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IHS Cavalaria A morte de Vivien - Página 1 de 6

4. A morte de Vivien

Fonte: Robert Bossuat, Extraits des chansons de geste, Larousse, Paris, 1935.
Anônimo, La légende de Guillaume d'Orange, renouvellée par Paul Tuffrau, L'Édition
d'Art, Paris, 1920.

O voto de Vivien

Foi na festa de Páscoa que o conde Guillaume d'Orange armou cavaleiro seu
sobrinho, o jovem Vivien, dando-lhe a bofetada e cingindo-lhe a espada. Os assistentes
são tão numerosos que enchem a grande praça do palácio, e no meio de todos está o
conde. Primeiramente ele arma cavaleiros cem escudeiros, por amor de Vivien.
Vivien aparece então, e avança em direção a seu tio, caminhando sobre o rico
tapete. Ele é de grande beleza, ombros largos e pescoço ereto. Guillaume prende-lhe as
esporas de ouro, reveste-o de uma loriga mais fulgurante do que vinte círios, cobre-o de
um elmo constelado de pedras preciosas e cinge-lhe a espada de aço. Depois, ergue o
braço e dá-lhe uma forte bofetada, dizendo: - “Ide, nobre sobrinho, e que Deus vos dê
fortaleza, audácia e coragem, lealdade a vosso senhor e vitória sobre os descridos!”
Todos admiram o novo cavaleiro e exclamam: - “Olhai-o! Ele tem senhorio
sobre os outros como o falcão sobre os pássaros. Se viver, que intrépido combatente ele
será!” A alegria é bela, mas será breve. - “Meu tio - diz Vivien - vós me destes a espada;
não temais que eu a desonre, pois agora prometerei a Deus que jamais recuarei!”
- “Sobrinho - diz Guillaume - não vivereis, se quiserdes fazer tal juramento. Não
existe homem tão valoroso que não fuja quando demasiados inimigos o cercam, pois
estaria perdido. Nobre sobrinho, sois jovem; deixai esta loucura, e quando entrardes em
batalha, não tenhais receio de fugir quando for preciso; voltai atrás! É o que eu faço
quando me vejo assaltado por grande número de inimigos: não espero a ferida mortal!
Crede: a fuga não é censurável quando só ela pode salvar-nos a vida.”
- “Meu tio - responde Vivien - o novo cavaleiro só deve pensar na honra. Não
voltarei atrás em minhas palavras.” Então, monta em seu cavalo de um salto, passa seu
braço esquerdo nas correias do forte escudo, empunha a lança com sua destra, firma-se
nos estribos e brada com voz potente: - “Escutai-me, vós todos! Eu juro a meu Senhor
Deus, o Rei do Céu, diante de vós, diante de meus pares e diante do conde Guillaume,
que jamais recuarei diante de sarracenos, turcos ou persas, seja qual for o seu número e
sejam quais forem as minhas feridas!”
Todos o escutam. A alegria cessa, os nobres estão consternados. Guillaume diz: -
“Sobrinho, aqueles que vos amam viverão doravante na tristeza”. Mas Vivien não se
perturba, e responde cheio de ufania: - “Quando eu estiver morto, será a hora de chorar
por mim, mas hoje estejamos alegres”. Mas todos temem que, por causa de suas
palavras, venha uma grande dor sobre a França e muito sangue seja derramado.

O desafio de Vivien

Vivien só pensa em alargar o Reino de Deus sobre a Terra. Ele reúne sob seu
comando sete filhos de condes e cinco mil escudeiros que vêm oferecer-se a ele. Eis que
faz anunciar em seu pequeno exército: - “Todo aquele que prender um sarraceno, não
deverá guardá-lo para pedir resgate, mas deverá matá-lo imediatamente”. E em seguida
penetra na terra maldita.
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Durante três anos ele persegue os sarracenos por todas as partes, e conquista a
região até l'Archant sur Mer. Mas ali resiste ainda um castelo onde se refugiam os
pagãos. São quinhentos: homens, mulheres e crianças. Vivien os prende e os faz degolar
todos, não poupando mais do que quatro, aos quais dá ordem de colocar os cadáveres
numa nau e levá-los a Desramé, rei dos sarracenos. A Provence está conquistada, e
Vivien se instala na praia de Aliscans.
Eis que o navio com os corpos chega até Desramé, e os quatro pagãos prostram-
se a seus pés, dizendo: - “Senhor nosso, socorrei-nos! Trazemo-vos uma nau cheia de
vossa gente massacrada. Quem a envia é o sobrinho de Guillaume, como sinal de
desprezo e de irrisão. Ele se chama Vivien, e ainda não tem dezoito anos! Jamais cristão
algum atacou-nos com tanta violência; incendiou vossas cidades, arrasou vossos
castelos e matou vossos parentes. Toda a Provence foi assolada até o mar, e eis que ele
acampa na praia de Aliscans; mas se ele soubesse que vós estais aqui, viria diretamente
contra vós, pois é terrivelmente intrépido!”
Enorme é o lamento dos pagãos; o velho emir chora de cólera em seu trono, e
puxa sua barba com as duas mãos, gritando: - “Maomé, senhor meu, ajudai-me a vingar
este ultraje! Partamos sem demora!” E, subindo em suas naus, desdobram as velas e
partem. São tantos que só Deus poderia contá-los, e seu clamor ressoa sobre as águas
como um trovão sobre o mar. Entretanto, Vivien permanece em Aliscans, com apenas
cinco mil homens.

