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KARL JASPERS

BIBLIOTECA FILOSÓFICA

A FÉ
FILOSÓFICA

EDITORIAL LOSADA, S. A.
BUENOS AIRES
1

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A FÉ FILOSÓFICA
BIBLIOTECA FILOSÓFICA
! PUBLICADA BAJO LA DIRECCIÓN DE i
L FRANCISCO ROMERO J
O depósito dessa Lei nº. 11.723
KARL JASPERS
Copyright por Editorial Losada, S. A.
Buenos Aires, 1953

A FÉ FILOSÓFICA
Tradução para o espanhol de
J. ROVIRA ARMENGOT.

Adaptação para o português (com Google Tradutor) 2021

Rodrigo Nicéas

IMPRESO EN LA ARGENTINA

A impressão deste livro EDITORIAL


foi concluída em 18LOSADA,
de dezembro deS.1953,
A. er. Artes Gráficas
Bartolomé U. Chiesino, AmeghinoBU E Avellaneda
838, N O S A -IBuenos
R E S Aires.
Palestras proferidas na Universidade de Basel em julho
de 1947, a convite da Fundação Acadêmica Livre e da
Faculdade de História e Filosofia. O presente trabalho é o
manuscrito que serviu de base. Na dissertação livre algumas
modificações foram feitas. A quinta palestra: Sobre Filosofia e
Infilosofia, não foi ministrada.
Í ND I CE

PRIMEIRA CONFERÊNCIA
O CONCEITO DE FÉ FILOSÓFICA
Bruno e Galileo: fé e conhecimento 9
A teoria irracional 12
Os caminhos da fé filosófica: conhecer e esclarecer 13
Crença na divisão sujeito-objeto, ideia fundamental de Kant 13
Imediação e historicidade 15
Os modos do abrangente e da fé 16
A dialética 21
A tradição 22
SEGUNDA CONFERÊNCIA
OS CONTEÚDOS DA FÉ FILOSÓFICA
Introdução ........... . . ................................................................................. 25
1. O ÂMBITO DOS CONTEÚDOS: ............................................................ 27
Primeira pergunta: o que eu sei? 27
Segunda pergunta: o que é correto? 27
Terceira pergunta: o que é verdade? 28
Quarta pergunta: como posso saber? 28
Recapitulação e conclusão 29

2. O CONTEÚDO DA FÉ: 30
DEUS É 31
HÁ UM REQUISITO ABSOLUTO 32
O MUNDO TEM UMA EXISTÊNCIA QUE DESAPARECE ENTRE DEUS E A EX-
SISTÊNCIA 32
RESUMO DAS TRÊS PROPOSIÇÕES DA FÉ 34
PERSONAGENS FUNDAMENTAIS DA RELIGIÃO BÍBLICA ......... 35

3. RAZÃO E COMUNICAÇÃO............................ 38

137
TERCEIRA CONFERÊNCIA
O HOMEM

Introdução: o homem como a medida de todas as coisas ........................ 41


Imagens históricas totais do homem ....................................................... 42
O homem na série gradual 42
O homem em sua situação 44
O homem em sua grandeza e abandono.................................... 44
O homem como objeto de investigação ..................................................... 46
Resumo: o homem como objeto de investigação e o homem como
liberdade................................................................ 50
O homem como liberdade 51
A finitude do homem 52
Liberdade como fé e como superstição 54
Impossibilidade do homem ser consumido 54
O ideal de ser homem e o ideal de homem 55
O valor do indivíduo e a ideia de igualdade 56
O caminho do homem começa com a fé em sua possibilidade e na orientação
de Deus 56

QUARTA CONFERÊNCIA
FILOSOFIA E RELIGIÃO
Introdução 61
Personagens fundamentais da religião em oposição à filosofia ........ 63
Exemplos de analogias entre religião e filosofia 64
A ideia de Deus 64
A oração 65
Apocalipse 66
Repreensões contra a religião 67
Duas proposições:
I. Contra a reivindicação de exclusividade da religião bíblica 70
II. Prosseguindo a religião bíblica como fundamento histórico da
filosofia ocidental 76
Polaridades 76
Volte para a verdade que permanece a mesma ...... 80
1ª Recuperação de ligações 81
2ª Recuperação de tensões polares 82
3ª Iluminação e exaltação do eternamente verdadeiro 83
Qual é a missão da teologia? 84
Religião bíblica e Filosofia 86
a) A filosofia se pronuncia a favor da religião bíblica 86

138
b) A filosofia vai além da religião bíblica 87
c) Autoridade para Filosofia 88
QUINTA CONFERÊNCIA
FILOSOFIA E INFILOSOFIA
Introdução 91
1º Demonologia 93
2º Divinização dos homens 101
3º Niilismo 104
Coincidência das três formas de descrença 107
Verdade em cada uma das três maneiras 108
Relação entre filosofia e infilosofia 110
Representações errôneas do modo de pensamento:
Absolutização, ontologia, reflexão vazia, tese de adesão
unilateral, credo quia absurdum 111
Conversas do modo de pensamento:
Fanatismo pela verdade, sacrifício do ciclo dialético, confusão do
englobante com sua objetivação particular 113

SEXTA CONFERÊNCIA
A FILOSOFIA DO FUTURO

A Verdade Eterna 117


Verdade Eterna e História 118
A situação atual 120
O atual repúdio da filosofia 123
A missão permanente de filosofar 124
Alguns elementos da missão atual: 125
1º Tranquilidade pela inquietação 126
2ª Apropriação da tradição pelo niilismo 127
3º A pureza das ciências como requisito da verdade do filosofar 131
4º A razão em comunicação ilimitada 133

139
PRIMEIRA CONFERÊNCIA

O CONCEITO DE FÉ FILOSÓFICA
Se perguntarmos de onde e de onde devemos viver,
certamente teremos contentamento: de fé na revelação, porque
fora dela só há niilismo. Um teólogo disse há não muito
tempo: "O dilema 'só Cristo ou niilismo' não é uma presunção
eclesiástica." Se assim fosse, não haveria filosofia, mas, por
um lado, apenas uma história da filosofia como história da
descrença: o caminho para o niilismo e, por outro, uma
sistemática conceitual a serviço da teologia. Seria como se a
própria filosofia fosse privada de seu coração, como também
aconteceu no ambiente teológico. Embora bem elaboradas
conceitualmente obras de arte do pensamento surgissem
naquele ar, em seu temperamento viviam da fonte estranha e
não filosófica da religião eclesiástica, enquanto como filosofia
não eram levadas a sério, pois só eram reconhecidas uma
aparente precária autonomia.
Outra resposta à pergunta de onde devemos viver, diz: da
compreensão humana, das ciências, que nos mostram no
mundo os fins com sentido e nos ensinam os meios para
alcançá-los. Bem, pretende-se que fora da ciência existam
apenas ilusões. A filosofia carece de direito próprio, aos
poucos foi se desfazendo

9
de todas as ciências, e mesmo por último, da lógica, que se
tornou uma ciência especial. Agora não há mais nada. - Se essa
concepção fosse verdadeira, também não haveria filosofia. A
filosofia já foi o caminho para as ciências. Ora, em todo caso, ela
só pode prolongar sua existência, doravante supérflua, como
empregada da ciência - por exemplo, como teoria do
conhecimento.
Ora, essas duas concepções parecem estar totalmente em
contradição com o conteúdo dos três milênios de sua
manifestação na China, Índia e Ocidente. Eles se opõem à
seriedade com a qual filosofamos hoje, hoje que a filosofia
deixou de viver como empregada da ciência, como no final do
século XIX, e não voltou à sua posição de empregada da
teologia.
Mas essas alternativas prematuras de fé na revelação ou
niilismo, ciência total ou ilusão, são apenas meios de luta para
assustar as almas, para privá-las de sua responsabilidade própria
dada por Deus e torná-las submissas. Eles decompõem as
possibilidades humanas em antítese entre as quais cessa o
verdadeiro ser humano.
Mas quem tenta filosofar de acordo com a venerável
tradição, afirmar-se-á, sem dúvida, em consequência dessas
alternativas, que deve ser niilista ou ilusório. E se não
correspondermos à imagem presumida, seremos reprovados:
meio-conhecimento, inconsistência, racionalismo trivial,
ignorância da vida, e isso de ambos os lados, tanto pela fé
exclusiva na revelação como pela ciência voltada em superstição.
Diante disso, ousemos tentar manter nosso ser humano
aberto ao filosofar. A filosofia não deve abdicar. Hoje menos do
que nunca.
Vivemos cientes dos perigos que os séculos passados nos
conheceram: a comunicação com a humanidade pode ser
rompida ao longo dos séculos; podemos nos privar
inesperadamente da tradição; a consciência pode afundar; a
publicidade da relação de comunicação pode ser suprimida.
Filosofando temos que nos preparar para tudo, diante das
ameaças aniquiladoras, a fim de contribuir
10
com o pensamento de que o ser humano preserva suas
possibilidades mais elevadas. Precisamente como consequência
da catástrofe do Ocidente, o filosofar voltará a ter consciência
de toda a sua independência ao encontrar a concordância com a
origem do próprio ser humano.
Nosso tema é a fé filosófica, fundamento deste nosso
pensamento. É um assunto ilimitado. Para tornar os recursos
simples sensíveis, divido a afirmação da questão em seis aulas:
1º O conceito de fé filosófica. - 2º O conteúdo da fé
filosófica. - 3º O homem. - 4º Filosofia e religião. - 5º Filosofia
e infilosofia (demonologia, divinização do homem, niilismo). -
6º A filosofia do futuro.

Acreditar é diferente de saber. Giordano Bruno acreditou e


Galileu sabia. Exteriormente, a situação deles era a mesma. Um
tribunal da Inquisição exigiu sua retratação sob pena de morte.
Bruno concordou em retirar várias de suas teses, mas não as
decisivas para ele; morreu um mártir. Galileu retirou a teoria de
que a terra gira em torno do sol e então inventou a anedota certa
que mais tarde formulou esta frase: ela se move. Esta é a
diferença: a verdade que sofre retração e a verdade cuja retração
a deixa intacta. Os dois fizeram algo de acordo com o senso de
verdade mantido por eles. A verdade com base na qual vivo, é
apenas pelo fato de que me identifico com ela; em sua
manifestação é histórica; em sua previsibilidade objetiva, não é
de validade universal, não histórica, atemporal, mas não
absoluta, mas antes refere-se aos postulados e métodos de
conhecimento na ordem finita. Seria impróprio querer morrer
por uma precisão que pode ser demonstrada. Mas quando o
pensador que pensa que está tão penetrado no fundo das coisas
não consegue retratar sua tese sem ferir assim a verdade, é o seu
mistério. Nenhuma noção universal pode exigir que ele se torne
um mártir. Mas o fato de ele ter se tornado um, e precisamente
como Bruno, não por entusiasmo exaltado, não por teimosia do
momento, mas depois

11
longo, rebelde, superação de si mesmo, é um caráter da fé
autêntica, isto é, da certeza da verdade que não podemos
demonstrar como conhecimento científico das coisas finitas.
No entanto, o caso de Bruno é incomum, uma vez que a
filosofia não costuma focar em teses que adotam o caráter de
confissão, mas em cadeias de pensamento que invadem uma
vida inteira. Se Sócrates, Boécio e Bruno são algo como santos
na história da filosofia, não são por isso os maiores filósofos.
Mas são figuras, vistas com veneração, da confirmação de uma
fé filosófica à maneira dos mártires.
Contra a evidência de que o homem pode basear tudo em
seu entendimento - se não houvesse tolice e má vontade, tudo
ficaria bem - contra essa teimosia do entendimento, o outro ao
qual somos é descrito como irracional, mesmo no campo do
entendimento contingente. É reconhecida com nojo ou é
cultivada como um jogo indiferente de sentimentos, como uma
ilusão indispensável para o organismo psíquico, como uma
distração para os momentos de lazer. Ou forças são vistas nele e
são apeladas como paixões psíquico-espirituais irracionais, para
atingir nossos objetivos com elas. Finalmente, a verdade é vista
neles e corremos para o irracional, para o arrebatamento, como
se fosse a vida verdadeira.
Agora, de forma alguma devemos considerar que a fé é o
irracional. Em vez disso, essa polaridade de racional e irracional
constituiria a confusão da existência. Nessa insistência, uma
vez, na ciência, outra vez em seu último ponto de vista
considerado indiscutível, naquele apelo, uma vez na
inteligência, outra vez nos próprios sentimentos, originou-se
uma altercação de opiniões. Esse jogo foi possível ao mesmo
tempo que mostrava efetivamente os conteúdos de uma grande
tradição cada vez mais fraca. O fato de que o espírito foi
deliberadamente fundado no irracional foi o fim do irracional.
Que fogos de artifício desapareceu ao atacar tudo à vontade, ao
persistir em conteúdos francamente almejados e considerados
eficientes, ao esbanjar tradição com a falta de

12
seriedade de uma liberdade aparentemente superior e com a
emoção patética do desprezível. Todo este plano de modos de
falar não deve ser combatido – pois não há adversário, mas
sim uma diversidade maçante que varia proteinicamente e não
pode ser apreendida de forma alguma por causa de sua total
impossibilidade de ser preservada na memória – mas o único
deve ser feito é superá-lo com clareza.
Nossa fé não pode ser algo meramente negativo em
segundo plano, não aquele mergulho nas trevas do contrário ao
entendimento e do alheio a toda lei.
A fé filosófica, a fé do homem que pensa, sempre tem a
nota de que só está em aliança com o saber. Ele quer saber o
que pode ser conhecido e ver a si mesmo completamente.
O conhecer ilimitado, a ciência, é o elemento
fundamental do filosofar. Não pode haver nada que não possa
ser interrogado, nenhum mistério pode ser coberto pela
investigação, nada que seja lícito esconder sob um véu. Mas
graças à crítica, a pureza, o significado e os limites do
conhecimento são obtidos. Quem filosofa pode proteger-se das
intrusões de um pseudo-conhecimento, dos mal-entendidos
das ciências.
A fé filosófica quer, então, esclarecer-se a si mesma.
Filosofando, simplesmente não aceito nada, sem penetrar
totalmente, como me é imposto. A fé não pode se tornar um
conhecimento de validade universal, mas deve ser trazida a
nós por autoconfiança. E deve ser incessantemente mais claro,
mais consciente e tornado cada vez mais manifesto pela
consciência.
Então, o que significa fé?
Nele são inseparáveis a fé com base na qual estou
convencido, e o conteúdo da fé que compreendemos - a fé que
realizamos e a fé que nos apropriamos para realizá-la - fides
qua creditur e fides quae creditur. O lado subjetivo e o lado
objetivo da fé são um todo. Se nos limitarmos a tomar o lado
objetivo, a fé permanece na fé, na fé sem objeto, que é como
se só acreditasse em si mesma, fé sem a essencialidade do
conteúdo da fé. Se nos limitarmos a assumir o lado objetivo,
um conteúdo

13
de fé permanece um objeto, tese, dogma, estado, algo morto,
pode-se dizer.
Portanto, a fé é sempre fé em algo. Mas não posso dizer
que seja uma verdade objetiva que não seja determinada pela fé,
mas que aquela determina a última; Também não posso dizer
que é uma verdade subjetiva que não é determinada pelo objeto,
mas sim que o determina. A fé é aquela em que separamos
como sujeito e objeto, como fé baseada no que acreditamos e
como fé no que acreditamos.
Conseqüentemente, quando falarmos de fé, teremos em
mente o que abrange sujeito e objeto. Aí reside toda a
dificuldade quando queremos falar sobre o conceito de fé.
Neste ponto, devemos lembrar a grande teoria de Kant, que
tem seus precursores na história da filosofia ocidental e asiática
e cuja ideia que serve de base teve que aparecer em todos os
lugares onde foi filosofada, embora sua ideia consciente por si
só e metodicamente executado, não se tornaria até Kant -
também nele uma figura histórica, embora para sempre em seus
traços fundamentais - um elemento de iluminação filosófica. É
a ideia do fenomenal de nossa existência na dualidade sujeito-
objeto, sujeito ao espaço e ao tempo como forma de intuição, às
categorias como formas de pensamento. Seja o que for o ser, ele
deve nos tornar objetivos nessas formas, tomando, portanto, um
fenômeno; sendo assim para nós como o conhecemos, e não
sendo para nós o que é em si mesmo. O ser não é o objeto
diante de nós, na percepção ou no pensamento, nem é o sujeito.
O mesmo acontece com a fé. Se a fé não é apenas um
conteúdo ou apenas um ato do sujeito, mas tem suas raízes
naquilo que sustenta a fenomenicidade, então ela deve estar
presente apenas no que não é objeto nem sujeito, mas ambos em
um, no que é que se manifesta em o dualismo de sujeito e
objeto.
Chamamos englobante o ser que não é apenas sujeito nem
apenas objeto, mas compreende os dois lados do dualismo
sujeito-objeto. Embora esse englobante não seja

14
um objeto adequado, ao filosofar falamos a partir dele e com
vistas a ele.
A fé é, ao que parece, uma imediatidade em contraste
com tudo o que é mediado pelo entendimento. A fé seria uma
experiência abrangente, uma experiência que pode ou não nos
ser concedida.
Mas, assim concebido, qual é o fundamento e a origem do
nosso verdadeiro ser parece deslizar para o psicologicamente
descritível, para o que acontece. Consequentemente,
Kierkegaard diz: "O que Schleiermacher chama de religião, e
a fé dogmática hegeliana, nada mais é do que a primeira
condição imediata de tudo - o fluido vital - a atmosfera
espiritual que respiramos." (Tag. I, 54). Isso não seria fé, e
Kierkegaard alude à fé cristã, que "se evapora, dissolvida em
um mar de névoas".
Kierkegaard considera que a característica essencial da fé
é que ela vai para uma singularidade histórica e é ela própria
histórica. Não é uma experiência, nem imediata que pode ser
descrita como dada. Em vez disso, é a compreensão do ser
desde a origem através da história e do pensamento.
A fé filosófica está ciente disso. Para ela, todo filosofar na
obra feita em linguagem é apenas preparação ou memória,
apenas incentivo ou confirmação. Consequentemente,
nenhuma filosofia pode se fechar inteligentemente como uma
formação ideológica. A tarefa do pensamento nunca passa da
metade do que, para ser verdade, ela precisa ser completada
por quem não só pensa em pensamentos, mas, desta forma,
torna-se histórico em sua própria existência.
Consequentemente, o filósofo mantém sua liberdade de
seus pensamentos. A fé filosófica deve ser caracterizada
negativamente; não pode se tornar confissão. Seu pensamento
não se torna dogma. A fé filosófica não pode se apoiar em
algo objetivo finito no mundo, porque se limita a usar suas
teses, conceitos e métodos, mas sem se submeter a eles. A sua
substância é absolutamente histórica e não deve centrar-se no
universal, na única coisa em que pode exprimir-se.
Portanto, a fé filosófica deve sempre olhar

15
novamente para a situação histórica a partir da origem. Não há
trégua em nenhum estado. Resta a imprudência de estar
radicalmente aberto a tudo. Não pode invocar-se como se
fosse algo inapelável, mas deve manifestar-se na forma de
pensar e fundamentar. Já no "pathos" da afirmação inevitável,
que soa como uma proclamação, filosoficamente corremos o
risco de perder.

Mas o universal da verdadeira fé não deve ser descrito


como um conteúdo de validade universal, nem deve ser
tomado como imediatidade, nem ser fixado como um estado
histórico, mas apenas se tornar historicamente verdadeiro pelo
movimento temporal. Mas isso acontece no reino do
englobante, que não é apenas um objeto nem apenas um
sujeito. O presente da aparência histórica contém as fontes de
toda fé.
Para chegar ao conceito de fé é preciso esclarecer o que é
englobante. A imediatez do englobante, sempre obtida pela
mediação, sempre nova, esta última presente, possui vários
modos. O englobante, como o esclarecemos, se mostra como
uma pluralidade nos modos do englobante. Eu uso - como
resultado de nossa tradição filosófica - um esquema que agora
só posso apresentar de forma sucinta (peço-lhe por um
momento que tente o aparentemente impossível comigo:
transcender com o único pensamento objetivo possível para
nós esse mesmo pensamento, com o meios de pensamento
objetivo (ir além da objetividade, fazer algo sem o qual
realmente não há filosofia, mas algo que mostro aqui apenas
em um esboço).
O englobante é: ou o próprio ser em si, ou é o ser que
somos.
O ser que nos rodeia chama-se mundo e transcendência.
O ser que somos, denomina-se existência, consciência
em geral, espírito, denomina-se ex-sistência1.

1 Traduzimos por ex-sistência o conceito que aparece delineado abaixo na


seção dd). Nossa versão, que usa essa

16
englobante,
a) O serquer queos nosapoie
rodeia.quer- Esse
os obriga
ser que a colocar-se
é mesmo sem ao seu
nós
serviço.
ser, e que nos cerca sem sermos, é de dois tipos: - é o mundo,
isto é:bb) Nodo
o ser dualismo
qual umsujeito
lado de e objeto, somos a éconsciência
nossa essência uma pequena em
geral. seSomente
parte, o mundoo como que éum apresentado
todo, ela nos nesta consciência
envolve como não-está
sendo para nós.
sendo-nós; - É Somos uma consciência
a transcendência, isto abrangente,
é: o ser naque qualé
tudo o que existe
simplesmente o pode
que ser é compreendido,
diferente de conhecido,
nós, do conhecido
qual não
nas formas de mas
participamos, objetividade.
no qualPassamos pelo nosso
nos instalamos e aomero mundo
qual nos
ambiente
referimos. levando-o à ideia de mundo, à qual pertencem todos
os mundos
aa) Mundo: ambientes,
O mundo e como
até pensamos
um todo não além é umdoobjeto,
mundomas e
podemos
uma ideia. fazê-lo
O que sabemosdesaparecerestá no nomundo,
pensamento
nunca écomoo mundo.se não
existisse.
bb) Transcendência: Transcendência é o ser que nunca se
cc) Somos
torna mundo, masespírito: a vidadizer
que se pode espiritual
que fala é vida de ideias.
através do ser Asno
ideias —por
mundo. Só existeexemplo, as ideias práticas
transcendência quando de missõesnão
o mundo e tarefas
existe
parasia mesmo,
por nossa realização, as ideias em
não se estabelece teóricas do mundo,
si mesmo, alma, vida,
mas aponta para
etc.—deconduzem-nos,
além si mesmo. Se oemundo certamenteé tudo, pornãomeio de impulsos que
há transcendência. E
existem
se houver emtranscendência,
nós, como tração no da totalidade
mundo do serdeexiste
sentidoumque existe
possível
na coisa, como
indicador método sistemático de penetração, apropriação e
para isso.
realização.
b) O Eles ser nãoque são objetos,
somos. - As masmaneiras
aparecempelas em diagramas
quais nos e
figuras. Eles
tornamos agem nodepresente
conscientes nosso ser e aosãomesmo tempo são tarefas
as seguintes:
infinitas.
a) Somos existência: vivemos em um mundo ambiente
como Esses
tudo otrês quemodos
vive. Odoenglobante
englobantedesse – existência,
ser-vivo consciência
passa a ser
em geral,
objeto espírito – em
de investigação são suas
as maneiras
manifestações, pelas nasquais somos da
produções o
mundo;
vida, isto é,donacorpo,
na forma objetivação
nas funções daquele englobante
fisiológicas, em algo
na relação de
objetivo, nos
formação a partir manifestamos empiricamentenasde vivências
da hereditariedade, maneira
adequada como objeto de pesquisa em
psicológicas., Nos modos de conduta, nas estruturas do mundo biologia e psicologia,
sociologia e ciências
circundante. do espírito.
Além disso, Mas comsomente
o homem, isso nosso ser produz
ele, não se
esgota.
linguagens, instrumentos, criações, façanhas e se produz
dd) SomosToda
objetivamente. ex-sistência
vida fora possível.
do homem Vivemos de uma
é apenas origem
existência
que seu
em estámundo
acima circundante.
da existênciaPelo quecontrário,
se torna a empiricamente
existência do
objetiva,tem
homem acima da consciência
a plenitude em geral e acima
da sua manifestação no fatodo de espírito.
neles se
Esta nossa essência se
apresentarem os seguintes modos do manifesta: 1ª na insuficiência que o
homem experimenta em si mesmo, pois nele há uma
inadequação constante à sua existência, ao seu conhecimento,
ao seu mundo espiritual; 2º no absoluto, ao qual a sua
existência
grafia estácom
arbitrária submetida por meioetimológica,
alguma justificativa de seu genuíno ser,noou
é baseada fatopor
de
aquilo
que que alemão
o termo lhe é "Dasein"
dito de (que
forma compreensível
às vezes foi traduzidoe como
válida; 3º lá")
"estar no
incessante
significa impulso
na língua alemãpara
o mesmo o uno,
que emvisto que"existência"
espanhol o homem não em
e então, se
contenta
vez com um Jaspers, como outros existencialistas, faz uso arbitrário
disso, traduzimos;
do termo latino "Existez", com grafia germanizada, para usá-lo no sentido que
indicamos (Nota do Tradutor).

17
18
único modo de englobar por si mesmo, nem com todos eles,
mas sente o desejo da unidade fundamental, pois só é o ser e a
eternidade; 4º na consciência de uma remessa inconcebível,
como se tivesse uma consciência com a criação (Schelling) ou
como se pudesse lembrar de algo visto antes de cada ser-
mundo (Platão); 5º na consciência da imortalidade, que não é a
sobrevivência de outra forma, mas um ser alojado na
eternidade anulante do tempo, que lhe aparece como a forma
de continuar agindo incessantemente no tempo.

O abrangente que sou é em cada figura uma polaridade de


sujeito e objeto.
Eu sou por meio da existência: mundo interior e mundo
ambiente,
a título de consciência em geral: consciência e objeto,
a título de espírito: a ideia que está em mim e a ideia
objetiva que me vem das coisas,
a título de ex-sistência: ex-sistencia e transcendência. O
too-abrangente que sou abrange como se disséssemos o quão
abrangente é o próprio ser, e ao mesmo tempo é abrangido por
ele. Esse ser é chamado de "mundo" nas três primeiras
polaridades e nele é como um mundo ambiente, como uma
objetividade do cognoscível, como uma ideia. Na quarta
polaridade, é chamado de "transcendência".
A fé no sentido mais amplo significa então estar presente
nessas polaridades, visto que essa presença não pode ser obtida
em nenhum caso por imposição do entendimento, mas é
sempre de uma origem própria que eu não posso querer, mas a
partir dela eu quero, eu sou e sei.
A existência é tão natural para nós que na maioria das
vezes o mistério que existe na consciência espinhada da
realidade não se torna presente para nós: eu existo, as coisas
existem. Há pacientes que às vezes perdem a consciência da
realidade. Em vão eles batem no chão com os pés para
verificar a realidade. Tudo é como a aparência. Sentem-se
mortos, como fantasmas que não vivem e - em certos estados
graves de demência - pensam que têm de viver

19
eternamente aquele estado de não-vida. Eles se descrevem
como comparsas ou com outras palavras que aludem à
irrealidade. O cogito ergo sum de Descartes é, sem dúvida, um
ato de pensamento, mas não pode impor a eficácia da
consciência da realidade.
A título de consciência geral, alerto para a validade do
que é justo. Essa evidência é o que se impõe. Em cada caso
isolado, noto a imposição do não-cabe-outra-possibilidade do
que reconhecer que isso é justo ou injusto. Mas essa evidência
em si é algo imediato, intransponível.
A título do espírito, estou cheio de idéias por meio das
quais apreendo a idéia que surge em meu caminho. O que está
dividido em pensamento, permanece unido a qualquer
momento, tornando-se um movimento espiritual. Quando as
ideias desaparecem, o mundo desmorona na infinidade de
objetos espalhados.
A título de ex-sistência, sou na medida em que sou dotado
de transcendência para mim mesmo. Não sou só por mim
mesmo em minha resolução, mas ser-para-mim é um ser-me-
dado em minha liberdade. Eu posso deixar de ter a mim mesmo
e não há vontade que eu dê a mim mesmo.
Bem, chamamos fé no sentido mais amplo de certeza da
realidade, evidência, ideia. Como existência, é algo como
instinto; como consciência em geral, certeza; como espírito,
convicção. Mais propriamente, a fé é o ato de ex-sistência, no
qual se adquire a consciência da transcendência em sua
realidade.
A fé é vida desde o abrangente, é guiar-se e realizar-se
pelo abrangente.
A fé do abrangente é gratuita porque não é fixada em um
finito absolutizado. Tem o caráter do flutuante (aquilo em
termos de previsibilidades - não sei se acredito ou no que
acredito -) e ao mesmo tempo do absoluto (na prática da
atividade e do descanso decorrente da resolução).
Falar sobre isso requer a operação filosófica fundamental
de certificar-se do que é abrangente, desobstruir toda
objetividade do pensamento que inevitavelmente permanecerá
sempre objetiva, ou seja: na prisão do nosso ser que aparece na
cisão sujeito-objeto, escapar desta

20
prisão, embora sem realmente poder entrar no espaço exterior.
Há algo em nós que se rebela contra essa operação
fundamental e, conseqüentemente, contra o pensamento
filosófico. Sempre queremos algo tangível. Conseqüentemente,
consideramos erroneamente o pensamento filosófico como
conhecimento objetivo. Como um gato de quatro, nós também
sempre recaímos na compreensão objetiva. Nos rebelamos
contra essa vertigem de filosofar, contra a exigência de andar
de cabeça para baixo. Poderíamos dizer que queremos
permanecer "sãos", aderindo aos nossos objetivos e queremos
evitar o renascimento do nosso ser no transcendente.
Não é útil para nós. Indignados, podemos nos refugiar no
nosso suposto bom senso, mas, ao querermos obrigar tudo a se
conformar à sua forma, incorremos justamente na superstição,
cuja característica essencial é fixar no objeto e, assim,
tangibilizar o que o próprio ser é além de qualquer divisão
sujeito-objeto.
Daí a fé filosófica, com uma consciência sensível contra a
superstição, contra aquela crença em um objeto, é incapaz de
se confessar em tese. O objetivo deve permanecer em
movimento e evaporar-se, por assim dizer, de modo que, ao
diminuir a objetividade, uma consciência plena do ser se torne
evidente precisamente por meio desse desaparecimento.
Consequentemente, a fé filosófica está sempre na dialética da
fusão e da anulação.
A dialética tem um significado muito diferente. A única
coisa que ela tem em comum é que nela as antíteses têm uma
importância essencial. A dialética é a marcha lógica pelas
antíteses para resolvê-las em síntese. A dialética é a ocorrência
real em antíteses que se chocam, se combinam e produzem
algo novo. Mas dialética também significa desencadear a
antítese nas antinomias insolúveis, precisamente na
insolubilidade, no contraditório - é também avançar para as
fronteiras em que o ser aparece absolutamente rasgado, em que
o nosso ser propriamente dito,

21
torna-se fé, e isso se torna uma compreensão do aparentemente
absurdo.
A fé filosófica tem em si estruturas dessa dialética.
Assim como o ser e o nada são inseparáveis, estando ambos
entrelaçados e, então, rejeitando-se ao extremo, a fé e a
descrença são inseparáveis, apenas para serem rejeitadas
apaixonadamente novamente.
As antíteses da existência, do espírito e do mundo,
reconciliam-se numa visão total harmoniosa que se rompe pela
rebelião da ex-sistência contra aquela falsidade.
A fé recua ao mínimo próximo à fronteira da
incredulidade e, a partir daí, salta da minúcia para a mais
ampla; assim posso agarrar convulsivamente o eu que se
esvazia —no cogito ergo sum—, com o orgulho de manter a
integridade íntima: —si fractus illabatur orbis, impavidum
ferient ruinae—, na rígida ótica de contemplar: isso mesmo —
em a condenação devastadora do mundo ("Eu volto minha
entrada"). Eu me engano todas as vezes, como se ainda pudesse
estar fora das condições de finitude do mundo. É propriamente
encorajado pela experiência do nada, face à experiência do
marginal, quando ouso confiar em mim mesmo, acreditando
novamente, a céu aberto, iluminado por todos os modos do
englobante em que sou e em que me encontro.
A fé filosófica certamente passa pelo nada, mas não
cresce sem base para sustentá-la. Não recomeça se for original.
Por que você pensa? "Meu pai me contou." A resposta de
Kierkegaard também é válida, mutatis mutandis, para filosofar.
A fé filosófica está na tradição. É verdade que essa fé está
apenas no pensamento de cada indivíduo, faltando a segurança
objetiva de uma instituição; é o que resta quando tudo se
desintegra, o que, no entanto, nada é se quisermos concebê-lo
como uma ajuda no mundo; mas sua presença a cada momento
é adquirida pelo retorno a si mesmo a mando da tradição.
Assim, a filosofia é determinada pela sua história e que a cada
momento a

22
história da filosofia é um todo desde o filosofar, como é o caso
atualmente.
Em nenhum lugar a philosophia perennis já foi
conquistada no tempo, que, no entanto, sempre existe na ideia
de filosofar e na imagem global da verdade da filosofia em
nome de sua história de três milênios que se tornam presentes
únicos.
Sem dúvida, surgirá a pergunta - especialmente no que
diz respeito aos serviços prestados pelas religiões: a filosofia
serve em tempos difíceis? Levanta a questão de quem busca
uma pegada objetiva, compreensível também para o sentido.
Mas filosofar não existe. Ao filosofar, segurar significa
meditar sobre si mesmo, buscar fôlego tornando o presente
englobante, conquistar a si mesmo sendo dotado de si mesmo.
A fé filosófica é entregue, sem garantias, sem garantias.
E, no entanto, a tradição da filosofia é uma espécie de
pega-pega. À vista está a realidade do filosofar passado, dos
grandes filósofos, das obras filosóficas. Mas o amor de certos
filósofos pelo seu trabalho, nunca pode ver no homem mais do
que um homem, tem que perceber em toda parte também o erro
e os limites e falhas. Mesmo a mais alta tradição permanece na
época, não fornece um ponto de apoio ou comunidade real, não
se torna uma coleção de livros sagrados e não conhece uma
obra de validade absoluta. Em nenhum lugar existe a verdade
acabada, mas de toda a história da filosofia, da China ao
Ocidente, é a fonte inesgotável que, no entanto, só flui quando
de uma origem presente é apreendida para uma nova
compreensão.
Gratidão pela possibilidade de um diálogo contínuo com
esta tradição simbolicamente personificada pela "filosofia".
Em nossos hábitos idiomáticos, falamos dele como uma
entidade. Cícero e Boécio executaram essa personificação de
maneira impressionante.
Mas a fé filosófica não adota uma postura de obediência
frente à filosofia tradicional, embora o faça de respeito.

