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Rosiska Darcy de Olivera
Ï T- dirilogo amigo enre homem e mulher, um dirálo' b
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mæculino sobre o feminino, um dirálogo que opere uma ,-54
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mudança civilizatória.
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Feninisno, Fílosofra, Literatwa, Pohtica, Psicologia rui
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ISBN 85-11-16017-5
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E ROSISKA DARCY DE OLIVEIIU
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O que é Fenlnlsmo O FEMININO EMERGENTE rt-t.,
Evas, Marlas, Lillths.. Branc¿ M, Alves / (r-r
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As aoltas do Íem¡n¡stni Jacqueline Pitanguy
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Vera Paiva i\.)
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Falas Masculinas, Falas Coleção Tudo é Hlstóda ï ,l
fgmlnlnagf
Sexo e llnguagem Breve Históda do Fenlnismo
V. Aebischer / C. Forel no Brasll
Maria Amélia Teles
Pal Ausente, Fllho Careûte?
O que aconteceu coÌn os
bomens?
070107 677 4
Guy Corneau
editora brasiliense
r¿ por meps mecânícos ou outros quagquer
sem qutoriz^ção prêt)¡q do editor.
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Prtmeìra edíção, I99I
U)
f edição, 1993
Io reímpressão, 1999
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(t Preparação: Rubem Rabello Macíel de Barros
È, ' Reuísão: Anetté Colenan
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Capa: Isabel Carballo, utílízando pastëís de
Iorst lanssen
99-2936 cDD-305.42
fndioc¡ pare ceËåIogo ttrrt€¡!ático3
1. FenintsÞ : soclologla 305.42
editora brasiliense s. a.
Rua Airi, 22 - TauaPé
Cep 033 l0{ l0 - São Paulo - SP
Fone / F¡r: (01 l) 218-1488 Para Miguel, este livro
E-mai I : bras i Ise@yo I.c om. br tecido por nós doÍs, com o
fîo espesso da nossa vidø,
Sumário
Introdução 9
I. DICOTOMIA SEXUAL E
DESIGUALDADE l9
O feminino como crime político 2t
- A separação de mundos:
- pensamentos, palavras e obras 29
As mulheres no mundo dos homens:
- mal-estar, desvio e conflito ....... 39
Cla¡ice Lispector
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Este livro é uma tentativa de aproximação dos territ&
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, rios do feminino. Seguindo veredas, foi possível, aqui e acQ-
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um discurso que, ele mesmo, é masculino. dos, compatibilizando estilos de vidå e modos de
cação diferentes, recebendo da sociedade uma ordem
Não é, certamente, um acaso que os primeiros traços de
emergência do feminino apa¡eçam timidamente na litera- zofrenizante: seja homem e seja mulher. E foi assim
tura do começo do século, refugiados no imaginário,lá onde
À( o sonho de igualdade tropeçou no impossível. Porque a
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a fantasia insubmissa supera a descrição do mundo e busca
homem se pede que seja única e exclusivamente
inventá-lo. A literatura não foi para as mulheres uma sim- 0' aquele que representa a regra e o padrão face ao qual a
ples transgressão das leis não escritas que lhes proibiam o lher deve ser ao mesmo temPo igual e diferente.
acesso à criaçäo. Foi, muito mais que isso, um território
Mas ninguém pode ser, ao mesm o, tempo, si mesmo et' 'br
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Outro. ¡i
liberado, clandestino, pulsando ao ritmo emocional dessa
clandestinidade e desse risco. Salda secreta da clausura da I
Longe do eterno feminino, para além da ambieüidad4!,,
linguagem e de um pensamento que as pensava e descrevia
{ resposta possível a mensagens contraditórias, a autoria ðö¡
in absentiø. feminino é, antes de mais nada, a de uma linguagem paråt I \.' /
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Depois da arte como escapatória, veio o tempo da ciên-
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dizê-lo, invenção que lhe permita exprimir-se sem fecha¡r-l
se na lógica das definições que' entretanto, são incessanteå,
cia como desafio. Assumir Jciência como projeto possível
foi, para muitas mulheres, uma transgressão mais grave do ,.," ( mente exigidas das mulheres. Porque, do ponto de vista daT
que fora para suas ancestrais abandonar-se ao imaginár:io. ,,',.' lógica masculina, negá'la significa fatalmente afirmar o séi¡¡
'. oposto, dito com as mesmas Palavr4s, dentro de um
Apropriação indébita do mais precioso instrumento da r:ul- ' r"'
tura masculina, a intimidade com a ciência só foi possível ' , ' mo quadro de referência. Inconcebível, pois, uma lógica or¡l>
para as mulheres e assim é ainda hoje ao preço de ' , tra, em queconte mais o aproximar-se do que ainda é indd;;
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uma estranha ambigüidade. E da descoberta, ao conquis- finido do que o apropriar-se de uma identidade pré-fabricadåt:
tarem o status de cientistas, da natureza ficcional do con- I no espelho dos homens. Aproximar-se do feminino, inven-'l
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ceito, frágil versão do mundo que vive à temperatura da tandõ-o a cada dia, é o movimento que farão as mulheres
neste fim de século.
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sua própria dissolução. Quantas surpresas! I
Minha geração encontrou o tempo em que, às mulheres, O feminino não é mais o que era antes e não é mais pos-
coube o custo de se perder. De, subitamente, no espaço de sível definilo senão como um processo profundo de desor::
uma vida, ver dissolverem-se certezas milenares, sentir fu- ganização, ou, banalmente falando de transformação.;
pensamen'
gir o chão debaixo dos pés. E, por isso mesmo, ter que as- Quebrou-se o mecanismo mais confortável do
sumir de agora em diante a inédita autoria do Feminino. to, o que define alguma coisa pelo seu contrário, mudando
Autoria que se impõe quando elas não se reconhecem mais o sinal, invertendo características. Assim, masculino e fe-;
em imagens, vivências e representações que ecoavam o minino se definiam por essa inversão de sinais, por uma re-
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l4 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA rNrnonuçÃo
.? do mundo
lação deexclusão mútua que alguns preferiam, benignamen Que essa cultura tenha medrado à margem ad,
com questões insólitas, imprevisíveis no passado que se - . ,.i^, sendo verdade, não elimina sua existência ou invalida o
apoiava em um suposto equilíbrio. Mudou o lugar social I , , ,
de melhpr se gerou dentro dela: a intimidade com o
das mulheres, mudou sua experiência do mundo. As mu- ,/' ,,' I ,, t- sual, o percebido tão villido quanto o provado, o
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lheres ficararn, assim, divididas entre passado e futuro, en--
i
do que é próximo mais do que o que é próprio.
tre memória e projeto. .,1 E é desse melhor da cultura feminina, dessa outra
O Feminismo plantou suas raízes nessa no man's land. - ..
Como todo movimento social, ele chega como desafio e exi- I ,' í
gência de transgressão de uma ordem que, confundida com ' ' ,'. : (i /:fl \ l)
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ção exclusiva da razão por não reconhecê-la comO
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redefinir o político, interrogar a ciência e a arte pelo viésJ j'ì
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da desconstrução de conceitos e da invenção da linguagem. .i;'! ,J
Feminino. ,i
de contato se possa dar. Em um tempo em que lembrar à I em que corpo, cultura, história e lugar social interagem'''o
humanidade sua dimensão natural significava atraso e rea- que comporta inserção e configurações insólitas' O que deÉ 1 )
cionarismo, identificar as mulheres como mais próximas da fendem é uma igualdade inédita entre os sexos, o púmadolf '
Natureza significava diminuíJas, colocá-las, de certa ma- da diferença sem hierarquia e sem ambigtiidade. ii
neira, aquém do Humano, monopolizado pelos homens, si- Às vezeq pensando no movimento de mulheres, na efer- '
tuálas em um plano inferior de desenvolvimento, o que jus- vescência existencial e intelectùal por ele gerada,los riscos
tificava a necessidade de tutela e controle. O lugar inferior que corremos, me vem à lembrança um mito da fndia con-
ocupado pelas mulheres na relação com os homens teve, ao t., þ'
tado por Henri Desroche. Um faquir, depois de preparar
mesmo tempo, como causa e efeito, numa circularidade per- Ll" cuidadosamente urn laço na ponta de uma corda, ioga'apata
feita, a identificação por todos inclusive pelas mulheres I I l' r .t o alto e, seguro de que o laço se prendera em algum lugar \
-
Feminino com animahzação, com atração desconlro-.r'' l
1
-ladadopelo prazer, com ameaça ao princípio de realidàde que, ,;- r' mo dos incréus, desaparece nas alturas, seguro na corda que
supostamente, funda a civilização pelo viés do controle ins-; \, se prendera, quem sabe, em sua esperança. Porque a espe- l'
", ''
A desconstrução dessas convicções, que serviram de fun- nando a realidade e constituindo-a, força atuante que é den-7, ) -',
ìr.::
O movimento de mulheres foi :
"L'ordre se cristallise
àportir de la møsse chøngeante
du désprdre virtuel."
,
Serge Moscovici
"Sisterhood is bloomÍng;
spríngtime will never be the some."
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O feminino como crime Pol'ítico ..r,$.
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É madrugada em Tþbas quando' na véspera de seu
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do com o filho do rei, Antígona deslizapara fora dss
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do palácio. Desafiando a proibição decretada Por seu'
Polinice,
lCreonte, ela vai cobrir de terra os despojos de
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lho rebelde de Édipo, mortoemcombate depois de
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i \engrenagem da tragédia. A fiagédiaéochoqueèntre
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proibido às mulheres são os homeni que fazem a Lei e di-
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tam o Direito em nome da razão de Estado. Mas quandg
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Creonte, invocando o interesse da cidade, proíbe que Poli-
nice seja enterrado, Antígona se r-evolta. Ela não é uma mu-
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nada a transgredir.
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22 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA ' ÞIcoroMIA sExuAL E DESI.uALDADE d
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Antígona foge de casa levando consigo a irmã Ismênia; ' I Ismênia e Antígona são duas versões opostas do femiai: 'l
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suas ordens".l Mais alguns minutos e ei-lo diante de uma menina des:
Insistir na transgressão é deixar-se seduzir pelo impossf- ' grenhada, com as unhas sujas de terra, arrastada pelos ca-
vel. Mas o impossível é o horizonte de Arüígona e ei-la pronta belos como uma delinqüente qualquer, princesa insolente
a cometer um tríplice crime polftico: ultrapassar os muros que escapuliu de casa e da vida na véspera de se tornar a
da casa, reduto protegido do feminino; entrar na política
' mulher de seu filho e, mais tarde, a mãe de seus netos.
pela subversão da lei; e, finalmente, desafiar não só a lei Face a face, eles vão encenar a oposição irreconciliável
do Estado, que condena seu irmão, mas a lei dos homens, de contrários, de naturezas distintas, e o enfrentamento da
que a condena, mulher, ao silêncio. Face a ela, Ismênia é lógica do masculino com a lógica do feminino que' ao lon-
contraponto, enunciando o Sim, moldada na adequação, go da história humana, se mantiveram tão radicabnente es-
conforme à norma, olha¡ baixo e assentimento. Sua obe- trangeiras. Para Creonte, o triunfo de Antígona o desloca
diência ê,vazadae atravessada em raio pelo Não de Antlgona. de sua posição de homem.
24 ROSISKA DARCY DB OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALDADE 25
Essa mulher ití mostrou sua insolêncio ao passar por cimq ' Hemon aliou-se às mulheres, deixou portanto de ser um ho- :
das leis estabelecidas. Agorø, id não serei mais eu, serd ela mem e foi por elas escravizado, tornando-se joguete do ini-
o homem, se tíver, impunemente, tal triunþ assegurado'z migo e porta-voz de uma linguagem ininteligrvel.
Antígona sabe que nasceu para'ö amor e não para o ódio
Hemon, versão diluída do masculino; Ismênia, versão di- :
é apenas uma expressão do poder discricionário, mas uma e os mortos. se Polinice teve, ao corpo morto, recusado o
razão convencida de si mesma. abrigo da terra, Antígona paradoxalmente será enterrada
\
Desfazendo-se de Antígona, Creonte não escapa ao n-o- viva. seu lamento derradeiro, sob seu úItimo sol, se volta
vo confliro que o espera. Hemon, seu filho, já acorre afli- para o destino de mulher que ela poderia ter tido e que não
to, desesperado petó destino de Antígona, jovem noiva de teve e é, nesse r¡romento de morte, sua única concessão à
r ufil casamento inconcluso. A tógica do masculino esbarra fragilidade. Ela chora a felicidade ionjugal perdida, os fi-
' .'¡ Assim coino, na abertura da peça, Ismênia aparece co-
aqui em outra versão do masculino. lhos que não terá, o canto do Himen"u q.* não ouvirá e
se dirige aos mortos. "eueridos pais, eis-me aqui, virgem
i',' t :' , , tno u*u voz apaziguadora do conflito , agota será a vez de
e maldita que volto a vossa morada. (...) creonte me piro-,
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' H.tnott oferecèr ao pai uma versão mais doce dele mesmo'
,'--r ';mais flexlvel, menos absoluta em seus julgamentos' menos de, me priva de núpcias, de meu destino de esposa e mãe; ¡,
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'detentora de uma verdade rfnica. Ele p¡opõ-e a Creonte a sem amigos, sozinha, desço viva ao reino dos mortort q.r"i/
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imagem das fuvores que' num vendaval, sabem se curvar foi o decreto divino eue violei?".4 .,,,
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e salvam seus galhos frágeis enquanto as mais rígidas_aca- Fragilid¿¿e da coragem, pois que nada mais é temor nesse
bam desenraiiadas, Um coração capaz de voltar atrás no espírito que não visava o poder temporal mas o respeito à
ódio, de ceder à ternura, seria garantia de uma existência natureza que une os seres para além da vida e da morte,
mais fértil e de um melhor goveno. Mas Creonte existe, do tempo e da história; a feminilidade que chora a perda,
assim como Antígona, na clave do absoluto. A seus olhos na vida, da mulher, mãe e esposa.
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DICOTOMI,A SEXUAL E DESIGUALDADE ,Y,
26 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA
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do imaginário humano, o imaginado, como num sonho¡Éi-
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ma ancestral que separava o mundo dos homens do das mu-7 i ', "
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lheres.
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A separação de mundos: pensamentos'
o decreto de ausência e de silêncio que as excluía do polfti- lr,
co, desafiaram a condenação social e pisaram, ainda que
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palavras e obras
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com passo incerto, os territórios do Masculino. Esse eco vem ¡
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se fazendo tauto mais audível quanto mais passados osr r
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primeiros esforços para se tornarem presentes e eloqüentes ,':.
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mulheres buscam, nessa presença e palavra, exercer,ld"
-no aspolítico a lógica do Feminino,
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Induzida pela problemática do nosso tempo, a leitura de
Se nos primeiros tempos do feminismo as mulheres exer-
Antlgona rnq.tr*io explicitação de imemorialdessemelhança
citavam-se na lógica do MasculÍno como numa llngua es-
entre os sexos encontra respaldo na antropologia moter-
trangeirâ para melhor se fazerem:èntender no espaço ptl- .O
na, que constatou, na fantástica diversidade de tipos de so-
blico e ainda assim encontraiam resistências e incompreen-
ciedãde, na inumerável multiplicidade de modos de orga-
sões que lhes pareciam injustas e excludentes, hoje muda
nização e de relação entre os seres humanos, o refrão da
o tom no acidentado diálogo homem/mulher. ,¡
A voz feminina evoluiu da modesta ambição.de se fazer
{ .iJ diferença sexual como alicerce da própria cultura'
simplesmente ouvir no espaço público ptrâ, bem mais con- .
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Espelhando e espalhando essa diferença em todos oscam-
po, du experiêncià de cada um' a modelagem da imagem
tunàente e infinitamente mais subversiva, lá tenta¡ dizer umaY^, 'li,l
que apre-
t ã da função de cada sexo, independente da lógica
nova Razão, a Razão do Feminino. Reencena-se assim, no, ., t
enfrentamento moderno, o desafio de Antígona e Creonte.;' side, que varia e se contradiz, afitma, no entanto' sempre
No espelho de Antígona, em que tantos se quiseram re-' e em tãdo lugar, o princípio da separação e da diferença'6
fletidos, as mulheres de hoje descobrem um'rosto arquetí- Ainda qur cã* desenhos diversos, Masculino e Feminino
pico. Em tempos de oposição irredutfvel, a frágil princesa se fizeram constantemente presentes, nenhuma cultura ou'¡
sando diluí-los na indiferenciação do humano. Pouco im-
tebana eü€, afirmando lei própria, negou a autoridade
do Rei -e do Homoñ pele nua do Feminino, volta ao porta que variem os conteúdos do uníverso de cada sexo, -|' I
sociais, como entre os Primatas, em diferenças no estar no de cada uma delas com o meio arn-biente.
mundo, cada sexo se especializando em uma determinada.) t't, \,
Se a constatação da coexistência de territórios do mas-
relação com o meio ambiente. t,r ¡ culino e do feminino se impõe com'o evidência, bem mais
Essa especiahzação transforma as relações de cada sexo àbrrrrru é a origem da hierarquia que fez do masculino'a
com o meio ambiente e dos sexos entre si. Constituem-se autoridade política e social, impondo seu modelo a todas
t
um rnundo de homens e um mundo de mulheres, lado a la- as dimensõès da convivência humana. Tentando ilumina¡
do mas incomunicáveis, e seus traços característicos tornam- essa zona de sombra, Edgar Morin sugere que a afirmação
se cada vez mais nítidos. da superioridade *urculioa coincide com o nascimento da
família enquanto microestrutura social.
