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O BARBEIR0 1

A vida é difícil para os liberais, em Dilton.


Concluídas as eleições primárias democratas2, Rayber
mudou de barbeiro. Três semanas antes, enquanto lhe fazia
a barba, o barbeiro perguntou-lhe:
- Vai votar em quem?
- No Darmon - respondeu Rayber.
- Você gosta de pretos?
Rayber deu um salto na cadeira. Não contava ser abor­
dado de um modo tão brutal.
- Não - respondeu. Se não o houvessem apanhado
desprevenido, teria dito: Não gosto nem de negros nem de
brancos. Já antes tinha dito o mesmo a Jacobs, o professor
de filosofia, e, só para mostrar como é difícil a vida para os
liberais em Dilton, Jacobs, um homem que até tinha alguma
instrução, respondera entre dentes:
- É uma maneira de estar muito triste.
- Porquê? - perguntara-lhe Rayber com brusquidão.
Sabia-se capaz de ganhar uma discussão ajacobs.
Este respondera-lhe:
- Esqueça isso.
1 . Publicado pela primeira vez na revista At/antic, vol. 226, n. º4, Outubro de 1970. Segun­
do conto da tese (pp. 21-39 ) . [N. do E. ]
2. No original: •Democratic White Primary•. Designação do sufrágio através do qual se
efectuava a eleição directa dos candidatos do Partido Democrata norte-americano ãs eleições
gerais de foro regional (no âmbito estadual ou de divisões administrativas menores). Até meados
do século xx, em diversos estados no Sul do país era prática corrente do Partido impor critérios
restritivos para a participação nessas Primárias, inclusive critérios de natureza racial. [N. do T.]

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Tinha uma aula para dar. Rayber reparava que as aulas


dele tendiam a decorrer quando estava prestes a envolvê-lo
numa discussão.
Não gosto nem de negros nem de brancos, teria Rayber
dito ao barbeiro.
O barbeiro limpou um caminho a direito pelo meio da
espuma e apontou com a navalha para Rayber.
- Oiça o que lhe digo - começou -, agora só há dois
lados nesta questão: o branco e o preto. Toda a gente vê isso
depois desta campanha toda. Sabe o que disse o Hawk? Disse
que há cento e cinquenta anos andavam todos a correr atrás
uns dos outros, andavam a comer-se uns aos outros, a caçar
pássaros com pedras preciosas, a esfolar cavalos à dentada.
Ainda outro dia entrou um preto numa barbearia branca em
Atlanta e disse: «corte-me o cabelo». Correram com ele dali
para fora, mas já está a ver ao que chegámos, senão oiça: três
hienas pretas, para os lados de Mulford, ainda o mês passado
deram um tiro num branco e limparam-lhe metade do re­
cheio da casa, e sabe onde estão hoje? Sentadinhos no esta­
belecimento prisional, a comer tão bem como se fossem o
Presidente dos Estados Unidos. Se os pusessem a trabalhar
acorrentados uns aos outros, ainda se sujavam, ou talvez pas­
sasse algum maldito defensor dos pretos e ficasse de coração
despedaçado por os ver a partir brita. Pois deixe-me dizer-lhe
o seguinte: isto não vai endireitar-se enquanto não nos livrar­
mos dos Mother Hubbards3 e não elegermos um homem que
consiga pôr esses pretos no seu devido lugar. E isso é que é !
- Ouviste esta, George? - gritou para o rapaz de cor
que se encontrava a varrer o chão em tomo das bacias.
3 •Mother Hubbard• é a protagonista de uma antiga cantilena infantil anglófona. Re­
sumindo, o poema narra as peripécias da dita senhora idosa, que passa a vida a correr de
um lado para o outro, a tentar agradar ao seu prezado cão, ficando praticamente refém das
necessidades sempre imprevisíveis deste. [N. do T.]

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- Ouvi - respondeu George.


