diferentes, o mundo do trabalho também adquire feições novas,
impostas pelas necessidades as quais o capital tem de se afirmar. O trabalho sofre um
“espalhamento”, expressando ainda mais o caráter de dominação e de superexploração,
mediante a ampliação do capital.
Num cenário em que se verifica o aumento do trabalho morto em
detrimento do trabalho vivo, contraditoriamente, a ciência interage com ele sem se
sobrepor ao valor, porém participa intrinsecamente de seu mecanismo de geração, pois
esta é a necessidade do capital no seu processo de valorização. Dai acreditamos que
apesar do aumento do trabalho morto, as máquinas informatizadas ou inteligentes não
poderão substituir os trabalhadores, pois no processo de desenvolvimento e de
utilização dessas máquinas há o dispêndio do trabalho intelectual do operário, “que ao
interagir com a máquina informatizada acaba também por transferir parte dos seus
novos atributos intelectuais e cognitivos à nova máquina (ANTUNES, 2001, p.123).
A intelectualização do trabalho, associada ao avanço tecnológico, é
valorizada pelo capital, que na sua contradição, também se nutre da desqualificação ou
da subproletarização presentes no trabalho temporário, informal, parcial etc.,
configurando assim um processo contraditório que superqualifica em alguns setores e
desqualifica em outros.
Se no taylorismo-fordismo ocorria a “subordinação formal-material”, no
modelo do tipo toyotista temos a “subordinação formal-intelectual do trabalho ao
capital, o que segundo Alves, caracteriza “uma nova captura da subjetividade operária
pela lógica do capital” (2000, p.72). Ambas ocorrem no interior da subsunção real,
sendo pois, desdobramentos da subordinação real do trabalho vivo ao trabalho morto.
Devemos ressaltar, no entanto, que a subordinação material do trabalho
ao capital, não desapareceu no cenário das novas tecnologias microeletrônicas. Ao
contrário, temos o reestabelecimento do antagonismo entre o indivíduo e o processo
material, levando-nos a crer no surgimento de um novo estranhamento, posto que a
subsunção real do trabalho ao capital ganha novo sentido, ou seja, a subordinação
formal-intelectual.
Esse novo estranhamento não se expressa apenas entre os operários e o
produto de seu trabalho, mas também entre esse e o processo de trabalho, pois mesmo
que tais operários possuam autonomia sobre o trabalho, eles continuam submetidos à
máquina e portanto, ligados a um trabalho estranhado como no taylorismo-fordismo,
visto que a própria lógica capitalista os impede de comandar o processo produtivo.
Desse modo, quanto mais os operários adquirem autonomia e poder de
decisão sobre o aspecto operacional do processo produtivo, mais as decisões
estratégicas desse processo são concentradas no cerne organizacional e/ou institucional,
visando à manipulação do consentimento do operário e o seu envolvimento com a

75
Geografia e Trabalho no Século XXI

lógica perversa do capital, capturando a consciência afetiva-intelectual do trabalho vivo,


que caracteriza uma centralidade “insuprimível” da força de trabalho42.
A subjetividade do trabalho que se manifesta na
expropriação/transferência do saber cognitivo e intelectual dos trabalhadores para a
máquina informatizada, expressa esse novo estranhamento, mesmo que minimizado
pela redução da separação entre a elaboração e a execução, o “saber e o “fazer”.
Nesse contexto, o imperativo do capitalismo mundial tem sido, cada vez
mais, introduzir novas tecnologias de base microeletrônica e novos padrões
organizacionais, os quais seguem a lógica toyotista.
Com a introdução da automação microeletrônica para o controle de
processos, tanto associada aos equipamentos tradicionais quanto às mudanças
organizacionais, tem havido novas exigências quanto a qualificação, habilidades e
desempenho dos trabalhadores43. Desse modo, o processo de “requalificação” dos
operários não tem se efetuado apenas no nível da fixação em postos de trabalho, mas
também no das funções. Neste sentido, Eid; Neves (1998), afirmam que a gestão da
força de trabalho está cada vez mais associada não somente à mobilização e à alocação
em postos de trabalho, mas também às funções.
Na agroindústria canavieira, a utilização da automação microeletrônica,
especialmente a adoção do processo contínuo nas indústrias de processamento de açúcar
e álcool, está associada, entre outros fatores, à necessidade de aumentar a velocidade de
processamento e das informações, haja vista às operações industriais serem cada vez
mais complexas, necessitando de mais controle e de mecanismos de regulação que
possibilitem tomar decisões com maior agilidade e que aumentem, tanto o nível de
produtividade como a eficiência do processo produtivo. Desse modo, muitas empresas
vêm monitorando através de programas computacionais os processos de produção:
agrícola e fabril, visando eliminação ou diminuição, o máximo possível, dos desarranjos
e das perdas decorrentes da imprecisão no controle simultâneo da produção agrícola.
A introdução dessas novas tecnologias de base microeletrônica, tem
exigido dos operários uma certa qualificação, no que se refere à instrumentação
eletrônico-digital. Aliás, o efeito da utilização da automação microeletrônica para
controle de processos, tem mudado substancialmente o conteúdo do trabalho dos
operadores, ou seja, hoje um mesmo operador pode exercer pelo menos três atividades
ao mesmo tempo: pode supervisionar o controle dos equipamentos; substituir a
operação automática pela manual quando houver necessidade; ou até supervisionar e
tomar decisões dentro de sua seção quando alguma área apresentar problemas44. Desse

42
Cf. ALVES, (2000).
43
Cf. THOMAZ JÚNIOR, 1996.
44
Cf. EID; NEVES, 1998.

76
Geografia e Trabalho no Século XXI

modo, o bom desempenho do operário é fundamental para garantir a eficiência do


processo de produção na agroindústria canavieira.
Nesse contexto, tem se constituído um conjunto de movimentos, os quais
visam a apropriação dos resultados do trabalho pela empresa, através de decisões
estratégicas que buscam atingir objetivos econômicos, técnicos e organizacionais, bem
como as potencialidades dos trabalhadores. (EID; NEVES, 1998).
Este aspecto pode ser verificado nas empresas sucroalcooleiras que
possuem o Programa de Qualidade Total, o qual consiste na implantação de um sistema
de gestão de qualidade total, que certifica produtos e processos de acordo com os
critérios internacionais das normas da série ISO 9000. O interesse das empresas em
adotar este Programa justifica-se na implantação de um sistema com critérios de
padronização, de controle de informações e, consequentemente do processo produtivo.
Numa das empresas sucroalcooleiras visitadas durante a pesquisa do mestrado,
constatamos que antes da implantação da ISO 9002/94 não havia uma formalização (e
informatização) das informações relacionadas ao processo produtivo. “usavam
metodologias ultrapassadas”. Quando havia reclamações por parte das empresas
consumidoras, surgiam as dificuldades para rastrear o problema no processo, pois se
usava “a metodologia das anotações em caderninhos; dos rascunhos”45.
Com a implantação desse sistema, não ocorreu somente a padronização
dos documentos e dos sistemas de produção de açúcar e álcool, mas sobretudo, retornos
econômicos para a empresa. Recentemente, já com o sistema padronizado, a empresa
substituiu a ISO 9002/94 pautada, basicamente no controle de processos, pela ISO
9001/2000, mais direcionada para a gestão dos processos, buscando a melhoria do
sistema através do gerenciamento e análise dos indicadores. Desse modo, a nova versão
do Sistema reforça três aspectos importantes para a empresa: maior precisão no
atendimento dos interesses dos clientes, busca da melhoria contínua do processo
produtivo e, sobretudo agregação de valor aos produtos.
Como a empresa está passando por um processo integrado de
informatização, a nova versão da ISO só veio a somar, pois permite a evolução do
processo e uma integração maior de cada área envolvida46. O Sistema de Qualidade
possibilitou à referida empresa, além da sistematização e da recuperação das
informações e do controle do processo em si, uma maior credibilidade na efetuação de
contratos com os clientes, pois hoje um dos pré-requisitos para fechamento de contratos
com grandes clientes, especialmente internacionais, é a certificação.

45
Declaração da coordenadora do Sistema de Qualidade.
46
Com a nova versão ISO9001/2000, as áreas de saúde, segurança e comunicação estão sendo
incorporadas ao Sistema de Qualidade.

77
Geografia e Trabalho no Século XXI

Antes, a falta de sistematização das informações a respeito do processo,


dificultava também o atendimento ao cliente, pois quando havia reclamação sobre
determinado lote de produto, muitas vezes não ia diretamente para a pessoa responsável,
passava por vários departamentos até o problema ser rastreado e resolvido.
Com a sistematização e controle do processo, a empresa reduziu seus
custos com o reprocessamento, ou seja, lotes de produtos que apresentassem problemas
de qualidade eram devolvidos pelo cliente e a empresa tinha que reprocessá-los,
gerando um custo adicional para a mesma.
Hoje, com o processo totalmente equalizado, já é possível diminuir o
risco de produtos não conformes, o que “representa um ganho muito grande, pois a
empresa tem números que demonstram o quanto ela tinha problemas com reprocessos,
devoluções, e como isso foi caindo nos últimos anos. Hoje ainda há, mas a empresa já
tem como mensurar o que está acontecendo, bem como os critérios para saber se a
reclamação é procedente ou não, e onde está ocorrendo a falha para que possa ser
corrigida” 47.
Para o capital este é um aspecto positivo, porque o Sistema de Qualidade
representa um salto qualitativo, no sentido de que possibilitou um maior entrosamento e
autonomia entre os trabalhadores envolvidos no processo, que não precisam mais ficar
esperando a chegada do gerente ou o diretor para saber que ação efetuar. Além disso, as
exigências de aperfeiçoamento e treinamentos específicos, propiciou-lhes qualificação
do trabalhador, melhorando seus conhecimentos em relação ao processo.
Verifica-se através do exemplo dessa empresa sucroalcooleira, que o
capital, através da adoção do Sistema de Qualidade Total, exige do trabalhador muito
mais que simplesmente fazer, ele precisa saber fazer, ou seja, o aspecto cognitivo é
envolvido, é apropriado pelo capital. Isso pode ser constatado através da fala do Gerente
de Qualidade da empresa visitada:

O trabalhador tem de saber o que está fazendo, ter alguma base


teórica do que ele faz e porque ele faz. Antigamente era para
fazer sem perguntar. Então, a ISO 9001/2000 veio contribuir
nesse sentido, porque levou o treinamento até a base operacional,
visto ser obrigado pela norma o treinamento do pessoal.

Utilizado como técnica de gerenciamento e exercendo de alguma forma


um mecanismo de motivação dos trabalhadores, o Sistema de Qualidade Total acaba se
constituindo numa estratégia de envolvimento incitado e coercitivo, ao pautar-se no
estímulo a participação e no envolvimento dos operários. Para que a empresa implante o
Sistema de Qualidade e obtenha a certificação, se faz necessário que todos os segmentos
envolvidos no processo se adeqüem às normas, incluindo-se desde o trabalhador do
laboratório até o operário da fábrica. Desse modo, induz-se uma mudança no

47
Ressalva feita pela coordenadora do Sistema de Qualidade.

78
Geografia e Trabalho no Século XXI

comportamento dos trabalhadores, no sentido de que estes direcionem seus esforços ao


cumprimento das metas da empresa.
A exigência do treinamento, o estímulo à participação, o discurso da
integração entre os trabalhadores e de uma maior autonomia, faz parte do jogo
estratégico do capital, ou seja, a partir do momento em que o capital consegue embutir
tudo isso no trabalhador, ele passa a ter mais confiabilidade no mesmo e assim
apropriar-se da sua subjetividade. Conforme afirma Antunes:

[...] a qualificação e a competência exigidas pelo capital muitas


vezes objetivam de fato a confiabilidade48 que as empresas
pretendem obter dos trabalhadores, que devem entregar sua
subjetividade à disposição do capital (2001, p. 52, grifo nosso).

Em termos salariais não ocorrem mudanças significativas para os


trabalhadores de um modo geral e tampouco para aqueles envolvidos diretamente no
Sistema de Qualidade. Cremos que nesse caso específico o envolvimento incitado e
coercitivo se revela com mais propriedade, visto que a empresa se utiliza do artifício da
participação nos lucros, no sentido de estimular os trabalhadores e, desse modo, atingir
suas metas. Esta afirmativa é claramente reforçada através da fala do Gerente de
Qualidade da empresa:

Em termos de salário eu não poderia dizer que há uma relação


direta, mas no geral surgiram programas para melhorar os ganhos
dos trabalhadores. O fato da gente trabalhar mais organizado aqui
dentro incentivou o patrão a criar o programa de participação nos
lucros e, uma vez por ano ele reparte conosco (grifo nosso).

Alves (2000), quando discute o novo controle social do capital no âmbito


das inovações institucionais do toyotismo, ressalta que uma das estratégias de captura
do consentimento operário no sistema toyotista é o estímulo, expresso na forma de
bonificação e de participação nos resultados49.
Esse sistema de bonificação visa estabelecer um ajuste do pagamento às
condições da empresa e premiar os trabalhadores que apresentarem melhor
performance. No caso da empresa visitada o sistema de bonificação funciona do
seguinte modo: A empresa tem uma estimativa de lucro para cada safra. Se, ao final da
mesma ela conseguir superar esta estimativa, parte do percentual que ultrapassou sua
meta é repassada aos trabalhadores em forma de bônus, de acordo com a função

48
Grifo do autor.
49
No sistema toyotista japonês, por exemplo, adota-se também o estímulo individual na forma de
empregos vitalícios.

79
Geografia e Trabalho no Século XXI

exercida dentro da empresa e da faixa salarial. Desse modo, os operários da fábrica


recebem 1,5% do percentual destinado a esse repasse; os trabalhadores da supervisão
recebem 2,5%; e o pessoal da gerência 4%.
Cabe a ressalva de que, apesar destas estratégias de emulação terem
ganho maior expressividade no contexto de reestruturação produtiva do capital, não
foram originadas por este sistema. O mesmo apropriou-se e aprimorou, através do
engajamento estimulado, de formas já existentes em outros sistemas.
Como afirma Alves (2000, p. 52):

[...] utilizar o incentivo salarial como modo de gerenciar o


comportamento operário e elevar a produtividade ‘não é criação
do toyotismo’. Mais uma vez, o toyotismo apenas desenvolveu,
com seus protocolos de emulação individual, notadamente pelos
novos sistemas de pagamento e, até mesmo, pelo trabalho em
equipe, um ‘meio refinado e civilizado’ de exploração do
trabalho, denunciado por Marx desde o século passado.

São vários os fatores que contribuem para que a empresa atinja e supere
sua meta de safra. Depende das condições do mercado, da produtividade da cana e até
das condições edafo-climáticas, mas o fator eficiência do processo e o desempenho dos
trabalhadores é colocado em evidência quando o assunto é repasse dos lucros da
empresa. A fala do Gerente de Qualidade, mais uma vez reforça nossa afirmativa ao
dizer que:

Para ter lucro a empresa precisa de um processo produtivo


eficiente e tem de ter controle de qualidade. Quanto mais eficaz e
eficiente mais vai ganhar. Se cada um tem sua meta de ganho,
tem de haver um compromisso por parte do trabalhador, ele tem
que se sentir dono do processo, sócio do dono da empresa. Ele
tem que ter um comprometimento parecido com o do dono da
empresa. Não tem que medir esforços. Desse modo, se acredita
ter uma lucratividade maior.

Como vemos, os trabalhadores são “compensados” pelo capital no


processo de trabalho, desde que o pensar, o agir e as proposições dos mesmos tenham
como prioridade os objetivos intrínsecos da empresa que, ao usar o discurso de que seus
trabalhadores têm mais autonomia, que há entrosamento e que ela os considera como
seus colaboradores50, acaba muitas vezes mascarando suas necessidades reais, tais como
a superação de sua margem de lucro e sua permanência e/ou conquista de novos
mercados. Além do que, a manutenção dos contratos de venda e a satisfação dos clientes

50
Algumas empresas sucroalcooleiras usam esse termo para se referir aos seus trabalhadores.

80
Geografia e Trabalho no Século XXI

é condição sine qua non para a sobrevivência da empresa no mercado. Sendo assim, a
esfera de subjetividade do trabalho é incitada visando ao envolvimento com o projeto da
empresa e seu conseqüente processo de criação de valores.
Na atual fase do capital, o savoir-faire é retransferido para o trabalho,
com o objetivo crescente de envolver a subjetividade operária, através da apropriação da
sua “dimensão intelectual e cognitiva”, como destaca Antunes:

Os trabalhos em equipes, os círculos de controle, as sugestões


oriundas do chão da fábrica, são recolhidos e apropriados pelo
capital nessa fase de reestruturação produtiva. Suas idéias são
absorvidas pelas empresas, após uma análise de sua
exeqüibilidade e vantagem (lucrativa) para o capital (2001,
p.131).

Desse modo, quando o envolvimento coercitivo se concretiza, ocorre uma


certa descentralização no controle de processos, ou seja, neste estágio, o trabalhador
adquire uma relativa autonomia, passando a ter um maior controle da produção em suas
mãos. Esta é uma estratégia adotada pela direção da empresa para obter um maior
controle sobre os trabalhadores e aumentar a produtividade.
Sobre este aspecto, há que se atentar ainda para o fato de que a eficácia do
conjunto do sistema produtivo, que se enquadra no modelo toyotista não tem mais como
garantia a rapidez com que o operário executa a sua tarefa individual, tal qual ocorria
(ou ainda ocorre) no processo produtivo com princípios fordistas. Nas empresas cujos
princípios adotados são toyotistas, prima-se pela integração do conjunto dos
trabalhadores. Nesse caso, o processo manipulatório é incrementado a partir da
supervisão e do controle exercido pelos próprios trabalhadores. Em outras palavras,
diríamos que no processo de trabalho desenvolvido em equipe, através do engajamento
estimulado, o controle continua rígido, porém incorporado à subjetividade operária.
Alves (2000, p. 54), destaca que a frase “somos todos chefes” é um lema
do trabalho em equipe no sistema toyotista, fazendo-nos retornar a fala do Gerente de
Qualidade, já destacada anteriormente neste texto, onde o mesmo ressalta que o
trabalhador deve ser compromissado com as metas da empresa, que esse deve se sentir
“dono do processo, sócio ou dono da empresa”.
Como se vê, a captura da subjetividade do trabalhador pela lógica do
sistema metabólico do capital, pressupõe maior envolvimento, mais participação e o que
é mais perigoso: possui um caráter manipulatório maior do que em outros momentos da
história do capitalismo.
Nesse contexto, não é somente o “saber” e o “fazer” do trabalhador que
são capturados, mas também a sua capacidade de se dispor intelectual e afetivamente
em benefício da equipe, cooperando assim com a lógica de valorização do capital.

81
Geografia e Trabalho no Século XXI

4. AS REDEFINIÇÕES TÉCNICO-PRODUTIVAS E
ORGANIZACIONAIS NA AGROINDÚSTRIA SUCROALCOOLEIRA
PAULISTA

A adoção de novas tecnologias, envolvendo parcial ou totalmente o


processo produtivo, seja através da incrementação da parte operacional ou da
substituição de equipamentos e máquinas, ou mesmo da incorporação de controles
automatizados, tem provocado rearranjos na organização e no controle do processo de
trabalho, determinando a estrutura, o funcionamento e também a diferencialidade
tecnológica da planta fabril51.
A partir do final dos anos 1980 e, sobretudo durante a década de 90, o
setor sofreu um processo de desregulamentação, decorrente de modificações nas ações
implementadas pelo Estado. Tais ações, marcadas pelos princípios neoliberais,
conduziram a um conjunto de mudanças para os setores agrícola e agroindustrial,
especialmente no que se refere às políticas de crédito e de subsídios, de preços mínimos
aos produtores rurais e de controle das ações desses setores, particularmente do setor
sucro-alcooleiro52.
As mudanças nas políticas intervencionistas, ou a retirada do Estado da
economia, gerou um aumento substantivo do grau de concentração da renda e da
propriedade da terra. A intensa movimentação de capitais, decorrente dessas mudanças,
acabou criando um movimento de fusões, aquisições, fechamento e/ou falência de
unidades produtoras, empresas ou grupos. Soma-se a esse quadro, a intensificação da
mecanização da lavoura, a utilização de tecnologias de ponta e a penetração de capitais
internacionais que, até então, constituía-se uma exceção no âmbito do setor
sucroalcooleiro53.
Tem-se em cena o processo de reestruturação produtiva, permeado pela
desregulamentação, por diferentes formas de superexploração do trabalho, por novas
formas de gestão e de controle do processo de produção e de trabalho, pela redução de
custos e diversificação de produtos, etc., contribuindo para a constituição de um novo
reordenamento territorial e produtivo do capital sucroalcooleiro, que se expressa

51
Cf. THOMAZ JÚNIOR, 2002c.
52
Segundo Silva (1999, p. 69), a redução gradativa do crédito subsidiado, tanto para os
investimentos industriais quanto para o custeio da produção agrícola, bem como o reajuste dos
preços do açúcar e do álcool, que não ocorreu de acordo com as expectativas dos produtores,
contribuiu para o desencadeamento do processo de competição no setor, tendo como principais
instrumentos a diversificação produtiva e a modernização tecnológica.
53
Para mais detalhes, ver: Nascimento, 2001.

82
Geografia e Trabalho no Século XXI

diferencialmente, tanto entre as empresas sucroalcooleiras, como entre as várias frações


do território brasileiro e, particularmente de São Paulo.
A retirada do suporte estatal às agroindústrias sucroalcooleiras não
acabou com a esperança dos empresários. Estes esperam contar com o apoio do Estado
para manterem o álcool na matriz energética brasileira. O apoio também é esperado no
tocante à abertura de novas opções tecnológicas, voltadas tanto para os produtos
tradicionais (açúcar e álcool), como para os subprodutos (bagaço, alcoóis finos, açúcar
líquido, açúcar orgânico, etc.), na perspectiva de ganhos de novos referenciais de escala
e de mercado54.
Mediante o cenário de desregulamentação, as questões que emergem
encimadas na mecanização do corte, perpassam pela polêmica que envolve a queima da
cana-de-açúcar, desencadeando um conjunto de desdobramentos que se manifestam nos
âmbitos social, ambiental, político e econômico.
Até meados dos anos 1990, o uso da máquina colheitadeira no corte de
cana crua se dava, sobretudo, pelas empresas de grande porte e mais capitalizadas, tendo
em vista, entre outros fatores, a tecnologia embutida nessas máquinas e o elevado custo
para aquisição das mesmas. A partir da segunda metade dessa década, as alegações de
que a queima da palha da cana-de-açúcar provoca efeitos maléficos sobre o meio
ambiente e a sua regulamentação através do Decreto n° 42.056/97, bem como o
“barateamento” das máquinas e maior aperfeiçoamento técnico, fez com que o uso da
colheitadeira se ampliasse nas empresas de médio e grande porte e atingisse também as
pequenas empresas. Consequentemente, houve a intensificação do corte mecanizado da
cana crua.
Se por um lado, o processo de mecanização da lavoura de cana-de-açúcar
constitui-se num aspecto positivo para o capital, por outro lado, o seu rebatimento sobre
o trabalho é preocupante, pois se reflete diretamente sobre o mesmo, reduzindo o
número de empregos ligados ao corte de cana55, e indiretamente, uma vez que em
função do desemprego há a precarização das condições de vida dos trabalhadores
desempregados.

54
Os avanços tecnológicos têm sido expressivos e envolvem pesquisas tanto na área genética
como na mecânica, a exemplo dos projetos voltados para a biotecnologia (plásticos
biodegradáveis) e melhoramento genético, da automação da planta fabril e da sofisticação dos
sistemas de transporte e carregamento, que dão suporte à mecanização do corte na lavoura
canavieira.
55
Hoje, o índice de mecanização é diferenciado de uma região para outra do Estado de São Paulo,
sendo mais expressiva na região de Ribeirão Preto, onde o índice varia entre 40% e 50% de uma
empresa para outra. Nas regiões mais mecanizadas o desemprego de trabalhadores rurais
(cortadores de cana) já beira os 50%.

83
Geografia e Trabalho no Século XXI

Os trabalhadores no corte manual vêm perdendo a força no confronto com


o capital, que hoje atribui o “poder de fogo” aos operadores de máquinas, tratoristas e
motoristas, envolvidos na mecanização; restando aos sindicatos, especialmente àqueles
cujos dirigentes encontram-se “encastelados” no imobilismo, no burocratismo, ceder às
exigências do capital cada vez mais hegemônico, sob pena de ter uma redução cada vez
maior de postos de trabalho no corte manual da cana.
Sabemos que em sua trajetória hegemônica, o capital é muito versátil
operacional e organizativamente, e desafia o movimento sindical a formular
contrapartidas que possam ir além de movimentações por melhores condições de
trabalho e de salário e pela manutenção do emprego.
Nesse contexto, as nossas atenções se voltam para a compreensão do
embate político-ideológico presente nas entidades sindicais de base dos trabalhadores
ligados ao corte de cana; para a materialidade das lutas e as disputas territoriais intra e
intersindicais , uma vez que as dinâmicas específicas em que capital e trabalho se
territorializam, diferenciam-se em termos de velocidade e ordenamento,
circunscrevendo-se às limitações que o movimento sindical possui para responder `as
investidas do capital.

5. GESTÃO TERRITORIAL DO CAPITAL E DO TRABALHO NO


ÂMBITO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA

Capital e trabalho fazem parte de um mesmo processo contraditório,


possuindo enraizamento em diferentes esferas do processo de produção. O capital, por
um lado, controlando todo o processo produtivo de forma hegemônica e, por outro lado,
o trabalho, que, ao inserir-se no processo de produção social é subjugado pelo capital. A
contradição presente na relação capital-trabalho, fundamenta-se no fato de um
expressar-se no outro, porém se materializando em bases diferentes.
No âmbito das relações de produção, o trabalho apresenta-se de forma
fragmentada em diversas categorias e corporações. Nesse particular, cabe ressaltar que a
gestão fragmentária das diversas categorias de trabalhadores e suas entidades de
representação, tem sua origem no verticalismo confederativo do modelo sindical
estruturado no Brasil, pautado no ordenamento sindicato-federação-confederação56.
Segundo Thomaz Júnior, “Essa estrutura vertical, ou verticalismo do
modelo jurídico de integração das entidades sindicais, pautado na tríade sindicato,
federação e confederação, representa os limites da ‘liberdade sindical’, ou melhor, os
elementos típicos de sua constituição” (2002c, p.237).

56
Cf. THOMAZ JÚNIOR, 2002a.

84
Geografia e Trabalho no Século XXI

Os sindicatos são, portanto, fundados e estruturados em categorias de


trabalhadores (sendo a divisão técnica do trabalho a principal definidora do
enquadramento sindical), devendo ser únicos em relação a sua base territorial e a
categoria que representam.
Na agroindústria sucroalcooleira, de modo particular, essa fragmentação
se expressa nos trabalhadores rurais (cortadores de cana), nos trabalhadores ligados ao
processo fabril (químico e alimentício) e nos trabalhadores do setor de transportes das
empresas (condutores, motoristas, tratoristas, etc.). Desse modo, o trabalho fraciona-se
no âmbito categorial e personaliza-se no âmbito corporativo.
É uma situação que se sustenta, portanto, no padrão vertical, decomposto
na tríade acima citada, organizado de forma hierárquica, respeitando a ordenação
territorial imposta pelo Estado e fundamentada nos esquemas de sustentação financeira,
a saber: as contribuições sindicais 57.
A abrangência da atuação posta para o trabalho enquanto identidade
corporativa, é delimitada territorialmente pelas fronteiras do município, contrapondo-se
ao espalhamento territorial do capital, que se materializa nas áreas de plantação de cana-
de-açúcar e nas empresas sucroalcooleiras.
A contradição inerente a relação capital - trabalho se revela também na
realização de ambos no território, ou seja, entre os limites da base territorial dos
trabalhadores e suas entidades de representação e a base territorial da agroindústria
sucroalcooleira. Desse modo, a gestão territorial do fenômeno agroindustrial
sucroalcooleiro e dos trabalhadores, efetua-se de forma diferenciada 58.
Mesmo estando inserido nas mesmas regras legais que os trabalhadores
em relação às entidades representativas, o capital se unifica em torno de uma única
entidade, no caso a UNICA - União da Agroindústria Sucroalcooleira, ultrapassando a
seara oficial, também estipulada para ele. Enquanto este é hegemônico sobre o processo
produtivo, exercendo sua própria gestão e reconhecendo-se não nos limites dos
municípios, mas na materialização da produção, o trabalho, na forma de identidade
corporativa, esbarra nos limites da alienação legitimada pelo Estado, resultando na

57
São estes o imposto sindical e o imposto assistencial: o imposto sindical constitui-se num
desconto compulsório que é fixado com base num dia de trabalho, conforme o disposto nos
artigos 580 e 582 da CLT e no artigo 8o da Constituição Federal. O imposto assistencial é fixado
em assembléia no mês da data-base, ou através de convenção ou acordo coletivo. Ambos são
recolhidos pelos próprios sindicatos, mas não são repassados às suas instâncias superiores
(federações e confederações). Além destes, a Constituição Federal instituiu (art. 8o-, inciso IV)
outro mecanismo contributivo, qual seja, a contribuição confederativa, a qual é descontada na
folha de pagamento e repassada percentualmente às federações e confederações. Para mais
detalhes, ver: Thomaz Júnior, 2002c.
58
Cf. THOMAZ JÚNIOR, 1996, 2002c.

85
Geografia e Trabalho no Século XXI

fragmentação entre as diversas categorias e bases territoriais 59. Isso ocorre porque para
o trabalho a sua identidade corporativo-sindical se assenta na ruptura conduzida pela
divisão técnica do trabalho, que ao se territorializar aliena-se no plano aparente da
relação capital-trabalho.
Por um lado, a alienação do trabalhador ocorre através do produto de seu
trabalho e da relação com seu semelhante, da sua não-consciência quanto ao
pertencimento de classe, quando este não se reconhece enquanto proletário, mas sim
como categoria, ou seja, cortador de cana, motorista, etc. Por outro lado, a alienação do
sindicato revela-se quando este se expressa territorialmente, através do fracionamento
em categorias, do limite de sua base territorial e de sua conformidade com a localização
da empresa.
Uma mesma empresa pode concentrar metade ou mais da área plantada
com cana, na delimitação de vários municípios, ligando-se direta ou indiretamente a
diversos sindicatos rurais, o que não significa que pelo fato do capital estar enquadrado
nas mesmas normas legais que os trabalhadores, quanto às entidades de representação,
ele se enfraqueça ou se fracione. Pelo contrário, as diretrizes das empresas centralizam
ações que ao se materializarem expressam a força hegemônica do capital, capaz de auto-
gerir sua própria territorialidade.
O sindicato faz a leitura de sua territorialidade de modo superficial, ou
seja, ele só consegue se enxergar no plano da distribuição territorial que, por sua vez é
alienada. A expressão fenomênica da atividade sucroalcooleira é identificada através da
área plantada e das unidades processadoras, mas somente na seara territorial que lhe é
permitida, isto é, na abrangência territorial estabelecida do ponto de vista produtivo e
corporativo. Já o capital se vê enquanto fenômeno na sua totalidade, exercendo assim a
gestão sobre o território60.
O trabalho se fragmenta no processo de gestão política, expressando
unidade, somente enquanto força de trabalho. Ao passo que o capital se unifica na
gestão do processo produtivo, uma vez que não há rupturas estruturais em suas
estratégias, fragmentando-se apenas do ponto de vista da disputa por mercado, força de
trabalho, terras, etc.
Ao fracionar-se corporativamente enquanto entidade de representação e
enraizar-se na seara da atividade produtiva, a base territorial do sindicato lhe pertence
somente do ponto de vista aparente, haja vista seu movimento se dar no território do
capital, legitimado pelo Estado. Desse modo, se efetua o controle e a subordinação do
trabalho pelo capital. O controle social é exercido e colocado em prática pelo capital sob
o aval do Estado, revelando assim as fragilidades do movimento sindical. Este, por sua
vez, não esboça reação frente as investidas do capital e o imobilismo impede a busca de
alternativas que possam se fortalecer por fora do comando financeiro, que cada vez mais

59
Ibid, 1996, 2002c.
60
Cf. THOMAZ JÚNIOR (2002c, p. 234

86
Geografia e Trabalho no Século XXI

se fortalece e busca o desenvolvimento das forças produtivas, consubstanciado na


composição estabelecida com o Estado e com o próprio movimento sindical. A exemplo
do que vem ocorrendo no âmbito da Câmara Paulista do Setor Sucroalcooleiro e do
Pacto pelo Emprego61, com relação às discussões e propostas em torno da revitalização
do Proálcool, do aporte tecnológico e da mecanização do corte de cana-de-açúcar.
As discussões que se efetuam no âmbito da Câmara no sentido de definir
os rumos do setor e, em especial, as perspectivas para o Proálcool, não têm a
participação efetiva dos sindicatos, “as discussões se dão entre eles mesmos, as
associações de usinas e destilarias. Os sindicatos não são convidados a participarem e só
tomam conhecimento dos resultados bem depois”, alega o presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Ribeirão Preto 62.
O que tem ocorrido no âmbito dessas comissões tripartites é que as
agendas de discussões são elaboradas pela coordenação das mesmas, sem a participação
efetiva das federações. O resultado é que estas acabam acatando as “regras do jogo e o
roteiro de discussão definido pelo capital e pelo Estado”, limitando-se, quando muito, a
inserir na agenda algumas outras questões de interesse (THOMAZ JÚNIOR, 2001, p.
158).
Todos os elementos que constituem a estrutura de poder do capital, foram
absorvidos no interior da Câmara Paulista do Setor Sucroalcooleiro com o
reconhecimento do Estado, consolidando-se fundamentalmente através da hegemonia
do capital sobre o trabalho. Isso se expressa claramente quando verificamos as
condições em que se efetua a presença dos trabalhadores na composição dessa instância.
Enquanto a representação dos trabalhadores no âmbito da Câmara ocorre
via federações, as quais constituem a fragmentação corporativa da estrutura sindical,
para o capital a representação se dá não somente via entidades sindicais, mas sobretudo,
através da UNICA, entidade de organização político-econômica que tem centralizado
discussões e decisões em torno de importantes demandas e projetos voltados
especialmente para os interesses do capital.
Como se vê, as instâncias sindicais superiores ligadas à agroindústria
sucro-alcooleira paulista, ao internalizarem o modelo estrutural e organizativo de

61 A Câmara Paulista do Setor Sucroalacooleiro, foi criada em dezembro de 1995, pelo Governo
do Estado de São Paulo, com o intuito de abranger amplos debates, reivindicações e tomadas de
decisões concernentes ao setor sucroalcooleiro, sob a coordenação da Secretaria do Emprego e
Relações do Trabalho.
O Pacto pelo Emprego, foi instituído em agosto de 1999 e assinado pelo Governo do estado, pela
União, pela Associação dos Municípios Canavieiros Paulistas e pelas entidades de representação
dos empresários e dos trabalhadores. Este Pacto foi criado sob a alegação de se buscar uma
alternativa frente ao processo de desregulamentação e de desemprego no setor.