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32 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA il DICOTOMTA SEXUAL B DESIGUALDADE 33
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\ lheres é um dom que provoca um contra-dom, o eue ins-
A fømlliø é um subsßtema aberto para o sístema social. (,:.'
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so de separação e hierarquização entre.o sexos, reforça es-
boração de um metassßtema macrossocíal.ro idéia.
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Esse processo de complexificação social está estreitanente ,.I
ril O universo masculino e o universofeminino deslocum-se ao ù
ligado à extensão e ao aprofunda¡nento do poder masculi- i; I
I
longo de duas órbitas distintas, em direções opostas. Os ho- ,rit
I
no, principalmente pelo viés da proibição do incesto, fenô- I li
mens vivem num mundo de s{mbolos, as mulheres num ' t')
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rûeno que, juntamente com a dicotomia sexual, goz-a dopri- ',1,'.-,'
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mundo de valores; øqueles conhecem o casamento através 'ít
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da aliança, estas a alíança através do casamento; para elei
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ciedade em duas metades. Esse dualismo hierarquizado pe- | :
nöo se estabelece entre urn homem e umo tnulher, nø qual
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I
fração do real pelo jogo das barreiras erguidas e das proi-
entre homens e mulheres, mas entre homens por intermé-
bições editadas, fronteiras de seu horizoûte intelectual e prá- 1
social radical entre os sexos. Um homem só pode obter uma Se o casamento sela a aliança e a cumplicidade entre os
mulher de outro homem. Para os homens, essa troca de mu- homens por intermédio das mulheres, à iniciação caberá ri-
34 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALDADE 35
que vencer para se fazer admitir naidade adulta, masculina. O medo do Outro, duplicado pelo medo do Mesmo,
prime psicologicamente o dualßmo conflítual dos søtos.
Essa pøssagem é insepardvel de umø certa violência, em se duølismo reþrça o sentimento de identidade de gênero
atos e palavrøs. Gestos e ritos, contos e mímica, represen- e explica a repressão do outro, objetivamente nas reløções ;4:
tam a lutø dos homens contrø as mulheres; os homens gø' sociøis e subjetívømente dentro de si mesmo.rs I '. -, ì"
nhøm essø luta e øftrmam sua primszìa, o que indicø bem r,;J
o cartíter doutrindrio da iniciaçäo,r3 , / Tudo na iniciação confirma a "terrível ameaça" que con$ii
titui
a confusão dos sexos, a indiferenciação sexual, o apay;
Na iniciaç ão, atarefa dos homens é retirar o menino do .' ", I r \ gamento das fronteiras que limitam o feminino e o mascrbi
mundo das mulheres, isolá-lo num lugar oculto e sagrado, )'' '' l
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lino.
à margem da sociedade, onde, submJtido ao sofrimento e ,
'rì George Lapassade confronta a interpretação sociológ¡ca;
à clor, o menino comprovará sua virilidade. Essa provação , ; i. da iniciação, que enfatiza seu significado de preparação para
reveste-se dòs contornos de uma morte simbólica, a morte ''
. .: ,, a maturidade e para o mundo das regras sociais, cortr llrnâr
do menino, eü€ pertencia ao mundo das mulheres e que' :.r' leitura psicanalítica, que a examina a partir do ponto de vista
pela experiência da dor e pelo desvelamento do mistério, . ; . ''l ,; inverso, de proibição da infância e renúncia a seus desejos
renascerá homem e adulto. O teste é pessoal e individual ',, ." incontroláveis. Ele opõe, assim, à concepção de Durkheim,
-,
mas a encénação é social e coletiva. Subtraindo os jovens )' " l
,
para quem a iniciação é sobretudo uma "escola de moral
às mulheres e comandandg o rito de passagem, a classe dos
social" que permite ao homem dominar em si a natuteza.
homens reafirma, de uma só vez, três poderes: sua ascen- ' , \' r e reahzar em si a sociedade, interiorizando suas normas e
dência sobre as mulheres, a preeminência dos adultos so- ' ,
' regras, a visão de Reik, para quem o sentido oculto dos ri-
bre os jovens e o corte entie o mundo dos homens e o mun-
' tos de passagem é a proibição dos ldesejos primitivos fun-
damentais da criança: o incesto e b-narricí{gl.
do das mulheres. )
36 ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA
:/.i\''
Todo o lmpeto cultural humano atribuiu-se como
,
noa escultura do mundo ao sabor de seu engenho, o
vendamento do mistério da vida, o desafio à
\ morte. Ruptura com o pertencimento à Natureza,
' i
tonecraft, convive com Sofia que, salda da costela de
descobertas cientlficas e mutações tecnológicas, alterações \ I
,1 lio, tem como horizonte a cozinha. Que Rousseau e
importantes dos quadros de refêrência sócio--cultural e emer- r" maine Necker se insultem a propó¡ito da relação
gência de novas ãspirações, valores e formas de conduta,J'' . i I sexos não impede que uma certa Madame de Staël
que induzem a entrada progf,essiva das mulheres no espaço , Sofia e dê à luz Corinne.
\
público. j) Essa contestação vinda de cima vai se prolongar e 4ût:
Uma sociologia egocêntrica ou um economicismo primário i
plificar, na segunda metade do século XIX, numa reiviniË-
têm tentado chamar a si, exclusivamente, a explicação do cação de igualdade entre os sexos no plano das instituições
apagamento progressivo de fronteiras entre o masculino e políticas e dos direitos civis. Paralelamente, na base da so:
o feminino. Na verdade são inúmeros os fatores que intera
ciedade, a superexploração da mão-de-obra feminina acat-
gem e se remetem uns aos outros, criando um proc()sso der '
ri
reta uma participação crescente das mulheres nas lutas pa:
desorganização da antiga relação entre os sexos ou, I'isto de ì
ra melhorar as condições de trabalho, apes¿u dos precon-
outro ponto de vista, criando r¡ma nova organtzaçao, im- .
ceitos de operários e sindicalistas que se preocupavam tan-
previsível, impensávél d, por isso mesmo, ineaçadoia.
I
purrou para as fábricas, onde se viram obrigadas a desem- [,'. mulheres às mesmas máquinas, ritmos e exigências da pro-
\ dução fabril.
penhar os trabalhos mais penosos e pior remunerados.
Já as rnobilizações de massa das sufragettes que, en-
Nesse mesmo momento, no outro extremo da hierarquia -
social, mulheres ilustradas se esmeravam em rivaliza¡ com os frentando a crueldade do ridículo com que se tenta cobri-Ias
44 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA DICOTOMIA SEXUAL E DESIGUALD4DE
''
e encobrir a violência crua queÐs espera nas ruas' reivindi- ! daàes". E é inevitdvel que esses valores seiøm
que um'
cam o direito de voto quebram um segundo ta'bu da se-,' dos da vida para a ficção, A cr{tica declø¡a
-
paração hierárquica entre os sexos -- ao t-^-I-tt--
-- invadir -^r:- o es' ,r, '/'
apolis, é ímportante Porque ele trato de guerrø.'E
que outro
paço político que até então erateritórto privativo dos homeps.] significønte Porque trata dos sentimentos de umo
Nas primeiras décadas do século )O( o direito de voto ' L dentro de casa. Uma cena em um compo de batolha é e
importante que uma ceno em uma Ioja. Por todo lado
é progressivamente concedido às mulheres, mas essa con-
maneira infinitomente sutil, ø díferença de valores
quista formal em pouco muda seu lugæ social subalterno.
Por isso, no começo do século XX' toda ø estruturø
Para muitas mulheres, como Rosaluxemburgo, ativamente I
I 1l
;;õ;;hamseu protesto apoiado na originalidade do espa-1"Ì ì pnmetlp{ i
t
! "quaito para si", vai-se revelar, entretanto' num
ço interior das mulheres, afïrmando'o feminino como u9, måmentó, tão fugidia e ilusória quanto as esperanÇas
posiri
ponto de vista específico sobre o mundo. i' : r:'. Ii
tas na utopia revolucionaria.
Virginia Woolf, analisando a literatura feminina, esbo-\ ,r'
Àcànterce de se ter razáo antes do tempo ou de 1{o
se.
ça essa linha de pensamento e planta, em suas famosas con- "'
ter os meios de seus próprios-fins. se a rebeldia individual'
ferências no Giron College, a semente de uma idéia que só pelo isol4;,
a minoria de um, está õondenada a se estiolar
iria frutificar cinqüenta anos depois: a importância da di-
mento e pela estigrnatização, movimentos coletivos tarrbé4r
ferença no debate sobre a igualdade.
podem flacassar por se terem enganado de estratégia' :'ì
Perguntando-se sobre a influência do sexo na integrida-
Nem a igualdaãe com os homens - como decorrênci4.
de de um romancista, "essa integridade que considero ser potr::
r ,\l da implantãcão do socialismo - nem o feminino como
a espinha dorsal do escritort', ela observa: ì'
afirma. a)'
ì.
A irrupção das mulheres enquanto protagonistas no ce_ igualdade ao mundo dos homens que elas vão esbarrar em
n¿írio político, social e cultural se inscreve no quadro de uma obstáculos que transformarão a reivindicação de igualda-
alteração mais ampla, uma verdadeira crise de civilização de em uma armadilha que terminará pondo em crise sua
que, no fim dos anos 60, abala os princfpios e valores que identidade psicossocial.
garantiant a ordem social e o consenso ideológico das so- Trabalhado por Erikson2o, o conceito de identidadq pòi-
ciedades industriais do Ocidente. cossocial tenta operar uma síntese entre os componentes de
ij.
O impulso igualitário, suscitado pe.las lutas contra a dis_ ordem psicológica e sociológica que entram na definiçã'o da
criminação racial e ò colonialismo, o questionamento do personalidade inserida em serl contexto social.
saber estabelecido, da razão cientffica e da porítica institu-
cionalizada, a busca de um reencantamento do mundo e da
.
' \.,
r. ,{'
A identidøde se liga ao grupo enquanto mediação sintéticø
viCa em reação contra a uniformização e o gigantismo da i enlre ø essênciø individual e a essência de umq culturø co-
ri '\
sociedade pós-industrial, a emergência da quiJtão ecológi- û' mum. (...) A natureza de uma determinøda identidade, longe tt,
I)
\
ca, todas essas aspirações a uma vida outra, a um mundo 1 '' ,,1 )
de ser o resultado de um consenso estabelecido por todos,
1l
diferente, "aqui e agora", convergem para abrir uma no-l L
\.!,. constitui, ao contrdrio, o lugar privilegiado da øcpressão dos
va brecha nas fundações da sociedade. Aparecem fissuras/ conflitos ideológicos próprios a uma sociedade,zl .
zado em profundidade, no próprio seio da socieda.de oci- dois registros intelectuais e afetivos, dois modelos de con- . i Ír
dental, é o modelo, até então implícito e inconteste, da su- duta cotidiana. Definidas por uma norma e um modelo que
lhes são impostos, elas têm de aceitar o paradoxo clo uni.' l
tl,
verdade,
t)
o uestiona- versal e do particular, colocado por uma sociedade que,as
t\,
,'i ' mento de um de seus alicerces mais antigos e mais sólidos: universaliza como produtoras e as particulariza como mu-' r1
l!
i
a Cominação das mulheres pelos homens. lheres. . '. i
$
A entrada maciça de mulheres instruídas no mercado de Dilaceradas por pertencerem, simultânea e conflituosa-
tlabalho e a desvalorização da vida no lar contribui¡.ão for- mente, ao espaço privado, ao mundo do lar e da famllia,
ternente para apagar a fronteira entre o privado e o públi- ri regido pelas emoções, peloS sentimentos e pela afetivida- )
at!
co, entre o feminino e o masculino, e para quebrar ar antiga , l
1(
=l 1
de, e ao espaço público, ao mundo do trabalho regido pela
identidade feminina, centrada na idéia da mulher que se rea-, agrêssividade, pela competividade e pelo princípio do ren-
liza nos fazeres e saberes da casa. dimento, as mulheres descobrem que o acesso às funções,
As bases industriais da sociedade incitam as mulheres ai .', masculinas não basta para assentar a igualdade e que a igual- \
sairem de casa, a deslocarem seu desejo de reahzação para' dade, compreendida como integiação unilateral no mundo- r
,ll'
NOTAS'
rem e necessitam de bem mais que uma "igualdade repres-
siva", um mero direito de acesso à "realidade dos homens", l. Sófocles, Antigone. Ín Tragédies, Paris, Le Livre de Poche, 1962,
com tudo o que esta comporta e exige como negação da ex- p. 87.
-Idem,
periência feminina, 2. p. 104.
3. Idem, p, ll2.
A realizøção dos obietivos do movímento de mulheres 4. Idem, p. 122.
exige uma segunda etapø em que ele transcenderia o quø- 5. George Steiner, Antigones, Clarendon Press, Oxford' 1984.
., dro no qual estrÍfuncionando no momento presente. Nessa 6. Cf. Margaret Mead, L'un et I'outre sexe, Paris, Denoël, 1966, e Ser
Differeniaes, P. Lee e R. Stewart (ed.), Urizen Books, Nova York,
''
^ etapa, para além dø igualdøde' a por libertação ímplíca na cons-
1976.
trução de uma socíedade regidø um prìncípio de realï
i
' ' 7. George Balandier, Anthropologiques,Paris, PUF, 1974' p. 14'
i ,' ' c{aile díferente,.umø sociedøde no qual a dícotomia stual 8. Edgai Morin, Le pøradigme perdu: la noture humø¡¿e, Paris, Seuil,
. mascutino-leminino seria ultrapassøda nas relações sociais 1973, p.79.
" e individuais. Assím, o movimento carregø consígo o pro- 9. Serge Moscovici, Lø société contre nature, Paris, UGE, 1972, pp'
' .ieto, não só de instituíções sociais novas' mas também de 188/189.
\:iuma mudança de consciêncíø, de uma ffansÍormøção das 10. Edgar Morin, op. cit., pp. L75/176.
"' ll. Claude Lévi-Strauss , Les structures elémentøíres de Ia parentérPa'
, .lnecessidades ínstintuais dos homens e døs mulheres, libera-
:.r
' '''' ' das døs limitações da dorninação e dø exploração'n ris, Mouton,1967, p. 135.
12. S. Moscovrci, op. cit., P, 268,
13. Idem, pp. 3041305.
Um traço de raclicalidade se insinua nesse texto, em que 14. M. Mead, op. cit., P.99.
a igualdade entendida como zubmissão à hegemonia do mas- 15. Elizabeth Badinter, L'(Jn est I'autre - des relations entre les sexcs,
culino encontra uma primeira contestação. Marcuse capta Paris, Editions Jacob, 1986, P. 182.
16. George Lapassade, L'Entrëe dqns lø vie, Paris, Minuit, 1963, p. 87.
aí os primeiros sinais emitidos pelas próprias mulheres que'
17. Odette Thibault, "Le fait biologique" .In Le Fait féminín, otgani'
em movimento, perdiam-se e encontravam-se em caminhos zação de Evelyne Sullerot, Paris, Fayard, 1968, p.27.
e descaminhos, no ir e vir entre os territórios do feminino 18. Eveþe Sullerot, Histoíre et sociologie du travailfémin¡a Paris, Gon-
e do masculino. O preço do desmascaramento de um pre- thier, 1986, p. 33.
tenso equilíbrio que, fictício ou não, foi milenar, não tar- 19. Virginia Woolf, Une chambre à soi, Paris, Denoël/Gonthier, 1951.
20. Cf . E. Erikson, Childhood and Socíety, Nova York, Norton, 1950
daria a ser percebido. Pela voz e pela ação das mulheres,
e "Psychosocial ldentity" in Sills, D.L. (ed.), Interna.tíonal Ency'
o insólito vai introduzir-se no debate social.' clopedia of Sociat Sciences,MacMillan Company and the Free Præs,
Ao questi'onar o corte hierfuquico do mundô, ao afirmar 1968.
que o fessoat é político e que a política se e*aíza na vida 21. M. Zavalloni, "L'identité psycho-sociale' un concept à la recherche
cotidia¡a e nos ientimentos privados, ao opor ao modelo d'une scienc e" , in Introduction ù lø Psichologíe Sociale, sob a dire-
único a ser imitado uma pluralidade de projetos e identida- ção de S. Moscovici, Paris, Laroussg, 1ll3,pp.U6/U7,
22. Herbert Marcuse, Actuels, Paris, Seuil, 1975, p. 43.
des a sèrem inventadas, essas novas protagonistas sociais
atacam princípios sagrados da ordem estabelecida. A ex-
pressão coletiva desse questionamento de normas-valores
ã modos de organização ficou conhecida como¡lfovimento
Femlrustljl
il
A ARMADILT:IA DA IGUALDADE
Partindo de uma desvalorização fundamental do universo sepørava o destino dos homens e o das mulheres. E, maß
feminino, as próprias mulheres alimentaram o equfvoco, ainda, somos uma geração que coabíta, no espaço de uma
' aceitando como definição de um mundo igualitário aquele vida, com øs pníprias øvós, representøntes de um tempo que .
passou mas nãe de um tempo qualquer, de um tempo Ç1u9,
em que teriam "apenas" que continuar a ser as mesmas de
acreditdvamos, seria eterno. Sentømo-nos iunto a eløs e ou:
sempre, acrescentando a suas vidas vivências até então pró-
vimos contar o que sempre foi a uida døs mulheres; e per-
, \' .1 prias do masculino. Como a sociedade como um todo e as ,
telectual e profissional, mas não mudaram a vida das mulheres. A norma sempre
As feministas dos anos 70 çrar.n intelectuais altamente foi essa avó, oustera, sern risos, que eu veio nafoto, de pé
qualificadas, integradas ao mundo dos homens, que se nu- atrtÍs do cadeirø do meu øvô,
triram, na adolescência, das Memórias de ums moça bem O que estd acontecendo conosco, mulheres de trinta anos,
comportada e, na idade adulta, de O segundo sexo, Eram que olhamos paru essa foto e encontramos nela um gosto
herdeiras das lutas pela emancipação da mulher do come- retrô e que nos perguntamos "o que eu tenho com isso?