Estava na hora de Rayber tecer algum comentário, mas
não lhe ocorria nada a preceito . Queria dizer alguma coisa
que George compreendesse . Ficou espantado por este ter
sido incluído na conversa. Lembrou-se de Jacobs lhe ter
falado da semana que passara a leccionar numa faculdade
para negros . Lá não se podia dizer negro - preto - de
cor - escuro. Jacobs disse-lhe que quando regressava a
casa todas as noites gritava: «PRETO, PRETO, PRETO» pela
j anela dos fundos. Rayber interrogou-se sobre qual seria
a inclinação política de George. Tinha ar de ser um rapaz
compostinho .
- Se um preto entrasse n a minha loja, armado aos cucos, e
me pedisse um corte de cabelo, pode crer que lhe cortava qual­
quer coisa. - O barbeiro fez um barulho com a língua entre
os dentes. - Você é um Mother Hubbard? - perguntou.
- Vou votar no Darmon, se é aí que quer chegar - res-
pondeu Rayber.
- Alguma vez ouviu um discurso do Hawkson?
-Já tive esse prazer - respondeu Rayber.
- Ouviu o último que ele proferiu?
- Não. Se bem entendo, os comentários dele não se
alteram de discurso para discurso - opinou Rayber con­
cisamente .
- Ai não? - retorquiu o barbeiro. - Pois olhe que este
,

último discurso foi de arrasar! O Hawk disse das boas sobre


os Mother Hubbards.
- Há muito boa gente - disse Rayber - que considera
o Hawkson um demagogo. - Interrogou-se se George sabe­
ria o que era um demagogo. Devia antes ter dito: «político
mentiroso».
- Um demagogo ! - O barbeiro deu uma palmada no
joelho e um urro. - Foi isso mesmo que o Hawk disse!

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-uivou. - Essa foi demais! Amigos, disse ele, aqueles Mother


Hubbards chamam-me demagogo. Depois empinou-se um
bocado e acrescentou, a modos que de mansinho, Acham
que sou um demagogo, povo? Gritaram todos, Não, Hawk,
não és nenhum demagogo ! Aí ele chegou-se à frente e gritou,
Ah, isso é que sou! E sou o melhor demagogo deste Estado !
Havia de ter visto aquela gente toda a aplaudir! Ufa!
- Deve ter sido um grande espectáculo - declarou
Rayber -, mas não passou de um . . .
- Mother Hubbard - disse o barbeiro entre dentes. -
Está visto que já se deixou enrolar por essa malta. Deixe-me
dizer-lhe uma coisa . . . - e recapitulou o discurso de Hawkson
nas festas do Quatro de Julho. Tinha sido outro de arrasar,
rematado com um poema. Quem é o Darmon?, pediu Hawk
que lhe dissessem. Pois, quem é o Darmon?, gritou a mul­
tidão. Ora, não sabem? Pois é o Little Boy Blue4 da canção,
anda sempre a cornetear. Isso. mesmo. Deixa os bebés no
meio do prado e os pretos todos a pastar. Chiça! Esse é que
Rayber devia mesmo ter ouvido. Não havia Mother Hubbard
que tivesse aguentado aquela descasca.
A Rayber, pareceu-lhe que o barbeiro devia ler alguns . . .
Oiça, não precisava d e ler nada. Basta�a-lhe pensar. Era
esse o mal da gente de hoje em dia: não pensava, não tinha
o mínimo bom senso. Porque é que Rayber não pensava?
Onde estava o senso comum dele?
Porque é que me e s tou a esforçar? , pensou Raybe r,
irritado .
- Não , senhor! - atirou o barbeiro . - As palavras
caras não valem nada. Não chegam para substituir o pen­
samento.
4 «Little Boy Blue• é o protagonista de outra cantilena infantil anglófona, esta sobre um
menino que passa a vida a dormir e a tocar cometa, em vez de zelar pelo gado e pelo rebanho
que tem de guardar. [N. do T.]