23
Para ela, a história não se torna uma autoridade, mas uma
presença única de luta espiritual.
A história se presta a várias interpretações. Com que
facilidade a filosofia escorrega quando se torna confissão,
fixa-se em dogmas, estabelece criações escolares na
comunidade institucional, quando transforma tradição em
autoridade, quando transforma colegiais em heróis
[fundadores ou dirigentes de uma escola de filosofia], e
quando ele lança-se dialeticamente para brincar com o que
não compromete. Talvez os lapsos da filosofia sejam o que
ocupe o primeiro plano de seu panorama. Talvez as grandes
ideias tenham sido mais mal interpretadas do que
compreendidas. Talvez, por exemplo, a história do
platonismo (começando com Espeusipo), seja uma história
de adulterações e perdas com raros momentos de
reconhecimento. Houve homens que pela filosofia, ao
contrário do que a filosofia quer dizer, encontraram o
caminho que leva ao niilismo. Portanto, a filosofia é
considerada perigosa. Não é raro que seja considerado
propriamente inadmissível.
Só partindo da fé filosófica, intocada em todos os tempos,
capaz de se reconhecer no outro, podemos encontrar na
história da filosofia, pelo deserto dos desvios, o caminho que
conduz à verdade que nela foi absorvida.

24
SEGUNDA CONFERÊNCIA

OS CONTEÚDOS DA FÉ FILOSÓFICA
Sem dúvida, espera-se que a filosofia seja entendida por
meio do entendimento, algo que qualquer um tem que entender
como justo e então pode saber, não tem que acreditar.
Na verdade, a filosofia não invoca nenhuma revelação ou
autoridade. Mas o que o homem que filosofa racionalmente
entende é muito mais do que um conhecimento imposto pelo
entendimento. É o que ele, desde sua origem, entende como
verdadeiro, trazendo-o ao presente com todos os órgãos de seu
ser.
Ao filosofar, o homem irrompe por sua mera
naturalidade, mas em virtude de seu próprio ser. O que nessa
irrupção ele capta como sendo o ser e como sendo ele mesmo,
é a sua fé. Filosofando, caminhamos pelo caminho que conduz
à origem da fé, que corresponde ao homem como homem.
Os pensamentos filosóficos são realizados de certas
maneiras em cada homem, e frequentemente da maneira mais
pura nas crianças. Descobrir o curso desses pensamentos,
esclarecê-los e desenvolvê-los e repeti-los, reconhecendo o
que foi pensado pelos milênios, é uma questão de filosofia por
pensar que isso se torna uma habilidade profissional. Para isso
é necessário,

.' 25
em primeiro lugar, a reflexão sobre o alcance dos conteúdos da
fé (reflexão metódica) e, em segundo lugar, a reflexão sobre os
próprios conteúdos da fé.
Já tentamos o primeiro. Vou repetir brevemente de outra
maneira.

1. O ÂMBITO DOS CONTEÚDOS


O âmbito é aberto por quatro perguntas: O que eu sei? —
O que é isso propriamente? — Que é verdade? — Como posso
saber? — Nós responderemos com os conceitos desenvolvidos
na primeira conferência:
Primeira pergunta: o que eu sei? Resposta: Tudo o que
sei está no dualismo sujeito-objeto, é um objeto para mim, é
um fenômeno, não ele mesmo. Mas no dualismo sujeito-objeto,
sujeito e objeto estão ligados entre si. Não há objeto sem
sujeito, mas também não há sujeito sem objeto. Portanto, o que
experimento como ser está sempre no conjunto do dualismo
sujeito-objeto, não apenas de um lado.
O dualismo sujeito-objeto é múltiplo: a existência está em
seu mundo como um mundo ambiente; a consciência em geral
está na frente dos objetos; o espírito vive nas idéias. Ex-
sistência refere-se à transcendência. Mas o mundo ambiente, as
idéias e a transcendência tornam-se objetos pensados apenas na
consciência em geral, por objetificação em esquemas e
símbolos.
O que eu sei é, então, a cada momento um ser objetivo na
consciência em geral e, conseqüentemente, limitado; mas em
sua finitude é um trampolim possível para saltar ao
transcender.
Segunda pergunta: o que é isso propriamente? A resposta
será buscada e encontrada, não listando quanto é e o que é
dado, mas apreendendo o que é em si ou apropriadamente.
Como sempre perguntamos no dualismo sujeito-objeto, e o ser
tem que estar além do sujeito e do objeto ou abranger ambos, a
questão sobre o ser é ao mesmo tempo sobre o questionador. A
resposta tem que

26
mostrar o ser para nós indissolúvel do que nós mesmos somos,
pois o ser tem que facilitar a pergunta sobre ele graças à
natureza do nosso ser e se prestar a essa pergunta.
Agora, para a questão do ser, respostas típicas são dadas
(aquelas que estão parcialmente certas e então aquelas que
estão diretamente erradas). Primeiramente foi tomado como ou
como base de tudo o que é, algo objetivo que ocorre no mundo:
matéria, ordens espaciais, imagens do mundo. Ser é objeto.
Ao contrário, o subjetivo era considerado como aquele do
qual todo ser parte, é criado, objetivado. O ser é um produto de
si mesmo.
Expurgado das contingências do materialmente
determinado, finalmente se pensou que o ser eram as
estruturas de pensamento (categorias) que fazem todo o ser ser
compreendido porque se encontram no próprio ser. Pensando
no ser, adquire-se a certeza de que o ser é, não é, se torna,
existe, é algo, substância, causa e efeito, etc. Ser é logos.
A insuficiência de qualquer ontologia deste tipo leva ao
genuíno na certeza filosófica de ser:
1º Se o que é propriamente não é objeto, objeto de
sujeito, subtrai-se do tipo de conhecimento que significa
conhecer algo objetivo.
Mas, como tudo o que é objeto para nós, permite-nos
compreender a sua fenomenalidade ao contrário do que é em
si, o ser como fenômeno indica o próprio ser que fala e nele se
torna sensível.
2º Se o que é, não é uma vivência como sujeito de uma
consciência estrita que a contempla, também se afasta do saber
psicológico.
Mas, uma vez que tudo o que é experimentado é uma
presença do ser, o modo de existência na subjetividade é uma
manifestação fundamental do ser; experimentar e compreender
é um procedimento indispensável para ter certeza de ser.
3º Se o que é, não é uma estrutura de pensamento

27
das categorias, não é logos, também é subtraído do
conhecimento lógico.
Mas, como tudo o que é para nós, tem que ser produzido
de alguma forma de ser-pensamento, conhecer as categorias é
condição para a clareza do filosofar.
O próprio ser, que não é objeto nem sujeito, mas antes se
manifesta no conjunto do dualismo sujeito-objeto, e que deve
preencher as categorias para dar-lhes sentido e significado, é o
que chamamos de englobante.
Consequentemente, a pergunta sobre o que é em si deve
ser respondida com base no esclarecimento dos modos do
englobante —mundo e transcendência— da existência, da
consciência em geral, do espírito, da ex-sistência. E uma vez
que todos esses modos são baseados em um, no final do dia há
a resposta: o próprio ser é a transcendência (ou Deus), é uma
proposição cujo verdadeiro entendimento contém em si toda fé
filosófica e todo pensamento filosoficamente esclarecedor, que,
no entanto, não encontra outro caminho senão os passos dos
modos do englobante.
Terceira pergunta: o que é verdade? Resposta: Em
quaisquer modos do englobante que somos, uma autêntica
sensação de ser-verdade está enraizada.
Na existência há verdade por meio da imediatidade do
presente, da utilidade vital, do instinto, do prático e do
oportuno.
Na consciência em geral, há verdade na forma de
ausência de contradição do pensável objetivamente nas
categorias universais.
No espírito existe a verdade por meio da convicção de
idéias.
Na ex-sistência existe a verdade pelo título de fé
propriamente dito. Fé significa consciência da existência com
respeito à transcendência.
Todo ser-verdadeiro é formulado no seio da consciência
em geral, que, no entanto, apenas fornece as formas de
exatidão, enquanto a fonte da verdade provém dos outros
modos do englobante.
Quarta pergunta: como posso saber? Em caso de dúvida,
quero uma base. Pergunto pelo jeito que eu conheço, pelo
28
significado e limites desse conhecimento. Então fica claro que
toda verdade está presente em um modo genuíno de
pensamento. Esses modos de pensamento tornam-se
conscientes na doutrina das categorias e na do método. Com
eles adquiro um compêndio de filosofia que, se o dominar, me
permite não só saber, mas saber como sei e pelo que sei.
Para o filosofar, é de especial importância decisiva
verificar, neste caso, a diferença entre o pensamento que
conhece objetivamente como se realiza nas ciências e o
pensamento transcendente próprio da filosofia. Pode-se dizer
que uma discussão filosófica atinge seu objetivo quando a
matéria se torna sem objeto, no duplo sentido de que nada resta
para o positivista porque ele não vê mais nenhum objeto e que
é exatamente assim que a luz é feita para o filósofo. Aquilo
que desaparece objetivamente, certamente não pode apreender
o ser em si, mas pode ser preenchido por ele.
Nossas quatro questões conduzem a processos de
pensamento que transcendem tudo o que é conhecível e o
mundo como um todo nos limites, de modo que neles nos
certificamos da fenomenalidade da existência, e com ela o
englobante do ser, e abrimos o reino da fé. Esse pensamento
transcendente é um pensamento que pelo método tem caráter
científico e, no entanto, devido ao desaparecimento do objeto,
é diferente de todo conhecimento científico.
Esses processos de pensamento não são imperativos para
todos como noções empíricas e racionais de objetos finitos,
mas são imperativos para quem os faz, que, transcendendo
neles além de tudo o que é finito, realiza o infinito por meio do
finito. À medida que ele se move ao longo da borda, o limite
torna-se imperativamente sensível como tal; metodicamente,
ele percorre essas mesmas categorias com categorias; no não
saber, ele encontra uma nova maneira de saber sem um objeto.
Essa filosofar realiza processos de pensamento que, embora
ainda não apresentem conteúdo de fé, deixam espaço livre.

29
2. OS CONTEÚDOS DA FÉ

É possível formular conteúdos de fé filosófica em frases


como:
Deus é.
Essa é a exigência absoluta.
O mundo tem uma existência que desaparece entre Deus e
a ex-sistência.
1. Deus é: A transcendência além do mundo inteiro ou
antes que o mundo inteiro seja chamado de Deus. Que eu tenho
o universo por ser em si, a natureza por Deus, ou que considero
que o mundo carece de fundamento em si mesmo e busca o
fundamento do mundo e de mim em algo fora do mundo, é o
que faz a diferença mais profunda na fé .
Existem as demonstrações de Deus. Desde Kant, é claro
para todo pensador sincero que tais testes são impossíveis se se
pretende que eles possam obrigar a razão, assim como eu
posso forçá-la a entender que a terra gira em torno do sol e que
a lua tem um reverso. Mas as demonstrações de Deus não estão
desatualizadas como pensamentos porque perderam seu caráter
de testes. Significam uma garantia de fé nos processos de
pensamento que, ao aparecerem originalmente, por
autoconfiança assumem o que pensa como o acontecimento
mais profundo da vida e que, pensados com compreensão,
possibilitam a repetição da segurança. O pensamento como tal
opera uma transformação no homem. O pensamento nos torna
videntes. Além disso, o pensamento se torna a base de nós
mesmos. O aumento da consciência de ser alcançado com ele,
torna-se fonte de seriedade.
As demonstrações de Deus partem do princípio de algo
que pode ser encontrado e experimentado no mundo e depois
chegam à conclusão: se é assim, Deus deve ser. Assim, os
enigmas fundamentais da existência do mundo se fazem
presentes e se referem a Deus.
Ou processos de pensamento são realizados em que o
próprio pensamento se entende como consciência de

30
ser e se aprofunda na consciência de Deus: filosofia
especulativa propriamente dita.
Ou a certeza é feita com base na ex-sistência: a distinção
entre o bem e o mal adquire toda a sua seriedade como
exigência de Deus. A realidade do amor é como uma
linguagem de Deus.
E em toda parte, a desarmonia do mundo e a vaidade de
qualquer imagem harmônica do mundo, o fracasso do
planejamento no mundo, dos projetos e realizações humanas, a
própria impossibilidade de consumar o ser-humano, levam ao
limite: antes do precipício você experimenta o nada ou Deus.
Mas a prova nunca é imperativa no sentido em que a
prova científica é. Um Deus demonstrado não é um Deus. Daí:
só quem parte de Deus pode buscá-lo. A certeza da existência
de Deus, embora rudimentar e incompreensível, é um pré-
requisito, não o resultado de filosofar.
Após a formidável refutação de todas as demonstrações
de Deus por Kant, após a substancial, mas confortável e falsa
restauração das demonstrações de Hegel, após o novo interesse
que as demonstrações medievais de Deus despertaram, é agora
urgentemente necessária. Uma nova aprovação filosófica das
demonstrações de Deus. Theodor Haubach, socialista e um dos
que participaram da conspiração de 20 de julho, enforcado pela
Gestapo, aquele político e realista que durante os anos de
guerra, inteiramente animado pela esperança de que uma nova
Alemanha se construísse após o colapso certo, tratou em
profundidade com as manifestações de Deus, considerou-as o
fundamento indispensável da nossa consciência que nos une a
todos.
O pensamento de que Deus é, é imediatamente seguido
por imaginar o que Deus é, uma coisa impossível e que, no
entanto, neste caso desenvolveu um pensamento rico e
excitante. É verdade que o campo é dominado pela teologia
negativa, que diz o que Deus não é, a saber, que ele nada é
como a finitude está diante de nossos olhos ou diante de nosso

31
pensei. Mas o finito na forma de metáfora, símbolo, analogia,
serve para tornar a divindade presente.
2. Essa é a exigência absoluta: As razões das
exigências que nos são impostas são geralmente fins de
existência (utilidade) ou uma autoridade não consultada. Essas
demandas são condicionadas por propósito ou obediência cega.
A demanda absoluta tem sua origem em nós, porque
nos sustenta. Este absoluto não é compreensível nem do
propósito nem da autoridade. Que haja o absoluto como
fundamento da ação, não é uma questão de conhecimento, mas
de conteúdo de fé. Nosso pensamento finito encontra apenas
condições no infinito, podendo assim justificar tudo de alguma
forma. A intervenção do absoluto tem caráter infinito na
historicidade do nosso aqui e agora; embora seja esclarecido
em proposições universais, não pode ser suficientemente
determinado e deduzido por qualquer universal.
A demanda absoluta se aproxima de mim como a
demanda do meu eu genuíno à minha existência, como a
demanda do que, por assim dizer, sou eternamente antes da
transcendência, e essa demanda se dirige à temporalidade da
minha vida presente. Se a razão de minha vontade for absoluta,
terei consciência dela como o que sou propriamente e a que
minha existência deve corresponder.
O próprio absoluto nunca se torna temporário. Onde
quer que esteja, é ao mesmo tempo transversalmente ao tempo.
Da transcendência ele irrompe neste mundo no caminho que
passa pela nossa liberdade.
3. A realidade do mundo tem uma existência que
desaparece entre Deus e a ex-sistência: A flutuação de todos
os modos da realidade conhecida, o caráter de interpretação
que todo saber possui, a doação de todo ser para nós no
dualismo sujeito-objeto Essas características do conhecimento
possível para nós significam: todos os objetos são apenas
fenômenos, nenhum ser conhecido é em si mesmo e como um
todo. A fenomenicidade da existência é uma noção
fundamental do pensamento filosófico e, embora não possa

32
ser entendido objetivamente, mas apenas por transcendência,
um entendimento capaz de transcender não pode ser subtraído
dele; mas então não acrescenta ao conhecimento anterior um
novo conhecimento isolado, mas antes causa um empurrão da
consciência de ser como um todo. Daí a luz repentina, mas
imperdível, que é produzida, por exemplo, pelo estudo de Kant
após um esforço curto ou prolongado. Caso contrário, todo o
estudo de Kant ficará oculto no conhecimento pelos fragmentos
da doutrina que basicamente não foram compreendidos porque
não foram aplicados.
O mundo como um todo não se torna um objeto para nós.
Cada objeto está no mundo, nenhum é o mundo. Cada definição
do mundo e cada julgamento do mundo, seja uma afirmação
otimista da harmonia do mundo, ou uma negação pessimista do
dilaceramento do mundo, conduz a julgamentos totais, dando
preferência de acordo com os casos a algumas realidades e
deixando de lado outros. Contra isso está a certeza de que o
mundo não é algo fechado em si mesmo e de sua falta de
consistência e, com ela, a disposição da escuta incessante de
todos os modos de ser do mundo, dos acontecimentos e de suas
próprias façanhas na marcha temporal. da vida sempre
inacabada. Esta provisão é unida por:
Em primeiro lugar, averiguar a transcendência absoluta de
Deus em relação ao mundo: o deus absconditus se afasta
quando eu quero apreendê-lo, está incalculavelmente próximo
na historicidade absoluta de uma situação singular que sempre
ocorre.
Em segundo lugar, a experiência do mundo como
linguagem de Deus: o ser do mundo não está em si, mas nele a
linguagem de Deus acontece em uma pluralidade constante de
sentidos, que só pode se tornar historicamente unívoca para a
existência no instante infinitamente pequeno.
Para esta fé, o nosso ser no tempo é um encontro de ex-
sistência e transcendência - do eterno que somos por termos
sido criados e autodotados, e do eterno em si mesmo. No
mundo o que é eterno é encontrado e aparece temporariamente.
Mas o encontro da ex-sistência e da transcendência, como
é um encontro no mundo, pois o tempo está subordinado

33
ao mundo. Como o que é para nós, tem que aparecer na
temporalidade do ser do mundo, não há conhecimento direto
de Deus e da existência. A investigação do mundo é a única
forma de nosso conhecimento, a realização do mundo é a única
forma de realização ex-sistencial. Na falta de um mundo, nos
perdemos ao mesmo tempo.
Das proposições de fé é possível dizer:
Nenhum é demonstrável como o conhecimento finito. Sua
verdade só pode ser evidenciada chamando a atenção, ou
esclarecida por uma condução do pensamento, ou lembrada
por um chamado. Eles permanecem na flutuação de não-ser-
conhecido.
Há uma certa timidez em formular as proposições claras e
simples. Eles são tratados muito rapidamente como uma
tradição e então perdem seu significado. Eles induzem uma
falsa afirmação de quem os formula.
Sentimo-nos compelidos a dirigir a pregação ao filosofar,
onde somos francamente questionados: Existe um Deus?
Existe um requisito absoluto na existência? O mundo é o
último ou o ser do mundo é flutuante e minúsculo?
A pregação da incredulidade é assim:
Primeiro: Deus não existe, porque existe apenas o mundo
e as regras de sua ocorrência; o mundo é Deus.
Segundo: não há absoluto, visto que as exigências que eu
cumpro nasceram e são condicionadas pelo costume, prática,
tradição, obediência; tudo está sob condições infinitas.
Terceiro: O mundo é tudo, a única realidade, a própria
realidade. Embora tudo no mundo seja perecível, o próprio
mundo é absoluto, eterno, não é desprezível, não é um ser-
transitório flutuante.
Ao filosofar, o não conhecimento não deve ser explorado
para escapar a qualquer resposta. Não sei se acredito; mas tal
fé se apodera de mim, que corro o risco de viver com base
nela. No filosofar, sempre haverá a tensão entre a indecisão da
pregação flutuante e a realidade de se comportar de forma
decisiva em uma situação histórica.
O conteúdo filosófico da filosofia ocidental tem

34
sua fonte histórica não apenas no pensamento grego, mas
também no pensamento bíblico. Quem é incapaz de crer em
uma revelação como tal, pode, não obstante, apropriar-se da
fonte bíblica, imbuir-se como homem de sua verdade sem
revelação. Na verdade, o estudo da Bíblia foi um dos
fundamentos de quase toda a filosofia ocidental até hoje. Esta
obra única não pertence a nenhuma seita e religião alguma,
mas a todas.
Nós nos tornamos cientes de nosso fundamento
peculiar na religião bíblica, comparando-o com as religiões
hindu e do leste asiático. Embora as características
fundamentais da religião bíblica não faltem totalmente nas
outras religiões, não lhes são impostas de forma tão total.
Mesmo na Bíblia, esses personagens fundamentais não estão
em todos os lugares, alguns são encontrados apenas em
algumas passagens, mas de eficiência única. Vou me lembrar
deles:
1º O Deus único: O Um passa a ser o fundamento da
consciência do ser e do "ethos", origem da inserção ativa no
mundo. Nenhum outro Deus além de Deus: esse é o pano de
fundo metafísico da seriedade do Um no mundo.
2º A transcendência do Deus criador: A superação do
mundo demoníaco e da magia traz à consciência a
transcendência do Deus sem imagem, sem figura,
inimaginável. O pensamento da criação suspende o mundo
como um todo. O mundo não tem assento e não é ele mesmo.
O homem como indivíduo em sua ex-sistência adquire sua
liberdade no mundo em virtude de ser criado por Deus; por
causa de sua conexão com o Deus transcendente, e somente
por causa disso, é independente de todos.
3º O encontro do homem com Deus: O Deus
transcendente tem um aspecto pessoal. Ele é uma pessoa a
quem o homem se volta. Há uma necessidade de Deus, de
ouvir a Deus. Daí se origina uma paixão pela busca pessoal da
personalidade de Deus. A religião bíblica é uma religião de
orações. A oração em sua forma pura - livre de desejos
mundanos - recebe recompensa e gratidão e leva à confiança:
seja feita a Tua vontade.
4º Mandamentos de Deus: Com uma simplicidade
incomparável
35
as verdades fundamentais foram formuladas por meio dos dez
mandamentos como mandamentos de Deus. A diferença entre o
bem e o mal é concebida no absoluto do dilema. Desde o tempo
dos profetas, o amor ao próximo foi fomentado, culminando na
frase: Ame o seu próximo como a si mesmo.
5. Consciência da historicidade: Em tempos de
catástrofes políticas, aparece como uma consciência histórico-
universal da história guiada por Deus. Torna-se a base da
centralização religiosa da vida que abrange o universo aqui e
agora. O que dá à vida todo o seu peso não é a dispersão e a
contingência do finito, mas a presença sustentada por Deus.
6. O sofrimento: O sofrimento ganha dignidade, o
caminho para a divindade é percorrido. Na história do servo de
Deus (Deuteronômio-Isaías) e no símbolo da Cruz (Cristo) ela
se torna o pólo oposto à tragédia dos gregos. A religião bíblica
vive sem uma consciência trágica ou em uma tragédia
superada.
7. Abertura para o insolúvel: A certeza da fé é exposta
à verificação mais extrema. Em determinadas posições
religiosas - e toda pregação inevitavelmente torna-se posição -
ele corre o risco de mostrar o quão insolúvel surge delas. A
paixão de lutar por Deus contra Deus é exclusiva de Jó. O
desespero do nada - como um trânsito inevitável para os
sinceros - é formulado de maneira insuperável no Eclesiastes.
Cada uma dessas características fundamentais está
associada a desvios peculiares.
1. O único Deus torna-se abstrato e só então é negativo
em relação a todos os seres do mundo e à sua pluralidade e
plenitude. O um mata o plural.
2. O Deus transcendente se destaca do mundo. Deus
sem criação é um pensamento em que tudo desaparece. Como o
mundo é tomado não apenas nulo, mas nada, para nós até a
transcendência torna-se, por assim dizer, um nada, sem que
ainda haja algo.
3. O encontro com Deus se interessa ou se transforma
em abandono sentimental. Naquela religião de oração

36
constitui um perigo que, em uma atitude egocêntrica, a alma
incomode a Deus.
Outro perigo é a propensão à certeza de conhecer a
vontade de Deus, que se torna fonte de fanatismo. Muitos
horrores cometidos no mundo foram baseados na vontade de
Deus. Os fanáticos não percebem os vários sentidos da voz de
Deus em todas as experiências. Quem sabe num ponto fixo o
que Deus diz e quer, faz de Deus uma entidade do mundo, que
tem à sua disposição, lançando-se assim no caminho da
superstição. Mas no mundo não é lícito basear qualquer
reivindicação ou justificativa na voz de Deus. Qual certeza é
fundada no homem individual, e às vezes pode adquirir esse
caráter na comunidade, não pode de forma alguma ser dita para
todos com formidável precisão quanto ao conteúdo.
4. Os mandamentos de Deus são convertidos de
fundamentos simples de moralidade em preceitos abstratos de
significado legal e são desenvolvidos na legalidade infinita de
disposições particulares.
5. A consciência da historicidade se perde em uma visão
histórica objetiva. Então surge uma disposição da história
universal, seja mentalmente em um conhecimento do todo, ou
ativamente com a consciência de ser um executor do plano de
Deus conhecido pelo qual ele opera. Ou surge uma visão
estética, perdendo a seriedade da própria ex-sistência diante de
toda a história.
6. O sofrimento se torna prazer masoquista baseado em
mutações psicológicas ou é sadicamente afirmado, ou é
concebido como um sacrifício em categorias mágicas há muito
superadas.
7. A abertura ao insolúvel leva ao desespero ou ao
niilismo, à rebelião de uma enorme negatividade.
Na história da religião bíblica, os desvios que lhe são
próprios são oferecidos até hoje. A ferocidade que não raro
aparece nela é como uma inversão do "pathos" originário da fé.
Os antigos impulsos de fé obrigam, mesmo em complicações, a
cumprir

37
as falsas consequências da associação horripilante com
impulsos vitais e suas perversões.

3. RAZÃO E COMUNICAÇÃO
A fé filosófica não é suficientemente caracterizada por
indicar o alcance do englobante e se referir a proposições que,
ao formular conteúdos de fé, ainda são flutuantes. Pois filosofar
é essencialmente no tempo. A filosofia é um inter-ser entre a
origem e o fim. Algo em nós que nos guia por esse caminho,
nos impulsiona do nosso sujeito, nos atrai do objeto, sem ser
ele mesmo algo palpável, que graças ao qual vivemos de forma
propriamente filosófica, se chama razão. A razão nunca é sem
compreensão, mas é infinitamente mais do que compreensão. A
fé filosófica tem a razão como fator indispensável. Qualquer
outro sentido da verdade só se torna puramente aparente
quando se torna claro no movimento da razão. Nós
caracterizaríamos o motivo assim:
A razão reúne todos os modos de sentido da verdade,
fazendo com que respeitem a todos. Impede que uma verdade
se limite. Entenda que qualquer fé que isole e absolutize um
único modo do englobante é falsa. Assim, mesmo a "fé" da
consciência em geral se engana quando afirma que o próprio
ser está livre de contradições, pois a consciência em geral só
pode ir ao ponto de afirmar que não compreende o que não
resiste aos seus princípios, como o princípio da contradição.
Além disso, todos os conteúdos acessíveis à consciência em
geral ainda não são o próprio ser, mas apenas a maneira como
aparece nas categorias do pensamento universalmente válido.
A razão se recusa a se fixar em qualquer sentido da
verdade que não contenha toda a verdade. Ele se recusa a se
conformar, a entrar em becos sem saída, a se contentar com
uma estreiteza, por mais sedutora que seja, a esquecer e passar
por cima de algo, seja realidade, validade ou possibilidade. A
razão insiste em não deixar nada de lado, colocar

38
em relação a tudo o que é, buscar além de todas as fronteiras o
que é e deve ser, estreitar as antíteses e compreender sempre o
todo, toda a harmonia possível.
Mas então a razão procura novamente abrir a passagem
necessária por meio de qualquer coisa. Rejeite a harmonia
final. Vai ao extremo, realizar o próprio ser.
Sua raiz não é uma vontade de destruição, como aquela
que se traduz na infinidade do sofisma intelectual, mas estar
aberta à infinidade dos conteúdos. Embora suscite a
necessidade de dúvida, o faz para conquistar a verdade com
pureza. Como pensar sem fundamento, o entendimento é
niilista; fundada na ex-sistência, a razão é salvação mesmo
diante do niilismo, porque preserva a confiança de voltar no
final a ter a certeza da transcendência graças ao seu movimento
com compreensão na concretude do ser do mundo, no. abismos
de antimonia, de rupturas e lágrimas.
A razão é o englobante que existe em nós, que não tem
origem genuína, mas é um instrumento de ex-sistência. É da
ex-sistência o absoluto, para trazer a origem na realização à
revelação mais ampla.
É uma espécie de templo da razão. Na clareza fria, a
paixão pelos atos abertos. O homem racional vive tão
decididamente desde a raiz do seu próprio fundamento
histórico, tal como se entrega a cada modalidade de
historicidade que lhe é apresentada, para penetrar nas
profundezas da historicidade do ser do mundo, porque até lá
chegar não é possível consciência com tudo. Daí surge o que
ao mesmo tempo impulsiona, o amor ao ser, a tudo o que é,
pelo modo de ser, na sua transparência, em virtude do qual
pertence visivelmente à origem. A razão amplia a
clarividência, torna dúctil a propensão à comunicação, capaz
de se transformar em novas experiências, mais tudo aquilo
escondido apenas em um fundo, imperturbável na fidelidade,
vivo na memória atualmente eficiente de tudo o que um dia foi
real para ela.

