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HOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

T e o r ia d o
PRECEDENTE
J u d ic ia l
A JUSTIFICAÇÃO E A APLICAÇÃC

de Regras ju r is p r u d e n c ia ís
Roque Antonio Carrazza

Päbtßnä^BhlfidäwiTmM'-

João Maurício Adeodalo

I
TEORIA DO PRECEDENTE
JUDICIAL
A Justificação e a Aplicação de Regras
Jurisprudenciais
T h o m as d a R o sa de B u stam an te
Professor da Universidade Federal de M inas Gerais

TEORIA DO PRECEDENTE
JUDICIAL
A Justificação e a Aplicação de Regras
Jurisprudenciais

São Paulo

2012
Copyright © 2012 By Editora Noeses
Arte/diagramação: Denise Dearo
Capa: Ney Faustini

C IP - BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B99t Bustamante, Thomas da Rosa de.


Teoria do precedente judicial: a Justificação e a aplicação de regras
jurisprudenciais / Thomas da Rosa de Bustamante. - São Paulo :
Noeses, 2012.

610 p.

ISBN 978-85-99349-70-0

1. Dtreito. 2. Filosofia do direito. 3. Precedente judicial. 4. Teoria


normativa - precedente judicial. I. Título.

CDU -3 4 0 .1 2

2012
Todos os direitos reservados

editora

NOESES
Editora Noeses Ltda.
Tel/fax: 5 5 1 1 3 6 6 6 6055
www.editoranoeses.com.br
A. minha querida E V A .
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Cristina e Jorge, e a toda a minha família,


pelo apoio incondicional.
Ao meu orientador, professor Antônio Cavalcanti Maia,
não apenas pela interlocução, mas pela valiosa amizade e por
sempre acreditar no meu trabalho.
Ao espírito generoso do professor Sir Neil MacCormick
(1941-2009), sem dúvida um dos maiores juristas de nosso tem­
po, por ter me franqueado acesso irrestrito à sua biblioteca
pessoal e ter se demonstrado sempre disponível para discutir
as teses deste trabalho.
Ao professor Zenon Bankowski, por ter me recebido com
atenção e afeto na University o f Edinburgh entre julho/2006 e
fevereiro/2007, em estágio de doutorando realizado com finan­
ciamento da CAPES.
Ao amigo Carlos Bernal Pulido, pela fecunda interlocução
jusfilosófica que mantemos e pelo incentivo constante que dele
recebo.
Aos professores Ricardo Lobo Torres, Ana Paula de Bar-
cellos e Cláudio Pereira de Souza Neto, pelas críticas construtivas.
À PUC/Rio e à CAPES, pelos auxílios financeiros que
permitiram a realização deste trabalho.
À professora Misabel de Abreu Machado Derzi, exemplo
de jurista e liderança acadêmica, pelo elevado dialogo acadê­
mico e pela gentileza com que recebeu as ideias principais
deste trabalho.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Ao professor Virgílio Afonso da Silva, pelo incentivo à


publicação desse trabalho.
E aos meus filhos Bernardo e Victor Hugo, pelos sorrisos
que fazem a minha vida valer a pena.
SUMÁRIO

Agradecimentos....................................................................... VII
Prefácio............. .............................. ..................................... . XV II
Considerações Introdutórias ................................................ X X I

1 O Método Judicial e o Precedente no Common Law e


na Tradição Jurídica Continental: a Convergência de
Perspectivas Teóricas....................................................... 1
1.1 Introdução........................... ............... ....................... 2
1.2 A semelhança estrutural entre o common law e o Di­
reito romano do período clássico............................... 3
1.3 A questão da autonomia metodológica do common
law em relação ao Direito continental-europeu........ 10
1.4 O stylus cúrias (e suas implicações) nos sistemas ju­
rídicos de common law e de civil law......................... 16
1.4.1 O estilo francês phrase unique e o seu contexto.. 16
1.4.1.1 O estilo phrase unique e a Escola da
Exegese................................................... 20
1.4.1.2 Jurisprudência e criação do Direito em
França ......... ................ ................ .... . 22
1.4.1.3 As transformações na soberania e o pro­
blema da legitimação das decisões: um
problema também francês...................... 31
1.4.1.4 Mecanismos contemporâneos de supe­
ração do déficit de legitimidade do estilo
phrase unique......... ................................ 38
1.4.2 O estilo discursivo das cortes inglesas e o seu
contexto.............................................................. 43
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

1.4.2.1 O caráter aberto do common law e a in­


fluência do ius commune sobre o estilo
judicial inglês: um dado histórico ......... 53
1.4.2.2 O Positivismo decimonônico e a sua teoria
sobre a atividade judicial na Inglaterra... 70
1.4.2.3 Excurso: do Humanismo Jurídico à he­
gemonia do Positivismo de Bentham no
século XIX. A radicalização da doutrina
do stare decisis....................................... 75
1.4.2.4 As teorias sobre a atividade judicial
(adjudication) e a situação atual da dou­
trina do precedente no Reino Unido..... 90
1.5 O fundamento do Direito jurisprudencial no common
law e no civil law: a negação da tese da autonomia
metodológica do common law .................................... 93
1.5.1 A faceta decisionista da teoria pura do Direito
e o Direito jurisprudencial (no Continente e no
civil law).............................................................. 96
1.5.2 O princípio da justiça formal, a determinação
da ratio decidendi e a formação da jurisprudên­
cia no common law e no civil law....................... 103
1.5.3 A tensão entre facticidade e validade como um
elemento estrutural do Direito, inclusive e espe­
cialmente do Direito jurisprudencial ....... . 114
2. Fundamentos de uma Teoria Pós-Positivista do Prece­
dente Judicial........................................................................ 125
2 .1 0 Direito como uma prática social: os argumentos de
Hart, Dworkin e MacCormick.................................... 126
2.2 Os limites substanciais do Direito e a pretensão de
correção: o argumento de Robert Alexy ................... 144
2.2.1 A pretensão de correção do Direito.................. 144
2.2.2 O argumento da injustiça via “ Fórmula de
Radbruch” ......................................................... 151
2.2.3 Contraponto crítico: uma revisão do argumento
da injustiça ........................................................ 156
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

2.2.3.1 As condições pragmáticas do princípio


democrático em Jürgen Habermas....... 158
2.2.3.2 A reinterpretação do argumento da in­
justiça ...................................................... 162
2.3 O conceito pós-positivista de Direito e suas conse­
quências para a teoria jurídica.................................. 165
2.3.1 A abertura da teoria jurídica no Pós-Positivismo. 167
2.3.2 Implicações para a filosofia do Direito............. 177
2.3.3 Há ainda alguma fronteira entre a teoria jurídica
e a filosofia do Direito? (A teoria da argumentação
jurídica como elemento normativo da teoria
jurídica e da filosofia do Direito)....................... 186
2.4 A teoria dos precedentes como uma teoria jurídica
normativa e procedimental........................................ 190
2.4.1 A teoria do discurso como base de uma teoria
normativa dos precedentes judiciais................ 190
2.4.2 O “código da razão prática” de Alexy e a justifi­
cação jurídica ..................................................... 203
2.4.2.1 Regras fundamentais ............................ 205
2.4.2.2 Regras sobre a carga da argumentação 206
2.4.2.3 As formas de argumento........................ 207
2.4.2.4 Regras de fundamentação..................... 211
2.4.2.5 Regras de transição ............................... 211
2.4.2.6 Limites do discurso prático e a necessi­
dade de uma teoria normativa do prece­
dente judicial ......................................... 212
2.4.3 O Direito como “discurso de aplicação” : a con­
tribuição de Klaus Günther.............................. 217
2.4.3.1 A crítica à Tese do Caso Espeeial/TCE e
a diferença entre “justificação” e “apli­
cação” ..................................................... 217
2.4.3.2 A réplica à crítica da Tese do Caso Especial/
TCE e a interpolação entre os discursos
de justificação e de aplicação................ 225
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

2.4.4 Os conceitos semânticos de “norma” e “inter­


pretação” e os problemas de justificação e apli­
cação ............................................... ................... 230
2.4.4.1 O conceito semântico de “norma” ........ 230
2.4.4.2 O conceito semântico de “interpretação” 233
2.4.4.3 As concepções de “norma” e “interpre­
tação” nas teorias de Alexy e Günther: a
opção pelas concepções semânticas ..... 237
2.4.5 Justificação e aplicação de precedentes judiciais 239
Anexo - Tabela das Regras e Formas da Argumentação Ju­
rídica ............................................................ ...................... 241
3. Problemas de Justificação de Normas Derivadas de
Precedentes Judiciais........................................................... 249
3.1 Considerações introdutórias..................................... 250
3.2 A interpretação de precedentes judiciais: o problema
da ratio deeidendi........................................................ 259
3.3 A força/vinculatividade do precedente judicial......... 282
3.3.1 Os precedentes judiciais como fontes do Direito.
Mas que tipo de fonte? .......... .............. ............ 284
3.3.2 Fatores institucionais e extrainstitucionais que
influenciam a força do precedente.................... 302
3.3.2.1 A determinação do peso dos precedentes
como um processo hermenêutico ......... 302
3.3.2.2 Fatores institucionais que determinam a
força de uma norma jurisprudencial.... 307
3.3.2.2.1 Contexto institucional (stricto
sensu) ......................... .............. 308
3.3.2.2.2 Tradição jurídica ..................... 311
3.3.2.2.3 Estrutura constitucional (cons-
titutionalframework) .............. 314
A) Normas sobre os preceden­
tes do STF e do S T J ................ 324
(B) Normas relativas às deci­
sões do T S T ............................. 328
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(C) Normas referentes aos pre­


cedentes horizontais ............... 329
3.3.2.3 Fatores extfainstitucionais que determi­
nam a força de uma norma jurispruden-
cial .......................................................... 329
3.3.2.3.1 Concepções jurídico-teóricas... 331
(A) Concepções jurídico-teóricas
acerca do Direito e do discurso
jurídico ..................................... 331
(B) Concepções teóricas acerca­
da dogmática jurídica............. 333
3.3.2.3.2 Fatores normativo-estruturais.. 338
(A) Caracteres das normas ju-
risprudenciais........................... 338
(A.1) O grau de generalidade das
normas jurisprudenciais e a for­
ça do precedente ..................... 338
(A.2) A estrutura interna das
normas adscritas: regras ou
princípios? ............................... 340
(A.2-bis) O diferente modo de
aplicação dos princípios e das
regras ........................................ 343
(A.2-ter) Princípios e ponderação 343
(A.2-quater) Regras jurídicas e
subsunção............................. . 345
<A.2-quinquies) O diferente grau
de objetivação das regras e dos
princípios jurídicos ................. 347
(A.2-sexies) Princípios e ratio
decidendi.................................. 350
(B) Fatores estruturais das teo­
rias elaboradas pelos juizes na
fundamentação de suas decisões 353
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(B.l) A saturação das premissas


normativas............................... 353
(B.2) Coerência da justificação
apresentada pelo juiz na decisão
a ser tomada como precedente
judicial...................................... 354
(B.2-bis) Critérios de coerência
segundo Alexy e Peczenik....... 357
(i) O número de relações de sus­
tentação .................................... 359
(ii) A extensão das cadeias de
fundamentação ................ ....... 359
(iii) O critério da “fundamenta­
ção em sentido rigoroso” (strong
support) .................................... 360
(iv) Conexões entre cadeias de
sustentação.............................. 362
(v).Relações de prioridade entre
princípios................................. 363
(vi) O critério da justificação
recíproca.................................. 363
(vii) Critérios relativos aos con­
ceitos empregados na teoria .... 364
(viii) Interconexão entre con­
ceitos ........................................ 365
(ix).Número de casos indivi­
duais ......................................... 366
(x) Diversidade das esferas da
vida........................................... 366
(B.2-ter) Relação entre os crité­
rios e princípios da coerência .. 366
3.3.2.3.3 Correção substancial da decisão-
paradigma................................ 368
3.3.3 A determinação do peso da ratio decidendi: a
ponderação das fontes e dos demais fatores
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

institucionais e extrainstitucionais que influem


sobre o precedente..................................... ....... 369
3.3.3.1 Duas operações básicas no Direito: sub-
sunção e ponderação............................. 369
3.3.3.2 Ponderação de princípios e ponderação
de razões................................................. 378
3.4 Mutatis mutandis. O overruling ou ab-rogação do
precedente judicial ..................................................... 387
3.4.1 O overruling de precedentes meramente persua­
sivos .................................................................... 390
3.4.2 O overruling de precedentes obrigatórios em
sentido forte (formalmente vinculantes) ......... 392
3.4.3 O overruling de precedentes obrigatórios em
sentido frágil...................................................... 409
3.4.4 A “modulação dos efeitos” dos revirements: até
que ponto uma solução adequada para o desen­
volvimento judicial do Direito? ........................ 413
3.4.4.1 O prospective overruling no Direito dos
Estados Unidos da América................... 415
3.4.4.2 O overruling, a teoria declaratória e o
Direito inglês ......................................... 422
3.4.4.3 O prospective overt'uling no Direito alemão 432
3.4.4.4 O prospective overruling no Direito comu­
nitário europeu...................................... 437
3.4.4.5 A modulação dos efeitos retroativos da
jurisprudência e o Direito francês ....... 443
3.4.4.6 O prospective overruling no Direito bra­
sileiro ...................................................... 448
3.4.4.7 Algumas diretivas gerais para a aplicação
da técnica do prospective overruling..... 457

Problemas de Aplicação de Precedentes Judiciais........ 467


4.1 A subsunção como regra geral de aplicação de pre­
cedentes judiciais ....................................................... 467
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

4.2 O distinguish e suas duas operações básicas: a redução


teleológica e o argumento a contrario....................... 470
4.2.1 A redução teleológica e o caráter superável
(defeasible) das regras jurídicas............. ........... 474
4.2.1.1 A superabilidade (defeasibility) das nor­
mas jurídicas e os conflitos normativos:
as regras jurisprudenciais como obriga­
ções prima fa c ie ...................................... 479
4.2.1.2 A superabilidade dos precedentes judi­
ciais e o princípio da igualdade ............ 484
4.2.2 O argumento a contrario e a diferenciação de
precedentes judiciais ........................................ 488
4.2.2.1 As formas simples do argumento a con­
trario: replicação e equivalência....................... 491
4.2.2.2 A forma mais complexa de argumento a
contrario: o raciocínio a contrario con­
textual ........................................... ......... 495
4.3 A aplicação de precedentes por analogia.................. 502
4.3.1 Uma breve introdução histórica .........................502
4.3.2 O conceito de analogia iuris e seu anacronismo 506
4.3.3 A concepção corrente acerca da estrutura da
argumentação jurídica por analogia .509
4.3.4 Os princípios e a estrutura da argumentação por
analogia............. ................................................ 520
4.3.5 Um exemplo de aplicação do modelo ................ 526
4.3.6 A analogia e a interpretação extensiva: diferen­
ciação .......................... ...................... ................ 532
4.4 Problemas de aplicação, comparação e ponderação:
uma integração de perspectivas.............. ................. 533
Conclusão.................................................................................. . 539

Referências Bibliográficas....................................................... 545

WT
PREFÁCIO

É para mim uma grande honra prefaciar o livro Teoria do


Precedente Judicial - A Justificação e a Aplicação de Regras
Jurisprudenciais, de Thomas da Rosa de Bustamante. Que
escrever este prólogo seja uma honra é algo que radica tanto
nas qualidades de seu Autor como no rigor científico e na ori­
ginalidade desta obra. Thomas Bustamante é, sem dúvida, um
dos mais brilhantes jovens filósofos do Direito da América
Latina. Sua agudeza intelectual se vê refletida nos livros e
artigos cuja publicação marcou o início de sua carreira como
professor e investigador. Esses livros e artigos começaram a
ter um impacto meridiano, tanto no Brasil e na América Lati­
na com o também no Reino Unido, onde o Autor desempenhou
recentemente a função de Lecturer na Faculdade de Direito da
Universidade de Aberdeen, uma das melhores Faculdades de
Direito de seu entorno geográfico, antes de assumir o cargo de
Professor Adjunto na Universidade Federal de Minas Gerais,
que atualmente ocupa.
Esta agudeza intelectual também se vê plasmada na in­
vestigação que aqui se apresenta e que constitui a tese que
Thomas Bustamante apresentou para obter o título de Doutor
na PUC/RJ. O objeto desta investigação é um tema que suscita
um dos maiores desafios para a teoria jurídica dos sistemas
jurídicos de tradição continental, a saber, qual a força norma­
tiva que se deve atribuir aos precedentes judiciais enquanto
fontes do Direito e como se deve operar com eles em sede ju­
dicial. Como se sabe, uma das transformações mais significa­
tivas que os sistemas jurídicos de tradição continental - ou seja,
os pertencentes ao chamado civil law - tiveram de enfrentar

Y\m
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

durante as últimas décadas foi a incorporação do precedente


judicial ao catálogo das fontes do Direito. Esta incorporação
não deixou de enfrentar reticências por parte dos juristas de
formação tradicional, que veem no precedente judicial um
elemento estranho ao sistema, incompatível com a visão napo-
leônica de que em uma Democracia a lei deve ser a fonte do
Direito por excelência. Nesse sentido, foram lançadas imensas
dúvidas de ordem teórica e prática para os doutrinadores e
juristas latino-americanos, que não estavam acostumados a
lidar com categorias de origem anglo-saxã, como a ratio deci-
dendi, o distinguishing e o overruling. Estas categorias deter­
minam a forma com o os precedentes judiciais devem ser
aplicados para resolver casos concretos.
Pois bem, a investigação que Thomas Bustamante nos
apresenta vai além de oferecer um tratamento destes assuntos
de um ponto de vista meramente dogmático. Ela transcende
para a filosofia do Direito a fim de construir e expor uma mui­
to original teoria normativa e pós-positivista do precedente
judicial. Com base nas mais evoluídas teorias da argumentação
jurídica, satisfaz com grandeza seu objetivo de estabelecer
certas diretrizes práticas para a aplicação racional dos prece­
dentes judiciais. Para tal fim, após um capítulo inicial sobre a
possibilidade de uma teoria universal do precedente judicial,
a investigação parte, no segundo capítulo, de uma avaliação
crítica das mais emblemáticas teorias contemporâneas do Di­
reito, em especial as de Ronald Dworkin, Neil MacCormick e
Robert Alexy. Sobre esta base, Thomas Bustamante defende
uma concepção pós-positivista do Direito, na qual o fenômeno
jurídico aparece limitado e complementado pela Moral. Desse
modo, esta concepção permite proclamar o desvanecimento
das férreas distinções tradicionais entre direito continental e
direito anglo-saxão - ou civil law e common law -, bem como
entre a aplicação e a justificação do Direito. Do mesmo modo,
esta concepção permite integrar os pontos de vista jurídico e
filosófico sobre o Direito, bem como estabelecer um nexo entre
positividade e correção.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

No entanto, são os Capítulos 3 e 4 que constituem o núcleo


desta investigação. No Capítulo 3, apresenta-se uma das m e­
lhores teorias da justificação do precedente judicial que se pode
encontrar na doutrina atual. Profundidade, rigor científico e
originalidade caracterizam a exposição desta teoria, que as­
senta as bases para um entendimento de por que o preceden­
te judicial - ou, em termos mais próximos às nossas tradições
latino-americanas, a jurisprudência - é vinculante e para a
compreensão dos conceitos de ratio decidendi e de overruling.
Finalmente, o Capítulo 4 aborda os problemas mais importan­
tes que se apresentam para o operador jurídico no momento
de aplicar os precedentes judiciais. Este capítulo expõe uma
concepção bem depurada do distinguish e, aplicando o marco
teórico das teorias da argumentação jurídica, esclarece as re­
lações existentes entre a aplicação do precedente, a analogia,
a comparação de casos (o Fallvergleich da doutrina alemã) e a
ponderação.
A magistral exposição destes temas, que em seu conjun­
to formam uma teoria argumentativa do precedente judicial,
aliada à importância teórica e prática dos mesmos, aconselha
a leitura deste magnífico livro. No meu entender, esta obra não
apenas resulta ser de obrigatória consulta para os acadêmicos
interessados na filosofia do Direito e na dogmática das fontes
do Direito, mas também para os estudantes de Direito e os
advogados que litigam nos sistemas jurídicos de tradição con­
tinental, que cada vez mais, de forma iniludível, enfrentam a
tarefa nada fácil de operar com os precedentes judiciais. Des­
de este ponto de vista, este livro de Thomas Bustamante re­
presenta, ao mesmo tempo, uma contribuição de grande valor
para a melhor filosofia do Direito de nosso tempo e para a
prática jurídica.
C ar l o s B e r n a l P u lid o

Professor Catedrático de Filosofia do Direito e


Direito Constitucional da Universidad
Externado de Colombia

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O que se busca neste trabalho é construir uma teoria


genuinamente normativa dos precedentes judiciais. Mas o que
isso significa? Parafraseando importante leitura de filosofia da
linguagem da metade do século X X , podemos responder no
sentido de que o que se pretende com este estudo é fornecer
parâmetros metodológicos para estabelecer, com certo grau de
objetividade, “com o fazer coisas com precedentes judiciais” , e
em especial como extrair normas jurídicas desse tipo de fonte
do Direito e aplicar essas normas na justificação de decisões
posteriores.
A teoria dos precedentes que se inicia nesta introdução
busca institucionalizar, com fundamento em um discurso de
filosofia do Direito, mas inteiramente voltado para a prática
jurídica, alguns parâmetros, regras e procedimentos de argu­
mentação que se destinam a tornar o mais racional possível a
prática de se seguir precedentes judiciais e utilizá-los como
argumentos de justificação de decisões concretas.
Um ponto de partida da investigação que se inicia é a
asserção de que o Direito deve ser racional. As decisões jurídi­
cas estão dotadas de uma pretensão de correção e racionalida­
de que torna obrigatório que os juizes se esforcem para justi­
ficar suas decisões não apenas na sua própria autoridade, mas
na racionalidade e no potencial de legitimação que os argu­
mentos possuem para as decisões práticas de modo geral.
A forma de fundamentar a tese de que há uma pretensão
de correção no Direito e de que a partir dela se pode inferir um
dever de justificar as decisões jurídicas é algo que não posso
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

explicar neste momento, mas que pretendo enfrentar com al­


gum detalhamento mais adiante.1 Nesta introdução, basta
deixar consignada a relação que existe entre Direito e Razão.
É possível perceber essa relação nos Estados Constitucionais
contemporâneos. Alexy, por exemplo, elucida dois aspectos em
que essa ligação se manifesta no interior dos Estados Consti­
tucionais. Primeiramente, “o reconhecimento mútuo dos par­
ticipantes no discurso como livres e iguais tem caráter consti­
tutivo para a argumentação” . A teoria da argumentação pres­
supõe a igualdade de armas e argumentos entre os participan­
tes do discurso, de sorte que “sobre essa base se podem fun­
damentar os direitos humanos” . Por conseguinte, quando os
direitos humanos são positivados e passam a integrar o catá­
logo de direitos fundamentais protegidos pelo Estado, produz-
se uma conexão entre Direito e Razão. Em segundo lugar,
pode-se afirmar também que o Estado Constitucional Dem o­
crático “pressupõe a melhor forma de conectar a argumentação
à decisão da perspectiva dos ideais da liberdade e igualdade
fundamentados discursivamente” . O Estado Constitucional
Democrático, ao definir o processo legislativo e ao estabelecer
garantias, regras processuais, procedimentos etc., institucio­
naliza a razão prática [Alexy 2001:685],
Essa conexão entre Direito e Racionalidade manifesta-se
com especial força no cam po dos precedentes judiciais.
MacCormick e Summers, por exemplo, observaram essa relação
e demonstram que a adesão ao precedente é uma operação
básica da racionalidade: “Precedentes são decisões anteriores
que funcionam como modelos para decisões futuras. Aplicar
lições do passado para solucionar problemas presentes e futuros
é um elemento básico da racionalidade humana” [MacCormick/
Summers 1997:4].
Pode-se perceber, claramente, que o argumento por pre­
cedentes é descrito desde o início como uma manifestação da
razão prática. Por isso, uma teoria destinada a fornecer um

1. V., infra, Capítulo 2, n. 2.2.1.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

conjunto de regras e procedimentos argumentativos para ga­


rantir a correção do raciocínio por precedentes é uma exigên­
cia central dos Estados Constitucionais contemporâneos.

Independentem ente dos argumentos filosóficos que


iremos examinar no Capítulo 2, a exigência de uma teoria
racional do precedente judicial pode encontrar fundamento
em duas constatações. De um lado, as Constituições contem­
porâneas passam a exigir - com o um dos elementos consti­
tutivos do princípio do Estado de Direito - que todas as de­
cisões sejam fundamentadas, sob pena de nulidade. Trata-se
do princípio da motivação das decisões judiciais, que foi con­
sagrado com o norma jurídica de mais alto patamar hierár­
quico após um longo histórico de ideias e questionamentos
que, contrapondo-se à prática personalista, arbitrária e cruel
das cortes de justiça do Ancien Régime, culminaram na sua
afirmação pela legislação outorgada com a Revolução Fran­
cesa [v. Sauvel 1955]. Desde o momento em que a fundamen­
tação passa a ser requisito essencial da decisão jurídica,
qualquer teoria argumentativa que explicite a forma de se
justificar uma decisão há de ser bem-vinda. De outro lado,
para além da exigência de motivação das decisões, nos últi­
mos anos se tem vivido um processo irreversível e cada vez
mais intenso de “ constitucionalização” das grandes questões
de justiça. O neoconstitucionalismo trouxe para o interior da
Constituição “grandes princípios de justiça” que há muito
pouco tem po atrás eram considerados “ direito natural” .
Como explica Zagrebelsky, rom pe-se a separação positivista
entre “questões de direito” e “questões de justiça” , já que os
princípios morais mais importantes passam a constituir par­
te do direito positivo de mais alto escalão: “ Nos Estados
constitucionais modernos, os princípios morais de direito
natural se incorporaram ao direito positivo” , de sorte que “ as
m odalidades argumentativas do direito constitucional se
abrem aos discursos m etajurídicos” e a interpretação da
Constituição passa a ser um exercício de filosofia do Direito
[Zagrebelsky 2003:116].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Evidencia-se, portanto, a importância metodológica de


se buscar uma teoria não meramente descritiva do argumento
por precedentes, mas normativa ou argumentativa, no sentido
ser capaz de fixar certos critérios para julgar ou avaliar a cor­
reção da aplicação de determinado precedente a um caso
concreto, segundo parâmetros objetivos e universais resgatados
pela racionalidade prática.
Para tentar elucidar as linhas gerais dessa teoria, passo
a fazer um breve roteiro dos passos que seguirei nos próximos
capítulos. Digo “breve roteiro” porque não pretendo me esten­
der muito nessa introdução, já que penso que o Capítulo 1
prepara o terreno para as investigações jurídico-filosóficas que
farei nos três capítulos seguintes.
Inicialmente, no Capítulo 1, tento justificar a possibilida­
de de se elaborar uma única teoria dos precedentes que possa
vir a ser aplicada nos mais diferentes ordenamentos jurídicos
contemporâneos. Examino, para tanto, a plausibilidade da tese
da autonomia metodológica do common law em relação à tra­
dição jurídica continental europeia, de sorte que o processo de
interpretação e aplicação do direito judicial em cada uma das
duas tradições jurídicas seria qualitativamente diferente, já
que em um caso o método dedutivo estaria ausente e no outro
a técnica da indução seria um recurso metodológico de natu­
reza excepcional. Ao final do capítulo concluo que o fundamen­
to do direito jurisprudencial (case law) no common law e no
civil law é o mesmo, e isso pode ser comprovado seja quando
enfocamos o Direito a partir das teorias gerais do Direito de
corte positivista, com o a de Hans Kelsen, ou quando procura­
mos estabelecer o fundamento filosófico da obrigação de levar
em consideração o precedente judicial, que está no princípio
da justiça formal.
Mais adiante, no Capítulo 2, introduzo um debate mais
geral sobre a natureza do Direito e da Ciência Jurídica, o qual
é alimentado pelas teorias contemporâneas de Dworkin, Mac­
Cormick e Alexy, que veem o Direito como uma prática social
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de natureza argumentativa. São analisadas também a Tese do


Caso Especial/TCE - segundo a qual o discurso jurídico pode
ser entendido como uma instância do discurso prático geral
- e a crítica que lhe foi desferida por Klaus Günther, para quem
o Direito tem certos requisitos de validade que impedem sua
caracterização como um caso especial do discurso moral. O
ponto principal deste segundo capítulo é elucidar o argumen­
to alexyano da pretensão de correção do Direito e o “argumen­
to da injustiça” que o acompanha, bem como a forma como
essas duas teses são conciliadas com a “Tese da Validade” ori­
ginada do Positivismo Jurídico. O Direito é definido como uma
prática social de natureza construtivista, argumentativa e não
manifestamente injusta, que está indissociavelmente ligado a
uma teoria procedimental da justiça.2 Essa definição tem im­
portância fundamental para a prática jurídica, a qual será
elucidada no correr do texto. Um dos pontos essenciais em que
essa importância se manifesta é a correspondência parcial
entre a filosofia do Direito e a teoria jurídica, de sorte que am­
bas passam a se ocupar de problemas semelhantes e a utilizar
cada uma os métodos da outra para o fim de cumprir adequa­
damente suas tarefas. A consequência mais visível desse fenô­
meno é que a filosofia do Direito assume uma relevância prá­
tica que antes não lhe era reconhecida (pelo menos no para­
digma positivista que foi dominante nos séculos X IX e XX). As
teorias da argumentação jurídica, que constituem o braço mais
prático dessa filosofia, crescem de importância a cada instante.
Por isso, concluo o capítulo descrevendo a teoria normativa
dos precedentes judiciais proposta como intrinsecamente vin­
culada a um modelo de argumentação jurídica procedimental
e pautado por uma interpretação kantiana da racionalidade
prática. Esse modelo, para sermos mais específicos, é cons­
tituído pela teoria do discurso que Habermas desenvolveu
na década de 1970 e Alexy aplicou à metodologia jurídica em
sua famosa Teoria da Argumentação Jurídica [Alexy 1997-a].

2. V., infra, Capítulo 2, n. 2.3.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O capítulo encerra-se, porém, com uma distinção desenvolvida


por Günther entre problemas de justificação e de aplicação de
normas. Embora Günther seja crítico de Alexy, creio que não
há incompatibilidade entre essa diferenciação e as linhas gerais
da teoria que foi escolhida como ponto de partida (a teoria de
Robert Alexy).
Nesse sentido, no Capítulo 3, abordo os problemas de
justificação de precedentes judiciais. Entre esses problemas, é
de especial interesse o da determinação da ratio decidendi dos
precedentes. As teorias sobre a ratio decidendi - o elemento
vinculante - de um precedente judicial foram desenvolvidas
na Inglaterra a partir do final século XVII, quando foram con­
trapostas aos obiter dicta ou meras “ opiniões” emitidas na
justificação de casos pelos juizes em geral. Proponho, nesse
sentido, um modelo silogístico de identificação das regras ads­
critas que podem ser extraídas dos precedentes judiciais para
decidir casos posteriores. Essa identificação da ratio, porém,
é ainda insuficiente enquanto critério para os discursos de
justificação de um precedente judicial (ou seja, a afirmação da
validade, pela via discursiva, de uma norma jurisprudencial).
Por isso, é necessário revisar o tema das fontes do Direito, pois
ele será decisivo para encontrar o peso do precedente na ar­
gumentação jurídica. Como explico no n. 3.3 do Capítulo 3, os
precedentes podem ser considerados “ fontes do Direito” , mas
isso não ajuda muito, na medida em que adoto o conceito “ ar­
gumentative” de fontes do Direito, proposto por Aulis Aarnio.
Os precedentes podem ser tanto fontes vinculantes em sentido
forte (must-sources), fontes obrigatórias em sentido frágil
(should-sources) ou fontes do Direito “meramente permitidas”
(permissive sources). O peso concreto do precedente irá depen­
der da ponderação de uma série de fatores institucionais e
extrainstitucionais que influem na força do case law. Finalmen­
te, encerro o capítulo tratando da técnica do overruling, que
constitui a ab-rogação da regra jurisprudencial pelo próprio
tribunal que a estabeleceu. Procuro, ali, elucidar em detalhe
os problemas que podem surgir nas decisões ab-rogatórias
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de precedentes e algumas soluções encontradas no direito


comparado para a modulação dos efeitos das decisões juris-
prudenciais em casos extremos.
Finalmente, no Capítulo 4 tento mapear os problemas
que podem surgir na aplicação de regras jurisprudenciais a
casos concretos. Apesar de reconhecer que, via de regra, a
aplicação de precedentes judiciais envolve apenas a subsunção
dos fatos do caso por resolver à premissa normativa que cons­
titui a ratio decidendi do precedente a aplicar, concentro-me
nos casos difíceis em que esse procedimento (subsunção) não
basta para a aplicação adequada dos precedentes judiciais.
Nesses casos, resta ao aplicador do Direito a utilização da téc­
nica do distinguish e do argumento por analogia. Tento esta­
belecer, para ajudar a racionalizar essas duas técnicas, a estru­
tura da redução teleológica, do argumento a contrario (que são
vistos com o dois casos de distinguish) e do argumento por
analogia.
Iniciemos, então, nas próximas páginas, nossa caminha­
da rumo à construção de uma teoria do precedente judicial
formulada na perspectiva do participante e voltada diretamen­
te para a prática jurídica.

YYVTT
I
1
O Método Judicial e o Precedente no
Common Law e na Tradição Jurídica
Continental: a Convergência de
Perspectivas Teóricas

1.1 Introdução. 1.2 A semelhança estrutural entre o


common law e o direito romano do período clássico. 1.3
A questão da autonomia metodológica do common law
em relação ao Direito continental-europeu. 1.4 0 stylus
curiae (e suas implicações) nos sistemas jurídicos de
common law e de civil law: 1.4.1 O estilo francês phra-
se unique e o seu contexto: 1.4.1.1 O estilo phrase unique
e a Escola da E xegese-1 .4 .1 .2 Jurisprudência e criação
do Direito em França - 1.4.1.3 A s transformações na
soberania e o problema da legitimação das decisões: um
problema também francês - 1.4.1.4 Mecanismos con­
temporâneos de superação do déficit de legitimidade
do estilo phrase unique - 1.4.2 O estilo discursivo das
cortes inglesas e o seu contexto: 1.4.2.1 O caráter aber­
to do common law e a influência do ius commune sobre
o estilo judicial inglês: um dado histórico - 1.4.2.2 O
Positivismo decimonônico e a sua teoria sobre a ativi­
dade judicial na Inglaterra - 1.4.2.3 Excurso: do Hu­
manismo Jurídico à hegemonia do Positivism o de
Beniham no século X IX . A radicalização da doutrina
do stare decisis - 1.4.2.4 A s teorias sobre a atividade
judicial (adjudication) e a situação atual da doutrina
do precedente no Reino Unido. 1.5 O fundamento do
direito jurisprudenciál no common law e no civil law:
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a negação da tese da autonomia m etodológica do


common law: 1.5,1 A faceta decisionista da teoria -pura
do Direito e o direito jurisprudencial (no Continente e
no civil law) - 1.5.2 O princípio da justiça formal, a
determinação da ratio decidendi e a formação da ju ­
risprudência no common law e no civil law - 1.5.3 A
tensão entre facticidade e validade como um elemento
estrutural do Direito, inclusive e especialmente do di­
reito jurisprudencial.

1.1 Introdução

Neste capítulo introdutório procuraremos verificar a


possibilidade de uma teoria geral dos precedentes que atenda
à demanda de estabelecer critérios normativos para a recons­
trução racional e a fundamentação da decisão jurídica que
aplica precedentes com o um elemento de sua motivação. Por
meio de um estudo histórico-comparativo, procurarei, após
revisar algumas semelhanças entre o método judicial e o em­
prego de precedentes no common law e no direito romano do
período clássico (n. 1.2), demonstrar a incorreção da tese da
autonomia metodológica do common law (n. 1.3). Uma análise
mais aprofundada do estilo de redação judicial (style jurique)
da Inglaterra e da França, que representam os exemplos mais
puros de sistemas jurídicos que podem ser caracterizados como
provenientes da tradição do common law e do Direito continen­
tal (civil law), leva-nos à conclusão de que a criatividade judi­
cial nos dois sistemas difere muito pouco, e que nos dois siste­
mas se verificam os mesmos problemas de legitimação da de­
cisão judicial, embora cada uma das tradições tenha mecanis­
mos intraprocessuais e extraprocessuais diferentes para justi­
ficar o case law (n. 1.4). Em linhas gerais, o que pretendemos
deixar claro é que o fundamento do direito jurisprudencial no
common law e no civil law é, em grandes linhas, o mesmo,
sendo que a única diferença entre o desenvolvimento do direito
judicial no common law e no civil law que se pode ainda encontrar
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

é uma diferença de grau (n. 1.5). De um lado, a tese positivista


da discricionariedade judicial - exemplificada por meio da teo­
ria pura do Direito de Hans Kelsen - inevitavelmente conduz a
uma diferença meramente de grau de vinculatividade do juiz à
lei nos dois sistemas, de sorte que o fundamento do case law é
o mesmo independentemente do sistema jurídico em questão:
o positivismo kelseniano vê sempre as decisões judiciais como
mero ato de vontade, não de conhecimento (n. 1.5.1). De outro
lado, as teorias contemporâneas da justificação jurídica, em
especial as de orientação kantiana, como a que adotaremos no
Capítulo 2, revelam que o princípio da universalizabilidade e a
necessidade de reconstruir os precedentes por meio de enun­
ciados universais expressos em silogismos têm validade univer­
sal, o que desmonta a tese de que o common law seria avesso ao
método dedutivo dominante no Direito continental (n. 1.5.2).
Finalmente, terminamos por desnudar a tensão entre factici-
dade e validade, entre razão e autoridade, que é imanente ao
Direito em si mesmo considerado e que constitui elemento
estrutural do direito jurisprudencial. Uma teoria dos preceden­
tes deve ser capaz de estabilizar essa tensão.

1.2 A semelhança estrutural entre o common law e o


direito romano do período clássico

Costuma-se afirmar que o direito romano, especialmen­


te no período clássico (e pré-clássico) - que, grosso modo, co ­
meça na metade do século II a.C. e se estende até meados do
século III d.C. -, apresenta mais semelhanças com o common
law inglês que com os sistemas jurídicos que se constituíram
sob sua influência direta, como os da França, da Itália e da
Alemanha, onde se pode falar de uma “recepção expressa” do
direito romano.1Há um senso comum entre os juscomparatistas

1. De fato, se, por um lado, a influência do direito romano na Alemanha pode


ser considerada relativamente tardia, pois só veio a acontecer após a metade
do século XV I - ou seja, muito depois da descoberta do direito romano em
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

no sentido de que os sistemas jurídicos da Roma antiga e da


Inglaterra contemporânea apresentam notáveis semelhanças
quanto à estrutura, as quais repercutem, direta ou indireta­
mente, sobre o método judicial e o estilo da argumentação que
os juizes adotam para fundamentar suas decisões.
O common law inglês é descrito como um sistema jurídi­
co fragmentado, não codificado e ancorado profundamente na
tradição, cuja principal fonte - embora não a que tem maior
hierarquia no sentido formal a que estamos acostumados nos
sistemas jurídicos de tradição continental - é o costume reco­
nhecido pelos órgãos com autoridade para dizer e interpretar
o Direito. Quando se fala em “ costume reconhecido” , remete-
se o leitor necessariamente à ideia de precedente, e não ao
costume em si mesmo considerado, ou seja, independente de
um reconhecimento formal pelas autoridades judiciárias. O
Direito há de ser buscado em um precedente que tenha resol­
vido um caso semelhante em termos relevantes ao que se
coloca para o intérprete; há de ser normalmente encontrado
em uma regra estabelecida pelo juiz em um caso particular
anterior, e não em uma máxima abstrata da qual possam ser
deduzidas regras mais específicas para cada nova situação. A
ratio para decidir não está em uma decisão tomada por ente
externo à prática pragmática de observar casos/regularidades
e decidir questões particulares, mas na autoridade da mesma

Bologna, por volta do século XI, e dos comentários deixados pelos glosadores
nos séculos XIII e XIV por outro lado, em nenhum outro lugar do mundo
foram encontradas condições históricas tão favoráveis à incorporação das
normas e categorias do direito romano ao direito positivo. Como explicam
Zweigert e Kõtz [1998:132 e ss.], pode-se falar em uma verdadeira “recepção
do direito romano” na Alemanha deste período (século XVI), a qual reper­
cutiu significativamente na metodologia da ciência do Direito daquele país,
notadamente através dos pandectistas do século X IX , que desenvolveram
suas teorias conceptualistas a partir de comentários literais e da análise
conceituai do Digesto ou Pandectas [Van Caenegem, 1987, p. 12] e abriram o
caminho para uma série de outras teorias sobre a interpretação, aplicação e
desenvolvimento do Direito. Para uma síntese histórica das principais ver­
tentes jurídico-metodológicas na Alemanha, v. Larenz [1997:Parte I].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

pessoa que observa essas regularidades e deve impor standards


ou padrões de comportamento para o caso concreto: não há
uma distinção clara entre criação e aplicação do Direito. Quan­
do não houver um caso idêntico ao precedente particular que
possa ser rigorosamente reproduzido pelo juiz, abrem-se as
portas para o emprego das técnicas do distinguish e da analo­
gia, que são típicos métodos de criação do Direito.
Quando se olha para o common law da perspectiva de um
observador, parece de fato razoável, pelo menos à primeira
vista, concluir que tal direito positivo é o que mais se asseme­
lha ao direito romano clássico, pois em ambos se pode notar
não apenas a ausência de um corpo de normas jurídicas gerais
e abstratas e a presença de um mecanismo de desenvolvimen­
to do Direito gradual, lento e casuístico, mas especialmente
uma reserva de autoridade para a construção do sistema jurí­
dico a uma casta de “intérpretes autorizados” - em Roma, os
jurisconsultos; na Inglaterra, os juizes - que têm a prerrogati­
va de dizer o que vale e o que não vale como norma jurídica.
A seguinte descrição de Stein [1979:438] parece fornecer uma
boa imagem dessa relação: “ Quando pensamos nos sistemas
de civil law de hoje, pensamos em um corpus de regras cujo
significado é deduzido de princípios gerais e estão ordenadas
sistematicamente em códigos que possuem textos fixos e do­
tados de autoridade. Esses textos podem ser interpretados de
novas maneiras, mas a formulação linguística permanece a
mesma. Diferentemente, o common law aparece mais como um
conjunto de regras inferidas de decisões de casos particulares.
Os enunciados jurídicos são sempre provisórios, pois continua­
mente são reformulados através de alargamentos e estreita­
mentos dos seus termos à medida que surgem novos casos.
Essas regras são hipóteses que esperam ser testadas pelas
cortes de justiça. Nesse ponto, o antigo direito romano parece
muito mais com o common law do que com o civil law moderno.
Para o observador continental, o antigo direito romano e o
common law moderno compartilham a mesma aparência bar­
roca e desordenada” .
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Em decorrência dessas identidades estruturais entre o


common law e o direito romano, é comum encontrar também
certas identidades metodológicas entre os dois sistemas jurídicos.
Costuma-se argumentar nesse sentido da seguinte maneira:
quando se reconhece expressamente a uma mesma entidade a
autoridade para, de um lado, originariamente produzir o direi­
to positivo e, de outro, resolver os conflitos que surgem ao
aplicá-lo a cada novo caso particular que se apresenta, desen­
volve-se uma metodologia jurídica significativamente diferente
da que o jurista continental está acostumado, pois os juizes do
common law adotam mecanismos de desenvolvimento do Direi­
to e de solução de problemas jurídicos muito mais próximos aos
do período clássico do direito romano que os existentes nos
sistemas de Direito continental. O caráter extremamente con­
creto e casuístico das responsa prudentium oferecidas pelos ju­
risconsultos romanos dos dois primeiros séculos da era cristã
(bem como a suposta “repulsa” do jurista romano por constru­
ções abstratas ou por qualquer tipo de pensamento sistemático
ou conceituai como o que predominou no Continente Europeu
pós-Revolução Francesa) faz com que os comparatistas encon­
trem uma impressionante similitude entre o Direito dos juristas
de Roma e dos juizes da Inglaterra, pois em ambos os casos
predominaria um modo de pensamento tópico: ao invés de pro­
curar - dedutivamente - a resposta para cada problema jurídico
em um sistema de regras prévias estabelecidas pelo legislador,
o juiz do common law e o jurista romano parecem recorrer a um
sistema de topoi2 que podem ser livremente empregados pelo
aplicador do Direito: no common law, os precedentes; em Roma,
as responsa dos juristas autorizados.3

2. Topoi, na linguagem aristotélica, são “pontos de vista utilizáveis e aceitá­


veis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a
opinião aceita e que podem conduzir à verdade” [Viehweg 1979:26-27]. Sobre
a Tópica na aplicação jurisprudencial do Direito, cujo principal expoente é
Viehweg, v., além da obra citada logo atrás, Garcia Amado [1987], Bustamante
[2004] e Larenz [1997:201 e ss.].
3. A leitura tópica dos mecanismos de desenvolvimento do direito inglês e do
direito romano não pode ser aceita incondicionalmente. E necessário ressalvar
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Como salienta Vacca [1998:40], há, apesar das importan­


tes diferenças entre os dois sistemas jurídicos - principalmen­
te no plano institucional e na autoridade que se atribui às de­
cisões judiciais uma indiscutível proximidade entre eles no
que se refere aos procedimentos de desenvolvimento e, quan­
do necessário, modificação do Direito a partir da experiência
obtida por via da análise de casos individuais e da aplicação do
método indutivo: “ O jurista romano raciocina (...) efetivamen-
tefrorn case to case” ; trata-se de um case law que se desenvol­
ve não apenas “ subsumindo o novo caso em uma regra deri­
vada de um caso anterior” , mas buscando (indutivamente)
extrair da solução precedente a ratio decidendi que a justifica
e pode servir de padrão para a solução do caso ainda penden­
te [idem:46]. Para demonstrar essa semelhança metodológica
com o common law, Vacca cita alguns exemplos de aplicação
das técnicas do distinguish e de aplicação analógica que podem
ser encontrados no Digesto. Num desses exemplos a autora
parte do seguinte verbete: “D.41,2,21,1 (Iav. 7 ex Cassio): Não
pode ser usucapido aquilo que, depois de um naufrágio, é res­
gatado de um rio, pois [tal objeto] não é considerado abando­
nado definitivamente, mas somente perdido. 2. A mesma solu­
ção jurídica penso deva ser adotada para as coisas atiradas da
embarcação (para aliviar o carregamento em caso de tempes­
tade): de fato, não se pode crer ‘que seja considerado abando­
nado definitivamente’ aquilo que tenha sido abandonado
(apenas) temporariamente por motivo de segurança” .4

que tanto os precedentes quando as responsa têm autoridade vinculante em


relação ao juiz, e deles não se pode afastar senão pela técnica do distinguish
ou, em casos mais raros, do overruling. Não se trata, portanto, de topoi que
podem ser afastados aleatoriamente pelo aplicador do Direito. A comparação
é válida, no entanto, para aqueles casos em que ainda não há uma regulação
jurídica precisa e o intérprete deve, ele próprio, elaborar a regra jurídica que
servirá como padrão para solução dos problemas jurídicos concretos.
4. D.41,2,21,1 (Iav. 7 ex Cassio): Quod ex naufragio expulsum est, usucapi non
potest, quoniam non est in derelicto sed in deperdito. 2. Idem iuris esse existimo
in rebus quae iactae sunt: quoniam non potest videri id pro derelicto habitum,
quod salutis causa interim dimissum est.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

No trecho transcrito, Javoleno “ estende por analogia”


a solução de Cássio, para compreender não apenas as coisas
“ restituídas de um naufrágio” , mas também as temporaria­
mente atiradas da embarcação a fim de evitar o naufrágio,
por encontrar nas duas hipóteses a mesma ratio decidendi
[idem:43-44].
Por outro lado, Ulpiano, em D.47,2,43,11 (Ulp. 41 ad Sab),5
introduz um novo elemento (a intenção do possuidor que se
desfaz da coisa) que, se levado em consideração, pode levar a
soluções diferentes das anteriores. Trata-se, para Vacca, de um
típico caso de aplicação da técnica que os juristas do common
law denominam distinguishing. Veja-se [idem:44-45]: “Uma
questão diversa é posta neste texto de Ulpiano, em que o juris­
ta, com o fím de resolver o problema [de saber] se aquele que
leva consigo uma coisa iacta ex nave deve ser compreendido
pela aciio furti, introduz a relevância de uma circunstância
ulterior: o animus daquele que atira a coisa da embarcação; se

5. D.47,2,43,11 (Ulp. 41 ad Sab): “Se alguém traz consigo alguma coisa atirada
de uma embarcação, pode ser demandado por furto? O problema está em
determinar se a coisa deve ser considerada definitivamente abandonada. Se,
de fato, [o proprietário] jogou a coisa [do embarcação] com a ideia de deixá-la
definitivamente, o que deve-se crer seja a maioria dos casos, enquanto ele
estiver convencido de que a coisa tenha se perdido definitivamente, quem
a encontra lhe adquire a propriedade e não a tem por furto. Se, ao invés, o
proprietário não tiver jogado a coisa [da embarcação] com esta convicção, mas
com a ideia de recuperá-la caso ela seja resgatada, a coisa deve ser devolvida
por quem a tenha encontrado, e caso este tenha tido conhecimento de tal
circunstância terá tido a intenção de cometer o furto e terá a coisa por furto.
Se, ao invés, aquele que encontra a coisa não tiver a intenção de roubá-la,
mas a intenção de restituí-la ao proprietário, ele não a terá por furto. Ana­
logamente, se estiver convencido de que a coisa tenha sido simplesmente
jogada da embarcação, não a terá tido por furto” (Si iactum ex navefactum
alius tulerit, anfurti teneatur? Quaestio in eo est, an pro derelicto hábitum sit.
Et si quidem derelinquentis animo iactavit, quod plerumque credendum est,
cum sciat periturum, qui invenit suumfecit necfurtir tenetur. Si vero non hoc
animo, sed hoc, ut, si salvumfuerit, haberet: ei qui invenit auferendum est, et si
ho qui invenit et animo furandi tenet furti tenetur. Enumvero si hoc animo, ut
salvumfaceret domino, furti non tenetur. Quod si putans simpliciter iactatum,
furti similiter non tenetur).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

este está convencido de que a coisa estará definitivamente


perdida, a coisa pode ser considerada ‘derelicta’, e neste caso
aquele que a encontra pode adquiri-la. A ratio decidendi da
solução de Ulpiano não é diferente daquela utilizada para a
solução de Cássio e Javoleno: o terceiro pode adquirir somen­
te aquilo que, em relação aos elementos de fato relevantes para
a diagnose do caso, deve ser considerado ‘tipicamente’ perdido
definitivamente pelo proprietário, e não aquilo que deve ser
tido como perdido apenas temporariamente. Mas Ulpiano in­
troduz um distinguish que modifica o âmbito da rule oflaw que
derivava daquela ratio decidendi: enquanto Cássio e Javoleno
pensavam que todas as circunstâncias de fato a serem consi­
deradas relevantes na perda por naufrágio e, por analogia, na
perda por ter sido jogada da embarcação para evitar um nau­
frágio estariam consideradas na solução que - distinguindo
esses casos dos de derelictio - negava a aquisição pelo terceiro.
Ulpiano, pondo ênfase na relevância do convencimento daque­
le que se desfaz da coisa, elemento que não tinha sido consi­
derado nas soluções precedentes, restringe a aplicação da regra
aos casos em que efetivamente o dominus acredita poder recu­
perar a coisa. Os demais casos, na aplicação da mesma ratio
decidendi, devem ser portanto decididos no sentido oposto” .
Como se pôde notar no exemplo acima, construído a
partir de diferentes passagens do Digesto, em que juristas
distintos tratam de novos aspectos de um problema que cres­
ce de complexidade à luz de casos cada vez mais concretos,
as técnicas do distinguish e da extensão por analogia, que
constituem ainda hoje os elementos mais importantes do
método jurídico do common law, faziam parte da rotina dos
juristas romanos no desenvolvimento do Direito e na elabo­
ração de soluções para os problemas concretos que se colo­
cavam diante deles. De modo semelhante, é perceptível no
exemplo acima a mesma estrutura tópica descrita para retra­
tar o common law. Do ponto de vista metodológico, pode-se
falar, portanto, em certa identidade entre o pensamento jurí­
dico romano e o típico dos atuais juizes do common law. Com
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

efeito, a atividade do jurista inglês, seja quando está diante


de um caso não exaustivamente regulado por um precedente
judicial ou quando ele considera conveniente diferenciar (distin-
guish) os precedentes existentes tendo em vista o surgimento de
novas características “relevantes” para o caso subjudice, guarda
nítida semelhança com a interpretatio exercida pelos juristas
romanos do período clássico.6

1.3 A questão da autonomia metodológica do common


law em relação ao Direito continental-europeu

Mas essas identidades estruturais e metodológicas entre


o direito romano e o common law implicam uma “ autonomia
metodológica” deste último em relação ao Direito continental-
europeu? Em especial, quando o jurista do common law e o
jurista da tradição romano-germânica aplicam um precedente
judicial eles adotam técnicas interpretativas e métodos de
aplicação do Direito substancialmente diferentes?

Costuma-se dar uma resposta afirmativa a essas perguntas.


Nesse sentido, quando Buckland e McNair comparam o com­
mon law ao direito romano clássico, eles afirmam que “tanto o
jurista do common law quanto o romano evitam generalizações

6. A palavra interpretatio não tem significado idêntico ao longo de todo o pe­


ríodo de vigência do direito romano. Em uma acepção relativamente ampla,
interpretatio é entendida em um sentido equivalente ao de ius civile, ou seja,
a significar “o Direito desenvolvido através da atividade dos juristas, isto é,
dos experts jurídicos do denominado período clássico de Roma” [Schiller
1941:734]. Como salienta Schiller, esse sentido não prevaleceu nem durante
o período “pré-clássico” - no qual a expressão era entendida em um sentido
estrito, como “interpretação literal” [idem:737] nem no período “pós-
clássico”, em que a expressão é entendida como uma atividade de mediação
entre o Direito (ius) e a equity (aequitas), a ser exercida exclusivamente pelo
imperador [idem:744]. É importante frisar, portanto, que a comparação que
desenvolvo nos próximos parágrafos leva em consideração o sentido em que
a expressão foi utilizada no período clássico do direito romano, ou seja, nos
dois primeiros séculos da Era Cristã.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

e, tanto quanto possível, definições. O método desses juristas


é intensamente casuístico. (...). Nos seus grandes períodos de
formação, nem os juristas romanos nem os nossos [britânicos]
foram grandes teóricos: eles raramente retornam até os prin­
cípios mais abstratos” [Buckland/McNair: 1936/xii e 8-9]. En­
quanto nos sistemas contemporâneos do Continente Europeu
os oráculos do Direito seriam os juristas e a fonte da autorida­
de das decisões jurídicas estaria nos códigos, em contraste, o
jurista do common law teria sua pior performance quando se
confronta com um texto legislativo: “ Sua técnica é a de desen­
volver e aplicar a experiência judicial” [Pound 1937:186].
Pound, por exemplo, chega a advogar um “modo de pensar”
específico do common law, que refletiria um aparato m etodo­
lógico independente daquele utilizado pelos juristas do civil
law. Da mesma forma, Lord Cooper, um importante juiz es­
cocês, acredita que “ um sistema jurídico de civil law difere
de um de common law tanto quanto o Racionalismo difere do
Empirismo ou a dedução da indução. O jurista do civil law
naturalmente raciocina de princípios a instanciações, [instan-
ces] ao passo que o do common law de instanciações a princí­
pios. O jurista do civil law põe fé em silogismos, o do common
law em precedentes; o primeiro silenciosamente pergunta a
si mesmo cada vez que surge um novo problema: ‘O que de­
vemos fazer desta vez?’; enquanto o segundo indaga em voz
alta, na mesma situação: ‘O que nós fizemos da última vez?” ’
[Cooper 1950:470-471].
Essa forma de ver o raciocínio jurídico no common law
(casuístico, indutivo, particularista, um raciocínio from case to
case) é hoje aceita pela maior parte dos juristas e pode gerar
consequências extremamente relevantes para a teoria dos
precedentes judiciais de modo geral.
Do ponto de vista institucional, várias diferenças e seme­
lhanças poderiam ser buscadas entre o common law, o direito
romano e os sistemas jurídicos da tradição continental. O tipo
de raciocínio descrito no item anterior desse trabalho, por exem­
plo, que constitui um modo de pensar o Direito relativamente
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

próxim o do pensamento tópico descrito por Viehweg [1979],


pode ter sua maior frequência explicada a partir do fato de
que tanto o common law inglês quanto o direito rom ano
clássico são sistemas não-codificados, de m odo que as solu­
ções para os casos particulares devem ser buscadas em
normas relativamente concretas (em Westminster, os rulin-
gs judiciais; em Roma, as regulae que decorriam da interpre­
tatio dos jurisconsultos), o que faz com que os argumentos
por analogia e por diferenciação se tornem recursos sempre
frequentes.
Mas a questão metodológica que interessa para o jurista
prático que se aproxima do direito judicial é “qual o método
para extrair regras de precedentes ou, mais genericamente, da
jurisprudência?” . Quanto a esse ponto crucial, que é de inte­
resse para nós, porque abarca a interpretação dos precedentes,
Zweigert e Kõtz, por exemplo, acreditam que “ ainda há dife­
renças muito consideráveis entre o common law e o civil law” :
“A técnica do juiz do common law de se aproximar do case law
e extrair dele regras e princípios é o produto de uma tradição
madura e experimental de raciocínio from case to case. O juiz
anglo-americano inicia seu processo de decisão com preceden­
tes individuais que os advogados das partes tenham aduzido
ser os mais diretamente aplicáveis [inpoint]. Nesses preceden­
tes ele reconhece certas ‘regras’, ou seja, soluções de problemas
particulares e concretos. Ele observa como essas ‘regras’ foram
historicamente limitadas, estendidas e refinadas por outros
‘precedentes’ e então, mantendo constantemente esses proble­
mas práticos em mente, gradualmente extrai deles os ‘princí­
pios’ e standards de nível superior que ele usa para construir
e testar hipóteses de resolução dos casos com que se depara”
[Zweigert/Kõtz 1998:263].
Para os professores alemães “ esse m odo indutivo de
pensamento, baseado no problema fático particular de cada
caso e na discussão intensiva dos precedentes associados a
ele, não é encontrado no Direito continental” [idem:263-264].
Essa compreensão encontra eco inclusive na House ofLords
dos dias de hoje.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Se concordarmos com essas descrições, seremos forçados


a admitir que há métodos de raciocínio1- e não apenas de jus­
tificação e redação das decisões - diferentes no common law e
no civil law, os quais inviabilizariam nossa tentativa de esta­
belecer uma teoria geral do precedente judicial. No entanto,
antes de simplesmente aceitarmos que os modos de pensar das
duas grandes tradições jurídicas do mundo ocidental são dife­
rentes e, em grande medida, antagônicos, cumpre analisar um
importante fenômeno empírico que é reconhecido pela maior
parte dos juristas contemporâneos no mundo do common law:
o da relativa identidade de problemas e de soluções encontra­
dos na sua tradição jurídica e no Direito continental.
Como anota Lord Bingham [2000-b:100], o trabalho dos
comparatistas, ao longo dos anos, demonstrou que, quaisquer
que sejam as diferenças de “nomenclatura, procedimento e
raciocínio” , os conteúdos das decisões jurídicas nos dois siste­
mas normalmente são similares: “Desde que os Estados da
Europa Ocidental alcançaram aproximadamente o mesmo
estágio de desenvolvimento econômico e social, nós vemos -
sem surpresa - as cortes desses países confrontando em gran­
de medida os mesmos problemas e observamos que, apesar de
as regras jurídicas usadas para resolver esses problemas p o­
derem ser bem diferentes, as soluções são frequentemente
muito semelhantes” [Bingham 2000-c:28].
Um olhar histórico revela támbém um intercâmbio en­
tre o common law e o Direito continental, que não pode ser

7. Nesse sentido, apesar de reconhecerem que a oposição entre common law


e civil law enfrenta um processo de enfraquecimento (seria uma opposition à
nuancer), Fairgrieve e Muir Watt [2006:24 e ss.] sustentam duas importantes
diferenças entre as duas tradições jurídicas na dimensão epistemológica:
de uma parte, quanto aos “métodos de raciocínio judiciário”, o “silogismo
dedutivó da tradição francesa se opõe à metodologia indutiva do common
law”; de outra, quando observamos as “categorias estruturantes” do Direito,
“o lugar central que a tradição civilista francesa dá tanto à distinção entre
direito público e direito privado quanto aos direitos subjetivos contrasta com
a ausência de tal summa divisio e com todo tipo de discurso sobre direitos
[rights tallc] no common law”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

desprezado. Desde muito cedo - séculos XI e XII - os common


lawyers conheciam em grande medida o Direito continental e
não eram os “praxistas insulares” que aparecem nos relatos
de juristas do common law como Maitland. “ O common law que
Maitland descreveu (se é que existiu) - argumenta Helmholz
[1990:1.226-1.227] - foi uma inovação do século XIX, algo como
uma exceção (se considerarmos a história do direito inglês) ao
invés de uma regra” . Para Helmholz o isolacionismo do common
law em relação ao Direito continental é o resultado das ideias
decimonônicas sobre o Direito: “Antes do século XIX, barreiras
absolutas entre o Direito continental e o common law não exis­
tiam” [idem: 1.208], e as “mudanças jurídicas no alvorecer de
19928podem muito bem representar algo como uma restaura­
ção do status quo ante” [idem: 1.227].
Ainda assim, o pensamento majoritário é no sentido de
que mesmo no contexto contemporâneo, em que as cortes
europeias de Luxemburgo e de Estrasburgo produzem juris­
prudência relevante para todos os Estados europeus - unifi­
cando em larga medida o Direito dos Estados que integram a
Comunidade Europeia, e portanto afetando a própria substân­
cia do Direito dos Estados Nacionais -, permanecem sérias
diferenças quanto ao “processo de raciocínio através do qual o
resultado (isto é, solução de um problema jurídico) é obtido”
[Markesinis 2001:305].
É claro que basta comparar, por exemplo, o estilo de reda­
ção (stylus curiae) de uma sentença da Cour de Cassation fran­
cesa e de uma decisão judicial da House ofLords para perceber
diferenças muito significativas quanto aos usos da linguagem
[cf. Markesinis 1994:608] e quanto à forma como os fatos e as
normas jurídicas são enunciados e relacionados entre si.
Mas voltemos às perguntas formuladas no início deste
item: será que as diferenças de estilo implicam necessariamente

8. Refere-se o autor à unificação dos mercados europeus no ano de 1992,


que impulsionou em grande velocidade um amadurecimento institucional
da Comunidade Europeia.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que os juizes do common law e da tradição jurídica eontinental-


europeia adotam métodos de raciocínio diferentes, especial­
mente quando lidam com precedentes judiciais? Será que, para
além disso, os tipos de argumento que têm maior ou menor
força para fundamentar as decisões judiciais variam tanto
nessas diferentes tradições jurídicas?
Se respondermos negativamente a essas duas últimas
perguntas - e, portanto, compreendermos o raciocínio jurídico
como um único processo hermenêutico e a argumentação jurí­
dica como um único tipo de discurso de justificação de decisões -,
então, será possível cogitar de uma única teoria dos preceden­
tes judiciais, que poderá vir a ser universalmente empregada
para o fim de verificar a racionalidade dos discursos de justi­
ficação e de aplicação de regras jurisprudenciais em geral. Ao
final deste capítulo analisarei a plausibilidade da tese herme­
nêutica da autonomia metodológica do common law, em espe­
cial no que se refere à interpretação e aplicação de precedentes
judiciais. Antes de verificar a plausibilidade dessa hipótese,
cumpre, porém, uma análise mais aprofundada do estilo judi­
cial do common law e dos sistemas jurídicos continentais. Por
isso, no item seguinte tentarei fazer uma análise desse tipo ao
comparar o estilo judicial de dois Estados Nacionais que se
situam em extremidades opostas quando se levam em consi­
deração dicotomias consagradas como common law/civil law,
direito codificado/case law; jurisprudence constante/binding
precedent etc.
Busco, com a comparação entre a França e a Inglaterra,
logo a seguir, reconstituir o “ m odo de construir” e estruturar
linguisticamente as decisões judiciais dominantes em cada
um dos países e elucidar com o cada um dos sistemas jurídicos
reconhece e legitima o poder normativo das altas cortes do
Judiciário. Essa reconstrução, aliada a uma descrição da for­
ma com o o positivismo do século X IX repercutiu sobre as
instituições jurídicas de cada um desses países, será útil para
justificar as respostas que darei às perguntas formuladas no
início deste item.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

1.4 O "stylus curiae" (e suas implicações) nos sistemas


jurídicos de "common law" e de "civil law"
1.4.1 O estifo francês phrase unique e o seu contexto

Por estilo, stile, stylus ou style judicial devemos entender


“não apenas a linguagem, no sentido literário e lógico” , utili­
zada pelos juizes, mas “também e sobretudo o estilo no sentido
amplo de modo de fazer (ou construir) a sentença” [G o r la 1999-
a:62]. O estilo judicial pode variar desde o extremo do julga­
mento phrase unique, da Corte de Cassação francesa, que
apresenta a decisão como o resultado de um simples silogismo,
até o estilo discursivo e quase-literário do Reino Unido, que
utiliza uma narrativa detalhada dos fatos do caso, buscando
reproduzir tanto o maior número de detalhes possíveis sobre
os fatos que demandam solução jurídica quanto as impressões
pessoais do juiz sobre eles.
Para iniciar nossa análise, tomemos o caso do direito
francês, que é o que apresenta o contraste mais acentuado com
o common law anglo-americano.
Em França o estilo phrase unique exige que as decisões
judiciais sejam estruturadas de uma forma comum, que em
linhas gerais corresponde ao seguinte [cf. Mimin 1978:186]:

“ a) O Tribunal, após haver deliberado,”


“ Considerando [attendu] que (...); que (...);”
“ Considerando que (...); que (...);”
“Por esses fundamentos [motifs],”
“ b) Rejeita (...);”
“ Condena (...);”
“E determina (...).”

Esse estilo, de um ponto de vista gramatical, exige que


as duas partes do julgamento (a, que se refere aos fundamentos
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

da decisão; e b, que constitui a parte dispositiva) se achem


compreendidas em uma única frase: “ Em b estão os verbos
das proposições principais, e em a estão as proposições que
completam esses verbos” [idem: 187]. A relação entre a e b
com preende uma estrutura gramatical que estabelece ser b
uma consequência necessária de a: “Na sua forma tradicional,
o julgamento francês não compreende estritamente mais que
uma única frase com um único sujeito (‘o Tribunal’) e um ou
mais verbos (‘diz que’, ‘condena’, ‘dá ação a’, ‘reenvia’) que
constituem na parte dispositiva uma ou mais proposições
principais justapostas. Essa frase única recebe, sob o nome
de motifs, uma multiplicidade de proposições subordinadas
(proposições completivas, circunstanciais dos verbos contidos
no dispositivo), introduzidas necessariamente por locuções
conjuntivas (attendu que, mais attendu que, considérant
que...)” [ibidem].

Essa fórmula é empregada em praticamente todos os


julgamentos realizados em França. Uma das principais carac­
terísticas do sistema judicial francês é que a corte mais alta (a
Corte de Cassação ou o Conseil d’État) não examina os fatos do
caso; ou seja, são as cortes inferiores que decidem a questão
da “ existência material dos fatos” . No modelo de cassação,
sempre que uma decisão da corte de apelação tenha sido inva­
lidada pela corte superior, a matéria é “ enviada para uma outra
corte de apelação, que irá tomar uma nova decisão, tanto sobre
a questão de direito quanto sobre a questão de fato” [Troper/
Grzegorczyk 1997:104]. O estilo dos julgamentos da corte pode
ser descrito com o dedutivo (silogístico), legalista (o julgamento
é descrito como um simples caso de “aplicação” da lei), magis­
terial (o julgamento final “ é apresentado como o resultado
último e necessário de um conjunto de argumentos jurídicos e
lógicos que está formalmente estruturado como uma demons­
tração” ) [Taruffo 1997-a:448-449] e impessoal (não há divulgação
das opiniões concorrentes ou minoritárias dos juizes que fazem
parte da corte: a corte age com uma só voz, e a presunção é de
que a decisão foi tomada por unanimidade) [Troper/Grzegorczyk
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

1997:110]. Ademais, as decisões são “ extremamente breves, às


vezes com não mais que poucas linhas” [idem:107]. As decisões
da Corte de Cassação são redigidas, via de regra, com base em
um único fundamento, sendo rara a prática (tão comum no
common law) de acumular argumentos em favor de uma deci­
são [Goutal 1976:45]. O Tribunal, apesar de em grande medida
seguir a jurisprudência dominante, não faz referências a casos
anteriores: “ Há um grande fosso entre saying e doing no siste­
ma francês, pelo menos na sua versão oficial legalista, que
ainda não admite o real papel dos precedentes na justificação
das decisões judiciais” [Troper/Grzegorczyk 1997:137]. Como
descrevem em tom extremamente crítico Touffait e Tunc, a
Corte de Cassação, em relação às questões de direito, procede
por afirmação de princípios em relação aos quais ela não nada
faz para esclarecer o conteúdo,9 e em relação às questões de
fato “encontramos correntemente afirmações peremptórias,
que não convencem, porque elas escondem toda a discussão
possível” [Touffait/Tunc 1974:489-490].
Com base em uma análise semelhante, anota Muir Watt
[2004-a:59] que a verdadeira chave da diferença entre o estilo
do common law e o da Cassação francesa se encontra no terre­
no da epistemologia jurídica. “ O estilo judiciário é evidente­
mente revelador de uma determinada forma de aprender o
próprio Direito, de uma ideologia do processo judiciário” . Di­
ferentemente do que ocorre no common law, “desde o momen­
to em que se passa a conceber a ordem jurídica como um sis­
tema de regras hierarquizadas e fechadas, onde a interpretação
corresponde por consequência a uma racionalidade dedutiva,
a pesagem dos valores é relegada à periferia; as escolhas ideo­
lógicas, sociais ou econômicas, pertencem nessa ótica apenas

9. Afirmam Touffait - que exerceu por anos a função de Procureur-Général


près la Cour de Cassation - e Tunc - professor na Université de Paris II -
que, “esses princípios, a Corte de Cassação os estabelece por razões que
ela não explicita, o que é contrário às ideias que fundamentam a obrigação
de motivar, e sem sequer precisar o seu âmbito, o que é mais grave ainda”
[Touffait/Tunc 1974:492].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ao domínio político, ou seja, do legislador” [ibidem]10A imagem


ideológica que é refletida no estilo francês é a de que a decisão
judicial vai encontrar fundamento mais em um ato de conhe­
cimento do Direito que em uma escolha ou decisão em sentido
mais amplo. Em uma fórmula simples, pode-se dizer o seguin­
te: “ O simples fato de se tomar uma decisão implica uma esco­
lha; mas a técnica gramatical francesa torna o juiz capaz de
esconder isso” [Rudden 1974:1.022].
No modelo judicial phrase unique, se quisermos encontrar
as razões interpretativas (das normas) ou classificatórias (dos
fatos jurídicos relevantes) adotadas pela Corte francesa em
determinado julgado, não é no texto das decisões judiciais que
devemos buscar; devemos ou recorrer às conclusions do Avocat-
Général (que são publicadas apenas nos casos mais importan­
tes) ou, então, aguardar os ricos comentários que a doutrina
francesa faz para o fim de racionalizar ex post a jurisprudência
de seus próprios tribunais. Destarte, costuma-se dizer que a
doutrina em França exerce a mesma função que os juizes exer­
cem na Inglaterra de expor o Direito, desenvolvê-lo, criticá-lo,
comentá-lo, propor ajustes, correções, analogias, diferenciações
etc. Em França, é na doutrina que se encontra o Direito sendo
exposto, racionalizado, formatado: “A influência da Chronique
Dalloz, das notas da Revue Trimestrielle de Droit Civil, da Clu-
net, no desenvolvimento do case law é dramática. Acadêmicos
de destaque fazem em França o que juizes fazem na Inglaterra,
e os padrões de raciocínio e extensão [dos comentários] apre­
sentam importante semelhança; as ‘notas’ francesas estão
muito mais próximas dos julgamentos ingleses que os julga­
mentos franceses estão” [Goutal 1976:64].

10. Em sentido parecido a opinião de Rudden [1974:1.022]: “Esse estilo verbal


é ao mesmo tempo um sintoma e uma técnica. É o reflexo do preceito do
art. 5s [do Código Civil], que proíbe o juiz de estabelecer regras gerais, e de
toda a tradição de que é a legislatura e não os tribunais quem deve criar o
Direito; assim, ao expressar o julgamento nessa forma gramatical particular,
é dada uma impressão de que tudo não passa de uma fácil dedução a partir
de princípios de direito positivo”.
*““ ■“
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

1.4.1.1 O estilo phrase unique e a Escola da Exegese

.......................................................................................................................... ......... ............


O estilo phrase unique é uma manifestação particular da
influência que o Positivismo formalista do século X IX exerceu
em França. Durante o período compreendido entre a data da
entrada em vigor do Código Napoleônico, em 1804, e o lança­
m ento da obra de F rançois Gény intitulada M éthodes
d’interprétation et Sources en Droit Privé Positif, em 1899, foi
hegemônica em solo francês a denominada “Escola da Exege­
se” , que pretendia, consoante as ideias fundamentais acerca
do Direito dominantes na Revolução Francesa, “reduzir o Di­
reito à lei” e, de modo mais particular, “ o direito civil ao Códi­
go de Napoleão” [Perelman 2000-a:31].
O Positivismo empirista e o formalismo linguístico que
subjazem à Escola da Exegese, no Direito, e à Filologia, na li­
teratura e na análise de documentos religiosos, estão ligados
de forma íntima ao impressionante trabalho de codificação que
substituiu as diversas fontes do Direito pré-revolucionário (uma
ampla variedade de costumes, ordenações, editos reais e fór­
mulas vagas de direito natural) pelo “texto certo, único e está­
vel da lei” [Frydman 1994:62].
Identificar todo o Direito com uma legislação que tem
conteúdo certo e determinável implicava, como explica Perel­
man, uma “doutrina da separação dos Poderes ligada a uma
psicologia das faculdades em que vontade e razão constituíam
faculdades separadas” : o Poder Legislativo, e só ele, “fixa por
sua vontade o Direito que deve reger certa sociedade; o Direi­
to é a expressão da vontade do povo, tal com o ela se manifesta
nas decisões do Poder Legislativo” [Perelman 2000-a:32]. Por
outro lado, de acordo com essa concepção legalista, o Judiciá­
rio “diz o Direito, mas não o elabora” ; “ é necessário que a
Justiça tenha os olhos vendados, que não veja as consequências
do que faz: dura lex, sed lex” [idem:33]. A atividade judicial
restringe-se a estabelecer os fatos da causa e subsumi-los às
normas produzidas pelo legislador. “ Interpretar - afirmam
categoricamente Boileux e Demolombe [cf. Frydman 1994:64]
............
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

- não é modificar, inovar; é fixar o sentido exato, verdadeiro,


de uma disposição” . Em uma palavra, a premissa fundamental
da denominada “Escola da Exegese” é de que “ o texto [da lei]
possui um e apenas um significado verdadeiro” , e, portanto,
de que a interpretação “ corresponde a um ato de conhecimen­
to objetivo, que deve e pode ser purgado de todo juízo de valor
próprio do intérprete” [Frydman 1994:74].
A Escola da Exegese, uma vez estabelecido que o Direito
será encontrado nesse “texto único” , caracteriza-se por uma
“ ruptura completa com a hermenêutica tradicional, religiosa
ou jurídica” , que “ admitia a priori a possibilidade de uma plu­
ralidade de sentidos” [Frydman 1994:63]. O direito positivo, e
em especial o código, que era tido com o uma obra perfeita e
intrinsecamente racional, deveria ser contemplado como um
“ sistema axiomático formalizado” , que tem as características
da univocidade dos seus signos linguísticos (cada termo em­
pregado pelo legislador há de ser entendido em um único
sentido), coerência (não há contradições ou falhas no sistema
elaborado pelo legislador) e completude (o sistema é capaz de
resolver todos os problemas que eventualmente surjam na
aplicação do Direito) [Perelman 2000-a:34].n
É nesse contexto - o qual, na verdade, constitui a expres­
são justeorética da ideologia do juiz bouche de la loi - que foi
considerada plausível a premissa fundamental do estilo phrase
unique: a ideia de que toda a atividade judicial não passa de um
processo de dedução, da construção de um simples silogismo.
E claro, no entanto, que o jurista francês contemporâneo tem
consciência de que esse formalismo jurídico não tem mais con­
dições de subsistir na prática jurídica em geral - e a França não
é exceção a essa regra. A técnica do julgamento phrase unique
persiste unicamente por força da tradição. Já é de modo geral

11. Em sentido análogo, Dawson [1986:393] entende que as premissas de


fundo da Escola da Exegese seriam as seguintes: (1) “o legislador possui o
monopólio do poder de produzir o Direito”, (2) “o legislador realizou um
trabalho completo” e (3) “o legislador é internamente consistente”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

reconhecida, especialmente pela doutrina, mas também em


importante medida nos documentos internos da própria Cour
de Cassation, a atividade de criação do Direito desempenhada
pelo juiz. Como explica Gérard Cornu [1992:342], as grandes
criações pretorianas da jurisprudência civil francesa “entraram,
conforme opinião unânime, no direito positivo” : algumas valem
até hoje por sua força própria (a teoria do enriquecimento sem
causa, os inconvénients de vizinhança etc.); enquanto outras - a
maior parte - foram posteriormente consagradas pela própria
lei (responsabilité générale dufait des choses, ábus de droit etc.).

1.4.1.2 Jurisprudência e criação do Direito em França

Ao invés de afirmar aprioristicamente que todo o Direito


está contido na lei positiva, que seria um sistema unívoco,
completo e coerente, o jurista francês contemporâneo reconhe­
ce de modo geral tanto que a jurisprudência integra de certa
forma o direito positivo quanto que a interpretação da lei é
essencialmente uma atividade de criação de sentidos - e, por­
tanto, mais um processo construtivo de significado que um ato
de puro conhecimento: “ Quem diz ‘interpretação’ diz criação” ,
e não há dúvida de que a Corte de Cassação em certas situações
faz de sua jurisprudência ‘uma fonte do Direito tão importan­
te quanto a lei’” [Gobert 1992:345].
Há, de modo geral, a consciência de que a divisão do tra­
balho entre a Corte de Cassação e o legislador vai bem além da
tese da Escola da Exegese de que “ o legislador decide” , enquan­
to o juiz meramente “ aplica” , através de um ato de conhecimen­
to - e não de vontade -, o Direito preestabelecido. No criterioso
estudo de Louis Bach sobre a jurisprudência francesa, por
exemplo, sustenta-se, sob premissas kelsenianas seguidas de
dezenas de exemplos da jurisprudência da Corte de Cassação,
que “a interpretação é ato de conhecimento, mas também um
ato de vontade” : “ Com efeito, se se admitir que o Direito a ser
aplicado é mais frequentemente um quadro no interior do qual
há diferentes possibilidades de aplicação, convém reconhecer
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que a interpretação enquanto meio de conhecimento permite


somente determinar o quadro que o Direito a ser interpretado
representa e, desse modo, as diversas possibilidades que existem
no interior desse quadro. Mas, como acontece com mais frequên­
cia (...), a interpretação enquanto meio de conhecimento conduz
a uma pluralidade de soluções possíveis” [Bach 2000:15].
Embora ainda persistam na jurisprudência da Corte de
Cassação certos julgados em que se mantém a “ficção do caráter
declaratório das decisões jurídicas” , isto é, a negação do poder
criativo de normas jurídicas - inclusive com a afirmação de que
“uma evolução na interpretação jurisprudencial de uma regra
de Direito escrito não seria uma modificação nesta regra” [cf.
Molfessis et al. 2005:11] -, a sobrevivência desse mito no discur­
so oficial do Judiciário é vista como um anacronismo e como um
inconveniente (para não dizer um mal) tanto pela doutrina como
pelos juristas práticos de maior projeção nacional e internacio­
nal, entre os quais Adolphe Touffait [1978:485], que exerceu por
anos os cargos de Procurador-Geral junto à Corte de Cassação
e de Juiz da Corte de Justiça da Comunidade Europeia, Guy
Canivet [2005-a:15], Primeiro-Presidente da Cour de Cassation
até muito recentemente, e o grandioso Grupo de Trabalho com ­
posto por Valérie Amand (Auditeur à la Cour de Cassation), Denys
de Béchillon (Professor na Université de Pau et des Pays de
VAudour), Louis Boré (Avocat au Conséil d’Etat et à la Cour de
Cassation), Emmanuel Lesseur de Givry (Conseiller à la Cour de
Cassation), Didier Martin (Avocat à la Cour de Cassation), Nico-
las Molfessis (Professor na Université Panthéon-Assas - Paris II),
Horatia Muir-Watt (Professora na Université Panthéon-Sorbonne
- Paris II), André Potocki (Magistrat, Presidente da Chambre à
la Cour d’Apel de Paris) e Marie-Aleh Trapet (Auditeur à la Cour
de Cassation), que fora organizado para refletir sobre a viabili­
dade da manipulação da eficácia temporal dos revirements de
jurisprudence no direito francês [Molfessis et al. 2005:10 e ss.].12

12. Concluiu o Grupo de Trabalho, após analisar um grande número de arrêts


da Corte da Cassação que ilustram o seu argumento: “Porque o juiz não é
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Ademais, há, inclusive, um instrumento processual por


meio do qual a Corte de Cassação pode ser invocada, por uma
parte no processo judicial, com fundamento na “ ausência de
base legal” (défaut de base légale). Embora em teoria ainda
exista uma certa indefinição acerca da extensão desse poder
de se invocar a Corte de Cassação em caso de ausência de base
legal para decidir o caso em questão, “ a História ensina que o
défaut de base légale sempre foi um instrumento de criação [do
Direito]” . Explica Foussard [2004:73], citando a doutrina da
obligation non sérieusement contestable13 e outros exemplos,
que a abertura à cassação com base no fundamento do défaut
de base légale é não apenas um instrumento de controle das
decisões a quo, mas também um autêntico instrumento pro­
cessual de elaboração de normas gerais pela Corte de Cassação.
Tal instrumento somente pode encontrar razão de ser em
uma autocompreensão judicial segundo a qual o juiz não é mais
considerado apenas a boca da lei, mas em que o juiz reconhe­
ce para si mesmo o dever de “ ajustar o Direito aos valores da
sociedade” . O Presidente Guy Canivet, por exemplo, enxerga
uma bipolaridade no exercício da função judicial em geral que
- segundo afirma - é válida para as Cortes francesas de direito
privado: o primeiro polo, de fluidez (no raciocínio judicial), é
representado pelos progressos científicos e tecnológicos: “A
abertura das cortes de justiça aos progressos e inovações cien­
tíficas é um dos maiores fatores de desenvolvimento de novo
direito jurisprudencial. Novas tendências na Ciência (...) ine­
vitavelmente ampliam o horizonte do juiz ao induzir um racio­
cínio jurídico do tipo criativo” [Canivet 2004:182].
O segundo polo - prossegue o Primeiro Presidente da
Corte de Cassação - é um “polo de estabilidade” , representado

apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, não é admissível que o sistema
jurídico como um todo se comporte, sempre e sem qualquer flexibilização,
como se ele o fosse” [Molfessis et al. 2005:13].
13. Cour de Cassation, Ass. Plén., 16.11.2001, BICC, n. 541 du 15.12.2001, pp. 3
et ss., avec les conclusions de M. D. Goûtes; Bull. Ass. Plén. 13/19.

94
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

pelos valores fundacionais de uma sociedade: “ O juiz é sempre


guiado pela proteção de valores sociais. Sua tarefa é criar
constantemente uma ponte entre o Direito e os valores da so­
ciedade em que ele vive” , seja através do material jurídico
extraído de sua própria cultura jurídica ou com a ajuda do
direito comparado [idem:181]. Canivet chega, inclusive, a uti­
lizar a metáfora do raciocínio jurídico como “ romance em ca­
deia” , proposta por Ronald Dworkin [2000:229], para descrever
a atividade judicial de acordo com o modelo Law as integrity:
“ O Direito não apenas regula relações sociais. Ele também
reflete valores sociais amplamente compartilhados. O juiz
compreende o Direito de sua sociedade como um conjunto
coerente que interage com uma realidade social em movimen­
to perpétuo. Esse é claramente o caso nos países de common
law. (...). Mas é também o caso nos países de civil law como o
meu, onde os tribunais completam e dão sentido às mudanças
na lei através do seu trabalho de interpretação. (...). Cada juiz
deve, em certo sentido, contribuir para a chain novel do Direi­
to, que está constantemente sendo escrita, de acordo com a
célebre analogia do filósofo do Direito Ronald Dworkin” [Ca­
nivet 2004:182-183].
A criatividade e a riqueza da jurisprudência francesa
foram também capturadas com especial precisão pelo estudo
de Mitchel Lasser sobre os dois perfis do discurso judiciário
dos tribunais daquele país. Ampárado por uma análise não
apenas dos sucintos e lacônicos arrêts que representam a de­
cisão judicial como o resultado de um simples processo dedu­
tivo, mas principalmente dos documentos internos da Corte
de Cassação, como as eonelusions dos avocats-générales (mem­
bros do Ministério Público que atuam perante a Cour de Cas-
sation como custos legis) e os rapports dos juizes relatores na­
quele mesmo órgão jurisdicional, Lasser distingue o denomi­
nado “perfil oficial” {official French portrait), produzido por
certos enunciados legislativos e pela interpretação doutrinária
desses documentos, dos “ perfis extraoficiais” (unofficial por-
traits) dominantes entre os teóricos do Direito e nos discursos
que se verificam nos documentos ocultos do Judiciário Civil
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(conclusions, rapports e documentos outros não geralmente pu­


blicados). Para o comparatista, é nesse discurso não-oficial que
radica a autocompreensão que o sistema jurídico, desde uma
perspectiva interna, tem acerca do seu próprio funcionamento
[Lasser 1995:1.327]. O direito francês é marcado por uma tensão
estrutural entre esses dois estereótipos: de um lado, o perfil ju­
dicial oficial, cujo elemento nuclear é a gramática e representa a
ideologia interpretativa que visualiza um modo perfeitamente
gramatical de ler o código; de outro, o perfil extraoficial, que
reconhece a multiplicidade de escolhas interpretativas compreen­
didas no processo decisório, representa uma autoleitura do Ju­
diciário cujo elemento central é uma ideologia interpretativa que
busca gerar sentido (para os textos produzidos pelo legislador e
para as decisões concretas que se tomam com fundamento neles)
através da hermenêutica [idem:1.327-1.328].
Uma análise da perspectiva interna à prática decisória
da Corte de Cassação revela o caráter ingênuo de uma teoria
do direito comparado segundo a qual o jurista prático francês
não tem consciência seja da função normativa de suas decisões
ou da complexidade do processo hermenêutico de construção
de sentido para os textos legislativos em geral. Após citar um
longo trecho de uma peça de conclusões do avocat-général
Lindon [cf. Lasser 1995:1.360], que serviu de exemplo para
demonstrar o contraste entre a ideologia “ oficial” e a que per­
meia os discursos internos de justificação das decisões da
Corte de Cassação, Lasser observa, com surpresa: “A argumen­
tação de Lindon apresenta um portrait da função judicial que
é difícil conciliar com o portrait oficial francês acerca do juiz
civil. Lindon claramente desaprova o art. 2.053 do CC. Ele argúi
que a Corte poderia e talvez deveria, na ausência de ação le­
gislativa, unilateralmente estabelecer uma exceção ao dispo­
sitivo do Código aplicável. Lindon propõe que a Corte modifi­
que a dicção aparente do Código por meio da modificação de
sua própria jurisprudência. Apesar de Lindon considerar essa
inovação judicial desnecessária no caso em julgamento, ele,
por outro lado, insiste em que essa modificação seja feita o mais
rápido possível. Isso implica que a jurisprudência da Cour tem
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

uma força normativa em certo sentido comparável à do Código.


Juizes e sua jurisprudência podem legítima e intencionalmen­
te modificar regras legislativas. (...). Lindon entende a juris­
prudência como constituindo parte do direito positivo francês.
Ele descreve o legislador e o juiz franceses como operando na
mesma esfera. (...). O argumento com fundamento na letra da
lei desapareceu completamente. A força do precedente judicial,
ao contrário da vinculação ao Código, regula o processo argu-
mentativo. (...). A diferença de tom entre o discurso de Lindon
e o contido na decisão judicial paradigmática francesa é tam­
bém digna de nota. Lindon argumenta em um estilo discursivo.
Além de ele iniciar várias sentenças com a expressão familiar
et bien, seus argumentos refletem a sua experiência pessoal
perante os mesmos juizes: ‘Os Srs. sabem, e eu com frequência
tive oportunidade de notar perante os Srs., que (...)’. Ele não
evita falar na primeira pessoa, nem expressar sua própria opi­
nião pessoal sobre as questões jurídicas. Seu estilo argumen-
tativo, em contraste com o dos pronunciamentos judiciais
oficiais, leva à impressão de que há espaço para a discussão
entre os juizes franceses” [Lasser 1995:1.361-1.362].
Fica claro nesse trecho - conclusão que foi corroborada
por dezenas de outros exemplos citados e analisados com in­
vejável riqueza de detalhe por Lasser - que os magistrados
franceses veem a si mesmos como titulares de um “papel nor­
mativo crucial para o desenvolvimento e a aplicação de regras
jurídicas” . A atividade judicial não é compreendida como uma
aplicação mecânica de provisões legislativas, mas uma elabo­
ração intencional de princípios pragmáticos consagrados em
precedentes judiciais que constituem direito positivo e levam
em conta razões políticas (policy reasons) que jamais poderia
perceber quem se mantivesse apenas na esfera do observador
externo dos arestos publicados pela Corte [Lasser 1995:1.363].14

14. Interessante exemplo do alcance desse fenômeno no Judiciário francês


é uma certa regra costumeira da Câmara Criminal da Corte de Cassação
segundo a qual apenas os arestos em matéria criminal publicados no boletim
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

A Corte de Cassação, ao decidir determinada questão


jurídica, é plenamente informada - seja pelo Avocat-Général
ou pelo Magistrat-Rapporteur - acerca de todas as lacunas,
conflitos, ambiguidades e insuficiências porventura existentes
no Código [Lasser 1995:1.369]. Além de ouvir uma série de
argumentos pragmáticos que justificam tanto uma decisão
como sua negação, a Corte é minuciosamente alertada sobre
os precedentes existentes acerca do tema e sobre o significado
normativo que a decisão a ser tomada terá para o sistema ju­
rídico. A decisão, nesse processo, é claramente apresentada
com o uma escolha fruto de um processo interpretativo: as con­
clusions dos avocats e os rapports do juiz relator são apresen­
tados como uma simples opinião, uma sugestão para que se
tome determinada posição, a qual muitas vezes vem, inclusive,
indeterminada.
Nesse sentido, Lasser [1995:1.371] esclarece que, “muito
embora o juiz relator normalmente deixe bem claro, ao longo
de sua análise, como ele pensa que o caso deva ser decidido,
ele formula suas observações finais como uma mera sugestão,
ou, como é ainda mais frequente, não oferece quaisquer suges­
tões formais, esclarecendo que deixa à Corte a oportunidade
para decidir como o caso deve ser tratado” .
O caráter genuinamente herm enêutico das decisões
francesas fica evidenciado ainda mais em duas técnicas que
são muito frequentemente encontradas nos documentos inter­
nos da Corte de Cassação: (1) o uso, nas conclusions e nos rap­
ports, de figuras de linguagem como a prolepse - que consiste
em relatar o argumento do adversário: “ Objetar-se-á que (...)”

oficial da Corte devem ser considerados como razões de autoridade nos seus
julgamentos. Como explica David [1960:164-nota 1; Gorla 1999-b:99-100-nota
11], “quando a Câmara Criminal da Corte toma uma decisão, os seus membros
tomam uma deliberação especial para saber se o arrêt será, ou não, publica­
do no boletim oficial”. Uma vez formada certa jurisprudência da Corte, sua
eficácia normativa para além do caso concreto é tão marcante que por vezes
certos órgãos da Corte decidem, por si mesmos, limitar seu poder normativo.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

[Reboul 2000:251]15 - e (2) a redação, pelo juiz rapporteur, de


diferentes projetos de acórdão (projets d’arrêt) a fim de que a
Corte possa, após deliberação de seus integrantes, escolher
qual deles será adotado [Lasser 1995:1.372-1.373]. A primeira
técnica - argumentação por prolepses - encontra antecedente
no estilo dos denominados Grandes Tribunais dos Estados
Pré-Unitários Italianos, em especial a rota Romana e as rotae
de Florença e outras cidades do Ducado da Toscana, que flo­
resceram durante os séculos XVI e XVII e constituíram impor­
tante fator para a unificação do Direito e do próprio Estado
Italiano no período de formação do Estado Moderno [Gorla
1970; Gorla 1981-a]. O estilo rotal, especialmente no século
XVII, pode ser descrito como “disputativo” , “ argumentativo”
e “casuístico” [Gorla 1970:742], sendo que uma de suas carac­
terísticas era que “ a solução [do Tribunal] era seguida de uma
crítica dos argumentos contrários, textos e authorities, usual­
mente introduzidos pela fórmula típica nec obstat (‘não se pode
objetar que...’), e muito frequentemente se seguia uma longa
lista de citações de cada nec obstat” [ibidem].16
Embora a inclusão das prolepses seja um dado relativa­
mente recente na história do Judiciário francês, pois o próprio
dever de motivação das decisões, enquanto princípio funda­
mental do Direito em França, só veio a ser institucionalizado
nas duas últimas décadas do século XVIII, já por influência das
ideias revolucionárias [Sauvel 1955:40 e ss.], há forte indício de
que essa forma de argumentar tenha origem no estilo adotado

15. V., por exemplo, Lasser [1995:1.366].


16. Atualmente, no entanto, verifica-se na legislação italiana um “apelo à con­
cisão”, que se explica como uma “reação aos excessos de prolixidade das rotae
(principalmente durante os séculos XVIII-XIX)”. Da mesma forma - explica
Gorla há regras jurídicas específicas que convidam o juiz a “não se pôr a
refutar todos os argumentos opostos pelos defensores das partes”, as quais
“representam uma reação à tendência das rotas de levar em consideração
específica cada um desses argumentos, mesmo os menos importantes, e de
refutar todos pelos célebres nec obstat” [Gorla 1981-b:389], [V também, nesse
mesmo sentido, Gorla 1999-b:104].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

pelas rotae nos séculos XVII-XVIII. Com efeito, como explica


Gorla [1999-b:115], “ houve entre França e Itália, em um certo
momento, um curso histórico comum quanto aos ‘problemas
da jurisprudência’, determinado pelas relações entre Itália e
França no período que vai desde o final do século XVIII, pas­
sando por todo o século XIX, até o início do século X X ” . As
relações entre os dois países, apesar de nem sempre amistosas
no período - especialmente se levarmos em conta a dominação
napoleônica -, influenciaram profundamente o desenvolvimen­
to dos sistemas jurídicos e das cortes supremas dos dois países.
Do lado italiano a influência é mais visível: basta olhar para a
estrutura da Corte de Cassazione e para o stile delVatteso che,
que constitui uma cópia dos attendu de origem francesa (em­
bora o estilo italiano tenha preservado em parte o mos italicus,
o que explica que o attendu italiano seja muito menos conciso
e reducionista que o francês) [Gorla 1999-b:116]. Do lado fran­
cês, porém, a influência é latente, mas basta penetrar no dis­
curso interno da Corte de Cassação para sentir sua presença.
O argumento por prolepses é revelador de um caráter indis­
cutivelmente discursivo e aberto das argumentações que
efetivamente ocorrem no interior das Câmaras da Corte de
Cassação e vai de encontro à visão caricaturada do direito
francês segundo a qual o estilo phrase unique seria represen­
tativo de um modo de pensar e argumentar puramente forma-
lista e legalista, absolutamente distinto do método judicial do
common law. Contra essa representação pode-se dizer que
com essa forma de “revitalização do nec obstat” a jurisprudên­
cia francesa leva mais a sério o dever de motivar as decisões
que a de muitos outros Estados Democráticos, pois o dever de
motivar normalmente não mais é interpretado com o com ­
preendendo o dever de refutar todos os possíveis argumentos
utilizáveis para a tese contrária à que se propõe, inclusive na
Itália [cf. Gorla 1981-b:389].
Por outro lado, já em relação à segunda técnica, a con­
fecção de diversos projetos de acórdão pelos magistrados re­
latores (rapporteurs) revela não apenas o caráter fictício do
formalismo francês à la exégèse, mas até mesmo uma certa
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

proximidade com o Realismo escandinavo ou americano. Os


projets d’arrêt expressam, com mais força qualquer outra insti­
tuição, a liberdade criativa do juiz francês, que na realidade é tão
grande quanto a de qualquer outro juiz. Nas palavras de Lasser
[1995:1.373], “o projet d’arrêt representa a mais importante ma­
nifestação escrita da incerteza interpretativa do Judiciário fran­
cês. Para cada decisão importante que a Cour toma, permanecem
no dossier interno da Corte uma ou mais decisões alternativas,
cada uma delas tão formal, gramatical e silogística quanto a efe­
tivamente tomada. Nos arquivos da Cour de Cassation jazem os
inumeráveis caminhos interpretativos não seguidos” .

1.4.1.3 As transformações na soberania e o problema da


legitimação das decisões: um problema também
francês

As críticas de Dawson [1986:374-431], Rudden [1974] e


tantos outros comparatistas ao estilo phrase unique da Corte
de Cassação, em especial quanto à insuficiência da motivação
efetivamente apresentada aos destinatários da decisão judicial,
retratam um problema relevante para o Judiciário francês, que
pode afetar a própria legitimidade de seus julgados. Esse pro­
blema, reconhecido no passado por Touffait e Tunc [1974],
ocupa atualmente a atenção da Corte de Cassação. Diferente­
mente do que acontecia há duas décadas atrás,17hoje a própria
Cour é cônscia da necessidade de legitimar, por meio de argu­
mentos que se exteriorizam para a comunidade jurídica e para
toda a sociedade, o direito jurisprudencial por ela elaborado.
O seguinte excerto do Monsieur Premier-Président Guy Canivet
é um exemplo dessa autorreflexão:
“Ainda que sob formas muito diferentes, o poder dos
juizes se afirma hoje em dia em todos os lugares. Na França, a

17. V., em especial, Touffait [1978:485] sobre a (falta de) repercussão de seu
estudo anterior escrito em parceria com o professor André Tunc [Touffait/
Tunc 1974] sobre a atividade dos magistrais da Cour de Cassation.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Cour de Cassation é chamada a desempenhar uma tarefa maior


na estabilização da norma de direito privado e a solucionar
casos de forte apelo moral, social e econômico
“ O julgamento phrase unique, que é destinado a traduzir
estritamente a vontade do legislador sob a forma de um silo­
gismo, se torna manifestamente insuficiente para desem pe­
nhar a tarefa pedagógica que os cidadãos esperam das deci­
sões judiciais. O tecnicismo e a falta de acessibilidade do
julgamento acabam por arruinar a sua autoridade” [Canivet
2005-a:14-15].
A razão das preocupações, para nós, está na ausência de
publicidade - que deveria ser geral e irrestrita - de todas as
razões efetivamente relevantes para a tomada de decisão. A
pergunta que constitui o maior problema para o jurista francês
que abandona a dogmática legalista da Escola da Exégèse e
encara abertamente o fato do poder normativo das altas cortes
do Judiciário é: como compatibilizar o style phrase unique com
a exigência constitucional de motivação das decisões, que cons­
titui um dos mais importantes símbolos da resistência francesa
ao arbítrio judicial ?
O problema cresce de proporção a cada dia, pois no con­
texto do Estado Constitucional contemporâneo a evolução da
Ciência, dos padrões comportamentais tidos como socialmen­
te aceitáveis, bem com o a crescente diversidade (pluralismo)
que caracteriza todos os Estados constitucionais - inclusive e
em especial o Estado Francês - fizeram com que a lei deixasse
paulatinamente de ocupar o lugar único ou central na deter­
minação do conteúdo do Direito. Como explica Prieto Sanchís
[1999:34], “ o Constitucionalismo submete a uma profunda re­
visão uma das teses mais frequentemente atribuídas ao Posi­
tivismo teórico: a supremacia absoluta da lei como expressão
da soberania representada no Parlamento” . A concepção p o­
sitivista de fontes do Direito18 é diuturnamente desmentida

18. Sobre a doutrina das fontes do Direito, v., infra, Capítulo 3, n. 3.3.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

pela prática das cortes supremas (e, obviamente, das cortes


constitucionais) dos Estados Constitucionais contemporâneos.
Vive-se hoje um momento de transformação da soberania
que implica uma profunda revisão no Positivismo formalista
que subjaz ao discurso oficial dos attendus, pois já não se pode
mais admitir um Direito criado exclusivamente pelo aparelho
legislativo do Estado. Essa mencionada crise do Positivismo
foi bem capturada por Gustavo Zagrebelsky [2003:10], que
observa, entre outras, as seguintes transformações no Estado
Constitucional: (1) o enfraquecimento da noção de soberania
(pois esta se vê debilitada por “forças corrosivas” como, no
plano interno, o “ pluralismo político e social, que se opõe à
ideia de uma única e mesma soberania” , e, no plano externo,
a “progressiva institucionalização de ‘contextos’ que integram
seus poderes em dimensões supraestatais” ); (2) a afirmação de
uma supremacia constitucional que desloca o centro de gravi­
dade da lei para um sistema de princípios e valores com cará­
ter não-absoluto (os quais, apesar de entrarem em conflito,
aspiram à convivência e à concordância prática); e (3) a forma­
ção gradual de uma dogmática jurídica fluida, que deve ser
vista “como o líquido de onde as substâncias que se vertem - os
conceitos - mantêm sua individualidade e coexistem sem cho­
ques destrutivos, ainda que com certos movimentos de oscila­
ção, e, em todo caso, sem que jamais um só componente possa
se impor sobre ou eliminar os demais” [idem:17].
É claro que se poderia objetar que o ordenamento jurí­
dico francês não prevê a possibilidade de controle de constitu-
cionalidade das leis pelo Poder Judiciário e que, por conse­
quência, a denominada “ afirmação de uma supremacia cons­
titucional” não pode ser validamente vindicada para o direito
francês. Mas não parece correto inferir daí que o Estado Cons­
titucional Francês esteja subtraído desse contexto. Ainda que
o Judiciário francês não possa declarar diretamente a incons-
titucionalidade de uma lei aprovada pelo Parlamento, a juris­
prudência é em grande medida pautada, dirigida e condiciona­
da pelos princípios fundamentais que “subjazem a e justificam
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

as regras jurídicas em uma dada sociedade” [Canivet 2004:184].


Ainda com Canivet, pode-se afirmar: “ Os princípios fundamen­
tais constituem a razão pela qual a textura do Direito é aberta
mas de forma nenhuma descontínua. Eles são o pano de fundo
normativo em face do qual os textos jurídicos serão interpre­
tados e aplicados. Em outros termos, os princípios fundamen­
tais dão sentido a e, ao mesmo tempo, limitam qualquer mu­
dança jurídica, porque eles atribuem valor positivo a certo
número de valores que dão forma à moralidade pública de uma
Nação” [idem: 184-185].
Ora, esses “princípios fundamentais” hão de ser buscados
não apenas na moralidade social compartilhada pelos juristas
franceses, mas basicamente na Constituição e no restante do
ordenamento jurídico. Ainda que não sejam suficientemente
fortes para declarar a inconstitucionalidade das leis, os prin­
cípios fundamentais apresentam uma virtualidade significati­
va para agir como critérios ou parâmetros interpretativos da
legislação infraconstitucional e para a evolução e consolidação
da jurisprudência, e em especial para a construção de analogias,
preenchimento de lacunas e todas as formas de desenvolvi­
mento judicial do Direito.
Ademais, o direito internacional e o direito comunitário
europeu têm em França uma função semelhante à das Consti­
tuições no seio dos Estados Nacionais em geral. Há inclusive
uma norma constitucional expressa segundo a qual os tratados
internacionais em geral têm uma hierarquia superior à das leis,
e a Corte de Cassação - seguida pouco tempo depois pelo Con-
seil d’État - já fixou precedentes no sentido de que “uma lei
contrária a um tratado internacional não pode ser aplicada no
caso em questão” [Troper/Grzegorczyk 1997:138].
Mais fecunda ainda é a influência do direito comunitário
europeu. O direito comunitário tem em França hierarquia
superior ao direito estatal, e suas normas e diretivas têm apli­
cabilidade imediata em cada um dos Estados da Comunidade.
Pode-se falar, hoje em dia, em um novo tipo de ius commune
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

europaeum que dá impulso a uma convergência de culturas


jurídicas, seja por comunicação horizontal (transplante volun­
tário de instituições jurídicas, normas, modelos de solução de
casos difíceis etc.) ou por um diálogo vertical, que se realiza
em face dos grandes princípios que emanam das instâncias
supranacionais e são garantidos especialmente pelas cortes
europeias [Canivet 2005-a:12]. Com efeito, são visíveis em Fran­
ça, hoje, tanto o transcultural borrowing (procedimento por
meio do qual o Judiciário de um Estado Nacional resolve pro­
blemas jurídicos que surgem no Direito interno por meio da
“importação” , pelo juiz, de regras existentes em Estados vizi­
nhos que apresentam soluções para casos semelhantes), inclu­
sive e em especial em relação ao common law inglês [cf. Muir-
Watt 2004-b], quanto especialmente a aplicação não apenas de
textos legislativos produzidos pela Comunidade, mas da juris­
prudência da Cour Européene des Droits de VHomme, que tem
“ autoridade interpretativa” perante os Estados-membros da
Comunidade Europeia.
Apesar de a Corte Europeia de Direitos do Homem/CEDH
não prolatar decisões com efeitos erga omnes - ou seja, não se
pronunciar em abstrato sobre a compatibilidade de cada nor­
ma interna com a Convenção Europeia de Direitos Humanos,
“mas somente sobre a aplicação concreta da norma (comuni­
tária) em face da vítima requerente, se se tratar de um pedido
individual” [Deffigier/Sauviat 2001:14] -, suas decisões têm uma
“ autoridade interpretativa” que faz com que os Judiciários de
cada país-membro procedam a um ajuste das jurisprudências
nacionais sob a forma de um overruling (revirement) de seus
próprios precedentes [idem: 17]. As decisões da Cour de Stras-
bourg, quando esta interpreta a Convenção, adquirem uma
autoridade própria que se exerce sobre os Estados europeus,
denominada “ coisa interpretativa dos seus julgados” (chose
interpretée des arrêts): “A Convenção Europeia de Direitos do
Homem se tornou, ao longo dos anos e dos casos submetidos
à Corte de Estrasburgo, indissociável da interpretação que lhe
foi dada pela Comissão e pela CEDH. A jurisprudência europeia
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

se transformou em uma verdadeira fonte do Direito com a


mesma importância que a Convenção ela mesma” [Meyzeaud-
Garaud/Moutel/Plazy 2001:105].19
É nítido portanto, nesse contexto, que a CEDH e a própria
Corte de Cassação desempenham tarefas análogas às das cor­
tes constitucionais nos Estados Constitucionais contemporâ­
neos, bem como que o quadro traçado por Gustavo Zagrebelsky
para descrever o Estado Constitucional é também adequado
para descrever o Estado e o direito franceses. Pode-se observar
também em França o mesmo fenômeno que Garcia Figueroa
descreveu como um “giro neorrealista” na teoria jurídica con­
temporânea, que representa um “deslocamento do foco de
interesse do sistema jurídico para sua aplicação” [Garcia Fi­
gueroa 2006]. Tão importante quanto a Constituição e os atos
normativos supraestatais passam a ser sua interpretação e sua
aplicação pelos tribunais. Como argumenta Alexy, em trecho
citado por Garcia Figueroa, “ hoje em dia não se pode com ­
preender o que representam os direitos fundamentais a partir
do sucinto texto da Lei Fundamental [alemã], senão somente
a partir dos 94 volumes de sentenças do Tribunal Constitucio­
nal Federal, que até o momento registrou sua benéfica ativida­
de desde 7.9.1951. Os direitos fundamentais são o que são so­
bretudo através da interpretação” [Alexy 2003-a:35; Garcia
Figueroa 2006].
No entanto, esse “giro neorrealista” descrito por Garcia
Figueroa apresenta sérias diferenças em relação ao Realismo
Jurídico stricto sensu, que encontrou seu auge na prática jurí-

19. Para um estudo mais aprofundado sobre esse ponto, v. os rapports


apresentados pelo Grupo de Trabalho presidido pelo professor Jean-Pierre
Marguénaud e composto também por Clotilde Deffigier, Eric Garaud, Marie-
Christine Meyzeaud-Garaud, Béatrice Moutel, Hélène Pauliat, Jean-Marie
Plazy, Virginie Saint-James e Agnes Sauviat, editados em um único volume
[Marguénaud 2001]. V., ainda, na jurisprudência, decisão da Chambre Sociade
da Cour de Cassation que em seus próprios attendus reconhece a necessidade
de se aplicar disposições da CEDH “tal como interpretadas pela Corte Euro­
peia de Direitos do Homem” [cf. nota de Marguénaud/Mouly 1999:334-336].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

dica norte-americana da primeira metade do século X X e


vulgarizou o Direito a ponto de excluir qualquer exigência de
fundamento material (atingindo, assim, os jusnaturalistas) e
minimizar a importância da atividade normativa do legislador
democrático (ferindo, desse modo, os normativistas). A expres­
são máxima do antigo Realismo talvez esteja na teoria jurídica
de Holmes, que sustentava, com radicalismo, que “um dever
jurídico [legal duty] por assim dizer é nada além da predição
de que, se um homem fizer ou omitir certas coisas, ele será
forçado a sofrer certas consequências através do julgamento
de um tribunal; e o mesmo vale para um direito [right]” [Holmes
1965:25]. Diferentemente, o “giro neorrealista” a que se refere
Garcia Figueroa, longe de um renascimento do Realismo, sig­
nifica apenas uma ascensão da normatividade das interpreta­
ções que os tribunais superiores realizam acerca dos direitos
fundamentais, que vem acompanhada de um processo de re­
forço da dimensão justificativa, argumentativa, da decisão
judicial: “Uma vez situada no momento da aplicação do Direi­
to, a teoria não deriva para o ceticismo ético ou o estudo do
contexto de descoberta das sentenças (estudo das causas psi­
cológicas ou sociológicas da decisão, como muitas vezes suce­
de no caso das posições realistas extremas), senão adota uma
perspectiva argumentativa, isto é, profundamente justificatória,
que concebe a argumentação jurídica como um caso especial
de argumentação moral” [Garcia Figueroa 2006].
Nesse sentido, Alexy esclarece que, desde o momento em
que o Podér Judiciário passa a exercer controle sobre a ativi­
dade legislativa (normalmente, por meio da jurisdição consti­
tucional, mas em França por meio do controle de validade de
atos legislativos à luz dos tratados internacionais e por meio
da aplicação do direito comunitário), o próprio conceito de
representação popular passa por uma transformação. Ao lado
da representação democrática em sentido estrito, isto é, do
exercício da autoridade pelo Parlamento eleito para represen­
tar os interesses do povo, pode-se falar também em uma repre­
sentação argumentativa. A ideia de Democracia deixa de ser
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

vista como apenas um sistema que contém “ não mais que um


processo de tomada de decisão centrado na ideia de eleição e
da regra majoritária” [Alexy 2005-a:579], mas passa a ser es­
tendida para compreender também os processos argumenta-
tivos que ocorrem no interior das instâncias de tomada de
decisão. Daí, “uma concepção adequada de Democracia deve
compreender não apenas a decisão, mas a argumentação. A
inclusão da argumentação no conceito de Democracia torna
esta deliberativa” [ibidem]. A forma de se legitimar as decisões,
no novo paradigma que Alexy descreve como “ Constituciona­
lismo discursivo” [idem:581], não é apenas através da fonte ou
da autoridade que a prolatou, mas também por meio de uma
justificação racional - e, portanto, correta em sentido jurídico-
moral - da própria decisão e dos juízos de valor e escolhas
éticas que se realizam junto a ela. Numa palavra, o “giro neor-
realista” - para mantermos a expressão de Garcia Figueroa -
demanda do juiz que as razões que justificam suas decisões
sejam publicamente defendidas e fundamentadas em discursos
racionais. A justificação/legitimação da jurisprudência france­
sa pressupõe, portanto, ir além do style phrase unique, pois
justamente o que fica implícito nele é o que mais necessita de
debate e argumentação para que uma decisão possa ser con­
siderada correta. Por conseguinte, as demandas implícitas nas
perguntas formuladas no início desta subseção (como legitimar
as decisões no contexto da técnica do phrase unique) só podem
ser atendidas por meios de mecanismos suplementares de
fundamentação das decisões, como os que serão expostos nas
próximas linhas.

1.4.1.4 Mecanismos contemporâneos de superação do déficit


de legitimidade do estilo phrase unique

Que o processo de construção de sentido para as normas


jurídicas em geral - inclusive as regras jurisprudenciais - é um
processo hermenêutico ficou claro com as palavras do Premier-
Président Monsieur Guy Canivet reproduzidas supra (n. 1.4.1.2),
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

acerca da aplicabilidade do modelo dworkiano de Law as in-


tegrity ao Judiciário francês. O juiz francês, de modo geral,
age com o se estivesse permanentemente reorganizando e
remodelando a jurisprudência de seu país, mesmo quando,
com fundamento em alguma outra razão que prepondere so­
bre o princípio da uniformidade do Direito, distancia-se de
uma certa linha de precedentes. Vigora em França, assim como
na Itália, na Bélgica e em todos os sistemas jurídicos que ado­
tam o modelo de cassação, o “princípio da uniforme interpre­
tação do Direito” , que se liga aos valores de “ certeza do Direi­
to” e “ igualdade perante a lei” [Gorla 1981-c:512]. Como vere­
mos mais adiante, esse princípio gera um “dever funcional”
para a Corte de Cassação de não se afastar dos seus preceden­
tes “ a não ser por razões graves ou aptas a justificar o sacrifí­
cio dos princípios da certeza do Direito e da igualdade, de
modo a motivar o afastamento mediante a alegação de tais
razões” [ibidem].
Portanto, a Corte de Cassação vislumbra sua jurispru­
dência como um conjunto coerente e orgânico de decisões,
referindo-se não raras vezes aos seus pronunciamentos sobre
as questões jurídicas mais relevantes com o doctrine de la Cour
de Cassation, ou seja, um certo “posicionamento judicial dota­
do de autoridade regulando determinado tema jurídico” [Las-
ser 1995:1.390]. Não se trata de uma doctrine ofcase law como
a britânica, que significa a autoridade vinculante em sentido
forte dos precedentes judiciais, mas de “um posicionamento
em questão de direito expresso em um julgado da Corte de
Cassação” , uma opinião da Corte que, apesar de não vinculan­
te - pois “pode agir indiretamente, mas não constranger”
[Deümier 2006-a:74-75] -, pretende unificar coerentemente a
forma de se entender e aplicar o Direito. Por isso, quando o
juiz francês enuncia os fundamentos da sua decisão, ele, da
mesma forma que o juiz inglês, não olha apenas para o passa­
do, contentando-se em convencer as partes que litigaram no
processo em causa, mas também para o futuro, para o impac­
to que sua decisão terá para a doutrina da Corte de Cassação.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O dever de motivação das decisões tem, portanto, uma dupla


portada, como explicam Touffait e Tunc: de um lado, sob um
ponto de vista psicológico, “responde a uma exigência essencial
de justiça: aquele que perde o processo ou que sofre uma con­
denação pode legitimamente exigir conhecer as razões” ; de
outro, quanto aos efeitos normativos da decisão, “ a motivação
apresenta um interesse ainda mais largo: ela é indispensável
à claridade do Direito e a seu progresso” [Touffait/Tunc
1974:488].
Essa dupla função do princípio da motivação das decisões
judiciais não parece compatível - como já vimos e como a dupla
Touffait/Tunc deixou muito claro em seu texto - com uma fun­
damentação judicial que se contenta com as lacunosas e pro­
fessorais motivações do estilo phrase unique. Por isso, o direito
francês conhece mecanismos alternativos e suplementares de
legitimação das decisões, que muito contribuem para a coe­
rência, racionalidade e justiça do sistema.
Primeiramente, há um diálogo permanente entre os jul­
gados da Corte e a doutrina produzida pelos teóricos do Direi­
to, o qual faz com que a decisão da Corte seja sempre uma
resposta - ainda que não uma simples adesão - às discussões
doutrinárias acerca da matéria subjudice. Como salienta Tunc
[1975:829], “ a doutrina se beneficia em França de uma autori­
dade sem equivalente no Estrangeiro” : a influência de autores
acadêmicos sobre a Cour de Cassation é tida com o “marcante”
(frappante) [ibidem]. O juiz, com o tivemos oportunidade de
observar (supra, n. 1.4.1.2), toma sua decisão consciente das
críticas que foram dirigidas pela doutrina às decisões anterio­
res e receoso das que virão em face das novas, como revelam
as conclusions dos avocats e os rapports dos juizes relatores
[Lasser 1995:1.368]. A jurisprudência francesa é detalhadamen­
te discutida e racionalizada por toda a comunidade de juristas,
e por isso não pode ser tida como fruto exclusivo da vontade
da Cour de Cassation.
Como nota Serverin [1993:339 e ss.], pode-se distinguir
no sistema francês entre a atividade jurisprudencial (atividade
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de produção de padrões de “reprodutibilidade” de soluções


judiciais) e a atividade jurisdicional (atos de decisão de casos
individuais). O processo de formação do direito judicial francês
é um processo de “transformação do judiciaire emjuridique” ,
ou seja, um processo de construção de jurisprudência a partir
das decisões de casos concretos. Nesse processo - argumenta
Serverin [idem:341] -, toda a comunidade de juristas exerce
determinado papel.

