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Debate: Vandana Shiva e o

mundo atual

Vandana Shiva1
Sustentabilidade
Por Jaime Sautchuk2
em Debate

1
Vandana Shiva é membro do Conselho Editorial de Sustentabilidade em
Debate
2
Jaime Sautchuk é jornalista e escritor. Nasceu em Joaçaba (SC), em
1953. Foi office-boy e bancário em Curitiba (PR), até virar jornalista,
aos 18 anos, em Brasília. Trabalhou em vários órgãos da grande mídia e
nos principais veículos da imprensa de resistência ao regime militar.
Tem mais de uma dezena de livros publicados. Sua atividade profissio-
nal e pessoal sempre esteve ligada aos interesses populares.

Introdução

A física nuclear indiana Vandana


Shiva continua a mesma militante, o que
tem mudado um bocado (para pior) é a
realidade ao redor do planeta em que
vivemos. Mas isso apenas reforça suas
ideias, conceitos, pregações e ações na
busca pelo desenvolvimento sustentável
em plena sintonia com a justiça social.
Sua formação acadêmica se deu em uni-
versidades da própria Índia, do Canadá
e dos Estados Unidos. Mas ela prefere
se dizer “formada na universidade da flo-
resta”, numa referência à sua proximi- Graça Fleury
dade com movimentos populares, em particular dos camponeses de seu país.
Sua farta obra, com mais de 30 livros publicados — além de centenas de artigos, palestras e
propostas de lutas —, há décadas granjeia simpatizantes mundo afora. “Estar ao lado dos últimos”,
título de um de seus livros, expressa bem seu sentimento de combate à ganância, prepotência e des-
compromisso daqueles que levam a Humanidade para o caminho da autodestruição. Os “últimos” são
aqueles que foram privados pela força de usufruir dos bens que são comuns, mas estão sendo apropri-
ados por poucos. Os mesmos que desprezam a Natureza e se lixam para um futuro de harmonia entre
os humanos e o meio em que vivem.
Ao beirar os 60 anos de idade, ela esteve no Brasil para tomar parte, em 19 de abril passado, do
seminário “Krisis – Meio Ambiente”, que integrou a 1ª Bienal Brasil do Livro e Leitura, realizada em