39
O filósofo nunca pode elogiar a razão o suficiente, graças
à qual ele faz o que consegue. O motivo é o vínculo que une
todos os modos do englobante. Não permite que nenhum dos
que vão se separar, afundar na falta de relacionamentos, se
anular na dispersão. Nada deve ser esquecido. Quando a razão
se torna eficiente, ela busca o que é, o link. Surge uma
convivência universal, o aberto deixando-se aproximar. A
razão desperta origens letárgicas, libera o que está oculto,
facilita a autenticidade das lutas. Impulsiona o Uno, que é tudo,
e suprime as miragens que fixam aquele Uno prematuramente,
incompleta e parcialmente.
A razão exige comunicação ilimitada, ela mesma é a
vontade total de se comunicar. Porque com o tempo não
podemos ter em posse objetiva a verdade como única verdade
eterna, e porque a existência só é possível com outra existência,
a ex-sistência só com outra ex-sistência chega a um sim, a
comunicação é a forma de revelar a verdade no tempo .
Aí estão as grandes seduções: pela fé em Deus para se
afastar dos homens, pelo suposto conhecimento da verdade
absoluta para justificar nossa solidão, pela crença de posse do
próprio ser para nos proporcionar uma alegria que na realidade
é falta de amor. Adicione a afirmação de que todo homem é
uma mônada fechada, que ninguém pode sair de si mesmo, que
a comunicação é uma ideia ilusória.
Contra isso está a fé filosófica, que também poderia ser
chamada de fé na comunicação. Pois bem, neste caso as duas
proposições regem: A verdade é o que nos une - e: a verdade
tem sua origem na comunicação. O homem encontra o outro
homem no mundo como a única realidade com a qual pode se
unir com compreensão e confiança. Em todas as fases da união
entre os homens, encontram companheiros do destino amando
o caminho da verdade perdida para o homem que se isola,
refratário e obstinado, e que se enraíza na solidão.

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TERCEIRA CONFERÊNCIA

O HOMEM
O enorme tema "O homem" só pode ser tocado levemente
em uma hora. Saber sobre o homem é certamente de enorme
importância para nós, que somos homens. Diz-se mesmo: saber
o que é o homem é algo que propriamente só nos é possível -
porque nós próprios somos homens - e também só é essencial
para nós - porque o homem é a medida de todas as coisas. Só
podemos falar de tudo o mais em relação ao homem, seja o que
ele encontra no mundo, o que está à sua disposição e o que lhe
aparece com arrogância. O que ele vê, ouve, sente, tem os
modos, característicos para ele, da presença real. O resto que
ele tem em seus pensamentos são suas representações,
produzidas por ele. Se nos apegarmos ao homem, temos o que
nos é acessível, o que nos interessa, tudo o que existe.
Isso parece sugestivo por um momento, mas está cheio de
erros. Certamente é verdade que tudo o que é nos aparece como
um fenômeno compreensível para nós. Daí a grande exigência
do homem para que ele seja informado do que ele é; tem que
ser experimentável, para ser incorporado ao seu aqui e agora. O
cumprimento dessa demanda se revela no maravilhoso
fenômeno fundamental do ser-homem; aquele homem, um nada
em um

41
canto do universo infinito, é afetado em sua estreiteza pelo que
é, acima de tudo, estar no mundo e antes dele. Só o que está
presente para ele é válido para ele. Quando Kant escreve suas
famosas palavras sobre o céu estrelado acima de nós e a lei
moral dentro de nós, ele prossegue dizendo: “Nem eu posso ...
buscar, ou mesmo supor, fora do meu campo de visão; Eu os
vejo diante de mim e os vinculo diretamente à consciência de
minha existência. A primeira parte do lugar que ocupo no
mundo sensível exterior ... A segunda parte do meu eu
invisível ... e me expõe em um mundo ..., com o qual não me
reconheço, como naquele, em união meramente casual, mas
universal e necessária ... ”.
Mas, uma vez que o que é tem que se fazer presente ao
homem, todo ser para ele está presente para ele; Não foi,
portanto, criado pelo homem: nem as realidades sensíveis, nem
o conteúdo de suas representações, pensamentos e símbolos. O
que é propriamente dito também está sem homem, mesmo
quando para nós aparece em formas e modos que
correspondem ao ser humano. Além disso, conhecemos melhor
tudo o que não somos nós - o que o homem é, talvez seja
menos claro para ele do que tudo o que ele encontra. Ele se
torna para si mesmo o mistério final quando percebe que em
sua finitude suas possibilidades parecem se estender ao
infinito.
Em grandes pinturas, antecipou-se o que o homem é,
como se já o soubesse: em primeiro lugar, ele foi
compreendido na escala dos seres. Como ser sensível ele é o
mais alto dos animais, como ser espiritual o mais baixo dos
anjos, embora não seja um animal nem um anjo, mas
relacionado a ambos por uma parte de seu ser, privilegiado em
relação a ambos pelo que lhe falta em um ou outro e ele o
possui desde a própria origem como uma criação direta de
Deus.
Qualquer um dos homens é imaginado como um
microcosmo, no qual está tudo o que o mundo, o macrocosmo,
encerra em si mesmo. O homem não corresponde a nenhuma
outra entidade individual, mas apenas ao mundo como um
todo. É assim que foi discutido em

42
ilustrações concretas e nas correspondências de seus órgãos
com os fenômenos do mundo. Foi formulado de maneira
sublime nas palavras profundas de Aristóteles: A alma é tudo
em certo sentido.
Em segundo lugar, o ser do homem foi visto em sua
situação, não na imagem de sua figura. A situação humana
fundamental em que se encontra é ao mesmo tempo o sinal
fundamental da sua essência:
Beda relata que uma assembléia anglo-saxônica deliberou
em 627 sobre a adoção da fé cristã. Um dos duques comparou a
vida do homem na Terra à permanência de um pardal no
corredor no inverno. “Na lareira o fogo arde e aquece a sala,
enquanto lá fora a tempestade assola. Um pardal voa e
atravessa a sala, entrando por uma porta e saindo por outra.
Depois de atravessar o pequeno recinto onde está
agradavelmente localizado, desaparece e do inverno volta ao
inverno. Assim também esta vida humana é apenas um único
instante. Não sabemos o que o precedeu ou o que o segue ... ”.
Esse alemão se sente dependente de algo estranho, por acaso
aqui no mundo, mas aqui nesta vida bem e abrigada, a
preocupação é com a brevidade e depois.
Santo Agostinho (De beata vita) vê assim o enigma de ter
vindo parar aqui, mas invertendo a apreciação do valor. “Tal
como Deus ou a natureza ou a necessidade ou a nossa vontade,
ou mesmo todos juntos - as coisas são muito escuras -
lançaram-nos neste mundo como um mar tempestuoso como se
disséssemos sem reflexão e ao acaso ...”.
Em terceiro lugar, o ser do homem é visto tanto em seu
abandono como em sua grandeza, em sua nulidade e em sua
possibilidade, no enigma em que suas possibilidades e
problemas se colocam precisamente por causa do que é fraco.
Esta imagem do homem circula com variações ao longo da
história do Ocidente:
O grego sabia que nenhum homem pode se orgulhar de
felicidade antes de sua morte. Ele é entregue a um destino
incerto; os homens são perecíveis como as folhas da floresta. A
medida do homem para esquecer, é a hibris [“é um conceito
grego que pode ser traduzido como“ tudo que passa da
medida, desapego ”], que

43
isso conduz a uma queda ainda mais profunda. Mas o grego
sabia ao mesmo tempo: existem muitas coisas formidáveis, mas
nada é mais do que o homem.
A mesma polaridade conhece o Antigo Testamento.
Pronuncie a nulidade do homem:
Os dias do homem são como a grama,
Como a flor do campo, então ele floresce.
Quando o vento passou por ele, não é mais,
E seus sites não sabem mais disso. (Salmos 103).

E por sua vez a grandeza do homem é vista:


Você fez isso um pouco menos do que os anjos,
Você o fez governar as obras de suas mãos,
Você colocou tudo sob seus pés. (Salmo 8).

Mas muito acima daquela imagem de expiração e


grandeza do homem comum para muitos povos, ele é
encontrado no Antigo Testamento como uma imagem acoplada
à divindade: Deus criou o homem à sua imagem e como ele. O
homem caiu e, portanto, carrega ambas as coisas dentro de si: a
semelhança com Deus e o pecado.
Os cristãos permanecem nesse caminho. Conheciam com
tanta certeza esse limite do homem que o viam até no Deus-
homem: Jesus sentiu com o tormento mais profundo o que
proferiu na cruz com as palavras do Salmo: Deus meu, Deus
meu, por que me abandonaste? O homem não pode se sustentar.
Essa liberdade de espírito faz com que os cristãos em suas
lendas vejam até mesmo os homens mais santos como sujeitos
a serem desencorajados e culpados. Pedro, ameaçado por
capangas e molestado pela pergunta do servo, negou Jesus três
vezes. Rembrandt pintou este homem (na pintura em
Leningrado que foi exibida por um tempo na Holanda durante a
guerra); o rosto de Pedro no momento da negação, revelador
inesquecível de um traço fundamental do nosso ser humano, os
capangas ameaçadores, a donzela dominada por um sadismo
furioso, o doce olhar de Jesus desde o fundo.

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São Paulo e Santo Agostinho compreenderam a
impossibilidade de o homem bom ser realmente bom. Por que
não? 'Se você se sair bem, você tem que saber que está indo
bem; mas esse saber já é estar contente consigo mesmo e,
portanto, arrogância. Sem refletir sobre si mesmo, não há
bondade humana possível, e se você refletir sobre si mesmo, a
bondade inocente não será mais possível.
Pico della Mirándola, ainda na alegria do Renascimento
cristão, desenhou o homem a partir da ideia que a divindade
dele delineou quando o colocou no mundo no final da criação;
Deus fez o homem como fiel reflexo daquele que tudo unia em
si e lhe dizia; Não concedemos a você uma residência
específica, uma herança especial. Sujeitamos todos os outros
seres da criação a certas leis. Você é o único que não está
limitado em nenhum lugar e pode escolher por si mesmo ser o
que de acordo com sua vontade decidir ser. Você mesmo, de
acordo com sua vontade e sua honra, deve ser seu próprio
artesão e escultor e fazer a matéria que o satisfaz. Portanto,
você está livre para descer até o último elo no mundo animal.
Mas você também pode subir às esferas mais altas da
divindade. Os animais possuem desde o nascimento tudo o que
devem possuir. Somente no homem o pai espalhou a semente
de todas as ações e os germes de qualquer forma de vida.
Pascal, atormentado pela consciência cristã do pecado,
viu a grandeza e a miséria do homem. O homem é tudo e não é
nada. Ele está suspenso no centro entre infinitos. Feito de
antíteses irreconciliáveis, ele vive como inquietação
incoercível, nem como médium reconciliado nem como
conciliador silencioso. O que é um homem quimera! Que
deformação, que emaranhado, que contradição, juiz de tudo,
verme insano, glória e abjeção do universo ... O homem supera
infinitamente o homem. Estamos tão infelizes que temos uma
sensação de bem-aventurança. Temos em nós uma imagem da
verdade e apenas a possuímos extraviados. Somos incapazes de
não saber realmente nada e de saber algo com certeza ”.
Esses exemplos históricos da concepção de ser humano
são suficientes.

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Tentemos agora obter uma clareza fundamental sobre o
conhecimento do homem. Dois caminhos nos apontam para o
homem: o homem como objeto de investigação ou o homem
como liberdade.
O homem torna-se objeto de pesquisa em anatomia,
fisiologia, psicologia e sociologia. A antropologia, como
investigação de raças e compleições, estuda sua corporeidade
como um todo. Foi adquirido um conhecimento considerável,
cuja característica fundamental é: todo conhecimento é
particular, mesmo todos relativos; o conhecimento ainda está
espalhado sem se reunir para formar uma imagem perfeita.
Conseqüentemente, esse conhecimento do homem se perde
sempre que leva a julgamentos totais sobre o ser humano, ao
seu suposto ser-consciente como um todo.
Filosoficamente essenciais são as questões de substância.
A questão da diferença entre o homem e o animal (e, portanto,
a questão de como o homem se torna homem) é talvez uma das
mais excitantes. Essa questão nos oferece possibilidades de
investigar o material empírico, enquanto para investigar a
diferença entre o homem e o anjo é necessário ir a esboços de
fantasia construtiva, que - sendo muito instrutivos - medem o
ser humano por possibilidades imaginadas.
Duas experiências contraditórias fundamentais são o
ponto de partida para a investigação. Nós nos vemos como um
membro, um de muitos, na cadeia dos vivos. A questão sobre a
diferença entre o animal e o homem estava errada. A única
coisa que podemos perguntar de forma determinada e
respondente é a diferença entre o homem e o macaco, entre o
macaco e outros mamíferos, etc., mas não podemos perguntar
sobre a diferença entre o homem e o animal.
E a outra experiência é: vemos o corpo humano em sua
expressão incomparável. Pertence ao próprio homem, é de uma
peculiaridade sem paralelo, de uma nobreza e beleza em face
da qual tudo o mais que vive parece particular, como que preso
em um beco sem saída. Perguntamos sobre essas características
fundamentais do homem já em seu corpo

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colocando-o comparativamente à frente de todas as outras
coisas vivas.
Os fatos foram esclarecidos por ambos os caminhos,
embora de forma realmente decisiva seja provável que apenas
pelo primeiro caminho. Mas, fundamentalmente, apenas as
respostas obtidas pela segunda via teriam muitas
consequências; eles restringiriam as respostas da primeira
maneira em seu sentido. Por enquanto, teria sido descoberto
que a corporeidade do homem é algo absolutamente único.
Não foi possível fazê-lo, apesar das inúmeras respostas,
partindo da constatação de que só o homem pode rir até a
afirmação de uma estrutura fisiológica e morfologicamente
aberta de sua corporalidade, que, ao contrário de todos os
outros seres vivos, que poderíamos dizer que é encalhado, de
alguma forma ainda contém em si todas as possibilidades dos
vivos. A questão de fato enquanto tal deve ser diferenciada da
de origem. É este último que se concentra quando o homem é
concebido como análogo aos animais domésticos como
consequência da cultura, seja como obstáculo ao
desenvolvimento embrionário, seja como fenômeno de
domesticação - ambas contradições. As investigações
transcendentais de Portmann sobre os fenômenos dos
primeiros anos de vida e os anos da puberdade do homem, sem
dúvida revelaram pela primeira vez fatos que com os meios de
pesquisa biológica mostram que o homem, mesmo em sua
corporalidade, não se torna real sem fatores que lhe pertencem.
a tradição de sua história, ou aquela com suas qualidades
biológicas, só pode ser entendida como incorporada ao que lhe
corresponde por tradição, não por herança.
Mas estamos muito longe de saber de forma
biologicamente indubitável, realmente decisiva, a
singularidade da vida corporal humana, embora acreditemos
que a vemos sem conhecimento científico.
Intimamente relacionada à questão da diferença entre o
homem e o animal está a questão relativa à origem do homem,
a gênese do homem. É de se esperar que, neste ponto, a
investigação se encontre no mesmo transe que na questão do
nascimento da vida em

47
em geral. O progresso do conhecimento aumenta a ignorância
em matéria de questões fundamentais, colocando assim limites
que podem ser significativamente superados com base em uma
origem diferente da do conhecimento.
Há trinta anos, um geólogo me convidou para uma discussão
sobre o nascimento da vida. Eu respondi: A grandeza da
biologia é mostrada na circunstância de que, ao contrário das
idéias vagas anteriores de trânsitos, ela vem cada vez mais
compreendendo que esse nascimento é incompreensível. O
geólogo: Mas é necessário que a vida tenha saído da terra, isto
é, do inorgânico, ou que tenha chegado em germes do espaço
sideral. Eu: Na verdade, o dilema parece forçado, mas é claro
que as duas coisas são impossíveis. O geólogo: Então você se
refugia em milagres. Eu: Não, mas gostaria que o
conhecimento garantisse o não-conhecimento essencial. O
geólogo: Não entendo. Você quer algo negativo. Afinal, o
mundo é compreensível; caso contrário, toda a nossa ciência
não teria sentido. Eu: Pelo contrário, talvez precisamente por
causa da circunstância (e apenas graças a ela) de que, ao
compreendermos, tropeçamos no verdadeiramente
incompreensível, a ciência faz sentido. E talvez o que faça
sentido seja formular com impossibilidades hipotéticas nos
limites do conhecimento o incompreensível no jogo dos
pensamentos. Tal jogo parece ser a ideia de germes de vida no
cosmos, que voam em todas as direções e fazem surgir a vida,
porque a vida sempre teve essa figura. Mas esse é um jogo
especulativo trivial que não diz nada. Na minha opinião, um
jogo mais expressivo parece ser a ideia de Preyer: O mundo é
uma única vida enorme, da qual o inerte é desperdício e
cadáver. O que deveria ser explicado seria, não o nascimento
da vida, mas do inerte.

Um problema semelhante apresenta a gênese do homem. Tem


sido objeto de contribuições importantes, na maioria das vezes
considerações de possibilidade, eventos isolados. Ao todo, o
enigma se aprofundou, a imagem de milhares de séculos
iluminou-se um pouco, mas o pano de fundo da gênese
humana tornou-se cada vez mais incompreensível.

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A melhor especulação para inventar uma impossibilidade
parece-me a de Dacqué: o homem sempre existiu, viveu em
várias formas do mundo animal, de uma forma totalmente
diferente das formas animais que ainda penso serem
aparentemente as mais semelhantes. sua espécie
morfologicamente, eles são No entanto, os que mais diferem de
sua essência; ele viveu como um peixe, como um réptil, etc.
Poderíamos continuar dizendo que o homem sempre foi a
forma genuína de vida e todo o resto da vida foi dele;
Finalmente, não é que o homem venha do macaco, mas sim o
macaco do homem. E hoje podemos nos encontrar a longo
prazo com a perspectiva de um novo processo de degeneração:
o nascimento de um novo tipo de animal cuja forma de
existência é imposta pelo congelamento da tecnologia, dando
origem a um novo tipo. De homem, visto da qual essa massa
teria a aparência de outra espécie, de algo apenas vivo, que não
seria mais humano. São ideias absurdas, mas com seu jogo
esclarecem o não saber.
Foi colocado de forma mais sucinta por uma piada
"Simplicissimus" durante a Primeira Guerra Mundial. Dois
camponeses da Alta Baviera estão conversando: É bobagem,
mas Darwin parece estar certo quando diz que viemos do
macaco. Sim, diz o outro, bobo, mas - gostaria de ver o macaco
que pela primeira vez se deu conta de que não era mais macaco.
O homem não pode ser derivado de outro, mas está
diretamente por trás de todas as coisas. Perceber isso significa a
liberdade do homem, que em qualquer outra dependência total
perde seu ser e somente nessa dependência total é que ele sai
completamente de sua letargia. Todas as dependências
mundanas e processos biológicos de desenvolvimento afetam,
por assim dizer, a matéria do homem, não a si mesmo. Não se
pode prever até onde irá a investigação no conhecimento do
desenvolvimento desta questão do homem. E dificilmente
haverá outro setor mais empolgante e empolgante para nós.
Todo conhecimento do homem, quando é absolutizado,
fingindo tornar-se conhecimento do homem como um todo,

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faz nossa liberdade desaparecer. O mesmo acontece com as
teorias do homem desenhadas com grande sentido para
horizontes limitados: pela psicanálise, pelo marxismo, pela
doutrina racial. Eles escondem o próprio homem quando
tentam investigar mais do que aspectos de seu fenômeno.
Não há dúvida de que a pesquisa revela coisas muito
notáveis sobre o homem, surpreendentes, mas quanto mais
clara ela se torna, mais consciente também adquire que nunca
poderá fazer do homem como um todo objeto de pesquisa. O
homem é sempre mais do que se sabe sobre ele. Isso pode ser
dito tanto do homem em geral quanto de cada indivíduo em
particular. Você nunca pode fazer um balanço e saber em um
ponto fixo nem sobre o homem em geral, nem sobre qualquer
indivíduo.
Absolutizar um saber sempre particular para elevá-lo ao
conjunto de um conhecimento do homem, leva a negligenciar a
imagem do homem. E negligenciar a imagem do homem leva a
negligenciar o próprio homem, porque a imagem do homem
que consideramos verdadeira passa a ser um dos fatores da
nossa vida. Decidir sobre as maneiras como tratamos nós
mesmos e nossos semelhantes, sobre a entonação da vida e a
escolha das tarefas.
Juntos e cada um de nós temos certeza do que o homem é
de uma forma que existe antes e depois da investigação. É uma
questão da nossa liberdade, que se sabe estar sujeita ao
conhecimento obrigatório, mas não se inclui nela como objeto
de conhecimento, porque quando nos investigamos, deixamos
de ver a liberdade, para ver apenas o ser-assim, a finidade. ,
figura, relacionamento, necessidade causal. Mas é a partir da
nossa liberdade que tomamos consciência do nosso ser
humano.
Vamos recapitular para garantir o trampolim que nos
permite pular para a consciência da liberdade.
O homem não pode ser entendido com base em um
"desenvolvimento" que parte dos animais.
Contra isso temos a tese: Não é possível compreender sua
origem, exceto com base em tal desenvolvimento. E

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como esta é a única possibilidade de compreensão e no mundo
tudo acontece naturalmente, o homem deve ter nascido desse
desenvolvimento.
A resposta: Na verdade, para o nosso conhecimento,
tudo é compreensível - pois somente tendo
compreensibilidade existe o conhecimento, e além do
conhecimento não há nada para o conhecimento. Mas de
forma alguma todo ser é reduzido à cognoscibilidade, se
chamamos conhecimento cientificamente obrigatório,
conhecimento objetivo, por meio de imediatismo
identicamente compreensível. Este conhecimento é sempre
particular, referindo-se a certos objetos finitos - sempre
comete um erro de princípio quando aspira ao todo
absolutamente.
O próprio mundo não pode ser entendido como um todo
com base em um, vários ou muitos princípios previsíveis, mas
antes o conhecimento é desfeito após a primeira tentativa
errada e vã de apreender o todo. O conhecimento está no
mundo e não abrange o mundo. O conhecimento universal -
por exemplo, o da matemática ou das ciências naturais -
certamente abrange algo onipresente, mas nunca a realidade
como um todo.
Bem, um novo erro poderia ser cometido: dar o salto do
conhecimento para outro conhecimento. Como se no limite
houvesse, cognoscível, um criador do mundo, uma
intervenção do criador na marcha do mundo, - para o
conhecimento, nada mais são do que tautologias gráficas para
o não-saber.
O mundo se revela sem fundo. Mas o homem encontra
em si mesmo o que não encontra em nenhum lugar do mundo,
algo incognoscível, improvável, nunca objetivo, algo que
escapa a toda ciência investigativa: a liberdade e tudo o que a
ela se relaciona. Neste ponto, não temos experiência de saber
algo, mas de ação. Nesse ponto, o caminho passa pelo mundo
e por nós mesmos e leva à transcendência.
A liberdade não pode ser demonstrada a quem a nega,
como as coisas no mundo podem ser demonstradas. E já que
na liberdade está a origem de nossas ações e de nossa
consciência de ser, seja o que for o homem, não

51
é apenas conteúdo de saber, mas fé. Como o homem tem
certeza de seu ser humano é uma característica fundamental da
fé filosófica.
Agora, a liberdade do homem é inseparável da
consciência da finitude do homem.
Vamos delinear brevemente as características
fundamentais: A finitude do homem é, em primeiro lugar, a
finitude de tudo o que é vital. Depende do seu ambiente
mundial, comida e conteúdo significativo; ele está entregue à
inexorabilidade da ocorrência natural muda e cega; Tem que
morrer.
A finitude do homem é, em segundo lugar, o fato de ele
depender de outros homens e do mundo histórico que é
produto da comunidade humana. Nada é seguro para ele neste
mundo. Os bens da fortuna vêm e vão. Na ordem humana
prevalece não só a justiça, mas a força de cada momento que
declara que seu capricho é o órgão da justiça, portanto, sempre
se baseia na mentira. O estado e a comunidade nacional podem
aniquilar os homens que trabalharam para eles a vida toda. A
única coisa que merece confiança é a fidelidade do homem na
comunicação existencial, mas ela não pode ser calculada, pois
o que se pode confiar aqui não é uma existência objetiva e
demonstrável no mundo. E o homem mais próximo pode
adoecer imediatamente, enlouquecer, morrer.
Em terceiro lugar, a finitude do homem está no saber, no
fato de que ele depende da experiência que lhe é dada,
especialmente da intuição que em nenhum lugar pode
prescindir do conteúdo sensorial. Ao pensar, não podemos
apreender mais do que o material da intuição que preenche a
forma do pensamento.
O homem toma consciência desta sua finitude pelos
critérios do não finito, e certamente pelo absoluto e do infinito:
O absoluto se torna real em sua resolução, cuja realização
o remete a outra origem da qual, em sua existência finita, é
conhecível pela investigação.
O infinito é tocado, embora não seja capturado,
principalmente

52
no pensamento do infinito, então no esboço de seu
conhecimento divino essencialmente diferente de seu
conhecimento finito e, finalmente, no pensamento da
imortalidade. O infinito incompreensível, mas do qual ele
adquire consciência, faz o homem ultrapassar sua finitude ao
adquirir consciência dela.
Graças à presença do absoluto e do infinito, a finitude não
só continua a ser para o homem o fato inconsciente de sua
existência, mas a luz da transcendência torna-se para ele a
característica fundamental de sua consciência de ter sido criado.
A finitude do homem, sem ser suprimida, foi quebrada.
E se, em consequência de sua independência, de seu
infinito, adquire a certeza de seu ser-si genuíno no
incondicionado de sua resolução diante de tudo que é finito no
mundo, esse infinito revela ao mesmo tempo um novo modo de
sua finitude. Essa finitude por meio da existência significa: o
homem, mesmo sendo ele mesmo, não pode se dever.
Originalmente, ele não está sozinho. Assim como ele não tem
sua existência no mundo por sua própria vontade, é como ele
próprio foi dotado de transcendência. Ele constantemente tem
que se ver dotado de volta a si mesmo, se não quiser sentir falta
de si mesmo. Se o homem se sustenta internamente diante das
contingências da sorte, se resiste imperturbável até na morte,
não é por si mesmo. Mas o que o ajuda nisso é de natureza
diferente de todos os socorros do mundo. A ajuda transcendente
é revelada a ele apenas na circunstância de ele poder ser ele
mesmo. O fato de estar apoiado em si mesmo deve-o a uma mão
que não pode agarrar - que vem da transcendência - e que só é
perceptível na própria liberdade do homem.
O homem como objeto de investigação e o homem como
liberdade somente adquirem certeza para nós de fontes
radicalmente diferentes. O primeiro se torna conteúdo de
ciência; a segunda, uma característica fundamental de nossa fé.
Mas se se pretende que a liberdade, por sua vez, se torne o
conteúdo do conhecimento e o objeto de

53
investigação, uma forma especial de superstição surge
imediatamente:
A fé encontra-se no caminho da liberdade, que não é uma
liberdade absoluta e vazia, mas é vivida como possibilidade de
sentir falta e doar-se. Somente por meio da liberdade
adquirimos a certeza da transcendência. Com a liberdade
certamente alcançamos um ponto de independência de todos,
mais precisamente por causa da consciência da subordinação
radical à transcendência. Bem, se estivermos, não é por nós
mesmos.
A superstição, ao contrário, surge no caminho que passa
pelo objeto, por algo como conteúdo da fé e, portanto, também
por um pretenso conhecimento da liberdade. Assim, a
psicanálise, por exemplo, e a pseudomedicina são uma forma
moderna de superstição, que visa fazer da liberdade humana
um objeto de investigação.
O fato de ter consciência de mim mesmo como homem é
ao mesmo tempo consciência de transcendência - é limitação
ou exaltação, é superstição no objetivo (e está ligada, portanto,
ao erro científico) ou fé na consciência do englobante (e,
portanto, ligado ao não saber, mas que significa realização)
A finitude como estigma da condição de criatura é uma
nota que o homem tem em comum com todas as existências
que vê ao seu redor. Mas sua finitude humana não é suscetível
de ser fechada como toda a existência animal se fecha.
Todo animal é realizado (acabado), mas também tem em
sua limitação sua consumação com o sempre repetido ciclo da
vida. Só se entrega quando acontece naturalmente que tudo
volta a se fundir e tudo volta a produzi-lo. Apenas a finitude
do homem é infinita. Somente no homem ele traz sua finitude
para a história, e somente nela deseja tornar-se o que pode ser.
A incapacidade de fechar é um sinal de sua liberdade.
E essa impossibilidade de se consumar, com sua
consequência de busca e tentativa ilimitadas (em vez de vida
silenciosamente subordinada, inconsciente, em ciclos que se
repetem), é inseparável de seu conhecimento dela. De tudo
que vive,

54
o homem é o único que conhece sua finitude. Por
impossibilidade de se consumar, sua finitude é mais para ele do
que se revela no mero conhecimento do finito. Há no homem
um perdão, do qual surgem para ele um problema e uma
possibilidade. Ele está na situação mais desesperadora, mas de
tal forma que graças a esta circunstância sente o desejo mais
intenso de se elevar através de sua liberdade. Por isso, as
descrições do homem sempre o conceberam na mais
surpreendente contradição, o viam como o ser mais miserável e
mais sublime.
A proposição de que o homem é finito e não capaz de
consumação tem um caráter duplo. Tem um conteúdo de
conhecimento, vem de um conhecimento demonstrável do
finito. Mas em sua universalidade é um índice de um conteúdo
de fé, no qual surge a liberdade das missões humanas. A
experiência básica de sua essência, que vai além de toda
possibilidade de conhecer, une em uma sua impossibilidade de
consumação e sua possibilidade infinita, sua cadeia e sua
liberdade que irrompe.
Consciente de sua liberdade, o homem deseja se tornar o
que pode e deseja ser. Um ideal de sua essência é traçado.
Assim como o conhecimento faz com que o homem, como
objeto de investigação, se feche em uma imagem erroneamente
acabada, também sua liberdade é erroneamente colocada como
seu caminho para um ideal absoluto. Ele gostaria de se
emancipar de uma questão perplexa e confusa para chegar a
um universal que ele possa imitar em suas configurações
concretas.
Imagens do homem que passam por ideais que
gostaríamos de igualar existem em grande número. Não há
dúvida sobre a ação histórica desses ideais, sobre a realidade
dos tipos sociais. O ideal pode elevar-se ao indeterminado, até
se tornar a "grandeza" do homem, que é algo mais que o
humano do homem, no super-homem ou na negação do
homem.
Para a nossa consciência filosófica é decisivo que nos
convencamos da falta de verdade e da impossibilidade destes
caminhos. Foi Kant quem, da forma mais pura, o levou a

55
certeza. “Mas tentar realizar o ideal em um exemplo, isto é, no
fenômeno, digamos o sábio de uma novela ..., é contrário ao
sentido e pouco edificante em si mesmo, visto que os limites
naturais que o colocam em xeque a cada passo da completude
da ideia, eles tornam impossível qualquer ilusão nessa
tentativa, tornando assim o bem que está na ideia semelhante e
semelhante à mera fantasia. " (Crítica da razão pura, ed. B.
598).
Assim como o homem desaparece para nós quando, como
objeto de investigação, é apresentado como entendido como um
todo ou compreensível na teoria racial, na psicanálise ou no
marxismo, nas imagens do ideal do homem desaparece de nós a
missão de ser-homem.
Algo fundamentalmente diferente do ideal é a ideia. Na
realidade não existe ideal, mas existe a ideia de homem. O ideal
afunda, a ideia sai na frente. Os ideais passam a ser uma
espécie de diagramas de ideias, sinais de orientação. Esta é a
verdade dos grandes esboços filosóficos dos nobres da China,
do sábio dos estóicos. Eles convidam a subir, eles não
apresentam uma perfeição.
Algo diferente é também a orientação do homem
historicamente determinado, admirado e amado. Certamente
perguntamos: o que ele diria nesse caso, que atitude ele
adotaria? E com ele começamos uma discussão animada, sem
por isso considerá-lo simplesmente verdadeiro, como o modelo
incondicionalmente digno de ser imitado. Pois todo homem é
um homem e, conseqüentemente, no infinito e na imperfeição e
até mesmo no extravio.
Todos os ideais do homem são impossíveis porque o
homem não pode alcançar a perfeição. Não pode haver homem
perfeito. Isso tem consequências filosóficas essenciais.
1. O valor peculiar do homem não está na espécie ou tipo
de que ele se aproxima, mas no indivíduo histórico
irrepresentável e insubstituível. O valor de cada homem
individual só é considerado intangível quando os homens não
são mais considerados como material substituível que pode ser
cunhado por um universal. O tipo social e profissional ao qual
nos aproximamos, é por nós adotado

56
apenas por meio de nosso papel no mundo.
2. A ideia da igualdade de todos os homens é obviamente
falsa no que diz respeito à sua natureza e aptidão como
entidades psicologicamente investigáveis - é também falsa
como uma realidade de uma ordem social em que há, no
máximo, oportunidades iguais e direitos iguais perante a lei.
A igualdade essencial de todos os homens só se encontra
naquela profundidade em que cada um, partindo da liberdade,
tem o caminho aberto para chegar a Deus através da sua vida
moral. É a igualdade de valor que nenhum conhecimento
humano pode fixar ou objetivar, do indivíduo como uma alma
eterna. É a igualdade de aspirações e da sentença eterna em
virtude da qual algo como um lugar no céu ou no inferno é
atribuído a ele. Essa igualdade significa: Respeito por cada
homem, um respeito que proíbe qualquer homem de ser tratado
apenas como meio e não ao mesmo tempo como um fim em si
mesmo.
O perigo do homem é estar seguro de si, como se já fosse
o que pode ser. A fé que lhe permite encontrar o caminho para
sua possibilidade torna-se então um ter que fecha o caminho,
seja por arrogância de sua satisfação moral consigo mesmo, seja
por orgulho de sua natureza inata.
Da postura estóica de viver de maneira que o homem se
sinta satisfeito consigo mesmo, à conformidade consigo mesmo
que Kant atribui ao homem que age moralmente, prevaleceu
uma autossatisfação arbitrária contra a qual São Paulo e Santo
Agostinho, e até o próprio Kant, aduziu o fato de o homem estar
corrompido em suas raízes.
O essencial é que o homem como existência em sua
liberdade se sinta dotado de transcendência. Então a liberdade
do ser-homem se tornará o núcleo de todas as suas
possibilidades de ser guiado pela transcendência, pelo Uno, à
sua própria unidade.
Esse guia é radicalmente diferente de qualquer outra
direção no mundo, pois não se torna objetivamente

57
unívoco; coincide com a libertação total do homem. Bem, isso
só é alcançado indo além da liberdade de ter certeza de si
mesmo. A voz de Deus encontra-se naquilo que, por convicção
pessoal, assimila o indivíduo aberto à tradição e ao meio. A
voz de Deus torna-se perceptível na liberdade de convicção
por si mesma, sem ter outro órgão para se comunicar com o
homem. Quando o homem está determinado do fundo, ele
acredita que está obedecendo a Deus, sem saber com garantia
objetiva o que Deus quer.
A orientação é operada por meio do julgamento do
homem sobre suas próprias ações. Este julgamento atrapalha e
impulsiona, corrige e confirma. Mas, na verdade, o homem
nunca pode como um todo e definitivamente confiar apenas
em si mesmo para o julgamento que faz sobre si mesmo. Peça
o julgamento de seus colegas para obter clareza na
comunicação. Mas o juízo decisivo não é, em última instância,
o dos homens essenciais para ele, embora este seja o único
realmente acessível. O decisivo seria o julgamento de Deus.
Conseqüentemente, a verdade do julgamento só será
alcançada no tempo pelo caminho que leva à própria
convicção, seja a reivindicação apresentada como
universalmente válida ou historicamente reivindicada.
A seriedade da obediência ao mandamento ético - aos dez
mandamentos - que na liberdade é considerada universal, está
ligada à escuta da transcendência justamente nesta liberdade.
Como, no entanto, a ação não pode ser suficientemente
deduzida do universal, a orientação de Deus na origem da
exigência histórica concreta pode ser ouvida mais diretamente
do que no universal. Mas essa audiência permanece duvidosa
em toda segurança; para ouvir a orientação de Deus, corre-se o
risco de errar, pois o conteúdo ainda é ambíguo e a liberdade
que consiste no conhecimento claro e inequívoco do que é
necessário nunca é completa. Ousar duvidar se realmente serei
eu mesmo, se realmente ouvi a direção da origem, nunca
cessa.

