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Fortaleza-CE
Janeiro, 2018
LAILA MARTINS DE CARVALHO PORTO
Fortaleza-Ceará
2018
3
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Dra. Danielle Maia Cruz
Universidade de Fortaleza - UNIFOR
________________________________________________
Dra. Cynara Monteiro Mariano
Universidade Federal do Ceará - UFC
________________________________________________
Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa
Universidade de Fortaleza - UNIFOR
“Se fosse fácil, não seria mestrado”. Com as palavras da minha querida orientadora, a
Professora Danielle Maia Cruz, começo meus agradecimentos. Em meio aos percalços
inevitáveis da produção de uma dissertação de mestrado durante os primeiros meses da
maternidade, seus conselhos foram contribuições valiosas. Certamente, escrever uma
dissertação de mestrado seria ainda mais difícil sem as suas indicações bibliográficas, suas
correções e seus ensinamentos de pesquisa, orientações que teceram o amadurecimento
acadêmico de que eu necessitava para chegar até aqui.
Aos amigos, a minha gratidão pelo carinho, estímulo e compreensão quanto à redução
da nossa convivência, provocada pelo meu necessário comprometimento com o
desenvolvimento da presente pesquisa. Devo sinceros agradecimentos à minha amada amiga
Raissa, doutoranda em Direito, pelas inúmeras contribuições e discussões sobre o meu tema, e
também por dividir, sempre de forma divertida, as experiências de seu mestrado. Aos colegas
de mestrado, o meu muito obrigada pelos sempre agradáveis encontros mensais e também
pelo carinhoso acolhimento na cidade de Fortaleza.
Por fim, agradeço a todos da minha família: meu norte, minha referência e minha
inspiração. Ao meu esposo, Kaymi, meu Porto seguro e companheiro de todas as horas,
agradeço o incentivo, a admiração, o carinho e o amor, que certamente tornaram mais amena
essa jornada. À minha filha, Beatriz, meu amor maior, o meu muito obrigada por existir em
minha vida, me inspirando e me fazendo alguém melhor, todos os dias.
À minha mãe, Heloisa, meu eterno exemplo de força, coragem e determinação, não só
dirijo o meu maior agradecimento, como também dedico este trabalho.
“Por vezes sentimos que aquilo que fazemos
não é senão uma gota de água no mar. Mas o
mar seria menor se lhe faltasse uma gota”.
(Madre Teresa de Calcutá)
RESUMO
O presente trabalho tem como tema o direito à moradia e as formas de atuação do Estado na
cidade de Maceió, objetivando, ainda, propor uma intervenção no referido município com fins
de aprimoramento das políticas públicas na seara habitacional, através da melhoria de
instrumentos participativos. Pretende-se demonstrar que a utilização da mediação, enquanto
mecanismo de reforço à participação popular na revisão e execução do Plano Diretor
Municipal, pode suprir a deficiência na participação social verificada nas audiências públicas,
de forma a auxiliar na devida inserção, no referido plano, de medidas que visem garantir o
direito à uma moradia adequada, sobretudo para a população mais carente. Para tanto, é
abordado o conceito de moradia adequada enquanto direito humano fundamental e a premente
necessidade de se promover tal direito a partir das necessidades concretas, sobretudo no que
se refere às classes sociais mais vulneráveis, não raro privadas dos bens mais básicos e
essenciais à uma vida digna. Por fim, propõe-se intervenção na realidade de Maceió, através
da realização de mediações e do fomento da participação social, dentro da logística de revisão
do plano diretor, como instrumento de promoção da moradia, tornando mais justa, legítima e
humana a atuação da administração municipal nesse aspecto.
Palavras-chave: Direito a moradia. Políticas públicas habitacionais. Participação popular.
Mediação. Democratização da atuação estatal.
ABSTRACT
The theme of the present dissertation is the right to dwelling and the ways that the state can
approach such issue in the city of Maceió, in order to propose an interference in this county
that improves the public policies about the referred subject. By this research, it is intended to
demonstrate that the use of mediation, as a mechanism of reinforcement of popular
participation in the review and enforcement of the "Plano Diretor Municipal", may correct the
deficit of social participation that is verified at public hearings, so as to introduct improved
measures that guarantee the right to adequate housing, especially for the most underprivileged
population. The concept of adequate housing as a fundamental human right and the urgent
need to promote this right will be approached from the concrete needs, especially with regard
to the most vulnerable social classes, often deprived of the most basic and essential goods. a
dignified life. Finally, an intervention in the reality of Maceió will be proposed, through
mediations and encouragement of popular participation, within the logistics of revising the
Plano Diretor Municipal, as a tool to promote housing, which will make the municipal
administration's action in this aspect more just, legitimate and humane.
Keywords: Right to housing. Housing public policy. Popular participation. Mediation.
Democratization of state performance.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 10
3.2 A moradia enquanto direto humano fundamental e seu caráter prestacional ........................39
3.3 O papel do município na efetividade do direito à moradia à luz do Estatuto da Cidade e seus
instrumentos de participação popular ..................................................................................47
5 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 87
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 91
ANEXOS.......................................................................................................................................100
1 INTRODUÇÃO
O fenômeno das ocupações irregulares no Brasil toma corpo no país desde o período
colonial. Segundo Silva2, a colônia já apresentava configuração espacial marcada pela
desigualdade. Com efeito, enquanto o sistema de capitanias hereditárias, característico do
Brasil-Colônia, determinava a distribuição de grandes faixas territoriais entre fidalgos da
pequena nobreza e funcionários da monarquia, aos escravos e aos trabalhadores livres, restava
abrigar-se, respectivamente, nas senzalas e em residências com parca infraestrutura. É que
desde então, conforme aponta a pesquisa bibliográfica, de uma forma geral, os governos
federais estiveram voltados aos interesses da elite econômica, em detrimento daqueles com
1
Segundo documento da Prefeitura Municipal de Maceió (PMM), mantido em acervo da Secretaria de
Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (SEDET), consideram-se assentamentos precários, também
conhecidos como assentamentos subnormais, os assentamentos habitacionais irregulares, favelas, mocambos,
palafitas. São constituídos de moradias, em geral precárias, construídas em terreno de propriedade alheia,
pública ou particular, ocupados de forma desordenada e densa, carentes de serviços públicos essenciais, e
situados, inclusive, em áreas de risco ou legalmente protegidas.
2
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e colonização da América Portuguesa: o Brasil Colônia
1500/1750. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
1990.
11
menor renda. Nas palavras de Betinho3, “essa exclusão tem raízes seculares. De um lado,
senhores, proprietários, doutores. De outro, índios, escravos, trabalhadores, pobres.”
Disso resulta que as classes menos favorecidas, não raro, se veem obrigadas a viver em
assentamentos informais, que carecem, em graus variados, de saneamento e de acesso à água
potável, além de coviverem com os problemas advindos da superlotação e das estruturas
improvisadas. No município de Maceió, segundo documento intitulado “Sistematização dos
Indicadores Sociais do Plano Local De Habitação de Interesse Social (PLHIS) de Maceió”,
existem duzentos e sessenta e três (263) localidades habitadas por população vulnerável.
De fato, a condução política do Estado brasileiro, de uma forma geral, sempre pautou
suas decisões de modo a atender interesses econômicos, ainda naqueles momentos em que,
aparentemente, se buscava atender a determinados clamores sociais. Exemplo disso se verifica
durante o segundo governo de Getúlio Vargas, em que a criação de programas habitacionais
compunha, em verdade, uma estratégia de desenvolvimento do país através da indústria, a
3
BETINHO, Hebert de Souza. O Pão Nosso. In: SOUZA, Hebert; RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São
Paulo: Moderna, 1994, p. 30.
4
Dados disponíveis em: <http://www.agendaa.com.br/negocios/economia/3979/2015/07/02/ponta-verde-e-
noruega-e-grotas-do-benedito-angola-no-ndice-de-desenvolvimento-humano> Acesso em: 17 jul. 2017.
12
Diante desse quadro, o presente trabalho, com abordagem qualitativa e tendo como base
pesquisa bibliográfica e documental, visa compreender os processos que instauraram as
ocupações irregulares em Maceió, além das formas de atuação do Estado nesses conflitos e
dinâmicas, tendo como objetivo central propor uma medida de intervenção que garanta o
direito à moradia de um segmento da população maceioense.
Do ponto de vista teórico, os conceitos centrais que orientam o trabalho são o direito à
moradia, participação popular e a mediação como método alternativo de resolução de conflito
apto a contribuir para democratização da gestão urbana e habitacional e, consequentemente,
na efetivação do direito fundamental à moradia adequada.
5
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil - Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão
da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, FAPESP, 1998.
2 A ATUAÇÃO ESTATAL RELATIVA AO DIREITO À
MORADIA
1
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e colonização da América Portuguesa: o Brasil Colônia
1500/1750. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
1990, p.30.
2 ALENCAR, Chico; CECCON, Claudius; RIBEIRO, Marcus Venicio. Brasil vivo: uma nova história da nossa
gente. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p.29.
14
Nas capitanias, subdivididas em sesmarias3, não havia espaço para aqueles que não fossem
católicos e brancos.
Segundo aponta Carvalho5, os escravos não eram cidadãos, sequer tinham direitos civis
básicos à liberdade, integridade física e mesmo à própria vida, eram considerados propriedade
do senhor. Já aos pobres faltavam quase todas as condições para o exercício dos direitos civis,
sobretudo a educação6. Em verdade, apenas os grandes proprietários de terra possuíam
influencia na condução política do Estado, inclusive
Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e recursos fora
do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou recorria à proteção dos
grandes proprietários, ou ficava à mercê do arbítrio dos mais fortes. Mulheres e
escravos estavam sob a jurisdição privada dos senhores, não tinham acesso à justiça
para se defenderem. Aos escravos só restava o recurso da fuga e da formação de
quilombos.
O período imperial (1822-1889) não trouxe inovações no que se refere ao quadro social
vivenciado na colônia, não havendo, outrossim, qualquer mudança significativa na divisão
espacial do território brasileiro. Em verdade, o surgimento do então Estado brasileiro apenas
ratificou a política segregacionista praticada no período colonial. Como ressalta Santos:
é inegável que o processo de separação política da antiga metrópole ocorreu sem que
tivessem sido abalados os alicerces que sustentavam o edifício social, já que
subsistiam a escravatura, a estrutura da grande propriedade territorial, a
Nem mesmo o fim da escravidão trouxe avanços nas estratificações social e espacial
brasileiras. Diversamente, o fim do regime escravocrata serviu ao aprofundamento das
desigualdades, já outrora gritantes. Aos escravos então libertos, aos quais não foi direcionada
qualquer política de inserção social, restava continuar a viver nas senzalas, em condição
semelhante à escravidão de que haviam se libertado, migrar para favelas, ou viver vagando
pelas ruas, como mendicantes.8
Em São Paulo, por exemplo, até o ano de 1920, predominava a moradia nos centros
comerciais e ao redor das fabricas, em habitações alugadas, a maioria delas em cortiços, única
alternativa viável à maioria dos trabalhadores, geralmente mal remunerados. O crescimento
populacional consequentemente agravou as condições sanitárias, de forma que os cortiços
passaram a ser vistos como focos de doença e tidos como lugares de desordem.
7
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A Monarquia no Brasil: o pensamento político da independência. Vitória:
Edufes, 1999, p. 11.
8
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus,
2003, p. 124.
9
GOUVÊA, Luiz Alberto de Campos. Brasília: a capital da segregação e do controle social – uma avaliação da
ação governamental na área da habitação. São Paulo: Annablume, 1995, p. 34.
16
É nesse contexto que, conforme narra Silva10, começam a surgir algumas intervenções
estatais na seara habitacional. Como exemplo, cita o Código de Posturas do Município de São
Paulo, decretado em 1886, o qual proibia terminantemente a construção de cortiços. Além
disso, o normativo determinava que as vilas operárias se estabelecessem fora da aglomeração
urbana. Aponta a autora que, no Distrito Federal, a situação era semelhante, tendo o Conselho
de Saúde, inclusive, recomendado a remoção dos moradores para os arredores da cidade.
Igualmente, no Rio de Janeiro, houve demolição de inúmeros cortiços, sem que houvesse
qualquer política de substituição dessas moradias, resultando na elevação dos alugueis e
consequente expansão das favelas.
Fica evidente, assim, que o Estado se mantinha omisso em relação à oferta de moradias,
a qual até então era promovida tão somente pela iniciativa privada, através da construção e da
aquisição de casas para alugar.12 Contudo, esse modelo habitacional acabou por entrar em
colapso, em virtude não só das medidas dirigidas à extirpação dos cortiços, mas também do
crescente desestímulo à construção de casas para aluguel, por sua vez provocado pelo
processo inflacionário verificado na década de 1930, posteriormente agravado pelo
congelamento dos alugueis imposto pela Lei do Inquilinato, em 1942.13 Nesse contexto, se
observa a incapacidade da iniciativa privada para atender à crescente demanda habitacional,
tornando necessária, portanto, a intervenção estatal. Entretanto, a habitação social somente
passa a ser objeto de ações estatais mais significativas a partir do Estado-Novo, segundo
momento do governo de Getúlio Vargas.