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Brasília(DF). Ali, ela discorreu sobre o tema “A sentido de ficar cada vez mais interdisciplinar, mais
Idade dos Limites: o mundo em busca de uma conectada com a realidade e ser efetivamente re-
nova relação com a natureza”, juntamente com o levante para a sociedade. Se você olhar para os
filósofo inglês John Gray. O enorme auditório su- Estados Unidos, por exemplo, o jovem já educa-
perlotado e o volume de perguntas do público a do sai da universidade e tem ir para as ruas para
ela dirigidas nos debates demonstraram que seu protestar porque 1% deles consegue se incluir, mas
prestígio por aqui é de impressionar, especialmente 99% ficam de fora.
entre a galera mais jovem. Eles fizeram graduação, mestrado e são até
O fato de eu participar daquela mesa, na con- PhDs, mas não têm emprego. É claro que eles
dição de mediador, possibilitou meu convívio com têm que despertar para o futuro do seu país, um
essa pensadora e ativista por bem mais tempo do futuro em que a economia seja sustentável e crie
que as duas horas e 20 minutos que durou o encon- oportunidades para todos. Devem propor mudan-
tro público daquela noite. Em longa conversa, en- ças, porque irão compreender que não se pode
trecortada de compromissos dela com a mídia e as- viver em uma sociedade cuja estrutura parece cri-
sédios de admiradores, foi possível armazenar as im- ada para destruir empregos e destruir a Natureza.
pressões, lembranças e informações que adiante es- E aí entra o segundo grande papel que deve
tão alinhavadas. ser desempenhado pela universidade. A principal
Ela falou sobre os temas mais comuns na característica da universidade é que ela tem que
sua trajetória, mas também deu opiniões sobre a continuar pública. Precisa ser pública. Não pode-
universidade, o livro como ferramenta de luta, a mos suportar a privatização da educação e a pri-
correlação de forças no mundo e a relação mu- vatização do conhecimento. Conhecimento pri-
lher-ecologia. E deu informações de foro pesso- vatizado significa conhecimento nenhum. O co-
al, mas com sutileza política, como a de que ela nhecimento não pode ser transformado em pro-
não é casada, mas tem um filho, já adulto. duto, em mercadoria qualquer, que é vendida para
Para facilitar a leitura, as falas de Vandana atender a alguns interesses. Isso não ensina nin-
foram agrupadas em blocos temáticos. Um pe- guém. Você não pode aprender um pouquinho
queno texto, realçado, apresenta cada um desses de tecnologia para aplicar aqui ou acolá e apenas
temas, onde estão resumidas as ideias e informa- saber migalhas das ciências, de como se move o
ções por ela passadas, nesta entrevista solta, em mundo. É na universidade que se forma o cida-
formato de conversa, em que ela, por vezes tro- dão, no sentido mais profundo do significado de
cando os papéis, também fazia perguntas sobre cidadania. A universidade tem que ensinar o que é
assuntos relacionados ao Brasil. Vejamos: a vida.
Eu posso falar até da minha experiência pes-
A universidade pública é fundamental na
soal quanto a esse aspecto. Eu comecei a vida
construção de um mundo sustentável, em que
como física, numa perspectiva acadêmica, mas
vigorem valores como a solidariedade, o
mudei profundamente quando conheci um movi-
respeito ao bem comum e a justiça social.
mento chamado Chipko, que significa “abraço”.
Eu acredito que há dois importantes papéis Quando este movimento apareceu em nossa re-
para a universidade em um mundo em mudança. gião, as mulheres vieram para o Himalaia e disse-
O primeiro é a própria universidade mudar, no ram “não cortem essas árvores”, estas florestas

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protegem a água, protegem o solo, fornecem ali- solos, com a biodiversidade toda. Especialmente
mentos. Eu abracei esta causa. Longe da acade- um sobre os recursos hídricos do meu país, que
mia. teve muita repercussão.
Anos depois, eu voltei para a universidade Esses documentos serviram de bases para
para implantar um pequeno instituto, destinado a traduções feitas para o Português, por exemplo,
atender pequenas comunidades. Foi então que me para subsidiar o movimento contra a monocultu-
dei conta de que, na maioria das universidades, o ra na atividade agrícola. E muitos outros docu-
ensino é estanque, setorizado e dirigido. O curso mentos, sobre mineração, sobre biopirataria, so-
de geologia trata de mineração, o de floresta é bre a luta das mulheres e assim por diante. Mas
sobre madeiras e assim por diante. Mas não se eram ações pontuais, ainda sem um caráter mais
ensinava como proteger os rios, o solo, as flore- amplo, de compreensão dos meios de que dispo-
tas, as montanhas, como se usar bem a água. Este mos para nos comunicar.
conhecimento existe, está com o povo, está com Em 1985, surgiu o Movimento Global para
pesquisadores, nas atividades interdisciplinares. Proteção das Florestas Tropicais (Rain Forests). José
Foi nesse processo, nessa volta minha e com Lutzemberg, que era ministro aqui no Brasil, já
essa constatação, que nasceu a Fundação de Pesqui- participava de um movimento, que eu também
sa em Ciência, Tecnologia e Ecologia. É uma entida- participava, no Quênia. Então juntamos forças para
de afastada daquele sentimento de pessoas corren- colocar o projeto para frente. Na Conferência da
do para preparar um novo paper, correndo atrás de Mulher, que se realizava em Nairobi, houve várias
uma nova promoção ou de algum cargo. Passamos a falas e ações sobre esse movimento que surgia,
trabalhar na pesquisa visando servir os que não têm suas implicações, sua importância. Era uma for-
poder, não para atender os poderosos, que se apro- ma de chamar a atenção das mulheres para a eco-
priam dos recursos que são de todos. logia. Não há luta específica da mulher que esteja
O ensino privado não perde tempo com isso, desconectada dos problemas ambientais
não está preocupado com o ser humano, no sen- Eu senti que ali, naquele evento, estava uma
tido social. Ou seja: a universidade pública é ab- oportunidade para colocar o debate feminista em
solutamente fundamental para a construção de contato mais direto com a ecologia. Muito mais
um mundo sustentável. do que isso até, porque é fácil perceber que a mu-
lher tem mais inclinação para compreender nossa
Com mais de 30 obras publicadas, Vandana
relação com a ecologia. Talvez pela sua situação
defende que o livro não deve ser um fim em si.
em nossas sociedades, a mulher percebe com maior
É apenas um começo de um processo de difusão
facilidade a importância desse convívio e tem mais
de conhecimento e de experiências que ajudem
aversão a inovações desconectadas da realidade,
a fortalecer os movimentos em que seu autor
como os alimentos provenientes de mutações ge-
esteja engajado.
néticas. Nasceu assim o que é chamado de Ecofe-
Em um determinado momento da minha minismo.
vida, desde as primeiras atividades, comecei a co- Então, uma editora britânica pegou isso e
locar minhas experiências no papel, primeiro como resolveu publicar em livro. Eu disse a eles que não
documentos técnicos para o governo, mostrando tinha problema algum, mas que eles colocassem o
como estávamos acabando com a água, com os livro em nome do movimento, não em meu nome.