A batalha de Aliscans

O conde Vivien ergueu suas tendas na praia de Aliscans, aos pés do velho
castelo. Na segunda feira, à hora tércia, eis que ele ouve rumores longínquos que
ressoam sobre as águas e se aproximam cada vez mais. Chama ele os sete filhos dos
condes, e em torno deles os francos se reúnem. Eis que subitamente aparece a frota
pagã, para além dos rochedos; ela se estende e cobre o mar.
Vendo isto, os nossos perdem ânimo e exclamam: - “Que a Santa Virgem nos
ajude! Eis o rei Desramé. Morreremos todos se não fugirmos depressa.” Mas Vivien diz
a seus homens: - “Não tenhais medo dos incréus que vedes em tão grande multidão.
Confiemos em Deus, que é mais poderoso do que eles. Não vos perturbeis! Armai-vos e
mostrai vossa coragem!”
Os francos o escutam, mas os mais intrépidos empalidecem como se perdessem
seu sangue. - “Senhor primo - diz Gautier -, jamais foram vistos tantos navios juntos.
Nosso esforço será vão; melhor seria bater em retirada.” - “Amigo - responde Vivien -
não temos nós boas armas e bons corcéis? Não somos bravos cavaleiros? E porventura
não confiamos no Rei do Paraíso? De minha parte, fiz a Ele o voto, no dia em que fui
armado, de jamais recuar ante os sarracenos. Não me vereis recusar o combate; aqui
ficarei, morto ou vivo”.
Todos estão consternados, abaixam a cabeça e dizem uns aos outros: - “Ai de
nós! Este homem é por demais orgulhoso! Se esses pagãos fossem javalís, necessário
seria um mês inteiro para matá-los!” - “Senhores francos - diz Vivien o valente, o
intrépido - vós pensais em vossos castelos, vossas pradarias e vossas vinhas, vossas
cidades e vossas famílias.
Aquele que disso se lembra, jamais fará proezas. Dispensados estais! Ide para
onde quiserdes e eu permanecerei aqui, cumprindo o meu voto. Entretanto, no grande
dia do Juízo, Deus saberá reconhecer aquele que O serviu sem fraquejar, e esse será
coroado na celeste alegria. Mas os covardes e traidores serão rejeitados.”
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Vivien falou com ufania e nobreza. Ao ouvi-lo, todos abandonam seu temor,
sentem-se reconfortados, erguem a cabeça e exclamam: - “Senhor Vivien, nós vos
juramos, pela Lei que pregaram os Apóstolos de Nosso Senhor, que jamais vos
deixaremos enquanto viverdes!” - “E eu vos juro, pela caridade de Deus quando sofreu
por nossos pecados, que jamais vos abandonarei por covardia! Armai-vos, pois! Em
breve teremos batalha.” E os sete filhos dos condes prometem não separar-se durante a
melée.
Eis que a frota sarracena recolhe suas velas e joga suas âncoras em meio a
horrendos clamores, e de cada navio desce uma multidão armada. Vivien lança um olhar
sobre sua gente; eles esperam, firmes nas selas, com os escudos embraçados e as lanças
erguidas. - “Meu Deus - implora Vivien - cuidai de nossas almas e recebei-as; quanto
aos corpos, será como Vós quiserdes.” É Segunda-Feira, hora de vésperas. Começa
então a batalha da qual ninguém se esquecerá jamais.

