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Rosiska Darcy de Olivera
Ï T- dirilogo amigo enre homem e mulher, um dirálo' b
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lJ em que diferençanão signifique predomínio do
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mæculino sobre o feminino, um dirálogo que opere uma ,-54
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mudança civilizatória.
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Él :.t',-

Essa a "desvairada utopia" deste livro fundamental pua


a reconstituição do feminino
- e do mæculino.
o'Thlvez
então se possa falar de þaldade, porque a verda' I ,'.;, ii'

deira é a aæitação da diferença sem hierar,quiæ.


þaldade o
E a certeza da diferença permanecerá n0 c0rp0, e nele o
encontro mais fecundo."

Áoo de Intereæe: ¡d
a r0nç
Feninisno, Fílosofra, Literatwa, Pohtica, Psicologia rui
iz 0 feminrno emergente
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ISBN 85-11-16017-5
ilil il iltililililllt llllllllll !-
E ROSISKA DARCY DE OLIVEIIU

Coleção Primeiros Passos Lì


tr-r f

Ânor, Casamento, Separação O que é Aborto


ELOGIO DA DIFERENÇA I
cir, :
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A falêncla de um mtto Danda P¡ado Ìì '¿.:. ;


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Ieda Porchat (org,) {..} ,

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O que é Fenlnlsmo O FEMININO EMERGENTE rt-t.,
Evas, Marlas, Lillths.. Branc¿ M, Alves / (r-r
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As aoltas do Íem¡n¡stni Jacqueline Pitanguy
-É1
Vera Paiva i\.)
l¡:
Falas Masculinas, Falas Coleção Tudo é Hlstóda ï ,l

fgmlnlnagf
Sexo e llnguagem Breve Históda do Fenlnismo
V. Aebischer / C. Forel no Brasll
Maria Amélia Teles
Pal Ausente, Fllho Careûte?
O que aconteceu coÌn os
bomens?
070107 677 4
Guy Corneau

Repressão Sexual ilililIIiltililIllilIiltilll


Essa nossa (des)conbe cida
Marilena Chaui

UNESP -,4ss¡s - Bíblioteca


Técnica
'roc....
lolsistai
r{..-
)atp
'roc.

editora brasiliense
r¿ por meps mecânícos ou outros quagquer
sem qutoriz^ção prêt)¡q do editor.

U)
Prtmeìra edíção, I99I
U)
f edição, 1993
Io reímpressão, 1999

*(> fl
(t Preparação: Rubem Rabello Macíel de Barros
È, ' Reuísão: Anetté Colenan
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G
Capa: Isabel Carballo, utílízando pastëís de
Iorst lanssen

Drdor Internaeion¡i¡ dG catdogr¡ção na Pr¡bliaação (cIP)


(cåe¡ra Baatl.l.ir. do Livro, 8P, 8ratil,

ollveira, Rosiska Dalcy ds


ElogLo da dlf,erença : o fc¡tlnlno energenÈe /
Rostska Darcy dc ollvel¡a. -- Såo Paulo :
grasillense, 1999.

1' reitnpr. da 3. od' dè 1993


Bibllografi¡.
rsBN 85-11-¡.6017-5

l. Fenlnilldade 2. FeßlnisEo ¡. TiEulo

99-2936 cDD-305.42
fndioc¡ pare ceËåIogo ttrrt€¡!ático3
1. FenintsÞ : soclologla 305.42

editora brasiliense s. a.
Rua Airi, 22 - TauaPé
Cep 033 l0{ l0 - São Paulo - SP
Fone / F¡r: (01 l) 218-1488 Para Miguel, este livro
E-mai I : bras i Ise@yo I.c om. br tecido por nós doÍs, com o
fîo espesso da nossa vidø,
Sumário

Introdução 9

I. DICOTOMIA SEXUAL E
DESIGUALDADE l9
O feminino como crime político 2t
- A separação de mundos:
- pensamentos, palavras e obras 29
As mulheres no mundo dos homens:
- mal-estar, desvio e conflito ....... 39

II. A ARMADILHA DA IGUALDADE..,.......,. 51


As mulheres em movimento:
- feminizar o mundo 53
A coexistência de contrári',os:
- lógica do privado/lígica do público 75

III. A EMERGÊNCIA DO FEMININO 9t


A cicatriz do Andrógino.. 113
- A razão das loucas 133
-
Conclusão:
ANTíGONA E O ANDRÓCT¡,1O.,.... t4t
Bibliografia t47
Introdução

"Nõo, nem a pergunta eu soubera fa4er. No


entanto, o resposta se ìmpunha a mím desde
que eu nascero. Fora por causa da respostø
contlnua que eu, em caminho ínverso, Íorø
obrigada a buscør a que pergunta elø
correspondiø."

Cla¡ice Lispector
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Este livro é uma tentativa de aproximação dos territ&
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, rios do feminino. Seguindo veredas, foi possível, aqui e acQ-
ì,i,1

l, lá, mapear fTonteiras. Não mais que isso.


.A,o apresentar A Paixão Segundo G. H., Clarice Lispec;
¡

tor disse que ficaria contente se só fosse lida por aqueLEl


de alma já formada, que sabem que a aproximação do que
quer que seja se faz gradualmente e penosamente, atraves-
sando, inclusive, o oposto daquilo de que nos vamos ap.r9¡-
ximar. Aprendi com Clarice, que ajudou a formar-me a al-
ma, e sel
: e&ge -a travcssia-úos-teuitorios- do mas-culino' E essa
vessia foi e é para as mulheres uma espécie de exílio, eal
¡ suas dimensões múltþlas de estranheza, de solidão, mas tarç
I bém de aventura,. de enriquecimento e de lucidez. .t.r
'l
I ,,.,' Na experiência do exíIio, o óbvio perde a naturalidade
t',{, ., oo ronftonto do outro, nos surpreendemos outro de al-
i t., -" guém, estabelecemos comparações, avaliamos aspectos nos-
,l,r,l I sos de que antes nunca nos distanciáramos e, por isso mes-
-t li',, mo, sequer reconhecêramos. Nenhum espelho revela me-
,'"l''
i \i '' ilhor a identidade que o exllio.
il
;,i' A incursão das mulheres no mundo dos homens - sua
I
entrada nessa cultura estrangeira, o aprendizado de novos
códigos permitiu que se manifestassem incompatibilida-
-
des que, como arestas, impedem que uma pega de mosaico
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,'i , ti INTRODUçÃO tt
t2 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA ¡e
-tt. ,,

se encaixe num lugar que não é o seu. Não se trata mais C:


"eterno feminino" dos poetas, quando aceitam a
de forçar esse encaixe ao preço de mutilações. Para além 1,t :
da ambigüidade como preço de experiências desejadas e
da igualdade como mimetismo, as mulheres estão hoje bus- ' ,, midas e se dispõem a encarar o vazio corno ponto de
cando a diferença como identidade. Mas a simples formu-
,t ìí
It As mulheres tentaram a passaþem da fronteira do
do dos homens, arrastando, escondidas' as raízes
.1

lação, o dizer dessa diferença é improvável quando, para '\ I


ì
í das em casa. Adotaram estilos de vida masculinos sem
fazê-lo, dispõe-se de um arsenal de palavras e conceitos I
os homens se feminizassem. Assim ficaram, entre dois
alheios. Quando essa diferença deve se exprimir a partir de I

um discurso que, ele mesmo, é masculino. dos, compatibilizando estilos de vidå e modos de
cação diferentes, recebendo da sociedade uma ordem
Não é, certamente, um acaso que os primeiros traços de
emergência do feminino apa¡eçam timidamente na litera- zofrenizante: seja homem e seja mulher. E foi assim
tura do começo do século, refugiados no imaginário,lá onde
À( o sonho de igualdade tropeçou no impossível. Porque a
rlt"
a fantasia insubmissa supera a descrição do mundo e busca
homem se pede que seja única e exclusivamente
inventá-lo. A literatura não foi para as mulheres uma sim- 0' aquele que representa a regra e o padrão face ao qual a
ples transgressão das leis não escritas que lhes proibiam o lher deve ser ao mesmo temPo igual e diferente.
acesso à criaçäo. Foi, muito mais que isso, um território
Mas ninguém pode ser, ao mesm o, tempo, si mesmo et' 'br
r;ì J1
Outro. ¡i
liberado, clandestino, pulsando ao ritmo emocional dessa
clandestinidade e desse risco. Salda secreta da clausura da I
Longe do eterno feminino, para além da ambieüidad4!,,
linguagem e de um pensamento que as pensava e descrevia
{ resposta possível a mensagens contraditórias, a autoria ðö¡
in absentiø. feminino é, antes de mais nada, a de uma linguagem paråt I \.' /
t,
Depois da arte como escapatória, veio o tempo da ciên-
¡
dizê-lo, invenção que lhe permita exprimir-se sem fecha¡r-l
se na lógica das definições que' entretanto, são incessanteå,
cia como desafio. Assumir Jciência como projeto possível
foi, para muitas mulheres, uma transgressão mais grave do ,.," ( mente exigidas das mulheres. Porque, do ponto de vista daT
que fora para suas ancestrais abandonar-se ao imaginár:io. ,,',.' lógica masculina, negá'la significa fatalmente afirmar o séi¡¡
'. oposto, dito com as mesmas Palavr4s, dentro de um
Apropriação indébita do mais precioso instrumento da r:ul- ' r"'

tura masculina, a intimidade com a ciência só foi possível ' , ' mo quadro de referência. Inconcebível, pois, uma lógica or¡l>
para as mulheres e assim é ainda hoje ao preço de ' , tra, em queconte mais o aproximar-se do que ainda é indd;;
- -
uma estranha ambigüidade. E da descoberta, ao conquis- finido do que o apropriar-se de uma identidade pré-fabricadåt:
tarem o status de cientistas, da natureza ficcional do con- I no espelho dos homens. Aproximar-se do feminino, inven-'l
li"
ceito, frágil versão do mundo que vive à temperatura da tandõ-o a cada dia, é o movimento que farão as mulheres
neste fim de século.
I j
sua própria dissolução. Quantas surpresas! I

Minha geração encontrou o tempo em que, às mulheres, O feminino não é mais o que era antes e não é mais pos-
coube o custo de se perder. De, subitamente, no espaço de sível definilo senão como um processo profundo de desor::
uma vida, ver dissolverem-se certezas milenares, sentir fu- ganização, ou, banalmente falando de transformação.;
pensamen'
gir o chão debaixo dos pés. E, por isso mesmo, ter que as- Quebrou-se o mecanismo mais confortável do
sumir de agora em diante a inédita autoria do Feminino. to, o que define alguma coisa pelo seu contrário, mudando
Autoria que se impõe quando elas não se reconhecem mais o sinal, invertendo características. Assim, masculino e fe-;
em imagens, vivências e representações que ecoavam o minino se definiam por essa inversão de sinais, por uma re-
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l4 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA rNrnonuçÃo

.? do mundo
lação deexclusão mútua que alguns preferiam, benignamen Que essa cultura tenha medrado à margem ad,

te, chamar de complementaridade. Mas a História prepara


o'
homens, que tenha servido como pretexto a toda uma
armadilhas e nosso tempo confrontou homens e mulheres \ tória de exclusão e como álibi ao confinamento' tudo
, ,',,,
,

com questões insólitas, imprevisíveis no passado que se - . ,.i^, sendo verdade, não elimina sua existência ou invalida o
apoiava em um suposto equilíbrio. Mudou o lugar social I , , ,
de melhpr se gerou dentro dela: a intimidade com o
das mulheres, mudou sua experiência do mundo. As mu- ,/' ,,' I ,, t- sual, o percebido tão villido quanto o provado, o
.l .t'
lheres ficararn, assim, divididas entre passado e futuro, en--
i
do que é próximo mais do que o que é próprio.
tre memória e projeto. .,1 E é desse melhor da cultura feminina, dessa outra
O Feminismo plantou suas raízes nessa no man's land. - ..

Como todo movimento social, ele chega como desafio e exi- I ,' í
gência de transgressão de uma ordem que, confundida com ' ' ,'. : (i /:fl \ l)

o senso comum, vigorou ao longo dos tempos, atribuindo ,/


l\
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ao masculino o direito de definir o feminino como seu aves- ,
'' '

so. Vivemos hoje o desmentido dessa ordem, o mergulho' ,-'' '

numa desordem que, paradoxalmente, é organizadora.


A idéia da igualdade entre os sexos, primeiro estágio da
transgressão, parece absorvida nas pontas mais desenvol-
vidas da sociedade. Em graus diversos, mas em toda parte,
abrem-se às mulheres possibilidades existenciais até então
bloqueadas. E, no entanto, a interrrogação sobre a relação
ì

entre os sexos se radicaliza. O feminismo da igualdade se


'
!. ./
prolonga como feminismo da diferença. E, a partir daqui, ' tìr l, ,

ó entendimento se complica. Estaria¡n as mulheres, numa li


\
espécie de surto passadista, reinvestindo o passado e subs- \I

crevendo idéias que há um século vêm combatendo? Cer- ',


\ cultura feminina não é ao femininó como essência quet.çFJ \'t¡ ri'
¡ c- -: -!-,-^ ^ l^ ,r:
tamente não. E ver semelhanças entre o- feminismo da dife- ' ¡ referem, mas ao feminino como experiência. Essa experiQç.:i
rença e o idéario que, impregnando o social, discriminava I
l cia passada encontra hoje noïas vivências e exigências e,é¡
as mulheres, é um grave erro de perspectiva. i , i)''
r)
,r.rr" processo de mutação que o feminirro vai ganhandcir
O olhar voltado para o passado se inscreve no processo forma nova.
de busca de identidade. Porque a identidade não pode evi- ,,, A emergência do Feminino como paradigma culturalvem ,'',
I.,. 5, f.azendo sem sequer dizer seu nome. Na procura deurlr .,, .., "i I

tar uma referência aos gestos que modulam o cotidiano e


que situam o olhar feminino sobre a vida em um ponto de , entendimento do mundo que não se contente com a utiliza- , ' i , .
todo.,, '
I

i'
ção exclusiva da razão por não reconhecê-la comO
1

vista específico, balizado por uma acumulação de experiên- l


cias, por urn estar no mundo que lhe.þpróprio. A identida- poderosa. Na recusa de aceitar o corpo como instrumentol
de feminina é tributária de uma espécie de cultura das mu- iubmisso da produção e na tentativa de reconquista de sufts' : . 1-,.'
dimensões eróticas. No balbuciar de uma linguagefn, às vezes f -, ' '
'
lheres que, como tradição, mai'ca a experiência existencial ,,'
ininteligível, feita m?qlg!4qtclos e de escuta que de ex-' -
de todas elas. -a

,/ ì ,/ ,a':..',.,:', t....i, t¿).1 t';i


,
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t6 ROSISKA DARCY DB OLTVBIRA
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pressão codificada, o Feminino emerge como esforço de al- )

teridade, de reconhecirnento de lugares outros de onde o ¡," .. '


humano possa contemplar sua experiência, imaginar-se di- ,i¡,-"
i.'.' '
!,. :
ferente, conceber-se novo, mesmo se o novo busca sua sei- l;,-
;l' ,lL.
va no que parecia passado. Talvez seja essa a insólita lß
0"'
tica da atualidade. Na releitura das relações humanas, a des-
coberta de um capital extraordinário, de uma impressionantê
riqueza que se encontra nelas, e sua atvalização em função :d
U
de um projeto que articule de maneira original âs relações
do público e.do privado, do Íntimo e do político.
Na concreção da vida, feminizá-la significa rever o lugar(
do trabalho na existência cotidianade homens e mulheres, i
',"4
I

'. I
redefinir o político, interrogar a ciência e a arte pelo viésJ j'ì
,l
da desconstrução de conceitos e da invenção da linguagem. .i;'! ,J

Essa feminização vem se dando, ainda que não se a chame )'' .i ti


como tal ou que nela não se tenha identificado a marca dor" ,

Feminino. ,i

Quando a humanidade se dá conta da necessidade de re-


tomar o dirilogo com a Natureza depois de um fracassado
ri
]
projeto de se desvencilhar dela ou de ignorá-la, talvez seja ' \
pela mediação do Feminino emergente que essa retomada ,

de contato se possa dar. Em um tempo em que lembrar à I em que corpo, cultura, história e lugar social interagem'''o
humanidade sua dimensão natural significava atraso e rea- que comporta inserção e configurações insólitas' O que deÉ 1 )
cionarismo, identificar as mulheres como mais próximas da fendem é uma igualdade inédita entre os sexos, o púmadolf '
Natureza significava diminuíJas, colocá-las, de certa ma- da diferença sem hierarquia e sem ambigtiidade. ii
neira, aquém do Humano, monopolizado pelos homens, si- Às vezeq pensando no movimento de mulheres, na efer- '
tuálas em um plano inferior de desenvolvimento, o que jus- vescência existencial e intelectùal por ele gerada,los riscos
tificava a necessidade de tutela e controle. O lugar inferior que corremos, me vem à lembrança um mito da fndia con-
ocupado pelas mulheres na relação com os homens teve, ao t., þ'
tado por Henri Desroche. Um faquir, depois de preparar
mesmo tempo, como causa e efeito, numa circularidade per- Ll" cuidadosamente urn laço na ponta de uma corda, ioga'apata
feita, a identificação por todos inclusive pelas mulheres I I l' r .t o alto e, seguro de que o laço se prendera em algum lugar \
-
Feminino com animahzação, com atração desconlro-.r'' l
1

além-nùvens, tranqtiilamente sobe por ela. E, diante do pas- (-

-ladadopelo prazer, com ameaça ao princípio de realidàde que, ,;- r' mo dos incréus, desaparece nas alturas, seguro na corda que
supostamente, funda a civilização pelo viés do controle ins-; \, se prendera, quem sabe, em sua esperança. Porque a espe- l'
", ''

ríntual e do primado da Razão.


/ \ rança é assim. Parece ilusória, mas essa ilusão vai impreg- (-, .

A desconstrução dessas convicções, que serviram de fun- nando a realidade e constituindo-a, força atuante que é den-7, ) -',

tro dela. ',!i"'^\'


clamento não só à convivência hierarquizada entre os sexos i
..i.:ii'.

ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA ,,r¡'


'4.:::

ìr.::
O movimento de mulheres foi :

é para mim, para


- - para
minha geração, essa corda em que subimos provar que,
ao alcance da mão, se oferece a nós um mundo mais terno,
mais suave. Se assim não for, o fato de termos podido
imagináJo já nos terá aproximado, talvez, de um objetivo
mais modesto, mas quão precioso, o de inaugurar relações I
humanas em que a aceitação da diferença sem desiguaida-
de reconcilie homens e mulheres e ponha fim ao desencon-
tro das mulheres consigo mesmas.
DICOTOMIA SEXUAL
E DESIGUALDADE

"L'ordre se cristallise
àportir de la møsse chøngeante
du désprdre virtuel."
,

Serge Moscovici

"Sisterhood is bloomÍng;
spríngtime will never be the some."

Slogan do Movimento de Libertação das Mulheres


@stados Unidos, l97l)
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É madrugada em Tþbas quando' na véspera de seu
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do com o filho do rei, Antígona deslizapara fora dss
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do palácio. Desafiando a proibição decretada Por seu'
Polinice,
lCreonte, ela vai cobrir de terra os despojos de
I

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lho rebelde de Édipo, mortoemcombate depois de
I

1.. o ataque de sete prÍncipes estrangeiros contra sua cidade


I\
l\ Cada passo daqueles pés descalços ria planlcie de
I
\aproxima Antígona de seu destino e põe em
I

'" r.r
i \engrenagem da tragédia. A fiagédiaéochoqueèntre
¡

lr- ./.1 lrazões, duas verdades, duas lógibas. Antígona, de


I
I,y é o arquétipo da tragédia.
l,
t,.' O enfrentamento Jnttt a filha de Édipo e o rei, seu
t:r
l!
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proibido às mulheres são os homeni que fazem a Lei e di-
I

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tam o Direito em nome da razão de Estado. Mas quandg
I
Creonte, invocando o interesse da cidade, proíbe que Poli-
nice seja enterrado, Antígona se r-evolta. Ela não é uma mu-
I

lher como as outras. É fima de Édipo, "filha selvagem de


l

um Pai e Rei selvagem". Nascida da transgressão, conde-


I

nada a transgredir.
I

I
22 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA ' ÞIcoroMIA sExuAL E DESI.uALDADE d
..

t.
Antígona foge de casa levando consigo a irmã Ismênia; ' I Ismênia e Antígona são duas versões opostas do femiai: 'l
\l'

essa primeira incursão na clandestinidade priva de testemu- i',.,. .c,;


, ¡no, dois possíveis no diálogo conflitual do feminino consi:
'ii' ',go-*et*-o: ,i'u''
nhas o di¡ilogo entre as duas filhas de Édipo. Antfgona con- ''-, ' o aceitar as leis fundadoras que separam estritq¡
fronta Ismênia_à escolha que deternrÍnará, a seus olhos, se i, ',l ''. 'imente o mundo dos homens e o mundo das mrilheres, suþt
a irmã é fiel a sua estirpe ou se perdeu a nobreza dos senti- ì , 1.
' 'metendo este àquele, ou subverter essa ordem' atravessqst
mentos. Para se afirmar como verdadeira herdeira ¿e É'¿i- )it' 'i,¡' do a fronteira entre o doméstico e ö políticó. iai
po, Ismênia deve acompanhâ-lanamíssão que Antígona se -,i O luto silencioso teria protegido melhor o corpo inquiç{
atribui como vital: enterrar o irmão, Polinice, vítima e fra- to e já condenado que ganha a planície e vai ao encon{çg
tricida de Etéocles, tombados ambos numa guerra suja pe- I ¿o seu destino, deixando para trás as certezas do feminþgt
la sucessão ao trono o conforto do gesto repetido e aprovado, aplaudido e esp$;
Dois fïlhos mortos, duas fÏlhas vivas: é o que resta agora , rado. Do lado de fora, para além das fronteiras da casq"
da linhagem de Édipo. espera-a um conflito maior, mais irredutível, mais fatal;
Creonte, que ocupa o trono, escolheu psliniss prira o pa- Diante dela ergue-se agora o tio, o,fli, o homem., ,- rià
pel de traidor e Etéocles para g de herói. Etéocles será en- Creonte entra em cena para cumprir o seu papel. Su45
primeiras palavras, seu discur$o aos cidadãos, sua platafori
terrado segundo os ritos eterá, assim assegurada sua aco-
entre os mortos. Polinice, o traídor, será transforma- 'i
i.\
i,
" '' ma de governo, são uma afirmação categórica do primadp
L,
'trida
do em carniça, abandonado aos abutres, sem lágrimas nem - rdo público sobre o privado, execração da lealdade familiar
funeral, morto sem sepultura, alma condenada a penar sem lque põe em risco o bem comum. O espetáculo do corpo dç
jamais encontrar repouso. seu sobrinho deixado aos abutres só cncontra justificativa
Esse é o decreto do Rei, a Lei da cidade. Contra eles na certeza inabalável de que ele está no poder para manter
se insurge Antlgona, decidida a enterrar o irmão, salvan- :' a lei contra tudo e contra todos e, sobretudo, contra a te¡¡
doJhe assim a alma e arrostando, nesse gesto, a condena- .\i ,'i,l,,tação do apelo afetivo que comove e enfraquece a integri¡
ção à morte. A eles se curva Ismênia, porque a Leí da , \'' ldade da polis. i*
cidade não pode ser ignorada e, sóbretudo, porque "sen- \ ' \ ' Essa certezase tece em fios, os mesmos que tecerão ateia
,\ ' em que ambos, Creonte e Antígona, cairão sem salYaçãg
do mulheres não teremos jamais razão contra os homens,
submetidas que somos a senhores e obrigadas a cumprir '
\ ,- . - ' t---t
Possível.
- .i

suas ordens".l Mais alguns minutos e ei-lo diante de uma menina des:
Insistir na transgressão é deixar-se seduzir pelo impossf- ' grenhada, com as unhas sujas de terra, arrastada pelos ca-
vel. Mas o impossível é o horizonte de Arüígona e ei-la pronta belos como uma delinqüente qualquer, princesa insolente
a cometer um tríplice crime polftico: ultrapassar os muros que escapuliu de casa e da vida na véspera de se tornar a
da casa, reduto protegido do feminino; entrar na política
' mulher de seu filho e, mais tarde, a mãe de seus netos.
pela subversão da lei; e, finalmente, desafiar não só a lei Face a face, eles vão encenar a oposição irreconciliável
do Estado, que condena seu irmão, mas a lei dos homens, de contrários, de naturezas distintas, e o enfrentamento da
que a condena, mulher, ao silêncio. Face a ela, Ismênia é lógica do masculino com a lógica do feminino que' ao lon-
contraponto, enunciando o Sim, moldada na adequação, go da história humana, se mantiveram tão radicabnente es-
conforme à norma, olha¡ baixo e assentimento. Sua obe- trangeiras. Para Creonte, o triunfo de Antígona o desloca
diência ê,vazadae atravessada em raio pelo Não de Antlgona. de sua posição de homem.
24 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALDADE 25

Essa mulher ití mostrou sua insolêncio ao passar por cimq ' Hemon aliou-se às mulheres, deixou portanto de ser um ho- :

das leis estabelecidas. Agorø, id não serei mais eu, serd ela mem e foi por elas escravizado, tornando-se joguete do ini-
o homem, se tíver, impunemente, tal triunþ assegurado'z migo e porta-voz de uma linguagem ininteligrvel.
Antígona sabe que nasceu para'ö amor e não para o ódio
Hemon, versão diluída do masculino; Ismênia, versão di- :

um cor- luída do feminino: são coadjuvantes da tragédia de creon-


. qur iada a consõlaria se dèixasse sem sepulturaque ).,
r
., te eAntígona, os mais autônomos personagens da literatu-
po de sua mãe. Tanbém sabe que-as leis .19s1- ,. '
"ur.l¿ò
fia valem *énor que outras, que vigoram desde o princípio lra antiga. Autônomos no sentido pùp¡o da-pJavra, os que
/têm lei própria. Eles
dos tempos e que ninguém esðreveu porque foram promul- i
,t . são necessários uni ao outro, um é a
' gadas pelos deuses. .''i''i.,, imagem invertida do outro, o Outro do Outro, imersos nu-
I - Anarquia. Não era o poder inconteste? o'A anarquia é jma mesma paixão
obsessiva de cumprir, implacavelmente,
' ;,\",1 .
' ' \,-
qs
; \' , o pioi àór flagelos; ela arrulna as cidades, destrói lares, Í,,
um destino. como espelhos paradoxais, Antfgona e creonte
¡1,'r ]. r-noe as frentes de combate, semeia o pânico' errquanto refletem, em cena, a inegociável dissemelhança sexual que
," ,6u"ã ¿itciplina salva os que fîcam em seus lugares. Por is-
i' \ ' ,ã o tro*o dever é defender 4 ordem e jamais admitir que
" ,.. é feita, ao mesmo tempõ, de estranheza e encantamento.
ì Masculino e feminino dialogam em contradita: Antígo-
i./ ., ' uma mulher leve a melhor. É prefprível tombar, se neces- na fala com o corpo, seu centro é fora do tempo, sua
;¿;i;, fetas mãos de um homém, do que ser considerado tem- :'
);
vencidô por uma mulher.t'3
poralidade é o sempre, familiar por isso niesmocom o
mun- ., '].
do dos mortos, o antes e o depois que env'oluem a transcen-
Inadmissível inversâo das regras do mundo. Emergência
de uma razão outra, alternativa ao senso comum' que val
dência. creonte é a contingência do agora, cuja temporali- ,i,,
ser a matéria da tragédia. À,razão posta em questão só res- ,
dade é históríca. Fala com a Razão que a política æ uìribui. \'
ta o recurso do assãssinato ou do suicídio. Porque ela não creonte detém o poder temporal de jogar com os vivos,,r ,

é apenas uma expressão do poder discricionário, mas uma e os mortos. se Polinice teve, ao corpo morto, recusado o
razão convencida de si mesma. abrigo da terra, Antígona paradoxalmente será enterrada
\
Desfazendo-se de Antígona, Creonte não escapa ao n-o- viva. seu lamento derradeiro, sob seu úItimo sol, se volta
vo confliro que o espera. Hemon, seu filho, já acorre afli- para o destino de mulher que ela poderia ter tido e que não
to, desesperado petó destino de Antígona, jovem noiva de teve e é, nesse r¡romento de morte, sua única concessão à
r ufil casamento inconcluso. A tógica do masculino esbarra fragilidade. Ela chora a felicidade ionjugal perdida, os fi-
' .'¡ Assim coino, na abertura da peça, Ismênia aparece co-
aqui em outra versão do masculino. lhos que não terá, o canto do Himen"u q.* não ouvirá e
se dirige aos mortos. "eueridos pais, eis-me aqui, virgem
i',' t :' , , tno u*u voz apaziguadora do conflito , agota será a vez de
e maldita que volto a vossa morada. (...) creonte me piro-,
r

' H.tnott oferecèr ao pai uma versão mais doce dele mesmo'
,'--r ';mais flexlvel, menos absoluta em seus julgamentos' menos de, me priva de núpcias, de meu destino de esposa e mãe; ¡,
r_'
'detentora de uma verdade rfnica. Ele p¡opõ-e a Creonte a sem amigos, sozinha, desço viva ao reino dos mortort q.r"i/
,,t'
' ,

imagem das fuvores que' num vendaval, sabem se curvar foi o decreto divino eue violei?".4 .,,,
I

e salvam seus galhos frágeis enquanto as mais rígidas_aca- Fragilid¿¿e da coragem, pois que nada mais é temor nesse
bam desenraiiadas, Um coração capaz de voltar atrás no espírito que não visava o poder temporal mas o respeito à
ódio, de ceder à ternura, seria garantia de uma existência natureza que une os seres para além da vida e da morte,
mais fértil e de um melhor goveno. Mas Creonte existe, do tempo e da história; a feminilidade que chora a perda,
assim como Antígona, na clave do absoluto. A seus olhos na vida, da mulher, mãe e esposa.
o
\J
DICOTOMI,A SEXUAL E DESIGUALDADE ,Y,
26 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA
.gSi,
,
do imaginário humano, o imaginado, como num sonho¡Éi-
t,

A grandezado personagem de Antigona vem também des-', i ' ,

corrente, repercute representações fundamentais de nogsa


:
-$
I
sa fraqueza imensa que a invade na hora da morte, que não,' . '\
se parece com o arrependimento mas é um sentido agudoì
,

identidade sexual. i# .\(


ternura. ) Como bem lembra George Steiners, assim como ÉAplil'
da tragédia que a atingiu, esmagando sua .rt
Electra, Prometeu ou Ícaro, Antígona, enquanto figuramfi
Enquanto Antígona, privada de luz, diz seu lamento, so' itica, é uma
bre Creonte se abatem as trevas do mau presságio. A pre- 't\ì "personificação coletiva" e seu enfrentameq{ç
visão de Tirésias é imptacável. Antes que o sol se ponha ele \\\' com Creonte encena um conflito psicossocial primordi4; ''C
la segregação de homens e mulheres em territórios ffsiçJi .P
pagará com o sangue do seu sangue, com a morte de um
filho, o sacrifício de Antígona e a profanação do corpo de '" priq,ri.ós separados, assimétricos e complementaresr¡Þ'
Tanto quanto as mãos espalmadas no fundo das cavE!
Polinice.
nas ou os templos erguidos nas colinas à glória dos deusçf
O desfecho é bem conhecido: Creonte tenta voltar atrás
os mitos são testemunhos do fenômeno humano. São onÕ
e, salvando Antígona, evitar que a dor se espraie, contami-
das do inconsciente coletivo que vêm dar nas praias de t!$
nando tudo e todos. Tarde demais, Antígona já havia se
dos os séculos. Chegam a nós sempre os mesmos, üö reilif
suicidado; Hemon mata-se na frente do pai e Eurídice, ñü-
lher de Creonte, inconformada com o suicídio do filho' o . ,, -/\,.., ventados. Despertam sentimentos contraditórios, uma,6
' ,/ ^..\ i

pécie de meméria do já vivido e por isso reconhec{vj['


acompanha na morte. Resta a Creonte, como antes aAntí- '{' I
-
mas também a surpresa do inédito.[=Os mitos são feitti,ð]
gona, o lamento, invocação da morte
- esperada, deseja- . , , I
-de agora e de outrora.l .,à'
da, urgente porque possívèl encontro marcado com os, i':'
-
..' seus. O poder tanporal, vencido, humilhado, dissolve-se na' Antígona é um deßês mitos, talvez o mais persistentgl
que vem envolvendo gerações com sua força encantatória¡
,^,., ' esperança do tempo infinito. I
t l" Antígona e Creónte tombam prisioneiros de suas verda-' iJi' provocando identificações, servindo de metáfora a opciSi;
* t.r des. O conflito que os opõe é sem salda. Suas lóþicas se ne- ções irreconciliáveis. Cada geração visita Antígona coffa
gam e se excluem sem transigência possível. Antígona não angústia do seu conflito e encontra nela um espelho qdé
preenche com as imagens e os fantasmas do seu tempo.tDg
rpode nem quer contempot'uar. Seus atos a condenam.
'i Creonte pode apenas confirmaruma sentença já contida na
boethe a Brecht, o pensamento ocidental tem mergulhadb''
j r,,r
proibição que Antígona escolheu transgredir. Se Antígona na 1.;:agédn de Sofócles, no e-nfrentamento de uma joveq!
\ jl princesa rebelde e de um velho rei implacável para, através
deve desafiar Creonte para cumprir seu destino, para ele,
dele, dramatizando seu tempo, evocar o choque da cons;
o rei, o Homem, seus atos são desvario, loucura, desordem
que leva ao caos. Ambos serão punidos, mas a lei dos ho- ciência privada com o direito púbtico. ',
Revisitar Antígona no fim do século XX é cumprir o des-
mens permanece a lei da sociedade.
Condenada ao exílio perpétuo, culpada de invadir o ter-
tino do pensamento ocidental que, em adesão ou revolta,
vive seu eterno retorno às tragédias da Antigüidade. Múlti-
ritório dos homens com a lógica do feminino, Antígona se-
plas são as oposições ontológicas gue à tragédia de Sófo-
rá banida do mundo.dos vivos sem encontrar abrigo ou re-
cles coube espelhar: entre a juventiide e a maturidade, vi-
pouso no reino dos mortos. Nem mesmo a fitha de Édipo
vos e mortos. O confronto homem/mulher, a colisão irre-
pode, impunemente, subverter â ordem do mundo.
mediável dos universos contíguos e contraditórios do femi-
O mito de Antígona atravessou os tempos, como o eco
nino e do masculino, atualiza-se no fim deste século quan-
insistente de uma voz a cada vez reencontrada. Nabcida
t),
¡\ ) /l ' .n.'
I)l
28 ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA ,r/'l
t .'i /
i')
\ t )l

do as brasas do feminismo ainda esquentam nossa atmos- L,


l,
i

fera social, tornada irreconhecível pela quebra do paradig- ¡. l" t- a,


,.'
I

ma ancestral que separava o mundo dos homens do das mu-7 i ', "
I

lheres.
I
: -
¡ I

Na evocação de Antígona ecoa a inconformidade de ge- I

rações äe mulheres que, nos últimos vinte anos, recusaram I

L
A separação de mundos: pensamentos'
o decreto de ausência e de silêncio que as excluía do polfti- lr,
co, desafiaram a condenação social e pisaram, ainda que
l,r
I
palavras e obras
\ l,'
com passo incerto, os territórios do Masculino. Esse eco vem ¡
-)t
se fazendo tauto mais audível quanto mais passados osr r
-
primeiros esforços para se tornarem presentes e eloqüentes ,':.
la¿