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Contudo, uma pessoa da editora sentou para to- Índia, milhares de pequenos produtores comete-
mar um café comigo e me convenceu que o fato ram suicídio nos últimos anos. Assim, nossa luta
de eu escrever sobre aquele tema era parte do es- mais acirrada é contra essa expropriação.
pírito do próprio movimento. Um precisava do Eles (as grandes corporações dos países cen-
outro. E assim nasceu o que eu considero como trais) estão roubando tudo. A biodiversidade nativa
meu primeiro livro. e o conhecimento nativo, tudo eles querem para eles.
Hoje ficou mais fácil, mais costumeiro. Cada Até os nomes das plantas, de uma bela árvore eles
tema ou cada nova forma de abordar um tema querem controlar. Nós temos na Índia um tipo de
pode virar um livro e assim atingir muito mais gen- arroz que é extremamente aromático. Uma compa-
te em todo o mundo. Não se trata de promoção nhia americana, chamada RiceTek, patenteou a planta
pessoal, mas de difusão de ideias. Não posso blo- e diz que é deles. Quando Cristóvão Colombo che-
quear as coisas em mim. Os assuntos têm que fluir, gou a este Continente, ele disse: “esse pedaço do
como os rios fluem. E isso eu faço muito, sobre mundo é meu”. E assim eles continuam fazendo. A
os mais diversos campos do conhecimento, por- biopirataria é a cara nova do colonialismo.
que cada experiência que vivemos deve ser coleti- O Brasil conhece muito bem esse proble-
vizada de todas as formas que pudermos. ma. Especialmente na Amazônia, essa gente che-
Eu trato meus livros como escritos a serviço ga aqui pega uma planta qualquer e diz “essa é
dos povos da Terra. Ou seja, não se pode ver o minha”, registra uma patente lá fora e pronto.
livro como algo que tem um fim em si próprio, Viram medicamentos, cosméticos, tinturas e tudo
pois ele não é um fim de nada. O livro é o começo, o que se imaginar. E depois vem vender aquilo
é parte de um processo, de um movimento. Vai que roubou. Na grande monocultura, dizem que
gerar mais debates, ideias, programas de rádio e TV, inventaram novas sementes e cobram um bom
vai circular, enfim. Se for para constar de um currí- dinheiro para que o agricultor possa usar a mes-
culo e ficar na estante, não serve para mim. ma semente, adaptada aos agrotóxicos deles, ver-
dadeiras bombas destrutivas que são vendidas a
A biopirataria, que é a apropriação indevida
preço de ouro e o produtor tem que usar. Não há
da Natureza ou do conhecimento para fins de
sustentabilidade nisso.
lucro e dominação, representa a nova face do
Um dos casos mais conhecidos no mundo
colonialismo. Tão agressiva e dilapidadora
inteiro, pela sua ousadia, é aqui do Brasil mesmo,
quanto há 500 anos.
com a ayahuasca. Milhares de índios produzem esse
A biopirataria é um dos piores males que en- preparado e, no entanto, queriam pôr as mãos não
contramos no modelo econômico que nos é im- só na fórmula de preparo, mas no próprio nome.
posto. É um dos piores inimigos da vida sustentá- Para sorver sua bebida, o brasileiro iria ter que ba-
vel no Planeta. Particularmente nos últimos 25 anos, tizá-la com outro nome, para não ter que pagar
venho me empenhando na proteção das sementes, royalties. E, em muitos casos, se a fórmula também
porque as grandes corporações viraram donas de tiver sido patenteada, há que pagar para usá-la!
tudo. Elas alegam que criaram as sementes das quais Eu promovo uma ação não violenta de con-
se apropriaram e aplicam os royaltes, que têm cus- trole da semente, conservando o solo, construin-
tos altíssimos aos proprietários de nosso país. Es- do as culturas, com a difusão do conhecimento
ses royalties levam nossos produtores à morte. Na por todos os meios possíveis. A semente nas mãos

