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O Caminho Menos Percorrido

M. Scott Peck

Uma nova psicologia do amor,

dos valores tradicionais

e do desenvolvimento espiritual

Digitalização e arranjos:

Ângelo Miguel Abrantes

Tradução Maria Isabel Cardoso

CD Sinais de Fogo

Título original: The Road Less Traveled Copyright (c) M. Scott Peck, M.D.,
1978 Introdução Copyright (c) M. Scott Peck, M.D., 1985 Tradução: Maria
Isabel Cardoso Revisão: Rita Quintela

Projecto Gráfico: Graça Castanheira + Inês Nogueira Foto da capa: Image


Bank - Luis Veiga Impressão e acabamento: Rolo & Filhos, Lda

Reservados todos os direitos para Portugal incluindo o direito

de reprodução do todo ou de partes sob qualquer forma, por:

Sinais de Fogo Publicações, Lda.

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e-mail. geral@sinaisdefogo.pt

site: www.sinaisdefogo.pt

1:1 edição, Março- 1999

2a edição, Novembro - 2000

3" edição, Janeiro - 2002

Depósito legal n." 175003/02

ISBN: 972-8541-00-7

Aos meus pais,

Elizabeth e David,

cuja disciplina e amor

me deram olhos

para ver a graça

To my parents, Elizabeth and David, whose discipline and love gave me the
eyes to see grace

índice

Introdução 11

Secção I- Disciplina 13

Problemas e Dor 15

Adiamento da Gratificação 19

Os Pecados do Pai 21

Resolução de Problemas e Tempo 28

Responsabilidade 34
Neuroses e Perturbações de Personalidade 36

Fuga da Liberdade 42

Dedicação à Realidade 47

Transferência: o Mapa Ultrapassado 49

Abertura ao Desafio 54

Omissão da Verdade 62

Manutenção do Equilíbrio 68

O Lado Salutar da Depressão 74

Renúncia e Renascimento 77

Secção II • Amor 85

O Amor Definido 87

Apaixonar-Se 90

O Mito do Amor Romântico 98

Mais Sobre as Fronteiras do Ego 101

Dependência 106

Catexia Sem Amor 115

"Auto-Sacrifício" 121

O Amor Não é um Sentimento 127

O Trabalho de Atenção131

O Risco da Perda 143

O Risco da Independência 147

O Risco do Compromisso 153

O Risco da Confrontação 164

O Amor é Disciplinado 170

O Amor é Separação 176

Amor e Psicoterapia 186


O Mistério do Amor198

Secção III • Desenvolvimento e Religião 201

Visões do Mundo e Religião 203

A Religião da Ciência 211

O Caso de Kathy 216

O Caso de Mareia 228

O Caso de Theodore 230

O Bebé e a Água do Banho242

Visão Científica em Túnel 277

Secção IV • Graça 255

O Milagre da Saúde 257

O Milagre do Subconsciente 265

O Milagre do Serendipismo 277

A Definição de Graça 284

O Milagre da Evolução 288

O Alfa e o Ómega 294

A Entropia e o Pecado Original 297

O Problema do Mal 304

A Evolução da Consciência 306

A Natureza do Poder 311

A Graça e a Doença Mental:

o Mito de Orestes 3 16

A Resistência à Graça 324

O Acolhimento da Graça 335

POsfácio

Introdução
As IDEIAS AQUI APRESENTADAS emergem, na sua maior parte, do meu
contacto profissional diário com os doentes que lutam por evitar ou alcançar
níveis de maturidade cada vez mais elevados. Em consequência, este livro
contém partes de muitos casos verdadeiros. A confidencialidade é essencial
na prática da Psiquiatria, pelo que, em todos os casos, foram alterados os
nomes e outros pormenores para preservar o anonimato dos meus doentes
sem distorção da realidade essencial da nossa experiência comum.

Pode, no entanto, ocorrer alguma distorção em virtude da forma resumida


como os casos são apresentados. A psicoterapia raramente é um processo
breve, mas como tive necessariamente de focar os pontos mais relevantes
de cada caso, o leitor pode ficar com a impressão de que o processo é de
drama e esclarecimento. O drama é real e o esclarecimento pode
eventualmente ser alcançado, mas deve considerar-se que, para facilitar a
leitura, os relatos dos longos períodos de confusão e de frustração,
inerentes à maior parte da terapia, foram omitidos nestas descrições.

Gostaria também de pedir desculpa pelas constantes referências a Deus na


imagem masculina tradicional, mas fi-lo a bem da simplicidade e não devido
a qualquer conceito rígido de género.

11

Como psiquiatra, penso ser importante referir logo de início dois


pressupostos em que este livro assenta. Um é que não faço distinção entre
a mente e o espírito nem, portanto, entre o processo de consecução de
desenvolvimento espiritual e o de consecução de desenvolvimento mental.
É o mesmo e um só.

O outro pressuposto é que este processo constitui uma tarefa complexa,


árdua e para toda a vida. A psicoterapia, para contribuir substancialmente
para o processo de desenvolvimento mental e espiritual, não é um
procedimento rápido nem simples. Não pertenço a nenhuma escola de
Psiquiatria ou de psicoterapia em particular; não sou simplesmente um
Freudiano, um Jungiano, um Adleriano, um behaviorista ou um gestaltista.
Não acredito que existam respostas únicas e fáceis. Penso que há formas
curtas de psicoterapia que podem ser úteis e não devem ser
menosprezadas, mas a ajuda que proporcionam é inevitavelmente
superficial.

A jornada do desenvolvimento espiritual é longa. Quero agradecer aos meus


doentes, que me deram o privilégio de os acompanhar na maior parte da
sua jornada. Porque a sua jornada tem sido também a minha, e muito do
que é aqui apresentado foi aprendido em conjunto. Quero também
agradecer a muitos dos meus professores e colegas. Entre eles,
principalmente, à minha mulher, Lily. Tem-me dado tanto que quase não é
possível distinguir da minha a sua inteligência como cônjuge, mãe,
psicoterapeuta e pessoa.

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Secção I

Disciplina

Problemas e Dor

A VIDA É DIFÍCIL. Esta é uma grande verdade, uma das maiores verdades*.
É uma grande verdade porque, uma vez que vejamos realmente esta
verdade, transcendemo-la. Quando sabemos verdadeiramente que a vida é
difícil - quando o compreendemos e aceitamos verdadeiramente - a vida
deixa de ser difícil. Porque assim que é aceite, o facto de a vida ser difícil
deixa de ter importância.

A maior parte das pessoas não vê inteiramente esta verdade de que a vida
é difícil. Em vez disso, lamenta-se mais ou menos incessantemente, ruidosa
ou subtilmente, da enormidade dos seus problemas, encargos e
dificuldades, como se a vida fosse fácil de um modo geral, como se a vida
devesse ser fácil. Proclamam a sua crença, ruidosa ou subtilmente, de que
as suas dificuldades representam uma espécie única de atribulação que não
deveria mas de algum modo lhes foi especialmente dirigida, ou às suas
famílias, à sua tribo, à sua classe, à sua nação, à sua raça ou até à sua
espécie, e não a outros. Eu conheço esta lamentação porque já fiz a minha
parte.
A vida é uma série de problemas. Queremos lamentar-nos ou resolvê-los?
Queremos ensinar os nossos filhos a resolvê-los?

*A primeira das "Quatro Verdades Nobres" dos ensinamentos de Buda diz


que "Viver é sofrer".

15

A disciplina é o jogo de ferramenta essencial para resolver os problemas da


vida. Sem disciplina nada podemos resolver. Com apenas alguma disciplina,
resolvemos só alguns problemas. Com disciplina total, podemos resolver
todos os problemas.

O que torna a vida difícil é que o processo de confrontação e resolução de


problemas é doloroso. Os problemas, consoante a sua natureza, evocam em
nós frustração, ou desgosto, ou tristeza, ou solidão, ou culpa, ou remorso,
ou ira, ou medo, ou ansiedade, ou angústia, ou desespero. Estes
sentimentos são desconfortáveis, frequentemente muito desconfortáveis,
muitas vezes tão dolorosos como qualquer tipo de dor física, por vezes
igualando o tipo mais extremo de dor física. Na verdade, é devido à dor que
os acontecimentos ou conflitos geram em nós que lhes chamamos
problemas. E uma vez que a vida coloca uma infindável série de problemas,
é sempre difícil e plena de dor, assim como de alegria.

No entanto, é neste processo de confrontação e resolução de problemas que


a vida adquire significado. Os problemas são o fio de distinção entre o
sucesso e a falha. Os problemas apelam à nossa coragem e sabedoria; na
verdade, criam a nossa coragem e a nossa sabedoria. É unicamente devido
aos problemas que crescemos mental e espiritualmente. Quando queremos
fomentar o crescimento do espírito humano, desafiamos e encorajamos a
capacidade humana de resolver problemas, tal como na escola
apresentamos deliberadamente problemas para as crianças resolverem. É
através da dor de confrontar e resolver problemas que aprendemos. Como
disse Benjamin Franklin, "As coisas que magoam, ensinam-nos." Esta é a
razão porque as pessoas sábias aprendem não a temer mas, de facto, a
encarar positivamente os problemas e até a encarar positivamente a dor
dos problemas.
A maior parte de nós não é assim tão sábio. Receando a dor, quase todos
nós, em maior ou menor grau, tentamos evitar pro-

16

blemas. Procrastinamos, esperando que desapareçam. Ignoramo-los,


esquecemo-los, fingimos que não existem. Chegamos a tomar drogas que
nos ajudam a ignorá-los para que, anestesiando-nos contra a dor, possamos
esquecer os problemas que causam a dor.

Tentamos rodear os problemas em vez de os encarar de frente. Tentamos


sair deles em vez de sofrermos o seu percurso.

Esta tendência para evitar problemas e o sofrimento emocional que lhes é


inerente é a base primária de toda a doença mental humana. Uma vez que
a maior parte de nós tem esta tendência em maior ou menor grau, a maior
parte de nós está mentalmente doente em maior ou menor grau, não
dispondo de saúde mental total. Alguns de nós irão a extremos para evitar
os problemas e o sofrimento que causam, ultrapassando tudo o que é
claramente bom e aconselhável para encontrar uma saída fácil, construindo
as mais intrincadas fantasias para viverem, por vezes com total exclusão da
realidade. Nas palavras sucintamente elegantes de Carl Jung, "A neurose é
sempre um substituto do sofrimento legítimo."*

Mas o próprio substituto acaba por se tornar mais doloroso que o sofrimento
legítimo que se destinava a evitar. A própria neurose torna-se o maior
problema. De acordo com o padrão, muitos tentarão evitar essa dor e esse
problema, construindo camada após camada de neuroses. Felizmente, no
entanto, alguns têm a coragem de enfrentar as suas neuroses e começam -
com a ajuda da psicoterapia - a aprender a suportar o sofrimento legítimo.
Em todo o caso, quando evitamos o sofrimento legítimo que resulta do
confronto com os problemas, também evitamos o crescimento que os
problemas

(Nota)
'"Collected Works of C.C. Jung, Bollingen Ser., N". 20, 2a ed. (Princeton, N.J.:
Princeton Univ. Press, 1973), trad. R.F.C. Hull, Vol.II, Psychology and Religion:
West and East, 75.

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nos exigem. É esta a razão porque nas doenças mentais crónicas deixamos
de evoluir, ficamos bloqueados. E sem se curar, o espírito humano começa a
mirrar.

Vamos portanto inculcar em nós próprios e nos nossos filhos os meios para
conseguir a saúde mental e espiritual. Quero com isto dizer, ensinemos a
nós próprios e aos nossos filhos a necessidade do sofrimento e do seu valor,
de enfrentar directamente os problemas e passar pela dor que acarretam.
Afirmei que a disciplina é o jogo de ferramentas de base de que
necessitamos para resolver os problemas da vida. Tornar-se-á claro que
estas ferramentas são técnicas de sofrimento, meios através dos quais
experimentamos a dor dos problemas de forma a analisá-los e resolvê-los
com sucesso, aprendendo e evoluindo ao mesmo tempo. Quando ensinamos
a nós próprios e aos nossos filhos a disciplina, estamos a ensinar-lhes e a
nós próprios a sofrer e também a crescer.

Que ferramentas são estas, estas técnicas de sofrimento, esta forma


construtiva de passar pela dor dos problemas a que chamo disciplina? Há
quatro: o adiamento da gratificação, a aceitação da responsabilidade, a
dedicação à verdade e o equilíbrio. Como é evidente, não são ferramentas
complexas cuja utilização requeira um treino aprofundado. Pelo contrário,
são ferramentas simples e quase todas as crianças estão aptas a utilizá-las
quando chegam aos dez anos. No entanto, presidentes e reis muitas vezes
se esquecem de as utilizar, causando a sua própria queda. O problema não
está na complexidade destas ferramentas mas na vontade de as usar.
Porque são ferramentas em que a dor é enfrentada e não evitada e, se se
procura evitar o sofrimento legítimo, evita-se a utilização destas
ferramentas. Portanto, depois de analisar cada uma destas ferramentas,
examinaremos no próximo capítulo a vontade de as utilizar, que é o amor.

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Adiamento da Gratificação

NÃO HÁ MUITO TEMPO, uma analista financeira com cerca de trinta anos
queixava-se-me, durante alguns meses, da sua tendência para procrastinar
na sua função. Tínhamos analisado os seus sentimentos em relação aos
patrões e como se relacionavam com os sentimentos sobre a autoridade em
geral e especificamente com os pais. Examinámos as suas atitudes face ao
trabalho e ao sucesso e como se relacionavam com o seu casamento, a sua
identidade sexual, o seu desejo de competir com o marido e os seus receios
dessa competição. No entanto, apesar de todo este trabalho psicanalítico
minucioso, ela continuava a procrastinar na mesma medida. Finalmente, um
dia, atrevemo-nos a encarar o que era óbvio. "Gosta de bolo?", perguntei-
lhe. Respondeu-me que sim. "De que parte do bolo gosta mais", continuei,
"da massa ou da cobertura?" "Oh, da cobertura!", respondeu com
entusiasmo. "E como é que come uma fatia de bolo?", inquiri, sentindo-me o
mais pateta dos psiquiatras que já existiu. "Como primeiro a cobertura,
claro", respondeu ela. Dos hábitos de comer bolo passámos para os hábitos
de trabalho e, como era de esperar, descobrimos que, diariamente, ela
dedicava a primeira hora à metade mais gratificante do seu trabalho e as
outras seis horas ao restante, de que não gostava. Sugeri-lhe que, se se
forçasse a executar a parte desagradável do trabalho na primeira hora,
ficaria livre para tirar partido das restantes seis. Parecia-me, disse-lhe eu,
que uma hora de dor seguida de seis de prazer era preferível a uma hora de
prazer seguida de seis de dor. Ela concordou e, sendo basicamente uma
pessoa dotada de força de vontade, deixou de procrastinar.

19

O adiamento da gratificação é um processo de programação da dor e do


prazer da vida de forma a aumentar o prazer, enfrentando e vivendo
primeiro a dor e acabando com ela. É a única forma decente de se viver.

Esta ferramenta ou processo de programação é aprendida pela maior parte


das crianças numa fase precoce da vida, por vezes até por volta dos cinco
anos. Por exemplo, ocasionalmente, uma criança de cinco anos, ao jogar
com um companheiro, sugerirá ao companheiro que seja o primeiro a jogar
para poder ter o prazer de jogar mais tarde. Aos seis anos, as crianças
poderão começar a comer o bolo primeiro e a cobertura depois. Em todo o
percurso escolar primário esta capacidade precoce de adiar a gratificação é
exercitada diariamente, particularmente através dos trabalhos de casa. Por
volta dos doze anos, as crianças já conseguem, ocasionalmente e sem ser
por ordem dos pais, sentar-se e fazer os trabalhos de casa antes de verem
televisão. Pelos quinze ou dezasseis anos este é o comportamento esperado
do adolescente e considerado normal.

Torna-se evidente para os educadores que, nesta idade, um número


substancial de adolescentes ficam aquém desta norma. Enquanto muitos
detêm uma capacidade bem desenvolvida de adiamento da gratificação,
alguns, na casa dos quinze ou dezasseis anos, parecem quase não ter
desenvolvido essa capacidade; de facto, alguns parecem nem a ter de todo.
Estes são os estudantes problemáticos. Apesar de possuírem uma
inteligência média ou mais elevada, têm notas baixas, simplesmente porque
não se esforçam. Faltam às aulas ou mesmo à escola por capricho
momentâneo. São impulsivos e a sua impulsividade reflecte-se também na
sua vida social. Envolvem-se frequentemente em lutas, nas drogas, e
começam a ter problemas com a polícia. Goza agora, paga depois, é o seu
lema. Aí, entram os psicólogos e os psicoterapeutas. Mas, a maior parte das
vezes, parece demasiado tarde. Estes adolescentes reagem

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negativamente a qualquer tentativa de interferência no seu estilo de vida de


impulsividade e, mesmo quando essa reacção consegue ser ultrapassada
com uma atitude calorosa e amigável e não de julgamento por parte do
terapeuta, a sua impulsividade é frequentemente tão forte, que os impede
de participar no processo de psicoterapia de uma forma significativa. Faltam
às consultas. Evitam todas as questões importantes e dolorosas. Portanto,
habitualmente estas tentativas de intervenção falham e estas crianças
abandonam a escola, para prosseguir um padrão de insucessos que os leva
frequentemente a casamentos desastrosos, acidentes, hospitais
psiquiátricos ou à cadeia.

Porquê isto? Por que razão a maioria desenvolve a capacidade de adiar a


gratificação, enquanto uma minoria substancial não consegue, muitas vezes
irrecuperavelmente, desenvolver essa capacidade? A resposta não é
absoluta nem cientificamente conhecida. O papel dos factores genéticos
não é claro. As variáveis não são suficientemente controláveis para servirem
de prova científica. Mas a maior parte dos sinais aponta claramente para a
qualidade do acompanhamento parental como determinante.

Os Pecados do Pai

NÃO É QUE EM CASA destas crianças auto-indisciplinadas não exista


qualquer espécie de disciplina parental. Na maioria dos casos, estas
crianças são frequente e severamente punidas durante a infância - recebem
bofetadas, murros, pontapés, pancada e chicotadas dos pais, até por
infracções menores. Mas esta disciplina não tem significado. Porque é uma
disciplina indisciplinada.

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Uma das razões por que não tem significado é que os próprios pais são
auto-indisciplinados e servem portanto de modelos de indisciplina para os
filhos. São os pais "Faz como eu digo, não faças como eu faço".
Provavelmente, embebedam-se frequentemente na presença dos filhos.
Discutem em frente às crianças sem comedimento, dignidade ou
racionalidade. São desleixados. Fazem promessas que não cumprem. As
suas próprias vidas estão óbvia e frequentemente em desordem e
desarranjo, e as suas tentativas de ordenar as vidas dos filhos são por eles
vistas como sem sentido. Se o pai espanca a mãe regularmente, que sentido
faz para um rapaz a mãe bater-lhe porque ele bateu na irmã? Faz sentido
quando lhe dizem que tem que aprender a controlar-se? Se não temos o
benefício da comparação enquanto pequenos, os nossos pais são
semelhantes a deuses aos nossos olhos. Quando os pais fazem as coisas de
determinada maneira, para a criança essa é a maneira de as fazer, a
maneira como devem ser feitas. Se a criança vê os pais comportarem-se no
dia-a-dia com auto-disciplina, comedimento, dignidade e capacidade de
ordenar as suas vidas, sentirá nas mais íntimas fibras do seu ser que essa é
a maneira de viver. Se a criança vê os pais viverem o dia-a-dia sem auto-
domínio ou auto-disciplina, virá a acreditar no mais íntimo do seu ser que
essa é a maneira de viver. Ainda mais importante do que os modelos é o
amor. Porque mesmo em lares caóticos e desordenados o amor está por
vezes presente, e desses lares podem resultar crianças auto-disciplinadas.
E, não poucas vezes, os pais com profissões liberais médicos, advogados,
mulheres dirigentes de associações e filantropos - que levam vidas
rigidamente ordenadas e decorosas mas onde falta o amor, trazem ao
mundo crianças que são tão indisciplinadas, destrutivas e desorganizadas
como uma criança de um lar pobre e caótico.

No limite, o amor é tudo. O mistério do amor será objecto de exame mais


adiante neste trabalho. No entanto, por uma

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questão de coerência, poderá ser útil fazer-lhe uma referência breve, ainda
que limitada, bem como à sua relação com a disciplina, neste ponto.

Quando amamos alguma coisa, ela tem valor para nós, e quando algo tem
valor para nós gostamos de passar tempo a tê-lo connosco, a apreciá-lo e a
tratá-lo. Observe-se um adolescente apaixonado pelo seu carro e repare-se
no tempo que ele gasta a admirá-lo, poli-lo, repará-lo e afiná-lo. Ou uma
pessoa mais velha com um roseiral amado, e o tempo passado a podar, a
adubar, a fertilizar e a estudá-lo. Assim é quando amamos as crianças;
passamos tempo a admirá-las e a tratar delas. Damos-lhes o nosso tempo.

A boa disciplina requer tempo. Quando não temos ou não estamos na


disposição de dar tempo aos nossos filhos, nem sequer os observamos
suficientemente de perto para perceber quando a necessidade que têm da
nossa ajuda disciplinar é subtilmente expressa. Se a sua necessidade de
disciplina for tão flagrante que colida com a nossa consciência, podemos
ainda ignorar essa necessidade com o argumento de que é mais fácil fazer-
lhes a vontade - "Hoje não estou com energia para os confrontar." Ou,
finalmente, se somos compelidos a agir pelo seu mau comportamento ou
pela nossa irritação, imporemos a disciplina, muitas vezes brutalmente,
mais pela ira do que por deliberação, sem analisar o problema ou sequer
perder tempo a considerar que forma de disciplina é a mais adequada
àquele problema em particular.

Os pais que dedicam tempo aos filhos, mesmo quando não é solicitado por
notório mau comportamento, apercebem-se de necessidades de disciplina
subtis, a que responderão com insistência, reprimenda, crítica construtiva
ou elogio, ministrados com sensatez e afecto. Observam como os filhos
comem bolo, como estudam, quando dizem pequenas mentiras, quando
fogem dos problemas em vez de os enfrentar. Dedicarão tempo

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a fazer estas pequenas correcções e ajustes, ouvindo os filhos,


respondendo-lhes, apertando um pouco aqui, alargando um pouco ali,
fazendo-lhes pequenas prelecções, contando-lhes histórias, dando-lhes
pequenos abraços e beijos, pequenos ralhetes, palmadinhas nas costas.

A qualidade da disciplina ministrada por pais que amam é superior à


disciplina de pais que não amam. Mas isto é apenas o princípio. Ao disporem
do tempo para observar e pensar sobre as necessidades dos filhos, os pais
que amam com frequência se angustiam quanto a decisões a tomar e, num
sentido muito real, sofrem juntamente com os filhos. Os filhos não estão
cegos em relação a isto. Apercebem-se quando os pais estão na disposição
de sofrer com eles e, embora possam não corresponder com gratidão
imediata, aprenderão igualmente a sofrer. "Se os meus pais estão na
disposição de sofrer comigo," dirão a si próprios, "o sofrimento não pode ser
assim tão mau, e eu tenho que estar disposto a sofrer comigo mesmo." Este
é o princípio da auto-disciplina.

O tempo e a qualidade do tempo que os pais lhes dedicam indicam às


crianças o grau de avaliação que os pais lhes atribuem. Alguns pais que
basicamente não amam, na tentativa de encobrir a sua falta de afecto,
fazem frequentes declarações de amor aos filhos, em que lhes dizem,
repetitiva e mecanicamente, como os apreciam, mas não lhes dedicam
tempo de elevada qualidade. Os filhos nunca se deixam enganar totalmente
por tais palavras ocas. Conscientemente, podem agarrar-se a elas, querendo
acreditar que são amados, mas, subconscientemente, sabem que as
palavras dos pais não condizem com os seus actos.

Por outro lado, as crianças verdadeiramente amadas, embora possam, em


momentos de ressentimento, sentir conscientemente ou proclamar que
estão a ser negligenciadas, no subconsciente sabem que são apreciadas.
Este conhecimento vale mais que
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ouro. Quando as crianças sabem que são apreciadas, quando se sentem


verdadeiramente apreciadas no mais profundo do seu ser, sentem-se
válidas.

O sentimento de ser válido - "Sou uma pessoa válida" - é essencial à saúde


mental e um pilar da auto-disciplina. É um produto directo do amor parental.
Essa convicção deve ser adquirida na infância; é extremamente difícil
adquiri-la na idade adulta. Inversamente, quando os filhos aprendem a
sentir-se válidos através do amor dos pais, é quase impossível que as
vicissitudes da vida adulta lhes destruam o espírito.

Este sentimento de ser válido é um pilar da auto-disciplina porque, quando


nos consideramos válidos, tomamos conta de nós de todas as formas
necessárias. A auto-disciplina é auto-estima.

Por exemplo - já que estamos a discutir o processo de adiamento da


gratificação, de programar e ordenar o tempo examinemos a questão do
tempo. Se nos sentimos válidos, sentimos que o nosso tempo é valioso, e se
sentimos que o nosso tempo é valioso, queremos utilizá-lo bem. A analista
financeira que procrastinava não valorizava o seu tempo. Se o fizesse, não
se teria permitido passar a maior parte do dia infeliz e improdutiva. Não
deixou de ter consequências para ela o facto de, durante toda a sua
infância, ter sido "exportada" durante todas as férias escolares para as
passar com pais "alugados", apesar de os pais poderem perfeitamente ter
tomado conta dela se quisessem. Eles não a apreciavam. Não queriam
tomar conta dela. Portanto, ela cresceu sentindo-se sem valor, sem merecer
que se importassem com ela; portanto, não se importava consigo própria.
Não achava que valesse a pena auto-disciplinar-se. Apesar de ser uma
mulher inteligente e competente, necessitava da instrução mais elementar
em auto-disciplina, porque lhe faltava a avaliação realista do seu próprio
valor e do valor do seu tempo. Quando se apercebeu de que o seu

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tempo era valioso, a sequência natural foi querer organizá-lo, protegê-lo e
tirar dele o máximo proveito.

Em resultado da experiência do amor e carinho parentais sólidos durante a


infância, essas crianças afortunadas chegarão à idade adulta não só com
um profundo sentido do seu próprio valor, mas também com um sentido
profundo de segurança. Todas as crianças sentem o terror do abandono, e
com razão. Este medo do abandono surge por volta dos seis meses, logo
que a criança se reconhece como um indivíduo, em separado dos pais.
Porque com esta percepção da sua individualidade, apercebe-se de que,
como indivíduo, é completamente vulnerável, totalmente dependente e está
totalmente à mercê dos pais para todas as formas de sustento e meios de
sobrevivência. Para a criança, o abandono pelos pais é equivalente à morte.
A maior parte dos pais, mesmo quando relativamente ignorantes ou rudes
noutros aspectos, são instintivamente sensíveis ao medo do abandono dos
seus filhos e, no dia-a-dia, centenas e milhares de vezes, tranquilizam-nos:
"Sabes que a mamã e o papá não te deixam ficar"; "Claro que a mamã e o
papá te vêm buscar"; "A mamã e o papá não se esquecem de ti". Se estas
palavras corresponderem aos actos, mês após mês, ano após ano, por
altura da adolescência a criança terá perdido o seu medo do abandono e,
por sua vez, terá um profundo sentido de que o mundo é um lugar seguro e
de que a protecção está presente quando é precisa. Com este sentido da
solidez da segurança do mundo, essa criança sente-se à vontade para adiar
qualquer espécie de gratificação, sentindo-se segura porque sabe que
a gratificação, tal como a casa e os pais, está sempre ali, disponível quando
é preciso.

Mas muitas não têm essa sorte. Um grande número de crianças é


abandonado pelos pais durante a infância por morte, por deserção, por pura
negligência ou, como no caso da analista financeira, por simples falta de
afecto. Outras, embora não

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abandonadas de facto, não recebem dos pais a tranquilização de que não


serão abandonadas. Há pais, por exemplo, que no desejo de aplicar a
disciplina da forma mais fácil e rápida, utilizam mesmo a ameaça de
abandono, aberta ou subtilmente, para conseguirem esse objectivo. A
mensagem que passam aos filhos é: "Se não fizeres exactamente aquilo que
eu mando, não gosto mais de ti e podes adivinhar o que isso quer dizer."
Quer dizer, evidentemente, abandono e morte. Estes pais sacrificam o amor
pela necessidade de controlar e dominar os filhos e a retribuição são filhos
que têm um medo excessivo do futuro. E é assim que estas crianças,
abandonadas psicologicamente ou de facto, chegam à idade adulta sem o
profundo sentido de que o mundo é um lugar seguro e protector. Pelo
contrário, vêem o mundo como perigoso e assustador e não estão na
disposição de prescindir de qualquer gratificação ou segurança no presente
em troca da promessa de maior gratificação e segurança no futuro, uma vez
que, para elas, o futuro aparece deveras duvidoso.

Em suma, para que as crianças desenvolvam a capacidade de adiar a


gratificação, é necessário que tenham modelos de auto-disciplina, sentido
de valor pessoal e um grau de confiança na segurança da sua existência.
Estes "bens" são adquiridos, idealmente, através da auto-disciplina e do
afecto sólido e genuíno dos pais; são as dádivas mais preciosas que mães e
pais podem legar. Quando estas dádivas não partem dos nossos pais,
podemos obtê-las de outras fontes, mas, nesse caso, o processo de
aquisição é, invariavelmente, um enorme esforço, muitas vezes dura a vida
inteira e é muitas vezes infrutífero.

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Resolução dos Problemas e Tempo

TENDO ABORDADO ALGUMAS das formas em que o amor parental, ou a sua


falta, pode influenciar o desenvolvimento da auto-disciplina de uma forma
geral, e a capacidade de adiamento da gratificação em particular, vamos
analisar algumas das maneiras mais subtis mas, no entanto, devastadoras,
como as dificuldades de adiamento da gratificação afectam a vida da maior
parte dos adultos. Enquanto a maior parte de nós, felizmente, desenvolve a
capacidade suficiente de adiamento da gratificação para completar os
estudos liceais ou universitários e iniciar a vida adulta sem ir parar à cadeia,
o nosso desenvolvimento tende, no entanto, a ser imperfeito e incompleto,
e, em resultado, a nossa capacidade de resolver os problemas da vida
continua a ser imperfeita e incompleta.

Aos trinta e sete anos aprendi a arranjar coisas. Até lá, quase todas as
minhas tentativas de fazer pequenas reparações de canalização, arranjar
brinquedos ou montar móveis embalados de acordo com a folha de
instruções hieroglíficas que os acompanhavam, terminavam em confusão,
insucesso e frustração. Apesar de ter conseguido sobreviver até ao fim do
curso de Medicina e sustentar uma família como executivo e psiquiatra mais
ou menos bem sucedido, considerava-me um idiota em termos de
mecânica. Estava convencido de que tinha uma deficiência em qualquer
gene, ou que, por maldição da Natureza, me faltava a qualidade mística
responsável pela aptidão pela mecânica. Até que um dia, no final do ano em
que fiz trinta e sete anos, ao passear num Domingo de Primavera, dei com
um vizinho que estava a arranjar uma máquina de cortar relva. Depois de o
cumprimentar, comentei, "Sabe, tenho grande

28

admiração por si. Nunca consegui arranjar esse tipo de coisas nem fazer
nada do género." O meu vizinho, sem nenhuma hesitação, ripostou "Isso é
porque não lhe dedica tempo." Continuei o meu passeio, algo inquieto com
a simplicidade, espontaneidade e determinação da resposta. "Será que ele
tem razão?", perguntei a mim mesmo. De qualquer maneira, ficou-me na
memória, e na primeira oportunidade que surgiu de fazer uma pequena
reparação, lembrei-me que era preciso dar-lhe tempo. O travão de mão do
carro de uma doente tinha colado e ela sabia que havia qualquer coisa que
se puxava por baixo da consola para o soltar, mas não sabia o quê. Deitei-
me no chão, por baixo do assento da frente do carro. Levei o tempo
necessário a acomodar-me. Quando me senti confortável, examinei a
situação tranquilamente. Olhei durante alguns minutos. Inicialmente só vi
uma confusão de cabos e tubos e hastes cujo significado não conhecia. Mas
gradualmente, sem pressa, consegui focar o olhar no dispositivo de
travagem e seguir o seu percurso. Então tornou-se claro que havia uma
pequena alavanca que não deixava soltar o travão. Estudei a alavanca
vagarosamente até se tornar claro que, se a empurrasse para cima com a
ponta do dedo, a movimentaria com facilidade e soltaria o travão. Foi o que
fiz. Um único movimento, alguns gramas de pressão de um dedo, e o
problema ficou resolvido. Eu era um mestre mecânico! Na verdade, nem
tenho conhecimentos - nem sequer tempo para os adquirir - que me
permitam resolver a maior parte das avarias mecânicas, dado que escolhi
concentrar o meu tempo em assuntos não mecânicos. Portanto, continuo a
ir a correr à oficina mais próxima. Mas agora sei que é uma escolha feita por
mim, que não fui amaldiçoado, nem tenho uma deficiência genética, nem
sou de outra forma incapaz ou impotente. E sei que eu ou qualquer outra
pessoa, que não seja deficiente mental, podemos resolver qualquer
problema se nos dispusermos a dedicar-lhe tempo.
29

A questão é importante, principalmente porque muitas pessoas não se


dispõem simplesmente a gastar o tempo necessário para resolverem
muitos dos problemas intelectuais, sociais ou espirituais da vida, tal
como eu não o gastava para resolver problemas mecânicos. Antes da minha
iluminação mecânica, teria enfiado a cabeça desastradamente por baixo da
consola do carro da minha doente, teria imediatamente puxado por uma
data de fios sem ter a menor ideia do que estava a fazer e depois, não
obtendo nenhum resultado construtivo, deitaria as mãos à cabeça e diria,
"Não sou capaz." E esta é precisamente a forma como muitos de nós
abordamos outros dilemas da vida do dia-a-dia. A analista financeira que já
foi referida era, basicamente, uma mãe afectuosa e dedicada para os dois
filhos pequenos, mas pouco eficaz. Era suficientemente atenta e
preocupada para perceber quando os filhos tinham qualquer problema
emocional ou algo não funcionava na forma como os educava. Mas depois,
inevitavelmente, actuava de uma de duas maneiras: ou fazia a primeira
alteração que lhe vinha à cabeça numa questão de segundos - obrigando-os
a comer mais ao pequeno-almoço ou mandando-os para a cama mais cedo,
independentemente do facto de essa alteração ter ou não ter alguma coisa
a ver com o problema, ou então chegava à sessão seguinte de terapia
comigo (o mecânico), e desesperava: "Não sou capaz. O que hei-de fazer?"
Esta mulher tinha uma mente perfeitamente lúcida e analítica e, quando
não procrastinava, era perfeitamente capaz de resolver problemas
complexos no seu trabalho. No entanto, quando confrontada com um
problema pessoal, comportava-se como se não possuísse qualquer espécie
de inteligência. A questão era de tempo. Assim que se apercebia de um
problema pessoal, sentia-se tão perturbada que exigia uma solução
imediata e não estava disposta a tolerar esse desconforto o tempo
suficiente para analisar o problema. A solução do problema representava a
grati-

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ficação, que ela não era capaz de adiar mais de um ou dois minutos, com o
resultado de que as suas soluções eram habitualmente inadequadas e a
família vivia em turbilhão crónico. Felizmente que, perserverando na
terapia, conseguiu aprender gradualmente a auto-disciplinar-se de forma a
dedicar o tempo necessário à análise dos problemas familiares para poder
aplicar soluções ponderadas e eficazes.
Não falamos aqui de deficiências esotéricas na resolução de problemas
associadas apenas a pessoas que manifestam perturbações psiquiátricas. A
analista financeira é toda a gente. Qual de nós pode afirmar que dedica
infalivelmente tempo suficiente à análise dos problemas ou tensões das
crianças da família? Qual de nós é tão auto-disciplinado que nunca diga
resignadamente face aos problemas, "Não sou capaz"?

De facto, existe uma deficiência na abordagem da resolução de problemas,


mais primitiva e destrutiva do que as tentativas precipitadas de encontrar
soluções instantâneas, uma deficiência ainda mais omnipresente e
universal. É a esperança que os problemas desapareçam por sua própria
iniciativa. Um vendedor de trinta anos, solteiro, que fazia terapia de grupo
numa pequena cidade, começou a sair com uma mulher, recentemente
separada de um dos outros membros do grupo, um banqueiro. O vendedor
sabia que o banqueiro era um revoltado crónico que se ressentia
profundamente por a mulher o ter deixado. Também sabia que era quase
inevitável que, mais cedo ou mais tarde, o banqueiro viesse a saber da sua
relação. Sabia que a única solução para o problema seria confessar a
relação ao grupo e suportar a zanga do banqueiro com o apoio do grupo.
Mas não fez nada. Passados três meses, o banqueiro descobriu a amizade,
ficou furioso como era de prever e aproveitou o incidente para deixar a
terapia. Quando confrontado pelo grupo quanto ao seu comportamento
destrutivo, o vendedor disse: "Eu sabia que falar sobre o assunto ia criar
uma

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confusão e achei que, se não fizesse nada, talvez escapasse sem confusão.
Acho que me convenci que, se esperasse o tempo suficiente, o problema
desapareceria."

Os problemas não desaparecem. Têm que ser resolvidos, caso contrário


permanecerão, constituindo sempre uma barreira à evolução e
desenvolvimento do espírito.

O grupo manifestou ao vendedor em termos muito claros que a sua


tendência para evitar a resolução dos problemas, ignorando o problema na
esperança que ele desaparecesse, constituía em si o seu maior problema.
Quatro meses mais tarde, no início do Outono, o vendedor concretizou uma
fantasia, despedindo-se do lugar de vendedor e montando o seu próprio
negócio de reparação de mobiliário, que não o obrigava a viajar. O grupo
criticou o facto de ele estar a pôr os ovos todos num só cesto e pôs em
causa a sensatez de fazer a mudança tão próximo do Inverno, mas o
vendedor assegurou-lhes que ganharia o suficiente para, sobreviver com o
seu novo negócio. O assunto caiu no esquecimento. No início de Fevereiro,
ele anunciou que teria de deixar o grupo porque não podia continuar a
pagar a mensalidade. Estava sem um tostão e tinha que começar a procurar
outro emprego. Em cinco meses, tinha consertado um total de oito peças de
mobiliário. Quando lhe perguntaram porque não tinha começado a procurar
emprego mais cedo, a resposta dele foi: "Há seis semanas que sabia que o
dinheiro se estava a esgotar rapidamente, mas não queria acreditar que
chegaria a este ponto. Tudo isto não parecia muito urgente mas agora,
caramba, é mesmo urgente." Tinha, claro, ignorado o problema.
Gradualmente, foi-se apercebendo de que até resolver o problema de
ignorar os problemas não passaria da estaca zero - mesmo com toda a
psicoterapia do mundo.

Esta tendência para ignorar os problemas é, mais uma vez, uma simples
manifestação de relutância em adiar a gratificação.

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A confrontação dos problemas é, como já disse, dolorosa. Para enfrentar um


problema de início, de livre vontade, antes de sermos forçados a fazê-lo
pelas circunstâncias, significa trocar algo agradável ou menos doloroso por
algo mais doloroso. É escolher sofrer agora na esperança da gratificação
futura, em vez de escolher a continuação da gratificação do presente na
esperança que o sofrimento futuro não venha a ser necessário.

Pode parecer que o vendedor que ignorava problemas tão óbvios era
emocionalmente imaturo ou psicologicamente primário, mas mais uma vez
vos digo, ele é toda a gente e a sua imaturidade e primitivismo existem em
todos nós. Um grande general, comandante de um exército, disse-me uma
vez: "O maior problema neste exército, ou creio eu, em qualquer
organização, é que a maior parte dos executivos sentam-se a olhar para os
problemas nas suas unidades, encarando-os de frente, sem fazer nada,
como se os problemas desaparecessem se eles lá ficarem tempo suficiente."
O general não se referia a débeis mentais ou anormais. Falava de outros
generais e coronéis, homens maduros com capacidades comprovadas e
treinados em disciplina.

Os pais são executivos e, apesar de normalmente não estarem muito bem


preparados para ela, a sua tarefa pode ser tão complexa como dirigir uma
companhia ou uma empresa. E, como os executivos militares, a maior parte
dos pais apercebe-se dos problemas dos seus filhos ou da sua relação com
eles durante meses ou anos antes de agirem, se o chegam a fazer.
"Pensámos que lhe passasse com a idade," dizem os pais quando consultam
um psiquiatra infantil devido a um problema que dura há cinco anos. E com
respeito à complexidade da acção parental, devo dizer que as decisões dos
pais são difíceis e muitas vezes os problemas infantis "passam com a
idade". Mas quase nunca faz mal algum tentar ajudá-los a ultrapassar o
problema ou analisá-lo mais de perto. E enquanto há crianças a quem

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"passa com a idade", outras há a quem frequentemente não passa; e, como


com tantos problemas, quanto mais tempo os problemas das crianças forem
ignorados, maiores se tornam e mais dolorosos e difíceis de resolver.

Responsabilidade

NÃO PODEMOS RESOLVER os problemas da vida senão resolvendo-os. Esta


afirmação pode parecer idioticamente tautológica ou evidente, no entanto
parece estar aquém da compreensão de grande parte da raça humana. Isto
porque temos que aceitar a responsabilidade por um problema antes de o
conseguirmos resolver. Não podemos resolver um problema dizendo, "O
problema não é meu." Não podemos resolver um problema tendo esperança
de que alguém o resolva por nós. Só posso resolver um problema quando
digo "Este problema é meu e compete-me resolvê-lo." Mas muitos, tantos,
tentam evitar a dor dos seus problemas dizendo para consigo: "Este
problema foi-me causado por outros, ou por circunstâncias sociais fora do
meu controle, portanto compete aos outros ou à sociedade resolver-me este
problema. Não é um problema pessoal meu."
O ponto a que as pessoas chegam psicologicamente para fugir a assumir a
responsabilidade de problemas pessoais, embora sempre triste, é por vezes
quase ridículo. Um sargento de carreira no exército, destacado em Okinawa
e numa situação grave devido a excesso de consumo de álcool, foi-me
enviado para avaliação psiquiátrica e, se possível, eventual tratamento.
Negou que era alcoólico, e até que o seu consumo de álcool fosse um
problema pessoal, dizendo, "Não há nada para fazer à noite em Okinawa
excepto beber."

34

"Gosta de ler?", perguntei-lhe.

"Ah, sim, claro, gosto de ler."

"Então porque não lê à noite, em vez de beber?"

"Há barulho a mais no quartel para se conseguir ler."

"Bom, então porque não vai para a biblioteca?"

"A biblioteca fica muito longe."

"A biblioteca fica mais longe que o bar onde costuma ir?"

"Bem, não sou grande leitor. Tenho outro tipo de interesses."

"Gosta de pescar?" perguntei então.

"Claro, adoro pescar."


"Porque não vai à pesca em vez de beber?"

"Porque tenho de trabalhar o dia todo."

"Não pode ir à pesca de noite?"

"Não, não se faz pesca à noite em Okinawa."

"Olhe que faz," disse eu. "Conheço várias organizações que pescam aqui à
noite. Quer que o ponha em contacto com elas?"

"Bom, na verdade, eu não gosto de ir à pesca."

"O que o ouço dizer," resumi, "é que há outras coisas para fazer em
Okinawa sem ser beber, mas o que você mais gosta de fazer em Okinawa é
beber."

"É, acho que sim."

"Mas beber está a causar-lhe problemas, portanto você tem um problema


para enfrentar, não tem?"

"Esta maldita ilha conduz seja quem for a beber."

Continuei a tentar durante algum tempo, mas o sargento não estava


minimamente interessado em encarar o seu hábito de beber como um
problema pessoal que podia resolver com ou sem ajuda, pelo que
comuniquei, lamentando, ao seu comandante que ele não estava receptivo
a assistência. Continuou a beber e foi dispensado do serviço a meio da
carreira.
Uma jovem esposa, também em Okinawa, cortou o pulso ligeiramente com
uma lâmina de barba e foi conduzida ao serviço de urgência, onde a vi.
Perguntei-lhe porque o tinha feito.

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"Para me matar, claro."

"Porque se quer matar?"

"Porque já não aguento esta estúpida ilha. Tem que me mandar de volta
para os Estados Unidos. Vou-me matar se tiver de ficar aqui mais tempo."

"O que é que tem viver em Okinawa de tão doloroso para si?", perguntei.

Ela começou a chorar, enquanto se lamentava "Não tenho cá amigos e


estou sempre sozinha."

"Isso é mau. Mas como é que ainda não conseguiu arranjar amigos?"

"Porque tenho de viver numa estúpida zona residencial Okinawiana e


nenhum dos meus vizinhos fala inglês."

"Porque não vai até à zona residencial americana ou até ao clube das
senhoras durante o dia, para fazer algumas amizades?"

"Porque o meu marido tem de levar o carro para o trabalho."

"Não pode levá-lo ao serviço, já que está sozinha e aborrecida o dia inteiro?"
"Não. É um carro com caixa de velocidades e eu não sei guiar carros com
caixa de velocidades, só automáticos."

"Porque não aprende a conduzir um carro com caixa de velocidades?"

"Nestas estradas? O senhor deve ser doido."

Neuroses e Perturbações de Personalidade

A MAIOR PARTE DAS pessoas que vem consultar um psiquiatra sofre daquilo
a que se chama uma neurose ou uma perturbação de personalidade. Posto
da forma mais simples, estas duas condições são perturbações de
responsabilidade e, como tal, são estilos opostos de relacionamento com o
mundo e os seus

36

problemas. O neurótico assume demasiada responsabilidade; a pessoa com


uma perturbação de personalidade não assume a suficiente. Quando os
neuróticos entram em conflito com o mundo, assumem automaticamente
que a culpa é sua. Quando os que têm perturbações de personalidade
entram em conflito com o mundo, assumem automaticamente que a culpa é
do mundo. Os dois indivíduos atrás descritos tinham perturbações de
personalidade: o sargento achava que o seu hábito de beber era culpa de
Okinawa e não sua, e a mulher via-se como não tendo papel nenhum no seu
próprio isolamento. Uma mulher neurótica, por outro lado, que também
sofria de solidão e isolamento em Okinawa, queixava-se: "Desloco-me todos
os dias ao Clube das Mulheres de Sargentos à procura de amizades, mas
não me sinto lá à vontade. Acho que as outras mulheres não gostam de
mim. Deve haver algo de errado comigo. Devia ser capaz de fazer amigos
com maior facilidade. Devia ter mais iniciativa. Quero descobrir o que me
faz ser tão pouco procurada." Esta mulher assumia responsabilidade total
pela sua solidão, sentindo que a culpa era toda sua. O que descobriu no
decurso da terapia foi que era uma pessoa invulgarmente inteligente e
ambiciosa e que se sentia pouco à vontade com as outras mulheres de
sargentos e com o seu marido, porque era consideravelmente mais
inteligente e ambiciosa que eles. Passou a ser capaz de ver que a sua
solidão, embora sendo um problema seu, não era necessariamente devido a
um erro ou deficiência da sua parte. Por fim, divorciou-se, tirou um curso
universitário ao mesmo tempo que educava os filhos, tornou-se produtora
de revistas e casou com um editor de sucesso.

Até os padrões de discurso dos neuróticos e os dos doentes de perturbações


de personalidade são diferentes. O discurso do neurótico é marcado por
expressões tais como "Eu devia" e "Eu não devia", que indicam a imagem
que o indivíduo tem de si como um homem ou mulher inferior, ficando
sempre aquém

37

do objectivo, fazendo sempre as escolhas erradas. O discurso de uma


pessoa com uma perturbação de personalidade, no entanto, está recheado
de "não posso", "não pude", "tenho de" e "tive de", demonstrando a
imagem de um ser que não tem poder de escolha, cujo comportamento é
completamente orientado por forças externas totalmente fora do seu
controle. Como se pode imaginar, é fácil trabalhar com neuróticos em
psicoterapia, em comparação com pessoas com perturbações de
personalidade, porque assumem a responsabilidade das suas dificuldades e
portanto reconhecem-se como tendo problemas. É muito mais difícil, senão
impossível, lidar com os que têm perturbações de personalidade, porque
não se vêem como tendo problemas; vêem o mundo, e não eles, a
necessitar de mudança, e portanto não reconhecem a necessidade de
autoanálise. Na verdade, muitos indivíduos têm uma neurose e uma
perturbação da personalidade e são designados por "neuróticos de
personalidade", que indica que nalgumas partes das suas vidas se vêem
carregados de culpas por terem assumido responsabilidades que na
realidade não são deles, enquanto que noutras áreas não assumem uma
responsabilidade realista. Felizmente, quando a f é e a confiança desses
indivíduos no processo de psicoterapia são estabelecidas pela ajuda que ela
lhes presta no lado neurótico das suas personalidades, consegue-se
frequentemente levá-los a examinarem e corrigirem a sua indisponibilidade
para assumir responsabilidades onde é necessário. Poucos de nós
escapamos a ser neuróticos ou a ter perturbações de personalidade pelo
menos até certo ponto (razão porque essencialmente toda a gente pode
beneficiar da psicoterapia se estiver seriamente disposta a participar no
processo). A razão para isso é que o problema de distinguir entre aquilo por
que somos ou não somos responsáveis nesta vida é um dos maiores
problemas da existência humana. Nunca fica completamente resolvido;
durante toda a nossa vida, temos de avaliar
38

e reavaliar continuamente onde estão as nossas responsabilidades no


decurso constantemente em mudança dos acontecimentos. A avaliação e a
reavaliação não deixam de ser dolorosas por serem feitas adequada e
conscienciosamente. Para executar quer um quer outro processo
adequadamente, devemos possuir a vontade e a capacidade de nos
submetermos a uma auto-avaliação contínua. E essa capacidade ou vontade
não é inerente a nenhum de nós. Num certo sentido, todas as crianças têm
distúrbios de personalidade, pela sua tendência instintiva de negar a
responsabilidade por muitos conflitos em que se encontram envolvidas.
Assim, dois irmãos que lutam culpar-se-ão sempre mutuamente por ter
começado a briga e cada um negará peremptoriamente ter sido o culpado.
Da mesma forma, todas as crianças têm neuroses, uma vez que
instintivamente assumirão a responsabilidade por certas privações porque
passam mas que ainda não compreendem. Assim, a criança que não é
amada pelos pais assumir-se-á sempre como não sendo passível de ser
amada em vez de reconhecer nos pais uma deficiente capacidade de amar.
Ou os adolescentes mais jovens que ainda não são convidados para sair ou
não são bem sucedidos nos desportos, que se vêem como seres humanos
gravemente deficientes e não como as flores tardias mas perfeitamente
normais que normalmente são. Só através de uma grande experiência e de
uma longa e bem sucedida maturação adquirimos a capacidade de ver o
mundo e o nosso lugar nele de uma forma realista e assim somos capazes
de avaliar realisticamente a nossa responsabilidade por nós e no mundo.

Os pais podem fazer muito para ajudar os filhos neste processo de


maturação. Ocorrem milhares de oportunidades, enquanto os filhos
crescem, em que os pais os podem confrontar com a sua tendência para
evitar ou escapar à responsabilidade pelos seus actos ou em que podem
tranquilizá-los em como certas situações não decorrem de falta sua. Mas
agarrar

39

essas oportunidades, como já disse, requer dos pais sensibilidade às


necessidades dos filhos e disposição de lhes dedicar o tempo e o esforço,
muitas vezes desconfortável, de fazer face a essas necessidades. O que, por
sua vez, exige amor e vontade de assumir a responsabilidade adequada
pela melhoria do desenvolvimento dos filhos.

Por outro lado, mesmo para além da simples insensibilidade e negligência,


há muito que os pais podem fazer para prejudicar este processo de
maturação. Os neuróticos, pela sua disposição de assumir responsabilidade,
podem ser pais excelentes se as suas neuroses forem relativamente ligeiras
e não estiverem tão sobrecarregados de responsabilidades desnecessárias
que pouca energia lhes reste para as responsabilidades necessárias da
paternidade. As pessoas com perturbações de personalidade, no entanto,
tornam-se pais desastrosos, perfeitamente alheios ao facto de muitas vezes
tratarem os filhos duma forma terrivelmente destrutiva. Diz-se que "os
neuróticos tornam-se infelizes; os que têm perturbações de personalidade
tornam todos os outros infelizes". Acima de tudo, os pais com perturbações
de personalidade tornam infelizes os seus filhos. Como noutras áreas das
suas vidas, não assumem a devida responsabilidade pela paternidade.
Tendem a sacudir os filhos de mil e uma maneiras, em vez de lhes
prestarem a atenção de que precisam. Quando os filhos são delinquentes ou
têm dificuldades nos estudos, os pais com perturbações de personalidade
automaticamente atribuirão a culpa ao sistema da escola ou a outras
crianças que, insistem, exercem "má influência" nos seus filhos. Esta
atitude, claro, ignora o problema. Por fugirem à responsabilidade, os pais
com perturbações de personalidade servem de modelos de
irresponsabilidade aos filhos. Finalmente, nos seus esforços de fugir à
responsabilidade pelas suas próprias vidas, os pais com perturbações de
personalidade muitas vezes atribuem-na aos filhos: "Vocês põem-me doido",
ou "A única

40

razão porque continuo casada com o vosso pai (ou casado com a vossa
mãe) é por vossa causa", ou "A vossa mãe tem os nervos em franja por
vossa causa", ou "Podia ter tirado um curso e ser uma pessoa de sucesso se
não tivesse que vos sustentar". Desta forma, os pais estão de facto a dizer
aos filhos, "Vocês são responsáveis pela qualidade do meu casamento, pela
minha saúde mental e pela minha falta de sucesso na vida." Uma vez que
não têm a capacidade de avaliar quão inadequada é essa atitude, as
crianças aceitam muitas vezes a responsabilidade, e na medida em que a
aceitam, tornam-se neuróticas. É assim que os pais com perturbações de
personalidade quase invariavelmente dão origem a crianças com
perturbações de personalidade ou neuróticas. São os próprios pais que
fazem recair os seus pecados sobre os filhos.

Não é apenas no seu papel de pais que os indivíduos com perturbações de


personalidade são ineficazes e destrutivos; estes mesmos traços de carácter
reflectem-se normalmente no casamento, nas amizades e nos negócios - em
todas as áreas da existência em que eles recusam assumir responsabilidade
pela respectiva qualidade. Isto é inevitável já que, como foi dito, nenhum
problema pode ser resolvido até que o indivíduo assuma a responsabilidade
de o resolver. Quando os indivíduos com perturbações de personalidade
culpam uma outra pessoa

- cônjuge, filho, amigo, pai, patrão - ou outra coisa - as más influências, as


escolas, o governo, o racismo, o sexismo, a sociedade, o "sistema" - pelos
seus problemas, eles persistem. Nada se conseguiu. Ao rejeitar a
responsabilidade eles podem sentir-se bem consigo próprios, mas deixaram
de resolver os problemas da vida, de crescer espiritualmente e tornaram-se
um peso morto para a sociedade. Passaram a sua dor para a sociedade. A
frase dos anos sessenta (atribuída a Eldridge Cleaver) fala a todos nós para
sempre: "Se não fazes parte da solução, fazes parte do problema."

41

Fuga da Liberdade

QUANDO UM PSIQUIATRA diagnostica uma perturbação de personalidade é


porque o padrão de evasão à responsabilidade é relativamente flagrante no
indivíduo sob diagnóstico. No entanto, quase todos nós, de vez em quando,
tentamos escapar - por formas por vezes bastante subtis - à dor de assumir
a responsabilidade dos nossos problemas. Pela cura da minha própria
perturbação de personalidade, aos trinta anos, estou em dívida para com
Mac Badgely. Na altura, Mac era director da clínica de Psiquiatria
ambulatória onde eu estava a fazer o estágio. Nessa clínica, os doentes
eram distribuídos pelos outros internos e por mim, em regime de rotação.
Talvez porque eu fosse mais dedicado aos meus doentes e à minha própria
formação do que a maior parte dos meus colegas internos, dei por mim a
trabalhar muito mais horas do que eles. Eles normalmente viam doentes só
uma vez por semana. Eu, muitas vezes, via os meus doentes duas ou três
vezes por semana. Em consequência, via os meus colegas sairem da clínica
todas as tardes às quatro e meia para irem para casa, enquanto que eu
tinha consultas marcadas até às oito ou nove da noite, o que me enchia de
ressentimento. À medida que me fui ressentindo cada vez mais e ficando
cada vez mais exausto, percebi que havia alguma coisa a fazer. Fui falar
com o Dr. Badgely e expliquei-lhe a situação. Perguntei-lhe se podia ser
dispensado da rotação na aceitação de novos doentes durante algumas
semanas de maneira a poder recuperar, se ele achasse que era possível, ou
se ele via outra solução qualquer para o problema. Mac ouviu-me atenta e
receptivamente, sem me interromper uma única vez. Quando terminei, após
um momento de silêncio, ele disse-me, simpaticamente,

42

"Bom, vejo que tem mesmo um problema."

Sorri amplamente, sentindo-me compreendido. "Obrigado," disse eu. "O que


acha que se deve fazer?"

Ao que Mac respondeu, "Já lhe disse, Scott, você tem um problema."

Esta não era bem a resposta que eu esperava. "Sim," disse eu, ligeiramente
aborrecido, "eu sei que tenho um problema. Foi por isso que vim falar
consigo. O que acha que devo fazer a esse respeito?"

Mac respondeu: "Scott, parece-me que não ouviu o que eu lhe disse. Eu
ouvi-o e estou de acordo consigo. Você tem um problema."

"Caramba," disse eu, "eu sei que tenho um problema. Já sabia quando aqui
cheguei. A questão é, o que é que vou fazer?"

"Scott," respondeu Mac, "quero que ouça. Ouça com atenção e eu vou
repetir. Concordo consigo. Tem um problema. Especificamente, tem um
problema de tempo. O seu tempo. Não o meu tempo. É o seu problema, com
o seu tempo. Você, Scott Peck, tem um problema com o seu tempo. É tudo o
que vou dizer sobre o assunto."
Virei as costas e saí do gabinete de Mac, furioso. E continuei furioso.
Detestava Mac Badgely. Durante três meses, odiei-o. Achava que ele tinha
uma perturbação grave de personalidade. Senão, como podia ter sido tão
insensível? Eu tinha ido ter com ele humildemente para lhe pedir uma
pequena ajuda, um pequeno conselho, e o estupor nem sequer tinha
querido assumir a responsabilidade de tentar ajudar-me, até como director
da clínica. Se não lhe competia ajudar a gerir este tipo de problemas como
director da clínica, então que diabo lhe competia?

Mas, três meses depois, lá me apercebi de que Mac tinha razão, que era eu,
e não ele, que tinha a perturbação de personalidade. O meu tempo era da
minha responsabilidade.

43

Competia-me a mim e só a mim decidir como queria utilizar e organizar o


meu tempo. Se queria investir mais tempo no trabalho que os meus
colegas, a escolha era minha e as consequências dessa escolha eram da
minha responsabilidade. Podia ser doloroso para mim ver os meus colegas
sair duas ou três horas antes de mim, e podia ser doloroso ouvir as
reclamações da minha mulher por eu não me dedicar suficientemente à
família, mas essas eram as consequências da escolha que eu tinha feito. Se
eu não as quisesse sofrer, tinha a liberdade de escolher não trabalhar tanto
e de organizar o meu tempo de maneira diferente. O meu esforço no
trabalho não era uma carga imposta por má sina ou por um director clínico
sem coração; era a forma como eu tinha escolhido viver e ordenar as
minhas prioridades. De facto, escolhi não mudar o meu estilo de vida. Mas
com a mudança de atitude, desapareceu o ressentimento contra os meus
colegas. Já não fazia sentido continuar ressentido com eles por terem
escolhido um estilo de vida diferente do meu, quando eu tinha toda a
liberdade de escolher ser como eles se quisesse. Ressentir-me com eles era
ressentir-me com a minha escolha de ser diferente deles, uma escolha que
me satisfazia.

A dificuldade que temos em aceitar a responsabilidade do nosso


comportamento está no desejo de evitar a dor das consequências desse
comportamento. Ao pedir ao Mac Badgely que assumisse a responsabilidade
da estruturação do meu tempo, eu estava a tentar evitar a dor de trabalhar
muitas horas, ainda que trabalhar muitas horas fosse a consequência
inevitável da minha escolha de me dedicar aos meus doentes e à minha
formação. No entanto, ao fazê-lo, eu estava inconscientemente a tentar
aumentar a autoridade de Mac sobre mim. Estava a dar-lhe o meu poder, a
minha liberdade. Com efeito, estava a dizer-lhe, "Toma conta de mim. Sê o
chefe!" Sempre que procuramos evitar a responsabilidade pelo nosso
comportamento, fazemo-lo tentando passar essa responsabilidade

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para outro indivíduo, organização ou entidade. Mas isto significa que


estamos a entregar o nosso poder a essa entidade, seja o "destino" ou a
"sociedade", o governo, a empresa ou o chefe. Esta é a razão porque Erich
Fromm atribuiu o título, tão bem escolhido, de Fuga da Liberdade ao seu
estudo sobre o Nazismo e o autoritarismo. Ao tentar fugir à dor da
responsabilidade, milhões e até biliões de pessoas tentam diariamente fugir
da liberdade.

Conheço um indivíduo brilhante mas reservado que, quando o deixo, fala


eloquentemente e sem parar das forças opressivas na nossa sociedade: o
racismo, a desigualdade entre os sexos, o sistema militar-industrial e a
polícia local, que embirra com ele e com os amigos por causa do cabelo
comprido. Repetidamente, tenho tentado fazer-lhe ver que ele não é uma
criança. Quando crianças, em virtude da nossa real e enorme dependência,
ou nossos pais têm um real e enorme poder sobre nós. De facto, têm uma
grande responsabilidade pelo nosso bem-estar e encontramo-nos na
verdade, em grande medida, à sua mercê. Quando os pais são opressivos,
como é frequente, os filhos não têm praticamente nenhum poder de
reacção; as escolhas são limitadas. Mas como adultos, quando fisicamente
saudáveis, as nossas escolhas são quase ilimitadas. Isto não quer dizer que
não sejam dolorosas. Com frequência, as nossas escolhas situam-se entre o
menor de dois males, mas continua a estar ao nosso alcance fazê-las. Sim,
concordo com o meu conhecido, existem forças opressivas em acção no
mundo. Temos, no entanto, a liberdade de escolher a cada passo a forma
como vamos responder e manobrar essas forças. Ele escolheu viver numa
zona do país onde a polícia não gosta dos "tipos de cabelo comprido" e
continua a deixar o cabelo crescer. É livre de se mudar para a cidade, ou de
cortar o cabelo, ou até de se candidatar a comissário da polícia. Mas, apesar
do seu brilhantismo, ele não reconhece essas liberdades. Opta por se
lamentar
45

da sua falta de poder político em vez de aceitar e exultar com o seu imenso
poder pessoal. Fala do amor à liberdade e das forças opressivas que o
restringem, mas de cada vez que fala de como é vitimado por essas forças
está de facto a entregar a sua liberdade. Espero que um dia, em breve, ele
deixe de se revoltar contra a vida só porque algumas das escolhas são
dolorosas*.

A Dra. Hilde Bruch, no prefácio do seu livro Aprendendo Psicoterapia, afirma


que, basicamente, todos os doentes vão ao psiquiatra com "um problema
comum: a sensação de desamparo, o receio e a profunda convicção de ser
incapaz de 'lidar' com as coisas e mudá-las"**. Uma das raízes desta
"sensação de impotência" na maioria dos pacientes é o desejo de escapar,
parcial ou completamente, à dor da liberdade e, portanto, a falta, parcial ou
total, de aceitação da responsabilidade pelos seus problemas e pelas suas
vidas. Sentem-se impotentes porque, de facto, alienaram o seu poder. Mais
cedo ou mais tarde, se se quiserem curar, terão que aprender que toda a
vida adulta consiste numa série de escolhas e decisões pessoais. Se
aceitarem isso na totalidade, tornar-se-ão pessoas livres. Enquanto não o
aceitarem, sentir-se-ão vítimas para sempre.

* O psiquiatra Allen Wheelis foi, a meu ver, quem mais eloquentemente e


até mais poeticamente definiu a questão da liberdade de escolha entre dois
males, no capítulo "Freedom and Necessity" do seu livro How People Change
(Nova Iorque: Harper ÔC Row, 1973). Estive tentado a citar o capítulo na
totalidade, e recomendo-o a todos os que quiserem explorar esta questão
mais a fundo.

(Nota)

** Learning Psychotherapy, Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press,

1974, p. ix.

46

Dedicação à Realidade
O TERCEIRO INSTRUMENTO de disciplina ou da técnica de gerir a dor da
resolução dos problemas, que tem que ser continuamente aplicada se
queremos que as nossas vidas sejam saudáveis e que os nossos espíritos
evoluam, é a dedicação à verdade. Superficialmente, isto seria óbvio.
Porque a verdade é a realidade. Aquilo que é falso, é irreal. Quanto mais
claramente virmos a realidade do mundo, melhor preparados estaremos
para nos relacionarmos com ele. Quanto menos clara for a nossa visão da
realidade do mundo - quanto mais a nossa mente for confundida por
falsidades, mal-entendidos e ilusões

- menos capazes seremos de determinar as linhas de actuação correctas e


de tomar decisões acertadas. A nossa visão da realidade é como um mapa
com o qual transpomos o terreno da vida. Se o mapa for verdadeiro e
rigoroso, sabemos em geral onde estamos e, se decidirmos para onde
queremos ir, sabemos em geral como lá chegar. Se o mapa for falso e pouco
preciso, em geral perdemo-nos.

Embora tudo isto seja óbvio, constitui algo que a maioria das pessoas, em
maior ou menor grau, tende a ignorar. Ignoram-no porque o nosso caminho
para a realidade não é fácil. Primeiro, não nascemos com mapas; temos que
os fazer, e fazê-los exige esforço. Quanto mais esforço fizermos para
apreciar e compreender a realidade, tanto maiores e mais precisos serão os
nossos mapas. Mas muitos não querem fazer esse esforço. Alguns deixam
de o fazer no fim da adolescência. Os mapas deles são pequenos e mal
desenhados, a sua visão do mundo estreita e enganadora. No fim da meia-
idade, a maior parte das pessoas desiste. Têm a certeza de que os seus
mapas estão com-

47

pletos e que o seu Weltanschauung está correcto (na verdade, até


sacrossanto), e deixam de se interessar por novas informações. Como se
estivessem cansadas. Apenas relativamente poucas e afortunadas pessoas
continuam, até ao momento da morte, a explorar o mistério da realidade,
sempre aumentando, refinando e redefinindo o seu entendimento do mundo
e do que é verdadeiro.

Mas o maior problema da feitura dos mapas não é ter de começar do zero,
mas o ter de os rever constantemente, se queremos que sejam rigorosos. O
próprio mundo está em constante mudança. Os glaciares vão e vêm. As
culturas vão e vêm. Há muito pouca tecnologia, há demasiada tecnologia.
Duma forma ainda mais dramática, o ponto privilegiado de onde vemos o
mundo está constante e rapidamente em mudança. Quando somos
crianças, somos dependentes, desamparados. Como adultos, podemos ser
poderosos. No entanto, por doença ou velhice, podemos tornar-nos
novamente desamparados e dependentes. EnQuanto temos crianças de
quem cuidar, o mundo parece-nos diferente do que quando não temos;
quando criamos bebés, o mundo é diferente de quando criamos
adolescentes. Quando somos pobres, o mundo parece diferente de quando
somos ricos. Somos diariamente bombardeados com novas informações
quanto à natureza da realidade. Se queremos incorporar essa informação,
temos de rever os nossos mapas continuamente, e, por vezes, quando se
acumula informação suficiente, temos que proceder a revisões alargadas. O
processo de fazer revisões, principalmente revisões alargadas, é doloroso,
por vezes tremendamente doloroso. E eis a maior fonte de muitos dos males
da humanidade.

O que acontece quando se lutou longa e arduamente para desenvolver uma


visão funcional do mundo, um mapa aparentemente útil e utilizável, e se é
depois confrontado com nova informação que sugere que essa visão está
errada e que o mapa

48

tem de ser substancialmente refeito? O doloroso esforço exigido parece


assustador, quase inultrapassável. O que fazemos, na maior parte das
vezes, e normalmente inconscientemente, é ignorar a nova informação.
Muitas vezes, este acto de ignorar é muito mais do que passivo. Podemos
denunciar a nova informação como falsa, perigosa, herética, um acto do
diabo. Podemos fazer campanha contra ela e até tentar manipular o mundo
para o ajustar à nossa visão da realidade. Em vez de tentar mudar o mapa,
o indivíduo pode tentar destruir a nova realidade. Lamentavelmente, essa
pessoa pode gastar muito mais energia, no limite, a defender uma visão
ultrapassada do mundo, do que a que seria necessária para a rever e
corrigir desde o início.

Transferência: o Mapa Ultrapassado


ESTE PROCESSO DE SE agarrar activamente a uma visão ultrapassada da
realidade é a base de muitas doenças mentais. Os psiquiatras designam-na
por transferência. Existem provavelmente tantas variantes subtis da
definição de transferência como há psiquiatras. A minha definição pessoal é:
transferência é o conjunto de formas de percepção e reacção ao mundo,
que é desenvolvido na infância e que normalmente é totalmente adequado
ao ambiente da infância (na verdade, muitas vezes vital), mas que é
inadequadamente transferido para o ambiente adulto.

As formas de manifestação da transferência, embora sempre invasoras e


destrutivas, são muitas vezes discretas. No entanto, os exemplos mais
claros devem ser explícitos. Um desses exemplos foi o de um doente cujo
tratamento não resultou por força da sua transferência. Era um técnico de
computadores brilhante, mas mal sucedido, com trinta e poucos anos, que
me consultou porque a mulher o tinha deixado, levando com ela

49

os dois filhos. Ele não estava especialmente infeliz por a ter perdido, mas
estava destroçado pela perda dos filhos, a quem era profundamente
dedicado. Foi na esperança de os reaver que iniciou a psicoterapia, uma vez
que a mulher tinha declarado firmemente que não voltaria para ele se não
se submetesse a tratamento psiquiátrico. As suas maiores queixas contra
ele eram de que ele manifestava continuamente um ciúme irracional a seu
respeito, no entanto mantinha-se simultaneamente indiferente, frio,
distante, não comunicativo e não afectuoso. Também se queixava das suas
mudanças de emprego frequentes. A vida dele desde a adolescência tinha
sido marcadamente instável. Durante a adolescência, tinha-se envolvido
repetidamente em pequenas altercações com a polícia, e tinha sido detido
três vezes por embriaguez, beligerância, "vagabundagem" e por "interferir
com os deveres de um polícia". Não acabou a universidade, onde estava a
tirar o curso de engenharia eléctrica, porque, dizia ele, "Os meus
professores eram uma cambada de hipócritas, pouco diferentes da polícia."
Devido ao seu brilhantismo e criatividade no campo das tecnologias de
informação, os seus serviços eram muito procurados pela indústria. Mas
nunca tinha sido capaz de progredir ou conservar um emprego durante mais
de um ano e meio, sendo despedido ocasionalmente, mas despedindo-se
muitas vezes na sequência de disputas com os chefes, que descrevia como
"mentirosos e traidores, interessados apenas em se protegerem a si
próprios". A sua expressão mais frequente era "Não se pode confiar em
ninguém". Descrevia a sua infância como "normal" e os pais como
"medianos". No breve período que passou comigo, no entanto, referiu
casualmente e sem emoção inúmeras situações em que os pais lhe tinham
falhado. Prometeram-lhe uma bicicleta pelo aniversário, mas esqueceram-se
e deram-lhe outra coisa qualquer. Uma vez, esqueceram-se completamente
do seu aniversário, mas ele não achava que isso

50

estivesse drasticamente errado porque "eles tinham muito que fazer".


Prometiam-lhe fazer coisas com ele ao fim-de-semana, mas depois estavam
normalmente "demasiado ocupados". Inúmeras vezes, esqueceram-se de o
ir buscar a reuniões ou festas porque "tinham muito em que pensar".

O que aconteceu a este homem foi que, em criança, sofreu dolorosas


desilusões, uma após outra, devido à falta de afecto por parte dos pais.
Gradual ou repentinamente - não sei como - chegou à angustiante
conclusão, a meio da infância, que não podia confiar nos pais. Quando
compreendeu isso, no entanto, começou a sentir-se melhor e a vida tornou-
se mais confortável. Já não alimentava expectativas em relação aos pais,
nem esperanças quando lhe faziam promessas. Quando deixou de confiar
nos pais, a frequência e a gravidade das desilusões diminuiu
dramaticamente.

Este ajuste, no entanto, é a base de problemas futuros. Para uma criança, os


pais são tudo; representam o mundo. A criança não tem perspectiva para
ver que outros pais são diferentes e muitas vezes melhores. Parte do
princípio que a forma como os pais fazem as coisas é a forma como devem
ser feitas. Em consequência disso, a conclusão - a "realidade" a que esta
criança chegou não foi "Não posso confiar nos meus pais", mas "Não posso
confiar nas pessoas". Não confiar nas pessoas tornou-se o mapa com que
entrou na adolescência e na idade adulta. Com este mapa e uma
acumulação abundante de ressentimento que resultou das suas muitas
desilusões, era inevitável que entrasse repetidamente em conflito com as
figuras da autoridade - polícia, professor, patrões. E estes conflitos só
serviram para reforçar o seu sentimento de que não podia confiar nas
pessoas que tinham alguma coisa para lhe dar no mundo. Teve muitas
oportunidades de rever o mapa, mas deixou-as passar todas. Por um lado, a
única maneira como podia aprender que havia pessoas no mundo em quem
podia
51

confiar seria arriscar-se a confiar nelas e isso exigiria um desvio no mapa,


para começar. Por outro, essa reaprendizagem exigir-Ihe-ia rever a visão que
tinha dos pais - compreender que não o amavam, que não teve uma
infância normal e que os pais não eram medianos na sua indiferença às
suas necessidades. Essa compreensão teria sido extremamente dolorosa.
Finalmente, porque a sua desconfiança das pessoas era uma adaptação
realista à realidade da sua infância, era uma adaptação que funcionava em
termos de lhe diminuir a dor e o sofrimento. Uma vez que é extremamente
difícil desistir duma adaptação que funcionou tão bem, ele continuou o seu
percurso de desconfiança, criando inconscientemente situações que
serviam para a reforçar, alienando-se de todos, tornando impossível a
fruição do amor, do carinho, da intimidade e do afecto. Nem sequer se
permitia aproximar-se da mulher; ela também não merecia confiança. As
únicas pessoas com quem se podia relacionar intimamente eram os dois
filhos. Eram os únicos que controlava, que não tinham autoridade sobre ele,
os únicos em todo o mundo em quem podia confiar.

