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Scott Peck O Caminho Menos Percorrido
Scott Peck O Caminho Menos Percorrido
M. Scott Peck
e do desenvolvimento espiritual
Digitalização e arranjos:
CD Sinais de Fogo
Título original: The Road Less Traveled Copyright (c) M. Scott Peck, M.D.,
1978 Introdução Copyright (c) M. Scott Peck, M.D., 1985 Tradução: Maria
Isabel Cardoso Revisão: Rita Quintela
2750-161 CASCAIS
site: www.sinaisdefogo.pt
ISBN: 972-8541-00-7
Elizabeth e David,
me deram olhos
To my parents, Elizabeth and David, whose discipline and love gave me the
eyes to see grace
índice
Introdução 11
Secção I- Disciplina 13
Problemas e Dor 15
Adiamento da Gratificação 19
Os Pecados do Pai 21
Responsabilidade 34
Neuroses e Perturbações de Personalidade 36
Fuga da Liberdade 42
Dedicação à Realidade 47
Abertura ao Desafio 54
Omissão da Verdade 62
Manutenção do Equilíbrio 68
Renúncia e Renascimento 77
Secção II • Amor 85
O Amor Definido 87
Apaixonar-Se 90
Dependência 106
"Auto-Sacrifício" 121
O Trabalho de Atenção131
o Mito de Orestes 3 16
POsfácio
Introdução
As IDEIAS AQUI APRESENTADAS emergem, na sua maior parte, do meu
contacto profissional diário com os doentes que lutam por evitar ou alcançar
níveis de maturidade cada vez mais elevados. Em consequência, este livro
contém partes de muitos casos verdadeiros. A confidencialidade é essencial
na prática da Psiquiatria, pelo que, em todos os casos, foram alterados os
nomes e outros pormenores para preservar o anonimato dos meus doentes
sem distorção da realidade essencial da nossa experiência comum.
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Secção I
Disciplina
Problemas e Dor
A VIDA É DIFÍCIL. Esta é uma grande verdade, uma das maiores verdades*.
É uma grande verdade porque, uma vez que vejamos realmente esta
verdade, transcendemo-la. Quando sabemos verdadeiramente que a vida é
difícil - quando o compreendemos e aceitamos verdadeiramente - a vida
deixa de ser difícil. Porque assim que é aceite, o facto de a vida ser difícil
deixa de ter importância.
A maior parte das pessoas não vê inteiramente esta verdade de que a vida
é difícil. Em vez disso, lamenta-se mais ou menos incessantemente, ruidosa
ou subtilmente, da enormidade dos seus problemas, encargos e
dificuldades, como se a vida fosse fácil de um modo geral, como se a vida
devesse ser fácil. Proclamam a sua crença, ruidosa ou subtilmente, de que
as suas dificuldades representam uma espécie única de atribulação que não
deveria mas de algum modo lhes foi especialmente dirigida, ou às suas
famílias, à sua tribo, à sua classe, à sua nação, à sua raça ou até à sua
espécie, e não a outros. Eu conheço esta lamentação porque já fiz a minha
parte.
A vida é uma série de problemas. Queremos lamentar-nos ou resolvê-los?
Queremos ensinar os nossos filhos a resolvê-los?
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Mas o próprio substituto acaba por se tornar mais doloroso que o sofrimento
legítimo que se destinava a evitar. A própria neurose torna-se o maior
problema. De acordo com o padrão, muitos tentarão evitar essa dor e esse
problema, construindo camada após camada de neuroses. Felizmente, no
entanto, alguns têm a coragem de enfrentar as suas neuroses e começam -
com a ajuda da psicoterapia - a aprender a suportar o sofrimento legítimo.
Em todo o caso, quando evitamos o sofrimento legítimo que resulta do
confronto com os problemas, também evitamos o crescimento que os
problemas
(Nota)
'"Collected Works of C.C. Jung, Bollingen Ser., N". 20, 2a ed. (Princeton, N.J.:
Princeton Univ. Press, 1973), trad. R.F.C. Hull, Vol.II, Psychology and Religion:
West and East, 75.
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nos exigem. É esta a razão porque nas doenças mentais crónicas deixamos
de evoluir, ficamos bloqueados. E sem se curar, o espírito humano começa a
mirrar.
Vamos portanto inculcar em nós próprios e nos nossos filhos os meios para
conseguir a saúde mental e espiritual. Quero com isto dizer, ensinemos a
nós próprios e aos nossos filhos a necessidade do sofrimento e do seu valor,
de enfrentar directamente os problemas e passar pela dor que acarretam.
Afirmei que a disciplina é o jogo de ferramentas de base de que
necessitamos para resolver os problemas da vida. Tornar-se-á claro que
estas ferramentas são técnicas de sofrimento, meios através dos quais
experimentamos a dor dos problemas de forma a analisá-los e resolvê-los
com sucesso, aprendendo e evoluindo ao mesmo tempo. Quando ensinamos
a nós próprios e aos nossos filhos a disciplina, estamos a ensinar-lhes e a
nós próprios a sofrer e também a crescer.
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Adiamento da Gratificação
NÃO HÁ MUITO TEMPO, uma analista financeira com cerca de trinta anos
queixava-se-me, durante alguns meses, da sua tendência para procrastinar
na sua função. Tínhamos analisado os seus sentimentos em relação aos
patrões e como se relacionavam com os sentimentos sobre a autoridade em
geral e especificamente com os pais. Examinámos as suas atitudes face ao
trabalho e ao sucesso e como se relacionavam com o seu casamento, a sua
identidade sexual, o seu desejo de competir com o marido e os seus receios
dessa competição. No entanto, apesar de todo este trabalho psicanalítico
minucioso, ela continuava a procrastinar na mesma medida. Finalmente, um
dia, atrevemo-nos a encarar o que era óbvio. "Gosta de bolo?", perguntei-
lhe. Respondeu-me que sim. "De que parte do bolo gosta mais", continuei,
"da massa ou da cobertura?" "Oh, da cobertura!", respondeu com
entusiasmo. "E como é que come uma fatia de bolo?", inquiri, sentindo-me o
mais pateta dos psiquiatras que já existiu. "Como primeiro a cobertura,
claro", respondeu ela. Dos hábitos de comer bolo passámos para os hábitos
de trabalho e, como era de esperar, descobrimos que, diariamente, ela
dedicava a primeira hora à metade mais gratificante do seu trabalho e as
outras seis horas ao restante, de que não gostava. Sugeri-lhe que, se se
forçasse a executar a parte desagradável do trabalho na primeira hora,
ficaria livre para tirar partido das restantes seis. Parecia-me, disse-lhe eu,
que uma hora de dor seguida de seis de prazer era preferível a uma hora de
prazer seguida de seis de dor. Ela concordou e, sendo basicamente uma
pessoa dotada de força de vontade, deixou de procrastinar.
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Os Pecados do Pai
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Uma das razões por que não tem significado é que os próprios pais são
auto-indisciplinados e servem portanto de modelos de indisciplina para os
filhos. São os pais "Faz como eu digo, não faças como eu faço".
Provavelmente, embebedam-se frequentemente na presença dos filhos.
Discutem em frente às crianças sem comedimento, dignidade ou
racionalidade. São desleixados. Fazem promessas que não cumprem. As
suas próprias vidas estão óbvia e frequentemente em desordem e
desarranjo, e as suas tentativas de ordenar as vidas dos filhos são por eles
vistas como sem sentido. Se o pai espanca a mãe regularmente, que sentido
faz para um rapaz a mãe bater-lhe porque ele bateu na irmã? Faz sentido
quando lhe dizem que tem que aprender a controlar-se? Se não temos o
benefício da comparação enquanto pequenos, os nossos pais são
semelhantes a deuses aos nossos olhos. Quando os pais fazem as coisas de
determinada maneira, para a criança essa é a maneira de as fazer, a
maneira como devem ser feitas. Se a criança vê os pais comportarem-se no
dia-a-dia com auto-disciplina, comedimento, dignidade e capacidade de
ordenar as suas vidas, sentirá nas mais íntimas fibras do seu ser que essa é
a maneira de viver. Se a criança vê os pais viverem o dia-a-dia sem auto-
domínio ou auto-disciplina, virá a acreditar no mais íntimo do seu ser que
essa é a maneira de viver. Ainda mais importante do que os modelos é o
amor. Porque mesmo em lares caóticos e desordenados o amor está por
vezes presente, e desses lares podem resultar crianças auto-disciplinadas.
E, não poucas vezes, os pais com profissões liberais médicos, advogados,
mulheres dirigentes de associações e filantropos - que levam vidas
rigidamente ordenadas e decorosas mas onde falta o amor, trazem ao
mundo crianças que são tão indisciplinadas, destrutivas e desorganizadas
como uma criança de um lar pobre e caótico.
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questão de coerência, poderá ser útil fazer-lhe uma referência breve, ainda
que limitada, bem como à sua relação com a disciplina, neste ponto.
Quando amamos alguma coisa, ela tem valor para nós, e quando algo tem
valor para nós gostamos de passar tempo a tê-lo connosco, a apreciá-lo e a
tratá-lo. Observe-se um adolescente apaixonado pelo seu carro e repare-se
no tempo que ele gasta a admirá-lo, poli-lo, repará-lo e afiná-lo. Ou uma
pessoa mais velha com um roseiral amado, e o tempo passado a podar, a
adubar, a fertilizar e a estudá-lo. Assim é quando amamos as crianças;
passamos tempo a admirá-las e a tratar delas. Damos-lhes o nosso tempo.
Os pais que dedicam tempo aos filhos, mesmo quando não é solicitado por
notório mau comportamento, apercebem-se de necessidades de disciplina
subtis, a que responderão com insistência, reprimenda, crítica construtiva
ou elogio, ministrados com sensatez e afecto. Observam como os filhos
comem bolo, como estudam, quando dizem pequenas mentiras, quando
fogem dos problemas em vez de os enfrentar. Dedicarão tempo
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tempo era valioso, a sequência natural foi querer organizá-lo, protegê-lo e
tirar dele o máximo proveito.
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Aos trinta e sete anos aprendi a arranjar coisas. Até lá, quase todas as
minhas tentativas de fazer pequenas reparações de canalização, arranjar
brinquedos ou montar móveis embalados de acordo com a folha de
instruções hieroglíficas que os acompanhavam, terminavam em confusão,
insucesso e frustração. Apesar de ter conseguido sobreviver até ao fim do
curso de Medicina e sustentar uma família como executivo e psiquiatra mais
ou menos bem sucedido, considerava-me um idiota em termos de
mecânica. Estava convencido de que tinha uma deficiência em qualquer
gene, ou que, por maldição da Natureza, me faltava a qualidade mística
responsável pela aptidão pela mecânica. Até que um dia, no final do ano em
que fiz trinta e sete anos, ao passear num Domingo de Primavera, dei com
um vizinho que estava a arranjar uma máquina de cortar relva. Depois de o
cumprimentar, comentei, "Sabe, tenho grande
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admiração por si. Nunca consegui arranjar esse tipo de coisas nem fazer
nada do género." O meu vizinho, sem nenhuma hesitação, ripostou "Isso é
porque não lhe dedica tempo." Continuei o meu passeio, algo inquieto com
a simplicidade, espontaneidade e determinação da resposta. "Será que ele
tem razão?", perguntei a mim mesmo. De qualquer maneira, ficou-me na
memória, e na primeira oportunidade que surgiu de fazer uma pequena
reparação, lembrei-me que era preciso dar-lhe tempo. O travão de mão do
carro de uma doente tinha colado e ela sabia que havia qualquer coisa que
se puxava por baixo da consola para o soltar, mas não sabia o quê. Deitei-
me no chão, por baixo do assento da frente do carro. Levei o tempo
necessário a acomodar-me. Quando me senti confortável, examinei a
situação tranquilamente. Olhei durante alguns minutos. Inicialmente só vi
uma confusão de cabos e tubos e hastes cujo significado não conhecia. Mas
gradualmente, sem pressa, consegui focar o olhar no dispositivo de
travagem e seguir o seu percurso. Então tornou-se claro que havia uma
pequena alavanca que não deixava soltar o travão. Estudei a alavanca
vagarosamente até se tornar claro que, se a empurrasse para cima com a
ponta do dedo, a movimentaria com facilidade e soltaria o travão. Foi o que
fiz. Um único movimento, alguns gramas de pressão de um dedo, e o
problema ficou resolvido. Eu era um mestre mecânico! Na verdade, nem
tenho conhecimentos - nem sequer tempo para os adquirir - que me
permitam resolver a maior parte das avarias mecânicas, dado que escolhi
concentrar o meu tempo em assuntos não mecânicos. Portanto, continuo a
ir a correr à oficina mais próxima. Mas agora sei que é uma escolha feita por
mim, que não fui amaldiçoado, nem tenho uma deficiência genética, nem
sou de outra forma incapaz ou impotente. E sei que eu ou qualquer outra
pessoa, que não seja deficiente mental, podemos resolver qualquer
problema se nos dispusermos a dedicar-lhe tempo.
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ficação, que ela não era capaz de adiar mais de um ou dois minutos, com o
resultado de que as suas soluções eram habitualmente inadequadas e a
família vivia em turbilhão crónico. Felizmente que, perserverando na
terapia, conseguiu aprender gradualmente a auto-disciplinar-se de forma a
dedicar o tempo necessário à análise dos problemas familiares para poder
aplicar soluções ponderadas e eficazes.
Não falamos aqui de deficiências esotéricas na resolução de problemas
associadas apenas a pessoas que manifestam perturbações psiquiátricas. A
analista financeira é toda a gente. Qual de nós pode afirmar que dedica
infalivelmente tempo suficiente à análise dos problemas ou tensões das
crianças da família? Qual de nós é tão auto-disciplinado que nunca diga
resignadamente face aos problemas, "Não sou capaz"?
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confusão e achei que, se não fizesse nada, talvez escapasse sem confusão.
Acho que me convenci que, se esperasse o tempo suficiente, o problema
desapareceria."
Esta tendência para ignorar os problemas é, mais uma vez, uma simples
manifestação de relutância em adiar a gratificação.
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Pode parecer que o vendedor que ignorava problemas tão óbvios era
emocionalmente imaturo ou psicologicamente primário, mas mais uma vez
vos digo, ele é toda a gente e a sua imaturidade e primitivismo existem em
todos nós. Um grande general, comandante de um exército, disse-me uma
vez: "O maior problema neste exército, ou creio eu, em qualquer
organização, é que a maior parte dos executivos sentam-se a olhar para os
problemas nas suas unidades, encarando-os de frente, sem fazer nada,
como se os problemas desaparecessem se eles lá ficarem tempo suficiente."
O general não se referia a débeis mentais ou anormais. Falava de outros
generais e coronéis, homens maduros com capacidades comprovadas e
treinados em disciplina.
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Responsabilidade
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"A biblioteca fica mais longe que o bar onde costuma ir?"
"Olhe que faz," disse eu. "Conheço várias organizações que pescam aqui à
noite. Quer que o ponha em contacto com elas?"
"O que o ouço dizer," resumi, "é que há outras coisas para fazer em
Okinawa sem ser beber, mas o que você mais gosta de fazer em Okinawa é
beber."
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"Porque já não aguento esta estúpida ilha. Tem que me mandar de volta
para os Estados Unidos. Vou-me matar se tiver de ficar aqui mais tempo."
"O que é que tem viver em Okinawa de tão doloroso para si?", perguntei.
"Isso é mau. Mas como é que ainda não conseguiu arranjar amigos?"
"Porque não vai até à zona residencial americana ou até ao clube das
senhoras durante o dia, para fazer algumas amizades?"
"Não pode levá-lo ao serviço, já que está sozinha e aborrecida o dia inteiro?"
"Não. É um carro com caixa de velocidades e eu não sei guiar carros com
caixa de velocidades, só automáticos."
A MAIOR PARTE DAS pessoas que vem consultar um psiquiatra sofre daquilo
a que se chama uma neurose ou uma perturbação de personalidade. Posto
da forma mais simples, estas duas condições são perturbações de
responsabilidade e, como tal, são estilos opostos de relacionamento com o
mundo e os seus
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razão porque continuo casada com o vosso pai (ou casado com a vossa
mãe) é por vossa causa", ou "A vossa mãe tem os nervos em franja por
vossa causa", ou "Podia ter tirado um curso e ser uma pessoa de sucesso se
não tivesse que vos sustentar". Desta forma, os pais estão de facto a dizer
aos filhos, "Vocês são responsáveis pela qualidade do meu casamento, pela
minha saúde mental e pela minha falta de sucesso na vida." Uma vez que
não têm a capacidade de avaliar quão inadequada é essa atitude, as
crianças aceitam muitas vezes a responsabilidade, e na medida em que a
aceitam, tornam-se neuróticas. É assim que os pais com perturbações de
personalidade quase invariavelmente dão origem a crianças com
perturbações de personalidade ou neuróticas. São os próprios pais que
fazem recair os seus pecados sobre os filhos.
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Fuga da Liberdade
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Ao que Mac respondeu, "Já lhe disse, Scott, você tem um problema."
Esta não era bem a resposta que eu esperava. "Sim," disse eu, ligeiramente
aborrecido, "eu sei que tenho um problema. Foi por isso que vim falar
consigo. O que acha que devo fazer a esse respeito?"
Mac respondeu: "Scott, parece-me que não ouviu o que eu lhe disse. Eu
ouvi-o e estou de acordo consigo. Você tem um problema."
"Caramba," disse eu, "eu sei que tenho um problema. Já sabia quando aqui
cheguei. A questão é, o que é que vou fazer?"
"Scott," respondeu Mac, "quero que ouça. Ouça com atenção e eu vou
repetir. Concordo consigo. Tem um problema. Especificamente, tem um
problema de tempo. O seu tempo. Não o meu tempo. É o seu problema, com
o seu tempo. Você, Scott Peck, tem um problema com o seu tempo. É tudo o
que vou dizer sobre o assunto."
Virei as costas e saí do gabinete de Mac, furioso. E continuei furioso.
Detestava Mac Badgely. Durante três meses, odiei-o. Achava que ele tinha
uma perturbação grave de personalidade. Senão, como podia ter sido tão
insensível? Eu tinha ido ter com ele humildemente para lhe pedir uma
pequena ajuda, um pequeno conselho, e o estupor nem sequer tinha
querido assumir a responsabilidade de tentar ajudar-me, até como director
da clínica. Se não lhe competia ajudar a gerir este tipo de problemas como
director da clínica, então que diabo lhe competia?
Mas, três meses depois, lá me apercebi de que Mac tinha razão, que era eu,
e não ele, que tinha a perturbação de personalidade. O meu tempo era da
minha responsabilidade.
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da sua falta de poder político em vez de aceitar e exultar com o seu imenso
poder pessoal. Fala do amor à liberdade e das forças opressivas que o
restringem, mas de cada vez que fala de como é vitimado por essas forças
está de facto a entregar a sua liberdade. Espero que um dia, em breve, ele
deixe de se revoltar contra a vida só porque algumas das escolhas são
dolorosas*.
(Nota)
1974, p. ix.
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Dedicação à Realidade
O TERCEIRO INSTRUMENTO de disciplina ou da técnica de gerir a dor da
resolução dos problemas, que tem que ser continuamente aplicada se
queremos que as nossas vidas sejam saudáveis e que os nossos espíritos
evoluam, é a dedicação à verdade. Superficialmente, isto seria óbvio.
Porque a verdade é a realidade. Aquilo que é falso, é irreal. Quanto mais
claramente virmos a realidade do mundo, melhor preparados estaremos
para nos relacionarmos com ele. Quanto menos clara for a nossa visão da
realidade do mundo - quanto mais a nossa mente for confundida por
falsidades, mal-entendidos e ilusões
Embora tudo isto seja óbvio, constitui algo que a maioria das pessoas, em
maior ou menor grau, tende a ignorar. Ignoram-no porque o nosso caminho
para a realidade não é fácil. Primeiro, não nascemos com mapas; temos que
os fazer, e fazê-los exige esforço. Quanto mais esforço fizermos para
apreciar e compreender a realidade, tanto maiores e mais precisos serão os
nossos mapas. Mas muitos não querem fazer esse esforço. Alguns deixam
de o fazer no fim da adolescência. Os mapas deles são pequenos e mal
desenhados, a sua visão do mundo estreita e enganadora. No fim da meia-
idade, a maior parte das pessoas desiste. Têm a certeza de que os seus
mapas estão com-
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Mas o maior problema da feitura dos mapas não é ter de começar do zero,
mas o ter de os rever constantemente, se queremos que sejam rigorosos. O
próprio mundo está em constante mudança. Os glaciares vão e vêm. As
culturas vão e vêm. Há muito pouca tecnologia, há demasiada tecnologia.
Duma forma ainda mais dramática, o ponto privilegiado de onde vemos o
mundo está constante e rapidamente em mudança. Quando somos
crianças, somos dependentes, desamparados. Como adultos, podemos ser
poderosos. No entanto, por doença ou velhice, podemos tornar-nos
novamente desamparados e dependentes. EnQuanto temos crianças de
quem cuidar, o mundo parece-nos diferente do que quando não temos;
quando criamos bebés, o mundo é diferente de quando criamos
adolescentes. Quando somos pobres, o mundo parece diferente de quando
somos ricos. Somos diariamente bombardeados com novas informações
quanto à natureza da realidade. Se queremos incorporar essa informação,
temos de rever os nossos mapas continuamente, e, por vezes, quando se
acumula informação suficiente, temos que proceder a revisões alargadas. O
processo de fazer revisões, principalmente revisões alargadas, é doloroso,
por vezes tremendamente doloroso. E eis a maior fonte de muitos dos males
da humanidade.
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os dois filhos. Ele não estava especialmente infeliz por a ter perdido, mas
estava destroçado pela perda dos filhos, a quem era profundamente
dedicado. Foi na esperança de os reaver que iniciou a psicoterapia, uma vez
que a mulher tinha declarado firmemente que não voltaria para ele se não
se submetesse a tratamento psiquiátrico. As suas maiores queixas contra
ele eram de que ele manifestava continuamente um ciúme irracional a seu
respeito, no entanto mantinha-se simultaneamente indiferente, frio,
distante, não comunicativo e não afectuoso. Também se queixava das suas
mudanças de emprego frequentes. A vida dele desde a adolescência tinha
sido marcadamente instável. Durante a adolescência, tinha-se envolvido
repetidamente em pequenas altercações com a polícia, e tinha sido detido
três vezes por embriaguez, beligerância, "vagabundagem" e por "interferir
com os deveres de um polícia". Não acabou a universidade, onde estava a
tirar o curso de engenharia eléctrica, porque, dizia ele, "Os meus
professores eram uma cambada de hipócritas, pouco diferentes da polícia."