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das comunidades, como um bem comum, tem Em verdade, o que ocorre é que existe uma
grande valor. Já nas mãos de uns poucos, não têm poderosa barreira que impede qualquer ação nes-
valor algum para a sociedade. Têm para os usur- te sentido. O ideal, é claro, seria a extinção das
padores, que enriquecem saqueando o mundo. patentes, que poderiam existir como um instru-
Foi por isso que, em 1991, fundamos um mento para algo efetivamente inventado. É por
movimento denominado Navdanya (Nova Semen- isso que lutamos. Queremos justiça num plano
te), que procura levar a luta contra a biopirataria global. E já se tem obtido muitas vitórias no mun-
para o mundo todo. As sementes nativas, em lu- do inteiro. Mas, isso não é tudo, porque a rouba-
gar das transgênicas, têm um significado muito lheira continua.
maior do que o da reprodução pura e simples, em De todo modo, a luta contra a biopirataria
qualquer lugar do mundo. Elas têm um vínculo deve ser travada no dia a dia, em cada um de nós.
cultural com o agricultor e suas comunidades e Se eu sou agricultor, eu devo colocar em minha
deste modo fica mais fácil produzir alimentos mais cabeça e em meu coração a ideia de que o que eles
saudáveis, sem os venenos que são colocados nas estão fazendo é um crime e que seu entrar no jogo
plantas para forçar uma adaptação. deles eu estarei protegendo e enriquecendo cri-
Uma maneira de lutar contra esse roubo da minosos. O extensionista rural, o comerciante,
nossa biodiversidade é as comunidades se adian- todos também devem pensar assim. É uma luta
tarem e fazerem registro de tudo, até mesmo do pacífica, mas muito eficaz quando ganha grande
conhecimento. Uma criança que nasce, pode mui- número de adeptos.
to bem ser considerada herdeira de tais e tais co-
O mito de que o crescimento econômico e o
nhecimentos que são propriedades da sua comu-
avanço tecnológico, juntos, seriam a salvação
nidade e não podem ser usados por quem não
da Humanidade, e de que é preciso ser rico
estiver autorizado. Ou seja, cria-se um arquivo vivo
para preservar a natureza resultou na crise
para o futuro, pois a criança nem sabe direito por
atual, com gravíssimas consequências,
que está ali, nem quais os seus direitos básicos e
especialmente na Europa.
muito menos o que é biodiversidade. Mas é uma
forma de se proteger com as mesmas armas. Nós temos sido impregnados por uma nar-
Obtêm-se um documento legal dizendo que rativa equivocada, falsa, que vem especialmente dos
isto e aquilo é propriedade desta ou daquela pes- grandes grupos econômicos e dos países ricos. É
soa, comunidade ou instituição para se resguar- uma argumentação que tenta convencer a todos
dar. Mas, para isso, ainda dependemos da revisão que para proteger o meio ambiente você precisa
de 1999 da Global Intellectual Property Law (Lei Glo- ser rico. Você teria que primeiro acumular riqueza
bal da Propriedade Intelectual). Todo mundo sa- para, só depois, cuidar do meio ambiente. Só muito
bia que esta lei não prestava, pois permite gran- dinheiro poderia proteger a Natureza.
des jogadas na expropriação do conhecimento. Difundiu-se a ideia de que pregar a harmo-
Naquele ano foi aberta a possibilidade de os paí- nia entre o ser humano e a Natureza é uma visão
ses alterarem esse instrumento, mas nenhum país holística do mundo, ultrapassada diante de uma
avançou nessa questão, porque sempre esbarra em chamada modernidade que nos é imposta pelo
algum empecilho, acaba adiando decisões e assim capitalismo. O consumismo quer se impor de qual-
vai indo. quer maneira, mesmo que isto signifique a des-