Quando estão envolvidos problemas de transferência, como é habitual, a


psicoterapia é, para além de outras coisas, um processo de revisão de
mapas. Os doentes procuram a terapia porque os seus mapas realmente
não funcionam. Mas como se agarram a eles e lutam contra o processo a
cada passo! Frequentemente, a necessidade de se agarrarem aos mapas e
de lutarem para não os perderem é tão grande que a terapia se torna
impossível, como aconteceu no caso do técnico de informática. Inicialmente,
pediu a consulta aos Sábados. Depois de três sessões deixou de vir porque
tinha arranjado um emprego a tratar de relvados aos Sábados e Domingos.
Propus-lhe a consulta às Qumtas-feiras à noite. Veio a duas sessões e parou
porque estava a fazer horas extraordinárias na fábrica. Reorganizei então a
minha agenda de forma a recebê-lo às Segundas

52

à noite, dia em que era, segundo ele dizia, improvável haver horas
extraordinárias. Depois de duas sessões, no entanto, deixou de vir porque
as horas extraordinárias à Segunda-feira pareciam estar a aumentar.
Confrontei-o com a impossibilidade de fazer terapia nestas circunstâncias.
Ele admitiu que não lhe era exigido fazer horas extraordinárias. No entanto,
declarou que precisava do dinheiro e que, para ele, o trabalho era mais
importante do que a terapia. Estipulou que podia vir às consultas apenas
nas Segundas à noite em que não houvesse trabalho extra e que me
telefonaria às quatro da tarde todas as Segundas-feiras para me avisar se
podia vir à consulta na mesma noite. Disse-lhe que não podia aceitar essas
condições, que não estava disposto a alterar os meus planos todas as
Segundas-feiras à noite pela possibilidade de ele vir à consulta. Ele achou
que eu estava a ser demasiado rígido, que não me preocupava com as suas
necessidades, que só me interessava o meu tempo e que claramente não
me importava nada com ele e, portanto, que não merecia confiança. Foi
nesta base que a nossa tentativa de trabalharmos juntos terminou, e eu
passei a constar do seu mapa como mais um marco.

O problema da transferência não é simplesmente um problema entre os


psicoterapeutas e os seus doentes. É um problema entre pais e filhos,
maridos e mulheres, patrões e empregados, entre amigos, entre grupos e
até entre nações. É interessante reflectir, por exemplo, no papel que as
questões de transferência representam nas relações internacionais. Os
nossos líderes nacionais são seres humanos que tiveram infâncias e
experiências na infância que os moldaram. Que mapa seguia Hitler e de
onde surgiu? Que mapa seguiam os líderes americanos ao iniciar, executar e
manter a guerra no Vietname? Era, evidentemente, um mapa muito
diferente do da geração que se seguiu. De que formas contribuiu a
experiência nacional da Depressão para o mapa deles, e a experiência dos
anos cin-

53

quenta e sessenta para o mapa da geração mais nova? Se a experiência


nacional dos anos trinta e quarenta contribuiu para o comportamento dos
líderes americanos no lançamento da guerra no Vietname, como se
adequava essa experiência à realidade dos anos sessenta e setenta? Como
poderemos rever os nossos mapas mais rapidamente?

Tanto a verdade como a realidade são evitadas quando dolorosas. Só


podemos rever os nossos mapas quando possuímos a disciplina para
ultrapassar essa dor. Para ter essa disciplina, devemos ser totalmente
dedicados à verdade. Isso quer dizer que devemos sempre considerar a
verdade, na medida em que a podemos determinar, mais importante, mais
vital para o nosso interesse pessoal, do que o nosso conforto. Inversamente,
devemos sempre considerar o nosso desconforto pessoal relativamente sem
importância e até encará-lo positivamente ao serviço da busca da verdade.
A saúde mental é um processo permanente de dedicação à realidade a todo
o custo.

Abertura ao Desafio

O QUE SIGNIFICA UMA vida de dedicação total à verdade? Significa, antes de


mais, uma vida de auto-exame contínuo e infinitamente rigoroso. Só
conhecemos o mundo através da nossa relação com ele. Portanto, para
conhecermos o mundo, não só temos de o examinar como,
simultaneamente, temos de examinar o examinador. Os psiquiatras
aprendem isto durante a sua formação e sabem que é impossível
compreender realisticamente os conflitos e transferências dos seus
pacientes sem entenderem as suas próprias transferências e conflitos. Por
essa razão, os psiquiatras são encorajados a submeter-se a psicoterapia ou
a psicanálise como parte da sua formação e desenvolvi-

54

mento. Infelizmente, nem todos os psiquiatras correspondem a esta


solicitação. Há muitas pessoas, entre elas psiquiatras, que analisam o
mundo com rigor mas que não se analisam a elas próprias tão
rigorosamente. Podem ser indivíduos competentes, na medida em que o
mundo considera a competência, mas nunca são sábios (ou não possuem
bom senso). A vida de sabedoria deve ser uma vida de contemplação aliada
a acção. No passado, na cultura americana, a contemplação não foi muito
considerada. Na década de cinquenta, as pessoas classificaram Adiai
Stevenson como um "intelectual" e achavam que ele não daria um bom
Presidente precisamente por ser um homem contemplativo, dado a
meditação profunda e com dúvidas. Já tenho ouvido pais dizerem aos filhos,
com toda a seriedade, "Pensas demais." O que é um absurdo, dado que são
os nossos lobos frontais, a nossa capacidade de pensar e de nos
examinarmos, que nos torna humanos. Felizmente, esse tipo de atitude
parece estar a mudar e começamos a compreender que as fontes de perigo
para o mundo se encontram mais dentro de nós do que fora, e que o
processo de constante auto-análise e contemplação é essencial para a
nossa sobrevivência. No entanto, refiro-me a um número relativamente
pequeno de pessoas que estão a mudar de atitude. A análise do mundo
exterior nunca é pessoalmente tão dolorosa como a análise do mundo
interior, e é certamente devido à dor que envolve uma vida de auto-exame
que a maioria se desvia dela. No entanto, quando se é dedicado à verdade,
esta dor parece relativamente sem importância - e cada vez menos
importante (e portanto cada vez menos dolorosa) à medida que se avança
no caminho da auto-análise.

Uma vida de dedicação total à verdade significa também uma vida disposta
a aceitar o desafio pessoal. A única maneira de termos a certeza de que o
nosso mapa da realidade é válido é expô-lo à crítica e ao desafio dos outros
fabricantes de mapas. Caso contrário, vivemos num sistema fechado -
dentro de

55

uma redoma, utilizando a analogia de Sylvia Plath, em que respiramos só o


nosso próprio ar fétido, cada vez mais sujeitos a alucinações. No entanto,
devido à dor inerente ao processo de revisão do nosso mapa da realidade,
tentamos a maior parte do tempo evitar ou afastar quaisquer desafios à sua
validade. Aos filhos dizemos, "Não me respondas, sou teu pai." Ao cônjuge
enviamos a mensagem, "Vamos viver e deixar viver. Se me criticares, serei
insuportável e vais arrepender-te." Às famílias e ao mundo, os mais velhos
enviam a mensagem, "Sou velho e frágil. Se me desafiares, posso morrer ou
pelo menos ficarás com o peso da responsabilidade de tornar infelizes os
meus últimos dias." Aos nossos empregados comunicamos, "Se tiverem o
descaramento de me desafiar de alguma maneira, é melhor fazerem-no de
forma comedida ou terão de ir procurar outro emprego."*

* Não só os indivíduos mas também as organizações são notórias em


proteger-se contra o desafio. Uma vez, o Chefe de Pessoal do Exército
solicitou-me que preparasse uma análise das causas psicológicas das
atrocidades de My Lai e o seu posterior encobrimento, com recomendações
para proceder a uma investigação que pudesse evitar tal comportamento no
futuro. As recomendações foram reprovadas pelo quadro geral do Exército,
com a justificação de que a investigação recomendada não poderia ser
mantida em segredo. "A existência de uma tal investigação pode abrir
portas a um desafio posterior. O Presidente e o Exército não têm
necessidade de mais desafios, neste momento." Foi o que me disseram.
Assim, uma análise das razões dum incidente que fora encoberto foram, por
sua vez, encobertas. Este comportamento não se limita ao Exército ou à
Casa Branca; pelo contrário, é comum ao Congresso, a outras agências
federais, empresas, até universidades e organizações de caridade - em
resumo, a todas as organizações humanas. Tal como é necessário aos
indivíduos aceitar e até bendizer os desafios colocados aos seus mapas de
realidade e modi operandi, se quiserem evoluir em sabedoria e em
eficiência, também é necessário às organizações aceitar e bendizer
desafios, se quiserem ser viáveis e progressivas. Este facto tem vindo a ser
cada vez mais reconhecido por indivíduos como John Gardner da Causa
Comum, para quem é claro que uma das tarefas mais excitantes e
essenciais que a nossa' sociedade enfrenta nas próximas décadas é
construir, na estrutura burocrática das nossas organizações, uma abertura e
uma resposta institucionalizadas ao desafio que substituirá a resistência
institucionalizada que é típica correntemente

56

A tendência para evitar o desafio está tão omnipresente nos seres humanos
que pode ser considerada uma característica da natureza humana. Mas, por
lhe chamarmos natural, não quer dizer que seja um comportamento
essencial, benéfico ou imutável. Também é natural defecar nas calças e
nunca lavar os dentes. No entanto, ensinamo-nos a fazer o que não é
natural até que se torne uma segunda natureza. Na verdade, a auto-
disciplina podia ser definida como o ensinarmo-nos a fazer o que não é
natural. Outra característica da natureza humana talvez a que nos torna
mais humanos - é a nossa capacidade de fazermos o que não é natural, de
transcendermos e daí transformarmos a nossa própria natureza.

Nenhum acto é menos natural, e portanto mais humano, que o acto de nos
submetermos à psicoterapia. Porque, por esse acto, abrimo-nos
deliberadamente ao mais profundo desafio por parte de outro ser humano e
até lhe pagamos pelo serviço de escrutínio e discernimento. Este colocarmo-
nos abertos ao desafio é uma das coisas que o deitarmo-nos no sofá do
psicanalista pode simbolizar. Submetermo-nos à psicoterapia é um acto da
maior coragem. A razão principal porque as pessoas não fazem psicoterapia
não é a falta de dinheiro, mas sim a falta de coragem. Isto inclui mesmo
muitos psiquiatras que, por qualquer razão, nunca acham conveniente
submeterem-se a terapia, apesar de terem ainda mais razões que os outros
para se sujeitarem à disciplina que ela envolve. Por outro lado, é por
possuírem essa coragem que muitos doentes, mesmo no início da terapia e
contrariamente à sua imagem estereotipada, são mais fortes e saudáveis
que a média.
Sendo a psicoterapia uma forma limite de nos abrirmos ao desafio, as
nossas interacções mais banais oferecem diariamente oportunidades de
arriscar a abertura: junto da máquina da água, em reunião, no campo de
golfe, à mesa de jantar, na cama com as luzes apagadas; com os nossos
colegas, chefes e

57

empregados, com os nossos companheiros, amigos, amantes, com os


nossos pais ou filhos. Uma senhora muito bem penteada, que se tratou
comigo durante algum tempo, começou a pentear-se de cada vez que se
levantava do sofá no fim de uma sessão. Comentei este novo padrão de
comportamento. "Há umas semanas atrás o meu marido reparou que eu
tinha o cabelo achatado atrás quando regressei da sessão," explicou ela,
corando. "Eu não lhe disse porquê. Tenho medo que faça troça de mim se
souber que me deito no sofá aqui." Portanto, tínhamos outra questão para
analisar. O grande valor da psicoterapia deriva do grau em que a disciplina
envolvida durante a "hora de cinquenta minutos" passa para os afazeres e
relações diários do paciente. A cura do espírito não fica completa até que a
abertura ao desafio seja uma forma de vida. Esta mulher não estaria
completamente bem enquanto não conseguisse ser tão directa com o
marido como era comigo.

Entre todos os que vão ao psiquiatra ou ao psicoterapeuta, muito poucos


procuram inicialmente, de uma forma consciente, o desafio ou a educação
na disciplina. A maior parte procura apenas "alívio". Quando percebem que
vão ser desafiados, mas também apoiados, muitos fogem, e outros sentem-
se tentados a fugir. Ensinar-lhes que o único alívio verdadeiro advirá através
do desafio e da disciplina é uma tarefa delicada, muitas vezes longa e
frequentemente sem sucesso. Falamos, portanto, de "seduzir" os doentes
para a psicoterapia. E podemos referir-nos a doentes a quem tratamos há
um ano ou mais, dizendo "Ainda não se iniciaram realmente na
psicoterapia".

Na psicoterapia, a abertura é especialmente encorajada (ou exigida,


dependendo do ponto de vista) através da técnica de "livre associação".
Quando se utiliza esta técnica, diz-se ao doente: "Traduza em palavras o
que quer que lhe venha à mente, por mais insignificante, embaraçoso,
doloroso ou sem significado que pareça. Se lhe vier à mente mais de uma
coisa

58

de cada vez, deve escolher aquela da qual sente mais relutância em falar."
É mais fácil dizer do que fazer. Apesar de tudo, os que se esforçam
conscienciosamente, duma maneira geral, progridem rapidamente. Mas
alguns resistem de tal maneira ao desafio que se limitam a fingir que fazem
livre associação. Pairam muito sobre isto e aquilo, mas omitem os
pormenores cruciais. Uma mulher é capaz de falar durante uma hora de
experiências desagradáveis da infância, mas não mencionar que o marido a
confrontou de manhã com o facto de ela ter deixado a conta no banco a
descoberto em mil dólares. Estes doentes tentam transformar a hora de
psicoterapia numa espécie de conferência de imprensa. Na melhor das
hipóteses, estão a perder tempo nesse esforço de evitar o desafio e,
normalmente, caem numa forma discreta de mentira.

Para que os indivíduos e organizações se encontrem abertos ao desafio, é


necessário que os seus mapas da realidade estejam verdadeiramente
abertos à inspecção do público. É preciso mais do que conferências de
imprensa. A terceira coisa que uma vida de total dedicação à verdade
significa é, portanto, uma vida de total honestidade. Significa um processo
contínuo e sem fim de auto-monitorização a fim de assegurarmos que as
nossas comunicações - não só as palavras que dizemos mas também a
forma como as dizemos - invariavelmente reflictam, duma forma tão precisa
quanto humanamente possível, a verdade ou a realidade tal como as
conhecemos.

Uma tal honestidade não surge sem dor. A razão porque as pessoas mentem
é evitar a dor do desafio e as suas consequências. A mentira do Presidente
Nixon sobre Watergate não foi mais sofisticada nem diferente em espécie da
de um miúdo de quatro anos que mente à mãe sobre a maneira como o
candeeiro caiu da mesa e se partiu. Na medida em que a natureza do
desafio é legítima (e normalmente é), mentir é uma tentativa de driblar o
sofrimento legítimo e, assim, provoca doença mental.

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O conceito de driblar levanta a questão do "atalho". Sempre que tentamos
driblar um obstáculo, procuramos um caminho para o nosso objectivo que
seja mais fácil e portanto mais rápido: um atalho. Crendo que o
desenvolvimento do espírito humano é o objectivo da existência humana,
sou obviamente dedicado à noção de progresso. Está certo que, como seres
humanos, devemos evoluir e progredir tão rápido quanto possível. Está,
portanto, certo que nos sirvamos de qualquer atalho legítimo para o
desenvolvimento pessoal. A palavra chave no entanto, é "legítimo". Os
seres humanos têm tanta tendência para ignorar os atalhos legítimos como
para procurar os ilegítimos. E, por exemplo, um atalho legítimo estudar a
sinopse de um livro, em vez de ler todo o livro original, na preparação de um
exame de curso. Se a sinopse for boa, e a matéria for absorvida, podem
adquirir-se os conhecimentos essenciais duma forma que poupa muito
tempo e esforço. Copiar, no entanto não e um atalho legítimo. Pode poupar
ainda mais tempo e, se for bem sucedido, pode fazer com que o autor tenha
nota para passar no exame e obtenha a cobiçada licenciatura. Mas não
adquiriu os conhecimentos essenciais. Portanto, a licenciatura e uma
mentira, uma farsa. Na medida em que a licenciatura se torna a base da
vida, a vida daquele que copiou transforma-se numa mentira e numa farsa e
é, muitas vezes, dedicada a proteger e preservar a mentira.

A verdadeira psicoterapia é um atalho legítimo para o desenvolvimento


pessoal, que é muitas vezes ignorado. Um dos raciocínios mais frequentes
para a ignorar é pôr em causa a sua legitimidade, dizendo: "Receio que a
psicoterapia se torne uma muleta. Não quero ficar dependente de uma
muleta." Mas isto constitui normalmente uma forma de encobrir outros
receios mais significativos. O uso da psicoterapia não é mais uma muleta do
que a utilização de um martelo e de pregos para construir uma casa. Pode-
se construir a casa sem martelo e sem

60

pregos, mas o processo é geralmente pouco eficiente ou desejável. Poucos


carpinteiros entrarão em desespero devido à sua dependência do martelo e
dos pregos. Da mesma forma, é possível conseguir o desenvolvimento
pessoal sem recorrer à psicoterapia, mas a tarefa é muitas vezes
desnecessariamente aborrecida, longa e difícil. Geralmente, faz sentido
utilizar os instrumentos disponíveis como atalho. Por outro lado, a
psicoterapia pode ser procurada como um atalho ilegítimo. Isto acontece
mais vulgarmente em certos casos de pais que procuram psicoterapia para
os filhos. Querem que os filhos mudem de alguma maneira: que deixem a
droga, que deixem de fazer birras, que deixem de ter más notas, etc..
Alguns pais esgotaram já os seus recursos na tentativa de ajudar os filhos e
consultam o psicoterapeuta na genuína disposição de se aplicarem na
resolução do problema. Outros vêm com manifesto conhecimento da causa
do problema da criança, na expectativa de que o psiquiatra possa fazer algo
de mágico para a criança mudar sem ter que mudar a causa básica do
problema. Por exemplo, alguns pais dirão abertamente: "Sabemos que
temos um problema no nosso casamento e que é provável que isso tenha
algo a ver com o problema do nosso filho. Apesar disso, não queremos
interferências no nosso casamento; não queremos que faça terapia
connosco; queremos que trabalhe só com o nosso filho, se possível, para o
ajudar a ser mais feliz." Outros são menos abertos. Apresentam-se
professando a vontade de fazer tudo o que for necessário, mas quando se
lhes explica que os sintomas da criança são a expressão do ressentimento
que tem pelo seu estilo de vida, que não deixa espaço para a sua educação,
dirão, "É ridículo pensar que nos devemos virar do avesso por ele," e irão
procurar outro psiquiatra, que lhes possa oferecer um atalho sem dor. Mais
tarde dirão provavelmente aos amigos e a si próprios, "Fizemos tudo o que
era possível pelo nosso filho; até já consultámos quatro psiquiatras
diferentes, mas nada ajudou."

61

Mentimos, claro, não só aos outros mas também a nós próprios. Os desafios
à nossa adaptação - os nossos mapas das nossas próprias consciências e
das nossas percepções realistas podem ser tão legítimos e dolorosos como
qualquer desafio do público. Da miríade de mentiras que as pessoas
frequentemente dizem a si próprias, duas das mais comuns, potentes e
destrutivas são "Nós amamos verdadeiramente os nossos filhos" e "Os
nossos pais amavam-nos verdadeiramente". Pode ser que os nossos pais
nos amassem e que amemos os nossos filhos, mas quando não é esse o
caso, as pessoas dão-se a um extraordinário trabalho para fugir à
compreensão. Refiro-me frequentemente à psicoterapia como o "jogo da
verdade" ou o "jogo da honestidade" porque o seu objectivo é, entre outros,
ajudar os doentes a confrontar essas mentiras. Uma das raízes da doença
mental é invariavelmente uma rede de mentiras que nos foram ditas e de
mentiras que dissemos a nós próprios. Estas raízes só podem ser expostas e
extirpadas numa atmosfera de total honestidade. Para criar essa atmosfera,
é necessário que os terapeutas tragam para a sua relação com os doentes
uma capacidade total de abertura e de verdade. Como podemos esperar
que um doente suporte a dor de confrontar a realidade se não suportarmos
a mesma dor? Só podemos conduzir na medida em que caminharmos à
frente.

Omissão da Verdade

As MENTIRAS PODEM SER divididas em dois tipos: mentiras brancas e


mentiras negras. A mentira negra é uma afirmação que fazemos sabendo
que é falsa. A mentira branca é uma afirmação que fazemos, que não é
falsa em si, mas que omite uma parte significativa da verdade. O facto de
uma mentira ser

62

branca não a torna menos mentira nem mais desculpável. As mentiras


brancas podem ser tão destruidoras como as negras.* Um governo que
esconde do povo informações essenciais através da censura não é mais
democrático do que o que fala falsamente. A doente que não mencionou
que tinha deixado a descoberto a conta familiar, estava a impedir o seu
desenvolvimento terapêutico tanto quanto se tivesse mentido directamente.
Na verdade, por parecer menos repreensível, a omissão de informação
essencial é a forma mais comum de mentir, e por ser mais difícil de detectar
e confrontar, é frequentemente mais perniciosa do que a mentira negra.

A mentira branca é considerada socialmente aceitável em muitas das


nossas relações porque "não queremos magoar as pessoas". No entanto,
somos capazes de lamentar o facto de as nossas relações sociais serem
geralmente superficiais. Quando os pais contam às crianças uma
quantidade de mentiras brancas, não só é considerado aceitável como se
acha amoroso e benéfico. Mesmo maridos e mulheres que tiveram a
coragem suficiente de serem frontais um com o outro têm por vezes
dificuldade em o serem com os filhos. Não dizem aos filhos que fumam
marijuana, ou que discutiram um com o outro na noite anterior sobre a sua
relação, ou que se ressentem com os avós por serem manipuladores, ou que
o médico disse a um deles ou a ambos que têm perturbações
psicossomáticas, ou que estão a fazer um investimento arriscado, ou até
quanto dinheiro têm no banco. Normalmente, essa omissão e falta de
abertura é racionalizada com o argumento de desejarem proteger e
defender os filhos de preocupações desnecessárias. No entanto, a
* A CIA, que tem uma especialização particular nesta área, usa
naturalmente um sistema de classificação mais elaborado e falará de
propaganda branca, cinzenta e negra. A propaganda cinzenta seria uma
única mentira negra, e a propaganda negra seria uma mentira negra
atribuída falsamente a outra fonte.

63

maior parte das vezes, essa "protecção" é mal sucedida. Os filhos sabem,
de qualquer maneira, que a Mamã e o Papá fumam erva, que discutiram na
véspera, que estão ressentidos com os avós, que a Mamã anda nervosa e
que o Papá está a perder dinheiro. O resultado, então, não é protecção mas
privação. Os filhos são privados do conhecimento que podiam adquirir sobre
o dinheiro, a doença, as drogas, o sexo, o casamento, os pais, os avós e as
pessoas em geral. São também privados da tranquilização que poderiam ter
se estes assuntos fossem discutidos mais abertamente. Finalmente, são
privados de modelos de abertura e de honestidade e, em vez disso,
fornecem-lhes modelos de honestidade parcial, abertura incompleta e
coragem limitada. Para alguns pais, o desejo de "proteger" os filhos é
motivado por amor genuíno, embora mal orientado. Para outros, no entanto,
o desejo "afectuoso" de proteger os filhos serve mais de cobertura e
racionalização de um desejo de evitarem ser questionados pelos filhos, e
um desejo de manter a sua autoridade sobre eles. Esses pais estão, de
facto, a dizer, "Olhem, meninos, continuem a ser crianças com
preocupações infantis e deixem as preocupações adultas connosco. Vejam-
nos como protectores fortes, que vos amam. Essa imagem é boa para
ambos, portanto, não a desafiem. Faz-nos sentir fortes, e a vocês seguros, e
será mais fácil para todos se não analisarmos estas coisas demasiado a
fundo."

Apesar de tudo, pode surgir um verdadeiro conflito quando o desejo de


honestidade total é contrariado pela necessidade que algumas pessoas têm
de certo tipo de protecção. Por exemplo, mesmo os pais que têm
casamentos excelentes podem, ocasionalmente, considerar o divórcio como
opção possível, mas informar os filhos numa altura em que não é nada
provável optarem pelo divórcio é colocar-lhes um fardo desnecessário. A
ideia de divórcio é extremamente ameaçadora para o sentido de segurança
de uma criança - na verdade, tão amea-
64

çadora que as crianças não têm a capacidade de a apreenderem com


grande perspectiva. Sentem-se gravemente ameaçadas pela possibilidade
de divórcio mesmo quando é remota. Se o casamento dos pais estiver
definitivamente desfeito, os filhos lidarão com a ameaçadora possibilidade
de divórcio quer os pais falem ou não sobre ele. Mas se o casamento for
basicamente são, os pais estariam a prejudicar os filhos se dissessem com
total abertura, "A Mamã e o Papá conversaram ontem à noite sobre a
possibilidade de nos divorciarmos, mas desta vez não é nada a sério." Um
outro exemplo é que os psicoterapeutas têm muitas vezes que resguardar
dos doentes os seus pensamentos, opiniões e critérios na fase inicial da
psicoterapia, por os doentes não se encontrarem ainda em condições de os
apreender ou de lidar com eles. Durante o meu primeiro ano de formação
psiquiátrica, um doente, à quarta consulta, relatou um sonho que exprimia
obviamente uma preocupação com a homossexualidade. No meu desejo de
parecer um terapeuta brilhante e de avançar rapidamente, disse-lhe, "O seu
sonho indica que está preocupado por poder ser homossexual." Ficou
visivelmente ansioso e não apareceu nas três consultas seguintes. Foi à
custa de muito trabalho e ainda de mais sorte que o consegui persuadir a
regressar à terapia. Tivemos mais umas vinte sessões até ele ter de sair da
zona por ter sido destacado em serviço. Essas sessões foram-lhe
extremamente benéficas apesar de nunca mais termos levantado a questão
da homossexualidade. O facto de o seu subconsciente estar preocupado
com a questão não significava que ele estivesse apto a lidar com ela
conscientemente e, por não ser capaz de não lhe revelar o meu raciocínio,
não fiz um bom trabalho, e quase o perdi não só como meu doente como de
qualquer outro colega.

A retenção selectiva das opiniões de cada um também tem que ser


praticada de vez em quando no mundo dos negócios ou da política se se
quiser ser benvindo aos centros do poder. Se as

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pessoas dissessem sempre o que pensam sobre as grandes e as pequenas


questões, seriam consideradas insubordinadas pelo comum dos chefes, e
uma ameaça para a organização pela gestão. Adquiririam a reputação de
mordazes e seriam consideradas demasiado indignas de confiança para
alguma vez serem nomeadas como representantes de uma organização.
Não há volta a dar ao facto de que, para se ser bem sucedido dentro de
uma organização, tem que se tornar parcialmente uma "pessoa da
organização", circunspecta na expressão de opções individuais, fundindo
por vezes a identidade pessoal com a da organização. Por outro lado, se
consideramos a nossa eficácia numa organização o único objectivo do
comportamento organizacional, permitindo apenas a expressão das opiniões
que não levantam ondas, estamos a permitir que o fim justifique os meios e
a perder integridade e identidade pessoal tornando-nos pessoas totalmente
da organização. O caminho que um grande executivo tem que percorrer
entre a conservação e a perda da sua identidade e integridade é
extraordinariamente estreito e muito, muito poucos conseguem levar a
viagem a bom termo. É um enorme desafio.

Portanto, a expressão das opiniões, dos sentimentos, das ideias e até do


conhecimento deve ser suprimida nestas e em muitas outras circunstâncias
nas relações humanas. Que regras se podem então seguir quando se é
dedicado à verdade? Primeiro, nunca pronunciar falsidades. Segundo, ter
em conta que o acto de omitir a verdade é sempre, potencialmente, uma
mentira e que, em cada situação em que a verdade é omitida, há que tomar
uma decisão moral significativa. Terceiro, a decisão de omitir a verdade não
deve ser nunca baseada em necessidades pessoais, tais como a
necessidade de poder, de que gostem de nós ou de proteger o nosso mapa
contra desafios. Quarto, e ao contrário, a decisão de omitir a verdade deve
ser sempre baseada inteiramente nas necessidades da pessoa ou

66

pessoas a quem se omite a verdade. Quinto, a avaliação das necessidades


de outrem é um acto de responsabilidade tão complexo que só pode ser
executado sabiamente quando se age com verdadeiro amor pelo outro.
Sexto, o factor principal na avaliação das necessidades de outrem é a
avaliação da capacidade dessa pessoa utilizar a verdade para o seu próprio
desenvolvimento espiritual. Finalmente, ao avaliar a capacidade de outrem
de utilizar a verdade para desenvolvimento espiritual pessoal, deve ser tido
em conta que a nossa tendência é geralmente de subavaliar mais do que
sobreavaliar essa capacidade. Tudo isto pode parecer uma tarefa
extraordinária, impossível de alguma vez se vir a completar perfeitamente,
um peso crónico e infinito, uma verdadeira chatice. E é de facto um peso
infinito de auto-disciplina, razão pela qual a maior parte das pessoas opta
por uma vida de honestidade e abertura limitadas e relativa reserva,
escondendo-se a elas próprias e aos seus mapas do mundo. É mais fácil
assim. No entanto, as compensações da vida difícil de honestidade e
dedicação à verdade são mais do que proporcionais às exigências. Em
virtude do facto de os seus mapas serem continuamente questionados, as
pessoas abertas são pessoas que se desenvolvem continuamente. Através
da sua abertura, são capazes de estabelecer e manter relações íntimas
duma forma muito mais eficaz do que as pessoas mais reservadas. Porque
nunca dizem falsidades, estão seguras e orgulhosas por saberem que nada
fizeram para contribuir para a confusão do mundo, mas que serviram de
fontes de iluminação e clarificação. Finalmente, são totalmente livres. Não
estão sobrecarregadas pela necessidade de se esconderem. Não têm que
passar envergonhadamente pelas sombras. Não têm que fabricar novas
mentiras para esconder as antigas. Não precisam de se esforçar a apagar
rastos ou a manter disfarces. E, por fim, descobrem que a energia
necessária à auto-disciplina da honestidade é muito menor do que a

67

exigida pelo secretismo. Quanto mais honesto se é, mais fácil é continuar a


ser-se honesto, tal como quanto mais mentiras se dizem, mais necessário se
torna voltar a mentir. Pela sua abertura, as pessoas dedicadas à verdade
vivem em espaço aberto, e através do exercício da sua coragem de viver
em espaço aberto, libertam-se do medo.

Manutenção do Equilíbrio

POR ESTA ALTURA ESPERO que esteja claro que o exercício da disciplina é
não só uma tarefa exigente como complexa, que requer flexibilidade e bom
senso. As pessoas corajosas têm de se esforçar continuamente para serem
inteiramente honestas e ainda assim possuírem a capacidade de omitir a
verdade quando conveniente. Para sermos pessoas livres, temos que
assumir responsabilidade total por nós próprios, mas ao mesmo tempo
devemos possuir a capacidade de rejeitar a responsabilidade que não nos
cabe verdadeiramente. Para sermos organizados e eficientes, para vivermos
sensatamente, devemos adiar a gratificação diariamente e estar alerta em
relação ao futuro; no entanto, para vivermos com alegria devemos ainda
possuir a capacidade, quando não destrutiva, de viver no presente e agir
espontaneamente. Por outras palavras, a própria disciplina deve ser
disciplinada. O tipo de disciplina necessário para disciplinar a disciplina é o
que eu chamo manter o equilíbrio, e constitui o quarto e último tipo que
pretendo aqui analisar.

Manter o equilíbrio é a disciplina que nos dá flexibilidade. E necessária uma


extraordinária flexibilidade para viver bem em todas as esferas de
actividade. Para utilizar só um exemplo, consideremos a questão da ira e da
sua expressão. A ira é uma emoção que nos é incutida (e em organismos
menos evoluídos)

68

por inúmeras gerações da nossa evolução a fim de estimular a nossa


sobrevivência. Sentimos ira sempre que nos apercebemos que outro
organismo tenta apoderar-se do nosso território geográfico ou psicológico
ou que tenta, de uma ou doutra forma, diminuir-nos. Leva-nos a ripostar.
Sem a ira, seríamos constantemente espezinhados, até ficarmos
completamente esmagados e exterminados. Só com a ira podemos
sobreviver. No entanto, na maior parte das vezes, quando inicialmente
julgamos que outros nos querem invadir, compreendemos ao analisar mais
de perto que não é nada essa a sua intenção. Ou mesmo quando
determinamos que as pessoas têm verdadeira intenção de nos invadir,
podemos chegar à conclusão de que, por uma ou outra razão, não é do
nosso melhor interesse corresponder a essa imposição com ira. Assim, é
preciso que os centros mais elevados do nosso cérebro (a razão) sejam
capazes de regular e modular os menos elevados (a emoção). Para
funcionar com sucesso no nosso mundo complexo, é necessário possuir a
capacidade não só de exprimir a nossa cólera como também de não a
exprimir. Mais ainda, devemos deter a capacidade de manifestar a nossa ira
de formas diferentes. Há alturas, por exemplo, em que é necessário exprimi-
la após prolongada deliberação e auto-avaliação. Noutras, é mais benéfico
manifestá-la imediata e espontaneamente. Às vezes é melhor exprimi-la fria
e calmamente; outras vezes, ruidosa e ardentemente. Portanto, não só
precisamos de saber como lidar com a nossa cólera de formas diferentes em
circunstâncias diversas, como também como adequar o estilo de expressão
a cada circunstância. Para gerirmos a ira adequada e competentemente,
precisamos de um sistema de resposta elaborado e flexível. Não é portanto
de admirar que a aprendizagem da gestão da ira seja uma tarefa complexa,
que normalmente não se consegue completar antes da idade adulta, ou até
da meia idade, e que muitas vezes nunca chega a ser completada.
69

Em maior ou menor grau, toda a gente sofre de imperfeições dos seus


sistemas de resposta flexíveis. Muito do trabalho da psicoterapia consiste
em tentar ajudar os doentes a permitir ou a tornar os seus sistemas de
resposta mais flexíveis. Geralmente, quanto mais tolhidos pela ansiedade,
culpa ou insegurança são os doentes, mais difícil e rudimentar se torna este
trabalho. Por exemplo, trabalhei com uma esquizofrénica corajosa de
trinta e dois anos para quem foi uma verdadeira revelação ficar a saber que
havia homens que não devia deixar entrar em casa, alguns que podia deixar
entrar para a sala mas não para o quarto, e outros que podia deixar entrar
para o quarto. Antes disso, tinha actuado com um sistema de resposta pelo
qual ou deixava toda a gente entrar para o quarto ou, quando essa resposta
parecia não funcionar, não deixava ninguém entrar em casa. Assim, saltava
entre uma promiscuidade degradante e um árido isolamento. Com a mesma
mulher, tivemos que passar várias sessões a concentrarmo-nos na questão
dos cartões de agradecimento. Ela sentia-se na obrigação de escrever
cartas elaboradas, manuscritas, perfeitas nas frases e palavras, em resposta
a cada presente ou convite que recebia. Inevitavelmente, não podia
carregar continuamente um fardo tão pesado, com o resultado de que ou
não escrevia cartão nenhum ou rejeitava todos os presentes e convites.
Mais uma vez, ficou espantada ao saber que alguns presentes não
requeriam cartões de agradecimento e que, quando eram esperados, uma
breve nota era por vezes suficiente.

A saúde mental madura exige, portanto, uma extraordinária capacidade de


manter flexível e continuamente um equilíbrio delicado entre necessidades,
objectivos, deveres, responsabilidades, instruções, etc., em conflito. A
essência desta disciplina de manter o equilíbrio é "prescindir". Lembro-me
da primeira vez que me ensinaram isto, numa manhã de Verão, tinha eu
nove anos. Tinha aprendido recentemente a andar de bicicleta e

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explorava alegremente as dimensões da minha nova habilidade. A cerca de


uma milha da nossa casa, a estrada descia por uma colina íngreme e
curvava abruptamente ao fundo. Ao descer a colina em roda livre naquela
manhã, sentia-me extasiado à medida que aumentava a velocidade.
Prescindir do êxtase, usando os travões, parecia um castigo auto-infligido
absurdo. Portanto, resolvi manter simultaneamente a velocidade e
empreender a curva ao fundo. O meu êxtase terminou segundos mais tarde
quando fui projectado meia dúzia de metros para fora da estrada e para o
meio da mata. Fiquei todo arranhado e a sangrar, e a roda da frente da
bicicleta torcida e inútil, após o embate numa árvore. Tinha perdido o
equilíbrio.

Manter o equilíbrio é uma disciplina precisamente porque o acto de


prescindir de alguma coisa é doloroso. Neste caso, eu não estava disposto a
sofrer a dor de prescindir da minha extasiante velocidade a favor de manter
o equilíbrio na curva. Fiquei a saber, no entanto, que a perda de equilíbrio é
no limite mais dolorosa do que o prescindir necessário para manter o
equilíbrio. Duma forma ou doutra, é uma lição que tenho tido que
reaprender continuamente pela vida fora. Como toda a gente, porque à
medida que empreendemos as curvas e esquinas das nossas vidas, temos
que prescindir continuamente de partes de nós. A única alternativa é não
viajar de forma nenhuma na estrada da vida.

Pode parecer estranho, mas a maior parte das pessoas escolhe esta
alternativa e decide não continuar a viagem da vida - fica pelo caminho -
para evitar a dor de prescindir de partes de si própria. Se parece estranho, é
porque não se compreende o alcance da dor que pode estar envolvida. Nas
suas formas mais agudas, a renúncia é a mais dolorosa das experiências
humanas. Até agora referi apenas formas menores de renúncia - prescindir
da velocidade, do luxo da cólera espontânea, da segurança da ira retida ou
da simplicidade de um

71

cartão de agradecimento. Vamos agora abordar a renúncia a traços de


personalidade, a padrões de comportamento perfeitamente estabelecidos,
ideologias e até estilos inteiros de vida. Estas são formas maiores de
renúncia que são necessárias se se quer ir muito longe na viagem da vida.

Uma noite, recentemente, decidi passar algum tempo livre a construir uma
relação mais feliz e mais próxima com a minha filha de catorze anos. Há
várias semanas que ela insistia comigo para jogarmos xadrez, por isso
sugeri um jogo. Ela aceitou com entusiasmo e sentámo-nos para um jogo
muito equilibrado e motivador. Era véspera de dia de escola, no entanto, e
às nove horas a minha filha perguntou-me se podia apressar as jogadas,
porque ela tinha de ir para a cama; tinha que se levantar às seis da manhã.
Eu sabia que ela era extremamente disciplinada nos seus hábitos de sono e
achei que ela devia ser capaz de prescindir de alguma dessa rigidez. Disse-
lhe, "Ora, por uma vez podes ir para a cama um bocadinho mais tarde. Não
se devem começar jogos que não se podem acabar. Estamos a divertir-nos."
Jogámos mais uns quinze minutos, durante os quais ela foi ficando
visivelmente incomodada. Finalmente, implorou, "Por favor, papá, por favor,
despacha-te a jogar." "Não, caramba," respondi eu. "O xadrez é um jogo
sério. Se se quer jogar bem, tem que se jogar devagar. Se não se quer jogar
a sério, mais vale não jogar de todo." E assim, com ela a sentir-se
profundamente infeliz, continuámos por mais dez minutos, até que de
repente a minha filha se desfez em lágrimas, gritou que me deixava ganhar
aquele estúpido jogo e correu a chorar pela escada acima.

Senti-me imediatamente como se tivesse outra vez nove anos, deitado a


sangrar no meio do mato à beira da estrada, ao lado da bicicleta. Era
evidente que tinha cometido um erro. Era evidente que tinha calculado mal
a curva da estrada. Tinha começado o serão querendo passar um bom
bocado com a

72

minha filha. Noventa minutos depois ela estava desfeita em lágrimas e tão
zangada comigo que mal podia falar. O que tinha corrido mal? A resposta
era óbvia. Mas eu não queria ver a resposta, por isso levei duas horas a lidar
com dificuldade com a dor de aceitar o facto de que tinha estragado a noite
por permitir que o meu desejo de ganhar um jogo de xadrez se tornasse
mais importante que o meu desejo de construir uma relação com a minha
filha. Então fiquei seriamente deprimido.

Como é que tinha perdido o equilíbrio daquela maneira? Gradualmente, fui-


me apercebendo de que o meu desejo de ganhar era demasiado forte e que
tinha que renunciar a parte desse desejo. No entanto, até essa pequena
privação parecia impossível. Toda a minha vida, o desejo de ganhar tinha-
me servido para bem, porque tinha ganho muitas coisas. Como era possível
jogar xadrez sem querer ganhar? Nunca me tinha sentido bem a fazer as
coisas sem entusiasmo. Como era concebível poder jogar xadrez com
entusiasmo sem ser a sério? No entanto, tinha de mudar de alguma
maneira, porque sabia que o meu entusiasmo, competitividade e seriedade
faziam parte de um padrão de comportamento que funcionava e continuaria
a funcionar no sentido de afastar de mim os meus filhos e que, se eu não
fosse capaz de modificar esse padrão, haveria outras ocasiões de lágrimas e
amargura desnecessárias. A minha depressão continuou.

Agora a minha depressão passou. Prescindi de parte do meu desejo de


ganhar jogos. Essa parte de mim desapareceu. Morreu. Tinha que morrer.
Matei-a. Matei-a com o desejo de ganhar na paternidade. Quando era
criança, o meu desejo de ganhar jogos foi vantajoso para mim. Como pai,
reconheci que se me atravessava no caminho. Os tempos mudaram. Para os
acompanhar, tive de prescindir. Não sinto falta. Pensei que iria sentir, mas
não sinto.

73

O Lado Salutar da Depressão

O QUE SE SEGUE É UM pequeno exemplo daquilo a que as pessoas que têm


a coragem de chamar a si próprias doentes têm que se sujeitar de formas
mais acentuadas, e frequentes vezes, no processo da psicoterapia. O
período de psicoterapia intensiva é um período de desenvolvimento
intensivo, durante o qual o paciente pode sofrer mais mudanças do que
outras pessoas experimentam numa vida inteira. Para que ocorra este surto
de desenvolvimento, tem que se renunciar a uma quantidade proporcional
do "velho Eu". É uma parte inevitável da psicoterapia com êxito. De facto,
este processo de privação começa normalmente antes de o doente ir à
primeira consulta com o psicoterapeuta. Frequentemente, por exemplo, o
acto de decidir procurar cuidados psiquiátricos só por si representa a
renúncia à imagem do "Estou bem". Esta renúncia pode ser particularmente
difícil, na nossa cultura, para indivíduos do sexo masculino para quem "Não
estou bem e preciso de ajuda para perceber porque não estou bem e para
ficar bem" é frequente e lamentavelmente equacionada com "Sou fraco,
pouco masculino e imperfeito". Na verdade, o processo de renúncia começa
muitas vezes mesmo antes de o doente ter chegado à decisão de procurar
conselho psiquiátrico. Referi que, durante o processo de renúncia ao meu
desejo de ganhar sempre, fiquei deprimido. Isso porque o sentimento
associado a privarmo-nos de algo que amamos - ou pelo menos, algo que é
parte de nós e familiar - é a depressão. Uma vez que os seres humanos
mentalmente saudáveis têm que evoluir, e já que a privação ou a perda do
antigo Eu é uma parte integrante do processo de desenvolvimento mental e
espiritual, a depressão é um fenó-

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meno normal e basicamente saudável. Torna-se anormal ou nocivo só


quando algo interfere com o processo de privação, com o resultado de a
depressão ser prolongada e não poder ser resolvida pela conclusão do
processo*.

Uma das razões principais porque as pessoas pensam em procurar conselho


psiquiátrico é a depressão. Por outras palavras, os doentes muitas vezes já
estão envolvidos num processo de privação, ou desenvolvimento, antes de
considerarem a psicoterapia, e são os sintomas desse desenvolvimento que
os impelem a procurar o gabinete do terapeuta. O trabalho deste é,
portanto, ajudar o doente a completar um processo de desenvolvimento que
ele já iniciou. Isto não quer dizer que os doentes saibam muitas vezes o que
lhes está a acontecer. Pelo contrário, frequentemente desejam apenas alívio
dos sintomas da depressão "para que as coisas voltem a ser como eram".
Mas o subconsciente sabe. É precisamente porque o subconsciente na sua
sabedoria sabe que "como as coisas eram" já não é sustentável ou
construtivo, que o processo de desenvolvimento se inicia ao nível do
subconsciente e se sente a depressão. Muito provavelmente, o doente dirá
"Não faço ideia nenhuma

* Há muitos factores que podem interferir com o processo de renúncia e,


assim, transformar uma depressão normal e saudável numa depressão
crónica e patológica. De todos os factores possíveis, um dos mais vulgares e
potentes é um padrão de experiências na infância em que os pais, ou o
destino, sem considerar as necessidades da criança, tiraram "coisas" à
criança antes de ela estar psicologicamente preparada para renunciar a
elas, ou suficientemente forte para aceitar verdadeiramente a sua perda.
Um padrão de experiências assim na infância sensibiliza a criança para a
experiência da perda e cria uma tendência muito mais forte do que a que se
encontra em indivíduos mais afortunados para se agarrar às "coisas" e
procurar evitar a dor da perda ou da renúncia. Por este motivo, apesar de
todas as depressões patológicas envolverem algum bloqueio no processo de
renúncia, acredito que há um tipo de depressão neurótica crónica que tem a
raiz principal numa lesão traumática da capacidade básica do indivíduo de
prescindir seja do que for. A este subtipo de depressão eu chamaria
"neurose da renúncia".

75

de porque estou deprimido", ou atribuirá a depressão a factores


irrelevantes. Uma vez que os doentes ainda não estão conscientemente
dispostos ou prontos a reconhecer que o "velho Eu" e "como as coisas
eram" estão ultrapassados, não se apercebem de que a sua depressão lhes
indica que é necessária uma grande mudança para conseguir uma
adaptação bem sucedida e evolutiva. O facto de o subconsciente estar um
passo à frente do consciente pode parecer estranho aos leitores leigos; é, no
entanto, um facto que se aplica não só neste caso em particular, mas duma
forma tão genérica, que é um princípio básico do funcionamento mental.
Será analisado em maior profundidade na última parte deste trabalho.

Temos ouvido falar recentemente da "crise da meia-idade". Na verdade,


esta é apenas uma de muitas "crises", ou fases críticas de desenvolvimento,
na vida, como nos ensinou Erik Erikson há trinta anos atrás. (Erikson traçava
oito crises; talvez haja mais.) O que torna críticos estes períodos de
transição no ciclo da vida - ou seja, problemáticos e dolorosos - é que, para
os atravessarmos com êxito, temos que prescindir de apreciados conceitos
e formas antigas de fazer e olhar as coisas. Muitas pessoas não estão
dispostas ou sentem-se incapazes de sofrer a dor de prescindir do
ultrapassado que tem que ser posto de parte. Em consequência agarram-se,
por vezes para sempre, aos seus velhos padrões de pensamento e de
comportamento, deixando assim de ultrapassar qualquer crise, de crescer
verdadeiramente, e de experimentar a alegre sensação de renascer que
acompanha a transição conseguida para a maior maturidade.

Embora se pudesse escrever um livro inteiro sobre cada uma, vou apenas
enumerar, mais ou menos por ordem de ocorrência, algumas das condições,
desejos e atitudes a que temos de renunciar no decurso de uma vida
evolutiva verdadeiramente conseguida:

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O estado da infância, em que não é necessário corresponder

a solicitações exteriores. A fantasia da omnipotência. O desejo de posse


total (incluindo sexual) dos pais. A dependência da infância. Imagens
distorcidas dos pais. A omnipotência da adolescência. A "liberdade" de não
compromisso. A agilidade da juventude. A atracção sexual e/ou potência da
juventude. A fantasia da imortalidade. A autoridade sobre os filhos. Diversas
formas de poder temporal. A independência da saúde física. E, por fim, o Eu
e a própria vida.

Renúncia e Renascimento

RELATIVAMENTE À ÚLTIMA das condições, pode parecer a muitos que a


condição final - prescindir do Eu e da vida - representa uma espécie de
crueldade por parte de Deus ou do destino, que faz da nossa existência uma
espécie de anedota sem graça e que nunca pode ser completamente aceite.
Esta atitude é especialmente verdadeira na cultura ocidental dos nossos
dias, em que o Eu é considerado sagrado e a morte um insulto indescritível.
No entanto, a realidade é exactamente o oposto. É na renúncia ao Eu que os
seres humanos conseguem encontrar a mais extasiante, prolongada, sólida
e duradoura alegria de viver. E é a morte que dá à vida todo o seu sentido.
Este "segredo" é a sabedoria central da religião.

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O processo de renúncia ao Eu (que está relacionado com o fenómeno do


amor, como veremos na próxima secção deste livro) é para a maior parte de
nós um processo gradual, em que nos envolvemos de forma espasmódica.
Há uma forma de renúncia temporária do Eu que merece menção especial,
porque a sua prática é uma exigência absoluta para a aprendizagem
significativa durante a idade adulta e, portanto, para o desenvolvimento
significativo do espírito humano. Refiro-me a um subtipo da disciplina de
manutenção do equilíbrio a que chamo "pôr entre parênteses" (ou agrupar).
Pôr entre parênteses é essencialmente o acto de equilibrar a necessidade
de estabilidade e afirmação do Eu com a necessidade de novos
conhecimentos e maior compreensão pela renúncia temporária ao Eu
- pôr-se de lado, por assim dizer - de modo a dar lugar à incorporação de
nova matéria no Eu. Esta disciplina foi bem descrita pelo teólogo Sam Keen
em A um Deus que Dança:

O segundo passo exige que eu vá para além da percepção idiossincrática e


egocêntrica da experiência imediata. O conhecimento maduro só é possível
depois de ter digerido e compensado as tendências e os preconceitos que
são o resíduo da minha história pessoal. O conhecimento do que se me
apresenta envolve um movimento duplo de atenção: silenciar o familiar e
receber o estranho. Cada vez que me aproximo de um objecto, pessoa ou
acontecimento estranho, tenho a tendência de deixar que as minhas
necessidades presentes, experiências passadas ou expectativas de futuro
determinem o que vejo. Se quero apreciar a unicidade de cada dado, devo
ter suficiente noção das minhas ideias preconcebidas e distorções
emocionais características, para as pôr entre parênteses o tempo suficiente
para receber a estranheza e a novidade no meu mundo perceptivo. Esta
disciplina de pôr entre parênteses, compensar ou silenciar requer um
sofisticado conhecimento de si próprio

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e honestidade corajosa. No entanto, sem esta disciplina, cada momento


presente é apenas a repetição de algo já visto ou vivido. Para que surja a
genuína novidade, para que a presença única das coisas, pessoas ou
acontecimentos se enraíze em mim, devo empreender a descentralização
do ego. *

A disciplina de pôr entre parênteses ilustra o facto mais consequente da


renúncia e da disciplina em geral: nomeadamente, que por tudo aquilo de
que se prescinde se ganha ainda mais. A auto-disciplina é um processo de
engrandecimento pessoal. A dor da renúncia é a dor da morte, mas a morte
do velho é o nascimento do novo. A dor da morte é a dor do nascimento, e a
dor do nascimento é a dor da morte. Para que uma ideia, conceito, teoria ou
entendimento melhor possa ser desenvolvido significa que uma ideia,
conceito, teoria ou entendimento antigo deve morrer. Assim, na conclusão
do seu poema Viagem dos Magos, T. S. Eliot descreve os Três Reis Magos
como sofrendo a renúncia à sua visão anterior do mundo quando abraçaram
a Cristandade.
Tudo isto foi há muito tempo, recordo-me,

E fá-lo-ia outra vez, mas ficou

Isto ficou

Isto: levaram-nos por todo aquele caminho para o

Nascimento ou para a Morte? Este era um Nascimento,

[certamente, Tínhamos a prova e nenhuma dúvida. Eu tinha visto nascer

lê morrer,

Mas pensava que eram diferentes; este Nascimento era Uma agonia dura e
amarga para nós, como a Morte,

[a nossa morte.

(nota)

* Toa Dancing God (Nova Iorque: Harper & Row), 1970, p. 28.

79

Regressámos a nossas casas, estes Reinos, Mas já não nos sentimos bem
aqui, no antigo regime, Com um povo estranho agarrado aos seus deuses.
Eu ficaria satisfeito com outra morte. *

Uma vez que o nascimento e a morte parecem ser lados opostos da mesma
moeda, não deixa de ser razoável dedicar maior atenção do que é usual no
Ocidente ao conceito de reincarnação. Mas quer estejamos ou não dispostos
a encarar seriamente a possibilidade de ocorrer alguma espécie de
renascimento simultâneo com a nossa morte física, está suficientemente
esclarecido que esta vida é uma série de mortes e nascimentos
simultâneos. "Durante toda a vida, tem que se continuar a aprender a
viver," dizia Séneca, há dois milénios atras, "e, o que vos espantará ainda
mais, durante toda a vida tem de se aprender a morrer."** É também
evidente que quanto mais longe se chega na viagem da vida, mais
nascimentos se viverão, e portanto mais mortes - mais alegria e mais dor.

Isto levanta a questão de se alguma vez é possível libertar-se da dor


emocional na vida. Ou, pondo-o de uma forma mais suave, é possível
evoluir espiritualmente até um nível de consciência em que a dor de viver
pelo menos diminua? A resposta e sim e não. A resposta é sim, porque
quando o sofrimento é completamente aceite, cessa, num certo sentido, de
ser sofrimento. Também é sim porque a prática jamais interrompida da
disciplina leva ao domínio, e a pessoa espiritualmente evoluída e
dominante, no mesmo sentido em que o adulto é dominante em relação à
criança. Questões que representam grandes problemas para a criança e lhe
causam grande dor podem não ter

(Nota)

* The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (Nova Iorque: Harcourt


Brace^l952),pp. 69.

* Cit. in Erich Fromm, The Sane Society ( Nova Iorque: Rinehart, 1955).

80

qualquer importância para o adulto. Finalmente, a resposta é sim porque o


indivíduo espiritualmente evoluído é, como será explicado na secção
seguinte, um indivíduo com uma extraordinária capacidade de amar e do
seu extraordinário amor advém extraordinária alegria.

A resposta é não, no entanto, porque existe um vácuo de competência no


mundo que tem de ser preenchido. Num mundo que clama
desesperadamente por competência, uma pessoa extraordinariamente
competente e amante não pode omitir a sua competência, da mesma forma
que essa mesma pessoa não poderia negar alimento a uma criança com
fome. As pessoas espiritualmente evoluídas, em virtude da sua disciplina,
domínio e amor, são pessoas de extraordinária competência e, pela sua
competência, são chamadas a servir o mundo e, por amor, correspondem à
chamada. São assim, inevitavelmente, pessoas de grande poder, embora o
mundo possa geralmente encará-las como pessoas assaz vulgares, porque
na maioria das vezes exercem o seu poder de forma discreta ou mesmo
escondida. Apesar disso, exercem mesmo o poder, e nesse exercício sofrem
grandemente, até mesmo terrivelmente. Porque exercer o poder é tomar
decisões, e o processo de tomada de decisão com plena consciência é
infinitamente mais doloroso do que tomar decisões com uma consciência
limitada ou embotada (que é como a maior parte das decisões são tomadas,
acabando por se mostrarem erradas). Imagine-se dois generais, cada um
tendo de decidir enviar ou não uma divisão de dez mil homens para o
campo de batalha. Para um, a divisão é apenas uma coisa, uma unidade de
pessoal, um instrumento de estratégia e nada mais. Para o outro é todas
estas coisas, mas também tem consciência de cada uma das dez mil vidas e
das vidas das famílias de cada um dos dez mil. Para quem é mais fácil a
decisão? É mais fácil para o general que embotou a sua consciência
precisamente porque não pode

81

tolerar a dor de uma consciência mais total. Podemos ser tentados a dizer,
"Ah, mas um homem espiritualmente evoluído nunca se tornaria general,
para começar." Mas a mesma questão está envolvida quando se é
presidente de uma empresa, médico, professor, pai. As decisões que
afectam as vidas de outros têm sempre que ser feitas. Os melhores
decisores são os que estão mais dispostos a sofrer com as suas decisões
mas que mantêm a sua capacidade de decidir. Uma das medidas - e talvez a
melhor medida - da grandeza de uma pessoa é a capacidade de sofrimento.
No entanto, os grandes são também alegres. Este é, então, o paradoxo. Os
budistas tendem a ignorar o sofrimento de Buda e os cristãos a alegria de
Cristo. Buda e Cristo não eram homens diferentes. O sofrimento de Cristo
morrendo na cruz e a felicidade de Buda sob a árvore são um só.

Portanto, se o vosso objectivo é evitar a dor e escapar ao sofrimento, não


vos aconselho a procurar níveis mais elevados de consciência ou de
evolução espiritual. Primeiro, não conseguem alcançá-los sem sofrimento, e
segundo, na medida em que os alcançarem, poderão ser chamados a servir
de formas mais dolorosas, ou pelo menos mais exigentes do que agora
podem imaginar. Então, desejar evoluir para quê, podem perguntar. Se
fazem esta pergunta, talvez não conheçam o suficiente da felicidade. Talvez
encontrem uma resposta no resto deste livro; talvez não.
Uma última palavra quanto à disciplina de manutenção do equilíbrio e a sua
essência de renúncia: tem que se ter alguma coisa para se prescindir dela.
Não se pode prescindir de algo que já não se tenha. Se se prescindir de
ganhar sem nunca se ter ganho, fica-se como se estava no princípio: um
perdedor. Tem que se forjar por si próprio uma identidade antes de se
prescindir dela. Tem que se desenvolver um ego antes de o poder perder.
Isto pode parecer incrivelmente elementar, mas penso que é necessário
dizê-lo, porque conheço muitas pessoas que

82

possuem uma visão da evolução mas parece faltar-lhes a vontade de


evoluir. Querem, e acreditam que é possível, saltar por cima da disciplina,
encontrar um atalho fácil para a santidade. Muitas vezes, tentam atingi-la
simplesmente através da imitação das superficialidades dos santos,
retirando-se para o deserto ou dedicando-se à carpintaria. Alguns até
acreditam que, através dessa imitação, se tornam realmente santos e
profetas e não conseguem reconhecer que são ainda crianças e enfrentam o
doloroso facto de que têm de começar pelo princípio e passar pelo meio. A
disciplina foi definida como um sistema de técnicas para enfrentar
construtivamente a dor da resolução de problemas em vez de evitar essa
dor - de forma que todos os problemas da vida possam ser resolvidos.
Distinguiram-se e analisaram-se quatro técnicas básicas: o adiamento da
gratificação, o assumir da responsabilidade, a dedicação à verdade ou
realidade e a manutenção do equilíbrio. A disciplina é um sistema de
técnicas, porque estas técnicas estão fortemente interrelacionadas. Num
único acto, podem-se utilizar duas, três ou até todas as técnicas ao mesmo
tempo e de tal forma que se podem distinguir umas das outras. A força,
energia e vontade de usar estas técnicas são fornecidas pelo amor, como
será explicado na próxima secção. Esta análise da disciplina não pretende
ser exaustiva e é possível que eu tenha deixado de parte uma ou mais
técnicas básicas adicionais, embora julgue que não. Também é razoável
perguntar se processos como o biofeedback, a meditação, o ioga e a própria
psicoterapia não são técnicas de disciplina, mas a isto eu responderia que,
na minha forma de pensar, são instrumentos técnicos mais do que técnicas
básicas. Como tal, podem ser muito úteis, mas não são essenciais. Por outro
lado, as técnicas básicas aqui descritas, se praticadas sem interrupção e
com verdade, são suficientes só por si para permitir ao praticante da
disciplina, ou "discípulo", evoluir para níveis espiritualmente mais elevados.

83
Secção II

Amor

O Amor Definido

A DISCIPLINA, COMO FOI já sugerido, é o meio para a evolução espiritual


humana. Esta secção examinará o que está por detrás da disciplina - o que
fornece o motivo, a energia para a disciplina. Eu creio que esta força é o
amor. Tenho plena consciência de que, ao tentar examinar o amor,
começaremos a jogar com o mistério. Num sentido muito real, estaremos a
tentar examinar o não examinável e conhecer o que não pode ser
conhecido. O amor é demasiado abrangente, demasiado profundo para
alguma vez ser verdadeiramente compreendido, medido ou limitado dentro
de uma estrutura de palavras. Não escreveria isto se não acreditasse que a
tentativa tem valor, mas independentemente desse valor, começo com a
certeza de que a tentativa será de algumas formas imperfeita.

Um dos resultados da natureza misteriosa do amor é que ninguém, que eu


saiba, chegou ainda a uma definição verdadeiramente satisfatória do amor.
Na tentativa de o explicar, portanto, dividiu-se o amor em várias categorias:
eros, philia, ágape; amor perfeito e amor imperfeito, e daí por diante. Eu
tomo a liberdade, no entanto, de dar uma única definição, mais uma vez
com a noção de que provavelmente será de alguma ou algumas formas
imperfeita. Eu defino o amor assim: a vontade de expandir o Eu com o
objectivo de alimentar o seu próprio desenvolvimento espiritual ou o de
outrem.

87

Para começar, gostaria de fazer um breve comentário sobre esta definição


antes de prosseguir para uma análise mais completa. Primeiro, pode notar-
se que é uma definição teleológica; o comportamento é definido em termos
do objectivo ou propósito que parece servir - neste caso, o desenvolvimento
espiritual. Os cientistas tendem a considerar suspeitas as definições
teleológicas e talvez considerem assim esta. Não cheguei a ela, no entanto,
através de um processo de raciocínio claramente teleológico. Foi através da
observação, na minha prática clínica de Psiquiatria, que incluí a auto-
observação, na qual a definição do amor é um assunto de considerável
importância. Isto porque os doentes se sentem geralmente muito confusos
quanto à natureza do amor. Por exemplo, um jovem tímido relatava-me: "A
minha mãe amava-me tanto que não me deixava ir de autocarro para a
escola até ao meu último ano do liceu. Mesmo nessa altura, tive de lhe
implorar que me deixasse ir. Acho que ela tinha medo que eu me magoasse,
portanto levava-me à escola de carro e ia-me buscar todos os dias, o que
era difícil para ela. Ela amava-me de verdade." No tratamento da timidez
deste indivíduo foi necessário, como em muitos outros casos, ensinar-lhe
que a mãe podia ter sido motivada por outra coisa que não amor, e que
aquilo que aparenta ser amor muitas vezes não é amor nenhum. Foi a partir
dessa experiência que acumulei um conjunto de exemplos do que pareciam
ser actos de amor e do que parecia não ser amor. Um dos principais factores
de distinção entre os dois parecia ser o propósito consciente ou inconsciente
na mente do amante ou do não amante. Segundo, pode verificar-se que,
como definido, o amor é um processo estranhamente circular. Porque o
processo de expansão do Eu é um processo evolutivo. Quando se consegue
alargar os seus próprios limites com êxito, atingiu-se o desenvolvimento
para um estado mais expandido do ser. Assim, o acto de amar é um acto de
auto-evolução mesmo quando o

objectivo do acto é o desenvolvimento de outra pessoa. É pela tentativa de


alcançar a evolução que evoluímos.

Terceiro, esta definição unitária do amor inclui o amor próprio com o amor
pelo outro. Se eu sou humano e tu és humano, amar os humanos significa
amar-me a mim assim como a ti. Ser dedicado ao desenvolvimento
espiritual humano é ser dedicado à raça de que fazemos parte, e isto
significa, portanto, dedicação ao nosso próprio desenvolvimento e ao
"deles". De facto, como foi salientado, somos incapazes de amar outro se
não nos amarmos a nós mesmos, tal como somos incapazes de ensinar
auto-disciplina aos nossos filhos a menos que sejamos auto-disciplinados. É
verdadeiramente impossível renunciar ao nosso desenvolvimento espiritual
a favor do de outrem. Não podemos abandonar a auto-disciplina e ao
mesmo tempo ser disciplinados no nosso afecto por outro. Não podemos ser
uma fonte de força se não alimentarmos a nossa própria força. À medida
que avançarmos na exploração da natureza do amor, creio que se tornará
claro que não só o amor próprio e o amor por outros andam de mãos dadas
como, no limite, não se conseguem distinguir.
Quarto, o acto de alargar os seus limites implica esforço. Só se alargam os
limites excedendo-os, e exceder os limites exige esforço. Quando amamos
alguém, o nosso amor só se torna demonstrável ou real através do nosso
empenho - pelo facto de que por alguém (ou por nós próprios) damos um
passo a mais ou caminhamos mais uma milha. O amor não acontece sem
esforço. Pelo contrário, o amor é trabalhoso.

Finalmente, utilizando a palavra "vontade" tentei transcender a distinção


entre desejo e acção. O desejo não se traduz necessariamente em acção. A
vontade é um desejo duma tal intensidade que é traduzido para acção. A
diferença entre os dois é a mesma que a diferença entre dizer "Gostava de
ir nadar hoje à noite" e "Vou nadar hoje à noite". Toda a gente

89

na nossa cultura deseja, em certa medida, amar, no entanto muitos não


amam de facto. Concluo, portanto, que o desejo de amar não é em si amor.
O amor é como o amor age. O amor é um acto de vontade - ou seja, uma
intenção, bem como uma acção. A vontade também implica escolha. Não
temos de amar. Escolhemos amar. Não importa quanto possamos pensar
que amamos. Se de facto não amamos é porque escolhemos não amar e
portanto não amamos, apesar das nossas boas intenções. Por outro lado,
sempre que de facto nos esforçamos pela causa do desenvolvimento
espiritual, é porque assim escolhemos. Foi feita a escolha de amar.

Como indiquei, os doentes que vêm à psicoterapia encontram-se


invariavelmente mais ou menos confusos quanto à natureza do amor. Isto
porque, perante o mistério do amor, abundam as concepções erradas.
Embora este livro não vá retirar ao amor o seu mistério, espero que seja
suficientemente esclarecedor para eliminar essas concepções erradas, que
podem causar sofrimento não só aos doentes como a todas as pessoas que
tentam encontrar sentido nas suas próprias experiências. Algum deste
sofrimento parece-me desnecessário, uma vez que estas populares
concepções erradas podiam ser tornadas menos populares através do
ensino de uma definição mais precisa do amor. Optei, portanto, por começar
a explorar a natureza do amor examinando aquilo que o amor não é.

Apaixonar-Se
DE TODOS os FALSOS juízos sobre o amor, o mais poderoso e infiltrado é a
crença de que "apaixonar-se" é amor ou, pelo menos, uma das
manifestações de amor. É uma concepção fortemente errada, porque
apaixonar-se é experimentado subjectiva-

90

mente duma forma poderosa como uma experiência de amor. Quando uma
pessoa se apaixona, o que ele ou ela sentem de certeza é "Amo-o" ou "Amo-
a". Mas dois problemas são imediatamente aparentes. O primeiro é que a
experiência de se apaixonar é especificamente uma experiência erótica
ligada ao sexo. Não nos apaixonamos pelos nossos filhos embora os
amemos profundamente. Não nos apaixonamos por amigos do mesmo sexo
- a menos que tenhamos tendências homossexuais - por muito que
gostemos deles. Apaixonamo-nos só quando somos, consciente ou
inconscientemente, motivados sexualmente. O segundo problema é que a
experiência da paixão é invariavelmente temporária. Independentemente
de por quem nos apaixonamos, mais cedo ou mais tarde deixamos de estar
apaixonados se a relação durar o tempo suficiente. Isto não quer dizer que
invariavelmente deixemos de amar a pessoa por quem nos apaixonámos.
Mas quer dizer que o sentimento de amor extático que caracteriza a
experiência da paixão passa sempre. A lua-de-mel chega sempre ao fim. O
florescer do romance murcha.

Para compreender a natureza do fenómeno da paixão e a inevitabilidade do


seu termo, é necessário examinar aquilo que os psiquiatras designam por
fronteiras do ego. Pelo que podemos concluir por evidência indirecta, parece
que o recém-nascido, durante os primeiros meses de vida, não distingue
entre si e o resto do Universo. Quando mexe os braços e as pernas, o mundo
está a mexer. Quando tem fome, o mundo tem fome. Quando vê a mãe
movimentar-se, é como se se estivesse a movimentar. Quando a mãe canta,
o bebé não sabe que não é ele que produz o som. Não se distingue do
berço, do quarto e dos pais. O animado e o inanimado são o mesmo. Não há
distinção entre eu e tu. Ele e o mundo são um só. Não há limites, nem
separações. Não há identidade.

Mas, com a experiência, a criança começa a sentir-se ela mesma - ou seja,


como uma entidade separada do resto do
91

mundo. Quando tem fome, a mãe não aparece sempre para lhe dar de
comer. Quando quer brincar, a mãe nem sempre quer brincar. A criança tem
então a experiência de os seus desejos não serem ordens para a sua mãe. A
sua vontade é sentida como algo separado do comportamento da sua mãe.
O sentido do Eu começa a desenvolver-se. Esta interacção entre o recém-
nascido e a mãe é considerada como a base a partir da qual o sentido de
identidade da criança se começa a desenvolver. Observou-se que, quando a
interacção entre o recém-nascido e a mãe é fortemente perturbada - por
exemplo, quando não há mãe, nenhum substituto satisfatório da mãe ou
quando devido a doença mental a mãe esteja completamente alheia ou
desinteressada - o recém-nascido transforma-se numa criança ou adulto
cuja noção de identidade tem falhas graves na maior parte das formas
básicas.

Quando o recém-nascido reconhece a sua vontade como sendo a sua e não


a do Universo, começa a fazer outras distinções entre si e o mundo. Quando
quer movimento, agita os braços em frente aos olhos, mas nem o berço
nem o tecto se movem. Assim, a criança aprende que o seu braço e a sua
vontade estão ligados, e portanto que o braço é seu e não outra coisa ou
doutra pessoa. Desta maneira, durante o primeiro ano de vida aprendemos
os fundamentos de quem somos e quem não somos, o que somos e o que
não somos. Ao fim do primeiro ano, sabemos que este é o meu braço, o meu
pé, a minha cabeça, a minha língua, os meus olhos e até o meu ponto de
vista, a minha voz, os meus pensamentos, a minha dor de estômago e os
meus sentimentos. Conhecemos o nosso tamanho e limites físicos. Estes
limites são as nossas fronteiras. O conhecimento destes limites dentro da
nossa mente é o que se designa por fronteira do ego.

O desenvolvimento das fronteiras do ego é um processo que continua pela


infância até à adolescência e mesmo até à

92

idade adulta, mas as fronteiras estabelecidas mais tarde são mais psíquicas
que físicas. Por exemplo, a idade entre os dois e os três anos é tipicamente
uma altura em que a criança reconhece os limites do seu poder. Enquanto
que, antes disso, a criança aprendeu que o seu desejo não é
necessariamente uma ordem para a mãe, ainda se agarra à possibilidade de
o seu desejo ser uma ordem para a mãe e o sentimento de que o seu desejo
devia ser uma ordem para ela. É devido a esta esperança e este sentimento
que a criança de dois anos normalmente tenta agir como um tirano e
autocrata, dando ordens aos pais, irmãos e animais de estimação como se
fossem serventes no seu exército particular, e responde com fúria real
quando eles não acatam as suas instruções. Por isso, os pais chamam a esta
idade "os terríveis dois anos". Aos três anos, a criança torna-se
normalmente mais tratável e dócil em resultado da aceitação da realidade
da sua relativa impotência. Mesmo assim, a possibilidade de omnipotência é
um sonho tão doce, que não podem desistir dele completamente mesmo
depois de vários anos de dolorosa confrontação com a sua própria
impotência. Embora uma criança de três anos tenha aceite a realidade das
fronteiras do seu poder, continuará a escapar-se durante alguns anos para
um mundo de fantasia onde a possibilidade da omnipotência
(particularmente da sua) ainda existe. Este é o mundo do Super-Homem e
do Capitão Marvel. No entanto, gradualmente, renuncia-se até aos
superheróis e, quando chegam a meio da adolescência, os jovens sabem
que são indivíduos, restringidos às suas fronteiras físicas e aos limites do
seu poder, cada um deles um organismo relativamente frágil e impotente,
que só existe cooperando com um grupo de organismos semelhantes
chamado sociedade. Dentro deste grupo, não se distinguem
particularmente, mas estão isolados doutros pelas suas identidades,
fronteiras e limites individuais.

93

Fora destas fronteiras, existe a solidão. Algumas pessoas particularmente


aquelas que os psiquiatras classificam como esquizóides - devido a
experiências desagradáveis e traumáticas de infância, vêem o mundo em
redor como irremediavelmente perigoso, hostil, confuso e não estimulante.
Essas pessoas sentem as suas fronteiras como protectoras e reconfortantes
e retiram uma sensação de segurança da sua solidão. Mas a maior parte de
nós acha a solidão dolorosa e deseja escapar dos muros da nossa
identidade individual para uma condição em que possamos estar mais
unificados com o mundo em redor. A experiência de nos apaixonarmos
permite este escape - temporariamente. A essência do fenómeno de se
apaixonar é o colapso repentino de uma parte das fronteiras do ego de um
indivíduo, que permite que a sua identidade se funda com a de outra
pessoa. A libertação repentina de si mesmo, a dádiva explosiva de si ao
amado e a interrupção dramática da solidão que acompanham este colapso
das fronteiras do ego são para a maior parte de nós uma experiência
extática. Nós e o objecto do nosso amor somos um! A solidão já não existe!
Em certos aspectos (mas não em todos, certamente) o acto de se apaixonar
é um acto de regressão. A experiência da fusão com o amado tem em si
ecos do tempo em que nos fundíamos com as nossas mães na infância.
Juntamente com a fusão, re-experimentamos também o sentido da
omnipotência de que tivemos que prescindir na nossa passagem pela
infância. Tudo parece possível! Em união com o objecto do nosso amor,
sentimos que podemos conquistar todos os obstáculos. Acreditamos que a
força do nosso amor fará com que as forças da oposição se verguem em
submissão e desapareçam na escuridão. Todos os problemas serão
ultrapassados. O futuro será luminoso. A irrealidade destes sentimentos
quando nos apaixonamos é essencialmente a mesma que a da criança de
dois anos que se sente o rei da família e do mundo, com poder ilimitado.

94

Assim como a realidade se introduz na fantasia de omnipotência da criança


de dois anos, também a realidade se introduz na fantástica unidade do casal
de apaixonados. Mais cedo ou mais tarde, em resposta aos problemas da
vida diária, a vontade individual reafirma-se. Ele quer ter relações sexuais;
ela não quer. Ela quer ir ao cinema; ele não. Ele quer pôr dinheiro no banco;
ela quer uma máquina de lavar louça. Ela quer falar do emprego; ele quer
falar do dele. Ela não gosta dos amigos dele; ele não gosta dos dela. Assim,
ambos, na privacidade dos seus corações, começam a chegar à angustiante
conclusão de que não são um só com o objecto do seu amor, e que o
objecto do seu amor tem e continuará a ter os seus próprios desejos,
gostos, preconceitos e ritmos diferentes dos do outro. Uma a uma, gradual
ou repentinamente, as fronteiras do ego regressam ao seu lugar; gradual ou
repentinamente, deixam de estar apaixonados. São novamente dois
indivíduos separados. Chegados a este ponto, começam a dissolver os laços
da sua relação ou iniciam o trabalho do verdadeiro amor.

Ao utilizar a palavra "verdadeiro" estou a inferir que a percepção de que


amamos quando nos apaixonamos é falsa - que o nosso sentido subjectivo
de amar é uma ilusão. A análise detalhada do amor verdadeiro será feita
mais adiante nesta secção do livro. No entanto, ao afirmar que é quando um
casal deixa de estar apaixonado que pode começar a amar realmente, estou
também a concluir que o amor verdadeiro não tem as suas raízes num
sentimento de amor. Pelo contrário, o amor verdadeiro acontece muitas
vezes num contexto em que o sentimento do amor está ausente, quando
agimos com amor apesar de não nos sentirmos a amar. Assumindo a
realidade da definição de amor com que começámos, a experiência de "se
apaixonar" não é amor verdadeiro pelas diversas razões que se seguem.

Apaixonar-se não é um acto de vontade. Não é uma escolha consciente.


Independentemente do nosso grau de abertura ou
95

de ansiedade por nos apaixonarmos, a experiência pode fugir-nos.