Em segundo lugar, um outro instrumento à disposição da


Corte para a legitimação de sua jurisprudência é a formação
de grupos de trabalhos para discutir as questões mais espinho­
sas - os hard cases - a serem solucionadas pela Corte, os quais
contam com participação de juristas práticos, tais como asses­
sores da Corte de Cassação, advogados, juizes de primeira e
segunda instâncias, magistrados da própria Corte (sejam
avocats-générales ou juizes, pois o Ministério Público e o Judi­
ciário em França estão estruturados como uma única carreira),
professores - em geral, estes como coordenadores - etc. Essa
experiência vem sendo reiteradamente adotada tanto oficial­
mente, quando um grupo de estudiosos é constituído para es­
tudar em profundidade determinada questão jurídica para fins
de produzir um rapport a ser apresentado para a Cour (por
exemplo, cite-se o trabalho de Molfessis et al. [2005] sobre os
revirements de jurisprudence), quanto extraoficialmente, caso
em que normalmente os grupos de pesquisa são criados em
universidades (por exemplo, o trabalho de Marguénaud et al.
[2001] sobre a eficácia da jurisprudência da CEDH em França).
Tais trabalhos normalmente têm alto nível de qualidade técni­
ca e fazem uma análise tanto da jurisprudência quanto do di­
reito comparado e das teorias jurídicas mais importantes. A
Corte entra em cena, portanto, diante de um amplo debate já
iniciado por toda a comunidade jurídica, que exerce profunda
influência sobre seus julgados.
Em terceiro lugar, citem-se os mecanismos que a Corte
tem implementado e incrementado para tomar sua jurispru­
dência (e os fundamentos ou argumentos que levaram à sua
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

criação) mais conhecida, em especial os communiqués, entre


os quais figuram os Bulletins d’information e os Rapports An­
nuels divulgados gratuitamente pela Internet, que contêm
notas sobre decisões, comentários da própria Corte, conclusions
de avocats-générales, rapports internos etc., selecionados pelos
Presidentes de cada Câmara da Cour. Como explica Deumier
[2006-b:510], os communiqués representam uma “ reação” da
Corte de Cassação às críticas de laconismo e concisão excessi­
vos na motivação de suas decisões. A Corte realiza, através
deles, a “ seleção e hierarquização de seus julgados mais im­
portantes” e permite re-situar os julgados em suas relações
com os precedentes, bem com o delimitar precisamente as
grandes construções e inovações judiciais [idem:510-511]. Em
relação às dúvidas que podem surgir em virtude do excesso de
concisão dos julgados, “eles permitem conhecer as razões que
tenham justificado a escolha de uma interpretação” , funcio­
nando como um instrumento de interpretação autêntica de
suas decisões. Nos casos de reviravoltas jurisprudenciais, as­
sinalam os revirements eventualmente existentes e apresentam
claramente as causas dessas mudanças [idem:512-513]. Trata-
se, portanto, de mais uma ferramenta para a construção e - o
que é ainda mais importante - a racionalização da jurispru­
dência da Corte, com evidentes implicações normativas para
o jurista de modo geral.

Esses e outros mecanismos modernos de legitimação das


decisões da Cour de Cassation constituem evidência, portanto,
de que, pelo menos hoje em dia, é apressado e especialmente
incorreto concluir que a Corte esteja livre20(em função do estilo
phrase unique) para decidir com base em um simples ato de
vontade, pois os modos de formação e evolução da jurisprudence
française e os mecanismos de suplementação das motivações

20. É esse o pensamento dominante, na esteira da tese de Dawson [1986:375],


segundo o qual “a negação do poder (judicial) de criação do Direito” gera o
efeito de, estranhamente, “deixar os tribunais mais livres” [idem, ibidem].
Para uma crítica a Dawson, v. Lasser [1995].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

e de interação com a comunidade jurídica indicam um elevado


teor de legitimação discursiva (argumentativa) das regras ju-
risprudenciais de modo geral.

1.4.2 O estilo discursivo das cortes inglesas e o seu contexto

A seguinte descrição de Kõtz [1987:41-42] parece adequa­


da para iniciar a descrição do estilo de um julgamento inglês:
“Em contraste [com um julgamento continental], ler um julga­
mento de um juiz inglês é como entrar em um outro mundo. O
juiz pode ter dito muito pouco na sala de audiências, pode ter
se limitado a manter a ordem, assegurando que as regras do
jogo tenham sido obedecidas. Mas quando passa a escrever um
julgamento ele não hesitará em aumentar o poder de persuasão
de suas decisões por meio de enunciados eloquentes sobre
políticas públicas ['policies], de metáforas, de figuras de lingua­
gem, de interpretações sagazes ou de exageração de determi­
nados aspectos da lide, ou ainda de referências aos seus pró­
prios sentimentos pessoais sobre o caso. Numerosos exemplos
poderiam ser dados. Jamais iria um juiz alemão ousar dizer -
como fez um inglês - que ‘às vezes ajuda a acessar o mérito de
uma decisão se o juiz inicia por noticiar o resultado do caso, e
somente após isso passa a expor os princípios jurídicos dos
quais ela decorre” ’.
Nas Altas Cortes do Reino Unido, e em todas as da Ingla­
terra, é dominante um estilo diametralmente oposto ao phrase
unique francês. No common law há uma vontade geral dos jui­
zes de lidar diretamente com a “real substância do caso e [com]
os valores e opções políticas [policies] envolvidos” , bem como
uma prática de se redigir os julgamentos de forma livre - cada
juiz adota seu próprio estilo pessoal -, mas que expressa com
clareza os argumentos que suportam a decisão: “As opinions
do common law são discursivas, personalizadas, abertas à dis­
cussão de valores e políticas públicas e justificadas por argu­
mentações bem desenvolvidas” [Taruffo 1997-a:450]. Não há
nas decisões judiciais inglesas a predominância de qualquer
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

modo ou padrão típico de raciocínio, mas várias formas de


argumentação que se complementam, tais como argumentos
lógico-dedutivos, argumentos por princípios, por indução e
analogia, argumentos consequencialistas, por reductio ad ab-
surdum e, especialmente, por precedentes [Goutal 1976:46-51;
MacCormick 1978-a:100 e ss.]. Diferentemente do que se passa
nos motifs dos julgamentos franceses, há a prática de se cumu­
lar razões (pilling up arguments) para uma mesma decisão
[Goutal 1976:49], além de revisar os argumentos das partes e
explicar por que eles devem ser aceitos ou rejeitados [Rudden
1974:1.015]. Vigora um sistema processual de caráter adversaria!
que, ao longo de todo o processo, dá ênfase à atividade das par­
tes na produção da prova (em contraposição ao modelo conti­
nental, em que o juiz é quem dá a diretiva da produção de
prova ao presidir o processo) e se caracteriza por uma relativa
“passividade do juiz” [Whittaker 2006:714]. Inclusive no que se
refere aos argumentos jurídicos, o ônus de produzi-los é das
próprias partes: a regra curia nuvit legern “nunca foi e não é
parte do direito inglês” , pois o juiz normalmente hesitará em se
apoiar em um caso que não tenha sido citado pelos advogados
ou não tenha sido submetido ao debate oral [Kõtz 1987:38-39].
Esse sistema adversarial tem duas consequências impor­
tantes para a prática jurídica, em especial em relação aos pre­
cedentes judiciais: primeira, “ ele explica a exceção à doutrina
da natureza vinculante do precedente quando um caso anterior
tiver sido decidido per incuriam, ou seja, sob erro ou ignorância
do estado do Direito em vigor” [Whittaker 2006:715]; segunda,
os juizes ingleses somente podem estabelecer um novo prece­
dente judicial na medida em que os advogados das partes os
tenham encorajado a fazê-lo: “Juizes que tragam materiais ou
ideias que não tenham sido arguidas perante a corte (ou discu­
tidas com as partes) correm o risco de ser criticados por negar
a uma ou ambas das partes o direito de réplica” [idem:716].21

21. Nesse sentido o seguinte excerto de Lord Goff of Chieveley em “Sprind vs


Guardian Assurance Plc” [1995] 2 AC 296,316 [também citado em Whittaker
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Por outro lado, já no que atina às partes, há no direito do


Reino Unido uma importante regra segundo a qual os advogados
devem “citar todas as autoridades [precedentes] relevantes, mes­
mo quando aparentemente contrárias ao interesse dos seus
clientes” [cf. Bankowski/MacCormick/Marshall 1997:342]; nesses
casos, o debate fica restrito à aplicabilidade dos precedentes
judiciais. Estes são escrutinados com grande riqueza de detalhe,
sendo frequentes a extensão por analogia ou a criação de exce­
ções por meio da técnica do distinguishing, seja por meio do
reconhecimento de uma exceção direta (direct exception) à regra
judicial invocada, seja pela via de exceções indiretas (indirect
exception) ou reclassificação dos fatos (circumvention).22
Nas cortes superiores, em especial na House o f Lords, os
juizes têm consciência de que suas decisões serão recebidas
pelos juizes inferiores (e pela própria Corte nos casos futuros,
ressalvada a hipótese de um overruling) com força de prece­
dente, e não permanecem indiferentes em relação a tal poder
normativo. Por isso, o princípio da justiça formal (exigência de
igualdade de tratamento) exige que a decisão seja tomada
olhando-se para o futuro (forward-looking) e para o passado
(backward-looking) [M acCorm ick 1978-a:75; M acCorm ick
2005:148]: uma decisão jurídica justificável onde surjam dispu­
tas sobre questões de direito deve estar fundamentada em
regra jurídica que não seja nem ad hoc nem ad hominem [Mac­
Cormick 2005:148]. Ao olhar para o futuro, o juiz lança mão, com
muita frequência, de argumentos consequencialistas, ou seja, ele
“considera as consequências de se construir um judicial ruling
em um sentido ou em outro, pelo menos a ponto de examinar
os modelos de decisões que deveriam ser tomadas em outros
casos hipotéticos que possam ocorrer e ser enquadrados nos

2006:716-nota 59]: “Eu gostaria de frisar que a opinião que expresso nesse
ponto de meu voto foi formada sem o benefício da argumentação com os
advogados das partes, de sorte que por isso deve ser tida como de autoridade
limitada [limited authority]”.
22. V , infra, Capítulo 4, n. 4.2.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

termos de tal regramento [ruling]” [MacCormick 1978-a:105].


Portanto, a Corte sempre leva em conta os princípios e as po­
licies que justificam e irão repercutir - seja ao serem otimiza­
dos ou restringidos - sobre o direito judicial (case law) que ela
está constantemente produzindo.

Especificamente em relação à House ofLords, os julga­


mentos em sua Câmara Judicial podem ser caracterizados pela
sua informalidade. A Corte não está dividida em seções ou
câmaras; tem apenas dois Comitês que podem entrar em sessão
simultaneamente e são constituídos ad hoc para cada caso
[Wilberforce 1978:93]. Os recursos para a House ofLords necessi­
tam do denominado leave to appeal para serem apreciados [Ru-
dden 1974:1.011]; este último (leave) deve ser deferido “pela corte
intermediária de apelação, à exceção dos casos provenientes da
Court o f Session [competente para casos cíveis julgados na Es­
cócia], ou por meio de um subcommittee da House” [Bankowski/
MacCormick/Marshall 1997:318].23Há ainda, em casos especiais,

23. As Practice Directions and Standing Orders Applicable to Civil


Appeals, 2007-2008 Edition, aprovadas pela House ofLords em 8.10.2007
(publicadas no sítio da Internet http://www.publications.parliament.uk/
pa/ldl99697/ldinfo/ld08judg/bluebook/bluebk-l.htm, acesso em 3.4.2009),
prevêem que nos appeals originados das Courts o f Appeal in England &
Wales ou das Cortes da Irlanda do Norte o leave to appeal será sempre
necessário (Directive 1.5) e que o requerimento para sua obtenção deve
ser dirigido inicialmente à Court o f Appeal, e somente após sua apreciação
será admitida uma application para a própria House o f Lords (Directive
1.6), que decidirá a admissibilidade desse apelo por um Appeal Commitee
composto por três lords (Directive 4.1). Ao contrário do que se poderia
imaginar, para a interposição do appeal há uma série de requisitos formais,
todos indicados nas Practice Directions (que fazem remissão expressa à
legislação pertinente). Em relação aos recursos provenientes da Court
o f Session (Escócia) há uma maior flexibilidade. A regra geral é de que
não há necessidade de leave quanto a uma decisão de mérito da Inner
House ofthe Court o f Session (para recursos de natureza cível) (Directive
1.8), mas há uma série de regras específicas que devem ser observadas
(Directives 1.9 a 1.11). Não é admitida qualquer forma de recurso para a
House ofLords de decisões criminais provenientes da Escócia (High Court
o f Justiciary) [Bankowski/MacCormick/Marshall 1997:316].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

mais raros, a possibilidade de a corte de primeira instância enviar


matérias diretamente à House ofLords [ibidem]. Embora a deci­
são de permitir ou negar o apelo seja relativamente discricioná­
ria, quem quer que defira o leave to appeal deve fazê-lo “sob o
fundamento de que haja um ponto de dificuldade no Direito que
será vantajoso que seja resolvido pela corte superior” [ibidem].24
A audiência de julgamento é informal, sendo realizada normal­
mente com entre três e cinco magistrados. Em cada caso é apre­
sentado um dossiê escrito que contém as pretensões das partes
e as suas conclusões, preparado pelos advogados. A sustentação
oral fica à discricionariedade das partes; não há limitação de
tempo para os advogados e o processo informal comporta gran­
des debates verbais entre os lords e os barristers. Não há juiz
relator e todos os lords estudam inteiramente o caso antes de
apresentarem (individualmente) suas opiniões (votos) [Wilber-
force 1978:93-94]. Em todas as jurisdições britânicas as decisões
são tomadas por maioria. Em certas ocasiões os magistrados
concordam em relação ao resultado do julgamento mas não
quanto à argumentação que cada juiz adotou [Baríkowski/Mac-
Cormick/Marshall 1997:317], o que pode causar sérias controvér­
sias no momento de se interpretar a decisão para fins de deter­
minar seu valor como precedente, ou seja, sua ratio decidendi.25
Estava em andamento uma importante reforma constitu­
cional no Reino Unido, a qual já foi aprovada pelo Parlamento

24. Nos termos das Practice Directions and Standing Orders Applicable to
Civil Appéals, 2007 -2008 Edition (v., supra, nota anterior), “o leave to appeal é
assegurado a petições que, na opinião do Comitê de Apelações [Appeal Com-
mittee], discutam uma questão jurídica sustentável de importância pública
que deva ser considerada pela House no momento, levando-se em conta que
a questão jurídica já tenha sido o tema de uma decisão judicial e possa ser
revista em grau recursal. Uma petição que na opinião do Appeal Comittee
não suscite essa questão jurídica é rejeitada por esse fundamento. O Appeal
Committee dá breves razões para rejeitar a apelação, mas na hipótese inversa
não necessita explicar as suas decisões” (Directive 4.7).
25. Para uma discussão sobre alguns problemas que podem surgir nesse
ponto, v., Montrose [1957] e Whittaker [2006:722-727], bem como infra, Ca­
pítulo 3, n. 3.2.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

através do Constitutional Reform A ct [2005], que obteve a


sanção real (Royal asset) em 24.5.2005. Entre as principais
reformas institucionais destacam-se: (1) a criação de uma
Suprema Corte do Reino Unido, que irá assumir todas as
funções judiciais da House o f Lords e será separada tanto
física com o institucionalmente desta última, a qual exercerá
apenas as funções legislativas; (2) a extinção de todas as
funções judiciais do Lord Chancellor, que serão transferidas
para o President o f the Courts o f England and Wales; (3) a
garantia formal (e não apenas costumeira) do princípio da
autonomia do Judiciário; e (4) uma nova e independente
Judicial Appointments Commission, para selecionar com fun­
damento em critérios meritocráticos os juizes dos tribunais.26
A Reform a com maior impacto na prática jurídica, com o
anota Lord Bingham (em texto que contém ricos comentários
históricos), é a abolição da atividade judicial do Lord Chancellor
[Bingham 2006]. No entanto, dificilmente essa reforma polí-
tico-constitucional irá influir sobre o estilo judicial e sobre a
doutrina e a teoria dos precedentes inglesas, que são o que
nos interessa no momento.
As Cortes inglesas - nunca é demais repetir - têm plena
consciência do poder de criação do Direito que elas exercem, de
modo que a prática jurídica de modo geral é marcada pela in­
fluência do Positivismo de Bentham, que hoje prepondera sobre
a denominada “teoria declaratória” acerca da atividade jurisdi-
cional, que dominou o cenário até o início do século XIX. A
concepção tradicionalista do common law - que pode ser detec­
tada nos escritos de Hale e Blackstone e que predominou no
discurso do Judiciário pelo menos até o início do século X I X - foi
a da denominada natureza “declaratória” do precedente judicial:
“ o direito [costumeiro] existe agora e tem a sua autoridade, a sua

26. Para uma análise extremamente detalhada da Reforma Constitucional,


v. as notas explicativas formuladas pelo próprio Parlamento do Reino Uni­
do, Explanatory Notes to Constitutional Reform Act 2005, Londres, Queen’s
Printer of Acts of Parliament, 2005.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

‘força obrigatória’, em virtude do uso geral e da aceitação”


[Postema 1987:16]. Os juizes, de acordo com esse paradigma
tradicional, seriam os “ oráculos” de um Direito estático, de
m odo que suas decisões seriam “ a principal e mais confiável
evidência” da existência de um costume que faça parte do
common law. No contexto da afirmação desse caráter estático
do direito positivo predominava a ficção de que o Judiciário
teria autoridade não para “pronunciar um novo Direito, mas
apenas ‘manter e explicar [expoundj o antigo” [Wesley-Smi-
th 1987:73-74], que estaria fundado basicamente na tradição
e na razão.
Quando o Positivismo Jurídico se instalou na Inglaterra,
já no início do século XIX, por influência de Bentham, passou-
se a reconhecer um poder explicitamente criativo dos juizes e
a descrever o Direito como um conjunto de precedentes e regras
que têm validade pelo simples fato de terem sido “ estabeleci­
dos” pelos juizes competentes para tanto [Simpson 1973:80-84].
Em uma palavra, as cortes de justiça passam a ter, em si mes­
mas, autoridade para ditar e criar o Direito, ressalvadas as si­
tuações em que haja um “ precedente” aplicável ou uma lei
aprovada pelo Parlamento. O juiz já não precisa mais legitimar
a decisão em algo externo e anterior, pois a força e a vincula-
tividade dos seus comandos não advêm nem da razão, nem de
um terceiro que estabeleceu um conjunto de costumes, mas do
poder que decorre da própria função que ele exerce: “ O juris­
ta pode perguntar o que eu entendo por Direito. Levaria uma
hora para dar uma resposta completa, mas a resposta prática
é que o Direito é o que o juiz diz ser” [Reid 1973:22]. Não obs­
tante, junto a essa autoridade, e precisamente para contraba-
lançá-la, vigora uma prática - que de certa maneira foi consti­
tuída sob a influência da própria teoria declaratória que esse
Positivismo relativamente recente pretendeu superar - de
judicial self-restraint: o Judiciário, como sustenta ainda Lord
Reid [1973:23], “ não deve tomar partido em questões políticas”
e deve decidir cada caso (polêmico) “com preponderância da
autoridade já existente” . O juiz inglês não roga para si a legi­
timidade de livremente dispor do common law - e essa talvez

AC\
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

seja uma das razões pelas quais o sistema pôde sobreviver com
relativamente poucas perturbações internas por tanto tempo
mas também não admite com facilidade que mais ninguém o faça.
A relação entre o common law e o Direito legislado é es­
pecialmente interessante. O ponto de partida para a construção
do Direito sempre é o common law, já que não há Direito codi­
ficado ou uma formulação expressa dos princípios fundamen­
tais do direito inglês em uma Constituição escrita. A legislação
aprovada pelo Parlamento, apesar de ser a fonte do Direito com
maior grau de hierarquia no plano interno, restringe-se a uma
atividade normativa altamente detalhada e específica, consti­
tuída por enunciados frequentemente dotados de um caráter
ad hoc, ou seja, destinados a resolver um problema tão casuís-
tico quanto os enfrentados pelas cortes de justiça. Desenvolveu-
se, por razões históricas, uma ideia de que todo enunciado
legislativo que desviar do common law não-escrito “deve ser
de natureza excepcional e portanto deve ser construído de
maneira estrita e aplicado apenas às situações precisas que
inquestionavelmente estejam cobertas pelos seus term os”
[Zweigert/Kõtz 1998:265]. Até 1993, quando a House ofLords
julgou o caso “Pepper vs Hart”27, vigorava inclusive uma rule o f
exclusion segundo a qual estava proibida referência aos travaux
préparatoires e documentos de natureza semelhante destinados
a esclarecer dúvidas sobre o sentido e o alcance das expressões
utilizadas pelo legislador. A interpretação da legislação parla­
mentar no common law - informa Van Caenegem [1987:17] -
devia “ ser feita seguindo as velhas técnicas da interpretação
literal e sua ipsissima verba, parando por aí” ; pouco importa
se o resultado é diferente do desejado pelo legislador: “ o legis­
lador deveria ter enunciado seu texto com mais cuidado” . Como
denuncia Zimmermann [1997], os métodos de interpretação
legislativa do common law no século X X pouco se diferenciam
daquele adotado pelos juristas do ius comune italiano dos
séculos XIII e XIV e pelos pandectistas alemães do século XVI.

27. [1993] AC, 593.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Essa atitude restrita em relação à interpretação da legis­


lação parlamentar - note-se bem, da legislação, e não das regras
contidas nos precedentes judiciais, que são ampliadas e res­
tringidas (distinguished) com técnicas muito mais sofisticadas
e racionais que as encontradas nos sistemas jurídicos conti­
nentais - repercute inclusive na interpretação do Direito da
União Europeia, cuja aplicabilidade direta sobre os Estados-
membros é expressamente reconhecida por tratados interna­
cionais. Diferentemente da técnica legislativa historicamente
empregada no Direito inglês, as normas e diretrizes contidas
nos tratados da União Europeia são redigidas em termos aber­
tos e significativamente abstratos, normalmente sob a forma
de princípios gerais (diretivas) a serem ulteriormente desen­
volvidos e concretizados pelos Estados-membros. A House o f
Lords historicamente adotou - embora com uma certa flexibi­
lização na última década - uma postura restritiva na interpre­
tação do Direito Comunitário, a qual pode ser exemplificada
na controvérsia surgida no caso “James Buchanam & Co. vs
Babco Forwarding & Shipping (UK) Ltd.”28entre, de um lado,
Lord Denning, adepto de uma interpretação liberal ou finalís-
tica, e, de outro, a maioria que seguiu as opiniões de Lord
Wilberforce e Lord Edmund Davis, mais próximos de uma in­
terpretação literal ou conceptual.29
Ainda a respeito da relação entre o Judiciário e o legis­
lador na Inglaterra, cumpre frisar que, quando este último
atua, muitas vezes ele próprio faz referência ao case law. Como
explica Whittaker [2006:710], “ o próprio legislador muito

28. [1977] 1 Ali ER 518.


29. Como informa Herman [1981] em um estudo sobre a reação inglesa às
técnicas de interpretação dominantes nos demais países da União Euro­
peia, no qual o caso supracitado foi exaustivamente discutido, a House of
Lords, por vantajosa maioria, expressou sua preferência pelo método de
interpretação literal inclusive em relação às normas de direito comunitário,
inaugurando um amplo debate acadêmico, que ainda desperta interesse em
toda a União Europeia, sobre os métodos de interpretação e aplicação do
direito comunitário.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

frequentemente (ao completar, corrigir e suplementar o case


law) utiliza conceitos que só são compreensíveis com referên­
cia ao common law” . Há, portanto, uma espécie de diálogo
entre, de um lado, o corpus de normas costumeiras e jurispru-
denciais, que são sistematizadas pela doutrina e pela jurispru­
dência da House ofLords, pelo mecanismo do stare decisis, e,
de outro, a legislação parlamentar produzida posteriormente
para regular determinados institutos específicos ou introduzir
uma alteração ou adaptação no primeiro.

Esse diálogo - para finalizarmos nossa descrição pano­


râmica do estilo judicial inglês - pode ser completado por
quatro outros diálogos, os quais foram bem retratados por
Bernard Rudden. Para Rudden, o método judicial inglês pode
ser caracterizado por quatro diálogos diferentes, que se reali­
zam em todos os julgamentos no common law. O primeiro diá­
logo (Bench and Bar) é o que se realiza entre os magistrados e
os advogados: “ O fato de que o processo de tomada de decisão
envolve [na Inglaterra] uma argumentação e discussão entre
juizes e advogados deixa sua marca no estilo judicial” [Rudden
1974:1.014]. Mais próximo do advogado que em qualquer outro
sistema jurídico no mundo ocidental, o juiz inglês “ é levado a
ver sua função como algo de tipo não completamente diferen­
te da do advogado” , pois ambos trocam argumentos e, de cer­
ta forma, informam e convencem um ao outro num debate
contínuo. O segundo diálogo, por sua vez (among the Bench,), é
o que se realiza entre os próprios juizes que compõem o órgão
colegiado. A presença de argumentos dissidentes é um traço
forte no direito inglês; o autor da opinião dissidente irá “ ana­
lisar, dissecar e tentar refutar de todas as formas o argumento
da maioria, de modo que a corte, longe de ser unânime, anô­
nima, lacônica e poker-faced (como a francesa), é abertamente
dividida” [idem: 1.016]. Através das opiniões dissidentes, duas
características empíricas da decisão jurídica são reveladas e
um aspecto ideal é otimizado: do lado empírico (que é o enfa­
tizado por Rudden) revela-se que a decisão é uma escolha entre
várias possíveis e descobrem-se quais áreas do Direito padecem
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de incerteza e são desenvolvidas através de construções juris-


prudenciais; do lado ideal, o método da corte imerge o proces­
so de tomada de decisão em um contexto argumentativo e
aproxima as condições do discurso ideal que as teorias da ar­
gumentação jurídica prevêem para a garantia da correção
substancial (racional) de uma decisão à realidade dos tribunais.
Quando o processo argumentativo não for levado adiante por
tempo e sob restrições suficientes para alcançar um amplo
consenso a respeito da decisão correta a ser adotada, permite
ao menos externar quais foram as pretensões de validade nor­
mativa sustentadas por cada juiz nas suas opinions, submeten­
do-as todas à crítica e permitindo que o processo de evolução
do Direito seja de alguma forma controlado pelos jurisdiciona-
dos. O terceiro diálogo (com o passado) e o quarto (com o futu­
ro), por sua vez, exigem que, de um lado, se tomem em consi­
deração os precedentes judiciais que vinculam o tribunal e, de
outro, as consequências que a decisão a ser tomada trará para
o sistema jurídico no futuro, quando vier a constituir um pre­
cedente [Rudden 1974:1.013 e ss.].
Todos esses diálogos retratam de modo especialmente
eloquente o estilo judicial do common law. E claro que em
grande medida eles também ocorrem em outros sistemas jurí­
dicos, mas o sistema inglês tem a vantagem da candura, a
vantagem de deixar todas as decisões explícitas e expostas a
crítica, o que permite também um alto grau de legitimação
racional/argumentativa para o seu case law.

1.4.2.1 O caráter aberto do common lawea influência do ius


commune sobre o estilo judicial inglês: um dado
histórico

No discurso teórico dos juristas ingleses predomina (ou,


pelo menos, predominou até o século X X ) uma ideia de hosti­
lidade em relação ao Direito continental ou civil law, bem como
a tese de que o common law teria se desenvolvido de forma
independente em relação ao direito romano e ao ius commune
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

dos Estados europeus vizinhos. Como relata Jolowicz [1948:63],


“há uma longa tradição de luta entre o civil law e o common law
que foi fomentada por Coke, enfatizada por Blackstone e discu­
tida em detalhe por Maitland em uma famosa lecture” . Há, de
certa forma, um sentimento de insularidade e uma crença de
que “o sistema nativo, com sucesso e de forma relativamente
fácil, repeliu o direito estrangeiro” [idem:64]. O próprio uso da
expressão civil law - que é tão ampla a ponto de compreender
tanto o Direito praticado pelos civilians ingleses como o direito
romano clássico, o ius commune europeu dos séculos XII a XVIII
e os sistemas jurídicos modernos do Direito continental [Moccia
1981:158-159] - destinava-se a “separar e contrastar os sistemas
jurídicos continental e inglês, sendo esse último tido como o
único que permaneceu imune na sua evolução histórica à mas-
sivá recepção dos textos de Justiniano” . Essa perspectiva tradi­
cional - prossegue Moccia - é prevalecente ainda hoje quando
é feita a comparação entre os dois sistemas.30A história do Di­
reito inglês “parece dominada pela ideia da formação e evolução
autônomas do direito nacional, (...) isolada e resistente a todas
as influências da cultura jurídica continental” [idem:159]. Mai­
tland, em especial, é normalmente citado como um dos que
compartilham essa visão; Milson [2001:268], por exemplo, afirma
que “Maitland via a Inglaterra como uma Galápagos jurídica,
insulando a evolução nativa do seu Direito da contaminação
romana” , enquanto Helmholz [1990:1.208] lembra que “o common
lawyer que ainda vive nas páginas de Maitland era alguém que
‘nada sabia sobre e pouco se importava com qualquer outro
sistema jurídico que não o seu próprio” ’.31
No entanto, essa “luta” entre o common law e o civil law
- como nota o próprio Maitland [1911] - não impediu que em

30. Nesse sentido, Seipp [1993:389] coleta passagens não apenas de Maitland,
mas também de Holdsworth, Bryce Lyon, Plucknett e Van Caenegem. No
entanto, para uma análise mais completa e multidimensional do tema, com
várias outras referências, v., por todos, Moccia [2005:862-967].
31. O trecho destacado refere-se a uma citação de Maitland [1911].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

importante medida o direito inglês assimilasse, ao longo de


todo o período medieval, por importação, certas ideias prove­
nientes do Continente, e, assim, que os juristas britânicos ti­
vessem exagerado o caráter “único” do Direito inglês.32

O que uma análise mais criteriosa revela é que esse sen­


timento de hostilidade encontra explicação em um certo na­
cionalismo de origem parlamentar cujo ápice pode ser encon­
trado na disputa por poder entre Parlamento e Monarquia ao
longo do século XVII, que chegou, inclusive, às vias de fato
nesse período. Como explica Moccia, duas grandes disputas
históricas do referido período contribuíram para a ideia de
estranheza entre o sistema de common law (tido como “ nosso
direito” nos discursos nacionalistas de common lawyers e em
certos speeches no Parlamento) e o civil law (tido como um

32. Importa salientar, neste particular, que, apesar de Maitland visualizar o


common laioyer dessa maneira (descrita por Jolowicz, Helmholz e Moccia),
ele não aprovava esse tipo de atitude isolacionista, chegando a advogar ex­
pressamente uma pesquisa histórico-jurídica que comparasse o direito inglês
com o produzido nos países europeus que se constituíram sob a influência do
direito romano. Veja-se: “Foi a ideia de um Direito comum a todos os países da
Europa Ocidental que permitiu a Blackstone realizar seu projeto de enunciar
o direito inglês de modo racional. E isso pode ser encontrado durante toda
a extensão de nossa vida nacional; um sistema isolado não pode explicar a
si mesmo, e nem muito menos explicar a sua história. Quando um grande
trabalho foi realizado, algum tipo de fertilizante foi trazido do Estrangeiro,
ora sob a influência de Azo, ora dos feudalistas da Lombardia, ora Savigny ou
Brunner. (...). Uma das causas do fato de tão pouco ter sido feito pelo nosso
Direito medieval é, tenho certeza, nossa completa e tradicionalmente consa­
grada ignorância do Direito francês e do Direito alemão. Os juristas ingleses
durante os últimos seis séculos exageraram as particularidades de nossa his­
tória jurídica ao sobreestimar e antedatar os triunfos do Direito romano sobre
o Continente: (...) há grandes massas de Direito medieval muito comparáveis às
nossas; um pouco de conhecimento sobre elas iria nos remeter aos Year Books
com novo vigor e uma inteligência renovada” [Maitland 1911:153-154] (grifos
nossos). Pode-se perceber no trecho acima que, apesar de Maitland imaginar
um common lawyer ignorante e fechado na práxis do seu próprio sistema,
não desconhece, como se poderia pensar, a influência do direito alienígena
no trabalho de Blackstone e é capaz de perceber importantes semelhanças
entre o Direito inglês e uma parte significativa do Direito medieval europeu.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Direito estrangeiro, de caráter absolutista e religioso, que p o­


deria representar uma ameaça aos valores liberais protegidos
pelo Parlamento). Primeiramente, existia uma disputa religio­
sa entre, de um lado, o clero anglicano e a opinião pública in­
glesa - de maioria puritana - e, de outro lado, a Igreja Católica;
é visível no referido período “ um sentimento de oposição à
cúria pontifícia, que se traduzia em uma hostilidade em face
do direito da Igreja Católica, em associação ao Direito romano”
[Moccia 2005:869]. Em segundo lugar, havia a ainda mais deli­
cada “questão político-constitucional” consistente em “resolver
se a verdadeira autoridade soberana pertence à Coroa ou ao
Parlamento” [idem:870]. No contexto da Inglaterra do Renas­
cimento havia uma divisão entre duas categorias de juristas:
de um lado, os common lawyers, que aplicavam um “Direito
inglês de suposta derivação consuetudinária, mas na realidade
de matriz jurisprudencial, surgido e desenvolvido no âmbito
das cortes reais” , e que organizaram um sistema próprio de
educação e organização profissional dos juristas (Inns o f Court);
de outro lado, os civilians, formados em consonância com a
tradição continental europeia nas antigas Universidades ingle­
sas de Oxford e Cambridge, onde se ensinavam o Direito ro­
mano e o Direito canônico e eram obtidos os títulos (represen­
tativos de um alto status profissional) de Doctor o f Civil Law
(D.C.L) e de Doctor o f Laws (LL.D) [ibidem]. Esses juristas de
formação acadêmica passaram, no início do século XVI, a
constituir uma categoria profissional autônoma (os civilians),
organizada em uma associação que ficou conhecida como Doctors’
Commons33 [idem:872].
No contexto do século XVI os civilians se destacavam por
sua formação universitária de caráter humanístico e cosm opo­
lita [Moccia 2005:880] e dialogavam em pé de igualdade com
os juristas do ius commune continental, aplicando as mesmas
técnicas de resolução de casos e valorizando a communis opinio

33. Inicialmente denominada Association o f Doctors o f Law and o f Advocates


o f the Church o f Christ at Canterbury.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ou communis interpretatio com os juristas continentais acerca


das grandes questões jurídicas surgidas na aplicação do Direi­
to romano, do Direito canônico e especialmente do Direito
marítimo [Gorla 1981-d:658-660 e 695 e ss.].
Os common lawyers, por sua vez, capitaneados por Sir
Edward Coke, sustentavam a “plena identificação entre com­
mon law e law ofth e land” e se recusavam a considerar como
parte do Direito pátrio o Direito eclesiástico e o Direito marí-
timo-comercial, que eram de competência das cortes dos civi-
lians [Moccia 2005:876].
No contexto institucional do século XVI, a competição
entre civilians e common lawyers assumiu séria relevância
político-institucional, pois os primeiros eram vistos com o pró­
ximos às políticas absolutistas perseguidas por Tudor (e seus
sucessores), enquanto a tradição do common law, por sua vez,
“ assume o valor de símbolo das liberdades civis, ao lado das
políticas parlamentares” [Moccia 2005:883-884]: “Na disputa,
então, entre Parlamento e Monarquia ingleses, as políticas
absolutistas dos soberanos da Era Tudor, inicialmente, e dos
Stuart, posteriormente, cuja ‘causa’ vem esposada particular­
mente pela maioria dos civilians, foram associadas a [uma]
concepção do Direito continental Romano justiniano (Roman
civil law), a funcionar como instrumento e forma de legitimação
de tais políticas. Desse modo, a oposição do Parlamento, em
cujas fileiras se alinhava boa parte das corporações de common
lawyers, sob a guia de Sir Edward Coke, adquiriu o significado
não apenas de revolta contra o despotismo real, mas também
de recusa (sobretudo ideológica) ao ‘Direito romano’, enquan­
to seu suposto veículo de transmissão” [idem:884-885].
Essa disputa política impregnou o discurso teórico de
Coke - árduo defensor do common law como o law ofthe land -,
e mesmo após o término dessa fase, com a afirmação, no século
XVIII, da Corte de Westminster sobre a dos civilians, veio a
repercutir inclusive sobre o de Blackstone, que ainda continha
uma “ narração apologética” , de “ superioridade do Direito
pátrio em respeito ao romano” [Moccia 2005:888-889].

zn
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

No entanto, não se pode inferir desse nacionalismo jurí­


dico inglês - que se explica por razões históricas - que esteja
correto o diagnóstico frequente entre os historiadores do Di­
reito inglês e os juscomparatistas de modo geral no sentido de
que o common law se teria desenvolvido de forma independen­
te e inteiramente insular. Com efeito, é possível encontrar
traços do Direito continental em documentos tão antigos quan­
to a Carta Magna de 1215 (em especial, citem-se as disposições
dos Capítulos 26 e 27, onde se prevê a liberdade para testar, e
o Capítulo 8, que prevê garantias para a propriedade de viúvas
que venham a se casar novamente) [Helmholz 1990:1.209-1.214].
Ademais, no século XVI os civilians eram autênticos practitio­
ners nas causas que envolviam a aplicação de regras sobre
casamento e divórcio, Direito testamentário e implementação
de parsons (cargos eclesiásticos), que se submetiam à jurisdição
eclesiástica [Seipp 1993:395], além de atuarem perante a juris­
dição da Court o f Admiralty, competente para resolver litígios
comerciais sobre Direito marítimo, em que se aplicava o ius
commune europeu [idem:396]. O próprio ensino jurídico uni­
versitário no Reino Unido, no reino de Henry VIII, passou a
priorizar o ensino do civil law, eliminando-se as cadeiras de
Direito canônico e criando-se os Regius Professorships o f Civil
Law nas Faculdades de Oxford e Cambridge [ibidem].
Como mostra Moccia, há pelo menos três grandes fases de
contato da experiência jurídica inglesa com a continental: (1) no
próprio período formativo do common law, do século XII ao
século XIII [Moccia 2005:896 e ss.]; (2) no período (do início do
século XVI à primeira metade do século XVII) “de máxima ex­
pansão pelos soberanos Tudor e Stuart das jurisdições especiais,
instituídas como emanação direta da ‘prerrogativa real’34 no

34. A “prerrogativa real” (Royal prerogative) aparece no Direito do Reino


Unido por volta dos séculos XV I e XVII, quando se estabeleceu que a Coroa
Britânica também estava sujeita ao Direito e que não havia poderes que não
pudessem ser controlados pela legislação parlamentar. Como explicam Ewing
e Dale-Risk, “quando essa posição foi estabelecida contra as pretensões dos
Stuart, as cortes passaram a aceitar que o Monarca e a Coroa dispunham de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

campo da Justiça e como parte integrante da política destes


soberanos voltada a um reforço da presença do Estado na vida
do país” [idem:904]; e (3) no período (durante o século XVIII)
“de afirmação da Inglaterra como potência econômica e da co­
nexa participação no mundo europeu dos tráfegos marítimos e
comerciais” [ibidem]. Vejamos com um pouco mais de detalhe.
(1) O Direito inglês no início do século XII caracteriza-se
justamente pela “participação inglesa no movimento de renas­
cimento dos estudos jurídicos em toda a extensão da Europa” .
A conquista normanda “teve como consequência, precisamen­
te, a aproximação da Inglaterra à cultura jurídica continental”
[Moccia 2005:897]. Como relata Sherman [1928:184]: “Antes do
advento da metade do século XII três grandes modificações
foram feitas no Direito inglês, as quais ajudaram a abrir caminho
para uma verdadeira recepção do Direito romano na Inglaterra
e para o seu estabelecimento como uma fonte do Direito inglês.
(1) cortes centrais de justiça foram estabelecidas, e as Cortes
saxãs locais entraram em decadência. (2) cortes eclesiásticas
foram separadas das cortes civis: essa mudança favoreceu o
Direito romano e o Direito canônico, aos quais foi dado trânsito
livre nas cortes eclesiásticas, sem qualquer intermédio ou che­
cagem [checks] pelo Direito costumeiro inglês. (3) A administra­
ção da Justiça foi colocada nas mãos dos homens educados da
época - normalmente os homens com educação clerical que
foram treinados na universidade é eram familiarizados com

certos poderes, direitos, imunidades e privilégios que eram necessários para


a manutenção do governo e que não eram compartilhados pelos cidadãos
comuns” [Bradley/Ewing 2007:255]. Trata-se de poderes reconhecidos pelo
common law e atribuídos ao rei e, contemporaneamente, ao Parlamento para
exercitar uma série de competências especiais necessárias ao exercício da
autoridade. Até hoje se reconhece uma série de poderes especiais ao governo,
que independem de prévia autorização parlamentar e estão intimamente
ligados ao poder de império sobre os cidadãos do Estado. Já não se pode mais
falar, no entanto, de uma prerrogativa real para o exercício da jurisdição,
embora em tempos de terrorismo ela seja usada, por exemplo, para deter
certas pessoas ou remover indivíduos do território do Reino Unido [para uma
exposição sucinta e introdutória do tema, v. Bradley/Ewing 2007:255-268].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

formas latinas de expressão. O francês da Normandia [Norman-


French] foi tornado a língua das cortes de justiça - uma provi­
são que perdurou por dois séculos” .
Para Sherman, os séculos XII a XIII constituem uma
“ época romana do Direito inglês” , tamanha a influência dos
textos de Justiniano sobre a doutrina jurídica que se formava
e sobre a prática das cortes reais recém-criadas: “ Que as fontes
do Direito romano, tanto justinianas quanto pré-justinianas,
eram conhecidas na Inglaterra na metade do século XII é ates­
tado pelos escritos históricos de William of Malmesbury, que
morreu em 1142” . E prossegue: “Desde a vinda de Vacarius a
Oxford, próximo da metade do século XII, até a morte de Edward
I, mais de um século e meio depois, a influência do Direito ro­
mano na formação do Direito inglês foi tão grande que todo esse
período pode ser denominado ‘época romana do Direito inglês’.
Durante esse período, que se estendeu até o reino de Edward
II, no primeiro quarto do século XIV, authorities do Direito ro­
mano ‘eram habitualmente citadas nas cortes do common law e
confiadas pelos autores jurídicos não como testemunhos ilus­
trativos e secundários, mas como primárias e conclusivas do
ponto de vista prático” ’35 [Sherman 1928:185].
Um exemplo relevante desse contexto é a obra de Brac-
ton36(1210-1268), que foi Juiz Real durante o reinado de Henry
II. Seus escritos retratam uma “ casuística sistematizada do
Direito inglês, inspirada no método e nos princípios do Direito
romano” [Sarfatti, apud Moccia 2005:899-900]. Portanto - as­
severa Moccia [2005:901] -, “ a situação jurídica inglesa do sé­
culo XII não era diferente daquela dos países do Continente, e
em especial da italiana” .37

35. O trecho em destaque é uma citação de Amos, Roman Civil Law, p. 450
(referência incompleta).
36. De Legibus et Consuetudinibus Anglioe.
37. Cumpre mencionar, no entanto, a interpretação de Van Caenegem [1987]
- não acatada na presente teoria normativa dos precedentes judiciais, mas
relevante e, em certo sentido, dominante - no sentido de que os dados
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(2-3) Os dois outros períodos assinalados por Moccia, que


compreendem os séculos XVI a XVIII, são marcados tanto por
importantes elementos de abertura ao civil law, do ponto de
vista da organização institucional interna na Inglaterra, quan­
to, na esfera externa, pela communicatio entre a Inglaterra e
os sistemas jurídicos que se constituíram sob o ius commune
no Continente Europeu.
Um fenômeno que se verificou especialmente no segun­
do período (Era Tudor e sucessores, isto é, séculos XVI-XVII)
foi a instituição de jurisdições especiais estabelecidas ou de­
senvolvidas no curso do século XVI, que tiveram o importante
resultado histórico de uma intensificação da presença do civil
law na Inglaterra. Entre essas jurisdições, destaco as seguintes:
(a) As Cortes do King’s Council, cujo exemplo mais repre­
sentativo foi a Star Chamber. Tratava-se de conselhos - porém
com a participação de alguns juizes das cortes de common law
- que se reuniam como órgãos extraordinários de justiça, com
competências não muito claras, mas que se destinavam de

históricos relatados nos parágrafos anteriores não teriam impedido que, após
a reconquista da Normandia pela Monarquia francesa, o Direito inglês se
“insularizasse” e passasse a adquirir uma identidade puramente inglesa: “Foi
a conquista da Normandia pelos monarcas franceses e a gradual introdução
do Direito francês de inspiração romana no Ducado que transformou o Direito
anglo-normando em um Direito puramente inglês. O [Direito] que se trans­
formou no [atuai] ‘Direito inglês’ teve início como Direito anglo-normando,
compartilhado por um Reino e um Ducado que não estavam separados, mas
unidos por um canal: o que mais tarde seria o principal traço de insularidade
não era (no início) nada insular” [Van Caenegem 1987:115]. Ainda segundo
Van Caenegem [1987:124-126], foram os juristas do Continente - não apenas
da França, como também da Itália e da Alemanha, por exemplo - que, ao
introduzirem em seus sistemas jurídicos novos elementos provenientes
do Direito romano - que era visto pelos juristas medievais como um texto
sacrossanto que continha uma racionalidade intrínseca (ou seja, da mesma
forma como mais tarde o jurista continental veria o código) divergiram do
caminho originalmente comum e que continuou a ser seguido pelos ingleses.
A minha reticência em relação a essa interpretação é que ela desconsidera
os importantes pontos de comunicação entre o Direito inglês e o Direito
continental, de que passo a tratar nas próximas linhas.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

modo geral a suplementar os casos de equity. “Na época de


Tudor, a Star Chamber (...) teve fama de Corte que, fazendo
valer o interesse da Coroa em fazer triunfar a justiça restau­
rando a ordem e a legalidade, intervinha, sobretudo em maté­
ria de propriedade imobiliária, para tutelar as situações de
direito em favor de quem alegasse violação, lamentando ter
sido vítima de ato criminoso, às vezes de contornos imprecisos”
[Moccia 2005:909]. O problema - aponta Moccia [idem:911] - é
que a tarefa da Star Chamber, “de arma posta pelo soberano à
disposição do próprio súdito” para resistir à fraude e à opres­
são, mudou completamente sob os Stuart, “ os quais a tornaram
um instrumento cardinal de seu regime despótico, para punir
de qualquer forma de dissenso político ou religioso” - o que
acabou levando à sua abolição em 1641. A Star Chamber tem
importância histórica, porém, por ter contribuído para a evo­
lução do próprio common law, especialmente no Direito penal.
(b) A jurisdição de equity, que era exercida por uma ju­
risdição autônoma e constituía um sistema a parte em relação
ao common law. Suas origens estão entre a segunda metade do
século XIV e o início do século XV, quando era exercida pelos
chanceleres eclesiásticos, mas entre o final do século XV e o
início do XVI passa a ser uma corte de chancelaria autônoma,
com seu próprio procedimento e “ modelada sob o exemplo
daquela romano-canônica” . Como salienta Moccia [2005:914],
merece ser destacado que (i) havia a presença de common law-
yers e civilians ingleses no seio da jurisdição de equity e (ii) foi
criado um espírito de cooperação entre os pertencentes aos
dois grupos de profissionais - o que, obviamente, gerou um
aprendizado recíproco para os dois sistemas. A equity jurisdic-
tion só veio a se reaproximar novamente do common law no
século XIX, com a reforma judicial estabelecida pelos Judica-
ture Acts de 1873-1875, que realizaram a “ fusão” dos sistemas
jurisdicionais de equity e common law [Moccia 2005:913]. Essa
fusão, no entanto, não implicou um desaparecimento das de­
nominadas máximas de equity, pois, “ apesar de aplicados pelas
mesmas cortes” , os dois corpos de regras permanecem sepa­
rados [ibidem].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(c) As jurisdições eclesiásticas. Essas jurisdições, em que


se aplicavam normas de Direito romano e de Direito canônico,
foram especialmente desenvolvidas nesse período. Como já
relatamos acima, essas cortes constituíam “uma das áreas mais
sensíveis de contato entre common lawyers e civilians” . As
cortes eram operantes desde a época dos soberanos normandos,
e as matérias de sua competência envolviam (i) “questões de
validade, nulidade ou dissolução do vínculo matrimonial” , (ii)
“questões de legitimidade da prole” , (iii) “questões testamen-
tárias e sucessórias, da convalidação de testamentos [probate]
e sua interpretação etc.” [Moccia 2005:915]. O interessante de
notar sobre as jurisdições eclesiásticas é que, para além de suas
matérias tradicionais e principais, adicionam-se outras, como,
por exemplo, “ a matéria penal, que vinha exercitada nos con­
frontos de laicos em sua jurisdição (relativa, por exemplo, a
casos de heresia, adultério, incesto) até o final do século X IX ”
[idem:916]. Havia, portanto, muitos casos de “ superposição” e
“concorrência” de competências das cortes eclesiásticas e de
common law. Houve, em função disso, várias formas de “coo­
peração” e “ consulta” entre common lawyers e doctors (assim
chamados os civilians e os professores) [ibidem]. Notavam-se,
mais uma vez, o contato direto e a influência recíproca, na
busca de soluções coerentes para problemas pontuais, entre o
civil law inglês (romano-canônico) e o common law.
(d) A Court ofAdmiralty. As Cortes de Admiralty foram
provavelmente o maior ponto de abertura do Direito inglês. A
legislação sobre comércio por mar e terra desenvolveu-se em
toda a Europa por meio de normas consuetudinárias cuja prin­
cipal característica, dada a propensão ao tráfico internacional,
“consistia em disciplinar as relações marítimas e comerciais
segundo regras e práticas o mais uniformes possível, produzi­
das autonomamente (ao menos no início) pela própria comu­
nidade dos mercadores” ; tratava-se de uma lex mercatoria com
pretensão de validade universal, ou seja, de constituir um ius
gentium [Moccia 2005:922-923]. Especialmente em tal terreno,
vigorava uma prática entre os grandes tribunais europeus
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(especificamente os italianos) de se obter uma “uniformização


jurisprudencial do Direito entre os Estados” e de se atribuir
força normativa à communis opinio entre esses tribunais [Gor-
la 1981-d:666-667]. Era um tempo caracterizado por uma espé­
cie de auctoritate cosmopolita e comunicante [idem:668], que
tornava os sistemas jurídicos domésticos abertos à influência
estrangeira na busca de uma única regulação racional. Na Court
o f Admiralty não se aplicava o common law local, mas a lex
mercatoria e um grande número de regras do ius commune
europeu que eram desenvolvidas pela jurisprudência dos gran­
des tribunais de modo geral. A novidade no século XVI foi que
Tudor ampliou a competência da Corte de Admiralty para
abarcar “ todos os casos em geral relacionados ao tráfico mer­
cantil” , o que favoreceu em muito a integração da Inglaterra
com os demais Estados europeus com os quais vinha estabe­
lecendo relações comerciais em ritmo acelerado (à medida que
sua economia expandia para além-mar) [Moccia 2005:925].
Especialmente na terceira fase descrita acima por Moccia (de
afirmação da Inglaterra, no século XVIII, como potência eco­
nômica) pode-se perceber a formação de um moderno Direito
comercial, cuja origem é encontrada na tradição do Direito
comum europeu, caracterizada especialmente pela ideia de
“abertura do ordenamento, no que se refere a suas fontes”
[idem:928]. Pode-se falar, assim, de certas “ recepções jurispru-
denciais do Direito comercial (especialmente italiano) durante
os séculos XVII e XVIII, e ainda, fora do Direito comercial, de
certas tentativas de Lord Holt e Lord Mansfield” [Gorla 1978:62],
Com efeito, Lord Mansfield, considerado como o “ pai” do Di­
reito comercial moderno na Inglaterra, ao exercer o cargo de
ChiefJustice da Corte de King’s Bench, “demonstrava com suas
decisões ser participante de um ‘espírito cosmopolita’, que o
levava a procurar os ‘princípios gerais comuns’, mediante os
quais deveria enfrentar e resolver os problemas jurídicos”
[Moccia 2005:930].
Para além das cortes de jurisdições especiais, mesmo nas
cortes de common law é visível um grande número de impor­
tações e exportações de soluções jurídicas pelo Direito inglês:
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“A presença no interior do Direito inglês da categoria dos ci­


vilians fez com que, historicamente, esse ordenamento se
mantivesse aberto, por assim dizer, à comunicação com a cul­
tura jurídica continental” [Moccia 2005:933].

Apenas a título de exemplo, vale a pena citar certas se­


melhanças entre o common law e o Direito continental no pe­
ríodo compreendido entre os séculos XVI e XVIII, que foi um
período de grande abertura e communicatio entre os sistemas.
Nesse sentido, Gino Gorla enumera uma série de semelhanças
entre o Direito inglês e o Direito italiano no período. Vejam-se:
(a) Em ambos os sistemas, common law e Direito conti­
nental, a jurisprudentiaforensis era a principal fonte do Direi­
to, “muito mais importante que qualquer outra no referido
período” , e a unificação do Direito era realizada principalmen­
te por “ interpretações judiciais uniform es” [Gorla/Moccia
1981:147].

(b) O estilo redacional das decisões inglesas e continentais


era bem parecido; apresentava-se como um report das opiniões
dos juizes, com a menção também das teses dos advogados:
“Reporta-se por vezes a opinião pessoal de cada juiz, por vezes
a da maioria e a da minoria, mas em todos os casos com a in­
dicação dos motifs [rationes] e das autoridades [auctoritates]
invocados em cada opinião. Isso implica a dissenting opinion,
que às vezes assume um papel formal” [Gorla 1978:64; Gorla/
Moccia 1981:150-151].
(c) A forma de recrutamento dos juizes das cortes supe­
riores era semelhante: não juizes de carreira, mas normalmen­
te recrutados entre os mais destacados profissionais jurídicos
[Gorla/Moccia 1981:148].
(d) O Direito comercial era de natureza especialmente
semelhante: “ O Direito comercial desenvolveu-se graças a
opiniões jurídicas” , e em larga medida se ligou à prática de
seguir precedentes judiciais estabelecidos pelas cortes ordiná­
rias de Justiça [Gorla/Moccia 1981:149].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(e) Em ambos os sistemas vislumbrava-se para as cortes


um rule-making power: “As Supremas Cortes italianas antes
da unificação da Itália, assim como as de outros países conti­
nentais, detinham o poder de regular certos aspectos do pro­
cedimento perante elas (rutus Curie)” [ibidem].38
(f) Os precedentes dos tribunais supremos tinham, ini­
cialmente no ius commune continental e posteriormente tam­
bém na Inglaterra [Dolezalek 1998:77-80], uma autoridade
vinculante ou “quase-vineulante” (quasi-binding). Embora
houvesse certa variação nos modos pelos quais essa força
vinculante era construída e exercida, de m odo geral via-se
nas supremas cortes dos países continentais (com o também
em importante medida na Inglaterra) um elevado respeito
pelo precedente judicial com o forma de unificação do Direito
[Dolezalek 1998; Gorla 1978:65; Gorla/Moccia 1981:150].

38. Na ausência de uma regra (sejajurisprudencial, legislativa, costumeira ou de


direito local) in puncto entrava em cena o tribunal para exercer sua atividade de
criação judicial do Direito. Interessante notar, nesse ponto, que a interpretatio
romana (sobre a qual discorremos supra, n. 1.2, in fine) guarda relação não
apenas com o common law anglo-americano dos nossos dias, mas também com
os sistemas de ius commune que vigoravam na Europa Continental antes das
codificações do século X IX . Como salienta Gorla, quando se formava o Estado
Moderno - séculos XVII e XVIII - vigorava uma importante distinção na prática
jurídica entre os casos “resolvidos pela lei” (casus legis) e aqueles em que esta
deixava certa margem para a “interpretatio dos doutores e dos tribunais” [Gorla
1981-e:446-447]. Por lex se entendiam, naquele contexto, “não apenas os textos
legislativos e as consuetudini, mas também os textos romanos do corpus iuris (...),
e sobretudo estes”. O conceito de causus legis - “caso decidido pela lei” - deli­
mitava os confins da denominada “aplicação do Direito” [idem:449-450]. Além
desses limites a atividade dos juristas tinha um caráter nitidamente criativo e,
apesar de ser semelhante ao que hoje os alemães denominam “desenvolvimento
judicial do Direito” [Larenz 1997:519 e ss.], recebia a mesma nomenclatura utili­
zada na Roma clássica. A interpretatio era, também nesse contexto histórico, um
procedimento para preencher lacunas e resolver contradições, o qual deveria
ser exercido pelos juristas com auxílio das rationes (“princípios gerais de um
dado Direito positivo”) e das auctoritas (“repositório de rationes” que decorriam
de “interpretationes já feitas”) [Gorla 1981-e:447-449]. Exatamente por isso, “o
dito in claris nonfit interpretatio não era uma banalidade” [idem:450], pois tinha
como referência não o que hoje entendemos por “interpretação”, mas apenas
o que denominamos “desenvolvimento judicial do Direito”.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(g) “ Os critérios de avaliação dos precedentes (nos tri­


bunais dos Estados pré-unitários na Itália) são os mesmos
utilizados no common law. Não se reconhece valor de prece­
dente a um obiter dictum” (utiliza-se, inclusive, a mesma ex­
pressão) [Gorla 1978:65]. A técnica do distinguishing é muito
praticada e altamente desenvolvida [Gorla 1978:68; Gorla/
Moccia 1981:151].
(h) A interpretação de documentos legislativos e dos
“ costumes locais” no Continente (em especial na Península) é
do tipo restritiva (como até hoje acontece no common law), pois
tal direito é visto com o “derrogando” ou “ interferindo” no ius
commune ou no common law [Gorla 1978:68; Gorla/Moccia
1981:151].
(i) A literatura jurídica tinha um caráter tipicamente
“forense” , tanto nas Províncias italianas pré-unitárias quanto
na Inglaterra [Gorla 1978:66].
(j) Tanto no Direito inglês quanto no Direito continental
era comum o recurso à “lei de um lugar vizinho” (legge de um
luogo vicino) e, no common law em especial, o recurso a certas
continental authorities. A possibilidade de “integração do Di­
reito a partir do exterior” e a “ abertura do Direito às fontes
romanas” sempre foi, e ainda é, uma característica especial do
Direito inglês [Moccia 2005:934].39 ,
Essa abertura do Direito inglês não é algo percebido
apenas por historiadores do Direito e juscomparatistas de
perfil acadêmico com o Moccia, Gorla, Helmholz, Seipp e ou­
tros estudiosos (todos contemporâneos), mas inclusive por
alguns dos mais importantes juizes da Inglaterra e mesmo da
França. Por exemplo, Lord Bingham, Senior Law Lord, é en­
fático ao reconhecer que o common law historicamente provou
ser um “ ávido importador” e um “ exportador vigoroso” : “ ‘O
direito inglês é um rio’ (...). Apesar de essa linguagem poder

39. Para alguns exemplos, v. Moccia [2005:935-936] e Gorla [1981-d:697-698].


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

parecer a alguns carente de rigor acadêmico, ela expressa,


penso eu, a importante verdade de que o common law incor­
porou através dos séculos, sem qualquer constrangimento,
uma série de bem-discutidas porções do Direito estrangeiro,
seja de Roma, da França, da Alemanha, dos Estados Unidos
e, obviamente, mais recentemente, da Comunidade Europeia
e da Corte Europeia de Direitos Humanos em Estrasburgo.
Paralelamente a essas importações, o common law exportou
materiais jurídicos aos domínios e dependências britânicos
em todo o mundo, incluindo a índia, a África do Sul e Ceilão,
no qual um sistema jurídico diferente já prevalecia” [Bingham
2000-a:383].

De m odo parecido, Guy Canivet [2004:191], por vários


anos Premier-Président de la Cour de Cassation da França,
enfatiza que juristas do common law e do civil law “ sempre
trabalharam sob uma cultura jurídica transnacional” : “ Esse
diálogo entre o common law e o direito civil sempre existiu.
Em testemunho, cite-se Lord Mansfield, um juiz bastante
francophile, que contribuiu para a nomeação de William Black-
stone, onde se nota a influência de Montesquieu sobre sua
obra. Os juizes ingleses do século XVIII formavam já suas
decisões não apenas sobre a base de fontes originais francesas
com o a Ordonnance de Colbert, mas também de fontes secun­
dárias, tais com o Valin, que são citadas em Francês no texto
das decisões. Na origem dessa atitude se encontra Lord Mans­
field, que pode ser considerado com o o prim eiro grande
comparatista inglês. Seu espírito influencia ainda certamen­
te a Câmara dos Lordes britânica, que lembrou recentemen­
te, no julgamento de Fairchild, escrito por Lord Bingham, que,
‘se uma decisão tomada em nosso país vai de encontro ao
senso de justiça e se ressai da consulta à jurisprudência es­
trangeira que a maioria das cortes adotaria uma solução di­
ferente e mais aceitável, qualquer que seja a tradição à qual
essa solução pertença, ela deveria nos constranger a uma
revisão de nossa posição. Em um mundo que se movimenta
excessivamente, há virtude em se adotar soluções idênticas,
r
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

qualquer que seja a diversidade dos caminhos pelos quais nós


cheguemos até elas” ’ [Canivet 2005-a:22].
O trecho em destaque, em que Canivet se refere a Lord
Bingham, é expressivo de todo um m odo de pensar. É expres­
sivo de um “renascimento, sob formas novas, da ideia e do
espírito do ius commune, após um eclipse que não chegou a
ser um com pleto desaparecim ento” [Gorla 1978:49]. Esse
eclipse, com o notou Helmholz [1990], foi uma idiossincrasia
do Estado Nacional do século XIX, um fechamento do sistema
jurídico para dentro de si mesmo, alimentado, no Continente,
por um Positivismo legalista que teve sua expressão máxima
na Escola da Exégèse (França) e na jurisprudência dos con­
ceitos (Alemanha) e, no mundo do common law, por um Rea­
lismo Jurídico escancarado (Estados Unidos) ou disfarçado
(Reino Unido).
No entanto, apesar da ascensão do Positivismo na In­
glaterra no século X IX - Positivismo, esse, que dominou
também a maior parte do século X X , só vindo a decair, para­
doxalmente, após a obra do positivista Herbert Hart, pela
pena de autores com o Dworkin ou MacCormick e juristas
continentais com o Habermas e Alexy40 - , as Cortes inglesas
de m odo geral, em especial a House ofLords, conservaram o
mesmo estilo argumentativo, discursivo e casuístico que exis­
tia nos grandes tribunais italianos medievais. Como observa
novamente Gorla [1963:14], o Direito inglês, ao contrário do
Direito continental, não perdeu contato com o Direito medieval,
e eis o porquê da timidez da atividade legislativa na Inglater­
ra e do style discursivo praticamente idêntico ao dos antigos
grandes tribunais italianos.

40. Para uma explicação sobre como a teoria de Herbert Hart - ao revelar a
importância da perspectiva interna, ou seja, do ponto de vista de quem inter­
preta e aplica o Direito, para a definição do Direito e para encontrar a rale of
recognition desse sistema - traçou o caminho a partir do qual outras teorias,
como as de Alexy e Habermas, por exemplo, puderam vindicar um conceito
não positivista de Direito, v. Bustamante [2006-a], onde há outras indicações.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

1.4.2.2 O Positivismo decimonônico e a sua teoria sobre a


atividade judicial na Inglaterra

Como vimos acima (n. 1.4.2.1), o Positivismo francês


manifestou-se por meio do formalismo linguístico da Escola da
Exégèse. O Direito seria uma criação humana - ausente, por­
tanto, qualquer fundamento superior ou metafísico para sua
existência; seria fruto de um ato de vontade do legislador - e
apenas do legislador de modo que o processo de interpreta­
ção e aplicação do Direito, que constitui o cerne da atividade
judicial, não seria propriamente um processo de decisão e,
portanto, de criação do Direito, mas um puro processo de co­
nhecimento. Um resíduo desse modo de pensar manifesta-se
em todas as teorias formalistas e neoformalistas sobre a ativi­
dade judicial. A teoria jurídica de Eugênio Bulygin, por exem­
plo, pode ser contemporaneamente descrita como um exemplo
de neoformalismo jurídíco. Bulygin critica, nesse sentido, a
afirmação de Kelsen segundo a qual o juiz, ao decidir um caso
concreto, cria uma norma individual que contém a solução do
caso, com fundamento na norma superior que ele “ aplica” . Ao
interpretar uma norma jurídica qualquer, o intérprete está
atribuindo sentido ao seu texto, e por isso produzindo uma
nova norma jurídica [Kelsen 1998-a]. Para Bulygin [1994:163]
essa descrição de Kelsen está equivocada: “Para que uma nor­
ma formulada por uma autoridade normativa seja considerada
criada por essa, o conteúdo dessa norma não deve ser idêntico
àquele de nenhuma outra norma pertencente ao mesmo orde­
namento jurídico, nem consequência lógica (dedutível) de
outras normas” . Para o jurista argentino, “ a norma individual
(parte dispositiva da sentença) não é criada pelo juiz, mas sim
deduzida da norma geral que lhe dá fundamento, das definições
em jogo e dos fatos do caso. Somente em uma sentença arbi­
trária (ou seja, uma sentença não fundamentada) a resolução
não é consequência lógica da motivação” [idem:164].
Há várias outras formas de Positivismo Jurídico. O que
todas as teorias positivistas têm em comum é o que Hoerster
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

[2000:19] denominou “ Tese da Neutralidade” , ou seja, a tese


de que o conceito de Direito e a validade de suas normas
podem ser definidos prescindindo-se do seu conteúdo. Nou­
tros termos, “ a tese central do Positivismo” , que é defendida
por igual por Kelsen, Hart, Ross, Austin e Bentham, entre
vários outros, é a de que “ o Direito é um fenômeno social que
pode ser identificado e descrito por um observador externo
sem recorrer a considerações acerca de sua justificação e
valor moral ou acerca do dever moral de lhe obedecer e o
aplicar” [Santiago Nino 2003-a:148]. De forma mais concisa,
isso equivale à negação da tese da conexão necessária entre
o Direito e a Moral ou qualquer outra ordem superior [Garcia
Figueroa 2006].

A teoria da atividade judicial hoje dominante na Ingla­


terra - bem com o a teoria dos precedentes, que deriva neces­
sariamente dela - é expressão de uma teoria positivista parti­
cular que, embora inovadora na época, hoje pode ser tida como
primitiva:41 a teoria, posteriormente denominada “ analítica” ,
formulada por Jeremy Bentham e desenvolvida por John Aus­
tin ao longo do século XIX. Para Bentham [1970:1]: “Uma lei
pode ser definida como um conjunto de signos declarativos de
uma vontade concebida ou adotada pelo soberano em um Es­
tado, concernente à conduta a ser observada em certo caso por
uma certa pessoa ou classe de pessoas, que no caso em questão
estão ou devem estar sujeitas ao seu poder” .

Uma lei, portanto, é nada mais que a expressão da von­


tade do soberano; “a ideia de lei está implícita na de soberano,
que é por sua vez implícita na de Estado” [Schofield 1991:60].
E claro que isso não tem por consequência necessária que
todas as leis válidas em um Estado sejam prolatadas exatamen­
te pela mesma pessoa, pela mesma autoridade. Uma lei pode

41. Para um resumo das afirmações-chave das principais teorias positivistas


formuladas até o tempo presente, v. Alexy [2004-a: 13-26], Hart [1977:18-nota
1], Santiago Nino [2003-a:146] e Hoerster [2000:11 e ss.].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ser validada por um soberano de duas maneiras: (i) por con­


cepção, quando “ o próprio soberano em questão a edita” ou (ii)
por adoção, “quando é inicialmente editada por alguma pessoa
que não o próprio soberano” , mas quando também seja o caso
de a vontade do soberano ser de que o órgão em questão ex­
presse sua vontade em relação à ação exigida, de modo que tal
vontade deva ser tida como própria do soberano [idem:61].42O
que importa é que a lei, em qualquer dos casos, é tida como a
expressão de uma vontade soberana, e seu fundamento único
deve ser buscado no próprio poder, na força, que detém o apa­
relho estatal.
Bentham divide a ciência do Direito (jurisprudence) em
dois ramos: de um lado, a jurisprudência expositória ocupa-se
de explicar o que, segundo seu estudioso, é o Direito; de outro
lado, a jurisprudência censorial, ou a art oflegislation, é aque­
la em que seu estudioso deve “ observar (e expor) para nós o
que ele pensa que o Direito deve ser” [Schofield 1991:59]. Essa
divisão entre a expository jurisprudence - que corresponde à
ciência do Direito em seu sentido estrito e tipicamente posi­
tivista, cuja função seria constituir um instrumento de conhe­
cimento do Direito positivo, pautada pelo postulado da neu­
tralidade científica - e a jurisprudência censorial - que deve­
ria considerar os leading points que “ seria vantajoso para
todas as Nações introduzir em seus ordenamentos jurídicos”
[ibidem] - , apesar de importante na obra de Bentham, foi
recepcionada de forma restritiva pelo Positivismo Jurídico do
século que o sucedeu, e em especial por seu principal seguidor:
John Austin. Austin vê a ciência do Direito apenas com o a
“ filosofia do direito positivo” , sendo sua tarefa identificar,
organizar os princípios comuns a todos os ordenamentos
jurídicos. Portanto, a Ciência Jurídica (jurisprudence) é tida
com o “ a Ciência concernente à exposição dos princípios,
noções e distinções que são comuns a todos os sistemas jurí­
dicos” [Duxbury 2004:9].

42. Nesse sentido, v. Bentham [1970:21].


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Bentham adota uma atitude de puro ceticismo em relação


ao common law; “ sua opinião extrema e característica era de
que a existência do common law seria uma ‘ficção do início ao
fim’, e a crença em sua existência não seria mais que uma ‘de­
silusão nociva’ [mischievous delusion]” [Simpson 1973:88].
Como relata Simpson, para Bentham “ o common law era tido
como mock law, sham law, quasi-law, e por consequência o
exercício da função jurisdicional era um exemplo de poder
arbitrário em todos os sentidos” [Simpson 1973:89].
Bentham desprezava, às vezes sem se preocupar com a
elegância, a teoria tradicional e os ensinamentos de homens
como Coke, Blackstone e Hale [v. Postema 1987:15-23], e acre­
ditava que o case law produzido pelos juizes ingleses era fruto
de um puro ato de vontade - de arbítrio - que poderia ser ex­
plicado através de uma analogia grosseira com a forma pela
qual um adestrador cria normas para serem obedecidas por
um cachorro: “ São os juizes (como já vimos) que fazem o com­
mon law. Você sabe como eles o fazem? Do mesmo modo que
um homem faz leis para o seu cão. Quando o seu cão faz algo
que você quer evitar que ele faça, você aguarda até que ele
repita, e então lhe bate por isso. Esse é o modo pelo qual você
faz leis para o seu cachorro; e esse é o modo pelo qual os juizes
fazem leis para mim e você. Eles não irão dizer de antemão a
um homem o que é que ele não deye fazer (...). Eles esperam
até que ele tenha feito algo que eles dizem que o homem não
deveria ter feito, e então eles o enforcam por isso. De que modo,
então, pode qualquer homem tomar ciência dessa dog-law?
Apenas observando os seus procedimentos: observando em
quais casos eles enforcaram um homem, em quais casos ele foi
mandado para a cadeia, em quais casos eles tomaram suas
posses, e assim por diante” [Bentham 1843].
Bentham, apesar do tom cínico, nutre uma preocupação
legítima com a segurança jurídica, e chegou a advogar, apaixo­
nadamente, a codificação de todo o Direito inglês: “Bentham
defendia a codificação em nome da cognoscibilidade (uma ex­
pressão que ele cunhou), e sentia que um Direito embalsamado
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

em milhares de casos espalhados ao longo de séculos não p o­


deria ser cognoscível pelo povo” [Van Caenegem 1987:47]. Mas
o resultado de seu ceticismo em relação ao common law foi um
senso comum, que se difundiu por todo o Reino Unido, de que
o Judiciário é delegatário da soberania estatal e que, portanto,
quando decide um caso paradigmático ele não está declaran­
do ou expondo (expounding) o Direito em vigor, mas criando
por ato próprio uma regra jurídica geral. Em um sistema ju ­
rídico com o o inglês o que o Positivismo de Bentham produ­
ziu foi uma teoria - que acabou repercutindo sobre a ativida­
de da própria House o f Lords - segundo o qual o juiz é, ele
próprio, o criador do Direito. “ O common law, diziam os p o ­
sitivistas, existia (se é que de fato existia) porque foi estabe­
lecido [laid down] pelos juizes que tinham autoridade legis­
lativa [law-making authority]. O Direito era o produto da
vontade judicial |judicial will]. Não era descoberto, mas criado”
[Wesley-Smith 1987:74].
O prestígio de Bentham na segunda metade do século
X IX e ao longo de todo o século X X (com flexibilização talvez
na sua última década) fez transmitir parte de seu ceticismo
(em relação à teoria tradicional sobre o common law) a certos
Lords da própria House o f Lords. Veja-se, por exemplo, o se­
guinte trecho de Lord Reid: “ Houve um tempo em que era
praticamente indecente sugerir que os juizes criavam Direito
- eles apenas o declaravam. Aqueles com gosto para contos de
fada parecem ter pensado que o common law em todo o seu
esplendor se encontrava escondido em uma espécie de cova
de Aladim, e que na ocasião da nomeação de um juiz descesse
sobre ele uma espécie de conhecimento de palavras mágicas
com o ‘A bre-te Sésamo’. Más decisões seriam tomadas quando
o juiz confundisse a senha de passagem e uma porta errada
se abrisse. Mas nós não acreditamos mais em contos de fada”
[Reid 1973:22].
A melhor forma de descrever a ciência do Direito inglesa
do século X IX - que reflete sobre a autocompreensão do Judi­
ciário inglês até hoje, embora em certa decadência - é como
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

uma espécie de Realismo Jurídico inglês, mais sutil que o ame­


ricano, mas igualmente pernicioso: “Na realidade, juizes fazem
e modificam o Direito. Todo o common law é judge-made e so­
mente por mudanças judiciais o common law se mantém rele­
vante num mundo cambiante” .43

1.4.2.3 Excurso: do Humanismo Jurídico à hegemonia do


Positivismo de Bentham no século XIX. A radicalização
da doutrina do stare decisis

Em um dos ensaios jurídico-comparatistas mais conhe­


cidos da primeira metade do século X X , A. L. Goodhart
[1934:10] sustentou a tese de que “ a doutrina do precedente
vinculante é de tal importância que se pode dizer que [ela]
fornece a distinção fundamental entre o método jurídico inglês
e o continental-europeu” . A diferença radical entre os dois
sistemas não estaria no caráter codificado do Direito continen­
tal, na estrutura sistematizada das leis emanadas pelo legisla­
dor, mas na força vinculante que o Direito inglês atribui ao
precedente judicial - em especial ao precedente gerado no caso
individual. Para Goodhart [idem: 12], “mesmo se o Direito inglês
fosse codificado, e ele tem sido codificado em uma extensão
normalmente não reconhecida, ele ainda seria diferente do
Direito continental por causa da diferença nos dois sistemas
no que concerne ao efeito vinculante dos casos decididos” .
No entanto, apesar da grande influência exercida por este
ensaio sobre o senso comum tanto dos juristas ingleses quanto
dos observadores continentais da primeira metade do século
X X , a afirmação de Goodhart perde força quando se observa
com mais detalhe que a eficácia vinculante do precedente ju­
dicial por ele descrita é um instituto relativamente recente no

43. Pronunciamento de Lord Browne-Wilkinson em “Kleinwort Benson Ltd.


vs Lincoln City Council” [1999] 2 AC 349, p. 358. Para uma análise dessa
opinião, v. Whittaker [2006:705],
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

common law - pois tem suas raizes no século XIX, quando as


decisões da House o f Lords passaram a ser reportadas [Whit­
taker 2006:713; Dawson 1986:80] e a jurisprudência analítica
de Bentham e Austin se torna hegemônica [Duxbury 2004;
Evans 1987:64 e ss.].
A regra do stare decisis, na sua versão mais forte - que
abarcava não apenas a vinculação vertical, mas também a tese
de que a House o f Lords e as Courts o f Appeal estariam vincu­
ladas pelas suas próprias decisões anteriores -, foi constituída
em um tempo relativamente recente e teve duração relativa­
mente curta, se considerarmos o longo período de vigência
continuada do common law inglês. A tese do efeito estritamen­
te vinculante (strictly binding) do precedente horizontal foi
insinuada pela primeira vez por Lord Eldon, em 1827, no caso
“Fletcher vs Sondes” [cf. Pugsley 1998:248], defendida com
especial ênfase na metade do século X IX por Lord Campbell
- especialmente em “Beamish vs Beamish”’44 no ano de 1861

44. [1861] 11. E.R. 735. Em relação à consagração da tese da autovinculação


da House ofLords no caso “Beamish vs Beamish” divergem os historiadores
do Direito. De um lado, Dawson, na clássica obra The Oracles ofLaw [Daw-
son 1986:90], sustenta que até a década de 1950 “havia apenas uma pessoa
importante, Lord Campbell, que sustentava seriamente que a House ofLords
estava vinculada por suas decisões anteriores”. Para Dawson [idem:90], em
“Beamish”, em 1961, “dos quatro Law Lords que se pronunciaram no caso,
Lord Campbell foi o único que discutiu o poder da House ofLords para re­
formar seus próprios precedentes”. De outro lado, Pugsley [1998:248-249]
afirma, com todas as letras, que “todos os demais juizes estavam de acordo”,
citando excertos das opiniões de Lord Cranworth - “Saliento, ao considerar
esse caso, que a decisão de V Exas. no caso ‘R vs Millis’ deva ser considerada
Direito vigente (...). Presumo, e sou forçado a presumir, que este caso tenha
sido decidido corretamente” - , Lord Wensleydale - “Tal questão, todavia, não
é objeto de discussão (...), pois foi definitivamente e irrevogavelmente decidida
nesta Corte” - e Lord Chelmsford - “Com ‘R vs Millis’ deve-se considerar
estabelecido que O curioso é que Dawson [1986:90-91] faz referência
exatamente às mesmas passagens mencionadas por Pugsley, mas chega a uma
interpretação rigorosamente contrária: “Lord Chelmsford não menciona a
questão mas passa todo o tempo expressando sua concordância com a decisão
anterior em ‘Queen vs Millis’ (...), à qual Campbell tão fortemente objetava.
Lord Cranworth, do mesmo modo, não teve problema, porque ele também
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

- e vindo a ser definitivamente sedimentada apenas no caso


“London Tramways Co. vs London County Council”45decidido
no ano de 1898. Essa doutrina, no entanto, em face das pode­
rosas objeções enfrentadas ao longo da primeira metade do
século X X , veio a ser flexibilizada em 1966, quando foi anun­
ciado por Lord Gardiner, então Lord Chancellor, um Practice
Statement através do qual os law lords reconheceram que “uma
aderência excessivamente rígida ao precedente pode levar à
injustiça em um caso particular, bem com o indevidamente
restringir o correto desenvolvimento do Direito” .46

concordava com ‘Queen vs Millis’, e com relação ao efeito vinculante mera­


mente disse: ‘Eu presumo, e sou forçado a presumir’, que ‘Queen vs Millis’
foi corretamente decidido. Lord Wensleydale tinha no máximo ‘dúvida’ sobre
‘Queen vs Millis’, mas adicionou que a questão lá apresentada não poderia
ser reconsiderada, porque ‘foi finalmente e irrevogavelmente estabelecida
por esta Casa’ (...). E de se admirar que ‘Beamish vs Beamish’ possa ser tida
posteriormente como tendo realizado uma inovação radical, com tão pouca
consideração e por uma votação em que não mais que dois de quatro Juizes
tenham tido ocasião de enfrentar a questão sobre se as decisões da House
o f Lords são ou não vinculantes para os casos futuros”. Por outro lado, em
favor de sua interpretação, Pugsley [1998:251-252] menciona uma série de
outras opiniões no período de 1860 a 1898 que em tese poderiam confirmá-
la. Independentemente da questão de saber qual dos dois historiadores do
Direito tem razão, podemos concluir, ao menos, que durante esse período
houve um gradativo fortalecimento da doutrina do stare decisis, que culmi­
nou com uma enunciação formal (em 1898) em que a quaestio da vinculação
da House às decisões anteriores foi expressamente tematizada e resolvida.
45. [1898] AC 375.
46. [1966] 1 Weekly Law Reports, p. 1.234. Embora o Practice Statement tenha
extinguido a regra da vinculação dos law lords aos próprios precedentes, é
consenso que a versão forte da regra stare decisis permanece em vigor para
as cortes de apelação, que devem obediência não apenas às decisões da cor­
te hierarquicamente superior, mas igualmente às regras contidas nas suas
próprias decisões anteriores, que - ressalvadas as hipóteses de julgamento
per incuriam - só podem ser reformadas pela House of Lords. Como se pode
1er na opinião de Lord Bingham em “Leeds City Council vs Price and Others
(FC) (Appelants)” [2006] U K H L 10: “A House [no Practice Statement de 1966]
deixou claro que essa modificação não pretendia afetar o uso de preceden­
tes fora da House of Lords, e a frequência com que a House exercitou essa
liberdade de se afastar de suas próprias decisões testemunha a importância
que ela atribui ao princípio” (§42 da Opinion).

nn
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Ademais, há antecedentes históricos de regras tão fortes


quanto a que vigorou na Inglaterra entre 1898 e 1966. Como
relata Gero Dolezalek [1998:79], “nos anos de 1746 e 1777, res­
pectivamente, os dois Estados alemães de Hessen-Kassel e
Hessen-Darmstadt conduziram esse princípio [do stare decisis]
ao extremo. Eles estabeleceram por lei que os seus tribunais
de apelação não detinham mais autoridade para modificar os
seus próprios precedentes. Em Hessen, desde aquele momen­
to, somente o legislador poderia decidir abandonar um prece­
dente considerado não mais aceitável” . Essa legislação - infor­
ma ainda o autor - vigorou por longo lapso de tempo, somente
vindo a ser abolida no século seguinte [ibidem]. A doutrina
estrita do precedente, portanto, não foi uma ideia absoluta­
mente original dos ingleses.
A formação da doutrina do stare decisis na House ofLor-
ds e nas Cortes de Westminster não foi fruto de um fenômeno
exclusivamente britânico. Os estudos histórico-jurídicos de
Gino Gorla mostram conclusivamente que o ius commune con­
tinental, durante todo o período compreendido entre os sécu­
los XII e XVIII, caracterizou-se pelo seu caráter aberto e cos­
mopolita. Especial autoridade era conferida, como já adianta­
mos, à communis interpretatio dos vários países que constituíam
a órbita do Direito comum europeu [Gorla 1981-d:658]. Um
dos mais importantes problemas desse Direito com fortes pre­
tensões cosmopolitas foi a “uniformização do Direito através
da interpretação, em um sentido lato, de um corpus de leis
comuns ou semelhantes” [idem:659]. Embora inicialmente - nos
séculos XII a XV - esse trabalho de construção de uma com­
munis interpretatio a constituir auctoritas internacional ou
cosmopolita fosse exercido pelos grandes professores (dottori)
que se dedicavam ao estudo e à sistematização do direito ro­
mano e do direito canônico [idem:661-665], no período mais rele­
vante para a uniformização do Direito, por se tratar do período
de formação do Estado M oderno - séculos XVI a XVIII -,
essa atividade foi exercida quase que com exclusividade
pelos grandes tribunais e seus juristas “ forenses” [idem:665].
'
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Nesse período foi reconhecido importante valor à jurisprudên­


cia com o fonte do Direito, que exercia uma missão de unificar
o Direito do Estado. Essa valorização formal da jurisprudência
foi também um fenômeno cosmopolita.
Como observa Dolezalek, do século XVII em diante
“ afirma-se a exigência de se desenvolverem técnicas mais efi­
cientes para o governo do Estado” , em cujo âmbito se encon­
trava especialmente uma “ específica tendência à homogenei­
zação do Direito em todo o Estado” . Era necessário, para a
consolidação do Estado Moderno, que todas as leis fossem
interpretadas de modo igual [Dolezalek 1998:77-78]. Duas vias
foram adotadas para atingir esse objetivo: uma delas, de “ es­
cassa praticabilidade” , foi “concentrar toda a atividade inter-
pretativa em uma única instituição” (com o, por exemplo,
aconteceu em França em 1790, com a criação do référé legisla-
tif); a outra, mais promissora e que apresentou maior sucesso
histórico, foi “ atribuir força de lei aos precedentes do Tribunal
Supremo” [idem:78]. Há vários exemplos:
(1) Na Toscana, ainda no século XVII, foi desenvolvida
uma regra consuetudinária segundo a qual “dois precedentes
da Rota Senese (ou Fiorentina ou Luchese) tinham força de lei” .
“ Qualquer decisão de grau inferior que não se adequasse a essa
regra era cassada sem entrar no mérito da causa” [Dolezalek
1998:79].
(2) No Stato Pontifício as decisões da Sacra Rota eram
também vinculantes; uma costituzione do ano 1561, confirma­
da no ano de 1611, “ estabelecia que os precedentes contidos
em uma coleção de decisões publicadas com a estampa oficial
não poderiam ser desatendidos senão com a maioria de dois
terços de todos os julgadores” [Dolezalek 1998:79].
(3) Uma única decisão era por si só considerada vincu-
lante, durante o período dos séculos XV e XVI, na Suprema
Corte do Reino de Nápoles (Sacro Regio Consiglio) [Gorla/
Moccia 1981:150].

-70
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(4) O mesmo se deu no período de 1729-1837 nos Senati


dos Estados Sardos [Gorla/Moccia 1981:150].
(5) No Piemonte e na Savóia foi estabelecida uma legis­
lação em 1729 que reconhecia o caráter de fonte do Direito aos
precedentes publicados a stampa [Dolezalek 1998:80].
(6) Na Baviera, o Codex Maximilianeus Bavaricus Civilis
estabelecia que os juizes deveriam ter “ sumo respeito aos pre­
cedentes do Tribunal Supremo” [Dolezalek 1998:80].
Como nota ainda Dolezalek, essa tendência se fortificou
ainda mais no século XIX: “No século X IX vieram à luz tenta­
tivas ulteriores deste gênero. Entre 1816 e 1831, no Estado de
Sachsen-Weimar, os precedentes do Tribunal Supremo, quan­
do considerados importantes, eram publicados no Diário Ofi­
cial. A França, em 1836, obrigou todas as Cours d’Appel a seguir
certos precedentes da Cour de Cassation, que eram conhecidos
como arrêts en robes rouges. No estado de Hannover, a partir
de 1838, todos os tribunais deveriam seguir os precedentes do
Tribunal Supremo publicados na Gazeta do Estado. Esta regra
foi ab-rogada em 1848, pois o Parlamento temia que pudesse
resultar com prom etido o próprio m onopólio legislativo. A
mesma razão induz os parlamentos da Saxônia, Bavária e de
Wüttemberg, respectivamente em 1821,1837 e 1839, a rejeitar
um projeto de lei análogo destinado a introduzir regra seme­
lhante. De 1850 a 1870, a Áustria foi o penúltimo Estado a
constranger todos os tribunais inferiores a seguir cegamente
as decisões do Tribunal Supremo. A última, como já dito, foi a
Inglaterra” [Dolezalek 1998:80].
A rica contribuição de Dolezalek mostra que o reconhe­
cimento formal de efeito vinculante à jurisprudência foi um
fenômeno que se estendeu por toda a órbita do ius commune
no período de formação do Estado Moderno. O único reparo
que se pode fazer em suas conclusões é à afirmação de que a
Inglaterra teria sido o “último Estado” a adotar um sistema
estrito de vinculação ao precedente judicial. E claro que a In­
glaterra, estando aberta à influência do ius commune por todo

o r\
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

esse período, vivenciou esse fenômeno de fortalecimento do


Direito judicial com pelo menos a mesma intensidade. Aliás,
não há qualquer garantia de que boa parte dessas técnicas não
tenha sido importada da própria Inglaterra.
A afirmação de que a Inglaterra teria sido a última a
consagrar uma teoria do precedente é incorreta porque Dole-
zalek considera apenas as decisões da House o f Lords que
consagraram a autovinculação do juiz ao próprio precedente,
de 1861 (“Beamish vs Beamish”) e 1898 (“London Tramways
Co. vs London County Countil” ),47 ou seja, a radicalização em
grau máximo da regra do stare decisis, a ponto de interpretá-la
de modo que apenas o Parlamento pode revogar o case law
estabelecido pela House o f Lords. Desconsidera-se, portanto,
que a regra do precedente vinculante em seu sentido próprio
- ou seja, a abarcar a obrigatoriedade para as cortes inferiores
de seguir os precedentes das que estão acima delas - já estava
completamente estabelecida na Inglaterra no final do século
XVIII [Holdsworth 1934:180]. Explica Holdsworth que no sé­
culo XVI, após a substituição do sistema de oral pleadings pelo
sistema de petições escritas, o desenvolvimento da teoria m o­
derna do precedente se tornou possível: “Na segunda metade
do século XVI e no início do XVII, a regra geral de que casos
decididos constituem autoridades estava reconhecida nas
Courts ofthe Common Law, na Court ofChancery e na Corte da
Star Chamber” [idem:182]. Desde o início do século XVII e ao
longo de todo o século XVIII a teoria moderna do precedente
- ou seja, do precedente vinculante - foi gradativamente im­
plantada no Judiciário inglês. Ainda que ao longo desse perí­
odo se admitissem certas exceções, pode-se dizer que vigorava
a regra que ficou cristalizada nos escritos de Blackstone, para
quem “ os precedentes devem ser seguidos salvo quando ‘ma­
nifestamente absurdos e injustos’; e essa regra vale mesmo se
eles parecem injustos para nós, mas estabelecem com clareza
o Direito e não são repugnantes à justiça natural; pois eles

47. V., supra, nota 41.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

‘constituem a evidência do que é o common law’” [idem: 184]. Da


mesma forma, pode-se ver nos julgados de Mansfield, ao longo
da segunda metade do século XVIII, “vários casos em que ele
seguia precedentes judiciais, apesar de desaprová-los” - por
exemplo, “ O’Neil vs Marson” (1777), “Bayntun vs Watton” (1774),
“Hogsdon vs Ambrose” (1780) etc. [Holdsworth 1935:441] o
que indica que já havia uma teoria do precedente relativamen­
te vinculante no apagar das luzes do século XVIII. Em uma
palavra, sintetizada por Holdsworth [1934:184], “ a regra geral
era clara. Casos decididos que estabeleçam uma regra de Di­
reito são autoritativos e devem ser seguidos” .
O que esse excurso histórico sobre os séculos XVI a
XVIII até agora revela é que não apenas na Inglaterra, mas
em toda a Europa os tribunais superiores desempenharam
um papel importante na unificação do Direito, o que era um
requisito imprescindível para o fortalecimento do Estado
Moderno. A fidelidade ao precedente, enquanto exigência
natural dos princípios da igualdade (entendida com o justiça
formal) e da segurança jurídica, não era, mesmo, de causar
surpresa. Não há sistema jurídico que possa desconsiderar
por completo os precedentes judiciais na aplicação do Direi­
to, qualquer que seja o momento histórico, sob pena de o
direito positivo entrar em contradição com a própria ideia de
sistema, a qual pressupõe a aplicação do Direito com o algo
racional e coerente. Qualquer sistema jurídico que se desen­
volva até um patamar mínimo de racionalidade necessita de
certo grau de aderência ao precedente judicial, sob pena de
se frustrarem as próprias pressuposições formais implícitas
na ideia de Estado de Direito. Portanto, a evolução do common
law inglês e do ius commune continental para uma teoria
moderna do precedente judicial pode ser vista com o uma
certa consequência natural da evolução desses ordenamentos
jurídicos, pois um Direito não-codificado e dotado de uma
pretensão de racionalidade não pode prescindir de mecanis­
mos de racionalização e desenvolvimento coordenado e co e ­
rente do Direito: “Assim com o se produz uma anomalia

82
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

conceituai se alguém formula um enunciado prático e preten­


de que este não pode ser correto, também se produz uma
anomalia conceituai se alguém pretende que um enunciado
prático é correto (racional) e, sem embargo, não pode se apoiar
em razões coerentes” [Peczenik 2000-a:69].
No entanto, se, de um lado, são as ideias de racionalida­
de e coerência do Direito que fundamentaram o surgimento
de uma teoria dos precedentes vinculantes, foi o Positivismo
novecentista à la Bentham que acabou gerando a doutrina do
precedente horizontalmente vinculante, estabelecida pela Hou-
se ofLords em “ London Tramways” (1898). Como procurarei
demonstrar a seguir, as duas doutrinas - a doutrina do prece­
dente vinculante simpliciter e a doutrina do precedente abso-
lutely binding - têm fundamentos e inspiração teórica radical­
mente diferentes.
A doutrina do precedente vinculante simpliciter foi um
produto do século XVII e uma construção jurisprudencial
universal que, no plano histórico-político, coincide com a for­
mação do Estado Moderno e, no plano jurídico-teórico, encon­
tra fundamento nas teorias jurídicas humanistas dos séculos
XVI e XVII. Como já vimos, tratava-se de um período em que
o common law e o ius commune estavam abertos à fertilização
recíproca e em que se buscava uma sistematização do Direito:
“Na época do Renascimento, sob a influência das correntes de
pensamento humanístico, que era particularmente sensível,
como sabemos, aos problemas do método de instrução jurídica,
começa a aparecer no ambiente do common law uma exigência
de estudo mais ordenado e racional desse Direito de formação
local” [Moccia 2005:938]. O mesmo se deu no Continente, onde
o direito romano tal como interpretado pelos glosadores passou
a ser seriamente questionado, especialmente pelos humanistas
franceses [Stein 1966:162].
Uma das ambições do Humanismo continental era “re-
sistematizar o civil law de acordo com um sistema mais racio­
nal que aqueles do Digesto e do Código de Justiniano” ; “ a ta­
refa do jurista seria colocar o estudante (e, em certo sentido, o

O '!
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

juiz) diante dos princípios fundamentais do Direito, de modo


que, à medida que seu conhecimento aumentasse, ele pudesse
agrupar as regras particulares em sua mente de forma mais
ordenada” [Stein 1966:164-165]. Em todos os cantos da Europa,
de modo geral, passou-se a buscar um desenvolvimento do
Direito a partir da Razão, a romper com os métodos tradicionais
dos glosadores, que faziam simples comentários literais aos
documentos de direito romano; o jurista humanista, diante da
complexidade das fontes do Direito no ius commune, tenta
reconstruir as bases do sistema jurídico a partir de princípios
de largo alcance, com a finalidade de fazer progredir a própria
ciência do Direito [Ascheri 1992].
Especificamente no Direito inglês, que atrai nossa aten­
ção no momento, a primeira tentativa de peso de ordenar o
common law segundo um sistema racional foi a de Francis Ba­
con (1561-1626), que procurou recolher um catálogo de máxi­
mas das quais poderiam ser inferidas várias regras particulares
que constituiriam um todo “ harmônico e congruente” , a ser
refletido no próprio case law [Stein 1966:170 e ss.]. Como nota
Moccia [2005:941], Bacon conseguiu, embora de forma ainda
não completamente satisfatória, inovar a tradição medieval de
meros compêndios de jurisprudência, “pondo acento sobre a
racionalidade intrínseca das máximas [que seriam] capazes de
guiar a interpretação e presidir a aplicação do Direito” , inau­
gurando uma nova fase no common law.
Mas o real progresso veio nos séculos XVII e XVIII, com
Hale (1609-1676) e Blackstone (1723-1780). A obra póstuma de
Hale intitulada History ofthe Common Law ofEngland, with an
Analysis ofthe Law ofEngland, publicada em 1713, constitui a
primeira reação viável à literatura jurídica típica dos abridge-
ments, normalmente publicados meramente em ordem alfabé­
tica e sem um esforço de sistematização. Buscou Hale não
apenas descrever isoladamente um número reduzido de má­
ximas supostamente evidentes e com validade a priori, como
havia feito Bacon, mas construir, através de uma análise racio­
nal, “um novo esquema compreensivo para sistematizar todo
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

o Direito” [Simpson 1981:640] - inclusive e em especial a rela­


ção entre o common law e o Direito praticado pelos civilians
[Moccia 2005:943] modelado sob o esquema das Instituías de
Justiniano e, mais remotamente, Gaius. Foi a sistematização
de Hale que permitiu, algumas décadas depois de sua publica­
ção, que os Commentaries on the Laws ofEngland, de William
Blackstone - talvez o book o f authority mais importante da
história do Direito inglês -, se tornassem possíveis [Moccia
2005:943-944; Simpson 1981:640-641].

Como nota Simpson [1981:652], o grande evento do sécu­


lo em termos de literatura jurídica foi, evidentemente, o apa­
recimento dos Commentaries de Blackstone, entre 1765-1769.
“Blackstone foi - explica Simpson - um institutional writer,
não um autor de monografias, e ostensivamente escreveu não
para juristas, mas para o que hoje se denomina intelligent lay-
man - um conceito que inclui estudantes de Direito no início
do curso dos seus estudos” . Tratava-se essencialmente de um
civilian e um acadêmico, cujos Commentaries não surgiram
propriamente do common law: “Apesar de o esquema em que
foi escrito remontar a Hale, nada remotamente semelhante a
eles na forma de execução tinha surgido em língua inglesa
anteriormente” [idem:655]. O interesse de Blackstone pelo
common law surge apenas após sua nomeação para Vinerian
Professor ofEnglish Law: “Depois.de se tornar o primeiro Vi­
nerian Professor ofEnglish Law, em 1758, Blackstone mergu­
lhou na tarefa de fazer para o common, law aquilo que já havia
sido feito para o civil law, e se propôs a exercer esse encargo
de sorte a vindicar o common law como um sistema racional
‘construído sob as fundações mais razoáveis [soundest] e apro­
vado pela experiência dos tempos [approved by the experience
o f agesj. De fato, ao exortar as virtudes do civil law, ele o faz
com uma nota de cautela: ‘Nós não podemos levar a nossa
veneração [ao civil law] ao extremo de sacrificar nossos Alfred
e Edward em favor de nomes como Theodosius e Justiniano
(...). Se um jurista inglês deve ignorar um dos dois, é melhor
que ele seja um estranho para o Direito romano que para as
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

instituições inglesas’. Um espírito de autossatisfação naciona­


lista permeia os Commentaries, e é digno de nota que, uma vez
que o Direito inglês fora expresso na linguagem do scholar e
dos gentlemen, como o civil law já tinha sido previamente, os
escritos jurídicos sobre o common law passaram a ter um ca­
ráter literário que previamente lhes faltara” [idem:658].
A partir de Blackstone, como anota Simpson em uma rica
análise da literatura jurídica inglesa de quatro séculos, tem-se
o desenvolvimento de uma literatura jurídica que buscava
racionalizar e pôr em ordem o common law, expondo-o a partir
de princípios que pudessem tornar o Direito compreensível,
acessível e substancialmente correto: os treatises - “produzidos
sob um espírito reconhecidamente seletivo e metodológico”
[S im p son 1981:665] - passam a su bstitu ir os sim ples
practitioner’s books. E essa distinção, de grande relevância
histórica, “ reflete um contraste entre uma concepção de Direi­
to fundada na razão e outra na autoridade” [ibidem].
A teoria do precedente horizontalmente vinculante, por
outro lado, foi fruto de um contexto substancialmente diverso,
já no século XIX. Seu fundamento foi um Positivismo Jurídico
que inverteu por completo a balança entre ratio e auctoritas,
passando a atribuir mais peso à última, e colocou a segurança
jurídica acima de todos os outros valores.
Como vimos, até o século X IX - o século de Bentham
- predominou a já mencionada teoria da natureza declarató-
ria da atividade judicial: o juiz, ao decidir casos concretos,
não cria - e nem está autorizado a criar - Direito, mas mera­
mente declara e expõe as regras jurídicas existentes [Wesley-
Smith 1987; MacCormick 1998-a; Simpson 1973; MacCormick
2005:262-266; Postema 1987]. Essa teoria - segundo a qual o
juiz seria um oráculo do Direito, de modo que uma decisão
judicial representa o principal indício de qual é o Direito, mas
sem a força de um ato originário de produção de regras jurí­
dicas - é compatível tanto com uma leitura tradicionalista,
segundo a qual o common law é produzido por costumes (it is
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

a matter o f custom), quanto com um approach jusnaturalista,


segundo o qual ele é constituído por um sistema ideal de prin­
cípios últimos de caráter intrinsecamente racional. Nessa úl­
tima vertente, princípios jurídicos ideais existem independen­
temente de sua promulgação formal, e “podem ser revelados
através de processos de deliberação, raciocínio e argumenta­
ção” [MacCormick 1998-a:182].
Mas, qualquer que seja a vertente da teoria declaratória
que se adote - uma mais convencionalista, outra assumidamen-
te jusnaturalista-, uma teoria estrita do precedente judicial, como
a que se verificou no Reino Unido a partir das últimas décadas
do século XIX, é incompatível com suas premissas fundamentais,
pois é da essência da teoria declaratória a possibilidade de o juiz,
de um lado, ter se equivocado ao verificar o fato da existência da
norma costumeira que ele aplica ou, de outro, não ter sido capaz
de compreender/reconhecer as regras que derivam do Direito
natural em determinado caso concreto. Como explica MacCor­
mick [MacCormick 1998-a:182]: “Esse tipo de approach teórico,
que predominou durante os séculos XVII e XVIII no Reino Uni­
do, dá base a uma hostilidade para com qualquer doutrina do
precedente absolutamente vinculante, e tende para uma visão
dos precedentes como no máximo vinculantes em sentido frágil
[defeasibly binding], sob o fundamento de que asserções errône­
as sobre o Direito são logicamente possíveis, e os precedentes
são apenas declaratórios ou evidenciários [evidentiary], e não
estritamente constitutivos do Direito. Onde eles o tenham decla­
rado erroneamente, eles devem ser corrigidos” .
Foi contra essa teoria que o Positivismo novecentista
inglês dirigiu suas mais duras críticas. O Positivismo enfatiza
o caráter humano (man-made) de todo o Direito, e por isso
“necessariamente nega as premissas da teoria declaratória”
[MacCormick 1998-a:183]. Embora talvez seja precipitado sus­
tentar que o Positivismo tenha sido a única causa da ascensão
de uma teoria do precedente tão estrita a ponto de reivindicar
um caráter eterno para os precedentes judiciais - ressalvada,
é óbvio, a revisão de um precedente pela via da legislação
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

parlamentar certamente foi uma das mais importantes. A


ascensão das teorias de Bentham e Austin foi uma importante
causa intelectual da mudança de atitude em relação ao prece­
dente judicial [Evans 1987:64-72].
Como relata Evans, uma importante causa institucional
do fortalecimento da doutrina do precedente foi a criação, em
1830, de uma única Cour o f Exchequer Chamber, superior a
todas as cortes de common law e intermediária entre estas e a
House o f Lords. Essa reforma, aliada à profissionalização da
House o f Lords, contribuiu em medida relevante para o forta­
lecimento da regra do precedente [Evans 1987:64].48 O próprio
Bentham exerceu grande influência sobre a reforma, pois o
grande arquiteto da reforma das cortes nas décadas de 1820 e
1830 foi Henry Broughtam, um profundo admirador de Ben­
tham, que recorria a seus conselhos e ensinamentos em vários
de seus discursos para justificar as law reforms que estavam
em andamento. Em um desses speeches Broughtam chegou a
enfatizar que “o tempo da Reforma Judiciária (Law Reform) é
o tempo de Jeremy Bentham” [Evans 1987:65].
O projeto político de Bentham era, como já vimos, reformar
todo o common law. Para ele, case law era, na verdade, judge-
made law. “Ele o detestava” - informa Evans [1987:66] -, pois o
case law “representava tudo de pior que há no sistema de com­
mon law, constituindo um Direito sem forma determinada ou
fronteiras definidas” . Bentham e seus discípulos iniciaram uma
campanha - extremamente influente, apesar de não ter conse­
guido levar adiante o projeto de codificação do common law49-

48. Foi nesse momento, aliás, que o Direito inglês passou a conhecer o instituto
da apelação nos moldes continentais, isto é, como um mecanismo natural
e ordinário de impugnação de decisões judiciais. E claro que havia outros
mecanismos de recurso e impugnação de decisões, mas as situações eram
mais restritas e bem diferentes da noção de recurso que vigora no Continente.
Para uma explicação mais detalhada, v. Van Caenegem [1995:135-136].
49. Para se sentir essa influência, basta verificar que a matriz fundamental
da teoria jurídica produzida em solo inglês após a segunda metade do século
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

destinada a alcançar a certeza jurídica, “ removendo de uma


vez por todas a discricionariedade dos juizes para ponderar
entre a segurança jurídica e outras considerações” [Evans
1987:67], qualquer que seja a natureza destas últimas.
O Direito era visto apenas com o um com ando. Um
resultado do trabalho de Bentham foi desencantar o Direito,
ao negar qualquer valor à teoria declaratória, tida com o uma
“ ficção infantil” cuja única função prática seria a de camuflar
o arbítrio judicial e encobrir as fronteiras do poder de cria­
ção do Direito exercido pelos magistrados. A ênfase da teo­
ria de Bentham no sentido de que o Direito é apenas um
com ando do soberano impediu a ele e a Austin aceitar a
natureza costumeira do common law, segundo a qual se p o ­
deriam produzir normas pela aceitação paulatina e costu­
meira. O Direito positivo necessitava, acima de tudo, ser
certo; e foi essa visão “do Direito com o um conjunto de atos
positivos” que influenciou a abordagem do precedente ju d i­
cial [Evans 1987:70].
O Direito judicial - todo o Direito judicial - passou a ser
compreendido como apenas como uma criação humana, um
ato de produção do Direito por delegação do soberano. Juizes
não podem cometer erros quando, na ausência de um prece­
dente aplicável, decidem casos concretos.
A teoria do precedente do século XIX, portanto, ao ser
alimentada pelo Positivismo radical de Bentham, criou condi­
ções para que fosse dado um passo a mais e que se passasse a
negar expressamente a teoria de Blackstone, segundo o qual
o precedente injusto ou manifestamente irracional não faz
parte do common law. Como o juiz está necessariamente vin­
culado ao common law, inclusive às regras que são produzidas
quando a corte cria normas injustas ou irracionais, ele deve
obediência a elas, da mesma forma.

X IX é a analítica. Para algumas das causas do fracasso de outras abordagens


teóricas na Inglaterra, v. Duxbury [2004].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Foi essa, infelizmente, a configuração da teoria do pre­


cedente judicial na Inglaterra durante mais de 100 anos, se
considerarmos o período com preendido entre o julgamento
de “ Beamish vs Beamish” , de 1861, e o Practice Statement
de 1966: “ Nessa visão [doutrina do precedente do final do
século XIXI, quando tomada estritamente, uma decisão p o ­
deria ser considerada equivocada apenas se ela decorresse
de uma má interpretação de uma lei ou, no âmbito do case
law, de uma falta de conhecim ento sobre casos que estabe­
leçam uma regra ou doutrina pertinente, ou de uma má
aplicação de precedentes com os quais a corte já estivesse
familiarizada. A [mera] inconsistência com o princípio que se
achava na base de outros casos não era suficiente” [Evans
1987:70].
O resultado foi extremamente sério para a racionalidade
e a coerência do ordenamento jurídico. Como criticava Goodhart
[1934:48], na década de 1930, “ o produto [dessa doutrina] é que
o juiz inglês é um escravo do passado e um déspota para o
futuro, vinculado pelas decisões dos mortos que o precederam
e vinculador das gerações por vir” .

1.4.2.4 As teorias sobre a atividade judicial (adjudication) e


a situação atual da doutrina do precedente no Reino
Unido

O ataque à teoria declaratória e a construção de uma


teoria fundada unicamente na autoridade para explicar a
aderência ao precedente judicial foram tão intensos e vito­
riosos que os argumentos de Bentham resistem e predom i­
nam até hoje no discurso judicial inglês, embora já não se
possa mais falar que essa aceitação seja livre de resistência,
especialmente em face de críticas à teoria positivista form u­
ladas por juristas com o MacCormick [2005; 1998-a; 1978-a],
Dworkin [2000] e Simpson [1973]. Nos speeches proferidos
na Câmara Judicial da House ofL ords a teoria positivista de
Bentham ainda sobrevive, com o se pode ver, por exemplo,
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

no polêmico caso “ Kleinwort Benson Ltd. vs Lincoln City


Council ”’50 julgado pela House o f Lords em 29.10.1998, e em
especial nas opinions de Lord Browne-Wilkinson, Lord Goff o f
Chieveley e Lord Lloyd o f Berwick, onde são tecidas duras
críticas à teoria declaratória da atividade judicial.51
É claro que a teoria positivista do precedente não é in­
terpretada mais no sentido de que, uma vez estabelecida uma
regra jurisprudencial, apenas o legislador pode revogá-la. A
própria evolução da teoria - do Positivismo relativamente pri­
mitivo de Bentham ao extremamente sofisticado de Herbert
Hart - permitiu facilmente a superação desse dogma.
A teoria declaratória, por sua vez, embora em tese seja
diametralmente oposta à teoria positivista ainda dominante,
também sobrevive no discurso da House o f Lords, mas esvazia­
da e “ reinterpretada” , para significar apenas que o case law,
mesmo sendo criado ou construído pela corte, tem sempre
eficácia retroativa.52
De modo geral, no entanto, a visão de que o case law é
uma atividade de criação do Direito, no sentido de um poder
normativo genuinamente discricionário - como sustentavam
Bentham e até mesmo o positivista moderado Hart - , que
constitui a teoria positivista padrão na atualidade [Hart 1994-a],
é ainda uma característica muito viva do Direito inglês.
A disputa entre a teoria declaratória e a teoria positi­
vista atrai, hoje, interessante debate no que concerne à na­
tureza do Direito e à tensão entre Positivismo, Jusnaturalis-
mo e Pós-Positivismo, que constitui um debate que hoje
ocupa o centro da filosofia do Direito e vai muito além do
contexto local das Cortes inglesas. Tangenciaremos essa
discussão nos próximos capítulos. No entanto, para concluir

50. [1999] 2 AC 349 [1999] 2 AC 349.


51. V., infra, Capítulo 3, n. 3.4.4.2.
52. V., infra, novamente o Capítulo 3, n. 3.4.3.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

este tópico sobre o estilo judicial inglês e sobre a organização


institucional que constitui seu contexto, é suficiente revisar,
com brevidade, a teoria dos precedentes atualmente em vigor.
No estágio atual a teoria dos precedentes no Reino Unido es­
tabelece a seguinte ordem de relações [cf. Bankowski/MacCor-
mick/Marshall 1997:325-327]:
(1) Cada corte está estritamente vinculada (strictly
bound) a seguir os precedentes das cortes superiores; (1’) um
precedente da House ofLords é estritamente vinculante em
relação à Court ofA ppeal, ao passo que (1” ) um precedente
desta última é estritamente vinculante em relação à Hight
Court.
(2) Decisões de juizes da High Court são apenas persua­
sivas para outros juizes da High Court e para cortes inferiores.
(3) A Court o f Appeal in England and Wales está estrita­
mente vinculada em relação a seus próprios precedentes; no
entanto, ela pode se afastar dos mesmos quando concluir (3’)
que o julgamento tenha sido alcançado per incuriam, (3” ) que
o precedente tenha sido implicitamente overruled pela House
ofLords ou (3’” ) quando se verifique um conflito entre dois
precedentes da mesma corte.

(4) A Court o f Criminal Appeal tem uma doutrina um


pouco menos severa, pois admite que se afaste de um prece­
dente em casos favoráveis ao réu.
(5) A House ofLords, embora no início tivesse estatuído
que estava vinculada pelos próprios precedentes, hoje “ esta­
beleceu a prática de overrule seus precedentes quando eles
forem considerados insatisfatórios” ; nesses casos, um comitê
de julgamento maior é usualmente convocado.

(6) Na Escócia, a Inner House ofthe Court ofSession e a


High Court o f Justiciary têm uma prática semelhante à da
House ofLords: um precedente pode ser superado (overruled)
apenas pelo Plenário (Whole Court).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

1.5 O fundamento do Direito jurisprudencial no common


law e no civil law: a negação da tese da autonomia
metodológica do common law

A comparação entre os sistemas jurídicos da Inglaterra


e da França - que acabou não se restringindo a uma compara­
ção dos estilos judiciais, mas abarcou também um relato his-
tórico-comparativo sobre como o Positivismo Jurídico se ma­
nifestou no common law e no Direito continental europeu, além
de um breve panorama sobre como os juizes encaram (em cada
uma das duas tradições jurídicas) o poder normativo que lhes
é imanente e, finalmente, uma explicação do histórico de troca
de informações e de experiências entre as duas tradições jurí­
dicas - pode nos ajudar a responder às indagações postas no
n. 1.3 deste capítulo inicial, que se referem, basicamente, à
questão da autonomia metodológica do common law em relação
ao civil law.
Essa questão é crucial, porque o que pretendo nos pró­
ximos capítulos é desenvolver uma teoria normativa - isto é,
precipuamente argumentativa - do precedente judicial; uma
teoria que consiga estabelecer regras de argumentação úteis
para justificar a decisão de aderir a, afastar-se de ou modificar
um precedente judicial. Uma teoria desse tipo só pode reivin­
dicar validade universal se conseguir comprovar que o tipo de
raciocínio, ou, melhor, o processo hermenêutico, seguido no
momento de se interpretar e aplicar um precedente judicial é
o mesmo em qualquer sistema jurídico, pouco importando a
tradição histórica a que se vincule. Creio que podemos, agora,
avançar na direção de uma resposta a esses questionamentos
de fundo.
Vimos, especialmente no n. 1.4.2.1 deste primeiro capí­
tulo, que durante toda a sua história - embora com um crepús­
culo no século X IX - o common law se caracterizou por ser um
sistema jurídico “ aberto ao exterior” , dotado de um sistema de
fontes estruturalmente comunicante em relação ao civil law e
ao Direito das gentes [Moccia 1997:805]. Vimos também, ainda
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

na mesma seção, que especialmente durante os séculos XVI a


XVIII - período que coincide com o Humanismo Jurídico no
Continente Europeu e com a formação do Estado Nacional
Moderno - a Europa como um todo vislumbrava um Direito
cosmopolita e jurisprudencial, um Direito cujas normas eram
buscadas não apenas em um ato positivo de um soberano no
interior do Estado, mas também na racionalidade e nos prin­
cípios sobre os quais fosse possível um consenso o mais univer­
sal possível entre os tribunais supremos.
Vimos ainda, no n. 1.4.1.3, que as sociedades pluralistas
contemporâneas evoluíram para um modelo de sistema jurídi­
co fluido (dúctil, mitte) em que o Estado já não é mais a única
entidade capaz de produzir normas jurídicas, de modo que o
Direito há de ser buscado não mais exclusivamente na “lei” ,
mas em princípios constitucionais ou supraconstitucionais que
devem ser coerentemente densificados e compatibilizados por
um Judiciário acostumado a lidar com questões genuinamen­
te valorativas e morais. Tanto no Continente quanto nos siste­
mas de common law o Direito vai ser encontrado menos em
regras fixadas apoditicamente pelo Código (França) ou pelo
Judiciário através de formulações casuísticas (Inglaterra), e
mais em princípios gerais que, independentemente de passa­
rem por um processo de institucionalização jurídica ao serem
incorporados nos textos das Constituições e de tratados in­
ternacionais ou normas comunitárias, têm conteúdo moral e
podem entrar em colisão a todo momento - o que faz com que
o foco central da atividade dos juristas se desloque da descri­
ção do sistema jurídico para os problemas que surgem na sua
aplicação.
Veja-se que o “giro neorrealista” , no sentido de Garcia
Figueroa - ou, melhor, a guinada do Direito para o seu momen­
to da aplicação traz o aspecto heurístico do Direito de volta
a uma situação semelhante à do período humanista que ante­
cedeu a formação do Positivismo Nacionalista do século XIX.
E possível observar, junto a essa virada para a aplicação do
Direito e para os problemas que surgem nas colisões de normas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

jurídicas de modo geral, uma espécie de renascimento de um


“Direito comum europeu” , que guarda importantes semelhan­
ças com o Direito pré-positivista. Como explica Gorla [1978:48-
49], é possível distinguir três grandes fases do “Direito comum
europeu” : (1) uma primeira fase de “ com eço e evolução” , du­
rante o período que se estende do século XII ao século XVIII,
em que se busca construir uma communis opinio; (2) uma fase
de declínio ou eclipse desse direito, a partir do século XIX; e
(3) uma fase de renascimento, sob formas novas, “da ideia ou
do espírito de um ius commune, após um eclipse que não foi
um desaparecimento” .
Esse eclipse a que se refere o comparatista italiano coin­
cide perfeitamente com a história do Positivismo Jurídico. Este
último nasce no mesmo momento em que declina a pretensão
de um Direito cosmopolita e começa a decair quando essa ideia
torna a ganhar força. Não há casualidade entre essa coincidên­
cia, pois é o Positivismo Jurídico Nacionalista que reduz o
Direito ao seu momento de “ autoridade” , a um comando, nor­
ma ou ordem produzidos por uma autoridade estatal.
Foi durante esse breve período de hegemonia positivista
que se acentuaram as diferenças entre o common law e o civil
law. A dicotomia rigorosa entre um Direito inteiramente “co ­
dificado” e um Direito inteiramente “jurisprudencial” é um dos
resíduos da forma de pensar positivista, que - como veremos
com mais detalhe no próximo capítulo - considerava o Direito
apenas como um objeto estático a ser analisado e previa para a
teoria jurídica apenas uma dimensão analítica e descritiva, cujo
método fundamental era um certo conceptualismo e um apelo
a classificações e dicotomias tais como Direito positivo/Direito
natural, norma válida/inválida; ser/dever- ser; norma/proposi­
ção jurídica; Direito subjetivo/obrigação jurídica; ciência do
Direito expositória/censorial etc.
No entanto, a ideia de uma diferença radical entre as duas
tradições no modo de formação do Direito judicial - case law
- não encontra sustentação nem mesmo à luz das teorias posi­
tivistas quando estas são analisadas com um pouco mais de
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

profundidade (n. 1.5.1), além de partir de premissas jurídico-


metodológicas que não se sustentam no pensamento jurídico
contemporâneo, tendo em vista o valor assumido pelo princípio
da universalizabilidade na dimensão justificatória do Direito
(n. 1.5.2). Por último, uma análise estrutural do processo de
formação e concretização do Direito revela que este necessa­
riamente apresenta uma dimensão bipolar que conjuga racio­
nalidade e autoridade (n. 1.5.3).