58
Essa consciência de ousadia continua a ser a condição da
liberdade progressiva ao longo do tempo. Exclui a segurança
na certeza, proíbe a generalização da demanda para todos e
acaba com o fanatismo. Mesmo tendo certeza da resolução, se
ela aparecer no mundo, ainda deve haver uma reserva. É
proibido ter certeza de si mesmo. A arrogância do
absolutamente verdadeiro destrói a verdade no mundo. Na
certeza, a humildade da questão remanescente é indispensável,
pois a partir de agora é sempre possível que tenha outro
aspecto. Na consciência clara, que nunca será suficientemente
clara, pode ter ocorrido um erro.
Só em retrospecto é possível se surpreender com o guia
incompreensível. E mesmo assim nunca teremos certeza; A
verdadeira orientação de Deus não se tornará nossa
propriedade.
Considerada psicologicamente, a voz de Deus não tem
outra expressão no tempo senão no julgamento que o homem
faz de si mesmo. Neste juízo, que pode existir repentinamente
como certo se nos empenharmos sinceramente, mesmo com a
maior cautela, na disputa das possibilidades, o homem encontra
o juízo de Deus, embora nunca de forma definitiva e sempre
sujeito a uma dupla interpretação. Mas apenas em momentos
altos se torna perceptível. Deles e para eles vivemos.
A vida do homem que pensa é uma vida que filosofa.
Portanto, filosofar pertence ao homem como homem. Esta é a
única entidade no mundo a quem o ser é revelado por meio de
sua existência. Ele pode não mais ser percebido na existência
como tal, que ele não está satisfeito com o gozo da existência.
Ele vai além de toda realidade da existência que parece perfeita
no mundo. Como homem, ele só se reconhece real quando vive
francamente para estar junto, no mundo com transcendência.
Afinal, ao assumir sua existência, ela se lança à existência, pois
no mundo não pode ser entendida como mero resultado de uma
ocorrência universal. Conseqüentemente, ele ultrapassa sua
existência e o mundo até o fundo da existência

59
e mundo, ali onde adquire certeza de sua origem, algo como
naquele co-aparecimento com a criação. Não nasceu na origem
e não está na meta. Procure o eterno em sua vida entre a
origem e a meta.
A descrença faz com que o homem afunde em um dos
muitos estados da vida, na rendição às necessidades e
inescapabilidades conhecíveis, ao pessimismo do fim, à
consciência periciosa. Ele se afoga em seu fingido ser.
Em vez disso, a fé filosófica é a crença do homem em sua
possibilidade. Sua liberdade respira nela.

60
QUARTA CONFERÊNCIA

FILOSOFIA E RELIGI ÃO
Ao longo dos séculos, filosofia e religião são aliadas ou
inimigas. Eles caminham juntos, originalmente em mitos e
cosmovisões - mais tarde na teologia, desde que a filosofia seja
mostrada com a roupagem da teologia, como em outras
ocasiões ela aparece com a roupagem da poesia e mais
freqüentemente com a da ciência.
Mais tarde, porém, quando se separam, a religião torna-se
para a filosofia o grande mistério que ela não pode
compreender. Torna a adoração, a reivindicação de revelação, a
reivindicação de poder de uma comunidade de base religiosa,
sua organização e sua política, e a atribuição de significado que
a religião confere a si mesma em um objeto de investigação.
Nesta posição inquiridora, o germe da luta já foi
encontrado. Do lado filosófico, a luta só é possível, como luta
pela verdade, exclusivamente com meios espirituais.
Religião e filosofia não são nenhuma das concreções
unívocas das quais podemos partir como pontos fixos para
proceder a um estudo comparativo, antes ambas estão em
transformação histórica, mas ambas são sempre entendidas
com referência à verdade eterna, cuja vestimenta histórica para
um tempo se esconde e transmite

61
a verdade. Não é da minha conta falar da única verdade
religiosa eterna. A verdade filosófica é a philosophia perennis,
que ninguém pode reivindicar para si e da qual, entretanto,
todo aquele que filosofa deve se preocupar e que está presente
em todos os lugares onde realmente filosofa.
Não há ponto de vista fora da antítese da filosofia e da
religião. Nessa polaridade, um de nós já está de um lado e fala
do outro em um ponto decisivo sem experiência própria.
Conseqüentemente, você também pode esperar que eu seja de
alguma forma cego e interprete mal. Hesito, mas não posso me
abster. Essa conversa de religião sem estar nela com a própria
essência é discutível, mas também é indispensável como
expressão da própria deficiência evidente, como busca da
verdade e até como preservação da mesma fé religiosa entre as
questões que assim surgir. Para a filosofia, a religião não é o
inimigo, mas algo que essencialmente importa para ela e a
mantém inquieta.
Mas hoje nos encontramos em uma situação que
caracterizo com algumas palavras de sotaque pessoal. Como a
religião é tão essencial, a consciência da deficiência me
deixou ansioso para ouvir o que é dito da fé religiosa. Uma
das dores que tenho sentido em minha vida de esforços pela
verdade, é que na discussão com os teólogos eles cessam em
pontos decisivos, se calam, proferem uma frase
incompreensível, mantêm algo absolutamente, persuadem com
gentileza e gentileza, sem tendo feito isso, realmente
apresentam o que foi dito antes - e sem dúvida, finalmente,
perdem todo o interesse real, pois, por um lado, eles estão
certos de sua verdade, assustadoramente seguros, e, por outro,
parecem convencidos de que é não vale a pena se preocupar
com isso, nós que parecemos homens teimosos para eles. Mas,
para conversar, você realmente precisa ouvir e responder; Não
é possível calar-se ou evitar questionamentos e, acima de tudo,
é necessário que toda afirmação de fé (que afinal é formulada
em linguagem humana, se dirija a objetos e seja uma
exploração do mundo) possa ser recolocada em

62
questão e examinada, não apenas externamente, mas
internamente. Quem tem a posse definitiva da verdade não
pode mais falar bem com os outros - interrompe a
comunicação autêntica em favor do conteúdo em que acredita.
Só olhando alguns pontos de vista e de forma insuficiente
posso resolver o grande problema. Eu faço isso para mostrar a
fé filosófica original.
Uma caracterização da religião paralela à filosofia tem as
seguintes características:
A religião tem um culto, está associada a uma
comunidade humana peculiar originada de um culto e é
inseparável do mito. A verdadeira referência do homem à
transcendência na forma de um elemento de santidade que se
oferece ao mundo como algo demarcado do profano ou não
sagrado é sempre inerente à religião. Quando esse elemento
não existe ou é rejeitado, a peculiaridade da religião
desaparece. No que se refere ao conhecimento histórico, toda a
humanidade vive religiosamente, indicação que não se deve
descurar a verdade e a essencialidade da religião.
A filosofia, por outro lado, como tal, não tem nenhum
culto, nenhuma comunidade dirigida pelo sacerdócio,
nenhuma santidade no mundo separada do resto da existência
do mundo. Para ela, o que a religião de alguma forma localiza
pode estar presente em todos os lugares e em todos os
momentos, nasceu para o indivíduo em relações livres, não
sociologicamente reais, sem a garantia de uma comunidade. A
filosofia carece de ritos e mitos originalmente reais. Ao
transformar-se a todo o momento, é objeto de apropriação na
tradição livre. Embora apropriado ao homem como homem,
continua a ser um assunto individual.
A religião tende predominantemente para a encarnação
viva: a filosofia apenas para a certeza eficiente. Para a religião,
o deus da filosofia é pobre, desbotado, vazio; com desdém ele
descreve a atitude filosófica como "deísmo". Para a filosofia,
as encarnações religiosas são uma aproximação enganosa e
errada. A religião olha de soslaio para o deus da filosofia como
uma mera abstração:

63
a filosofia desconfia das imagens religiosas de Deus,
considerando-as a sedução de ídolos, por maiores que sejam.
Mas o conteúdo da filosofia e o da religião têm pontos de
contato, a ponto de parecerem coincidir, embora suas
manifestações continuem se repelindo, como se vê nos
exemplos da ideia de Deus, da oração. e de oração, revelação.
A ideia de Deus: No Ocidente, a ideia de um Deus surgiu
na filosofia grega e no Antigo Testamento. Em ambas as
ocasiões, uma grande abstração foi operada, mas de maneiras
totalmente diferentes.
Na filosofia grega, o monoteísmo surge como uma ideia,
é exigido por critérios éticos, sua certeza é alcançada com
serenidade. Não é imposto às massas humanas, mas aos
indivíduos. Seu resultado são personagens de alta humanidade
e uma filosofia livre, não uma forma de comunidade que age.
Pelo contrário, no Antigo Testamento, o monoteísmo
surge na paixão da luta pelo Deus puro, verdadeiro e único. A
abstração opera, não pela lógica, mas no ser afetado por
imagens e encarnações que mais escondem Deus do que o
mostram, e então, opondo-se às seduções, através do culto, das
festas dionisíacas e da ideia de prestação de serviço na
oferenda. Contra os Baales, contra a religião mundana, sua
felicidade e seus festivais, sua embriaguez, sua inquietação e
satisfação, sua indiferença moral, chega-se à idéia pura de Deus
como serviço ao único Deus vivo. Esse Deus verdadeiro não
tolera imagens ou símiles, não valoriza adoração ou oferendas,
templos ou ritos, ou leis, mas exclusivamente por agir com
retidão e amar o próximo (Miquéias, Isaías, Jeremias). Essa
abstração atua como um niilismo contra todos os seres
mundanos, mas vem da abundância de consciência, para a qual
o criador sobrenatural Deus se mostrou com suas exigências
éticas. Essa abstração não se baseia em ideias evolutivas, mas
no verbo proferido por Deus, no próprio Deus, vivenciado no
verbo que o profeta transmite como verbo de Deus. O poder

64
da realidade de Deus na consciência dessa existência profética,
e não da força de uma ideia, que deu origem a este
monoteísmo. Daí o espantoso que, por conteúdo ideológico, o
monoteísmo grego e o do Antigo Testamento coincidem,
embora sejam radicalmente diferentes pelo modo de presença
de Deus. É a diferença entre filosofia e religião, e doravante
entre a divindade e Deus - a da transcendência do pensamento
e do Deus vivo: o Único da filosofia não é o Único da Bíblia.
Mas quando reina a clareza filosófica, a questão é se para
os profetas só foi possível daquela forma que sua incomparável
certeza na fé, que ainda hoje nos leva embora, porque viviam
na ingenuidade ideológica antes de todo filosofar, sem
preocupação com a filosofia, e conseqüentemente, não
perceberam que no "verbo" pronunciado diretamente por Deus
para todos, ainda subsistia um resquício da corporeidade da
realidade - daquela imagem e símile que, afinal, lutavam por
princípio.
O monoteísmo grego e do Antigo Testamento levaram
juntos à ideia ocidental de Deus. Eles interpretaram um ao
outro. Isso foi possível porque a fé dos profetas realizou uma
abstração análoga à abstração filosófica. A fé profética supera
a ideia filosófica porque vem da experiência imediata de Deus.
Mas fica atrás da filosofia em clareza ideológica; portanto, em
sucessivas formações religiosas, já na própria Bíblia, ela se
perde constantemente.
A oração: A adoração é um ato da comunidade; a oração
é a do indivíduo em sua solidão. Existe uma adoração
universal, a oração se torna historicamente visível em alguma
outra parte, assim, no Antigo Testamento, somente em
Jeremias ela começa a aparecer de forma decisiva. A formação
espiritual da liturgia, na qual se realiza o culto, está repleta de
textos chamados orações, porque através deles a divindade é
invocada, exaltada e rezada. Mas o essencial deles são as
formas fixas, imutáveis, vindas de um passado imemorial, que
se de fato surgiram

65
ao longo das gerações, mais tarde foi sentido que eram algo
perene. Em parte, eles perderam há muito seu significado, são
realizados como um mistério ou são transformados ao atribuir
um novo significado a eles. A oração, ao contrário, é individual,
existencialmente presente. Como acessório do culto, o
indivíduo o realiza de formas fixas e nele permanece totalmente
dentro da religião. De uma forma verdadeiramente pessoal e
original, a oração está, no entanto, no limite do filosofar e
torna-se filosofia no momento em que qualquer referência
utilitária à divindade e à vontade real de influenciá-la
desaparece. É um salto entre a corporeidade da relação pessoal
com o Deus pessoal - como origem da religião - e a flutuação
da contemplação filosófica, em que a princípio só há entrega e
gratidão, mas depois inspira no homem a certeza de que trilhar
em terreno firme. Esta contemplação nada alcança no mundo,
mas apenas no próprio homem. A certeza especulativa, onde se
tornou genuína contemplação, é como uma única oração. Se
originalmente esta contemplação já figurava no todo que se
fazia com o caráter de religião, agora já é diferente da ação
religiosa e sua independência se tornou possível.
A revelação: as religiões são fundadas na revelação, clara
e conscientemente hindu e bíblica. A revelação é a
manifestação direta de Deus localizada no tempo, válida para
todos os homens, por meio de palavra, demanda, ação,
ocorrência. Deus dá seus mandamentos, cria comunidade, funda
a adoração. Assim, o culto dos cristãos foi fundado pela obra de
Deus com a instituição da Ceia do Senhor. Sendo a revelação a
origem de um conteúdo religioso, não vale em si mesma, mas
em uma comunidade - nacional, urbana, eclesiástica - que é sua
autoridade e garantia presente.
Em relação aos esforços para a ideação filosófica de Deus,
pensamento esse em que constantemente parece que o próximo
passo tem que tirar o que foi dado com o primeiro, ouvimos a
frase: toda ideação de Deus é em vão, só Deus conhece e só
pode conhecer o homem por

66
revelação. Deus deu a lei, enviou os profetas e ele mesmo veio
na forma de um servo para nos redimir com sua crucificação.
Mas o alívio que se comunica como tal precisa ter uma
figura no mundo. Conforme afirmado, ele sucumbe à finitude
e até mesmo à compreensibilidade. Na linguagem, o que está
nela é invertido. A palavra do homem não é mais a palavra de
Deus. O que interessa ao homem como homem na revelação
torna-se o conteúdo da filosofia e, como tal, é válido sem
revelação. A religião enfraqueceu, perdeu sua substância? -
então esse processo é chamado de secularização. Ou estamos
diante de uma purificação, uma reessencialização original, um
aprofundamento e precisamente uma substanciação? Parece
que ambos os processos existem. Diante do perigo da religião
ser esvaziada pelo efeito da iluminação, existe a possibilidade
de uma consciência genuína do homem.
Desde os tempos antigos, a religião foi repetidamente
rejeitada pelos filósofos. Vamos listar uma série de críticas
típicas e tentar atribuir a cada uma delas os limites que
correspondem a ela.
a) "As muitas religiões são a prova de que nenhuma delas
é verdadeira, porque não, existe mais de uma verdade."
Essa reprovação é sustentada apenas quando as
declarações de fé são tratadas como se fossem conteúdos de
conhecimento, mas não com respeito à própria fé religiosa.
Esta tem sua manifestação histórica, e sua expressão não deve
ser confundida com o conteúdo da própria vida de fé que nela
fala: Una religio in rituum varietate (Cusano).
b) "Até agora, as religiões sancionavam todo o mal,
faziam ou justificavam o mais horrendo, violência e mentiras,
sacrifícios humanos, cruzadas, guerras de religião."
É difícil equilibrar os efeitos benéficos e maléficos das
religiões. Qualquer julgamento de valor precisa ser apoiado
por uma investigação das realidades históricas. A reprovação
deve ser completada, indicando os efeitos benéficos das
religiões, o aprofundamento da alma, o

67
ordenamento de coisas humanas, atividade caritativa de grande
estilo, atribuição de conteúdo à arte e ao pensamento.
Se for apresentada a tese de que boas relações entre os
homens, paz e ordem, são mais fáceis de alcançar por meio da
razão do que por meio da religião; a justiça é mais eficaz do
que a fé e a moralidade prática mais do que a religiosidade; o
que é bom na humanidade é o trabalho da razão e da ciência,
não da religião, - a isso deve ser respondido que a religião não
exclui a razão, e que até agora a religião tem efetivamente
realizado a mais ordenada, sustentável e plena de conteúdo,
precisamente com a ajuda da razão, não por instruções diretas,
mas por homens crentes, sua seriedade e confiança. Em vez
disso, a tentativa de se basear exclusivamente na razão - no
sentido de compreensão - foi rapidamente seguida pelo caos
niilista em todas as experiências históricas até então
conhecidas.
c) “A religião causa falsos medos. As ilusões atormentam
as almas. Os tormentos do inferno, a ira de Deus, a realidade
incompreensível de um inexorável darão origem ao terror,
especialmente no leito de morte. Liberdade de religião
significa tranquilidade, porque é liberdade de falsas ilusões ”.
Essa reprovação é correta quando se trata de conteúdo
supersticioso específico. Mas é falso se tiver a intenção de
afetar o conteúdo do próprio medo. Se o medo do inferno
constituiu para inúmeras almas a razão de escolher o bem em
vez do mal, sem dúvida que raramente este medo não passa de
medo de uma suposta realidade, mas antes sob a figura da
representação do inferno podem tornar-se compreensíveis.
razões existenciais profundas para escolher a própria essência.
O medo do ser genuíno é uma das características fundamentais
do homem desperto. A paz que a negação do inferno
proporciona não é suficiente; deve surgir uma confiança
positiva, uma disposição fundamental da alma, posterior à boa
vontade, que sempre superará o

68
medo. Quando a angústia desaparece, o homem não é mais que
superficial.
d) “As religiões promovem uma hipocrisia universal.
Ao colocarem no início o incompreendido, a ausência de
pensamento, o absurdo, afastando-o de qualquer discussão,
criam um estado fundamental de obediência surda. Quando a
questão é levantada, a violência é feita contra o próprio
entendimento e essa falta de sinceridade é considerada um
mérito. O hábito de não perguntar também facilita a falta de
veracidade em outras áreas. As contradições de pensamento e
comportamento são ignoradas. Representações errôneas do que
é originalmente verdadeiro são permitidas porque não é
perceptível que sejam. A fé religiosa e a falta de verdade têm
uma afinidade. "
Contra esta objeção é apenas necessário dizer que na
origem da religião não é necessário que exista o que aparece no
curso de seu desenvolvimento. Embora, de acordo com J.
Burckhardt, a medida de falta de crítica de que sofrem os
homens religiosamente criativos dificilmente possa ser
compreendida por nós, isso não significa que a falta de crítica
implique falta de veracidade. Limites e enigmas que o
entendimento tende a esconder tornam-se imediatamente
presentes na religião, mesmo quando se trata de uma figura
mítica, com tendência a se transformar imediatamente nesses
conteúdos supersticiosos.
e) “As religiões separam no mundo como santo o que é
de fato mundano e só pelo homem foi feito. O aumento do
misterioso tem como consequência a desvalorização do resto do
mundo. A alta veneração, associada ao religioso, leva a infringir
a veneração em geral quando a religião não a impõe. A
veneração especificamente fixada não é mais a vasta veneração
que fundamenta tudo. Essa limitação implica exclusão e
aniquilação ”.
Esta censura está longe de ser verdadeira para todo
homem religioso; ao contrário, a religião é capaz de colocar o
mundo inteiro em sua luz e projetar um brilho de sua
autenticidade sobre toda a realidade. Mas essa censura é apenas
de muitas realizações da religião, mesmo

69
quando talvez essas conquistas possam ser condenadas pelo
mesmo religioso que as considera um desvio.
Todas essas dissertações sobre religião não afetam nada
decisivo. Essas censuras são apenas sobre afeto, não religião,
mas desvios na religião.
Além disso, apenas religião e religiões foram discutidas,
não o que é apresentado e proclamado como a única verdade da
revelação, fingindo ter tal caráter e se opondo a ser classificado
como uma de tantas religiões. Este é o caso de igrejas e seitas
provenientes inteiramente da vasta religião bíblica à qual todos
pertencemos, judeus e cristãos, cismáticos gregos, católicos e
protestantes, e talvez até mesmo o islamismo.
Neste caso, duas proposições que eu gostaria de
substanciar (uma negativa e uma positiva) emergem da fé
filosófica:
1. Na religião bíblica está contido algo que aparece em
todas as suas ramificações, embora possa não ser um elemento
necessário dela nem pertencer a ela para sempre: a
reivindicação de exclusividade. Essa afirmação, tanto em seu
motivo quanto em suas consequências, é uma calamidade para
nós, homens. Devemos lutar pela verdade e por nossas almas
contra esse fingimento fatal.
2. Filosofamos com base na religião bíblica e nela
percebemos verdades insubstituíveis.
Ambas as proposições são importantes para nós. Ambos
estão relacionados com a questão que hoje se coloca como
decisiva para os destinos do Ocidente: que destino terá a
religião bíblica?

CONTRA A PRETENSÃO DE EXCLUSIVIDADE


O conteúdo da fé não é considerado apenas como verdade
absoluta, mas como exclusivo. O cristão não diz: que
é o meu caminho, mas: esse é o caminho, e invocai a palavra de
Cristo, filho de Deus e de Deus: Eu sou o caminho, a verdade

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e a vida. Aquele que crê em Cristo pode pensar em si mesmo:
Você é o sal da terra; Você é a luz do mundo.
É possível levantar objeções como as seguintes: Se
Deus pode ter os homens como filhos, é provável que seus
filhos sejam todos homens e não apenas alguns ou apenas um.
A afirmação de que somente aqueles que crêem em Cristo
terão a vida eterna não convence, porque fora do Cristianismo
também existem homens de alta nobreza e de alma pura; Seria
um absurdo perdê-los, principalmente quando comparados a
personagens humanamente duvidosos, dificilmente amáveis,
que encontramos entre os maiores cristãos que atuaram na
história. A conversão íntima do homem de seu capricho à
abnegação ilimitada não ocorre apenas no Cristianismo. Mas
todas essas objeções não afetam as entranhas.
Em qualquer lugar do mundo que os homens
apreendam uma verdade da fé, essa verdade é de valor
absoluto para eles. Geralmente, porém - fora do mundo bíblico
- eles não excluem por essa razão que para os outros existe
outra verdade. Filosoficamente, essa atitude geral dos homens
é ao mesmo tempo objetivamente correta. Isso exige uma
reflexão sobre uma diferença fundamental que existe no
sentido da verdade (sentido a partir do qual partimos de Bruno
e Galileu).
Quando agimos absolutamente porque acreditamos
absolutamente, não há razão ou propósito suficiente para que o
ato seja considerado adequado, isto é, compreensível pelo
entendimento. O absoluto não é universal, mas histórico na
vivacidade impenetrável, que fica clara, da presente obra. No
fundo, é inconsciente, não importa o quanto possa ser
conhecido e dito a partir dele. É insubstituível e, portanto,
único a cada vez, mas talvez para outros sirva não apenas de
orientação, mas de protótipo para reconhecer o que é próprio
que, embora diferente no fenômeno histórico, coincide na
eternidade. O que é verdade historicamente, ex-
sistencialmente, é certamente absoluto, mais no seu ser
formulado e no seu fenômeno não é necessário que seja
verdade para todos.

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Vice-versa: o que é universalmente válido para todos
(como as certezas científicas e todas as do entendimento),
precisamente por isso não é absoluto, mas nessas condições
será verdadeiro para todos e em geral no mundo, colocando-se
de um certo ponto de vista sujeito a um certo método. Essa
certeza será obrigatória para todos aqueles cujo entendimento
a compreende. Mas é relativo ao ponto de vista e modo de
pensar diante dos quais é mostrado. É ex-sistencialmente
indiferente porque é finito, particular, objetivamente
obrigatório, pois um só homem não pode e não deve morrer.
Em uma palavra: o caráter absoluto da verdade histórica
implica a relatividade de qualquer uma de suas afirmações e
formas de manifestação historicamente finitas. A validade
universal da certeza cognitiva das afirmações implica a
relatividade dos pontos de vista e métodos que lhe servem de
fundamento. Os conteúdos de fé assertiva não devem ser
tratados como certezas universais; o absoluto de se embeber
do verdadeiro na fé é algo originalmente diferente da
apercepção da validade universal das certezas sempre
particulares do conhecimento. O absolutismo histórico não é a
validade universal de sua manifestação na palavra, dogma,
culto, rito ou instituição. É necessário que haja uma confusão
de antemão para que a reivindicação da exclusividade de uma
verdade de fé seja possível.
Já é uma deturpação tratar o conhecimento científico
universalmente válido como um absoluto no qual podemos
viver; espere da ciência o que ela nunca pode dar de si mesma.
É verdade que nossa veracidade exige que não evitemos o que
é obrigatório para o conhecimento, mas que aceitemos sua
validade irrestrita; mas exigir para o seu conteúdo aquilo que
só o conteúdo metafísico pode dar (a consciência da satisfação
do ser, da paz do ser), é como um engano que, em vez da
plenitude do ser, acaba por oferecer um vau.
Mas uma fatalidade é então a deturpação oposta: a
transformação do caráter absoluto da resolução existencial em
um conhecimento da verdade que pode ser formulado em uma
demanda,

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ou a distorção do absoluto da fé, historicamente subordinada, em
uma verdade universalmente válida para todos.
A consequência de tal deturpação é a auto-ilusão sobre o
que realmente somos e queremos, é a intolerância (não aceitar
como válido qualquer coisa que não seja suas próprias
afirmações transformadas em dogma) e incapacidade de se
comunicar (não ser capaz de ouvir os outros, não admitir
sinceramente que somos questionados). Em última análise, sob a
máscara de tal vontade de verdade distorcida, os impulsos ex-
sistenciais agem como a vontade de poder, a crueldade, o desejo
de destruição. Então, sob o pretexto de lutar pela verdade em
uma autojustificativa horrivelmente mentirosa, esses instintos
encontram sua satisfação mais ou menos franca.
Parece que apenas no reino da religião bíblica que a
exclusividade da verdade da fé apreendida é inerente à própria
fé, é deliberadamente formulada e levada a todas as suas
consequências. Para o crente, esse pode ser um novo estigma
justamente pela credibilidade de sua fé. Ao contrário, a
compreensão filosófica vê não apenas a falta de verdade
resultante da confusão fundamental nessa crença, mas as
consequências horríveis.
Um exemplo de religião bíblica e cristianismo com sua
afirmação de verdade absoluta para todos. Sabendo o quão
extraordinário o Cristianismo fez, as altas figuras humanas que
viveram em sua fé e graças a essa fé, não podemos deixar de nos
rebelar quando vemos que essa deturpação fundamental teve más
consequências na história que foi encoberta com as vestes da
santa verdade absoluta.
Vamos dar uma olhada em algumas consequências dessa
reivindicação de exclusividade. Já no Novo Testamento, Jesus,
que não oferece resistência e profere o Sermão da Montanha,
pronuncia, no entanto, estas palavras: Não vim trazer a paz, mas
a espada. A alternativa surge em segui-lo ou não: quem não está
comigo, está contra mim.
A isso o comportamento de muitos crentes cristãos
respondeu

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na história. De acordo com a ordem de redenção planejada por
eles, todos os homens que viveram antes de Cristo ou sem
Cristo estão perdidos. As muitas religiões são soma de não-
verdades ou, no máximo, de verdades parciais; aqueles que os
seguem são pagãos. Eles devem renunciar à sua religião e se
converter à fé em Cristo. A missão universal não se limitou a
proclamar essa fé a todos os povos com todos os meios de
propaganda, mas sempre acalentou no fundo a vontade de
impor essa fé quando não era aceita voluntariamente (coge
intrate). No mundo, medidas de aniquilação são tomadas,
cruzadas são lançadas. As seitas cristãs travaram guerras de
religião entre si. A política passa a ser o meio utilizado pelas
Igrejas.
Desse modo, a vontade de potência torna-se um fato
fundamental daquela realidade religiosa cujas origens nada
tinham a ver com o poder. A reivindicação de dominação
universal é uma consequência da reivindicação de
exclusividade da verdade. No processo de secularização - isto
é, de uma preservação profana do conteúdo bíblico pela
supressão de sua fé - o fanatismo dos céticos continua a ser
influenciado pela origem bíblica. As posições ideológicas
secularizadas têm muitas vezes nas culturas ocidentais aquele
traço de absolutismo, de perseguição a outras ideologias, de
seita agressiva, de interrogatório inquisitorial de outrem,
sempre como consequência de se acreditar no direito de
exclusividade da verdade tida como absoluta por aquele que
sustenta isso.
Diante de toda essa realidade, a fé filosófica não tem
outra perspectiva senão a idéia, difícil de aceitar, de que contra
o colapso das comunicações e contra a proibição da razão,
admitida apenas com condições, falha a melhor vontade para
chegar a um franco fracasso.
Não entendo que haja alguém que possa se manter neutro
diante da reivindicação de exclusividade. Isso seria possível
caso a intolerância pudesse ser tratada como se fosse de fato
tão pouco perigosa quanto uma anomalia bizarra. Mas o
oposto acontece com

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pretensão de exclusividade de fundamento bíblico, que pela
natureza de sua essência aspira à reivindicação de sempre criar
instituições poderosas de novo e está constantemente
aguardando a ocasião para reacender as fogueiras para os
hereges. Isso é inerente à reivindicação de exclusividade em
todas as formas de religião bíblica, embora haja muitos crentes
que pessoalmente não sentem propensão a usar a violência ou
aniquilar aqueles que acreditam serem ímpios.
Visto que a intolerância contra a intolerância (mas apenas
contra ela) é inevitável, a intolerância contra a reivindicação de
exclusividade é necessária no caso em que não se limite a
proclamar uma fé em relação a outras, mas procure impô-la por
lei, pela escola obrigatória, etc.
Muito diferente é a fé cristã que se emancipa da pretensão
e das consequências da exclusividade. Uma das questões
colocadas em nosso tempo é se o declínio da fé cristã - o que de
forma alguma significaria o fim do Cristianismo como religião
bíblica - constitui apenas um estado de baixo nível transitório
ou o resultado de uma mudança definitiva na história mundial .
Parece que hoje cada vez menos homens acreditam que Jesus é
o único filho de Deus, o único mediador enviado por Deus. Isso
é difícil de provar. A fé ainda parece inspirar homens de alta
hierarquia pessoal. É uma questão que não pode ser respondida
de antemão, se a fé cristã poderia se manter transformada como
fator da religião bíblica, desde que emancipada do estigma da
exclusividade. O que teria que significar, então, é uma questão
interna da religião bíblica, se, partindo de sua vasta realidade
como um todo, ela conseguir absorver novamente aquela fé
absolutizada que dela saiu.
A reivindicação de exclusividade é encontrada na fé
cristã, na fé da lei judaica, na religião nacional e no Islã. A
religião bíblica é a vasta esfera histórica da qual cada seita
adquiriu seu acento especial, independentemente de outros
conteúdos. A Bíblia em sua totalidade,

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Antigo e Novo Testamento, é um livro sagrado apenas para
seitas cristãs. Para os judeus, o Novo Testamento, criado por
judeus, não tem esse caráter, embora em seu conteúdo ético e
monoteísta não tenha menos importância para a seita judaica
do que para a cristã. Para o Islã, a Bíblia não tem o caráter de
um livro sagrado, embora essa religião tenha surgido da
mesma base religiosa sob a influência de judeus e cristãos.
A Bíblia e a religião bíblica têm como caráter
fundamental essencial para o filosofar que não apresentam
nenhuma teoria total, nada definitivo. A reivindicação de
exclusividade não é inerente à totalidade da religião bíblica,
mas apenas a algumas formulações que foram feitas nas
fixações do movimento histórico dessa religião. A
reivindicação da exclusividade é obra do homem, não se
fundamenta em Deus, que abriu muitos caminhos para o
homem chegar até ele.
A Bíblia e a religião bíblica são uma das bases da nossa
filosofia, uma orientação constante e uma fonte de conteúdos
insubstituíveis. A filosofia ocidental - quer você admita ou não
- está sempre com a Bíblia, mesmo que você a desafie. Por
fim, faremos algumas observações sobre o caráter positivo que
a Bíblia tem para o filosofar.