Inversamente, a experiência pode capturar-nos em alturas em que não
estamos definitivamente à procura, quando é inconveniente e indesejável. É
tão provável que nos apaixonemos por alguém com quem não temos
nenhuma ligação como por alguém mais adequado. Na verdade, podemos
até nem gostar ou admirar o objecto da nossa paixão, no entanto, por muito
que tentemos, podemos não ser capazes de nos apaixonarmos por uma
pessoa que respeitamos profundamente e com quem um relacionamento
aprofundado seria desejável em todos os sentidos. Isto não quer dizer que a
experiência de se apaixonar seja imune à disciplina. Os psiquiatras, por
exemplo, apaixonam-se com frequência pelas suas doentes, assim como as
doentes se apaixonam por eles, no entanto, por dever para com a doente e
pelo papel que detêm, conseguem normalmente abortar o colapso das
fronteiras do seu ego e renunciar à doente como objecto romântico. A luta e
o sofrimento da disciplina envolvida podem ser enormes. Mas a disciplina e
a vontade só podem controlar a experiência; não a podem criar. Podemos
escolher como responder à experiência de nos apaixonarmos, mas não
podemos escolher a experiência em si.

Apaixonar-se não é uma dilatação dos nossos limites ou fronteiras; é um


colapso parcial e temporário. A expansão dos nossos limites requer esforço;
apaixonar-se não. Os indivíduos preguiçosos e indisciplinados podem
apaixonar-se tanto como os que são enérgicos e dedicados. Depois de
passado o precioso momento de se apaixonar e de as fronteiras terem
voltado ao lugar, o indivíduo pode estar desiludido, mas normalmente não
se engrandeceu com a experiência. Quando os limites são dilatados ou
esticados, no entanto, a tendência é para se manterem esticados. O amor
verdadeiro é uma experiência permanentemente engrandecedora.
Apaixonar-se não é.

96

Apaixonar-se tem pouco a ver com a educação propositada do nosso


desenvolvimento espiritual. Se temos algum objectivo em mente quando
nos apaixonamos, é o de acabar com a nossa solidão e talvez assegurar
esse resultado através do casamento. Não estamos certamente a pensar em
desenvolvimento espiritual. De facto, depois de nos termos apaixonado e
antes de nos desapaixonarmos sentimos que chegámos, que atingimos as
alturas, que não é preciso nem há possibilidade de subir mais alto. Não nos
sentimos necessitados de desenvolvimento; estamos perfeitamente
satisfeitos por estar onde estamos. O nosso espírito está em paz. Nem
consideramos que a pessoa amada esteja necessitada de desenvolvimento
espiritual. Pelo contrário, vemo-la como perfeita, como tendo sido
aperfeiçoada. Se vemos alguns defeitos na pessoa amada, consideramo-los
insignificantes - pequenas peculiaridades ou deliciosas excentricidades que
só acrescentam cor e encanto.

Se apaixonar-se não é amor, então o que é para além de um colapso


temporário e parcial das fronteiras do ego? Não sei. Mas a especificidade
sexual do fenómeno leva-me a suspeitar que é um componente instintivo
geneticamente determinado do comportamento de acasalamento. Por
outras palavras, o colapso temporário das fronteiras do ego que constitui o
estado de se apaixonar é uma resposta estereotipada dos seres humanos a
uma configuração de impulsos sexuais internos e de estímulos sexuais
externos, que serve para aumentar a probabilidade de parceria e ligação
sexual de modo a aumentar as probabilidades de sobrevivência da espécie.
Ou, pondo de maneira talvez mais grosseira, apaixonar-se é um truque que
os nossos genes aplicam à nossa mente, normalmente perceptiva noutros
sentidos, para nos iludir ou armadilhar levandonos ao casamento.
Frequentemente, o truque corre mal duma maneira ou doutra, como quando
os impulsos e estímulos sexuais são homossexuais ou quando outras forças
- inter-

97

ferência dos pais, doença mental, responsabilidades contraditórias ou auto-


disciplina madura - surgem para impedir a ligação. Por outro lado, sem este
truque, esta regressão ilusória e inevitavelmente temporária (não seria
prático se não fosse temporária) à fusão e omnipotência infantis, muitos de
nós que somos bem ou mal casados hoje, teríamos retrocedido em total
terror perante a realidade dos votos matrimoniais.

O Mito do Amor Romântico

PARA SERVIR ASSIM TÃO BEM para nos apanhar no casamento, a experiência
de se apaixonar tem provavelmente como uma das suas características a
ilusão de que a experiência irá durar sempre. Esta ilusão é fomentada na
nossa cultura pelo mito vulgarmente cultivado do amor romântico, que tem
as suas origens nas nossas histórias infantis favoritas, em que o príncipe e a
princesa, uma vez unidos, vivem felizes para sempre. O mito do amor
romântico diz-nos, com efeito, que para cada rapaz no mundo há uma
rapariga que "foi feita para ele" e vice-versa. Além disso, o mito implica que
há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher para um
homem e que isso foi predeterminado "nas estrelas". Quando conhecemos a
pessoa a quem estamos destinados, o reconhecimento advém do facto de
nos apaixonarmos. Encontrámos a pessoa a quem os céus nos tinham
destinado, e uma vez que a união é perfeita, seremos capazes de satisfazer
as necessidades um do outro para sempre, e portanto viver felizes para
sempre em perfeita união e harmonia. Se acontecer, no entanto, não
satisfazermos ou não irmos de encontro a todas as necessidades um do
outro surgem atritos e desapaixonamo-nos. Está claro que cometemos um
erro terrível, interpretámos as estrelas erradamente, não nos entendemos
com

98

o nosso único par perfeito, o que pensámos ser amor não era amor real ou
"verdadeiro", e não há nada a fazer quanto à situação a não ser viver
infelizes para sempre ou obter o divórcio.

Embora eu pense que, de um modo geral, os grandes mitos são grandes


precisamente porque representam e incorporam grandes verdades
universais (serão explorados vários destes mitos mais adiante neste livro), o
mito do amor romântico é uma terrível mentira. Talvez seja uma mentira
necessária por assegurar a sobrevivência da espécie, por estimular e validar
convenientemente a experiência de nos apaixonarmos que nos leva ao
casamento. Mas, como psiquiatra, o meu coração chora quase todos os dias
pela horrível confusão e sofrimento que este mito gera. Milhões de pessoas
desperdiçam enormes quantidades de energia tentando desesperada e
futilmente fazer com que a realidade das suas vidas se ajuste à irrealidade
do mito. A Sra. A submete-se absurdamente ao marido devido a um
sentimento de culpa. "Eu não amava verdadeiramente o meu marido
quando nos casámos," diz ela. "Fingia que sim. Acho que o enganei para se
casar comigo, portanto não tenho o direito de me queixar dele, e devo-lhe
fazer tudo o que ele quiser." O Sr. B lamenta: "Estou arrependido de não me
ter casado com a Menina C. Penso que poderíamos ter tido um bom
casamento. Mas não me sentia perdidamente apaixonado por ela, portanto
parti do princípio que ela não era a pessoa certa para mim." A Sra. D,
casada há dois anos, fica gravemente deprimida sem causa aparente e
começa a fazer terapia, afirmando: "Não sei o que se passa de errado. Tenho
tudo o que preciso, incluindo um bom casamento." Só meses mais tarde
consegue aceitar o facto de se ter desapaixonado do marido, mas que isso
não significa que tenha cometido um horrível erro. O Sr. E, também casado
há dois anos, começa a sofrer de dores de cabeça intensas à noite e não
acredita que sejam psicossomáticas. "A minha vida doméstica corre bem.
Amo tanto a minha mulher como no dia

99

em que casei com ela. Ela é tudo o que eu sempre quis." Mas as dores de
cabeça continuaram até que, um ano mais tarde, conseguiu admitir, "Ela
dá-me cabo da cabeça porque está sempre a querer, querer, querer coisas
sem se preocupar com o meu ordenado," e foi então capaz de a confrontar
com a sua extravagância. O Sr. e a Sra. F reconhecem que deixaram de
estar apaixonados e passam a fazer-se infelizes um ao outro por mútua
infidelidade galopante à medida que procuram o "verdadeiro amor", sem se
aperceberem que o seu próprio reconhecimento podia marcar o início da
obra do seu casamento em vez do fim. Mesmo quando os casais
reconhecem que a lua-de-mel terminou, que já não estão romanticamente
apaixonados um pelo outro e ainda conseguem empenhar-se na sua relação,
continuam a agarrar-se ao mito e tentam adaptar-lhe as suas vidas. "Apesar
de já não estarmos apaixonados, se agirmos por força de vontade como se
estivéssemos apaixonados, pode ser que o amor romântico regresse às
nossas vidas," segundo o seu raciocínio. Estes casais privilegiam o estar
juntos. Quando iniciam a terapia de grupo para casais (que é o cenário em
que a minha mulher e eu e os nossos colegas mais próximos exercemos o
aconselhamento matrimonial mais crítico), sentam-se juntos, falam um pelo
outro, defendem os defeitos um do outro e tentam apresentar ao resto do
grupo uma frente unida, acreditando que esta unidade seja um sinal de
saúde relativa do seu casamento e um pré-requisito para a sua melhoria.
Mais cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo, temos que dizer à maior
parte dos casais que estão demasiado casados, demasiado próximos, e que
têm de estabelecer alguma distância psicológica entre si antes de
começarem a tratar construtivamente os seus problemas. Por vezes, é
mesmo necessário separá-los fisicamente, dando-lhes instruções para se
sentarem longe um do outro no círculo do grupo. Repetidamente, temos que
dizer, "Deixe a Mary falar por si própria, John" e "O John é capaz de se
defen-

100
der, Mary, é suficientemente forte." Por fim, se continuam na terapia, todos
os casais aprendem que a verdadeira aceitação da sua própria
individualidade e da do outro e a independência são as únicas fundações
sobre as quais se pode basear um casamento adulto e o verdadeiro amor
pode crescer*.

Mais Sobre as Fronteiras do Ego

TENDO PROCLAMADO QUE a experiência de "se apaixonar" é uma espécie


de ilusão que de nenhuma forma constitui amor real, irei concluir fazendo
marcha atrás e chamando a atenção para o facto de que o apaixonar-se
está realmente muito, muito próximo do verdadeiro amor. De facto, a ideia
errada de que apaixonar-se é um tipo de amor é muito potente exactamente
porque contém um grão de verdade.

A experiência do amor verdadeiro também tem a ver com as fronteiras do


ego, já que envolve a expansão dos nossos limites. Os nossos limites são as
nossas fronteiras do ego. Quando expandimos os nossos limites através do
amor, fazemo-lo estendendo os braços, por assim dizer, para o ser amado,
cujo desenvolvimento queremos alimentar. Para sermos capazes de o fazer,
o objecto do nosso amor tem primeiro que se tornar amado por nós; por
outras palavras, temos que ser atraídos por, investir em e comprometer-nos
com um objecto exterior a nós, para além das fronteiras do Eu. Os
psiquiatras chamam a este processo

* Quem leu o livro de O'Neil Open Marriage reconhecerá isto como um


princípio básico do casamento aberto, em oposição ao fechado. Os O'Neils
eram de facto muito suaves e contidos no seu proselitismo quanto ao
casamento aberto. O meu trabalho com casais levou-me à crua conclusão
de que o casamento aberto é a única forma de casamento maduro que é
saudável e não seriamente destrutivo para a saúde espiritual e a evolução
dos parceiros individuais.

101

de atracção, investimento e compromisso "catexia" e dizem que


"calcetamos" o objecto amado. Mas quando catectamos um objecto exterior
a nós, também incorporamos psicologicamente uma representação desse
objecto em nós. Por exemplo, consideremos um homem que faz jardinagem
como passatempo. É um passatempo gratificante e que ocupa o tempo. Ele
"ama" a jardinagem. O seu jardim tem um grande significado para ele. Este
homem catecta o jardim. Acha-o atraente, investiu algo de si nele, está
comprometido com ele - tanto que é capaz de saltar da cama cedo ao
Domingo de manhã para voltar para ele, é capaz de se recusar a viajar para
longe dele e pode até dar pouca atenção à mulher por causa dele. No
processo da sua catexia e para criar as suas flores e arbustos ele aprende
muito. Fica a saber muito de jardinagem - sobre solos e fertilizantes,
transplantar e podar. E conhece o seu jardim em particular - a sua história,
os tipos de flores e plantas que tem, a sua disposição, os seus problemas e
até o seu futuro. Apesar de o jardim existir fora dele, através da sua catexia
também passa a existir dentro dele. A forma como o conhece e o significado
que tem fazem parte dele, parte da sua identidade, parte da sua história,
parte do seu conhecimento. Ao amar e catectar este jardim, ele incorporou,
duma forma bastante real, o jardim dentro de si, e por esta incorporação o
seu Eu expandiu-se e as fronteiras do seu ego alargaram-se.

O que resulta então no decurso de muitos anos de amor, de alargarmos os


nossos limites pelas nossas catexias, é um engrandecimento gradual mas
progressivo do Eu, uma incorporação interior do mundo exterior, e o
desenvolvimento, a extensão e o estreitamento das nossas fronteiras do
ego. Desta maneira, quanto mais e por mais tempo nos expandimos, mais
amamos e mais difusa se torna a distinção entre o Eu e o mundo. À medida
que as fronteiras do ego se tornam mais finas e indistintas, começamos a
sentir cada vez mais a mesma

102

espécie de êxtase que temos quando as nossas fronteiras do ego caem


parcialmente e nos "apaixonamos". Só que, em vez de nos fundirmos
temporariamente e de forma irrealista com um só objecto amado, fundimo-
nos de forma realista e mais permanente com uma grande parte do mundo.
Pode estabelecer-se uma "união mística" com todo o mundo. A sensação de
êxtase ou de graça associada a esta união, embora mais suave e menos
dramática do que a associada à paixão, é no entanto muito mais estável,
duradoura e por fim gratificante. É a diferença entre a experiência de topo,
tipificada pelo apaixonar-se, e o que Abraham Maslow referiu como a
"experiência do planalto"*. As alturas não se vêem por momentos para se
perderem novamente; atingem-se para sempre.

É óbvio e do entendimento geral que a actividade sexual e o amor, embora


possam ocorrer em simultâneo, estão frequentemente dissociados, porque
são basicamente fenómenos independentes. Por si só, fazer amor não é um
acto de amor. Mesmo assim, a experiência de relação sexual, e
particularmente do orgasmo (mesmo na masturbação), é uma experiência
também associada a um maior ou menor grau de colapso das fronteiras do
ego e ao êxtase a ele ligado. É devido a este colapso das fronteiras do ego
que somos capazes de gritar, no momento do clímax, "Amo-te" ou "Oh, meu
Deus" a uma prostituta por quem, momentos mais tarde, depois de as
fronteiras do ego terem voltado ao seu lugar, não sentimos qualquer
vestígio de afecto, gosto ou investimento. Não quero com isto dizer que o
êxtase da experiência orgásmica não possa ser aumentado pela partilha
com alguém que se ama; pode. Mas mesmo sem um parceiro amado ou
qualquer parceiro, o colapso das fronteiras do ego conjuntamente com o
orgasmo pode ser total; por um segundo podemos esquecer totalmente
quem somos, perdermo-

(Nota)

* Religions, V alues and Peak-Experiences (N.Iorque: Viking, 1970), prefácio.

103

-nos, no tempo e no espaço, ficarmos fora de nós, ser transportados.


Podemos unir-nos ao Universo. Mas só por um segundo. Ao descrever a
prolongada "unicidade com o Universo" associada ao amor verdadeiro
comparada com a união momentânea do orgasmo, utilizei as palavras
"união mística". O misticismo é essencialmente a crença de que a realidade
é unicidade. Os mais literais dos místicos acreditam que a nossa visão
comum do Universo como contendo multidões de objectos distintos -
estrelas, planetas, árvores, pássaros, casas, nós

- todos separados uns dos outros por fronteiras é uma percepção errada,
uma ilusão. Para designar esta concepção errada consensual, este mundo
de ilusão que a maior parte de nós crê erradamente ser real, os Hindus e os
Budistas utilizam a palavra "Maya". Eles e outros místicos sustentam que a
verdadeira realidade só pode ser conhecida através da experiência da
unicidade pela renúncia às fronteiras do ego. É impossível ver de facto a
unidade do Universo enquanto se continua a ver a si próprio como um
objecto distinto, separado e distinguível do resto do Universo de qualquer
modo, forma ou feitio. Os Hindus e os Budistas sustentam frequentemente,
por isso, que o recém-nascido, antes do desenvolvimento das fronteiras do
ego, conhece a realidade, enquanto que os adultos não. Alguns até sugerem
que o caminho para o esclarecimento ou conhecimento da unicidade da
realidade exige a nossa regressão ou que nos tornemos como recém-
nascidos. Esta doutrina pode ser perigosamente tentadora para certos
adolescentes e jovens adultos que não estão preparados para assumir
responsabilidades adultas, que parecem assustadoras, esmagadoras e
exigindo mais do que as suas capacidades. "Não tenho que passar por tudo
isto," pode pensar uma dessas pessoas. "Posso desistir de tentar ser adulto
e escapar às exigências adultas e entrar na santidade." Agindo com base
nesta suposição, atinge-se mais depressa a esquizofrenia que a santidade.

104

A maior parte dos místicos compreende a verdade que foi analisada no final
da discussão da disciplina: ou seja, que devemos possuir ou conseguir algo
antes de podermos renunciar a ele e conservar a nossa competência e
viabilidade. O recém-nascido, sem as suas fronteiras do ego, pode estar em
contacto mais próximo com a realidade que os pais, mas é incapaz de
sobreviver sem os cuidados dos pais e incapaz de comunicar a sua
sabedoria. O caminho para a santidade passa pela idade adulta. Não há
atalhos rápidos nem fáceis. As fronteiras do ego têm de ser reforçadas antes
de poderem ser enfraquecidas. A identidade tem de ser estabelecida antes
de poder ser transcendida. Temos que encontrar o nosso Eu antes de o
podermos perder. A libertação temporária das fronteiras do ego associada
ao estado de paixão, relação sexual ou ao uso de certas drogas psico-
activas podem deixar-nos entrever o Nirvana, mas não nos levam ao
Nirvana propriamente dito. É uma tese deste livro que o Nirvana, ou o
esclarecimento duradouro, ou o verdadeiro desenvolvimento espiritual, só
podem ser alcançados através do exercício persistente do verdadeiro amor.

Em suma, a perda temporária das fronteiras do ego associada ao estado de


paixão e à relação sexual não só nos leva a assumir compromissos com
outras pessoas, a partir dos quais o verdadeiro amor pode surgir, mas dá-
nos também o gosto antecipado (e portanto um incentivo) do êxtase místico
mais durável que pode ser nosso depois de uma vida de amor. Como tal,
portanto, embora apaixonar-se não seja amor em si, é uma parte do grande
e misterioso esquema do amor.

105

Dependência

O SEGUNDO ERRO MAIS comum sobre o amor é a ideia de que dependência


é amor. É um conceito errado com o qual os psicoterapeutas se confrontam
diariamente. O seu efeito verifica-se de um modo mais dramático em
indivíduos que tentam ou ameaçam suicidar-se ou se tornam
incapacitantemente deprimidos em reacção à rejeição ou a uma separação
do cônjuge ou de um amante. Essa pessoa diz "Eu não quero viver, eu não
posso viver sem o meu marido (mulher, namorada, namorado), eu amo-o(a)
tanto". E quando eu respondo, como faço frequentemente, "Isso é um erro,
não ama o seu marido (mulher, namorada, namorado)," "O que é que quer
dizer?" é a pergunta em tom irritado, "Acabei de lhe dizer que não posso
viver sem ele (ou ela)." Tento explicar, "O que me descreve é parasitismo,
não amor. Quando precisa de outra pessoa para a sua sobrevivência, é um
parasita dessa pessoa. Não existe escolha nem liberdade na vossa relação.
É mais uma questão de necessidade do que de amor. O amor é o exercício
da escolha livre. Duas pessoas sentem amor uma pela outra apenas quando
são capazes de viver uma sem a outra mas escolhem viver uma com a
outra."

Defino a dependência como a incapacidade de se sentir realizado ou de agir


adequadamente sem a certeza de que se é motivo de cuidado para outra
pessoa. A dependência em adultos fisicamente saudáveis é patológica - é
doentia, sempre uma manifestação de doença ou problema mental. Deve
ser distinguida daquilo que é referido normalmente como necessidade ou
sentimentos de dependência. Todos nós - e cada um de nós

- mesmo que tentemos aparentar para os outros e para nós

106

próprios o contrário - temos carências afectivas. Todos nós desejamos ser


mimados, que tomem conta de nós sem esforço da nossa parte, e que
pessoas mais fortes do que nós e para quem os nossos interesses são
realmente importantes gostem de nós. Por muito fortes, cuidadosos,
responsáveis e adultos que sejamos, se olharmos bem para dentro de nós,
encontraremos sempre o desejo de que cuidem de nós para variar. Cada um
de nós, independentemente da idade e da maturidade, procura e gostaria
de ter na sua vida uma boa imagem materna e paterna. Mas, para a maior
parte de nós, estes desejos ou sentimentos não regem a nossa vida; não
são o tema predominante da nossa existência. Quando governam as nossas
vidas e ditam a qualidade da nossa existência, temos então algo mais do
que meras carências afectivas; somos dependentes. Especificamente, uma
pessoa cuja vida é governada e ditada pelas necessidades da dependência
sofre de uma disfunção de ordem psiquiátrica a que, em termos de
diagnóstico, damos o nome de "disfunção de personalidade dependente
passiva". É talvez a mais comum de todas as perturbações de ordem
psiquiátrica.
As pessoas com esta disfunção, pessoas dependentes passivas, estão tão
empenhadas na procura de serem amadas que não lhes resta nenhuma
energia para amar. São como pessoas esfomeadas, esgravatando onde
podem por comida, sem partilharem a sua comida com os outros. É como se
dentro delas houvesse um vazio interior, um poço sem fundo clamando por
ser cheio mas que nunca se consegue encher completamente. Nunca se
sentem "preenchidos" nem têm a sensação de realização. Sentem sempre
"falta-me qualquer coisa". Quase não toleram a solidão. Devido à sua
ausência de realização não têm um sentido real de identidade e definem-se
a si próprios apenas pelas relações que têm. Um operador gráfico de trinta
anos, extremamente deprimido, veio ver-me três dias depois de a mulher o
ter deixado, levando os seus dois filhos. Ela já tinha

107

ameaçado deixá-lo por três vezes, queixando-se da sua total falta de


atenção para com ela e as crianças. De cada vez ele tinha-lhe pedido para
ficar e prometido modificar-se, mas essa mudança nunca durava mais de
um dia e, dessa vez, ela tinha levado a ameaça em frente. Ele não dormia
há dois dias, tremia de ansiedade, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo
e pensava seriamente em suicidar-se. "Não consigo viver sem a minha
família," disse a chorar, "Amo-os tanto."

"Estou confuso," disse-lhe eu. "Disse-me que a sua mulher tinha razão nas
suas queixas, que nunca fazia nada por ela, que só ia a casa quando lhe
apetecia, que não se sentia atraído por ela nem sexual nem
emocionalmente, que chegava ao ponto de não falar com as crianças
durante meses, que nunca brincava ou saía com elas. O senhor não tem
nenhuma relação com ninguém da sua família, por isso não entendo porque
é que está tão deprimido por ter perdido um relacionamento que nunca
existiu."

"Não está a ver?" respondeu, "Eu agora não sou nada. Nada. Não tenho
mulher, não tenho filhos. Não sei quem sou. Posso não me preocupar com
eles, mas devo gostar deles. Sem eles não sou nada."

Por ele estar tão deprimido - tinha perdido a identidade que a família lhe
dava - marquei-lhe uma nova consulta para dois dias mais tarde. Não
esperava grandes melhoras. Mas quando voltou, irrompeu pelo meu
gabinete com um largo sorriso e anunciou, "Agora está tudo bem."

"Voltou para a sua família?" perguntei.

"Oh, não," respondeu feliz, "não soube nada deles desde que estive consigo.
Mas conheci uma rapariga ontem à noite num bar. Ela disse-me que gosta
realmente de mim. Está separada, como eu. Vamo-nos encontrar de novo
hoje à noite. Sinto-me novamente um ser humano. Acho que não vou
precisar mais de vir ter consigo."

108

Esta rápida mutação é característica nos indivíduos dependentes passivos.


Não é importante de quem dependem, desde que haja alguém. Não
interessa qual a sua identidade desde que exista alguém que lha forneça.
Consequentemente as suas relações, embora aparentemente dramáticas na
sua intensidade, são na verdade extremamente ligeiras. Devido à forte
sensação que têm de vazio interior e na ânsia de o preencher, as pessoas
dependentes passivas não demoram a gratificar a sua necessidade de
outras. Uma mulher jovem, bonita, muito inteligente e extremamente
saudável em determinados aspectos, teve, entre os dezassete e os vinte e
um anos, uma série quase infinita de envolvimentos sexuais com homens
de um modo geral inferiores a ela em termos de inteligência e capacidades.
Passava de um perdedor para outro. O problema, quando surgiu, era a sua
incapacidade de esperar o tempo necessário para procurar um homem
adequado ou mesmo de escolher entre os muitos imediatamente
disponíveis. Vinte e quatro horas depois de terminar uma relação ela
agarraria o primeiro homem que encontrasse num bar e entraria na sessão
seguinte de terapia a cantar-lhe louvores. "Sei que ele está desempregado e
que bebe demais, mas no fundo tem muito talento e gosta verdadeiramente
de mim. Sei que esta relação irá correr bem."

Mas nunca correu bem, não só por ela não ter feito uma boa escolha mas
também porque se tornaria cada vez mais absorvente em relação ao
homem, pedindo cada vez mais provas do seu afecto, querendo estar
constantemente com ele, recusando-se a ficar sozinha. "É por eu gostar
tanto de ti que não suporto estar longe de ti," dir-lhe-ia ela, mas mais cedo
ou mais tarde ele sentir-se-ia completamente sufocado e preso, sem espaço
para se mover, pelo seu "amor". Haveria uma violenta explosão, a relação
terminaria e o ciclo iniciar-se-ia todo de novo no dia seguinte. A mulher
tornou-se capaz de quebrar o ciclo após três anos de terapia, durante os
quais começou a apreciar a

109

sua própria inteligência e qualidades, a identificar o seu vazio e ansiedade


e a distingui-los do amor verdadeiro, a compreender que a sua ansiedade a
levava a iniciar e a depender de relacionamentos que lhe eram prejudiciais
e a aceitar a necessidade de disciplinar rigidamente a sua ansiedade para
poder tirar proveito das suas capacidades.

No diagnóstico é utilizada a palavra "passivo" juntamente com a palavra


"dependente" porque estes indivíduos se preocupam tanto com o que os
outros podem fazer por eles que até chegam ao ponto de excluir o que eles
próprios poderão fazer. Uma vez, quando trabalhava com um grupo de cinco
pacientes solteiros, todos dependentes passivos, pedi-lhes para falarem dos
seus objectivos em termos da situação em que gostariam de estar na vida
daí a cinco anos. De um modo ou de outro cada um respondeu "Quero estar
casado com alguém que goste mesmo de mim". Nem um mencionou
manter um emprego estimulante, criar uma obra de arte, fazer uma
contribuição para a comunidade ou estar numa posição em que ele ou ela
pudesse amar ou até ter filhos. A noção de esforço não estava incluída nos
seus sonhos; visavam apenas um estado passivo e sem esforço de receber
atenção e cuidados. Disse-lhes, como digo a muitos outros: "Se o vosso
objectivo é serem amados, não vão conseguir alcançá-lo. A única forma de
se ter a certeza de ser amado é ser uma pessoa merecedora de amor, e não
se pode ser uma pessoa merecedora de amor quando o principal objectivo
na vida é ser amado passivamente." Isto não significa que as pessoas
dependentes passivas nunca fazem nada pelos outros, mas o seu motivo ao
fazer é cimentar a ligação que prende os outros a elas para garantirem a
sua retribuição. E quando não está envolvida a hipótese de afecto por parte
do outro, têm muita dificuldade em "fazer coisas". Todos os membros do
grupo acima referido achavam angustiantemente difícil comprar uma casa,
separar-se dos

110

pais, procurar um emprego, deixar um emprego totalmente insatisfatório


ou mesmo dedicar-se a um passatempo.
No casamento há normalmente uma diferenciação dos papéis dos dois
esposos, uma divisão do trabalho entre os dois, normalmente eficiente. A
mulher normalmente cozinha, trata da limpeza da casa, das compras e
cuida das crianças; o homem normalmente garante o emprego, trata das
finanças, corta a relva e faz reparações. Os casais saudáveis trocam de
papéis instintivamente de vez em quando. O homem é capaz de cozinhar
uma refeição de vez em quando, passar um dia por semana com as
crianças, limpar a casa para fazer uma surpresa à mulher; a mulher pode
arranjar um emprego a tempo parcial, cortar a relva no dia do aniversário do
marido, ou encarregar-se da conta bancária e dos pagamentos durante um
ano. O casal pode considerar esta troca de papéis como uma espécie de
brincadeira que acrescenta condimento e variedade ao casamento. É isso,
mas talvez mais importante (mesmo se feito inconscientemente), é um
processo que diminui a sua dependência mútua. De certo modo, cada
membro do casal está a treinar-se para a sobrevivência no caso de perda do
outro. Mas, para as pessoas dependentes passivas, a perda do outro é uma
perspectiva tão assustadora que não conseguem enfrentar a preparação
para ela, nem tolerar um processo que diminuiria a dependência ou
aumentaria a liberdade do outro.

Em consequência disso, uma das marcas comportamentais das pessoas


dependentes passivas no casamento é que a sua diferenciação de papéis é
rígida, e tentam aumentar em vez de diminuir a dependência mútua, de
modo a tornar o casamento, cada vez mais e não cada vez menos, uma
armadilha. Ao agir assim, em nome do que apelidam de amor mas que é na
realidade dependência, diminuem a sua liberdade e estatura e as do outro.
De vez em quando, como parte deste processo, as pessoas dependentes
passivas, quando casadas, chegam a

111

renunciar a capacidades adquiridas antes do casamento. Um exemplo é o


não invulgar síndroma da mulher que não "pode" conduzir. Metade das
vezes, ela pode nunca ter aprendido, mas nos restantes casos, por vezes
alegadamente devido a um pequeno acidente, desenvolve uma "fobia"
acerca da condução numa altura qualquer depois do casamento e deixa de
conduzir. O efeito desta "fobia" em zonas rurais e suburbanas, onde vive a
maior parte das pessoas, é torná-la quase totalmente dependente do
marido e acorrentá-lo a ela através do seu desamparo. Então ele tem que
fazer as compras todas para a família ou servir-lhe de motorista em todas as
expedições de compras. Porque este comportamento normalmente gratifica
as necessidades de dependência dos dois esposos, quase nunca é visto
como doentio ou mesmo como um problema a ser resolvido pela maior
parte dos casais. Quando sugeri a um banqueiro, extremamente inteligente
em todas as outras questões, que a mulher, que deixou de guiar aos
quarenta e seis anos devido a uma "fobia", talvez tivesse um problema que
merecia atenção psiquiátrica, ele disse, "Oh, não, o médico disse-lhe que
era devido à menopausa e quanto a isso não há nada a fazer." Ela sentia-se
segura por saber que ele não teria um caso nem a deixaria, porque estava
tão ocupado depois do trabalho a levá-la às compras e a transportar as
crianças. Ele sentia-se seguro, sabendo que ela não teria um caso nem o
deixaria porque não tinha mobilidade para conhecer outras pessoas quando
ele não estava com ela. Com este comportamento, os casamentos
dependentes passivos podem tornar-se duradouros e seguros, mas não
podem ser considerados saudáveis nem de amor verdadeiro, porque a
segurança é adquirida pelo preço da liberdade e a relação serve para
retardar ou destruir o desenvolvimento dos parceiros individuais. Dizemos
repetidamente aos nossos casais que "um bom casamento só pode existir
entre duas pessoas fortes e independentes".

112

A dependência passiva tem a sua génese na falta de amor. O sentimento


íntimo de vácuo de que sofrem as pessoas dependentes passivas é o
resultado directo da falha dos seus pais em preencher as suas necessidades
de afecto, atenção e cuidados durante a infância. Foi referido na primeira
parte, que as crianças que são amadas e a quem é dada atenção com uma
consistência relativa durante a infância, entram na idade adulta com um
sentimento profundo de que são passivas de ser amadas e valiosas e que,
portanto, continuarão a ser amadas e continuará a ser-lhes dedicada
atenção enquanto se mantiverem fiéis a si mesmas. As crianças que
crescem num ambiente onde o amor e a atenção estão ausentes ou são
dados com enorme inconsistência, entram na idade adulta sem esse sentido
de segurança íntima. Em vez disso, têm um sentimento de insegurança
íntima, um sentimento de "não tenho o suficiente" e de que o mundo é
imprevisível e avarento, bem como o sentimento de que não são passíveis
de ser amadas e consideradas valiosas. Não é de admirar portanto, que
sintam a necessidade de procurar ansiosamente amor, cuidado e atenção
onde quer que os encontrem e, quando os encontram, se agarrem a eles
com um desespero que os leva a um comportamento sem amor,
manipulativo e maquiavélico que destrói essas mesmas relações que
tentam preservar. Como também foi indicado na parte anterior, o amor e a
disciplina andam de mãos dadas, pelo que pais que não amam nem se
importam com os filhos são pessoas a quem falta a disciplina, e quando
falham em fazer sentir aos filhos que são amados, também falham em lhes
dar a capacidade da auto-disciplina. Assim, a dependência excessiva dos
indivíduos dependentes passivos é apenas a principal manifestação da sua
perturbação de personalidade. Às pessoas dependentes passivas falta a
auto-disciplina. Não querem ou são incapazes de adiar a gratificação da sua
fome de atenção. No seu desespero por formar e manter

113

ligações, atiram a honestidade pela janela. Agarram-se a relações


desgastadas quando deviam renunciar a elas. Mais importante, falta-lhes o
sentido de responsabilidade por si próprias. Esperam passivamente que os
outros, frequentemente até os próprios filhos, sejam a fonte da sua
felicidade e preenchimento, e portanto, quando não se sentem basicamente
felizes e preenchidos, sentem que os outros são responsáveis. Em resultado,
estão interminavelmente zangados, porque se sentem interminavelmente
traídos pelos outros que, na realidade, nunca conseguem preencher todas
as suas necessidades nem "fazê-los" felizes. Tenho um colega que muitas
vezes diz às pessoas, "Olhe, permitir-se ser dependente doutra pessoa é a
pior coisa possível que pode fazer a si mesmo. Estaria melhor se fosse
dependente de heroína. Enquanto estiver fornecido, a heroína nunca o deixa
ficar mal; se lá estiver, fá-lo-á sempre feliz. Mas se está à espera que outra
pessoa o faça feliz, ficará interminavelmente desiludido." De facto, não é
por acaso que a perturbação mais comum manifestada pelas pessoas
dependentes passivas, para além do seu relacionamento com os outros, é a
dependência das drogas e do álcool. A sua personalidade é "viciada". São
viciados em pessoas, sugam-nas e engolem-nas, e quando as pessoas não
estão disponíveis para serem sugadas e engolidas, viram-se para a garrafa,
ou para a agulha ou para a pastilha, como substitutos das pessoas.

Resumindo, a dependência pode parecer amor porque é uma força que


obriga as pessoas a agarrarem-se ferozmente umas às outras. Mas, na
verdade, não é amor; é uma forma de anti-amor. Tem a sua génese numa
falta de amor por parte dos pais e perpetua essa falha. Procura receber em
vez de dar. Alimenta a infantilidade em vez do crescimento. Funciona de
forma a armadilhar e restringir em vez de libertar. Por fim, destrói em vez de
construir relações e destrói em vez de construir pessoas.

114

*/*
Catexia Sem Amor

UM DOS ASPECTOS DA dependência é que não se preocupa com o


desenvolvimento espiritual. As pessoas dependentes estão interessadas no
seu próprio alimento e nada mais; desejam a plenitude, desejam ser felizes;
não desejam desenvolver-se, nem estão dispostas a tolerar a infelicidade, a
solidão e o sofrimento envolvidos no desenvolvimento. As pessoas
dependentes também não se preocupam com o desenvolvimento espiritual
do outro, do objecto da sua dependência; importam-se apenas que o outro
ali esteja para as satisfazer. A dependência é só uma das formas de
comportamento a que incorrectamente aplicamos a palavra "amor" quando
a preocupação com a evolução espiritual está ausente. Consideremos agora
outras formas, e esperamos demonstrar mais uma vez que o amor nunca é
alimento nem catexia sem atentar ao desenvolvimento espiritual.

Referimo-nos frequentemente a pessoas que amam objectos inanimados ou


actividades. Dizemos "Ele adora o dinheiro" ou "Ele adora o poder", "Ele
adora jardinar" ou "Ele adora jogar golfe". É certo que um indivíduo pode
esforçar-se muito além dos limites pessoais vulgares, trabalhando sessenta,
setenta, oitenta horas por semana para acumular riqueza ou poder. No
entanto, apesar da extensão da fortuna ou da influência de cada um, todo
este trabalho e acumulação podem não ser nada engrandecedores. De
facto, podemos muitas vezes dizer de um magnata que se fez por si próprio,
"É uma pessoa menor, má e mesquinha." Embora possamos falar sobre o
quanto essa pessoa ama o dinheiro ou o poder, frequentemente não o
vemos como uma pessoa que ama. Porque é assim? É porque a riqueza

115

ou o poder se tornaram, para essa pessoa, fins em si, em vez de meios


para um objectivo espiritual. O único fim verdadeiro do amor é o
desenvolvimento espiritual ou a evolução humana.

Os passatempos são actividades auto-educativas. Ao nos amarmos a nós


próprios - ou seja, educando-nos para o propósito do desenvolvimento
espiritual - temos que nos apetrechar com toda a espécie de coisas que não
são directamente espirituais. Para alimentar o espírito, o corpo tem também
de ser alimentado. Precisamos de comida e abrigo. Independentemente da
nossa dedicação ao desenvolvimento espiritual, também precisamos de
descanso e repouso, exercício e distracção. Os santos têm que dormir e até
os profetas têm que se divertir. Assim, os passatempos podem ser um meio
através do qual nos amamos a nós próprios. Mas se o passatempo se
transforma num fim em si, então torna-se um substituto em vez de um meio
de desenvolvimento pessoal. Às vezes, é precisamente por serem
substitutos do desenvolvimento pessoal que os passatempos são tão
populares. Nos campos de golfe, por exemplo, encontram-se homens e
mulheres de idade para quem o objectivo principal que lhes resta na vida é
retirar mais umas tacadas do seu jogo. Esse esforço de melhorar a sua
habilidade serve para lhes dar a sensação de progressão na vida e, assim,
ajuda-os a ignorar a realidade de terem de facto deixado de progredir, por
terem desistido do esforço de se melhorarem como seres humanos. Se se
amassem mais a eles próprios, não se permitiriam contentar-se
apaixonadamente com um objectivo tão pequeno e um futuro tão
mesquinho.

Por outro lado, o poder e o dinheiro podem ser meios para um objectivo de
amor. Uma pessoa pode, por exemplo, suportar uma carreira política com o
principal objectivo de utilizar o poder político para melhoria da raça
humana. Ou há pessoas que podem ansiar pela riqueza, não pelo dinheiro,
mas para os filhos poderem frequentar a universidade e para eles próprios

116

poderem ter a liberdade e o tempo de estudo e reflexão necessários ao seu


desenvolvimento espiritual. Não é o poder nem o dinheiro que essas
pessoas amam; é a humanidade.

Entre as coisas que aqui refiro e em toda esta secção do livro, diria que a
forma como utilizamos a palavra "amor" é tão generalizada e inespecífica
que pode interferir seriamente com o nosso entendimento do amor. Não
tenho grande esperança em que a linguagem mude neste aspecto. No
entanto, enquanto continuarmos a usar a palavra "amor" para descrever a
nossa relação com algo que é importante para nós, algo que catectamos,
sem atender à qualidade dessa relação, continuaremos a ter dificuldade em
ver a diferença entre o sensato e o tolo, o bom e o mau, o nobre e o ignóbil.

Utilizando a nossa definição mais específica, é claro, por exemplo, que só


podemos amar seres humanos. Porque, de acordo com o nosso conceito
geral das coisas, só os seres humanos possuem um espírito apto a um
desenvolvimento substancial. Consideremos a questão dos animais de
estimação. "Adoramos" o cão da família. Damos-lhe de comer, damos-lhe
banho, damos-lhe mimos e carícias, disciplinamo-lo e brincamos com ele.
Quando está doente, somos capazes de largar tudo para ir com ele a correr
para o veterinário. Quando foge ou morre, ficamos desgostosos. Na
verdade, para algumas pessoas sós, sem filhos, os animais de estimação
podem tornar-se a sua única razão de existir. Se isto não é amor, então o
que é?

* Reconheço a possibilidade de que este conceito possa ser falso; de que


toda a matéria, animada e inanimada, possa possuir um espírito. A distinção
que fazemos entre nós próprios como humanos e os animais e plantas
"inferiores", a terra e as pedras inanimadas, é uma manifestação de maya,
ou ilusão, no quadro de referência místico. Há níveis de compreensão. Neste
livro trato do amor a um certo nível. Infelizmente as minhas competências
de comunicação são inadequadas para abarcar mais de um nível ao mesmo
tempo ou para fazer mais do que fornecer um vislumbre ocasional de um
nível que não seja aquele sobre o qual estou a comunicar.

117

Mas, examinemos as diferenças entre a nossa relação com um animal de


estimação e com outro ser humano. Primeiro que tudo, a extensão da nossa
comunicação com os animais de estimação é extremamente limitada em
comparação com aquela em que podemos comunicar com outros seres
humanos, se nos empenharmos nisso. Não sabemos o que pensam os
nossos animais de estimação. Esta falta de conhecimento permite-nos
projectar neles os nossos pensamentos e sentimentos e sentir por isso uma
afinidade emocional com eles que pode nada corresponder à realidade.
Segundo, só achamos os nossos animais satisfatórios enquanto as suas
vontades coincidem com a nossa. Esta é a base em que geralmente
escolhemos os animais de estimação e, se as suas vontades começam a
divergir significativamente da nossa, livramo-nos deles. Não os mantemos
muito tempo por perto quando protestam ou lutam contra nós. A única
escola para onde os mandamos para desenvolvimento da mente e do
espírito é a escola de obediência. No entanto, conseguimos desejar que
outros humanos desenvolvam uma "vontade própria"; na verdade, é este
desejo de diferenciação do outro que é uma das características do amor
genuíno. Finalmente, na nossa relação com os animais de estimação,
tentamos fomentar a sua dependência. Não queremos que cresçam e saiam
de casa. Queremos que fiquem ali, dependentemente deitados ao pé da
lareira. É o seu apego a nós, e não a independência de nós, que valorizamos
nos animais de estimação.
Este assunto do "amor" dos animais de estimação tem imensa importância
porque muitas, muitas pessoas só são capazes de amar animais de
estimação e são incapazes de amar verdadeiramente outros seres humanos.
Inúmeros soldados americanos tiveram casamentos idílicos com "noivas de
guerra" alemãs, italianas ou japonesas com quem não conseguiam
comunicar verbalmente. Mas quando as noivas aprenderam inglês, os
casamentos começaram a desfazer-se. Os solda-

118

sentimentos, desejos e objectivos e a sentir a mesma proximidade que se


sente em relação a um animal de estimação. Em vez disso, como as
mulheres aprenderam inglês, começaram a perceber que elas tinham ideias,
opiniões e objectivos diferentes dos seus. À medida que isso foi
acontecendo, para alguns o amor começou a crescer; para a maior parte,
talvez, terminou. A mulher liberada tem razão em acautelar-se em relação
ao homem que lhe chama afectuosamente o seu "bichinho". Pode, de facto,
ser um indivíduo cuja afeição dependa de ela ser um bichinho de estimação,
a quem falta a capacidade de respeitar a força, independência e
individualidade dela. O exemplo mais triste deste fenómeno é,
provavelmente, o grande número de mulheres que só "amam" os filhos
enquanto bebés. Encontram-se dessas mulheres em todo o lado. Podem ser
mães ideais até os filhos chegarem aos dois anos - infinitamente ternas,
amamentando-os alegremente, aconchegando e brincando com os bebés,
consistentemente afectuosas, totalmente dedicadas à sua criação e
extremamente felizes na maternidade. Depois, quase que de um dia para o
outro, muda o cenário. Assim que a criança começa a manifestar a sua
vontade - a desobedecer, a choramingar, a recusar-se a brincar, a não se
deixar afagar de vez em quando, a prender-se a outras pessoas, a entrar no
mundo um pouco por si -, o amor da mãe termina. Perde o interesse pela
criança, "descatecta-a", considera-a apenas um aborrecimento. Ao mesmo
tempo, muitas vezes sente novamente um desejo quase esmagador de
engravidar outra vez, de ter outro bebé, outro bicho de estimação.
Normalmente é bem sucedida e o ciclo repete-se. Se não, é provável que
tente avidamente tomar conta dos bebés dos vizinhos enquanto ignora
quase na totalidade os pedidos de atenção do seu filho ou filhos, mais
crescidos. Para os seus filhos, "os terríveis dois anos" são não só o fim da
infância,

119
mas também o fim da experiência de serem amados pela mãe. A dor e a
privação por que passam são óbvias para todos menos para a mãe, ocupada
com o novo bebé. O efeito dessa experiência normalmente surge quando as
crianças entram na idade adulta num padrão de personalidade depressiva
e/ou dependente passiva.

O que isto sugere é que o "amor" aos bebés e animais de estimação e até
às esposas dependentemente obedientes é um padrão de comportamento
instintivo ao qual se aplica perfeitamente o termo "instinto maternal".
Podemos comparar este com o comportamento instintivo de "apaixonar-se":
não é uma forma genuína de amor pelo facto de não implicar qualquer
esforço, nem é inteiramente um acto de vontade ou de escolha; aproxima-
se do amor por ser uma forma de se estender aos outros e servir para iniciar
laços interpessoais dos quais pode nascer o amor verdadeiro; mas é preciso
muito mais para desenvolver um casamento saudável e criativo, criar uma
criança saudável e cujo espírito se desenvolve, ou para contribuir para a
evolução da humanidade.

A questão é que criar pode e normalmente deve ser muito mais do que
simplesmente alimentar, e que a educação do desenvolvimento espiritual é
um processo infinitamente mais complicado do que qualquer um que possa
ser orientado por instinto. A mãe que referi no início desta secção do livro,
que não deixava o filho ir de autocarro para a escola, é um caso típico.
Transportá-lo de e para a escola era criá-lo, num certo sentido, mas era uma
educação de que ele não precisava e que retardava claramente, em vez de
desenvolver, o seu desenvolvimento espiritual. Abundam outros exemplos:
mães que empanturram de comida crianças já com excesso de peso; pais
que compram aos filhos brinquedos que davam para encher um quarto e às
filhas roupas que encheriam um armário; pais que não estabelecem limites
nem negam desejos. Amor não é

120

simplesmente dar; é dar criteriosamente e não dar criteriosamente


também. É elogiar criteriosamente e criticar criteriosamente. É discutir,
lutar, confrontar, animar, empurrar e puxar, para além de reconfortar,
criteriosamente. E liderança. A palavra "criterioso" significa que requer
juízo, e o juízo requer mais do que o instinto; requer tomada de decisão
ponderada e muitas vezes dolorosa.
"Auto-Sacrifício"

SÃO MUITOS OS MOTIVOS por trás do dar sem critério e da educação


destrutiva, mas esses casos têm invariavelmente uma característica básica
comum: o "dador", sob o disfarce do amor, responde e vai de encontro às
suas próprias necessidades sem atentar às necessidades espirituais do que
recebe. Um pastor protestante veio consultar-me, relutantemente, porque a
mulher sofria de depressão crónica e os dois filhos tinham deixado a
universidade e estavam em casa, sob cuidados psiquiátricos. Apesar do
facto de a família inteira estar "doente", inicialmente ele estava
completamente incapaz de compreender que podia ter um papel nas suas
doenças. "Faço tudo o que posso para cuidar deles e dos seus problemas,"
relatava. "Não há um único momento que eu passe acordado sem me
preocupar com eles." A análise da situação revelou que este homem de
facto esforçava-se até à exaustão para obedecer aos desejos da mulher e
dos filhos. Tinha dado carros novos aos dois filhos e pago o respectivo
seguro, apesar de sentir que os rapazes se deviam esforçar mais por serem
auto-suficientes. Todas as semanas levava a mulher à ópera ou ao teatro, na
cidade, apesar de detestar ir à cidade e de a ópera o aborrecer de morte.
Apesar de muito ocupado no seu cargo, passava a

121

maior parte do seu tempo livre em casa, a arrumar e limpar o que a mulher
e os filhos largavam, uma vez que eles não tinham a menor preocupação
com a limpeza doméstica. "Você não se cansa de se anular constantemente
perante eles?" perguntei-lhe. "Claro," respondeu ele, "mas o que hei-de
fazer? Gosto deles e fico penalizado se não tomar conta deles. Preocupo-me
tanto com eles que não me permitirei nunca ficar a ver enquanto eles
tiverem necessidades a preencher. Posso não ser um homem brilhante, mas
pelo menos tenho amor e preocupação."

Foi interessante descobrir que o seu pai tinha sido um intelectual brilhante,
de considerável renome, mas também um alcoólico e um galanteador que
não se preocupava nada com a família e a negligenciava grosseiramente.
Gradualmente, ajudei o meu doente a ver que, em criança, tinha jurado ser
tão diferente do pai quanto possível, ser tão compassivo e preocupado
quanto o pai era impiedoso e desligado. Algum tempo depois até conseguiu
compreender que tinha feito uma tremenda aposta em manter uma
imagem de si próprio como carinhoso e compassivo e que muito do seu
comportamento, incluindo a sua carreira no sacerdócio, tinha sido dedicado
a promover essa imagem. O que ele não compreendeu com a mesma
facilidade foi o grau de "infantilização" a que reduzia a família. Referia-se
continuamente à mulher como "a minha gatinha" e aos filhos bem crescidos
e atléticos "os meus miúdos". "Como é que hei-de ter outro
comportamento?" implorava. "Eu posso ser carinhoso em reacção ao meu
pai, mas isso não quer dizer que vá deixar de o ser e transformar-me num
estupor." O que ele teve literalmente que aprender foi que amar é uma
actividade complicada e não simples, que exige a participação de todo o seu
ser - a cabeça tanto como o coração. Devido à sua necessidade de ser tão
diferente do pai quanto possível, não tinha sido capaz de desenvolver um
sistema de resposta flexível

122

para exprimir o seu amor. Teve que aprender que não dar na altura certa é
mais compassivo do que dar na altura errada e que fomentar a
independência é mais uma manifestação de amor do que cuidar de pessoas
que podem perfeitamente tomar conta de si próprias. Teve ainda que
aprender que expressar as suas próprias necessidades, ira, ressentimentos
e expectativas era tão necessário para a saúde mental da sua família como
o seu sacrifício e, portanto, que o amor tem que ser manifestado tanto em
confrontação como em aceitação beatífica.

À medida que se foi apercebendo de como infantilizava a família, começou a


efectuar mudanças. Deixou de andar atrás de toda a gente a arrumar e
limpar e zangava-se abertamente quando os filhos não participavam no
arranjo da casa. Recusou-se a continuar a pagar os seguros dos carros dos
filhos, dizendo-lhes que se queriam andar de carro tinham que pagar eles.
Sugeriu à mulher que passasse a ir sozinha à ópera em Nova Iorque. Ao
efectuar estas mudanças, teve de se arriscar a fazer o papel de "mau da
fita" e prescindir da omnipotência do seu papel anterior como responsável
por todas as necessidades da família. Mas apesar de o seu comportamento
anterior ter sido motivado principalmente pela necessidade de manter uma
imagem de quem ama, tinha no íntimo a capacidade de amar
verdadeiramente, e foi devido a essa capacidade que conseguiu modificar-
se. Tanto a mulher como os filhos reagiram inicialmente com ira a estas
mudanças. Mas em breve um dos filhos voltou para a universidade e o outro
arranjou um emprego melhor e um apartamento. A mulher começou a
apreciar a sua nova independência e a desenvolver-se de formas só suas. O
homem deu por si a tornar-se mais eficiente como pastor e, ao mesmo
tempo, a vida tornou-se mais agradável.
O amor mal orientado do pastor raiava a perversão mais grave do amor que
é o masoquismo. Os leigos tendem a asso-

123

ciar o sadismo e o masoquismo com a actividade puramente sexual,


interpretando-os como o prazer sexual derivado de infligir ou sofrer dor
física. Na verdade, o verdadeiro sado-masoquismo sexual é uma forma
relativamente invulgar de psico-patologia. Muitíssimo mais vulgar e, no
limite, mais grave, é o fenómeno do sado-masoquismo social, em que as
pessoas desejam inconscientemente magoar e ser magoadas umas pelas
outras através das suas relações interpessoais não sexuais. Tipicamente,
uma mulher irá procurar apoio psiquiátrico por depressão ao ser
abandonada pelo marido. Oferecerá ao psiquiatra uma interminável história
de repetidos maus tratos do marido: ele não lhe dava atenção, tinha
amantes umas atrás das outras, jogava com o dinheiro que devia ser gasto
em alimentação, desaparecia dias a fio sempre que lhe apetecia, chegava
bêbado a casa e batia-lhe, e agora, por fim, abandonou-a e às crianças na
véspera de Natal - ainda por cima na véspera de Natal! O terapeuta neófito
tende a reagir em relação a esta "pobre mulher" e à sua história com
imediata simpatia, mas não tarda que a simpatia se evapore à medida que
fica melhor esclarecido. Primeiro, o terapeuta descobre que este padrão de
maus tratos existe há vinte anos e que, embora a pobre mulher se tenha
divorciado do bruto do marido por duas vezes, voltou a casar com ele por
duas vezes, e que às inúmeras separações se seguiram inúmeras
reconciliações. A seguir, depois de trabalhar com ela durante um mês ou
dois para a ajudar a ganhar independência, quando tudo parece estar a
correr bem e a mulher aparenta estar a apreciar a tranquilidade da vida
separada do marido, o terapeuta vê repetir o ciclo novamente desde o
início. Um dia, a mulher entra alegremente no consultório para anunciar,
"Bem, o Henry voltou. Telefonou-me uma noite destas a dizer que me queria
ver, por isso encontrei-me com ele. Implorou-me que o deixasse regressar e
parece realmente mudado, portanto aceitei-o de volta." Quando o

124

terapeuta faz notar que parece ser a repetição de um padrão que tinham
concordado ser destrutivo, a mulher diz, "Mas eu amo-o. Não se pode negar
o amor." Se o terapeuta tenta analisar este "amor" com alguma energia, a
doente deixa a terapia.
Que se passa aqui? Tentando entender o que aconteceu, o terapeuta
recorda o óbvio deleite com que a mulher tinha relatado a longa história de
brutalidade e maus tratos do marido. De repente, nasce-lhe uma ideia
estranha; talvez esta mulher suporte os maus tratos do marido, e até os
procure, pelo mero prazer de falar sobre eles. Mas de que natureza seria
esse prazer? O terapeuta recorda o farisaísmo da mulher. Será que a coisa
mais importante na vida da mulher é ter um sentido de superioridade moral
e que, para o poder manter, precisa de ser maltratada? A natureza do
padrão torna-se agora clara. Ao permitir ser maltratada, sente-se superior.
No limite, pode mesmo ter o prazer sádico de ver o marido implorar e pedir
para voltar e reconhecer momentaneamente a sua superioridade sobre a
posição de humildade em que ele se encontra, enquanto decide
magnanimamente aceitá-lo de volta ou não. E nesse momento, ela
consegue a sua vingança. Quando se analisam estas mulheres,
normalmente descobre-se que foram particularmente humilhadas em
crianças. Em consequência, procuram a vingança através do seu sentido de
superioridade moral, o que requer humilhação e maus tratos repetidos. Se o
mundo nos tratar bem, não temos necessidade de nos vingarmos dele. Se a
procura da vingança é o nosso objectivo de vida, temos que arranjar forma
de o mundo nos tratar mal para justificar o nosso objectivo. Os masoquistas
encaram a sua submissão aos maus tratos como amor, enquanto que, de
facto, é uma necessidade na sua interminável procura da vingança e é
basicamente motivada pelo ódio.

A questão do masoquismo realça ainda outra das principais concepções


erradas sobre o amor - que é o auto-sacrifício.

125

Em virtude desta crença, a masoquista típica via a sua tolerância dos maus
tratos como auto-sacrifício e portanto como amor, e assim não tinha que
reconhecer o seu ódio. O pastor também via o seu comportamento
sacrificado como amor, embora na verdade fosse motivado, não pelas
necessidades da sua família, mas pela sua própria necessidade de manter
uma determinada imagem. No início do tratamento, contava
constantemente como "fazia coisas" pela mulher e pelos filhos, levando-nos
a crer que ele nada retirava desses actos em proveito próprio. Mas retirava.
Sempre que pensamos em nós a fazer algo por outra pessoa, estamos de
alguma forma a negar a nossa própria responsabilidade. O que quer que
façamos, fazemo-lo porque escolhemos fazê-lo, e fazemos essa escolha
porque é a que mais nos satisfaz. O que quer que façamos por outra pessoa,
fazemo-lo porque preenche uma necessidade nossa. Os pais que dizem aos
filhos, "Devias estar agradecido por tudo o que temos feito por ti" são,
invariavelmente, pais a quem falta um grau significativo de amor. Qualquer
pessoa que ame genuinamente conhece o prazer de amar. Quando amamos
genuinamente, fazemo-lo porque queremos amar. Temos filhos porque
queremos ter filhos, e se somos pais que amam, é porque o queremos ser. É
verdade que o amor envolve uma mudança do Eu, mas que é uma extensão
do Eu, mais do que um sacrifício. Como veremos mais tarde, o amor
genuíno é uma actividade auto-compensadora. De facto, é ainda mais;
engrandece em vez de diminuir o Eu; preenche o Eu, em vez de o esgotar.
No sentido real, o amor é tão egoísta como o não-amor. Eis novamente um
paradoxo, em que o amor é egoísta e desprendido ao mesmo tempo. Não é
o egoísmo ou a ausência de egoísmo que distingue o amor do não-amor, é o
objectivo da acção. No caso do amor genuíno, o objectivo é sempre o
desenvolvimento espiritual. No caso do não-amor, o alvo é sempre outra
coisa qualquer.

126

O Amor Não é um Sentimento

JÁ AFIRMEI QUE o AMOR é uma acção, uma actividade. Isto leva-nos à última
das principais concepções erradas que temos de abordar. O amor não é um
sentimento. Muitas pessoas que possuem um sentimento de amor, e que
até agem em resposta a esse sentimento, actuam de todas as formas
destrutivas e de falta de amor. Por outro lado, um indivíduo que ama
genuinamente age com amor e de forma construtiva para com uma pessoa
de quem conscientemente não gosta, sem na verdade sentir amor pela
pessoa nessa altura e talvez até achando a pessoa de alguma maneira
repugnante.

O sentimento do amor é a emoção que acompanha a experiência da


catexia. A catexia, como se devem lembrar, é o processo pelo qual um
objecto se torna importante para nós. Uma vez catectado, o objecto,
vulgarmente designado por "objecto do amor", torna-se alvo da nossa
energia como se fizesse parte de nós, e esta relação entre nós e esse
objecto chama-se catexia. Uma vez que temos muitas dessas relações ao
mesmo tempo, falamos das nossas catexias. O processo de retirada da
nossa energia de um objecto de amor de modo a que ele perca a sua
importância para nós é chamado de descatexia. O conceito errado de que o
amor é um sentimento existe porque confundimos catexia com amor. Esta
confusão é compreensível porque são processos semelhantes, mas têm
também diferenças notáveis. Em primeiro lugar, como foi já referido,
podemos catectar qualquer objecto, animado ou inanimado, com ou sem
espírito. Assim, uma pessoa pode catectar o mercado de acções ou uma jóia
e pode sentir amor por essas coisas. Segundo, o facto de termos catectado
outro ser

127

humano não significa que nos importemos com o desenvolvimento


espiritual dessa pessoa. A pessoa dependente, de facto, normalmente
receia o desenvolvimento espiritual de um cônjuge catectado. A mãe que
teimava em levar o filho adolescente à escola catectava claramente o
rapaz; ele era importante para ela - mas o seu desenvolvimento espiritual
não. Terceiro, a intensidade das nossas catexias muitas vezes nada tem a
ver com sabedoria ou empenho. Dois estranhos podem encontrar-se num
bar e catectar-se um ao outro de tal forma que nada - nem compromissos
anteriormente marcados, promessas feitas nem a estabilidade familiar - é
mais importante naquele momento que a sua consumação sexual. Por
último, as nossas catexias podem ser passageiras e momentâneas.
Imediatamente a seguir à consumação sexual, cada um dos membros do
casal atrás referido pode achar o outro pouco atraente e indesejável.
Podemos descatectar algo quase imediatamente a seguir a o catectarmos.

O amor genuíno, por outro lado, implica empenhamento e o exercício da


sabedoria. Quando nos preocupamos com o desenvolvimento espiritual de
alguém, sabemos que a falta de empenho poderá ser nociva e que o
compromisso com essa pessoa é provavelmente necessário para
mostrarmos efectivamente a nossa preocupação. É por essa razão que o
compromisso é a pedra de base da relação psicoterapêutica. É quase
impossível o doente alcançar um desenvolvimento significativo da sua
personalidade sem uma "aliança terapêutica" com o terapeuta. Por outras
palavras, antes de o doente se poder arriscar a uma mudança radical, tem
que sentir a força e a segurança que advêm de acreditar que o terapeuta é
o aliado permanente e estável do doente. Para que esta aliança se
concretize, o terapeuta tem que demonstrar ao doente, normalmente no
decurso de um período considerável, a preocupação sólida e consistente
que só pode provir da capacidade de

128
L

assumir compromissos. Não quer isto dizer que apeteça sempre ao


terapeuta ouvir o doente. O compromisso significa que o terapeuta ouve o
doente, quer goste quer não. O casamento não é diferente. Num casamento
construtivo, tal como na terapia construtiva, os parceiros têm de dar
atenção um ao outro e à sua relação, regular e previsivelmente, como
rotina, independentemente de como se sentem. Como referi, os casais
deixam, mais cedo ou mais tarde, de estar apaixonados, e é no momento
em que o instinto de acasalamento terminou o seu percurso que se inicia a
oportunidade do amor genuíno. É quando os esposos já não precisam de
estar sempre na companhia um do outro, quando preferem estar noutro
sítio por algum tempo, que o amor começa a ser testado e se verificará se
está presente ou ausente.

Não significa isto que os parceiros de uma relação estável e construtiva, tal
como a psicoterapia intensiva ou um casamento, não se catectam um ao
outro e à relação de formas diversas; isso acontece. O que quer dizer é que
o amor verdadeiro transcende a questão das catexias. Quando o amor
existe, existe com ou sem catexia e com ou sem o sentimento de amar. É
mais fácil - na verdade, é divertido - amar com catexia e o sentimento do
amor. Mas é possível amar sem catexia e sem o sentimento de amor, e é na
concretização desta possibilidade que o amor genuíno e transcendente se
distingue da simples catexia. A palavra chave nesta distinção é "vontade".
Defini o amor como a vontade de extensão de si próprio com o propósito de
acalentar o seu desenvolvimento espiritual e o do outro. O amor genuíno é
mais voluntário do que emocional. A pessoa que ama verdadeiramente, fá-
lo porque tomou a decisão de amar. Essa pessoa assumiu o compromisso de
amar, quer o sentimento de amor esteja ou não presente. Se estiver, tanto
melhor; mas se não estiver, o empenhamento no amor, a decisão de amar,
mantêm-se e são exercidos da mesma

129

forma. Por outro lado, não só é possível como necessário que uma pessoa
que ama evite agir com base em sentimentos de amor. Posso encontrar uma
mulher por quem me sinta fortemente atraído, a quem me apetece amar,
mas porque seria destrutivo para o meu casamento ter uma ligação nessa
altura, direi alto ou no silêncio do meu coração, "Apetece-me amar-te, mas
não o vou fazer." Da mesma forma, posso recusar-me a aceitar uma nova
doente extremamente atraente e com boas probabilidades de obter bons
resultados com a terapia, porque o meu tempo está já comprometido com
outros doentes, alguns dos quais poderão ser menos atraentes e mais
difíceis. Os meus sentimentos de amor podem não ter limites, mas a minha
capacidade de amar tem. Portanto, tenho que escolher a pessoa em quem
vou concentrar a minha capacidade de amar, a quem a minha vontade de
amar será dirigida. O verdadeiro amor não é um sentimento pelo qual
sejamos ultrapassados. É uma decisão empenhada e ponderada.

A vulgar tendência para confundir o amor com o sentimento de amor


permite às pessoas todas as formas de se enganarem a si próprias. Um
alcoólico, cuja mulher e filhos podem precisar desesperadamente da sua
atenção naquele preciso momento, é capaz de estar sentado num bar, com
os olhos cheios de lágrimas, a dizer ao empregado do bar, "Eu amo mesmo
a minha família." Há pessoas que negligenciam os filhos das maneiras
menos aceitáveis e que se consideram os mais afectuosos dos pais. Está
claro que pode existir uma forma de proveito próprio nesta tendência para
confundir o amor com o sentimento do amor; é fácil e nada desagradável
encontrar provas de amor nos sentimentos de cada um. Pode ser difícil e
doloroso procurar provas de amor nas acções de cada um. Mas, porque o
verdadeiro amor é um acto de vontade que transcende muitas vezes
sentimentos de amor efémeros ou catexia, é correcto dizer, "O amor é como
o amor age."

130

O amor e o não-amor, como o Bem e o Mal, são fenómenos objectivos e


não puramente subjectivos.

O Trabalho de Atenção

DEPOIS DE TERMOS ANALISADO algumas das coisas que o amor não é,


vamos examinar algumas que são amor. Referiu-se, na introdução desta
secção do livro, que a definição do amor implica esforço. Quando nos
esforçamos, quando damos mais um passo ou andamos mais um
quilómetro, fazemo-lo em oposição à inércia da preguiça ou à resistência do
medo. Ao nosso esforço ou acção contra a inércia da preguiça, chamamos
trabalho. À acção face ao medo, chamamos coragem. O amor, então, é uma
forma de trabalho ou uma forma de coragem. Especificamente, é o trabalho
ou a coragem orientados para acalentar o nosso desenvolvimento espiritual
ou o de outro. Podemos trabalhar ou mostrar coragem sem ser dirigida ao
desenvolvimento espiritual e, por isso, nem todo o trabalho e nem toda a
coragem são amor. Mas porque exige o nosso esforço, o amor é sempre ou
trabalho ou coragem. Se um acto não for de trabalho ou de coragem, então
não é um acto de amor. Não há excepções.

A principal forma assumida pelo trabalho do amor é a atenção. Quando


amamos alguém, damos-lhe a nossa atenção; estamos atentos ao
desenvolvimento dessa pessoa. Quando nos amamos a nós próprios,
estamos atentos ao nosso próprio desenvolvimento. Quando damos atenção
a alguém, estamos a preocuparmo-nos com essa pessoa. O acto de dar
atenção exige que façamos o esforço de pôr de lado as nossas
preocupações existentes (como foi descrito em relação à disciplina

131

dos parênteses) e mudemos activamente a nossa consciência. A atenção é


um acto de vontade, de trabalho contra a inércia da nossa própria mente.
Como diz Rollo May, "Quando analisamos a vontade com todas as
ferramentas que a psicanálise moderna põe ao nosso dispor, encontramo-
nos de novo ao nível da atenção ou intenção como a sede da vontade. O
esforço devotado ao exercício da vontade é de facto um esforço de atenção;
o esforço de querer é o de manter a clareza de consciência, ou seja, de
manter a concentração da atenção."*

A forma mais vulgar e mais importante de exercermos a nossa atenção é,


de longe, ouvindo. Passamos uma enorme quantidade de tempo a ouvir, a
maior parte da qual desperdiçamos, porque, de uma maneira geral, a maior
parte de nós ouve muito mal. Um psicólogo industrial chamou-me uma vez
a atenção para o facto de a quantidade de tempo que dedicamos a ensinar
certas matérias às crianças nas escolas ser inversamente proporcional à
frequência com que as crianças farão uso da matéria quando crescerem.
Assim, um gestor de negócios passa mais ou menos uma hora do dia a ler,
duas a falar e oito a ouvir. No entanto, na escola, passamos uma grande
parte do tempo a ensinar as crianças a ler, uma pequena parte a ensiná-las
a falar e normalmente nenhum tempo a ensiná-las a ouvir. Não creio que
seja bom tornarmos o que ensinamos na escola exactamente proporcional
ao que fazemos depois da escola, mas penso que seria sensato darmos
alguma instrução às crianças quanto ao processo de ouvir - não para que
ouvir se torne fácil, mas para que elas entendam como é difícil ouvir bem.
Ouvir bem é um exercício de atenção e, necessariamente, de trabalho
árduo. É por não compreenderem isso ou porque não têm vontade de ter o
trabalho que a maior parte das pessoas não ouve bem.

(Nota)

* Love and Will (Nova Iorque: Delta Books, Dell Pub., 1969), p. 220.

132

Não há muito tempo, assisti a uma conferência de um homem famoso


sobre um aspecto da relação entre a Psicologia e a religião, pelo qual me
interesso desde há muito tempo. Devido ao meu interesse, tinha um certo
número de conhecimentos sobre o assunto e reconheci imediatamente o
conferencista como um grande sábio. Também senti amor no esforço
tremendo que ele fazia em comunicar, com todo o tipo de exemplos,
conceitos extremamente abstractos que eram difíceis de entender para nós,
a sua audiência. Por isso, ouvi-o com toda a atenção de que era capaz.
Durante a hora e meia em que ele falou, o suor caía-me literalmente pela
cara abaixo, num auditório com ar condicionado. Quando ele terminou, eu
tinha uma terrível dor de cabeça, os músculos do pescoço rígidos do esforço
de concentração e sentia-me completamente vazio e esgotado. Embora
calculasse ter percebido não mais de cinquenta por cento do que aquele
grande homem nos tinha dito naquela tarde, fiquei espantado pelo elevado
número de esclarecimentos brilhantes que me tinha dado. A seguir à
conferência, a que assistiram muitos indivíduos amantes da cultura, vagueei
entre a assistência durante um intervalo para café, ouvindo os comentários.
Duma forma geral, estavam desiludidos. Conhecendo a sua reputação,
esperavam mais. Não era um orador tão competente como esperavam
ouvir. Uma mulher proclamava, perante acenos de concordância, "Ele, na
verdade, não nos disse nada."

Ao contrário dos outros, eu pude ouvir muito do que este grande homem
disse, precisamente porque quis ter o trabalho de o ouvir. Estava disposto a
ter esse trabalho por duas razões: uma, porque reconhecia a sua grandeza e
que o que ele tinha para dizer teria provavelmente grande valor; segundo,
porque, dado o meu interesse na área, queria absorver profundamente o
que ele tinha a dizer de forma a incrementar o meu entendimento e o meu
desenvolvimento pessoal. Ouvi-lo foi para mim

133
um acto de amor. Amei-o porque compreendi que era uma pessoa de
grande valor, a quem valia a pena dar atenção e amei-me a mim mesmo
porque estava disposto a trabalhar em prol do meu desenvolvimento. Sendo
ele o professor e eu o aluno, ele o dador e eu o receptor, o meu amor era
principalmente dirigido a mim próprio, motivado pelo que eu podia retirar da
nossa relação e não pelo que eu lhe podia dar a ele. Em todo o caso, é
inteiramente possível que ele sentisse no meio da audiência a intensidade
da minha concentração, a minha atenção, o meu amor, e sentir-se por isso
recompensado. O amor, como veremos uma e outra vez, é invariavelmente
uma rua de dois sentidos, um fenómeno recíproco pelo qual o receptor
também dá e o dador também recebe.

Depois deste exemplo de ouvir no papel do receptor, vamos prosseguir com


a nossa oportunidade mais comum de ouvir no papel do dador: ouvir as
crianças. O processo de ouvir as crianças difere conforme a idade da
criança. Para já, vamos considerar uma criança de seis anos, na primeira
classe. Se tiver oportunidade, uma criança da primeira classe fala quase
incessantemente. Como podem os pais reagir a esta tagarelice sem fim?
Talvez a maneira mais fácil seja proibi-la. Quer acreditem quer não, há
famílias em que quase não é permitido às crianças falar, onde o ditado "As
crianças são para ser vistas e não ouvidas" se aplica vinte e quatro horas
por dia. Vêem-se essas crianças, sem nunca intervirem, olhando
silenciosamente os adultos dum canto, espectadores mudos nas sombras.
Uma segunda forma é permitir a tagarelice, mas simplesmente não a
escutar, de maneira que o seu filho não interage consigo, e fala literalmente
para o boneco ou para si próprio, criando um ruído de fundo que pode ou
não ser incómodo. A terceira forma é fingir que o ouve, continuando com o
que estiver a fazer ou a pensar da melhor maneira possível, aparentando
prestar atenção ao seu filho, fazendo ruídos ocasionais como

134

"ha, ha" ou "isso é bom", em alturas mais ou menos apropriadas, em


resposta ao monólogo. A quarta forma é a escuta selectiva, uma forma
particularmente atenta de fingir ouvir, em que os pais espevitam as orelhas
quando o filho parece estar a falar de alguma coisa com significado,
esperançados em separar o trigo do joio com o mínimo de esforço. O
problema com esta forma é que a capacidade da mente humana para filtrar
selectivamente não é assim tão competente ou eficiente, com o resultado
de que retém uma quantidade apreciável de joio e perde uma grande parte
do trigo. A quinta e última forma, claro, é ouvir mesmo a criança, dando-lhe
toda a sua atenção, pesando cada palavra e compreendendo cada frase.
Estas cinco maneiras de reagir à conversa dos filhos foram apresentadas
numa ordem de esforço crescente, em que a quinta forma, ouvir
verdadeiramente, exige do pai ou da mãe uma grande quantidade de
energia, comparada com as outras que requerem menos esforço. O leitor
pode supor ingenuamente que eu recomendo aos pais que sigam sempre a
quinta forma e ouçam sempre verdadeiramente os filhos. Nem por isso!
Antes de mais, a propensão das crianças de seis anos para falar é tão
grande, que um pai que ouvisse sempre verdadeiramente não teria quase
tempo nenhum para fazer outra coisa. Por último, seria incrivelmente
aborrecido porque, de facto, a tagarelice de uma criança de seis anos é
geralmente aborrecida. O que é portanto necessário é o equilíbrio destas
cinco formas. Por vezes, é preciso dizer às crianças simplesmente que se
calem - por exemplo, quando a sua conversa nos distrai em situações em
que a nossa atenção é crítica, ou quando representa uma interrupção
grosseira de outras pessoas e uma tentativa de conseguir um domínio hostil
e irrealista. As crianças de seis anos falam muitas vezes pela pura alegria de
tagarelar, e nada se ganha em lhes dar atenção

135

quando nem sequer a solicitam e estão obviamente felizes a falar sozinhas.


Há outras alturas em que as crianças não se satisfazem em falar sozinhas e
querem interagir com os pais, e mesmo assim essa necessidade pode ser
preenchida eficazmente com a pretensão de ouvir. Nessas alturas, o que as
crianças querem da interacção não é comunicação, mas simplesmente
proximidade, e fingir que os ouvimos é suficiente para lhes dar a sensação
de "estar com" que elas pretendem. Além disso, as próprias crianças
gostam muitas vezes de divagar e compreendem a escuta selectiva dos
pais, uma vez que também comunicam selectivamente. Compreendem que
esta é a regra do jogo. É, portanto, durante uma proporção relativamente
pequena do seu tempo de conversa que as crianças de seis anos precisam
ou desejam ser verdadeira e totalmente ouvidas. Uma das muitas tarefas
extremamente complexas dos pais é serem capazes de conseguir um
equilíbrio próximo do ideal dos estilos de ouvir e não ouvir, correspondendo
com o estilo adequado às necessidades variáveis da criança.