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- O pensamento ! - gritou Rayber. - Você julga-se bem


pensante?
- Oiça - pediu o barbeiro -, sabe o que disse o Hawk
àquela gente de Tilford? Em Tilford, Hawk declarara que
não tinha nada contra os pretos que se mantivessem no seu
devido lugar, mas se estes não ficassem no lugar que lhes
competia, saberia onde metê-los. E esta, hein?
Rayber quis saber o que é que isso tinha que ver com o
pensamento.
O. barbeiro pensava que a relação entre isso e o pensa­
mento saltava à vista como um porco sentado num sofá.
Pensava muitas outras coisas para além dessa e fez questão
de as partilhar com Rayber. Disse que Rayber devia ter ou­
vido os discursos de Hawkson em Mullin 's Oak, Bedford e
Chickerville.
Rayber voltou a recostar-se na cadeira e relembrou ao
barbeiro que tinha ido ali para este lhe fazer a barba.
O barbeiro recomeçou a barbeá-lo. Disse que Rayber de­
via ter ouvido o discurso que ele fizera em Spartasville.
- Não houve um único Mother Hubbard que se tenha
aguentado em pé, e os Boy Blues ficaram todos com as cor­
netas rachadas. O Hawk afirmou - disse ele - que estava
na hora de nos sentarmos em cima da tampa com . . .
- Tenho u m compromisso - atalhou Rayber. - Estou
cheio de pressa. - Porque haveria ele de ficar ali a ouvir
tah; baboseiras?
Por mais disparatada que tenha sido, toda aquela conversa
imbecil teimou em persegui-lo o resto do dia e desfilou-lhe nos
pensamentos de forma persistente e pormenorizada depois
de ter ido para a cama à noite. Para seu desgosto, deu por si a
relembrá-la entremeada com o que teria dito se lhe houvesse
sido dada oportunidade de se preparar. Interrogou-se como
teria jacobs descalçado a bota. Jacobs tinha uma maneira de

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estar que levava as pessoas a crerem que sabia mais do que


Rayber julgava que ele sabia. Até nem era um mau talento na
profissão dele. Rayber divertia-se muitas vezes a analisar aquela
postura. Jacobs despachado o barbeiro com a maior das calmas.
Rayber recomeçou a conversa desde o início, reflectindo sobre
de que modo teria Jacobs teria gerido a situação. Terminou a
conversa desempenhando já o seu próprio papel.
Quando voltou ao barbeiro, já se tinha esquecido da
discussão . O barbeiro também se parecia ter esquecido.
Despachou o toma lá, dá cá sobre o estado do tempo e pa­
rou de falar. Rayber pensava no que iria comer ao jantar. Ah,
era terça-feira. À terça-feira, a esposa cozinhava carne enla­
tada. Tirava a carne da lata e assava-a no forno com queijo
- fatias de carne intercaladas com fatias de queijo -, o que
formava um bolo listrado. Porque é que comemos esta por­
caria todas as terças-feiras? Se não gostas, escusas de . . .
- Continua a ser u m Mother Hubbard?
Rayber voltou a cabeça bruscamente.
- Como?
- Sempre vai votar no Darmon?
- Sim - confirmou Rayber, e o seu cérebro correu logo
em busca da reserva de respostas preparadas.
- Então, escute lá. Vocês, os professores, está a ver?,
parece que, bem . . . - Ficou confuso. Rayber via que o
barbeiro não estava tão seguro de si como da última vez.
Provavelmente pensava que tinha mais um argumento para
salientar. - Parece que vocês até deviam votar no Hawk, por
causa do que ele disse sobre os ordenados dos professores.
Quer parecer-me que você devia ter mudado de opinião.
E porque não? Não quer ganhar mais dinheiro?
- Mais dinheiro ! - riu Rayber. - Não sabe que com um
mau governador tenho mais dinheiro a perder do que ele
alguma vez me poderá dar? - Chegou à conclusão de que