EM FAVOR DA RELIGIÃO BÍBLICA


As antíteses mais extremas racionalmente inevitáveis
são impostas na Bíblia:
1. Do sacrifício dos patriarcas à elaborada elaboração
dos holocaustos diários no templo de Jerusalém e ao
sacramento dos cristãos, a Bíblia percorre a religião do culto.
Dentro desta religião de culto há sempre uma nova tendência
para limitar e espiritualizar o culto - por exemplo, a abolição
das "alturas" (os muitos santuários que existiam no país) em
favor do culto único no único templo de Jerusalém - por
exemplo, também na transformação do culto autóctone

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e de raízes vivas no país em rituais abstratos oficiados por
padres servidores públicos - por exemplo, na sublimação do
culto ao passar dos holocaustos à Ceia do Senhor e à missa. É
sempre culto. Mas os profetas começaram a falar
veementemente contra o culto em geral (não apenas contra a
ideologia que desvaloriza o culto). Javé fala (Amós 5:21):
“Odeio, desprezo as vossas festas e não sinto o cheiro das
vossas solenidades. Não quero sua oferta nem olharei para o
sacrifício de seus bezerros cevados. Longe de mim o rebuliço
das tuas canções, não consigo ouvir o som das tuas harpas ”. E
Yahweh fala (Oséias 6, 5): "Eu quero amor, não sacrifícios, e
conhecimento de Deus em vez de holocaustos."
2. Do Decálogo e da Lei da Aliança às extensas leis de
Deuteronômio e Eclesiastes, a religião da lei se desenvolve. A
lei existe na revelação de Deus através do verbo do Thora, está
escrito. Mas Jeremias se volta contra a lei escrita em geral. "O
furador mentiroso dos escribas transformou isso em uma
mentira." (Jeremias 8, 8). A lei de Deus não está no preceito
fixo das Escrituras, mas no coração. “Quero celebrar uma nova
aliança, diz Yahweh. Vou colocar minha lei em seu intestino e
escrever em seu coração ”. (31, 33).
3. Desde a celebração da aliança no tempo de Moisés, a
consciência do povo eleito perpassa a Bíblia. Mas logo o
caráter do povo escolhido também é suprimido. “Israelitas, não
sou eu - diz Javé - como os etíopes? Não trouxe eu Israel do
Egito e os filisteus de Kaphtor e os arameus de Chir? " (Amos
9,7). Todas as cidades são da mesma categoria. Na diáspora,
Deus voltará a ser o Deus de Israel, mas ao mesmo tempo,
como criador do mundo, um Deus universal que existe para
todos os povos e que mesmo contra a mesquinhez de Jonas tem
misericórdia dos pagãos de Nínive .
4. Jesus se torna Deus Cristo. Mas de antemão a frase do
próprio Jesus se opõe a isso: Como você me chama de bom?
Ninguém é bom mais do que o único Deus. (São Marcos
10,18).
Esses exemplos existem em profusão. Pode dar uma
chance

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à afirmação de que na Bíblia, olhando o todo, tudo aparece na
polaridade. Ao final de toda fixação na palavra, será
encontrada a fixação oposta. Em nenhum lugar está a verdade
total, plena e pura - porque não pode estar na frase da
linguagem humana ou na figura determinada da vida humana.
Em nossa compreensão limitada, o outro pólo nos escapa a
cada vez. Só tocamos a verdade quando, claramente cientes das
polaridades, a abordamos por meio delas.
Conseqüentemente, a religião de culto e a religião profética
de puro "ethos" estão face a face; a religião da lei e a do amor;
o cerco em formas rígidas (para preservar no tempo o precioso
bem da fé) e a abertura para o homem que só acredita em Deus
e o ama; a religião sacerdotal e a religião depreciativa gratuita
do indivíduo; o deus nacional e universal; a aliança com o
povo escolhido e a aliança com o homem como homem; a
liquidação da culpa e do castigo nesta mesma vida (sorte e
infortúnio como medida de mérito e pecado) e a atitude de
Jeremias, de Jó, diante do mistério; religião da comunidade e
religião dos homens de Deus, videntes, profetas; religião
mágica e religião ética da ideia racional da criação. Além
disso, a Bíblia ainda inclui as principais oposições à fé: no
ceticismo da demonologia, da divinização dos homens, do
niilismo (este último no Eclesiastes de Salomão). A
consequência dessas polaridades dentro da Bíblia é que na
história subsequente todas as partes e tendências foram capazes
de invocar a Bíblia. As polaridades que ali se desenvolvem
sempre se repetiram: a teocracia judaica nas Igrejas cristãs, a
liberdade dos profetas nos místicos e reformadores, o povo
eleito em uma série de povos cristãos, comunidades e seitas
consideradas escolhidas. É sempre um remake, uma contra-
fixação, um ato vivo com base na religião bíblica. Como se o
destino do Ocidente tivesse sido prefigurar todas as
contradições da vida por meio da autoridade inabalável do
livro

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sagrado que serve de base, adquirindo assim liberdade para
todas as possibilidades e para a luta incessante pela elevação do
homem que se conhece dotado por Deus em sua ação livre.
Em seus textos, a Bíblia contém condensações espirituais
das realidades humanas mais primitivas e mais sublimes. É um
personagem que compartilha com os outros grandes
documentos primitivos da religião.
Mas já o bárbaro que está no início tem aquela grandeza
clássica que nos faz hesitar em qualificá-lo pura e simplesmente
como bárbaro. Eles falam sobre as coisas sem rodeios. Nessa
ingenuidade, notamos algo de rígido.
A Bíblia está saturada de uma 'paixão que produz um
efeito sem igual porque se refere a Deus. Deus está no fogo do
vulcão, no terremoto, na tempestade. Ele ascende ao
inacessível, faz dessas tempestades suas mensageiras, enquanto
ele mesmo se faz presente na brisa parada - assim como também
se eleva acima de todas as imagens acima daquelas
manifestações sensíveis até o criador absolutamente
transcendente, até o Deus universal irrepresentável, acima todas
as paixões, impenetráveis em seus desígnios, mas sempre
afetadas, por assim dizer, pelo "pathos" que o homem sabe que
está possuído.
Por estarem diante desse Deus, os homens da Bíblia se
tornam sobre-humanos, embora saibam que não são nada.
Aqueles homens de Deus e profetas sem armas são heróis que
se levantam contra o mundo ao redor - às vezes como
indivíduos contra todos os outros - porque se sentem servos de
Deus. O que já está evidente nas lendas de Moisés e Elias, e que
é totalmente real em Amós, Isaías e Jeremías, são na verdade
personagens como os via Michelangelo.
O heroísmo da Bíblia não é a teimosia da força que
repousa sobre si mesma. Em vez disso, o impossível é arriscado
pela ordem de Deus. O heroísmo é sublimado.
Mas a ideia de Deus, graças à qual isso é possível, pode
facilmente desviar-se de sua origem. Então conduz a uma

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desnaturalização do heroísmo na obstinação feia e desfigurada
de um espírito deturpador. Um esquizofrênico (Ezequiel) pode
- em uma ocasião - influenciar a história mundial.
Em vez disso, existem frases serenas e puras na Bíblia
que produzem o mesmo efeito que a verdade. Eles são raros e
enredados em um turbilhão das possibilidades mais extremas.
O excessivo, desenfreado, feio, é um elemento da Bíblia. Em
suma, um véu de sutileza e monotonia acaba por cobri-lo.
Ainda mais, as fontes que impediram a religião de Esdras de
terminar em uma rigidez mortal devem ter tido uma influência;
Em vez disso, o carvão de onde surgiram Jó, os Salmos, Rute e
o Eclesiastes.
Uma ligação constante da verdade da Bíblia com a
questão dos mitos, realidades sociológicas, cosmovisões
insustentáveis e conhecimentos pré-científicos primitivos,
tornam a manifestação da verdade bíblica, em si histórica,
apenas histórica. As roupas dessa manifestação podem ser
substituídas umas pelas outras já na própria Bíblia.
A autoconsciência filosófica está ausente na Bíblia,
exceto em germes infinitamente pequenos. Daí a força da ex-
sistência falante, a origem da revelação da verdade, - e os
constantes deslizamentos para lados opostos. Falta domínio de
um exame reflexivo. A paixão é corrigida com paixão.
A Bíblia é o repositório de um milênio de experiências
humanas marginais. Deles, o espírito do homem deixou claro
que ele estava seguro de Deus e, portanto, de si mesmo. Daí a
atmosfera incomparável da Bíblia.
Na Bíblia, o homem é visto nas formas fundamentais de
seu fracasso. Mais ainda, que precisamente no fracasso a
experiência de ser e de realização se torna aparente.
Na posição da Bíblia, o que importa é sempre
reconquistar dos desvios a verdade imutável: uma verdade que
nunca é objetivamente definitiva. A verdadeira transformação é
o retorno ao que a

80
originou. É preciso jogar fora os trajes que envelheceram e
criar outros adaptados ao presente. Mas o que é original não é
o que é inicial, mas o que é de todos os tempos, que é genuíno
e eterno. Foi entregue imediatamente por seu terno
temporário. Mas com o tempo, seu traje na figura da época, é
adequado à fé.
Mas não é necessário apenas jogar fora os trajes que
envelheceram, mas é preciso ir buscar de novo a originalidade
que existe nas fixações e distorções - é preciso recuperar as
tensões polares, - é preciso ensaiar o mais claramente possível,
a cada momento, o esclarecimento e a elevação do
eternamente verdadeiro.
1. Recuperação das fixações: A verdade da religião
bíblica é contrária às fixações que se operaram sobre si mesma
e que talvez um dia valeram historicamente, mas agora não
valem mais para uma reflexão filosófica. Se não me engano,
exemplos dessas fixações são a religião nacional, a religião da
lei, a religião específica de Cristo:
É necessário abandonar a religião nacional como ela
realmente existia nas fases primitivas da religião bíblica como
a religião israelita de Yahweh e como foi mais tarde repetida
nas tendências protestantes, especialmente nos calvinistas, já
que em seu cristianismo eles se apóiam mais partes do Antigo
Testamento do que no todo e no Novo Testamento.
É necessário abandonar a religião da lei na forma
adquirida em Esdras e Neemias, nas partes principais do
Eclesiastes e em muitas versões das escrituras do Antigo
Testamento: Judaísmo em sentido estrito. Com a religião da
lei é necessário abandonar a teocracia (hierocracia), criada e
realizada pelo judaísmo sob dominação estrangeira e
continuada ou sustentada pelas igrejas cristãs.
É preciso sacrificar a religião de Cristo, que vê Deus
em Jesus e funda o fato redentor sobre uma ideia imolatória do
Deutero-Isaías aplicada a Jesus.
Qualquer uma dessas três formas de religião é
limitada, embora todas venham de um elemento

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de verdade. Mas a religião nacional não pode ser absoluta, nem
pode formular qualquer outra verdade além daquela que é
manifestada em primeiro lugar. A religião da lei exterioriza a
profundidade da ideia da lei e a dissolve em uma variedade de
absurdos.
A religião de Cristo contém a verdade de que Deus
fala ao homem por meio dos homens; mas Deus fala por meio
de muitos homens: na Bíblia por meio da série dos profetas,
em que Jesus aparece como o último; nenhum homem pode ser
Deus; Deus não fala exclusivamente por meio de nenhum
homem, e com vários sentidos por meio de ninguém.
A religião de Cristo também contém a verdade de referir o
indivíduo a si mesmo. O espírito de Cristo é assunto de todo
homem. É o "pneuma", ou seja, o espírito de um entusiasmo
que se exalta ao supersensível. Além disso, é estar aberto ao
próprio sofrimento como forma de transcendência; Quem quer
que aceite a cruz para si mesmo pode experimentar a certeza
do peculiar quando falha. O espírito de Cristo é, enfim, o elo
com o dom da “nobilitas ingenita” que seguimos ou traímos, a
presença do Divino no homem. Mas se a religião de Cristo
significa: a apreensão crente do Cristo redentor fora de nós
realizando o espírito de Cristo em nós, pois filosofarmos uma
de duas possibilidades é inevitável: que o Cristo em nós não
está exclusivamente unido a Ele. Jesus Cristo singular ou que
Jesus como Cristo, como homem-Deus, é um mito. Não cabe a
mim parar nesta luta para desfazer o mito. Até o mito mais
profundo permanece mito e é um jogo; A garantia objetiva
somente será obtida por meio de uma verdade religiosa (que o
filosofar não é capaz de ver), ou por meio de uma ilusão.
2. Recuperação das tensões polares: Para se apropriar
da verdade que se manifesta na Bíblia, é necessário tornar
presentes deliberadamente as contradições que aparecem na
Bíblia. As contradições têm múltiplos significados. As
contradições racionais levam a

82
o amordascomo
alternativas, quais realidade
apenas um fundamental
lado pode ser. do eterno
As forças no
homem,formam um todo polar através do qual o
contraditórias
o ato atua.
verdadeiro - conduta interna e externa
As contradições - como
dialéticas confirmação
significam um
movimento do homem,
do pensamento, por meio do qual o verdadeiro
fala queasnão
ideias de ordem
poderia mundial em
ser formulado comoumahistoricamente
afirmação direta. não
A religião bíblica se distingue pela grande quantidadeseu
condicionadas em qualquer momento, mas sem o de
fenômeno
contradições, o opostoter naostensão atributos
polar e de absolutoNãoe
na dialética.
apenas universalmente
pela vontade, válido, mas pela constante disposição de
a
permanecer incoerência do mundo écriado,
aberto ao contraditório, possívelsua que afalta
energia de
estabilidade por si só, o fracasso de
motriz da tensão seja preservada ou recuperada quando se for todas as ordens
perdida.diante dos limites,
A compreensão a experiência
e a necessidade do assim
de paz, extremo,como o
a vontade último e únicoderefúgio
destrutiva lutar, em Deus.destruir os contrastes
querem
paraQuão
erguerpálido é tudo
o domínio doounívoco
que foi edito em face da realidade
do unilateral.
verdadeiramente
Nas obras bíblicas podem-se reconhecer asa questão,
religiosa! Assim que levantarmos tensões
imediatamente
fundamentais que atingiremos
mantiveram o oplano
Ocidenteda emfé movimento
filosófica. até A
restauração da fé religiosa desde a origem,
hoje: Deus e o mundo, Igreja e Estado, religião e filosofia, parece-nos
involuntariamente restauração
religião da lei e religião profética,da culto
fé filosófica
e "ethos". oculta na
religião, transformação da religião
A verdade inalteravelmente igual a si em filosofia
mesma (ou religião
só pode ser
filosófica). Mas certamente esse não será o caminho da
apreendida, conseqüentemente, com a condição de que todos
humanidade, embora talvez seja o de uma minoria.
os seguintes requisitos sejam atendidos ao mesmo tempo:
É impossível para o filósofo dizer ao teólogo e às igrejas
aceitar francamente
fazê-lo. O afilósofo
insolubilidade dos problemas da
como devem só pode esperar cooperar nos
existência, questionar todos os fenômenos
postulados. Pode ajudar a preparar o terreno e a tornar sensível ocorridos,
o atentando para o mais
reino da situação extremo,
espiritual, na falhe.
qual o que ele não pode criar
3. Esclarecimento
tem de prosperar. e exaltação do eternamente verdadeiro:
Através da vivência das tensões,
Aquilo que os homens sempre estiveram da dialética
formulando e das
por
contradições que orientam a decisão, é
meio século é sempre rapidamente esquecido de novo, embora possível apreender
positivamente
logo todos o digam: o queumaemnova palavras só emergindo
era está pode ser dito quede forma
submete
o abstrata:
homem, aaté verdade
o últimodelineada
indivíduo, nos acaracteres fundamentais
uma transformação como da
religião bíblica. Os fatores desta
nunca antes viu. em tempos históricos. Mas como a verdade, formulada mais
uma vez, por meio
transformação das dacondições
fé filosófica, dasão:vida real atinge tal
a ideia de um Deus único,
profundidade, é necessário que a transformação das formas da
a consciência
certeza do caráter
religiosa alcance uma absoluto da decisão
profundidade entre o bem
correlativa parae
o mal no homem finito,
que configure o novo para que seja sustentado e possa ser
dotado de alma. Você tem que esperar

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uma transformação do que chamamos de matéria, vestimenta,
manifestação, linguagem, de fé, mas uma transformação tão
vigorosa quanto todas as outras transformações de nosso tempo
- do contrário, a verdade se perderá no panorama visual da
humanidade eterna da religião bíblica; o homem não a
experimenta mais e ninguém é capaz de imaginar o que pode
aparecer em seu lugar. Portanto, o restabelecimento da verdade
eterna requer um começo que alcance as origens últimas e,
ignorando as coisas historicamente perecíveis, faça com que
essa verdade se manifeste em uma nova linguagem.
Nesse ponto, o filósofo se depara com perguntas para as
quais não consegue encontrar uma resposta, mas sabe que a
certa altura a resposta será dada no futuro. Essas questões são:
Que dogmas podem cair porque, na verdade, são
estranhos e incríveis para o homem moderno? E se a princípio
não se pode falar em abandono de dogmas, no fim das contas
quem pensa deve se perguntar: quais são os dogmas em que até
os crentes não acreditam mais?
Onde está o firme fundamento religioso que permanece?
É um absurdo que, como conteúdo de fé, continue a ser
sustentável e até mesmo obrigatório? Pode-se pensar que
precisamente a capacidade para os absurdos mais grosseiros
aumentou no homem moderno a proporções fantásticas. Você é
supersticionado tão facilmente! Mas onde há superstição, só a
fé pode vencer, não a ciência. Que absurdo pode continuar a
ser sinal inelutável de um conteúdo autêntico de fé ainda hoje?
Se uma transformação de todos os dogmas ocorre, quem a
realiza?
Ainda existe nas massas populares um peso de gravidade
determinado pelos usos eclesiásticos como expressão da fé
incondicional? Ou é necessário inflamar mais uma vez as
massas para que com sua capacidade de sacrifício cheguem ao
martírio, apelando para esse efeito aos conteúdos de uma
verdade nova e verdadeiramente integral? Ou é em última
análise necessária uma falta deliberada de veracidade de
espíritos superiores - como Platão acreditava - como

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condição do sucesso da configuração das massas e da
transmissão até dos conteúdos mais profundos? Eu creio que
não. Quais seriam as mentiras inelutáveis e eficazes hoje? Sem
dúvida, eles não teriam que se tornar portadores da verdade
dessa maneira.
Mais uma vez, percebemos que com todas essas
perguntas não cedemos no que realmente importa. É o próprio
religioso, inacessível ao filósofo, que deve ser dado
previamente. Não pode ser planejado ou visto de fora. O
significado do culto, dos ritos, das cerimônias, da segurança
dogmática, perde seu peso na dissertação filosófica. Esta é
uma objeção decisiva contra toda filosofia? A ideia de uma fé
filosófica, hoje como em todas as épocas até agora
conhecidas, é uma ilusão incruenta? Assim nos é dito. Eu não
acredito.
Não apenas o que o filósofo diz sobre religião é
insuficiente. Também parece que ele nunca chega à religião
quando fala sobre isso. A filosofia tem como objetivo ampliar
constantemente o seu horizonte. Com o seu olhar, ele passa da
religião concreta de uma seita à maior religião bíblica, e desta
à verdade de todas as religiões. Mas, ao fazer isso, ele perde
exatamente o que distingue a religião verdadeira. Se a filosofia
acredita que, ao se expandir para o universal, penetra nas
profundezas da religião, na verdade ela perde a vitalidade das
religiões. Enquanto ele vê que esta corporalidade da fé,
consumada conjuntamente em uma certa tradição, é a
configuração necessária da religião, ele está, no entanto, longe
disso porque não pode realizar, ou mesmo compreender, o que
vê.
A filosofia, quer afirme a religião, quer a conteste, é
de fato retirada dela, mas de tal maneira que está
constantemente preocupada com ela.
a) A filosofia fala a favor da religião bíblica: a
filosofia ocidental não pode ignorar o fato de que nenhum dos
grandes filósofos em seu campo, até e incluindo Nietzsche,
não filosofou sem um profundo conhecimento da Bíblia. Este
fato não é causal. Vamos repetir:

86
Primeiro: a filosofia não pode alcançar o que a religião dá
ao homem. Conseqüentemente, pelo menos deixa um campo
livre para a religião. Não é imposto a todos como uma verdade
única e integral.
Segundo: É difícil para a filosofia se sustentar a longo
prazo no mundo se a comunidade humana não viver
religiosamente, já que os conteúdos filosóficos vivem nas
pessoas graças à fé religiosa. A comunicação filosófica no
pensamento não tem poder coercitivo, mas limita-se a explicar
no homem individual o que dela resulta. A filosofia se
dispersaria em um número cada vez mais raro de indivíduos e
acabaria desaparecendo se a comunidade humana não vivesse
do que também está claro na fé filosófica. A filosofia não pode
realizar a transmissão sociologicamente efetiva dos conteúdos
essenciais para o homem, transmissão que só se dá na tradição
religiosa desde a primeira infância e com ela também carrega a
filosofia.
Terceiro: O conteúdo da Bíblia não pode ser fornecido a
nós por nenhum outro livro.
a) A filosofia vai além da religião bíblica: a comunicação
entre os homens, que colocou em contato com tudo o que se
produziu na terra e instiga um intercâmbio mútuo cada vez mais
sério, tornou-nos visíveis duas outras grandes áreas da religião:
a Índia, com os Upanishads e o budismo ; China, com Confúcio
e Laotsé. O homem atencioso que abre sua alma não pode
ignorar a profundidade da verdade que fala a partir daí, onde
quer que ele fale. A alma se expandirá até o ilimitado.
Mas aqui existe a possibilidade de uma perda. A ilusão
tentou encontrar a verdadeira religião reunindo o melhor de
todas as religiões. Mas o resultado foi, não a verdade
verdadeira, refinada a partir do contingente histórico, mas uma
coleção de abstrações diluídas pela ilustração. A fonte dessa fé
universal nada mais era do que um entendimento que aplicava a
crítica como medida. O conteúdo escapou dele. A coisa
emocionante desapareceu. Nada além de generalidades triviais
permaneceram.
Uma vez que toda fé é histórica, sua verdade não é
encontrada em

87
um somatório de proposições de fé, mas em uma origem que
historicamente se manifesta de várias formas. É verdade que
muitas religiões conduzem à verdade única, mas isso não é
alcançável diretamente, mas apenas por caminhos que
realmente foram percorridos e nem todos podem ser
percorridos ao mesmo tempo e da mesma maneira.
Conseqüentemente, a crítica racional não pode apreender
esse algo verdadeiro. Em vez disso, o homem, relacionando
seu próprio destino com o que a tradição lhe diz, deve fazer-se
revelar a verdade, isto é, apropriar-se dela. Isso só pode ser
alcançado ouvindo das profundezas do passado, entregando-se
ao comportamento interior.
Mas, comparada à religião, a filosofia aprovará as
seguintes proposições para a prática: Para participar da
religião bíblica, é necessário treinar na tradição de uma certa
seita. Toda seita é boa na medida em que os homens que nela
vivem estão imbuídos da religião bíblica como um todo,
embora a configuração histórica particular acabe dando-lhe
uma certa forma finita. A fidelidade e a consciência histórica e
espontaneidade nos ligam à seita na qual nossa consciência foi
despertada. A mudança de seita dificilmente é possível sem
uma ruptura na alma. Mas na configuração que a religião
bíblica adota em cada seita, mesmo com o aspecto histórico
demarcado da fixação da fé, a presença da religião bíblica
plena é possível e real em cada um dos crentes. Por todas as
seitas circula a comunidade dos crentes. E as intermináveis
lutas, distinções e rejeições que ocorrem neste caso podem ser
consideradas, como diz a frase de Melanchthon, como o
campo do "teologorum da raiva".
c) Autoridade para a filosofia: O filósofo é sempre um
indivíduo; ele vive de sua própria origem por sua própria
conta e risco. Mas, como homem, ele é membro de um todo e
até mesmo sua filosofia está ligada desde o início a essa
relação.
No mundo, esse vínculo é garantido pelo Estado e pela
religião de forma autoritária. Sem autoridade, nenhuma vida
do homem é possível.

88
As igrejas vêem a necessidade da liderança das massas, a
necessidade de imagens válidas da realidade, de evidências no
mundo, a necessidade de uma tradição ordeira. Sua
reivindicação de uma vasta verdade requer controle da
conduta do indivíduo e canalização de seu desempenho
público. Como autoridade universal do verdadeiro, eles têm
poderes, em virtude de sua ideia, de adotar tudo o que é
verdadeiro, deixando espaço para todas as antíteses, para
encontrar a síntese em todos os lugares. O que nenhum
indivíduo pode, porque afinal é particular e unilateral, a Igreja
como um todo pode.
Contra isso o indivíduo se ergue sempre de novo, tendo
que considerar que, no fundo, essa pretensão de totalidade é
um engano, pois é sempre formulada pelos homens e de forma
alguma atinge a totalidade. Apesar de reconhecer uma
intenção sincera nesta afirmação, a autoridade factual do todo
não pode constituir para ele toda a verdade. Mas ele, por sua
vez, como indivíduo também não pode perceber essa verdade.
Por isso, quando no trabalho espiritual se coloca sobre si
mesmo, não pretende eliminar essa totalidade como realidade
de aspiração no mundo, como configuração insubstituível da
tradição e da educação, como forma de ordem. Mas você quer
evitar que se torne rígido e exclusivo. Portanto, por sua
própria conta e risco, busque algo mais amplo, infringindo a
totalidade de uma autoridade que se tornou efetiva no mundo.
Procure o englobante no esboço de uma fé filosófica.
No entanto, essa fé não é inventada por ele, mas se
baseia, por sua vez, na autoridade, já que vem de toda a
tradição da época do último milênio anterior a Jesus Cristo.
Autoridade não é apenas a liderança (que deve ser aceita
com certa obediência) por uma instituição e seus
representantes, os sacerdotes, mas também a liderança (aceita
como própria com veneração e atenção confiante) pela
espiritualidade do grande passado de três milênios atrás. A
verdade diz sobre ela: Ninguém pode lançar qualquer outro
fundamento além daquele que foi lançado desde o início.

89
É daí que vem a atmosfera englobante como autoridade de uma
direção oscilante que evita uma objetividade idêntica para
todos.
Crescer nessa autoridade é uma condição para todo
filosofar cheio de conteúdo. O perigo de que esta autoridade se
dilua em abstrações gerais que, apreensíveis para a
compreensão e edificantes para um sentimento que não se
compromete, são nulas existencialmente em ambos os casos, é
superado percorrendo o caminho histórico: Da proximidade em
relação ao próprio. A própria tradição na família, na pátria, na
nação, enraizada no próprio passado, consuma-se alargando e
aprofundando passando pelos vastos mundos do Ocidente até
chegar a toda a humanidade para, enfim, encontrar
conscientemente o eixo de tudo na época que passa dos anos
800 a 200 antes de Jesus Cristo. Então, a tradição histórica, ao
invés de ser nivelada em um sistema de idéias, torna-se antes
um todo cheio de conteúdo com seus pontos culminantes, seus
grandes homens e mundos, suas interpretações clássicas e
estruturação diversa no desdobramento histórico.
A filosofia, sempre na forma de esforço individual, tenta
alcançar a universalidade, manter o homem aberto, escolher o
simples, concentrar e esclarecer sua inescrutabilidade.
A possibilidade de que esse empreendimento pegue, de
que o trabalho filosófico preliminar - que já é a realização da
vida para o indivíduo - seja utilizado pelas religiões, não está
sujeito a nenhum plano. Mas em todo filosofar há uma
tendência a ajudar as instituições religiosas, que a filosofia
afirma em sua realidade mundana, sem que os filósofos possam
participar francamente delas.

90
QUINTA CONFERÊNCIA

FILOSOFIA E INFILOSOFIA
A verdade filosófica não é única no mundo. Até agora,
nunca foi a forma de verdade em que vive a maioria dos
homens. Mas, ao filosofar, a porta está aberta para qualquer
modo de poder viver, não apenas para compreendê-lo, mas
para reconhecê-lo no sentido de sua verdade.
Mas aí a filosofia encontra limites onde operam o pensar
e o viver, nos quais parece que as origens da fé devem ser
sacrificadas, sem os quais a filosofia deve necessariamente
perder seu conteúdo. Chamamos isso de pensamento de
filosofia quando é apresentado como filosofia, é interpretado
como filosofia e é reconhecido por outros como filosofia. A
filosofia vestida com o traje da filosofia se volta contra ela.
Por significar negação da filosofia, tem de se defender com
seu pensamento contra ela. Não é apenas um erro no filosofar,
que pode então ser corrigido pelo entendimento, mas um erro
fundamental em uma negação completa, que, entretanto, em
formações substitutas transparentes parece ser positiva. Isso
pode ser corrigido no renascimento do homem que se dá o
dom de voltar a si mesmo em pensamento. O aparente
filosofar atravessa a história em ambas as correntes. Todo
filósofo tem que incorrer nessa aparência em fases de
transição. O homem filosófico se realiza ao superar a sempre
presente filosofia nele.