Devido ao seu brilhantismo e criatividade no campo das tecnologias de
informação, os seus serviços eram muito procurados pela indústria. Mas
nunca tinha sido capaz de progredir ou conservar um emprego durante mais
de um ano e meio, sendo despedido ocasionalmente, mas despedindo-se
muitas vezes na sequência de disputas com os chefes, que descrevia como
"mentirosos e traidores, interessados apenas em se protegerem a si
próprios". A sua expressão mais frequente era "Não se pode confiar em
ninguém". Descrevia a sua infância como "normal" e os pais como
"medianos". No breve período que passou comigo, no entanto, referiu
casualmente e sem emoção inúmeras situações em que os pais lhe tinham
falhado. Prometeram-lhe uma bicicleta pelo aniversário, mas esqueceram-se
e deram-lhe outra coisa qualquer. Uma vez, esqueceram-se completamente
do seu aniversário, mas ele não achava que isso
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à noite, dia em que era, segundo ele dizia, improvável haver horas
extraordinárias. Depois de duas sessões, no entanto, deixou de vir porque
as horas extraordinárias à Segunda-feira pareciam estar a aumentar.
Confrontei-o com a impossibilidade de fazer terapia nestas circunstâncias.
Ele admitiu que não lhe era exigido fazer horas extraordinárias. No entanto,
declarou que precisava do dinheiro e que, para ele, o trabalho era mais
importante do que a terapia. Estipulou que podia vir às consultas apenas
nas Segundas à noite em que não houvesse trabalho extra e que me
telefonaria às quatro da tarde todas as Segundas-feiras para me avisar se
podia vir à consulta na mesma noite. Disse-lhe que não podia aceitar essas
condições, que não estava disposto a alterar os meus planos todas as
Segundas-feiras à noite pela possibilidade de ele vir à consulta. Ele achou
que eu estava a ser demasiado rígido, que não me preocupava com as suas
necessidades, que só me interessava o meu tempo e que claramente não
me importava nada com ele e, portanto, que não merecia confiança. Foi
nesta base que a nossa tentativa de trabalharmos juntos terminou, e eu
passei a constar do seu mapa como mais um marco.
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Abertura ao Desafio
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Uma vida de dedicação total à verdade significa também uma vida disposta
a aceitar o desafio pessoal. A única maneira de termos a certeza de que o
nosso mapa da realidade é válido é expô-lo à crítica e ao desafio dos outros
fabricantes de mapas. Caso contrário, vivemos num sistema fechado -
dentro de
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A tendência para evitar o desafio está tão omnipresente nos seres humanos
que pode ser considerada uma característica da natureza humana. Mas, por
lhe chamarmos natural, não quer dizer que seja um comportamento
essencial, benéfico ou imutável. Também é natural defecar nas calças e
nunca lavar os dentes. No entanto, ensinamo-nos a fazer o que não é
natural até que se torne uma segunda natureza. Na verdade, a auto-
disciplina podia ser definida como o ensinarmo-nos a fazer o que não é
natural. Outra característica da natureza humana talvez a que nos torna
mais humanos - é a nossa capacidade de fazermos o que não é natural, de
transcendermos e daí transformarmos a nossa própria natureza.
Nenhum acto é menos natural, e portanto mais humano, que o acto de nos
submetermos à psicoterapia. Porque, por esse acto, abrimo-nos
deliberadamente ao mais profundo desafio por parte de outro ser humano e
até lhe pagamos pelo serviço de escrutínio e discernimento. Este colocarmo-
nos abertos ao desafio é uma das coisas que o deitarmo-nos no sofá do
psicanalista pode simbolizar. Submetermo-nos à psicoterapia é um acto da
maior coragem. A razão principal porque as pessoas não fazem psicoterapia
não é a falta de dinheiro, mas sim a falta de coragem. Isto inclui mesmo
muitos psiquiatras que, por qualquer razão, nunca acham conveniente
submeterem-se a terapia, apesar de terem ainda mais razões que os outros
para se sujeitarem à disciplina que ela envolve. Por outro lado, é por
possuírem essa coragem que muitos doentes, mesmo no início da terapia e
contrariamente à sua imagem estereotipada, são mais fortes e saudáveis
que a média.
Sendo a psicoterapia uma forma limite de nos abrirmos ao desafio, as
nossas interacções mais banais oferecem diariamente oportunidades de
arriscar a abertura: junto da máquina da água, em reunião, no campo de
golfe, à mesa de jantar, na cama com as luzes apagadas; com os nossos
colegas, chefes e
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de cada vez, deve escolher aquela da qual sente mais relutância em falar."
É mais fácil dizer do que fazer. Apesar de tudo, os que se esforçam
conscienciosamente, duma maneira geral, progridem rapidamente. Mas
alguns resistem de tal maneira ao desafio que se limitam a fingir que fazem
livre associação. Pairam muito sobre isto e aquilo, mas omitem os
pormenores cruciais. Uma mulher é capaz de falar durante uma hora de
experiências desagradáveis da infância, mas não mencionar que o marido a
confrontou de manhã com o facto de ela ter deixado a conta no banco a
descoberto em mil dólares. Estes doentes tentam transformar a hora de
psicoterapia numa espécie de conferência de imprensa. Na melhor das
hipóteses, estão a perder tempo nesse esforço de evitar o desafio e,
normalmente, caem numa forma discreta de mentira.
Uma tal honestidade não surge sem dor. A razão porque as pessoas mentem
é evitar a dor do desafio e as suas consequências. A mentira do Presidente
Nixon sobre Watergate não foi mais sofisticada nem diferente em espécie da
de um miúdo de quatro anos que mente à mãe sobre a maneira como o
candeeiro caiu da mesa e se partiu. Na medida em que a natureza do
desafio é legítima (e normalmente é), mentir é uma tentativa de driblar o
sofrimento legítimo e, assim, provoca doença mental.
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O conceito de driblar levanta a questão do "atalho". Sempre que tentamos
driblar um obstáculo, procuramos um caminho para o nosso objectivo que
seja mais fácil e portanto mais rápido: um atalho. Crendo que o
desenvolvimento do espírito humano é o objectivo da existência humana,
sou obviamente dedicado à noção de progresso. Está certo que, como seres
humanos, devemos evoluir e progredir tão rápido quanto possível. Está,
portanto, certo que nos sirvamos de qualquer atalho legítimo para o
desenvolvimento pessoal. A palavra chave no entanto, é "legítimo". Os
seres humanos têm tanta tendência para ignorar os atalhos legítimos como
para procurar os ilegítimos. E, por exemplo, um atalho legítimo estudar a
sinopse de um livro, em vez de ler todo o livro original, na preparação de um
exame de curso. Se a sinopse for boa, e a matéria for absorvida, podem
adquirir-se os conhecimentos essenciais duma forma que poupa muito
tempo e esforço. Copiar, no entanto não e um atalho legítimo. Pode poupar
ainda mais tempo e, se for bem sucedido, pode fazer com que o autor tenha
nota para passar no exame e obtenha a cobiçada licenciatura. Mas não
adquiriu os conhecimentos essenciais. Portanto, a licenciatura e uma
mentira, uma farsa. Na medida em que a licenciatura se torna a base da
vida, a vida daquele que copiou transforma-se numa mentira e numa farsa e
é, muitas vezes, dedicada a proteger e preservar a mentira.
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Mentimos, claro, não só aos outros mas também a nós próprios. Os desafios
à nossa adaptação - os nossos mapas das nossas próprias consciências e
das nossas percepções realistas podem ser tão legítimos e dolorosos como
qualquer desafio do público. Da miríade de mentiras que as pessoas
frequentemente dizem a si próprias, duas das mais comuns, potentes e
destrutivas são "Nós amamos verdadeiramente os nossos filhos" e "Os
nossos pais amavam-nos verdadeiramente". Pode ser que os nossos pais
nos amassem e que amemos os nossos filhos, mas quando não é esse o
caso, as pessoas dão-se a um extraordinário trabalho para fugir à
compreensão. Refiro-me frequentemente à psicoterapia como o "jogo da
verdade" ou o "jogo da honestidade" porque o seu objectivo é, entre outros,
ajudar os doentes a confrontar essas mentiras. Uma das raízes da doença
mental é invariavelmente uma rede de mentiras que nos foram ditas e de
mentiras que dissemos a nós próprios. Estas raízes só podem ser expostas e
extirpadas numa atmosfera de total honestidade. Para criar essa atmosfera,
é necessário que os terapeutas tragam para a sua relação com os doentes
uma capacidade total de abertura e de verdade. Como podemos esperar
que um doente suporte a dor de confrontar a realidade se não suportarmos
a mesma dor? Só podemos conduzir na medida em que caminharmos à
frente.
Omissão da Verdade
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maior parte das vezes, essa "protecção" é mal sucedida. Os filhos sabem,
de qualquer maneira, que a Mamã e o Papá fumam erva, que discutiram na
véspera, que estão ressentidos com os avós, que a Mamã anda nervosa e
que o Papá está a perder dinheiro. O resultado, então, não é protecção mas
privação. Os filhos são privados do conhecimento que podiam adquirir sobre
o dinheiro, a doença, as drogas, o sexo, o casamento, os pais, os avós e as
pessoas em geral. São também privados da tranquilização que poderiam ter
se estes assuntos fossem discutidos mais abertamente. Finalmente, são
privados de modelos de abertura e de honestidade e, em vez disso,
fornecem-lhes modelos de honestidade parcial, abertura incompleta e
coragem limitada. Para alguns pais, o desejo de "proteger" os filhos é
motivado por amor genuíno, embora mal orientado. Para outros, no entanto,
o desejo "afectuoso" de proteger os filhos serve mais de cobertura e
racionalização de um desejo de evitarem ser questionados pelos filhos, e
um desejo de manter a sua autoridade sobre eles. Esses pais estão, de
facto, a dizer, "Olhem, meninos, continuem a ser crianças com
preocupações infantis e deixem as preocupações adultas connosco. Vejam-
nos como protectores fortes, que vos amam. Essa imagem é boa para
ambos, portanto, não a desafiem. Faz-nos sentir fortes, e a vocês seguros, e
será mais fácil para todos se não analisarmos estas coisas demasiado a
fundo."
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Manutenção do Equilíbrio
POR ESTA ALTURA ESPERO que esteja claro que o exercício da disciplina é
não só uma tarefa exigente como complexa, que requer flexibilidade e bom
senso. As pessoas corajosas têm de se esforçar continuamente para serem
inteiramente honestas e ainda assim possuírem a capacidade de omitir a
verdade quando conveniente. Para sermos pessoas livres, temos que
assumir responsabilidade total por nós próprios, mas ao mesmo tempo
devemos possuir a capacidade de rejeitar a responsabilidade que não nos
cabe verdadeiramente. Para sermos organizados e eficientes, para vivermos
sensatamente, devemos adiar a gratificação diariamente e estar alerta em
relação ao futuro; no entanto, para vivermos com alegria devemos ainda
possuir a capacidade, quando não destrutiva, de viver no presente e agir
espontaneamente. Por outras palavras, a própria disciplina deve ser
disciplinada. O tipo de disciplina necessário para disciplinar a disciplina é o
que eu chamo manter o equilíbrio, e constitui o quarto e último tipo que
pretendo aqui analisar.
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Pode parecer estranho, mas a maior parte das pessoas escolhe esta
alternativa e decide não continuar a viagem da vida - fica pelo caminho -
para evitar a dor de prescindir de partes de si própria. Se parece estranho, é
porque não se compreende o alcance da dor que pode estar envolvida. Nas
suas formas mais agudas, a renúncia é a mais dolorosa das experiências
humanas. Até agora referi apenas formas menores de renúncia - prescindir
da velocidade, do luxo da cólera espontânea, da segurança da ira retida ou
da simplicidade de um
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Uma noite, recentemente, decidi passar algum tempo livre a construir uma
relação mais feliz e mais próxima com a minha filha de catorze anos. Há
várias semanas que ela insistia comigo para jogarmos xadrez, por isso
sugeri um jogo. Ela aceitou com entusiasmo e sentámo-nos para um jogo
muito equilibrado e motivador. Era véspera de dia de escola, no entanto, e
às nove horas a minha filha perguntou-me se podia apressar as jogadas,
porque ela tinha de ir para a cama; tinha que se levantar às seis da manhã.
Eu sabia que ela era extremamente disciplinada nos seus hábitos de sono e
achei que ela devia ser capaz de prescindir de alguma dessa rigidez. Disse-
lhe, "Ora, por uma vez podes ir para a cama um bocadinho mais tarde. Não
se devem começar jogos que não se podem acabar. Estamos a divertir-nos."
Jogámos mais uns quinze minutos, durante os quais ela foi ficando
visivelmente incomodada. Finalmente, implorou, "Por favor, papá, por favor,
despacha-te a jogar." "Não, caramba," respondi eu. "O xadrez é um jogo
sério. Se se quer jogar bem, tem que se jogar devagar. Se não se quer jogar
a sério, mais vale não jogar de todo." E assim, com ela a sentir-se
profundamente infeliz, continuámos por mais dez minutos, até que de
repente a minha filha se desfez em lágrimas, gritou que me deixava ganhar
aquele estúpido jogo e correu a chorar pela escada acima.
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minha filha. Noventa minutos depois ela estava desfeita em lágrimas e tão
zangada comigo que mal podia falar. O que tinha corrido mal? A resposta
era óbvia. Mas eu não queria ver a resposta, por isso levei duas horas a lidar
com dificuldade com a dor de aceitar o facto de que tinha estragado a noite
por permitir que o meu desejo de ganhar um jogo de xadrez se tornasse
mais importante que o meu desejo de construir uma relação com a minha
filha. Então fiquei seriamente deprimido.
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Embora se pudesse escrever um livro inteiro sobre cada uma, vou apenas
enumerar, mais ou menos por ordem de ocorrência, algumas das condições,
desejos e atitudes a que temos de renunciar no decurso de uma vida
evolutiva verdadeiramente conseguida:
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O estado da infância, em que não é necessário corresponder
Renúncia e Renascimento
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Isto ficou
lê morrer,
Mas pensava que eram diferentes; este Nascimento era Uma agonia dura e
amarga para nós, como a Morte,
[a nossa morte.
(nota)
* Toa Dancing God (Nova Iorque: Harper & Row), 1970, p. 28.
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Regressámos a nossas casas, estes Reinos, Mas já não nos sentimos bem
aqui, no antigo regime, Com um povo estranho agarrado aos seus deuses.
Eu ficaria satisfeito com outra morte. *
Uma vez que o nascimento e a morte parecem ser lados opostos da mesma
moeda, não deixa de ser razoável dedicar maior atenção do que é usual no
Ocidente ao conceito de reincarnação. Mas quer estejamos ou não dispostos
a encarar seriamente a possibilidade de ocorrer alguma espécie de
renascimento simultâneo com a nossa morte física, está suficientemente
esclarecido que esta vida é uma série de mortes e nascimentos
simultâneos. "Durante toda a vida, tem que se continuar a aprender a
viver," dizia Séneca, há dois milénios atras, "e, o que vos espantará ainda
mais, durante toda a vida tem de se aprender a morrer."** É também
evidente que quanto mais longe se chega na viagem da vida, mais
nascimentos se viverão, e portanto mais mortes - mais alegria e mais dor.
(Nota)
* Cit. in Erich Fromm, The Sane Society ( Nova Iorque: Rinehart, 1955).
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tolerar a dor de uma consciência mais total. Podemos ser tentados a dizer,
"Ah, mas um homem espiritualmente evoluído nunca se tornaria general,
para começar." Mas a mesma questão está envolvida quando se é
presidente de uma empresa, médico, professor, pai. As decisões que
afectam as vidas de outros têm sempre que ser feitas. Os melhores
decisores são os que estão mais dispostos a sofrer com as suas decisões
mas que mantêm a sua capacidade de decidir. Uma das medidas - e talvez a
melhor medida - da grandeza de uma pessoa é a capacidade de sofrimento.
No entanto, os grandes são também alegres. Este é, então, o paradoxo. Os
budistas tendem a ignorar o sofrimento de Buda e os cristãos a alegria de
Cristo. Buda e Cristo não eram homens diferentes. O sofrimento de Cristo
morrendo na cruz e a felicidade de Buda sob a árvore são um só.
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Secção II
Amor
O Amor Definido
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Terceiro, esta definição unitária do amor inclui o amor próprio com o amor
pelo outro. Se eu sou humano e tu és humano, amar os humanos significa
amar-me a mim assim como a ti. Ser dedicado ao desenvolvimento
espiritual humano é ser dedicado à raça de que fazemos parte, e isto
significa, portanto, dedicação ao nosso próprio desenvolvimento e ao
"deles". De facto, como foi salientado, somos incapazes de amar outro se
não nos amarmos a nós mesmos, tal como somos incapazes de ensinar
auto-disciplina aos nossos filhos a menos que sejamos auto-disciplinados. É
verdadeiramente impossível renunciar ao nosso desenvolvimento espiritual
a favor do de outrem. Não podemos abandonar a auto-disciplina e ao
mesmo tempo ser disciplinados no nosso afecto por outro. Não podemos ser
uma fonte de força se não alimentarmos a nossa própria força. À medida
que avançarmos na exploração da natureza do amor, creio que se tornará
claro que não só o amor próprio e o amor por outros andam de mãos dadas
como, no limite, não se conseguem distinguir.
Quarto, o acto de alargar os seus limites implica esforço. Só se alargam os
limites excedendo-os, e exceder os limites exige esforço. Quando amamos
alguém, o nosso amor só se torna demonstrável ou real através do nosso
empenho - pelo facto de que por alguém (ou por nós próprios) damos um
passo a mais ou caminhamos mais uma milha. O amor não acontece sem
esforço. Pelo contrário, o amor é trabalhoso.
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Apaixonar-Se
DE TODOS os FALSOS juízos sobre o amor, o mais poderoso e infiltrado é a
crença de que "apaixonar-se" é amor ou, pelo menos, uma das
manifestações de amor. É uma concepção fortemente errada, porque
apaixonar-se é experimentado subjectiva-
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mente duma forma poderosa como uma experiência de amor. Quando uma
pessoa se apaixona, o que ele ou ela sentem de certeza é "Amo-o" ou "Amo-
a". Mas dois problemas são imediatamente aparentes. O primeiro é que a
experiência de se apaixonar é especificamente uma experiência erótica
ligada ao sexo. Não nos apaixonamos pelos nossos filhos embora os
amemos profundamente. Não nos apaixonamos por amigos do mesmo sexo
- a menos que tenhamos tendências homossexuais - por muito que
gostemos deles. Apaixonamo-nos só quando somos, consciente ou
inconscientemente, motivados sexualmente. O segundo problema é que a
experiência da paixão é invariavelmente temporária. Independentemente
de por quem nos apaixonamos, mais cedo ou mais tarde deixamos de estar
apaixonados se a relação durar o tempo suficiente. Isto não quer dizer que
invariavelmente deixemos de amar a pessoa por quem nos apaixonámos.
Mas quer dizer que o sentimento de amor extático que caracteriza a
experiência da paixão passa sempre. A lua-de-mel chega sempre ao fim. O
florescer do romance murcha.
mundo. Quando tem fome, a mãe não aparece sempre para lhe dar de
comer. Quando quer brincar, a mãe nem sempre quer brincar. A criança tem
então a experiência de os seus desejos não serem ordens para a sua mãe. A
sua vontade é sentida como algo separado do comportamento da sua mãe.
O sentido do Eu começa a desenvolver-se. Esta interacção entre o recém-
nascido e a mãe é considerada como a base a partir da qual o sentido de
identidade da criança se começa a desenvolver. Observou-se que, quando a
interacção entre o recém-nascido e a mãe é fortemente perturbada - por
exemplo, quando não há mãe, nenhum substituto satisfatório da mãe ou
quando devido a doença mental a mãe esteja completamente alheia ou
desinteressada - o recém-nascido transforma-se numa criança ou adulto
cuja noção de identidade tem falhas graves na maior parte das formas
básicas.
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idade adulta, mas as fronteiras estabelecidas mais tarde são mais psíquicas
que físicas. Por exemplo, a idade entre os dois e os três anos é tipicamente
uma altura em que a criança reconhece os limites do seu poder. Enquanto
que, antes disso, a criança aprendeu que o seu desejo não é
necessariamente uma ordem para a mãe, ainda se agarra à possibilidade de
o seu desejo ser uma ordem para a mãe e o sentimento de que o seu desejo
devia ser uma ordem para ela. É devido a esta esperança e este sentimento
que a criança de dois anos normalmente tenta agir como um tirano e
autocrata, dando ordens aos pais, irmãos e animais de estimação como se
fossem serventes no seu exército particular, e responde com fúria real
quando eles não acatam as suas instruções. Por isso, os pais chamam a esta
idade "os terríveis dois anos". Aos três anos, a criança torna-se
normalmente mais tratável e dócil em resultado da aceitação da realidade
da sua relativa impotência. Mesmo assim, a possibilidade de omnipotência é
um sonho tão doce, que não podem desistir dele completamente mesmo
depois de vários anos de dolorosa confrontação com a sua própria
impotência. Embora uma criança de três anos tenha aceite a realidade das
fronteiras do seu poder, continuará a escapar-se durante alguns anos para
um mundo de fantasia onde a possibilidade da omnipotência
(particularmente da sua) ainda existe. Este é o mundo do Super-Homem e
do Capitão Marvel. No entanto, gradualmente, renuncia-se até aos
superheróis e, quando chegam a meio da adolescência, os jovens sabem
que são indivíduos, restringidos às suas fronteiras físicas e aos limites do
seu poder, cada um deles um organismo relativamente frágil e impotente,
que só existe cooperando com um grupo de organismos semelhantes
chamado sociedade. Dentro deste grupo, não se distinguem
particularmente, mas estão isolados doutros pelas suas identidades,
fronteiras e limites individuais.
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PARA SERVIR ASSIM TÃO BEM para nos apanhar no casamento, a experiência
de se apaixonar tem provavelmente como uma das suas características a
ilusão de que a experiência irá durar sempre. Esta ilusão é fomentada na
nossa cultura pelo mito vulgarmente cultivado do amor romântico, que tem
as suas origens nas nossas histórias infantis favoritas, em que o príncipe e a
princesa, uma vez unidos, vivem felizes para sempre. O mito do amor
romântico diz-nos, com efeito, que para cada rapaz no mundo há uma
rapariga que "foi feita para ele" e vice-versa. Além disso, o mito implica que
há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher para um
homem e que isso foi predeterminado "nas estrelas". Quando conhecemos a
pessoa a quem estamos destinados, o reconhecimento advém do facto de
nos apaixonarmos. Encontrámos a pessoa a quem os céus nos tinham
destinado, e uma vez que a união é perfeita, seremos capazes de satisfazer
as necessidades um do outro para sempre, e portanto viver felizes para
sempre em perfeita união e harmonia. Se acontecer, no entanto, não
satisfazermos ou não irmos de encontro a todas as necessidades um do
outro surgem atritos e desapaixonamo-nos. Está claro que cometemos um
erro terrível, interpretámos as estrelas erradamente, não nos entendemos
com
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o nosso único par perfeito, o que pensámos ser amor não era amor real ou
"verdadeiro", e não há nada a fazer quanto à situação a não ser viver
infelizes para sempre ou obter o divórcio.