, Quanto de tudo isso sobrevive em mim, quantoid sefoíparo
ço. do século, ecoavam os ideais de igualdade de Rosas e
Virginias, mas o faziam no momento mesmo em que en- .J\,i
\ '
sempre?"
. Vivemos um tempo de ùividas. No subsolo døs ações mí-
frentavam a perplexidade da experiência de falar de dentro , \' litantes as mulheres vivem na angústia e na incerteza. An'
do mundo dos homens. \i stistia da segurança perdida, incerteza sobre um mundo no'
No bojo da imensa produção de idéias que o femirrismo ü., t uo a íñventr, qit ,omeço em nós mesmas' sem modelo e
gerou, dos planfletos mais banais à produção teórica signi- v ,' sem referência, a menos que estø seia negativa, Sabendo ago'
$ i' 'l fîcativa, encontram-se as pistas dæsa auto-interrogação que, ' ra o que não queremos maß ser, tropeçamos no futuro e
:r \ j aos longos dos anos 80, iria tranôformar as demandas de tateamos uma parede inexístente em busca de um apoío pa-
-,rr ' igualdade em uma busca angustiada dos traços da diferen- ra o que queremos nos tornar.l
,'' lentre memória e projeto. Nos "grupos cle consciência", que proliferar¿rm nos anos
70, geraram-se depoimentos como esse. Foi al que melhor
Nesfes últimos tempos temosfølado, cada vez mais, em se exprimiu essa "política do privado", oü confidência po-
nossas ovós, como referênciø e como nostalgia. Somos umø '' ' htizada, através da qual as mulheres abriram um debate con-
geração que viu um pacto milenor romper'se, o pøcto que ,¡
' sigo mesmas que iria se revelar muito mais subversivo que
,t;
-\ ¡j R0StsK,c DARCY DE OLIVITIRA A AKMAUILHA UA I(JUAI,UAI,'Þ ¿t
', ilhor dizendo, essa recusa proposital de qualquer irrstitucio- pelos homens: postas ù margem, animois domésticos cho'
mesmo ciclo de traba-
nalização, era compensada por uma forte motivação, es- ,rnødos aføzer e a refazer sempre um
i co'
treitamente ligada ao sentimento de estar entre pÍues. lho, Sísyo
\tidiano,
- dona-de-casø, condenada ù imønência do
destínada a centrar o mundo em si mesma, nos li;
Os grupos favoreceram a eclosão de uma palavra múlti- I
r/ mites de seu corpo. Seu corpo, sua única aventura, seu cen'
pla feita de memórias, de receios, de esperanças, de expe- tro vítal. Guardadas no ønonimato, protegidas do tumulto
riências até então vividas por cada uma como vida particu- ' do mundo, os mulheres reproduziram seu deçtino durønte
lar. A constelação dos pequenos grupos tornou-se a espi- séculos, destino idêntico em mundos diversos. "fnfantis",;'
nha dorsal e o vetor do movimento de mulheres e foi neles "irresponsrÍveis", foram guardødas como crtanças, selvø-.
que se produziu o pensamento do feminismo dos anos 70. ' \ gens como as críanças. . :" -,
Como qualquer movimento de libertação, o movimento i: ,, "Irrøcíonais", irompem hoie na História trazendo em seu"i
í feminista revestiu-se da dupla característica ile ser, ao mes-
, I ( ' , Jmovimento uma herançø ancestral: a valorização do sen-.
. i r ' ,'ffio tempo, um fato cultural e um fator de cultura. Fato cul-
n \, a intuição como conhe-.
v . ,.' sual, a intimidade com o mistério,;,
, , , I' tural na medida em que se originou no mal-estar e na crise ,' ' ,.r"' cimento, o percebido tão forte quunto o provado, o sensf-'
' L\
'll . . .
"yividos por essa camada minoritiíria de mulheres privilegia- ',,,' :'ù | vel contra o racional, a estétíca como ética do futuro.2
''.las que, tendo ingressado no mundo dos homens, compreet- l:l
Feminizar o mundo implica redefinir um mal-entendido
rderam que nele não se sentiam à vontade, que o mal-estar i' -11
J
:
62 ROSISKA DARCY DB OLIV'..;IRA A AI{MAD¡I,HA DA I(¡UALDADÊ 69
mília, leva ø exclamações do gênero: ',Møs pense tombém Às vezes é ele que me espera às çinco horøs, eu prometl
nessas pobres criançøs!" ajudtÍ-lo nos seus deveres, ele jd foi repreendído pela pro'
Sim mømãe, eupenso muito, muíto em meusfilhos, Tal- fessora quatro vezes etn dez dias, e além disso eu id deveriø
vez até demais. Eu ntio consigo me livrar deles, como ter ido øo colégio falar com ø coordenação
você
não conseguiu se livrar de mim. São problemøs pequenos, eu sei. Bastaria organízar-me
O que é ser mãe? O que quer dizer, para mim, ser mãe? melhor.
Você øcredita que, até recentemente, eu nunca tinha per_ Dßcutíndo sc¡bre essa ølmeiado organkaçãò, dou-me conj'
guntado isso? Eu que jd sou mãe hd tanto tempo... Jømais tø de que os homens conseguem reduzir quase todos os pro"
formuleí essa perganta øntes de engravtdar. Èu considera_ blemas, grande ou pequenos, a entidades calcaldveis, pre-.
va o,fato "normal". E, no entonto, eu nõo era uma pessoa visiveis.
especìalmente atra{da pelas crìonçqs, como algumøs-de mi- Para mim, comprar uma malhø hoie ou amønhã ndo sei
nhas ømigas. Olhando para tnß, øcho que ter tido
fithos, reduz a ir à cidade fazer uma comprø que, deføto, poderid
naquele momento, justiJîcavo minha exiitênciø. Eu iao serfeita a qualquer momento, em qualquer condição, É maß
educada pøra "realizqr" qualquer coisa na vida e sím parø
Íii que isso. EIø e eu jtí conversamos bastønte para saber se era
"ser", Ser mulher. E, para mìm, naquele momento, ,ri realmente necessdrio comprør outra malha, porque a ønti'
lher sÍgnificava ser mãg, É impressionante a despreocupa_ ^u_ ga ainda estava em boas condíções, 'ì
ção e a tgnorância coin que emborcamos nessa aventurø. Um pouco pequenø, éverdade,., Chegømos juntas à con'
Mais cedo ou mais tarde chego, pora cada uma de nós, o clusão de que, para o balé, é muito importønte que o corpo'l
momento da verdade. para algumas, é quando oporei, o se sintø livre e boníto, também... A malha antiga id estava"
necessidode e o desejo de fazer algo diferente doirabalho um pouco desbotada. Então, saímosiuntas parøføzer uma
doméstico, quando se percebtem priosioneiras dos hordrios compra, bønal é verdøde, mas que nos fez compørtílhar to-
escolares dosfílhos. pørø outras, é no momento da solidão, do um mundo de intimidades, um conhecimento mútuo,
quandg os fílhos jtí se foram, quøndo só o que restø são uma cumplicidøde; e investimos o tempo necessdrto pøra que
os móveß a serem esponados, o chão a ser encerado. En- isso pudesse ser alcønçado
tão, dão-se conta de que nunca tÍveram tempo de construir Assim, o conjunto dos pequenos problemas da vida co-
uma vida para sí mesmas. tidiana torna-se, para nós mulheres, a soma afetivø de nos'
Falo por mim mesmq. Os hordrios escolares, as refeições, so dia. E nós queremos viver plenamente esso vida afefiva,
a_s compra4 a roupa por lavar
e que tem sempre rasgões e com nossosfilhos, nossos homens, com as pessoeß que nos
furos a serem costurqdos são problemas próíicos, p-oro o, circundom, Como reconciliør isso com uma luta proJîssio''
quais dèver{amos encontrar soluçøes eliiazes,
àt, ** nal, em que devemos provai duplømente nossa capacidade'
marido. ^, jd que somos mulheres
. Møg por que dìabos, sempre que umø reunião se pro_ -tão malpreparadas? -, uma luta para a qual somos\
Como viver isso com homens que têm''
longa além da hora previstø, ou quando, no urna cøbeça tão diferente da nossa, que são pouco sens{veís
fîm do traba-
Iho, fico conversando com você, que me-Íascina, s¡nto_,mi, e, às vezes, inseguros em relação a nossqs reivíndícøções de
de repente, tomadø por umø profundø preocupação? novas formas de reløcionamento, a nossos apelos a seus sen-"'
Co-
lxo se uma espécie de reló_gio inþrtor disparasse, me lem_ timentos, à sua tenrura, à sua doçurø, mos com quem que-"
hrando que estó nø hora. Às vezes é horoãeta. noje ro*o, remos fazer amor de uma maneirci'que nos faça plenamen-'
jantar mais cedo porque ela tem øulø de mtísica;
ou é hora te felízes?
de ír ao dentista com elø; é malhø de dança que tenho quë Não queremos møis ser mães-empregadas que asseguram
comprar antes de sexta-fei7s c.- você prometeu, mamãe,,, o cuidado material ø seus filhos, esposas-ernpregadas que'
!! v!¡Yltrb A ARMADILHA LIA IOUALUAIJII o)
cuidøm da casø, trobølhadoras-empregadas que execatam tino de mulher, a sua maneira de SER; no fundo você se
øs tarefas subslterna,s. Gostsrlamos que as coísosfossemfei- dd contø hoje de que nãofez, na verdade, uma opção, møs
tas de formo diferente, no nossos ritmo, se deíxou levar pelo único modelo dísponfvel, o da mulher-
Enc¡rrøladas cotídionømente entre nossas exígêncíøs e as esposa e mãe.
de um mundo de homens, organizado deforma ertcaz e ra- Muitas vezes você me contou como se sentia bem duran'
cional, nós nos revoltamos, nos tornamos incômodas, brï te a gravidez, me falou da alegria que sentíu no momento
gamog Saímos dos trilhos e o ¡nundo descarrila à nossa vol- do parto. Falou menos sobre suas angÍstiøs e diJicaldades
ta, não funciona maís como deverío. no convívio com as crianças. E é s.omente hoie que você se
Jd contei como tudo ßso me p6a, sobretudo esse senti- indøga sobre o que é ser mãe. Meßinto utn pouco deslocø-;
mento de culpa que me espreitø de vezem quando,,. hó mo- dø parø falar disso e, no entanto,.igostarìa de poder relro-.
mentos em que penso que nossøs mães tinham razão, que ceder ao princípio, ao ponto onde a opção se colocou para.
seria muíto mais Ítícil se entrdssemos nos trilhos. todas nós, ou seja, quando começatnos a ter relações sm¿øß
Felìvnente, hoje ísso näo é maís posslvel porque você estd e tomømos nosscs primeiras pílulas. Gostaría de lhe følar,-
ai para me impedir quøndo eLt quero desistir..."3 sobre esse tempo e sobre mim, que vivi de modo tão difè
rente essa urmadilha que chamam opção. :,irr'
A resposta, em tom melancólico, confirma, do ponto de Yocê seguiu stts "naturezs"; eu me revoltei. Sabia per-',
vista da mulher sem filhos, gü€ escolheu não tê-los em no- fettamente * poís vívía rodeadø de mulheres - eu€, desde.
me de uma maior liberdade, a teia de insatisfações e culpas o noscimento dos filhos, é normal acontecer o que se pas-'i
em que se enredam todas as mulheres. sou com você: ø caso, cuidar das crianças, as preocupações,\
a impossibílidade de trabølhør. Eu achøva estranhømente'.
Amiga, envelhecidas øs minhøs amigas que acabavam de ter umfi;::
Esta manhã eu mal acordars qusndo dei com sua carta lho. LtÍ estøvam elas, ísolødas, imersøs em um rítmo de vì-'
embaíxo da porta. Acordeí tarde porque não dormi bem ù da que não era seu mas døs crianças e, confesso, näo tíhha.'.
noite. Na verdøde, fiquei pensando em um monte de coí- muíto.øssunto parø conversør com elas. Eu era es,tudante,:
sas: minho vidø, meu trabalho e esse vaivém cotidiano que apøixonada por polítìca, e nõo tinha muito a dizer mesmo,
nos esgota. Decídí, portanto, me dør de presente ums mo- àquelas que me eram maís próximas, Eu tínhø a sensøção,
nhã øgraddvel efîquei lendo suø cørta e pensando em você. de que alguma coisa se havía rompido e que elas vìviam em."
Yacê me pergunts se seremos lívres um dia, E me îala um mundo misteríoso, onde deveria haver alegrias que eu
do seu cotidiano de mulher e mãe. Fíqueí apenss envergo- não conseguia perceber e das quais umø mulher semfrlhos.,
nhada, mè sentindo prívílegiada; eu que me levanto tørde, estavaide certo modo, excl4lda. Nem por isso eu me arre-
que não tenho filhos para levar ao colégio, não tenho que pendia. Sei'.q comoÍor, as críanças me chateavam. Sem jor-
aturar crianços que voltøm do colégio esþmeadas. O pou- nais, sem cinemø, desligadas do mundo, minhas omigas näo '
co contøto qüe tenho com o lødo "pnítico" da maternida- viviam como eu, Inverstimente, os homens estavam sempre
de me vem øtravés de você, de suas despedidøs bruscas no g pør de tudo. Eles me transmitiam a sensøçäo alids ver-
- pertence-
,
meio dë nossas conversøs. O outro lado, o dø cumplicido- faaa"m de víverem no mundo,'de agirem, de
de, do prøzer que obtemos no relaçõo com umo críonça, es- r\i'' -
\,rem à realidade, de estarem presentes. Ðavam a sensação''
se eu não conheço, opteí por não conhecê-lo quondo decidi d,'' um poder e isso me atro{a, Pod{ømos conver-
¡deþossulrem
t1sar.
não ter ftlhos. Alguns queríam mudar o mundo como eu (coitada de'
Yocê diz algo que é muito ìmportante. Yocê teve seusfi. miml). Só que eles tinhøm o poder de Íazê-lo,
lhos sem pensar, porque era normal, porque erø o seu des- Rapidamente dei-me conta de que também estovo etccluf=,
óó ROSISKA DAßCY DE OLIVEIRA
Alvaiessetemudereflexãoparasuaspermanenteslns6-
não møß.., id Íaz tanto tempo que vivo e circulo por a{' nias,paranossoperpétuavigtlia,Quediaboquerdizerser
(lltimamente, pelo contrtirio, às vezes empalideço; experi' mulher?Vocêmtedírátalvezamønhã,quandoformosto=.
mento uma espécíe de vertígem, ø ìmpressão de que vou
grî løgo"'4 '':
mar ttm somete na beira do
tar: Chega! Ah! Essa efíciênciø cotidiønø a nós imposta por \¡.
umø comédia social em que os dromas da noite anterior são 1- Esses dois testemunhos fevelam um sentimento de insa-
escondidos sob o perÍil dø mulheriovem e dinômíca! Tudo .t jtisfação, uma ausência que cada mulher traz em si, a pe.r:
parece no trøbølho:.éprecßo ser brilhante, é ne-
'cesstírìotão simples ''ìr.' ttpcäo á. qut em nenhum mompnto e em nenhum lugar
ter bom desempenho. Jd me aconteceu ter vonta-
\"' ,lse'está inteira. Foi essa impressão de viver no meio do ca-
de, numa reuniõo, de interromper meu próprio blablabld
para dizer: vocês søbem que ontem tive medo de morrer? , minho, num equilíbrio instável e precário entre dois ¡nun'
'Mas
dígo qualquer outra coísa, permsneço brilhønte e eÍï dos, que levou as mulheres a reexaminar a situação Para-
ciente.-Nesse iolo de præt{gío, iogo meu futuro' E nele não doxal-que elas mesmas ajudaram a criar quando reivindi'
hd lugor Pøra øngústias de morte. caram o acesso aos papéis masculinos sem exigir como con-
que
Tampouco para as øngtfstias du vidø, para esse deseio trapartida uma muãança equivalente e concomitante
de viver todas as nossøs pòtencialídades, de sermos íntei- seriaoacessodoshomensaospapéisfemininos,queins-
ras, Assím como você, também vivo essa øngústia de viver taurasse de fato a polivalência para os dois sexos. ii .