Este equilíbrio nem sempre é conseguido porque, muito embora a duração


possa não ser prolongada, muitos pais não estão dispostos ou são incapazes
de gastar a energia necessária para ouvir verdadeiramente. Talvez a maior
parte dos pais. Podem pensar que estão mesmo a ouvir quando o que fazem
é fingir que ouvem ou, na melhor das hipóteses, ouvir selectivamente, mas
estão a enganar-se a si próprios, escondendo a sua própria preguiça. Porque
ouvir verdadeiramente, mesmo por breves momentos, exige um esforço
tremendo. Em primeiro lugar, exige concentração total. Não se pode escutar
verdadeiramente alguém e estar a fazer outra coisa ao mesmo tempo. Se
um dos pais quer ouvir verdadeiramente o filho, tem que pôr tudo o resto de
lado. O tempo de ouvir verdadeiramente deve ser dedicado unicamente à
criança; deve ser o tempo da criança. Se não se estiver disposto a pôr de
lado tudo, inclu-

136

indo aborrecimentos e preocupações pessoais, durante esse tempo, então


não se está disposto a ouvir verdadeiramente. Segundo, o esforço
necessário para concentração total nas palavras de uma criança de seis
anos é consideravelmente maior do que o exigido para ouvir um grande
orador. Os padrões de discurso da criança são irregulares - torrentes de
palavras ocasionais, interrompidas por pausas e repetições o que torna
difícil a concentração. Depois, a criança normalmente fala de assuntos que
não têm nenhum interesse inerente para o adulto, enquanto que a
audiência do grande orador está especificamente interessada no tópico do
seu discurso. Por outras palavras, é desinteressante escutar uma criança de
seis anos, o que torna duplamente difícil manter focada a concentração. Em
consequência, ouvir verdadeiramente uma criança desta idade é um
trabalho de amor real. Sem amor para motivar o pai ou a mãe, não poderia
ser feito.

Mas maçar-se para quê? Para quê todo este esforço de se concentrar
inteiramente na tagarelice maçadora de uma criança de seis anos? Primeiro,
a sua disposição para o fazer é a melhor prova concreta de estima que pode
conceder ao seu filho. Se der ao seu filho a mesma estima que concederia a
um grande orador, a criança perceberá que lhe é atribuído valor e sentir-se-
á valiosa. Não há melhor forma nem, por último, outra forma de ensinar aos
filhos que são pessoas de valor, do que dando-lhes valor. Segundo, quanto
mais valiosas se sentem as crianças, mais começam a dizer coisas de valor.
Corresponderão às suas expectativas. Terceiro, quanto mais ouvir o seu
filho, melhor entenderá que, no meio das pausas, dos gaguejes, da
tagarelice aparentemente inocente, o seu filho tem de facto coisas valiosas
para dizer. O ditado que diz que a verdade sai "da boca das crianças" é
reconhecido como um facto absoluto por quem quer que ouça
verdadeiramente as crianças. Ouça bastante o seu filho e compreenderá
que ele é um indivíduo

137
extraordinário. E quanto mais extraordinário achar o seu filho, mais estará
disposto a ouvi-lo. E mais aprenderá. Quarto, quanto mais souber sobre o
seu filho, mais poderá ensinar. Se souber pouco sobre os seus filhos,
normalmente ensinar-lhes-á coisas que ainda não estão prontos para
aprender, ou que já sabem e se calhar entendem melhor do que você. Por
último, quanto mais as crianças sabem que lhes dá valor, que as considera
pessoas extraordinárias, mais dispostas estarão a ouvi-lo a si e a conceder-
lhe a mesma estima. E quanto mais adequados os seus ensinamentos,
baseados no seu conhecimento dos seus filhos, mais ansiosos eles ficarão
por aprenderem consigo. E quanto mais aprenderem, mais extraordinários
se tornarão. Se o leitor se apercebe do carácter cíclico deste processo, tem
toda a razão e está a apreciar a verdade da reciprocidade do amor. Em vez
de um ciclo vicioso descendente, é um ciclo criativo ascendente de evolução
e desenvolvimento. O valor cria valor. O amor gera amor. Pais e filhos, em
conjunto, rodopiam em frente, cada vez mais depressa, na pás de deux do
amor.

Temos estado a considerar o caso de uma criança de seis anos. Com


crianças mais novas ou mais velhas o equilíbrio adequado de ouvir e não
ouvir difere, mas o processo é basicamente o mesmo. Com as crianças mais
novas a comunicação é cada vez mais não-verbal mas também exige
idealmente períodos de total concentração. Não se pode jogar muito bem às
cantigas de roda quando se tem a cabeça noutro lado. E se só se joga às
cantigas de roda indiferentemente, corre-se o risco de ter um filho
indiferente. Os adolescentes requerem menos tempo de escuta total dos
pais do que uma criança de seis anos, mas muito mais em termos de ouvir
verdadeiramente. É muito menos provável que falem incessantemente, mas
quando falam, querem toda a atenção dos pais, ainda mais do que as
crianças mais novas.

138

A necessidade de que os nossos pais nos escutem nunca passa com a


idade. Um profissional liberal de talento, de trinta anos, em tratamento por
ansiedade relacionada com falta de auto-estima, lembrava-se de numerosas
ocasiões em que os pais, também profissionais liberais, não tinham querido
ouvir o que ele tinha para dizer ou tinham-no considerado sem valor e
inconsequente. Mas, de todas essas memórias, a mais vívida e dolorosa era
de quando, aos vinte e dois anos, tinha escrito uma extensa e provocadora
tese que lhe concedeu o diploma universitário com honra. Sendo ambiciosos
em relação a ele, os pais ficaram absolutamente deliciados com as honras
que recebeu. No entanto, apesar de ter deixado uma cópia da tese bem à
vista na sala-de-estar da família e de sugerir frequentemente aos pais que
"talvez gostassem de lhe dar uma vista de olhos", nenhum deles se deu ao
trabalho de a ler. "Atrever-me-ia a dizer que a teriam lido," disse ele, perto
do fim do tratamento, "diria que até me teriam elogiado sobre ela se eu
tivesse ido ter com eles e lhes pedisse assim mesmo 'Por favor, importam-
se de ler a minha tese? Quero que conheçam e apreciem as coisas que eu
penso'. Mas isso teria sido implorar-lhes que me ouvissem, e eu, aos vinte e
dois anos, não estava para lhes andar a implorar atenção. Ter que implorar
não me teria feito sentir ter mais valor."

Ouvir verdadeiramente, ter total concentração no outro, é sempre uma


manifestação de amor. Uma parte essencial de ouvir verdadeiramente é a
disciplina dos parênteses, prescindir temporariamente ou pôr de lado os
nossos preconceitos, quadros de referência e desejos, por forma a entrar
tanto quanto possível no interior do mundo do orador, pondo-nos no seu
lugar. Esta unificação do orador e do ouvinte é, na verdade, uma extensão e
um engrandecimento do Eu, e traz sempre consigo novos conhecimentos.
Para além disso, como ouvir verdadeiramente implica os parênteses, um pôr
de lado do Eu,

139

também envolve temporariamente uma total aceitação do outro. Ao sentir


esta aceitação, o orador sentir-se-á menos vulnerável e cada vez mais
inclinado a abrir ao ouvinte os recantos mais íntimos da sua mente. À
medida que isto vai acontecendo, o orador e o ouvinte começam a apreciar-
se cada vez mais um ao outro, iniciando-se de novo o dueto de dança do
amor. A energia exigida pela disciplina dos parênteses e a focagem de total
atenção é tão grande que só pode ser conseguida por amor, pela vontade
de se prolongar pelo desenvolvimento mútuo. A maior parte do tempo, falta-
nos essa energia. Mesmo que achemos, nas nossas relações profissionais ou
sociais, que estamos a ouvir com muita atenção, o que fazemos
normalmente é ouvir selectivamente, com uma agenda pré-estabelecida em
mente, pensando enquanto ouvimos como poderemos obter determinados
resultados pretendidos e acabar com a conversa o mais depressa possível
ou reorientá-la de formas para nós mais satisfatórias.

Dado que o ouvir verdadeiramente é o amor em acção, não existe para ele
lugar mais adequado do que no casamento. No entanto, a maior parte dos
casais não se ouvem verdadeiramente um ao outro. Consequentemente,
quando casais nos procuram para aconselhamento ou terapia, uma das
tarefas principais que nos incumbem para que o processo seja bem
sucedido é ensiná-los a ouvir. Não é pouco frequente falharmos, já que a
energia e a disciplina envolvidas são mais do que as que estão dispostos a
gastar ou a submeter-se. Há casais que ficam surpreendidos, e até
horrorizados, quando sugerimos que, entre as coisas que devem fazer, é
conversar um com o outro por marcação. Parece-lhes rígido, sem
romantismo e sem espontaneidade. No entanto, ouvir verdadeiramente só
pode acontecer quando se reserva tempo para o fazer e se criam condições
de suporte. Não acontece quando as pessoas estão a conduzir, a cozinhar,
cansadas, ansiosas por dormir, ou podem

140

ser facilmente interrompidas, ou estão com pressa. O "amor" romântico não


exige esforço e os casais sentem-se frequentemente relutantes em
empreender o esforço e a disciplina do amor e do ouvir verdadeiros. Mas
quando e se o fazem, os resultados são enormemente gratificantes. Temos a
experiência, vezes sem conta, de ouvir um membro do casal dizer ao outro,
com verdadeira alegria, depois de iniciado o processo de ouvir
verdadeiramente, "Estamos casados há vinte e nove anos e nunca soube
isso a teu respeito antes." Quando isso acontece, sabemos que começou o
desenvolvimento no casamento.

Embora seja verdade que a nossa capacidade de ouvir verdadeiramente


melhora gradualmente com a prática, nunca se torna um processo sem
esforço. O principal requisito de um bom psiquiatra talvez seja a capacidade
de ouvir verdadeiramente. No entanto, uma meia dúzia de vezes durante a
"hora de cinquenta minutos" média, dou por mim a não ouvir
verdadeiramente o que o meu doente está a dizer. Às vezes, perco
inteiramente o fio às associações do doente e tenho então que dizer,
"Desculpe, mas deixei-me levar pelos pensamentos por um momento e não
estava verdadeiramente a ouvi-lo. Importa-se de repetir as últimas frases?"
É interessante constatar que os doentes, normalmente, não ficam
ressentidos quando isso acontece. Pelo contrário, parecem compreender
intuitivamente que um elemento vital da capacidade de escutar
verdadeiramente é estar alerta quanto aos momentos em que não se está a
ouvir verdadeiramente, e o meu reconhecimento de ter desviado a minha
atenção tranquiliza-os em como, a maior parte do tempo, estou a ouvi-los
verdadeiramente. Este conhecimento de que se está a ser verdadeiramente
ouvido é muitas vezes, só por si, notavelmente terapêutico. Em cerca de um
quarto dos nossos casos, quer os doentes sejam adultos ou crianças,
surgem melhorias consideráveis e até dramáticas nos primeiros meses de
psicoterapia, antes de as raízes dos problemas terem
141

sido expostas ou de se fazerem interpretações significativas. Existem


diversas razões para este fenómeno, mas a principal delas, creio eu, é a
sensação do paciente estar a ser verdadeiramente escutado,
frequentemente pela primeira vez em anos, ou talvez pela primeira vez na
vida.

Sendo o ouvir, de longe, a forma de atenção mais importante, são


necessárias outras formas na maior parte das relações de amor,
especialmente com crianças. A variedade dessas formas possíveis é grande.
Uma é brincar com jogos. Com o bebé serão as cantigas de roda ou cucu;
com a criança de seis anos serão truques de magia ou às escondidas; com a
de doze, será badminton e jogos de cartas; e por aí adiante. Ler para as
crianças mais novas é atenção, assim como ajudar as mais velhas com os
trabalhos de casa. As actividades em família são importantes: cinema,
piqueniques, passeios de automóvel, viagens, feiras, parques de diversões.
Algumas formas de atenção são puros serviços à criança: sentar-se na praia
com uma criança de quatro anos ou servir quase interminavelmente de
motorista aos adolescentes mais novos. Mas o que todas estas formas de
atenção têm em comum - e têm em comum também com o ouvir - é que
envolvem tempo passado com a criança. Basicamente, dar atenção é passar
tempo com, e a qualidade da atenção é proporcional à intensidade da
concentração durante esse tempo. O tempo passado com os filhos nessas
actividades, se for bem utilizado, dá aos pais oportunidades sem conta de
observarem os filhos e ficarem a conhecêlos melhor. Se os filhos são bons
ou maus perdedores, como fazem os trabalhos de casa e como estudam, o
que os atrai ou não, quando são corajosos e quando se assustam nessas
actividades - são peças vitais de informação para os pais que amam. Este
tempo passado em actividade com os filhos também dá aos pais inúmeras
oportunidades de lhes ensinar as técnicas e os princípios básicos da
disciplina. A utilidade da

142

actividade para observar e ensinar a criança é, evidentemente, o princípio


básico da terapia a brincar, e os terapeutas infantis experientes tornam-se
extremamente adeptos em utilizar o tempo passado com os pacientes
infantis na brincadeira, para fazer observações e intervenções terapêuticas
significativas.
Tomar conta de uma criança de quatro anos na praia, concentrar-se numa
história desconjuntada e interminável contada por uma criança de seis
anos, ensinar um adolescente a guiar, ouvir verdadeiramente a história do
marido ou da mulher sobre o dia passado no escritório ou na lavandaria, e
compreender os seus problemas por dentro, tentando ser tão paciente e
"fazer parênteses" quanto possível - todas estas tarefas são muitas vezes
aborrecidas, frequentemente inconvenientes e implicam sempre dispêndio
de energia; significam trabalho. Se fossemos mais preguiçosos, nem sequer
as faríamos. Se fossemos menos preguiçosos, faríamo-las mais vezes e
melhor. Uma vez que o amor é trabalho, a essência do não-amor é preguiça.
A questão da preguiça é extremamente importante. É um tema escondido
que percorre a primeira secção sobre disciplina e esta sobre o amor. Iremos
focá-la especificamente na secção final, quando tivermos uma perspectiva
mais clara.

O Risco da Perda

O ACTO DE AMOR - a expansão do Eu - como referi, requer a iniciativa


contra a inércia da preguiça (trabalho) ou a resistência gerada pelo medo
(coragem). Vamos passar agora do trabalho do amor para a coragem do
amor. Quando nos expandimos, o nosso Eu entra num território novo e não
familiar, por assim dizer. O nosso Eu torna-se novo e diferente. Fazemos
coisas a que não estamos habituados. Mudamos. A experiência

143

da mudança, de actividade não habitual, de estar em território estranho, de


fazer as coisas de modo diferente, é assustadora. Sempre foi e sempre será.
As pessoas gerem o seu medo da mudança de formas diferentes, mas o
medo é inevitável se de facto vão mudar. A coragem não é a ausência de
medo; é a tomada de acção apesar do medo, a iniciativa contra a
resistência gerada pelo medo do desconhecido e do futuro. A determinado
nível, o desenvolvimento espiritual, e portanto o amor, requer sempre
coragem e envolve risco. É o risco do amor que vamos agora abordar.

Se frequenta regularmente a igreja, pode ter reparado numa mulher, no fim


da casa dos quarenta que, todos os Domingos, exactamente cinco minutos
antes do início da missa, ocupa discretamente o mesmo lugar numa fila
lateral, ao fundo da igreja. No momento em que termina a missa, dirige-se
rápida e silenciosamente para a porta e desaparece antes de qualquer outro
paroquiano e antes do padre vir até à escadaria encontrar-se com o seu
rebanho. Se conseguisse abordá-la - o que seria improvável - e convidá-la
para o convívio que se segue à missa, ela agradecer-lhe-ia polidamente,
desviando nervosamente o olhar e dir-lhe-ia que tinha um compromisso
urgente, afastando-se rapidamente em seguida. Se a seguisse até ao
compromisso urgente, verificaria que regressava directamente para casa,
um pequeno apartamento em que as persianas estão sempre descidas,
abria a porta, entrava, trancava imediatamente a porta e ninguém a
tornaria a ver nesse Domingo. Se pudesse mante-la em observação, veria
que tem um lugar de dactilógrafa das menos qualificadas num grande
escritório, onde aceita os trabalhos que lhe são entregues, em silêncio, os
dactilografa impecavelmente e devolve o trabalho pronto sem comentários.
Almoça à secretária e não tem amigos. Vai a pé para casa, pára sempre no
mesmo supermercado impessoal para comprar algumas provisões antes de
desaparecer atrás da

144

porta de casa para reaparecer para o dia de trabalho que se segue. Aos
Sábados de tarde vai sozinha a um cinema local que muda de filme todas as
semanas. Tem um aparelho de televisão. Não tem telefone. Quase nunca
recebe correio. Se pudesse comunicar com ela de alguma maneira e
comentar que a vida dela parecia solitária, ela dir-lhe-ia que apreciava
bastante essa solidão. Se lhe perguntasse se não tinha animais de
estimação, dir-lhe-ia que tinha tido um cão de que gostava muito, mas que
tinha morrido há oito anos e nenhum cão podia substituí-lo.

Quem é esta mulher? Não sabemos os segredos do seu coração. O que


sabemos é que toda a sua vida é dedicada a evitar riscos e que, nessa
diligência, em vez de expandir o seu Eu, estreitou-o e diminuiu-o quase até
ao ponto da inexistência. Não catecta com nenhum outro ser vivo. Ora, já
referimos que a simples catexia não é amor, que o amor transcende a
catexia. Isto é verdade, mas o amor requer catexia para um começo. Só
podemos amar o que, duma ou doutra maneira, tem importância para nós.
Mas com a catexia existe sempre o risco de perda ou rejeição. Se tomar a
iniciativa em relação a outro ser humano, há sempre o risco dessa pessoa
se afastar de si, deixando-o mais dolorosamente só do que estava antes.
Ame qualquer coisa viva - uma pessoa, um animal de estimação, uma
planta - e ela morrerá. Confie em alguém e poderá magoar-se; dependa de
alguém e esse alguém pode decepcioná-lo. O preço da catexia é a dor. Se
alguém estiver determinado a não sentir dor, terá de passar sem muitas
coisas: ter filhos, casar-se, o êxtase do sexo, a esperança da ambição, a
amizade
- tudo o que torna a vida viva, preenchida e com significado. Tome
iniciativas ou desenvolva-se em qualquer dimensão e a dor, assim como a
alegria, serão a sua recompensa. Uma vida preenchida será cheia de dor.
Mas a única alternativa é não viver completamente ou nem viver.

145

A essência da vida é a mudança, uma panóplia de desenvolvimento e


decadência. Eleja-se a vida e o desenvolvimento, e eleger-se-á a mudança e
a perspectiva da morte. Uma das determinantes prováveis da vida restrita e
isolada da mulher descrita terá sido uma experiência ou série de
experiências ligadas à morte, que ela achou tão dolorosas que decidiu
nunca mais sofrer com a morte, mesmo à custa da vida. Ao evitar a
experiência da morte, tinha que evitar o desenvolvimento e a mudança.
Escolheu uma vida sem variações, livre do novo, do inesperado, uma morte
viva, sem riscos nem desafios. Referi que a tentativa de evitar o sofrimento
legítimo se encontra na base de todas as doenças emocionais. Não é
surpreendente que a maior parte dos doentes de psicoterapia (e
provavelmente a maior parte dos não-doentes, já que a neurose constitui
mais a norma do que a excepção) tenham problemas, sejam novos ou
velhos, em enfrentar a realidade da morte corajosa e claramente. O que é
surpreendente é que a literatura psiquiátrica só agora comece a analisar o
significado deste fenómeno. Se podemos viver com o conhecimento de que
a morte é nossa companheira constante, viajando sobre o nosso "ombro
esquerdo", então a morte pode tornar-se, nas palavras de Don Juan, a nossa
"aliada", ainda aterradora mas continuamente uma fonte de sábio
conselho*. Com o aconselhamento da morte, a constante consciência do
limite do nosso tempo para viver e amar, podemos sempre ser orientados
para utilizar o melhor possível o tempo e viver a vida ao máximo. Mas se
não estivermos dispostos a enfrentar decididamente a terrível presença da
morte no nosso ombro esquerdo, privamo-nos do seu conselho e da
possibilidade de viver ou amar com clareza.

(Nota)

* Carlos Castaneda, The Teachings of Don Juan: A Yaqui Way of Knowledge, A


Separate Reality, Journey to Ixtlan, e Tales of Power. A um nível mais
elevado, este livros tratam do processo psicoterapêutico.

146
Quando fugimos da morte, da natureza constantemente mutável das
coisas, fugimos inevitavelmente da vida.

O Risco da Independência

ASSIM, TODA A VIDA em si representa um risco, e com quanto mais amor


vivermos as nossas vidas, mais riscos corremos. Dos milhares, talvez
mesmo milhões, de riscos que corremos na vida, o maior é o risco de
crescer. Crescer é o acto de passar da infância para a idade adulta. Na
verdade, é mais um salto assustador do que um passo, e é um salto que
muitas pessoas nunca dão na vida. Embora exteriormente possam parecer
adultos, mesmo adultos de sucesso, talvez a maioria dos "crescidos"
permaneça até à morte crianças, em termos psicológicos, que nunca se
separaram verdadeiramente dos pais e do poder que os pais têm sobre eles.
Talvez por ter sido tão acutilantemente pessoal para mim, sinto que a
melhor maneira como posso ilustrar a essência de crescer e a enormidade
do risco envolvido é descrever o passo de gigante que eu próprio dei para a
idade adulta, no final do ano em que completei quinze anos - felizmente,
muito cedo na vida. Embora esse passo fosse uma decisão consciente,
prefaciarei o meu relato dizendo-vos que, na altura, não tinha nenhuma
consciência de que o que estava a fazer era crescer. Só sabia que dava um
salto para o desconhecido.

Aos treze anos, deixei a minha casa para frequentar a Academia Phillips
Exeter, uma escola preparatória para rapazes da mais elevada reputação,
onde o meu irmão tinha andado antes de mim. Sabia que tinha sorte em
andar lá, porque a frequência de Exeter fazia parte de um padrão bem
definido que me conduziria para uma das melhores universidades da Ivy

147

League e daí para os escalões mais elevados do Sistema, cujas portas se


abririam de par em par devido à minha formação académica. Considerava
ter muita sorte em ter nascido de pais bem sucedidos que me podiam dar "a
melhor educação que o dinheiro pode comprar" e retirava uma grande
sensação de segurança do facto de fazer parte do que era tão obviamente
um padrão correcto. O único problema foi que, logo a seguir a entrar para
Exeter, me senti completamente infeliz. As razões da minha infelicidade
eram para mim totalmente obscuras nessa altura e continuam a ser
profundamente misteriosas ainda hoje. Simplesmente, parecia não me
adaptar. Não me adaptava aos professores, aos alunos, às disciplinas, à
arquitectura, à vida social, a todo o ambiente. No entanto, parecia que a
única solução era tentar fazer o melhor possível e tentar moldar as minhas
imperfeições de modo a ajustar-me mais conforta velmente ao padrão que
tinha sido estabelecido para mim e que era tão obviamente o padrão certo.
E assim tentei durante dois anos e meio. Apesar disso, a minha vida parecia
ter diariamente menos significado e eu sentia-me mais infeliz. No último ano
pouco mais fiz que dormir, pois só no sono encontrava algum conforto. Em
retrospectiva, penso que descansava durante o sono e me preparava
inconscientemente para o salto que me preparava para dar. Dei-o quando
voltei a casa nas férias da Primavera, no terceiro ano, e anunciei que não
voltava para o colégio. O meu pai disse, "Mas não podes desistir - é a
melhor educação que se pode ter. Não vês o que estás a desperdiçar?"

"Sei que é um bom colégio," respondi, "mas não volto."

"Porque não te adaptas, porque não fazes mais uma tentativa?"


perguntaram os meus pais.

"Não sei," respondi, sentindo-me completamente incapaz. "Nem sei porque


o detesto tanto, mas detesto-o e não volto."

"Bem, então o que vais fazer? Uma vez que pareces querer brincar com o
teu futuro, o que é que pensas fazer?"

148

Respondi novamente, profundamente infeliz, "Não sei. Só sei que não volto
para lá."

Os meus pais ficaram compreensivelmente alarmados e levaram-me logo de


seguida a um psiquiatra, que afirmou que eu estava deprimido e
recomendou um mês de internamento num hospital, dando-me um dia para
decidir se era isso que eu queria ou não. Essa noite foi a única vez que
considerei a hipótese de suicídio. Ser internado num hospital psiquiátrico
parecia-me apropriado. Eu estava, como disse o psiquiatra, deprimido. O
meu irmão tinha-se adaptado a Exeter. Porque é que eu não conseguia? Eu
sabia que a minha dificuldade em me adaptar era unicamente culpa minha,
e sentia-me completamente incapaz, incompetente e sem valor. Pior ainda,
acreditava estar provavelmente demente. O meu pai não tinha dito "Deves
estar doido para desperdiçar uma educação tão boa"? Se voltasse para
Exeter, regressaria a tudo o que era resguardado, seguro, certo, adequado,
construtivo, comprovado e conhecido. Mas não era eu. No mais íntimo do
meu ser sabia não ser esse o meu caminho. Mas qual era o meu caminho?
Se não voltasse, tudo o que me esperava era desconhecido, indeterminado,
inseguro, desprotegido, marginal e imprevisível. Quem quer que
enveredasse por um caminho desses devia estar louco. Eu estava aterrado.
Então, no momento de maior desespero, veio do meu subconsciente uma
sequência de palavras, como um oráculo estranho e sem corpo com uma
voz que não era a minha: "A única segurança real na vida está em apreciar
a insegurança da vida." Mesmo que significasse estar doido e
descompassado em relação a tudo o que parecia sagrado, tinha decidido ser
eu. Descansei. De manhã, fui falar novamente com o psiquiatra e disse-lhe
que nunca voltaria para Exeter e que estava pronto para ser internado no
hospital. Tinha dado o salto para o desconhecido. Tinha tomado o destino
nas minhas mãos.

149

O processo de crescimento decorre normalmente de forma muito gradual,


com pequenos saltos múltiplos para o desconhecido, tal como quando um
menino de oito anos arrisca pela primeira vez ir de bicicleta, sozinho, até à
mercearia ou um rapaz ou uma rapariga de quinze anos saem pela primeira
vez à noite com um par. Se duvida dos verdadeiros riscos que representam,
então não se lembra da ansiedade envolvida. Se observar mesmo as
crianças mais saudáveis, verá não só a ânsia de arriscar actividades novas e
adultas mas também, lado a lado, relutância, retrocesso, agarrar-se ao que
é seguro e conhecido, a tentativa de preservar a dependência e a infância.
Mais ainda, a níveis mais ou menos subtis, encontra-se a mesma
ambivalência num adulto, incluindo em si próprio, especialmente na terceira
idade, que tende a agarrar-se ao que é antigo, conhecido e familiar. Aos
quarenta anos, aparecem-me quase diariamente oportunidades de me
arriscar a fazer as coisas de maneira diferente, oportunidades para me
desenvolver. Ainda estou a amadurecer, e não tão depressa como poderia.
Entre todos os pequenos saltos que podemos dar, há também alguns
enormes, como quando deixei o colégio, renegando um padrão global de
vida e de valores de acordo com os quais tinha sido educado. Muitos nunca
chegam a dar estes grandes saltos potenciais e, consequentemente, nunca
chegam a amadurecer. Apesar da sua aparência exterior, continuam a ser,
psicologicamente, muito filhos dos pais, vivendo de acordo com valores
passados de geração em geração, motivados principalmente pela aprovação
ou não dos pais (mesmo depois de os pais estarem há muito mortos e
enterrados), não se tendo jamais atrevido a tomar o destino nas suas
próprias mãos.

Embora esses grandes saltos sejam vulgarmente dados durante a


adolescência, podem sê-lo em qualquer idade. Uma mãe de três filhos, com
trinta e três anos, casada com um marido controlador, redutor, inflexível e
chauvinista chega à

150

conclusão, gradual e dolorosa, de que a sua dependência em relação a ele


e ao casamento é uma morte em vida. Ele bloqueia todas as tentativas dela
para mudar a natureza da relação. Com uma coragem incrível, ela divorcia-
se dele, suportando o fardo das suas recriminações e as críticas dos
vizinhos, e arrisca um futuro desconhecido, sozinha com os filhos, mas pela
primeira vez na vida, livre de ser ela própria. Deprimido na sequência de um
ataque cardíaco, um executivo de cinquenta e dois anos revê a sua vida de
ambição frenética por ganhar cada vez mais dinheiro e subir cada vez mais
na hierarquia da empresa e considera-a sem significado. Após prolongada
reflexão, conclui ter sido movido pela necessidade de aprovação por parte
de uma mãe dominadora e permanentemente crítica; quase se matou a
trabalhar para aparecer vitorioso aos olhos dela. Arriscando e ultrapassando
a sua reprovação pela primeira vez na vida, enfrentando corajosamente a
ira da mulher e dos filhos, renitentes em prescindir do seu estilo de vida
dispendioso, muda-se para o campo e abre uma pequena oficina de restauro
de móveis antigos. Estas grandes mudanças, estes saltos para a
independência e auto-determinação, são imensamente dolorosos em
qualquer idade e exigem extrema coragem, no entanto são resultado não
raro de psicoterapia. De facto, dada a grandeza dos riscos envolvidos,
exigem muitas vezes a psicoterapia para serem concretizadas, não porque a
terapia diminua o risco, mas porque apoia e ensina a coragem.

Mas o que tem a ver esta questão de amadurecer com o amor, para além do
facto de o prolongamento do Eu envolvido no acto de amar ser um
prolongamento do Eu para novas dimensões? Primeiro que tudo, os
exemplos de mudança descritos e todas as outras grandes mudanças são
actos de amor próprio. Foi precisamente por dar valor a mim próprio que
não quis continuar a ser infeliz num colégio e num ambiente social que não
se adequavam às minhas necessidades. Foi por ter con-
151

sideração por si própria que a dona de casa se recusou a continuar a tolerar


um casamento que lhe limitava a liberdade e reprimia inteiramente a
personalidade. Foi por gostar de si próprio que o executivo não quis
continuar a matar-se a trabalhar para ir de encontro às expectativas da
mãe. Segundo, o amor próprio não só fornece o motivo para as grandes
mudanças, como é também a base da coragem para correr o risco de as
fazer. Foi apenas por os meus pais me terem claramente amado e dado
valor em criança que me senti suficientemente seguro de mim para desafiar
as suas expectativas e desviar-me radicalmente do padrão que me tinham
destinado. Embora me sentisse incapaz, inútil e possivelmente louco ao
fazer o que fiz, pude tolerar esses sentimentos só porque, ao mesmo tempo,
a um nível ainda mais profundo, sentia-me boa pessoa independentemente
de quão diferente pudesse ser. Ao ousar ser diferente, mesmo que isso
significasse ser louco, estava a corresponder a anteriores mensagens de
amor dos meus pais, centenas delas, que diziam, "És um indivíduo belo e
amado. É bom seres tu. Amar-te-emos independentemente do que fizeres,
enquanto tu fores tu." Sem a segurança do amor dos meus pais, reflectida
no meu amor próprio, teria escolhido o conhecido em vez do desconhecido,
e continuado a seguir o padrão preferido pelos meus pais, à custa da
unicidade básica do meu Eu. Por último, só quando se deu o salto para o
desconhecido da total consciência do Eu, independência psicológica e
individualidade única, é que se fica livre para seguir caminhos ainda mais
elevados de desenvolvimento pessoal e de manifestar amor em maior grau
de dimensão. Enquanto se casar, se iniciar uma carreira ou se tiverem filhos
para se satisfazer os pais ou as expectativas de outras pessoas, incluindo a
sociedade em geral, o compromisso será, pela sua própria natureza, pouco
profundo. Enquanto se amarem os filhos principalmente porque é suposto os
pais amarem os filhos, os pais serão insensíveis às necessidades mais

152

ocultas dos filhos e incapazes de exprimir amor das formas mais subtis que,
no entanto, são muitas vezes as mais importantes. As formas mais elevadas
de amor são, inevitavelmente, opções livres e não actos de conformismo.

O Risco do Compromisso
SEJA OU NÃO POUCO profundo, o compromisso é a base, o pilar de qualquer
relação genuinamente amorosa. O profundo empenhamento não garante o
sucesso da relação mas ajuda, mais que qualquer outro factor, a assegurá-
lo. Compromissos inicialmente ligeiros podem, com o tempo, vir a
aprofundar-se; senão, a relação cairá provavelmente aos pedaços ou então
tornar-se-á doentia ou cronicamente frágil. É frequente não termos
consciência da imensidão do risco envolvido em assumir um forte
compromisso. Já referi que uma das funções do fenómeno instintivo de nos
apaixonarmos é fornecer aos participantes um manto mágico de
omnipotência que os cega caridosamente aos riscos do que fazem quando
se casam. Pela minha parte, estive razoavelmente calmo até ao momento
em que a minha mulher se juntou a mim em frente ao altar, em que todo o
meu corpo começou a tremer. Fiquei tão aterrado que não me lembro de
quase nada da cerimónia nem da recepção que se seguiu. De qualquer
maneira, é o nosso sentido de compromisso, depois da boda, que torna
possível a transição do estar apaixonado para o amor genuíno. E é o nosso
compromisso após a concepção que nos transforma de pais biológicos em
pais psicológicos*. O compromisso é inerente a

(Nota)

* A importância da distinção entre pais biológicos e psicológicos encontra-se


elegantemente elaborada e concretizada na obra Beyond the Best Interests
ofthe Child, de Goldstein, Freud e Solnit (Macmillan, 1973).

153

qualquer relação de amor genuíno. Qualquer pessoa verdadeiramente


interessada no desenvolvimento espiritual doutra sabe, consciente ou
instintivamente, que só pode promover significativamente esse
desenvolvimento através de uma relação de constância. As crianças não
podem atingir a maturidade psicológica num ambiente de imprevisibilidade,
perseguidas pelo espectro do abandono. Os casais não podem resolver de
nenhuma forma saudável as questões universais do casamento

- dependência e independência, domínio e submissão, liberdade e


fidelidade, por exemplo - sem a segurança de saber que o acto de
discutirem estas questões não destruirá, por si, a relação.

Os problemas de compromisso são uma parte considerável e inerente à


maior parte das perturbações psiquiátricas e as questões de compromisso
são cruciais no decurso da psicoterapia. Os indivíduos com perturbações de
personalidade tendem a assumir apenas compromissos pouco profundos e,
quando as perturbações são graves, tais indivíduos parecem não ter
nenhuma capacidade de assumir compromissos. Não é tanto por recearem o
risco de se comprometerem, mas porque basicamente não entendem de
que trata o compromisso. Porque os pais não assumiram compromissos para
com eles enquanto crianças, de forma significativa, cresceram sem a
experiência do compromisso. O compromisso representa para eles uma
abstracção fora do seu alcance, um fenómeno que não conseguem
conceber completamente. Os neuróticos, por outro lado, têm normalmente
consciência da natureza do compromisso, mas este paralisa-os de medo.
Normalmente, a sua experiência na infância foi a de os pais se
comprometerem com eles o suficiente para que eles assumissem em troca
um compromisso com os pais. Posteriormente, no entanto, a cessação do
amor paterno devido a morte, abandono ou rejeição crónica tem o efeito de
tornar o compromisso não retribuído da criança

154

numa experiência intoleravelmente dolorosa. Receiam-se então,


naturalmente, novos compromissos. Estes danos só podem ser reparados se
for possível à pessoa ter uma experiência basilar e mais gratificante com
um compromisso que ocorra posteriormente. É por essa razão, entre outras,
que o compromisso é o pilar da relação psicoterapêutica. Há alturas em que
tremo perante a enormidade do que faço quando aceito mais um doente
para terapia a longo prazo. Para que a cura de base tenha lugar, é
necessário que o psicoterapeuta introduza na sua relação com o novo
doente o mesmo elevado sentido e grau de compromisso que os pais que
amam verdadeiramente dão aos filhos. O sentido de compromisso e
interesse constante do terapeuta serão postos à prova e inevitavelmente
manifestados ao doente de inúmeras formas, no decurso de meses ou anos
de terapia.

Rachel, uma jovem fria, composta e distante de vinte e sete anos, veio
consultar-me no final de um breve casamento. O marido, Mark, tinha-a
deixado devido à sua frigidez. "Eu sei que sou frígida," reconhecia Rachel.
"Pensei que com o tempo me sentisse estimulada pelo Mark, mas nunca
aconteceu. Não creio que seja culpa dele. Nunca gostei de sexo com
ninguém. E para dizer a verdade, nem tenho a certeza se quero. Parte de
mim quer, porque gostava de ter um dia um casamento feliz, e gostava de
ser normal - as pessoas normais parecem encontrar algo de maravilhoso no
sexo. Mas outra parte de mim contenta-se em ser como sou. O Mark dizia
sempre 'Relaxa e deixa-te ir'. Bem, talvez eu não queira relaxar nem deixar-
me ir, mesmo que fosse capaz."
No terceiro mês de trabalho em conjunto, chamei a atenção de Rachel para
o facto de me dizer "Obrigado" pelo menos duas vezes, ainda antes de se
sentar para começar a sessão primeiro, quando ia ao seu encontro na sala
de espera, e novamente quando passava pela porta de acesso ao meu
gabinete.

155

"Que há de errado em ser bem educada?" perguntou ela.

"Nada, em si," respondi. "Mas neste caso particular parece tão


desnecessário. Comporta-se como se fosse uma visita que não tivesse a
certeza de ser benvinda."

"Mas eu aqui sou uma visita. É a sua casa."

"É verdade," disse eu. "Mas também é verdade que me paga quarenta
dólares à hora pelo tempo que aqui está. Comprou esse tempo e este
espaço e, por tê-lo comprado, tem direito a ele. Não é uma visita. Este
gabinete, esta sala de espera e o tempo que passamos juntos são um
direito seu. Seu. Pagou-me por esse direito, portanto porque há-de
agradecer-me o que é seu?"

"Não posso acreditar que pense mesmo assim," exclamou Rachel.

"Então deve acreditar que a posso enxotar daqui para fora sempre que me
apetecer," contrapus. "Deve pensar que pode chegar aqui um dia de manhã
e ouvir-me dizer-lhe 'Rachel, o trabalho consigo tornou-se maçador. Decidi
não a tratar mais. Adeus e boa sorte!'"

"E precisamente assim que penso," concordou Rachel. "Nunca pensei que
alguma coisa fosse direito meu, até agora, pelo menos não em relação a
uma pessoa. Quer dizer que não podia pôr-me a andar?"
"Oh, suponho que podia. Mas não o faria. Não quereria fazê-lo. Não seria
ético, entre outras coisas. Repare, Rachel," disse eu, "quando aceito um
caso como o seu para terapia a longo prazo, assumo um compromisso para
com esse caso e essa pessoa. E assumi um compromisso consigo.
Trabalharei consigo o tempo que for necessário, quer leve um ano ou cinco
ou dez, ou seja o que for. Não sei se vai abandonar o nosso trabalho em
conjunto quando estiver preparada ou antes de estar preparada. Mas, seja
como for, será você a terminar a nossa relação. A menos que eu morra, os
meus serviços estão à sua disposição enquanto os quiser."

156

Não me era difícil perceber o problema de Rachel. No início do tratamento,


o ex-marido, Mark, tinha-me dito: "Penso que a mãe de Rachel tem muito a
ver com isto. É uma mulher notável. Daria uma grande presidente da
General Motors, mas não tenho a certeza de que seja muito boa mãe." Isso
mesmo. Rachel tinha sido educada, ou melhor, governada, com a sensação
de que podia ser despedida a todo o momento se pisasse o risco. Em vez de
dar a Rachel a noção de que o seu lugar em casa, enquanto criança, era
seguro - uma noção que só pode advir de pais comprometidos - a mãe de
Rachel comunicava-lhe constantemente o oposto: como se se tratasse de
uma empregada, a posição de Rachel só era garantida enquanto produzisse
o que lhe era solicitado e se comportasse de acordo com as expectativas.
Se o lugar dela em casa não era seguro em criança, como podia ela sentir
que o lugar dela comigo era seguro?

Os danos causados pela ausência de compromisso por parte dos pais não se
curam com algumas palavras ou formas de tranquilização superficiais. A
níveis progressivamente mais fundos, têm que ser analisados
repetidamente. Um desses trabalhos de análise, por exemplo, teve lugar
mais de um ano depois. Tínhamos focado o facto de Rachel nunca ter
chorado na minha presença - uma outra forma em que não conseguia
"deixar-se ir". Um dia, quando falava da terrível solidão que provinha de ter
que estar constantemente em guarda, senti que ela estava à beira do choro,
mas que precisava dum pequeno empurrão meu, pelo que fiz algo fora do
comum: estendi o braço para o sofá onde ela estava deitada e afagueilhe
suavemente a cabeça, murmurando, "Pobre Rachel. Pobre Rachel." O gesto
falhou. Rachel ficou imediatamente hirta e sentou-se, com os olhos secos.
"Não consigo" disse ela. "Não consigo deixar-me ir." Isto aconteceu perto do
fim da sessão. Na sessão seguinte, Rachel entrou e sentou-se no divã, em
vez de se deitar. "Bom, agora é a sua vez de falar," anunciou.
,

157

"Que quer dizer?" perguntei.

"Vai dizer-me tudo o que há de errado comigo."

Eu estava intrigado. "Continuo a não perceber o que quer dizer, Rachel."

"Esta é a nossa última sessão. Vai resumir tudo o que está errado em mim,
todas as razões porque não pode continuar a tratar-me."

"Não faço a menor ideia do que se passa," disse eu.

Foi a vez de Rachel ficar intrigada. "Bem," disse ela. "Na última sessão,
queria que eu chorasse. Há muito tempo que quer que eu chore. Na última
sessão fez tudo o que pôde para me ajudar a chorar e mesmo assim não
consegui, portanto vai desistir. Não consigo fazer o que quer que eu faça. É
por isso que hoje é a nossa última sessão."

"Acredita mesmo que a vou mandar embora, não acredita, Rachel?"

"Sim. Qualquer pessoa o faria."

"Não, Rachel, qualquer pessoa não. A sua mãe seria capaz de o fazer. Mas
eu não sou a sua mãe. Nem toda a gente neste mundo é como a sua mãe.
Não é minha empregada. Não está aqui para fazer aquilo que eu quero que
faça. Está aqui para fazer aquilo que quer fazer, quando o quer fazer. Posso
pressioná-la, mas não tenho poder sobre si. Nunca a despedirei. Está aqui o
tempo todo que quiser."
Um dos problemas que as pessoas têm habitualmente nas suas relações
adultas, se nunca receberam um compromisso firme por parte dos pais é o
síndroma do "Vou-te abandonar antes que me abandones". Este síndroma
assume muitas formas e disfarces. Uma das formas era a frigidez de Rachel.
Embora nunca fosse a nível consciente, o que a frigidez de Rachel
transmitia ao marido e namorados anteriores era, "Não me vou entregar a ti
porque sei muito bem que um dia destes me vais rejeitar." Para Rachel,
"deixar-se ir", sexual-

158

mente ou de outra forma, representava um compromisso seu e não estava


disposta a comprometer-se quando o mapa da sua experiência passada
mostrava como certo que não receberia nenhum compromisso em troca.

O síndroma do "Vou-te abandonar antes que me abandones" torna-se tanto


mais poderoso quanto mais próxima uma pessoa como Rachel se torna em
relação a outra. Depois de um ano de terapia, duas vezes por semana,
Rachel comunicou-me que não podia continuar a suportar os oitenta dólares
semanais. Desde o divórcio, disse-me ela, tinha dificuldades económicas e
portanto, ou deixava de ir à consulta ou tinha que reduzir para uma vez por
semana. Num plano realista, isto era ridículo. Eu sabia que Rachel tinha
recebido uma herança de cinquenta mil dólares para além do modesto
salário que recebia no emprego, e na comunidade era sabido que ela
provinha de uma família antiga e abastada. Em condições normais, tê-la-ia
confrontado energicamente com o facto de ela poder pagar os meus
serviços mais facilmente do que muitos outros doentes e que estava a usar
claramente a questão monetária para fugir de uma crescente proximidade
em relação a mim. Por outro lado, também sabia que a herança
representava para Rachel mais do que dinheiro; era dela, algo que não a
abandonaria, uma linha de defesa segura num mundo não comprometido.
Embora fosse razoável da minha parte pedir-lhe que tirasse da herança a
importância dos meus honorários, calculei que seria um risco que ela não
estava ainda preparada para correr e que, se insistisse, fugiria mesmo. Ela
tinha-me dito que, com o rendimento que tinha, me poderia pagar
cinquenta dólares por semana e ofereceu-me esse valor por uma só sessão.
Disse-lhe que reduziria os meus honorários para vinte e cinco dólares por
sessão e continuaria a recebê-la duas vezes por semana. Ela olhou para
mim com um misto de medo, incredulidade e alegria. "Faz mesmo isso?"
perguntou. Acenei afirmativamente. Seguiu-se um

159
longo período de silêncio. Por fim, mais próxima das lágrimas do que
alguma vez tinha estado, Rachel disse, "Por pertencer a uma família rica, os
comerciantes locais levam-me sempre os preços mais caros do mercado. O
senhor está a dar-me uma oportunidade. Ninguém me tinha dado uma
oportunidade até agora."

De facto, Rachel abandonou a terapia várias vezes durante o ano seguinte,


na luta sobre se devia permitir que o nosso compromisso mútuo se
desenvolvesse. Em cada uma dessas vezes, consegui persuadi-la a voltar
através de uma combinação de cartas e telefonemas durante uma ou duas
semanas. Por fim, no final do segundo ano de tratamento, pudemos abordar
mais directamente as questões envolvidas. Soube entretanto que Rachel
escrevia poesia e pedi-lhe para me mostrar. De início, recusou. Depois
concordou mas, semana após semana, "esquecia-se" de a trazer. Fiz-lhe
notar que esconder-me os seus poemas tinha o mesmo significado que
esconder a sua sexualidade de Mark e dos outros homens. Porque sentia
que mostrar-me os poemas representava um compromisso total da sua
parte? Porque achava que a partilha da sua sexualidade era um
compromisso total idêntico? Mesmo que eu não apreciasse os seus poemas,
isso significaria uma rejeição total? A nossa amizade tinha que terminar por
ela não ser uma grande poetisa? Talvez a partilha da poesia estreitasse a
nossa relação. Porque tinha ela medo desse estreitamento? Etc., etc., etc..

Quando finalmente aceitou o facto de ter um compromisso da minha parte,


no terceiro ano de terapia, Rachel começou a "deixar-se ir". Finalmente
arriscou-se a deixar-me ver os poemas. Conseguiu começar a rir e a troçar.
A nossa relação, que tinha sido rígida e formal até aí, tornou-se calorosa,
espontânea e com frequência divertida e alegre. "Nunca soube o que era
sentir-me assim à vontade com outra pessoa," disse ela.

160

"Este lugar é o primeiro em que me senti segura na vida." Da segurança do


meu gabinete e do tempo que passávamos juntos, ela conseguiu aventurar-
se rapidamente a ter outras relações. Compreendeu que o sexo não era
uma questão de compromisso mas de expressão pessoal, de jogo,
exploração, aprendizagem e alegre abandono. Sabendo que eu estava
sempre ao dispor dela se se magoasse, como a boa mãe que nunca teve,
sentiu-se livre para deixar explodir a sua sexualidade. A frigidez derreteu-se.
Quando terminou o tratamento no quarto ano, Rachel tinha-se tornado uma
pessoa vivaz e abertamente apaixonada que se empenhava em gozar tudo
o que as relações humanas têm para oferecer.

Felizmente, eu tinha podido oferecer a Rachel um grau de compromisso


suficiente para compensar os efeitos adversos da falta de compromissos
que tinha sofrido na infância. Nem sempre tenho tido a mesma sorte. O
técnico de informática que referi na primeira secção como exemplo de
transferência foi um desses casos. A sua necessidade de um compromisso
da minha parte era tão completa que eu não fui capaz de a suprir, ou não
quis fazê-lo. Se o compromisso do terapeuta for insuficiente para
ultrapassar as vicissitudes da relação, a cura de base não terá lugar. No
entanto, se o compromisso do terapeuta for suficiente, normalmente -
embora não inevitavelmente - o paciente responderá mais cedo ou mais
tarde desenvolvendo um compromisso da sua parte, em relação ao
terapeuta e à terapia em si. O ponto em que o paciente começa a
demonstrar esse compromisso é o ponto crucial da terapia. No caso de
Rachel, penso que ocorreu quando me mostrou os poemas. Por estranho
que pareça, há doentes que vêm à terapia fielmente duas ou três horas por
semana, durante anos, e nunca atingem esse ponto. Outros podem alcançá-
lo logo nos primeiros meses. Mas, para se curarem, têm que o alcançar. Para
o terapeuta, este é um momento maravilhoso de alívio e alegria,

161

porque sabe então que o paciente assumiu o risco de se comprometer a


curar-se e portanto a terapia será bem sucedida.

O risco do compromisso com a terapia não é só o risco do compromisso em


si, mas também o risco da auto-confrontação e da mudança. Na secção
anterior, na discussão da disciplina de dedicação à verdade, referi em
detalhe as dificuldades de mudar o nosso mapa da realidade, visão do
mundo e transferências. No entanto, há que mudá-los, se se quiser viver
uma vida de amor, com frequentes extensões do Eu para novas dimensões
e territórios de envolvimento. Há muitos pontos da jornada de
desenvolvimento pessoal, quer se esteja só ou se tenha um psicoterapeuta
como guia, quando se tem que agir de formas novas e desconhecidas, em
consonância com a sua nova visão do mundo. Essa tomada de acção -
comportando-se de forma diferente da que era habitual - pode representar
um risco pessoal extraordinário. O jovem homossexual que pela primeira
vez toma a iniciativa de convidar uma rapariga para sair; a pessoa que
nunca confiou em ninguém e se deita pela primeira vez no divã do analista,
permitindo que este esteja fora do seu campo de visão; a mulher
anteriormente dependente que anuncia ao marido controlador que vai
arranjar emprego quer ele goste quer não, que tem que viver a sua própria
vida; o menino da mamã cinquentão que diz à mãe para deixar de o chamar
pelo diminutivo de criança; o homem "forte" e auto-suficiente,
emocionalmente distante, que chora pela primeira vez em público; ou
Rachel a "deixar-se ir" e a chorar pela primeira vez no meu gabinete: estas
acções, e muitas outras, implicam um risco mais pessoal e por isso
frequentemente mais terrível e assustador que o de um soldado que se
prepara para o combate. O soldado não pode fugir porque tem a arma
apontada às costas e ao peito. Mas o indivíduo que tenta evoluir pode
sempre retirar-se para os padrões fáceis e familiares dum passado limitado.

162

Já se disse que o psicoterapeuta bem sucedido tem que trazer para a


relação psicoterapêutica a mesma coragem e o mesmo sentido de
compromisso que o doente. O terapeuta tem também que arriscar-se à
mudança. De todas as regras boas e úteis da psicoterapia que me
ensinaram, há poucas que eu não tenha optado por infringir numa ou noutra
altura, não por preguiça, mas antes a tremer de medo, por a terapia do meu
paciente parecer exigir, de uma ou de outra forma, que eu saísse da
segurança do papel tradicional do analista, fosse diferente e arriscasse o
anticonvencional. Quando olho para todos os casos bem sucedidos do meu
passado, vejo que em determinada altura, em cada um, tive que pôr a
cabeça no cepo. A disposição do terapeuta para sofrer nesses momentos é
talvez a essência da terapia, e quando é captada pelo doente, como é
habitual, é sempre terapêutica. É também através dessa vontade de se
prolongarem e sofrerem por e com os seus pacientes que os terapeutas
evoluem e mudam. Mais uma vez, quando revejo os meus casos que
tiveram êxito, não há um único que não tenha resultado numa mudança
muito significativa, muitas vezes radical, das minhas atitudes e
perspectivas. Tem que ser assim. É impossível compreender
verdadeiramente outra pessoa sem lhe dar espaço dentro de si próprio. Esta
concessão de espaço, que mais uma vez é a disciplina dos parênteses,
requer a extensão e portanto a mudança do próprio.

É assim com os bons pais e também com a boa psicoterapia. Ao ouvir os


nossos filhos, estão envolvidos os mesmos parênteses e extensão de nós
próprios. Para corresponder às suas necessidades saudáveis, temos que
mudar. Só quando nos dispomos a passar pelo sofrimento dessa mudança,
podemos tornar-nos os pais de que os nossos filhos precisam. E como os
filhos crescem constantemente e as suas necessidades vão mudando,
somos obrigados a mudar e a crescer com eles. Toda a gente conhece pais,
por exemplo, que conseguem educar efi-

163

cientemente os filhos até à adolescência e depois se tornam


completamente ineficazes como pais porque não são capazes de mudar e
adaptar as suas atitudes em relação aos filhos agora mais velhos e
diferentes. E, como em todas as outras circunstâncias do amor, seria
incorrecto encarar o sofrimento e a mudança decorrentes do papel de pais
como uma espécie de sacrifício ou martírio; pelo contrário, os pais têm mais
a ganhar com o processo do que os filhos. Os pais que não estão dispostos a
arriscar-se ao sofrimento de mudar, desenvolver-se e aprender com os
filhos, escolhem o caminho da senilidade quer o saibam quer não - e os
filhos e o mundo deixá-los-ão ficar bem para trás. Aprender com os filhos é
a melhor oportunidade que a maior parte das pessoas tem de assegurar
uma velhice bem vivida. Infelizmente, a maior parte não aproveita a
oportunidade.

O Risco da Confrontação

O ÚLTIMO E TALVEZ o MAIOR risco do amor é o risco do exercício do poder


com humildade. O exemplo mais comum é o acto da confrontação no amor.
Sempre que confrontamos alguém, estamos essencialmente a dizer-lhe, "Tu
não tens razão, eu tenho." Quando um pai ou uma mãe confronta um filho,
dizendo "Estás a ser dissimulado", está a dizer com efeito "A tua
dissimulação está errada. Tenho o direito de a criticar porque eu não o sou e
tenho razão". Quando um marido confronta a mulher com a sua frigidez,
está a dizer-lhe "És frígida, porque é errado da tua parte não me retribuíres
sexualmente com maior calor, uma vez que sou capaz sexualmente e de
outras formas. Tu tens um problema sexual; eu não". Quando a mulher
confronta o marido com a opinião de que ele não lhe

164

dedica tempo suficiente nem aos filhos, está a dizer-lhe "O teu
investimento no trabalho é excessivo e errado. Apesar de não ter o teu
emprego, consigo ver as coisas de uma forma mais clara do que tu e tenho
como certo que devias dedicar-te de maneira diferente". Muitas pessoas não
têm qualquer dificuldade em exercer a capacidade de confrontar, de dizer
"Eu tenho razão, tu não tens, devias ser diferente". Os pais, os casais e
pessoas em muitos outros papéis fazem-no casualmente e por rotina,
atirando críticas à direita e à esquerda, como calha. A maior parte dessas
críticas e dessa confrontação, vulgarmente feitas sob zanga ou despeito, faz
mais pelo aumento da confusão no mundo do que pelo esclarecimento.

Para a pessoa que ama verdadeiramente, o acto de crítica ou de


confrontação não surge com facilidade; para ela, é evidente que o acto
contém um grande potencial de arrogância. Confrontar quem se ama é
assumir uma posição de superioridade moral ou intelectual sobre o amado,
pelo menos no que respeita ao assunto em causa. No entanto, o amor
genuíno reconhece e respeita a individualidade única e a identidade
separada da outra pessoa. (Terei mais a dizer sobre isto, mais tarde.) A
pessoa que ama verdadeiramente, que valoriza a unicidade e a diferença do
objecto do seu amor, terá relutância em assumir "Eu tenho razão, tu não
tens; sei melhor do que tu o que é melhor para ti". Mas a realidade da vida é
tal que, por vezes, uma pessoa sabe mesmo melhor do que a outra o que é
bom para ela, e está de facto numa posição de conhecimento ou sabedoria
superiores, relativamente ao assunto em causa. Nestas circunstâncias, o
mais sensato dos dois tem de facto a obrigação de confrontar o outro com o
problema. A pessoa que ama, portanto, encontra-se frequentemente num
dilema, entre o respeito pelo caminho da vida da pessoa amada e a
responsabilidade de exercer liderança quando a pessoa amada parece
necessitar dessa liderança.

165

O dilema só pode ser resolvido através de um exame de consciência


escrupuloso, em que quem ama analisa rigorosamente o valor da sua
"sabedoria" e os motivos por trás dessa necessidade de assumir a liderança.
"Estou mesmo a ver as coisas com clareza ou estou a partir de pressupostos
obscuros? Compreendo mesmo a pessoa que amo? Será que o caminho que
essa pessoa está a tomar é sensato e que o facto de eu o entender como
insensato é devido a uma visão limitada da minha parte? Estarei a ser
egoísta ao acreditar que a pessoa que amo precisa de reorientação?" São
estas as questões que quem ama verdadeiramente se deve colocar
continuamente. Esta análise interior, tão objectiva quanto possível, é a
essência da humildade. Nas palavras de um monge inglês anónimo do
século XIV, mestre espiritual, "A humildade em si não é mais do que o
verdadeiro conhecimento e sentimento do próprio tal qual é. O homem que
se vê e sente verdadeiramente como é, tem que ser humilde."*
Há, portanto, duas formas de confrontar ou criticar outro ser humano: com a
certeza espontânea e instintiva de que se tem razão, ou acreditando que
provavelmente se tem razão depois de auto-análise escrupulosa. A primeira
é a via da arrogância; é a forma mais vulgar adoptada por pais, esposos,
professores e pessoas em geral no seu dia-a-dia; não é normalmente bem
sucedida, porque causa mais ressentimento do que desenvolvimento e
outros efeitos não pretendidos. A segunda é a via da humildade; não é
comum, exigindo uma extensão genuína de si próprio; tem mais
probabilidades de ter êxito e nunca é, de acordo com a minha experiência,
destrutiva.

Existe um número considerável de indivíduos que, por qualquer razão,


aprenderam a inibir a sua tendência instintiva para criticar ou confrontar
com arrogância espontânea, mas

(Nota)

* The Cloud of Unknowing, trad. Ira Progoff (Nova Iorque: Julian Press,

1969), p. 92.

166

não vão mais longe, escondendo-se na segurança moral da humildade e


sem se atreverem a assumir o poder. Era o caso de um pastor, pai de uma
paciente de meia-idade que sofria desde sempre de neurose depressiva. A
mãe da minha doente era uma mulher azeda e violenta, que dominava o
ambiente familiar com ataques de mau génio e manipulações e que, muitas
vezes, agredia o marido fisicamente em frente da filha. O pastor nunca
reagia violentamente e aconselhava a filha a responder à mãe oferecendo a
outra face e, em nome da caridade cristã, a ser totalmente submissa e
respeitadora. Quando iniciou a terapia, a minha paciente reverenciava o pai
pela sua brandura e "capacidade de amar". Não levou muito tempo, porém,
a concluir que essa humildade era fraqueza e que, com a sua passividade, a
tinha privado tanto de uma relação paternal capaz quanto a mãe com o seu
egoísmo mesquinho. Acabou por ver que ele nada tinha feito para a
proteger da maldade da mãe, nem para confrontar o Mal, não lhe deixando
outra alternativa senão incorporar a manipulação amarga da mãe e a
pseudo-humildade do pai como modelos. Deixar de confrontar quando a
confrontação é necessária para alimentar o desenvolvimento pessoal
representa uma falta de amor, tanto quanto a crítica despropositada, a
condenação ou outras formas activas de privação de afecto. Se amam os
filhos, os pais devem confrontá-los e criticá-los de vez em quando,
cuidadosa e parcimoniosamente talvez, mas activamente, assim como
devem permitir que os filhos os confrontem e critiquem por sua vez. Da
mesma forma, os casais que se amam devem confrontar-se um ao outro
para que a relação matrimonial sirva a função de promover o
desenvolvimento espiritual dos parceiros. Nenhum casamento pode ser
considerado verdadeiramente bem sucedido a menos que o marido e a
mulher sejam os melhores críticos um do outro. O mesmo se aplica à
amizade. Existe um conceito tradicional de que a

167

amizade deve ser livre de conflitos, um acordo de "tu coças-me as costas,


eu coço-te as tuas", apoiada apenas numa troca mútua de favores e elogios,
como mandam as boas maneiras. Essas relações são superficiais, fogem à
intimidade e não merecem o nome de amizade que se lhes aplica tão
vulgarmente. Felizmente, há sinais de que o nosso conceito de amizade
começa a aprofundar-se. A confrontação mútua e afectuosa é uma parte
significativa de todas as relações humanas bem sucedidas e válidas. Sem
ela, a relação não tem êxito ou é pouco profunda.

Confrontar ou criticar é uma forma de exercício da liderança ou do poder. O


exercício do poder é nem mais nem menos do que a tentativa de influenciar
o curso dos acontecimentos, humanos ou outros, através de acção
previamente determinada, quer consciente quer inconscientemente.
Quando confrontamos ou criticamos alguém é porque queremos mudar o
curso da vida da pessoa. É evidente que há muitas outras formas, até
superiores, de influenciar o curso dos acontecimentos sem ser pela
confrontação ou pela crítica: por exemplo, pela sugestão, pela parábola,
pela recompensa e pelo castigo, questionando, proibindo ou permitindo,
criando experiências, organizando-se com outros, etc.. Podem escrever-se
livros sobre a arte de exercer o poder. Para os efeitos que se pretendem,
basta dizer que os indivíduos que amam devem interessar-se por esta arte,
já que quando se deseja alimentar o desenvolvimento espiritual de outro,
têm que se interessar pela via mais eficaz de o conseguir em quaisquer
circunstâncias. Os pais que amam, por exemplo, devem primeiro analisar-se
rigorosamente a si próprios e aos seus valores antes de estabelecerem com
exactidão que sabem o que é melhor para o filho. Depois de fazerem essa
determinação, têm que ponderar o carácter e as capacidades da criança
antes de decidir se ela responderá mais favoravelmente à confrontação

168
do que ao elogio, a maior atenção, a contar-lhe uma história ou a outra
forma de influência. Confrontar alguém com algo que não é capaz de gerir
é, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo, e terá provavelmente um
efeito desmoralizador. Se quisermos ser ouvidos, temos que falar numa
linguagem que o ouvinte possa compreender e a um nível em que o ouvinte
seja capaz de funcionar. Se queremos amar, temos que nos esforçar por
adaptar a nossa comunicação às capacidades da pessoa que amamos.

É claro que exercer o poder com amor exige muito trabalho, mas o que é
isso do risco envolvido? O problema é que, quanto mais se ama, mais
humilde se é; porém, quanto mais humilde se é, mais se receia o potencial
de arrogância do exercício do poder. Quem sou eu para influenciar o curso
dos acontecimentos humanos? Com que autoridade tenho o direito de
decidir o que é melhor para o meu filho, o meu marido ou a minha mulher, o
meu país ou a raça humana? Quem me dá o direito de me atrever a
acreditar no meu entendimento e pretender exercer a minha vontade sobre
o mundo? Quem sou eu para fazer de Deus? Esse é o risco. Porque sempre
que exercemos poder, estamos a tentar influenciar o curso do mundo, da
humanidade, e portanto a fazer de Deus. A maior parte dos pais,
professores, líderes - aqueles de nós que exercem poder - não têm essa
noção. Na arrogância de exercer o poder sem o total conhecimento de si
exigido pelo amor, estamos abençoada mas destrutivamente alheios ao
facto de que fazemos o papel de Deus. Mas, os que amam verdadeiramente,
e trabalham portanto para a sabedoria que o amor requer, sabem que agir é
fazer de Deus. No entanto, sabem também que não há alternativa senão a
inacção e a impotência. O amor leva-nos a fazer de Deus, com plena
consciência da enormidade do facto de que é isso que estamos a fazer. Com
essa consciência, a pessoa que ama assume a responsabi-

169

lidade de tentar ser Deus e não de fazer de Deus irresponsavelmente, para


cumprir sem erro a vontade de Deus. Chegamos assim a outro paradoxo: só
através da humildade do amor podem os homens atrever-se a ser Deus.

O Amor é Disciplinado

MENCIONEI QUE A ENERGIA para o trabalho da auto-disciplina deriva do


amor, que é uma forma de vontade. Segue-se, portanto, que a auto-
disciplina não só é amor, traduzido em acção, como também que todo o que
ama verdadeiramente se comporta com auto-disciplina e qualquer relação
de amor verdadeiro é uma relação disciplinada. Se amo verdadeiramente
outra pessoa, é evidente que orientarei o meu comportamento no sentido
de contribuir o mais possível para o seu desenvolvimento espiritual. Um
casal jovem, inteligente, artista e "boémio", com quem em tempos tentei
trabalhar, contava quatro anos de um casamento marcado por zangas
quase diárias em que gritavam, atiravam com a louça e se esgatanhavam
um ao outro, para além de infidelidades semanais e separações de mês a
mês. Pouco depois de iniciarmos o trabalho, cada um deles apercebeu-se
correctamente de que a terapia os levaria a uma auto-disciplina cada vez
maior e, em resultado, a uma relação menos desordenada. "Mas quer retirar
a paixão da nossa relação," diziam. "As suas noções de amor e de
casamento não deixam espaço para a paixão." Quase logo a seguir,
abandonaram a terapia e eu soube que, três anos mais tarde, depois de
vários episódios com outros terapeutas, as cenas diárias de gritaria e o
padrão caótico do casamento se mantinham inalterados, bem como a
improdutividade das suas vidas. Não há dúvida que, num certo sentido, a
união deles é muito

170

colorida. Mas é como as cores primárias nos desenhos das crianças,


atiradas para o papel com abandono, por vezes não sem encanto, mas
demonstrando na generalidade a uniformidade que caracteriza a arte das
crianças mais novas. Nos tons difusos e controlados de Rembrandt vemos a
cor, no entanto infinitamente mais rica, única e com significado. A paixão é
um sentimento muito profundo. O facto de um sentimento ser descontrolado
não indica que seja mais profundo do que um sentimento disciplinado. Pelo
contrário, os psiquiatras conhecem bem a verdade dos velhos provérbios
"Os ribeiros pouco profundos fazem muito barulho" e "As águas paradas são
profundas". Não devemos assumir que alguém cujos sentimentos são
modulados e controlados não é uma pessoa apaixonada.

Embora não se deva ser escravo dos próprios sentimentos, a auto-disciplina


não significa esmagar os sentimentos até quase não existirem. Digo muitas
vezes aos meus doentes que os sentimentos são escravos deles e que a
arte da auto-disciplina é como a arte de ter escravos. Primeiro, os
sentimentos são a fonte de energia de cada um; fornecem os cavalos, ou a
força dos escravos, que nos permite levar a cabo as tarefas da vida. Como
trabalham para nós, devemos tratá-los com respeito. Há dois erros comuns
que os proprietários de escravos podem cometer e que representam formas
opostas e extremas de liderança executiva. Um tipo de proprietário não
disciplina os escravos, não lhes dá estrutura, não impõe limites, não lhes dá
orientação e não lhes mostra claramente quem manda. O que acontece,
claro, é que a certa altura os escravos deixam de trabalhar e começam a
mudar-se para a mansão, dão conta das bebidas e partem a mobília e, em
breve, o proprietário vê-se escravo dos seus escravos, a viver no mesmo
tipo de caos que o casal "boémio" que atrás referi.

No entanto, o estilo oposto de liderança, que o neurótico carregado de culpa


tantas vezes exerce sobre os seus sentimen-

171

tos, é igualmente auto-destrutivo. Neste estilo, o proprietário está tão


obcecado com medo de perder o controle dos escravos (sentimentos) e tão
decidido a que eles não lhe levantem problemas, que os espanca
regularmente e os castiga severamente ao primeiro sinal de qualquer
energia. O resultado deste estilo é que, dentro de pouco tempo, os escravos
se tornam cada vez menos produtivos à medida que a sua vontade se
esgota pelo duro tratamento a que são submetidos. Ou então, a sua
vontade transforma-se cada vez mais em revolta contida. Se o processo se
prolongar pelo tempo suficiente, uma noite a previsão do proprietário torna-
se realidade e os escravos revoltam-se e incendeiam a mansão, muitas
vezes com o dono lá dentro. Esta é a génese de certas psicoses e neuroses
opressivas. A gestão adequada dos sentimentos situa-se claramente num
complexo (portanto, nem simples nem fácil) caminho intermédio e
equilibrado, que requer o uso constante das faculdades de julgamento e
adaptação contínua. Aqui, o proprietário trata os sentimentos (escravos)
com respeito, fornece-lhes boa alimentação, abrigo e cuidados médicos,
escuta e responde às suas vozes, encoraja-os, pergunta-lhes pela saúde, ao
mesmo tempo que os organiza, limita, decidindo claramente entre eles,
orientando-os e ensinando-os, nunca deixando dúvidas sobre quem manda.
É este o caminho da auto-disciplina saudável.

Entre os sentimentos que têm que ser disciplinados, encontra-se o


sentimento do amor. Como indiquei, este não é em si o amor genuíno, mas
o sentimento associado à catexia. Deve ser respeitado e alimentado, devido
à energia criativa que aporta, mas se for deixado à solta, o resultado não
será amor genuíno mas confusão e improdutividade. Envolvendo o amor
genuíno o prolongamento de si próprio, são necessárias grandes
quantidades de energia e, quer se goste quer não, as nossas reservas de
energia são tão limitadas como as horas de cada dia.
172

Não podemos amar toda a gente. É verdade que podemos ter um


sentimento de amor em relação à humanidade, e esse sentimento também
pode ser útil fornecendo-nos a energia necessária para manifestar amor
genuíno por alguns indivíduos específicos. Mas o amor genuíno por
relativamente poucos indivíduos é tudo o que está no nosso poder. Tentar
exceder os limites da nossa energia é oferecer mais do que podemos dar, e
há um ponto sem regresso para além do qual a tentativa de amar toda a
gente se torna fraudulenta e prejudicial para aqueles que queremos ajudar.
Portanto, se tivermos a sorte de estar numa posição em que muitas pessoas
solicitam a nossa atenção, temos que escolher entre elas quais as que
vamos mesmo amar. Não é uma escolha fácil; pode ser martirizante, tal
como assumir o poder à imagem de Deus. Mas tem que ser feita. Há muitos
factores a considerar, principalmente a capacidade do potencial objecto do
nosso amor de corresponder a esse amor com desenvolvimento espiritual.
Esta capacidade é diferente de pessoa para pessoa, facto que iremos
examinar mais adiante. É, no entanto, inquestionável que há muita gente
cujo espírito está tão fechado por detrás de uma armadura impenetrável
que mesmo os maiores esforços para alimentar o desenvolvimento desses
espíritos estão destinados a falhar. Tentar amar alguém que não beneficiará
do nosso amor com desenvolvimento espiritual é um desperdício de
energia, é lançar a semente em solo estéril. O amor genuíno é precioso e os
que são capazes de amar genuinamente sabem que o seu amor tem que ser
concentrado tão produtivamente quanto possível através da auto-disciplina.

O inverso do problema de amar demasiadas pessoas também tem que ser


analisado. É possível, pelo menos para algumas pessoas, amar mais do que
uma pessoa ao mesmo tempo e manter simultaneamente várias relações de
amor genuíno. Isto em si é um problema por várias razões. Uma

173

delas é o mito americano ou ocidental do amor romântico, que sugere que


certas pessoas foram "feitas uma para a outra"; assim, por extrapolação,
não se destinam a mais ninguém. O mito, portanto, prevê a exclusividade
nas relações de amor, particularmente a exclusividade sexual. No todo, o
mito é provavelmente útil por contribuir para a estabilidade e produtividade
das relações humanas, uma vez que a grande maioria dos seres humanos é
desafiada até ao limite das suas capacidades para se esforçarem em
desenvolver relações de amor genuínas só com o marido ou a mulher e com
os filhos. De facto, quem puder dizer que construiu relações de amor
genuínas com o seu marido ou a sua mulher e com os filhos, já conseguiu
mais do que a maior parte das pessoas consegue na vida toda. Há por vezes
algo de patético no indivíduo que não conseguiu construir uma relação de
amor com a família e que, no entanto, procura sem descanso relações de
amor fora da família. A primeira obrigação de uma pessoa que ama
genuinamente será sempre em relação às suas relações maritais ou
parentais. Mesmo assim, há algumas pessoas cuja capacidade de amar é
suficientemente grande para construírem relações de amor bem sucedidas
dentro da família e ainda lhes sobrar energia para outras relações. Para
elas, o mito da exclusividade não só é obviamente falso, como também
representa uma limitação desnecessária da sua capacidade de se darem
fora da família. É possível ultrapassar esta limitação, mas é necessária uma
grande auto-disciplina no prolongamento do Eu para evitar "esticar-se de
mais". Era a esta questão extraordinariamente complexa (aqui abordada
apenas de passagem) que se referia Joseph Fletcher, teólogo Episcopaliano,
autor de A Nova Moralidade, quando dizia a um amigo meu, "O amor livre é
um ideal. Infelizmente, é um ideal de que muito poucos de nós é capaz." O
que ele queria dizer era que muito poucos de nós têm a capacidade de
auto-disciplina sufi-

174

ciente para manter relações construtivas de amor genuíno tanto dentro


como fora da família. A liberdade e a disciplina são de facto criadas; sem a
disciplina do amor genuíno, a liberdade é invariavelmente sem amor e
destrutiva.

Por esta altura, alguns leitores estarão saturados do conceito de disciplina e


terão concluído que defendo um estilo de vida de sombrio Calvinismo. Auto-
disciplina constante! Auto-análise constante! Dever! Responsabilidade!
Poderão chamar-lhe neopuritanismo. Independentemente do que lhe
chamarem, o amor genuíno, com toda a disciplina que exige, é o único
caminho nesta vida para a alegria suprema. Siga-se outro caminho e
poderão encontrar-se raros momentos de alegria extática, mas serão
passageiros e cada vez mais fugidios. Quando amo verdadeiramente estou
a prolongar-me, e ao prolongar-me estou a desenvolver-me. Quanto mais
amo, quanto mais tempo amo, maior me torno. O amor genuíno é
autocompensador. Quanto mais fomento o desenvolvimento espiritual
doutros, mais o meu desenvolvimento espiritual é fomentado. Sou um ser
humano totalmente egoísta. Nunca faço nada por ninguém a não ser aquilo
que faço por mim. E ao crescer através do amor, assim cresce a minha
alegria, cada vez mais presente, cada vez mais constante. Talvez seja
neopuritano. Sou também viciado na alegria. Como canta John Denver:
O amor está em toda a parte, eu vejo-o. És tudo o que podes ser, vai e sê-o.
A vida é perfeita, eu acredito. Vem jogar o jogo comigo. *

(Nota)

* Love is Everywhere, de John Denver, Joe Henry, Steve Weisberg e John


Martin Sommers, Copyright (c) Cherry Lane Music Co. Usado com permissão.

175

O Amor é Separação

EMBORA o ACTO DE FOMENTAR o desenvolvimento espiritual de outro tenha


o efeito de fomentar o próprio, uma das características principais do amor
genuíno é manter-se e preservar-se a distinção entre si próprio e o outro. O
amante genuíno considera a pessoa amada como tendo uma identidade
inteiramente separada. Mais ainda, o amante genuíno respeita e incentiva
essa separação e a individualidade única da pessoa amada. É
extremamente vulgar, no entanto, a falta de percepção e respeito por esta
separação, que é causa de muitas doenças mentais e sofrimento
desnecessário.