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em que casei com ela. Ela é tudo o que eu sempre quis." Mas as dores de
cabeça continuaram até que, um ano mais tarde, conseguiu admitir, "Ela
dá-me cabo da cabeça porque está sempre a querer, querer, querer coisas
sem se preocupar com o meu ordenado," e foi então capaz de a confrontar
com a sua extravagância. O Sr. e a Sra. F reconhecem que deixaram de
estar apaixonados e passam a fazer-se infelizes um ao outro por mútua
infidelidade galopante à medida que procuram o "verdadeiro amor", sem se
aperceberem que o seu próprio reconhecimento podia marcar o início da
obra do seu casamento em vez do fim. Mesmo quando os casais
reconhecem que a lua-de-mel terminou, que já não estão romanticamente
apaixonados um pelo outro e ainda conseguem empenhar-se na sua relação,
continuam a agarrar-se ao mito e tentam adaptar-lhe as suas vidas. "Apesar
de já não estarmos apaixonados, se agirmos por força de vontade como se
estivéssemos apaixonados, pode ser que o amor romântico regresse às
nossas vidas," segundo o seu raciocínio. Estes casais privilegiam o estar
juntos. Quando iniciam a terapia de grupo para casais (que é o cenário em
que a minha mulher e eu e os nossos colegas mais próximos exercemos o
aconselhamento matrimonial mais crítico), sentam-se juntos, falam um pelo
outro, defendem os defeitos um do outro e tentam apresentar ao resto do
grupo uma frente unida, acreditando que esta unidade seja um sinal de
saúde relativa do seu casamento e um pré-requisito para a sua melhoria.
Mais cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo, temos que dizer à maior
parte dos casais que estão demasiado casados, demasiado próximos, e que
têm de estabelecer alguma distância psicológica entre si antes de
começarem a tratar construtivamente os seus problemas. Por vezes, é
mesmo necessário separá-los fisicamente, dando-lhes instruções para se
sentarem longe um do outro no círculo do grupo. Repetidamente, temos que
dizer, "Deixe a Mary falar por si própria, John" e "O John é capaz de se
defen-
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der, Mary, é suficientemente forte." Por fim, se continuam na terapia, todos
os casais aprendem que a verdadeira aceitação da sua própria
individualidade e da do outro e a independência são as únicas fundações
sobre as quais se pode basear um casamento adulto e o verdadeiro amor
pode crescer*.
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(Nota)
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- todos separados uns dos outros por fronteiras é uma percepção errada,
uma ilusão. Para designar esta concepção errada consensual, este mundo
de ilusão que a maior parte de nós crê erradamente ser real, os Hindus e os
Budistas utilizam a palavra "Maya". Eles e outros místicos sustentam que a
verdadeira realidade só pode ser conhecida através da experiência da
unicidade pela renúncia às fronteiras do ego. É impossível ver de facto a
unidade do Universo enquanto se continua a ver a si próprio como um
objecto distinto, separado e distinguível do resto do Universo de qualquer
modo, forma ou feitio. Os Hindus e os Budistas sustentam frequentemente,
por isso, que o recém-nascido, antes do desenvolvimento das fronteiras do
ego, conhece a realidade, enquanto que os adultos não. Alguns até sugerem
que o caminho para o esclarecimento ou conhecimento da unicidade da
realidade exige a nossa regressão ou que nos tornemos como recém-
nascidos. Esta doutrina pode ser perigosamente tentadora para certos
adolescentes e jovens adultos que não estão preparados para assumir
responsabilidades adultas, que parecem assustadoras, esmagadoras e
exigindo mais do que as suas capacidades. "Não tenho que passar por tudo
isto," pode pensar uma dessas pessoas. "Posso desistir de tentar ser adulto
e escapar às exigências adultas e entrar na santidade." Agindo com base
nesta suposição, atinge-se mais depressa a esquizofrenia que a santidade.
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A maior parte dos místicos compreende a verdade que foi analisada no final
da discussão da disciplina: ou seja, que devemos possuir ou conseguir algo
antes de podermos renunciar a ele e conservar a nossa competência e
viabilidade. O recém-nascido, sem as suas fronteiras do ego, pode estar em
contacto mais próximo com a realidade que os pais, mas é incapaz de
sobreviver sem os cuidados dos pais e incapaz de comunicar a sua
sabedoria. O caminho para a santidade passa pela idade adulta. Não há
atalhos rápidos nem fáceis. As fronteiras do ego têm de ser reforçadas antes
de poderem ser enfraquecidas. A identidade tem de ser estabelecida antes
de poder ser transcendida. Temos que encontrar o nosso Eu antes de o
podermos perder. A libertação temporária das fronteiras do ego associada
ao estado de paixão, relação sexual ou ao uso de certas drogas psico-
activas podem deixar-nos entrever o Nirvana, mas não nos levam ao
Nirvana propriamente dito. É uma tese deste livro que o Nirvana, ou o
esclarecimento duradouro, ou o verdadeiro desenvolvimento espiritual, só
podem ser alcançados através do exercício persistente do verdadeiro amor.
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Dependência
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"Estou confuso," disse-lhe eu. "Disse-me que a sua mulher tinha razão nas
suas queixas, que nunca fazia nada por ela, que só ia a casa quando lhe
apetecia, que não se sentia atraído por ela nem sexual nem
emocionalmente, que chegava ao ponto de não falar com as crianças
durante meses, que nunca brincava ou saía com elas. O senhor não tem
nenhuma relação com ninguém da sua família, por isso não entendo porque
é que está tão deprimido por ter perdido um relacionamento que nunca
existiu."
"Não está a ver?" respondeu, "Eu agora não sou nada. Nada. Não tenho
mulher, não tenho filhos. Não sei quem sou. Posso não me preocupar com
eles, mas devo gostar deles. Sem eles não sou nada."
Por ele estar tão deprimido - tinha perdido a identidade que a família lhe
dava - marquei-lhe uma nova consulta para dois dias mais tarde. Não
esperava grandes melhoras. Mas quando voltou, irrompeu pelo meu
gabinete com um largo sorriso e anunciou, "Agora está tudo bem."
"Oh, não," respondeu feliz, "não soube nada deles desde que estive consigo.
Mas conheci uma rapariga ontem à noite num bar. Ela disse-me que gosta
realmente de mim. Está separada, como eu. Vamo-nos encontrar de novo
hoje à noite. Sinto-me novamente um ser humano. Acho que não vou
precisar mais de vir ter consigo."
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Mas nunca correu bem, não só por ela não ter feito uma boa escolha mas
também porque se tornaria cada vez mais absorvente em relação ao
homem, pedindo cada vez mais provas do seu afecto, querendo estar
constantemente com ele, recusando-se a ficar sozinha. "É por eu gostar
tanto de ti que não suporto estar longe de ti," dir-lhe-ia ela, mas mais cedo
ou mais tarde ele sentir-se-ia completamente sufocado e preso, sem espaço
para se mover, pelo seu "amor". Haveria uma violenta explosão, a relação
terminaria e o ciclo iniciar-se-ia todo de novo no dia seguinte. A mulher
tornou-se capaz de quebrar o ciclo após três anos de terapia, durante os
quais começou a apreciar a
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*/*
Catexia Sem Amor
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Por outro lado, o poder e o dinheiro podem ser meios para um objectivo de
amor. Uma pessoa pode, por exemplo, suportar uma carreira política com o
principal objectivo de utilizar o poder político para melhoria da raça
humana. Ou há pessoas que podem ansiar pela riqueza, não pelo dinheiro,
mas para os filhos poderem frequentar a universidade e para eles próprios
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Entre as coisas que aqui refiro e em toda esta secção do livro, diria que a
forma como utilizamos a palavra "amor" é tão generalizada e inespecífica
que pode interferir seriamente com o nosso entendimento do amor. Não
tenho grande esperança em que a linguagem mude neste aspecto. No
entanto, enquanto continuarmos a usar a palavra "amor" para descrever a
nossa relação com algo que é importante para nós, algo que catectamos,
sem atender à qualidade dessa relação, continuaremos a ter dificuldade em
ver a diferença entre o sensato e o tolo, o bom e o mau, o nobre e o ignóbil.
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mas também o fim da experiência de serem amados pela mãe. A dor e a
privação por que passam são óbvias para todos menos para a mãe, ocupada
com o novo bebé. O efeito dessa experiência normalmente surge quando as
crianças entram na idade adulta num padrão de personalidade depressiva
e/ou dependente passiva.
O que isto sugere é que o "amor" aos bebés e animais de estimação e até
às esposas dependentemente obedientes é um padrão de comportamento
instintivo ao qual se aplica perfeitamente o termo "instinto maternal".
Podemos comparar este com o comportamento instintivo de "apaixonar-se":
não é uma forma genuína de amor pelo facto de não implicar qualquer
esforço, nem é inteiramente um acto de vontade ou de escolha; aproxima-
se do amor por ser uma forma de se estender aos outros e servir para iniciar
laços interpessoais dos quais pode nascer o amor verdadeiro; mas é preciso
muito mais para desenvolver um casamento saudável e criativo, criar uma
criança saudável e cujo espírito se desenvolve, ou para contribuir para a
evolução da humanidade.
A questão é que criar pode e normalmente deve ser muito mais do que
simplesmente alimentar, e que a educação do desenvolvimento espiritual é
um processo infinitamente mais complicado do que qualquer um que possa
ser orientado por instinto. A mãe que referi no início desta secção do livro,
que não deixava o filho ir de autocarro para a escola, é um caso típico.
Transportá-lo de e para a escola era criá-lo, num certo sentido, mas era uma
educação de que ele não precisava e que retardava claramente, em vez de
desenvolver, o seu desenvolvimento espiritual. Abundam outros exemplos:
mães que empanturram de comida crianças já com excesso de peso; pais
que compram aos filhos brinquedos que davam para encher um quarto e às
filhas roupas que encheriam um armário; pais que não estabelecem limites
nem negam desejos. Amor não é
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maior parte do seu tempo livre em casa, a arrumar e limpar o que a mulher
e os filhos largavam, uma vez que eles não tinham a menor preocupação
com a limpeza doméstica. "Você não se cansa de se anular constantemente
perante eles?" perguntei-lhe. "Claro," respondeu ele, "mas o que hei-de
fazer? Gosto deles e fico penalizado se não tomar conta deles. Preocupo-me
tanto com eles que não me permitirei nunca ficar a ver enquanto eles
tiverem necessidades a preencher. Posso não ser um homem brilhante, mas
pelo menos tenho amor e preocupação."
Foi interessante descobrir que o seu pai tinha sido um intelectual brilhante,
de considerável renome, mas também um alcoólico e um galanteador que
não se preocupava nada com a família e a negligenciava grosseiramente.
Gradualmente, ajudei o meu doente a ver que, em criança, tinha jurado ser
tão diferente do pai quanto possível, ser tão compassivo e preocupado
quanto o pai era impiedoso e desligado. Algum tempo depois até conseguiu
compreender que tinha feito uma tremenda aposta em manter uma
imagem de si próprio como carinhoso e compassivo e que muito do seu
comportamento, incluindo a sua carreira no sacerdócio, tinha sido dedicado
a promover essa imagem. O que ele não compreendeu com a mesma
facilidade foi o grau de "infantilização" a que reduzia a família. Referia-se
continuamente à mulher como "a minha gatinha" e aos filhos bem crescidos
e atléticos "os meus miúdos". "Como é que hei-de ter outro
comportamento?" implorava. "Eu posso ser carinhoso em reacção ao meu
pai, mas isso não quer dizer que vá deixar de o ser e transformar-me num
estupor." O que ele teve literalmente que aprender foi que amar é uma
actividade complicada e não simples, que exige a participação de todo o seu
ser - a cabeça tanto como o coração. Devido à sua necessidade de ser tão
diferente do pai quanto possível, não tinha sido capaz de desenvolver um
sistema de resposta flexível
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para exprimir o seu amor. Teve que aprender que não dar na altura certa é
mais compassivo do que dar na altura errada e que fomentar a
independência é mais uma manifestação de amor do que cuidar de pessoas
que podem perfeitamente tomar conta de si próprias. Teve ainda que
aprender que expressar as suas próprias necessidades, ira, ressentimentos
e expectativas era tão necessário para a saúde mental da sua família como
o seu sacrifício e, portanto, que o amor tem que ser manifestado tanto em
confrontação como em aceitação beatífica.
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terapeuta faz notar que parece ser a repetição de um padrão que tinham
concordado ser destrutivo, a mulher diz, "Mas eu amo-o. Não se pode negar
o amor." Se o terapeuta tenta analisar este "amor" com alguma energia, a
doente deixa a terapia.
Que se passa aqui? Tentando entender o que aconteceu, o terapeuta
recorda o óbvio deleite com que a mulher tinha relatado a longa história de
brutalidade e maus tratos do marido. De repente, nasce-lhe uma ideia
estranha; talvez esta mulher suporte os maus tratos do marido, e até os
procure, pelo mero prazer de falar sobre eles. Mas de que natureza seria
esse prazer? O terapeuta recorda o farisaísmo da mulher. Será que a coisa
mais importante na vida da mulher é ter um sentido de superioridade moral
e que, para o poder manter, precisa de ser maltratada? A natureza do
padrão torna-se agora clara. Ao permitir ser maltratada, sente-se superior.
No limite, pode mesmo ter o prazer sádico de ver o marido implorar e pedir
para voltar e reconhecer momentaneamente a sua superioridade sobre a
posição de humildade em que ele se encontra, enquanto decide
magnanimamente aceitá-lo de volta ou não. E nesse momento, ela
consegue a sua vingança. Quando se analisam estas mulheres,
normalmente descobre-se que foram particularmente humilhadas em
crianças. Em consequência, procuram a vingança através do seu sentido de
superioridade moral, o que requer humilhação e maus tratos repetidos. Se o
mundo nos tratar bem, não temos necessidade de nos vingarmos dele. Se a
procura da vingança é o nosso objectivo de vida, temos que arranjar forma
de o mundo nos tratar mal para justificar o nosso objectivo. Os masoquistas
encaram a sua submissão aos maus tratos como amor, enquanto que, de
facto, é uma necessidade na sua interminável procura da vingança e é
basicamente motivada pelo ódio.
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Em virtude desta crença, a masoquista típica via a sua tolerância dos maus
tratos como auto-sacrifício e portanto como amor, e assim não tinha que
reconhecer o seu ódio. O pastor também via o seu comportamento
sacrificado como amor, embora na verdade fosse motivado, não pelas
necessidades da sua família, mas pela sua própria necessidade de manter
uma determinada imagem. No início do tratamento, contava
constantemente como "fazia coisas" pela mulher e pelos filhos, levando-nos
a crer que ele nada retirava desses actos em proveito próprio. Mas retirava.
Sempre que pensamos em nós a fazer algo por outra pessoa, estamos de
alguma forma a negar a nossa própria responsabilidade. O que quer que
façamos, fazemo-lo porque escolhemos fazê-lo, e fazemos essa escolha
porque é a que mais nos satisfaz. O que quer que façamos por outra pessoa,
fazemo-lo porque preenche uma necessidade nossa. Os pais que dizem aos
filhos, "Devias estar agradecido por tudo o que temos feito por ti" são,
invariavelmente, pais a quem falta um grau significativo de amor. Qualquer
pessoa que ame genuinamente conhece o prazer de amar. Quando amamos
genuinamente, fazemo-lo porque queremos amar. Temos filhos porque
queremos ter filhos, e se somos pais que amam, é porque o queremos ser. É
verdade que o amor envolve uma mudança do Eu, mas que é uma extensão
do Eu, mais do que um sacrifício. Como veremos mais tarde, o amor
genuíno é uma actividade auto-compensadora. De facto, é ainda mais;
engrandece em vez de diminuir o Eu; preenche o Eu, em vez de o esgotar.
No sentido real, o amor é tão egoísta como o não-amor. Eis novamente um
paradoxo, em que o amor é egoísta e desprendido ao mesmo tempo. Não é
o egoísmo ou a ausência de egoísmo que distingue o amor do não-amor, é o
objectivo da acção. No caso do amor genuíno, o objectivo é sempre o
desenvolvimento espiritual. No caso do não-amor, o alvo é sempre outra
coisa qualquer.
126
JÁ AFIRMEI QUE o AMOR é uma acção, uma actividade. Isto leva-nos à última
das principais concepções erradas que temos de abordar. O amor não é um
sentimento. Muitas pessoas que possuem um sentimento de amor, e que
até agem em resposta a esse sentimento, actuam de todas as formas
destrutivas e de falta de amor. Por outro lado, um indivíduo que ama
genuinamente age com amor e de forma construtiva para com uma pessoa
de quem conscientemente não gosta, sem na verdade sentir amor pela
pessoa nessa altura e talvez até achando a pessoa de alguma maneira
repugnante.
127
128
L
Não significa isto que os parceiros de uma relação estável e construtiva, tal
como a psicoterapia intensiva ou um casamento, não se catectam um ao
outro e à relação de formas diversas; isso acontece. O que quer dizer é que
o amor verdadeiro transcende a questão das catexias. Quando o amor
existe, existe com ou sem catexia e com ou sem o sentimento de amar. É
mais fácil - na verdade, é divertido - amar com catexia e o sentimento do
amor. Mas é possível amar sem catexia e sem o sentimento de amor, e é na
concretização desta possibilidade que o amor genuíno e transcendente se
distingue da simples catexia. A palavra chave nesta distinção é "vontade".
Defini o amor como a vontade de extensão de si próprio com o propósito de
acalentar o seu desenvolvimento espiritual e o do outro. O amor genuíno é
mais voluntário do que emocional. A pessoa que ama verdadeiramente, fá-
lo porque tomou a decisão de amar. Essa pessoa assumiu o compromisso de
amar, quer o sentimento de amor esteja ou não presente. Se estiver, tanto
melhor; mas se não estiver, o empenhamento no amor, a decisão de amar,
mantêm-se e são exercidos da mesma
129
forma. Por outro lado, não só é possível como necessário que uma pessoa
que ama evite agir com base em sentimentos de amor. Posso encontrar uma
mulher por quem me sinta fortemente atraído, a quem me apetece amar,
mas porque seria destrutivo para o meu casamento ter uma ligação nessa
altura, direi alto ou no silêncio do meu coração, "Apetece-me amar-te, mas
não o vou fazer." Da mesma forma, posso recusar-me a aceitar uma nova
doente extremamente atraente e com boas probabilidades de obter bons
resultados com a terapia, porque o meu tempo está já comprometido com
outros doentes, alguns dos quais poderão ser menos atraentes e mais
difíceis. Os meus sentimentos de amor podem não ter limites, mas a minha
capacidade de amar tem. Portanto, tenho que escolher a pessoa em quem
vou concentrar a minha capacidade de amar, a quem a minha vontade de
amar será dirigida. O verdadeiro amor não é um sentimento pelo qual
sejamos ultrapassados. É uma decisão empenhada e ponderada.
130
O Trabalho de Atenção
131
(Nota)
* Love and Will (Nova Iorque: Delta Books, Dell Pub., 1969), p. 220.
132
Ao contrário dos outros, eu pude ouvir muito do que este grande homem
disse, precisamente porque quis ter o trabalho de o ouvir. Estava disposto a
ter esse trabalho por duas razões: uma, porque reconhecia a sua grandeza e
que o que ele tinha para dizer teria provavelmente grande valor; segundo,
porque, dado o meu interesse na área, queria absorver profundamente o
que ele tinha a dizer de forma a incrementar o meu entendimento e o meu
desenvolvimento pessoal. Ouvi-lo foi para mim
133
um acto de amor. Amei-o porque compreendi que era uma pessoa de
grande valor, a quem valia a pena dar atenção e amei-me a mim mesmo
porque estava disposto a trabalhar em prol do meu desenvolvimento. Sendo
ele o professor e eu o aluno, ele o dador e eu o receptor, o meu amor era
principalmente dirigido a mim próprio, motivado pelo que eu podia retirar da
nossa relação e não pelo que eu lhe podia dar a ele. Em todo o caso, é
inteiramente possível que ele sentisse no meio da audiência a intensidade
da minha concentração, a minha atenção, o meu amor, e sentir-se por isso
recompensado. O amor, como veremos uma e outra vez, é invariavelmente
uma rua de dois sentidos, um fenómeno recíproco pelo qual o receptor
também dá e o dador também recebe.
134
135
136
Mas maçar-se para quê? Para quê todo este esforço de se concentrar
inteiramente na tagarelice maçadora de uma criança de seis anos? Primeiro,
a sua disposição para o fazer é a melhor prova concreta de estima que pode
conceder ao seu filho. Se der ao seu filho a mesma estima que concederia a
um grande orador, a criança perceberá que lhe é atribuído valor e sentir-se-
á valiosa. Não há melhor forma nem, por último, outra forma de ensinar aos
filhos que são pessoas de valor, do que dando-lhes valor. Segundo, quanto
mais valiosas se sentem as crianças, mais começam a dizer coisas de valor.
Corresponderão às suas expectativas. Terceiro, quanto mais ouvir o seu
filho, melhor entenderá que, no meio das pausas, dos gaguejes, da
tagarelice aparentemente inocente, o seu filho tem de facto coisas valiosas
para dizer. O ditado que diz que a verdade sai "da boca das crianças" é
reconhecido como um facto absoluto por quem quer que ouça
verdadeiramente as crianças. Ouça bastante o seu filho e compreenderá
que ele é um indivíduo
137
extraordinário. E quanto mais extraordinário achar o seu filho, mais estará
disposto a ouvi-lo. E mais aprenderá. Quarto, quanto mais souber sobre o
seu filho, mais poderá ensinar. Se souber pouco sobre os seus filhos,
normalmente ensinar-lhes-á coisas que ainda não estão prontos para
aprender, ou que já sabem e se calhar entendem melhor do que você. Por
último, quanto mais as crianças sabem que lhes dá valor, que as considera
pessoas extraordinárias, mais dispostas estarão a ouvi-lo a si e a conceder-
lhe a mesma estima. E quanto mais adequados os seus ensinamentos,
baseados no seu conhecimento dos seus filhos, mais ansiosos eles ficarão
por aprenderem consigo. E quanto mais aprenderem, mais extraordinários
se tornarão. Se o leitor se apercebe do carácter cíclico deste processo, tem
toda a razão e está a apreciar a verdade da reciprocidade do amor. Em vez
de um ciclo vicioso descendente, é um ciclo criativo ascendente de evolução
e desenvolvimento. O valor cria valor. O amor gera amor. Pais e filhos, em
conjunto, rodopiam em frente, cada vez mais depressa, na pás de deux do
amor.