91
Chamamos de incredulidade qualquer atitude que se
mantenha em uma imanência presumida negando a
transcendência. A questão que surge então é o que é essa
imanência. O incrédulo diz: Existência, —realidade—, o
mundo. Mas a existência é apenas uma presença diminuta, é
apreendida pela descrença na afirmação do devir e da aparência
como tal. A realidade retrocede lentamente quando queremos
conhecê-la em si mesma e como um todo; a incredulidade o
apreende na absolutização de realidades particulares. O mundo
é incoerente, insondável, é uma ideia; para a descrença,
erroneamente se torna o objeto de uma imagem coerente do
mundo. Em suma, a descrença vive na aparência, em realidades
isoladas, em imagens do mundo.
A descrença nunca está no ser, mas não pode deixar de
admitir um substituto para o estar no conteúdo da superstição.
Ele apenas reconhece a imanência, mas não pode deixar de
validar a transcendência naquela forma invertida.
A diversidade da incredulidade aparece de certa forma
nas formas de incredulidade. Estes se entendem como fé,
conhecimento ou contemplação. Eles invocam percepções e
razões diretas.
Eu escolho três exemplos de descrença filosófica:
demonologia, a divinização dos homens e niilismo. Nós os
encontramos aberta e maliciosamente. Eles estão tão
intimamente relacionados entre si que uma figura de tal
descrença logo provoca as outras também. Eles são
extremamente difíceis de formular, uma vez que escapam a
uma determinação final. Em sua formulação, eles usam,
inconscientemente, enganando a si mesmos e aos outros, todos
os meios filosóficos. Quando se tenta caracterizá-los, logo se
cai em definições erradas, pois certas linhas são traçadas em
uma interação incalculavelmente agressiva, que
constantemente se transforma, se apresenta de maneira
diferente e se contradiz. Você não tem um adversário com
contornos claros à sua frente. A mistagogia na concepção
demonológica é combinada com

92
idolatria dos homens aos quais ele se submete, e com o
niilismo, com o qual tudo isso é mais uma vez apagado.
As características que testo são construções ideais típicas
de possibilidades típicas de todos nós. Mas cada homem
individual é sempre algo a mais e, acima de tudo, ele mesmo é
a possibilidade de fé que supera esses modos de descrença. E
nesses modos de incredulidade em si, a verdade ainda está
encerrada, na qual devemos nos concentrar em última
instância.

D E M O N O L O G Í A
Chamamos demonologia uma concepção que com
convicção direta vê o ser em potências, em forças ativas,
configuradoras —construtivas e destrutivas—, em demônios -
benevolentes e malvados—, em muitos deuses, pensa o que se
vê e o formula como uma doutrina. Há uma santificação do
bom e do mau e, em tudo, uma exaltação pela contemplação
simultânea das profundezas escuras que aparecem nas imagens.
O próprio imanente é experimentado como divino, paixão,
poder, vitalidade, beleza, destruição, crueldade. Embora não
haja transcendência, visto que todo ser é imanente a esse modo
de conceber, essa imanência não se esgota com a realidade
conhecível em geral pela consciência; é mais do que isso, é
considerada - para dizê-lo com uma frase de Simmel -
transcendência imanente, a menos que a realidade seja
circunscrita àquilo que pode ser apreendido com os sentidos e
com a razão. A expressão paradoxal “transcendência imanente”
não alude mais às coisas como uma linguagem possível da
divindade, mas à transcendência como potência e fator no
mundo e, certamente, por necessidade, na divisão em muitos
poderes.
Se se dedicar a esses poderes, a experiência adquire uma
importância acrescida, o seu brilho, através do mistério. O
pavor, o tremor, o horror, o choque, o arrebatamento da alma,
descobrem esses poderes e os vêem como se disséssemos
corpóreos. A luta contra

93
eles elevam o próprio homem ao mundo dos demoníacos.
Identificar-se com eles, ser possuído por demônios, concede a
elevação injustificável da necessidade (justificada pela
doutrina da demonologia) dos poderes aos quais seguimos, e a
elevação da superstição à medida que a conduta e a vida
prosperam. O desejo de retornar à era mítica, o
estabelecimento de novos mitos próprios, o pensamento em
mitos toma conta das profundezas da vida.
É o desejo que o homem sente de se aproximar do divino,
de experimentá-lo diretamente e de vivê-lo como presente no
mundo. Isso é feito santificando todos os impulsos humanos -
um “deus” fez isso, não eu - e é feito encantando o mundo à
luz mítica do divino.
Hoje gostamos de falar sobre demônios e do demoníaco.
Mas o significado associado a essas palavras é tão diferente
que deve ser mantido em mente:
1º Quando a concepção demonológica era original, era,
como o mito, a figura histórica da realidade vivida ex-
sistencialmente. A percepção dos demônios significava
explicação ativa para eles, luta ou rendição.
Então, a grande alternativa nasceu no homem: o divino
como demoníaco ou Deus como transcendência - poderes
intraterrenos (os muitos deuses) ou o único fundamento
transcendente.
A inclusão do demoníaco na consciência de ser
determinado a partir da ideia de Deus, foi então operada pela
transformação em poderes em uma linguagem possível, em
figuras de transcendência, ou por subordinação mítica dos
demônios ou à maneira dos anjos mensageiros e mediadores da
divindade e do diabo. A demonologia desapareceu ou estava
sujeita ao controle.
Quando a demonologia é restaurada em nosso mundo
hoje, apenas fantasias irreais são estimuladas por essa forma
mítica de pensar. É uma ilusão tratar os demônios como
realidades, aceitá-los como factualidades, calcular com eles,
por assim dizer. Não existem demônios. Aceitando a alegada
experiência contra a razão,

94
faz a interpretação errada da realidade como a percepção de
poderes. Esta absolutização de um imediatismo confuso,
transforma-se em autoengano que permite exaltar e justificar-
se com demônios nas confusões de um tempo árido sujeito às
condições da ciência e suas consequências.
Se a alternativa entre demônios e Deus não chega a uma
decisão clara, a confusão da concepção também causa
confusão no humor, pensamento e atitude do homem.
2º O caso é diferente quando o demoníaco é a expressão
de algo inapreensível, que está a ponto de acontecer, a partir
de nossa vontade e essência, se não for percebido francamente,
pelo menos é imaginado como algo que age. Neste caso, não se
trata mais de uma concepção demonológica do mundo, mas da
expressão gráfica de algo totalmente incompreendido, de algo
não desejado, perturbado, contingente, que influencia
arrogantemente como vindo de sua própria origem. Não se
trata mais de demônios, mas de demoníacos. Mas isso não se
concretiza, não se torna teoria, mas permanece em termos
vagos para indicar o limite.
Desse modo, o velho Goethe usava a expressão
demoníaca e falava do demoníaco, com eficiência insuperável,
mas de tal forma que sua essência continuasse inapreensível, já
que só se move nas contradições e não pode ser reduzida a um
conceito. Assim, mesmo em Goethe, o demoníaco continua a
ser uma palavra infinitamente ambígua que se aplica ao
incompreendido quando quer formulá-lo como o segredo de
um ser, de um acontecimento, de uma relação, mas só pode
assombrá-lo com pressentimentos. Goethe, depois de ter falado
por muito tempo sobre os demônios no sentido diferente da
metáfora poética, diz do demoníaco:
“Ele não era divino porque parecia irracional, nem
humano porque não tinha entendimento; nem diabólico, pois
era benéfico; nem angelical, pois freqüentemente revelava
sadismo. Parecia acaso, sem consequências; era semelhante à
providência, uma vez que apontava para uma conexão. Tudo o
que nos limita parecia penetrável para ele ...

95
Parecia apenas deliciar-se com o impossível e descartar o possível
com desprezo ... Era um poder, senão contrário à ordem moral do
mundo, pelo menos divergente dela ...
“Mas onde aquele poder demoníaco apareceu mais assustador
foi quando se manifestou dominante em qualquer pessoa ... Nem
sempre são as pessoas mais excelentes, não recomendadas pelo seu
espírito ou talentos, raramente pela bondade de coração; mas uma
enorme energia emana deles ... Todas as forças morais reunidas nada
podem fazer contra eles, e em vão a parte mais clara dos homens os
estigmatizará como iludidos ou enganados; a massa é atraída por
eles. Raramente ou nunca são contemporâneos que se equiparam a
eles, e nada pode derrotá-los se não for o universo, com o qual
começaram a luta. ”
3. Goethe descreve o demoníaco como um poder que age
objetivamente; Ele a aborda como um desvio, mencionando suas
manifestações contraditórias. Kierkegaard vê o demoníaco
exclusivamente no homem. Demoníaco é o homem que deseja
absolutamente se sustentar. Kierkegaard esclarece esse conceito de
demoníaco, destacando a sensação de ser-eu-mesmo e o
investimento nele possível.
“Demoníaco é todo indivíduo que, sem um complemento
intermediário (daí sua reserva para todos os outros), está em relação
à ideia exclusivamente por si mesmo. Se essa ideia é Deus, o
indivíduo é religioso; se a ideia é má, o indivíduo é demoníaco em
sentido estrito. "
No caso de o demoníaco (no sentido estrito) ser completamente
transparente para si mesmo, é o diabo. “O demônio é só espírito e,
conseqüentemente, absoluta consciência e transparência” (para o
sentido, totalmente diferente de Goethe, é característico que
Mephisto não seja demoníaco, pois ele nada mais é do que clareza
total de entendimento e negativo). De fato, o demoníaco do homem
não pode se tornar totalmente transparente para si mesmo. A
transparência nasce no eu por meio de sua relação absoluta com
Deus, não na relação absoluta consigo mesmo como eu absoluto.

96
Certamente incompreensíveis são o demoníaco e o divino.
“Mutismo são ambos. O mutismo é a astúcia do diabo, e quanto mais
silêncio é mantido, mais terrível é o diabo; mas o mutismo é também
o testemunho da divindade no indivíduo ”; o demoníaco, como o
religioso, coloca o homem fora do general. Mas, ao se envolver na
falta de transparência do demoníaco, ele se opõe ilimitadamente a se
tornar aparente para a divindade. Estando perdido no paradoxo
demoníaco, a redenção se opõe ao paradoxo divino.
O demoníaco, tão teimoso em querer o próprio eu contingente, é
o querer-desesperado-de-ser-ele-mesmo. “Quanto mais consciência
há em tal querer, mais o desespero se multiplica e se torna
demoníaco. Um homem é atormentado por qualquer sofrimento.
Justamente nesse tormento ele lança toda a sua paixão. Agora ele não
quer ajuda. Agora ele prefere se enfurecer contra tudo , ele quer ser o
injustamente tratado por todos, pela existência. Nesse desespero, ele
nem mesmo quer ser ele mesmo em estóica renúncia de si mesmo;
ele quer ser ele mesmo no ódio contra a existência, ele mesmo
segundo sua miséria. que tem uma prova contra ela, contra sua
bondade. O desesperado acredita que ele mesmo é essa prova e quer
ser, para protestar contra toda existência com aquele tormento.
Essa vontade demoníaca, embora multiplicada pela consciência,
não pode, entretanto, se tornar transparente de fato; só pode ser
mantido no escuro. Conseqüentemente, ele irrompe na consciência e
ao mesmo tempo revigora todas as forças do silêncio, pois resiste a se
revelar. Daí a combinação contraditória de notoriedade e reserva: “O
silêncio pode desejar a revelação, apenas com a condição de que seja
feita de fora, de que venha inesperadamente. Você pode querer a
divulgação, até certo ponto, mas gostaria de manter um pequeno
restante e, em seguida, ter a reserva reiniciada. Você pode querer a
revelação, mais incógnita (em muitas existências de poetas). A
revelação pode já ter triunfado; mas ao mesmo tempo ele arrisca
reservar um último

97
Tento e sou astuto o suficiente para transformar a revelação em
mistificação, e então é ela quem triunfou. "" A questão é se um homem
quer reconhecer a verdade no sentido mais profundo, entendê-la em
toda a sua essência, aceitar todas as suas consequências, ou se surgir a
necessidade não reserva um esconderijo para si. " O demoníaco é
refinado em seu esconderijo. O dialético serve para se esconder. Nisto
ele é aliviado "com o virtuosismo demoníaco da reflexão".
Visto que o demoníaco não tem suporte em si mesmo, ele não pode
resistir. Não pode guardar silêncio, "o desgraçado acaba importunando
a todos com seu segredo". Mas ao mesmo tempo tem medo de se dar a
conhecer: “Diante de quem o supera no bem, o endemoninhado pode
implorar por si mesmo, pode implorar por si mesmo com lágrimas, não
falar com ele, não tomá-lo fraco . "
A marca peculiar do demoníaco que se retraiu para seu eu
contingente como o absoluto é que nada mais pode ser sério para ele.
“Você não quer pensar seriamente sobre a eternidade; a pessoa tem
medo dele, e o medo incorre em centenas de evasivas. "
4. Nos últimos tempos, a palavra demoníaco é usada de forma
indeterminada e superficial para tudo o incompreensível que incomoda
- para o “irracional”. O indesejado, que se apresenta inesperadamente
quando o desejado é realizado, é chamado de demoníaco. A técnica ”é
o que reverbera poderosamente como algo independente como
resultado da realização da subjugação técnica da existência. Assim, o
inconsciente também é chamado de demoníaco quando o obscuro e
obscuro é imposto das profundezas da vida psíquica do Não poder, não
querer, ser dominado, ser cativado, não encontrar uma solução - tudo
isso pode provocar a exclamação: demoníaco!
Todas essas quatro maneiras, originalmente cheias de sentido, de
falar do demoníaco, da objetificação mítica à simples metáfora, da fé
em uma força que atua nas coisas à visão da inversão da liberdade do
homem, circulam confusas, privadas de

98
sua origem, com seu significado diferente, na demonologia
moderna como uma visão de mundo da descrença. Essa
demonologia não está disponível como Proteu, um nada que
sempre se disfarça de uma maneira diferente e em sua
diversidade usa todas as torções anteriores do demoníaco.
Portanto, contra essa concepção demonológica do
mundo, algo só pode ser dito a partir do filosofar quando por
um momento é formulado concretamente e é retido em certas
formas típicas de linguagem. A crítica pode então ser
formulada nas seguintes proposições sobre demonologia:
1º Transcendência não é alcançada. A exaltação da vida
imanente por meio da demonologia não atinge precisamente a
transcendência. Sem Deus, as idolatrias permanecem. Os
deuses se tornaram o mundo. Eles participam da impotência
do mundano; um outro reina sobre eles, um absolutamente
estranho, o nada.
2º O homem está perdido. Na concepção demonológica
do mundo, a liberdade nada mais é do que a aceitação do
destino que se apodera do homem. O homem pode certamente
ser feliz se sua vida prosperar em circunstâncias favoráveis -
melancolia lembrando-se de vez em quando de que não pode
viver em confiança - mas o torna infeliz por ser excluído da
felicidade do mundo, apenas para ficar vazio e desesperado
em infortúnio. Há uma indiferença interior e uma
inflexibilidade natural para com aqueles que fracassam na
vida ou a quem sobrevém um infortúnio irreparável. Não há
valor insubstituível do homem individual. A humanidade já
não é mais do que uma intenção imanente de se comportar
filantropicamente sob certas condições, mas não é respeito
perante a alma enraizada na eternidade por referência à
transcendência, perante o homem como tal.
3º Não se chega à referência ao Uno. Pelo contrário,
diversifica-se na dispersão das contemplações, o homem
desintegra-se nas suas possibilidades, agarrando hoje uma,
amanhã outra - a vida é relegada ao esquecimento. A vida
com demônios torna-se algo que se decompõe fluindo, no
indeterminado. Essa descrença não

99
pode ser apreendido no que pensa propriamente, pois sempre
se interpreta de maneira diferente. Nele, somos entregues à
corrente de impulsos e paixões que nos separam. Tudo pode
ser justificado. Apesar da energia de um momento, falta
continuidade. Apesar da intensidade da afirmação, falta a
concentração do ser.
A ascensão à transcendência do Um sempre foi operada
superando a demonologia. Sócrates escapou dos demônios,
para seguir seu "daemon" e, neste, a demanda da divindade.
Os profetas superaram a adoração de Baal para servir a Deus.
4º A Demonologia está imersa na natureza. A natureza é
considerada a última necessidade englobante. Os animais são
demoníacos. E o homem se sente demoníaco enquanto é
como um animal. O império da concepção demonológica leva
à perda da autoconsciência humana diante da natureza. Tendo
um certo bem-estar, existe uma concepção demonológica
como confiança na natureza. Mas confiar na natureza não é
confiar em Deus. Quando a confiança na natureza esbarra em
limites, a confiança que ainda pode permanecer não encontra
mais nenhum fundamento na natureza. A confiança na
natureza é idolatria, como aquela praticada em toda a terra
nos cultos naturais.
5º A demonologia moderna não é, de forma alguma,
uma posição estética. Característica nesse sentido é a
natureza não-obrigatória do que é demonologicamente
pensado. É uma contemplação do real presumido, em vez da
consumação da própria realidade. É uma ilusão na
contemplação estética com um desejo confuso do
indeterminado como o meio apropriado para a auto-afirmação
ao contrário. Desse modo, a paixão se torna possível como
afeto do momento, mas evita-se a paixão da resolução que
sustenta a vida, que resiste com firmeza. Você pode convidar
a uma decisão entre o bem e o mal, mas depois paralisá-la
novamente, reconhecendo o mal no trágico. Uma confusão
constante entre o ético e o estético torna-se possível. Assim
que se fala do bem e do mal no pathos moral, como
esteticamente de

100
o demoníaco. Sempre que uma falta de solução é encontrada,
é permitido pular do ético para o estético. O homem não
precisa mais se responsabilizar, pois para qualquer situação
tem a falsa grandeza das imagens estéticas prontas. A vida
continua sendo dispersão na pluralidade do contingente.
6º A demologia delineia um inter-ser que não é realidade
transcendente. Ele tenta apreender a realidade e falha, porque
imagina que agarra um supersensível ilusório: ele perde a
clareza do cognoscível. Ele finge o supersensível e falha,
porque pensa que o tem como imanente: ele perde Deus. Mas
tudo que não é o mundo (como realidade demonstrável) ou
Deus, é engano e ilusão, justamente quando nosso desejo de
edificação e sensação é levado com delírio, apaixonadamente
dominado. Existe Deus e o mundo, nada no meio. Todas as
realidades podem ser linguagem ou mensageiros de Deus
graças ao que são como figuras, mas não há outros deuses
além dele, nem demônios. O que importa é como sentimos o
dedo de Deus no limite da realidade. O que entre os dois tenta
romper, parece vaidade materialista ou fantasia ímpia.

DIVINIZAÇÃO DE HOMENS
É um fenômeno universal que os homens adorem
delirantemente um indivíduo, elevem-no a super-homem,
vejam o ideal do ser humano realizado nele. Eles estão
inclinados a se submeter cegamente a ele, a esperar milagres
dele. Existe um fenômeno psicológico análogo: as estrelas de
cinema precisam viajar incógnitas se não quiserem se expor a
serem esmagadas pelas pessoas. Gandhi teve que se proteger
sistematicamente contra os "buscadores do darshan"
("darshan" significa "visão de um santo"). Nos séculos
anteriores, quando os reis se mostravam ao povo, sua
presença curava os enfermos.
A divinização repercute no deificado: as pessoas
torturam o que consideram santo, obrigando-o a se comportar
de acordo com o ideal. Eles esperam dele

101
que se acomode e, por assim dizer, eles o exibem, e ele tem
que estar lá. É uma ânsia das massas adorar o homem. É
como se eles ficassem tranquilos sabendo que em algum lugar
se encontra o único divinizado, assim como o enxame de
abelhas está em ordem graças à rainha.
A figura mais visível do poder humano são soberanos e
líderes militares. A teimosia e a libertinagem comuns dos
homens levam ao aparecimento do tirano que os subjuga a
todos. Quem não obedece à lei livremente é obrigado a
obedecer à força externa. E então o incrível acontece. O
tirano, como instrumento do mal para punir o mal, torna-se
objeto de divinização. Alexandre, César, Napoleão e outros
passam como ídolos pela história. Eles são homens
verdadeiramente extraordinários por sua energia feroz, sua
presença de espírito, instinto para forças reais, memória,
capacidade de trabalho, sucesso nos fins de domínio e poder.
Já em vida foram exaltados, quer se declarassem deuses ou
filhos de deuses, quer aceitassem essa denominação usando
como meio de poder o que a massa anseia. Tiranos se tornam
deuses. Alexandre foi chamado de filho de Deus; os deuses-
imperadores romanos realizavam o culto oficialmente pago
aos seus numen. E se essa superstição for rejeitada, na
maioria das vezes há homenagens irracionais e os ídolos
humanos continuam sendo objeto de adoração profana. É
sempre surpreendente ver com que naturalidade eles ocultam,
atenuam ou interpretam os fatos da realidade dos homens
deificados.
A deificação dos homens não é concedida aos tiranos.
Mais de um filósofo antigo foi elevado a demônio ou herói.
No mundo de uma cultura espiritual considerada branda, um
resquício dessa postura permanece na adoração cega de
grandes homens e charlatões. Um e outro são considerados
absolutamente invioláveis. A tendência de transformá-los em
mitos é inextricável.
Certamente não é fácil para um homem declarar-se Deus,
não sendo louco ou não perseguindo fins políticos. É mais
fácil atribuir o exclusivo

102
para se referir a Deus. Ele é o único que tem essa missão e,
como tal, merece uma homenagem.
A divinização dos homens também é um dos fatores na
formação das grandes religiões. A forma de interpretar a
deificação dos homens é tal que a qualquer momento se
pretende que o caráter especial em que se acredite não seja
baseado na deificação de um homem, distinguindo-se
daqueles que são rejeitados como tal.
Por que os homens são deificados?
No homem existe a tendência de ver um homem perfeito,
que se torna para ele o que ele mesmo gostaria de ser e não é
capaz de ser.
A divinização dos homens não pode prescindir no mundo
da instância a partir da qual a obediência absoluta é possível
(não a obediência relativa às leis, magistraturas, instituições)
como obediência a Deus, ou o desejo de proximidade
corporal ao Deus escondido e distante.
Às vezes, a divinização dos homens produz o efeito de
um substituto da fé, que, sendo uma fé absurda, gostaria de
ser sustentada precisamente pela fé genuína. Essa
incredulidade pode, de fato, tornar-se conhecida pela
circunstância de exigir dos outros e de todos a fé para o seu
objeto, de ser fanática, dura, furiosa, de ser intolerável que
outros não tenham a mesma fé. Todos deveriam adorar o que
ela adora.
A divinização dos homens é basicamente um dos modos
de concepção demonológica. Assim como a impiedade
considera os demônios como transcendência presumida, o
mesmo ocorre com os homens corpóreos para deificá-los.
Quaisquer que sejam as relações de motivos em que se
apresenta a divinização dos homens, por mais sublimes que
sejam as formas e por mais profundas que sejam as
interpretações a que se eleva, ela é, em sua raiz, um erro. A fé
filosófica desmascara a divinização dos homens em qualquer
figura. Ele não esquece por um só momento que o homem é
finito e imperfeito. Ele está certo da exigência de Deus de que
ele não seja confundido, que ele não seja arrancado de seu
esconderijo com falsidades, pois então ele retornará a ele
ainda mais decididamente. Exige do homem que ele ouse se
apresentar
103
diretamente na frente dele e aguarde o que ele diz. O homem
não deve escapar dele apresentando um homem como absoluto
diante de seus olhos e ouvindo esse homem em vez de Deus
ou como Deus. É a dura exigência de suportar no vazio do
mundo que Deus não existe como qualquer outra coisa no
mundo. Só nesta situação amarga o homem ainda está livre
para ouvir Deus quando Deus fala, permanece atento mesmo
quando Deus nunca vai falar, permanece aberto à realidade
que historicamente lhe aparece.
No mundo não há homem que possa ser Deus para nós,
mas há homens cuja liberdade de ouvir a Deus nos ensina o
que é possível para o homem e nos encoraja. Não podemos
agarrar fisicamente a mão de Deus, mas podemos agarrar a
mão do companheiro de destino.
A deificação dos homens rebaixa o homem porque o
alivia. Dá-lhe o óbvio, quando a sua situação no mundo se
baseia em ter que prescindir daquela patente e, em vez disso,
só poder encontrar figuras e imagens no caminho em que por
Deus pode e, portanto, deve, chegar a si mesmo.

NIHILISMO
Enquanto a demonologia e a divinização dos homens
constituem um substituto para a fé, a descrença absoluta é
chamada de niilismo. Ele se atreve a se apresentar sem
disfarce. Todos os conteúdos da fé expiraram para ele; ele
desmascarou todas as interpretações do mundo e do ser como
engano; para ele, tudo é condicionado e relativo; não há base
firme, nada absoluto, nenhum ser em si mesmo. Tudo é
duvidoso. Nada é verdade, tudo é lícito.
Niilismo só pode existir quando seu dono vive de
impulsos de vitalidade, o prazer de viver, a vontade de poder.
Ao afirmá-los, o niilismo se suprime em favor de uma fé vital.
Ou você está realmente levando a sério a experiência de
lugar nenhum. Não posso sentir nada, não posso amar nada,
não posso apreciar nada.

104
Minha alma está vazia. Meu pensamento niilista é a base
para mim de que ele está certo sobre isso.
Ou uma decepção ilimitada me faz experimentar o
colapso de tudo em que acreditei - ver a infidelidade do ente
querido, o engano de quem dirigia o Estado, a mentira de
preceitos proclamados com autoridade. A marcha do mundo
revela que tudo o que tinha valor afunda como uma ilusão. O
pensamento niilista me fornecerá a base de que minha
experiência não é particular, mas revela todo o ser em sua
essência.
Mas o pensamento niilista só pode negar a partir de algo
reconhecido, medindo-o pelo qual se revelam o nada, a
decepção, o engano, a mentira, a ilusão. O niilismo precisa se
manifestar, uma base firme de que se realmente fosse pisado,
teria que acabar com o niilismo em favor do que vale a pena
nesse campo. Consequentemente, o niilismo radical procede
no pensamento de tal maneira que rejeita a princípio,
apoiando-se em módulos naturalmente reconhecidos e depois
fazendo tudo desaparecer em um único turbilhão de negações
recíprocas.
Vamos tentar dar alguns exemplos de negações niilistas:
1º Deus não existe. Pois a existência de Deus, do criador
do mundo, não está provada, nem mesmo foi reconhecida
como possível ou provável por meio de um indício de
demonstração.
Um requisito para essa negação é a validade do que é
reconhecido aqui como a possibilidade de demonstração, ou
seja, predicações materiais sobre algo que ocorre no mundo e
demonstrações racionais de coisas finitas com meios finitos.
Conseqüentemente, esse pensamento negativo trata as
questões de transcendência como questões relacionadas às
coisas finitas do mundo; e não toca em nada o que deve ser
tocado nas proposições de Deus, visto que toma o conteúdo
como uma pregação material sobre um evento no mundo.
2º Não há relação alguma entre Deus e o homem. Pois
tal relacionamento não pode ser experimentado e não é
experimentado porque Deus não existe. O que é dado como
tal

105
experiência, é baseada em ilusões psicológicas e uma falsa
interpretação das experiências.
Nessa negação, assume-se a realidade da experiência no
mundo e das experiências. Eles são absolutizados em ser em
si, especialmente na forma de conhecimento empírico da
ocorrência no espaço e no tempo como suscetíveis de
repetição. Mas a experiência existencial de liberdade é
negada.
3º Não há deveres para com Deus. Pois esses deveres
nunca são, de fato, mais do que subordinação às leis e
mandamentos existentes no mundo. Aqui a obediência é
possível, que é condicionada pelo poder e validade dessas
instâncias.
A premissa dessa negação é o caráter absoluto dessas
validades no mundo. A partir deles, nega-se o dever profundo
e incondicional, o suporte de vida, que em nenhum lugar tem
aquele amparo confortável no mandamento e na lei.
Esses exemplos mostram um niilismo positivista. Parece
reconhecer como uma possibilidade universal, sem nuances,
de experimentar a existência. Embora não seja que não haja
nada, pelo menos esta existência, como absolutizada, é nula.
Partindo desse positivismo, o niilismo se dedica a ordenar a
vida humana, pressupondo que essa ordenação deve ser
traçada a partir do conhecimento das realidades empíricas.
Por exemplo: As relações sexuais devem ser reguladas
por princípios de higiene, visando uma vida feliz, sem outras
orientações religiosas e éticas. O caráter absoluto de uma vida
curta é uma premissa. Mas falha na circunstância de que a
“felicidade” não é suscetível a uma determinação unívoca -
que, além disso, é desprezível em todas as figuras - e de que
não existe uma regulação positiva que realmente tenha
sucesso.
Nesses três casos, o niilismo que ainda estava oculto no
início torna-se aparente quando a premissa correspondente
que havia sido dispensada (sobre o conhecimento empírico
exato, avaliações válidas e possibilidades técnicas) é
apresentada à consciência e imediatamente permanece. As
negações subsistem, mas, além disso, o mínimo de suposta
verdade também é negado.

106
em cada caso. Então temos o redemoinho em que não há
suporte algum, exceto para a vitalidade alheia ao significado
que eventualmente está presente em sua imediatidade
mecânica; o homem é entregue à ocorrência natural, para a
qual a posição do niilismo é simplificada.
Totalmente diferente daquele niilismo, que poderíamos
chamar dos filisteus, é o niilismo quando originalmente fala do
horror da realidade do mundo e da vida humana. A própria
ideia de Deus - a ideia de Deus como bondade, amor, verdade e
onipotência - torna-se um módulo para rejeitar Deus e o
mundo.
Se Deus quisesse a verdade, a bondade e o amor, Ele teria
criado os homens e o mundo de maneira diferente. Ou seja,
Deus não é onipotente ou não é bom.
Por meio dessa história, ouvimos as acusações
desesperadas do homem contra Deus. Não é a Deus, mas a um
demônio mau, a quem este mundo deve sua existência. E essas
acusações afundam no niilismo: a acusação não tem sentido
porque não há Deus ou demônios, é como é - não há nada além
dessa ninharia e dessa condição diabólica de ser homem.

Coincidência das três figuras da incredulidade:


Demonologia, divinização dos homens e niilismo são da
mesma natureza. Assim como as vidas verdadeiras se
endireitam ao Um, mesmo quando a verdade única não é
claramente apresentada à vista, também a dispersão da
infilosofia parece revelar um análogo do Um quando nela as
posições são trazidas à tona.
Niilismo é insustentável. Procure soluções na
demonologia e na divinização dos homens. Aqui está um sutiã.
Mas a mentalidade niilista persiste. Conseqüentemente, no
campo da demonologia há um anseio por nada, uma tomada de
poderes a partir do nada.
Na aspereza face ao nada, sem desespero, a vida torna-se
vida sem esperança, quer por pobreza de alma quer por falta de
sensibilidade, quer com pretensão de heroísmo, mas que, como
se sabe e se expõe como tal, só ele é heróico, ele faz gestos,
mas não é existência.