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finalmente atingia o nível do barbeiro. - Ora, ele tem aver­


são a demasiados tipos de pessoas - continuou. - Ainda
me custava o dobro do Darmon.
- E se custasse? - replicou o barbeiro. - Eu cá não sou
de fechar os cordões à bolsa quando tenho a ganhar com
isso. Estou mais do que disposto a pagar para ter qualidade.
- Não era isso que eu queria dizer - começou Rayber.
- Não era . . .
- D e qualquer maneira, aquele aumento que o Hawk
prometeu não se aplica a professores como esse senhor -
disse alguém do fundo da sala, um homem gordo, com uma
aura de confiança executiva, que se aproximou de Rayber.
- É professor universitário, não é?
- Pois - proferiu o barbeiro -, tem razão. O aumento
do Hawk não lhe toca a ele; mas olhe que também não lhe
calhava nenhum se o Darmon fosse eleito.
- Ooh, alguma coisita havia de lhe calhar. Todas as esco­
las apoiam o Darmon. Arriscam-se a ganhar a fatia que lhes
compete - manuais escolares de graça, ou mesas novas, ou
coisa que o valha. As regras do j ogo são essas.
- Melhores escolas - balbuciou Rayber - beneficiam­
nos a todos.
- Parece que já oiço essa cantiga há muito tempo - co­
mentou o barbeiro.
- Não há maneira de passar a perna às escolas, está a
ver? - explicou o homem. - É assim que se defendem,
dizem que beneficiam toda a gente.
O barbeiro riu-se.
- Se alguma vez lhe passou pela cabeça . . . - começou
Rayber.
- Talvez ponham uma mesa nova na frente da sala só
para si - riu o homem em voz alta. - E esta, Joe? - disse
dando uma cotovelada ao barbeiro.

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Rayber teve vontade de levantar o pé e acertar em cheio


por baixo do queixo do homem.
- Alguma vez ouviu falar do raciocínio lógico? - pro­
testou.
- Escute - declarou o homem -, você pode dizer o
que bem entender. O que ainda não percebeu é que temos
aqui um berbicacho. Gostava de ter um par de caras pretas
a olhar para si do fundo da sala de aula?
Apoderou-se de Rayber uma cegueira momentânea que
o fez sentir como se uma força invisível estivesse a atirá-lo
repetidamente ao chão. George entrou e começou a lavar
as bacias.
- Estou disposto a ensinar qualquer pessoa que queira
aprender, seja preta ou seja branca - afirmou Rayber.
Perguntou-se se George teria levantado a cabeça.
- Está certo - concordou o barbeiro -, mas não se
estiverem todas misturadas, não é verdade? Gostavas de es­
tudar numa escola para brancos, George? - berrou.
- Não gostava, não - respondeu George. - Precisamos
de mais pó para os cabelos. Está-se a acabar a caixa. -
Limpou os restos para dentro do lavatório.
- Então, vai comprar mais - ordenou o barbeiro.
- Como disse o Hawkson - prosseguiu o executivo -,
está na hora de nos sentarmos em cima da tampa com os
dois pés e uma mula para a ajudar a fechar. - Posto isso,
recapitulou o discurso que Hawkson fizera no dia Quatro
de Julho .
Rayber gostaria de o ter empurrado para dentro da bacia.
O dia estava quente e cheio de moscas e escusava de ser obri­
gado a passá-lo a ouvir um idiota gordo. Via a praça do tribunal,
azul esverdeada e fresca, pela janela de vidro fumado. Quem
lhe dera que o maldito barbeiro se despachasse. Concentrou
a sua atenção na praça lá fora, sentindo-se como se estivesse