,,'r;
mulheres buscam, nessa presença e palavra, exercer,ld"
-no aspolítico a lógica do Feminino,
' 'i'
Induzida pela problemática do nosso tempo, a leitura de
Se nos primeiros tempos do feminismo as mulheres exer-
Antlgona rnq.tr*io explicitação de imemorialdessemelhança
citavam-se na lógica do MasculÍno como numa llngua es-
entre os sexos encontra respaldo na antropologia moter-
trangeirâ para melhor se fazerem:èntender no espaço ptl- .O
na, que constatou, na fantástica diversidade de tipos de so-
blico e ainda assim encontraiam resistências e incompreen-
ciedãde, na inumerável multiplicidade de modos de orga-
sões que lhes pareciam injustas e excludentes, hoje muda
nização e de relação entre os seres humanos, o refrão da
o tom no acidentado diálogo homem/mulher. ,¡
A voz feminina evoluiu da modesta ambição.de se fazer
{ .iJ diferença sexual como alicerce da própria cultura'
simplesmente ouvir no espaço público ptrâ, bem mais con- .
I

1
t,

F ù
Espelhando e espalhando essa diferença em todos oscam-
po, du experiêncià de cada um' a modelagem da imagem
tunàente e infinitamente mais subversiva, lá tenta¡ dizer umaY^, 'li,l
que apre-
t ã da função de cada sexo, independente da lógica
nova Razão, a Razão do Feminino. Reencena-se assim, no, ., t
enfrentamento moderno, o desafio de Antígona e Creonte.;' side, que varia e se contradiz, afitma, no entanto' sempre
No espelho de Antígona, em que tantos se quiseram re-' e em tãdo lugar, o princípio da separação e da diferença'6
fletidos, as mulheres de hoje descobrem um'rosto arquetí- Ainda qur cã* desenhos diversos, Masculino e Feminino
pico. Em tempos de oposição irredutfvel, a frágil princesa se fizeram constantemente presentes, nenhuma cultura ou'¡
sando diluí-los na indiferenciação do humano. Pouco im-
tebana eü€, afirmando lei própria, negou a autoridade
do Rei -e do Homoñ pele nua do Feminino, volta ao porta que variem os conteúdos do uníverso de cada sexo, -|' I

proscênio, viva, fugitiva-, do esquecimento, e acena às no- mantém-se o


,.dualismo sexualizado" que inrlmeros mitos t-

vas gerações. reafirmam em linguagem simbólica e que Georges Balan-


de todos os paradigmaÜ'
-; dier qualifica de þaiadigma humano se organiza em tor-
O universo cultffal e social
no do eixo da dicotomia sexual, assoiiado cada pólo a um
campo de atributos e qualidades em que se exprimem dife-
t.ttçä e complementaridade: quente/frio, duro/mole,
dia,/noite, sol/lua, potência/fertilidade, guerra/fecundidade,
'r¡
ri,
r:l

ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA DICOTOMIA SEXUAL B DESIGUALDADE


30

Musculino e feminino desenvolvendo cado um saa pr&


ordem,/desordem, ativo/passivo, superior/inferior etc. A
pria sociøbilidade, suø própriø cultura, suø própriø
"ordem da vida" se fundamenta nessa oposição entre os
logiø, o diferença psicocaltural se reÍorça e torna müs
sexos, nessa "lei da união dinâ¡nica das diferenças, dos con-
plexa o dderença físico-endócrina. 8
trá¡ios". Mas essa lei, tão generalizada e de tal força que
parece revestir-se das caracterlsticas de regra universal da
De geração em getação, cada sexo comprometido coff:'
raturezabumana, nem por isso deixa de ser percebida pe- e só com aquele re{i¡t11..ç
los homens como incerta e vuhierável.
um aslecto da realidade
coexisiência de dois
-
universos, construídos
-
separadarnggtg
No imaginário masculino, as mulheres, percebidas não \!

e sustentados por práticas estrangeiras uma à outra. Atra-


só como diferentes mas, sobretudo, como inferiores, ocu- espaço' traba-
vessando todos os aspectos da existência -
pâß, paradoxalmente, o lugar de t'metade perigosa da so- magia a di=
lho, habitação, linguagem, comida, mito e
-,
õiedade". Mais perto da natureza selvagem que da "paisa- -l ô
cotomia seiual é uma vivência inconfundlvel do fazer edo
gem humaniz.ada", detentoras da fertilidade da terra e da
saber, que reproduz os laços com um aspecto determinado
iecundidade do grupo, delas provém a ameaça suprema de
do meio ambiente. Porque o meio ambiente é bem mai! qu,.e,
que, caso rompam a relação primordial de alteridade/opo-
uma fonte passiva de recursos naturais que os homens e*;
sição e recusem-se aos homens, estiole'se o solo e aniquile- '.
!
)i ploram no esforço de sobreviver. 1.,'

se a espécie. "Em razão rnesmo de sua situação de alteri- r


dade, a mulher é defÏnida como perigosa e antagônica. Em
l '.1i. \
O meio ambiente é um livro, umø obra escrita por mui'48':'
virtude dessa relação de oposição, é freqüentementer asso- tas gerações, que nela imprímírøm as noções de movimen' ,'i
ciada às forças da mudança que corroem a ordem social e to, distrìbu{røm aflora e øfauna em espécies reconhec{veis,t1¡
a cultura estabelecida".T desenharam traietórias ligøndo suas morødas emÍunção dorts
Para o homem a mulher é, antes de mais nada, a outra, sol, dos rios e das montanhos, atríbutram um sentido aos,,þ
um outro, muito mais que a parcei¡a; essa estranheza se ex- ru{dos e ùs cores, assinølarøm os acontecimentos que per-;i{ç
prime nos sistemas simbólicos e de representação e se reali- tencem ao dia ou à noite, e à sucessão døs estações. Duran'iaî
menta, reforçando a fronteira iutransponível que separa fa- te os ønos de sua íniciaçõo, oiovem decdra essa obra, imbui'r5
zeÍes e saberes de homens e mulheres. se dela, incorpora-o como patrimùnio.e ,11
-(
Arcaico, intocável, o desenho dessa fronteira acompa- J":
nha a filogênese, seu traçado se perde lá onde caça e co- Ao sereproduzir, a sociedâde reproduz, na verdade, a
lheita, ao se diferenciarem, transforrnam diferenças bios- diferença entre suas duas metades, especificando a relaçE[o '

sociais, como entre os Primatas, em diferenças no estar no de cada uma delas com o meio arn-biente.
mundo, cada sexo se especializando em uma determinada.) t't, \,
Se a constatação da coexistência de territórios do mas-
relação com o meio ambiente. t,r ¡ culino e do feminino se impõe com'o evidência, bem mais
Essa especiahzação transforma as relações de cada sexo àbrrrrru é a origem da hierarquia que fez do masculino'a
com o meio ambiente e dos sexos entre si. Constituem-se autoridade política e social, impondo seu modelo a todas
t
um rnundo de homens e um mundo de mulheres, lado a la- as dimensõès da convivência humana. Tentando ilumina¡
do mas incomunicáveis, e seus traços característicos tornam- essa zona de sombra, Edgar Morin sugere que a afirmação
se cada vez mais nítidos. da superioridade *urculioa coincide com o nascimento da
família enquanto microestrutura social.
'rj
32 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA il DICOTOMTA SEXUAL B DESIGUALDADE 33
I

. -t
Ll
\ lheres é um dom que provoca um contra-dom, o eue ins-
A fømlliø é um subsßtema aberto para o sístema social. (,:.'
n'( ^,\ I

O paí-esposo pertence à cløsse dos homens, a mulher ao gru- , ! ' I


I
taura um vínculo social entre eles, um sistema de alíanças
po dos mulheres, o filho, ø partír de certa idøde, ao grupo \' ' I fundamentado na reciprocidade. Para as mulheres, ao con-
dos jovens não iniciados. Por essa obertura, a família vai trário, a troca acarreta sua redução ao status de objeto: não
!
I

se articalar à sociedade com ø organizoção do parentesco \ I


I passam de moeda de troca, signos e emblemas dos status
e ø regulamentaçõo dø sexuølidade, os quaís võo se ligar,
I

I dominante dos homens.


pelo instituição da exogomiø, a uma novo øbertura da pró- I
t Serge Moscovici, descrevendo e interpretando o proces-
priø sociedøde paro outras sociedades olíadøs, donde a ela- ;

I
so de separação e hierarquização entre.o sexos, reforça es-
boração de um metassßtema macrossocíal.ro idéia.
I

,l'ii sa r

' tl, \c
Esse processo de complexificação social está estreitanente ,.I
ril O universo masculino e o universofeminino deslocum-se ao ù
ligado à extensão e ao aprofunda¡nento do poder masculi- i; I

I
longo de duas órbitas distintas, em direções opostas. Os ho- ,rit
I
no, principalmente pelo viés da proibição do incesto, fenô- I li
mens vivem num mundo de s{mbolos, as mulheres num ' t')

.,
rûeno que, juntamente com a dicotomia sexual, goz-a dopri- ',1,'.-,'
,'í
I
I
mundo de valores; øqueles conhecem o casamento através 'ít
.ri
r\,l

i
da aliança, estas a alíança através do casamento; para elei
l

vilégio da universatidade nas sociedades humanas. I


.1

'fPrlncípio fundador da cuttural', a proibição do inces- "'


'
o parentesco é um meio, para elas é um fim, A proibição
I I
'' tl
,\¡' do incesto morca a passagem dø natureza para a caltura,
to regulamenta a distribuição social do bem raro que são
mas ela é também a passagem de um estado em que o mun- s
¿.s mulheres, estabelecendo
- através de uma troca entre j,'
homens, em que as mulheres só entram como objeto da par- ,,,
)
t)
) I'
dofeminíno e o mundo masculino eram equívalentes ø um ':
estado em que este tem precedencia sobre aquele, ê ett€ ftiatt
tilha as condições de uma aliança entre eles, fundada no ) \ ,.1'
-
pátrio poder. As regras de parentesco e casamento revelam
ca com um stnal positivo tudo o que nele se ínclui e cot4 ç '.' . f', i

um sinøl negativo tudo o que dele estd exclu{do.I2 ,l'l,i ,.1


assim sua significação profunda enquanto estruturas de do-
i \j ,.,,
t'1
minação. ll A discriminação e a desigualdade, instauradas pelas ,*',\, li.
tl
/l
gras do parentesco e pela dicotomia sexual, dividem a so- 1i,
A relação globøl de troca em qug se funda o casomento I
I

I
ciedade em duas metades. Esse dualismo hierarquizado pe- | :
nöo se estabelece entre urn homem e umo tnulher, nø qual
I

I netra e atravessa todas as dimeniões da vida e determina


cadø um dd e recebe alguma coísa; ela se estøbelece entre l

um processo diferenciado de transmissão e de aquisição de


dois grupos de homens. A mulher é o objeto da trocø e não
I

conhecimentos, valores e modos de comportamento. ,tvri)',


I

um das parceíros entre os quaís ø trocø ocorre. O vfnculo


I

Cada fração da sociedade encontrri"s€ Ítssociada a uma


de reciprocidade que funda o cosamento não se estabelece I

I
fração do real pelo jogo das barreiras erguidas e das proi-
entre homens e mulheres, mas entre homens por intermé-
bições editadas, fronteiras de seu horizoûte intelectual e prá- 1

dio das mulheres, que são apenas ø principal ocøsiõo para


o estabelecimento desse víncalo.tt tico, garantindo assim a preservação da especificidade de I
funções e poderes. Desde o nascimento, o sexo determina
q Diþdas pela lei duSlgg3-þ e pela proibição do inces- o lugar do indivíduo de um lado ou de outro da fronteira,
' to, as regras do casamento funda¡n a relação de assimetria primeira seleção que será reafirmada pela prátiø social. .¡.f

social radical entre os sexos. Um homem só pode obter uma Se o casamento sela a aliança e a cumplicidade entre os
mulher de outro homem. Para os homens, essa troca de mu- homens por intermédio das mulheres, à iniciação caberá ri-
34 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALDADE 35

tuahzar e confirmar a dominação dos homens sobre as rnu- ,.'


O tema bdsico do rito inicititico é a posse, pelas mulhe-. q
lheres por intermédio da criança do sexo masculino. O ob- . ',t. 'r
res, em virtude de seu poder de gestação, dos segredos da.*=
vidø. O papel do homem é incerto, indefinido e tølvez des-
jetivo fundamental dos inúmeros ritos de passagem que per- ,.
i
,' li)
,
) ^-
necessório. A c o mp re ensão dessø i nfii rí o rid a de bdsica exi- .l¡
passam as sociedades humanas é justamente o de afastar ',',! t'
ge deles um grande esþrço, exige a descoberta de uma mø-
o menino da mãe, substituindo-a pela comunidade dos ho- i )''
': '' '' l':{..'u'' neira de superó-la. ... A retirada dos meninos do mundo
mens. Iniciar uma criança quer dizer definir-lhe o sexo. '' '
. \ ;,, - \ das mulheres, marcados como seres incompletos ø serem
Identificando-se com os homens, afirmando sua masculi- ' ." .i' :) ,
transþrmados em homens pelos homens, atualiza esse po-
nidade, o jovem do sexo masculino quebra seus vínculos )' .",''''.1,0'"' der compensatório. Assim, as mulheres engendram os.ie- ^.-{
res humanos mas só os homens podem produzir outros 'tl
com o tempo da infância e com o mundo feminino e expe-
homens.t4
rimenta um segundo nascimento, um nascimento social pelo
qual se incorpora como membro efetivo à comunidade dos
A construção da identidade rr*uuif dot
homens. recalque da feminilidade adquirida jünto
A iniciação é, antes de mais nada, o esquecimento da in- lega ao esquecimento o materno e obriga à
fância feminina do vivido e aprendido junto às mu-
- -,
lheres, através de uma sucessão de provas que o jovem tem
ços desse mundo feminino de que se embeberam na

que vencer para se fazer admitir naidade adulta, masculina. O medo do Outro, duplicado pelo medo do Mesmo,
prime psicologicamente o dualßmo conflítual dos søtos.
Essa pøssagem é insepardvel de umø certa violência, em se duølismo reþrça o sentimento de identidade de gênero
atos e palavrøs. Gestos e ritos, contos e mímica, represen- e explica a repressão do outro, objetivamente nas reløções ;4:
tam a lutø dos homens contrø as mulheres; os homens gø' sociøis e subjetívømente dentro de si mesmo.rs I '. -, ì"

nhøm essø luta e øftrmam sua primszìa, o que indicø bem r,;J
o cartíter doutrindrio da iniciaçäo,r3 , / Tudo na iniciação confirma a "terrível ameaça" que con$ii
titui
a confusão dos sexos, a indiferenciação sexual, o apay;
Na iniciaç ão, atarefa dos homens é retirar o menino do .' ", I r \ gamento das fronteiras que limitam o feminino e o mascrbi
mundo das mulheres, isolá-lo num lugar oculto e sagrado, )'' '' l
.,t
lino.
à margem da sociedade, onde, submJtido ao sofrimento e ,
'rì George Lapassade confronta a interpretação sociológ¡ca;
à clor, o menino comprovará sua virilidade. Essa provação , ; i. da iniciação, que enfatiza seu significado de preparação para
reveste-se dòs contornos de uma morte simbólica, a morte ''
. .: ,, a maturidade e para o mundo das regras sociais, cortr llrnâr
do menino, eü€ pertencia ao mundo das mulheres e que' :.r' leitura psicanalítica, que a examina a partir do ponto de vista
pela experiência da dor e pelo desvelamento do mistério, . ; . ''l ,; inverso, de proibição da infância e renúncia a seus desejos
renascerá homem e adulto. O teste é pessoal e individual ',, ." incontroláveis. Ele opõe, assim, à concepção de Durkheim,
-,
mas a encénação é social e coletiva. Subtraindo os jovens )' " l
,
para quem a iniciação é sobretudo uma "escola de moral
às mulheres e comandandg o rito de passagem, a classe dos
social" que permite ao homem dominar em si a natuteza.
homens reafirma, de uma só vez, três poderes: sua ascen- ' , \' r e reahzar em si a sociedade, interiorizando suas normas e
dência sobre as mulheres, a preeminência dos adultos so- ' ,
' regras, a visão de Reik, para quem o sentido oculto dos ri-
bre os jovens e o corte entie o mundo dos homens e o mun-
' tos de passagem é a proibição dos ldesejos primitivos fun-
damentais da criança: o incesto e b-narricí{gl.
do das mulheres. )
36 ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA

A iniciaçõo instítuí, sssím, uma ordem cultural na quul


a desordem inicial do deseio encontro a regrs dos ho'
mens,16
j 1. ¡ t

As leituras do fenômeno dainiciação são mrlltip.las' mas


sua signíficação profunda gira em torno de un'l eixo comum.
jo-
Quer a iniciação exorcize a parte de feminino que cada
vèm traz em si para confirmáJo na virilidade, quer ela sir-
va para retira¡ a criança da mãe e'vinculá-la à classe dos
homens, quer ela faça o jovem esquecer o tempo da'ino-
cência doméstica e sua vivência no mundo das mulheres,
quer represente para o iniciado um segundo nascimento so-
cial depois do nascimento biológico, cluer marque o recal-
que dos desejos proibidos da infância e sua inserção na so-
ciedade com a aceitação de suas'leis e obrigações' quer san-
r.t:
cione a passagem da naturezapara.acultura, do espaço pri- tì'b
vado para o espaço público, quer ela privilegie em cada so-
ciedade r¡m ou alguns desses sentidos, ela reafirma sempre
çi

uma polaridade fundamental: o feminino é o infantil . o [-


natural, o masculino é o adulto e o social. -)
Feminino e Masculino se opõem e se contradizem. Mis-
turadas e assimiladas às crianças, as mulheres são relega-
das à parte obscura da sociedade, fração próxima da Natu-
Íeza, com suas pulsões selvagens e irracionais, metade su-,'\ ' '

balterna e perigosa que deve ficar confÏuada em um esPaço ',


) t' '
restrito e controlado.
Está implícità nesse corte entre Masculino e Feminino,
t'

mento de temor e inquietação face ao Feminino, pois que


nessa partilha desigual, a exclusão das mulheres do mundo
este é vivido como apelo que não pode ecoar, saudade a que
adulto. As mulheres são relegadas a um magma em que se
não se obedece, passado irreversível mas que ameaçase in-
confundem com ¿ui crianças, concretizando-se assim um des-
sinuar, contemporâneo. O ponto de vista dos homens trans-
lizamento pelo qual o Feminino se infantiliza enquanto os
forma a mulher adulta em paradoxo.
homens rJd.fior* pelos atributos e finalidades próprios
ao adulto: chefes, guerreiros, caçadores, sacerdotes, são ho-
mens que produzem as regras e valores que fundam a cul-
turaeasociedade. :

Na polissemia dos ritos iniciáticos, marcando o lirniar da


idade àdult", o preço do tornar-se homem é a renúncia ao
As mulheres no mundo dos homens:
mal-estar, desvio e conflito

:/.i\''
Todo o lmpeto cultural humano atribuiu-se como
,
noa escultura do mundo ao sabor de seu engenho, o
vendamento do mistério da vida, o desafio à
\ morte. Ruptura com o pertencimento à Natureza,

Universo, os homens inventaram deuses, se fizera¡n


destrufram esses deuses rSC destrufram a si próprios,
'de se destacaram
, da rotina da Nat{ueza edese
em sujeitos face a ela, a ela exteriores. Nessa e dessa
rioridade nascem os sentimentos de predador, assim
t,' sua pretensa legitimidade. O meio ambiente ou a
'ill''" ,).'
-
tureza objetiva", na expressão rJe Jacques Monod €x-
-,
posto à manipulação dos homens, é por eles vivenciado co-
mo objeto a ser transformado, obediente aoþrmano dese-
1i jo de profanaçãgf ','
r .i. Uma zona de lombra parecia, no entanto, subtrair-se a
esse destino de movimento, como um território sagrado, in-i
fenso à mutação. O Feminino, seus ritmos e gesio, *t.t-[
trais, o eterno feminino dos poetas, memória comum a to- 1

dos os homens,fgqnfundiu-se com a Naturegglenvolvido


:
/. '/ ,:\ :
-"'
;, /. ]-'
' ''
-/.'."t,'l: {t," DICOTOMIA SEXUAL E DESICUALDADE
& ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA ,,'', ,,.:,'
/; ,, pre
numa mesma passividade que, curiosa¡nente, a cultura hu' invoque, para de!înir afeminilidade,'ums "natureza"
I
deteininada eÍîxada de umovezpor todas, iustificando øs'
mana, que aqui já se pode nomear masculina, eximia-se de
,k/ sim o desiguøldøde de stattts mascalino etemíníno, Nesge S9ll-
ativar. . ,
,'t)'l tído, poder-se-ia dizer, parøfraseøndo Freud, que,parcø
Essa cultura masculina alimentou representações das mu- .". .i
., ,t
lher, "a bíologiø é o destino Møs o privilégío da espécie
lheres como seres anfíbios, mais instintuais que os homens:', . 't',' ,
humona mulheres e homens é iustømente o dqir'
17

alheias à Razão, rebeldes à domesticação, como se, nelas,


l",i '
i/
- -
a Natureza guardasse seus direitos de permanência, de imu- Ora, é esse devir, essa "história humana da N
tabilidade, de regularidade. )
r'1^
\ Å.'.
que o século XX veio revelar em
Naturalizadas, as mulheres não foram incorporadas ou tU Como nunca antes, Natureza e brem
tornadas significativas na cultura hr¡mana,/masculina. O con- sua insolúvel solidariedade, sua implacável imbricação'
finamento do sexo femiqino em r¡ma relação limitada com destino comum.
apenas alguns aspectos do meio ambiente, fruto da diferen- As "construções" que a ciência e a tecnologia têm
ciação sexual, traduziu-se em desigualdade de st¿rtus e po- duzido sobre a Natureza objetiva, e suas conseqüências; t/l
der, tornando-se hierarquia que, por seu caráter invariante, a essas conseqüências, a crescente consciência humana r,.tln'¿
t\t
passou a ser percebida como um dado do comportamento
pertencimento à Natureza; a dimensão de "artefato'l
humano, inscrita no corpo e por ele ditado, e que as repre-
a ciência, e a medicina em particular, têm acrescentado
sentações mitológicas e ideológic¿s só fizeram confirmar.
corpo humano: todos estes fatores concorrem Para t)
Permanência e regularidade pautaram desde sempre a \:,
emergir a idéia de uma natureza culturalizada e de uma
existência feminina, legitimadas em nome de injunções na-
tura natural. A velha dicotomia Natureza/Cultuia tendii
turais que serviram de explicação à relação de poder e lúe-
ser ultrapassada por uma noya maneira humana de se tl.' .-
rarquia em que as mulheres representarn o pólo dominado. )', carar, dentro da Natureza, o humano realizando no
É sobre o pano de fundo dessa dominação que o humano . ir
ambiente e em seu próprio corpo acoplamentos
se constrói em oposição à Natureza, ao passo que o femi-\
que o transformam e as transformam, sendo esse um
t

nino se constrói pela assimilação das mulheres à Natureza./ [rLr


Esse decreto de imutabilidade pesou sobre as mulheres,' , J,
I

contituindo-se em uma espécie de ponto cego no combate I .r


(
.\
espetacular e sem {égua qtrt cultria humana ofereceu uo, '1"'
termos de um novo pacto da Cultura com a Natureza, o '
determinjsrnös e limitações de " sua biologia. "
' - que repercute na renovação dos termos
de um outro pacto,
O século XX preparou, porém, uma srupresa a essa imu-
é ¿u Ciett.ia com o Social. Neste, são sobretudo as mulhe-,
tabilidade e deu razão à bióloga Odette Thibault, que, nos
res que estão em jogo. lt., '...
anos 70, chamou a atenção para.aarmadilha inerente a to- profanou a
Foi neste século que a Ciência
da explicaçäo das relações de domínação entrehomem e mu- t:,
do Feminino. A descoberta da contracepção, introduzindo
lher que se ativesse apenas à determinação do sócio-cultural
liberdade cultural onde antes só se conhecia fatalidade
pelo biológico. \,'
tural , permitiu às mulheres, pela Primeira Yez, \'.
zeÍ e procriaç{g/ no mesmo movimento Pelo
Sefalør dø biologio, em se tratondo de mulheres, parece
perígoso, é porque no possado, e øínda ogorø, hd quem mentam no PróPrio ventre a culturalização da Naturezâ'i.,. :
t.
t

42 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL B DESIGUALDADE

Essa brecha que se abre na existência feminina abala to- |


i' '
-ì, homens em finura de espírito: precursora tentativa
do o edifício.da relaçã,o entre os s€xos. As conseqüências , .:' ' testar, no mundo aveludado dos salöes, contra o
sociais e morais da prática generalizada de contracepçãovão !. '
tre o discurso esclarecido de uma burguesia em
. c\.'
r '1tl"
introduzir no esplrito feminino.a mais subversiva das con-r ':' \ a favor da igualdade de direitos entre todos os 4 \.t
' 1,' (
vicções: nosso corpo nos pertence. A libertação do prazer e ufna realidade cotidiana que mantinha as ,l r,'
e do desejo das mulheres constitui a grande ruptura na.his- clusive aquelas dos estratos sociais'superiores, numa
tória feminina, abertura que vinha, mais ou ménos imper- ]'' ção de submissão e dependência.
"l:.
ceptivelneate, sè preparando desde o século XVIil. O sucesso de Molière com Les femmas savsntes e' .,,\'l
O questionamento de um arcafsmo fundamental como t. cieuses ridicules não detém um tempo apressado em
o da hierarquia sexual não pode ser reconstituldo através I .i
consigo um mundo novo.
de esquemas e,nplicativos, liÉando causa e efeito. Entrelaçam- , A Declaração dos Direitos da Mulher, de Mary W
se inoiaçõæ trô phno dasiécnicas e relações de produïão, ,. .
.

' i
tonecraft, convive com Sofia que, salda da costela de
descobertas cientlficas e mutações tecnológicas, alterações \ I
,1 lio, tem como horizonte a cozinha. Que Rousseau e
importantes dos quadros de refêrência sócio--cultural e emer- r" maine Necker se insultem a propó¡ito da relação
gência de novas ãspirações, valores e formas de conduta,J'' . i I sexos não impede que uma certa Madame de Staël
que induzem a entrada progf,essiva das mulheres no espaço , Sofia e dê à luz Corinne.
\
público. j) Essa contestação vinda de cima vai se prolongar e 4ût:
Uma sociologia egocêntrica ou um economicismo primário i
plificar, na segunda metade do século XIX, numa reiviniË-
têm tentado chamar a si, exclusivamente, a explicação do cação de igualdade entre os sexos no plano das instituições
apagamento progressivo de fronteiras entre o masculino e políticas e dos direitos civis. Paralelamente, na base da so:
o feminino. Na verdade são inúmeros os fatores que intera
ciedade, a superexploração da mão-de-obra feminina acat-
gem e se remetem uns aos outros, criando um proc()sso der '
ri
reta uma participação crescente das mulheres nas lutas pa:
desorganização da antiga relação entre os sexos ou, I'isto de ì
ra melhorar as condições de trabalho, apes¿u dos precon-
outro ponto de vista, criando r¡ma nova organtzaçao, im- .
ceitos de operários e sindicalistas que se preocupavam tan-
previsível, impensávél d, por isso mesmo, ineaçadoia.
I

to com preservar a supremacia masculina no seio da fatrl":


Aprisionadas dentro dos estreitos limites do espaço do-
lia quantdcom proibir o acesso das mulheres à fábrica, sob
méstico e confinadas nas tarefas femininas tradicionaís ou
o argumento de que elas constituíam u¡n exército industrial
integradas por baixo ao mercado de trabalho criado com
de reserva desorganizado e barato, facilmente manipulado
as novas manufaturas, as mulheres, no inlcio da Revolu- ,¡
pelo patronato.
ção Industrial, continuavam a ocupar um lugar social "in-
:

De fato, ao dar origem a uma mão-de-obra feminina, a


terior" e/ou "inferior".l8
Revolução Industrial introduz uma primeira ruptura no pa;.
O acesso ao mundo do trabalho assalariado não foi uma !ì
livre escolha das mulheres nem se traduziu, para elas, em t-. \t
radigma da diferenciação de mundos, na medida em que
separa a casa do lugar de trabalho e confronta homens e i'
I

riraior bem-estar e independência. Foi a miséria que as em- L r.'

purrou para as fábricas, onde se viram obrigadas a desem- [,'. mulheres às mesmas máquinas, ritmos e exigências da pro-
\ dução fabril.
penhar os trabalhos mais penosos e pior remunerados.
Já as rnobilizações de massa das sufragettes que, en-
Nesse mesmo momento, no outro extremo da hierarquia -
social, mulheres ilustradas se esmeravam em rivaliza¡ com os frentando a crueldade do ridículo com que se tenta cobri-Ias
44 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALD4DE

''
e encobrir a violência crua queÐs espera nas ruas' reivindi- ! daàes". E é inevitdvel que esses valores seiøm
que um'
cam o direito de voto quebram um segundo ta'bu da se-,' dos da vida para a ficção, A cr{tica declø¡a
-
paração hierárquica entre os sexos -- ao t-^-I-tt--
-- invadir -^r:- o es' ,r, '/'
apolis, é ímportante Porque ele trato de guerrø.'E
que outro
paço político que até então erateritórto privativo dos homeps.] significønte Porque trata dos sentimentos de umo
Nas primeiras décadas do século )O( o direito de voto ' L dentro de casa. Uma cena em um compo de batolha é e
importante que uma ceno em uma Ioja. Por todo lado
é progressivamente concedido às mulheres, mas essa con-
maneira infinitomente sutil, ø díferença de valores
quista formal em pouco muda seu lugæ social subalterno.
Por isso, no começo do século XX' toda ø estruturø
Para muitas mulheres, como Rosaluxemburgo, ativamente I

romance se constru{ø, quando era obra de mulheres,


engajadas nas lutas sociais de seu tempo, a libertação dâ1 , ;: il um desvio de prumo,lorçada a mudar sua visão das
*ùtttrt pressupõe a libertação da humanidade. Para as *i-[.' ' ' t
em deÍerência a uma autorìdade externa a
litantes do socialismo emergente a igualdade entre homens \ i' 'r
(. ..)
da
e mulheres se confunde com a igiualdade entre todos os ho-i '
ui
Mas o quanto lhes deve ter sído diÍtcíl andar no fîo
valha. Que gênio, que inteireza tiveram que ter, Íace a
mens, a oposição entre as classes tem primazia sobre a hie-ì; (,
' em p leno so ctedøde P at r íørcal,
rarquia entre os sexos, o particular se dissolve no universal.J';, -,.'-' - das as cr{ticas, vivendo
Contemporâneas dessa febre de igualdade, algumas vo- {" que se mantivessem fiéís a seus pontos de vísta, à coßa
zes, minoritárias, quase inaudíveis, denunciavam a discri- como elas de føto a viam, sem bater em retirøda. SóJge (
,.,4.
minação penetrando mais fundo, para além da luta pelos Aqggr.-teve esse gênio e essa inteirezo, e também.EUiþ
i'^'
,I./1 frontë... Elas escreviam como escrevem as mulheres e tt.. .lt.ct.:1.
direitos civis ou do combate contra a exploração material
Aos parâmetros de igualdade política e social com o homem, .1'1,
l,l Ì
ffiî ontvem os homens.L2
tomado como padrão e ideal do humano' essas vozes con- {"'
1

A procura desse espaço psíquico de liberdade'. dïs,?


I

I 1l
;;õ;;hamseu protesto apoiado na originalidade do espa-1"Ì ì pnmetlp{ i
t
! "quaito para si", vai-se revelar, entretanto' num
ço interior das mulheres, afïrmando'o feminino como u9, måmentó, tão fugidia e ilusória quanto as esperanÇas
posiri
ponto de vista específico sobre o mundo. i' : r:'. Ii
tas na utopia revolucionaria.
Virginia Woolf, analisando a literatura feminina, esbo-\ ,r'
Àcànterce de se ter razáo antes do tempo ou de 1{o
se.
ça essa linha de pensamento e planta, em suas famosas con- "'
ter os meios de seus próprios-fins. se a rebeldia individual'
ferências no Giron College, a semente de uma idéia que só pelo isol4;,
a minoria de um, está õondenada a se estiolar
iria frutificar cinqüenta anos depois: a importância da di-
mento e pela estigrnatização, movimentos coletivos tarrbé4r
ferença no debate sobre a igualdade.
podem flacassar por se terem enganado de estratégia' :'ì
Perguntando-se sobre a influência do sexo na integrida-
Nem a igualdaãe com os homens - como decorrênci4.
de de um romancista, "essa integridade que considero ser potr::
r ,\l da implantãcão do socialismo - nem o feminino como
a espinha dorsal do escritort', ela observa: ì'
afirma. a)'
ì.