62 Durante entrevista realizada no dia 03/04/2002.

87
Geografia e Trabalho no Século XXI

sindicato. determinado oficialmente pelo Estado, acabam garantindo a harmonização


entre capital e trabalho e mantendo os trabalhadores sob o domínio do patronato.,

6. OS REFERENCIAS AMBIENTAIS E TECNOLÓGICOS NA


AGROINDÚSTRIA SUCROALCOOLEIRA E OS REFLEXOS PARA O
CAPITAL E PARA O TRABALHO
A gestão do território colocada em prática no período pós-guerra, elevou
o padrão tecnológico, incentivando a produção em larga escala, estimulando a
exploração dos recursos naturais, bem como a exploração da força de trabalho. A
modernização da agricultura (e, especialmente da agroindústria canavieira) não fogem
desse contexto, por terem requerido a adoção de novas tecnologias e,
consequentemente, novas práticas conservacionistas, maior controle dos processos e da
qualidade dos produtos.
Como nos lembra Bihr (1999, p. 125), a poluição e a destruição dos
recursos naturais não são recentes. A novidade é que o desenvolvimento industrial
alcançado nas últimas décadas, bem como as possibilidades criadas pelo avanço
técnico-científico aferiram uma dimensão global a destruição da natureza, gerando
conseqüências também globalizadas (a exemplo da destruição da camada de ozônio, da
ameaça de catástrofes nucleares, etc.).

Seja como for, a crise ecológica leva a recolocar em questão o


funcionamento das sociedades contemporâneas em sua
‘totalidade’: suas maneiras de gerir esse patrimônio comum da
humanidade que é a natureza, seus modos de produção e de
consumo, os produtos que resultam de sua atividade econômica
[...].

Com as mudanças que têm ocorrido em função do processo de


mundialização da economia e com a questão ambiental tão em evidência, as empresas
estão sendo forçadas a mudarem suas posturas em relação ao meio ambiente,
procurando maneiras de utilizar os recursos naturais e efetuar o processo produtivo, de
modo a agredir “menos” a natureza. Neste contexto, comparecem várias empresas do
setor sucroalcooleiro, as quais vêm se engajando no discurso de defesa do meio
ambiente. No entanto, o que nos preocupa e que tem nos levado a refletir é justamente o
perigo deste engajamento limitar-se apenas em nível de discurso, sem ações efetivas.
Acreditamos que a incorporação desse debate por parte do setor produtivo
pode significar tanto o aumento da conscientização do empresariado da necessidade de
ações efetivas, no sentido de que o processo produtivo venha a ser menos agressivo ao
meio, quanto a transformação da questão ambiental em instrumento de proteção de
mercado cativo e em ferramenta de marketing para conquista de nichos de mercado.
Certamente este último aspecto é o que pesa mais, pois para o empresário o diferencial

88
Geografia e Trabalho no Século XXI

econômico que ele pode obter com um produto que possui certificação orgânica ou
ambiental, bem como a possibilidade de ampliação da taxa de lucro, tem muito mais
importância do que qualquer problema relacionado ao meio ambiente.
O avanço da conscientização ambiental, a pressão das legislações
ambientais e as exigências de mercado, especialmente do mercado internacional, tem
conduzido várias empresas no mundo a reverem suas posições frente a questão
ambiental, tendo em vista que os movimentos que defendem a produção e a certificação
de alimentos saudáveis, produzidos em ambientes que não oferecem riscos ambientais e
sociais, são originários de países ricos (principalmente da Europa), os quais se
constituem importantes mercados consumidores. Desse modo, as empresas que
pretendem melhorar sua performance ambiental frente à sociedade e, sobretudo,
diferenciar-se no mercado, estão revendo suas posturas frente à questão ambiental .
Nesse contexto, aumentar a produtividade e a competitividade no
mercado, têm sido condição primordial para as empresas que, para alcançarem suas
metas têm adotado novas formas de gestão e de controle do processo produtivo e de
trabalho, bem como “novos” referenciais tecnológicos e ambientais como a certificação,
e investido em produtos diferenciados. No caso das empresas sucroalcooleiras a
preocupação se volta para a diferenciação de produtos como a cana e o açúcar orgânico,
por exemplo, bem como para os projetos de certificação ambiental e/ou orgânica, de
melhoramento genético (Genoma-Cana), de co-geração de energia e de seqüestro de
carbono.
As mudanças no comportamento do mercado consumidor tem gerado
movimentos63, os quais têm contribuído para o surgimento de padrões ambientais, bem
como de normas de certificação ambiental. Desse modo, os “novos” referenciais
ambientais e tecnológicos são incorporados ao processo produtivo sucroalcooleiro,
gerando diferenciais entre as empresas do setor.
Os padrões aos quais nos referimos acima, atuam como normas de
comércio internacional e são atribuídos a produtos e processos produtivos sob a
alegação de que visam a equalização da concorrência e dispõem de instrumentos que
funcionam como barreiras comerciais. Este é o caso dos selos, que são obtidos através
da certificação e mesmo da própria certificação, seja ela orgânica ou ambiental, a
exemplo da certificação baseada na série ISO 14000, a qual é fundamentada no
estabelecimento de normas e procedimentos de produção e gerência64. Enquanto a ISO

63
Tais movimentos são originários de países europeus, principalmente, onde as principais
iniciativas de certificação surgiram e se desenvolveram, tendo em vista a existência de um setor
agrícola forte e de grupos sociais organizados.

64
Esta série foi criada com a finalidade de padronizar a implementação do Sistema de
Gerenciamento Ambiental, o qual é coordenado juntamente com outros sistemas gerenciais.

89
Geografia e Trabalho no Século XXI

9000 está mais associada ao controle de qualidade dos produtos e serviços que as
empresas oferecem.
Acreditamos que no âmbito da agroindústria canavieira, a busca desses
“novos” referenciais, especialmente os ambientais, possui imbricamento direto com as
restrições impostas por mercados e consumidores mais exigentes, bem como às
mudanças desencadeadas a partir da regulamentação das queimadas da cana-de-açúcar.
Mas, sobretudo, constitui-se numa estratégia do próprio capital sucroalcooleiro, que ao
buscar melhoras em sua performance ambiental, consegue diferenciar os produtos e
conquistar novos mercados.

7. CERTIFICAÇÃO... UMA TENDÊNCIA MUNDIAL?

Acreditamos que certificação, seja ela orgânica, socioambiental, ou qual


tipo for, é uma tendência mundial. Grandes e pequenas organizações, hoje, estão sendo
impulsionadas pelo aumento das exigências dos consumidores quanto às características
dos produtos e ao próprio processamento, a buscarem a certificação e a mudarem suas
posturas e conceitos de ética empresarial e, assim, atenderem as demandas ambientais.
Em princípio, as empresas que procuram as certificadoras e entram no
processo de certificação, estão muito mais preocupadas em possibilitarem maior acesso
e melhor aceitação de seus produtos no mercado nacional e, sobretudo, no mercado
internacional, do que propriamente com a preservação do meio ambiente.
No decorrer do processo, por conta dos critérios estabelecidos pelas
certificadoras, e mesmo por causa das cobranças efetuadas pelo mercado consumidor,
essas empresas se vêem na “obrigação” de adotar uma performance ambiental. Elas
precisam absorver conceitos, adotar posturas, para que a certificação não se torne
apenas uma “maquiagem”, encobrindo o que de fato a empresa é65.
A certificação orgânica ou ambiental pauta-se nos princípios da
sustentabilidade, os quais se baseiam no tripé: ambientalmente correto, socialmente
justo e economicamente viável. No entanto, acreditamos que em termos gerais, é a
preocupação com a manutenção e ampliação dos mercados que acabam conduzindo as
empresas a aceitarem os critérios definidos pelas certificadoras com relação aos
aspectos sociais e ambientais. Ou seja, no “frigir dos ovos” o aspecto mercadológico
acaba sendo o fator condicionador dos demais.
Se formos analisar este aspecto também do ponto de vista das
certificadoras, constatamos que estas ao adotarem os princípios do desenvolvimento
sustentável, acabam, por esta via, reforçando a lógica da minimização dos custos e do
tempo e, consequentemente a maximização dos benefícios e dos lucros.

65
Depoimento da Coordenadora do Programa de Certificação Socioambiental do IMAFLORA
(Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).

90
Geografia e Trabalho no Século XXI

Vejamos, por exemplo, o caso da certificação ISO 14001, a qual vem


sendo adotada por empresas brasileiras de diferentes setores, inclusive do setor
sucroalcooleiro66. Este tipo de certificação é obtido a partir de um processo de
implantação que envolve a adoção de um Sistema de Gestão Ambiental pautado nas
normas da série ISO 1400067.
Com a implantação do sistema de gerenciamento ambiental e de
certificação pautada na norma NBR ISO 14001, a empresa pretende atestar para a
sociedade que possui estrutura, responsabilidades, procedimentos e recursos que
garantem o gerenciamento de seus processos, “respeitando” as determinações da
legislação ambiental e procurando impactar menos o meio ambiente. Estes aspectos
foram ressaltados pelo Coordenador de Gestão da empresa sucroalcooleira que adotou a
certificação ISO 14001. No entanto, chamamos a atenção para o fato de que todo
empenho da empresa com relação ao social e ao ambiental desemboca no objetivo
principal que é a maximização da produção e do lucro, expresso de maneira muito clara
na fala do referido Coordenador:

O grande objetivo é minimizar o consumo de recursos e


maximizar a geração de produtos. É uma equação que visa a
maximização da produtividade da empresa, reavaliando
processos internos da organização e minimizando o consumo de
recursos e a geração de resíduos que possam impactar
negativamente o meio ambiente. Socialmente, espera-se que as
partes interessadas, ou seja, os colaboradores, acionistas,
fornecedores, enfim a sociedade organizada tenha uma imagem
melhor da empresa.

Percebe-se que há uma preocupação com a performance ambiental e com


a imagem da empresa frente a sociedade, mas sobretudo com a busca da maximização
da produtividade e a diferenciação no mercado. Tanto é, que o mesmo alegou que “a
empresa espera, com a certificação ISO 14001 ajudar a Copersucar68 a fechar novos

66
O Sistema de Gestão Ambiental já foi adotado no Brasil por cerca de 150 empresas66 de
diversos setores da economia, como florestal e de papel e celulose, por exemplo. No setor
sucroalcooleiro a Usina Santa Cruz (Américo Brasiliense (SP) é o exemplo concreto de que temos
conhecimento até o momento.
67
A ISO 14000 dispõe sobre o sistema de gestão ambiental e, foi desenvolvida pela ISO –
International Standardization Organization (Organização Internacional de Padronização), entidade
não-governamental, sediada em Genebra, na Suíça. A ISO congrega órgãos de normalização de
mais de 120 países, entre eles o Brasil e tem como objetivo a padronização de normas em nível
internacional. A ISO criou na década de 1990 o CT-207 – Gestão Ambiental, Comitê Técnico67,
responsável pelo desenvolvimento das normas da ISO 14000.
68
A empresa é uma das associadas da Coopersucar, por isso a referência.

91
Geografia e Trabalho no Século XXI

negócios no exterior, principalmente na União Européia, a qual impõe barreiras não


tarifárias para a entrada de açúcar na Europa”.
A respeito desse Sistema de Gestão Ambiental e certificação com base
nas normas da série ISO 14000, vale atentar também para o que afirmam Visque;
Rigoletto:
A razão principal para se implementar a ISO 14000 é ajudar a
organização a lidar com suas responsabilidade ambientais de
forma eficaz. O resultado seria uma conformidade mais
sistemática com exigências (internas ou externas), melhor
desempenho ambiental e, positivamente, lucros maiores (1997, p.
20).

Depreende-se, a partir da fala do Coordenador de Gestão, bem como dos


autores acima citados, que se coloca o aspecto ambiental e social como sendo a razão
principal para a implantação do Sistema de Gestão Ambiental e/ou certificação,
comparecendo a maximização da produtividade e dos lucros apenas como resultante
deste processo, quando, na verdade, sabemos que é justamente este último aspecto que
importa em primeira instância. Em outras palavras, diríamos que a manutenção da
competitividade, a diferenciação dos produtos no mercado e acumulação de capital é o
aspecto fundamental, no entanto, para se chegar a este fim vale adotar como meios a
melhoria da performance ambiental e social no âmbito da empresa.
Mediante à exigência imposta pelos países importadores aos países mais
pobres, quanto a aos padrões de certificação, onde está prática ainda é inexpressiva, há
uma conseqüente elevação dos custos de produção e redução de vantagens
comparativas, o que resulta na monopolização dos mercados, e justifica a implantação
do Sistema de Gestão Ambiental e/ou Certificação Ambiental Orgânica.
A certificação orgânica, que em princípio tinha como principais restrições
o não uso de produtos químicos e a preservação do solo, mediante o aumento da
conscientização ambiental, da presença de barreiras comerciais e do aumento das
exigências com relação a produtos e/ou alimentos produzidos com base nos princípios
da sustentabilidade, tem incorporado aos seus padrões alguns aspectos sociais, tais
como, restrições ao trabalho infantil e exigências quanto a condições de trabalho mais
justas, entre outros. Como afirmam Dulley; Souza; Novoa, (2000)69, a agricultura
orgânica não se apresenta somente como um sistema de produção que substitui os
produtos químicos por produtos orgânicos (adubos, por exemplo), hoje, ela compõe
uma nova idéia, “uma nova forma de ver e trabalhar o campo”. Além de buscar o
equilíbrio entre a produção agrícola e a natureza, também visa abranger mudanças nos
hábitos de consumo da sociedade e um maior comprometimento com o processo de
produção e o meio ambiente.

69
Artigo divulgado no site: www.iea.sp.gov.br/agro.

92
Geografia e Trabalho no Século XXI

O Brasil, está tendendo a seguir essa curva de ascendência, embora ainda


esteja muito longe de atingir o patamar dos países da Europa ou mesmo de outros países
da América Latina. A Argentina, por exemplo, está muito mais adiantada nesse aspecto
do que o Brasil, com uma área de produção orgânica de três milhões e duzentos mil
hectares, embora a maior parte dessa produção seja animal, enquanto o Brasil tem cem
mil hectares.
Verifica-se através do Gráfico 1, que a Oceania sozinha representa 49%
da produção orgânica no mundo, seguida pela Europa, com 24% da produção e da
América Latina, com 20%. A América do Norte representa 7% e a Ásia 0,33%, apesar
do Japão possuir o 3º maior mercado de agricultura orgânica do mundo. A África
representa apenas 0,14%.
O cultivo orgânico no início retarda um pouco o desenvolvimento do
processo produtivo, apresentando queda nos rendimentos industriais; o solo demanda
mais tempo para atingir o equilíbrio; a cana-de-açúcar se ressente com o adubo orgânico
(a cana leva cerca de um ano para reconhecer o adubo), diminuindo a produtividade;
exige maior acompanhamento e controle biológico de pragas, o que por sua vez exige
também maiores investimentos em pesquisa, conduzindo a um maior valor agregado ao
produto. Todavia, produzir cana-de-açúcar e açúcar orgânico hoje, com selo
reconhecido internacionalmente, tem sido para as agroindústrias sucroalcooleiras que
adotam esse projeto um grande “filão de mercado”, tendo em vista que os preços
obtidos no mercado acabam compensando os custos de produção.

GRÁFICO 1. Divisão de cada continente de acordo com o total de área


sob manejo orgânico

Europa
24%
Oceania América
49% Latina
20%

América do
Africa Norte Europa
0,14% Asia 7% América Latina
0,33% América do Norte
Asia
Africa
Oceania
Fonte: SÖL-Survey/IBD, 2001

93
Geografia e Trabalho no Século XXI

Tem produtos que chegam ao mercado com um sobrepreço de até 50% ou


mais, do valor do produto convencional. Segundo o Gerente Agrícola da Univalem, o
açúcar convencional custa em torno US$ 190,00/ton, ao passo que o açúcar orgânico
custa US$ 512,00/ton.70, ambos no mercado externo.
Quando o empresário visualiza a oportunidade de acessar um mercado,
cujo produto orgânico possa atingir até 50% de sobrepreço em relação ao produto
convencional, fica mais fácil a aceitação das condições impostas pelo órgão certificador.
O empresário não adota esse projeto especificamente porque quer proteger o meio
ambiente, mas por uma questão mercadológica. “Eu estaria sendo cínico se dissesse que
o empresário está entrando no processo de certificação porque acha o orgânico bonito,
claro que para o quintal dele ele pode até achar, mas para a empresa dele é outra coisa”,
afirma o vice-gerente do IBD71.
Diante do exposto, nos questionamos se o meio ambiente é de fato
protegido, se o trabalho infantil não é usado nessas empresas e se as leis trabalhistas são
cumpridas. Estas questões, não compareceram de forma mais efetiva durante a pesquisa
de campo, uma vez que o discurso das empresas certificadas é voltado para o
mascaramento dos problemas sociais e ambientais; a fiscalização estatal muitas vezes é
omissa e os sindicatos não acompanham de forma diferenciada o processo de produção
e de trabalho no âmbito das mesmas.
Apesar da tendência mundial de crescimento da produção e venda de
produtos orgânicos, acredita-se que este crescimento não ocorra tão rápido,
especialmente em se tratando da cana-de-açúcar e derivados. O diferencial se manterá
ainda por um bom tempo, considerando-se que a inserção de novos produtores no
mercado, não ocorre nas condições do sistema convencional. Para se tornar um produtor
orgânico, é preciso que o mesmo submeta sua empresa a um rigoroso processo de
investigação das condições ambientais e de potencialidade para este tipo de produção.
As empresas que produzem cana-de-açúcar orgânica vêem o crescimento
da oferta de açúcar com certa apreensão. Tendo em vista que a demanda ainda não é tão
expressiva, há o temor de que o aumento da oferta derrube os preços no mercado
internacional, pois é justamente o preço diferenciado que justifica a produção orgânica.
Como a cana orgânica possui um custo de produção maior que o da
convencional (a tonelada da convencional custa em média R$ 28,00 a 30,00, enquanto a
orgânica custa de R$ 50,00 a 55,00), sua produção só será compensada economicamente
se houver uma remuneração especial. “O preço precisa compensar, porque não adianta
produzir somente por ser ecologicamente correto”72.

70
Essa informação foi concedida pelo Gerente Agrícola de uma das empresas visitadas, em
agosto de 2001.
71
Associação de Certificação Instituto Biodinâmico.
72
Todos os representantes das empresas visitadas, que produzem cana orgânica, manifestaram
essa preocupação, a qual é reforçada na fala do Diretor de Produção de uma delas.

94
Geografia e Trabalho no Século XXI

De qualquer modo, se formos analisar em termos comparativos entre


produzir organicamente e de modo convencional, percebe-se que a produção orgânica,
mesmo se circunscrevendo a um “nicho de mercado”, apresenta grandes vantagens do
ponto de vista mercadológico, por conta do diferencial que a certificação e o marketing
ambiental criam.
As empresas que aderiram a produção e certificação orgânica o fizeram,
ou porque visualizaram este diferencial mercadológico tão somente, ou porque o mesmo
significava uma saída à crise econômica porque passavam.
Verificou-se, portanto, que os casos de adoção da certificação não
ocorreram em função de uma posição ideológica, ou seja, não havia por parte dos
dirigentes das empresas uma preocupação direta com a questão ambiental, se ela surgiu
posteriormente foi em decorrência do próprio processo de certificação.
A preocupação com o meio ambiente, manifestada e exigida pelas
certificadoras vai ao encontro das exigências da legislação ambiental que defende o fim
da queimada, abrindo para a empresa que adota a certificação a possibilidade concreta
também de mecanização do corte de cana crua, visto que o corte manual da mesma é
muito mais penoso para o trabalhador e mais caro para a empresa.
A sobreposição do aspecto mercadológico em relação ao aspecto
ambiental fica muito clara nas empresas certificadas, quando se verifica que estas se
utilizam procedimentos distintos com relação a queima e ao corte de cana, gerando um
paradoxo. De um lado, a produção orgânica associada a preocupação com a qualidade
ambiental (sem queima da cana), com condições de trabalho aparentemente “mais
justas” e com a obtenção de um produto com uma qualidade que segue os mais rígidos
padrões internacionais de certificação. Do outro, a produção convencional, que ainda
pratica a queima do canavial e adota o corte manual, apontado o primeiro procedimento
como sendo penoso e até desumano para o trabalhador.
O capital tem deflagrado inúmeras transformações no próprio processo
produtivo. Isso tem ocorrido através da constituição de formas de acumulação flexível,
de gestão organizacional, dos avanços tecnológicos e também da coexistência dos
modelos produtivistas taylorista/fordista com modelos alternativos, especialmente o
chamado toyotismo ou modelo japonês. Estas mudanças têm sido decorrentes tanto da
própria concorrência intercapitalista, como da necessidade do capital em manter o
controle social. Dito de outro modo, o processo de reestruturação do capital tem
buscado não somente reorganizar o processo produtivo, mas também gestar um projeto
que reafirme sua hegemonia e dominação societal.
Nesse contexto, as formas de organização da produção e do trabalho
passam por um processo de refinamento. A racionalização do trabalho sofre uma nova
orientação em sua configuração, tendo em vista o desenvolvimento de mecanismos de
comprometimento dos trabalhadores, que aprimoram o controle do capital na dimensão

95
Geografia e Trabalho no Século XXI

subjetiva73. As inovações tecnológicas associadas à novas formas de gestão e de


controle do processo de produção e de trabalho, continuam priorizando a produtividade
e o lucro, em detrimento do homem e da natureza, reduzindo postos de trabalho e
intensificando o ritmo, a fragmentação e a precarização do trabalho.

6. O REBATIMENTO DOS NOVOS REFERENCIAIS PARA O


TRABALHO

Analisando os aspectos que envolvem a produção orgânica, não é difícil


concluir que as maiores beneficiadas com a certificação são as empresas. Quando
avaliamos os rebatimentos desse “novo” referencial para o trabalho, verificamos que os
discursos do capital e do trabalho são divergentes.
Do ponto de vista do capital enxerga-se e aponta-se um conjunto de
melhorias no âmbito do trabalho, as quais foram proporcionadas pelo processo de
certificação. Em todas as empresas certificadas que visitamos, foram destacados alguns
aspectos que, na avaliação destas, melhoraram as condições de trabalho. Mas, do ponto
de vista do sindicato, se houve melhorias, estas foram conquistadas através de acordos
coletivos, de negociações ou foram impostas como condição para que a certificação se
efetuasse.
Entre os critérios estabelecidos pelas certificadoras constam: o respeito
aos direitos trabalhistas já conquistados pelos trabalhadores; manutenção e melhoria da
assistência médico-odontológica oferecida diretamente pela empresa ou conveniado; o
incentivo à continuidade dos estudos, a qualificação profissional e a não-utilização do
trabalho infantil, entre outros.
No entanto, apesar da certificação partir do princípio de que um produto
para ser certificado e consumido internacionalmente por consumidores mais exigentes,
deve ser produzido em ambiente ambientalmente saudável, economicamente viável e
socialmente mais justo, verifica-se que o ambientalmente saudável e o socialmente justo
são apenas condicionantes no processo de certificação, para que a empresa atinja o
economicamente viável. Os investimentos que essas empresas fazem em recursos
humanos e financeiros, em nome dessa suposta melhoria social, ocorrem não
necessariamente por achar que os trabalhadores são merecedores, mas sobretudo porque
a empresa sabe que os investimentos que ela fizer em treinamento, conscientização e
melhoria do relacionamento entre os trabalhadores se reverterá em benefício próprio.
Segundo o Gerente Agrícola de uma das empresas visitadas, “os
trabalhadores são considerados um patrimônio da empresa que busca a qualidade total.

73
Para mais detalhes, ver: Antunes, 1997, e Alves, 2000.

96
Geografia e Trabalho no Século XXI

Por isso, eles devem estar inteirados do processo como um todo. Como eles atuam nas
duas frentes, orgânica e convencional, a empresa incentiva o intercâmbio entre todos os
setores, através da integração promovida pelas várias gerências. Todos precisam saber
como funciona a certificação orgânica, quais os procedimentos, as exigências.”
Neste particular retornamos à discussão efetuada anteriormente, na qual
enfocávamos a maneira como o capital se apropria da subjetividade do trabalhador para
que esta se reverta em benefício próprio. Os benefícios que aparentemente os
trabalhadores obtêm no processo de trabalho são compensados pelo capital, uma vez
que este se apropria dos pensamentos, ações e proposições dos trabalhadores para
atingir os objetivos propostos74.
A produção orgânica se constitui um diferencial econômico para a
empresa, mas não se constitui um diferencial em termos salariais e sociais, para o
trabalhador. Numa das empresas visitadas, a justificativa para o fato de não haver
distinção entre os salários de quem trabalha na produção orgânica e na convencional
parte do princípio de que se a empresa certificada tem como uma das metas promover a
integração entre os vários departamentos que possui, bem como um maior entrosamento
entre os trabalhadores, ela não deve remunerá-los de modo diferente.
Não havendo diferenças salariais também não haverá divergências entre
os trabalhadores e a empresa75. Essas empresas implantam pequenos programas na área
de alimentação, saúde e lazer, alegando que com isso estão promovendo melhorias nas
condições de trabalho e contribuindo para que os trabalhadores tenham uma qualidade
de vida melhor.
Em tese, a remuneração por tonelada no corte manual de cana crua é
maior, devido aos riscos que esta oferece para o trabalhador. Porém, em função dessa
dificuldade o trabalhador acaba tendo uma produção menor (cortando menos cana) e,
conseqüentemente, sua remuneração acaba se equiparando a do corte da cana queimada.
Portanto, do ponto de vista especificamente salarial a produção orgânica não representa
um diferencial para os trabalhadores.
A empresa que possui certificação orgânica elimina a queima da cana-de-
açúcar (pelo menos na área que é própria e que, geralmente é a certificada). Com o fim
da queima, a conseqüência é a adoção do corte mecanizado da cana crua, tendo em vista
a alegação de que o corte manual desta, além de muito penoso e perigoso para o
trabalhador, aumenta os custos da empresa que terá de pagar mais pela tonelada76.

74
Para mais detalhes, ver: Antunes, 2001, p.130.
75
Alega o Gerente Agrícola de uma das empresas visitadas, durante pesquisa de campo realizada
em 2001.
76
Pelo menos é esse o discurso que ouvimos com freqüência.

97
Geografia e Trabalho no Século XXI

Em princípio as certificadoras77 apresentam para as empresas como um


dos critérios para a certificação, a manutenção dos empregos na lavoura de cana, o que
inclui o corte manual da cana crua. No entanto, o Diretor de Produção de uma das
empresas visitadas discorda que a cana crua seja cortada manualmente, alegando que
“há um contra-senso entre exigir que a colheita da cana seja feita manualmente e a
impossibilidade do trabalhador enfrentar essa tarefa”. Segundo ele, antes se tinha a
visão de que a agricultura orgânica é uma agricultura fixadora de mão-de-obra no
campo. O mesmo acha que pode até fixar, mas desde que não leve a um trabalho
extenuante, difícil de ser cumprido em condições normais.
Apesar de termos consciência de que o corte manual da cana crua é
humanamente difícil de ser realizado, acreditamos que as empresas certificadas e
também aquelas que cultivam cana convencionalmente, utilizam este discurso para
defender a mecanização do corte, passando a adotar essa prática somente nas áreas onde
a máquina não tem acesso.
Com a intensificação do uso da máquina no corte da cana crua,
logicamente, ocorre à redução de empregos na parte agrícola, que só não é maior ou
total porque estas empresas ainda não mecanizaram totalmente as outras etapas, como o
plantio e os tratos culturais e, também porque estas têm áreas de arrendamento/parceria
e de fornecedores que colhem a cana queimada e boa parte manualmente.
Verifica-se, portanto, que a certificação não gera mudanças expressivas
do ponto de vista social. Apesar de promover avanços no relacionamento interpessoal e
melhorar o ambiente de trabalho, possibilitando maior entrosamento, conhecimento e
autonomia dos trabalhadores em relação ao processo como um todo; não promove
alterações diretas nos salários, pois o que o trabalhador por ventura ganha a mais, se
expressa na forma de bonificação. Além disso, ao defender a manutenção do emprego
na lavoura e, ao mesmo tempo exigir que a colheita da cana seja crua, sabendo que
manualmente esta é uma tarefa difícil, acaba paradoxalmente, contribuindo para a
intensificação do uso da máquina no corte da cana crua e a conseguinte redução da mão-
de-obra.

77
A certificação socioambiental, por exemplo coloca como critério para minimizar os impactos
da mecanização a criação de contrapartidas sociais, como o treinamento dos trabalhadores e o
remanejamento destes para outras funções/atividades dentro da empresa, ou a qualificação (em
parceria entre o poder público, empresas e entidades sindicais) da mão-de-obra excedente para
que seja reinserida no mercado de trabalho.

98
Geografia e Trabalho no Século XXI

7. VELHOS E NOVOS PARADIGMAS OU DIFERENTES


ROUPAGENS? AS FACETAS DO CAPITAL...

Se atentarmos para os aspectos hora levantados, veremos que tanto no


âmbito social como no ambiental o discurso do usineiro desmonta. No primeiro caso,
quando se constata que a produção e certificação orgânica se constitui um diferencial
econômico para as empresas e não para os trabalhadores. No segundo, quando se
depreende que a incorporação dos referenciais ambientais pelo capital, figura como
mais uma das formas de dominação do mesmo, que visa reduzir custos, aumentar a
produtividade, racionalizar o processo de produção e de trabalho, promover a
diferenciação de produtos, conseguir maior competitividade e, desse modo ampliar a
taxa de acumulação.
Os referenciais que apresentamos como “novos” não passam de
maquiagem nos velhos paradigmas que dão sustentação ao processo de acumulação do
capital. Mudam os meios, mas os fins continuam os mesmos. Os discursos e os
processos de produção adquirem conotação ecológica, pautada nos princípios do
desenvolvimento sustentável, tornando-se mais um elemento para a sustentação do
sistema metabólico e de controle societal do capital.

8. Referências

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105
Geografia e Trabalho no Século XXI

O ESPAÇO DO CAPITAL-CAMALEÃO. DIMENSÕES DO


COMPLEXO METABÓLICO-MIMETIZADO DO
CAPITALISMO MONOPOLISTA∗

Júlio Cézar Ribeiro ∗∗

1. DOS REFERENCIAIS EMPÍRICOS E DOS APORTES TEÓRICOS

Utilizando-nos dos fenômenos empíricos por nós verificados na Usina


Brasilândia Açúcar e Álcool Ltda78, situada no município de Brasilândia, na região leste
do Estado do Mato Grosso do Sul, pretendemos trazer à luz, mediante as situações de
“semi-escravidão” que lá se dão, uma compreensão totalizante que inter-relacione a sua
singularidade local com a ordem do capital hegemonizada nos quatro cantos do mundo
e suas respectivas sociedades.
Norteados pelo método de apreensão da dinâmica conflituosa da história
materializada em dialética espacial e do espaço que antiteticamente re-faz a história, na
aspiração da captura da lógica do movimento dialético da história espacial produzida
pela sociedade em seu processo de vir-a-ser, buscamos desnudar a ordem subjacente ao
caos da percepção e impressão fenomênicas, concernente às operações desta empresa.
Por concordarmos com o ideal de teoria como visão articulada e de
conjunto da experiência ou como rede de conceitos respectiva ao real, sendo pois o seu
próprio discurso explicativo, na síntese histórica da tríade práxis(meta)teoria é que
entendemos dever-se orientar o saber: no pensar da realidade experienciada que se
encontra, em um segundo plano de abstração, com a esfera do discurso sobre o discurso,
e sem jamais estar-se a apartar do reino prático da concreção dos eventos (MÉSZÁROS,
1993; SILVA, 2000). Perspectivando com isso, os lineamentos de base utópico-
científica como desdobrar intelectual dos fatos não-descolados da dinâmica dialética do


Este texto é a versão resumida e modificada da dissertação de Mestrado desenvolvida junto ao
Programa de Pós-graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior, e financiada
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
E-mail: jcezarr@hotmail.com
∗∗
Mestre em Geografia pela FCT/UNESP/Presidente Prudente; professor da Universidade
Federal de Tocantins (UFT).
78
A empresa que leva a sigla DEBRASA, desde Assembléia Geral Extraordinária de 29/9/1993,
refere-se à antiga Destilaria Brasilândia S/A.