1.5.1 A faceta decisionista da teoria pura do Direito e o Direito


jurisprudencial (no Continente e no civil law)

Uma análise mais atenta que o usual do normativismo


kelseniano (uma das formas mais maduras do Positivismo
continental) revela que esta teoria não está tão distante das
teses fundamentais do Realismo Jurídico (que se apresenta
como a teoria jurídica mais conhecida nos Estados Unidos e
também, de modo menos explícito, na Inglaterra), pois com ele
compartilha um forte decisionismo judicial, de modo que as
diferenças entre as teorias jurídicas positivistas que se desen­
volveram no common law e no Direito continental são menos
radicais do que parece à primeira vista. Ruiz Manero, por
exemplo, após cuidadosa análise de alguns dos problemas
fundamentais da teoria jurídica de Kelsen, coloca esse autor
ao lado do “ mais estrito tipo de judicialismo” ou decisionismo
jurídico [Ruiz Manero 1990:94]. Sem pretender aprofundar
muito na teoria de Kelsen, tecerei algumas palavras sobre a
teoria pura do Direito, apenas para demonstrar que o funda­
mento das regras produzidas pelos juizes é o mesmo tanto no
common law quanto nos sistemas de Direito codificado.
Há três pontos que atraem minha atenção.
(1) Inicialmente, partamos do que Kelsen diz sobre a
hipótese de “ conflito de normas de diferentes escalões” . Sa­
bem os que para Kelsen “ a ordem jurídica apresenta uma
estrutura escalonada de normas supra e infraordenadas umas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

às outras” . Uma norma somente pertence à ordem jurídica se


se harmonizar com a norma superior que define sua criação
[Kelsen 1998-a:295-296]. A autoridade judicial, quando “ aplica”
a norma geral prevista pelo legislador, está estabelecendo uma
norma jurídica individual cujo conteúdo é determinado pelas
normas jurídicas gerais [idem:263]. A decisão judicial não é
apenas declaratória das normas jurídicas gerais que são con­
cretizadas pelo juiz, mas tem caráter constitutivo: “A norma
individual, que estatui que deve ser dirigida contra um deter­
minado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada, só
é criada através da decisão judicial” [idem:264-265]. Um pro­
blema pode surgir quando se verifica um possível conflito
entre uma norma de escalão inferior e outra de escalão supe­
rior. Para Kelsen a hipótese de uma “norma contrária às nor­
mas” é uma contradição nos próprios termos: “Uma norma
jurídica da qual se pudesse afirmar que ela não corresponde
à norma que preside a sua criação não poderia ser considera­
da como norma jurídica válida - seria nula” . E o que é nulo
não p ode ser anulado ou destruído pela via do D ireito
[idem:296]. Portanto: “ Dizer que uma decisão judicial ou uma
resolução administrativa são contrárias ao Direito [o mesmo
raciocínio vale para as leis inconstitucionais] somente pode
significar que o processo em que a norma individual foi pro­
duzida ou o seu conteúdo não correspondem à norma geral
criada por via legislativa ou consuetudinária, que determina
aquele processo ou fixa este conteúdo. (...). A decisão do tri­
bunal de primeira instância - e a norma individual criada por
esta decisão, portanto - não é, segundo o Direito vigente, nula,
mesmo que seja considerada com o ‘antijurídica’ pelo tribunal
competente para decidir a questão. Apenas é anulável, quer
dizer: somente pode ser anulada através de um processo fixa­
do pela ordem jurídica” [idem:297].
As normas contrárias às normas superiores que lhes ser­
vem de fundamento de validade são, portanto, apenas passíveis
de anulação por um determinado processo (no caso de uma
decisão judicial, um recurso; no caso de uma lei inconstitucional,
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

uma ação de ineonstitucionalidade). O mais interessante para


nós é a solução que Kelsen fornece ao problema de uma deci­
são judicial de tribunal de última instância, ou seja, uma deci­
são da qual não caiba mais recurso. Kelsen tem de admitir a
possibilidade de o tribunal decidir contra o que for estabeleci­
do pela norma geral, sem qualquer consequência para a vali­
dade de sua decisão: “ O tribunal de última instância tem poder
para criar quer uma norma jurídica individual cujo conteúdo
se encontre predeterminado numa norma geral criada por via
legislativa ou consuetudinária, quer uma norma jurídica indi­
vidual cujo conteúdo não se ache deste jeito predeterminado mas
que vai ser fixado pelo próprio tribunal de última instância” .
Numa palavra, “uma decisão judicial não pode - enquanto for
válida - ser contrária ao Direito” [Kelsen 1998-a:298].53
Veja-se que Kelsen chega a uma conclusão semelhante
à que alcançaria um realista americano: o que o juiz de última
instância afirmar ser Direito vale com o tal, pouco importando
a eventual contrariedade de conteúdo entre a norma judicial­
mente produzida e uma norma superior do ordenamento
jurídico em que ela se fundamenta. Ora, com o Kelsen - assim
com o os realistas e os positivistas ingleses de que tratamos
nos ns. 1.4.2.2 e 1.4.2.3 deste capítulo - não admite qualquer
critério para dizer quando a criação de uma norma (ou a
aplicação de uma norma geral) é correta, a conclusão a que
ele chega é uma conclusão decisionista: qualquer decisão
judicial será sempre correta.
(2) Outro ponto que denota um certo decisionismo em
Kelsen é seu pensamento acerca das lacunas no Direito. Para

53. A doutrina em geral denomina a possibilidade de o juiz decidir contra o


conteúdo da norma superior - admitida por Kelsen - como “cláusula alter­
nativa tácita”, cuja consequência seria a seguinte: “Em virtude da cláusula
alternativa tácita que acompanharia todas as normas aplicáveis para a criação
normativa, podem adquirir validade normas individuais cujo conteúdo resulte
incompatível com o conteúdo [expresso] das normas gerais correspondentes”
[Ruiz Manero 1990:86].

98
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Kelsen não há lacunas no Direito. A ideia de que o Direito


poderia conter lacunas ou ausência de regulação é vista ape­
nas com o uma ficção. “A ordem jurídica regula a conduta
humana não só positivamente, prescrevendo uma certa con­
duta, isto é, obrigando a esta conduta, mas também negati­
vamente, enquanto permite uma determinada conduta pelo
fato de não a proibir. O que não é juridicamente proibido é
juridicamente permitido” [Kelsen 1998-a:270]. Kelsen não
distingue, dessa forma, entre permissões em sentido frágil
(ausência de norma proibitiva) e permissões em sentido forte
(existência de norm a perm issiva) [A lchourrón/B ulygin
2002:174]. Isso equivale a dizer que “ todo o não-proibído por
alguma norma do sistema resulta, na aplicação do ‘ordena­
mento jurídico em seu conjunto’, permitido” [Ruiz Manero
1990:47]. Por conseguinte, todos os casos não regulados por
alguma norma do sistema podem ser resolvidos por meio do
argumento a contrario [ibidem]. No entanto, em outra passa­
gem de sua Teoria Pura Kelsen expressamente considera que
o argumento a contrario e a analogia carecem de qualquer
valor, por permitirem tanto uma decisão como seu contrário,
sem qualquer critério racional para escolher entre ambos:
“ Que os habituais meios de interpretação do argumentum a
contrario e da analogia são completamente destituídos de
valor resulta já superabundantemente do fato de que os dois
conduzem a resultados opostos e não há qualquer critério que
permita saber quando deva ser empregado um e quando deva
ser utilizado o outro” [Kelsen 1998-a:392]. A teoria de Kelsen,
portanto, fica exposta a uma fundada objeção, que foi bem
articulada por Ruiz Manero: “ Kelsen nos diz agora que o
argumento a contrario - que o princípio da proibição genera­
liza ao considerar permitido tudo que não estiver proibido
por alguma norma do sistema - tem o mesmo valor - quer
dizer, nenhum - que o argumento por analogia - que nos
permite reconduzir o caso não regulado por alguma norma
do sistema à disciplina prevista por normas do sistema para
um caso distinto mas semelhante - e que o ato de optar por
um ou outro destes argumentos é pura decisão, um puro ato

99
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de vontade para o qual o sistema não proporciona qualquer


critério” [Ruiz Manero 1990:47].
Como consequência dessa incoerência no pensamento de
Kelsen, em todos os ordenamentos jurídicos em que seja permi­
tido o uso da analogia as soluções não expressamente permitidas
ou reguladas por normas expressas “ carecem de status prede­
terminado” [Ruiz Manero 1990:47]. A decisão referente a elas é
meramente arbitrária. Nada mais que uma escolha.
(3) Finalmente, a própria noção de interpretação em
Kelsen pressupõe um certo grau de decisionismo. A interpre­
tação do Direito, para o jusfilósofo austríaco, é um ato de von­
tade. A indeterminação do Direito - seja intencional ou não-
intencional - é uma propriedade constitutiva de todas as
normas jurídicas. A determinação do conteúdo da norma infe­
rior pela norma superior que lhe dá fundamento “ nunca é
completa” : “A norma do escalão superior não pode vincular
em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do
qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior
ou menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do
escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção
normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro
ou moldura a preencher por este ato” [Kelsen 1998-a:388].
Quando se conjuga essa asserção da indeterminação se­
mântica como uma propriedade necessária das normas jurídi­
cas com o não-cognitivismo radical da teoria pura do Direito,
verifica-se mais uma vez a presença de um significativo com­
ponente decisionista na teoria de Kelsen: “A questão de saber
qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros
do Direito a aplicar, a ‘correta’ não é sequer - segundo o próprio
pressuposto de que se parte - uma questão de conhecimento
dirigido ao direito positivo, não é problema de teoria do Direito,
mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste
em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o
único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à ta­
refa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, a criar

100
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

as únicas leis justas (certas). Assim, como da Constituição, atra­


vés da interpretação, não podemos extrair as únicas leis corre­
tas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter
as únicas sentenças corretas” [Kelsen 1998-a:393].
A natureza da atividade do legislador e da atividade do
juiz, ao interpretar normas de escalão superior e criar nor­
mas individuais ao mesmo tempo, é exatamente a mesma,
de sorte que a única diferença entre os dois casos “ é uma
diferença quantitativa, não qualitativa, e consiste apenas em
que a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma
vinculação muito mais reduzida que a vinculação do juiz”
[Kelsen 1998-a:393].
Portanto, há um relevante elemento decisionista na ati­
vidade do juiz - apesar de ele estar vinculado pela lei - que
aproxima Kelsen mais uma vez do Realismo Jurídico de modo
geral. Ao perguntarmos sobre o fundamento de determinada
decisão jurídica, as respostas de um normativista kelseniano
e de um realista são semelhantes em importante extensão.
Embora o primeiro restrinja a atividade judicial em certa m e­
dida (enquanto a vincule ao conteúdo da norma geral que ele
aplica54), ambos concordam que o intérprete é o verdadeiro
“ autor” da regra jurídica individual que resolve qualquer pro­
blema jurídico concreto [Troper apud Ruiz Manero 1990:34].55

54. Vinculação que não é, porém, absoluta, na medida em que se reconhece


a “cláusula alternativa tácita”.
55. Michel Troper, citado por Ruiz Manero, chega a radicalizar nesse ar­
gumento, levando-o a uma assimilação quase completa entre o Realismo
e o Normativismo que vai além do que pretendo sustentar aqui. Veja-se:
‘Argumenta Troper que, se colocarmos em relação uma das formulações
capitais do conceito kelseniano de ‘norma’ - aquela segundo a qual a norma
é o sentido de um ato de vontade - com a teoria kelseniana sobre a interpre­
tação, haveremos de concluir que não cabe, antes da interpretação autêntica
efetuada pelo órgão jurisdicional, falar de norma alguma, mas tão somente
em enunciados que se transformam em normas em virtude (e somente em
virtude) dessa interpretação autêntica. Escreve Troper que a teoria kelseniana
da interpretação ‘repousa sobre uma confusão. Kelsen raciocina como se o

101
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Fica claro, portanto, que o Positivismo Normativista de


Kelsen não está tão distante do Realismo Jurídico e do Positi­
vismo Jurídico inglês de modo geral. Ambos acreditam que o
Direito é uma criação humana e que as normas individuais que
decidem casos concretos são criadas pelos próprios órgãos de
aplicação do Direito.

Ademais, independentemente dessa proximidade56com o


Realismo Jurídico - que revela como as teorias jurídicas domi­
nantes no common law e no civil law contemporâneos enxergam
a atividade judicial de forma semelhante, ou seja, como um
processo de criação normativa57 -, a própria Teoria Pura do
Direito reconhece que a atividade judicial de criação do Direito
é o mesmo tipo de processo intelectual seja nos sistemas jurídicos
de Direito continental ou no common law, pois o que diferencia
a atividade dos juizes nos dois sistemas é unicamente a origem
das normas gerais que vinculam o processo de tomada de deci­
são: em um caso, são normas produzidas pelo legislador; noutro,
a legislação é descentralizada, e as normas gerais que constituem
fundamento de validade da decisão têm origem costumeira.

objeto da interpretação autêntica pudesse ser uma norma jurídica a aplicar.


Mas se empregarmos, a propósito da teoria da interpretação, as definições
que o próprio Kelsen dá em alguns conceitos, constatamos que o objeto da
interpretação não pode ser uma norma. Interpretar, com efeito, é determinar o
significado de algo. Não se poderia, portanto, interpretar uma norma, porque
não se pode determinar o significado de um significado. O que na realidade
é objeto de uma interpretação é unicamente um conjunto de enunciados.
Determinar o significado destes enunciados é, pois, conforme as definições
que acabamos de recordar, determinar as normas que se supõe que estes
enunciados expressam. Retornamos assim à teoria realista: o intérprete é o
verdadeiro autor da lei’” [Ruiz Manero 1990:33-34],
56. Proximidade que, por razões óbvias, é relativa. Não estou, aqui, assimi­
lando o Normativismo ao Realismo. É suficiente, para mim, apenas destacar
que o decisionismo judicial é uma característica das duas teorias, e que por
isso as duas perspectivas encaram o precedente judicial de modo semelhante.
57. Basta uma referência, para comprovar essa asserção, à análise que fizemos
da criação judicial do Direito em França e na Inglatera (v., supra, ns. 1.4.1.2
e 1.4.2.2).

102
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Literalmente, eis o argumento de Kelsen [1998-a:283]: “A teoria,


nascida no terreno do common law anglo-americano, segundo a
gpial somente os tribunais criam Direito é tão unilateral como a
teoria, nascida no terreno do Direito legislado da Europa Con­
tinental, segundo a qual os tribunais não criam de forma alguma
Direito, mas apenas aplicam Direito já criado. A verdade está
no meio. Os tribunais criam Direito, a saber - em regra -, direi­
to individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui
um órgão legislativo ou reconhece o costume como fato produ­
tor de Direito, fazem-no aplicando o Direito geral já de antemão
criado pela lei ou pelo costume. A decisão judicial é a continua­
ção, não o começo, do processo de criação jurídica” .
Ainda que se reconheça um grau maior ou menor de li­
berdade do juiz no common law e no civil law, é evidente que o
tipo de processo mental realizado pelo juiz ao criar regras indi­
viduais com fundamento em regras gerais é qualitativamente o
mesmo, e o juiz está metodologicamente livre para decidir como
lhe aprouver (dentro dos limites do Direito preexistente).
Por isso podemos concluir que, do ponto de vista teórico,
não há diferença relevante entre o processo de produção do Di­
reito jurisprudencial no civil law e no common law. Para o Positi­
vismo Jurídico - que, embora decadente, ainda é o pano de fundo
das duas tradições jurídicas - em ambos os casos o juiz é meto­
dologicamente livre e sua atividade consiste em um ato de criação
normativa com fundamento nas normas gerais do ordenamento
em que a decisão se insere. O processo de raciocínio, como a
análise de Kelsen permite crer, é o mesmo nas duas tradições
jurídicas. O Direito judicial - embora tenha vinculatividade ou
força diferente nas duas tradições - forma-se do mesmo modo.

1.5.2 O princípio da justiça formal, a determinação da ratio


decidendi e a formação da jurisprudência no common
law e no civil law

A análise da natureza do precedente judicial em Kelsen


revelou que o poder normativo na atividade legislativa e na

103
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

atividade judiciária não é, sob a ótica do Positivismo, qualita­


tivamente diferente, pois em ambos os casos a autoridade
dotada pelo sistema jurídico de competência para produzir
normas jurídicas é discricionária, de sorte que a validade de
uma norma particular depende da vontade de quem a pôs em
vigor. O juiz, portanto, ao exercer seu poder discricionário
normativo, é metodologicamente livre, seja no common law ou
nos sistemas jurídicos continentais.
Ainda assim, costuma-se dizer - abandonando a pers­
pectiva analítica de Kelsen e adotando uma perspectiva em­
pírica - que os métodos de desenvolvimento do Direito efeti­
vamente empregados (na prática) nas duas tradições jurídicas
são diferentes, na medida em que não se encontra no sistema
de Direito continental o m odo indutivo de pensamento que é
característico do Direito inglês [Zweigert/Kõtz 1998:263] (v.,
supra, n. 1.3).

Holdsworth, por exemplo, partindo da premissa (que


nós já tivemos oportunidade de contestar no n. 1.4.2.1) de
que o common law inglês teria tido um processo de evolução
histórica independente e livre de qualquer influência do ius
commune dos séculos XVI a XVIII - de sorte que teria de­
senvolvido uma teoria particular do stare decisis desde o
século XVIII -, sustenta que, “ com o resultado dessa evolução
[do stare decisis], os juristas ingleses inventaram um método
de desenvolvim ento do Direito com pletam ente original”
[Holdsworth 1934:190].

Até hoje se podem ouvir ecos dessa tese na House ofLords,


como no dictum de Lord Goff a seguir transcrito: “ Os juristas
do common law tendem a proceder por analogia, movendo-se
gradualmente de caso em caso \from case to case]. Nós tendemos
a evitar generalizações amplas, abstratas, preferindo formula­
ções limitadas, temporárias, de sorte que os princípios [que
justificam as decisões] emergem gradualmente de casos con­
cretos, à medida que estes são decididos. Noutros termos, nós
tendemos a raciocinar de baixo para cima [upwards], a partir

104
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

dos fatos do caso diante de nós, enquanto nossos colegas con­


tinentais tendem a raciocinar de cima para baixo [downwards],
a partir dos princípios abstratos incorporados em um código.
O resultado é que nós tendemos a entender cada caso como
tendo um efeito relativamente limitado, isto é, como uma base
para operações futuras, na medida em que o Direito se desen­
volve ‘de caso em caso’ \from case to case]” .58
De modo semelhante, comparando os modos de desen­
volvimento do Direito no Direito romano do período clássico,
no common law e no Direito continental europeu, Vacca con­
trapõe o modo casuístico de evolução do Direito a uma espécie
de modelo “dedutivo” : “No sistema jurisprudencial romano e
no sistema do common law é de fato análogo o procedimento
racional utilizado pelo jurista - e também o juiz anglo-saxão é
um jurista, e não apenas um prático - para ‘encontrar’ no
ordenamento a solução do caso singular e para ‘construir’ a
partir da solução de casos individuais o próprio ordenamen­
to; esse procedimento é, por necessidade lógica, diferente
daquele seguido pelo intérprete que está vinculado a ‘encon­
trar’, na lei, preceito geral, a norma do caso singular. Ademais,
nos sistemas de civil law, exaurida a operação de transforma­
ção do preceito geral em preceito individual, exaure-se, ao
menos sob o plano teórico, a função ‘criativa’ da interpretação.
A solução do novo caso deverá ser encontrada ainda na lei, e
esta pode ser modificada apenas por uma nova lei” [Vacca
1998:40-41].
Um dos problemas dessas e outras análises comparativas
que se pode encontrar na doutrina jurídica é que esse tipo de
abordagem compara apenas os “modos de evolução e desen­
volvimento” do Direito em geral, sem distinguir exatamente
entre os “ modos de evolução” do Direito pelo legislador e pelo

58. Pronunciamento de Lord Goff em Re. F (Mental Patient: Sterelisation)


[1990] 2 AC 1. Para um comentário sobre esse excerto, v. também Bingham
[2000-a:383].

105
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

juiz em cada uma das tradições jurídicas. Mesmo quando se


volta para o juiz, comparando sua atividade em cada uma das
tradições, esquece-se de diferenciar a atitude do juiz diante de
uma regra legislativa e de uma regra jurisprudencial. Ora, é
evidente que tanto no common law quanto no civil law a atitude
do intérprete será predominantemente dedutiva quando houver
uma regra geral à qual os fatos do caso possam ser reconduzidos
pelo mecanismo da subsunção. Da mesma forma, quando o juiz
parte de uma regra que regule uma situação concreta X para,
por analogia, encontrar uma regulação semelhante para o caso
X ’, será necessário encontrar por indução um princípio geral
capaz de abarcar tanto o caso X quanto o casoX ’. Neste último
caso, pouco importa se estamos diante de uma regra produzida
judicial ou legislativamente, o processo de raciocínio é o mesmo,
embora, obviamente, em qualquer das tradições jurídicas a li­
berdade para se afastar de uma regra legislativa seja menor que
no caso de uma regra jurisprudencial. Pode até ser que seja
mais frequente a situação de o juiz estar vinculado por uma
regra legislativa no Direito continental, mas nem por isso se
pode negar que as duas formas de raciocínio - indução e dedu­
ção - estarão sempre presentes, em maior ou menor grau, na
atividade judicante, em qualquer sistema jurídico.
A fonte da confusão que subjaz à tese da autonomia m e­
todológica do common law está em certas diferenças que noto­
riamente existem entre a interpretação legislativa e o desen­
volvimento do Direito por analogia, mas é claro que tanto uma
quanto outro têm lugar seja no common law ou no civil law.
Não seria crível supor que no Direito continental o juiz apenas
interpretasse regras gerais e abstratas previstas pelo legislador
e que no common law o juiz apenas aplicasse, estendesse ou
modificasse regras jurisprudenciais. Trata-se de uma visão
caricaturada, que dificilmente poderia ser empiricamente
comprovada. Em maior ou menor grau, o juiz adota ambas as
atividades, em qualquer sistema jurídico.
A comparação adequada para verificar a correção ou in­
correção da conclusão de que o método judicial - e em especial

106
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

a forma de se entender e aplicar os precedentes - é diferente


no common law e no civil law deveria ser uma comparação
entre a atitude de ambos frente ao precedente, bem como a
atividade judicial do juiz que se encontra na posição de esten­
der ou restringir uma regra jurisprudencial por analogia ou
pela técnica do distinguish.
Nesse terreno, Damaska propõe uma diferença na forma
de se conceber um precedente judicial no common law e no
Direito continental que, se aceita, poderia fundamentar a tese
empírica de que o método judicial efetivamente encontrado na
prática é qualitativamente diferente nas duas tradições jurídi­
cas: “As culturas jurídicas anglo-americana e continental dife­
rem provavelmente mais na forma com o elas entendem os
‘precedentes’ que na força vinculante propriamente dita que
cada uma delas atribui a uma decisão anterior. A atitude em
relação a decisões que busca uma simetria de situações da vida
é (...) mais característica das Cortes anglo-americanas que das
Cortes continentais” [Damaska 1986:33-nota 28],
Enquanto o juiz do common law compararia os fatos con­
siderados “ materiais” no caso tomado como precedente e no
caso ainda pendente de resolução, o jurista continental procu­
raria no precedente apenas um “pronunciamento em forma de
regra [rule-like pronouncement] com alto grau de autoridade” :
“Aquilo que a doutrina convencional do common law iria des­
valorizar, tratando como mero dictum, é bem recebido preci­
samente porque tem sustentação independente da concreta
constelação dos fatos do caso” [Damaska 1986:34].
De modo semelhante, Gorla relata uma tendência nos
ordenamentos jurídicos continentais - e especialmente no
italiano, onde os precedentes judiciais são registrados e divul­
gados de forma seletiva pela própria Corte de Cassação, por
meio de um órgão (Ujficio Massimario) encarregado de elabo­
rar as máximas que podem ser extraídas de cada caso concre­
to [Gorla 1981-f:310] - de se adotar diferentes técnicas inter-
pretativas quando se busca extrair a ratio decidendi de uma

107
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

decisão judicial: “A decisão judicial italiana nem sempre men­


ciona claramente os fatos da causa (isso talvez possa, em parte,
ser atribuído à nossa tendência judicial a exprimir a ratio de-
cidendi em termos abstratos, a qual caminha pari passu com a
nossa tendência, mais geral, para as abstrações). De outro lado,
como se nota, o modo de julgar do juiz do common law é próprio
de quem busca enfocar os aspectos concretos do fato da causa
e extrair desse fato a regra ou ratio decidendi: fato este, que,
portanto, o juiz procura mencionar de modo claro e possivel­
mente completo” [idem:308].

Nas compilações jurisprudenciais italianas (raccolte di


giurisprudenza) a motivação das decisões vem, segundo Gorla,
“ apresentada não com o solução de um caso concreto, mas
quase como motivação ou explicação de uma máxima abstrata” ;
uma máxima que é a “regra que se abstrai da sentença, e que
às vezes, e não raramente, não se refere ao caso concreto, mas
representa um obiter dicturn” [Gorla 1981-f:3Q9-310].

Vê-se, portanto, que nas duas abordagens - a de Gorla e


a de Damaska - a distinção entre a forma de se interpretar as
decisões judiciais no common law e no civil law, para delas
extrair seu elemento vinculante (ratio decidendi), diz respeito
à maior atenção que se dá aos fatos do caso sub judice ou às
regras universais que aparecem na justificação das decisões
tomadas como paradigma.

A raiz dessa com preensão reside na ideia, difundida


principalmente por Arthur L. Goodhart, de que a ratio deci­
dendi - o elemento genuinamente vinculante de um preceden­
te judicial - deveria ser buscada não nas razões em que o juiz
tenha baseado sua decisão [Goodhart 1931:4], mas nos fatos
considerados decisivos ou “ materiais” pelo juiz para a decisão
judicial em questão: “ O juiz alcança uma conclusão a partir
dos fatos tal como ele os vê. E nesses fatos que ele baseia o seu
juízo, e não em quaisquer outros. (...). E pela sua escolha dos
fatos materiais que o juiz cria Direito (...). Portanto, para deter­
minar a ratio decidendi [principie ofa case] um primeiro e mais

108
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

essencial passo é determinar quais foram os fatos materiais em


que o juiz baseou a sua conclusão” [idem:10].
Interpretar um precedente judicial significa, portanto,
distinguir no caso tomado com o paradigma os fatos conside­
rados “ materiais” , que constituem a ratio decidendi, dos fatos
“não-materiais” , ou seja, que constituem meros obiter dieta, na
medida em que não foram decisivos para a solução específica
elaborada pelo juiz no caso em questão. Em linhas muito gerais,
as seguintes regras são válidas para se determinar a ratio de­
cidendi de um caso: “ (1) A ratio decidendi (principie o fa case)
não é encontrada nas razões dadas na judicial opinion; (2) a
ratio (principie) não é encontrada na regra jurídica estabeleci­
da na opinion; (3) a ratio (principie) não é necessariamente
encontrada por meio da consideração de todos os fatos encon­
trados no caso, juntamente com a decisão do juiz; (4) a ratio
(principie) de um caso é encontrada ao se levar em conta (a) os
fatos tratados pelo juiz como materiais e (b) a decisão que o
juiz tenha tomado com base nesses fatos; (5) ao buscar a ratio
decidendi ou principie o fa case é também necessário estabe­
lecer quais fatos foram considerados não-materiais pelo juiz,
pois a ratio pode depender tanto da exclusão quanto da inclu­
são de certos fatos” [Goodhart 1931:25].
O método de Goodhart para determinar a ratio deciden­
di - ou o principie o f a case, é o mesmo - dispensa, portanto,
qualquer referência à regra jurídica enunciada ou pressuposta
pelo juiz - na motivação - para justificar (dedutivamente) sua
conclusão, de m odo que para se aplicar um precedente na
argumentação jurídica bastaria determinar os fatos materiais
do caso paradigmático e compará-los com os daquele que se
pretende solucionar.
No entanto, a tese de Goodhart padece do defeito de pres­
supor que seria possível separar radicalmente uma teoria dos
precedentes judiciais baseada em fatos de uma teoria dos pre­
cedentes baseada em regras. Contra a famosa teoria de Good­
hart, que influenciou um grande número de juristas ingleses

109
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

e juscomparatistas durante pelo menos três décadas, até vir a


ser criticada por nomes como Cross, Simpson, Stone e, mais
recentemente, MacCormick, pode-se objetar que há uma in-
terconexão necessária entre fatos e regras no discurso jurídico.
Explica Wróblewski [1988:29-30]: “ O uso do precedente orien­
tado aos fatos e o uso do precedente orientado às regras são
interconexos, porque as regras disciplinam sempre um tipo
qualquer de fato, e os fatos no discurso jurídico não podem ser
compreendidos fora de suas relações com as regras” .
Essa interconexão já havia sido percebida por Simpson
em 1957, em nota publicada na Modem Law Review na qual
ele compara a denominada “teoria clássica” , segundo a qual a
ratio é a regra jurídica que o juiz tenha considerado necessária
à decisão, com a teoria de Goodhart, para quem a ratio é
definida com o “ os fatos materiais e a decisão tomada com
base neles” . Como explica Simpson, “quando um juiz enun­
cia uma regra jurídica, e a trata com o aplicável ao caso
diante dele, a aplicabilidade deve necessariamente depender
de ele descobrir que os fatos ‘materiais’ daquele caso cor­
respondem precisamente aos fatos especificados naquela
regra, e, sendo assim, que a conclusão ou o resultado especi­
ficado na regra deva se seguir” . Portanto, “ a teoria clássica e
a teoria de Goodhart, se seguidas com rigor lógico, produzem
o mesmo resultado” [Goodhart 1957:414].
Quando se analisa a decisão jurídica sob o prisma da sua
justificação - como faz, por exemplo, MacCormick -, fica mais
claro ainda que do ponto de vista dos processos de raciocínio
não há diferenças consideráveis entre o common law e o civil
law, ainda que permaneçam certas diferenças de estilo judicial
[MacCormick 1978-c:170]. Explica MacCormick que, “quando
falamos em ‘aplicar o Direito a um problema’, estamos na rea­
lidade falando do que é ao mesmo tempo o mais importante e
o mais simples modo de argumentação jurídica: o argumento
por subsunção” [idem:172]. O princípio da universalizabilida-
de, tido com o um postulado para uma ordem moral (ou jurí­
dica) racionalmente inteligível, implica que em qualquer tipo
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de discurso prático nós sejamos capazes de expressar as má­


ximas de nossa vontade de forma universal, através de regras
[MacCormick 1991:203].59 Ao resolver um problema jurídico
concreto - como, por exemplo, se o produtor de alimentos e
bebidas para fins comerciais tem para com o consumidor final
desses artigos, que os consuma na sua forma originalmente
manufaturada, um dever de cuidado que o sujeite à responsa­
bilidade civil na hipótese de esses produtos causarem lesão ao
serem ingeridos - “ nós devemos nos comprometer” com a
“proposição jurídica” implícita em nossa decisão, qualquer que
seja a nossa resposta ao problema jurídico suscitado [ibidem].
Qualquer que seja o sistema jurídico em questão, a refe­
rência a uma regra universal para solucionar um problema
jurídico particular é elemento indispensável da justificação
jurídica, ainda que a enunciação em termos universais não
esgote os problemas que podemos encontrar na fundamentação
da decisão particular. Pouco importa se estamos diante de um
sistema de common law ou civil law. “ O ponto central dos sis­
temas de common law é que eles tratam os precedentes judiciais
com o fontes do Direito. Isso significa que as regras gerais de
conduta e responsabilidade são tidas como implícitas em casos,
involucradas nas judicial opinions pronunciadas pelos juizes
ao decidir casos concretos” [MacCormick 2005:44]. Essas re­
gras, no entanto, são expostas através da interpretação desses
casos [ibidem], e isso não constitui um obstáculo para que as
decisões possam ser reconstruídas de acordo com um m ode­
lo silogístico. Há uma conexão incindível entre as ideias de

59. Segundo MacCormick [1991:203]: “A ideia de uma ordem moral racio­


nalmente inteligível - que é, de modo mais geral, a ideia de uma ordem ra­
cionalmente inteligível de raciocínio prático ou discurso prático - funda-se
em um postulado de fundo: ou seja, o postulado da universalizabilidade das
razões para decisões práticas. A versão kantiana dessa universalizabilidade
é provavelmente a mais conhecida, se não a mais instantaneamente trans­
parente: posso simplificá-la aqui como sendo a exigência de que nós sempre
atuemos segundo uma máxima que sejamos capazes de aceitar como correta
em uma forma universal”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

justificação e universalização. Não é possível justificar qualquer


decisão, ou qualquer regra inferida de uma decisão, senão por
enunciados universais: “Justificar um ato é demonstrar que ele
é correto. Demonstrar que ele é correto é demonstrar que,
desde qualquer ponto de vista objetivo sobre a questão, o ato
deva ser praticado, tendo em vista o caráter do ato e as circuns­
tâncias do caso. (...). Não há, eu penso, justificação sem universa­
lização. (...). Para fatos particulares - ou motivos particulares -
serem considerados razões justificativas eles devem ser sub-
sumíveis em um princípio de ação enunciado em termos uni­
versais, ainda que essa universalidade seja tida como superável
[defeasible]. Isso se aplica ao raciocínio prático em geral, e ao
raciocínio jurídico enquanto um departamento do raciocínio
prático” [MacCormick 2005:98-99].
Especificamente em relação aos precedentes judiciais, o
princípio da universalizabilidade - que ganha expressão na
exigência de se tratar “ casos semelhantes de modo semelhan­
te” (justiça formal) - exige que toda decisão jurídica em que
surjam disputas sobre o Direito “deva estar fundada em um
regramento jurídico que não seja nem ad hoc e nem ad homi-
nem” [MacCormick 2005:148]: “Para justificarmos [um ato, uma
norma etc.] devemos reconduzir a decisão, defesa ou pretensão
de alguém à asserção segundo a qual ‘porque os fatos F l, F2,
... Fn estão presentes, o julgamento j deve ser pronunciado’ .
Mas esse ‘porque...’ exige um comprometimento com a univer­
salizabilidade” [MacCormick 1987:162].
Portanto, com fundamento na concepção kantiana de
justificação que subjaz à teoria de Neil MacCormick, pelo me­
nos na sua forma mais madura [MacCormick 1991; MacCormi­
ck 2005], e na concepção de razão prática que adotamos nesta
teoria normativa dos precedentes judiciais (pelas razões que
exponho no Capítulo 2), pode-se concluir que é falaciosa a
asserção de que o processo de raciocínio jurídico - e em espe­
cial o raciocínio que desenvolvem os juizes no contexto de
justificação das suas decisões - seja substancialmente diferen­
te nas tradições jurídicas do common law e do civil law.

112
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Em qualquer sistema jurídico um precedente judicial


somente poderá constituir um padrão para resolver casos fu­
turos caso seja possível dele extrair uma regra universal à qual
os casos futuros possam e devam ser subsumidos sempre que
se repetirem as condições presentes na hipótese de incidência
(fattispecie) de tal regra jurídica. Como explica Cruz e Tucci
[2004:25], “ o elemento crucial que efetivamente justifica a re­
cepção analógica da decisão anterior para a solução da hipó­
tese posterior é o ‘princípio da universalizabilidade’, entendido
como uma exigência natural de que casos substancialmente
iguais sejam tratados de modo semelhante. E ele, com efeito,
o componente axiológico que sempre revestiu a ideia de ‘jus­
tiça como qualidade formal’” .60
O princípio da universalizabilidade - ou regra da justiça
formal - exige, a um só tempo, que “para a fundamentação de
uma decisão jurídica se deva aduzir pelo menos uma norma
universal” e que “de cada decisão jurídica se siga pelo menos
uma norma universal” [Alexy 1997-a:214 e ss.; Bustamante
2005-a:104], Essas duas regras de argumentação ligam-se ao
dever de imparcialidade e constituem um dos mais importan­
tes elementos da própria ideia de Justiça: “ O homem é capaz

60. Essa asserção pode seguramente ser comprovada por meio de uma aná­
lise histórico-comparativa mais aprofundada. Cruz e Tucci, por exemplo,
em estudo sobre o valor do precedente como fonte do Direito em diferentes
fases do Direito romano e no Direito visigótico, no ius commune, no Direito
hispano-lusitano, no common law e no Direito moderno europeu conclui ser
possível construir uma única teoria geral dos precedentes, na medida em que
o método de aplicação dos precedentes apresenta importantes semelhanças
em todos esses contextos: “Se olharmos ainda mais para o passado, iremos
verificar que o usus do precedente, acentuado na casuística, constitui um
método cuja característica fundamental independe da época, do sistema
jurídico ou da natureza da função exercida pelas pessoas que o empregam.
Assim, por exemplo, ‘no Direito inglês a técnica do precedente encontra-se
intimamente ligada às decisões judiciais porque os artífices da common law
são os juizes; os protagonistas do Direito romano, pelo contrário, foram
sobretudo os jurisconsultos e a chancelaria imperial, que também atuavam
mediante a observância do método casuístico’” [Cruz e Tucci 2004:24] (o
trecho destacado é uma transcrição de Letizia Vacca).
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de uma posição de imparcialidade e não simplesmente de con­


flitos de interesses legítimos. A norma representa a incorpora­
ção escrita, depois de haver sido oral, desta imparcialidade;
representa a criação de um ponto de vista superior àquele das
partes na causa” [Ricoeur 1996:193].
Qualquer que seja o poder normativo dos juizes, ele só
pode ser legitimamente exercido se a argumentação que jus­
tifica cada decisão puder ser construída em uma linguagem
universal, imparcial, construída por meio de regras. Dizer que
não há raciocínio dedutivo no common law é tão implausível
quanto dizer que há uma contraposição entre razão e experiên­
cia - como se fosse possível aprender qualquer coisa com a
nossa experiência senão através do uso da nossa racionalidade
para formular hipóteses e padrões de reprodutibilidade -, como
fazia o Realismo Jurídico mais radical.61

1.5.3 A tensão entre facticidade e validade como um elemento


estrutural do Direito, inclusive e especialmente do
Direito jurisprudencial

Não é objetivo deste trabalho examinar as diferenças


que remanescem entre o Direito proveniente da tradição con­
tinental europeia e o common law. A ênfase de nosso trabalho
neste capítulo inicial, em que foram tecidas considerações de
Direito Comparado, foi posta nas semelhanças existentes en­
tre as duas tradições jurídicas, com a finalidade de demonstrar
que o modo de raciocínio ou pensamento do jurista prático
que realiza as atividades de interpretação e aplicação de pre­
cedentes judiciais encontra similaridades suficientes para
justificar a pretensão de se consagrar uma única teoria dos
precedentes judiciais, em especial uma teoria normativa, vá­
lida para ambas as tradições jurídicas.

61. Nesse sentido, cite-se o famoso excerto de Holmes segundo o qual “a vida
do Direito não foi lógica; foi experiência” (“the life of the law has not been
logic; it has been experience”) [Holmes 1982:1],
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Pudemos observar, no entanto, que quaisquer diferenças


que ainda remanesçam entre o civil law e o common law não
estarão nem no raciocínio jurídico, no processo hermenêutico
de construção de sentido para as normas jurídicas em geral,
nem necessariamente nos modos de justificação da decisão,
nos argumentos que prevalecem no discurso jurídico.62É pro­
vável, aliás, que a principal diferença entre as duas tradições
não esteja na forma como os juizes desenvolvem o Direito atra­
vés da interpretação legislativa, da aplicação de precedentes e
do uso de analogias e reduções teleológicas (distinguish), mas
no modo como o legislador se comporta em cada uma das tra­
dições jurídicas. A pretensão de ordenar o Direito de forma
coerente e sistematizada, através de um conjunto de máximas
que buscam regular antecipadamente as relações jurídicas de
modo geral, conjugando todo um saber jurídico preordenado,
coerente, abrangente, o mais claro e inteligível possível e, fi­
nalmente, o mais completo possível, é um dado que se encon­
tra nos códigos do Continente Europeu e que está ausente no
common law, onde a atividade legislativa é ainda, pelo menos
em parte significativa do direito privado, assistemática, frag­
mentária e parasitária do direito consuetudinário e jurispru-
dencial, na medida em que apresenta em muitos casos um
caráter ad hoc e se vale de conceitos que só fazem sentido se
interpretados à luz do case law.
A razão da convergência entre os sistemas do civil law e
do common law, que hoje parece evidente, provavelmente está
na crise da legalidade e na crise da noção de soberania que se
verificou em praticamente todos os Estados que vivem hoje
sob a forma de um Estado Constitucional. De todas as modi­
ficações que surgem no Estado Constitucional, a que mais

62. Isso não implica, como vimos, que já não mais existam as diferenças de
estilo que estudamos com detalhe nas seções anteriores. Quando falo que
os argumentos que prevalecem são semelhantes e os modos de justificação
também, isso só pode ser verdade em função dos mecanismos de justificação
extraprocessual existentes no Direito continental, como os que relatei infra,
no item I.4.I.3.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

chama a atenção é uma modificação no modo de construir


normas jurídicas. Desde o momento em que o Direito passa a
ser visto não apenas como um conjunto de regras - as quais se
compõem de duas partes: uma prótase, que indica uma classe
de fatos, e uma apódose, que indica uma classe de consequên­
cias [Wróblewski 1988:26] - , mas como um sistema de regras e
princípios, sendo que estes últimos não contêm determinações
sobre o comportamento a ser seguido, mas estabelecem um
estado ideal de coisas que deve ser alcançado na máxima m e­
dida possível, as diferenças entre o civil law e o common law
passam a ser mínimas. Com efeito, enquanto a atividade de
aplicação do Direito (em sentido amplo) se circunscrevia à
interpretação e aplicação de regras jurídicas produzidas pelo
legislador ou pela jurisprudência, a diferença entre o common
law e o civil law era mais marcante, porque na maior parte das
vezes o juiz continental tinha de buscar normas em fontes le­
gislativas, e o common lawyer em precedentes judiciais. Mas
quando o Direito passa a ser construído e comunicado por meio
de princípios essa diferença recua e praticamente desaparece,
pois o processo de concretização de princípios - que envolve
a resolução de colisões de direitos fundamentais e a densifica-
ção do seu conteúdo por meio de regras adscritas dos princípios
em cada caso concreto - é rigorosamente o mesmo nas duas
grandes tradições jurídicas ocidentais.
O ocaso da premissa positivista de que o Direito seria
apenas um sistema de regras - regras construídas por um ato de
vontade, uma decisão - representa também um momento de
reaproximação do Direito continental ao common law inglês. O
elo entre o common law e o ius commune, perdido no século XIX,
reencontra-se no século XXI, quando finalmente o Direito volta
a ser descrito (em ambas as tradições) não mais como pura fac-
ticidade ou fruto da autoridade, mas também como ratio scripta,
como uma prática social intrinsecamente racional, cujas coerên­
cia e justiça são garantidas por princípios de conteúdo idêntico
a máximas morais que são construídas ao longo de processos de
aprendizagem da Humanidade, que paulatinamente os vai ins­
titucionalizando sob a forma de direitos fundamentais.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A própria doutrina do precedente vinculante - que du­


rante longo tempo foi descrita como a principal diferença entre
o common law e o civil law [Goodhart 1934] - teve raízes na
exasperação do elemento auctoritas promovida pelo Positivis­
mo Jurídico do século XIX. Pode-se concordar com Goodhart
em que toda a doutrina do precedente (sob o Positivismo Ju­
rídico inglês) é baseada na teoria de que os juizes “não cometem
erros, seja de fato ou de direito” [Goodhart 1931:25]. Apenas
aceita essa premissa é que a House ofL ords pôde sustentar,
durante mais de um século - se considerarmos o período com ­
preendido entre o caso “Beamish vs Beamish” , de 1961, e o
Practice Statement, de 1966 - que o case law vinculava a própria
House ofLords e só podia ser reformado por ato legislativo de
origem parlamentar.
No entanto, uma teoria tão estrita do precedente judicial
não pode mais prevalecer desde o momento em que o Positi­
vismo Jurídico não consegue mais responder às exigências de
legitimação do poder judicial por que passa o Estado Consti­
tucional. Uma reflexão jusfilosófica sobre o Direito revela que
há em qualquer ordenamento jurídico uma tensão entre facti-
cidade e validade, entre a eficácia social/positividade do Direi­
to e a resgatabilidade racional das pretensões de legitimidade
que necessariamente se erigem no discurso jurídico; entre a
ideia (de uma regulação justa) e a realidade (do Direito vigen­
te) [Habermas 2005-a:66]. Habermas sustenta que “ as formas
de comunicação articuladas em termos de Estado de Direito,
nas quais se desenvolvem a formação da vontade política, a
produção legislativa e a prática das decisões judiciais, aparecem
desde esta perspectiva (da racionalidade comunicativa) como
parte de um processo mais amplo de racionalização dos mun­
dos da vida das sociedades modernas, submetidos à pressão
de imperativos sistêmicos” [idem:67]. O Direito, ao contrário
do que a teoria crítica que antecedeu a Habermas acreditava,
desempenha um papel central enquanto medium de interação
social, pois através dos discursos normativos conduzidos pelos
participantes do processo de formação de normas e decisões
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

legítimas são possibilitados “processos de entendimento racio­


nalmente motivadores” dotados de certa “força de integração
social” [ibidem]. Mas para o Direito conseguir desempenhar
suas tarefas de integração social ele necessita equacionar a
tensão existente entre facticidade e validez, de modo a garan­
tir uma regulação da vida social que a um só tempo seja racio­
nal, justificável, e tome em conta o Direito Positivo vigente aqui
e agora: “A validez que pretendemos para nossas elocuções e
para nossas práticas de justificação se distingue da vigência
social de standards aos quais estamos faticamente acostumados
e das expectativas às quais estamos simplesmente habituados
ou que tenham sido estabilizadas mediante ameaças de sanção”
[idem:82], O problema que se põe nas sociedades modernas é
justamente “ como estabilizar a validez de uma ordem social
em que desde o ponto de vista dos próprios atores (participan­
tes) se estabelece uma clara diferenciação entre a ação comu­
nicativa, que se realiza de forma autônoma, e as interações de
tipo estratégico [condicionada por fatores externos no sentido
kantiano, como inclinações humanas motivadas pelo dinheiro,
pelo poder administrativo etc.]” [idem:87].
Para estabilizar essa tensão - que é a única forma de
racionalizar o mundo da vida nas sociedades contemporâne­
as, caracterizadas por um pluralismo e pelo desencantamen-
to das normas que estabelecem a organização social, já que
não se legitimam mais por uma autoridade religiosa -, Haber-
mas tenta vindicar um conceito de validez jurídica (de uma
norma) que signifique “que sejam garantidas ambas as coisas
de uma só vez” : “ tanto a legalidade [eficácia jurídica em sen­
tido estrito] (...) com o também a legitimidade da própria regra”
[Habermas 2005-a:93].
No momento em que se abandona a perspectiva externa
do Positivismo (que tenta construir uma teoria do Direito da
perspectiva do observador, preocupada apenas em descrever
o sistema jurídico tal com o ele é) e se passa a assumir uma
perspectiva interna que vise a estudar o Direito do ponto de
vista dos próprios participantes do processo de produção de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

normas e decisões legítimas, percebe-se com clareza que a


justificação do Direito como prática social e a justificação das
decisões particulares tomadas com base no Direito não podem
prescindir de uma metodologia, um processo racional para
conciliar essa tensão entre ratio e auctoritas, haja vista que o
problema fundamental enfrentado pelos juizes na sua ativida­
de prática é justamente como construir uma solução bem or­
denada do ponto de vista moral e, ao mesmo tempo, juridica­
mente válida.
Se fizermos uma breve retrospectiva histórica, veremos
que essa tensão esteve presente - ora com prevalência de um
elemento, ora de outro - em todos os ordenamentos jurídicos
minimamente desenvolvidos de que se tem notícia. O Positi­
vismo seria apenas um caso de hipertrofia do elemento “facti-
cidade” (por isso, aliás, é que ele se distanciou da prática jurí­
dica ao partir da pressuposição ilusória de que normas morais
não desempenham necessariamente um papel na justificação
e na decisão de casos jurídicos). No Direito romano clássico,
por exemplo, a disputa entre os proculianos e os sabinianos,
que representavam as duas grandes Escolas de Juristas do
referido período, é expressiva dessa tensão. Como explica Stein,
a diferença mais marcante entre as duas Escolas está no ter­
reno do método jurídico desenvolvido pelos proculianos, e em
especial por Labeo, o fundador dessa Escola. Em relação aos
casos em que não havia uma lex a solucionar diretamente o
problema posto diante do jurista, casos de “Direito não-escri-
to” , “o método de Labeo pressupunha que por detrás das regras
do Direito não-escrito, que estava aguardando ser definido
pelos juristas, havia uma subestrutura de princípios racionais,
e eram esses princípios racionais que indicavam, nos casos de
dúvida, os limites das próprias regras” [Stein 1972:13-14]. Con­
trariamente a outros juristas de sua época, Labeo justificava
suas decisões com razões (e “isso o levava a referir normalmente
outros casos em que o mesmo raciocínio se aplicava”); ele via
o Direito com o um conjunto de regras baseadas em uma firme
fundação de princípios básicos: “ Onde o Direito relevante não
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

estava escrito, ele não estava necessariamente incerto. A noção


de obrigação já havia sido tão refinada pelas discussões jurídi­
cas que a sua estrutura básica estava solidamente estabelecida.
(...). Os proculianos insistiam na tese de que essa estrutura era
um todo coerente e racional e que os seus princípios funda­
mentais deveriam ser tornados efetivos onde quer que eles
fossem aplicáveis” [Stein 1972:30].
Os sabinianos, por sua vez, confiavam apenas na “expe­
riência do passado e tinham uma visão limitada acerca das
capacidades do Direito em face de novas situações” : “Em con­
traste com os proculianos, os sabinianos às vezes pareciam
liberais e às vezes conservadores. Eles iriam sem dúvida con­
cordar com Justice Holmes quando ele inicia a sua obra The
Common Law com os dizeres: ‘A vida do Direito não foi lógica:
foi experiência’. Como os common lawyers tradicionais, eles
desdenhavam de argumentos dogmáticos, racionalistas, e es­
tavam mais interessados nas decisões em si mesmas do que na
maneira pela qual elas eram alcançadas’' [Stein 1972:31].
Nota-se claramente a tensão a que nos referimos nas duas
grandes Escolas do pensamento jurídico do principado roma­
no. Enquanto os proculianos enfatizavam a necessidade de
ordenar o Direito segundo princípios comuns que lhe garanti­
riam racionalidade, os sabinianos apenas se interessavam
pelas “decisões” jurídicas tais como elas se manifestavam, do
mesmo modo como os realistas anglo-americanos radicaliza­
vam o elemento “ autoridade” na descrição que faziam da
prática jurídica.
Não se pode negar que em diferentes momentos da his­
tória do direito romano a ênfase foi posta no elemento “ razão”
e no elemento “ autoridade” . Enquanto não contavam com
qualquer autoridade de natureza política, “ mas exclusivamen­
te com o prestígio de natureza moral e a reputação de conhe­
cedores do Direito” , os juristas romanos “fiavam-se [apenas]
na força da argumentação com a qual estribavam suas opiniões
e do convencimento racional dela derivado” , desenvolvendo
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

uma práxis jurídica retórica e argumentativa [Maia 2005-b:150].


Mais tarde, com o jus publice respondendi, estabelecido por
Augusto no final do século I a.C., “ as respostas dadas pelos
juristas aquinhoados com este privilégio passaram a ter maior
autoridade quando em confronto com as opiniões dos juristas
destituídos dessa prerrogativa” [idem:148].
Em diferentes momentos históricos, mais ênfase foi co ­
locada em cada um dos poios dessa tensão estrutural, mas o
diálogo e a dialética entre ratio e auctoritas sempre foi uma
característica do Direito romano.
De m odo semelhante, o ius commune medieval, espe­
cialmente no seu período mais fértil, entre os séculos XVII e
X IX , na França e na Itália, está caracterizado pela presença
permanente da tensão entre os fatores auctoritates et rationes
na prática jurisprudencial: “ Essa dialética gira em torno do
princípio da autoridade do precedente judicial. Em um pon­
to extremo, e bastante abstrato, de tal dialética está a situação
na qual os juizes decidem sempre e somente sobre a base do
precedente judicial, sobre a autoridade do ipse dixit. No
outro extremo, também bastante abstrato, está a situação em
que os juizes decidem sempre e somente com base nas suas
razões ou na sua interpretatio ou pesquisa acerca ‘do que é
Direito’. Nesse sentido, é uma dialética entre o princípio de
autoridade (do precedente) e o dà sua racionalidade” [Gorla
1981-g:276].
Até mesmo nos Estados Unidos - o maior reduto do Rea­
lismo Jurídico - há quem prefira - a nosso ver, com grande
razão - descrever a práxis judicial como um locus onde há de
ser construído um equilíbrio entre reason efiat, pondo defini­
tivamente em xeque a perspectiva unilateral do Realismo de
Holmes e seus seguidores. Por todos, Fuller constitui um exem­
plo dessa tendência: “Hoje já se passou quase meio século
desde que Holmes encerrou seu famoso dictum: ‘As profecias
acerca dos que as cortes farão de fato, e nada mais pretensioso
que isso, são o que eu entendo por ‘o Direito” . Como desde a
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

sua enunciação essa visão foi adotada por dúzias de teóricos,


ela passou a ser identificada com o uma Escola independente
de teoria jurídica, e literalmente volumes inteiros foram escri­
tos sobre ela. A despeito disso, em todos os tempos ninguém
jamais enunciou uma regra jurídica que fosse apenas uma
predição da atividade judicial, excluindo-se toda referência às
razões que motivam essa ação. E eu estou disposto a profetizar
que ninguém jamais o fará. Essa proposta é impossível de ser
realizada, pela razão de que a atividade judicial não pode ser
predita ou mesmo descrita de forma significativa, senão nos
termos das razões que lhe servem de fundamento” [Fuller
1946:386].
Na Inglaterra, de igual modo, Simpson critica incisiva­
mente a teoria positivista dos precedentes judiciais, que ainda
hoje predomina no cenário inglês. O argumento mais interes­
sante de Simpson contra a definição do common law como
apenas um conjunto de regras válidas em função de uma au­
toridade absoluta, pode ser resumido no seguinte excerto:
“Argumentos sobre se ‘isso’ ou ‘aquilo’ é Direito normalmente
encontram suporte em referências à ideias que não são espe­
cificamente jurídicas (...). Elas fundamentam-se na razão, e não
na autoridade. Ninguém, eu penso, poderia sustentar que a
racionalidade no common law se reduza a regras” [Simpson
1973:87]. Mais interessante que o decisionismo positivista seria
uma teoria do common law que concebesse as regras contidas
nos precedentes judiciais com o “ não-sacrossantas” , e portan­
to submetidas a exceções [idem:88]. O Direito seria visto não
apenas como algo criado pelo homem, mas uma ordem racional
que pode ser reconduzida a princípios gerais que a tornam
racionalmente compreensível.
Como veremos no próximo capítulo, o Direito deve deixar
de ser compreendido com o uma ordem criada num ato único
e necessariamente arbitrário, para ser visto como uma prática
social que obedece a certa ordem e se produz à luz de um sis­
tema moral com pretensão de universalidade e um alto grau
de racionalidade - mas uma racionalidade procedimental, não

122
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

fundacionista. Apenas após esse passo - um passo de superação


definitiva do Positivismo Jurídico - é que será possível construir
uma teoria genuinamente argumentativa e normativa do pre­
cedente judicial, que possa se valer tanto do saber metodoló­
gico desenvolvido no common law para a estrutura e a aplicação
dos precedentes judiciais como do saber oriundo da filosofia
do Direito no Continente sobre a interpretação legislativa de
modo geral. Uma teoria argumentativa dos precedentes, para
ser universal, deve ser uma teoria que busque um ponto de
equilíbrio entre os dois grandes fatores do Direito - ratio et
auctoritas - e consiga servir de ponto de apoio para o jurista
prático ao buscar fazer aquilo que é seu grande projeto: fazer
justiça conforme o Direito.

19^
2
Fundamentos de uma Teoria
Pós-Positivista do Precedente Judicial

2.1 O Direito como uma prática social: os argumentos


de Hart, Dworkin e MacCormick. 2.2 Os limites subs­
tanciais do Direito e a pretensão de correção: o argu­
mento de Robert A lexy. 2.2.1 A pretensão de correção
do Direito - 2.2.2 O argumento da injustiça via “Fór­
mula de Radbruch” - 2.2.3 Contraponto crítico: uma
revisão do argumento da injustiça: 2.2.3.1 A s condições
pragmáticas do princípio democrático em Jürgen
Hábermas - 2.2.3.2 A reinterpretação do argumento da
injustiça. 2.3 O conceito pós-positivista de Direito e
suas consequências para a teoria jurídica: 2.3.1 A
abertura da teoria jurídica no Pós-Positivismo - 2.3.2
Implicações para a filosofia do Direito -2 .3 .3 Há ainda
alguma fronteira entre a teoria jurídica e a filosofia do
Direito ? (A teoria da argumentação jurídica como
elemento normativo da teoria jurídica e da filosofia do
Direito). 2.4 A teoria dos precedentes como uma teoria
jurídica normativa e procedimental. 2.4.1 A teoria do
discurso como base de uma teoria normativa dos pre­
cedentes judiciais. 2.4.2 O “código da razão prática” de
A lex y e a justificação jurídica: 2.4.2.1 Regras funda­
mentais. 2.4.2.2 Regras sobre a carga da argumentação.
2.4.2.3 A s formas de argumento. 2.4.2.4 Regras de fu n ­
damentação. 2.4.2.5 Regras de transição. 2.4.2.6 Limites
do discurso prático e a necessidade de uma teoria nor­
mativa do precedente judicial. 2.4.3 O Direito como
“discurso de aplicação” : a contribuição de Klaus
Günther. 2.4.3.1 A crítica à Tese do Caso Especial/TCE
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

e a diferença entre “justificação” e “aplicação”. 2.4.3.2


A réplica à crítica da Tese do Caso Especial/TCE e a
interpolação entre os discursos de justificação, e de
aplicação. 2.4.4 Os conceitos semânticos de “norma” e
“interpretação” e os problemas de justificação e apli­
cação. 2.4.4.1 O conceito semântico de “norma”. 2.4.4.2
O conceito semântico de “interpretação” . 2.4.4.3 A s
concepções de “norma” e “interpretação” nas teorias
de A lex y e Günther: a opção pelas concepções semân­
ticas. 2.4.5 Justificação e aplicação de precedentes
judiciais. A n exo - Tabela das Regras e Formas da
Argumentação Jurídica.

2.1 O Direito como uma prática social: os argum entos


de Hart, Dworkin e MacCormick1

Independentemente do conceito de Direito que iremos


adotar, uma das teses desta obra é a de que o Direito deve ser
compreendido como uma prática social de natureza herme­
nêutica, pois a concretização de seus comandos depende sem­
pre de uma atividade de interpretação (em sentido amplo) - que
é a um só tempo um processo de conhecimento e de construção
de sentido - dos enunciados normativos (que constituem, ob ­
viamente, enunciados linguísticos) por meio dos quais ele se
expressa. A atividade judicial é essencialmente uma atividade
interpretativa e probatória [Gascón Abellán 2005:102], um pro­
cesso argumentativo e construtivo [Dworkin 2000]. Os mais
fecundos desenvolvimentos da teoria jurídica que vem se pro­
duzindo desde meados do último século - e que, de certa forma,
permitem-nos, hoje, pôr em xeque os critérios de definição e
de identificação do Direito válido propostos pelos juspositivis-
tas de modo geral - derivam dessa compreensão.

1. O texto compreendido nos ns. 2.1 e 2.2 corresponde, com algumas adap­
tações, a uma parte substancial de ensaio anterior de minha autoria [Busta­
mante 2006-a], feitas, porém, algumas correções na versão anterior.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Passar a ver o Direito como uma prática social, e não mais


apenas como uma mera técnica social de controle motivacional
das condutas humanas por meio da força física (monopolizada
pelo Estado) - como, por exemplo, fazia Kelsen [2001; 1998-b:21
e ss.] - foi uma das grandes contribuições de Herbert Hart para
a filosofia do Direito. Um dos caminhos para se entender o
alcance desse avanço é comparar os critérios fundamentais de
identificação do Direito válido propostos por este último juris­
ta e por Kelsen: a regra de reconhecimento e a norma fundamen­
tal hipotética.
Segundo Kelsen, o fundamento de validade de uma or­
dem jurídica será sempre uma única norma fundamental hi­
potética que é tida como uma pressuposição lógico-transcen­
dental e cuja função é, basicamente, a de desempenhar o papel
de “ constituição no sentido lógico-jurídico” (não no sentido
jurídico-positivo) de uma determinada ordem jurídica [Kelsen
1998-a:222]. A denominada “norma fundamental hipotética” ,
na teoria de Kelsen, é uma abstração necessária para manter
sua teoria jurídica coerente com uma de suas proposições fun­
damentais, qual seja, a de que o fundamento de validade de
uma norma somente pode ser uma outra norma. Como salien­
ta Ferraz Jr. [1999:16], “ a noção de norma em Kelsen tem como
premissa a distinção entre as categorias do ser e do dever-ser,
que ele vai buscar no kantismo de sua época” . Em qualquer
ordenamento jurídico válido é necessário fundamentar norma-
tivamente a validade de todas as normas que o compõem, in­
clusive da Constituição em sentido jurídico-positivo, isto é, da
norma de mais alta hierarquia em um dado sistema jurídico S
e que dispõe sobre os modos de produção do Direito através
do processo legislativo. No pensamento de Kelsen, “enquanto
um enunciado de ‘ser’ é verdadeiro porque está de acordo com
a realidade da experiência sensorial, um enunciado de ‘dever-
ser’ é uma norma válida apenas se pertencer a tal sistema
válido de normas, se puder ser derivado de uma norma funda­
mental pressuposta como válida” [Kelsen 1998-b:163]. Noutras
palavras, é necessário pressupor a existência de uma norma
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

fundamental hipotética - a qual não foi posta por qualquer


autoridade e é vazia de conteúdo - que tenha “autorizado” a
criação da Constituição jurídica propriamente dita: “ Se se
pergunta pelo fundamento de validade de uma Constituição
Estadual que foi historicamente a primeira, quer dizer, de uma
Constituição que não veio à existência pela via de uma modi­
ficação constitucional de uma Constituição Estadual anterior,
então, a resposta - se renunciarmos a reconduzir a validade
da Constituição Estadual e a validade das normas criadas em
conformidade com ela a uma norma posta por uma autoridade
metafísica, com o Deus ou a Natureza - apenas pode ser que a
validade desta Constituição, a aceitação de que ela constitui
uma norma vinculante, tem de ser pressuposta para que seja
possível interpretar os atos postos em conformidade com ela
com o criação ou aplicação de normas jurídicas gerais válidas,
e os atos postos em aplicação destas normas gerais como cria­
ção ou aplicação de normas individuais válidas. Dado que o
fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma
outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma
norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma
pressuposta” [Kelsen 1998-a:224].
Na teoria jurídica de Hart, por sua vez, a regra de reconhe­
cimento desempenha uma função em certo sentido análoga à da
norma fundamental kelseniana: ambas exercem o papel de
critérios para a identificação do Direito válido. A regra (secun­
dária) de reconhecimento “ é aceita e usada para a identificação
das regras (primárias) de conduta [primary rules ofobligation]” .2

2. “Regras secundárias”, para Hart, não são o mesmo que para Kelsen. Para
evitar mal-entendidos, transcrevo o seguinte texto de Hart: “Sob regras de
um primeiro tipo, que pode ser com propriedade considerado o tipo básico
ou primário, seres humanos são obrigados a fazer ou se abster de certas
ações, quer eles queiram ou não. Regras do outro tipo (segundo) são em certo
sentido parasitárias das ou secundárias em relação às primeiras, pois elas
permitem que os seres humanos possam, fazendo ou dizendo certas coisas,
introduzir novas regras do primeiro tipo, extinguir ou modificar as antigas,
ou de várias maneiras determinar a incidências delas ou controlar as suas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Onde quer que seja aceita uma regra de reconhecimento R,


tanto os indivíduos privados quanto as autoridades competen­
tes para aplicar o Direito são providos de critérios institucionais
para identificar as regras primárias de comportamento [Hart
1994-a:100]: “Podemos simplesmente dizer que a afirmação de
que uma regra particular é válida significa que ela satisfaz
todos os critérios providos pela regra de reconhecim ento”
[idem:103]. Portanto, assim como Kelsen, Hart prevê uma úni­
ca norma básica que funciona como critério supremo - ou,
ainda, como um teste - para determinar a validade de todas as
demais normas que compõem o ordenamento jurídico [Hart
1994-a:105; Kelsen 1998-b:163].3 Mas, apesar dessa importante
semelhança entre os dois últimos grandes juristas do Positivismo,

aplicações. Regras do primeiro tipo impõem deveres; regras do segundo


tipo conferem poderes, sejam públicos ou privados. Regras do primeiro tipo
concernem a ações envolvendo movimentos físicos ou transformações; regras
dò segundo tipo preveem operações que levam não apenas a movimentos
físicos de mudança, mas à criação ou variação de deveres ou obrigações”
[Hart 1994-a:81]. Para um comentário detalhado e crítico sobre a dicotomia
regras primárias/secundárias em Hart, v. Robles [1998].
3. No texto de Hart há referência tanto a uma pluralidade de regras de re­
conhecimento - quando o autor define esse tipo de regra secundária como
uma classe de regras para a identificação conclusiva de regras primárias de
comportamento [Hart 1994-a:95] - quanto à existência de uma regra básica
de reconhecimento que serve como critério fundamental de identificação
das normas válidas em um dado sistema jurídico [idem:103]. Nessa última
acepção, a “regra de reconhecimento” não se refere mais a uma classe de
regras, mas a uma regra específica. Essa ambiguidade, no entanto, é elimi­
nada quando Hart introduz um adjetivo para designar a norma básica de um
sistema jurídico como ultimate rule ofrecognition. Aqui, Hart está claramente
fazendo referência a uma norma básica, e não a uma classe de regras que
integram o direito positivo. E nesse sentido (ultimate rule ofrecognition) que
se pode cogitar da comparação com Kelsen [v., em especial, Hart 1994-a:292-
294, bem como, na literatura secundária, Robles 1998:especialmente pp. 395 e
ss.]. No que concerne à última, pode-se dizer que há uma “inegável influência
kelseniana” em Herbert Hart, que se manifesta com clareza quando o autor
inglês vincula a validade das regras do sistema jurídico à regra de reconhe­
cimento: “A regra de reconhecimento não somente serve para identificar as
regras, senão também para fundamentar a sua validade. Cumpre, portanto,
a mesma função da norma fundamental kelseniana” [Robles 1998:398].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

há também sérias diferenças. Diferentemente do que ocorre


em relação à norma fundamental kelseniana, a questão da
existência e do conteúdo da regra de reconhecimento hartiana,
ou seja, de “quais são os critérios de validade em qualquer
sistema jurídico” , é vista como “ uma empírica - embora com­
plexa - questão de fa to” [Hart 1994-a:292]. A regra de reconhe­
cimento, ao invés de uma hipótese lógica ou um pressuposto
de ordem transcendental - com o a norma fundamental de
Kelsen - , é uma norma última cuja existência pode ser empiri­
camente verificável, já que consiste em uma prática social
[id em :lll]. Encontrá-la, portanto, requer do teórico do Direito
uma atenta análise da perspectiva interna, isto é, do ponto de
vista do jurista prático, e não estritamente daquele do obser­
vador externo: “ Devemos lembrar que a regra de reconheci­
mento propriamente dita pode ser visualizada de dois pontos
de vista: um é expresso por meio de um enunciado de fato
externo segundo o qual a regra existe na prática efetiva do
sistema; o outro é expresso por meio dos enunciados de vali­
dade internos feitos por aqueles que a usam para identificar o
Direito” [idem:112].
Com essa diferenciação crucial, Hart nos fez perceber
que o Direito não consiste apenas em um objeto estático que
pode ser compreendido unicamente a partir de fora - por um
observador histórico ou sociológico -, mas é construído pelos
seus próprios operadores, através de uma prática social em
que vão sendo paulatinamente sedimentados os conteúdos de
regulação normativa compostos pelas regras jurídicas e suas
respectivas interpretações. Mesmo para estudar o Direito des­
de uma perspectiva externa - que é a perspectiva do Positivis­
mo de modo geral, inclusive o de Hart, na medida em que sua
preocupação central é identificar o Direito válido (descritiva­
mente), e não dizer como devem os juizes decidir casos con­
cretos (normativamente) - é necessário partir dos enunciados
internos formulados pelos operadores do Direito. Como expli­
ca Ruiz Manero [1990:14]: “A regra de reconhecimento hartia­
na se apresenta como uma regra juridicamente última - isto é,
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

como uma regra que não é juridicamente válida nem inválida


- que existe unicamente como prática consuetudinária dos
órgãos de aplicação, ou seja, enquanto estes órgãos aceitem e
usem de forma consensual uns mesmos critérios últimos de va­
lidade jurídica” (sem grifos no original).
Por isso, no pensamento jurídico de Hart somente se pode
alcançar o conteúdo do Direito positivo a partir da análise das
razões que os próprios juristas acatam ao reconhecer como
válida determinada norma jurídica. E necessário, mesmo para
o teórico do Direito, que procura descrever “ com neutralidade”
e de forma objetiva determinado sistema jurídico, recorrer à
perspectiva interna dos aplicadores deste Direito (ainda que o
jurista teórico ou cientista do Direito desaprove moralmente
as normas que fazem parte de tal sistema).
Quando Hart distingue entre a perspectiva interna - de
um membro de um grupo que acata e usa determinadas regras
como guias de conduta - e a perspectiva externa - do observador
que não necessariamente aceita essas regras, mas as analisa
“desde fora” , ao se referir “ à forma como eles [os que se submetem
a uma ordem jurídica] se relacionam com as normas do ponto
de vista interno” [Hart 1994-a:89] -, abre caminho para uma
verdadeira mudança de paradigma na teoria e na filosofia jurí­
dicas. E justamente a “virada para a perspectiva interna” - ou
“virada hartiana” - que permitiu, a partir das três últimas déca­
das do século X X, o desenvolvimento de teorias da argumenta­
ção jurídica destinadas à justificação racional das decisões to­
madas com base no Direito e, no plano da teoria geral do Direi­
to, uma revisão da ideia - típica do Positivismo - de que o Direi­
to poderia ser analisado apenas como um “fato social” , como
um produto pronto e acabado que é fruto unicamente da decisão
de uma autoridade cujos poderes estão institucionalizados de
alguma maneira na sociedade [Lifante Vidal 2000:724].4

4. No entanto, embora tenha sido o responsável pela virada que abriu o ca­
minho para a superação do positivismo e para a institucionalização das mais
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O insight de Hart em diferenciar analiticamente os pontos


de vista interno e externo operou uma transformação na forma
de se fazer teoria do Direito, porque mostrou aos filósofos e
teóricos do Direito mais atentos que é possível e necessário
definir o Direito de forma diferente, dependendo de qual pers­
pectiva se adote. Ao invés de pressupor de início a premissa
essencialista de que simplesmente “deve haver um único con­
ceito de Direito” , de sorte que a missão da filosofia do Direito
seja definir esse conceito, sucessores de Hart não necessaria­
mente presos ao Positivismo Jurídico, como Santiago Nino,
puderam advogar que diferentes conceitos de Direito podem
ser utilizados em diferentes contextos, tendo em vista a função
da própria conceituação e o tipo de discurso em que a ideia de
Direito é empregada. Num contexto teórico, em que sociólogos,
antropólogos e historiadores se referem ao Direito, devem
predominar conceitos positivistas que se destinam a descrever
o direito positivo para atender às exigências cognitivas do
cientista. Em um contexto jurídico-prático, como o “ contexto
da argumentação jurídica, no qual se emprega o conceito de

interessantes teorias da argumentação jurídica, Hart nem abandonou o posi­


tivismo jurídico e nem utilizou seu insight para resolver a questão da relação
entre os domínios da legalidade e da moralidade. O ponto de vista interno é
utilizado apenas para forjar o seu critério de identificação do Direito positivo
em um determinado ordenamento jurídico: a regra de reconhecimento. Para
Hart, “dizer que uma certa regra é válida é [o mesmo que] reconhecer que
ela passa por todos os testes previstos pela regra de reconhecimento” (Hart,
1994-a, p. 103). Como a existência da regra de reconhecimento, e consequen­
temente também do Direito, continua apenas a ser uma questão de fato, pode
ser perfeitamente respondida por um observador externo.
Hart até chega, ao tratar da relação entre Direito e Moral, a sustentar um certo
“conteúdo mínimo de Direito natural” para qualquer ordenamento jurídico,
mas essa afirmação (que caso radicalizada pode ser vista como contraditória à
sua própria teoria geral do Direito) parece apenas uma constatação empírica,
decorrente de generalizações obtidas através do uso de uma racionalidade
instrumental, e não uma tese forte sobre como necessariamente é o conteúdo
do Direito ou como os participantes em uma ordem jurídica devem se com­
portar diante do Direito injusto. Hart, durante toda a sua vida, manteve-se
fiel ao positivismo (Idem, p. 192-3).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Direito para expressar razões que justifiquem decisões” [San­


tiago Nino 2003-b:191], surge a necessidade de um conceito
normativo: busca-se não mais uma teoria jurídica cujo objeto
é meramente “ conhecer, descrever e explicar convenções do
passado” , mas uma teoria que olhe para o futuro e pretenda
resolver problemas práticos que devem ser superados na apli­
cação do Direito.
Não obstante isso, é claro que ao se olhar para o Direito
da perspectiva do participante um critério positivo de identi­
ficação do Direito como a norma fundamental de Kelsen ou a
regra de reconhecimento de Hart não necessita ser abandona­
do por quem busque uma teoria pós-positivista. Alexy [1993:95-
122], por exemplo, utiliza a ideia de norma fundamental de
Kelsen como um dos baluartes de seu conceito de Direito, en­
quanto MacCormick [1981:131] acredita que “não há razão para
se supor que a regra de reconhecimento em sociedades desen­
volvidas exclua o reconhecimento de standards outros que não
regras jurídicas (em sentido estrito)” , de modo que a regra de
reconhecim ento de Hart é plenamente compatível com os
princípios jurídicos de Dworkin. Para o jurista escocês, “ as
regras específicas e os regramentos validados pela ‘regra de
reconhecimento’ são em si instanciações ou concretizações de
princípios mais gerais, v.g. os princípios cuja observância no
Direito tende a promover certos valores ou estados de coisas”
[idem:128]. Por isso, parece correto afirmar que mesmo quan­
do se visualiza o Direito da perspectiva do participante não é
viável um conceito puramente normativo de Direito, na medida
em que os critérios positivistas de identificação do Direito pe­
cam, na verdade, pela insuficiência (o Direito não é apenas um
sistema de normas validamente produzidas e socialmente efi­
cazes), mas não pela inutilidade (pois na maioria das vezes é
suficiente definir o Direito como não mais que um sistema de
normas validamente produzidas e socialmente eficazes). Um
conceito de Direito adequado às pretensões metodológicas do
Pós-Positivismo há de reunir, portanto, tanto elementos des­
critivos quanto elementos normativos.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Deixando de lado certas diferenças pontuais entre as


perspectivas dos autores citados nos parágrafos anteriores,
pode-se vislumbrar o Direito como uma prática social inter-
pretativa no sentido de Ronald Dworkin [2000] ou uma ordem
institucional no sentido de Neil MacCormick [1998-b; 2007].
Para explicar como o Direito pode ser entendido como uma
prática social de natureza interpretativa, Dworkin vale-se de
uma analogia com as regras de trato social e cortesia. Todos
que observam, usam ou aplicam regras de cortesia adotam uma
atitude interpretativa em relação a essas regras, que tem dois
componentes: “ O primeiro é a pressuposição de que a prática
de cortesia não apenas existe, mas também tem um valor, isto
é, de que ela serve a certo interesse ou propósito ou promove
algum princípio - noutros termos, que ela tem algum aspecto -
que pode ser enunciado independentemente da mera descrição
das regras que constituem a prática. O segundo é a pressupo­
sição ulterior de que as exigências da cortesia - o comporta­
mento exigido por ela - não são necessária ou exclusivamente
o que sempre se imaginou que elas fossem, mas são, ao invés,
sensíveis a esse aspecto, de sorte que as regras mais estritas
devam ser compreendidas, aplicadas, estendidas, modificadas,
qualificadas ou limitadas de acordo com esse mesmo aspecto”
[Dworkin 2000:47].
O Direito - assim com o a “ cortesia” - é um conceito
interpretativo, porque seus usuários assumem que ele tem
um valor intrínseco - informado pelos princípios que por meio
de suas normas mais particulares são concretizados - e “ nor­
malmente reconhecem um dever de continuar ao invés de
descartar a prática social em que eles se engajaram” [Dworkin
2000:87]. Nesta perspectiva, a função da teoria jurídica (juris­
prudence, no sentido anglo-saxão do termo) é apresentar in­
terpretações construtivas da prática jurídica; é “ tentar retra­
tar a prática jurídica com o um todo no seu melhor ângulo,
alcançar um equilíbrio entre a prática jurídica tal com o ela é
encontrada pelo cientista do Direito e a melhor justificação
possível desta prática” [idem:90]. Daí Dworkin sustentar, com
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

razão que não há linha precisa que divida a teoria do Direito


(jurisprudence) e a aplicação judicial do Direito (adjudica-
tion): “ Qualquer opinion de um juiz é em si uma peça de fi­
losofia do Direito, mesmo quando a filosofia é escondida e a
parte visível do argumento é dominada por citações e listas
de fatos” [ibidem].

A razão dessa conexão intrínseca entre filosofia jurídica


e prática jurídica está em uma particularidade específica do
Direito, que o singulariza entre as práticas sociais: a prática
jurídica, “diferentemente de outros fenômenos sociais, é argu-
mentativa” [Dworkin 2000:13]. Portanto, quando se analisa o
fenômeno jurídico do ponto de vista interno - ou seja, daqueles
' que formulam as pretensões de validade normativa relevantes
para a justificação de uma decisão jurídica - “ não se buscam
predições acerca das pretensões formuladas no discurso jurí­
dico, mas argumentos sobre qual dessas pretensões é razoável
e por quê” [ibidem]. Por isso, após rejeitar todas as por ele
denominadas “ teorias semânticas do Direito”5- entre as quais
se incluem tanto o Positivismo Jurídico clássico, segundo o
qual “ o Direito depende somente de meros fatos históricos”
(plain-fact view), tais como a existência de um comando de
alguém ou algum grupo ocupando a posição de soberano (Ben-
tham, Austin) ou a circunstância de uma determinada regra
jurídica ter sido incorporada ao ordenamento de acordo com
um teste de origem (pedigree) formado por um critério de iden­
tificação do Direito válido que funcione como uma master-rule
(Hart, Kelsen), quanto o Realismo e o Jusnaturalismo -, Dworkin
propõe um modelo construtivista de interpretação jurídica de­
nominado “Direito como integridade” (Law as integrity).
O modelo de Dworkin - Law as integrity - é um modelo
construtivista que se põe entre os dois extremos da concepção

5. Ou seja, teorias adotadas por filósofos do Direito que acreditam na existên­


cia de certos critérios linguísticos para identificar uma proposição jurídica
[Dworkin 2000:32],
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

objetivista (e otimista) da interpretação, “segundo a qual os


textos legais têm um significado próprio e objetivo e interpre­
tar consiste em (meramente) averiguá-lo ou conhecê-lo” , e da
concepção subjetivista (e cética), “ segundo a qual os textos
legais não têm um significado próprio ou objetivo e interpretar
consiste justamente em decidir ou estabelecer um que estará
influenciado pelas atitudes valorativas dos intérpretes e/ou
interesses sociais, econômicos etc. que rodeiam o caso” [Gascón
Abellán 2005:109],® dando certo valor a ambas as perspectivas.
A ideia de integrity pressupõe um modelo de comunida­
de segundo o qual os indivíduos que compõem essa comuni­
dade compartilham determinada com preensão acerca da
moral e dos fundamentos da convivência em sociedade. É um
modelo que “ insiste em que as pessoas são membros de uma
comunidade somente quando elas aceitem que estão governa­
das da seguinte maneira forte: elas aceitam que estão governa­
das por princípios comuns, e não apenas regras obtidas por
simples compromissos políticos” [Dworkin 2000:211], Em ter­
mos práticos e políticos, a ideia de integridade exige “que os
standards públicos da comunidade sejam tanto constituídos
quanto visualizados, na medida em que isso seja possível, de
m odo a expressar um único e coerente esquema de justiça e
equidade [fairriess], na relação correta entre estas” [idem:219].
Refere-se, portanto, aos princípios tidos como fundamentais
para o esquema político (e jurídico) como um todo [ibidem].
No plano específico do Direito, pode-se sintetizar o m o­
delo de Dworkin da seguinte maneira: “Juizes que aceitam o
ideal interpretativo da integridade [integrity] decidem casos
difíceis ao tentar encontrar, em um conjunto coerente de prin­
cípios sobre os direitos e deveres do povo, a melhor interpre­
tação construtiva da estrutura política e da doutrina jurídica
de sua comunidade” [Dworkin 2000:255].

6. Como explica Marina Gáscon Abellán [2005:109], esta segunda concepção é


cética, porque desconfia da possibilidade de obter, através da interpretação,
uma decisão interpretativa “correta”.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Duas ideias básicas podem retratar bem as exigências


fundamentais da noção de integrity: de um lado, o valor da
coerência - de modo que deve o jurista tratar de buscar har­
monizar o Direito de forma a compreender e ordenar as regras
jurídicas particulares de acordo com os princípios que lhes
subjazem e que produzem e confirmam a integridade do siste­
ma jurídico; de outro, a necessidade de se buscar, continua­
mente, um aperfeiçoamento racional desse ordenamento, de
modo a exigir do intérprete sempre a melhor, mais racional,
mais justa, mais coerente e mais adequada solução jurídica que
estiver ao seu alcance. Nesse sentido, a ideia de que há sempre
uma resposta correta a ser buscada - que jamais poderia ser
aceita enquanto hipótese empírica, mas permanece válida
enquanto ideia regulativa - desempenha uma tarefa central na
teoria jurídica de Dworkin.

Sem aprofundar, aqui, na tese de que existe para cada


caso uma única resposta correta, cabe dizer, no entanto, que,
embora essa tese seja evidentemente equivocada enquanto
hipótese empírica - na medida em que, por mais sofisticadas
que sejam as teorias morais propostas para encontrar critérios
de valoração e justificação racional nos casos difíceis, a razão
prática sempre estará diante de limites que derivam da inca­
pacidade de se realizar um discurso racional que permita, com
a “ segurança intersubjetivamente necessária, chegar em cada
caso a uma única resposta correta” [Alexy 1998-a:20] - , ela pode
ser interpretada de modo a valer como um importante ideal de
racionalidade a ser perseguido pelo jurista. O seguinte argu­
mento de Alexy é expressivo dessa possibilidade: “Está claro
que na realidade não existe qualquer procedimento que per­
mita, com a segurança intersubjetivamente necessária, chegar
em cada caso a uma única resposta correta. Isso não obriga, sem
embargo, a renunciar à ideia da única resposta correta, mas
unicamente dá ocasião para determinar o seu status com mais
precisão. O ponto decisivo aqui é que os respectivos participan­
tes em um discurso jurídico, se suas afirmações e fundamenta­
ções hão de ter pleno sentido, devem, independentemente de
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

existir ou não uma única resposta correta, sustentar a preten­


são de que sua resposta é a única correta. Isto significa que
devem pressupor a única resposta correta como ideia regula-
tiva. A ideia regulativa da única resposta correta não pressupõe
que exista para cada caso uma única resposta correta. Apenas
pressupõe que em alguns casos se pode dar uma única respos­
ta correta e que não se sabe em quais casos isso acontece, de
modo que vale a pena procurar encontrar em todos os casos a
única resposta correta” [ibidem].
A ideia regulativa da única resposta correta, se interpre­
tada dessa maneira, passa a corresponder à exigência de satu­
ração - ou seja, plena afirmação/especificação - das premissas
utilizadas no curso da argumentação jurídica, que constitui
uma das exigências fundamentais da racionalidade prática
[Alexy 1997-a:236]. Exige-se do jurista prático portar-se como
se houvesse uma única resposta correta, buscar sempre a me­
lhor resposta possível, em cada novo caso concreto, para o
problema jurídico que se põe.
Visto isso, pode-se provisoriamente concluir que no pen­
samento do autor de Law's Empire o Direito é uma prática
social interpretativa institucionalizada cujo sentido é atribuído
pelos princípios (de natureza jurídica, na medida em que seus
efeitos se irradiam sobre o ordenamento jurídico, tanto na
atividade legislativa - integrity in legislation - como na ativida­
de de aplicação judicial do Direito - integrity in adjudication -,
mas também moral, haja vista que sua validade independe de
um “ teste de pedigree” 1) compartilhados pelo grupo social a

7. Nesse sentido, v. Dworkin [1968:35]. Ao contrapor as noções de principies


e policies, o argumento é enfático: “Eu denomino de ‘princípio’ um standard
que deve ser observado não porque ele irá contribuir para ou assegurar
uma situação econômica, política ou social tida como desejável, mas por ser
uma exigência de justiça ou equidade [fairness] ou alguma outra dimensão
da moralidade”. Mais adiante, no mesmo ensaio, frisa que “nenhum teste
de origem [pedigree], relacionando princípios a atos legislativos, pode ser
formulado” [idem:58].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que se referem e subjacentes às regras utilizadas para resolu­


ção de problemas jurídicos concretos.
Por sua vez, a teoria institucionalista de Neil MacCormi-
ck tem importantes pontos de contato tanto com Hart quanto
com Dworkin. De Hart, MacCormick extrai a “tese da validade” ,
segundo a qual “ todos os sistemas jurídicos compreendem, ou
pelo menos incluem, um conjunto de regras identificáveis por
referência aos critérios comuns de reconhecimento” , sendo
que “ o que faz desses critérios, critérios de reconhecimento, é
a aceitação comum pelos juizes de tal sistema de que é seu
dever aplicar as regras identificadas por meio deles” [MacCor­
mick 1978-a:54]. Ao mesmo tempo, porém, MacCormick apon­
ta um sério problema para o Positivismo Jurídico, em especial
o de Herbert Hart. Critica, fundamentalmente, a postura ex­
clusivamente descritiva e “neutra” do Positivismo Jurídico em
relação ao Direito. O teórico do Direito limita-se a formular
enunciados descritivos do tipo “do ponto de vista daqueles que
trabalham no sistema, aquela decisão deve ser tomada”, mas
não trata de justificar - ele próprio - a decisão descrita: “uma
descrição positivista do sistema tal como ele opera [de facto]
não pode responder ao particular tipo de questão que pode
surgir internamente do sistema jurídico: ‘por que nós devemos
tratar todas as decisões de acordo com uma regra válida como
sendo suficientemente justificadas?’, e essa é uma questão que
pode ser - e de fato é, de tempo em tempo - levantada” [idem:62-
63]. Essa crítica - posta em 1978, com a edição de seu Legal
Reasoning and Legal Theory [MacCormick 1978-a] - foi poste­
riormente levada adiante para desembocar em uma “teoria
institucionalista pós-positivista do D ireito” [M acCormick
2006-a:XVIII].
De Dworkin, por outro lado, MacCormick incorpora a
noção de coerência - tida com o um dos parâmetros mais rele­
vantes de sua teoria da argumentação jurídica para o fim de
justificar racionalmente uma decisão - bem como a ideia de
que uma prática social como o Direito pressupõe um “mútuo
entendimento” nela incorporado [MacCormick 1998-b:305],
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

mas não qualquer “ mútuo entendimento” , pois o que faz uma


regra jurídica “valer e/ou ser reconhecida institucionalmente”
não é apenas a conformidade com uma regra constitutiva que
determine seu significado - como no modelo de Searle [1970:33
e ss.] -, mas os princípios de fundo (underlying principles) que
constituem a causa última (final cause) de uma determinada
instituição [MacCormick 1998-b:332-336]. Assim como Dworkin,
MacCormick acredita que o sentido da prática social denomi­
nada “Direito” emana dos princípios que produzem coerência
(na nomenclatura de MacCormick) ou integridade (que repre­
senta a mesma ideia no vocabulário de Dworkin) e pertencem,
a um só tempo, à moral e ao próprio direito positivo. Ao mesmo
tempo, porém, critica a proposta de Dworkin de conciliar um
construtivismo jurídico e moral com a tese (nada construtivis-
ta) de que haveria uma única resposta correta para cada pro­
blema jurídico nos casos difíceis. Haveria uma ambiguidade
no coração da teoria jurídica de Dworkin, que MacCormick
expressa da seguinte maneira: “ O tipo de unidade - unidade
em substância, e não apenas em método - entre Direito, Polí­
tica e Moral para o qual Dworkin argumenta foi até o momen­
to tido com o um traço característico do pensamento jusnatu-
ralista. Mas em suas manifestações clássicas o direito natural
era encontrado naquilo que Dworkin hoje caracteriza como
uma ‘moralidade natural’, que ele expressamente rejeita. Ele
não pode, na minha opinião, fazer um giro para esse ‘modelo
construtivista’ e ao mesmo tempo asseverar essa unidade em
substância e método. Ele não pode, especialmente, manter a
asserção, que deixou a comunidade jurisprudencial em alerta,
de que há em cada caso difícil uma única resposta correta para
todos os tópicos de discussão entre as partes” [MacCormick
1978-b:589].
Não obstante, apesar dessa e outras objeções - que se
ligam ao fato de MacCormick adotar uma posição mais realis­
ta quanto aos limites da razão prática -, há, de modo geral, uma
concordância quanto ao tipo de prática social que constitui o
Direito e ao papel desempenhado pelos princípios ao produzir
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

unidade de sentido para essa prática. Em consonância com o


não-Positivismo de Dworkin [2000] e Alexy [2004-a], a teoria
institucionalista - apesar de concordar com Hart em que as
regras jurídicas adquirem “ força” ou validade com fundamen­
to em “normas de segundo nível [second-tier norms] que es­
tipulam os termos de autorização ou concessão de poder para
tomar decisões” [MacCormick 1998-b:317] - enxerga uma
relação entre Direito e Moral por meio da qual esta última
estabelece limites ao conteúdo possível das regras que inte­
gram o primeiro, à semelhança do que faz Alexy ao revisitar
a “Fórmula de Radbruch” [Alexy 1999-a; Bustamante 2006-a].
Como o jusfilósofo escocês esclarece na “Introdução” de sua
mais recente obra: “ Um mínimo de justiça é essencial. Nada
há na natureza de uma ordem normativa institucional que
exija de nós admitir com o Direito práticas ou regras e orde­
nações que, [sob a ótica de] qualquer posição moral razoavel­
mente sustentável [e] aceita por qualquer agente dotado de
autonomia, caracterizar-se-ia com o uma violação séria às
exigências básicas de justiça. Um grau mínimo da exigência
de se evitar grave injustiça pode perfeitamente ser aceito
com o constituindo um limite à validade das normas jurídicas.
No mundo contemporâneo esses limites foram, inclusive, em
certa extensão, institucionalizados por meio dos instrumentos
de proteção dos direitos humanos discutidos no Capítulo 11.
Essa conclusão exige reconhecer que a teoria institucional do
Direito, na sua forma presente, apesar de originalmente se
ter desenvolvido dentro da linha de pensamento conhecida
com o ‘Positivismo Jurídico’, não é hoje uma teoria ‘positivis­
ta’. Quer se escolha ou não classificá-la com o pertencente à
tradição do ‘direito natural’, ela é certamente pós-positivista”
[MacCormick 2007:4-5].
De fato, embora a teoria institucionalista de MacCormick
tenha partido de dentro da tradição do Positivismo Jurídico
- como ele próprio reconhece [MacCormick 1999:1.429] - , sem­
pre esteve presente nos seus escritos sobre argumentação ju­
rídica certa reserva quanto à inabilidade de qualquer estudo
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

justeorético que permaneça atrelado à tradição positivista para


justificar - e não apenas explicar - as normas e decisões jurí­
dicas que constituem seu objeto de análise [MacCormick 1978-
a:62-65]. Ainda que MacCormick, ao descrever o Direito como
uma ordem normativa institucional - que se distingue de prá­
ticas e ordens e normativas informais como a Moral por conter
normas “ explicitamente formuladas em textos autênticos” ,
prolatados por organismos oficiais dotados de autoridade
[MacCormick 1999:1.431] -, tenha se valido do método juspo-
sitivista das teorias institucionalistas que o antecederam, segun­
do o qual “o Direito é estudado tal como ele ‘é’, distinguindo-se
os planos da descrição e da prescrição (ou valoração) de normas
e instituições” e separando-se nitidamente o Direito e a Moral
[La Torre 1999:133], o objetivo de sua teoria, que somente foi
aproximado na sua versão final, foi levar mais adiante do que
Hart (levou) o seu insigh relativo ao “ aspecto interno” da con­
duta que é governada por normas [MacCormick 1999:1.432].

Com as teorias institucionalistas da primeira metade do


século X X MacCormick compartilha uma concepção pluralis­
ta do sistema jurídico que não identifica necessariamente o
Direito e o Estado. Tal como a teoria institucionalista de Santi
Romano [1946:106 e ss.], a de MacCormick sustenta uma plu­
ralidade de ordenamentos jurídicos, “dos quais o Estado não
é mais que uma variante” . Como explica La Torre [1999:132],
a teoria de Romano tem com o uma de suas características
fortes o antiestatismo: “Para uma teoria que identifica Direito
e Estado, ou, melhor, que reconduz o Direito à ‘forma de Esta­
do’, é natural que aquele (o Direito) seja composto por coman­
dos do poder estatal. Romano, porém, é antiestatista em duas
direções. Por um lado porque nega que o direito seja com pos­
to principalmente por aqueles atos que tenham sido conside­
rados típicos da atividade estatal: as prescrições, os imperativos,
as sanções. Por outro lado, porque nega a pretensão do Estado
de ser o único ordenamento jurídico válido e eficaz em um
certo território, optando portanto pela tese da pluralidade dos
ordenamentos jurídicos” .
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Mesmo com fundamentos não rigorosamente idênticos, o


institucionalismo de MacCormick compartilha esse pluralismo:
“ Certamente é verdade tanto que o Estado não é a única asso­
ciação humana significativa que nós conhecemos, quanto que os
mecanismos do Estado para dar conta da existência de corpora­
ções e da ordem intrinsecamente normativa de outras entidades
sociais não deveriam ser tidos como um obstáculo às condições
ontologicamente necessárias para a existência de tais associações,
de tais ordens sociais” [MacCormick 1999:1.435]. MacCormick
consegue ver, para além do Estado, outras ordens normativas
institucionais (jurídicas, portanto) como o direito internacional
público, a Comunidade Europeia, os sistemas internacionais de
proteção dos direitos humanos, o direito eclesiástico de várias
igrejas e os sistemas normativos relativos às associações espor­
tivas nacionais e internacionais [idem:1.431]. Tão importante
quanto a institucionalização formal (por um agente oficial) é a
circunstância de a ordem normativa que constitui o Direito ser
fundada em termos de “mútuas crenças” (e princípios) compar­
tilhadas pelos indivíduos que interagem entre si de acordo com
essa ordem [MacCormick 1998-b; 1999; 2007].
MacCormick vale-se, portanto, de um método positivista
para reconhecer as ordens normativas que constituem “Direi­
to” - a regra de reconhecimento hartiana. Mas ele admite
também que essa regra-mestra (master-rule) é útil para reco­
nhecer e incorporar ao Direito princípios morais como os de
Dworkin (v. supra), transformando-os também em princípios
jurídicos e estabelecendo uma importante relação entre Direi­
to e Moral, pois as normas morais reconhecidas como princípios
jurídicos pelos órgãos que as aplicam passam também a formar
parte do Direito. Num momento posterior chega, inclusive, a
romper de vez com o Positivismo, pois em seus estudos mais
recentes estabelece um autêntico limite à tese positivista da
validade, exigindo um mínimo de justiça material para que
qualquer ordem normativa possa ser caracterizada como jurí­
dica [MacCormick 2007:Capítulo 15; 1986:141]. Utiliza, portanto,
um argumento positivista para dizer o que é Direito e um ar­
gumento não-positivista para dizer o que não é Direito.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

2.2 Os limites substanciais do Direito e a pretensão de


correção: o argum ento de Robert Alexy

Como vimos no tópico anterior, a teoria institucionalista


de MacCormick, na sua versão mais madura, incorpora (1) a
ideia hartiana de que o Direito é uma prática social, (2) a tese
de Dworkin de que a integridade ou coerência dessa prática é
determinada pelos princípios fundamentais que subjazem a (e,
em certo sentido, fundam) essa prática, (3) a tese, herdada do
“ institucionalismo antigo” , de que a ordem normativa institu­
cionalizada que constitui “Direito” não se esgota necessaria­
mente no aparelho estatal e, finalmente, (4) a tese hoje susten­
tada por Alexy, com fundamento em Radbruch, de que essa
ordem perde sua validade quando adquire um caráter extre­
mamente injusto.
É essa última tese que faz com que MacCormick possa
definitivamente ser considerado - como ele mesmo diz - um
pós-positivista. Podemos denominar a essa tese de “ argumen­
to da injustiça” . No atual estágio de desenvolvimento da filo­
sofia do Direito esse argumento foi desenvolvido com mais
profundidade por Robert Alexy, que busca fundamentar um
conceito antipositivista de Direito com a ajuda desse argumen­
to e de uma outra tese afim: a tese da pretensão de correção.
Nas linhas que se seguem teceremos alguns comentários a
esses dois argumentos, iniciando pelo da pretensão de correção
do Direito.

2.2.1 A pretensão de correção do Direito

Um dos passos para superar a tese positivista de que o


Direito e a Moral estariam rigorosamente separados, de modo
que qualquer conteúdo pode ser considerado Direito válido -
isto é, “não há qualquer conduta humana que, como tal, por
força do seu conteúdo, esteja excluída de ser o conteúdo de
uma norma jurídica” [Kelsen 1998-a:221] -, é o reconhecimen­
to de que todos os atos de produção e aplicação do Direito
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

formulam, implícita ou explicitamente, uma pretensão de cor­


reção (que, embora não se restrinja8 a uma correção moral,
indiscutivelmente a pressupõe como elemento central).
Essa pretensão de correção, que ocupa papel crucial no
pensamento de Alexy, deve ser explicada a partir da teoria do
discurso de Jürgen Habermas, que dá fundamento à sua teoria
da argumentação jurídica. Por isso, não há qualquer exagero
na afirmação de Atienza [2000:34] de que “ a teoria de Alexy
significa, por um lado, uma sistematização e reinterpretação
da teoria do discurso prático habermasiana e, por outro lado,
uma extensão dessa tese para o campo específico do Direito” .
Em seu famoso ensaio “Teorias da verdade” , publicado
ainda no início da década de 1970, Habermas critica as teorias
da “verdade com o correspondência” , segundo as quais a ver­
dade de um enunciado significa única e exclusivamente que
o estado de coisas por ele expressado existe no mundo dos
objetos [Habermas 1997]. Em substituição a estas teorias,
propõe uma concepção de verdade com o consenso que pode
ser resumida na seguinte passagem: “ Eu posso predicar algo
a um objeto se e somente se todos os indivíduos que pudessem
entrar em um discurso comigo fossem predicar a mesma coi­
sa ao mesmo objeto. Portanto, para distinguir a verdade ou a
falsidade de um enunciado eu faço referência ao julgamento
de outros - de fato, ao julgamento de todos aqueles com quem
eu possa eventualmente manter um diálogo (entre os quais
eu contrafaticamente incluo todos os interlocutores que eu
poderia encontrar se a história da minha vida fosse coexten-
siva com a história da Humanidade). A condição de verdade
de um enunciado é o potencial consenso de todos os demais”
[idem:121].
Habermas busca nesse discurso ideal o critério de ver­
dade que ele entendia estar ausente nas teorias que identificam

8. V., sobre a Tese do Caso Espeeial/TCE e o conteúdo da pretensão de cor­


reção do Direito, o argumento que desenvolvo infra, no n. 2.4.3.2.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a verdade de um enunciado com uma simples correspondência,


mediada pela experiência ou pelos sentidos, a determinado
estado de coisas. Como temos diferentes experiências, uma
concepção de verdade baseada unicamente na percepção sen­
sorial seria errônea, por incapaz de garantir a objetividade do
conhecimento alcançado através da razão. A maior preocupa­
ção de Habermas, creio, não é estabelecer um método para que
eu possa chegar a uma conclusão sobre a verdade de um enun­
ciado sobre um fato ou a correção de uma norma, mas um
procedimento discursivo para que, através de uma argumen­
tação livre e autônoma, as partes potencialmente interessadas
possam testar a racionalidade das pretensões de validade que
cada um dos agentes do discurso venha a sustentar.
Diante da ausência de uma realidade objetiva acessível
aos sentidos, a racionalidade das expressões utilizadas por A
ou por B só pode ser medida através da resgatabilidade discur­
siva das pretensões de validade contidas nos atos de fala pra­
ticados por cada uma dessas partes. Noutras palavras, ao enten­
der o discurso como um procedimento argumentativo, Habermas
está a sustentar que nas interações linguísticas entre A eB “am­
bos sustentam pretensões com as suas expressões simbólicas, as
quais podem ser criticadas e defendidas, ou seja,fundamentadas”
[Habermas 1984:9]. Um juízo - sobre a verdade, no caso dos atos
de fala constatativos, ou a correção, no dos atos de fala regulati-
vos, em que está em jogo não uma asserção de um fato, mas a
validade de uma norma [Habermas 1997:130] - só pode ser ob­
jetivo “se for realizado sobre a base de uma pretensão de vali­
dade transubjetiva” , de sorte que “as asserções e ações direcio­
nadas para fins são racionais na medida em que a pretensão que
está conectada a elas possa ser defendida contra a crítica” [Ha­
bermas 1984:9]. Daí a adoção de um conceito de racionalidade
comunicativa que está embasado em um discurso argumentati­
vo livre, cuja força é capaz de gerar um consenso livre de coação
(unconstrained) e unificador [idem: 10].
Da m esm a form a que as asserções sobre fatos, as
“ ações normativamente reguladas” também têm “ expressões
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

significativas (...) que estão conectadas com pretensões de


validade criticáveis” . As normas a que essas ações se referem
também podem ser intersubjetivamente reconhecidas, e o
resgate discursivo das pretensões de validade (correção) dessas
normas é constitutivo para sua racionalidade [Habermas
1984:15-16].9 No campo da Ética Filosófica, Habermas decidi­
damente adota um cognitivismo segundo o qual questões nor­
mativas podem ser resolvidas através da argumentação levada
a cabo em um discurso prático em que a correção normativa
seja, ela própria, “tematizada” [idem:19].

Tal tipo de discurso deve ser considerado um processo


comunicativo que, para ser racional, deve se aproximar sufi­
cientemente das seguintes “ condições ideais” [Habermas
1984:25]: (1) os interlocutores devem estar em uma “ situação
ideal de fala” ,10caracterizada basicamente pela “ simetria geral
de condições” , em que cada participante do discurso pode
estruturar seus atos de fala de modo que não exista qualquer
coação, senão a “ força do melhor argumento” [ibidem]; (2) a
argumentação, entendida como procedimento, deve ser com ­
preendida como uma “ forma de interação sujeita a regras es­
peciais” [ibidem];11 e (3) a argumentação deve ter como finali­
dade “produzir argumentos cogentes que sejam convincentes
em virtude de suas propriedades intrínsecas e que possam ser
redimidos ou rejeitados com a ajuda de suas pretensões de
validade” [Habermas 1984:25-26].

9. Da mesma forma, em “Teorias da verdade” Habermas salienta que “se a


correção, junto com a verdade, pode qualificar-se de pretensão de validez
suscetível de desempenho discursivo [ou, diríamos, resgatabilidade discursi­
va], disso se segue que a correção de uma norma pode se submeter ao mesmo
exame que a verdade dos enunciados” [Habermas 1997:127].
10. Essa “situação ideal de fala” é definida formalmente em Habermas
[1997:150-158] e em Alexy, que formula essas condições em termos de regras
de argumentação que se destinam a garantir a racionalidade da justificação
jurídica [Alexy 1997-a:regras do grupo 2].
11. Para uma explicitação mais detalhada e explícita de quais poderiam ser
essas regras, v., por todos, Alexy [1997-a].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Como não posso adentrar mais especificamente a teoria


da argumentação neste momento, pois retornarei a esse pon­
to mais adiante (infra, n. 2.4.1), limitar-me-ei a frisar a tese
que constitui a premissa central para Alexy: a de que os atos
de fala regulativos trazem consigo uma pretensão de correção
normativa.12
Com fundamento nessa tese é que Robert Alexy sus­
tenta que em todos os atos de produção e aplicação do Di­
reito existe uma pretensão implícita de que se trata de um
ato correto, de sorte que é impossível realizar um ato de fala
cujo resultado é a criação de uma norma jurídica sem erigir
uma pretensão de correção deste ato. No núcleo dessa pre­
tensão estariam contidas: (1) uma “ afirmação de que o ato
jurídico é material e procedimentalmente correto” ; (2) uma
pretensão (que gera uma garantia) de fundamentabilidade
dessa afirmação; e (3) uma expectativa de reconhecim ento
da correção por todos os destinatários da norma jurídica
[Alexy 2005-b:35-36].

12. Como vimos acima, é essa pretensão de correção normativa que vai ser
“testada” no discurso prático. Importa salientar, à guisa de conclusão desse
tópico, que Habermas, em estudos bem mais recentes, revisou parcialmente
suas teses acerca do discurso teórico (ou seja, daquele em que estamos diante
de asserções ou atos de fala constatativos que sustentam uma pretensão de
verdade), mas não as do discurso prático. Nesse sentido o seguinte excerto:
“A orientação da verdade assume papéis diferentes nos contextos da ação
e do discurso. Levando-se em conta essas diferenças, distingo - com mais
rigor do que havia feito até então - entre a verdade de uma proposição e sua
assertabilidade racional (mesmo sob condições aproximadamente ideais) e
submeto a concepção epistêmica do conceito de verdade a uma revisão há
muito necessária. Retrospectivamente, vejo que o conceito discursivo de
verdade se deve a uma generalização excessiva do caso especial da validade
de normas e juízos morais. Por certo, uma compreensão construtivista do
dever moral exige uma compreensão epistêmica da correção normativa.
Mas, se queremos fazer justiça a intuições realistas, o conceito de verdade
enunciativa não pode ser assimilado a esse sentido de aceitabilidade racional
sob condições aproximadamente ideais” [Habermas 2004-a:15]. No entanto,
como o próprio Habermas ressalva no trecho acima, essa revisão em nada
afeta suas teses anteriores sobre o discurso prático e seu construtivismo
formal em relação à correção moral.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Mas como demonstrar essa tese? Alexy responde no se­


guinte sentido: “As pretensões implícitas podem ser explicita­
das mostrando que sua negação é absurda” [Alexy 2005-c:21].
Adota, assim, a estratégia pragmático-formal de demonstrar
que a negação explícita da pretensão de correção representa
uma contradição entre o conteúdo do ato jurídico (seja de uma
lei, uma decisão judicial etc.) e o conteúdo da afirmação impli­
citamente realizada ao editá-lo. A esse tipo de contradição
Alexy denomina “contradição performativa” [Alexy 2005-b:38].
Todo participante de um discurso jurídico que negue expres­
samente a pretensão de correção está cometendo uma con­
tradição dessa natureza. Assim, estariam incidindo em uma
contradição performativa tanto uma Assembleia Constituin­
te que promulgasse uma Constituição cujo art. 1“ estabeleces­
se que “X é um Estado injusto” quanto um juiz que adotasse
com o máxima uma forma invertida dos três preceitos funda­
mentais da justiça de Ulpiano (Iuris praecepta sunt haec: ho­
neste vivere, neminem laedere, suurn cuique tribuere), ou seja,
a máxima “ os preceitos jurídicos são esses: viver desonesta­
mente, causar danos ao outro e não dar a cada um o que é
seu” [idem:39-40] (pois as decisões que esse juiz prolatasse,
objetivamente interpretadas, conteriam uma afirmação im­
plícita contrária a essa máxima).
Alexy sustenta, em um dos, pontos fundamentais para
justificar a definição de Direito - e, assim, a própria filosofia
do Direito13- que ele propõe, que a pretensão de correção tem
a importante função de estabelecer uma conexão necessária
entre Direito e Moral, a qual se apresenta como uma conexão
complexa que tem ao mesmo tempo um caráter conceitual-
mente necessário e qualificativo: é necessário porque todos os

13. Isso porque, para Alexy [1999-c:23], “toda filosofia do Direito é, implícita
ou expressamente, a expressão de um conceito de Direito”. Assim, a razão
para insistir em um conceito não-positivista de Direito é estabelecer, via
argumentos filosóficos, limites ao conteúdo possível do Direito, vislumbrado
na perspectiva do participante.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

sistemas jurídicos necessariamente pressupõem a pretensão


de correção (e, assim, não seriam sistemas jurídicos se não a
pressupusessem), mas qualificativo (em contraposição a um
caráter classificador) porque os sistemas e normas jurídicos
que não atenderem às exigências da pretensão de correção,
apesar de conceitualmente defeituosos, permanecem válidos
em sentido jurídico [Alexy 2004-a].
Mas um positivista naturalmente poderia perguntar: qual
a relevância de uma pretensão de correção, se ela tem apenas
um caráter “qualificativo” ? A essa pergunta o Não-Positivismo
alexyano responde no sentido de que a pretensão de correção
implica um “dever jurídico de decidir corretamente” [Alexy
2005-b:46]. Ela atribui ao Direito um caráter ideal que é espe­
cialmente relevante para aqueles que analisam o Direito desde
a perspectiva do participante. Assim, quando o Direito consa­
gra uma injustiça (e, dessa forma, não realiza o estado de coisas
exigido pela pretensão de correção), estamos diante não apenas
de um defeito moral, mas também de um defeito jurídico. Nas
palavras de Alexy [2000-a:146], “ a pretensão de correção trans­
forma um defeito moral em defeito jurídico. E isso de maneira
alguma é trivial. E a conversão do Positivismo para Não-Posi­
tivismo. A pretensão de correção do Direito não é, de forma
alguma, idêntica à pretensão de correção moral, mas ela inclui
uma pretensão de correção moral” .
A pretensão de correção atribui ao Direito, portanto, um
caráter ideal que desautoriza todos os Positivismos que definem
o ordenamento jurídico como mera facticidade ou expressão do
poder ou autoridade. Essa dimensão ideal do Direito serve de
fundamento para um princípio geral de moralidade que é válido
como norma jurídica implícita em todas as Constituições jurídi­
cas. Junto à pretensão de correção reconhece-se, dessa manei­
ra, uma norma pragmaticamente pressuposta que estabelece
um dever (ainda que seja um dever-ser ideal) de construir e apli­
car corretamente o Direito. Por essa via pode-se justificar o prin­
cípio da moralidade como um princípio geral do Direito que é
válido para todos os ramos ou setores do ordenamento jurídico
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

e independe de qualquer formulação expressa. Esse princípio,


enquanto tal, funciona como um mandado de otimização que, ao
mesmo tempo, irradia-se sobre o campo da teoria da argumen­
tação (pois atua como uma metanorma ou regra de argumenta­
ção para interpretar e aplicar corretamente o direito positivo) e
estabelece um dever jurídico prima fa d e - tendo em vista seu
caráter de “princípio jurídico” , ou seja, de “norma que ordena
que algo seja realizado na máxima medida possível, dentro das
possibilidades fáticas e jurídicas” [Alexy 1997-b:86] - de que as
normas e decisões jurídicas em geral sejam moralmente corretas.
Com o argumento da correção, que conduz também ao
argumento dos princípios (que não será analisado neste traba­
lho), Alexy dá um grande passo rumo a uma filosofia do Direi­
to pós-positivista. Mas seu argumento ainda não está comple­
to. Para atingir seu objetivo de desprover de validade as normas
extremamente injustas que qualquer sistema jurídico venha a
editar, Alexy propõe o argumento da injustiça e a “Fórmula de
Radbruch” . Analisarei esse ponto no item que se segue.

2.2.2 O argumento da injustiça via "Fórmula de Radbruch"

Como vimos acima, o argumento da pretensão de corre­


ção encontra um limite no fato de ele ter apenas um caráter
qualificativo para o Direito (transforma o Direito injusto em
defeituoso, mas não necessariamente em inválido). Embora
essa pretensão de correção tenha a função de caracterizar o
princípio da moralidade como um aspecto ideal necessário em
todos os ordenamentos jurídicos, essa pretensão não é capaz
de vindicar, em si mesma, uma regra ou fórmula concreta que
estabeleça um limite material ao conteúdo do Direito real. Com
um pouco mais de precisão, pode-se dizer que é impossível
deduzir o argumento da injustiça (que suprime a validade ju­
rídica das normas extremamente injustas) da pretensão de
correção. Ou seja, a aceitação ou rejeição do argumento da
injustiça “ não pode ser decidida unicamente com base em
argumentos analíticos ou conceituais” [Alexy 2004-a:46].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Ainda assim, Alexy acredita que pode encontrar argu­


mentos normativos para fundamentar a denominada “Fórmu-
la de Radbruch” com o um limite universal para o Direito, ou
seja, como um critério para dizer o que não pode ser Direito.
A “ Fórmula de Radbruch” foi forjada como uma reação
ao Nazismo e às atrocidades praticadas durante esse período
supostamente “ em nome do Direito” . Gustav Radbruch, ao
formulá-la, foi, sem dúvida alguma, um participante na difícil
empreitada de reconstruir uma sociedade minimamente civi­
lizada, além de uma Ética e um Direito, no contexto de barba­
ridade e destruição deixado por Hitler.14
Em seus ensaios publicados no pós-guerra, Radbruch
sustenta que o Direito é informado por três valores básicos:
bem público, segurança jurídica e justiça [Radbruch 2006-b:14].
Radbruch sustenta a possibilidade de ponderação entre esses
três valores, de modo que “pode haver leis que sejam tão in­
justas e socialmente danosas que a validade e o próprio caráter
jurídico lhes devem ser negados” com base em um núcleo duro
de princípios que gozam de um “ consenso de largo alcance” ,
estabelecido através do trabalho de séculos e consagrado nas
declarações de direitos humanos [idem:14-15].
Na aplicação e harmonização desses princípios e dos três
valores fundamentais citados logo atrás, Radbruch propõe que

14. Para uma contextualização histórica e uma nota bibliográfica necessárias


para entender o papel ativo de Radbruch como intelectual e político pro­
gressista na República de Weimar, assim como enquanto filósofo do Direito
antinazista, v. Paulson [2006], onde há também indicação de bibliografia mais
aprofundada no tema. No entanto, o papel de participante em um discurso ético
jurídico, desempenhado por Radbruch, transparece em seus próprios escritos,
independentemente da contextualização histórica. Veja-se: “Nós devemos
acreditar que essa ‘antijuridicidade legal’ irá permanecer uma aberração iso­
lada do povo alemão, uma loucura para nunca-ser-repetida. Nós devemos nos
preparar, entretanto, para qualquer eventualidade. Nós devemos nos armar
contra a recorrência de um Direito criminoso, como o de Hitler, através da
superação do Positivismo, o qual tornou impotentes todas as defesas possíveis
contra os abusos da legislação do Nacional Socialismo” [Radbruch 2006-a:8].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

seja observada a seguinte fórmula, que constituiu talvez o mais


influente argumento antipositivista do século XX : “O conflito
entre a justiça e a segurança jurídica pode ser bem resolvido
da seguinte maneira: o direito positivo, garantido pela legisla­
ção e pelo poder, tem precedência mesmo quando o seu con­
teúdo é injusto e falha em garantir o bem comum, a não ser que
o conflito entre a lei positiva e a justiça alcance um grau tão
intolerável que a lei, enquanto ‘Direito defeituoso’, deve sucum­
bir à justiça. E impossível traçar uma fronteira clara entre os
casos de ‘antijuridicidade legal’ e de leis que são válidas apesar
de suas imperfeições. Uma distinção, no entanto, pode ser
traçada com especial clareza: onde não há sequer uma busca
da justiça, onde a igualdade, núcleo da justiça, é deliberada­
mente traída na criação do Direito positivo, então, a lei positi­
va não é apenas ‘Direito defeituoso’, mas carece por completo
da própria natureza de Direito” [Radbruch 2006-a:7].
E precisamente nessa passagem que Alexy se concentra
para estabelecer sua versão da “Fórmula de Radbruch” , que,
em uma formulação mais sintética, reza: “ O Direito extrema­
mente injusto não é Direito” [Alexy 1999-a:16].
Como é fácil perceber, a formulação de Radbruch repre­
senta a defesa de um Direito natural racional que deveria ser
objetivado através de um consenso histórico. No entanto, o
“ consenso histórico” de Radbruch, que está na raiz da funda­
mentação desse critério negativo dè validade jurídica, aparece
aqui mais como uma hipótese empírica que como um argu­
mento filosófico. Mesmo se esse “consenso histórico” for ver­
dadeiro, ele não basta para fundamentar o argumento da ex­
trema injustiça, mesmo porque ele não impediu o surgimento
do Nazismo e toda a desumanidade praticada in nomine iuris
durante os anos que antecederam os escritos jusnaturalistas
de Radbruch, e nenhum fato puramente sociológico é capaz
garantir que esse consenso não possa ser desconstituído.15

15. Vale frisar, aqui, que, apesar da beleza retórica do texto de Radbruch,
falta nos seus escritos uma externalização dos pressupostos filosóficos do
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Portanto, se a “Fórmula de Radbruch” puder ser filoso­


ficamente reconhecida, na versão que Alexy propõe, deve vir
acompanhada de um critério que permita ao jurista prático
(que é o principal destinatário das teorias do Direito elaboradas
a partir do ponto de vista interno) dar objetividade à sua apli­
cação, pois sem isso ela não se acomoda bem com a teoria da
argumentação jurídica que Alexy pressupõe e à concepção de
racionalidade (construtivismo kantiano) que está por detrás
dela. Alexy está ciente desse problema, e por isso propõe um
Princípio de Aplicação para a Fórmula que tornaria as conclu­
sões obtidas através da sua aplicação racionalmente justificá­
veis. O princípio adota a seguinte forma: “PA: Quanto mais
extrema a injustiça, mais certo será o conhecimento sobre a
sua existência” [Alexy 2004-a:57].
Para Alexy “ esse Princípio conecta considerações mate­
riais e epistemológicas” , e assim provê uma justificação, por
exemplo, para as conclusões da Corte Constitucional alemã no
sentido de que a Ordenação 11 (que cassou a propriedade e a
nacionalidade de judeus em função da raça) “ alcançou um ‘grau
intolerável’ e (...) evidente” de injustiça [Alexy 2004-a:57].
No entanto, poder-se-ia objetar que esse Princípio de Apli­
cação só funciona sob premissas essencialistas que não devem
ser aceitas. Alfonso Garcia Figueroa chega a acusar Alexy de um
intuicionismo moral que se manifesta precisamente na vincula-
ção entre o aspecto material e o aspecto epistemológico da cor­
reção, citando o PA como exemplo dessa tendência [Garcia Fi­
gueroa 1999:209]. A premissa intuicionista implícita na concep­
ção de Alexy desmontaria seu conceito de Direito e a própria
Tese do Caso Especial/TCE, pois “parece entrar em conflito”
com o “modelo racionalista kantiano” que caracteriza sua obra.16

seu argumento da injustiça. Como ressalta Stanley L. Paulson [2006:30], “em


termos filosóficos, Radbruch em nenhum lugar aduz um argumento em favor
dos [três] valores absolutos que ele propõe”.
16. Garcia Figueroa [1999:208-209] sustenta, ainda, que haveria também um
argumento hobbesiano ou utilitarista em Alexy, pois ele - quando confrontado
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A objeção é importante, sem dúvida. É até possível tentar


livrar o critério proposto por Alexy da acusação de intuicionismo,
mas ao preço de uma interpretação realista da moral kantiana,
como a de Allen W. Wood [1999:157]. De acordo com essa inter­
pretação, a denominada fórmula que Kant estabeleceu para a
autonomia moral - “ aja de tal forma que a máxima da sua von­
tade possa ser sustentada como um princípio de uma legislação
universal” [Kant 1996-a:164] - seria apenas uma ideia ou um
teste para que pudéssemos “encontrar” a lei universal objetiva­
mente existente,17 e não um método para que nós pudéssemos
- a partir da consideração de todos os interesses de agentes
iguais em um processo argumentativo - construir nossas próprias
regras morais. Como se percebe, essa estratégia não nos levaria
muito longe, pois, embora fosse ainda sustentável do ponto de
vista de uma certa interpretação da moral kantiana, seria ainda
incompatível com (e até mesmo antagônica à) a estratégia cons-
trutivista que está por trás da teoria do discurso de Habermas
e do próprio conceito de correção normativa adotado por Alexy.

com a pergunta “o que garante que as convicções morais de um indivíduo


coincidam com os ditados da moral crítica?” - teria “vindo a afirmar que
qualquer indivíduo está interessado por motivos egoístas na vigência de
regras morais implícitas em qualquer discurso normativo”. No entanto, não
tenho condições de examinar tal objeção no presente momento, e para pros­
seguir o meu argumento parto da premissa de que a pretensão de correção
alexyana está bem-fundamentada. Deixo também de aprofundar quanto à
acusação de intuicionismo na pretensão de correção porque considero que, no
que concerne à ideia de correção em si mesma, o problema não se manifesta,
pois a teoria da argumentação pode confiar nas regras de argumentação
pragmaticamente pressupostas na situação ideal de fala que Alexy adota
como modelo para o discurso prático, pois essas regras funcionam como
filtros que neutralizam a subjetividade ordinariamente presente nas argu­
mentações morais e permitem a crítica e a revisão das pré-compreensões de
cada sujeito do discurso. A mim interessa, no presente momento, apenas a
incidência da objeção de intuicionismo sobre PA.
17. Para Wood [1999:157-158], “Kant é um realista moral, porque o Realismo
é a única forma de se preservar a instância crítica necessária para qualquer
pensamento moral (...). Dizer que a lei moral descansa em uma ideia é dizer
que é sempre em princípio possível que nós estejamos errados sobre o que
nós pensamos ser correto”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Como salienta John Rawls [1999:307], do ponto de vista


construtivista “ o que justifica uma concepção de justiça não é
ela ser verdadeira de acordo com uma ordem antecedente e dada
para nós, mas sua congruência com as nossas mais profundas
compreensões de nós mesmos e nossas aspirações, e nossa com­
preensão de que, diante da nossa história e das tradições incu­
tidas na nossa vida pública, é a doutrina mais razoável para nós” .
É o compromisso de Alexy com essa perspectiva cons­
trutivista da racionalidade prática que torna sua teoria da
argumentação jurídica interessante, pois lhe atribui uma
capacidade de objetivação nutrida na perspectiva interna dos
próprios participantes do discurso jurídico. No entanto,
quando Alexy tenta fundamentar com argumentos exclusi­
vamente normativos (e não mais pragmáticos e analíticos,
com o vinha fazendo) a “ Fórmula de Radbruch” e seu Prin­
cípio de Aplicação (PA), ele sai da trilha que vinha levando
sua teoria até o patamar mais alto de sofisticação da filosofia
do Direito contemporânea, fazendo retroceder a metaética
necessária para a interpretação e aplicação do Direito a um
plano diferente, muito mais rudimentar (e muito menos ob-
jetivável) que aquele proposto inicialmente na sua teoria da
argumentação jurídica.