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lá, onde, como podia ver pelas árvores, o ar se deslocava li­


geiramente. Passou calmamente um grupo de homens pelo
caminho de acesso ao tribunal. Rayber olhou com mais aten­
ção e julgou reconhecer Jacobs entre eles. Mas Jacobs tinha
uma aula ao fim da tarde. No entanto, era mesmo o Jacobs.
Será que não era? Se fosse, com quem estaria ele a conversar?
Seria o Blakeley? Será que não? Semicerrou os olhos. Três
rapazes de cor vestidos de paletós e calças largas passaram
no passeio. Um deles agachou-se no chão, de maneira que
só a sua cabeça ficou à vista de Rayber, os outros dois encos­
taram-se à montra da barbearia, a preguiçarem à volta dele,
abrindo buracos na paisagem. Mas que raio, não poderiam ir
estacionar noutro lado?, pensou Rayber, furioso.
- Despache-se - disse para o barbeiro -, pois tenho
um compromisso.
- Qual é a pressa? - quis saber o homem anafado. - É
melhor ficar aqui a defender as cores do Boy Blue.
- Sabe uma coisa? Não chegou a dizer porque é que
vai votar nele - troçou o barbeiro, retirando a toalha que
envolvia o pescoço de Rayber.
- Pois não - corroborou o gordo -, vej a se consegue
explicar-nos sem dizer bomgoverno.
- Tenho um compromisso - afirmou Rayber. - Não
posso demorar-me.
- Pode crer que o Darmon vai ficar cheio de pena por
você não ser capaz de proferir uma única palavrinha a favor
dele - riu o gordo aos berros.
- Oiça - respondeu Rayber -, voltarei cá na semana
que vem e dar-lhe-ei todas as razões que quiser para votar
no Darmon - razões melhores do que as que me deu para
votar no Hawkson.
- Gostava de o ver fazer isso - disse o barbeiro. - Digo-
-lhe desde j á que não é possível.

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- Está bem, vamos ver - concluiu Rayber.


- Não se esqueça - avisou o homem gordo -, que não
pode dizer bomgoverno.
- Não hei-de dizer nada que vocês não sejam capazes de
entender - resmungou Rayber, sentindo-se depois tolo por
ter deixado transparecer a sua irritação. O gordo e o bar­
beiro eram todos eles sorrisos. - Até terça - despediu-se
Rayber e saiu.
Estava revoltado consigo próprio por se ter comprometido
a dar-lhes razões. Essas razões teriam de ser preparadas de
forma sistemática. Não podia abrir a cabeça e deitar as ideias
cá para fora num ápice, como eles. Quem lhe dera ser capaz
de o fazer. Quem lhe dera que «Mother Hubbard» não fosse
um termo tão preciso. Quem lhe dera que o Darmon cuspisse
tabaco de mascar. Teria de apurar bem as razões, o que leva­
ria tempo e daria trabalho. Qual era o problema dele? Porque
não sistematizá-las? Se se dedicasse com convicção, seria capaz
de fazer com que todos naquela loja se encolhessem.
Quando chegou a casa, já tinha esboçado em traços lar­
gos a sua argumentação. Não podia encher espaço com
palavras escusadas, nem podia usar palavras caras - estava
visto que não seria tarefa fácil.
Pôs logo mãos à obra. Trabalhou o discurso até ser hora
de j antar e escreveu quatro frases - todas as quais riscou.
Levantou-se uma vez a meio da refeição para se dirigir à
escrivaninha e alterar uma delas. Depois de jantar, riscou a
correcção.
- O que se passa contigo? - quis saber a esposa.
- Absolutamente nada - respondeu Rayber -, absolu-
tamente nada. Só tenho de trabalhar.
- Que não seja eu a estorvar-te - redarguiu.
Quando ela saiu, deu um pontapé na base da escrivani­
nha e soltou uma tábua. Às onze da noite tinha uma página