As três cargas da cavalaria católica

Por três vezes Vivien reúne sua mesnada sobre as dunas, pois não podem
empurrar os pagãos até o mar. Na primeira vez, Vivien vê os arqueiros sarracenos na
costa, os mortos que jazem aqui e acolá, atravessados por compridas flechas, os cavalos
sem dono e os feridos que gemem sob seus escudos. Ó Deus! Quanto luto na França por
todos esses cavaleiros que tombaram! Vivien conta os que o rodeiam: não tem mais de
dois mil escudos para sustentar a batalha! - “Senhores - diz ele - vede vossos irmãos que
os árabes mataram de longe, como felões que são. Vinguemos os mortos enquanto
estamos vivos. Montjoie!” E todos o seguem.
Na segunda vez, Vivien percebe, através das fileiras de arqueiros, os cavalos que
chegam à praia. Ele vê os seus em torno de si, cobertos de feridas, e conta-os com
angústia. Ai! Para sustentar a batalha, não lhe restam mais de mil escudos! - “Irmãos -
diz ele - o que farei por vós? Nenhum médico na terra poderia vos curar. E por que iríeis
morrer em vossos leitos? Nenhum mártir terá mais honra do que aqueles que em
Aliscans cairão hoje por Deus!” - “À bênção de Deus!” - respondem eles, e esporeiam
seus cavalos.
E na terceira vez, o próprio Vivien sente-se tão cruelmente ferido que desce do
corcel. Suas entranhas pendem fora do corpo e ele as sustenta com a mão esquerda,
invocando a Santa Maria: - “Santa Maria, Mãe de Deus, protegei-me para que não me
matem os felões sarracenos!” Mas imediatamente se arrepende: - “Falo como insensato,
ao pensar em preservar o meu corpo. O Senhor Jesus deixou torturar o seu por nós.
Senhor, não tenho o direito de pedir-Vos que me livreis da morte, pois Vós não tivestes
misericórdia de Vós mesmo. Fazei somente que eu possa rever mais uma vez o conde
Guillaume, meu senhor.”
Em torno dele congregam-se os guerreiros restantes. Não há um que não tenha
em sua mão a sangrenta espada e sob seu corpo a sangrenta sela. - “Vivien, senhor
nosso - dizem eles - se voltais a atacar, nós voltaremos; se combateis, nós
combateremos. Tudo o que fizerdes, nós o faremos.” - “Agradeço-vos, meus irmãos” -
responde Vivien.
Ai! Quinhentos escudos para sustentar a batalha! Ele chama então o cavaleiro
Gérard e diz-lhe: - “Amigo Gérard, estais vós são de corpo?” - “São e íntegro.” -
“Tendes boas armas?” - “Senhor, tão boas quanto possam ser as de um homem que
acaba de combater e que está pronto para voltar ao combate.” - “Como está o vosso
cavalo?” - “Ferido está, mas não cede.” - “E a vossa coragem?” - “Jamais esteve tão
forte.”
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- “Amigo Gérard, ouso implorar-vos: ide onde está o conde Guillaume, para que
ele nos socorra neste doloroso perigo.” - “Oh! Como me entristece o deixar-vos!” -
“Calai-vos, guerreiro! Não faleis assim!” E assim separam-se os dois amigos, na
segunda-feira, à hora de vésperas. Assim que Gérard sai do campo das dores, seu bom
cavalo cai morto. O guerreiro caminha apoiado em sua espada, enrubescida de sangue,
do pomo até a ponta.