Assim, a conclusão a que chegamos, nesse momento, é


de que a própria teoria da argumentação jurídica de Alexy - e,
portanto, a própria concepção de racionalidade que ele desen­
volveu - reclama um argumento de injustiça de índole diferen­
te, digamos, de natureza mais habermasiana que a desgastada
“Fórmula de Radbruch” .

2.2.3 Contraponto crítico: uma revisão do argumento da


injustiça

A crítica à “Fórmula de Radbruch” , que atinge Alexy na


medida em que o intuicionismo de Radbruch não combina com
o modelo de justiça procedimental sobre o qual sua teoria da
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

argumentação foi erguida, nos força a propor, para manter


vivos o Pós-Positivismo e os limites ao Direito injusto que ele
prescreve, uma revisão do argumento da injustiça, para justi­
ficá-lo na própria pragmática formal de Habermas. Para isso,
trago à tona duas articulações que Habermas explora na sua
mais recente teoria do Direito: a tensão entre direitos humanos
e soberania popular e a relação entre Direito e Moral. Essas
duas articulações irão explicar como, nas sociedades democrá­
ticas pós-convencionais, a Moral depende do Direito para ga­
nhar aplicabilidade e o Direito depende da Moral para nutrir
sua legitimidade, mas os dois sistemas (Moral e Direito) podem
ser diferenciados. Essa relação de complementaridade pode
ser viabilizada, segundo Habermas, pelo “ Princípio do Discur­
so” (D), que nos Estados de Direito contemporâneos se expres­
sa pela via do “processo legislativo democrático” , o qual fun­
ciona com o um filtro para legitimar e corrigir as decisões to­
madas nos discursos de justificação e aplicação de normas
jurídicas. A ideia básica é a de que D incorpora e pressupõe,
pragmaticamente, certas exigências morais (como, por exem­
plo, a igualdade no discurso, os direitos fundamentais de liber­
dade, a autonomia privada etc.) tidas como (transcendental-
mente) indispensáveis para seu próprio funcionamento en­
quanto procedimento de objetivação de normas morais e de
produção legítima de normas jurídicas. Essas exigências morais
formalmente presumidas por D não podem, mais ser suprimidas.
Se olharmos para o futuro, como exige uma teoria jurídico-
moral construída na perspectiva do participante, podemos,
então, prescrever que os atos (supostamente jurídicos) que
violarem essas condições morais para o desenvolvimento do
discurso prático nas sociedades democráticas não poderão mais
ser reconhecidos como válidos, pois essas pressuposições prag­
máticas de D foram definitivamente incorporadas ao patrimô­
nio jurídico e moral da Humanidade. Diferentemente das teses
de um mínimo de conteúdo material do Direito fundadas em
argumentos realistas, essa concepção (mais habermasiana) tem
mais chances de se justificar racionalmente, porque vê no
“ conteúdo moral mínimo do Direito” um aprendizado moral
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

definitivo propiciado pela Modernidade; um aprendizado


moral que é capaz de permitir um juízo racional e objetivo
sobre a violação a essas pressuposições morais, sem necessa­
riamente buscar socorro em um realismo moral ou qualquer
outro tipo de argumento essencialista (como o de que existe
um Direito “ acima” do direito positivo, que deve ser apenas
refletido por este). Essa argumentação pode, por exemplo,
explicar e justificar racionalmente o julgamento, pelo Tribu­
nal de Nuremberg, dos crimes contra a Humanidade pratica­
dos pelo Nazismo na Alemanha, pois uma autoridade que se
fez impor contra e apesar das restrições impostas pelo p ro­
cesso democrático racional e legitimador, precisamente para
combatê-lo, desconsiderou e destruiu, conscientemente, o
capital moral que já havia sido racionalmente aprendido e
incorporado por instituições democráticas (na República de
Weimar) e, por isso, foi capaz de praticar as maiores barbari­
dades em nome do “ Direito” . Vê-se, portanto, que um argu­
mento da injustiça mais habermasiano busca fundamentar os
direitos humanos - enquanto limite ao poder estatal - no
consenso moral forjado procedimentalmente (algo com o o
“ consenso sobreposto” de Rawls) sobre direitos tidos com o
mínimos e imprescindíveis para o desenvolvimento das capa­
cidades discursivas necessárias para a performance de D.
Trata-se, numa palavra, de um argumento da injustiça prag-
mático-universal. Nas linhas que seguem irei expor com um
pouco mais de detalhe essas ideias.

2.2.3.1 As condições pragmáticas do princípio democrático


em Jürgen Habermas

Um dos diagnósticos que Habermas faz em sua teoria


do Direito é o da tensão entre facticidade e validez inerente
ao próprio Direito, ou seja, “ a tensão entre a positividade do
Direito e a legitimidade que o Direito reclama para si” [Ha­
bermas 2005-a:162]. Olhando para essa tensão, Habermas
[2005-b:535] formula uma pergunta: “ Como é possível a legi-
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

timidade através da legalidade” ? A pergunta, em si, já traz


implícita a premissa de que a tensão que constitui o contexto
no qual ela foi formulada pode ser resolvida. Diferentemente
de Weber, que sugere que a racionalidade jurídica estaria
fundamentada nas próprias qualidades formais do Direito
[Habermas 2005-b:538] (1. configuração sistemática de um
corpus de normas; 2. forma da lei abstrata e geral; e 3. vincu-
lação da Justiça e da Administração à lei, atendidos certos
procedimentos que garantem uma “calculabilidade” ), Haber­
mas cobra uma legitimação do Direito não apenas em suas
próprias propriedades, mas a partir de princípios morais
submetidos a um exame discursivo [idem:542]: “As qualidades
formais do Direito analisadas por Weber somente puderam,
em condições especiais, possibilitar a legitimidade da legali­
dade na medida em que puderam ser consideradas ‘racionais’
em um sentido prático-moral” [ibidem]. A legitimação racio­
nal do Direito, que, de um lado, já não pode mais contar com
“ o respaldo de visões religiosas ou metafísicas do m undo”
[Habermas 2005-a:163] e, de outro, não pode se contentar com
a mera forma jurídica (com o no modelo de Weber), só pode
ser estabelecida através de uma argumentação prática que
se realize sobre a base de um procedimento racional de jus­
tificação que combine produtivamente as ideias de Rousseau,
relativas à soberania popular - que tem a vantagem de ser re­
publicana, mas o déficit decorrente da ausência de um “ ponto
de vista genuinamente m oral” [Habermas 2005-a:167] - , e
de Kant, que estabelece um sistema moral do qual se podem
derivar os direitos humanos (mas, por outro lado, crê que
esse sistema pode se legitimar independentemente da “ au­
tonomia política dos cidadãos” ). A tensão entre facticidade
e validade que se manifesta na relação entre soberania p o ­
pular e direitos humanos resulta em uma “ conexão interna”
entre essas duas esferas que permite que a legitimidade do
Direito seja encontrada em “ um mecanismo comunicativo”
[Habermas 2005-a:169] descrito por Habermas da seguinte
maneira: “ Como participantes em discursos racionais, os
membros de uma comunidade jurídica hão de poder examinar
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

se a norma de que se trate encontra, ou poderia encontrar, o


assentimento de todos os possíveis afetados” [ibidem].
Analogamente, há uma tensão semelhante entre a Moral
autônoma e o Direito (que tratam dos mesmos problemas, mas
se diferenciam em função do código jurídico, ou caráter deon­
tológico, que o último tem18). Expressamente contra a “repre­
sentação platônica de que a ordem jurídica nada faz senão
refletir e concretizar no mundo fenomênico a ordem intangível
de um ‘reino dos fins’” [Habermas 2005-b:171], que pressupõe
um Direito natural que está acima19do Direito positivo, Haber­
mas sustenta que existe uma relação de complementaridade
entre Direito e Moral que se manifesta, ao mesmo tempo, no
fato de o Direito só conseguir se legitimar com argumentos
morais e no fato de a Moral necessitar da facticidade jurídica

18. Para Habermas [2005-a:171] “as questões jurídicas e as questões morais


se referem, certamente, aos mesmos problemas”, mas Direito e Moral podem
ser diferenciados da seguinte maneira: “Em que pese ao ponto de referência
comum, a Moral e o Direito se distinguem prima facie em que a Moral pós-
tradicional não representa mais que uma forma de saber cultural, ao passo
que o Direito cobra, por sua vez, obrigatoriedade no plano institucional. O
Direito não é um sistema de símbolos, mas um sistema de ação” [ibidem].
19. A imagem de um Direito natural “acima” do Direito positivo coincide
precisamente com a “Fórmula de Radbruch”, sendo essa a principal razão
pela qual, neste trabalho, estou me distanciando de Alexy. Creio que é ne­
cessário não eliminar o argumento da injustiça, mas revisá-lo, para excluir
a “Fórmula de Radbruch” e os elementos realistas e platonistas que ela traz.
O modelo de Habermas parece mais adequado. Veja-se: “Como alternativa
à subordinação que o Direito natural atribui do Direito positivo à Moral, o
melhor é considerar o Direito positivo, precisamente na sua actuabilidade,
como um complemento funcional da Moral (...). O Direito compensa, por
assim dizer, as debilidades funcionais de uma Moral que, considerada desde
a perspectiva do observador, não proporciona muitas vezes senão resultados
cognitivamente indeterminados e motivacionalmente inseguros. Mas a rela­
ção de complementaridade não significa de modo algum uma neutralidade
moral do Direito, pois através do processo de produção legislativa penetram
no Direito razões morais. Mesmo quando os pontos de vista morais não se­
jam suficientemente seletivos para a legitimação de programas jurídicos, a
Política e o Direito têm de estar em consonância com a Moral sobre uma base
pós-metafísica de fundamentação” [Habermas 2005-c:651].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

para poder se impor (deixando, assim, de ser apenas um saber


cultural). Essa relação de complementaridade significa que
ambas as classes de regras (jurídicas e morais) são complemen­
tares mas diferenciadas. Habermas associa essa tensão a uma
outra, igualmente importante, entre a “ autonomia moral” e a
“ autonomia cidadã” . Essa última tensão poderia ser normati-
vamente explicada com a ajuda de um “Princípio de discurso” ,
que “ expressa o sentido das exigências pós-convencionais de
fundamentação” das regras jurídicas e morais. Para Habermas
esse Princípio de discurso “ move-se a um nível de abstração
que, em que pese ao seu conteúdo normativo, é todavia neutro
em relação à Moral e ao Direito, pois se refere às normas de
ação em geral” [Habermas 2005-a:172]. O princípio é enuncia­
do da seguinte maneira: “D: Válidas são as normas às quais (e
somente aquelas às quais) todos os que possam se ver afetados
por elas possam prestar o seu assentimento como participantes
em discursos racionais” [ibidem].
Quando fala em “discurso racional” , Habermas entende
com tal expressão “toda tentativa de entendimento acerca de
pretensões de validez que se tenham tornado problemáticas,
na medida em que essa tentativa tenha lugar sob condições de
comunicação que, dentro de um âmbito político constituído e
estruturado por deveres ilocucionários [isto é, deveres relativos
às ações realizadas por meio da linguagem], possibilitem o livre
processamento de temas e contribuições, de informações e
razões” [Habermas 2005-a:173].
O Princípio D, quando articulado com uma teoria da ar­
gumentação, a qual naturalmente deve incluir o princípio moral
da universalizabilidade, atende às exigências de fundamentação
imparcial de normas de ação. As normas morais que, através do
Princípio D, forem devidamente fundamentadas e resgatadas
ganham efetividade. As jurídicas, na medida em que tenham
sido criadas de acordo com D, são legítimas, porque o discurso
naturalmente as guia para certos conteúdos materiais que apa­
recem como resultado da força de coação do melhor argumento,
que naturalmente se impõe nas questões morais.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

É claro que D inclui não apenas questões morais, mas


também ético-políticas e pragmáticas. Mas o fato de D pressu­
por necessariamente o princípio da universalizabilidade como
uma regra de argumentação faz com que as razões morais fa­
çam também parte desse discurso e, por isso, com que as nor­
mas jurídicas produzidas através de D sejam legítimas, porque,
com o vimos, o Direito, a Moral e a Política têm uma (pragmá­
tica) base pós-metafísica comum de fundamentação.
Para completar o modelo, Habermas salienta, ainda, que
no modelo de sociedade pós-metafísica em que vivemos veri­
fica-se a institucionalização jurídica das “ formas de comuni­
cação em que se pode formar de modo discursivo uma vontade
política racional” [Habermas 2005-c:653]. Isso se manifesta,
concretamente, na transformação do Princípio D em “princípio
democrático” , no seio das Constituições contemporâneas [ibi-
dem]. D corresponde, portanto, na prática, ao conteúdo do
princípio democrático tal como ele é hoje entendido nos orde­
namentos jurídicos que estão sob o neoconstitucionalismo.

2.23.2 A reinterpretação do argumento da injustiça

A especificação que pretendo fazer para concluir esse


excurso é simples, pois se contenta apenas com uma reinter­
pretação do argumento da injustiça de Alexy: as condições
pragmáticas para operacionalidade do Princípio D, na medida
em que nós, ou que, idealmente, a Humanidade as tenha (ou
tenhamos) conseguido resgatar através de discursos democrá­
ticos, constituem um conteúdo material de justiça que não pode
mais ser renunciado. Esse deve ser o conteúdo do argumento
da injustiça.
Qualquer ato supostamente “ju ríd ico” que venha a
suprimir por com pleto a possibilidade de autonomia moral
do indivíduo e a deixar de reconhecer os direitos humanos
indispensáveis ao exercício das capacidades discursivas
implícitas em D irá incidir em uma injustiça tão extrema e
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

objetivamente verificável que, no estágio atual do conheci­


mento jurídico, político e moral, já está (não apenas intuiti­
vamente, mas racionalmente) fundamentado um conhecimen­
to sobre sua irracionalidade.
Repito, sucintamente, a tese: há um mínimo de justiça
cujo conteúdo se manifesta nas condições discursivas para a
ação em um ambiente regulado por “D” .
Se olharmos para o passado, ou de fora, para definir o
Direito desde a perspectiva do observador, iremos desembocar
naturalmente em um Positivismo Jurídico - como até mesmo
Robert Alexy [2004-a:33-40] reconhece.
Se, porém , olharmos para o presente, e principalm en­
te para o futuro, com o participantes que somos da constru­
ção do nosso Direito e do nosso futuro, concluirem os que os
Direitos humanos que garantem nossa capacidade discursiva
já não podem mais ser abolidos, ou seja, que já não podemos
mais viver sem eles e não devemos (porque a concepção de
Direito pós-positivista procedimental a que chegamos já não
mais permite) reconhecer validade aos atos de poder que
tendam a destruí-los.20
O Pós-Positivismo Jurídico, portanto, é tanto uma tese
jurídico-teórica quanto uma tese moral e uma tese política,
que só pode ser compreendida a partir da concepção de rela­
ção entre teoria e prática que Jürgen Habermas propõe. Um
dos múltiplos aspectos dessa relação, e em especial do papel
da Filosofia, fica bem expressado na seguinte passagem de
Habermas: “ No seio de um legítimo pluralismo de visões de

20. Isso implica também, obviamente, que as supressões desses direitos


através da violência extrema cometidas no passado recente, ou seja, os retro­
cessos a um mundo da vida pré-racional que suprime a autonomia individual,
também possam ser alcançadas pelo argumento da injustiça. O ponto central
deste argumento é que não se pode admitir nem tolerar (atribuindo validade
jurídica a) atos que representem uma involução a um mundo da vida não-
racionalizado, destruindo o aprendizado moral que nós tenhamos alcançado.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

mundo, os filósofos não podem mais, sem um suporte metafí­


sico universalmente reconhecido, posicionar-se contra ou a
favor da substância dos projetos de vida individuais. Nas con­
dições do pensamento pós-metafísico, eles não podem conten­
tar os filhos e filhas da Modernidade, que necessitam de orien­
tação, com um sucedâneo de visão de mundo que substituiria
as certezas perdidas da fé religiosa ou as definições do lugar
que o homem ocupa no Cosmo. Devem deixar para os teólogos
a tarefa de dar consolo nas situações-limite da existência. A
Filosofia não pode se apoiar no saber salvífico teológico, nem
no saber clínico especializado, o que a impede portanto de
prestar ‘ajuda de vida’ com o o fazem a Religião ou a Psicolo­
gia. Em questões de identidade - quem somos e gostaríamos
de ser - , ela pode, enquanto ética, mostrar o caminho rumo a
uma autoclarificação racional” [Habermas 2004-b:322-323].
Isso vale para a filosofia do Direito. Todo conceito de
Direito traz consigo uma tese filosófica sobre qual deve ser o
objeto do Direito e o que nós devemos fazer com ele. Positivis­
tas como Hart ou Kelsen reduziram o Direito a um fenômeno
empírico para lhe dar objetividade e para, através desse con­
ceito, evitar a expansão de teorias de base jusnaturalista que
poderiam sujeitar o indivíduo ao arbítrio de quem pudesse
criar e manipular o conceito de Direito. Ver o Direito como uma
realidade objetiva era uma forma de proteger o indivíduo
através da própria generalidade e relativa impessoalidade
que um conceito de Direito fundado em “ normas jurídicas”
(que, em vista do seu caráter hipotético, têm pelo menos um
elemento de universalidade) proporcionava. Vale lembrar
também que um dos argumentos mais importantes de Hart
para defender o Positivismo era a necessidade de uma moral
externa e diferente dele que pudesse servir com o um parâme­
tro para criticar o Direito e para que os homens pudessem
“ se direcionar melhor ao confrontar o abuso oficial de poder” ,
de modo que uma argumentação moral fosse necessária para
que se decidisse, inclusive, se se deve, ou não, obedecer ao
Direito [Hart 1994-a:205-212].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

No entanto, a filosofia Moral e a filosofia do Direito, im­


pulsionadas pela ética do discurso, evoluíram até um ponto em
que podem, ao mesmo tempo, garantir uma relevante dose de
objetividade à Moral e explicitar as pressuposições pragmáticas
para que uma ordem jurídica possa ser considerada racional.
Entre as múltiplas possibilidades que hoje se abrem
diante de nós para definir o Direito, deve-se preferir aquela
que garanta maior dose de racionalidade aos processos de
produção e aplicação do Direito. Esse conteúdo de racionali­
dade foi construído através de processos de aprendizagem
discursiva [Habermas 2004-b:325] e definitivamente incorpo­
rado ao saber moral e jurídico da Humanidade (pelo menos nas
sociedades em que ela atingiu o estágio pós-metafísico). Trata-
se, sem dúvida, de uma filosofia que guarda compromisso com
a Modernidade e que, em certo sentido, ainda é capaz de ad­
mitir um certo “ otimismo iluminista” . Para essa concepção,
que ora defendo e espero seja mais bem delineada no futuro,
é possível um certo progresso moral da Humanidade; algo como
a crença que Kant expressou na racionalidade, ao dizer: “ Quan­
do se pergunta se no presente vivemos em uma idade ilumina­
da, a resposta é: não, mas nós vivemos sim em uma idade de
Iluminismo” [Kant 1996-b:21].

2.3 O conceito pós-positivista de Direito e suas


consequências para a teoria jurídica

A análise da teoria institucionalista, de MacCormick, e


dos argumentos da pretensão de correção e da injustiça, de
Alexy, é relevante, porque revela qual tipo de filosofia do Di­
reito que pressupomos na teoria normativa dos precedentes
que estamos advogando. Conjugando os elementos recolhidos
das teorias jurídicas resumidas acima, podemos, ainda que
provisoriamente, concluir que o Direito é uma ordem normati­
va institucionalizada (MacCormick) que se constitui sob a forma
de uma prática social (Hart) de natureza construtivista (Rawls,
Habermas, Dworkin, Alexy), interpretativa, argumentativa
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(Dworkin) e não manifestamente injusta (Radbruch, Alexy,


MacCormick), pressupondo-se uma teoria procedimental da
justiça (Habermas) capaz de tomar definitivamente sedimenta­
do o conhecimento moral necessário para satisfazer as exigências
epistemológicas da ideia de “extrema injustiça” .
Adotada essa perspectiva, o Direito revela não apenas
um aspecto real que pode ser descrito por uma teoria geral
do Direito do tipo positivista, que não se preocupa com os
problem as práticos enfrentados pelos aplicadores do Direi­
to, mas apenas em construir uma teoria do Direito objetiva
e neutra que responda às necessidades intelectuais e cog­
nitivas dos juristas [Calsamiglia 1997:486]. Ao contrário,
apresenta também um aspecto ideal decorrente da pretensão
de correção implicitamente formulada em todo ato de cria­
ção e aplicação do Direito. Essa pretensão impõe, com o a
análise da teoria de Robert Alexy demonstrou, um dever de
construir, interpretar e aplicar corretamente o Direito, p ro­
curando sempre alcançar o máximo grau de correção pos­
sível em cada ato de interpretação e aplicação do Direito.
O princípio da moralidade, que é trazido para dentro do
Direito por meio da pretensão de correção, vale, portanto,
com o um princípio geral do Direito com um a todos os ord e­
namentos jurídicos.
Ademais, o argumento da injustiça - uma vez adotada
a perspectiva do participante - deve ser interpretado com o
um limite material ou substancial do Direito, a proibir a edição
de normas extremamente injustas, assim entendidas aquelas
sobre as quais já foi possível um conhecimento racional pro­
cedimentalmente formado - por mecanismos democráticos
de manifestação da autonomia individual e política dos indi­
víduos - acerca do seu caráter insuportavelmente injusto e
anti-humanitário.
A idealização/moralização do Direito induz, como vere­
mos logo a seguir, a uma mudança na autocompreensão tanto
da teoria jurídica quanto da filosofia do Direito.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

2.B.1 A abertura da teoria jurídica no Pós-Positivismo

O Direito pós-positivista, que ao mesmo tempo tem na


Moral um limite (pois não pode produzir normas que violem
de forma extrema os princípios morais sobre os quais haja um
consenso universal e racional) e vê nela um ideal (na medida
em que a pretensão de correção, por estar contida no próprio
discurso jurídico, implica um princípio de moralidade que faz
com que surja um dever jurídico de tornar o Direito cada vez
mais substancialmente correto), reclama tanto um novo tipo
de teoria do Direito quanto uma nova concepção de filosofia
do Direito.21

21. A ideia de Pós-Positivismo pode ser interpretada de diferentes maneiras.


Aqui, adoto, porém, uma que pretende deixar claro o rompimento com o
Positivismo Jurídico, embora nem por isso renegue a sua herança. E um tipo
de Pós-Positivismo que se diferencia com clareza do defendido por Friedrich
Müller, por exemplo. Parece oportuno, por isso, como me alertou o professor
Ricardo Lobo Torres - a quem agradeço a crítica construtiva - , delimitar o
sentido da expressão que estou a empregar. “Pós-Positivismo” significa, para
mim, um conjunto de teorias jurídicas que compartilham duas teses teóricas
e uma tese metateórica.
No nível teórico o Pós-Positivismo consiste em estabelecer limites ao conteú­
do do Direito identificado por meio dos critérios formais ou institucionais
dos quais se vale o Positivismo. Como explica Dreier [1985:78], isso não deixa
de ser compatível com a tese da “superioridade do Direito [positivo] sobre a
Moral” na prática jurídica, de sorte que mesmo as normas jurídicas moral­
mente repugnantes permanecem válidas, embora defeituosas. A superação
do elemento institucional do Direito por razões não-institucionais deve ser
reservada para casos extremos. Nesses casos o Pós-Positivismo reconhece
um “umbral de injustiça” que não pode ser ultrapassado pelo Direito positivo.
O Pós-Positivismo exige também estabelecer uma obrigação jurídica de deci­
dir conforme a Moral, ainda que seja uma obrigação frágil, cuja violação não
conduz necessariamente à invalidade de todas as normas jurídicas injustas.
Essa perspectiva, que decorre do reconhecimento de um caráter ideal para
o Direito ou da existência de uma pretensão de correção, permite justificar
a existência de um dever jurídico de decidir da forma mais correta possível,
e nesse sentido de reduzir a tensão estrutural entre facticidade e validade
que se manifesta no interior dos sistemas jurídicos.
No nível metateórico, por sua vez, o Pós-Positivismo roga uma teoria jurídica
que seja a um só tempo descritiva e prescritiva, ou seja, uma teoria dotada
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Nesse sentido, argumenta Garcia Figueroa que a correção


substancial (Moral) é uma propriedade disposicional do Direi­
to. Não seria exato dizer, com base em premissas essencialistas
que hoje são colocadas em xeque, nem que o Direito real tem
uma vinculação com a Moral (como indica o argumento jusna-
turalista), nem que as duas ordens normativas são necessaria­
mente autônomas (como crê o Positivismo). Mais correto seria
assumir uma postura pragmatista e afirmar que “ o Direito
apresenta uma disposição à correção moral” . Como explica
Garcia Figueroa [2006], “ uma disposição faz referência a uma
propriedade de algum modo latente que só se manifesta com
a ocorrência de um fato. Portanto, quando falamos de proprie­
dades disposicionais podemos distinguir vários elementos re­
levantes: a manifestação da disposição, a condição de manifes­
tação e a base de disposição. Estamos diante de uma disposição
(D), como a solubilidade do sal na água, se, e somente se, se
cumpre a condição de manifestação (C) (o fato de submergir o
sal na água), então, tem lugar a manifestação da disposição (M)
(o sal se dilui na água)” [Garcia Figueroa 2006].
Aplicando essa noção ao Direito, Garcia Figueroa susten­
ta uma disposição do Direito para a correção moral (presente
em todos os ordenamentos jurídicos), sendo que (a) a condição
da manifestação da disposição à correção moral seria o fato de
“ se aplicar ao sistema jurídico em questão uma teoria da argu­
mentação racional” e (b) a base desta disposição se encontra
tipicamente nos indexicais éticos do Direito, os direitos funda­
mentais [Garcia Figueroa 2006].22

de pretensões normativas, que veja o Direito como uma prática social argu-
mentativa e que esteja preocupada não apenas em descrever essa prática,
senão também em justificá-la com razões. Os enunciados da teoria jurídica
são, por conseguinte, enunciados fusionados no sentido de Svein Eng, e
pretendem interferir sobre a prática jurídica na medida em que o teórico
do Direito está consciente de que seu trabalho influi na e contribui para a
prática social que ele examina.
22. Neste ponto, o autor sustenta que os princípios jurídicos (principalmente
os direitos fundamentais) se apresentam como “indexicais éticos” do Direito,
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Apesar das pequenas diferenças entre esta obra e Garcia


Figueroa - em especial quanto à natureza e à função da fi­
losofia do Direito e à necessidade de se estabelecer um concei­
to normativo de Direito que incorpore o argumento da injus­
tiça23 ambos compartilham a conclusão de que a única forma
de se aproximar o Direito real ao Direito ideal (justo, correto)
é por meio do desenvolvimento e da aplicação de uma teoria
da argumentação jurídica que seja capaz de fundamentar ra­
cionalmente as normas e decisões tomadas com fundamento
no Direito. Contra o Realismo Jurídico - que é “ cético em re­
lação às normas” e à possibilidade de fundamentá-las e se
satisfaz com a afirmação de que “ o Direito é o que os juizes
dizem ser, e a origem de tal Direito se encontra no processo
psicológico que dá lugar à sentença judicial” [Garcia Figueroa
2005:145] - , pode-se concordar com Garcia Figueroa em que
“ a questão fundamental não é como se chega a uma decisão
jurídica, senão somente se esta decisão é justificável juridica­
mente [e - completamos - racionalmente]” [idem:149].
A teoria jurídica desenvolvida sob o paradigma do Posi­
tivismo vislumbrava para a ciência do Direito um caráter m e­
ramente descritivo, sendo sua função precípua elaborar pro­
posições acerca do Direito válido, ou seja, enunciados que
descrevessem as relações constituídas através das normas
jurídicas [Kelsen 1998-a:80]. A ciência do Direito teria, basica­
mente, “por missão conhecer - de fora, por assim dizer - o
Direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento” [idem:81].
Mesmo os positivistas que, como Herbert Hart [1994-a:89], se

os quais seriam “regidos por uma regra pragmática de uso que haverá de ser
utilizada em cada contexto de uso segundo a sua situação”. O conteúdo desses
indexicais (princípios morais) “muda de acordo com o contexto, mas devemos
conhecer regras básicas objetivas para utilizá-los” (idem). O conteúdo das
regras que compõem o sistema moral só será conhecido após a ponderação
(contextualmente referenciada) desses princípios.
23. V , em especial, os meus apontamentos em Bustamante [2006-a] e o de­
bate acerca do neoconstitucionalismo e das aspirações normativas da teoria
jurídica em Garcia Figueroa [2008] e Bustamante [2008-a].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

preocupavam em analisar o Direito tomando em consideração


um “ponto de vista interno” - ou seja, adotando como foco de
análise não apenas a perspectiva de um observador que veri­
fica as normas jurídicas existentes em dado agrupamento social
(ponto de vista “ externo” ), mas a posição de um “membro do
grupo” que aceita essas normas e as utiliza como guias para
sua conduta - reduzem o âmbito de suas teorias a uma apro­
ximação descritiva, “que é moralmente neutra e não tem pro­
pósitos justificatórios” , no sentido de procurar fundamentar o
Direito em standards morais ou provenientes de outros sistemas
normativos [Hart 1994-b:240]. Todas têm em comum a deno­
minada “tese do subjetivismo” , segundo a qual “não existem
critérios ou pautas objetivamente válidos, quer dizer, reco­
nhecíveis pela razão, acerca de qual deve ser o conteúdo do
Direito” [Hoerster 2000:15]. Noutras palavras, essas teorias
acatam o argumento do não-cognitivismo ético, que prega um
absoluto ceticismo com relação à possibilidade de um uso
prático da razão, voltado para a orientação do jurista nas si­
tuações de escolha entre as alternativas axiológicas que ine­
vitavelmente estão presentes tanto na interpretação quanto
na aplicação do Direito.24
O Pós-Positivismo reclama, para além de uma teoria
geral descritiva do Direito, uma teoria normativa do Direito e

24. O seguinte excerto de Riccardo Guastini fornece um exemplo paradig­


mático do não-cognitivismo ético do Positivismo:
“Conhecer o Direito significa conhecer aquilo que disseram os legisladores,
revelar de qual modo as formulações normativas dos legisladores foram - e
prever em qual modo serão - interpretadas pelos juristas, prever quais de­
cisões assumirão os juizes e os funcionários administrativos. E nada mais.”
“Conhecer deveres me parece uma contradição em termos. O conhecimento,
creio, não pode ter outro objeto que fatos. Não se pode ‘conhecer’ deveres:
os deveres podem apenas ser objeto de aceitação, e não de conhecimento.”
“Se se aceita esse ponto de vista (o ponto de vista do não-cognitivismo
ético), então, os enunciados deônticos - os enunciados sobre deveres - ou
são proposições factuais (...), ou então simplesmente não são proposições”
[Guastini 1999:279].

-1 '“7 n
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

da argumentação jurídica. O centro das atenções desloca-se


dos casos fáceis do passado para os casos difíceis que ainda
não estão resolvidos. Mais importantes são as decisões dos
casos futuros e a busca de instrumentos adequados para resolver
esses problemas. Dilui-se a distinção entre “descrição” e “pres­
crição” , pois as teorias do Direito “tendem a oferecer não so­
mente aspectos cognitivos referidos a fatos sociais do passado,
mas também pretensões prescritivas no sentido de oferecer
critérios adequados para resolver problemas práticos” [Calsa-
miglia 1998:212]. Como salientam Aleksander Peczenik e Jaap
Hage [1999:37-38], há uma interdependência entre Direito e
Moral que faz ser possível afirmar que “ o enunciado do jurista
acerca do Direito válido (de lege lata) não é, então, nem mera­
mente descritivo e nem meramente normativo. São enunciados
‘fusionados’ no sentido de Svein Eng” .25
Percebe-se, portanto, que o Pós-Positivismo Jurídico é
marcado por um abrandamento da distinção entre enunciados
de legeferenda - recomendações justificadas para o legislador
- e enunciados de lege lata - descrição/conhecimento do Direi­
to vigente -, com repercussões diretas para a teoria jurídica, a

25. Segundo Eng, a pressuposição de que os enunciados individuais são ou


descritivos ou normativos merece ser considerada como um “preconceito”.
Os enunciados do jurista acerca do Direito vigente (de lege lata) não seriam
nem só normativos e nem só descritivos, mas enunciados fusionados. Para
Eng, os conceitos de “proposição descritiva” e “proposição prescritiva” po­
dem ser vistos como pontos extremos de uma escala graduada que vai do
“puramente descritivo” ao “puramente normativo”. O conceito de “enun­
ciados fusionados” tem origem na seguinte constatação [Eng 2000-a:237]:
“Proposições descritivas e normativas podem ser mais ou menos estritamente
interligadas, de sorte que é mais ou menos difícil separar psicologicamente
essas proposições. Em alguns casos as proposições estão tão firmemente
interligadas que na prática é difícil separá-las, mesmo se quisermos: o enun­
ciado individual, após ter sido interpretado, não pode nem ser tido como
expressando uma proposição individual, seja de modalidade descritiva ou
normativa, nem como expressando uma série de proposições que podem
ser separadas e categorizadas como ou descritivas ou normativas. Esse tipo
de frase expressa proposições que não podem ser categorizadas nem como
descritivas nem como normativas”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que é atribuída a função de produzir coerência para o Direito


[Peczenik 2001:79-80]. Além de se caracterizar como um “tipo
de argumentação que busca o conhecimento do Direito exis­
tente” , ela pode, em certos casos, conduzir a uma (legítima)
mudança do próprio Direito [Peczenik/Hage 1999:33]. A dog­
mática jurídica assume a função de “sistematizar e interpretar
o Direito válido” , assim com o de “ ordenar o Direito diante de
princípios de largo alcance” - trabalho, este, que está “quase
sempre orientado por valores” [ibidem].
Essa teoria normativa - que é uma teoria do direito ideal
- só pode se viabilizar com um certo avizinhamento à filosofia
do Direito, revisando a forma tradicional - positivista - de se
demarcar as fronteiras entre a teoria jurídica e a filosofia do
Direito. Como explicam Alexy e Dreier, a filosofia do Direito
tradicionalmente foi tida com o a teoria do Direito natural e/ou
Direito da razão, ou seja, como “ teoria ética do Direito justo ou
correto” , enquanto a teoria geral do Direito era visualizada
com o uma “ teoria geral do Direito positivo” [Alexy/Dreier
1990:2]. No entanto, tal distinção somente poderia ser mantida
se a teoria jurídica fosse definida como “ uma teoria geral do
Direito positivo, excluindo-se qualquer preocupação com o pro­
blema da justiça” [ibidem] (grifos meus), de modo que não deve
ser acolhida, porque pressupõe a tese central do Positivismo,
isto é, que não haveria uma relação conceitualmente necessá­
ria entre o Direito como ele é (direito positivo) e o Direito como
ele deve ser (direito ideal, racional ou natural) [idem:3]. Uma
teoria pós-positivista do Direito deve ser uma teoria pré-ben-
thamista no sentido em que MacCormick descreveu o projeto
de construtivismo jurídico de Dworkin: “ O ponto central sobre
Dworkin é que ele é um pré-benthamista. Dworkin considera
a perspectiva de ciência do Direito [jurisprudence] adotada
desde Bentham, com sua insistência na separação entre ciên­
cia do Direito expositória e censorial, fatos jurídicos e valores
etc., inepta para encontrar a verdade, tal como os pré-raphae-
listas consideravam a perspectiva que eles abandonaram em
suas pinturas. A ambição enunciada por Dworkin é reenunciar
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

a teoria jurídica em termos tais que reunifiquem as atividades


de exposição e valoração do Direito [exposition and censorship].
A teoria jurídica, nessa perspectiva, não é mais separada da
teoria moral e política, mas apresenta uma relação íntima com
essa última. Tão importantes quanto qualquer coisa nos escri­
tos de Dworkin são os elementos de ética e política que ele
considera essenciais para a elucidação do sistema jurídico [law]
e dos direitos individuais [rights]” [MacCormick 1978-b:586].
É, portanto, uma teoria que não aceita as dicotomias
básicas do Positivismo Jurídico e o confinamento da teoria
jurídica na moldura fechada do cientificismo cartesiano; é uma
teoria que descarta o “ intransigente dualismo” entre ser e
dever-ser, realidade e valor, conhecimento e vontade, Direito
e Moral, Direito positivo e Direito ideal [Perelman 2000-b:475],
e passa a “desmascarar” o raciocínio jurídico prático [Perelman
2000-c:481] para desnudar os juízos de valor e as razões de
natureza moral que têm lugar na aplicação do Direito, a fim de
reconhecer o papel da argumentação para justificá-los de for­
ma razoável [Perelman 2000-b:480].
Talvez a forma mais completa de caracterizar a teoria
jurídica seja compreendê-la como uma teoria jurídica integral
ou compreensiva em que se dissolvem velhas fronteiras de­
marcadas entre a Escola Analítica, o Realismo Jurídico, as
teorias hermenêuticas e as jusnatúralistas, na medida em que
os métodos e interesses de todas estas podem e devem conviver
de forma produtiva [Aarnio/Alexy/Peczenik 1981:133-134]. Essa
teoria jurídica integral passa a reivindicar para si não apenas
uma função descritiva dos processos de intelecção e aplicação
do Direito, mas uma conotação prescritiva que se destina a
interferir em e aprimorar, cada vez mais, a prática jurídica em
geral, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que con­
sagre uma teoria jurídica voltada para certas “ consequências
normativas” [Peczenik/Hage 1999:34].
Trata-se de uma concepção de teoria voltada para a ra­
cionalização dos discursos práticos de realização do Direito e
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que pode encontrar sustentação na teoria da ação comunica­


tiva de Jürgen Habermas, que acredita em certo conteúdo
normativo da Modernidade, o qual é capaz de alcançar um
grau satisfatório de integração social por meio de interações
racionalmente reguladas de atos de fala orientados para o
entendimento, sendo que o Direito, de um lado, constitui um
médium onde essa interação é realizada, funcionando “ com o
um transformador que assegura que a rede de comunicação
global social sócio-integradora não se rompa” [Habermas
2005-a:120] e, de outro lado, desempenha, diferentemente do
que imaginava a teoria crítica que antecedeu a Habermas,
um papel civilizatório, na medida em que é um “ mecanismo
de garantia de efetivação dos impulsos emancipatórios oriun­
dos do pensamento político moderno e transpostos para os
textos constitucionais da Modernidade” [Maia 2005-a:XIX].
Para Habermas [2002:507], “ as sociedades modernas, ampla­
mente descentralizadas, mantêm na ação comunicativa coti­
diana um centro virtual de autoentendimento” ; a ação (prá­
tica) comunicativa tem, aqui, uma importante tarefa de legi­
timação, pois “as esferas públicas autônomas somente podem
extrair suas forças dos recursos dos mundos da vida extensa­
mente racionalizados. Isto vale sobretudo para a cultura, isto
é, para o potencial de interpretação do mundo e de si mesmas
que têm a Ciência e a Filosofia, para o potencial de esclare­
cimento das ideias jurídicas e morais estritamente universa-
listas, e não por último, para os conteúdos de experiências
radicais da Modernidade estética” [ibidem]. Parece natural
que, neste ambiente filosófico, a teoria jurídica, em especial,
assuma essas conotações normativas, principalmente ao nos
darmos conta do papel do Direito nos processos (comunica­
tivos) de integração social e da relevância das conotações
normativas da racionalidade moderna para a justificação das
pretensões discursivas subjacentes ao agir comunicativo.
Talvez a forma mais madura de descrever a teoria jurí­
dica contemporânea seja o tridimensionalismo alexyano, que
reivindica para a teoria jurídica uma dimensão analítica, outra
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

empírica e, finalmente, outra normativa. Para Alexy [1997-b:29-


34] essas três dimensões se complementam e interagem a todo
momento, mas podem ser perfeitamente individualizadas. A
dimensão analítica cumpre a “consideração sistemático-con-
ceitual do Direito válido” , passando pelas construções jurídicas
em geral e chegando até a “ investigação da estrutura do siste­
ma jurídico” [idem:30]; a dimensão empírica, por seu turno,
tem um duplo significado: trata do “ conhecimento do Direito
positivamente válido” e da “utilização de premissas empíricas
na argumentação jurídica” ; finalmente, a dimensão normativa
vai mais além das duas primeiras, pois trata da “ orientação e
crítica da práxis jurídica” , sendo constitutiva dessa dimensão
“ a questão de saber qual é, no caso concreto e sobre a base do
Direito válido, a decisão correta” [idem:32].
Essa visão tridimensional da teoria jurídica reflete de
forma satisfatória a concepção de teoria geral do Direito ado­
tada neste trabalho, pois o que se pretende, aqui, é construir
uma teoria analítico-normativa [Alexy 1997-a:35] do preceden­
te judicial, uma teoria que seja capaz de elaborar diretivas
[Wróblewski 1992] ou regras de argumentação [Alexy 1997-a]
para a interpretação e o emprego dos precedentes judiciais na
argumentação jurídica, com vistas a garantir um patamar mí­
nimo de racionalidade para a utilização dos precedentes nos
discursos de aplicação e justificação do Direito.
Ao cientista do Direito passa a interessar em especial a
justificação de juízos de valor, bem como a fundamentação de
decisões acerca da aplicação de princípios institucionalizados
juridicamente, mas de conteúdo idêntico a valores e normas
morais. Principalmente no campo dos direitos fundamentais
- terreno mais rico do debate jurídico-constitucional contem­
porâneo -, nota-se uma “ abertura do Direito frente à Moral” ,
consequência imediata da vigência de certos princípios cons­
titucionais [Alexy 1997-b:525]. Instrumentos metodológicos
como a denominada ponderação de princípios constitucionais
passam a ser considerados métodos racionais a serviço da ciên­
cia do Direito. Como Alexy salienta com precisão, abandona-se
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

um modelo de decisão - onde o “estabelecimento do resultado


do enunciado de preferência [na ponderação] é um processo
psíquico racionalmente incontrolável” - em favor de um m o­
delo de fundamentação - onde a ponderação pode ser enten­
dida como um procedimento racional, já que é possível esta­
belecer um enunciado de preferência controlável racionalmen­
te, tendo em vista certas regras da racionalidade prática
[idem:158]. Onde havia discricionariedade passa a haver justi­
ficação racional de soluções para problemas jurídicos.
Com o renascimento da razão prática torna-se possível a
justificação das pesagens ou ponderações de princípios e valores
- embora, é evidente, não se possa afastar por completo todas
as pressuposições arbitrárias do raciocínio jurídico-prático
[Peczenik 1990:96]. Como esclarece Alexy, “ é claro que estas
exigências [estabelecidas pelas regras da razão prática] têm
caráter ideal. Diante das condições reais podem ser realizadas
somente de forma aproximada. Isto exclui a criação de uma
certeza absoluta em todos os casos. Se a racionalidade fosse
equiparada à certeza, isso daria origem a uma objeção funda­
da. Sem embargo, este não é o caso. A razão prática não é
daquelas coisas que podem ser realizadas só perfeitamente ou
não em absoluto. E realizável aproximadamente, e sua reali­
zação suficiente não garante qualquer correção definitiva, mas
tão somente relativa” [Alexy 2004-b:176].
Percebem-se no trecho logo acima a cautela e a respon­
sabilidade com que o professor de Kiel pretende recuperar o
cognitivismo ético. Trata-se de uma postura consciente de seus
próprios limites e que jamais teve a pretensão de esvaziar, por
completo, a dose de arbitrariedade/subjetividade sempre pre­
sente em tomadas de posição acerca de juízos de valor, mas
busca, pelo menos, diminuir a margem de insegurança, por
meio de critérios formais universalizáveis e racionais.26

26. Como veremos mais adiante, a reabilitação da razão prática levada adiante
por Alexy dá-se através de um catálogo de regras procedimentais destinadas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Tenho que esse rejuvenescimento da razão prática - com


a correlata busca de pautas de racionalização para juízos nor­
mativos - é extremamente fecundo para o pensamento jurídi­
co, pois se volta para os denominados casos difíceis, ou seja,
aqueles que não podem ser resolvidos unicamente por via da
aplicação silogística de uma regra geral definida no ordena­
mento jurídico. E justamente tal tipo de teoria que pode dar
conta das aspirações racionalistas do Pós-Positivismo, pois elas
constituem um poderoso instrumento metodológico a serviço dos
juizes - e mais, da sociedade, quando ela controla os juizes - na
justificação de suas decisões. Como salienta Aarnio [1991:29],
“em uma sociedade moderna as pessoas exigem não só decisões
dotadas de autoridade, senão pedem por razões. Isso vale tam­
bém para a administração da justiça. A responsabilidade do
juiz se converteu, cada vez mais, na responsabilidade de justi­
ficar suas decisões” .

2.3.2 Implicações para a filosofia do Direito

Como já adiantamos acima, o Positivismo de modo geral


diferencia a filosofia do Direito e a teoria geral do Direito em
função da matéria de que cada uma dessas disciplinas se ocu­
pa. A primeira (filosofia jurídica) teria como objeto o Direito
natural ou o Direito racional, e a última seria uma “teoria geral
do Direito positivo” [Alexy/Dreier 1990:2]. Ainda hoje podem

a comprovar a correção de cada discurso prático-jurídico. Segundo esse au­


tor [1997-c:304], “a aplicação das regras do discurso não leva certamente à
segurança em toda questão prática, mas sim a uma considerável redução da
existência de irracionalidade. Se se deseja utilizar os conceitos de relatividade
e objetividade das normas morais, então, se poderia dizer que o resultado
do discurso não é nem apenas relativo e nem apenas objetivo. É relativo na
medida em que se determina por meio das características dos participantes; e
é objetivo na medida em que depende da realização do procedimento definido
através das regras do discurso. Isso significa que a comprovação discursiva
não leva certamente ao campo da segurança, mas é, sim, capaz de nos levar
para fora do campo da simples opinião e decisão, o que justifica a utilização
do conceito de correção relativa”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ser encontrados vários exemplos de tal forma de descrever essa


relação. Para o positivista, tanto a teoria do Direito como a fi­
losofia do Direito carecem da dimensão normativa que com en­
tamos nos parágrafos anteriores, ao nos referirmos especifica­
mente à nova teoria jurídica pós-positivista, e têm, por isso,
pouca influência direta sobre a prática jurídica. Raz, por exem­
plo, contrapõe a Ciência e a Filosofia da seguinte maneira: “A
Ciência confia em uma metodologia que conduz ao entendi­
mento e permite o progresso. Teorias filosóficas sobre o Direi­
to, ou qualquer outra coisa, nada resolvem, porque elas não
conduzem ao entendimento” [Raz 2007].
A tradição jurídica positivista, que constituiu um discur­
so hegemônico ao longo de toda a extensão dos séculos X IX e
X X , concebia a filosofia do Direito como uma disciplina que se
destinava a refletir criticamente sobre o Direito natural, mas
inoperante para interferir sobre o Direito positivo, que era
visto apenas com o um objeto cultural digno de ser investigado.
A dicotomia Positivismo/Jusnaturalismo esteve, portanto, sem­
pre implícita nesse tipo de filosofia. Mesmo quem hoje não se
alinhe à tradição juspositivista normalmente reconhece esse
fato histórico. Nesse sentido Garcia Figueroa, utilizando uma
classificação de González Vincén, considera a filosofia do Di­
reito “um conceito histórico, e não um conceito formal” : “ O
professor espanhol Felipe González Vincén sustentava em um
clássico trabalho que a filosofia do Direito é um conceito his­
tórico e não um conceito formal. Os conceitos formais são
aqueles que podem ser aplicados em qualquer momento his­
tórico. De modo contrário, os conceitos históricos acham-se
intrinsecamente vinculados às transformações sociais. Por isso,
um conceito histórico somente tem sentido a partir de um
momento determinado. Por exemplo, o conceito de ‘revolução’
é histórico porque não faz referência a qualquer sedição ou
rebelião, senão à subversão do sistema com fins transforma­
dores, emancipatórios, que se sustentam a partir de um certo
momento histórico. A filosofia do Direito não é qualquer refle­
xão sobre o Direito, mas a que surge quando seu objeto de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

reconstrução conceituai deixa de ser o Direito natural ou ideal,


de m odo que passa a ser o Direito positivo ou real (desde este
ponto de vista, a dialética entre Positivismo e Jusnaturalismo
se encontra na própria gênese da disciplina). Os movimentos
positivistas europeus do século X IX (a saber: a Escola da Exe­
gese em França, a Escola Histórica alemã e a Jurisprudência
Analítica inglesa) são manifestações de uma nova reflexão
sobre o Direito que se centra na reconstrução conceituai do
direito positivo por oposição ao direito natural. Os 200 anos
de filosofia do Direito são os 200 anos de hegemonia positi­
vista, apesar dos reiterados ‘retornos ao direito natural’ . Esta
é uma primeira nota que eu desejo destacar: a filosofia jurí­
dica apresenta uma dimensão histórica marcada por uma
dialética: a dialética entre positivistas e não-positivistas”
[García Figueroa 2008].
Com base nesse relato histórico, que captura corretamen­
te a trajetória da filosofia do Direito construída no paradigma
positivista - o qual dominou o discurso jurídico dos dois últimos
séculos García Figueroa chega a sustentar uma espécie de
esgotamento da filosofia do Direito, pois os pressupostos sobre
os quais foi construída (uma filosofia essencialista, uma divisão
rígida entre Direito e Moral e um objetualismo que considera
o Direito e a Moral como objetos estáticos) já não se verificam
mais [García Figueroa 2008].
No entanto, como tive oportunidade de argumentar alhu­
res [Bustamante 2008-a],27 talvez não seja exato classificar a
filosofia do Direito como um conceito histórico, no sentido de
García Figueroa e Gonzalez Vincén. Se acreditarmos que o
Direito tenha pelo menos algumas propriedades necessárias
ou essenciais - que independem do espaço e do tempo -, então,
a filosofia do Direito - “ enquanto investigação sobre a natureza
do Direito” - seria um saber “universalista” [Alexy 2007:162].

27. Com efeito, boa parte dos parágrafos que se seguem até o item 2.3.3
corresponde a parte desse texto anterior. O argumento se encontra todavia
desenvolvido com mais detalhe no texto de origem.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

A tese de Garcia Figueroa sobre a filosofia do Direito


remete-nos de imediato ao tema das relações entre “Direito”
e “tempo” . Sobre esse assunto invoco novamente um argumen­
to de Robert Alexy. De fato, “todos os sistemas jurídicos existem
no espaço e no tempo” , sendo essa a razão mais comum para
a “relatividade, contingência e individualidade do Direito” .
Cabe indagar, porém, se ao lado desses elementos relativistas
há também elementos universais que necessariamente estarão
presentes em todos os sistemas jurídicos. A esta pergunta Ale­
xy responde que “ existe um conjunto de traços definidores que
todo sistema jurídico e todo Direito devem possuir, com inde­
pendência do espaço e do tempo, para ser um sistema jurídico
ou Direito” [Alexy 2005-d:70]. Para Alexy há tanto certos uni­
versais jurídicos formais (v . g os conceitos de “ obrigação” ,
“proibição” e “permissão” , bem como a existência de certas
regras jurídicas, mais ou menos desenvolvidas, sobre com pe­
tências e capacidades públicas ou privadas) quanto universais
jurídicos materiais (tais como a pretensão de correção de todas
as normas e decisões jurídicas individuais ou certo núcleo de
direitos humanos básicos que têm “validez eterna” e constituem
um umbral de injustiça além do qual não pode haver normas
juridicamente válidas) [idem: 71 e ss.]. À filosofia do Direito
cumpre, nessa perspectiva, trazer à tona o que há de universal
no Direito, isto é, todos os seus elementos necessariamente
constitutivos. Se Alexy estiver certo, a filosofia do Direito seria,
ao menos em sua maior parte, um conceito jurídico formal, não
um conceito histórico; se, ao contrário, forem aceitos os argu­
mentos de Garcia Figueroa, simplesmente não se poderá falar
em um conceito geral de Direito, pois cada sistema jurídico
particular apresentará seus próprios traços constitutivos, e
nada haverá necessariamente de comum entre todos os sistemas
jurídicos. Acredito, portanto, que Garcia Figueroa cai no ex­
tremo oposto ao do essencialismo, o nominalismo, o qual, no
Direito, equivale a entender os conceitos e expressões utiliza­
dos na dogmática jurídica como meros “úteis instrumentos de
descrição” de sistemas jurídicos particulares. Essa concepção
parece-me problemática não apenas porque implicitamente
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

permite que o Direito seja definido arbitrariamente em cada


contexto, mas principalmente porque representa uma atitude
em relação ao Direito semelhante à dos positivistas, que se
contentavam em descrever o Direito positivo tal como ele é, sem
qualquer pretensão de normatividade.
No contexto do Pós-Positivismo contemporâneo, prova­
velmente devido ao reconhecimento de uma exigência geral
de justificação para todas as decisões jurídicas, a filosofia do
Direito atrai para si uma relevância prática que indiscutivel­
mente estava ausente em todas as teorias do Positivismo Jurí­
dico. Com efeito, como já aduzimos acima, as teorias positivis­
tas do Direito concentram-se na perspectiva do observador,
contentando-se em elaborar uma teoria geral do Direito de
índole descritiva. A Filosofia não é considerada assunto de
juristas. Acostumados à posição de observadores, no mais das
vezes impregnados de preconceitos cientificistas como o pos­
tulado da neutralidade axiológica do jurista, os teóricos do
Direito durante muito tempo proclamaram uma vitória do
Positivismo, haja vista a evidente inviabilidade de se construir
qualquer conceito normativo de Direito a partir dessa perspec­
tiva. No entanto, quando se deparavam com um caso difícil, os
juristas acadêmicos ou se emudeciam, pois nada tinham a dizer
aos juristas práticos, ou tentavam estabelecer definições nor­
mativas incoerentes com os principais dogmas do Positivismo
Jurídico. Tal atitude decorria, em minha opinião, de uma in­
compreensão da natureza e das tarefas da filosofia do Direito,
haja vista que os problemas e as funções dessa disciplina rara­
mente apareciam delimitados com clareza.
O passo mais importante para a superação do paradigma
positivista é compreender da forma mais correta possível a
própria natureza da filosofia do Direito. Mais uma vez recorro,
neste particular, aos argumentos de Robert Alexy, que define
a Filosofia em geral como “uma reflexão geral e sistemática
sobre o que há (Ontologia), o que deve ser feito ou é bom (Ética),
e como o conhecimento sobre ambas as questões anteriores é
possível (Epistemologia)” [Alexy 2004-c:157]. Essa definição -
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

argumenta - conduz a três corolários de suma importância:


primeiramente, o fato de a Filosofia ser uma reflexão pressupõe
um aspecto crítico que representa uma dimensão normativa
da Filosofia em geral;28 por sua vez, o caráter geral e sistemá­
tico leva, em segundo lugar, a uma dimensão analítica (que “é
definida pela tentativa de identificar e tornar explícitas as es­
truturas fundamentais do mundo natural e social em que vi­
vemos e os conceitos fundamentais e princípios pelos quais nós
podemos capturar esses mundos” ); e, em terceiro, a uma di­
mensão sintética (“ que se define pela pretensão de unir todos
esses mundos em um todo coerente”) [idem:158]. A filosofia do
Direito, por seu turno, tem sua differentia specifica no assunto
sobre o qual versa: o Direito. E, portanto, uma reflexão geral e
sistemática acerca do que há, do que deve haver e do conheci­
mento sobre cada uma dessas questões, mas com referência
específica ao Direito. Refere-se a três problemas fundamentais,
sendo que o primeiro corresponde à indagação “ em que tipo
de entidade consiste o direito?” - cuja resposta naturalmente
passa pelos conceitos de norma e de sistema normativo. O se­
gundo e o terceiro, por seu turno, “são direcionados à validade
do Direito” , sendo que um deles se refere à sua dimensão fac­
tual ou real (o Direito que é, ou seja, os elementos que definem
uma norma como “jurídica” ) e o outro à correção ou legitimi­
dade do Direito (os limites do Direito e a relação entre o Direito
e a Moral) [idem:159]. E essa tríade de problemas que define a
natureza do Direito.
Toda filosofia do Direito, ao elaborar uma reflexão geral
e sistemática sobre esses três problemas, desemboca, portanto,
em um conceito de Direito que enuncia as propriedades neces­
sárias para definir um sistema normativo com o “ Direito” .
Todas as vertentes do Positivismo, porém, por sustentarem a

28. Nas palavras de Alexy [2004-c:158], “se definirmos ‘normatividade’ como


a habilidade de distinguir o que é correto do que é incorreto, essas questões
são questões normativas. A Filosofia enquanto empresa reflexiva, portanto,
necessariamente tem uma dimensão normativa”.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

tese com um de que os elementos que identificam o Direito


(propriedades necessárias) independem de qualquer reflexão
sobre o conteúdo das normas que o com põem , reduzem o
objeto da teoria do Direito ao primeiro e ao segundo dos seus
problemas fundamentais. Por isso, os positivistas competem
entre si apenas para indicar as propriedades form ais (todas
necessariamente neutras em relação ao conteúdo) necessá­
rias para definir o Direito. Entre essas propriedades despon­
tam (i) a regularidade formal do processo de produção de
normas jurídicas e (ii) a eficácia social do Direito. Para os
que enfatizam “ (i)’\ com o Hans Kelsen [1998-a; 1998-b], a
propriedade que identifica uma norma com o jurídica é sua
conform idade com as regras de com petência que definem o
m odo de reprodução do sistema jurídico; para os que voltam
suas atenções para “ (ii)” , com o Alf Ross [2003], o que define
uma norma com o jurídica é sua aceitação/aplicação pelos
tribunais e demais órgãos competentes para aplicar o Direi­
to a casos concretos.
No entanto, a filosofia do Direito, tal como ela é entendi­
da hoje, tem de resolver uma gama de problemas muito mais
ampla e complexa, de modo que não se limita a elaborar um
conceito descritivo de Direito (seja de Direito positivo ou de
Direito natural), ou seja, um conceito enunciado a partir de
fora por observadores frios e indiferentes ao conteúdo concre­
to das ações que serão tomadas com fundamento no sistema
jurídico que está sendo descrito. A filosofia do Direito - hoje,
isso me parece muito claro - tem de refletir também sobre o
aspecto ideal do Direito (no qual se inclui, por exemplo, a pre­
tensão de correção de suas normas) e sobre os limites materiais
desse mesmo Direito (cujo principal exemplo é o umbral da
extrema injustiça, como tivemos oportunidade de analisar).
Por isso, quando Garcia Figueroa sustenta que no tempo pre­
sente estamos vivenciando um processo de “ morte” ou “trans­
formação” na filosofia do Direito, ele só pode estar certo se
estiver falando de um tipo particular de filosofia do Direito, ou
seja, da filosofia do Direito descritiva e limitada à perspectiva
do observador: a filosofia do Direito positivista.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Uma filosofia pós-positivista do Direito, sobre se concen­


trar nas propriedades universais do Direito (tanto as proprie­
dades formais quanto, em especial, as propriedades substan­
ciais, com o a pretensão de correção e a vedação de extrema
injustiça), tem o mesmo caráter interdisciplinar e compreen­
sivo que reivindicamos para a teoria jurídica pós-positivista.
Antônio Cavalcanti Maia, por exemplo, percebe essa caracte­
rística e qualifica a filosofia do Direito contemporânea como
“pletora” , a entrelaçar-se com a filosofia política, conectar a
teoria do Direito com a teoria da Justiça, reabilitar a noção de
razão prática pela via metodológica das teorias da argumenta­
ção e, entre outras coisas mais, a dar conta de reequacionar a
legitimidade da jurisdição constitucional pela via da raciona­
lização da ponderação de princípios [Maia 2005-a:X-XI]. Ao
mesmo tempo, afirma uma “tendência anfíbia” para a filosofia
do Direito que lhe permite transitar entre a teoria geral do
Direito e a filosofia política, entre o campo do descritivo e o do
prescritivo: “ E no âmago dessa tensão entre o descritivo e o
prescritivo que vive o verdadeiro pensamento filosófico, pro­
curando modificar a autocompreensão de fundo dos experts
em Direito e, em muitos casos, motivando-os a participar da
realização do Estado Democrático de Direito como um projeto
histórico” [idem:XII].
Chama a atenção, nesse contexto, o caráter pragmático
assumido pela filosofia do Direito, pois esta há muito já deixou
de ser assunto de filósofos [Habermas 2005-a:57] - fazendo
renascer a noção de racionalidade prática com o ideia-chave
para a racionalização do mundo da vida através da racionali­
zação do próprio Direito. A justificação do Direito - por argu­
mentos - passa a ser vista com o uma demanda interna do Di­
reito, seja em função de normas constitucionais que expressa­
mente estipulam um dever de motivação das decisões judiciais,
seja pelas transformações metodológicas decorrentes do reco­
nhecimento de novas relações entre Direito e Moral (as quais
derivam, como vimos, da pretensão de correção). A filosofia do
Direito cabe, agora, não apenas justificar o Direito como prá­
tica social em sua integralidade, mas também fornecer pautas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que serão utilizadas pelos teóricos do Direito na justificação


de ações e decisões jurídicas concretas. A filosofia do Direito
dá uma guinada para a prática jurídica, pois passa a ser impor­
tante para determinar a forma de se decidir problemas jurídi­
cos em geral, principalmente nos denominados hard cases.
Cresce, nesse contexto, o interesse pelas teorias da argu­
mentação jurídica - o braço mais prático da filosofia jurídica -,
que gradativamente foram se sedimentando a partir dos es­
critos de Perelm an e Viehweg, nos anos de 1950, Alexy,
Dworkin e MacCormick, no final da década de 1970, e de au­
tores com o Atienza, Günther, Aarnio e Peczenik, nas duas
últimas décadas do século X X. Como salienta Maia [1998:400]:
“ Se no início dos anos 70 já se impunha a constatação da im­
portância da retórica e da argumentação à reflexão jurídica,
com o constata Reale [Maia transcreve excerto de Miguel Re-
ale 2002:88 para comprovar esse ponto], no final dos anos 90
pode-se afirmar que esta perspectiva tornou-se uma das mais
ricas áreas do debate de teoria do Direito, (...) o campo mais
rico do debate jusfilosófico contemporâneo” .
As teorias da argumentação jurídica, contrariamente às
perspectivas realistas e normativistas que a antecederam, di­
ferenciam o processo psicológico de construção das decisões
judiciais e a justificação dessas decisões, partindo da premissa
de que ambos podem ser estudados separadamente [Wró-
blewski 1974:35] e situando-se mais no contexto de justificação
que no contexto de descoberta dessas decisões. A distinção
entre contexto de descoberta e contexto de justificação [Atienza
2000:21-26], presente nas teorias da ciência de Reichenbach e
Popper, tem a importante tarefa de delimitar o objeto das teo­
rias da argumentação jurídica: “A descoberta é descrita em
termos da Psicologia e (isso devemos adicionar às palavras de
Popper e Reichenbach) da Sociologia, e a justificação é anali­
sada no vocabulário da Epistemologia e da Lógica. Os resulta­
dos desses approaches são bens diferentes. O primeiro produz
enunciados empíricos sobre a Ciência; entretanto, o status
epistemológico da assim chamada ‘reconstrução racional’ ou
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

análise lógica é significativamente distinto [contexto de justifi­


cação]” [Woleiíski 1979:117].
A partir do momento em que se reconhece a necessidade
onipresente de valorações na atividade jurídico-interpretativa
de modo geral, a grande indagação metodológica da pesquisa
jurídica de modo geral passa a ser “como podem ser justificadas
racionalmente essas valorações” [Alexy 1997-a:28]. A teoria da
argumentação está mais preocupada com as razões de uma de­
cisão que com a mera descrição do modo como ela foi tomada
(como fazia a hermenêutica). O “por quê?” é elevado ao mesmo
status do “com o?” . Ambos passam a ser importantes para a in­
terpretação e aplicação do Direito [Aarnio 1991:14]. Parte-se do
pressuposto da responsabilidade social do intérprete, na medida
em que cresce a demanda pela racionalidade de cada decisão, a
qual não se esgota na simples referência aos textos legislativos
ou a outros materiais autoritativos, mas inclui o uso de “ argu­
mentos apropriados” ou, simplesmente, razões [Aarnio 1990:26].
Através das teorias da argumentação jurídica, a filosofia
jurídica penetra no coração do discurso jurídico para tornar
explícita a referência às razões morais que os juizes sempre
invocaram para justificar suas decisões. Elas deixam claro que
a validade de uma regra jurídica não pode se reduzir à sua au­
toridade e, mais, permitem reconciliar reason efiat [Fuller 1946],
ratio e auctoritas [Bergholtz 1990], ou facticidade e validade
[Habermas 2005-a] em todo e qualquer ordenamento jurídico:
uma boa teoria jurídica será aquela que se volte para os funda­
mentos, para as razões que justificam uma decisão jurídica como
correta, que são em grande parte razões de natureza moral.

2.3.3 Há ainda alguma fronteira entre a teoria jurídica e a


filosofia do Direito? (A teoria da argumentação jurídica
como elemento normativo da teoria jurídica e da filo­
sofia do Direito)

O argumento desenvolvido nos dois tópicos anteriores


nos leva à conclusão de que as esferas da teoria jurídica (teoria
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

geral do Direito) e da filosofia do Direito não podem ser mais


diferenciadas com base em critérios rigorosos como a matéria
sobre a qual elas versam ou a metodologia que elas empregam
[Alexy/Dreier 1990:2-5]. Se buscarmos uma fronteira rígida
entre as duas disciplinas, simplesmente não a encontraremos
mais. Ambas têm por objeto de reflexão o Direito e têm uma
tríplice dimensão - analítica, empírica e normativa - que faz
com que em grande medida a metodologia empregada por elas
seja comum.
Nesse sentido, é possível diferenciar a teoria jurídica e a
filosofia do Direito apenas em função da perspectiva ou do
aspecto de análise de cada uma das duas disciplinas. A teoria
jurídica concerne dianteiramente ao jurista, na busca de solu­
ções concretas para problemas que enfrenta na aplicação do
Direito, ao passo que a filosofia do Direito trabalha com “ o
Direito” enquanto objeto de análise especificamente filosófica,
sendo sua tarefa principal elaborar um conceito de Direito, ou
seja, determinar a natureza do Direito: “A teoria do Direito
|jurisprudence] tal como ela se desenvolveu historicamente e
tal como ela é ainda praticada - e também como ela seria com ­
preendida em termos de uma racionalidade ideal - é baseada
em um aspecto de pesquisa especificamente jurídico. E, nesse
sentido, uma disciplina jurídica [lawyerly], o que pode ser evi­
denciado pela forma como ela é integrada às Faculdades de
Direito e às instituições de pesquisa jurídica. O aspecto jurídi­
co de pesquisa, que ela compartilha com outras disciplinas de
ciência do Direito, está caracterizado pelo fato de que a ciência
do Direito como um todo - direta ou indiretamente - está preo­
cupada em estabelecer aquilo a que as pessoas, em casos
particulares, estão obrigadas a, proibidas de, habilitadas a,
ou lhes é permitido fazer. A filosofia do Direito, por outro lado,
tendo sido estudada em seus primórdios - de Platão e Aris­
tóteles a Kant e Hegel - por filósofos ao invés de juristas, é
tradicionalmente baseada em aspectos de pesquisa especifi­
camente filosóficos, como, por exemplo, o escrutínio da estru­
tura do Direito, para o fim de entender algo sobre certa parte da
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

realidade como um todo e/ou para a elaboração de critérios con­


cernentes à correção ética do Direito” [Alexy/Dreier 1990:3-4]

Podemos adotar a diferenciação proposta por Alexy e


Dreier no excerto logo acima, mas desde que deixemos claro
um aspecto: o de que a filosofia do Direito - embora tenha sido
nos seus primórdios (e também durante o período de hegemo­
nia do Positivismo) um assunto de filósofos, e não de juristas,
hoje é de interesse imediato do próprio jurista prático, na m e­
dida em que o que atualmente diferencia a filosofia do Direito
da teoria geral do Direito é apenas a perspectiva de quem as
elabora, já que “ não há qualquer critério que permita um sis­
tema de enunciados sobre o Direito ser qualificado como per­
tencendo definitivamente à filosofia do Direito ou à teoria do
Direito” [Alexy/Dreier 1990:4]. Quanto aos seus conteúdos, os
enunciados da filosofia do Direito e da teoria jurídica são idên­
ticos [ibidem].
Devemos, portanto, entender a teoria jurídica e a filosofia
do Direito com o dois lados de uma mesma moeda, na medida
em que elas interagem tão proximamente e utilizam conceitos
provenientes uma da outra com tanta frequência que a única
diferença possível de se estabelecer entre as duas disciplinas
é a do ponto de vista adotado pelo estudioso: a teoria jurídica
(jurisprudence) é formulada do ponto de vista interno do Direi­
to, voltada para a atividade judicial e para outros tópicos co ­
nexos à atividade jurídico-decisória, ao passo que a filosofia do
Direito é uma reflexão filosófica sobre o que é o Direito (como
objeto geral) e quais são os limites da sua validade (sejam limi­
tes formais ou materiais).

Portanto, a diferença é apenas uma diferença de abor­


dagem, e que ainda assim não admite uma fronteira rígida,
de m odo que existe uma zona gris significativa entre as duas
disciplinas. Essa zona cinzenta é norm alm ente ocupada
pelas teorias da argumentação, que constituem uma espécie
de “ teoria de m ediação” entre a filosofia do Direito e a teoria
jurídica pós-positivista, pois os enunciados produzidos no
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

cam po das teorias da argumentação jurídica necessariamen­


te interessam tanto ao teórico do Direito quanto ao filósofo
do Direito. De um lado, é nessas teorias que o jurista prático
vai buscar parâmetros normativos para identificar as deci­
sões jurídicas racionais ou corretas, de m odo que essas teo­
rias são de suma importância para a teoria jurídica integral
e com preensiva do Pós-Positivismo, já que nelas é que se
vão buscar os enunciados diretivos (regras de argumentação)
que constituem a dimensão normativa da teoria jurídica, De
outro lado, a pretensão fundamental da filosofia do Direito
- elaborar um conceito geral de Direito, que contenha seus
critérios de identificação - depende em larga medida do tipo
de teoria da argumentação jurídica que se adote, pois o con­
teúdo dos limites materiais do Direito - isto é, o conteúdo do
argumento da injustiça, seus critérios de verificação - há de
ser buscado exatamente através desta última teoria (teoria
da argumentação), que tornará o estudioso capaz de dizer
quando uma norma pode ser considerada “ extremamente
injusta” .

Como explica Aarnio, o significado geral da teoria da


argumentação deve ser entendido no mesmo sentido do sig­
nificado da Filosofia em geral: “E questão de formular os
conceitos por meio dos quais um jurista pode entender sua
própria ação melhor que antes. A teoria da argumentação é,
por exemplo, um instrumento dos juizes para uma melhor
autocompreensão. E, quando esse é o caso, a teoria pode, ao
menos indiretamente, influir e modificar a própria prática
social” [Aarnio 1998:434].

Sem uma teoria da argumentação jurídica inexiste a di­


mensão normativa do pensamento jurídico que é constitutiva
tanto para a teoria geral do Direito quanto para a filosofia do
Direito de matiz pós-positivista. Como se poderá verificar mais
adiante, é no campo das teorias da argumentação jurídica que
se situa a teoria dos precedentes, que desenvolverei nos pró­
ximos capítulos.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

2.4 A teoria dos precedentes como uma teoria jurídica


normativa e procedimental
2.4.1 A teoria do discurso como base de uma teoria normativa
dos precedentes judiciais

O objetivo fundamental deste trabalho é propor uma


teoria normativa do precedente judicial. Pressupondo-se o
conceito de direito pós-positivista enunciado acima (supra, n.
2.3), o que se pretende é construir uma teoria procedimental
da argumentação jurídica com precedentes judiciais, com
vistas a atender às demandas de racionalidade das decisões
judiciais que aplicam precedentes como elementos de justifi­
cação jurídica.
A teoria normativa dos precedentes judiciais pressu­
põe, portanto, o rechaço do não-cognitivism o ético e a rea­
bilitação da ideia de razão prática. A divisão entre o uso
teórico e o uso prático da razão é claramente delimitada por
Kant nas páginas iniciais da sua Crítica da Razão Prática, e
m erece referência nesse momento: “ Ocupava-se o uso teo-
rético da razão de objetivos da mera faculdade de conhecer,
sendo que uma crítica da razão, no que concerne a esse uso,
apenas se referia propriamente à faculdade pura do conhe­
cimento, porquanto esta faculdade despertava suspeitas, as
quais também logo se confirmavam, de que a mesma se
perdia facilmente, para além dos seus limites, em objetos
inacessíveis, ou até em conceitos contraditórios entre si
mesmos. Com o uso prático da razão ocorre coisa bem di­
versa. Nele vemos ocupar-se a razão com fundamentos da
determinação da vontade, que resulta em faculdade de p ro­
duzir objetos que correspondam às representações ou, pelo
menos, determinantes a si próprios na realização de tais
objetos, seja ou não suficiente para isso a faculdade física,
isto é, a de determinar a sua causalidade. Desse modo, pode
a razão, pelo menos, bastar para a determinação da vontade,
tendo sempre realidade objetiva, dentro dos limites da ex­
clusividade do querer” [Kant 1959].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A razão prática é aquela racionalidade que se orienta


para a formação da vontade autônoma (que no sentido kantia­
no é livre de “ inclinações” e influxos externos), bem como para
determinar a correção (moral) da ação humana; como se afirma
contemporaneamente, para determinar o que se deve fazer em
situações de escolha [MacCormick 2006-a].
No entanto, a ideia de razão prática não é aceita sem difi­
culdades. Os representantes do emotivismo, por exemplo, susten­
tam que “enunciados normativos como ‘todos os homens têm
direito à liberdade e à dignidade’ têm somente a função de ex­
pressar ou provocar sentimentos ou atitudes”, que nada teriam
que ver com verdade ou correção [Alexy 2004-d:132]. Entre os
juristas, em especial, a resistência é ainda mais marcante. Como
relata Alexy, “nada menos que Alf Ross e Hans Kelsen conside­
ravam que o conceito de razão prática era um ‘conceito autocon-
traditório’. A razão referir-se-ia somente ao conhecimento; o
campo do prático corresponderia, ao contrário, ao querer. Todavia,
o conhecimento estaria justamente definido pelo fato de não ser
um querer, sendo, por outro lado, constitutivo do querer o fato de
não ter o caráter do ‘conhecer’. Portanto, o conceito de razão
prática seria um ‘conceito logicamente insustentável’” [idem:131].
Apesar dessa objeção, Alexy crê ser possível adotar um
conceito de razão prática e colocá-lo na base de uma teoria do
discurso. A noção de racionalidade prática abarca um número
eclético de características, tais como consistência, coerência,
fundamentalidade, verdade empírica, efetividade, otimização
e reflexividade, servindo como o “ fundamento normativo da
convivência humana e da autocompreensão do indivíduo e da
sociedade” [Alexy 2004-d:133].
Para fundamentar a ideia de racionalidade prática, há no
pensamento contemporâneo pelo menos três caminhos teóricos:
um primeiro de inspiração aristotélica, outro de base hobbesiana
e, finalmente, um terceiro fulcrado numa concepção kantiana
cujo fundamento se encontra na ideia de universalizabilidade.
Como exemplo das teorias aristotélicas, Alexy cita Alas-
dair Maclntyre, para quem “ o projeto da Ilustração havia
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

fracassado” , merecendo rechaço todas as “ variantes do indivi­


dualismo liberal” . Sob este prisma, “toda moral individualista
se apresentaria como um fantasma. A crença nos direitos hu­
manos seria equiparável à crença em bruxas e unicórnios”
[Alexy 2004-d: 133-134]. Assim, restaria tão somente o caminho
de uma vida boa vinculada ao local e ao especial. Trata-se de
uma concepção de razão prática fundada na ética.
Já a vertente hobbesiana, que tem como representantes
Buchanan e Gauthier, “ ampliou a ideia weberiana de racionali­
dade instrumental ao conceito de maximização da utilidade
individual” , oferecendo uma “nova concepção das teorias con-
tratualistas clássicas dentro do marco das teorias modernas da
eleição racional e da negociação racional” [Alexy 2004-d:134-134].
Ambas as vertentes, no entanto, estão sujeitas à objeções.
As teorias contratualistas são vulneráveis em pelo menos dois
pontos. Primeiro, a “assimilação de questões morais a questões
de justiça política (em uma associação de indivíduos sob leis)”
tem como preço que o igual respeito por todas as pessoas não
pode ser justificado por meio delas, o que as torna incompatí­
veis com uma moralidade do tipo universalista [Habermas
1999:15]. Segundo, essas teorias pecam porque não conseguem
lidar com o problema á ofree rider, ou seja do indivíduo que se
insere em uma prática compartilhada mas está prestes a se
desviar das normas firmadas por acordo quando lhe for mais
vantajoso: “ O problema do free rider demonstra que um acor­
do entre partes interessadas não pode em si mesmo fundamen­
tar quaisquer obrigações morais” [ibidem].

As teorias de base aristotélica, por sua vez, fundamentam


sua noção de razão prática em uma determinada ética, ou seja,
em um conjunto de orientações valorativas compartilhadas no
horizonte de uma certa comunidade. Essas teorias escapam à
segunda objeção feita às teorias contratualistas, pois as normas
intersubjetivamente compartilhadas em determinado ethos
funcionam como um critério de correção relativamente obje­
tivo para a ação. Mas uma concepção de razão prática desse
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

tipo falha por ser incapaz de produzir standards ou critérios


para justificação da validade de normas morais, ou seja, válidas
para todos. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma diferença
entre as “orientações valorativas” (value-orientations; Werto-
rientierungen) e as “ obrigações morais” (dbligations; Verpfli­
chtungen): “Julgamos as orientações valorativas e os autoen-
tendimentos valorativos de pessoas ou grupos a partir do
ponto de vista ético, ao passo que julgamos deveres, normas e
imperativos categóricos do ponto de vista moral. Questões
éticas surgem na perspectiva da primeira pessoa. Vista do
ponto de vista da primeira pessoa do plural, elas se referem a
um ethos compartilhado: o que está em jogo é como nós com ­
preendemos a nós mesmos enquanto membros de nossa comu­
nidade, como nós devemos orientar nossas vidas, ou o que é
melhor para nós no final das contas e levando em consideração
todos os aspectos relevantes para o caso” [Idem, p. 26].

Falta nas teorias neo-aristotélicas um ponto de vista m o­


ral que permita resolver questões de justiça em sentido estrito,
ou seja, questões relativas a obrigações morais que possuem
prioridade sobre questões relativas à vida boa. “Enquanto os
deveres forem vistos somente sob o ponto de vista ético, uma
prioridade absoluta do justo (correto) sobre o bom, que segui­
ria vis-à-vis com a validade categórica dos deveres morais, não
pode ser sustentada” . Isso representa um problema sério para
as sociedades pluralistas contemporâneas, pois sem a priori­
dade do justo sobre o bom não se pode construir uma “concep­
ção eticamente neutra de justiça” , a qual se faz necessária para
atender à exigência moral de igualdade de tratamento entre
os diferentes indivíduos e grupos de indivíduos que convivem
em uma sociedade pluralista [Habermas 1999:28].
Revela-se mais atrativa, portanto, a via de se buscar uma
concepção kantiana da razão prática.29 E por essa última via

29. A ideia de universalidade é comum a todas as concepções kantianas


da razão prática. A seguinte passagem de Norberto Bobbio [2000:114]
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que Alexy vai encontrar o fundamento de seu código da


razão prática. A ideia básica de todo seu pensamento jurí­
dico é de que é possível aplicar a teoria do discurso haber-
masiana aos processos de formação de enunciados jurídicos.
Trata-se de uma concepção de racionalidade procedimental
universalista, que se diferencia das teorias contratualistas
de inspiração hobbesiana (que também são teses procedi-
mentalistas) pela configuração do procedimento. “ O procedi­
mento das teorias contratualistas é um procedim ento nego­
ciador; o da teoria do discurso um procedim ento de argu­
mentação” [Alexy 2004-d:136]. Neste sentido, um discurso
prático pode ser racional desde que satisfaça um conjunto de
regras delimitadoras do processo de comunicação intersubje-
tiva. A razão prática, para Alexy, é definida com o “ a facul­
dade que, seguindo esse sistema de regras, chega a intelecções
práticas” [Alexy 1998-b:66].

Como já dito, é na teoria do discurso habermasiana que


Alexy foi buscar o conceito de razão prática. Assim, tanto para
Habermas quanto para ele, um enunciado normativo será
correto somente se puder ser o resultado de um procedimento
comunicativo capaz de lhe conferir aceitabilidade racional.
Nesta medida, Habermas insurge-se contra as várias vertentes
do decisionismo jurídico, que equipara a legitimidade à lega­
lidade, admitindo qualquer conteúdo para as normas jurídicas
válidas num dado Estado. Nas palavras de Habermas, “ o equí­
voco fundamental da teoria decisionista legal, que se sujeita à

esclarece como há uma conexão intrínseca entre universalidade e Direito


no pensamento de Kant: “A sua função [do Direito] não é prescrever este ou
aquele dever substancial com relação aos sujeitos de vários arbítrios, mas
de prescrever-lhes a maneira de coexistir, ou seja, as condições por meio das
quais o arbítrio de um possa coexistir com o arbítrio de todos os outros. De
fato, podemos dizer que, segundo Kant, o Direito é forma universal de coexis­
tência dos arbítrios simples. Enquanto tal, é a condição ou o conjunto das
condições segundo as quais os homens podem conviver entre si, ou o limite
das liberdades de cada um, de maneira a que todas as liberdades externas
possam coexistir segundo uma lei universal”.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

suspeição ideológica, é que a validade das normas legais pode­


ria fundamentar-se em decisões e apenas em decisões” [cf.
Maia 2000: l l ] .30
Desenvolve-se, assim, uma teoria crítica que se insere
numa redescoberta da Filosofia prática, orientando-se pela
pergunta “ o que devo/devemos fazer?” . A solução para esse
problema depende da construção de um espaço público alicer­
çado democraticamente e pautado por um procedimento formal
guiado pela ideia kantiana de universalizabilidade. Antônio
Cavalcanti Maia [2000:19] fornece-nos uma síntese dessa con­
cepção: “Habermas desenvolveu o projeto da ética do discurso
(ou ética da comunicação) que procura analisar os discursos
práticos onde se busca um consenso racionalmente motivado
acerca das normas de convivência social. Assim, ‘a ética do
discurso articula o critério que guia os discursos práticos e ser­
ve de standard para a distinção entre normas legítimas e ilegí­
timas’. Eis que, ao elaborar uma perspectiva na qual se procu­
ra fornecer critérios racionais à justificação dos ditames inte­
gradores da vida coletiva, têm-se repercussões importantes no
campo da filosofia do Direito [as quais foram mais bem eluci­
dadas em obras posteriores de Habermas], na medida em que o
problema da legitimidade pode ser tratado a partir de um dis­
curso racional de justificação, e não deixado ao voluntarismo
é ao irracionalismo, subjacentes às posições positivistas” .31
No que se refere aos discursos teóricos, o conceito-chave
da teoria de Habermas é o conceito de verdade, que para o
professor de Frankfurt está muito mais próximo da ideia de

30. Da afirmação acima não podemos inferir, porém, que no modelo argumen­
tative de Alexy, assim como no de Habermas, não haja espaço para decisões.
O procedimento do discurso prático-jurídico - que inclui um procedimento
de criação estatal do direito (P ), um procedimento de argumentação jurídica
propriamente dita (Pa) e um procedimento judicial (P.) - estabelece meca­
nismos de formação de juízos onde “não só se argumenta mas também se
decide” [Alexy 1998-b:70-73].
31. O trecho em itálico é uma transcrição de Jean Cohen.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

consenso que da mera correspondência entre enunciados e


fatos. Como já vimos (supra, n. 2.2.1), para Habermas, “ só pos­
so atribuir um predicado a um objeto se, também, qualquer
um que pudesse entrar em discussão comigo atribuísse o mes­
mo predicado ao mesmo objeto, de modo que a condição para
a verdade dos enunciados é o assentimento potencial de todos
os demais” .
O conceito habermasiano de verdade distancia-se do
nível semântico (a verdade com o referida ao sentido das pro­
posições ou normas), para se colocar numa perspectiva prag­
mática (a verdade passa a se referir “ aos atos que se realizam
ao dizer algo” ), de modo que “ a base da teoria de Habermas é
uma pragmática universal, que tenta reconstruir os pressupos­
tos racionais, im plícitos no uso da linguagem ” [Atienza
2000:236], Para que possamos compreender o que o autor da
Teoria do Agir Comunicativo quer dizer com isso, é vital levar­
mos em conta as funções que, em sua teoria, desempenham o
conceito de “ entendimento” e a noção (elaborada por Austin)
de “ atos ilocucionários” .32
Para Habermas as ações linguísticas têm importância
maior que as não-linguísticas, porque um ato de fala pode re­
velar a intenção do agente, ao passo que dos atos que se realizam

32. Atos ilocucionários, na filosofia da linguagem de John Austin [1975],


são uma espécie de atos de fala performativos, que se realizam por meio da
linguagem. O que caracteriza um ato de fala ilocucionário é que ele faz ou
realiza algo através da sua enunciação, como em expressões do tipo “declaro
aberta a sessão”, “condeno o réu X a 10 anos de reclusão” etc. Comentando
esse conceito introduzido por Austin, Alexy [1997-a:70] parece esclarecer
satisfatoriamente essa noção: “O ato ilocucionário é o que se faz ao dizer algo.
O que se faz ao dizer algo deve ser diferenciado do que se faz por dizer algo. O
primeiro depende de convenções, o último dos efeitos práticos em uma situ­
ação determinada. A produção de tais efeitos mediante expressões denomina
Austin de ato perlocucionário”. Assim, “no centro da teoria de Austin está o
ato de fala como ato ilocucionário, ou seja, como ação convencional”. Essa
perspectiva exerce uma influência capital nas obras de Habermas e Alexy,
pois “que os atos de fala sejam ações convencionais significa que os mesmos
não seriam possíveis sem as regras que lhes servem de base”.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

fora de contextos comunicativos não podemos inferir os fins


que se pretende alcançar com eles. Como ensina Habermas
[1990:67]: “As ações linguísticas interpretam-se por si mesmas,
uma vez que têm uma estrutura autorreferencial. O com po­
nente ilocucionário determina o sentido da aplicação do que é
dito, através de uma espécie de comentário pragmático. A ideia
de Austin, segundo a qual nós, ao dizermos algo, fazemos algo,
implica a recíproca: ao realizarmos uma ação de fala, dizemos
também o que fazemos. Esse sentido performativo de uma ação
de fala só é captado por um ouvinte potencial que assume o
enfoque de uma segunda pessoa, abandonando a perspectiva
do observador e adotando a do participante” .

Desse modo, os processos de interação por meio de atos


de fala são fonte de racionalidade para as decisões através deles
obtidas, na medida em que se orientam para o entendimento, o
qual tem como fins subalternos a “ compreensão, por parte do
ouvinte, do significado expresso pela fala” e o “ reconhecimento
do proferimento como verdadeiro” [Habermas 1990:68].
Os atos que se destinam a realizar determinados objetivos
através de simples arranjos entre meios e fins apoiam-se numa
estrutura causal que não se vê naqueles outros que, por meio
do uso da língua, visam ao entendimento com o interlocutor. Aos
primeiros Habermas denomina agir estratégico; aos segundos,
agir comunicativo. Na ação estratégica a racionalidade age em
busca de um fim eficiente do ponto de vista causal, enquanto
na ação comunicativa “ a racionalidade dos processos de en­
tendimento mede-se pelo conjunto de condições de validade
exigidas para os atos de fala, por pretensões de validez, que se
manifestam através dos atos de fala, e por razões para o resga­
te discursivo dessas pretensões” [Habermas 1990:70].
No entanto, em escritos mais recentes Habermas subme­
te a uma revisão seu conceito puramente discursivo de verda­
de, pois falta nele uma referência ao mundo: “ Temos de nos
contentar com a aceitabilidade racional nas condições mais
ideais possíveis com o uma prova suficiente de verdade. Por
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

conseguinte, o conceito discursivo de verdade não é exatamen­


te falso, mas insuficiente. Ele ainda não explica o que nos au­
toriza a ter por verdadeiro um enunciado suposto como ideal­
mente justificado” [Habermas 2004-c:284]. Essas autocrítica e
revisão no pensamento de Habermas, no entanto, não serão
relevantes para a teoria dos precedentes que estamos tentando
estabelecer, pois nossas preocupações centram-se em questões
tipicamente práticas.
No discurso prático, diferentemente do teórico, o que se
tematiza não são pretensões de veracidade - por meio das quais
os sujeitos do discurso tentam justificar asserções sobre deter­
minados fatos - , mas pretensões de correção, por meio das
quais se busca demonstrar a validade de uma norma: “A ‘ver­
dade’ de proposições descritivas significa que os estados de
coisas enunciados ‘existem’, enquanto a ‘correção’ das propo­
sições normativas reflete o caráter obrigatório dos modos de
agir prescritos (ou proibidos)” [Habermas 2004-c:269].
Ambos os discursos (teórico e prático) têm, porém, im­
portantes elementos comuns, pois a correção dos juízos morais
se estabelece da mesma forma que a verdade de enunciados
descritivos, ou seja, pela argumentação: “Em ambos os casos a
validade dos enunciados não pode resistir à prova senão pas­
sando discursivamente pelo medium das razões disponíveis”
[Habermas 2004-c:279].
O papel da argumentação, aliás, pode ser considerado
ainda mais essencial no discurso prático que no discurso teó­
rico, na medida em que, como adiantamos logo acima, “ falta
às pretensões de validade moral a referência ao mundo, carac­
terística das pretensões de verdade” , de modo que “ o sentido
da ‘correção’ reduz-se a uma aceitabilidade idealmente justi­
ficada” , ao passo que a noção de ‘verdade’ “ aponta para con­
dições que de certo modo devem ser preenchidas pela própria
realidade” [Habermas 2004-c:279-280].
Portanto, é possível um conceito puramente discursivo
de correção: “ Se, nos discursos práticos, todas as pessoas

1 rvo
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

eventualmente envolvidas chegarem à convicção de que, em


relação a uma matéria que precisa de regulamentação, um de­
terminado modo de agir é igualmente bom para todas, elas con­
siderarão obrigatória essa práxis. O consenso alcançado no dis­
curso tem, para os envolvidos, algo de relativamente definitivo.
Ele não estabelece nenhum fato, mas ‘fundamenta’ uma norma,
que não ‘consiste’ em outra coisa senão ‘merecer’ um reconhe­
cimento intersubjetivo - e os envolvidos partem da ideia de que
podem estabelecer exatamente isso nas condições aproximada­
mente ideais de um discurso racional” [Habermas 2004-c:291].
Um consenso firmado sob condições ideais garante, por­
tanto, a correção dos juízos morais, de modo que “a assertabi-
lidade idealmente justificada é o que queremos dizer com va­
lidade moral” [Habermas 2004-c:291].
A razão prática em Habermas é, portanto, como em Kant,
uma razão legisladora, um projeto construtivista no sentido de
John Rawls [1999].
Porém, nem todos os atos de fala fazem parte do que
Habermas chama de agir comunicativo, já que muitas vezes o
falante visa, através da linguagem, a alcançar simplesmente o
sucesso estratégico, sem se importar acerca do “ entendimento
motivador de convicção” [Habermas 1990:70] (casos tais ocor­
rem quando há emprego de coação, chantagem ou influência
de outros fatores externos ao discurso, como o dinheiro). A
ação estratégica (mesmo quando usa palavras) é uma ação
orientada para o êxito, ao passo que a ação comunicativa é
orientada para a compreensão intersubjetiva [Atienza 2000:306].
A teoria do discurso habermasiana, portanto, lança suas
bases sobre a ideia de um entendimento entre interlocutores,
fundamentado única e exclusivamente na força racionalmente
motivadora dos argumentos construídos e resgatados comuni­
cativamente. Os debates devem, assim, estar livres de com po­
nentes estratégicos que possam influenciar a solução que os
agentes do discurso encontrariam caso estivessem completa­
mente isentos de qualquer forma de coação externa ou violência.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Uma teorização sobre a argumentação é parte substan­


cial neste sofisticado esquema teórico para distinguir, sele­
cionar e estruturar os argumentos (e pretensões de validade
a eles subjacentes, em especial quando se lançam enunciados
normativos) que são utilizados para se chegar ao nível do
entendimento. Necessário é, neste aspecto, estabelecer crité­
rios formais (ou procedimentais). Como explica McCarthy
[1979], as questões fulcrais à teoria de Habermas sobre a ver­
dade podem ser enunciadas da seguinte forma: (1) Como
distinguir um autêntico entendimento de uma mera aparên­
cia de consenso racional? (2) Quais são os critérios para de­
cidir quando um consenso é verdadeiro ou falso? Em linhas
bem gerais, o problema poderia ser formulado assim: com o
distinguir um consenso fundamentado de um meramente
ilusório? McCarthy faz a seguinte síntese da solução da teoria
do discurso para esse problema: “A única saída para esse
dilema, de acordo com Habermas, é pela via de um consenso
‘racionalmente motivado’ - ou seja, aquele alcançado apenas
pela ‘força do melhor argumento’ - inteiramente em termos
das ‘propriedades formais do discurso’ . O termo ‘formal’ não
é empregado aqui em seu sentido usual e lógico-formal. Do
ponto de vista da pragmática, um argumento consiste não em
enunciados, mas em atos de fala, e a evolução de um estágio
a outro [do conhecimento] não pode ser explicada em termos
puramente lógicos. A modalidade fundamental [deformação
do entendimento] não é a necessidade lógica ou a impossibili­
dade (contradição), mas a modalidade pragmática da cogên-
cia (Triftgkeit). A ideia condutora é a de que um consenso é
‘racionalmente motivado’ ou ‘fundamentado’ somente se é
alcançado por meio da cogência dos argumentos empregados
(e não, por assim dizer, por constrições externas ao discurso
ou por constrições ‘internas’ inseridas na estrutura do pro­
cesso discursivo)” [McCarthy 1979].
A especialidade da teoria do discurso de Habermas,
quanto a esses critérios, diz respeito à inclusão (no discurso)
de todos os possíveis afetados pelas interações mediadas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

comunicativamente. Sua teoria pressupõe uma estrutura dia-


lógica do procedimento de fundamentação dos enunciados.
Tendo em vista que o processo discursivo pode se achar sujei­
to à interferência de fatores externos ao discurso, bem como o
fato de que existem coações decorrentes da própria estrutura
de comunicação, Habermas lança mão da ideia reguladora de
situação ideal de fala, que “ exclui as distorções sistemáticas da
com unicação” [Habermas 1984, 1997 e 1999; Alexy 1997-a;
Atienza 2000].

Habermas formula, assim, uma versão sua do princípio


kantiano da universalizabilidade, que pode ser enunciada da
seguinte maneira: “U: Uma norma é válida quando todas as
consequências e efeitos colaterais previsíveis da sua observân­
cia geral sobre os interesses e orientações valorativas de cada
indivíduo possam, sem qualquer forma de coerção, ser conjun­
tamente aceitos por todos os afetados por ela” [Habermas
1999:42].

“U” desempenha, para Habermas, a função de uma regra


de argumentação que especifica como normas morais podem
ser justificadas [Habermas 1999:42]. “U” está no centro da
denominada “ ética do discurso” : “ O modelo ético-discursivo
de justificação consiste na derivação do princípio fundamental
(U) a partir do conteúdo implícito das pressuposições universais
do discurso em conjunção com a concepção normativa de jus­
tificação geral expressa em (D)” [Habermas 1999:43].
Essas pressuposições universais da argumentação podem
ser reveladas pelo método que Habermas denominou “prag­
mática universal” , cuja tarefa é “ identificar e reconstruir as
condições universais do mútuo entendimento possível” [Ha­
bermas 2003:21]. Qualquer pessoa que atue comunicativamen­
te “deve, ao realizar um ato de fala, sustentar pretensões de
validade universal e supor que elas possam ser fundamentadas/
confirmadas [vindicated; einlòsen]” [idem:22]. Mas na ação
comunicativa “ é ingenuamente suposto que as pretensões de
validade implicitamente sustentadas podem ser justificadas” ,
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ao passo que em um discurso as pretensões de validade sus­


tentadas para enunciados e normas são confirmadas de modo
hipotético e expressamente tematizadas [idem:93]. As condições
universais do mútuo discurso são, portanto, as condições que
permitem que todos submetam as pretensões de validade nor­
mativa a um processo de validação argumentativa. E através
de um processo de argumentação que são justificadas as nor­
mas morais resistentes à crítica.
Habermas estabelece uma série de condições ideais de
argumentação - as quais devem ser aproximadas de maneira
ótima - que asseguram a aceitabilidade racional de pretensões
de validade normativa: (1) ninguém que possa oferecer uma
contribuição relevante ao discurso pode ser excluído; (2) a
todos os participantes é assegurada “ igual oportunidade” de
contribuir com seus pontos de vista; (3) todos os participantes
devem acreditar no que afirmam, sustentando (implicitamen­
te) uma pretensão de veracidade; e (4) a argumentação deve
estar livre de coerção externa ou interna, de modo que as ins­
tâncias de “sim” e “não” adotadas pelos participantes acerca
de pretensões de validade criticáveis sejam motivadas unica­
mente pela força racional dos melhores argumentos [Habermas
1999:44]. Diante dessas condições discursivas, U funciona como
uma regra de argumentação para a seleção de normas de ação
em um discurso prático [idem:45].
A partir desse modelo, Robert Alexy chega a um grupo
mais específico de regras da argumentação prática cujo objeto
imediato é o procedimento decisório. Trata-se de um conjunto
de regras aplicáveis a discursos não-monológicos, cujo princi­
pal objetivo é a segurança da “imparcialidade da argumentação
prática e, com isso, da formação prática de juízos que nela se
baseiam” [Alexy 2004-d:137-138]. Trata-se das regras da razão,
do segundo grupo do código da razão prática (regras 2.1, 2.2 e
2.3) proposto por Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurí­
dica, que dizem respeito às condições estabelecidas para a
“ situação de discurso ideal” . As regras da razão, no modelo de
Alexy/Habermas, são as seguintes:
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ (2) Todo falante deve, quando lhe é solicitado, funda­


mentar o que afirma, a não ser que possa dar razões
que justifiquem sua recusa a uma fundamentação.”

“ (2.1) Quem pode falar pode tomar parte no discurso.”


“ (2.2) (a) Todos podem problematizar qualquer asser­
ção.”
“ (b) Todos podem introduzir qualquer asserção no
discurso.”
“ (c) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e
necessidades.”
“ (2.3) A nenhum falante se pode impedir de exercer,
mediante coerção interna ou externa ao discurso, seus
direitos fixados em 2.1 e 2.2” [Alexy 1997-a].

Corretas serão, portanto, as normas que puderem ser


justificadas por um procedimento regulado por essas regras.
Veremos, porém, que outras regras de argumentação poderão
ser adicionadas para garantir com ainda mais segurança a
correção de determinado discurso prático.

2.4.2 O "código da razão prática" de Alexy e a justificação


jurídica33

Com fundamento na teoria do discurso de Habermas,


Alexy elabora uma teoria da argumentação jurídica procedi­
mental que pretende estabelecer um conjunto mais amplo de
regras de argumentação destinadas a guiar a prática jurídica
enquanto raciocínio justificativo. Partindo da tese de que o

33. Nesta seção reproduzo - com alguns cortes - o argumento que desenvolvi
em Bustamante [2005-a:Capítulo 2], para fornecer um panorama da teoria
da argumentação jurídica de Alexy. Como o objetivo, aqui, é apenas dar uma
ideia geral da teoria de Alexy, o texto compreendido entre a presente epígrafe
e o n. 2.4.2.5 é uma transcrição de meu trabalho anterior.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

discurso jurídico é um caso especial de “discurso prático” ,


Alexy cria um “ código da razão prática” que, se bem observa­
do, garante a justificação racional das normas gerais e indivi­
duais cuja validade é resgatada no discurso jurídico. O “ código
da razão prática” é dividido em duas partes: uma parte geral,
constituída pelas regras e formas da argumentação prática
geral - válidas para qualquer tipo de discurso prático -, e outra
especificamente jurídica, composta por regras e formas de
argumentação específicas para o discurso jurídico.
Na essência, a teoria do discurso prático busca funda­
mentar racionalmente proposições normativas que orientam
a ação humana em geral. Parte das teorias de Hare e Toulmin,
segundo as quais sempre “que alguém aduz em favor de uma
determinada proposição normativa N (por exemplo, ‘A agiu
mal’) uma razão G (por exemplo, ‘A mentiu’), pressupõe uma
regra R (por exemplo, ‘mentir é mal’), da qual, juntamente
com G, se infere N logicamente. N pode designar-se, neste
caso, com o fundamentável por meio de G e R ” [Alexy 1997-
a:176]. Todavia, esse esquema lógico de ação apresenta certas
dificuldades, pois ele não resolve, por si só, o problema da
fundamentação da regra R. Quando esta for posta em dúvida,
será necessário referir uma outra regra R’ para lhe servir de
suporte. Isso, contudo, não elimina o problema, pois também
R’ careceria de justificação. Aparentemente, estar-se-ia dian­
te de um regresso ao infinito, sendo que a única forma de
evitá-lo seria interromper em algum momento o processo de
justificação, substituindo-o por uma simples decisão [ibidem].
O autor da teoria da argumentação jurídica pega emprestada
a terminologia de Albert e denomina essa situação de “ trilema
de Münchhausen” .
Não obstante, essa situação pode ser evitada “se a exi­
gência de fundamentação ininterrupta de cada proposição
através de outra proposição se substitui por uma série de exi­
gências na atividade de fundamentação” [Alexy 1997-a:177], as
quais se concretizam por meio de regras que conduzem a ar­
gumentação para a racionalidade. Diferentemente das regras
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

da Lógica, que só se referem às proposições, as regras da dis­


cussão racional também se referem ao comportamento do fa­
lante (regras pragmáticas). Como veremos, essas regras têm
certos limites (dentre outras coisas, não garantem uma única
resposta correta), mas tornam racional a solução alcançada em
respeito a elas.
A teoria de Alexy, portanto, é uma “teoria normativa do
discurso” composta por certas regras de argumentação (do
“discurso prático racional” ) que podem ser consideradas “nor­
mas para fundamentação de normas” [Alexy 1997-a:178].
Ao lado das regras do discurso propriamente ditas, Alexy
estabelece certas formas34 que se referem primordialmente à
dimensão estrutural do processo (linguístico) de construção
racional dos argumentos. Cumpre salientar, porém, que todas
estas formas podem, em última instância, ser também enten­
didas com o regras, pois têm um sentido não meramente des­
critivo, senão também prescritivo. Além das denominadas
“ regras da razão” , que constituem as regras do Grupo 2 do seu
“ código da razão prática” , são estabelecidos os seguintes gru­
pos de regras e formas da argumentação jurídica (v., no final
deste capítulo, a enumeração completa do “ código da razão
prática” ).35

2.4.2.1 Regras fundamentais

No catálogo denominado “regras fundamentais” Alexy


refere-se àquelas que constituem as condições prévias da pos-

34. Cumpre, antes de mais nada, precisar o sentido em que Alexy emprega a
expressão “forma de argumento”. Tomando por base o esquema de inferência
valorativa de Toulmin, a locução “forma de argumento” “designa a estrutura
da proposição (C) afirmada por um falante e das proposições aduzidas ou
pressupostas para o apoio desta proposição (D e W)” [Alexy 1997-a:102]. Para
entender tal esquema, v., infra, nota 36.
35. Indicarei a seguir, entre parêntesis, as regras particulares a que farei
referência nos próximos parágrafos.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

sibilidade de comunicação linguística em que se trate de ver­


dade ou correção. São válidas para qualquer discurso, seja
monológico ou dialógico, considerando-se fundamentais, pelo
caráter elementar nelas presente.
Compõem este catálogo: as regras fundamentais da Ló­
gica, em especial da Lógica Deôntica (Regra 1.1); o princípio
da sinceridade (1.2) - sem o qual “ sequer seria impossível
mentir, pois na ausência de uma regra que pressupõe a sin­
ceridade seria impossível a decepção” ; o princípio kantiano
da universalizabilidade (1.3) - base da teoria procedimenta-
lista da argumentação prática; e, finalmente, uma regra prag­
mática sobre o uso da linguagem, sem a qual o entendimento
se torna impossível (1.4), tendo em vista o princípio lógico do
terceiro excluído.
Quanto ao princípio da universalizabilidade, Alexy faz
referência a uma versão elaborada por Hare em vista da argu­
mentação moral (1.3’), a qual é mais apropriada para a funda­
mentação de enunciados normativos.

2.4.2.2 Regras sobre a carga da argumentação

O discurso prático de Alexy é problematizável por qual­


quer dos afetados pelas decisões normativas levadas a cabo
por meio dele (2.1). Este modelo argumentativo, ao pretender
superar o regresso ao infinito decorrente de sucessivos ques­
tionamentos acerca das premissas utilizadas para fundamen­
tar afirmações normativas, pressupõe um conjunto de regras
técnicas destinadas a resolver a complicada questão da “ ex­
tensão” e da distribuição dos encargos da argumentação ou
da fundamentação.
Há quatro regras destinadas a cumprir esta função: a
primeira delas (3.1) estabelece uma presunção a favor da igual­
dade de tratamento, que decorre de (1.3’) e (2); a segunda delas
(3.2) é uma reprodução do princípio da inércia de Chaim Pe-
relman, segundo o qual “uma norma que seja pressuposta como
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

verdadeira ou com o válida na comunidade dos falantes, mas


não afirmada ou discutida expressamente, só pode ser ques­
tionada se se indica uma razão para tanto” [Alexy 1997~a:192].
As duas últimas regras tratam de (3.3) evitar interferên­
cias desnecessárias no discurso e (3.4) determinar a extensão da
Regra 2 (a qual exige a justificação de todas as afirmações nor­
mativas utilizadas no discurso prático).
As regras que estabelecem cargas de argumentação de­
sempenham uma tarefa especial também no que concerne à
argumentação jusfundamental, que tem a peculiaridade da
menor vinculação à lei ordinária, uma vez que as normas sobre
direitos fundamentais, além de terem status constitucional, são
em geral muito abstratas, abertas e ideologizadas [Alexy 1997-
b:532]. Neste domínio - onde se põe a necessidade de estabe­
lecer um sistema de prioridades prima fa cie entre direitos
fundamentais, a fim de resolver as chamadas “ colisões de di­
reitos fundamentais” - as regras sobre as cargas da argumen­
tação criam “ uma certa ordem no cam po dos princípios”
[Alexy 1998-a:19].

2.4.23 As formas de argumento

As formas de argumento, que junto com as regras ou stan-


dards compõem o “código da razão prática” , dizem respeito à
estrutura dos argumentos nos discursos de fundamentação. Em
todos os discursos práticos a tarefa da argumentação é justifi­
car proposições normativas singulares (N). Para Alexy [1997-
a:193], há dois modos de levar a cabo essa empreitada: por um
lado, pode-se “ tomar como referência uma regra (R) pressu­
posta como válida” ; por outro, pode-se referir às “consequên­
cias (F) de se seguir o imperativo implicado em (N)” .36

36. Ao estabelecer “formas de argumentos” para o discurso prático, Alexy


busca sustentação na teoria da argumentação desenvolvida por Stephen E.
Toulmin para o discurso ético geral. Para Toulmin, existiriam, ao lado das
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

No primeiro caso (justificar uma proposição normativa


singular por meio de uma regra) parte-se do pressuposto de
que as condições justificadoras - por exemplo, um enunciado
de fato (T) - para a aplicação da regra (R) foram atendidas. No
segundo - partindo-se das consequências como razões para
(.N) -, pressupõe-se, também, a existência de uma regra que

regras de inferência lógica, regras de inferência “específicas para argumentos


éticos”, as quais permitiriam passar de razões fáticas (G) a uma conclusão
normativa (N) (que Toulmin denomina “conclusão valorativa”) [Alexy 1997-
a:91 e ss.]. Para chegar a essas regras de inferência, tenta Toulmin estabe­
lecer alguns critérios para o uso adequado da linguagem moral: fidelidade
predicativa (predictive reliábility), coerência (coherence) e conveniência
(convenience).
Toulmin [2001:2] procura, ainda, fornecer critérios para avaliar e criticar os
argumentos geralmente utilizados para resolver questões práticas, pois “nos­
sa capacidade para compreender as respostas que temos” progrediu muito
pouco desde Aristóteles, quando a Ciência da Lógica nasceu. Nessa toada,
critica substancialmente as tentativas de enxergar a Lógica a partir de um
modelo puramente matemático; para os juízos práticos, mais adequado seria
um modelo científico-jurídico: “A lógica é jurisprudência generalizada. (...)
as alegações que fazemos e os argumentos que usamos para ‘defendê-las’,
em contextos extralegais, são como as alegações que as partes apresentam
nos tribunais. O paralelo entre a Lógica e as práticas do Direito tem a grande
vantagem de pôr em evidência a.função crítica da razão, visualizando as leis
da Lógica como padrões de realização por meio dos quais os argumentos
podem ser julgados” [idem:ll].
E nesse contexto que Toulmin estabelece o seguinte esquema de inferência
para argumentos éticos e jurídicos:
D -> C
*
W
*
B
Neste esquema, C é uma pretensão (claim) que se fundamenta em
um dado fático (D); W, por sua vez, é uma garantia (warrant) que, substancial­
mente, pode ser designada como uma regra de inferência (inference-licence);
B, que designa a expressão Backing, destina-se a garantir W, caso isso seja
necessário, e corresponde a um novo dado (D’). A passagem de B a W pode,
eventualmente, desencadear todo um processo semelhante; as passagens de
D a C e d e B a W encontram-se, portanto, em níveis de justificação diferentes.

ono
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

expressa “que as consequências são obrigatórias ou boas”


[Alexy 1997-a:194]. Há, assim, um relacionamento entre as duas
formas de fundamentação de proposições concretas. Os dois
modelos podem ser representados da seguinte maneira:37

(4.1) T (enunciado de fato) (4.2) F (consequências de N)

R íregra)_______ . R (regra)_____________ ._

N (proposição normativa) N (proposição normativa)

Ambos são “ subfórmulas” da forma geral de justificação


elaborada por Stephen E. Toulmin:

(4) G

E
N

Esse esquema de construção das afirmações normativas


deixa sempre aberta a questão sobre a verdade de T (no caso
de 4.1) ou sobre se F é realmente uma “ consequência da ação
posta em questão” . Pode haver um discurso de justificação
de R, através de uma nova regra (i?0 [Alexy 1997-a:195]. R e­
sultam, doravante, as seguintes formas de argumentos “de
segundo nível” :38

37. Nas palavras de Alexy [1997-a:94] (comentando a teoria de Toulmin), a


primeira forma (4.1) justifica-se mediante a indicação de uma regra, ao pas­
so que a segunda (4.2) o faz mediante a indicação de suas consequências. A
primeira forma é deontológica; a segunda, teleológica. Cabe ressaltar, aqui,
a importância de (4.2) para o discurso prático, pois ela tem uma função crí­
tica que serve ao desenvolvimento do sistema moral (ou jurídico), a qual se
cumpre “mediante a adaptação do sistema moral às novas circunstâncias,
almejando-se a meta de evitar o sofrimento indesejável”.
38. Em (4.4), T’ é uma condição que não pode ser descrita como uma con­
sequência de R.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(4.3) F. (consequências de R) (4.4) T

R’ (regra de 2° nível-) R’ (regra de 2° nível)

R R

Em todos os casos de (4.1) a (4.4) subsiste a questão de


saber qual deve ser a regra R, em função da qual o enunciado
N será construído. Isso implica, assim, uma necessidade de
ponderações e escolhas, as quais somente podem ser solucio­
nadas se forem estabelecidas regras de prioridade [Alexy 1997-
a:196]. Essas regras de prioridade estabelecem uma relação de
preferência entre duas regras (ou duas possíveis interpretações
de uma regra) (4.5), que pode, em certos casos, ser condiciona­
da a determinadas hipóteses - expressas numa condição C (4.6).
No caso de (4.6) há uma relação de precedência condicionada,
ou seja, a regra R só irá prevalecer sobre a regra Rk quando
estiver presente a condição C, enquanto no caso de (4.5) a regra
R prevalecerá sobre Rkindependentemente de qualquer con­
dição.
Caso não compreendamos bem as estruturas formais de
construção argumentativa das proposições normativas, torna-
se impossível fornecer uma solução racional para o problema
da fundamentação dos enunciados normativos particulares.
Isso se faz especialmente relevante (para o Direito) nos casos
onde a lei positiva não fornece de imediato uma solução dedu-
tível logicamente, onde é maior a necessidade de argumentar.
Para o caso específico da argumentação jusfundamental
(isto é, a espécie de argumentação jurídica referida à aplicação
de direitos fundamentais), que ocorre no mais das vezes dian­
te de colisões de princípios,39é ainda mais necessário conhecer

39. Trata-se, aqui, da conhecida distinção alexyana entre princípios (man­


dados de otimização) e regras (normas que só podem ser cumpridas ou
não), exposta na Teoria dos Direitos Fundamentais [Alexy 1997-b:86-87]. De
acordo com essa perspectiva, colisões de princípios solucionam-se através de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

essas estruturas, pois é a partir dessas relações de precedência


condicionada (4.6) que se resolverá o conflito normativo, atra­
vés da “lei de colisão” (K).i0

2.4.2.4 Regras de fundamentação

As regras e formas anteriormente resumidas “deixam em


aberto um amplíssimo campo de indeterminação” , de modo
que se torna necessário estabelecer um quinto grupo de regras,
que diz respeito à fundamentação por meio das formas ante­
riores [Atienza 2000:248].
Dois subgrupos de regras são enumerados por Alexy. O
primeiro deles é composto por três variantes do princípio da
universalizabilidade: o princípio da troca de papéis, de Hare
(5.1.1); o princípio habermasiano do consenso (5.1.2); e o prin­
cípio da publicidade, que Alexy atribui a Baier (5.1.3).
O segundo subgrupo é composto pelas regras (5.2.1),
(5.2.2) e (5.2.3), que dizem respeito aos fatores históricos refe­
ridos à sua gênese individual e social, a fim de estabelecer uma
relação mais imediata entre o discurso ideal e os dados de fato.