ã ãt uittu próprio e' por isso mesmo, crítico,- seopressão \ I


1

ram nesse começo de'século. os fundamentos da


'
Ora, é evidente que a escalo de valores das mulheres é : 'i'' d4s '
diferente da escala àe valores do outro sexo, o que é perÍeí' : ' x feminina serão, de fato, abalados com a entrada maciça
t mulheres no espaço público e com o fim do controle da se-' 1

tamente natural. Contudo, são os valores mascalinos que


xualidade feminina pelos homens, o q* Jutontecerá
e esporte stio coßas ,;'
toio i
predominam,
'importantes; Seiøm lrsncos, futebol
*ito ¿a moda, comprør roupas, são 'futili-i, , .
tr\
o advento das sociedades industriais avançadas ' ' 'l
I
\=i'
t
46 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALDADE 4'.1

A irrupção das mulheres enquanto protagonistas no ce_ igualdade ao mundo dos homens que elas vão esbarrar em
n¿írio político, social e cultural se inscreve no quadro de uma obstáculos que transformarão a reivindicação de igualda-
alteração mais ampla, uma verdadeira crise de civilização de em uma armadilha que terminará pondo em crise sua
que, no fim dos anos 60, abala os princfpios e valores que identidade psicossocial.
garantiant a ordem social e o consenso ideológico das so- Trabalhado por Erikson2o, o conceito de identidadq pòi-
ciedades industriais do Ocidente. cossocial tenta operar uma síntese entre os componentes de
ij.
O impulso igualitário, suscitado pe.las lutas contra a dis_ ordem psicológica e sociológica que entram na definiçã'o da
criminação racial e ò colonialismo, o questionamento do personalidade inserida em serl contexto social.
saber estabelecido, da razão cientffica e da porítica institu-
cionalizada, a busca de um reencantamento do mundo e da
.
' \.,
r. ,{'
A identidøde se liga ao grupo enquanto mediação sintéticø
viCa em reação contra a uniformização e o gigantismo da i enlre ø essênciø individual e a essência de umq culturø co-
ri '\
sociedade pós-industrial, a emergência da quiJtão ecológi- û' mum. (...) A natureza de uma determinøda identidade, longe tt,
I)
\
ca, todas essas aspirações a uma vida outra, a um mundo 1 '' ,,1 )
de ser o resultado de um consenso estabelecido por todos,
1l
diferente, "aqui e agora", convergem para abrir uma no-l L
\.!,. constitui, ao contrdrio, o lugar privilegiado da øcpressão dos
va brecha nas fundações da sociedade. Aparecem fissuras/ conflitos ideológicos próprios a uma sociedade,zl .

e rupturas onde antes só se viam passividade, conformis- ,

mo e prosperidade material. No esforço de se ajustarem ao novo perfil eu€ em€rge I


L'esprit du temps torna-se próprio à mudança. Alargam-' da ruptura de sua antiga identidade, as mulheres se vêem
se os limites do campo do possível. ,.O que é problemati- obrigadas a tentar tornar compatíveis dois estilos de vida, i

zado em profundidade, no próprio seio da socieda.de oci- dois registros intelectuais e afetivos, dois modelos de con- . i Ír

dental, é o modelo, até então implícito e inconteste, da su- duta cotidiana. Definidas por uma norma e um modelo que
lhes são impostos, elas têm de aceitar o paradoxo clo uni.' l
tl,

verdade,
t)
o uestiona- versal e do particular, colocado por uma sociedade que,as
t\,
,'i ' mento de um de seus alicerces mais antigos e mais sólidos: universaliza como produtoras e as particulariza como mu-' r1
l!

i
a Cominação das mulheres pelos homens. lheres. . '. i
$
A entrada maciça de mulheres instruídas no mercado de Dilaceradas por pertencerem, simultânea e conflituosa-
tlabalho e a desvalorização da vida no lar contribui¡.ão for- mente, ao espaço privado, ao mundo do lar e da famllia,
ternente para apagar a fronteira entre o privado e o públi- ri regido pelas emoções, peloS sentimentos e pela afetivida- )
at!
co, entre o feminino e o masculino, e para quebrar ar antiga , l

1(
=l 1
de, e ao espaço público, ao mundo do trabalho regido pela
identidade feminina, centrada na idéia da mulher que se rea-, agrêssividade, pela competividade e pelo princípio do ren-
liza nos fazeres e saberes da casa. dimento, as mulheres descobrem que o acesso às funções,
As bases industriais da sociedade incitam as mulheres ai .', masculinas não basta para assentar a igualdade e que a igual- \
sairem de casa, a deslocarem seu desejo de reahzação para' dade, compreendida como integiação unilateral no mundo- r
,ll'

outros planos, a contestarem sua segregação no espaço da i


dos homens, não é a liberdade.
família. No decorrer dos anos 60 as mulheres investem no Interpretando o movimento de mulheres, então em ple-
espaço público. na efervescência, Herbert Marcuse chamava a atenção, já,
Mas é justamente nessa tentativa de integração em pé de no início dos anos 70, para o fato de que as mulheres que-
,lv\, ¡ v¡v¡l^ oË^u/1L L þqOLVvt r-e. '- -
48 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA

NOTAS'
rem e necessitam de bem mais que uma "igualdade repres-
siva", um mero direito de acesso à "realidade dos homens", l. Sófocles, Antigone. Ín Tragédies, Paris, Le Livre de Poche, 1962,
com tudo o que esta comporta e exige como negação da ex- p. 87.
-Idem,
periência feminina, 2. p. 104.
3. Idem, p, ll2.
A realizøção dos obietivos do movímento de mulheres 4. Idem, p. 122.
exige uma segunda etapø em que ele transcenderia o quø- 5. George Steiner, Antigones, Clarendon Press, Oxford' 1984.
., dro no qual estrÍfuncionando no momento presente. Nessa 6. Cf. Margaret Mead, L'un et I'outre sexe, Paris, Denoël, 1966, e Ser
Differeniaes, P. Lee e R. Stewart (ed.), Urizen Books, Nova York,
''
^ etapa, para além dø igualdøde' a por libertação ímplíca na cons-
1976.
trução de uma socíedade regidø um prìncípio de realï
i
' ' 7. George Balandier, Anthropologiques,Paris, PUF, 1974' p. 14'
i ,' ' c{aile díferente,.umø sociedøde no qual a dícotomia stual 8. Edgai Morin, Le pøradigme perdu: la noture humø¡¿e, Paris, Seuil,
. mascutino-leminino seria ultrapassøda nas relações sociais 1973, p.79.
" e individuais. Assím, o movimento carregø consígo o pro- 9. Serge Moscovici, Lø société contre nature, Paris, UGE, 1972, pp'
' .ieto, não só de instituíções sociais novas' mas também de 188/189.
\:iuma mudança de consciêncíø, de uma ffansÍormøção das 10. Edgar Morin, op. cit., pp. L75/176.
"' ll. Claude Lévi-Strauss , Les structures elémentøíres de Ia parentérPa'
, .lnecessidades ínstintuais dos homens e døs mulheres, libera-
:.r
' '''' ' das døs limitações da dorninação e dø exploração'n ris, Mouton,1967, p. 135.
12. S. Moscovrci, op. cit., P, 268,
13. Idem, pp. 3041305.
Um traço de raclicalidade se insinua nesse texto, em que 14. M. Mead, op. cit., P.99.
a igualdade entendida como zubmissão à hegemonia do mas- 15. Elizabeth Badinter, L'(Jn est I'autre - des relations entre les sexcs,
culino encontra uma primeira contestação. Marcuse capta Paris, Editions Jacob, 1986, P. 182.
16. George Lapassade, L'Entrëe dqns lø vie, Paris, Minuit, 1963, p. 87.
aí os primeiros sinais emitidos pelas próprias mulheres que'
17. Odette Thibault, "Le fait biologique" .In Le Fait féminín, otgani'
em movimento, perdiam-se e encontravam-se em caminhos zação de Evelyne Sullerot, Paris, Fayard, 1968, p.27.
e descaminhos, no ir e vir entre os territórios do feminino 18. Eveþe Sullerot, Histoíre et sociologie du travailfémin¡a Paris, Gon-
e do masculino. O preço do desmascaramento de um pre- thier, 1986, p. 33.
tenso equilíbrio que, fictício ou não, foi milenar, não tar- 19. Virginia Woolf, Une chambre à soi, Paris, Denoël/Gonthier, 1951.
20. Cf . E. Erikson, Childhood and Socíety, Nova York, Norton, 1950
daria a ser percebido. Pela voz e pela ação das mulheres,
e "Psychosocial ldentity" in Sills, D.L. (ed.), Interna.tíonal Ency'
o insólito vai introduzir-se no debate social.' clopedia of Sociat Sciences,MacMillan Company and the Free Præs,
Ao questi'onar o corte hierfuquico do mundô, ao afirmar 1968.
que o fessoat é político e que a política se e*aíza na vida 21. M. Zavalloni, "L'identité psycho-sociale' un concept à la recherche
cotidia¡a e nos ientimentos privados, ao opor ao modelo d'une scienc e" , in Introduction ù lø Psichologíe Sociale, sob a dire-
único a ser imitado uma pluralidade de projetos e identida- ção de S. Moscovici, Paris, Laroussg, 1ll3,pp.U6/U7,
22. Herbert Marcuse, Actuels, Paris, Seuil, 1975, p. 43.
des a sèrem inventadas, essas novas protagonistas sociais
atacam princípios sagrados da ordem estabelecida. A ex-
pressão coletiva desse questionamento de normas-valores
ã modos de organização ficou conhecida como¡lfovimento
Femlrustljl
il
A ARMADILT:IA DA IGUALDADE

"Ah! írmãs, se nos rímos!.


E hoje (como tantas vezes)
vos confesso a minha perptexidade
perante o mundo, o meu medo,
a rninha raivo, a mínha voracidade
de tudo. O meu amor nî¿ncø cansødo
mas ínútil.
Desacerto das coßas e nqs pessoas,,.
E em boø verdade vos digo:
que contínuamos sós mos menos
desamparadas".

Novas Cartas Portuguesas


As mulheres em movimento:
feminizar o mundo

As utopias seriam o que existe de mais confortável se não


fossem um risco de vida. Dos "ismos" do nosso tpmpo, o
r
J'
,', ¡{.: feminismo é,lalvez, o mais utópico, o mais perturbador,
If,
.,
o mais alegre e o mais triste dos projetos de. futuro' Res-'
posta aot dtsetttontros de uma época, a que dói maisfun-
ão e de maneira mais secreta' a menos épica, mas, talvez,
a mais sentida.
Dois corpos afogados. Rosa Luxemburgo levava nas cos-
tas uma bala clo inimigo de classe; virginia woolf levava
nos bolsos um nronte de pedras, por ela mesma escolhidas.
Uma afundou num canal de Berlim, a outra num riacho do
tl .,'' jardim da própria casa. Uma fazendo História, a outra in-
t,lventando vidas. Quat das duas morreu mais?
' Rosa, que queria ser como um homem, deixou cartas de
l
amor carènte, dirigidas ao homem que ela não era. Virgl-
I nia deixou ao marido e melhor amigo um bilhete curto
pe-
' dindo perdão pela sua angústia que lhes estragara a vida'
vida que ela desistira de viver. A androgini a de Orlando so'
breviveu graças à literatura. Virginia não.
Utopias desfalecidas de uma e de outra, reprisadas nas
gerações de hoje. Nenhum destino é mais previsível do que
ó de uma utopia, certa e segura de envelhecer desfigurada.
E, no entanto, pensando bem, o feminismo é jovem. Ou,
se não é jovem, como sabem os pesquisadores da história
!'' J+ ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
¡\ ARMAUILHA IJA IÛUALI.JAUb J)

. das idéias e os amantes da literatura inglesa; foi tomado de , e gravata


ou Gata Borralheira de macacão azul, em nome
'euforia da modernidade e da igualdade.
adolescente nos anos 70.
Vinte anos depois pairam dúvidas sobre o movimento fe- Que essa promessa de igualdade tenha se transformado
minista que, ele mesmo, se confessa em plena perplexida- em apenas semelhança, ou melhor, caricatura, não é dead-
de. Mas a perplexidade face ao descaminho de um movi, mirar. Porque ela já. nasceu torta, desfocada, e foi a partir
mento feito para enc¿uar a sociedade se revela, antes de mais de um mal-entendido que se construiu uma.estratégia polí-
nada, no cara a cara das mulheres consigo mesmas. tica de assimilação.
Hqje, no movimento feminista, se fala muito em cansa- Na verdade, o papel de cada ator social é desempenhado
ì
i,ço. Há quem olhe o retrato.da avó pendurado na parede em interação com um outro, baseados, ambos, numa rela-
.,''i com uma certa nostalgia do tempo em que tudo era claro: ção de troca e reciprocidade. Essa interação é determinada
:l .
,, trajetórias de vida, sonhos e projetos. Do tempo em que pelas idéias, expectativas e julgamentos que cada um faz
.' sobre as atitudes e comportamentos dos outros. Contra¡ian-
ires erâ nitidamente demarcado. E, no entanto, foram as pró- ,., do as leis da
psicologia social, segundo a qual nenhum pa-
-,
, prias mulheres que repudiaram a herança.cultural femini- lr pel pode ser representado em solo, que insiste na interação
.. na, os papéis sociais estereotipados e saíram à rua gritando Àt dos papéis sociais, um dependente do outro, que prevê que,
por igualdade. A esperança viva da igualdade como um ob- 'r ls. um papel muda, muda o outro que defende dele para
jetivo alcançável e acertezade que um leque cadavezmaior /se definir, contrariando tudo isso, o papel feminino mudou
de oportunidades se abria para as mulheres começam, ago- sem que o papel masculino fosse fundamentalmente tocado.
ra, a duvidar, de si mesmas. As mulheres passaram a fronteira do mundo dos homens
As duas últimas décadas foram os anos heróicos da escamoteando o lado feminino da vida. Enfrentaram a con-
geração-exemplo que não deixou escapar nada: teve acesso
corrência no espaço público carregando consigo, esconifi-
ao estudo, ao trabalho assalariado, à participação social e das, as raízes no espaço privado. Concorrência desleal pa-
política. Geração que superpôs todas essas conquistas à es-
ra elas, mas assumida pelas mulheres com coragem. Pro:
pessa e ancestral camada de tarefas e responsabilidades do
curavam assim corresponder ao novo perfil de mulher qgg.
mundo feminino. Janus com uma face voltadaparaa casa
e outra para a rua, as mulheres fazendo um esforço de an- , .gmergia da agonia de um paradigma. Obedeciam a iuha
. ''i' mensagem dupla e contraditória: "para ser respeitada peri-
I . droginia na tentativa de garantir a continuação da diferen-
,, ça homem/rirulher que mantém viva a atração magnética. ' lse, aja e trabalhe com um hofnem; mas para ser amada con-
. ''' ','lii
mulher".
,..' lEsforço de sobrevivência no tempo de ruptura de um códi- itinue senclo mulher. Seja homem e seja .
" A relação entre os sexos, que sempre se basearanafalá-
,go cultural milenar. Essa ruptura teve um preço que as mu-
. llheres estão pagando sozinhas. 'cia da inferioridade das mulheres em relação aos homens,
A convivência compartimentada do arco e do cesto, em ipassou, então, a basear-se no equívoco da igualdade. Tãq
que cada mundo guardava sua identidade própria, sua vi- convencidos estavam todos, homens e mulheres, da supe-
vência e simbolismo, rompeu-se de maneira assimétrica. In- i rioridade dos homens sobre as mulheres, que a demanda
dustrialização e urbanização transformaram donas-de-casa l.: I
de igualdade, formulada pelas mulheres, acabou por reduzir-
não apenas em professoras e enfermeiras, mas tanibém em se ao mero questionamento das barreiras que irnpediram sua
metalúrgicas, advogaclas e executivas. Cinderela de terno entrada no espaço público.
)-
56 ROSTSKA DARCv DF OLTVEIRA A ARMADILHA DA IGUALDADE 37

Partindo de uma desvalorização fundamental do universo sepørava o destino dos homens e o das mulheres. E, maß
feminino, as próprias mulheres alimentaram o equfvoco, ainda, somos uma geração que coabíta, no espaço de uma
' aceitando como definição de um mundo igualitário aquele vida, com øs pníprias øvós, representøntes de um tempo que .
passou mas nãe de um tempo qualquer, de um tempo Ç1u9,
em que teriam "apenas" que continuar a ser as mesmas de
acreditdvamos, seria eterno. Sentømo-nos iunto a eløs e ou:
sempre, acrescentando a suas vidas vivências até então pró-
vimos contar o que sempre foi a uida døs mulheres; e per-
, \' .1 prias do masculino. Como a sociedade como um todo e as ,

..),1 cebemos que elas estavam maís piióxímas da ldqde


,;próprias mulheres não atribuem nenhuma importância so'-
.ì' I
que de nós. Em tão poucos ønos, atravessamos séculos, Uma
cial ao que fazem na vida privada, näo lhes passou pela ca- pitula engolída e eis a Hístória trønformada. E no entanto
-essas
,il I
ibeça, durante os primeiros anos do feminismo, colocar es- avós nos educøram,.elas estão em nós, como interro'
tse
sru laclo da existência no outro prato da balança. gação e, ùs vezes, saudades. EIas estão vivas e nas contam
E foi assim que essa igualdade nasceu capenga e a rela- sobre um tempo em que, se alguém duvidøva døfelicídade
ção entre os sexos resultou numa estranha conta de somar: do casamento ou da maternidade, esqueciø-se rapídamente
:
feminino + masculino masculino. A crise da identidade dq dúvìda como teria esquecido do deseio devoar, quesem-
psicossocial das mulheres, fermento do feminismo, é o re- pre sentimos algum dia na vida. Contam-nos que olgumas
levøram longe demais os delírios secretos e essas' quase to-
sultado desse feminino de soma zero. Essa crise é tanto mais
das, øcaboram no hospício. As outras, boêmias, felizes ou
perceptível quanto mais as niulheres seafirmam na vida in-
inÍelizes, talvez tenham mudado um pouco as suos vidas, .

telectual e profissional, mas não mudaram a vida das mulheres. A norma sempre
As feministas dos anos 70 çrar.n intelectuais altamente foi essa avó, oustera, sern risos, que eu veio nafoto, de pé
qualificadas, integradas ao mundo dos homens, que se nu- atrtÍs do cadeirø do meu øvô,
triram, na adolescência, das Memórias de ums moça bem O que estd acontecendo conosco, mulheres de trinta anos,
comportada e, na idade adulta, de O segundo sexo, Eram que olhamos paru essa foto e encontramos nela um gosto
herdeiras das lutas pela emancipação da mulher do come- retrô e que nos perguntamos "o que eu tenho com isso?
, Quanto de tudo isso sobrevive em mim, quantoid sefoíparo
ço. do século, ecoavam os ideais de igualdade de Rosas e
Virginias, mas o faziam no momento mesmo em que en- .J\,i
\ '
sempre?"
. Vivemos um tempo de ùividas. No subsolo døs ações mí-
frentavam a perplexidade da experiência de falar de dentro , \' litantes as mulheres vivem na angústia e na incerteza. An'
do mundo dos homens. \i stistia da segurança perdida, incerteza sobre um mundo no'
No bojo da imensa produção de idéias que o femirrismo ü., t uo a íñventr, qit ,omeço em nós mesmas' sem modelo e
gerou, dos planfletos mais banais à produção teórica signi- v ,' sem referência, a menos que estø seia negativa, Sabendo ago'
$ i' 'l fîcativa, encontram-se as pistas dæsa auto-interrogação que, ' ra o que não queremos maß ser, tropeçamos no futuro e
:r \ j aos longos dos anos 80, iria tranôformar as demandas de tateamos uma parede inexístente em busca de um apoío pa-
-,rr ' igualdade em uma busca angustiada dos traços da diferen- ra o que queremos nos tornar.l

,'' lentre memória e projeto. Nos "grupos cle consciência", que proliferar¿rm nos anos
70, geraram-se depoimentos como esse. Foi al que melhor
Nesfes últimos tempos temosfølado, cada vez mais, em se exprimiu essa "política do privado", oü confidência po-
nossas ovós, como referênciø e como nostalgia. Somos umø '' ' htizada, através da qual as mulheres abriram um debate con-
geração que viu um pacto milenor romper'se, o pøcto que ,¡
' sigo mesmas que iria se revelar muito mais subversivo que
,t;
-\ ¡j R0StsK,c DARCY DE OLIVITIRA A AKMAUILHA UA I(JUAI,UAI,'Þ ¿t

o desafio ostensivo que colocavam à sociedade quando pe- 1', \


.1,
dida e uma identidade recusada que vai nascer a reivindi-
diam igualdade. 'lr t'- I
cação de uma identidade original, a ser construída.
Centrados nas mais diversas temáticas e ações, anuncia- \j,, Uma geração exilada do feminino tradicional e ainda es-
dos quase sempre de boca a boca, esses grupos se forma- trangeira no mundo dos homens vai dar-se como projetó
"feminizar o mundo", pretensão muito maior que as ba-
rt.' das participantes. Não eram sustentados nem garantidos por
vam, se desenvolviam e se desfaziam ao sabor do interesse
nais demandas de igualdade que, nos primórdios de sua agi-
!
'¡ . ; nenhuma instituição. Sua criação, sua trajetória e seu even- tação, lhe foram atribuídas. Um texto militante, intitulado
i . i tual desaparecimento davam-se apenas em função da von- juitamente "Feminizar o mundo", sintetiza essa ambição.
.','' , tade, reafirmada em permanência, por cada participante,
', )
, lde mantêlos vivos. Essa fragilidade institucional ou, me- Onde estavam as mulheres nessa civilização constniídø ,

', ilhor dizendo, essa recusa proposital de qualquer irrstitucio- pelos homens: postas ù margem, animois domésticos cho'
mesmo ciclo de traba-
nalização, era compensada por uma forte motivação, es- ,rnødos aføzer e a refazer sempre um
i co'
treitamente ligada ao sentimento de estar entre pÍues. lho, Sísyo
\tidiano,
- dona-de-casø, condenada ù imønência do
destínada a centrar o mundo em si mesma, nos li;
Os grupos favoreceram a eclosão de uma palavra múlti- I
r/ mites de seu corpo. Seu corpo, sua única aventura, seu cen'
pla feita de memórias, de receios, de esperanças, de expe- tro vítal. Guardadas no ønonimato, protegidas do tumulto
riências até então vividas por cada uma como vida particu- ' do mundo, os mulheres reproduziram seu deçtino durønte
lar. A constelação dos pequenos grupos tornou-se a espi- séculos, destino idêntico em mundos diversos. "fnfantis",;'
nha dorsal e o vetor do movimento de mulheres e foi neles "irresponsrÍveis", foram guardødas como crtanças, selvø-.
que se produziu o pensamento do feminismo dos anos 70. ' \ gens como as críanças. . :" -,
Como qualquer movimento de libertação, o movimento i: ,, "Irrøcíonais", irompem hoie na História trazendo em seu"i
í feminista revestiu-se da dupla característica ile ser, ao mes-
, I ( ' , Jmovimento uma herançø ancestral: a valorização do sen-.
. i r ' ,'ffio tempo, um fato cultural e um fator de cultura. Fato cul-
n \, a intuição como conhe-.
v . ,.' sual, a intimidade com o mistério,;,
, , , I' tural na medida em que se originou no mal-estar e na crise ,' ' ,.r"' cimento, o percebido tão forte quunto o provado, o sensf-'
' L\
'll . . .
"yividos por essa camada minoritiíria de mulheres privilegia- ',,,' :'ù | vel contra o racional, a estétíca como ética do futuro.2
''.las que, tendo ingressado no mundo dos homens, compreet- l:l
Feminizar o mundo implica redefinir um mal-entendido
rderam que nele não se sentiam à vontade, que o mal-estar i' -11

de base. O feminismo dos anos 60 reivindicava a igualdade


..,, ida dona-de-casa era substituído por outro mal-estar, tam- \,
entendida como o direito das mulheres de participar da üi:
,

, iUem sem nbme: por um sentimento de inadaptação.


da pública em igualdade de condições com os homens. Ca-
u Essa íntelligentsia feminina recusou a integração e foi le-
vada a voltar o olhar para as mulheres em seu conjunto, bia às mulheres, a certas mulheres, as "mais aptas", as
para a existência feminina em sua totalidade. "mais competentes", abrir caminho nesses espaços. Para
É do encontro dessas mulheres com as outras, as repre- tanto, essas mulheres tentaram convencer os homens de que
sentantes dos valores femininos tradicionais, que vai emer- a condição de mulher não era uma desvantagem insuperá-
gir um desvio coletivo, portador de um contradiscurso so- vel: apesar de mulheres, elas poderiam corresponder às ex-
bre a condição feminina. O movimento de mulheres será, pectativas do mundo do trabalho e da vida pública.
também, fator de cultura, na medida em que é dessa inte- Pouco a pouco as mulheres foram se dando conta de que
reção conflituosa entre uma identidade irreparavelmente per- a reivindicação unilateral e exclusiva de acesso aos papéis
A ARMADILHA DA ICUALDADE ót
60 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

Eu gostariø de ter escrito esta cartø ø mínha mãe' Claro


masculinos só se explicava pela interiotização de um senti- D*
qu, não poderia serq mesmo corls, o que é uma pena'
rnento profundo de inferioridade. Só'a percepção de que
vertamoi poder escrever cørtas às nossas mãe* Faltum øin-
o univeiso feminino é sem valor e, quase se poderia dizer, da tantas etapøs a serem vencidas parø se chegar øté Ió"'
socialmente não-existente, só a percepção de si como faznndo E, no entonto, jrí estamos ø caminho. Nós, mulheres, iú es-
- , .. parte do póto subalterno de uma relação hierrirquica em que tømos a caminho, aPesar da ímpressão tão lreqüente de le'
'; var o mundo conosco. Ah! se o mundo quisesse nos seguir!
componente inacabado, pode explicar a armadilha na qual Algumas vezes perco ø coragem, duvido de mínhøs for;
-' de base aprisionou as mulheres' çot. ião tantas as demøndas. E, sobretudo,
são muitas øs
, 'i.tt.-*al-entendido
I As mulheres quiseram fazer suas provas no universo do exigências quefazemos a nós mesmas, exígências tqntssv*
pois se
ì,i , ' jmasculino, tomado como padrão do melhor do humano, zes" contrailitórias, irreconcilidveß e esmøgadoras,
colocam todøs ao mesmo temPo.
It lsem pedir reciprocidade. Ao fazê-lo, subscreveram a noção
,' veiculadapela cultura hegemônica masculina de que seu uni- Como conciliar, em uma mesma pessoa' a necessídade
deømor,deaÍeto,decaloredeproteçãoeanecessidade
verso e sua experiência de vida são restritos e incompletos,
de øutonomía e independência, sem a qual não nos tornø-
, razão pela qual não faria sentido algum pedir aos homens retnos realmente livres? como concilíor as exigêncías con-
que os compartilhassem. cretas de nossos filhos, que vivem fechados nas estruturøs.
..'r ' - As conse[üências dessa autodesvaloúzação foram senti-
de nossas fømltiàs dependendo ahsolutamente de nós' e øs:'
das na própria pele pelas mulheres que melhor se "integra- nossos própriøs necessídades? ,
' ram" ao mundo dos homens. Intelectuais que fizeram car- Reciamàmos da fatta de tempo parø nós mesmas' Do
reira e que passaram a vivenciar como problemática a coe- tempo necessdrio parø nos encontrarmos, nos formarmos''
xistênciã conflituat, em cada mulher, da lógica da vida pú- noi educarmos, pøra inventørmos nosso mundo de mulhe-,
e do es-
blica e da vida privada, foram as primeiras vítimas do ardil res. E não nos esqueçamos do tempo considenÍvel
forço psicológico-neiessório para a tareÍa mais dílhil' ø de
da igualdade. -orienior pe'
o mindo que nos rodeía. O mais grøve' o maß
Oassunto já havia sido tocado em filigrana' quando das que
sado, éiustamente ter que controlar, øo mesmo tempo
,análises feitas pelas próprias feministas a propósito da du- Desde
'pla jornada de trabalho imposta às mulheres. Mas até en- a eniomjamos, ø desorilem que criømos ànossavolta.
Ì l. sempre iós mulheresfomos o elemento estóvel, seguto' con-
iao, rquestão era formulada em termos de organização do
ti
ñ citiàdar. De repente nos transþrinamos naqueløs que de-
tempo e dificuldade de conciliar a presença física no lar e sorgønizørn tudo, Desorganizømos essa ordem que se
pre-
no trabalho. "Feminaar o mundo" aborda o tema em sua ten-¿A perÍeita e eficaz, essa ordem Íamiliar, tão tranqüìla
dimensão psíquica. Uma troca de cartas entre duas amigas , ,onoirnio. E é a{ que minha mãe me pega' Que eu queirø
ilustra a identidade dividida, o mal-estar decorrente dessa adquirir umaformøção mais sólida do que a que tive qusn:
divisão, assim como o esforço do entendimento de suas do'iovem éiusto, oi t"mpot mudaram'-Que- eu Alerla try
causas bøihar, afirmar minha própria personalídade, tudo bem' E
tempo'dãs mulheres ødquirírem um pouco mais de indepen'
Amiga, dêicia econômicø. Mas ofoto de que eu questione meu cø-
SertÍ que um dia chegaremos a ser realmente livres? De sømento
- por mais inleliz que tenhø sído o seu
pleno
-' o Íøto
setcual' e
amørras tão pesødas, tão dif{ceis de serem de que eu ieivindique o meu desøbroehar
onde vêm essus
que, portanto, possa, em últìma øruilise, explodír mínha la-
quebradas? I

J
:
62 ROSISKA DARCY DB OLIV'..;IRA A AI{MAD¡I,HA DA I(¡UALDADÊ 69

mília, leva ø exclamações do gênero: ',Møs pense tombém Às vezes é ele que me espera às çinco horøs, eu prometl
nessas pobres criançøs!" ajudtÍ-lo nos seus deveres, ele jd foi repreendído pela pro'
Sim mømãe, eupenso muito, muíto em meusfilhos, Tal- fessora quatro vezes etn dez dias, e além disso eu id deveriø
vez até demais. Eu ntio consigo me livrar deles, como ter ido øo colégio falar com ø coordenação
você
não conseguiu se livrar de mim. São problemøs pequenos, eu sei. Bastaria organízar-me
O que é ser mãe? O que quer dizer, para mim, ser mãe? melhor.
Você øcredita que, até recentemente, eu nunca tinha per_ Dßcutíndo sc¡bre essa ølmeiado organkaçãò, dou-me conj'
guntado isso? Eu que jd sou mãe hd tanto tempo... Jømais tø de que os homens conseguem reduzir quase todos os pro"
formuleí essa perganta øntes de engravtdar. Èu considera_ blemas, grande ou pequenos, a entidades calcaldveis, pre-.
va o,fato "normal". E, no entonto, eu nõo era uma pessoa visiveis.
especìalmente atra{da pelas crìonçqs, como algumøs-de mi- Para mim, comprar uma malhø hoie ou amønhã ndo sei
nhas ømigas. Olhando para tnß, øcho que ter tido
fithos, reduz a ir à cidade fazer uma comprø que, deføto, poderid
naquele momento, justiJîcavo minha exiitênciø. Eu iao serfeita a qualquer momento, em qualquer condição, É maß
educada pøra "realizqr" qualquer coisa na vida e sím parø
Íii que isso. EIø e eu jtí conversamos bastønte para saber se era
"ser", Ser mulher. E, para mìm, naquele momento, ,ri realmente necessdrio comprør outra malha, porque a ønti'
lher sÍgnificava ser mãg, É impressionante a despreocupa_ ^u_ ga ainda estava em boas condíções, 'ì