138
139
Dado que o ouvir verdadeiramente é o amor em acção, não existe para ele
lugar mais adequado do que no casamento. No entanto, a maior parte dos
casais não se ouvem verdadeiramente um ao outro. Consequentemente,
quando casais nos procuram para aconselhamento ou terapia, uma das
tarefas principais que nos incumbem para que o processo seja bem
sucedido é ensiná-los a ouvir. Não é pouco frequente falharmos, já que a
energia e a disciplina envolvidas são mais do que as que estão dispostos a
gastar ou a submeter-se. Há casais que ficam surpreendidos, e até
horrorizados, quando sugerimos que, entre as coisas que devem fazer, é
conversar um com o outro por marcação. Parece-lhes rígido, sem
romantismo e sem espontaneidade. No entanto, ouvir verdadeiramente só
pode acontecer quando se reserva tempo para o fazer e se criam condições
de suporte. Não acontece quando as pessoas estão a conduzir, a cozinhar,
cansadas, ansiosas por dormir, ou podem
140
142
O Risco da Perda
143
144
porta de casa para reaparecer para o dia de trabalho que se segue. Aos
Sábados de tarde vai sozinha a um cinema local que muda de filme todas as
semanas. Tem um aparelho de televisão. Não tem telefone. Quase nunca
recebe correio. Se pudesse comunicar com ela de alguma maneira e
comentar que a vida dela parecia solitária, ela dir-lhe-ia que apreciava
bastante essa solidão. Se lhe perguntasse se não tinha animais de
estimação, dir-lhe-ia que tinha tido um cão de que gostava muito, mas que
tinha morrido há oito anos e nenhum cão podia substituí-lo.
145
(Nota)
146
Quando fugimos da morte, da natureza constantemente mutável das
coisas, fugimos inevitavelmente da vida.
O Risco da Independência
Aos treze anos, deixei a minha casa para frequentar a Academia Phillips
Exeter, uma escola preparatória para rapazes da mais elevada reputação,
onde o meu irmão tinha andado antes de mim. Sabia que tinha sorte em
andar lá, porque a frequência de Exeter fazia parte de um padrão bem
definido que me conduziria para uma das melhores universidades da Ivy
147
"Bem, então o que vais fazer? Uma vez que pareces querer brincar com o
teu futuro, o que é que pensas fazer?"
148
Respondi novamente, profundamente infeliz, "Não sei. Só sei que não volto
para lá."
149
150
Mas o que tem a ver esta questão de amadurecer com o amor, para além do
facto de o prolongamento do Eu envolvido no acto de amar ser um
prolongamento do Eu para novas dimensões? Primeiro que tudo, os
exemplos de mudança descritos e todas as outras grandes mudanças são
actos de amor próprio. Foi precisamente por dar valor a mim próprio que
não quis continuar a ser infeliz num colégio e num ambiente social que não
se adequavam às minhas necessidades. Foi por ter con-
151
152
ocultas dos filhos e incapazes de exprimir amor das formas mais subtis que,
no entanto, são muitas vezes as mais importantes. As formas mais elevadas
de amor são, inevitavelmente, opções livres e não actos de conformismo.
O Risco do Compromisso
SEJA OU NÃO POUCO profundo, o compromisso é a base, o pilar de qualquer
relação genuinamente amorosa. O profundo empenhamento não garante o
sucesso da relação mas ajuda, mais que qualquer outro factor, a assegurá-
lo. Compromissos inicialmente ligeiros podem, com o tempo, vir a
aprofundar-se; senão, a relação cairá provavelmente aos pedaços ou então
tornar-se-á doentia ou cronicamente frágil. É frequente não termos
consciência da imensidão do risco envolvido em assumir um forte
compromisso. Já referi que uma das funções do fenómeno instintivo de nos
apaixonarmos é fornecer aos participantes um manto mágico de
omnipotência que os cega caridosamente aos riscos do que fazem quando
se casam. Pela minha parte, estive razoavelmente calmo até ao momento
em que a minha mulher se juntou a mim em frente ao altar, em que todo o
meu corpo começou a tremer. Fiquei tão aterrado que não me lembro de
quase nada da cerimónia nem da recepção que se seguiu. De qualquer
maneira, é o nosso sentido de compromisso, depois da boda, que torna
possível a transição do estar apaixonado para o amor genuíno. E é o nosso
compromisso após a concepção que nos transforma de pais biológicos em
pais psicológicos*. O compromisso é inerente a
(Nota)
153
154
Rachel, uma jovem fria, composta e distante de vinte e sete anos, veio
consultar-me no final de um breve casamento. O marido, Mark, tinha-a
deixado devido à sua frigidez. "Eu sei que sou frígida," reconhecia Rachel.
"Pensei que com o tempo me sentisse estimulada pelo Mark, mas nunca
aconteceu. Não creio que seja culpa dele. Nunca gostei de sexo com
ninguém. E para dizer a verdade, nem tenho a certeza se quero. Parte de
mim quer, porque gostava de ter um dia um casamento feliz, e gostava de
ser normal - as pessoas normais parecem encontrar algo de maravilhoso no
sexo. Mas outra parte de mim contenta-se em ser como sou. O Mark dizia
sempre 'Relaxa e deixa-te ir'. Bem, talvez eu não queira relaxar nem deixar-
me ir, mesmo que fosse capaz."
No terceiro mês de trabalho em conjunto, chamei a atenção de Rachel para
o facto de me dizer "Obrigado" pelo menos duas vezes, ainda antes de se
sentar para começar a sessão primeiro, quando ia ao seu encontro na sala
de espera, e novamente quando passava pela porta de acesso ao meu
gabinete.
155
"É verdade," disse eu. "Mas também é verdade que me paga quarenta
dólares à hora pelo tempo que aqui está. Comprou esse tempo e este
espaço e, por tê-lo comprado, tem direito a ele. Não é uma visita. Este
gabinete, esta sala de espera e o tempo que passamos juntos são um
direito seu. Seu. Pagou-me por esse direito, portanto porque há-de
agradecer-me o que é seu?"
"Então deve acreditar que a posso enxotar daqui para fora sempre que me
apetecer," contrapus. "Deve pensar que pode chegar aqui um dia de manhã
e ouvir-me dizer-lhe 'Rachel, o trabalho consigo tornou-se maçador. Decidi
não a tratar mais. Adeus e boa sorte!'"
"E precisamente assim que penso," concordou Rachel. "Nunca pensei que
alguma coisa fosse direito meu, até agora, pelo menos não em relação a
uma pessoa. Quer dizer que não podia pôr-me a andar?"
"Oh, suponho que podia. Mas não o faria. Não quereria fazê-lo. Não seria
ético, entre outras coisas. Repare, Rachel," disse eu, "quando aceito um
caso como o seu para terapia a longo prazo, assumo um compromisso para
com esse caso e essa pessoa. E assumi um compromisso consigo.
Trabalharei consigo o tempo que for necessário, quer leve um ano ou cinco
ou dez, ou seja o que for. Não sei se vai abandonar o nosso trabalho em
conjunto quando estiver preparada ou antes de estar preparada. Mas, seja
como for, será você a terminar a nossa relação. A menos que eu morra, os
meus serviços estão à sua disposição enquanto os quiser."
156
Os danos causados pela ausência de compromisso por parte dos pais não se
curam com algumas palavras ou formas de tranquilização superficiais. A
níveis progressivamente mais fundos, têm que ser analisados
repetidamente. Um desses trabalhos de análise, por exemplo, teve lugar
mais de um ano depois. Tínhamos focado o facto de Rachel nunca ter
chorado na minha presença - uma outra forma em que não conseguia
"deixar-se ir". Um dia, quando falava da terrível solidão que provinha de ter
que estar constantemente em guarda, senti que ela estava à beira do choro,
mas que precisava dum pequeno empurrão meu, pelo que fiz algo fora do
comum: estendi o braço para o sofá onde ela estava deitada e afagueilhe
suavemente a cabeça, murmurando, "Pobre Rachel. Pobre Rachel." O gesto
falhou. Rachel ficou imediatamente hirta e sentou-se, com os olhos secos.
"Não consigo" disse ela. "Não consigo deixar-me ir." Isto aconteceu perto do
fim da sessão. Na sessão seguinte, Rachel entrou e sentou-se no divã, em
vez de se deitar. "Bom, agora é a sua vez de falar," anunciou.
,
157
"Esta é a nossa última sessão. Vai resumir tudo o que está errado em mim,
todas as razões porque não pode continuar a tratar-me."
Foi a vez de Rachel ficar intrigada. "Bem," disse ela. "Na última sessão,
queria que eu chorasse. Há muito tempo que quer que eu chore. Na última
sessão fez tudo o que pôde para me ajudar a chorar e mesmo assim não
consegui, portanto vai desistir. Não consigo fazer o que quer que eu faça. É
por isso que hoje é a nossa última sessão."
"Não, Rachel, qualquer pessoa não. A sua mãe seria capaz de o fazer. Mas
eu não sou a sua mãe. Nem toda a gente neste mundo é como a sua mãe.
Não é minha empregada. Não está aqui para fazer aquilo que eu quero que
faça. Está aqui para fazer aquilo que quer fazer, quando o quer fazer. Posso
pressioná-la, mas não tenho poder sobre si. Nunca a despedirei. Está aqui o
tempo todo que quiser."
Um dos problemas que as pessoas têm habitualmente nas suas relações
adultas, se nunca receberam um compromisso firme por parte dos pais é o
síndroma do "Vou-te abandonar antes que me abandones". Este síndroma
assume muitas formas e disfarces. Uma das formas era a frigidez de Rachel.
Embora nunca fosse a nível consciente, o que a frigidez de Rachel
transmitia ao marido e namorados anteriores era, "Não me vou entregar a ti
porque sei muito bem que um dia destes me vais rejeitar." Para Rachel,
"deixar-se ir", sexual-
158
159
longo período de silêncio. Por fim, mais próxima das lágrimas do que
alguma vez tinha estado, Rachel disse, "Por pertencer a uma família rica, os
comerciantes locais levam-me sempre os preços mais caros do mercado. O
senhor está a dar-me uma oportunidade. Ninguém me tinha dado uma
oportunidade até agora."
160
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163
O Risco da Confrontação
164
dedica tempo suficiente nem aos filhos, está a dizer-lhe "O teu
investimento no trabalho é excessivo e errado. Apesar de não ter o teu
emprego, consigo ver as coisas de uma forma mais clara do que tu e tenho
como certo que devias dedicar-te de maneira diferente". Muitas pessoas não
têm qualquer dificuldade em exercer a capacidade de confrontar, de dizer
"Eu tenho razão, tu não tens, devias ser diferente". Os pais, os casais e
pessoas em muitos outros papéis fazem-no casualmente e por rotina,
atirando críticas à direita e à esquerda, como calha. A maior parte dessas
críticas e dessa confrontação, vulgarmente feitas sob zanga ou despeito, faz
mais pelo aumento da confusão no mundo do que pelo esclarecimento.
165
(Nota)
* The Cloud of Unknowing, trad. Ira Progoff (Nova Iorque: Julian Press,
1969), p. 92.
166
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168
do que ao elogio, a maior atenção, a contar-lhe uma história ou a outra
forma de influência. Confrontar alguém com algo que não é capaz de gerir
é, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo, e terá provavelmente um
efeito desmoralizador. Se quisermos ser ouvidos, temos que falar numa
linguagem que o ouvinte possa compreender e a um nível em que o ouvinte
seja capaz de funcionar. Se queremos amar, temos que nos esforçar por
adaptar a nossa comunicação às capacidades da pessoa que amamos.
É claro que exercer o poder com amor exige muito trabalho, mas o que é
isso do risco envolvido? O problema é que, quanto mais se ama, mais
humilde se é; porém, quanto mais humilde se é, mais se receia o potencial
de arrogância do exercício do poder. Quem sou eu para influenciar o curso
dos acontecimentos humanos? Com que autoridade tenho o direito de
decidir o que é melhor para o meu filho, o meu marido ou a minha mulher, o
meu país ou a raça humana? Quem me dá o direito de me atrever a
acreditar no meu entendimento e pretender exercer a minha vontade sobre
o mundo? Quem sou eu para fazer de Deus? Esse é o risco. Porque sempre
que exercemos poder, estamos a tentar influenciar o curso do mundo, da
humanidade, e portanto a fazer de Deus. A maior parte dos pais,
professores, líderes - aqueles de nós que exercem poder - não têm essa
noção. Na arrogância de exercer o poder sem o total conhecimento de si
exigido pelo amor, estamos abençoada mas destrutivamente alheios ao
facto de que fazemos o papel de Deus. Mas, os que amam verdadeiramente,
e trabalham portanto para a sabedoria que o amor requer, sabem que agir é
fazer de Deus. No entanto, sabem também que não há alternativa senão a
inacção e a impotência. O amor leva-nos a fazer de Deus, com plena
consciência da enormidade do facto de que é isso que estamos a fazer. Com
essa consciência, a pessoa que ama assume a responsabi-
169
O Amor é Disciplinado
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174
(Nota)
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O Amor é Separação
uma grande dose de auto-disciplina para o resto da vida para lidar com a
doença, de se respeitar e de fazer o necessário para ser auto-suficiente sem
ter que esperar que os outros tratassem dela. Em vista deste grande
progresso, senti que se aproximava o momento em que Susan estaria capaz
de deixar o hospital e, pela primeira vez na vida, levar uma existência
independente. Foi nessa altura que conheci os pais, um casal bonito e
abastado, a meio da casa dos cinquenta. Foi com grande satisfação que lhes
descrevi os enormes progressos de Susan e lhes expliquei em detalhe as
razões do meu optimismo. Mas, para minha grande surpresa, pouco depois
de eu começar a falar a mãe de Susan começou a chorar silenciosamente e
continuou enquanto eu prosseguia na minha mensagem de esperança. Ao
princípio, pensei que fossem lágrimas de alegria, mas era evidente pela sua
expressão que se sentia triste. Por fim, eu disse-lhe, "Estou intrigado, Sra. X.
Tenho estado a contar-lhe coisas cheias de esperança e, no entanto, parece
estar triste."
"Claro que estou triste," respondeu. "Não posso deixar de chorar quando
penso em tudo o que a pobre Susan tem de sofrer."
"Francamente, continuo espantado, Sra. X," disse eu. "Nos últimos treze
anos participou pelo menos numa dúzia de conversas destas com os
psiquiatras de Susan e, pelo que sei, nenhuma foi tão optimista como esta.
Não sente contentamento, para além da tristeza?"
177
"Só consigo pensar em como a vida é difícil para Susan," respondeu ela,
chorosa.
"Olhe, Sra. X," disse eu, "há alguma coisa que eu lhe possa dizer sobre a
Susan que a faça sentir encorajada e feliz por ela?"
De repente, apercebi-me de que a Sra. X não chorava por Susan, mas por si
própria. Chorava pela sua dor e sofrimento. No entanto, a conversa era
sobre Susan, não sobre ela, e ela estava a chorar em nome de Susan. Como
podia ela fazer isso? Então apercebi-me de que a Sra. X não conseguia
distinguir entre Susan e ela própria. O que ela sentia, Susan tinha de sentir
também. Estava a usar Susan como veículo de expressão das suas
necessidades. Não o fazia consciente ou maliciosamente; a nível emocional
não conseguia, de facto, entender que Susan tinha uma identidade
separada da sua. Susan era ela. Na sua mente, Susan como indivíduo único
e diferente, com um caminho de vida único e diferente, simplesmente não
existia - nem provavelmente mais ninguém. Intelectualmente, a Sra. X
reconhecia as outras pessoas como sendo diferentes dela. Mas num plano
mais básico, as outras pessoas não existiam para ela. Nas profundezas da
sua mente, o mundo inteiro era ela, a Sra. X, e só ela.
178
Como não reconhecem os outros como outros, mas como extensões deles
próprios, os indivíduos narcisistas não têm capacidade de empatia, que é a
capacidade de sentir o que outro sente. Faltando-lhes empatia, os pais
narcisistas reagem inadequadamente aos filhos a nível emocional, e não
mostram reconhecimento ou constatação dos sentimentos dos filhos. Não
admira, portanto, que essas crianças cresçam com dificuldade em
reconhecer, aceitar e daí gerir os seus próprios sentimentos.
179
180
Podes dar-lhes o teu amor, mas não os teus pensamentos, Porque eles têm
os seus próprios pensamentos. Podes alojar-lhes os corpos mas não as
almas, Porque as almas deles vivem na casa do amanhã, que tu
[não podes visitar, nem sequer em sonhos. Podes lutar por ser como eles,
mas não tentes fazê-los ser
[como tu.
Porque a vida não anda para trás nem espera pelo passado Tu és o arco a
partir do qual são disparados os teus filhos
(Nota)
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182
183
(Nota)
1953), p. 159.
184
Encham a taça um do outro mas não bebam só duma taça. Dêem do vosso
pão um ao outro mas não comam
[que cada um esteja só, Tal como as cordas duma harpa estão sós embora
vibrem
[um os guarde.
[um do outro. *
185
Amor e Psicoterapia
186
"Parece que me está a pedir que lhe diga o que penso a seu respeito,"
respondi, tentando brilhantemente ganhar tempo.
Era isso mesmo que ela queria, disse-me. E agora, o que é que eu ia fazer?
Que palavras, técnicas ou posturas mágicas me iam valer? Eu podia dizer
"Porque é que pergunta?" ou "Quais são as suas fantasias sobre o que eu
penso a seu respeito?" ou "O que é importante, Mareia, não é o que eu
penso de si mas o que você pensa de si". No entanto, tinha a sensação
demolidora de que estas jogadas eram evasivas e que, depois de um ano
inteiro a consultar-me três vezes por semana, o mínimo a que Mareia tinha
direito era uma resposta honesta da minha parte sobre o que pensava dela.
Mas não tinha nenhum precedente para isso; dizer a uma pessoa cara a
cara, honestamente, o que se pensa dela não fazia parte das palavras e
técnicas mágicas que os meus professores me tinham ensinado. Era uma
interacção que nunca tinha sido sugerida nem recomendada durante a
minha formação; o próprio facto de nunca ter sido mencionada era para
mim indicação de que era uma interacção que se reprovava, uma situação
em que nenhum psiquiatra idóneo se deixaria cair. Como agir? Com o
coração aos pulos, agarrei-me ao que parecia ser um ramo muito precário.
"Mareia," disse eu, "há mais de um ano que vem à minha consulta. Durante
este
187
longo período, as coisas não correram muito bem connosco. Muito desse
tempo foi passado a lutar, e a luta foi por vezes maçadora, ou arrasadora ou
irritante para ambos. No entanto, apesar disso, você continuou a vir à
consulta, com considerável esforço e transtorno para si, sessão após sessão,
semana após semana, mês após mês. Não teria sido capaz de o fazer se não
fosse o tipo de pessoa que está decidida a evoluir e disposta a esforçar-se
muito para se tornar uma pessoa melhor. Não me seria possível considerar
uma pessoa que se esforça tanto como você uma porcaria. Não, não acho
que seja uma porcaria. De facto, admiro-a muito."
Que significa isto? Significa que para praticar a boa Psiquiatria nos basta
dizer aos doentes que pensamos bem deles? Nem por isso. Primeiro, é
necessário ser sempre honesto em terapia. Eu admirava e gostava
verdadeiramente de Mareia. Segundo, a minha admiração e simpatia tinham
para ela verdadeiro significado precisamente porque nos conhecíamos há
muito tempo e pela profundidade das nossas experiências na terapia. De
facto, a essência deste ponto de mudança não tinha a ver com a minha
simpatia e admiração; tinha a ver com a natureza da nossa relação.
188
Um ponto de mudança igualmente dramático surgiu na terapia de uma
jovem, a quem chamarei Helen, que vinha à consulta há nove meses, duas
vezes por semana, com uma considerável ausência de resultados e por
quem eu não nutria sentimentos muito positivos. Na verdade, depois desse
tempo todo, nem sequer tinha uma vaga ideia de quem Helen era. Nunca
tinha tratado um doente durante tanto tempo sem ter adquirido ideias sobre
o indivíduo e a natureza do problema a resolver. Ela confundia-me
completamente e passei grande parte de várias noites a tentar, sem
sucesso, encontrar algum sentido no caso. A única coisa que era clara era
que Helen não confiava em mim. Ela clamava que eu não me interessava
verdadeiramente por ela de nenhuma maneira e feitio e que só me
interessava pelo seu dinheiro. Após nove meses de terapia, falava assim
durante uma sessão: "O senhor não imagina, Dr. Peck, como é frustrante
tentar comunicar consigo, quando se mostra tão desinteressado e por isso
tão desligado dos meus sentimentos."
"Helen," respondi-lhe, "é frustrante para ambos. Não sei como é que isto a
vai afectar, mas o seu é o caso mais frustrante que já tive numa década de
prática de psicoterapia. Nunca conheci ninguém com quem fizesse menos
progressos em tanto tempo. Talvez tenha razão em crer que não sou a
pessoa indicada para trabalhar consigo. Não sei. Não quero desistir, mas
estou verdadeiramente intrigado consigo e dou voltas à cabeça quase até
dar em doido para perceber que diabo se passa com o nosso trabalho em
conjunto."
"Ha?" perguntei.
Logo na sessão seguinte, Helen começou a contar-me coisas que antes tinha
escondido ou sobre as quais tinha mesmo
189
mentido e, passado uma semana, eu já tinha uma noção clara do problema
dela, pude fazer um diagnóstico e soube genericamente como a terapia
devia avançar.
Aqui também, a minha reacção para com Helen teve peso e significado
precisamente devido à profundidade do meu envolvimento com ela e a
intensidade do nosso esforço. Vemos agora o ingrediente essencial que
torna a psicoterapia eficaz e bem sucedida. Não é "consideração positiva
incondicional", nem palavras, técnicas ou posturas mágicas, é envolvimento
humano e esforço. É a vontade do terapeuta de se prolongar com o
objectivo de apoiar o desenvolvimento do paciente - a vontade de se
arriscar, de se envolver verdadeiramente a nível emocional, de se esforçar
com o paciente e consigo próprio. Em suma, o ingrediente essencial da
psicoterapia profunda, bem sucedida e com significado é o amor.
(Nota)
* Ver Peter Brent, The Goa Men of índia (Nova Iorque: Quadrangle Books,
1972).
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191
192
193
essas necessidades das suas. É por amor aos pacientes que os terapeutas
não se deixam apaixonar por eles. Uma vez que o amor genuíno exige o
respeito pela identidade separada do amado, o terapeuta que ama
verdadeiramente reconhece e aceita que o caminho do paciente na vida é e
deve ser separado do seu. Para alguns terapeutas, isto significa que o seu
caminho e o do paciente nunca se devem cruzar fora da hora terapêutica.
Embora eu respeite esta posição, considero-a desnecessariamente rígida.
Embora tenha tido uma experiência em que o meu relacionamento com
uma ex-doente pareceu ser-lhe decididamente prejudicial, tive várias outras
experiências em que as relações sociais com ex-pacientes pareceram
claramente benéficas tanto para eles como para mim. Também tive a sorte
de analisar diversos amigos muito próximos. De qualquer maneira, o
contacto social fora da hora de terapia, mesmo depois de a terapia ter
terminado formalmente, é algo que só deve ser iniciado com grande
cuidado e rigorosa análise interior para estabelecer se são as necessidades
do terapeuta que serão preenchidas pelo contacto, em detrimento das do
paciente.