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escrita. Na manhã seguinte foi-lhe mais fácil e acabou tudo


ao meio-dia. Pareceu-lhe que o texto era suficientemente
directo. Começava assim: «São duas as razões pelas quais o
Homem elege o seu semelhante para posições de poder» , e
terminava: « Üs homens que fazem uso das ideias sem as pe­
sarem caminham sobre o vento . » Achou que a última frase
era bastante eficaz. Pareceu-lhe que todo o texto era sufi­
cientemente eficaz.
À tarde, levou-o ao gabinete de Jacobs. Blakeley·tam­
bém lá estava, mas saiu. Rayber leu o texto em voz alta para
Jacobs.
- Bem - reagiu este -, e depois? Que nome dás ao que
estás a fazer? - Tinha-se ocupado a registar valores numa
tabela durante todo o tempo que Rayber passara a ler.
Este interrogou-se se o colega estaria ocupado.
- Estou a defender-me dos barbeiros - concluiu. -
Alguma vez tentaste discutir com um barbeiro?
- Eu nunca discuto - disse Jacobs.
- Isso é porque não conheces aquele tipo de ignorância
- explicou Rayber. - Nunca a sentiste na pele.
Jacobs resfolegou.
- Ai isso é que senti - retrucou.
- E o que é que aconteceu?
- Nunca discuto com ninguém.
- Mas sabes que tens razão - persistiu Rayber.
- Não discuto.
- Pois eu vou discutir - respondeu Rayber. - Vou dizer
o que está certo tão depressa quanto eles forem capazes de
dizer o que está errado. Vai ser uma questão de velocidade.
Tenta entender - prosseguiu -, que não vou em missão de
conversão; estou apenas a defender-me.
- Compreendo isso - replicoujacobs. - Espero que
consigas.

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- Já consegui ! Leste o que eu escrevi. Está lá tudo. -


Rayber interrogou-se se Jacobs seria estúpido ou se estaria
preocupado.
- Pronto, então não vás mais longe . Não estragues a
pele a discutir com barbeiros.
- Não há outra solução - afirmou Rayber.
Jacobs encolheu os ombros.
Rayber contava discutir o assunto a fundo com ele.
- Pronto, até logo - terminou.
- Está bem - proferiu Jacobs.
Rayber perguntou-se porque se dera sequer ao trabalho
de lhe ler o manifesto.
Na terça-feira à tarde, antes de partir para o barbeiro ,
começou a ficar nervoso e lembrou-se de ensaiar os ar­
gumentos com a esposa, para praticar. Tanto quanto sa­
bia, ela própria era capaz de ser partidária do Hawkson.
Sempre que abordava o tema das eleições, fazia questão
de dizer, Só por seres professor, isso não quer dizer que
sabes tudo. Alguma vez ele lhe dissera que sabia o que
quer que fosse? Talvez não recorresse à esposa. Porém ,
queria saber como tudo aquilo realmente soava em dis­
curso directo . Não era um texto extenso; não roubaria
muito tempo à mulher. Provavelmente não gostaria de
ser convocada para participar. No entanto , talvez se dei­
xasse afectar pelo que ele lhe diria. Era uma possibilidade .
Chamou-a.
Ela aceitou vir, mas ele teria de esperar até ter acabado o
que estava a fazer; parecia que cada vez que jogava as mãos a
qualquer coisa, tinha de dar meia volta e ir fazer outra coisa
qualquer.
Ele disse que não podia esperar o dia todo - só faltavam
três quartos de hora para a loja fechar -, e pediu-lhe que
fizesse o favor de se despachar.