Segundo Bonduki14, a moradia passava a ser vista como condição básica de reprodução
da força de trabalho, ou seja, como fator econômico na estratégia de industrialização do país.
Não bastasse isso, o crescimento da massa popular urbana criou a necessidade de impulsionar
uma política dirigida aos trabalhadores. Em verdade, essa intervenção então iniciada fazia
10
SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez, 1989, p. 35.
11
BONDUKI, Nabil. Habitat São Paulo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
12
A produção da moradia neste período era uma atividade exercida pela iniciativa privada, objetivando
basicamente a obtenção de rendimentos pelo investimento na construção ou aquisição de casas de aluguel.
13
SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez, 1989.
14
BONDUKI, Nabil. Habitat São Paulo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
17
parte de uma estratégia de crescimento econômico baseado na indústria, que precisava reduzir
o custo da mão-de-obra, fortemente influenciado pelo custo da moradia.
Para Carvalho17, a referida política, baseada no coronelismo, não era apenas um obstáculo
ao livre exercício dos direitos políticos, ela impedia a participação política porque antes negava
os direitos civis, porquanto nas fazendas imperava a lei do coronel, criada e executada por ele.
Observe-se que o Estado brasileiro, antes atento apenas aos interesses de uma elite agrária,
passa a conceber políticas dirigidas à classe operária, categoria que passava a ter voz e ascendia
numericamente na mesma medida em que crescia a industrialização no país.
15
MATTEI, Lauro. Desenvolvimento brasileiro no início do século XXI: Crescimento econômico, distribuição de
renda e destruição ambiental. Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/downloads/lauro_mattei.pdf>.
Acesso em: 17 jul. 2017.
16
A referida política impedia a efetiva participação política, uma vez que predominava o chamado “voto do
cabresto”, sistema no qual os coronéis, através de seu poder econômico, obrigavam os eleitores a votarem nos
candidatos por eles indicados.
17
CARVALHO, Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
18
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
18
Significa que o Estado pela primeira vez assume a responsabilidade pela oferta de
habitações a segmentos da população urbana. Todavia, era um atendimento restrito
aos associados dos institutos de previdência, pautando-se por uma atuação
fragmentária e pouco relevante quantitativamente.20
Sobre isso, Couto21 explica que as medidas até então implementadas possuíam traços
paternalistas, e estavam baseadas na legislação trabalhista ofertada e numa estrutura
burocrática e corporativa, criando um aparato institucional e estimulando o corporativismo na
classe trabalhadora. Acrescenta a autora, ainda, que tais políticas sociais eram marcadas por
traços de autoritarismo e centralização técnico-burocrático, uma vez que emanavam do poder
central e sustentavam-se em medidas autoritárias.
19
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
20
SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez, 1989, p. 38.
21
COUTO, Berenice Rojas. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação
possível? 4. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
19
Mais adiante, no governo Dutra, destaca-se a criação Fundação Casa Popular (FCP),
através do Decreto-Lei 9.218 de 1946, primeiro órgão em âmbito nacional destinado a prover
habitações, através da sua aquisição ou construção, à população de baixa renda. Contudo,
segundo destacam Azevedo e Andrade22, a atuação da FCP teve uma atuação limitada,
pulverizada. Pautava-se no clientelismo na decisão de onde construir, bem como na seleção e
classificação dos candidatos. Apresentava-se, ainda, autoritária na administração dos
conjuntos, chegando a interferir no comportamento dos moradores, transmudando-se em
verdadeiro instrumento de controle social. Com efeito, tinham preferência os candidatos que
trabalhassem em atividades particulares, os funcionários públicos e aqueles que, nas zonas
rurais, trabalhassem no cultivo de produtos essenciais à alimentação popular.
não obscurece o fato de que sua criação, como o primeiro órgão nacional destinado
exclusivamente à provisão de moradias para a população de baixa renda, representou o
reconhecimento de que o Estado brasileiro tinha obrigação de enfrentar, através de uma
intervenção direta, o grave problema da falta de moradias.
22
AZEVEDO, Sérgio de; ANDRADE, Luís Aureliano Gama. Habitação e poder: da Fundação Casa Popular ao
Banco Nacional de Habitação. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 30.
23
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 718.
24
ARAGÃO. José Maria. Sistema Financeiro de Habitação – uma análise sócio-jurídica da gênese,
desenvolvimento e crise do sistema. Curitiba: Juruá, 1999, p. 62.
20
Janeiro, incluído o então Distrito Federal (25,6%); Minas Gerais (25%); São Paulo (17,4%); e
Brasília (9%). Acrescenta que, no Nordeste e no Sul, os percentuais foram de 13,6% e 5,6%,
respectivamente, e que a Região Norte sequer chegou a receber qualquer investimento.
Dos governos que se seguiram, é da breve permanência no poder de Jânio Quadros (de
31 de janeiro à 25 de agosto de 1961) que se pode ressaltar uma relevante tentativa de
modificação da política habitacional brasileira, intitulada Plano de Assistência Habitacional.
O referido projeto contemplava medidas de curto prazo, como a construção de 100 mil novas
moradias em 18 meses, e de prazo mais diferido, como a transformação da FCP no Instituto
Brasileiro de Habitação. Contudo, conforme pondera Silva25 a referida política habitacional
tinha caráter excludente, uma vez que estabelecia critérios de acesso à casa própria, como
tempo de residência na cidade, estabilidade no emprego e capacidade de trabalho. A despeito
disso, afirma que o plano então elaborado inovava. Estabelecia percentuais limites para as
prestações dos financiamentos, relativamente ao salário mínimo. Com isso, pretendia-se
dirimir o problema da defasagem no valor dos ativos financeiros, provocado pelo
estabelecimento de parcelas fixas, cujos valores acabavam sendo corroídos pela crescente
inflação da época. Todavia, a efetivação de tais propostas somente se mostrou viabilizada
através da criação do BNH, ocorrida já durante os governos militares.
25
SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez, 1989, p. 45.
26
Texto legal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4380.htm>. Acesso em: 17 fev.
2017
27
SILVA, Maria Ozanira Silva e, ob. cit., 1989.
28
COUTO, Berenice Rojas. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação
possível? 4. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
21
popular.29 Nessa linha, a habitação passa a ser o centro da política urbana, tendo as favelas
sido alvo de atuações nessa seara, sobretudo no Rio de Janeiro, em que tais ocupações eram
agora vistas não só como obstruções a construção de parques industriais e de residências para
as classes alta e média, mas também como focos de resistência, de expressão política e de
subversão perigosa, uma ameaça ao regime então estabelecido.30
Nesse contexto de inadimplência, o BNH voltou sua atenção para medidas que passassem
a permitir o retorno do capital empregado e lucratividade, tendo o mercado popular, a partir de
1970, perdido espaço para a classe média. No período de 1970 à 1974, foram construídas
404.123 unidades habitacionais para o mercado médio, 157.748, para o econômico, e apenas
76.746 para o mercado popular.33 Sobre tal distorção, em 1989, Silva pondera:
29
Segundo aponta a literatura, o período militar tinha como marca a repressão da luta dos trabalhadores,
mediante arrocho salarial, implantação da censura, proibição de greves, perseguição, tortura, prisão e morte de
lideranças ligadas aos movimentos populares que se opunham à política do governo.
30
VALLADARES, 1978 apud SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso.
São Paulo: Cortez, 1989.
31
SILVA, Maria Ozanira Silva e., ob. cit., 1989, p. 52.
32
VALLADARES, 1978 apud SILVA, Maria Ozanira Silva e, ob. cit., 1989, p. 51.
33
BNH, 1971 apud AZEVEDO, Sérgio de; ANDRADE, Luís Aureliano Gama. Habitação e poder: da
Fundação Casa Popular ao Banco Nacional de Habitação. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 92.
34
SILVA, Maria Ozanira Silva e. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez, 1989.
p. 60.
22
Em agosto de 1986, portanto no ano seguinte ao fim do regime militar, o BNH foi
extinto pelo Decreto-Lei nº 2.291/8635, ficando a cargo dos Estados e Municípios o desenho
de estratégias locais para tratar do problema habitacional, e a criação, dentro de suas áreas de
competências, de programas habitacionais alternativos ao modelo antes adotado pelo BNH.
Sobre a extinção do BNH, aponta Bonduki36 que a crise do modelo econômico criado no
regime militar no início dos anos 198037, gerando recessão, inflação, desemprego e queda dos
níveis salariais, teria refletido no Sistema Financeiro Habitacional, em consequência da
retração dos saldos do FGTS e da poupança, que reduziram a sua capacidade de investimento.
O autor acrescenta, ainda, que tal conjuntura, aliada aos crescentes movimentos dos
sem-terra (urbano) e de mutuários que não mais conseguiam arcar com as prestações da casa
própria, contribuíram para o acirramento das críticas ao BNH. Soma-se a isso o fato de que a
referida instituição era profundamente associada ao regime militar, igualmente criticado.
Nessa toada, inicia-se uma reestruturação da atuação estatal, que viria posteriormente a
ser sedimentada pela Constituição Federal de 1988, tornando a habitação uma atribuição
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (Art. 23, IX).39
Observava-se, até então, que a história brasileira transcorria sob a marca da negação de
direitos civis e políticos. Já os direitos sociais, tais como o direito à moradia, eram
35
Texto legal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2291.htm> Acesso em: 18
fevereiro 2017
36
BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas
no governo Lula. Disponível em: < http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf> Acesso em:
22 fev. 2017.
37
Trata-se do chamado “Milagre Econômico”, meta que se pretendia conquistar à custa de concentração de
renda nas mãos dos empresários que, com o arrocho salarial, podiam reinvestir na economia; expansão do
crédito ao consumidor, aumentando o dinheiro em circulação, mas também a taxa de juros e a inflação; e
abertura externa da economia, consubstanciada em incentivos à exportação.
38
GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil - Movimentos sociais, ONGs e redes solidárias.
São Paulo: Cortez, 2005.
39
Texto legal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>
Acesso em: 22 fev. 2017.
23
Sobre a trajetória das políticas sociais no Brasil, Carvalho41 chega a dizer que o
desenvolvimento da história política brasileira se caracterizou pela proeminência dos direitos
políticos sobre os direitos sociais. Afirma que tal estrutura resulta na dificuldade no
reconhecimento e na concretização dos direitos sociais como direitos, e na consolidação de
uma sociedade excludente que se caracteriza não só pela pobreza, mas também pela
impossibilidade de efetivação de direitos fundamentais universais.
40
VALENÇA, M.; MEDEIROS, S. R. Habitação e política. Relatório PIBIC/CNPq – UFRN, 2003.
41
CARVALHO, Alba. A luta por direitos e a afirmação das políticas sociais no Brasil contemporâneo. Revista
de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 39, n. 1, 2008.
42
AVRITZER, Leonardo. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no
Brasil. In: SANTOS, B. de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 2.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
24
no rol dos direitos sociais. Segundo Pagani43, a referida inserção deu-se num contexto social
de aumento da densidade demográfica, déficit habitacional nos centros urbanos e falta de
saneamento básico, cujos protagonistas eram os cidadãos socialmente excluídos.
Com efeito, desde o fim do BNH, era possível notar uma certa lacuna em relação à
política habitacional no país, a qual Bonduki relata como “esvaziamento”, afirmando que
“deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação”.44 Esse período, conforme
aponta a literatura, foi assinalado pelo surgimento de iniciativas de programas habitacionais,
em âmbitos regionais e locais, o que, importa dizer, refletia a transferência de competências
então prevista pela nova ordem constitucional. 45
Sob essa ótica, foram criados programas como a Carta de Crédito, nas modalidades
individual e associativa, o Apoio a Produção, que era voltado ao setor privado, e o Pró-
Moradia, destinado ao financiamento da recuperação de áreas habitacionais degradadas,
ocupadas por populações de até três salários mínimos.
Uma vez mais, os resultados decepcionam por não haver um aporte significativo de
recursos que possibilitassem a execução de programas focados, principalmente, na demanda
da baixa renda. O financiamento de imóveis usados, em que pese o vultoso total de recursos
43
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito a moradia: um diálogo comparativo entre o
direito de propriedade urbana imóvel e o direito a moradia. Porto Alegre. EDIPUCRS, 2009.
44
BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas
no governo Lula. Disponível em: < http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf> Acesso em:
22 fev. 2017.
45
Conforme disposição constitucional: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios: [...] IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico;” Texto legal. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em: 04 jul. 2017.
46
BONDUKI, Nabil, ob. cit., 2017.
25
empregados, cerca de 9,3 bilhões47 (entre 1995 e 2003), revelou-se um programa de impacto
reduzido, considerando o déficit habitacional já existente.
Não bastasse isso, sendo uma instituição bancária, a Caixa Econômica Federal, o agente
de operação dos recursos destinados à habitação, não é de se estranhar que fossem
privilegiadas as concessões de crédito com maior garantia, em geral aqueles concedidos à
população de renda média. Segundo Bonduki: “Entre 1995 e 2003, 78,84% do total dos
recursos foram destinados a famílias com renda superior a 5 SM, sendo que apenas 8,47%
foram destinados para a baixíssima renda (até 3 SM) onde se concentram 83,2% do déficit
quantitativo”. 48
Com efeito, em que pese todo o arcabouço de políticas habitacionais empreendidas pelo
Estado desde o início do período republicano até o início do século XXI, a realidade brasileira
não nos parece próxima da efetiva concretização do direito à moradia, ao menos ao que se
depreende dos dados revelados pelo Censo de 2000. Naquela oportunidade, identificou-se a
carência de 6,6 milhões de novas moradias em todo o país, sendo que, em termos percentuais,
a maior parte dessa necessidade, cerca de 83,2%, está concentrada nas famílias com renda
mensal de até três salários mínimos.50
47
Via Pública apud BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e
novas perspectivas no governo Lula. p. 80. Disponível em: <
http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf> Acesso em: 22 fev. 2017.