107
A divinização dos homens é como uma evasão para se
salvar do niilismo, mas já é dissimuladamente niilista. Tem que
decepcionar quando o homem deificado vive e é
contemporâneo. Então, a experiência de que afinal o homem é
apenas homem, deve precipitar novamente o niilismo de forma
ainda mais decisiva. De antemão, a divinização de um homem
serve como meio de desprezar os outros. Eles não têm direitos
de qualquer espécie; eles são usados e consumidos como
material.
Verdade em cada uma das três figuras: Filosoficamente,
a tarefa consiste não apenas em refutar, mas em justificar ao
mesmo tempo o que é verdadeiro no que é refutado.
No fundo da demonologia está a verdade da linguagem
das figuras da transcendência no mundo. Há uma razão na
contemplação do presente sensivelmente insensível, da
fisionomia das coisas e dos acontecimentos. A forma
mitológica de pensamento contém em si a verdade, que,
transformada, possui algo intransponível. Sua perda significa
um empobrecimento da alma e um esvaziamento do mundo. O
homem que não ouve mais essa linguagem, parece que não
consegue mais amar, porque no transcendente alheio ao sentido
não há mais objeto para o seu amor. É verdade que a partir daí é
possível nutrir o amor mais extraordinário do mundo e mantê-lo
puro sem confusão; mas aí o homem também pode se perder no
que é estranho ao mundo, no que é desumano e estranho.
Embora a demonologia permaneça falsa, em imagens e figuras
ela pode e deve tornar a linguagem de Deus sensível ao
homem, mesmo quando é incompreensivelmente enganosa na
pregação objetivante. Não é só a fraqueza da nossa finitude,
mas também o amor ao mundo como criação de Deus que nos
impede de pisar exclusivamente no transcendente alheio ao
sentido, a menos que esteja no limite de um trânsito.
A verdade que está por trás da divinização dos homens é
que no mundo a única coisa genuína para o homem é o homem.
Há algo no homem que tornou possível a frase: Deus criou o
homem à sua imagem; mas o homem caiu e daí isso em cada
um dos homens

108
como homem, a imagem de Deus está velada. Os grandes
homens são, para aqueles que os seguem orientação e modelo,
objetos de veneração e possível via de ascensão, ainda que
continuem sendo homens com seus defeitos e suas faltas e,
conseqüentemente, nunca objeto de imitação. Existe uma
relação livre de homem para homem quando para o indivíduo
existe um vínculo histórico com certos indivíduos que sustenta
sua vida, se baseia na tradição e se realiza no amor.
No niilismo, o inevitável é pronunciado para o homem
sincero. Na realidade do ser do mundo, o desespero no limite é
inevitável. Para toda fé, a prova subsiste na possibilidade do
nada. Nenhuma fé tem o direito de se orgulhar de uma garantia
na qual pode confiar objetivamente. O caráter de aventura e
dom, próprio à certeza da fé, tem o niilismo diante de si como
uma ameaça contra toda arrogância a que a fé pode tender e em
que tantas vezes incorreu quando se tornou rígida.
Niilismo é diferente da demonologia e divinização dos
homens para a qual se desvia; o niilismo conspícuo é
irrefutável, assim como, inversamente, nenhuma fé pode ser
demonstrada. Há algo que revolta aqueles que rejeitam
arrogantemente o niilismo. Quem, diante das terríveis
contradições e injustiças, não as torna presentes em toda a sua
realidade, mas com uma naturalidade quase automática as
ignora ao falar de Deus, podemos parecer mais mentirosos do
que o próprio niilista. Dostoievski revela como crianças
inocentes são torturadas e assassinadas. Que tipo de ser, do
mundo, de Deus, são aqueles graças aos quais isso é possível e
permitido! Quem sofreu o mais horrível, e desde então dá a
volta ao mundo carregado de ódio e indignação, é, sem dúvida,
um vizinho muito incômodo. Inspira, por sua vez, horror e
horror. Os instintos de conservação se levantam contra ele,
querendo anulá-lo como um louco. Assim como o homem
pode enlouquecer por causa da natureza, também por outro
homem dominado por esse horror que o torna absolutamente
niilista. Não vamos afirmar, não vamos reconhecer que ele está
certo, e vamos declarar que o mal permanece

109
mal mesmo quando é feito como resultado de um mal anterior
e como reação a ele. Mas nos tornamos incapazes de acreditar
em uma harmonia de ser. Compaixão ilimitada, perplexidade
silenciosa, desespero devem nos invadir. Antes de ignorarmos
o motivo por trás das experiências que podem levar ao
niilismo, pode-se perguntar: como é possível que não
acabemos sendo todos niilistas?
E, no entanto, minhas palestras são em sua totalidade uma
tentativa de conter o niilismo. Falo precisamente do que
parece que acabo de rejeitar: falo de Deus. Daí a minha
reserva. Não tenho nada a proclamar. A única coisa que exijo
dos meus ouvintes é que examinem a partir da sua própria
essência, que não se limitem a seguir os preceitos do docente,
mas que no máximo os tomem como um convite para se
certificarem por si próprios. .
E então, arrisco dizer novamente; A demonologia, a
divinização dos homens e o niilismo cometem o mesmo erro
em diferentes formas de querer alcançar a verdade com um
instrumento muito curto. Na presença da única frase: Deus
existe, todas essas falsidades devem desaparecer como a
névoa diante do sol. Mas a névoa se lança sobre nós, porque
nessa tentativa encontramos a corporeidade no mundo, o
presente real, a palmarie - quando, ao contrário, o verdadeiro
parece incompreensível no invisível e, portanto, permanece
reduzido a nada. Portanto, só o alcançamos dando a volta no
ser do mundo e sempre caímos naquelas imprecisões que é
preciso superar previamente para poder perceber a
profundidade do ser genuíno, da divindade.
Deus é a coisa mais distante, é a transcendência, diante da
qual tudo o mais fica aquém se for tomado como absoluto.
Mas o que é Deus, a transcendência, é uma questão que
certamente terá de ser examinada ao infinito, enfrentando-a
com desvios por negações, mas sem nunca realmente
apreendê-la.
Relação entre filosofia e infilosofia: A fé é sempre obtida
com base na descrença. Quem não conhece a experiência

110
de descrença, ele também não percebe nenhuma de suas
crenças mesmo conscientes.
O mesmo é verdade para a filosofia. Não pode ser
descartado assim. Não é algo supérfluo e contingente a ser
eliminado. É a filosofia no limite, transita para o próprio
filosofar. Mas é ao mesmo tempo o que é rejeitado quando se
chega à melhoria.
A transcendência parece facilitar o acesso a ela por todas
as estradas. Mas a verdade ainda está nos caminhos da
infilosofia, cada um dos quais, entretanto, leva imediatamente
a uma certa imprecisão: demonologia, à imprecisão da
superstição e do esteticismo; a divinização dos homens, até a
imprecisão de confundir Deus e o homem; niilismo, vazio
desesperado, carregado de ódio, coincidências que se derretem
caoticamente.
O que, por sua função, pode ter uma verdade seja
temporariamente, como linguagem ou como aguilhão, torna-se
impreciso quando se torna definitivo e consolidado.
Até agora falamos sobre o conteúdo da descrença como
um reflexo da filosofia. Mas o meio, tanto da filosofia niilista
quanto dogmática, são formas de pensamento organizadas na
natureza da coisa, inevitavelmente se apresentam e requerem
um esclarecimento metódico e consciente.
Para que possamos apresentar logicamente os modos de
pensamento que são uma transcendência desenvolvida
metodicamente, e os modos de pensamento de objetificar e
estabelecer objetivos nos quais a filosofia encalhe em bancos
de areia, seria necessário mostrar o que é a verdade e em que
figura.
A verdade é simples, a imprecisão é diversa. A verdade
tem coesão, a imprecisão está espalhada. A verdade é infinita;
o impreciso não tem fim. A verdade é edificada; a imprecisão
se autodestrói.
A verdade é a origem do nosso pensamento e a verdade é
a medida da imprecisão. Somente sendo guiados pelo que é
verdadeiro podemos ter uma visão de

111
conjunto do possível impreciso, visto que surge do verdadeiro
por deslizamento, inversão, transposição. Em vez dessa visão
geral, nos limitaremos a fazer algumas referências aqui a
formas de infilosofia.
1º Absolutização: O erro é: O que é válido numa fase do
ser ou pensar, o que é válido sobretudo em certos aspectos a
partir de certos pontos de vista, é isolado e absolutizado.
Como todo conhecimento sempre tem um significado
limitado, pois, além disso, toda demonstração fundada em
premissas se refere a uma coisa finita no mundo, a pretensão de
fazer predicações do ser como um todo, por exemplo, do
mundo absolutamente, de Deus, é imprecisas se forem
necessárias previsões que existam univocamente em si mesmas,
tenham um significado definitivo e sejam demonstráveis. A
única coisa que pode ser demonstrada é a indemonstrabilidade
das predicações gerais, por exemplo, de todo o mundo, sejam
elas positivas ou negativas.
2º A ontologia: A ontologia pretende ser uma doutrina do
próprio ser em si e como um todo; porém, na execução ela se
tornará necessariamente um certo conhecimento de algo do ser,
não o conhecimento do próprio ser.
Na realidade, há apenas o esclarecimento do englobante,
que, estando ele mesmo em movimento e imperfeição,
permanece flutuante; além disso, existe uma doutrina universal
das categorias e métodos das obras de pensamento. Um e outro
substituem a ontologia, o que nunca é verdade.
A ontologia, mesmo que inclua Deus, é sempre, em
última instância, uma doutrina da imanência, uma doutrina do
que existe, do ser como existente, como é conhecido pelo
homem. O verdadeiro filosofar é contra esse investimento da
iluminação filosófica no conhecimento aparente. Não abandona
o âmbito do englobante, não esquece a transcendência
constantemente inerente ao filosofar, permanece aberta ao ser
transversal ao tempo, sendo que é sensível na eternidade
presente na historicidade graças ao pensamento como
realidade.
3º O reflexo vazio: Chama-se assim o pensamento de que

112
Guiado apenas pelas formas de pensamento, sem ser
impulsionado pelo conteúdo, avança sem fim, tudo põe em
dúvida, mas apenas no movimento da negação, sem se
impulsionar desde a origem de um englobante, no qual se
anularia esse movimento. Conseqüentemente, ela se limita a
dissolver tudo o que é dado, fazendo desaparecer todo objetivo.
Essa aniquilação sem fim é consumada, por exemplo, na forma
de pensamento acusatório em ironia destituída de conteúdo,
psicologicamente compreensível por razões; ele está
inconsciente e sem escrúpulos sobre a origem de seu próprio
modo de pensar.
4º Teses de adesão unilateral: Como todas as referências
ex-sistenciais à transcendência são dialéticas, a predicação
determinada é sempre imprecisa em virtude de seu conteúdo
imediato. O modo de certeza está na dialética, não na posse
intelectual de uma coisa.
Como tese de adesão, as absolutizações tornam-se uma
espécie de bandeira. Eles são o fulcro, a marca de
pertencimento a um grupo no mundo, um sinal de entusiasmo,
um emblema de luta.
5º O credo quia absurdum: Os postulados da lógica do
entendimento são válidos apenas na esfera do cognoscível, isto
é, dos objetos matemáticos ideais, da experiência empírica no
meio do conhecimento obrigatório. Pode-se esclarecer
filosoficamente que nele o ser não se esgota, e certamente por
meio de antinomias, por meio da expressão especulativa em
paradoxos.
Mas é um passo errôneo e ao mesmo tempo forçou a
tentativa de formular como verdade nas formas de sabedoria
objetiva possível o empiricamente ou logicamente impossível.
O sentido de inescrutabilidade objetiva é então revertido na
impossibilidade positiva de algo objetivamente predicado; estar
aberto aos limites, na abnegação do pensamento; a veracidade
de poder ouvir, na mentira de um sacrificium intellectus.
Esses exemplos de formas de pensamento errôneas são
feitos por meio de conversões peculiares às quais estamos
sujeitos o tempo todo:

113
1º O fanatismo pela verdade, que se torna insincero:
Com o esclarecimento das trevas de onde viemos, surge o
impulso à sinceridade ilimitada. Tudo tem que ser iluminado,
justificado, fundamentado. Não há nada que não possa ser
questionado e examinado. O entusiasmo pela veracidade
assumirá todos os riscos apenas por causa da verdade.
Mas esse impulso raramente permanece puro. À vontade
de verdade associa-se o sentimento de superioridade e poder,
surge imediatamente o desejo de lutar, o desejo de destruição, o
sadismo. O ódio usa a aparente sinceridade como um de seus
meios.
Isso é facilitado porque a questão sobre o significado da
verdade - uma questão que não é fácil de responder -
permanece obscura, e nem mesmo levantada, desde o início.
Assim veio o fenômeno surpreendente de que o homem
iluminado tornou-se insincero. Ele foi capaz de mergulhar nas
reivindicações da verdade lutando por seus interesses de
existência, e como um neurótico perplexo, ele foi capaz de
expor um pathos pela verdade.
Em particular, as evidências aparentes conduzem ao
fanatismo insincero pela verdade, que assume diferentes formas
dependendo do caso, por exemplo: a verdade só pode ter
consequências boas e desejáveis; Você deve dizer a verdade em
todas as circunstâncias e sempre dizê-la. Ou, ao contrário,
depois de decepções, declara-se: o mundo está corrompido; a
verdade é inútil, ela destrói; É necessário esconder a verdade e
encontrar a mentira conveniente e lucrativa. Desse modo, o
fanatismo pela verdade atinge seu ápice quando afirma a
mentira a partir de uma pretensa sinceridade. Mas, na realidade,
essas distorções totais servem apenas para esconder o esforço
genuíno pela verdade.
2º Sacrifício do ciclo dialético: A partir das alternativas
de compreensão nasce a tendência de apreender em linha reta,
com cálculo finalista, o conteúdo, ao invés de fazê-lo em
tensões, polaridades, movimentos dialéticos, com os quais se
obtém como conseqüência, não só que o objetivo não é
alcançado, mas a própria vida está paralisada.

114
Isso está presente nas fases das analogias. A ocorrência
psicofísica já é uma ocorrência cíclica, cuja estrutura foi
revelada nos primeiros inícios da investigação: nas funções
psicofísicas da atividade motora, fala, andar, trabalhar,
percepção, as funções da respiração, evacuações, da
sexualidade. Quando o cálculo finalista cooperar nessas
funções e com ele a atenção, pode ocorrer um aumento, mas
também uma perturbação radical, pois o fundamento deve
continuar sempre a ser o processo cíclico, entregando-se no
ato, o passivo no ativo . Psicologicamente, o oposto está
constantemente relacionado. O voluntário é alcançado apenas
no involuntário; tensão, apenas com o relaxamento
correspondente; o processo ideológico consciente, apenas
quando a ideia é apresentada inconscientemente. Quando o
afrouxamento carece de ação ativa, surge a contração. A
própria vontade contém em si o que não pode ser desejado;
quando é realizado, ele precisa do indesejado em si mesmo. No
ex-sistencial, o homem só é ele mesmo quando no ser se
entrega a si mesmo. A liberdade é um dádiva da
transcendência. Esta liberdade não visa um fim, não é
obediência a um dever-ser calculado, não é um ato forçado,
mas uma vontade emancipada de toda coerção, uma vontade
que é um dever transcendente. Consequentemente, a ordem
psicofísica, a naturalidade psicológica e o ser-fundado ex-
sistencial são modos de realização que não devem ser
entendidos alternativamente em um sentido unívoco. O que
nossa consciência deseja alcançar em intenção unilinear está
sujeito a eles.
O sacrifício desse fundamento em favor da fixação
racional dos fins finitos provém da covardia incapaz de se
render do conforto do entendimento, da necessidade de
segurança no unívoco, da consequente violência à doutrina da
alma. Procuramos assim um refúgio onde a vida cessa e o nada
ameaça, quando nossa angústia pensa que está justamente ali
onde está mais seguro.
3ª Confusão do englobante com a sua objetivação
particular: o pensamento filosófico nasce de um ser-interior

115
da alma, que no pensamento busca a autoconsciência e, com
ela, a objetividade e a comunicação.
Para entender as obras filosóficas, o que importa é fazer
parte desse alicerce. É preciso percorrer o pensamento para
chegar com ele a esse fundamento que é o englobante, a partir
da qual foi pensado, mas que não pode se tornar um objeto
adequado de pensamento. Esse fundo deve ser vislumbrado na
apropriação filosófica: em sua profundidade e abundância, em
seu vazio e insuficiência, em sua fragilidade e investimento. É
um erro fundamental confundir o conteúdo óbvio do
pensamento, a concretude do objetivo, a visibilidade da
existência, de tudo que é particular, com o englobamento de
onde ela provém. Graças apenas a este englobante, ocorre a
comunicação genuína, sendo atraído e rejeitado. Por outro
lado, tudo o que é objetivamente falável é apenas a linguagem
do estado de espírito fundamental que busca, que, como mera
linguagem, torna-se nula quando o que vem desaparece. Desta
forma, o vazio do homem pode ser dado uma compreensão
aparente por uma linguagem adotada, e uma posição
(condicionada pela conjuntura) de interesses da existência pode
colocar em velhos pensamentos como magníficos mas
enganosos vestidos.
Filosofa-se desde o englobante. A infilosofia é colocada a
qualquer momento sobre o solo firme de uma particularidade e
objetividade que muda à vontade. Do equilíbrio lábil do
filosofar vivo, ele cai na castidade estável do intelecto direto
ou se evapora no indeterminado do delírio.
Com isso acabo com o exame da infilosofia, que
repudiamos, mas em que estamos constantemente envolvidos -
contra o qual permanecemos indefesos se não o conhecemos
bem -, que não devemos desprezar, mas olhar para ele face
enfrentar, conhecer a nós mesmos "E, conseqüentemente,
nunca devemos nos orgulhar de acreditar que superamos isso.

116
SEXTA CONFERÊNCIA

A FILOSOFIA DO FUTURO
A filosofia quer apreender a verdade eterna. Esta verdade
não é sempre a mesma, única e total? Pode ser - mas não se
torna parte de nossa herança inequivocamente na forma de
validade geral. O ser só se abre para nós com o tempo; o
verdadeiro, em manifestação temporária. Mas com o tempo, a
verdade perfeita não é objetivamente acessível. Nem o homem
como indivíduo, nem a história podem apreendê-lo de outra
forma que não em uma aparição que a cada momento
desaparece novamente.
Como indivíduo, cada um de nós chega ao fim de sua
vida sem saber o que é corretamente. Ficamos sem algo
definitivo no caminho que nada mais faz do que se interromper
sem se consumir em nenhum objetivo absoluto.
O trabalho de filosofar é como uma comparação de todo o
nosso trabalho. Kant diz que, quando já avançamos a ponto de
poder começar a filosofar bem, devemos confiar a coisa
novamente aos iniciantes. Essa é a experiência do filósofo que,
ao envelhecer, não se estagnou na posse da verdade. É a
maneira de ser espiritualmente jovem na dor da separação.
Mas será que o significado essencial do nosso trabalho
está voltado para o futuro? Acho que não, porque até o futuro
só servimos com a condição de realizá-lo no presente.

117
Não devemos esperar que o nosso venha até nós apenas do
futuro. Se esta presença não pode realmente atingir uma
consumação, como uma existência temporária, com a qual
podemos descansar e durar no tempo, é possível pelo menos
penetrar no presente para chegar ao presente eterno em
aparência temporária. A presença da verdade no tempo é
certamente tão elusiva quanto o olhar irreprimível dos olhos,
mas está sempre lá novamente.
Assim, então, nossa vida na história é ao mesmo tempo as
duas: a vida que, servindo, serve de fundamento para a vida de
quem vem depois de nós, e a vida transversalmente à história,
no absolutamente presente, Endireitada à transcendência isso
nos liberta.
Essa liberação na consumação, apaga o tempo. Mas se
existe essa libertação, é incomunicável, a menos que seja no
jogo estético, no pensamento especulativo, no culto religioso ou
nos momentos altos da unanimidade entre dois, e cada vez
imediatamente duvidoso para a reflexão posterior, que só
conhece o fenômeno.
Se a história é a revelação do ser, a verdade na história
existe em todos os tempos e nunca, sempre em movimento, e se
perde quando parece ter se tornado uma posse definitiva.
Talvez a verdade se mostre desde a profundidade máxima, onde
o movimento é mais revolucionário na passagem constante do
tempo. No presente podemos tentar, enfrentando o passado,
perceber o peculiar em cujas condições vivemos e o futuro está.
Questionam-se: Será que estamos no trânsito de um radicalismo
que mexe com as profundezas? Nasceram possibilidades para
nós que só agora começam? Ouvimos afirmações feitas a nós
com base precisamente nesta situação?
Na consciência de todos está: A incisão que nosso tempo
faz na história do mundo é mais profunda e mais prenhe de
consequências do que qualquer outra existente na história que
conhecemos. Parece comparável à época desconhecida em que
o primeiro fogo foi aceso, à da invenção dos instrumentos, à da
formação das primeiras formas de Estado. Os novos fatos são:

118
a tecnologia moderna com as suas consequências para o modo
como o homem trabalha e para a sociedade, - a unidade de
comunicação da terra, cujo alcance foi assim reduzido a
dimensões menores do que, por exemplo, o orbis terrarum da
época romana, - o limite absoluto pelo estreiteza do planeta, -
as antinomias de liberdade e funcionamento, personalidade e
massa, ordem mundial e império, - o significado decisivo dos
homens que se tornaram massas e se multiplicaram em
números, homens que aparentemente se tornaram co-
conhecedores e coercitivos, mais em escravos da realidade
lucrativa, - o colapso de todos os ideais de ordem do passado e
a necessidade de falar do caos crescente uma nova ordem
humanamente inspirada, - o discutível de todos os valores
tradicionais, que devem ser salvos ou transformados, - além do
concreto situação política, determinada pelas potências
mundiais, os Estados Unidos e a Rússia, - a Europa diminuiu ,
dilacerado em si mesmo, que até agora não se encontrou, - o
despertar das enormes massas humanas da Ásia, que estão em
vias de se tornarem fatores decisivos de poder no futuro.
A marcha das coisas conduziu desde o tempo de
satisfação civil, progresso, cultura, memória histórica como
suporte para a segurança presumida de alguém, a um tempo de
guerras devastadoras, morte e assassinato em massa (como
visto a partir do ressurgimento inesgotável de novas massas),
de terríveis ameaças vida, da extinção da humanidade em um
turbilhão em que o colapso parece possuir coisas.
Então, tudo isso é uma revolução espiritual ou melhor, um
processo em última análise extrínseco, nascido da tecnologia e
de suas consequências? - Uma calamidade e uma possibilidade
enorme, ainda confusa, algo que a princípio simplesmente
aniquila, enquanto o homem ainda precisa acordar para reagir a
isso e, em vez de desistir sem consciência, encontrar sua
existência em condições totalmente novas?
A imagem do futuro é incerta, confusa, mas talvez

119
com maiores perspectivas e mais desesperado ao mesmo tempo
do que nunca. Se eu percebo a missão que o ser-homem tem
nisso, não em vista das exigências imediatas da existência, mas
na atenção à verdade eterna, então pergunto sobre filosofia. O que
a filosofia deve fazer na atual situação mundial?
Hoje, existem várias formas de niilismo de fato.
Apareceram homens que aparentemente sacrificaram todo o seu
ser, para quem nada parece ter valor, que tropeçam
aleatoriamente de momento a momento, que perecem
indiferentemente e matam indiferentemente, - que, no entanto,
parecem viver nas ideias arrebatadoras de um quantitativo, em
fanatismos cegos de natureza intercambiável, movidos por
paixões elementares, alheias, arrogantes e que, no entanto, se
dissipam como espuma e, em última instância, pela vontade
instintiva de gozar o momento.
Se ouvirmos as palavras que são ditas nessa balbúrdia,
elas produzem o efeito de uma preparação dissimulada para poder
morrer. As educações gregárias os tornaram cegos e sem pensar,
para que no delírio da rendição fossem capazes de tudo e
acabassem aceitando a morte e o matar como algo natural, a
morte em massa na luta das máquinas.
Mas, em direção ao poder de morrer, a mais ilustre
filosofia também se endireita. Quero encontrar a razão da atenção
a que resulta o morrer, não compreendido, mas amparado na
inquietação do sofrimento, não numa impaciência estóica, mas
amorosa e cheia de confiança.
É difícil que nenhuma dessas duas coisas seja alcançada
puramente. Esse niilismo vive de paliativos, cuja descoberta
expõe ao desespero, a menos que tudo já não tenha se perdido na
indiferença abjeta. Essa filosofia não garante, tem que ser
conquistada diariamente e sempre te deixa desamparado. O que
então acontece entre o niilismo e a filosofia - quando a pessoa
não caiu totalmente nele, nem mesmo participa dele - tem um
caráter perturbador em situações reais. Vamos colocá-lo como
um manifesto em duas réplicas do ano de 1938:

120
Um jovem fala de maneira apropriada à época do império
a ser fundado. Ele parece animado. Eu o interrompo com a
pergunta: Qual é, então, o sentido desse império e da guerra
que ele vai levar? Resposta: o que significa? Não faz nenhum
sentido! Eles são coisas que estão por vir. No máximo fará
sentido que durante a batalha eu vá levar água ao camarada
sedento com risco de minha vida.
Um estudante, como chefe da S.A., interveio em 9 de
novembro de 1938, em um "pogrom" de judeus. Ele explica
isso para sua mãe. Ele se certificou de que a ação fosse o mais
suave possível. Em uma sala ele pegou um prato, bateu
ruidosamente no chão e exclamou para seus companheiros: Eu
sei que a sala está destruída e sai dela sem tê-la destruído. Mas
ele continua contando: aquele dia causou nele uma grande e
encorajadora impressão; Foi visto que energias dormem na
cidade e do que ela é capaz; boas perspectivas para a guerra
que está por vir. Expõe o novo “ethos” e a grandeza do
“Führer”. A mãe, horrorizada, o interrompe: Meu filho, mas se
você mesmo acredita nisso! Ele, após um momento de
perplexidade, responde decidido: Não, não acredito, mas é
preciso acreditar.
O primeiro foi colocado no terreno da humanidade mais
simples, mas nublado pelos caprichos imperialistas, mesmo
quando sua nulidade se tornou aparente. O segundo levou a
sério a proposição: Não importa o que é criado, mas o que é
criado. É o investimento prodigioso. A fé se torna acreditar na
fé. Muitas expressões que afirmam ser niilistas e positivas
respondem a isso: A pessoa quer renunciar a todo significado
com intrepidez e sustenta uma falta deliberada de significado
como significado. O "serviço inútil" é exigido como forma de
prestação - um comportamento que tudo sacrifica, mas que o
sacrifica por nada - a afirmação apaixonada de qualquer coisa
é exigida, a resolução fanática por nada. Palavras antigas
como honra, amor à pátria, fidelidade são usadas, mas ao
mesmo tempo tudo é sacrificado ao espetáculo, à ordem, ao
terror, mostrando assim que aquelas palavras eram mera
decoração. Um comportamento se desenvolve

121
em uma máscara de ferro, tensa, sempre à beira da explosão,
um absoluto sem conteúdo.
Nesse desespero, existem muitas posições:
O "dinamismo" é exaltado a todo custo, o movimento
em si é apreciado, o novo é desejado e o antigo é destruído.
Todos os grandes homens violentos são admirados, Genghis
Kan Chi Huang Ti. Agátocles, e como sempre foi feito:
Alexandre, César, Napoleão.
E, inversamente, o retorno ao passado é saudado. O
primitivo em si tem charme e verdade eterna, tanto o pré-
histórico quanto a existência de povos selvagens. Ou a Idade
Média, as grandes Ordens do regime disciplinar, os impérios
que imprimiram seu estilo durante séculos são elogiados.
Quer-se um novo mito, que seja apresentado de forma
grosseira em movimentos ditatoriais ou seja cultivado de
forma mais sublime em grupos culturais que cultuam
Hölderlin, Van Gogh e mesmo seus epígonos, esquecendo que
essas glande foram exceções extraordinárias cuja
originalidade era mais freqüentemente ligada por sua origem a
uma doença espiritual destrutiva. A verdadeira presença
mítica neles produz um enorme efeito neste mundo moderno
alheio ao mito. A alma pura de Hölderlin é positivamente
inesquecível, seu mito é encantador e um ato de humanidade
para penetrar em sua esfera. Mas nada disso é verdadeiro
mito, visto que só é autêntico nesses indivíduos; não tem
comunidade e, conseqüentemente, é repentino como nada.
Sempre há o fornecimento de seitas religiosas. Quando
tudo vira de cabeça para baixo no redemoinho da falta de
sentido, eles mostram sua continuidade. Na atualidade, de
acordo com o espírito da época, da qual foge a liberdade e em
que prevalece alternadamente a anarquia ou a ditadura,
acentuam sua ortodoxia irrestrita, seu caráter de total
subordinação do homem - mas sem poder restaurar o que
outrora foi religião: a permeação de toda a vida em tudo, todos
os dias, do nascimento à morte - o reino em que tudo acontece
e através do qual o homem está sempre em seu elemento.
Também hoje

122
a religião se limita a ser um setor da vida: o domingo ao lado
do resto da vida e fora dela.
Essas religiões, com sua alternativa "ou niilismo ou
revelação", rejeitam a filosofia. Este último é censurado por ter,
como autor intelectual, parte da culpa pelo infortúnio da alma
moderna.
Mas ouvimos sobre o fim da filosofia não apenas daqueles
que, com sua alternativa, gostariam de nos forçar a entrar na fé
na revelação. O fim da filosofia também foi afirmado pelo
nacional-socialismo, que não suportou a independência do
pensamento filosófico. A filosofia deve ser substituída por uma
visão de mundo biológica e antropológica. E, além disso, toda
figura do niilismo rejeita a filosofia, considerando-a um mundo
de ilusões, de sonhos vãos, de débil auto-engano. Para ele,
ambas, religião e filosofia, acabaram. Afirma-se que o novo é a
liberdade do homem sem ilusões, sem fundamento e sem
propósito. Além disso, a opinião pública difundida, finalmente,
considera a filosofia pelo menos como supérflua, uma vez que
a filosofia é cega para o presente, para suas forças e
movimentos. Ele se perguntou: Por que filosofia? A filosofia
não ajuda. Platão não pôde ajudar os gregos, não evitou sua
ruína e até mesmo indiretamente contribuiu para sua ruína.
Todas as negações da filosofia julgam com base em outro
critério, seja de um conteúdo firme de fé, que foi ameaçado
pela filosofia, seja por fins existenciais para os quais a filosofia
é inútil, ou por seu niilismo que rejeita tudo, portanto, rejeita a
filosofia também.
Mas ao filosofar ocorre algo que nenhum dos que o
rejeitam vê: com ele o homem conquista a sua origem. Nesse
sentido, a filosofia é incondicional e sem propósito. Nem pode
ser baseado em outro critério ou justificado por sua utilidade
para outra coisa. Não é uma viga ou lâmina na qual alguém
pode se apoiar. A filosofia não pode ser obtida. Não pode ser
usado.
Arriscamos afirmar: a filosofia não pode deixar de existir
enquanto houver homens. Filosofia sustenta

123
a pretensão de captar o sentido da vida para além de todos os
confins do mundo - para revelar o sentido que envolve esses
fins -; cumprir, realizando-o no presente, este sentido, como se
disséssemos transversalmente à vida, —com a sua presença
para servir o futuro ao mesmo tempo—, nunca para rebaixar o
homem, ou um homem, à condição de meros meios.
A missão permanente do filosofar é: tornar-se
propriamente homem graças a estar imbuído de ser; ou o que é
o mesmo: tornar-se você mesmo adquirindo a certeza de Deus.
O cumprimento desta missão possui as seguintes características
imutáveis:
Em todos os tempos e também no presente deve-se
realizar o trabalho do ofício filosófico: desenvolvimento de
categorias e métodos, estruturação de nossos conhecimentos
fundamentais, —orientação no cosmos das ciências—,
apropriação da história da filosofia, - exercício de pensamento
especulativo na metafísica, esclarecendo o pensamento na
filosofia existencial.
Em todas as idades, o objetivo é conquistar a
independência do homem como indivíduo. Ele o obtém por
referência ao seu ser genuíno. Torna-se independente de tudo o
que acontece no mundo, graças à profundidade de sua sujeição
à transcendência. O que Laotsé concebeu no Tao, Sócrates no
mandato divino e no conhecimento, Jeremias em Yahweh, que
lhe foi revelado; o que Boécio, Bruno, Spinoza sabiam: era o
que os tornava independentes. Essa independência filosófica
não deve ser confundida com a libertinagem da arbitrariedade
soberana, ou com a força vital que resiste à morte.
Em todas as épocas, o problema está em tensão: encontrar
a independência fora do mundo, na renúncia e na solidão - ou
no próprio mundo, através do mundo, cooperando nele, sem
sucumbir a ele. Assim, o filósofo, que só quer a sua liberdade
com a liberdade dos outros, a sua vida só na comunicação com
os homens, é o que gritava o louco atrás de Confúcio: “aquele é
o homem que sabe que as coisas não vão e continue a caminhar
com elas ”- uma verdade para o conhecimento finito, que

124
ele absolutiza seu status de aparente, mas uma verdade que não
faz vacilar a verdade mais profunda da fé filosófica.
A filosofia se dirige ao indivíduo. Em todos os mundos,
em todas as situações, se realiza a filosofia de relançar o
indivíduo a si mesmo, pois só quem é ele mesmo - e pode
prová-lo na solidão - é capaz de se comunicar verdadeiramente.
Pode-se dizer algo sobre a missão atual da filosofia dentro
da missão permanente assim formulada?
Ouvimos dizer que a fé na razão acabou. O grande passo
do século XX teria sido afastar-se do “logos”, da ideia de
ordem do mundo, da humanidade.
É necessário acrescentar ainda: Este passo é verdadeiro,
porque destruiu a autoconfiança de um entendimento
abandonado pela razão, desmascarou a ilusão de um mundo
harmonioso, aboliu a confiança não diretamente e não a própria
lei. Posições que em palavras pareciam sublimes e por trás das
quais se escondia o fundo de uma vida, foi o que a psicanálise
desmascarou, aquele movimento psicoterapêutico que se
expandiu numa concepção confusa do mundo e que teve sua
verdade parcial diante de uma época hipócrita e dependente
dela.
Quando tudo foi cortado, a raiz é exposta. A raiz é a
origem de onde viemos e da qual esquecemos na interação de
opiniões, hábitos e esquemas de concepção.
A missão atual é restabelecer a própria razão na
existência. É a demanda mais premente na situação espiritual
determinada por Kierkegaard e Nietzsche, por Pascal e
Dostoiévski.
Seu cumprimento não pode consistir em restaurar uma
situação que já existia. No momento, parece que deve conter
necessariamente os seguintes elementos:
1° Buscamos a paz despertando continuamente nossa
preocupação.