Temos estado a analisar o facto de a psicoterapia dever ser (ter de ser, para
dar bons resultados) um processo de amor genuíno, uma noção algo
herética nos círculos psiquiátricos tradicionais. O outro lado da moeda é
pelo menos igualmente herético: se a psicoterapia é amar genuinamente, o
amor deve ser sempre psicoterapêutico? Se amamos verdadeiramente o
nosso parceiro, pais, filhos, amigos, se nos estendemos para alimentar o seu
desenvolvimento espiritual, devíamos praticar psicoterapia com eles? A
minha resposta é: Com certeza. De vez em quando, num cocktail, alguém
me diz, "Deve ser-lhe difícil, Dr. Peck, separar a sua vida social da sua vida
profissional. Afinal de contas, não se pode passar a vida a analisar os
familiares e os amigos, pois não?" Normalmente, quem o diz
194
195
e fazia tanto por incentivar a sua dependência como o seu poder. A minha
imagem como marido e pai era a do provedor; a minha responsabilidade
terminava quando trazia o sustento para casa. Queria que o lar fosse um
lugar de conforto, não de desafio. Nessa altura, teria concordado com a
sugestão de que seria perigoso, não ético e destrutivo que um
psicoterapeuta praticasse a sua arte com os amigos e a família. Mas a
minha concordância era motivada tanto por preguiça como por medo de
utilizar erradamente a minha profissão. Porque a psicoterapia, como o amor,
é trabalho, e é mais fácil trabalhar oito horas por dia do que dezasseis.
Também é mais fácil amar uma pessoa que procura a nossa sabedoria, que
se desloca ao nosso território para a obter, que nos paga pela nossa
atenção e cujas exigências se limitam a cinquenta minutos de cada vez, do
que amar alguém que considera a nossa atenção um direito, cujas
exigências podem não ser limitadas, que não nos vê como uma figura de
autoridade e não solicita os nossos ensinamentos. Fazer psicoterapia em
casa ou com os amigos requer a mesma intensidade de esforço e auto-
disciplina que no consultório, mas em condições muito menos ideais, o que
quer dizer que em casa exige ainda mais esforço e amor. Espero, portanto,
que outros psicoterapeutas não tomem estas palavras como uma exortação
a começarem imediatamente a praticar a psicoterapia com os seus
parceiros e filhos. Se nos mantivermos numa jornada de desenvolvimento
espiritual, a nossa capacidade de amar não cessa de crescer. Mas é sempre
limitada, e não se deve tentar a psicoterapia para além da capacidade de
amar de cada um, porque a psicoterapia sem amor não resulta e pode ser
mesmo prejudicial. Se puder amar seis horas por dia, contente-se com isso
de momento, porque a sua capacidade já é bem maior do que a da maior
parte das pessoas; a jornada é longa e requer tempo para que a sua
capacidade aumente. Praticar a psicoterapia com os amigos e a família,
amarem-se
196
uns aos outros a tempo inteiro, é um ideal, um objectivo pelo qual lutar,
mas que não é atingido instantaneamente.
Uma vez que, como referi, os leigos podem praticar psicoterapia com êxito
sem grande formação, desde que sejam seres humanos que amam
verdadeiramente, os comentários que fiz relativamente à prática de
psicoterapia com os amigos e a família não se aplicam somente a
terapeutas profissionais; aplicam-se a toda a gente. Às vezes, quando os
pacientes me perguntam quando estarão em condições de terminar a
terapia, eu respondo-lhes, "Quando for capaz de ser um bom terapeuta."
Esta resposta é mais útil na terapia de grupo, onde os pacientes praticam a
psicoterapia uns com os outros e onde lhes podem ser apontadas as suas
falhas ao assumirem o papel de psicoterapeutas. Muitos pacientes não
gostam desta resposta e alguns dirão mesmo, "Isso dá muito trabalho. Para
fazer isso teria que estar sempre a pensar nas minhas relações com as
pessoas. Não quero pensar assim tanto. Não quero ter tanto trabalho. Só me
quero divertir." Há pacientes que respondem da mesma maneira quando
lhes faço notar que todas as interacções humanas são oportunidades de
aprender ou de ensinar (de dar ou receber terapia), e quando não aprendem
nem ensinam numa interacção, estão a perder uma oportunidade. A maior
parte das pessoas tem razão ao dizer que não quer atingir um objectivo tão
alto nem trabalhar tanto na vida. A maioria dos pacientes, mesmo nas mãos
dos terapeutas mais qualificados e dedicados, terminam o tratamento sem
terem chegado a preencher o seu potencial. Podem ter feito um percurso
curto ou longo na jornada de desenvolvimento espiritual, mas a viagem
completa não é para eles. É ou parece ser demasiado difícil. Contentam-se
em ser homens e mulheres comuns e não tentam ser Deus.
197
O Mistério do Amor
ESTA ANÁLISE COMEÇOU, há muitas páginas atrás, por referir que o amor é
um assunto misterioso e que até agora o mistério tem sido ignorado. As
questões levantadas até aqui foram respondidas. Mas há outras questões, a
que não é tão fácil responder.
198
199
200
Secção III
Desenvolvimento e Religião
Esse entendimento é a nossa religião. Uma vez que toda a gente tem algum
entendimento - uma visão global, mesmo que limitada, primitiva ou
inexacta -, toda a gente tem uma religião. Este facto, que não é
amplamente reconhecido, é da maior importância: toda a gente tem uma
religião.
203
204
DESENVOLVIMENTO E RELIGIÃO
205
- não foi mesmo sair, só a acompanhei à porta de casa depois das reuniões
do grupo de jovens da igreja. Roubei-lhe um beijo, às escuras, atrás duns
arbustos, num desses passeios." Aqui Stewart deu uma risada nervosa e
continuou, "No sonho, tinha a sensação de nunca ter visto o pai, embora
soubesse quem ele era. De facto, vi-o na vida real - à distância. Era o chefe
da estação da nossa cidade. De vez em quando, via-o quando ia à estação
ver os comboios a chegar, nas tardes de Verão."
Algo disparou na minha mente. Eu também tinha passado tardes
preguiçosas de Verão a ver passar comboios. A estação era onde havia
acção. E o chefe da estação era o Director da Acção. Sabia quais eram os
lugares longínquos de onde vinham os grandes comboios que passavam
pela nossa cidadezinha e os lugares distantes para onde eles iam.
Accionava os interruptores, os sinais. Recebia o correio e expedia-o. E
quando não estava a fazer essas coisas maravilhosas, sentava-se no
escritório a fazer uma coisa ainda mais maravilhosa: a bater numa tecla
mágica numa linguagem rítmica misteriosa, enviando mensagens para todo
o mundo.
"Stewart," disse eu, "disse-me que era ateu, e eu acredito em si. Há uma
parte da sua mente que acredita não existir Deus. Mas começo a suspeitar
que há outra parte da sua mente que acredita em Deus - um Deus perigoso
e bandido."
206
207
- mas o deles era um Deus de Amor. Jesus ama-nos. Deus ama-nos. Amamos
Deus e Jesus. Amor, amor, amor, era só o que eu ouvia."
Stewart fixou-me nos olhos. "Não se faça de parvo," disse ele. "Sabe bem
que não. Sabe que foi infelicíssima."
208
209
210
A Religião da Ciência
211
Num sentido muito real, começamos pela ciência. Começamos por substituir
a religião dos nossos pais pela religião da ciência. Temos que nos revoltar e
rejeitar a religião dos nossos pais, porque inevitavelmente a sua visão do
mundo é mais restrita do que aquela que podemos ter se tirarmos todas as
vantagens da nossa experiência pessoal, incluindo a nossa experiência
adulta e a experiência de mais uma geração da história da humanidade.
Não existe uma boa religião que passa de geração em geração. Para ser
vital, para ser a melhor de que somos capazes, a religião tem que ser
inteiramente pessoal,
212
(Nota)
* Journey Into Cbrist (Nova Iorque: Seabury Press, 1977), pp. 91-92.
213
Muitos pacientes que já passaram por este começo dizem-me: "Não sou
religioso. Não vou à igreja. Já não acredito em muita coisa que a igreja e os
meus pais me disseram. Não tenho a fé dos meus pais. Acho que não sou
muito espiritual." É muitas vezes um choque para eles quando questiono a
realidade do pressuposto de que não são seres espirituais. "Você tem uma
religião," poderei dizer-lhes, "bastante profunda. Venera a verdade. Acredita
que pode evoluir e melhorar: a possibilidade de progresso espiritual. Com a
força da sua religião, está disposto a sofrer as dores do desafio e as agonias
de
214
Até certo ponto. Embora eu pense que a céptica visão do mundo das
mentes científicas é uma clara melhoria em relação à visão do mundo
baseada na fé cega, superstição local e pressupostos inquestionáveis,
também creio que a maior parte das mentes científicas apenas começou a
jornada de desenvolvimento espiritual. Especificamente, penso que a
perspectiva da maior parte das mentes científicas no que respeita à
realidade de Deus é quase tão paroquial como a de simples camponeses
que seguem cegamente a fé dos seus antepassados. Os cientistas têm
muita dificuldade em lidar com a realidade de Deus.
215
O Caso de Kathy
KATHY ERA A PESSOA MAIS assustada que conheci. Quando entrei no quarto
dela pela primeira vez, estava sentada no chão murmurando o que parecia
um cântico. Olhou para mim, de pé junto da porta, e os seus olhos
esbugalharam-se de terror.
216
217
não tinha problema nenhum. Mas ainda rezava muito. Saúde física? Oh, era
excelente. Nunca tinha estado hospitalizada. Desmaiou uma vez, num
casamento, uns anos antes. Contraceptivos? Tomava a pílula. Espere aí. Há
cerca de um mês disse-me que ia parar com a pílula. Tinha lido algures que
era perigoso ou coisa assim. Ele não se tinha preocupado muito com isso.
"Foi a conduzir para casa como faz todas as manhãs depois de deixar o seu
marido no serviço?"
218
"Não."
"Sim."
Por fim, disse-lhe, "Kathy, acha que vai morrer porque julga conhecer a
mente de Deus. Mas está enganada. Porque não conhece a mente de Deus.
Tudo o que sabe é o que lhe disseram sobre Deus. Muito do que lhe
disseram sobre Deus está errado. Eu não sei tudo sobre Deus, mas sei mais
que você mais do que as pessoas que lhe falaram de Deus. Por exemplo,
vejo homens e mulheres, todos os dias, que querem ser infiéis, e alguns são,
e não são castigados por Deus. Sei, porque eles continuam a vir ter comigo.
E conversam comigo. E sentem-se mais felizes. Tal como você se vai sentir
mais feliz. Porque vamos trabalhar juntos. E vai aprender que não é uma
pessoa má. E vai saber a verdade - sobre si e sobre Deus. E vai sentir-se
mais feliz, consigo e com a vida. Mas agora vai dormir. E quando acordar, já
não vai ter medo de morrer. E quando me vir outra vez amanhã de manhã,
vai conversar comigo e vamos falar de Deus e vamos falar de si."
De manhã, Kathy tinha melhorado. Ainda estava com medo e não estava
convencida de que não ia morrer, mas já não tinha a certeza.
Gradualmente, nesse dia e por muitos dias daí em diante, a história dela foi
surgindo, aos bocados.
219
Durante o último ano do liceu, tinha tido relações sexuais com Howard. Ele
queria casar com ela e ela concordou. Duas semanas depois, no casamento
de uma amiga, veio-lhe de repente à ideia que não se queria casar.
Desmaiou. Depois sentiu-se confusa sobre se amava Howard. Mas sentia-se
na obrigação de avançar com o casamento porque sabia que já tinha
pecado por ter tido relações pré-matrimoniais com ele, e esse pecado
aumentaria se não consagrasse a relação pelo casamento. No entanto, não
queria ter filhos, pelo menos até estar mais segura de amar Howard.
Começou, portanto, a tomar a pílula - outro pecado. Não suportava ter de
confessar esses pecados e foi um alívio deixar de ir à missa depois de casar.
Ela gostava do sexo com Howard. No entanto, quase a partir do dia do
casamento, ele deixou de se interessar por ela sexualmente. Continuava a
ser bom marido, comprava-lhe presentes, tratava-a com deferência,
trabalhava muito fora de horas porque não queria que ela trabalhasse. Mas
ela quase tinha que lhe implorar para terem relações sexuais, e as que
tinham de quinze em quinze dias eram a única coisa que lhe aliviava o
aborrecimento constante. O divórcio estava fora de questão; isso era
pecado.
220
coisas. Passou a ter medo de sair com Howard e, mesmo quando estava
com ele, passou a ter medo dos lugares públicos onde pudesse ver homens.
Pensou em regressar à igreja. Mas depois percebeu que, se voltasse à igreja,
estaria a pecar se não se fosse confessar ao padre sobre as suas fantasias
de infidelidade. Disso não era capaz. Voltou a duplicar a velocidade das
orações. Para facilitar, arranjou um sistema complicado em que a cantilena
de uma só sílaba valia por uma oração completa. Esta foi a génese da sua
cantoria. Passado algum tempo, aperfeiçoou o sistema de maneira que
conseguia salmodiar mil orações em cinco minutos. Ao princípio, quando
estava muito ocupada a aperfeiçoar o cântico, as fantasias de infidelidade
pareciam ter diminuído, mas assim que teve o sistema controlado,
regressaram em força. Começou a pensar em como é que podia concretizá-
las. Pensou em telefonar a Bill, o antigo namorado. Pensou em bares onde
podia ir de tarde. Aterrorizada com a perspectiva de ser capaz de o fazer,
deixou de tomar a pílula, na esperança que o medo de engravidar a
ajudasse a resistir. Mas o desejo não parava de aumentar. Uma tarde, deu
por si a masturbar-se. Ficou horrorizada. Esse era talvez o pecado pior de
todos. Tinha ouvido falar nos duches frios e tomou um o mais frio que
conseguiu aguentar. Mas, no dia seguinte, tudo se repetia.
221
carro e dirigiu-se para o apartamento a alta velocidade. Foi buscar uma
lâmina para cortar o pulso. Não foi capaz. Mas Deus era. Deus fá-lo-ia. Deus
dar-lhe-ia o que merecia. Ele ia acabar com tudo, com ela. Sejam vigilantes.
"Oh, meu Deus, tenho tanto medo, tanto medo, despacha-te por favor,
tenho tanto medo." Começou a entoar o cântico, à espera. E foi assim que a
cunhada a encontrou.
222
Muito deste trabalho foi conduzido em regime ambulatório. Kathy teve alta
do hospital uma semana depois da sessão com sódio amital. Mas foi apenas
ao fim de quatro meses de terapia intensiva que conseguiu dizer, em
relação aos seus conceitos de pecado, "Parece-me que a Igreja Católica me
vendeu gato por lebre." Neste ponto, começou uma nova fase da terapia,
em que perguntámos: Como aconteceu tudo isto? Como se tinha permitido
comprar o gato por lebre? Como é que não tinha conseguido pensar mais
por ela e não tinha questionado a Igreja de alguma forma até agora? "Mas a
minha mãe disse-me que não se deve questionar a Igreja," disse Kathy.
Então, começámos a trabalhar na relação de Kathy com os pais. Com o pai,
não havia relação. Não havia com quem se relacionar. O pai trabalhava; era
tudo. Trabalhava, trabalhava e quando chegava a casa, dormia na cadeira
com uma cerveja. Excepto às Sextas-feiras à noite. Saía para ir beber a
cerveja. A mãe dirigia a família. Sozinha, sem ser questionada, sem a
contradizerem, sem oposição, ela mandava. Era bondosa mas firme. Era
generosa, mas nunca cedia. Tranquila, mas implacável. "Não deves fazer
isso, querida. As boas raparigas não fazem isso." "Não vais usar esses
sapatos, querida. As meninas de boas famílias não usam esses sapatos."
"Não é uma questão de quereres ir à missa, querida. O Senhor quer que
vamos à missa." Gradualmente, Kathy foi-se apercebendo que, por trás do
poder da Igreja Católica, estava o tremendo poder da mãe, uma pessoa tão
suave mas tão completamente dominadora que era impensável desafiá-la.
223
O C A M IN H O M ENOS P F: R C O R RI D O
Kathy estava com quase tanto medo corno no dia em que a conheci. Mais
uma vez, Howard não fazia ideia da causa. Levei Kathy para o quarto. "Pare
de cantar," ordenei-lhe, "e diga-me o que se passa."
"Não posso."
"Pode, sim, Kathy."
"Não, Kathy," respondi. "Desta vez está suficientemente forte para o fazer
por si."
Ela gemeu. Depois olhou para mim e continuou a cantar. Mas pude ver, nos
olhos dela, zanga, quase fúria, contra mim.
"Kathy," disse eu, "posso pensar numa dúzia de razões para estar zangada
comigo. Mas não sei se não me disser. Pode dizer-me. Não faz mal."
"Não vai não, Kathy. Não vai morrer porque está zangada comigo. Eu não a
vou matar por estar zangada comigo. Pode estar zangada comigo à
vontade."
"Os meus dias não são longos," gemeu Kathy. "Os meus dias não são
longos."
Houve algo nestas palavras que me soou estranho. Não eram as palavras
que esperava. Não pareciam naturais. Mas não sabia muito bem o que dizer
e acabava por me repetir duma maneira ou doutra.
"Kathy, eu gosto de si," disse eu. "Gosto de si mesmo que me odeie. O amor
é isso. Como é que a podia castigar por me odiar, se gosto de si, mesmo
odiando-me?"
De repente, fez-se luz. "Os seus dias não são longos. Não são longos na
terra. É isso, não é Kathy? Honra pai e mãe
224
para que os teus dias sejam longos nesta terra. O Quinto Mandamento.
Honra-os ou morre. É o que está a acontecer, não é?"
"Odeio-a," murmurou Kathy. Depois mais alto, como se o som da própria voz
ao dizer as palavras temidas lhe aumentasse a coragem, "Odeio-a. Odeio a
minha mãe. Odeio-a. Nunca me deu... Nunca me deu... Nunca me deu eu.
Nunca me deixou ser eu. Fez-me à imagem dela. Obrigou-me, obrigou-me,
obrigou-me. Nunca me deixou ser eu em nada."
225
Descrevi o caso de Kathy com este pormenor, precisamente por ser tão
típico da relação entre a educação religiosa e a psicopatologia. Há milhões
de Kathys. Eu costumava dizer às pessoas, em ar de graça, que a Igreja
Católica me sustentava como psiquiatra. Podia dizer o mesmo da Igreja
Baptista, da Luterana, Presbiteriana ou outra qualquer. A Igreja não era,
evidentemente, a única causa da neurose de Kathy. Num certo sentido, a
Igreja era apenas um instrumento utilizado pela mãe de Kathy para
sedimentar e aumentar a sua autoridade excessiva. Pode dizer-se,
justificadamente, que a natureza dominadora da mãe, ajudada por um pai
ausente, era a causa mais básica da neurose, e também nesse aspecto o
caso de Kathy era típico. Mesmo assim, parte da culpa cabe à Igreja.
Nenhuma freira da escola paroquial nem nenhum padre no catecismo
alguma vez encorajou Kathy a questionar razoavelmente a doutrina
religiosa ou a pensar por si própria fosse de
226
que maneira fosse. Nunca houve prova de preocupação por parte da Igreja
que a sua doutrina fosse ensinada ao exagero, irrealisticamente rígida ou
sujeita a ser mal utilizada e mal aplicada. Uma das formas de analisar o
problema de Kathy seria afirmar que, enquanto acreditou piamente em
Deus, nos mandamentos e no conceito de pecado, a sua religião e
entendimento do mundo eram do tipo "passagem de testemunho", pouco
adequado às suas necessidades. Não tinha questionado, desafiado, pensado
por si. No entanto, a Igreja de Kathy o que também é típico - não fez o
menor esforço para a ajudar a estabelecer uma religião pessoal mais
adequada e original. Parece que, de uma maneira geral, as Igrejas
fomentam que a religião e o entendimento do mundo sejam do tipo
"passagem de testemunho".
Devido ao caso de Kathy ser tão típico e outros como ele serem tão
vulgares, muitos psiquiatras e psicoterapeutas encaram a religião como o
Inimigo. Podem até considerar a religião como uma neurose - uma colecção
de ideias inerentemente irracionais que servem para agrilhoar as mentes
das pessoas e oprimir os seus instintos de desenvolvimento mental. Freud,
um racionalista e cientista por excelência, aparentemente via as coisas mais
ou menos nesta luz, e dado ser a figura mais influente da Psiquiatria (por
muitas e boas razões), as suas atitudes contribuíram para o conceito da
religião como uma neurose. É na verdade tentador para os psiquiatras
verem-se como cavaleiros da ciência moderna, em nobre combate contra as
forças destrutivas de antigas superstições religiosas e dogmas irracionais
mas autoritários. E o facto é que os psicoterapeutas têm de dispender
imenso tempo e esforço, lutando por libertar as mentes dos pacientes de
ideias religiosas ultrapassadas e de conceitos claramente destrutivos.
227
O Caso de Mareia
NEM TODOS os CASOS SÃO semelhantes ao de Kathy. Há muitos outros
padrões, alguns também bastante comuns. Mareia foi um dos meus
primeiros casos de terapia a longo prazo. Era uma jovem bastante rica, de
vinte e poucos anos, que me procurou devido a anedonia generalizada.
Embora não pudesse salientar o que estava errado na sua existência,
achava-a inexplicavelmente triste. Ela tinha um aspecto bastante triste.
Apesar da fortuna e da educação universitária, tinha o aspecto de uma
imigrante pobre, suja e velha. Durante o primeiro ano de terapia vestia-se
invariavelmente com roupas azuis, cinzentas, pretas ou castanhas que lhe
assentavam mal e trazia um saco de tapeçaria enorme, sujíssimo e roto em
tons idênticos. Era filha única, de pais intelectuais, ambos professores
universitários e socialistas, que acreditavam que a religião era uma treta.
Tinham feito troça dela, quando, no início da adolescência, ia à igreja com
uma amiga.
228
229
bem, digo para mim mesma 'Sabes, aposto que há mesmo um Deus. Acho
que o mundo não podia estar tão bem sem um Deus'. É engraçado. Não sei
como falar destas coisas. Sinto-me ligada, real, como se fosse uma parte
verdadeira de um quadro muito grande, e embora não consiga ver muito do
quadro, sei que lá está e que é bom e sei que faço parte dele."
O Caso de Theodore
TED TINHA TRINTA ANOS quando me veio consultar, e era eremita. Nos sete
anos anteriores tinha vivido numa pequena cabana bem escondida na
floresta. Tinha poucos amigos e ninguém próximo. Durante três anos não
tinha saído com nenhuma rapariga. De vez em quando, fazia pequenos
traba-
230
O problema, disse Ted, começou quando tinha dezoito anos e entrou para a
universidade. Até aí tinha corrido tudo bem. Tinha tido uma infância vulgar
numa família abastada e estável, com dois irmãos mais velhos; pais que
gostavam dele, embora não gostassem muito um do outro; boas notas e
satisfações num colégio interno particular. Depois - e talvez tenha sido
crucial - teve uma ligação apaixonada com uma mulher que o rejeitou na
semana antes de entrar para a universidade. Desesperado, passou a maior
parte do ano de caloiro bêbado. No entanto, mantinha boas notas. Depois
teve várias outras ligações, cada uma menos empenhada e mais desastrosa
do que a anterior. As notas começaram a descer. Não conseguia decidir o
que escrever nos testes. Um amigo chegado, Hank, morreu num desastre de
automóvel a meio do segundo ano, mas ele tinha-se conformado. Chegou a
deixar de beber, nesse ano. Mas o problema de tomar decisões piorou ainda
mais. Era simplesmente incapaz de escolher um tópico para a sua tese.