48
Ibid., 2017, p. 80.
49
MARICATO, Ermínia. A terra é um nó, na sociedade brasileira, também nas cidades. Disponível em:
<http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed215/economia2.htm> Acesso em: 07 mar. 2017.
50
IBGE. Dados disponíveis em:
<http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/geografia_urbana/arranjos_populacionais/tabelas.shtm>
Acesso em: 06 mar. 2017.
26
O Estatuto da Cidade [...] veio atender um antigo reclamo social por uma gestão
mais democrática do espaço urbano, como expressão da organização social, trazendo
ainda instrumentos que operacionalizam a implementação de moradias e a
ordenação do solo, buscando a efetividade dos princípios constitucionais e, com
isso, a constitucionalização de uma sociedade mais justa e equilibrada. 52
51
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em: 04 jul. 2017
52
ROMANELLI, Luiz Cláudio. Direito à moradia à luz da gestão democrática. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 77.
53
Disponível em: <ttp://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/Publicacoes/Publiicacao_PlanHab_Capa.pdf>.
Acesso em: 13 mar. 2017.
27
Social (FNHIS), o qual alocou, entre os anos de 2006 e 2009, cerca de 4,4 bilhões de reais,
beneficiando mais de 4.400 projetos.54
Registre-se que o referido texto legal é um dos (apenas) quatro diplomas nacionais
originários de projeto de lei de iniciativa popular, e fora subscrito com mais de um milhão de
assinaturas. Dentro dessa perspectiva, o texto traz, enquanto objetivos do SNHIS, além do
acesso à moradia digna como direito e vetor de inclusão social, a democratização, a
descentralização, o controle social e a transparência dos processos decisórios.55
54
CARDOSO, Lucio Adauto; ARAGÃO, Thêmis Amorim; ARAÚJO, Flávia de Sousa. Habitação de interesse
social: política ou mercado? Reflexos sobre a construção do espaço metropolitano. In: ENCONTRO
NACIONAL DA ANPUR. XIV. Anais..., 2011. Rio de Janeiro - RJ – Brasil. Disponível em:
<http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/adauto_cardoso.pdf> Acesso em: 04 jul. 2017.
55
BRASIL. Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor
do FNHIS. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11124.htm>
Acesso em: 04 jul. 2017.
56
Disponível em: <https://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/03/minha-casa-minha-vida-acelera-queda-do-
deficit-habitacional-no-pais> Acesso em: 04 jul. 2017.
28
Washington.57 Conforme aponta Carvalho 58, a inserção brasileira nessa nova ordem do capital
acaba por promover um ajuste seletivo, que abarca apenas pedaços do Brasil, áreas específicas
das regiões brasileiras, segmentos dos setores produtivos, de frações da classe trabalhadora,
enfim, uma parte minoritária da população brasileira.
Dessa atuação estatal, fragmentária e exclusiva do ponto de vista social, com inevitáveis
reflexos também na concretização do direito â moradia, resulta que o país ainda padece de um
considerável déficit habitacional, sobretudo em relação à população de baixa renda. Segundo
dados estatísticos elaborados pela Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério das
Cidades, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no ano de 2014, entre as famílias com renda mensal
de até três salários mínimos, o déficit habitacional urbano chega a 83,9%. Já quanto às
famílias com renda superior à dez salários mínimos, esse percentual é de apenas 1,4%.59
57
O termo Consenso de Washington ficou conhecido como um conjunto de medidas de ajuste macroeconômico
formulado por economistas de instituições financeiras como FMI e o Banco Mundial, elaborado em 1989.
Entre essas "regras" que deveriam ser adotadas pelos países para promover o desenvolvimento econômico e
social estavam: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de
mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições, privatização das
estatais, desregulamentação e desburocratização, direito à propriedade intelectual.
58
CARVALHO, Alba Maria Pinheiro de. Estado e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Disponível em:
<http://www.revistapoliticaspublicas.ufma.br/site/download.php?id_publicacao=766> Acesso em: 18 jul. 2017.
59
Dados: Disponível em: <http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-
brasil> Acesso em: 08 mar. 2017.
29
Isto porque a cidade de Maceió reflete a configuração de um Estado que, desde a sua
colonização, tem baseado suas relações com a população nas formas coronelistas, paternalista
e na troca de favores. No dizer de Lira,
[...] a formação econômica, social e política de Alagoas tem raízes profundas no modo
de implantação da atividade canavieira no Estado. Por conseguinte, do século XVI ao
século XX, a história de Alagoas tem como núcleo a agroindústria do açúcar. Nessas
condições históricas, o padrão adotado é o agrário tradicional que, pela sua
importância econômica e política, acaba por definir o comportamento da agropecuária,
da indústria, do setor serviço, do setor público e da sociedade em geral.61
60
CARVALHO, Cícero Péricles de. Economia popular: uma via de modernização para Alagoas. Maceió,
Alagoas: Edufal, 2005, p. 29.
61
LIRA, Fernando José. Formação da riqueza e da pobreza em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007, p. 2.
62
CARVALHO, Cícero Péricles de, ob. cit., 1997.
30
desse ambiente. Não bastasse isso, a partir de 1970, com a mecanização das usinas
canavieiras, foram reduzidas as oportunidades de emprego no meio rural, fator que, aliado à
ausência de um universo de pequenas unidades produtivas com acesso ao crédito, assistência
técnica e facilidade na comercialização, contribuiu para o aumento da pobreza, o que explica
a forte migração rural/urbana e o deslocamento interior/capital.63
Esse aumento espetacular de população nas cidades fez crescer dois setores urbanos
distintos: o primeiro é o da economia informal, principalmente na área de serviços e
comércio, concentrada nos bairros periféricos da capital [...] o segundo, são os
marginalizados, a população que sobrevive de atividades irregulares, como a que
está concentrada nos quase 300 aglomerados subnormais da capital. 65
63
CARVALHO, Cícero Péricles de. Políticas públicas e distribuição de renda: o caso de Alagoas. Disponível
em: <http://www.sep.org.br/downloads> Acesso em: 05 jul. 2017.
64
Id. Economia popular uma via de modernização para Alagoas. Maceió: Edufal, 2012.
65
CARVALHO, Cicero Péricles de, ob. cit., 2017, p. 5.
66
MACEIÓ. SEDET. Programa de Requalificação Urbana e Ambiental da Orla Lagunar de Maceió. Estudos
Socioambientais, Maceió, 2016. v. III. t.II.
67
CARVALHO, Cícero Péricles de, ob. cit., 2012, p. 34.
31
Ainda segundo a Fundação João Pinheiro, em 2010, Maceió possuía cerca de 152 mil
domicílios carentes de alguma infraestrutura, sendo que 64.558 não possuíam sequer
abastecimento de água, 125.025 não contavam com esgotamento sanitário, 2.903 não tinham
energia elétrica e 4.801 não tinham acesso ao serviço de coleta de lixo. Em termos
percentuais, significa dizer que, na Região Metropolitana de Maceió, 80% dos domicílios
carecem de pelo menos um componente da infraestrutura urbana.
Na maioria das áreas investigadas, constatou-se uma grande parte de casas feitas de
taipa, de madeira ou de alvenaria em degradação, conforme exemplificam as imagens em
anexo (Anexo 2). Em algumas localidades, foram encontrados até mesmo barracos de lona.
Além disso, cerca de 30% dos moradores dessas áreas vulneráveis sequer ostentam a posse
regular (própria ou decorrente de contrato de aluguel) das casas que habitam, sendo a moradia
o resultado de invasões.
68
MACEIÓ. SEDET. Sistematização dos indicadores sociais do plano local de habitação de interesse social
(PLHIS) de Maceió, 2012.
69
DÉCIFIT HABITACIONAL MUNICIPAL NO BRASIL 2010. Fundação João Pinheiro. Disponível em:
<http://fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-deficit-habitacional-no-brasil-3> Acesso em: 07 jul. 2017.
32
de um quarto desse valor. Some-se a isso o fato de que mais da metade das regiões possui
composição familiar variando entre 6 e 8 membros.
Diante desse quadro, e desde a nova ordem constitucional, a qual, como já dito
anteriormente, descentralizou a política de desenvolvimento urbano, o município de Maceió
vem concebendo e executando planos de urbanização, sendo que atualmente está sendo
revisado o plano diretor de 2005.
Quanto ao conselho de habitação instituído pela Lei Orgânica de 1990, não foram
encontrados registros de que sua existência tenha efetivamente influenciado, tampouco
auxiliado na gestão das políticas públicas urbanas. Segundo Vasconcelos71, nem mesmo nos
conselhos mais atuantes no Estado de Alagoas, como era o caso do Conselho Estadual de
Justiça e Segurança Pública, havia harmonia entre as decisões tomadas e as políticas públicas
efetivamente instituídas. No caso do planejamento estratégico, conforme dispunha seu estatuto,
a participação nos planos somente seria viabilizada àqueles dispostos a aderir ao consórcio,
contribuindo mensalmente. Ou seja, a participação somente era facultada aqueles que tivessem
condições econômicas de contribuir, o que excluía, obviamente, a maior parte da população.
70
MENEZES, Karina Rossana de Oliveira. O Estatuto da Cidade e a elaboração de planos diretores: uma
avaliação sobre a construção de espaços participativos em processos de planejamento urbanos. Maceió, 2008.
149 folhas. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Mestrado em Dinâmicas do Espaço
Habitado, 2008.
71
VASCONCELOS, Ruth. O reverso da moeda. A rede de movimentos sociais contra a violência em Alagoas.
Maceió: UFAL/Edufal, 2006.
33
É que ficou estabelecido que a primeira parte das audiências seria destinada à
exposição, por palestrantes escolhidos pela Prefeitura, acerca de aspectos técnicos relativos ao
72
MACEIÓ. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente de Maceió - SEDET.
Termo de Referência: Plano Diretor de Maceió, 2003.
73
MENEZES, Karina Rossana de Oliveira. O Estatuto da Cidade e a elaboração de planos diretores: uma
avaliação sobre a construção de espaços participativos em processos de planejamento urbanos. Maceió, 2008.
149 folhas. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Mestrado em Dinâmicas do Espaço
Habitado, 2008.
34
plano, sendo o debate reservado apenas para o final. Não bastasse isso, nos debates, eram
disponibilizados apenas três minutos para exposição de ideias e questionamentos pela
sociedade, mas não havia limite o tempo de resposta para os membros do governo, refletindo
uma flagrante desigualdade de posições no debate. Em verdade, predominantemente, os
gestores limitavam-se a apenas responder questionamentos, não se vislumbrava uma troca de
ideias, tampouco efetivas deliberações acerca dos pontos levantados. Registre-se, ainda, que
as discussões mais específicas ficaram resguardadas às intituladas “oficinas temáticas”, as
quais, embora não proibissem a participação de qualquer interessado, aconteciam em dias
úteis, e não eram abertas, mas restritas a determinados setores da sociedade.
Pode-se concluir, conforme sinaliza Melo74 numa perspectiva nacional, que embora a
produção de planejamentos urbanos objetivando o desenvolvimento das cidades tenha sido
uma constante nas administrações municipais, a implementação de tais políticas públicas
deixou a desejar. Acrescente-se que o poder público municipal, atrelado como sempre esteve
aos interesses de uma elite econômica, quase nunca correspondeu às diretrizes dos
planejamentos. Relativamente à Alagoas, Lira75 chega a dizer que, desde o período colonial,
se desenvolveu no Estado uma ação histórica conjunta deste com a elite agrária (senhores de
engenho, mais tarde transformados em usineiros), a qual se estendeu de forma imutável pelo
Império e República, de um modo que
[...] os recursos federais e estaduais são apropriados e controlados por essa elite
local, com o intuito de manter suas atividades econômicas e consolidar seu poder
político, pois objetiva a manutenção de um sistema arcaico de produção em
dominação assentado no coronelismo.
O autor acrescenta que essa oligarquia política ainda hoje possui poder político
muito forte, e que a imutabilidade dessa estrutura social faz predominar a subordinação
dos poderes constituídos aos antigos interesses, resultando no não cumprimento da função
social que lhes cabe. É de se concluir, assim, à guisa do quanto descrito ao longo deste
tópico, que, à semelhança da história das políticas habitacionais em nível nacional, a política
urbana em Maceió manteve-se predominantemente atrelada aos interesses de uma elite
econômica, contribuindo negativamente para o desenvolvimento de ações que efetivamente
beneficiassem a população mais vulnerável, a qual padece, ainda, de precárias condições de
vida.
74
MELO, Marcus André. Estado, governo e políticas públicas. In: MICELLI, Sergio (Org.). O que ler na
ciência social brasileira. São Paulo: Sumaré, 1999.