106
Geografia e Trabalho no Século XXI

real concreto, para que juízos de valor e juízos de fato, na medida da máxima
consciência possível, não se apresentem como dimensões distanciadas e desconexas,
com negação estrutural entre si, como crêem os weberianos a respeito da “ciência como
vocação”, separando academia de movimentos sociais, postura acadêmica de militância
política.
Primeiramente, elencamos pelo menos em um número de três as
substâncias basilares merecedoras de trato na sociedade contemporânea, a permitirem o
poder de controle e reprodução da sociabilidade capitalista: ideologia, técnica (ou objeto
técnico) e informação. Relação de fatores com dimensões infra e superestrutural de
penoso discernimento, porquanto um estar e se refazer noutro, intrínseca e
dialeticamente, como ação imaterial subordinante e ou produto empírico re-direcionado.
E sempre tendo como guia primeiro o complexo movente do capital79, que se firma
como motor/freio histórico ao espaço social.
Propriamente dito, a rampa (empírica) de lançamento (teórico) é a
escravidão não-salariada endereçada pelo capital aos povos índios que habitam território
sulmatogrossense, na unidade federativa que teve os contornos definidos no Brasil
republicano e ditatorial de 1977. Sendo esse território invenção política-administrativa
dos dirigentes de um país ao qual seus chãos, transcorridos quinhentos anos de história,
contêm ainda traços de inadmissíveis atrocidades, como as práticas de trabalho escravo,
por muitos creditadas enterradas quando da sua abolição oficial em 1888, e que havia
sido empreendida pouco tempo depois que os “estranhos” (a si e ao Outro) singraram os
mares, descobriram essas terras e se embrenharam na mata em busca de braços índios e
de recursos naturais, e que portanto, assim muitos ponderaram, não mais estariam a
serem reproduzidas recentemente.
Ilusões somente.

79
Deve o capital ser entendido bem mais do que simples produto (objetos técnicos, fatores de
produção empíricos, humanos ou não-humanos) e sim como relação social e, o capitalismo, como
evento hegemônico de concreção histórico-espacial, em nível infra e superestrutural, dos
determinantes do capital dimanados. O capitalismo sendo entendido pois, como modo de vida e
suas manifestações paradigmáticas, como o fordismo, como modo de vida total (HARVEY, 1993,
p. 131), por ser mais que produção em massa, pondo-se como consumo de massa, a gerar uma
nova estética social pela mercadificação da cultura. O que ajuda a evitar generalizações aquelas
clássicas, proferidas por pensadores como Weber, no que alude ao capitalismo e ao capital, posto
que em descrevendo tais fenômenos, toma o referido autor o capitalismo por capital, relatando
ter-se dado o primeiro em períodos remotos à civilização humana, conquanto portador daquela
menor racionalidade ascendente religiosa (calvinista) em que esteve a coincidir quando da
Reforma cristã e do advento do capitalismo industrial; declarando ele que “O capitalismo existiu
na China, na Índia, na Babilônia no mundo clássico e na Idade Média” (WEBER, 2002, p. 46);
fazendo-se presente na Terra há mais de 3 mil anos (idem, p. 146).

107
Geografia e Trabalho no Século XXI

A escravidão perdura na época presente, inda que distinta em muitas


feições, prestando-se a unificar nordestinos e outros emigrantes de múltiplos pontos do
país que para lá se deslocam quando das colheitas de cana-de-açúcar, em temporadas de
trabalhos sazonais, nas safras que compreendem os meses maio-abril e outubro-
novembro, caracterizando a “semi-escravidão” índia e “branca”; constituindo uma
situação que cremos ser epifenômeno estrutural do processo de reprodutibilidade macro-
sistêmica do complexo organísmico do capital, tendo em vista os mimetismos
corporificados por tal metabolismo através de dimensões epidérmicas, estranhadas,
alienantes, des-efetivantes, des-socializantes e fetichizantes, que têm por essência os
processos sociais que golfam do capital-camaleão garantidor do espaço monopolista de
reprodução da camuflada e multifacética escravidão capitalista hodierna; reprodução
cujo eixo vital da engrenagem de realização econômica do ciclo global encontra-se
consumado na tradicional funcionalidade setorial e interdependente do trio primário-
secundário-terciário da economia ou agrário-industrial-comerciário/serviços, segundo a
clássica série semântica metodologicamente empregada para fins de análise e
classificação departamental da economia.
Este é o tripé que passou a orquestrar mais deliberadamente o espaço
brasileiro, maiormente, como primeiro momento, a partir dos anos 40 do século XX,
quando da bidepartamentalização global da economia, que instituiu a ramificação
interna do setor agrícola na e pela ramificação endógena da relação setorial agrícola-
industrial, com a internalização do D1, a mudança de paradigma e do ramo da produção
centrais na economia, a constituição do mercado interno de consumo de massa e a
condensação territorial do fato urbano e do exército industrial de mão-de-obra (ativa e
reserva). Rearrumando o país com o fito de proporcionar, via complexificação sistêmica
de todos os demais espaços produtivos e reprodutivos, pelo açodamento da divisão
sócio-técnico-territorial do trabalho, a reprodução ampliada do capital em chãos
urbanos, que já estavam a galgar grande concentração populacional.
O universo do valor não mais unicamente justificar-se-ia pelos critérios
tipificados pela economia clássica, jungido ao trabalho fabril gerador do valor-trabalho-
operário e à margem das comunidades tradicionais: indígenas, campesinas, mineiras,
ribeirinhas e pescadoras, entre outras, por lidarem com a terra e destarte, a categoria
econômica da renda-da-terra (RIBEIRO, 2001a, p. 178-79).
A universalidade da forma-valor, como reserva e ato, potência e processo
do autovalorar, desvencilhou-se da peia do valor-trabalho da economia clássica,
gravitando o núcleo polissêmico do valor abstrato das finanças que cingiu as variadas
formas de manifestação do trabalho total, de anexação metabólica da produção e
consumo, de todas as configurações geográficas de economias de excedente e de
subsistência existentes.
Porque não se escora puramente em meios ideológicos, sem delas
desapegar-se, o setor financeiro transcende as tradicionais esferas da economia formal
(os três clássicos setores, mais complexificados) e informal (o quarto setor, de serviços

108
Geografia e Trabalho no Século XXI

ou a economia subterrânea e marginal, em dilatação80) de captação-realização do valor


na totalidade do ciclo global do capital, por tê-las a todas subjugado processualmente e,
somente sob certo grau, se “autonomizado” ideológica e materialmente.
Jamais divorciada e auxiliada pelos novos setores emergentes, a
financeirização da economia mostra maior dinamicidade que as esferas industrial e de
serviço que a lastreiam a reboque. Daí o porquê do destaque da Nasdaq, que opera as
ações das novas tecnologias (informática, telemática, microeletrônica, computrônica,
automação, robótica, etc.) e da ciência como a principal força produtiva, enviesada pela
espantosa especulação financeira a esse processo entrelaçada, mostrar maior
dinamicidade que os índices apresentados pela tradicional bolsa de valores Dow Jones,
a representar os setores produtivos tradicionais, em desvantagem comparativa nos
últimos tempos.
Eis as performances diversas de concretização do trabalho produtivo
(agrícola, fabril, vivo, morto, arcaico, moderno, escravo e semi-remunerado) e, ao
mesmo tempo ou maiormente, do trabalho reprodutivo (improdutivo, vivo, morto,
financeiro, doméstico, não-mercantil, turismo, administração) no metabolismo do
capital; daí o porquê deste comparecer como produção e reprodução pragmático-
ideológica do complexo das relações econômicas, no campo e na cidade, no centro e na
periferia, entre indivíduos e coletividades. Afirmando-se o capitalismo enquanto
totalidade social, modo de vida que se exibe nas capas do “arcaico” e do “moderno” e
que, amarrando os lugares-nós da rede econômico-financeira globalizada, noutra ponta
coliga igualmente os lugares-nós das sub-redes econômicas marginais, evidenciadas em
relações de trabalho precariamente (ou não) assalariadas, atando enfim, de roldão,
sociedades inteiras que se lhe interpõe.
O capital está mais poderoso por tornar estruturalmente mais mutável e
maleável o seu processo de reprodução ampliada, qual camaleão a assumir a forma
necessária para perseguir seu fim, isto é, a função de persecução do mais-valor. Assim
segue o polimórfico e multiperformático capitalismo, a perpetuar-se mediante extensa e
profunda heterogeneidade estrutural nas formas de reprodução das relações econômico-
sociais, qual camaleão a mimetizar-se quando oportuno lhe for, não importando se na
horrenda aparência do mostrengo ornitorrinco, como rotularam-no outros (OLIVEIRA,
2003).
Pronunciara Marx (1999), produção é consumo/re-produção, e consumo:
produção. No sistema capitalista, a produção é mais que produção de mercadorias

80
Não contasse o fato do valor não poder ser considerado a partir de perspectivas teóricas
dualísticas, por serem os circuitos formal e informal interdependentes, revelações recentes
comprovam que são os grandes empresários do setor formal de São Paulo os responsáveis pela
distribuição de produtos “piratas” no mercado nacional. Economia oficial-clandestina gerida pelos
mesmos atores econômicos, e não por pequenos vendedores de bugigangas contrabandeadas,
como comumente se pensou.

109
Geografia e Trabalho no Século XXI

strictu sensu. E para reproduzir-se atualmente, vale-se o capital de formas de trabalho


encimadas no subsalário (mínimo legislado) e na não-remuneração: espectros mais
cruentos do fenômeno de dessalariamento cumulativo do período pós-fordista em
economias satélites do imperialismo. O intuito é a garantia da reprodução ampliada
mediante mecanismos aparentemente apartados de realização do valor81.
Como eventos historicamente entrecruzados no momento em que lógicas
societais diferenciadas oscular-se-iam quais totalidades que se justapõem e ou se
hierarquizam no todo-soma do mecanismo social, assim crêem muitos cientistas sociais.
Quase sempre também, fenômenos econômicos e processos de trabalho são tratados
parceladamente, como: pré-capitalistas, não-capitalistas e capitalistas; ou então, como
modo capitalista de produção de relações de trabalho não-capitalistas, ou de relações de
trabalho que o capital recria e incorpora em seu processo de reprodução ampliada com o
objetivo de gerar acumulação primitiva, mesmo que não imediatamente no interior do
processo capitalista de trabalho. (MARTINS, 1996).
Sendo o espaço o processo histórico das relações como elas mesmas,
incorporadas estruturalmente ao seu processo metabólico, as formas “arcaicas” de
exploração do trabalho só poderiam tornar-se um-outro fenômeno capitalista, pois o
capitalismo coevo reproduz capitalisticamente tais mecanismos, não mais os
reproduzindo como fenômeno de acumulação primitiva (justificativa de que o capital
não poderia produzir-se a si e tão-só se reproduzir ampliadamente, como capital gerado
por relações não-capitalistas). Ele agora se reproduz por ardis que o precederam
historicamente, no entretanto de tê-los tornado um-seu-outro processo incorporado na
presente fase dominada pela esfera da circulação, caracterizada também pela intensa
crise econômica e por reprodução ampliada por uma espécie de “auto-antropofagia”, e
que se reproduz por meio da ocupação e produção de espaços e de processos
“ultrapassados”.
É o capitalismo se reproduzindo ao passo que se nega, como sempre
ocorreu, com a ressalva apenas de ser mais intenso o processo seu de recriação dilatada
e heterogeneizada por mecanismos distintos à sua lógica histórica primaz, ao qual o

81
Vários autores revelam como a crise por que passa o capital aponta à minoração dos direitos tão
presentes na política do Welfare-State nos países centrais, como algumas poucas conquistas da
classe trabalhadora nos países periféricos. Desencadeada entre o fim dos anos 1960 e início da
década de 70, a crise tem sua raiz entre outras razões derivada: a) na queda da produtividade; b)
relativa homogeneização e esgotamento dos processos produtivos inerentes ao modelo taylorista-
fordista; c) altos níveis atingidos pela composição orgânica espacial do capital; d) superprodução,
que leva à saturação do consumo de certos bens duráveis; d) aumento do trabalho improdutivo em
prejuízo do produtivo, com a geração respectiva de ônus que descamba à queda da taxa média de
lucro, que, por conseguinte; d) conduz à maior exploração da força de trabalho (quando não sofre
essa rotatividade maior por turnos, como forma de desmobilização do movimento operário). Essas
as características mais comuns nos países centrais; abatendo-se mais ferozmente no conjunto dos
países economicamente mais fragilizados, com formas de trabalho mais desumanas e
“descapitalizadas”.

110
Geografia e Trabalho no Século XXI

Estado, instrumento ao capital subordinado, tenta a todo custo conter. Um complexus


mutabilis e não um modelo ideal que ora ou outra somaria elementos não-genuínos para
se reproduzir. Ou seja, o capitalismo não se traduz apenas como complexo de
complexos (Lukács) ou unidade do diverso (Marx); confirma-se sim, como complexo de
complexos mutante, unidade do diverso metamorfoseante. Pensar o contrário, implica
assumir posturas dualísticas, estruturalistas, isolacionistas e sofísticas, encimadas na
lógica formal do princípio da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído (se
não “é” corvéia não “é” feudal; se não “é” assalariado não “é” capitalista, vez que A não
pode ser não-A. Logo, só poderia sê-lo não-capitalista).
Os partidários da primeira corrente perpetuariam, ao nosso ver, espólios
teóricos de ascendência newtoniana-cartesiana, de partes imaculadas de um todo
unificado por força gravitacional e centrípeta que as vertem ao epicentro do capital;
enquanto cremos a universalização objetiva do valor, em reserva e ato, potência e ato de
realização pelo trabalho total, introjetar estratagemas corrosivos às formatações
societais anteriores. Nada se esquivando ao seu projetar universalizante, meta-salarial e
extra-salarial; não pós-salarial e pós-industrial, entretanto.
O caráter metabólico-mimetizante que a dimensão espacial adquire na
contemporaneidade, preponderantemente urbana e eminentemente financeira, congrega
formas diversas de escravidão social. As dimensões objetivas atrelam-se à divisão de
classes, entre possuidores e destituídos dos meios geográficos de produção, assalariados
e não-assalariados; devendo os últimos, obrigatoriamente, subjugar-se a um terceiro,
para que possa dispor dos meios de subsistência necessários a sua reprodução biológica.
Situação de escravidão que se faz tão ou mais opressiva de acordo com a localização
que possua o indivíduo na vertical corrente do poder e nos meandros da dinâmica de
realização do valor, na hierarquia profissional-categorial da diferença indiferente.
A exploração física do trabalho, do mesmo modo, tende a se fazer
expressiva nas mais agudas crises, enquanto a supremacia do poder subjetivo tende a se
manter quase que inquebrantável nesse período, sendo a força e a coerção físicas sempre
requisitadas quando fraquejam os elementos de disciplinarização ideológico-subjetiva;
ao passo que em fases de ascensão econômica, decorrente de desenvolvimento
capitalista, se tolera aos trabalhadores o usufruto de maiores garantias sociais nas
esferas da produção e circulação82; multiplicando seus “direitos” (domínio subjetivo)

82
Eis o porquê de o Goldmann ter considerado o maior problema do capitalismo de princípios da
segunda metade do século XX restringir-se à gestação de uma sociedade desalienada e
enriquecida culturalmente, entendendo que o capitalismo haveria de equacionar as carências
materiais dos sujeitos, pelo erro de ter-se entregue à aparência do processo de desenvolvimento,
ainda ascendente, nos países centrais. Creu que a miséria não mais seria a problemática central da
sociedade, como pensara Marx, e sim o desenvolvimento de sujeitos alienados, numa sociedade
irrefletida gerida por preceitos de um racionalismo moderno ahumanista e ultraformalista, que
estaria a gerar uma miséria de teor mais intelectual e cultural, do que material (GOLDMANN,
1968, p. 68 e 72; FURTADO, 1977). A história prova que Marx é quem continua certo e os “anos

111
Geografia e Trabalho no Século XXI

para com a afável e acolhedora sociedade do capital, mormente se a classe dominada


vislumbrar-se com projeto qualquer classista de controle coletivo dos meios sociais de
produção, como o verificado na primeira metade do século XX em muitos dos Países
Centrais (tendência que os EUA passaram a domar com o Plano Marshall de
investimento na reconstrução da Europa pós-guerra a fundos perdidos, para que o
espectro vermelho do Império do Mal não encontrasse solo fértil para florescer).
Enquanto isso, no capitalismo de países pertencentes ao rol do último dos Três Mundos
econômicos, caso especial do Brasil, a superexploração da classe trabalhadora
perpetrou-se inclusivamente nessas épocas áureas de crescimento econômico
(Desenvolvimentismo), como o presenciado no início da segunda metade do século XX;
tal a tradição político-ideológica herdada de um país com mentalidade de escravidão
colonial: oligárquica, patrimonialista, coronelista e clientelista, a confundir a
democracia popular liberal e burguesa mais elementar como real ameaça subversiva.
A amplitude que o termo escravidão aqui recebe (concepção de raiz
aristotélica, lato sensu), nesses momentos diferentes de manifestação do
desenvolvimento desigual e combinado dos espaços produtivos e reprodutivos,
correlacionado às dimensões objetivas e subjetivas de controle do corpo social, por
consenso inconsciente construído mediante roubo da história e apagamento dos espaços
passados (doutrinação teleológica e pragmática. Com a sacralização definitiva da
propriedade privada dos meios de produção, agora exteriormente aos indivíduos, e
difusão da mediação salarial como fonte geradora de riqueza e subsistência social, as
amarras da submissão passam a ser outras; sem que se deixe aos sujeitos a liberdade
(CHAUÍ, 1991, p. 89; RIBEIRO, 2004a, p. 46).
Defendemos aquela segunda posição exposta por Gorender (1978 e 1990)
sobre a escravidão, reinterpretando-a sob o crivo de nosso momento histórico;
entendendo-a como relação social no sentido lato, domínio de um homem (classe) sobre
as vontades e o ser de outro, mas não se desconsiderando os caracteres próprios ao
modo de produção capitalista.
Críticas contundentes não podem mais deixar de considerar que a fome de
pão caminha de par, ou segue à frente, a fome de beleza. A liberdade deve dar-se no
corpo e na mente, no empírico e no imaginário, no indivíduo e na sociedade.
O domínio persiste, então. No entanto, antes exercido sem mediações
fetichizantes e alienantes, enquanto escravidão explícita e direta: o que permitia ao
escravo socialmente coisificado pelo corpo político-jurídico e pela sociedade em geral
reconhecer mais facilmente o seu inimigo e proprietário e a ele re-voltar-se, opondo-se à
legalidade jurídica, à legitimidade cívica e à repressão física. Agora, está a escravidão
salariada a revelar-se como inconteste e legítimo direito jurídico de exercício de
cidadania, por encontrar-se o neutro poder estatal a resguardar as veleidades do capital e

dourados” do capitalismo, a belle èpoque dos países centrais, desce a ribanceira, despedaçando-se
com o retrocesso engendrado pela crise global; dissolvendo, tudo junto: garantias materiais,
intelectuais e culturais.

112
Geografia e Trabalho no Século XXI

ser o (sub/des/não/lupem)proletariado subjetivamente coisificado pelo domínio da força


de trabalho, o que produz a objetividade reificada entre os sujeitos. A cólera
anteriormente arrebatada pelo escravo colonial ao senhor é agora ofuscada pelo espectro
do escravo-proletário, ou sub/des-proletarizado. O proletário, por sorver os parâmetros
regimentais da sociabilidade capitalista, e se quiçá com ela incomodando-se, deve
conservar seu rancor nas profundezas de seu ser, sob pena de descumprimento do pacto
social acordado juridicamente entre os Iguais.
A autoridade que era direta, pessoal e brutal, inda que promovida pelos
que se criam Homens Bons, ganha foros públicos e indiretos de
disciplinarização/punição dos “desajustados”. Colaborando para que – contrariamente
aos “clássicos” escravos greco-romanos ou os da era colonial brasileira, que para muitos
compareceram como renda capitalizada, capital constante, fundo fixo ou capital-
escravo – o domínio seja exercido sem maiores contratempos; a não ser quando a
sobrevivência chega aos limites da ameaça de reprodução.
Mediante coerção econômica, o mando direto por sobre o corpo social
passa a ser indireto, de uma classe dominante e seu braço jurídico; enrijecendo-se como
posse dos meios de produção e subsistência social. A gênese do capitalismo na
Inglaterra, à guisa de exemplo, atesta como foram selvagens os mecanismos
institucionais de amoldamento dos seres sociais na nova cultura do trabalho que se
implantava, com leis austeras contra a “ociosidade” e a “vagabundagem”, a confirmar a
superestrutura em processo de montagem juntamente aos novos negócios (neg-ócio) que
orbitavam a propriedade privada e o trabalho abstrato e assalariado; modificando-se as
formas de controle societal.
A essência é a mesma em todas as sociedades de classes: impor a vontade
de particulares sobre a maioria tornada despossuída. Em que pese, a despeito do que se
passava com o escravo da formação social pré-capitalista (ou do capitalismo colonial),
ao proletário ser permitida, em determinadas fases de desenvolvimento do capitalismo
sobretudo, a possibilidade de organização da força de trabalho; possibilidade não
admissível aos trabalhadores escravos de antigamente, do Brasil colonial.
Na essência, a violência corpórea e direta mudou de tom e direção.
Pela força colonizaram-se corpos e mentes, até que, significativamente, os
inimigos-dominados não mais levantassem brados, braços ou sequer dedos em riste.
Mudada é a forma histórico-geográfica da essência processual (classista)
que se mantém a mesma, no fundo, persistindo e destroçando tempos e espaços para
chegar ao presente.

113
Geografia e Trabalho no Século XXI

2. DAS TÉCNICAS À ESCRAVIDÃO DO TRABALHO

As técnicas da informação de que se servem os especuladores


internacionais à tomada de decisões instantâneas à acumulação de capital e que espelha
materialmente a lógica do paradigma (re)produtivo, no período do capitalismo
monopolista, serve ao mesmo tempo à reprodução espiritual do corpo social: para
prender ideológica e fisicamente os escravos modernos ao eixo da exploração
ocasionada por aquela extrema concentração parida pelo vetor fundamental da
economia. As redes da informação, no capitalismo do ultramoderno, permitem ao
capital financeiro a autovalorização instantânea (D-D’), pelo motivo da interconexão
funcional motivada pelo aparato técnico-informacional, que propicia instantaneidade
operacional às transações econômicas, na sincronicidade das temporalidades
engendradas no espaço-mercado, por subsidiarem a ação de especuladores em qualquer
parte do planeta, essencialmente sobre economias dependentes e oscilantes a fatores
extrafabris.
Então, o valor continua por dimanar do sobretrabalho bárbaro e altamente
aviltante, esteado na superexploração abusiva da força de trabalho que se acopla na
divisão técnico-territorial internacional como fórmula social de um capitalismo
satelizado e mais voraz, em muitos e variados aspectos, fundamentalmente nos confins
do agrário, onde a extração do sobretrabalho pelos proprietários pouco deixa aos
pequenos produtores diretos. Isso porque, na dialética da relação cidade-campo, o lado
negativo da balança tende sempre a pender para o prato menos desenvolvido e
dependente técnica, científica, informacional e economicamente da relação,
dominantemente sobre os ombros de trabalhadores menos qualificados e pertencentes a
segmentos de mão-de-obra que abundam grandemente no mercado. O que permite
minimamente discernir uma geografia a apontar um mais forte movimento de
escravidão salariada nas cidades em detrimento do maior incremento daquela escravidão
parca ou não-remunerada nos confins do rural, em que as leis são menos seguidas e
onde a deficiência técnica (composição orgânica desigual-combinada do capital como
oposição espacial capital x capital) e a ideologia conorelista das oligarquias agrárias
colaboram para uma geografização diferencial dos processos de produção e de trabalho,
que se refletem na desigualdade da distribuição da riqueza econômica gerada e nos
direitos políticos resguardados.
Reforçamos entretanto, serem essas situações gerais, não causando
espanto os casos de escravidão não-salariada nos meios citadinos do país, como também
a existência de altos salários para os tecnocratas pertencentes ao staff administrativo das
agroindústrias e outros setores agrários mais sofisticados tecnológica e economicamente
pela industrialização do campo.

114
Geografia e Trabalho no Século XXI

Só por esse motivo, a tese de centralidade do trabalho não pode ser


negada, como quer Habermas e seus consortes, com a defesa intransigente da ciência na
posição da principalidade das forças produtivas capitalistas. Não valesse o trabalho
fundar o lastro à riqueza gerada pelo sobretrabalho não-pago, igualmente conta o fato de
que máquinas não podem, em absoluto, tomar o lugar dos sujeitos na questão primária
do consumo-produção, vez que o seu consumo (matérias-primas, insumos e reposição
de peças) põe-se como incremento voltado exclusivamente à gestação de quantum
adicional de mais-valor ao fim do processo de produção.
A moderna escravidão do capital (domínio, coibição, coação, repressão,
direta e disfarçada, material e espiritual) in-corpo-ra83 formas arcaicas de exploração de
trabalho ao seu processo metabólico, como as atinentes, nas muitas feições assumidas, à
“escravidão clássica” ou “escravidão colonial”: à peonagem, escravidão por dívida,
trabalho coercitivo ou condições de trabalho análogas à escravidão. Reanimando-as e as
convolando à sua própria estrutura de reprodução social surge a polissemia apresentada
pelo trabalho na sociedade capitalista moderna e o porquê da escravidão objetiva e
subjetiva da força de trabalho.
Escravos tornaram-se o sujeito e o ser social do discurso da história
exalado pelas classes dominantes. Tampouco se faz escravo total, entretanto. A dialética
da relação de desconhecimento-conhecimento-reconhecimento escorre dos fulgores do
próprio espaço social: o par interagente da sociedade que, ao denotar o estar geográfico
do ser no mundo, abre brechas aos contra-espaços instituintes de novas sociabilidades.
A seara em que as forças disputam e contraditam espaços, num ir e vir ininterrupto,
realinha-se de acordo com a performance demonstrada pelos sujeitos à capacidade de ler
a dialética do movimento e de no espaço geografar seus interesses.
Importante apercebermo-nos do desenvolvimento desigual e combinado
dos espaços mundiais: a Aldeia Local como lugar-nó na grade da rede da Aldeia
Global, com a lógica da corrida pela mais-valia global atual a manifestar-se sob formas
várias. O que torna a escala um momento relacional pontual dos aconteceres sociais na
integralidade processual do fenômeno de totalização das relações na sociedade
capitalista; espécie de gradação horizontal e vertical: geometria ou expressão métrico-
territorial no primeiro e grade hierárquica e integradora das relações sociais no segundo.
Implica outrossim, ver o trabalho, hoje em dia notadamente, como trabalho social total,
capacidade de trabalho em potência ou ato universalmente combinado: em ócio de

83
Frisamos o processo de incorporar como o de trazer para o corpo, tornando o que eram partes
passadas membros orgânicos efetivos do metabolismo do corpo social. Que não se entenda
todavia, termos como: metabolismo, corpo social e organismo, como expressões teóricas de um
método funcionalista pois, além de repudiarmos opções metódicas que buscam harmonia ou
equilíbrio em uma sociedade que é justamente regida por forças destrutivas, não concordamos
com o ideal de partes orgânicas não-dialéticas e únicas, eternas e exclusivamente adaptativas. O
metabolismo social capitalista é não só funcional como disfuncional, contraditório e conflituoso,
como o uno tenso dos múltiplos complexos do ser social.

115
Geografia e Trabalho no Século XXI

exército de reserva ou incremento de trabalho ativo (vivo e morto). E, da mesma forma,


conceber os trabalhadores como algo mais que proletários ou operários assalariados, de
macacão e com chaves-de-fenda em mãos, encravados em espaços intrafabris; e sim
como os pertencentes à vertente dos dominados fundamentais, como a classe dos
trabalhadores que se encontra para muito além dos muros da fábrica e no além-mundo
das convenções da legalidade burguesa, nas fronteiras da economia política clássica
(trabalhismo jurídico, proletarizado, assalariado e sindicalizado).
Diferentemente do capitalismo antecedente, significa enxergar que o
modo de produção especificamente capitalista (Marx) não mais está unicamente a
revelar-se no desenho salarial, o sendo as demais formas pretéritas da então subsunção
formal ingredientes marginais e impuros agregados ao seu organismo. Hoje, a
dissimilitude das idades tecnológicas e a pluralidade dos mecanismos de extração do
valor, salariado ou não, com a anexação metabólica das economias de excedentes, não
se afiguram como estágios a serem sucedidos linearmente no tempo.
O mundo do trabalho é o universo em que se opera a extração-realização
do valor, subtração da energia vital pelo trabalho excedente, protoforma do existir
humano no ser espacial capitalista, centrado no eixo financeiro do capital-rentista; com
uma operação embasada na variabilidade imbricada do trabalho social, seja ele:
abstrato, concreto, formal, informal, regulado, desregulamentado, precarizado,
assalariado, subassalariado, subproletarizado, “semi-escravo”, fabril, doméstico,
masculino, feminino, adulto, infantil, parcial, total, manual, intelectual, “qualificado”,
“semiqualificado”, “desqualificado”, local, regional, inter(multi-trans)nacional,
produtivo, improdutivo, gerando valor ou antivalor, nos setores e serviços públicos e
privados, bancários, turísticos, comerciários e securitários.
A reprodução da hibridez do espaço repousa na polissemização que
assume o trabalho, na universalidade e versatilidade que possui o valor nessa nova
economia política, na gradação relacional e combinada que configura o todo social
construído, nos diversos níveis escalares da objetivação espacial da sociabilidade
contemporânea do imperialismo globalizado.
No entanto, se o trabalhar é substrato material e imaterial de reprodução
social, não expressa qual imagem refletida toda a riqueza do pensar que a sociedade
cunha. Havendo distanciamento e prolongamento da incorporeidade do pensar
(filosofia, religião, arte, ética, imaginário84 e política) ou das posições teleológicas
secundárias, para com a objetividade do fazer, o ato de trabalhar propriamente dito;

84
Os sonhos, fantasias e mitos, fazem parte das experiências dos indivíduos e essas, inconscientes
ou não, estão a afetar o comportamento. Decorre disso o porquê de muito do imaginário edificado
apresentar-se como “irracionalidade” àquele que o experimenta, como experienciando; tornando-
se difícil seu destrinchar. O eixo da questão está em se desconhecer as Razões outras que
contribuem à criação do imaginário (imagens, representações e projeções), devido à lógica da
racionalidade (eminentemente) técnico-instrumental de que se serve o observador na sociedade do
capital (RIBEIRO, 2001b).

116
Geografia e Trabalho no Século XXI

portanto, nada de total desconexão e descolamento. Nisto a diferença do conceber


lukacsiano com o constructo habermasiano (ANTUNES, 2000; SILVA JR.;
GONZÁLEZ, 2001).
Se a complexificação do trabalho é fenômeno notório e de larga
envergadura, maior é a riqueza na heterogeneidade da espiritualidade desenvolvida pela
sociedade. Imagine-se então, quando os grupos sociais em foco são de índios: bem
maior pois, será o prolongamento entre a base social e material que ora participam sem
perderem, contudo, os caracteres espirituais próprios ao seu ser histórico. Assim, não há
mecanicidade ou reflexo passivo entre a construção do imaginário social índio e a base
material ao qual pertencem. Eis a dialética entre o ser e o estar geográficos, das
múltiplas sociedades, índias e não-índias. A contradição social e de classes, encarnando-
se e se revertendo em contradições espaciais, lutas por territórios e por auto-gestão, à
guisa de exemplo.
Urge discernir o detalhe, o particular, o diverso, na totalidade. Com o
cuidado para o não esquecimento porém, de que existe uma totalidade não-totalitária a
expor dialeticamente os diversos singulares, de forma harmônica/funcional ou
desarmônica/contraditória.
O levantamento das questões referentes ao estratagema empregado pela
DEBRASA para auferir maiores taxas de lucro pela exploração maximizada da fora de
trabalho, demonstra como a modernização do paradigma produtivo (toyotismo)
sustenta-se em hibridismos que se dão nos universos da técnica, das relações sociais e
de trabalho, com intercessões locais que redefinem o colorido camaleônico do
metabolismo do capital globalizado. Nesse sentido é que se destaca a inter-relação que a
empresa cultiva com as comunidades índias dos kaiowás e nhandevás (Guarani) e
terenas (grupo Aruak), aldeadas na Reserva Luis Bueno Horta Barbosa85, no município
de Dourados: o antigo povoado São João Batista de fins do século XIX, pelo decreto 30

85
O nome que leva a Área Indígena de Dourados (AID) provém de “Luiz Bueno Horta Barbosa
(1871-1933) foi ardoroso defensor do movimento de defesa dos grupos indígenas. Ocupou o
cargo de inspetor no SPI de São Paulo, e foi responsável pela pacificação dos Kaingang”, que
acreditava que a única saída racional para o conflito entre as sociedades indígenas e não-indígena
perpassava a integração das primeiras à sociedade hegemônica; demonstrando-se bastante
influenciado pelo positivismo da época. Criada em 1915, a pedido do Marechal Cândido Rondon,
em 3/9/1925, pelo decreto n. 401, a área ganha legitimidade oficial por parte do presidente do
Mato Grosso, Coronel Pedro Celestino Correia da Costa, como forma de agrupar os índios
guaranis dispersos na região por efeito da atuação da empresa ervateira Matte-Laranjeira,
vendendo já sua força de trabalho por míseros “salários”. O Título Definitivo de Propriedade,
expedido somente em 28/10/1985, teve o registro legalizado em 14/12/1985; com 61 ha a menos
que o idealizado e conclusão legal obtida corridos 60 anos, a área dispunha definitivamente seus
3.539 ha aos índios da região, como também de outras etnias (eis os terenas) que o Governo
Federal fez questão de deslocar no pós-1930, como ardil para abrandar o espírito guerreiro dos
guaranis e kaiowás, na estratégia de aculturação multiétnica ao se agrupar índios com troncos
lingüísticos e culturas dessemelhantes em um mesmo espaço social.