¡ ,,.. d totalidade de mínhø pessoa. Jd não posso møìs desempe- Toda mulher que assumiu responsabilidades na esfera prl-
l"
,ll nhar papéis, por rnais nobres que sejam. Eu que sempre
quis
blica e se familiàrizou com os comportamentos ditos mast.
maís vontade de ser'
- øsoro tenho cødo vez que me reduzi' Veio a que nos
asir.
culinos foi forçada a trabalhar em;si mesma essa coexistex-.
) utl UAo púbtíco... veio ø
cia de contrários . FeminiZor o mripdo, enquanto memória
,reduzimos, iodas nÓs: um tado ptlblico, um lado privado'
A cada um desses lødos correspondem algumos exigências, de um grupo de reflexão, retra{a a experiência de mulheres
necessidades. Yocê me perlunta como concilíar essas diþ qge haviam tentado viver a vida'profissional sem que€la
rentes øcigências que nos ímpomos? Não sei. Mas estou certa , perturbasse a vida familiar. Perplexas face aos conf[itos vi-
de que nesss pergunta se escon'de uma das grandes
questões uidor, elas descobrem a cultura feminina, especie de herang'
do nosso temPo. históiica feita de corpo e prática social, e tentam proceder'
Estranhasociedqdeanossd'noquøIvocêeeu'tãodife. a uma arqueologia dessa cultu'a de que qualquer mulher,
rentes, nos sentimos iguølmente presas' Nem você nem eu participa em maior ou menor
- grau' '" ;i
pudemosserinteiras.-AlgumocoßønosfoiroubadøeÍoi trabalha-.
'enquanto'mulheresquecompreendemosisso'Poisé'ømi' eualquer trabalho é uma via de mão dupla: o
dorìransforma o objeto, o trabalho transforma mentali-
a
go, ,omo inventar im mundo em que nos sintamos bem?
dade do trabalhador, muitas vezes sem que ele se dê conta
bompreendo que você perca o fôlesa' Eu tamhém perco'
disso.
Vocè sabe disso melhor que ninguém' Id seÍoi o tempo'em
que eu tinhø respostøs pÛra tudo, em que sabia resolver to- Sermãe,duranteoslongosedurosanosqueseparamo
.do, o, problemâs. gæê se lembra como eu era no infcio? nascimento de uma criança do momento em que a socieda-
Acho que muitas iezes a føscinei: você também me føscí' de comeþa a se idteressar por ela, é ser extremâmente ati-
-ri*plesmente
n*o, porque você não era como eu') va.Eestianho o completo silêncio que se tece em torno des-
Tudosetornoudiltc¡leco4fusoenoentantocontinuo ses anos decisivos. Natacha passeia pelas últimas
páginas
que ser mãe seia
a não deseiør terJîlhôs e contínuo a negar de Guerra e Paztrazendo na mão uma fralda suja de cocô
ø únicø maneíra de ser mulher'
/0 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA A AIìMADILHA DA IGUALDADE 7t
.-: -
adultas ao trabalho desempenhado, durante anos, por sua 1 se prenuncia uma nova concepção da igualdade, não mais
I
..r e r''
:,' rmãe ou por outra mulher. É1'Éro completo o silêncio que tl
-{}
't ,,, na similitude mas na diferença sem hierarquia. ,.
jmesmo as mulheres, acordes com o espírito de sacrifício que 'IrJ ' {IapoiadaNesse sentido pode-se dizer que na trajetória do movi-
f
lhes é inculcado, concordaram em ignorar esse trabalho es- 1
mento feminista gerou-se, em duas etapas, uma contesta-
sencial por elas desenvolvido ou, pelo menos, em esquecê- ,\., ção radical do senso comum. Em um primeiro momento,
lo logo que terminado. Pergunte a qualquer mulher sobre que começa no fim do século passado, a contestação visa-
o que elafez enquanto seus filhos eram pequenos. "Ah! va provar que as mulheres não são inferiores aos homens
Nada de importante. Vegetei." e que podem fazer as mesmas coisas que eles.
Experimente viver de cinco a vinte anos (dependendo do Numa segunda etapa, qr¡e se desenha nos anos 70 e vem
número de filhos e do intervalo entre suas idades) sendo to- amadurecendo até se tornar agora nítida, a contesta-
talmente responsável pela vida de um outro ser: sua saúde, çã'o feminina anuncia que
-
as mulheres
- não são inferiõres
\r'
rl ' ,,sua segürança, sua inteligênc-ia, suavida emocional e criati aos homens mas também não são iguais a eles e que essa
t'1., ' r" va e até mesmo seu sono. Imagino que alguns artistas e al- diferença, longe de representar uma desvantagem, contém
1 guns cientistas que trabalharam em projetos de longa dura- um potencial enriquecedor de crítica da cultura. ,'' '
' çilo possam ter um vaga idéia do que isso representa; mes- Ao adotar essa postura afirmativa äe novos valores, o
- mo assim os romances, as sinfonias, os aceleradores de par- movimento feminista passa a desempenhar o papel do que
/tículas não pegam sarampo, não levam tombos de bicicleta, . .¡,' Serge Moscovici chamaria minoria ativa. As minorias ati-
dF
não acordam aos gritos no meio de um pesadelo. Tente vi- 'l , vas são grupos desviantes, desafiadores do senso comum, l
ver com uma respónsabilidade como essà dutante anos: se- "l capazes de provocar, pela firmeza e viabilidade de suas po-
rá que você não se modificaria? E se é todo um sexo que ', ,,i sições, transformações das normas e relações sociais. Em
vive esse tipo de experiência, como é possível que sua men- s '\"' sua obra Psicologia das minoriøs øtivas, ele estuda os fe- l\t",l¡ ,..ff,/
.r
talidade seja a mesma do outro sexo que, uma vez o traba- ; nômenos de desvio coletivo encarnado por "grupos que ií '\; '
Iho terminado, por mais duro que seja, tem direito a dormir eram definidos e se definiam de maneira negativa e patoló-
seminterrupções o sono dos justos? Estáimplícito que nem gica em relação ao código social dominante e que.passam
todas as mulheres são mães, que nem todas cuidam de crian- a se afirmar como grupos detentores de um código próprio
ças. Da mesma forma que nem todos os membros da classe e, mais ainda, capazde propô-lo a outros como modelo ou
operáriatrabalham em fábricas. Entretanto, nos dois casos, i l alternativa".6
a experiência coletiva é tão forte que nenhum membro des-
sa coletividade escapa aos efeitos formadores.S ' ' n.'' rres tecerem üm novo desenho na trama do social. O desvio
. r
Afirmar a diferença entre homens e mulheres não é no- "lr -
vo. O sexismo se apoiou nessa diferença para classificar as '",, l\"' 'rigida,
mas um processo fundamental da existência das so-
mulheres não só como diferentes dos homens mas sobretu- '. ' i/ ìciedades. É o acontecimentoinesperado sobre o qualrepou-
do como inferiores. Que um texto produzido no calor do if
i''
l,ì l
Na verdade, só através.dessa recusa assumida pelos des- A minoria assume a psicologia de uma pessoa ou de um
viantes, de agir conforme o código dominante, é que pode grupo que é diferente e que deseiø ser diÍerente, caOøz d9
ocorrer a transformação das norrnas e comportamentos vi- orr¡to, o desaprovação, insens{vel à hostilídadef{síca e psi-
gentes. cológicø, tanto quanto ù tensão cont{nua' Em vez de insis-
A primeira conquista do movimento de mulheres enquan-
tir ia uniformiãade, que é o temø da maioriø, a minorio
desviante insiste na índividuolidade, enfatizando o que dí'
ro minoria ativa consistiu, precisamente, na quebra rlo con-
vide mais do que o que une. Ela transþrma ø negação dø
senso ideológico que envolvia a definição de masculino e
normø ou da concepção tradicionol da realidade etn uma
t'eruinino. O discurso masculino sempre definira o qurl é uma nova norma ou umø nova concepção da realidade'
mulher normal, seu lugar, seu papel, sua imagem e sua iden-
tidade. As dissideptes desse modelo eram rejeitadas para fora
do campo de visibilidade social.
,_
'' ,r,já repudiado, ao qual se referir, nem tampouco um mode-
. 'lo masculino ao qual aderir. Reconstrui¡ o feminino é o des-
"'' .it.' itino do movimento das mulheres.
l,,'
'/'"'' possibilidade simétrica de reconstrução do masculino. Tal- !,.,iu
Apresençadoshomensnomundo dasmulherestraráuma
J'
,\,",-'
vez então se poderá falar de igualdade, porque a verdadei -r,yl.*. t !
ra igualdade é a aceitação da diferença sem hierarquias. E\' , ,' '' A coexistência de contrários:
a certeza da diferença permanecerá no corpo, e nele .o en-',,,i7, lógica do privado/lógica do público
r
contro mais fecundo.
Hoje o movimento feminista relembra a cada dia o de-
sencontro homem,/mulher e o desencontro das mulheres con-
sigo mesmas. E por ísso mesmo, porque toca no que de mais
ancestral, mas íntimo e mais desejado reúne as pessoas, só
pode ser desvairadamente utópico. O caminho que leva as mulheres da demanda de igual-
E se Rosa de Luxemburgo tivesse gritado sua carência dade à afirmação da diferença'atravessa a no man's land
de amor fora de cartas secretas? E se Virginia Woolf tives- \¡ da am.bigüidade, situada a meio caminho'dos territórios do
, l, 'masculino
se adivinhado quantas mulheres como ela iriam se debater ,\
:
e do feminino.
com a angústia da inadequação a um feminino medíocre As mulheres têm vivido mergulhadas em plena ambigüi-
)' :
e tradicional? Essa carência e essa angústia são as pedras
I
.' dade, fazendo coexistirem em si mesmas as contradições im-
\, '
no bolso do feminismo. RetiráJas é preciso. Rapidamente, t'' postas de fora. Respondem às escolhas impossíveis pelanão
para que não nos façam afundar. Cuidadosamente, para escolha e esgotam, no exercício da ambigüidade, a energia'
não ferir ninguém. Mostrá-las sem pudor àqueles que vi- ]Ressoal. p aí,
para muitas, o cansaço, a perplexidade, a an-.
vem conosco, transformá-las em projeto político, quebrar gústia e a frustraçãg[ r.
silêncios. Na linguagem corrente, chamamos ambíguo aquilo que
\ .
: ' . t A na mais desvairada das utopias é esperar inaugurar, en-
História, um dirálogo amigo entre homem e mulher.
pode ser entendido de viírias maneiras, a que se podem atri-.
buir vários sentidos ao mesmo tempo. A clínica psicanalf-
,fim,
Possível ou desejável, essa utopia resta invivida. Quiçá tica define como ambígua a pessoa cujo comportamento$f,, ' ,j
iurprovável; Qualquer que seja o destino da relação entre ,tL presta 4$ferentes igterpretaçõesle provoca, por conseguinte,'i, '
-
os sexos, o movimento feminista guardará. o mérito CUVlOa, TrLCefieZA e COflIUSaO. i.. -.
rico de ter denunciado "a insaciável intolerância à alteri ,,.(tù
\\' No entanto a ambigtiidade só é perceptível àquele que
dade, paixão que nutre nosso pensamentol' e que "nos le- a observa de fora, posto que, para a pessoa ambígua, não'
vou a ver o nada em tudo que não nos reflete, e descrever há incerteza ov confusão, apenas indiferenciação, uma fa-l
o diferente como ausência". lha na capacidade de discriminação e identidade. .i:'. '
O movimento feminista terá assim tornado presente e vi- Apesar da assimilação corrente entre os dois termos, a:
sível o Feminino como corpo, como história, como cultu- ambigüidade difere profundamente da ambivalência. Este'
--==-:-¡:--;r-
ra, como crise e como projeto. último termo, tomado emprestado por Freud a Bleuler, que
o forjara, desenvolvido em seguida por Karl Abraham'e'
A ARMADII,HA DA ICUALDADTi n
l
Melanie Klein, serve para qualifïcar a presença simultânea, Contrariamente, entretanto, às- situações consideradas pe-
I
num mesmo sujeito, de sentimentos ou comportamentos an- la clínica psicanalítica, a ambigüidade, nas mulheres, não
tinômicos e contraditórios. Na ambivalência a afirmação I
I' é um problema pessoal e individual mas antes a resposta
ti
e a negação, o sim e o não, o amor e o ódio coexistem con- inevitåvel e, ãté, sadia e normal às mensagens dife-
flituosamente.
t,
-
rentes e contraditóiias que elas
-
recebem e acatam dâ
!.
moderna.
sociedade
- - .';.'
t
\
O componente posítívo e o ccimponente negativo da ati' Estudando os traços etiológicos da esquizofrenia, Gre-
tude qfetiva estão simultøneamente prexntes, indíssoc'ídveis, gory Bateson chama "dupla coerção" (double bindstz ut -
e constítuem uma oposìção não diølétíca, íntransponivel pa'
tuação em que se encontra uma pessoa submetida¡ pêrmâ-
I
esquivar-se a ela, de não se compiometer, ou, ainda, de não A fragmentação dapersonalidade feminina faz dela um ¡ ' )
A força subterrânea da ambigüidade é identificável em, se apóiam na experiência, desconfiam do teórico, que îpF:
pelo menos, três exemplos de conduta das mulheres no mun- rece às mulheres como sedutcr e ao mesmo tempo Pollço
do dos homens: sua relação equlvoca com o saber, sua fala confiável. Essa desconfiança em si não é teoÅzada, mas.vìi
sofrida, seu medo do sucesso. vida de maneira obscura, mais sþntida que pensada, mais
Escolas, universidades e centros de pesquisas estão hoje experimentada que afirmada. .:. i
repletos de mulheres que, neles, não só adquirenr, como pro- Coexistem assim, na conduta'das mulheres face aorpa-
duzem saber. A considerável produção científica assinada ber, desejos contraditórios, contradição não expllcita para
por mulheres não constitui, nô entanto, um argumento su- aquelas que a vivem e que, sem propriamente formulá-la ' ,
|:
ficientemente forte para destruir nelas sentimentos equívo- ou percebê-la, sofrem as suas conseq{iências, não sgb fo-r. ¡
cultura em que "modos de fazer e modos de dizer se reve- sociaçõgs que faz com que as mulheres, para se protegerem
zaÍn e se esclarecem mutuamente, desenhando uma esfera de um possível fracasso emrelação às expectativas que elas
+
de representações e ações que lhes pertencem",l5 fazem sua mesmas construíram, abdiquem do direito de se exprint{.
incursão na esfera do saber, campo até então reservado ao A fala em situação pública parece significar para as mu-
IVlasculino. O universo feminino se organiza em torno de \;, lheres uma mudança de registro lingüístico em qug a comu-
l.
nicação informal de sujeito a sujeito, de Ego a Alter, ine- ,'
i
pelo diálogo entre dois sujeitos e se acomoda com difi- conceitual, masculino, vivido não só como diferente mas
-
culdade ao saber instrumental, que supõe uma relação su- como superior à linguagem feminina e mais adequado.às'
,i
tensamente independente do sujeito. Os saberes femininos A existência de dois discursos,:dois estilos, dois modos
a\
A ARMADILHA DA ¡CUA¡,DADE $
BO RoslsKil DARCY DE OL¡VBIRA
., cia a desviar o olhar ou a baixar os olhos, param de falar rà educação e às carreiras masculinas está se dando conco-
i se lhes cortam a palavra e se submetem ao toque e ao sorri- mitantemente a uma preservação dos papéis femininos tra-
l¡
f
so masculinos cada um desses pequenos episódios da ' dicionais. Não se pode falar, portanto, em uniformização,
i" ,',
-,
¡convivência cotidiana torna-se gesto significativo e simbó- e isso talvez explique por que as mulheres hesitam, terg-
ll' /lico de uma reafirmação do stati¡s dominante dos homens. r versam, queixam-se, angustiam-se.