ção e a tgnorância coin que emborcamos nessa aventurø. Um pouco pequenø, éverdade,., Chegømos juntas à con'
Mais cedo ou mais tarde chego, pora cada uma de nós, o clusão de que, para o balé, é muito importønte que o corpo'l
momento da verdade. para algumas, é quando oporei, o se sintø livre e boníto, também... A malha antiga id estava"
necessidode e o desejo de fazer algo diferente doirabalho um pouco desbotada. Então, saímosiuntas parøføzer uma
doméstico, quando se percebtem priosioneiras dos hordrios compra, bønal é verdøde, mas que nos fez compørtílhar to-
escolares dosfílhos. pørø outras, é no momento da solidão, do um mundo de intimidades, um conhecimento mútuo,
quandg os fílhos jtí se foram, quøndo só o que restø são uma cumplicidøde; e investimos o tempo necessdrto pøra que
os móveß a serem esponados, o chão a ser encerado. En- isso pudesse ser alcønçado
tão, dão-se conta de que nunca tÍveram tempo de construir Assim, o conjunto dos pequenos problemas da vida co-
uma vida para sí mesmas. tidiana torna-se, para nós mulheres, a soma afetivø de nos'
Falo por mim mesmq. Os hordrios escolares, as refeições, so dia. E nós queremos viver plenamente esso vida afefiva,
a_s compra4 a roupa por lavar
e que tem sempre rasgões e com nossosfilhos, nossos homens, com as pessoeß que nos
furos a serem costurqdos são problemas próíicos, p-oro o, circundom, Como reconciliør isso com uma luta proJîssio''
quais dèver{amos encontrar soluçøes eliiazes,
àt, ** nal, em que devemos provai duplømente nossa capacidade'
marido. ^, jd que somos mulheres
. Møg por que dìabos, sempre que umø reunião se pro_ -tão malpreparadas? -, uma luta para a qual somos\
Como viver isso com homens que têm''
longa além da hora previstø, ou quando, no urna cøbeça tão diferente da nossa, que são pouco sens{veís
fîm do traba-
Iho, fico conversando com você, que me-Íascina, s¡nto_,mi, e, às vezes, inseguros em relação a nossqs reivíndícøções de
de repente, tomadø por umø profundø preocupação? novas formas de reløcionamento, a nossos apelos a seus sen-"'
Co-
lxo se uma espécie de reló_gio inþrtor disparasse, me lem_ timentos, à sua tenrura, à sua doçurø, mos com quem que-"
hrando que estó nø hora. Às vezes é horoãeta. noje ro*o, remos fazer amor de uma maneirci'que nos faça plenamen-'
jantar mais cedo porque ela tem øulø de mtísica;
ou é hora te felízes?
de ír ao dentista com elø; é malhø de dança que tenho quë Não queremos møis ser mães-empregadas que asseguram
comprar antes de sexta-fei7s c.- você prometeu, mamãe,,, o cuidado material ø seus filhos, esposas-ernpregadas que'
!! v!¡Yltrb A ARMADILHA LIA IOUALUAIJII o)

cuidøm da casø, trobølhadoras-empregadas que execatam tino de mulher, a sua maneira de SER; no fundo você se
øs tarefas subslterna,s. Gostsrlamos que as coísosfossemfei- dd contø hoje de que nãofez, na verdade, uma opção, møs
tas de formo diferente, no nossos ritmo, se deíxou levar pelo único modelo dísponfvel, o da mulher-
Enc¡rrøladas cotídionømente entre nossas exígêncíøs e as esposa e mãe.
de um mundo de homens, organizado deforma ertcaz e ra- Muitas vezes você me contou como se sentia bem duran'
cional, nós nos revoltamos, nos tornamos incômodas, brï te a gravidez, me falou da alegria que sentíu no momento
gamog Saímos dos trilhos e o ¡nundo descarrila à nossa vol- do parto. Falou menos sobre suas angÍstiøs e diJicaldades
ta, não funciona maís como deverío. no convívio com as crianças. E é s.omente hoie que você se
Jd contei como tudo ßso me p6a, sobretudo esse senti- indøga sobre o que é ser mãe. Meßinto utn pouco deslocø-;
mento de culpa que me espreitø de vezem quando,,. hó mo- dø parø falar disso e, no entanto,.igostarìa de poder relro-.
mentos em que penso que nossøs mães tinham razão, que ceder ao princípio, ao ponto onde a opção se colocou para.
seria muíto mais Ítícil se entrdssemos nos trilhos. todas nós, ou seja, quando começatnos a ter relações sm¿øß
Felìvnente, hoje ísso näo é maís posslvel porque você estd e tomømos nosscs primeiras pílulas. Gostaría de lhe følar,-
ai para me impedir quøndo eLt quero desistir..."3 sobre esse tempo e sobre mim, que vivi de modo tão difè
rente essa urmadilha que chamam opção. :,irr'
A resposta, em tom melancólico, confirma, do ponto de Yocê seguiu stts "naturezs"; eu me revoltei. Sabia per-',
vista da mulher sem filhos, gü€ escolheu não tê-los em no- fettamente * poís vívía rodeadø de mulheres - eu€, desde.
me de uma maior liberdade, a teia de insatisfações e culpas o noscimento dos filhos, é normal acontecer o que se pas-'i
em que se enredam todas as mulheres. sou com você: ø caso, cuidar das crianças, as preocupações,\
a impossibílidade de trabølhør. Eu achøva estranhømente'.
Amiga, envelhecidas øs minhøs amigas que acabavam de ter umfi;::
Esta manhã eu mal acordars qusndo dei com sua carta lho. LtÍ estøvam elas, ísolødas, imersøs em um rítmo de vì-'
embaíxo da porta. Acordeí tarde porque não dormi bem ù da que não era seu mas døs crianças e, confesso, näo tíhha.'.
noite. Na verdøde, fiquei pensando em um monte de coí- muíto.øssunto parø conversør com elas. Eu era es,tudante,:
sas: minho vidø, meu trabalho e esse vaivém cotidiano que apøixonada por polítìca, e nõo tinha muito a dizer mesmo,
nos esgota. Decídí, portanto, me dør de presente ums mo- àquelas que me eram maís próximas, Eu tínhø a sensøção,
nhã øgraddvel efîquei lendo suø cørta e pensando em você. de que alguma coisa se havía rompido e que elas vìviam em."
Yacê me pergunts se seremos lívres um dia, E me îala um mundo misteríoso, onde deveria haver alegrias que eu
do seu cotidiano de mulher e mãe. Fíqueí apenss envergo- não conseguia perceber e das quais umø mulher semfrlhos.,
nhada, mè sentindo prívílegiada; eu que me levanto tørde, estavaide certo modo, excl4lda. Nem por isso eu me arre-
que não tenho filhos para levar ao colégio, não tenho que pendia. Sei'.q comoÍor, as críanças me chateavam. Sem jor-
aturar crianços que voltøm do colégio esþmeadas. O pou- nais, sem cinemø, desligadas do mundo, minhas omigas näo '
co contøto qüe tenho com o lødo "pnítico" da maternida- viviam como eu, Inverstimente, os homens estavam sempre
de me vem øtravés de você, de suas despedidøs bruscas no g pør de tudo. Eles me transmitiam a sensøçäo alids ver-
- pertence-
,

meio dë nossas conversøs. O outro lado, o dø cumplicido- faaa"m de víverem no mundo,'de agirem, de
de, do prøzer que obtemos no relaçõo com umo críonça, es- r\i'' -
\,rem à realidade, de estarem presentes. Ðavam a sensação''
se eu não conheço, opteí por não conhecê-lo quondo decidi d,'' um poder e isso me atro{a, Pod{ømos conver-
¡deþossulrem
t1sar.
não ter ftlhos. Alguns queríam mudar o mundo como eu (coitada de'
Yocê diz algo que é muito ìmportante. Yocê teve seusfi. miml). Só que eles tinhøm o poder de Íazê-lo,
lhos sem pensar, porque era normal, porque erø o seu des- Rapidamente dei-me conta de que também estovo etccluf=,
óó ROSISKA DAßCY DE OLIVEIRA

Eu não quero dizer que esse incidente banal (quøntas de,


da desse mundo porque era, antes de tudo, uma mulher, com
nós jtí passamos por ßso sem perder a corøgem) tenha sido:
todas øs limitøções que isso implíca. No melhor dos casos
decisivo. Mas ele ìlustra um pouco g tipo de acìdentesfrett: ,
eu era ølguém que tínhafugido ù regra, a indispensdvel ex'
te aos quøis tomamos nossas "decisões". Maq se ísso não'"
ceção que a confirma. Tudo isso vinha envolvido em um cli-
mø sensual indeflnido em que havía algurila coisa forø de
Íoi decisivo, o que me fez "escolher" não ser mãe? Todss ',

as minhas decisões foram muito intuitivas; você sabe tønto ,


lugar uma mulher; um obieto de deseio sexual; mas que
-
trøzíaem si algo de desviante, um deseio de ser reconhecída
quanto eu: não se espera de nós que nos coloquemos QUês:.:.
tões profundas. Por que você e eu não? Você seguiu seu d6-',
como igual. Pretensão estranha quando, de qualquer for-
tino e eu engønei o meu, porque eu queriafazer outra coisa..
*o, quere^os tambérn ser amadas enquanto fêmeas. É en- trl l
de minha vida. Sim, minha cara, ø culpa é sua se agorø eu \
graçado, sabe, às vezes eu tinha a impressão que ísso que
me pergunto o que fiz de mínhø vida. Eu lhe asseguro que
eu trazia em mim de diferentefuncionava como uma espé' i '¿,'," sabia bem o que queria. Ser independente, utn ser em si mes' ,
cie de øfrodis{aco, como se os homens dissessem: vamos ver
mo. Eu queria tudo o que estava resYrvado aos homew, Eu'.
se no cømø esss segurançø toda não vai por ógua abaixo. queria fazer de minhø vida uma obro, construíJa a man gos'
Apesør dísso, durante muíto tempo tive uma hurnilde ad- ,,i
to, tomar etn minhas mãos meu próprío destino sem üt :
miração pelos hornens, quase um respeíto que, naturalmen'
ømarras com que você foi brindødø. ..
te, acgrretova seu reverso, um certo desprezo em relação às ' Me tornei uma mulher livre que gønha sua vida suficien':,
mulheres. No minho visão maniqueßtø eles representavam
temente bem para se permitir acordar tarde quando dorme ',

tudo o guevive, e víver signifícæa reølizar um destino que,


mal à noite. O que me impede então de dormir bem ù noì':
para mim, era necessaríamente de ordem pol{tica ou inte'
te? Eu lhe disse que liquei pensando em mínha vìda e em
Iectual. Para pørticipar dessa Ø,enturo erø necessdrio ser
todas essas mil coisas do cotidiano.,. O que me aconteceu?'.
aceita pelos homens. E eu me dediquei a sê-lo.
Por que, esta manhã, suø pergunta se nós seremos livres
Objetivamente, era isso mesmo que eu tinha que lazer,
algum dia ressoou tão forte?
-
pois querta manter meu lugar no jornal; eu tinha que ser -
Possei a vida inteira livrando-me døs coerções que pesam
eJíciente e competente. Eu disputova esse lugar com homens
sobre as mulheres. Eløs têm responsabílidades doméstícøs..
que tinhørn feito melhores estudos que os meus, que tinham
enquønto eu estou pouco ligando parø isso. EIas não têm'
sido prepørados parø desempenhor o pøpel, enquanto eu era
umø formação que lhes permita trabalhar enquanto eu te-
umø usurpadora'e dificilmente teriø dìreito a tal se não de-
nho todos os títulos e ganho a vidø muíto bem. Entdo, de
monstrasse ù exøustdo minha copacídade. Gostava do meu
que me queixo? Por que então, assim como você, não vivo
trabalho e por isso dei provas dessa capøcidøde, Fui øpro-
o que qttero? Você me falou de você, øgora Íalo de mim.
vada num concurso e mdconvocøram para uma entrevista.
Para tomar a palavra em unia reunião de homens é neces-.,
Me apresentei. Você é cøssda? Sim: Hd quanto tempol'Três
sdrio usar o mesmo tom, a mesrna linguagem. Eu aprendi t 1\
meses, Dentro de dois tileses você estard grtÍvidø e dentro
de um ano você não poderd møß trabalhør, "Eu não sei
a falar fluenternente essa língua que nos é estranha
- ø nós, ¡
mulheres, Mas jd hd alsum tt*po sinto um vago,sotøøuel ,
se vale a pena investir em você, Íormó-la pøra que você nos
dissonante, uma lembranço de ødolescência, quando eu ain'l,
deixe." "Mas não, podem estar certos de que não terei fi-
lhos. Eu não quero ter. Estd decidido". da saþia rir, dizer absurdos, Íazer loucurøs.
Freqüententente ouví dizer que as mulheres têm diJical'
De qualquer modo, esttí decídido... De quølquer forma l/
dade psra se exprímir. Acho que a difículdade vem de que
Lv

esttí decidido que sempre que umø mulher queirafazer umø,


,.1, elas não conhecem o código que o mundo dos homens ím-'.
carreira, se ela quiser terfilhos, elø é um problema no qual
põe. Você Íica vermelha quando fala em públìco. Eu não; .
não vale a pena investir.
68 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA

Alvaiessetemudereflexãoparasuaspermanenteslns6-
não møß.., id Íaz tanto tempo que vivo e circulo por a{' nias,paranossoperpétuavigtlia,Quediaboquerdizerser
(lltimamente, pelo contrtirio, às vezes empalideço; experi' mulher?Vocêmtedírátalvezamønhã,quandoformosto=.
mento uma espécíe de vertígem, ø ìmpressão de que vou
grî løgo"'4 '':
mar ttm somete na beira do
tar: Chega! Ah! Essa efíciênciø cotidiønø a nós imposta por \¡.
umø comédia social em que os dromas da noite anterior são 1- Esses dois testemunhos fevelam um sentimento de insa-
escondidos sob o perÍil dø mulheriovem e dinômíca! Tudo .t jtisfação, uma ausência que cada mulher traz em si, a pe.r:
parece no trøbølho:.éprecßo ser brilhante, é ne-
'cesstírìotão simples ''ìr.' ttpcäo á. qut em nenhum mompnto e em nenhum lugar
ter bom desempenho. Jd me aconteceu ter vonta-
\"' ,lse'está inteira. Foi essa impressão de viver no meio do ca-
de, numa reuniõo, de interromper meu próprio blablabld
para dizer: vocês søbem que ontem tive medo de morrer? , minho, num equilíbrio instável e precário entre dois ¡nun'
'Mas
dígo qualquer outra coísa, permsneço brilhønte e eÍï dos, que levou as mulheres a reexaminar a situação Para-
ciente.-Nesse iolo de præt{gío, iogo meu futuro' E nele não doxal-que elas mesmas ajudaram a criar quando reivindi'
hd lugor Pøra øngústias de morte. caram o acesso aos papéis masculinos sem exigir como con-
que
Tampouco para as øngtfstias du vidø, para esse deseio trapartida uma muãança equivalente e concomitante
de viver todas as nossøs pòtencialídades, de sermos íntei- seriaoacessodoshomensaospapéisfemininos,queins-
ras, Assím como você, também vivo essa øngústia de viver taurasse de fato a polivalência para os dois sexos. ii .

¡ ,,.. d totalidade de mínhø pessoa. Jd não posso møìs desempe- Toda mulher que assumiu responsabilidades na esfera prl-
l"
,ll nhar papéis, por rnais nobres que sejam. Eu que sempre
quis
blica e se familiàrizou com os comportamentos ditos mast.
maís vontade de ser'
- øsoro tenho cødo vez que me reduzi' Veio a que nos
asir.
culinos foi forçada a trabalhar em;si mesma essa coexistex-.
) utl UAo púbtíco... veio ø
cia de contrários . FeminiZor o mripdo, enquanto memória
,reduzimos, iodas nÓs: um tado ptlblico, um lado privado'
A cada um desses lødos correspondem algumos exigências, de um grupo de reflexão, retra{a a experiência de mulheres
necessidades. Yocê me perlunta como concilíar essas diþ qge haviam tentado viver a vida'profissional sem que€la
rentes øcigências que nos ímpomos? Não sei. Mas estou certa , perturbasse a vida familiar. Perplexas face aos conf[itos vi-
de que nesss pergunta se escon'de uma das grandes
questões uidor, elas descobrem a cultura feminina, especie de herang'
do nosso temPo. históiica feita de corpo e prática social, e tentam proceder'
Estranhasociedqdeanossd'noquøIvocêeeu'tãodife. a uma arqueologia dessa cultu'a de que qualquer mulher,
rentes, nos sentimos iguølmente presas' Nem você nem eu participa em maior ou menor
- grau' '" ;i
pudemosserinteiras.-AlgumocoßønosfoiroubadøeÍoi trabalha-.
'enquanto'mulheresquecompreendemosisso'Poisé'ømi' eualquer trabalho é uma via de mão dupla: o
dorìransforma o objeto, o trabalho transforma mentali-
a
go, ,omo inventar im mundo em que nos sintamos bem?
dade do trabalhador, muitas vezes sem que ele se dê conta
bompreendo que você perca o fôlesa' Eu tamhém perco'
disso.
Vocè sabe disso melhor que ninguém' Id seÍoi o tempo'em
que eu tinhø respostøs pÛra tudo, em que sabia resolver to- Sermãe,duranteoslongosedurosanosqueseparamo
.do, o, problemâs. gæê se lembra como eu era no infcio? nascimento de uma criança do momento em que a socieda-
Acho que muitas iezes a føscinei: você também me føscí' de comeþa a se idteressar por ela, é ser extremâmente ati-
-ri*plesmente
n*o, porque você não era como eu') va.Eestianho o completo silêncio que se tece em torno des-
Tudosetornoudiltc¡leco4fusoenoentantocontinuo ses anos decisivos. Natacha passeia pelas últimas
páginas
que ser mãe seia
a não deseiør terJîlhôs e contínuo a negar de Guerra e Paztrazendo na mão uma fralda suja de cocô
ø únicø maneíra de ser mulher'
/0 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA A AIìMADILHA DA IGUALDADE 7t

', qual esse aspecto da vida é reconhecido na literatura mun-


e isso representa, numa certa medida, o limite dentro do movimento feminista afirme, de maneira orgulhosa; essa
i, diferença eis um fato novo que indica uma mudança de
.i 'dial. E no entanto todos cineastas, filósofos,
l
-
perspectiva que iria amadurecer lentamente, substituindo
psicólogos - escritores,
foram crianças e devem suas personalidades r0 , os velhos esforços para afirmar a igualdade. Na verdade aqui

.-: -
adultas ao trabalho desempenhado, durante anos, por sua 1 se prenuncia uma nova concepção da igualdade, não mais
I

..r e r''
:,' rmãe ou por outra mulher. É1'Éro completo o silêncio que tl
-{}
't ,,, na similitude mas na diferença sem hierarquia. ,.
jmesmo as mulheres, acordes com o espírito de sacrifício que 'IrJ ' {IapoiadaNesse sentido pode-se dizer que na trajetória do movi-
f
lhes é inculcado, concordaram em ignorar esse trabalho es- 1
mento feminista gerou-se, em duas etapas, uma contesta-
sencial por elas desenvolvido ou, pelo menos, em esquecê- ,\., ção radical do senso comum. Em um primeiro momento,
lo logo que terminado. Pergunte a qualquer mulher sobre que começa no fim do século passado, a contestação visa-
o que elafez enquanto seus filhos eram pequenos. "Ah! va provar que as mulheres não são inferiores aos homens
Nada de importante. Vegetei." e que podem fazer as mesmas coisas que eles.
Experimente viver de cinco a vinte anos (dependendo do Numa segunda etapa, qr¡e se desenha nos anos 70 e vem
número de filhos e do intervalo entre suas idades) sendo to- amadurecendo até se tornar agora nítida, a contesta-
talmente responsável pela vida de um outro ser: sua saúde, çã'o feminina anuncia que
-
as mulheres
- não são inferiõres
\r'
rl ' ,,sua segürança, sua inteligênc-ia, suavida emocional e criati aos homens mas também não são iguais a eles e que essa
t'1., ' r" va e até mesmo seu sono. Imagino que alguns artistas e al- diferença, longe de representar uma desvantagem, contém
1 guns cientistas que trabalharam em projetos de longa dura- um potencial enriquecedor de crítica da cultura. ,'' '
' çilo possam ter um vaga idéia do que isso representa; mes- Ao adotar essa postura afirmativa äe novos valores, o
- mo assim os romances, as sinfonias, os aceleradores de par- movimento feminista passa a desempenhar o papel do que
/tículas não pegam sarampo, não levam tombos de bicicleta, . .¡,' Serge Moscovici chamaria minoria ativa. As minorias ati-
dF

não acordam aos gritos no meio de um pesadelo. Tente vi- 'l , vas são grupos desviantes, desafiadores do senso comum, l
ver com uma respónsabilidade como essà dutante anos: se- "l capazes de provocar, pela firmeza e viabilidade de suas po-
rá que você não se modificaria? E se é todo um sexo que ', ,,i sições, transformações das normas e relações sociais. Em
vive esse tipo de experiência, como é possível que sua men- s '\"' sua obra Psicologia das minoriøs øtivas, ele estuda os fe- l\t",l¡ ,..ff,/
.r

talidade seja a mesma do outro sexo que, uma vez o traba- ; nômenos de desvio coletivo encarnado por "grupos que ií '\; '

Iho terminado, por mais duro que seja, tem direito a dormir eram definidos e se definiam de maneira negativa e patoló-
seminterrupções o sono dos justos? Estáimplícito que nem gica em relação ao código social dominante e que.passam
todas as mulheres são mães, que nem todas cuidam de crian- a se afirmar como grupos detentores de um código próprio
ças. Da mesma forma que nem todos os membros da classe e, mais ainda, capazde propô-lo a outros como modelo ou
operáriatrabalham em fábricas. Entretanto, nos dois casos, i l alternativa".6
a experiência coletiva é tão forte que nenhum membro des-
sa coletividade escapa aos efeitos formadores.S ' ' n.'' rres tecerem üm novo desenho na trama do social. O desvio
. r
Afirmar a diferença entre homens e mulheres não é no- "lr -
vo. O sexismo se apoiou nessa diferença para classificar as '",, l\"' 'rigida,
mas um processo fundamental da existência das so-
mulheres não só como diferentes dos homens mas sobretu- '. ' i/ ìciedades. É o acontecimentoinesperado sobre o qualrepou-
do como inferiores. Que um texto produzido no calor do if
i''
l,ì l

jsam o crescimento e a complexificação do sistema social.


1) A AIìMADIT,HA DA ICTJALDADF, 7t
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

Na verdade, só através.dessa recusa assumida pelos des- A minoria assume a psicologia de uma pessoa ou de um
viantes, de agir conforme o código dominante, é que pode grupo que é diferente e que deseiø ser diÍerente, caOøz d9
ocorrer a transformação das norrnas e comportamentos vi- orr¡to, o desaprovação, insens{vel à hostilídadef{síca e psi-
gentes. cológicø, tanto quanto ù tensão cont{nua' Em vez de insis-
A primeira conquista do movimento de mulheres enquan-
tir ia uniformiãade, que é o temø da maioriø, a minorio
desviante insiste na índividuolidade, enfatizando o que dí'
ro minoria ativa consistiu, precisamente, na quebra rlo con-
vide mais do que o que une. Ela transþrma ø negação dø
senso ideológico que envolvia a definição de masculino e
normø ou da concepção tradicionol da realidade etn uma
t'eruinino. O discurso masculino sempre definira o qurl é uma nova norma ou umø nova concepção da realidade'
mulher normal, seu lugar, seu papel, sua imagem e sua iden-
tidade. As dissideptes desse modelo eram rejeitadas para fora
do campo de visibilidade social.

A maioria representa ao mesmo tempo a norma e a realidu-


de, enquanto a minorio representa o æceção, o anormal e
unta certo irealidode.T

Uma ideologia permanece hegemônica enquanto não tem


de ser defendida ou explicada. A eficácia de sua
depende de sua capacidade de produzir um ima-
,, 8inário coletivo, interiorizado por todos e que se identifi-
que com a totalidade do real. Nada escapa a ela, todos têm
de agir de acordo com ela. A ideologia pode enteo perma-
necer invisível, na medida mesmo em que se reveste de to-
L

das as características de uma verdade objetiva, de uma ne-


cessidade absoluta, ditada pela ordem natural das coisas.
Em compensação, desde o momento em que uma ideo-
logia precisa apelar para argumentos para se defender, desde
que deixa de'ser percebida como o senso comum, sua ver-
dade e sua força estão comprometidas. Ela não é mais o
discurso hegemônico, apenas um discurso entre outros,
Ao questionar as normas e papéis preestabelecidos, ao definiçäo, atravessa o conflito com o masculino
penetrar em espaços proibidos, ao þroduzir um contradis- Se ás mulheres que estão ocupando os lugares mais di-
curso, colocando face a face duas culturas e duas visões de versos no mundo dos hOmens recusarem O mimetismo e afir-
mundo, as mulheres em.movimento introduziram a incer- marem o qire thes pèrtence como maneira de estar no mun-
teza, a pluralidade e a escolha onde anteriormente só havia do e de peiceber ai coisas, essa experiência as irá transfor-
certeza, unanimidade e conformidade. mando ã àqueles que com elas convivem e trabalham. Re-
definir o ferninino é não ter mais um passado nostalgico,
.^t
.JÀ,- ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
v 1¡,

,_
'' ,r,já repudiado, ao qual se referir, nem tampouco um mode-
. 'lo masculino ao qual aderir. Reconstrui¡ o feminino é o des-
"'' .it.' itino do movimento das mulheres.
l,,'
'/'"'' possibilidade simétrica de reconstrução do masculino. Tal- !,.,iu
Apresençadoshomensnomundo dasmulherestraráuma
J'
,\,",-'
vez então se poderá falar de igualdade, porque a verdadei -r,yl.*. t !
ra igualdade é a aceitação da diferença sem hierarquias. E\' , ,' '' A coexistência de contrários:
a certeza da diferença permanecerá no corpo, e nele .o en-',,,i7, lógica do privado/lógica do público
r
contro mais fecundo.
Hoje o movimento feminista relembra a cada dia o de-
sencontro homem,/mulher e o desencontro das mulheres con-
sigo mesmas. E por ísso mesmo, porque toca no que de mais
ancestral, mas íntimo e mais desejado reúne as pessoas, só
pode ser desvairadamente utópico. O caminho que leva as mulheres da demanda de igual-
E se Rosa de Luxemburgo tivesse gritado sua carência dade à afirmação da diferença'atravessa a no man's land
de amor fora de cartas secretas? E se Virginia Woolf tives- \¡ da am.bigüidade, situada a meio caminho'dos territórios do
, l, 'masculino
se adivinhado quantas mulheres como ela iriam se debater ,\
:
e do feminino.
com a angústia da inadequação a um feminino medíocre As mulheres têm vivido mergulhadas em plena ambigüi-
)' :
e tradicional? Essa carência e essa angústia são as pedras
I
.' dade, fazendo coexistirem em si mesmas as contradições im-
\, '
no bolso do feminismo. RetiráJas é preciso. Rapidamente, t'' postas de fora. Respondem às escolhas impossíveis pelanão
para que não nos façam afundar. Cuidadosamente, para escolha e esgotam, no exercício da ambigüidade, a energia'
não ferir ninguém. Mostrá-las sem pudor àqueles que vi- ]Ressoal. p aí,
para muitas, o cansaço, a perplexidade, a an-.
vem conosco, transformá-las em projeto político, quebrar gústia e a frustraçãg[ r.
silêncios. Na linguagem corrente, chamamos ambíguo aquilo que
\ .
: ' . t A na mais desvairada das utopias é esperar inaugurar, en-
História, um dirálogo amigo entre homem e mulher.
pode ser entendido de viírias maneiras, a que se podem atri-.
buir vários sentidos ao mesmo tempo. A clínica psicanalf-
,fim,
Possível ou desejável, essa utopia resta invivida. Quiçá tica define como ambígua a pessoa cujo comportamento$f,, ' ,j

iurprovável; Qualquer que seja o destino da relação entre ,tL presta 4$ferentes igterpretaçõesle provoca, por conseguinte,'i, '
-
os sexos, o movimento feminista guardará. o mérito CUVlOa, TrLCefieZA e COflIUSaO. i.. -.
rico de ter denunciado "a insaciável intolerância à alteri ,,.(tù
\\' No entanto a ambigtiidade só é perceptível àquele que
dade, paixão que nutre nosso pensamentol' e que "nos le- a observa de fora, posto que, para a pessoa ambígua, não'
vou a ver o nada em tudo que não nos reflete, e descrever há incerteza ov confusão, apenas indiferenciação, uma fa-l
o diferente como ausência". lha na capacidade de discriminação e identidade. .i:'. '
O movimento feminista terá assim tornado presente e vi- Apesar da assimilação corrente entre os dois termos, a:
sível o Feminino como corpo, como história, como cultu- ambigüidade difere profundamente da ambivalência. Este'
--==-:-¡:--;r-
ra, como crise e como projeto. último termo, tomado emprestado por Freud a Bleuler, que
o forjara, desenvolvido em seguida por Karl Abraham'e'
A ARMADII,HA DA ICUALDADTi n
l

Melanie Klein, serve para qualifïcar a presença simultânea, Contrariamente, entretanto, às- situações consideradas pe-
I
num mesmo sujeito, de sentimentos ou comportamentos an- la clínica psicanalítica, a ambigüidade, nas mulheres, não
tinômicos e contraditórios. Na ambivalência a afirmação I
I' é um problema pessoal e individual mas antes a resposta
ti
e a negação, o sim e o não, o amor e o ódio coexistem con- inevitåvel e, ãté, sadia e normal às mensagens dife-
flituosamente.
t,
-
rentes e contraditóiias que elas
-
recebem e acatam dâ
!.

moderna.
sociedade
- - .';.'
t
\
O componente posítívo e o ccimponente negativo da ati' Estudando os traços etiológicos da esquizofrenia, Gre-
tude qfetiva estão simultøneamente prexntes, indíssoc'ídveis, gory Bateson chama "dupla coerção" (double bindstz ut -
e constítuem uma oposìção não diølétíca, íntransponivel pa'
tuação em que se encontra uma pessoa submetida¡ pêrmâ-
I

ra ø pessoa que díz øo mesmo tempo sim e não.ro


nentemente, a ordens que se excluem ou se negam ump às
\/ outras, sem que ela tenha possibilidade de escap¿ùr do ca¡n-
Ambivalente é a pessoa que vive ou exprime a contradi-
il po onde interagem essas "injunções contraditórias". Quem
ção e o conflito; ambígua é aquela que não consegue se dar
* \ r ì\
èstá submetido ao doubte bind sempre sai perdendo. "Seja
conta do que lhe ocorre, gue não consegue identificar ou
homem, mas continue mulher" constitui um double bind
discriminar contradições que se traduzem em atitudes ou ii;'
suficientemente grave para que dele as mulheres tentem es-
comportamentos que näo se excluem uns aos outros mas
que, pelo contrário, aparecem juntos ou alternadamente, capar pela ambigüidade. O ser ambíguo, na medida em.que
não se percebe como tal, faz ou tenta fazer coexistirem em
coexistindo no mundo interior e no psiquismo do indivíduo
si mesmo forças conflitivas, desejos que se anulam ou que
sem que este sinta contradição ou conflito. A ambigüidade
se superpõem sem integração possível. Ele se desloca de !m
é "um tipo particular de identidade ou de organização do . 'deseþ Joutro, de uma existência a outra, de umapersona-
eu que se caracterizapelacoèxistência de múltiplos núcleos " ,"'. lidade a outra, num esforço desesperado para não perder
não integrados que podem, por conseguinte, coexistir e
alterar-se sem implicarem em confusão ou contradição pa- r"\
I
.. nada, para ser tudo ao mesmo tempo' O ser anrblguo é ague-
,le que não admite a perda, incapazde luto por um desejo.
ra o sujeito".ll
Essa definição de ambigüidade nos permite compreen-
der melhor o que sentem as mulheres que atravessam a fron-
, Na ambígüidade, a pessoa aciste mas não é; a pessoa ací*
teira do mundo d,os homens.."A personalidade arnbígua
I te mas não tem a vívêncía, a pessoa existe "em si" e nãi¡'
14
"paro sit'.
apresenta a. caracterlstica de não assumir a situação, de "
l' '

esquivar-se a ela, de não se compiometer, ou, ainda, de não A fragmentação dapersonalidade feminina faz dela um ¡ ' )

assumir a responsabilidade nem pela situação em si nem pelo


"caleidoscópio de personagens", característica do ser am'\
seu sentido nem por suas motivações e conseqüências. A
bíguo que Bleger descreve como já'fizeraBéranger, e é nes- '"'
personalidade ambígua não é, portanto, fruto de uma ne-,-,1, .
seialeidoscóplo que se multifaceta e, ao mesmo tempo, se'
gação, mas de uma falta de discriminàção, ondeftrada é to- ' ,' dissolve a'existência feminina. '"" )':'
talmente afirmado nem totalmente negadgt"t2Elase sen'- .
Sair da ambigüidade supõe uma discriminação dos ter-
te capaz de pular indefinidamente de um papel pâra outro ^ r

mos da contradição e uma integração do eu capaz de su-


e, quando confrontada com uma escolha pieciéa, prefere '.' d portar o conflito. As contradições, como não são discrimi'
recuar e tergiversar a enfrenta¡ os dados da realidade con-
nadas, trabalham, invisíveis, e não permitem às mulheres
creta, que comprometeriam aflusão de onipotênci1
situarem'se face a elas. ;
78 ROS¡SKA DARCY DE OL¡VTiIRA A ARMADTL}tA DA ICTJAI,DADE 7,9