117
Geografia e Trabalho no Século XXI

feito município aos 20 de Dezembro de 1925 e que nos dias de hoje conta com algo
próximo a 154 mil pessoas.
Esgoto correndo a céu aberto e ausência de infra-estrutura básica se
somam a um quadro epidemiológico e de profunda miserabilidade, expresso em casos
de diarréia, infecções generalizadas, gastrenterite, problemas de pele, pulmonares,
escabiose, gripe, subnutrição, bócio, sarampo, catapora e, ainda mais graves,
ocorrências de tuberculose e AID’s na reserva.
Nada obstante, trata-se a Reserva Horta Barbosa da mais populosa reserva
indígena do país, abrigando algo próximo a sete mil corpos índios ou 4,5% da
população do município; sem mencionar os “brancos” que contraíram conúbio com
índios ou que na reserva fincaram residência. Prática estatal ou fechar de olhos dos
omissos burocratas, que insurge como tática de reunir os grupos dispersos para, livrando
partes dos territórios de sua presença, se criar viveiros de mão-de-obra com mais fácil
monitoração por parte dos instituidores da marcha capitalista.
Pelas diferencialidades das etnias existentes e por força da ação estatal
que as fez agrupar na mesma reserva, couberam aos índios subdividi-la em duas aldeias
para tentar frear ou retardar o processo de transculturação: a Jaguapirú em que ficam
basicamente terenas, e a Bororo, na qual se alocam os cerca de 3.570 guaranis-kaiowás.
Mediação-chave no processo de açodamento da desculturação é a migração constante
dos povos indígenas das aldeias para as destilarias (desterritorialização motivando a
desidentidade sócio-territorial) e marcadamente, como sucessão de causas-efeitos, o
nível de penúria desses povos, o desprestígio sócio-cultural da sociedade hegemônica e
a ideologia da preguiça86, entre outros determinantes, que abraçam o ser social
sulmatogrossense como respaldo imagético de arregimentação de índios em região de
vasto desemprego de mão-de-obra “não-índia”, ao se pôr como estratégia empresarial
pseudo-explicativa do real, recondicionando-o aos seus objetivos, rotulando
pejorativamente como de preguiça qualquer atividade de trabalho que esteja abaixo da
média (máxima) possível de superexploração da capacidade de trabalho alheia. Por fim,

86
A tese da preguiça inata do ser sulmatogrossense foi defendida por um líder sindical de
Brasilândia, no final do século XX. No livro de Lafargue, na Introdução de Marilena Chauí, há
uma interessante discussão sobre a metamorfose que o capitalismo impôs à concepção de trabalho
como atributo de honradez, dignidade, civilidade e religiosidade, enquanto em sociedades antigas
não passara de malefício e punição aos inferiores, escravos e sem fé. Weber crê a “ética” da
positividade do trabalho (concepção de ética refutada pelo Antunes, 2000, p. 199) desdobrar-se da
racionalidade cristã inaugurada pela Reforma, que se entrecruzou casualmente com o capitalismo
emergente; conquanto muitos marxistas advogarem ser esse fenômeno a armação superestrutural
do padrão societário em solidificação. Em Trotsky mesmo presencia-se uma inclinação à
concepção negativista do trabalho, alegando que “O homem deve trabalhar para não morrer. O
homem não quer trabalhar [...] pois o homem é preguiçoso e tem direito a sê-lo” (DIAS, 1999, p.
93).

118
Geografia e Trabalho no Século XXI

vem o relevo à questão dos suicídios indígenas em meio à tétrica situação social em que
encontram, como silêncio da palavra em um mundo no qual não se fazem ouvidos. Ou
então a reconquista pela luta de seus territórios tradicionais e sagrados, os tekoha87,
quando melhor emparelhada a estrutura psíquica; tornando menor o desequilíbrio intra-
subjetivo (ego x superego), entrechocado pelo universo social dominante que bate às
suas portas, arranha a sua pele e atormenta o seu cérebro.
A experiência é tanto fenômeno “subjetivo” como “objetivo”, “interior”
(imaginação, fantasia, sonho) e “exterior”, processo e praxe, input e output, psíquico e
somático, introspecção e extropecção, apesar de relações entre “invisíveis” que se
intercumprimentam.
O interexperienciar, isso concluindo, não passa de fenômeno social, posto
que coisas-ocorrências nada experienciam, e os aconteceres pessoais é que são
experimentais. É típico apenas ao cientificismo natural tornar as pessoas coisas, pelo
processo de coisificação. Olhar esse, aliás, que condiz exatamente com os propósitos
das alas dominantes, que nada mais primam que a personificação das coisas e a
coisificação das pessoas; fazendo das últimas, mais adiante, coisas subsidiárias ao
sujeito capital.
As relações, múltiplas e complexas, não podem ser divididas de fato,
realmente. Tão-só o podem abstratamente, mentalmente, analiticamente. E desde que
não se queira excluir as demais, quem sabe se possa supor qual dimensão tenha mais
peso em uma dada situação.
O movimento é um dado real, dialético e intrínseco à natureza, seja ela
inorgânica e não-humana ou orgânica, biológico-individual e social.
Toda e qualquer cultura é mutante. A problemática situa-se nos
condicionantes que dinamizam o seu movimentar: se endógenas, coletivas e
conscientes, ou exógenas, hegemônicas e coercitivas as alterações impressas às
tradições seculares dos povos em questão. Por isso de considerarmos que, em que pese
ser a tese da invisibilidade bastante coerente, deve ela ser geografizada, contextualizada
têmporo-espacialmente. As chances de formações sociais preexistentes, com outras
preocupações sociais entre seus membros, apresentarem maior coesão e
interdependência funcional, sugerem maior facilidade para um interexperienciar mais
frutuoso e um olhar mais retido e menos deturpante: caso dos índios, que vivenciavam,
em seus espaços fechados de tempo lento, relações mais intensas e autodeterminadas,
com melhor interexperienciar e intercomunicar que o verificado na sociedade
contemporânea. Haja vista os indivíduos na sociedade do capital, ludibriados por falsas
imagens e metas circulares a conduzir a lugar nenhum, entorpecendo-se, lançarem-se

87
É no tekoha (teko = modo de ser e ha = lugar onde) que se concretiza o modo de ser dos
Guarani/Kaiowá; mais que locus existencial, é morada dos deuses e condição à reafirmação
material e imaterial (espiritual, político, econômico, social) dos seus; onde e quando o caos far-se-
ia cosmos.

119
Geografia e Trabalho no Século XXI

em imenso vazio e nulidade existencial, onde a invisibilidade de si, do outro e do


mundo causam bem maior cegueira pelo célere movimento de um ritmo de vida
amplamente alienado.
Se o ser social produtor de mercadorias foi esvaziado de seu conteúdo
ontológico, o mesmo poderia vir a ocorrer, catastroficamente, com o “ser social índio”
de muitos específicos quadrantes do país, se dependesse exclusivamente das classes
dominantes os rumos da(s) nação(ões), haja vista que a lógica social que aos índios
agarra pouco se importa se a sua humanidade está sendo reduzida, isto é, se as
sensações proprioceptivas estão sendo restringidas à coordenação dos movimentos
corpóreos e às exigências mínimas de sobrevivência biossocial (alimentação, sexo,
sonho e defecação); inclusive porque mesmo as sensações mais básicas de ver, ouvir,
tocar e cheirar, podem ser (e paulatinamente, em muitos casos, o são) limitadas e
envoltas nos véus da mistificação promovida pela lógica do vetor econômico. Mais ou
menos intenso, o fato é que tal processo fora já em muito solidificado, em muitos
sentidos, quando se trata do protótipo “normal” a que deve chegar os sujeitos na
sociedade hegemônica capitalista, inda que não de forma absoluta porque os índios e os
não-índios são mais do que fantoches passivos na realidade. Esse Normal ao qual devem
os sujeitos se emoldurar:

é um produto de repressão, negação, cisão, projeção, introjeção e


outras formas de ação destrutivas sobre a experiência [...].
Quando o novo ser humano chega aos quinze anos, mais ou
menos, já se transformou num ser parecido conosco: uma criatura
meio demente, mais ou menos adaptada a um mundo louco. Tal é
a normalidade na época presente (LAING, 1978, p. 21 e 45).

A denunciada retórica moralista sobre o conturbado amor que aperta o ser


desde o nascer, de que trata Laing (1978), em muito se assemelha ao explanado por La
Boétie (1982) sobre a origem da tirania.
O capitalismo apresenta-se como o processo cuja lógica destrutiva se
enraíza como definidora de experiências. Experiências destrutivas que, por sua vez,
definem o Normal comportamental (destrutivo). O comportamento dos indivíduos na
sociedade brota da carga experiencial e das intenções que essa possui, por mais que
desses desígnios estejam os seres alienados. Em sendo a alienação a condição “normal”
em que se encontra o indivíduo, não resta dúvida de que a maior parte da ação pessoal
por ele exibida seja prejudicial quer à sua ou à experiência do outro, porque recheada de
impulsos negativos. Repousa nessa interpretação o fato da “anormalidade” ou da
esquizofrenia (os esquizofrênicos a apresentarem comportamentos lingüísticos,
paralingüísticos e cinéticos fora dos padrões sociais admitidos) não poder ser
correlacionada exclusivamente às questões de ordem biológica ou psicopatológica,
sendo sim reflexo, essencialmente, da (des)funcionalidade do corpo social. Sob esse
parâmetro é que os suicídios dos kaiowás e guaranis serão exemplificados, por

120
Geografia e Trabalho no Século XXI

conseqüência da pressão da carga experiencial negativa ao qual não conseguem


subjetivamente dar conta de suportar e mirar saída, com certa relevância os casos de
jovens transtornados; ou então, como sendo esse um meio encontrado pelos índios de se
atingir os ouvidos ensurdecidos da sociedade hegemônica para as chagas sociais com
que estão a digladiar-se.
O desafio de entender o imo do universo índio aflora dessa realidade
labiríntica. Interioridade que, se num sentido possui referenciais próprios e outros ao do
universo hegemônico, em tudo não se faz completamente autônomo, quer pela
materialidade da logística burguesa e estatal de arrumação espacial (confinamento em
reservas atípicas às suas tradições88), seja pela necessidade consciente, inconsciente ou
agressiva de absorverem padrões da cultura hegemônica como forma de manutenção da
sobrevivência sua, física e espiritual; a seu modo, flertam com a esfera das ações
hegemônica – a psicoesfera de que nos fala Santos (1997) –, alterando a constelação
psíquica de seus componentes culturais, em um ritmo de adaptação que muitas vezes
escapa ao seu controle, trazendo mais traumas e deturpações culturais que equilíbrio na
nova realidade.
Embora não se possa reiterar que muitas das tradições suas para sempre
estejam perdidas, a muitos povos indígenas as mediações de segunda ordem tanto
fizeram que surtiram efeitos sobre algumas daquelas mediações de primeira ordem
(MÉSZÁROS, 2002; ANTUNES, 2000; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2002) que
compartilhavam em seus espaços autônomos, de produção determinada coletiva e
conscientemente, sem alienação a desvirtuar os desígnios da produção e reprodução
comunal e a estabelecer hierarquia opressiva e subalternizante, com o poder e a
hierarquia a bifurcar-se como concentração de mais-valia e de riquezas, pela
coisificação e apartamento, físico e mental, tanto do produto como do processo social de
trabalho. Se nas mediações de primeira ordem trabalhava-se para viver, nas mediações
de segunda ordem vive-se para trabalhar e, ironicamente, pouco do trabalho e de uma
mais plena vida verdadeiramente se deleitar.
Temos que lembrar de distinguir trabalho como atividade vital, produtor
de valores-de-uso (work), de trabalho assalariado, estranhado e fetichizado (labour),
produtor de valores-de-troca (ANTUNES, 1998, p. 79; 2000, p. 167) constitui-se em
imperativo elementar para se compreender como as sociedades se estruturam.

88
O confinamento dos indígenas remonta às obras dos jesuítas da fase colonial, que em grandes
porções suas de terras os punham a trabalhar para alimentar a obra cristã de expansão da fé
católica, o que assemelhava tais empreendimentos a uma “empresa multinacional” (MAXWELL,
8/6/2003, p. 15). Com a desculpa de universalização da fé e salvação de almas, prestava-se ao
processo de açodamento do aculturar e amansar dos arredios aborígines. Como projetos
universalistas, fora amplamente empregado o encurralamento territorial como prática de domínio,
não permitindo o estranhar de etnias indígenas tradicionalmente rivais passarem a dividir as
mesmas reversas, como artimanha hegemônica à descaracterização cultural.

121
Geografia e Trabalho no Século XXI

O trabalho comparece como ato fundacional do ser espacial, contudo nele


em tudo não se resumir.
Não há como o mundo objetivo deixar de influenciar o subjetivo, nem de
prodígio inverso transcorrer, enquanto interpenetração, dialética, de processos e lógicas
sociais antagônicas, no pensar e no agir, no perceber e no sentir. O que, antes de tudo,
requer afiançar não haver, da mesma forma, mecanicidade e sincronicidade
absolutizante nos efeitos/defeitos socialmente produzidos pelo modo-padrão dominante
de organização societária. Varia a magnitude das forças no jogo de perdas e re-
conquistas, por não ser a história, em-si, estrada reta e sem retorno, na qual dirige-se,
quando se “repete”, apenas à tragédia.
As relações entre essas dimensões não são retilíneas e a odisséia por esses
espaços internos e externos deve tomar por timão a lógica dialética; e que essa atente
tanto às contradições subjetivas (intra-subjetivas, a exterioridade introjetada e manifesta
na dialética ego-superego), quanto às idiossincrasias sociais e objetivas (interindivíduos,
sujeito-sociedade, subjetividade-cultura, culturas dominadas-cultura dominante, contra-
culturas x cultura, contra-espaço x espaço do capital) (Ribeiro, 2004b).
Não basta estudar o mundo objetivo e o mundo subjetivo de maneira
descolada e autônoma. As relações entre as pessoas processam-se externa e
internamente.
Os índios são índios porque ensaiam e experienciam experiências índias,
no real, no mito e na fantasia; contudo, os novos valores entre eles intensificados,
guardam, na medida do possível, a sua cultura. Outro não é o motivo à necessidade de
entendê-los dentro de seus sistemas sociais, mesmo que não isolados. A tradição e a
fabulação são designadores de sua identidade. O seu “eu” (heterogêneo) não se apaga
totalmente com o do outro (hegemonizado). A diferença deve ser encontrada e re-posta
em seu devido lugar; longe das sombras generalizantes da míope observação
cientificista de veio metódico antidialetizante e, simultaneamente, com o devido
cuidado com a absolutização metodológica a enquadrá-la como subtotalidade,
desconectada da relacionalidade existente entre os entes e os prodígios espaciais
hegemônicos.
Trata-se de uma disputa de forças que dificulta que por todo se enxergue
o lado mais forte; por isso, que mais vale partir-se do pressuposto de que nenhuma das
partes é em si invencível e intacta à outra. Daí o cuidado, na análise, para o não
apagamento de “eus” específicos nos “outros”, confundindo “eus” diferenciados. Por
isso também, que o outro é o igual-diferente, o eu-outro, o experienciar diferenciado de
minha experiência sem meramente a ela limitar-se, curvar ou dissolver-se. O outro-eu
de um eu (nós) que também pouquíssimo conhecemos.
As diferenças cardinais entre os “índios” e os “brancos” possuem
ontológica e estruturalmente pontos genealógicos de experiências diferenciados, com
sistemas culturais diversos germinados de processos sócio-materiais de produção
heterogêneos; e que, não obstante submetidos ao mesmo sistema social reinante, são
distintamente debatidos, rebatidos e englobados pelo mesmo. A identidade e as

122
Geografia e Trabalho no Século XXI

tradições do passado renegam a destrutibilidade da modernização presente nas forças


produtivas.
Todavia, participando do metabolismo social do capital, enquanto: a)
exército reserva ou ativo de mão-de-obra nas destilarias de álcool; b) na mercadificação
da cultura, pela venda de artesanato ou cobrança por apresentações culturais aos
ludâmbulos que visitam a aldeia; ou ainda a venda ou “aluguel” do corpo (prostituição)
como forma de sobrevivência; c) na mendicância no centro urbano douradense; d) ou no
comércio dos sobejos alimentares na cidade; dentre outras mimetizadas manifestações
do complexo social que, se diretamente coloca obstáculos materiais à reprodução social
do ser índio integralmente autônomo, de modo outro, não consegue enquadrá-lo
totalmente, às vezes nem precariamente, na teia político-jurídico-cultural que sintetiza o
capitalismo. Os indivíduos são mais do que caixas de ressonância do sistema; e o eu
imaterial identitário dos índios, principalmente os guaranis, faz-se passado perpetuado
no presente pelos ritos e experiências aos quais trazem à tona para se segurar,
agarrando-se mutuamente como idênticos e herdeiros do legado cultural re-descoberto.
Em havendo dialética verificável entre os indivíduos que vivenciam a
cultura citadina (que dizer do punk que trabalha de dia para a noite protestar?), o que
dizer daqueles que almejam da lógica que comanda tal cultura manter-se distantes, na
medida do possível?
Por serem eles e seus territórios atados à estrutura metabólico-mimetizada
de reprodução societal é inegável que participam do processo de realização do valor, ou
mesmo do antivalor (seria a prostituição indígena trabalho mercantil-remunerado
improdutivo?); mesmo porque a organização tradicional do valor social por eles prezado
enveredou-se pela trilha do valor econômico, tamanho o processo de complexificação e
heterogeneização da força do trabalho que nem as comunidades indígenas podem ser
vistas agora à parte da nova classe trabalhadora.
O questionável é o nível que o aprisionamento psíquico-ideológico-
cultural assume. Duas diferenças estas substanciais em qualquer análise que vise captar
a relação entre os espaços internos e externos.
A Geografia dos espaços internos evidencia-se nos territórios interiores
que demarcam a identidade: pessoas, rituais, sonhos, cerimoniais, monstros, muros,
abismos, portos de segurança, problemas e desavenças que se arranjam e desmancham,
hierarquizando-se e rearrumando-se esses caracteres no interior do ser, que é individual
e social ao mesmo tempo. Quanto à Geografia dos espaços exteriores, é esta perceptível
na paisagem empírica que expressa o modelamento cristalizado pelos sujeitos na
sociedade de classes. Geografia objetiva que, inversamente, interfere subjetivamente no
seu espaço interior, como processo social em que a paisagem empírica do concreto real
é internalizada e arraigada paisagisticamente como concreto pensado incompreendido,
parcialmente apreendido ou ideologicamente mistificado. A migração mesmo, de índios
ou não, torna mais lúcida a dialética entre espaços internos e externos, quando o avançar
em novos territórios gera conflitos entre o sujeito e o lugar; do choque surgindo
resignação e aceitação do sujeito com o tecido social encontrado ou afronte, com o

123
Geografia e Trabalho no Século XXI

rearrumamento tanto do mundo interior do sujeito como do espaço social em que passa
a pertencer e agir.
Que se diga não se dever considerar a geografia do espaço externo apenas
como palco construído, rugosidades da instância e substrato, pois a dimensão espacial
faz-se composta grandemente por relações imateriais e superestruturais, inseparáveis de
sua fisicidade estrutural.
Como totalidade em processo, “unidade do diverso”, “síntese das
múltiplas determinações” do concreto real (Marx), em meio ao “complexo dos
complexos”89 que perfaz a substância mimetizada da relação capital, é que lançamos o
olhar para o Ser Índio e o Ser Branco. Quase sempre, o primeiro visto como sinônimo
de preguiça, promiscuidade e debilidade mental aos olhos do segundo, em que pese o
Ser Branco comparecer como nada mais que ambicioso, ladrão e assassino aos que
mais agonizam com as seqüelas do (Des)Encontro, além dos comuns insultos nas
línguas maternas índias, que os erigem como uma das possíveis formas de autodefesa e
compensação psicológica (SILVA, 1982).
A diferença de “eus” serviu ao projeto de construção de identidades
fictícias, destruidoras e autodestrutivas por parte da “civilização” ocidental de raiz
hebréia-cristã, ou de seus agentes dominantes, que não soube entender e acolher o
Outro, aquele que tanto espanto trazia ao seu secular mirar interpretativo90, de um ser:
europeu, branco, machista, elitista, burguês e, agora, “marombado”, com o auge da
estética corpórea (pós ou ultra?) moderna. A partir disso não fica difícil compreender as
reverberações sociais hegemônicas advindas: a política do sangue e do fogo erguendo-
se para fincar bandeira e marcar (geo-grafar) terreno entre os selvagens aborígines,
impondo-lhes uma lógica societária re(de)formadora de seus universos subjetivos e
objetivos. Difícil seria à civilização dotada de pensar europocêntrico e cristocêntrico e
que recentemente empreendera tal Antropocentrismo no lugar do anterior Teocentrismo,
igualar-se ou rebaixar-se perante seres selváticos, sem fé, rei, Estado, lei... e senhores de
técnicas primitivas (sic!) (DESCOLA, 1999).

89
Cf. LUKÁCAS, 1978.
90
Mesmo um considerado humanista como o florentino Américo Vespúcio, que cria os gentios
portadores de humanidade, duvidava de tal condição pela incapacidade demonstrada de
entendimento dos eventos entre os índios existentes (canibalismo, constante guerrear e
escravidão), naturalizando e convertendo-os em bestialidade associal, como fenômenos
espontâneos a eles inatos. Ignorando o guerrear como elemento original e formador de identidade,
os índios representavam-lhes a humanidade no estágio de história natural. Com a mesma ótica,
cronistas e viajantes naturalistas dos séculos XVI e XVIII contribuíram para difundir a imagem
dos índios como uma espécie natural, solidificando a antropologia naturalista, de que foi
partidário o Adolf Buffon, dentre outros (DESCOLA, 1999).

124
Geografia e Trabalho no Século XXI

Qual compensação cultural, os europeus transferiram para si o lugar de


centro da humanidade herdada da Divina Providência. Aos gentios índios ficara o papel
de figurantes na obra da história, no traçar dos espaços, por serem os descendentes mais
próximos do infiel primeiro decaído do céu, a habitar regiões dantes esquecidas do
mundo, sendo quase sempre nada mais que reflexos passivos, pré-humanos e
animalescos de um tênue desenvolver adequado à lentidão da evolução geográfica deste
quadrante. E porque seres sem-razão, pensavam os racionais europeus, não seria grande
o salto para o terreno da sua negação como os sem-direitos, sem-liberdade...
Os mapas TO’s e as representações que eternizavam, cristalizadas na
teoria dos três continentes-três filhos de Noé, iam-se descaracterizando com um
cartografar menos mítico e reforçador de religiosidade, uma vez que à economia
ascendente urgia melhor conhecer terras e riquezas.
O não-deslocamento ou não-descentramento do olhar acarretara outras
conseqüências. Fez-se de tudo para transmutar-se o trabalho útil e concreto, em abstrato
e subsumido ao capital.
Rompendo-se pois a autodeterminação, a força condutora do gênero
humano para-si e que faz o indivíduo construir a autonomia subjetiva em relação às
exigências da produção/reprodução sociais91, enquanto condição de construção da
subjetividade autêntica92, o vir-a-ser e o despertar da personalidade autônoma, em que
se tem domínio primeiro sobre os limites corpóreos (mente e corpo) para em seguida
exercê-lo nos espaços propínquos. O desenrolar do processo é a tentativa de
metamorfoseamento, que ora vigora, das reificações “inocentes” em reificações
alienantes (ANTUNES, 2000).
As reificações inocentes, que cremos por vezes efetuarem-se entre os
índios e demais povos primitivos, constituíam a forma dos processos inocentes de
“coisificação” e autonomização das coisas, em que os objetos criados pela energia
humana deles se desencontram; tornando-se reflexos condicionados e, a subjetividade,
somente re-absorvida posteriormente no funcionamento dos objetos voltados aos
sujeitos. Já as reificações alienantes consubstanciar-se-iam na “coifisicação”
esquematizada que objetiva transformar a subjetividade em objeto; fazendo do
indivíduo um sujeito-objeto, manipulado por forças estranhas a si.

91
Cf. LUKÁCS, 1978.
92
Cf. TERLULIAN, s/d.

125
Geografia e Trabalho no Século XXI

Então, aquela concepção “unitária” de homem-sociedade-natureza tão


comum àquela necessidade das sociedades pré-capitalistas ou pré-coloniais para se
conceber o real (fantasiosamente ou não) e que respondia ao estágio de
desenvolvimento técnico do modo de produção (terra comunal, sem especialização
técnico-profissionalizante), se desvanece de fronte à necessidade do capital que, pela
fetichização, alienação e ideologização marginalizadora, faz com que o pensamento
particular, e não mais a interpretação coletiva, universalize-se com vistas a facilitar a
dominação dos membros da sociedade enquanto consenso inconsciente.
Aliando-se estava substantivamente, o movimento de ir para o Oeste, que
realizaram os europeus pelos idos do século XVI, com a Marcha para o Oeste do
capital, em fins do século XIX, sobre o território sulmatogrossense, em que atua a
DEBRASA. Os processos materiais de expansão econômico-territoriais estavam sendo
acompanhados de perto pelo alargamento do domínio ideológico dos espaços
subjetivos.
Entender os índios não desvencilhados desse processo requer que
empreguemos, por ponte, procedimento intrínseco à narrativa índia: transmigremo-nos
pois, pelas dimensões espaço-temporais, na dinâmica do movimento, para encontrarmos
com nós mesmos e com o Outro, o igual-diferente, que continua às esperas por diálogo.
Não se trata de enquadrar o índio como bravios ou meros covardes, na
menção que achamos pertinente lembrar de Gorender (1990), quando tratando do negro
na história do Brasil; se os dominados (negros ou índios) não são os fracos ou os fortes,
nem as alas dominantes o são, de forma invencível. História e espaço são movimentos,
contradições em processo, materializações de eventos que não podem ser enclausurados
doutrinariamente em vãs rotulações formais, emanadas de relações causa-efeito
desapegas do verdadeiro conteúdo social, porque o par antitético que perfaz a relação
sociedade-espaço condensa e expressa ramificações de movimentos antitéticos
imanentes à sociedade (classes antagônicas) e ao espaço (contradições e antagonismos
infra e superestruturais) que estão a se embalar, encontrando e entrechocando-se.
É preciso buscar o grão de verdade dos fatos. Ver quais deles mostram-se
resistentes aos redemoinhos da história, às lutas travadas no espaço. Concatenar as
partes específicas de todos interpretativos, quais tijolos (conceitos) de edifícios teóricos
menos consistentes, numa nova visão sistêmica que traga novas respostas e perguntas
sobre a imanenticidade do nexo da concreção acontencimal dos eventos, que expressa a
racionalidade do movimento do ser sócio-espacial, em sobremodo os determinantes
ontológicos, de maior significância societal.
Ao lado da condição capital de denúncia que o texto faz sobre os fatos da
dita “(semi)escravidão”, a pretensão nossa também é contribuir com mais
problematizações com aqueles que se põem a pensar o real para nele melhor poder agir,
principalmente com os personagens centrais da trama; levando o olhar por sobre a tela
burguesa, para além dos símbolos hegemônicos que retratam o real; daí, o convite para
o navegar nas linhas que seguem, para a maior aproximação com o objeto de análise: a
realidade.

126
Geografia e Trabalho no Século XXI

3. DOS REFERENCIAS HISTÓRICO-GEOGRÁFICOS

3.1. Os “Outros 500 (+4)”: o descortinar da falácia quinhentista

Há pouco se somaram em quinhentos os anos passados desde que, na


versão hegemônica consagrada, os primeiros europeus pisaram pés em terras
tupiniquins, nos solos orientais da América do Sul, tão logo aportados em chão praieiro
do que hoje é Estado baiano.
Fervilhada por grandes agitações econômico-culturais, as classes
dominantes européias, achando-a pequena, ensejou abraçar outros cantos do mundo com
interesses por mercancias que derivavam já de época de fascínio com o mundo
maravilhoso do Oriente, contatado e economicamente desbravado especialmente por
linguagem gestual.
O Brasil-empresa é filho desse ideário, do período em que a economia
mercantil, que promoveria a acumulação primitiva, começou a desenhar o mundo à
imagem e semelhança da lógica que se consolidaria como nucleal mediação totalizante,
então protototalitária.
Se refluída por longo tempo aos redutos dos feudos, desde que as
invasões bárbaras ganharam vulto, derrotado o poderoso Império Romano do Ocidente,
o episódio reinauguraria o cenário europeu com a dinâmica societal que cresceria de seu
ventre a querer (m)andar mais livremente. Comerciar tornava-se rendoso e um padrão
cultural já constituído carecia dos ingredientes orientais que ora, por conta do bloqueio
continental impelido pelos árabes, atravancava a expansão da sociabilidade européia.
O Brasil foi emparedado nesse contexto: de uma Europa recém-liberta de
rígidos preceitos culturais que não tarda a lançar-se ao mar e criar os meios para saciar a
sede por mercancias que não sustava em aumentar. O escopo do projeto sustenta a
truculência da escravidão verificada formalmente até fins do século XIX – e que, para
muitos, ao invés de subsidiário, fez do Brasil de então, porção integrante do fenômeno
capitalista reinante, já universalizante –, bem como a aculturação que tombou sobre os
infiéis gentios, que precisavam ser disciplinados para adentrar os reinos do céu e
fornecer o trabalho obediente que os redimiria aos olhos de (seu) Deus.
No pós-Invasão, na terceira década do século XVI, fora a colônia
recortada geograficamente por capitanias e, selecionada a cana como produto agrícola a
ser extraído nos bangüês, após os primeiros momentos de caça ao “ouro” (mineral e
“vermelho”/índio) e extração madeireira, arregimentou-se mão-de-obra escrava do
continente africano para movimentá-los, quando não sendo essa desgastada no corte do
pau-brasil das faixas litorâneas aos quais por muito tempo se ocuparam os índios.

127
Geografia e Trabalho no Século XXI

À época do Descobrimento, a estrutura societal brasileira apresentava-se


conectada de maneira umbilicalmente subserviente ao circuito da produção-realização
do valor. O “capital fixo” que representava o escravo nutria – nos espaços moleculares
da hegemonia da produção do capital mercantil, arranjado por via da subsunção formal
– o lucro acumulado, mesmo que em menores fatias, pelos senhores das plantations
coloniais: as oligarquias agrárias internas; quando os financiadores ficavam com a
maior parte no rateio, mormente os ingleses.
O país fez-se fruto da estrutura política externa prefigurada pela
metrópole e reflexo, concomitantemente, da condição subalterna de ofertante de
matérias-primas agro-extrativistas que fluíam ao estrangeiro, devido à geografia
internacional da divisão do trabalho que esculpia o mundo em proveito das classes
dominantes de alguns países europeus.
Uma nação forjada com intolerância religiosa, unilateralismo sensitivo-
perspectivo ante o Outro, com o singular europeu crendo-se fôrma verídica do que
deveria ser o único universal. Valores que se desdobram em conseqüências negativas
por todas as dimensões, a econômica sobretudo.
O Mesmo (europeu) criou para si o Outro (índio): o Mesmo é o humano
desumanizado; o Outro, a memória ontológica ou a lembrança da origem perdida, que
se fez afastada. Mas o Outro que inquieta e assombra, acarretando intolerância, repúdio
e subvalorização, em certo sentido, ao mesmo tempo conduz a questionamentos menos
apegados a preconceitos. Obra de referência nesse sentido pertence ao francês Etiénne
La Boétie (1982), escrita nos anos 40 do século XVI, na alvorada das grandes
navegações.
Fazendo crer as classes subalternas, infimamente que seja,
responsável pela condição sua de subserviência e exploração, por
serem desde o crescer alimentadas com o leite nada saudável da
servidão e decidirem, com o passar dos anos, buscar melhor
situação de vida próximo do tirano e das luzes de riqueza que
provocam o cintilar de seus olhos (CHAUÍ, 1999).