O código gestual, a mímica e a postura corporal conju- Essa integração através da apropriação da palavra mas-
gam-se ao código lingrilstico em uma interação em que es- culina coexiste com uma "tradição" de fala feminina; essa
tão em jogo não somente registros lingülsticos próprios a ' coexistência é vivida pelas mulheres como fonte de confu-
cada sexo como também a ielação de cada sexo com a lin- são e indefinição.
guagem e com a atividade verbal enquanto modo de expres- ,., rì
Na verdade, a pretensa uniformização progressiva dos
',,,;':..
são.19 _¡modos de vida masculino e feminino é incompleta e desi-
., Homens e mulheres adotam registros lingüísticos dif'eren- ì "'lgual. As mulheres penetram no mundo dos homens, mas
tes na medida em que se ligam a centros de interesse especí-
I
i it t' '
-tu ' esse movimento se faz sem contrapartida nem reciprocida-
,t ficos, e passam assim a dispor de competências lingülsticas ,,i)'' t .r
; de. Embora a sociedade aceite e, às vezes , até enjaque uma
.' ,diferentes. falar como um homem, a recíproca não éver-
' Essa interpenetração entre forma e conteúdo dcl discur- fi \ñt
; i
ei*:saiba
"); so reflete, no plano lingtiístico, a interação social nnais am- , . .,
l,., ( I Um homem que adote um modo de falar "feminino".,é
pla entre linguagem, pensamento e esferá de vida, Os ho- Vlapontado como portador de um comportamento desvian:'
mens dominam os registros técnicos, pollticos e intelectuais te. Esse duplo critério de julgamento reafirma a primazia
e têm o controle da palavra pública. As mulheres só domi- do discurso masculino como única nonna com validade geral
nam registros referentes a campos socialmente considera- e encerra as mulheres numa situação paradoxal
dos como secundários ou insignifîcantes. A fala feminina, As mulheres aprendem a falar de maneira adequada'a
competente no espaço privado, torna-se titubeante e inse- seu sexo sob pena de receber uma sanção como "masculi-
gura em situações nas quais a conotação pública é predo- nizadas". Mas, para se afirmarem como seres autônomos
minante. e independentes no espaço público, elas precisam introje-
Os diversos estudos sociolingülsticos citados vinculam a tar a norma do discurso masculino. Reedita-se a dupla meh-
demarcação dos papéis sociais segundo o sexo à especifici- sagem: falar bem a língua dos homens é pôr em risco seu
dade de regiltros lingüísticos. Todos eles tendem a concluir reconhecimento enquanto mulher. Falá-la mal é expor-se
que uma mudança desses papéis sociais atenua¡ia a diferença I- ao rídiculo profissional. , . ,!i
de linguagem entre homens e mulheres. A uniformização A fala sofrida, assim como a relação equívoca com o sa-
de seus modos de vida, com as mulheres acedendo às mes- f
ber, são manifestações de um desejo mal formulado, im-
'mas carreiras e à mesma formação que os homens, apaga- 'preciso, de não renunciar totalmente aos traços da cultura
- .. i ,ria as diferenças lingüísticas. Os modos de dizer femininos feminina que continua viva e atuante na vida das mu-
'desapareceriam, um dos. sexos se tornaria o outro, o uni-
,lheres
-ainda que essa presença represente um complica-;
|, versal absorveria o particular, o único sufocando o diferente.
-, novas
dor para experiências, vivências e desafios que elag:
Essa conclusão, entretanto, me parece equivocada na me- mesmas desejam e reivindicam.
,i , ,,dida em que não leva em conta que o acesso das mulheres Na verdade, o domínio da palavra e do saber são pré-,
\
,l
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA A ARMADILHA DA ICUALDADE E'
84
requisitos fundamentais para uma travessia bem-sucedida ¿. cada sexo em relação aos papéis masculino e feminino, COIISJ
do espaço público. Nas mulheres, esse êxito é tão desejado . ,i ',,tataque uma das causas determinantes da falta de sucesso
quanto temído; tão procurado quando sabotado; é, ao mes- ,;profissional das mulheres decorre do receio delas de gue
mo tempo, imagem sedutora e fantasma obscuro.
Ì .'" o êxito comprometa sua feminilidade e as ponha em pe-
L , ,. .: ¡igg.2o
O medo do sucesso, travestido em medo do fracasso, é t''t'
o terceiro componente desse desempenho problemático das ' Feminilidade e êxito aparecem como dois pólos deseja-
-d.os
mulheres no mundo dos homens' Um jogo de sim e não se ,1
- - ''.¿' mas mutuamente excludentes. É a constatação dos ris-
instala: desejos de mudança e anbíções de vida pública in-
t/
tl
,!
..''"' cos do êxito que leva as mulheres seja a evitarem os papéis
teragem com o medo do fracasso' com a incapacidade de i(' nos quais o êxito é possível, seje a fazerem o necessário Pâ:
, assumir, o desafio de Seus próprios desejos'
ra que o êxito não se materialize, seja a se concentrarem
,t" em "carreiras feminitlas", nas quais o sucesso não causa
, As mulheres querem muda¡ de vida mas temem as con-
,' seqtiências da mudança. Têm medo de questionar sua auto- -, -'' ,ot mesmos problemas que quando é alcançado em t'canei-
,, imägem tradicional sem a cetteza de encontrar outra mais
' ras masculinas".
" ' O medo do sucesso faz-se tiaço permanente da persona-
.J satisfatória por meio de sua inserção no mundo do traba-
de não estarem mais em condições de de- lidade feminina. Se a identidade feminina depende funda-
/u Jlho. Têm medopapel
' mentalmenie da aprovação dos homens e se os homens se
de alicerce emotivo e afetivo da famí-
i,3 sempenhar seu sentem ameaçados em sua masculipidade por mulheres côm-
J,n' lia sèm acertezade encontrar compensações em suas ativi'
petentes, uma mulher competentp corre o risco de não ser
dades profissionais.
escolhida e amada.
./i ì
Insatisfação, anbição, desejos de independência e de au-
tonomia são sentimentos que, nAS mulheres, rnuitas vezes Judith Bardwick introdgz uma outra dimensão explica-
são acompanhados pelo fantasma da culpa. E essa culpa tiva: a angústia que as mulheres sentem vem do fato de que
que o fracasso vem sancionar. sendo a culpa um sentimen- seu comportamento aparece, a seus próprios olhos, cg{no
desviante.
to que se nutre das provas de que se está errada, a melhor
dessas provas é o fracasso. Lugar de transgressão, o espa-
O desvio consiste no adoção de øuto-imagens' condutas e
, Ço público torna-se também lugar de expíação. atitudes que destoam das prescrições de comportamento dj:
. (ì f Ter sucesso, para as mulheres, ébem mais arriscado que ' tadøs peløs normas de sexo e pelos estereótipos de gêryero.
\ þacassar. Ter sucesso não está previsto e introduz ao des- (.) A medo que as mulher-es têm do sucesso pode nãlo ser
ãonhecido. Negociar o sucesso profissional com o equilí- um traço psicológico, mas sim um receio de que uma incor-
brio familiar e afetivo parece a muitas mulheres configurar poração excessiva dos estereótipos masculinos as empurre' :
uma ameaça de desencontro que elas preferem evitar. paia comportømentos desviantes, expondo-as a todo ttpo
)
Já ern 1949 Margaret Mead lançava seu grito de alar- ; de sanção soçial.zl
a,
',,''Quando deixømos de consíderar o medo do sucesso como l
ta a uma definição de feminilidade baseáda nas noções de
traço psicológico constítutivo dø personalídøde femininø pa- I sacrifício de si mesma, dedicação aos outros, dependência
Íi
rø entendê-lo como reação defensíva øo que é percebido co- e vulnerabilidade.
mo comportamento desyiqnte, deslocamos a explicøção de
umo varíável interna, ãssumídø cbmo sendo permanente e As mulheres n(io cortejam o fracasso: elas evitam o sucesso
l diflcìl de mudør, pøra a realídode e¿cterha, que é sempre maß (...). Para a mulher tomada enquanto indivíduo, evitar o,
fiícil de ser alterada.n êxito sertí menos visivelmente destruidor que procurar o fra- "
'/ ', casso, mas não podemos subestimar as conseqüências des-
No começo dos anos 80, una obra sem pretensões cien- se fenômeno sobre as mulheres em geral. A tendênciø'que
tíficas obteve uma escuta impressionante junto ao priblico temos de nos auto-impor limttes, de fazer coísas que ftcøm'
leitor feminino dos países industrializados. Descrevendo em aquém de nossas capacidades reais de preferêncía, de coir'
estilo jornalístico o que pesquisas asadêmicas haviam cons- rer o rísco de não sermos mais amadas, decorre do que cha'
tatado em relação ao medo do sucæso, Colette Dowling con- .' . meí "confusão dos gêneros" essa nova incerteza sobre nossø
identidade de mulheres. Não fazer nada é a melhor garøn''
firma que a própria idéia de sucesso se reveste de significa- lígada a 4ogas
ção diferente para cada um dos sexos. .,' . tia de não ter que experimentar a øngtÍstÍa que
,onquistas e reolizações, com o risco lhes é inerente,
',,.,,"'' de nos sentirmos não femininas'!.2a
As mulheres não parecem procurqr o êxito como føzem os
homew. Elas se protegem dele, Sentem tanta ansiedade
quando as coisas vão bem quonto quando ø reieição ou o '.-,\,')' um comportamento de fuga e deiesa diante dos riscos de
fracasso parecem imínentes. Tem-se a impressão de que søir- ,n \r
-f>,.. ,:' '1", fragmentação da identidade feminina. E, no entanto, esse
se betn tomar-se eficíente num dado campo, ter êrtto - i
-
assustø um ruÍmero incrível de mulheres que possaem as qua-
',ì' \
,', receio - ou seu avesso, a adesão ao fracasso como profe-
{.
cia que se autoconfirma não fornece mais às mulheres
tidades requerídøs pøra produzir algo de vølor no decorrer
da vída.ts
Êt*
um álibi perfeito.
-
As estratégias de evitamento e autodesqualificação coa-
Segundo Dowling, quanto mais talentosas são as mulhe- bitam no psiquismo feminino com sentimentos de forçê igual
res, mais elas se angustiam frente ao risco do'sucesso. Para e contraria, como o desejo de mudança e a necessidade de
os homens, o êxito pode reforçar sua auto-imagem enquanto .afirmaçío de si mesma. Os pólos dessa interação contradi-
indivíduo aritônomo, independente, agressivo e empreen- ,i '.tória não se anulam um ao outro num equilíbrio fictício,:
dedor. ''l ;mas coexisiem, de maneira instável e cambiante, ao longo
Já,para as mulheres, o êxíto é fonte de tensão e incerte-
^'1
tr "'.,de toda a travessia dos territórios do masculino, provocan-
'(-clo
. zà. As mulheres bem-sucedidas mergulham num mundo de .r'
', ora confiança e euforia, ora ansiedade e depressã!!
, :/ A atitude das mulheres em relação ao exito, como em
,iil, ,, regras desconhecidas, o que agrava as dificuldades de or-
" l.I'' ,ì gailzação da vida cotidiana e, principalmente, traz o risco . ' relação à fala pública e ao saber, não é marcada nem pela
,,, '' 1'!?
de comprometer aquilo que é, aos seus olhos, opem mais ' allrmaçao nem pela negação pura e simples, mas pehþ-
/¡'1\ {'
),. ' ,,i\preciosslisuas relações afetivas. bigüidade.ú .
.i" ' A ambição pessoal, o impulso criador, o desejo de ter -ÕTeminino não pode ser o lugar de uma síntese impossí'
,l''' \. êxito no æpaçó prtblico são percebidos como ameaça dire- vel. Sua reconstrução atravessa o reconhecimento € â €le:
\L't
88 ROSISKA DARCY DB OLIVEIR.A A ARMADILHA DA ICUALDADE 89
,: ,balação de um impasse. Sair desse impasse implica, antes a exteriorizar a angústia que cada uma carrega como uma
'. '-
, , de mais nada, para as mulheres, admitir que estão jogando culpa coletiva, depositando-a fora de si, nos ombros da so-
."\.1' ,i I consigo mesmas um jogo de cârtas marcadas. Quem ganha ciedade. O movimento feminista tem hoje um passado de
i. perde; quem perde ganha. Face aos paradoxos, às escolhas um século, mas, longe de estar esgotado, entra na riltima
'\ impossíveis, a resposta das mulheres não poderia ter sido, . / década deste mitênio com um futuro assegurado. O futuro
I - do movimento é angustiar a sociedade, deparando-a com
em um primeiro momento, senão a ambigtiidade. Transfor- I
L ,,',
mar o estatuto social das mulheres não pode ser uma mu- 'i ;.,,'', os problemas que, até agora, as mulheres tentaram resol-
dança que se opere só nelas e graç¿ùs a elas, pela acumula- ,,- vêr sozinhas.
ção de funções sociais e, em.conseqüência, de registros psí-
" ' Transformar a neurose das mulheres em neurose social
quicos. A angústia que habita as mulheres coincide, a meu . ié recurso terapêutico de que elas terão de lançar mão.
r.' ( -i -
o
ver, com o princípio de uma reaçio lúcida à situação de am- ì r.'l '
; :bieüidade face a um projeto imposslvel porque mal formu- . Ì.¡ tr'
O eterno feminino dos poetas, que envolvia as mulheres sombra que esse entendimento terá que iluminar. Mas tan-
iio véu da a-historicidade, dissipou-se ao contato de novos to mais maduro estará quanto melhor resista a formular uma
tenlpos; o que surgiu, então, foi indefinição e efervescên- receita de mulher e tolere a exper!ência da indefinição' de l
{'
uma desordem que, como já foi dito, é paradoxalmente or-
.,í
cia. Os anos 70 trouxeram um feminino ávido de igualda-
ile, que buscava escapar de seus limites dissolvendo-se no garttzadol:a Conviver com a desordem é certamente âogtls: ,, \,Ù
riniversal. Esse feminino, no entanto, esbarrou na confu- tiante; talvez o mal-estar que ela provoca seja respons{¡¿el
são entre universal e masculino. Uma noção unilateral de pela tentação de recriar modelos, maneira indireta de.pim-
igualdade, em que o masculino travestido em universal é plificar uma realidade altamente complexa.
medida e ideal, confronta as mulheres ao paradoxo de ser, O recurso da dialética, sempre àmão em situações d.eçoa-
ao mesmo tempo, elas mesmas e o Outro. , flito, tenta levar para o campo das sínteses rrnifîcadoras
a gera- ' periências irredutivelmente diferentes. Dentre as possíve.is
Foi preciso que toda uma geração de mulherès - ,
\r
reencenações simptificadoras da relação entre os sexosr=o ,
ção exemplar que cursou escolas, sentou-se nas universida- proscênio.
I
O movimento de mulheres chega à maturidade justamente ) Citando a interpretação de Platão ao mito do andrógi-
com o entendimento da amUigtü¿a¿e que aflige as mulhe-
','"1'- no,'símbolo da uoi¿u¿é perdida, Badinter aposta em u¡ira
res em sua travessia dos territórios do masculino, zona det possível androginia anunciada para o futuro. Homens e mu-
e rvencÊ¡¡clA Do FEMININo n
. t ,,t' 96 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
.. i
i
J,J''' ativa dás mulheres no espaço priblico e a uma tendência, i ,1t,;' ¡' '*l
- Os sociólogos temem os psicanalistas e vice-versa' A4-
i'' ; ainda embrionária mas passível de desenvolver-se, de par-;' '
i''\ bos temem màis ainda os biólogos. Daí que corpo, psiquis-.
, ' , ',' ffi;pelos homens, das responsabilidader iuÃitiãt.s oj I
I
ciplinar, transborda das fronteiras teóricas'
. em que se tece a diferença é apepas parcialmente vefdadei- i
Nesse esforço de releitura de um fenômeno complexo
,.;ra. As mulheres que hoje exercem papéis masculinos nem i
penso que, contrariamente ao que Badinter parece anun-
iÌ
por isso são homens. Guardam a vivência de um corpo fe- I
I
na organização das sociedades contemporâneas está bem
as do corpo masculino, e essÍts experiências não são menos I
I
longe de ser uma ocupação crescente dos espaços privados
constitutivas nem fundadoras que as experiências sociais. '
I
I
pelõs homens, recíproca ecomplementar à-ocupaçãoiá ex-
"I
.As mulheres guardam um psiquismo marcado pelo Fe- I
I
I irnru dos espaços públicos pelas mulheres. Se é verdade que
minino que a psicanálise tem tent¿do decifrar, descrevendo-o I
,r
\ organização da sociedade como um todo não caminha no
tos lacanianos' ora como palavra que se busca ou que bus-
I
bramento pela escuta atenta de Luce lriSpray.3 ,,, o mercado de trabalho está organizado em torno do tem-
Corpo, psiquismo e lugar social sujeitos a interações po integral. os empregos de tempo parcial continuam sen-.
', mútuas que se retroalimentam -
vão processando as trans-
- do não somente os que recebem pior remuneração como
\, '.' .
.'' ' fot*ações do feminino no seiô do tempo, "esse
grande es-
também aqueles que não permitem imaginar maiores desen-
ì . ìcultor". volvirnentos profissionais. Afora os artistas' que organizart
i-.
) ' Mur, para as próprias mulheres, é difícil pensar o Femi- livremente seu tempo, ou as profissões tradiçionalmente fe-
nino assim. Formadas nas escol4s de pensamento dos ho- mininas como o magistério primário, que, justamente
mens, quando tentam ler sua complexa realidade, desven- -
98 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA ¿ EuencÊ¡¡ctA Do FEMININo 99
já imaginada para só ocu- nhos pelos homens era evidente. Buscavam também o acesso
, , porque feminino, é uma carreira
.n" ' par meio tempo
'rno -, quase tudo o que resta no mercado co- a outros horizontes, a outras experiências, buscavam con-
vivência fora da família, buscavam saber, buscavam podér ,1
, ,' oportunidade de emprego demanda um investimento a t!
'.
l
car seu acesso ao mundo dos home¡rs foi de várias índoles. ,.t, t þo econômico para legitirnar o afetivo.