Vivien vê morrer seus companheiros

Vivien está ferido, e eis que desmaia. Quando volta a si, os francos dizem: -
“Senhor, estais cruelmente ferido; permanecei aqui e repousai, enquanto nós
combatemos.” - “Senhores - responde Vivien - sinto a morte que me golpeia; meus
olhos se turvam, mas só morrerei depois de vésperas, e quero fazer o inimigo pagar caro
as nossas feridas. Aquele pois, que me ajudar a montar em meu corcel, pendurar-me o
escudo ao ombro e colocar-me a espada na destra, esse será meu amigo”.
- “Senhor Vivien, nenhum de nós o fará!” - “Cavaleiros, eu vo-lo ordeno! Se eu
morrer em plena melée, serei coroado no Paraíso, mas se me deixardes aqui, o pecado
recairá sobre vós.” Eles o erguem então em seu cavalo, amarram-no à sela, põem-lhe as
rédeas na mão esquerda e a espada na destra. O próprio Deus o sustenta e o impede de
cair. - “Atiremo-nos contra os pagãos! - exclama Vivien - Não vedes em torno de nós os
Anjos que levarão as nossas almas? São Miguel as espera hoje para dar-lhes grande
honra.”
Os sarracenos uivam e gritam, lançando sobre eles dardos e flechas. Vivien está
ferido, mas só cairá quando Jesus assim o quiser. Monstruosos e negros ginetes
rodeiam-no como demônios, empunhando suas maças. Vivien faz revoar sua grande
espada, mas está preso num cerco intransponível e reza: - “Meu Deus, Filho da Virgem,
não permitais que entre em meu coração o desejo de recuar um passo! Por vossas santas
bondades, dai-me a graça de guardar o meu voto!”
Perto dele está o conde Bertrand, recuando a cada golpe recebido. Vivien brada:
- “Montjoie!, cavaleiro!” Bertrand o escuta: seu coração se fortalece, atira-se contra o
cerco dos felões, fende-o, abre uma clareira a golpes de espada e liberta Vivien. Todos
cobertos de sangue, os dois guerreiros se abraçam. - “Senhor - diz Bertrand - não vos
abandonarei enquanto estiver vivo e com minha espada na mão.”
E eis que em torno deles reúnem-se os outros seis filhos de condes, acorrendo
em meio aos clamores da batalha, chamados pelo brado de guerra. Dez mil sarracenos
os cercam; Vivien invoca os dois grandes santos da Bretanha e do Reno: São Miguel e
São Herbert. Verdadeiramente, o conde Vivien é um mártir! Mas ele perde dez homens
dos vinte que lhe restavam. Ai! Em meio ao grande tumulto, ele vê seus cavaleiros
caindo um após outro. Os pagãos não deixam um só com vida.
Vivien está só, com seu escudo. Já não pensa mais em defender-se, mas somente
em golpear: ergue sua grande espada com as duas mãos, desferindo terríveis cutiladas
em todas as direções, e abate uma centena de inimigos. Seus golpes fendem os
sarracenos de alto a baixo, e sua espada penetra no chão. - “Santa Maria, Virgem e Mãe,
enviai me o conde Guillaume, meu senhor” - Esta é a oração que recita o jovem
guerreiro na melée.
Um árabe, montando um rápido cavalo, avança contra ele e atira-lhe o dardo que
traz na mão direita. A arma se crava em seu flanco e faz saltar trinta malhas da loriga.
Vivien tem uma grave ferida da qual não mais será curado. Leva a mão ao flanco, sente
a haste e extrai o dardo de seu corpo; golpeia o pagão nas costas e crava-lhe a arma nos
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rins. De um só golpe o matou. - “Sarraceno maldito! - exclama o jovem Vivien - jamais


te gloriarás de haver morto um guerreiro franco!” E retoma a espada para continuar o
combate.

A agonia de Vivien

O calor é forte e ele sofre o tormento da sede; o claro sangue escorre de seus
lábios e de suas feridas. No espaço de quinze léguas não há rio nem fonte, mas só a água
salgada das ondas do mar. Entretanto, no meio da planície corre um riacho maculado de
lama, sangue e miolos. O herói corre e, inclinando-se, bebe aquela água.
Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança; só nas pernas e nos
braços recebe mais de vinte feridas. Mas eis que se reergue como um javali feroz.
Tantas flechas se cravam em seu escudo que o conde não pode mais sustentá-lo e o
deixa cair a seus pés. As lanças desgarram sua cota de malha; as suas entranhas pendem
fora de seu corpo, arrastando pelo chão e, como sente próximo o fim, pede a Deus
misericórdia.
Com a mão direita empunha a espada, ensangüentada do pomo até a ponta.
Tomado pelos estertores da morte, ele caminha sustentado por ela, e reza: - “Deus
verdadeiro de glória, defendei-me, para não ser tentado a recuar um passo na batalha!”
Um bérbere golpeia a cabeça do nobre cavaleiro com seu dardo de ferro. Vivien
cai de joelhos, exclamando: - “Deus nosso Pai, Rei glorioso e forte, não permitais que
eu consinta no pensamento de recuar um passo, por medo da morte”. Mas eis que ao
longe aparece um cavaleiro, no alto das colinas, seguido por uma multidão de
estandartes. Os cem mil pagãos o reconhecem: É o conde Guillaume com seus
guerreiros!
A batalha torna-se terrível e os sarracenos cobrem a praia. O conde Guillaume,
cheio de angústia, procura seu sobrinho Vivien. Um de seus homens diz: - “Senhor, a
batalha de Roncesvales não foi nada em comparação com este combate. A planície, as
dunas e o mar estão cobertos de infiéis. Como abriremos o caminho?” - “Com a espada!
- responde ele - Eu vos encomendo todos ao Filho de Santa Maria. Segui-me!” -
“Montjoie!” - bradam eles, lançando-se ao ataque.
Tanto resplandece a espada do conde que os pagãos se afastam. No caminho de
Guillaume as selas dos sarracenos se esvaziam; ele golpeia de ponta e de corte, sem
saber onde o leva seu cavalo, e chega assim à praia do mar. Seu elmo pende às suas
costas, sua loriga está desgarrada, seu escudo despedaçado e sua espada fendida. Ele
não cessa de combater, e seus braços estão cobertos de suor e de sangue.
Por fim, ei-lo que entra num pequeno vale que vê diante de si, coberto de
bosques e arbustos. A noite desce e os sarracenos deixam de atacá-lo. Guillaume, cheio
de amargura e de cólera, avança entre armas despedaçadas e corpos talhados.
Subitamente, reconhece o escudo de Vivien e, não longe dali, à beira das águas, percebe
o jovem cavaleiro, jazendo por terra.