Entender o processo de contradição é entender a contradição imanente ao


processo, ou a dialética inerente ao próprio movimento do real.
Não se deve generalizar, desse modo, aquilo que La Boétie entreviu como
princípio ontogenético da tirania entre as sociedades. Devendo-se atrelar a vontade com
a falta de opção no pensar e no agir; fundamentalmente quando se tem sob avaliação
uma sociedade encharcada por ideologias hegemônicas e castrações de representações
alternativas àquelas impostas ou consentidas pelas alas soberanas da sociedade.
Também não se deve crer que pensava o aludido autor que as sociedades indígenas, ou a
gente toda nova, cedo ou tarde, tomariam em seu ventre, naturalmente, as

128
Geografia e Trabalho no Século XXI

diferenciações por ele estudadas (como as sociedades antigas, grega e romana, ou as de


seu tempo), porquanto saber este francês ter sido empregada intensa violência para
sobrepujar os povos encontrados; posto haver, isto sim, uma propensão natural dos
índios em querer ser livres, visto mesmo o considerado mais irrisório animal sentir tal
inclinação, e os humanos de forma alguma seriam impassíveis a essa necessidade.
Imperativo, esse o chamativo de Gorender (1990), tomar o devido cuidado com as
implicações que subjazem o extremar da visão laboetieana.
As explicações sobre a subjetividade não devem ser restringidas apenas
aos muros da parede individual. A análise do micro (individual) deve estar em relação
com o que é macro (social). O que é lugarizado não pode ser do global inteiramente
descolado. O princípio do individualismo pode levar a teorização para o fosso
labiríntico do caleidoscópio das subjetividades soltas. Necessário compreender-se a
micro-física na relação com a macro-física do poder, com os determinantes histórico-
espaciais em que os indivíduos já nascem e nos quais devem se ajustar, para que se
apreendam as adaptações, resistências e oposições ao real.
Enfrentando o redemoinho cultural que cruzou o Atlântico, aos poucos os
povos índios encurralados nas produções de cana-de-açúcar viram os seus espaços
arquipélagos, produtores de valores-de-uso, se metamorfosearem em produtores de
valor-de-troca e os espaços fechados sob tempos longos se transmudarem no tempo
curto do espaço aberto hegemônico. Modificam-se as temporalidades que perfazem a
dimensão espacial da reprodução comunal, de seu comunismo primitivo.
O ser dos fenômenos e os fenômenos do ser não são e nem podem, em
sua plenitude, ser os de outrora e alhures. A forma é o momento do movimento e o
movimento, ainda que em sentido aparentemente circular, segue verticalmente a espiral
ascensional.
Um embate árduo se arma. Se se modificam as condições estruturais
definidoras daquele ser, contribui-se à transformação de seu quadro de representação,
comportamento e relacionamento; o que não se efetua de maneira mecânica, já que seu
ser, como o imaginário coletivo secularmente radicado na cultura, de tudo faz para
esquivar-se à dilaceração.
A contradição: reproduzem em certo sentido as amarras da servidão
voluntária afrouxando constantemente o laço de seu pescoço: o querer de algo melhor,
sem saber nitidamente o que e nem como alcançá-lo, e quando minimamente tê-lo
aclarado, ter de afrontar os poderosos que capitalizam com a condição sua de serviçal à
estrutura metabólica do capital93.

93
Com os índios, esse é o grande embate ao qual pressentem já não mais poder adiar. Descoberta
a necessidade de posse sobre os territórios tradicionais (tekoha), para que seu ser tradicional se
faça objetivamente mais possível de perpetuação, lançam-se à luta, ocupando as terras que
historicamente lhes são de direito.

129
Geografia e Trabalho no Século XXI

A ordem edificada reproduz-se pois, nessa escura fronteira, traçada


fracamente entre o desejo de liberdade e aquela imagem de sombras, o de não saber o
que ela de fato torneia.
A perda da liberdade, se em início obra do descuido, converte-se
rapidamente em condição interessante àquele beneficiário; reproduzindo a ignorância
social alimentadora do costume. Quiçá, imbricado de sutis formas de violência, se se
quer desconfiar de apego cultural ao imobilismo e à servidão. Deu-se de tal modo,
aquilo que a gente toda nova dessa banda do globo desconhecia substantivamente até a
data da invasão94, o mau encontro assinalado por Chauí (1999) e o infortúnio sinalizado
por La Boétie (1982); o que separou os povos europeus do tipo de “servidão” à razão,
liberdade e igualdade, vivenciada pelos gentios.
Isso para o passado. Para o presente, na sociedade estatizada capitalista,
verifica-se uma reprodução cultural societária que combina tradicionalismo e
conservadorismo, arraigado quase sempre sobre uma base de disciplinamento
historicamente infiltrada (violência física e simbólica) e calcificada mentalmente no
corpo social, em relação aos valores que emanam da cartilha do Estado Democrático,
defensor em prima-facie dos parâmetros da ordem do capital. Dificultosa é a separação
do que é sociedade civil e Estado pela intercomplementaridade demonstrada por tais
esferas no capitalismo monopolista altamente ideologizante.
Violência e tortura física tornar-se-iam conditio sine qua non àquela
simbólica e, quando as regras do jogo já tivessem vencido as maiores resistências
subjetivas, passaria a alienação a exercer papel ideológico de convencimento, impondo
a nova visão de mundo (respectiva à classe hegemônica); dispondo de todas as técnicas
existentes ao disciplinamento cultural. Retraindo-se a agressão física e aumentando a
simbólica, com o roubo da história do vencido ou incorporação da lógica de
arranjamento espacial prévio; empregando a violência física sob circunstâncias
momentâneas, quando os detentores do poder se sentissem ameaçados ou em momentos
de desbotamento da capacidade de persuasão ideológica.
Desviar a culpa dos arcanos do poder e depositá-la sobre ombros
dominados torna-se ardil frágil em presença dessas constatações. Não se escolhe, em
meio a reais possibilidades de livre escolha (nas mediações de primeira ordem), ser
justamente domado e sujeitado por outrem (encarnando-se as mediações de segunda
ordem). Não sem antes se ter forçado o ser a crer de nada valer arriscar-se frente ao
novo, ao alternativo. Nascendo sob o manto da servidão, maiores são as chances para
que a situação se reproduza entre os homens (condição social de subserviência chamada
pelo grego Hipócrates de timidez e por La Boétie de efeminados).

94
É sabido que o conhecimento desse quinhão do globo encontra-se em recuo em relação à
datação oficial atribuída às Descobertas do Brasil e da América.

130
Geografia e Trabalho no Século XXI

Cego, bestializado e adormecido segue o corpo social a perambular,


dando voltas no circuito esférico concebido pelo capital. Figura aí, o real como algo
parecido a uma miríade multiforme de cacos: quebra-cabeças cujas peças poucos
conhecem como pôr manejo.
Os índios não ficaram à margem da conjuntura situacional reverberada
pelo complexo hegemônico do capital.
Algumas das principais feições reflexas na Marcha para o Oeste do
capital, na seqüência da marcha oceânica intercontinental, assumidas nessa outra
margem, de outros 500, e que se faz necessário navegar, são no item que segue
anunciadas.

4. DO ESPAÇO DIFERENCIAL AO ESPAÇO GLOBAL. A SUPRESSÃO


DA DIFERENÇA ENQUANTO MECANISMO DE DOMINAÇÃO DE
CLASSE: AS CONSEQÜÊNCIAS DA MARCHA PARA O OESTE DO
CAPITAL

4.1 A lupa é a escala e o fato, o objeto: aproximando o olhar

Muitos foram os embates e as macro-transformações territoriais e


ideológicas travados entre os diferentes modos de produção e padrões de organização
sociais aqui entrecruzados.
O discurso ideológico hegemônico prestou, no primeiro momento, à
promoção de povoamento que visava a anular os supostos perigos de perdas nacionais
de territórios “desocupados”, como questão de “segurança nacional”, basicamente na
segunda metade do século XIX. Depois, mais propriamente em meados do XX, o
discurso ideológico fora o de expandir a área plantada para abastecer com alimentos os
centros citadinos, diminuindo em sintonia os problemas “comuns” dos grandes centros
do sudeste, como o inchaço populacional e as reivindicações trabalhistas.
Em forma de itens, dispomos algumas das transformações aos quais os
índios “sulmatogrossenses” se deparam e ainda se defrontam por força do marchar do
capital para o oeste do país. Seus efeitos principais são sentidos:
a) no guerrear por novos sentidos: não mais para a satisfação dos
membros, acoplada ao imperativo da construção da identidade do grupo no embate com
quem lhes ameaça reprodução, por exemplo, mas como engenho de aliança com
europeus em guerras com outras nações. Troca de favores, esse o ardil, que lhes
garantiria o direito à terra ao qual a comunidade sempre dispusera e que agora haveria
de ser negociada. A Guerra do Paraguai (1864-1870) é a maior ilustração: não bastasse

131
Geografia e Trabalho no Século XXI

promover o contato entre índios e não-índios, produziu o fenômeno de guerras de índios


entre si, com objetivos estranhos aos que estavam habituados, defendendo ora o lado
paraguaio, ora o brasileiro. Alguns creditam a guerra como a ocasião de descoberta dos
ervais da região hoje sulmatogrossense que, rapidamente, atraiu a cobiça de empresas
ervateiras, como a empresa argentina Matte Laranjeira estabelecida no Brasil de 1893 e
a Elisa Lynch, que tentou sem sucesso operar na região, sendo prontamente expulsa
pelos “povos da floresta”, como foram chamados os guaranis; em que pese tais
primeiros combates não terem sido suficientes ao isolamento, antes condições de
reconhecimento estimulantes às explorações econômico-extrativas futuras na região.
Confirmando que foi mais fácil, nesses momentos, a construção de identidades
dissimuladas destes para com os europeus, do que, entre essas próprias nações, a
edificação da identidade indígena, dos nativos. Daí que, tão logo terminada a guerra,
aperceberam-se tais povos que o acordado ficaria no nível das promessas, e que agora
enfrentariam problemas que mais denegririam seu ser: o contato com o alcoolismo,
doenças venéreas, epidemias de varíola, inclusão de novos hábitos alimentares, novas
técnicas e objetos técnicos (armas de fogo e facões) e o trabalho social para um outro e
de outra maneira, mediado pela moeda o ou pagamento em espécie. Outro fator pesaria
negativamente aos índios, na atração de populações de outros rincões do país: a
fundação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND)95, cujo parcelar e
distribuir territorial pôs-se como fenômeno fortalecedor da oposição entre índios e
migrantes que para lá se dirigiram por força da Marcha;
b) no ossificar do calendário gregoriano de tempo métrico e sem vida, que
substituiu, em muitos casos eliminou, as mediações de seu modo de vida, seu
“calendário” cotidiano, a temporalidade e a espacialidade comunal, de elementos e entes
que se moviam e se arrumavam ao seu derredor, perecendo pela fria extensificação do
novo horizonte social. Em sendo o tempo metrificado, foi o espaço geometrizado,
perdendo muito da representatividade;

95
A CAND, instituída em 1943 pelo Decreto-lei estadual n. 616, e que seguia o plano nacional de
colonização expresso na lei nº 3059, estabeleceu legalidade à exploração das terras na região,
quebrando o monopólio pertencente a Matte Laranjeira, de fins do século XIX, fazendo surgir
loteamentos que, mormente nos anos 40 do século XX, com o serpentino estender das rodovias e
paralelo expandir de culturas agrícolas, faria adensar a população regional não-índia (somente nos
anos 50 a população sulmatogrossense crescera em 611%) e, por conseqüência dos fatos,
aumentar os confrontos com os que estavam a povoá-la antes do “progresso”, com os invasores
que não pouparam violência em tomá-las. Enfraquecido o monopólio da Matte-Laranjeira, ganha
relevo uma especulação de terras sem precedentes, além da atividade pecuária extensiva. A
integralização do mercado interno e distender do desenvolvimento industrializante ganham
respaldo material e ideológico no interior “arcaizado” do país. Martins é quem lembra que a Cia.
Matte Laranjeira fora já denunciada por um jornal operário como praticante de trabalho escravo
na alvorada do século XX (A VOZ DO TRABALHADOR - Órgão da Confederação Operária
Brasileira, ano 4, n. 32, Rio de Janeiro, 1/6/1913, p. 1; citado por Martins, 1997, p. 83).

132
Geografia e Trabalho no Século XXI

c) pela difusão entre os índios dos valores dominantes, com eliminação,


assimilação ou o sincretismo multicultural se manifestando. Aí o monoteísmo tirânico
da cultura de linhagem hebréia-crista solapando o xamantismo, paganismo, animismo,
panteísmo e politeísmo de culturas ricas e diversas, com seqüelas nos rituais e nos
padrões estéticos do culto e da devoção; como alteração dos tratamentos medicinais e
ritualísticos entre os índios, pelo não perpetuar das tradições ou por motivo da
destruição do habitat do qual retiravam as ervas;
d) no propagar do conhecimento de ótica parcial, comprometida com a
visão de mundo que exclui a história e o espaço do “vencido”, impondo a lusofonia
obrigatória mesmo a gentios do interior do país, amparada em pressupostos
profissionalizantes; o que aumentou a descaracterização, quando os mais velhos não
encontravam tempo ou receptividade dos mais jovens, no espaço interno às casas, esse
talvez o último locus de resistência cultural, para a transmissão dos valores culturais e
lingüísticos;
e) na conversão da propensão ao fenômeno migratório (de nações como a
Guarani) em fenômenos mais freqüentes, pelo seu confinamento em reservas e, quando
ocorre, como fenômeno de venda de força de trabalho ao capital (a changa, que deixa a
casa tapera, vazia); comparecendo os índios como as novas andorinhas sujeitas ao
neonomadismo temporário. Surge pois, como migração sazonal, meio de “ganhar a
vida”, que já não mais lhe pertence autonomamente, com o adejar em empresas
ervateiras ou em destilarias sulmatogrossenses (como a DEBRASA); destruindo-se os
comportamentos que a esse tipo de vida se atrelavam. O processo social instituído nas
relações de troca representa intercâmbio material e simbólico de valores que são tanto
econômicos (trabalho socialmente necessário ao fabrico da mercadoria) quanto
subjetivos (afetividades e interioridades alteradas). Por isso da tese da troca, que em si
denota consumo-produção, criar novas relações sociais; destarte, a moeda mediadora de
troca da mercadoria força de trabalho por produtos põe-se mais presente no cotidiano da
existência pelo adensamento espacial das práticas capitalísticas por outras dimensões
culturais – fenômeno mais perverso com os guaranis contratados pela DEBRASA, que
mal compreendem a simbologia e o valor mercadológico do dinheiro, além da
dificuldade com a língua oficial do país e as “regras” contratuais e trabalhistas fixadas
pela empresa;
f) na desestabilização dos referenciais imagéticos e materiais (língua e
formas de organização espacial) com o fito de que fossem criadas as mediações ao
enraizamento dos símbolos da sociedade dominante, aniquilando os elementos
garantidores da identidade tradicional. Processo que mesmo hoje entendem as alas
dominantes mais radicais surtirem efeito: foi o que se fez, nas comemorações
quinhentistas em Coroa Vermelha, com o monumento dos pataxós, posto abaixo pelos
esquadrões da polícia baiana de plantão; enquanto com ardor protegia-se os relógios
distribuídos pelo país pela Rede Globo, e que cronometravam o tempo regressivamente
ao momento do completamento do quincentenário; como intacto ficou o símbolo dos

133
Geografia e Trabalho no Século XXI

bandeirantes em centro paulistano, devendo a cultura oficial permanecer imune à


(contra) cultura popular, dos índios;
g) na modificação dos padrões alimentares e culturais dos índios pela
inclusão de novos ingredientes e hábitos96 (sal, açúcar, técnicas e instrumentos
adquiridos da “sociedade não-índia”), que se anexaram ou sobrepujaram aos que
detinham. Assim, a cultura alimentar baseada em peixes, raízes, frutos e animais
selvagens, divide espaço com os produtos exteriores à sua cultura, seja pelo
destroçamento do habitat peculiar, a tomada das terras e o confinamento em reservas, ou
pelo aceite (assimilação) dos novos produtos/processos exógenos;
h) pela desestruturação do pilar cultural familiar, devido às circunstâncias
de vida que passam a experienciar, sejam os jovens em escolas de Dourados, nas
manifestações culturais “externas” que se embrenham na reserva, ou pelos valores
“exteriores” com que têm de lidar para sobreviver. Demonstrando que o encurralamento
em reservas, ao invés de destribalização completa, trouxera formas novas de re-
formatação cultural (fenômeno fortemente manifesto entre os terenas); de extensas
tornaram-se as famílias nucleares. (Costa, 1998, p. 87).
Fica patente o simulacro de amor paternal a indicar como o
comportamento familial da sociedade hegemônica ratifica-se infinitamente mais
“selvagem” que aquele que, injusta e não-esporadicamente, é arremetido aos indígenas.
Na mesma linha de argumentação, em censura ao aprofundamento da competitividade
que a escola desempenha na sociedade norte-americana, e que índios zuni, dakota ou
hopi perceberiam como óbvias formas de tortura, explana J. Henry (1963, p. 393) que:

Numa sociedade onde a competição pelos bens culturais básicos


é o pivô da ação, as pessoas não podem aprender a amar-se uma
às outras. Torna-se assim necessário que a escola ensine as
crianças como odiar e sem parecer fazê-lo, pois a nossa cultura
não pode tolerar a idéia de crianças odiando-se uma às outras
(apud LAING, 1978, p. 53).

Eis por que, para T. Lidz, a esquizofrenia – termo criado pelo psiquiatra
suíço Bleuler – seria o fracasso da adaptação humana. Disso depreende-se que a
educação “não-índia” não se propõe a libertar a mente e o corpo, tão-só a prendê-los aos
desígnios do capital; nem a torná-las criativas (ainda que com Q.I. elevado), se se
questiona o tipo de criatividade que se quer cultivar. Por poderem se internar em
espaços materiais e incorpóreos sem sofrer maiores recalques por isso, eram mais livres
as mentes e os corpos índios;

96
Basta lembrarmos que sabor remete a saber, experienciar e manejar o meio.

134
Geografia e Trabalho no Século XXI

i) na metamorfose dos padrões tradicionais de uso da terra. De rotativo e


comunal, laboratório do trabalho ou economia natural em espaços naturais, assume forte
veio comercial, com a atomização da reserva em lotes, comercialização, práticas de
arrendamento e de agrupamento por alguns índios de grandes parcelas de terra (como os
terenas, que demonstram melhor habilidade no lidar com valores, códigos, regras e
cálculos hegemônicos);
j) no trabalho livre e autônomo, anteriormente entornado à produção de
coisas socialmente úteis e necessárias, atado ao sustento tribal (trabalho concreto
relativo aos valores-de-uso), transforma-se em trabalho coercitivo e abstrato, intensivo e
adernado à acumulação (mesmo que não dos próprios índios), resultando em processo e
produto estranhados (trabalho abstrato centrado nos valores-de-troca). A economia
coletiva primitivista empalidece-se, frente à capitalista, de valores e propósitos
individualistas;
l) na desorganização dos padrões políticos tradicionais da comunidade,
visto que, ao invés da mesma eleger seu chefe, vê-se obrigada a aceitar os nomes dos
índios que pactuam com o chefe do Posto da Funai local (PIN-Posto Indígena da
Fundação Nacional do Índio, alocada internamente à Reserva Luis Bueno Horta
Barbosa), que por intermédio de inúmeros estratagemas, lucra com a continuidade da
situação de miserabilidade dos mesmos. Ou seja, presencia-se uma espécie de
clientelismo, inclusive entre índios da mesma comunidade (notadamente os terenas) que
trocam favores e informações (“espionagem”) por álcool ou uns trocados com o
“coronel” da Funai – como se lhe referiam os índios. Pior para os que forem pegos
afrontando o chefe, o castigo não tardaria a chegar, em expulsão interina ou perpétua da
aldeia; além de perseguição ou tortura física aos que se mostrassem inconformados,
implementando qualquer forma de ação que pudesse vir a ser compreendida como
afronte;
m) transposição – na história da transição, sobretudo, do Brasil Imperial
ao Republicano – da autonomia política e autogestão coletiva em submissão à política
hegemônica intermediada por órgãos federais. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
surge como resultado das pressões em princípios do século XX, com o intuito de
amainá-las. Logo sua face mostra-se por inteiro: o objetivo de encurralar, não
importando as condições, os grupos índios em áreas que aparentavam mais cativeiros de
mão-de-obra, mais propícios à aculturação. O porquê de ter sido deslocada a etnia
terena de região mais ao norte do Estado para conviver com os guaranis/kaiowás, em
1930. Não se deve perder de vista que tais órgãos não são neutros; são criaturas da
“sociedade dos não-índios” e a ela devem, a priori, representar, para não perderem o
status meritório de instituição legal − e mesmo que os avanços legais sejam dignos de
um qualquer louvar, o fato de destaque ainda está no descompasso em fazer-se cumprir
o guarnecido juridicamente: quase sempre idealidade não materializada e materializável.
A classe trabalhadora existente assim não se reconhece em consciência classista,
ficando na mão da classe dominante o projetar e o fazer da reprodução da (sua)

135
Geografia e Trabalho no Século XXI

consciência dos homens na formação econômico-social brasileira. Invento da condição


de fator material da produção, o trabalhador figura como simples objetividade reificada;
n) na desestruturação da correlação cultural dos índios com o meio a
partir dos ingredientes técnicos desenvolvidos especificamente com esse intuito: dos
instrumentos que criavam e manipulavam para o melhor viver, passam os índios a se
defrontarem com um conjunto de instrumentos técnicos encharcados de objetivos
estranhos à sua tradicional reprodução objetivo-existencial. Arrancados de seus tekoha,
dos espaços autônomos, em que a vida seguia seu curso sem maiores contratempos, vão
os índios deparando-se com um universo técnico hegemônico na medida em que
perambulam no mundo do trabalho da sociedade capitalista, em busca do sustento no
corte de cana, à guisa de exemplo;
o) como resultado do experienciar desastroso na DEBRASA, muito
trabalhando e pouco ou nada recebendo, modificando seus hábitos com a bebida. O que
antes se fazia elemento comemorativo, de agradecimento ritualístico e confraternização
intra e intertribal em suas tradições, transmuda-se em vício de entorpecente ingerido
com vistas a suportar-se as agruras que se dão em meio ao canavial e no alojamento97: a
saudade da família, a falta de perspectivas, solidão, depressão, dificuldade de
relacionamento, em especial com os moradores da Vila Industrial da DEBRASA que os
ignora ou despreza – sobretudo as mulheres que, por conseqüência do isolamento sexual
e afetivo dos índios e à sua perda dos sentidos, são estupradas por dezenas de índios
duma só vez;
p) na transformação da divisão social e etária do trabalho índio
(segmentação social) em divisão técnica e territorial, com a hierarquização capitalista
(segregação social) das dessemelhanças ou diferenças objetivando a gestação de relativo
menosprezo garantidor de maiores fatias de lucro. A função do trabalho da mulher (que
resultava da condição biológico-social, do estado da organização sexual a partir do
estado evolutivo das forças produtivas dos índios) transubstancia-se em desprestígio
sexual (sexo frágil e inferior) na sociedade capitalista que se faz herdeira da cultura
ocidental, com muitas de suas origens na sociedade grega antiga. E por ser naturalmente
inferior, assim pensam os capitalistas, receberá a mulher (e menos se for ela índia) bem
aquém do que ganha o homem. Não importa se a mesma habilidade em funções
idênticas desenvolva;
q) no princípio da autoridade, que igualmente, muda de conteúdo; e aqui
se nega a autoridade como princípio absolutamente negativo e a autonomia como
princípio totalmente positivo, como querem os anarquistas (ENGELS, 1981). Se
anteriormente estipulador das diretrizes mínimas estabelecidas pelos índios (pelos
conselhos, reuniões, chefes políticos) para o melhor funcionar do organismo social,

97
Exemplo de que o mundo ou espaço do trabalho não pode ser entendido como totalmente
divorciado do espaço vivido, o espaço do além-trabalho ou o mundo do não-trabalho (RIBEIRO,
2001a; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2002).

136
Geografia e Trabalho no Século XXI

converte-se na sociedade do capital em autoritarismo (poder apartado, alienado e


ideologicamente prejudicial ao indivíduo) emanado dos interesses imanentes ao
complexo do capital; aquela autoridade erigida em conformidade com o tipo de relação
homem-meio por eles experienciada perde centralidade à autoridade exógena;
r) pela inevitável alteração do lidar indígena com a natureza. Tendo ela
mudado com o devastamento florestal interno à reserva (o que faz variar o hábito
alimentar e a etnofarmacologia tradicional98), a implantação de culturas mais ligadas à
produção mercantil para abastecer os centros citadinos, afora as idas e vindas dos locais
de trabalho extra-reserva, nas destilarias ou empresas ervateiras, os atos (práticas) e as
imagens (imaginários) do social e do natural alteram-se;
s) na síntese social de tantas desgraças: fome, pressões (a mulher e o
restante da família que cobram soluções ao estado de penúria em que se encontram),
desavenças, incompreensões, estupros entre si na reserva99 e do Outro na DEBRASA
(as vitimadas mulheres estupradas na Vila Industrial, inclusive com funcionárias da
empresa), desilusões e castrações de todos os tipos contribuem para que se rendam os
índios ao suicídio, entre geralmente os mais jovens índios (até 25 anos) do sexo
masculino, que se cedo contraem conúbio e assumem chefia familiar, cedo também
sofrem as pressões das responsabilidades mal resolvidas e traumatizantes. Mais que
suicídio físico, a morte explana a destruição espiritual desses, expressa em
estrangulamento por efeito da gravidade e do peso do corpo a impedir passagem de ar
pelo pescoço envolto em corda. Mesmo que verificando-se envenenamento por produtos
químicos, de restos de frascos “casualmente” encontrados nas fazendas limítrofes à
Reserva Horta Barbosa, a preferência pelo estrangulamento físico manifesta, subjacente,
que a morte por sufocamento (falta de ar) representa a morte da espiritualidade e da
oralidade, pois a falta de voz e incomunicabilidade com os deuses toma forma na parte
do corpo que se põe como elo entre o plano terreno e o divino. Nos dias últimos que
antecedem ao suicídio, fica o índio a andar isolado, calado, pensativo, depressivo,
desanimado.

98
Embora tenha presenciado uma cena em que um índio guarani fazia um preparado de ervas na
DEBRASA por encontrar-se adoentado, há que se ressaltar o fenômeno predominante na reserva
de Dourados de descrença para com os curandeiros e seus rituais (MEIHY, 1991); sendo, mesmo
na reserva, bastante comum a busca por medicamentos da sociedade dos “brancos”. Na
DEBRASA, índios adoentados por lidarem com veneno na lavoura ou com ferimentos
provocados por profundos cortes no manejo dos facões, comumente recorrem à farmácia na Vila
Industrial que mantém convênio com a empresa. Sendo os medicamentos descontados em 50% de
seu preço real nos ganhos dos índios; mas é quase certo que a miséria salarial que (se) chega
incorporaria e extrapolaria esse e outros “gastos” orçamentários.
99
A forma de estupro, comum na Reserva, é a feira, em que um grupo de cerca de 20 rapazes
perseguem e cercam a índia pelas plantações da reserva, sendo violentado o seu corpo pela ordem
da chegada na disputa.

137
Geografia e Trabalho no Século XXI

Modificam-se o “chão” físico e o simbólico, as formas de ser e estar


geográficos. Por incompleto, contudo; a alteridade germina, jorra e se reproduz
multiplicadamente nos interstícios da estandardizante cultura hegemônica, que prima o
ato de ter em detrimento ao de ser, fazendo compreender o Ser pleno como o portador
daquilo concebido como o mais valorado histórico-espacialmente.
A alienação, hierarquização e heterodeterminação do trabalho, das
propriedades, objetos e ditames sociais, no plano material como imaterial, instituem o
como deve a sociedade, confusa e culpada, se reproduzir. Àqueles que não têm vontade
alguma, os tiranos capitalistas impõem a sua vontade; calando suas bocas quando
volições tiverem por falar; amarrando os seus braços e pernas com os laços fortes da
Lei, com os instrumentos reguladores, tentando reproduzir o futuro com a centralidade
da alienação material e subjetiva presente.
As leis capitalistas, a ilusão organísmica e quase que onipresente de
satisfação consumista, tentam a todo custo governar a percepção, a invenção e a
manutenção dos seres sociais. As regras capitalistas tentam dirigir o ser sócio-espacial.
Tenta-se a todo o momento apagar, suavizar ou desbotar o que é diverso ou discordante,
para que a identidade do capital prevaleça; não importa se em tempos de “taxa de
utilização decrescente do valor de uso das coisas” ou “tendência decrescente do valor
de uso das mercadorias”, com a vida útil dos produtos diminuindo para acelerar o ciclo
reprodutivo do capital.
Os índios estão em meio a esse redemoinho. Tentam se reencontrar no
movimento social com o qual não se identificam, aprendendo a ler minimamente os
signos que essa possui para que possam através disso sobreviver. Essa é a regra da
lógica determinada pelos capitalistas ao homem moderno, destituído de identidade real.
Homem que vaga veloz, sem chão nem direção ao caminho do nada e do vazio.
Acompanhado por multidões de seres que desconhecem a si e ao outro e que, no evitar
da mais profunda solidão, amparam-se nos que se desconhecem e tornaram-se vícios.
Meio técnico-científico-informacional, no capitalismo, é aquele em que é
maior o aparato comunicacional pela humanidade já construído, humanidade em tempos
remotos jamais conhecedora de intensa solidão, qual essa hodierna. Não à toa o fato de
muitos governos de países centrais se disporem mais interessados em conhecer o espaço
cósmico, afastando o Homem de sua humanidade, gerando uma civilização real ou
potencialmente desajustada e “esquizofrênica”, o Homem de um eu perdido, de um
mundo interior temido por que desiludido, e de um mundo exterior normalmente
opressivo e parametrado, pelo aceite da alienação como padrão sócio-funcional. Assim
continua a jornada nas estrelas, com o Homem distanciando-se de si, se possível na
companhia de outros-eus perdidos, quando exatamente à procura de seu eu. A viagem,
pensamos, deveria ser intra e interpessoal, em busca do que é próprio e ao que é comum
ao ser, pois as respostas estão dentro e fora: na lógica da relação manifesta dentro e
entre os seres, em seu espaço social construído.

138
Geografia e Trabalho no Século XXI

O que o capital dá ou inventa como prazer potencial converte-se em


imagem concreta. Tal imagem, concreto em pensamento, trabalho sensível e mental
(imaterial) dirigido ao símbolo, depois de conferido o preço, entra no processo de
realização do valor a partir das vantagens que supostamente valoriza sua singularidade,
ou melhor, conforme o trabalho humano incluído em seu fabrico imagético-ilusório. A
ideologiavem materializada nos produtos: antecede o seu fazer e coloca-se como a
mediação mais dinâmica à captação da mais-valia no mundo contemporâneo. As
mediações de segunda ordem ganham vulto, de acordo com a relação signo-significante
altamente alienante.
Eis porque o fenômeno de manifestação do capital apresenta-se
centrífugo, difusor, expansivo, do centro para fora, conquanto seu controle material e
imaterial (operativo-organizacional) ser centrípeto ou concentrador (fora para dentro). A
isso, presta-se a telemática ou tele-informação, veio de fusão de tecnologias de
informação (satélites) com microeletrônica (computadores).
No mundo geográfico da produção toyotista, percebe-se a tendência à
desconcentração e terceirização das partes produtivas vis-à-vis à centralização e
controle gestor, cada vez mais afunilado pelo jungir interempresarial (oligopolização).
Técnicas que organizam a materialidade da produção e a subjetividade dos produtores,
nesse tipo de escravidão capitalista subjetiva, essencialmente no toyotismo, com a
armadura ideológica do capital a enlaçar os seres aos projetos capitalistas como dantes
nunca visto na história humana.

5. OS CANTOS DE SEREIA DO CAPITALISMO. CAPITAL, ESTADO E


TRABALHO ABSTRATO COMO TRÍADE FETICHÓIDE CENTRAL
DO (NOVO) METABOLISMO SOCIETÁRIO CONTEMPORÂNEO

Vimos, pelo exposto, que os índios tratados compõem a nova classe


trabalhadora. Classe que, diferentemente dos padrões clássicos, pelo momento de crise
que atravessa o capitalismo, exibe alguns elementos “estranhos” a esse processo social,
devido às particularidades que o fenômeno capitalismo desenvolve, uma vez que
permeado por contradições endógenas (capital-capital e capital-trabalho).

Na era de relativo dessalariamento pós-fordista ou taylorista, intenso


investimento na alteração da composição orgânica espacial do capital com aumento do
capital constante, dessindicalização, reformulação de regras trabalhistas,
recrudescimento estupendo do setor terciário e do trabalho improdutivo e não-gerador
de valor, formas de incorporação de produção de excedentes à economia de mercado
por via meta-salarial, além da especulação que origina altos custos aos países
hospedeiros de capital vagabundo (expressos nas dívidas externas reajustada em

139
Geografia e Trabalho no Século XXI

dólares, e internas), no final das contas, como efeito mais cruel em país de economia
periférica, com políticas clientelista e coronelista amparadas em tradições culturais e de
trabalho socialmente coisificado (escravidão direta), emerge o fenômeno de “semi-
escravidão”, escravidão por dívida, peonagem, ou escravidão não-salarial entre
“brancos” e “índios” no interior do país.
De tão complexo e multiforme, por motivo essencial da crise, o
capitalismo não deixa de praticar antropofagia a si mesmo, tendo menos do trabalho
formal para devorar. Nega-se, primeiramente, na especulação que segue à frente sem
importar-se com lastro produtivo a respaldá-la. Segundo, nas formas que assumem o
novo proletariado, trajado pelo dessalariamento, subproletarização, meta-salariamento e
desregulação trabalhista, que atrofia e especializa a clientela consumidora. Em terceiro
plano, operam processos de maquinação, informatização e robotização, despreocupados
com o relativo repasse médio dos ganhos, distributivos, que realimente o ciclo
reprodutivo, de forma espaçosa e cumulativa, como vaticinara o Lord Keynes, que
compreendia que o exagero na submissão engendraria o risco de subversão. E a não-
remuneração como espectro mais bárbaro, no quarto lugar, como escravidão capitalista
parcamente (ou não) assalariada100.
Hoje, não é assalariado todo trabalhador produtivo. O espaço monopolista
da atual fase imperialista refundou e refundiu os espaços numa feroz matriz de
desenvolvimento desigual e combinado, sobretudo no Brasil, mas também no restante
da América, como no continente africano e asiático; e mesmo nos países centrais há
casos de superexploração da força de trabalho sob forma não-salarial. Ainda que o
fenômeno possa não ser a regra, deve ser visto como substantivo à revisão de conceitos
e teorias. Apresentam-se mais multifacetadas as nuances do trabalho combinado, do
trabalho social total: produtivo e improdutivo, salariado, não-salariado e meta-salarial,
normatizado, informal ou desregulamentado.
O trabalho produtivo pode expressar-se como não-remunerado ou não-
assalariado, sem que deixe de estar fundeado ao processo de produção do valor, pela
esfera da produção/reprodução capitalista, permitindo asseverar que tanto o trabalho
produtivo como o improdutivo podem ser entronizados no complexo metabólico-
mimetizado de realização ampliada do capital-camaleão, produzindo valor por
mecanismos não convencionais. Não se tornam por isso, trabalho ou conteúdos de
modos de produção pré ou não-capitalistas ressuscitados contraditoriamente pelo
capital; são exclusivamente momentos estruturalmente absorvidos de modos de
produção passados, para movimentar a engrenagem do capital como estratagemas
ajustados ao rearranjo e à situação técnico-econômica de determinados setores e regiões

100
Ficou registrado que a maioria dos índios contatados recebiam, em média, de R$ 20 a 30/mês
no final do século passado. Além de comuns abusos, com “pagamentos” de R$ 1,50/mês a índios
da Reserva Horta Barbosa pela DEBRASA, sobretudo a guaranis que desconhecem o valor do
dinheiro e a cultura com a qual se relacionam.