75
LIRA, Fernando José. Formação da riqueza e da pobreza em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007, p.83.
3 DIREITO A MORADIA: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA
E EFETIVAÇÃO
Como visto no capítulo anterior, em que pese o direito à moradia tenha sido inserido no
rol dos direitos humanos desde a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, inaugurando assim, uma nova dimensão de direitos sociais, no Brasil, somente após
a instituição do Estado Democrático de Direito os direitos sociais foram consagrados na
Constituição Federal de 1988, sendo que, quanto ao direito a moradia, esta inclusão deu-se
mais adiante, por ocasião da Emenda Constitucional n. 26/20001.
estrutural, com proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, e outras ameaças à saúde;
localização não isolada oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e
outras instalações sociais; respeito à expressão cultural nas edificações sem que se olvide do
emprego de facilidades tecnológicas modernas.
A moradia está inevitavelmente ligada à própria existência humana, sendo certo que
possuir um lugar fixo para viver é imprescindível ao desenvolvimento de outras atividades do
indivíduo, tais como educação, trabalho, lazer, e até mesmo para sua integração com a família
e com a sociedade. Esta estreita ligação com a condição humana, reconhecida inclusive por
tratados internacionais, justifica-se em razão do exercício do direito à moradia ser
fundamental à salvaguarda de demais direitos da personalidade, notadamente os direitos à
vida, à integridade física e à privacidade6.
5
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 6.
ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2010.
6
OLIVEIRA, Margere Rosa. Direito fundamental à moradia e função social da propriedade pública. In:
MARQUES, Mateus; CONSTANTINO, Lucio S. (Coord.). Inquietações sobre direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 193-210.
7
SANTOS, Alexandre Mendonça. A efetividade dos direitos sociais e sua proteção pelo Ministério Público.
São Paulo: Baraúna, 2014, p. 56.
37
Assim, corroborando Souza8, pode-se reputar a moradia como elemento essencial do ser
humano, conceituando-a como um bem da personalidade e, portanto, impassível de renúncia
pelo individuo, indisponível e indissociável da sua vontade. É que o bem da moradia
independe de objeto físico para a sua existência e proteção jurídica, além de existir
independentemente de lei, por ter substrato no direito natural.
Nesta mesma linha, Milagres9 afirma que o conteúdo do direito subjetivo não deve ser
confundido com seu objeto, uma vez que a essencialidade do espaço existencial não se
confunde com as formas de sua realização. Com efeito, a moradia não se confunde com a
posse ou a propriedade, tampouco com o lugar em que o homem fixa o domicílio. Embora a
moradia tenha reflexos patrimoniais, tal característica não lhe retira a natureza de bem da
personalidade. Por ocasião da edição da Emenda Constitucional n. 26/2000, a qual, como se
verá adiante, resultou na inserção da moradia no rol do artigo 6º da Constituição Federal, a
então Deputada Almerinda de Carvalho, relatora da comissão especial, ao proferir seu
parecer, assim explicitou:
Com efeito, em sua acepção ampla, a moradia contempla “muito mais que o lugar do
abrigo, é lugar de constituição de vida, revelando-se em múltiplas dimensões”11. Segundo
8
SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa dos seus aspectos
teóricos e práticos com os direitos da personalidade. 3. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
9
MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo: Atlas, 2011.
10
Proposta de Emenda à Constituição nº 601-B, de 1998, do Senado Federal, PEC 28/96-SF.
11
PENZIM, Adriana Maria Brandão. Habitação social e modos de vida: narrativas sobre a casa e o morar.
Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: PUCMG, 2001.
38
Garcia12, ela “atende a uma necessidade instintiva do ser humano, diante da natureza ou da
‘selva da cidade’ e caracteriza-se como refúgio que influencia a saúde psíquica do homem”.
Nolasco13 afirma que a casa, para além de ser o lugar que garante ao homem a proteção
contra intempéries, serve-lhe de repouso, de local de reprodução, de abrigo aos seus filhos e
de lugar para estocar seus alimentos. E acrescenta que “é na casa que objetiva proteção e vive
sua privacidade, dando sequência à luta pela sobrevivência, enfim, a casa é o asilo inviolável
do cidadão, a base da sua individualidade”.
A casa é, assim, para o homem, sua referência de origem, de relações com a família e a
comunidade. É o lugar onde sente-se seguro, estável e se autoreconhece, posicionando-o no
tempo e no espaço15. Daí porque, conforme Vasconcelos, citado por Milagres16, a moradia pode
ser entendida como uma manifestação da identidade pessoal do indivíduo, uma vez que o local de
moradia individualiza, identifica e distingue a pessoa, dando a dimensão espacial do indivíduo.
Ademais, como nos ensina Nolasco17, dar ao indivíduo o direito de morar é promover-
lhe o mínimo necessário a uma vida decente e humana, proporcionando-lhe condições
mínimas de sobrevivência, com vistas a redução da exclusão social, da marginalidade
econômica, e da consequente marginalidade geográfica. É o direito à moradia, portanto, um
direito de igualdade, de acesso e de oportunidade, cuja satisfação deve independer de
capacidade econômica ou produtiva.
12
GARCIA, Maria. A cidade e o direito à habitação – Normas programáticas na Constituição Federal. Revista
de Direito Constitucional e Internacional: RDCI, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 15, n. 61, p. 183-195,
out./dez. 2007.
13
NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito fundamental a moradia. São Paulo: Pillares, 2008, p. 15.
14
Id. Direito fundamental social à moradia: Aplicação, limites e a responsabilidade do Estado brasileiro, p.2.
Disponível em: < http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/100807.pdf> Acesso em: 24 out. 2017.
15
SILVA, Ana Carolina Lopez da et al. Sensações do morar e a concretização de moradia para idosos egressos
de um albergue. Caderno Temático Kairós Gerontologia 8. ed. São Paulo, nov. 2010, p. 169-193.
16
VASCONCELOS, Pedro Pais, 2006 apud MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo:
Atlas, 2011.
17
NOLASCO, Loreci Gottschalk, ob. cit., 2008.
39
18
SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa dos seus aspectos
teóricos e práticos com os direitos da personalidade. 3. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
19
A ideia de um Estado Democrático de Direito surgiu a partir dos movimentos constitucionalistas do século
XX, que culminaram na consagração dos direitos sociais nos sistemas jurídicos de inúmeras Constituições
Federais, notadamente porque boa parte desses direitos sociais possui como fundamento o princípio da
dignidade da pessoa humana, como ocorre em relação ao direito à moradia.
20
MONTEIRO, Vítor de Andrade. Considerações sobre a fundamentalidade dos direitos sociais e suas
consequências na efetivação do direito social a moradia. In: SILVA, Jéssica A. C.; ENRHARDT JÚNIOR,
Marcos (Coord.) Hermenêutica jurídica & efetivação dos direitos sociais: homenagem a Andreas Krell.
Curitiba: Juruá, 2014. p.203-221, p. 215.
40
a moradia possibilita o acesso a demais direitos sociais como saúde, educação, trabalho e
lazer. Isto porque, numa visão mais pragmática, é através da fixação de um endereço que são
viabilizados saneamento básico, luz, água encanada, transporte, enfim, toda sorte de serviços
imprescindíveis à uma vida digna. Esta associação do direito à moradia com a dignidade da
pessoa humana, consoante nos ensina a melhor doutrina, o ergue a condição de direito
humano fundamental.
Sob um outro prisma, Magalhães22 diz que os primeiros decorrem da própria noção de
pessoa, são direitos básicos que compõem a base jurídica no seu nível atual de dignidade, e
dependem das circunstâncias políticas, sociais e econômicas de cada época e lugar. Já os
segundos, segundo Canotilho23, “são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos” e
“arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal”.
21
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental a moradia na constituição: algumas anotações a respeito de seu
contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 20. Disponível em:
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwj_wtmH3sXVAhUF
WSYKHXrwBScQFggmMAA&url=https%3A%2F%2Fedisciplinas.usp.br%2Fpluginfile.php%2F370724%2Fmod
_resource%2Fcontent%2F1%2Fdireito-fundamental-c3a0-moradia-ingo-
sarlet.pdf&usg=AFQjCNG1XQecdrbnZCINFDiXFV_SBlCkow> Acesso em: 07 ago. 2017.
22
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direito constitucional. TI, Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
23
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 369.
24
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS - ONU. Declaração Universal de Direitos Humanos. Paris,
1948. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/> Acesso em: 29 ago. 2017.
41
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e
os serviços sociais indispensáveis, o direito a segurança, em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (Grifo nosso).
Não bastasse isso, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos (Habitat I), que aconteceu em Vancouver, Canadá, em 1976, foi
criado, em 1978, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-
25
SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa dos seus aspectos
teóricos e práticos com os direitos da personalidade. 3. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
42
Não bastasse isso, dentre os objetivos globais da Organização das Nações Unidas está a
garantia de acesso a moradia e serviços básicos adequados e seguros e melhorar os bairros
precários para todas as pessoas, até 2030. Trata-se, especificamente, de garantir o acesso de
todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, e aos serviços básicos, além da
urbanização das favelas.26
Ainda, impende salientar que, desde 1992, por intermédio do Decreto n. 19127, o Brasil
já havia ratificado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966),
o qual consignou o reconhecimento, pelos Estados partes, do “direito de toda pessoa a um
nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e
moradia adequadas”, devendo promover “medidas apropriadas para assegurar a consecução
desse direito”.
26
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS. Informações extraídas do site oficial da ONU-Brasil.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/onuhabitat/> Acesso em: 15 ago. 2017.
27
Texto legal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm> Acesso
em: 28 set. 2017.
43
Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família
contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade,
enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar,
certamente a pessoa não terá assegurada sua dignidade...
Neste particular, Silva29 ensina que os direitos sociais representam uma dimensão dos
diretos fundamentais do homem, na medida em que visam à melhoria de condições de vida
aos mais fracos, proporcionando a igualdade necessária ao gozo dos direitos individuais. Com
efeito, os direitos sociais representam um conjunto de condições econômicas, sociais e
culturais, que são pressupostos dos direitos e garantias individuais. Segundo Canotilho30, são
autênticos direitos subjetivos inerentes ao espaço existencial do cidadão e tem, portanto, a
mesma dignidade subjetiva das liberdades e garantias.
28
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental a moradia na constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto,
conteúdo e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 20, p. 15. Disponível em:
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwj_wtmH3sXVAhUFWS
YKHXrwBScQFggmMAA&url=https%3A%2F%2Fedisciplinas.usp.br%2Fpluginfile.php%2F370724%2Fmod_resourc
e%2Fcontent%2F1%2Fdireito-fundamental-c3a0-moradia-ingo-
sarlet.pdf&usg=AFQjCNG1XQecdrbnZCINFDiXFV_SBlCkow> Acesso em: 07 ago. 2017.
29
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
30
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
44
31
LAFER, Celso, 1988 apud NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito fundamental a moradia. São Paulo:
Pillares, 2008.
32
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 8. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 34.
33
MONTEIRO, Vítor de Andrade. Considerações sobre a fundamentalidade dos direitos sociais e suas
consequências na efetivação do direito social a moradia. In: SILVA, Jéssica A. C.; ENRHARDT JÚNIOR,
Marcos (Coord.) Hermenêutica jurídica & efetivação dos direitos sociais: homenagem a Andreas Krell.
Curitiba: Juruá, 2014. p.203-221.
34
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais – Teoria geral, comentários ao art. 1º ao 5º da
Constituição da república Federativa do Brasil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
35
SARLET, Ingo Wong. Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço aos vinte
anos da Constituição Federal de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre – Belo
Horizonte, 2008, p. 163-206.
36
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2012.
45
Neste particular, importa explicitar, que o termo “aplicabilidade imediata” não ostenta
interpretação uníssona na doutrina pátria. Há autores, como Ferreira Filho38, que acreditam
que a aplicação imediata preceituada no referido dispositivo estaria condicionada a regulação
infraconstitucional. De outro lado, há doutrina que defenda, a exemplo de Grau39, que o termo
supõe a imediata aplicabilidade das normas nele referidas, ensejando o surgimento de direito
subjetivo individual, independentemente de integração legislativa.
É dizer, a melhor exegese da referida norma deve partir da premissa de que esta possui
cunho principiológico, como uma espécie de mandado de otimização, que impõe aos órgãos
estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos, sendo certo que seu
37
MONTEIRO, Vítor de Andrade. Considerações sobre a fundamentalidade dos direitos sociais e suas
consequências na efetivação do direito social a moradia. In: SILVA, Jéssica A. C.; ENRHARDT JÚNIOR,
Marcos (Coord.) Hermenêutica jurídica & efetivação dos direitos sociais: homenagem a Andreas Krell.
Curitiba: Juruá, 2014. p.203-221.
38
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantais
fundamentais. Revista da Faculdade de Direito das FMU, São Paulo, 1989; FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. A Aplicação Imediata das Normas Definidoras de Direito e Garantias Individuais, Revista da
Faculdade de Direito das FMU, São Paulo, 1989.
39
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 1997.
40
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
46
41
SARLET, Ingo Wong. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
42
SARLET, Ingo Wong. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
43
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução da 5ª edição alemã por Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 193 e ss.