Terminou o trabalho de curso. Alugou um quarto fora
231
232
"Acho que tanto se pode chamar aquilo religioso como chamar-lhe música."
"Talvez tenha sido a religião que o ofendeu," sugeri, "e não tanto a música."
233
"E depois?"
"Que quer dizer, como me passou com a idade?" Ted estava a ficar
claramente irritado. "Como é que alguma coisa passa com a idade? Passou,
é tudo."
"Quando lhe passou com a idade?"
"Nunca?"
234
"Bom, tinha a ver com Gerard Manley Hopkins. Foi um dos primeiros poetas
verdadeiramente modernos. Focava provavelmente o poema Beleza
Multicor."
arado;
"Sim."
"Sim."
"Sim."
"Se não estou em erro, foi no mês seguinte, Fevereiro, que o seu amigo
Hank morreu."
"Sim."
Sentia uma tensão inacreditável a crescer. Não tinha a certeza do que devia
fazer. Esperançado, continuei. "Portanto foi
235
rejeitado pela sua primeira namorada a sério aos dezassete anos e perdeu o
entusiasmo pela igreja. Três anos depois o seu melhor amigo morre e perde
o entusiasmo por tudo."
"Eu não o perdi, tiraram-mo." Ted quase gritava, mais tenso do que jamais o
vira.
"E porque não?" perguntou ele. "É um mundo de merda. Foi sempre um
mundo de merda."
E tinha sido. Sob a aparente calma exterior, o lar da infância de Ted tinha
sido um constante combate sangrento para ele. Os dois irmãos mais velhos
embirravam com ele com maldade sem igual. Os pais, demasiado
preocupados com as suas coisas e com o ódio que tinham um pelo outro
para se preocuparem com os problemas aparentemente menores dos filhos,
não lhe tinham dado a ele, o mais pequeno e mais fraco, nenhuma
protecção. A sua maior consolação era fugir para passeios longos e
solitários no campo, e concluímos que o padrão de eremita tinha raízes nos
anos anteriores aos dez anos dele. O colégio interno, com as suas pequenas
crueldades, tinha sido um alívio. À medida que falava destas coisas, o
ressentimento de Ted para com o mundo - ou melhor, a sua exteriorização
desse ressentimento - foi ganhando consistência. Nos meses seguintes,
reviveu não só a dor da infância e a dor da morte de Hank, mas também a
dor de mil mortes mais pequenas, rejeições e perdas. Toda a vida parecia
um emaranhado de morte e sofrimento, perigo e selvajaria.
236
ano do curso. Nem sequer o reli. Pensei que gostasse de ler a versão
integral de como eu era há dez anos."
Eu disse que sim, e fi-lo nas duas noites seguintes. Na verdade, não era
muito revelador, a não ser por confirmar que o seu padrão solitário, isolado
por um snobismo resultante de mágoa, já nessa altura estava
profundamente entranhado. Mas havia uma referência que me chamou a
atenção. Descrevia um passeio solitário a pé num Domingo de Janeiro, em
que tinha sido apanhado por uma tempestade de neve e tinha regressado à
residência universitária várias horas depois de escurecer. "Senti uma certa
felicidade," tinha ele escrito, "ao regressar à segurança do meu quarto, não
muito diferente da que senti no Verão passado quando vi a morte tão
perto." No dia seguinte, durante a consulta, pedi-lhe para me contar como é
que tinha estado próximo da morte.
Por essa altura, já eu sabia bem que sempre que Ted afirmava ter-me
contado qualquer coisa, estava a tentar escondê-la. "Está a ser dissimulado,
outra vez," respondi-lhe.
"Bem, tenho a certeza que lhe contei. Devo ter contado. De qualquer
maneira, não teve assim tanta importância. Lembra-se que estive a
trabalhar na Florida, no Verão entre o primeiro e o segundo ano. Houve um
furacão. Eu gosto de tempestades, sabe. No auge do temporal, fui até a um
molhe. Fui levado por uma onda e trazido de volta por outra. Foi só isso que
aconteceu. Passou-se muito depressa."
"Isso eu percebo," disse eu. "Gostamos ambos de tempestades. Mas não sei
se me iria pôr em perigo dessa maneira."
"Bem, sabe que eu tenho uma certa tendência suicida,"
237
respondeu Ted, quase em provocação. "E nesse Verão, senti muito essa
tendência. Já a analisei. Francamente, não me lembro de ir até ao molhe
com qualquer intenção de suicídio. Mas, na verdade, não me importava
muito com a vida e reconheço a possibilidade de estar com tendências
suicidas." "Foi levado por uma onda?"
"Sim. Nem percebi o que aconteceu. Havia tantos salpicos que não se via
quase nada. Julgo que veio uma onda maior. Senti-a embater em mim, senti-
me a ser levado e senti-me perdido na água. Nada podia fazer para me
salvar. Tinha a certeza de que ia morrer. Senti-me aterrorizado. Passado
cerca de um minuto, senti-me a ser empurrado para trás pela água
- deve ter sido uma onda da rebentação - e um segundo depois, fui atirado
de encontro ao molhe. Fui de gatas até à beira do molhe, agarrei-me e, sem
nunca o largar, voltei para terra de gatas. Fiquei com umas nódoas negras.
Foi só isso."
"Que quer dizer, o que sinto?" perguntou Ted, com a sua maneira de resistir.
"Sim."
"Bem, acho que tive sorte."
"Sim, só isso."
"É curioso, Ted," disse eu, "que sempre que alguma coisa desagradável lhe
acontece, insurge-se contra Deus, insurge-se contra este mundo imundo e
terrível. Mas quando lhe acon-
238
tece uma coisa boa, acha que tem sorte. Uma pequena tragédia é culpa de
Deus. Uma bênção milagrosa é um bocadito de sorte. Que acha disso?"
Depois de dois anos de terapia, Ted anunciou-me, certa manhã, que tinha
chegado a altura de andar para a frente. "Tenho andado a pensar em me
matricular numa faculdade de Psicologia," disse ele. "Já sei que vai dizer que
o estou a imitar, mas analisei a questão e não me parece que seja isso."
"Continue," pedi.
"Bom, pensando nisto, parece-me que devia tentar fazer o que é mais
importante. Se vou voltar a estudar, quero estudar as coisas mais
importantes."
"Continue."
239
"Sim."
"Sim."
"Porque não?"
"Olhe," disse eu, "não estou a fazer nenhuma escolha por si. Estou apenas a
ser puramente analítico. Estou a analisar as alternativas que se lhe
oferecem. Você é que, por alguma razão, não quer estudar essas
alternativas. É você que quer fazer a coisa mais importante. É você que
acha que Deus é a coisa mais importante. No entanto, quando o empurro
para encarar a alternativa duma carreira em Deus, exclui-a. Diz que não é
240
"Porque não?"
"Olhe," lamentou-se Ted, "não sabe o que isto é para mim. Não sabe o que é
ser como eu sou. Sempre que abria a boca para manifestar entusiasmo
sobre qualquer coisa, os meus irmãos punham-se a fazer troça de mim."
"Até parece que ainda tem dez anos," comentei, "e que os seus irmãos
ainda andam por aqui."
Ted já chorava de frustração. "E não é tudo," disse ele, chorando. "Era assim
que os meus pais me castigavam. Sempre que eu fazia uma asneira,
tiravam-me uma coisa de que eu gostava. 'Vamos lá ver o que entusiasma
mais o Ted. Ah, sim, a visita a casa da tia para a semana. Está
excitadíssimo. Portanto, dizemos-lhe que, por se ter portado mal, não pode
ir visitar a tia. É isso mesmo. Há também o arco e as flechas. Ele adora o
arco e as flechas. Vamos tirar-lhas.' Simples. Um sistema simples. Tudo o
que me entusiasmava, eles tiravam-me. Tudo o que amava, perdia."
241
242
Que fazer com esta resposta sim e não? Os cientistas dedicam-se a fazer
perguntas em busca da verdade. Mas também são humanos e, como todos
os humanos, querem que as respostas sejam simples, claras e fáceis. No
seu desejo de soluções simples, os cientistas têm tendência para cair em
duas armadilhas quando questionam a realidade de Deus. A primeira é
atirar fora o bebé juntamente com a água do banho. E a segunda é a visão
em túnel.
Outra das razões porque os cientistas têm tanta tendência para atirar fora o
bebé juntamente com a água do banho é o facto de a ciência em si, como já
referi, ser uma religião.
243
Pelo contrário, há razões para crer que, por detrás de noções espúrias e de
falsos conceitos de Deus, existe uma realidade que é Deus. Foi isso que Paul
Tillich quis dizer quando se referiu ao "deus para além de Deus" e é a razão
porque alguns cristãos sofisticados proclamavam alegremente, "Deus está
morto. Viva Deus." Será possível que o caminho do desenvolvimento
espiritual passe da superstição para o agnosticismo e depois do
agnosticismo para um conhecimento exacto de Deus?
Era desse caminho que falava o Sufi Aba Said ibn Abi-1-Khair, há mais de
novecentos anos, quando dizia:
244
(Nota)
* Citado de Idries Shah, The Way of tbe Sufi (Nova Iorque: Dutton,
1970), p. 44.
245
246
Outra das razões principais porque os cientistas tendem a deitar fora o bebé
juntamente com a água do banho, é não verem o bebé. Muitos cientistas
simplesmente não olham para as provas da realidade de Deus. Sofrem
duma espécie de visão em túnel, um par de viseiras imposto
psicologicamente, que os impede de dirigir a sua atenção para os domínios
do espírito.
Este estranho mas bastante comum pressuposto de que as coisas que não
são fáceis de estudar não merecem estudo começa a ser questionado por
várias evoluções relativamente recentes na própria ciência. Uma é o
desenvolvimento de métodos de estudo cada vez mais sofisticados. Pela
utilização de equipamento electrónico como microscópios de electrões,
espectrofotómetros, computadores e programas como técnicas estatísticas,
podemos fazer medições de fenómenos cada vez mais complexos, que há
algumas décadas eram imensuráveis. O alcance da visão científica está
portanto a expandir-se. Como continua a crescer, talvez possamos dizer em
breve: "Nada existe para lá dos limites da nossa visão. Se decidimos estudar
qualquer coisa, podemos sempre achar uma metodologia para o fazer."
248
(Nota)
249
A Igreja tem sido um pouco mais liberal. Para o sistema religioso, o que não
pode ser entendido em termos da lei natural conhecida é milagre, e os
milagres existem. Mas, para além de autenticar a sua existência, a Igreja
não se tem mostrado ansiosa por examinar os milagres muito de perto. "Os
milagres não precisam de ser analisados cientificamente," tem sido a
atitude religiosa dominante. "Devem ser aceites simplesmente como actos
de Deus." Os religiosos não querem que a sua religião seja abalada pela
ciência, tal como os cientistas não querem a ciência abalada pela religião.
Casos de curas milagrosas, por exemplo, têm sido utilizados pela Igreja
Católica para autenticar os seus santos, e são comuns em muitas
denominações protestantes. No entanto, as Igrejas nunca disseram aos
médicos, "Querem juntar-se a nós para estudar estes fenómenos
fascinantes?" Nem os médicos
250
251
252
No que respeita aos milagres, penso que o nosso quadro de referência tem
sido demasiado drástico. Temos procurado a sarça ardente, a separação das
águas, a voz tonitruante dos céus. Em vez disso, devíamos procurar a
evidência dos milagres nos acontecimentos vulgares do nosso dia-a-dia,
conservando ao mesmo tempo uma orientação científica. É o que irei fazer
na secção seguinte, examinando ocorrências vulgares na prática da
Psiquiatria, que me levaram ao entendimento do fenómeno extraordinário
da graça.
Mas gostaria de concluir com outra nota de aviso. Esta ligação entre a
ciência e a religião pode constituir um terreno pouco firme e perigoso.
Iremos lidar com percepção extra-sensorial e fenómenos "psíquicos" ou
"paranormais", bem como com outras variedades do miraculoso. É essencial
mantermos a cabeça fria. Participei recentemente numa conferência sobre a
cura pela fé, em que vários oradores instruídos apresentaram provas
anedóticas indicando que eles ou outros possuíam poderes curativos, de
forma tal que sugeria que essas provas eram rigorosas e científicas, quando
não o eram. Se um curandeiro pousa as mãos na articulação inflamada dum
doente e no dia seguinte a articulação deixa de estar inflamada, não quer
dizer que o doente tenha sido curado pelo curandeiro. As articulações
inflamadas deixam de o estar mais cedo ou mais tarde, gradualmente ou de
repente, independentemente do que se lhes fizer. O facto de dois
acontecimentos ocorrerem ao mesmo tempo não significa necessariamente
que estejam relacionados causalmente. Sendo esta área tão obscura e
ambígua, ainda se torna mais importante que a abordemos com um
cepticismo saudável, para não nos iludirmos a nós próprios nem a outros.
Uma das formas como os outros podem ser iludidos, por exemplo, é
apercebendo-se da ausência de cepticismo e de teste rigoroso da realidade
tantas vezes presentes nos indivíduos que são proponentes públicos da
realidade dos fenómenos
253
254
Secção IV
Graça
O Milagre da Saúde
Não teremos menos dias para cantar em louvor de Deus Do que quando
começámos. *
(Nota)
257
bra é porque não faz parte do curso vulgar das coisas, quando não é
previsível pelo que conhecemos da "lei natural". O que se segue demonstra
que a graça é um fenómeno comum e, até certo ponto, previsível. Mas a
realidade da graça continuará a ser inexplicável dentro do quadro
conceptual da ciência convencional e da "lei natural" tal como a
entendemos. Continuará miraculosa e assombrosa.
258
podia ser descrita como ligeira. Era filho ilegítimo e, durante a primeira
infância, foi criado apenas pela mãe, surda-muda, nos bairros pobres de
Chicago. Aos cinco anos, o Estado, considerando que uma mãe como ela
não tinha competência para educar uma criança, tirou-o à mãe, sem aviso
nem explicação, e puseram-no sucessivamente em três lares adoptivos
diferentes, onde foi tratado de forma indigna e com total ausência de
afecto. Aos quinze anos, ficou parcialmente paralisado em consequência da
rotura de um aneurisma numa das veias do cérebro. Aos dezasseis,
abandonou os últimos pais adoptivos e passou a viver sozinho. Como era de
prever, aos dezassete foi preso devido a um assalto particularmente
maldoso e desnecessário. Não recebeu tratamento psiquiátrico na prisão.
259
260
261
262
i
Num dia de Inverno, quando tinha nove anos, ia para casa, carregado com
os livros da escola e, ao atravessar uma rua coberta de neve quando o sinal
estava a mudar, escorreguei e caí. Quando o carro que se aproximava
rapidamente conseguiu travar, a minha cabeça estava ao nível do pára-
choques da frente; tinha as pernas e o tronco debaixo da parte do meio do
carro. Saí debaixo do carro e, em pânico, fui a correr até casa, sem me ter
magoado. Só por si este incidente não parece ter nada de extraordinário;
pode dizer-se simplesmente que tive sorte. Mas juntem-se todas as outras
circunstâncias: as vezes que não fui atropelado por pouco a pé, de bicicleta
ou de carro; as vezes em que ia de carro e quase bati em peões ou falhei
por pouco ciclistas à noite; as vezes em que meti travões a fundo e parei a
um ou dois centímetros doutro carro; as vezes em que por pouco não fui de
"ski" contra árvores, em que quase caí de janelas; as vezes em que me
passou um taco de golfe pelo cabelo, etc.. O que é isto? Tenho uma vida
encantada? Se os leitores examinarem as suas vidas, nesta altura, suspeito
que a maioria encontrará na sua experiência pessoal, padrões semelhantes
de desastres evitados à justa de forma repetida, um número de acidentes
que quase aconteceram que é muito maior do que o número de acidentes
263
que de facto ocorreram. Além disso, creio que os leitores reconhecerão que
os seus padrões pessoais de sobrevivência, de resistência aos acidentes,
não resultam de um processo de tomada de decisão consciente. Será que a
maior parte de nós leva uma "vida encantada"? Será que é verdadeiro o
verso da canção: "Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui"?
Alguns podem achar que nada há de excitante em tudo isto, que todas as
coisas de que temos estado a falar são simples manifestações do instinto de
sobrevivência. Mas o dar nomes às coisas, explica-as? O facto de termos um
instinto para sobreviver parece vulgar porque lhe chamamos instinto? O
nosso entendimento das origens e mecanismos dos instintos é, no máximo,
minúsculo. Na verdade, a questão dos acidentes sugere que a nossa
tendência para a sobrevivência pode ser outra coisa, e ainda mais
miraculosa do que um instinto, que é por si um fenómeno miraculoso.
Embora não entendamos quase nada de instintos, concebemo-los como
funcionando dentro dos limites do indivíduo que os possui. A resistência às
disfunções mentais ou à doença física, podemos imaginar que esteja
localizada no subconsciente do indivíduo. Os acidentes, no entanto,
envolvem interacções entre indivíduos ou entre indivíduos e objectos
inanimados. As rodas do carro não me passaram por cima quando eu tinha
nove anos devido ao meu instinto de sobrevivência ou porque o condutor
possuía uma resistência instintiva a matar-me? Talvez tenhamos um instinto
não só de preservar as nossas vidas mas também as dos outros.
Embora eu não tenha passado por isso pessoalmente, tenho vários amigos
que assistiram a acidentes de automóvel em que as "vítimas" rastejaram,
virtualmente intactas, para fora de veículos completamente amassados. A
reacção delas tem sido de puro assombro. "Não percebo como alguém pode
ter sobrevivido a um desastre destes, quanto mais sem nenhuma lesão
grave!" afirmam. Como explicar isto? Pura sorte? Estes
264
O Milagre do Subconsciente
265
Claro que uma das formas como sabemos da existência deste domínio,
vasto mas escondido, da mente e da riqueza que contém, é através dos
sonhos. Um homem bastante importante veio consultar-me devido a uma
depressão que durava há muitos anos. Não sentia entusiasmo pelo trabalho,
mas não percebia porquê. Apesar dos pais terem sido relativamente pobres
e desconhecidos, vários antepassados do pai tinham sido homens famosos.
O meu paciente pouco se referiu a eles. A depressão era provocada por
muitos factores. Só passados alguns meses é que começámos a analisar a
questão da sua ambição. Na sessão a seguir àquela em que o assunto da
ambição foi levantado pela primeira vez, ele contou um sonho da noite
anterior, de que se segue um excerto: "Estávamos num apartamento cheio
de móveis enormes e opressivos. Eu era muito mais novo do que sou agora.
O meu pai queria que eu atravessasse a baía de barco para ir buscar uma
embarcação que ele, por qualquer razão, tinha deixado numa ilha do outro
lado. Eu estava ansioso pela viagem e perguntei-lhe como encontrava o
barco. Ele chamou-me à parte para um sítio onde se encontrava um móvel
particularmente grande e esmagador, uma cómoda enorme, com mais de
três metros de comprimento e que chegava ao tecto, com cerca de vinte ou
trinta gavetas gigantescas, e disse-me que veria o barco se espreitasse pelo
canto da cómoda." Inicialmente o significado do sonho era pouco claro, por
isso, como de costume, pedi-lhe que associasse a cómoda enorme. Ele disse
imediatamente, "Por qualquer razão - talvez porque era tão opressiva - faz-
me pensar num sarcófago." "Então e as gavetas?" perguntei. De repente,
ele sorriu. "Talvez quisesse matar todos os meus
266
Quem tiver trabalhado muito com sonhos, reconhecerá este como típico.
Gostaria de focar a sua utilidade num dos aspectos em que é típico. Este
homem tinha começado a tratar dum problema. Quase imediatamente, o
seu subconsciente produziu um drama que esclarecia a causa do problema,
uma causa de que ele anteriormente não tinha consciência. Fê-lo através de
símbolos, duma maneira tão elegante como o mais qualificado dos autores
de teatro. É difícil imaginar outra experiência nessa altura do tratamento
que fosse tão edificante para ele e para mim como este sonho. O
subconsciente parecia claramente querer ajudá-lo e ao nosso trabalho em
conjunto, e fê-lo com uma habilidade consumada.
É precisamente por serem normalmente tão úteis que os psicoterapeutas
fazem, geralmente, da análise dos sonhos, uma parte significativa do seu
trabalho. Devo confessar que há muitos sonhos cujo significado me escapa
completamente, e é tentador desejar petulantemente que o subconsciente
tivesse muitas vezes a decência de falar numa linguagem mais clara. No
entanto, nas ocasiões em que conseguimos fazer a tradução, a mensagem
parece ser sempre destinada a apoiar o nosso desenvolvimento espiritual.
Na minha experiência, os sonhos que podem ser interpretados fornecem
invariavelmente informações úteis ao sonhador. Essa ajuda assume uma
variedade de formas: como avisos contra ciladas pessoais; como
267
268
269
incrivelmente dominadora que puxava os fios, que se orgulhava imenso de
ter ensinado a filha a ir à casa-de-banho "de um dia para o outro"; uma
vontade totalmente dedicada a ir de encontro às expectativas dos outros, a
ser limpa, arranjada, composta, arrumada, e dizer as coisas convenientes,
tentando freneticamente, qual malabarista, equilibrar as exigências que lhe
faziam; uma total ausência de motivação e de capacidade para tomar
decisões autónomas.
270
271
tura, honestidade, verdade e realidade, lutando para "contar tal qual é".
272
273
274
Como é que eu sabia isso que não sabia? Entre as explicações possíveis,
uma é a da teoria do "subconsciente colectivo" de Jung, em que herdamos a
sabedoria da experiência dos nossos antepassados sem termos tido a
experiência pessoal. Embora este tipo de conhecimento possa parecer
bizarro às mentes científicas, a sua existência é estranhamente reconhecida
na nossa linguagem vulgar de todos os dias. Veja-se a própria palavra
"reconhecer". Quando lemos um livro e encontramos
275
uma ideia ou uma teoria que nos atrai, que nos recorda qualquer coisa,
"reconhecemo-la" como verdadeira. No entanto, podemos nunca ter
pensado conscientemente nessa ideia ou teoria. A palavra diz que
"reconhecemos" o conceito, como se já o tivéssemos conhecido em tempos,
o tivéssemos esquecido e depois reconhecido como a um velho amigo. É
como se todo o conhecimento e toda a sabedoria estivessem contidos na
nossa mente e, quando aprendemos "uma coisa nova", estamos na verdade
a descobrir algo que já existia no nosso Eu. Este conceito está igualmente
reflectido na palavra "educação", que deriva do latim educare, traduzida
literalmente como "trazer para fora de" ou "conduzir em frente". Portanto,
quando educamos as pessoas, se usarmos a palavra seriamente, não lhes
metemos coisas novas na cabeça; antes, trazemos essas coisas para fora
delas; conduzimo-las a partir do subconsciente para a sua consciência. Elas
já eram possuidoras do conhecimento.