Na sua forma mais extrema, a falta de percepção da separação do outro é


chamada narcisismo. Os indivíduos francamente narcisistas não conseguem
ver os filhos, esposos ou amigos como independentes de si a nível
emocional. A primeira vez que comecei a compreender do que trata o
narcisismo foi durante uma entrevista com os pais de uma doente
esquizofrénica, a quem chamarei Susan X. Na altura, Susan tinha trinta e
um anos. Desde os dezoito, tinha feito várias tentativas de suicídio e tinha
estado hospitalizada quase continuamente numa série de hospitais e
sanatórios durante os treze anos anteriores. No entanto, em grande parte
devido aos excelentes cuidados psiquiátricos que tinha recebido doutros
psiquiatras durante esses anos, estava finalmente a começar a melhorar.
Durante alguns meses, enquanto trabalhámos juntos, ela tinha
demonstrado uma capacidade progressiva de confiar em pessoas
merecedoras de confiança, de distinguir as que mereciam confiança das que
não mereciam, de aceitar o facto de que tinha uma doença esquizofrénica e
que teria de exercer
176

uma grande dose de auto-disciplina para o resto da vida para lidar com a
doença, de se respeitar e de fazer o necessário para ser auto-suficiente sem
ter que esperar que os outros tratassem dela. Em vista deste grande
progresso, senti que se aproximava o momento em que Susan estaria capaz
de deixar o hospital e, pela primeira vez na vida, levar uma existência
independente. Foi nessa altura que conheci os pais, um casal bonito e
abastado, a meio da casa dos cinquenta. Foi com grande satisfação que lhes
descrevi os enormes progressos de Susan e lhes expliquei em detalhe as
razões do meu optimismo. Mas, para minha grande surpresa, pouco depois
de eu começar a falar a mãe de Susan começou a chorar silenciosamente e
continuou enquanto eu prosseguia na minha mensagem de esperança. Ao
princípio, pensei que fossem lágrimas de alegria, mas era evidente pela sua
expressão que se sentia triste. Por fim, eu disse-lhe, "Estou intrigado, Sra. X.
Tenho estado a contar-lhe coisas cheias de esperança e, no entanto, parece
estar triste."

"Claro que estou triste," respondeu. "Não posso deixar de chorar quando
penso em tudo o que a pobre Susan tem de sofrer."

Expliquei-lhe então, exaustivamente, que embora fosse verdade que Susan


tinha sofrido muito no decurso da doença, também tinha aprendido muito
com esse sofrimento, tinha dado a volta por cima e, calculava eu, era pouco
provável que no futuro viesse a sofrer mais do que qualquer outro adulto.
De facto, até podia sofrer menos do que qualquer de nós, pelo
conhecimento que tinha adquirido na sua luta contra a esquizofrenia. A Sra.
X continuou a chorar silenciosamente.

"Francamente, continuo espantado, Sra. X," disse eu. "Nos últimos treze
anos participou pelo menos numa dúzia de conversas destas com os
psiquiatras de Susan e, pelo que sei, nenhuma foi tão optimista como esta.
Não sente contentamento, para além da tristeza?"

177

"Só consigo pensar em como a vida é difícil para Susan," respondeu ela,
chorosa.
"Olhe, Sra. X," disse eu, "há alguma coisa que eu lhe possa dizer sobre a
Susan que a faça sentir encorajada e feliz por ela?"

"A vida da pobre Susan é tão dolorosa," choramingou a senhora.

De repente, apercebi-me de que a Sra. X não chorava por Susan, mas por si
própria. Chorava pela sua dor e sofrimento. No entanto, a conversa era
sobre Susan, não sobre ela, e ela estava a chorar em nome de Susan. Como
podia ela fazer isso? Então apercebi-me de que a Sra. X não conseguia
distinguir entre Susan e ela própria. O que ela sentia, Susan tinha de sentir
também. Estava a usar Susan como veículo de expressão das suas
necessidades. Não o fazia consciente ou maliciosamente; a nível emocional
não conseguia, de facto, entender que Susan tinha uma identidade
separada da sua. Susan era ela. Na sua mente, Susan como indivíduo único
e diferente, com um caminho de vida único e diferente, simplesmente não
existia - nem provavelmente mais ninguém. Intelectualmente, a Sra. X
reconhecia as outras pessoas como sendo diferentes dela. Mas num plano
mais básico, as outras pessoas não existiam para ela. Nas profundezas da
sua mente, o mundo inteiro era ela, a Sra. X, e só ela.

Em experiências posteriores, encontrei frequentemente mães de crianças


esquizofrénicas que eram extraordinariamente narcisistas como a Sra. X.
Isto não significa que essas mães sejam sempre narcisistas ou que as mães
narcisistas não possam educar filhos não esquizofrénicos. A esquizofrenia é
uma perturbação extremamente complexa, com determinantes genéticas e
ambientais evidentes. Mas podemos imaginar o grau de confusão que o
narcisismo da mãe provocou na infância de Susan, e podemos ver
objectivamente essa confusão

178

ao observar mães narcisistas a interagir com os filhos. Numa tarde em que


a Sra. X se sentisse infeliz, Susan chegava a casa, trazendo da escola
desenhos que a professora tinha classificado com A. Se ela dissesse à mãe,
com orgulho, como estava a fazer progressos na escola, a Sra. X podia
muito bem responder: "Susan, vai dormir um bocadinho. Não te devias
cansar tanto com os trabalhos da escola. O sistema escolar já não é nada
bom. Já não se importam com as crianças." Por outro lado, numa tarde em
que a Sra. X estivesse muito bem disposta, Susan podia chegar a casa
desfeita em lágrimas, por ter sido arreliada por uns quantos rapazes no
autocarro da escola, e a Sra. X poderia dizer: "Não é uma sorte o Sr. Jones
ser tão bom motorista? É tão simpático e paciente convosco e com a vossa
turbulência. Acho que lhe devias dar um lindo presente no Natal."

Como não reconhecem os outros como outros, mas como extensões deles
próprios, os indivíduos narcisistas não têm capacidade de empatia, que é a
capacidade de sentir o que outro sente. Faltando-lhes empatia, os pais
narcisistas reagem inadequadamente aos filhos a nível emocional, e não
mostram reconhecimento ou constatação dos sentimentos dos filhos. Não
admira, portanto, que essas crianças cresçam com dificuldade em
reconhecer, aceitar e daí gerir os seus próprios sentimentos.

Embora normalmente não tão narcisistas como a Sra. X, a grande maioria


dos pais não reconhece devidamente nem aprecia completamente a
individualidade singular dos filhos. Abundam exemplos comuns. Os pais
dirão dum filho "Sai mesmo ao pai" ou a um filho "És tal e qual o teu tio
Jim", como se os filhos fossem uma cópia genética deles ou da família,
quando pela combinação genética, todas as crianças são extremamente
diferentes, geneticamente, tanto dos pais como de todos os seus
antepassados. Pais desportistas empur-

179

ram os filhos intelectuais para o futebol e os pais intelectuais empurram os


filhos desportistas para os livros, provocando-lhes sentimentos de culpa e
inquietação desnecessários. A mulher de um general queixa-se da filha de
dezassete anos: "Quando está em casa, Sally senta-se no quarto o tempo
todo a escrever poesia. É mórbido, Doutor. Recusa-se terminantemente a ter
uma festa de apresentação à sociedade. Tenho receio que esteja
gravemente doente." Depois de entrevistar Sally, uma rapariga jovial e
encantadora que está no quadro de honra da escola e tem muitos amigos,
disse aos pais que a considerava perfeitamente saudável e sugeri-lhes que
fizessem menos pressão sobre ela para ser uma cópia deles próprios.
Saíram para ir procurar outro psiquiatra, um que estivesse disposto a
pronunciar as diferenças de Sally como desvios.
Os adolescentes queixam-se frequentemente que lhes impõem disciplina,
não porque os pais se preocupem verdadeiramente com eles, mas porque
receiam que lhes prejudiquem a imagem. "Os meus pais andam sempre
atrás de mim para eu cortar o cabelo," diziam os rapazes adolescentes há
alguns anos. "Não conseguem explicar porque é que o cabelo comprido é
mau para mim. Só não querem é que os outros saibam que eles têm filhos
de cabelo comprido. Estão-se nas tintas para mim. Só se importam com a
sua própria imagem." Esse ressentimento adolescente é normalmente
justificado. Os pais de facto não apreciam a individualidade única dos filhos
e, em vez disso, vêem os filhos como prolongamentos deles próprios, da
mesma forma que as suas roupas caras, os relvados meticulosamente
tratados e os carros brilhantes são prolongamentos de si próprios que
representam o seu estatuto para o mundo. É a estas formas de narcisismo
mais ligeiras mas de qualquer forma destrutivas, que se dirige Kahlil Gibran,
no que são talvez as mais belas palavras jamais escritas sobre a educação
dos filhos:

180

Os teus filhos não são os teus filhos.

São os filhos e as filhas do desejo da Vida por si própria.

Vêm através de ti mas não de ti,

E embora estejam contigo, não te pertencem.

Podes dar-lhes o teu amor, mas não os teus pensamentos, Porque eles têm
os seus próprios pensamentos. Podes alojar-lhes os corpos mas não as
almas, Porque as almas deles vivem na casa do amanhã, que tu

[não podes visitar, nem sequer em sonhos. Podes lutar por ser como eles,
mas não tentes fazê-los ser

[como tu.
Porque a vida não anda para trás nem espera pelo passado Tu és o arco a
partir do qual são disparados os teus filhos

[como setas vivas.

O arqueiro vê o alvo no caminho do infinito, e arqueia-te [com a Sua força


para que a Sua flecha

[possa ir longe e veloz.

Deixa que o teu arquear às mãos do arqueiro seja de satisfação; Porque


assim como Ele ama a seta que voa, ama também

[o arco que é firme. *

A dificuldade que os humanos têm normalmente em apreciar inteiramente a


separação daqueles que lhes são próximos não só interfere com o seu papel
de pais como com todas as suas relações íntimas, incluindo o casamento.
Não há muito tempo, num grupo de casais, ouvi um dos membros afirmar
que o "objectivo e função" da mulher era ter a casa bem arranjada e
alimentá-lo bem. Fiquei horrorizado com o que me pareceu o seu
espalhafatoso chauvinismo masculino. Pensei poder-lho demonstrar pedindo
aos outros membros do grupo que

(Nota)

* The Prophet (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1951), pp. 17-18.

181

dissessem como entendiam o objectivo e a função dos seus parceiros. Para


meu horror, os outros seis, tanto homens como mulheres, deram respostas
semelhantes. Todos eles definiram o objectivo e função dos maridos ou
mulheres em relação a si próprios; nenhum deles se apercebia de que os
seus parceiros tinham uma existência basicamente separada da sua ou
qualquer destino que não o do seu casamento. "É um espanto," exclamei
eu, "não admira que tenham todos problemas no casamento, e vão
continuar a tê-los até conseguirem reconhecer que cada um de vós tem um
destino independente a cumprir." O grupo sentiu-se não só penalizado como
profundamente confuso pela minha declaração. Com alguma beligerância,
pediram-me que definisse o objectivo e a função da minha mulher. "O
objectivo e a função de Lily," respondi, " é evoluir tanto quanto for capaz,
não em meu benefício mas no dela e para a glória de Deus." No entanto, o
conceito continuou a parecer-lhes estranho durante algum tempo.

O problema da separação nas relações íntimas tem infernizado a


humanidade através dos tempos. No entanto, tem recebido mais atenção do
ponto de vista político do que do marital. O comunismo puro, por exemplo,
exprime uma filosofia não diferente da dos casais que atrás referi -
nomeadamente, que o objectivo e função do indivíduo é servir a relação, o
grupo, o colectivo, a sociedade. Só é considerado o destino do Estado; o
destino do indivíduo é considerado sem importância. O capitalismo puro, por
outro lado, apoia o destino do indivíduo mesmo quando é à custa da
relação, do grupo, do colectivo ou da sociedade. As viúvas e os órfãos
podem morrer à fome, mas isso não deve impedir o empresário individual
de colher todos os frutos da sua iniciativa. Devia ser óbvio para qualquer
mente esclarecida que nenhuma destas soluções puras para o problema da
separação dentro das relações pode ter êxito. A saúde do indivíduo depende
da saúde da sociedade; a saúde

182

da sociedade depende da saúde dos indivíduos que a compõem. Quando


lidamos com casais, a minha mulher e eu fazemos a analogia entre o
casamento e um acampamento de apoio de montanhismo. Se se quer fazer
montanhismo, tem que se ter um bom acampamento de apoio, um lugar
onde haja abrigo e provisões, onde se recebem cuidados e se descansa
antes de se aventurar a subir a outro pico. Os montanhistas de sucesso
sabem que têm que passar tanto tempo, ou mais, a tratar do acampamento
como a subir às montanhas, porque a sua sobrevivência depende do
cuidado que têm em assegurar que o acampamento é bem montado e
aprovisionado.

Um problema comum e tradicionalmente masculino é o criado pelo marido


que, depois de estar casado, dedica todo o tempo a subir às montanhas e
nenhum a tratar do casamento, ou acampamento de apoio, esperando que
ele esteja em perfeita ordem sempre que decidir voltar para ele, para o seu
descanso e lazer, sem assumir nenhuma responsabilidade pela sua
conservação. Mais cedo ou mais tarde, esta abordagem "capitalista" falha e
ele regressa ao acampamento para o encontrar num caos, tendo a sua
mulher, a quem deu tão pouca atenção, sido hospitalizada com um
esgotamento nervoso, ou fugido com outro homem, ou renunciado de
qualquer outra forma ao lugar de supervisora do acampamento. Outro
problema igualmente vulgar e tradicionalmente feminino é criado pela
mulher que, assim que se casa, acha que atingiu o seu objectivo de vida.
Para ela, o acampamento de apoio é o pico. Não entende e não aceita a
necessidade de o marido se realizar e ter outras experiências para além do
casamento e reage com ciúme e exigências infindas para que ele dedique
cada vez mais energia à casa. Como outras soluções "comunistas" do
problema, esta cria uma relação sufocante e estagnadora em que o marido,
sentindo-se preso e limitado, pode bem fugir numa altura de "crise da meia
idade". O movimento de libertação da

183

mulher tem sido útil em mostrar o caminho que é obviamente a solução


ideal: o casamento como uma instituição realmente cooperante, que exige
grandes contribuições e cuidados mútuos, tempo e energia, mas que existe
principalmente com o objectivo de apoiar cada um dos participantes na sua
jornada individual em direcção ao seu pico individual de desenvolvimento
espiritual. Tanto o homem como a mulher têm que cuidar do lar e ambos
têm que se aventurar.

Em adolescente, encantavam-me as palavras de amor que a poetisa


americana Ann Bradstreet dirigia ao marido: "Se jamais dois forem um,
então nós."* À medida que fui crescendo, fui-me apercebendo que é a
separação dos parceiros que enriquece a união. Os bons casamentos não
podem ser construídos por indivíduos que têm tanto medo da sua solidão
básica, como é tão vulgarmente o caso, que procuram uma fusão no
casamento. O amor genuíno não só respeita a individualidade do outro
como, de facto, procura cultivá-la, mesmo com o risco de separação ou
perda. O objectivo final de vida continua a ser o desenvolvimento espiritual
do indivíduo, a jornada solitária até aos picos onde só se pode ir sozinho. As
jornadas significativas não podem ser empreendidas sem o apoio dado por
um casamento ou uma sociedade bem sucedidos. O casamento e a
sociedade existem para o objectivo básico de apoiar essas jornadas
individuais. Mas, como no caso do amor genuíno, os "sacrifícios" pelo
desenvolvimento do outro resultam num desenvolvimento igual ou superior
de si próprio. É o regresso do indivíduo ao casamento ou sociedade de
apoio, vindo dos picos para onde viajou sozinho, que serve para elevar esse
casamento ou sociedade a novas alturas. Desta forma, o desenvolvimento
individual e o da sociedade são interdependentes, mas o cume

(Nota)

* To My Dear and Loving Husband, 1678, incluído em The Literature of the


United States, de Walter Blair et ai, eds. (Glenview, 111.: Scott Foresman

1953), p. 159.

184

do desenvolvimento é sempre e inevitavelmente solitário. É da solidão da


sua sabedoria que nos fala outra vez o profeta de Kahlil Gibran, sobre o
casamento:

Mas que haja espaços na vossa união,

E que os ventos dos céus dancem entre vós.

Amai-vos um ao outro, mas não façam do amor um elo: Deixem-no antes


ser um mar que se move entre as praias

[das vossas almas.

Encham a taça um do outro mas não bebam só duma taça. Dêem do vosso
pão um ao outro mas não comam

[do mesmo pão. Cantem e dancem juntos e alegrem-se, mas deixem

[que cada um esteja só, Tal como as cordas duma harpa estão sós embora
vibrem

[com a mesma música.


Dêem os vossos corações, mas não para que cada

[um os guarde.

Porque só a mão da Vida pode conter os vossos corações. E mantenham-se


juntos mas não demasiado próximos: Porque os pilares do templo estão
afastados, E o carvalho e o cipreste não crescem na sombra

[um do outro. *

(Nota)TheProphet, pp. 15-16.

185

Amor e Psicoterapia

É-ME DIFÍCIL RECONSTITUIR a motivação e o entendimento com que entrei


na área da Psiquiatria há quinze anos. É certo que eu queria "ajudar" as
pessoas. O processo de ajudar as pessoas nos outros ramos da Medicina
envolvia tecnologias com que não me sentia à vontade e que me pareciam
demasiado mecânicas para o meu gosto. Também gostava mais de falar
com as pessoas do que de apalpá-las e explorá-las, e os subterfúgios da
mente humana seduziam-me mais do que os do corpo e dos germes que o
infestam. Não fazia nenhuma ideia de como os psiquiatras ajudavam as
pessoas, exceptuando a fantasia de que possuíamos palavras mágicas e
técnicas mágicas de interacção com os doentes com que desatávamos os
nós da psique. Talvez eu quisesse ser mágico. Tinha muito pouca noção de
que o trabalho envolvido tinha que ver com o desenvolvimento espiritual
dos pacientes, e certamente nenhuma noção de que envolveria o meu
próprio desenvolvimento espiritual.

Durante os primeiros dez meses de estágio, trabalhei com doentes


internados altamente perturbados, em quem pareciam ter muito melhores
resultados os comprimidos ou os tratamentos de choque e bons cuidados de
enfermagem do que os meus, mas aprendi as palavras mágicas e as
técnicas de interacção tradicionais. Depois desse período, comecei a tratar
a minha primeira doente neurótica em regime ambulatório de longa
duração. Chamar-lhe-ei Mareia. Mareia vinha à consulta três vezes por
semana. Era uma verdadeira luta. Não falava sobre as coisas de que eu
queria que ela falasse, ou não falava delas da maneira que eu queria e às
vezes nem falava de

186

todo. Dalguma forma os nossos valores eram bastante diferentes; durante a


luta ela modificou um pouco os dela e eu modifiquei os meus. Mas a luta
continuou, apesar da minha reserva de palavras, técnicas e posturas
mágicas, e não havia sinais de melhoras por parte de Mareia. Na verdade,
pouco depois de começar o tratamento, entrou num padrão de
promiscuidade quase ultrajante, e durante meses relatava continuamente
inúmeros incidentes de "mau comportamento". Por fim, passado um ano,
perguntou-me no meio de uma sessão, "Acha que eu sou uma porcaria?"

"Parece que me está a pedir que lhe diga o que penso a seu respeito,"
respondi, tentando brilhantemente ganhar tempo.

Era isso mesmo que ela queria, disse-me. E agora, o que é que eu ia fazer?
Que palavras, técnicas ou posturas mágicas me iam valer? Eu podia dizer
"Porque é que pergunta?" ou "Quais são as suas fantasias sobre o que eu
penso a seu respeito?" ou "O que é importante, Mareia, não é o que eu
penso de si mas o que você pensa de si". No entanto, tinha a sensação
demolidora de que estas jogadas eram evasivas e que, depois de um ano
inteiro a consultar-me três vezes por semana, o mínimo a que Mareia tinha
direito era uma resposta honesta da minha parte sobre o que pensava dela.
Mas não tinha nenhum precedente para isso; dizer a uma pessoa cara a
cara, honestamente, o que se pensa dela não fazia parte das palavras e
técnicas mágicas que os meus professores me tinham ensinado. Era uma
interacção que nunca tinha sido sugerida nem recomendada durante a
minha formação; o próprio facto de nunca ter sido mencionada era para
mim indicação de que era uma interacção que se reprovava, uma situação
em que nenhum psiquiatra idóneo se deixaria cair. Como agir? Com o
coração aos pulos, agarrei-me ao que parecia ser um ramo muito precário.
"Mareia," disse eu, "há mais de um ano que vem à minha consulta. Durante
este
187

longo período, as coisas não correram muito bem connosco. Muito desse
tempo foi passado a lutar, e a luta foi por vezes maçadora, ou arrasadora ou
irritante para ambos. No entanto, apesar disso, você continuou a vir à
consulta, com considerável esforço e transtorno para si, sessão após sessão,
semana após semana, mês após mês. Não teria sido capaz de o fazer se não
fosse o tipo de pessoa que está decidida a evoluir e disposta a esforçar-se
muito para se tornar uma pessoa melhor. Não me seria possível considerar
uma pessoa que se esforça tanto como você uma porcaria. Não, não acho
que seja uma porcaria. De facto, admiro-a muito."

Das dúzias de amantes, Mareia escolheu imediatamente um e estabeleceu


com ele uma relação com significado que acabou por levar a um casamento
muito bem sucedido e gratificante. Nunca mais foi promíscua. Começou
imediatamente a falar das coisas boas que tinha. A sensação de luta
improdutiva que havia entre nós desvaneceu-se instantaneamente e o
nosso trabalho tornou-se fluente e alegre, com um progresso incrivelmente
rápido. Estranhamente, o ter-me arriscado a revelar os meus sentimentos
genuinamente positivos a seu respeito algo que sentia que não devia fazer -
em vez de a magoar, pareceu ter um grande efeito terapêutico e
representou claramente a grande mudança no nosso trabalho conjunto.

Que significa isto? Significa que para praticar a boa Psiquiatria nos basta
dizer aos doentes que pensamos bem deles? Nem por isso. Primeiro, é
necessário ser sempre honesto em terapia. Eu admirava e gostava
verdadeiramente de Mareia. Segundo, a minha admiração e simpatia tinham
para ela verdadeiro significado precisamente porque nos conhecíamos há
muito tempo e pela profundidade das nossas experiências na terapia. De
facto, a essência deste ponto de mudança não tinha a ver com a minha
simpatia e admiração; tinha a ver com a natureza da nossa relação.

188
Um ponto de mudança igualmente dramático surgiu na terapia de uma
jovem, a quem chamarei Helen, que vinha à consulta há nove meses, duas
vezes por semana, com uma considerável ausência de resultados e por
quem eu não nutria sentimentos muito positivos. Na verdade, depois desse
tempo todo, nem sequer tinha uma vaga ideia de quem Helen era. Nunca
tinha tratado um doente durante tanto tempo sem ter adquirido ideias sobre
o indivíduo e a natureza do problema a resolver. Ela confundia-me
completamente e passei grande parte de várias noites a tentar, sem
sucesso, encontrar algum sentido no caso. A única coisa que era clara era
que Helen não confiava em mim. Ela clamava que eu não me interessava
verdadeiramente por ela de nenhuma maneira e feitio e que só me
interessava pelo seu dinheiro. Após nove meses de terapia, falava assim
durante uma sessão: "O senhor não imagina, Dr. Peck, como é frustrante
tentar comunicar consigo, quando se mostra tão desinteressado e por isso
tão desligado dos meus sentimentos."

"Helen," respondi-lhe, "é frustrante para ambos. Não sei como é que isto a
vai afectar, mas o seu é o caso mais frustrante que já tive numa década de
prática de psicoterapia. Nunca conheci ninguém com quem fizesse menos
progressos em tanto tempo. Talvez tenha razão em crer que não sou a
pessoa indicada para trabalhar consigo. Não sei. Não quero desistir, mas
estou verdadeiramente intrigado consigo e dou voltas à cabeça quase até
dar em doido para perceber que diabo se passa com o nosso trabalho em
conjunto."

O rosto de Helen iluminou-se num sorriso. "Afinal de contas o senhor


importa-se mesmo comigo," disse ela.

"Ha?" perguntei.

"Se não se importasse mesmo comigo não se sentiria tão frustrado,"


respondeu ela, como se fosse perfeitamente óbvio.

Logo na sessão seguinte, Helen começou a contar-me coisas que antes tinha
escondido ou sobre as quais tinha mesmo

189
mentido e, passado uma semana, eu já tinha uma noção clara do problema
dela, pude fazer um diagnóstico e soube genericamente como a terapia
devia avançar.

Aqui também, a minha reacção para com Helen teve peso e significado
precisamente devido à profundidade do meu envolvimento com ela e a
intensidade do nosso esforço. Vemos agora o ingrediente essencial que
torna a psicoterapia eficaz e bem sucedida. Não é "consideração positiva
incondicional", nem palavras, técnicas ou posturas mágicas, é envolvimento
humano e esforço. É a vontade do terapeuta de se prolongar com o
objectivo de apoiar o desenvolvimento do paciente - a vontade de se
arriscar, de se envolver verdadeiramente a nível emocional, de se esforçar
com o paciente e consigo próprio. Em suma, o ingrediente essencial da
psicoterapia profunda, bem sucedida e com significado é o amor.

É notável, quase incrível, que a abundante literatura profissional do


Ocidente sobre psicoterapia ignore a questão do amor. Os gurus hindus não
escondem o facto de o seu amor ser a fonte do seu poder. O máximo que a
literatura ocidental se aproxima da questão é nos artigos que tentam
analisar as diferenças entre psiquiatras bem e mal sucedidos e que
normalmente acabam por mencionar características dos psiquiatras bem
sucedidos tais como "calor humano" e "empada". Basicamente, parecemos
ficar constrangidos pela questão do amor. Há várias razões para isso. Uma é
a confusão entre amor genuíno e amor romântico que é tão difundida na
nossa cultura, bem como as outras confusões que foram tratadas nesta
secção. Outra é a nossa propensão para o racional, tangível e mensurável
na "medicina científica", sendo muito por fora da "medicina científica" que a
profissão de psicotera-

(Nota)

* Ver Peter Brent, The Goa Men of índia (Nova Iorque: Quadrangle Books,
1972).

190

peuta tem evoluído. Sendo o amor um fenómeno intangível,


incompletamente mensurável e supraracional, não se presta a análise
científica.
Outra razão é a força da tradição psicanalítica, na Psiquiatria, do analista
desprendido e distante, uma tradição pela qual os seguidores de Freud
parecem ser mais responsáveis do que o próprio Freud. Nesta mesma
tradição, quaisquer sentimentos de amor que o paciente possa ter pelo
terapeuta são normalmente classificados como "transferência" e quaisquer
sentimentos de amor do terapeuta pelo paciente como "contra-
transferência", com a implicação de que esses sentimentos são anormais,
constituem parte do problema e não da solução, e que devem ser evitados.
Isto é tudo um absurdo. A transferência, como referido na secção anterior,
refere-se a sentimentos, percepções e respostas inadequados. Nada há de
inadequado nos pacientes que acabam por amar um terapeuta que os
escuta verdadeiramente, durante horas e horas, sem fazer juízos, que os
aceita como provavelmente ninguém os aceitou antes, que se coíbe
completamente de os usar e que os tem ajudado a aliviar o sofrimento. Na
verdade, a essência da transferência, em muitos casos, é o que evita que o
paciente desenvolva uma relação de amor com o terapeuta, e a cura
consiste em trabalhar através da transferência, de modo a que o paciente
possa ter uma relação de amor bem sucedida, muitas vezes pela primeira
vez. De igual modo, não há nada de impróprio nos sentimentos de amor que
um terapeuta desenvolve em relação ao paciente quando este se submete à
disciplina da psicoterapia, coopera no tratamento, se dispõe a aprender com
o terapeuta e começa a desenvolver-se com êxito através da relação. A
psicoterapia intensiva, de várias formas, é como a repetição da função de
pais. Não é mais impróprio que um terapeuta tenha sentimentos de amor
para com o paciente do que um bom pai ou uma boa mãe pelo

191

filho ou filha. Pelo contrário, é essencial que o terapeuta ame o paciente


para que a terapia tenha bons resultados e, se a terapia tiver bons
resultados, a relação terapêutica tornar-se-á de amor mútuo. É inevitável
que o terapeuta tenha sentimentos de amor coincidentes com o amor
genuíno que demonstrou para com o paciente.

Na sua maior parte, a doença mental é provocada pela ausência ou falta do


amor de que uma determinada criança necessitava por parte de
determinados pais para amadurecer com êxito e se desenvolver
espiritualmente. É óbvio, assim, que para se curar através da psicoterapia o
doente tem que receber do terapeuta pelo menos uma porção do amor
genuíno de que foi privado. Se o psicoterapeuta não for capaz de amar
verdadeiramente o paciente, a verdadeira cura não se verificará. Por muito
boas que sejam as credenciais e a formação dos psicoterapeutas, se não
forem capazes de se prolongar através do amor até aos doentes, o
resultado da sua prática psicoterapêutica terá, de uma maneira geral,
poucos resultados. Pelo contrário, um psicoterapeuta sem credenciais e com
um mínimo de formação que tenha uma grande capacidade de amar obterá
resultados psicoterapêuticos idênticos aos dos melhores psiquiatras.

Uma vez que o amor e o sexo estão tão próximos e interrelacionados,


convém mencionar aqui resumidamente a questão das relações sexuais
entre os psicoterapeutas e os seus doentes, uma questão que tem atraído
presentemente muita atenção por parte da imprensa. Devido à natureza
necessariamente amorosa e íntima da relação psicoterapêutica, é inevitável
que tanto os pacientes como os terapeutas desenvolvam com frequência
uma atracção sexual forte ou muito forte um pelo outro. As pressões para
consumar sexualmente essa atracção podem ser enormes. Suspeito que
alguns profissionais da psicoterapia que atiram pedras ao terapeuta que se
envolveu

192

sexualmente com um paciente, não são terapeutas capazes de amar e


portanto não conseguem entender verdadeiramente a enormidade das
pressões envolvidas. Mais ainda, se eu tivesse um caso em que concluísse,
depois de cuidadosa ponderação, que o desenvolvimento espiritual da
minha doente beneficiaria largamente por termos relações sexuais, eu tê-
las-ia. Em quinze anos de prática, no entanto, ainda não tive um caso
desses e acho difícil imaginar que pudesse existir. Primeiro, como disse, o
papel do bom terapeuta é principalmente o do bom pai, e os bons pais não
consumam relações sexuais com os filhos por razões variadas e muito
fortes. A função de um pai é ser útil ao filho e não usá-lo para satisfação
pessoal. A função de um terapeuta é ser útil ao paciente e não usar o
paciente para servir as necessidades do terapeuta. A função de um pai é
encorajar o filho ao longo do caminho para a independência, e a função de
um terapeuta com um doente é a mesma. É difícil ver como um terapeuta
que se relaciona sexualmente com um paciente não o usaria para satisfazer
as suas próprias necessidades ou como encorajaria a independência do
paciente.
Muitos pacientes, especialmente os mais sedutores, sexualizaram ligações
aos pais que tolhem claramente a sua liberdade e desenvolvimento. Tanto a
teoria como as poucas provas existentes sugerem fortemente que uma
relação sexual entre um terapeuta e um doente terá maior probabilidade de
cimentar as ligações imaturas do doente do que de as soltar. Mesmo que a
relação não seja consumada sexualmente, é penalizador para o terapeuta
"apaixonar-se" pelo doente uma vez que, como vimos, o apaixonar-se
envolve a queda das fronteiras do ego e a diminuição da noção normal da
separação que existe entre os indivíduos.

O terapeuta que se apaixona por um doente não consegue ser objectivo


quanto às necessidades do doente nem separar

193

essas necessidades das suas. É por amor aos pacientes que os terapeutas
não se deixam apaixonar por eles. Uma vez que o amor genuíno exige o
respeito pela identidade separada do amado, o terapeuta que ama
verdadeiramente reconhece e aceita que o caminho do paciente na vida é e
deve ser separado do seu. Para alguns terapeutas, isto significa que o seu
caminho e o do paciente nunca se devem cruzar fora da hora terapêutica.
Embora eu respeite esta posição, considero-a desnecessariamente rígida.
Embora tenha tido uma experiência em que o meu relacionamento com
uma ex-doente pareceu ser-lhe decididamente prejudicial, tive várias outras
experiências em que as relações sociais com ex-pacientes pareceram
claramente benéficas tanto para eles como para mim. Também tive a sorte
de analisar diversos amigos muito próximos. De qualquer maneira, o
contacto social fora da hora de terapia, mesmo depois de a terapia ter
terminado formalmente, é algo que só deve ser iniciado com grande
cuidado e rigorosa análise interior para estabelecer se são as necessidades
do terapeuta que serão preenchidas pelo contacto, em detrimento das do
paciente.

Temos estado a analisar o facto de a psicoterapia dever ser (ter de ser, para
dar bons resultados) um processo de amor genuíno, uma noção algo
herética nos círculos psiquiátricos tradicionais. O outro lado da moeda é
pelo menos igualmente herético: se a psicoterapia é amar genuinamente, o
amor deve ser sempre psicoterapêutico? Se amamos verdadeiramente o
nosso parceiro, pais, filhos, amigos, se nos estendemos para alimentar o seu
desenvolvimento espiritual, devíamos praticar psicoterapia com eles? A
minha resposta é: Com certeza. De vez em quando, num cocktail, alguém
me diz, "Deve ser-lhe difícil, Dr. Peck, separar a sua vida social da sua vida
profissional. Afinal de contas, não se pode passar a vida a analisar os
familiares e os amigos, pois não?" Normalmente, quem o diz

194

está só a fazer conversa de circunstância e não está interessado nem


disposto a assimilar uma resposta séria. De vez em quando, no entanto,
essa situação dá-me a oportunidade de ensinar ou praticar psicoterapia ali
mesmo, explicando porque nem sequer tento, nem quereria tentar, separar
a minha vida profissional da pessoal. Se me apercebo de que a minha
mulher, os meus filhos, os meus pais ou os meus amigos sofrem de uma
ilusão, falsidade, ignorância ou impedimento desnecessário, tenho tanta
obrigação de me estender para eles e corrigir a situação dentro do possível,
como faço com os meus pacientes, que me pagam pelos meus serviços.
Devo negar os meus serviços, o meu saber e o meu amor à família e aos
amigos porque não me contrataram especificamente nem me pagaram para
atender às suas necessidades psicológicas? Não me parece. Como posso ser
bom amigo, pai, marido ou filho se não aproveitar as oportunidades que
surgem para tentar, com a arte de que for capaz, ensinar a quem amo o que
sei, e dar toda a assistência que está no meu poder à sua jornada pessoal
de desenvolvimento espiritual? Além disso, eu espero o mesmo esforço por
parte dos meus amigos e da minha família até ao limite das suas
capacidades. Embora a forma como me criticam seja por vezes
desnecessariamente brusca e os seus ensinamentos não tão ponderados
como os de um adulto, ajuda-me muito o que aprendo com os meus filhos. A
minha mulher orienta-me tanto quanto eu a ela. Não chamaria amigos aos
meus amigos se eles me escondessem a honestidade da sua reprovação e o
seu interesse afectuoso quanto à sensatez e segurança dos sentidos da
minha própria jornada. Não posso desenvolver-me mais rapidamente com a
ajuda deles do que sem ela? Qualquer relação de amor genuíno é de
psicoterapia mútua.

Nem sempre vi as coisas desta maneira. Há alguns anos, apreciava mais a


admiração do que as críticas da minha mulher,

195
e fazia tanto por incentivar a sua dependência como o seu poder. A minha
imagem como marido e pai era a do provedor; a minha responsabilidade
terminava quando trazia o sustento para casa. Queria que o lar fosse um
lugar de conforto, não de desafio. Nessa altura, teria concordado com a
sugestão de que seria perigoso, não ético e destrutivo que um
psicoterapeuta praticasse a sua arte com os amigos e a família. Mas a
minha concordância era motivada tanto por preguiça como por medo de
utilizar erradamente a minha profissão. Porque a psicoterapia, como o amor,
é trabalho, e é mais fácil trabalhar oito horas por dia do que dezasseis.
Também é mais fácil amar uma pessoa que procura a nossa sabedoria, que
se desloca ao nosso território para a obter, que nos paga pela nossa
atenção e cujas exigências se limitam a cinquenta minutos de cada vez, do
que amar alguém que considera a nossa atenção um direito, cujas
exigências podem não ser limitadas, que não nos vê como uma figura de
autoridade e não solicita os nossos ensinamentos. Fazer psicoterapia em
casa ou com os amigos requer a mesma intensidade de esforço e auto-
disciplina que no consultório, mas em condições muito menos ideais, o que
quer dizer que em casa exige ainda mais esforço e amor. Espero, portanto,
que outros psicoterapeutas não tomem estas palavras como uma exortação
a começarem imediatamente a praticar a psicoterapia com os seus
parceiros e filhos. Se nos mantivermos numa jornada de desenvolvimento
espiritual, a nossa capacidade de amar não cessa de crescer. Mas é sempre
limitada, e não se deve tentar a psicoterapia para além da capacidade de
amar de cada um, porque a psicoterapia sem amor não resulta e pode ser
mesmo prejudicial. Se puder amar seis horas por dia, contente-se com isso
de momento, porque a sua capacidade já é bem maior do que a da maior
parte das pessoas; a jornada é longa e requer tempo para que a sua
capacidade aumente. Praticar a psicoterapia com os amigos e a família,
amarem-se

196

uns aos outros a tempo inteiro, é um ideal, um objectivo pelo qual lutar,
mas que não é atingido instantaneamente.

Uma vez que, como referi, os leigos podem praticar psicoterapia com êxito
sem grande formação, desde que sejam seres humanos que amam
verdadeiramente, os comentários que fiz relativamente à prática de
psicoterapia com os amigos e a família não se aplicam somente a
terapeutas profissionais; aplicam-se a toda a gente. Às vezes, quando os
pacientes me perguntam quando estarão em condições de terminar a
terapia, eu respondo-lhes, "Quando for capaz de ser um bom terapeuta."
Esta resposta é mais útil na terapia de grupo, onde os pacientes praticam a
psicoterapia uns com os outros e onde lhes podem ser apontadas as suas
falhas ao assumirem o papel de psicoterapeutas. Muitos pacientes não
gostam desta resposta e alguns dirão mesmo, "Isso dá muito trabalho. Para
fazer isso teria que estar sempre a pensar nas minhas relações com as
pessoas. Não quero pensar assim tanto. Não quero ter tanto trabalho. Só me
quero divertir." Há pacientes que respondem da mesma maneira quando
lhes faço notar que todas as interacções humanas são oportunidades de
aprender ou de ensinar (de dar ou receber terapia), e quando não aprendem
nem ensinam numa interacção, estão a perder uma oportunidade. A maior
parte das pessoas tem razão ao dizer que não quer atingir um objectivo tão
alto nem trabalhar tanto na vida. A maioria dos pacientes, mesmo nas mãos
dos terapeutas mais qualificados e dedicados, terminam o tratamento sem
terem chegado a preencher o seu potencial. Podem ter feito um percurso
curto ou longo na jornada de desenvolvimento espiritual, mas a viagem
completa não é para eles. É ou parece ser demasiado difícil. Contentam-se
em ser homens e mulheres comuns e não tentam ser Deus.

197

O Mistério do Amor

ESTA ANÁLISE COMEÇOU, há muitas páginas atrás, por referir que o amor é
um assunto misterioso e que até agora o mistério tem sido ignorado. As
questões levantadas até aqui foram respondidas. Mas há outras questões, a
que não é tão fácil responder.

Um conjunto de questões deriva logicamente da matéria até agora


discutida. Ficou claro, por exemplo, que a auto-disciplina se desenvolve a
partir da base do amor. Mas isto não responde à questão de onde vem o
amor em si. Se fizermos essa pergunta, devemos perguntar também quais
são as fontes da ausência do amor. Foi também sugerido que a ausência de
amor é a causa principal das doenças mentais e que a presença do amor é
portanto o elemento essencial da cura na psicoterapia. Assim sendo, como é
que alguns indivíduos, nascidos e criados num ambiente sem amor, de
negligência contínua e brutalidade gratuita, conseguem transcender a
infância, por vezes sem ajuda de psicoterapia, e tornam-se pessoas
maduras, saudáveis e até santas? Pelo contrário, como é que alguns
pacientes, aparentemente não mais doentes do que outros, não conseguem
corresponder parcial ou totalmente ao tratamento psicoterapêutico do mais
conhecedor e afectuoso terapeuta?

Tentarei responder a este conjunto de questões na secção final, tentativa


que não satisfará completamente seja quem for, incluindo eu próprio.
Espero, contudo, que o que escrevo preste algum esclarecimento.

Há outro conjunto de questões que tem que ver com assuntos


deliberadamente omitidos ou encobertos na discussão do amor. Quando
vejo a minha amada nua pela primeira vez, completamente exposta ao meu
olhar, há um sentimento que me

198

percorre: reverência. Porquê? Se o sexo não é mais do que um instinto,


porque não fico apenas "excitado" ou esfomeado? Essa simples fome seria
suficiente para assegurar a propagação da espécie. Porquê reverência?
Porque se há-de complicar o sexo com isso? E já agora, o que é que
determina a beleza? Já disse que o objecto do amor genuíno tem que ser
uma pessoa, uma vez que só as pessoas têm espíritos capazes de se
desenvolverem. Mas então a criação mais bela dum mestre da escultura em
madeira? Ou as melhores esculturas das madonnas medievais? Ou a
estátua de bronze do condutor de quadriga grego em Delfos? Esses objectos
não eram amados pelos seus criadores e a sua beleza não está de algum
modo relacionada com o amor dos seus criadores? E a beleza da Natureza -
a Natureza, a que damos às vezes o nome de "criação"? E porque temos
tantas vezes a reacção estranha e paradoxal de tristeza ou de lágrimas na
presença da beleza ou da alegria? Como é que certos compassos de música
tocados ou cantados de algumas formas nos comovem tanto? E como é que
se me humedecem os olhos quando o meu filho de seis anos, na primeira
noite em casa depois de sair do hospital onde foi submetido a uma
amigdalectomia, ainda doente, vem ter comigo, deitado no chão de
cansaço, e começa a massajar-me as costas suavemente?
Há claramente dimensões do amor que não foram discutidas e que são
extremamente difíceis de compreender. Penso que a sociobiologia não terá
resposta para questões sobre estes aspectos (e muitos outros). A Psicologia
vulgar, com o seu conhecimento das fronteiras do ego, pode ajudar - mas
pouco. As pessoas que mais sabem sobre estas coisas são as que, entre os
religiosos, estudam o Mistério. É a elas e à questão da religião que nos
devemos dirigir para obter mesmo os mais ténues esclarecimentos sobre
estes assuntos.

O resto deste livro é dedicado a certas facetas da religião. A secção que se


segue analisa, de forma muito limitada, a rela-

199

cão entre a religião e o processo de desenvolvimento. A secção final focará


o fenómeno da graça e o papel que ela tem neste processo. O conceito de
graça é familiar na religião há milénios, mas é estranho à ciência, incluindo
a Psicologia. De qualquer forma, creio que a compreensão do fenómeno da
graça é essencial para completar a compreensão do processo de
desenvolvimento dos seres humanos. O que se segue representa, espero,
uma contribuição para a interligação, que cresce lentamente, entre a
religião e a ciência da Psicologia.

200

Secção III

Desenvolvimento e Religião

Visões do Mundo e Religião


À MEDIDA QUE OS SERES humanos evoluem na disciplina, no amor e na
experiência de vida, o seu entendimento do mundo e do lugar que nele
ocupam cresce naturalmente a par. Pelo contrário, quando as pessoas não
evoluem em termos de disciplina, amor e experiência de vida, o seu
entendimento também não se desenvolve. Assim, entre os membros da
raça humana existe uma extraordinária variabilidade de amplitude e
sofisticação do nosso entendimento do que é a vida.

Esse entendimento é a nossa religião. Uma vez que toda a gente tem algum
entendimento - uma visão global, mesmo que limitada, primitiva ou
inexacta -, toda a gente tem uma religião. Este facto, que não é
amplamente reconhecido, é da maior importância: toda a gente tem uma
religião.

Sofremos, creio eu, da tendência de definir a religião duma fornia


demasiado restrita. Ternos tendência a pensar que a religião tem que
compreender a fé em Deus ou uma prática ritual ou a filiação num grupo
religioso. Dizemos de alguém que não frequenta a igreja ou não acredita
num ser superior, "Ele não é religioso." Até já ouvi intelectuais dizerem
coisas corno: "O Budismo não é bem uma religião" ou "Os Unitários
excluíram a religião da sua fé" ou ainda "O Misticismo é mais uma filosofia
do que uma religião". Tendemos a encarar a religião como algo de
monolítico, cortado de uma peça inteira e assim, com este conceito
simplista, ficamos intrigados em como duas

203

pessoas muito diferentes se podem apelidar de Cristãos. Ou Judeus. Ou


como um ateu pode ter uma noção de moralidade cristã muito mais
desenvolvida do que um católico que vai regularmente à missa.
Ao orientar outros psicoterapeutas, tenho verificado duma maneira geral
que não prestam muita atenção, se é que prestam alguma, à visão que os
pacientes têm do mundo. Há várias razões para isso, mas entre elas está a
convicção de que se os pacientes não se consideram religiosos por força da
sua fé em Deus ou filiação numa igreja, não têm religião e portanto não é
necessário analisar mais o assunto. Mas a questão é que toda a gente tem
um conjunto de ideias e crenças, explícitas ou implícitas, quanto à natureza
essencial do mundo. Os pacientes encaram o Universo como basicamente
caótico e sem significado, portanto só tem sentido aproveitarem todos os
pequenos prazeres que podem e quando podem? Vêem o mundo como um
lugar em "que se comem uns aos outros" e em que a crueldade é essencial
para a sobrevivência? Ou vêem-no como um lugar de acolhimento em que
acontece sempre qualquer coisa boa e em que não têm que se preocupar
muito com o futuro? Ou um lugar que lhes deve uma forma de vida
independentemente de como orientam a sua? Ou um Universo de leis
rígidas em que serão abatidos e marginalizados se pisarem o risco? Et
caetera. As pessoas têm todas as espécies diferentes de visões do mundo.
Mais cedo ou mais tarde, no decurso da psicoterapia, a maior parte dos
terapeutas reconhece a visão que o paciente tem do mundo, mas se estiver
atento a ela, tê-la-á mais cedo. E é essencial que os terapeutas detenham
esse conhecimento, porque a visão do mundo dos doentes é sempre uma
parte essencial dos seus problemas, sendo necessária uma correcção dessa
visão do mundo para se curarem. Portanto digo àqueles que oriento:
"Descubram a religião dos vossos doentes, mesmo que eles digam que não
têm nenhuma."

204

DESENVOLVIMENTO E RELIGIÃO

Normalmente a religião ou visão do mundo de uma pessoa é, na melhor das


hipóteses, apenas incompletamente consciente. Os pacientes não têm
muitas vezes a noção de como vêem o mundo, e por vezes até pensam que
possuem uma religião quando de facto são possuídos por outra coisa muito
diferente. Stewart, um engenheiro industrial de sucesso, teve uma
depressão grave na casa dos cinquenta. Apesar do seu sucesso profissional
e do facto de ter sido um marido e pai exemplar, sentia-se inútil e mau. "O
mundo estaria melhor se eu estivesse morto," dizia ele. E falava a sério.
Stewart fez duas tentativas de suicídio extremamente graves. Não havia
tranquilização realista que rompesse o irrealismo da sua auto-imagem de
inutilidade. Para além dos sintomas normais das depressões profundas,
como insónia e agitação, Stewart tinha muita dificuldade em engolir a
comida. "Não é só a comida saber mal," dizia. "Isso também. Mas é como se
tivesse uma lâmina de aço espetada na garganta e só pudessem passar
líquidos." As radiografias e análises não conseguiram mostrar uma causa
física para essa dificuldade. Stewart não escondia a sua posição
relativamente à religião. "Sou um ateu, simplesmente," declarava. "Sou um
cientista. As únicas coisas em que acredito são aquelas que posso ver e
tocar. Pode ser que fosse melhor para mim se tivesse fé num Deus tolerante
e afectuoso, mas francamente não aguento esse tipo de asneiras. Fartei-me
quando era criança e ainda bem que me livrei disso." Stewart tinha crescido
numa pequena comunidade do Oeste Central, filho de um rígido pregador
fundamentalista, e de uma mulher igualmente rígida e fundamentalista e
tinha saído de casa e abandonado a igreja na primeira oportunidade.

Alguns meses depois de iniciar o tratamento, Stewart relatava o sonho


seguinte: "Era na casa da minha infância no Minesota. Era como se eu ainda
fosse criança e lá vivesse, no entanto, sabia que tinha a idade que tenho
agora. Era de noite.

205

Um homem entrou na casa. Ia cortar-nos o pescoço. Nunca tinha visto


aquele homem antes, mas, estranhamente, eu sabia quem ele era: o pai de
uma rapariga com quem eu tinha saído umas vezes no tempo do liceu. Foi
tudo. Não houve conclusão. Acordei cheio de medo, sabendo que este
homem nos queria cortar o pescoço."

Pedi a Stewart que me contasse tudo o que pudesse sobre o homem do


sonho. "Não tenho nada para lhe contar," disse ele. "Nunca conheci o
homem. Só saí com a filha umas duas vezes

- não foi mesmo sair, só a acompanhei à porta de casa depois das reuniões
do grupo de jovens da igreja. Roubei-lhe um beijo, às escuras, atrás duns
arbustos, num desses passeios." Aqui Stewart deu uma risada nervosa e
continuou, "No sonho, tinha a sensação de nunca ter visto o pai, embora
soubesse quem ele era. De facto, vi-o na vida real - à distância. Era o chefe
da estação da nossa cidade. De vez em quando, via-o quando ia à estação
ver os comboios a chegar, nas tardes de Verão."
Algo disparou na minha mente. Eu também tinha passado tardes
preguiçosas de Verão a ver passar comboios. A estação era onde havia
acção. E o chefe da estação era o Director da Acção. Sabia quais eram os
lugares longínquos de onde vinham os grandes comboios que passavam
pela nossa cidadezinha e os lugares distantes para onde eles iam.
Accionava os interruptores, os sinais. Recebia o correio e expedia-o. E
quando não estava a fazer essas coisas maravilhosas, sentava-se no
escritório a fazer uma coisa ainda mais maravilhosa: a bater numa tecla
mágica numa linguagem rítmica misteriosa, enviando mensagens para todo
o mundo.

"Stewart," disse eu, "disse-me que era ateu, e eu acredito em si. Há uma
parte da sua mente que acredita não existir Deus. Mas começo a suspeitar
que há outra parte da sua mente que acredita em Deus - um Deus perigoso
e bandido."

206

A minha suspeita estava certa. Gradualmente, à medida que trabalhávamos


em conjunto, relutantemente, lutando contra a resistência, Stewart
começou a reconhecer em si uma fé estranha e feia: um pressuposto, para
além do seu ateísmo, de que o mundo era controlado e dirigido por uma
força malévola, uma força que não só lhe podia cortar o pescoço como
estava ansiosa por o fazer, ansiosa por o punir pelas suas transgressões.
Gradualmente, começámos a concentrar-nos nas suas "transgressões", na
sua maior parte incidentes sexuais menores simbolizados pelo "roubo de um
beijo" à filha do chefe da estação. Mais tarde, tornou-se evidente que (entre
outras razões para a depressão) Stewart fazia penitência e cortava o
pescoço em termos figurativos, na esperança de que, ao fazê-lo, impedisse
Deus de o fazer literalmente.

Donde veio a noção de Stewart de um Deus cruel e de um mundo malévolo?


Como evoluem as religiões das pessoas? O que determina a visão do mundo
de uma pessoa em particular? Existem vários complexos de determinantes,
mas não vamos explorá-los em profundidade neste livro. Mas o factor mais
importante na evolução da religião da maior parte das pessoas é,
obviamente, a cultura. Se somos europeus, acreditamos provavelmente que
Cristo era um homem branco, e se somos africanos, que era um homem
negro. Um indiano nascido e criado em Benares ou Bombaim,
provavelmente tornar-se-á hindu e terá o que é descrito como uma visão
pessimista do mundo. Para um americano nascido e criado no Indiana, é
mais provável vir a ser cristão do que hindu e ter uma visão do mundo algo
mais optimista. Tendemos a acreditar no que as pessoas que nos rodeiam
acreditam e tendemos a aceitar como verdade o que essas pessoas nos
dizem da natureza do mundo, quando as ouvimos ao longo dos nossos anos
de formação.

Mas menos óbvio (excepto para os psicoterapeutas) é o facto de a parte


mais importante da nossa cultura ser a nossa

207

família. A cultura mais básica em que nos desenvolvemos é a da nossa


família e os nossos pais são os "líderes da cultura". Além disso, o aspecto
mais significativo dessa cultura não é o que os nossos pais nos dizem sobre
Deus e a natureza das coisas, mas aquilo que fazem - como se comportam
um com o outro, com os nossos irmãos e, acima de tudo, connosco. Por
outras palavras, o que aprendemos sobre a natureza do mundo enquanto
crescemos é determinado pela verdadeira natureza da nossa experiência no
microcosmo da família. Não é tanto o que os nossos pais dizem que
determina a nossa visão do mundo, mas o mundo único que criam através
do seu comportamento. "Concordo que tenho essa noção de um Deus
bandido," disse Stewart, "mas donde vem? Os meus pais acreditavam
mesmo em Deus - falavam nisso incessantemente

- mas o deles era um Deus de Amor. Jesus ama-nos. Deus ama-nos. Amamos
Deus e Jesus. Amor, amor, amor, era só o que eu ouvia."

"Teve uma infância feliz?" perguntei.

Stewart fixou-me nos olhos. "Não se faça de parvo," disse ele. "Sabe bem
que não. Sabe que foi infelicíssima."

"Porque foi infelicíssima?"


"Também sabe isso. Sabe como foi. Batiam-me constantemente. Cintos,
tábuas, vassouras, escovas, tudo o que tivessem à mão. Não havia nada
que eu fizesse que não merecesse uma sova. Uma sova por dia dá saúde e
torna-te um bom cristão."

"Alguma vez o tentaram estrangular ou cortar-lhe o pescoço?"

"Não, mas tenho a certeza de que o fariam se eu não tivesse cuidado."


Houve um longo silêncio. O rosto de Stewart mostrava-se extremamente
deprimido. Por fim, disse "Começo a compreender."

Stewart não era a única pessoa a acreditar no que eu passei a chamar


"deus-monstro". Tive vários pacientes com conceitos

208

semelhantes sobre Deus e ideias igualmente sinistras e aterradoras quanto


à natureza da existência. O que é de espantar é que o deus-monstro não
seja mais vulgar na mente dos humanos. Na primeira secção deste livro foi
referido que, quando somos crianças, os pais são aos nossos olhos infantis
figuras semelhantes aos deuses, e que a forma como fazem as coisas
parece ser a forma como devem ser feitas no Universo inteiro. A nossa
primeira (e, tristemente, muitas vezes a única) noção da natureza de Deus é
uma simples extrapolação da natureza dos nossos pais, uma simples
mistura dos caracteres das nossas mães e pais ou dos seus substitutos.
Quando se tem pais afectuosos e tolerantes, é provável que acreditemos
num Deus afectuoso e tolerante. E na nossa perspectiva adulta, o mundo
parecerá ser tão acolhedor como a nossa infância. Se os nossos pais são
ríspidos e punitivos, provavelmente cresceremos com um conceito de um
deus-monstro ríspido e punitivo. E se não nos manifestarem afecto,
encararemos o Universo como igualmente desinteressado.
O facto de a nossa religião ou visão do mundo ser de início largamente
determinada pela nossa experiência única de infância confronta-nos com
um problema central: a relação entre

* Frequentemente (mas nem sempre) a essência da infância de um doente e


consequentemente a essência da sua visão do mundo é recolhida da
"primeira memória". Peço muitas vezes aos meus doentes, "Diga-me qual é
a primeira coisa de que se consegue lembrar." Podem protestar que não
conseguem fazê-lo, que têm várias memórias iniciais. Mas quando os forço a
escolher uma, a resposta varia entre "Bom, lembro-me de a minha mãe me
pôr ao colo e me levar para a rua para me mostrar um pôr-do-sol lindo" e
"Lembro-me de me sentar no chão da cozinha. Tinha feito chichi nas calças
e a minha mãe estava à minha frente a agitar uma grande colher e a gritar
comigo". É provável que estas primeiras memórias, como o fenómeno das
memórias selectivas, que é o que são tantas vezes, sejam recordadas
precisamente porque simbolizam exactamente a natureza da primeira
infância da pessoa. Não é de admirar, portanto, que o sabor destas
memórias iniciais seja frequentemente o mesmo que o dos sentimentos
mais profundos do paciente sobre a natureza da existência.

209

a religião e a realidade. É o problema do microcosmo e do macrocosmo. A


visão do mundo de Stewart como um lugar perigoso, onde lhe podiam cortar
o pescoço se não tivesse cuidado, era perfeitamente realista em termos do
microcosmo do lar da sua infância; vivia sob o domínio de dois adultos
cruéis. Mas nem todos os pais são cruéis nem todos os adultos são cruéis.
No mundo maior, no macrocosmo, há muitas espécies diferentes de pais,
pessoas, sociedades e culturas.

Para desenvolver uma religião ou uma visão realista do mundo - ou seja,


adaptada à realidade do cosmo e ao papel que nele temos, tanto quanto
conhecemos essa realidade temos constantemente que rever e aumentar o
nosso entendimento para compreender novos conhecimentos do mundo
maior. Estamos então a lidar com as questões da elaboração de mapas e
transferência, que discutimos alargadamente na primeira secção. O mapa
da realidade de Stewart era exacto no microcosmo da família, mas tinha
transferido erradamente esse mapa para um mundo maior adulto, onde
estava consideravelmente incompleto e portanto deficiente. Até certo
ponto, a religião da maior parte dos adultos é um produto de transferência.
A maior parte de nós funciona a partir de um quadro de referência mais
restrito do que somos capazes, não transcendendo a influência da nossa
cultura, dos nossos pais e da nossa experiência de infância particular sobre
o nosso entendimento. Não é de admirar, portanto, que o mundo da
humanidade esteja tão cheio de conflitos. Temos uma situação em que os
seres humanos, que têm de lidar uns com os outros, têm visões
substancialmente diferentes sobre a natureza da realidade, no entanto cada
um acredita ser a sua visão a correcta, uma vez que se baseia no
microcosmo da experiência pessoal. Para piorar as coisas, a maior parte de
nós nem sequer tem plena consciência das suas visões do mundo, quanto
mais da unicidade da experiência donde derivam. Bryant Wedge, um

210

psiquiatra que se está a especializar na área de relações internacionais,


estudou negociações entre os Estados Unidos e a U.R.S.S. e delineou um
conjunto de pressupostos de base quanto à natureza dos seres humanos, da
sociedade e do mundo em que acreditam os americanos, dramaticamente
diferentes dos pressupostos dos russos. Estes pressupostos ditaram o
comportamento negociai das duas partes. No entanto, nenhuma das partes
tinha consciência dos seus pressupostos ou do facto de a outra parte se
basear num conjunto de pressupostos diferente. O resultado inevitável foi
que o comportamento negociai dos russos pareceu aos americanos
disparatado ou deliberadamente maldoso, e claro que os russos
consideraram os americanos igualmente disparatados ou maldosos. Somos,
na verdade, como os três cegos do provérbio, cada um em contacto com
uma parte diferente do elefante e no entanto pretendendo conhecer a
natureza do animal no seu todo. Assim nos disputamos sobre visões
microcósmicas diferentes e todas as guerras são guerras santas.

A Religião da Ciência

O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL é uma jornada a partir do microcosmo


para um macrocosmo cada vez maior. Nas suas fases iniciais (que são
aquelas a que este livro se dedica) é uma jornada de conhecimento e não
de fé. Para escaparmos ao microcosmo da nossa experiência anterior e nos
libertarmos
(Nota)

* Bryant Wedge e Cyril Muromcew, Psychological Factors in Soviet


Disarmament Negotiation, Journal of Conflict Resolution, 9, N°. l (Março,

1965), pp. 18-36. (Ver também Bryant Wedge, A Note on Soviet-American


Negotiation, Proceedings of the Emergency Conference on Hostility,
Agression, and War, American Association for Social Psychiatry, Nov. pp. 17-
18, 1961.)

211

de transferências, é necessário aprender. Temos que aumentar


continuamente o nosso manancial de conhecimentos e o nosso campo de
visão através da digestão e incorporação exaustivas de novas informações.

O processo de expansão do conhecimento tem sido um dos principais temas


deste livro. Recorde-se que, na secção anterior, se definiu o amor como uma
extensão - ou seja, uma expansão - de nós próprios, referindo-se que entre
os riscos do amor se contava o risco de entrar no desconhecido de uma
nova experiência. No fim da primeira secção, sobre disciplina, foi também
mencionado que a aprendizagem de algo de novo exige que se prescinda do
Eu anterior e a morte do conhecimento ultrapassado. Para desenvolver uma
visão mais ampla, temos que nos dispor a abandonar, a matar a nossa visão
mais restrita. A curto prazo, é mais confortável não o fazer - ficar onde se
está, continuar a usar o mesmo mapa microcósmico, evitar o sofrimento da
morte de conceitos que se apreciam. O caminho do desenvolvimento
espiritual, contudo, está na direcção oposta. Começamos por desconfiar
daquilo em que já acreditamos, por procurar activamente o que é
ameaçador e desconhecido, desafiando deliberadamente a validade do que
nos ensinaram anteriormente e que estimamos. O caminho para a santidade
passa por questionar tudo.

Num sentido muito real, começamos pela ciência. Começamos por substituir
a religião dos nossos pais pela religião da ciência. Temos que nos revoltar e
rejeitar a religião dos nossos pais, porque inevitavelmente a sua visão do
mundo é mais restrita do que aquela que podemos ter se tirarmos todas as
vantagens da nossa experiência pessoal, incluindo a nossa experiência
adulta e a experiência de mais uma geração da história da humanidade.
Não existe uma boa religião que passa de geração em geração. Para ser
vital, para ser a melhor de que somos capazes, a religião tem que ser
inteiramente pessoal,
212

totalmente forjada no fogo das nossas questões e dúvidas, no cadinho da


nossa própria experiência da realidade. Como disse o teólogo Alan Jones:

Um dos nossos problemas é que muito poucos desenvolvem uma vida


pessoal distinta. Tudo em nós parece em segunda mão, até as emoções. Em
muitos casos, temos que nos valer de informação em segunda mão para
funcionarmos. Aceito a palavra dum médico, dum cientista, dum agricultor,
na base da confiança. Não gosto de o fazer. Tenho que o fazer, porque eles
detêm conhecimentos da vida em que eu sou ignorante. Sou capaz de
conviver com a informação em segunda mão sobre o estado dos meus rins,
os efeitos do colesterol e a criação de galinhas. Mas quando toca a questões
de significado, propósito e morte, a informação em segunda mão não serve.
Não consigo sobreviver com uma fé em segunda mão num Deus em
segunda mão. Tem que haver uma palavra pessoal, uma confrontação única,
para poder sentir-me vivo. *

Portanto, para a nossa sanidade mental e desenvolvimento espiritual, temos


que desenvolver a nossa religião pessoal e não ficarmo-nos pela dos nossos
pais. Mas o que é isso de "religião de ciência"? A ciência é uma religião,
porque é uma visão do mundo de considerável complexidade, com vários
dogmas principais. A maior parte destes dogmas principais são os
seguintes: o Universo é real e, como tal, um objecto válido para análise; tem
valor para os seres humanos examinar o Universo; o Universo faz sentido -
ou seja, obedece a determinadas leis e é previsível; mas os seres humanos
são maus analistas, sujeitos a superstições, influências, preconceitos e uma

(Nota)

* Journey Into Cbrist (Nova Iorque: Seabury Press, 1977), pp. 91-92.

213

profunda tendência para verem o que querem em vez do que lá está


realmente; em consequência, para examinar e compreender exactamente, é
necessário que os seres humanos se sujeitem à disciplina do método
científico. A essência dessa disciplina é a experiência, pelo que não
podemos considerar que sabemos algo a menos que o tenhamos
experimentado; apesar de a disciplina do método científico começar com a
experiência, não se deve confiar apenas na simples experiência; para ser de
confiança, a experiência deve poder ser repetida, normalmente sob a forma
de ensaio; além disso, a experiência deve ser constatável, ou seja, outras
pessoas devem passar pela mesma experiência nas mesmas circunstâncias.

As palavras chave são "realidade", "exame", "conhecimento",


"desconfiança", "experiência", "disciplina". Estas são as palavras que temos
sempre utilizado. A ciência é uma religião de cepticismo. Para escapar ao
microcosmo da nossa experiência infantil, ao microcosmo da nossa cultura e
aos seus dogmas, às meias verdades que os nossos pais nos disseram, é
essencial que sejamos cépticos sobre o que pensamos que aprendemos até
agora. É a atitude científica que nos permite transformar a nossa
experiência pessoal do microcosmo numa experiência pessoal do
macrocosmo. Temos que começar por nos tornarmos cientistas.

Muitos pacientes que já passaram por este começo dizem-me: "Não sou
religioso. Não vou à igreja. Já não acredito em muita coisa que a igreja e os
meus pais me disseram. Não tenho a fé dos meus pais. Acho que não sou
muito espiritual." É muitas vezes um choque para eles quando questiono a
realidade do pressuposto de que não são seres espirituais. "Você tem uma
religião," poderei dizer-lhes, "bastante profunda. Venera a verdade. Acredita
que pode evoluir e melhorar: a possibilidade de progresso espiritual. Com a
força da sua religião, está disposto a sofrer as dores do desafio e as agonias
de

214

desaprender. Assume o risco da terapia, e fá-lo pela sua religião. Não me


parece nada realista dizer que é menos espiritual do que os seus pais; pelo
contrário, suspeito que a realidade é que evoluiu espiritualmente mais do
que os seus pais, que a sua espiritualidade é consideravelmente mais
avançada do que a deles, que é insuficiente para que tenham coragem
sequer para questionar."
Uma coisa que sugere que a ciência como religião representa uma melhoria,
um salto evolutivo, relativamente a outras visões do mundo, é o seu
carácter internacional. Falamos da comunidade científica mundial. E começa
a aproximar-se de uma verdadeira comunidade, a tornar-se mais coesa do
que a igreja católica, que é provavelmente o que mais se aproxima de uma
verdadeira irmandade internacional. Os cientistas de todo o mundo
conseguem, muito melhor do que o resto das pessoas, falar uns com os
outros. Até certo ponto, conseguiram transcender o microcosmo da sua
cultura. Até certo ponto, estão a tornar-se sábios.

Até certo ponto. Embora eu pense que a céptica visão do mundo das
mentes científicas é uma clara melhoria em relação à visão do mundo
baseada na fé cega, superstição local e pressupostos inquestionáveis,
também creio que a maior parte das mentes científicas apenas começou a
jornada de desenvolvimento espiritual. Especificamente, penso que a
perspectiva da maior parte das mentes científicas no que respeita à
realidade de Deus é quase tão paroquial como a de simples camponeses
que seguem cegamente a fé dos seus antepassados. Os cientistas têm
muita dificuldade em lidar com a realidade de Deus.

Quando olhamos, com a vantagem do nosso cepticismo sofisticado, para o


fenómeno da crença em Deus, não nos deixamos impressionar. Vemos
dogmatismo e, a partir do dogmatismo, vemos guerras, inquisições e
perseguições. Vemos hipocrisia: pessoas que professam a irmandade dos
homens matando

215

os seus companheiros em nome da fé, enchendo os bolsos à custa dos


outros e praticando brutalidades de todas as espécies. Vemos uma
multiplicidade espantosa de rituais e imagens sem consenso: este deus é
uma mulher com seis braços e seis pernas; aquele é um homem sentado no
trono; este é um elefante; aquele a essência do nada; panteões, deuses
domésticos, trindades, unidades. Vemos ignorância, superstição, rigidez. Os
antecedentes da crença em Deus parecem deixar muito a desejar. É
tentador pensar que a humanidade estaria melhor sem acreditar em Deus.
Parece razoável concluir que Deus é uma ilusão das mentes humanas - uma
ilusão destrutiva - e que crer em Deus é uma forma comum de
psicopatologia humana que tem de ser curada.

Assim, temos uma questão: acreditar em Deus é uma doença? É uma


manifestação de transferência - um conceito dos nossos pais, derivado do
microcosmo, indevidamente projectado para o macrocosmo? Ou, por outras
palavras, essa crença é uma forma de pensamento primitiva e infantil que
devíamos ultrapassar à medida que tentamos alcançar níveis mais elevados
de consciência e maturidade? Se quisermos ser científicos na tentativa de
responder a esta pergunta, é essencial que nos apoiemos na realidade de
dados clínicos verdadeiros. O que acontece à fé que uma pessoa tem em
Deus, à medida que se desenvolve através do processo da psicoterapia?

O Caso de Kathy

KATHY ERA A PESSOA MAIS assustada que conheci. Quando entrei no quarto
dela pela primeira vez, estava sentada no chão murmurando o que parecia
um cântico. Olhou para mim, de pé junto da porta, e os seus olhos
esbugalharam-se de terror.

216

Gemeu e arrastou-se para o canto, encostando-se com força às paredes


como se as quisesse atravessar. Eu disse, "Kathy, sou psiquiatra. Não te vou
fazer mal." Puxei uma cadeira, sentei-me a uma certa distância dela e
esperei. Durante mais um minuto, continuou a encostar-se ao canto. Depois,
começou a relaxar, mas apenas o suficiente para começar a chorar
incontrolavelmente. Passado um bocado, parou de chorar e começou a
entoar o cântico novamente. Perguntei-lhe o que tinha. "Vou morrer,"
desabafou, quase sem interromper a cadência da cantilena. Não tinha mais
nada para me dizer. Continuou a cantar. De cinco em cinco minutos, mais ou
menos, parava, aparentemente exausta, choramingava por momentos e
recomeçava a cantoria. A todas as perguntas que lhe fazia respondia
apenas "Vou morrer", sem nunca quebrar o ritmo do canto. Parecia que
podia evitar a morte com o cântico e não se podia deixar descansar nem
dormir.
Do marido, Howard, obtive o mínimo dos factos. Kathy tinha vinte anos.
Estavam casados há dois. Não havia problemas no casamento. Kathy dava-
se bem com os pais. Nunca tinha tido dificuldades psiquiátricas antes. Era
uma surpresa total. Nessa manhã, estava perfeitamente bem. Tinha-o
levado de carro ao emprego. Duas horas mais tarde, a irmã dele tinha-lhe
telefonado. Tinha ido visitar Kathy e tinha-a encontrado naquele estado.
Tinham-na trazido para o hospital. Não, não tinha tido nenhum
comportamento estranho ultimamente. Excepto talvez uma coisa. Desde há
quatro meses que parecia ter medo de ir a lugares públicos. Para a ajudar,
Howard fazia as compras no supermercado, enquanto ela ficava no carro.
Também parecia ter medo de ficar sozinha. Rezava muito - mas isso ela
sempre tinha feito desde que a conhecia. A família era muito religiosa. A
mãe ia à missa pelo menos duas vezes por semana. Estranho - Kathy tinha
deixado de ir à missa desde que se casaram. O que para ele

217

não tinha problema nenhum. Mas ainda rezava muito. Saúde física? Oh, era
excelente. Nunca tinha estado hospitalizada. Desmaiou uma vez, num
casamento, uns anos antes. Contraceptivos? Tomava a pílula. Espere aí. Há
cerca de um mês disse-me que ia parar com a pílula. Tinha lido algures que
era perigoso ou coisa assim. Ele não se tinha preocupado muito com isso.

Dei a Kathy quantidades maciças de tranquilizantes e sedativos para ela


dormir de noite, mas durante os dois dias seguintes o seu comportamento
não se alterou: o cântico incessante, incapacidade de comunicar outra coisa
que não fosse a sua morte iminente, e um terror sem limites. Finalmente, no
quarto dia, dei-lhe uma injecção intravenosa de sódio amital. "Esta injecção
vai fazer-lhe sono, Kathy," disse-lhe eu, "mas não vai adormecer. Nem vai
morrer. Vai conseguir parar de cantar. Vai sentir-se muito relaxada. Vai
conseguir conversar comigo. Quero que me conte o que aconteceu na
manhã em que veio para o hospital."

"Não aconteceu nada," respondeu Kathy.


"Levou o seu marido ao emprego?"

"Sim, depois fui para casa. E então soube que ia morrer."

"Foi a conduzir para casa como faz todas as manhãs depois de deixar o seu
marido no serviço?"

Kathy começou outra vez a cantar.

"Pare de cantar. Kathy," ordenei-lhe. "Está completamente segura. Está a


sentir-se muito tranquila. Houve alguma coisa diferente quando voltou para
casa naquela manhã. Vai dizer-me o que foi diferente."

"Fui por outro caminho."

"Porque fez isso?"

"Fui pela rua onde fica a casa do Bill."

"Quem é o Bill?" perguntei.

Kathy começou a cantar mais uma vez.

218

"O Bill é um namorado seu?"

"Foi. Antes de me casar."


"Tem muitas saudades do Bill, não tem?"

Kathy gemeu, "Ai, meu Deus, vou morrer."

"Viu o Bill nesse dia?"

"Não."

"Mas queria vê-lo?"

"Vou morrer," respondeu Kathy.

"Acha que Deus a vai castigar por querer ver o Bill?"

"Sim."

"É por isso que pensa que vai morrer?"

"Sim." Mais uma vez, Kathy começou a cantar.

Deixei-a cantar uns dez minutos, enquanto me concentrava.

Por fim, disse-lhe, "Kathy, acha que vai morrer porque julga conhecer a
mente de Deus. Mas está enganada. Porque não conhece a mente de Deus.
Tudo o que sabe é o que lhe disseram sobre Deus. Muito do que lhe
disseram sobre Deus está errado. Eu não sei tudo sobre Deus, mas sei mais
que você mais do que as pessoas que lhe falaram de Deus. Por exemplo,
vejo homens e mulheres, todos os dias, que querem ser infiéis, e alguns são,
e não são castigados por Deus. Sei, porque eles continuam a vir ter comigo.
E conversam comigo. E sentem-se mais felizes. Tal como você se vai sentir
mais feliz. Porque vamos trabalhar juntos. E vai aprender que não é uma
pessoa má. E vai saber a verdade - sobre si e sobre Deus. E vai sentir-se
mais feliz, consigo e com a vida. Mas agora vai dormir. E quando acordar, já
não vai ter medo de morrer. E quando me vir outra vez amanhã de manhã,
vai conversar comigo e vamos falar de Deus e vamos falar de si."

De manhã, Kathy tinha melhorado. Ainda estava com medo e não estava
convencida de que não ia morrer, mas já não tinha a certeza.
Gradualmente, nesse dia e por muitos dias daí em diante, a história dela foi
surgindo, aos bocados.

219

Durante o último ano do liceu, tinha tido relações sexuais com Howard. Ele
queria casar com ela e ela concordou. Duas semanas depois, no casamento
de uma amiga, veio-lhe de repente à ideia que não se queria casar.
Desmaiou. Depois sentiu-se confusa sobre se amava Howard. Mas sentia-se
na obrigação de avançar com o casamento porque sabia que já tinha
pecado por ter tido relações pré-matrimoniais com ele, e esse pecado
aumentaria se não consagrasse a relação pelo casamento. No entanto, não
queria ter filhos, pelo menos até estar mais segura de amar Howard.
Começou, portanto, a tomar a pílula - outro pecado. Não suportava ter de
confessar esses pecados e foi um alívio deixar de ir à missa depois de casar.
Ela gostava do sexo com Howard. No entanto, quase a partir do dia do
casamento, ele deixou de se interessar por ela sexualmente. Continuava a
ser bom marido, comprava-lhe presentes, tratava-a com deferência,
trabalhava muito fora de horas porque não queria que ela trabalhasse. Mas
ela quase tinha que lhe implorar para terem relações sexuais, e as que
tinham de quinze em quinze dias eram a única coisa que lhe aliviava o
aborrecimento constante. O divórcio estava fora de questão; isso era
pecado.