A força subterrânea da ambigüidade é identificável em, se apóiam na experiência, desconfiam do teórico, que îpF:
pelo menos, três exemplos de conduta das mulheres no mun- rece às mulheres como sedutcr e ao mesmo tempo Pollço
do dos homens: sua relação equlvoca com o saber, sua fala confiável. Essa desconfiança em si não é teoÅzada, mas.vìi
sofrida, seu medo do sucesso. vida de maneira obscura, mais sþntida que pensada, mais
Escolas, universidades e centros de pesquisas estão hoje experimentada que afirmada. .:. i
repletos de mulheres que, neles, não só adquirenr, como pro- Coexistem assim, na conduta'das mulheres face aorpa-
duzem saber. A considerável produção científica assinada ber, desejos contraditórios, contradição não expllcita para
por mulheres não constitui, nô entanto, um argumento su- aquelas que a vivem e que, sem propriamente formulá-la ' ,
|:

ficientemente forte para destruir nelas sentimentos equívo- ou percebê-la, sofrem as suas conseq{iências, não sgb fo-r. ¡

ma de paralisia porque essa elas venceram e se inseriiám '


cos de atração e repulsão que atuam simultaneamente, senr
que uma firme sua primazia sobre a outra. A simultanei-
-
em diferentes campos do saber mas sob forma de senti-'1,,
mento de inadequação,
-,
mal-estar difuso que as faz entre- I
dade desses sentimentos marca com o selo da incefieza a
atividade intelectual que se afïrma para fora, mas ao preço ter com esse aspecto de seus destinot o quã estou chaman'/ ''
de um esforço interno de vencer a impressão de apropria- do de relação equívoca.
ção indébita. A relação das mulheres com o saber se cerca Problema do mesmo jaez é a faLa sofrida, gue é a fala
assim de um clima de indefinição em que entram em jogo feminina no espaço público. Sofrida porque deslocada ou
o desejo de conquistar novos horizontes e, ao mesmo tem- vivida como tal, é a fala da estrangeira, da que não domi-
po, e com forçaigual, afaltade autoionfiànça, o sentimento na os códigos, da que titubeia, da que se sente mal, fora
de estranhezaface à intimidade com o conhecimento. Se .o de lugar.
a autoconfiança se ganha no,sucesso da própria produção'_ O fio do discurso pelo qual as mulheres justificam.o si-
intelectual sancionada poi tltulos e publicações, ela se per- , lêncio ou, no melhoidos ðasos, o medo da palavra em.si-
de na suspeita difusa de esta¡ iúvestindo no que não vale . tuação pública, percorre um caminho de representações que
a pena, como se um olho crítico etalvezirônico observasse parte da percepção do espaço público como rigoroso e exi-
o desempenho intelectual das mulheres como uma defor- gente, regido pelo saber instrumental; leva à associação desse
mação. saber à linguagem conceitual, e finalmente, à identifÏcação .
Não é impunemente que as mulheres, pertencentes a uma desta com o masculino. Forma-se assim uma cadeia de as- I

cultura em que "modos de fazer e modos de dizer se reve- sociaçõgs que faz com que as mulheres, para se protegerem
zaÍn e se esclarecem mutuamente, desenhando uma esfera de um possível fracasso emrelação às expectativas que elas
+
de representações e ações que lhes pertencem",l5 fazem sua mesmas construíram, abdiquem do direito de se exprint{.
incursão na esfera do saber, campo até então reservado ao A fala em situação pública parece significar para as mu-
IVlasculino. O universo feminino se organiza em torno de \;, lheres uma mudança de registro lingüístico em qug a comu-
l.
nicação informal de sujeito a sujeito, de Ego a Alter, ine- ,'
i

saberes que lhe são próprios o saber feminino é um sa-


-
I

rente ao espaço privado, cede lugar a um outro registro,


I

ber relacional, fundado na recþrocidade e que se reaßza l

pelo diálogo entre dois sujeitos e se acomoda com difi- conceitual, masculino, vivido não só como diferente mas
-
culdade ao saber instrumental, que supõe uma relação su- como superior à linguagem feminina e mais adequado.às'
,i

jeito/objeto e que se realiza em função de um objetivo pre- exigências do espaço público. ,r :

tensamente independente do sujeito. Os saberes femininos A existência de dois discursos,:dois estilos, dois modos
a\
A ARMADILHA DA ¡CUA¡,DADE $
BO RoslsKil DARCY DE OL¡VBIRA

'' ,uma preocupação desmesurada com o purismo e com 8.hi-


de expressão, um feminino e outro masculino, tributário ca-
,¡'lpercorreção gramatical, que pretende compensar um mo-
da um do pertencimento a uma esfera de vida e a um espa-
,r ldo de expressão inseguro. Para Lakoff, por setl conteúdo
ço social, mereceram uma produção teórica importante' so- fútil e frlvolo, pela ênfase dada às reações emotivas, óor
bretudo de pesquisadores norte-americanos. !,
' se,-, tom mais nervoso e seu fluxo mais irregular, o fala¡ das - .,r;
No leque de estudos emplricos realizados a pariir da me- mulheres se desqualifica face ao discurso masculino, 4ais],! "
tade dos anos 70 sobre a fala feminina e a fala masculina forte e afirmativo, construído de rhaneira a consolidar apo-{ 'L''
destacam-se os trabalhos de Robin Lakoff. sição de força dos homens no espaço público. / '
Numa obra que provoçou controvérsias não só entre os Julgando que esse discurso feminino superficial e çonfu-
sócio-lingtiistas por sua abordagem inovadora como tam- so impede as mulheres de quebrarem seu status de inferio-
bém entre as feministas pelas conclusões a que chega, La- 'ridade social, Lakoff indica como caminho da igualdade a
koff afïrma que:
"'
l
aquisição, pelas mulheres, de formas "mais. fortes" de 9x-
/
pressão que, até hoje, perm€meser¿ùm domÍnio reservado dos
ø linguagem nos usa tanto quonto nós usamos a linguagem .I homens. Essa ultima afîrmação é vivamente contestad4 pela
'
e (..:\ nõtto escolha de lormøs de øcpressão é guiada pelos l I

maioria das pesquisadoras desse tema que, embora corico{:


pensamentos que querernos qcprelsar' da mesmaforrnø que
dando em correlacionar especificidade de linguagem e do-
t,l

a maneirø como sentímos as coßas no mundo real governa


minação sexual, recusam a noção de que o discurso mascu-
o møneira cotno nos expressgmos sobre essss coísas'r6 I
lino constitua a norma e ir padrão a que as mulheres deve-
dessa premissa, Lakoff se dedica a analisar até
A partir riam se curvar.
que ponto a maneira de usar a língua que se ensina às mu-
N. Henley explora uma pista de pesquisa paralela, de-
bruçando-se sobre as relações entre "poder, sexo e comu-
hrtès, assim como o modo de que a lingUagem corrente dis-
nicação não verbal". Essa autora examina os pequenos
, )'. põe parase referir a elas, exprimem e reforçam uma situa-
,,discriminação acontecimentos e interações da vida cotidiana aparentemente
èao ãe tingäfstica". "Alguns itens lexicais
desprovidos de significação maior a maneira, por exem-
lsigpificam uma coisa quando aplicados aos homens e ou- -
plo, como os homens e as mulheres ocupam o espaço' se
Jtrã quando aplicados às mulheres, e essa diferença refere-
olham nos olhos, se tocam, sorriem, tomam a iniciativa de
."". se aos diferentes papéis desempenhados pelos sexos na so- entabular conversa, de mudar de assunto ou interromper
(' ,' iciedade."l7 t o outro, atos "micropolíticos" que revelarn e ao mesmo tem'
,, Através de numerosos exemplos tirados do inglês falado f,1

po reforçam as estruturas de poder e as relações interpes-


nos Estados Unidos, Lakoff.conclui que existiria uma "lfn-
l. soais de dominação. 18
gua de mulheres", produzida pelo processo de socialização
.

As pesquisas conduzidas por Henley levam-na a afirmar


, . . è caracterizada por diferenças de registro lexical, de estru-
que, em situações mistas, os homens têm tendência a fala¡
' turu sintático-estillstica e fonêmica. Comparado com o dis- mais que as mulheres e a interrompê-las com muito mais
: curso masculino, o falar das mulheres comporta um uso mais
freqüência. Eles se permitem, também, olhá-las direto go$
'''
i'
,orr.nte de adjetivos, é mais polÍdo e cortês, privilegia as olhos e tocáJas e, de um modo geral, adotam uma postura
construções modais que exprimem uma trivialidade de con-
corporal mais descontraída. Como a recíproca não é ver-
teúdo assim como uma atitude incerta, hesitante e pouco dadeira as mulheres, muito pelo contrário, têm tendên-
I
,rgrrr" de si. Há igualmente, na linguagem das mulheres, - a
.lt 82 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA A ARMADILH/I DA IGUALDADB E3

., cia a desviar o olhar ou a baixar os olhos, param de falar rà educação e às carreiras masculinas está se dando conco-
i se lhes cortam a palavra e se submetem ao toque e ao sorri- mitantemente a uma preservação dos papéis femininos tra-

f
so masculinos cada um desses pequenos episódios da ' dicionais. Não se pode falar, portanto, em uniformização,
i" ,',
-,
¡convivência cotidiana torna-se gesto significativo e simbó- e isso talvez explique por que as mulheres hesitam, terg-
ll' /lico de uma reafirmação do stati¡s dominante dos homens. r versam, queixam-se, angustiam-se.

O código gestual, a mímica e a postura corporal conju- Essa integração através da apropriação da palavra mas-
gam-se ao código lingrilstico em uma interação em que es- culina coexiste com uma "tradição" de fala feminina; essa
tão em jogo não somente registros lingülsticos próprios a ' coexistência é vivida pelas mulheres como fonte de confu-
cada sexo como também a ielação de cada sexo com a lin- são e indefinição.
guagem e com a atividade verbal enquanto modo de expres- ,., rì
Na verdade, a pretensa uniformização progressiva dos
',,,;':..
são.19 _¡modos de vida masculino e feminino é incompleta e desi-
., Homens e mulheres adotam registros lingüísticos dif'eren- ì "'lgual. As mulheres penetram no mundo dos homens, mas
tes na medida em que se ligam a centros de interesse especí-
I
i it t' '
-tu ' esse movimento se faz sem contrapartida nem reciprocida-
,t ficos, e passam assim a dispor de competências lingülsticas ,,i)'' t .r
; de. Embora a sociedade aceite e, às vezes , até enjaque uma
.' ,diferentes. falar como um homem, a recíproca não éver-
' Essa interpenetração entre forma e conteúdo dcl discur- fi \ñt
; i
ei*:saiba
"); so reflete, no plano lingtiístico, a interação social nnais am- , . .,
l,., ( I Um homem que adote um modo de falar "feminino".,é
pla entre linguagem, pensamento e esferá de vida, Os ho- Vlapontado como portador de um comportamento desvian:'
mens dominam os registros técnicos, pollticos e intelectuais te. Esse duplo critério de julgamento reafirma a primazia
e têm o controle da palavra pública. As mulheres só domi- do discurso masculino como única nonna com validade geral
nam registros referentes a campos socialmente considera- e encerra as mulheres numa situação paradoxal
dos como secundários ou insignifîcantes. A fala feminina, As mulheres aprendem a falar de maneira adequada'a
competente no espaço privado, torna-se titubeante e inse- seu sexo sob pena de receber uma sanção como "masculi-
gura em situações nas quais a conotação pública é predo- nizadas". Mas, para se afirmarem como seres autônomos
minante. e independentes no espaço público, elas precisam introje-
Os diversos estudos sociolingülsticos citados vinculam a tar a norma do discurso masculino. Reedita-se a dupla meh-
demarcação dos papéis sociais segundo o sexo à especifici- sagem: falar bem a língua dos homens é pôr em risco seu
dade de regiltros lingüísticos. Todos eles tendem a concluir reconhecimento enquanto mulher. Falá-la mal é expor-se
que uma mudança desses papéis sociais atenua¡ia a diferença I- ao rídiculo profissional. , . ,!i

de linguagem entre homens e mulheres. A uniformização A fala sofrida, assim como a relação equívoca com o sa-
de seus modos de vida, com as mulheres acedendo às mes- f
ber, são manifestações de um desejo mal formulado, im-
'mas carreiras e à mesma formação que os homens, apaga- 'preciso, de não renunciar totalmente aos traços da cultura
- .. i ,ria as diferenças lingüísticas. Os modos de dizer femininos feminina que continua viva e atuante na vida das mu-
'desapareceriam, um dos. sexos se tornaria o outro, o uni-
,lheres
-ainda que essa presença represente um complica-;
|, versal absorveria o particular, o único sufocando o diferente.
-, novas
dor para experiências, vivências e desafios que elag:
Essa conclusão, entretanto, me parece equivocada na me- mesmas desejam e reivindicam.
,i , ,,dida em que não leva em conta que o acesso das mulheres Na verdade, o domínio da palavra e do saber são pré-,
\
,l
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA A ARMADILHA DA ICUALDADE E'
84

requisitos fundamentais para uma travessia bem-sucedida ¿. cada sexo em relação aos papéis masculino e feminino, COIISJ
do espaço público. Nas mulheres, esse êxito é tão desejado . ,i ',,tataque uma das causas determinantes da falta de sucesso
quanto temído; tão procurado quando sabotado; é, ao mes- ,;profissional das mulheres decorre do receio delas de gue
mo tempo, imagem sedutora e fantasma obscuro.
Ì .'" o êxito comprometa sua feminilidade e as ponha em pe-
L , ,. .: ¡igg.2o
O medo do sucesso, travestido em medo do fracasso, é t''t'
o terceiro componente desse desempenho problemático das ' Feminilidade e êxito aparecem como dois pólos deseja-
-d.os
mulheres no mundo dos homens' Um jogo de sim e não se ,1
- - ''.¿' mas mutuamente excludentes. É a constatação dos ris-
instala: desejos de mudança e anbíções de vida pública in-
t/
tl
,!
..''"' cos do êxito que leva as mulheres seja a evitarem os papéis
teragem com o medo do fracasso' com a incapacidade de i(' nos quais o êxito é possível, seje a fazerem o necessário Pâ:
, assumir, o desafio de Seus próprios desejos'
ra que o êxito não se materialize, seja a se concentrarem
,t" em "carreiras feminitlas", nas quais o sucesso não causa
, As mulheres querem muda¡ de vida mas temem as con-
,' seqtiências da mudança. Têm medo de questionar sua auto- -, -'' ,ot mesmos problemas que quando é alcançado em t'canei-
,, imägem tradicional sem a cetteza de encontrar outra mais
' ras masculinas".
" ' O medo do sucesso faz-se tiaço permanente da persona-
.J satisfatória por meio de sua inserção no mundo do traba-
de não estarem mais em condições de de- lidade feminina. Se a identidade feminina depende funda-
/u Jlho. Têm medopapel
' mentalmenie da aprovação dos homens e se os homens se
de alicerce emotivo e afetivo da famí-
i,3 sempenhar seu sentem ameaçados em sua masculipidade por mulheres côm-
J,n' lia sèm acertezade encontrar compensações em suas ativi'
petentes, uma mulher competentp corre o risco de não ser
dades profissionais.
escolhida e amada.
./i ì
Insatisfação, anbição, desejos de independência e de au-
tonomia são sentimentos que, nAS mulheres, rnuitas vezes Judith Bardwick introdgz uma outra dimensão explica-
são acompanhados pelo fantasma da culpa. E essa culpa tiva: a angústia que as mulheres sentem vem do fato de que
que o fracasso vem sancionar. sendo a culpa um sentimen- seu comportamento aparece, a seus próprios olhos, cg{no
desviante.
to que se nutre das provas de que se está errada, a melhor
dessas provas é o fracasso. Lugar de transgressão, o espa-
O desvio consiste no adoção de øuto-imagens' condutas e
, Ço público torna-se também lugar de expíação. atitudes que destoam das prescrições de comportamento dj:
. (ì f Ter sucesso, para as mulheres, ébem mais arriscado que ' tadøs peløs normas de sexo e pelos estereótipos de gêryero.
\ þacassar. Ter sucesso não está previsto e introduz ao des- (.) A medo que as mulher-es têm do sucesso pode nãlo ser
ãonhecido. Negociar o sucesso profissional com o equilí- um traço psicológico, mas sim um receio de que uma incor-
brio familiar e afetivo parece a muitas mulheres configurar poração excessiva dos estereótipos masculinos as empurre' :

uma ameaça de desencontro que elas preferem evitar. paia comportømentos desviantes, expondo-as a todo ttpo
)

Já ern 1949 Margaret Mead lançava seu grito de alar- ; de sanção soçial.zl

me: "quanto mais bem-sucedido é um homem em seu tra-


batho, mais eertezatêm todos de que ele será um bom ma- Redigida no fim dos anos 70, aconclusão da autora ie-
rido; quanto mais bem-sucedida for uma mulher, mais flete o otimismo da época: aentradamaciça e crescente das
receia-se que ela talvez não seja uma esposa bem-sucedi- mulheres no espaço público seria suficiente para terminar
da". Vinte anos mais tarde, Martina Horner, baseando-se com qualqrier idéia de desvio e de culpa - :

em estudos referentes às representações e expeCtativas de


86 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA A ARM.ADILHA DA ICUALDADE 87

a,
',,''Quando deixømos de consíderar o medo do sucesso como l
ta a uma definição de feminilidade baseáda nas noções de
traço psicológico constítutivo dø personalídøde femininø pa- I sacrifício de si mesma, dedicação aos outros, dependência
Íi
rø entendê-lo como reação defensíva øo que é percebido co- e vulnerabilidade.
mo comportamento desyiqnte, deslocamos a explicøção de
umo varíável interna, ãssumídø cbmo sendo permanente e As mulheres n(io cortejam o fracasso: elas evitam o sucesso
l diflcìl de mudør, pøra a realídode e¿cterha, que é sempre maß (...). Para a mulher tomada enquanto indivíduo, evitar o,
fiícil de ser alterada.n êxito sertí menos visivelmente destruidor que procurar o fra- "
'/ ', casso, mas não podemos subestimar as conseqüências des-
No começo dos anos 80, una obra sem pretensões cien- se fenômeno sobre as mulheres em geral. A tendênciø'que
tíficas obteve uma escuta impressionante junto ao priblico temos de nos auto-impor limttes, de fazer coísas que ftcøm'
leitor feminino dos países industrializados. Descrevendo em aquém de nossas capacidades reais de preferêncía, de coir'
estilo jornalístico o que pesquisas asadêmicas haviam cons- rer o rísco de não sermos mais amadas, decorre do que cha'
tatado em relação ao medo do sucæso, Colette Dowling con- .' . meí "confusão dos gêneros" essa nova incerteza sobre nossø
identidade de mulheres. Não fazer nada é a melhor garøn''
firma que a própria idéia de sucesso se reveste de significa- lígada a 4ogas
ção diferente para cada um dos sexos. .,' . tia de não ter que experimentar a øngtÍstÍa que
,onquistas e reolizações, com o risco lhes é inerente,
',,.,,"'' de nos sentirmos não femininas'!.2a
As mulheres não parecem procurqr o êxito como føzem os
homew. Elas se protegem dele, Sentem tanta ansiedade
quando as coisas vão bem quonto quando ø reieição ou o '.-,\,')' um comportamento de fuga e deiesa diante dos riscos de
fracasso parecem imínentes. Tem-se a impressão de que søir- ,n \r
-f>,.. ,:' '1", fragmentação da identidade feminina. E, no entanto, esse
se betn tomar-se eficíente num dado campo, ter êrtto - i
-
assustø um ruÍmero incrível de mulheres que possaem as qua-
',ì' \
,', receio - ou seu avesso, a adesão ao fracasso como profe-
{.
cia que se autoconfirma não fornece mais às mulheres
tidades requerídøs pøra produzir algo de vølor no decorrer
da vída.ts
Êt*
um álibi perfeito.
-
As estratégias de evitamento e autodesqualificação coa-
Segundo Dowling, quanto mais talentosas são as mulhe- bitam no psiquismo feminino com sentimentos de forçê igual
res, mais elas se angustiam frente ao risco do'sucesso. Para e contraria, como o desejo de mudança e a necessidade de
os homens, o êxito pode reforçar sua auto-imagem enquanto .afirmaçío de si mesma. Os pólos dessa interação contradi-
indivíduo aritônomo, independente, agressivo e empreen- ,i '.tória não se anulam um ao outro num equilíbrio fictício,:
dedor. ''l ;mas coexisiem, de maneira instável e cambiante, ao longo
Já,para as mulheres, o êxíto é fonte de tensão e incerte-
^'1
tr "'.,de toda a travessia dos territórios do masculino, provocan-
'(-clo
. zà. As mulheres bem-sucedidas mergulham num mundo de .r'
', ora confiança e euforia, ora ansiedade e depressã!!
, :/ A atitude das mulheres em relação ao exito, como em
,iil, ,, regras desconhecidas, o que agrava as dificuldades de or-
" l.I'' ,ì gailzação da vida cotidiana e, principalmente, traz o risco . ' relação à fala pública e ao saber, não é marcada nem pela
,,, '' 1'!?
de comprometer aquilo que é, aos seus olhos, opem mais ' allrmaçao nem pela negação pura e simples, mas pehþ-
/¡'1\ {'
),. ' ,,i\preciosslisuas relações afetivas. bigüidade.ú .

.i" ' A ambição pessoal, o impulso criador, o desejo de ter -ÕTeminino não pode ser o lugar de uma síntese impossí'
,l''' \. êxito no æpaçó prtblico são percebidos como ameaça dire- vel. Sua reconstrução atravessa o reconhecimento € â €le:
\L't
88 ROSISKA DARCY DB OLIVEIR.A A ARMADILHA DA ICUALDADE 89

,: ,balação de um impasse. Sair desse impasse implica, antes a exteriorizar a angústia que cada uma carrega como uma
'. '-
, , de mais nada, para as mulheres, admitir que estão jogando culpa coletiva, depositando-a fora de si, nos ombros da so-
."\.1' ,i I consigo mesmas um jogo de cârtas marcadas. Quem ganha ciedade. O movimento feminista tem hoje um passado de
i. perde; quem perde ganha. Face aos paradoxos, às escolhas um século, mas, longe de estar esgotado, entra na riltima
'\ impossíveis, a resposta das mulheres não poderia ter sido, . / década deste mitênio com um futuro assegurado. O futuro
I - do movimento é angustiar a sociedade, deparando-a com
em um primeiro momento, senão a ambigtiidade. Transfor- I
L ,,',

mar o estatuto social das mulheres não pode ser uma mu- 'i ;.,,'', os problemas que, até agora, as mulheres tentaram resol-
dança que se opere só nelas e graç¿ùs a elas, pela acumula- ,,- vêr sozinhas.
ção de funções sociais e, em.conseqüência, de registros psí-
" ' Transformar a neurose das mulheres em neurose social
quicos. A angústia que habita as mulheres coincide, a meu . ié recurso terapêutico de que elas terão de lançar mão.
r.' ( -i -
o
ver, com o princípio de uma reaçio lúcida à situação de am- ì r.'l '
; :bieüidade face a um projeto imposslvel porque mal formu- . Ì.¡ tr'

., "; lado. Coincide com a entrada na ambivalência. Passar da NOTAS


r- '
-,
.l; ambigüidade à ambivalência signifîca, Pilâ as mulheræ, ver
1. "Féminiser le monde" , Documents IDAC n? 10, Genebra, Institut
/mais claro, o que não significa ver mais simples ou mais
,i , . \alegre.25
d'Action Culturelle, 1975.
: ' O movimento de mulheres é hoje o espelho onde se re-
2. Idem.
3, Idem.
flete a ambigüidade feminina, benfazejo espelho que, ten- 4. Idem.
do o papel passivo de receber a imagem, tem o papel ativo 5. Idem.
de devolvê-la. Esse espelho deve permitir à mulher que ne- 6. Serge Moscovici, Pstchologie des minorités øctives, Paris, PUF, 1979,
le se contempla reconhecer seu rosto fragmentado, que se p. 11.
7. Idem, p. L92.
faz e se refae desses mesmos fragme'lrtos, insolitamente reen-
8. Idem, pp. 192/193.
contrados, e que tem, nesse reencontro, seu enigma e desa- 9. Foi Maria de Lourdes Pintasilgo quem primeiro utilizou, em confe-
fio. Só esse espelho poderá tornar a ambigüidade, inscrita rência pronunciada no Recontres Internøtionales de Genéve del985,
nos fatos e transcrita no psiquismo feminino, vislvel àque- a expressão "igualdade inédita e subversiva" para caracterizar o re-
la que a vive, abrindo assim caminho para sua transforma- conhecimento da diferença sem hieraiquia como pedra de toque da
identifade feminina.
ção em ambivalência assumida, consciência da contradição,
10. J. Laplanche e J.-8. Pontalis, Vocabulaire de Ia psychanalyse, Pa'
do sim e do não, das tensões que decorrem desse sim e des- ris, PUF, 1981, p. 21.
se não, da paralisia que se instala entre eles. It. J. Bleger, Symbiose et ømbiguité, Paris, PUF' 1981, p.208.
A imagem refletida é a de quem tenta fazer coexistirem 12. Idem, p.2ll.
em si desejos que se anulam e se superpõem sem integração t3. Ver Gregory Bateson, Vers une ecologìe de I'esprit, Paris, Seuil, 1980'
alguém que se desloca'de um desejo a outro, de tomo II, pp.9-14.
possível
-
uma existência a outra, de uma personalidade a outra, em
14. J. Bleger, op. cit., p.223.
^ 15. Yvonne Verdier, Façons de dire, føçons de faire, Paris, Gallimard,
um esforço desesperado de ser tudo ao mesmo tempo. 1979.
Espelho da ambigüidade, o movimento feminista está 16. Robin Lakoff, Language and ll/oman's Place, Nova York, Harper
atravessando a ambivalên€ta, conditio sine qua non pata and Row, 1975, p. 3.
reBensar o conceito de þaldade. O.que equivale, a meu ver' 17. Idem, p. 4.
90 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

18. N. Henley, "Power, Sex and Nonverbal Communication", Berke-


ley Journøl of Sociology, 19734,18, pp. 1-26.
19. Ver também Marina Yaguyello, Les mots et leslemmes, Paris, Pa-
yot, 1978, e Carol Gilliyan, Uma voz dìferenfe, Rio de Janeiro, Ro-
sa dos Tempos, 1990.
20. M. Horner, "Fail: Bright'\Vomen", Psychology Today, nov. 1969'
3 (6) e
.,Towards an unders¡qnding of achievement-related conflicts ilI
in women", Journal of Socíal Issues, 1972, 28, pp. 157-175.
21. Judith Ba¡dwick, Ílomen ín Trattsítíon, The Harvester Press, Brigh-
ton, 1980, pp.5l/52. A EMERCÊTVCU DO FEMININO
22. Idem, p. 52.
23, C, Dowling, Le complece de Cendrillon, Paris, Seuil, 1982, p,242'
24. Idem, p,209.
25. Atemática da a¡nbigüidade foi por mim mais largamente desenvol-
vtdaemLeÍéminin ambígu, Ge,lrebra, Editions du Concept Moder-
ne, 1989.
Nas soluções que encontrar päru u convivência entre os
sexos, a sociedadã eshrá desenhado seu próprio perfîl e re-
definindo o destino do feminino e do masculino. Essa in-
.l
cógnita contém uma dose suficiente de angústia para que
t\, q ninguém que pense esse desenho de futuro deixe de reco-
modelam.
,

nheier a g¡avidade dos gestos que o .

.i Há quem pense e descreva o Feminismo como uma mo-


da dos anos.70, associada ora a mulheres inadaptadas, ôra
às exigências de uma certa modernidade. De todo modo,
ele seria um movimento ultrapassado, com o crédito de ter
deixado algumas marcas que o tempo apagar{. Essa per-
cepção contingente do que aconteceu às mulheres ao longo
do século XX deve-se a um certo gosto jornalístico que im-
pregnorias ciências sociais sob a forma de sedução pelo im-
pacto imediato, por aquilo que, em dado momento, é pe-
, ,.t dra de escândalo.
i tl,', , Mais difícil é buscar, em um movimento social, a histó-
' ,' arcaica de sua gestação, e mais penoso ainda tentar
,
". ,. ' fria
pecifrá-lo como sintoma, como febre que prenuncia uma
' alteração orgânica profunda. Ao longo dos últimos trinta
t'j É'anos vivemos o momento febril da convivência entre os se-
: "''lt'i'*os. Mas o processo de transformação orgânica dessa con-
, l.
''\0"
', vivência se prolongará no futuro, com caracterÍsticas hoje
| '
11,
,,
' .,, ;insuspeitadas.
' : ., ,''
9lt ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
n r,rr¿BncÊnctA Do rEM¡NINO 95

O eterno feminino dos poetas, que envolvia as mulheres sombra que esse entendimento terá que iluminar. Mas tan-
iio véu da a-historicidade, dissipou-se ao contato de novos to mais maduro estará quanto melhor resista a formular uma
tenlpos; o que surgiu, então, foi indefinição e efervescên- receita de mulher e tolere a exper!ência da indefinição' de l
{'
uma desordem que, como já foi dito, é paradoxalmente or-
.,í
cia. Os anos 70 trouxeram um feminino ávido de igualda-
ile, que buscava escapar de seus limites dissolvendo-se no garttzadol:a Conviver com a desordem é certamente âogtls: ,, \,Ù
riniversal. Esse feminino, no entanto, esbarrou na confu- tiante; talvez o mal-estar que ela provoca seja respons{¡¿el
são entre universal e masculino. Uma noção unilateral de pela tentação de recriar modelos, maneira indireta de.pim-
igualdade, em que o masculino travestido em universal é plificar uma realidade altamente complexa.
medida e ideal, confronta as mulheres ao paradoxo de ser, O recurso da dialética, sempre àmão em situações d.eçoa-
ao mesmo tempo, elas mesmas e o Outro. , flito, tenta levar para o campo das sínteses rrnifîcadoras
a gera- ' periências irredutivelmente diferentes. Dentre as possíve.is
Foi preciso que toda uma geração de mulherès - ,
\r
reencenações simptificadoras da relação entre os sexosr=o ,
ção exemplar que cursou escolas, sentou-se nas universida- proscênio.
I

des, dirigiu empresas e elegeu-se para os parlamentos ava-


IL')' mito do andrógino invade o .' X
liasse criticamente essa experiência de estar no mundo dos
- . !1 ' nüzaUãñ-Effifer, em uma obra significativamente þ-
homens para que um primeiro balanço de lucros e perdas
l-g titulada Um é o OutroL, apega-se a ele para prever o apa-
pudesse ser feito. .! gamento das diferenças entre homens e mulheres pela aprp;
Lá onde uma social-democracia avançada ofereceu mais ximação da experiência de ambos os sexos e para anunciar,
o advento ou a volta do andrógino' essa criatura dual, '
rapidamente às mulheres o lpoio instítucional necessário - -
feita de masculino e de feminino. Segundo a autora, os s"i' o
para a efetivação dessas conquistas, lá, nos países nórdi-
cos, justanaente, surgiram os primeiros sinais de crise in"
I
nais precufsores dessa androginia coletiva seriam verificá- ¡ ..,.
terna no movimento feminista, as primeiras manifestações
.\, veis iobretudo na experiência das mulheres, que estariam i
se adaptando, sem maiores problemas, a uma multþlicidade
de uma nova insatisfação, os primeiros desvios indicado-
res de um novo processo de complexificação. de papéis e registros .

Se a exigência de igualdade com os homens foi, até os


Segurøs de sua feminilidade, as mulheres utilizøm e ma': .
anos 70, uma transgressão, um desafio à ordem estabeleci-
niÍesiam sua virilídade sem reticências. Alternando, à von', .,
da que exigiu coragem e firmeza de toda uma geração, é ñde, papéis masculinos e femininos de acordo com os pei
.'
essa mesma geração
-a que colheu os frutos e ao mesmo ríodos davida ou dos momentos do diø, elas não têm o sen: "'
tempo pagou o preço dessa igualdade Qüe, hoje, inicia ''
uma.nova transgressão. Transgrediu-se a -
ordem que atri-
tirnento de que sua bissexualídade seiø uma ømeaça Parø"
sua ídentidode feminina: øo contlório, sentem'a alteridadti "i
como a condiião de umø existêncig møis ríca e Ínenos de:i
rt
buía ao masculino o direito de definir o feminino como seu
avesso; transgride-se, agora, a ordem que o autorizava a terminadø previømente. No coniurìto, as mulheres pørece4i' '
defini-lo como sua imitação.. A' transgressão de agora' em satisfeitas com sr¿a n'ova condição.e aceítam a idéia de se-ti,:-
sendo um desûrentido dessa ordem, tem a extrema origina- i
rem "gêmeas" dos homens.z
I
lidade de se recusâr a ser uma contra-ordem. ',.,, \), i,

O movimento de mulheres chega à maturidade justamente ) Citando a interpretação de Platão ao mito do andrógi-
com o entendimento da amUigtü¿a¿e que aflige as mulhe-
','"1'- no,'símbolo da uoi¿u¿é perdida, Badinter aposta em u¡ira
res em sua travessia dos territórios do masculino, zona det possível androginia anunciada para o futuro. Homens e mu-
e rvencÊ¡¡clA Do FEMININo n
. t ,,t' 96 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
.. i

dar a dramaticidade do momento que estão vivendo, recor-


, '\^ , "'lheres estariam caminhando para o apagamento das dife- rem a cartilhas teóricas que obscurecem mais que iluminart
'
t. lrenças graças a ¡ma participação iâvislvel e cada vez mais
,,rL as zonas de sombra em que se movimentam. .'
' r ;

i
J,J''' ativa dás mulheres no espaço priblico e a uma tendência, i ,1t,;' ¡' '*l
- Os sociólogos temem os psicanalistas e vice-versa' A4-
i'' ; ainda embrionária mas passível de desenvolver-se, de par-;' '
i''\ bos temem màis ainda os biólogos. Daí que corpo, psiquis-.
, ' , ',' ffi;pelos homens, das responsabilidader iuÃitiãt.s oj I

ino e lugar social nunca se intepretam senão de maneira çx-


'", .,
', t que os aproximaria da experiência feminina ctudentá cada disciþlina reivindicando para si, para o calnpo
i' . Ao fazer essas observaçõeSr Badinter afÏrma sua confiança I
tão restrito de seu instrumental teórico, a explicação desge
na evolução do quadro légat e em sua capacidade de modê- l:
fenômeno de complexidade infinita que é um ser humano
-t. I

^ lar a sociedade, para que dela ernerjam homens e mulheres '


às voltas com a vida e com o seu temPo
I

andróginos. Endossa, as$im' implicitamente, a noção de que


t- O desafio de compreender o que estão vivendo obriga as
,1as diferenças entre homens e mulheres residiriam nos pa-
mulheres a afastarem-se de quadros conceituais disciplína:
I
I
' t-
'péis sociais; ao mesmo tempo exprime sua convicção de que r ÍeS e força-as a articular, sem preconceitos, tOdoS OS inS-
o apagamento dessas diferenças significaria um estágio su- '-,,1l1
i

trumentos teó¡icos que lhes permitam ler uma realidade que


perior da convivência humana. i é feita de corpo, deiejos e papéis sociais. A vida, multidis-
,'c
A meu ver, a percepção dos papéis sociais como lugar I

I
ciplinar, transborda das fronteiras teóricas'
. em que se tece a diferença é apepas parcialmente vefdadei- i
Nesse esforço de releitura de um fenômeno complexo
,.;ra. As mulheres que hoje exercem papéis masculinos nem i
penso que, contrariamente ao que Badinter parece anun-

por isso são homens. Guardam a vivência de um corpo fe- I

I ði* r desejar, o que vem se desenhando como tendência


I
minino que as expõe a experiências existenciais que não são I

I
na organização das sociedades contemporâneas está bem
as do corpo masculino, e essÍts experiências não são menos I
I
longe de ser uma ocupação crescente dos espaços privados
constitutivas nem fundadoras que as experiências sociais. '
I

I
pelõs homens, recíproca ecomplementar à-ocupaçãoiá ex-
"I
.As mulheres guardam um psiquismo marcado pelo Fe- I

I
I irnru dos espaços públicos pelas mulheres. Se é verdade que
minino que a psicanálise tem tent¿do decifrar, descrevendo-o I

se nota, hoje, sobretudo emcasais jovens, uma maior


p'r-
ora comg "continente negrg", ngcaso da psicanálise freu-
I
i, ! ', que
I' ; tilha no cuidado com os filhos, é também verdade a
diana, ora como ausência, como fazem seus prolongamen- i

,r
\ organização da sociedade como um todo não caminha no
tos lacanianos' ora como palavra que se busca ou que bus-
I

l-. \ '' sentido de adotar políticas gue permitam aos homens um


ca fazer-se entender. Fala iicompreensível para o aparelho
I

maior tempo dedicado à vidâ privada, ao mesmo tempg em


receptor de uma teoria construlda in absentia, "esse sexo
i
I (- , que sr ur.ntua a pressão no sentido de uma ocupação cada
", ''
vez maior do tempo das mulheres no espaço público' i
que não é", decretado inexistente, é acolhido com deslum- i",' -

bramento pela escuta atenta de Luce lriSpray.3 ,,, o mercado de trabalho está organizado em torno do tem-
Corpo, psiquismo e lugar social sujeitos a interações po integral. os empregos de tempo parcial continuam sen-.
', mútuas que se retroalimentam -
vão processando as trans-
- do não somente os que recebem pior remuneração como
\, '.' .
.'' ' fot*ações do feminino no seiô do tempo, "esse
grande es-
também aqueles que não permitem imaginar maiores desen-
ì . ìcultor". volvirnentos profissionais. Afora os artistas' que organizart
i-.
) ' Mur, para as próprias mulheres, é difícil pensar o Femi- livremente seu tempo, ou as profissões tradiçionalmente fe-
nino assim. Formadas nas escol4s de pensamento dos ho- mininas como o magistério primário, que, justamente
mens, quando tentam ler sua complexa realidade, desven- -
98 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA ¿ EuencÊ¡¡ctA Do FEMININo 99

já imaginada para só ocu- nhos pelos homens era evidente. Buscavam também o acesso
, , porque feminino, é uma carreira
.n" ' par meio tempo
'rno -, quase tudo o que resta no mercado co- a outros horizontes, a outras experiências, buscavam con-
vivência fora da família, buscavam saber, buscavam podér ,1
, ,' oportunidade de emprego demanda um investimento a t!
'.

nas decisões da sociedade. Buscavam, enfim, o direito afazer


( tempo integral. Ora, quando homens e mulheres entram,
e a rever escolhas sexuais, buscavam o direito ao
arnbos, na lógica do tempo integral, o que está em jogo é
,\t

sobre seus corpos. il: ..