2.4.2.5 Regras de transição

O último grupo de regras do discurso prático geral pos­


sibilita ao orador recorrer a discursos de tipos diferenciados:
o discurso empírico (6.1), o analítico (6.2) e o próprio discurso
prático (6.3). As regras de transição são um mecanismo para
que argumentos provenientes de diferentes tipos de discursos
possam ser aproveitados no discurso prático.

ponderações, ao passo que conflitos de regras se resolvem ou pela invalidade


de uma das regras em questão ou, então, estabelecendo-se uma relação de
especialidade entre elas.
40. Para uma exposição detalhada da lei de colisão, v. Alexy [1997-b:94], além
do texto que segue no Capítulo 3, infra, n. 3.3.2.3.2, (A.2), deste trabalho.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

2.4.2.6 Limites do discurso prático e a necessidade de uma


teoria normativa do precedente judicial

As regras e formas do discurso prático geral, tratadas


acima, aumentam a possibilidade de se alcançar um acordo
sobre questões práticas, mas não podem garantir que esse
acordo alcançado seja definitivo e irrevogável. Alexy [1997-
a:201] apresenta três motivos para isso:
- as regras da razão (2.1)-(2.3) só podem ser cumpridas
de maneira aproximada;
- nem todos os passos de argumentação estão determi­
nados;
- todo discurso deve partir de concepções normativas
historicamente dadas, e por isso mutáveis.
As regras do discurso servem para tornar algumas solu­
ções impossíveis e outras necessárias; mas, em certos casos,
elas permitem que se decida acerca de duas hipóteses contra­
ditórias. Por isso mesmo, elas não bastam para orientar a
busca de respostas para problemas jurídicos, uma vez que o
discurso jurídico se dá diante de um conjunto de circunstâncias
especiais (limites institucionalizados) que demandam um gru­
po de regras próprias, a fim de diminuir a margem de insegu­
rança (embora seja impossível eliminá-la) e aumentar a con-
trolabilidade das decisões.
A solução de Alexy para os problemas epistemológicos
que surgem na interpretação, desenvolvimento e aplicação do
Direito é considerar o discurso jurídico como um caso especial
do discurso prático geral, que se caracteriza pela vinculação
ao Direito vigente. Nas disputas jurídicas nem tudo está expos­
to a discussão: há uma série de limitações que tornam a argu­
mentação jurídica um tipo de discurso que exige a criação de
certas regras próprias.
A Tese do Caso Especial/TCE, para Alexy [1997-a:38-39],
poderia ser entendida em três sentidos diferentes: “ (a) no
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

primeiro deles, poderíamos entender que a fundamentação


jurídica só serviria para a legitimação secundária do resultado
obtido por meio do discurso (tese da secundariedade); (b) no
segundo deles (tese da adição), a argumentação jurídica chega
até um certo ponto em que já não são possíveis outros argu­
mentos especificamente jurídicos” , onde tem que entrar em
jogo a argumentação prática geral; (c) o terceiro sentido é o de
que “ o uso de argumentos especificamente jurídicos deve se
unir, em todos os níveis, ao dos argumentos práticos gerais”
(tese da integração). E nessa acepção que deve ser entendida
a teoria de Alexy.
De acordo com esta última perspectiva, o discurso jurí­
dico não expressa “ somente uma variante especial do discurso
prático que é necessária para colmatar racionalmente as lacu­
nas do sistema jurídico” . Melhor entendido, ele é, em sua es­
trutura global, um elemento necessário da racionalidade dis­
cursiva realizada [Alexy 1997-c:315]. O fundamento da espe­
cialidade da argumentação jurídica em relação ao discurso
prático é a seguinte cadeia de argumentos: “ (1) (...) as discussões
jurídicas se referem a questões práticas, quer dizer, a questões
sobre o que se deve fazer ou omitir, ou o que se pode ser feito
ou omitido, e (2) estas questões são discutidas desde o ponto
de vista da pretensão de correção. Trata-se de um caso especial,
porque a discussão jurídica (3) tem lugar sob [certas] condições
de limitação” [Alexy 1997-a:206-720].
Não é problemática a aceitação da primeira premissa,
isto é, de que as questões jurídicas são questões práticas, que
orientam uma ação humana - ou seja, que dizem o que está
proibido, permitido ou obrigatório. Mais difícil de aceitar é a
pretensão de correção dos enunciados sustentados por meio de
argumentos - típica do agir comunicativo, na perspectiva da
teoria do discurso de Habermas. Para Alexy [1997-a:213] ela
também está presente nos discursos jurídicos, com a diferença
de que neles não se exige que as proposições normativas sejam
apenas racionais, mas que possam ser racionalmente justifica­
das no marco do ordenamento jurídico vigente. A ausência
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

desta pretensão de correção nas asserções e afirmações nor­


mativas (quaisquer delas) é algo inconcebível para a teoria do
discurso, pois implicaria uma “ contradição performativa” por
parte do falante (v., supra, n. 2.2.1).
Tanto as decisões judiciais (e também todas as normas
jurídicas individuais) quanto o “sistema jurídico em sua tota­
lidade” têm necessariamente uma pretensão de correção. Não
seriam “ sistemas jurídicos” se não a tivessem, e serão defei­
tuosos quando, embora a tenham, não a satisfaçam [Alexy
1998-c:51]. Uma decisão judicial pretende, então, sempre apli­
car corretamente o Direito [idem:54].
A Tese do Caso Especial decorre especificamente da ter­
ceira consideração, ou seja, do fato de que com as afirmações
e decisões jurídicas não se pretende que estas sejam tão so­
mente corretas, mas que sejam corretas à luz do ordenamento
jurídico vigente [Alexy 1997-c:314]. O que é considerado cor­
reto num sistema jurídico “depende do que é autoritária ou
institucionalmente fixado” , de modo que uma decisão não pode
contradizer o autoritariamente estabelecido e deve ter coerên­
cia com todo o sistema: a argumentação jurídica está limitada
pela legislação e pelos e precedentes, devendo também obser­
var o sistema elaborado pela dogmática [Alexy 1999-b:375].
A pretensão de correção41 que se sustenta nas decisões
judiciais abarca, consequentemente, dois aspectos [Alexy

41. A palavra “correção” na teoria do discurso racional de Robert Alexy tem


significado peculiar, coerente com a concepção de racionalidade comunica­
tiva por ele adotada. Quando Alexy sustenta que sua teoria da argumentação
funda-se em regras procedimentais destinadas a garantir a correção de enun­
ciados práticos empregados nos discursos de fundamentação/justificação
jurídica, não considera correto “qualquer resultado de uma comunicação
linguística, senão somente o resultado de um discurso racional” [Alexy
1997-c:292]. Cabe às denominadas “regras da razão prática” alcançar essa
correção. No bojo desse conceito de correção incluem-se: (a) a “bondade
dos argumentos” , a qual é garantida por regras como as “exigências de
não-contradição (1.1), de universalização (1.3) (...), de claridade linguístico-
conceitual (6.2), de verdade empírica (6.1) etc.”; e (b) a pressuposição de que
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

1997-c:316]: (a) que a decisão se fundamente corretamente d


luz do Direito válido, independentemente de como este tenha
sido criado; e (b) que o Direito válido seja racional ou justo.
Essa noção da pretensão de correção jurídica (a qual
parece assumir um sentido mais específico que a noção de
correção simpliciter, que significa apenas a resgatabilidade
discursiva em um discurso universalmente acessível) viabiliza
que Alexy busque certas regras e formas de argumentação es­
pecíficas para o discurso jurídico, que se destinam a estabelecer
critérios para a justificação da decisão jurídica, e não mais para
o discurso prático de modo geral. Para assegurar a racionali­
dade de uma decisão jurídica não basta a obediência das regras
e formas do discurso prático: é necessário também observar
as regras e formas da argumentação jurídica.
Não iremos, aqui, revisar todas essas regras e formas,
pois aqui queremos apenas uma teoria normativa dos prece­
dentes judiciais. Quanto à argumentação por precedentes,
Alexy propõe duas regras gerais [Alexy 1997-a:265]:
“ (J.13) Quando se puder citar um precedente a favor ou
contra uma decisão, isso deve ser feito.”
“ (J.14) Quem quiser se afastar de um precedente assume
uma carga de argumentação.”
Como se pode observar, Alexy limita-se a invocar o prin­
cípio perelmaniano da inércia como diretiva geral para a ar­
gumentação por precedentes. Em Perelman, o princípio da

“os participantes no discurso estão em princípio em condições de ter ideias


ou possuir imaginação, e, assim, distinguir as boas das más razões em favor
de enunciados substantivos” . A ideia de correção (de uma pretensão defen­
dida numa situação comunicativa) compreende, portanto, todos os critérios
de racionalidade imagináveis, tanto os que servem para avaliar a própria
bondade ou aceitabilidade dos argumentos quanto aqueles outros que dizem
respeito às condições de participação discursiva de cada indivíduo (2.1-2.3)
[idem:292-293]. É correto um enunciado que reúna todas as condições de
se justificar à luz dos parâmetros fornecidos pelas regras da racionalidade.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

inércia assume a seguinte forma: “Podemos presumir, até pro­


va em contrário, que a atitude adotada anteriormente - ou
opinião expressa, conduta preferida etc. - continuará no porvir,
seja pelo desejo de coerência ou graças à força do hábito. (...).
A inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o
atual. (...). A mudança, pelo contrário, deve ser justificada; uma
decisão, uma vez tomada, não pode ser revertida senão por
razões suficientes” [Perelman/Olbrechts-Tyteca 1970:140].
É claro que o princípio da inércia é uma valiosa regra
de argumentação que decorre do próprio dever de motivação/
fundamentação, além de encontrar fundamento nas ideias
de universalidade, impessoalidade e igualdade de tratamen­
to. E, portanto, um elemento vital do princípio da justiça
formal.
No entanto, é insuficiente para vindicar uma teoria sa­
tisfatória do precedente judicial, pois esta tem de lidar com
uma gama de questões muito mais ampla, que permanecem
sem resposta, como, por exemplo, (1) o tema da interpretação
dos precedentes - em especial o problema da determinação da
ratio decidendi e do valor dos obiter dicta encontrados em cada
decisão judicial - , (2) a questão de se determinar a força do
precedente judicial e o peso dos argumentos necessários para
modificá-lo, (3) a forma, o fundamento e os limites da extensão
de uma regra jurisprudencial por analogia, (4) os critérios para
o distinguishing e a redução teleológica de precedentes judiciais
e um amplo universo de questões secundárias - mas extrema­
mente importantes para o jurista prático - que surgem na
aplicação prática de precedentes judiciais.
Por isso, urge ir além - diríamos até: bem mais além - da
teoria da argumentação jurídica de Alexy, embora se possa,
para isso, confiar nos resultados que ela consegue alcançar.
Tentaremos, a seguir, caminhar nesse sentido, levando adian­
te o projeto alexyano de racionalizar a prática jurídica de modo
geral e buscando estabelecer novas regras para a argumenta­
ção com precedentes judiciais. Antes de ir adiante, porém,
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

analisaremos as críticas de Habermas e Günther à Tese do


Caso Especial e exporemos a distinção que Günther estabe­
lece entre discursos de justificação e discursos de aplicação,
pois - embora não iremos adotar os argumentos desferidos
contra a Tese do Caso Especial - essa última distinção pode
ser um bom fio condutor para o desenvolvimento de uma
teoria da argumentação com precedentes judiciais, na medi­
da em que ela - ao contrário do que parece - não é contradi­
tória às teses fundamentais da teoria de Robert Alexy, que
tomei com o ponto de partida.

2.4.3 O Direito como "discurso de aplicação": a contribuição


de Klaus Günther

O modelo de coerência para a teoria da argumentação no


Direito e na Moral proposto por Klaus Günther, se combinado
com a teoria da argumentação jurídica de Alexy (com as res­
salvas necessárias), pode fornecer a base para uma teoria
adequada do precedente judicial. Vejamos antes, porém, as
críticas de Günther à Tese do Caso Especial.

2.4.3.1 A crítica à Tese do Caso Especial/TCE e a diferença


entre "justificação" e "aplicação"

Antes de introduzir a principal inovação metodológica


da teoria de Günther - a diferença entre “justificação” e “ apli­
cação” - , cumpre comentar a crítica que este autor formula
à Tese do Caso Especial/TCE de Robert Alexy, que constitui
um dos seus pontos de partida para considerar o discurso
jurídico não com o um caso especial de discurso prático, mas
com o um caso especial de discurso de aplicação. Para Günther
há uma diferença fundamental entre normas morais e jurídi­
cas, tida como “ óbvia” : “Normas morais pretendem ser válidas
para todos os afetados por elas; sua pretensão é universalista,
no sentido de elas deverem ser aceitas por todos com base em
uma deliberação racional. Normas jurídicas não pretendem
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ser válidas para todos, mas apenas para os membros de uma


comunidade jurídica concreta” [Günther 1993-a:146]. A tese
de Alexy segundo a qual o discurso jurídico seria um caso
especial de discurso prático - sendo que a diferença seria
apenas que o primeiro está submetido a certas constrições
institucionais - é veementemente rejeitada, na medida em
que os discursos jurídicos são tidos como qualitativamente
diferentes dos morais.
Há uma diferença fundamental entre os dois autores no
próprio conceito de “ correção” . Em Günther a pretensão de
correção é considerada uma pretensão de validade que é sus­
tentada em atos de fala regulativos e que “somente pode ser
substanciada pelo princípio da universalizabilidade em um
discurso prático” . Na argumentação moral essa universaliza­
bilidade “ não é uma regra discursiva entre outras, mas a regra
central da argumentação moral” [Günther 1993-a:152]. A argu­
mentação jurídica, por outro lado, “ sempre se refere a uma
norma que já é [considerada] juridicamente válida, isto é, cuja
validade jurídica não pode ser posta em questão no raciocínio
jurídico” [ibidem].
A noção de correção difere fundamentalmente em seu
sentido quando é empregada no discurso prático e no discurso
jurídico. No discurso prático correção significa “ aceitabilidade
racional, aceitabilidade apoiada por bons argumentos” [Ha­
bermas 2005-a:298]. No discurso jurídico, de acordo com o
próprio Alexy, há “dois aspectos diferentes da pretensão de
correção” : um que se refere à “ correção da decisão no marco
da ordem jurídica válida” e outro que se refere à “ racionalida­
de ou justiça do Direito positivo” [Günther 1993-a:153].42 Na
argumentação jurídica os participantes estão obrigados a obe­
decer às normas válidas, e não apenas às que puderem ser
universalmente justificadas por meio de um discurso racional:
“A validade jurídica tem uma dupla função. Ela estabelece certas
normas como válidas, que expressam os traços característicos de

42. V, supra, neste capítulo, ns. 2.2.1 e 2.4.2.6.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

uma comunidade jurídica. E ela fixa algo como um ‘marco’ ou


‘divisor’ nas razões jurídicas, que torna obrigatório para os
participantes de procedimentos institucionalizados de aplica­
ção do Direito levá-las em consideração” [idem: 154].
Portanto, para Günther, mais correto que classificar o
discurso jurídico como uma espécie de “discurso prático” seria
considerá-lo como um discurso de aplicação, cujo objeto não é
resolver problemas de justificação da validade de normas, mas
as questões que surgem no momento de sua aplicação impar­
cial: “ Se for introduzido um segundo tipo de discurso prático,
o discurso de aplicação, que é governado pelo princípio da
adequação [appropriateness], é mais fácil explicar a diferença
entre esses dois aspectos [indicados por A lexy] da pretensão
de correção e pode-se evitar uma mistura obscura. A caracte­
rização do raciocínio jurídico com o uma prática que busca
decisões que são corretas no marco de uma ordem jurídica
válida se amolda com muito mais facilidade à concepção de um
discurso de aplicação. A pretensão de correção, que é sustenta­
da no raciocínio jurídico, seria, então, uma pretensão de ade­
quação jurídica” [Günther 1993-a:153].
Mais plausível, portanto, seria conceber o discurso jurídico
como um caso especial de discurso de aplicação de normas. Veja­
mos quais são as notas características desse tipo de discurso.
Diferentemente de Alexy, que distingue entre regras e
princípios, para Günther “não pode haver dúvidas acerca do
fato de que uma norma não pode existir sem apresentar uma
referência, por mais tênue que seja, a situações concretas”, de
modo que “ toda norma moral se caracteriza por ser ‘impreg­
nada de caso’ [case-impregnated]” [Günther 1993-b:15]. Todas
as normas teriam a mesma estrutura hipotético-condicional,
o mesmo código binário - retratado na formulação condicional
do tipo “ se, então” - e, portanto, as mesmas propriedades ló­
gicas e deontológicas.
O que haveria, na realidade, não seriam normas que têm
uma estrutura diferente ou um caráter prima fa cie mais ou
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

menos acentuado - de um lado, os princípios, mandados de


otimização; de outro, as regras, mandados definitivos -, mas
diferentes situações de aplicação das mesmas normas. Para
Günther o melhor seria falar em diferentes comportamentos de
colisão, de modo que a distinção entre regras e princípios diz
respeito menos à estrutura das normas que à sua aplicação em
situações concretas, nas quais a aplicação imparcial de normas
demanda a consideração de todos os sinais característicos
[Günther 1993-b:214].
Ao invés de dizer “ há normas do tipo regra” e “ há nor­
mas do tipo princípio” , sendo que os conflitos entre as pri­
meiras são resolvidos na dimensão da validade - que é inva­
riável - e as colisões entre os últimos são resolvidas na dimen­
são de peso - que é gradual -, Günther prefere concluir que
no primeiro caso há um comportamento colisivo na dimensão
dafundamentação da validade das normas jurídicas - ou, como
diz Günther, há uma “colisão interna” -, ao passo que no se­
gundo há um comportamento colisivo na dimensão da aplica­
ção das normas, consideradas todas as características do caso
concreto - ou, simplesmente, uma “ colisão externa” [Günther
1995:281-nota 12].
Subjaz a essa ideia a distinção entre discursos de justifi­
cação e de aplicação de normas morais e jurídicas.
No primeiro caso - discursos de justificação - está em jogo
o reconhecimento da validade de cada norma, de modo que o
discurso se volta para a universalizabilidade das normas em
questão. Um discurso de justificação em que se verifique uma
colisão diz respeito a normas que não podem ser generalizadas
ao mesmo tempo, ou seja, que simplesmente não podem subsis­
tir no mesmo sistema e simultaneamente [Günther 1995:273].
No segundo caso - discurso de aplicação - não há qual­
quer disputa acerca da validade ou pertinência de uma norma
a dado sistema de referências, mas a aplicação imparcial des­
sas mesmas normas a uma dada situação concreta, considera­
das todas as circunstâncias e características do caso.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Günther reconhece, desde o início, a impossibilidade de


existir uma “norma perfeita” capaz de prever, abstratamente,
todas as suas hipóteses de aplicação, de sorte que o discurso
de justificação das normas em geral se processa mediante cer­
tas condições de limitação decorrentes da incapacidade geral
de se prever - de antemão - todas as situações em que a norma
deverá ser aplicada e, eventualmente, excepcionada. Por con­
seguinte, remete-se para um momento posterior - o da atual
aplicação da norma às hipóteses abstratamente reguladas por
ela - o debate sobre sua adequação ao contexto fático e jurídi­
co sobre o qual vai incidir.
A partir dessa diferenciação entre discursos de justifica­
ção (“ cujo conteúdo é a justificação de uma norma geral de
ação” , isto é, um juízo sobre sua validade) [Günther 1993-b:27]
e de aplicação (cujo objeto é a “pertinência da aplicação de
uma norma geral a um caso particular” ) [Günther 1995:273],
Günther distingue duas versões diferentes do princípio U de
Habermas, que podem ser testadas como possíveis regras de
argumentação prática.
Em uma versão “forte” ou “rigorosa” , o princípio U as­
sumiria a seguinte configuração: “Usíror‘9: Uma norma é válida
e, em qualquer hipótese, adequada se em cada situação especial
as consequências e os efeitos colaterais da observância geral
desta norma puderem ser aceitos por todos, e considerados os
interesses de cada um individualmente” [Günther 2004:65].
Como o próprio Günther reconhece, essa versão de U
peca porque opera com uma condição idealizante que intuiti­
vamente nós não podem os aceitar: a condição de que nós
possamos “antecipar todas as situações em que a norma será
aplicável” . “ Somente se o nosso conhecimento incluísse todos
os casos de aplicação de uma norma nós poderíamos combinar
o juízo sobre a validade de uma norma com o juízo sobre sua
aplicação” [Günther 1993-b:34].
Mais plausível revela-se, portanto, a versão frágil de U:
“jjiaeak. Uma norma é válida se as consequências e os efeitos
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos,


sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada
um, individualmente” [Günther 2004:67].
Essa versão “frágil” do princípio da universalizabilidade
habermasiana tem a peculiar característica de inserir em U as
variáveis do momento atual e do estágio de conhecimento em
que se processa o discurso de justificação das normas em geral.
Noutros termos, “ só serão consideradas [na justificação da
validade das normas] as consequências e os efeitos colaterais
[da sua aceitação] que previsivelmente resultarem da obser­
vância geral da norma. Com isso, ‘U’ ostenta uma característi­
ca que faz com que sua aplicação fique condicionada ao estado
do conhecimento presente no momento” [Günther 1993-b:35].
Como expressamente salienta Günther [1993-b:35], nessa
“versão mais fraca de ‘U’ abandonamos, por antecipação, a
pretensão de saber exatamente, para cada situação na qual
uma norma seja aplicável, quais as características situacionais
que seriam relevantes para os interesses de todos os afetados” ,
de modo que o discurso sobre a justificação das normas em
geral encerra-se com as informações que estiverem disponíveis
no momento do seu reconhecimento.

Deixa-se para um momento posterior - para os discursos


de aplicação - a tarefa de determinar exatamente cada uma
das situações em que as normas válidas devem ser aplicadas,
de acordo com o contexto temporal e cognitivo da aplicação
dessas normas.
Para Günther o discurso jurídico teria em comum com o
discurso prático não os problemas de justificação de suas nor­
mas por meio do reconhecimento intersubjetivo de pretensões
de validez reguladas por Uweak, mas os problemas de aplicação
que surgem em determinados contextos concretos.
Como já adiantamos, a justificação de uma norma só leva
em conta os contextos que puderem ser previstos antecipada­
mente pelos participantes com base em suas experiências
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

históricas. Somente a aplicação imparcial põe-nos em uma


posição para relacionar uma norma universalmente justificada
com os contextos estendidos e modificados que podem surgir
em um momento posterior [Günther 1993-b:69]: “Variações no
contexto nos compelem a interpretar situações novamente, e
nós podemos, então, considerar novos interesses até então
imprevistos. (...). Novas interpretações da situação, então, for­
çam reformas, modificações e revisões nesse conteúdo norma­
tivo - com a consequência de que a norma modificada de tal
maneira tem de ser novamente checada para saber se, à luz
dos contextos correntem ente conhecidos, ela pode ser aceita
por todos sob a base de razões” [idem:70].
Enquanto os discursos de justificação (que têm lugar na
argumentação prática, não na jurídica) tratam de uma justifi­
cação independente da situação, os discursos de aplicação são
discursos que se referem à sua adequação prática, em uma
argumentação que seja compatível com “todos os outros as­
pectos normativos da situação” [Günther 1993-b:203]. Trata-se
de um contexto de consideração “de todas as circunstâncias” ,
fáticas e normativas, que podem ser relevantes para a aplicação
imparcial da norma ao caso concreto [idem:205]. Todas as nor­
mas têm, portanto, um certo caráter prima facie, isto é, uma
cláusula ceteris paribus que deve se avaliada detalhadamente
a cada nova situação de aplicação; “Podemos dizer, então, que
a validade de uma norma sempre se refere apenas ao consen­
so universal sobre sua aplicabilidade diante de circunstâncias
não modificadas. A premissa implícita que adotamos com essa
cláusula ceteris paribus nos discursos de justificação desempe­
nha seus verdadeiros efeitos nos discursos de aplicação. Nos
discursos de justificação ela serve ao propósito de artificial­
mente excluir a consideração de situações de aplicação dife­
rentes [não previstas]. Nós não iremos saber se as situações de
aplicação serão as mesmas que foram assumidas na justificação
da norma até termos considerado todas as características da
situação em que ela será aplicada, ou seja, até que nós tenhamos
conduzido um discurso de aplicação” [idem:211].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

As normas morais e jurídicas têm, portanto, uma inde-


terminação pragmática - ou seja, uma indeterminação que
“resulta do uso de normas em atos de fala concretos” -, que
tem origem no “fato de que nós não podemos inferir da vali­
dade de uma norma a adequação de sua aplicação para todas
as situações” [Günther 1989-a:439~440]. Essa indeterminação
pragmática somente pode ser saneada por meio da considera­
ção não apenas de uma regra a ser aplicada, mas - pelo con­
trário - “de acordo com as possíveis alternativas aos aspectos
situacionais da ação que levam à aplicação de regras conflitan­
tes” [Günther 1989-b:159].

Através de discursos de aplicação em que se examinam


detalhadamente todas as circunstâncias que podem ativar a
cláusula ceteris paribus presumida em cada uma das normas
válidas e potencialmente incidentes sobre um caso, pode-se
evitar que pela via da aplicação seletiva de normas válidas se
possa agir de modo reprovável, tanto moral quanto juridica­
mente. Com efeito, “pode-se usar normas moralmente válidas
para finalidades más. Se a descrição de um caso concreto é
incompleta, em relação a outras razões morais relevantes,
então, é muito fácil esconder os maus propósitos que alguém
esconde por detrás da aplicação de uma razão moral” [Günther
1993-a:150]. Revisitando um exemplo clássico na história da
moralidade, “pode-se simplesmente ignorar que o fato de a
Polícia estar perseguindo um homem inocente é brutal (...), de
modo que uma pessoa inocente possa ser morta por nada.
Desse modo, concentra-se em somente um dos problemas
morais em questão no caso concreto: ‘E correto contar uma
mentira?’” [idem:151]. Em casos com o este somente é possível
superar a seletividade na aplicação de normas morais através
da “descrição completa do caso concreto” , que deve ser feita
de acordo com dois princípios de adequação propostos por
Günther: (1) “a justificação de uma proposição normativa sin­
gular exige a completa descrição do caso concreto em relação a
todas as razões morais que forem relevantes” e (2) “ a justificação
de uma proposição normativa singular exige uma interpretação
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

coerente dessas razões moralmente válidas que são direta ou


indiretamente relevantes para o caso concreto” . Para Günther,
“ o primeiro princípio refere-se ao caso da aplicação seletiva, o
segundo ao caso da aplicação rigorosa” fibidem],

2.4.3.2 A réplica à crítica da Tese do Caso Especial/TCE e a


interpolação entre os discursos de justificação e de
aplicação

Uma das principais linhas que Alexy utiliza para rebater


as críticas à sua Tese do Caso Especial/TCE está no problema
da interpretação do próprio conceito de “discurso prático ge­
ral” . Quando Günther e, mais recentemente, Habermas [2005-
a] interpretam a expressão “discurso prático geral” com o
equivalente a “discurso moral” , a TCE pode de fato ser tida
como equivocada [Alexy 1999-b:377]: “E bastante óbvio que a
argumentação jurídica está aberta não apenas a razões morais,
mas também a razões ético-políticas e pragmáticas no sentido
que Habermas as define” . As primeiras (razões ético-políticas)
dizem respeito ao nosso “ autoentendimento coletivo involu-
crado em nossas tradições e valorações fortes” , ao passo que
as últimas (pragmáticas), “ à adequação dos meios para realizar
certos fins bem como à ponderação de interesses e com pro­
missos” [ibidem].
Não obstante, Alexy entende que a TCE resulta inaba-
lada porque o conceito de “discurso prático geral” não pode
ser entendido da forma tão restrita com o fazem Habermas e
Günther: “A tese de Habermas de que os discursos jurídicos
não deveriam ser considerados uma subespécie ou subcon­
junto de argumentação moral, no sentido em que ele com ­
preende esse último tipo de argumentação, é evidentemente
verdadeira. Mas isso não desmonta a Tese do Caso Especial.
(...). Um discurso prático geral não é a mesma coisa que um
discurso moral no sentido de Habermas. É um discurso em
que questões morais, éticas e pragmáticas estão conectadas.
Os discursos práticos gerais diferem dos discursos jurídicos
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

por não serem dependentes de razões institucionais. Para a


argumentação jurídica, razões com o enunciados legislativos e
precedentes são constitutivas; para o discurso prático geral
elas não são” [Alexy 1999-b:378].
Tanto o discurso jurídico com o o discurso moral seriam,
portanto, “ casos especiais” de discurso prático. A especiali­
dade do discurso moral, ao que parece, reside em uma prio­
ridade absoluta do justo sobre o bom, ou seja, na eleição do
princípio da universalizabilidade com o um parâmetro abso­
luto e imponderável para testar a aceitabilidade das preten­
sões de validade normativa contidas nos atos de fala dos
participantes em uma prática argumentativa. A especialidade
do discurso jurídico, por outro lado, reside no caráter insti­
tucionalizado do processo de argumentação. No discurso
jurídico há uma integração de argumentos práticos gerais e
argumentos especificamente jurídicos, através de procedi­
mentos institucionalizados de argumentação racional, de
forma a otimizar a ideia de “unidade da razão prática” . De
acordo com essa ideia, “ o sistema jurídico do Estado Consti­
tucional Democrático é uma tentativa de institucionalizar a
razão prática” . Nesse ambiente democrático, razão prática
“justifica a existência do sistema jurídico enquanto tal” [Ale­
xy 1999-b:383], e os argumentos práticos permeiam o Direito
positivo e valem com o razões no discurso jurídico propria­
mente dito, seja em questões de interpretação de normas
gerais ou na aplicação prática dessas normas a situações
concretas. Como explica o próprio Alexy: “Argumentos prá­
ticos gerais têm de transitar por todas as instituições para não
cortar as raízes dessas instituições na razão prática. Argu­
mentos práticos gerais são argumentos não-institucionais.
Argumentos não-institucionais transitando por instituições
podem ser involucrados, integrados e especificados tanto
quanto se queira, mas desde que eles retenham o que é es­
sencial para esse tipo de argumento: o seu caráter livre e
não-institucional. Essa não é a única razão para a Tese do
Caso Especial, mas talvez seja a principal” [idem:384].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Ademais, além de adotar um conceito excessivamente


restritivo de “discurso prático geral” - um conceito que faria
com que a moralidade fosse o único objeto desse tipo de dis­
curso - , a teoria de Günther permanece excessivamente pró­
xima de um Positivismo Jurídico que hoje em dia se mostra
inaceitável à luz do argumento da injustiça, que tivemos opor­
tunidade de analisar acima (supra, ns. 2.2.2 e 2.2.3). Como ex­
plica Dwars, para Günther o princípio da universalizabilidade
não pode governar o raciocínio jurídico, “porque a validade
das normas (jurídicas) não é testada ou estabelecida, mas pres­
suposta” : “ a questão da validade não constitui objeto da argu­
mentação jurídica” [Dwars 1992:71].
Argumenta Dwars que Günther confunde duas concep­
ções distintas de “validade” : de um lado, a validade jurídica,
ou seja, a validade de acordo com os critérios de um sistema
jurídico (como, v.g., a regra de reconhecimento hartiana); de
outro, a validade discursiva, ou seja, a aceitabilidade racional
à luz do princípio da universalizabilidade [Dwars 1992:71].
Ambas as noções de “validade” são teoricamente independen­
tes uma da outra: “ a validade jurídica não é necessariamente
uma garantia de que a norma seja discursivamente válida” e,
conversamente, “ a validade discursiva também não é uma
condição necessária, ou mesmo suficiente, para a validade
jurídica” [idem:72].
Acontece que na argumentação jurídica, pelo menos à
luz da leitura pós-positivista que adotamos nessa teoria nor­
mativa dos precedentes, o juiz não simplesmente toma uma
decisão que nada é além de uma aplicação neutra de determi­
nada regra jurídica. “ Ele tenta demonstrar também que sua
decisão é aceitável de um ponto de vista mais geral. A exigên­
cia de uma fundamentação racional com referência a regras
gerais e juridicamente válidas é a expressão do princípio da
segurança jurídica (da justiça formal, da previsibilidade), que
tenta impedir que os juizes adotem juízos puramente morais
e subjetivos como decisões jurídicas. Os casos em que a justiça
formal e a justiça material colidem demonstram que a validade
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

jurídica e a segurança jurídica não são os únicos aspectos de­


terminantes no raciocínio jurídico, e que eles nem sempre são
os aspectos decisivos” [Dwars 1992:73]. Exemplos de casos em
que se deve decidir contra legem ou, com o nos interessa es­
pecificamente neste trabalho, romper uma linha sólida de
precedentes com fundamento em razões morais são muito
mais frequentes do que se imagina, e constituem bons exem­
plos de que também nos discursos jurídicos penetram argu­
mentos práticos que necessitam ser ponderados com as razões
de segurança jurídica produzidas por critérios intrassistemá-
ticos de validade.
A tese de Günther de que no Direito haveria lugar ape­
nas para “discursos de aplicação” - tese, essa, que, justiça
seja feita, encontra certa resistência também em Habermas
[2005-a:305] - peca por um resíduo positivista que faz com
que a balança entre facticidade e validade, entre “ o princípio
da segurança jurídica e a pretensão de estar ditando decisões
corretas” [idem:266], penda apenas para um lado. Ela nega
qualquer valor ao argumento da injustiça, e por isso deve ser
rejeitada.
Por derradeiro, a própria distinção entre discursos de
justificação e discursos de aplicação pode ser posta em xeque.
Mesmo reconhecendo, com o se deve fazer, a razoabilidade da
distinção teórica entre os conceitos de justificação - reconhe­
cimento/fundamentação da validade de uma norma - e apli­
cação - sua utilização adequada com referência a uma situa­
ção concreta - , ou seja, mesmo admitindo a diferenciação
analítica desses dois conceitos, daí não se pode inferir que o
discurso jurídico possa prescindir de algum desses dois m o­
mentos ou, com o quer Günther, que a atividade central dos
juristas se volta para os “ discursos de aplicação” , e não para
os “de justificação” .

Pelo contrário, um exemplo utilizado pelo próprio Gün­


ther, mas retomado por Alexy [1993], desmente essa hipótese.
Com efeito, imaginemos que uma norma N1, segundo a qual
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“deve-se cumprir as promessas feitas a um amigo” , e outra


norma N2, que estabelece o “dever de ajudar pessoas doentes
que necessitem de assistência” , entrem em conflito em um caso
concreto: eu prometo a Smith que eu irei à sua festa, mas Jones,
caído doente, pede-me para lhe prestar assistência.
Em um caso como este são necessárias “ novas interpre­
tações” das situações factuais, que levam à “ mudança, modifi­
cação ou revisão” do conteúdo semântico das normas em
questão [Alexy 1993:163].
Para que seja possível uma aplicação adequada (coe­
rente) do sistema normativo, é necessário - com o salienta
Alexy - modificar uma das normas que, em tese, poderiam
ser utilizadas para a solução do caso [Alexy 1993:163]. No
exemplo, pode-se estabelecer a norma N2k, cujo conteúdo
seria: “Alguém que tenha prom etido fazer uma coisa tem a
obrigação de fazê-la, exceto se, posteriormente, descobrir
que um amigo em dificuldades necessita de ajuda ao mesmo
tem po” [idem:164].

No entanto, ao examinarmos com precisão, veremos que


N*k revela um “ conteúdo normativo adicional em relação a N1
e N 2” . Como se vê, para a aplicação adequada de N1, com re­
ferência a N2, é necessário criar uma nova norma concreta
(N1k), a qual também necessita ser justificada; portanto, ao
contrário do que diz Günther, os discursos de aplicação ne­
cessariamente incluem, também, discursos de justificação
[Alexy 1993:165].
Sintetizando esse raciocínio, “o fato de qualquer discur­
so de aplicação necessariamente incluir um discurso de justi­
ficação, do qual o resultado do primeiro dependa, proíbe
contrapor discursos de aplicação e discursos de justificação,
como duas formas distintas de discurso” [Alexy 1993:169].
Por outro lado, mesmo na aplicação de normas isoladas
(fora dos conflitos como os narrados acima), antes dos discur­
sos de justificação de normas jurídicas - ou seja, do resgate
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

discursivo da validade dessas normas - não é correto dizer que


existam normas em sentido próprio, mas meras expectativas
normativas geradas pelos textos jurídicos ainda carentes de
interpretação. Assim, se o debate jurídico fosse reduzido aos
discursos de aplicação de normas jurídicas válidas, com o quer
Günther, seriam negligenciados tanto os processos de inter­
pretação das normas escritas em geral quanto a questão da
análise da própria constitucionalidade de cada enunciado nor­
mativo particular, pois essas questões acabariam sendo jogadas
para fora do “discurso jurídico” .
É provável, portanto, que as “diferenças de comporta­
mento” das normas jurídicas a que se refere Günther - quando
fala em “ colisões internas” e “ colisões externas” - sejam, na
verdade, “diferentes interpretações” do mesmo texto, e não
“diferentes aplicações” da mesma norma.

2.4.4 Os conceitos semânticos de "norma" e "interpretação"


e os problemas de justificação e aplicação

A conclusão a que chegamos no último parágrafo da seção


anterior traz à tona dois temas que serão importantes para a
teoria dos precedentes judiciais que intentamos construir: os
conceitos de “norma” e “interpretação jurídica” . Como veremos,
em Alexy há uma opção clara pelas concepções semânticas para
as duas noções, ao passo que em Günther é relativamente difícil
identificar um conceito claro de “norma jurídica” . Vejamos.

2.4.4.1 O conceito semântico de "norma"

Tomemos como ponto de partida o fato do caráter linguis-


ticamente dependente das normas jurídicas. O Direito não é
somente linguagem, mas “não pode deixar de ter uma lingua­
gem mediante a qual é formulado; uma linguagem como meio
de expressão necessário, como meio necessário da sua possi­
bilidade de conhecimento e comunicação” [Mazzarese 1998:81].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A existência das normas jurídicas é dependente da linguagem


[Moreso 2000:105; Von Wright 1970:109 e ss.].43
Há, portanto, uma conexão incindível entre norma e
linguagem. Como a Semiótica há muito já nos ensinou, a lin­
guagem pode ser analisada sob os enfoques sintático (que
trata das relações entre os signos linguísticos), semântico (que
estuda as relações entre os signos e seus sentidos) e pragmáti­
co (que estuda a relação entre os signos e os usos que seus
manipuladores fazem deles). Portanto, como lembra Moreso,
diferentes concepções de “ norma” vão surgir, dependendo do
enfoque que se privilegie. De fato, as concepções de “ norma
jurídica” mais encontradas podem ser agrupadas da seguinte
forma [Moreso 2000:106-107]:
(1) Concepções sintáticas ou formalistas - as normas
jurídicas correspondem às formulações normativas (ou, com o
preferimos, aos enunciados normativos) promulgadas pelo
legislador.44
(2) Concepções semânticas - “da mesma forma que as
proposições são o sentido dos enunciados assertivos (suscetíveis
de verdade e falsidade), as normas são o sentido das formulações
normativas” .45
(3) Concepções pragmáticas - a linguagem é analisada
como ferramenta ou instrumento com o qual se podem fazer
coisas. Distinguem-se os enunciados e a suaforça ilocucionária

43. Indo um pouco mais além, pode-se afirmar o denominado princípio da


expressabilidade, de John R. Searle [1970:20], segundo o qual tudo que pode
ser pensado pode ser dito.
44. Um exemplo de concepção formalista acerca das normas jurídicas é a
teoria de Alchourrón e Bulygin [2002].
45. Como veremos, as teorias mais difundidas sobre o conceito de “norma
jurídica” adotam essa concepção, valendo aqui mencionar, como seus defen­
sores, Kelsen [1998-a], Alexy [1997-b], Guastini [1996-c] e Tarello [1994]. Para
esse último: “O intérprete revela, decide ou propõe o significado a ser atri­
buído a um documento (...) cujo significado não é pré-constituído em relação
à atividade interpretativa; ao contrário, é o seu resultado” [Tarello 1994:23].
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

[Austin 1975], sendo que “ a força reside naquilo que consegui­


mos fazer com um enunciado, não aquilo que significamos com
ele” [Moreso 2000:106].46
Há, pelo menos desde Hans Kelsen, nítida predominân­
cia das concepções semânticas, que definem a norma com o o
sentido, ou o conteúdo, de um dever-ser institucionalizado. Nas
palavras do próprio Kelsen [1998-a:6], “norma é o sentido de
um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou,
especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à com pe­
tência de alguém” .
Prescindindo-se dos elementos mentais (vontade, ato de
vontade), há uma relação estreita entre o conceito de “norma”
de Kelsen e o conceito semântico contemporaneamente ado­
tado por Alexy [1997-b:50] e acatado neste trabalho.47 Este úl­
timo, de maneira muito semelhante ao primeiro, apresenta
uma distinção entre norma e enunciado normativo. Uma norma
é o que está ordenado, proibido ou permitido, ao passo que um
enunciado normativo é a expressão verbal de uma norma. Nos
termos de Alexy [idem:51], “ uma norma é o significado de um

46. A teoria de Joseph Raz [1978:128 e ss.] parece um bom exemplo desse
enfoque pragmático. Com efeito, como destacam Carlos Alchourrón e Eugênio
Bulygin [2000:143], Raz “qualifica as razões para a ação como o ‘conceito-
chave’ para a explicação das normas em geral”.
47. A preferência por uma concepção semântica de norma jurídica (e, como
veremos, também de “interpretação”) não implica, porém, negligência no
tratamento das dimensões sintática e pragmática da linguagem utilizada no
discurso jurídico-argumentativo. A dimensão sintática permanece especial­
mente relevante para a análise estrutural do sistema jurídico, em especial para
as relações entre as normas que o compõem e para a justificação interna das
decisões jurídicas. A dimensão pragmática, por seu turno, é relevante para o
que Günther denomina “discursos de aplicação”, ou seja, para a adaptação
das normas ao contexto fático e normativo em que elas são aplicadas. Essas
duas dimensões, porém, de certa forma dependem da dimensão semântica.
Somente se podem estabelecer relações estruturais entre normas jurídicas
se seu conteúdo estiver determinado. Somente se pode adequar uma norma
à realidade depois que essa norma já teve seu conteúdo concretizado por
meio de um discurso de justificação.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

enunciado normativo” , “ é aquilo que um enunciado normativo


expressa” [idem:177]. Para sintetizar, complementa ainda Ávi­
la [2009:30]: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas
os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática
de textos normativos” .
Nesta perspectiva, os textos legais (ou enunciados nor­
mativos) “ constituem uma mera possibilidade de Direito” , pois
sua transformação em normas jurídicas “depende da constru­
ção de conteúdos de sentido pelo próprio intérprete” [Ávila
2009:24]. Normas não são, portanto, a matéria bruta do racio­
cínio jurídico, pois sua formulação depende da inteligência de
um (ou mais de um) determinado enunciado estabelecido pelo
legislador, por meio de um processo mental de interpretação
ou adscrição de sentido, do qual passaremos a tratar.

2.4A.2 O conceito semântico de "interpretação"

A palavra “interpretação” , quando aparece na lingua­


gem jurídica, é utilizada tanto para se referir a uma atividade
mental dos aplicadores do Direito - designada pelo verbo
“ interpretar” - quanto ao produto ou resultado dessa ativida­
de [Tarello 1980:39]. Quando se diz que “ o art. X da Consti­
tuição necessita de interpretação cuidadosa” ou que “ a inter­
pretação dada pelo tribunal ao art. X da Constituição é dema­
siado restritiva” , o termo “ interpretação” tem referenciais
diferentes.
Pode-se afirmar, com Tarello [1980:42], que as teorias
descritivas da interpretação fazem referência à última concep­
ção (interpretação como produto de um processo mental de
determinação de sentido), ao passo que as teorias normativas
se ligam dianteiramente à primeira (interpretação com o a
atividade realizada pelos juristas ao estabelecer o sentido dos
enunciados normativos em geral). Como, neste trabalho, opta­
mos por uma teoria prescritiva (ou, como dizíamos, normativa)
acerca da argumentação com precedentes na aplicação do
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Direito, é natural que voltemos nossa atenção para a interpre-


tação-atividade, ou seja, que pretendamos construir uma teoria
voltada para o futuro, a fim de fornecer um m odelo prático
de ação, estabelecendo “ diretivas de interpretação que
sejam os critérios de correção de uma decisão interpretativa”
[Wróblewski 1992:89], e não uma teoria orientada à mera des­
crição dos fenômenos interpretativos e, portanto, adstrita ao
estudo sociológico dos efeitos das decisões jurídicas em geral.
No entanto, mesmo no campo da interpretação-atividade
verifica-se ainda uma indesejável dose de indeterminação se­
mântica, pois a locução “atividade interpretativa” pode variar
sensivelmente também em extensão. Nesse sentido, Wró­
blewski [1992:87-88] explicita três sentidos possíveis para a
interpretação jurídica:
(1) Em um sentido muito amplo, que corresponde às con­
cepções hermenêuticas sobre o processo interpretativo, inter­
pretação significa “ a compreensão de qualquer objeto cultural”
[Wróblewski 1989:268; 1992:87], indo muito além da mera ads­
crição de sentido a objetos linguísticos; nessa acepção pode-se
falar, por exemplo, em interpretação de obras artísticas, como
a Música e a Pintura.
(2) Em um segundo sentido, também chamado de amplo
por Wróblewski [1992:87], a palavra “ interpretação” é usada
“ com referência a qualquer língua falada ou qualquer texto-
linguístico” , significando “ entendimento da linguagem” ; trata-
se da concepção semântica de interpretação, que, no contexto
jurídico, “designa principalmente a atribuição de significado
a documentos normativos (leis, decretos, regulamentos, atos
administrativos, sentenças, contratos etc.)” [Com anducci
1999:3], sendo considerada um processo construtivo.48

48. De acordo com esse sentido amplo, salienta Neil MacCormick [1993:205],
“toda aplicação de uma razão de autoridade requer algum ato de interpreta­
ção”, pois pressupõe uma “compreensão de seu significado” para que possa
ser aplicado aos casos concretos.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(3) Por último, em um sentido estrito ou especificamente


jurídico, “interpretação” é procedimento que se refere apenas
às situações de dúvida sobre o “ correto entendimento de um
texto em seu ‘significado direto’ [direct meaning]” [Wróblewski
1992:88; 1991:259]. Para os adeptos dessa teoria, dentre os quais
podemos incluir o próprio Wróblewski [1989, 1991 e 1992] e
nomes como Neil MacCormick [1993], ao aplicar o Direito o
jurista deve verificar se a análise do texto conduz a uma situa­
ção de isomorfia - na qual prevalecem os sentidos prima facie
do texto legal - , ou se ele está diante de uma situação interpre-
tativa - que demanda escolhas acerca do significado normati­
vo do texto, tendo em vista a presença de “ casos duvidosos”
(penumbra); apenas nessa última hipótese é que a interpreta­
ção será tida como necessária [Wróblewski 1991:258].
A primeira concepção (1) parece pouco frutífera para a
análise estrutural da decisão jurídica e para a elaboração de
diretivas interpretativas destinadas à fundamentação das
decisões judiciais, pois nada identifica de específico no dis­
curso jurídico, se comparado com os demais fenômenos cul­
turais, e acaba presa a uma filosofia relativista do sujeito, que
muito pouco pode oferecer à análise jurídico-metodológica.
Ademais - e isso talvez seja ainda mais grave - , a hermenêu­
tica filosófica, à qual essa concepção se liga, “ não oferece
qualquer critério de correção” para a decisão jurídica [Alexy
1995:43], sendo de valor limitado para a formação de um m o­
delo de ação (pautado pela razão prática) voltado para os
juizes e demais operadores do Direito, no contexto de justifi­
cação das decisões.
Restam as concepções semântica (2) e jurídica stricto
sensu (3). Aquela, Wróblewski [1992:88] denomina derivativa
Oderivative), pois o objeto da interpretação é visto como um
“texto do qual, através da interpretação, alguém reconstrói
uma ‘norma’, entendida como uma regra precisamente com­
preendida e com um único significado” . A interpretação, nes­
sa perspectiva, sempre seria uma atividade necessária para o
entendimento (ou, talvez, constituição) do significado de uma
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

norma jurídica. Por outro lado, de acordo com a última con­


cepção, também denominada esclarecedora (clarifying), um
jurista interpreta um texto ou uma regra somente se “ seu sen­
tido em uma situação concreta é pragmaticamente duvidoso” ,
de modo que se torna necessário “procurar estabelecer um
significado entre as possíveis alternativas postas para o intér­
prete” [idem:88].
Parece, porém, que a concepção “ esclarecedora” (ou
“jurídica em sentido estrito” ) apresenta inconvenientes que
não se verificam na visão “derivativa” . O próprio Wróblewski
[1991:259] reconhece que a questão de saber se “uma lei é cla­
ra” - e, portanto, se estamos diante de uma situação de isomor-
fia - depende de diversos fatores, que demandam valorações
e escolhas: “Para identificar uma situação de isomorfia, expres­
sa ideia de clareza [claritas], exige-se uma valoração. Existe
uma escolha entre usar a norma no seu sentido prima fa cie ou
fixar o sentido através de um ato de interpretação” [ibidem].
Essa escolha vai depender, naturalmente, tanto do contexto
linguístico (linguagem utilizada para expressar a norma) quan­
to do sistêmico (sistema jurídico do qual a norma faz parte) e
do funcional (que compreende todos os fenômenos que influen­
ciam o sentido da norma, excluindo-se os contextos linguístico
e sistemático) em que a norma é aplicada [idem:258-268]. No
entanto, não vejo razão para excluir essas escolhas do proces­
so interpretativo, pois tais fatores extranormativos são prag­
maticamente inseparáveis do próprio processo interpretativo.
Ademais, uma concepção semântica de norma jurídica
(como a que adoto nesse trabalho) é incompatível com qualquer
conceito de interpretação diferente de (2), de modo que o con­
ceito semântico de interpretação fornece um portrait mais
adequado da atividade desenvolvida pelos operadores do Di­
reito. Como lembra Vernengo [1994:13-14], “ os enunciados
normativos são fichas em variados jogos linguísticos, sem que
possamos postular de antemão qualquer parentesco essencial
entre as diversas jogadas admissíveis” . Essa alusão ao segundo
Wittgenstein é oportuna, pois rechaça ideia de que os sentidos
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

das expressões linguísticas possam vir determinados antes do


processo de interpretação, como se fossem estáticos em relação
ao uso argumentativo e às próprias regras do jogo linguístico
(que, no caso do Direito, aparecem sob a forma de diretivas
interpretativas ou regras de argumentação) em que a interpre­
tação acontece.

2.4.43 As concepções de "norma" e "interpretação" nas te­


orias de Alexy e Günther: a opção pelas concepções
semânticas

Quando Günther argumenta que no discurso jurídico não


se decide sobre a validade das normas de comportamento, não
havendo lugar para discursos de justificação de normas gerais,
na medida em que estas já se acham pressupostas desde o
início, parece que se aproxima de uma concepção sintática de
norma jurídica: a norma consiste no próprio texto que foi es­
tabelecido pelo legislador. Alexy, diferentemente, é explícito
em adotar uma concepção semântica - herdada da teoria pura
do Direito - segundo a qual a norma é o sentido de um “dever-
ser” , é o conteúdo de uma prescrição. A norma concreta que
decide um caso particular é, no mais das vezes, uma norma
adscrita que decorre da concretização de outras normas mais
gerais que lhe dão suporte [Alexy 1997-b].
No que se refere à interpretação, Alexy é igualmente
claro. A proximidade que este autor mantém com Kelsen não
deixa dúvida de que a interpretação também é entendida na
concepção semântica, ou seja, com o um processo de determi­
nação de sentido para enunciados linguísticos (enunciados
normativos) dotados de validade jurídico-formal. Não que o
discurso jurídico se esgote na interpretação de textos norma­
tivos e que esteja o juiz necessariamente adstrito a essas in­
terpretações, mas no sentido de que a interpretação - uma
das etapas do processo mental que se realiza no processo
decisório - se esgota na determinação de normas a partir de
textos. Por outro lado, o pensamento de Günther aqui nos
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

parece relativamente obscuro. A bem da verdade, Günther


não chega a abordar expressamente os temas do conceito de
norma jurídica e ideia de interpretação. Por isso tais noções
restam indeterminadas em sua teoria. Günther combina ideias
extremamente pobres no que se refere aos processos de jus­
tificação de normas jurídicas e um pragmatismo altamente
sofisticado no que se refere aos discursos de aplicação dessas
mesmas normas.
Ele argumenta como se todo o processo de justificação
de normas gerais se esgotasse no momento em que se conclui
o processo legislativo. Eis a única razão para adotar um con­
ceito tão estrito de discurso prático e imaginar que toda a ati­
vidade intelectual do juiz se resuma a adaptações do Direito a
novas realidades e à adequação de normas que já vêm prontas
desde o início. O que causa estranheza é saber se e como podem
coexistir uma concepção tão restritiva de “justificação jurídica'’
e uma concepção de “ aplicação” que outorga tantos poderes
aos órgãos institucionais de aplicação do Direito. A ideia de
“ interpretação” como uma das etapas (no discurso jurídico, a
mais importante) do processo de justificação de normas gerais
é deixada completamente de fora do discurso jurídico. Há, aqui,
o risco de retornar a um particularismo que produziria incoe­
rência para o discurso jurídico, pois seria diametralmente
oposto ao universalismo que caracteriza os discursos de justi­
ficação de normas morais.
Nesse sentido, há ainda, para além do que foi comentado
na seção anterior, uma crítica poderosa desenvolvida por Alexy
à tese do “discurso de aplicação” . Para Alexy, ideia do discurso
de aplicação é ao mesmo tempo correta, vazia e fácil de causar
mal-entendidos” [Alexy 1996:1.032]. E uma tese correta enquan­
to expressa “a velha demanda hermenêutica de considerar todos
os aspectos” da situação de aplicação de uma norma jurídica. E
vazia porque ela “não diz quais aspectos devem ser considerados
e de que maneira” : “ Como o conceito de coerência, o conceito
de adequação é, portanto, muito vago para solucionar o proble­
ma da decisão jurídica racional” . Por derradeiro, é fácil de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

causar mal-entendidos, porque ela apresenta o “perigo de uma


prática não-universalista de tomada de decisões” [ibidem]: “Esse
perigo se torna agudo quando a administração da justiça é vista
exclusivamente como um discurso de aplicação, e portanto é
separada dos discursos de justificação. (...). A harmonização ou
unificação do Direito, sob a forma de uma prática universalista
de tomada de decisões, somente é possível se, ao decidir casos
individuais, regras forem formuladas que possam ganhar o po­
der de precedência sobre as demais. As regras, no entanto, têm
o caráter de normas relativamente concretas, e por isso podem
- e devem - ser substanciadas. Portanto, todo discurso de apli­
cação inclui um discurso de justificação” [idem: 1.033].
Por essas razões, parece mais correto acatar, aqui, as
concepções semânticas tanto de “norma” quanto de “ interpre­
tação” . Como conclusão dessa discussão, podemos assentar
que o discurso jurídico é, sim, um caso especial de discurso
prático, cuja especialidade está nas barreiras institucionais
estabelecidas pelo Direito válido hic et nunc. A diferença entre
justificação e aplicação, no entanto, permanece válida. No
discurso jurídico há lugar para ambas as operações. Aliás, em
regra, ambas as atividades se realizam simultaneamente no
discurso jurídico, embora tendo referenciais distintos: a solução
de um problema de aplicação de uma ou mais normas gerais a
determinado caso sobre o qual elas possam incidir é, ao mesmo
tempo, uma atividade de justificação de uma ou mais normas
individuais. A referência a uma ou outra atividade (aplicação,
justificação) vai depender, portanto, do próprio objeto que se
estiver pretendendo qualificar. No nosso caso, o referencial
serão as normas que podemos inferir de precedentes judiciais.
Uma teoria normativa do precedente deve ser capaz de solu­
cionar os problemas de justificação e aplicação dessas normas.

2.4.5 Justificação e aplicação de precedentes judiciais

Apesar das ressalvas que adotei nas seções anteriores à


teoria de Günther, sua divisão da atividade de racionalização
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

discursiva de decisões jurídicas em atividades de fundamen­


tação e justificação pode consistir em um pano-de-fundo
especialmente adequado para sistematizar os tipos de p ro­
blemas que uma teoria normativa do precedente judicial
deve enfrentar. Como, do ponto de vista lógico, não há p ro­
blema algum em acatar essa divisão e pressupor que ambas
as atividades tenham lugar no discurso jurídico (e não é sem
razão que Alexy, por exem plo, considerou correta - pelo
m enos em linhas gerais - a definição de “ aplicação do Di­
reito” proposta por Günther), podem os a um só tempo acei­
tar a “ Tese do Caso Especial” e o “ código da razão prática”
de Alexy com o base para nossa teoria dos precedentes judi­
ciais e, de outro lado, agrupar segundo a dicotomia “justifi­
cação/aplicação” os principais problem as m etodológicos
dessa teoria dos precedentes. Nos dois próximos capítulos
tentarei sistematizar as questões mais importantes da prá­
tica jurídica relativa a precedentes judiciais nessas duas
categorias. No Capítulo 3 tratarei dos problemas de ju stifi­
cação de normas gerais a partir de precedentes judiciais, em
especial: (1) a interpretação dos precedentes, para o fim de
determinar a ratio decidendi ou norma jurídica que pode ser
adscrita de tais materiais jurídicos; (2) a determinação do
peso ou força dos precedentes na argumentação jurídica; e
(3) as condições para se abandonar (overrule) um preceden­
te judicial, bem com o os problemas secundários que surgem
dessa decisão. Mais adiante, no Capítulo 4, o foco gira para
os problemas de aplicação das normas que conseguim os
derivar dos precedentes judiciais, em especial: (1) os casos
em que é necessário diferenciar (distinguish) precedentes
judiciais, ou seja, é necessária (1-a) a redução teleológica das
regras que conseguimos derivar de precedentes judiciais ou
(1-b) a interpretação restritiva da regra jurisprudencial, para
viabilizar a aplicação do argumento a contrario; e (2) as si­
tuações em que não há um caso com preendido exatamente
por uma regra jurídica, mas há certas semelhanças que nos
permitem cogitar acerca da aplicação de uma regra jurispru­
dencial por analogia.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

AN EXO
Tabela das Regras e Formas da Argum entação Jurídica
[in A le x y 1997a]

I - Lista dos Símbolos Lógicos Utilizados


-> = não (negação)
a = e (conjunção)
v = ou (disjunção)
—» = se ... então (condicional)
o = see somente se (bicondicional)
(x) = para todo x (quantificador universal)
O = é obrigatório que... (operador deôntico)

II - Regras e Formas do Discurso Prático Geral


Regras fundamentais
(1.1) Nenhum falante pode se contradizer.
(1.2) Todo falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo crê.
(1.3) Todo falante que aplique um predicado F a um objeto a deve
estar disposto a aplicar F também a qualquer outro objeto igual
a a em todos os aspectos relevantes.
(1.3’) Todo falante só pode afirmar aqueles juízos de valor e de dever
que afirmaria também em todas as situações iguais, em todos
os aspectos relevantes.
(1.4) Distintos falantes não podem usar a mesma expressão com
significados diferentes.

As regras da razão
(2.1) Todo falante deve, quando lhe é solicitado, fundamentar o que
afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem sua
recusa a uma fundamentação.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(2.2) Quem pode falar pode tomar parte no discurso.


(a) Todos podem problematizar qualquer asserção.
(b) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso.
(c) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades.
(2.3) A nenhum falante se pode impedir de exercer, mediante coer­
ção interna ou externa ao discurso, seus direitos fixados em 2.1
e 2.2.

As regras de carga da argumentação


(3.1) Quem pretende tratar uma pessoa A de maneira distinta do
que uma pessoa B está obrigado a fundamentar isso.
(3.2) Quem ataca uma proposição ou uma norma que não é objeto
da discussão deve dar uma razão para tanto.
(3.3) Quem aduziu um argumento só está obrigado a dar mais argu­
mentos em caso de contra-argumentos.
(3.4) Quem introduz no discurso uma afirmação ou manifestação
sobre suas opiniões, desejos e necessidades que não se refira
como argumento a uma manifestação anterior deve, se lhe for
solicitado, fundamentar por que introduziu essa afirmação ou
manifestação.

As formas de argumentos
(4) G

(4.1) T (4.2) F
R R
N N
(4.3) FB (4.4) T’
Bi Ri
R R
(4.4) R.J P R,e
k
R.’J P Rk ’
(4.5) (R P R k) C e (R.’ P Rk’) C
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

As regras de fundamentação

(5.1.1) Quem afirma uma proposição normativa que pressupõe uma


regra para a satisfação dos interesses de outras pessoas deve
poder aceitar as consequências de dita regra também no
caso hipotético de que se encontre na situação daquelas
pessoas.

(5.1.2) As consequências de cada regra para a satisfação dos interes­


ses de cada um devem ser aceitas por todos.

(5.1.3) Toda regra pode ser ensinada de forma aberta e geral.

(5.2.1) As regras morais, que servem de base às concepções morais


do falante, devem poder passar na prova da sua gênese histó-
rico-crítica. Uma regra moral não passa nesta prova:

se, ainda que originalmente se pudesse justificar racionalmen­


te, perdeu depois sua justificabilidade;

se originariamente não era possível justificá-la racionalmente


e não se podem aduzir novas razões que sejam suficientes para
tanto.

(5.2.2) As regras morais que servem de base às concepções morais


do falante devem poder passar pela prova de sua formação
histórica individual. Uma regra moral não passa por tal prova
se se estabeleceu sobre a base de condições de socialização
não-justificáveis.

(5.3) É preciso respeitar os limites de socialização dados de fato.

Regras de transição

(6.1) Qualquer falante a qualquer momento pode passar para um


discurso teórico (empírico).

(6.2) Qualquer falante a qualquer momento pode passar para um


discurso de análise da linguagem.

(6.3) Qualquer falante a qualquer momento pode passar para um


discurso de teoria do discurso.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

III - Regras e Formas do Discurso Jurídico


Regras e formas da justificação interna
Formas

( J .l.l). (1) (x) (Tx -> ORx) (J.1.2). (1) (x) (Tx - » ORx)

. (2) Ta . (2) (x) (M*x -» Tx)

(3) ORa (1),(2) . (3) (x) (M2x -> M xx)

. (4) (x) (Sx -» M nx)

. (5) Sa

. (6) ORa (1) - (5)

Regras

(J.2.1) Para a fundamentação de uma decisão jurídica deve-se aduzir


pelo menos uma norma universal.

(J.2.2) Da decisão jurídica se deve seguir pelo menos uma norma


universal.

(J.2.3) Sempre que exista dúvida sobre se “a” é um T ou um M, há


que se aduzir uma regra que decida a questão.

(J.2.4) São necessários os passos de desenvolvimento que permitam


formular expressões cuja aplicação ao caso em questão não
seja já discutível.

(J.2.5) E preciso articular o maior número possível de passos de de­


senvolvimento.

Regras e formas da justificação externa


Regras e formas da justificação empírica
Rege (6.1). Não são elaboradas regras especiais.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Regras e formas da interpretação

Formas da interpretação semântica

(J.3.1) R’ deve ser aceita como interpretação de R sobre a base de W.

(J.3.2) R’ não pode ser aceita como interpretação de R sobre a base


de W.

(J.3.3) E possível tanto aceitar R’ como interpretação de R quanto


negar R’ como interpretação de R, pois eles não regem nem
W. nem Wk.

Formas da interpretação genética

(J.4.1). (1) R’ (= IRW) é desejado pelo legislador

(2) R’

(J.4.2). (1) Com R o legislador pretende alcançar Z

. (2) - R’ (= I\ ) - Z

(3) R’

Forma fundamental da interpretação teleológica

(J.5). (1) OZ

. (2) - R’ (= I \ ) - Z

(3) R’

Não foram elaboradas formas para a interpretação histórica, compa­


rada e sistemática.

Regras

(J.6) Deve resultar saturada toda forma de argumento que se deva


incluir entre os cânones da interpretação.

(J.7) Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor li­


teral da lei ou à vontade do legislador histórico prevalecem
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

sobre outros argumentos, a não ser que possam ser aduzidos


outros motivos racionais que concedam prioridade a outros
argumentos.

(J.8) A determinação do peso de argumentos de distintas formas


deve ocorrer segundo regras de ponderação.

(J.9) E preciso levar em consideração todos os argumentos que for


possível propor, e que possam ser incluídos, pela sua forma,
entre os cânones da interpretação.

Regras da argumentação dogmática

(J.10) Todo enunciado dogmático, se for posto em dúvida, deve ser


fundamentado mediante o emprego, ao menos, de um argu­
mento prático do tipo geral.

(J.ll) Todo enunciado dogmático deve poder passar por uma com­
provação sistemática, tanto em sentido estrito como em senti­
do amplo.

(J.12) Se são possíveis argumentos dogmáticos, eles devem ser


usados.

As regras mais gerais sobre o uso de precedentes

(J.13) Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma


decisão, isso deve ser feito.

(J.14) Quem quiser se afastar de um precedente assume uma carga


de argumentação.

Formas especiais de argumentos jurídicos

Formas

(J.15). (1) (x) (OGx - » Fx)

(2) (x) Fx —> OGx)

1A&
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(J.16). (1) (x) (Fx a F sim x —> OGx)

. (2) (x) (Hx -> F sim x)

(3) (x) (Hx —>OGx) (1), (2)

(J.17). (1) O Z

. (2) R’ -» Z

(3) - R’

Regra

(J.18) As formas de argumentos jurídicos especiais devem


saturadas.
3
Problemas de Justificação de Normas
Derivadas de Precedentes Judiciais

3.1 Consideraçõesintrodutórias. 3.2 A interpretação deprecedentesjudiáais:


oproblema da ratio decidendi. 3.3 A força/ vinculatividade do precedente
judicial. 3.3.1 Osprecedentesjudiciais comofontes do Direito. Mas que tipo
defonte? 3.3.2 Fatores institucionais e extrdnsútuàonais que influenáam a
força do precedente. 3.3.2.1A determinação do peso dosprecedentes como
umprocesso hermenêutico. 3.3.2.2 Fatores institucionais que determinam a
força de uma norma jurisprudenáal. 3.3.2.2.1 Contexto institucional
(stricto sensu). 3.3.22.2 Tradiçãojuríãca. 3.32.2.3 Ustrutura constitu­
cional (constitutionaljrameivork). (A) Normas sobre osprecedentes do STF
e do S1J. (B) Normas relativas às decisões do TST. (C) Normas referentes
aosprecedentes horizontais. 3.32.3 Fatores extrainstituàonais que determi­
nam aforça de uma normajurispmdencial 3.32.3.1 Concepçõesjurídico-
teóricas. (A) Concepçõesjurídico-teóricas acerca do Direito e do discursoju ­
rídico. (B) Concepções teóricas acerca da dogmáticajurídica. 3.32.3.2 Fato­
res normativo-estruturais. (A) Caracteres das normasjurisprudenciais. (A.1)
O grau degeneralidade das normasjurisprudenãais e a força doprecedente.
(A 2 )A estrutura interna das normas adscritas: regras ouprincípios? (A.2-
bis) O diferente modo de aplicação dos princípios e das regras. (A.2-ter)
Princípios eponderação. (A2-quater) Regrasjurídicas e subsunção. (A.2-
quinquies) O diferentegrau de objetivação das regras e dosprincípiosjurídi­
cos. (A.2-sexies) Princípios e ratio deádendi. (B) Fatores estruturais das
teorias elaboradaspelosjuizes nafundamentação de suas decisões. (B.1) A
saturação daspremissas normativas. (B.2) Coerência dajustificação apre­
sentadapelojmna decisão a ser tomada comoprecedentejudicial. (B.2-bis)
Critérios de coerência segundo Alexy e Pec^enik. (i) O número de relações
de sustentação, (ii) A extensão das cadeias defundamentação. (Ui) O critério
da “fundamentação em sentido rigoroso” (strong support). (iv) Conexões
entre cadáas de sustentação, (v) Relações deprioridade entreprincípios, (vi)

a r\
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O critério dajustificação recíproca, (mi) Critérios relativos aos conceitos em­


pregados na teoria, (viii) Interconexão entre concátos. (ix) Número de casos
individuais, (x) Diversidade das esferas da vida. (B.2-ter) Relação entre os
critérios eprincípios da coerência. 3.3.2.3.3 Correção substancialda decisão-
paradigma. 3.3.3 A determinação dopeso da ratio decidendi: aponderação
dasfontes e dos demaisfatores institucionais e extrainstitucionais que influem
sobre oprecedente. 3.3.3.1 Duas operações básicas no Direito: subsunção e
ponderação. 3.3.3.2 Ponderação deprincípios eponderação de rabões. 3.4
Mutatis mutandis. O overruling ou ab-rogação doprecedentejudiàal. 3.4.1
O overruling deprecedentes meramentepersuasivos. 3.4.2 O overruling de
precedentes obrigatórios em sentidoforte (formalmente vinculantes). 3.4.3 O
overruling deprecedentes obrigatórios em sentidofrágil. 3.4.4 A “modulação
dos efeitos” dos revirements: até queponto uma solução adequada para o
desenvolvimentojudiàal do Direito? 3.4.4.1 O prospective overruling no
diráto dos Estados Unidos da América. 3.4.4.2 O overruling a teoria
declaratória e o direito inglês. 3.4.4.3 O prospective overruling no direito
alemão. 3A.4.4 O prospective overruling no direito comunitário europeu.
3.4.4.5 A modulação dos efeitos retroativos dajurisprudência e o diráto
francês. 3.4.4.6 O prospective overrulingno direito brasikiro. 3.4.4.7 A l­
gumas diretivasgeraispara a aplicação da técnica doprospective overruling.

3.1 Considerações introdutórias

Nas últimas seções do capítulo anterior tentei demonstrar


a viabilidade de se construir uma teoria normativa do prece­
dente judicial a partir da divisão entre problemas de justifica­
ção e aplicação de normas jurídicas. Rejeitei a proposta de
Günther de entender o discurso jurídico como apenas um caso
especial de discurso de aplicação porque, entre outras razões,
a validade jurídica stricto sensu - validade de uma norma con­
forme o ordenamento - não deve ser invariavelmente e defini­
tivamente uma razão absoluta para reconhecer tal norma como
vinculante no discurso jurídico. O Direito tem, além de uma
dimensão real - institucional, autoritativa -, uma dimensão
ideal - discursiva, racional - que dirige e informa o processo
de raciocínio jurídico [Alexy 1999-b:375].
Como vimos, depois da filosofia jurídica produzida por
Hart os juristas passaram a olhar para o Direito a partir do
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ponto de vista interno, ou seja, da perspectiva daqueles que obe­


decem e aplicam normas jurídicas para o fim de solucionar os
conflitos de interesses que se manifestam na sociedade. Os es­
tudiosos do Direito compreenderam que não se pode analisar o
Direito com o mesmo método dos cientistas que formulam suas
leis físicas através da mera observação de “regularidades” e
certos padrões de reprodutibilidade que podem ser verificados
a partir da perspectiva externa. Isso abriu caminho para uma
autêntica revolução na filosofia jurídica. Apesar de Hart se ter
mantido positivista por toda sua vida, outros juristas, como
Dworkin e MacCormick - no mundo do common law - e Alexy e
Peczenik - no Direito continental -, perceberam que nenhuma
teoria positivista pode ser adequada para entender a natureza
do Direito a partir do momento em que abandonamos a pers­
pectiva do observador. O Positivismo não basta mais enquanto
teoria jurídica, porque ele não leva em consideração o aspecto
ideal do Direito (as ideias de correção, justiça, razoabilidade) e
advoga uma separação a priori entre Direito e Moral, que não
corresponde à prática de desenvolvimento do Direito em socie­
dades relativamente avançadas. Parece mais plausível que,
apesar de o Direito e a Moral poderem ser conceitualmente di­
ferenciados, haja uma mútua dependência entre ambos. A Moral
necessita do Direito para superar sua indeterminação cognitiva;
e o Direito necessita da Moral para legitimar suas decisões.1
Essa nova forma de se entender o Direito e sua relação
com a moralidade gera sérias consequências para a teoria dos
precedentes judiciais.
A teoria positivista dos precedentes judiciais foi a teoria
inglesa desenvolvida a partir do século XIX. Com efeito, du­
rante o período em que o Positivismo foi dominante - séculos
X IX a X X - a teoria jurídica produzida na Europa Continental,
bem como em outras tradições jurídicas que cresceram sob sua
influência, como a latino-americana, negligenciou por comple­
to os precedentes [Gorla 1981-h]. Como explica Luís Roberto

1. V., supra, Capítulo 2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Barroso, antes do advento do Constitucionalismo, que teve suas


primeiras raízes lançadas apenas na segunda metade do sécu­
lo X X - e mesmo assim, inicialmente, em um número reduzido
de Estados, como a Alemanha e a Itália -, vigorava na tradição
romano-germânica um modelo de Estado Legislativo assenta­
do sobre o monopólio estatal da produção jurídica e sobre o
princípio da legalidade: “A norma legislada se converte em
fator de unidade e estabilidade do Direito (...)• A partir daí, a
doutrina irá desempenhar um papel predominantemente des­
critivo das normas em vigor. E a jurisprudência se torna, antes
e acima de tudo, uma função técnica de conhecimento, e não
de produção do Direito” [Barroso 2007:205]. Essa situação só
iria mudar no século X X , quando o próprio Positivismo com e­
ça a entrar em decadência.
Diferentemente do civil law, o common law deixou-nos
como legado um rico conjunto de ferramentas metodológicas
para interpretar e aplicar precedentes judiciais. A vasta litera­
tura no Reino Unido sobre a definição da ratio decidendi de
um caso e sobre os métodos para extraí-la na atividade prática
de argumentação jurídica é, de fato, um ponto de partida sóli­
do para uma teoria da adjudicação que dê conta do papel dos
precedentes enquanto elementos da argumentação jurídica,
ou seja, com o razões para se decidir questões controvertidas e
superar muitas das dificuldades que nós encontramos nos
denominados hard cases. Mas a teoria inglesa dos precedentes
judiciais é também uma teoria fortemente positivista. A ideia
de que os juizes criam o case law por sua própria autoridade
está na base dessa teoria. Foi tal ideia que levou os juristas a
distinguir entre a ratio decidendi - a parte vinculante da deci­
são judicial - e o obiter dictum - os discursos não-autoritativos
que se manifestam nos pronunciamentos judiciais. Como nos
relata Criscuoli [2000:348], “ a necessidade de distinguir entre
ratio decidendi e obter dictum - já oficialmente advertida por
Vaughan C. J. em ‘Bole vs Horton’, de 1673 - é uma conse­
quência natural do fato de que o juiz não encontra limites ao
formular a motivação do seu juízo adjudicativo da lide, razão
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

pela qual pareceu oportuno que essa sua plena liberdade sob
o plano motivacional fosse balanceada pela regra segundo a
qual nem tudo que ele pode dizer e diz é vinculante para o
futuro juiz, de sorte que apenas as considerações que repre­
sentam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade ju­
rídica entre o fato e a decisão integram a ratio decidendi, onde
qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação,
qualquer outra advertência que não tem aquela relação de
causalidade é obiter: um obiter dictum ou, nas palavras de Vau-
ghan, um gratis dictum
O poder de criação do Direito reconhecido pelo Positivis­
mo aos juizes levou a uma abordagem muito estreita dos pre­
cedentes judiciais. Já que os juizes não encontravam limites
ao seu poder de criação normativa, tornou-se necessário inter­
pretar as regras jurisprudenciais de modo estrito. Uma decisão
anterior somente pode vincular uma posterior “ nas questões
fáticas e jurídicas levantadas e discutidas perante a corte”
[Whittaker 2006:715]. Sobre a premissa do caráter vinculante
das decisões singulares das cortes superiores e o pressuposto
positivista da irrelevância da fundamentação das decisões para
se encontrar a ratio decidendi de um caso, os juristas do common
law normalmente concordavam com a tese de que o elemento
vinculante de uma decisão judicial está no “ato de autoridade” ,
e não nas razões dadas pelo tribunal para justificá-la, bem como
que para cada decisão judicial é possível encontrar uma única
ratio decidendi que liga os fatos do caso a um conjunto definí­
vel de consequências jurídicas em uma estrutura de regra ju ­
rídica. Alguns argumentam que a ratio é uma regra necessária
para justificar a conclusão jurídica [Cross/Harris 1991]; outros,
que a regra que constitui a ratio é meramente suficiente para
a conclusão jurídica a que ela leva [Simpson 1961]. O debate
gira, portanto, em torno do melhor método para se determinar
a ratio decidendi dos casos que valem como precedentes.
Mas, com o obscurecimento do Positivismo Jurídico a
partir do fortalecimento, no final do século XX, das teorias da
argumentação jurídica - que olham para o Direito a partir da
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

perspectiva do participante e buscam aproximar o direito real


do direito ideal, ao se voltarem para a justificação racional das
decisões jurídicas concretas - e de uma teoria dos direitos
fundamentais fundada em princípios, o modelo positivista
oferecido pela teoria inglesa tradicional deixa de constituir
uma alternativa viável para orientar a interpretação e aplicação
do direito judicial.
Em primeiro lugar, o próprio fundamento da obrigação
de seguir precedentes judiciais - seja essa entendida em um
sentido frágil (obrigação de levar em consideração o preceden­
te) ou em um sentido forte (obrigação de decidir segundo o
precedente) - muda radicalmente. Devemos seguir preceden­
tes não mais apenas porque eles constituem Direito positivo
formalmente produzido por alguma autoridade institucional-
mente autorizada a criar Direito, mas porque os precedentes
passam a ser vistos como uma exigência da própria ideia de
“ razão prática” [MacCormick/Summers 1997:4]. Não pode
haver um sistema jurídico racional sem um método universa-
lista e imparcial de aplicação do Direito positivo. Podemos
observar, na interpretação e aplicação dos precedentes, a mes­
ma tensão entre ratio et auctoritas que caracteriza o Direito
positivo de modo geral [Habermas 2005-a; Bergholtz 1990]. Em
um dos poios dessa tensão há um elemento de autoridade no
Direito que se manifesta desde o início de sua institucionaliza­
ção até o ato final de sua aplicação. Nas palavras de Viola
[1996:182], “ é isso que diferencia o Direito de outras esferas da
vida prática” . Mas no outro polo o Direito e a Moral comparti­
lham o fato de que ambos necessitam um ao outro: o Direito
sem a moralidade perde seu aspecto ideal e se transforma em
uma prática arbitrária, onde o mais forte cria leis para o mais
fraco; ao passo que a Moral sem a facticidade do Direito é um
mero sistema de saber cultural que carece de qualquer garan­
tia de eficácia.
Não há apenas razões institucionais para se seguir pre­
cedentes, mas também razões morais. Ao mesmo tempo, é
possível que em casos concretos essas razões morais - que
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

desempenham um papel decisivo na argumentação jurídica,


a partir do momento em que nós reconhecem os a mútua de­
pendência entre Direito e Moral - demandem uma reinter-
pretação do Direito e o overruling de uma regra jurispruden-
cial que não possa mais ser moralmente justificada. Quando
isso acontece, devem ser ponderados os princípios da segu­
rança jurídica e da correção substancial, a fim de se decidir
se deve, ou não, ser modificado o case law em vigor. Isso pode
ser perfeitamente exemplificado na prática. No próprio direi­
to inglês, por exemplo, hoje se tem com o certo que a House
ofLords pode e deve revogar - overrule - os precedentes que
não sejam mais racionalmente justificáveis. De fato, apesar
de a House ter por um longo tempo declarado que ela estava
vinculada às suas próprias decisões, a versão forte do stare
decisis nunca foi uma regra absoluta, pois a Corte podia sem­
pre distinguir casos e, quando alguma razão importante não
tivesse sido considerada no caso anterior, declarar que a regra
judicial antiga fora estabelecida per incuriam e, por isso, não
tinha caráter vinculante. Algo parecido acontece hoje também
no Direito continental europeu. Em muitas das cortes cons­
titucionais que prolatam decisões vinculantes em matéria
constitucional as decisões têm efeito vinculante não apenas
na parte dispositiva, mas também na sua fundamentação. Isso
acontece inclusive no Direito comunitário europeu, quanto
às decisões da Corte Euroaeia de Direitos Humanos [Baade
2002:13]. Portanto, é possível que uma razão não considerada
pelo tribunal no precedente citado venha, em julgamento
posterior, a ser suficiente para pronunciar a inconstituciona-
lidade ou invalidade de uma lei já previamente analisada: o
efeito vinculante das decisões, quando aplicável, refere-se
não apenas à parte dispositiva da decisão, mas aos seus fun­
damentos determinantes.2 Por isso, Gilmar Mendes sustenta
que “ as sentenças posteriores que modifiquem a situação
normativa, bem com o eventual mudança de orientação jurí­
dica sobre a matéria, podem tornar inconstitucional norma

2. Nesse sentido, v.: STF, Rcl 1.987, rei. Min. Maurício Corrêa, DJU 21.4.2004.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

anteriormente considerada legítima” : as sentenças contêm


implicitamente a cláusula rébus sic stantibus [Mendes 1998:284].
O modelo de Estado Constitucional contemporâneo exi­
ge que todo ato de aplicação judicial do Direito atenda, na
máxima medida possível, à pretensão de justificabilidade ra­
cional que nos proíbe de considerar a “ autoridade” dos juizes
e tribunais como uma razão excludente para as decisões pos­
teriores. Isso significa que uma doutrina do precedente abso­
lutamente vinculante não é mais compatível com a exigência
de justificabilidade mantida pelas Constituições democráticas,
pois será sempre teoricamente possível que em um caso futu­
ro as razões aduzidas para o overruling de uma regra jurispru-
dencial superem as que militam em favor da manutenção
desta mesma regra.
Em segundo lugar, a partir do momento em que se deixa
de presumir a priori que cada precedente judicial tem autori­
dade absoluta e invariavelmente vinculante, pode-se abrandar
a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Com efeito,
até muito recentemente os juristas ingleses em geral concor­
davam com Goodhart quando este afirmava que “ a razão que
o juiz dá para sua decisão nunca é a parte vinculante de um
precedente” [Goodhart 1931:2]. Hoje em dia, entretanto, pare­
ce que a máxima oposta é muito mais apropriada: “ É na enun­
ciação das opinions para o fim de justificação de decisões que
os juizes estabelecem precedentes e constroem o case law”
[MacCormick 2005:144]. Mesmo que na maioria dos sistemas
jurídicos ainda haja espaço para certas decisões que têm um
elevado grau de vinculatividade - inclusive em sistemas jurí­
dicos da tradição romano-germânica [Baade 2002] -, há sempre
lugar - mesmo na Inglaterra - para discussões e revisão de
regras há muito estabelecidas e consagradas em precedentes
judiciais.

As pressuposições de que há sempre uma ratio decidendi


e de que esta inevitavelmente tem uma autoridade absoluta são
ficções que, apesar de ainda serem relativamente frequentes
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

no discurso de certos teóricos positivistas, não encontram nem


confirmação na prática jurídica - seja do direito inglês ou das
cortes de civil law nem fundamento filosófico - na medida
em que se passa a exigir do Direito não apenas a característica
da vigência fática, mas também a da aceitabilidade racional.
Ademais, mesmo sem romper as fronteiras do Positivismo
já se podia criticar severamente tais pressuposições. Stone, por
exemplo, consegue demonstrar com a análise de casos que
sempre há uma larga margem de “ fatos” que podem ser con­
siderados “ materiais” e, portanto, parte da ratio decidendi
[Stone 1959:603-604]. Após apontar uma série de ambiguidades
semânticas que surgiram na interpretação do célebre caso
“Donoghue vs Setevenson” , Stone conclui que os material facts
“podem ser enunciados em vários níveis de generalidade” e
pode haver um grande número de “rationes potencialmente
vinculantes competindo entre si para governar casos futuros
em que os fatos possam incidir em um nível de generalidade,
mas não em outro” [idem:607]. A ratio decidendi seria, portan­
to, uma “categoria de referência ilusória” (category ofillusory
reference), pois o Direito deixa à corte posterior uma escolha
substancial quanto aos fatos que devem ser compreendidos na
ratio decidendi de um precedente [ibidem].

Devemos reconhecer que Stone tem um bom argumento.


Mas seu argumento não deve nos conduzir a renunciar ao es­
forço de determinar com clareza a ratio decidendi de um pre­
cedente antes de decidir sobre sua aplicação a casos futuros.
Se definirmos a ratio decidendi como uma norma universali-
zável que pode ser extraída de um precedente judicial,3 per­
cebem os que na maioria dos casos se pode encontrar não
apenas uma, mas diferentes rationes decidendi, que podem ter
graus diferentes de vinculatividade em casos futuros. Ao invés
de tentar encontrar uma e única ratio decidendi em cada caso,
devemos admitir que há sempre um grau de indeterminação

3. V., supra, Capítulo 1, n. 1.5.2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

anteriormente considerada legítima” : as sentenças contêm


implicitamente a cláusula rebus sic stantibus [Mendes 1998:284],

O modelo de Estado Constitucional contemporâneo exi­


ge que todo ato de aplicação judicial do Direito atenda, na
máxima medida possível, à pretensão de justificabilidade ra­
cional que nos proíbe de considerar a “autoridade” dos juizes
e tribunais com o uma razão excludente para as decisões pos­
teriores. Isso significa que uma doutrina do precedente abso­
lutamente vinculante não é mais compatível com a exigência
de justificabilidade mantida pelas Constituições democráticas,
pois será sempre teoricamente possível que em um caso futu­
ro as razões aduzidas para o overruling de uma regra jurispru-
dencial superem as que militam em favor da manutenção
desta mesma regra.
Em segundo lugar, a partir do momento em que se deixa
de presumir a priori que cada precedente judicial tem autori­
dade absoluta e invariavelmente vinculante, pode-se abrandar
a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Com efeito,
até muito recentemente os juristas ingleses em geral concor­
davam com Goodhart quando este afirmava que “a razão que
o juiz dá para sua decisão nunca é a parte vinculante de um
precedente” [Goodhart 1931:2]. Hoje em dia, entretanto, pare­
ce que a máxima oposta é muito mais apropriada: “E na enun­
ciação das opinions para o fim de justificação de decisões que
os juizes estabelecem precedentes e constroem o case law”
[MacCormick 2005:144]. Mesmo que na maioria dos sistemas
jurídicos ainda haja espaço para certas decisões que têm um
elevado grau de vinculatividade - inclusive em sistemas jurí­
dicos da tradição romano-germânica [Baade 2002] -, há sempre
lugar - mesmo na Inglaterra - para discussões e revisão de
regras há muito estabelecidas e consagradas em precedentes
judiciais.

As pressuposições de que há sempre uma ratio decidendi


e de que esta inevitavelmente tem uma autoridade absoluta são
ficções que, apesar de ainda serem relativamente frequentes
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

no discurso de certos teóricos positivistas, não encontram nem


confirmação na prática jurídica - seja do direito inglês ou das
cortes de civil law -, nem fundamento filosófico - na medida
em que se passa a exigir do Direito não apenas a característica
da vigência fática, mas também a da aceitabilidade racional.
Ademais, mesmo sem romper as fronteiras do Positivismo
já se podia criticar severamente tais pressuposições. Stone, por
exemplo, consegue demonstrar com a análise de casos que
sempre há uma larga margem de “fatos” que podem ser con­
siderados “ materiais” e, portanto, parte da ratio decidendi
[Stone 1959:603-604]. Após apontar uma série de ambiguidades
semânticas que surgiram na interpretação do célebre caso
“Donoghue vs Setevenson” , Stone conclui que os materialfacts
“ podem ser enunciados em vários níveis de generalidade” e
pode haver um grande número de “rationes potencialmente
vinculantes competindo entre si para governar casos futuros
em que os fatos possam incidir em um nível de generalidade,
mas não em outro” [idem:607]. A ratio decidendi seria, portan­
to, uma “ categoria de referência ilusória” (category ofillusory
reference), pois o Direito deixa à corte posterior uma escolha
substancial quanto aos fatos que devem ser compreendidos na
ratio decidendi de um precedente [ibidem].

Devemos reconhecer que Stone tem um bom argumento.


Mas seu argumento não deve nos conduzir a renunciar ao es­
forço de determinar com clareza a ratio decidendi de um pre­
cedente antes de decidir sobre sua aplicação a casos futuros.
Se definirmos a ratio decidendi como uma norma universali-
zável que pode ser extraída de um precedente judicial,3 per­
cebem os que na maioria dos casos se pode encontrar não
apenas uma, mas diferentes rationes decidendi, que podem ter
graus diferentes de vinculatividade em casos futuros. Ao invés
de tentar encontrar uma e única ratio decidendi em cada caso,
devemos admitir que há sempre um grau de indeterminação

3. V., supra, Capítulo 1, n. 1.5.2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

no Direito jurisprudencial (case law) e que nós podemos ex­


trair diferentes rationes decidendi de um mesmo caso. Esse é
o ponto de partida para uma teoria dos precedentes dotada
de maior fecundidade.
Nessa nova teoria dos precedentes devemos abandonar
não apenas a tese de que há apenas uma ratio decidendi, mas
também a afirmação de que a ratio é sempre absolutamente
vinculante. Já tive oportunidade de demonstrar que tal afir­
mação não é razoável a partir do momento em que reconhece­
mos a decadência do Positivismo Jurídico. Não parece correto
que ou uma regra extraída da fundamentação de uma decisão
é uma norma absolutamente vinculante, ou um mero obiter
dictum, que não tem qualquer autoridade [Eng 1996:19]. A tese
de que essas duas alternativas são exaustivas não encontra
ressonância nem na prática jurídica [Eng 1996 e 2000-b] e nem
na história do Direito [Gorla 1981-c:537].
A teoria que estou propondo neste trabalho, na linha
dos estudos de Svein Eng [1996 e 2000-b], vai contra a deno­
minada either-or assumption, ou seja, essa forma dicotômica
de pensar o precedente judicial. Iremos adotar nas seções
seguintes um modelo de reconstrução silogística das regras
que podem constituir as rationes decidendi de um preceden­
te judicial. Essas regras podem variar tanto em abrangência
quanto em grau de vinculatividade. Nas próximas seções, após
revisar as principais concepções positivistas sobre a ratio
decidendi, procurarei estabelecer um modelo para a recons­
trução de normas jurisprudenciais a partir de cadeias de si­
logismos, bem como fixar certa orientação para se determinar
aforça ou grau de vinculatividade dessas normas que podemos
extrair dos precedentes judiciais. Finalmente, analisarei a
possibilidade de superação /overruling e revisão de regras
jurisprudenciais e as razões que podem justificar o afasta­
mento da decisão anterior. Todos esses problemas, com o
pretendo deixar claro, dizem respeito à validade de normas
jurisprudenciais; e, portanto, constituem parte do que Gün-
ther denominou problemas de justificação normativa.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

3.2 A interpretação de precedentes judiciais: o problema


da ratio decidendi

A grande questão a ser respondida por uma teoria des­


critiva dos precedentes judiciais é: “ O que vale como prece­
dente judicial?” . Como optamos por uma teoria normativa do
precedente, nosso problema é: “ O que deve contar como pre­
cedente judicial, para fins de sua aplicação no raciocínio jurí­
dico?” . Ao reformularmos a pergunta inicial, abandonamos a
perspectiva do observador e adotamos a do participante. Pre­
cedentes judiciais são, como enunciados legislativos, textos
dotados de autoridade que carecem de interpretação. É traba­
lho do aplicador do Direito extrair a ratio decidendi - o elemen­
to vinculante - do caso a ser utilizado como paradigma. Mas a
noção de ratio decidendi e os critérios para sua determinação
constituem algo ainda fortemente controvertido. Talvez este
seja o ponto mais polêmico da teoria dos precedentes e de toda
a teoria jurídica produzida no common law.

Como explica Marshall, “ não há uma única forma de


dizer o que aconteceu em um caso particular, e descrevê-lo é
selecionar as suas notas mais relevantes para o propósito em
questão” . Ao se selecionar os fatos materiais fixados pelo juiz
ou descrever as regras adotadas em um caso concreto, “ é ne­
cessário definir com certo grau de precisão o que constitui esse
elemento (ratio decidendi)” [Marshall 1997:505].

É natural, portanto, que surjam disputas doutrinárias


infindáveis acerca do que deve ser considerado vinculante em
um precedente judicial. O conceito de ratio decidendi - pelo
menos enquanto prevalecer a teoria positivista, segundo a qual
o que torna o case law relevante é apenas a autoridade do juiz
que tenha decidido a questão jurídica coberta pelo caso, sendo
que essa autoridade ou é absoluta ou “não existe” [Eng 200-
b:305] - parece ser um conceito fadado à indeterminação.
A teoria positivista dos precedentes - que floresceu na
Inglaterra no século X IX - toma como certo que os juizes têm
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

um poder ilimitado de criação de normas jurídicas. Por isso há


uma tendência a se buscar um conceito o mais estrito possível
de ratio decidendi para o fim de limitar o poder normativo
reconhecido ao Judiciário: “ Na experiência dos juristas do
common law, o problema da força do precedente é estritamen­
te ligado àquele da individualização da ratio decidendi da
sentença: somente a esta é reconhecido valor vinculante, não
a um obiter dictum” [Bin 1999:207].
Oliphant, por exemplo, propõe um “ empirismo radical”
no método para determinar a radio decidendi. Para ele, o que
constitui um precedente é “ o que as cortes tenham feito em
resposta ao estímulo dos fatos do caso concreto que se acha
diante delas” ; e, portanto, “não a fundamentação dada pelo
juiz” [Oliphant 1928:159]. Goodhart, por sua vez, concorda com
Oliphant em que “ a primeira regra para se descobrir a ratio
decidendi de um caso é que ela não deve ser buscada nas razões
em que o juiz tenha baseado sua decisão” [Goodhart 1931:4],
mas nos fatos materiais “tais como vistos pelo juiz” no caso
citado. Como já adiantamos,4 para este autor “ é pela sua es­
colha dos fatos materiais que o juiz cria Direito” [idem:10]. Na
mesma direção move-se a famosa teoria de Cross, para quem
a ratio decidendi deve ser encontrada mesmo nas decisões não
amparadas por qualquer tipo de razões: “seria um erro assumir
que tais decisões careçam de uma ratio decidendi que as habi­
lite a ser citadas como precedentes, pois a proposição jurídica
em que elas devem ter se baseado pode ser inferida com mais
ou menos segurança a partir dos fatos conjugados com a con­
clusão” [Cross 1979:48]. Portanto, a ratio decidendi é definida
com o “qualquer regra jurídica expressa ou implicitamente
tratada pelo juiz como um passo necessário para alcançar a
sua conclusão” [idem:76].
Ainda na tradição do common law, Simpson acredita que
a ratio decidendi deve ser buscada na regra “ aplicada pela

4. V., supra, n. 1.5.2 do Capítulo 1.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

corte” (acted upon in court). Para encontrá-la seria necessário


procurar os fatos considerados relevantes para a decisão toma­
da como precedente. Mas o que pode contar como “relevante”
para uma decisão? Simpson responde a essa pergunta a partir
de uma crítica à concepção de Cross: “E difícil enxergar a for­
ça de qualquer necessidade lógica que iria guiar o juiz ao de­
cidir qual regra precisa foi necessária” [Simpson 1961:163]. Ele
corretamente sugere o uso da expressão “ suficiente” no lugar
de “ necessária” , e argumenta que tudo o que o juiz necessita
para decidir é uma regra suficientemente precisa para solucio­
nar o caso concreto. As regras jurisprudenciais são descritas
como “ entidades incompletas” , pois elas estão sempre sujeitas
a novas exceções a serem adicionadas por juizes posteriores
quando estes distinguem o caso a ser decidido daquele cober­
to pela regra judicial [idem:165].
Todos esses métodos para se determinar a ratio, apesar
de diferentes em vários aspectos, compartilham o pressuposto
de fundo de que o juiz cria por sua própria autoridade institu­
cional o direito jurisprudencial, bem com o que as normas
criadas dessa maneira são invariavelmente vinculantes. O
debate entre os positivistas é, portanto, uma discussão entre
juristas que compartilham a mesma ideologiajudicial: o mesmo
pressuposto de que o juiz está vinculado pelos que o antecede­
ram e faz leis para os que o sucederão.
Mesmo se descartarmos, com fundamento nas razões que
expusemos no capítulo introdutório,5 as teorias sobre a ratio
decidendi que buscam separar “ fatos” e “ normas” , colocando
toda a ênfase nos primeiros - como fizeram Goodhart, Oliphant
e os realistas -, a noção de ratio decidendi permanece um con­
ceito aberto e dotado de alto grau de ambiguidade. Em um
esforço de mapeamento dos sentidos encontrados na doutrina
de modo geral para a locução, Chiassoni conclui que o concei­
to de ratio decidendi é caracterizado “ por uma notável ambi-

5. V., supra, Capítulo 1, n. 1.5.2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

guidade” , que concerne a dois fatores: (1) o tipo de objeto de­


signado e (2) o grau de especificação do objeto designado
[Chiassoni 2004:80-84].
Em relação ao tipo de objeto, a locução pode se referir,
alternativamente, a três coisas diferentes:
(1) Segundo uma concepção “normativista abstrata” , com
a locução ratio decidendi se pode designar “ a norma jurídica
geral - a ‘regra’, o ‘critério’, o ‘princípio’, a ‘premissa normati­
va’ etc. - dessumível da sentença complexivãmente considera­
da, sobre a base do que foi decidido em um caso” .

(2) De acordo com uma concepção “normativista concre­


ta” , com ratio decidendi se designa a “ norma jurídica geral
contextualizada: isto é, a norma usada por um juiz para justi­
ficar a decisão de um caso, considerada não mais em si e per
se, mas unicamente em relação aos argumentos que a susten­
tam e à decisão do fato ao qual tenha sido aplicada” .
(3) Por último, na perspectiva de uma concepção “ argu-
mentativa” , com a locução ratio decidendi “ não se faz referên­
cia, especificamente, nem a uma norma geral em si e por si
considerada, nem a uma norma contextualizada, mas, em ter­
mos gerais, a qualquer elemento essencial (sine qua non) da
argumentação desenvolvida pelo juiz para motivar a decisão
de um caso” [Chiassoni 2004:81].

Quanto ao grau de especificação, por sua vez, pode-se


encontrar na doutrina um número ainda maior de significados.
Ratio decidendi pode ser [Chiassoni 2004:82-83]: “ (i) o elemen­
to da motivação que constitui uma premissa necessária para a
decisão de um caso; (ii) o princípio de Direito que na sentença
é suficiente para decidir o caso concreto; (iii) a argumentação
necessária ou suficiente para definir um juízo; (iv) a norma
(‘regra’, ‘princípio’) que constitui, alternativamente: a condição
necessária e suficiente, ou a condição não necessária mas sufi­
ciente, ou ainda uma condição necessária mas não suficiente de
uma determinada decisão; (v) a norma relevante para os fatos
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

da causa, à luz de uma análise textual do precedente-sentença,


que o juiz tenha de fato estabelecido e/ou seguido; (vi) a norma
relevante para os fatos da causa que o juiz do caso paradigmá­
tico declara expressamente ter estabelecido e/ou seguido; (vii)
a norma expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como
necessária para decidir o caso; (viii) a norma relevante para os
fatos da causa que - à luz do Direito existente, dos fatos e dos
precedentes - o juiz que tenha pronunciado a decisão paradig­
mática deva ter estabelecido e/ou seguido, para decidir correta­
mente a controvérsia; (ix) a norma relevante para os fatos da
causa que, segundo a opinião de um juiz sucessivo, o juiz que
pronunciou o precedente tenha acreditado haver estabelecido;
(x) a norma relevante para os fatos da causa que, segundo a
opinião de um juiz sucessivo, o juiz que pronunciou o prece­
dente tenha de fato estabelecido ou seguido; (xi) a norma rele­
vante para os fatos da causa que, segundo a opinião dos juris­
tas, o juiz posterior tenha o dever de considerar como estabe­
lecida ou seguida por um juiz precedente” .
Todas essas acepções foram extraídas de contribuições
de juristas acadêmicos - em sua maioria common lawyers - que
tentaram estabelecer parâmetros metodológicos para encon­
trar o elemento vinculante dos precedentes judiciais. Todas
parecem pressupor que o único fundamento para se seguir
precedentes é a autoridade que os juizes detêm para criar
Direito. Não obstante, durante longo tempo vigorou uma teoria
que expressamente negava esse poder normativo tanto no
common law [v. MacCormick 2005:262; MacCormick 1998-a;
Postema 1987; Wesley-Smith 1987] quanto no civil law, por
juristas com o Savigny e Windscheid [Zimmermann/Jansen
1998:302]. Como relatam Zimmermann e Jansen, essa concep­
ção - ainda prevalecente na Alemanha - sustenta que “ a for­
mação do Direito deve ser distinguida da sua percepção pelos
juristas para a aplicação do Direito. Pronunciamentos judiciais,
portanto, apenas podem ser considerados vinculantes enquanto
eles reflitam corretamente ‘o Direito” ’ [idem:303]. Essa teoria -
denominada “declaratória” - padece do mesmo unilateralismo
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que hoje caracteriza o Positivismo, mas no sentido contrário.


Ela peca por não reconhecer qualquer peso à autoridade nos
precedentes judiciais, por imaginar que o juiz não exerce qual­
quer papel criativo no desenvolvimento do Direito. No relato
de Zimmermann e Jansen: “A teoria declaratória é hoje defen­
dida sob o argumento de que os juizes sempre têm de embasar
suas decisões em razões juridicamente reconhecidas, tais como
argumentos deduzidos de princípios jurídicos gerais. Mas não
se segue dessa proposição, também, que o sistema jurídico
proveja uma resposta correta para cada problema jurídico.
Mesmo se isso fosse correto em linha de princípio, deve-se
manter em mente que a decisão sempre depende do peso re­
lativo das razões que lhe servem de fundamento. As razões
jurídicas, no entanto, não têm um peso predeterminado e di­
ferenciado; o peso deve lhes ser atribuído por meio de uma
argumentação racional. Critérios para esse processo de pe­
sagem ou ponderação apenas rudimentarmente podem ser
extraídos do Direito positivo. Os sistemas jurídicos são, por­
tanto, parcialmente incompletos, ao menos no que se refere
ao peso dos argumentos relevantes para uma decisão. Segue-
se daí que os tribunais, quando decidem casos difíceis, ao
menos em parte criam o Direito, ao invés de meramente
descobri-lo. Uma nítida e claramente demarcada distinção
sobre quando, e em que extensão, os tribunais estão decla­
rando ou criando Direito é provavelmente impossível de ser
estabelecida” [Zimmermann/Jansen 1998:304].
Mais correto que uma disputa pura e simples entre a
teoria declaratória e a teoria positivista parece, a meu ver, re­
conhecer um pouco de razão a cada um desses approaches. Da
teoria positivista podemos extrair a afirmação - geralmente
correta - de que os juizes têm determinado poder criativo ao
interpretar e aplicar o Direito aos casos concretos; da teoria
declaratória podemos derivar a tese de que, em um importan­
te sentido, os juizes, quando aplicam o Direito a determinado
caso concreto, estão vinculados pelo conteúdo das prescrições
normativas que podem de modo geral ser derivadas do Direito
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

e de sua sistematização racional. De um lado, nem sempre é


possível uma única resposta correta a partir dos princípios
jurídicos; de outro lado, na aplicação judicial do Direito há, em
maior ou menor grau, tanto uma margem de criação quanto
uma esfera de vinculação ao Direito preexistente. Essa esfera
deriva do próprio dever de obediência ao Direito, que decorre
do seu caráter institucionalizado.
A partir do momento em que adotamos o conceito se­
mântico de norma jurídica,6 podem os visualizar, com o faz
Alexy, um modelo procedimental de teoria dos princípios - e
das normas jurídicas em geral - segundo a qual esses consti­
tuem uma espécie de ordem-marco para o legislador: “A m e­
táfora do marco pode ser precisada da seguinte maneira: o
marco é o que está ordenado e proibido. O que se confia à
discricionariedade do legislador, ou seja, o que não está nem
ordenado nem proibido, é aquilo que se encontra no interior
do marco. Assim, o discricionário define a margem de ação
do legislador” [Alexy 2002-a:21].
Há, portanto, sempre uma margem de ação estrutural
para o legislador. A partir do momento em que, com base no
conceito semântico de norma jurídica, deixamos assentado que
o texto constitucional estabelece o marco ou moldura dentro
do qual se deve construir a norma jurídica que irá decidir o
caso concreto, o mesmo se pode dizer para o juiz que estabe­
lece um precedente judicial: também nesse caso há um poder
de criação do Direito no marco definido pelo ordenamento jurí­
dico. Se aceitarmos que, na interpretação jurídica, o juiz pode
escolher um dos conteúdos normativos em tese possíveis à luz
do ordenamento jurídico e das metanormas ou diretivas de
argumentação propostas pelas teorias da razão prática, ele está
de fato dotado de um poder normativo geral, ainda que limita­
do. Como explica Carlos Bernal, “as fontes \formaisJ do Direi­
to são disposições, no sentido de textos ou enunciados, das

6. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.4.I.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

quais, consideradas de maneira isolada, nada se deriva. Trata-


se unicamente de um elenco de signos que por si mesmos não
têm nenhum significado. O significado lhes vem atribuído so­
mente quando se lhes interpretam” [Bernal Pulido 2005:210].
Especificamente quanto à autoridade da jurisprudência, Ber­
nal é ainda mais pontual: “Desta distinção entre disposição e
norma seguem vários efeitos. O mais importante para nossos
fins é que na realidade as normas jurídicas não se encontram
nas fontes do Direito, mas em suas interpretações, e que as
interpretações que fundamentam autoritativamente e concre­
tizam as normas são as que se encontram na jurisprudência,
quer dizer, as que os juizes levam a cabo na parte motivacional
de suas sentenças” [idem:211].
Portanto, é de se reconhecer certa razão aos positivistas
quando estes resistem à teoria declaratória da decisão judicial.
Na atividade prática de aplicação judicial do Direito, em qual­
quer sistema jurídico, sempre haverá espaço para uma esfera
de criatividade judicial. Nesse sentido, Victoria Iturralde Ses-
ma enumera cinco sentidos em que a locução “os juizes criam
Direito” pode ser encontrada. São eles: (1) criação em sentido
formal - quando se considera uma decisão judicial como uma
“ ordem” , “cada decisão é um ato normativo, tal como uma nova
lei” ; (2) criação em sentido material no caso concreto por meio
da especificação de regras jurídicas preexistentes - nesse sen­
tido, parte-se da premissa kelseniana de que “ o processo de
produção do Direito é ao mesmo tempo aplicativo e criativo” .
O juiz, ao aplicar regras gerais, cria normas mais concretas; (3)
criação em sentido material de uma regra particular no caso
concreto devido à não-existência de regras preestabelecidas -
nesse sentido, o juiz reconhece uma lacuna jurídica e cria uma
nova regra por analogia para o fim de solucionar o caso concre­
to; (4) criação em sentido material de regras gerais - aqui, o juiz
cria regras gerais que têm um valor de precedente para casos
futuros, tendo em vista uma exigência normativa do próprio
sistema jurídico (como acontece, por exemplo, em decisões in-
terpretativas de uma corte constitucional); e (5) expulsão de
regrai jurídicas do sistema jurídico - como acontece em decisões
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

em que o Judiciário atua com o “legislador negativo” e declara


a invalidade - v.g., por inconstitucionalidade - de uma regra
jurídica qualquer [Iturralde Sesma 1998:134].
Em maior ou menor medida, cada um desses cinco sen­
tidos de “ criação judicial do Direito” estará presente pratica­
mente em todos os sistemas jurídicos. E falaciosa, portanto, a
teoria declaratória em seu sentido tradicional.
Mas isso não significa a plausibilidade das teorias positi­
vistas. O problema dessas teorias está na falsa afirmação de que
o precedente deve ser observado apenas em função da autori­
dade do juiz que o estabeleceu. Como explica Marina Gáscon
Abellán, a noção de “precedente” pode ser entendida tanto no
sentido tradicional - ou seja, como a “doutrina ou os critérios
jurisprudenciais assentados pelos mais altos tribunais e cuja
observância se ordena ou recomenda, com mais ou menos vigor,
pelos tribunais inferiores” - como em uma acepção mais res­
trita, a significar “ a doutrina ou os critérios adotados pelo pró­
prio juiz na resolução de casos anteriores” [Gáscon Abellán
1993:11]. Nesse último sentido fala-se não em “precedente ver­
tical” (estabelecido por tribunais superiores) ou “ horizontal”
(por juizes que se situem no mesmo nível daquele que pretende
aplicar a regra jurisprudencial), mas no que Gáscon Abellán
denomina “autoprecedente” [idem:35]. Nos casos em que se
exige o respeito ao precedente com base em alguma ideia sobre
a estrutura piramidal de um poder do Estado ou sobre o sistema
de recursos jurisdicionais” , explica a professora de Castilla-La
Mancha, “ a submissão ao precedente não difere do que justifi­
ca a submissão à lei” [idem:36]: obedece-se ao precedente
porque há uma norma que exige esse comportamento. E justa­
mente nos casos em que não há qualquer exigência de respeito
aos precedentes - não há qualquer ato de autoridade a estabe­
lecer a força vinculante para os precedentes - que se pode ver
com mais clareza o erro do Positivismo.
Com efeito, nos ensina Gáscon Abellán que “ o respeito
ao precedente [o próprio precedente, não necessariamente as
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

decisões dotadas de uma autoridade superior] supõe uma exigên­


cia de autocongruência; exigência que, em princípio, opera em
relação ao passado, mas que deve se conceber também, e prin­
cipalmente, em relação ao futuro, ou como consciência de que
um bom critério de resolução será aquele que valha também para
resolver casos posteriores” [Gáscon Abellán 1993:11]. Em suma:
“Qualquer que seja a sua sorte em determinado sistema norma­
tivo e jurisdicional, respeitar o precedente constitui exigência de
uma argumentação que se pretenda racional, pois encarna nada
menos que um dos princípios de correção kantianos, qual seja,
o da universalização. Dito de outro modo, o papel que a regra de
comportar-se segundo os princípios que poderíamos querer como
lei universal desempenha no âmbito da moralidade é o mesmo
papel que o respeito ao precedente desempenha no âmbito jurí­
dico. Com isso, não defendo que a argumentação moral e a jurí­
dica sejam idênticas, mas simplesmente que a racionalidade
constitui um valor importante em ambas as esferas” [idem:12].
Por isso, se entendermos essa exigência de aplicação im­
parcial e universalista do Direito como algo que se exige não
apenas do juiz individual, mas de todos os tribunais, chegamos
à conclusão de que o fundamento do dever de respeitar o pre­
cedente não está apenas na autoridade, na força jurídica atri­
buída ao ato de criação judicial do Direito. Pelo contrário, pare­
ce claro que a exigência de universalizabilidade - núcleo da
concepção kantiana de racionalidade prática - é o principal
fundamento para a técnica do precedente judicial. Como a uni­
versalizabilidade é o critério mais seguro de correção de uma
norma, o dever de levar em conta o precedente judicial pode ser
fundamentado pelo método pragmático-universal de Habermas
e Alexy: é um pressuposto para o entendimento do Direito como
uma empresa racional. Negá-lo seria negar a universalizabili­
dade do Direito e, com isso, a racionalidade de suas normas.
Seria tão grave quanto negar a própria pretensão de correção
implicitamente sustentada ao se decidir um problema jurídico.7

7. V , supra, Capítulo 2, ns. 2.2 e 2.3.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Podemos adotar, aqui, a metáfora proposta por Dworkin


para descrever a atividade jurisdicional. O autor norte-ameri­
cano compara a atividade dos juristas (especialmente do juiz
constitucional) à do autor de um “romance em cadeia” em que
cada autor de um capítulo recebe os manuscritos escritos por
uma outra pessoa, mas segundo um amálgama de princípios
coerenties que garantem a “integridade” do texto, e, após adi­
cionar sua contribuição, deixa sempre o final em aberto, ou
seja, deixa para o autor do próximo capítulo um certo espaço
para que adicione sua contribuição: “ Nessa empresa um grupo
de novelistas escreve um romance seriatim; cada autor na ca­
deia interpreta os capítulos que lhe foram dados para poder
escrever um novo capítulo, que é depois adicionado àquilo que
o próximo novelista recebe, e por aí vai. Cada um tem a tarefa
de escrever seu capítulo de forma a fazer o romance ser cons­
truído da melhor forma possível. A complexidade dessa tarefa
serve como modelo para a complexidade de se decidir um caso
difícil à luz do modelo Law as integrity” [Dworkin 2000:229].
A descrição apresentada por Dworkin para seu modelo
de Law as integrity é útil porque revela que os juizes, em cada
nova decisão, incorporam o material normativo agregado pelas
decisões anteriores, como que fazendo uma síntese compreen­
siva do conhecimento acumulado pelo tribunal nos julgamen­
tos anteriores, sem ter necessariamente de aceitar que os juizes
anteriores tenham predeterminado todos os seus passos, mas
sabendo que sua tarefa de julgar passa pela reconstrução dos
princípios que justificaram os precedentes judiciais (seja para
reiterá-los, seja para modificá-los nos casos futuros, se necessário)
e pelo desenvolvimento judicial do Direito como se fosse uma teia
coerente (seamless web) de princípios, casos, regras e soluções
jurídicas. Um mínimo que se espera para essa teoria do Direito
como integridade é a aplicação universal das normas adscritas8

8. Na terminologia utilizada por Robert Alexy em sua Teoria dos Direitos Fun­
damentais [Alexy 1997-b], segundo a tradução de Ernesto Garzón Valdés, as
normas adscritas são normas criadas no processo de concretização do direito,
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

justificadas na fundamentação apresentada pelos tribunais


para suas decisões.
É claro, porém, que o dever de observar o precedente não
se trata de um dever absoluto. Com efeito, pode-se diferenciar
a “ obrigação de tomar em conta um precedente judicial” (vin-
culação ao precedente em sentido frágil) da “ obrigação de al­
cançar a mesma conclusão jurídica do precedente judicial”
(vinculação em sentido forte) [Eng 1996:22]. A força ou o peso
dos precedentes é algo que pode variar. Como e em que extensão
essa variação pode ocorrer é algo que estudaremos na próxima
seção. Mais importante revela-se, no momento, saber o que
constitui um precedente judicial.
A dificuldade para determinar a ratio decidendi de um
caso qualquer decorre, em minha opinião, da pressuposição
de que há apenas uma ratio em cada caso julgado. Tal premis­
sa apenas resultaria plausível enquanto se admitisse com o
inquestionável a tese positivista de que as razões dadas pelo
juiz para sua decisão são irrelevantes para determinar a regra
jurisprudencial. Uma teoria dos precedentes que supere o
Positivismo Jurídico e sua exasperação do momento auctoritas
no raciocínio jurídico não pode aceitar essa tese. E nas razões
que os juizes dão para justificar suas decisões que devem ser
buscados os precedentes [MacCormick 1987:155]. A ausência
dessas razões ou sua superação por outras consideradas mais
fortes em uma argumentação imparcial afeta a aplicação e, em
casos mais graves, a própria validade da norma adscrita pro­
duzida pelo Judiciário. E na motivação ou fundamentação das
sentenças judiciais que as regras jurisprudenciais devem ser
encontradas [Bernal Pulido 2005:211].
Como lembra Gorla, os precedentes apenas são relevan­
tes para aquelas situações em que os juizes têm o poder de

seja pelos tribunais ou pelo legislador que especifique um determinado Direito


E\indamental. Por essa razão, Virgílio Afonso da Silva, em sua boa tradução
ao português da Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy, utiliza o termo
“normas atribuídas” para se referir a tal classe de normas jurídicas [Alexy 2008].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

resolver problemas de interpretação do Direito e/ou de decidir


‘“ por equidade’ (em sentido amplo) ou ‘no mérito’, resolvendo
conflitos de interesse” . Segundo o comparatista italiano, “ sem
tal poder falta o húmus sobre o qual podem se formar decisões
que, não se limitando a resolver meras questões de fato, possam
assumir o papel de precedentes” [Gorla 1990:3]. De fato, é nos
casos difíceis - em que o conteúdo de determinado enunciado
normativo é indeterminado ou estão presentes quaisquer fa­
tores capazes de suscitar certas tomadas de posição valorativas
pelo aplicador do Direito - que se torna relevante a atividade
normativa do juiz: “Nos casos difíceis, entre as circunstâncias
do caso e a disposição normativa existe uma grande distância
que somente pode ser encurtada por uma norma que tenha
relação com o caso e que possa encontrar fundamento na dis­
posição que se encontra nas fontes formais do Direito. A juris­
prudência encarrega-se de fundamentar e concretizar ditas
normas, que recebem a denominação de normas adscritas
porque se adscrevem das disposições existentes nas fontes
jurídicas. Essas normas vinculam os destinatários do Direito e
são as que conferem, portanto, força vinculante à jurisprudên­
cia” [Bernal Pulido 2005:213].
É nas normas adscritas, encontradas na fundamentação
que o juiz dá à sua decisão, que se deve buscar as regras que
podem servir com o paradigmas para resolver casos futuros.
Cada uma das normas adscritas é uma ratio decidendi do caso-
paradigma.
Portanto, haverá uma ratio decidendi útil para a solução
de casos futuros não apenas quando a corte decida determina­
da questão pontual acerca das consequências do caso particu­
lar - tal como “x deve fazer A ” -, mas também quando essa
mesma corte tenha estabelecido - com clareza e de forma jus­
tificada - uma regra geral que possa abarcar, além de x, os
indivíduos y, z e outros que se achem na mesma situação. Pode-
se falar, portanto, em uma pluralidade de rationes decidendi
em um mesmo caso concreto: “ Seria errôneo, uma vez indivi­
dualizada uma ratio decidendi, necessária e suficiente para a

271
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

decisão, crer que os outros princípios enunciados na senten­


ça sejam obiter dicta. Tais outros princípios podem ser não
necessários, mas suficientes para a decisão: e serão, portanto,
rationes decidendi ulteriores em relação à primeira” [De Nova
1999:249-250].
Do mesmo modo, em um julgamento colegiado pode
acontecer que os juizes que integram a câmara ou turma de
julgamento cheguem a um consenso sobre a solução a ser dada
para o caso sub judice mas divirjam acerca das normas gerais
que são concretizadas no caso em questão e justificam a solu­
ção adotada: “Em uma corte de cinco juizes, ‘não há ratio de­
cidendi da corte a não ser que três juizes pronunciem a mesma
ratio decidendi’” [Montrose 1957:130]. Nesse sentido, Whittaker
recorda o caso “ Shogun Finance Ltd. vs Hudson”’9 em que o
raciocínio de cada um dos Juizes que compõem a maioria - uma
maioria de três a dois - difere muito significativamente dos
demais: “ O resultado estava claro: uma maioria de três entre
cinco Juizes com assento na House of Lords sustentou que o
fraudador não havia adquirido o título e, portanto, não poderia
em tais circunstâncias tê-lo repassado a Hudson, aplicando-se
a máxima nemo dat quod non habet. Não obstante, a maioria
apresentava diferenças muito significativas quanto ao raciocí­
nio seguido pelos seus componentes” [Whittaker 2006:723-724],
Em um caso como esse não se pode falar em um prece­
dente da corte acerca das normas (gerais) adscritas que cons­
tituem as premissas normativas adotadas por cada um dos
juizes da maioria, embora se possa falar, eventualmente, de uma
decisão comum constante na norma individual que corresponde
rigorosamente aos fatos do caso e às conclusões adotadas. Ape­
nas há um precedente do tribunal em relação às questões que
foram objeto de consenso dos seus membros. “Quando a funda­
mentação divergente [no caso de votos “convergentes no disposi­
tivo e divergentes na motivação” ] descortina-se incompatível,

9. [2003] UKHL 62.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

tem-se uma decisão despida de discoverable ratio, e, portanto,


não-vinculante no que concerne à solução dada ao caso” [Cruz
e Tucci 2004:178]. Isso não impede, porém, que se possa falar
em uma ratio decidendi da opinião de um juiz e que a regra
inferida dessa ratio seja utilizada como precedente em um caso
futuro. E claro que essa regra está menos revestida de autori­
dade que outra que tenha sido objeto de consenso de toda a
corte, mas isso - apesar de limitar - não extingue por comple­
to seu valor com o precedente.
Por outro lado, um caso em que os membros de uma
mesma corte tenham alcançado consenso sobre a forma de se
interpretar determinada norma geral pode valer como prece­
dente de toda a corte ainda que, eventualmente, esta tenha di­
vergido acerca dos fatos e de outras questões em discussão, to­
mando uma decisão por maioria. O que importa para determi­
nar o grau de autoridade de um precedente em um órgão co-
legiado é o reconhecimento da norma adscrita a ser utilizada
com o precedente em casos futuros, não necessariamente o
conteúdo concreto da decisão citada.
Um outro exemplo é o caso em que o tribunal manifesta
consenso sobre determinada regra mas não a utiliza para solu­
cionar o caso concreto. Nesse sentido, Galgano - pressupondo
ainda a relevância de uma distinção forte entre ratio decidendi
e obiter dictum - põe as seguintes questões [Galgano 1999:234]:
Hipótese 1 - vem enunciada uma regra geral e, em
seguida, vem formulada uma exceção, mas o caso em espécie
comporta apenas a aplicação da exceção: a regra geral formu­
lada é um obiter dictum? ”
Hipótese 2 - vem enunciada uma regra geral, seguida
também desta vez da formulação de uma exceção, mas o caso
em espécie é decidido com a aplicação da regra geral: a exceção
formulada é um obiter dictum? ”
A teoria clássica do precedente judicial - de forte matiz
positivista - seguramente responderia negativamente a ambas

THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

as indagações: só valem como precedentes aquelas decisões


que formam a parte dispositiva da decisão judicial. Mas essa
teoria, hoje, parece em franca decadência, pelo menos na prá­
tica das cortes constitucionais: têm força de precedente não
apenas as decisões, pelo só fato de serem decisões, mas as ra­
zões que tenham sido objeto de consenso e adesão pelas mais
altas esferas do Judiciário, os fundamentos determinantes do
Direito jurisprudencial [MacCormick 1987; MacCormick 2005;
Baade 2002; Bernal Pulido 2005; Mendes 1998; Clève 2000]. O
efeito vinculante das decisões judiciais - mesmo quando previs­
to no seu grau mais elevado, por força de uma norma jurídica
do sistema - “se estende para além da parte dispositiva, alcan­
çando também a fundamentação da sentença” [Clève 2000:267].
Portanto, se em um caso X a jurisprudência fixa deter­
minada norma geral capaz de abarcar não apenas o caso
concreto, mas também os casos A, B e C - também subsumíveis
nessa norma -, esta norma terá força vinculante para todos.
O postulado da coerência exige que todas as situações que
puderem ser universalmente formuladas e subsumidas nas
mesmas normas gerais sejam tratadas da mesma forma, a não
ser que, em um discurso de aplicação dessas normas, surjam
elementos não considerados na hipótese normativa que justi­
fiquem a formulação de uma exceção ou a não-aplicação das
consequências jurídicas ao caso concreto [Günther 1993-b;
MacCormick 2005].10
Uma teoria dos precedentes judiciais que busque contri­
buir para a coerência do sistema jurídico - que constitui um
dos elementos da ideia de racionalidade - deve exigir dos apli-
cadores do Direito que estes extraiam do case law o maior
número possível de enunciados gerais e universais. De um lado,
a universalidade - isto é, o uso de conceitos que designam todas
as coisas pertencentes a uma classe - é uma condição necessária
para a coerência, pois toda teoria necessita utilizar conceitos e

10. Sobre os discursos de aplicação na teoria de Günther, v., supra, Capítulo


2, n. 2.4.3.