Mas qual é a fonte, essa parte de nós que é mais sábia que nós? Não
sabemos. A teoria de Jung do subconsciente colectivo sugere que a nossa
sabedoria é herdada. Experiências científicas recentes com material
genético em conjunção com o fenómeno da memória sugerem que é de
facto possível herdar o conhecimento, armazenado em células sob a forma
de ácido nucleico. O conceito da armazenagem química de informação
permite-nos começar a perceber como a informação potencialmente
disponível para a mente humana pode ser armazenada em poucos
centímetros cúbicos de substância cerebral. Mas mesmo este modelo
extraordinariamente sofisticado, que permite o armazenamento do
conhecimento herdado assim como do experimental num pequeno espaço,
deixa sem resposta as perguntas mais intrigantes. Quando especulamos
sobre a tecnologia de tal modelo - como poderá ser construído,
sincronizado, etc. - ainda ficamos mudos de espanto perante o fenómeno da
mente humana. A especulação sobre
276
estas questões quase não difere em qualidade da especulação quanto a
modelos de controle cósmico tais como Deus tendo sob o seu comando
exércitos e coros de arcanjos, anjos, serafins e querubins para o ajudarem
na tarefa de manter em ordem o Universo. A mente, que por vezes pretende
acreditar que os milagres não existem, é, em si, um milagre.
O Milagre do Serendipismo
Por exemplo, não é invulgar que dois indivíduos que se conheçam tenham
separadamente o mesmo sonho ou sonhos incrivelmente semelhantes.
Como é que isto acontece? Não fazemos a menor ideia.
(NOta)
277
278
A,
279
O meu exemplo refere-se a uma jovem paciente que, apesar dos esforços
feitos de ambos os lados, provou ser psico-
(Nota)
The Portable Jung, Joseph Campbell, ed. (Nova Iorque: Viking Press,
280
GRAÇA
281
que algumas pessoas o possuem e outras não, que algumas pessoas têm
sorte e outras não. É uma das teses principais desta secção que a graça,
manifestada em parte por "coisas valiosas ou agradáveis não procuradas",
está disponível para todos, mas enquanto alguns tiram partido dela, outros
não. Ao deixar entrar o besouro, apanhá-lo e dá-lo à sua paciente, Jung
estava claramente a tirar partido dela. Iremos explorar algumas das razões
e formas em que as pessoas não tiram partido da graça, mais adiante, sob o
título "Resistência à Graça". Mas, para já, adiantarei que uma das razões
porque não tiramos inteiro partido da graça é não nos apercebermos da sua
presença - ou seja, não encontramos coisas valiosas não procuradas, porque
não apreciamos o valor da oferta quando nos é dada. Por outras palavras, os
acontecimentos serendipíticos ocorrem com todos nós, mas frequentemente
não reconhecemos a sua natureza serendipítica; consideramos tais
ocorrências banais, e consequentemente não tiramos total partido delas.
Há cinco meses atrás, dispondo de duas horas livres entre duas consultas,
numa certa cidade, perguntei a um colega que ali vivia se as podia passar
na biblioteca de sua casa, a trabalhar na revisão da primeira secção deste
livro. Quando lá cheguei, fui recebido pela mulher do meu colega, uma
mulher distante e reservada que parecia não simpatizar muito comigo e que
me tinha manifestado até alguma hostilidade, por diversas vezes, de forma
quase arrogante. Conversámos desajeitadamente durante cerca de cinco
minutos. Durante essa conversa superficial, ela disse que tinha sabido que
eu estava a escrever um livro e perguntou-me qual era o assunto. Disse-lhe
que tratava do desenvolvimento espiritual e não adiantei mais. Sentei-me
na biblioteca para trabalhar. Meia hora depois, encontrei um obstáculo. Uma
parte do que tinha escrito sobre a questão da responsabilidade parecia-me
completamente insatis-
282
fatória. Era óbvio que tinha que ser consideravelmente alongada para dar
sentido aos conceitos nela analisados, no entanto sentia que esse
alongamento ia prejudicar o seguimento do trabalho. Por outro lado, não
estava disposto a retirar toda essa secção, porque achava necessário fazer
alguma referência a esses conceitos. Debati-me com o dilema durante mais
de uma hora, não chegando a nenhuma conclusão, sentindo-me cada vez
mais frustrado e incapaz de resolver a situação.
283
em nota de fim de página, o livro de Wheelis como uma análise exaustiva
ideal do assunto. O meu dilema ficou resolvido.
A Definição de Graça
ATÉ AQUI, NESTA SECÇÃO, descrevi uma variedade de fenómenos que têm
as seguintes características em comum:
Que vamos fazer - nós que somos cépticos e temos mentes científicas - com
esta "força poderosa originada exteriormente à consciência humana que
acalenta o desenvolvimento espiritual dos seres humanos"? Não podemos
tocar nesta força. Não temos nenhuma forma aceitável de a medir. No
entanto, existe. É real. Vamos funcionar com a visão em túnel e ignorá-la
porque não se ajusta facilmente aos conceitos tradicionais científicos da lei
natural? Fazê-lo parece perigoso. Não creio que possamos almejar chegar ao
total entendimento do cosmo, e portanto à natureza da humanidade em si,
sem incorporar o fenómeno da graça no nosso quadro conceptual.
Tento não pensar no indivíduo como uma verdadeira entidade, e até onde as
minhas limitações intelectuais me obrigam a pensar (ou a escrever) em
termos de entidades, concebo as
286
fronteiras do indivíduo como sendo marcadas por uma membrana muito
permeável - uma cerca, se quiserem, em vez dum muro; uma cerca através
da qual ou por baixo e por cima da qual podem trepar, gatinhar ou
atravessar outras "entidades". Tal como a nossa mente consciente é sempre
parcialmente permeável ao nosso subconsciente, assim o nosso
subconsciente é permeável à "mente" exterior, a "mente" que nos atravessa
e que, no entanto, não é nós como entidade. Mais elegante e
adequadamente descritiva da situação do que a linguagem científica do
século XX de membranas permeáveis é a linguagem religiosa, do século XIV
(c. 1393) da Dama Julian, uma anacoreta de Norwich, ao descrever a relação
entre a graça e a entidade individual: "Pois como o corpo se veste de tecido,
e a carne de pele e os ossos de carne e o coração de tudo isso, assim nós
nos vestimos, corpo e alma, e estamos envolvidos na bondade de Deus.
Sim, e mais simples; porque todos eles se podem gastar e fenecer, mas a
bondade de Deus permanece sempre."*
(Nota)
* Revelation of Divine Love, Grace Warrack, ed. (Nova Iorque: British Book
Centre, 1923), Cap. VI.
287
O Milagre da Evolução
EMBORA NÃO A TENHAMOS focado até aqui como conceito, duma forma ou
doutra, temos tratado da evolução ao longo deste livro. O desenvolvimento
espiritual é a evolução dum indivíduo. O corpo dum indivíduo pode sofrer as
mudanças do ciclo da vida, mas não evolui. Não se forjam novos padrões
físicos. O declínio da capacidade física na velhice é uma inevitabilidade. No
espaço duma vida individual, no entanto, o espírito humano pode evoluir
drasticamente. Podem forjar-se novos padrões. A capacidade espiritual pode
aumentar (embora normalmente não o faça) até ao momento da morte
numa idade muito avançada. O nosso tempo de vida oferece-nos
oportunidades ilimitadas de desenvolvimento até ao fim. Embora este livro
se concentre na evolução espiritual, o processo de evolução física é
semelhante ao do espírito e fornece-nos um modelo para melhor
compreensão do processo de desenvolvimento espiritual e do significado da
graça.
288
meios - para inverter este processo, para voltar ao princípio, para levar a
água de volta para o cimo do monte. E essa energia tem de vir doutro lado.
Outro sistema energético tem que ser gasto para manter este. Por fim, de
acordo com a segunda lei da termodinâmica, em biliões e biliões de anos, o
Universo esgotar-se-á completamente até atingir o seu ponto mais baixo
como uma "massa" amorfa, totalmente desorganizada, totalmente
indiferenciada em que já nada acontece. Este estado de desorganização e
indiferenciação total é designado por entropia.
289
nós, que escrevemos e lemos este livro, não devíamos existir. O processo de
evolução pode ser representado em diagrama por uma pirâmide, com o
homem, o organismo mais complexo mas menos numeroso, no vértice
superior e os vírus, os organismos mais numerosos mas menos complexos,
na base:
ENTROPIA
O vértice é projectado para fora, para cima e para a frente contra a força de
entropia. Dentro da pirâmide coloquei uma seta que simboliza essa força
evolucionária, esse "algo" que tem desafiado com sucesso e
constantemente a "lei natural" em milhões sobre milhões de gerações e que
deve representar por si a lei natural ainda não definida.
290
COMPETÊNCIA ESPIRITUAL
291
À medida que evoluímos como indivíduos, fazemos com que a nossa
sociedade evolua. A cultura que nos alimenta na infância é alimentada pela
nossa liderança na idade adulta. Quem atinge o desenvolvimento, não só
goza os frutos desse desenvolvimento como dá esses frutos ao mundo.
Evoluindo como indivíduos, levamos a humanidade às costas. E a
humanidade assim evolui.
A lei romana dava ao pai controle absoluto sobre os filhos, que podia vender
ou condenar à morte impunemente. Este conceito de direito absoluto foi
transposto para a lei inglesa, onde prevaleceu até ao século XIV sem
mudança apreciável. Na Idade Média, a infância não era considerada a fase
única
292
da vida como a vemos hoje. Era habitual mandar as crianças, por vezes
ainda com sete anos, servir ou aprender um ofício, em que o estudo era
secundário em relação ao trabalho que a criança desempenhava para o
patrão. Não parecia haver distinção entre a criança e o serviçal em termos
de tratamento; até na linguagem, que frequentemente não tinha termos
separados para cada um. Só a partir do século XVI se passou a considerar
as crianças como merecendo interesse especial, com tarefas importantes e
específicas de desenvolvimento a desempenhar e merecedoras de afecto. *
Mas que força é esta que nos compele como indivíduos e como toda uma
espécie a evoluir contra a resistência natural da nossa própria letargia? Já a
classificámos. É o amor. O amor foi definido como "a vontade de se expandir
a si próprio para acalentar o seu próprio desenvolvimento pessoal ou o de
outro". Quando evoluímos, é porque nos esforçamos por isso, e esforçamo-
nos porque nos amamos a nós próprios. É através do amor que nos
elevamos. E é através do nosso amor pelos outros que os ajudamos a
elevarem-se. O amor, o prolongamento do Eu, é o próprio acto da evolução.
É a evolução que progride. A força evolucionária, presente em toda a vida,
manifesta-se na humanidade como amor humano. Entre a humanidade, o
amor é a força miraculosa que desafia a lei natural da entropia.
(Nota)
293
O Alfa e o Ómega
294
ou, na verdade, qualquer hipótese. Até que alguém o faça, estamos presos a
esta estranha noção infantil dum Deus que nos ama ou então a um vácuo
teórico.
E se levarmos isto a sério, descobriremos que esta simples noção dum Deus
que ama não implica uma filosofia simples.
Quando referi que esta é uma ideia aterradora, estava a ser moderado. É
uma ideia muito antiga, mas fugimos dela, aos milhões, em perfeito pânico.
Porque nunca outra ideia veio à mente do homem que lhe imponha um
fardo tão pesado. É a ideia mais exigente por si só de toda a história da
humanidade. Não por ser difícil de conceber; pelo contrário, é a essência da
simplicidade. Mas porque se acreditarmos nela, exige de nós tudo o que
possamos dar, tudo o que tivermos. Uma coisa é acreditar num Deus
simpático que cuida de nós a partir de uma posição superior de poder, que
nós nunca poderíamos alcançar. Outra é acreditar num Deus que pretende
precisamente que atinjamos a Sua posição, o Seu poder, a Sua
295
296
GRAÇA
297
apercebendo cada vez melhor da natureza ubíqua da preguiça. Na luta para
ajudar os meus pacientes a desenvolverem-se, descobri que o meu inimigo
principal era invariavelmente a sua preguiça. E apercebi-me de que em mim
existia uma resistência semelhante a estender-me a novas áreas de
pensamento, responsabilidade e maturação. Uma coisa tinha claramente
em comum com o resto da humanidade: era a minha preguiça. Foi nessa
altura que a história da serpente e da maçã passou a fazer sentido.
A questão principal é aquilo que falta. A história conta que Deus tinha o
hábito de "passear no jardim à hora mais fresca do dia" e que se abriam os
canais de comunicação entre Ele e o homem. Mas se era assim, então por
que razão Adão e Eva, separados ou em conjunto, antes ou depois da
tentação da serpente, não disseram a Deus, "Temos curiosidade em saber
porque não queres que cornamos o fruto da árvore do conhecimento do
Bem e do Mal. Gostamos de estar aqui e não queremos parecer mal-
agradecidos, mas a Tua lei quanto a este assunto não parece fazer muito
sentido e gostávamos muito que nos explicasses"? Mas claro que não
disseram isto. Em vez disso, transgrediram a lei de Deus sem nunca
perceberem a razão por trás da lei, sem fazerem o esforço de questionar
Deus directamente, questionar a sua autoridade ou até comunicar com Ele a
um nível razoavelmente adulto. Escutaram a serpente, mas não ouviram a
versão de Deus da história antes de agir.
Porque falharam? Porque não foi dado nenhum passo entre a tentação e a
acção? É este passo em falta que é a essência do pecado. O passo em falta
é o passo do debate. Adão e Eva podiam ter estabelecido um debate entre a
serpente e Deus e, não o tendo feito, não obtiveram a versão de Deus
quanto à questão. O debate entre a serpente e Deus simboliza o diálogo
entre o Bem e o Mal, que pode e deve ocorrer no interior da
298
mente dos seres humanos. O facto de não promovermos - ou não
promovermos completa e empenhadamente - este debate interno entre o
Bem e o Mal é a causa das más acções que constituem o pecado. Ao
debater a sensatez dum determinado curso de acção, é comum os seres
humanos não tentarem obter a versão de Deus da questão. Não consultam
nem escutam o Deus dentro deles, o conhecimento da rectidão que reside
inerentemente no interior das mentes de toda a humanidade. Cometemos
este erro porque somos preguiçosos. Dá trabalho promover esses debates
internos. Exigem tempo e energia. E se os levarmos a sério - se ouvirmos
com seriedade este "Deus dentro de nós" - normalmente damos por nós a
ser impelidos a tomar o caminho mais difícil, o caminho que exige maior
esforço. Promover o debate é abrirmo-nos ao sofrimento e à luta. Cada um
de nós, mais ou menos frequentemente, foge a esse esforço e procura
evitar esse passo doloroso. Como Adão e Eva e como todos os nossos
antepassados, somos todos preguiçosos.
Alguns leitores poderão dizer para consigo, "Mas eu não sou preguiçoso.
Trabalho sessenta horas por semana e aos fins-de-semana, apesar de estar
cansado, esforço-me por sair com a minha mulher, levo as crianças ao
jardim zoológico, ajudo em casa, faço uma quantidade de trabalhos. As
vezes
299
300
301
Por estas razões, aqueles que se encontram nas fases relativamente mais
avançadas de desenvolvimento espiritual são os que mais consciência têm
da sua própria preguiça. São os menos preguiçosos que reconhecem a sua
lentidão. No meu combate pessoal pela maturidade, vou tendo cada vez
mais consciência de novas perspectivas, que parecem querer escapar-me
por si. Ou entrevejo novos caminhos, construtivos, de pensamento em que
os meus passos, aparentemente por vontade própria, começam a arrastar-
se. Suspeito que, a maioria das vezes, esses pensamentos valiosos se
escapam sem eu notar e que vagueio por esses caminhos sem saber o que
estou a fazer. Mas quando tenho consciência de que estou a arrastar os pés,
302
303
O C A M I N 11 O MENOS PERCORRIDO
O Problema do Mal
304
segunda conclusão é, portanto, que o Mal é a preguiça levada aos limites do
extremo. Tal como o defini, o amor é a antítese da preguiça. A preguiça
vulgar é um fracasso passivo no amor. Algumas pessoas normalmente
preguiçosas não levantam um dedo para se expandirem a menos que sejam
obrigadas. A sua maneira de ser é uma manifestação do não-amor; no
entanto, não são más. As pessoas verdadeiramente más, por outro lado,
evitam activamente, e não passivamente, expandir-se. Farão tudo o que
estiver ao seu alcance para proteger a sua própria preguiça, para preservar
a integridade do seu Eu doente. Em vez de apoiarem os outros, destroem-
nos. Se necessário, matam para escapar à dor do seu próprio
desenvolvimento espiritual. Como a integridade do seu Eu doente é
ameaçada pela saúde espiritual dos que os rodeiam, tentam por todas as
formas esmagar e demolir a saúde espiritual que existe à sua volta. Assim,
defino o Mal como o exercício do poder político
305
Por último, cheguei à conclusão que, embora a entropia seja uma força
enorme, na sua forma mais extrema de maldade humana é curiosamente
ineficaz como força social. Eu próprio já observei o mal em acção, atacando
ferozmente e destruindo eficazmente os espíritos e as mentes de dúzias de
crianças. Mas o mal faz ricochete no grande quadro da evolução humana.
Por cada alma que destrói - e há muitas - é instrumental na salvação de
outras. Sem querer, o mal serve de farol de aviso contra os seus próprios
escolhos. Como a maior parte de nós foi dotado de uma sensação de horror
quase instintiva perante a exorbitância do mal, quando reconhecemos a sua
presença, a nossa própria personalidade é afinada pela consciência da sua
existência. A nossa consciência do mal é um sinal para nos purificarmos. Foi
o mal que, por exemplo, levou Cristo à cruz, permitindo-nos vê-lo à
distância. O nosso envolvimento pessoal na luta contra o mal no mundo é
uma das formas como evoluímos.
A Evolução da Consciência
306
A palavra "consciente" deriva do prefixo latino con, que quer dizer "com" e
da palavra scire, que significa "saber". Ser consciente significa "saber com".
Mas como devemos entender este "com"? Saber com quêl Já falámos do
facto de a parte subconsciente da mente ser possuidora de um
conhecimento extraordinário. Sabe mais do que nós, sendo "nós" o nosso Eu
consciente. E quando ficamos cientes duma nova verdade, é porque a
reconhecemos como verdadeira; nós re-conhecemos o que já sabíamos. Por
isso, não poderemos concluir que tornar-se consciente é saber com o nosso
subconsciente? O desenvolvimento da consciência é o desenvolvimento da
qualidade de ficar ciente de conhecimentos na nossa mente consciente
juntamente com a nossa mente subconsciente, que já possui esses
conhecimentos. É um processo da mente consciente a entrar em sincronia
com o subconsciente. Este conceito não devia parecer estranho aos
psicoterapeutas, que frequentemente definem a sua terapia como um
processo de "tornar o subconsciente consciente" ou de expandir o domínio
do consciente em relação ao domínio do subconsciente.
Mas ainda não explicámos como é que o subconsciente possui todo este
conhecimento que ainda não aprendemos conscientemente. Aqui, mais uma
vez, a questão é tão básica que não existe resposta científica. Mais uma
vez, só podemos avançar hipóteses. E mais uma vez não conheço nenhuma
hipótese tão satisfatória como a postulação de um Deus que nos está
intimamente associado - tão intimamente que faz parte de nós. Se quiser
conhecer o lugar mais próximo onde procurar a graça, é dentro de si
próprio. Se desejar uma maior
307
sabedoria do que a sua, pode encontrá-la dentro de si. O que isto sugere é
que a ligação entre Deus e o homem é, pelo menos em parte, a ligação
entre o nosso subconsciente e o consciente. Ou duma forma mais simples, o
nosso subconsciente é Deus. Deus está dentro de nós. Fizemos sempre
parte de Deus. Deus tem estado sempre connosco, está agora e estará
sempre.
Como pode isso ser? Se o leitor estiver horrorizado pela ideia do nosso
subconsciente ser Deus, recordo-lhe que este conceito não é de modo
nenhum herético, sendo na essência o mesmo que o conceito cristão do
Espírito Santo, que reside em todos nós. Para compreender esta relação
entre nós e Deus, considero muito útil pensar no subconsciente como num
rizoma, ou um conjunto de raízes muito grande e muito rico, que alimenta a
pequena planta da consciência que dela brota visivelmente. Esta analogia
devo-a a Jung que, ao descrever-se como "um estilhaço da divindade
infinita", dizia assim:
A vida sempre me pareceu semelhante a uma planta que vive do seu
rizoma. A sua verdadeira vida está invisível, escondida no rizoma. A parte
que aparece acima da terra dura um só Verão. Depois murcha - uma
aparição efémera. Quando pensamos no crescimento e na decadência
infindos da vida e da civilização, não podemos escapar da impressão de
absoluta nulidade. No entanto, nunca perdi a sensação de algo que vive e
dura sob o fluxo eterno. O que vemos é a flor, que passa. O rizoma fica. *
(Notas)
308
309
:r
A Natureza do Poder
311
A maior parte das pessoas quase sempre toma decisões sem ter grande
consciência do que está a fazer. Agem sem compreender muito bem os seus
próprios motivos e sem fazer ideia das ramificações das suas escolhas.
Sabemos realmente o que estamos a fazer quando aceitamos ou rejeitamos
um cliente potencial? Quando batemos numa criança, promovemos um
subordinado, namoriscamos com uma conhecida? Quem quer que tenha
trabalhado muito tempo na arena política sabe que acções tomadas com a
melhor das intenções muitas vezes são mal sucedidas e acabam por ser
prejudiciais; ou que as pessoas com motivos baixos podem promover uma
causa aparentemente malévola que acaba por se revelar construtiva. Assim
acontece também na educação das crianças. É melhor fazer o que está
certo pelas razões erradas do que o que está errado pelas razões certas?
Muitas vezes estamos mais às escuras quando temos muitas certezas, e
mais esclarecidos quando mais confusos.
Que fazer, à deriva num mar de ignorância? Alguns são niilistas e dizem
"Nada". Propõem apenas que continuemos à deriva, como se num mar tão
vasto não pudesse ser traçada nenhuma rota que nos levasse a um
verdadeiro esclarecimento ou a um destino com algum significado. Mas
outros, suficientemente conscientes para saberem que estão perdidos, têm
esperança de ultrapassar a ignorância desenvolvendo uma consciência
ainda maior. Têm razão. É possível. Mas essa consciência maior não lhes
chega num único e repentino relâmpago esclarecedor. Vem devagar, peça
por peça, e cada peça tem que ser conquistada pelo esforço paciente do
estudo e da observação de tudo, incluindo deles próprios. São estudantes
humildes. O caminho do desenvolvimento espiritual é um caminho de
aprendizagem para toda a vida.