Mesmo sem querer, Kathy começou a ter fantasias de infidelidade sexual.


Pensou que se livrava delas se rezasse mais, e começou a rezar cinco
minutos de hora a hora. Howard deu conta e fez troça dela. Por isso, decidiu
esconder-se e passou a rezar mais durante o dia, quando Howard não
estava em casa, para compensar o que não rezava à noite quando ele
estava. Isto significava que tinha de rezar mais ou mais depressa. Resolveu
fazer as duas coisas. Passou a rezar de meia em meia hora e, nos cinco
minutos de oração, duplicava a velocidade. Apesar disso, as fantasias de
infidelidade continuavam e, gradualmente, tornaram-se ainda mais
frequentes e insistentes. Sempre que saía, olhava para os homens. O que
piorava as

220

coisas. Passou a ter medo de sair com Howard e, mesmo quando estava
com ele, passou a ter medo dos lugares públicos onde pudesse ver homens.
Pensou em regressar à igreja. Mas depois percebeu que, se voltasse à igreja,
estaria a pecar se não se fosse confessar ao padre sobre as suas fantasias
de infidelidade. Disso não era capaz. Voltou a duplicar a velocidade das
orações. Para facilitar, arranjou um sistema complicado em que a cantilena
de uma só sílaba valia por uma oração completa. Esta foi a génese da sua
cantoria. Passado algum tempo, aperfeiçoou o sistema de maneira que
conseguia salmodiar mil orações em cinco minutos. Ao princípio, quando
estava muito ocupada a aperfeiçoar o cântico, as fantasias de infidelidade
pareciam ter diminuído, mas assim que teve o sistema controlado,
regressaram em força. Começou a pensar em como é que podia concretizá-
las. Pensou em telefonar a Bill, o antigo namorado. Pensou em bares onde
podia ir de tarde. Aterrorizada com a perspectiva de ser capaz de o fazer,
deixou de tomar a pílula, na esperança que o medo de engravidar a
ajudasse a resistir. Mas o desejo não parava de aumentar. Uma tarde, deu
por si a masturbar-se. Ficou horrorizada. Esse era talvez o pecado pior de
todos. Tinha ouvido falar nos duches frios e tomou um o mais frio que
conseguiu aguentar. Mas, no dia seguinte, tudo se repetia.

Por fim, naquela manhã, cedeu. Depois de deixar Howard no emprego,


seguiu directamente para casa de Bill. Estacionou mesmo em frente.
Esperou. Nada aconteceu. Parecia não estar ninguém em casa. Saiu do carro
e encostou-se a ele, numa pose sedutora. "Por favor," implorou
silenciosamente, "por favor faz com que o Bill me veja, que repare em
mim." Continuou sem acontecer nada. "Por favor, faz com que alguém me
veja, um qualquer. Tenho que ir para a cama com alguém. Ai, meu Deus, sou
uma prostituta. Sou a Prostituta da Babilónia. Ai, meu Deus, mata-me, tenho
que morrer." Saltou para dentro do

221
carro e dirigiu-se para o apartamento a alta velocidade. Foi buscar uma
lâmina para cortar o pulso. Não foi capaz. Mas Deus era. Deus fá-lo-ia. Deus
dar-lhe-ia o que merecia. Ele ia acabar com tudo, com ela. Sejam vigilantes.
"Oh, meu Deus, tenho tanto medo, tanto medo, despacha-te por favor,
tenho tanto medo." Começou a entoar o cântico, à espera. E foi assim que a
cunhada a encontrou.

Só consegui extrair a história completa após meses de trabalho esforçado.


Muito desse trabalho foi concentrado no conceito de pecado. Onde é que ela
tinha aprendido que a masturbação era pecado? Quem lhe disse que era
pecado? O que fazia da masturbação um pecado? Porque é que a
infidelidade é pecado? O que faz um pecado? E por aí adiante. Não conheço
outra profissão mais excitante e privilegiada do que a prática da
psicoterapia, mas por vezes consegue ser quase entediante quando se
questionam metodicamente as atitudes de uma vida, uma a uma, em todos
os detalhes. Esse questionar muitas vezes já tem resultados positivos
mesmo antes de a história ser totalmente revelada. Por exemplo, Kathy
conseguiu contar-me muitos destes pormenores, como as fantasias e a
tentação de se masturbar, só depois de ter começado a questionar ela
própria a validade da sua culpa e o conceito que tinha destes actos como
pecados.

Ao levantar estas questões, também foi necessário que questionasse a


validade da autoridade e sapiência da Igreja Católica, ou pelo menos da
Igreja tal como a conhecia por experiência. Não se ataca a Igreja Católica
facilmente. Ela só o conseguiu fazer porque tinha em mim a força dum
aliado, porque gradualmente se apercebeu de que eu estava mesmo do
lado dela, que defendia verdadeiramente os seus interesses e não a levaria
ao mal. Esta "aliança terapêutica", como ela e eu construímos lentamente, é
um pré-requisito da psicoterapia com resultados positivos.

222
Muito deste trabalho foi conduzido em regime ambulatório. Kathy teve alta
do hospital uma semana depois da sessão com sódio amital. Mas foi apenas
ao fim de quatro meses de terapia intensiva que conseguiu dizer, em
relação aos seus conceitos de pecado, "Parece-me que a Igreja Católica me
vendeu gato por lebre." Neste ponto, começou uma nova fase da terapia,
em que perguntámos: Como aconteceu tudo isto? Como se tinha permitido
comprar o gato por lebre? Como é que não tinha conseguido pensar mais
por ela e não tinha questionado a Igreja de alguma forma até agora? "Mas a
minha mãe disse-me que não se deve questionar a Igreja," disse Kathy.
Então, começámos a trabalhar na relação de Kathy com os pais. Com o pai,
não havia relação. Não havia com quem se relacionar. O pai trabalhava; era
tudo. Trabalhava, trabalhava e quando chegava a casa, dormia na cadeira
com uma cerveja. Excepto às Sextas-feiras à noite. Saía para ir beber a
cerveja. A mãe dirigia a família. Sozinha, sem ser questionada, sem a
contradizerem, sem oposição, ela mandava. Era bondosa mas firme. Era
generosa, mas nunca cedia. Tranquila, mas implacável. "Não deves fazer
isso, querida. As boas raparigas não fazem isso." "Não vais usar esses
sapatos, querida. As meninas de boas famílias não usam esses sapatos."
"Não é uma questão de quereres ir à missa, querida. O Senhor quer que
vamos à missa." Gradualmente, Kathy foi-se apercebendo que, por trás do
poder da Igreja Católica, estava o tremendo poder da mãe, uma pessoa tão
suave mas tão completamente dominadora que era impensável desafiá-la.

A psicoterapia raramente decorre sem sobressaltos. Seis meses depois de


ela ter saído do hospital, Howard telefonou-me, num Domingo de manhã, a
dizer que Kathy se tinha fechado na casa de banho do apartamento deles, a
entoar cânticos outra vez. De acordo com as minhas instruções, ele
convenceu-a a voltar ao hospital, onde me encontrei com eles.

223

O C A M IN H O M ENOS P F: R C O R RI D O

Kathy estava com quase tanto medo corno no dia em que a conheci. Mais
uma vez, Howard não fazia ideia da causa. Levei Kathy para o quarto. "Pare
de cantar," ordenei-lhe, "e diga-me o que se passa."

"Não posso."
"Pode, sim, Kathy."

Quase sem respirar pelo meio da cantilena, sugeriu, "Talvez consiga se me


der a droga da verdade."

"Não, Kathy," respondi. "Desta vez está suficientemente forte para o fazer
por si."

Ela gemeu. Depois olhou para mim e continuou a cantar. Mas pude ver, nos
olhos dela, zanga, quase fúria, contra mim.

"Está zangada comigo," declarei.

Abanou a cabeça enquanto cantava.

"Kathy," disse eu, "posso pensar numa dúzia de razões para estar zangada
comigo. Mas não sei se não me disser. Pode dizer-me. Não faz mal."

"Vou morrer," gemeu ela.

"Não vai não, Kathy. Não vai morrer porque está zangada comigo. Eu não a
vou matar por estar zangada comigo. Pode estar zangada comigo à
vontade."

"Os meus dias não são longos," gemeu Kathy. "Os meus dias não são
longos."

Houve algo nestas palavras que me soou estranho. Não eram as palavras
que esperava. Não pareciam naturais. Mas não sabia muito bem o que dizer
e acabava por me repetir duma maneira ou doutra.
"Kathy, eu gosto de si," disse eu. "Gosto de si mesmo que me odeie. O amor
é isso. Como é que a podia castigar por me odiar, se gosto de si, mesmo
odiando-me?"

"Não é a si que odeio," soluçou.

De repente, fez-se luz. "Os seus dias não são longos. Não são longos na
terra. É isso, não é Kathy? Honra pai e mãe

224

para que os teus dias sejam longos nesta terra. O Quinto Mandamento.
Honra-os ou morre. É o que está a acontecer, não é?"

"Odeio-a," murmurou Kathy. Depois mais alto, como se o som da própria voz
ao dizer as palavras temidas lhe aumentasse a coragem, "Odeio-a. Odeio a
minha mãe. Odeio-a. Nunca me deu... Nunca me deu... Nunca me deu eu.
Nunca me deixou ser eu. Fez-me à imagem dela. Obrigou-me, obrigou-me,
obrigou-me. Nunca me deixou ser eu em nada."

Na verdade, a terapia de Kathy ainda estava na fase inicial. O verdadeiro


terror do dia-a-dia ainda não tinha surgido, o terror de ser ela mesma de mil
e uma maneiras. Ao reconhecer o facto de que a mãe a tinha dominado
completamente, Kathy tinha que enfrentar o porquê de ter deixado que isso
acontecesse. Ao rejeitar o domínio da mãe, tinha que se defrontar com o
processo de estabelecer os seus próprios valores e tomar as próprias
decisões, e estava muito assustada. Era muito mais seguro deixar a mãe
tomar as decisões, muito mais simples adoptar os valores da mãe e os da
Igreja. Dava muito mais trabalho orientar a sua própria existência. Mais
tarde, Kathy veio a dizer, "Sabe, eu não trocava de lugar com a pessoa que
eu era de maneira nenhuma, mas, às vezes, tenho saudades desse tempo.
A minha vida era mais fácil. Pelo menos duma maneira."
Ao começar a funcionar de forma mais independente, Kathy confrontou
Howard com as suas falhas como amante. Howard prometeu mudar. Mas
nada aconteceu. Kathy pressionou-o. Ele começou a ter ataques de
ansiedade. Por minha insistência, quando me consultou quanto a esses
ataques, foi tratar-se com outro psiquiatra. Começou a lidar com
sentimentos homossexuais profundamente recalcados, de que se tinha
defendido ao casar com Kathy. Como ela era muito atraente fisicamente, ele
considerava-a uma "grande conquista",

225

um prémio que comprovava a sua competência masculina, tanto para si


como para o mundo. Nunca a tinha amado de forma significativa. Quando
aceitaram isso, ele e Kathy concordaram num divórcio amigável. Kathy
começou a trabalhar como vendedora num armazém de vestuário. Comigo,
angustiava-se com as inúmeras pequenas decisões, mas independentes,
que tinha que tomar em relação ao trabalho. Gradualmente, tornou-se mais
assertiva e confiante. Saía com muitos homens, pensando em casar
novamente e ter filhos mas, de momento, gozava a carreira. Passou a
compradora assistente no armazém. Quando terminou a terapia, foi
promovida a compradora e, recentemente, disse-me que tinha mudado para
outra firma, maior, com a mesma função, e sentia-se satisfeita com ela
própria, aos vinte e sete anos. Não vai à igreja e já não se considera
católica. Não sabe se acredita ou não em Deus, mas diz francamente que a
questão de Deus não lhe parece muito importante nesta altura da vida.

Descrevi o caso de Kathy com este pormenor, precisamente por ser tão
típico da relação entre a educação religiosa e a psicopatologia. Há milhões
de Kathys. Eu costumava dizer às pessoas, em ar de graça, que a Igreja
Católica me sustentava como psiquiatra. Podia dizer o mesmo da Igreja
Baptista, da Luterana, Presbiteriana ou outra qualquer. A Igreja não era,
evidentemente, a única causa da neurose de Kathy. Num certo sentido, a
Igreja era apenas um instrumento utilizado pela mãe de Kathy para
sedimentar e aumentar a sua autoridade excessiva. Pode dizer-se,
justificadamente, que a natureza dominadora da mãe, ajudada por um pai
ausente, era a causa mais básica da neurose, e também nesse aspecto o
caso de Kathy era típico. Mesmo assim, parte da culpa cabe à Igreja.
Nenhuma freira da escola paroquial nem nenhum padre no catecismo
alguma vez encorajou Kathy a questionar razoavelmente a doutrina
religiosa ou a pensar por si própria fosse de
226

que maneira fosse. Nunca houve prova de preocupação por parte da Igreja
que a sua doutrina fosse ensinada ao exagero, irrealisticamente rígida ou
sujeita a ser mal utilizada e mal aplicada. Uma das formas de analisar o
problema de Kathy seria afirmar que, enquanto acreditou piamente em
Deus, nos mandamentos e no conceito de pecado, a sua religião e
entendimento do mundo eram do tipo "passagem de testemunho", pouco
adequado às suas necessidades. Não tinha questionado, desafiado, pensado
por si. No entanto, a Igreja de Kathy o que também é típico - não fez o
menor esforço para a ajudar a estabelecer uma religião pessoal mais
adequada e original. Parece que, de uma maneira geral, as Igrejas
fomentam que a religião e o entendimento do mundo sejam do tipo
"passagem de testemunho".

Devido ao caso de Kathy ser tão típico e outros como ele serem tão
vulgares, muitos psiquiatras e psicoterapeutas encaram a religião como o
Inimigo. Podem até considerar a religião como uma neurose - uma colecção
de ideias inerentemente irracionais que servem para agrilhoar as mentes
das pessoas e oprimir os seus instintos de desenvolvimento mental. Freud,
um racionalista e cientista por excelência, aparentemente via as coisas mais
ou menos nesta luz, e dado ser a figura mais influente da Psiquiatria (por
muitas e boas razões), as suas atitudes contribuíram para o conceito da
religião como uma neurose. É na verdade tentador para os psiquiatras
verem-se como cavaleiros da ciência moderna, em nobre combate contra as
forças destrutivas de antigas superstições religiosas e dogmas irracionais
mas autoritários. E o facto é que os psicoterapeutas têm de dispender
imenso tempo e esforço, lutando por libertar as mentes dos pacientes de
ideias religiosas ultrapassadas e de conceitos claramente destrutivos.

227

O Caso de Mareia
NEM TODOS os CASOS SÃO semelhantes ao de Kathy. Há muitos outros
padrões, alguns também bastante comuns. Mareia foi um dos meus
primeiros casos de terapia a longo prazo. Era uma jovem bastante rica, de
vinte e poucos anos, que me procurou devido a anedonia generalizada.
Embora não pudesse salientar o que estava errado na sua existência,
achava-a inexplicavelmente triste. Ela tinha um aspecto bastante triste.
Apesar da fortuna e da educação universitária, tinha o aspecto de uma
imigrante pobre, suja e velha. Durante o primeiro ano de terapia vestia-se
invariavelmente com roupas azuis, cinzentas, pretas ou castanhas que lhe
assentavam mal e trazia um saco de tapeçaria enorme, sujíssimo e roto em
tons idênticos. Era filha única, de pais intelectuais, ambos professores
universitários e socialistas, que acreditavam que a religião era uma treta.
Tinham feito troça dela, quando, no início da adolescência, ia à igreja com
uma amiga.

Na altura em que começou a fazer terapia, Mareia estava totalmente de


acordo com os pais. Logo no início, anunciou, orgulhosa e estridentemente,
que era ateia - não uma ateia de trazer por casa, mas a sério, que
acreditava que a raça humana viveria muito melhor se pudesse escapar da
ilusão de que Deus existe ou até que possa existir. Curiosamente, os sonhos
de Mareia estavam cheios de símbolos religiosos, como pássaros a voarem
para dentro de salas levando no bico rolos de pergaminho com mensagens
obscuras escritas numa língua antiga. Mas não confrontei Mareia com este
aspecto do seu subconsciente. De facto, não abordámos sequer questões de
religião durante os dois anos que durou a terapia. O que

228

focámos principalmente, em detalhe, foi a relação com os pais, duas


pessoas extremamente inteligentes e racionais que lhe tinham
proporcionado conforto económico, mas que se encontravam
extraordinariamente distantes dela emocionalmente, da sua maneira
intelectualmente austera. Para além da distância emocional, estavam
ambos tão empenhados nas suas carreiras que lhes sobrava pouco tempo e
energia para ela. O resultado era que, embora tivesse um lar confortável e
intacto, Mareia era a "pobre rapariguinha rica" proverbial, uma órfã
psicológica. Mas ela tinha relutância em encarar isso. Ficou ressentida
quando sugeri que os pais a tinham privado bastante, e ficou ressentida
quando lhe fiz notar que se vestia como uma órfã. Era a nova moda, disse
ela, e eu não tinha o direito de a criticar.

Os progressos de Mareia na terapia foram dolorosamente graduais, mas


dramáticos. O elemento chave era o calor e a proximidade da relação que
construímos lentamente um com o outro, que contrastava com a relação
que tinha com os pais. Uma manhã, no início do segundo ano de
tratamento, Mareia chegou à consulta com uma carteira nova. Tinha apenas
um terço do tamanho do velho saco de tapeçaria e em tons alegremente
coloridos. A partir daí, mais ou menos uma vez por mês, acrescentava uma
nova peça colorida - laranja, amarelo, azul e verde claro - ao guarda-roupa,
quase como uma flor a abrir as pétalas. Na penúltima sessão comigo,
reflectia sobre como se sentia bem e disse, "Sabe, é estranho, mas não foi
só o meu interior que mudou; tudo à minha volta parece ter mudado
também. Apesar de eu ainda aqui estar, a viver na mesma casa e a fazer as
mesmas coisas, o mundo inteiro parece diferente, sinto-o muito diferente.
Sinto-o acolhedor, seguro, afectuoso, excitante e bom. Lembro-me de lhe
dizer que era ateia. Já não tenho a certeza se continuo a ser. Na verdade,
acho que não sou. Às vezes, quando sinto o mundo

229

bem, digo para mim mesma 'Sabes, aposto que há mesmo um Deus. Acho
que o mundo não podia estar tão bem sem um Deus'. É engraçado. Não sei
como falar destas coisas. Sinto-me ligada, real, como se fosse uma parte
verdadeira de um quadro muito grande, e embora não consiga ver muito do
quadro, sei que lá está e que é bom e sei que faço parte dele."

Através da terapia, Kathy passou de um lugar onde a noção de Deus era da


máxima importância para um lugar onde não tinha nenhuma. Mareia, por
outro lado, passou de uma posição em que rejeitava a noção de Deus para
uma em que adquiria bastante significado. O mesmo processo, o mesmo
terapeuta, no entanto resultados aparentemente opostos, ambos positivos.
Como explicar isto? Antes de tentarmos, consideremos mais outro tipo de
caso. No caso de Kathy foi necessário que o terapeuta questionasse
activamente as suas ideias religiosas para conseguir mudar para uma
influência drasticamente diminuída do conceito de Deus na sua vida. No
caso de Mareia, o conceito de Deus começou a assumir uma influência
crescente, sem que o terapeuta questionasse alguma vez os seus conceitos
religiosos. Podemos perguntar, será necessário que um terapeuta questione
activamente o ateísmo ou agnosticismo dum paciente e o encaminhe
deliberadamente na direcção da religiosidade?

O Caso de Theodore

TED TINHA TRINTA ANOS quando me veio consultar, e era eremita. Nos sete
anos anteriores tinha vivido numa pequena cabana bem escondida na
floresta. Tinha poucos amigos e ninguém próximo. Durante três anos não
tinha saído com nenhuma rapariga. De vez em quando, fazia pequenos
traba-

230

lhos de carpintaria, mas de resto preenchia os dias a pescar, a ler e a perder


imenso tempo a tomar decisões sem importância, como o que ia fazer para
o jantar e se podia ou não comprar uma ferramenta barata. Na verdade, era
bastante rico, devido a uma herança. Também era intelectualmente
brilhante. E, como me disse na primeira sessão, estava paralisado. "Sei que
devia estar a fazer algo de mais construtivo e criativo na vida," queixou-se,
"mas nem sequer consigo tomar decisões menores, quanto mais as
grandes. Devia ter uma carreira. Devia ir para a uma escola aprender um
ofício, mas não me consigo entusiasmar com nada. Já pensei em tudo -
ensino, trabalho intelectual, relações internacionais, medicina, agricultura,
ecologia mas nada me excita. Posso-me interessar por um dia ou dois, mas
depois todas as áreas parecem ter problemas intransponíveis. A vida parece
ser um problema intransponível."

O problema, disse Ted, começou quando tinha dezoito anos e entrou para a
universidade. Até aí tinha corrido tudo bem. Tinha tido uma infância vulgar
numa família abastada e estável, com dois irmãos mais velhos; pais que
gostavam dele, embora não gostassem muito um do outro; boas notas e
satisfações num colégio interno particular. Depois - e talvez tenha sido
crucial - teve uma ligação apaixonada com uma mulher que o rejeitou na
semana antes de entrar para a universidade. Desesperado, passou a maior
parte do ano de caloiro bêbado. No entanto, mantinha boas notas. Depois
teve várias outras ligações, cada uma menos empenhada e mais desastrosa
do que a anterior. As notas começaram a descer. Não conseguia decidir o
que escrever nos testes. Um amigo chegado, Hank, morreu num desastre de
automóvel a meio do segundo ano, mas ele tinha-se conformado. Chegou a
deixar de beber, nesse ano. Mas o problema de tomar decisões piorou ainda
mais. Era simplesmente incapaz de escolher um tópico para a sua tese.
Terminou o trabalho de curso. Alugou um quarto fora

231

das instalações universitárias. Para se licenciar, faltava-lhe apenas


apresentar uma breve tese, o tipo de coisa que se fazia num mês. Levou os
três anos seguintes. Depois, nada. Sete anos antes, tinha ido para a floresta.

Ted tinha a certeza que o problema estava enraizado na sua sexualidade.


Afinal de contas, as dificuldades tinham começado com uma ligação
desfeita, não tinham? Além disso, ele tinha lido quase tudo o que Freud
escreveu (e muito mais do que eu). Portanto, durante os primeiros seis
meses de terapia, vasculhámos a sua sexualidade infantil, mas não
chegámos a nenhuma conclusão especial. Mas durante esse período,
emergiram facetas interessantes da sua personalidade. Uma era a ausência
total de entusiasmo. Podia desejar bom tempo e, quando ele chegava,
encolhia os ombros e dizia, "Não faz diferença nenhuma. Basicamente, cada
dia é igual ao seguinte." Enquanto pescava no lago, apanhou um enorme
lúcio, "Mas era demais para eu comer e como não tenho amigos com quem
o partilhar, atirei-o novamente para o lago."

Relacionada com esta falta de entusiasmo havia uma espécie de snobismo


global, como se achasse o mundo e tudo o que ele continha de mau gosto.
Tinha o olhar do crítico. Acabei por suspeitar que utilizava esse snobismo
para manter alguma distância de coisas que, doutra forma, o afectariam
emocionalmente. Por último, Ted tinha uma enorme inclinação pelo
secretismo, o que fazia com que a terapia avançasse deveras devagar. Os
factos mais importantes de qualquer incidente tinham que lhe ser extraídos.
Tinha tido um sonho: "Estava numa sala de aula. Havia um objecto - não sei
qual - que eu tinha posto dentro duma caixa. Tinha construído a caixa à
volta do objecto, de modo a que ninguém soubesse o que lá estava dentro.
Tinha posto a caixa dentro duma árvore morta, e com uns parafusos de
madeira muito bem feitos tinha voltado a colocar a casca da árvore por
cima da caixa. Mas,

232

sentado na aula, lembrei-me de repente que não tinha a certeza de ter


nivelado os parafusos com a casca. Fiquei extremamente ansioso. Fui a
correr ao bosque e trabalhei os parafusos de modo a não se distinguirem da
casca. Senti-me melhor e voltei para a aula." Como para muitas pessoas, a
aula e a sala de aula eram símbolos da terapia nos sonhos de Ted. Era
evidente que não queria que eu encontrasse o núcleo da sua neurose.

A primeira pequena amolgadela na armadura de Ted ocorreu durante uma


sessão, no sexto mês de terapia. Tinha passado o serão da noite anterior
em casa de um conhecido. "Foi uma noite horrível," lamentou-se Ted. "Quis
que eu ouvisse um disco novo que tinha comprado, a música de fundo que
Neil Diamond compôs para o filme Fernão Capelo Gaivota. Foi uma tortura.
Não percebo como pessoas educadas podem gostar daquela porcaria nem
mesmo como lhe chamam música."

A intensidade desta reacção snob fez-me arrebitar as orelhas. "Fernão


Capelo Gaivota é um livro religioso," comentei. "A música também era
religiosa?"

"Acho que tanto se pode chamar aquilo religioso como chamar-lhe música."

"Talvez tenha sido a religião que o ofendeu," sugeri, "e não tanto a música."

"Bem, eu de facto acho aquele tipo de religião ofensivo," respondeu Ted.

"Que tipo de religião?"


"Sentimental. Enjoativa." Ted quase cuspia as palavras.

"Que outros tipos de religião existem?" perguntei.

Ted mostrou-se intrigado, desconcertado. "Não muitos, acho eu. Acho a


religião de uma forma geral desinteressante."

"Foi sempre assim?"

Riu-se tristemente. "Não, quando era um adolescente com ideias pouco


claras era muito ligado à religião. No último ano do colégio, até era acólito
na nossa igreja."

233

"E depois?"

"E depois, o quê?"

"Bom, que aconteceu à sua religião?" perguntei.

"Acho que me passou com a idade."

"Como é que lhe passou com a idade?"

"Que quer dizer, como me passou com a idade?" Ted estava a ficar
claramente irritado. "Como é que alguma coisa passa com a idade? Passou,
é tudo."
"Quando lhe passou com a idade?"

"Não sei. Aconteceu. Já lhe disse. Na universidade, nunca ia à igreja."

"Nunca?"

"Nem uma vez."

"Então no último ano do colégio, foi acólito na igreja," comentei. "Depois,


nesse Verão, teve uma paixão que acabou. E depois nunca mais voltou à
igreja. Foi uma mudança brusca. Acha que a rejeição da sua namorada teve
alguma coisa a ver com isso, ou não?"

"Não acho nada. O mesmo padrão se aplicava a muitos colegas meus.


Atingimos a maioridade numa altura em que a religião não estava na moda.
Pode ser que a minha namorada tivesse alguma coisa a ver com isso, pode
ser que não. Como hei-de saber? Só sei que me desinteressei pela religião."

A abertura seguinte aconteceu um mês mais tarde. Tínhamos estado a


concentrar-nos na óbvia falta de entusiasmo de Ted sobre fosse o que fosse,
que ele reconheceu prontamente. "A última vez que me lembro
perfeitamente de me sentir entusiasmado," disse ele, "foi há dez anos, no
segundo ano. Foi em relação a um trabalho que fiz no fim de um curso
semestral de poesia britânica moderna."

"Sobre que era o trabalho?"

"Acho que não me recordo, foi há tanto tempo."

"Conversa," disse eu. "Consegue lembrar-se, se quiser."

234
"Bom, tinha a ver com Gerard Manley Hopkins. Foi um dos primeiros poetas
verdadeiramente modernos. Focava provavelmente o poema Beleza
Multicor."

Saí do gabinete, fui à minha biblioteca e voltei com um volume empoeirado


de poesia britânica dos meus tempos da universidade. Beleza Multicor vinha
na página 819. Li:

Glória a Deus pelas coisas salpicadas -

Pelos céus de duas cores qual vaca malhada;

Pelos sinais rosados que pontilham as trutas a nadar;

Cascatas de castanhas acabadas de assar; asas de tentilhão; Paisagens


divididas e recortadas - cerca, pousio e

arado;

E todos os ofícios, apetrechos, aparelhos e preparos.

Todas as coisas contrárias, originais, parcas, estranhas; O que é instável,


sardento (quem sabe como?) Depressa, devagar; doce, amargo; brilhante,
fosco;

Ele gera aqueles cuja beleza resiste à mudança;

Que seja louvado.


Vieram-me as lágrimas aos olhos. "É, em si, um poema sobre o entusiasmo,"
disse eu.

"Sim."

"Também é um poema muito religioso."

"Sim."

"Fez o trabalho no fim do primeiro semestre. Foi em Janeiro?"

"Sim."

"Se não estou em erro, foi no mês seguinte, Fevereiro, que o seu amigo
Hank morreu."

"Sim."

Sentia uma tensão inacreditável a crescer. Não tinha a certeza do que devia
fazer. Esperançado, continuei. "Portanto foi

235

rejeitado pela sua primeira namorada a sério aos dezassete anos e perdeu o
entusiasmo pela igreja. Três anos depois o seu melhor amigo morre e perde
o entusiasmo por tudo."
"Eu não o perdi, tiraram-mo." Ted quase gritava, mais tenso do que jamais o
vira.

"Deus rejeitou-o, portanto você rejeitou Deus."

"E porque não?" perguntou ele. "É um mundo de merda. Foi sempre um
mundo de merda."

"Pensei que tivesse tido uma infância feliz."

"Não, também foi uma merda."

E tinha sido. Sob a aparente calma exterior, o lar da infância de Ted tinha
sido um constante combate sangrento para ele. Os dois irmãos mais velhos
embirravam com ele com maldade sem igual. Os pais, demasiado
preocupados com as suas coisas e com o ódio que tinham um pelo outro
para se preocuparem com os problemas aparentemente menores dos filhos,
não lhe tinham dado a ele, o mais pequeno e mais fraco, nenhuma
protecção. A sua maior consolação era fugir para passeios longos e
solitários no campo, e concluímos que o padrão de eremita tinha raízes nos
anos anteriores aos dez anos dele. O colégio interno, com as suas pequenas
crueldades, tinha sido um alívio. À medida que falava destas coisas, o
ressentimento de Ted para com o mundo - ou melhor, a sua exteriorização
desse ressentimento - foi ganhando consistência. Nos meses seguintes,
reviveu não só a dor da infância e a dor da morte de Hank, mas também a
dor de mil mortes mais pequenas, rejeições e perdas. Toda a vida parecia
um emaranhado de morte e sofrimento, perigo e selvajaria.

Após quinze meses de terapia, chegámos a um ponto de mudança. Ted


trouxe um livrinho para a consulta. "Está sempre a dizer que sou muito
reservado - e é claro que sou," disse ele. "Ontem à noite, estava a remexer
numas coisas antigas e encontrei este diário, que escrevi durante o segundo

236
ano do curso. Nem sequer o reli. Pensei que gostasse de ler a versão
integral de como eu era há dez anos."

Eu disse que sim, e fi-lo nas duas noites seguintes. Na verdade, não era
muito revelador, a não ser por confirmar que o seu padrão solitário, isolado
por um snobismo resultante de mágoa, já nessa altura estava
profundamente entranhado. Mas havia uma referência que me chamou a
atenção. Descrevia um passeio solitário a pé num Domingo de Janeiro, em
que tinha sido apanhado por uma tempestade de neve e tinha regressado à
residência universitária várias horas depois de escurecer. "Senti uma certa
felicidade," tinha ele escrito, "ao regressar à segurança do meu quarto, não
muito diferente da que senti no Verão passado quando vi a morte tão
perto." No dia seguinte, durante a consulta, pedi-lhe para me contar como é
que tinha estado próximo da morte.

"Ah, já lhe contei," disse Ted.

Por essa altura, já eu sabia bem que sempre que Ted afirmava ter-me
contado qualquer coisa, estava a tentar escondê-la. "Está a ser dissimulado,
outra vez," respondi-lhe.

"Bem, tenho a certeza que lhe contei. Devo ter contado. De qualquer
maneira, não teve assim tanta importância. Lembra-se que estive a
trabalhar na Florida, no Verão entre o primeiro e o segundo ano. Houve um
furacão. Eu gosto de tempestades, sabe. No auge do temporal, fui até a um
molhe. Fui levado por uma onda e trazido de volta por outra. Foi só isso que
aconteceu. Passou-se muito depressa."

"Foi para a ponta do molhe no auge dum furacão?" perguntei, incrédulo.

"Já lhe disse. Eu gosto de tempestades. Gosto de me sentir perto da fúria


dos elementos."

"Isso eu percebo," disse eu. "Gostamos ambos de tempestades. Mas não sei
se me iria pôr em perigo dessa maneira."
"Bem, sabe que eu tenho uma certa tendência suicida,"

237

respondeu Ted, quase em provocação. "E nesse Verão, senti muito essa
tendência. Já a analisei. Francamente, não me lembro de ir até ao molhe
com qualquer intenção de suicídio. Mas, na verdade, não me importava
muito com a vida e reconheço a possibilidade de estar com tendências
suicidas." "Foi levado por uma onda?"

"Sim. Nem percebi o que aconteceu. Havia tantos salpicos que não se via
quase nada. Julgo que veio uma onda maior. Senti-a embater em mim, senti-
me a ser levado e senti-me perdido na água. Nada podia fazer para me
salvar. Tinha a certeza de que ia morrer. Senti-me aterrorizado. Passado
cerca de um minuto, senti-me a ser empurrado para trás pela água

- deve ter sido uma onda da rebentação - e um segundo depois, fui atirado
de encontro ao molhe. Fui de gatas até à beira do molhe, agarrei-me e, sem
nunca o largar, voltei para terra de gatas. Fiquei com umas nódoas negras.
Foi só isso."

"O que sente em relação a essa experiência?"

"Que quer dizer, o que sinto?" perguntou Ted, com a sua maneira de resistir.

"Exactamente o que disse. O que sente em relação a isso?"

"Quer dizer, por me ter salvo?" perguntou.

"Sim."
"Bem, acho que tive sorte."

"Sorte?" questionei. "Só uma coincidência invulgar, aquela onda da


rebentação?"

"Sim, só isso."

"Alguns chamar-lhe-iam milagrosa," comentei.

"Acho que tive sorte."

"Acha que teve sorte," repeti, provocando-o.

"Sim, que diabo, acho que tive sorte."

"É curioso, Ted," disse eu, "que sempre que alguma coisa desagradável lhe
acontece, insurge-se contra Deus, insurge-se contra este mundo imundo e
terrível. Mas quando lhe acon-

238

tece uma coisa boa, acha que tem sorte. Uma pequena tragédia é culpa de
Deus. Uma bênção milagrosa é um bocadito de sorte. Que acha disso?"

Confrontado com a inconsistência da sua atitude em relação à boa e má


sorte, Ted começou a concentrar-se cada vez mais nas coisas boas do
mundo, no doce como no amargo, no brilho como na obscuridade. Depois
de analisar a dor causada pela morte de Hank e pelas outras mortes que o
tinham afectado, começou a examinar o reverso da medalha da vida.
Passou a aceitar a necessidade do sofrimento e a compreender a natureza
paradoxal da existência, as "coisas salpicadas". Esta aceitação ocorreu,
claro, no contexto de uma relação calorosa, afectuosa e progressivamente
mais agradável entre nós. Começou a mudar. Com muitas hesitações, voltou
a sair com raparigas. Começou a manifestar algum entusiasmo. A sua
natureza religiosa desabrochou. Para onde quer que olhasse, via o mistério
da vida e da morte, da criação, da decadência e da regeneração. Lia
Teologia. Ouvia Jesus Christ Superstar, Godspell e até comprou o disco de
Fernão Capelo Gaivota.

Depois de dois anos de terapia, Ted anunciou-me, certa manhã, que tinha
chegado a altura de andar para a frente. "Tenho andado a pensar em me
matricular numa faculdade de Psicologia," disse ele. "Já sei que vai dizer que
o estou a imitar, mas analisei a questão e não me parece que seja isso."

"Continue," pedi.

"Bom, pensando nisto, parece-me que devia tentar fazer o que é mais
importante. Se vou voltar a estudar, quero estudar as coisas mais
importantes."

"Continue."

"Portanto, decidi que a mente humana é importante. E fazer terapia é


importante."

"A mente humana e a psicoterapia, são as coisas mais importantes?"


perguntei.

239

"Bem, suponho que Deus é a coisa mais importante."


"Então porque não estuda Deus?" perguntei.

"Que quer dizer?"

"Se Deus é a coisa mais importante, porque não estuda Deus?"

"Desculpe. Simplesmente, não o compreendo," disse Ted.

"Isso é porque se está a impedir de compreender," respondi.

"De facto, não entendo. Como é que se pode estudar Deus?"

"Estuda-se Psicologia numa escola. Estuda-se Deus numa escola," respondi-


lhe.

"Refere-se à escola de Teologia?"

"Sim."

"Quer dizer, ir para padre?"

"Sim."

"Ah, não, não era capaz." Ted estava consternado.

"Porque não?"

Ted ficou inquieto. "Não há necessariamente diferença entre um


psicoterapeuta e um padre. Quer dizer, os padres fazem muita psicoterapia.
E fazer psicoterapia, bom, é como ser padre."
"Então porque é que não pode ir para padre?"

"Está a pressionar-me," disse Ted, irritado. "A carreira é uma decisão


pessoal. Sou eu que tenho de escolher a carreira que quero. Os terapeutas
não devem influenciar os pacientes. O seu papel não é fazer escolhas por
mim. Eu faço as minhas escolhas."

"Olhe," disse eu, "não estou a fazer nenhuma escolha por si. Estou apenas a
ser puramente analítico. Estou a analisar as alternativas que se lhe
oferecem. Você é que, por alguma razão, não quer estudar essas
alternativas. É você que quer fazer a coisa mais importante. É você que
acha que Deus é a coisa mais importante. No entanto, quando o empurro
para encarar a alternativa duma carreira em Deus, exclui-a. Diz que não é

240

capaz. Se não é capaz, está bem. Mas compete-me estar interessado na


razão porque diz que não é capaz, porque a exclui como alternativa."

"Eu não posso ser padre," disse Ted, pouco convincentemente.

"Porque não?"

"Porque... porque ser padre é ser, publicamente, um homem de Deus. Quero


dizer, tinha que mostrar publicamente a minha fé em Deus. Tinha que ser
publicamente entusiasta dessa fé. Não era capaz, pronto."
"Não, tem que ser em segredo, não é?" disse eu. "Essa é a sua neurose e
tem que a conservar. Não pode ser publicamente entusiasta. Tem que
conservar o entusiasmo bem fechado, não é?"

"Olhe," lamentou-se Ted, "não sabe o que isto é para mim. Não sabe o que é
ser como eu sou. Sempre que abria a boca para manifestar entusiasmo
sobre qualquer coisa, os meus irmãos punham-se a fazer troça de mim."

"Até parece que ainda tem dez anos," comentei, "e que os seus irmãos
ainda andam por aqui."

Ted já chorava de frustração. "E não é tudo," disse ele, chorando. "Era assim
que os meus pais me castigavam. Sempre que eu fazia uma asneira,
tiravam-me uma coisa de que eu gostava. 'Vamos lá ver o que entusiasma
mais o Ted. Ah, sim, a visita a casa da tia para a semana. Está
excitadíssimo. Portanto, dizemos-lhe que, por se ter portado mal, não pode
ir visitar a tia. É isso mesmo. Há também o arco e as flechas. Ele adora o
arco e as flechas. Vamos tirar-lhas.' Simples. Um sistema simples. Tudo o
que me entusiasmava, eles tiravam-me. Tudo o que amava, perdia."

Chegámos assim ao núcleo mais íntimo da neurose de Ted. Gradualmente,


por um acto de vontade, a lembrar-se continuamente que já não tinha dez
anos, que já não estava sob o jugo dos pais nem a uma distância dos irmãos
em que lhe

241

pudessem bater, forçou-se, aos poucos, a comunicar o seu entusiasmo, o


amor pela vida e o amor a Deus. Decidiu ir para uma escola religiosa. Urnas
semanas antes de ele partir, mandou-me um cheque, referente às consultas
do mês anterior. Algo nele me chamou a atenção. Até aí, ele assinara
sempre "Ted". Agora assinava "Theodore". Chamei-lhe a atenção para a
mudança.
"Tinha esperança de que reparasse," disse ele. "Acho que, de certa forma,
ainda guardo segredos, não é? Quando era pequeno, a minha tia disse-me
que devia ter orgulho no nome Theodore, porque significava 'amante de
Deus'. Eu fiquei orgulhoso. E contei aos meus irmãos. Meu Deus, como
fizeram troça de mim. Chamaram-me maricas de todas as maneiras.
'Menino de coro maricas. Porque não vais beijar o altar? Porque não vais
beijar o chefe do coro?'" Ted sorriu. "Conhece a rotina. Passei a envergonhar-
me do nome. Há umas semanas atrás reparei que já não me envergonhava.
Por isso, resolvi passar a usar o meu nome completo. Afinal de contas, sou
um amante de Deus, não sou?"

O Bebé e a Água do Banho

Os CASOS QUE SE SEGUEM foram apresentados em resposta a uma


pergunta: acreditar em Deus é uma forma de psicopatologia? Se queremos
demarcar-nos dos ensinamentos da infância, da tradição e superstição
locais, é uma pergunta que deve ser feita. Mas estes casos indicam que a
resposta não é simples. Às vezes, a resposta é sim. A forma inquestionável
como Kathy acreditava no Deus que a Igreja e a mãe lhe ensinaram,
retardou-lhe claramente o desenvolvimento e envenenou-lhe o espírito. Só
depois de questionar e pôr de parte essa crença é que

242

pôde aventurar-se a uma vida mais ampla, gratificante e produtiva. Só


então se pôde desenvolver livremente. Mas a resposta também é não, por
vezes. À medida que Mareia foi ultrapassando o frio microcosmo da sua
infância, para entrar num mundo maior e mais acolhedor, também a fé em
Deus se desenvolveu nela, calma e naturalmente. E a f é renegada de Ted
teve de ser ressuscitada como parte essencial da libertação e ressurreição
do seu espírito.

Que fazer com esta resposta sim e não? Os cientistas dedicam-se a fazer
perguntas em busca da verdade. Mas também são humanos e, como todos
os humanos, querem que as respostas sejam simples, claras e fáceis. No
seu desejo de soluções simples, os cientistas têm tendência para cair em
duas armadilhas quando questionam a realidade de Deus. A primeira é
atirar fora o bebé juntamente com a água do banho. E a segunda é a visão
em túnel.

Há claramente muita água suja à volta da realidade de Deus. Guerras


santas. Inquisições. Sacrifícios de animais. Sacrifícios humanos. Superstição.
Estultificação. Dogmatismo. Ignorância. Hipocrisia. Farisaísmo. Rigidez.
Crueldade. Queima de livros. Queima de bruxas. Inibição. Medo.
Conformismo. Culpa mórbida. Insanidade. A lista é quase interminável. Mas
isto é o que Deus fez aos humanos ou o que os humanos fizeram a Deus? É
substancialmente evidente que a fé em Deus é muitas vezes
destruidoramente dogmática. O problema, então, é os humanos tenderem a
acreditar em Deus, ou é os humanos tenderem a ser dogmáticos? Quem
conhecer um ateu convicto, sabe que um indivíduo desses é tão dogmático
quanto a não ter fé quanto um crente quanto à fé. É da fé em Deus que
temos que nos libertar, ou do dogmatismo?

Outra das razões porque os cientistas têm tanta tendência para atirar fora o
bebé juntamente com a água do banho é o facto de a ciência em si, como já
referi, ser uma religião.

243

O cientista neófito, recém-chegado ou convertido à visão do mundo da


ciência, pode ser tão fanático como um cruzado cristão ou um soldado de
Alá. Isto verifica-se especialmente quando se chega à ciência a partir de
uma cultura em que a fé em Deus está definitivamente associada a
ignorância, superstição, rigidez e hipocrisia. Temos então motivos
emocionais e intelectuais para esmagar os ídolos da fé primitiva. Umas das
marcas de maturidade dos cientistas, no entanto, é a sua consciência de
que a ciência pode estar tão sujeita ao dogmatismo como qualquer outra
religião.

Já afirmei que é essencial, para o nosso desenvolvimento espiritual, que nos


tornemos cientistas, cépticos sobre o que nos ensinaram - ou seja, os
conceitos e pressupostos comuns da nossa cultura. Mas as noções da
ciência também se tornam muitas vezes ídolos culturais, e é necessário que
sejamos cépticos também em relação a elas. Na verdade, é possível
amadurecermos deixando de acreditar em Deus. O que gostaria de
acrescentar agora é que também é possível amadurecermos passando a
acreditar em Deus.

O ateísmo ou agnosticismo cépticos não são necessariamente o mais


elevado estado de compreensão a que os seres humanos podem chegar.

Pelo contrário, há razões para crer que, por detrás de noções espúrias e de
falsos conceitos de Deus, existe uma realidade que é Deus. Foi isso que Paul
Tillich quis dizer quando se referiu ao "deus para além de Deus" e é a razão
porque alguns cristãos sofisticados proclamavam alegremente, "Deus está
morto. Viva Deus." Será possível que o caminho do desenvolvimento
espiritual passe da superstição para o agnosticismo e depois do
agnosticismo para um conhecimento exacto de Deus?

Era desse caminho que falava o Sufi Aba Said ibn Abi-1-Khair, há mais de
novecentos anos, quando dizia:

244

Até se desmoronar a universidade e o minarete Este nosso trabalho santo


não estará completo. Até a fé se tornar rejeição, e a rejeição se tornar credo
Não haverá nenhum verdadeiro Muçulmano. *

Quer o caminho do desenvolvimento espiritual passe necessariamente de


um ateísmo ou agnosticismo cépticos para uma verdadeira fé em Deus ou
não, o facto é que algumas pessoas intelectualmente sofisticadas e
cépticas, tais como Mareia e Ted, parecem desenvolver-se na direcção da fé.
E note-se que a fé para a qual se desenvolveram não era de forma nenhuma
idêntica àquela que Kathy professava antes de evoluir. O Deus que aparece
antes do cepticismo não tem qualquer semelhança com o Deus que vem
depois. Conforme mencionei no início desta secção, não há uma só religião,
monolítica. Há muitas religiões e talvez muitos níveis de fé. Algumas
religiões podem ser pouco saudáveis para algumas pessoas; outras podem
ser saudáveis.
Tudo isto tem particular importância para os cientistas que são psiquiatras
ou psicoterapeutas. Lidando tão directamente com o processo de
desenvolvimento, recorre-se a eles, mais do que a qualquer outra pessoa,
para emitir juízos quanto à salutaridade do credo dum indivíduo. Como os
psicoterapeutas fazem normalmente parte duma tradição céptica, se não
estritamente Freudiana, têm a tendência de considerar a fé apaixonada em
Deus como patológica. Em determinadas circunstâncias, essa tendência
pode degenerar em franca parcialidade e preconceito. Não há muito tempo,
conheci um finalista universitário que ponderava seriamente a possibilidade
de entrar para um mosteiro dentro de alguns anos. Tinha feito psicoterapia
no ano anterior e continuava. "Mas não consegui falar

(Nota)

* Citado de Idries Shah, The Way of tbe Sufi (Nova Iorque: Dutton,

1970), p. 44.

245

com o meu terapeuta sobre o mosteiro nem sobre a profundidade da minha


crença religiosa," confessou-me. "Acho que ele não ia entender." Eu não
conhecia o jovem suficientemente bem para avaliar o significado que o
mosteiro tinha para ele ou se o desejo de entrar era de origem neurótica.
Gostaria muito de lhe ter dito: "Deve falar com o seu terapeuta a esse
respeito. É essencial para o tratamento que se abra em todos aspectos,
especialmente num assunto tão sério como este. Deve confiar em que o seu
terapeuta seja objectivo." Mas não o fiz. Porque não tinha nenhuma certeza
de que o terapeuta seria objectivo, que compreenderia, na verdadeira
acepção da palavra.

Os psiquiatras e os psicoterapeutas que têm atitudes simplistas em relação


à religião podem fazer um mau trabalho com alguns dos seus pacientes. Isto
acontece se considerarem todas as religiões boas ou saudáveis. Também
acontece se atirarem fora o bebé com a água do banho e considerarem toda
a religião uma doença ou o Inimigo. E também acontece, por último, se em
face da complexidade da questão se abstiverem de tratar das questões
religiosas dos pacientes, escondendo-se atrás duma tal capa de
objectividade que nem sequer consideram ser o seu papel envolverem-se
de alguma forma espiritual ou religiosa. Porque os pacientes necessitam
muitas vezes que estejam envolvidos. Não quero dizer que devam renunciar
à objectividade ou que seja fácil equilibrar a objectividade com a sua própria
espiritualidade. Não é. Pelo contrário, o que defendo é que todos os
psicoterapeutas deveriam forçar-se, não a envolverem-se menos, mas a
tornarem-se mais sofisticados nas questões religiosas, do que muitas vezes
são.

246

Visão Científica em Túnel

DE VEZ EM QUANDO, os psiquiatras encontram pacientes com uma estranha


perturbação da visão; esses pacientes só conseguem ver uma área muito
estreita exactamente em frente deles. Não vêem nada à esquerda ou à
direita, acima ou abaixo desse ponto de focagem estreito. Não conseguem
ver dois objectos adjacentes ao mesmo tempo, só vêem uma coisa de cada
vez e têm de virar a cabeça para ver outra. Este sintoma é comparado com
a visão através dum túnel, em que só se vê um pequeno círculo de luz e
claridade ao fundo. Não se encontra nenhuma perturbação física no seu
sistema de visão que justifique este sintoma. É como se, por qualquer razão,
não quisessem ver mais do que o que está à frente dos olhos, mais do que
aquilo em que focam a sua atenção.

Outra das razões principais porque os cientistas tendem a deitar fora o bebé
juntamente com a água do banho, é não verem o bebé. Muitos cientistas
simplesmente não olham para as provas da realidade de Deus. Sofrem
duma espécie de visão em túnel, um par de viseiras imposto
psicologicamente, que os impede de dirigir a sua atenção para os domínios
do espírito.

Entre as causas desta visão em túnel, gostaria de analisar duas, que


resultam da natureza da tradição científica. A primeira é uma questão de
metodologia. Com a sua louvável insistência na experiência, observação
cuidadosa e verificabilidade, a ciência tem posto grande ênfase na medição.
Medir qualquer coisa é experimentá-la numa certa dimensão, uma
dimensão em que podemos fazer observações de grande precisão, que
podem ser repetidas por outros. O uso da medida tem permitido à ciência
grandes avanços na compreensão do
247

universo material. Mas, em virtude do seu sucesso, a medida tornou-se uma


espécie de ídolo científico. O resultado é uma atitude, por parte de muitos
cientistas, não só de cepticismo mas de frontal rejeição do que não pode ser
medido. É como se dissessem, "O que não podemos medir, não podemos
conhecer; não vale a pena preocuparmo-nos com o que não podemos
conhecer; portanto o que não pode ser medido não é importante nem
merece a nossa observação." Devido a esta atitude, muitos cientistas
excluem da sua consideração todos os assuntos que são - ou parecem ser -
intangíveis. Incluindo, claro, a questão de Deus.

Este estranho mas bastante comum pressuposto de que as coisas que não
são fáceis de estudar não merecem estudo começa a ser questionado por
várias evoluções relativamente recentes na própria ciência. Uma é o
desenvolvimento de métodos de estudo cada vez mais sofisticados. Pela
utilização de equipamento electrónico como microscópios de electrões,
espectrofotómetros, computadores e programas como técnicas estatísticas,
podemos fazer medições de fenómenos cada vez mais complexos, que há
algumas décadas eram imensuráveis. O alcance da visão científica está
portanto a expandir-se. Como continua a crescer, talvez possamos dizer em
breve: "Nada existe para lá dos limites da nossa visão. Se decidimos estudar
qualquer coisa, podemos sempre achar uma metodologia para o fazer."

O outro desenvolvimento que nos ajuda a escapar da visão científica em


túnel é a descoberta pela ciência, relativamente recente, da realidade do
paradoxo. Há cem anos, o paradoxo significava erro para a mente científica.
Mas ao explorar fenómenos como a natureza da luz, electromagnetismo,
mecânica quântica e a teoria da relatividade, a física amadureceu durante o
último século até ao ponto de se reconhecer cada vez mais que, a
determinado nível, a realidade é paradoxal.

248

Assim escreveu J. Robert Oppenheimer:


Ao que parecem ser as perguntas mais simples, tenderemos a não dar
resposta ou a dar uma resposta que, à primeira vista, mais se pareça com
um estranho catecismo do que com as afirmações directas da física. Se
perguntarmos, por exemplo, se a posição do electrão se mantém, devemos
dizer "não"; se perguntarmos se a posição do electrão muda com o tempo,
devemos dizer "não"; se perguntarmos se o electrão está parado, devemos
dizer "não"; se perguntarmos se está em movimento, devemos dizer "não".
Buda deu estas respostas quando interrogado sobre as condições do Eu
dum homem após a sua morte; mas não são as respostas familiares na
tradição da ciência dos séculos XVII e XVIII. *

Os místicos têm-nos falado através dos tempos em termos de paradoxos.


Será possível que comecemos a ver uma plataforma de encontro entre a
ciência e a religião? Quando pudermos dizer que "um humano é mortal e
eterno ao mesmo tempo" e "a luz é uma onda e uma partícula ao mesmo
tempo", começámos a falar a mesma língua. Será possível que o caminho
do desenvolvimento espiritual que procede da religião supersticiosa para o
cepticismo científico nos possa vir a conduzir a uma realidade religiosa
genuína?

Esta possibilidade emergente de unificação da religião e da ciência é o


acontecimento mais significativo e excitante da vida intelectual dos nossos
dias. Mas está apenas a começar. Na sua maioria, tanto o religioso como o
científico se mantêm em quadros de referência auto-impostos e estreitos,
cada um

(Nota)

* Science and the Common Understanding (Nova Iorque: Simon and


Schuster, 1953), p. 40.

249

deles ainda substancialmente prejudicado pelo seu tipo de visão em túnel.


Veja-se, por exemplo, o comportamento de ambos em relação à questão dos
milagres. A própria ideia de milagre é um anátema para a maior parte dos
cientistas. Nos últimos quatrocentos anos, a ciência esclareceu várias "leis
naturais", tais como "Dois objectos são atraídos um pelo outro na proporção
da sua massa e na proporção inversa à distância entre eles" ou "A energia
não pode ser criada nem destruída". Mas tendo sido bem sucedidos na
descoberta das leis naturais, os cientistas, na sua visão do mundo,
transformaram num ídolo o conceito de lei natural, tal como fizeram um
ídolo da noção de medida. O resultado é que qualquer acontecimento que
não possa ser explicado pela lei natural, como é actualmente entendida, é
considerado irreal pelo sistema científico. Em relação à metodologia, a
ciência tem dito: "O que é muito difícil de estudar, não merece estudo." E a
respeito da lei natural, a ciência tende a dizer: "O que é muito difícil de
entender, não existe."

A Igreja tem sido um pouco mais liberal. Para o sistema religioso, o que não
pode ser entendido em termos da lei natural conhecida é milagre, e os
milagres existem. Mas, para além de autenticar a sua existência, a Igreja
não se tem mostrado ansiosa por examinar os milagres muito de perto. "Os
milagres não precisam de ser analisados cientificamente," tem sido a
atitude religiosa dominante. "Devem ser aceites simplesmente como actos
de Deus." Os religiosos não querem que a sua religião seja abalada pela
ciência, tal como os cientistas não querem a ciência abalada pela religião.

Casos de curas milagrosas, por exemplo, têm sido utilizados pela Igreja
Católica para autenticar os seus santos, e são comuns em muitas
denominações protestantes. No entanto, as Igrejas nunca disseram aos
médicos, "Querem juntar-se a nós para estudar estes fenómenos
fascinantes?" Nem os médicos

250

disseram, "Podemos juntar-nos para examinar cientificamente estas


ocorrências que devem ter tanto interesse para a nossa profissão?" Em vez
disso, a atitude da classe médica tem sido de que as curas milagrosas não
existem, que a doença duma pessoa que foi curada não existia, ou por ser
uma doença imaginária, como uma reacção de conversão histérica, ou
porque foi mal diagnosticada. Felizmente, no entanto, alguns cientistas,
médicos e investigadores religiosos sérios começam a examinar a natureza
de fenómenos tais como remissões espontâneas em doentes de cancro e
exemplos aparentemente com êxito de cura psíquica.

Há quinze anos, quando me licenciei em Medicina, tinha a certeza de que


não existiam milagres. Hoje, tenho a certeza de que os milagres abundam.
Esta mudança de consciência resultou de dois factores que funcionam em
simultâneo. Um é uma grande variedade de experiências que tive como
psiquiatra que, inicialmente, pareciam bastante vulgares mas que, quando
as analisei em maior profundidade, pareceram indicar que o meu trabalho
com os pacientes no sentido do seu desenvolvimento estava a ser
notavelmente apoiado de formas para as quais eu não tinha qualquer
explicação lógica - ou seja, formas que eram milagrosas. Essas experiências,
algumas das quais irei relatar, levaram-me a questionar o meu pressuposto
anterior de que as ocorrências milagrosas eram impossíveis. Depois de
questionar esse pressuposto, abri-me à possível existência de milagres.
Essa abertura, que constituía o segundo factor de causa da minha mudança
de consciência, permitiu-me passar a olhar para a existência vulgar,
alertado para o milagroso. Quanto mais olhava, mais encontrava.

Se houvesse uma só coisa que eu pudesse desejar do leitor do resto deste


livro, seria que possuísse a capacidade de se aperceber do que é milagroso.
Sobre essa capacidade, foi recentemente escrito:

251

A realização pessoal nasce e amadurece numa espécie de consciência


distinta, uma forma de consciência que foi descrita de muitas maneiras
diferentes por muitas pessoas diferentes. Os místicos, por exemplo,
referiram-na como a percepção da divindade e perfeição do mundo. Richard
Bucke referiu-se a ela como consciência cósmica; Buber descreveu-a nos
termos da relação Eu-Tu (I-Thou); e Maslow etiquetou-a como a "cognição do
ser". Utilizaremos o termo de Ouspensky e chamar-lhe-emos a percepção
dos milagres. Neste caso, "milagres" designa não só fenómenos
extraordinários mas também vulgares, porque qualquer coisa pode evocar
esta consciência especial desde que lhe seja dada atenção suficiente. Assim
que a percepção é libertada do domínio do preconceito e do interesse
pessoal, encontra-se livre para experimentar o mundo tal qual ele é e ver a
sua magnificência inerente... A percepção dos milagres não requer fé nem
pressupostos. É simplesmente uma questão de dar total e cuidadosa
atenção aos dados da vida, ou seja, ao que está sempre tão presente que
normalmente é tomado como garantido. A verdadeira maravilha do mundo
está disponível por toda a parte, na mais ínfima parte dos nossos corpos,
nos vastos espaços do cosmo, e na interligação íntima dessas e de todas as
coisas... Fazemos parte de um ecossistema delicadamente equilibrado em
que a interdependência acompanha a individualização. Somos todos
indivíduos, mas somos também partes de um todo maior, unidos em algo
indescritivelmente imenso e belo. A percepção do milagroso é a essência
subjectiva da auto-realização, a raiz a partir da qual crescem os valores e
experiências mais altos do homem. *

Michael Stark e Michael Washburn, "Beyond the Norm: A Speculative Model


of Self-Realization", Journal of Religion and Health, Vol. 16, N", l (1977), pp.
58-59.

252

No que respeita aos milagres, penso que o nosso quadro de referência tem
sido demasiado drástico. Temos procurado a sarça ardente, a separação das
águas, a voz tonitruante dos céus. Em vez disso, devíamos procurar a
evidência dos milagres nos acontecimentos vulgares do nosso dia-a-dia,
conservando ao mesmo tempo uma orientação científica. É o que irei fazer
na secção seguinte, examinando ocorrências vulgares na prática da
Psiquiatria, que me levaram ao entendimento do fenómeno extraordinário
da graça.

Mas gostaria de concluir com outra nota de aviso. Esta ligação entre a
ciência e a religião pode constituir um terreno pouco firme e perigoso.
Iremos lidar com percepção extra-sensorial e fenómenos "psíquicos" ou
"paranormais", bem como com outras variedades do miraculoso. É essencial
mantermos a cabeça fria. Participei recentemente numa conferência sobre a
cura pela fé, em que vários oradores instruídos apresentaram provas
anedóticas indicando que eles ou outros possuíam poderes curativos, de
forma tal que sugeria que essas provas eram rigorosas e científicas, quando
não o eram. Se um curandeiro pousa as mãos na articulação inflamada dum
doente e no dia seguinte a articulação deixa de estar inflamada, não quer
dizer que o doente tenha sido curado pelo curandeiro. As articulações
inflamadas deixam de o estar mais cedo ou mais tarde, gradualmente ou de
repente, independentemente do que se lhes fizer. O facto de dois
acontecimentos ocorrerem ao mesmo tempo não significa necessariamente
que estejam relacionados causalmente. Sendo esta área tão obscura e
ambígua, ainda se torna mais importante que a abordemos com um
cepticismo saudável, para não nos iludirmos a nós próprios nem a outros.
Uma das formas como os outros podem ser iludidos, por exemplo, é
apercebendo-se da ausência de cepticismo e de teste rigoroso da realidade
tantas vezes presentes nos indivíduos que são proponentes públicos da
realidade dos fenómenos

253

psíquicos. Esses indivíduos prejudicam o bom nome dessa área. Porque a


área dos fenómenos psíquicos atrai tanta gente com pouca capacidade de
testar a realidade, é tentador para os observadores mais realistas concluir
que os fenómenos psíquicos são irreais, embora não seja o caso. Há muitos
que tentam encontrar respostas simples para perguntas difíceis, casando
conceitos populares científicos e religiosos com muitas expectativas mas
pouca ponderação. O facto de tantos desses casamentos falharem não deve
ser considerado significativo de que o casamento é impossível ou
desaconselhável. Mas tal como é essencial que a nossa visão não seja
diminuída pela visão científica em túnel, também é essencial que as nossas
faculdades críticas e capacidade céptica não seja encandeada pela beleza
brilhante do domínio espiritual.

254

Secção IV

Graça

O Milagre da Saúde

Assombrosa graça! Como é doce o som Que salvou um desgraçado como


eu! Eu estava perdido, mas agora fui encontrado, Estava cego, e agora vejo.
Foi a graça que ensinou o meu coração a temer, E a graça aliviou os meus
receios; Que preciosa se mostrou a graça Na primeira hora em que
acreditei!

Por muitos perigos, trabalhos e armadilhas, Já passei;

Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui, E a graça me conduzirá


até casa.

E quando lá tivermos estado dez mil anos, Brilhando como o sol,

Não teremos menos dias para cantar em louvor de Deus Do que quando
começámos. *

A PRIMEIRA PALAVRA associada à graça neste famoso hino evangélico


americano é "assombrosa". Quando algo nos assom-

(Nota)

* Amazing Grace, por John Newton (1725-1807).

257

bra é porque não faz parte do curso vulgar das coisas, quando não é
previsível pelo que conhecemos da "lei natural". O que se segue demonstra
que a graça é um fenómeno comum e, até certo ponto, previsível. Mas a
realidade da graça continuará a ser inexplicável dentro do quadro
conceptual da ciência convencional e da "lei natural" tal como a
entendemos. Continuará miraculosa e assombrosa.

Há vários aspectos da prática da Psiquiatria que nunca deixam de me


espantar, a mim como a outros psiquiatras. Um deles é o facto de os nossos
pacientes serem assombrosamente saudáveis mentalmente. É hábito outros
especialistas da Medicina acusarem os psiquiatras de praticarem uma
disciplina inexacta e não científica. A verdade, no entanto, é que se sabe
mais das causas da neurose do que da grande maioria dos outros problemas
de saúde. Através da psicanálise, é possível traçar a etiologia e evolução
duma neurose num paciente individual, com uma exactidão e precisão
raramente igualada noutro ramo da Medicina. É possível vir a saber
exactamente como, quando, onde e porquê, um indivíduo manifesta um
determinado sintoma neurótico ou padrão de comportamento. Também é
possível saber com igual exactidão e precisão como, quando, onde e
porquê, uma determinada neurose pode ser ou foi curada. O que não
sabemos, contudo, é por que razão a neurose não é mais grave - porque é
que um paciente ligeiramente neurótico não é gravemente neurótico, ou
porque é que um paciente gravemente neurótico não é completamente
psicótico. Inevitavelmente, verificamos que o doente sofreu um trauma ou
traumas de determinada espécie que provocam uma determinada neurose,
mas os traumas têm uma intensidade que, no curso normal das coisas, seria
de esperar que provocassem uma neurose mais grave do que aquela de que
o paciente sofre.

Um homem de negócios, notavelmente bem sucedido, com trinta e cinco


anos, consultou-me devido a uma neurose que só

258

podia ser descrita como ligeira. Era filho ilegítimo e, durante a primeira
infância, foi criado apenas pela mãe, surda-muda, nos bairros pobres de
Chicago. Aos cinco anos, o Estado, considerando que uma mãe como ela
não tinha competência para educar uma criança, tirou-o à mãe, sem aviso
nem explicação, e puseram-no sucessivamente em três lares adoptivos
diferentes, onde foi tratado de forma indigna e com total ausência de
afecto. Aos quinze anos, ficou parcialmente paralisado em consequência da
rotura de um aneurisma numa das veias do cérebro. Aos dezasseis,
abandonou os últimos pais adoptivos e passou a viver sozinho. Como era de
prever, aos dezassete foi preso devido a um assalto particularmente
maldoso e desnecessário. Não recebeu tratamento psiquiátrico na prisão.

Quando foi libertado, depois de seis meses de detenção, as autoridades


arranjaram-lhe emprego como escriturário de armazém numa empresa
bastante vulgar. Nenhum psiquiatra ou assistente social podia prever que o
seu futuro fosse outra coisa senão sombrio. Passados três anos, no entanto,
passou a ser o chefe de departamento mais jovem da história da empresa.
Cinco anos depois, já casado com uma executiva, deixou a empresa e
montou o seu próprio negócio, com êxito, passando a ser um homem
relativamente rico. Na altura em que começou o tratamento comigo, tinha-
se tornado, além do mais, um pai afectuoso e eficaz, um intelectual auto-
didacta, um líder da comunidade e um artista qualificado. Como, quando,
porquê, onde aconteceu isso? Dentro dos conceitos vulgares de
causalidade, não sei. Juntos, conseguimos localizar com exactidão, dentro
do quadro habitual de causa e efeito, as determinantes da neurose ligeira e
curá-la. Não conseguimos de forma nenhuma determinar as origens do seu
sucesso imprevisível.

Este caso é citado precisamente porque os traumas constatáveis eram tão


dramáticos e as circunstâncias do sucesso tão óbvias. Na grande maioria
dos casos, os traumas de infância

259

são considerados mais discretos (embora normalmente igualmente


devastadores) e a evidência de saúde menos simples, mas o padrão é
basicamente o mesmo. Raramente se encontram doentes, por exemplo,
cuja saúde mental não é basicamente maior que a dos pais. Sabemos muito
bem porque as pessoas ficam mentalmente doentes. O que não
compreendemos é porque as pessoas sobrevivem aos traumas da vida tão
bem quanto o fazem. Sabemos exactamente porque certas pessoas se
suicidam. Não sabemos, dentro dos conceitos habituais de causalidade,
porque outras não se suicidam. Tudo o que podemos dizer é que existe uma
força, cujos mecanismos ainda não compreendemos completamente, que
parece funcionar normalmente na maior parte das pessoas para proteger e
incentivar a sua saúde mental mesmo nas condições mais adversas.

Embora os processos envolvidos nas disfunções mentais frequentemente


não correspondam aos processos das disfunções físicas, neste aspecto
parecem corresponder. Sabemos muito mais sobre as causas das doenças
físicas do que sobre as causas da saúde física. Pergunte-se a qualquer
médico, por exemplo, o que provoca a meningite meningogócica e a
resposta imediata será, "O meningococos, é claro." Contudo, há aqui um
problema. Se durante este Inverno eu fizesse culturas diárias desta bactéria
recolhida das gargantas dos habitantes da aldeia onde moro, encontrá-la-ia
em cerca de nove em cada dez pessoas. No entanto, há muitos anos que
ninguém tem meningite meningocócica na minha aldeia, nem é provável
que venha a ter este Inverno. O que se passa aqui? A meningite
meningocócica é uma doença relativamente rara, no entanto o agente
causativo é extremamente vulgar. Os médicos utilizam o fenómeno da
resistência para explicar este fenómeno, assumindo que o corpo possui um
conjunto de defesas que resistem à invasão das cavidades corporais pelo
meningococos como a toda uma hoste de organismos causadores de
doenças. Não há

260

dúvidas de que seja verdade; sabemos de facto bastante sobre estas


defesas e como funcionam. Mas continuam a existir enormes questões.
Enquanto que algumas das pessoas que irão morrer este Inverno de
meningite meningocócica estão debilitadas ou têm resistências diminuídas,
a maioria será de indivíduos anteriormente saudáveis sem falhas
conhecidas no seus sistemas imunitários. A um determinado nível,
poderemos afirmar com certeza que o meningococos foi a causa da sua
morte, mas esse nível é claramente superficial. A um nível mais profundo,
não saberemos porque morreram. O máximo que poderemos dizer é que as
forças que protegem normalmente as nossas vidas, não funcionaram neles
de alguma forma.

Embora o conceito de resistência se aplique mais vulgarmente às doenças


infecciosas, tais como a meningite, também é aplicável a toda a doença
física, duma ou doutra forma, excepto no caso da doença não infecciosa, em
que não temos quase nenhum conhecimento de como funciona a
resistência. Um indivíduo pode sofrer um único ataque ligeiro de colite
ulcerosa - uma disfunção normalmente aceite como psicossomática -,
recuperar completamente, e continuar a viver toda a vida sem voltar a ter a
mesma dificuldade. Outro pode ter crises seguidas e ficar cronicamente
incapacitado pela disfunção. Um terceiro pode ter um percurso fulminante e
morrer rapidamente, até do primeiro ataque. A doença parece ser a mesma,
mas as consequências são totalmente diferentes. Porquê? Não fazemos
ideia nenhuma, excepto que os indivíduos com um determinado padrão de
personalidade parecem ter tipos diferentes de dificuldade em resistir à
disfunção, enquanto que a grande maioria não tem qualquer dificuldade.
Como é que isto acontece? Não sabemos. Este tipo de perguntas pode ser
formulado em relação a quase todas as doenças, incluindo as mais comuns,
como ataques cardíacos, acidentes vasculares, cancro, úlceras pépticas e
outras. Há um número

261

crescente de pensadores que começam a sugerir que quase todas as


disfunções são psicossomáticas - que a psique está . de alguma forma
envolvida nas causas das diversas falhas que ocorrem no sistema
imunitário. Mas o que é espantoso não é que haja falhas; é o sistema
imunitário funcionar tão bem. Pela ordem natural das coisas, devíamos ser
comidos vivos pelas bactérias, consumidos pelo cancro, entupidos por
gorduras e coágulos, desgastados por ácidos. Não é extraordinário
adoecermos nem morrermos; o que é verdadeiramente notável é não
adoecermos normalmente com muita frequência e não morrermos muito
depressa. Podemos, portanto, dizer o mesmo das disfunções físicas que
dissemos sobre as disfunções mentais: há uma força, cujo mecanismo não
compreendemos completamente, que parece funcionar normalmente na
maior parte das pessoas, que protege e incentiva a sua saúde física mesmo
nas condições mais adversas.

O assunto dos acidentes levanta mais questões interessantes. Muitos


médicos e a maior parte dos psiquiatras já tiveram a experiência de se
defrontarem com o fenómeno da tendência para acidentes. Entre os muitos
exemplos na minha carreira, o mais dramático foi o dum rapaz de catorze
anos, que examinei como parte da sua admissão num centro de tratamento
residencial para delinquentes juvenis. A mãe tinha morrido no mês de
Novembro, quando ele tinha oito anos. Quando tinha nove anos, em
Novembro, caiu dum escadote e fracturou o úmero (parte superior do
braço). Aos dez anos, em Novembro, teve um acidente de bicicleta,
fracturou o crânio, com traumatismo grave. Aos onze, em Novembro, caiu
por uma clarabóia e fracturou uma anca. Aos doze, em Novembro, caiu de
skate e partiu o pulso. Aos treze, em Novembro, foi atropelado por um
automóvel, fracturando o pélvis. Ninguém punha em dúvida que este miúdo
tinha tendência para acidentes, nem qual a razão. Mas como aconteciam? O
rapaz não se deixava

262
i

magoar propositadamente. Nem tinha consciência do desgosto provocado


pela morte da mãe, dizendo-me, sem emoção, que se "tinha esquecido de
tudo o que se relacionava com ela". Para começar a compreender a questão
de como ocorreram estes acidentes, penso que temos que aplicar o conceito
de resistência ao fenómeno dos acidentes bem como ao fenómeno da
doença, pensar em termos de resistência aos acidentes bem como em
tendência para os acidentes. Não é simplesmente que certas pessoas, em
certas alturas da sua vida, tenham tendência para acidentes; é também
que, no curso normal das coisas, a maior parte de nós é resistente aos
acidentes.

Num dia de Inverno, quando tinha nove anos, ia para casa, carregado com
os livros da escola e, ao atravessar uma rua coberta de neve quando o sinal
estava a mudar, escorreguei e caí. Quando o carro que se aproximava
rapidamente conseguiu travar, a minha cabeça estava ao nível do pára-
choques da frente; tinha as pernas e o tronco debaixo da parte do meio do
carro. Saí debaixo do carro e, em pânico, fui a correr até casa, sem me ter
magoado. Só por si este incidente não parece ter nada de extraordinário;
pode dizer-se simplesmente que tive sorte. Mas juntem-se todas as outras
circunstâncias: as vezes que não fui atropelado por pouco a pé, de bicicleta
ou de carro; as vezes em que ia de carro e quase bati em peões ou falhei
por pouco ciclistas à noite; as vezes em que meti travões a fundo e parei a
um ou dois centímetros doutro carro; as vezes em que por pouco não fui de
"ski" contra árvores, em que quase caí de janelas; as vezes em que me
passou um taco de golfe pelo cabelo, etc.. O que é isto? Tenho uma vida
encantada? Se os leitores examinarem as suas vidas, nesta altura, suspeito
que a maioria encontrará na sua experiência pessoal, padrões semelhantes
de desastres evitados à justa de forma repetida, um número de acidentes
que quase aconteceram que é muito maior do que o número de acidentes

263
que de facto ocorreram. Além disso, creio que os leitores reconhecerão que
os seus padrões pessoais de sobrevivência, de resistência aos acidentes,
não resultam de um processo de tomada de decisão consciente. Será que a
maior parte de nós leva uma "vida encantada"? Será que é verdadeiro o
verso da canção: "Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui"?

Alguns podem achar que nada há de excitante em tudo isto, que todas as
coisas de que temos estado a falar são simples manifestações do instinto de
sobrevivência. Mas o dar nomes às coisas, explica-as? O facto de termos um
instinto para sobreviver parece vulgar porque lhe chamamos instinto? O
nosso entendimento das origens e mecanismos dos instintos é, no máximo,
minúsculo. Na verdade, a questão dos acidentes sugere que a nossa
tendência para a sobrevivência pode ser outra coisa, e ainda mais
miraculosa do que um instinto, que é por si um fenómeno miraculoso.
Embora não entendamos quase nada de instintos, concebemo-los como
funcionando dentro dos limites do indivíduo que os possui. A resistência às
disfunções mentais ou à doença física, podemos imaginar que esteja
localizada no subconsciente do indivíduo. Os acidentes, no entanto,
envolvem interacções entre indivíduos ou entre indivíduos e objectos
inanimados. As rodas do carro não me passaram por cima quando eu tinha
nove anos devido ao meu instinto de sobrevivência ou porque o condutor
possuía uma resistência instintiva a matar-me? Talvez tenhamos um instinto
não só de preservar as nossas vidas mas também as dos outros.