44
SARLET, Ingo Wong, ob. cit., 2011, p. 33-34.
47
fato que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, em princípio protegida
contra e qualquer sorte de agressões de terceiros, sendo exemplos de tal proteção a
inviolabilidade de domicílio e a proteção ao bem de família. Igualmente, a dimensão negativa
do direito à moradia impõe a edição de “medidas legislativas objetivando uma efetiva
proteção da moradia”, o “controle de constitucionalidade de eventuais restrições impostas ao
direito à moradia” e a “proteção do direito à moradia contra um retrocesso, ou seja, contra
uma supressão ou esvaziamento por parte, principalmente, do legislador”.
45
SAULE JÚNOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. Disponível
em: <http://polis.org.br/publicacoes/o-direito-a-moradia-como-responsabilidade-do-estado-brasileiro/> Acesso
em: 15 out. 2017.
48
De fato, tendo tramitado por mais de dez anos, o estatuto regulamenta o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem
como do equilíbrio ambiental. Conforme pensamento de Saule Júnior48, pode ser considerado
uma lei madura, que contempla um conjunto de medidas legais e urbanísticas essenciais para a
implementação da reforma urbana nas cidades brasileiras, o que fora construído com base nas
experiências de política urbana, habitacional e de regularização fundiária e de participação
popular vivenciadas em diversas cidades brasileiras na década de 90. O autor ainda acrescenta:
46
Cf. art. 23, X, art. 24, I, art. 30, I e VIII, e art. 182, todos da Constituição Federal de 1988.
47
FERNANDES, Edésio. Um novo Estatuto para as Cidades Brasileiras. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.).
Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2002.
48
SAULE JÚNIOR, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana.
São Paulo: Pólis, 2001.
49
49
FERNANDES, Edésio. Um novo Estatuto para as Cidades Brasileiras. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.).
Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2002.
50
Por esta razão, cumpre especialmente ao ente munícipe a aplicação das diretrizes
elencas no Estatuto da Cidade, de acordo com as suas especificidades e com a realidade local,
devendo, para tanto, constituir uma ordem legal urbana própria e específica, tendo como
instrumentos fundamentais a Lei Orgânica Municipal e o Plano Diretor.53 Com efeito, o
planejamento urbanístico é instrumento essencial na transformação da realidade urbana, sendo
certo que os planos municipais, em razão da própria proximidade do poder local com as
necessidades e anseios sociais, mostram-se imprescindíveis na gestão eficiente das cidades.
Neste mesmo sentido, Patrão e Gomes:
Diante do quadro de incertezas acarretadas pelo atual quadro de desordem urbana, é que
o papel do Município ganha notória relevância, diante da sua inata destreza na busca
pelo desenvolvimento de políticas públicas [...]. Nesta sua vocação natural, qualquer
projeto, que vise superar o caos urbano, deve ter plena consciência da natureza e
dinâmica locais em que se concentram os problemas de uma determinada cidade. 54
50
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>
51
O ordenamento constitucional adotou o princípio da preponderância dos interesses, em que as matérias de
interesse nacional são de competência da União; matérias de interesse regional, de competência dos Estados-
membros e matérias de interesse local, de competência do Município. O Distrito Federal, conforme art. 32, §1º
da Constituição Federal de 88, acumula matérias de interesse regional e local.
52
PATRÃO, Benedicto de Vasconcellos Luna Gonçalves; GOMES, Rosângela Maria de Azevedo. O direito à
cidade sob a perspectiva do direito de família: o direito à convivência comunitária e a proteção jurídica da
criança e do adolescente no contexto urbano. In: AIETA, Vania (Coord.). Cadernos de direito da cidade:
estudos em homenagem à professora Maria Garcia: série I. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2014, p. 46.
53
SAULE JÚNIOR, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana.
São Paulo: Pólis, 2001.
54
PATRÃO, Benedicto de Vasconcellos Luna Gonçalves; GOMES, Rosângela Maria de Azevedo, ob. cit.,
2014, p. 51-52.
51
Com efeito, é através do adequado planejamento das políticas públicas, que o poder
público pode lograr eficiência na transformação da realidade urbana, e garantir o exercício
dos direitos fundamentais, corriqueiramente violados em face do irracional crescimento
urbano. É dizer, o planejamento pode ser compreendido como instrumento apto a direcionar
as ações estatais na correção das falhas decorrentes do processo de urbanização desordenada,
bem como na concretização dos direitos sociais, conduzindo a cidade de modo que ela passa a
55
SAULE JÚNIOR, Nelson; RODRIGUEZ, Maria Helena. O direito à moradia. In: LIMA JÚNIOR, Jayme
Bevenuto; ZETTERSTROM, Lena (Org.). Extrema pobreza no Brasil - a situação do direito a alimentação e
moradia adequada. São Paulo: Loyola, 2002.
56 JESUS, Iago Santana de; FERREIRA, Gabriel Luis Bonora Vidrih. Participação da sociedade civil no Plano
Diretor. Revista Anais do Sciencult, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em:
<http://periodicos.uems.br/novo/index.php/anaispba/article/viewFile/256/188> Acesso em: 08 out. 2017.
52
Previsto no art. 182, §1º da Constituição Federal e, igualmente, no art.40, caput, da Lei
10.257/2000, o Plano Diretor, conforme Silva58, caracteriza-se como plano em virtude de
prever os objetivos a serem alcançados, o prazo em que estes devem ser atingidos, as
atividades a serem implementadas e quem deve executá-las; e é diretor, por fixar as diretrizes
do desenvolvimento urbano do município. Afirma o autor que é por meio do plano diretor que
se define o melhor modo de ocupar um município ou região, são previstas as áreas onde se
localizarão os pontos de lazer, as atividades industriais e todos os usos do solo, não somente
para o presente, mas também para o futuro.
57
MARQUES, José Roberto. Meio ambiente urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
58
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000.
59
VILLAÇA, Flávio. Dilemas do Plano Diretor. In: O Município do Século XXI: cenários e perspectivas. ed.
especial. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima – Cepam: 1999, p. 238.
60
VILLAÇA, Flávio. Dilemas do Plano Diretor. In: O Município do Século XXI: cenários e perspectivas. ed.
especial. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima – Cepam: 1999, p. 238.
61
GONDIM, Linda M. P. et al. Plano diretor participativo: instrumento para democratizar a gestão urbana. In:
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, XXIX - 25 a 29 de outubro de 2005. Anais..., 2005. Disponível em: <
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwjMuIPcpsHXA
hXKiZAKHaurBDsQFggmMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.anpocs.com%2Findex.php%2Fencontros%2Fp
apers%2F29-encontro-anual-da-anpocs%2Fgt-25%2Fgt01-17%2F3631-lindagondim-
plano%2Ffile&usg=AOvVaw3hucyYAc2oTG0H-uosdmvy> Acesso em: 15 nov. 2017.
53
Evidentemente num país desigual como o Brasil, com uma abismal diferença de poder
político entre as classes sociais, conseguir uma participação popular democrática – que
pressuporia um mínimo de igualdade – é difícil. Essa a principal razão da ‘Ilusão da
Participação Popular’. Assim, os debates públicos seriam apenas a ponta de um
iceberg, ou seja, aquilo que não aparece é muito maior do que a parte que aparece.
Sobre o tema, Avritzer63 ensina que os planos diretores, e a obrigação da realização das
audiências públicas, constituem um desenho participativo de ratificação. A afirmação decorre
de uma classificação proposta pelo autor que considera existentes no Brasil três modelos de
participação, os quais denomina de desenhos participativos de baixo para cima, desenhos
institucionais de partilha do poder e, por fim, desenho institucional de ratificação. O autor
coloca como exemplo dos primeiros os orçamentos participativos, os quais, segundo ele, “são
uma forma aberta de livre entrada e participação de atores sociais capaz de gerar mecanismos
de representação da participação”. Os segundos poderiam ser identificados nos conselhos de
políticas, os quais, de fato, “são constituídos pelo próprio Estado, com representação mista de
atores da sociedade civil e atores estatais.” Por fim, os planos diretores, como dito, seriam
exemplos do desenho institucional de ratificação que, nas palavras do autor:
difere tanto dos desenhos ‘de baixo para cima’ quanto dos desenhos de partilha de
poder. No caso dos primeiros, a grande diferença com o processo de ratificação
pública é que eles não iniciam o processo de deliberação política, mas, pelo
contrário, finalizam um processo já iniciado no âmbito do próprio Estado. Em
relação ao processo de partilha de poder, os desenhos de ratificação pública variam
no que se refere à maneira como Estado e sociedade civil se relacionam: no caso dos
desenhos de ratificação pública eles envolvem mais atores sociais na ratificação e
sua relação é com uma decisão tomada anteriormente pelo Estado. (Grifos nossos)
62
VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo: Edição do autor, 2005, p. 50.
63
AVRITZER, Leonardo. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a
variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas, v.14, n.1, 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762008000100002> Acesso em: 16 nov.
2017.
54
Avritzer considera que o desenho utilizado nas audiências públicas possui baixa
capacidade democratizante e baixa efetividade, sobretudo quando o contexto em que se insere
denota a debilidade da sociedade civil ou a presença de um sistema político anti-participativo.
Com efeito, a qualidade da participação popular não deve ser confundida com uma simples
consulta visando à identificação de necessidades da população ou, ainda, com um mero canal
para o recebimento de reivindicações pelo Poder Público.64
Em Fortaleza, a revisão do Plano Diretor de 1992 fora construída por uma associação
técnica ligada à Universidade Federal do Ceará – UFC, e encaminhado para a Câmara
64
GONDIM, Linda M. P. et al. Plano diretor participativo: instrumento para democratizar a gestão urbana. In:
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, XXIX - 25 a 29 de outubro de 2005. Anais..., 2005. Disponível em: <
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwjMuIPcpsHXA
hXKiZAKHaurBDsQFggmMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.anpocs.com%2Findex.php%2Fencontros%2Fp
apers%2F29-encontro-anual-da-anpocs%2Fgt-25%2Fgt01-17%2F3631-lindagondim-
plano%2Ffile&usg=AOvVaw3hucyYAc2oTG0H-uosdmvy> Acesso em: 15 nov. 2017.
65
AVRITZER, Leonardo. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a
variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas, v.14, n.1, 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762008000100002> Acesso em: 16 nov.
2017.
66
AVRITZER, Leonardo. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a
variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas, v.14, n.1, 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762008000100002> Acesso em: 16 nov.
2017.
55
Municipal de Fortaleza. Apenas após o ajuizamento de ação civil pública, movida pelo o
Ministério Público em conjunto com a Federação de Entidades de Bairros e Favelas de
Fortaleza, o projeto de lei foi retirado da Câmara, para dar início a novo processo de
discussão, com a devida participação popular.67
Atualmente, o referido plano diretor está sendo revisado.69 Para tanto, foram realizadas
pela Prefeitura de Maceió cinco audiências públicas e quatro oficinas temáticas, todas no ano de
2015, e hoje o plano já se encontra em fase de elaboração por uma equipe técnica. Contudo,
consoante se depreende das gravações arquivadas em acervo da SEDET, a própria metodologia
empregada não favorece o exercício efetivo da participação popular. É que, consoante
explicitado na primeira das audiências, a primeira parte delas seria destinada à exposição, por
palestrantes escolhidos pela Prefeitura, acerca de aspectos técnicos relativos ao plano, sendo o
debate reservado apenas para o final. Ainda, a logística prevista para os debates, que
possibilitava apenas três minutos para exposição de ideias e questionamentos pela sociedade,
67
GONDIM, Linda M. P. et al. Plano diretor participativo: instrumento para democratizar a gestão urbana. In:
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, XXIX - 25 a 29 de outubro de 2005. Anais..., 2005. Disponível em: <
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwjMuIPcpsHXA
hXKiZAKHaurBDsQFggmMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.anpocs.com%2Findex.php%2Fencontros%2Fp
apers%2F29-encontro-anual-da-anpocs%2Fgt-25%2Fgt01-17%2F3631-lindagondim-
plano%2Ffile&usg=AOvVaw3hucyYAc2oTG0H-uosdmvy> Acesso em: 15 nov. 2017.
68
MACEIÓ. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente de Maceió - SEDET.
Termo de Referência: Plano Diretor de Maceió, 2003.
69
Para maiores informações, consultar o link: < http://www.maceio.al.gov.br/revisao-do-plano-diretor-participe/>
56
mas não limitava o tempo de resposta para os membros do governo, refletia uma flagrante
desigualdade de posições no debate, além de fazê-lo assemelhar-se a uma mera entrevista
coletiva, distanciando-se da lógica de trocas contributivas que deveria nortear o procedimento.
70
Em apertada síntese, o comentário geral n. 4, do Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da
ONU define que uma moradia adequada deve contemplar: segurança da posse; disponibilidade de serviços,
materiais, instalações e infraestrutura; economicidade; habitabilidade; acessibilidade; localização adequada; e
adequação cultural. Para informações mais detalhadas, acessar: <https://nacoesunidas.org/>
71
GUERRA, Isabel. O território como espaço de ações coletivas: paradoxos e possibilidades do “jogo
estratégico de atores” no planejamento territorial em Portugal. 341-368. In: SANTOS, Boaventura de Sousa
(Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 347.