Certamente buscavarn a independência econômica, postc¡
L A reivindicação de um salário doméstico que viesse re-
que a submissão implícita na dependência dos recursos ga- munerar o trabalho "invisível" das mulheres em casa se fun-
\
n ¡MencÊ¡¡cra Do F'EMININo t0l
r00 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
Foi por serem elas o que eram que a entrada das mulhe- no espírito de uma minoria de mulheres, despontasse a idéia
res na esfera pública, nos espaços masculinos, revestiu-se de uma renegociação radical dos termos da presença femi'
de tantos problemas e dificuldades, frente aos quais a so- nina no espaço público e no espaço privado. '
brecarga material advinda da duplaiornada de trabalho pa- li, ..
', r'.
' O feminismo da igualdade levantou a bandeira do aces-
recia questão menor, de solução prática mais fácil. Na ver- ì ..', so da mulher à educação, ao trabalho e à política. Defen-
dade, nem elas próprias nem a sociedade julgavam as mu- N'. '. .deu a liberdade de concepção e o direito ao prazet. Com-
theres competentes, aptas, capazes de ingressar no espaço t\
I bateu a violência sexual e ã papel subalterno da mulher. Em
público. Durante muito tempo, especialistas bem- r graus e ritmos diferentes, em culturâs diferentes, o femi'
' .r'intencionados procuraram traçar o perfil de todas as defi- ,\ nismo obteve uma escuta mundial
' ¡'ì ciências de formação, de todo o despreparo educacional,
ti
O lugar social das mulheres e a visibilidade da questão
que impunham desvantagem às mulheres em termos de opor- feminina mudaram radicalmente no espaço de uma gera-
. 1i ' tunidade de acesso aos estudos e aos postos de trabalho. ção. No entanto, como sintetiza Barbara Ehrenreich numa
, , i''Falou-se mesmo
- €, em alguns lugares, implantou-se uma liase polêmica, "Sorry, sisters, but this is not the revolu-
. .',10 política de discriminação positiva, ou seja, de favorecimento tion", ninguém pode argumentar que a entrada maciça das
'' ' . das mulheres, para restabelecer uma verdadeira igualdade mulheres nos territórios do masculino não tenha produzi-
.' desiguais.
rde oportunidade entre . do ølguma diferença. Mas o que é surpreendente e revela-
Programas de formação permanente, de requalificação dor é quão pequena tem sido, até agota, essa diferença.
profissional, de reciclagem de pessoal, de aperfeiçoamento A explicação desse impacto transformador limitado es-
de mão-de-obra, capricharam em corrigir, nas mulheres, tu- tá, a meu ver, na maneira como foi negociada a igualdade
do aquilo que vinha do fato de ser mulher: visões do mun- ¡ entre os sexos. As mulheres reivindicaram um acesso incon-
' do, atitudes inadeqüadas, linguagem insuficiente, que en- dicional a experiências que a sociedade como um todo -
gendravam, como já vimos, uma relação dribia com o sa- ,' e elas próprias
- consideravam como superigres a suas vi-
, ber, uma fala sofrida eiulgada incompetente, um medo do vências tradicionais. Na medida em que o açesso ao mun-
sucesso travestido em medo do fracasso. submetidas a esse
' do masculino era o objetivo desejado, na medida em que
\ 'processo acelerado de "aperfeiçoamento" as mulheres eram os homens que determinavam o que tinha e o que não
' aplicavam-se em se transformar, em se formar, em se ca-
' tinha valor, na medida em que a cultura masculina era r¡ma
pacitar, jamais criticando aquito que encontravam, calan- emanação clo que se produz no espaço público, é evidente
do seu mal-estar e confundindo-o com incompetência e ina- que o que se "produz" na vida privada, como modo de ser,
dequação. Querendo estar ali e' ao mesmo tem'po, não que- como valor e desejo, não podia ser reconhecido nem valo-
rendo ou se sentindo incapazes de estar. Querendo se mas- rtzado.
culinizar e, ao mesmo tempo, imbuldas de valores femini- Uma geração inteira de mulheres, não obstante a ousa-
nos e temendo o isolamento e a solidão como conseqüên- dia de sua militância, apresentou-se humildemente no mer-
cia dessa masculinização exigida para rivalizar com os ho- cado de trabalho em busc¿ de reconhecimento enquanto pes'
mens. Em suma, como já foi dito e redito, o preço da en- soa. Para tanto essas mulheres tentaram provar a todos e
\trada unilateral e sern reciprocidade das mulheres no mun- a si mesmas que ser mulher, dependendo da mulher, pode-
ido dos homens foi a ambigäidade. A travessia dessa ambi- ria até não ser um defeito.
güidade, por sua vez, foi necessária para que, pelo'menos Chegamos mesmo a assumir a dupla jornada de traba'
f
.t
lho e a sobrecarga de tarefas materiais, mas tropeçamos na tl tituições, não aceleraria o desaparecimento puro e simples
ìr
ambigriidade, reveladora da dupla mensagem, das injunções {/ da vida privada, ou, pelo menos, seu enfraquecimento; b
\ .r contraditórias.
'
que, por sua vez, corroeria o solo em que planta suas raf-
ì . Pelas veredas da dúvida, da angústia, da divis€[o,þlta-
Ì
mação, por toques que percebem a presença mas não po- natureza, intuição como forma desenvolvida de percepção:
dem ou não querem apropriar-se do que é tocado. Esse en- traços da cultura feminina que não tiveram vez no espaço
tendimento por aproximação é estrangeiro ao entendimen- público, abafados que foram pela relação dos humanos com
to por apropriação, que é o ideal do conceito. os instrumentos, predação da natureza, apelo à razão cien-
Não há como nem por que conceituar a cultura femini- tíftca como esforço de dar notne ao mistério.
na, mas há sim como tocá-la, percebê-la, intuí-la, talvez' E no entanto as mulheres bem sabem quanto, ao longo
, i,.t,)j' E saber que dela, desse universo fluido e
fugidio, pode vir da vida, lhes é útil a intuição, lhes é essencial a empatia en-
.' um enrrquecimento certo e seguro para o diálogo humano' quanto forma de conhecimento desenvolvida no cuidado
Ela falará, por exemplo, demelhora¡ a relação entre as pes- c r, coÍr a vida e com os outros.
I
,isoas, de melhor entender os mistérios dessa relação, misté- - ,,'" As mulheres são diferentes dos homens; se essa diferen-
. rios tão ou mais densos que os mistérios da natureza.Fala- ,.t-J
, ,, )) ça até hoje foi apresentada como fundamento e justifîcati-
| ' ,'',Íá" de rnais reciprocidade.entre nós e a natureza, pois que '\''.,'yã, da desigualdade, só depende das próprias mulheres rom-
'' :. 'ìentre mulheres e a naturezahâuma relação ancestral que per esse dado, virando-o pelo avesso. A revalorização da
as
'
be pode transmutar em nova aliança. rdiferença não tem por que enfraquecer a luta pela igualda-
O relacional flui da cultura feminina como seu mais sá- 'de, mas deve, certamente, redefiniJa. O projeto da dife:ì, i;
bio saber. A chamada intuição feminina, relegada a uma rença não é uma reval orização da vida privada p¿ua as mu-, .)"' \ I
esfera inferior de conhecimento, situada pelo pensamento lheres, mas pelas mulheres para o conjunto da sociedade;; , .'
racional em algum ponto entre o mágico e uma espécie de Nesse sentido, o projeto da diferença é pós-feminista, não I
faro animal, a intuição é uma forma de apreensão do real porque nega ou contradiz o projeto da igualdade mas por- i"
que passa por canais que as mulheres, as próprias mulhe- que corrige suas distorções, faz sua crítica enquanto expe-
res, nunca se interessaram por explorar. I riência incompleta que demanda ser radicalizada. É pós- ,r\"'
Quem melhor sintetizou a intuição como entrada noco- Tfeminista porque, sem o feminismo, suas mudanças, suas
I
forme, o plural ao singular, o incerto e o indeterminado ao Aceitando a incerteza e a indeterminação inerentes aos
previsível e ao programado. : momentos de abertura e de ruptura, cabe às mulheres
abrir
Enquanto fator de enriquecimento e de comþlexificação um amplo campo argumentativo a propósito da forma pre-
do tecido social, o projeto da diferença representa a seiva sente e futura da convivência entre os sexos e do impacto
e o veio pelo qual flui a verdadeira igualdade entre os se- de seu desenho no perfil da sociedade.
xos, inédita e subversiva. Subversiva porque toca naatëhoje, como contribuição a essa exproração de caminhos e ve-
intocável escala masculina de valores que rege a vida públi-' redas que se buscam, os dois enìaios que se seguem
ca. Inédita porque até hoje as mulheres pensaram que o pr€- i :
,','
r ram a questão da cultura feminina emãois ângìrlori privile-
explo-
ço do poder era a renúncia a seus valores próprios e o mi-j, ..' rt giados. Nos espaços da literatura, em que o fèminino pro-
metismo com os hoürens. ,
t
cura dizer-se' e.no espaço público poiexcelência que é a
'
Muitas vezes é justamente no momento de maior perigo , . ' ."' política, onde ela propõe maneiras àiferentes de estar
e de
que as rupturas necessárias e as alternativas possíveis emer- fazer.
gem óom maior força. A lógica do mercado, triunfante,
ameaça invadir e corroer os menores interstícios da vida so- t (r
,
¡,il
il6 ROSTSKA DARCY DE OLIVEIR.A A EMERGÊNCIA Do FEMININo lt7
Urn castelo à beira do lago Leman com muitos quartos são. A imagem de Jane Eyre subindo ao teto da casa para..
para si teria feito toda a diferença. Melhor ainda, a con- melhor contemplar o horizonte é repres entatrvada fruitra-
tbrtabilíssima renda própria de que dispunha, no fim do ção que rnarca a literatura dessa primeira metade do sécu-
século XVIII, Germaine Necker e que permitiu que se lo. virginia woolf tem razão de lamentar que €ssâ nrrârr
-
tornasse visível o inquestionável talento de Mme. de StaëI.
I, Madame de Staël, que poderiater passeado pelos corredo- ì . , r;reivindicativo, lacrimoso e enraivecido. como diz virginia,
'
,res do Castelo de Coppet sua condição de filha do banqueiro
/
/¡
i \\r de Luís XVI, preferiu as emoções de uma querela pública ., . ; ¡ ,de autoras que, ape6ar de um imenso talento, se perdiam
com Rousseau quando da publicação de Confíssões. Mme. , û"lnum lamentar-se sobre as injustiças da condição.de mulher.
" i,,
,
de Staël desferiu as.mais acerbas críticas ao revolucioná- i't ., ,,,.;,Nasciam essas obras num clima social em que as reivindi-
.r: í i
¡il
rio, que só se recuperaria a seus olhos ao publicar a Nova lu'' cações femininas de igualdade com os homens se cristaliza-
Heloisa, onde demonstra uma infÏnita acuidade a respeito ,'î' riam progressivamenie no direito de voto e no direito ao
de um tema que muito interessava Mme. de Staël a pai- ,;þ trabalho remunerado ao qual ch.egavam massas operárias
ú
-
xão feminina. Se a ensaísta ganhou notoriedade no desafio não por vontade própria, por escolha, mas por absoluta ne-
I
a Rousseau, a romancista não precisou disso para se nota- cessidade de enfrentar uma vida urbana industrial
þe se
bilizar com a publicação de Corinne. irqpunha como o espaço da modernidade.
r',' A Revolução Francesa, no bojo do ideá¡io de Direitos A ambição de igualdade encontrou rapidamente sua ideo-
. Humanos, inventa a igualdade entre os Homens, o que, em
'.'
' ( . ,l'.,' ,,
filigrgna, promove as-mulheres a cidadãs. São as Luzes do ,t,' Desde o começo, o movimento feminista pretendeu p¿ua
século XVIil que iluminarão o século XIX, inaugurando ias mulheres uma existência como a dos homens, tão livre
' ,,' um novo capítulo na história das mulheres,. momento ten- . ,'' '
¡, quanto a dos homens, sendo esta percebida como o máxi_
' sional, em que a expectativa de direitos encontra a hostili-
n
r . ,. rffio da liberdade.
,,'
Í.r' dade do real vivido. Viver como os homens, desfrutando do mundo g da rua,
'l ( . :'t:,, Jane Austen confiava nas portas ciue rangiam anuncian-
-,"
íJ"' ,^ ' recusando '
as condições que enclausuravam as mulheres e li-
' . r;.:r clo a chegada de alguém: elas eram as sentinelas da clan-
". ''-". L. /11 ùf , mitavam sua existênciaao universo da casa, apresentava-se
,,., ,'1. dest.inidade em que escrevea Orgulho e Preconceito, Char- " como um frojeto de floresciûÌento, de desenvolvimento de
' , i lotte Brontë levou a um editor, à revelia da irmã, O Morro\ ^ capacidades novas, como a tentadora aventura do amanhã.
'" dos Ventos (Iivantes, que Emily.não ousava mostrar a nin-)\ O horizonte do Feminino passa a ser Masculino. George
guém, e apresentou-o como tendo sido escrito por um ho-l/t Sand, travestida, desafiava Paris, mas reencontrava rro cÍürr-
rnem. O anedótico dessas histórias têm força de depoimen-' po uma vida discreta: lá bordava no bastidor, embalada pelo
to sociológico sobre um tempo em que o Feminino fazia t
piano dos amigos Liszt e Chopin.
seus primeiros passos na ambigüidade. A igualdade no ho- As mulheres não tinham parâmetros femininos de vida
rizonte mas longe do alcance setraduzia na ficção em nuÍul- autônoma e sem coerções, o que lhes deixava como opção
ces mais ou menos acentuadas de amargura. de liberdade a imitação de um estido masculino de vida. .
Alguns dos melhores romances dessa época são marca- Assim também no campo literário, sendo a literatura ou-
dos por personagens femininos que esba¡ram nos limites im- ousadia: escrever na ausência de precursoras só poderia
d,\r'
postos às pessoas de seu sexo como nos muros de uma pri. il'
'\iser adotar, tanto quanto possível, o estilo mais próximo do
)
¡18
'!
ROSISKÃ DARCY DE OLTVEIRA -, i"
.l' )) n euBRcÊNcIA Do FEMININo ttg'
'
que até então se fizera em,literatura, isto é, a literatura dos
,l
.l
',r '' ,
. atingido e o feminino o componelle inacabàdo. A armadí: f f
-.., \l u' ,
, hometrs: ,. '4.,:" . " '. lha se preparava e nela cairiam ã reministas da primeÍra
't n O século XIX deixou como herança uma estranha mis-
! I
-\ XX: buscando o universaþr*i,trr"".
I
:'
I,
.[t ;tura: uma literatura próxima da literatura masculina da épo- ,iii::"1åséculo l1
l' ,'., ca, porém atravessada por um amargor muito feminino, 1.'
,.. tt'
Para uma geração cie mulherês nascidas na época da vi-
.r! \ r malca inoonfundível de äutoras divididas, ientando escre- rada do século, a idade madura coincide corn uma época
/\ ; ver como os homens sem deixar o lugar da mulher que se t em que' se por um lado já está presente a consciência da
, '2 isetu€ excluída. discriminação sexúal, por outro e'ssa discriminação ainda
'z/ A primeira reflexão crítica sobre essa ambigüidade está \ é suficientemente forte para que as mais seguras de si evi-
justamente em Um teto todosan, quando em momentos di- I
tem identificar-se corr.o sexo feminino como um todo. As
ferentes Virginia parece cair ela mesma na arnbigüidade, ora que se sentem com recursos intelectuais e materiais que lhes
afirmando que nada é mais fatal para a literatura que pen- permitam fazer abstração dessa discriminação, faãem_no
sar no seu sexo, ora lamentando que as autoras do séculcr simplesmente como se de fato ela não existisie. Esses c¿rsos
XIX tenham se preocupado tanto com imitar os hornens. excepcionais escapam das limitações que, nesse começo de
lE no entanto essas afirmâções que parecem
¡ contraditórias século, ainda pesam sobre as mulheres.
j.na verdade não o são, porque dizem a mesma coisa: é por- Talvez o exemplo mais rico seja o de Marguerite your-
que as mulheres pensam no qeu sexo (mas o pensam como cenar' cujo destino é marcado por uma incomparável ori-
sexo-vítima) que tentam imita¡ os homens, não permitindo ginalidade, devida em parte a fatalidades que iädependem
que aflore nelas o que espontaneamente afloraria. dela, mas, sobretudo, às escolhas eue elafezrà maneira co-
,,, r( Essa vitimização que marca os primeiros 150 anos do fe- mo transformou essas fatalidades.
minismo 1ro1 ¡aízes èm um sentimento profundo de infe- I ., ,
chorros, que no fim da vida, às vezes parecia um velho va- , Ironicamente esse tabu foi quebrado graças à fama obti-
gabundo, sentado na beira da estrada, comendo um san- da sobretudo com dois romances, Memórias de Adriano e
duíche."8 A obra em negro, em que sua voz feminina reveste-se de
-i
, Esse velho vagabundo, no entanto, era herdeiro de uma
considerável fortuna que garantiu à fïlha, ao longo da
unra persona masculina e conta o enfrentamento existen-
cial e filosófico de dois homens com os temas decisivos do
,\
,,.1
-
,r'' vida inteira, a possibilidade de.não ocupar seu tempo e seu amor, do sexo, do poder, do conhecimento, da morte.
lrr
,
espírito com preocupações de ganhar o próprio sustento. :) Exilada voluntariamente de sua experiência feminina,
A renda mensal de que fala Virginia \Moolf, que aumenta ,,,-" Yourcenar investe a possibilidade de universahzação da ex-
t\
.,
.J
as chances de uma mulher se tornar escritora, estava desde , J, ,t. periência, mesmo movimento de descentração que permi-
o começo garantida. Assim como estava garantida uma in-
,.:¡ fância suficientemente insólitapara as meninas de sua ge- : Exilada também de seu tempo, aceitando o desafio da His-
i façao. tória ora na Antigüidade, através do imperador Adria;
I.