Embora eu não tenha passado por isso pessoalmente, tenho vários amigos
que assistiram a acidentes de automóvel em que as "vítimas" rastejaram,
virtualmente intactas, para fora de veículos completamente amassados. A
reacção delas tem sido de puro assombro. "Não percebo como alguém pode
ter sobrevivido a um desastre destes, quanto mais sem nenhuma lesão
grave!" afirmam. Como explicar isto? Pura sorte? Estes

264

amigos, que não são pessoas religiosas, ficaram assombrados precisamente


porque a sorte não parecia estar envolvida nestes incidentes. "Ninguém
podia ter sobrevivido," dizem eles. Embora não religiosos e sem pensarem
sequer, com alguma profundidade, no que estavam a dizer, na tentativa de
digerir estas experiências, os meus amigos faziam comentários do género
"Bom, parece que Deus ama os bêbados" ou "Parece que a vez dele ainda
não tinha chegado". O leitor poderá querer atribuir o mistério destes
incidentes a "sorte pura", uma "curva" ou "reviravolta do destino" e
contentar-se em fechar a porta a mais explorações. Se examinarmos esses
incidentes em maior detalhe, no entanto, o nosso conceito de instinto não é
suficientemente satisfatório para os explicar. Um veículo inanimado tem o
instinto de parar de forma a preservar os contornos do corpo humano que
está lá dentro? Essas perguntas parecem inerentemente absurdas. Embora
eu decida explorar mais a possibilidade destes incidentes terem
explicações, é óbvio que o nosso conceito tradicional de instinto não será
uma ajuda. Será talvez mais útil o conceito de sincronicidade. Antes de
considerarmos o conceito de sincronismo, no entanto, seria útil analisar
primeiro alguns aspectos do funcionamento da parte da mente humana que
designamos por subconsciente.

O Milagre do Subconsciente

QUANDO COMEÇO A TRABALHAR com um doente novo, desenho


frequentemente um grande círculo. Depois desenho um pequeno nicho
dentro do círculo. Aponto para o interior do nicho e digo, "Isto representa a
sua mente consciente. Todo o resto do círculo, 95% ou mais, representa o
subconsciente.

265

Se se esforçar o suficiente e pelo tempo necessário para se compreender a


si próprio, vai descobrir que esta vasta parte da sua mente, de que tem
pouca consciência, contém riquezas que transcendem a imaginação."

Claro que uma das formas como sabemos da existência deste domínio,
vasto mas escondido, da mente e da riqueza que contém, é através dos
sonhos. Um homem bastante importante veio consultar-me devido a uma
depressão que durava há muitos anos. Não sentia entusiasmo pelo trabalho,
mas não percebia porquê. Apesar dos pais terem sido relativamente pobres
e desconhecidos, vários antepassados do pai tinham sido homens famosos.
O meu paciente pouco se referiu a eles. A depressão era provocada por
muitos factores. Só passados alguns meses é que começámos a analisar a
questão da sua ambição. Na sessão a seguir àquela em que o assunto da
ambição foi levantado pela primeira vez, ele contou um sonho da noite
anterior, de que se segue um excerto: "Estávamos num apartamento cheio
de móveis enormes e opressivos. Eu era muito mais novo do que sou agora.
O meu pai queria que eu atravessasse a baía de barco para ir buscar uma
embarcação que ele, por qualquer razão, tinha deixado numa ilha do outro
lado. Eu estava ansioso pela viagem e perguntei-lhe como encontrava o
barco. Ele chamou-me à parte para um sítio onde se encontrava um móvel
particularmente grande e esmagador, uma cómoda enorme, com mais de
três metros de comprimento e que chegava ao tecto, com cerca de vinte ou
trinta gavetas gigantescas, e disse-me que veria o barco se espreitasse pelo
canto da cómoda." Inicialmente o significado do sonho era pouco claro, por
isso, como de costume, pedi-lhe que associasse a cómoda enorme. Ele disse
imediatamente, "Por qualquer razão - talvez porque era tão opressiva - faz-
me pensar num sarcófago." "Então e as gavetas?" perguntei. De repente,
ele sorriu. "Talvez quisesse matar todos os meus

266

antepassados," disse ele. "Faz-me lembrar um túmulo ou jazigo de família,


cada gaveta é suficientemente grande para conter um corpo." O significado
do sonho tornou-se claro. Tinham-no levado a ver, quando era novo, os
túmulos dos seus antepassados famosos do lado paterno, e ele tinha
seguido essa visão no caminho para a fama. Mas considerava-a uma força
que lhe oprimia a vida e desejava ser capaz de matar psicologicamente os
antepassados, para se libertar dessa força compulsiva.

Quem tiver trabalhado muito com sonhos, reconhecerá este como típico.
Gostaria de focar a sua utilidade num dos aspectos em que é típico. Este
homem tinha começado a tratar dum problema. Quase imediatamente, o
seu subconsciente produziu um drama que esclarecia a causa do problema,
uma causa de que ele anteriormente não tinha consciência. Fê-lo através de
símbolos, duma maneira tão elegante como o mais qualificado dos autores
de teatro. É difícil imaginar outra experiência nessa altura do tratamento
que fosse tão edificante para ele e para mim como este sonho. O
subconsciente parecia claramente querer ajudá-lo e ao nosso trabalho em
conjunto, e fê-lo com uma habilidade consumada.
É precisamente por serem normalmente tão úteis que os psicoterapeutas
fazem, geralmente, da análise dos sonhos, uma parte significativa do seu
trabalho. Devo confessar que há muitos sonhos cujo significado me escapa
completamente, e é tentador desejar petulantemente que o subconsciente
tivesse muitas vezes a decência de falar numa linguagem mais clara. No
entanto, nas ocasiões em que conseguimos fazer a tradução, a mensagem
parece ser sempre destinada a apoiar o nosso desenvolvimento espiritual.
Na minha experiência, os sonhos que podem ser interpretados fornecem
invariavelmente informações úteis ao sonhador. Essa ajuda assume uma
variedade de formas: como avisos contra ciladas pessoais; como

267

guias para a solução de problemas que não conseguimos resolver; como


indicação adequada de que não temos razão quando pensamos que a
temos, e encorajando-nos por termos razão quando pensamos que
provavelmente não a temos; como fontes de informação necessária sobre
nós próprios que nos falta; como orientadores, quando nos sentimos
perdidos; e como indicadores do caminho que devemos seguir quando nos
atolamos.

O subconsciente pode comunicar connosco quando estamos acordados com


a mesma elegância e benefício de quando estamos a dormir, embora de
forma ligeiramente diferente. É a forma de "se perder em pensamentos" ou
mesmo fragmentos de pensamentos. A maior parte do tempo, tal como com
os sonhos, não damos atenção a esses pensamentos e afastamo-los como
se não tivessem significado. É essa a razão por que se diz aos pacientes de
psicanálise para dizerem o que quer que seja que lhes venha à mente,
mesmo que pareça inicialmente disparatado ou insignificante. Sempre que
um paciente diz, "É ridículo, mas está sempre a vir-me à ideia este
pensamento disparatado - não faz sentido, mas disse-me que tenho que
falar nestas coisas," sei que chegámos a algum lado, que o doente recebeu
uma mensagem extremamente valiosa do subconsciente, uma mensagem
que iluminará significativamente a sua situação. Apesar de essas
"divagações" normalmente nos proporcionarem esclarecimentos sobre nós
próprios, também nos podem permitir compreender os outros e o mundo
exterior a nós. Como exemplo duma mensagem por "divagação" do
subconsciente, e que se inclui nesta última categoria, vou descrever uma
experiência da minha própria mente enquanto trabalhava com uma doente.
Era uma jovem que sofria, desde o início da adolescência, duma sensação
de tontura, uma sensação de que estava prestes a cair a qualquer
momento, para a qual nunca tinha sido encontrada uma causa física. Devido
a

268

esta sensação de tontura, ela caminhava com as pernas direitas e


afastadas, quase como um pato. Era inteligente e simpática e, no início, eu
não fazia nenhuma ideia do que lhe podia provocar as tonturas, de que não
se tinha curado em vários anos de psicoterapia, mas a propósito das quais
ela me tinha vindo consultar recentemente. A meio da terceira sessão, em
que ela estava confortavelmente sentada a conversar sobre várias
coisas, veio-me à ideia uma única palavra: "Pinóquio." Estava a tentar
concentrar-me no que a minha paciente dizia, pelo que afastei
imediatamente a palavra da consciência. Mas um minuto depois, apesar de
tudo, a palavra voltou-me à ideia, quase visível, como se estivesse impressa
no fundo dos meus olhos: PINÓQUIO. Irritado, pisquei os olhos e forcei-me a
prestar atenção à paciente. Contudo, como se tivesse vontade própria,
passado um minuto a palavra estava de regresso, a pedir para ser
reconhecida. "Calma lá," disse finalmente para comigo mesmo, "se a
palavra está tão ansiosa por me entrar na cabeça, talvez seja melhor dar-lhe
atenção, porque eu sei que estas coisas podem ser importantes, e sei que
se o meu subconsciente está a tentar dizer-me qualquer coisa, eu devia
ouvir." E assim fiz. "Pinóquio! Que diabo significava Pinóquio? Será que tinha
alguma coisa a ver com a minha doente? Ela não é o Pinóquio, pois não?
Espera aí; ela é engraçada, como uma bonequinha. Está vestida de
vermelho, branco e azul. De todas as vezes que esteve aqui, veio vestida de
vermelho, branco e azul. Anda duma maneira esquisita, como um soldado
de madeira de pernas hirtas. É isso! É uma marioneta. Meu Deus, é o
Pinóquio! É uma marioneta!" Nesse mesmo instante, a essência da paciente
foi-me revelada: não era uma pessoa real; era uma pequena marioneta de
madeira, hirta, tentando parecer viva mas receosa de, a qualquer momento,
cair e escorregar para o chão num monte de paus e fios. Um a um,
emergiram rapidamente os factos de suporte: uma mãe

269
incrivelmente dominadora que puxava os fios, que se orgulhava imenso de
ter ensinado a filha a ir à casa-de-banho "de um dia para o outro"; uma
vontade totalmente dedicada a ir de encontro às expectativas dos outros, a
ser limpa, arranjada, composta, arrumada, e dizer as coisas convenientes,
tentando freneticamente, qual malabarista, equilibrar as exigências que lhe
faziam; uma total ausência de motivação e de capacidade para tomar
decisões autónomas.

Esta visão imensamente valiosa sobre a minha paciente apresentou-se à


minha consciência como um intruso que não era bem-vindo. Não o tinha
convidado. Não o queria. A sua presença era-me estranha e sem
importância para o que eu estava a tratar, uma distracção desnecessária.
Resisti-lhe inicialmente, tentando várias vezes empurrá-lo para fora da porta
por onde tinha entrado. Esta qualidade aparentemente estranha e
indesejada é característica da matéria do subconsciente e da sua forma de
apresentação à mente consciente. Foi em parte devido a essa qualidade e à
resistência associada da mente consciente que Freud e os seus primeiros
seguidores concebiam o subconsciente como um repositório do primitivo, do
anti-social e do mal que há dentro de nós. É como se presumissem, pelo
facto de a nossa consciência não o querer, que o subconsciente era "mau".
Nestas mesmas linhas, tenderam a assumir que a doença mental residia de
alguma forma no subconsciente, como um demónio nas profundezas
subterrâneas da mente. Coube a Jung a responsabilidade de iniciar a
correcção desta perspectiva, que fez de variadas formas, inclusive
consagrando a expressão "Sabedoria do Subconsciente". A minha própria
experiência veio a confirmar as ideias de Jung a este respeito, até ao ponto
de concluir que a doença mental não é um produto do subconsciente; é
antes um fenómeno de consciência ou uma relação perturbada entre o
consciente e o subconsciente. Considere-se, por exemplo, a questão

270

da repressão. Freud descobriu em muitos dos seus pacientes desejos


sexuais e sentimentos hostis de que não tinham consciência, mas que no
entanto lhes estavam a fazer mal. Dado que esses desejos e sentimentos
residiam no subconsciente, criou-se a noção de que era o subconsciente que
"causava" a doença mental. Mas, antes de mais, por que razão se
localizavam esses desejos e sentimentos no subconsciente? Porque eram
reprimidos? A resposta é que a mente consciente não os queria. É neste não
querer, neste repúdio, que está o problema. O problema não é os seres
humanos terem esses sentimentos hostis e sexuais, mas sim que os seres
humanos têm uma mente consciente que tantas vezes não quer enfrentar
esses sentimentos e tolerar a dor de lidar com eles, e que se dispõe a varrê-
los para debaixo do tapete.

A terceira forma em que o subconsciente se manifesta e fala connosco se


nos dispusermos a ouvir (o que habitualmente não fazemos) é através do
nosso comportamento. Refiro-me a lapsos verbais e outros "erros" de
comportamento, ou "lapsos freudianos", que Freud, na sua Psicopatologia da
Vida Quotidiana, demonstrou inicialmente serem manifestações do
subconsciente. O facto de Freud utilizar o termo "psicopatologia" para
descrever estes fenómenos é mais uma vez indicativo da sua orientação
negativa em relação ao subconsciente; ele concebia-o como
desempenhando um papel vingativo, ou pelo menos como um diabo
malévolo a tentar fazer-nos tropeçar, em vez de o ver como uma espécie de
fada madrinha a esforçar-se imenso para nos fazer honestos. Quando um
paciente comete um lapso na psicoterapia, é um acontecimento
invariavelmente útil para o processo de terapia ou de cura. Nessas alturas, a
mente consciente do paciente está ocupada a tentar combater a terapia,
determinada a esconder a verdadeira natureza do Eu do terapeuta e do
próprio paciente. É o subconsciente, no entanto, que se alia ao terapeuta,
lutando pela aber-

271

tura, honestidade, verdade e realidade, lutando para "contar tal qual é".

Deixem-me dar alguns exemplos. Uma mulher meticulosa, totalmente


incapaz de reconhecer em si a emoção da ira e portanto incapaz de
exprimir zanga abertamente, iniciou um padrão de chegar alguns minutos
atrasada para as sessões de terapia. Sugeri-lhe que seria devido a sentir
algum ressentimento contra mim ou contra a terapia ou contra ambos. Ela
negou peremptoriamente essa possibilidade, explicando que os atrasos
eram puramente uma questão duma ou doutra força acidental na vida, e
proclamou a sua total apreciação a meu respeito e motivação pelo nosso
trabalho conjunto. Na tarde a seguir a essa sessão ela pagou as contas
mensais, incluindo a minha. O cheque que me passou não estava assinado
quando chegou. Na sessão seguinte, informei-a, sugerindo que não me tinha
pago como deve ser porque estava zangada. Ela disse, "Mas isso é ridículo!
Nunca na vida deixei de assinar um cheque. Sabe como sou meticulosa
nestes assuntos. É impossível que eu não tenha assinado o cheque."
Mostrei-lhe o cheque por assinar. Apesar de sempre se ter controlado muito
bem nas sessões, desta vez desatou aos soluços. "O que se passa comigo?"
gemia ela. "Estou a ir-me abaixo. É como se fosse duas pessoas." Na sua
agonia e com o meu reconhecimento de que era de facto como uma casa
dividida contra si própria, começou pela primeira vez a aceitar a
possibilidade de pelo menos uma parte dela albergar o sentimento da ira.
Estava dado o primeiro passo de progresso. Um outro paciente com um
problema de ira era um homem que achava irracional sentir, e muito menos
exprimir, zanga para com qualquer membro da família. Porque a irmã
estava de visita nessa altura, ele falou-me dela, descrevendo-a como "uma
pessoa perfeitamente encantadora". Mais tarde, durante essa sessão,
começou a falar-me dum jantar que oferecia nessa noite, que incluía

272

um casal vizinho e "claro, a minha cunhada". Chamei-lhe a atenção por se


ter referido à irmã como cunhada. "Suponho que me vai dizer que é mais
um daqueles lapsos freudianos," comentou jovialmente. "Vou sim,"
respondi. "O que o seu subconsciente está a dizer é que não quer que a sua
irmã seja sua irmã, que no que lhe diz respeito ela é só sua cunhada, e que
na verdade a detesta." "Eu não a detesto," respondeu ele, "mas ela fala
incessantemente, e já sei que hoje ao jantar vai monopolizar a conversa.
Acho que ela, às vezes, me faz ficar envergonhado." Mais um pequeno
começo estava feito.

Nem todos os lapsos exprimem hostilidade ou sentimentos "negativos"


negados. Exprimem todos os sentimentos negados, negativos ou positivos.
Exprimem a verdade, como as coisas são realmente, em vez da maneira
como gostamos de pensar que são. Talvez o lapso verbal mais comovente
da minha experiência tenha sido o duma jovem na primeira visita que me
fez. Eu sabia que os pais eram pessoas distantes e insensíveis, que a
educaram com esmero mas sem afecto e sem se importarem
verdadeiramente com ela. Ela apresentou-se como sendo uma mulher
mundana, liberada e independente, invulgarmente madura e auto-confiante
que queria tratar-se comigo porque, explicou-me ela, "Estou numa espécie
de impasse, com muito tempo disponível, e achei que um bocadinho de
psicanálise iria contribuir para o meu desenvolvimento intelectual."
Perguntei-lhe porque estava num impasse naquele momento e fiquei a
saber que tinha saído da universidade por estar grávida de cinco meses.
Não se queria casar. Pensou vagamente em dar o bebé para adopção a
seguir ao parto e depois ir para a Europa estudar. Perguntei-lhe se tinha
informado o pai da criança, que não via há quatro meses, sobre a gravidez.
"Sim," disse ela, "mandei-lhe um bilhete para lhe dizer que a nossa relação
era o produto duma criança." Querendo dizer que uma criança era o produto
da relação, tinha-me dito que

273

sob a máscara de mulher mundana era uma rapariguinha com fome,


privada de afecto, que tinha engravidado numa tentativa desesperada de
obter amor materno tornando-se mãe. Não a confrontei com o lapso, porque
não estava de forma nenhuma preparada para aceitar as suas necessidades
de dependência nem para as experimentar como seguras. No entanto, o
lapso foi-lhe útil porque me fez perceber que a pessoa que me procurava
era uma criança assustada que precisava de doçura protectora e do tipo de
apoio carinhoso mais simples, quase físico, ainda por muito tempo.

Estes três pacientes que cometeram lapsos estavam a tentar esconder-se,


não tanto de mim, como de si próprios. A primeira acreditava realmente que
não tinha qualquer traço de ressentimento. O segundo estava
completamente convencido de que não sentia nenhuma animosidade em
relação a qualquer dos membros da família. A última não se considerava
outra coisa senão uma mulher mundana. Através dum complexo de
factores, o conceito consciente que temos de nós próprios quase sempre
diverge, em maior ou menor grau, da realidade da pessoa que realmente
somos. Somos quase sempre menos ou mais competentes do que
pensamos ser. O subconsciente, no entanto, sabe quem somos realmente.
Uma das tarefas principais e essenciais no processo de desenvolvimento
espiritual é o trabalho contínuo de ajustar progressivamente o conceito
consciente que temos de nós próprios à realidade. Quando uma grande
parte dessa tarefa da vida inteira é desempenhada com relativa rapidez,
como pode ser através de psicoterapia intensa, o indivíduo sente-se muitas
vezes "renascido". "Não sou a pessoa que era," dirá o paciente, referindo-se
à mudança dramática da sua consciência; "Sou uma pessoa totalmente
nova e diferente." Uma pessoa como essa não tem dificuldade em
compreender as palavras da canção: "Eu estava perdido, mas agora fui
encontrado, estava cego, mas agora vejo."

274

Se identificarmos o nosso ego com o conceito ou consciência que temos de


nós próprios, ou com a consciência em geral, teremos que dizer do
subconsciente que temos uma parte que é mais sábia do que nós. Falámos
sobre esta "sabedoria do subconsciente" principalmente em termos de auto-
conhecimento e auto-revelação. No exemplo da paciente que o meu
subconsciente me revelou ser o Pinóquio, tentei demonstrar que o
subconsciente é mais sábio do que nós tanto em relação a outras pessoas
como a nós próprios. De facto, o nosso subconsciente é mais sábio do que
nós em todos os aspectos. Da primeira vez que fomos de férias a Singapura,
a minha mulher e eu, tendo chegado depois de escurecer, saímos do hotel
para dar um passeio a pé. Em breve chegámos a um grande espaço aberto
onde ao fundo, a dois ou três quarteirões de distância, conseguíamos
entrever na escuridão a forma vaga dum grande edifício. "O que será aquele
edifício?" disse a minha mulher. Respondi imediatamente com a maior
certeza, "Ah, é o Clube de Críquete de Singapura." As palavras tinham-me
saído da boca com total espontaneidade. Arrependi-me quase
imediatamente. Não tinha base nenhuma para as dizer. Não só nunca tinha
estado em Singapura, como nunca tinha visto um clube de críquete - nem
de dia, quanto mais de noite. Apesar disso, para meu assombro, à medida
que nos aproximámos do outro lado do edifício, que era a fachada, lá estava
à entrada uma placa de latão onde se lia Clube de Críquete de Singapura.

Como é que eu sabia isso que não sabia? Entre as explicações possíveis,
uma é a da teoria do "subconsciente colectivo" de Jung, em que herdamos a
sabedoria da experiência dos nossos antepassados sem termos tido a
experiência pessoal. Embora este tipo de conhecimento possa parecer
bizarro às mentes científicas, a sua existência é estranhamente reconhecida
na nossa linguagem vulgar de todos os dias. Veja-se a própria palavra
"reconhecer". Quando lemos um livro e encontramos
275

uma ideia ou uma teoria que nos atrai, que nos recorda qualquer coisa,
"reconhecemo-la" como verdadeira. No entanto, podemos nunca ter
pensado conscientemente nessa ideia ou teoria. A palavra diz que
"reconhecemos" o conceito, como se já o tivéssemos conhecido em tempos,
o tivéssemos esquecido e depois reconhecido como a um velho amigo. É
como se todo o conhecimento e toda a sabedoria estivessem contidos na
nossa mente e, quando aprendemos "uma coisa nova", estamos na verdade
a descobrir algo que já existia no nosso Eu. Este conceito está igualmente
reflectido na palavra "educação", que deriva do latim educare, traduzida
literalmente como "trazer para fora de" ou "conduzir em frente". Portanto,
quando educamos as pessoas, se usarmos a palavra seriamente, não lhes
metemos coisas novas na cabeça; antes, trazemos essas coisas para fora
delas; conduzimo-las a partir do subconsciente para a sua consciência. Elas
já eram possuidoras do conhecimento.

Mas qual é a fonte, essa parte de nós que é mais sábia que nós? Não
sabemos. A teoria de Jung do subconsciente colectivo sugere que a nossa
sabedoria é herdada. Experiências científicas recentes com material
genético em conjunção com o fenómeno da memória sugerem que é de
facto possível herdar o conhecimento, armazenado em células sob a forma
de ácido nucleico. O conceito da armazenagem química de informação
permite-nos começar a perceber como a informação potencialmente
disponível para a mente humana pode ser armazenada em poucos
centímetros cúbicos de substância cerebral. Mas mesmo este modelo
extraordinariamente sofisticado, que permite o armazenamento do
conhecimento herdado assim como do experimental num pequeno espaço,
deixa sem resposta as perguntas mais intrigantes. Quando especulamos
sobre a tecnologia de tal modelo - como poderá ser construído,
sincronizado, etc. - ainda ficamos mudos de espanto perante o fenómeno da
mente humana. A especulação sobre

276
estas questões quase não difere em qualidade da especulação quanto a
modelos de controle cósmico tais como Deus tendo sob o seu comando
exércitos e coros de arcanjos, anjos, serafins e querubins para o ajudarem
na tarefa de manter em ordem o Universo. A mente, que por vezes pretende
acreditar que os milagres não existem, é, em si, um milagre.

O Milagre do Serendipismo

EMBORA TALVEZ NOS SEJA possível conceber a sabedoria extraordinária do


subconsciente, como analisámos até aqui, como sendo uma parte
recentemente explicável dum cérebro molecular que funciona com uma
tecnologia miraculosa, continuamos a não ter uma explicação racional para
os chamados "fenómenos psíquicos", que estão claramente relacionados
com o funcionamento do subconsciente. Numa série de experiências
sofisticadas, o médico Montague Ullman e Stanley Krippner, licenciado em
filosofia, demonstraram conclusivamente que é possível a um indivíduo
acordado "transmitir" imagens repetida e rotineiramente a outro indivíduo
adormecido, separados por várias divisões, e que essas imagens apareçam
nos sonhos do adormecido*. Essa transmissão não ocorre apenas no
laboratório.

Por exemplo, não é invulgar que dois indivíduos que se conheçam tenham
separadamente o mesmo sonho ou sonhos incrivelmente semelhantes.
Como é que isto acontece? Não fazemos a menor ideia.

(NOta)

* "An Experimental Approach to Dreams and Telepathy: II Report of Three


Studies," American Journal of Psychiatry (Março 1970), pp. 1282-89.
Recomenda-se a quem ainda não está convencido da realidade da PÉS ou
que desconfia da sua validade científica a leitura deste artigo.

277

Mas acontece. A validade de tais ocorrências está provada cientificamente


em termos de probabilidade. Eu próprio, uma noite, tive um sonho que
consistia numa série de sete imagens. Mais tarde vim a saber que um
amigo, que tinha dormido em minha casa duas noites antes, tinha acordado
a meio dum sonho em que as mesmas sete imagens ocorriam na mesma
sequência. Nem ele nem eu conseguimos determinar qualquer razão para o
que aconteceu. Não conseguimos relacionar os sonhos com nenhuma
experiência que tivéssemos tido, partilhada ou não, nem os conseguimos
interpretar de nenhuma forma significativa. No entanto, sabíamos que tinha
acontecido qualquer coisa de grande significado. A minha mente dispõe de
milhões de imagens com que construir um sonho. A probabilidade de,
apenas por acaso, ter escolhido as mesmas sete que o meu amigo era
astronomicamente pequena. O acontecimento era tão pouco plausível que
sabíamos que não podia ter acontecido acidentalmente.

O facto de acontecimentos altamente improváveis, para os quais não se


consegue determinar uma causa dentro do quadro da lei natural tal como é
conhecida, ocorrerem com frequência improvável, é designado como o
princípio da sincronicidade. O meu amigo e eu não sabemos a causa ou a
razão porque tivemos sonhos tão improvavelmente semelhantes, mas um
dos aspectos da ocorrência era termo-los tido com pouco tempo de
intervalo. O tempo parece ser o elemento importante, talvez até crucial,
destes acontecimentos improváveis. Anteriormente, quando falámos da
tendência para os acidentes e da resistência aos mesmos, foi referido que
não é invulgar pessoas saírem de veículos completamente esmagados sem
uma beliscadura, e parecia ridículo especular que a máquina se
amachucasse instintivamente numa configuração que protegesse o
passageiro ou que o passageiro se encolhesse instintivamente de forma a
ajustar-se à máquina. Não há

278

nenhuma lei natural conhecida em que a configuração do veículo


(Ocorrência A) causasse a sobrevivência do passageiro, ou que a forma do
passageiro (Ocorrência B) fizesse com que o veículo se amachucasse de
determinada forma. De qualquer forma, embora uma não tenha provocado a
outra, a Ocorrência A e a Ocorrência B aconteceram sincronizadamente

- ou seja, ao mesmo tempo - de tal forma que o passageiro sobreviveu de


facto. O princípio da sincronicidade não explica porque ou como isto
aconteceu; apenas afirma que essas ocorrências conjuntas e improváveis
acontecem mais frequentemente do que seria previsível apenas devido ao
acaso. Não explica os milagres. O princípio serve apenas para esclarecer
que os milagres parecem ser questões de tempo e que são
extraordinariamente vulgares.
O incidente dos sonhos idênticos e quase síncronos qualifica-se, pela sua
improbabilidade estatística, como um fenómeno psíquico ou "paranormal"
genuíno, apesar do significado do incidente ser obscuro. Provavelmente, o
significado da maioria dos fenómenos psíquicos ou paranormais genuínos é
igualmente obscuro. De qualquer forma, outra das características dos
fenómenos psíquicos, para além da sua improbabilidade estatística, é que
um número significativo dessas ocorrências parece ser feliz - benéfica duma
maneira ou doutra para um ou mais dos participantes humanos envolvidos.
Um cientista maduro, extremamente céptico e respeitável, que fazia análise
comigo há pouco tempo, relatava o incidente seguinte: "Depois da nossa
última sessão, estava um dia tão bonito, decidi ir de carro pela estrada em
redor do lago no regresso a casa. Como sabe, a estrada à volta do lago tem
muitas curvas apertadas. Quando ia a chegar talvez à décima curva,
ocorreu-me de repente que viria um carro em alta velocidade do outro lado
da curva em direcção à minha mão. Sem pensar em mais nada, carreguei
vigorosamente no travão e

A,

279

parei completamente. Tinha acabado de fazer isso quando apareceu um


carro a alta velocidade na curva, que passou com as rodas dois metros para
cá da linha amarela e que quase veio contra mim apesar de eu estar imóvel
no meu lado da estrada. Se eu não tivesse parado, tinha sido inevitável
chocarmos na curva. Não faço ideia do que me fez parar. Podia ter parado
noutra curva qualquer e não o fiz. Já tinha feito muitas vezes aquela estrada
antes e embora me ocorresse que era perigosa, nunca tinha parado. Faz-me
pensar se de facto não haverá algo de verdade na PÉS (Percepção Extra-
Sensorial) e nesse tipo de coisas. Não tenho outra explicação."

É possível que as ocorrências estatisticamente improváveis até ao ponto de


serem exemplos de sincronicidade ou do paranormal possam ser tão
prejudiciais como benéficas. Ouvimos falar de acidentes anormais tal como
não-acidentes anormais. Embora cheia de armadilhas metodológicas, é
evidente que há necessidade de fazer investigação neste domínio. Nesta
altura, só posso declarar uma impressão muito nítida mas "não científica"
de que a frequência dessas ocorrências estatisticamente improváveis
claramente benéficas é bastante maior do que aquela em que o resultado é
prejudicial. Os resultados benéficos dessas ocorrências podem não ser em
termos de salvar vidas; muito mais frequentemente contribuem para dar
mais valor à vida ou para o desenvolvimento. Um exemplo excelente duma
dessas ocorrências é a experiência do "sonho do escaravelho" de Cari Jung,
relatado no artigo Da Sincronicidade e aqui citada na totalidade:

O meu exemplo refere-se a uma jovem paciente que, apesar dos esforços
feitos de ambos os lados, provou ser psico-

(Nota)

The Portable Jung, Joseph Campbell, ed. (Nova Iorque: Viking Press,

1971), pp. 511-12.

280

GRAÇA

logicamente inacessível. A dificuldade residia no facto de ela saber sempre


mais sobre tudo. A sua educação excelente tinha-a equipado com uma arma
feita à medida para o efeito, um racionalismo Cartesiano primorosamente
refinado com uma ideia da realidade impecavelmente "geométrica". Depois
de várias tentativas frustradas de lhe adoçar o racionalismo com uma
compreensão algo mais humana, tive que me reduzir à esperança de que
algo inesperado e irracional acontecesse, algo que rompesse a réplica
intelectual a que se tinha remetido. Bem, um dia, estava sentado em frente
dela, de costas para a janela, ouvindo o fluxo da sua retórica. Tinha tido um
sonho impressionante na noite anterior, em que alguém lhe tinha dado um
escaravelho de ouro uma peça de joalharia cara. Enquanto ela me estava a
contar o sonho, ouvi qualquer coisa a bater suavemente na janela. Voltei-me
e vi que era um insecto voador bastante grande que batia de encontro à
vidraça, na tentativa de entrar na sala escura. Isso pareceu-me estranho.
Abri a janela imediatamente e apanhei o insecto no ar quando ele entrou.
Era um besouro da família dos Escarabídeos, que ataca as roseiras (Cetonia
aurata), cuja cor verde-dourada se parece muito com um escaravelho de
ouro. Entreguei o besouro à minha paciente com as palavras, "Aqui tem o
seu escaravelho." A experiência abriu a brecha desejada no seu
racionalismo e quebrou-lhe o gelo da resistência intelectual. Agora podia
continuar o tratamento com resultados satisfatórios.
Aquilo de que falamos relativamente a acontecimentos paranormais com
consequências benéficas é o fenómeno do serendipismo. O dicionário
Webster define o serendipismo como "o dom de encontrar coisas valiosas ou
agradáveis não procuradas". Há vários factores intrigantes nesta definição.
Um é a definição de serendipismo como um dom, implicando

281

que algumas pessoas o possuem e outras não, que algumas pessoas têm
sorte e outras não. É uma das teses principais desta secção que a graça,
manifestada em parte por "coisas valiosas ou agradáveis não procuradas",
está disponível para todos, mas enquanto alguns tiram partido dela, outros
não. Ao deixar entrar o besouro, apanhá-lo e dá-lo à sua paciente, Jung
estava claramente a tirar partido dela. Iremos explorar algumas das razões
e formas em que as pessoas não tiram partido da graça, mais adiante, sob o
título "Resistência à Graça". Mas, para já, adiantarei que uma das razões
porque não tiramos inteiro partido da graça é não nos apercebermos da sua
presença - ou seja, não encontramos coisas valiosas não procuradas, porque
não apreciamos o valor da oferta quando nos é dada. Por outras palavras, os
acontecimentos serendipíticos ocorrem com todos nós, mas frequentemente
não reconhecemos a sua natureza serendipítica; consideramos tais
ocorrências banais, e consequentemente não tiramos total partido delas.

Há cinco meses atrás, dispondo de duas horas livres entre duas consultas,
numa certa cidade, perguntei a um colega que ali vivia se as podia passar
na biblioteca de sua casa, a trabalhar na revisão da primeira secção deste
livro. Quando lá cheguei, fui recebido pela mulher do meu colega, uma
mulher distante e reservada que parecia não simpatizar muito comigo e que
me tinha manifestado até alguma hostilidade, por diversas vezes, de forma
quase arrogante. Conversámos desajeitadamente durante cerca de cinco
minutos. Durante essa conversa superficial, ela disse que tinha sabido que
eu estava a escrever um livro e perguntou-me qual era o assunto. Disse-lhe
que tratava do desenvolvimento espiritual e não adiantei mais. Sentei-me
na biblioteca para trabalhar. Meia hora depois, encontrei um obstáculo. Uma
parte do que tinha escrito sobre a questão da responsabilidade parecia-me
completamente insatis-
282

fatória. Era óbvio que tinha que ser consideravelmente alongada para dar
sentido aos conceitos nela analisados, no entanto sentia que esse
alongamento ia prejudicar o seguimento do trabalho. Por outro lado, não
estava disposto a retirar toda essa secção, porque achava necessário fazer
alguma referência a esses conceitos. Debati-me com o dilema durante mais
de uma hora, não chegando a nenhuma conclusão, sentindo-me cada vez
mais frustrado e incapaz de resolver a situação.

Nessa altura, a mulher do meu colega entrou silenciosamente na sala.


Mostrava-se tímida e hesitante, respeitosa, no entanto simpática e dócil,
completamente diferente de todas as outras vezes em que nos tínhamos
encontrado antes. "Scotty, espero não estar a incomodá-lo," disse ela. "Se
estiver, diga-me." Disse-lhe que não, que estava com uma dificuldade que
não me deixava avançar, de momento. Ela trazia nas mãos um livrinho.
"Encontrei este livro por acaso," disse ela. "Achei que podia interessar-lhe.
Provavelmente não lhe interessa. Mas ocorreu-me que lhe pudesse ser útil.
Não sei porquê." Sentindo-me irritado e pressionado, poderia ter-lhe dito
que estava farto de livros até às orelhas - o que era verdade e que não via
forma de o ler no futuro mais próximo. Mas a estranha humildade dela
despertou uma resposta diferente. Disse-lhe que agradecia a sua
amabilidade e que tentaria lê-lo logo que possível. Levei-o para casa,
desconhecendo quando seria o "logo que possível". Mas, nessa mesma
noite, algo me obrigou a pôr de lado todos os outros livros que andava a
consultar para ler o dela. Era um volume fino intitulado Como as Pessoas
Mudam, de Allen Wheelis. Grande parte do livro era relacionada com
questões de responsabilidade. Um dos capítulos descrevia requintadamente
e em profundidade o que eu teria tentado dizer se tivesse aumentado a
secção difícil do meu próprio livro. Na manhã seguinte, condensei a secção
do meu livro num pequeno parágrafo conciso sugerindo ao leitor,

283
em nota de fim de página, o livro de Wheelis como uma análise exaustiva
ideal do assunto. O meu dilema ficou resolvido.

Isto não foi um acontecimento estrondoso. Não houve trombetas a anunciá-


lo. Podia muito bem tê-lo ignorado. Teria sobrevivido sem ele. De qualquer
modo, fui tocado pela graça. O acontecimento foi simultaneamente
extraordinário e vulgar

- extraordinário porque era altamente improvável, vulgar porque essas


ocorrências benéficas altamente improváveis acontecem-nos
constantemente, silenciosamente, batendo à porta da nossa consciência de
forma não mais dramática do que o besouro que batia suavemente na
janela.

Acontecimentos semelhantes ocorreram dúzias de vezes nos meses desde


que a mulher do meu colega me emprestou o livro. Têm-me acontecido
sempre. Alguns deles, reconheço-os. Doutros, posso tirar partido sem
sequer me aperceber da sua natureza miraculosa. Não tenho maneira de
saber quantos deixei fugir.

A Definição de Graça

ATÉ AQUI, NESTA SECÇÃO, descrevi uma variedade de fenómenos que têm
as seguintes características em comum:

(a) Servem para acalentar - apoiar, proteger e aumentar

- a vida humana e o desenvolvimento espiritual.

(b) O seu mecanismo de acção é compreensível de forma incompleta (como


no caso da resistência física e dos sonhos) ou totalmente obscuro (como no
caso dos fenómenos paranormais) segundo os princípios da lei natural tal
como interpretada pelo pensamento científico actual.

(c) A sua ocorrência é frequente, rotineira, vulgar e essencialmente


universal entre a humanidade.
284

(d) Embora potencialmente influenciados pela consciência humana, a sua


origem é exterior à vontade consciente e para lá do processo de tomada de
decisão consciente.

Embora considerados geralmente separados, cheguei à conclusão de que a


sua vulgaridade indica que estes fenómenos fazem parte ou são
manifestações dum único fenómeno: uma força poderosa originada
exteriormente à consciência humana que acalenta o desenvolvimento
espiritual dos seres humanos. Durante centenas ou até milhares de anos
antes da conceptualização científica de coisas como imuno-globulinas,
estados de sonho, e o subconsciente, esta força tem sido constantemente
reconhecida pelas religiões, que lhe deram o nome de graça. E cantaram
em seu louvor. "Assombrosa graça, quão doce o som..."

Que vamos fazer - nós que somos cépticos e temos mentes científicas - com
esta "força poderosa originada exteriormente à consciência humana que
acalenta o desenvolvimento espiritual dos seres humanos"? Não podemos
tocar nesta força. Não temos nenhuma forma aceitável de a medir. No
entanto, existe. É real. Vamos funcionar com a visão em túnel e ignorá-la
porque não se ajusta facilmente aos conceitos tradicionais científicos da lei
natural? Fazê-lo parece perigoso. Não creio que possamos almejar chegar ao
total entendimento do cosmo, e portanto à natureza da humanidade em si,
sem incorporar o fenómeno da graça no nosso quadro conceptual.

No entanto, nem sequer conseguimos localizar essa força. Só dissemos


onde ela não está: residente na consciência humana. Então, onde reside?
Alguns dos fenómenos expostos, tais como os sonhos, sugerem que a graça
reside no subconsciente do indivíduo. Outros fenómenos, tais como a
sincronicidade e o serendipismo, indicam que esta força existe para além
das fronteiras do indivíduo. Não é simplesmente por sermos cientistas que
temos dificuldade em localizar a graça. Os religiosos, que,
285

evidentemente, atribuem as origens da graça a Deus, acreditando que é


literalmente o amor de Deus, têm tido, através dos tempos, a mesma
dificuldade em localizar Deus. Existem, na Teologia, duas tradições extensas
e opostas a este respeito: uma, a doutrina da Emanência, que sustenta que
a graça emana dum Deus exterior ao homem; a outra, a doutrina da
Imanência, que defende que a graça imana de Deus a partir do centro do
ser humano.

Este problema - assim como, aliás, todo o problema do paradoxo - resulta do


nosso desejo, antes de mais, de localizar as coisas. Os seres humanos têm
uma profunda tendência a conceptualizar em termos de entidades
separadas. Concebemos o mundo composto dessas entidades: barcos,
sapatos e cera vedante, e outras categorias. E tendemos a compreender um
fenómeno colocando-o numa determinada categoria, dizendo que é esta ou
aquela entidade. Ou é isto ou aquilo, mas não pode ser ambos. Os barcos
são barcos e não são sapatos. Eu sou eu e tu és tu. A entidade Eu é a minha
identidade e a entidade Tu é a tua identidade, e tendemos a ficar muito
incomodados se as nossas identidades forem misturadas ou confundidas.
Como assinalámos anteriormente, os pensadores hindus e budistas crêem
que a nossa percepção de entidades distintas é uma ilusão, ou maya, e os
físicos modernos, que tratam da relatividade, fenómenos de partículas de
ondas, electro-magnetismo, etc., têm cada vez mais consciência das
limitações da nossa abordagem conceptual em termos de entidades. Mas é
difícil escapar-lhe. A nossa tendência para pensar em termos de entidades
obriga-nos a querer localizar as coisas, mesmo coisas como Deus e a graça,
e mesmo quando sabemos que essa tendência interfere com a nossa
compreensão dessas questões.

Tento não pensar no indivíduo como uma verdadeira entidade, e até onde as
minhas limitações intelectuais me obrigam a pensar (ou a escrever) em
termos de entidades, concebo as

286
fronteiras do indivíduo como sendo marcadas por uma membrana muito
permeável - uma cerca, se quiserem, em vez dum muro; uma cerca através
da qual ou por baixo e por cima da qual podem trepar, gatinhar ou
atravessar outras "entidades". Tal como a nossa mente consciente é sempre
parcialmente permeável ao nosso subconsciente, assim o nosso
subconsciente é permeável à "mente" exterior, a "mente" que nos atravessa
e que, no entanto, não é nós como entidade. Mais elegante e
adequadamente descritiva da situação do que a linguagem científica do
século XX de membranas permeáveis é a linguagem religiosa, do século XIV
(c. 1393) da Dama Julian, uma anacoreta de Norwich, ao descrever a relação
entre a graça e a entidade individual: "Pois como o corpo se veste de tecido,
e a carne de pele e os ossos de carne e o coração de tudo isso, assim nós
nos vestimos, corpo e alma, e estamos envolvidos na bondade de Deus.
Sim, e mais simples; porque todos eles se podem gastar e fenecer, mas a
bondade de Deus permanece sempre."*

Em todo o caso, independentemente de como os atribuímos ou onde os


localizamos, os "milagres" descritos indicam que o nosso desenvolvimento
como seres humanos é assistido por uma outra força que não a nossa
vontade consciente. Para compreender melhor a natureza desta força, creio
que podemos beneficiar ao considerar ainda outro milagre: o processo de
desenvolvimento de toda a vida, a que demos o nome de evolução.

(Nota)

* Revelation of Divine Love, Grace Warrack, ed. (Nova Iorque: British Book
Centre, 1923), Cap. VI.

287

O Milagre da Evolução

EMBORA NÃO A TENHAMOS focado até aqui como conceito, duma forma ou
doutra, temos tratado da evolução ao longo deste livro. O desenvolvimento
espiritual é a evolução dum indivíduo. O corpo dum indivíduo pode sofrer as
mudanças do ciclo da vida, mas não evolui. Não se forjam novos padrões
físicos. O declínio da capacidade física na velhice é uma inevitabilidade. No
espaço duma vida individual, no entanto, o espírito humano pode evoluir
drasticamente. Podem forjar-se novos padrões. A capacidade espiritual pode
aumentar (embora normalmente não o faça) até ao momento da morte
numa idade muito avançada. O nosso tempo de vida oferece-nos
oportunidades ilimitadas de desenvolvimento até ao fim. Embora este livro
se concentre na evolução espiritual, o processo de evolução física é
semelhante ao do espírito e fornece-nos um modelo para melhor
compreensão do processo de desenvolvimento espiritual e do significado da
graça.

A característica mais assinalável do processo de evolução física é ser um


milagre. Perante o que entendemos do Universo, a evolução não devia
ocorrer; o fenómeno não devia existir. Uma das leis básicas da Natureza é a
segunda lei da termodinâmica, que afirma que a energia flui naturalmente
dum estado de maior organização para um estado de menor organização,
dum estado de maior diferenciação para um estado de menor diferenciação.
Por outras palavras, o Universo está num processo de diminuição. O
exemplo frequentemente usado para descrever este processo é o dum
ribeiro, que corre naturalmente pela encosta abaixo. É preciso energia ou
trabalho bombas, comportas, humanos transportando baldes ou outros

288

meios - para inverter este processo, para voltar ao princípio, para levar a
água de volta para o cimo do monte. E essa energia tem de vir doutro lado.
Outro sistema energético tem que ser gasto para manter este. Por fim, de
acordo com a segunda lei da termodinâmica, em biliões e biliões de anos, o
Universo esgotar-se-á completamente até atingir o seu ponto mais baixo
como uma "massa" amorfa, totalmente desorganizada, totalmente
indiferenciada em que já nada acontece. Este estado de desorganização e
indiferenciação total é designado por entropia.

O curso natural da energia, pela encosta abaixo, até ao estado de entropia,


pode ser designado por força de entropia. Podemos então concluir que o
"fluxo" da evolução é contra a força da entropia. O processo de evolução
tem sido o desenvolvimento de organismos de estados inferiores para
estados cada vez mais elevados de complexidade, diferenciação e
organização. Um vírus é um organismo extremamente simples, pouco mais
que uma molécula. Uma bactéria é mais complexa, mais diferenciada,
possuidora duma parede de células, de tipos diferentes de moléculas e dum
metabolismo. Uma paramécia tem um núcleo, cílios e um sistema digestivo
rudimentar. Uma esponja não só tem células mas começa a ter tipos
diferentes de células interdependentes. Os insectos e os peixes têm
sistemas nervosos com métodos complexos de locomoção, e até
organizações sociais. E assim por diante, ao longo da escala de evolução,
uma escala com cada vez maior complexidade, organização e diferenciação,
com o homem, que possui um córtex cerebral enorme e padrões de
comportamento extraordinariamente complexos no topo, tanto quanto
sabemos.

Eu afirmo que o processo de evolução é um milagre, porque enquanto


processo de crescente organização e diferenciação, corre contra a lei
natural. No curso normal das coisas,

289

nós, que escrevemos e lemos este livro, não devíamos existir. O processo de
evolução pode ser representado em diagrama por uma pirâmide, com o
homem, o organismo mais complexo mas menos numeroso, no vértice
superior e os vírus, os organismos mais numerosos mas menos complexos,
na base:

ORGANIZAÇÃO MAIS COMPLEXA

ENTROPIA

O vértice é projectado para fora, para cima e para a frente contra a força de
entropia. Dentro da pirâmide coloquei uma seta que simboliza essa força
evolucionária, esse "algo" que tem desafiado com sucesso e
constantemente a "lei natural" em milhões sobre milhões de gerações e que
deve representar por si a lei natural ainda não definida.

A evolução espiritual da humanidade pode ser representada num diagrama


idêntico:
O conceito de que a evolução decorre contra a lei natural não é novo nem
original. Lembro-me que alguém que estudei nos meus tempos de
universidade dizia, "A evolução é um refluxo de corrente na segunda lei da
termodinâmica" mas, infelizmente, não consegui localizar a referência. Mais
recentemente, este conceito foi articulado por Buckminster Fuller no seu
livro And It Carne to Pass - Not to Stay (Nova Iorque: Macmillan, 1976).

290

COMPETÊNCIA ESPIRITUAL

ESPIRITUALIDADE NÃO DESENVOLVIDA

Tenho frisado repetidamente que o processo de desenvolvimento espiritual


é difícil e implica esforço. É assim porque é conduzido contra uma
resistência natural, contra uma inclinação natural para deixar as coisas
como estavam, para se agarrar aos mapas antigos e às velhas formas de
fazer as coisas, ir pelo caminho fácil. Sobre esta resistência natural, esta
força de entropia nas nossas vidas espirituais, terei mais a dizer em breve.
Mas, como no caso da evolução física, o milagre é ultrapassar essa
resistência. Nós desenvolvemo-nos. Apesar de tudo o que resiste ao
processo, tornamo-nos seres humanos melhores. Nem todos. Nem com
facilidade. Mas em número significativo, os seres humanos conseguem
desenvolver-se e às suas culturas. Há uma força que de algum modo nos
força a escolher o caminho mais difícil, pelo qual transcendemos a lama e o
esterco em que tantas vezes nascemos.

Este diagrama do processo de evolução espiritual pode ser aplicado à


existência dum único indivíduo. Cada um de nós tem o seu impulso de se
desenvolver e, ao obedecer a esse impulso, tem que combater sem ajudas a
sua própria resistência. O diagrama também se aplica à humanidade no seu
todo.

291
À medida que evoluímos como indivíduos, fazemos com que a nossa
sociedade evolua. A cultura que nos alimenta na infância é alimentada pela
nossa liderança na idade adulta. Quem atinge o desenvolvimento, não só
goza os frutos desse desenvolvimento como dá esses frutos ao mundo.
Evoluindo como indivíduos, levamos a humanidade às costas. E a
humanidade assim evolui.

A noção de que o plano de desenvolvimento espiritual do Homem se


encontra num processo de ascensão pode parecer pouco realista a uma
geração desiludida com o sonho do progresso. Há guerra, corrupção e
poluição por toda a parte. Como é que se pode sugerir, com razão, que a
raça humana está a progredir espiritualmente? No entanto, é exactamente
isso que eu sugiro. A nossa sensação de desilusão resulta do facto de
esperarmos de nós mais do que os nossos antepassados esperavam de si
próprios. O comportamento humano que consideramos hoje repugnante e
excessivo era aceite como natural em tempos idos. Uma das questões
principalmente focadas neste livro, por exemplo, é a das responsabilidades
dos pais pela educação espiritual dos filhos. Este tema não é radical hoje
em dia, mas há muitos séculos nem sequer era uma preocupação dos seres
humanos. Embora eu considere que a qualidade média da paternidade
exercida nos nossos dias é espantosamente baixa, tenho todas as razões
para acreditar que é muito superior à de apenas algumas gerações atrás.
Um estudo recente sobre um dos aspectos da educação infantil começa por
notar:

A lei romana dava ao pai controle absoluto sobre os filhos, que podia vender
ou condenar à morte impunemente. Este conceito de direito absoluto foi
transposto para a lei inglesa, onde prevaleceu até ao século XIV sem
mudança apreciável. Na Idade Média, a infância não era considerada a fase
única

292

da vida como a vemos hoje. Era habitual mandar as crianças, por vezes
ainda com sete anos, servir ou aprender um ofício, em que o estudo era
secundário em relação ao trabalho que a criança desempenhava para o
patrão. Não parecia haver distinção entre a criança e o serviçal em termos
de tratamento; até na linguagem, que frequentemente não tinha termos
separados para cada um. Só a partir do século XVI se passou a considerar
as crianças como merecendo interesse especial, com tarefas importantes e
específicas de desenvolvimento a desempenhar e merecedoras de afecto. *

Mas que força é esta que nos compele como indivíduos e como toda uma
espécie a evoluir contra a resistência natural da nossa própria letargia? Já a
classificámos. É o amor. O amor foi definido como "a vontade de se expandir
a si próprio para acalentar o seu próprio desenvolvimento pessoal ou o de
outro". Quando evoluímos, é porque nos esforçamos por isso, e esforçamo-
nos porque nos amamos a nós próprios. É através do amor que nos
elevamos. E é através do nosso amor pelos outros que os ajudamos a
elevarem-se. O amor, o prolongamento do Eu, é o próprio acto da evolução.
É a evolução que progride. A força evolucionária, presente em toda a vida,
manifesta-se na humanidade como amor humano. Entre a humanidade, o
amor é a força miraculosa que desafia a lei natural da entropia.

(Nota)

* André P. Derdeyn, "Child Custody Contests in Historical Perspective",


American Journal of Psychiatry, Vol. 133, N°. 12 (Dez. 1976), p. 1369.

293

O Alfa e o Ómega

AINDA NOS RESTA, no entanto, a pergunta feita no final da secção sobre o


amor: donde vem o amor? Só que agora pode ser alargada a uma pergunta
talvez ainda mais básica: donde vem toda a força da evolução? E a isto
podemos acrescentar a nossa confusão quanto às origens da graça. Porque
o amor é consciente, mas a graça não. Donde vem esta "força poderosa
originada exteriormente à consciência humana que apoia o
desenvolvimento espiritual dos seres humanos"?

Não podemos responder a estas perguntas da mesma forma científica como


respondemos donde vem a farinha, o aço ou as larvas. Não é simplesmente
por serem demasiado intangíveis, mas mais por serem demasiado básicos
para a nossa "ciência" tal qual ela existe. Porque estas não são as únicas
questões básicas a que a ciência não consegue responder. Sabemos
realmente o que é a electricidade, por exemplo? Ou donde vem a energia,
antes de mais? Ou o Universo? Talvez um dia a nossa ciência de respostas
venha a pôr-se a par das perguntas mais básicas. Até lá, se vier a acontecer,
só podemos especular, teorizar, postular e pôr hipóteses.

Para explicar os milagres da graça e da evolução, pomos a hipótese da


existência dum Deus que quer que evoluamos um Deus que nos ama. Para
muitos, esta hipótese parece demasiado simples, demasiado fácil;
demasiado parecida com a fantasia; infantil e ingénua. Mas que mais
temos? Ignorar os elementos fazendo uso da visão em túnel não é resposta.
Não podemos obter uma resposta sem fazer as perguntas. Por mais simples
que seja, ninguém que tenha observado os elementos e feito as perguntas
foi capaz de formular uma hipótese melhor

294

ou, na verdade, qualquer hipótese. Até que alguém o faça, estamos presos a
esta estranha noção infantil dum Deus que nos ama ou então a um vácuo
teórico.

E se levarmos isto a sério, descobriremos que esta simples noção dum Deus
que ama não implica uma filosofia simples.

Se afirmamos que a nossa capacidade de amar, este impulso para crescer e


evoluir, nos é "inspirada" por Deus, então temos que perguntar com que
fim. Porque quer Deus que nos desenvolvamos? Em que direcção nos
desenvolvemos? Onde está o ponto final, o objectivo da evolução? O que é
que Deus quer de nós? Não é minha intenção envolver-me aqui em detalhes
teológicos, e espero que os intelectuais me perdoem por não seguir os
preceitos da Teologia especulativa. Porque apesar de todos nós andarmos
com pezinhos de lã à volta do assunto, todos nós que presumimos que
existe um Deus que ama e pensamos realmente sobre o assunto,
eventualmente chegamos a uma ideia aterradora: Deus quer que nos
tornemos Nele. Desenvolvemo-nos para nos tornarmos Deus. Deus é o
objectivo final da evolução. É Deus a fonte da força evolucionária e é Deus
que é o destino. É esse o significado quando dizemos que Ele é o Alfa e o
Ómega, o princípio e o fim.

Quando referi que esta é uma ideia aterradora, estava a ser moderado. É
uma ideia muito antiga, mas fugimos dela, aos milhões, em perfeito pânico.
Porque nunca outra ideia veio à mente do homem que lhe imponha um
fardo tão pesado. É a ideia mais exigente por si só de toda a história da
humanidade. Não por ser difícil de conceber; pelo contrário, é a essência da
simplicidade. Mas porque se acreditarmos nela, exige de nós tudo o que
possamos dar, tudo o que tivermos. Uma coisa é acreditar num Deus
simpático que cuida de nós a partir de uma posição superior de poder, que
nós nunca poderíamos alcançar. Outra é acreditar num Deus que pretende
precisamente que atinjamos a Sua posição, o Seu poder, a Sua

295

sabedoria, a Sua identidade. Se acreditássemos ser possível ao homem


tornar-se Deus, esse credo, pela sua própria natureza, impor-nos-ia a
obrigação de tentar atingir o possível. Mas nós não queremos essa
obrigação. Não queremos ter que nos esforçar tanto. Não queremos a
responsabilidade de Deus. Não queremos a responsabilidade de ter que
pensar constantemente. Enquanto acreditarmos que nos é impossível
tornarmo-nos Deus, não temos que nos preocupar com o nosso
desenvolvimento espiritual, não temos que nos esforçar para atingir níveis
cada vez mais altos de consciência e de actividade de amor; podemos
relaxar e ser apenas humanos. Se Deus está no céu e nós aqui em baixo, e
nunca nos encontrarmos, podemos deixar-lhe toda a responsabilidade da
evolução e da direcção do Universo. Podemos fazer a nossa parte
assegurando o nosso conforto na velhice, preferivelmente com filhos e
netos saudáveis, felizes e agradecidos; mas para além disso não precisamos
de nos maçar. Esses objectivos já são difíceis de atingir e não devem ser
menosprezados. De qualquer modo, assim que acreditamos ser possível ao
homem tornar-se Deus, nunca podemos realmente descansar muito tempo,
nem podemos dizer "Pronto, acabei a minha tarefa, o meu trabalho está
feito". Temos que nos esforçar constantemente por uma sabedoria e uma
eficácia cada vez maiores. Pois através desse credo, estaremos presos, pelo
menos até à morte, a um esforço árduo de melhoria pessoal e
desenvolvimento espiritual. A responsabilidade de Deus deve ser a nossa.
Não admira que acreditar na possibilidade de se ser Deus nos repugne.
A ideia de que Deus nos ampara activamente para que possamos
desenvolver-nos até sermos como Ele, confronta-nos com a nossa própria
preguiça.

296

GRAÇA

A Entropia e o Pecado Original

SENDO DEDICADO AO desenvolvimento espiritual, este livro,


inevitavelmente, trata do outro lado da mesma moeda: dos impedimentos
do desenvolvimento espiritual. No limite, existe só um impedimento, que é a
preguiça. Se combatermos a preguiça, todos os outros impedimentos serão
ultrapassados. Se não ultrapassarmos a preguiça, nenhum dos outros será
transposto. Portanto, este livro também é sobre a preguiça. Ao analisar a
disciplina, considerámos a preguiça de tentar evitar o sofrimento
necessário, ou de fugir pelo caminho mais fácil. Ao analisar o amor,
examinámos também o facto de o não-amor ser a indisponibilidade para
expandir o Eu. A preguiça é o oposto do amor. O desenvolvimento espiritual
implica esforço, como já foi referido repetidamente. Estamos agora em
posição de examinar a natureza da preguiça em perspectiva, e de
compreender que a preguiça é a força de entropia tal como se manifesta na
vida de todos nós.

Durante muitos anos, considerei a noção do pecado original destituída de


significado e até censurável. A sexualidade não me parecia particularmente
pecaminosa. Nem os meus outros apetites variados. Deixava-me
frequentemente tentar, comendo demais numa refeição excelente e,
embora pudesse ter algumas dores de indigestão, não me doía certamente
a consciência. Apercebia-me do pecado no mundo: vigarice, preconceito,
tortura, brutalidade. Mas não me apercebia de nada de pecaminoso inerente
aos bebés nem me parecia racional acreditar que as crianças estavam
amaldiçoadas porque os antepassados tinham comido o fruto da árvore do
conhecimento do Bem e do Mal. Gradualmente, no entanto, fui-me

297
apercebendo cada vez melhor da natureza ubíqua da preguiça. Na luta para
ajudar os meus pacientes a desenvolverem-se, descobri que o meu inimigo
principal era invariavelmente a sua preguiça. E apercebi-me de que em mim
existia uma resistência semelhante a estender-me a novas áreas de
pensamento, responsabilidade e maturação. Uma coisa tinha claramente
em comum com o resto da humanidade: era a minha preguiça. Foi nessa
altura que a história da serpente e da maçã passou a fazer sentido.

A questão principal é aquilo que falta. A história conta que Deus tinha o
hábito de "passear no jardim à hora mais fresca do dia" e que se abriam os
canais de comunicação entre Ele e o homem. Mas se era assim, então por
que razão Adão e Eva, separados ou em conjunto, antes ou depois da
tentação da serpente, não disseram a Deus, "Temos curiosidade em saber
porque não queres que cornamos o fruto da árvore do conhecimento do
Bem e do Mal. Gostamos de estar aqui e não queremos parecer mal-
agradecidos, mas a Tua lei quanto a este assunto não parece fazer muito
sentido e gostávamos muito que nos explicasses"? Mas claro que não
disseram isto. Em vez disso, transgrediram a lei de Deus sem nunca
perceberem a razão por trás da lei, sem fazerem o esforço de questionar
Deus directamente, questionar a sua autoridade ou até comunicar com Ele a
um nível razoavelmente adulto. Escutaram a serpente, mas não ouviram a
versão de Deus da história antes de agir.

Porque falharam? Porque não foi dado nenhum passo entre a tentação e a
acção? É este passo em falta que é a essência do pecado. O passo em falta
é o passo do debate. Adão e Eva podiam ter estabelecido um debate entre a
serpente e Deus e, não o tendo feito, não obtiveram a versão de Deus
quanto à questão. O debate entre a serpente e Deus simboliza o diálogo
entre o Bem e o Mal, que pode e deve ocorrer no interior da

298
mente dos seres humanos. O facto de não promovermos - ou não
promovermos completa e empenhadamente - este debate interno entre o
Bem e o Mal é a causa das más acções que constituem o pecado. Ao
debater a sensatez dum determinado curso de acção, é comum os seres
humanos não tentarem obter a versão de Deus da questão. Não consultam
nem escutam o Deus dentro deles, o conhecimento da rectidão que reside
inerentemente no interior das mentes de toda a humanidade. Cometemos
este erro porque somos preguiçosos. Dá trabalho promover esses debates
internos. Exigem tempo e energia. E se os levarmos a sério - se ouvirmos
com seriedade este "Deus dentro de nós" - normalmente damos por nós a
ser impelidos a tomar o caminho mais difícil, o caminho que exige maior
esforço. Promover o debate é abrirmo-nos ao sofrimento e à luta. Cada um
de nós, mais ou menos frequentemente, foge a esse esforço e procura
evitar esse passo doloroso. Como Adão e Eva e como todos os nossos
antepassados, somos todos preguiçosos.

Portanto o pecado original existe; é a nossa preguiça. É muito real. Existe


em todos e cada um de nós - bebés, crianças, adolescentes, adultos, velhos;
os sábios e os estúpidos; os aleijados e os sãos. Alguns podem ser menos
preguiçosos do que outros, mas somos todos preguiçosos em certa medida.
Por muito enérgicos, ambiciosos ou inteligentes que sejamos, se olharmos
verdadeiramente para dentro de nós próprios, encontraremos a preguiça
algures à espreita. É a força de entropia dentro de nós, que nos empurra
para baixo e para trás no caminho da evolução espiritual.

Alguns leitores poderão dizer para consigo, "Mas eu não sou preguiçoso.
Trabalho sessenta horas por semana e aos fins-de-semana, apesar de estar
cansado, esforço-me por sair com a minha mulher, levo as crianças ao
jardim zoológico, ajudo em casa, faço uma quantidade de trabalhos. As
vezes

299

parece que é só o que faço - trabalhar, trabalhar, trabalhar." Posso


compreender esses leitores, mas insisto em lhes fazer notar que
encontrarão em si a preguiça se a procurarem. Porque a preguiça assume
formas diferentes das relacionadas com o número de horas passadas no
trabalho ou dedicadas às suas responsabilidade para com outros. Uma das
principais formas assumidas pela preguiça é a do medo. O mito de Adão e
Eva serve também para o ilustrar. Pode dizer-se, por exemplo, que
não foi a preguiça que impediu Adão e Eva de questionar Deus sobre as
razões da Sua lei, mas sim o medo medo em face da grandeza de Deus,
medo da ira de Deus. Mas embora nem todo o medo seja preguiça, há muito
medo que o é. Muito do nosso medo é medo da mudança do status quo,
medo de perdermos o que temos se nos aventurarmos a partir donde
estamos agora. Na secção sobre disciplina, falei do facto de as pessoas
considerarem as informações novas ameaçadoras, porque se as
incorporarem, terão que dispender bastante esforço a rever os seus mapas
da realidade e procuram instintivamente evitar esse trabalho. Em
consequência, na maior parte dos casos, lutam contra a nova informação
em vez de lutarem pela sua assimilação. Essa resistência é motivada pelo
medo, sim, mas a base desse medo é a preguiça; é medo do trabalho que
teriam que ter. De igual modo, na secção sobre o amor, falei dos riscos de
nos estendermos a um novo território, novos compromissos e
responsabilidades, novos relacionamentos e níveis de existência. Aqui, mais
uma vez, existe o risco de perda de status quo, e o medo é do esforço
envolvido na chegada a um novo status quo. Portanto, é bastante provável
que Adão e Eva tivessem medo do que lhes aconteceria se questionassem
Deus abertamente; em vez disso, tentaram escapar da maneira mais fácil, o
atalho ilegítimo da dissimulação, conseguirem conhecimentos sem esforço,
e esperarem passar despercebidos. Mas não passaram.

300

Questionar Deus pode custar-nos muito trabalho. Mas a moral da história é


que tem de ser feito.

Os psicoterapeutas sabem que, embora os pacientes nos solicitem porque


procuram uma mudança qualquer, sentem de facto terror pela mudança -
pelo trabalho da mudança. É devido a esse terror ou preguiça que a grande
maioria dos pacientes - talvez nove em cada dez - que inicia o processo de
psicoterapia, o abandona muito antes de estar terminado. A maioria dessas
desistências ocorre durante as primeiras sessões ou nos primeiros meses de
tratamento. A dinâmica é mais clara no caso dos pacientes casados que se
apercebem, logo nas primeiras sessões, que os seus casamentos são
terrivelmente desorganizados ou destrutivos e que, portanto, o caminho
para a saúde mental passa pelo divórcio ou então por um processo
extremamente difícil e doloroso de total restruturação do casamento. De
facto, esses pacientes muitas vezes já têm essa consciência subliminar
antes de procurarem a psicoterapia, e as primeiras sessões servem apenas
para confirmar o que já sabiam e temiam. Em todo o caso, ficam transidos
pelo medo de enfrentar as dificuldades aparentemente intransponíveis de
viverem sós ou as dificuldades aparentemente igualmente intransponíveis
de se esforçarem meses e anos a fio com os seus parceiros por uma relação
radicalmente melhorada. Por isso abandonam o tratamento, por vezes
depois de duas ou três sessões, outras depois de dez ou vinte. Podem deixá-
lo com uma desculpa como "Chegámos à conclusão que cometemos um
erro quando pensámos ter dinheiro para o tratamento" ou honestamente,
reconhecendo abertamente: "Tenho medo do que a terapia possa fazer ao
meu casamento. Eu sei que é um falhanço. Talvez um dia venha a ter
coragem para voltar." De qualquer maneira, preferem manter um status quo
infeliz a dispender o tremendo esforço necessário para conseguirem sair das
suas armadilhas.

301

Na fase inicial do desenvolvimento espiritual, a maior parte dos indivíduos


não tem consciência da sua própria preguiça, embora possam dizer coisas
como "Claro, como toda a gente, tenho os meus momentos de preguiça".
Isto é porque a parte preguiçosa do Eu, como diabo que deve ser, não tem
escrúpulos e é especializada em disfarces enganosos. Veste a preguiça com
todas as espécies de racionalizações, que a parte mais desenvolvida do Eu
está demasiado fraca para reconhecer com facilidade ou para combater.
Assim, quando lhe é sugerido que adquira mais conhecimentos numa certa
área, a pessoa poderá dizer "Essa área já foi estudada por muitas pessoas e
não encontraram nenhuma resposta", ou "Conheço um homem que se
dedicava a isso e era um alcoólico que se suicidou", ou "Burro velho não
aprende línguas", ou ainda "Está a tentar manipular-me para me tornar uma
fotocópia sua e não é isso que é suposto os psicoterapeutas fazerem." Todas
estas respostas e outras são disfarces da preguiça dos pacientes ou alunos,
concebidos não tanto para a esconder do terapeuta ou do professor como
deles próprios. Porque o reconhecimento da preguiça tal como é e o seu
reconhecimento em si próprio é o começo da sua redução.

Por estas razões, aqueles que se encontram nas fases relativamente mais
avançadas de desenvolvimento espiritual são os que mais consciência têm
da sua própria preguiça. São os menos preguiçosos que reconhecem a sua
lentidão. No meu combate pessoal pela maturidade, vou tendo cada vez
mais consciência de novas perspectivas, que parecem querer escapar-me
por si. Ou entrevejo novos caminhos, construtivos, de pensamento em que
os meus passos, aparentemente por vontade própria, começam a arrastar-
se. Suspeito que, a maioria das vezes, esses pensamentos valiosos se
escapam sem eu notar e que vagueio por esses caminhos sem saber o que
estou a fazer. Mas quando tenho consciência de que estou a arrastar os pés,

302

sinto-me obrigado a forçar a vontade de apressar o passo na direcção que


estou a evitar. A luta contra a entropia nunca acaba.

Todos temos um Eu doente e um Eu saudável. Por muito neuróticos ou


psicóticos que sejamos, mesmo parecendo totalmente medrosos e
completamente rígidos, ainda há uma parte de nós, mesmo que pequena,
que quer que nos desenvolvamos, que gosta da mudança e do
desenvolvimento, que sente atracção pelo novo e pelo desconhecido, e que
está disposta a ter o trabalho e correr os riscos envolvidos na evolução
espiritual. E por muito saudáveis e espiritualmente evoluídos que sejamos,
ainda há uma parte de nós, mesmo que pequena, que não quer que nos
esforcemos, que se agarra ao que é velho e familiar, receosa de qualquer
mudança ou esforço, desejosa de conforto e ausência de dor a qualquer
preço, mesmo que a penalidade seja a ineficácia, a estagnação ou a
regressão. Nalguns de nós, o Eu saudável parece pateticamente pequeno,
completamente dominado pela preguiça e pelos receios do nosso Eu doente
monumental. Outros podem desenvolver-se rapidamente, o Eu saudável
dominante a tentar progredir na evolução para Deus; o Eu saudável, no
entanto, tem que estar sempre vigilante contra a preguiça do Eu doente que
espreita dentro de nós. A este respeito, nós, seres humanos, somos todos
iguais. Dentro de todos e cada um de nós há dois Eus, um doente e um
saudável - o impulso da vida e o impulso da morte, se quiserem. Cada um
de nós representa toda a raça humana; dentro de cada um de nós existe o
instinto para se tornar Deus e a esperança para a humanidade e dentro de
cada um de nós existe o pecado original da preguiça, a força de entropia
sempre presente que nos empurra de regresso à infância, ao ventre e aos
pântanos a partir dos quais começámos a evoluir.

303
O C A M I N 11 O MENOS PERCORRIDO

O Problema do Mal

TENDO SUGERIDO QUE a preguiça é o pecado original e que a preguiça, sob


a forma do nosso Eu doente, pode ser mesmo o diabo, é relevante
completar o quadro com alguns comentários sobre a natureza do Mal. O
problema do Mal é talvez o maior de todos os problemas teológicos. No
entanto, como com tantas outras questões "religiosas", a ciência da
Psicologia tem actuado, com algumas excepções menores, como se o mal
não existisse. Apesar disso, a Psicologia tem, potencialmente, muito a
contribuir para a questão. Espero poder fazer parte dessa contribuição num
trabalho futuro, em pormenor. De momento, sendo apenas periférico em
relação ao tema deste livro, limitar-me-ei a mencionar resumidamente
quatro conclusões a que cheguei quanto à natureza do Mal.

Primeiro, cheguei à conclusão de que o mal é real. Não é uma invenção


duma mente religiosa primitiva a tentar explicar o desconhecido. Existem
mesmo pessoas, e instituições constituídas por pessoas, que respondem
com ódio na presença da bondade e destroem o Bem na medida em que
puderem. Não o fazem com malícia consciente mas cegamente, sem se
aperceberem da sua própria maldade -- na verdade, procurando evitar
aperceber-se. Como nas descrições do diabo na literatura religiosa, odeiam
a luz e fazem instintivamente tudo o que for preciso para a evitar, incluindo
tentar extingui-la. Destruem a luz nos próprios filhos e em todos os seres
sob o seu poder.

As pessoas más odeiam a luz porque os revela a si próprios. Odeiam a


bondade porque revela a sua maldade; odeiam o amor porque revela a sua
preguiça. Destruem a luz, a bondade e o amor para evitarem a dor dessa
consciência. A minha

304
segunda conclusão é, portanto, que o Mal é a preguiça levada aos limites do
extremo. Tal como o defini, o amor é a antítese da preguiça. A preguiça
vulgar é um fracasso passivo no amor. Algumas pessoas normalmente
preguiçosas não levantam um dedo para se expandirem a menos que sejam
obrigadas. A sua maneira de ser é uma manifestação do não-amor; no
entanto, não são más. As pessoas verdadeiramente más, por outro lado,
evitam activamente, e não passivamente, expandir-se. Farão tudo o que
estiver ao seu alcance para proteger a sua própria preguiça, para preservar
a integridade do seu Eu doente. Em vez de apoiarem os outros, destroem-
nos. Se necessário, matam para escapar à dor do seu próprio
desenvolvimento espiritual. Como a integridade do seu Eu doente é
ameaçada pela saúde espiritual dos que os rodeiam, tentam por todas as
formas esmagar e demolir a saúde espiritual que existe à sua volta. Assim,
defino o Mal como o exercício do poder político

- ou seja, a imposição da vontade sobre terceiros por coerção aberta ou


encoberta - de modo a evitar a expansão do Eu relacionada com o apoio ao
desenvolvimento espiritual. A preguiça vulgar é o não-amor; o Mal é o anti-
amor.

A minha terceira conclusão é que a existência do mal é inevitável, pelo


menos neste estádio da evolução humana. Dada a força de entropia e o
facto de que os humanos possuem livre arbítrio, é inevitável que a preguiça
seja bem contida nuns e completamente incontida noutros. Como a
entropia, por um lado, e o fluxo evolucionário do amor, pelo outro, são
forças opostas, é natural que essas forças se encontrem relativamente
equilibradas na maior parte das pessoas, enquanto uns poucos, num
extremo, manifestam amor quase puro e outros, no extremo oposto,
entropia ou maldade puras. Sendo forças conflituosas, também é inevitável
que os que se encontram nos extremos se combatam; é tão natural que o
Mal odeie a bondade como o é que a bondade odeie o Mal.

305

Por último, cheguei à conclusão que, embora a entropia seja uma força
enorme, na sua forma mais extrema de maldade humana é curiosamente
ineficaz como força social. Eu próprio já observei o mal em acção, atacando
ferozmente e destruindo eficazmente os espíritos e as mentes de dúzias de
crianças. Mas o mal faz ricochete no grande quadro da evolução humana.
Por cada alma que destrói - e há muitas - é instrumental na salvação de
outras. Sem querer, o mal serve de farol de aviso contra os seus próprios
escolhos. Como a maior parte de nós foi dotado de uma sensação de horror
quase instintiva perante a exorbitância do mal, quando reconhecemos a sua
presença, a nossa própria personalidade é afinada pela consciência da sua
existência. A nossa consciência do mal é um sinal para nos purificarmos. Foi
o mal que, por exemplo, levou Cristo à cruz, permitindo-nos vê-lo à
distância. O nosso envolvimento pessoal na luta contra o mal no mundo é
uma das formas como evoluímos.