A primeira comunhão

Vivien tem suas brancas mãos cruzadas sobre o peito; sua espada repousa com
ele. O sangue escorre de sua face e inunda suas armas; seu corpo exala aroma de
incenso. Guillaume detém seu cavalo, apeia-se, ajoelha-se e fita o longamente. - “Meu
nobre sobrinho Vivien, nenhum homem criado por Deus teve tanta coragem. Tu não te
orgulhavas de tuas proezas, mas eras doce e humilde, e contra os sarracenos eras
intrépido e conquistador. Jamais cobravas resgate por eles: quando os prendias,
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arrancavas-lhes a alma do corpo, que é o que se deve fazer. E por não quereres fugir
diante deles, eis que te mataram, segunda-feira, à hora de vésperas!”
“Ah! Por que não cheguei antes, quando ele ainda vivia? Ele teria recebido o
Santíssimo Sacramento, que trago comigo, e eu teria nisso imensa alegria! Senhor Deus,
dignai-Vos receber sua alma, pois é por Vós que ele morreu em Aliscans!”
O conde Guillaume toma o jovem guerreiro em seus braços, e eis que sente a
vida pulsar em seus flancos. - “Vivien - diz ele – fala-me! Vivien, meu sobrinho e meu
par! Tua vassalagem não foi longa. Eu te armei cavaleiro com grande honra, junto com
cem outros, por amor de ti!” Guillaume esconde o rosto entre as mãos, e chora com
imensa dor: - “Vivien, que Deus faça mercê à tua alma e às de todos os que jazem
contigo, mortos ou moribundos, tombados por seu serviço!”
Vivien escuta os lamentos de seu tio e, cheio de compaixão, exala um suspiro e
volta para ele a sua face. - “Ó Deus - diz Guillaume - eis que fui atendido!” E aperta o
jovem em seus braços. - “Nobre sobrinho, vives tu, pela caridade divina?” - “Sim,
senhor tio, mas o meu peito está todo aberto pelos golpes.” - “Já comestes do Pão
consagrado?” - “Hélas! Muito desejava prová-Lo antes de morrer, mas agora é tarde. Se
Deus assim o quiser, não serei condenado por isto, pois Ele conhece a minha vontade.”
“Saibas que eu O trago aqui. Recebe-O com toda humildade, em nome da divina
Trindade.” - “É o meu desejo mais ardente. Vejo que o Senhor me visita.” Guillaume
lava suas mãos na água vizinha, e retira de sua teca o Pão consagrado, dizendo: -
“Prepara-te agora para confessar teus pecados. Sou teu tio, e não tens parente mais
próximo, fora o Senhor Deus nosso Pai. Eu serei teu capelão e teu padrinho.”
- “Erguei minha cabeça, senhor. Sim, por amor de Deus, dai-me a comer desse
Pão Sagrado, pois vou morrer. Apressai-vos, meu tio, pois falha-me o coração.”
Guillaume sustenta a cabeça de Vivien, e o jovem confessa os pecados que pode
recordar: - “Uma coisa me atormenta: eu fiz outrora, no dia da Páscoa, o voto de jamais
recuar diante dos sarracenos, mas hoje eles tanto me assaltaram que tenho grande temor
de haver faltado à minha promessa.” - “Não deves temer, Vivien” - responde Guillaume,
e põe-lhe nos lábios a Sagrada Hóstia.

Morte de Vivien

Vivien bate no peito e não fala mais. Por última vez ele fita o conde e esforça-se
por inclinar-se diante dele. Depois sua cabeça tomba bruscamente e ele exala um
suspiro. Sua alma partiu. Deus a recebe no Paraíso, em meio a seus Anjos.
O conde Guillaume estende o corpo do jovem guerreiro sobre um grande escudo,
junta-lhe as mãos e cobre o com outro escudo. Depois monta em seu corcel e afasta-se,
fazendo o Sinal da Cruz. E ninguém mais verá a face do jovem Vivien, que repousa em
l'Archant, no vale de Aliscans, jazendo entre dois escudos.

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