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truição do ambiente. Boa parte do que se conso- dos nossos rios, dos nossos lagos, dos lençóis sub-
me no mundo hoje é supérfluo, são bens que, na terrâneos.
verdade, as pessoas não precisam. Este é um mo- Tudo o que o ser humano precisa está rela-
delo insustentável, a começar pelo fato de que boa cionado com o meio ambiente e este não é ape-
parte da Humanidade precisa se preocupar em nas aquilo que está ao nosso derredor, mas é a
levar alimentos para dar aos filhos à noite. Não há base da vida. Se as coisas não funcionarem no
dinheiro sobrando. ambiente, o que acontece conosco? Se a árvore
Na minha parte do mundo, como é tam- não produzir oxigênio? Se a floresta Amazônica
bém aqui no Brasil, proteger a Terra é proteger a não fosse o pulmão do Planeta? No Brasil mes-
vida. Proteger a Terra é assegurar o acesso de to- mo, não vejo por que haver gente com fome, se
dos aos nossos recursos naturais, a começar pela está tudo aí. Seria, portanto, inaceitável dizer que
água, pelos alimentos, pelo direito ao comparti- alguém passa fome numa realidade assim. Mas a
lhamento daquilo que é bem comum, e isto signi- distorção proposital dessa relação faz com que haja
fica justiça social. Justiça social e ecologia susten- pobres, sem acesso aos bens que são seus tam-
tável são, portanto, duas faces da mesma moeda. bém.
E a moeda é a Terra, com seus recursos para su- Os índios da Amazônia se tornam pobres
prir as necessidades básicas de todos os seres hu- quando a floreta é cortada. E tomo conhecimen-
manos, que são a disponibilidade de água, do ali- to do caso dos índios Kraô, de Goiás, cujas co-
mento, da moradia digna, da saúde. munidades foram dizimadas e colocadas em situ-
Se você concentra os recursos naturais nas ação degradante pela interferência do homem
mãos de poucos, você vai ter uns poucos muito branco, que lhes impôs uma agricultura “mais avan-
ricos e os demais serão pobres, cada vez mais po- çada”, ignorando a cultura daquele povo. Uma
bres, excluídos do acesso aos bens que são co- semente da Monsanto é muito diferente. Anos
muns, que são de todos. Temos no mundo pelo depois, a reintrodução do milho tradicional da tri-
menos um bilhão de pessoas que não têm nenhum bo, que ficara congelado em laboratório de pes-
acesso a alimentos. E mais dois bilhões que pade- quisa, as famílias se reorganizaram e as aldeias
cem de doenças decorrentes da pouca alimenta- voltaram a ter vida normal.
ção. O direito a alimentação é um dos mais fun- O caminho correto é de o homem se fixar
damentais elementos da justiça social e a produ- no campo para produzir mais e mais alimentos,
ção de alimentos é a sustentabilidade. não o inverso, que é ir para as cidades e não dis-
Eu estive no Brasil há 20 anos, na Rio-92. A por desses meios de subsistência. A volta do ho-
grande diferença que vejo entre Índia e Brasil é mem para o campo é o caminho para se cuidar da
sobre a quantidade de pessoas que foram movi- terra, da água, acabar com o desemprego, assegu-
das do campo para as cidades, que aqui é propor- rar a sustentabilidade.
cionalmente maior. Em todo o mundo, entretan- O modelo agrícola da monocultura em vas-
to, há uma confusão entre a biodiversidade e uma tas extensões ignora o ser humano e caminha no
vida que para muitos é a mais atraente, mas que é sentido inverso de uma vida sustentável. Tira o
artificial. O meio ambiente não é algo separado homem do campo e não garante a produção de
da gente. Meio ambiente é ecologia e ecologia é a alimentos. Se esse modelo da semente contralada
base da vida. É o que nos aproxima da Natureza, e modificada fosse a solução, não haveria tanta