) o ¡isco de um progressivo desaparecimento da vida privada.
Essa irrupção das mulheres no espaço público estánar'alz
O que Badinter imaginava como andrógino eram homens
de uma problematização da vida privada. Num primeiro mo-
i e mulheres capa;,es, ambos, de prover seu sustento e ocupar-
mento, as mulheres tentaram pura e simplesmente fazer de
se das atividades gratuitas da vida. O que estamos vivendo
conta que o problema não existia. Procuraram compatibi-
e que ameaça afirmar-se como norma é o desaparecimento
lizar, no espaço de um só dia, o que antes eram duas vidas.
da gratuidade que caraúet'tz.aa esfera do privado e sua subs-
tituição por uma rede institucional que se responsabilizatia
-
- Realizavam em casa as ocupações essenciais à preservação
pelos aspectos da vida familiar de que, até hoje, ocupavam- ., .''', du família e na rua os trabalhos de interesse da sociedade.
,i'i,,1'",' Cansadas, divielidas, insatisfeitas, acabaram se revoltando
se as mulheres. Instituições, empresas e Estado absorveriam ' ,t.

e tratariam, em termos profÏssionais, as relações humanas å1""


,i"
ii contra o que chamavam "dupla jornada". Passaram, en-
rnais íntirnas, qt¡e constituem a privacidade dos indivlduos. ;tão, a denunciar a invisibilidade que pesava sobre o traba-
Até vinte anos atrás, entendía¡nos por vida privada o que Ittro feminino no espaço
l
privado.'. :

se passava num cená¡io, num espaço físico bem delimita-


, Nessa denúncia, no entanto, as mulheres subscreveram
cio, a casa, no interior da qual uma pessoa, a mulher' se o quadro de referência dos homens. Na medida em que o
ocupava de fazer viver uma famllia. Essa ocupação incluía
{, trabalho se definia como uma atividade pública, solicitada
e valorizada por outros e por eles remunerada, as feminis-
a criação dos filhos e, em muitos casos, a sobrevivência dos
velhos. A mulher, por sua vez, eta mantida com os recur- tas se empenharam em fazet a sociedade reconhecer como
sos provenientes de um salário que outra pessoa o ho- trabalho as tarefas repetidas a cada dia cuja finalidade é
rnem
-
obtinha em troca de seu trabalho em um espaço a manutenção da própria família. P¡ocuravam, assim, atri-
-
exterior à casa, espaço onde os gestos eram valorizados e buir valor a essas tarefas; ora, o que confere valor a um.
rernunerados por critérios econômicos. trabalho é a atribuição, pela sociedade, de um salfuio que
O cotidiano das mulheres era marcado por tarefas gra- _ o remunsre; por isso elas cofneçaram a falar em.:lgg¡¡g
tuitas que interessavam à família. O cotidiano dos homens doméstico".
/ -.."'ñnuaram i

que interessava à sociedade. no vocabulário feminista expressões como',re-


\i ;por um trabalho remunerado
rEssa produção da força de trabalho" para qualificar tudo o que
fronteira demarcava claramente um universo privado
se referisse à criação dos filhos. No esforço de conferir res-
onde se movimentavam as mulheres e um universo público
onde se movimentavam os.homens. peitabilidade social a seu cotidiano doméstico, as próprias,
O mundo masculino e o mundo feminino eram diferen' mulheres procuraran encaixar sua vida de cada dia em con-
ri
tes e desiguais. O impulso que levou as mulheres a reivindi- fceitos que lhe eram completamente estranhos. Fazia-se apelo
r.l

l
car seu acesso ao mundo dos home¡rs foi de várias índoles. ,.t, t þo econômico para legitirnar o afetivo.
Certamente buscavarn a independência econômica, postc¡
L A reivindicação de um salário doméstico que viesse re-
que a submissão implícita na dependência dos recursos ga- munerar o trabalho "invisível" das mulheres em casa se fun-
\
n ¡MencÊ¡¡cra Do F'EMININo t0l
r00 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

qual elas de- dobradas na esfera privada leva a situações freqüentemente


dava em dois argumentos. "Esse trabalho ao absúrdas, como as descritas por AndréGorz: '1A eqiüdade
difere de
dicam ¿t qt"u" a oito horas por dia' em média' e a lógica econômica desejariam que tudo o que as pessoas
quaseexclu-
todos o, *iior. por um tado, é obrigatória e fazem fosse avaliado segundo s'eu valor de troca de merca-
efetgafo gra
sivamente ies.tuado às mulheres; por outro' é
tuitamente(...)Nassociedadesmodernas,nãoháoutro
. ,do: a noite que a mãe passa à cabeceira do filho doente, pe-
,,, '.
'la tarifa de enfermeira noturna; o bolo de aniversário da avó,
exemplode.umatalmassadetrabalhoefetuadosemsa- ' pelo preço que custaria no doceiro; as relações sexuais, pelo
lário".4 ' ipreço que cada um dos parceiros paçarianum Eros Center;
Duaseconomistasfrancesasempregaram-seumanaca. \a maternidade ao preço de barriga de aluguel, €tc."5
de um
sa da outra Çomo diaristas e realiza¡am' em troca Economistas e sociólogos tendem a apreender a funcio-
,ãlirio, o qur faziam de graça em suas próprias casas. com nalidade das atividades individuais e não o sentido que elas
domés-
isso dernonstraram o valór de mercado do trabalho têm para os indivíduos. É verdade que caso "se coloque o
tico,realidadelargamenteconhecidanospaísesdoTercei- sistema como sujeito e os sujeitos vivos e pensantes como
ro tutur¿o, onde *ia* da casa é responsabilidade da "em- instrumentos de que o sistema se serve, tudo aparece como
pregada doméstica". útil ao sistema, portanto como trabalho. Entretanto, se co-
Essaabordagemfezcomqueasdiscussõessobreosalá. locamos o indivíduo como sujeito, capaz de atividade sem
riodomésticoærminassemquasesempredemaneirame- objeto de mercado que se constitua num cálculo contabilí-
.,lancólica.Quandosetratavadeimaginafasformasdeim. zável, tal atividade ganha outro caráter, isto é, a própria
"i, olementaçãà desse salário,
vía¡nos no horizonte a imagem atividade é o seu objetivo primário, este não sendo seu va-
;;;il; d, u*u dona-de-casa rransformada em funcioná- lor de troca".6
,tiupriulica,prestandocontasdaqualidadedevidadesua As mães não aliment¿rm seus filhos para reproduzir a for-
' , i i família. As 1õntes do economicismo de pouco serviam quan-
ça de trabalho (ainda que, ao alimentáJos, acabem por
r ,' .' ãã-ã ou. se buscava era olhar de perto a vida humana.
.
--p;;; reproduzi-la). Dificilmente se imagina uma greve nesse ter'
, . u pouro as mulheres fora¡n se dando conta
de que
não fosse t¿nto saber quem se ocupa da
reno para revindicar melhores condições de trabalho. Con-
talve, tudo, se a preocupação de valorizar o trabalho doméstico
i vida privãda e sim em que consiste essa dimensão existen-
"-q"ärtáo
é tão grande entre sociólogos e economistas ligados ao mo-
quais suas chan-
ciat, quJ sua importânãia e seu sentido, vimento-das mulheres, isso se deve ao fato de que, na so-
ces de sobreviência. ciedade de mercado, o reconhecimento de uma atividade
em torno
De fato, a esfera da vida Privada se estrutura qualquer passa pelo reconhecimento público de seu valor
escritos de aju-
de relações afetivas, obedece a contratos não e pela fixação de um preço a ela atribuída.
da mrltua, não remunerada a não.ser Pela reciprocidade' - Gigantesco mal-entendido esse que levou as mulheres a
a um nu-
Os termos desse contrato dizem resPeito apenas tentar valorizu seu mundo, sua vida, pelo salário, ou seja,
mero limitado de Pessoas que se escolheram Para Partilhar ,'i, recorrendo äo critério de valor vigente no mundo dos ho-
cotidiano e um díálogo intersubjetivo. A esfera Privada ; r¡¡ì mens como único possível. Melhor fariam se procurassem
é, portanto, acima de tudo, o lugar das
interações espontâ- ' lilr
I
,t, J'- convencer os homens da importância existencial, para ho-
revestem-se de um
neas; as atividades que ali se desdobram
i
mens e mulheres, da vida privada, não para que se lhes
caráter diferente do das denominadas "trabalho"' ,,', guem, mas para que não se lhes negue valor social.
, ,.A atribuição de um valor de mercado a atividades des-
.. f$\ f
,ìl lÔ" \, ''¡677 4 + c
A EMERGÊNCIA DO FEMININO t03
lOZ ROSISKA DARCY DÉ OLIVEIR.{

Ao submeterem a gratuidade do universo afetivo e fami- a' '"t


ensaios teóricos e nas plataformas:políticas ou seia' tan-
".'" -
'to no plano do Saber quanto no do Poder os aspectos
liar à lógica de mercado, as mulheres tentavam fazet reco- -
nhecer pelos homens, com a linguagem do seu mundo, que lmais ricos da feminilidade. São esses aspectos que, agota'
,o {ìue eias fazem e vivem tem valor. Talvez tenha chegado '"*.rgr* da sombra e do silêncio, ganhando visibilidade
'o quando as mulheres não recorrem mais a analogias para'se
tempo de inverter a lógica desse raciocínio e dizer à so-
,, ciedade a riqueza do universo feminino,
até agora oculta fàzerem ouvir e compreendet', e começam a articular, pèla
l;' poreu€ gratuita, mas também porque não dita, não reco- ,' primeiravez, um discurso verdadeiramente autônomo. Mu-
,, lnhecida pelas próprias mulheres. Talvez tenha chegado o ,l clam, então, o quadro de referência e os conceitos. Movendo-
'.rliorrientõ ¿e ¿ãsisiir de transformar a vida privada em em- 4 jse em um universo de valores, as mulheres ousam falar em
' '- prego e assumiJa como um bem tão precioso que não se 't''
' valores femininos, em cultura feminina, própria e diferen-
þõe à venda, que não tem preço no mercado. te, fundamento de uma nova proposta de paridade/igual:.
I Mas se esse bem é precioso, não há por que pertencer so- dade com os homens.
mente à¡s mulheres. Oferecer aos homens a possibilidade des- Como identificar, nomear esses valores, tirando-os da pie-
sa gratuidade que moldou o estar no mundo das mulheres guice e do lugâr-comum, para colocá-los em seu estatuto
sigãificaria, em si, uma mudança considerável nas reivin- de força constitutiva e atuante no movimento das socie-'
'. diiações do feminismo que, em lugar de lutar apenas por dades?
. mudanças no estatuto social das mulheres, proporia mudan- A linguagem é pobre quando confrontada ao desafio de
ças civilizatórias. exprimir novidades e dar nome a realidades emergentes.
Pelo viés das relações entre homem e mulher, pelo viés Improvisam-se, então, palavras como "interconexão", "d- '
cla.s relações entre público e privado, tógica do mercado
e teridade", "transpessoalidade", que exprimiriam um esta¡'
lógica dá gratuidadè, o que se estaria discutindo são os fun- no mundo com outro e entre óutrov- próprio às mu-'
clamentos mesmos da convivência humana e da sociedade. lheres. - "1"
Nessa revisão de cOnceitos fundamentais geradora de no- Esses valores são o fundamento da diferença. As mulhe-l
vas propostas de organtz'ação social, é preciso começar
por res são diferentes dos homens porque no centro de sua exis-
não-reduzir o universo feminino às tarefas domésticas. A , tência estão outros valores: a ênfase no relacionamento in-
herança de um marxismo mal-digerido e a busca de respei- terpessoal, a atenção e o cuidado com o outro, a proteção'
tabilidade teórica numa época em que o marxismo ainda I da vida, ãvalorização da intimidade e do afetivo, a gratui-
-' idade das relações. Em uma palavra, uma identidade que
,'-- dominava as ciências sociais levaram correntes do movimen-
to feminista a reducionismos desastrosos. Procurou-se' na provém'da interação com outros. Daí serem as mulheres
mulher, a trabalhadora; gastou-se muito tempo e energia mais intuitivas, sensíveis, empáticas. Daf também, para vol-'
em discussões mal-formuladas sobre as relações entre clas- tar a um ponto sobre o qual já falamos longamente, o ter-
se e gênero. Esses preconceitos fizeram com
que permane- rível sentimento de divisão, dúvida e confusão em que mer-
' rr gulham quando, em seu percurso de acesso ao espaço
prl-
cessçm na sombra os aspectos talvez mais fascinantes do
universo feminino. ''y'' blico, se vêem obrigadas a confroniar seu modo de ser com '
A busca de analogias que aproximassem a problemática ì,as exigências de sucesso no mundo dos homens, marcado
das mulheres da doi trabalhadores ou enfocassem a vida pela agressividade, competitividade, autocentração e efi- i
feminina em sua dimensão de trabalho foi ocultando, nos ,
iõiência.
tl
.,t
,_Ì r' \
t04 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA ¡, EN¿EnCÊNCIA DO FEMININO 105

Foi por serem elas o que eram que a entrada das mulhe- no espírito de uma minoria de mulheres, despontasse a idéia
res na esfera pública, nos espaços masculinos, revestiu-se de uma renegociação radical dos termos da presença femi'
de tantos problemas e dificuldades, frente aos quais a so- nina no espaço público e no espaço privado. '
brecarga material advinda da duplaiornada de trabalho pa- li, ..
', r'.
' O feminismo da igualdade levantou a bandeira do aces-
recia questão menor, de solução prática mais fácil. Na ver- ì ..', so da mulher à educação, ao trabalho e à política. Defen-
dade, nem elas próprias nem a sociedade julgavam as mu- N'. '. .deu a liberdade de concepção e o direito ao prazet. Com-
theres competentes, aptas, capazes de ingressar no espaço t\
I bateu a violência sexual e ã papel subalterno da mulher. Em
público. Durante muito tempo, especialistas bem- r graus e ritmos diferentes, em culturâs diferentes, o femi'
' .r'intencionados procuraram traçar o perfil de todas as defi- ,\ nismo obteve uma escuta mundial
' ¡'ì ciências de formação, de todo o despreparo educacional,
ti
O lugar social das mulheres e a visibilidade da questão
que impunham desvantagem às mulheres em termos de opor- feminina mudaram radicalmente no espaço de uma gera-
. 1i ' tunidade de acesso aos estudos e aos postos de trabalho. ção. No entanto, como sintetiza Barbara Ehrenreich numa
, , i''Falou-se mesmo
- €, em alguns lugares, implantou-se uma liase polêmica, "Sorry, sisters, but this is not the revolu-
. .',10 política de discriminação positiva, ou seja, de favorecimento tion", ninguém pode argumentar que a entrada maciça das
'' ' . das mulheres, para restabelecer uma verdadeira igualdade mulheres nos territórios do masculino não tenha produzi-
.' desiguais.
rde oportunidade entre . do ølguma diferença. Mas o que é surpreendente e revela-
Programas de formação permanente, de requalificação dor é quão pequena tem sido, até agota, essa diferença.
profissional, de reciclagem de pessoal, de aperfeiçoamento A explicação desse impacto transformador limitado es-
de mão-de-obra, capricharam em corrigir, nas mulheres, tu- tá, a meu ver, na maneira como foi negociada a igualdade
do aquilo que vinha do fato de ser mulher: visões do mun- ¡ entre os sexos. As mulheres reivindicaram um acesso incon-
' do, atitudes inadeqüadas, linguagem insuficiente, que en- dicional a experiências que a sociedade como um todo -
gendravam, como já vimos, uma relação dribia com o sa- ,' e elas próprias
- consideravam como superigres a suas vi-
, ber, uma fala sofrida eiulgada incompetente, um medo do vências tradicionais. Na medida em que o açesso ao mun-
sucesso travestido em medo do fracasso. submetidas a esse
' do masculino era o objetivo desejado, na medida em que
\ 'processo acelerado de "aperfeiçoamento" as mulheres eram os homens que determinavam o que tinha e o que não
' aplicavam-se em se transformar, em se formar, em se ca-
' tinha valor, na medida em que a cultura masculina era r¡ma
pacitar, jamais criticando aquito que encontravam, calan- emanação clo que se produz no espaço público, é evidente
do seu mal-estar e confundindo-o com incompetência e ina- que o que se "produz" na vida privada, como modo de ser,
dequação. Querendo estar ali e' ao mesmo tem'po, não que- como valor e desejo, não podia ser reconhecido nem valo-
rendo ou se sentindo incapazes de estar. Querendo se mas- rtzado.
culinizar e, ao mesmo tempo, imbuldas de valores femini- Uma geração inteira de mulheres, não obstante a ousa-
nos e temendo o isolamento e a solidão como conseqüên- dia de sua militância, apresentou-se humildemente no mer-
cia dessa masculinização exigida para rivalizar com os ho- cado de trabalho em busc¿ de reconhecimento enquanto pes'
mens. Em suma, como já foi dito e redito, o preço da en- soa. Para tanto essas mulheres tentaram provar a todos e
\trada unilateral e sern reciprocidade das mulheres no mun- a si mesmas que ser mulher, dependendo da mulher, pode-
ido dos homens foi a ambigäidade. A travessia dessa ambi- ria até não ser um defeito.
güidade, por sua vez, foi necessária para que, pelo'menos Chegamos mesmo a assumir a dupla jornada de traba'
f

106 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA a ET,TTRGÊNcIA Do FEMININO tgt.

.t

lho e a sobrecarga de tarefas materiais, mas tropeçamos na tl tituições, não aceleraria o desaparecimento puro e simples
ìr
ambigriidade, reveladora da dupla mensagem, das injunções {/ da vida privada, ou, pelo menos, seu enfraquecimento; b
\ .r contraditórias.
'
que, por sua vez, corroeria o solo em que planta suas raf-
ì . Pelas veredas da dúvida, da angústia, da divis€[o,þlta-
Ì

zes a cultura feminina? A predição de Elizabeth Badinter


'. "'I nios hoje ao þonto de partidgf Não para o arrependimento ( se realizaria, então, de maneira particularmente perveria.
'daousadia e a penitência do erro. Não há caminho de vol- Urn seria realmente o outro, mas num sentido unilateral e
,
empobrecedor: as mulheres se pareceriam cada vez mais com
-, i ',.., rnoderna o propõe. Voltamos ao ponto de partida no sen- os homens, com o apagamento gradativo mas inelutável da
r' ,- . ,-\' ¿ tido de que, exatamente porque fizemos a travessia do mun- diversidade de experiências e vivências que fundam sua di-
,t : r ' g do dos homens, pofque conhecemos suas normas e seus va-
t çariaferença. O esmaecimento da diferença entre os sexos refor-
l'-,,, lores, estamos melhor situadas para revalorizar nosso mun- a uniformização da sociedade. O feminino sobrevive-
'
'
., '. ,. do, nosso,svalores, não para nos refugiarmos neles, mas para
, ,r' ria como vestígio, objeto de atenção antropológica - so-
' - ' repensar sua contribuição para um novo desenho da convi- bretudo nos países do Terceiro Mundo, mais resistentes à
' . ' ' vência entre os sexos e, por extensão, pafa um novo perfil ,,' penetração da modernidade - como sobrevivern hoje as ul-
.,;..' . civilizatório. ' timas tribos indígenas.
'r' Isso é tanto mais urgente quanto configura uma nova Estaria realizada a utopia do "um é o outro". Mas é bom
¡;i, ameaça, insuspeitada, a apontar no horizonte tùvez pela lembrar que nossa geração também aprendeu a duríssima
.,." primeira veznahistória humana, ao menos nos países mais \j I
lição de que toda utopia, em seu delírio normatizador, é
avançados. Está em risco a própria sobrevivência da vida totalitária. Aliás, na duas grandes utopias literárias deste
privada como esfera autôndma da existência. Trata-se aqui
século, 1984 de Orwell e Brave New World de Huxley, a
de maís um paradoxo nessa longa série de mal-entendidos.
realização da utopia totalitrí¡ia exigia o controle absoluto
Em alguns palses da Europa Ocidental, em resposta às
da vida privada e a regulação completa da sexualidade.
demandas das mulheres por mudanças legais e institucio-
Se queremos evitar a rcalização desse cenário de futuro
nais que facilitem seu acesso ao espaço público, foram im-
plantadas, pelo Estado e pelas empresas, redes institucio-
há que construir outras propostas, mas não um contra-
modelo, uma contra-utopia pronta e acabada.
nais creches, escolas, cantinas, abrigos para idosos
-
que passaram a se ocupar dos encargos domésticos tradi- - Para fensar seu futuro as mulheres devem operar uma/
cionalmente assumidos pelas mulheres. Essas mudanças, ruptura epistemológica, oferecendo-se uma liberdade de pen-
! , concebidas como realização,das condições deigualdade, co- ', samento que será benéfica a todos, homens inclusive. An-
,.¡. meçam a revelar hoje um lado muito mais inquietante. E
i \ tes de mais nada, é preciso resistir à tirania do conceito da:
, ' definição, que não deixa espaço para as imprecisões do real.
, .:
- \', ,se a extensão dessa rede institucional produzir não só uma
/liberação das mulheres de suas tarefas tradicionais, como . Falar de "territórios do feminino" refere-se a algo que é
.,'
,também um esvaziamento da própria noção de vida priva- ,'incerto, impossível de circunscrever e de ser provado. A im-
precisão terminológica talvez ajude a sublinhar a flexibili- '
'.,'\ '"r lda, com a substituição da família por aparelhos burocráti-
f cos, dos cuidados
gratuitos pela ação dos especialistas, da ,dade de fronteiras e a própria busca de novas palavras pa-
rintuição e da empatia pela racionalidade e a eficiência?
,.,' Nesse sentido, aproximar-se dos territórios do feminino
\,' 'ra d"izer o que se sente.
, Quem sabe o prolongamento dessa tendência de pubtici-
I zação do privado, com a absorção de suas tarefas por ins- ç.' seria aceitar o convite para um entendimento por aproxi-
108 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA a ruBncÊNcIA Do FEMININo r09

mação, por toques que percebem a presença mas não po- natureza, intuição como forma desenvolvida de percepção:
dem ou não querem apropriar-se do que é tocado. Esse en- traços da cultura feminina que não tiveram vez no espaço
tendimento por aproximação é estrangeiro ao entendimen- público, abafados que foram pela relação dos humanos com
to por apropriação, que é o ideal do conceito. os instrumentos, predação da natureza, apelo à razão cien-
Não há como nem por que conceituar a cultura femini- tíftca como esforço de dar notne ao mistério.
na, mas há sim como tocá-la, percebê-la, intuí-la, talvez' E no entanto as mulheres bem sabem quanto, ao longo
, i,.t,)j' E saber que dela, desse universo fluido e
fugidio, pode vir da vida, lhes é útil a intuição, lhes é essencial a empatia en-
.' um enrrquecimento certo e seguro para o diálogo humano' quanto forma de conhecimento desenvolvida no cuidado
Ela falará, por exemplo, demelhora¡ a relação entre as pes- c r, coÍr a vida e com os outros.
I

,isoas, de melhor entender os mistérios dessa relação, misté- - ,,'" As mulheres são diferentes dos homens; se essa diferen-
. rios tão ou mais densos que os mistérios da natureza.Fala- ,.t-J
, ,, )) ça até hoje foi apresentada como fundamento e justifîcati-
| ' ,'',Íá" de rnais reciprocidade.entre nós e a natureza, pois que '\''.,'yã, da desigualdade, só depende das próprias mulheres rom-
'' :. 'ìentre mulheres e a naturezahâuma relação ancestral que per esse dado, virando-o pelo avesso. A revalorização da
as
'
be pode transmutar em nova aliança. rdiferença não tem por que enfraquecer a luta pela igualda-
O relacional flui da cultura feminina como seu mais sá- 'de, mas deve, certamente, redefiniJa. O projeto da dife:ì, i;
bio saber. A chamada intuição feminina, relegada a uma rença não é uma reval orização da vida privada p¿ua as mu-, .)"' \ I

esfera inferior de conhecimento, situada pelo pensamento lheres, mas pelas mulheres para o conjunto da sociedade;; , .'
racional em algum ponto entre o mágico e uma espécie de Nesse sentido, o projeto da diferença é pós-feminista, não I
faro animal, a intuição é uma forma de apreensão do real porque nega ou contradiz o projeto da igualdade mas por- i"
que passa por canais que as mulheres, as próprias mulhe- que corrige suas distorções, faz sua crítica enquanto expe-
res, nunca se interessaram por explorar. I riência incompleta que demanda ser radicalizada. É pós- ,r\"'
Quem melhor sintetizou a intuição como entrada noco- Tfeminista porque, sem o feminismo, suas mudanças, suas
I

nheòimento foi clarice Lispector em um de seus mergulhos t.


conquistas, seus impasses, seus questionamentos, não te-
abissais em recônditos inexplorados. No texto que utilizei I riam entrado no horizonte de visibilidade das mulheres, _4t
,i'
como epígrafe a este livro, Clarice lembra que há respostas O projeto da diferença é, antes de mais nada, o .t \ \t-
a'
que já vivem no espírito à espera da pergunta. Antes mes- cimento dê que o universo feminino existe, de que ele é fruto \d)
mo que se localize uma questão, ajudando a formulála' há de um corpo que se fez experiência histórica e social, de
uma resposta intuída que nos habita e que se atualiza pou- psiquismo que se fez cultura. É essa cultura que, hoje, pela
co a pouco. Pergunta e resposta são, então, presenças de presença das mulheres nos centros de saber e poder, tem
uma problemática que o esplrito feminino abarca em sua pela primefua vez a possibilidade de se declarar como tal
.i. ,, totalidade, sabendo, entretanto, que foi a resposta que pas- deu e a pretensão de se fazer ouvir e existir no exercício desse
' à luz a pergunta. Quase todas as descobertas científicas mesmo poder.
O projeto da diferença, longe de reforçar estereótipos so-
mas, buscaram provar-se. Quando se comprova, conta-se bre as mulheres como seres frágeis, incompletos, dependen-
uma história linear, racional, lógica, em que a intuição de- tes, sem vida própria, incapazes de liberdade e de autono;
fato anedótico. nnia, afirma os valores constitutiyos da identidade femini-
' Atençãocomo
þaparece
à relação entre seres humanos' vínculo com a na para reivindicar sua presença e seu impacto em todas as
ll0 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA a EveRcÊNc¡A Do FEMININo ll!
esferas e dimensões da vida social. Não se volta para o pas- cessarramente novos objetos, fazendo emergir /
como pro-.
sado buscando devolver as mulheres exclusivamente ao uni- : blema tirando da sombra
- sob silêncio ou na invisibiliclade.
aspectos doieal até então
verso privado, para aí fazer o luto de uma incursão desme- mantidos - A tal ponto isso :'
dida e fracassada em territórios que não seriam os seus. Bem ;'l i
é verdadeiro que Einsîein clizia que a teoria
sO eocórrtraãqri- i n
ao contrário, revalorizando o que é próprio das mulheres, ,
lo que procura-' o quq não proiura não reconhece ;u;ãol
\
suas raízes, sua identidade, seu modo de estar e de agir no . l vê. Por isso é fundamentar mudar o ponto de vista,
mundo, abre-se para o futuro, opondo o múltiplo ao uni- ì a teoria, explorar novos horizontes ' rever-l I

forme, o plural ao singular, o incerto e o indeterminado ao Aceitando a incerteza e a indeterminação inerentes aos
previsível e ao programado. : momentos de abertura e de ruptura, cabe às mulheres
abrir
Enquanto fator de enriquecimento e de comþlexificação um amplo campo argumentativo a propósito da forma pre-
do tecido social, o projeto da diferença representa a seiva sente e futura da convivência entre os sexos e do impacto
e o veio pelo qual flui a verdadeira igualdade entre os se- de seu desenho no perfil da sociedade.
xos, inédita e subversiva. Subversiva porque toca naatëhoje, como contribuição a essa exproração de caminhos e ve-
intocável escala masculina de valores que rege a vida públi-' redas que se buscam, os dois enìaios que se seguem
ca. Inédita porque até hoje as mulheres pensaram que o pr€- i :
,','
r ram a questão da cultura feminina emãois ângìrlori privile-
explo-

ço do poder era a renúncia a seus valores próprios e o mi-j, ..' rt giados. Nos espaços da literatura, em que o fèminino pro-
metismo com os hoürens. ,
t
cura dizer-se' e.no espaço público poiexcelência que é a
'
Muitas vezes é justamente no momento de maior perigo , . ' ."' política, onde ela propõe maneiras àiferentes de estar
e de
que as rupturas necessárias e as alternativas possíveis emer- fazer.
gem óom maior força. A lógica do mercado, triunfante,
ameaça invadir e corroer os menores interstícios da vida so- t (r

cial, inclusive a intimidade mais Íntima dos indivíduos, com ;t[


seu poder de regulamentação institucional e seu padrão de
remuneração mercantil. Revestida de modernidade, invo- I
i:
cando a igualdade e a liberdade, essa visão é dominante no t' ,- l¡.

mundo ocidental. A ela só se contrapõe, na cena do'mun- ^ilr


¿
)

do, um outro fundamentalismo, de sinal inverso: o do in-


tegrismo islâmico, em que as noções de religião, raça e na-
ção fundem-se para afirma¡ um estatuto diferente, mas cer-
tamente subalterno e opressivo para as mulheres.
Frente a esse choque de fundamentalismos, cada Ìrm que-
rendo à sua maneira definir o lugar e o papel das mulheres,
cabe a elas, a nós mulheres, tomarmos a palavra e olhar-
mos para nós mesmas e para a sociedade a partir de um ou-
tro ponto de vista.
A mudança do ponto de vista pode mudar radicalmente
a paisagem, assim c.omo a mudança da teoria enquadra ne-
A cicatriz do Andrógino

Um primeiro cuidado: evitar o lugar-comum, a facilida-


lr ,de do discurso militante, que simplifica e torna óbvio o que
t '. ) ihá
milênios é complexo e obscuro. As relações entre o Mas-
n ¡i
,tv culino e o Feminino, as definições mútuas e as mútuas ex-.
clusões, a atração e a repulsão, foram em toda a história
, )t:
humana conhecida o lugar do êxtase, da criação e também
' t'. o da tragédia.
l; Encontro marcado, inevitável dese4gontro, a relação mas-
û'
l l '' ,i
L"
I culino,/feminino traz a marca da¡þcompatibilidade neces- |
þ' sárþj
)
7 A ferida do Andrógino jamais cicatrizou.
Se um dia fomos um, uma vez partidos nunca mais em
' ^ t:
nosso abraço recuperamos a unidade. Separados, nós atri-
-t¡ tamos no mundo em asperezas tão diversas que, reencon-
I

trados, já não somos o þerfeito encaixe e nem nlesmo nos-


sa ternura recompõe a superflcie una do corpo único, com-
pleto, saciado.
!
Masculino e feminino, mítica ou historicamente buscam
e é inútil a unidade perdida.
- -
t

Nessa busca, por onde passam vão deixando as mÍìrcas


de uma cultura que lhes é própria, mesmo se essas duas cul- t'
turas se diluem, se alternam, se confrontam e se confun-,
dem no que acreditamos ser uma só: A ferida do Andrógi-
no é a mais nítida na pele do mundo.
'.o! rro RosrsKA DARcy DE oLIvErR.A,
e punncÊ¡¡clA Do FEMININo tt5
. _,,1'
),.i Dia e noite, sol e lua, ordem e desordem, potência e fer- Se escrever é uma transgressão que a qualquer
momerito
tilidade, razão e desrazão, permeiam os relatos míticos, ex-
.r ',t\ pode ser punida, um quarto para si é a representação
espa-
;primindo em linguagem simbólica os pólos opostos dessa . cial da'autonomia, sem a qual a criação IÍterá¡ia definba
runiâo tensional. '..., nos
subterrâneos do desejo. Esse quarto é uma saída
Corpo e existência, de homens e mulheres associados a secre-
t'- ta paru a aventura da rua, para além das paredes estreitas
frações diferentes do real, balizam com interditos as fron- \ ,i'
r/.t da sala de estar, para além da repetição cíclica
teiras que definem os horizontes de cada um, reafirmando t'i,
dos mesmos
\
'l gestos. A renda própria é uma carta de alforria, para.além
o princípio da dicotomia sexual, ì C.:
dapobreza, dote do sexo feminino, pouco importa quat
A vinda das mulheres à criação cultural, ao universo da seja
a fortuna da mulher.
t.
. ,,' ', tïcção, foi um crime político. As leis da cidade sempre qui-
seram que um mundo cultural masculino e um mundo cul-
senão, o que aconteceria a Judith, a inexistente
irmã de
shakespeare a quem virginia deu à ruz, para cumprir
i.,' ,,l" ;; tural feminino sustentassem, sem equívoco, o equilíbrio do a vlø
crucis de uma mulher de talento, se¿uzi¿à pelu
:, ,
mundo. A literatura foi domlnio reservado do mundo cul- criãção lite-
)' ,,' 'l
I

rária na Inglaterra elizabetana?