312
xar. Gradualmente, as coisas começam a fazer sentido. Há caminhos sem
saída, desilusões, conceitos a que chegamos apenas para os rejeitar. Mas
gradualmente conseguimos chegar a uma compreensão cada vez mais
profunda do que constitui a nossa existência. E gradualmente chegamos ao
ponto em que sabemos verdadeiramente o que estamos a fazer. Chegamos
ao poder.
313
canal. O poder não é nada meu." Afirmei que esta humildade é cheia de
alegria. Isso é porque, com a noção da sua ligação com Deus, os
verdadeiramente poderosos sentem uma diminuição do seu sentido do Eu.
"Seja feita a vossa vontade e não a minha. Tornai-me o vosso instrumento,"
é o seu único desejo. Essa perda do Eu traz sempre consigo uma espécie de
êxtase calmo, que não difere da experiência de estar apaixonado. Cientes
da sua íntima ligação com Deus, a solidão termina. Existe comunhão.
314
Existe outro problema no poder: estar só. Aqui existe uma semelhança, pelo
menos numa dimensão, entre o poder espiritual e o poder político. Quem se
aproxima do pico da evolução espiritual é como quem se aproxima do pico
do poder político. Não há ninguém acima a quem passar o problema;
ninguém a quem culpar; ninguém para lhe dizer como fazer. Pode nem
haver ninguém ao mesmo nível para partilhar a angústia ou a
responsabilidade. Outros podem aconselhar, mas a decisão é só sua. Só
você é responsável. Noutra dimensão, o estar só com um enorme poder
espiritual é ainda mais pronunciado do que com o poder político. Como o
seu nível de consciência raramente é tão elevado como as suas posições
destacadas, os políticos poderosos têm quase sempre pares espirituais com
quem comunicar. Assim, os presidentes e os reis têm os seus amigos e
compinchas. Mas a pessoa que evoluiu até ao mais alto nível de
consciência, de poder espiritual, provavelmente não terá ninguém no seu
círculo de conhecimentos com quem partilhar uma tal profundidade de
entendimento. Um dos temas mais pungentes do Evangelho é o sentimento
contínuo de frustração de Cristo ao descobrir que não havia ninguém que o
compreendesse verdadeiramente. Por muito que tentasse, por muito que
315
316
317
Betsy era uma rapariga de vinte e dois anos, bonita e inteligente mas com
uma compostura quase virginal, que me consultou devido a crises de
ansiedade graves. Era filha única dum casal católico da classe trabalhadora
que a tinha mandado para a universidade à custa de muitos sacrifícios.
Depois de um ano de universidade, contudo, apesar de ter tido bons
resultados académicos, decidiu deixar de estudar e casar com o vizinho do
lado, um mecânico. Arranjou emprego como escriturária num
supermercado. Correu tudo bem durante dois anos. Depois, de repente,
surgiram as crises de ansiedade. Sem mais nem menos. Eram totalmente
imprevisíveis excepto que ocorriam sempre quando estava algures sem o
marido, fora de casa. Podiam acontecer enquanto fazia compras, quando
estava no emprego no supermercado, ou simplesmente a andar na rua. A
intensidade do pânico que sentia nessas alturas era esmagadora. Tinha que
largar o que estava a fazer e ir literalmente a correr para casa ou para a
garagem onde o marido trabalhava. Só quando estava com ele ou em casa
é que o pânico começava a diminuir. Por causa das crises, teve de deixar o
emprego.
318
Como é habitual com a graça, a maior parte rejeita este dom e não presta
atenção à mensagem. Fazem-no de variadas formas, que representam todas
uma tentativa de fugir à responsabilidade da doença. Tentam ignorar os
sintomas, fingindo que não são verdadeiramente sintomas, dizendo que
toda a gente tem "estas pequenas crises de vez em quando". Tentam dar a
volta despedindo-se dos empregos, deixando de conduzir, mudando-se para
outra cidade, evitando certas actividades. Tentam livrar-se dos sintomas
com analgésicos, com comprimidos dados pelo médico ou anestesiando-se
com álcool e outras drogas. Mesmo que aceitem o facto de terem sintomas,
culpam o resto do mundo, habitualmente, de várias
320
maneiras encobertas - familiares desprendidos, falsos amigos, empresas
gananciosas, uma sociedade doente e até o destino pelo seu estado. Só os
poucos que aceitam a responsabilidade pelos sintomas, que compreendem
que os sintomas são uma manifestação de perturbação das suas almas,
prestam atenção à mensagem do subconsciente e aceitam a graça. Aceitam
a sua incapacidade e a dor do esforço necessário para se curarem. Mas
recebem, como Betsy e todos os outros que se dispõem a enfrentar a dor da
psicoterapia, uma grande recompensa. Foi deles que Cristo falou na
primeira das beatitudes: "Abençoados os pobres de espírito, porque deles é
o Reino dos Céus."*
* S. Mateus 5:3.
(Nota)
321
Fúrias, três harpias horrendas que só ele podia ver e ouvir e que o
atormentavam noite e dia com críticas cacarejadas e uma aparência
horripilante.
Perseguido para onde quer que fosse pelas Fúrias, Orestes vagueava pela
terra procurando redimir o seu crime. Depois de muitos anos de reflexão
solitária e auto-anulação, Orestes pediu aos deuses que o libertassem da
maldição sobre a Casa de Atreus e das suas visitações através das Fúrias,
afirmando a sua crença de que se tinha redimido pelo assassínio da mãe. Os
deuses fizeram-lhe um julgamento. Falando em defesa de Orestes, Apoio
argumentou que tinha engendrado toda a situação que colocou Orestes na
posição em que não tinha outra escolha senão matar a mãe e que, portanto,
Orestes não podia ser considerado responsável. Nessa altura, Orestes saltou
e contradisse o seu próprio defensor, declarando, "Fui eu, e não Apoio,
quem matou a minha mãe!" Os deuses ficaram espantados. Nunca antes
tinha um membro da Casa de Atreus assumido tal responsabilidade total
sem culpar os deuses. Eventualmente os deuses julgaram a favor de
Orestes e não só o libertaram da maldição como transformaram as Fúrias
em Euménides, espíritos amorosos que através de sábio conselho
permitiram a Orestes obter continuada boa sorte.
322
323
A Resistência à Graça
324
325
Existe, creio eu, muita verdade neste esquema, que forma um corpo de
teoria psiquiátrica muito útil para os médicos, de diversas formas. Não deve
ser criticado descuidadamente. Apesar de tudo, não conta a história toda.
Entre outras coisas, diminui a grande importância da relação parental na
última parte da infância e na adolescência. Há boas razões para acreditar
que uma relação parental deficiente nesses anos pode produzir doenças
mentais e que uma boa relação parental pode curar muitas ou talvez todas
as feridas provocadas por uma má relação parental anterior. Além disso,
embora o esquema tenha valor preditivo no sentido estatístico - os
neuróticos, em média, são mais fáceis de tratar do que as pessoas com
perturbações de personalidade, e as que têm perturbações de
personalidade são, em média, mais fáceis de tratar do que os psicóticos -
não consegue prever muito bem o curso do desenvolvimento num caso
individual. Assim, por exemplo, o curso mais rápido de uma análise
totalmente bem sucedida
326
que já conduzi foi com um homem que me veio consultar, com uma psicose
grave, e cuja terapia ficou concluída nove meses depois. Por outro lado,
trabalhei durante três anos com uma mulher que, claramente, tinha "só"
uma neurose, e consegui apenas uma melhoria mínima.
327
A pergunta passa então a ser: Por que razão tão poucos de nós escolhemos
dar atenção à chamada da graça? Por que
328
329
Com o desenvolvimento espiritual passa-se o mesmo que com a vida
profissional. Porque a chamada para a graça é a promoção, uma chamada
para uma posição de maior responsabilidade e poder. Ter consciência da
graça, sentir pessoalmente a sua presença constante, conhecer a
proximidade de Deus, é conhecer e sentir continuamente uma tranquilidade
e paz interior que poucos possuem. Por outro lado, esse conhecimento e
essa consciência acarretam uma enorme responsabilidade. Porque sentir a
nossa proximidade em relação a Deus é também sentir a obrigação de ser
Deus, de ser o agente do Seu poder e amor. O chamamento para a graça é
um chamamento para uma vida de dedicação esforçada, uma vida para
servir e fazer qualquer sacrifício necessário. É um chamamento que nos faz
sair da infância para a idade adulta espiritual, para nos tornarmos um pai ou
uma mãe para a humanidade. T. S. Eliot descreveu bem esta questão no
sermão de Natal proferido por Thomas Becket na peça Assassínio na
Catedral:
Reflictam agora em como o Senhor falou da Paz. Ele disse aos discípulos
"Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz". Referia-se Ele à paz como a
consideramos: o reino de Inglaterra em paz com os seus vizinhos, os barões
em paz com o Rei, o dono da casa a contar os seus ganhos pacíficos, o
borralho varrido, o seu melhor vinho na mesa para um amigo, a sua mulher
a cantar para as crianças? Aqueles homens, Seus discípulos, nada sabiam
dessas coisas: viajavam para longe, para sofrer em terra e no mar, para
conhe-
330
cer a tortura, a prisão, a desilusão, a morte pelo martírio. Então que queria
Ele dizer? Se perguntarem isso, lembrem-se que Ele também disse, "Não
como o mundo dá, eu vos dou." Assim deu Ele a paz aos Seus discípulos,
mas não a paz como o mundo dá. '"
Assim, a paz da graça traz responsabilidades, deveres e obrigações
dolorosos. Não é de espantar que tantos sargentos qualificados não queiram
assumir a posição dum oficial. E não admira que os pacientes em
psicoterapia tenham pouca apetência pelo poder que acompanha a
verdadeira saúde mental. Uma jovem que fazia terapia comigo há um ano
devido a uma depressão invasiva, e que tinha aprendido bastante sobre a
psicopatologia dos seus familiares, exultava certo dia com uma situação
familiar que ela tinha resolvido com sensatez, equanimidade e facilidade.
"Senti-me mesmo bem," dizia ela. "Gostava de me sentir assim mais vezes."
Disse-lhe que podia, fazendo-lhe notar que a razão por que se tinha sentido
tão bem era que, pela primeira vez na sua relação com a família, estava
numa posição de poder, tendo a noção das suas comunicações distorcidas e
das formas desonestas como tentavam manipulá-la para satisfazer as suas
exigências irrealistas, e que portanto ela podia comandar a situação. Disse-
lhe que uma vez que era capaz de alargar esse tipo de consciência a outras
situações, se encontraria cada vez mais "a controlar as coisas" e portanto
teria essa sensação boa cada vez mais frequentemente. Ela olhou para mim
com o princípio duma sensação de horror. "Mas isso obrigava-me a pensar
todo o tempo!", disse ela. Concordei que era pensando muito que o seu
poder evoluiria e se poderia manter e que se
(Nota)
* The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (N. Iorque: Harcourt Brace,
192), p. 69.
331
Pode parecer estranho aos leigos, mas os psiquiatras conhecem bem o facto
de as pessoas ficarem normalmente aterradas com a saúde mental. Uma
grande parte da tarefa da psicoterapia é não só levar os pacientes a
sentirem a saúde mental mas também, através dum misto de consolação,
tranquilização e firmeza, evitar que fujam a essa experiência quando
chegam até ela. Um dos aspectos deste receio é bastante legítimo e, só por
si, não atenta contra a saúde: o medo de que ao tornar-se poderoso, se
possa fazer mau uso do poder. Santo Agostinho escreveu "Dilige et quod vis
fac", que significa "Sê afectuoso e diligente, e podes fazer tudo o que
quiseres"*. Se as pessoas progredirem o suficiente na psicoterapia, a
determinada altura deixarão de sentir a incapacidade de lidar com um
mundo impiedoso e esmagador e acabam por descobrir um dia que têm o
poder de fazerem o que quiserem. A descoberta desta liberdade é
assustadora. "Se posso fazer tudo o que quero," pensarão, "o que me
impede de cometer grandes erros, crimes, de ser imoral, de abusar da
minha liberdade e do poder? A minha diligência e o meu amor serão
suficientes para me guiarem?"
332
Mas, para a maioria das pessoas, o receio de poderem vir a abusar do poder
não é a questão fulcral da sua resistência à graça. Não é a parte do "podes
fazer tudo o que quiseres" da máxima de Santo Agostinho que lhes provoca
indigestão, mas a parte do "Sê diligente". Somos quase todos como crianças
ou jovens adolescentes; acreditamos que a liberdade e o poder da idade
adulta são nossos por direito, mas não temos grande apetência pela
responsabilidade e auto-disciplina adulta. Por muito oprimidos que nos
sintamos pelos nossos pais - ou pela sociedade ou pelo destino -, de facto
parecemos precisar que existam poderes acima de nós a quem culpar pela
nossa condição. Subir a uma posição tão poderosa que não haja a quem
culpar senão nós próprios é uma situação aterradora. Como já foi
mencionado, se não fosse pela presença de Deus connosco nessa posição
de destaque, ficaríamos aterrorizados por estarmos sós. Mesmo assim,
muitos têm tão pouca capacidade para tolerar estarem sós que rejeitam a
presença de Deus para não terem que passar pela experiência de serem o
único comandante do navio. A maior parte das pessoas quer a paz sem a
solidão do poder. E querem a auto-confiança da idade adulta sem terem que
crescer.
333
334
dades de adaptação ou a doenças mentais gravíssimas. Podem ser velhas
ou novas. Podem prestar atenção à chamada à graça subitamente e com
facilidade aparente. Ou podem lutar contra ela e maldizerem-na, cedendo
gradual e dolorosamente, centímetro a centímetro. Em consequência, com a
experiência de muitos anos, tornei-me menos, em vez de mais, selectivo ao
determinar com quem vou tentar a terapia. Peço desculpa àqueles que
excluí da terapia em resultado da minha ignorância. Porque aprendi que,
nas fases iniciais do processo psicoterapêutico, não tenho qualquer
capacidade de prever quais são os pacientes que não irão responder à
terapia, os que responderão com um desenvolvimento significativo ainda
que parcial, e quais os que, milagrosamente, se desenvolverão até ao
estado de graça. O próprio Cristo falou da imprevisibilidade da graça quando
disse a Nicodemos: "Tal como ouves o vento mas não sabes donde vem nem
para onde vai a seguir, assim é com o Espírito. Não sabemos quem será o
próximo a quem concederá esta vida vinda do céu."* Por muito que
tenhamos dito sobre o fenómeno da graça, acabamos por ter de reconhecer
a sua natureza misteriosa.
O Acolhimento da Graça
E MAIS UMA VEZ SOMOS confrontados com o paradoxo. Desde o início deste
livro que tenho escrito sobre o desenvolvimento espiritual como se fosse um
processo ordenado e previsível. Ficou subentendido que o desenvolvimento
espiritual pode ser aprendido como uma área de conhecimento que se
aprende
* S. João 3:8. Esta tradução foi retirada da Living Bible porque me parece
superior à versão King James. (N. do A.)
335
através dum programa de licenciatura; se pagarmos as propinas e
trabalharmos o suficiente, é evidente que conseguimos obter a licenciatura.
Interpretei a frase de Cristo "Muitos são os chamados, mas poucos os
escolhidos" como significando que muito poucos escolhem prestar atenção
à chamada da graça devido às dificuldades envolvidas. Com esta
interpretação, sugeri que se somos ou não abençoados pela graça é uma
questão de escolha nossa. Essencialmente, tenho dito que a graça se
ganha. E sei que é verdade.
Ao mesmo tempo, no entanto, sei que não é nada assim. Nós não vamos de
encontro à graça; a graça vem até nós. Por muito que tentemos obter a
graça, ela pode escapar-nos. Podemos ou não procurá-la, ela nos
encontrará. Conscientemente, podemos desejar avidamente a vida
espiritual mas descobrir toda a espécie de obstáculos no caminho. Ou
podemos ter aparentemente pouco gosto pela vida espiritual e apesar disso
sermos energicamente chamados para ela. Embora a um certo nível
sejamos nós a escolher se prestamos ou não atenção ao chamamento da
graça, noutro parece claro que é Deus que faz a escolha. A experiência
comum dos que atingiram um estado de graça, a quem "esta nova vida do
céu" foi conferida, é a de assombro perante a sua condição. Não sentem
que a tenham merecido. Embora possam ter uma noção realista da
particular bondade da sua natureza, não atribuem essa natureza à sua
vontade; antes, sentem distintamente que a bondade da sua natureza foi
criada por mãos mais sábias e habilidosas que as suas. Os que estão mais
próximos da graça são os que maior noção têm do carácter misterioso da
oferta que lhes foi feita.
336
337
O mesmo acontece com a graça. Já vimos que os sonhos são apenas uma
das formas ou modos em que a graça nos é
338
339
sar aos textos antigos. Procure maior compreensão, mas não espere maior
detalhe. Há muitos que, em virtude da sua passividade, dependência, medo
e preguiça, esperam que se lhes mostre cada centímetro do caminho e que
lhes demonstrem que cada passo será seguro e que valerá a pena. Isso não
se pode fazer. Porque a jornada do desenvolvimento espiritual requer
coragem e iniciativa e independência de pensamento e acção. Apesar das
palavras dos profetas e da ajuda da graça estarem disponíveis, a viagem
tem que ser feita a sós. Nenhum professor o pode levar lá. Não existem
fórmulas pré-estabelecidas. Os rituais são apenas auxiliares da
aprendizagem, não são a aprendizagem. Comer alimentos biológicos, rezar
cinco Ave Marias antes do pequeno almoço, rezar virado para o Oriente ou
para o Ocidente, ou ir à igreja ao Domingo não o levará ao destino. Não há
palavras que possam ser ditas, nem ensinamentos que possam ser
transmitidos que libertem os viajantes espirituais da necessidade de
escolherem o seu próprio percurso, de trilharem com esforço e ansiedade o
seu próprio caminho nas circunstâncias únicas da vida de cada um, no
sentido da identificação do seu próprio Eu com Deus.
Mesmo quando compreendemos verdadeiramente estes assuntos, a jornada
de desenvolvimento espiritual continua a ser tão solitária e difícil que
muitas vezes nos sentimos desencorajados. Acreditamos nos princípios
mecânicos do Universo; não em milagres. Através da ciência, aprendemos
que o lugar que habitamos é apenas um planeta duma só estrela perdida
numa galáxia entre muitas outras. E tal como parecemos perdidos no meio
da imensidão do Universo exterior, assim a ciência nos levou a desenvolver
uma imagem de nós próprios como sendo inevitavelmente determinados e
governados por forças internas não sujeitas à nossa vontade - por moléculas
químicas do cérebro e conflitos do subconsciente que nos obrigam a sentir e
a nos comportarmos de determinadas
340
341
estamos a fazer, digo-lhes por vezes que a raça humana está a meio de
fazer um salto evolutivo. "Se somos ou não bem sucedidos nesse salto,"
digo-lhes, "é da sua responsabilidade pessoal." E da minha. O Universo, esta
soleira, foi colocado para nos preparar um caminho. Mas somos nós que
temos que a atravessar, um a um. Através da graça somos ajudados a não
tropeçar, e através da graça sabemos que somos bem-vindos. Que mais
podemos pedir?
342
Posfácio
343
Quem quer que tenha conseguido ler e compreender totalmente este livro
não pertence quase de certeza a esses cinco por cento. E de qualquer
maneira, é da responsabilidade dum terapeuta competente discernir
cuidadosa e por vezes gradualmente quais os pacientes que não devem ser
conduzidos ao trabalho psicanalítico e conduzi-los em alternativa para
outras formas de tratamento que podem ser bastante benéficas.
344
Mas mais importante do que as inclinações políticas, a idade ou o sexo do
seu terapeuta é se ele ou ela é uma pessoa genuinamente interessada. Isso
também consegue sentir rapidamente, embora o terapeuta não deva
cumulá-lo de tranquilizações amáveis e compromissos apressados. Se os
terapeutas são interessados, serão também cautelosos, disciplinados e
normalmente reservados, mas deve ser-lhe possível intuir se a reserva
esconde calor ou frieza.
- normalmente poderá confiar num terapeuta que lhe diz que não sabe. De
facto, as pessoas educadas e bem sucedidas em qualquer profissão que
admitem ignorância são geralmente as mais conhecedoras e dignas de
confiança.
A capacidade dum terapeuta tem muito pouco a ver com as credenciais que
possa ter. O amor, a coragem e a sensatez não podem ser atestados com
diplomas académicos. Por exemplo, os psiquiatras "certificados pela ordem",
os terapeutas com mais credenciais, passam por uma formação rigorosa
suficiente para que as pessoas se sintam relativamente seguras de que não
estão a cair nas mãos dum charlatão. Mas um psiquiatra não é
necessariamente melhor terapeuta do que um psicólogo, um assistente
social ou um padre - ou talvez nem tão bom. De facto, dois dos melhores
terapeutas que conheço nunca se licenciaram.
345
que respeita e que ficou satisfeito com os serviços dum determinado
terapeuta, porque não começar com essa recomendação? Outra forma,
particularmente aconselhável se os seus sintomas são graves ou se também
tem dificuldades físicas, será começar com um psiquiatra. Em virtude da
sua formação clínica, os psiquiatras são habitualmente os terapeutas mais
caros, mas estão também em melhor posição para compreender todos os
aspectos da sua situação. No fim da consulta, depois do psiquiatra ter tido
oportunidade de conhecer a dimensão do seu problema, pode pedir-lhe para
lhe recomendar um terapeuta não médico menos dispendioso, se aplicável.
Os melhores psiquiatras estarão normalmente na disposição de lhe dizer
que analistas leigos na comunidade são especialmente competentes. Claro
que se o médico lhe transmitir boas vibrações e estiver disposto a aceitá-lo
como paciente, pode continuar com ele.
Estas breves orientações podem não ser tão específicas como os leitores
gostariam. Mas a mensagem central é que, uma vez que a psicoterapia
exige uma relação intensa e psicologicamente íntima entre dois seres
humanos, nada o pode libertar da responsabilidade de escolher
pessoalmente o ser humano em particular a quem vai confiar a sua
orientação. O melhor terapeuta para uma pessoa pode não ser o melhor
para outra.
346
POSFÁCIO
Bliss Road
Março de 1979.
347
Outro Olhar
6 Parar
David Kundt/
Jon Kabat-Zinn
I.arry Dossey
12 O Futuro do Amor
13 El Camino
Shirley Macl.ame
Marc de Smedt
18 O Turista Espiritual
\lick Brown
À Mão de Semear
Chcric Carter-Scott
2 O Manifesto do Cânhamo
Kowan Robmson
Twvman L. Towerv
Extra Colecção
Mitch Albom
Christiane Northrup
Irmão Tv
O Tão do Pooh
Bcnjamin Hoff
A Natureza
Ralph Waldo Hmerson
A Gazela e as Estrelas