57
constantes pelos vários atores sociais, cada vez mais exigentes, e cujos interesses são de
difícil conciliação. Em vista da variedade e heterogeneidade de atores sociais e projetos,
fluxos e interações, multiplicam-se as necessidades de negociação e de procura de
compromissos. Ocorre que essa descentralização e contratualização acabam por colocar os
atores públicos em uma situação de cooperação e de concorrência inevitáveis. Diante de tal
quadro, a capacidade financeira, o potencial de conhecimentos e a capacidade técnica tornam-
se as variáveis-chave do poder de influência sobre as ações estatais, tornando a abordagem do
urbanismo (e aqui incluímos o direito a moradia) como uma mercadoria sujeita a negociação
permanente, minimizando ou escamoteando a responsabilidade política. Conclui o autor que
esse panorama reflete uma democracia gerencial, característica de um Estado intermediário
dos interesses de alguns, a qual vai de encontro a uma democracia política, a que deve nortear
um Estado que garante da igualdade entre todos.
72
SCHWEIZER, Peter José; PIZZA JÚNIOR, Wilson. Casa, moradia, habitação. Revista de Administração
Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 5, p. 54-69, 1997, p. 63-64. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/issue/view/840> Acesso em: 16 nov. 2017.
73
SAULE JÚNIOR, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da cidade: novos horizontes para a reforma urbana.
São Paulo: Pólis, 2001, p. 34.
58
Como aponta Ressinger75, o Estado tem que ser capaz, através da identificação das
diferenças e das singularidades dos cidadãos, de promover justiça social, corrigindo as
disparidades econômicas, e dar igualdade de condições aos cidadãos, mediante a
concretização dos direitos sociais. Conforme a autora, é importante a participação popular
nesse processo, afinal, é o cidadão, seja individualmente ou através de associações, o mais
indicado para definir as prioridades em cada área social, direcionando os investimentos que
devem ser realizados. De fato, é essa “a melhor forma de efetivação dos direitos sociais”.
74
Dados disponíveis em: <http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-
brasil> Acesso em: 16 out. 2017.
75
REISSINGER, Simone. Reflexões sobre a efetividade dos direitos fundamentais sociais. p. 1776.
Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/bh/simone_reissinger.pdf>
4 A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA DEMOCRACIA
E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A EFETIVIDADE DO
DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA
O presente capítulo tem por objetivo abordar a mediação, enquanto método alternativo
de resolução de conflitos, como meio apto a solucionar controvérsias em torno das políticas
habitacionais, tornando mais efetiva a participação do cidadão no controle e execução de
políticas públicas, de forma a contribuir na concretização de direitos fundamentais como o
direito a moradia.
1
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 3.
60
Com efeito, os dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça dão conta de
que, no primeiro grau de jurisdição, onde tramitam 92% do total de processos em andamento
no Judiciário brasileiro, a capacidade produtiva anual é de apenas 27% da demanda.3
Nesse cenário, a mediação tem se disseminado como num modelo flexível à disposição
da população, possibilitando o acesso à justiça e resgatando canais de comunicação e
cidadania. Com efeito, da leitura do Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015)6,
verifica-se o evidente fomento aos métodos consensuais de solução de conflitos, o que inclui
a mediação, conforme se destaca logo no artigo 3º, o qual consigna: “a realização de
conciliação ou mediação deverá ser estimulada por magistrados, advogados, defensores
públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”. Seguindo
a mesma tendência, a Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2015)7, dispõe sobre a realização da
2
WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário nacional para tratamento adequado dos conflitos de
interesses. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 36, n. 195, p. 381-389, maio 2011, p. 383
3
BRASIL. CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Dados estatísticos. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/dados-
estatisticos-priorizacao> Acesso em: 04 nov. 2017.
4
CAMBI, Eduardo; FARINELLI, Alisson. Mediação e conciliação no Novo Código de Processo Civil (PLS
166/2010). Revista de processo, São Paulo, RT, v.194, 2011, p. 277.
5
NUNES, Antônio Carlos Ozório. Manual de mediação: guia prático da autocomposição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p. 33.
6
BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm> Acesso em: 06 nov. 2017
7
BRASIL. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de
solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a
61
Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto n o 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2o do art. 6o
da Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Lei/L13140.htm> Acesso em: 06 nov. 2017.
8
BRASIL. CNJ. Manual de mediação judicial. 2016. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/07/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf> Acesso em:
06 nov. 2017.
62
Com efeito, a mediação se ocupa não só da solução do conflito em si, mas também da
adequada construção do acordo que dela resulta, já que este pode influenciar diretamente no
relacionamento dos indivíduos, positiva ou negativamente. É dizer, diferentemente do que
ocorre na solução obtida no processo judicial, o resultado da mediação leva em consideração
não só resolução do problema a ser mediado, mas cuida também do adequado tratamento à
relação entre os envolvidos no conflito. Por esta razão, há quem aponte a mediação como
método mais adequado à solução de conflitos vivenciados por indivíduos que devam manter,
pelas circunstancias do litigio, ou mesmo por razões de cunho pessoal, uma relação
prolongada no tempo. É o caso de Cahali9, que acredita ser a mediação o método indicado
para situações em que existe um vínculo jurídico ou pessoal continuado entre envolvidos no
conflito. Na mesma linha, Nunes10 entende que a mediação “é adequada para todos os
conflitos, principalmente que as partes mantêm relacionamento continuado, frequente, como
nas relações familiares, societárias, de vizinhança, entre outras”.
9
CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. Resolução CNJ 125/2010 (e resolutiva Emenda nº 1 de 31 de
janeiro de 2013), mediação e conciliação. 3. ed. São Paulo: RT, 2013.
10
NUNES, Antônio Carlos Ozório. Manual de mediação: guia prático da autocomposição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p. 39.
11
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
12
A mediação voltada para a solução do problema tem como marco teórico a obra dos Professores de Harvard, Roger
Fisher, William Ury e Bruce Patton, “Getting to yes”, publicada nos EUA em 1983. O modelo da “mediação
transformativa” fora proposto por Robert Bush e Joseph Folger, na obra “The promise of mediation”, publicada em
1994 nos EUA. Por fim, o modelo da mediação narrativa, descrito por John Winslade e Gerald Monk na obra
“Narrative mediation: a new approach to conflict resolution”, publicada nos EUA em 2000.
63
Sobre esses dois primeiros, conclui a autora que, quanto maior o grau de envolvimento
entre as partes, mais adequada parece ser a perspectiva da mediação transformativa. Diversamente,
quando o grau de relacionamento entre os litigantes é bastante reduzido, a mediação focada
basicamente na realização de acordos, facilitadora ou avaliadora, pode ser suficiente.14
13
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
14
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
15
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
16
RISKIN, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um padrão para
perplexos. Artigo publicado na Harvard Negotiation Law Review, v. 1, n.7, 1996. O direito de tradução e
reprodução no Brasil foi concedido ao Grupo de Pesquisa e Trabalho em Arbitragem, Mediação e Negociação
da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília pelo Autor e pela Harvard Negotiation Law Review.
Tradutor: Henrique Araújo Costa. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-
64
critério para se estabelecer o modelo de mediação a ser utilizado. Ele fornece um exemplo
hipotético de desentendimento comercial entre duas empresas em que haveria quatro níveis de
interesses a serem explorados. Num primeiro nível, o foco seria o objeto em litigio, com
solução semelhante ao resultado de um processo judicial para decidir o conflito. No segundo,
seriam também discutidos os interesses comerciais existentes, focando também na boa relação
profissional entre as partes. Já no terceiro nível, seriam igualmente trabalhados os interesses
pessoais de melhora na comunicação e no relacionamento entre os empregados das duas
empresas, proporcionando uma evolução moral, com aumento da autonomia e da empatia
entre as partes. Por fim, no último nível, seriam também abordados os interesses de
comunidades e entidades que não são partes imediatas da disputa, mas que podem associar-se
numa ação coordenada a fim de evitar problemas futuros.
Enquanto numa mediação mais restrita estaria focada apenas o primeiro nível, a
mediação ampla poderia explorar os demais, com resultados mais satisfatórios para as partes e
até mesmo para terceiros, a médio e longo prazos. Riskin17 aponta, ainda, as técnicas que o
mediador deve empregar para auxiliar as partes a atingirem seus objetivos, que podem ser
mais avaliativas ou mais facilitativas, a depender do conflito a ser solucionado. Analisando os
parâmetros adotados por Riskin, Sales18 explica:
mediacao-e-negociacao-vol1/compreendendo-as-orientacoes-estrategias-e-tecnicas-do-mediador-um-
padrao-para-perplexos/iii-o-sistema-proposto> Acesso em: 10 nov. 2017.
17
RISKIN, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um padrão para
perplexos. Artigo publicado na Harvard Negotiation Law Review, v. 1, n.7, 1996. O direito de tradução e
reprodução no Brasil foi concedido ao Grupo de Pesquisa e Trabalho em Arbitragem, Mediação e Negociação
da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília pelo Autor e pela Harvard Negotiation Law Review.
Tradutor: Henrique Araújo Costa. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-
mediacao-e-negociacao-vol1/compreendendo-as-orientacoes-estrategias-e-tecnicas-do-mediador-um-
padrao-para-perplexos/iii-o-sistema-proposto> Acesso em: 10 nov. 2017.
18
SALES, Lilia Maia de Morais. Mediação facilitativa e “mediação” avaliativa – estabelecendo diferença e
discutindo riscos. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 16, n. 1, p.20-32, 2011, p. 24. Disponível em:
<https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/issue/view/198> Acesso em: 09 nov. 2017.
19
SALES, Lilia Maia de Morais. Mediação facilitativa e “mediação” avaliativa – estabelecendo diferença e
discutindo riscos. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 16, n. 1, p.20-32, 2011, p. 24. Disponível em:
<https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/issue/view/198> Acesso em: 09 nov. 2017.
65
À guisa de conclusão acerca das classificações apontadas, e adotando aqui uma visão
mais pragmática e voltada aos objetivos deste trabalho, importa considerar que a mediação no
Brasil, ao menos do que se depreende das diretrizes e princípios dispostos nos normativos
correlatos à matéria, trata-se de procedimento que se destina não somente à solução do conflito.
Encarrega-se, igualmente, da facilitação da compreensão do problema e do diálogo entre as
partes, sem interferências avaliativas, proporcionando-lhes a interlocução e o empoderamento
necessários são só à construção de uma solução consensual da questão concretamente deduzida,
mas também, se necessário, de questões pessoais e até mesmo sociais.
No dizer de Galvão e Galvão Filho20, por ser procedimento não adversarial, consensual
e informal, o terceiro imparcial, escolhido ou aceito pelas partes em litigio, deve auxiliar os
interessados a buscar uma solução justa e adequada ao caso submetido à apreciação. Atua de
modo a facilitar a compreensão do problema, mas sem interferir diretamente, encorajando e
facilitando a resolução de uma divergência. Essa facilitação quanto à compreensão do
problema é também destacada por Tartuce21, para quem a proposta técnica da mediação é
proporcionar outro ângulo de análise dos envolvidos, em substituição à visão voltada apenas à
próprias proposições, de forma que as partes voltem a sua atenção para os reais interesses
envolvidos.
2011.
20
GALVÃO, Fernanda Koeler; GALVÃO FILHO, Maurício Vasconcelos. Da mediação e da conciliação na
definição do Novo Código de Processo civil: artigo 165. In: ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de et al.
(Coord.). A mediação no novo Código de Processo Civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
21
TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
22
SALES, Lília Maia de Morais. Mediação de conflitos. Dicionário de Direitos Humanos. Disponível em:
<http://escola.mpu.mp.br/dicionario/tiki-index.php?page=Media%C3%A7%C3%A3o+de+conflitos>Acesso
em: 06 nov. 2017.
66
23
BEZERRA, Tássio. A mediação enquanto instrumento de emancipação da cidadania e de democratização da
justiça e do direito. Revista Direito & Sensibilidade, 2011, p.224. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/enedex/article/view/4356/3655> Acesso em: 08 nov. 2017.
24
BEZERRA, Tássio. A mediação enquanto instrumento de emancipação da cidadania e de democratização da
justiça e do direito. Revista Direito & Sensibilidade, 2011, p.224. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/enedex/article/view/4356/3655> Acesso em: 08 nov. 2017.
67
conflito. Viu-se, portanto, que a mediação não apenas almeja a barganha de interesses para
obtenção do acordo, mas se trata de uma oportunidade para o indivíduo expor sentimentos,
ouvir o outro, ressignificar o conflito e até mesmo transformar-se, de forma a encarar
eventuais conflitos posteriores de forma mais amadurecida, criativa e autônoma.
Com efeito, a mediação, analisada sob uma concepção mais ampla, não se resume
unicamente a um meio de resolução de conflitos. Para além disso, a mediação deve criar ou
recriar laços onde estes não existem mais ou estão consumidos, e estimular a participação e a
responsabilização dos envolvidos, trazendo uma proposta de humanizar as relações,
produzindo uma justiça voltada à qualidade de vida.25 Considerando o seu viés pedagógico,
tendo em vista que os mediandos aprendem a administrar seus conflitos, dialogando e criando
conjuntamente uma solução mutuamente aceitável, a mediação restitui ao cidadão o
protagonismo do conflito, dando-lhe o empoderamento para decidir sobre suas situações
conflituosas futuras.