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O BARBEIRO

Ela veio a limpar as mãos e disse que pronto, pronto, já


tinha vindo, não tinha? Ele que dissesse de sua j ustiça.
Começou o discurso com uma voz muito tranquila e na­
tural, o olhar fixo algures por cima da cabeça da esposa.
O som da sua voz a brincar com as palavras não lhe soou
mal. Interrogou-se se seriam as próprias palavras ou a en­
toação que lhes dava a conferir-lhes aquela sonoridade. Fez
uma pausa a meio de uma frase e deitou um olhar à procura
de qualquer indício que o rosto da esposa pudesse reflectir.
Esta tinha a cabeça ligeiramente virada para a mesa colo­
cada junto à cadeira, onde se encontrava uma revista aberta.
Quando intervalou o discurso, a esposa levantou-se.
- Está muito bonito - sentenciou, e regressou à cozinha.
Rayber pôs-se a caminho do barbeiro.
Foi devagar, pensando no que iria dizer na loj a e parando
para mirar distraidamente uma montra aqui, outra ali. A
Block's Feed Company exibia uma gama de degoladoras
automáticas para matar galinhas - «Para os Mais Tímidos
Poderem Matar os Seus Galináceos», lia-se no anúncio por
cima dos produtos. Rayber perguntou-se se haveria muita
gente tímida que as usasse. Ao aproximar-se da barbearia,
viu obliquamente pela porta que o homem inchado de con­
fiança executiva se · encontrava sentado ao canto, a ler um
jornal. Rayber entrou e pendurou o chapéu.
- Boas ___.:_ cumprimentou-o o barbeiro. - Diga-me lá se
isto não está o dia mais quente do ano !
- Está bastante calor - respondeu Rayber.
- A época de caça não tarda a acabar - comentou o
barbeiro.
Está bem, teve Rayber vontade de dizer, vamos lá despa­
char esta conversa. Lembrou-se de aflorar os seus argumen­
tos com base nos comentários deles. O gordo nem sequer
tinha reparado que ele estava ali.

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- Devia ter visto o bando de codornizes que um dos meus


cães desencantou há uns dias - prosseguiu o barbeiro, en­
quanto Rayber se instalava na cadeira. - Levantaram voo,
espalharam-se uma vez e apanhámos quatro, espalharam-se
outra vez e caçámos mais duas. Nada mau.
- Nunca cacei codornizes - disse Rayber enrouquecido.
- Não há nada como pegar num preto, num cão de caça e
numa arma e ir caçar codornizes - declarou o barbeiro. - Se
nunca o fez, passou ao lado de uma das boas coisas da vida.
Rayber pigarreou e o barbeiro continuou a trabalhar.
O gordo, ao canto, virou uma página. Porque acham eles
que eu vim cá? , pensou Rayber. Não podiam ter-se esque­
cido. Aguardou, ouvindo o ruído que as moscas faziam e
os murmúrios dos homens que conversavam no fundo da
loja. O gordo virou outra página. Rayber ouvia a vassoura de
George a varrer lentamente o chão algures na loja, depois a
parar, depois a escovar, depois:
- Você, aaah, sempre vai votar no Hawkson? - pergun­
tou ao barbeiro.
- Sim ! - riu o barbeiro. - Vou ! Quer crer que já me
tinha esquecido? O senhor ia explicar-nos porque é que vai
votar no Darmon. Ei, Roy! - gritou para o homem anafado
-, anda cá. Vai dizer-nos porque é que devíamos votar no
Boy Blue.
Roy grunhiu e virou mais uma página.
- Vou assim que acabar esta notícia - resmungou.
- Quem é que tens aí, Joe? � perguntou um dos ho-
mens das traseiras -, um daqueles tipos que passam a vida
a falar do bomgoverno ?
- Isso mesmo - respondeu o barbeiro. - Vai fazer um
discurso.
- Já estou farto de ouvir discursos desses - disse o
homem.