074
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

definições universais. De outro, quanto mais gerais forem os


conceitos empregados em uma teoria, maior será seu alcance
- e, assim, a chance de se produzir um resultado coerente
[Alexy/Peczenik 1990:140]. Ceteres paribus, quanto mais enun­
ciados universais (sem nomes individuais) uma teoria usa,
quanto maior o número de conceitos gerais empregados por
ela, mais coerente será dita teoria [Bustamante 2005-a:284;
Alexy/Peczenik 1990]. Por isso, Alexy e Peczenik formularam,
entre outros, os seguintes “princípios de coerência” : (1) “quan­
do se usar uma teoria para justificar um enunciado, deve-se
agir de modo a que a teoria seja expressa em tantos enunciados
universais quantos seja possível” ; (2) “quando se usar uma
teoria para justificar um enunciado, deve-se agir de modo a
que a teoria seja expressa em tantos conceitos gerais quantos
seja possível” [ibidem].11
O uso de precedentes na argumentação jurídica apenas
poderá reivindicar coerência se os conceitos e normas gerais
empregados na justificação de um caso X puderem ser também
empregados na solução do caso Y e de todos os demais que se
apresentem com o semelhantes nos aspectos considerados re­
levantes pelas normas adscritas na enunciação das razões ou
fundamentos da decisão tomada no caso X. Ceteris paribus, as
normas adscritas que constituem as rationes decidendi de um
precedente judicial são aplicáveis a todos os universos de
situações que possam eventualmente ser enquadráveis em suas
hipóteses normativas.
Isso implica que uma teoria normativa dos precedentes
como a que queremos deve revisar não apenas o conceito cor­
rente d e ratio decidendi - para entendê-lo de forma mais ampla
do que tradicionalmente se fez no common law, de modo a
abranger todas as normas adscritas que, em diferentes níveis
de generalidade, podem ser verificadas na fundamentação das
decisões judiciais -, mas também o de obiter dictum. Com efeito,

11. V., infra, neste Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a noção de obiter dictum - mesmo em sistemas jurídicos de


civil law, com o o italiano, onde a teoria dos precedentes se
desenvolveu graças aos estudos juscomparatistas de Gino
Gorla [Taruffo 1994:411] - normalmente é entendida de modo
a abarcar “tudo aquilo que o juiz admite em via concessiva,
quando hipotetiza a incorreção [ou correção] da solução dada
de fato a uma questão preliminar” [Nanni 1999:192]. De modo
geral, o conceito de dictum é definido per exclusionem: todas
as normas e afirmações que não puderem ser enquadradas no
conceito estrito de ratio decidendi têm sua autoridade descarta­
da e valem apenas pela força de convencimento que eventual­
mente possam vir a ter [Marshall 1997:515; Taruffo 1994:420].
Nos casos de “uma regula juris enunciada mas não aplicada
no caso em espécie, ou do convencimento judicial expresso
sobre questões alheias ao pedido das partes, ou da regra geral
e da exceção enunciada pelo juiz mas seguida da aplicação
apenas da regra geral ou da exceção, ou ainda da regra enun­
ciada com a finalidade de encontrar, por contraposição, aquela
aplicável ao caso em espécie” , todas essas normas adscritas são,
via de regra, consideradas meros obiter dieta [Nanni 1999:192].
É tempo de rever essa dicotomia rígida entre ratio e dic­
tum, entre a parte absolutamente vinculante e a parte não-
vinculante de um precedente judicial. Como salienta Galgano,
“no nosso sistema [italiano], que desconhece a eficácia vincu­
lante do precedente, a própria ratio decidendi tem eficácia
apenas persuasiva, a mesma eficácia que no eommon law se
reconhece aos obiter dieta; não se legitima, portanto, a distinção
entre ratio decidendi e obiter dictum enquanto ambas sejam
dotadas de igual valor apenas persuasivo” [Galgano 1999:219].
E claro que atualmente essa afirmação deve ser relativizada,
na medida em que cada vez mais se reconhece o efeito vincu­
lante da jurisprudência das cortes constitucionais em sistemas
de civil law;12 mas é errôneo imaginar que a questão da força

12. No Direito brasileiro, por exemplo, esse reconhecimento tem status cons­
titucional (Constituição da República, art. 102, § 2a, e art. 103-A). Sobre as
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ou vinculatividade de um precedente possa ser - seja no civil


law ou no common law - resolvida por meio de uma alternativa
do tipo “ tudo-ou-nada” . Pode-se concordar com Eng quando
este sustenta que “ a imagem do peso atribuído ao julgamento
anterior por meio de valoração e ponderação de aspectos tipi­
camente relevantes do julgamento (...) constitui uma visão mais
adequada acerca do que realmente fazem as Cortes noruegue­
sas e inglesas [e, poderíamos adicionar, as de praticamente todos
os Estados Constitucionais contemporâneos] que as imagens
tradicionais do tipo either-or [ou vinculante, ou mero obiter
dictumT [Eng 2000-b:302]. No mesmo sentido, Taruffo argu­
menta que “ as tradicionais distinções entre ratio decidendi e
obiter dictum, e entre eficácia vinculante e eficácia persuasiva
do precedente, são provavelmente muito simplistas e redutivas,
além de padecerem de incerta aplicação” [Taruffo 1994:415]. A
dicotomia é classificada como “pouco mais que ilusória” , sen­
do “ fortemente ambígua” e “pouco frutífera nos sistemas em
que o precedente tenha por definição uma eficácia apenas
persuasiva” [idem:419-420]. Como a questão da força ou vin­
culatividade dos precedentes é uma questão de graus, prefiro,
ao invés de contrapor os conceitos de ratio decidendi e obiter
dictum, falar indistintamente em rationes decidendi e deixar
para um momento posterior a decisão acerca da força ou da
eficácia de cada ratio ou norma adscrita invocada como prece­
dente judicial no discurso jurídico.
A reconstrução da ratio decidendi - isto é, das regras
adscritas que têm força de precedente - deve ser, portanto,
uma elucidação das premissas normativas tomadas como etapas
de justificação de uma decisão judicial. Parece adequado, nesse
sentido, um modelo exegético [Siltala 2000:84-90] de reconstru­
ção das normas a partir da interpretação das decisões judiciais.

decisões vinculantes na jurisdição constitucional brasileira, v., entre outros,


Mendes [1998], Clève [2000], Celso de Albuquerque Silva [2005], Mancuso
[2001], Mendes [2007] e, em especial, o ensaio de Juliano Bernardes [2007]
onde são tecidas considerações críticas à jurisprudência do STF e a algumas
teses que eu próprio acato no presente trabalho.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

“ Quando um juiz faz referência a uma decisão anterior, o faz a


uma regra universal contida na decisão” [Moral Soriano
2002:138]. A interpretação dos precedentes deve conter, por­
tanto, uma “ análise normativa” , cujo objetivo é “ a individuali­
zação da regra ou norma: mas não a situação individual que
constitui o decisum, senão as rationes decidendi” [Chiassoni
1999:145].
Tal reconstrução pressupõe, antes de tudo, uma ferra­
menta analítica para elucidar a estrutura das decisões judiciais
e revelar todas as premissas normativas contidas em sua fun­
damentação. Tal ferramenta analítica pode ser a enunciação
formal dessas premissas normativas sob a forma de silogismos
práticos, isto é, silogismos “ cuja premissa maior e cuja conclu­
são não são enunciados que se assume exprimirem proposições
apofânticas, mas enunciados que se assume exprimirem pro­
posições prescritivas” [Chiassoni 1999:152]:
“ Os amigos da Humanidade devem vestir os desnudos.”
“Astianatte Bianchi é um amigo da Humanidade.”
Portanto,

“Astianatte Bianchi deve vestir os desnudos” [ibidem].


As normas adscritas extraídas dos precedentes judiciais
devem, todas, ser enunciadas sob a forma de enunciados uni­
versais do tipo “ sempre que se verifiquem os fatos operativos
(OF), então, devem se aplicar as consequências normativas (NC)”
[MacCormick 2005:43]. No uso de normas adscritas de preceden­
tes deve-se inicialmente reconstruir o aspecto interno do racio­
cínio adotado no caso-paradigma, ou seja, a relação lógica entre
a decisão e as premissas aduzidas na argumentação, e apenas
depois avaliar o aspecto externo da justificação dessas normas,
isto é, a própria correção das premissas reveladas na justificação
interna da decisão [Wróblewski 1974:39]. Um modelo silogístico
parece adequado porque decompõe claramente todos os passos
seguidos na argumentação judicial e explicita cada uma das
normas adscritas seguidas pelo juiz no caso paradigmático.

O'“70
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

É claro, todavia, que a metodologia silogistica que pre­


tendemos adotar aqui “não sustenta que o raciocínio decisório
ou o raciocínio justificatório [de uma decisão] sejam, de fato,
raciocínios do tipo silogístico” . Como esclarece Chiassoni, tal
metodologia limita-se a sustentar o seguinte:
“ (a) O conteúdo das sentenças pode ser reconstruído
como um raciocínio do tipo silogístico.”
“ (b) Tal reconstrução, normalmente, se compõe não de
um silogismo, mas de um conjunto de silogismos - um comple­
xo de ‘numerosos silogismos concatenados’ (Calamandrei);
uma ‘cadeia de silogismos’ (Comanducci).”
“(e) As atividades de documentação das sentenças não têm
caráter exclusivamente lógico-cognitivo, nem a aplicação judicial
do Direito é perfeitamente redutível à formulação de um racio­
cínio silogístico, por várias razões, entre as quais as seguintes:
em primeiro lugar, as premissas do raciocínio judicial não são
um dado de fato que o juiz se limita a revelar; em segundo lugar,
e por via de consequência, a formulação das premissas é, bas­
tante frequente, ainda que nem sempre, fruto de opções e esco­
lhas de vários tipos por parte do juiz” [Chiassoni 1999:156].
O método mais racional para se determinar as rationes
decidendi é, portanto, a adaptação do modelo abstrato de ra­
ciocínio subsuntivo à prática de se seguir precedentes levada
a efeito pelos tribunais. Esse modelo subsuntivo exige que as
regras que justificam a decisão sejam enunciadas em termos
universais, proporcionando uma espécie de “barreira contra
a arbitrariedade” e constituindo-se em parâmetros para a so­
lução de casos futuros [Moral Soriano 2002:138]. Se utilizarmos
a sistematização de Alexy - também seguida por Moral Soria­
no -, podemos representar o nível interno (analítico) da justi­
ficação jurídica da seguinte forma:

. (1) (x) Tx - * ORx


. (2) Ta
. (3) Ta - » Tx
(4) ORa

279
I

THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Como explica Moral Soriano, o esquema anterior não é


senão o esquema do silogismo jurídico, cujos elementos, no
exemplo acima, são: (1) a premissa maior, que é uma “ norma
enunciada em termos universais (formais)” ; (2) os fatos conec­
tados à premissa maior; (3) a premissa que expressa o princípio
da instanciação universal (“ ou seja, expressa a identidade se­
mântica entre os fatos do caso (Ta) e os fatos descritos na norma
(Tx)” ); e, finalmente, (4) “ a decisão jurídica” [Moral Soriano
2002:139].
Contudo, essa estrutura de justificação é ainda insufi­
ciente para elucidar todas as decisões intermediárias ou
fractional decisions [Wróblewski 1992] - inclusive as relacio­
nadas à interpretação de normas adscritas e ao reconheci­
mento de premissas normativas dotadas de menor grau de
generalidade - encontradas nas decisões jurídicas: “A estru­
tura de raciocínio ‘premissa maior - fatos - decisão judicial’,
ou seja, a estrutura do silogismo jurídico, apesar de impres­
cindível, não é suficiente para justificar aquela decisão sobre
um caso concreto que não deriva logicamente do Direito. Diz-
se, então, que o raciocínio jurídico não está completo, porque
na cadeia lógico-dedutiva existem ‘saltos’, isto é, passos não-
dedutivos. O trabalho do juiz consiste em justificar tais passos
ou, segundo a terminologia de Peczenik, o juiz deve realizar
uma transformação referida à decisão judicial” [Moral Soriano
2002:141].
O que Peczenik caracteriza com o um “ salto” ou uma
“transformação” no raciocínio jurídico é o juízo de equivalência
ou identidade semântica realizado pelo intérprete do Direito
no momento em que ele valora os textos legislativos (ou, in
casu, os precedentes) e os fatos empiricamente comprovados.
São, na linguagem de Bulygin, os “ enunciados classificatórios”
realizados pelo jurista na aplicação do Direito. Como explicam
Peczenik, Aarnio e Alexy [1981:137]
“Uma transformação (‘um salto’, a jump) é realizada se,
e somente se, as seguintes condições estão cumpridas:

non
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ (1) p é empregada como uma razão para q;” e


“ (2) p não conduz dedutivamente a q.”
A título de exemplo, em um silogismo como
. 1) (x) (Tx ORx)
.2 ) Ta
3) ORa 1), 2),

pode sempre haver dúvida sobre se a é, ou não, uma instância


de T. Em tal hipótese (de dúvida, controvérsia) é possível adi­
cionar premissas intermediárias que tornariam a inferência
possível em termos analíticos. Cada vez que nós adicionamos
essas premissas intermediárias nós estamos fazendo uma
“ transformação jurídica” .
Peczenik distingue, como lembra ainda Moral Soriano,
quatro formas de “decisão-transformação” : (1) “interpretação
precisa” - o juiz estabelece outras normas (também universais)
que aclaram, concretizam ou determinam o significado de T;
(2) “ eliminação ou redução” - que se dá quando o juiz exclui
determinado universo de casos da hipótese de incidência de
uma norma, através de uma redução teleológica (do tipo (x)
Tx a - 1Mx - » ORx), ou, em hipóteses mais radicais, elimina a
própria norma; (3) “ criação de novas normas” - o juiz cria uma
nova hipótese de incidência normativa, v.g., por meio da analo­
gia; e (4) “solução de conflitos” entre normas [Moral Soriano
2002:142-143; Aarnio/Alexy/Peczenik 1981:155-157].
Em cada uma dessas hipóteses de “saltos” ou “transfor­
mações” sempre haverá uma premissa intermediária nova que
tem caráter normativo e constitui uma norma adscrita ou ratio
decidendi adicional que pode ser empregada em casos poste­
riores como um dos fundamentos para a decisão judicial. Po­
demos reconstruir o raciocínio de um juiz e apontar todas as
transformações que ele faz para justificar sua decisão. Cada
vez que ele elabora um enunciado classificatório sobre os fatos
do caso ou um enunciado interpretativo acerca da norma em

281
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que o fato deve ser subsumido, ele está efetuando uma trans­
formação no Direito e introduzindo uma premissa interme­
diária na cadeia de razões necessária para partir da regra
abstrata em direção à norma concreta que o juiz dirige às par­
tes na parte dispositiva de sua decisão.
Quando, seguindo o insight de Moral Soriano, propo-
m o-nos a reconstruir os argumentos das decisões judiciais
dessa forma - e passamos a contemplar a decisão judicial não
como uma única regra, mas como uma cadeia de razões - , po­
demos visualizar as decisões judiciais não como um silogismo,
mas como uma série de silogismos onde, por exemplo, o enun­
ciado que está na conclusão de um raciocínio interpretativo
sobre uma norma (um silogismo interpretativo) é ao mesmo
tempo a premissa maior de um silogismo em que os fatos rele­
vantes para a justificação da decisão final formam a premissa
menor. Portanto, em cada caso nós não iremos encontrar uma,
mas várias rationes diferentes. O problema que ainda perma­
nece não é como encontrar a (única possível) ratio decidendi,
mas qual peso ou força nós devemos atribuir à ratio decidendi
que está sendo usada como uma norma adscrita no caso pre­
sente. Trataremos desse problema na seção que se segue.

3.3 A força/vinculatividade do precedente judicial

Até o momento nos concentramos na atividade de determi­


nação das normas adscritas que podem ser extraídas dos prece­
dentes judiciais. A atividade do aplicador do Direito, nesse terre­
no, é uma atividade reconstrutiva, uma atividade de interpretação
das decisões judiciais para o fim de aplicá-las como precedentes
na solução de casos futuros. E tarefa predominantemente descri­
tiva que pode, em certo sentido, ser desenvolvida por um obser­
vador, e não necessariamente por um participante do discurso
jurídico, pois busca-se descobrir quais são as premissas normati­
vas - ou simplesmente normas - que podem ser extraídas das
decisões capazes de gerar precedentes judiciais. Em uma palavra,
trata-se de trabalho predominantemente analítico-cognitivo.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

O problema que enfrentaremos a partir de agora, no


entanto, apesar de pressupor que o problema anterior tenha
sido previamente resolvido - pois dele depende - , envolve
operações mentais significativamente diferentes. Quando pas­
samos da análise reconstrutiva das decisões judiciais - para
delas extrair normas - para o problema da determinação do
peso das normas jurisprudenciais na argumentação jurídica já
não estamos mais apenas descrevendo ou reconstruindo as
premissas normativas de uma decisão já tomada por uma au­
toridade judicial, mas nos encontramos diante da necessidade
de decidir acerca da força argumentativa que deve ser atri­
buída à ratio decidendi que pretendemos utilizar com o um
elemento de justificação de um caso ainda não solucionado.
Abandonamos, portanto, a dimensão analítica da ciência do
Direito e ingressamos na sua dimensão normativa. A partir
desse momento, já não podemos mais fugir à necessidade de
ponderar as razões - e princípios - que justificam a adesão à
regra jurisprudencial em questão e aqueloutras que eventual­
mente lhes sejam antagônicas - seja abstratamente considera­
das ou, mais especificamente, no caso concreto em que se lhe
pretende aplicar. E necessário, por conseguinte, argumentar
acerca do peso de cada ratio decidendi, e isso constitui trabalho
que somente pode ser feito pelos participantes do discurso
jurídico. Uma teoria geral dos precedentes, mesmo uma teoria
normativa, não pode oferecer mais que certas diretivas gerais
para auxiliar essa atividade.
Mais adiante, no n. 3.3.2, veremos que, ao lado de certas
diretivas gerais que podem ser úteis para determinar a força
de uma norma judicial, há também vários fatores empíricos,
analíticos e normativos que influem sobre o grau de eficácia
de um precedente judicial. Nesse sentido, MacCormick argu­
menta que a força do precedente em determinado sistema
jurídico pode variar em função do contexto institucional, da
tradição jurídica, do sistema constitucional (e do direito positi­
vo em geral) e das teorias jurídico-dogmáticas dominantes
[MacCormick 1998-a:180]. Tentarei sistematizar todos esses
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

fatores - que são fatores “ institucionais lato sensu” - e, evitan­


do certas sobreposições entre eles, combiná-los com outros
fatores de natureza não-institucional - ou seja, de natureza
puramente prático-racional - , com vistas a fornecer alguns
parâmetros para a ponderação do peso abstrato dos preceden­
tes judiciais no discurso jurídico. Antes, porém, cabe uma re­
visão da teoria das fontes do Direito, que até os dias de hoje
constitui um dos núcleos do pensamento positivista. Como
veremos abaixo, para construir uma teoria dos precedentes
judiciais que leve em conta simultaneamente os imperativos
da razão prática que nos exigem tomar em conta o precedente
judicial e as razões de autoridade que constituem também um
fundamento para a prática de se seguir precedentes, é neces­
sário fazer uma revisão profunda da teoria tradicional das
fontes do Direito.

3.3.1 Os precedentes judiciais como fontes do Direito. Mas


que tipo de fonte?

A teoria positivista do precedente judicial não precisou


tecer quaisquer considerações metodológicas sobre a força dos
precedentes judiciais porque partiu da premissa, que perma­
neceu inquestionável durante todo o período de vigência des­
sa teoria, de que os precedentes constituem fontes do Direito.
De outro lado, na tradição jurídica dita “ romano-germânica”
- ou simplesmente civil law - muito pouco se falou durante os
200 anos de Positivismo sobre os precedentes judiciais, porque
estes não eram considerados fontes formais do Direito.
O período de ascensão do Positivismo na Europa Conti­
nental foi o período de enfraquecimento do precedente judicial.
Foi também o período de construção da denominada doutrina
moderna das “fontes do Direito” . Como explica Ferraz Jr., “ a
teoria das fontes, em suas origens modernas, reporta-se à to­
mada de consciência de que o Direito não é essencialmente um
dado, mas uma construção elaborada no interior da cultura
humana. Ela desenvolveu-se, pois, desde o momento em que
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

a Ciência Jurídica percebe seu objeto (o Direito) como um


produto cultural, e não mais como um dado da Natureza ou
sagrado” [Ferraz Jr. 2003:223]. Para entender como as ideias
políticas e os movimentos históricos do final do século XVIII e
do início do século X IX repercutiram no Direito, pode-se com ­
parar a doutrina das fontes do Direito no Estado Pré-Moderno
e no Estado Moderno. A seguinte passagem de Luís Roberto
Barroso - referindo-se a Ferrajoli - parece expressar adequa­
damente o processo histórico a que estou a me referir:
“No Estado Pré-Moderno, a formação do Direito não era
legislativa, mas jurisprudencial e doutrinária. Não havia um
sistema unitário e formal de fontes, mas uma multiplicidade
de ordenamentos, provenientes de instituições concorrentes:
o Império, a Igreja, o Príncipe, os Feudos, os Municípios e as
Corporações. O Direito ‘comum’ era assegurado pelo desen­
volvimento e atualização da velha tradição romanística e tinha
sua validade fundada na intrínseca racionalidade ou na justiça
do seu conteúdo. Veritas, non auctoritas facit legem é a fórmu­
la que expressa o fundamento jusnaturalista de validade do
Direito pré-moderno (...).
“ O Estado de Direito Moderno, assinala ainda Ferrajoli,
nasce sob a forma de Estado Legislativo de Direito. Graças ao
princípio da legalidade e às codificações que lhe deram reali­
zação, uma norma jurídica não é válida por ser justa, mas por
haver sido ‘posta’ por uma autoridade dotada de competência
normativa. Auctoritas, non veritas facit legem: este é o princípio
convencional do Positivismo Jurídico. Com a afirmação do
princípio da legalidade com o norma de reconhecimento do
Direito existente, a Ciência Jurídica deixa de ser uma Ciência
imediatamente normativa para converter-se em uma discipli­
na cognoscitiva, explicativa do direito positivo, autônomo e
separado em relação a ela. A jurisdição, por sua vez, deixa de
ser produção jurisprudencial do Direito e se submete à lei como
única fonte de legitimação” [Barroso 2007:204-205-notas 4 e 6],
Portanto, a teoria das fontes do Direito, tal com o nós a
conhecemos hoje - pelo menos como nos é ainda transmitida
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

pela maioria dos juristas teóricos - é uma herança do Positi­


vismo Jurídico do século XIX. Mais que isso, é uma doutrina
que expressa o pensamento liberal que predominava no con­
texto histórico em que ela foi formada. Como explica Prieto
Sanchís, “ segundo esta concepção de fontes [concepção do
Positivismo continental clássico], na realidade somente existiria
um modo de produção jurídica, a lei, sendo as demais meras
‘fontes de conhecimento’, sempre subsidiárias. Naturalmente,
este postulado tinha um forte sentido político: de um lado, a
lei é a forma de expressão do Direito do Estado e o Estado
Liberal levará até as últimas consequências o processo de
unificação jurídica iniciado pelo Absolutismo. De outro, a lei
encarna também a vontade do órgão que, dentro do Estado,
representa a soberania” [Prieto Sanchís 1999:34].
Nesse sentido, Ollero considera a teoria das fontes do Di­
reito como expressão de uma determinada ideologia acerca da
relação entre os valores “justiça” e “segurança” que poderia ser
encontrada nos Códigos continentais do século XIX: “A teoria
(ou ideologia) das fontes do Direito fornecia uma resposta de­
terminada ao binômio justiça-segurança (mais pendente para a
segunda que para a primeira). Plasmou-se no nosso Código
Civil decimonônico em uma versão nitidamente legalista do
binômio ‘Direito-lei’. Trata-se de um modelo em que ‘a justiça
constituía em uma primeira etapa uma questão política, em cena
no pretendido debate a cargo de uma opinião pública suficien­
temente ilustrada. A lei, ao expressar o balanço desse debate
político, inaugurava uma segunda etapa; nesta, a tarefa de fazer
justiça se convertia em uma questão meramente técnica (...).
Todo o modelo transpira uma absoluta desconsideração da his­
toricidade que a justiça traz consigo e uma desmesurada con­
fiança na capacidade dos textos legais para expressar suas exi­
gências. As fontes do Direito se desenham, como consequência,
em clave legalista: pretendem evitar todo revisionismo político
em sede jurídica, mediante a drástica fronteira lege lata/lege
ferenda; devem, subsidiariamente, mecanizar ao máximo a apli­
cação do texto legal que, salvo anomalias patológicas, não pre­
cisava de interpretação alguma” ’ [Ollero 2005:19].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Todos os problemas teóricos desse tipo de Positivismo


manifestam-se também na teoria ainda predominante sobre
as fontes do Direito. Um desses problemas é o do essencialismo.
Como relata Guibourg, “ a palavra ‘fonte’ sugere claramente
que há um elemento de uma única natureza, o Direito, e que
ele flui de origens diferentes, mas sempre com a mesma com­
posição química, como a água que vem das correntes do sub­
solo” [Guibourg 2000:177]. Veja-se que por trás da própria
noção de “ fontes” , pelo menos no sentido positivista a que
estamos habituados, se esconde o pressuposto de que invaria­
velmente deve haver um único conceito de Direito - que pode
ser vislumbrado da perspectiva do observador - e de que seus
atos de produção podem ser claramente identificados, bastan­
do a referência a estes últimos para que surja, sempre da mes­
ma maneira, uma norma jurídica. As fontes do Direito são
descritas, nessa visão, como se fossem condições necessárias e
suficientes para a criação do Direito.
A doutrina tradicional distingue dois sentidos principais
em que a expressão pode ser entendida. Primeiramente, pode-
se falar em uma concepção material de fontes do Direito. Nes­
se sentido, as fontes são os motivos ou razões que determinam
o conteúdo do Direito positivo [Guibourg 2000:177], ou seja,
qualquer ato ou fato que gere normas jurídicas [Guastini 1996-
a:62]. Esta concepção é ampla o suficiente para abarcar tanto
os fatos sociais, políticos e econômicos que influenciam a pro­
dução do Direito quanto as ideias e os valores que constituem
motivos para a legislação, como a justiça, a equidade e a segu­
rança [Guibourg 2000:191]. As fontes, nessa primeira concep­
ção, nunca são atos jurídicos, mas eventos ou fatos pré-jurídi-
cos que podem contar como uma causa - uma causa social -
para o nascimento de uma norma jurídica.
Em segundo lugar, pode-se falar de uma concepção formal
de fontes do Direito. Aqui, “fonte” significa “qualquer ato ou
fato não meramente produtor de normas, mas legalmente
autorizado a produzir normas” , qualquer que seja o conteúdo
ou o resultado delas [Guastini 1996-a:66]. Nessa segunda
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

concepção a palavra “ fonte” refere-se não mais aos motivos da


legislação, mas às condutas e aos procedimentos que formal­
mente produzem normas jurídicas [Guibourg 2000:177]. Aqui,
busca-se englobar “qualquer ato ou fato jurídico cujo resultado
é a criação de normas” [Aguilló Regia 2000:51]. Há singelas
variações entre os teóricos do Direito quando eles se debruçam
sobre as fontes “formais” . Uns fazem referência aos “processos
ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam
com legítima força obrigatória” [Reale 2002:140]; outros, mais
alinhados à teoria jurídica de Kelsen, às “ normas positivas, de
qualquer tipo, que podem ser invocadas por um órgão como
fundamento de validade da norma que [esse órgão] estatui”
[Vernengo 1995:329]. Mas, independentemente dessas peque­
nas divergências teóricas, a noção formal de fontes do Direito
apresenta sempre uma estrutura autorreferencial: apenas atos,
fatos, procedimentos ou normas juridicamente institucionali­
zados é que podem gerar normas jurídicas. Como recentemen­
te sintetizou um importante teórico positivista da atualidade:
“Aprendemos com Kelsen que o Direito regula a sua própria
criação” [Guastini 2007:305].
Nenhuma das duas concepções tradicionais parece ade­
quada para uma teoria normativa dos precedentes judiciais. Uma
teoria normativa dos precedentes judiciais - que pretende ser
relevante para a prática jurídica - deve superar as deficiências
do Positivismo, sua insuficiência em fixar critérios para entender
qual tipo de argumentos e razões deve contar na justificação de
uma decisão jurídica. O Positivismo pressupõe um fosso entre o
Direito e a Moral que não existe na prática da argumentação
jurídica. Argumentos morais desempenham um papel decisivo
na atividade de aplicação do Direito, de modo que os discursos
jurídico e moral podem ser concebidos como fragmentos de um
único discurso prático, e não como formas independentes de
argumentação. E esse o núcleo da tese alexyana do caso especial,
que já tive oportunidade de discutir no Capítulo 2.13

13. V., supra, Capítulo 2, n. 2.2.1.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Uma concepção adequada de “fontes do Direito” deve


oferecer ao menos um ponto de partida para uma resposta à
questão que MacCormick denominou de “problema do Positi­
vismo” : uma concepção positivista é falha porque não respon­
de à indagação, que pode ser levantada internamente pelos
aplicadores do Direito, sobre se, no caso concreto, se deve, ou
não, considerar uma decisão justificada pelo só fato de ela se
fundamentar em normas formalmente válidas.14
A partir do momento em que compreendemos que o Di­
reito não tem apenas um aspecto real - não é apenas um con­
junto de normas positivas autoritariamente estabelecidas -,
mas também um lado ideal - a pretensão de estar ditando uma
decisão correta, uma norma individual moralmente justificada
e a partir do momento em que observamos que na prática o
juiz deve combinar ambos os elementos, ou seja, otimizar esses
dois aspectos, para o fim de cumprir a pretensão de correção
levantada no discurso jurídico [Alexy 1997-a e 1999], fica claro
que a concepção formal de “ fontes do Direito” - apesar de
dominante no discurso dos teóricos do Direito em geral [v.g.,
Vernengo 1995; Reale 2002; Guastini 1996-a] - não constitui
uma descrição adequada da atividade dos participantes no
discurso jurídico. O Direito não é um objeto estático e invariá­
vel, que sempre tem a mesma estrutura química, como a água.
Ele não pode ser completamente entendido a partir da pers­
pectiva do observador. Apenas os que participam no discurso
jurídico podem discutir racionalmente acerca do conteúdo de
suas normas.15 O conteúdo do Direito não é algo previamente
dado em normas inequívocas, algo para ser descoberto, mas
uma prática construtiva e interpretativa de formação de signi­
ficados por meio da argumentação. A prática do Direito é uma

14. V , supra, Capítulo 2, n. 2.1.


15. E claro, aqui, que estou pressupondo que a teoria jurídica deve ter tam­
bém uma dimensão normativa, de modo que os juristas teóricos - ao fornecer
diretivas para a prática - também são participantes do discurso jurídico, e
não meros repórteres.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

prática comunicativa, ou seja, um processo de troca de atos de


fala que geram sentido para os textos normativos. Os atos de
fala dos juristas devem ser entendidos “de modo que o signifi­
cado é [gradualmente] gravado” no resultado de qualquer
discurso jurídico [Viola 1996:185] e pode ser revisitado - e às
vezes revisto - em uma futura situação argumentativa.
Portanto, nem as concepções formais nem as concepções
materiais de fontes do Direito são apropriadas. A concepção
formal é insuficiente porque nem todas as razões que contam
no discurso jurídico derivam de um ato normativo institucio-
nalmente regulado; e a concepção material é insuficiente por­
que não há uma causalidade ou implicação estrita entre os
fatores extrajurídicos que geram o Direito e o conteúdo das
decisões individuais que resultam da sua aplicação. O Direito
é algo construído por meio de uma prática social, não um mero
reflexo de uma lei natural (como um platonista iria sustentar)
ou uma mera superestrutura imposta por uma classe dominan­
te (como um marxista iria sugerir).
Mas como, então, podemos construir uma teoria adequa­
da das fontes do Direito? O recente debate entre Riccardo
Guastini e Robert Shiner mostra-nos diferentes estratégias
para tentar encontrar um conceito adequado. De um lado,
Guastini pretende seguir a mesma estratégia que a doutrina
juspositivista tem adotado desde o advento do Estado Moder­
no, ou seja, pretende “ partir de uma concepção teórica geral
sobre o Direito” - que seja “ independente da forma com o a
produção do Direito seja na realidade regulada em diferentes
sistemas jurídicos” [Guastini 2007:304] - e, a partir dessa ideia
sobre o Direito em geral, formular uma teoria “geral” - formal,
estrutural - das suas fontes [Rotolo 2007:326]. De outro lado,
Shiner adota uma metodologia inversa. Ao invés de partir de
um conceito geral de Direito, para dele extrair uma teoria das
fontes - ou, na sua terminologia, ao invés de proceder “de cima
para baixo” (top-down) - , Shiner pretende partir “de baixo para
cima” (bottom up): “Não podemos presumir de início o Positi­
vismo Jurídico, ou a teoria do Direito natural, ou o Realismo
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Jurídico, ou qualquer outra teoria geral do Direito, e depois


aplicá-la às instituições jurídicas e à teoria das fontes do Direi­
to. Nós temos de deixar esse tipo de teorias abstratas [high-
levei theory] de lado e, em primeiro lugar, observar como os
sistemas jurídicos de fato operam com a noção de fontes auto-
ritativas do Direito” [Shiner 2005:220; Rotolo 2007:326].
S h in er busca, com esse m étod o - explica R otolo
[2007:327] - , “reconstruir racionalmente as práticas jurídicas
nas suas operações concretas” , para a partir daí elaborar sua
concepção de fontes do Direito. Com esse método ele logra
delimitar o que denominou “ fontes do Direito estritamente
institucionalizadas” , ou seja, as fontes que “podem ser direta­
mente identificadas como tais na prática jurídica” [ibidem].
Nas próprias palavras de Shiner:
“ Uma lei, ou uma regra jurídica [a law, or a law-like rule],
tem uma fonte estritamente institucionalizada apenas no caso
seguinte: (i) as condições de existência da lei, ou da regra jurí­
dica, constituem uma parte das atividades básicas de uma
instituição jurídica; e (ii) a justificação contextualmente sufi­
ciente, ou a força normativa sistêmica ou local da lei, ou regra
jurídica, deriva inteiramente da satisfação dessas condições de
existência.”
“A cláusula ‘(i)’ busca capturar a ideia de ‘fonte’ de uma
regra, e a cláusula ‘(ii)’ a força do qualificativo ‘estritamente’”
[Shiner 2005:3; Shiner 2007:312],
Para Shiner, ao lado das fontes “ estritamente institucio­
nalizadas” , haveria ainda as fontes “quase-institucionalizadas”
e as “fontes sociais” [Shiner 2007:311], E todas poderiam ser
encontradas pelo jurista a partir do seu método empírico-in-
dutivo.
Acredito, no entanto, que no debate entre o professor
canadense (Shiner) e o italiano (Guastini) nenhuma das partes
consegue sair vitoriosa: nenhum dos dois consegue estabelecer
uma teoria das fontes do Direito que seja realmente frutífera
para a prática jurídica. Ambos permanecem excessivamente
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

presos à metodologia do Positivismo e subestimam a função


normativa da teoria jurídica, isto é, a função de propor parâ­
metros, diretivas, metanormas e modelos de decisão para au­
xiliar o jurista prático na justificação de suas decisões.16 Com
efeito, não se pode justificar uma decisão senão por meio da
construção de uma teoria que enuncie as razões em que esta
se apoia. Como explica Aarnio: “ Conceitos teóricos, ou, mais
geralmente, a disciplina geral do Direito, pertencem à caixa
de ferramentas de todos os juristas. Até o mais prático dos
juristas tem de utilizar os conceitos básicos do Direito em seu
trabalho. Ninguém pode solucionar um problema de respon­
sabilidade por danos sem utilizar os conceitos de causalidade
e adequação. Portanto, se alguém evita conceitos teóricos pela
porta da frente, eles imediatamente penetram pela porta dos
fundos. Não há jurisdição sem teoria” [Aarnio 1999:10] (sem
grifos no original).
A teoria jurídica tem, ela própria, uma relevância norma­
tiva que não pode ser negligenciada na atividade de aplicação
judicial do Direito. O mesmo vale para a teoria das fontes do
Direito, como um de seus departamentos.
Na teoria das fontes do Direito esboçada por Guastini
privilegia-se o aspecto analítico da teoria jurídica em detrimen­
to de todos os outros. O teórico parte de um conceito predeter­
minado de Direito - o conceito positivista: auctoritas, non v e-
ritas facit legem - e, com base em um trabalho meramente
dedutivo, tenta enumerar os fatos e atos jurídicos capazes de
gerar, com base em critérios intrassistemáticos de validez,
normas jurídicas válidas. Na teoria de Shiner, por sua vez,
adota-se uma perspectiva empírica. Cabe ao teórico, então,
observar os elementos que, de fato, geram normas jurídicas
válidas em um dado ordenamento jurídico. E por essa razão -
essa referibilidade a um dado Direito positivo - que Shiner não
consegue elaborar uma teoria “geral” das fontes do Direito
[Guastini 2007; Shiner 2007; Rotolo 2007].

16. V., supra, Capítulo 2, n. 2.3.1.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Uma comparação entre a concepção defendida por Guas­


tini e a sustentada por Shiner revela que a primeira está pró­
xima do normativismo kelseniano e a segunda do Realismo
norte-americano. Ambas compartilham os postulados positi­
vistas da neutralidade e da separação radical e intransponível
entre ser e dever-ser, bem como acreditam que a teoria das
fontes do Direito deve ser apenas uma teoria descritiva. Não
transcendem, portanto, os limites do pensamento jurídico po­
sitivista.17 Uma teoria das fontes do Direito adequada à con­
cepção pós-positivista que venho defendendo ao longo das
páginas deste trabalho não deve proceder nem “de cima” nem
“de baixo” , não deve ser nem exclusivamente analítica nem
exclusivamente empírica, mas deve se voltar “para a frente”
ou para o futuro, com o fim de determinar a importância das
fontes do Direito na argumentação jurídica.
É melhor adotarmos, portanto, um conceito argumenta-
tivo de fontes do Direito, como o de Aulis Aarnio, para quem
se deve utilizar a referida locução para “ toda razão que - de
acordo com as regras geralmente aceitas na comunidade jurí­
dica - pode ser usada como base justificatória da interpretação
jurídica” [Aarnio 1991:123].18Esse é um conceito de “fontes do
Direito” que “não se refere às causas da atividade interpretativa,

17. Remeto o leitor ao que escrevi no n. 2.3 do Capítulo 2.


18. Ao lado desse conceito amplo de “fontes do Direito”, Peczenik propõe
também um conceito mais estrito: “Todas as razões jurídicas são fontes do
Direito no seu sentido mais amplo. Todos os textos, práticas etc. que um ju­
rista está obrigado a, deve ou pode proferir como razões de autoridade são
fontes do Direito em um sentido estrito, adotado neste trabalho” [Peczenik
1989:318]. O conceito mais amplo, no entanto, parece mais adequado, na
medida em que na argumentação jurídica as razões que contam para decidir
casos práticos não se limitam necessariamente às razões de autoridade. Não
apenas as razões que possam ser empregadas “como razões de autoridade”
podem contar como fontes do Direito. E claro que isso não impede que os
argumentos institucionais tenham um peso diferenciado e uma “prioridade
prima fa d e ” no discurso jurídico [Alexy 1995; Ávila 2001], mas um conceito
argumentativo de fontes não pode excluir qualquer razão que possa ser
utilizada como justificação de uma decisão jurídica.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

mas às razões que são utilizadas para justificar certa interpre­


tação” [ibidem]. E um conceito que considero mais adequado
para entender o raciocínio jurídico, porque ele abandona a
perspectiva do observador (ponto de vista externo) - adotada
tanto pelas concepções tradicionalistas (que distinguem entre
fontes formais e fontes materiais) quanto pelas concepções
positivistas mais contemporâneas, como as de Guastini e Shi­
ner - e adota um conceito argumentativo mais adequado ao
contexto de justificação das decisões jurídicas, ou seja, ao con­
texto discursivo onde os participantes sustentam pretensões
de validade de normas jurídicas individuais que eles pretendem
vindicar no caso concreto. Aarnio aproxima-se muito mais,
portanto, de uma resposta à questão a que MacCormick se
referiu como um dos “problemas do Positivismo” .19 Todas as
razões/fontes do Direito (ou da decisão jurídica) potencialmen­
te relevantes devem ser ponderadas para se determinar o
sentido da norma jurídica concreta.
Como se percebe, adoto uma concepção de fontes do
Direito em que a locução é entendida no sentido de fontes
não de “ regras jurídicas gerais” , mas do “ conjunto de pres­
crições tanto gerais com o individuais” que com põem o Di­
reito. Uma “ norma individual” , no sentido de Kelsen, e uma
“ norma adscrita” , no sentido que adotamos nesse trabalho,
constituem também “ Direito” para fins de se determinar as
suas fontes.20
Podemos, por conseguinte, considerar as decisões ju ­
diciais com o “ norm as” de caráter especialmente concreto e
os precedentes com o uma das espécies de “ fontes” dessas
normas.
Se esse conceito argumentativo de fontes for adotado,
pode haver diferentes graus de vinculatividade dos materiais

19. V., supra, Capítulo 2, n. 2.1.


20. V, sobre essa relativa ambiguidade da palavra “Direito” na locução “fontes
do Direito”, Guastini [2007:304].
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que os juristas utilizam na justificação de suas decisões,


dependendo da aceitabilidade racional e da institucionali­
zação desses materiais. Nesse ponto, a concepção de “fontes”
que defendo parece se aproximar do Realismo Jurídico de
A lf Ross. Para este jurista: “ De acordo com o ponto de vista
tradicional, afirmar que o Direito vige ou vale é atribuir-lhe
uma qualidade irredutível derivada de princípios a priori ou
postulada com o um pré-requisito do conhecim ento jurídico.
A validade de uma norma particular é derivada da norma
superior de acordo com a qual foi criada - em última instân­
cia, do direito natural ou de uma hipótese inicial pressupos­
ta ou norm a básica. Com tais premissas, obviam ente, o
conceito de validade tem que ser absoluto: uma regra jurí­
dica vale ou não vale. (...). Em verdade, a asserção de que
uma regra é Direito vigente é altamente relativa. Pode-se
também dizer que uma regra pode ser Direito vigente num
maior ou menor grau, o que varia com o grau de probabili­
dade mediante o qual podem os predizer que será aplicada”
[Ross 2003:70].
Há certa semelhança, mas não identidade, entre as
afirmações de Ross e os pontos de vista que ora defendo.
Não obstante, não considero correto definir a vigência ou
validade de uma norma jurídica com o a probabilidade de
esta vir a ser aplicada pelos juizes para decidir casos con­
cretos. Já tivemos oportunidade de criticar essa teoria quan­
do discutim os o Realismo Jurídico.21 A validade de uma
norma jurídica - sua pertinência a uma ordem jurídica con­
creta - pode ser mais bem aferida segundo um critério formal
com o a regra de reconhecim ento hartiana22 (embora, com o
já vimos, se possa cogitar de certos limites a esse critério23).
A partir do momento em que distinguimos a justificação de
uma norma da sua aplicação a um caso concreto, fica claro

21. V , supra, Capítulo 1, n. I.4.I.3.


22. V , supra, Capítulo 2, n. 2.1.
23. V , supra, Capítulo 2, n. 2.3.2.

on«
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que, na realidade, a questão da “validade” de uma norma


jurídica pode ser respondida com a adoção de um “ sim” ou
um “ não” em face das pretensões de validade normativa
afirmadas pelos participantes do discurso jurídico. Ou acei­
tamos uma norma jurídica com o justificada, ou temos esta
norma com o não integrada ao sistema jurídico em questão.
Tertium non datur.24
Por outro lado, as fontes do Direito - tal com o as en­
tendemos - podem ter graus diferentes de vinculatividade.25
Os materiais normativos utilizados pelos participantes do
discurso jurídico com o supedâneo para as pretensões de
validade normativa que eles formulam não têm necessaria­
mente um valor ou nulo ou absoluto nos discursos de justi­
ficação normativa. São possíveis, sim, graus intermediários.
Nesse sentido, Peczenik [1989] e Aarnio [1991] propõem
classificar as fontes do Direito em três categorias: must-
sources; should-sources e may-sources [Peczenik 1989:319-
321]. O primeiro grupo, das fontes obrigatórias em sentido
forte (must-sources), com preende os materiais normativos
com mais alto teor de normatividade em determinado siste­
ma jurídico. Numa palavra, há uma obrigação de se obedecer
à referida fonte do Direito [Aarnio 1991:135]. O segundo,
fontes obrigatórias em sentido frágil (should-sources), “ con­
siste naquelas [fontes] que devem normalmente ser seguidas
na interpretação” , ou seja, são as fontes em relação às quais
o intérprete “ tem apenas uma obrigação frágil de obediência”
[idem: 136]. Por último, o grupo das fontes permitidas (may-
sources) é formado por aquelas a que um aplicador do Di-

24. Com essa afirmação não estamos, porém, vendo o raciocínio jurídico como
uma mera aplicação absoluta de normas gerais. E sempre possível, em um
discurso de aplicação, reconhecer uma norma como válida mas afastar sua
incidência sobre o caso concreto. V., sobre o tema dos discursos de aplicação,
supra, Capítulo 2, n. 2.4.3.
25. Validade (pertinência ao ordenamento jurídico) e vinculatividade (força)
são, portanto, atributos diferentes das normas jurídicas, que precisam ser
claramente diferenciados.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

reito pode se referir na argumentação jurídica. “ O intérpre­


te não tem nem uma obrigação forte nem uma obrigação
frágil de observá-las” [idem:137]. Vê-se, portanto, que as
diferentes fontes do Direito terão diferentes pesos na solução
de casos concretos.
Nos discursos de justificação de normas jurídicas contam
diferentes tipos de fontes obrigatórias em sentido forte, obriga­
tórias em sentido frágil e permitidas. Qual o peso concreto
dessas fontes, vai depender da sua ponderação concreta pelo
aplicador do Direito.
Mas a força em si mesma (ou grau de vinculatividade)
não é o único critério para classificar as fontes do Direito. Po­
dem contar como razões para normas jurídicas tanto razões
dotadas de autoridade (authority reasons) como razões substan­
tivas ou materiais (substantive reasons). As primeiras valem
porque “ têm na sociedade uma posição que pode ser qualifi­
cada de institucional” [Aarnio 1991:138], ao passo que as últimas
“integram o contexto de justificação em virtude de sua impor­
tância material (substancial)” [ibidem]. O eventual embate
entre fontes jurídicas substanciais e dotadas de autoridade
coincide com a tensão entre facticidade e validade, que cons­
titui um dos marcos teóricos fundamentais deste trabalho.26A
primazia de umas ou outras não pode ser resolvida de forma
absoluta: ambas são igualmente necessárias no pensamento
jurídico [Peczenik 1989:117].
Com base nessas duas classificações, Aarnio [1991:139]
chega a elaborar um quadro geral das fontes do Direito no
sistema jurídico finlandês, que pode, com o regra geral, ser
estendido a outros sistemas jurídicos da tradição do civil law:

26. V , supra, Capítulo 1, n. 1.5.3.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Fontes Jurídicas

Fortemente Fragilmente Fontes permitidas


vinculantes vinculantes (may)
(must) (should)
Justificação Textos legais Travaux Dogmática jurídica
dotada de préparatoires Direito estrangeiro
autoridade Decisões judiciais etc.
(fontes do Direito (precedentes)
dotadas de
autoridade)
Justificação Costumes Princípios gerais
substancial ou do Direito,
material princípios morais,
(fontes materiais argumentos
do Direito) práticos

Uma leitura desse quadro sugere que, ceteris paribus,


quanto mais elevada e à esquerda se situe determinada fonte
do Direito, mais chances ela tem de prevalecer em um discur­
so de justificação de normas jurídicas em geral. Como um
panorama superficial, suficiente para uma primeira aproxima­
ção do Direito, a sistematização proposta é plausível. Mas, a
partir do momento em que passamos a analisar os precedentes
judiciais em especial, verificamos que classificá-los como “fra-
gilmente vinculantes” é insuficiente.
A força dos precedentes encontra fundamento tanto em
razões morais como em razões institucionais em sentido estrito.
Entre as primeiras cito o princípio da universalizabilidade - que
está impregnado na filosofia prática a partir do imperativo ca­
tegórico de Kant -, e entre as últimas podem ser citadas tanto
normas positivas que dispõem sobre a força do precedente quan­
to a obrigação de levar em conta os precedentes, que decorre da
própria estrutura escalonada do sistema jurídico (e em especial
dos mecanismos de uniformização de jurisprudência e solução
de divergência jurisprudencial que estão institucionalizados em
cada sistema jurídico).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Ademais, um estudo jurídico-comparativo revela que nos


sistemas jurídicos contemporâneos é encontrado um universo
muito mais rico de variáveis que influem sobre a força do pre­
cedente na argumentação jurídica. Peczenik, por exemplo,
sintetizando as conclusões de um grupo composto por alguns
dos maiores juristas da atualidade, sistematizou as seguintes
variações no grau de vinculatividade dos precedentes judiciais:
“ (1) Vinculatividade formal (formal bindingness) - um
julgamento que não respeite a vinculatividade do precedente
não está conforme ao Direito e, portanto, deve ser revertido
em apelação.”
“Diferenciar:”
“ (a) vinculatividade formal não submetida a overruling
- (i) ‘estritamente vinculante’ (strictly binding), deve ser apli­
cado em qualquer caso; (ii) vinculante pro tanto (defeasibly
binding), deve ser aplicado em todos os casos, a não ser que se
apliquem razões excepcionais (exceções podem estar bem
definidas ou não);”
“ (b) vinculatividade formal (com ou sem exceções) - que
está submetida a overruling ou modificação.”
“ (2) Não formalmente vinculante mas dotado de força
(Not formally binding but having a fo r c e ) - um julgamento
que não respeite a força do precedente, embora conform e
ao Direito, está sujeito a críticas por essa razão, e pode ser
revertido por isso.”
“Diferenciar:”
“ (a) força superável (defeasible force) - deve ser aplicado
a não ser que exceções entrem em ação (exceções podem ou
não estar bem definidas);”
“ (b) outweighable force - deve ser aplicado a não ser que
razões concorrentes se apliquem.”
“ (3) Não formalmente vinculantes e despidos de força ju ­
rídica (tal como definido em 2), mas dando suporte adicional à
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

decisão (Notformally binding and not having force (as defined


in 2) but providing further support) - um julgamento em que
falta menção ao precedente é ainda conforme ao Direito e
pode ainda ser justificado, mas não tão bem justificado quan­
do iria estar se o precedente tivesse sido invocado, por exem­
plo, para mostrar que a decisão alcançada se harmoniza com
o precedente.”
“ (4) Valor meramente ilustrativo (mere illustrativeness or
other value)” [Peczenik 1997:463].
Esse modelo, no entanto, peca por fazer distinções em
exagero e incluir classes de eficácia que já não mais existem
nos sistemas jurídicos contemporâneos. Com efeito, já não se
pode mais encontrar em qualquer sistema jurídico razoavel­
mente desenvolvido precedentes formalmente vinculantes e
“nunca sujeitos ao overruling” . Desde o Practice Statement de
1966, nem mesmo no Reino Unido se pode vislumbrar um
modelo tão restrito de stare decisis. O mesmo se pode dizer,
ainda, dos precedentes strictly binding, isto é, aos quais esteja
a priori proibido o reconhecimento de exceções (pelo próprio
tribunal que estabeleceu o precedente) com fundamento em
novas situações de aplicação não inicialmente consideradas
pela corte que os estabeleceu. Como pudemos verificar ao
tratarmos da teoria de Klaus Günther sobre os discursos de
aplicação, o ideal de uma norma jurídica perfeita - à qual jamais
possam ser reconhecidas exceções - já não encontra força nem
mesmo em relação às decisões do legislador ou do próprio
constituinte.27 Seria suficiente, portanto, que o primeiro nível
da classificação de Peczenik designasse genericamente os pre­
cedentes obrigatórios em sentido forte - ou, de acordo com sua
nomenclatura, formally binding. São os precedentes aos quais
o tribunal a quo deve obediência, tout court.
No segundo nível dessa classificação - precedentes
not formally binding but having a force - há também uma

27. V , supra, Capítulo 2, n. 2.4.3.1.


TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

diferenciação desnecessária entre força jurídica superável (defea-


sible) e outweigháble. Com efeito, quando se fala em precedentes
superáveis (defeasible) parece claro que a exceção que vier a ser
criada em um precedente judicial - principalmente se levarmos
em conta que a ratio decidendi de um precedente via de regra
tem uma estrutura normativa hipotética (sendo, portanto, uma
regra jurídica na classificação estrutural das normas jurídicas28)
- há de ser justificada com fundamento em razões que prepon­
derem sobre (outweigh) as que militam em favor da sua aplicação
incondicional. Não há, portanto, motivo para a separação entre
as duas subcategorias separadas. Suficiente seria falar em pre­
cedentes obrigatórios em sentidofrágil ou primafacie obrigatórios.
São os precedentes que o tribunal deve levar em consideração,
ainda que não necessariamente obedeça a eles.
Podemos observar, portanto, que após esses pequenos
ajustes a classificação de Peczenik passa a corresponder à
classificação estabelecida por Aarnio para as fontes do Direito
em geral: Os precedentes vinculantes em sentido forte (1) são
considerados fontes do Direito de grau máximo (must-sources);
os vinculantes em sentidofrágil (2), fontes primafacie obriga­
tórias (should-sources); e os notformally binding and not having
a force but providing further support, que prefiro denominar
simplesmente de precedentes persuasivos (3), valem apenas
como fontes do Direito permitidas (may-sources).
A caracterização dos precedentes como fontes do Direito
cuja vinculatividade pode variar nesses três níveis constitui,
pelo menos para a grande maioria dos casos, um modelo ade­
quado para a argumentação jurídica. Os precedentes podem
estar, portanto, em qualquer das colunas da tabela desenvol­
vida por Aulis Aarnio.29
Dizer que o precedente vale com o fonte do Direito ain­
da deixa em aberto muitos problemas para a argumentação

28. V , infra, Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2, (A.2).


29. V. supra, nesta mesma seção.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

judicial. Revela-se importante, então, uma sistematização dos


fatores que aumentam ou diminuem a força de uma norma
adscrita a partir de um precedente judicial. E pela ponderação
desses fatores que se poderá, em cada caso concreto, determi­
nar em qual desses níveis se encontra a força de um dado
precedente judicial. Tentarei, a seguir, dar algumas diretivas
para resolver esse problema jurídico.

3.3.2 Fatores institucionais e extrainstitucionais que influenciam


a força do precedente30
3.3.2.1 A determinação do peso dos precedentes como um
processo hermenêutico

A formação de normas adscritas a partir de precedentes


judiciais é um processo hermenêutico. Ainda que sem nos
aprofundarmos nas teorias hermenêuticas - pois isso extrava­
saria em muito a esfera de indagações deste trabalho -, cabem
algumas breves palavras sobre o processo mental de formação
de significados para os enunciados normativos em geral. A
hermenêutica jurídica tem como objeto o processo de interpre­
tação do Direito, o modo pelo qual a compreensão do signifi­
cado de suas normas é alcançada. As palavras-chave da her­
menêutica são, portanto, “ compreensão” e “ interpretação” .
Mas como definir esses termos?
Como explica Saldanha [2003:220], “ a compreensão ocor­
re quando o registro conceituai se ‘aprofunda’ mediante uma
penetração no sentido (que é sempre, de algum modo, humano)
das coisas” . Compreender- explicaLacombe Camargo [2001:13],

30. Como demonstramos acima (Capítulo 3, n. 3.2), de uma mesma decisão


judicial é possível extrair múltiplas regras jurisprudenciais diferentes.
Quando tratamos dos fatores que influenciam a força do precedente judicial
utilizamos a expressão “precedente” para nos referir à força de cada regra
ou ratio decidendi invocada para a solução do caso concreto. O leitor deve
ter em mente, portanto, principalmente quando lidamos com fatores “não-
institucionais” , que uma mesma decisão judicial pode servir de fundamento
para regras diferentes que tenham graus diferentes de vinculatividade.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

com ênfase no trabalho do jurista - “ é buscar o significado de


alguma coisa em função das razões que a orientam. Buscar os
valores subjacentes à lei, cuja aplicação foge da mera relação
causa-efeito” .
A interpretação, por sua vez, pode ser entendida como o
processo por meio do qual a compreensão é construída pelo
intérprete. Vejamos o que Lacombe Camargo [2001:19] nos diz
a respeito do tema, com especial ênfase no Direito: “A concre­
tização da norma é feita mediante a construção interpretativa
que se formula a partir da e em direção d compreensão. Pode­
mos definir a interpretação como a ação mediadora que pro­
cura compreender aquilo que foi dito ou escrito por outrem” .
A interpretação, na perspectiva da hermenêutica, não se
restringe à determinação do sentido de textos, objetos linguís­
ticos ou, mesmo, objetos culturais. E um processo que se pas­
sa na mente de todos os indivíduos que buscam, através do
intelecto, compreender o sentido das coisas que os rodeiam.
As coisas só passam a fazer sentido para o sujeito cognoscente
a partir do momento em que ele tenha algum tipo de com­
preensão sobre elas: “Tudo no mundo (no mundo humano) são
significações, e portanto todo o pensar é hermenêutico: tudo
depende do interpretar. E daí símbolos, códigos, signos, lin­
guagens” [Saldanha 2003:220].
No que se refere à linguagem, o modo hermenêutico de
o indivíduo se relacionar com o mundo fica ainda mais eviden­
te. Para Saldanha [2003:220], “ o problema da linguagem cor­
responde a um processo histórico-cultural fundamental para
a questão do compreender, do ‘significado’ e da interpretação.
A atribuição de significados, que constitui basicamente o fenô­
meno hermenêutico, envolve a experiência da linguagem, com
o entendimento dos signos e de uma série de contextos. Trata-
se de um problema essencial quanto à própria existência da
cultura: toda cultura tem seus códigos” .
No caso específico da interpretação e da compreensão do
Direito, a imagem que a pode elucidar mais claramente é a de
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

um círculo hermenêutico. Para com preender essa descrição


é necessário retornar ao que Gadamer denom inou “ pré-
com preensão” . Explica Schroth [2002:383]: “ Segundo Gada­
mer, a compreensão só é possível quando aquele que com pre­
ende se lança para a abordagem do texto já com uma pré-
compreensão. Isto significa: por um lado, o intérprete orienta
o texto por alguma coisa, a saber, pelo mundo em que se m o­
vimenta. Ao mesmo tempo, à compreensão de um texto liga-se
um interesse na compreensão. Quando utilizamos o texto, temos
algum propósito em mente. (...). Através da pré-compreensão,
que guia a interpretação do texto, cada interpretação de um
texto é, simultaneamente, aplicação do atual estado de cons­
ciência do intérprete” .
Veja-se que o processo de compreensão do significado
das normas jurídicas jamais parte de um marco-zero. Sempre
que o intérprete se põe diante de um texto ele inicia o proces­
so de reflexão/interpretação a partir de algum lugar, a partir
da sua experiência de vida, do contexto cultural e histórico em
que ele se acha inserido. A partir de uma pré-compreensão
individual - muitas vezes de natureza meramente intuitiva -
inicia-se o processo de interpretação, que é um refinamento
dessa pré-compreensão através da crítica e da reflexão, com
espaço seja para a formulação de novas hipóteses normativas
(diferentes da inicial) ou para a revisão da pré-compreensão
inicialmente problematizada. Mesmo correndo o risco de pecar
pelo excesso de longas citações, transcrevo uma passagem de
Larenz para explicar o funcionamento desse processo: “A ima­
gem do ‘círculo’ não será adequada senão na medida em que
não se trata de que o movimento circular do compreender
retorne pura e simplesmente ao seu ponto de partida - então,
tratar-se-ia de uma tautologia -, mas de que eleva a um novo
estágio a compreensão do texto. Se o significado de uma pala­
vra aceita em primeira mão pelo intérprete não se adequa ao
nexo do sentido do texto, tal como este vem a se revelar ao
intérprete no decurso do processo interpretativo, então, o in­
térprete terá que rectificar sua suposição inicial; se os possíveis
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(aqui imagináveis) significados da palavra revelam uma cone­


xão de sentido diversa daquela que inicialmente o intérprete
tinha conjecturado, este rectifica então a sua conjectura. O
processo de olhar para frente e para trás pode ter que repetir-
se inúmeras vezes” [Larenz 1997:286-287].
Larenz explica-nos com clareza que o processo de forma­
ção da compreensão é essencialmente crítico. Ele nos convida
a uma reavaliação dos nossos pressupostos iniciais a partir de
um exame reflexivo. Esse “reexame” , “ aprofundamento” , “tes­
te” , “ir e vir de perspectiva” etc., dá-se, na prática do Direito,
por meio da argumentação. Hoje já se pode falar de uma coo­
peração e de uma mútua fertilização entre a hermenêutica e a
teoria da argumentação (além, é claro, de setores como a filo­
sofia analítica) na busca da construção de uma prática jurídica
cada vez mais racional. Teorias que antes competiam (herme­
nêutica vs argumentação) hoje aparecem cada vez mais como
aliadas (hermenêutica e argumentação) [Lacombe Camargo
2001; Ricoeur 1996; Zaccaria 1999]. A argumentação e o com­
partilhamento discursivo de pretensões de validade - que são
pretensões de significação para determinadas normas jurídicas
em um discurso de justificação no sentido de Günther - per­
mitem uma perspectiva crítica muito mais rica que aquela que
o intérprete poderia realizar sozinho, sem qualquer preço ou
prejuízo para os logros alcançados pela teoria hermenêutica.
Na argumentação com precedentes judiciais, o proces­
so de compreensão das normas adscritas de decisões judiciais
pode ser descrito com o auxílio de uma metáfora que, em bo­
ra originalmente tenha sido formulada para descrever a in­
terpretação jurídica em geral, expressa com ainda maior
clareza o processo de interpretação de normas cuja fonte
reside nos precedentes judiciais. Trata-se da conhecida m e­
táfora da “ interpretação com o tradução” . O texto de Baldas-
sare Pastore é especialmente claro ao discorrer sobre essa
comparação: “Interpretar significa, portanto, traduzir um
significado de um contexto (histórico, cultural) a outro, em
um processo de restituição de sentido que é ao mesmo tempo
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

uma prom oção de sentido. A problemática hermenêutica,


desse modo, procede daquela particular relação entre texto
e contexto, que faz possível que o sentido de um texto seja
considerado capaz de descontextualizar-se, ou seja, de se li­
berar do seu contexto inicial, para se recontextualizar em uma
nova situação, mas conservando uma identidade semântica”
[Pastore 2000:142].
Essa analogia parece retratar claramente o procedimen­
to de extração da ratio de um caso e sua nova aplicação em
outro com o norma adscrita. No entanto, esse processo não é
constituído apenas pela reconstrução do significado de uma
norma, isto é, do conteúdo que essa norma tem enquanto pres­
suposto necessário ou suficiente para justificar a decisão já
tomada e que constitui o objeto da interpretação. E também
um processo de “recontextualização” dessa norma a um novo
contexto fático, jurídico e argumentativo, onde deve ser deter­
minado seu valor em relação às outras normas e argumentos
eventualmente encontrados nesse novo contexto.
Uma teoria dos precedentes que contenha pretensões
normativas - com o a que tento elaborar - tem não apenas
uma missão descritiva do passado, mas uma missão constru­
tiva do futuro. Ela tem de orientar o intérprete não apenas
na hora de determinar o significado das normas adscritas
que lhe interessam, mas também - em medida pelo menos
igual - no momento de decidir acerca do peso ou da/orça que
essa norma vai assumir no futuro, quando vier a ser aplicada
a um caso concreto, ou seja, quando vier a ser utilizada com o
um dos fundamentos ou razões para justificar uma decisão
qualquer. Esse processo de determinação do peso ou impor­
tância das normas adscritas dos precedentes judiciais é,
também, parte do processo hermenêutico que podem os de­
nominar “ interpretação lato sensu” de um precedente judi­
cial, pois tal processo vai muito além da determinação do
conteúdo de uma norma jurídica. Esse peso, com o passare­
mos a demonstrar, varia de acordo com contextos institucio­
nais e extrainstitucionais.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

3.3.2.2 Fatores institucionais que determinam a força de uma


norma jurisprudencial

Já adiantamos que no Estado Democrático de Direito o


respeito ao precedente encontra justificação não apenas em
argumentos práticos e filosóficos, mas também em argumentos
institucionais. Esse peso institucional coloca os precedentes
em um patamar especial na argumentação jurídica. Como es­
clarece Alexy, os argumentos institucionais - linguísticos, ge­
néticos e sistemáticos - “ se fincam direta ou indiretamente na
autoridade do direito positivo” , e por isso gozam de uma prio­
ridade prima facie sobre os argumentos práticos gerais (não-
institucionais), que “derivam sua força somente da correção
do seu conteúdo” [Alexy 1995:57]. Os princípios formais da
segurança jurídica e da previsibilidade atuam - sempre, em­
bora às vezes com maior ou menor intensidade - com o razões
que militam para a observância do direito jurisprudencial. E
claro que o grau de institucionalização de um precedente pode
variar, e em função desta variação os precedentes podem ser
classificados como fontes obrigatórias em sentido forte (must-
sources), obrigatórias em sentido frágil (should-sources) e m e­
ramente permitidas (may-sources).
Mas como, na prática, é possível aferir esse grau de vin-
culatividade do precedente judicial? A resposta deve passar,
necessariamente, pelos fatores qué determinam a importância
de um precedente.
Entre esses fatores, MacCormick enumera os seguintes:
(1) contexto institucional, (2) tradição jurídica, (3) estrutura
constitucional (constitutional framework) e (4) doutrinas jurí-
dico-teóricas dominantes [MacCormick 1998-a:180-184]. Aos
três primeiros fatores denominarei “ institucionais” . São insti­
tucionais em sentido estrito, porque são vigentes de fato nas
instituições e na prática jurídica de determinado sistema.
Pode-se pesquisá-los pelo método empírico, ou seja, obser­
vando com o eles de fato se manifestam no tempo e no espaço.
O último, no entanto, sobre também apresentar um certo grau

307
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de institucionalização, necessita de uma mediação para poder


influenciar a prática jurídica. E um fator que diz respeito mais
propriamente às razões, em si mesmas consideradas (isto é,
independentemente de passarem por um processo de institu­
cionalização stricto sensu), que podem contar para a justificação
de uma decisão sobre o peso do precedente judicial.
Passemos a analisar cada um dos três primeiros fatores
institucionais.

3.3.2.2.1 Contexto institucional (stricto sensu)

Em relação ao primeiro fator (contexto institucional stric­


to sensu), há, entre várias outras, diferenças entre Estados
Unitários e Estados Federais, sistemas jurídicos dotados de
jurisdições especializadas e sistemas jurídicos com apenas um
tipo de jurisdição, Estados onde o controle de constitucionali-
dade é realizado pelo Judiciário e Estados em que este contro­
le inexiste, Estados submetidos à incidência e aplicabilidade
direta e imediata de um direito supraestatal - como é o caso
de Estados que integram a Comunidade Europeia31- e Estados
onde o poder estatal é tido com o ilimitado etc.
No entanto, o desenho institucional do Poder Judiciário
parece ser o fator mais importante. No que se refere à organi­
zação dos tribunais, sua estrutura hierarquizada é tida como
um elemento comum a todos os sistemas jurídicos modernos
[Taruffo 1997-a:437]. Como explica Taruffo, sob a ótica da

31. Em França, por exemplo, reconhece-se a primazia do Direito comuni­


tário sobre o Direito doméstico. Um precedente judicial da Corte Europeia
de Justiça e da Corte Europeia de Direitos Humanos terá força superior à
legislação interna. Esse não é o caso, porém, do Reino Unido. Uma lei pas­
sada pelo Parlamento vale independentemente de uma declaração judicial
de incompatibilidade com o Direito comunitário (v. Human Rights Act 1998
c. 42, Section 4 (6)). As leis aprovadas pelo Parlamento escocês, no entanto,
padecem de invalidade se contrárias ao Direito comunitário (v. Scotland Act
1998 c. 43, Section 29 (2) (d)) e podem ser removidas por meio do judicial
review (v. Scotland Act 1998 c. 43, Section 102 (2) (a)).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

dimensão institucional do precedente, este fator aparece como


um reflexo da própria organização hierárquica do Poder Judi­
ciário nos vários ordenamentos [Taruffo 1994:416]. Como regra,
pode-se dizer que o maior nível de autoridade é conferido às
decisões das cortes de mais elevado nível hierárquico: há um
grau de subordinação das cortes inferiores às superiores que
cresce à proporção em que diminui o nível hierárquico do juiz
[Taruffo 1997-a:438]. É nesse sentido que se pode falar em uma
dimensão vertical do precedente judicial: as cortes inferiores
devem obediência às superiores, uma vez que estas últimas
detêm o poder de reformar todas as decisões que sejam con­
trárias a seus precedentes. Pode-se falar, portanto, que, via de
regra, os precedentes das cortes superiores - quando há uma
relação hierárquica direta entre os órgãos jurisdicionais em
questão - valem com o fontes obrigatórias em sentido frágil
(should-sources) independentemente da existência de uma
norma expressa no ordenamento jurídico que estabeleça a
obrigação de seguir os precedentes judiciais. Trata-se de uma
obrigação em sentido frágil porque é uma obrigação não apenas
superável no caso concreto (defeasible) - quando o julgador
estiver diante de situações excepcionais que justificam a redu­
ção teleológica da norma, através da criação de exceções gra­
dualmente fixadas em discursos de aplicação das normas
adscritas de precedentes judiciais mas também passível de
cancelamento, afastamento ou superação definitiva (ovemãing)
com base em razões não consideradas pelo precedente judicial.
Neste último caso, o princípio da inércia32 exige que o afasta­
mento do precedente encontre justificação racional: “ Quem
quer que deseje se afastar de um precedente detém o ônus da
argumentação” [Alexy/Dreier 1997:30]. Os princípios formais
- segurança, certeza, uniformidade do Direito etc. - justificam
a adesão ao precedente e exigem ao menos uma ponderação
entre as razões de autoridade que justificam a adesão ao prece­
dente judicial e as razões substanciais (morais, de correção etc.)

32. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.2.6.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que contribuem para seu abandono [idem:29]. Como explicam


Alexy e Dreier: “A força do precedente é demonstrada com
mais clareza no caso de seu afastamento, mas pode também
ser reconhecida no caso em que o precedente é seguido. O fato
de [o ato de] seguir o precedente não ser normalmente combi­
nado com uma argumentação substancial - enquanto o ato que
dele desvia é - demonstra que os precedentes têm uma força
jurídica própria” [idem:30].
Como diretiva geral, pode-se estabelecer, então, que,
quanto maior o posto hierárquico do órgão jurisdicional que
prolatou uma decisão, maior será sua força como precedente
judicial. Mas ao lado desse fator há outros subsidiários, tais
como:
(1) julgamentos prolatados pelo tribunal pleno ou por
órgãos especiais - com o cortes especiais, seções, grupo de
turmas etc. - constituídos para realizar julgamentos mais im­
portantes ou para solucionar hipóteses de divergência juris­
prudencial no próprio tribunal têm naturalmente uma autori­
dade mais elevada que precedentes de órgãos inferiores na
estrutura hierárquica de um mesmo tribunal [nesse sentido:
Alexy/Dreier 1997:34; Taruffo 1997-b:159; Barikowski/MacCor-
mick/Marshall 1997:328];
(2) nos sistemas jurídicos em que os juizes votam em
separado, nos órgãos colegiados, os casos em que há dissenso
entre os julgadores têm força vinculante relativizada;33
(3) decisões que formem uma tendência jurisprudencial
identificável e estabeleçam uma orientação ou linha definida
têm uma força maior que a dos precedentes isolados [Alexy/
Dreier 1997:35; Taruffo 1997-b:161]. Em sistemas de civil lavo
o peso dos precedentes isolados tende a ser inclusive tido como

33. Cumpre observar, nesse sentido, o que foi dito na seção 3.2 deste capítulo
acerca da ratio decidendi dos casos em que há consenso acerca da norma
individual que decide um caso concreto mas dissenso quanto às normas gerais
adscritas que valem como fundamentos para essa decisão.

^10
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“duvidoso e incerto” [Taruffo 1997-b:160], manifestando-se


unicamente nas decisões das cortes de cassação ou dos tribu­
nais para os quais caibam recursos excepcionais para unifica­
ção de jurisprudência - como, no Brasil, o STF, o STJ, o TST
e o TSE;
(4) situações de conflito entre precedentes - obviamente,
sem que esses conflitos tenham sido resolvidos por um órgão
especial do tribunal mais elevado - enfraquecem a autoridade
dos precedentes judiciais e lhes atribuem um valor, via de regra,
meramente persuasivo [Taruffo 1997-b:161].

33.2.2.2 Tradição jurídica

Um outro fator que, segundo MacCormick, contribui para


o peso ou força a ser atribuída ao precedente judicial é a tra­
dição jurídica em que o aplicador do Direito esteja inserido.
No entanto, esse fator, hoje, pode ser relativizado.
A primeira metade do século X X parece ter sido o pe­
ríodo áureo do Positivismo Jurídico. Com efeito, aproximada­
mente na metade do século X X já estavam escritas as três obras
que hoje se pode considerar com o as mais importantes do
pensamento jurídico positivista: a Teoria Pura do Direito, de
Kelsen, o Conceito de Direito, de Hart, e Direito e Justiça, de
Alf Ross.
Como tivemos oportunidade de mostrar nos capítulos
anteriores, o obscurecim ento do Positivismo - um fenômeno
mais recente - é também um período de enfraquecimento
das diferenças entre a tradição do common law e do Direito
continental europeu. Ainda assim, com o vimos, remanescem
certas diferenças entre a aproximação das duas tradições
em relação ao precedente judicial. Mas não devemos sobre-
valorizar essas diferenças e não podem os deixar de observar
que, na Europa Continental, é justamente nos Estados onde
o Direito com parado mais se desenvolveu e onde a teoria
dos precedentes mais soube aproveitar os ensinamentos do
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

common law que hoje se podem encontrar a maior evolução


da teoria dos precedentes e o maior número de estudos va­
liosos sobre os precedentes judiciais. Cito, em especial, o caso
italiano, onde os estudos de Gino Gorla impulsionaram um
sem-número de ensaios metodológicos de vários autores sobre
os precedentes judiciais.34
Sobre as diferenças entre o common law e o civil law em
relação à atenção dada aos precedentes, transcrevo a seguinte
passagem de MacCormick [1998-a:181]: “Há uma diferença
característica entre os sistemas de common law e os sistemas
civilistas pós-napoleônicos, ou sistemas de Direito predomi­
nantemente codificado, no que se refere à forma de se entender
normas jurídicas. Depois da codificação, a doutrina dominan­
te é de que o Direito é essencialmente o produto da vontade
legislativa, de sorte que a norma jurídica em sentido próprio e
autêntico é aquela contida em uma seção do código ou certa
porção da legislação especial. Em contraste, nos sistemas de
common law o Direito é compreendido como apenas em parte
determinado pela legislação, que tem a função de clarificar ou
emendar e desenvolver o corpo de Direito preexistente. Esse
corpo preexistente de Direito é considerado de caráter origi­
nalmente costumeiro, e é ou constituído ou ao menos eviden­
ciado pelas decisões dos tribunais” .
Tivemos oportunidade de demonstrar, contudo, que atual­
mente há uma tendência de convergência entre as duas gran­
des tradições jurídicas, bem como que em ambas há espaço
para a criação judicial do Direito, isto é, a criação de normas
adscritas por meio da atividade de aplicação do Direito pelos
tribunais.
Tanto o juiz do common law como o juiz da tradição con­
tinental criam normas adscritas e têm o dever de justificar

34. Para algumas referências bibliográficas sobre os precedentes na Itália,


v. Taruffo [1994], bem como os trabalhos que compõem um volume editado
por Giovanna Visintini [1999],
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

esses atos de criação judicial do Direito. E sem essa justificação


dificilmente pode um tribunal exigir a observância de seus
precedentes, pois esse tribunal tende a perder sua própria
autoridade [Zimmermann/Jansen 1998:305]. As diferenças que
ainda existem entre os dois sistemas dizem mais respeito ao
diferente tipo de atividade realizada pelo legislador que pro­
priamente ao método judicial e aos argumentos que podem ser
utilizados para justificar as decisões. Se relembrarmos, aqui,
as formas de criação judicial do Direito enumeradas por Vic-
toria Iturralde Sesma, que transcrevemos no n. 3.2 deste
capítulo, podemos dizer que nos sistemas de civil law há mais
espaço para a criação material (de normas) no caso concreto
por meio da especificação de regras jurídicas preexistentes, ao
passo que no common law há uma maior frequência de criação
de regras particulares no caso concreto devido à não-existência
de regras preestabelecidas (lacuna). Ou seja, no civil law há
uma predom inância do precedente interpretativo [Alexy/
Dreier 1997:24], ao passo que no common law há mais espaço
para o precedente que cria normas para suprir lacunas (pre­
cedente integrativó).
No entanto, essa diferença hoje em dia é apenas de
grau e tende a diminuir cada vez mais, seja por força da
inserção de princípios no ápice da estrutura dos sistemas
jurídicos de civil law ou da “ constitucionalização do common
law” através dos tratados internacionais que estabelecem
normas gerais para os Estados-membros (com o se dá no
direito da Comunidade Europeia). Ademais, em qualquer
dos dois procedim entos hermenêuticos (construção de pre­
cedentes interpretativos ou integrativos) há discricionarie-
dade judicial e os mecanismos que a teoria da razão prática
estabelece para justificar as decisões (com o as regras de
universalizabilidade, imparcialidade, justificabilidade etc.)
são basicamente os mesmos.
Costuma-se dizer, no entanto, que ainda há um outro tipo
de diferença entre o Direito judicial produzido em países do
common law e em países do civil law: o poder de selecionar
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

casos que é atribuído à suprema corte. Prefiro tratar desse


ponto, porém, na seção seguinte, que se refere à estrutura
constitucional (constitutional framework) dos sistemas jurídi­
cos, haja vista que entendo que esta não está necessariamente
conectada ao fato de o sistema jurídico em questão ser da tra­
dição jurídica do common law ou do civil law.

3.3.2.2.3 Estrutura constitucional (constitutional framework)

A estrutura constitucional de um ordenamento jurídico


é um elemento crucial para determinar a força do precedente
na prática jurídica. Há, neste terreno, três grupos de fatores
mais específicos que precisam ser levados em conta para se
determinar o maior ou menor peso do precedente em dado
sistema jurídico: (1) a doutrina dominante acerca das relações
entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário; (2) a autocom-
preensão do Poder Judiciário quanto à sua atividade; e (3) as
normas de direito positivo sobre a aplicação de precedentes
judiciais.
(i) O primeiro desses fatores refere-se à “ tradição c
titucional” encontrada em cada sistema jurídico. Engloba a
“diferença relativa à interpretação da amplamente conhecida
doutrina da separação dos Poderes” e é um dos fatores que
mais podem influenciar o peso do precedente judicial. Nova­
mente, as palavras de MacCormick parecem adequadas no
momento. Esclarece o autor que podem ser normalmente
encontradas duas interpretações desta doutrina: “ Em uma
interpretação, os juizes estão proibidos de interferir nos atos
dotados de autoridade legislativa; essa tradição desaprova o
judicial review dos atos do Legislativo mesmo em sede de
controle de constitucionalidade. (...). Por outro lado, em tra­
dições tais com o a americana ou a alemã, questões de Direito
constitucional são em larga escala matérias para decisões
judiciais, e em grande parte o Direito constitucional, ainda
que baseado na interpretação de uma dada Constituição his­
tórica, se torna essencialmente um corpo de normas jurídicas
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

baseadas em precedentes, que funciona através da interpre­


tação de toda uma tradição constitucional, e não apenas da
interpretação de uma Constituição reduzida a um texto”
[MacCormick 1998-a:181-182].
De fato, a teoria dominante em um Estado sobre os limi­
tes do Poder Judiciário e suas relações com o Legislativo é um
fator seguramente determinante para entender a força do
precedente no interior de um sistema jurídico. Como explica
Taruffo [1997-a:456], “decidir questões constitucionais exige,
em qualquer caso, um uso intensivo de precedentes, provavel­
mente devido à generalidade e à abertura das disposições
constitucionais” . Um sistema onde a jurisdição constitucional
é mais aceita como legítima irá invariavelmente apresentar
uma tendência ao desenvolvimento judicial do Direito por meio
de precedentes.
Mesmo nesse sistema, no entanto, haverá diferentes ní­
veis de vinculatividade do precedente judicial em função da
matéria versada em cada caso concreto. A tendência que se
verifica nos ordenamentos jurídicos em geral é para uma con­
vivência entre dois modelos: quando analisamos a força do
precedente do ponto de vista das cortes intermediárias notamos
que, de um lado, os precedentes constitucionais, regra geral,
valem com o fontes obrigatórias em sentido forte e, de outro
lado, os precedentes dos tribunais superiores funcionam como
fontes obrigatórias em sentido frágil e têm, portanto, um cará­
ter superável (outweighable).
Ao se analisar um precedente deve-se observar, portanto,
a seguinte diretiva: quanto mais amplos forem os poderes do
tribunal para realizar o judicial review, mais força terá o pre­
cedente no sistema jurídico em questão.
(ii) A questão torna-se mais espinhosa, no entanto, quan­
do passamos para o segundo dos fatores: a autocompreensão do
Judiciário, ou seja, a forma como os juizes entendem sua pró­
pria atividade. O Judiciário pode encarar sua atividade como
predominantemente um ato de produção normativa ou um ato

ai
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de aplicação de normas em um sentido estrito. Como vimos,


Kelsen nos ensinou que a atividade judicial não pode deixar
de ser as duas coisas ao mesmo tempo (aplicação e criação de
normas). Decidir um problema jurídico concreto, em especial
quando um juiz prolata uma decisão dotada de autoridade,
envolve tanto um ato de conhecimento dos significados possí­
veis para determinado enunciado normativo quanto um ato de
vontade ou “decisório em sentido estrito” , ou seja, uma escolha
entre as interpretações/significados possíveis à luz da literali-
dade do texto normativo levado em consideração. A disputa
entre os juristas formalistas - que acreditam haver sempre um
significado unívoco para cada enunciado legislativo objeto de
interpretação - e neocéticos - que advogam uma pluralidade
de significações possíveis para um mesmo texto - assim como
a competição entre as concepções acerca da interpretação
denominadas objetivista - para a qual as normas devem ser
interpretadas de acordo com o sentido que elas têm no contex­
to em que se apresentam - e subjetivista - que acredita que o
intérprete deve buscar sempre reconstruir a vontade do legis­
lador histórico - só podem ser resolvidas com um empate entre
as razões aduzidas por cada uma dessas escolas. Há algo de
correto em todas elas.
A tensão entre ratio efia t, com o frisei ao longo do pre­
sente trabalho, é elemento necessário e saudável do racio­
cínio jurídico. O rom ance em cadeia que os juizes em uma
sociedade bem ordenada escrevem envolve tanto uma apren­
dizagem das normas e das interpretações já realizadas pelos
juizes anteriores quanto uma contribuição pessoal de cada
intérprete.35
Na história do Direito, contudo, podem -se encontrar
certos exemplos de exasperação de um desses elementos. Via
de regra, essa exasperação não tem origem na prática jurídica
propriamente dita, mas nas descrições que os teóricos fazem

35. Refiro-me, obviamente, à analogia de Dworkin para descrever seu modelo


Law as integrity. V., supra, Capítulo 2, n. 2.1.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

dessa praxis. Não obstante, a teoria influencia sobremaneira


o próprio desenho institucional dos Estados onde ela preva­
lece. Na tradição jurídica francesa pós-napoleônica pudemos
observar, v.g., um considerável período histórico de negligên­
cia completa do elemento criativo da interpretação jurídica:
o raciocínio jurídico era analisado com o se fosse um puro
processo de conhecimento. Quando voltamos nossas atenções
para a aplicação do Direito, vemos que esta era vista - pela
Escola da Exegese - com o um processo exclusivamente ra­
cional, que podia ser levado adiante por parte do intérprete
com fundamento apenas nos parâmetros seguros da m etodo­
logia gramatical.
O Positivismo francês do início do século X IX foi o exem­
plo mais marcante de predominância de uma teoria segundo
a qual o processo de interpretação do Direito é uma atividade
meramente cognitiva, de sorte que não haveria qualquer ele­
mento decisório. As consequências desta teoria sobre o desenho
institucional da República Francesa e sobre o estilo (style) ju­
dicial da Corte de Cassação podem ser sentidas até hoje, não
obstante as transformações no modo de ver a atividade criati­
va do Judiciário e a jurisprudência que hoje podem ser sentidas
em solo francês. Toda a teoria dos precedentes francesa - ou a
sua ausência - foi construída a partir da premissa - que anos
mais tarde se revelou falsa - de que os juizes nunca criam Di­
reito. O estilo phrase unique nada mais é que a expressão ma­
terial em ação dessa forma de ver a linguagem e o Direito. A
jurisprudência não é fonte do Direito.36
No outro polo, cite-se o Realismo Jurídico americano do
início do século X X. Aqui, pelo contrário, a atividade de adju­
dicação - termo preferido pelos juristas americanos, que evitam
a locução application oflaw - é vista como mero exercício cria­
tivo por parte dos juristas. Como já adiantamos, Holmes foi um
dos maiores ícones dessa escola de pensamento jurídico. Suas

36. V., supra, Capítulo 1, n. 1.4.1.1.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

palavras, pelo radicalismo com que foram pronunciadas,


marcaram época: “As profecias acerca do que os tribunais
irão fazer de fato, e nada mais pretensioso que isso, é o que
eu defino com o ‘o Direito” ’ [Holmes 1965:27]. O juiz aparece
como completamente desvinculado do trabalho realizado pelo
legislador e das interpretações adotadas pela comunidade e
pelos próprios juristas anteriores. O resultado não poderia
ser outro: criou-se um sistema jurídico em que a suprema
corte pode escolher - de m odo absolutamente discricionário
- os casos que ela deseja julgar. Como explica Tunc, talvez o
mais árduo defensor da importação de métodos do common
law com o uma forma de reoxigenar o direito francês da dé­
cada de 1970 (que estava impregnado de uma série de pre­
conceitos legalistas):
“Em todas as hipóteses, a Suprema Corte dos Estados
Unidos escolhe os casos que ela irá examinar. Dos mais de 4.000
casos que lhe são submetidos todos os anos (a cifra seria mui­
to mais elevada se as chances de conseguir a atenção da Corte
não fossem tão baixas), a Corte dispensa de início aproxima­
damente 3.700. Ela examina aproximadamente 350 casos,
sendo que a metade será decidida sumariamente e constituirá
objeto de uma sentença per curiam, que se limitará a fazer um
reenvio a um precedente. A Corte não faz mais que 150 julga­
mentos completamente motivados, aos quais se junta uma
vintena de decisões per curiam, motivadas em poucas linhas
ou, eventualmente, em uma página. (...).”
“De mais a mais, a Corte apenas aceita os casos que lhe
permitem guiar a evolução do Direito em domínios de impor­
tância nacional, seja nos problemas das liberdades públicas
ou na interpretação das leis de regulamentação econômica
ou de proteção aos consumidores ou ao meio ambiente” [Tunc
1978:17 e 25].
Observe-se que a Suprema Corte enxerga a si mesma
com o um órgão político. E sua função precípua não a de ga­
rantir a aplicação do Direito federal, mas especialmente a de
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

orientar a atividade dos demais órgãos que integram o Poder


Judiciário, fazer decisões com força de lei para eles. O juiz
detém o poder de escolher os casos e os utiliza com o um meio
- e nada mais que isso - para divulgar suas opiniões gerais
carreadas de autoridade. Nesse sentido, Siltala descreve essa
concepção com o uma ideologia judicial do tipo quase-legisla-
tiva (quasi-legislative model), onde a corte anterior - que es­
tabelece um precedente judicial - “ é concebida com o um le­
gislador de menor escala, intersticial, com poderes semelhan­
tes, ainda que sob certos limites, aos do Parlamento” : “A mais
alta Corte Nacional de Justiça pode ter-lhe assegurada ampla
discricionariedade quanto à seleção de casos para serem re­
gulados, dependendo do sistema particular de certiorari ou
docket adotado no ordenamento jurídico em questão. Ademais,
a função da Corte Máxima pode - ao menos parcialmente - ser
desvinculada da função inicial de solucionar disputas, garan­
tindo a ela maior liberdade para estabelecer a ratio de um
caso em term os abertam ente quase-legislativos” [Siltala
2000:80-81].
Em sistemas onde prevalece essa ideologia o Judiciário
outorga a si mesmo poderes que, normalmente, estariam na
esfera exclusiva do legislador; poderes para decidir por sua
própria autoridade qual será o conteúdo das normas gerais.
Ele não hesita em empregar argumentos de natureza política
e exclusivamente forward-looking. Argumentos práticos, sobre
o senso comum, argumentos utilitaristas em sentido amplo e
consequencialistas são apresentados com muito maior natu­
ralidade. Por isso, Cappelletti, ao comentar as diferenças
entre o common law e o civil law, sustenta que a diferença
entre as duas tradições é, principalmente, “ uma diferença
relativa à qualidade e ao grau de autoridade, de criatividade
ou, melhor, do caráter vinculante ou de criação do Direito
apresentado pelas próprias Regeln judiciais” [Cappelletti
1981:389].
Não é exato, porém, imaginar que a ideologia do juiz como
“quase-legislador” seja necessariamente uma particularidade
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

do common law. De um lado, há sistemas jurídicos fortemente


ancorados na tradição romanística onde a corte constitucional
tem um sistema de seleção de casos semelhante ao dos Estados
Unidos, como, por exemplo, a Suécia, onde a Corte exerce com
severidade seu poder discricionário de selecionar os casos a
serem julgados [Tunc 1978:19]. Como explicam Bergholtz e
Peczenik [1997:294]: “A Suprema Corte pode garantir certiora-
ri da forma como ela quiser, mas deve-se também levar em
consideração as reformas de 1971 no Direito processual. De
acordo com o Capítulo 54, s. 10, do Código de Processo Civil, a
Suprema Corte apenas pode dar certiorari em casos em que
(a) seja importante estabelecer uma regra geral para valer como
precedente na prática jurídica ou (b) existam razões especiais,
tais como um grave erro cometido pela corte inferior” .
Veja-se que no sistema sueco a lei limita as causas que
podem ser apreciadas pela Corte, mas - atendidos esses requi­
sitos processuais - ela pode escolher de forma absolutamente
livre os casos que considera relevantes para a prática jurídica.
Trata-se, nitidamente, de um poder normativo geral.
No Reino Unido, por outro lado, embora o leave to appeal
seja necessário, na maioria das vezes, para que um caso pos­
sa vir a ser apreciado pela House ofLords, o poder de selecio­
nar casos não pode ser exercido de forma arbitrária, com o na
Suécia e nos Estados Unidos. A Corte mais alta do Reino
Unido, mesmo quando tem certo grau de discricionariedade,
está obrigada a justificar, ainda que com brevidade, as situa­
ções em que o leave to appeal é indeferido por não trazer à
tona uma matéria de direito relevante para a ordem jurídica
em geral.37
Uma situação muito parecida com esta é a da Alemanha,
que constitui o sistema jurídico onde a influência do Direito
romano se manifestou com o maior grau. Na Alemanha vigora

37. Sobre os requisitos para o leave to appeal a serem observados pelo Sub-
comitee da House ofLords, v. Capítulo 1, n. 1.4.2, especialmente a nota 23.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

um sistema significativamente complexo de admissibilidade


de recursos para o Tribunal Constitucional Federal e para as
Supremas Cortes - tribunais superiores - nas várias espécies
de jurisdição. Quanto às jurisdições ordinárias - questões de
natureza não-constitucional-, as cinco Cortes Supremas fede­
rais julgam, praticamente, exclusivamente questões de direito.
Nas causas criminais as Cortes não têm qualquer poder para
selecionar casos, mas nas demais a admissibilidade dos recur­
sos irá depender da admissibilidade por uma Corte. Nas ape­
lações em casos de natureza administrativa, trabalhista, social,
fiscal e na maioria das causas de natureza cível os fundamen­
tos que levam um recurso a ser admitido estão regulados no
Código de Processo Civil [Alexy/Dreier 1997:19]. Como explicam
Alexy e Dreier, há duas situações que se destacam: (1) a admis­
sibilidade de recursos quando “ o caso é de fundamental im­
portância” e (2) a admissibilidade de recurso contra “decisão
que não segue um precedente estabelecido pela respectiva
Suprema Corte Federal” [ibidem]. Observa-se, quanto a “ (1)” ,
um grau de discricionariedade do Judiciário, embora não se
possa falar de um poder arbitrário, com o nos sistemas sueco
ou norte-americano. O sistema parece aproximar-se, nesse
ponto, do existente no Reino Unido para as causas em que é
necessário o leave to appeal.
Nos recursos para o Tribunal Constitucional Federal na
maior parte das vezes não há qualquer poder de selecionar ou
filtrar casos a serem apreciados. Mas no recurso constitucional
- que pode ser interposto por qualquer parte - a admissibili­
dade fica restrita a duas situações: (1) casos de “ fundamental
significado para o direito constitucional” e (2) casos de violação
a um “direito básico ou fundamental” [Alexy/Dreier 1997:20].
Observa-se, aqui também, que a admissibilidade - na primeira
hipótese, “ (1)” - deve levar em conta o significado da decisão
do tribunal para o Direito constitucional.
Os exemplos citados acima demonstram que a autocom-
preensão do Judiciário - o retrato que o juiz faz de sua própria
atividade - influi sobremaneira na configuração do sistema de
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

precedentes, no peso que o argumento fundado no stare deci-


sis terá na justificação jurídica. Há tanto casos em que o juiz
não reconhece a si mesmo como um agente produtor de normas
jurídicas gerais e abstratas, de modo que um precedente judi­
cial - se considerado isoladamente - não passa de um argu­
mento extra ou adicional para a justificação substancial decisão
[Wróblewski 1983:169], com o também casos onde o juiz reco­
nhece seu poder de decisão como genuinamente normativo,
não diferente de modo significativo da atividade legislativa.
Nesse último caso, o Judiciário se politiza e privilegia o ele­
mento auctoritas na sua atividade prática. Independentemen­
te de se tratar de um sistema de common law ou civil law, ele
se enxerga como um agente produtor de normas gerais para
as cortes que lhe estão subordinadas, e apenas secundariamen­
te decide casos particulares (é o caso, como vimos, da Suécia
e dos Estados Unidos). Quando estamos diante de tal autocom-
preensão do Judiciário, o precedente é, via de regra, admitido
como vinculante em sentido forte. A maioria dos sistemas ju­
rídicos, no entanto, situa-se em uma zona intermediária entre
esses dois extremos.

(iii) Talvez o elemento mais relevante para se determ


a importância do precedente em dado ordenamento jurídico
esteja no terceiro fator: as normas de Direito positivo que dis­
põem sobre sua força jurídica. E nelas que se pode encontrar
o maior amparo institucional para o stare decisis. Todo siste­
ma jurídico - condicionado pelos dois fatores que acabamos
de mencionar (auto-portrait do Judiciário e doutrina domi­
nante das relações entre este Poder e o Legislativo) - tem uma
série de normas institucionalizadas sobre a força do prece­
dente judicial. Mesmo onde essa institucionalização não é
expressa, ela vigora implicitamente, e as normas sobre pre­
cedentes judiciais podem ser identificadas com referência à
regra de reconhecimento hartiana ou aos próprios “prece­
dentes sobre os precedentes judiciais” [Nanni 1999:183]. Mas,
contrariamente ao que se poderia imaginar, mesmo nas tra­
dições do common law as normas sobre precedentes judiciais
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

tendem a ser claras e escritas. No caso do Reino Unido, por


exemplo, as Practice Directions and Standing Orders Applicable
to Civil Appeals consolidam a maior parte das regras sobre a
admissibilidade de recursos (appeals) e sobre a força do pre­
cedente judicial.38
Algumas das normas sobre precedentes judiciais podem
ser encontradas em basicamente todos os Estados Constitu­
cionais contemporâneos. Princípios gerais como o da seguran­
ça jurídica - de onde decorrem a exigência de “unidade da
jurisprudência” [Tunc 1978:13], a busca de “ estabilidade” e
certeza do sistema jurídico e a necessidade de se dotar o juris­
ta prático de instrumentos para “ reduzir o âmbito de discri-
cionariedade dos juizes na aplicação do Direito” [Bernal Puli-
do 2005:200] -, da igualdade na interpretação da lei e na apli­
cação do Direito [Ollero 2005] e da coerência, seja esta enten­
dida com o coerência “ sincrônica” - que não leva em conta o
tempo - ou “diacrônica” [Peczenik 2000-b:60], estão tão pró­
ximos da ideia de Estado de Direito que valem em todas as
sociedades avançadas, independentemente de uma positiva-
ção expressa.
O mesmo não acontece, contudo, nas regras mais espe­
cíficas que, em cada ordenamento jurídico, estabelecem di­
ferentes critérios para o peso dos precedentes judiciais. Como
cada ordenamento jurídico tende a estabelecer suas próprias
regras específicas, uma teoria geral dos precedentes judiciais
encontra limites quanto à sua pretensão normativa. No en­
tanto, com o os demais fatores institucionais e não-institucio-
nais permanecem, em grande medida, generalizáveis, esse
tipo de teoria ainda pode ser considerado um empreendi­
mento viável.
Mencionarei, a seguir, algumas das normas sobre prece­
dentes judiciais encontradas no sistema jurídico brasileiro. A
descrição dessas regras, sobre ser útil para a prática jurídica

38. V., supra, Capítulo 1, n. 1.4.2.


THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

do referido ordenamento jurídico, pode ser também de inte­


resse para o juscomparatista, na medida em que o Direito
brasileiro apresenta uma legislação tão complexa sobre o pre­
cedente judicial que abarca praticamente todas as diferentes
intensidades ou graus de eficácia imagináveis para o case law,
ou seja, desde o precedente vinculante em sentido forte ao
meramente persuasivo. Vejamos as principais normas contidas
na legislação brasileira sobre precedentes judiciais.39

(A) Normas sobre os precedentes do STF e do STJ - As decisões


do STF em jurisdição abstrata sobre a constitucionalidade de
atos normativos têm efeito (formalmente) vinculante e erga om-
nes em relação a todos os órgãos administrativos e judiciários.40
Uma emenda constitucional de 2004 estendeu o efeito vinculan­
te a um grupo especial de súmulas da mesma corte instituídas
especificamente para estabelecer regras gerais sobre a constitu­
cionalidade ou inconstitucionalidade de atos normativos.41

39. O relato que farei a seguir é mais interessante para o leitor estrangeiro que
para o jurista brasileiro, que certamente conhece todas as normas a que irei
fazer breve referência. Com efeito, o texto que segue a partir desta nota até o
início do n. 3.3.2.3 coincide com parte do conteúdo de um report sobre os prece­
dentes no direito brasileiro que encaminhei ao professor Ewoud Hondius para
o XVII a Congress ofthe International Academy o f Comparative Law, realizado
em Utrecht, Países Baixos, entre os dias 16 e 21.7.2006 [v. Bustamante 2007-a].
40.0 efeito formalmente vinculante foi instituído pela Emenda Constitucional
3/1993 e mantido pela Emenda Constitucional 45/2004 (que inseriu o art. 102,
§ 2a, da CF), tendo rapidamente sido implementado pelo STF no controle de
constitucionalidade abstrato. O procedimento das ações diretas de inconstitu­
cionalidade e declaratórias de constitucionalidade, bem como da arguição de
descumprimento de preceito fundamental, foi detalhado pelas Leis 9.868/1999
e 9.882/1999, que admitiram pela primeira vez na história do país a possibili­
dade de se restringir a eficácia da decisão de inconstitucionalidade para fatos
e atos que tenham lugar depois da decisão do STE A velha teoria da eficácia
meramente declaratória - e necessariamente com efeitos ex tunc - da decisão
de inconstitucionalidade foi abandonada. Para uma ideia geral do sistema
brasileiro de controle de constitucionalidade, v. Clève [2000] e Mendes [1998].
41. Constituição da República, art. 103-A, introduzido pela Emenda Consti­
tucional 45/2004.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Qualquer decisão judicial que desviar de um precedente


formalmente vinculante do STF pode ser imediatamente re­
vertida pelo Tribunal através de um writ bastante simples e
eficiente intitulado “ reclamação para preservação da com pe­
tência do STF e da autoridade de suas decisões” .42
Os precedentes formalmente vinculantes, portanto, cons­
tituem fontes vinculantes em sentido forte, cujo cumprimento
é processualmente garantido pela Constituição de 1988. Uma
norma adscrita de um precedente do STF prolatado em sede
de controle concentrado de constitucionalidade ou fixada em
uma súmula formalmente vinculante enseja imediata reforma
da decisão diretamente pela própria Corte Máxima. Pouca
diferença há, quanto ao grau de eficácia, entre essas decisões
e as da House ofLords, por exemplo.
No entanto, com o nem todas as súmulas têm efeito
vinculante,43 e com o a vasta maioria das decisões judiciais
relevantes não é formalmente reportada por meio de súmulas,
é necessário investigar se o direito brasileiro tem um ponto
de vista normativo a fim de se outorgar um grau razoável de
vinculatividade aos precedentes em geral. A resposta deve
ser afirmativa.
Uma norma adscrita derivada de precedente consolidado
do STF ou do STJ, seja explicitamente formulada por meio de
uma súmula ou meramente reiterada por um órgão especial
ou seção, tem um efeito vinculante em sentido frágil que en­
contra suporte tanto em princípios constitucionais como em
leis que recentemente introduziram novas disposições no Có­
digo de Processo Civil. A força desses precedentes reside no

42. Constituição da República, art. 102,1, “1”.


43. O STF claramente distinguiu as súmulas prolatadas de acordo com o art.
103-A da Constituição Federal e as súmulas ordinárias. Apenas as primeiras
possuem “efeito vinculante” (tal como entendido pela Corte, ou seja, em
sentido forte) sobre os tribunais inferiores. Ver: Supremo Tribunal Federal,
Rcl. 3979-AgR, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ de 02.06.2006.

^25
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

argumento da universalizabilidade e na exigência de justificação


racional das decisões jurídicas.44
É fato que quando a Constituição brasileira instituciona­
liza o princípio moral da igualdade ou justiça formal45 ela defi­
nitivamente exige um modelo de produção e consolidação do
direito jurisprudencial que possa garantir ao menos um mínimo
de universalizabilidade na aplicação do Direito. A Constituição
inequivocamente sustenta a pretensão de que a aplicação de um
precedente particular só pode ser justificada por enunciados
universais elaborados sob a forma de regras hipotéticas.46
Ademais, a regra constitucional que exige que todas as
decisões jurídicas sejam justificadas47 implicitamente contém
a formulação do princípio perelmaniano da inércia, de modo
que qualquer afastamento dessas regras deve ser justificado
por razões suficientemente fortes.48
Apesar de esses princípios (da universalizabilidade e da
inércia) desempenharem funções semelhantes em muitos ou­
tros sistemas jurídicos de civil law, nem sempre a própria le­
gislação os concretiza em regras explícitas e suficientemente
específicas para garantir a aplicação uniforme do precedente
judicial e, ao mesmo tempo, preservar a flexibilidade do Direi­
to, ao permitir a possibilidade de se adaptar os precedentes às
novas realidades que podem levar os tribunais a aplicar a téc­
nica do distinguish ou até mesmo a completamente abandoná-
los (overrule).
O legislador brasileiro tentou encontrar algumas soluções
intermediárias entre os extremos da rigidez e da flexibilidade

44. Esses princípios também atribuem força bastante persuasiva aos prece­
dentes consolidados dos tribunais de apelação (Tribunais de Justiça, TRFs,
TRTs, TREs e Tribunais Militares).
45. Constituição da República, art. 5Q, II.
46. V., supra, Capítulo 1, n. 1.5.2.
47. Constituição da República, art. 93, IX.
48. V, supra, n. 3.3.2.2.1 deste capítulo.

396
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

do case law produzido por seus tribunais superiores, tais como


(1) o recentemente introduzido caráter “ impeditivo de recurso”
de certas decisões: a Lei 11.276/2006 permitiu aos juizes de
primeira instância se recusarem a admitir apelações nos casos
que tenham sido decididos conforme uma súmula do STF ou
do STJ49 e (2) a faculdade processual atribuída aos relatores
no STJ e no STF para julgar (e reverter) casos sem submetê-los
à turma ou seção: quando a decisão que constituir objeto de
um recurso especial (um expediente recursal de natureza ex­
cepcional cabível quando a decisão de única ou última instân­
cia contradisser a legislação federal) ou um recurso extraordi­
nário (regra geral, um recurso para o STF para o fim de anular
as decisões contrárias à Constituição) estiver em confronto com
uma súmula ou a “jurisprudência dominante” das duas Cortes
mencionadas, o relator pode dar provimento ao recurso ime­
diatamente após recebê-lo, mesmo sem tê-lo antes submetido
aos outros julgadores que iriam normalmente participar do
julgamento coletivo.50
Em ambas as hipóteses acima as partes podem recorrer
da decisão do juiz singular que aplicar tais normas, o que é
importante para evitar a fossilização das regras jurisprudenciais

49. Lei 11.276/2006, art. 2a, que dá nova redação ao art. 518, § 1“, da Lei
5.869/1973 (Código de Processo Civil). Quando a lei fala genericamente em
“súmulas”, estão abarcadas tanto as súmulas vinculantes quanto as não
expressamente qualificadas como tais.
50. Lei 5.869/1973 (Código de Processo Civil), art. 544, §§ 3“ e 4a, com redação
dada pela Lei 9.756/1998. E importante saber, contudo, que o juiz não está
vinculado a esta regra. Caso ele encontre alguma razão para reconsiderar
a jurisprudência dominante da corte, ele pode simplesmente não usar essa
prerrogativa e submeter o caso ao órgão colegiado. Apenas para frisar a
importância dessa regra particular para a eficiência da atividade de apli­
cação do Direito, indico alguns dados estatísticos. No ano de 1995 (antes
da promulgação da lei) o STF julgou 34.125 casos, dos quais 19.507 foram
decididos por julgamentos coletivos (aproximadamente 57%). Dez anos mais
tarde, em 2005, o Tribunal decidiu 103.700 casos, dos quais 14.173 foram
julgamentos coletivos (aproximadamente 13,5%) (Fonte: Banco Nacional de
Dados do Poder Judiciário -STF, disponível em http://www/stf/gov/Br/bndj/
stf, acesso em 10.12.2006).
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

e a subutilização de técnicas argumentativas como o distin­


guishing e o overruling. Há, todavia, o risco de que recursos de
tal natureza aumentem o número de julgamentos (ao invés de
diminuí-los, como eles foram planejados para fazer), mas a
legislação processual permite aos tribunais aplicar sanções
disciplinares e financeiras aos advogados que abusarem do uso
de recursos de tal natureza.51

Apesar de esses enunciados legislativos não tornarem os


precedentes dos dois Tribunais mais importantes do Brasil
vinculantes em sentido forte (o que iria incluir a possibilidade
de assegurá-los através da reclamação prevista no art. 102,1,
“1” , da Constituição da República), eles certamente elevaram
o status desses precedentes ao nível de vinculantes em sentido
frágil ou, na nomenclatura dos Bielefelder Kreis, ao status de
precedentes “não formalmente vinculantes mas dotados de
força jurídica” [Peczenik 1997:463].

(B) Normas relativas às decisões do TST - Historicam


te, o TST desempenhou importante papel ao fixar diretivas
gerais para o direito do trabalho. De um lado, a Corte tem
“ enunciados” muito similares às súmulas do STF e do STJ.
Apesar de os enunciados do TST não encontrarem sustentação
expressa na legislação, seu caráter de precedentes vinculantes
em sentido frágil é definitivamente reconhecido pelos TRTs.
Na prática, os precedentes do TST somente podem ser rever­
tidos pelo STF em arguições de inconstitucionalidade.
De outro lado, a Constituição da República de 1988, na
sua redação original, conferia um “poder normativo” à Corte
para explicitamente criar normas gerais para o fim de solucio­
nar conflitos entre associações de empregados e empregadores,
no direito do trabalho coletivo. Essa prerrogativa era frequen­
temente abusada, pois o Tribunal criava regras não apenas

51. Lei 5.869/1973 (Código de Processo Civil), art. 17, VII. O STF e o STJ vêm
sendo relativamente severos na aplicação dessas sanções.
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

praeter legem, mas também contra legem, e foi derrogada por


emenda constitucional de 2004.52 O Tribunal conserva, apesar
disso, um grande poder para introduzir novas regulamentações
no direito coletivo do trabalho.

(C) Normas referentes aos precedentes horizontais - Cada


tribunal brasileiro tem seu próprio regimento interno. Literal­
mente, todos os regimentos contêm regras explícitas sobre a
unificação da jurisprudência do tribunal. Não obstante, há
ainda uma grande margem para divergência entre as turmas,
painéis, câmaras e grupos de câmaras de cada tribunal. Em
linhas gerais, levam-se anos e são necessárias centenas de
casos idênticos para uma corte unificar sua jurisprudência em
questões particulares.
Ademais, é necessário dizer que mesmo depois da uni­
formização de sua própria jurisprudência a corte não está es­
tritamente vinculada aos seus julgamentos anteriores. Entre­
tanto, precedentes horizontais suficientemente estabilizados
criam uma carga de argumentação para qualquer juiz que
pretenda se afastar deles. Mas, como veremos, a maior razão
para a aderência ao precedente horizontal - diferentemente
do que se passa no precedente vertical - não está em fatores
estritamente institucionais, mas nos fatores extrainstitucionais,
de que passaremos a tratar.

3.3.2.3 Fatores extrainstitucionais que determinam a força


de uma norma jurisprudencial

A classificação entre fatores “ institucionais” e “ extra­


institucionais” que determinam a força de um precedente
judicial não tem contornos absolutamente precisos. Mas essa
imprecisão não retira sua utilidade. Mais importante que

52. Emenda Constitucional 45/2004, que deu nova redação ao art. 114, § 22,
da CE
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

obter uma descrição absolutamente exata de determinado


conceito ou instituto jurídico é entender seu funcionamento
na prática e sua aptidão para orientar a ação dos operadores
do Direito.
Em certo sentido, todos os fatores que influenciam a
força do precedente em determinado sistema jurídico são
“institucionais” . Mesmo os que estou denominando - na falta
de nomenclatura mais adequada - de “ extrainstitucionais”
tornam-se pelo menos em parte “ institucionais” quando con­
seguem se tornar suficientemente eficazes para interferir
na tomada de decisões na prática jurídica, isto é, quando sua
força é reconhecida pelos juristas práticos. Se analisarmos
o Direito da perspectiva do observador - adotando os mesmos
m étodos do Positivismo - , a classificação em fatores “ insti­
tucionais” e “ extrainstitucionais” perde bastante de seu
sentido, na medida em que os fatores que denomino “ ex­
trainstitucionais” , ao influírem na determinação do peso do
precedente na justificação de uma decisão, são gradualmen­
te institucionalizados.
Ainda assim, mantenho a classificação, porque a impor­
tância dos fatores extrainstitucionais não está no fato de eles
“vigorarem de fato” em determinado sistema jurídico ou social,
mas na virtualidade crítica que eles apresentam, isto é, na
capacidade intrínseca que eles detêm para justificar - do ponto
de vista argumentativo - e motivar - do ponto de vista fático - a
ação dos aplicadores do Direito em geral. Como escrevo para
os juristas práticos - ou seja, para os participantes do discurso
jurídico vale a pena dedicar especial atenção aos fatores
extrainstitucionais que podem fundamentar a adesão a um
precedente judicial. O só fato de esses fatores serem capazes
de contribuir para a racionalização do Direito é uma razão para
considerá-los relevantes para a teoria normativa dos preceden­
tes judiciais que busco construir. Como venho insistindo, a
decisão jurídica é condicionada tanto por elementos ou razões
de autoridade quanto por motivos puramente racionais (não
institucionalizados).
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Vejamos, a seguir, alguns desses fatores extrainstitucio­


nais (ou, melhor, não necessariamente institucionais) que
influem sobre o peso das normas adscritas derivadas dos
precedentes.