25
WARAT, Luis Alberto, 2004 apud ROCHA, Leonel Severo; GUBERT, Roberta Magalhães. A mediação e o
amor na obra de Luis Alberto Warat. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 33,
n. 1, p.101-124, jan./jun. 2017. Disponível em: <
https://www.fdsm.edu.br/adm/artigos/5378183e03056a79b0050d0bf187009c.pdf> Acesso em: 08 nov. 2017.
26
SOUZA, Aiston Henrique de et al. Título. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de mediação
judicial. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 2016.
27
FOLEY, Gláucia Falsarella. A justiça comunitária para emancipação. In: SPENGLER, Fabiana Marion;
LUCAS, Doglas César (Org.). Justiça restaurativa e mediação: Políticas públicas no tratamento dos conflitos
sociais. Ijuí: Unijuí, 2011.
68
28
WARAT, Luis Alberto, 2004 apud ROCHA, Leonel Severo; GUBERT, Roberta Magalhães. A mediação e o
amor na obra de Luis Alberto Warat. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 33,
n. 1, p.101-124, jan./jun. 2017. Disponível em: <
https://www.fdsm.edu.br/adm/artigos/5378183e03056a79b0050d0bf187009c.pdf> Acesso em: 08 nov. 2017.
29
NORTHFLEET, Ellen Gracie, 1994, p. 13 apud SALES, Lilia Maia de Morais; ANDRADE, Mariana Dionísio
de. A mediação de conflitos como efetivo contributo ao Poder Judiciário brasileiro. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, 2011. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242928/000936208.pdf?sequence=3> Acesso em: 07
nov. 2017.
30
BEZERRA, Tássio. A mediação enquanto instrumento de emancipação da cidadania e de democratização da
justiça e do direito. Revista Direito & Sensibilidade, 2011. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/enedex/article/view/4356/3655> Acesso em: 08 nov. 2017.
69
31
MAGESTE, Gisele de Souza et al. Empoderamento de Mulheres: uma proposta de análise para organizações.
In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS GRADUAÇÃO EM
ADMINISTRAÇÃO. V. Anais..., 2008. Belo Horizonte, 2008. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EnEO548.pdf> Acesso em: 09 nov. 2017.
32
CARVALHO, Sergio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à
Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.20, n.4, jul./aug. 2004. Disponivel em:
<http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400024> Acesso em: 09
nov. 2017.
70
33
CARVALHO, Sergio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à
Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.20, n.4, jul./aug. 2004. Disponível em:
<http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400024> Acesso em: 09
nov. 2017.
34
WARAT, Luis Alberto, 2004 apud BENTES, Hilda Helena Soares; MONERAT, Diego Machado. O ofício do
mediador na perspectiva controversial: a arte de construir a autonomia e o sujeito de direito. RIDH - Revista
Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, v. 5, n. 1, p. 149-166, jan./jun. 2017.
35
SALES, Lilia Maia Morais de; ALENCAR, Emanuela Cardoso O. de; FEITOSA, Gustavo Raposo. Mediação de
conflitos sociais, polícia comunitária e segurança pública. Revista Seqüência, n. 58, p. 281-296, jul. 2009.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2009v30n58p281/13615>
Acesso em: 09 nov. 2017.
71
Com efeito, como ressalta Gardini36, em uma sociedade complexa como a que se vive
atualmente, “o interesse público não pode ser somente confiado às instituições, mas reclama a
iniciativa (e não somente a participação) dos cidadãos”. No entanto, é preciso entender de que
forma a mediação poderia se inserir na ordem democrática. Para tanto, vale-se aqui da lição
de Splenger e Ghisleni, que partem da perspectiva de que a gestão pública compartida deve
ser analisada por meio de três bases epistemológicas. A primeira fundamenta-se em um novo
conceito de sociedade, concebida como um conjunto de práticas, discursos e valores que
influenciam no modo como desigualdades e diferenças, direitos e deveres, são tratados e
administrados no cenário público, uma vez que tais direitos e deveres são fruto de um
processo tenso de negociação em face dos conflitos existentes e estes, por sua vez, são
considerados formas de renovação social necessária, por meio da diversidade. Não bastasse
isso, esses mesmos direitos e deveres acabam por regular as práticas sociais, compondo as
regras de reciprocidade esperadas na vida em sociedade, além de construírem vínculos entre
os indivíduos, as classes e os grupos.
36
GARDINI, Gianluca apud SPENGLER, Fabiana Marion; GHISLENI, Ana Carolina. A mediação como meio
de construção de uma administração pública democrática. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 16, n. 1, p.91-
102, 2011, p. 100. Disponível em: <https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/issue/view/198> Acesso em:
09 nov. 2017.
72
Noutro dizer, a participação social na gestão dos interesses públicos deve transpor os
limites do voto, da iniciativa de projetos de lei, do plesbicito e do referendo, sendo importante
fomentar também a participação dos indivíduos, “através de rotinas e procedimentos didáticos
que levem em conta as diferenças e especificidades de cada um”37. Para tanto, o Poder Público
deve promover a igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de institucionalidade
democrática e garantir “padrões mínimos de inclusão, possibilitando que a cidadania ativa
auxilie na criação, no acompanhamento e na avaliação de políticas públicas e projetos de
governo”. De outro lado, a ampla utilização da mediação pelos cidadãos desenvolverá
aptidões que ultrapassam a resolução de seus próprios conflitos, reforçando a percepção que
“podem e devem participar das decisões políticas de interesse público, auxiliando na
construção de uma esfera pública baseada no amplo diálogo do Estado com a Sociedade
Civil.”38
37
LEAL, Rogério Gesta. Esfera pública e participação social: possíveis dimensões jurídico-políticas dos direitos
civis e de participação social no âmbito da gestão dos interesses públicos no Brasil. In: LEAL, Rogério Gesta
(Org.). A administração pública compartida no Brasil e na Itália: reflexões preliminares. Santa Cruz do
Sul: Edunisc, 2008, p. 197.
38
SPENGLER, Fabiana Marion; GHISLENI, Ana Carolina. A mediação como meio de construção de uma
administração pública democrática. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 16, n. 1, p.91-102, 2011, p. p. 100-
101. Disponível em: <https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/issue/view/198> Acesso em: 09 nov. 2017.
39
SALES, Lilia Maia de Morais; RABELO, Cilana de Morais Soares. Meios consensuais de solução de conflitos
Instrumentos de democracia. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 46, n. 182, abr./jun. 2009, p.
75-88.
73
40
WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: S. Fabris, 1990, p. 47.
41
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e
protagonismo judiciário. São Paulo: Almedina, 2016.
42
Dados disponíveis em: <http://www.amb.com.br/> Acesso em: 13 nov. 2017.
74
Pública, com base nas ideias de consensualismo, cidadania ativa e eficiência. 43 Não bastasse
isso, com a Constituição de 1988, houve um rompimento do modelo de Estado liberal, uma
vez que seus dispositivos transmitem as preocupações e os objetivos do Estado Social, por
meio da previsão de direitos fundamentais de segunda geração, que exigem prestações
positivas do Estado (dar, fazer, prestar) ao cidadão.44 Essa evolução de um Estado liberal, de
atuação predominantemente abstencionista, para um Estado que passa a exercer importante
papel na garantia do bem comum de sua população, trouxe como consequência inevitável um
necessário alargamento das relações do Estado com a sociedade.45
43
DIAS, Maria Tereza Fonseca. A mediação na administração pública e os novos caminhos para a solução
de problemas e controvérsias no setor público. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/maria-tereza-fonseca-dias/a-mediacao-na-administracao-
publica-e-os-novos-caminhos-para-a-solucao-de-problemas-e-controversias-no-setor-publico> Acesso em: 10
nov. 2017.
44
GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo poder judiciário. In: SALLES, Carlos
Alberto de (Coord.). As grandes transformações do processo civil brasileiro. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 109-134.
45
EIDT, Elisa Berton. Os institutos da mediação e da conciliação e a possibilidade de sua aplicação no âmbito da
administração pública. RPGE, Porto Alegre, v. 36 n. 75, p. 55-74, 2015.
46
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfllet. Porto Alegre:
Fabris, 1988.
47
EIDT, Elisa Berton. Os institutos da mediação e da conciliação e a possibilidade de sua aplicação no âmbito da
administração pública. RPGE, Porto Alegre, v. 36 n. 75, p. 55-74, 2015, p.68-69.
75
segundo Binenbojm48, para compatibilizar o regramento do direito público com uma justiça
conciliativa, é preciso repensar o princípio da supremacia do interesse público e a legalidade
administrativa como vinculação positiva à lei. Igualmente, há que se discutir a intangibilidade
do mérito administrativo e a ideia de um Poder Executivo unitário, fundado em relações de
subordinação hierárquica entre a burocracia e órgãos de cúpula do governo. A superação
destes paradigmas, conclui o autor, é possível através da constitucionalização do direito
administrativo, com a adoção do sistema de direitos fundamentais e do sistema democrático
como vetores a pautar a Administração Pública.
48
BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços
e retrocessos. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, v. 4, n. 14, jul. 2006. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/31086>. Acesso em: 13 nov. 2017.
49
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo – Reflexos sobre o
princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Atualidades Jurídicas: Revista do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ‐ OAB, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, jan./ jun. 2012. Disponível
em: <http://www.editoraforum.com.br/ef/wp-content/uploads/2014/05/Da-constitucionalizacao-do-direito-
administrativo.pdf> Acesso em: 14 nov. 2017.
76
50
Para José dos Santos Carvalho Filho (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito
administrativo. 28. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 31), o “núcleo do princípio é a procura de
produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro
público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional”.
51
MIRAGEM, Bruno. A nova administração pública e o direito administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 38-40.
52
Cf. art. 32 da Lei de Mediação e art. 174 do Código de Processo Civil de 2015.
77
agora, a partir do novo Código, através das câmaras de prevenção e resolução administrativa
de conflitos. Deve voltar a sua atenção à concretização dos direitos fundamentais e ao
aperfeiçoamento das instituições democráticas do Estado de Direito, de modo a tornar melhor
a relação da Administração com o cidadão.53
A análise dos parâmetros legais acima transcritos, tal como dispostos no texto, nos
remete à interpretação de que o rol de conflitos discriminados na Lei 13.140/2015 é
meramente exemplificativo, o nos permite concluir que qualquer conflito envolvendo o Poder
Público poderá ser levado às referidas câmaras, a exceção daqueles que somente possam ser
resolvidos por atos ou concessão de direitos sujeitos à autorização do Poder Legislativo (art.
32, § 4º). Conclui-se, igualmente, que a eventual abertura do procedimento tem o condão de
suspender a prescrição (art. 34) e que, havendo consenso entre as partes, o respectivo termo
constituirá título executivo extrajudicial (art. 32, § 3º).
A autora, contudo, faz uma crítica aos mecanismos hoje existentes, os quais envolvem
riscos que poderiam ser minimizados pelo procedimento da mediação. Aponta, assim, citando
Bruna, a existência de riscos à eficiência do procedimento, tendo em vista o inevitável
alongamento temporal do processo decisório, decorrente da maior participação pública, o
encarecimento ou até mesmo a paralisação do procedimento, bem como o risco de “diluição da
responsabilidade”, dada a possibilidade de multiplicação dos centros de decisão. Ainda,
enumera a autora os riscos relativos à igualdade e à impessoalidade, que poderiam representar
também um risco ao interesse público, já que os cidadãos, os grupos e as organizações privadas
participantes de procedimentos em geral não se encontram em posição de paridade fática,
havendo particulares privilegiados pela posse de meios econômicos, políticos e de informação.56
Explica a autora que os métodos participativos de que dispomos hoje, a exemplo das
audiências públicas, as quais, como se sabe, não tomam decisões vinculativas para o Poder
55
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
56
BRUNA, Sérgio Varella apud SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos
envolvendo entes públicos: negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo
Horizonte: Fórum, 2012.
57 57
BRUNA, Sérgio Varella apud SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos
envolvendo entes públicos: negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo
Horizonte: Fórum, 2012.
79
Público, embora facultem o amplo debate e participação de todos os interessados, não garante
que o diálogo ocorra de forma produtiva e que partes pouco dispostas a ouvir busquem
construir soluções que contemplem todos os interesses em jogo.
Com efeito, como nos relata Viana60, embora as políticas públicas, notadamente, a
política urbana, devam estar a serviço da promoção de direitos fundamentais como o direito à
cidade (dentro do qual incluímos o direito à moradia), de uma forma geral, isso não tem
ocorrido. A autora relata, nessa seara, conflitos de grande repercussão nacional, como o das
operações de reintegração de posse de um terreno de 33 mil metros quadrados no Capão
Redondo, na zona sul da capital paulista em 2009, e também o da Comunidade do
Pinheirinho, em São José dos Campos, interior do estado de São Paulo, em 2012, ambos
58
FONSECA, Gilberto Nardi. A participação popular na administração pública: audiências públicas na
elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos do município. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, n. 160, p. 291-305, out./dez. 2003.
59
SOUZA, Luciane Moessa. Resolução consensual de conflitos envolvendo políticas públicas. Brasília:
Fundação Universidade de Brasília, 2014.
