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A escrita homoerótica

de António Botto em dois tempos

Oscar José de Paula Neto


Doutorando UFF
1922 1959
Arrastou-me para Ele,
III
E, encostado ao meu ombro
Falou-me de um pajem loiro
Andava a lua nos céus
Que morrera de saudade
Com o seu bando de estrelas.
À beira-mar, a cantar...
Na minha alcova
Olhei o céu.
Ardiam velas
Em candelabros de bronze. Agora a lua fugia
Entre nuvens que tornavam
Pelo chão em desalinho A linda noite sombria.
Canções, 1922 Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho. Deram-se as bocas num beijo,
– Um beijo nervoso e lento...
Ele, olhava-me cismando; O homem cede ao desejo
E eu, Como a nuvem cede ao vento.
Plácidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua Vinha longe a madrugada.
Que pelos céus caminhava.
Por fim,
Aproximou-se; e em delírio Largando esse corpo
Procurou avidamente, Que adormecera cansado
E avidamente beijou E que eu beijara, loucamente,
A minha boca de cravo Sem sentir,
Que a beijar se recusou. Bebia vinho, perdidamente

Bebia vinho... até cair.
VII

Anda vem... porque te negas,


Carne morena, toda perfume? E ouve, mancebo alado:
Porque te calas, Não entristeças, não penses,
Porque esmoreces, – Sê contente!
Boca vermelha, – rosa de lume? Porque nem todo o prazer
Tem pecado...
Canções, 1922
Se a luz do dia
Te cobre de pejo, Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Esperemos a noite presos num beijo. Em troca dos meus desejos...

Dá-me o infinito gozo Tenho saudades da vida!


De contigo adormecer Tenho sede dos teus beijos!
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, – meu amor!
"A partir de 1947, data em que cheguei ao Rio de Janeiro, a 17 de Agosto, a grande preocupação da
minha alma era construir e levantar as conclusões de uma obra, – iniciada pelo entusiasmo do
escândalo que ela, sem precaver, originou. Rebarbativa e casta na sua independência original,
chegou a ser apreendida. [...] A força emotiva dessas dezasseis canções era tamanha na singeleza,
tão arrojada na sua confidência de novidade cristalina sem literatura e sem nada do que,
anteriormente, se tinha escrito, através da sinceridade pura como flores que rebentam pelos
caminhos ao abrir da madrugada, que depois dessa inesperada manifestação, pomposamente
ibérica, o Paulo Osório, na primeira página do jornal Diário de Notícias, de Lisboa, em crónica
saborosa e culta, intitulada “O Poeta nu”, perguntava, em última análise, por que razão esse livro
escandalizava tanta gente? E colocava essa profunda renascença de poesia num lugar
singularmente conquistado pelo autor, revolucionando todo o ambiente nacional, entumecida
pela versalhada caótica que aparecia, mensamente, nas livrarias, – espasmos, cheirando a
endoenças e a trevas ridicularizadas nos romances de Eça de Queirós e Abel Botelho, que, apesar
de terem fotografado, higienicamente, toda essa sociedade alarmante no seu irrevogável
possidonismo, esse raminho isolado de Canções, arrebatas ao verdadeiro poder intangível, era
discutido e pisados pelos que não queriam desalojar-se das suas águas-furtadas, onde os gatos,
em Janeiro, miavam na devassidão nocturna."
(BOTTO, Ainda não se escreveu, 1959, p. V-VI)

[...] Posso perder-me contigo Todos nós damos, vencidos


Nas voltas do nosso abraço Nesse momento profundo
E ser sempre o teu amigo Em que os nossos dez sentidos
No beijo que é o meu traço. Esquecem tudo no mundo.
Traço de união, dois corpos: Daí, a realização
O teu, branco, este, queimado De um outro ser se fez.
Porque vivo pelo mato Mas, havendo a simpatia
Em pleno ar descampado. De abraçar o belo corpo
Ainda não se Aqui, eu todo me entrego Ao que for do mesmo sexo,
escreveu, 1959 Nas mãos do vento a passar. Pelo instinto seleccionado,
Só volto para a cidade E não haja o resultado
Quando tenho que ficar Do mesmo fim maçador, –
Naquela tua amizade Não deixa de ser amor
Em viver para beijar E muito mais arrebatado
O meu verdadeiro amor Se o instinto for sagrado,
Que é meu em troca do teu, E pelo olhar compreendido.
E assim sou sempre o primeiro
Que o primeiro beijo deu. Na vida do amor os Deuses
Nada fizeram proibido. [...]
Chegou agora mesmo e vem bem fatigado Ainda não se escreveu,
Trazendo no olhar um caso iluminado?
1959
– Não quero vê-lo.

De túnica doirada e falas de harmonia [...] É lindo, e recitou (não tão bem como tu),
Parece a estrela d’alva no romper do dia?
Uma canção das tuas,
(Se a estrela me falasse o mesmo te diria).
Mostrando, com pudor, o belo corpo nu?

– Não quero vê-lo.


– Não quero vê-lo.
É qualquer teimosia, ou cínico disfarce
Quer fixar o teu vulto e quere-o abraçar –
Tentando envenenar a minha intimidade.
Porque és um Deus e o Sol andando pelo mar?
Pergunta-lhe quem é, quem foi que o mandou vir,
– Não quero vê-lo. E então, manda-o entrar, só para o ver subir.
Quem sabe se é algum astro que tombasse na esfera
Que quer ouvir teus versos nesse tom profundo, Para desnortear os Estados Unidos e a Rússia,
(Essa voz da Poesia que abalou o mundo!) A fim de que ponham, finalmente, o ponto final
A essa incrível farsa de jogarem,
– Não quero vê-lo. Com as forças nucleares,
Na resolução de problemas meramente políticos?

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