A Evolução da Consciência

As PALAVRAS "CONSCIÊNCIA" e "consciente" têm surgido repetidamente. As


pessoas más resistem à consciência da sua própria condição. Uma das
marcas dos espiritualmente avançados é a consciência da sua própria
preguiça. As pessoas muitas vezes não têm consciência da sua própria
religião ou visão do mundo e, no decurso do seu desenvolvimento religioso,
torna-se necessário que tomem consciência dos seus pressupostos e
tendências em relação ao preconceito. Através da técnica dos parênteses e
da atenção do amor, vamos tendo mais consciência da pessoa que amamos
e do mundo. Uma parte essencial da disciplina é a aquisição de consciência
da

306

nossa responsabilidade e poder de escolha. Essa capacidade é atribuída à


porção da mente designada por consciência. Estamos assim num ponto em
que podemos definir o desenvolvimento espiritual como o desenvolvimento
ou evolução da consciência.

A palavra "consciente" deriva do prefixo latino con, que quer dizer "com" e
da palavra scire, que significa "saber". Ser consciente significa "saber com".
Mas como devemos entender este "com"? Saber com quêl Já falámos do
facto de a parte subconsciente da mente ser possuidora de um
conhecimento extraordinário. Sabe mais do que nós, sendo "nós" o nosso Eu
consciente. E quando ficamos cientes duma nova verdade, é porque a
reconhecemos como verdadeira; nós re-conhecemos o que já sabíamos. Por
isso, não poderemos concluir que tornar-se consciente é saber com o nosso
subconsciente? O desenvolvimento da consciência é o desenvolvimento da
qualidade de ficar ciente de conhecimentos na nossa mente consciente
juntamente com a nossa mente subconsciente, que já possui esses
conhecimentos. É um processo da mente consciente a entrar em sincronia
com o subconsciente. Este conceito não devia parecer estranho aos
psicoterapeutas, que frequentemente definem a sua terapia como um
processo de "tornar o subconsciente consciente" ou de expandir o domínio
do consciente em relação ao domínio do subconsciente.

Mas ainda não explicámos como é que o subconsciente possui todo este
conhecimento que ainda não aprendemos conscientemente. Aqui, mais uma
vez, a questão é tão básica que não existe resposta científica. Mais uma
vez, só podemos avançar hipóteses. E mais uma vez não conheço nenhuma
hipótese tão satisfatória como a postulação de um Deus que nos está
intimamente associado - tão intimamente que faz parte de nós. Se quiser
conhecer o lugar mais próximo onde procurar a graça, é dentro de si
próprio. Se desejar uma maior

307

sabedoria do que a sua, pode encontrá-la dentro de si. O que isto sugere é
que a ligação entre Deus e o homem é, pelo menos em parte, a ligação
entre o nosso subconsciente e o consciente. Ou duma forma mais simples, o
nosso subconsciente é Deus. Deus está dentro de nós. Fizemos sempre
parte de Deus. Deus tem estado sempre connosco, está agora e estará
sempre.

Como pode isso ser? Se o leitor estiver horrorizado pela ideia do nosso
subconsciente ser Deus, recordo-lhe que este conceito não é de modo
nenhum herético, sendo na essência o mesmo que o conceito cristão do
Espírito Santo, que reside em todos nós. Para compreender esta relação
entre nós e Deus, considero muito útil pensar no subconsciente como num
rizoma, ou um conjunto de raízes muito grande e muito rico, que alimenta a
pequena planta da consciência que dela brota visivelmente. Esta analogia
devo-a a Jung que, ao descrever-se como "um estilhaço da divindade
infinita", dizia assim:
A vida sempre me pareceu semelhante a uma planta que vive do seu
rizoma. A sua verdadeira vida está invisível, escondida no rizoma. A parte
que aparece acima da terra dura um só Verão. Depois murcha - uma
aparição efémera. Quando pensamos no crescimento e na decadência
infindos da vida e da civilização, não podemos escapar da impressão de
absoluta nulidade. No entanto, nunca perdi a sensação de algo que vive e
dura sob o fluxo eterno. O que vemos é a flor, que passa. O rizoma fica. *

Jung nunca chegou ao ponto de afirmar que Deus existia no subconsciente,


embora os seus escritos apontassem claramente nessa direcção. O que fez
foi dividir o subconsciente: o

(Notas)

C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, Aniela Jaffe, ed. (Nova Iorque:


Vintage Books, 111965) p. 4.

308

"subconsciente pessoal" individual, mais superficial, e o "subconsciente


colectivo", mais profundo e comum a toda a humanidade. Na minha visão, o
subconsciente colectivo é Deus; o consciente é o homem como indivíduo; e
o subconsciente pessoal é a ligação entre eles. Como tal, é inevitável que o
subconsciente pessoal seja um local de alguma perturbação, o cenário
duma luta entre a vontade de Deus e a vontade do indivíduo.
Anteriormente, descrevi o subconsciente como um domínio benigno e
amoroso. Acredito que assim seja. Mas os sonhos, embora contenham
mensagens de afectuosa sabedoria, também contêm muitos sinais de
conflito; embora possam ser agradavelmente renovadores, podem também
ser pesadelos tumultuosos e assustadores. Devido a essa tumultuosidade, a
doença mental foi localizada no subconsciente pela maioria dos pensadores,
como se o subconsciente fosse a sede da psicopatologia e os sintomas
fossem como demónios subterrâneos que assomam à superfície para
atormentar o indivíduo. Como eu já referi, o meu ponto de vista é o
contrário. Acredito que o consciente é a sede da psicopatologia e que as
perturbações mentais são perturbações da consciência. É por o nosso Eu
consciente resistir à nossa sabedoria subconsciente que adoecemos. É
precisamente por a nossa consciência estar perturbada que surge o conflito
entre ela e o subconsciente que tenta curá-la. Por outras palavras, a doença
mental ocorre quando a vontade consciente do indivíduo diverge
substancialmente da vontade de Deus, que é a vontade do subconsciente
do próprio indivíduo.
Afirmei que o objectivo final do desenvolvimento espiritual é que o indivíduo
se torne um com Deus. É conhecer com Deus. Sendo o subconsciente Deus,
podemos ainda definir o objectivo do desenvolvimento espiritual como
sendo o ponto em que o Eu consciente atinge o estado de Deus. É o
indivíduo tornar-se total e inteiramente Deus. Isso significa que o objectivo é
o

309

consciente fundir-se com o subconsciente de modo a tornar-se tudo


subconsciente? De modo algum. Chegamos agora ao fulcro da questão. O
objectivo é tornar-se Deus mantendo a consciência. Se a flor da consciência
que cresce a partir do rizoma do Deus subconsciente pode tornar-se Deus,
então Deus assume uma nova forma de vida. É este o significado da nossa
existência individual. Nascemos para nos tornarmos, como indivíduos
conscientes, novas formas de vida de Deus.

O consciente é a parte executiva do nosso ser total. É o consciente que


toma decisões e as traduz para a acção. Se nos tornássemos todos
inconscientes, seríamos na verdade como o recém-nascido, um com Deus
mas incapaz de qualquer acção que fizesse sentir a presença de Deus no
mundo. Como referi, há uma qualidade regressiva no pensamento místico
de algumas teologias hindus ou budistas, em que o estatuto do recém-
nascido sem fronteiras do ego é comparado com o Nirvana e o objectivo de
entrar no Nirvana é semelhante ao objectivo de regressar ao ventre
materno. O objectivo da teologia aqui apresentada, e o da maior parte dos
místicos, é exactamente o oposto. Não é tornar-se um bebé sem ego e
inconsciente. É antes desenvolver um ego maduro e consciente que se pode
tornar o ego de Deus. Se como adultos, andando sobre as duas pernas,
capazes de fazer escolhas independentes que influenciam o mundo,
pudermos identificar a nossa vontade madura e livre com a de Deus, então
Deus terá assumido, através do nosso ego consciente, uma nova e potente
forma de vida. Ter-nos-emos tornado agentes de Deus, o seu braço, por
assim dizer, e portanto parte d'Ele. E até onde pudermos influenciar o
mundo através das nossas decisões conscientes de acordo com a Sua
vontade, as nossas próprias vidas passarão a ser agentes da graça de Deus.
Nós próprios nos teremos tornado uma forma da graça de Deus,
trabalhando em Seu nome entre a humanidade, criando amor onde o amor
antes não existia,
310

:r

puxando os nossos iguais para o nosso nível de consciência, fazendo


avançar o plano da evolução humana.

A Natureza do Poder

CHEGAMOS AGORA AO ponto de poder compreender a natureza do poder. É


um assunto muito mal compreendido. Uma das razões por que é mal
entendido é que há duas espécies de poder

- político e espiritual. A mitologia religiosa esforça-se imenso por fazer a


distinção entre os dois. Antes do nascimento de Buda, por exemplo, os
adivinhos informaram o pai de que Buda viria a ser o rei mais poderoso da
terra ou então um pobre que seria o maior líder espiritual que o mundo
jamais conhecera. Um ou outro, mas não ambos. E Satanás ofereceu a
Cristo "todos os reinos do mundo e a sua glória". Mas ele rejeitou essa
alternativa e preferiu morrer, aparentemente impotente, na cruz. O poder
político é a capacidade de coagir os outros, aberta ou encobertamente, a
fazer a nossa vontade. Essa capacidade reside numa posição, como a de rei
ou presidente, ou então no dinheiro. Não reside na pessoa que ocupa a
posição ou que possui o dinheiro. Em consequência, o poder político não
está relacionado com a bondade nem com a sabedoria. Pessoas muito
estúpidas e muito más caminharam como reis sobre a terra. O poder
espiritual, contudo, reside inteiramente no indivíduo e nada tem a ver com a
capacidade de coagir os outros. As pessoas de grande poder espiritual
podem ser ricas e ocupar por vezes posições políticas de liderança, mas
podem igualmente ser pobres e não ter nenhuma autoridade política. Então,
qual é a capacidade do poder espiritual se não é a capacidade de coagir? É
a capacidade de tomar decisões com o máximo de consciência. É a
consciência.

311
A maior parte das pessoas quase sempre toma decisões sem ter grande
consciência do que está a fazer. Agem sem compreender muito bem os seus
próprios motivos e sem fazer ideia das ramificações das suas escolhas.
Sabemos realmente o que estamos a fazer quando aceitamos ou rejeitamos
um cliente potencial? Quando batemos numa criança, promovemos um
subordinado, namoriscamos com uma conhecida? Quem quer que tenha
trabalhado muito tempo na arena política sabe que acções tomadas com a
melhor das intenções muitas vezes são mal sucedidas e acabam por ser
prejudiciais; ou que as pessoas com motivos baixos podem promover uma
causa aparentemente malévola que acaba por se revelar construtiva. Assim
acontece também na educação das crianças. É melhor fazer o que está
certo pelas razões erradas do que o que está errado pelas razões certas?
Muitas vezes estamos mais às escuras quando temos muitas certezas, e
mais esclarecidos quando mais confusos.

Que fazer, à deriva num mar de ignorância? Alguns são niilistas e dizem
"Nada". Propõem apenas que continuemos à deriva, como se num mar tão
vasto não pudesse ser traçada nenhuma rota que nos levasse a um
verdadeiro esclarecimento ou a um destino com algum significado. Mas
outros, suficientemente conscientes para saberem que estão perdidos, têm
esperança de ultrapassar a ignorância desenvolvendo uma consciência
ainda maior. Têm razão. É possível. Mas essa consciência maior não lhes
chega num único e repentino relâmpago esclarecedor. Vem devagar, peça
por peça, e cada peça tem que ser conquistada pelo esforço paciente do
estudo e da observação de tudo, incluindo deles próprios. São estudantes
humildes. O caminho do desenvolvimento espiritual é um caminho de
aprendizagem para toda a vida.

Se seguirmos esse caminho com determinação e durante o tempo


suficiente, as peças do conhecimento começam a encai-

312
xar. Gradualmente, as coisas começam a fazer sentido. Há caminhos sem
saída, desilusões, conceitos a que chegamos apenas para os rejeitar. Mas
gradualmente conseguimos chegar a uma compreensão cada vez mais
profunda do que constitui a nossa existência. E gradualmente chegamos ao
ponto em que sabemos verdadeiramente o que estamos a fazer. Chegamos
ao poder.

A experiência do poder espiritual é basicamente de felicidade. Há uma


felicidade que advém da mestria. Na verdade, não há maior satisfação do
que ser um especialista, do que saber realmente o que estamos a fazer. Os
que mais se desenvolveram espiritualmente são os que são especialistas
em viver. E existe outra felicidade, ainda maior. É a felicidade da comunhão
com Deus. Porque quando sabemos verdadeiramente o que fazemos,
participamos na omnisciência de Deus. Com total consciência da natureza
duma situação, dos nossos motivos para agirmos em relação a ela e dos
resultados e ramificações da nossa acção, atingimos o nível de consciência
que normalmente só esperamos de Deus. O nosso Eu consciente conseguiu
alinhar-se pela mente de Deus. Sabemos com Deus.

No entanto, os que atingiram este estádio de desenvolvimento espiritual,


este estado de grande consciência, são invariavelmente possuídos por uma
humildade cheia de alegria. Porque uma das coisas de que têm consciência
é que a consciência da sua invulgar sabedoria tem a sua origem no
subconsciente. Estão conscientes da sua ligação ao rizoma e que o
conhecimento flui do rizoma para eles através dessa ligação. Os seus
esforços de aprendizagem são apenas esforços para abrir a ligação, e têm a
noção de que o rizoma, o subconsciente, não é só deles mas de toda a
humanidade, de toda a vida, de Deus. Invariavelmente, quando se lhes
pergunta qual a fonte do seu conhecimento e poder, os verdadeiramente
poderosos respondem: "Não é o meu poder. O pouco poder que tenho é uma
expressão diminuta dum poder muito maior. Sou apenas um

313

canal. O poder não é nada meu." Afirmei que esta humildade é cheia de
alegria. Isso é porque, com a noção da sua ligação com Deus, os
verdadeiramente poderosos sentem uma diminuição do seu sentido do Eu.
"Seja feita a vossa vontade e não a minha. Tornai-me o vosso instrumento,"
é o seu único desejo. Essa perda do Eu traz sempre consigo uma espécie de
êxtase calmo, que não difere da experiência de estar apaixonado. Cientes
da sua íntima ligação com Deus, a solidão termina. Existe comunhão.

Apesar de feliz, a experiência do poder espiritual é também aterradora.


Quanto mais consciência se tem, mais difícil é agir. Mencionei este facto na
conclusão da primeira secção quando referi a analogia dos dois generais,
cada um deles obrigado à decisão de enviar ou não uma divisão para
combate. Aquele que considera a sua divisão única e simplesmente uma
unidade estratégica dorme descansado depois de tomar a decisão. Mas para
o outro, consciente da vida de cada homem sob o seu comando, a decisão é
angustiante. Somos todos generáis. Qualquer acção que tomemos pode
influenciar o curso da civilização. A decisão de elogiar ou castigar uma só
criança pode ter vastas consequências. É fácil agir com a consciência de
elementos limitados e deixar cair os dados onde calhar. Quanto mais
consciência temos, no entanto, mais elementos temos que assimilar e
integrar na nossa tomada de decisão. Quanto mais sabemos, mais
complexas se tornam as decisões. No entanto, quanto mais sabemos, mais
possível se torna prever onde vão cair os dados. Se assumirmos a
responsabilidade de prever exactamente onde vai cair cada dado, é
provável que fiquemos tão esmagados pela complexidade da tarefa que
fiquemos sem acção. Mas a inacção é, em si, uma forma de acção e embora
não fazer nada possa ser o melhor caminho em certas circunstâncias,
noutras pode ser desastroso e destrutivo. Portanto, o poder espiritual não é
só consciência; é a capacidade de manter

314

a competência para tomar decisões com cada vez maior consciência. E o


poder semelhante ao de Deus é o poder de tomar decisões com total
consciência. Mas ao contrário do conceito popular, a omnisciência não torna
a tomada de decisões mais fácil; torna-a ainda mais difícil. Quanto mais nos
aproximamos do estado de Deus, mais nos condoemos de Deus. Participar
na omnisciência de Deus é também partilhar a sua agonia.

Existe outro problema no poder: estar só. Aqui existe uma semelhança, pelo
menos numa dimensão, entre o poder espiritual e o poder político. Quem se
aproxima do pico da evolução espiritual é como quem se aproxima do pico
do poder político. Não há ninguém acima a quem passar o problema;
ninguém a quem culpar; ninguém para lhe dizer como fazer. Pode nem
haver ninguém ao mesmo nível para partilhar a angústia ou a
responsabilidade. Outros podem aconselhar, mas a decisão é só sua. Só
você é responsável. Noutra dimensão, o estar só com um enorme poder
espiritual é ainda mais pronunciado do que com o poder político. Como o
seu nível de consciência raramente é tão elevado como as suas posições
destacadas, os políticos poderosos têm quase sempre pares espirituais com
quem comunicar. Assim, os presidentes e os reis têm os seus amigos e
compinchas. Mas a pessoa que evoluiu até ao mais alto nível de
consciência, de poder espiritual, provavelmente não terá ninguém no seu
círculo de conhecimentos com quem partilhar uma tal profundidade de
entendimento. Um dos temas mais pungentes do Evangelho é o sentimento
contínuo de frustração de Cristo ao descobrir que não havia ninguém que o
compreendesse verdadeiramente. Por muito que tentasse, por muito que

* Faço distinção entre estar só e solidão. A solidão é a indisponibilidade de


pessoas com quem comunicar a qualquer nível. As pessoas poderosas estão
rodeadas de outras sempre ansiosas por comunicar com elas; portanto
raramente sentem solidão e chegam mesmo a desejá-la. Estar só, contudo,
é a indisponibilidade de alguém com quem comunicar ao seu nível de
consciência.

315

explicasse, não conseguia elevar as mentes, nem as dos seus próprios


discípulos, até ao seu nível. Os mais sensatos seguiam-no mas não o
conseguiam acompanhar, e todo o seu amor não o aliviava da necessidade
de conduzir caminhando à frente, completamente só. Esta maneira de estar
só é "partilhada" por todos os que vão mais longe na jornada do
desenvolvimento espiritual. É um tal fardo que não poderia ser suportado se
não pelo facto de que, à medida que nos distanciamos dos outros seres
humanos, a nossa relação com Deus se torna mais próxima. Na comunhão
da consciência crescente, de saber com Deus, existe alegria suficiente para
nos suster.

A Graça e a Doença Mental: o Mito de Orestes


TÊM SIDO FEITAS VÁRIAS afirmações aparentemente diferentes quanto à
natureza da saúde e da doença mental: "A neurose é sempre um substituto
do sofrimento legítimo", "A saúde mental é a dedicação à realidade a todo o
custo", e "A doença mental ocorre quando a vontade consciente do
indivíduo se desvia substancialmente da vontade de Deus, que é a sua
vontade subconsciente". Vamos examinar a questão da doença mental mais
de perto e unir estes elementos num todo coerente.

Vivemos as nossas vidas num mundo real. Para as vivermos bem, é


necessário que compreendamos a realidade do mundo tão bem quanto
possível. Mas essa compreensão não é fácil. Muitos dos aspectos da
realidade do mundo e da nossa relação com o mundo são-nos dolorosos. Só
podemos compreendê-los através de esforço e sofrimento. Todos nós, em
maior ou menor medida, tentamos evitar esse esforço e sofrimento.
Ignoramos os aspectos dolorosos da realidade empurrando certos factos
desagradáveis para fora da nossa consciência. Por outras pala-

316

vras, tentamos defender a nossa consciência, as nossas noções, da


realidade. Fazemo-lo por diversos meios, a que os psiquiatras chamam
mecanismos de defesa. Todos nós empregamos essas defesas, limitando a
nossa consciência. Se, com a nossa preguiça e medo do sofrimento,
defendermos maciçamente a nossa consciência, o que acontecerá é que o
nosso entendimento do mundo terá pouco ou nada a ver com a realidade.
Uma vez que as nossas acções são baseadas no nosso entendimento, o
nosso comportamento tornar-se-ia irrealista. Quando isto acontece até um
determinado grau, os nossos concidadãos reconhecem que estamos "fora
da realidade" e consideram-nos mentalmente doentes mesmo que
estejamos perfeitamente convictos da nossa sanidade*. Mas muito antes de
as coisas terem chegado a este extremo, e de nos ser comunicada a nossa
doença pelos nossos concidadãos, o nosso subconsciente avisa-nos do
nosso desajustamento progressivo. Esse aviso é transmitido pelo
subconsciente por meios diversos: pesadelos, crises de ansiedade,
depressões e outros sintomas. Embora a nossa mente consciente tenha
negado a realidade, o subconsciente, que é omnisciente, conhece a
verdadeira situação e tenta ajudar-nos, estimulando a nossa mente
consciente através da formação de sintomas para que nos apercebamos de
que algo está errado. Por outras palavras, os sintomas dolorosos e
indesejados da doença mental são manifestações de graça. São produtos
duma "força poderosa originada fora da nossa consciência que acalenta o
nosso desenvolvimento espiritual".

* Reconheço que este esquema da doença mental está extremamente


simplificado. Não leva em conta, por exemplo, factores físicos ou
bioquímicos que podem ter grande significado, ou até predominarem, em
certos casos. Também reconheço que é possível que haja indivíduos tão
mais em contacto com a realidade do que os seus concidadãos que sejam
considerados "loucos" por uma "sociedade doente". De qualquer modo, o
esquema aqui apresentado é verdadeiro na maioria dos casos de doença
mental.

317

Já assinalei, na breve discussão da depressão no final da primeira secção


sobre disciplina, que os sintomas depressivos são um sinal para o doente de
que nem tudo está bem com ele e que há que fazer correcções. Muitos dos
casos que utilizei para demonstrar outros princípios, também podem servir
para ilustrar este: que os sintomas desagradáveis da doença mental servem
para avisar as pessoas de que vão pelo caminho errado, que o seu espírito
não se está a desenvolver e que se encontram em sério risco. Mas deixem-
me descrever resumidamente mais um caso para demonstrar
especificamente o papel dos sintomas.

Betsy era uma rapariga de vinte e dois anos, bonita e inteligente mas com
uma compostura quase virginal, que me consultou devido a crises de
ansiedade graves. Era filha única dum casal católico da classe trabalhadora
que a tinha mandado para a universidade à custa de muitos sacrifícios.
Depois de um ano de universidade, contudo, apesar de ter tido bons
resultados académicos, decidiu deixar de estudar e casar com o vizinho do
lado, um mecânico. Arranjou emprego como escriturária num
supermercado. Correu tudo bem durante dois anos. Depois, de repente,
surgiram as crises de ansiedade. Sem mais nem menos. Eram totalmente
imprevisíveis excepto que ocorriam sempre quando estava algures sem o
marido, fora de casa. Podiam acontecer enquanto fazia compras, quando
estava no emprego no supermercado, ou simplesmente a andar na rua. A
intensidade do pânico que sentia nessas alturas era esmagadora. Tinha que
largar o que estava a fazer e ir literalmente a correr para casa ou para a
garagem onde o marido trabalhava. Só quando estava com ele ou em casa
é que o pânico começava a diminuir. Por causa das crises, teve de deixar o
emprego.

Quando os tranquilizantes que o seu médico de clínica geral lhe dera


deixaram de actuar sobre a intensidade das crises,

318

Betsy veio consultar-me. "Não sei o que se passa comigo," queixou-se.


"Tudo na minha vida é maravilhoso. O meu marido é bom para mini.
Amamo-nos muito. Gostava do meu emprego. Agora é tudo horrível. Não sei
porque isto me aconteceu. Sinto que estou a enlouquecer. Por favor ajude-
me. Ajude-me para que as coisas voltem a ser boas como antes." Mas claro
que Betsy descobriu, no nosso trabalho em conjunto, que as coisas não
eram tão "boas" antes. Primeiro, lenta e dolorosamente, verificou-se que,
embora o marido fosse bom para ela, tinha várias coisas que a irritavam.
Era pouco educado. Tinha um campo de interesses reduzido. Tudo o que
queria em termos de lazer era ver televisão. Aborrecia-a. Depois veio a
reconhecer que trabalhar como caixa num supermercado também a
aborrecia. Por isso passámos a perguntar porque tinha deixado a
universidade por uma existência tão pouco estimulante. "Bem, sentia-me
cada vez mais desconfortável," reconheceu. "A malta vivia num ambiente
de droga e sexo. Eu não me sentia bem com isso. Questionaram-me, não só
os rapazes que queriam dormir comigo, mas até as minhas amigas.
Achavam-me ingénua. Descobri que começava a questionar-me a mim
própria, a Igreja e até alguns dos valores dos meus pais. Acho que fiquei
com medo." Betsy começou então a avançar para o processo de questionar
o ter fugido ao deixar a universidade. Acabou por voltar para a
universidade. Felizmente, neste caso, o marido provou estar disposto a
evoluir com ela e também foi para a universidade. Os seus horizontes
alargaram-se rapidamente. E claro que as crises de ansiedade
desapareceram.

Há várias maneiras de olhar para este caso típico. Os ataques de ansiedade


de Betsy eram claramente uma forma de agorafobia (literalmente, medo do
mercado, mas habitualmente, medo de espaços livres), e representavam
para ela o medo da liberdade. Tinha-os quando se encontrava fora de
319

casa, sem o marido, livre de circular e relacionar-se com outros. O medo da


liberdade era a essência da sua doença mental. Pode dizer-se que as crises
de ansiedade, representando o medo da liberdade, eram a doença dela. Mas
considero mais útil e esclarecedor olhar para as coisas doutra forma. Porque
o medo da liberdade de Betsy era muito anterior às crises de ansiedade. Foi
devido a esse medo que ela deixou a universidade e iniciou o processo de
restringir o seu desenvolvimento. Na minha opinião, Betsy já estava doente
nessa altura, três anos antes de surgirem os sintomas. No entanto, não
tinha consciência da doença nem do mal que fazia a si própria com a auto-
restrição. Foram os sintomas, os ataques de ansiedade que não queria nem
tinha pedido, que ela sentia que a tinham "amaldiçoado sem mais nem
menos", que a fizeram ter consciência da doença e a forçaram a tomar o
caminho da auto-correcção e do desenvolvimento. Os sintomas e a doença
não são a mesma coisa. A doença existe muito antes dos sintomas. Os
sintomas não são a doença, mas o início da cura. O facto de não serem
desejados torna-os ainda mais um fenómeno da graça - um dom de Deus,
uma mensagem do subconsciente, se quiserem, para dar início à auto-
análise e reparação.

Como é habitual com a graça, a maior parte rejeita este dom e não presta
atenção à mensagem. Fazem-no de variadas formas, que representam todas
uma tentativa de fugir à responsabilidade da doença. Tentam ignorar os
sintomas, fingindo que não são verdadeiramente sintomas, dizendo que
toda a gente tem "estas pequenas crises de vez em quando". Tentam dar a
volta despedindo-se dos empregos, deixando de conduzir, mudando-se para
outra cidade, evitando certas actividades. Tentam livrar-se dos sintomas
com analgésicos, com comprimidos dados pelo médico ou anestesiando-se
com álcool e outras drogas. Mesmo que aceitem o facto de terem sintomas,
culpam o resto do mundo, habitualmente, de várias

320
maneiras encobertas - familiares desprendidos, falsos amigos, empresas
gananciosas, uma sociedade doente e até o destino pelo seu estado. Só os
poucos que aceitam a responsabilidade pelos sintomas, que compreendem
que os sintomas são uma manifestação de perturbação das suas almas,
prestam atenção à mensagem do subconsciente e aceitam a graça. Aceitam
a sua incapacidade e a dor do esforço necessário para se curarem. Mas
recebem, como Betsy e todos os outros que se dispõem a enfrentar a dor da
psicoterapia, uma grande recompensa. Foi deles que Cristo falou na
primeira das beatitudes: "Abençoados os pobres de espírito, porque deles é
o Reino dos Céus."*

O que aqui digo da relação entre a graça e a doença mental está


personificado de forma lindíssima no grande mito grego de Orestes e as
Fúrias**. Orestes era neto de Atreus, um homem que tinha tentado
maldosamente mostrar-se mais poderoso que os deuses. Por esse crime, os
deuses puniram Atreus amaldiçoando todos os seus descendentes. Como
parte da concretização da maldição sobre a Casa de Atreus, a mãe de
Orestes, Clitemnestra, assassinou o pai de Orestes e seu marido,
Agamemnon. Este crime, por sua vez, fez recair a maldição sobre a cabeça
de Orestes, porque pelo código de honra grego o filho é obrigado, acima de
tudo, a matar o assassino de seu pai. No entanto o maior pecado que um
grego podia cometer era o pecado do matricídio. Orestes agonizava sobre o
seu dilema. Finalmente fez o que tinha que fazer e matou a mãe. Os deuses
castigaram Orestes por este pecado enviando-lhe as

* S. Mateus 5:3.

(Nota)

** Há muitas versões diferentes deste mito, com diferenças substanciais


entre si. Nenhuma versão é a correcta. A que é dada aqui foi condensada na
sua maior parte a partir da Mithology de Edith Hamilton (Nova Iorque:
Mentor Books, New American Library, 1958). Fui conduzido a este mito pelo
uso que Rollo May lhe deu no seu livro Love and Will e o de T.S. Eliot na peça
The Family Reunion.

321
Fúrias, três harpias horrendas que só ele podia ver e ouvir e que o
atormentavam noite e dia com críticas cacarejadas e uma aparência
horripilante.

Perseguido para onde quer que fosse pelas Fúrias, Orestes vagueava pela
terra procurando redimir o seu crime. Depois de muitos anos de reflexão
solitária e auto-anulação, Orestes pediu aos deuses que o libertassem da
maldição sobre a Casa de Atreus e das suas visitações através das Fúrias,
afirmando a sua crença de que se tinha redimido pelo assassínio da mãe. Os
deuses fizeram-lhe um julgamento. Falando em defesa de Orestes, Apoio
argumentou que tinha engendrado toda a situação que colocou Orestes na
posição em que não tinha outra escolha senão matar a mãe e que, portanto,
Orestes não podia ser considerado responsável. Nessa altura, Orestes saltou
e contradisse o seu próprio defensor, declarando, "Fui eu, e não Apoio,
quem matou a minha mãe!" Os deuses ficaram espantados. Nunca antes
tinha um membro da Casa de Atreus assumido tal responsabilidade total
sem culpar os deuses. Eventualmente os deuses julgaram a favor de
Orestes e não só o libertaram da maldição como transformaram as Fúrias
em Euménides, espíritos amorosos que através de sábio conselho
permitiram a Orestes obter continuada boa sorte.

O significado deste mito não é desconhecido. As Euménides, ou "as


benignas", também são referidas como as "portadoras da graça". As Fúrias
alucinatórias, que só podiam ser vistas por Orestes, representam os
sintomas, o inferno privado da doença mental. A transformação das Fúrias
em Euménides é a transformação da doença mental em boa sorte, de que
temos estado a falar. Esta transformação ocorreu devido ao facto de Orestes
estar disposto a aceitar a responsabilidade pela sua doença mental. Embora
ele acabasse por procurar ser libertado delas, não via as Fúrias como um
castigo injusto nem se considerava uma vítima da sociedade ou doutra
coisa qual-

322

quer. Sendo um resultado inevitável da maldição original sobre a Casa de


Atreus, as Fúrias também simbolizam o facto de a doença mental ser uma
questão de família, criada pelos pais e avós, corno os pecados dos pais
recaem sobre os filhos. Mas Orestes não culpou a família - os pais ou o avô -
como podia ter feito. Nem culpou os deuses ou o "destino". Em vez disso,
aceitou a sua condição como sendo criada por ele e fez o esforço de a curar.
Foi um processo prolongado, tal como toda a terapia tende a ser
prolongada. Mas em resultado curou-se, e através desse processo de cura
pelo seu próprio esforço, as coisas que anteriormente eram causa de agonia
tornaram-se as que passaram a trazer-lhe sabedoria.

Todos os psiquiatras experientes viram este mito representado na sua


prática e testemunharam a transformação das Fúrias em Euménides nas
mentes e nas vidas dos pacientes mais bem sucedidos. Não é uma
transformação fácil. Assim que se apercebem de que lhes será exigido pelo
processo de psicoterapia que assumam a responsabilidade total pela sua
condição e pela respectiva cura, a maior parte dos pacientes, por muito
ansiosos que pareçam de início pela terapia, abandonam-na. Preferem estar
doentes e ter deuses a quem culpar do que estar sãos sem ninguém a quem
jamais atribuir culpas. Da minoria que permanece na terapia, a maior parte
ainda tem que ser ensinada a assumir responsabilidade total por si próprios
como parte da cura. Este ensinamento - "treino" seria a palavra mais exacta
- é um processo meticuloso, em que o terapeuta confronta metodicamente
os pacientes com a sua fuga à responsabilidade repetidamente, sessão após
sessão, mês após mês e frequentemente ano após ano. Muitas vezes, como
crianças teimosas, dão pontapés e gritam durante todo o caminho ao serem
conduzidos à noção de responsabilidade total por si próprios.
Eventualmente, no entanto, chegam lá. É raro o paciente que chega à
terapia disposto a assumir total

323

responsabilidade desde o início. A terapia nesses casos, embora possa


necessitar de um ano ou dois, é relativamente breve, relativamente fluida e
frequentemente um processo muito agradável tanto para o paciente como
para o terapeuta. Em todo o caso, quer relativamente fácil quer difícil e
prolongada, a transformação das Fúrias em Euménides acontece.

Os que já se defrontaram com a doença mental, aceitaram total


responsabilidade por ela e fizeram em si as mudanças necessárias para a
ultrapassar, passam não só a estar curados e livres das maldições da
infância e dos seus antepassados, mas também a viver num mundo novo e
diferente. O que antes viam como problemas passam a ver como
oportunidades. O que antes constituíam barreiras odiosas passaram a ser
desafios bem-vindos. Pensamentos anteriormente indesejados tornam-se
perspectivas úteis; sentimentos rejeitados transformam-se em fonte de
energia e orientação. Acontecimentos que pareciam ser fardos aparecem
agora como presentes, incluindo os próprios sintomas de que recuperaram.
"A minha depressão e os meus ataques de ansiedade foram a melhor coisa
que já me aconteceu," dizem habitualmente no final da terapia bem
sucedida. Mesmo que deixem a terapia sem acreditar em Deus, esses
pacientes bem sucedidos duma forma geral acreditam com muita certeza
que foram tocados pela graça.

A Resistência à Graça

CRESTES NÃO FOI AO psicoterapeuta; curou-se sozinho. E mesmo que


tivesse havido psiquiatras experientes na Grécia antiga, ele teria que se
curar sozinho na mesma. Porque, como já se disse, a psicoterapia é apenas
um instrumento - uma disciplina. Depende do paciente escolher ou rejeitar o
instru-

324

mento e, uma vez escolhido, é o paciente que determina como usar o


instrumento e com que fim. Há pessoas que ultrapassam todo o tipo de
obstáculos - por exemplo, recursos insuficientes, experiências desastrosas
anteriores com psiquiatras ou psicoterapeutas, familiares reprovadores,
clínicas pouco receptivas - para conseguir fazer terapia e aproveitar todos
os benefícios possíveis. Outras, no entanto, rejeitam a terapia mesmo que
lhes seja oferecida de bandeja, ou então, mesmo que estabeleçam uma
relação terapêutica, não têm qualquer participação, não retirando dela
quase nada por muita técnica, esforço e amor que haja por parte do
terapeuta. Apesar de no fim de um caso bem sucedido eu ser tentado a
sentir que curei o paciente, sei que na realidade não fui mais do que um
catalisador - e que tive a sorte de o ser. Uma vez que, em última análise, as
pessoas se curam a si próprias com ou sem o instrumento da psicoterapia,
porque é que tão poucos o fazem e tantos não? Já que o caminho do
desenvolvimento espiritual, apesar de difícil, está aberto a todos, porque
razão tão poucos escolhem segui-lo?
Era a esta questão que se referia Cristo quando dizia, "Muitos são os
chamados, mas poucos os escolhidos."* Mas porque são escolhidos os
poucos, e o que distingue esses poucos dos muitos? A resposta que os
psicoterapeutas estão habituados a dar é baseada num conceito de
gravidade diferente de psicopatologia. Por outras palavras, consideram que,
embora a maior parte das pessoas estejam doentes, algumas estão mais
doentes do que outras, e que quanto mais doente se está mais difícil é ser
curado. Além disso, a gravidade da doença mental duma pessoa é
determinada directamente pela gravidade e precocidade da privação
parental por que passou em criança. Especificamente, considera-se que os
indivíduos com psicoses

* S. Mateus 22:14; ver também S. Mateus 20:16.

325

tiveram uma relação parental extremamente deficiente nos primeiros nove


meses de vida; a doença resultante pode ser melhorada por uma ou outra
forma de tratamento, mas é quase impossível de curar. Considera-se que os
indivíduos com perturbações de personalidade tiveram cuidados adequados
à nascença, mas cuidados deficientes no período entre aproximadamente os
nove meses e os dois anos de idade, com o resultado de estarem menos
doentes do que os psicóticos mas ainda bastante doentes e muito difíceis de
curar. Julga-se que os indivíduos com neuroses receberam cuidados
parentais adequados na primeira parte da infância, mas foram sujeitos a
cuidados parentais deficientes numa determinada altura entre os dois anos
e normalmente antes dos cinco ou seis. Considera-se portanto que os
neuróticos são menos doentes do que as pessoas com perturbações de
personalidade ou do que os psicóticos e, consequentemente, mais fáceis de
tratar e curar.

Existe, creio eu, muita verdade neste esquema, que forma um corpo de
teoria psiquiátrica muito útil para os médicos, de diversas formas. Não deve
ser criticado descuidadamente. Apesar de tudo, não conta a história toda.
Entre outras coisas, diminui a grande importância da relação parental na
última parte da infância e na adolescência. Há boas razões para acreditar
que uma relação parental deficiente nesses anos pode produzir doenças
mentais e que uma boa relação parental pode curar muitas ou talvez todas
as feridas provocadas por uma má relação parental anterior. Além disso,
embora o esquema tenha valor preditivo no sentido estatístico - os
neuróticos, em média, são mais fáceis de tratar do que as pessoas com
perturbações de personalidade, e as que têm perturbações de
personalidade são, em média, mais fáceis de tratar do que os psicóticos -
não consegue prever muito bem o curso do desenvolvimento num caso
individual. Assim, por exemplo, o curso mais rápido de uma análise
totalmente bem sucedida

326

que já conduzi foi com um homem que me veio consultar, com uma psicose
grave, e cuja terapia ficou concluída nove meses depois. Por outro lado,
trabalhei durante três anos com uma mulher que, claramente, tinha "só"
uma neurose, e consegui apenas uma melhoria mínima.

Um dos factores que o esquema da gravidade diferente de doença mental


não leva em linha de conta é algo de efémero no paciente individual a que
se pode chamar "a vontade de evoluir". É possível a um indivíduo estar
extremamente doente e no entanto possuir ao mesmo tempo uma "vontade
de evoluir" extremamente forte, caso em que ocorrerá a cura. Pelo
contrário, uma pessoa que está apenas moderadamente doente, dentro do
que podemos definir como doença mental, mas a quem falta a vontade de
evoluir, não vai avançar um milímetro da posição em que está. Acredito
portanto que a vontade de evoluir do paciente é a determinante crucial do
sucesso ou do fracasso em psicoterapia. É contudo um factor que não é
compreendido nem sequer reconhecido pela teoria psiquiátrica
contemporânea.

Embora eu reconheça a importância extrema dessa vontade de evoluir, não


estou seguro de quanto poderei contribuir para a sua compreensão, uma
vez que o conceito mais uma vez nos coloca à beira do mistério. Será
imediatamente aparente que a vontade de evoluir é, na sua essência, o
mesmo fenómeno que o amor. O amor é a vontade de se expandir no
sentido do desenvolvimento espiritual. As pessoas que amam
verdadeiramente são, por definição, pessoas que evoluem. Falei de como a
capacidade de amar é acalentada por uma relação parental de amor, mas
também salientei que não é só o apoio parental que é responsável por essa
capacidade em toda a gente. O leitor deve recordar-se de que a conclusão
da segunda secção deste livro incluía quatro perguntas sobre o amor, duas
das quais vamos agora considerar: por que razão algumas pessoas

327

não respondem ao tratamento dos melhores e mais afectuosos terapeutas,


e por que razão algumas pessoas transcendem a infância mais destituída de
amor, com ou sem a ajuda da psicoterapia, para se tornarem pessoas que
amam. O leitor deve igualmente recordar que afirmei que duvidava ser
capaz de responder a estas perguntas de forma a satisfazer completamente
quem quer que fosse. Sugeri, no entanto, que se poderiam esclarecer estas
questões de alguma maneira, tendo em consideração o conceito de graça.

Eu acredito e tentei demonstrar que a capacidade de amar das pessoas, e


portanto a sua vontade de evoluir, é desenvolvida não só com o apoio do
amor dos pais durante a infância como também ao longo da vida com a
graça, ou o amor de Deus. Trata-se de uma força poderosa, exterior à sua
consciência, que funciona através do seu próprio subconsciente bem como
através de pessoas que amam, sem serem os seus pais, e por outras formas
que não compreendemos. É devido à graça que é possível às pessoas
transcenderem os traumas de carências afectivas dos pais e tornarem-se
indivíduos que amam e subirem muito mais do que os pais na escala da
evolução humana. Então, por que razão só algumas pessoas se
desenvolvem espiritualmente e evoluem independentemente das
circunstâncias da relação parental? Creio que a graça está ao dispor de
todos, que estamos todos protegidos pelo amor de Deus, nenhum menos
que outro. A única resposta que posso dar, portanto, é que a maioria de nós
prefere não prestar atenção ao chamamento da graça e rejeita a sua ajuda.
Eu traduziria a afirmação de Cristo, "Muitos são os chamados, mas poucos
os escolhidos," como significando, "Todos nós somos chamados por e para a
graça, mas poucos escolhem ouvir a chamada."

A pergunta passa então a ser: Por que razão tão poucos de nós escolhemos
dar atenção à chamada da graça? Por que
328

razão a maior parte de nós resistimos de facto à graça? Falámos


anteriormente de como a graça nos fornece uma certa resistência
inconsciente à doença. Como é que, então, parecemos possuir uma
resistência quase idêntica à saúde? A resposta a esta pergunta, na verdade,
já foi dada. É a nossa preguiça, o pecado original da entropia com que todos
fomos amaldiçoados. Tal como a graça é a fonte final da força que nos
empurra na subida da escada da evolução humana, assim a entropia faz
com que resistamos a essa força, para nos deixarmos ficar no degrau fácil e
confortável em que nos encontramos ou até descermos para formas cada
vez menos exigentes de existência. Falámos exaustivamente de como é
difícil disciplinarmo-nos, amarmos genuinamente, desenvolvermo-nos
espiritualmente. É natural que retrocedamos em face da dificuldade. Apesar
de termos tratado dos aspectos básicos do problema da entropia ou
preguiça, há um aspecto desse problema que merece mais uma vez menção
especial: a questão do poder.

Os psiquiatras e muitos leigos estão familiarizados com o facto de


ocorrerem com notável frequência problemas psiquiátricos em indivíduos
que acabam de ser promovidos a posições de maior poder e
responsabilidade. O psiquiatra militar, particularmente familiarizado com
este problema da "neurose da promoção", apercebe-se igualmente de que o
problema não ocorre com frequência ainda maior porque um grande número
de soldados consegue resistir às promoções. Há muitos soldados milicianos
de baixa patente que simplesmente não querem ser segundos-sargentos,
nem primeiros-sargentos nem sargentos-ajudantes. E também há grande
número de milicianos que preferiam morrer a passar a oficiais e que
rejeitam, às vezes repetidamente, convites para ingressarem na escola de
oficiais, para o que, em virtude da sua inteligência e estabilidade,
pareceriam ter a devida qualificação.

329
Com o desenvolvimento espiritual passa-se o mesmo que com a vida
profissional. Porque a chamada para a graça é a promoção, uma chamada
para uma posição de maior responsabilidade e poder. Ter consciência da
graça, sentir pessoalmente a sua presença constante, conhecer a
proximidade de Deus, é conhecer e sentir continuamente uma tranquilidade
e paz interior que poucos possuem. Por outro lado, esse conhecimento e
essa consciência acarretam uma enorme responsabilidade. Porque sentir a
nossa proximidade em relação a Deus é também sentir a obrigação de ser
Deus, de ser o agente do Seu poder e amor. O chamamento para a graça é
um chamamento para uma vida de dedicação esforçada, uma vida para
servir e fazer qualquer sacrifício necessário. É um chamamento que nos faz
sair da infância para a idade adulta espiritual, para nos tornarmos um pai ou
uma mãe para a humanidade. T. S. Eliot descreveu bem esta questão no
sermão de Natal proferido por Thomas Becket na peça Assassínio na
Catedral:

Pensem por um momento no significado desta palavra "paz". Parece-vos


estranho que os anjos tenham anunciado a Paz, quando o mundo tem sido
incessantemente atingido pela Guerra e pelo medo da Guerra? Parece-vos
que as vozes angelicais estavam enganadas e que a promessa foi uma
desilusão e um logro?

Reflictam agora em como o Senhor falou da Paz. Ele disse aos discípulos
"Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz". Referia-se Ele à paz como a
consideramos: o reino de Inglaterra em paz com os seus vizinhos, os barões
em paz com o Rei, o dono da casa a contar os seus ganhos pacíficos, o
borralho varrido, o seu melhor vinho na mesa para um amigo, a sua mulher
a cantar para as crianças? Aqueles homens, Seus discípulos, nada sabiam
dessas coisas: viajavam para longe, para sofrer em terra e no mar, para
conhe-

330

cer a tortura, a prisão, a desilusão, a morte pelo martírio. Então que queria
Ele dizer? Se perguntarem isso, lembrem-se que Ele também disse, "Não
como o mundo dá, eu vos dou." Assim deu Ele a paz aos Seus discípulos,
mas não a paz como o mundo dá. '"
Assim, a paz da graça traz responsabilidades, deveres e obrigações
dolorosos. Não é de espantar que tantos sargentos qualificados não queiram
assumir a posição dum oficial. E não admira que os pacientes em
psicoterapia tenham pouca apetência pelo poder que acompanha a
verdadeira saúde mental. Uma jovem que fazia terapia comigo há um ano
devido a uma depressão invasiva, e que tinha aprendido bastante sobre a
psicopatologia dos seus familiares, exultava certo dia com uma situação
familiar que ela tinha resolvido com sensatez, equanimidade e facilidade.
"Senti-me mesmo bem," dizia ela. "Gostava de me sentir assim mais vezes."
Disse-lhe que podia, fazendo-lhe notar que a razão por que se tinha sentido
tão bem era que, pela primeira vez na sua relação com a família, estava
numa posição de poder, tendo a noção das suas comunicações distorcidas e
das formas desonestas como tentavam manipulá-la para satisfazer as suas
exigências irrealistas, e que portanto ela podia comandar a situação. Disse-
lhe que uma vez que era capaz de alargar esse tipo de consciência a outras
situações, se encontraria cada vez mais "a controlar as coisas" e portanto
teria essa sensação boa cada vez mais frequentemente. Ela olhou para mim
com o princípio duma sensação de horror. "Mas isso obrigava-me a pensar
todo o tempo!", disse ela. Concordei que era pensando muito que o seu
poder evoluiria e se poderia manter e que se

(Nota)

* The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (N. Iorque: Harcourt Brace,

192), p. 69.

331

livraria da sensação de impotência que estava na base da sua depressão.


Ficou furiosa. "Não quero ter de pensar o tempo todo," gritou. "Não vim aqui
para me tornarem a vida mais difícil. Só quero ser capaz de relaxar e me
divertir. Quer que eu seja uma espécie de deus ou coisa parecida!" Lamento
dizer que, pouco tempo depois, aquela jovem potencialmente brilhante
deixou o tratamento, muito longe de estar curada, aterrada com as
exigências que a saúde mental lhe traria.

Pode parecer estranho aos leigos, mas os psiquiatras conhecem bem o facto
de as pessoas ficarem normalmente aterradas com a saúde mental. Uma
grande parte da tarefa da psicoterapia é não só levar os pacientes a
sentirem a saúde mental mas também, através dum misto de consolação,
tranquilização e firmeza, evitar que fujam a essa experiência quando
chegam até ela. Um dos aspectos deste receio é bastante legítimo e, só por
si, não atenta contra a saúde: o medo de que ao tornar-se poderoso, se
possa fazer mau uso do poder. Santo Agostinho escreveu "Dilige et quod vis
fac", que significa "Sê afectuoso e diligente, e podes fazer tudo o que
quiseres"*. Se as pessoas progredirem o suficiente na psicoterapia, a
determinada altura deixarão de sentir a incapacidade de lidar com um
mundo impiedoso e esmagador e acabam por descobrir um dia que têm o
poder de fazerem o que quiserem. A descoberta desta liberdade é
assustadora. "Se posso fazer tudo o que quero," pensarão, "o que me
impede de cometer grandes erros, crimes, de ser imoral, de abusar da
minha liberdade e do poder? A minha diligência e o meu amor serão
suficientes para me guiarem?"

Se a descoberta do poder e da liberdade for sentida como uma chamada


para a graça, como é frequente, então a resposta será também "Deus,
receio não ser digno da Vossa con-

332

fiança em mim". Este receio é, evidentemente, parte integrante da


diligência e do amor e portanto útil na auto-regulação que previne o abuso
do poder. Por essa razão não deve ser desprezado; mas não deve ser tão
monumental que impeça a pessoa de prestar atenção ao chamamento para
a graça e de assumir o poder de que é capaz. Alguns dos que foram
chamados para a graça podem lutar durante anos com o seu receio antes
de o conseguirem transcender e aceitar a sua semelhança com Deus.
Quando esse receio e o sentimento de indignidade é tão forte que impede
consistentemente que o poder seja assumido, trata-se dum problema
neurótico, e tratá-lo pode ser uma questão fulcral ou a questão fulcral na
psicoterapia.

Mas, para a maioria das pessoas, o receio de poderem vir a abusar do poder
não é a questão fulcral da sua resistência à graça. Não é a parte do "podes
fazer tudo o que quiseres" da máxima de Santo Agostinho que lhes provoca
indigestão, mas a parte do "Sê diligente". Somos quase todos como crianças
ou jovens adolescentes; acreditamos que a liberdade e o poder da idade
adulta são nossos por direito, mas não temos grande apetência pela
responsabilidade e auto-disciplina adulta. Por muito oprimidos que nos
sintamos pelos nossos pais - ou pela sociedade ou pelo destino -, de facto
parecemos precisar que existam poderes acima de nós a quem culpar pela
nossa condição. Subir a uma posição tão poderosa que não haja a quem
culpar senão nós próprios é uma situação aterradora. Como já foi
mencionado, se não fosse pela presença de Deus connosco nessa posição
de destaque, ficaríamos aterrorizados por estarmos sós. Mesmo assim,
muitos têm tão pouca capacidade para tolerar estarem sós que rejeitam a
presença de Deus para não terem que passar pela experiência de serem o
único comandante do navio. A maior parte das pessoas quer a paz sem a
solidão do poder. E querem a auto-confiança da idade adulta sem terem que
crescer.

333

Falámos de formas diversas sobre a dificuldade de evoluir. Muito poucos


marcham desassombradamente e sem hesitações para a idade adulta,
sempre ansiosos por novas e maiores responsabilidades. A maior parte
arrastam os pés e de facto nunca se tornam mais do que parcialmente
adultos, retrocedendo sempre face às exigências da condição de adulto.
Assim acontece com o desenvolvimento espiritual, que é inseparável do
processo de maturação psicológica. Porque a chamada para a graça na sua
forma última é um chamamento para ser um só com Deus, para assumir a
igualdade com Deus. Daí ser a chamada para a condição de adulto total.
Estamos habituados a imaginar a experiência da conversão ou do
chamamento súbito para a graça como um fenómeno de "Oh, que alegria!".
Na minha experiência, o que é mais frequente, pelo menos em parte, é ser
um fenómeno de "Oh, que merda". No momento em que finalmente
escutamos o chamamento podemos dizer "Obrigado, meu Deus", ou
podemos dizer "Meu Deus, não sou digno", ou ainda "Meu Deus, tenho
mesmo que ir?"

Portanto, o facto de que "muitos são os chamados, mas poucos os


escolhidos" é facilmente explicável em face das dificuldades inerentes à
resposta ao chamamento da graça. A questão que nos fica, assim, não é por
que razão as pessoas não aceitam a psicoterapia, ou não beneficiam dela
mesmo estando nas melhores mãos, ou por que razão os humanos resistem
à graça; a força da entropia faz com que seja natural que assim procedam.
A questão é antes a oposta: como é que esses poucos prestam atenção a
essa chamada que é tão difícil? O que distingue os poucos dos muitos? Não
sou capaz de responder. Essas pessoas podem provir de ambientes ricos e
cultos ou de ambientes pobres e supersticiosos. Podem ter tido pais que as
amaram ou, com o mesmo grau de probabilidade, terem sido
profundamente privados de afecto parental ou de interesse genuíno. Podem
fazer psicoterapia devido a pequenas dificul-

334
dades de adaptação ou a doenças mentais gravíssimas. Podem ser velhas
ou novas. Podem prestar atenção à chamada à graça subitamente e com
facilidade aparente. Ou podem lutar contra ela e maldizerem-na, cedendo
gradual e dolorosamente, centímetro a centímetro. Em consequência, com a
experiência de muitos anos, tornei-me menos, em vez de mais, selectivo ao
determinar com quem vou tentar a terapia. Peço desculpa àqueles que
excluí da terapia em resultado da minha ignorância. Porque aprendi que,
nas fases iniciais do processo psicoterapêutico, não tenho qualquer
capacidade de prever quais são os pacientes que não irão responder à
terapia, os que responderão com um desenvolvimento significativo ainda
que parcial, e quais os que, milagrosamente, se desenvolverão até ao
estado de graça. O próprio Cristo falou da imprevisibilidade da graça quando
disse a Nicodemos: "Tal como ouves o vento mas não sabes donde vem nem
para onde vai a seguir, assim é com o Espírito. Não sabemos quem será o
próximo a quem concederá esta vida vinda do céu."* Por muito que
tenhamos dito sobre o fenómeno da graça, acabamos por ter de reconhecer
a sua natureza misteriosa.

O Acolhimento da Graça

E MAIS UMA VEZ SOMOS confrontados com o paradoxo. Desde o início deste
livro que tenho escrito sobre o desenvolvimento espiritual como se fosse um
processo ordenado e previsível. Ficou subentendido que o desenvolvimento
espiritual pode ser aprendido como uma área de conhecimento que se
aprende

* S. João 3:8. Esta tradução foi retirada da Living Bible porque me parece
superior à versão King James. (N. do A.)

335
através dum programa de licenciatura; se pagarmos as propinas e
trabalharmos o suficiente, é evidente que conseguimos obter a licenciatura.
Interpretei a frase de Cristo "Muitos são os chamados, mas poucos os
escolhidos" como significando que muito poucos escolhem prestar atenção
à chamada da graça devido às dificuldades envolvidas. Com esta
interpretação, sugeri que se somos ou não abençoados pela graça é uma
questão de escolha nossa. Essencialmente, tenho dito que a graça se
ganha. E sei que é verdade.

Ao mesmo tempo, no entanto, sei que não é nada assim. Nós não vamos de
encontro à graça; a graça vem até nós. Por muito que tentemos obter a
graça, ela pode escapar-nos. Podemos ou não procurá-la, ela nos
encontrará. Conscientemente, podemos desejar avidamente a vida
espiritual mas descobrir toda a espécie de obstáculos no caminho. Ou
podemos ter aparentemente pouco gosto pela vida espiritual e apesar disso
sermos energicamente chamados para ela. Embora a um certo nível
sejamos nós a escolher se prestamos ou não atenção ao chamamento da
graça, noutro parece claro que é Deus que faz a escolha. A experiência
comum dos que atingiram um estado de graça, a quem "esta nova vida do
céu" foi conferida, é a de assombro perante a sua condição. Não sentem
que a tenham merecido. Embora possam ter uma noção realista da
particular bondade da sua natureza, não atribuem essa natureza à sua
vontade; antes, sentem distintamente que a bondade da sua natureza foi
criada por mãos mais sábias e habilidosas que as suas. Os que estão mais
próximos da graça são os que maior noção têm do carácter misterioso da
oferta que lhes foi feita.

Como resolvemos este paradoxo? Não resolvemos. Talvez o melhor que


possamos dizer seja que, embora não possamos ascender à graça pela
nossa vontade, podemos pela nossa vontade abrir-nos à sua vinda
miraculosa. Podemos preparar-nos para sermos um solo fértil, um lugar de
acolhimento. Se

336

conseguirmos tornar-nos indivíduos totalmente disciplinados, totalmente


capazes de amar, então, mesmo que sejamos ignorantes da Teologia e não
pensemos em Deus, estaremos bem preparados para a vinda da graça. Por
outro lado, o estudo da Teologia é um método relativamente fraco de
preparação e, só por si, completamente inútil. Em todo o caso, escrevi esta
secção porque acredito que a consciência da existência da graça pode
ajudar em muito aqueles que escolheram trilhar o difícil caminho do
desenvolvimento espiritual. Porque essa consciência lhes facilitará a jornada
pelo menos de três formas: ajudá-los-á a tirar partido da graça durante o
caminho; dar-lhes-á um sentido de direcção mais seguro, e dar-lhes-á
incentivo.

O paradoxo de que tanto escolhemos a graça como somos escolhidos pela


graça é a essência do fenómeno do serendipismo. O serendipismo foi
definido como "o dom de descobrir coisas valiosas ou agradáveis não
procuradas". Buda só encontrou o esclarecimento quando deixou de o
procurar quando o deixou vir até ele. Por outro lado, quem duvida que o
esclarecimento veio até ele precisamente porque ele tinha devotado pelo
menos dezasseis anos da sua vida a procurá-lo, dezasseis anos a preparar-
se? Teve que o procurar e não o procurar. As Fúrias transformaram-se em
Portadoras da Graça precisamente porque Orestes se esforçou por obter o
favor dos deuses e, ao mesmo tempo, não ficou à espera que os deuses lhe
tornassem fácil o caminho. Foi através deste misto paradoxal de procurar e
não procurar que obteve o dom do serendipismo e as bênçãos da graça.

Este mesmo fenómeno é correntemente demonstrado pela forma como os


pacientes utilizam os sonhos na psicoterapia. Alguns doentes, conscientes
do facto de os sonhos conterem respostas aos seus problemas, procuram
avidamente as respostas registando deliberada e mecanicamente, com
esforço consi-

337

derável, cada um dos seus sonhos em pormenor, e trazendo para as


sessões verdadeiras resmas de sonhos. Mas os sonhos ajudam-nos pouco.
Na verdade, todo este material sonhado pode ser um impedimento na
terapia. Por um lado, não há tempo suficiente de terapia para analisar esses
sonhos todos. Por outro, esse material volumoso pode impedir o trabalho
em áreas de análise mais frutíferas. E é provável que todo esse material
seja singularmente obscuro. Esses pacientes têm que ser ensinados a deixar
de procurar nos sonhos, deixarem os sonhos vir até si, deixar o
subconsciente fazer a escolha dos sonhos que devem entrar na consciência.
Este mesmo ensinamento pode ser bastante difícil, exigindo que o paciente
prescinda duma determinada quantidade de controlo e assuma uma relação
mais passiva na sua mente. Mas assim que o paciente aprende a não fazer
nenhum esforço consciente de se agarrar aos sonhos, o material de que se
recorda diminui em quantidade, mas aumenta drasticamente em qualidade.
O resultado é que os sonhos do paciente - esses presentes do subconsciente
que já não são procurados - facilitam o processo de cura desejado. Se
olharmos para o reverso da medalha, no entanto, descobrimos que há
muitos pacientes que iniciam a psicoterapia sem nenhuma consciência ou
compreensão do imenso valor que os sonhos podem ter para eles. Em
consequência, afastam da consciência todo o material dos sonhos como
inútil e sem importância. Estes pacientes têm primeiro que ser ensinados a
lembrarem-se dos sonhos e depois a apreciarem e reconhecerem o tesouro
que contêm. Para utilizar os sonhos eficazmente, temos que trabalhar para
ter a noção do seu valor e tirar proveito deles quando vêm até nós, e por
vezes temos que trabalhar para não os procurar nem esperar. Temos que os
deixar ser verdadeiros presentes.

O mesmo acontece com a graça. Já vimos que os sonhos são apenas uma
das formas ou modos em que a graça nos é

338

oferecida. A mesma abordagem paradoxal deve ser empregue com todas as


outras formas: visões repentinas, premonições e uma verdadeira hoste de
acontecimentos síncronos e serendipíticos. E com todo o amor. Toda a gente
quer ser amada. Mas primeiro temos que nos tornar amáveis. Temos que
nos preparar para ser amados. Fazemo-lo tornando-nos seres humanos que
amam e são disciplinados. Se procuramos ser amados se esperamos ser
amados - não o conseguiremos; seremos dependentes e egoístas, não
amaremos verdadeiramente. Mas quando nos desenvolvemos, e aos outros,
sem a preocupação da recompensa, então ter-nos-emos tornado amáveis, e
a recompensa de ser amados, que não procurámos, encontrar-nos-á. Assim
acontece com o amor humano e assim acontece com o amor de Deus.

Um dos objectivos principais desta secção sobre a graça é de ajudar os que


empreendem a jornada do desenvolvimento espiritual a aprender a
capacidade do serendipismo. E vamos redefinir o serendipismo não como
um dom em si mas como uma capacidade adquirida para reconhecer e
utilizar as ofertas da graça que nos vêm de algures para lá do domínio da
nossa vontade consciente. Com essa capacidade, descobriremos que a
nossa viagem de desenvolvimento espiritual é guiada pela mão invisível e
pela sabedoria inimaginável de Deus com infinitamente maior precisão do
que aquela de que a nossa vontade consciente, sem ajuda, é capaz. Assim
guiada, a viagem torna-se tão mais rápida.

Duma maneira ou doutra, estes conceitos foram estabelecidos


anteriormente - por Buda, por Cristo, por Lao-Tse, entre muitos outros. A
originalidade deste livro resulta do facto de eu ter chegado ao mesmo
significado pelos atalhos específicos da minha vida do século XX. Se
necessitar de maior compreensão do que aquela que estas notas de fim de
página modernas lhe podem oferecer, então não deixe de avançar ou
regres-

339

sar aos textos antigos. Procure maior compreensão, mas não espere maior
detalhe. Há muitos que, em virtude da sua passividade, dependência, medo
e preguiça, esperam que se lhes mostre cada centímetro do caminho e que
lhes demonstrem que cada passo será seguro e que valerá a pena. Isso não
se pode fazer. Porque a jornada do desenvolvimento espiritual requer
coragem e iniciativa e independência de pensamento e acção. Apesar das
palavras dos profetas e da ajuda da graça estarem disponíveis, a viagem
tem que ser feita a sós. Nenhum professor o pode levar lá. Não existem
fórmulas pré-estabelecidas. Os rituais são apenas auxiliares da
aprendizagem, não são a aprendizagem. Comer alimentos biológicos, rezar
cinco Ave Marias antes do pequeno almoço, rezar virado para o Oriente ou
para o Ocidente, ou ir à igreja ao Domingo não o levará ao destino. Não há
palavras que possam ser ditas, nem ensinamentos que possam ser
transmitidos que libertem os viajantes espirituais da necessidade de
escolherem o seu próprio percurso, de trilharem com esforço e ansiedade o
seu próprio caminho nas circunstâncias únicas da vida de cada um, no
sentido da identificação do seu próprio Eu com Deus.
Mesmo quando compreendemos verdadeiramente estes assuntos, a jornada
de desenvolvimento espiritual continua a ser tão solitária e difícil que
muitas vezes nos sentimos desencorajados. Acreditamos nos princípios
mecânicos do Universo; não em milagres. Através da ciência, aprendemos
que o lugar que habitamos é apenas um planeta duma só estrela perdida
numa galáxia entre muitas outras. E tal como parecemos perdidos no meio
da imensidão do Universo exterior, assim a ciência nos levou a desenvolver
uma imagem de nós próprios como sendo inevitavelmente determinados e
governados por forças internas não sujeitas à nossa vontade - por moléculas
químicas do cérebro e conflitos do subconsciente que nos obrigam a sentir e
a nos comportarmos de determinadas

340

formas quando nem sequer temos consciência do que estamos a fazer.


Também a substituição dos nossos mitos humanos por informação científica
nos causou uma sensação de ausência de sentido pessoal. Que significado
poderemos ter, como indivíduos ou como raça, dominados por forças
químicas e psicológicas interiores que não compreendemos, invisíveis num
Universo cujas dimensões são tão grandes que nem a nossa ciência as
consegue medir?

No entanto, foi essa mesma ciência que, de certas formas, me ajudou a


aperceber-me da realidade do fenómeno da graça. Tentei transmitir essa
percepção. Porque uma vez que nos apercebemos da realidade da graça, o
nosso entendimento de nós próprios como sem valor e insignificante é
destruído. O facto de existir para além de nós e da nossa vontade
consciente uma força poderosa que apoia o nosso desenvolvimento e
evolução é suficiente para alterar completamente a nossa noção de
insignificância pessoal. Porque a existência dessa força (quando nos
apercebemos dela) indica com certeza incontornável que o nosso
desenvolvimento espiritual humano é da maior importância para algo maior
do que nós. A esse algo chamamos Deus. A existência da graça é a prova
prima fade não só da realidade de Deus mas também da realidade de que a
vontade de Deus é dedicada ao desenvolvimento do espírito humano
individual. O que parecia ser um conto de fadas revelou-se real. Vivemos as
nossas vidas aos olhos de Deus, e não na periferia mas no centro da Sua
visão, do Seu interesse. É provável que o Universo, tal como o conhecemos,
seja apenas a soleira da entrada no Reino de Deus. Mas não estamos
perdidos no Universo. Pelo contrário, a realidade da graça indica que a
humanidade está no centro do Universo. Este tempo e este espaço existem
para nós os percorrermos. Quando os meus pacientes perdem de vista a sua
importância e se sentem desencorajados pelo esforço do trabalho que

341

estamos a fazer, digo-lhes por vezes que a raça humana está a meio de
fazer um salto evolutivo. "Se somos ou não bem sucedidos nesse salto,"
digo-lhes, "é da sua responsabilidade pessoal." E da minha. O Universo, esta
soleira, foi colocado para nos preparar um caminho. Mas somos nós que
temos que a atravessar, um a um. Através da graça somos ajudados a não
tropeçar, e através da graça sabemos que somos bem-vindos. Que mais
podemos pedir?

342

Posfácio

DESDE A ALTURA DA SUA publicação inicial, tenho tido a sorte de receber


muitas cartas de leitores de O Caminho Menos Percorrido. Tem havido cartas
extraordinárias. Inteligentes e expressivas sem excepção, têm sido também
extraordinariamente afectuosas. Além de exprimirem apreço, a maior parte
continha outros presentes: poesia adequada, citações úteis de outros
autores, jóias de sabedoria e histórias de experiências pessoais. Essas
cartas enriqueceram a minha vida. Percebi claramente que existe uma
verdadeira rede - bem mais vasta do que me atreveria a pensar - de
pessoas no país que têm vindo a percorrer calmamente longas distâncias ao
longo do caminho menos percorrido do desenvolvimento espiritual.
Agradeceram-me por lhes ter reduzido a sensação de estarem sós na
viagem. Agradeço-lhes pela mesma razão.

Uns poucos de leitores questionaram a minha fé na eficácia da psicoterapia.


Afirmei que a qualidade da psicoterapia varia amplamente. E continuo a
acreditar que a maior parte dos que não conseguem beneficiar do trabalho
com um terapeuta competente, não o fazem porque lhes falta o gosto e a
vontade pelo rigor desse trabalho. No entanto, esqueci-me de salientar que
uma pequena minoria - talvez cinco por cento - das pessoas tem problemas
psiquiátricos de uma natureza que não reage à psicoterapia e que pode até
piorar devido à profunda introspecção envolvida.

343

Quem quer que tenha conseguido ler e compreender totalmente este livro
não pertence quase de certeza a esses cinco por cento. E de qualquer
maneira, é da responsabilidade dum terapeuta competente discernir
cuidadosa e por vezes gradualmente quais os pacientes que não devem ser
conduzidos ao trabalho psicanalítico e conduzi-los em alternativa para
outras formas de tratamento que podem ser bastante benéficas.

Mas quem é um psicoterapeuta competente? Vários leitores de O Caminho


Menos Percorrido que tomaram a iniciativa de procurar a psicoterapia,
escreveram a perguntar como se devia escolher o terapeuta adequado,
distinguindo entre os competentes e os incompetentes. O meu primeiro
conselho é encarar a escolha com seriedade. É uma das decisões mais
importantes que se podem tomar na vida. A psicoterapia é um grande
investimento, não só em termos de dinheiro mas mais ainda em termos de
tempo e energia valiosos. É o que os corretores chamariam um investimento
de alto risco. Se a escolha for acertada, dará óptimos dividendos espirituais
que nem poderia imaginar. Embora não seja provável que se seja
prejudicado se se fizer a escolha errada, desperdiçar-se-á a maior parte do
dinheiro, tempo e energia valiosos que se investiu. Portanto, não hesite em
procurar bastante. E não hesite em confiar nos seus sentimentos ou
intuição. Normalmente, com base numa só entrevista com um terapeuta,
ficará apto a recolher boas ou más "vibrações". Se as vibrações forem más,
pague a consulta e mude para outro. Essas sensações são normalmente
intangíveis, mas podem emanar de pequenas indicações tangíveis. Na
altura em que comecei a fazer terapia em 1966, preocupava-me e criticava
muito a moralidade do envolvimento da América na guerra do Vietname. O
meu terapeuta tinha, na sala de espera, exemplares do Ramparts e do New
York Review of Books, ambos revistas liberais com políticas editoriais anti-
guerra. Comecei a sentir boas vibrações antes de o ver pela primeira vez.

344
Mas mais importante do que as inclinações políticas, a idade ou o sexo do
seu terapeuta é se ele ou ela é uma pessoa genuinamente interessada. Isso
também consegue sentir rapidamente, embora o terapeuta não deva
cumulá-lo de tranquilizações amáveis e compromissos apressados. Se os
terapeutas são interessados, serão também cautelosos, disciplinados e
normalmente reservados, mas deve ser-lhe possível intuir se a reserva
esconde calor ou frieza.

Uma vez que os terapeutas o irão entrevistar para decidir se o querem


como paciente, é totalmente adequado que os entreviste também. Se for
importante para si, não se acanhe de perguntar o que pensa o terapeuta de
questões tais como a libertação das mulheres, a homossexualidade ou a
religião. Tem direito a respostas honestas, abertas e cuidadosas.
Relativamente a outro tipo de questões - tais como quanto tempo irá durar a
terapia ou se a sua erupção cutânea é psicossomática

- normalmente poderá confiar num terapeuta que lhe diz que não sabe. De
facto, as pessoas educadas e bem sucedidas em qualquer profissão que
admitem ignorância são geralmente as mais conhecedoras e dignas de
confiança.

A capacidade dum terapeuta tem muito pouco a ver com as credenciais que
possa ter. O amor, a coragem e a sensatez não podem ser atestados com
diplomas académicos. Por exemplo, os psiquiatras "certificados pela ordem",
os terapeutas com mais credenciais, passam por uma formação rigorosa
suficiente para que as pessoas se sintam relativamente seguras de que não
estão a cair nas mãos dum charlatão. Mas um psiquiatra não é
necessariamente melhor terapeuta do que um psicólogo, um assistente
social ou um padre - ou talvez nem tão bom. De facto, dois dos melhores
terapeutas que conheço nunca se licenciaram.

A recomendação pessoal é muitas vezes a melhor maneira de começar a


procurar um psicoterapeuta. Se tem um amigo

345
que respeita e que ficou satisfeito com os serviços dum determinado
terapeuta, porque não começar com essa recomendação? Outra forma,
particularmente aconselhável se os seus sintomas são graves ou se também
tem dificuldades físicas, será começar com um psiquiatra. Em virtude da
sua formação clínica, os psiquiatras são habitualmente os terapeutas mais
caros, mas estão também em melhor posição para compreender todos os
aspectos da sua situação. No fim da consulta, depois do psiquiatra ter tido
oportunidade de conhecer a dimensão do seu problema, pode pedir-lhe para
lhe recomendar um terapeuta não médico menos dispendioso, se aplicável.
Os melhores psiquiatras estarão normalmente na disposição de lhe dizer
que analistas leigos na comunidade são especialmente competentes. Claro
que se o médico lhe transmitir boas vibrações e estiver disposto a aceitá-lo
como paciente, pode continuar com ele.

Se tiver dificuldades financeiras e não tiver cobertura por uma companhia


de seguros para psicoterapia ambulatória, a sua única opção será procurar
ajuda numa clínica de saúde mental ou psiquiátrica apoiada pelo Estado ou
por um hospital. Aí os honorários serão estabelecidos de acordo com os
seus recursos e pode ter a certeza de que não cai nas mãos dum
curandeiro. Por outro lado, a psicoterapia em clínicas tende a ser superficial
e a sua capacidade de escolha do seu próprio terapeuta pode ser bastante
limitada. De qualquer forma, funciona frequentemente muito bem.

Estas breves orientações podem não ser tão específicas como os leitores
gostariam. Mas a mensagem central é que, uma vez que a psicoterapia
exige uma relação intensa e psicologicamente íntima entre dois seres
humanos, nada o pode libertar da responsabilidade de escolher
pessoalmente o ser humano em particular a quem vai confiar a sua
orientação. O melhor terapeuta para uma pessoa pode não ser o melhor
para outra.

346

POSFÁCIO

Cada pessoa, terapeuta e paciente, é única, e deve confiar no seu


julgamento intuitivo único. Porque há alguns riscos envolvidos, desejo-lhe
sorte. E porque o acto de iniciar psicoterapia com tudo o que envolve é um
acto de coragem, tem a minha admiração.
M. Scott Peck

Bliss Road

New Preston, Conn. 06777

Março de 1979.

347

Outro Olhar

1 O Caminho Menos Percorrido M. Scott 1'eck

2 A Sociedade de Irmãos Robert BK

3 Conversas com Deus HITO l Neale Donald Walsch

4 Não Há Acasos Robert H. Hopcke

5 Conversas com Deus lirra 2 Neale Donald Walsch

6 Parar

David Kundt/

7 Conversas com Deus livro i Neale Donald Walsch


8 A Psicologia do Dinheiro

Adrian Furnham e Michael Argyle

9 Aonde Quer Que Eu Vá

Jon Kabat-Zinn

10 Amizade com Deus

Neale Donald Walsch

11 Palavras Que Curam

I.arry Dossey

12 O Futuro do Amor

Daphne Rose Kingma

13 El Camino

Shirley Macl.ame

14 Comunhão com Deus

Neale Donald Walsch


15 Elogio do Silêncio

Marc de Smedt

16 Quando os Elefantes Choram

Jeffrey Masson e Susan McCarthy

17 Gente da Mentira M. Scott Peck

18 O Turista Espiritual

\lick Brown

À Mão de Semear

1 Sc a Vida c Um Jogo Estas são as Regras

Chcric Carter-Scott

2 O Manifesto do Cânhamo

Kowan Robmson

3 Resoluções Para o Milénio

compilado por Jenmfer rox


4 A Sabedoria dos Lobos

Twvman L. Towerv

Extra Colecção

As Terças com Morrie

Mitch Albom

Corpo de Mulher Sabedoria de Mulher

Christiane Northrup

Deus c o Meu Corrctor

Irmão Tv

com Christophcr Bucklcy c John Tierney

A Arte de Não Fazer Nada Véroniqui' Vn-nne c Krica Lennartl

O Tão do Pooh

Bcnjamin Hoff

A Natureza
Ralph Waldo Hmerson

Manual Prático de l Ching R. L. Wing

A Gazela e as Estrelas

Graça Castanheira e Rita Quintela

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