1,,' i ,' , tural masculino: Judith tropeça na vida, nas impossibilidades, nos precon-
f \' , :'"'',
' A criação artística e literária, enquanto elã de comuni- ceitos, e, desamparada, se suicidã. Judith
e môrre n"as
, . ,'cação com o público
/,
gesto, palavra ou imagem endere-
-
, . ,.'çados a todos, anônimos, desconhecidos enquanto voz
páginas de virginia sem nunca ter escrito "ascé
po de shakespeare não foi o da poesia das
nada. Não, o tem-
.i
-,
" voltadaparao mundo, não poderia, por isso, sei voz femi- Àurheres.
' nina. A não ser como transgressão da regra fundadora que,
Que corpo sociar teria transporiado a attna ieminina no
do sécqio XVII? eue outrodesrino poAeria trr,r*u
separando o Masculino e o Feminino, atribui a uns e ou- f* I
nascidà na famflia de shakespeare, com a
*u-
.tros estilos, modos de expressão que lhes são próprios e não lmer mesma ins-
apropriáveis pelo outro sexo.
- ;puação do poeta, uma murher que, como ere, tivesse senti-
j A vinda das mulheres à criação literária é parte da ener-
\J
\ ., rd10 aRelo irresistíver da criaçãó? Que rrrurá frontar teria
I gia que vem abrindo, ao longo de séculos, a brecha em um ì:ï1ir?9o, primeiro da famÍIia _ mas de casa se foge _,
crepols do mundo dos homens, em que
I
, - paradigma milenar, o da separação de mundos. É travessia '';- uma mulher jãu.m
e solitária pão ingressa æ- qo. sobre ela pese
,
i da fronteira do mundo dos homens, travessia acidentada de prostitriiç ão! óaprtrruial,- .usamento, renúncia,
a suspeita.
'i eüe, paradoxalmente, revela um novo horizonte, o dos ter- dio. Li'ha fatatr que vai de um desejo ouråi¿ã *tes
suicí-
ritórios do feminino. Alguns marcos assinalam os aciden- da ho-
ra à morte física, prorongamento dä nort; pr;atura,
tes: visibilidade, igualdade, identidade. do
desejo prematuro.
Em 1928, Virginia \Woolf, irônica e realista, em uma con- Há dèsejos trágicos, que brotam antes de seu tempo
- e cujo.: -
ferência pronuncjada panjovens universitárias inglesas no destino é morrer insaciados. o desfecho ¿o,ui"ioo
' .',Giron Colldge, estabelecia as condições mínimas para que solução naturar para um confr.ito em que or
era a
/ ãp.ro, do ta=
nnl las mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da - Iento artístico se viam negados pera imporriuiliã¿, de ex-
, ,' '
\T&' ,, , /
criação literária. Dinaela: "tendo um quarto para si e ren-
da própria".; Essa fórmula sucinta se desdobra no pensa- ,.,
,
, ,j9:: !l:*ão e transformados em destinos rnedíocres
ess€ mesmo talento se recusava a testemunhar.
e infelizes,
,,. Judith
lmento de Virginia Woolf, nos vários desenhos que pode as-
'sumir a exigência de liberdade. i' t, fao.unha
',, /dlrerto
um quarto para si nem uma renda própria. Nem
algum, afora o de se matar.
ì

,
¡,il
il6 ROSTSKA DARCY DE OLIVEIR.A A EMERGÊNCIA Do FEMININo lt7

Urn castelo à beira do lago Leman com muitos quartos são. A imagem de Jane Eyre subindo ao teto da casa para..
para si teria feito toda a diferença. Melhor ainda, a con- melhor contemplar o horizonte é repres entatrvada fruitra-
tbrtabilíssima renda própria de que dispunha, no fim do ção que rnarca a literatura dessa primeira metade do sécu-
século XVIII, Germaine Necker e que permitiu que se lo. virginia woolf tem razão de lamentar que €ssâ nrrârr
-
tornasse visível o inquestionável talento de Mme. de StaëI.
I, Madame de Staël, que poderiater passeado pelos corredo- ì . , r;reivindicativo, lacrimoso e enraivecido. como diz virginia,
'
,res do Castelo de Coppet sua condição de filha do banqueiro
/

i \\r de Luís XVI, preferiu as emoções de uma querela pública ., . ; ¡ ,de autoras que, ape6ar de um imenso talento, se perdiam
com Rousseau quando da publicação de Confíssões. Mme. , û"lnum lamentar-se sobre as injustiças da condição.de mulher.
" i,,
,
de Staël desferiu as.mais acerbas críticas ao revolucioná- i't ., ,,,.;,Nasciam essas obras num clima social em que as reivindi-
.r: í i
¡il
rio, que só se recuperaria a seus olhos ao publicar a Nova lu'' cações femininas de igualdade com os homens se cristaliza-
Heloisa, onde demonstra uma infÏnita acuidade a respeito ,'î' riam progressivamenie no direito de voto e no direito ao
de um tema que muito interessava Mme. de Staël a pai- ,;þ trabalho remunerado ao qual ch.egavam massas operárias
ú
-
xão feminina. Se a ensaísta ganhou notoriedade no desafio não por vontade própria, por escolha, mas por absoluta ne-
I
a Rousseau, a romancista não precisou disso para se nota- cessidade de enfrentar uma vida urbana industrial
þe se
bilizar com a publicação de Corinne. irqpunha como o espaço da modernidade.
r',' A Revolução Francesa, no bojo do ideá¡io de Direitos A ambição de igualdade encontrou rapidamente sua ideo-
. Humanos, inventa a igualdade entre os Homens, o que, em
'.'
' ( . ,l'.,' ,,
filigrgna, promove as-mulheres a cidadãs. São as Luzes do ,t,' Desde o começo, o movimento feminista pretendeu p¿ua
século XVIil que iluminarão o século XIX, inaugurando ias mulheres uma existência como a dos homens, tão livre
' ,,' um novo capítulo na história das mulheres,. momento ten- . ,'' '
¡, quanto a dos homens, sendo esta percebida como o máxi_
' sional, em que a expectativa de direitos encontra a hostili-
n
r . ,. rffio da liberdade.
,,'
Í.r' dade do real vivido. Viver como os homens, desfrutando do mundo g da rua,
'l ( . :'t:,, Jane Austen confiava nas portas ciue rangiam anuncian-
-,"
íJ"' ,^ ' recusando '
as condições que enclausuravam as mulheres e li-
' . r;.:r clo a chegada de alguém: elas eram as sentinelas da clan-
". ''-". L. /11 ùf , mitavam sua existênciaao universo da casa, apresentava-se
,,., ,'1. dest.inidade em que escrevea Orgulho e Preconceito, Char- " como um frojeto de floresciûÌento, de desenvolvimento de
' , i lotte Brontë levou a um editor, à revelia da irmã, O Morro\ ^ capacidades novas, como a tentadora aventura do amanhã.
'" dos Ventos (Iivantes, que Emily.não ousava mostrar a nin-)\ O horizonte do Feminino passa a ser Masculino. George
guém, e apresentou-o como tendo sido escrito por um ho-l/t Sand, travestida, desafiava Paris, mas reencontrava rro cÍürr-
rnem. O anedótico dessas histórias têm força de depoimen-' po uma vida discreta: lá bordava no bastidor, embalada pelo
to sociológico sobre um tempo em que o Feminino fazia t
piano dos amigos Liszt e Chopin.
seus primeiros passos na ambigüidade. A igualdade no ho- As mulheres não tinham parâmetros femininos de vida
rizonte mas longe do alcance setraduzia na ficção em nuÍul- autônoma e sem coerções, o que lhes deixava como opção
ces mais ou menos acentuadas de amargura. de liberdade a imitação de um estido masculino de vida. .
Alguns dos melhores romances dessa época são marca- Assim também no campo literário, sendo a literatura ou-
dos por personagens femininos que esba¡ram nos limites im- ousadia: escrever na ausência de precursoras só poderia
d,\r'
postos às pessoas de seu sexo como nos muros de uma pri. il'
'\iser adotar, tanto quanto possível, o estilo mais próximo do
)
¡18
'!
ROSISKÃ DARCY DE OLTVEIRA -, i"
.l' )) n euBRcÊNcIA Do FEMININo ttg'
'
que até então se fizera em,literatura, isto é, a literatura dos
,l
.l
',r '' ,
. atingido e o feminino o componelle inacabàdo. A armadí: f f
-.., \l u' ,
, hometrs: ,. '4.,:" . " '. lha se preparava e nela cairiam ã reministas da primeÍra
't n O século XIX deixou como herança uma estranha mis-
! I
-\ XX: buscando o universaþr*i,trr"".
I

:'
I,
.[t ;tura: uma literatura próxima da literatura masculina da épo- ,iii::"1åséculo l1

l' ,'., ca, porém atravessada por um amargor muito feminino, 1.'
,.. tt'
Para uma geração cie mulherês nascidas na época da vi-
.r! \ r malca inoonfundível de äutoras divididas, ientando escre- rada do século, a idade madura coincide corn uma época
/\ ; ver como os homens sem deixar o lugar da mulher que se t em que' se por um lado já está presente a consciência da
, '2 isetu€ excluída. discriminação sexúal, por outro e'ssa discriminação ainda
'z/ A primeira reflexão crítica sobre essa ambigüidade está \ é suficientemente forte para que as mais seguras de si evi-
justamente em Um teto todosan, quando em momentos di- I
tem identificar-se corr.o sexo feminino como um todo. As
ferentes Virginia parece cair ela mesma na arnbigüidade, ora que se sentem com recursos intelectuais e materiais que lhes
afirmando que nada é mais fatal para a literatura que pen- permitam fazer abstração dessa discriminação, faãem_no
sar no seu sexo, ora lamentando que as autoras do séculcr simplesmente como se de fato ela não existisie. Esses c¿rsos
XIX tenham se preocupado tanto com imitar os hornens. excepcionais escapam das limitações que, nesse começo de
lE no entanto essas afirmâções que parecem
¡ contraditórias século, ainda pesam sobre as mulheres.
j.na verdade não o são, porque dizem a mesma coisa: é por- Talvez o exemplo mais rico seja o de Marguerite your-
que as mulheres pensam no qeu sexo (mas o pensam como cenar' cujo destino é marcado por uma incomparável ori-
sexo-vítima) que tentam imita¡ os homens, não permitindo ginalidade, devida em parte a fatalidades que iädependem
que aflore nelas o que espontaneamente afloraria. dela, mas, sobretudo, às escolhas eue elafezrà maneira co-
,,, r( Essa vitimização que marca os primeiros 150 anos do fe- mo transformou essas fatalidades.
minismo 1ro1 ¡aízes èm um sentimento profundo de infe- I ., ,

Marguerite entra na vida sem mãe, que o parto matou.


-l
rioridade que as mulheres aceitaran interiorizar, modelo No seu nascimento, o pai tem cinqüenta anoi, a idade de
''it 1t ,
I
da dominação em que. o dominado protesta contra um avô. Marguerite não conheceu a escola; sua educaçãd
a¡I
a dominação não em nome de si mesmo, mas em nome do coube a preceptoras sucessivas, todas com o traço comum.
que acredita ser sua capacidade de tornar-se o Outro. O que, d. dominar a cultura clássica. Esse estranho .aráI, feito de
(
,
, só reconhece como legÍtima a existência do Irt ' ,\' uma menina sem-mãe e de um pai idoso, correu mundor,
Outro, modelo e ideal. I se entretendo na leiturá dos clássicos que, ainda que não-
\$
' Na passagem do século o movimento feminista subscre- fossem absorvidos em toda a sua cbmplexidade, encanta-
ve, em sua exigência de igualdade entre homens e mulhe- {
vam a menina seduzida pela história. ,,Ele era ótimo, qua-
res, uma definição insólita dessa,igualdade. Reivindica pa- se não era um pai. Um homem mais velho que eu _ não,
ra as mulheres o direito de participar da vida social e cultu- um velho, porque nunca tive noção de diferença de idade
ral em paridade com os homens e, para tanto, tenta con- e continuo não tendo quem eu passeava durante ho-
\¡encer a sociedade de que a feminilidade não é uma des- - com
ras, falando de filosofia grega ou de Shakespeare, ou das
vantagem insuperável. O universo feminino resvala para o lembranças dele e de outras pessoas mais velhas, o que me
sem'valor, ptra o socialmente não existente, o incômodo; deu uma memória que se prolonga por duas geraçõei antes
as mulheres percebem-se como pólo subalterno de uma re- da minha; um amigo com quem eu visitava igrejas, os cam-
lação hierárquica em que o masculino é o paradigma a ser pos, com quem eu falava de animais, de cavalos ou de ca_
120 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA E T¡,IEROE¡ICIA DO FÊMININO t2l

chorros, que no fim da vida, às vezes parecia um velho va- , Ironicamente esse tabu foi quebrado graças à fama obti-
gabundo, sentado na beira da estrada, comendo um san- da sobretudo com dois romances, Memórias de Adriano e
duíche."8 A obra em negro, em que sua voz feminina reveste-se de
-i
, Esse velho vagabundo, no entanto, era herdeiro de uma
considerável fortuna que garantiu à fïlha, ao longo da
unra persona masculina e conta o enfrentamento existen-
cial e filosófico de dois homens com os temas decisivos do
,\
,,.1
-
,r'' vida inteira, a possibilidade de.não ocupar seu tempo e seu amor, do sexo, do poder, do conhecimento, da morte.
lrr
,

espírito com preocupações de ganhar o próprio sustento. :) Exilada voluntariamente de sua experiência feminina,
A renda mensal de que fala Virginia \Moolf, que aumenta ,,,-" Yourcenar investe a possibilidade de universahzação da ex-
t\
.,
.J
as chances de uma mulher se tornar escritora, estava desde , J, ,t. periência, mesmo movimento de descentração que permi-
o começo garantida. Assim como estava garantida uma in-
,.:¡ fância suficientemente insólitapara as meninas de sua ge- : Exilada também de seu tempo, aceitando o desafio da His-
i façao. tória ora na Antigüidade, através do imperador Adria;
I.
"
t .r! É assim, graças ao insólito dessa infância, que ela esca-
-
';"t pa desde cedo às convenções e, em particular, às conven- non, médico e alquimista que mantém com o conhecimen-
'l ções que definem a mulher. O que a levou sempre a decla- to e seus riscos uma relação tão ousada quanto a de Adria-
rar que ter nascido mulher não representara jamais um in- no com os riscos do poder
conveniente, que jamais desejara ser homem e que tampouco -, ela reafirma
romper fronteiras. Nega limitações
a ambição de
através de um extraor-
atribula valores diferentes aos dois sexos, acreditando que dinário esforço de reflexão e ao mesmo tempo da humilda-
homem e mulher valiam a mesma coisa. Mais que isso, Your- de de se deixar possuir, habitar, sem grandes interferências
,,'- cenar teve durante a vidá o extremo cuidado de não se dei- de sua parte., por essas entidades que invoca numa espécie
¡ii xar impressionar por nenhuma causa política e, ern parti-
" ''cular, de ascese, experiência mística pela qual o esvaziamento de
de não se envolver com o fe¡ninismo que c:onside-
,¡ : rrava não apenas radical como uma espécie- de sexismo às
,., si deixa lugar à divindade que nos vai ocupar.
J

'avessas. De certa maneira foi como se os problemas liga- JU,


E assim que a mulher belga vivendo no século XX co-
nhece e fala do poder e do conhecimento, territórios do mas-
,1. '', . dos à relação entre os sexos não lhe dissessem respeito, a

não ser em seu nível mais rasteiro, em que a defesa dos di-
\j I /t1.. culino, em que ela penetra pelos caminhos do abandono e
tot'y:' da possessão.
reitos das mulheres se'confunde com a defesa dos /r .l
humanos, o que, para uma incontestável humanista como Embora a autora se mostrasse reticente quanto a estabe-
o'particularismo" e minimizasse a impli-
ela, estava acima de qualquer discussão. : (,- ,lecer o que chama
pação política das relações homem/mulher, a escolha de um
Quando aAcadémie Française, quebrando uma tradição rl I'
iiv
de três séculos, acolheu-a como a primeira mulher a con- personagem masculino para dissertar sobre esse conjunto
de temas é indicador, como ela mesma assinala, do fato de
)

quistar uma cadeira, Yourcenar limitou-se a comentar, em /rri¡ Y"'l ,lii


.i
seu discurso de posse, que a sociedade francesa ainda era T' que, aos olhos da autora, só um destino masculino é capaz
I de dar conta da experiência humana global. A vida das
suficientemente misógina para colocar uma mulher sobre ,it' tr
um pedestal, sem por isso ter a coragem de oferecer-lhe uma f|r!' lheres é muito limitada ou muito secreta, e por isso mesmo
cadeira. Com essa rápida ironia encerrava um assunto que
1t ' ',\
r- ,, dificilmente um personagem feminino poderia ser locutor
,!
poderia ter sido largamente explorado, em termos de lamen- da fïlosofia complexa que impregna as memórias de Adria-
tações ou recriminações de caráter político. no. O mundo pertence aos homens, qó a eles é dado o desa- t'
t22 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA
n riunncʡrcrA Do FEMTNTNo t23

_periências como a guerra, as viagens, as lutas pelo poder.


üo de se apropriarem dele, "dando a volta de sua cela an- r,.' ' 'Mâs¡ curiosamente, tendo feito todo o percurso dessa aven-
tes de morrer".
A sensualidade deAdriano, príncipe andaluz, é uma sen- tura masculina, Yourcenar, talv ez involuntariamente, não
sualiclade mediterrânea, que passa por um paladar afeito ,i I só privilegia a experiência amorosa como coloca essa expe-
ao pão e ao vinho, aos óleos e à carne. Sensualidade marí- , ' ,'. , riência no ponto de ouro de seu quadro fîlosófico-histórico.
0u

r, i,,,r' r autoras,A ælðão é aqui tão central quanto nos romances de outras
tima de ventos e marés, de portos que se sucedem e de ilhas
deixadas para trás à medida gue o império avança. Essas ,,,J\\"t' ' que não ousaram explorar um universo muito maior
mesmas ilhas que encantaramâ juventude da autora e que ti i que uma casa e suas cercanias. Voz feminina, persona mas-
exerceram sobre ela o fascínio grego e pela primeira vez o
t!
tl'
iculina. Persona masculina significa aqui um desejo de
, j ì 'i. .'mais japropriar-se da experiência masculina em suas .dimensões
¡

sonho de uma vida defînitiva apagando a miragem do ho-


proibidas. O personagem de Zenon, na Obra em ne-
rizonte. Andaluz, imperador romano mas filho espiritual
de Atenas, Adriano percorre as águas do Império exploran- i ,.'.'
! , ,,,'i ,'que ,gro, com quem a autora admite uma identificação pessoal
sempre negou em se tratando de Adriano, é um perso-
do o mundo geográfico civilizado em busca de uma paz que
\ nagem transgressor, atraído pelo ilícito, e em particular pelo
acreditou possível e que seria o fruto do poder sabiamente i) .,
exercido. Explorando também o mundo cultural, em que
ilícito do conhecimento e da ciência, num tempo em que
pesava como uma faca enterrada no corpo a herança de uma
ciência e religião competiam para explicar o homem e o
mundo.
Atenas ainda onipresente, memória hegemônica na inter-
Marguerite Yourcenar pode ser tomada como protótipo
rogaçáo sobre o humano. . t,
da literatura feminina que coincide com o paradigma da
I Esse direito ao mundo, áos prazeres e desafios do mun- I I

igualdade, entendida como acesso aos territórios do mas-


1do, sejam eles.a cr:ueza da guerra ou a doçura das paisa- , , , culino, paracligma de uma época, que só será alterado a par-
gens prateadas dos olivais, é um direito masculino que se
' ) ltir dos anos 70.
I Terá sido talveznecess¿iria a travessia dos territórios do
:

i confunde com a liberdade. A liberdade de movimento que .,*'

. não tem o escravo, verdade seja dita, mas tampouco têm I. \ . lmasculino para, a partir deles, vislumbrar os territórios ainda
as imperatrizes. Direito do homem livre, a aventura do
mundo.
Yourcenar escolheu um homem e um imperador para fu- ';,
1-
'' Yourcenare outras como Virginia V/oolf e Gertrude Stein
gir às limitações da vida das mulheres' para escapar a esse . " ponstruíram, fosse mais difícil para as mulheres que encon-
' campo feminino restrito e fechado onde vive a maior parte ' travam a literatura estabelecerem com ela uma nova rela-
' das mulheres. "Não sei se poderíamos encontrar onde quer ,". ção, menos defendida, de maior abandono, sem outro in-
't 'qü€ sejaum personagem histórico feminino igualando, não '' terlocutor imaginário senão sua própria sensibilidade.
I
É a partir dessa perda de pudor que o feminino começa
li' ,, digo em grandeza (isso éum outro assunto), m¿u¡ em enver-
,\ a emergir na literatura como a face do novo. Insólito e des-
,1gudntu, um personagem masculino da mesma época".9 Es-
I

' ' jsa explicação, dada em suas entrevistas a Patrick de Ros- conhecido, o feminino se exprime como travessia de si mes,
.L
' (bo, confluma uma intencionalidade já expressa em Les yanx mo, como paixão, morte e ressurreição. A paixão segundo
c., rì , Clarice Lispector ou segundo Marguerite Duras, G. H. ou
i'
¡\
, ': ouverts. Esse campo restrito e fechado, o da experiência do-
I Anne-Marie Stretter. Travessia dos territórios do femini-
3t) ,'' méstica, não deixa margem a grandes aventuras fora do cam- no, terreno perigoso e inexplorado. Os personagens femi.
po do amor. Um imperador romano permitq é claro, ex-
DA ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
, A EMERCÊNCIA DO FEMININO T2'
i.
,l1
| ¡.)
..' ' termos psicanalíticos, a identidade feminina deixa de ser o.
l,' lt

'' ,,,- ' nmos tazemaqui esSA travesSia de Si mesm.s, tropeçando '

'
".. i ' . em perplexidad"r, ,o*o diante de um continente a explo- ,ot ,,,':''.-,,- Outro do Mesmo para se tornar uma procura e uma inven-'
',- , rar, reintegrando a posse da memória, se escrevendo e se '' r,,'",.-l'
,i'''' ,, ção. Passou o tempo do "segundo sexo", em que Simone
\', ,'¡'',i. 'inscrevendô naquílo que escrevem. Uma barata esmagada , .'1"' ./ l r,'de Beauvoir, contra fatos e mitos, propunha a igualdade.
'
.':.;!l' )' ,' na clobradiça da porta pode sef um súbito precípitar-se no l-'

I '- ' divino. "Trata-se primeiro como de uma espera que igno- ' , ; , ù' , lrigaray, ao qual cabe agora inventar-se.
ra sua fonte e seu nome, depois uma pulsação bate pouco
J,:,'
,' ''d A literatura vai colaborar nessa invenção, utilizando, Para
\ a pouco o ritmo de um projeto sem definição possível,
por j',, ' ' isso, a matéria corporal. Irigaray atravessa, de Platão a
enquanto, mas para a realtzação do qual todas as forças \ )l'
. Freud, uma história científica que constrói a mulher a pâr-
são mobilizadas com wha obstinação surda e cega a todo ' tir do homem e em função dele, e introduz nela um
o resto. operam-se deslizamentos. convalescença de uma
i espéculoll para revelar uma outra mulher, não submissa à
mulher no seu passo hesitante."lo --îtruurssia
-^ Reintegrar.a rnemória e avivência dando vozao que an- ; dos textos em que o masculino determina oi
,tè,
, era siiãncio. Dando voz mesmo ao silêncio, arte maior i limites do feminino recusado como Outro
- e o confirma
I de Marguerite Duràs, Nela, comg na escultrua, os vazios como alteração negativa do Mesmo é necessária para que
-
\ . ' contamianto quanto a matéria, são matéria onde todo su- "um sexo que não é", que ainda não foi, tente ser, que-
que implica uma escolha rigorosa da .]brando o silêncio imposto peia exclusão do discurso.
,', '' I pérfluo é eliminado, o
.

i.
' , 'ri ialavra capaz de supoitar a expressão. Pryut utiliza o si-
ù
' ) Ficção e teoria colaboram no sentido de fazer tábula ra-
,iêncio na caligrafia utiliza-se o fundo branco, tão im- ' isa do passado. A desigualdade entre homens e mulheres pro-
';' '' rportante "o*ä a letra traçada sobre ele' il\\ :r \vinha desse "defeito", dessa inferioridade de um
sexo que
' saímosquanto
LJ
i\
I dos territórios do masculino. Aqui, a fronteira lnão seria senão uma deformação do outro. A luta pela igual-
de uma no man's land queé o mistério e a força encantató- dade se esforça para negar esse defeito, para negar qual-
ria de Clarice, o lugar imprevisíveln descónhecido, de onde ,
'
,¡,-':' ,euer diferença, ignorando o fato de que, negando-o, subs-
provém essa voz filtrada em sons inauditos. Voz feminina, n ," Jcreve o critério de simetria e soliciia o reconhecimento em
persona feminina.
JI ' lnome da qua capacidade de ser como o outro,.e não em no-
. - Mas o Feminino que Clarice e Duras começam a cantar
e ,,
-t .fme de ser Outro. Armadilha-que a vanguarda dos anos 70
it u ,
¡1.

sofre do barulho do Femiqismo. Desenha-se, nos anos 80, '


'$1' o' l-.= Ire.usou deslocando-se para outro ponto de vista, a partir /
p
uma nova perspectiva, em que a procura da identidade fe- do qual conquistou uma palavra de mulher, autora de um
( ti,
¡i i'
minina substitüi a da igualdade t-om os homens. É, sobre- discurso inédito. Irigaray leva ao extremo essa posição e per- .i.
tudo, o,desejo de dar vozaessa identidade, de fazer existir gunta: posto que o sexo feminino foi censurado a partir da I ù
I
o Feminino como presença na cultura, Qü€ se insinua na lógica do consciente, teria o feminino um inconsciente? Não {,i
literatura sob o título de "Escrita do Corpo"' seria ele o próprio inconsciente? O inconsciente não seria
A escrita do corpo, se entendida do ponto de vista da so- justamente o feminino reprimido, cuja volta se faz no
ciologia da literatura, exprime o momento em que as mu- desvendar-se do prazer da mulher que Freud nunca.soube
lheres esboçam uma identidade que não é mais o avesso da escutar? .

identidade do homem, nemmesmo o seu contrário. Um su- Um tempo que legitima essa ousadia teórica incentiva,
jeito coletivo escreve e se inscreve nesse corpo-autor. Em no plano literário, o discurso autobiográfico, catártico, as-
t26 ROS¡SKA DARCY DE OLIVEIRA A EMERGÊNCIA Do FEMININo tn

sociativo, que se toma pelo inconsciente e que, como ele, r / vida føz o texto a partir do meu corpo, Eu sou o furto.
ignora a justificativa, atribuindo-se um sentido intrínsebo, A históriø, o amo4 a víolênciø, o tempo, o trabalho, o de-
auto-referente e auto-decodificável. sejo, se inscrevem no meu corpo, e eu vou onde sefaz ou-,
i' O livro considerado fundador dessa tendência literária I vir a "l{ngua fundømental", llngua corpo, na qual se tra-,
ir, lr, ¡é Pslavrø de mulher, de Anníe Leclerc, publicado na Fran-
. duz ø linguagem das coisos, dos atos, dos seres, no meupr6.
prio seio o conjunto do real trabalhando nø minha carne,,
r) . -' ça em 1974, que conquistou um enorme sucesso de públi-
captado pelos meus nervos, pelo,s meus sentimentos, pelo'
jco. Louvação outrøncière das regras, do parto, do prazer ' trabalho de todas as minhas células, projetado, analisado,
feminino, exercício de autocontemplação ma¡avilh ada, Pa- recomposto em um livro.
lavra de mulher, embora tenha o mérito de ignorar tabus,
\
. C:
nem por isso chega a se {ronstituir em obra literária. Pobre ^,,
'' .l')
As regras, o parto, o aleitamento, os seios, a vagina, o
na invenção formal, o desejo de resgatar as delíci¿rs da fe- 'r\ .
^ ,,,,útero, não são apenas o corpo em si, mas a metáfora de
minilidade, oculta e desprezada pela cultura masculina, em- , 1 ,rll l i uma percepção do mundo vivenciado a partir dessa mora-
purra a autora perigosamente para o sexismo às avesas que, . '-,,, rda específica e insubstituível do feminino.
fora da temperatura aquecida do militantismo, ap¿uece co- j ',,i' , , i Cixous apresenta seu roman ce Souffles como uma me-
mo quase ridículo. Mas o fato.é que a Paris dos anos 70 l', ", 'll.'. ( ditação e um salmo sobre a paixão de uma mulher, atra-
vivia nessa temperatura aquecida e, por isso mesmo, o li- n ,., l' ,.,. , ' vessando os grandes corpos míticos da Grécia e da Palesti-
vro abriu um tempo de produção acelerada em que muitas o\r',, l', na, onde se fundem o masculino e o feminino. "Cega e vi-
: " mulheres acreditaram que aliteratura de testemunho, mais i;1r''
,\'f dente, ela atravessa os jovens recantos eróticos da bissexua-
autobiográfîca que ficcional, conseguiria dizer a mulher, de- v1' üdade. Texto-mãe, texto-filho, texto-amor: espaço de ges-
. , clinar o feminino em sua riqueza não explorada. tações. Deixar correr o leite, deixar voar a escrita".
' : Há uma certa circularidade que m¿Ìrca á escrita do cor-'
, ,. .' naclos liwos publicados não escapa do depoimento, fechado .4 ¡. po¡ que parte
.¡,:.,' .,,, dele, acreditando que o gozo é uma fotma
,. â tudo que não seja mergulho uterino de pulsações e rit- 't,
mos interiores.
:' ,de conhecimento, e volta a ele, como a um porto seguo;
' 'o corpo é ponto de partida, percurso e chegada. A escrita
Convencido de que a representação insignificante das mu- do corpo não seria mais que uma tendência da literatura
lheres no mundo liter¿irio se deve ao sexismo da cultura mas- escrita po-r mulheres, que agrada ou não ao leitor mrÌs sem
culina hegemônica, o Movimento Feminista encorajou as i
maior importância teórica, se não trouxesse consigo o de-
mulhçres a escrever, mas confundiu, nesse incentivo, a im- ' bate, esse sim, mais interessante, sobre a existência de uma
portância do ato cle se expressâr mais mulheres escre-
- ¡r. J€scrita feminina. Existe, dg fato, uma escrita feminina?
1) vendo e mais livremente
- com a importância do que é ex- i1 ' Duas questões têm sido desde então confundidas: existe
presso. São poucas as autoras que, nessepefíodo, alcança- \' t
ram qualidade literiíria. A maioria simplesmente benefïciou' como de autoras mulheres? Ou uma escrita feminista, que [, \
se de um clima de época.
Escritora e ideóloga da escrita do corpo, Hélène Cixous
pretende levar para o campo literário a busca de identida-
cle social e sexual das mulheres de nosso tempo?
)i
é um desses casos de sucesso no escrever com o corpo. Em A primeira pergunta pressupõe a existência de um Femi-
La venue à I'écriture, Cixous sintetiza essa ideologia do cor- nino que, pouco importa se por razões sócio-culturais, his-
po como metáfora: tóricas ou biológicas ou as três, habitaria as autoras, agin-
A EMERCÊNCIA DO FEMININO 129
i28 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

cestral, feita de experiência física e psíquica, incide sobre


do sobre elas consciente ou inconscientemente, com a for-
a expressão feminina. Quer elas escrevam na amargura con-
ça de um determinismo, e terminaria por se fazel'visível,
.¿ Itra a discriminação, quer escrevam afirmando a igualdade
. perceptível, na obra ternrinada. .,{¡\
Jou sublinhando a diferença, enr quaisquer dessas circuns-
:" Para além da escrita, a questão abre o debate sobre a exis-
.,ììr Itâncias é a identidade que se procura pelos caminhos da di-
tência de urna cultura feminina, tributária das particulari- ti, /'lt'' iì
I