60
VIANA, Cintia Portugal. Mediação como Política Pública de Estado em Conflitos Fundiários Urbanos no
Brasil: reflexões sobre a proposta do Artigo 579 do Projeto do Novo Código do Processo Civil – CPC. Revista
O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XVIII, n. 31, p. 57-72, 2014.
80
marcados por repressão absurda, desproporcional e ilegal. Narra a extrema violência a que foi
submetida a população na ação do despejo e interroga sobre quais seriam as possibilidades
para a construção de algum papel inteligente do Estado nas políticas públicas negociadas, a
fim de que sejam efetivados os direitos existentes na legislação nacional e local.
De fato, os reflexos das deficiências na política urbana habitacional podem ser sentidos
na expressiva quantidade de conflitos relacionados à questão fundiária. No Estado de São
Paulo (o mais populoso do país61), por exemplo, de acordo com dados produzidos pela
Secretaria de Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça, estão em andamento, no
estado, mais de 160 mil ações envolvendo questões que podem ser traduzidas num conceito
amplo de conflito fundiário.62
No mesmo documento, o Ministério das Cidades aponta como fatores que geram
conflitos fundiários: a reintegração de posse de imóveis públicos e privados, em que o
processo tenha ocorrido em desconformidade com a garantia de direitos sociais; as obras
públicas geralmente relacionadas à implantação ou melhoria de infraestrutura, resultantes ou
não de desapropriação, que resultem de alguma maneira na expulsão de famílias de baixa
renda; a inexistência ou deficiência de políticas habitacionais municipais e estaduais voltadas
à provisão de habitação de interesse social e à regularização fundiária que possam conferir
solução habitacional adequada para garantir o direito à moradia; a regulação do parcelamento,
uso e ocupação do solo que não tenha destinado áreas na cidade para garantir a segurança da
61
O Estado de São Paulo torna-se um bom parâmetro, pois possui 44.749.699 habitantes, o que corresponde a
cerca de 21,7% da população total do Brasil. Além disso, o estado tem um alto grau de urbanização. Em 2016,
a população urbana é estimada em 96,32% da população total do estado de São Paulo. Dados disponíveis em:
<http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/temas/sao-paulo/sao-paulo-populacao-do-estado.php> Acesso em: 15
nov. 2017.
62
Dados disponíveis em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.200/6393> Acesso em: 15
nov. 2017.
63
BRASIL. Ministério das Cidades – Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Prevenção e mediação de
conflitos fundiários urbanos. Disponível em:
<http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/apres2409daniel.pdf> Acesso em: 15 nov. 2017.
81
posse da população de baixa renda e a provisão de habitação de interesse social; e, por fim, a
concentração da propriedade da terra.
Note-se que praticamente todos os fatores apontados envolvem, em maior ou menor grau, a
ineficiência ou a inadequação do planejamento urbano, decorrentes, em certa medida, da ausência
de participação popular na gestão pública. Prova disso é que o próprio Ministério das Cidades, ao
definir a prevenção de conflitos fundiários urbanos, coloca a gestão democrática das políticas
urbanas à serviço da garantia do direito à moradia digna e adequada e à cidade, o que se pretende
a partir da provisão de habitação de interesse social, de ações de regularização fundiária e da
regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo, que garanta o acesso à terra urbanizada, bem
localizada e a segurança da posse para a população de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis.
Essa ausência de participação popular é igualmente ressaltada por Luchmann64, que afirma
ser preciso reconhecer que as instituições formais básicas da democracia tem se relevado
incapazes de produzir respostas adequadas aos problemas de exclusão e de desigualdades
sociais, o que demanda uma nova concepção da cidadania, a partir do rompimento da noção
de política como atividade exclusiva de “aparatos partidários oligarquizados e de políticos
profissionais com vocação pública discutível”65.
Embora não restassem dúvidas, tendo em vista todo o exposto neste trabalho, de que a
mediação se constituiria em importante instrumento de participação popular na gestão
pública, de forma a contribuir na concretização de direitos fundamentais como o direito à
moradia, tal afirmação é reforçada pela Resolução Recomendada nº 87, de 8 de dezembro de
2009, do Conselho das Cidades. O normativo recomenda ao Ministério das Cidades
instituição da Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos.
Na dita resolução, são considerados, dentre outras, premissas igualmente elencadas no
decorrer do presente trabalho, tais como: o crescimento acelerado das cidades brasileiras nas
últimas décadas e o consequente aumento no número de assentamentos precários não só nas
grandes cidades, mas também nas cidades de médio e pequeno porte; o déficit habitacional
brasileiro; a moradia enquanto direito fundamental; o Pacto Internacional de Direitos
64
LUCHMANN, Ligia Helena Hahn. Democracia deliberativa, pobreza e participação política. Revista Política e Sociedade,
Florianópolis, v. 6, n. 11, 2007. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/issue/view/967/showToc> Acesso em: 01
dez. 2017.
65
FONTANA. R., 2000, p.23 apud LUCHMANN, Ligia Helena Hahn. Democracia deliberativa, pobreza e participação
política. Revista Política e Sociedade, Florianópolis, v. 6, n. 11, 2007. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/issue/view/967/showToc> Acesso em: 01 dez. 2017.
82
66
BRASIL. Ministério das Cidades. Conselho das Cidades. Resolução Recomendada n. 87, de 08 dezembro de
2009. Publicada no DOU de 25/05/10 seção 01 n. 98, p. 88. Disponível em:
<http://www.concidades.pr.gov.br/arquivos/File/87_Resolucao_Conflitos_versao_final_ConCidadesNacional.p
df> Acesso em: 15 nov. 2017.
83
plano diretor e na sua execução, com vistas a fomentar a participação social e garantir a adoção de
políticas públicas dirigidas à realização do direito à moradia, sobretudo no que se refere à
população menos favorecida.
4.4.1 Público-alvo
O presente projeto dirige-se a todos aqueles que desejem expor demandas locais,
questionar ou mesmo dar a sua contribuição para a revisão e execução do plano diretor de
Maceió, relativamente ao tema moradia. Contudo, o projeto tem como prioridade o
atendimento ao público proveniente de camadas sociais menos favorecidas. A proposta
também tem como público-alvo servidores públicos e gestores de secretarias cujas funções se
relacionem ao tema da moradia, e também procuradores, os quais deverão ser devidamente
capacitados à prática da mediação.
Não bastasse isso, a pesquisa bibliográfica aponta que, historicamente, ao menos no que
se refere à política habitacional, a relação entre o Estado e a população menos favorecida
mostrou-se predominantemente verticalizada, marcada por decisões tecnocráticas e pouco
abrangentes, as quais foram procedidas pelo primeiro, sem qualquer participação da segunda.
84
Disso resulta que, de uma forma geral, conforme Viana67, as políticas públicas, notadamente a
política urbana, não tem sido dirigidas à promoção de direitos fundamentais como o direito à
cidade e à moradia.
67
VIANA, Cintia Portugal. Mediação como Política Pública de Estado em conflitos fundiários urbanos no
Brasil: reflexões sobre a proposta do Artigo 579 do Projeto do Novo Código do Processo Civil – CPC. Revista
O Social em Questão, ano XVIII, n. 31, 2014.
68
CARVALHO, Sergio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à
Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.20, n.4, jul./ago. 2004. Disponivel em:
<http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400024> Acesso em: 09 nov.
2017.
69
SALES, Lilia Maia de Morais; RABELO, Cilana de Morais Soares. Meios consensuais de solução de conflitos
Instrumentos de democracia. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 46, n. 182, p. 75-88, abr./jun.
2009.
85
Por fim, embora o presente projeto tenha como enfoque de atuação a atual revisão do
Plano Diretor, pretende-se manter permanentemente a câmara para que possam ser discutidos
pontos relavantes acerca também da sua execução, garantindo-se, assim, a possibilidade de
constante pparticipação popular na gestão urbanístico-habitacional.
4.4.4 Recursos
Como dito, o presente projeto deverá ser executado demandará tão somente
remanejamento de servidores já integrantes do quadro municipal. Com efeito, o procedimento
proposto, tal como aqui pensado, funcionará com o trabalho de apenas dois recepcionistas, um
em cada secretaria envolvida (SEDET e PGM), um técnico de informática, para criar um link
de inscrição no site da Prefeitura, e quatro procuradores, o quais já se encontram qualificados
a realizar as sessões de mediação, bem como a capacitar demais procuradores, caso
necessário.
86
Dezembro/2017
Janeiro/2018
1
LYRA, Fernando José. Formação da riqueza e da pobreza em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007, p.83.
2
SILVA, Ana Carolina Lopez da et al. Sensações do morar e a concretização de moradia para idosos egressos de
um albergue. Caderno Temático Kairós Gerontologia 8. São Paulo, nov. 2010, p. 169-193.
3
VASCONCELOS, Pedro Pais, 2006 apud MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo:
Atlas, 2011.
4
Sobre conteúdo e eficácia dos direitos fundamentais, ver: SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos
fundamentais. 12. ed. São Paulo: Livraria dos Advogados, 2015; SILVA, José Afonso da. Direito
constitucional positivo. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
5
MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo: Atlas, 2011.
88
razão pela qual a atuação positiva estatal não deve se restringir a mera provisão de habitações,
devendo promover o direito à moradia adequada, que assegure, igualmente, qualidade de vida.
Essa ação positiva do Estado deve ocorrer através de execução de políticas públicas, nas
searas urbana e habitacional. Ou seja, a sua concretização depende das opções que o Estado
fizer em programas político-sociais de habitação, os quais devem visar a garantia o acesso de
todos ao mercado habitacional, notadamente para os segmentos sociais que não têm acesso ao
mercado e vivem em condições precárias de habitabilidade e de vida. 6 Em razão do quanto se
depreende do art. 182 da Constituição Federal e do princípio da preponderância do interesse, é
no município que estão concentradas as principais competências para promover políticas
públicas voltadas à concretização do direito à moradia. Com efeito, além de competir-lhe a
legislação de interesse local, ao município foi atribuída a promoção do adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano, além da execução da política de desenvolvimento urbano, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.7
Em Maceió, o plano diretor está em processo de revisão.9 Contudo, em que pese tenham
sido realizadas cinco audiências públicas e quatro oficinas temáticas, todas no ano de 2015, a
6
SAULE JÚNOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. Disponível em:
<http://polis.org.br/publicacoes/o-direito-a-moradia-como-responsabilidade-do-estado-brasileiro/> Acesso em:
15 out. 2017.
7
Cf. art. 23, X, art. 24, I, art. 30, I e VIII, e art. 182, todos da Constituição Federal de 1988.
8
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 6.
ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2010.
9
Para maiores informações, consultar o link: <http://www.maceio.al.gov.br/revisao-do-plano-diretor-participe/>
89
dinâmica verificada nos referidos eventos, conforme narrado no presente trabalho, dificultou
sobremaneira o pleno exercício efetivo da participação popular. Dentre outros aspectos
questionáveis, a metodologia empregada estabelecia formas dispares de manifestação para o
poder público e os participantes, com claro favorecimento ao primeiro, além de restringir as
discussões mais especificas a oficinas dirigidas a grupos determinados.
Nesse cenário, a prática da mediação, como instrumento que estabelece a participação ativa
das pessoas na solução de conflitos e na discussão de questões individuais, revela-se mecanismo
de transformação social, na medida em que estimula a discussão também de questões de natureza
coletiva. De fato, as mediações que vem sendo empreendidas nas periferias dos municípios, por
exemplo, têm refletido mudanças no comportamento das pessoas, tornando-as mais participativas
não só nas decisões individuais, mas também nas coletivas. Essa modificação do indivíduo,
conhecida como empoderamento, promove o seu autoreconhecimento enquanto sujeito de direitos
e, ao mesmo tempo, o mobiliza a criar ferramentas sociais de reinvindicação e efetivação dos seus
direitos garantidos pelo ordenamento. 10
10
SALES, Lilia Maia Morais de; ALENCAR, Emanuela Cardoso O. de; FEITOSA, Gustavo Raposo. Mediação de
conflitos sociais, polícia comunitária e segurança pública. Revista Seqüência, n. 58, p. 281-296, jul. 2009.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2009v30n58p281/13615>
Acesso em: 09 nov. 2017.
90
comunicação mais próxima entre o Estado e a sociedade, mas do efetivo exercício da cidadania,
através da diminuição das diferenças entre o cidadão, o gestor público e a esfera privada. O caminho
mais célere, justo e adequado à essa transformação social é, sem dúvidas, a mediação.
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história da nossa gente. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
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92
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de 08 de dezembro de 2009. Diário Oficial da União, Brasília DF, 25 maio 2010, seção 01,
n. 98, p. 88. Disponível em:
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WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: S.
Fabris, 1990.
ANEXOS
101
ANEXO A
Ponta Verde
Fonte: <http://viagemempauta.com.br/>.
Ponta Verde
Fonte: <http://viagemempauta.com.br/>.
102
Alto da Alegria
Fonte: <http://www.alagoas24horas.com.br/>.
103
ANEXO B
Fonte: <http://www.alagoas24horas.com.br/>.
Fonte: <http://www.alagoas24horas.com.br/>.
104
Fonte: <http://www.alagoas24horas.com.br/>.
Fonte: <http://www.alagoas24horas.com.br/>.