125
2º Passando pelo niilismo passamos a nos apropriar de
nossa tradição.
3º Buscamos a pureza das ciências como requisito para a
verdade de nossa filosofia.
4º A razão torna-se uma vontade ilimitada de comunicar.
1 ° Buscamos a paz despertando continuamente nossa
preocupação.
A paz é o objetivo do filosofar.
Nas mais enormes desordens, gostaríamos de ter certeza
do que resta, porque sempre existe. Na aflição, refletimos
sobre nossa origem. Na ameaça mortal, queremos meditar
sobre o que nos torna imperturbáveis.
A filosofia também pode nos dar hoje o que Parmênides
já sabia quando ergueu um santuário ao deus em ação de
graças pela tranquilidade que a filosofia lhe deu. Mas hoje
existe muita falsa tranquilidade.
É horrível: hoje, apesar de todos os choques e destruição,
ainda corremos o risco de viver e pensar como se nada de
essencial tivesse acontecido de maneira adequada. É como se
apenas um grande infortúnio, como um incêndio, tivesse
perturbado a bela vida de nós, os pobres afetados, mas agora é
conveniente que a vida continue como antes. É como se nada
tivesse acontecido. Na angústia do momento, perplexos ou
zangados, acusamos os outros. Quem se sente assim, ainda
está preso na bagunça que só permite uma aparência de paz.
Essa paz deve ser transformada em inquietação. Pois bem,
existe um grande perigo: o que aconteceu pode ser uma grande
calamidade temporária que aflige as massas, sem que isso
aconteça aos homens como homens, sem que ouçamos a
transcendência, tornamo-nos clarividentes e agimos. Uma
enorme perda de consciência nos mergulharia na estreiteza.
Para conhecer a situação como ela é e como será no
futuro, temos um modelo de orientação, não para imitá-la; o
tempo dos profetas judeus. Palestina, localizada

126
entre o Oriente e o Ocidente, entre os grandes reinos da
Babilônia e do Egito, ele teve que experimentar sua ruína
política, ser dilacerado, devastado, para se tornar um
brinquedo da política dos grandes, incorporado tão logo um
deles como o outro. Então surgiram alguns profetas com bons
conselhos para que, através de uma aliança com o Oriente ou
com o Ocidente, houvesse proteção no aliado, se pudesse
contar com amigos, viver feliz. Diante desses profetas da
salvação, surgiram os profetas da desgraça, que até agora têm
seus grandes nomes. Eles viram a situação e se recusaram a se
posicionar a favor do Oriente ou do Ocidente. Eles previram a
calamidade iminente. Mas eles não consideraram que fosse a
ocorrência acidental de máquinas de guerra autoritárias, mas
sim como um significado que não poderia ser conhecido em
detalhes. É Deus quem desenvolve o mundo como um tapete.
Ele faz com que os assírios subjugem os povos e mais povos e
os destrua como ninhos de pássaros são destruídos. Ele lidera o
caminho das coisas, em que homens e estados o servem como
instrumentos que fazem o que devem, sem suspeitar que é
Deus quem o quer. Os profetas que falaram assim queriam
despertar seu povo e depois todos os homens. Eles deram
apenas um conselho: obedeça a Deus por meio de uma vida
pura e moral. O que é o mundo, foi criado do nada e nada é. O
significado está no que o homem faz, em obedecer a Deus. O
que Deus quer, dizem os dez mandamentos, com o qual não há
espaço para trocas. O que Deus quer além deles agora, a
qualquer momento, os profetas acreditaram que tinham
revelado de Deus e comunicaram. Mas permaneceu ambíguo.
Deus não fala abertamente aos homens. A enorme modéstia de
não saber é necessária. As perguntas de Jó não foram
respondidas. O clímax da humildade é o idoso Jeremias.
Bem, não temos absolutamente nenhum profeta. Não é
possível imitar o que era ótimo naquela época. Mas é possível,
comparando a situação, fazer-nos sentir que inquietação das
almas seria necessária hoje e que paz podem buscar.

127
No último século, houve algo análogo aos profetas;
Kierkegaard e Nietzsche, que outrora, dominados pela
clarividência e pelo horror ante a marcha da humanidade,
tentaram em vão despertar um mundo letárgico e hoje
permanecem indispensáveis às nossas experiências
fundamentais. Ainda hoje não alcançaram seu objetivo: abrir
realmente os olhos.
Mas eles foram a exceção, sem serem modelos. A ideia
de segui-los seria contrária à sua vontade e impossível para
quem os compreende. Ambos foram vítimas e profetas da
época. Ambos trouxeram a verdade mais profunda inseparável
das estranhas positividades que continuam a ser estranhas para
nós. Kierkegaard trouxe uma interpretação do Cristianismo
como a crença no absurdo, da resolução vingativa em virtude
da qual não era necessário fazer profissão ou casar e apenas ser
mártir é ser autenticamente cristão - interpretação que, quando
adotada, significa o fim do Cristianismo. Nietzsche trouxe suas
idéias de vontade de poder, de super-homem e de eterno
retorno, que sem dúvida mudaram a cabeça de muitos, mas que
são tão inaceitáveis quanto o que poderíamos chamar de
cristianismo forçado de Kierkegaard.
Mas a maioria das refutações que foram escritas contra
Kierkegaard e Nietzsche são inadequadas e constituem uma
espécie de convite para continuar dormindo. Trazem verdades
triviais, mas de tal forma que com elas tentam tirar o ferrão
que Kierkegaard e Nietzsche cravaram em nossa consciência.
Pois bem, não haverá um desenvolvimento sincero de filosofia
no futuro que não tenha feito uma exegese desses dois grandes
que vai até a origem, pois eles, na destruição de sua própria
obra e no sacrifício de sua própria vida, se revelaram para nós
algo insubstituível. Eles permanecem a assombração inelutável
enquanto tivermos uma falsa quietude.
2. Passando pelo niilismo, chegamos à tradição
apropriada.
Inquietação significa que o niilismo está presente em nós
como uma possibilidade vivenciada por nós mesmos.
Conhecemos o desmoronamento de normas válidas, sabemos

128
a falta de fundamento quando não existe mais o vínculo de
união de uma fé, de uma autoconsciência coletiva do povo.
Poucos já tiveram essas experiências desde a época de
Nietzsche, alguns desde 1933, outros depois, e hoje será difícil
haver um único homem reflexivo que não as tenha. Talvez
agora cheguemos a onde fala o que falou de todos os
momentos históricos quebrados e o que a fome clama para nós
deles fala. O niilismo, como movimento ideológico e também
como experiência histórica, torna-se a transição para a mais
profunda apropriação da tradição histórica. Pois o niilismo foi
desde muito cedo, não apenas o caminho para a origem - o
niilismo é tão antigo quanto a filosofia - mas também a água
real que o ouro da verdade tinha que provar.
Desde o início, há algo inabalável na filosofia. Em cada
mudança nos estados e missões da existência da humanidade,
em cada progresso das ciências, em cada desenvolvimento das
categorias e métodos de pensamento, pretende-se apreender a
verdade eterna única em novas condições, com novos meios,
com possibilidades de talvez maior clareza.
Nossa missão hoje é garantir mais uma vez que essa
verdade eterna no niilismo seja levada ao extremo. Isso requer
que nos apropriemos da tradição de uma forma que ela não
conheça extrinsecamente, que não simplesmente contemple,
mas que esteja situada dentro como se estivesse em sua
própria causa.
Para isso, devemos rejeitar para a própria filosofia a
ideia de progresso que é apenas para as ciências e para os
instrumentos da filosofia. Era uma concepção errônea que,
com o melhor posterior, o primeiro fosse descartado, o que,
como uma fase de progresso posterior, retinha apenas um
interesse meramente histórico. Então, o novo como tal é
erroneamente considerado o verdadeiro. Graças à descoberta
desta novidade, tem-se a impressão de estar no topo da
história. Essa postura fundamental foi freqüentemente adotada
por filósofos nos últimos séculos. Eles sempre recaíam na
opinião de considerar isso com algo totalmente novo

129
iriam superar todo o passado e só agora começaria a verdadeira
filosofia. Foi o que aconteceu com Descartes e, apesar de todo
o seu pudor e com o máximo de direitos, com Kant;
arrogantemente com os chamados idealistas alemães Fichte,
Hegel e Schelling, e novamente em Nietzsche.
E a tragédia foi seguida pela peça satírica. Quando em 1910, no
primeiro número de "Logos", Husserl escreveu seu estudo
sobre a filosofia como ciência estrita, onde, na qualidade de
representante mais importante (porque era eminentemente
consistente) de sua especialidade, estabeleceu os alicerces a
partir de agora no Definitivo para a filosofia, os espíritos
estavam divididos. Apesar de todo respeito pela disciplina
racional daquela fenomenologia e do neokantismo, outros
tentaram com todo amor, contra essas pretensões, buscar a
essência da filosofia na base da tradição como eternamente
verdadeira, deixando de aspirar mais. para o novo que eles
consideravam discutível. E, no entanto, aquele tom de novidade
agressiva permaneceu e, se não me engano, só agora está
começando a desaparecer. A ideia de progresso foi uma
maneira pela qual a experiência do original foi mal interpretada
como historicamente nova porque a filosofia foi confundida
com a ciência moderna. Além disso, a filosofia foi dominada
por um desejo de domínio, de poder, de prestígio. A filosofia é
completamente diferente da aparência que assumiu naquele
desvio; algo eterno está presente desde que o homem se tornou
filosoficamente consciente de si mesmo. Abandonar o
fundamento histórico em favor de algo novo e usar a história
como uma pedreira da qual extrair materiais para interpretações
arbitrárias é um caminho que conduz ao poço do niilismo. Nem
devemos nos submeter a fenômenos absolutizados do passado,
nem nos distanciarmos sem comprometer o gozo contemplativo
do passado; mas, acima de tudo, o que não podemos fazer é nos
separar do fundamento histórico.
E se já o fizemos, o niilismo nos levará de volta à
verdade genuína com uma operação dolorosa.
A filosofia nos ensina a ver de uma maneira diferente a
posição fundamental recuperada do niilismo. Três milênios

130
da história da filosofia tornou-se como um único presente. As
várias figuras das formações do pensamento histórico contêm
em si uma única verdade. Hegel foi o primeiro que tentou
apreender a unidade desse pensamento, mas ainda assim o fez
de tal maneira que tudo o que foi dito acima tornou-se uma
fase preliminar e uma verdade parcial com respeito à sua
própria filosofia. E o que importa é nos apropriarmos da
perfeição alcançada em qualquer momento pela filosofia para
que permaneçamos em comunicação incessantemente
renovada com os grandes fenômenos do passado, não como
desatualizados, mas como presentes.
Se toda filosofia estiver presente, ela conhecerá seu ser
atual como manifestação de origem e saberá que a tradição
universal é indispensável, conhecerá essa memória sem a qual
mergulharíamos no nada de um mero instante, sem passado ou
futuro. No ser transitório da temporalidade, ele conhece a
presença e a contemporaneidade do que é essencialmente
verdadeiro, da "philosophia perennis" que a qualquer
momento apaga o tempo.
3º Buscamos a pureza das ciências como requisito para
a verdade de nosso filosofar.
A premissa da técnica que revolucionou nossa existência
é a ciência moderna. Mas essa ciência vem de muito mais
longe. Esta ciência é espiritualmente a incisão profunda da
história da humanidade, da qual - ao contrário da tecnologia -
poucos homens sabem, e poucos são os que realmente
contribuem para construí-la, enquanto a massa dos homens
continua a viver em formas pré-científicas. do pensamento e
aproveitando os resultados da ciência como antes os povos
selvagens usavam cartolas, sobretudos e contas de vidro dos
europeus.
Depois de seus primórdios na Grécia, pela primeira vez
desde o final da Idade Média, a moderna realizou pesquisas
verdadeiramente irrestritas, com autocrítica ilimitada,
estendendo-se por toda parte, ao que no mundo aparece e pode
aparecer.
A ciência avança metodicamente, tem validade universal
obrigatória e, sendo assim, realmente goza de aprovação

131
unânime em todos os lugares, tem consciência crítica de seu
procedimento, verifica sistematicamente todo o seu acervo a
qualquer momento, nunca está acabado, mas vive em
constante progresso que chega ao incalculável. O que quer que
apareça no mundo, torna-se seu objeto. Descubra o que
ninguém suspeitou antes. Ele delineia e esclarece nossa
consciência do que existe, e dá cálculos para a realização e
realização prática no mundo de fins que ele não estabelece,
mas que imediatamente transforma em um objeto de sua
investigação.
A ciência é condição indispensável para filosofar. Mas a
situação espiritual provocada pela ciência, tem conduzido
atualmente na filosofia a demandas de cuja clareza e
dificuldade os tempos anteriores não conheciam:
1º A ciência deve ser obtida com pureza absoluta,
porque no cultivo eficaz e no pensamento médio está
envolvida com afirmações e modos de comportamento que
não são científicos. A ciência pura e estrita com respeito a
todo o domínio do que existe no mundo, atingiu em algumas
personalidades de pesquisadores um ponto tão grande do qual
ainda estamos muito distantes em toda a nossa existência
espiritual.
2º É preciso iluminar e superar totalmente a superstição
da ciência. Nossa era de descrença incessante se valeu da
ciência com a pretensão de que serviria de ponto de apoio,
acreditou nos chamados resultados científicos, cegamente
submetidos aos chamados especialistas, acreditou que através
da ciência e do planejamento o mundo poderia ser colocado
em ordem Ele esperava que a ciência desse fins à vida que ela
nunca pode dar, e ele esperava um conhecimento do ser como
um todo, conhecimento que para a ciência é inatingível.
3º A mesma filosofia deve ser esclarecida novamente na
ordem metódica; É ciência no sentido inveterado, sempre
subsistente, do pensamento metódico, mas não é assim no
sentido moderno de exploração das coisas que leva a um
conhecimento de validade universal absoluta, obrigatório,
idêntico para todos.

132
O envolvimento errôneo da filosofia e da ciência
moderna por Descartes e seu desvio, notoriamente apropriado
ao espírito desses séculos, levou à noção de ciência como
suposto conhecimento total e filosofia adulterada.
Hoje, junto com a pureza das ciências, deve-se obter a
pureza da filosofia. Ambos são inseparáveis; mas não são
iguais: a filosofia não é uma ciência especial como tantas
outras, nem é uma ciência que coroa todas as outras, nem é
uma ciência fundamental que serve de garantia para as outras
ciências.
A filosofia está ligada à ciência e pensa com o meio
ambiente de todas as ciências; sua verdade é absolutamente
inatingível sem a pureza da verdade científica.
A ciência encontra-se no cosmos da ciência e sob a
orientação de ideias que, consideradas como filosofia, já
nascem em todas as ciências, embora não possam ter
embasamento científico.
O novo fenômeno da consciência da verdade só é
possível com base nas ciências do século passado, mas ainda
não foi alcançado. Trabalhar na sua realização constitui uma
das necessidades mais prementes deste momento histórico.
A pesquisa e a filosofia aliadas devem nos conduzir ao
caminho da verdade real contra a atomização da ciência em
especialidades estanques, contra a superstição da ciência
própria das massas, contra o desamparo da filosofia por causa
da falta de seriedade com que se confundem filosofia e
ciência.
4º A razão torna-se uma vontade ilimitada de
comunicar.
Graças à certeza da validade de uma herança comum que
tudo permeia todos os dias, até pouco tempo antes havia uma
solidariedade entre os homens que raramente tornava a
comunicação um problema especial. Poderíamos ficar
satisfeitos com a frase: podemos orar juntos, não falar juntos.
Hoje, quando não podemos mais orar juntos, é quando pela
primeira vez percebemos plenamente que o ser-humano está
indo

133
juntamente com a possibilidade de comunicação incondicional
entre os homens.
O ser divide-se em sua manifestação pela diversidade
dos homens, pela diversidade das origens da fé e da figura
histórica das coletividades de acordo com o terreno específico
de cada uma delas. Identicamente comuns são apenas ciência
e técnica no englobante da consciência em geral. Mas estes
unem apenas uma consciência geral abstrata; para o homem
real como um todo, eles são tanto um meio de luta quanto um
meio de comunicação.
Tudo o que é real no homem é histórico. Mas
historicidade significa, ao mesmo tempo, historicidade
múltipla. Portanto, é um requisito de comunicação:
1º Interessar-se pelo outro histórico, sem ser infiel à
própria historicidade.
2º Retém a objetividade daquilo que adquire validade
universal, sem prejuízo da pretensão de validade da verdade.
3º Renunciar à pretensão de exclusividade da fé pela
quebra de comunicação que ela acarreta, sem abandonar o
caráter absoluto do próprio fundamento.
4º Aceitar a luta inelutável com os historicamente
diferentes, mas compensar incessantemente a luta com a luta
amorosa, com a união pela verdade, que nasce na comunidade,
não no isolamento, não na exclusão, não na minúcia do
isolado.
5º Saber orientar-se para o fundo, que só se revela com a
divisão em várias historias, a uma das quais pertencemos, mas
que todas nos interessam e conduzem conjuntamente a essa
profundidade.
A fé filosófica é inseparável da vontade ilimitada de
comunicar, pois a própria verdade só nasce quando a fé se
encontra na presença do que tudo abrange. Daí a proposição
ser válida: só os que creem podem realizar a comunicação.
Ao contrário, da fixação de conteúdos de fé que só se repelem
nasce a não-verdade. Portanto, a proposição é válida: não é
possível conversar com os paladinos da fé. A fé filosófica
descobre o diabólico

134
em toda obrigação de ruptura e em toda vontade de ruptura.
Contra a fé filosófica da comunicação é dirigida esta
reprovação: Que a fé da comunicação é utópica. Os homens
não são assim. Eles são movidos por suas paixões, por sua
vontade de poder, por seus interesses rivais de existência. A
comunicação falha quase sempre, e certamente na massa dos
homens. O melhor ainda é uma ordem nas convenções e sob as
leis, sob as quais a depravação e a baixeza comuns são
aliviadas, o que exclui a comunicação. Exigir muito dos
homens significa propriamente provocar sua ruína.
Contra isso vale dizer:
1º Os homens não são como são, mas permanecem para si
próprios uma questão e um problema: todos os julgamentos
totais sobre eles dizem mais do que se pode saber.
2º A comunicação de todos os tipos é tão típica do
homem como homem nas profundezas da sua essência que
deve ser sempre possível e nunca se pode saber até onde é
capaz de chegar.
3. A comunicação ilimitada não é um programa, mas a
vontade essencial abrangente da fé filosófica - somente nesta
base são fundados em particular a intenção e os métodos de
comunicação em todas as suas fases.
4º A disposição para uma comunicação ilimitada não é
consequência do conhecimento, mas sim a resolução de trilhar
um caminho no ser-homem. A ideia de comunicação não é
utopia, mas fé. Cabe a cada um saber se tende para isso, se
acredita nisso, não como na vida após a morte, mas em algo
totalmente presente: que em nós homens existe a possibilidade
de realmente vivermos juntos, de falarmos entre nós. , e, graças
a esta comunicação, encontrar o caminho para a verdade, e só
assim, tornarmo-nos devidamente nós mesmos.
No infortúnio em que nos encontramos, consideramos
que a comunicação é o requisito fundamental que nos é
imposto. O esclarecimento da comunicação desde

135
suas várias origens nos modos do englobante tornar-se-ão um
dos principais temas do filosofar. Mas abordar a comunicação
em todas as suas possibilidades de realização é uma tarefa
diária da vida filosófica.
BIBLIOTECA FILOSÓFICA
Dirigida por Francisco Romero

AQUINO, SANTO TOMÁS DE:


DEL ENTE Y DE LA ESENCIA
ARON, RAYMOND:
INTRODUCCIÓN A LA FILOSOFÍA DE LA HISTORIA
AVENARIUS, RICHARD:
LA FILOSOFÍA COMO EL PENSAR DEL MUNDO DE ACUERDO
CON EL PRINCIPIO DEL MENOR GASTO DE ENERGÍA
BACON, FRANCIS:
NOVUM ORGANUM
BACON, FRANCIS:
LA NUEVA ATLÂNTIDA
BECK, MAXIMILIAN:
PSICOLOGÍA: ESENCIA Y REALIDAD DEL ALMA
BERKELEY, GEORGE:
TRATADO SOBRE LOS PRINCIPIOS DEL
CONOCIMIENTO HUMANO
BERNARD, CLAUDE:
INTRODUCCIÓN AL ESTUDIO DE LA MEDICINA
EXPERIMENTAL
BLUMENFELD, WALTER
SENTIDO Y SINSENTIDO
BOSSUET:
DEL CONOCIMIENTO DE DIOS Y DE Sí MISMO
BROCHARD, VÍCTOR:
LOS ESCÉPTICOS GRIEGOS
BROCHARD, VÍCTOR:
ESTUDIOS SOBRE SÓCRATES Y PLATÓN
BRUERA, JOSÉ JUAN:
FILOSOFÍA DE LA PAZ
BRUNO, GIORDANO:
DE LA CAUSA, PRINCIPIO Y UNO
CHARRON:
DE LA SABIDURÍA
DANTE:
DE LA MONARQUÍA
DELGADO HONORIO:

ECOLOGÍA, TIEMPO ANÍMICO Y EXISTENCIA


DESCARTES:
LOS PRINCIPIOS DE LA FILOSOFÍA
DILTHEY, WILHELM:
POÉTICA
DILTHEY, WILHELM:
LA ESENCIA DE LA FILOSOFÍA
ERFURT, TOMÁS DE:
GRAMATICA ESPECULATIVA
(O DE LOS MODOS DE SIGNIFICAR)
FARRÉ, LUIS:
ESPÍRITU DE LA FILOSOFÍA INGLESA
FERRATER MORA, JOSÉ:
CUATRO VISIONES DE LA HISTORIA UNIVERSAL
FRANOOVICH, GUILLERMO:
LA FILOSOFÍA EN BOLIVIA
FRANOOVICH, GUILLERMO:
FILÓSOFOS BRASILEÑOS
FRONDIZI, RISIERI:
SUBSTANCIA Y FUNCIÓN EN EL PROBLEMA DEL YO _
GARCÍA BACCA, J. D.:
INTRODUCCIÓN GENERAL A LAS ENÉADAS
GARCÍA MORENTE, MANUEL:
LECCIONES PRELIMINARES DE FILOSOFÍA
GERBHARDT, CARL:
SPINOZA
GROETHUYSEN, BERNHARDT:
ANTROPOLOGÍA FILOSÓFICA
GUÉNON, RENÉ:
INTRODUCCIÓN AL ESTUDIO DE LAS
DOCTRINAS HINDÚES

HAMELIN, OCTAVE:
EL SISTEMA DE DESCARTES
HUME, DAVID:
INVESTIGACIÓN SOBRE EL ENTENDIMIENTO HUMANO
HUME, DAVID:

INVESTIGACIÓN SOBRE LA MORAL


HURTADO LEOPOLDO:
ESPACIO Y TIEMPO EN EL ARTE ACTUAL
INGENIEROS, JOSÉ:
PRINCIPIOS DE PSICOLOGÍA
JODL, FRIEDRICH:
HISTORIA DE LA FILOSOFÍA MODERNA ,
(Encuadernado)
JOUFEROY, THÉODORE:
SOBRE LA ORGANIZACIÓN DE LAS CIENCIAS
FILOSÓFICAS
KANT:
CRÍTICA DE LA RAZÓN PURA
KIERKEGAARD, SÖREN:
TEMOR Y TEMBLOR
KORN, ALEJANDRO:
LA LIBERTAD CREADORA
LALANDE, ANDRÉ:
LAS TEORÍAS DE LA INDUCCIÓN Y DE LA
EXPERIMENTACIÓN
LEIBNIZ:
CORRESPONDENCIA CON ARNAULD
LEIBNIZ:

TRATADOS FUNDAMENTALES
MONDOLFO, RODOLFO:
TRES FILÓSOFOS DEL RENACIMIENTO:
BRUNO, GALILEO Y CAMPANELLA
MONDOLFO, RODOLFO:
EL PENSAMIENTO ANTIGUO. HISTORIA DE LA FOLOSOFÍA
GRECO-ROMANA (2 tomos)
NEUSCHI.OSZ. S. M.:
ANALISIS DEL CONOCIMIENTO CIENTÍFICO

ORIBE, EMILIO:
TEORÍA DEL NOUS
PLOTINO:
ENÉADAS
RENOUVIER, CHARLES:
BOSQUEJO DE UNA CLASIFICACIÓN SISTEMATICA
DE LAS DOCTRINAS FILOSÓFICAS (2 tomos)
RENOUVIER, CHARLES:
UCRONIA: LA UTOPIA EN LA HISTORIA
RENOUVIER, CHARLES:
LOS DILEMAS DE LA METAFÍSICA PURA
ROMERO, FRANCISCO:
PAPELES PARA UNA FILOSOFÍA
ROMERO, FRANCISCO:
FILOSOFÍA CONTEMPORANEA. ESTUDIOS Y NOTAS
ROMERO, FRANCISCO:
TEORÍA DEL HOMBRE
ROMERO, FRANCISCO:
ESTUDIOS DE HISTORIA DE LAS IDEAS
RUSSELL, BERTRAND:
INVESTIGACIÓN SOBRE EL SIGNIFICADO Y LA VERDAD
SANTAYANA, GEORCE:
ESCEPTICISMO Y FE ANIMAL
SANTAYANA, GEORGE:
TRES POETAS FILÓSOFOS: LUCRECIO, DANTE, GOETHE
SCHELER, MAX:

EL PUESTO DEL HOMBRE EN EL COSMOS


SCHELER, MAX:

ESENCIA Y FORMAS DE LA SIMPATÍA


SORLEY, W. R.:
HISTORIA DE LA FILOSOFÍA INGLESA
SPIRITO, UGO:

EL PRAGMATISMO EN LA FILOSOFÍA CONTEMPORANEA


VALÉRY, PAUL:
EL ALMA Y LA DANZA. EUPALINOS O EL ARQUITECTO

VASSALLO, ÁNGEL:
NUEVOS PROLEGÓMENOS A LA METAFÍSICA
VAZ FERREIRA, CARLOS:
SOBRE FEMINISMO
VAZ FERREIRA, CARLOS:
LÓGICA VIVA
VAZ FERREIRA, CARLOS:
SOBRE LOS PROBLEMAS SOCIALES
VICTORIA, MARCOS:
ENSAYO PRELIMINAR SOBRE LO CÓMICO
WÁCNER DE REYNA, ALBERTO:
LA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER.
,SU MOTIVO Y SIGNIFICACIÓN
WEININGER, OTTO:
SEXO Y CARACTER
WEYLAND, MIRIAM:
UNA NUEVA IMAGEN DEL HOMBRE. A TRAVÉS
DE NIETZSCHE Y FREUD
WHITEHEAD, A. N.:
MODOS DE PENSAMIENTO
WHITEHEAD, A. N.:
LA CIENCIA Y EL MUNDO MODERNO
ZAMBRANO, MARÍA:
HACIA UN SABER SOBRE EL ALMA
BIBLIOTECA DE FILOSOFÍA
JURÍDICA Y SOCIAL
ASCOI.I MAX:
LA INTERPRETACIÓN DE LAS LEYES
CAIRN, HALL, COWAN, PEKELIS, FRANK, PATTERSON,
KELSEN, CHROUST:
EL ACTUAL PENSAMIENTO JURIDICO NORTEAMERICANO
COSSIO, CARLOS:

LA PLENITUD DEL ORDENAMIENTO JURÍDICO


COSSIO, CARLOS:
LA TEORIA EGO LÓGICA DEL DERECHO Y EL
CONCEPTO JURIDICO DE LIBERTAD
FRONDIZI SILVIO:
EL ESTADO MODERNO
GENTILE, GIÖVANI:
LOS FUNDAMENTOS DE LA TEORÍA DEL DERECHO
IHERING, RUDOLF VON:
LA DOGMATICA JURÍDICA
KELSEN, HANS:

LA PAZ POR MEDIO DEL DERECHO


KELSEN, HANS:

LA IDEA DEI, DERECHO NATURAL Y OTROS ENSAYOS


KELSEN, HANS:

LA TEORÍA PURA DEL DERECHO


KUNZ, JOSEF L.:
LA FILOSOFÍA DEL DERECHO LATINOAMERICANO
EN EL SIGLO XX
Ruíz FUNES, M.:
ACTUALIDAD DE LA VENGANZA
SAVIGNY, KIRCHMANN, ZlTELMANN, KAN'TOROWICK:
LA CIENCIA DEL DERECHO
BIBLIOTECA CONTEMPORÁNEA
BERGSON, HENRI:
LA RISA (núm. 55)
DELGADO, HONORIO:
PARACELSO (núm. 192)
GURVITCH, GEORCES:
LAS TENDENCIAS ACTUALES DE LA FILOSOFÍA
ALEMANA (núm. 53)
HESSEN, J.:
TEORÍA DEL CONOCIMIENTO (núm. 3)
INGENIEROS, JOSÉ:
PROPOSICIONES RELATIVAS AL PORVENIR DE LA
FILOSOFÍA (núm. 189)
LNCENIEROS, JOSÉ:
HACIA UNA MORAL SIN DOGMAS (núm. 201)
JUNG, C. G.:
LO INCONSCIENTE (núm. 15).
MONDOLFO RODOLFO:
BREVE HISTORIA DEL PENSAMIENTO ANTIGUO (núm. 143)
ROMERO, FRANCISCO:
FILOSOFIA DE LA PERSONA (núm. 124)
ROMERO, FRANCISCO:
FILÓSOFOS Y PROBLEMAS (núm. 197)
ROMERO, FRANCISCO:
IDEAS Y FIGURAS (núm. 224)
VASSALLO ANGEL:
¿QUÉ ES FILOSOFÍA? o DE UNA SABIDURÍA HEROICA •
(núm. 164)
En otras colecciones
AMIEL:
DIARIO ÍNTIMO (Encuadernado)
JOAD, C. E. M.:
GUÍA DE LA FILOSOFÍA
RUSSELL, BERTRAND:
EL PODER EN LOS HOMBRES Y EN LOS PUEBLOS
VAZ FERREIRA, CARLOS:
LA ACTUAL CRISIS DEL MUNDO DESDE EL PUNTO
DE VISTA RACIONAL

VOSSLER, KARL:
FILOSOFIA DEL LENGUAJE

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