140
Geografia e Trabalho no Século XXI

mais fragilizadas, menos controladas pelo Estado ou em que esse faz vistas grossas por
sustentar-se a partir desses parâmetros, em âmbito municipal ou regional. Ou seja, o
conflito capital-capital e capital-trabalho gera conflito intra-estatal, de
governabilidade101.
Um mais polimórfico trabalho abstrato encimado em valor rentista da
economia financeirizada, vimos que ocupando o posto central do valor-trabalho da
economia política clássica, rege e direciona os rumos do complexo metabólico-
mimetizado do capital na recém-traçada Terceira Revolução Industrial, projetando-se
superestruturalmente no terceiro pilar fundamental da sociedade: a relação entre os
diversos Estados nacionais.
Um capitalismo escorado em valor abstrato e rentista, mais voraz e de
curto prazo portanto, combina-se a processos de trabalho precarizados e mecanizados,
com emergência de maior concorrência e, por conseguinte, promoção de fusões
(oligopolização) que alteram a geopolítica internacional, não somente entre as empresas
como entre os Estados nacionais. O porquê de o Estado brasileiro pôr-se como
“território nacional da economia internacional”, de empresas transnacionais que
estampam sua governabilidade no lugar de muitos Estados que indispõem de tal
competência, com o conseqüente, mas não exclusivo, aumento da “pobreza nacional da
ordem internacional” (SANTOS, 2000, p. 74 e 76).
E embora venham se formando blocos regionais, como o europeu, o fato é
que as grandes diretrizes econômicas continuam a ser proferidas pela superpotência
solitária.
O fosso entre países ricos e pobres se alarga, as contra-tendências
opositoras ao modo de vida global do capital insurgem nas muitas facetas críveis, como
movimentos sociais organizados, de direitos sociais e ambientais, oficiais ou não e
agremiações clandestinas e terroristas de contraposição ao poder que se rearruma
unilateralmente no mundo.
A lógica e a racionalidade do capital, que desprezam os nexos territoriais,
as identidades e as determinações locais, não conseguem por outro lado, esquivar-se a
esses conflitos.
Altamente degradante e insaciável que é, quer ambiental ou socialmente,
o capitalismo rompeu os portais do novo milênio com veemência por maior carestia de
insumos e matérias-primas.
Qual nuvem de gafanhotos, projeta-se por sobre territórios para deles
extrair o que puder de recursos naturais e econômicos, matérias-primas e valor abstrato

101
Questão que pode também ser notada no conflito entre setores econômicos formal e informal,
como o verificado recentemente com os produtos “piratas”, a questão da legalização ou proibição
dos bingos ou, de maneira mais marcante, no cultivo de plantas transgênicas, em que alguns
governos estaduais (caso do paranaense) resolveram afrontar as pressões empresariais por conta
de uma visão de mercado mais ampla, resguardando-se à fatia do mercado já pronunciada adepta
de produtos agrícolas livres de modificações genéticas (Europa e China).

141
Geografia e Trabalho no Século XXI

e rentista; base produtiva e reprodutiva de entrelaçamento mais que realizado, pelo


interpenetrar dos setores produtivos e terciários de captação de capital vagabundo.
Os países que dispõem dos recursos naturais, e se por ventura
demonstrarem prévia indisposição às novas diretrizes da geopolítica crivada pela
superpotência, sofrerão ocupações ou sérias retaliações econômicas (Que outro
interesse, senão econômico, estará por trás do fato da Amazônia brasileira ser
representada cartograficamente pelo governo norte-americano, que arquiteta e difunde
nessa sociedade um novo imaginário, como sendo ela território internacional?).
As teses clássicas sobre o imperialismo parecem não ter se invalidado. As
veias da economia hospitalizada requerem injeções de capital tomado à força dos
pequenos possuidores e empreendedores internacionais.
Reconfigura-se com isso, o cenário internacional da política e com ela os
planos e limites dos Estados Territoriais modernos. Os órgãos, em especial a
Organização das Nações Unidas (ONU), têm sua autonomia questionada e invalidada
pela superpotência solitária, que exige urgências na política atrelada à economia de
curto prazo e oscilante.
Aqueles órgãos que sugeriam um suposto neutro governo transnacional
(FMI; Banco Mundial/BIRD; OMC, ONU) aos poucos deixam mais transparentes o fio
de liame que os prendem aos governos dos países hegemônicos, sede das maiores
empresas capitalistas do mundo. Os E.U.A, que concentram o maior poderio
econômico, incomparável em força econômico-militar, quando não ditam as regras da
economia mundial pelo seu FED (Banco Central), que realinha as demais instâncias
financeiras globais, acham-se no direito (direito tanto do mais forte102 como do povo
escolhido) de exercerem livremente ações e reações sem nem mesmo o consentimento
das agências políticas internacionais.
Como “governos financeiros globais” ou “governos globais” (SANTOS,
2000, p. 100), o Estado Global que se desenha segue a velha função de gerenciamento
dos privilégios e da relação de propriedade entre os mais e menos poderosos e os que
não possuem poder algum na trama da sociedade capitalista. Trata-se de extensão
político-administrativa dos mandos e desmandos dos Países Centrais, sob a aparente
fachada de um governo democrático internacional neutro103.

102
O próprio Marx (1999, p. 29) não nos deixa esquecer “que o direito da força é também um
direito, e que o direito do mais forte sobrevive ainda sob outra forma em seu ‘Estado de Direito’”.
103
Não causa espanto a informação noticiada na imprensa escrita de a Agência Central de
Inteligência norte-americana (CIA) prestar serviços de informação e logística às multinacionais
desse país, redimensionando sua geoestratégia na guerra econômica global. Nos últimos tempos, a
mídia nacional tem demonstrado receio com a presença de americanos em propriedades de agro-
negócio no país, porque, com a possibilidade de ultrapassagem dos níveis das colheitas pela
concorrência, não seria de se estranhar a introdução de agentes biológicos e pragas nas lavouras.

142
Geografia e Trabalho no Século XXI

O impasse está criado. Seu desenho pouco tracejado, visualizado.


O espaço monopolista do capital-camaleão, de escravidão disfarçada, que
intenta agora se alastrar na posse intelectual do fabrico dos produtos (lei de patentes),
que por sua vez reforçará a geopolítica dos espaços econômicos desigualmente
combinados no plano internacional pelas novas tecnologias, a menos que poderosas
contra-tendências políticas se ergam, tende a fazer-se mais vigoroso em breve.
A crise, se se manifesta mundialmente, só por esse motivo, far-se-á mais
intensa em algumas porções do planeta, que sustentam e continuarão a manter, em se
prejudicando, as menores fricções econômicas dos países centrais que já estão a esboçar
as novas tecnologias e os mecanismos de domínio político-social na ordem que se
delineia (ataque preventivo, patenteamento de produtos e consolidação de grandes
blocos regionais como reserva exclusiva de mercado – caso da ALCA).
As roupas da nova escravidão da força de trabalho estão sendo costuradas
nos porões e salões das empresas e dos altos governos dos países centrais. A incógnita é
como serão recebidas as mudanças, de que forma serão impostas, negadas e, as reações,
repreendidas.
O metabolismo do capital-camaleão, a transubstanciação do trabalho
abstrato (do mais explorado e escravizado ao mais valorado em nível técnico-científico),
a reformatação do Estado-nação de autogoverno a palco de dança da política mega-
empresarial, agoniza a maior parcela da população mundial, aterrorizada com as novas
Guerras Justas contra o Terror e com toda a manipulação da mídia oligopolizada,
controlada estrategicamente pelas potências mundiais, que tornam reais as simulações
ideadas nos seus centros de inteligência (quando as oposições internacionais não surgem
como expressão de ordem econômica, diluindo-se assim que as fatias dos ganhos
estejam dispostas – como ocorrera com os países inicialmente opositores à guerra ao
Iraque e que, finda ela, brigavam pelo direito de explorarem economicamente a nação
invadida, como em ocupar as áreas e setores econômicos anteriormente controlados por
estatais).
Se a crise do capital é perene/estrutural ou intermitente/fenomenal é algo
por se revelar. Novas energias estão sendo buscadas para movimentar os conjuntos de
parafernálias técnico-científicas inventadas, a predizer possivelmente o novo ciclo
ascendente de crescimento econômico. O conjunto de objetos técnico-informacionais
que perfaz o espaço construído atual necessitará em breve de novas e seguras respostas
energéticas para lhe movimentar. À primeira vista, a crise parece ser estrutural e o
capital estar a asfixiar-se: a) no plano financeiro, pela diminuição relativa de estímulo à
base produtiva, por ser a especulação mais rentável (e isenta de qualquer taxação); b) na
base material produtiva, pela flexibilização, mecanização, automação, dessalariamento,
desemprego e escravidão, a gerar desemprego em massa, queda do consumo e
superprodução. Diminui assim, mas sem desaparecer, a faixa de trabalho vivo
assalariado real que movimenta efetivamente a economia. Se se darão mudanças de
paradigmas consistentes ou se um hibridismo mais consistente interpor-se-á, é o que
veremos.

143
Geografia e Trabalho no Século XXI

Na verdade, o que pretendíamos primeiramente demonstrar é que a crise


impõe aos capitalistas a necessidade de aceleração do tempo de giro do capital devido à
dificuldade de acumulação e à realidade concorrencial que se exacerba, fazendo
reaparecerem relações de trabalho mais desumanas como forma de se tentar controlar a
tendência à lei decrescente da taxa de mais-valia, no qual o resultado tem-se
corporificado no repasse dos custos aos trabalhadores e consumidores, seja via produtos
(gerando inflação) e ou no “maquiamento” das mercadorias (diminuição dos níveis de
peso, volume e qualidade). A isso, somam-se as novas formas de (auto)realização do
capital, extinção dos direitos trabalhistas e extensificação de “economias formais e
informais” –economia que é una, tensa e contraditória, ao invés dos que defendem
visões dualistas –, com o aumento da escravidão não-assalariada e o açodamento da
precarização salarial, inclusive em países centrais, como os E.U.A, que vêm mantendo
baixas as taxas de desemprego às custas da diminuição do nível salarial, com estratégias
empresariais que apontam à subcontratação e trabalhos temporários, entre outros
fenômenos em curso no país (ALVES, 1999, p. 64) e que dão seqüência à histórica
postura de transferência de seus déficits orçamentários104 – mormente nos regimes de
direita e mais populistas, a defenderem os direitos da classe trabalhadora americana à
qualquer custo – aos demais países do planeta que comerciam por intermédio da
economia dolarizada.
Enquanto isso, em plano nacional, há a tentativa histórica efetiva de
redimensionamento relativo da tríade Estado-capital-trabalho.
Politicamente, as portas do novo milênio foram adentradas por um
governo dito e por muitos visto como esquerda, que, por dentro, tenta de início fazer
reformas estruturais mínimas para que um nível de crescimento (desenvolvimento?) se
concretize e que as correntes do neocolonialismo imperialista possam ser afrouxadas.
Preocupação com a “nação”, “classe trabalhadora” e burguesia juntas nesse primeiro
momento (o que sugere que enfim, tardiamente, o ideal tradicional de associação da
esquerda com a burguesia nacional, na fase de desenvolvimento capitalista, tenha se
consubstanciado como etapa histórica necessária a ser transposta para se atingir o
socialismo, posteriormente).
Algumas questões graves à formação sócio-espacial brasileira são
apontadas como prioridade. A escravidão capitalista não-salariada comparece no
projeto. É o que assegurou o novo Secretário Especial de Direitos Humanos do governo
do PT, Nilmário Miranda, que afirmou levar adiante a erradicação do trabalho escravo
no país no prazo do mandato presidencial. Como conjunto de medidas projetadas,

104
O próprio Henry Kissinger, ex-chanceler de Nixon e Ford, criticava o ato de investir-se em
sistemas de armamentos, “guerra nas estrelas” ou garantias sociais às custas das dívidas externas
de países pobres, especialmente os latino-americanos, dizendo ser necessário um “Plano
Marshall” para a região, para que o capitalismo desses países não se enfraquecesse, criando
perigos reais às economias centrais. Ainda que, como creu Kissinger, a figura de Fidel não tenha
saído fortalecida e nem a revolução exportada, os perigos de crise global acentuaram-se.

144
Geografia e Trabalho no Século XXI

consta a distribuição de documentação civil básica entre os trabalhadores dos


municípios nordestinos e nortistas, regiões de maior concentração de indocumentados,
em regra analfabetos e semi-analfabetos, os cadastrados no projeto Fome Zero; pessoas
amiúde aliciadas para o trabalho escravo noutros cantos do país. Na outra ponta, além
da distribuição de documentação entre os vitimados, que restabeleça, segundo o
Secretário, o sentido de civilidade mínima, a intenção é se partir para ações mais duras
de combate a esse fenômeno, que incluem, em longo prazo, medidas que ultrapassam a
punição econômica (multas que podem ser infinitamente arroladas), e sim a
equivalência do trabalho escravo à categoria de crime hediondo, com efetuação
inclusive de desapropriação das terras por parte daqueles que o acometem105. Dando fim
às condições geratrizes dos “escravos modernos” à montante e a jusante do que se
cogita serem as suas raízes (CLODOVIL, 2003, p. 13-16).
Em sendo assustador o crescente dos números divulgados da escravidão
ilegal, que em várias partes do globo conhecem quantum adicionais, há pouco em 6
milhões de homens no mundo nesta condição e, embora haja esforços de alguns órgãos
em combatê-la, as ações são cerceadas haja vista que por detrás da omissão
governamental estão aqueles grupos transnacionais já conhecidos (HARVEY, 1999).
Isto, para não nos referirmos às políticas econômicas oficiais capitaneadas por países
capitalistas e “socialistas” do Oriente.
Não chega a ser absurdo perspectivar-se que os anos que se seguirão
corresponderão à concretização de uma democracia burguesa mais sólida, de ampliação
dos espaços públicos e generalização da escravidão do trabalho assalariado, reduzindo-
se as formas mais desumanas de escravidão não-salariada, pois tal projeto atrelar-se-á
mais a uma re-forma da sociedade do que re-evolução estrutural do processo
civilizacional.
Talvez mesmo esses processos não se excluam aprioristicamente. Não são
poucos os que creditam que fatores como as eleições prenunciam a necessidade de
mudanças que, tapadas, explodiriam violentamente; o que justificaria alguma concessão
política por parte das classes dominantes. Quando mais se, caso do Brasil, os projetos
em curto prazo de ambas as classes convergem em um sentido prioritariamente de
favorecimento de uma proposta de Estado-nação que pleiteia rever sua posição no jogo
das forças mundiais, contrariando a velha máxima de se deixar sobre o corpo social a
mão invisível do mercado, pois à noção de Estado Mínimo corresponde a de Mercado
Máximo, regulado externamente.

105
Na legislação que vigora, a desapropriação consta como medida punitiva a agricultores que
flagrados plantando maconha em suas propriedades, ficando de fora os casos que envolvem
trabalho escravo. Tramita no governo a inserção na Carta Magna da escravidão como fenômeno
punível de desapropriação.

145
Geografia e Trabalho no Século XXI

Potencialmente, perdem os propagadores de escravidão não-salarial.


Ganham espaço os adeptos do pacto social em Estado de tradição oligárquica, de
burguesia autocrática.
Longe de desbravar outros quinhentos, para os mais conservadores
políticos, que sem preocupação efetiva de saciarem, mas antes alimentarem ambas as
fomes (agora a espiritual mais que a material), deixam transparecer que a luta contra a
fome de pão deva merecer melhor atenção no país. O que em si não traz qualquer
problema à economia de mercado, já que certas alas da burguesia estão convencidas
desde muito que ao invés de 40 milhões de miseráveis excluídos é mais interessante a
admissão no mercado de 40 milhões de consumidores, como defendia o PNBE –
Pensamento Nacional das Bases Empresariais (DREIFFUS, 1991, p. 35).
Capitalismo modernizante com cheiro de reformismo social. O que
também não desmerece a consecução do que é projeto, desde que o tal “acúmulo de
forças”, petista no caso (Silva, Trabalho e política, 2000) não se ponha como soma
futura de partes exatas de uma equação cujo resultado, a história mostra, será o frustrado
eterno pacto entre os iludidos Iguais, a verter-se novamente em antagonismo
irreconciliável, contradição viva.
Realçamos que em termos de metabolismo da economia flexível do
capital, o proposto não garante mais do que a transformação dos que hoje se apresentam
apenas como “assalariados em idéia” (MALAGUTI, 2000), que guardam o imaginário
do momento predecessor, (ideário de seguridade e direitos trabalhistas), em assalariados
reais, potencialmente a dilatar os mecanismos de captação de renda e reinvestimento na
economia.
Ao se fazer representar legalmente na sociedade estatizada capitalista por
sujeitos sociais saídos de seu ventre, a questão principal mal desenleada pela classe
trabalhadora nessa viragem e princípio de milênio será, justamente, o de se encontrar o
ponto nodal e os mecanismos de alargamento do contra-espaço (MOREIRA, 2002b), da
contra-economia anticapitalista (BIHR, 1998), exercida no espaço da contra-
racionalidade (Santos, 1997), enquanto heterotopias (HARVEY, 1993). Esse sim, será o
momento histórico em que a luta pelo alargamento do contingente dos assalariados, que
resultará por sua vez de diminuição do tempo de trabalho para que ocorra a
extensificação social do exército ativo da força de trabalho, metamorfosear-se-á
efetivamente em luta classista, nas múltiplas dimensões epidérmicas que o modo de
vida do capital manifesta, com os trabalhadores portando consciência de classe em si,
por dentro e por fora das relações de trabalho. “Trabalhar menos para que todos
trabalhem. Eis o primeiro objetivo a ser perseguido pelo movimento operário” (BIHR,
1998, p. 187). Não nos esquecendo de que: “Á justa consigna trabalhar menos para
todos trabalharem deve-se, entretanto, adicionar outra não menos decisiva: produzir o
quê? E para quem?” (ANTUNES, 2000, p. 177 e 247).

146
Geografia e Trabalho no Século XXI

Transformar trabalho polivalente em trabalho politécnico deve ser um dos


momentos fundantes da nova sociabilidade, em que a concepção omnilateral de trabalho
deverá superar a distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual, servindo de base
à nova sociabilidade106, por ter o trabalho esse caráter transitivo e fundacional, diria
Lukács.
Desafio mais longínquo no horizonte. Mas objetivo que as trevas
capitalistas, por mais que se esforce, não conseguem definitivamente diluir.
Repensar a tragédia e a farsa para que seu ciclo vicioso, repetitivo, seja
quebrado. Tantos a isso se propuseram, na defesa do que entenderam ser primordial:
Marx e La Boétie, por exemplo, sobre a questão da liberdade e da emancipação; Lukács
a respeito do sentido ou falta de sentido das coisas; passando por Epicuro e a temática
da felicidade; entre tantos outros com tantas outras inclinações.
Talvez por isso, diriam alguns ser este um momento de inflexão, em que
as incertezas e oportunidades em grandiosidade assemelham-se àquela do
Renascimento, com uma bifurcação histórica se nos interpondo, provocando, pela
própria alternação ou alteração do complexo de significados.
Os despossuídos, na forma de um coletivo do diverso, edificando os
projetos sociais enquanto movimento de classe trabalhadora munida de organicidade
horizontal nas esferas político-legal e extraparlamentar, e que se lança de dentro para
além do capital, fazendo do diferente elemento nuclear à compreensão de uma nova
unidade não-antagônica. O homem buscando os sentidos reais das coisas ou o espelho
de identidades entre o ser e o não-ser, os espaços internos reencontrando-se com os
espaços externos e a classe dos trabalhadores congregando-se às diversas formas do
humano reprimido, fazendo a sua história, um seu novo espaço.
Cremos ser essa a fonte de reencontro com o elo perdido, no qual os
fragmentos e os fragmentados, enfim, hão de se reencontrar como dominados-rebeldes.
A pré-história humana a que aludira Marx e com ela as muitas formas de
escravidão humana inventadas, poderão enfim terminar. Talvez a pré-história humana
sucumba conjuntamente com esse pré-espaço social, capitalista, dando origem a uma
história e espaço humanos e emancipados.
E por que não, se o futuro trata-se de questão prático-concreta e não
interpretação ahistórica sobre todos os Espaços construídos e os que podem ser
historicizados?

106
“A concepção de omnilateralidade do homem centra-se na apreensão do homem enquanto
totalidade histórica que é, ao mesmo tempo, ‘natureza’, individualidade e, sobretudo, relação
social. Uma unidade na diversidade física, psíquica e social; um ser de necessidades imperativas
(mundo da necessidade material) em cuja satisfação se funda suas possibilidades de crescimento
em outras esferas (mundo da liberdade)”. (FRIGOTO, 1999, p. 148).

147
Geografia e Trabalho no Século XXI

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ornitorrinco, camaleônico, ou franksteiniano, o que importa é que o


capitalismo contemporâneo sustenta-se, nesse momento de transposição da
principalidade da realização econômica novamente à esfera da circulação, mediante
polimórficas expressões sociais entrelaçadas aos novos mecanismos do valor, do
trabalho social combinado e total, com a anexação de economias de subsistência e de
excedente de regiões “periféricas” ou “subdesenvolvidas” ao circuito da nova economia
política espacial do capital. Qual camaleão mutante, tais formas anunciam o poder
mimetizante que detém o capitalismo moderno em incorporar, à sua estrutura orgânica,
aspectos classicamente tidos como a ele estranhos e opostos.
Duas teses então se nos dispõem, porque delas estivemos implicitamente
a tratar ao longo do texto.
A primeira remete-nos à problemática de se o capitalismo teria esse
caráter polimórfico de realização econômica, quando ele centralizado economicamente
pela esfera da circulação; como originariamente ocorreu pouco após as grandes
descobertas marítimas. Se assim for considerado, de mais fácil aceite torna-se o
postulado teórico de pensadores como C. Furtado e C. Prado Júnior que defendiam a
constituição da Colônia Brasil como expressão periférica do modo de produção já
capitalista, nesses rincões do mundo e não como muitos outros pensaram: de condizer
este com um sistema pré-capitalista ou feudal, ou sistema colonial de produção, porque
não assalariado e regido por grandes proprietários de terras ociosas.
Talvez esteja o capitalismo ontologicamente regido, nas fases em que
centrado pela esfera econômica da circulação, por leis que o obrigue a mimetizar-se
mais livremente, a despeito da legislação e dos direitos trabalhistas, especialmente mas
não unicamente (como pensam alguns) nas crises, do que em fases em que a
principalidade da realização econômica encontra-se balizada na produção, como nas
fases de industrialização geradora de maior salariamento e homogeneização da norma-
padrão de realização econômica; em que pese o primeiro momento da história estar
atado a um mero realizar econômico simples e o segundo, ao qual presenciamos,
apresente uma esfera da circulação e um setor de serviços bem mais poderoso,
economicamente ampliado e socialmente concentrado.
A segunda tese, ligada à anterior, sugere que, uma vez sendo o
capitalismo desde o princípio de sua expansão hegemoneizante um complexo de
complexos mutante ou uma unidade do diverso metamorfoseante, movida pelo
desenvolvimento desigual e combinado em todos os níveis possíveis (econômico,
social, político, ideológico, cultural e territorial), só poderemos então concebê-lo como
um sistema profunda e extensamente sustentado estruturalmente pelas mais
heterogêneas formas e processos socioeconômicos, ainda que os vetores econômicos
sejam os mesmos em qualquer quadrante do orbe.

148
Geografia e Trabalho no Século XXI

Dissecar o seu organismo e a lógica fetichizada inerente à sua colorida


epiderme, requer de nós irmos mais além da aparência espacial do camaleão, para que,
compreendendo a essência da logística econômica da espacialidade diferencial e
combinada, desvendemos os muitos mimetismos de que se vale o seu metabolismo.

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153
Geografia e Trabalho no Século XXI

A TECNIFICAÇÃO NO CAMPO: MODERNIZAÇÃO DA


*
AGRICULTURA E RELAÇÕES DE TRABALHO
**
Marli Terezinha Szumilo Schlosser

1. INTRODUÇÃO

O presente texto tem por objetivo, apresentar um breve resgate histórico


do processo de colonização e tecnificação agrícola, desenvolvidos no município de
Marechal Cândido Rondon de 1960-1980. Com o avanço do projeto
“desenvolvimentista” e a sistematização da colonização planejada, as ações desta
ocupação não pouparam a natureza. A modernização da agricultura provocou
expressivas modificações na organização do espaço oestino. As inovações técnicas
implantadas na agricultura serão analisadas, a partir de discursos jornalísticos.
Analisado historicamente, o estilo de colonização no Brasil, baseado nos
moldes europeus, desde suas tentativas iniciais, está alicerçado na exploração dos
recursos naturais. Lamentavelmente, em solo brasileiro, nas palavras de Darcy Ribeiro
(1995, p. 68-69):
Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco
séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo. No afã de gastar gentes e
matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam
morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam
gente aos milhões.
O autor, ao discorrer sobre o tipo de exploração incentivada pelos
europeus e efetivada pelas elites brasileiras, evidencia um total desprezo e
desapropriação dos costumes e saberes das populações locais. Nesse cenário, “as

*
Este texto, é uma versão do segundo capítulo da dissertação de mestrado “Nas Ondas do Rádio:
a viabilização da Modernização Agrícola no Oeste do Paraná (1960-1980)”, desenvolvida junto
ao Programa de Mestrado em Geografia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), sob
orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior.
**
Professora do Curso de Geografia da UNIOESTE – Câmpus de Marechal Cândido Rondon;
mestre em Geografia; doutoranda em Geografia, junto ao Programa de Pós-Graduação em
geografia da FCT/UNESP/SP, sob orientação do professor Antonio Thomaz Júnior; membro do
Grupo de Pesquisa “Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (CEGeT). E-mail:
marlisch20@hotmail.com

154
Geografia e Trabalho no Século XXI

características do modo de produção capitalista vêm-se acentuando no campo que se


expande com o aparecimento das grandes rodovias” (ANDRADE, 1979, p. 60).
Com base nas premissas do projeto “desenvolvimentista”, constata-se,
que no Extremo Oeste do Paraná, a rápida expansão da fronteira diluiu-se através da
construção de estradas, sem um investimento inicial e proporcional à capacidade do
governo em gerenciar a região. Uma vez sistematizado o gerenciamento, resultado, em
grande parte, da migração e da colonização planejada, as manobras de ocupação não
pouparam a natureza, caracterizando-se pela extração descontrolada de recursos
naturais, em especial a madeira. A adoção destas estratégias sugere que as políticas
ambientais das autoridades brasileiras caracterizam-se pela falta de perspectivas a longo
prazo, já que não se consolidam como verdadeiras formas de desenvolvimento regional.
O que fica evidente, contudo, é que estas políticas caracterizam-se pela linguagem
alicerçada na noção de progresso.

2. COLONIZAÇÃO, EXPANSÃO ECONÔMICA: A FALÊNCIA DA


NATUREZA

A região Oeste do Paraná, atualmente apresenta transformações


motivadas pela expansão econômica, dilatando as fronteiras agrícolas, o que ocasiona
prejuízos ao meio ambiente. Este processo sinaliza para o fato de quetodo cultivo
implica, na verdade, uma regressão do número de espécies naturalmente presentes na
zona cultivada. Com a redução do número das espécies vegetais, acarretando a do
número de espécies animais, os mecanismos homeostáticos ficam empobrecidos, ou
mesmo desaparecem, no caso das monoculturas extensivas com destruição quase total
das adventícias (ACOT, 1990, p. 104).
Esta preocupação revela elementos e articulações que contribuíram,
significativamente, para a destruição da mata rondonense. Na verdade, pode ser
detectada muito mais do que a simples retirada de árvores, pois a teia da exploração
afetou os ecossistemas vitais em todas as áreas. É bom lembrar que quando a paisagem
muda, a sociedade se transforma. Sendo assim, a ocupação da referida área não contou
com um planejamento responsável, identificada apenas com modelos pautados no foco
desenvolvimentista adotado no país, pois está comprovado que tais modelos geraram
prejuízos à natureza e à sociedade, produzindo a escassez de alimentos107 e o isolamento
advindo da miserabilidade da população. É por isso que os trabalhadores “[...] São
desprovidos de direito, o seu trabalho é desprovido de sentido, em conformidade com o

107
Sobre exportação de gêneros alimentícios e escassez de produtos básicos como feijão, arroz,
entre outros, consultar: SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da alimentação no
Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.

155
Geografia e Trabalho no Século XXI

caráter destrutivo do capital, pelo quais relações metabólicas sob controle do capital não
só degradam a natureza, levando o mundo à beira da catástrofe ambiental” (ANTUNES,
2002, p. 205).
Através de programas governamentais, foram realizadas ações
direcionadas, principalmente, ao desenvolvimento agrícola e industrial. De acordo com
a fala dos migrantes, estes foram atraídos para a região, a partir de promessas como a de
se tornarem proprietários de áreas maiores108.
Para esclarecer algumas questões relacionadas a este processo, é
importante apresentar resumidamente o contexto histórico da colonização de Marechal
Cândido Rondon. Com isto, identificam-se os discursos que atuaram no início da
ocupação da região. Entre eles, destaca-se a necessidade de “fabricar” uma ação coletiva
para nacionalizar áreas de fronteiras, povoando os “vazios demográficos”, incentivando
a migração para o Oeste e fomentando, desse modo, a ocupação através de empresas
privadas de colonização, tais como a MARIPÁ. Com tal estratégia, buscava-se
desenvolver a produção de bens a serem destinados ao comércio, tendo como foco
principal a produção com base na pequena propriedade e na policultura.
Contudo, é também discursivamente que se introduz paulatinamente o
abandono da policultura em benefício da especialização, ou seja, um discurso
direcionado a atender os anseios do mercado internacional, incutindo, estrategicamente,
a necessidade de tornar o Oeste um celeiro do Brasil. “A chegada na região em grande
quantidade de migrantes gaúchos e catarinenses, já prevista pelo Estado Novo, haveria
de se concretizar nas décadas de 50 e 60. A década de 50 foi à época do grande ‘boom’
migratório sulista para a região Sudoeste e Oeste do Paraná” (WACHOWICZ, 1985, p.
155).
Quanto às inovações técnicas, as mesmas foram implantadas na
agricultura do Extremo Oeste do Paraná de forma mais intensa na década de 1970.
Como será identificado nos discursos jornalísticos, estes foram aperfeiçoamentos
técnicos induzidos, isto é, planejados e implantados com apoio externo. Com isso
detectou-se que, foi subtraída “[...] Uma sociabilidade tecida por indivíduos [...] sociais
e livremente associados, na qual ética, arte, filosofia, tempo verdadeiramente livre e
ócio, em conformidade com as aspirações mais autênticas, suscitadas no interior da vida
cotidiana, possibilitem as condições para a efetivação da identidade entre indivíduo e
gênero humano, na multilateralidade de suas dimensões” (ANTUNES, 2002, p. 177)
Na manchete intitulada “Atividades Administrativas”, observa-se a
mescla inicial entre técnicas vinculadas à policultura, tais como carroças e bois,
dividindo espaço com caminhões e “patrolas”. O destaque cristaliza-se na relação

108
Sobre este tema, consultar o trabalho com fontes orais de MACCARI, Neiva Salete Kern.
Migração e memórias : a colonização do Oeste Paranaense. Curitiba, 1999. Dissertação
(Mestrado em História) – UFPR.