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gente passando fome no mundo. Esse processo causa de água. Muitos proprietários se apropriam
já vem de longe e conta com o apoio de organis- da água como se um rio, um lago ou mesmo um
mos internacionais, em especial o Banco Mundi- lençol freático fosse deles. Os outros, em especial
al. O Brasil é um caso conhecido de projetos des- o pequeno produtor, às vezes já fragilizado por
se tipo, especialmente na monocultura soja, por falta de apoios, fica sem acesso àquele recurso.
exemplo. Além disso, tem o problema das hidrelétri-
cas. O impacto socioambiental dessas usinas é enor-
A água. Os conflitos internacionais buscam o
me. É o caso da Índia e do Brasil também. Primei-
controle de recursos naturais, hoje com foco
ro, porque a gente não sabe direito a quem servem
na água. Ao mesmo tempo, a poluição e o
essas barragens. A energia muitas vezes passa lon-
desperdício são as marcas de países, como o
ge das populações para atender a projetos específi-
Brasil, que detêm recursos hídricos em
cos de grandes grupos. Vocês citam aqui o caso da
abundância.
usina de Tucuruí, que foi construída basicamente
A água se torna um problema cada vez mais para atender a indústrias de alumínio, que é uma
grave, com mais e mais conflitos eclodindo ao indústria problemática, porque gasta muita energia
redor do mundo pelo seu controle. E em muitos e polui de maneira muito grave.
países, inclusive no Brasil, vêm sendo adotadas E essas usinas, hoje, já são construídas por
medidas para privatizar a água. A parte mais sen- empresas privadas, que passam a ter controle do
sível, mais importante de toda a biodiversidade rio e de suas margens, desalojando milhares e até
está sendo privatizada! Isso é simplesmente ina- milhões de pessoas, em alguns países. Essa gente
creditável. Justamente um recurso que deveria ser é forçada a deixar seus ambientes para ser jogada
cuidado com maior atenção, para garantir seu bom em algum lugar qualquer, às vezes longe dali, e
uso e sua divisão equânime entre as pessoas e co- com muita sorte vai conseguir ter luz em suas ca-
munidades. sas, se conseguir pagar. E os rios, em geral, ficam
Os novos donos da água fazem dela o que bloqueados para a navegação, para os peixes e as-
bem entendem. Na Índia, a Coca-Cola simples- sim por diante.
mente confisca a água de comunidades inteiras
Os BRICS. Essa é uma das grandes novidades
para suas unidades industriais. E isso ocorre no
do mundo atual e pode significar uma
mundo inteiro. Quando a água não é confiscada
mudança fenomenal. O Brasil tem liderado a
para uso direto pelos grandes grupos econômi-
corrente da autonomia dos povos. Uma
cos, os mananciais passam a ser inutilizáveis por
postura que já tem efeitos na América Latina,
causa da poluição gerada por alguma atividade
mas terá no mundo inteiro.
predatória para a sociedade, mas que está enri-
quecendo alguém. O Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Soube que aqui no Brasil, que dispõem de Sul formam hoje a mais poderosa força econômi-
recursos hídricos em abundância, a maior parte ca e política do mundo, com projetos que que-
de sua água doce está comprometida e não pode bram a hegemonia das potências centrais, e de-
ser consumida pelos seres humanos. Além disso, vem usar isso para defender a biodiversidade, para
chegaram às minhas mãos indicadores de que gran- defender o Planeta como um todo. Devemos usar
de parte dos conflitos no campo, aqui, são por essa força para desfazer os erros cometidos no

