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A dançarina de Cartum

No amarelo da sombra nasce o dia e nele aparece o contorno de uma figura esguia na
areia. Sombra bailante. A dançarina habita uma construção de papelão, paus e plásticos.
Vejo-a todas as manhãs. Mancha viva entre alicerces parados, varandas e andares sem
janelas e portas.
A dançarina de Cartum move-se no chão e a sombra curva-se, criando espaço para o
vento que arremessa longe um saco de plástico vazio. Ancas e seios imperceptíveis no
ritmo ondulante das dunas acossadas pelo jogo de areia e Sol do deserto. A sujidade
acumulada no terreno baldio onde a dançarina se esquece da vida que a perdeu entre
materiais de construção empoeirados e varões de ferro.
A areia desfaz-se nos escombros dos prédios de uma cidade de mármore, alicerces de
petrodólares. Deixaram de construir pirâmides no norte do Sudão a milhares de anos e
um dia destes, acertadas as datas do novo milénio, uma nova era se anunciará à dançarina,
por agora indiferente a tudo, excepto à força dos tornozelos magros e nus dos refugiados
do Sul. (Os do Sul são negros. Chegados a Cartum descalços e vestidos de branco, logo
se sujam. Chicoteados pelo vento de Darfur que se alonga pelo Sara até Timbuktu no
Mali.)
Está-lhe no sangue, a dança. (Não é isso que dizem dos Africanos?) No sangue está a
dança endiabrada do corpo. Deles, os Africanos, o vento não tem mercê. Em Cartum. A
dançarina dança passos de um cantar árabe. Tal o vento. Ouço-os lá em baixo. Levantam
uma poeira castanha amarelada sobre Cartum. Redemoinho de sombras de moça e areia.
O corpo é molde de vento. A música no corpo porque a dança lhe está no sangue.
No norte do Sudão não há pássaros a partilhar o canto e a dança. Há este silêncio de
poeira desértica nas primeiras horas do dia.
Vivo a um mês no quarto andar do único prédio acabado nesta rua. É um prédio de
paredes colossais, o mármore cor-de-rosa cinzento foi importado da Etiópia. (Existe por
aqui uma tendência de adocicar a existência sensorialmente. Prédio cor-de-rosa. Flores
de plástico luxuriantes vermelhas. Chá de hibisco, metade chá, metade açúcar. Mel e
doces de amêndoa. Incenso árabe. Perfume e sabonetes. O chamamento da mesquita só
para os homens. Véus imensos sobre os corpos das mulheres reclusas nas vivendas e
prédios.)
Rodeada de prédios inacabados, bebo na varanda o primeiro café da manhã. O desplante
dos petrodólares no exterior de mármore cinzento intercalado de cor-de-rosa. O material
de construção -torneiras, mantas asfálticas, filtros, formas e moldes de cimento, gesso e
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telhas de plástico inquebrável -, veio da Arábia Saudita. O rosa cinzento que começa nas
escadarias é o único enfeite no palco da dançarina de trapos sujos lá em baixo. Areia e pó
levantados.
O vento nunca dá tréguas a Cartum. Traz tempestades de areia que a tempo certo irão
cobrir as varadas do prédio. Mas até lá resplandeço neste mármore cor-de-rosa e cinzento.
O cheiro de grão torrado de café na minha chávena. O prédio vai ter um ginásio separado
para homens e mulheres. Salão de banhos turcos separados. Tapetes persas e bambus
verdes no hall de entrada. Mas por agora o construtor, um libanês bem conectado, está
refém da indecisão dos petrodólares numa guerra inacabada. (Ontem chegaram-me
noticias de Luanda, a cidade anda mais adiantada, a guerra finda, os prédios abandonados
pelo pós-independência já não albergam refugiados nas Ruas Salvador Allende e Siad
Barre em paredes baptizadas de Chechénia, Iraque e Afeganistão.)
Em Cartum, os refugiados do Sul jamais se atreveriam a ocupar os prédios semi-
construídos. Têm medo das forças de segurança, de quem se escondem entre o entulho
dos materiais de construção. Ao nascer do Sol, acendem fogareiros onde de dia fervem
café e chá e, à noite, atiçam as brasas de carvão por baixo de alambiques improvisados,
de forma a destilar nas madrugadas amarelas de Cartum, licor alaranjado de dédalos.
Cartum não é África. Tem prédios de mármore e estradas alcatroadas. Os africanos não
vivem aqui.
Alguém acaba de atirar um embrulho de alumínio do andar de cima. Um ruído opaco no
chão. O embrulho embate e vaza entranhas cinzentas de cores celestiais. Pouco tarda e
um gato branco escapulido de um subterrâneo em construção, aproxima-se receoso, mas
com a determinação dos seres que habitam a não existência de prédios inacabados, mede
felino o terreno baldio: corpos inertes de ferro e cimento, mais à frente numa construção
precária, entre ramos de arbustos sustidos na areia, uma adolescente vestida de trapos
brancos, sopra de cócoras o fogo onde ferve água para o café da manhã.
O gato fareja o embrulho e depois o ar, agradece ao vento os cheiros que trouxe.
Aquietado, os seus dentes finos e delicados rasgam as tripas caídas do céu.
Aida Gomes
Fonte: https://www.portaldaliteratura.com/cronicas.php?id=59 [consultado em 15/11/2020, 22:29h]

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