, , i' clades do corpo, em que se enraizaria a literatura das mu- r,- [ferença e da diversidade.
tr. A presença do Feminino na literatura não é delimitávelra
- r ilheres. O que é uma maneira mais precisa e mais larga de 'raÍ "
senão como crise. É o Feminino em crise, debatendo,¡e na\
r i.
( I i.
', Lti
que aquela que a situa no plano pura-
i,' ll, ,, 'encarar a diferença ambigüidade e na indefinição, que se manifesta na litera-/,
L'; ' mene libidinal. Essa suposta cultura feminina deve ser to- tura e não o Feminino previsível porque pré-determinado. j
(
mada aqui em seu sentido antropológico, ou seja, como ex- ^; -
O Feminino literário se procura, ambíguo como as mülhe- ''.
þressão dos modos de fazer e de dizer que acompanham a res do tempo que estamos vivendo. Nele cabem o sim e o \.
experiência feminina tradicionalmente separada da experiên-
não, a igualdade e a diferença. Esses pólos existem como
cia masculina. núcleos isolados, assim como na experiência cotidiana das
Yvonne Verdier, etnógrafa francesa, estabelece uma re-
mulheres que vivem ora como homens, ora como mulhe-
lação direta entre o corpo, o fazer e o dizer, corroborando
res, e entre eles oscila a identidade em crise.
a hipótese de uma cultura feminina. Só a história da literatura poderá dizer se, no fim do sé-
(lm mesmo Jío percorre a trøma formadø por frases, ges- culo XX despontou, contemporânea do Feminismo, uma
tos, funções femininøs, o fro Íîsíológico das particularida-
literatura do Feminino. O distanciamento crítico ilumina-
' des de seu corpo. Modos de fazer e de dizer se alternam e
''
râ, talvez, a experiência de hoje com uma lucidez que a con-
se iluminam mutuamente, desenhondo uma esfera de repre- I
vivência com o fato perturba. Nossa observação de hoje se
sentações e de ações que pertencem, csrøcteristicamente, às ' .,|
r'1,'
faz com,o numa sala eseura, em que procuramos aos pou-
i)
mulheres. O uníverso Íemíninò se defîne não negativamen- .\a . acomodar a visão para distinguir contornos e identifi-
,'i ',i:
I

te em relação øo mundo dos homens, mas de dentro para ,r i' ì


car formas reconhecíveis. Toda conclusäo é, por isso mes-
forø, por si mesmo, como unÍverso organizado e regido por
I
mo, provisória:
Ct'¡
suas própriøs leis, Iugar de soberønia e de autonomiø døs T,, Uma observação de Marggerite Yourcenar, reagindo à
!próprias mulheres.r2
ï! I

tentativa da crítica de identificá-la pessoalmente com seus


personagens, ilustra bem a intimidade do autor com a obra
A modernidade trouxe consigo o movimento de aproxi- sem confundir-se com ela. Segundo ela, seus personagens
ruação de mundos, as mulheres cada vez mais presentes nos nutrem-se dela, como um filho se alimenta da seiva mater-
territórios do masculino. O fato mesmo de escrever é um . D€r, sem que, por isso, se trate da mesma pessoa. Essa me-
sintoma dessa aproximação. Mas isso não é suficiente para táfora da maternidade, em que se afirma, ao mesmo tbm-
apagæ a dicotomia fundadora que faz com que masculino ',¡.,t,' .,;'.
e feminino, enquanto corpo e experiência existencial, relem-
j, , ( ,r') po, que, Ír filiação e a independência da obra, nos incita â. pen:
sar se a cultura feminina existe, ainda que involunta-
\j r
brem acadainstante acicat'lizdo Andrógino, fronteira dos !',
:\\\r i.'. riamente, como seiva, ela alimentará a obra, marcando-a
interditos que definem o horizonte de cada um. O que sig- ,r,{' '), tli' com o selo do feminino.
nifica, corno já dissemos, que duas culturas coexistem e con- {' nj
\r';. ;1,' Nas Cørlas a um jovem poeta, Rilke nos fala do "sangue
viverir, disfarçadas em uma só. Uma cultura feminina an- - lr , t'
'utl ' "
I30 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA e BunncÊ¡.¡clA Do FEMININo l3l

dos nossos ancestrais, que forma com.o nosso essa coisa A literatura feminista dos anos 70, aquela que se intitula
sem equivalente que, aliás, não se repetirá". Siritetiza, as- feminista, é anâloga, no movimento de mulheres, ao rrÍea-
- sim, o jogo difícil do individual e do coletivo, do presente lismo socialista".
\ ) , e do passado, do autor e sua cultura, tão decisivo na pro- Escrever com o corpo é às vezes confundido com um in-
f '" finito derramar de leites e de sangu e, exageradamente alu-
dução literária. Define o caráter único e insubstituível do
sivos à irredutibilidade da experiência dJmuheres. Espé-
Nas mulheres que escrevem hoje vivem as mães e avós cie de kitsch da diferença, agoratão assumida e proclamaãa.
l.l que esconderam diários, vive também a experiência do li- A escrita do corpo não é senão uma das maneirai, e não
. lvre exprimir-se, assim como vive a ambigüidade face ao que necessariamente a mais fiel ou a de maior talento, de decli-
' se está sendo. Nas mulheres que estão escrevendo vive
uma nar a crise do feminino. seu mérito, como o de toda arte
ancestralidade feminina que forma com a experiência an- que mereça esse nome, é o de dar aver o invisível, no caso
drógina de hoje uma coisa sem equivalente que,.aliás, não a libido feminina, ocultada pela libido masculina auto-
se repetirá , Talvez seja essa coisa que estamos chamando referente. seu risco é o de pretender guardar, nas frontei-
cle feminino na literatura. ras de um estilo, esse feminino, que se descobre polimorfo
. Quanto à existência de uma escrita feminista, ela nasce e inesgotável.
,-, autoras que, acompanhando o espírito do
de
i ' 'cam imprimir voluntariamente em seus textostempo, bus- luant9 à emergência do Feminino na literatura, erapres-
impressões supõe pelo menos duas condições: a primeira é que as mu-
, ' , que elas gostariam indeléveis do Feminino. A escritã do cor- lheres se sintam livres para escrever o que sentem, sem in-
po se "impõen' como vontade erótica e política. Hélène Ci- terlocutores mentais ou críticos fantasmáticos quê, senta-
dos no ombro de cada uma, corrijam o texto e introduzam
lxolrs, em O riso dø Medusø, sintetiza essa posição como
'aquilo
.-] que as mulheres deverão fazer: "escrever-se, escre- barulhos que não deveriam existir.
.,Uma profîssão
ver sobre as mulheres e levar as mulheres à escrita, da qual _ Em um artigo chamado para mulheres",
foram arrancadas tão violentamente quanto de seus corpos virginia woolf propunha matar o anjo oo lar. o anjo do
lar era aquela mulher receptiva que preferia a morte a de-
- pelasfatal.
jetivo
mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo ob-
As mulheres devem colocar-se no texto co- cepcionar alguém e garantia a felicidade de todos exceto a
mo no mundo e na história por elas mesmas".l3- sua própria. Esse a4jo, o neofeminismo já abateu. Resta,
_ Mas talvez o risco e a inevitabilidade- de todo militantis- insidioso, o diabo do próprio feminismo, que espeta com
. mo seja o de criar uma norma fora da qual as mulheres, o tridente do imperativo, do dever escrever como mulher.
' de novo, não se sintam adequadas. O mérito do neofemi- - De certa maneira, é num mesmo movimento que a iden-
, nismo, negando ao mesmo tempo um passado restritivo e ;tidade feminina se procura e procura r..rrrru.r'. É no ¿e-
uma adesão acrítica ao universo masculino como opção a poimento sobre a perplexidade, sobre a incerteza,
t escondido, sobre o oculto, sobre a sensibilidade dosobre o
t
f
)i'
..)
'esse passado, teria sido o de abrir para as mulheres a possi- inédi-
bilidade do ineditismo e da multiplicidade, uma experiên- ito, que o feminino cederá seus territórios para que neles flo-
/resça uma literatura.
"]cia que não é feita da superposiçaó ¿e experiências iemini-
/nas e masculinas, mas de uma gama infinita, na sua varie-
lj' ' dade, de misturas desses elementos, segundo o tempero es-
\\
colhido por cada uma. Em outros termos, a liberdade. \
A razão das loucas

Existe em Buenos Aires uma praça cuja visita é obriga-


tóriapara os turistas mais assumidos, os que se deixam fo-
tografar pelos diversos e obsoletos lambe-lambes e voftám
para casa com fotos amareladas tendo ao fundo o Cabildo
ou a Casa Rosada. A Praça de Maio é o coração da cidade
antiga, cenário da história argentina, caixa de ressonância
de golpes e contragolpes. Das janelas da Casa Rosada, dó
lugar do Poder, Evita prometia aos descamisados a prote-
ção com que o casal Perón mobilizava a orfandade do povo.
Um dia, muitos anos depois, outras mulheres entra¡am
em cena na Praça de Maio. O tema era ainda a orfandade,
mas pelo avesso, a orfandade das mães de filhos desapare-
cidos nos meandros sórdidosãa ditadura argentina. Em si-'
lêncio, a cabeça coberta com lenços brancos, elas carrega-
vam cada uma um cartazcom o nbme do "seu" desapareJ
cido. E só rompiam o silêncio para gritar esse nome. Essa'
procissão rondou aPraçade Maio, incansável, durante dias;:
durante anos, com o peso trágico do enfrentamento do ím-
possível. Porque pediam o irnpossível. Pediam os filhos,'
mortos certamente, mas mortos onde? E por'quem? Ou tal-'
vez vivos? E onde? 'i1
Antígonas dos nossos dias, foram chamadas as loucas dd;
Praça de Maio. Eram mulheres comuns, gente como uno,
nada heroínas, eram cada uma de nós e a sua circunstância.
134 ROSISKA DARCY DE OLIVËIRÂ n pN¿encÊHcIA Do FEMININo 135

Desafiavam a céu aberto o Poder sanguinário que empur- tica continha esse elemento de ameaça, que se transforma-
rava para a sombra os mais inocentes, atormentados pela ,l ,,
. t¡
va rapidamente em medo de mudança.
paranóia. Elas, à luz do dia, sob as janelas do ditador, sob Essa relação ancestral de impotência face à polÍtica estár- , it' r.
chuva, sob sol, no silêncio entrecortado de gritos, faziam registrada no museu de Delfos, em fragmentos de uma fri-['' .,. , 7, ' '-
ouvir como que a alucinação de uma litania, que ecoou no i ,
sa romana em que se esculpiu a luta entre os homens e as 1", ''
país, na América Latina e além-mar. , ii mulheres, que tãntam impãdiJos de partir para a guerra. i ' '', .,"
Criaram o fato político de maior ressonância, o mais elo- t,,ir'. ,lj A sucessão de esculturas mostra, ao fim, as mulhere.s bati- i ..', tt ,
qüente, o mais entendido. Em silêncio. Eram loucas, dizia , ,,'- ",' das, derrotadas, caídas no chão, deixadas para triís por uma 9r i,r:.
o Ditador, convicto da sua Razäo. Eram loucas, diziam os j . I poderosa e orgulhosa expedição que se vai à conquistu !r,]'
políticos de oposição, que criticavam sua intransigência, 5s¿ /,"i,,, novas vitórias.
], ,.
recusa de qualquer pacto, acordo ou negociação. Eram lou- I A frisa romana é alegórica de um gesto mil vezes rypeti- l' " ' ,. "
cas, dizia a complacente Igreja argentina, que dizia ser tempo do þor mães e esposas, quaisquer que sejam suas pósições
de esquecer os mortos para cuidar dos vivos. Mas não, elas políticas. O conservadorismo não é necessariamente a ade- '' , ,'' ", ,

não concordavam em esquecer. Eram loucas. Eram as lou- são a idéias conservadoras em política, mas uma descon- , ' ;
cas da Praça de Maio. fiança visceral da política como caixa de Pandora. ' ,''L ,, ,
Dentro da História, à lógica da História, opunham a 1ó- A conquista do direito de voto veio reforçar essa ima- '
gica de uma história outra. E desmentiam assim uma espé- gem de conservadorismo, na medida em que as mulhères,
cie de maldição que pesa sobre as mulheres, acusadas sem- muitas vezes, manifestam-se nas urnas contra as platafor
pre, em política, de favorecer o lado conservador. Essa fa- mas de mudança. A esquerda, que se crê portadora do pro-
ma se criou a partir de um mal-entendido. É fato que a his- gresso social, sempre temeu o voto feminino, tido como rea-
tória moderna registra a existência de organizações de mu- cionário. Acontece que o direito de voto introduziu as mu- t.:

lheres que se criaram como porta-vozes de idéias conserva- lheres a uma cidadania formal mas não substancial. No dia, , . ,

doras. Daí deduziu-se rapidamente um conservadorismo ina- a dia elas continuam, em grande maioria, excluídas da vi-i9
to nas mulheres. Essa leitura precipitada ignora não só as da política, ligadas umbilicalmente a uma vivência familiar, \
causas como o sentido mais profundo desse suposto con- isoladas da informação, o que resulta em uma presença na I ,'
servadorismo. polis quê se exerce pelo voto mas que coexiste com a resis-J
O medo da mudança nas mulheres não é necessariamen- a' tência à mudança, expressa no conteúdo do voto.
te um conservadorismo inato, mas a instintiva reação de'de-
.1

!
,, Mas nem só de votos vive a política, e eleições não qão
I ',1'
fesa contra decisões que, tomadas à sua revelia, podem re- ". , '.' ì
o único parâmetro da qualidade da participação feminina
presentar perigo para os seus homens, filhos e maridos. e
napolís. As mulheres podem, subitamente, se movimentar
A relação das mulheres com a política foi tradicionalmen{ por outras razões e, em função do significado profundo des-
sas razões, emergir politicamente com conteúdos novos. ,. .
'
te a experiência da interdição. Fechadas em seus lares fize)l
ram vida afora a experiência de ver esses ldres serem trans-\ Há dores que são iedentoras. É "quando nem se espera , t, ,í-'
'
for¡nados por fatos externos cuja lógica thes escapava, so-' mais" e "eis que a faca ressurge com todos.os seus cris- ' ''
bre os quais uão haviam opinado, que não eram escolhas tais". São aquelas que ferem mais fundo e que, por isso, i',,.''
suas mas que se imiscuíam em suas vidas como um raio im- despertam, revivem o músculo morto, e, coração reanima- j'
previsto, inexplicado e por isso mesmo assustador. A polí- do, fazem falar quem sempre viveu calado.
I

136 ROSTSKA DARCY DE OLTVETRA I

,
A EMERGÊNCIA Do FEMININO t37
|
, lt ( ,.(,
As loucas da Praça de Maio falavam do lugar mais anti' ,l i ;ú::, lheres do continente que é o meu. Quando voltei ao meu
go, do laço ancestral que une a mulher a seu filho. Por isso i n :ll,
.t' a
lugar, delegada norte-americana que me ladeava
diziam o incompreensível. Não defendiam a família, insti-{ L (', ,,,! "' ''t', ,',/'t.' .r) perguntou-me quem eram essas senhoras. E, em seguida,
tuição que os homens criaram exatamente a preço de mu-\.
" .l j"^
ii .i.'''' tomando a palavra, apresentou infindáveis estatísticas so-
lheres. Gritavam uma fala deslocada, anterior ao discurso ¡ f' '' " '' I ,''' bre o número de mulheres que ocupavam postos no legisla-
do social, mas feita discurso social pelo fato mesmo do gri- \ '
t / '-'', '
.'

tivo e no executivo americano, do nível federal até a mais


to. O grito se dava na praça. ) - '
¡."' longínqua comarca do ldaho, sublinhando os desníveis sa-
A desrazão das loucas da Praça de Maio situa-se ' 't'
r*.r* lariais e as dificuldades de ascensão. No fim da tarde, olhan-
outro marco referencial. Falam por sobre a cabeça do Es- do a outra margem do Danúbio, fiquei pensando na dis-
tado aos sentimentos e à consciência do país. Não reconhe- L ,l tância que separava nossos discursos, o quanto de estran-
cem as razões de Estado sequer para condená-las, mas an- i.. -' geiros tinham um p¿ua o outro. A feminista norte-americana
tes as ignoram, como ignoram o fato irremovível que é o ',
ì, não conhecia as loucas da Praça de Maio. Quanto a mim,
filho morto. O irrealismo, que lhes valeu o título de lou- \ suas estatísticas me deixavam fria, entediada, com o senti-
cas, é a fidelidade a um outrõ sentido de realidade, que lhes ) mento de more of the same.
vale o título de Mães da Praça de Maio. E claro que eu simpatizava com o esforço das america-
As mães da Praça de Maio nada tinham a ver com o fe- nas para sair do ostracismo político e entrar ou pensar que
minismo, embora suas ações fossem contemporâneas. A fu- entravam no decísion making process.Éi claro que eu apoiara
gentina dos anos 70 se prestava ao luto e não à alegria mes- e continuaria apoiando todas as reivindicações nesse senti-
clada de angústia. com que, nos países ricos, as mulheres do. Mas não podia deixar de rne perguntar como era possl-
descobriam a possibilidade de novos horizontes. As mulheres vel que essa delegada americana, que ainda'por cima já fa-
dos países do norte, fora algumas Iigadas à luta pelos direi- zia parte dos processos de tomada de decisão, ignorasse o
tos humanos, desconheceram praticamente a importância, que me parecia a evidente ernergência do feminino na poll-
para elas, do que se passava numa praça nos confins da tica. Tampouco me consolava essa visão quantitativa das
América do Sul. vitórias do feminismo. E me saltava aos olhos naquele mo-
Em 1980, a ONU reuniu em Viena uma conferência de mento que o feminismo só teria sentido se levasse para a
mulheres sobre apaz. O consenso parecia admitir, no pon- não um novo esquadrão de políticos de saias, mas
to de partida, que as mulheres seriam vetores importantes ì;t' de fundo, como a exigência de reconhesi-
na construção da paz, embora pairasse sobre nós, delega- I ".' de uma lógica estrangeira à política, muito próxima
das, como um fantasma incômodo, a lembrança dos atos ética, talvez a única capazde renová-la. Ocorreu-me en-
de violência que vinham cometendo mulheres no pc,der co- ¡
que a idéia mesma da democracia seria tanto mais in-
mo Indi¡a Gandhi e Margaret Thatcher. Apesar disso, a pró- por questões insólitas, quanto mais livremente se
pria idéia da conferência reforçava o sentimento de que a .,..': €xprirnissem as mulheres.
presença das mulheres nos processos de tomada de decisão ).
i A democracia não poderia mais ser garantida pela sim:
seria suficiente para repelir a idéia da guerra. ples presença quantitativa das mulheres. Essa presença quan-
Tudo isso me parecia ao mesmo tempo certo e errado e titativa não é senão um ponto de partida, uma reivindica-
eu não sabia por que. Lembro-me que fiz na tribuna um emo- ção prim¿íria, a pré-história da democracia. É daro que sem
cionado elogio das loucas da Praça de Maio, tributo às mu- a presença física das mulheres nos postos representativos
I
I

138 ROSISKA DARCY DE OLIVËIRA e puencÊNclA Do FEMININo g9* t


I
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e executivos da sociedade, voltarfamos ao tempo do apar- tura masculina. Nesse campo argumentativo em que dife-.! -
theid sexual contra o qual o feminismo vem lutando há mais rentes visões de mundo e de organização da sociedade seL,'
de um século, e antes dele tantas mulheres que, todas, re- encontrarem para procurar soluções em comrun, nesse cañ-i.,
ceberam o epíteto de loucas. po, então, se poderá falar de democracia. O feminino na;' '.'
,
política toma assim a forma de uma reivindicação demo- i¿,1.. rtl
A política de cotas, que é hoje uma das reivindicações
mais avançadas da poUtica da igualdade, assim como foi crâtica que nos tire do neolítico da democracia e nos per- (;\:
em um determinado momento a defesa da discriminação po- rnita imaginar uma certa modernidade. Porque não se tra-
sitiva para corrigir vícios históricos e promover a igualda- ta, para as mulheres, de ingressar na política como ali¡nas
:,
de, é uma espécie de potencialzação máxima do indicador :, I
bem comportadas, peøu noire, masque blanc, tentando fa-
quantitativo da igualdade. Essa política tem, entre os seus ;'. lar masculino sem sotaque. Não se trata de entrar na má-l
quina política mas, talvez, de enguiçá-la para que outra se ,.,,
mr¡itos méritos, ó de abrir æpaço para que o acidente se
produza. O acidente seria uma reviravolta na maneira co- ì , , r. '
,,1
torne necessária, em que as mulheres possam funcionar. l^)'
,\ .ì\
Antígona foi obra de um homem. A mãe desgrenhada'\ I
rno as mulheres vêm se comportando na política. Essa re-1 - )' \
viravolta talvez só seja possível quando mulheres chegarem '' , '
\ '( do Guernicø também. IJrsula Iguaran invadindo ó qua¡ts1 'r," \
e chicoteando no pátio o biçneto tirano, pariu García Már-
ao poder imbuídas não do espírito da igualdade, mas doi'',
'
)'
quez. Foram subùmaçõ"r,îu arte, de u* F.*inino pies-
desejo de exercer a diferença. A igualdade quantitativa vem l'.' ,\r'
l sentido, feito criaturas inesquecíveis, arquetípicas, que vi-
atuando sobre os processoi de participação polltica de mu- ',
,
veram nesses homens como inquilinas de seus corpos.
lheres, enquanto a política da diferença quer pensar os seus 'r- , 't''
O fato político criado pelas loucas é obra de mulher. Ar-
conteúdos. ' \
te feita vida, feminino feito política.
É preciso reconhecer que, até aqui, uma grande parte da '
Era madrugada na praça de Buenos Aires quando um gru-i. í
energia das mulheres,.em seu caminho dentro da política, po de mulheres deslizou para a frente do palácio e para den- ,.
foi para assegurar esse próprio caminho. Foi para garantir tro da História.
- /'
que uma mulher pudesse ser eleita deputada ou governa- ¿

dora, ou mesmo primeira-ministra. Acreditava-se que, co-


mo numa equação simples, quando uma maioria de mulhe-l . . NOTAS
res tivesse poder de decisão os interesses das mulheres esta'\'
riam automaticamente representados. O que não foi, não ,',,.
'.' 1. Elizabeth Badinter, L'Un est I'Autre, Paris, Jacob, 1986.
é, e não será verdade enquanto o que se pedir das mulheres iit
¡

ti ,) Idem, p.280.
políticas for apenas um pqrtencimento de gênero e a capa-) .i' 'l 't lrigaray, Ce sexe qui n'en est pas iln, Paris, Minuit, 1977.
3. Luce
t'4. "Faire le ménage c'est travailler", Cahiers du Grif, n? 14.
cidade de escapar dos limites desse gênero para agir como i André Gorz, Métamorphoses du travail, quête dusens, paris, Gali-
um homem lée, 1988.
Os interesses das mulheres estarão representados quan- 6. Idem.
.|
do,'no poder, uma mulher for capaz.de agir como ûrulher, 'r "' Virginia Woolf, A Room of One's Own, Harcourt Brace, Novayork,
L

1929.
desafiando todo o estereótipo cultural que inferioruaara' Ì ,
8. Marguerite Yourcenar, Les yeux ouverls, Paris, Editions du Centu-
zão feminina como irracional e a sensibilidade feminina co- '' rion, 1980.
mo sentimentalóide. Quando as mulheres fizerem existir, no
'
I
9. Patrick de Rosbo, Entrevistas com Marguerite Yourcenar, Editora
poder, acultura feminina, em francanegociação com a cul- Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987.
r40 ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA

10. M. Marini, Teritoires du Íémínin, Laffont, Paris, 1979.


11. Luce lrigaray, Spéculum de I'autrefemrze, Minuit, Paris, 1974.
12. Yvonne Verdier, Føçons deÍøíre, fiiçons de dire, Gallimard, Paris,
1979.
13. Hélène Cíxous, Le rire de la Méduse, Des Fem¡nes, Paris, 1976.

Conclusão

ANTíGONA E O ANDROGINO
^
lri' It" , .)

iL
) uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres não
supõe o Andrógino nem tampouco a eliminação de dife-
renças.
'i . A tentativa de fundar a convivência entre os sexos na eli-
¡./
il ,

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I

ll
,4,

q
,t'

gregos¡reu€ compreendiam a realidade como oposi-"


_
Os, j,, '
ção de contrários, já sabiam que os conceitos opostös se
ilI , atraem e se pertencem. Um não é o outro, um não está se'
tornando o outro. As mulheres estão se tornando unna ou-
tra mulher, os homens poderão se tornar outros homensi i

do que são hoje. Isso não implica em que sedis.


/diferentes
rsotvam um no outro. .:
Dissolver e fundir homens e mulheres, masculino e fe-
minino, no magma de uma nâtureza humana indiferencia."
da, é romper a própria dinâmica da vida.
uma das características principais do mundo cultural mas-
I
I

"1,'144
ROSISKA PARCY DE OLIVEIRA I n¡qrfcoxe e o ANonócrNo 145
ii

culino tem sido, justamente, a sua atitude arrogante e dis- I


escolhas humanas ao longo de sua história. Uma história
,r tanciada da Natureza. A cultura masculina não procurou
:.1
I

humana da Natureza inclui, também, a história do Femini-


| /l com ela um entendimento nem um equilíbrio porque, arro-
I
I no, o feminino como História.
gante, não se sentia parte dela. Os movimentos ecológicos I
Hoje, o feminino não é mais nem o outro nem o mesmo
não têrn feito outra coisa senão denunciar esse mal- - do masculino. Ele não é tampouco essência ligada a uma
I

'
þt'. entendido, essa pretensão pela qual nossa civilização
I

l"
I
i,,,\ Natureza imóvel, mas experiência ligada a uma Natureza
. -,t l'
t , \Élcolocou-se em oposição à Natureza. Nesse sentido, os eco-
l. i| histórica. O feminino ingressa assim em um espaço Ce ti-
riJ ,- \' t /ilogistas são hojå os aliados das mulheres que se decidam
r',) I\)-' que da ausência de um conceito. A liberdade do feminino
I .l.' berdade, onde seria maiJjusto falar do não concebido dò
ja
feminizar o mundo.
I

'í! "'
t.
¡.'.J ' , Essas mulheres serão talvezas primeiras a enfrent¡u o pro-
I

i
ì
,; ,,\ f Varu definir-se nos tempos vindouros não se referirá à Na-
blema delicadíssimo da Natureza, posto que, em se tratan- n, \ ' tvÍeza como essência, mas como experiência. Não negará
I

'''.'u' 1i.
, ). do das mulheres, a Natureza s€mpre foi um tema tabu. A \ . ,' ' o lugar corporal, primordial, a partir do qual ele vive e pensa
li' io mundo, mas o integrará nesse pensamento do mundo. Não
,.ii: lvalorização da natureza feminina sempre foi o argumento ,\
,i,, negará o passado, a cultura feminina que medrou à mar-
,.''. -. imobilizar a História, para referir-se a uma essência imutá- iir gem do mundo dos homens, mas tampouco a aceitará co-
- vel, pra glorificar o eterno feminino. Servia sobretudo pa- mo álibi à exclusão e ao confinamento. Integrar a história
rl
proibir às mulheres qualquer incursão fora de um espa- humana da natureza feminina ao desenho do futuro do fe-
,' iru
:. ! ..1ço que, supostamente, essa Natureza lhes teria reservado. minino é um projeto ao mesmo tempo feminista e ecológi-
. 'O feminismo, na tradição do pensamento progressista, opôs- co. GanhaÍ voz social foi, para as mulheres, a grande vitó-
se sistematicamente a qualquer valorização da natur eza f.e- ria histórica com que marcaram o século XX. O século XXI
minina e ofereceu a seus defensores um combate sem quar- se abre para uma nova esperança. A de que essa voz femi-
tel, no qrre tinha absoluta razão. Opunha-se a uma manei- nina não seja apenas um eco absurdo de um mundo absur-
ra de encarar a natureza que transformava o corpo femini- do. Espera-se das mulheres um impacto sócio-cultural re-
no em prisão e fonte de legitimização da desigualdade de volucionário. Uma inventividade em todas as áreas da exis-
estatuto social e político entre homens e mulheres. tência, na relação entre as pessoas, nas faces múltiplas do
amor, na organização social; e especificamente na organi-
. O endeusamento da maternidade se fazia acompanhar de
zação do trabalho em que homens e mulheres ganham e per-
toda uma ideologia de submissão, de conformismo, de acei-
dem a vida, nas decisões políticas de maior envergadura em
tação de fronteiras. Hoje, retomando o tema da Natureza,
que se decide a paz e a sobrevida do planeta.
''
'' Åt
,¡;i:ö faço de uma perspectiva diferente. Não me refiro a uma De pouco teria adiantado o feminismo se ele se esgotas- U
n,

.TNatureza limitativa, inimiga, mas parceira, companheira. se em uma banal adesão ao mundo dos homens: O traba-
. i''- Trata-se de quebrar o paradigma arrogante pelo qual os se- lho de invenção, de repensamento, a ousadia de propor o ti'
I ;\ res humanos se e¡rcluíram da natureza, se colocaram fora dela, aparentemente inviável, devem alimentar o feminismo dos
'.'' , seja para negáJa, seja para desafiá-la. T'rata-se de quebrar próximos anos, elaborar novas plataformas, assim como hál
a oposição entre NatuÍeza e Cultura, para surpreender-nos ,. alguns anos anunciavam que "nosso corpo nos pertence".
em pleno curso de uma história humana da Natureza, em1 ìi' , Nesses próximos anos, as mulheres que se propuserem a
que, esta não seja ignorada ou subtraída, mas respeitada pelas
feminizar o mundo reencontrar'ão provavelmente o esta-,
" (i
,,
146 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA

ttrto já conhecido de minoria, com toda a carga de origina-


lidade e diferenciação que o caracteriza: aradicalidade de
um desejo e uma aura de utopia.
Retomarão um destino de oposição ao Andrógino em bus-
ca do Feminino. Porque só pela travessia do Feminino é
possível chegar ao Andrógino. O Andrógino que nos pro-
metem hoje é uma espécie de monstro gerado neste século.
disforme, dessemelhante do ser perfeito e harmônico que
Bibliogr afia
a mitologia nos legou. Nesse, um equilfbrio sem fahaão
Feminino e do Masculino sugere uma forma cíclica, inte-
grada, fusional. O Andrógino do nosso tempo tem cara de
homem, esconde o feminino como deformação, como er-
ro, como falta, como ausência. O Andrógino mitológico,
com a justiça e eqüidistância do clrculo, girava como uma ARDorNo, t., Eclucølionpolitique, paris, Gauthier_Villars,
e 1975,
roda sobre seus mriLltþlos pés. O Andrógino moderno man- BAcHELARD, c., Lo psychanolyse du paris,
feu, Gallimard, 1949,
ca, alguns de seus pés são mais longos e sólidos do que ou- BAcHELARD, c., Le nouvel esprit scíentifìqze, paris, p.U.F.,
1966.
tros e são eles que determinan o ritmo e a passada. BAÐINTBR, 8., L'amour en plus, paris, Flammarion,
19g0.
BADINTER, 8., L"un est I'øutre, paris, Jacob, 19g6,
Sacrificado por um corte certeiro, feito Homem e Mu- BAr-ANDIER, a., AntropologíqueJ, paris, p.U.F.,
1924.
lher, o Andrógino mitológico vaga, inconsolável, mutila- BARBTER, x'' La recherche-action dans rinstitution
educative, paris, cauthier-
do, chorando e buscando a metade perdida. E, quando a Villars, 1977.
BARD\I/IcK, J., Women in Transition, The Harvester press, 19g0.
encontra, abraça-a eternecido, e essa é a história do Amor. BATESoN, c., Yers une ecologie de l,esprit, paris, Seuil,
19g0.
O Andrógino moderno teve um outro destino. Separa- dc BEAUVoIR, s., Le deuxíème sexe, paris, Seuil,
19g0.
das, sua metades se atritaram em asip€rezas tão diversas que, BELorrr, y.c., Dalle pørte delle bømbine, Milão, Feltrinelli,
1973.
uma vez reencontradas, já não forma¡n u4 perfeito encaixe.
I BELLorr, n.c., Prima le donne e i bambÍni, Milão, Rizzoli,
19g0.
a., Class, Codes ond Control, Boston, Routledge & Kegan, 1970.
Nele, a metade homem absorve a metade mulher, o que , : frnNsren,
nio¡r, w.R., Recherche sur les petits grotg)es, p.U.F., 1965.
..¡'
faz com que só exista um sexo onde um dia existiram dois. i\,BIoN, w.R., Aux sourcat de I'experience, paris, p.U.F., 1965.
O Andrógino moderno é, ele sim, uma deformação. Mas '(r
.t \']
i! BLEcER, t., Symbiose et ombiguité, pa¡is, p.U.F., l9gl.
o outlo, odo mito, como mito sobrevive. Em cada um de ' BOURDIEU, P., CHAMBOREDON, J..C., PASSERON,.J.-C., LE MéTiCr dC SOC\OIOgUC, PA.
-tr
'' ris, Mouton, 1968.
nós, a ferida do Andrógino jamais cicatrizou. Daí que bus- .J BRowNMTLLER, s., Feminínity, Nova york, Ballantine, .19g5.
camos, em algumlugar no futuro, recriar o perfeito equilí- BURR,8., DUNN, s., FAReUHAR, N., ,,Women and the Language
,
t
of Inequality¿,, ,So-
cial Education,36 (1972), pp. 841-g45.
brio, celebfar a esquecida harmonia que permitiria o ad{ )' r
vento do Amor. , ,i
..\ .ARDINET, J.' wnrss, J.,
"L'observation interactive, au confluent de la formation
et de la recherche,', Les sciences de !'éducation, lg7g, l_2, pp. 177_203.
Mas esse amor tem condições. O Andrógino só seria nor/, r\ ( cHESLER, e., Les femmes et la folìe,
sível se Antígona fosse feliz. íiu'' cxous, t+., Souffles, paris, Des femmes, 1975.
\r coNKLtN, N., "Towards a Feminist Analysis of Linguistic Behavior',,
t," The Uni
versity of Michigon papers in Women's Studies, l, N9 I(1924), pp,
5l-73.
L "if DARcy DB oLrvErRA, R., "L'obseryation militante : une alternative sociologique,,;
(em cclaboração com Darcy de Oliveira, M.), IDAC, 1S74, DocunJntã 9.

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