156
Geografia e Trabalho no Século XXI

progressista do homem com a máquina. Na prática, são os preparativos para a abertura


de novo caminho que visava a transformar o cotidiano local.
Cinco patrolas em atividade pulsante e três tratores agitando a região com o ronco
das máquinas. Ao, mesmo tempo, caminhões, caminhonetes e carroças recolhendo mandioca e
milho, liberando a área para o trabalho das maquinas. O homem e a maquina, quando unidos,
fazem milagres (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 1, 14.11.66 a 28.02.67).
O processo de incorporação do modelo modernizador ocorre, a partir de
articulações organizadas pela Prefeitura Municipal e Sindicato Rural. Estes órgãos
atuaram junto aos agricultores e as estratégias usadas são inúmeras. Uma delas
encontrava-se sustentada nos concursos de escolha dos melhores animais. As
exposições de animais e produtos recebiam toda a infraestrutura necessária, tais como o
transporte e alimentação gratuitos destes. Além disso, estes eventos eram patrocinados
através de premiações significativas.
Ligadas às atividades econômicas, essas festas expressam o cotidiano do
colono na exposição de produtos agrícolas, na culinária com pratos típicos, etc. Em
alguns municípios, como é o caso de Marechal Cândido Rondon, no dia do município o
desfile de carros alegóricos mostra colonos com suas vestimentas nos afazeres do dia-a-
dia, destacando, também, a figura do pioneiro. Isto nos leva a crer que as festas atuam
no sentido de rememoração e preservação da cultura campesina (SCHREINER, 1997, p.
171).
As atividades envolvendo a exposição de produtos agrícolas — tais como
cereais e hortaliças — e animais de raça eram incentivadas sob o argumento da
importância do evento no que se refere à representação do município em outros locais, a
partir da exposição dos produtos e animais rondonenses. Os apelos dirigidos aos
agricultores partiam também do Sindicato Rural que estabelecia contatos com eles para
organizar a exposição. Muitos desses contatos eram realizados pelos professores que se
deslocavam semanalmente para os distritos do município. Assim, evitaria transtornos ao
agricultor com o deslocamento até a cidade.
Constantemente era reafirmada a importância da exposição para o
município, alertando para a boa qualidade dos produtos a serem expostos.

A Prefeitura Municipal e o Sindicato Rural estão interessados em


que nos façamos representar. Por isso alertamos aos senhores
agricultores que desejam expor em Guaira, que a Prefeitura
Municipal se encarregue de tudo. Buscará o animal na casa do
agricultor, transportará até Guaira, manterá pessoa especialmente
encarregada de tratar o animal durante toda a exposição como
também vai trazer o animal de volta para ser devolvido ao dono.
Na Prefeitura Municipal estará o Sr. Omar Priesnitz à disposição
dos senhores agricultores para dar as informações necessárias e
as explicações que forem solicitadas. Haverá valiosos prêmios
para os campeões da exposição. A exposição será composta de

157
Geografia e Trabalho no Século XXI

cereais, algodão, café, ovos, verduras e suínos (FRENTE


AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 4, 12.03.68 a 29.05.68).

O discurso compartilhava palavras cujo emprego buscava tornar comum a


todos, o ideal desenvolvimentista. Isto pode ser identificado também na mensagem do
poder executivo, na pessoa do Prefeito Almiro Bauermann, tratando da passagem do 25
de julho (aniversário do Município, dia do Colono e dia do Motorista). A mensagem
não economizava elogios ao desenvolvimento do jovem município e o jogo da retórica
buscava nos acontecimentos do passado os argumentos para falar do progresso,
sustentados pela idéia do trabalho, verdadeiro agente da riqueza e da economia.

MENSAGEM DO PODER EXECUTIVO PARA O DIA 25 DE


JULHO DE 1977
[...] Realmente, 17 anos pouco representa no contexto da história
de um povo, porém no nosso caso, por outro lado, ao olharmos
para trás vemos o quanto houve de progresso em tão curto espaço
de tempo. Saiu o Município com uma arrancada
desenvolvimentista desde a sua criação, em todos os campos de
atividade, começando praticamente do nada, em volta à selva
agreste e rude, prosseguindo num ritmo vertiginoso, que não
encontra quase paralelo conhecido [...]. O nosso povo, formado
desta gente maravilhosa, realizou um verdadeiro milagre, à vista
de todos. É este o Marechal Cândido Rondon que todos
almejamos, no rumo certo e célebre ao seu grande futuro que lhe
está reservado. Graças ao trabalho, fonte inesgotável da riqueza
em todos os sentidos [...]. Como baluartes desse extraordinário
impulso, saudamos os agricultores, mola mestra de nossa
economia e os bravos motoristas que transportam a riqueza ao
seu destino (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 36, 11.06.77 a
28.07.77).

A modernização surgiu como fenômeno que provocou a marginalização


de certos segmentos da população: os pequenos proprietários, excluídos pela mudança
social, viram-se em uma situação difícil, já que precisavam vender suas terras em busca
de outros espaços de trabalho — seja nas cidades ou em outras frentes de expansão —
em vez de viver uma vida de descanso, desfrutando do conforto merecido após anos de
trabalho que o tal “progresso” proporcionou. Sendo assim, as implicações decorrentes
da modernização não eram percebidas como ação em benefício do capital.
Essa disritmia entre as ‘leituras’ que capital e trabalho fazem do mesmo
fenômeno, revela, então, o elemento substantivo do processo de dominação, ou seja, o
capital, voltado para todo o circuito produtivo, faz do trabalho instrumento vital da
dominação de classe, o que cimenta sua hegemonia no conjunto do tecido social
(THOMAZ JÚNIOR, 2002, p. 7).

158
Geografia e Trabalho no Século XXI

De acordo com Ricardo Antunes (2002, p. 183) “[...] Mas que o


entendimento das mutações em curso no mundo do trabalho nos obriga a ir além das
aparências. E ao fazer isso procurei mostrar que o sentido dado ao ato laborativo pelo
capital é completamente diverso do sentido que a humanidade pode conferir a ele”. Esta
fragmentação, dos pontos de vista, sinalizava para a maquiagem da realidade, através do
que, a exclusão dos que foram incorporados pela visão progressista, tornou-se obscura
novamente e as expectativas os tornaram mais uma vez “colonos figurantes” no palco
da migração.

3. MUDANÇAS TÉCNICAS NA FORMA DE CULTIVAR A TERRA

Com o objetivo de caracterizar as transformações ocorridas com a


chamada “Revolução Verde”, procurou-se identificar as inovações inseridas no
cotidiano agrícola de Marechal Cândido Rondon. Este fenômeno tinha como mola-
mestra a substituição de técnicas tradicionais, até então utilizadas, por orientações
vinculadas à conservação do solo, ao uso de inseticidas e à utilização de máquinas no
trabalho agrícola. Todo esse aparato técnico foi denominado por alguns autores de
“pacote tecnológico”. Já, o conjunto de ações discursivas ligadas à comercialização
desse universo de tecnologias, denominou-se “modernização tecnológica”. Sendo assim,

[...] juntamente com a introdução de novas variedades de trigo,


arroz e milho, mais produtivas, os países que aderiam à
‘Revolução Verde’ eram orientados e induzidos a usar novas
técnicas de correção do solo, fertilização, combate às doenças e
pragas, bem como a utilizar maquinaria e equipamentos
modernos. (BRUM, 1983, p. 61).

As mudanças no sistema de relações e fases da agricultura provocaram


uma situação de ruptura nos padrões técnicos a nível mundial e este processo estendeu-
se ao Brasil. Nos Estados Unidos, o processo aconteceu, a partir de um planejamento
efetivo que contemplou desde a adaptação dos agricultores até o sistema de transporte
de produtos: era o surgimento da agricultura tecnificada. A importação, deste modelo
para o Brasil, apresentou graves problemas. Sua efetiva implantação ocorreu na região
Sul do país, sem levar em consideração a necessidade de adaptação por parte dos
agricultores brasileiros. Inserido neste contexto, o modelo é transferido para o Extremo
Oeste “como um rastro de pólvora”. A “Revolução Verde” aparece então como “carro-
chefe do processo de modernização da agricultura no mundo e também no Brasil”
(BRUM, 1983, p. 9).
No município de Marechal Cândido Rondon, inicialmente as técnicas de
cultivo atendiam à policultura. Para desvendar os elos que ficaram de fora da prática
discursiva, ou que não possuíam espaço nos “modelos racionais” de produção, torna-se
necessário apresentar algumas das características das técnicas tradicionais de cultivo. A

159
Geografia e Trabalho no Século XXI

agricultura tradicional109, vigente na década de 1950, impulsionou os sistemas de


cultivo empregados pelos colonizadores provenientes do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina. Estes sistemas de cultivo contemplaram moldes que tiveram continuidade no
Extremo Oeste do Paraná. Os agricultores em suas pequenas propriedades desenvolviam
atividades agropecuárias, envolvendo a participação da família que, geralmente,
apresentava-se numerosa. As atividades contemplavam a criação de suínos e gado
destinados ao consumo e ao comércio.
O sistema tradicional não exigia financiamentos e técnicas inovadoras,
baseadas em maquinários, pois as ferramentas utilizadas na lavoura eram rústicas.

[...] Os instrumentos de trabalho eram simples: foice e machado,


para o desbravamento e derrubada do mato; enxada e arado de
tração animal para o preparo do solo e controle das ervas
daninhas; máquina manual de plantar; foicinha de cortar trigo,
arroz, etc.; máquina manual de matar formiga; carroça e outros
veículos de tração animal, para o transporte [...]. As técnicas de
preparação do solo, cultivo, colheita, etc. eram fruto da
experiência e se transmitiam de uma geração para a seguinte,
aperfeiçoadas lentamente (BRUM, 1983, p. 82).

Desse modo, o cultivo tradicional permitiu uma apreensão privilegiada do


espaço rural, afinal, era o próprio ator (agricultor) deste espaço que estava atuando.
Exemplo disso, é o fato de que, a forma inicial adotada pelos agricultores em suas
propriedades integrava o trabalho familiar, que era desenvolvido pelos integrantes da
propriedade ou em mutirão, com a ajuda dos vizinhos, principalmente nas épocas de
colheita110.
Torna-se imperativo mencionar que na agricultura tradicional, os
agricultores mantinham suas hortas e pomares como forma de complementar a
alimentação de suas famílias. Segundo Argemiro Brum (1983, p. 83), “junto à
residência da família, ficavam a horta, onde se produziam hortaliças, verduras e
legumes, e o pomar, com árvores frutíferas – tudo voltado diretamente ao consumo da
família rural”.

109
Para obter mais informações sobre as técnicas desenvolvidas pelos migrantes sulistas no Oeste
do Paraná, consultar: MÜLLER, Keith Donald. Colonização pioneira no sul do Brasil : o caso de
Toledo, Paraná. Boletim Brasileiro de Geografia, Rio de Janeiro, v.48, n. 1, p. 83-139, jan./mar.
1986.
110
Sobre as atividades desenvolvidas em cultivos tradicionais, consultar: OBERG, Kalervo.
Toledo : um município da fronteira Oeste do Paraná. Rio de Janeiro: s.e., 1960.

160
Geografia e Trabalho no Século XXI

Com relação às necessidades da família do campo as mesmas eram


supridas em grande parte na propriedade e o restante era adquirido no comércio: “[...]
adquiriam-se no comércio principalmente tecidos, calçados, objetos de uso e artigos de
consumo doméstico que não eram produzidos na propriedade rural” (BRUM, 1983, p.
83).
Na obra de Ricardo Abramovay, intitulada Paradigmas do capitalismo
agrário em questão, são apresentadas considerações sobre a produção tradicional nos
anos 60 e a preocupação dos economistas com o crescimento dos lucros. Para tanto, a
estratégia de ação estava atrelada às transformações técnicas da agricultura.

[...] A perspectiva de uma combinação diferente destes fatores


poderia resultar num aumento do produto. Somente máquinas e
insumos de origem industrial, combinados com um sistema de
pesquisa e extensão (voltados precisamente para este tipo de
modernização) podem elevar a produtividade do trabalho e
também permitir a liberação de mão-de-obra do campo para as
cidades, sem que isso se traduza numa queda no nível da oferta
agrícola (ABRAMOVAY, 1992, p. 84).

As atividades práticas eram executadas, tendo como objetivo principal,


preparar a receptividade do agricultor para a incorporação das “novas técnicas”
agrícolas. A divulgação destas novas técnicas ocorreu através do rádio, cujo discurso
tratava da temática com a justificativa da necessidade “de treinar e conscientizar o
homem do campo”. Tais elementos caracterizam a ação do Ministério do Planejamento
e da Secretaria do Planejamento do Estado do Paraná, juntamente com a ACARPA. Os
estímulos eram constantes por intermédio das associações rurais:
As Associações fizeram, nos anos 60, um verdadeiro trabalho de conquista dos
agricultores, através de estímulos para que comparecessem às reuniões, participassem de
concursos e fizessem novas experiências em sua propriedade. Distribuíam prêmios, promoviam
excursões com os agricultores fazendo-os visitar lugares onde o uso de certas técnicas já estava
mais desenvolvido, enfim, havia todo um trabalho de orientação, mas, também, de “sedução” dos
colonos da região (PAULILO, 1990, p. 56).
O papel desempenhado pelas associações rurais, no que se refere à
implantação do modelo racional de produção agrícola, estava inscrito, principalmente,
na realização de cursos de aperfeiçoamento. Como exemplo, cita-se o conteúdo de um
destes cursos divulgado pela emissora de rádio. Sua estrutura refletia os preparativos
idealizados pelos órgãos governamentais, com o objetivo de envolver o agricultor
direcionando-o para a efetivação desejada. Assim, foram apresentadas noções sobre
administração da propriedade, características do mercado, exploração da área rural,
assistência técnica, extensão rural, créditos, cooperativismo, entre outros temas
vinculados ao novo modelo.

161
Geografia e Trabalho no Século XXI

CURSO PARA PRODUTORES RURAIS


Com o objetivo de treinar e conscientizar o homem do campo, no
sentido de mostrar-lhes o instrumental técnico e científico que
está à sua disposição e que poderá ser utilizado para racionalizar
sua atividade, será realizado em Marechal Cândido Rondon um
curso para produtores rurais. Este curso será ministrado por
técnicos do Ministério do Planejamento e da Secretaria de
Planejamento do Estado do Paraná, numa promoção da
Federação da Agricultura do Estado do Paraná e com a
colaboração da ACARPA. [...] versará sobre Noções de
Administração da Propriedade Rural; Oportunidades de Mercado
dos Principais Produtos Agrícolas; Noções de Uso da
Propriedade Rural; Mecanismos de Assistência; Técnica –
Extensão Rural – Fomento – Crédito Rural; Noções de
Cooperativismo; Noções de Tributação – Encargos Incidentes
sobre a Propriedade Rural e Funrural. As inscrições para esse
importante curso, que faz parte do Programa Paranaense de
Treinamento de Executivos (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS,
v. 20, 05.03.74 a 21.08.74).
O processo de modernização da agricultura, denominado “Revolução
Verde”, foi um programa estruturado a partir do aumento da produtividade, na expansão
das áreas cultivadas e na incorporação de novas técnicas no campo.

[...] um papel importante cabe ao Estado no desenvolvimento da


agricultura: o estímulo seja à reprodução interna seja à
importação dos insumos que compõem a agricultura moderna, a
implantação de centros de pesquisa capazes de adaptar os
progressos técnicos de agronomia ao meio ambiente nacional e
local (pesquisas com variedades de alto rendimento, por
exemplo) e a difusão deste conjunto de inovações através de um
amplo sistema de extensão (ABRAMOVAY, 1992, p. 85).

O papel atuante do Estado foi uma constante cristalizada na implantação


de tecnologias, direcionadas ao setor agrícola. Mas, o estabelecimento prático da
atuação ocorria também, de forma direcionada. Como exemplo, pode ser citada a
atuação dos sindicatos através do atendimento ao agricultor por intermédio de médicos
veterinários. O discurso enfatiza a importância do atendimento gratuito para os sócios
quites com a mensalidade. Os parâmetros, sugeridos pela tecnificação, são veiculados
de várias formas e as estratégias sempre reforçadas. Pois, “[...] o capital recorre cada
vez mais às formas precarizadas e intensificadas de exploração do trabalho, que se torna
ainda mais fundamental para a realização de seu ciclo reprodutivo num mundo onde a
competitividade é a garantia de sobrevivência das empresas capitalistas” (ANTUNES,
2002, p. 120).

162
Geografia e Trabalho no Século XXI

O SINDICATO RURAL TEM AGORA MÉDICO


VETERINÁRIO
Podemos hoje dar uma bela notícia aos senhores sócios do
Sindicato Patronal Rural deste município. Desde anteontem está
nesta cidade, para atender aos sindicalizados da agricultura, um
médico veterinário. Trata-se do Dr. Leopoldo Pietróvski,
formado pela Universidade Federal do Paraná. O Dr. Pietróvski
atenderá gratuitamente aos senhores colonos que estejam com
suas mensalidades perfeitamente em dia com o sindicato.
Aqueles que não são sócios ou estão com os pagamentos
atrasados, deverão pagar a consulta a parte. Desejamos as boas
vindas ao Dr. Pietróvski e colocamos esta emissora a seu dispor,
sempre que necessite de nossos modestos préstimos (Frente
Ampla de Notícias, v. 6, 21.03.69 a 23.08.69).

Para isso, eram destinados recursos que contemplavam o


desenvolvimento de sementes que pudessem ser cultivadas em diferentes climas e solos,
bem como o auxílio de técnicos dedicados à fabricação de adubos e venenos,
proporcionando o atendimento de um padrão criado e justificado na eficiência da
modernidade.
A chamada “Revolução Verde” foi um programa que tinha como objetivo
explícito contribuir para o aumento da produção e da produtividade agrícola no mundo,
através do desenvolvimento de experiências no campo da genética vegetal para a
criação e multiplicação de sementes adequadas às condições dos diferentes solos e
climas e resistentes às doenças e pragas, bem como da descoberta e aplicação de
técnicas agrícolas ou tratos culturais mais modernos e eficientes (BRUM, 1983, p. 55).
É preciso, entretanto, compreender o poder atribuído às notícias e
contatos realizados pelo então prefeito municipal Werner Wanderer, o qual exerceu por
longa data a função de Deputado Federal pelo Estado do Paraná. Entre os assuntos
destacados, o desejo de instalação de eletrificação rural foi levado ao conhecimento do
Ministério da Agricultura. De acordo com o documento, o pedido surpreendeu, devido
ao grande número de moradores inscritos (2.800 famílias) e assim, foi aceita com
entusiasmo a possibilidade de instalação da eletrificação rural em Marechal Cândido
Rondon, em especial “a toda sua produtiva colônia”. Torna-se evidente o universo
discursivo que permeia a dinâmica da produção agrícola, agora calcada na necessidade
de energia elétrica para impulsionar o progresso da região. Os procedimentos para a
implantação acelerada da modernização abriam todas as portas para as “boas novas”.

PREFEITO MUNICIPAL CHEGOU HOJE COM BÔAS


NÓVAS
[...] o senhor prefeito municipal manteve-se em entrevista com o
coronel Romeu, chefe da C.E.R. – 1 em Ponta Grossa, grupo
militar [...] que foi passado aos encargos pelo senhor Presidente

163
Geografia e Trabalho no Século XXI

da República no tocante à construção da BR-467, uma estrada


promissora para nós desta região do canto oeste do Paraná. A
beleza, conforto [...] produtividade desta estrada entre Cascavel
até Guaíra, está entregue confiantemente à chefia da C.E.R. - 1,
que deve acelerar seu ritmo de trabalho para que logo tenhamos
esta obra concluída seguindo o exemplo de beleza e expansão
que nos dá à todos de Foz à Ponta Grossa. Conversando com o
coronel Romeu, o prefeito Werner, obteve positiva resposta
quanto à uma patrola da comissão de estradas de rodagens que se
encontra encostada em Cascavel (Frente Ampla de Notícias, v. 6,
21.03.69 a 23.08.69).

Novamente as notícias sugeriam um discurso direcionado ao interesse


coletivo. Enfatizava-se, sem poupar detalhes, a presença de funcionários encarregados
da construção da estrada, considerada, pelo então Ministro dos Transportes Coronel
Mario Andreazza, como uma prioridade.

UMA NOTÍCIA DE ALTO INTERESSE REGIONAL


Estava ontem à tarde defronte a rodoviária um jipe do D.E.R.,
cheio de cobertas e cobertores. O fato chamou nossa atenção e
fomos falar com os tripulantes do jipe. Foi ali que ficamos
sabendo que faziam parte de uma turma encarregada do
levantamento da BR-467 que parte de Cascavel e vai a Guaíra,
passando pelo nosso município. Informaram-nos aqueles
funcionários do estado que existem 4 turmas fazendo esse
levantamento, e com o compromisso de realizar este trabalho
quanto antes possível, para começarem as obras de construção
desta estrada e respectivo asfaltamento. Cumpre-se assim, as
declarações do ministro dos transportes Coronel Mario
Andreazza que diz que as duas BRs, a 467 e a 162 são altamente
prioritárias. Uma boa notícia, sem dúvida. (FRENTE AMPLA
DE NOTÍCIAS, v. 6, 21.03.69 a 23.08.69).

No município, existia uma constante preocupação com a implantação da


eletrificação rural. Deste modo, os discursos justificam a necessidade de organizar o
maior número de inscritos para chamar a atenção da companhia responsável pela
instalação da energia elétrica. Logo, o discurso atrela à eletrificação, a necessidade de
maior conforto para o agricultor e enfatiza o “progresso” advindo da eletrificação no
campo.
Tal afirmação pode ser atribuída ao “discurso sobre a modernização do
Paraná, via industrialização. Há que se considerar a ênfase dada à necessidade de
ampliação e instalação de uma infra-estrutura básica, notadamente rodovias e energia
elétrica” (IPARDES, 1989, p. 64). Eram contínuos e numerosos os programas que
falavam da eletrificação atrelada em muitos casos, à expressão “benefício para nossa
gente”. Quanto maior o número de usuários, menores os custos dos serviços da energia

164
Geografia e Trabalho no Século XXI

no campo. Esta foi a fórmula adotada para justificar a necessidade de ampliação da rede
elétrica na região. A adoção dessas medidas recebeu os reforços discursivos dos
“homens públicos”, sendo que um número expressivo de pedidos receberia maior
atenção e rapidez e tornaria o município, o primeiro a ser beneficiado com o programa.
Com a concretização do empreendimento, abrir-se-iam inevitavelmente as portas do
“progresso”. Neste contexto nasceram

Os [...] bolsões de pobreza [...], as explosivas taxas de


desemprego estrutural, a eliminação de inúmeras profissões no
interior do mundo do trabalho em decorrência do incremento
tecnológico voltado centralmente para a criação de valores de
troca, as formas intensificadas de precarização do trabalho, são
apenas alguns dos exemplos mais gritantes das barreiras sociais
que obstam, sob o capitalismo, a busca de uma vida cheia de
sentido e emancipada para o ser social que trabalha. (ANTUNES,
2002, p. 93).

A instalação da energia elétrica nos lares dos agricultores atendia a


interesses específicos? Pode-se sugerir que a necessidade de se criar mercados para a
crescente industrialização do país, estava na ordem de prioridades deste tipo de
empreendimento. Portanto, as luzes do progresso trariam vantagens, em termos de
produtividade, aos agricultores. Contudo, satisfaziam também à necessidade de vendas
de produtos ligados à indústria de motores elétricos e afins. A chave para o problema
está na abertura de possibilidades para a energia elétrica que “levará força para a
movimentação de motores e vários implementos agrícolas”, caracterizados então como
integrantes das necessidades dos agricultores modernos. Sobre a questão, algumas falas
de agricultores identificam elementos que sustentavam as propostas modernizadoras:

Nos primeiros anos quando nós viemos prá cá, nem rádio não
tinha [...]. Depois a gente conseguiu o rádio [...]. Isso muda, hoje
em dia tem muita gente que fala, porque não tem dinheiro é ruim;
só que hoje nós temos carro, temos televisão, temos geladeira,
congelador, tem banheiro em casa, tem luz, tudo isso [...]. Aqui
custa, aí que vai o nosso dinheiro, mas nós tamos cômodos,
tamos vivendo bem [...]. (D, 05 mar. 1996, grifos nossos)

O poder persuasivo relacionado às novas necessidades não parou por aí.


Ele criou como parte integrante do cotidiano dos agricultores a ansiedade em progredir
em direção a um futuro promissor. Com tais argumentos, o novo modelo implantou seus
ideais.

PESSOAL ENTUSIASMADO TRATOU DA


ELETRIFICAÇÃO RURAL
[...] Ouvindo as palavras do prefeito municipal Werner
Wanderer, permaneceram atentos, e ao final de tudo pode-se

165
Geografia e Trabalho no Século XXI

notar entre os presentes a euforia reinante entre todos em saber


que dentro de um curto espaço de tempo poderão ter energia
elétrica em seus lares, que além de iluminação, levará força para
a movimentação de motores e vários implementos agrícolas de
muita necessidade no meio colonial [...]. Observando a alegria
entre os presentes à última reunião de anteontem, somente
podemos acreditar mais ainda neste povo que não pensa em outra
coisa que PROGREDIR, e PROGREDIR sempre. O maior
desenvolvimento e vontade de nosso povo nos traz a lembrança
de um futuro promissor e que não está muito longe com relação à
Marechal Cândido Rondon (Frente Ampla de Notícias, v. 7,
25.08.69 a 31.12.69).

No final dos anos 60, as mudanças no sistema de relações e de expansão


da fronteira agrícola eram notórias no Extremo Oeste do Paraná, em especial no
município de Marechal Cândido Rondon. O modelo adotado até então pelo pequeno
agricultor foi modificado profundamente pela ação da oferta de créditos para a compra
de máquinas e pela ação dos discursos transmitidos aos agricultores de forma incisiva.

O OESTE E SUDOESTE MOSTRAM SUA PUJANÇA


O desenvolvimento econômico do oeste e sudoeste é um fato
incontestável e temos a impressão que estamos entrando para um
período em que se falar no oeste e sudoeste, não é mais falar em
regiões sub-desenvolvidas ou marchando à retaguarda do
desenvolvimento do nosso Estado. Falava-se em Paraná em
função do norte, dando-se a impressão que o Estado só
progrediria naquelas regiões, onde era senhor absoluto o café. A
policultura foi introduzida no oeste e sudoeste e hoje o progresso
e a pujança dessas regiões é um fato incontéste (FRENTE
AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 9, 20.05.70 a 30.09.70).

A comparação com outras regiões procurava assimilar as especificidades


da região. Assim, a policultura adotada pelos rondonenses, aparecia como elemento
diferenciador. Contudo, este modelo passou por reformulações:
[...] verifica-se que na década de 1960 o grande movimento de
expansão da fronteira agrícola se deu no Extremo Oeste e
Sudoeste do Estado, tendo à frente o pequeno ocupante. Já na
primeira metade da década de 1970 os resultados mostram o
aparecimento de grandes proprietários nessas regiões
acompanhado de uma forte redução no número de pequenos
estabelecimentos (SILVA, 1982, p. 103).

A partir desse quadro, na década de 1970, Marechal Cândido Rondon


sentiu os reflexos advindos do crescimento de grandes e médias propriedades e da

166
Geografia e Trabalho no Século XXI

conseqüente redução do sistema de pequenas propriedades111. As alterações provocadas


pelas inovações técnicas junto ao meio ambiente foram significativas. Nesse período,
marcou presença a produção acelerada e em grande quantidade, visando atender o
mercado nacional e internacional.
Uma das principais inovações tecnológicas se relaciona com as alterações
da natureza das plantas e animais, com mudanças em seus ciclos biológicos, o que
reduz sensivelmente o diferencial existente entre tempo de trabalho e tempo de
produção, persistente na maior parte do setor agropecuário, e eliminando algumas
barreiras que se antepõem à aplicação de capital (RIZZI, 1984, p. 201) (grifos da
autora).
Os elementos ligados às técnicas tradicionais de cultivo perderam espaço
também, no que se refere à produção de sementes. Com isto, os agricultores passaram a
negociar com instituições e não mais com seus vizinhos, quando as relações de trabalho
ocorriam com base na cooperação entre os agricultores:
Na fase da agricultura tradicional, as sementes eram produzidas pelos próprios
agricultores ou trocadas com os vizinhos, em cuja orientação valia a experiência empírica dos
colonos. À medida que o processo de modernização foi avançando os órgãos oficiais ligados ao
Ministério ou à Secretaria da Agricultura do Estado passaram a fornecer sementes selecionadas
aos produtores rurais, quer diretamente quer através das cooperativas e associações rurais
(BRUM, 1983, p. 109).
Com a substituição da sistemática tradicional pelas novas técnicas de
cultivo, os agricultores abandonaram conhecimentos sedimentados por gerações no que
se refere ao domínio da tecnologia de produção. Assim, foram lançadas “as sementes do
progresso” que alteravam sensivelmente o cenário das relações de trabalho existentes.

[...] Transformando a Agricultura Tradicional — exerceu


enorme influência na formação de intelectuais e técnicos
responsáveis pela implantação, em países do Terceiro Mundo, de
centros de extensão e pesquisa nos quais boa parte da Revolução
Verde se enraizou. (ABRAMOVAY, 1992, p. 82).

O trabalho desenvolvido pelas famílias, passou a ser desarticulado e


novas formas de produção foram incorporadas ao cotidiano rural. As relações de
produção e de trabalho eram vistas como elementos capazes de articular diferentes
dinamismos no município: “da enxada, do arado de tração animal e da carroça passou-se
ao trator, à automotriz, ao caminhão, etc. Rompeu-se assim o ritmo lento do mundo
rural marcado pela tradição” (BRUM, 1983, p. 148).
Dessa forma, “A exploração familiar, tal como a concebemos,
corresponde a uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão
intimamente ligados à família” (LAMARCHE, 1993, p.15). Sendo assim, as diversas

111
A definição tratando as propriedades enquanto pequena, média e grande é baseada em critérios
regionais.

167
Geografia e Trabalho no Século XXI

experiências cotidianas pautadas na exploração e produção a partir do próprio trabalho,


sintetizado no âmbito familiar, foram transformadas de maneira enfática com a
industrialização do país. Contudo, a modernização foi formada de fundamentos e
interpretações variadas, sendo entendida como um conjunto de percepções estabelecidas
a partir de entendimentos e valores, decisões e comportamentos de grupos específicos.
Malgrado a industrialização do país, que se acentua a partir dos anos 50
deste século, os proprietários fundiários manterão em larga escala seu controle sobre os
elementos tradicionais de sua dominação social, ou seja, sobre a propriedade da terra, e,
graças a ela, sobre a força de trabalho rural. Este “pano de fundo” sócio-político é
fundamental para se compreender a natureza do processo de modernização da
agricultura que é efetuada a partir de meados dos anos 60 (LAMARCHE, 1993, p.182-
183).
A implantação do modelo tecnificado na agricultura brasileira se
intensificou a partir dos anos 60. O processo desencadeou debates desafinados,
despertando um mosaico de enfoques e interpretações: “No Brasil, a partir de 1964, o
modelo agrícola implantado se incumbiu de realizar um elevado grau de tecnificação
com aumentos de produtividade no meio rural, a concentração da posse da terra e a
articulação profunda ao complexo agroindustrial” (BREPOHL, 1984, p. 189).
Os canais de abertura do processo de modernização agrícola responderam
a todos os problemas, incluindo os climáticos como as chuvas de granizo. Em 1967,
uma forte chuva de granizo provocou estragos nas lavouras do município. A situação
era tão grave, que a Câmara Municipal foi convocada, em regime de urgência, para
reunião com a pauta direcionada a atender, de forma prática, as propriedades atingidas
pelas adversidades climáticas. Entre as deliberações regimentais da reunião foi definida
a escolha dos representantes, tanto da prefeitura quanto da associação rural, que foram
visitar as propriedades atingidas de fato. Estas receberam isenção do pagamento de
impostos municipais. Logo de imediato, a CIROSA – Companhia de Óleos Vegetais,
entrou em ação entregando sementes de soja. A solução apontada aparece no uso de
sementes de milho híbrido para o plantio rápido. Assim, as sementes produzidas pelo
agricultor para este fim vão ficando de lado.

A ASSISTÊNCIA AOS ATINGIDOS PELO GRANIZO


[...] em cada local onde houve o granizo deverá destacar alguém
que venha à Prefeitura com a relação dos nomes dos
prejudicados. No dia 4 uma comissão composta de um vereador,
um representante da Prefeitura e um da Associação Rural visitará
colono por colono, confirmando o prejuízo. A CIROSA já está
fazendo entrega de soja, para receber a mesma quantia na safra.
Está sendo providenciado milho híbrido para replantio. Será dada
assistência real aos prejudicados, mas dentro do critério da justiça
(FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 1, 14.11.66 a 28.02.67).