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passado, durante o longo período de controle uni- para dar espaço ao capitalismo. Isso, no fim das con-
lateral sobre essas questões. tas, significa dizer que a biodiversidade, embora de-
Cada um desses países tem sua área de influên- gradada, está ainda ao nosso dispor e o conhecimen-
cia, suas prioridades, suas características próprias, mas to a respeito do seu uso sustentável existe também.
em muitos pontos há convergência. O Brasil tem se Mudar, é uma questão de querer.
tornado um exemplo de afirmação da soberania dos
O Brasil tem a responsabilidade de hospedar
povos, não só na América do Sul e América Latina,
o maior evento do mundo sobre clima, que será
mas no mundo todo. A China é por si só uma po-
a Rio + 20. Apesar da histórica importância
tência. A Rússia tem grande poder e influência. A
da Rio-92, a biodiversidade do Planeta mudou
África do Sul lidera a luta pelo soerguimento daquele
bastante, para pior, em 20 anos. O que esperar
continente e a Índia também representa uma lide-
agora?
rança emergente com grande potencial.
Juntos, esses países podem unificar posições com Eu estive no Rio em 92, quando o Brasil teve
muita força, pois têm a obrigação de agir de acordo o grande privilégio de hospedar o primeiro en-
com os anseios por um mundo sustentável. Devemos contro mundial para debater esse tema. E pela
observar que esse tipo de atitude começa a quebrar primeira foi possível fixar um comprometimento
um ciclo de séculos de dominação do chamado Ter- dos países em preservar a biodiversidade do Pla-
ceiro Mundo. São países que tiveram sua riquezas na- neta, através da Convenção da Diversidade Bioló-
turais saqueadas ao longo do tempo, a começar pelo gica, e a questão do clima foi tratada com consis-
ouro. Outros minérios e a própria água continuam tência. Pela primeira vez criamos normas sobre
sendo confiscados. É hora de isso mudar. mudanças climáticas e se fixou os princípios do
E essa mudança, que pode ser proporciona- Rio. Criou-se uma jurisprudência em torno da
da pelos BRICS, precisa seguir uma rota diferente questão. O que efetivamente avançou, depois, é
no que se refere ao desenvolvimento, buscando o outra história.
caminho da sustentabilidade. É aí que está a gran- Vinte anos depois, o Brasil novamente hos-
de novidade, porque de nada adiantará quebrar a peda essa discussão, num momento em que a situ-
hegemonia dos países centrais se for para conti- ação ecológica do mundo está pior. Mais espécies
nuar fazendo a mesma coisa que eles fazem, co- da flora e da fauna desapareceram, surgiu mais ins-
metendo os mesmos erros, como o de permitir a tabilidade climática, maior número de pessoas passa
apropriação privada de bens públicos, submeten- fome, mais rios estão poluídos, a situação da saú-
do suas populações à mesma situação de desigual- de se agravou. Cada país tem suas características e
dade, de exclusão. A superfície da Terra deve ser contribui de alguma forma para a destruição do
reocupada por seres humanos. meio ambiente, mas o importante é que, de algu-
O fracasso das experiências do Leste Europeu ma forma, também, apareçam soluções para os
e agora uma nova e profunda crise nos países cen- danos causados. É importante que agora façamos
trais do capitalismo, indicam que a Humanidade pre- com que os compromissos assumidos sejam hon-
cisa que sejam apontados esses novos caminhos. Mais rados, para que, daqui a 20 anos, por ocasião da
do que isso, precisa perceber que esses novos cami- Rio + 40, não voltemos aqui com os mesmos pro-
nhos não são propriamente inovadores, porque de- blemas, ainda mais agravados.
vem resgatar as formas de vida que abandonamos

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