"
t .r! É assim, graças ao insólito dessa infância, que ela esca-
-
';"t pa desde cedo às convenções e, em particular, às conven- non, médico e alquimista que mantém com o conhecimen-
'l ções que definem a mulher. O que a levou sempre a decla- to e seus riscos uma relação tão ousada quanto a de Adria-
rar que ter nascido mulher não representara jamais um in- no com os riscos do poder
conveniente, que jamais desejara ser homem e que tampouco -, ela reafirma
romper fronteiras. Nega limitações
a ambição de
através de um extraor-
atribula valores diferentes aos dois sexos, acreditando que dinário esforço de reflexão e ao mesmo tempo da humilda-
homem e mulher valiam a mesma coisa. Mais que isso, Your- de de se deixar possuir, habitar, sem grandes interferências
,,'- cenar teve durante a vidá o extremo cuidado de não se dei- de sua parte., por essas entidades que invoca numa espécie
¡ii xar impressionar por nenhuma causa política e, ern parti-
" ''cular, de ascese, experiência mística pela qual o esvaziamento de
de não se envolver com o fe¡ninismo que c:onside-
,¡ : rrava não apenas radical como uma espécie- de sexismo às
,., si deixa lugar à divindade que nos vai ocupar.
J
não ser em seu nível mais rasteiro, em que a defesa dos di-
\j I /t1.. culino, em que ela penetra pelos caminhos do abandono e
tot'y:' da possessão.
reitos das mulheres se'confunde com a defesa dos /r .l
humanos, o que, para uma incontestável humanista como Embora a autora se mostrasse reticente quanto a estabe-
o'particularismo" e minimizasse a impli-
ela, estava acima de qualquer discussão. : (,- ,lecer o que chama
pação política das relações homem/mulher, a escolha de um
Quando aAcadémie Française, quebrando uma tradição rl I'
iiv
de três séculos, acolheu-a como a primeira mulher a con- personagem masculino para dissertar sobre esse conjunto
de temas é indicador, como ela mesma assinala, do fato de
)
r, i,,,r' r autoras,A ælðão é aqui tão central quanto nos romances de outras
tima de ventos e marés, de portos que se sucedem e de ilhas
deixadas para trás à medida gue o império avança. Essas ,,,J\\"t' ' que não ousaram explorar um universo muito maior
mesmas ilhas que encantaramâ juventude da autora e que ti i que uma casa e suas cercanias. Voz feminina, persona mas-
exerceram sobre ela o fascínio grego e pela primeira vez o
t!
tl'
iculina. Persona masculina significa aqui um desejo de
, j ì 'i. .'mais japropriar-se da experiência masculina em suas .dimensões
¡
. não tem o escravo, verdade seja dita, mas tampouco têm I. \ . lmasculino para, a partir deles, vislumbrar os territórios ainda
as imperatrizes. Direito do homem livre, a aventura do
mundo.
Yourcenar escolheu um homem e um imperador para fu- ';,
1-
'' Yourcenare outras como Virginia V/oolf e Gertrude Stein
gir às limitações da vida das mulheres' para escapar a esse . " ponstruíram, fosse mais difícil para as mulheres que encon-
' campo feminino restrito e fechado onde vive a maior parte ' travam a literatura estabelecerem com ela uma nova rela-
' das mulheres. "Não sei se poderíamos encontrar onde quer ,". ção, menos defendida, de maior abandono, sem outro in-
't 'qü€ sejaum personagem histórico feminino igualando, não '' terlocutor imaginário senão sua própria sensibilidade.
I
É a partir dessa perda de pudor que o feminino começa
li' ,, digo em grandeza (isso éum outro assunto), m¿u¡ em enver-
,\ a emergir na literatura como a face do novo. Insólito e des-
,1gudntu, um personagem masculino da mesma época".9 Es-
I
' ' jsa explicação, dada em suas entrevistas a Patrick de Ros- conhecido, o feminino se exprime como travessia de si mes,
.L
' (bo, confluma uma intencionalidade já expressa em Les yanx mo, como paixão, morte e ressurreição. A paixão segundo
c., rì , Clarice Lispector ou segundo Marguerite Duras, G. H. ou
i'
¡\
, ': ouverts. Esse campo restrito e fechado, o da experiência do-
I Anne-Marie Stretter. Travessia dos territórios do femini-
3t) ,'' méstica, não deixa margem a grandes aventuras fora do cam- no, terreno perigoso e inexplorado. Os personagens femi.
po do amor. Um imperador romano permitq é claro, ex-
DA ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
, A EMERCÊNCIA DO FEMININO T2'
i.
,l1
| ¡.)
..' ' termos psicanalíticos, a identidade feminina deixa de ser o.
l,' lt
'' ,,,- ' nmos tazemaqui esSA travesSia de Si mesm.s, tropeçando '
'
".. i ' . em perplexidad"r, ,o*o diante de um continente a explo- ,ot ,,,':''.-,,- Outro do Mesmo para se tornar uma procura e uma inven-'
',- , rar, reintegrando a posse da memória, se escrevendo e se '' r,,'",.-l'
,i'''' ,, ção. Passou o tempo do "segundo sexo", em que Simone
\', ,'¡'',i. 'inscrevendô naquílo que escrevem. Uma barata esmagada , .'1"' ./ l r,'de Beauvoir, contra fatos e mitos, propunha a igualdade.
'
.':.;!l' )' ,' na clobradiça da porta pode sef um súbito precípitar-se no l-'
I '- ' divino. "Trata-se primeiro como de uma espera que igno- ' , ; , ù' , lrigaray, ao qual cabe agora inventar-se.
ra sua fonte e seu nome, depois uma pulsação bate pouco
J,:,'
,' ''d A literatura vai colaborar nessa invenção, utilizando, Para
\ a pouco o ritmo de um projeto sem definição possível,
por j',, ' ' isso, a matéria corporal. Irigaray atravessa, de Platão a
enquanto, mas para a realtzação do qual todas as forças \ )l'
. Freud, uma história científica que constrói a mulher a pâr-
são mobilizadas com wha obstinação surda e cega a todo ' tir do homem e em função dele, e introduz nela um
o resto. operam-se deslizamentos. convalescença de uma
i espéculoll para revelar uma outra mulher, não submissa à
mulher no seu passo hesitante."lo --îtruurssia
-^ Reintegrar.a rnemória e avivência dando vozao que an- ; dos textos em que o masculino determina oi
,tè,
, era siiãncio. Dando voz mesmo ao silêncio, arte maior i limites do feminino recusado como Outro
- e o confirma
I de Marguerite Duràs, Nela, comg na escultrua, os vazios como alteração negativa do Mesmo é necessária para que
-
\ . ' contamianto quanto a matéria, são matéria onde todo su- "um sexo que não é", que ainda não foi, tente ser, que-
que implica uma escolha rigorosa da .]brando o silêncio imposto peia exclusão do discurso.
,', '' I pérfluo é eliminado, o
.
i.
' , 'ri ialavra capaz de supoitar a expressão. Pryut utiliza o si-
ù
' ) Ficção e teoria colaboram no sentido de fazer tábula ra-
,iêncio na caligrafia utiliza-se o fundo branco, tão im- ' isa do passado. A desigualdade entre homens e mulheres pro-
';' '' rportante "o*ä a letra traçada sobre ele' il\\ :r \vinha desse "defeito", dessa inferioridade de um
sexo que
' saímosquanto
LJ
i\
I dos territórios do masculino. Aqui, a fronteira lnão seria senão uma deformação do outro. A luta pela igual-
de uma no man's land queé o mistério e a força encantató- dade se esforça para negar esse defeito, para negar qual-
ria de Clarice, o lugar imprevisíveln descónhecido, de onde ,
'
,¡,-':' ,euer diferença, ignorando o fato de que, negando-o, subs-
provém essa voz filtrada em sons inauditos. Voz feminina, n ," Jcreve o critério de simetria e soliciia o reconhecimento em
persona feminina.
JI ' lnome da qua capacidade de ser como o outro,.e não em no-
. - Mas o Feminino que Clarice e Duras começam a cantar
e ,,
-t .fme de ser Outro. Armadilha-que a vanguarda dos anos 70
it u ,
¡1.
identidade do homem, nemmesmo o seu contrário. Um su- Um tempo que legitima essa ousadia teórica incentiva,
jeito coletivo escreve e se inscreve nesse corpo-autor. Em no plano literário, o discurso autobiográfico, catártico, as-
t26 ROS¡SKA DARCY DE OLIVEIRA A EMERGÊNCIA Do FEMININo tn
sociativo, que se toma pelo inconsciente e que, como ele, r / vida føz o texto a partir do meu corpo, Eu sou o furto.
ignora a justificativa, atribuindo-se um sentido intrínsebo, A históriø, o amo4 a víolênciø, o tempo, o trabalho, o de-
auto-referente e auto-decodificável. sejo, se inscrevem no meu corpo, e eu vou onde sefaz ou-,
i' O livro considerado fundador dessa tendência literária I vir a "l{ngua fundømental", llngua corpo, na qual se tra-,
ir, lr, ¡é Pslavrø de mulher, de Anníe Leclerc, publicado na Fran-
. duz ø linguagem das coisos, dos atos, dos seres, no meupr6.
prio seio o conjunto do real trabalhando nø minha carne,,
r) . -' ça em 1974, que conquistou um enorme sucesso de públi-
captado pelos meus nervos, pelo,s meus sentimentos, pelo'
jco. Louvação outrøncière das regras, do parto, do prazer ' trabalho de todas as minhas células, projetado, analisado,
feminino, exercício de autocontemplação ma¡avilh ada, Pa- recomposto em um livro.
lavra de mulher, embora tenha o mérito de ignorar tabus,
\
. C:
nem por isso chega a se {ronstituir em obra literária. Pobre ^,,
'' .l')
As regras, o parto, o aleitamento, os seios, a vagina, o
na invenção formal, o desejo de resgatar as delíci¿rs da fe- 'r\ .
^ ,,,,útero, não são apenas o corpo em si, mas a metáfora de
minilidade, oculta e desprezada pela cultura masculina, em- , 1 ,rll l i uma percepção do mundo vivenciado a partir dessa mora-
purra a autora perigosamente para o sexismo às avesas que, . '-,,, rda específica e insubstituível do feminino.
fora da temperatura aquecida do militantismo, ap¿uece co- j ',,i' , , i Cixous apresenta seu roman ce Souffles como uma me-
mo quase ridículo. Mas o fato.é que a Paris dos anos 70 l', ", 'll.'. ( ditação e um salmo sobre a paixão de uma mulher, atra-
vivia nessa temperatura aquecida e, por isso mesmo, o li- n ,., l' ,.,. , ' vessando os grandes corpos míticos da Grécia e da Palesti-
vro abriu um tempo de produção acelerada em que muitas o\r',, l', na, onde se fundem o masculino e o feminino. "Cega e vi-
: " mulheres acreditaram que aliteratura de testemunho, mais i;1r''
,\'f dente, ela atravessa os jovens recantos eróticos da bissexua-
autobiográfîca que ficcional, conseguiria dizer a mulher, de- v1' üdade. Texto-mãe, texto-filho, texto-amor: espaço de ges-
. , clinar o feminino em sua riqueza não explorada. tações. Deixar correr o leite, deixar voar a escrita".
' : Há uma certa circularidade que m¿Ìrca á escrita do cor-'
, ,. .' naclos liwos publicados não escapa do depoimento, fechado .4 ¡. po¡ que parte
.¡,:.,' .,,, dele, acreditando que o gozo é uma fotma
,. â tudo que não seja mergulho uterino de pulsações e rit- 't,
mos interiores.
:' ,de conhecimento, e volta a ele, como a um porto seguo;
' 'o corpo é ponto de partida, percurso e chegada. A escrita
Convencido de que a representação insignificante das mu- do corpo não seria mais que uma tendência da literatura
lheres no mundo liter¿irio se deve ao sexismo da cultura mas- escrita po-r mulheres, que agrada ou não ao leitor mrÌs sem
culina hegemônica, o Movimento Feminista encorajou as i
maior importância teórica, se não trouxesse consigo o de-
mulhçres a escrever, mas confundiu, nesse incentivo, a im- ' bate, esse sim, mais interessante, sobre a existência de uma
portância do ato cle se expressâr mais mulheres escre-
- ¡r. J€scrita feminina. Existe, dg fato, uma escrita feminina?
1) vendo e mais livremente
- com a importância do que é ex- i1 ' Duas questões têm sido desde então confundidas: existe
presso. São poucas as autoras que, nessepefíodo, alcança- \' t
ram qualidade literiíria. A maioria simplesmente benefïciou' como de autoras mulheres? Ou uma escrita feminista, que [, \
se de um clima de época.
Escritora e ideóloga da escrita do corpo, Hélène Cixous
pretende levar para o campo literário a busca de identida-
cle social e sexual das mulheres de nosso tempo?
)i
é um desses casos de sucesso no escrever com o corpo. Em A primeira pergunta pressupõe a existência de um Femi-
La venue à I'écriture, Cixous sintetiza essa ideologia do cor- nino que, pouco importa se por razões sócio-culturais, his-
po como metáfora: tóricas ou biológicas ou as três, habitaria as autoras, agin-
A EMERCÊNCIA DO FEMININO 129
i28 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
, , i' clades do corpo, em que se enraizaria a literatura das mu- r,- [ferença e da diversidade.
tr. A presença do Feminino na literatura não é delimitávelra
- r ilheres. O que é uma maneira mais precisa e mais larga de 'raÍ "
senão como crise. É o Feminino em crise, debatendo,¡e na\
r i.
( I i.
', Lti
que aquela que a situa no plano pura-
i,' ll, ,, 'encarar a diferença ambigüidade e na indefinição, que se manifesta na litera-/,
L'; ' mene libidinal. Essa suposta cultura feminina deve ser to- tura e não o Feminino previsível porque pré-determinado. j
(
mada aqui em seu sentido antropológico, ou seja, como ex- ^; -
O Feminino literário se procura, ambíguo como as mülhe- ''.
þressão dos modos de fazer e de dizer que acompanham a res do tempo que estamos vivendo. Nele cabem o sim e o \.
experiência feminina tradicionalmente separada da experiên-
não, a igualdade e a diferença. Esses pólos existem como
cia masculina. núcleos isolados, assim como na experiência cotidiana das
Yvonne Verdier, etnógrafa francesa, estabelece uma re-
mulheres que vivem ora como homens, ora como mulhe-
lação direta entre o corpo, o fazer e o dizer, corroborando
res, e entre eles oscila a identidade em crise.
a hipótese de uma cultura feminina. Só a história da literatura poderá dizer se, no fim do sé-
(lm mesmo Jío percorre a trøma formadø por frases, ges- culo XX despontou, contemporânea do Feminismo, uma
tos, funções femininøs, o fro Íîsíológico das particularida-
literatura do Feminino. O distanciamento crítico ilumina-
' des de seu corpo. Modos de fazer e de dizer se alternam e
''
râ, talvez, a experiência de hoje com uma lucidez que a con-
se iluminam mutuamente, desenhondo uma esfera de repre- I
vivência com o fato perturba. Nossa observação de hoje se
sentações e de ações que pertencem, csrøcteristicamente, às ' .,|
r'1,'
faz com,o numa sala eseura, em que procuramos aos pou-
i)
mulheres. O uníverso Íemíninò se defîne não negativamen- .\a . acomodar a visão para distinguir contornos e identifi-
,'i ',i:
I
dos nossos ancestrais, que forma com.o nosso essa coisa A literatura feminista dos anos 70, aquela que se intitula
sem equivalente que, aliás, não se repetirá". Siritetiza, as- feminista, é anâloga, no movimento de mulheres, ao rrÍea-
- sim, o jogo difícil do individual e do coletivo, do presente lismo socialista".
\ ) , e do passado, do autor e sua cultura, tão decisivo na pro- Escrever com o corpo é às vezes confundido com um in-
f '" finito derramar de leites e de sangu e, exageradamente alu-
dução literária. Define o caráter único e insubstituível do
sivos à irredutibilidade da experiência dJmuheres. Espé-
Nas mulheres que escrevem hoje vivem as mães e avós cie de kitsch da diferença, agoratão assumida e proclamaãa.
l.l que esconderam diários, vive também a experiência do li- A escrita do corpo não é senão uma das maneirai, e não
. lvre exprimir-se, assim como vive a ambigüidade face ao que necessariamente a mais fiel ou a de maior talento, de decli-
' se está sendo. Nas mulheres que estão escrevendo vive
uma nar a crise do feminino. seu mérito, como o de toda arte
ancestralidade feminina que forma com a experiência an- que mereça esse nome, é o de dar aver o invisível, no caso
drógina de hoje uma coisa sem equivalente que,.aliás, não a libido feminina, ocultada pela libido masculina auto-
se repetirá , Talvez seja essa coisa que estamos chamando referente. seu risco é o de pretender guardar, nas frontei-
cle feminino na literatura. ras de um estilo, esse feminino, que se descobre polimorfo
. Quanto à existência de uma escrita feminista, ela nasce e inesgotável.