168
Geografia e Trabalho no Século XXI

Nesse sentido, pode-se argumentar que o planejamento modernizador


buscou aplicar e introduzir através do sistema de cultivo, sementes selecionadas, o
aparato de combate às pragas ofertado pelos insumos. O carro-chefe de todo o processo
está aplicado, então, no desenvolvimento tecnológico. Assim, enfoca-se a necessidade
do pesquisador estar atento à vasta heterogeneidade de recursos estratégicos preparados
para atender, também, a vasta heterogeneidade de interesses que compõem a exploração
agrícola na área estudada. Em outros termos, a área pode ser entendida enquanto célula
de implementação de imagens e idéias, direcionadas ao projeto modernizador e
configuradas a partir de suas especificidades.
Com melhores sementes, fertilizantes adequados e outros insumos de natureza
biológico-química, o solo pode ser mais bem cuidado, trabalhado, semeado e cultivado e oferecer
maior produtividade. Essas tecnologias devem ser empregadas quando a terra tiver custo elevado
pois permitem que seja explorada de forma mais intensiva e racional (ACCARINI, 1987, p. 85).
A implantação de projetos de colonização agrícola e extensão dos
incentivos ao setor agropecuário manifestava-se através de incentivos fiscais e de
crédito. Com relação aos aspectos econômicos, destaca-se a criação, a partir de 1970, do
cenário de transformação que recebe novos personagens, atuando na agricultura
comercial e desenvolvendo-se, principalmente, nas pequenas e médias propriedades112.
A modernização agrícola, como se sabe pode tomar duas direções principais: o
aumento da produtividade da mão-de-obra, obtido fundamentalmente, com o uso de
tecnologias mecânicas e o aumento de produtividade da terra, principalmente através do
emprego de inovações biológico-químicas e métodos de produção mais aprimorados. O
primeiro grupo abrange a introdução de modelos mais aperfeiçoados de tratores,
colheitadeiras, semeadeiras e muitos outros equipamentos e implementos. O segundo
inclui sementes e mudas mais produtivas, fertilizantes, defensivos e corretivos, além de
novos métodos de preparo de solo, plantio e cultivo (ACCARINI, 1987, p. 109).
Nesse sentido, pode ser evidenciada a contraposição existente no cenário
regional, de diferentes interesses que conduziam a objetivos político-sociais muitas
vezes divergentes. No contexto geográfico, esses conflitos de interesses, presentes na
modernização, cristalizavam a existência de mecanismos distintos de organização, de
produção e reprodução do espaço, expressando a superposição de acontecimentos sócio-
ambientais.

112
Ao conceder o crédito rural, o Banco do Brasil define uma espécie de tipologia de produtores,
de acordo com a Resolução nº 2.164, de 19.06.95: “O beneficiário classifica-se como: a)
miniprodutor – quando não contar com renda agropecuária bruta anual superior a R$ 7.500,00
(sete mil e quinhentos reais); b) pequeno produtor – quando, superado o parâmetro indicado na
alínea anterior, não contar com renda agropecuária bruta anual superior a R$ 22.000,00 (vinte e
dois mil reais); c) demais produtores – quando contar com renda agropecuária bruta anual
superior a R$ 22.000,00 (vinte e dois mil reais)”.

169
Geografia e Trabalho no Século XXI

TÉCNICOS DA SADIA ORIENTAM COLONOS DA REGIÃO


[...] Estas reuniões trarão explicações [...] sobre a finalidade desta
grande campanha. Todos os criadores deverão comparecer às 20
horas nos referidos lugares para as reuniões e receber assim
instruções básicas pelos técnicos e veterinários da Sadia, pois o
assunto é de interesse do criador. Nas reuniões serão
apresentados diversos filmes que tratam [...] da erradicação deste
mal nos rebanhos da região (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS,
v. 6, 21.03.69 a 23.08.69).

O modelo de agricultura tradicional foi substituído pela agricultura


modernizada, tendo como principal incentivador o poder público, através de
financiamentos tentadores.
O critério de investimento possibilita a aquisição de terras, animais de
trabalho ou reprodução, tratores, colheitadeiras e equipamentos de uso rural, fundação
de lavouras perenes e formação de pastagens, correção e conservação do solo, abertura
de canais de drenagem, obras de irrigação, construção de armazéns e outros itens que
compõem o capital de instalação e o capital de exploração permanente de um
empreendimento rural (ACCARINI, 1987, p. 153).
Contudo, a descrição isenta deste cenário, não atingiu as exatas
dimensões da incorporação de novas técnicas no setor agrícola. Isto porque,

[...] a substituição da agricultura tradicional por uma agricultura


modernizada representava a abertura de importantes canais para a
expansão dos negócios das grandes corporações econômicas,
tanto no fornecimento das máquinas e insumos modernos, como
na comercialização mundial e nas indústrias de transformação
dos produtos agropecuários, sem esquecer o financiamento aos
países que aderissem ao processo de modernização (BRUM,
1983, p. 57-58).

Ao enfatizar a adoção de mecanismos artificiais na produção agrícola, a


agricultura brasileira apresenta “terreno fértil” para a disseminação do sistema de
especialização, o que ocasiona graves impactos ambientais. Com a ampliação da
tecnificação no campo, ocorre, portanto, o aumento dos problemas ecológicos no
município, pois “a generalização do uso de máquinas, de adubos e inseticidas, às vezes
com moderação, às vezes acarretando problemas ecológicos e, conseqüentemente,
dificultando a vida humana, vem também ampliando o poder de expansão das grandes
culturas em detrimento das pequenas” (ANDRADE, 1979, p. 24).
Estas informações revelam que a agricultura moderna pode ser descrita a
partir da execução da modernização sustentada pela mecanização e pela apropriação de
novas técnicas nas atividades agrícolas.

170
Geografia e Trabalho no Século XXI

Entende-se por agricultura moderna a fase agrícola que se caracteriza pelo uso
intensivo, em nível das unidades produtoras, de insumos industriais – máquinas, equipamentos e
produtos químicos – bem como a utilização de métodos e técnicas de preparo e cultivo do solo, de
tratos culturais mais sofisticados [...]. Modernização da agricultura é o processo de mecanização e
tecnificação da lavoura (BRUM, 1983, p. 89).
O processo de tecnificação agrícola veio acompanhado pela instalação de
indústrias. No município de Marechal Cândido Rondon, uma delas é a CIROSA que
adquiria a produção de soja da região. A referida indústria mantinha um canal aberto
junto à emissora para divulgar suas estratégias de compra e venda de produtos agrícolas.
Com o avanço das técnicas de criação de suínos, ocorreu a instalação do Frigorífico
Rondon.

MAIS UMA FIRMA VEM TRAZER SEU PRESTÍGIO


PUBLICITÁRIO
A partir de hoje a CIROSA, Companhia de Óleos Vegetais,
estará entregando a esta emissora sua publicidade comercial.
Uma indústria nascente que, junto ao Frigorifico Rondon, seu
vizinho, dão o passo inicial à industrialização local. Da mesma
forma, mais duas firmas de Toledo se enfileiram aos nossos
favorecedores. Daí nosso compromisso de ir melhorando nossa
atividade (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 1, 14.11.66 a
28.02.67).

Neste complexo agroindustrial a agricultura comercial avança conduzida


pelas relações econômicas, direcionadas pelo capital financeiro que estrutura redes
tecnológicas que viabilizam, por sua vez, sementes selecionadas para a produção
destinada, principalmente, ao mercado externo. Assim, ocorre um forte grau de
interação entre a agricultura de exportação e a indústria que passa a ocupar as áreas
antes destinadas ao cultivo de produtos alimentícios. No espaço rondonense, por
exemplo, foi incentivada a especialização e o cultivo da soja. As campanhas de
incorporação dos derivados de soja à mesa dos consumidores das cidades, como
também no campo, fizeram crescer o número das indústrias produtoras de óleo vegetal,
margarina, leite de soja, entre outros derivados do cereal.
Estudos recentes apontam para as conseqüências advindas das políticas
que incentivam a estruturação da modernização. O processo encontrou consolidação nos
subsídios dados aos insumos e se estendem às facilidades ofertadas àqueles que
optassem pelo cultivo de culturas destinadas à exportação ou que atendessem às
indústrias nacionais. Assim, “[...] a própria agricultura se industrializou, seja como
compradora de produtos industriais (principalmente insumos e meios de produção), seja
como produtora de matérias-primas para as atividades industriais” (SILVA, 1982, p.
62).
Sobre os aspectos iniciais da organização da modernização incentivada
por vários mecanismos, em um programa elaborado pela Rádio Difusora de Marechal
Cândido Rondon, intitulado “Ilustres Visitas”, ocorreu a divulgação da fala de um dos

171
Geografia e Trabalho no Século XXI

representantes políticos — o então Deputado Estadual Egon Pudell — que reforçou a


proposta modernizante com o propósito discursivo de enaltecer o progresso regional.

Esteve em visita a esta cidade ontem o Deputado Egon Pudell,


presidente da Assembléia Legislativa do Estado. Além da
substanciosa entrevista que nos concedeu a este microfone, no
horário do jornal falado, esteve longamente em palestra informar
conosco quando foram trocadas ideais e soluções que visem fazer
progredir a região (FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 1,
14.11.66 a 28.02.67).

Sobre este aspecto, é interessante ressaltar os contatos constantes dos


representantes políticos com os programas jornalísticos da rádio local. O discurso
abaixo caracteriza a ação dos créditos em situações onde ocorreram frustrações de safra.
Nota-se que tais discursos desautorizaram qualquer reação de descontentamento por
parte dos agricultores.

NÃO FALE EM CRISE, TRABALHE


Este dístico está podendo ser usado, ao momento em que todos
ou apenas uma grande maioria parou para falar sobre crise [...].
As geadas, responderiam muitos. Porém ela é dádiva de Deus e
ninguém pode evitar [...]. O PROAGRO garantirá como está
garantindo 80%; o restante dos 20 por cento sendo estudado para
pagamento em 3 anos com juros ínfimos. Para quem não tem o
PROAGRO por falhas até então desconhecidas o governo está
com as vistas voltadas e o auxílio virá [...]. O Brasil vai produzir
mais e melhor, porém bate-papo de cafezinho e com os cotovelos
em balcões de bares de nada adianta. O que convém ao momento
é arregaçar as mangas e trabalhar com muito mais afinco. O
trabalho absorve o homem, vamos ver (FRENTE AMPLA DE
NOTÍCIAS, v. 23, 31.07.75 a 14.11.75).

A dinâmica da distribuição dos créditos realizada através dos mecanismos


governamentais foi um dos aspectos que caracterizaram a necessidade de ajustes no
modelo. Desde o início, o agricultor, em caso de frustração na safra, recebia 100% das
perdas (através do PROAGRO). Lentamente, o governo foi reduzindo este percentual da
cobertura quando se tratavam de problemas climáticos. Isto se deve, em grande parte, às
fortes geadas verificadas no município no ano de 1975. A medida tomada foi a de
fornecer 80% de cobertura cujo restante seria pago pelo agricultor num período de três
anos. O corte pode ser identificado como ajuste: nas primeiras ações ligadas à
implantação do novo modelo, qualquer problema era imediatamente solucionado. Com
o sucesso do projeto, o agricultor não recebe mais a cobertura total, além de ser
fiscalizado “militarmente” pelos técnicos do Banco do Brasil.

172
Geografia e Trabalho no Século XXI

Com tais medidas o agricultor não poderia, por exemplo, arar a terra na
qual se encontrava a plantação comprometida sem a visita e posterior liberação dos
técnicos. Com o passar do tempo, a situação foi se agravando: o agricultor pagava as
parcelas e, durante cinco anos, poderia ser cobrado novamente, caso tivesse extraviado
os comprovantes de pagamento.
De uma forma incisiva, o discurso reafirmava o valor do trabalho,
atribuindo à crise gerada pelas geadas uma dimensão divina (“dádiva de Deus”?).
Contudo ressaltava a necessidade de continuar as atividades, pois bate-papo nos bares
não seria a solução. Com tal abordagem sobre a questão, o noticiário reafirmava sua
influência e apresentava o comportamento considerado ideal: trabalhar mais para
compensar as perdas ocorridas na lavoura.

4. DESMATAMENTO E PROGRESSO

No decorrer do processo de mecanização, ocorreram inúmeras campanhas


que alteraram comportamentos e acentuaram o confronto entre mata e homem. De um
lado, o incentivo à derrubada das florestas; de outro, a falta de habilidade na retirada da
mata, marcando com sangue as áreas desmatadas devido aos constantes acidentes
ocorridos durante estas atividades. O perfil técnico da retirada da mata sofreu
transformações: o machado foi perdendo espaço para as chamadas motoserras e tratores.
Em sintonia com o ronco de seus motores, a modernização acelerou o processo de
destruição das matas da região, tendo em vista a necessidade de mais terras cultiváveis.

Com o machado era mais pesado. Depois que veio essa


barulhenta motoserra, daí já facilitou um pouco, antes era
machado [...]. Nós até fazíamos mutirão assim: depois de roçado
o mato, um ia ajudando o outro; foi indo, foi indo até era mais
fácil, que derrubava mais ligeiro e o mato secava mais parelho.
Acabava aqui, foi no outro e assim por diante (A, 19 fev. 1996).

As notícias que veiculavam acidentes fatais ocorridos durante os trabalhos


de derrubada das matas eram freqüentes. O discurso resumia-se aos laços familiares das
vítimas. Não fazia menção, no entanto, às prováveis causas dos acidentes, tais como a
falta de treinamento no que se refere à utilização dos novos equipamentos.

173
Geografia e Trabalho no Século XXI

ACIDENTE NO TRABALHO CEIFA MAIS UMA PRECIOSA


VIDA EM NOSSO MEIO
Ontem à tarde aproximadamente às 14 horas um acidente de
trabalho levou a vida de um jovem, de família conhecida e bem
quista em nosso meio. Trata-se do jovem Emidio Finger que
residia na estrada que demanda de Marechal Cândido Rondon à
Margarida. O acidente, segundo obtivemos informações, ocorreu
quando trabalhavam na desmatação, usando de uma serra motor.
Nesse serviço de derrubada, ao terminar por atorar um pau de
bom tamanho, a madeira serrada, ao cair, veio atingir a cabeça de
Emidio, que não resistindo aos ferimentos veio à falecer. O
acidente que resultou a morte do jovem Emidio chocou
profundamente o vasto círculo de amizades desta família
rondonense. Nossa emissora envia a família enlutada profundos
votos de pesares pela irreparável perda (FRENTE AMPLA DE
NOTÍCIAS, v. 7, 25.08.69 a 31.12.69).

O desmatamento incentivou uma série de iniciativas particulares


relacionadas à extração de madeira como forma de enriquecimento. O comerciante “C”,
marceneiro, atraído do Rio Grande do Sul para o distrito rondonense de Margarida,
devido à abundância de madeira existente na região diz: “Eu puxava mudanças para cá.
Aí eu vi bastante madeira. A minha profissão era madeira, tinha marcenaria no Rio
Grande [...]. Vim prá colocá uma serraria aqui [...]” (C, 21 fev. 1996).
Na trama discursiva do projeto de consolidação do município de
Marechal Cândido Rondon, o progresso recebeu projeções entusiasmadas,
principalmente nas ocasiões em que sinalizavam para o crescimento do setor industrial.
Sendo assim, durante a inauguração de indústrias, consideradas “possantes”, estas eram
apresentadas como “vulcão em ritmo vigoroso de progresso que vem dando destaque ao
nosso município”. Inseridas no ritmo acelerado de instalação das indústrias, muitas
serrarias foram inauguradas com a presença de políticos e religiosos, entre outros
personagens ilustres da comunidade local.
As festividades fechavam o evento. Mas toda essa comemoração
exaltando a capacidade e agilidade das indústrias, conduzem à compreensão da
necessidade de retirada acelerada da floresta, pois “esta é na realidade uma indústria de
milhões para produzir milhões”. Assim, o contexto histórico e econômico caracteriza a
exploração da madeira como forma de obter lucros significativos com a “limpeza” da
área, acertando os passos para os futuros objetivos da modernização.

INDÚSTRIAS, PARA UM PROGRESSO MAIOR


Foi inaugurado o conjunto de serra fita da serraria de propriedade
do senhor Mahmud Ismail. Ao ato inaugural, um grande número
de pessoas se fez presente, tendo sido registrada a presença do
reverendo pastor Pawelke e do reverendo padre Antonio Darius.
No ato inaugural, o conjunto de serra fita moderno e possante, foi

174
Geografia e Trabalho no Século XXI

colocado em funcionamento, serrando duas toras de grande


tamanho em apenas 29 minutos [...]. Esta é na realidade uma
indústria de milhões para produzir milhões (FRENTE AMPLA
DE NOTÍCIAS, v. 8, 25.08.69 a 31.12.69).

Pode-se afirmar que os efeitos causados pela retirada da mata foram


obscurecidos pela necessidade de liberar espaço para os cultivos agrícolas. Nesse
contexto, “a atividade agrícola, feita sob qualquer forma e com qualquer intensidade,
tem implicações sérias sobre o meio ambiente, de vez que é precedida do desmatamento
parcial ou total” (ANDRADE, 1979, p. 108). Como se pode observar nas notícias
divulgadas pela emissora de rádio, houve todo um incentivo ao desmatamento, tendo
como argumento fundamental o progresso regional.
A partir da década de 1970, no entanto, este quadro foi alterado. Os
argumentos eram outros e apareceram as primeiras manifestações sobre as necessidades
de fiscalização do desmatamento. Nesse sentido, os representantes governamentais, tais
como o então governador Haroldo Leon Peres, buscaram adotar formas de deter ou
estagnar o processo das derrubadas, visando a preservar as poucas áreas florestais que
restaram. As medidas implementadas através da Secretaria da Agricultura, em
consonância com o Instituto de Defesa do Patrimônio Natural, visavam à fiscalização e
até à proibição do desmatamento.
A fase inicial da modernização marcou profundamente as unidades
ambientais: o solo sofreu com a compactação, e as queimadas e a erosão tomaram o
rumo dos rios, os quais passaram a receber enormes quantidades de terra, provocando
alterações em seus leitos. Para se ter uma idéia mais clara das transformações ocorridas
nos rios e riachos do município, cabe resgatar o cotidiano rural. A retirada das matas,
feita inicialmente sem cuidados maiores com a preservação do solo — expressão que
não constava do vocabulário da colonização — provocou estigmas profundos neste.
Com a retirada total em certas áreas da mata ciliar, o problema assumiu proporções
ainda maiores, já que nos dias chuvosos, devido às precipitações intensas, os
agricultores começaram a sentir os efeitos da falta da conservação. Num “passe de
mágica”, os riachos calmos, vítimas do assoreamento, aumentavam de tamanho e as
águas das chuvas escavavam as barrancas dos rios, causando o transbordamento que
levava pontes, cercas e plantações. Já, nas lavouras, as trilhas da destruição eram
avistadas à distância, pois, as cicatrizes estavam estampadas na terra.
Os aparatos legais entraram em ação com o objetivo de frear esta
situação. Assim, um convênio com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
passou a fiscalizar as licenças para o desmatamento comercial e industrial. A nível
estadual, o Instituto de Defesa do Patrimônio Natural, ligado à Secretaria da
Agricultura, fixou o aproveitamento da madeira, limitando o corte e o transporte deste
recurso natural, através do fornecimento de licenças para o desmatamento, apenas com
o objetivo de desenvolver a agropecuária.

175
Geografia e Trabalho no Século XXI

FISCALIZAÇÃO SOBRE O DESMATE INDISCRIMINADO


A preservação das reservas florestais é uma das preocupações do
governador Haroldo Leon Peres, que determinou a Secretaria da
Agricultura para que proceda, através do Instituto de Defesa do
Patrimônio Natural, rigorosa fiscalização, coibindo o
desmatamento indiscriminado. A medida visa a uma prevenção
contra erosões, deficiências nos cursos d’água, desequilíbrio da
fauna e da flora, alterações climáticas e até mesmo o
desaparecimento de determinadas espécies (FRENTE AMPLA
DE NOTÍCIAS, v. 12, 13.05.71 a 18.07.71).

As pressões do Código Florestal estabeleciam limites, definindo a


quantidade de mata que poderia ser retirada pelo agricultor. O percentual abrangia 80%
da área total do imóvel. Com o objetivo de deter as mazelas do desmatamento, as
agências bancárias passaram a exigir dos agricultores a apresentação da licença nos
trâmites bancários vinculados ao fornecimento de financiamentos. Uma vez constituídos
os mecanismos impulsionadores da mecanização, apareceram as contradições: no início,
os planos incluíam a remoção das florestas, já que quanto maior o desmatamento, mais
financiamento. Nas palavras dos agricultores, esta situação gerou conflitos por não
entenderem o incentivo inicial à derrubada e a restrição posterior.

NOTICIAS LOCAIS E ESTADUAIS


Esta mesma determinação do Código Florestal regulamenta que
nenhuma propriedade agrícola poderá desmatar além de oitenta
por cento da área total do imóvel. O diretor do IDPH, Sr. Solon
Rodriguez, afirma que atualmente tem recebido muitos
processos, com pedidos de agricultores para proceder
desmatamento. Mesmo porque a licença do IDPN é documento
exigido até para financiamento bancário, disse (FRENTE
AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 12, 13.05.71 a 18.07.71).

Os acidentes nas remoções de árvores colocavam as famílias diante da


ameaça constante da morte. Como já foi enfatizado anteriormente, a perda ocasionada
por acidentes era atribuída à falta de habilidade com o equipamento. Conforme
afirmação da Rádio Difusora, eram inúmeros os acidentes fatais transcorridos durante o
desmatamento. A própria produção jornalística mencionou uma certa falta de cuidado
por parte dos agricultores. Acabou admitindo então a necessidade de um “curso
demonstrativo”, através do qual fossem repassadas aos agricultores orientações básicas
sobre o manejo da motosserra e os procedimentos seguros a serem adotados durante a
execução das tarefas relacionadas ao desmatamento.

176
Geografia e Trabalho no Século XXI

ACIDENTE COM MOTOSERRA, MATA AGRICULTOR


Ceslau Rodolfo Kosik e mais dois filhos, estavam na tarde de
ontem trabalhando em derrubada de mato com duas motosserras
[...]. Ao cair, ao invés de tomar o rumo previsto para a queda,
devido ao forte vento, a árvore tomou outro rumo, tombando
sobre o infeliz agricultor, quebrando o braço esquerdo e
atingindo bastante a cabeça. Transportado ainda com vida, ao
hospital do Dr. Confúcio, mas não resistindo a gravidade dos
ferimentos Ceslau Rodolfo Kosik, veio a falecer. A Radio
Difusora, notificou diversas vezes acidentes provocados por
motosserra e na maioria das vezes é por descuido ou então por
outros fatores, como no caso relatado hoje, o vento que muda de
rumo a árvore, ao cair.
Somos de opinião de que deveria haver um curso demonstrativo,
sobre o manejo da motoserra e também uma orientação prévia de
como devem ser derrubadas as árvores e como proceder no
momento da queda. O manejo da motosserra deveria ser entregue
a pessoas com orientação e práticas prévias, para evitar estes
tristes acontecimentos. Analisem antes e não depois, o
comportamento da motosserra ao entrar em funcionamento.
Evitem serrar madeiras no chão, quando duas árvores estejam
paralelas e juntas, a ponta da motosserra poderá bater na outra
árvore, dar um contra, levantar e vir contra o manejador, como
aconteceu recentemente em nossa cidade onde o jovem Ruy
Miller, perdeu a vida desta maneira (FRENTE AMPLA DE
NOTÍCIAS, v. 13, 01.07.71 a 30.10.71).

Os agricultores receberam novas máquinas para o desmatamento.


Raramente era adotado o sistema tradicional, baseado principalmente na queimada e na
posterior destoca das matas. As madeiras-de-lei eram vendidas ou doadas; já, as
restantes, eram estocadas formando enormes blocos que depois de secos, eram
queimados. Com o coqueiro, por exemplo, adotou-se o processo de destocar suas raízes,
abrir uma enorme vala, na qual eram depositados seus troncos que, em seguida, eram
soterrados.
No processo mecanizado de desmatamento, após a destoca efetuada pelos
tratores, ocorria a queimada dos destroços e a “catação” de raízes. O trabalho era árduo
para os agricultores e o manuseio dessas raízes e da terra produzia ferimentos,
principalmente nas mãos. Essa forma de ocupação mudou a rotina no campo. Além da
criação de suínos e o cultivo da policultura, os agricultores preparavam o restante da
propriedade para receber a especialização, que exigia um espaço maior para o cultivo,
facilitado através do desmatamento mecanizado. Nessas tarefas, havia o envolvimento
de toda a família. As crianças menores eram deixadas em casa e, quando levadas para a
roça, ficavam em cestos depositados debaixo de árvores. Aos montes, as raízes eram
queimadas, formando um amontoado de brasas cobertas por uma superfície de cinza.
Uma espécie de “armadilha” que provocou inúmeros acidentes com crianças.

177
Geografia e Trabalho no Século XXI

As constantes queimadas geravam também problemas de saúde


provenientes de períodos de estiagem que contribuíam para a expansão da fumaça.
Apesar das recomendações de conscientização a respeito das queimadas, praticadas de
forma desordenada, em alguns casos elas tiveram conseqüências desastrosas. Em
períodos de queimada, um vizinho colhia sua lavoura de trigo e, para eliminar a palha,
colocava fogo. Com o vento forte, este se espalhava pelas áreas vizinhas, o que gerava
discussão entre os moradores. Em muitas ocasiões era necessário reunir um grupo de
pessoas com o objetivo de deter o fogo: trabalho incessante, que durava dia e noite,
jogando água ou cavando valas para que não se alastrasse.
Além disso, quando as queimadas eram realizadas de forma
descontrolada, atingiam as pequenas áreas nativas sobreviventes do desmatamento
inicial. Consideradas como reservas de árvores e animais, já nesse período eram em
número bastante reduzido.

FOGO NAS LAVOURAS JÁ COMEÇA A PREOCUPAR


Além de causar um terrível mal às vias respiratórias, intoxicando
à todos principalmente as crianças; sem contar o grande mal que
o calor proporciona em prejuízo da própria terra, colonos, sem
medir as conseqüências estão novamente levando as coisas a um
estado de alerta geral. Além da seca e da longa estiagem, a
própria fumaça suspensa, a não ser quando fortes ventos sopram
ou soprarem para desfazer a camada e possibilitar uma
evaporação [...] aumentam a densidade das chuvas. As grandes
queimadas começam a preocupar as autoridades que iniciam uma
campanha de conscientização de que o fogo é prejudicial sob
vários aspectos. Gente daqui, acreditando na diminuição do
regime das chuvas impostas pela desmatação desregrada, alerta:
AINDA VAMOS MORAR NUM DESERTO (FRENTE
AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 38, 10.09.77 a 21.10.77).

Os resultados “favoráveis” obtidos com o processo de modernização,


incentivaram iniciativas provenientes da administração local em torno do meio
ambiente. O discurso passou a expressar discussões referentes à fundação de uma
Associação de Conservação da Natureza no Município. O alarme dos movimentos
admitiu que a problemática ambiental fazia parte do desmatamento executado para
sediar a produção especializada.
A atividade da associação, cujo lema era: “A união faz a força”, foi
considerada relevante para cuidar da natureza. Esta mesma união e força,
desenvolvimentistas, incentivaram o extermínio das florestas e agora buscavam manter
o que sobrou, bem como reflorestar algumas áreas mais afetadas.

178
Geografia e Trabalho no Século XXI

PROBLEMAS DO MEIO AMBIENTE REÚNE


RONDONENSES
Por iniciativa de pessoas do meio local [...] foi discutida a
viabilidade da fundação de uma Associação de Conservação da
Natureza. A iniciativa tem fundamento nos problemas ecológicos
atualmente bastante ocasionais, causados, principalmente pela
devastação das florestas e até certo ponto pela monocultura
reinante em nosso município (FRENTE AMPLA DE
NOTÍCIAS, v. 40, 03.12.77 a 16.01.78).

O saldo de novos problemas climáticos, tais como a forte estiagem


ocorrida em 1978, produziu alarmes fundados em coisas que aconteceram como: o
começo do delírio de pessoas que ficaram neuróticas por estarem com dívidas acima do
permitido, pela queda da produção e pela falta de recursos. A influência do Estado em
prol da comercialização de maquinários, cada vez mais modernos, sugeriu aos
agricultores o consumo de recursos tecnológicos. Contudo, no contexto do “progresso”
anunciado pela mecanização agrícola, não estavam incluídas as perdas oriundas de
catástrofes naturais. Assim,

[...] é preciso alterar a lógica da produção societal; a produção


deve ser prioritariamente voltada para os valores de uso e não
para os valores de troca. Sabe-se que a humanidade teria
condições de se reproduzir socialmente, em escala mundial, se a
produção destrutiva fosse eliminada e se a produção social fosse
voltada não para a lógica do mercado, mas para a produção de
coisas socialmente úteis. Trabalhando poucas horas do dia o
mundo poderia reproduzir-se de maneira não destrutiva,
instaurando um novo sistema de metabolismo societal.
(ANTUNES, 2002, p. 193)

Não é de surpreender, portanto, as dívidas crescentes, — oriundas de


frustração de safra — e o conseqüente desespero dos produtores. As palavras que
abordavam a questão, atribuíam os resultados negativos àqueles “que queriam ‘abraçar
o mundo com as pernas’, ou seja, os complexos argumentos jornalísticos consideravam
os resultados vinculados às ambições dos agricultores, como se esse fato fosse
promovido pela “liberta” ansiedade desses, o que, na realidade, não corresponde ao
conjunto dos acontecimentos. Pode-se indicar que, com altas dívidas nos bancos, muitos
ocuparam o cenário de “[...] proletariado rural que vende a sua força de trabalho para o
capital, os chamados bóias-frias das regiões agroindustriais. Esse proletariado rural que
vende sua força de trabalho, ele também é parte constitutiva dos trabalhadores hoje, da
classe-que vive do trabalho” (ANTUNES, 2002, p. 199).

179
Geografia e Trabalho no Século XXI

SECA NUNCA VISTA ... A TERRA ESTÁ RACHANDO


Comentários infundados levaram até jornais a publicar fatos
difíceis de acreditar, como sendo verídicos, porém a inverdade no
assunto está no apontamento: A FALTA DE FONTES DIGNAS
DE CRÉDITO. Isso tudo para falar sobre fatos que teriam
acontecido com pessoas tomadas pela neurose após haverem
contraído dívidas acima do permitido e com a queda de produção
e a falta de raciocínio, começa o delírio. Segundo esses registros,
alguns daqueles que queriam “abraçar o mundo com as pernas”
teriam proferido palavras de desagrado à “Deus”, à JESUS
CRISTO, pela falta das chuvas. Esqueceram-se, porém, que
desde há muito tempo atrás quando houve a entrada para a era da
mecanização, quando começou a desmatação desenfreada, todos
os anos o período de estiagem começava a aumentar, chegando
agora ao auge. Técnicos do setor, engenheiros agrícolas fizeram
observações válidas à esse respeito (FRENTE AMPLA DE
NOTÍCIAS, v. 41, 16.01.78 a 23.02.78).

Devido aos prejuízos ocasionados pela estiagem, iniciou-se a


implementação do reflorestamento e cada agricultor deveria dispor de 20% da
propriedade para o plantio de árvores. Segundo informações divulgadas em palestra
pelo engenheiro florestal Antonio Sanches, a devastação da floresta era conhecida pelo
governo, mas o objetivo era fornecer alimentos para a “população mundial” e não a
implementação de lucros. Cabe o questionamento: Se as autoridades tinham
conhecimento da devastação ocorrida na região, por que não adotaram medidas no
sentido de evitar os danos causados ao meio ambiente?

AGRICULTOR TERÁ QUE REFLORESTAR 20 POR CENTO


Sobre o desmatamento desenfreado, mesmo sendo do
conhecimento do governo, citou ser um fator de
desenvolvimento, não visando o enriquecimento de muitos, mas,
acima de tudo, fornecer alimentos e meios para a subsistência da
população mundial. Contudo, ressaltou Sanches, que o IBDF
colocou como prioritária a necessidade de que, em qualquer área
nacional tenha aqueles que trabalham na agricultura que manter
20 por cento da área total provida de vegetação nativa (FRENTE
AMPLA DE NOTÍCIAS, v. 42, 24.02.78 a 05.04.78).

O engenheiro florestal argumentou que seria obrigatório o


reflorestamento e que seria designado um funcionário da Secretaria da Agricultura para
fiscalizar a estruturação de um departamento encarregado do fornecimento de mudas
nativas aos agricultores. Na ocasião, o engenheiro falou da importância da vegetação na
manutenção da unidade, mas não atribuiu a forte seca ao desmatamento.
Como pode ser observado nos discursos jornalísticos, a consolidação do
desmatamento foi realizada, tendo como argumento o progresso regional. Com o

180
Geografia e Trabalho no Século XXI

“sucesso” da implantação do modelo e a floresta dizimada, surgiram preocupações


tardias com a questão ambiental, bem como com o “proletariado” rural.

5. Referências

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Paulo : HUCITEC, 1992.
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caso brasileiro. Rio de Janeiro : Vozes, 1987.
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BREPOHL, Marionilde. Para uma história do campesinato: produção familiar e
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C. Entrevista concedida a Marli Terezinha Szumilo Schlosser. Marechal Cândido
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IPARDES. Fundação Édison Vieira. O Paraná reinventado: política e governo.
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LAMARCHE, Hugues (Coord.). A agricultura familiar: comparação internacional.
São Paulo : Unicamp, 1993.
PAULILO, Maria Ignez Silveira. Produtor e agroindústria : consensos e dissensos : o
caso de Santa Catarina. Florianópolis : Editora UFSC, 1990.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
14.11.66 a 28.02.67. v. 1.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
12.03.68 a 29.05.68. v. 4.

181
Geografia e Trabalho no Século XXI

RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,


21.03.69 a 23.08.69. v. 6.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
25.08.69 a 31/12/69. v. 7.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
25.08.69 a 31.12.69. v. 8.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
20.05.70 a 30.09.70. v. 9.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
13.05.71 a 18.07.71. v. 12.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
01.07.71 a 30.10.71. v. 13.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
05.03.74 a 21.08.74. v. 20.
RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias. Marechal Cândido Rondon,
31.07.75 a 14.11.75. v. 23.
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Editorial Centelha
(CEGeT)

Outras Publicações

Gênero e Classe nos Sindicatos


Terezinha Brumatti Carvalhal

Revista Pegada
Versões Impressa e Eletrônica
(www.prudente.unesp.br/ceget/pegada.htm)

Próximos Lançamentos

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Relação Capital x Trabalho e Dominação de Classe na


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