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- Ainda não ouviste nenhum feito pelo Rayber - con­


trapôs o barbeiro . - O Rayber é porreiro. Não sabe em
quem é que há-de votar, mas é porreiro.
Rayber corou. Vieram juntar-se dois homens a eles.
- Isto não é nenhum discurso - explicou Rayber. - Só
quero discutir esta questão convosco de um modo sensato.
- Chega aqui, Roy - gritou o barbeiro.
- Em que é que você quer transformar isto? - pergun-
tou Rayber entre dentes; depois, subitamente, acrescentou:
- Se vai chamar toda a gente, porque não chama também
o rapazito, o George? Tem medo que ele oiça?
O barbeiro olhou para Rayber durante um segundo sem
dizer nada.
Este ficou com a sensação de que se tinha posto dema­
siado à vontade.
- Não se preocupe, que ele ouve - declarou o barbeiro.
- Ouve do lugar dele, lá atrás.
- Só me pareceu que era capaz de lhe interessar - in-
sistiu Rayber.
- Deixe, que ele ouve - repetiu o barbeiro. - Ouve
o que deve e ouve muito mais do que isso. Ouve tão bem o
que você diz como aquilo que não diz.
Roy aproximou-se, dobrando o jornal.
- Boas, sócio - disse pondo a mão em cima da cabeça
de Rayber -, vamos lá ouvir esse discurso.
Rayber sentiu-se como se estivesse a debater-se para fugir
das malhas de uma rede. Estavam todos em cima dele, com
os seus rostos corados sorridentes. Ouviu as palavras saírem
arrastadas de dentro de si:
- Bem, a meu ver, os homens eleg . . . - Sentiu-as saí­
rem-lhe aos arrancos da boca como se fossem vagões, en­
trechocavam-se, atropelavam-se umas às outras, travavam e
chiavam, deslizavam, tornavam a encostar-se, arranhavam, e

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então, de súbito, pararam tão abruptas como haviam arran­


cado. Acabou-se. Rayber ficou arrepiado por ter acabado tão
depressa. Durante alguns instantes - como se estivessem à
espera que ele continuasse -, ninguém disse nada.
Depois:
- Quantos de vós vão votar no Boy Blue ! ? - bradou o
barbeiro.
Alguns dos homens deram meia volta e abafaram risadas.
Um dobrou-se, agarrado à barriga, de tanto rir.
- Eu cá - afirmou Roy -, vou já a correr às urnas para
ser o primeiro a votar no Boy Blue amanhã de manhã.
- Oiçam ! - gritou Rayber. - Não estou a tentar. . .
- George - berrou o barbeiro - , ouviste este dis-
curso?
- Sim, senhor - respondeu George .
- Em quem vais votar, George?
- Não estou a tentar! . . . - gritou Rayber.
- Não sei se me deixam votar - respondeu George. -
Se deixarem, voto no Sr. Hawkson.
- Oiçam ! - gritou Rayber -, julgam que estou a ten­
tar mudar a vossa opinião, sua cambada de analfabetos? Por
quem me tomam? - Puxou com força pelo ombro do bar­
beiro para o virar para si. - Julgam que me passa pela ca­
beça interferir com a vossa ignorância bacoca?
O barbeiro sacudiu a mão de Rayber do ombro.
- Não se excite - replicou -, achámos todos que foi
um belo discurso. É isso que tenho passado a vida a dizer­
-lhe: há que pensar, é preciso . . . - Caiu para trás quando
Rayber o atingiu, e aterrou sentado no apoio para os pés
da cadeira ao lado. - Pareceu-me muito bem - concluiu,
mantendo o olhar firme na cara branca, semicoberta de es­
puma de Rayber, que o fulminava com os olhos. - Foi o
que lhe disse desde o princípio.

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O BARBEIRO

O sangue começou a latejar pelo pescoço de Rayber acima,


à flor da pele. Deu meia volta e abriu caminho à pressa por
entre os homens que o cercavam para chegar à porta. Lá
fora, o sol mantinha tudo suspenso num mar de calor e,
antes de dobrar a primeira esquina, quas e em passo de cor­
rida, a espuma começou a pingar-lhe para dentro do colari­
nho e para cima do avental que trouxera do barbeiro e lhe
caía agora pendurado até aos j oelhos.

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