,-, autoras que, acompanhando o espírito do
de
i ' 'cam imprimir voluntariamente em seus textostempo, bus- luant9 à emergência do Feminino na literatura, erapres-
impressões supõe pelo menos duas condições: a primeira é que as mu-
, ' , que elas gostariam indeléveis do Feminino. A escritã do cor- lheres se sintam livres para escrever o que sentem, sem in-
po se "impõen' como vontade erótica e política. Hélène Ci- terlocutores mentais ou críticos fantasmáticos quê, senta-
dos no ombro de cada uma, corrijam o texto e introduzam
lxolrs, em O riso dø Medusø, sintetiza essa posição como
'aquilo
.-] que as mulheres deverão fazer: "escrever-se, escre- barulhos que não deveriam existir.
.,Uma profîssão
ver sobre as mulheres e levar as mulheres à escrita, da qual _ Em um artigo chamado para mulheres",
foram arrancadas tão violentamente quanto de seus corpos virginia woolf propunha matar o anjo oo lar. o anjo do
lar era aquela mulher receptiva que preferia a morte a de-
- pelasfatal.
jetivo
mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo ob-
As mulheres devem colocar-se no texto co- cepcionar alguém e garantia a felicidade de todos exceto a
mo no mundo e na história por elas mesmas".l3- sua própria. Esse a4jo, o neofeminismo já abateu. Resta,
_ Mas talvez o risco e a inevitabilidade- de todo militantis- insidioso, o diabo do próprio feminismo, que espeta com
. mo seja o de criar uma norma fora da qual as mulheres, o tridente do imperativo, do dever escrever como mulher.
' de novo, não se sintam adequadas. O mérito do neofemi- - De certa maneira, é num mesmo movimento que a iden-
, nismo, negando ao mesmo tempo um passado restritivo e ;tidade feminina se procura e procura r..rrrru.r'. É no ¿e-
uma adesão acrítica ao universo masculino como opção a poimento sobre a perplexidade, sobre a incerteza,
t escondido, sobre o oculto, sobre a sensibilidade dosobre o
t
f
)i'
..)
'esse passado, teria sido o de abrir para as mulheres a possi- inédi-
bilidade do ineditismo e da multiplicidade, uma experiên- ito, que o feminino cederá seus territórios para que neles flo-
/resça uma literatura.
"]cia que não é feita da superposiçaó ¿e experiências iemini-
/nas e masculinas, mas de uma gama infinita, na sua varie-
lj' ' dade, de misturas desses elementos, segundo o tempero es-
\\
colhido por cada uma. Em outros termos, a liberdade. \
A razão das loucas
Desafiavam a céu aberto o Poder sanguinário que empur- tica continha esse elemento de ameaça, que se transforma-
rava para a sombra os mais inocentes, atormentados pela ,l ,,
. t¡
va rapidamente em medo de mudança.
paranóia. Elas, à luz do dia, sob as janelas do ditador, sob Essa relação ancestral de impotência face à polÍtica estár- , it' r.
chuva, sob sol, no silêncio entrecortado de gritos, faziam registrada no museu de Delfos, em fragmentos de uma fri-['' .,. , 7, ' '-
ouvir como que a alucinação de uma litania, que ecoou no i ,
sa romana em que se esculpiu a luta entre os homens e as 1", ''
país, na América Latina e além-mar. , ii mulheres, que tãntam impãdiJos de partir para a guerra. i ' '', .,"
Criaram o fato político de maior ressonância, o mais elo- t,,ir'. ,lj A sucessão de esculturas mostra, ao fim, as mulhere.s bati- i ..', tt ,
qüente, o mais entendido. Em silêncio. Eram loucas, dizia , ,,'- ",' das, derrotadas, caídas no chão, deixadas para triís por uma 9r i,r:.
o Ditador, convicto da sua Razäo. Eram loucas, diziam os j . I poderosa e orgulhosa expedição que se vai à conquistu !r,]'
políticos de oposição, que criticavam sua intransigência, 5s¿ /,"i,,, novas vitórias.
], ,.
recusa de qualquer pacto, acordo ou negociação. Eram lou- I A frisa romana é alegórica de um gesto mil vezes rypeti- l' " ' ,. "
cas, dizia a complacente Igreja argentina, que dizia ser tempo do þor mães e esposas, quaisquer que sejam suas pósições
de esquecer os mortos para cuidar dos vivos. Mas não, elas políticas. O conservadorismo não é necessariamente a ade- '' , ,'' ", ,
não concordavam em esquecer. Eram loucas. Eram as lou- são a idéias conservadoras em política, mas uma descon- , ' ;
cas da Praça de Maio. fiança visceral da política como caixa de Pandora. ' ,''L ,, ,
Dentro da História, à lógica da História, opunham a 1ó- A conquista do direito de voto veio reforçar essa ima- '
gica de uma história outra. E desmentiam assim uma espé- gem de conservadorismo, na medida em que as mulhères,
cie de maldição que pesa sobre as mulheres, acusadas sem- muitas vezes, manifestam-se nas urnas contra as platafor
pre, em política, de favorecer o lado conservador. Essa fa- mas de mudança. A esquerda, que se crê portadora do pro-
ma se criou a partir de um mal-entendido. É fato que a his- gresso social, sempre temeu o voto feminino, tido como rea-
tória moderna registra a existência de organizações de mu- cionário. Acontece que o direito de voto introduziu as mu- t.:
lheres que se criaram como porta-vozes de idéias conserva- lheres a uma cidadania formal mas não substancial. No dia, , . ,
doras. Daí deduziu-se rapidamente um conservadorismo ina- a dia elas continuam, em grande maioria, excluídas da vi-i9
to nas mulheres. Essa leitura precipitada ignora não só as da política, ligadas umbilicalmente a uma vivência familiar, \
causas como o sentido mais profundo desse suposto con- isoladas da informação, o que resulta em uma presença na I ,'
servadorismo. polis quê se exerce pelo voto mas que coexiste com a resis-J
O medo da mudança nas mulheres não é necessariamen- a' tência à mudança, expressa no conteúdo do voto.
te um conservadorismo inato, mas a instintiva reação de'de-
.1
!
,, Mas nem só de votos vive a política, e eleições não qão
I ',1'
fesa contra decisões que, tomadas à sua revelia, podem re- ". , '.' ì
o único parâmetro da qualidade da participação feminina
presentar perigo para os seus homens, filhos e maridos. e
napolís. As mulheres podem, subitamente, se movimentar
A relação das mulheres com a política foi tradicionalmen{ por outras razões e, em função do significado profundo des-
sas razões, emergir politicamente com conteúdos novos. ,. .
'
te a experiência da interdição. Fechadas em seus lares fize)l
ram vida afora a experiência de ver esses ldres serem trans-\ Há dores que são iedentoras. É "quando nem se espera , t, ,í-'
'
for¡nados por fatos externos cuja lógica thes escapava, so-' mais" e "eis que a faca ressurge com todos.os seus cris- ' ''
bre os quais uão haviam opinado, que não eram escolhas tais". São aquelas que ferem mais fundo e que, por isso, i',,.''
suas mas que se imiscuíam em suas vidas como um raio im- despertam, revivem o músculo morto, e, coração reanima- j'
previsto, inexplicado e por isso mesmo assustador. A polí- do, fazem falar quem sempre viveu calado.
I
,
A EMERGÊNCIA Do FEMININO t37
|
, lt ( ,.(,
As loucas da Praça de Maio falavam do lugar mais anti' ,l i ;ú::, lheres do continente que é o meu. Quando voltei ao meu
go, do laço ancestral que une a mulher a seu filho. Por isso i n :ll,
.t' a
lugar, delegada norte-americana que me ladeava
diziam o incompreensível. Não defendiam a família, insti-{ L (', ,,,! "' ''t', ,',/'t.' .r) perguntou-me quem eram essas senhoras. E, em seguida,
tuição que os homens criaram exatamente a preço de mu-\.
" .l j"^
ii .i.'''' tomando a palavra, apresentou infindáveis estatísticas so-
lheres. Gritavam uma fala deslocada, anterior ao discurso ¡ f' '' " '' I ,''' bre o número de mulheres que ocupavam postos no legisla-
do social, mas feita discurso social pelo fato mesmo do gri- \ '
t / '-'', '
.'
e executivos da sociedade, voltarfamos ao tempo do apar- tura masculina. Nesse campo argumentativo em que dife-.! -
theid sexual contra o qual o feminismo vem lutando há mais rentes visões de mundo e de organização da sociedade seL,'
de um século, e antes dele tantas mulheres que, todas, re- encontrarem para procurar soluções em comrun, nesse cañ-i.,
ceberam o epíteto de loucas. po, então, se poderá falar de democracia. O feminino na;' '.'
,
política toma assim a forma de uma reivindicação demo- i¿,1.. rtl
A política de cotas, que é hoje uma das reivindicações
mais avançadas da poUtica da igualdade, assim como foi crâtica que nos tire do neolítico da democracia e nos per- (;\:
em um determinado momento a defesa da discriminação po- rnita imaginar uma certa modernidade. Porque não se tra-
sitiva para corrigir vícios históricos e promover a igualda- ta, para as mulheres, de ingressar na política como ali¡nas
:,
de, é uma espécie de potencialzação máxima do indicador :, I
bem comportadas, peøu noire, masque blanc, tentando fa-
quantitativo da igualdade. Essa política tem, entre os seus ;'. lar masculino sem sotaque. Não se trata de entrar na má-l
quina política mas, talvez, de enguiçá-la para que outra se ,.,,
mr¡itos méritos, ó de abrir æpaço para que o acidente se
produza. O acidente seria uma reviravolta na maneira co- ì , , r. '
,,1
torne necessária, em que as mulheres possam funcionar. l^)'
,\ .ì\
Antígona foi obra de um homem. A mãe desgrenhada'\ I
rno as mulheres vêm se comportando na política. Essa re-1 - )' \
viravolta talvez só seja possível quando mulheres chegarem '' , '
\ '( do Guernicø também. IJrsula Iguaran invadindo ó qua¡ts1 'r," \
e chicoteando no pátio o biçneto tirano, pariu García Már-
ao poder imbuídas não do espírito da igualdade, mas doi'',
'
)'
quez. Foram subùmaçõ"r,îu arte, de u* F.*inino pies-
desejo de exercer a diferença. A igualdade quantitativa vem l'.' ,\r'
l sentido, feito criaturas inesquecíveis, arquetípicas, que vi-
atuando sobre os processoi de participação polltica de mu- ',
,
veram nesses homens como inquilinas de seus corpos.
lheres, enquanto a política da diferença quer pensar os seus 'r- , 't''
O fato político criado pelas loucas é obra de mulher. Ar-
conteúdos. ' \
te feita vida, feminino feito política.
É preciso reconhecer que, até aqui, uma grande parte da '
Era madrugada na praça de Buenos Aires quando um gru-i. í
energia das mulheres,.em seu caminho dentro da política, po de mulheres deslizou para a frente do palácio e para den- ,.
foi para assegurar esse próprio caminho. Foi para garantir tro da História.
- /'
que uma mulher pudesse ser eleita deputada ou governa- ¿
ti ,) Idem, p.280.
políticas for apenas um pqrtencimento de gênero e a capa-) .i' 'l 't lrigaray, Ce sexe qui n'en est pas iln, Paris, Minuit, 1977.
3. Luce
t'4. "Faire le ménage c'est travailler", Cahiers du Grif, n? 14.
cidade de escapar dos limites desse gênero para agir como i André Gorz, Métamorphoses du travail, quête dusens, paris, Gali-
um homem lée, 1988.
Os interesses das mulheres estarão representados quan- 6. Idem.
.|
do,'no poder, uma mulher for capaz.de agir como ûrulher, 'r "' Virginia Woolf, A Room of One's Own, Harcourt Brace, Novayork,
L
1929.
desafiando todo o estereótipo cultural que inferioruaara' Ì ,
8. Marguerite Yourcenar, Les yeux ouverls, Paris, Editions du Centu-
zão feminina como irracional e a sensibilidade feminina co- '' rion, 1980.
mo sentimentalóide. Quando as mulheres fizerem existir, no
'
I
9. Patrick de Rosbo, Entrevistas com Marguerite Yourcenar, Editora
poder, acultura feminina, em francanegociação com a cul- Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987.
r40 ROSISKA DARCY DB OLTVEIRA
Conclusão
ANTíGONA E O ANDROGINO
^
lri' It" , .)
iL
) uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres não
supõe o Andrógino nem tampouco a eliminação de dife-
renças.
'i . A tentativa de fundar a convivência entre os sexos na eli-
¡./
il ,
(l
I
ll
,4,
q
,t'
"1,'144
ROSISKA PARCY DE OLIVEIRA I n¡qrfcoxe e o ANonócrNo 145
ii
'
þt'. entendido, essa pretensão pela qual nossa civilização
I
l"
I
i,,,\ Natureza imóvel, mas experiência ligada a uma Natureza
. -,t l'
t , \Élcolocou-se em oposição à Natureza. Nesse sentido, os eco-
l. i| histórica. O feminino ingressa assim em um espaço Ce ti-
riJ ,- \' t /ilogistas são hojå os aliados das mulheres que se decidam
r',) I\)-' que da ausência de um conceito. A liberdade do feminino
I .l.' berdade, onde seria maiJjusto falar do não concebido dò
ja
feminizar o mundo.
I
'í! "'
t.
¡.'.J ' , Essas mulheres serão talvezas primeiras a enfrent¡u o pro-
I
i
ì
,; ,,\ f Varu definir-se nos tempos vindouros não se referirá à Na-
blema delicadíssimo da Natureza, posto que, em se tratan- n, \ ' tvÍeza como essência, mas como experiência. Não negará
I
'''.'u' 1i.
, ). do das mulheres, a Natureza s€mpre foi um tema tabu. A \ . ,' ' o lugar corporal, primordial, a partir do qual ele vive e pensa
li' io mundo, mas o integrará nesse pensamento do mundo. Não
,.ii: lvalorização da natureza feminina sempre foi o argumento ,\
,i,, negará o passado, a cultura feminina que medrou à mar-
,.''. -. imobilizar a História, para referir-se a uma essência imutá- iir gem do mundo dos homens, mas tampouco a aceitará co-
- vel, pra glorificar o eterno feminino. Servia sobretudo pa- mo álibi à exclusão e ao confinamento. Integrar a história
rl
proibir às mulheres qualquer incursão fora de um espa- humana da natureza feminina ao desenho do futuro do fe-
,' iru
:. ! ..1ço que, supostamente, essa Natureza lhes teria reservado. minino é um projeto ao mesmo tempo feminista e ecológi-
. 'O feminismo, na tradição do pensamento progressista, opôs- co. GanhaÍ voz social foi, para as mulheres, a grande vitó-
se sistematicamente a qualquer valorização da natur eza f.e- ria histórica com que marcaram o século XX. O século XXI
minina e ofereceu a seus defensores um combate sem quar- se abre para uma nova esperança. A de que essa voz femi-
tel, no qrre tinha absoluta razão. Opunha-se a uma manei- nina não seja apenas um eco absurdo de um mundo absur-
ra de encarar a natureza que transformava o corpo femini- do. Espera-se das mulheres um impacto sócio-cultural re-
no em prisão e fonte de legitimização da desigualdade de volucionário. Uma inventividade em todas as áreas da exis-
estatuto social e político entre homens e mulheres. tência, na relação entre as pessoas, nas faces múltiplas do
amor, na organização social; e especificamente na organi-
. O endeusamento da maternidade se fazia acompanhar de
zação do trabalho em que homens e mulheres ganham e per-
toda uma ideologia de submissão, de conformismo, de acei-
dem a vida, nas decisões políticas de maior envergadura em
tação de fronteiras. Hoje, retomando o tema da Natureza,
que se decide a paz e a sobrevida do planeta.
''
'' Åt
,¡;i:ö faço de uma perspectiva diferente. Não me refiro a uma De pouco teria adiantado o feminismo se ele se esgotas- U
n,
.TNatureza limitativa, inimiga, mas parceira, companheira. se em uma banal adesão ao mundo dos homens: O traba-
. i''- Trata-se de quebrar o paradigma arrogante pelo qual os se- lho de invenção, de repensamento, a ousadia de propor o ti'
I ;\ res humanos se e¡rcluíram da natureza, se colocaram fora dela, aparentemente inviável, devem alimentar o feminismo dos
'.'' , seja para negáJa, seja para desafiá-la. T'rata-se de quebrar próximos anos, elaborar novas plataformas, assim como hál
a oposição entre NatuÍeza e Cultura, para surpreender-nos ,. alguns anos anunciavam que "nosso corpo nos pertence".
em pleno curso de uma história humana da Natureza, em1 ìi' , Nesses próximos anos, as mulheres que se propuserem a
que, esta não seja ignorada ou subtraída, mas respeitada pelas
feminizar o mundo reencontrar'ão provavelmente o esta-,
" (i
,,
146 ROSISKA DARCY DE OLTVEIRA