3.3.2.3.1 Concepções jurídico-teóricas

(A) Concepções jurídico-teóricas acerca do Direito e do


discurso jurídico - Sustentei, no n. 2.3 do Capítulo 2 deste
trabalho, que a teoria jurídica é dotada de uma dimensão
normativa que influi - e deve influir - decisivamente na prá­
tica jurídica e na tomada de decisões pelos órgãos de aplica­
ção do Direito. Essa dimensão normativa, apesar de ter sido
teoricamente negada pelo Positivismo Jurídico, sempre foi
decisiva para - nos mais variados contextos e nos mais dife­
rentes sistemas jurídicos - determinar o peso do precedente
judicial.
Nessa direção, MacCormick relata que as diferentes
teorias de inspiração jusnaturalista e positivista contribuíram
não apenas para a formação da teoria do stare decisis na In­
glaterra, mas também para a própria prática de uso e aplica­
ção do case-law. De um lado, a denominada teoria “declara-
tória” da atividade judicial - que se apresenta com o “ compa­
tível com um ponto de vista jusnaturalista” e foi dominante
durante os séculos XVII e XVIII - “dá suporte à hostilidade
em face de qualquer doutrina do precedente absolutamente
vinculante e tende a uma visão dos precedentes com o no
máximo ‘vinculantes mas superáveis’ [defeasibly binding], sob
o fundamento de que erros sobre o Direito são logicamente
possíveis, e os precedentes são apenas declaratórios ou for­
madores de evidências, mas não estritamente constitutivos
do direito” [MacCormick 1998-a:182]. De outro lado, o Positi­
vismo, que frisa o caráter humano (man-made) e construído
do Direito, “ necessariamente nega as premissas da teoria
declaratória” : “ Não há qualquer essência de Direito acima ou
por trás daquilo que é decidido/estabelecido como ‘Direito’
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

por alguma autoridade competente. Daí se segue obviamente


que, se os precedentes constituem evidência do Direito, isso
somente pode ser verdade porque os juizes estão explícita ou
implicitamente autorizados a criar Direito por meio de seus
rulings” [idem:183].
Fica evidente, portanto, que essas teorias - ao definir o
Direito - geram sérias consequências normativas para a forma
com o o precedente judicial é recepcionado na prática jurídica.
Exatamente por isso é que MacCormick, aproximando-se de
Dworkin, sustenta a necessidade de uma teoria dos preceden­
tes que supere a dicotomia Jusnaturalismo/Positivismo, pois
essa é vista com o a única forma de ir além dos limites da teoria
positivista e da teoria declaratória: “Já não é mais possível,
entretanto, restarmos satisfeitos com um simples contraste
entre direito natural e Positivismo no tratamento do preceden­
te. Por isso, é devida particular atenção ao trabalho de Ronald
Dworkin, que subverteu a simples dicotomia ‘Positivismo vs
teoria do direito natural’ . Em lugar de um modelo de Direito
como uma estrutura sistemática de regras derivadas de fontes
predeterminadas, Dworkin nos convida a reconceber o Direito
com o um conceito essencialmente ‘interpretativo’. A totalida­
de das decisões tomadas pelos legisladores, juizes e outros, que
o Positivismo conceptualizou com o constitutivas de um ‘siste­
ma jurídico’, Dworkin nos diz que deve ser considerada como
Direito apenas em um sentido ‘pré-interpretativo’” [MacCor­
mick 1998-a:183].
Como explica MacCormick, para essa concepção a própria
noção de “fontes do Direito” precisa ser revista: “Para um
seguidor da visão de Dworkin, se formos tratar o precedente
(...) como uma ‘fonte do Direito, a concepção de fonte em ques­
tão deve ser uma radicalmente diferente daquela assumida no
m odelo positivista” ’ [MacCormick 1998-a:183]. Aludindo a
Dworkin e Gray, MacCormick desemboca em uma teoria das
fontes do Direito bastante similar à que expusemos no n. 3.3.1
deste capítulo: enunciados legislativos, precedentes, case re­
ports etc., “não são em si mesmos Direito, mas source-materials
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

[materiais normativos] a partir dos quais o processo de produ­


ção do Direito se desenvolve” [ibidem]. A determinação do
sentido do Direito vai depender de um processo interpretativo
(no sentido amplo proposto por Dworkin) regulado pela ideia
de integridade, no qual o intérprete torna o Direito operativo
através da aplicação desses materiais de forma coerente com
os valores morais implícitos no Direito, sempre pautado pela
finalidade de implementar “a melhor interpretação possível
do precedente, enunciado legislativo ou outra fonte jurídica
‘pré-interpretativa’” [idem:184].
Observe-se que MacCormick propõe uma teoria dos pre­
cedentes semelhante à que defendo aqui. E uma teoria que,
regra geral, se mostra incompatível com o Positivismo Jurídico
e com a ideia de que a autoridade seria o único elemento rele­
vante para determinar a força de um precedente judicial. O
peso do precedente será fixado em um discurso interpretativo
onde serão ponderados os argumentos baseados na autoridade
institucionalizada e os argumentos racionais em sentido estri­
to. Nunca um precedente terá peso absoluto, mas nunca tam­
bém deixará de ter um peso na argumentação jurídica.

(B) Concepções teóricas acerca da dogmática jurídica -


Mas não apenas as grandes teorias sobre a natureza do Direi­
to influenciam a doutrina do precedente judicial. A concepção
de dogmática jurídica a ser adotada irá contribuir significati­
vamente para a determinação da força ou peso do precedente
judicial. Como esclarece Alexy, a dogmática pode ser entendi­
da em pelo menos dois sentidos. Em um sentido amplo, a
“dogmática jurídica” corresponde à “ ciência do Direito no seu
sentido mais estrito e próprio” . Essa concepção faz a dogmá­
tica jurídica coincidir com a própria teoria jurídica. Como es­
clarece Alexy, “ essa ciência do Direito no seu sentido mais
estrito e próprio é uma mescla de, ao menos, três atividades:
(1) a descrição do Direito vigente, (2) sua análise sistemática e
conceituai e (3) a elaboração de propostas para a solução de
casos jurídicos problemáticos” [Alexy 1997-a:240]. Pode-se

333
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

reparar que essas três atividades coincidem precisamente com


as três dimensões da teoria jurídica de que tratamos no n. 2.3.1
do Capítulo 2 (dimensões empírica, analítica e normativa).
Ao lado desse conceito amplo, podem ser adotadas tam­
bém definições mais estreitas de dogmática jurídica, que a
reduzem a um elemento lógico ou conceituai. Como exemplo
dessa vertente, Alexy cita algumas teses de Windscheid sobre
o conceptualismo jurídico. Nesta acepção mais restrita, a dog­
mática jurídica teria, basicamente, três tarefas: (1) a análise
lógica dos conceitos jurídicos, (2) a recondução dessa análise
a um sistema53 e (3) a aplicação dessa análise na fundamenta­
ção de decisões jurídicas. Essa forma de pensar sofreu nume­
rosas críticas, principalmente por Jhering, para quem “unica­
mente com os meios da análise lógica e da dedução não se
pode alcançar novos conteúdos normativos” . Argumentos
lógicos não servem para fundamentar aquilo que não é possí­
vel inferir diretamente da lei, e muitas vezes nada mais fazem
que encobrir as premissas que carecem de uma fundamenta­
ção racional.
Por isso, a teoria do discurso de Alexy apresenta um
conceito de dogmática jurídica que se situa a meio-caminho
entre os dois extremos expostos acima: a dogmática do Direito
“ é (1) uma série de enunciados que (2) se referem às normas
estabelecidas e à aplicação do Direito, mas que não podem
identificar-se com a sua descrição, (3) estão entre si numa re­
lação de coerência mútua, (4) formam-se e se discutem no
marco de uma Ciência Jurídica que funciona institucionalmen-
te e (5) têm conteúdo normativo” [Alexy 1997-a:246].

53. Esta perspectiva parece coincidir com a jurisprudência dos conceitos de


Puchta, que enxerga o sistema jurídico como um agrupamento de conceitos
ordenados por abstração e capazes de ser decompostos. O sistema descrito
aqui é o “sistema externo”, isto é, referido a conceitos abstratos, diferente­
mente do que ocorre com o “sistema interno”, cujo material básico são os
princípios e valores que conferem certa unidade axiológica ao Direito. Sobre
essa distinção, v. Larenz [1997].

334
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Quando se define a dogmática jurídica como um conjun­


to de “enunciados que se referem às normas estabelecidas e à
aplicação do Direito, mas que não podem ser identificadas com
sua descrição” , isso significa que ela não constitui apenas um
registro descritivo do sistema jurídico, mas tem também uma
dimensão crítica, normativa ou propositiva para a construção
do sentido das normas - sejam legislativas ou jurisprudenciais
- que integram o Direito positivo. Por outro lado, dizer que tais
enunciados formam um todo coerente significa (1) que eles não
podem entrar em contradição entre si; (2) que na formulação
de enunciados distintos aparecem os mesmos conceitos jurídi­
cos e, finalmente, (3) que “ na medida em que aparecem os
mesmos conceitos jurídicos é possível fundamentar as rela­
ções que tenham lugar entre eles” . A dogmática jurídica é
uma teoria do Direito positivo, e sua racionalidade vai depen­
der da coerência entre os enunciados que fazem parte dessa
teoria. Por fim, a característica da institucionalização mostra
que eles são construídos de forma relativamente estável e se
referem ao Direito positivo e suas interpretações, adaptações,
reconstruções etc.
Todos os enunciados da dogmática jurídica necessitam
de justificação, e a força de convicção que eles geram na prá­
tica - a aptidão que eles têm para legitimar decisões - depende
da racionalidade de seus conteúdos. A dogmática tem pelo
menos seis importantes funções para a argumentação jurídica:
(1) a função de estabilização (uma vez que fixa, durante longos
períodos de tempo, determinadas formas de decisão54); (2) a de
progresso (pois permite e estimula a evolução do Direito e da
prática jurídica, através da exposição do sistema jurídico de

54. Ao se referir a essa função, Alexy mais uma vez busca fundamento no
princípio de universalidade. Com efeito, a exigência de igual tratamento é
um dos aspectos essenciais da “justiça formal”. A estabilidade conferida pela
dogmática jurídica não implica que um enunciado, uma vez aceito, deva ser
mantido por tempo ilimitado. Pode haver razões para romper com a tradição,
mas, conforme o princípio da inércia de Perelman, quem propõe uma nova
solução suporta uma carga de argumentação [Alexy 1997-a:256].

335
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

forma coerente e racional); (3) a de descarga (já que cria a pos­


sibilidade de se aceitar os enunciados já comprovados sem ter
que, a todo tempo, recriar o processo de fundamentação dos
enunciados normativos); (4) a função técnica (por fornecer
condições de tornar mais simples os processos de ensino e
aprendizagem do material jurídico); (5) a função de controle
(da consistência dos enunciados normativos utilizados na
argumentação jurídica); e (6) a função heurística (já que a
dogmática sintetiza os estados de compreensão alcançados e
lança as bases para novas perguntas e respostas para proble­
mas jurídicos).55
Os enunciados da dogmática jurídica são, portanto, ao
mesmo tempo um registro do conhecimento jurídico acumu­
lado e um ponto de partida para o desenvolvimento judicial
do Direito.
Observa-se, no entanto, uma forte semelhança - para não
dizer uma identidade - entre, de um lado, os enunciados que
a dogmática jurídica (doutrina) elabora para assentar a inter­
pretação correta de um enunciado normativo ou a solução
correta de uma controvérsia jurídica e, de outro, os enunciados
que os juizes elaboram para justificar suas decisões: em uma
como em outra situação estamos diante de uma teoria sobre o
Direito positivo, elaborada à luz de um problema jurídico con­
creto como uma forma de justificação da ação (ou decisão) a
ser adotada pelo aplicador do Direito.

55. No que atina à dogmática jurídica, há também uma semelhança entre


a teoria jurídica de Robert Alexy e a de Aleksander Peczenik e Jaap Hage
[1999:33], para os quais a dogmática “consiste em escritos jurídicos profissio­
nais cuja missão é a de sistematizar e interpretar o Direito válido” . Para esses
autores [idem:34], seriam as seguintes as funções da dogmática jurídica: (1)
analisar casos particulares, traçar um “mapa de possibilidades” ; (2) “siste­
matização do Direito por meio de princípios abstratos proporcionados por
doutrinas gerais”; (3) desenvolvimento da jurisprudência, com consequên­
cias normativas; (4) desenvolvimento de doutrinas filosófico-morais; e (5)
explicação de “posições filosóficas básicas que subjazem à jurisprudência
e à filosofia moral”.

336
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Com efeito, o que diferencia a dogmática jurídica da teo­


ria jurídica propriamente dita56 é que a primeira se ocupa de
problemas jurídicos concretos que se apresentam na própria
aplicação do Direito, problemas jurídicos específicos que se
colocam em determinadas situações interpretativas. Ora, há
uma nítida semelhança com o trabalho do Judiciário: como
justificar uma decisão judicial exige sempre a construção de
uma teoria em que sejam ordenados de forma coerente os
enunciados normativos e fáticos que a justificam, o processo
mental nos dois casos - no trabalho da dogmática e no do juiz - é
o mesmo.
A única diferença, a meu ver, está em que a decisão judi­
cial está involucrada em um contexto institucional mais estri­
to, e, por isso, aderir à teoria estabelecida na decisão de um
precedente judicial é algo que se justifica não apenas por razões
de correção - razões substanciais -, mas também pela autori­
dade relativa (que pode ser maior ou menor, em função dos
fatores institucionais que examinamos acima) do órgão juris-
dicional que prolatou a decisão paradigmática.
Por isso, a conclusão a que chegamos é que as mesmas
razões que justificam a normatividade da dogmática jurídica
justificam também a adesão ao precedente judicial, e as mes­
mas tarefas que a dogmática jurídica desempenha na argu­
mentação jurídica também são desempenhadas pelo prece­
dente judicial. Por conseguinte, quanto maior for o peso que
se atribua à dogmática jurídica e quanto mais racionais e
socialmente eficazes sejam as premissas dogmáticas utilizadas
na justificação de um precedente, mais peso terão também as
regras adscritas que os juizes elaboram ao justificar suas
decisões particulares (na medida, obviamente, em que essas
regras possam ser universalizáveis).57

56. V., supra, Capítulo 2, n. 2.3.3.


57. Um olhar histórico pode, com efeito, corroborar essa conclusão. Os pe­
ríodos em que o Positivismo Jurídico predominou no Continente Europeu

337
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

3.3.23.2 Fatores normativo-estruturais

Vimos acima58 que a estrutura do Poder Judiciário é


relevante fator institucional que influi sobre a força do pre­
cedente na argumentação jurídica. Aqui, estamos, no entan­
to, a nos referir não à estrutura hierárquica dos órgãos de
aplicação do Direito, mas às características das normas ads­
critas que podem ser encontradas nas decisões judiciais e à
estrutura das próprias teorias elaboradas pelos juizes na fun­
damentação dessas decisões. Passemos a analisar separada­
mente cada um desses fatores.

(A) Caracteres das normas jurisprudenciais - (A.l) O


grau de generalidade das normas jurisprudenciais e a força
do precedente: já advertimos que as normas empregadas na
justificação de uma decisão judicial podem variar em níveis de
generalidade. Normalmente é possível justificar essas normas
gerais através das razões aduzidas pelos juizes como base para
suas decisões. A essas razões substanciais somam-se também
as razões de autoridade que decorrem dos fatores institucionais
de que tratamos no n. 3.3.2.2 deste capítulo, tais como a hie­
rarquia do órgão que prolatou o precedente em questão e as
normas de direito positivo que regulam a força do precedente
judicial. No entanto, no momento da aplicação dessas normas
gerais extraídas do Direito judicial, quanto maior for o grau de
generalidade da norma adscrita cuja aplicação se cogita para
a um novo caso, maior a chance de essa norma ser excepcio­
nada com fundamento em circunstâncias não consideradas na
decisão em que ela foi justificada. A diferenciação proposta por
Günther entre os problemas de justificação e os problemas de
aplicação de normas, que mereceu nosso acatamento - embora

pós-napoleônico foram também os períodos em que menos autoridade foi


conferida à doutrina e à jurisprudência. A teoria das fontes do Direito então
dominante ensinava que todo o Direito está na lei. V., supra, neste Capítulo
3, n. 3.3.1.
58. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.3.2.2.I.

338
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

tenhamos demonstrado que ambas as operações necessaria­


mente têm lugar no discurso jurídico revela que podemos
aceitar uma norma jurisprudencial adscrita como justificada
e ainda assim afastar sua aplicação, diante da consideração de
razões não tomadas em conta no momento em que foi reconhe­
cida a validade da norma em questão. Como explica Günther,
a partir do momento em que adotamos a versão frágil de U
como uma regra de argumentação para a fundamentação de
pretensões de validade normativa, basta a consideração das
consequências e efeitos colaterais que puderem ser antecipados
no momento de sua justificação para se reconhecer a validade
de uma norma. E deixada para um momento posterior, portan­
to, a argumentação sobre a aplicação adequada da referida
norma [Günther 1993-b:34]. Como explica MacCormick, para
justificar uma norma basta se ter em mente que, como regra
geral, ela deve se aplicada, pois é impossível prever antecipa­
damente todas as situações em que sua aplicação frustra os
princípios e finalidades para as quais ela foi criada. Em suas
palavras: “ Seria extremamente difícil, talvez impossível, e por
certo incompatível com qualquer pretensão de clareza ou cog-
noscibilidade do Direito, tentar alcançar uma formulação de
todas as pré-condições de validade imagináveis em todos os
enunciados de todas as regras. Por isso, formulações gerais
acerca de direitos são passíveis de deixar muitas condições de
fundo não expressamente enunciadas, especialmente aquelas
que surgem apenas em casos excepcionais” [MacCormick
1995:103].
Essa possibilidade de uma regra ser afastada através do
reconhecimento de exceções e ressalvas no momento da sua
aplicação - em que todas as circunstâncias do caso sejam efe­
tivamente consideradas - aplica-se não apenas aos preceden­
tes persuasivos e vinculantes em sentido frágil (should-norms),
mas também aos precedentes vinculantes em sentido forte, que
constituem must-materials para a argumentação jurídica. A
superabilidade (defeasibility) de uma norma jurídica - a possi­
bilidade de esta ser afastada em uma situação de aplicação - é

339
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

uma característica que deve ser reconhecida para toda e qual­


quer regra jurídica, e não apenas para as normas adscritas
derivadas de precedentes judiciais.
Quanto mais geral for uma norma enunciada na funda­
mentação de uma decisão, mais ela poderá ser útil para a so­
lução de outros casos, e maiores serão sua fecundidade e seu
potencial argumentativo para estabelecer novos parâmetros
normativos para desenvolver o Direito e ordenar de forma
coerente as regras mais específicas de um sistema normativo;
mas, por outro lado, menos in puncto ela será nos casos ulte­
riores, e por isso menor será sua autoridade. Ceteris paribus,
quanto mais abstrata é a regra derivada do caso A, maior o
número de casos que ela cobre, mas menor é seu grau de vin-
culatividade, pois mais provável se torna o surgimento de uma
circunstância não inicialmente considerada que justifique a
formulação de uma regra excepcional. De outro lado, quanto
mais concreta seja a regra derivada de um caso A, menor o
número de casos que ela poderá cobrir, mas mais elevada será
sua vinculatividade para se decidir um caso B.

(A.2) A estrutura interna das normas adscritas: regras


ou p rin cíp ios? Além do grau de generalidade ou abstração
das normas extraídas de um precedente, interferirá no seu
peso sua própria estrutura interna, ou seja, a forma como são
relacionadas hipóteses e consequências normativas. Refiro-
me, neste particular, à distinção estrutural ou qualitativa
entre regras e princípios, proposta por Dworkin e aperfeiçoada
por Alexy.
Há vários critérios para se diferenciar princípios e re­
gras. Talvez o mais comum seja o da generalidade: princípios
seriam normas gerais e abstratas; e regras, específicas e par­
ticulares. Alexy qualifica as teses que distinguem as espécies
de norma jurídica em função da generalidade com o teses
frágeis da separação, propondo, em substituição a estas, uma
tese forte segundo a qual a distinção não é meramente gradual,
mas qualitativa.

340
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Para Dworkin [1968:37], pioneiro desta distinção, “ a di­


ferença entre princípios e regras é uma distinção lógica” . Am­
bos indicam decisões acerca do que é juridicamente devido em
certas circunstâncias, “mas diferem no caráter da diretiva que
eles fornecem” . Nesta perspectiva, regras são aplicáveis na
modalidade do “tudo-ou-nada” . Se os fatos que uma regra
estipula em sua hipótese se realizam, então, a resposta que ela
prevê (para o problema) deve se realizar também, a não ser
que a regra seja inválida - situação na qual ela nada poderá
contribuir para o caso. Princípios, por outro lado, têm uma
dimensão de peso ou de importância. Quando princípios entram
em colisão, deve-se resolver o conflito levando em consideração
o peso de cada um deles. Um dos princípios prepondera sobre
o outro, mas ambos permanecem válidos e integrados ao orde­
namento jurídico.
De maneira semelhante, Alexy [1997-b:86-87] define prin­
cípios como “normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e
reais (fáticas) existentes” . Portanto, “os princípios são manda­
dos de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que
podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida do
seu cumprimento depende não somente das possibilidades reais
(fáticas), senão também das jurídicas” , sendo o âmbito das pos­
sibilidades jurídicas determinado pelas outras normas (princí­
pios e regras) que atuam em sentido contrário. Regras, por seu
turno, seriam “normas que só podem ser cumpridas ou não”.
Se uma regra é válida, “então, deve-se fazer exatamente o que
ela diz, nem mais e nem menos. Portanto, as regras contêm
determinações no âmbito do fática e juridicamente possível” .59

59. Segundo Alexy [1997-b:87-nota 27], sua distinção, apesar de muito parecida
com a de Dworkin, dela se distingue pela designação dos princípios como
“mandamentos de otimização” . Ademais, há ainda pelo menos dois outros
aspectos em que Alexy se distancia de Dworkin (e, a meu ver, com razão): (1)
quando não reconhece a distinção entre princípios e policies, pregada por
Dworkin em sua teorização [id em :lll] e (2) quando atribui às regras também
um certo “caráter prima facie”.

341
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Nota-se, pois, que a distinção reside na própria estrutura


dos comandos normativos, e não somente na extensão ou ge­
neralidade das proposições de dever-ser, apesar de, na prática,
os princípios serem normas mais genéricas que as regras.60
Como consequência desta distinção lógico-estrutural, os con­
flitos de regras e as colisões de princípios são solucionados de
maneiras diferentes. No caso das regras, ou se insere numa
delas uma “ cláusula de exceção” (que elimine o conflito) ou,
então, se declara a invalidade de, pelo menos, uma delas. Para
Alexy o conflito entre regras opera no nível da validade jurídi­
ca, que não é gradual. Uma norma só pode valer ou não valer
juridicamente [Alexy 1997-b:88]. Quando uma regra tem vali­
dade e é aplicável a um caso, isso significa que valem também
suas consequências jurídicas, tendo em vista que as regras
constituem razões definitivas.61
Já, no caso de colisão de princípios, um deles tem que
ceder ao outro, porém sem que o princípio afastado seja decla­
rado inválido ou tenha que ser criada uma cláusula de exceção.
Diante de algumas circunstâncias prevalece o princípio jurídi­
co P2; noutros casos poderá vir a prevalecer o princípio P . Os
conflitos entre princípios não se dão na dimensão da validade,
mas na dimensão do peso. Eventual colisão entre dois princípios
jurídicos há de ser resolvida pela via do estabelecimento de
certas “ condições de prioridade” entre princípios. Estes se
aplicam através do mecanismo da ponderação, mediante o qual
se verifica o peso dos princípios em conflito, sendo que do re­
sultado de tal procedimento se obtém uma regra construída a
partir da otimização dos princípios em jogo. Fala-se, portanto,
numa lei de colisão, que pode ser enunciada da seguinte forma:

60. Na perspectiva de Dworkin e Alexy, a generalidade dos princípios não é


nem o ponto decisivo para distingui-los das regras, nem atributo exclusivo
dos primeiros, pois as últimas também podem apresentar essa característica.
61. Essa conclusão é, contudo, temperada em certas passagens da Teoria dos
Direitos Fundamentais de Alexy [1997-b:98-103], quando se atribui também
às regras um certo caráter prima/acie, embora distinto do dos princípios.

342
r TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ (K) as condições diante das quais um princípio precede a outro


constituem o suposto de fato de uma regra que expressa a con­
sequência jurídica do princípio precedente” [Alexy 1997-b:94].
Enquanto as regras se aplicam pela subsunção, os prin­
cípios aplicam-se pelo mecanismo da ponderação. Esta última
diferença decorre da diferença de natureza estrutural que
antes apontamos: “ Se regras são aplicadas a um caso, a con­
clusão estabelecida pela regra fornece uma consequência para
o caso; princípios, ao contrário, somente geram razões que
demandam ações que contribuem tanto quanto for possível
para fins estabelecidos [por eles]” [Peczenik/Hage 2000:306]. E
justamente essa ligação direta com fins, ideias ou valores e sua
possibilidade de realização gradual que fazem com que os
princípios possam ser qualificados como definidores de um
“dever-ser ideal” (ideal ought) [Alexy 2000-b:300].

(A.2-bis) O diferente modo de aplicação dos princípios e


das regras: a principal implicação da diferenciação entre prin­
cípios e regras de Alexy é o diferente modo de aplicação das
duas espécimes normativas. E exatamente isso que torna a
classificação de Alexy relevante para a metodologia jurídica.
Na perspectiva ora enfocada, princípios se diferenciam
de regras também pela forma de conflito que pode ocorrer
entre eles e, naturalmente, pela maneira como são ultrapassa­
das essas situações conflituosas: num caso, há ponderação
entre princípios, noutro, subsunção de regras comportamentais.

(A.2-ter) Princípios e ponderação: para Alexy [1997-b:158-


159] a técnica da ponderação de princípios é parte de um pro­
cedimento racional de fundamentação de um enunciado jurí­
dico que “ estabelece preferências condicionadas entre valores
ou princípios opostos” . E o mecanismo por excelência de apli­
cação prática de princípios jurídicos e a forma de compatibili-
zação de enunciados principiológicos em linha de colisão.
Como já tive a oportunidade de relatar, para o autor de
Teoria da Argumentação Jurídica “ princípios” e “regras” são

343
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

espécies do gênero “ norma” que se distinguem pela qualidade


das suas prescrições. Dessa diferença surgem resultados ime­
diatos no que diz respeito à eficácia de cada uma delas: (a) os
princípios não contêm mandados definitivos, mas tão só prima
facie; do fato de um princípio valer para um caso “ não se infe­
re que o que o princípio exige para este caso valha como resul­
tado definitivo [para todos os casos]: os princípios oferecem
razões que podem ser substituídas por razões opostas” ; os
princípios são aplicados através da ponderação; (b) como as
regras exigem que se faça exatamente o que elas ordenam,
contêm uma determinação que será uma razão definitiva (a não
ser em casos excepcionais, onde é possível uma “redução teleo-
lógica” ou outra situação capaz de fazer surgir uma exceção62);
a modalidade de aplicação prática das regras é a subsunção
[Alexy 2002-b:38],
No momento da aplicação de um dado princípio há uma
maior necessidade (em relação às regras) de se levar em con­
ta os princípios que possam estar atuando em sentido contrá­
rio, pois na maioria das vezes é simplesmente impossível
aplicá-los na mesma medida. A “dimensão de peso” , que os
princípios têm, é variável de acordo com os problemas jurí­
dicos que demandam solução em cada caso particular; e é em
função dessa dimensão que será fixado o âmbito de aplicação
de cada um deles.
Neste contexto, o procedimento de “ponderação” , utili­
zado para fornecer respostas para colisões de princípios jurí­
dicos, corresponde ao princípio da proporcionalidade em sen­
tido estrito, podendo ser enunciado da seguinte maneira:

62. Por isso as regras também têm um caráter prima facie, embora seja
um caráter prima facie menos acentuado que o dos princípios. Como tive
a oportunidade de sustentar [Bustamante 2005-a:Capítulo 4], os princípios
têm uma superabilidade imanente (a possibilidade de afastar sua aplicação
decorre da própria ausência de um componente descritivo de sua hipótese
de incidência), ao passo que as regras têm uma superabilidade excepcional.
Veremos mais adiante (infra, Capítulo 4, n. 4.2.1.1) como pode ser represen­
tado o caráter superável das regras jurídicas.

344
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ Quanto maior é o grau de não-satisfação ou de afetação de


um princípio, tanto maior deverá ser a importância da satisfa­
ção do outro” .
Uma ponderação orienta-se por três planos distintos, a
saber: (a) a intensidade da intervenção (de cada princípio); (2)
os fundamentos justificadores (da relação de prioridade condi­
cionada que em cada caso será estabelecida); e (3) as pesagens
(de cada um dos princípios em colisão no caso concreto) [Ale-
xy 2002-b].
Ao cabo de cada procedimento de ponderação - e como
resultado dele - chega-se a uma regra (aplicável ao caso con­
creto) que fixa uma diretiva para os casos futuros e, acima de
tudo, permite a subsunção que viabilizará encontrar a solução
do caso em questão. Tal regra pode ser representada pelo se­
guinte esquema gráfico: (Pj P P2) C.63

(A.2-quater) Regras jurídicas e subsunção: ao contrário


dos princípios, que são incapazes de, por si mesmos, gerar
razões definitivas de decidir, as regras contêm determinações
sobre o que deve ser feito, vale dizer, dispõem sobre quais os
comportamentos que devem ser adotados em função delas. Daí
a conclusão de que elas se aplicam por meio da subsunção, e
não da ponderação com outras normas de igual estrutura.
Porém, o emprego da palavra “subsunção” às vezes cau­
sa certa resistência a esta teoria, haja vista que a palavra já foi,
reiteradamente, entendida com o um simples processo lógico-
formal de enquadramento de uma premissa fática em uma
premissa normativa, para fins de obtenção de uma conclusão
acerca do que é, ou não, devido juridicamente. Alguns juristas
de hoje a evitam por discordarem de uma metodologia jurídica
formalista segundo a qual a atividade mental de qualificação
de condutas e fatos na hipótese de incidência das normas

63. Ou seja: “Sempre que estiver presente a condição C, o princípio Pt pre­


valecerá sobre P ”.
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

jurídicas seria um procedimento puramente lógico. Com efei­


to, não se pode duvidar de que uma supervalorização da di­
mensão analítica da ciência do Direito pode produzir consequên­
cias nefastas para a prática jurídica, V °is apresenta notável
tendência a encobrir valorações do intérprete sob a carapuça
de falsas deduções formais. No entanto, Alexy não utiliza a
expressão “subsunção” na acepção do formalismo jurídico, de
modo que, uma vez compreendido o sentido por ele atribuído
ao mecanismo normativo-aplicativo da subsunção, não há
problemas em se aceitar a teoria do professor alemão.
O procedimento denominado “ subsunção” pode (e isso
é essencial para afastar as objeções mencionadas logo atrás)
ser entendido num sentido mais amplo, partindo-se do caráter
axiológico e teleológico da ordem jurídica. Se, de um lado, a
ciência do Direito está adstrita às leis da lógica, de outro, o
respeito a elas não constitui condição suficiente para um pen­
samento jurídico correto [Canaris 1996:32]. A subsunção, ato
que aplica regras jurídicas a partir da verificação dos fatos
compreendidos pelo problema jurídico e da sua correspondên­
cia com a hipótese de incidência de uma regra jurídica que a
abarque, “não é, de modo algum, apenas do tipo lógico-formal,
antes surgindo, numa parte essencial, ainda que frequente­
mente não explícita, numa ordenação valorativa” [idem:34].
Esta é, a propósito, a exata compreensão de Alexy acerca
do tema, tendo em vista que a norma não é, no mais das vezes,
entendida no sentido literal do enunciado normativo que a
origina. A denominada subsunção não significa que a constru­
ção da decisão consiste unicamente em uma premissa maior
(a norma), uma premissa menor (a descrição dos fatos) e uma
conclusão (o julgamento). Como demonstram Alexy e Dreier
[1991:104], uma construção puramente dedutiva de significado
para uma norma jurídica qualquer só seria possível se não
houvesse controvérsia, entre os sujeitos compreendidos pela
relação jurídica, acerca de cada uma das seguintes indagações:
“ (1) Quais normas deverão ser aplicadas? (2) Como elas devem
ser interpretadas? (3) Ao redor de quais fatos a decisão jurídica

346
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

gira” ? Como se nota, há, nesse procedimento, espaço para


constantes ponderações, as quais “ são integradas num esque­
ma dedutivo” , sendo que o juiz só subsume os fatos numa
norma depois de superados os problemas interpretativos sus­
citados por ela. A subsunção deve ser entendida num sentido
mais amplo que o usual, e creio que Alexy assim o faz.

(A.2-quinquies) O diferente grau de objetivação das regras


e dos princípios jurídicos: a existência de normas-princípio, tal
como definidas na teoria dos direitos fundamentais de Alexy,
é tanto uma questão analítica - Qual é a forma como são pre­
vistas as consequências jurídicas da norma N? - como também
uma questão empírica - A norma N contém a descrição dos
comportamentos necessários para conduzir à consequência
jurídica C? -, que devem ser respondidas com um olhar volta­
do para o ordenamento jurídico.
Antes de prosseguir, devemos enfrentar, porém, a seguin­
te questão: por que algumas normas podem ser caracterizadas
como princípios jurídicos?
Para oferecer alguma resposta a esta pergunta, tom e­
mos um dispositivo da Constituição brasileira de 1988, que
fixa diretivas sobre a política agrícola a ser adotada: “Art.
187. A política agrícola será planejada e executada na forma
da lei, com a participação efetiva do setor de produção, en­
volvendo produtores e trabalhadores rurais, bem com o dos
setores de comercialização, de armazenamento e de trans­
portes, levando em conta, especialmente: I - os instrumentos
creditícios e fiscais; II - os preços compatíveis com os custos
de produção e a garantia de comercialização; III - o incenti­
vo à pesquisa e à tecnologia; IV - a assistência técnica e ex­
tensão rural; V - o seguro agrícola; VI - o cooperativismo;
VII - a eletrificação rural e irrigação; VIII - a habitação para
o trabalhador rural” .
Observe-se que o dispositivo constitucional reproduzido
estabelece o dever de implementar uma série de políticas

347
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

públicas, mas não há uma palavra sequer sobre qual será o


conteúdo dessas políticas, ou seja, não há a determinação dos
comportamentos que devem ser adotados para atingir os esta­
dos ideais de coisas desejado ] o constituinte.
Estabelece-se, tanto par legislador quanto para a Ad­
ministração, o dever de implementar uma política agrícola que
(1) permita acesso do produtor rural ao crédito, (2) favoreça
uma equação razoável entre os preços e os custos de produção,
(3) desenvolva tecnologia de produção rural etc.
O texto não permite inferir diretamente uma norma (do
tipo regra) contendo uma prescrição comportamental concre­
ta (com a determinação da conduta que deve ser adotada, seja
pela Administração Pública, seja pelo particular, para alcançar
esses objetivos), mas é suficiente para que se possa chegar a
uma norma que estabelece o dever de atingir um estado ideal
de coisas, na máxima medida possível.
Assim, só há duas alternativas de interpretação do dis­
positivo constitucional acima transcrito: (1) interpretá-lo como
veiculando uma série de princípios jurídicos que devem ser
realizados na máxima medida; (2) interpretá-lo como simples
disposição que estabelece “normas programáticas” , despidas
de força jurídica ou aplicabilidade. Foi esse último caminho,
aliás, que o STF adotou ao decidir que “ o art. 187 da CF é nor­
ma programática na medida em que prevê especificações em
lei ordinária” .64
Creio que a primeira opção (extrair normas-princípio do
dispositivo citado) teria sido mais correta, pois garantiria um
mínimo de vinculatividade para o preceito constitucional em
questão, ainda que, em cada caso concreto de aplicação, o ad­
ministrador tivesse que ponderar cada um dos princípios que
eventualmente entrasse em colisão, para determinar qual p o­
lítica deve ser adotada.

64. Brasil, STF, Tribunal Pleno, ADI/MC 1.330, rel. Min. Francisco Rezek,
DJU 20.9.2002, vol. 2.086, p. 142.

348
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Como se percebe, os vários princípios jurídicos trazidos


no art. 187 da CF brasileira situam-se em um nível intermediá­
rio entre a completa falta de coerção dos preceitos morais e o
caráter decisivo e abarcante das regras jurídicas, que determi­
nam não apenas um estado de coisas, mas a conduta concreta
a ser adotada pelos destinatários da norma.
Pode-se, para esclarecer ainda mais o significado norma­
tivo dos princípios jurídicos, traçar um paralelo entre Direito
e Moral a partir de algumas ideias de Jürgen Habermas. Com
efeito, para este autor há uma relação de complementaridade
entre Direito e Moral, sendo que os dois sistemas normativos
tratam de problemas semelhantes, mas de forma distinta.65 A
diferença fundamental entre Direito e Moral está, portanto, no
fato de as normas jurídicas passarem por um processo de ob-
jetivação e institucionalização.
Ocorre que essa institucionalização/objetivação, ao con­
trário do que o próprio Habermas imagina,66pode ser também
realizada em diferentes intensidades, o que implica que a efi­
cácia ou aplicabilidade das normas jurídicas pode admitir graus
diferentes. Os princípios inscritos no art. 187 da CF brasileira,
são, portanto, normas nas quais está institucionalizada a obri­
gação de realizar determinado fim ou valor (a obrigação de se
atingir um estado ideal de coisas), mas não estão ainda deter­
minados os meios para tanto, sendo necessária uma pondera­
ção para que esses meios possam ser estabelecidos.
A institucionalização/objetivação parcial de uma norma
(faltando a determinação da conduta devida para seu cumpri­
mento) é, portanto, uma boa razão pela qual devemos interpretar
um enunciado normativo como veiculando uma norma-princípio
e, assim, ponderá-la com outras de caráter idêntico no momento
da sua aplicação prática.

65. V., supra, Capítulo 2, n. 2.2.3.I.


66. V. Habermas [2005-a:263-308], onde Habermas critica a teoria dos prin­
cípios de Alexy.

349
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

É certo, contudo, que quando a Constituição for clara o


suficiente para permitir que o intérprete chegue a regras jurí­
dicas concretas, nos casos em que os enunciados normativos
disponham não apenas acerca de um estado ideal de coisas ou
um direito prima facie (que deva ser ponderado com outros de
igual categoria, para fins de realização ótima de cada um deles,
através do estabelecimento de relações de prioridade condi­
cionada entre eles nos casos concretos), mas contenham de­
terminações acerca de uma conduta específica, deve ser esta­
belecida (a partir do texto objeto da interpretação) uma norma
do tipo regra. Mas nem sempre será possível fazê-lo. Quando
for este o caso, melhor caracterizar uma norma como princípio,
deixando para o momento de sua aplicação a decisão acerca
das suas consequências concretas, obtidas por meio da ponde­
ração, que rebaixá-la à condição de norma programática.
Em suma: há normas-princípio não porque queremos,
mas porque essas normas não passaram por um processo de
objetivação forte o suficiente para que exista uma determinação
comportamental concreta, com o acontece nas regras.

(A.2-sexies) Princípios e ratio decidendi: as normas-


princípio, apesar de terem um grau inferior de objetivação, são
importantes, porque têm elevado conteúdo moral e potencial
de irradiação sobre o ordenamento jurídico que produz coe­
rência e racionalidade para a dogmática jurídica. Os juizes
muitas vezes referem-se a esses princípios na justificação de
suas decisões, e muitas vezes constroem e concretizam princí­
pios que antes eram vistos apenas como normas implícitas do
sistema jurídico. No entanto, essa objetivação limitada faz com
que os princípios sejam normas cuja superabilidade (defeasi-
bility) não é vista como excepcional, mas imanente à sua própria
aplicação. A definição de princípios com o mandados de otimi­
zação, como objetos ponderáveis no caso concreto, faz com que
as normas extraídas de precedentes que possam ser definidas
como “princípios” tenham vinculatividade menor que aquelas
que têm uma estrutura do tipo “ regra” .

350
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Aliás, o que justifica a remissão a um precedente judicial


é justamente a relativa determinação das normas adscritas que
são paulatinamente produzidas pela jurisprudência. Raramen­
te se verá, portanto, a hipótese de o aplicador do Direito se
referir apenas a um princípio que tenha sido enunciado na
argumentação que decide um caso anterior, pois em todo caso
judicial está presente ao menos uma norma universal do tipo
“regra” que conjugue os fatos do caso com determinado tipo
de consequência normativa. A técnica do precedente judicial
só é importante porque através dela é possível reduzir o grau
de indeterminação que é característico dos princípios jurídicos,
de sorte que normalmente a ratio decidendi deve se revestir de
um caráter de “ regra” .
Quando analisei a noção de ratio decidendi e propus um
modelo silogístico para identificá-la, estabeleci um parâmetro
útil apenas para a identificação de normas do tipo “regra” .67
Apenas estas é que têm uma estrutura hipotético-condicional
e podem, portanto, ser identificadas como premissas maiores
em um silogismo normativo. A possibilidade de se extrair novos
princípios a partir de precedentes judiciais demonstra que o
modelo que propus para buscar a ratio decidendi é incompleto.
Mas esse defeito não deve ser considerado grave a ponto de
comprometer sua utilidade, pois (1) de um lado, normalmente
os princípios vêm enunciados de forma clara nas decisões ju­
diciais, e sua identificação não é tão problemática quanto a das
regras adscritas e (2) o peso institucional desses princípios
“jurisprudenciais” é tão baixo que o caso reportado dificilmen­
te será determinante para seu reconhecimento: esses princípios
provavelmente constituirão parâmetros para casos futuros não
em função do precedente judicial, mas da própria correção
substancial do seu conteúdo.
A técnica do precedente judicial encontra justificação
justamente na capacidade de objetivação e universalização do

67. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.2.

351
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Direito que ela detém. No caso específico das ponderações de


princípios, a principal função do precedente é estabilizar as
colisões que se verificam entre estes. Nesse sentido, argumen­
ta Alexy [2003-c:316]: “ O texto constitucional não ajuda muito
na maioria dos casos de balanceamento, e o mesmo se aplica
ao intento original daqueles que fizeram a Constituição, porque
na maioria dos casos de balanceamento eles queriam ambos;
o direito de um lado e o direito oposto ou o princípio oposto do
outro lado. Ou seja, os cânones tradicionais ou regras de in­
terpretação não auxiliam muito na justificação externa do
contexto do balanceamento, mas o que é muito importante
na lei constitucional é o uso do precedente. Se houver uma
Constituição nova, então, a corte constitucional, quando pro-
latar a sua primeira decisão sobre direitos fundamentais, não
poderá apoiá-la em quase nada. Mas, quanto mais antiga for
uma Constituição, haverá mais material, o qual consiste nas
normas de decisão concretas, produzidas de acordo com a lei
de colisão. Isto pode ser usado com o uma base para o argu­
mento constitucional” .
Por isso, apesar de não estar excluída a possibilidade de
novos princípios virem a ser justificados através de preceden­
tes, essa não é a regra geral. O precedente normalmente irá
ser útil justamente para objetivar os princípios jurídicos e
estabelecer relações de prioridade entre eles, e nesse caso o
modelo de identificação da ratio decidendi que eu propus é
de grande utilidade. Não há problema em aceitarmos o mé­
todo silogístico de identificação da ratio decidendi com a
ressalva da hipótese excepcional de esta ser um princípio, não
uma regra.
Esse último caso - sobre ser excepcional - é aquele em
que o precedente tem a menor força na argumentação jurídica,
seja por razões institucionais ou estruturais. Numa palavra, o
maior grau de objetivação das normas jurídicas do tipo regra
faz com que a vinculatividade das normas extraídas de prece­
dentes judiciais varie não apenas em função da sua generali­
dade, mas também de sua estrutura stricto sensu. Portanto,

352
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

vale a seguinte diretiva: normas jurisprudenciais adscritas do


tipo “regra” têm um peso ou vinculatividade maior que as do
tipo “princípio” .

(B) Fatores estruturais das teorias elaboradas pelos juizes


na fundamentação de suas decisões - (B.l) A saturação das
premissas normativas: a força do precedente judicial depende,
em larga escala, da qualidade da argumentação desenvolvida
pelo juiz na justificação de sua decisão. Uma das diretivas de
argumentação mais interessantes desenvolvidas pela teoria da
argumentação jurídica de Alexy, por exemplo, é o denominado
princípio da saturação: “ Um argumento de uma determinada
forma só está completo se contém todas as premissas perten­
centes a essa forma. A isto se denomina de requisito da satu­
ração” [Alexy 1997-a:236].
“ Saturação” significa, numa palavra, plena afirmação das
razões que justificam determinada decisão jurídica. A teoria
que justifica uma certa solução que se dá a um problema jurí­
dico ou a determinada norma jurídica concreta deve ser uma
teoria o mais completa possível, e todas as premissas interme­
diárias necessárias para permitir a dedução de uma consequên­
cia jurídica particular a partir de uma norma jurídica geral
devem ser especificadas. Numa palavra, a racionalidade da
argumentação jurídica depende de se especificar, tanto quan­
to possível, cada um dos argumentos empregados na justifica­
ção jurídica [Ávila 2001].
Todos os degraus em uma cadeia de argumentação,
todas as transformações68 operadas pelo juiz no raciocínio
em que vão surgindo regras adscritas que eventualmente
podem constituir precedentes para casos futuros, devem
estar visíveis e justificados da forma mais racional possível,
seja por meio de argumentos práticos gerais ou argumentos
especificamente jurídicos.

68. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.2.

353
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Nesse mesmo sentido, quanto mais o juiz tenha imper­


meabilizado sua decisão contra a crítica - examinando e refu­
tando argumentos contrários que eventualmente poderiam ser
utilizáveis na tentativa de se afastar da norma adscrita que ele
concretizou em sua decisão -, mais justificada estará a norma
jurisprudencial dela derivada. Quanto mais discursivamente
tematizadas tenham sido as premissas intermediárias, mais
legitimada estará essa decisão.
Como a própria saturação é sempre algo que pode acon­
tecer em maior ou menor intensidade, podemos propor o se­
guinte princípio para a argumentação por precedentes: quan­
to mais saturadas estejam as premissas utilizadas na justificação
de uma decisão - isto é, quanto mais explicitadas e fundamen­
tadas estejam as transformações necessárias para justificar
dedutivamente essa decisão maior peso ou força deverá ser
atribuído à norma adscrita que puder ser extraída de referido
ato jurisdicional.

(B.2) Coerência da justificação apresentada pelo juiz


na decisão a ser tomada como precedente judicial: um ele­
mento crucial para a racionalidade de uma teòria é sua coe­
rência. No caso da justificação de uma decisão judicial, a coe­
rência pode ser analisada de diferentes ângulos. Primeiramen­
te, a teoria construída na justificação da decisão há de ser in­
ternamente coerente, ou seja, as regras, conceitos, fatos, afir­
mações, interpretações etc. que constam na fundamentação da
sentença devem “ fazer sentido em conjunto” (make sense),
expressando uma ordem de valores ou princípios comuns
[MacCormick 1978-a]. Em segundo lugar, a teoria ou justifica­
ção deve ser coerente com o ordenamento jurídico como um
todo, assim como com os princípios fundamentais cuja função
é ordenar harmonicamente o Direito. Em terceiro lugar, as
normas adscritas a partir dessa justificação devem ser também
coerentes tanto com o Direito positivo em geral quanto com as
práticas sociais vigentes no espaço físico em que vigora esse
direito positivo. Em quarto lugar, deve a fundamentação da

354
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

decisão estar coerente com as evoluções e transformações por


que passam o Direito e suas normas ao longo do tempo (coe­
rência diacrônica). E, finalmente, em quinto lugar, a conexão
necessária entre Direito e Moral faz com que as normas ads­
critas dos precedentes devam estar, na máxima medida, coe­
rentes com a própria moralidade crítica.
Sobre essas exigências provavelmente é fácil obter um
consenso. Mais complicado, no entanto, é definir a própria
noção de “coerência” , estabelecer seus critérios ou parâmetros
que possam orientar a prática jurídica.
Fixar certas diretivas para o juízo de coerência é extre­
mamente importante para se evitar a crítica - que Alexy chegou
a esboçar a Günther e Habermas - de que as noções de “ coe­
rência” e “adequação” são conceitos vazios69que, em si mesmos,
não estabelecem quais fatores devem ser considerados e de
que maneira.
O postulado da coerência está na raiz da própria noção
de sistema. Sem ele é impossível sequer uma ordenação siste­
mática do raciocínio jurídico, ou seja, ele é “ condição formal
de conhecimento do próprio sistema jurídico” [Ávila 2001:19].
Como salientam Alexy e Peczenik [1990:145-146], a ideia de
justificação exige duas coisas: “a criação de sistema de enun­
ciados tão coerente quanto seja possível” e “um procedimento
de argumentação tão racional quanto seja possível” . Qualquer
decisão ou medida jurídica deve passar por um teste de coerên­
cia, que, em última análise, envolve a consideração sistemáti­
ca, segundo certos critérios, dos princípios fundamentais do
sistema jurídico.
Deve-se observar, de início, que a coerência tem caráter
formal, pois “o critério de coerência nada diz acerca do conteú­
do dos sistemas normativos” [Alexy/Peczenik 1990:145]. O
postulado da coerência exige que um sistema de normas este­
ja orientado segundo princípios e valores comuns, de modo

69. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.4.3.

355
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que se estabeleça uma ordenação entre as partes que compõem


o todo.70 Como afirma MaeCormick [1978-a:107], “na medida
em que as regras são [consideradas como] ilustrações de certos
princípios mais gerais, o sistema jurídico passa a adquirir um
certo grau de coerência” .
Neste sentido, a coerência exige mais que a simples
consistência ou compatibilidade lógica entre as normas que
com põem o direito positivo. E sempre possível imaginar um
conjunto heterogêneo de normas que não entrem em contra­
dição mas que, reunidas, não se direcionem para qualquer
valor ou orientação política inteligível [MacCormick 1978-
a:107]. E o que acontece no conhecido exemplo de MacCor­
mick acerca dos diferentes limites de velocidade para auto­
móveis vermelhos ou amarelos: “Não parece haver aí qualquer
valor ou princípio racional suscetível de explicar ou de justi­
ficar a imposição de um regime distinto a situações funda­
mentalmente análogas do ponto de vista da segurança no
tráfico” . As numerosas normas (em especial regras) devem
ser consideradas com o parte de um sistema que tem um
“ sentido global” conferido pelos valores e princípios gerais
que justificam as regras mais específicas [idem:152 e ss.].
Outro ponto a ser observado é que a coerência pode ser atin­
gida em diferentes graus ou intensidades. Há diferentes níveis
de coerência para qualquer teoria ou interpretação, de m odo
que no raciocínio prático-jurídico se fazem necessárias cons­
tantes ponderações entre as diferentes alternativas que podem,

70. A coerência deve ser entendida no sentido preconizado por Neil


MacCormick, ou seja, como um standard neutro, formal. Nesse sentido,
invoco o comentário de Schiavello [2001:237] acerca do pensamento de
MacCormick: “A coerência não diz respeito à ‘bondade’ dos princípios
com os quais as leis e as decisões dos juizes devem se conformar. Nou­
tras palavras, a coerência é um critério válido de justificação seja em um
sistema jurídico moralmente mau ou em um sistema bem-fundado. Em
conclusão, do ponto de vista do standard de coerência não importa se o
princípio geral de um sistema jurídico é a ‘igualdade de todos os cidadãos’
ou a ‘superioridade dos arianos’. A coerência não é um standard qualifi­
cado para estimar bondade de valores” .

356
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

no caso concreto, ser mais ou menos coerentes. Cabem, a seguir,


algumas palavras sobre os critérios de coerência.

(B.2-bis) Critérios de coerên cia segundo A lex y e


Peczenik:n especialmente interessantes revelam-se as investi­
gações de Alexy e Peczenik acerca do conceito de coerência.
Para eles, “quanto mais os enunciados pertencentes a uma
dada teoria se aproximarem de uma ‘estrutura de sustentação/
fundamentação perfeita’ [perfect supportive structure], mais
coerente será esta teoria” [Alexy/Peczenik 1990:131].

Breves esclarecimentos são necessários para entender o


conceito acima. Diz-se que um enunciado p 1sustenta (support)
um enunciado p2 se, e somente se, p1 pertence a um conjunto
de premissas, S, do qual p2se segue logicamente [Alexy/Pecze­
nik 1990:132]. De outro lado, uma “estrutura de sustentação”
(supportive structure) significa a “ classe de propriedades for­
mais de relações de sustentação entre enunciados” pertencen­
tes a uma teoria [íbidem].
Concretamente, o grau de coerência de uma teoria (ou,
com o é relevante para o escopo deste trabalho, de uma decisão
jurídica) pode ser avaliado a partir de 10 critérios ceteris pari-
bus, os quais, juntos, compõem uma estrutura de argumentação
extremamente complexa. Fica claro, portanto, que a coerência
realmente pode ser vista como um postulado normativo apli­
cativo ou um conjunto de metanormas úteis para a aplicação
do Direito.72 Há, contudo, um importante detalhe: trata-se de

71. A maior parte do texto deste item (B.2-bis) corresponde à descrição


dos critérios de coerência que desenvolvi em Bustamante [2005-a:Capítulo
5-Seção 5].
72. O que chamo de “metanormas” corresponde às regras ou diretivas de ar­
gumentação que podem ser utilizadas como parâmetros metodológicos para a
aplicação do Direito e a justificação das decisões jurídicas. São, na linguagem
de Alexy, “normas para a fundamentação de normas” [Alexy 1997-a:178]. A
questão terminológica acerca das metanormas é um problema secundário
em relação ao da função e da aplicabilidade delas. A nomenclatura costuma

357
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

postulado cujas máximas parciais não podem ser formuladas


como regras, mas como princípios que precisam ser otimizados
entre si [Alexy/Peczenik 1990:143].

São circunstâncias que contribuem para a coerência as


seguintes: (1) o maior número possível de enunciados susten­
tados (supported) que pertençam a uma teoria; (2) a cadeia de
razões o mais extensa possível pertencente a essa teoria; (3) o
maior número possível de enunciados rigorosamente susten­
tados (strongly supported) pertencentes à teoria; (4) o maior
número possível de cadeias de sustentação pertencentes à
teoria; (5) o maior número possível de relações de preferência
entre os princípios que fazem parte da teoria; (6) o maior núme­
ro e a maior complexidade possíveis de relações de sustentação

variar bastante. De um lado, Humberto Ávila [2009:123 e ss.] as denomina


de postulados, enquanto Ricardo Lobo Torres [2000-a:647] prefere chamá-las
de princípios de legitimação. De outro lado, é comum, também, chamá-las
simplesmente de regras de segundo nível. Como lembra Guastini [1996-c:79],
“denominam-se ‘metanormas’, ‘normas secundárias’, ou ‘normas de segundo
grau’, todas as normas que fazem referência a outras normas” (perspectiva,
essa, que inclui, além das regras de argumentação aqui tratadas, normas de
direito positivo que delimitam o âmbito de aplicação, derrogam ou fazem
“reenvios” a outras). A expressão “metanorma” apresenta vantagens porque
é possível também classificar as normas que se situam no nível metanorma-
tivo em regras e princípios. As máximas parciais do denominado “princípio
da proporcionalidade” são, por exemplo, típicas regras, haja vista que não
podem ser ponderadas com princípios opostos [Alexy 1997-b:112-nota 84;
Silva 2002:24-27], enquanto as metanormas estabelecidas por Alexy e Pecze-
nik [1990] para garantir a coerência do ordenamento jurídico são autênticos
princípios jurídicos (se nos mantivermos fiéis à classificação do tipo lógico-
estrutural). Convém fazer, contudo, uma distinção entre as metanormas em
si mesmas consideradas e as estruturas complexas de raciocínio jurídico que
são condições de possibilidade do conhecimento jurídico. Tais estruturas
têm, no mais das vezes, seu sentido delimitado por várias metanormas mais
concretas e específicas. Às estruturas complexas denomino “postulados”,
seguindo a orientação de Humberto Ávila. O dever de proporcionalidade,
por exemplo, pode ser compreendido como um postulado cujo conteúdo é
delimitado por três metanormas que podem ser classificadas como regras:
(a) exigência de adequação, (b) exigência de necessidade e (c) exigência de
proporcionalidade em sentido estrito.

358
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

recíproca (reciprocai supportive relations) entre os vários enun­


ciados pertencentes à teoria; (7) o maior número possível de
enunciados universais pertencentes à teoria; o maior número
possível de conceitos gerais pertencentes à teoria; o maior
número possível de semelhanças entre os conceitos usados
nela; (8) o maior número possível de interconexões entre várias
teorias; (9) o maior número possível de casos cobertos pela
teoria; e (10) o maior número possível de esferas da vida cober­
tas pela teoria.
A medida da coerência de uma teoria vai depender do
grau de cumprimento dos critérios mencionados logo acima.
A seguir resumirei o que cada um desses critérios - que também
podem ser entendidos como princípios - significa. Os seis pri­
meiros são critérios analíticos, relacionados às propriedades
da estrutura de sustentação constituída pela teoria; o sétimo e
o oitavo dizem respeito às propriedades dos conceitos aplicados
pela teoria; e, finalmente, o nono e o décimo referem-se à ex­
tensão da teoria.

(i) O número de relações de sustentação: o primeiro


critério de coerência é do número de enunciados sustentados/
fundamentados em uma teoria. Quanto mais enunciados fun­
damentados, prima fa cie mais coerente será a teoria. Vale,
portanto, o seguinte princípio [Alexy/Peczenik 1990:133]: “ (Pcl)
Para uma teoria coerente, devem-se justificar tantos enuncia­
dos quantos seja possível” .
(ii) A extensão das cadeias de fundamentação: a coe­
rência depende também da extensão da cadeia de razões que
fundamentam uma teoria. Normalmente um enunciado p1
sustenta outro, p 2; este, por sua vez, sustenta p3, e assim em
diante. Quanto mais longa for a cadeia de razões, mais com ­
plexa será a estrutura de fundamentação de uma teoria, o que
contribuirá para sua coerência. Em termos principiológicos
[Alexy/Peczenik 1990:133]: “ (Pc2) Quando se justificar um
enunciado, deve-se sustentá-lo com uma cadeia de razões o
mais extensa possível” .

359
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(iii) O critério da “ fundamentação em sentido rigoroso”


(strona suvport): o critério da fundamentação/sustentação rigo­
rosa é um dos mais importantes para a formulação de juízos
de coerência acerca de teorias ou decisões. Até agora utilizamos
a expressão “ sustentar” (“ embasar” , “fundamentar” , support)
em sentido frágil. E possível, todavia, utilizá-la num sentido
mais rigoroso, o qual se apresenta especialmente útil para o
raciocínio jurídico. Para Alexy e Peczenik:
“ O enunciado p1fundamenta rigorosam ente o enunciado
p2se, e somente se, p1pertence a um conjunto de premissas, S,
tendo as seguintes propriedades:”
“ (1) nenhuma dessas premissas é vazia de sentido ou
falsificável;”
“ (2) pelo menos um subconjunto de S tem as seguintes
características:”
“ (a) p2segue logicamente dele (do subconjunto 5);”
“ (b) todos os membros do subconjunto são necessários
para inferir p2 (ou seja, p2 não mais se seguirá logicamente
se alguma premissa pertencente ao subconjunto for rem o­
vida dele);”
“ (3) cada membro de S pertence a, pelo menos, um sub­
conjunto de tal tipo; e”
“ (4) p1 é necessário no seguinte sentido rigoroso: p2 não
se seguirá logicamente de nenhum subconjunto de S ao qual
p1 não pertença” [Alexy/Peczenik 1990:134].
Percebe-se, de plano, que o conceito de “ sustentação
rigorosa” é uma noção formal que apresenta certas dificuldades
iniciais para ser compreendida. Um exemplo utilizado pelos
próprios autores que conceberam esse conceito pode ser útil
para seu melhor entendimento: “Em uma argumentação fun­
dada em fontes escritas de Direito [statutes], o mesmo texto
pode fundamentar diferentes conclusões. Pode-se tanto anali­
sar a validade de um contrato partindo de certo dispositivo do

360
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Código Civil e da interpretação que lhe havia sido dada por


certo precedente judicial, quanto partir para um raciocínio
fundado no mesmo texto, na descrição dos fatos e nos travaux
préparatoires da Assembleia Legislativa. Nos dois casos, a
decisão não se seguirá logicamente sem o texto [dispositivo do
Código Civil] aludido. Conclui-se, por conseguinte, que o texto
sustenta/fundamenta rigorosamente a decisão a ser tomada” .
O grau de coerência de uma teoria vai aumentar sempre
que tivermos não somente fundamentação em sentido frágil,
mas também fundamentação em sentido rigoroso. Chega-se,
assim, ao seguinte princípio de argumentação: “ (Pc3) Devem-
se formular enunciados que fundamentem em sentido rigoro­
so tantos enunciados quanto seja possível” .73
Tal princípio mostra-se útil porque uceteris paribus,
quanto mais enunciados pertencentes a uma teoria forem ri­
gorosamente sustentados por outros enunciados, mais coeren­
te será a teoria” [Alexy/Peczenik 1990:135]. Os enunciados
capazes de fundamentar/sustentar (em sentido rigoroso) vários
outros mostram-se como peças fundamentais de uma teoria:
através deles é possível encontrar um sentido para esta, uma
compreensão ordenada de um dado sistema.
O critério da sustentação rigorosa mostra-se relevante
porque a partir dos enunciados fundamentais de determinado
sistema jurídico é possível compreender melhor o significado
dos enunciados particulares. Isso sé torna especialmente inte­
ressante a partir do momento em que passamos a conceber o
Direito não como um sistema de regras (todas elas como meros

73. Segundo o princípio argumentative (Pc.3), deve-se construir um sistema


teórico partindo de enunciados fundamentais que são capazes de percorrer
todo o sistema, sustentando (supporting) vários outros enunciados (mais par­
ticulares). O princípio democrático, por exemplo, seria um enunciado que,
no caso da Constituição brasileira, produz coerência para o sistema jurídico.
Essa asserção pode ser comprovada partindo das várias normas (princípios e
regras) que são “fundamentadas em sentido forte” por ele (regras de processo
legislativo, regras sobre processo eleitoral, regime dos partidos políticos etc.).

361
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

condicionais hipotéticos), mas um sistema de regras e princí­


pios que têm (ambas as espécies de norma) o traço da supera-
bilidade. Em um tal ordenamento, no qual os princípios cons­
tituem razões para as regras, os primeiros (que fundamentam
várias regras diferentes, cada uma com sua hipótese de inci­
dência) tornam mais coerente o sistema.
A partir do princípio argumentativo Pc3 é possível con­
cluir que, quanto mais princípios atuarem em prol de uma
teseX, fundamentando-a rigorosamente, mais chances de ser
coerente ela terá. Isso tem sérias implicações tanto na inter­
pretação do Direito quanto na elaboração de exceções às
regras. Com efeito, quando uma incidência específica de uma
regra faz com que esta perca contato direto com os princípios
que sustentam (em sentido rigoroso) sua existência, é sinal
de que sua aplicação produzirá incoerência para o sistema
jurídico (pois sem os enunciados que sustentam em sentido
rigoroso uma afirmação A não há nenhuma outra maneira de
justificá-la).

(iv) Conexões entre cadeias de sustentação: a coerência


depende também da conexão de várias cadeias de razões per­
tencentes a uma estrutura de fundamentação. De um lado, uma
cadeia de argumentos pode conduzir a mais de uma conclusão;
de outro, uma conclusão pode derivar de diferentes conjuntos
de premissas. Uma teoria será tanto mais coerente quanto mais
cadeias de razões existirem, nas duas direções. Em vista disso,
valem os seguintes princípios:
“ (Pc4.1) Quando se justificar um enunciado, devem-se
formular premissas fundamentando o maior número de con­
clusões diferentes possível.”
“ (Pc4.2) Quando se justificar um enunciado, devem-se
formular tantos conjuntos independentes de premissas que o
suportem quantos for possível.”
Para os propósitos deste trabalho, que visa à análise da
justificação dada nas decisões judiciais, mostra-se mais relevante

362
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

o princípio Pc4.2: deve-se fundamentar qualquer argumentação


da forma mais exaustiva possível.

(v) Relações de prioridade entre princípios: outro as­


pecto relevante para avaliar a coerência de uma teoria, em
especial de uma teoria acerca de sistemas normativos, é a
existência de relações de prioridade entre os princípios exis­
tentes no sistema. Com efeito, princípios são normas que
exigem que determinado ideal seja realizado na maior medi­
da possível, sendo que muitas vezes eles entram em colisão e
é preciso otimizá-los [Alexy/Peczenik 1990:137]. Como otimi­
zar princípios é uma questão de com o criar coerência entre
eles. A existência de ordens de prioridade prima fa cie entre
princípios jurídicos é um indício de coerência na teoria jurí­
dica proposta. Daí, conclui-se que, “ se a teoria em questão
contém princípios, então, ceteris paribus, quanto maior for o
número de relações de prioridade entre os princípios, mais
coerente será a teoria” [ibidem]. Vale a seguinte diretiva:
“ (Pc5) Quando se estiver usando princípios, que pertençam
a uma teoria, com o premissas que justificam um enunciado,
devem-se formular tantas relações de prioridade entre prin­
cípios quanto forem possíveis” .

(vi) O critério da justificação recíproca: outro critério


estrutural de coerência é a existência de justificação recíproca
entre os diversos enunciados que fázem parte de uma teoria.
Não se exige, aqui, que tenhamos uma mútua justificação pura
e simples, de modo que p1 implica p2 e p2, por sua vez, implica
p1. Tal relação só existirá quando houver equivalência lógica
entre os dois enunciados.
Quando falamos em “justificação recíproca” não pressu­
pomos que cada um dos enunciados implique, sozinho, o outro.
Como critério de coerência, a justificação recíproca contenta-
se com a possibilidade de p1, com a ajuda de outras premissas
adicionais, implicar p2e este, por sua vez, implicar aquele tam­
bém com a ajuda de outras premissas.

363
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

A mútua implicação pode se dar por três ordens de fato­


res: (1) fatores empíricos (v.g., a proteção institucionaLde certos
direitos fundamentais atuando como condição para o princípio
democrático, da mesma forma que este acaba constituindo uma
condição factual para o primeiro); (2) fatores analíticos (v.g., a
relação recíproca do tipo analítico-conceitual entre os direitos
fundamentais e o Estado de Direito ou Rechtsstaat); e (3) fato­
res normativos (mútua dependência, por razões normativas,
entre enunciados que fazem parte de um mesmo ordenamen­
to). Para todos eles vale a ideia de que, “quanto maior o núme­
ro de relações recíprocas entre enunciados, ceteris paribus mais
coerente será a teoria em questão” [Alexy/Peczenik 1990:138-
139]. Vigoram os seguintes princípios:
“ (Pc6) Quando se usar uma teoria para justificar um
enunciado, deve-se compreendê-lo de modo que a teoria:”
“ (Pc6.1) Cubra tantas relações empíricas entre os enun­
ciados quanto seja possível.”
“ (Pc6.2) Cubra tantas relações analíticas entre os enun­
ciados quanto seja possível.”
“(Pc6.3) Cubra tantas relações normativas entre os enun­
ciados quanto seja possível.”

(vii) Critérios relativos aos conceitos empregados na


teoria: os critérios e princípios referidos nos itens “ (i)” a “ (vi)”
referem-se às propriedades da “ estrutura de fundamentação”
constituída pela teoria cuja coerência é avaliada. Trata-se de
questões formais, ligadas à relação entre os enunciados qué
fazem parte da teoria. Neste item e no próximo há uma mu­
dança substancial de enfoque. Aqui, tratamos de propriedades
dos próprios conceitos (e enunciados) aplicados pela teoria. Em
linhas gerais, vale a ideia de MacCormick segundo a qual a
coerência de um sistema depende da ordenação de suas partes
segundo os mesmos valores e princípios gerais.
Acata-se a ideia de que uma teoria será coerente na m e­
dida em que nela estiverem presentes: (1) conceitos universais

364
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(que designam todas as coisas pertencentes a determinada


classe ou categoria); (2) conceitos gerais; e (3) conceitos seme­
lhantes ou 'parecidos.
Ceteres paribus, quanto mais enunciados universais (sem
nomes individuais) uma teoria usa, quanto maior o número de
conceitos gerais empregados por ela e, quanto mais semelhan­
ças se verifiquem entre os conceitos empregados, mais coeren­
te será dita teoria. Daí, seguem os seguintes princípios:
“ (Pc7.1) Quando se usar uma teoria para justificar um
enunciado, deve-se expressá-la em tantos enunciados univer­
sais quantos seja possível.”
“ (Pc7.2) Quando se usar uma teoria para justificar um
enunciado, deve-se expressá-la em tantos conceitos gerais
quantos seja possível.”
“ (Pc7.3) Quando se usar uma teoria para justificar um
enunciado, deve-se fazer uma listagem o mais completa pos­
sível das semelhanças entre os conceitos utilizados pela teoria.”

(viii) Interconexão entre conceitos: a interconexão entre


os conceitos empregados em uma teoria também pode ser vis­
ta como um critério de coerência. Podemos citar dois exemplos:
a similitude de estrutura entre a Lógica Modal (que lida com
os conceitos de “necessidade” e “possibilidade” ) e a Lógica
Deôntica (que lida com os conceitos de “ obrigação” e “ permis­
são” ) permite que se conclua que há coerência entre as duas,
fato que foi relevante para a formulação das ideias de von Wri-
ght [cf. Alexy/Peczenik 1990:141]. De outro lado, certas ferra­
mentas conceituais da economia, como os ótimos de Pareto,
podem ser aplicadas ao raciocínio com normas jurídicas, como
se dá na teoria de Alexy acerca da otimização de princípios.
A ideia, aqui, é de que “ceteris paribus, quanto mais con­
ceitos uma dada teoria, T1, tiver em comum com outra teoria,
T2, mais coerentes essas teorias serão uma com a outra” . Daí
segue que: “ (Pc8) Quando se usar uma teoria para justificar

365
THOMAS DA KOSA DE BUSTAMANTE

um enunciado, deve-se expressar a teoria em tantos conceitos


pertencentes a outras teorias quantos for possível” .

(ix) Número de casos individuais: em princípio, quanto


maior o número de casos cobertos por uma teoria, mais coeren­
te ela será. Esse critério é um corolário do critério “ (vii)” , o qual
exige o máximo de generalidade possível na formulação dos
enunciados que integram uma teoria.

Vigora, portanto, o seguinte princípio: “ (Pc9) Quando se


usar uma teoria para justificar um enunciado, deve-se formu-
lá-la de modo que a teoria cubra o maior número possível de
casos individuais” .

(x) Diversidade das esferas da vida: finalmente, e tam­


bém quanto ao raio de extensão da teoria, pode-se dizer que,
ceteris paribus, quanto mais esferas da vida forem cobertas
pela teoria, mais coerente será ela. Formula-se, então, o seguin­
te princípio: “ (PclO) Quando se usar uma teoria para justificar
um enunciado, deve-se formulá-la de modo que a teoria cubra
o maior número possível de esferas da vida” .

(B.2-ter) Relação entre os critérios e princípios da coe­


rência: os critérios e princípios expostos acima evidentemente
não esgotam a ideia de coerência. Trata-se tão somente de uma
formalização destinada a reduzir a margem de subjetividade
do intérprete e a permitir a definição de um procedimento, um
itinerário a ser seguido para a formação de juízos acerca da
coerência de algo. Os princípios acima citados aparecem como
metanormas que definem o conteúdo do postulado da coerên­
cia. Ontologicamente, eles também estão compreendidos no
que Alexy chama de “regras da razão prática” , porém com uma
especificidade: são metanormas do tipo princípio, não poden­
do ser sempre cumpridos na mesma medida e entrando em
colisão a quase todo momento. Ao aplicar o postulado da coe­
rência o jurista deve ter consciência de que, também aqui, terá
que realizar certas ponderações, embora ponderações de

366
K

TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

normas-princípio que se situam no nível da argumentação


jurídica (o nível metodológico), e não no nível objeto da inter­
pretação/aplicação.
O postulado da coerência é uma ferramenta metodológi­
ca extremamente fecunda para a aplicação do Direito, e em
especial para aferir a aceitabilidade racional de uma decisão
judicial, da qual depende, naturalmente, a força ou peso dessa
decisão enquanto precedente judicial.
Pela via do postulado da coerência, cujo cumprimento
pode ser “ medido” a partir de uma análise ponderativa dos 10
princípios que integram sua estrutura formal, permite-se uma
espécie de equilíbrio reflexivo - no sentido de John Rawls
[1997:23] - entre as normas (princípios e regras), conceitos e
ideias compreendidos em um sistema jurídico.
É possível, nos juízos de valor controlados por conjuntos
de metanormas com o a razoabilidade e a coerência, alcançar
o equilíbrio reflexivo entre nossas intuições morais e aquelas
normas e valores iniciais que nos foram dados pelo sistema
jurídico. Como ensina Rawls [1997:23], por meio de “ avanços
e recuos”, é possível combinar os princípios que nos são pas­
sados (no nosso caso, fornecidos pela Constituição em sentido
jurídico) e nossas convicções acerca do justo. Esse estado de
coisas é que compõe o equilíbrio reflexivo: “ Trata-se de um
equilíbrio porque finalmente nossos princípios e opiniões coin­
cidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios
nossos julgamentos se conformam e conhecemos quais as pre­
missas das quais derivam” .
A coerência permite, como salienta Peczenik [1999:663], a
formulação de diretivas racionais para a análise da correqão de
normas e valorações (fortalecendo o argumento do cognitivismo
ético). Funciona, em última análise, como um interessante cri­
tério de verdade para as alternativas de decisão jurídica [ibidem].
Ceteris paribus, quanto mais coerente for a justificação
dada às normas adscritas a que se pretende atribuir força de
precedente, maior deverá ser seu peso.

367
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

3.3.2.33 Correção substancial da decisão-paradigma

As teorias positivistas do precedente judicial negligen­


ciaram por completo uma razão que hoje é vista como extre­
mamente importante para se seguir um do Direito não é uma
teoria jurídica digna de credibilidade.
No entanto, não é qualquer precedente que merece ser
repetido em casos futuros. O aplicador do Direito, ao superar
o Positivismo Jurídico e seu fetiche de que a auctoritas de um
ato jurídico de produção ou reconhecimento do Direito cons­
titui o único elemento definidor e a única fonte do Direito, deve
ter em mente que o que justifica a regra do stare decisis - o
próprio dever de levar em consideração os precedentes judiciais
- é a necessidade de racionalizar o Direito e permitir sua apli­
cação de forma substancialmente correta.
A partir do momento em que se reconhece a tensão entre
facticidade e validade que é imanente ao Direito - a tensão
entre positividade e correção de suas normas -, fica claro que
um precedente injusto ou irracional não merece e nem deve
ser seguido. Se a própria finalidade da técnica do precedente
é racionalizar o Direito e contribuir para a correção dos seus
atos de aplicação, não faz sentido respeitar o precedente por
puro apego à tradição, por mera inércia e incapacidade de uma
reflexão crítica voltada para a revisão de normas adscritas
defeituosas por vício de incorreção.
Mas é possível determinar a incorreção de uma decisão?
Apenas um positivista radical responderia negativamente a
essa interrogação. Tivemos oportunidade de demonstrar que,
por meio de regras de argumentação como o princípio Uweakde
Günther ou as regras que compõem o código da razão prática
de Alexy, é possível formular ao menos um juízo sobre a incor­
reção de determinadas decisões.
Nesse terreno, a teoria dos precedentes que estou a sus­
tentar encontra-se com a teoria da argumentação jurídica e tem
a mesma função desta: a função de dizer “não” a determinado

368
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

universo de soluções injustas, de rejeitar, por irracionais e


antijurídicas, as normas adscritas que não encontrem condições
de aceitabilidade racional à luz das metanormas e diretivas
fornecidas pela razão prática.
Apesar de na maioria das vezes a técnica do precedente
encontrar amparo tanto em razões de autoridade - razões
institucionais - quanto em razões prático-racionais, haverá
sempre a possibilidade de colisão entre esses dois grupos ra­
zões, quando, então, deve o julgador ponderar os argumentos
e razões invocados pelos participantes do discurso jurídico para
justificar um juízo sobre a validade das normas adscritas que
podem ser buscadas nos precedentes judiciais. Ainda que se
possa sustentar uma prioridade prima facie dos argumentos
institucionais no discurso jurídico, seria falso e perigoso derivar
daí que o argumento da correção moral não possa constituir
uma razão para se afastar de uma regra jurisprudencial.

3.3.3 A determinação do peso da ratio decidendi', a pondera­


ção das fontes e dos demais fatores institucionais e
extrainstitucionais que influem sobre o precedente
3.3.3.1 Duas operações básicas no Direito: subsunção e pon­
deração

Como explica Alexy [2003-b:433], há duas “operações


básicas na aplicação do Direito” : subsunção e ponderação. Ti­
vemos oportunidade de demonstrar acima, ao tratar da classi­
ficação estrutural das normas jurídicas, que a primeira opera­
ção básica está associada às “regras” e a última aos “princípios” .74
Agora tentarei provar que, no terreno do precedente judicial,
a subsunção é um modelo adequado para a reconstrução ou
identificação da ratio decidendi (que constitui uma norma
adscrita do tipo “regra”); e a ponderação, para a determinação
do peso dessa ratio decidendi ou norma adscrita.

74. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2, (A.2-bis) a (A.2-quater).

369
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Explica o professor de Kiel que a teoria jurídica produ­


zida até o momento encontrou um desenvolvimento muito
maior na descrição da subsunção que no estudo da ponderação,
mas ambas são igualmente importantes e frequentes na práti­
ca jurídica. Ambas as formas de raciocínio jurídico podem ter
sua estrutura interna elucidada por meio de uma representação
formal. Quando propusemos um modelo silogístico para iden­
tificar a ratio decidendi - definindo esta como qualquer pre­
missa normativa em um silogismo jurídico75 - , estávamos
naturalmente pressupondo a possibilidade de reconstrução
racional do processo de subsunção.
Ao esquema que utilizamos para reconstruir a operação
de subsunção Alexy denominou fórmula da subsunção. Essa
fórmula pode, em cada caso concreto, ser exposta em diferen­
tes níveis de detalhamento e sofisticação, dependendo da ex­
tensão da cadeia de fundamentação. Alexy, por exemplo, cita
uma versão mais desenvolvida dessa fórmula, à qual vale a
pena fazer uma breve referência:

(1) (x) (Tx -» ORx)


(2) (x) {M1x Tx)
(3) (x) (M2x -» MJx)

(n + 2) (x ) (Sx —>Mnx)
(n + 3) Sa
(n + 4) ORa ( l) - ( n + 3)

Como explica Alexy: “ (1) é uma norma, esteja ela expres­


sa em um enunciado legislativo ou tenha sido ela alcançada

75. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.2.

370
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

pelo Judiciário; (2) - (n+2) são regras semânticas relativas ao


conceito usado para dar expressão à condição antecedente da
norma (T) em relação ao conceito usado para descrever o caso
(S); (n+3) é a descrição do caso; (n+4) segue logicamente de
(1) - (n+3)” [Alexy 2003-b:434].
Cada enunciado classificatório, cada valoração jurídica,
cada descrição dos fatos e sua qualificação normativa consti­
tuem uma premissa intermediária que pode ser adicionada
entre (1) e (n + 4). Com a fórmula da subsunção é possível
expor sob a forma de uma rede de silogismo todas as premissas
normativas de uma decisão jurídica. Por isso é que sustentei,
no n. 3.2 deste capítulo, que o modelo silogístico é um modelo
suficiente para determinar a ratio decidendi de um preceden­
te, isto é, a regra adscrita dele derivada, e que pode constituir
um parâmetro para a subsunção de casos futuros.
No entanto, o modelo da subsunção é ainda insuficiente
para uma descrição suficientemente completa do processo de
argumentação por precedentes, porque ele consegue apenas
identificar as rationes decidendi que podem ser extraídas de
cada decisão judicial, descurando do problema que precisamos
resolver nesse momento: o peso que as normas adscritas de
origem jurisprudencial assumem na argumentação jurídica.
Quando voltamos nossa atenção para esse último proble­
ma (o peso da ratio decidendi, e não mais sua mera descoberta),
já não estamos mais diante de um raciocínio subsuntivo, mas
essencialmente diante de uma ponderação.
A imagem das valorações jurídicas como uma “pondera­
ção de bens e valores” não é nova na teoria jurídica. Larenz,
por exemplo, relata sua frequente utilização pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão e atribui a frequência no uso
desse método à indeterminação dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição: “A amplitude com que a juris­
prudência dos tribunais faz uso deste método explica-se, espe­
cialmente, pela ausência de uma delimitação rigorosa das hi­
póteses normativas desses direitos, a não indicação de notas

371
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

distintivas, em relação, por exemplo, ao que é ‘exigível’. Os


direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas,
mas que em certa medida são ‘abertos’, ‘móveis’, e, mais pre­
cisamente, esses princípios podem, justamente por esse m o­
tivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua am­
plitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se
se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro di­
reito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até
um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A juris­
prudência consegue isto mediante uma ‘ponderação’ dos di­
reitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o ‘peso’
que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação”
[Larenz 1997:575],
A necessidade de ponderar decorre, como se pode veri­
ficar no trecho citado, das próprias dificuldades que surgem
na argumentação jurídica, seja devido a problemas de aplicação
e interpretação de normas ou a problemas de prova e qualifi­
cação de fatos [MacCormick 1978-a]. E nos casos difíceis que,
inevitavelmente, o juiz deve recorrer a ponderações. Como
explica Alexy [2003-b:436], “ casos difíceis (...) são definidos pelo
fato de que há razões tanto a favor como contra qualquer so­
lução considerada. A maior parte dessaS colisões de razões só
pode ser resolvida por meio da ponderação” .
Apesar de encontrar forte resistência entre os teóricos
do Direito - tendo em vista certo ceticismo quanto ao controle
de sua racionalidade - , a ponderação desempenha um papel
“vivo e dominante na prática jurídica” [Alexy 2003-b:436].
A ponderação ocupa um lugar central na teoria dos prin­
cípios de Robert Alexy. Se princípios são mandados de otimi­
zação, que podem ser restringidos em face das condições fáti-
cas e jurídicas, mas devem ser sempre cumpridos na máxima
medida possível, a ponderação torna-se inevitável para solu­
cionar as colisões entre esses princípios. O próprio conceito de
princípios implica a ponderação: ambos constituem duas faces
da mesma moeda.

372
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Em seus trabalhos mais recentes Alexy [2002-a; 2003-b]


tenta demonstrar que a estrutura interna da ponderação pode
ser elucidada por uma fórmula aritmética que cumpre a mes­
ma função da já mencionada “ fórmula da subsunção” - isto
é, a função de contribuir para a justificação interna das deci­
sões jurídicas que ele denominou fórmula da ponderação
(weight formula).
Desde o momento em que se passa a definir os princípios
com o “ mandados de otimização” - os quais podem ser cum­
pridos/realizados em diferentes intensidades, tendo em vista
as condições fáticas e jurídicas em que se aplicam torna-se
necessário um modelo aritmético que permita ao operador do
Direito graduar a restrição e a realização desse tipo de norma,
a fim de permitir uma correta utilização do denominado mé­
todo da ponderação.
Como vimos, o processo de pesagem pode ser dividido em
três estágios: (1) definição do grau de interferência em um dos
princípios; (2) definição da importância da satisfação do prin­
cípio que atua em sentido contrário; e (3) verificação sobre se
a importância do princípio contrário justifica, ou não, a afeta­
ção do primeiro princípio [Alexy 2002-a:32].
A denominada fórmula de ponderação deve, para ser
racional, levar em consideração esses três passos. Precisa
ainda - e neste ponto reside a importância de um modelo
aritmético - fornecer um parâmetro para graduar (ou medir)
a intervenção no princípio P1 e a satisfação do seu princípio
contrário (no caso, P2).76

76. Alexy é o primeiro a lembrar que o modelo aritmético sugerido encon­


tra certas limitações. Em argumentação jurídica, somente por analogia se
pode trabalhar com cocientes numéricos [Alexy 2002-a:42], Sem embargo,
a analogia sugerida é fecunda, porque dá uma dose maior de objetividade
à ponderação jurídica, aumentando sua controlabilidade através de uma
estrutura complexa que estabelece um processo para a justificação interna
da ponderação. No entanto, ao utilizar o modelo de ponderação sugerido
deve-se ter em mente os limites de tal analogia. Com efeito, “as verdadeiras

373
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Neste terreno é cabível uma escala triádica para classi­


fica r as intensidades de intervenção e satisfação de princípios
jurídicos. Um exemplo do próprio Alexy pode ajudar nisso: o
princípio da liberdade de ação econômica é um dos que podem
ser restringidos em diferentes graus. De um lado, impor aos
produtores de tabaco o dever de colocar advertências sobre o
perigo de consumir seus produtos deve ser considerada uma
intervenção leve em seu âmbito de aplicação; por outro lado,
uma proibição de comercialização e consumo de qualquer tipo
de produto de tabaco seria, seguramente, uma intervenção
grave na liberdade econôm ica dos produtores; finalmente,
entre um extremo e outro, a proibição de máquinas de vender
tabaco, associada à proibição de venda em determinados luga­
res, pode ser considerada uma intervenção média naquele
mesmo princípio [Alexy 2002-a:33].
A construção da fórmula de ponderação inicia-se com
a atribuição de valores numéricos diferentes para as inter­
venções e satisfações leves (l), médias (m) e graves (g): para Z
atribui-se o valor 2o (ou seja, 1); para m, 21 (ou seja, 2); e para
g, 22 (ou seja, 4).
Esses valores são atribuídos a cada uma das duas primei­
ras dimensões da lei de ponderação: a intensidade de intervenção
em um princípio - representada por «IP.C» - e a importância da
satisfação do princípio colidente - representada por «WP.C» P
Da união desses dois fatores chega-se, regra geral, ao peso rela­
tivo dos princípios P. e P .- representado por «G P .C ».

premissas da fórmula de ponderação não são números, mas juízos sobre


os graus de interferência, a importância dos pesos abstratos e os graus de
confiabilidade das premissas empíricas” [Alexy 2003-b:448].
77. As expressões IPtC e WP.C só se referem aos pesos que os princípios
jurídicos apresentam no caso concreto (ou seja, diante das condições C).
Trata-se, aqui, de dimensões concretas dos princípios jurídicos. Veremos,
mais adiante, que os denominados pesos abstratos dos princípios colidentes
também interferem no resultado da ponderação. No entanto, nos casos em
que tais “pesos abstratos” forem iguais - e estes casos parecem ser majori­
tários - eles não precisam ser incluídos na fórmula.

374
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Há, até agora, nove situações possíveis se adotarmos o


modelo triádico. Nas três primeiras, o princípio P. prevalece
sobre P:.
(1) «IP.C» : gi «WP.C»: l.
(2) «IP.C»: g! «W P f»: to.
(3) «IP.C» : m/ «W P f»: l.

Nas situações (4)-(6) a ordem é inversa, ou seja P. P Pr.

(4) «IP f»:l/ «W P f»:g .


(5) «IP.C»: to/ «W P f» : g.
(6) «IP.C» :l/ «W Pf»: m.

Finalmente, as situações (7)-(9) espelham três casos de


empate:

(7) «IP.C»: 1/«WP.C»: l.


(8) «IP.C»: m/ «WP.C»: to.
(9) «IP.C»: g/«WPf»: g.

Nos casos (l)-(6) é possível chegar a uma conclusão acer­


ca da admissibilidade ou não (à luz da Constituição) da medida
restritiva a princípios constitucionais. Diferentemente, os de­
nominados casos de empate referem-se à margem de ação do
legislador, ou seja, àqueles casos em que o comportamento
escolhido pela lei não é considerado nem obrigatório nem
proibido pelos princípios constitucionais colidentes.
Os graus de intervenção e satisfação dos princípios não
podem ser, segundo Alexy [2002-a:41], representados por um
modelo cardinal que varie, por exemplo, de 0 a 1, haja vista que
tanto a intensidade da intervenção em um princípio quanto a
da realização do outro não devem ser quantificadas a partir de

375
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

uma escala com variações infinitas. O “modelo triádico” evita


as incertezas e os exageros de uma “metrificação” dos princí­
pios constitucionais mas, por outro lado, classifica e, de alguma
maneira, organiza a restrição e o cumprimento ótimo dos prin­
cípios segundo categorias compreensíveis (grave, médio e leve).
A fórmula de ponderação, que será apresentada a seguir,
limita-se, portanto, a “ apresentar uma ilustração da estrutura
que subjaz ao modelo triádico com a ajuda de quantidades
numéricas” [Alexy 2002-a:41]. Essa fórmula, que se constitui
em uma representação da estrutura interna da ponderação,
expressa-se da seguinte maneira:

GP1>JC = IP C . GPA
________ 1__________

WP.C.
J
GP.A
J

A composição da fórmula é a seguinte: «GP^C» repre­


senta o peso relativo do princípio P. em vista de P., diante das
condições C. Ao lado de «IP.C» e «WP.C», que já foram apre­
sentados acima, aparecem os indicadores «G P A » e «GPA»,
representando, respectivamente, os pesos abstratos de cada um
dos princípios. Quando esses últimos forem idênticos a fórmula
pode ser simplificada da seguinte maneira:

GP1.JC =______1
IP.C
WP.C

Na aplicação da fórmula, «GP. C» será maior que 1 em


todos os casos em que se puder concluir que o princípio Pl
tem precedência sobre P.\ da mesma forma, em todos os casos
em que a ordem de prioridade se inverta (P P P.) o valor de
«GPy C» será inferior a 1; finalmente, nos “ casos de empate”
(«GPy C» = 1) estar-se-á dentro dos limites da margem de
ação do legislador.

376
I
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Sendo equivalentes os pesos abstratos, a partir da fór­


mula de ponderação pode-se chegar aos seguintes valores de
«GP. C»: 4 (para os casos g/l), 2 (para os casos m/l), 1 (para todos
os casos de empate), Vi (para os casos l/g) e V2 (para os casos
m/g e l/m).
Essa fórmula de ponderação pode ser ainda ampliada
para incluir, com o mais uma variável no cálculo do peso rela­
tivo dos princípios colidentes, o grau de segurança das premis­
sas empíricas utilizadas na argumentação. Nesses casos é in­
serida a estrutura da denominada segunda lei de ponderação
(referente à certeza das premissas empíricas utilizadas na ar­
gumentação), de modo que a fórmula de ponderação passa,
nessa versão completa (que só é necessária quando houver
diferença no grau de segurança das premissas empíricas utili­
zadas), a ter seguinte configuração:

GP.1,3 C =___________
IPi C . G P.A. SP.C
_ ___________1 ____________ 1

WP.C
J
. GPJ A . SP.C
J

A confiabilidade das premissas empíricas - «SPC» - pode


ser, assim com o o grau de intervenção ou satisfação dos prin­
cípios, graduada segundo uma escala triádica cuja configura­
ção é a seguinte: certeza ou segurança (g), justificável ou
plausível (p) e não evidentemente falso (e). Aos três graus de
segurança podem ser atribuídos os seguintes valores: (g = 2o),
(p = 2-1) e (e = 2'2).
Com esta terceira dimensão considera-se concluída a
descrição formal do método da ponderação. Os objetivos da
fórmula foram (1) revelar quais são as principais variáveis que
interferem no resultado das ponderações de princípios jurídi­
cos (intensidade da restrição em P., grau de satisfação de P.,
peso abstrato de cada um dos princípios colidentes, segurança
das premissas empíricas utilizadas na argumentação); (2) pro­
por um modelo triádico de classificação e valoração das duas

377
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

primeiras variáveis do processo de ponderação («ÍP.C» e


«WP.C»); (3) propor modelo semelhante para a valoração dos
argumentos empíricos que têm lugar na argumentação jurídica
(«SPxC»); e (4) representar formalmente as relações entre cada
uma das dimensões da ponderação.
Seu caráter estritamente formal, longe de reduzir o
raciocínio jurídico a um “ formalismo” , é, talvez, sua maior
vantagem. Ele se ajusta à pretensão alexyana de construir
uma teoria procedimental da argumentação jurídica que se
volte mais para a formulação de regras que nos digam como
argumentar que para a enunciação de preceitos materiais
inafastáveis e definitivos. Esse traço formal revela, assim, sua
neutralidade em relação à valoração que o intérprete fará
sobre cada uma das dimensões da ponderação, que é com ­
pensada pela sua abertura frente à argumentação prática
geral. O modelo triádico representa, por sua vez, uma “ escala
que busca sistematizar classificações que podem ser encontra­
das na prática judicial diária e na argumentação jurídica”
[Alexy 2003-b:443].

3.33.2 Ponderação de princípios e ponderação de razões

O modelo aritmético proposto por Alexy parece, apesar


do grande número de críticas que tem enfrentado,78adequado
para representar a ponderação de princípios. Alguns autores,
no entanto, criticam Alexy e Dworkin quando estes atribuem
aos princípios uma “dimensão de peso” . Ávila, por exemplo,
argumenta que: “ (...). A dimensão de peso não é algo que já
esteja incorporado a um tipo de norma. (...). Não são, pois, os

78. Para apenas algumas dessas críticas, v. Habermas [2005-a], Günther


[1993-b], Ávila [2009], Hage [1997], García Amado [2008] e García Figueroa
[1998], Muitas das críticas de García Figueroa, no entanto, foram revistas pelo
próprio autor. Comento as principais críticas de Habermas e Günther em
Bustamante [2006-b], bem como as de Ávila e Hage em Bustamante [2002 e
2005-a]. Analiso também as críticas de García Amado em Bustamante (2008-b).

378
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

princípios que possuem uma dimensão de peso: às razões e aos


fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída
uma dimensão de importância” 79 [Ávila 2009:59]. “E a decisão
que atribui aos princípios um peso em função das circunstân­
cias do caso concreto” [ibidem]. Sintetizando essas ideias,
Ávila conclui - fazendo referência a Hage - que “ a dimensão
de peso não é um atributo empírico dos princípios, justificador
de uma diferença lógica relativamente às regras, mas resultado
de um juízo valorativo do aplicador” [ibidem].
O ponto decisivo não seria a falta de ponderação na apli­
cação das regras, mas o tipo de ponderação que é feita e o modo
com o ela se justifica, tendo em vista que as razões para superar
uma regra devem ser suficientemente fortes para ultrapassar
a trincheira institucionalmente estabelecida pelo legislador
(encontrando justificação, normalmente, na própria razão
justificativa da regra - rule’s purpose).
A ideia de ponderação de princípios, no entanto, não
deixa de ser plausível.
Percebe-se, portanto, que a noção de “ponderação” sofre
de certa ambiguidade em relação ao seu objeto. De um lado,
Alexy parece ver a ponderação como um procedimento de pe­
sagem de princípios jurídicos cujos fins (por eles protegidos)
não podem ser plenamente realizados ao mesmo tempo, sendo
necessário restringir uma das duas normas e atribuir um peso
maior à outra. O que está em jogo, aqui, é a aplicação de normas
que não podem ser cumpridas simultaneamente em sua inte-
gralidade, tendo em vista que elas têm uma ligação direta com

79. Para um entendimento semelhante ao ora analisado, v. Jaap Hage


[1997:116], para quem o peso das razões que determinam uma solução jurí­
dica é relacionado com o caso a ser julgado, não podendo ser diretamente
atribuído aos princípios (que geram razões para a decisão), haja vista que os
princípios, em si mesmos, não têm sua existência imediatamente relacionada
com um ou outro caso. Isso significa, para Hage, que Dworkin está equivocado
ao atribuir uma dimensão de peso diretamente aos princípios, ao invés de às
razões que neles se baseiam.

379
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

fins e valores que, no mais das vezes, podem ser realizados em


parte. Princípios podem, nesta perspectiva, ser cumpridos em
graus (intensidades) diferentes, em função do contexto fático
e normativo. Esse procedimento de sopesamento há de ser
considerado possível se nós viermos a entender que princípios
podem ser restringidos, ao invés de meramente excepcionados.
De outro lado, Ávila [2009] e Hage [1997] parecem en­
xergar a ponderação com o uma espécie de valoração compa­
rativa entre razões de decidir geradas por normas jurídicas
(mas não somente por elas) em tese aplicáveis a um caso
concreto. Um tal tipo de valoração está presente na interpre­
tação de praticamente todos os enunciados normativos, já que
a consideração sistemática do ordenamento jurídico implica
onipresentes juízos de valor que decorrem tanto da necessi­
dade de se escolher um dentre os significados possíveis para
determinado enunciado normativo quanto da eventual neces­
sidade de se superar as possibilidades semânticas de um
texto legal [Bustamante 2005-a:222-223].
Portanto, em um sentido estrito a ponderação é apenas
um método de aplicação de princípios, mas em um sentido
amplo pode abranger qualquer valoração comparativa entre
as razões ou argumentos que podem ser utilizados no discurso
jurídico.
Quando falamos na determinação do peso ou importância
dos princípios jurídicos, Alexy nos ensinou que há três ordens
de valoração que devem ser combinadas: o peso concreto dos
princípios colidentes (1); o peso abstrato (importância) desses
mesmos princípios (2); e a segurança das premissas empíricas
sobre o cumprimento ou afetação dos princípios (3).
Por outro lado, quando passamos da ponderação de prin­
cípios para a ponderação de razões, essas três escalas deixam de
constituir um parâmetro satisfatório. A complexidade da pon­
deração de razões vai abranger toda a complexidade da justifi­
cação externa de uma norma individual ou decisão - isto é, a
justificação das premissas utilizadas na argumentação jurídica.

380
me
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

(1) Em primeiro lugar, devem entrar no jogo da pondera­


ção também as próprias fontes do Direito, e não apenas as
normas delas derivadas. Com efeito, no modelo de Alexy esse
fator não é relevante, porque se presume desde o início que
todos os direitos fundamentais em rota de colisão estão consa­
grados em princípios jurídicos dotados de mesma hierarquia
em sentido formal. Todos os princípios de que fala Alexy são
normas constitucionais e, por natureza, fontes obrigatórias em
sentido forte (must-sources). Por isso é que os princípios só
podem ser restringidos com fundamento em outros princípios
de igual categoria.
Não é necessário levar em consideração a hierarquia
formal das fontes do Direito porque se presume, desde o início,
que, apesar da falta de objetivação e da ausência de uma hipó­
tese de incidência definida, todos os princípios estão no topo
do ordenamento jurídico. A possibilidade de cumprimento
gradual e de restrição desses princípios decorre de sua própria
debilidade estrutural, e apenas desse fator.
Na argumentação por precedentes, no entanto, a situação
é substancialmente diferente. Como na grande maioria das
vezes é possível identificar a ratio decidendi com base no m o­
delo silogístico que venho propondo, as normas adscritas en­
contradas nos precedentes judiciais não padecem das debili-
dades estruturais que caracterizam os princípios jurídicos de
Alexy. São, pelo contrário, autênticas regras jurídicas que con­
têm determinações sobre a conduta devida. Mas isso não sig­
nifica, entretanto, que a força ou o peso dessas regras sejam
sempre absolutos. Regras podem, dependendo das fontes ou
materiais normativos dos quais derivam, gerar razões mais ou
menos decisivas na argumentação jurídica.
É claro que nas situações em que uma norma de Direito
positivo atribui ao precedente judicial um caráter absoluta­
mente vinculante o peso da regra jurídica será extremamente
elevado. Nessas situações, as normas adscritas derivadas de
precedentes judiciais são obrigatórias em sentido forte e apenas
podem ser afastadas em situações excepcionais, onde seja

381
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

possível estabelecer uma exceção em sua hipótese normativa


por meio da técnica da redução teleológiea. Não é necessário
ponderar acerca de sua força, porque o próprio ordenamento
jurídico já estabelece que invariavelmente elas serão vinculan-
tes em grau máximo. E como essas regras não padecem da
debilidade estrutural dos princípios, há pouco espaço para a
ponderação de sua eficácia (embora, obviamente, possa haver
dúvidas acerca da interpretação dos conceitos utilizados na
definição da hipótese de incidência das normas).
Não obstante, para os casos (majoritários) em que não há
norma de direito positivo que dê ao precedente judicial um
caráter estritamente vinculante - ou seja, nas situações em que
os precedentes judiciais são apenas fontes obrigatórias em
sentido frágil (should-sources) ou meramente permitidas (may-
sources) - é necessária uma ponderação para determinar a
força da norma adscrita ou ratio decidendi. Esta ponderação,
contudo, não é feita em função das características estruturais
que a norma jurídica pode apresentar (pois, como se trata de
regras jurídicas, são mandados definitivos, e não mandados de
otimização), mas em função da importância que se atribui ao
precedente judicial do qual essas regras derivam.

O tipo de fonte que o precedente judicial constituir no


caso concreto será, portanto, determinante no peso ou impor­
tância da própria norma adscrita dele derivada.
(2) Em segundo lugar, em vista de tudo quanto foi visto
neste n. 3.3, pode-se falar em diferentes graus de vinculativi-
dade da ratio decidendi de um precedente em função dos/ato­
res institucionais (contexto institucional, tradição jurídica,
estrutura constitucional) e extrainstitucionais (concepções
teóricas acerca do Direito, do discurso jurídico e da dogmática
jurídica; fatores estruturais das normas jurídicas adscritas de
precedentes judiciais e das teorias elaboradas pelos tribunais
na fundamentação de suas decisões; e correção substancial das
decisões jurídicas) que influem sobre sua eficácia. Todos esses
fatores - inclusive os subfatores mais específicos compreendidos

382
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

em cada um deles, como, por exemplo, os critérios de coerên­


cia, que constituem elementos determinantes para a estrutura
da fundamentação das decisões - entram no jogo da pondera­
ção das razões e argumentos determinantes para a força do
precedente judicial.
(3) Em terceiro lugar, um modelo adequado de pondera­
ção de razões só poderá fazer jus à complexidade desse proce­
dimento jurídico-metodológico se levar em conta as diferentes
interações que podem ser verificadas entre os argumentos
empregados no discurso jurídico. Neste ponto, as “formas de
argumento” até agora comentadas (como o modelo silogístico
que apresentei para extrair a ratio decidendi) não conseguem
fornecer um panorama suficientemente complexo das moda­
lidades de interação entre os argumentos jurídicos, pois se li­
mitam a meras implicações do tipo simples, as quais estão em
jogo quando temos uma situação em que há apenas “um argu­
mento para” que se faça (ou deixe de fazer) determinada coisa.
Trata-se daqueles casos que Neil MacCormick e Robert Sum-
mers denominaram de “ forma simples” de argumento, pois
cada um desses argumentos tem uma espécie de permissivi-
dade autossuficiente (permissive sufficiency) [MacCormick/
Summers 1991:525].
Além dessa forma simples, há certas estruturas mais
complexas, entre as quais se pode incluir a hipótese de cumu-
latividade de argumentos. Com efeito, ao lado daqueles casos
onde há diferentes argumentos mutuamente independentes
que trabalham, cada um à sua maneira, para justificar a mesma
conclusão (argumentos coincidentes), há situações nas quais
“ os argumentos cumulam-se, ao invés de meramente coincidi­
rem” [MacCormick/Summers 1991:526; Ávila 2001:22]. É im­
portante notar, quanto a este último caso, que é possível, de­
pendendo das razões geradas pela integração entre os raciocí­
nios, que a força dos argum entos cum ulados supere em
muito a mera soma das razões que, por simples coincidência,
indicam o mesmo caminho. Cada diferente forma de interação
argumentativa pode gerar razões com pesos diferentes para

383
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a solução de um problema concreto. Embora seja inviável esta­


belecer fórmulas rigorosas para se determinar o valor exato de
cada argumento ou de cada conjunto de argumentos (interde­
pendentes ou não) - pois isso, além de representar uma potencial
regulamentação excessiva da esfera de subjetividade sempre
presente nas valorações jurídicas, implicaria a utilização de
estruturas lógicas praticamente inassimiláveis é possível
constatar que diferentes tipos de formulação de argumentos
podem conduzir a também diferentes soluções para problemas
jurídicos. De um lado, a superação de argumentos cumulativos
exige, regra geral, razões mais fortes que a de um único argu­
mento simples; de outro, argumentos que a priori teriam peso
relativamente baixo podem, se integrados com argumentos de
valor mais elevado, melhor solidificá-los e densificar as razões
por eles geradas. A favor da cumulatividade de argumentos atua
a ideia de coerência,80que é tanto mais expressiva quanto maior
for a cadeia de fundamentação que ela contiver e quanto mais
ela estiver ancorada em certos princípios fundamentais. Para
estabelecer uma fórmula simples para a cumulação de argumen­
tos, podemos simplesmente reproduzir as seguintes conclusões
de Ávila: “ Quanto maior a cadeia de fundamentação, maior a
estrutura de estabilidade dos valores, e maior a força justifica­
tiva dos argumentos” [Ávila, 2001:24]. Daí, podemos extrair a
seguinte regra para a interação positiva (ou unidirecional) entre
argumentos: postam. p rimafacie, os argumentos cumu­
lativos prevalecem sobre os meramente coincidentes; estes,
por sua vez, prima fa cie prevalecem sobre os argumentos
simples” .
(4) Por derradeiro, cumpre salientar que é possível apro­
fundar também o estudo das formas de conflitos entre argu­
mentos utilizados no discurso de justificação de uma norma
adscrita. Nessa linha, é possível indicar três fatores que levam
à rejeição de um argumento [MacCormick/Summers 1991:527-
530]: “ (a) inaplicabilidade - um argumento é rejeitado quando,

80. V , supra, neste Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2, (B.2-bis).

384
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

apesar das aparências, se comprovar que as condições para a


sua utilização não existem; (b) cancelamento - apesar de aplicá­
vel, um argumento é rejeitado porque existe um outro aplicável
ao caso que nulifica por completo a sua força justificatória; (c)
preponderância (outweighing) - um argumento mantém sua
força justificatória mas há outro argumento com maior peso
tendo em vista as circunstâncias presentes no caso concreto” .81
Nas duas primeiras situações (inaplicabilidade e cance­
lamento) não se trata de uma questão que diga respeito pura
e simplesmente ao peso relativo de cada argumento, mas de
um caso no qual é possível concluir, com maior certeza, qual
será a argumentação que pode ser considerada correta no caso
concreto. Quando estamos diante de um argumento inaplicável
ao caso, o enunciado normativo referenciado pelo intérprete
só aparentemente é capaz de gerar razões para o comporta­
mento que se pretende seguir. O próprio emprego de tal tipo
de argumento pode ser considerado um equívoco. Da mesma
maneira, quando há um argumento que neutraliza (cancela)
por completo a força justificatória de outro, o primeiro pode
ser visto como uma exceção ao último, de modo que não se
exige um juízo acerca do peso relativo de cada um deles, uma
vez que um dos dois é excluído por completo. Vê-se, por con­
seguinte, que essa diferenciação tem uma importante função
de descarga argumentativa, haja vista que, superadas as ques­
tões acerca da aplicabilidade de um argumento ou da possibi­
lidade de um argumento cancelar o outro (por ser uma exceção),
não são necessárias justificativas adicionais para se afastar uma
hipótese de solução.

81. Além dos três fatores apontados acima, MacCormick e Summers


[1991:527-530] falam em overriding, referindo-se àquelas situações em que
um argumento prevalece sobre outro tendo em vista uma ordem de priori­
dades estabelecidas pelo ordenamento jurídico. Como essa ordem só pode
ser uma ordem rígida - caso contrário não estaríamos diante de overriding,
mas sim de preponderância (outweighing) - , penso que não há razão para
essa categoria autônoma, pois é perfeitamente possível incluir as hipóteses
por ela abarcadas em “(b)” (cancelamento).

385
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Percebe-se, portanto, que na hipótese “ (c)” - que se ve­


rifica nos casos em que há imbricamento de argumentos [Ávila
2001:23] - há uma maior liberdade por parte do jurista prático,
pois só através de uma valoração jurídica adicional será possí­
vel saber a solução que será dada ao problema. Trata-sè dos
casos onde “ o entrecruzamento dos argumentos impõe regras
de prioridade” , o que só pode ser feito a partir de uma valora­
ção comparativa dos pesos dos argumentos em jogo. Em forma
de regra de argumentação, poderíamos enunciar: “RImbric<"nen<-°:
Nos casos de imbricamento de argumentos (tipo de interação
negativa onde os argumentos se superpõem sem se anularem
por completo), a colisão será sempre resolvida por meio de uma
regra de prioridade entre os argumentos” .
No entanto, permanece discutível a questão acerca de
quais serão essas regras de prioridade: eis aí mais um proble­
ma que só será resolvido na argumentação construída diante
do caso concreto, respeitando-se as demais proposições da
teoria da argumentação jurídica.
À guisa de conclusão, podemos dizer, portanto, que a
identificação da ratio decidendi não esgota o problema da ar­
gumentação por precedentes. Na verdade, esta constitui apenas
a ponta do iceberg, e pode ser facilmente visualizada através
de um modelo subsuntivo ou silogístico de reconstrução das
premissas normativas necessárias para justificar uma decisão.
O maior problema, como vimos, é a determinação da força do
precedente ou do peso e/ou grau de importância da ratio deci­
dendi para os casos futuros, que somente pode ser determina­
do por meio de uma ponderação de razões. Esse tipo de ponde­
ração, por ter um objeto mais amplo que a tradicional “ ponde­
ração de princípios” , compreende critérios que não podem ser
integralmente visualizados na “fórmula da ponderação” de
Robert Alexy.

Nesta seção tentei fazer um inventário dos principais


critérios que podem influenciar essa decisão (sobre a impor­
tância da ratio decidendi). Apesar de eu não ter conseguido

386
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

estabelecer uma relação exata entre esses critérios e um m o­


delo analítico como a fórmula que Alexy propôs para a ponde­
ração de princípios, creio que pelo menos um certo avanço foi
alcançado, pois no momento de decidir sobre a importância de
um dado precedente já sabemos ao menos em quais fatores
devemos basear nossa decisão.

3.4 Mutatis mutandis. O overruling ou ab-rogação do


precedente judicial

O overruling é uma espécie do gênero das denominadas


judicial departures, ou seja, dos casos de afastamento de uma
regra jurisprudencial. Uma hipótese de afastamento se dá
quando o tribunal resolve um problema jurídico solucionável
por um precedente judicial, mas de forma diferente. O juiz
apela, nesses casos, para uma nova regra jurídica que conduz
a um resultado diverso do previsto pelo precedente. Como
explicam Summers e Eng [1997:521], nas judicial departures
“a decisão precedente deve ser apropriadamente semelhante
ao caso subsequente. Em última instância, o precedente e o
caso a ser decidido devem trazer à tona as mesmas questões
jurídicas, e o caso precedente deve já ter resolvido a questão.
(...). Em países de common law, uma departure ou afastamento
de um precedente por uma corte superior pode, via de regra,
ser prontamente identificada como um regramento [ruling]
diferente para uma questão posta pior fatos materiais relevan­
temente semelhantes aos da decisão precedente” .
Embora nos sistemas jurídicos de civil law seja um pou­
co mais difícil identificar as departures, pois muitas vezes elas
não são expressamente tematizadas, creio que a noção preva­
lecente no common law - à qual Summers e Eng fazem refe­
rência no trecho acima - pode ser generalizada. Dá-se o “ afas­
tamento” (departure) de um precedente judicial quando o tri­
bunal posterior adota uma nova norma concreta que decide
um caso compreendido na hipótese de incidência de uma regra
anterior de origem jurisprudencial.

387
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O overruling, no entanto, não é o único caso de judicial


departure. Como explica Eng [2000-b:316], “ é importante ob­
servar que distinguish, overruling e fact-adjusting são funcio­
nalmente equivalentes; eles servem como meios alternativos
para a mesma finalidade” . Nas três situações estamos diante
de um caso de abandono da regra adscrita (de origem jurispru-
dencial) que aponta para uma determinada solução ao proble­
ma jurídico enfrentado.
O que diferencia o overruling e o torna especialmente
relevante é que ele não se refere a um simples problema de
aplicação do precedente judicial - não se contenta com a não-
ocorrência de suas consequências no caso concreto -, mas vai
bem além disso, já que representa uma ab-rogação da própria
norma adscrita aceita como precedente. O overruling apresen­
ta-se com o o resultado de um discurso de justificação em que
resulta infirmada a própria validade da regra antes visualizada
com o correta. Por isso, as razões que o justificam devem ser
ainda mais fortes que as que seriam suficientes para o distin­
guish (seja a interpretação restritiva ou a redução teleológica
do precedente judicial).
As situações que dão ocasião ao overruling - a anulação
de um precedente pelo próprio órgão jurisdicional que o es­
tabeleceu - costumam variar, em cada sistema jurídico, em
função dos fatores institucionais e extrainstitucionais que
influem sobre a força do precedente judicial. No entanto, a
regra-de-ouro sobre as departures - e o overruling, em es­
pecial - deve ser a mesma, não importam a tradição jurídica
ou a força do precedente no caso concreto: sempre que um
juiz ou tribunal for se afastar de seu próprio precedente, este
deve ser levado em consideração, de m odo que a questão do
afastamento do precedente judicial seja expressamente tema-
tizada. Nesse sentido, aponta Rorive que em sistemas jurídicos
tão diferentes como a Bélgica - que adota um modelo de cas­
sação semelhante ao francês - e a Inglaterra - berço do common
law - despontam teorias sobre o overruling ou revirement
jurisprudentiel cuja principal importância é “ fornecer uma

388
m

TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

justificação convincente das modificações operadas [na juris­


prudência], que seja capaz de conciliar a força normativa
atribuída aos precedentes e a necessidade de se recolocá-los
em questão, em certo m om ento” [Rorive 2003:497]. Todo
abandono de um precedente judicial deve ser expressamente
justificado.
Merecem repúdio, portanto, os afastamentos dissimula­
dos ou implícitos (non-overt departures) de um precedente
judicial. Nesses casos, o afastamento do precedente acontece,
“ mas não é tratado como tal” [Summers/Eng 1997:522]. Em
quaisquer das várias modalidades desse tipo de procedimento
(■v.g., quando o tribunal simplesmente ignora o precedente, ou
redefine e reformula o holding de um julgamento em termos
não genuinamente fiéis ao seu sentido original etc.), o tribunal
viola uma regra que hoje em dia pode ser tida como universal
sobre a argumentação com precedentes judiciais: o dever de
levar em consideração o precedente, com fundamento nos prin­
cípios da universalizabilidade e da imparcialidade na atividade
judiciária.
Além dessa regra, cujo fundamento se encontra no prin­
cípio da transparência e nas regras sobre a carga de argumen­
tação que constituem um dos pontos centrais da teoria da ar­
gumentação contem porânea82 - , entre as quais se situa o
princípio da inércia de Chaim Perelman83 há outras mais
específicas que variam em função do peso do precedente judi­
cial e podem, na aplicação prática do Direito, constituir impor­
tantes diretivas concretas.
Como vimos anteriormente, os precedentes judiciais
devem ser descritos com o fontes do Direito cuja vinculati-
vidade ou obrigatoriedade pode ser classificada de acordo
com a seguinte escala de três níveis: (1) precedentes obriga­
tórios em sentido forte ou formalmente vinculantes (formally

82. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.2.2.


83. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.2.6.

389
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

binding); (2) precedentes obrigatórios em sentido frágil (notfor-


mally binding but having a force); e (3) precedentes meramente
persuasivos.84
Vejamos, a seguir, quais são as condições normalmen­
te aceitas para superar cada um dos tipos de precedente
judicial.

3.4.1 O overruling de precedentes meramente persuasivos

Se abstrairmos os fatores institucionais que justificam a


aderência ao precedente judicial, esta pode ser compreendida
com o uma tomada de posição afirmativa acerca de uma pre­
tensão de validade normativa, no contexto de um discurso
prático. Em um ambiente puramente discursivo, onde não há
quaisquer constrições sobre as partes que buscam um consen­
so acerca de questões normativas, pressupõe-se de início a
liberdade comunicativa de cada um dos participantes: há sem­
pre o “direito individual de adotar uma posição negativa” em
relação à validade das normas em discussão. Como explica
Günther [1996:1.048], “ o reconhecimento comunicativo de um
ator como um autor pressupõe a liberdade comunicativa. Sem
uma liberdade para dizer não, a ação subsequente não conta
como uma ação de um autor responsável e que possa ser co­
brado por seu comportamento” .
Essa situação comunicativa descrita por Günther é a que
mais se aproxima da argumentação por precedentes do tipo
meramente persuasivo, onde não há qualquer dever formal de
obediência ao precedente judicial. Aqui, o dever de considerar
o precedente nada tem de especial, pois corresponde apenas
ao dever de levar a sério os argumentos aduzidos pelas partes
no discurso, isto é, ao dever de tomar uma posição positiva ou
negativa em face das pretensões de validade normativa sus­
tentadas pelos participantes no discurso jurídico, e não apenas

84. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.3.1, in fine.

390
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ignorá-las. Nessa perspectiva, não reconhecer a validade de


um precedente judicial implica o dever de dar razões desse
afastamento, e seguir um precedente implica a obrigação de
adotar as razões que o justificam: “ Quando o ouvinte toma uma
posição afirmativa, ele está obrigado a adotar as razões que
justificam a pretensão de validade [da norma] como se fossem
suas” [Günther 1996:1.041].
Portanto, onde não há qualquer restrição institucional
a adesão a um precedente judicial é rigorosamente idêntica
à aceitação de uma norma em um discurso moral de justifi­
cação. No campo da argumentação jurídica, os casos que mais
se aproximam dessa situação são os do denominado “ auto-
precedente” despido de força vinculante em sentido estrito
- em que determinado juiz se refere a uma norma anterior­
mente adotada por ele próprio mas admite, em tese, a possi­
bilidade de ser convencido em um momento posterior da sua
incorreção - ou o do “precedente horizontal” , onde a parte
se refere a uma decisão de outro órgão jurisdicional de igual
hierarquia.
Nesse caso, a força do precedente judicial reside unica­
mente no argumento ab exemplo. Ao invés de aderir ao prece­
dente judicial, pode-se dizer que o juiz posterior adere mais
propriamente às razões produzidas pelo juiz anterior. É a qua­
lidade dessas razões que irá determinar a força de um prece­
dente judicial meramente persuasivo. Nesse sentido, Zimmer-
mann e Jansen sustentam que a validade do Direito judicial
“ resta inteiramente na qualidade do processo de raciocínio
empregado” , de sorte que o “Direito judicial” (judge-made law)
“ sempre está apto a ser corrigido por argumentos melhores”
[Zimmermann/Jansen 1998:305-306].
O overruling ou revirement irá depender, portanto, de
uma ponderação entre as razões que justificam o precedente
judicial e as que tenham sido aduzidas para sua modificação.
Não há, assim, qualquer constrição institucional relevante a
impedir a revisão da decisão anterior.

391
'H
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE !

3.4.2 O overruling de precedentes obrigatórios em sentido


forte (formalmente vinculantes)

Diferentemente do que ocorre com os precedentes m e­


ramente persuasivos, a superação de um precedente formal­
mente vinculante normalmente é encarada como um “evento
político e jurídico significativo” , pois representa uma “ forma
dramática de m odificação do D ireito” [Spriggs/Hansford
2001:1.092]. Mesmo nos sistemas jurídicos em que as estatísti­
cas apontam um grande número de overrulings na jurispru­
dência da mais alta corte, com o o dos Estados Unidos da
América,85 a prática de ab-rogação da jurisprudência formal­
mente vinculante é ao menos teoricamente descrita como ex­
cepcional e encontra uma série de limites normativos.
Vários fatores podem condicionar - positiva ou negativa­
mente - a prática de se estabelecer e reformar precedentes ju­
diciais de natureza vinculante. Na Suprema Corte norte-ame­
ricana, por exemplo, um estudo empírico-descritivo informa que
as seguintes variáveis normalmente influem sobre a probabili­
dade de a Suprema Corte revogar seus precedentes judiciais:
“ (1) Quanto maior a disparidade ideológica entre um
precedente e a corte subsequente, maior a probabilidade de
esse precedente ser revogado.”
“ (2) Um precedente judicial terá menos chances de ser
revogado se tiver se embasado na interpretação da legislação,
ao invés de na interpretação da Constituição.”
“ (3-a) Quanto mais frequentemente tenha a corte tratado
um precedente positivamente (isto é, seguido o precedente),
menor a chance de o precedente ser revogado.”

85. Como relatam Brenner e Spaeth [apud Spriggs/Hansford 2001], entre


os anos de 1946 e 1992 a Suprema Corte norte-americana abandonou 154
de suas decisões anteriores, ou seja, uma média de 3 por ano. Ainda assim,
o overruling de precedentes da Suprema Corte americana é descrito pela
doutrina como relativamente infrequente, apesar de sua elevada importância
político-jurídica [Spriggs/Hansford 2001:1.092].

392
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ (3.b) Quanto mais frequentemente tenha a corte tratado


um precedente negativamente (v.g., distinguindo-o ou limitan­
do-o), maior a chance de o precedente ser revogado.”
“ (4) Quanto mais próximo do contexto político-ideológico
estiver um precedente, menor a chance de ele ser revogado.”
“ (5) Um precedente tem mais chances de ser revogado
se a coalizão que o sustentou consistir em simples maioria de
julgadores.”
“ (6) Quanto maior o número de opiniões concorrentes
que tenham sido publicadas com um precedente, maiores as
chances de ele ser revogado” [Spriggs/Hansford 2001:1.097].
A primeira variável é considerada, no referido estudo,
como “ o primeiro e mais óbvio fator” que afeta a decisão de se
revogar (overrule) um precedente: “Décadas de pesquisa judi­
cial demonstram uma inegável conexão causal entre as orien­
tações ideológicas dos juizes e os seus votos” [Spriggs/Hansford
2001:1.093]. A segunda diretiva, por sua vez, explica-se porque
é mais fácil para o Congresso aprovar uma nova legislação
ordinária - com a finalidade de corrigir a legislação existente
- que uma reforma na Constituição: “Reformas em uma decisão
constitucional (...) geralmente exigem uma emenda constitu­
cional; portanto, para fins práticos apenas a Corte pode mudar
um aspecto particular da doutrina constitucional” . Por isso se
verifica, regra geral, uma menor disposição da Suprema Corte
para modificar as decisões sobre a interpretação da legislação
ordinária (statutory legislation) do que para alterar sua própria
doutrina constitucional. A terceira variável, por seu turno,
expressa uma tendência que se manifesta sempre que a Corte
introduz paulatinamente uma série de distinções e exceções
em um precedente judicial. O abandono de um precedente
muitas vezes é gradual, de sorte que um precedente reforçado
por várias novas decisões que o adotam como razão de decidir
tem normalmente mais força que outro ao qual tenham sido
reconhecidas exceções posteriores, justamente para afastar
sua aplicação. A quarta variável, de outro lado, guarda nítida

393
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

proximidade com a primeira, desta se diferenciando apenas


por tomar em conta o ambiente ou contexto ideológico em que
a decisão é aplicada, e não mais as preferências políticas apenas
dos juizes que compõem o órgão jurisdicional. As variáveis (5)
e (6), finalmente, indicam que precedentes que não constituem
objeto de consenso têm maior chance de ser superados, e nor­
malmente o são.
A análise empírica dos fatores que condicionam o over­
ruling da Suprema Corte norte-americana me parece, porém,
ainda insuficiente para uma teoria apropriada do overruling
ou revirement de jurisprudence, haja vista que, primeiramen­
te, está relativamente presa ao Direito dos Estados Unidos
e, em segundo lugar, não se preocupa em elucidar os princi­
pies o f overruling, ou, melhor, as normas e valores juridica­
mente consolidados que podem ser invocados para justificar
as decisões de ab-rogação de precedentes judiciais. Ademais,
algumas dessas diretivas para determinar a probabilidade
de overruling de um precedente judicial - independentemen­
te de encontrarem, ou não, com provação na prática da Su­
prema Corte dos Estados Unidos - não podem ser aceitas
com o hipóteses universalizáveis e não encontram aceitação
unânime na doutrina. As circunstâncias (5) e (6), por exemplo,
parecem contra-intuitivas, já que muitas vezes a divergência
de opiniões entre os membros do tribunal é vista com o um
argumento para manter o precedente, e não para superá-lo,
pois os argumentos já aduzidos pela minoria foram expres­
samente apreciados pelo tribunal e dificilmente podem cons­
tituir razões suficientes para reverter a regra jurisprudencial
em uma nova oportunidade. Como esclarece J. W. Harris, o
fato de a Corte estar dividida não representa garantia para
o overruling: “ Pelo contrário, quando tenham sido pronun­
ciados votos dissidentes é mais provável [que nas decisões
unânimes] que todas as razões pertinentes tenham sido con­
sideradas” [Harris 1990:160].
Mais importante que descrever as situações que ensejam
o overruling parece, no momento, um inventário dos argumentos

394
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que devem ser utilizados pelos tribunais para se afastar de sua


própria jurisprudência.
Nesse campo de análise, curiosamente se pode observar
uma série de princípios gerais que normalmente aparecem,
ainda que sob nomenclaturas diversas, nos diferentes sistemas
e tradições jurídicas contemporâneos.
De modo geral, as exigências de uniformidade, coerência,
consistência, imparcialidade, universalizabilidade e, mais ge­
nericamente, racionalidade na aplicação do Direito exigem que
na revogação de precedentes judiciais sejam ponderadas cui­
dadosamente as necessidades de estabilidade e dê mudança
do sistema jurídico. Nesse sentido, sustenta Silva [2005:259]:
“Todas as leis oscilam entre as demandas da certeza jurídica,
que exigem firmes e confiáveis guias de conduta fornecidos
pela autoridade legal, e as demandas da justiça, que exigem
que a solução de um caso individual seja equitativa e conforme
aos ideais e concepções de justiça que imperam em uma de­
terminada coletividade” . Por isso, se, de um lado, os preceden­
tes não devem ser vistos de forma excessivamente estática, de
outro lado, “qualquer afastamento da doutrina do stare decisis
exige uma justificação especial” .86 O que justifica a própria
autoridade da jurisprudência é a racionalização do Direito
positivo, sua sintonia com as ideias de correção, justiça, impar­
cialidade. Portanto, ainda que se reconheça a existência de
razões de autoridade que militam a favor da vinculação ao pre­
cedente judicial - visualizando o precedente como uma fonte
normativa que encontra sustentação tanto nessas razões de
autoridade quanto em argumentos puramente racionais, sen­
do que em caso de conflito entre esses dois tipos de justificação
é necessária uma ponderação entre eles -, essas razões não
podem ter força absoluta: o poder de estabelecer o case law
deve englobar também o de revisá-lo, aperfeiçoá-lo, viabilizar
sua evolução, ainda que sob certos limites.

86. Justice Anthony Kennedy’s majority opinion in “Patterson vs McLean


Credit Union”, apud Spriggs/Hansford [2001:1.091].

395
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Ainda com Silva, pode-se dizer que na argumentação


por precedentes “ a decisão passada traz embutida uma pre­
sunção de correção, de sorte que só o fato de aquela decisão
anterior existir exerce influência na atual decisão a despeito
de nossa crença de que a decisão precedente foi errada”
[Silva 2005:261].
De modo geral, há certo consenso no sentido de que não
basta um juízo subjetivo sobre a “incorreção” de um preceden­
te judicial para justificar seu abandono. Por essa razão, a Hou-
se ofLords firmou o entendimento de que não se deve revogar
precedentes unicamente por causa do seu caráter “ errôneo” .
Nas palavras de Lord Reid, “ no interesse da segurança jurídi­
ca, uma decisão não deve ser revogada [overruled] meramente
porque os law lords considerem que ela tenha sido estabeleci­
da erroneamente. Há de haver certas razões adicionais para
justificar tal passo” [apud Paterson 1982:157].

Mas, então, quais seriam os princípios jurídicos que


orientam a decisão de romper, ou não, com um determinado
precedente judicial? Quais os limites para o exercício do
overrulingl

No Reino Unido, J. W. Harris conseguiu sistematizar um


núcleo duro de princípios que orientam a prática do overruling
e limitam seu exercício, os quais podem ser genericamente
qualificados com o definidores da teoria do “overruling” adota­
da pela House ofLords. De início, Harris demonstra que para
a House o f Lords uma decisão deve ser overruled quando o
Direito presente, levados todos os fatores relevantes em con­
sideração, for incrementado [improved] com o estabelecimen­
to do novo precedente judicial [Harris 1990:149]. Fatores como
a justiça, certeza e coerência do Direito - considerado como
um sistema de normas destinado a reger não apenas o caso
particular, mas todo o universo de questões futuras sobre o
mesmo assunto - devem ser ponderados com o fito de justificar
a conclusão de que a revogação da norma contida em um pre­
cedente judicial irá contribuir para o progresso do sistema

396
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

jurídico, que é o principal parâmetro a ser seguido pela Corte


no momento em que esta decide sobre a manutenção ou revisão
da regra jurídica posta em xeque em um caso concreto. As vezes,
por exemplo, é justificável a revogação de uma regra jurispru-
dencial para evitar a utilização excessiva da técnica do distin­
guishing, que gera a consequência indesejável da fragmentação
do Direito e dá margem a diferenciações capazes de comprome­
ter a coerência geral do ordenamento jurídico. Nesse sentido,
vale transcrever o seguinte dictum de Lord Reid: “E notório que
onde uma decisão existente é reprovada mas não pode ser ab-
rogada [overruled] os tribunais tendem a distingui-la com base
em fundamentos inadequados. Eu não acho que eles agem
erroneamente ao fazê-lo: eles estão adotando a menos danosa
das poucas alternativas que lhes estão abertas. Mas isso está
fadado a causar incerteza, pois ninguém pode dizer de antemão
se em um caso particular a Corte irá, ou não, se sentir vinculada
a seguir a velha decisão insatisfatória. Ponderando-se ambos os
lados, parece-me que a ab-rogação [overruling] de tal decisão
iria promover e não reduzir o grau de certeza do Direito” .87
No entanto, além desse critério positivo, há uma série de
regras constritivas que limitam o exercício da faculdade de
romper com a regra do precedente judicial. Todas essas regras
podem ser reconduzidas a um único princípio: o princípio do
stare decisis. Esse princípio, no direito do Reino Unido, impõe
uma aderência particularmente forte ao precedente judicial,
de sorte que a excepcionalidade pode ser de antemão tida como
a principal característica da técnica do overruling. O primeiro
critério para o overruling é o critério do “uso esporádico” : “A
liberdade garantida pelo Practice Statement de 1966 deve ser
exercitada apenas ocasionalmente” [Paterson 1982:156].
A partir desse princípio geral de obediência ao preceden­
te judicial, podem ser fundamentados os seguintes princípios
constringentes, que o concretizam:

87. Pronunciamento de Lord Reid em “R. vs National Insurance Commissio­


ner, ex parte Hudson” [1972] AC 944.

397
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE
\

(1) Princípio da “ausência de novas razões” ou do “caráter


definitivo” das decisões da House ofLords (finality): o que essa
diretiva prescreve é o caráter terminativo ou final das decisões
da Corte Máxima. O que justifica a existência dos recursos para
a House ofLords é a necessidade de unificar o Direito e produ­
zir certeza para os destinatários das normas jurídicas, de via­
bilizar um grau mínimo de segurança necessário para o desen­
volvimento das relações jurídicas de modo geral. “A necessi­
dade de definitividade \finálity\ em questões jurídicas discutí­
veis (...) justifica a constrição de que a House o f Lords não deve
romper com uma decisão própria se não entrarem em jogo
novas razões” [Harris 1990:159]: a não ser que novas razões
possam ser aduzidas, o holding, ou ratio decidendi, de uma
decisão não deve ser modificado [idem:161].
Na aplicação do princípio Harris propõe uma diferen­
ciação que, embora não esteja expressamente referida nas
decisões da House ofLords, pode explicar suas atitudes em
relação ao precedente judicial, bem com o racionalizar a prá­
tica do overruling em situações de colisão entre os princípios
da segurança jurídica e da correção substancial do Direito.
De um lado, uma decisão é incorreta por razões estruturais
(structurally wrong) quando razões relevantes “ não tenham
sido invocadas [no caso passado] e deveriam levar a um holding
contrário se tivessem sido consideradas” [Harris 1990:162].
De outro, é intrinsecamente incorreta (ultimately wrong) quan­
do, “ apesar de todas as razões pertinentes terem sido consi­
deradas, crê-se que elas não foram corretamente ponderadas”
[ibidem].

O âmbito de aplicação do princípio é o das decisões


“intrinsecamente incorretas” , não das “ estruturalmente in­
corretas” , pois nestas não se pode afirmar que tenha havido
uma decisão do tribunal acerca da prevalência das razões
apontadas na justificação da decisão sobre aqueloutras que
ora são invocadas para o rompimento (overruling) com um
precedente judicial. A constrição da “ausência de razões” (no-new
reasons) aplica-se apenas aos casos de decisões intrinsecamente

398
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

incorretas, ou seja, em que as razões ora aduzidas para refor­


mar um precedente já tenham sido apreciadas, embora de
forma deficiente, pela decisão anterior. Mesmo nesse caso,
contudo, Harris vislumbra ainda uma segunda exceção ao
princípio, relativa aos casos em que o precedente é contrário
a um principio fundam ental do sistema ju rídico [Harris
1990:169]. A regra geral, porém, não deixa de ser a de que um
precedente não pode ser overruled apenas em função da sua
incorreção [Harris 1990:189; Rorive 2003:503].
(2) Princípio da confiança justificada (justified reliance):
no próprio Practice Statement, onde é expressamente reco­
nhecida a possibilidade de a House ofLords abandonar seus
próprios precedentes, está previsto o princípio da proteção
da confiança do jurisdicionado e das expectativas que nele
foram geradas pelas decisões da House ofLords. Com efeito,
na parte final do Practice Statement os law lords são adverti­
dos acerca do “perigo de se perturbar retrospectivamente” o
direito dos contratos, da propriedade e das relações jurídicas
de natureza fiscal. Esse princípio, naturalmente, poderá apre­
sentar diferentes graus de vinculatividade no caso concreto,
pois a força das expectativas depositadas pelos jurisdicionados
pode variar em função de uma série de fatores, tais com o os
estudados nos ns. 3.3.2.2 e 3.3.2.3 deste capítulo. Ademais, a
própria atuação do tribunal pode restringir o peso do princí­
pio. Como já frisado anteriormente, ao comentarmos as ex­
plicações de Spriggs e Hansford sobre o overruling na Supre­
ma Corte dos Estados Unidos, o fato de a Corte aplicar em
múltiplas ocasiões a técnica do distinguish em um dado pre­
cedente pode até mesmo elevar a incerteza do Direito positi­
vo, e provavelmente fará com que o jurisdicionado não fique
surpreso com a reforma ou superação do precedente judicial
[Harris 1990:170; Spriggs/Hansford 2001:1.095]. Como relata
B. V. Harris [2002:412]: “Infelizmente, a força da doutrina do
stare decisis tem sito tal que os tribunais frequentemente
preferiram se esforçar para distinguir precedentes quando eles
deveriam com mais propriedade tê-los ab-rogado [overruled].

399
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE
1

Ironicamente, um dos maiores propósitos da doutrina do


stare decisis, a certeza, teria provavelmente sido mais bem
protegido por meio de um overruling honesto e aberto que
por meio do emprego da técnica do distinguishing com base
em fundamentos inadequados” .

Esse princípio de proteção das expectativas geradas pelo


precedente goza de especial força no Reino Unido, onde ainda
não é aplicada pela House o f Lords a técnica do prospective
overruling, de sorte que o abandono do precedente judicial
necessariamente implica uma modificação do Direito com
efeitos retrospectivos. Em vários outros sistemas jurídicos se
pode observar, no entanto, uma tendência a se aplicar essa
técnica para permitir a evolução do Direito sem ter como con­
sequência necessária a prática de graves injustiças no caso
concreto ou, na hipótese contrária, a fossilização do Direito -
impedindo, assim, sua evolução -, a fim de possibilitar decidir
de forma razoável um determinado caso concreto.
(3) Princípio do “respeito ao legislador” (comity with the
legislature): esse princípio, também encontrado em decisões
da House o f Lords, deriva do respeito à máxima de que o Ju­
diciário, mesmo em suas esferas mais elevadas, não deve in­
terferir no domínio reservado ao legislador. Como decorrên­
cia dessa norma geral, sustenta-se que a Corte Suprema não
deve revogar seus próprios precedentes quando, subsequen­
temente à decisão, o Poder Legislativo tenha “ atuado sob a
pressuposição” de que essa regra anterior constitui parte do
Direito positivo [Harris 1990:177]. Quando o legislador tenha
interferido em determinado domínio do Direito positivo sem
reformar determinado precedente judicial tido com o relevan­
te, parte-se da premissa de que o legislador aprovou esse
precedente, e por isso as regras de “ cortesia” (comity) entre
os Poderes recomendam a manutenção do case law [Harris
1990; Rorive 2003:513].
(4) Regra da vinculação ao caso concreto (mootness): outro
limite ao exercício do poder de revogar os próprios precedentes

400
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

é o denominado mootness principie, ou seja, a regra segundo a


qual a Corte não deve revisar ou desenvolver o Direito onde
não haja uma disputa concreta sobre a questão jurídica refe­
rente à regra jurisprudencial em questão. Esse princípio nor­
malmente aparece nos debates da House ofLords sob a forma
de vedação de debates de interesse “meramente acadêmico”
no corpo das opinions apresentadas pelos juizes para justificar
suas decisões [Harris 1990:180]. A evolução do case law é lenta
e gradual; ela deve acompanhar o resultado dos julgamentos
e generalizar as soluções dos casos apresentados às cortes de
justiça, e não simplesmente antecipar o processo de evolução
do Direito ou pretender de alguma forma pré-direcioná-lo.
Esses princípios constringentes funcionam, normalmen­
te, com o razões para a manutenção das normas adscritas con­
tidas nos precedentes judiciais.88 Não valem, porém, com o
razões excludentes ou critérios absolutos, mas como diretivas
também dotadas de um caráter pro tanto ou prima facie. Ao
lado deles vigem, também, outros que constituem razões para
o abandono do precedente, como o princípio da correção subs­
tancial do Direito.
Ainda no direito inglês, J. W. Harris [1990:184-195] men­
ciona uma diretriz oposta segundo a qual o precedente judicial
deve ser reformado quando houver uma resposta objetivamen­
te correta acerca de sua violação aos princípios fundamentais
do ordenamento jurídico. O princípio da correção substancial
atua, portanto, como uma força contrária aos princípios constrin­
gentes mencionados acima, exigindo do aplicador do Direito uma

88. O catálogo acima não constitui, obviamente, um rol exaustivo dos princí­
pios constringentes que influem sobre o overruling de uma decisão judicial.
Vários outros podem ser encontrados em judicial dieta ou contribuições
acadêmicas. Privilegiei esses princípios, no entanto, porque sobre eles é
mais fácil erigir um consenso que transcenda as fronteiras do common law e
possa torná-los operantes inclusive para os sistemas de civil law que lidam
com prtecedentes vinculantes em sentido forte ou em um sentido pelo menos
próximo a este. Para um catálogo adicional de diretivas, v. Paterson [1982:156-
157], J. W. Harris [1990] e B. V Harris [2002:422 e ss.].

401
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ponderação no caso concreto para o fim de decidir racional­


mente acerca do overruling de um precedente judicial.
Aqui, Harris traz à colação as situações de aplicabilidade
do princípio da “ausência de novas razões” pela House ofLor-
ds. A regra geral de que a Corte não deve reformar seus pre­
cedentes meramente equivocados sofre uma série de tempera­
mentos que a tornam não mais que um enunciado válido cete-
risparibus. Como já frisamos acima, distinguem-se as situações
de incorreção estrutural e incorreção intrínseca (ultimate
wrongness) de um precedente judicial. Quanto a essas últimas,
podem ser diferenciados ainda os casos de incorreção intrín­
seca objetiva (ultimate objetive wrongness) dos de incorreção
intrínseca impressionista (ultimate impressionistic wrongness).
No último caso - incorreção intrínseca impressionista -
estão presentes duas circunstâncias que qualificam a “ incor­
reção” : (1) a corte anterior já levou em consideração todas as
razões que no momento seguinte foram aduzidas para o fim
de decidir sobre a manutenção ou revogação do precedente
judicial (por isso se trata de uma incorreção “ intrínseca” , já
que se refere não à ausência de consideração de todas as razões
relevantes no caso concreto, mas à ponderação incorreta des­
sas razões); e (2) há margem para uma diferença de opiniões,
sem que qualquer uma dessas diferentes opiniões possa ser
objetivamente qualificada com o “ incorreta” . Como explica
Harris [1990:189], os casos de incorreção intrínseca impressio­
nista compõem “o domínio primário de aplicação da constrição
da ausência de novas razões” . E o terreno que corresponde, a
meu ver, ao das denominadas “margens de ação do legislador” ,
que decorrem da indeterminação dos princípios constitucionais
de modo geral89ou dos limites cognitivos da razão prática acerca

89. V., supra, neste Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2, onde é apresentada a fórmula da


ponderação de Robert Alexy. As margens de ação legislativa (seja as que
decorrem dos limites cognitivos acerca da decisão correta ou dos limites
estruturais acerca dos princípios constitucionais) equivalem, regra geral,
aos casos de empate na fórmula da ponderação de Alexy.

402
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

da correção de determinada norma ou conduta cogitada para


um caso particular.90
Já na outra hipótese - incorreção intrínseca objetiva -
há, à luz das regras da razão prática ou do próprio sistema de
prioridades entre princípios que vai sendo construído ao
longo do tempo pela jurisprudência, argumentos de cunho
objetivo e racionalmente controlável para justificar a correção
da decisão que se pretende adotar ou a incorreção da decisão
que se quer abandonar. Como explica Harris[1990:189], “ a
percepção [de que um precedente é “ incorreto ”] pode estar no
fato de que a questão [tratada no caso] tem uma resposta
objetivamente correta” . Quando esse for o caso, pode-se dizer
que estamos diante de uma situação de violação a um princí­
pio fundamental do ordenamento jurídico, de sorte que o
precedente deve ser ab-rogado com fundamento em um dis­
curso de justificação onde é rejeitada sua pretensão de vali­
dade jurídica. Nesses casos é que se pode falar em uma prio­
ridade do princípio da correção substancial sobre o da ausên­
cia de novas razões (e de outros que, eventualmente, cami­
nhem na sua direção).
Percebe-se, mais uma vez, a conexão estrutural entre a
teoria dos precedentes e as teorias da argumentação jurídica
em geral. E por meio dos procedimentos, critérios e regras de
argumentação contidos nessas teorias que se pode justificar o
abandono de um precedente judicial de natureza formalmen­
te vinculante.
Os discursos de justificação de regras derivadas do case
law são normalmente guiados por regras e princípios formais
de argumentação que estabelecem uma espécie de “ teste de
universalizabilidade” que funciona com o parâmetro funda­
mental para se avaliar a correção do precedente judicial. Há,
porém, um aspecto temporal da universalizabilidade que influi
decisivamente tanto sobre a decisão de se adotar um precedente

90. Sobre esses limites, v., supra, Capítulo 2, n. 2.4.2.6.


^ THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

/
)
/
quanto sobre a de se revisá-lo. Como explica Melissaris, ao se
debruçar sobre o princípio smithiano do expectador imparcial -
proposto por MacCormick com o um critério para avaliar a
justificabilidade das respostas intuitivas que damos para de­
terminadas questões morais únicas e originais pode-se dis­
tinguir entre o aspecto sincrônico e o aspecto diacrônico do
princípio da universalizabilidade.
De um lado, a universalizabilidade sincrônica refere-se a
todos os possíveis participantes de um discurso em determinado
momento temporal isolado: “Para que uma decisão prática seja
universalizável em sentido forte, a noção de expectador imparcial
deve incluir todas as pessoas racionais vivas no momento em que
a decisão prática em questão for tomada (...). Chamemos esse
tipo de universalização sincrônica ou espacial. Nesse sentido, a
universalização é estática, pois aquele único fragmento temporal
é destacado e a máxima do agente é testada em face da lei uni­
versal que deve ser aceita como verdadeira para todos os agentes
presentes neste fragmento temporal” [Melissaris 2006:131].
De outro, a universalizabilidade diacrônica exige do jul­
gador que se libere do contexto cultural e histórico em que a
tomada de decisão é realizada, de sorte que a universalização
se estenda no espaço e no tempo para considerar como parti­
cipantes no discurso tanto os agentes que se encontram no
passado como os que irão se apresentar no futuro: “A univer­
salização no espaço não é suficiente para uma razão ser pro­
priamente universalizada e estar justificada com base em uma
pretensão de correção. Se nossas razões para ação fossem
projetadas apenas para aquele fragmento temporal, elas iriam
claramente estar cultural e historicamente contextualizadas
e impregnadas de preconceitos. Portanto, para a universali­
zação ser completamente inclusiva, ela deve se estender no
tempo e no espaço. Ela deve incluir todos os possíveis agentes
racionais no passado e no futuro. Nesse sentido, a universali­
zação é diacrônica; ela deve se apoiar na estipulação contrafá-
tica de que é possível assumir um ponto de vista omnitemporal”
[Melissaris 2006:131].

404
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

No momento em que um indivíduo reflete sobre as má­


ximas que deve adotar em sua conduta prática, submetendo-
as ao teste de universalizabilidade, um dos fatores que deve
presidir esse processo, para Melissaris, é o tempo. Submeter
nossas máximas ao teste de universalizabilidade implica,
portanto, um exercício do que Kant denominou “ imaginação
transcendental” (transcendental imagination), ou seja, a ca­
pacidade de representação de nossas experiências para além
do nosso tempo:
“Kant reserva a tarefa de fator unificador da consciência
para o tempo. A unificação e continuidade da percepção atra­
vés do tempo é um ato de síntese, que Kant denomina ‘imagi­
nação transcendental’. Ele consiste em o agente ser capaz de
representar suas experiências não meramente no tempo pre­
sente, mas em intervalos de tempo que compreendem um
passado, um presente e um futuro. A imaginação transcenden­
tal, então, torna-se uma condição necessária para todo o co­
nhecimento do mundo.”
“Assim, ao tomar decisões práticas, colocamos nós mes­
mos e as circunstâncias com as quais devemos lidar em um
intervalo de tempo que compreende um passado, um presen­
te e um futuro. E essa imaginação transcendental que liga a
coerência ao nosso caráter moral, nossa predisposição, nossa
Bestimmung, para retornarm os à term inologia kantiana”
[Melissaris 2006:132].
Sem entrar, no momento, no mérito das críticas cons­
trutivas que Melissaris posteriormente desfere a MacCormi-
ck, cabe reconhecer, aqui, a utilidade de sua concepção dia-
crônica de universalizabilidade, que muito se aproxima da
ideia de universalizabilidade em sentido frágil, de Günther,91
e da noção construtivista de coerência com o integridade, de
Dworkin.92Como reconhece MacCormick [2006-b:256], “já que

91. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.3.1.


92. V., supra, Capítulo 2, n. 2.1.

405
^ THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a universalização ao menos aspira à onitemporalidade, apesar


de as tentativas de alcançá-la serem sempre superáveis [defea­
sible], a coerência em um dado ponto no tempo em princípio
pertence a uma estória mais ampla concernente ao desenvol­
vimento do Direito ao longo do tempo” .

Em qualquer momento em que se leve adiante uma


argumentação acerca da validade de uma norma de origem
jurisprudencial deve-se procurar universalizá-la tomando
em conta os efeitos dessa norma no tempo, seja em relação
ao passado ou em relação ao futuro. E claro, no entanto, que
essa universalização diacrônica encontra uma série de limi­
tes ou problemas pragmáticos que decorrem do nosso co ­
nhecimento relativamente limitado sobre o futuro, de modo
que um dos traços dos discursos de justificação de normas
- em especial, normas jurisprudenciais - é que eles devem
sempre estar abertos à possibilidade de se revisar nossas
próprias razões e as normas que foram fundamentadas por
meio destas.
Por isso, talvez seja realmente recomendável um enfra­
quecim ento - ou, diríamos, uma recontextualização - do
standard da universalizabilidade na argumentação jurídica,
com o advogam Melissaris [2006] e Günther [1993-b] - este
último, em especial, quando propõe uma versão frágil do
princípio U de Habermas e o critério da aplicação adequada
{appropriateness) com o regras de argumentação para a Moral
e o Direito.

Mas mesmo nessa versão enfraquecida o princípio da


universalizabilidade ainda constitui a mais importante regra
de argumentação jurídica e o mais forte parâmetro para os
discursos de justificação de precedentes judiciais. E justamen­
te por causa dessa nossa relativa incapacidade de prever o
futuro e levar em consideração todos os aspectos relevantes do
caso concreto que é admissível o overruling de um precedente
judicial ainda que aparentemente não tenham surgido novas
razões para tanto. Muitas vezes uma ponderação equivocada

406
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

de razões, que possa ser objetivamente diagnosticada em de­


corrência dos processos de aprendizagem moral [Habermas
2004-b], é suficiente para fundamentar a conclusão de que uma
regra jurisprudencial anteriormente tida como válida já não
merece mais ser qualificada como tal.
Nesse sentido, a capacidade para corrigir os próprios
erros - que deve ser reconhecida aos juizes - é um traço fun­
damental da autonomia judiciária, e sua garantia não pode
desta se separar. Por isso, B. V. Harris chega a vislumbrar uma
inconsistência na postura tradicional da House ofLords de, por
um lado, não reconhecer a uma corte posterior o direito de
rever seus precedentes sem novas e diferentes razões e, por
outro, assegurar o direito de dissidência: “E difícil reconciliar
a liberdade essencial que um juiz, em uma corte de múltiplos
membros, tem para dissentir dos demais com a obrigação que
a regra do stare decisis impõe àquele mesmo juiz quando ele
se junta a outros com opinião semelhante e em número sufi­
ciente para formar uma maioria em uma apelação subsequen­
te. Seguramente é inconsistente com a liberdade para divergir
que tal maioria não tenha a prerrogativa de ab-rogar [overrule]
o precedente. Tanto o direito de dissidência quanto o argumen­
to de que as cortes finais de apelação subsequentes devem ser
capazes de ab-rogar os próprios precedentes derivam em larga
medida do ethos individualista aceito para os juizes das cortes
de apelação” [Harris 2002:422].
Para B. V. Harris - ao contrário do que sustenta seu
homônimo [Harris 1990] - um approach mais adequado para
as cortes de apelação decidirem acerca do overruling de seus
precedentes equivocados (wrong) seria reconhecer para essas
cortes “uma discricionariedade franca e transparente para se
afastar do precedente após uma ponderação sistemática de
todas as considerações pertinentes” [Harris 2002:422]. De
acordo com sua solução, “com o parte do processo a corte de
apelação deveria ponderar as consequências da perpetuação
do precedente equivocado com os valores, no contexto, da
observância da regra stare decisis. Em certas circunstâncias

407
J
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

esse approach irá causar que o valor de se alcançar a justiça


no caso em questão, e possivelmente no futuro (tendo em
vista o novo precedente que iria ser formado), prevaleça
sobre outros relevantes valores inerentes à doutrina do stare
decisis” [ibidem].
Diferentemente de J. W. Harris, sustenta-se no excerto
acima que, nas situações que correspondem à denominada
“margem de ação” deixada pelos princípios fundamentais do
Direito ao julgador, o tribunal posterior tem a mesma discri-
cionariedade do anterior para reformar e reinterpretar o Di­
reito. Mesmo nos casos que J. W. Harris denominou de “incor­
reção intrínseca impressionista” está a corte posterior autori­
zada a revogar suas decisões desde que justifique esse proceder
por meio de uma ponderação de razões em que os argumentos
para a revisão do precedente consigam preponderar sobre os
que se voltam para sua manutenção.
No entanto, verifico que essa discussão perde muito de
sua importância a partir do momento em que se deixa claro
que a diretiva da ausência de novas razões (no-new reasons)
é interpretada com o apenas um princípio, que pode perfei­
tamente ser ponderado no caso concreto com outras razões
que, com maior ou menor força, impelem-nos a modificar o
case law. A partir do momento em que o próprio princípio
da ausência de novas razões - que encontra fundamento no
princípio perelmaniano da inércia - é interpretado com o um
mandado de otimização que pode ser superado por outros
de maior peso no caso concreto, a crítica de B. V. Harris
perde força, na medida em que a descrição proposta por J. W.
Harris está longe de impedir o afastamento de um precedente
judicial nos casos de incorreção intrínseca impressionista.
Na verdade, ela apenas exige razões explicitamente relevantes
para tanto.
Ademais, a própria situação descrita por B. V. Harris, em
que as razões disponíveis pela corte anterior tenham sido in­
corretamente ponderadas, só pode ser diagnosticada com o

408
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

oferecim ento de novas razões sobre a prioridade dos princí­


pios e argumentos jurídicos, as quais aparecem sob a forma
de uma critica à decisão anterior. Essa crítica, apesar de se
situar em um nível discursivo diferente do das razões pon­
deradas anteriormente pelo tribunal, já constitui um novo
argumento e já atende às exigências decorrentes do princí­
pio da inércia.
Em conclusão, podem os afirmar, a partir dos vários
princípios pró e contra o overruling - e do funcionamento
desses princípios na prática - , que o overruling é uma téc­
nica que se compatibiliza perfeitamente com a força vincu-
lante em sentido forte de um precedente judicial. Para re­
formar o case law, no entanto, é preciso que se consiga fun­
damentar a revogação do precedente por meio de um dis­
curso de justificação normativa em que os parâmetros e
princípios constringentes enunciados nesta seção sejam de­
vidamente considerados.

3.4.3 O overruling de precedentes obrigatórios em sentido


frágil

O overruling de precedentes obrigatórios em sentido


frágil situa-se em uma posição intermediária entre os extremos
da completa ausência de constrição, característica dos prece­
dentes meramente persuasivos, e da presença de fatores ins­
titucionais relevantes e princípios constritivos específicos,
característica dos precedentes formalmente vinculantes.
De um lado, em certos sistemas jurídicos eles padecem
da mesma fraqueza dos precedentes persuasivos, e podem
ser revogados da mesma forma. A diferença entre os prece­
dentes obrigatórios em sentido frágil e os precedentes mera­
mente persuasivos estaria apenas na forma com o eles devem
ser recepcionados pelas cortes inferiores, e não em exigências
especiais que se impõem à própria corte suprema que os
prolatou. Este parece ser o caso da Itália, com o nos informa

409
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Gustavo Zagrebelsky. Com efeito, esse jurista sustenta inexis-


tir no direito italiano uma vinculação ao precedente judicial
pela corte constitucional. Apesar de reconhecer a importância
prática dos precedentes compilados nas massime da Corte -
que funcionam com o parâmetros de unificação do Direito e
harmonização do case law -, o jurista italiano não vislumbra
qualquer tipo de autovinculação em sentido formal por parte
da mais alta Corte Judiciária de seu país: “A importância dos
precedentes maximizados é, portanto, notabilíssima. Mas o
que importa aqui é a sua força no caso crítico (em sentido
literal), ou seja, quando se manifestam razões de qualquer
gênero que contribuem para uma transformação da jurispru­
dência. O fato de a jurisprudência se repetir é por si só um
dado bruto, privado de significado. O que realmente interes­
sa é se se repete - e a medida em que isso acontece - quando
puder haver razões contrárias à repetição [da jurisprudência]”
[Zagrebelsky 1988:97].
Nesse último caso - presença de razões contrárias à re­
petição da solução aventada em uma decisão judicial - o juris­
ta italiano sustenta que os precedentes “jamais assumem a
força de obstaculizar- nem decisivamente, nem relevantemen­
te - uma mudança de direção na jurisprudência” [Zagrebelsky
1988:96]. Em face do denominado autoprecedente, o tribunal
poderia, a qualquer tempo - seja, por um lado, em decorrência
de modificações no contexto social a repercutir sobre o con­
teúdo do Direito, da Moral e dos costumes ou, por outro lado,
em vista de um novo debate em que tenham sido esgrimidos
argumentos para reverter um precedente judicial sob o funda­
mento de sua incorreção -, introduzir um novo case law capaz
de consagrar uma interpretação do Direito mais justa, adequa­
da e racional.
Há, contudo, uma tendência nos sistemas de civil law
de abandono da perspectiva adotada por Zagrebelsky e pela
Corte Constitucional italiana. Com efeito, tem-se verificado
uma aproximação cada vez maior entre os sistemas jurídicos
da tradição romano-germânica e os do common law, inclusive

410
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

em relação aos denominados principies o f overruling, ou seja,


às normas e diretivas gerais que orientam as cortes superiores
ao rever seus precedentes mais importantes. Um olhar mais
recente sobre o case law rios sistemas jurídicos provenientes
da tradição romano-germânica revela que muitas vezes as
cortes superiores hesitam em reformar seus precedentes pelas
mesmas razões que a House ofLords o faz. E o que mostra, por
exemplo, um detalhado estudo jurídico-comparativo entre o
revirement de jurisprudence da Corte de Cassação belga e o
overruling da House o f Lords. Neste estudo, Isabelle Rorive
demonstra que a teoria do revirement de jurisprudence domi­
nante no discurso do Parquet com atuação na Corte de Cassa­
ção guarda nítida semelhança - se não identidade - com aque­
la dominante na House ofLords, muito embora na Corte belga
não se reconheça para o case law o caráter formalmente vincu-
lante existente no direito inglês.
Com efeito, o primeiro princípio da théorie du revirement
de jurisprudence dominante na Cour de Cassation é o da esta­
bilidade da jurisprudência. Como explica Rorive [2003:469], a
concepção dominante no discurso do Parquet General près la
Cour de Cassation é clara: “De uma parte, a Corte deve estar
atenta aos seus precedentes a fim de evitar pronunciar julgados
‘discordantes’; de outra parte, apenãs circunstâncias excepcio­
nais podem motivar a Corte a realizar ‘retornos refletidos’ em
sua jurisprudência” . A própria finalidade da jurisdição de cas­
sação justifica a “ estabilidade de princípio” da sua jurispru­
dência, já que é tarefa da Corte “velar pela uniformidade da
interpretação judiciária a fim de assegurar a autoridade e a
integridade da lei” [idem:470].
Ademais, os princípios constringentes apontados na
descrição da atitude da House ofLords em face do overruling
valem na Bélgica com a mesma intensidade. Foram identifi­
cados nos discursos dos Procuréurs Générales junto à Cour de
Cassation (1) o princípio da “insuficiência do caráter errôneo”
da posição jurisprudencial questionada (de sorte que “ o cará­
ter meramente errôneo de uma solução consagrada pela

411
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Corte não constitui motivo suficiente para descartá-la” , a não


ser nos raros casos em que o revirement se justifica para cor­
rigir “ erro manifesto” ), (2) o requisito da “ existência de um/ato
novo” (seja a ausência de paix juridique ou a evolução dos fatos
e valores dominantes na sociedade) para justificar a reviravol­
ta jurisprudencial e, finalmente, (3) uma limitação quanto ao
overruling de situações tidas como reservadas ao domínio do
legislador [Rorive 2003:469-483].
De m odo geral, pode-se afirmar os seguintes traços co­
muns entre a teoria do overruling da House o f Lords e a théorie
du revirement da Cour de Cassation: (1) o princípio do respeito
às decisões anteriores (como regra geral); (2) o valor periférico
do “ erro” ; (3) a importância standard da absence de paix juri­
dique para justificar o overruling; (4) a identidade - nas duas
cortes - das razões que normalmente são aceitas como justifi­
cação para o revirement (normalmente, considerações de jus­
tiça, coerência e segurança); e (5) a existência das mesmas
constrições à mudança [Rorive 2003:501].
Essas semelhanças têm lugar porque, na prática, a ab-
rogação de um precedente obrigatório em sentido frágil ê
capaz de gerar efeitos semelhantes à de um precedente obri­
gatório em sentido forte, na medida em que a primeira também
é apta a criar as mesmas expectativas aos jurisdicionados e
pode perturbar, de m odo semelhante à segunda (ainda que
não em grau idêntico), a coerência geral do ordenamento
jurídico.
Embora com o regra gerai o overruling de um prece­
dente não estritamente vinculante seja mais fácil de se ju s­
tificar que o de um precedente formalmente vinculante, a
diferença entre ambos é meramente de grau, e as mesmas
considerações de segurança, imparcialidade e justiça devem
ter lugar e ser devidamente ponderadas, ainda que com pesos
diferentes.
Não é por um precedente não ter caráter formalmente
vinculante que sua revogação estará livre das constrições

412
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

institucionais ou dos princípios formais que geram razões para


a manutenção do status quo.
Às vezes revogar um precedente obrigatório em sentido
frágil pode gerar mais injustiça que mantê-lo, tendo em vista
as modificações retrospectivas no Direito que decorrem dessa
reviravolta jurisprudencial.
Esse problem a da retroatividade dos revirements não
é novo, e dá ensejo a muitas discussões no Direito com para­
do. Vejamos, a seguir, com o alguns sistemas jurídicos lidam
com ele.

3.4.4 A "modulação dos efeitos" dos revirements: até que


ponto uma solução adequada para o desenvolvimento
judicial do Direito?

Vimos nas três seções anteriores que o caráter vincu-


lante de um precedente judicial, apesar de não impedir o
overruling, muitas vezes limita sua utilização por meio de uma
série de princípios constritivos que militam a favor do status
quo e dos valores segurança e certeza do Direito. De todos os
obstáculos ao overruling, o que talvez seja mais decisivo é o
princípio da proteção à confiança do jurisdicionado, isto é,
proteção às expectativas legítimas que nascem da uniformi­
zação do Direito pelo tribunal dotado de competência para
resolver as possíveis controvérsias sobre o conteúdo do Di­
reito positivo.
O peso desse princípio - com o tivemos oportunidade de
notar no n. 3.3.2.1 deste capítulo - é muitas vezes descrito como
suficiente para impedir certas transformações no Direito tidas
como corretas e desejáveis pelo tribunal, pois a revogação de
um precedente judicial tem como consequência natural a per­
turbação na ordem jurídica, consistente na sua modificação
com eficácia retroativa.
Não obstante, em alguns sistemas jurídicos onde o
caráter criativo das decisões judiciais é reconhecido mais

413
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

abertamente, desenvolveu-se uma doutrina de modulação dos


efeitos dos overrulings ou reviravoltas jurisprudenciais. Trata-
se da doutrina do prospective overruling, ou seja, a reforma do
case law com efeitos apenas para o futuro, a fim de preservar
as expectativas normativas geradas pelos precedentes aban­
donados. O overruling com efeitos prospectivos tem lugar
quando os tribunais mudam suas regras jurisprudenciais mas
mantêm, por razões de segurança jurídica, a aplicação da
orientação anterior para certos casos. Como salientam Cross
e Harris [1991:229], “ o Direito Ijudicial] anterior se aplicaria a
eventos ocorridos antes da data do overruling (incluindo-se os
do caso em questão), mas deixaria de ser aplicado às transações
iniciadas após aquela data” .
A teoria do prospective overruling, embora conhecida por
sua utilização sistemática pela Suprema Corte dos Estados
Unidos da América, não é um instituto original do Direito m o­
derno. Com efeito, a técnica já era utilizada - ainda que sem
esse nome - na jurisprudência das rotae italianas dos séculos
XVI-XVIII [Gorla 1981-a]. No entanto, provavelmente pela
influência das teorias jurídicas francesas tradicionais, ela não
é mais encontrada no Direito italiano moderno.
Nos ordenam entos jurídicos contem porâneos o pros­
pective overruling encontrou solo fértil no Direito estadu­
nidense, onde vem sendo aplicado - em bora esporadica­
mente - desde o início do século X X . Há registro de sua
utilização na primeira metade do século X IX , bem antes da
sua clarificação pelos teóricos do Direito, no caso “ Bingham
vs Miller ”’93 em que a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao
decidir que o Parlamento não detinha com petência para
conceder divórcio, resolveu afastar a aplicação retroativa de
seu decisum. Na ocasião a Corte considerou que declarar a
nulidade ipso iure dos atos do Legislativo poderia gerar
“ consequências terríveis” , pois seria preciso, num só golpe,

93.17 Ohio 45 (1848).

414
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

considerar poligâmicos vários matrimônios e “ilegítima” sua


prole [Iturralde Sesma 1995:176].
Apesar de hoje a técnica do prospective overruling ser
uma prática considerada “inovadora” fora dos Estados Unidos,
os problemas gerados pela retroatividade das decisões derro­
gatórias de precedentes judiciais tendem a se repetir em pra­
ticamente todos os sistemas jurídicos contemporâneos. Quan­
to mais peso seja atribuído ao precedente judicial na argumen­
tação jurídica, e quanto maior seu reconhecimento com o fonte
do Direito, com mais intensidade se manifesta a necessidade
de implementar mecanismos de modulação dos efeitos das
decisões judiciais. Seguindo o exemplo norte-americano, em
muitos ordenamentos jurídicos hoje se fala na possibilidade e
na conveniência de dotar os tribunais superiores de instrumen­
tos para mitigação temporal dos efeitos das decisões ab-roga-
tórias de precedentes judiciais como uma solução de com pro­
misso entre os valores do “progresso do Direito” e da proteção
da segurança jurídica.
Veremos a seguir, resumidamente, alguns exemplos que
elucidam como o prospective overruling está sendo recebido
no Direito comparado.

3.4.4.1 O prospective overruling no direito dos Estados Unidos


da América

O prospective overruling encontrou no Direito dos Es­


tados Unidos o solo fértil para se desenvolver. E foi a ativi­
dade da Suprema Corte americana, na jurisdição constitu­
cional, que acabou dando origem à mitigação dos efeitos
retroativos das decisões judiciais ab-rogatórias de preceden­
tes judiciais.
O leitor, no entanto, pode se perguntar: mas com o conci­
liar a doutrina da nulidade ipso iure da lei inconstitucional -
assentada pelo Juiz Marshall no célebre caso “ Marbury vs
Madison” - com a eficácia meramente prospectiva de uma

415
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

mutação jurisprudencial? Não haveria, aqui, uma incoerência


entre a tese de que atos inconstitucionais seriam nulos, e, por­
tanto, incapazes de produzir qualquer efeito jurídico concreto,
e a manutenção dos efeitos de precedentes judiciais (muitas
vezes classificados de “errôneos” ou “inconstitucionais” ) da
própria Suprema Corte?
Com efeito, o raciocínio desenvolvido por Marshall no
caso supracitado muitas vezes é até hoje qualificado com o a
teoria dominante no Direito constitucional norte-americano
sobre os efeitos das decisões contaminadas pelo vício da in-
constitucionalidade. Em suas palavras: “ Se (...) as cortes
devem observar a Constituição, e a Constituição é superior
a qualquer ato ordinário do legislador, a Constituição, e não
tal ato ordinário, deve governar o caso ao qual ambos sejam
aplicáveis” .94
Marshall descreve a alternativa de cumprir a Constituição
ou a lei infraconstitucional como uma disjunção: ou se aplica
uma, ou a outra. Todo ato contrário à Constituição deveria,
portanto, ser tido como “ nulo, inválido e ineficaz” [Bonavides
2009:311].
O rigor da teoria da Suprema Corte sobre a nulidade ipso
iure, necessariamente com efeitos ex tunc, foi, porém, gradual­
mente substituído por um pragmatismo que dominou o cená­
rio no Constitucionalismo norte-americano do século X X e
fundamentou, sobre o edifício do Realismo Jurídico, a tese de
que o Judiciário tem amplos poderes para determinar o m o­
mento a partir do qual devem surtir efeito as decisões ab-ro-
gatórias do case law.
Como concluiu o Grupo de Trabalho constituído pelo
Primeiro-Presidente da Corte de Cassação francesa para o
fim específico de estudar a modulação dos efeitos nos revire­
ments de jurisprudence, “ as análises efetuadas [no Direito

94. V. S. Supreme Court, “Marbury vs Madison”, 5 U.S. 137 (Cranch) (1803).

416
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

comparado] atestam que a existência de regras visando a


modular no tempo as decisões de justiça está intimamente
ligada ao lugar que ocupa o juiz no sistema jurídico. Ela
depende claramente do posto garantido à jurisprudência e
do seu reconhecim ento com o fonte do Direito” [Molfessis et
al. 2005:22].
Em nenhum lugar do mundo a modulação dos efeitos
da declaração de inconstitucionalidade poderia encontrar um
contexto mais favorável que nos Estados Unidos da primeira
metade do século X X . Pode-se dizer, sem exagero, que esse
momento da história do direito norte-americano foi a idade-
de-ouro do Realismo, que teve seu início nas últimas décadas
do século XIX , com os escritos de Holmes, e foi ganhando
cada vez mais força com a jurisprudência sociológica, de
Pound, e os estudos de Llewellyn, Frank e seus sucessores.
Mas, concretamente falando, o que foi o Realismo Jurídico?
Embora eu já tenha oferecido um esboço de resposta em di­
ferentes seções deste trabalho, nenhuma delas é tão rica e
precisa quando a de Yntema, no seguinte parágrafo: “ O que
na realidade é o Realismo Jurídico americano? Em resposta,
foi apontado [durante o debate entre Llewelyn e Pound, na
década de 1930] que ele não era uma nova escola de ciência
do Direito [jurisprudence], mas representava ao invés os es­
forços com plementares de um número de indivíduos em
vários terrenos, com técnicas variadas e com diversas predis­
posições, para estender o conhecimento do Direito por meio
da investigação crítica ou factual. Entre esses, no entanto,
vários pontos de partida comuns podiam ser discernidos: a
concepção de Direito e sociedade em fluxo, com o Direito
tipicamente por trás; a noção de criação judicial do Direito;
a concepção do Direito com o meio para fins sociais e a ava­
liação do Direito pelas suas consequências; a insistência em
um estudo objetivo dos problemas jurídicos, temporariamen­
te divorciando o ‘ser’ do ‘dever-ser’; a descrença em regras
jurídicas com o descrições de com o o Direito opera ou é atual­
mente administrado, e particularmente sua confiabilidade

417
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

enquanto üm prognóstico de decisão; a insistência na neces­


sidade de um estudo mais preciso das situações e decisões
jurídicas em categorias mais estritas e de uma pesquisa p ro­
gramática sustentada nessas linhas. Numa palavra, o progra­
ma implícito no Realismo Jurídico era um detalhado e obje­
tivo estudo do Direito enquanto instrumento para alcançar
fins e no contexto de uma sociedade cambiante” [Yntema
1961:319-320].

As concepções realistas acerca do Direito constituíram


a base para a sedimentação da modulação dos efeitos das
reviravoltas jurisprudenciais, porque elas reconheciam aber­
tamente - e por vezes até exageradamente - o poder de cria­
ção do Direito detido pelos juizes em geral. O juiz tem, assu-
midamente, o papel de estabelecer normas gerais que devem
ser observadas nos casos posteriores, sendo que essas normas
gerais devem ser elaboradas não unicamente em vista do caso
concreto, mas com a finalidade de atingir certos fins sociais
ou políticas públicas (policies) para as quais o Direito consti­
tui um meio.

Argumentos de natureza consequencialista, teleológica,


política etc. não são enxergados com estranheza pelos tribu­
nais ou pelos cientistas do Direito. Há uma ênfase na descri­
ção do Direito em seu funcionamento prático, ao law in action,
e não mais nos conceitos e propriedades formais encontrados
nas normas jurídicas promulgadas pelo legislador (law on the
books). Quando Yntema descreve essa concepção do Direito
com o vinculada a uma ideia de “ sociedade e Direito em flu xo” ,
sendo que o Direito normalmente caminha atrás, seguindo as
necessidades e as demandas originadas da evolução e modi­
ficação dos valores sociais, fica claro que o poder normativo
dos juizes de decidir sobre os aspectos temporais da eficácia
do case law que eles produzem não é visto com o uma “ usur­
pação” do poder legislativo, mas com o um aspecto natural da
atribuição que os juizes detêm para, em diferentes momentos,
dizer o que é o Direito.

418
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

O prospective overruling nasce, portanto, do Pragma­


tismo e do Realismo Jurídico norte-americano, com seu p o ­
tencial extremamente inovador e criativo para fornecer so­
luções ao jurista prático, que o tornou capaz de flexibilizar o
uso de conceitos com o “ nulidade” e “ aplicação do Direito” e
quebrar dogmas com o o do caráter meramente declaratório
da decisão judicial. Como explica Iturralde Sesma [1995:169]:
“ Quando um sistema, com o o inglês ou o norte-americano,
não apenas permite mas também obriga o juiz a se remeter
a decisões passadas, o elemento de prescrição chega a ser de
grande importância. Ditas decisões geram expectativas a
respeito de direitos e obrigações e as partes orientam suas
ações em função delas. Se a sociedade fosse estática e os
tribunais infalíveis, isso representaria poucos problemas;
mas, com o os tempos mudam e os tribunais se equivocam,
os juizes enfrentam frequentemente o dilema de trair certas
expectativas por meio de uma mudança jurídica ou seguir
uma decisão antiquada... O problema que se coloca com a
derrogação [de um precedente] é precisamente este. A escolha
entre dar mais valor à confiança e à certeza ou eliminar uma
norma obsoleta e, consequentemente, excluir o erro consa­
grado em decisões anteriores” .
No Direito dos Estados Unidos a solução dada pela Su­
prema Corte a esse problema foi - apesar de frisar que a regra
geral é a do caráter retroativo das decisões revogatórias de
precedentes judiciais - reconhecer certa margem de ação ao
Judiciário para manipular os efeitos temporais do case law.
Quando um novo precedente é criado, o tribunal pode aplicá-lo
das seguintes maneiras:
(A) Aplicação retroativa - nesse caso, a decisão derroga­
tória “ regula as condutas que tenham tido lugar antes e depois
da decisão, incluindo-se a conduta das partes perante o tribu­
nal” [Iturralde Sesma 1995:171]. Aplica-se, aqui, a teoria decla-
ratória das decisões judiciais, ou seja, a tese de que o juiz
meramente declara o Direito preexistente. Esta situação abar­
ca a grande maioria das decisões da Suprema Corte, e pode

419
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ser qualificada como a eficácia natural das decisões revogató­


rias de precedentes judiciais.
(B) Aplicação puramente prospectiva (purely prospective
overruling) - aqui, o tribunal aplica o novo precedente “somen­
te aos fatos que tenham lugar depois de ser estabelecida a nova
regra, de sorte que esta não se aplica sequer ao caso que oca­
sionou sua derrogação” [Rossler, apud Iturralde Sesma
1995:170]. Parte-se usualmente, para justificar esse tipo de
solução, da premissa de que os tribunais de apelação realizam
simultaneamente duas funções ao decidir um caso: (1) resolvem
o caso e (2) conformam o Direito judicial [Iturralde Sesma
1995:177; Molfessis et al. 2005:9], “Como os fatores que podem
controlar essas duas funções podem ser diferentes, o tribunal
pode considerá-los separadamente” [Iturralde Sesma 1995:177].
Como descreve Iturralde Sesma: “A premissa básica desta
teoria é que os tribunais obviamente criam Direito no proces­
so de decidir os casos. Os que estão a favor da derrogação
prospectiva assinalam que, posto que os juizes de fato realizam
essa função [de criação do Direito], teriam que fazê-lo mais
abertamente. Concluem que os tribunais têm que se sentir
livres para sopesar o efeito com o precedente, ou ‘legislativo’,
de suas decisões liberados de qualquer preocupação de que,
modificando a regra estabelecida (ainda que para uma m e­
lhor), darão uma solução injusta para as partes do caso, ou
para outras que tenham atuado confiando no precedente
rechaçado” [ibidem].
(C) Aplicação quase-prospectiva (regular prospective ap-
plication) - há nessa variante uma situação híbrida. De um
lado, o tribunal protege a confiança das decisões anteriores,
aplicando a decisão derrogatória a atos, fatos e transações
realizados depois da data da efetiva decisão derrogatória. Ao
mesmo tempo, porém, de outro lado, estabelece a aplicação
retroativa no caso específico das partes do processo ou das
partes que já tenham ajuizado demandas em curso [Iturralde
Sesma 1995:181]. Trata-se, com efeito, de uma fórmula de
compromisso, pois o tribunal busca, a um só tempo, preservar

420
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

as situações consolidadas com base na jurisprudência anterior


e premiar aqueles jurisdicionados que tenham posto em xeque
a norma anterior, contribuindo para a correção e o desenvol­
vimento do case law.
(D) Aplicação prospectiva-prospectiva - o tribunal esta­
belece uma nova regra, mas pospõe seus efeitos para uma data
futura. Aqui, normalmente, o tribunal estabelece um novo
precedente, mas pretende dar uma chance ao legislador para
que faça as alterações no Direito necessárias para a aplicação
tranquila e adequada desse novo precedente judicial [Iturralde
Sesma 1995:181].
A manipulação dos efeitos dos precedentes ab-rogatórios
constituiu em diferentes episódios da história dos Estados
Unidos uma importante ferramenta para permitir a evolução
do Direito sem pagar o preço de causar modificações traumá­
ticas no ordenamento jurídico e frustrar, de forma iníqua,
expectativas legítimas geradas pela conduta da Suprema
Corte no passado. No caso “Linkletter vs Walker”’95por exem­
plo, pôde-se declarar a inconstitucionalidade de uma série de
provas atentatórias aos direitos fundamentais sem, contudo,
reformar os milhares de veredictos que foram proferidos com
base em provas tidas como perfeitamente licitas no momen­
to em que elas foram produzidas, mas posteriormente decla­
radas inconstitucionais. Na ocasião, entendeu a Suprema
Corte que os propósitos da regra estabelecida no caso “ Mapp
vs Ohio”96- que inadmitiu pela primeira vez o uso de certas
provas ilícitas pelos tribunais - foram os de desestimular a
ação ilegal da Polícia e proteger a privacidade das pessoas de
modo geral, e que esses propósitos não seriam atendidos caso
se desse à regra “Mapp” um efeito completamente retroativo.
Por isso, seria melhor manter inalterados os julgamentos já
realizados com base no Direito anterior a esta nova regra

95. 381 U S 618, 620 (1965).


96. 367 US 643 (1961).

421
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

judicial, inclusive o julgamento do demandante no caso “Link-


letter” [Iturralde Sesma 1995:173].
Algum tempo depois, em “ Chevron Oil Co. vs Huson”97a
Corte chegou, inclusive, a elaborar uma teoria geral do pros-
pective overruling e estabeleceu que os seguintes fatores devem
ser considerados quando se arguir a limitação dos efeitos das
mudanças jurisprudenciais: (1) se a decisão estabelece uma
nova norma jurídica; (2) se a aplicação retrospectiva iria avan­
çar ou retardar a aplicação da nova regra; e (3) se a decisão
poderia produzir resultados substancialmente iníquos caso
aplicada retrospectivamente. Embora vagos e submetidos a
múltiplas exceções, esses princípios ainda fazem parte do di­
reito dos Estados Unidos.
Vejamos, a seguir, com o essa técnica foi recebida por
outros ordenamentos jurídicos.

3.4.4.2 O overruling, a teoria dedaratória e o direito inglês

No direito inglês, por influência da jurisprudência analí­


tica de Bentham e Austin, a teoria dedaratória das decisões
judiciais está, desde o início do século XIX, em franca deca­
dência. Não obstante, até bem recentemente a House ofLords
apresentava certa resistência à introdução do prospective over­
ruling no direito do Reino Unido.
O Positivismo Jurídico benthamista consubstanciou,
como já vimos, uma pungente crítica à teoria dedaratória de
Hale e Blackstone, a qual se faz sentir até os dias de hoje na
jurisprudência da House ofLords.
A questão da natureza do precedente judicial e do poder
normativo de que dispõem os juizes das cortes superiores foi
expressamente rediscutida pela Câmara de Apelações da Hou­
se ofLords no julgamento de “Kleinwort Benson Ltd. vs Lincoln

97. 407 US 97 (1971).


F
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

City Council”98em que a Corte passou a adotar a regra segun­


do a qual está permitia a restituição de valores pagos com
fundamento em “ erros de direito” - e não apenas em “erros de
fato” - por parte do devedor. Nesse caso, como relata MacCor-
mick [2005:258]: “A regra a impedir a restituição de pagamen­
tos feitos com fundamento em erros de direito acabou por ser
revertida por uma decisão judicial, apesar do fato de a Law
Commision ter recomendado uma redeterminação legislativa
- e não judicial - do Direito, a fim de que a nova solução pu­
desse ao mesmo tempo lidar com os problemas consequencia-
listas ligados ao potencial enfraquecimento da certeza em re­
lação às transações concluídas. Lord Goff e a maioria que de­
cidiu em favor da revogação da regra da ausência de restituição
por ‘erros de direito’ perceberam, de fato, que esse era um caso
de ‘desenvolvimento do Direito’. Ele de fato envolveu uma
modificação em uma regra há muito estabelecida, com um
efeito inevitavelmente retrospectivo, em vista da teoria de-
claratória dos precedentes que era prevalecente” . A Corte
teve de enfrentar - e o fez expressamente - as consequências
do novo case law que ela estava a introduzir, em especial a
possibilidade de abalo na confiança depositada pela socieda­
de nas instituições jurídicas e de desatendimento a várias
expectativas normativas de indivíduos potencialmente afeta­
dos pela aplicação retroativa da nova regra jurisprudencial.
Vieram à tona, naturalmente, as relevantes discussões teóri­
cas entre os defensores da teoria declaratória da adjudicação
e as teorias positivistas preponderantes no discurso jurídico
inglês do século X X .
No entanto, a Corte revelou-se extremamente influencia­
da pelos argumentos positivistas derivados de Bentham e do
Realismo americano e expressos na doutrina que Lord Reid,
entre outros, desenvolveu na década de 1970.
Lord Browne-Wilkinson, por exemplo, enfaticamente
criticou a teoria declaratória do precedente judicial: “Essa

98. [1999] 2 AC 349.

423
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

posição teórica [teoria declaratória] é, como disse Lord Reid,


um conto de fadas em que ninguém mais acredita. Na verdade,
os juizes fazem leis e modificam o Direito. Todo o common law
é criação judicial e apenas por modificações judiciais no Direi­
to o common law se m anteve relevante em um m undo
cambiante” .99
De modo semelhante, Lord Goff o f Chieveley argumen­
tava: “Em tempos recentes, entretanto, uma posição mais re­
alista foi adotada, como na célebre afirmação de George Jessel
de que as regras de equity, diferentemente das regras do com­
mon law, não são tidas como estabelecidas desde um tempo
imemorial, mas foram inventadas, alteradas, desenvolvidas e
refinadas de tempo em tempo: v. em In re Halletfs Estate (1880)
13 Ch. D. 696,710. Não pode haver dúvida da veracidade desse
enunciado; e todos nós sabemos que, na realidade, seja no
common law ou na equity, o Direito está sujeito a ser desenvol­
vid o p or ju izes - norm alm ente, é ób vio, p or ju izes de
apelação” .100
E Lord Lloyd of Berwick, por sua vez, concluiu: “ Segue-
se que em tal caso a House o f Lords está fazendo mais que
‘desenvolvendo’ o Direito. Ela está mudando o Direito, como o
senso comum sugere e com o Mr. Southwell estava certo em
admitir. Se essa visão do que acontece é inconsistente com a
teoria declaratória da função judicial, então, é a hora de dizer
isso. Ela sempre foi um conto de fadas” .101
Como se pode observar, a Corte é sensível à tese positi­
vista - que, em linhas gerais, é o mesmo argumento que fez do
Realismo uma das escolas do pensamento jurídico mais impor­
tantes dos Estados Unidos - e não economiza críticas à teoria
declaratória da adjudicação, embora esta tenha dominado o

99. Pronunciamento em “Kleinwort Benson Ltd. vs Lincoln City Council


[1999] 2 AC 349, p. 358.
100. Ibidem.
101. Ibidem.

424
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

discurso de alguns dos juristas que mais contribuíram para a


sistematização e a racionalização do common law, como Hale
e Blackstone.
Por que, então, a doutrina do prospective overruling teve
tanto sucesso nos Estados Unidos e ainda enfrenta tanta resis­
tência no Reino Unido, já que há tantos elementos em comum
na teoria jurídica - e no próprio Direito - desses dois Estados?
A resposta encontra-se, provavelmente, em fatores históricos.
Como vimos, a exacerbação do Positivismo de Bentham -
levada a efeito por seus sucessores - conduziu a prática jurídi­
ca a uma posição de extremo apego à auctoritas e a uma teoria
dos precedentes que corre o risco de se desvincular de qualquer
exigência de fundamentação racional: deve-se seguir os pre­
cedentes porque eles foram estabelecidos validamente, e, por
conseguinte, constituem direito positivo.102 O ato de estabele­
cimento do case law é visto como um ato de autoridade, e não
como um ato de descoberta da verdade. Essa autoridade foi
tão exacerbada que chegava a ponto de vincular o próprio
tribunal que estabeleceu o precedente. Era como se o sobera­
no tivesse delegado à House ofLords o poder de estabelecer o
precedente, mas não o de reformá-lo.
A Corte não podia, durante um período de mais de um
século, que terminou apenas no ano de 1966, sequer revogar
o próprio case law para rever seus erros ou ajustar o Direito
às transformações sociais de m odo geral. O instituto do over­
ruling, embora tenha sido incorporado à prática da House o f
Lords, continua a ser utilizado com uma frequência relativa­
mente reduzida e ainda é considerado instrumento de uso
excepcional.
Fora da House ofLords, aliás, a prática de rever os pró­
prios precedentes é ainda considerada expressamente proi­
bida, de sorte que, se uma corte inglesa de apelação tiver

102. V., supra, Capítulo 1, ns. 1.4.2.2 e I.4.2.3.

425
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

posicionamento contrário ao seu próprio precedente, deve,


ao invés de revê-lo, conceder leave to appeal e remeter o
processo para a corte superior. Esse é, com efeito, o entendi­
mento reiterado por Lord Bingham em um caso de discre­
pância entre os tribunais ingleses acerca da aplicação da
Convenção Europeia de Direitos Humanos: “ Como Lord
Hailsham observou, ‘em questões jurídicas, um certo grau
de certeza é ao menos tão valioso quanto uma parte de ju s­
tiça ou perfeição’. Esse grau de certeza é mais bem alcança­
do ao se aderir, mesmo no contexto convencional, a nossas
regras sobre precedentes judiciais. Será com certeza ônus
dos juizes revisar os argumentos convencionais dirigidos a
eles, e se eles considerarem um precedente vinculante in­
consistente, ou possivelmente inconsistente, com as authori-
ties de Strasbourg, eles podem expressar suas opiniões e dar
trânsito à apelação [leave to appeal], com o a Court o f Appeal
fez aqui. Leap-frog appeals podem ser apropriados. Nesse
sentido, na minha opinião, eles se desincumbem de seu dever
estabelecido pelo Act de 1998. Mas eles devem seguir o pre­
cedente vinculante, com o também fez a Court o f Appeal
nesse caso” .103
Na opínion supratranscrita Lord Bingham refere-se a
um caso em que a Court o f Appeal estava em dúvida acerca
da aplicabilidade de um precedente judicial prolatado por ela
mesma, e não de um precedente da House o f Lords ou da
Corte de Strasbourg, sobre a interpretação do Direito con­
vencional. Ainda assim, a solução correta seria, na hipótese
de aplicabilidade do precedente (ou, mesmo, de dúvida sobre
sua aplicabilidade), remeter o processo à House o f Lords, para
que apenas esta Corte decidisse se deveria, ou não, reformar
o precedente estabelecido pelo juízo de origem. Não importa
que a Court o f Appeal desaprove o próprio precedente: ela
não poderá revogá-lo.

103. Opinion de Lord Bingham of Cornhill em “Leeds City Council (Respon­


dents) vs Price and Others (FC) (Appelants)” [2006] UKHL 10.

426
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Há uma espécie de força da tradição que leva o juiz inglês,


de modo geral, a adotar uma postura cautelosa, se não conser­
vadora, ao reexaminar e rediscutir o case law. E tal postura
parece ter dom inado a argum entação dos law lords em
Kleinwort.
Essa “força da tradição” talvez constitua uma das causas
do fato de a House ofLords nem mesmo por hipótese ter admi­
tido a técnica do prospective ovenruling, pois esta representaria
uma modificação profunda em sua prática, ainda que se reve­
lasse mais compatível com a teoria positivista dominante entre
os law lords e os juristas de modo geral.
Uma outra causa, ademais, pode estar na autoridade
ainda reconhecida pelos law lords aos books o f authority de
Hale e Blackstone, que expressamente defendiam a teoria
“ declaratória” da atividade jurisdicional. Com efeito, parece
haver uma postura à primeira vista incoerente, mas que tem
uma razão de ser que tentarei demonstrar logo à frente, de
se tentar “ salvar” uma parte da teoria declaratória, reinter-
pretando-a, ao invés de simplesmente a descartar por com ­
pleto. Nesse sentido, o mesmo Lord Goff, que havia concor­
dado com Lord Reid em que a teoria declaratória seria um
“ conto de fadas” , mais tarde tenta encontrar um sentido
contemporâneo capaz de mantê-la viva. Vejamos: “Nós temos
de reinterpretar a teoria declaratória da decisão judicial. Nós
podem os ver que, de fato, ela não presume a existência de
um sistema ideal de common law, que os juizes de tempo em
tempo revelam em suas decisões. A teoria histórica da deci­
são judicial, apesar de ter servido a esse propósito no passa­
do, era de fato uma ficção. Mas ela significa que, quando os
juizes enunciam o que é o Direito, suas decisões têm, no
sentido que eu descrevi, um efeito retrospectivo. Isso é, eu
acredito, inevitável” .104

104. Opinion de Lord Goff of Chieveley em “Kleinwort Benson Ltd. vs Lincoln


City Council”, cit. na nota 98, supra.

427
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Essa versão reinterpretada da teoria declaratória foi


descrita por Tur como uma versão “ enfraquecida” de tal teoria.
Enquanto a versão “ forte” ou clássica da teoria sustentava que
haveria apenas um Direito - imutavelmente correto - que teria
origem na razão ou nos costumes, sendo que a atividade judicial
meramente o revelaria e não representaria mais que um sinal
de seu conteúdo, essa versão frágil, desenvolvida por Lord Goff,
parece compatível com a existência de dois direitos, o de antes
e o de depois do desenvolvimento ou modificação do Direito
pela jurisprudência: “A teoria declaratória clássica era uma
teoria sobre um único Direito. Ela supunha, contrariamente
aos fatos históricos, que o único e correto common law era
imutável e reconhecia que erros acerca do common law pode­
riam ser cometidos mesmo pelos mais altos tribunais (...). Mas
a teoria declaratória reinterpretada é uma teoria sobre dois
direitos [... is an admittedly ‘two law’ theory]-, o Direito tal como
ele era (não havia ressarcimento do dinheiro pago com funda­
mento em erro de direito) e o Direito tal como ele é hoje (há
ressarcimento do dinheiro pago com fundamento em erro de
direito)” [Tur 2002:473].
No entanto, o mesmo autor sustenta, com bons argu­
mentos, a incorreção do raciocínio de Lord Goff segundo o
qual a teoria declaratória, nessa versão enfraquecida, teria
com o consequência “ inevitável” a eficácia retroativa do di­
reito judicial. Com efeito, se podem os distinguir entre o Di­
reito tal como ele era e o Direito tal como ele passou a ser, “ não
é nem verdade nem inevitável” que o Direito aplicado aos
casos anteriores não possa ser o Direito anterior, ainda mais
quando o Direito tenha sido radicalmente reconstruído no
caso concreto. “ Em tais circunstâncias - afirma -, logicamen­
te há uma escolha do Direito. Ou a regra antiga ou a nova se
aplica. O princípio da equidade vale para os dois lados. Em
certos casos a confiança justificável na regra antiga torna a
aplicação da regra nova impensável. (...). Em outros, espe­
cialmente quando o Direito tenha sido crescentemente aber­
to a dúvidas, seria iníquo ao litigante que tenha advogado a

428
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

mudança ou desenvolvimento do direito privá-lo dos efeitos


de seu sucesso forense” [Tur 2002:473].
Com sua confusa versão “ frágil” ou “ reinterpretada”
da teoria declaratória, Lord Goff não consegue justificar a
“inevitabilidade” da aplicação retroativa do novo direito
jurisprudencial. A razão desse fracasso está, a meu ver, na
impossibilidade de se fundamentar com argumentos analí­
ticos a retroatividade do direito jurisprudencial, a não ser
com a teoria implausível - porque desmentida pela experi­
ência - de que há apenas um único Direito, necessariamen­
te correto e estático, que deve ser apenas declarado pelos
órgãos de adjudicação.
Lord Goff poderia ter tido mais sucesso se tivesse ten­
tado vindicar sua tese de que o case law necessariamente deve
ter efeitos retroativos com argumentos normativos, mas ain­
da assim esse sucesso dependeria de uma ponderação entre
as razões de correção que justificam a reviravolta jurispru­
dencial e as razões de estabilidade que, eventualmente, ve­
nham a ser aventadas para manter intocados os atos jurídicos
praticados com base nas expectativas geradas pelo Direito
anterior. Não precisaria, porém, para tanto, reinterpretar a
teoria declaratória.
Na verdade, se podemos falar em alguma inevitabilidade,
esta reside não na retroação da eficácia da nova regra juris­
prudencial estabelecida pelo overruling, mas na própria neces­
sidade de ponderar acerca dos efeitos temporais da nova regra
judicial que está sendo estabelecida pelo tribunal, pois os casos
relativos a fatos ocorridos no passado mas ainda não submeti­
dos definitivamente ao Poder Judiciário ainda se acham sem
solução, e a aplicação de qualquer das duas regras (a anterior,
revogada, e a nova, revogadora) em tese pode ser uma alter­
nativa plausível nos casos difíceis.
Nesse sentido, argumenta Tur que o próprio direito
inglês vem historicamente admitindo, em situações excepcio­
nais, a técnica do not following, ou seja, a não-aplicação de

429
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

um precedente em um caso concreto por razões de segurança


jurídica geradas por expectativas normativas anteriormente
tidas como legítimas [Molfessis et al. 2005; Tur 2002] - o que
consubstancia pelo menos uma versão enfraquecida do pros-
pective overruling tradicional. Não é exagero sustentar, portan­
to, que muitas vezes a House o f Lords consegue alcançar um
efeito semelhante ao do prospective overruling ao não seguir
determinado precedente judicial [Tur 2002:488].
Essa inconsistência na jurisprudência da House o f Lords,
no entanto, parece estar chegando finalmente a um fim, apesar
de ter resistido por longas décadas.
As críticas de Tur à jurisprudência da House o f Lords
produziram significativo impacto na prática judicial do Reino
Unido. Poucos anos depois da publicação de seu ensaio a Hou­
se o f Lords foi chamada a examinar novamente a possibilidade
de aplicação do prospective overruling no Reino Unido. Mas
dessa vez, no caso “National Westminster Bank plc vs Spectrum
Plus Ltd. and Others”,105a Corte mostrou-se muito mais sensí­
vel às razões que justificam a aplicação do prospective overru­
ling. Após um longo arrazoado onde foram tecidas vastas
considerações sobre o direito comparado (especialmente nos
países da tradição do common law) e sobre as dificuldades
práticas e objeções de princípio ao overruling prospectivo, Lord
Nicholls o f Birkenhead, apesar de já se ter pronunciado ante­
riormente de forma contrária à implantação de tal instituto
jurídico,106 admitiu expressamente a viabilidade jurídica de a
Corte utilizar o prospective overruling em casos excepcionais.
Em suas próprias palavras:
“Exemplos onde esse poder foi usado pelos tribunais
na experiência jurídica estrangeira sugerem que pode haver
circunstâncias nesse país onde o prospective overruling seja

105. [2005] UKHL 41.


106. Pronunciamento de Lord Nicholls of Birkenhead em “Hindcastle Ltd.
vs Barbara Attenborough Associates Ltd.” [1997] AC 70, 95.

430
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

necessário para servir ao objetivo fundamental das cortes des­


se país: administrar a justiça de forma equânime e de acordo
com o Direito. Pode haver casos em que a decisão de uma
questão de direito, seja no common law ou na legislação, seja
inevitável, e essa decisão traga tantas consequências graves,
iníquas e imprevisíveis para as transações e acontecimentos
passados que esta Casa estará compelida a se afastar das regras
relativas aos efeitos retrospectivos e prospectivos das decisões
judiciais (...).
“Rigidez na operação de um sistema jurídico é um sinal
de fraqueza, não de força. Ela priva o sistema jurídico da ne­
cessária elasticidade. Longe de alcançar um resultado consti­
tucionalmente legítimo, ela pode produzir um sistema jurídico
inábil para funcionar efetivamente em tempos de mudança.
‘Nunca diga nunca’ é um sábio preceito jurídico, no interesse
de todos os cidadãos deste país.” 107
Esse pronunciamento, embora não tenha aplicado a téc­
nica do prospective overruling no caso em tela, fixou o princípio
de que ele é plenamente compatível com o direito do Reino
Unido.
Assentou-se a diretiva de que o overruling prospectivo é
em tese admissível tanto no desenvolvimento do common law
quanto na mudança de interpretação da legislação parlamen­
tar. No que concerne à primeira hipótese (aplicação em mu­
danças no common law) a orientação foi unanimemente acata­
da na House ofLords, que estava constituída por Lord Nicholls
of Birkenhead, Lord Steyn, Lord Hope of Craighead, Lord Scott
of Foscote, Lord Walker o f Gestingthorpe, Baroness Hale of
Richmond e Lord Brown o f Eaton-under-Heywood. Quanto à
segunda hipótese, foram vencidos apenas Lord Steyn e Lord
Scott or Foscote.

107. “National Westminster Bank pic vs Spectrum Plus Ltd. and Others”
[2005] UKHL 41, pars. 40-41.

431
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Há sinal, portanto, de importante evolução na doutrina


da House ofLords quanto à aceitabilidade expressa do prospec­
tive overruling.

3.4.43 O prospective overruling no direito alemão

No Direito alemão a técnica do prospective overruling


também ainda está longe de ter a mesma aceitação que no
D ireito estadunidense. Com o explicam A lexy e D reier
[1997:57], “ não há uma prática comum de prospective overru­
ling na Alemanha. Tal prática foi às vezes demandada em
escritos de natureza acadêmica, mas nunca se tornou uma
opinião predominante” .
Mais comum revelam-se a utilização de um anticipatory
overruling pelas cortes inferiores - que buscam incentivar as
cortes superiores a romper com uma determinada linha de
precedentes [Alexy/Dreier 1997:58] - e a enunciação de obiter
dieta que indicam um gradual enfraquecimento da adesão dos
tribunais superiores a determinada regra judicial, que torne o
jurisdicionado capaz de prever antecipadamente uma revira­
volta na jurisprudência dominante.

No Direito alemão o ponto de partida para considerar a


possibilidade de aplicação do prospective overruling é a pre­
missa de que a proibição de retroatividade da legislação não
se aplica ao case law, ainda que o Direito judicial seja reco­
nhecido com o “ uma fonte jurídica independente” . Nesse
sentido, explicam Zimmermann e Jansen [1998:305] que essa
proibição de retroatividade “ é uma regra especial necessária
para proteger a confiança razoável, tendo em vista que o
Parlamento pode - nos confins determinados pela Lei Fun­
damental - implementar qualquer regra jurídica que ele
quiser: os enunciados legislativos não necessitam estar basea­
dos em argumentos convincentes; nem devem passar por um
teste de razoabilidade. Sua validade depende (apenas) de
saber se o órgão que a promulgou era competente para tanto

432
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

e se os requisitos processuais para a promulgação das leis


foram obedecidos. A proibição de legislação retroativa guar­
da relação com o (relativo) arbítrio substancial das leis em
uma Democracia” .
Como no direito judicial, diferentemente, as decisões
apenas se sustentam em função dos argumentos jurídicos em
que elas se baseiam - de sorte que sua validade resta na
“qualidade de suas razões” , e não em um poder relativamen­
te livre de decisão política - , o “direito judicial não tem o
caráter definitivo de um com ando legislativo, mas apenas
uma natureza mais fraca ou pro tanto” [Zimmermann/Jansen
1998:306].
Por isso, Zimmermann e Jansen aduzem argumentos
normativos para não aplicar o princípio da proibição de re-
troatividade ao Direito judicial: “ Mesmo no caso do Direito
judicial, pode surgir a questão de com o a confiança indivi­
dual dos cidadãos deve ser protegida. Tal proteção é essen­
cialmente uma exigência constitucional. Uma vez que os
regramentos judiciais constituem uma atividade do Estado,
a consistência e confiabilidade deles perm anecem com o
elementos indispensáveis do princípio do Rechtsstaat, ainda
que o Direito legislativo e o Direito judicial não possam ser
formalmente equacionados. Mas a proibição de retroativi-
dade dificilmente pode ser um meio adequado para im ple­
mentar tal proteção; ela iria ou levar à fossilização de uma
linha de precedentes que hoje é considerada equivocada, ou
exigir que as cortes conscientemente estabelecessem regras
jurídicas de aplicação geral - com o, por exemplo, pela via do
prospective overruling. Isso não é, no entanto, reconciliável
com a função primária do Judiciário de prover decisões ra­
zoáveis para casos individuais. As cortes não têm autoridade
para além da decisão dos casos em tela; e, em particular, elas
não podem estabelecer regras gerais para decidir casos fu­
turos. Como resultado, pode-se dizer que a proibição de
retroatividade não é exigida por considerações de Direito
constitucional. Pelo contrário: pronunciamentos judiciais

433
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

com efeito meramente prospectivo iriam parecer transgredir


a fronteira entre legislação e adjudicação. A retroatividade
deve, por conseguinte, ser a regra geral quando se trata de
determinar os efeitos do direito judicial” [Zimmermann/Jansen
1998:306-307].

Embora a conclusão de que a retroatividade “deve ser a


regra geral quando se trate de determinar os efeitos do judge-
made law” possa ser tida como inquestionável não apenas no
Direito alemão, mas em qualquer sistema jurídico contempo­
râneo - inclusive nos Estados Unidos, onde o prospective over­
ruling é aplicado de forma aberta -, há certos passos interme­
diários no raciocínio jurídico contido no trecho supracitado
que não podem ser aceitos com tanta tranquilidade.
É claro que os autores têm razão ao arguir que a “ proi­
bição de retroatividade” , estabelecida pela Constituição para
os atos do legislador, não é uma regra que produz efeitos em
relação aos tribunais de justiça. Mas daí não se pode inferir,
por outro lado, que a limitação da retroatividade das decisões
judiciais em casos específicos “ não é um instrumento ade­
quado para proteger o cidadão” do efeito-surpresa decor­
rente de uma mudança de orientação jurisprudencial, ou
que a criação, pelos tribunais superiores, de “ regras gerais
sobre a aplicação dos precedentes” , para aplicação do pros­
p ective overruling, “ não seja reconciliável com a função
primária do Judiciário de prover decisões razoáveis para
casos individuais” .
Ora, não parece seguro dizer que a função dos tribunais
supremos seja apenas a de decidir casos individuais. A própria
existência de um “tribunal superior” , um “ tribunal federal” ,
uma “ corte suprema” ou uma “ corte de cassação” justifica-se
não no princípio do duplo grau de jurisdição ou da recorribi-
lidade, mas na necessidade de uniformização do Direito e na
criação de regras gerais - ainda que limitadamente - a serem
observadas pelos demais órgãos competentes para a aplica­
ção do Direito. Isso vale m esmo para os casos de jurisdição

434
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ordinária, onde não se colocam questões de natureza consti­


tucional, nas quais essa função normativa dos tribunais su­
periores pode ser visualizada com mais facilidade. Por isso, é
no mínimo seriamente questionável a assertiva de que a fun­
ção “ primária” dos tribunais superiores - que estabelecem
precedentes gerais e dotados de um grau maior ou menor de
vinculatividade, dependendo do caso concreto - seja a de
prover decisões para “ casos individuais” . Há aqui uma con­
fusão entre uma parte (os tribunais supremos) e o todo (o
Judiciário). Se a função primária do Judiciário é solucionar
questões concretas de forma motivada, a função dos tribunais
supremos, por outro lado, é estabelecer interpretações uni­
form es para que os demais órgãos do Judiciário possam
exercer aquela função de m odo imparcial, universal e iguali­
tário. O que justifica a existência desses tribunais é justamen­
te o poder-dever que eles detêm de desenvolver e concretizar
o Direito [Tunc 1978].
Ademais, ainda que se admitisse a correção da premissa
empírica de que a função “primária” dos tribunais superiores
seria a de prover decisões para casos individuais - o que só
admito para argumentar não parece correto que o emprego
da técnica da manipulação dos efeitos temporais do preceden­
te judicial seja “ inconciliável” com essa função. Se o prospec­
tive overruling pode se apresentar como uma alternativa para
reduzir a insegurança e a injustiça decorrentes da aplicação
da nova regra ao caso concreto, é justamente porque os tribu­
nais têm - de fato - um poder de criação normativa relativa­
mente elevado. O prospective overruling é apenas a ponta do
iceberg: ele se apresenta muito mais como o reflexo do poder
que os tribunais detêm de desenvolver o Direito que como uma
causa dessa prerrogativa. Na verdade, ele aparece apenas como
uma técnica processual para compatibilizar esse poder com a
função que os juizes detêm - primária ou secundária, não im­
porta - de decidir corretamente os casos que são postos sob
sua apreciação. Não há contradição entre o prospective over­
ruling e a função primária do Judiciário.

435
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Concluímos, por isso, que não se pode a priori rejeitar a


técnica do prospective overruling, ainda que se concorde que
ela deve ter natureza excepcional.
Ainda assim, no entanto, a regra geral permanece a de
que as mutações jurisprudenciais na Alemanha “produzem em
princípio um efeito retroativo mesmo se tenham podido sur­
preender as partes e seus conselheiros” [Ferrand 2005:87].
Como a Corte Constitucional Federal já estabeleceu, o princípio
da irretroatividade das leis “ não pode ser aplicado sem outras
formalidades aos processos de decisão dos tribunais” [ibidem].
Não obstante, há casos específicos em que tanto a Corte Fede­
ral de Justiça quanto a Corte Constitucional Federal abando­
nam sua jurisprudência anterior mas, em vista dos princípios
da boa-fé e da proteção da confiança, “limitam o efeito retroa­
tivo de uma m udança de jurisprudência” [apud Ferrand
2005:89], para proteger, por exemplo, a eficácia de contratos
celebrados durante a vigência do case law anterior.
Embora não haja uma doutrina clara da Corte Consti­
tucional acerca do tema, o fato é que em casos isolados os
princípios da proteção da confiança e da boa-fé são conside­
rados suficientes para conferir uma proteção - ainda que em
casos individuais - à mudança de orientação jurisprudencial
no Direito alemão.108 Certas diretivas, no entanto, podem ser
encontradas na doutrina do Direito constitucional alemão para
o fim de orientar a modulação dos efeitos da mudança de
orientação jurisprudencial, entre as quais se destacam as
seguintes, propostas inicialmente por Dürig e compiladas por
Ferrand [2005:92]:
“- Quando o revirement de jurisprudence é favorável
unicamente ao jurisdicionado nas suas relações com o Estado,
convém que ele seja aplicado imediatamente.”

108. Nesse sentido, v. também Zimmermann e Jansen [1998:307], onde os


autores sustentam que essa proteção à confiança deve ser outorgada apenas
em casos individuais e no nível da doutrina de direito privado.

436
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Quando o revirement é desfavorável ao jurisdicionado,


é conveniente não aplicar à instância ainda pendente (diretiva,
essa, válida primordialmente para o processo administrativo,
e não necessariamente para o processo civil).”
É conveniente anunciar (ou prenunciar) os revire­
ments com antecedência em relação à sua formação e à sua
aplicabilidade.”
Por que não aplicar as regras postas em matéria de
retroatividade das leis por analogia aos revirements de juris­
prudence'? ”
Como explica Ferrand, essa última diretiva - aplicação
analógica de regras proibitivas de retroação - não é de todo
impossível no direito alemão, embora não possa ser generali­
zada. Quando as expectativas geradas pelos precedentes forem
tão intensas quanto as de uma lei, pode-se invocar o princípio
constitucional da igualdade com o um argumento em favor da
proteção da confiança.
Embora o prospective overruling não seja expressamente
teorizado na Alemanha, a proteção à confiança legítima do
cidadão é usualmente empregada como um argumento para,
em situações específicas, limitar os efeitos da retroatividade
das modificações jurisprudenciais com fundamento em uma
ponderação de interesses no caso particular.

3.4A.4 O prospective overruling no direito comunitário


europeu

A prática judicial no Direito comunitário europeu, talvez


pela pluralidade de sistemas jurídicos, línguas, culturas e tra­
dições jurídicas que convivem sob seu império, está caracteri­
zada por um pluralismo metodológico e um pragmatismo que
tornam mais rápido o desenvolvimento de soluções para os
problemas que surgem na aplicação judicial do Direito. Com
efeito, o jurista europeu está necessariamente em contato

437
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

constante com o Direito comparado e tem na jurisprudência


da Corte de Justiça da Comunidade Europeia e da Corte Eu­
ropeia de Direitos Humanos um importante ponto de apoio
para a integração entre os Estados-partes e para o desenvol­
vimento do Direito. A jurisprudência comunitária é expres­
samente encarada com o uma fonte do Direito da mais alta
importância, na medida em que as interpretações dos tratados
e convenções da Comunidade Europeia são vinculantes em
relação aos Estados-membros e em alguns deles prevalecem
inclusive sobre o Direito interno, mesmo tratando-se de nor­
mas constitucionais.109
Embora o princípio da retroatividade da jurisprudência
seja considerado uma característica geral do sistema jurídico
comunitário - em especial porque a Corte Europeia de Justiça
tem uma estrutura semelhante à encontrada no sistema fran­
cês de cassação110 -, a jurisprudência tem admitido, desde o
ano de 1976, com o julgamento do caso “Defrenne contre So-
cieté Anonyme Beige de Navigation Aérienne Sabena” ,111 a
limitação dos efeitos do princípio da retroatividade do case law
quando imperativos de segurança jurídica justificarem a m o­
dulação dos efeitos do revirement de jurisprudence no caso
concreto. Neste aresto o Tribunal reconheceu a existência de
diretivas (normas comunitárias) determinando, desde o ano de
1962, que todos os Estados-membros da Comunidade Europeia
implementassem uma legislação garantindo igual pagamento
para homens e mulheres que realizassem o mesmo trabalho.
A Corte estabeleceu também que essas diretivas tinham efeito
direto sobre os países-membros e estavam a produzir efeitos
desde a data de sua entrada em vigor. Entretanto, o Tribunal

109. V., sobre o assunto, nosso comentário no Capítulo 1, n. 1.4.1.3, bem como
as análises contidas em Marguénaud [2001],
110. Para uma visão geral do precedente no direito comunitário, v. Barceló
[1997].
111.Arrêt de la Cour du 8.4.1976, “Gabrielle Defrenne contre Société Anonyme
Belge de Navigation Aérienne Sabena”, Affaire 43-75.

438
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

sustentou que o precedente judicial fixado naquele caso seria


aplicável unicamente para as ações já ajuizadas e para os atos
de discriminação que viessem a acontecer após a data do jul­
gamento. E o que se pode ler na ementa do referido julgado:
“ Considerações imperiosas de segurança jurídica, tendo em
vista o conjunto dos interesses em jogo, tanto públicos como
privados, impedem em princípio recolocar em causa as remu­
nerações para todos os períodos passados. O efeito direto do
art. 119 não pode ser invocado em apoio de reivindicações
relativas a períodos de remuneração anteriores à data do jul­
gamento, a não ser no que concerne aos trabalhadores que
tenham intentado anteriormente um provimento jurisdicional
ou uma reclamação equivalente” .112
A Corte frisou, no entanto, que o caso em questão tra­
tava de uma situação excepcional, e que razões pragmáticas
e principiológicas justificariam a modulação dos efeitos da
decisão. No nível pragmático foi dito que haveria o risco da
potencial existência de um grande número de ações referen­
tes ao período com preendido entre a data de início do julga­
mento, em 1976, e a data da implementação do efeito direto
da norma que assegurava a igualdade de tratamento, em
1.1.1962 [Barceló 1997:432]. No nível dos princípios, a prote­
ção à confiança e a segurança jurídica assegurariam a ma­
nutenção do status atual para os que, no período entre o ano
de 1962 e a data do julgamento, em 1976, se mantiveram
inertes e confiavam que a omissão dos Estados-membros na
regulamentação da diretiva estabelecida no Direito comuni­
tário significaria a ausência de força jurídica da diretiva no
caso concreto.
Em várias outras ocasiões a questão da modulação dos
efeitos normativos das decisões judiciais foi novamente posta
em cena em julgados da Corte de Justiça, que estabeleceu uma
espécie de case law sobre os revirements. No julgado “Roders” ,

112. Ibidem.

439
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

por exemplo, em que foi solicitada novamente a aplicação


prospectiva de uma nova orientação jurisprudencial - tendo
a Corte se negado a tanto foi feita uma boa síntese dos cri­
térios adotados para a limitação da retroatividade da juris­
prudência: “ Uma limitação dos efeitos de um aresto em ma­
téria de interpretação parece a toda vista excepcional e não
pode ser posta em consideração senão em circunstâncias bem
precisas, quando existir um risco de repercussões econômicas
graves devidas em particular ao número elevado de relações
jurídicas constituídas de boa-fé sobre a base de uma regula­
mentação nacional considerada anteriormente como estando
validamente em vigor, e quando transpareça que os particu­
lares e as autoridades nacionais tenham sido incitados a um
comportamento não-conforme à regulamentação comunitária
em razão de uma incerteza objetiva e importante no que se
refere à portada ou âmbito das disposições comunitárias,
incerteza à qual tenham eventualmente contribuído os com ­
portamentos adotados por outros Estados-membros ou pela
própria Comissão” .113
Como analisa Charbit [2005:75-78], a Corte de Justiça
normalmente se vale de três tipos de critérios para decidir
sobre a limitação da retroatividade das decisões judiciais: cri­
térios administrativos, jurídicos e econômicos.
Quanto aos aspectos administrativos, a Corte leva em
conta o “ comportamento das instituições comunitárias que
pode ter dado origem a certa confiança legítima” ao Estado ou
ao demandante no caso concreto [Charbit 2005:75]. Esse foi,
inclusive, um dos critérios mais importantes no caso “Defren-
ne” , em que foi pela primeira vez aplicada a técnica do pros-
pective overruling no Direito comunitário.114

113. Arrêt de la Cour (sixième chambre) du 11.8.1995, “F. G. Roders BV et


Autres contre Inspecteur der Invoerrechten en Accijnzen” , Affaires jointes
C-367/93 à C-377/93.
114. V, supra, nota 110.

440
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Nos aspectos jurídicos, por sua vez, as “particularidades


jurídicas de determinada matéria” podem gerar uma confian­
ça legítima de que a interpretação do Direito dominante antes
da decisão da Cour irá permanecer. Essa incerteza - esclare­
ce Charbit, a partir de uma série de exemplos práticos - pode
decorrer tanto da jurisprudência anterior da Corte de Justiça
(quando seus precedentes contenham regras relativamente
indeterminadas ou passíveis de serem interpretadas de forma
distinta) quanto do Direito interno dos Estados (quando este
pareça, à primeira vista, compatível com o Direito comunitá­
rio) ou, ainda, da indeterminação do Direito comunitário
[Charbit 2005:76].

No caso “ B arber” , por exem plo, a Corte reconheceu


que, “ à luz dessas provisões [diretivas da própria Comuni­
dade Europeia], os Estados-m em bros e as partes concer­
nentes estavam razoavelmente intitulados a considerar que
o art. 119 não se aplicaria às pensões pagas sob esquemas
de contract-out, e que as derrogações ao princípio da igual­
dade entre hom ens e mulheres estariam ainda permitidas
nessa esfera” .115 Por isso, estatuiu-se que, em tais circuns­
tâncias, con siderações de certeza ju rídica protegem as
“ situações que tenham exaurido todos os seus efeitos no
passado” , exceto para os indivíduos que “ tenham intenta­
do ação em tempo hábil para o fim de salvaguardar seus
direitos” .116
E, finalmente, nos aspectos financeiros, a Corte analisa
as consequências nefastas que poderiam resultar da aplicação
retroativa do direito judicial. No caso “Barber”117por exemplo,
a Corte admitiu a limitação da retroatividade de sua decisão

115. Judgment of the Court o f 17.5.1990, “Douglas Harvey Barber vs Guardian


Royal Exchange Assurance Group”, Case C-262/88.
116. Ibidem.
117. Ibidem.

441
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

para o fim de manter o “ equilíbrio financeiro de vários regimes


de pensão convencionalmente excluídos” ; e no caso “ Blaizot ”118
a Corte levou em conta, para limitar novamente a retroativi-
dade, a necessidade de proteger os recursos necessários para
“bom funcionamento das instituições universitárias” [Charbit
2005:77]
Esses critérios, no entanto, devem ser ponderados em
conjunto, sendo que dificilmente eles podem ser desvinculados
dos princípios e valores juridicamente consolidados no Direito
comunitário e nas Constituições dos ordenamentos jurídicos
nacionais (segurança, justiça, equidade, igualdade etc.).
Nesse sentido, ao rejeitar a limitação da retroatividade
da jurisprudência fixada no caso “ R oders” a Corte de Justi­
ça manifestou-se no sentido de que a limitação dos efeitos
de um julgamento “ não pode ser justificada exclusivamente
pelas consequências financeiras que poderiam surgir para
um governo da [declaração de] antijuridicidade de uma im­
posição. Se não fosse assim, as violações mais graves seriam
tratadas mais favoravelmente, na medida em que elas são as
mais suscetíveis de ter as implicações financeiras importantes
para os Estados-membros” . Para a Corte, “ se [a decisão] se
apoiar unicamente nesse tipo de considerações, chegar-se-ia
a reduzir de maneira substancial a proteção jurisdicional dos
direitos que os contribuintes nutrem da regulamentação fis­
cal comunitária” .119
Ademais, além de se justificar com base em critérios
definidos e em função de princípios jurídicos relevantes, as
manipulações normalmente salvaguardam tanto o caso parti­
cular que estiver sendo decidido quanto os que já tenham sido
ajuizados ou em que as partes afetadas já tenham buscado a

118. Judgment o f the Court o f2.2.1988, “Vincent Blaizot vs University of Liège


and Others”, Case 24/86.
119. “F. G. Roders B V et Autres contre Inspecteur der Invoerrechten en
Accijnzen” (v., supra, nota 112).

442
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

proteção de seus direitos pelas vias próprias [Charbit 2005:77].


Dificilmente teria lugar no Direito comunitário, portanto, o
overruling puramente prospectivo do Direito americano. Mais
adequado parece à Corte, na verdade, o overruling “quase-
prospectivo” , que, na verdade, é prospectivo apenas em relação
aos indivíduos que não tenham demonstrado inconformismo
com a situação fática antes da fixação da regra jurisprudencial.

3.4.4.5 A modulação dos efeitos retroativos da jurisprudência


e o direito francês

Tive a oportunidade de demonstrar, no Capítulo 1, que a


autocompreensão do Judiciário francês está em acelerado
processo de transformação, já que se passa a reconhecer - con­
trariamente à teoria tradicional, segundo a qual o juiz seria um
mero autômato, a aplicar irrefletidamente a lei - a função cria­
tiva da jurisprudência e o caráter de “fonte do Direito” dos
precedentes judiciais.
Nesse contexto, o tema dos revirements de jurisprudence
tem ocupado um lugar cada vez maior no debate acadêmico
francês e tem atraído, inclusive, a atenção da Cour de Cassation
e do Conseil d’État.
A teoria tradicional acerca da atividade judicial em Fran­
ça é - assim como na Inglaterra e na Alemanha - a declaratória.
Como explica um Grupo de Trabalho presidido por Nicolas
Molfessis, a Corte de Cassação normalmente descreve sua
atividade com o um puro ato de aplicação (mecânica) do Direi­
to: “ Seu ofício não é, portanto, o de criar uma regra, mas ape­
nas o de aplicar a lei. A esse título, ao juiz está a cargo apenas
a ‘interpretação do Direito’. Ao consagrar essa ficção do cará­
ter declaratório das decisões de justiça, a Corte de Cassação
contesta o seu poder criativo: ela se contentaria em declarar o
sentido que os textos sempre tiveram” [Molfessis et aí. 2005:11].
Diferentemente da sua versão inglesa, essa manifestação
da teoria declaratória está dissociada de qualquer espécie de

443
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

“jusnaturalismo” , na medida em que todo o poder de criação


do Direito é descrito como concentrado nas mãos do legislador.
Bem entendida, essa visão tradicional é a mais forte expressão
do legalismo que se conhece no mundo moderno.
Todavia, essa caricatura da atividade judicial - que ain­
da é utilizada de tempo em tempo para justificar, sem maiores
explicações, o caráter retroativo das decisões judiciais - tem
sofrido importantes críticas no interior do debate acadêmico
francês sobre a natureza da atividade judicial, inclusive com
a participação de importantes figuras do Judiciário. O Prési-
dent Guy Canivet, por exemplo, tem se destacado não apenas
com o juiz, mas com o um jurista teórico e um comparatista
que tenta mostrar aos seus colegas as importantes transfor­
mações por que passa a cultura jurídica europeia [Canivet
2005-b], a mútua influência entre o common law e o Direito
francês [Canivet 2003] e o papel do juiz no processo de unifi­
cação do Direito [Canivet, 2005-a].
O tempo presente é um tempo de abertura do Direito
francês ao Direito comparado, com a importação não apenas
de institutos jurídicos particulares, mas inclusive de técnicas
de decisão mais adequadas aos problemas que surgem com
o reconhecim ento da função criativa da jurisprudência.
Nesse passo, o Conseil d’État, em 11.5.2004, flexibilizou pela
primeira vez em sua história o princípio da nulidade dos atos
administrativos, segundo o qual “um ato anulado é reputado
com o jamais tendo existido” . Como se lê no corpo do julga­
do, foi excepcionada a retroatividade da anulação de um ato
administrativo tendo em vista uma série de consequências
nefastas que poderiam advir da desconstituição dos atos
posteriores praticados com fundamento naquele: “ Conside­
rando que a anulação de um ato administrativo implica em
princípio que esse ato é reputado com o jamais tendo sido
praticado; que, todavia, se parecer que esse efeito retroativo
da anulação por sua própria natureza irá importar consequên­
cias manifestamente excessivas, em razão tanto dos efeitos
que esse ato produziu e de situações que possam ter se

444
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

constituído enquanto ele esteve em vigor quanto do interes­


se geral que se possa ligar a uma manutenção temporária dos
seus efeitos, cabe ao juiz administrativo - após haver recebi­
do sobre esse ponto as observações das partes e examinado
o conjunto dos argumentos [moyens], de ordem pública ou
invocados j^rante ele, que possam afetar a legalidade do ato
em causa - levar em consideração, de uma parte, as consequên­
cias da retroatividade da anulação para os diversos interesses
públicos ou privados presentes e, de outra parte, os inconve­
nientes que se apresentariam, em vista do princípio da lega­
lidade e do direito dos jurisdicionados a um recurso efetivo,
uma limitação no tempo dos efeitos da anulação; que ele deve
apreciar, aproximando-se desses elementos, se eles podem
justificar que seja derrogado a título excepcional o princípio
do efeito retroativo das anulações contenciosas e, no caso
afirmativo, prever em sua decisão de anulação que, com a
reserva das ações contenciosas já ajuizadas à data desta de­
cisão e voltadas contra os atos praticados com fundamento
no ato em causa, a totalidade ou parte dos efeitos desse ato
anteriores à sua anulação deverão ser tidos com o definitivos
ou mesmo, no caso presente, que a anulação só passe a p ro­
duzir efeito a partir de uma data ulterior que ele [o ju iz]
determine (...)” .120
Essa construção pretoriana é vista com o uma das mais
inovadoras estabelecidas pelo Conseil nos últimos anos.
Não obstante, ela se reveste de um caráter cauteloso e sub­
mete a limitação da retroatividade a uma série de requisi­
tos, entre os quais destacam-se os seguintes [Molfessis et al.
2005:29-31]:
(1) A modulação dos efeitos concerne necessariamente a
um ato administrativo determinado.

120. Conseil d’État, Assemblée du Contentieux sur le Rapport de la l ère Sous-


Section ns. 255886, 255887, 255888, 255889, 255890, 255891 et 255892, Séance
du 7.5.2004, Lecture du 11.5.2004, “Association AC! et Autres” .

445
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

(2) A modulação dos efeitos tem natureza excepcional


e de utilização cautelosa. “A retroatividade da anulação é
manifestamente concebida, pelo Conseil d’État, como um ele­
mento central da efetividade dos recursos por excesso de po­
der” [Molfessis et al. 2005:30].

(3) Essa modulação excepcional justifica-se por dois fatores


cumulativos: (i) a presença de consequências “manifestamente
excessivas” do ato de anulação, afetando-se uma série de direitos
e expectativas particulares; e (ii) a necessidade de um “teste de
proporcionalidade” em que sejam ponderados os interesses -
públicos e privados - que poderiam ser atingidos pela anulação
prospectiva do ato administrativo [Molfessis et al. 2005:30].
(4) Deve-se observar, para a limitação à retroatividade,
uma série de “ exigências procedimentais” ligadas às garantias
do contraditório e da ampla defesa: “ O juiz não pode modular
os efeitos da anulação no tempo senão após haver chamado as
partes à sua presença para se manifestarem sob o assunto. O
teste de proporcionalidade não é apenas constituído para a
deliberação interior do juiz: ele resulta também, e talvez so­
bretudo, de uma discussão contraditória entre as partes”
[Molfessis et al. 2005:30],
(5) A modulação no tempo permanece “desprovida de
incidência sobre as ações de natureza contenciosa já ajuizadas”
[Molfessis et al. 2005:31], a exemplo do que acontece na Corte
de Justiça da Comunidade Europeia.
A modulação dos efeitos das nulidades dos atos admi­
nistrativos - quando sindicados pelo Conseil d’État - em
muito se aproxima do prospective overruling do direito norte-
americano, pelo menos em relação aos seus efeitos práticos.
Mas consiste ainda em uma prática incipiente no Direito fran­
cês, já que se limita a um julgado da Corte Superior em feitos
de natureza administrativa.
Na Cour de Cassation, embora recentemente esteja em
crescimento o número de demandas pela concessão de efeitos
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

prospectivos a certos revirements de jurisprudence, ainda não


há decisão aplicando uma técnica semelhante, muito embora
o argumento da segurança jurídica já tenha sido levado em
consideração pelo Tribunal. Por exemplo, no caso “ SAMSA” ,
julgado em 17.12.2004 pela Chambre Sociale, a Cour rejeitou a
aplicação meramente prospectiva de sua nova orientação, es­
tabelecida em 10.7.2002, quanto à validade de cláusulas de
não-concorrência desprovidas de contrapartida financeira. No
arrêt a sociedade “ SAMSA” arguiu que havia firmado contrato
em 4.5.1996, quando, então, a jurisprudência da Cour orien­
tava-se pela validade de tal tipo de cláusula contratual, de
sorte que o art. 6fl da Convenção Europeia sobre Direitos do
Homem - que assegura a todos o direito a um processo justo
e equânime - teria aplicação para o fim de impedir a aplicação
retroativa da nova jurisprudência da Corte. Argumentou-se
que, “ ao aplicar retroativamente essa jurisprudência inaugu­
rada em julho/2002 a um ato concluído em 1996, a Corte de
Apelação sancionou as partes, por ter ignorado uma regra
que elas não poderiam ter conhecido, violando, assim, os arts.
1, 2 e 1.134 do CC, bem com o o art. 6 da Convenção Europeia
de Direitos do Homem” .121
Esse argumento, porém, não conseguiu sensibilizar a
Corte de Cassação, que entendeu que a vedação da cláusula
de não-concorrência - quando não acompanhada de meca­
nismos compensatórios - responde a uma imperiosa necessi­
dade de se salvaguardar o direito fundamental de exercício
de qualquer atividade econômica, e por isso não poderia ser
excepcionada no caso concreto. Nos dizeres da Cour, “longe
de violar os textos mencionados pelo moyen, e notadamente
o art. 6 da Convention Européene de Sauvegarde des Droits de
VHomme et des Libertés Fondamentales, a Corte de Apelação
lhes deu, ao contrário, uma aplicação exata ao decidir que

121. Cour de Cassation, Chambre Sociale, Audience Publique du 17.12.2004,


N. de Pourvoi: 03-40008, Publié au Bulletin.

447
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

essa exigência [proibição de cláusula de não-concorrência sem


contrapartida] tinha aplicação imediata” .122
Apesar desse entendimento restritivo, que se repete em
outros julgados mais recentes,123 alguns autores veem uma
tendência da Corte de Cassação de admitir um instrumento
parecido com o prospective overruling, confirmada por mani­
festações da própria Corte.124 Provavelmente tal modelo se
aproximaria da técnica utilizada pela Corte de Justiça da Co­
munidade Europeia e pelo próprio Conseil d’Etat, qual seja, a
de estabelecer efeitos prospectivos para sua jurisprudência,
mas salvaguardando a situação dos indivíduos que já tenham se
mobilizado para proteger seus direitos à época do revirement.
Esse passo, contudo, ainda não foi dado pela Corte de Cassação.

3.4A.6 O prospective overruling no Direito brasileiro

No Direito brasileiro o instituto do prospective overruling


foi recentemente introduzido pelo STF, com fundamento em
uma série de normas sobre o efeito vinculante das decisões
declaratórias de inconstitucionalidade.
Desde 1993 as decisões proferidas pelo STF em sede de
ações declaratórias de constitucionalidade e de ações diretas
de inconstitucionalidade têm efeito vinculante e erga omnes
em relação a todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da
Administração Pública. Esse efeito vinculante, previsto ori­
ginariamente para as ações declaratórias de constitucionali­
dade mas logo em seguida estendido às ações diretas de in­
constitucionalidade pela própria jurisprudência do STF, veio
a ser regulamentado com mais precisão pela Lei 9.868/1999 e

122. Ibidem.
123. Nesse sentido: Pourvoi n. 03-14717,2è,mChambre Civile, Audience Publique
du 8.8.2004, e Pourvoi n. 05-20282, 2erMIChambre Civile, Audience Publique du
21.12.2006.
124. Por exemplo: Molfessis et al. [2005:7].

448
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

estendido também à denominada arguição de descumprimen­


to de preceito fundamental, regulamentada pela Lei 9.882/1999.
Vale também, por força da Emenda Constitucional 45/2004,
para um grupo especial de súmulas formalmente promulgadas
pelo STE
É a partir do reconhecimento do efeito vinculante das
mais importantes decisões do STF que se pôde, com o passar
do tempo, chegar à aplicação da técnica do prospective overru-
ling. Até o final do ano de 1999, com a edição da Lei 9.868, o
direito brasileiro não conhecia qualquer mecanismo de limi­
tação dos efeitos das decisões judiciais, nem mesmo no contro­
le de constitucionalidade. A teoria prevalecente era ainda a do
Constitucionalismo americano do século XIX, segundo o qual
toda norma jurídica contrária à Constituição padeceria de
nulidade ipso iure, e o efeito da decisão de inconstitucionali-
dade seria meramente o de declarar, com efeitos necessaria­
mente retrospectivos (ex tunc), sua nulidade.
A flexibilização dessa teoria da “nulidade radical” de
toda e qualquer decisão inconstitucional iniciou-se no curso
d.e década de 1990, com a introdução do efeito vinculante e
com a intensificação dos estudos de Direito comparado sobre
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Destaca-se,
nessa época, a tese de Doutoramento do hoje Ministro Gilmar
Ferreira Mendes [Mendes 1998], que ainda é, sem dúvida, uma
das obras mais importantes do Direito constitucional brasi­
leiro. Contribuíram também, historicamente, a divulgação e
o estudo aprofundado da teoria de Hans Kelsen sobre os efei­
tos da sentença de decretação da inconstitucionalidade das
leis. Embora a Teoria Pura do Direito tenha exercido notável
influência no Direito brasileiro desde a segunda metade do
século X X , é apenas na última década do século passado que
os autores brasileiros de m odo geral começam a discutir com
maturidade sua tese fundamental de que a contrariedade da
lei inconstitucional nada mais é que uma forma diferente de
revogação das leis: a nulidade e a anulabilidade não passam
de uma sanção que o ordenamento jurídico impõe às normas

449
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que violem o conteúdo das normas superiores a elas, de sor­


te que normalmente a sentença de inconstitucionalidade deve
ter efeitos e x nunc (embora nem por isso esteja vedado o
efeito ex tunc).

Com o amadurecimento do debate sobre a mitigação do


efeito ex tunc da inconstitucionalidade, na década de 1990, foi
possível introduzir, pela via legislativa, uma solução mais prag­
mática para o problema dos efeitos da inconstitucionalidade.
Essa solução, no entanto, só veio tarde, no ano de 1999, quan­
do foi promulgada a Lei 9.868.
Antes dessa legislação o STF era forçado a recorrer a
teorias contraditórias para o fim de evitar os graves efeitos
colaterais da declaração de inconstitucionalidade. Foi essa a
situação, por exemplo, no julgamento do RE 122.202,125 no
qual foi declarada a inconstitucionalidade de uma vantagem
pecuniária concedida a certo grupo de servidores públicos.
No caso, o Tribunal se viu diante de um impasse, tendo em
vista o efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade,
pois o reconhecimento da nulidade do pagamento pela Ad­
ministração a seus servidores implicaria a necessidade de
devolução aos cofres públicos dos vencimentos percebidos, o
que comprometeria injustamente a economia familiar dos
servidores, já que os valores recebidos já haviam sido gastos
e os servidores não tiveram culpa no pagamento efetuado pelo
Poder Público em estrito cumprimento da lei. O Tribunal, na
ocasião, ao invés de simplesmente declarar a inconstitucio­
nalidade com efeitos ex nunc, entendeu que haveria “direito
adquirido” por parte dos servidores ao benefício já recebido,
de forma que os valores pagos não poderiam mais ser repeti­
dos. Tal decisão mereceu pungente crítica de Gilmar Ferreira
Mendes - na época, ainda não ocupante do cargo de Ministro
do STF1 - , pois o direito adquirido, para ser reconhecido, tem

125. STF, 2- Turma, RE 122.202-MG, rei. Min. Francisco Rezek, j. 10.8.1993,


DJU 8.4.1994.

450
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que ser originado de um ato validamente produzido, o que,


certamente, não ocorreu no caso concreto, tendo em vista a
nulidade ipso iure da declaração de inconstitucionalidade
[Mendes 1995].
No mesmo sentido, cumpre mencionar que boa parte da
doutrina da época já criticava, com bons argumentos, o dog­
matismo na jurisdição constitucional brasileira, que inadmitia
qualquer exceção à regra do efeito retroativo das decisões de
inconstitucionalidade. Nery Ferrari, por exemplo, arguiu, pou­
co antes da edição da lei, que a tese da retroatividade ex tunc
da sentença de inconstitucionalidade “deve ser admitida com
reservas, pois não podemos esquecer que uma lei inconstitu­
cional foi eficaz” até a decisão do tribunal, de sorte que “ ela
pode ter tido consequências que não seria prudente ignorar,
principalmente em nosso sistema jurídico, que não determina
prazo para a arguição de tal invalidade, podendo a mesma
ocorrer 10, 20 ou 30 anos após a sua entrada em vigor” [Nery
Ferrari 1999:212]. Sugeriu a autora, na época, a edição de um
diploma normativo disciplinando tais fatos e autorizando, ex­
cepcionalmente, a eficácia ex nunc da sentença de inconstitu­
cionalidade [ibidem].
A solução legislativa, contida no art. 27 da Lei 9.868/1999,
foi inspirada no Direito comparado, e consistiu em permitir
ao STF, no julgamento das ações diretas de inconstituciona­
lidade e das ações declaratórias de constitucionalidade, m o­
dular os efeitos da sentenças, nos seguintes termos: “Art. 27.
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excep­
cional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal,
por maioria de dois terços de seus membros, restringir os
efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia
a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado” .
No Direito português a própria Constituição prevê dis­
posição normativa semelhante: “Art. 282a. (...). (4) Quando a

451
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de


excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem,
poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconsti-
tucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do
que o previsto nos ns. 1 e 2” .
Portanto, as mesmas questões que se colocam no Direi­
to brasileiro põem-se em Portugal. Entre essas questões se
destaca, por exemplo, a que se refere à possibilidade de limi­
tação dos efeitos da inconstitucionalidade também no contro­
le difuso de constitucionalidade, e não apenas no abstrato.
Nesse ponto, Rui Medeiros sustenta que a limitação dos efei­
tos da inconstitucionalidade pode ser feita não apenas no
controle concentrado de constitucionalidade, senão também
no concreto:
“Pela nossa parte, e na linha do que sempre temos afir­
mado, defendemos a aplicabilidade do n. 4 do art. 282a da
Constituição no âmbito da fiscalização concreta, tanto difusa
como concentrada.”
“ O nosso ponto de partida é o de que a teleologia que
preside à regra do n. 4 do art. 282e da Constituição vale indis­
cutivelmente em sede de controlo concreto. A flexibilização
dos efeitos da inconstitucionalidade expressa nesse preceito
revela que, para o legislador constitucional português, o prin­
cípio da constitucionalidade não se contenta apenas com uma
imediata maximização parcial da norma constitucional violada,
sem consideração das restantes disposições e princípios cons­
titucionais. O princípio da unidade da Constituição obriga,
mesmo em sede de determinação dos efeitos da inconstitucio­
nalidade, a tomar em consideração os diferentes interesses
constitucionalmente protegidos” [Medeiros 1999:743-744].
Como se nota, para o jurista português é possível, com
fundamento em princípios constitucionais que resultariam
atingidos pela decisão retroativa de inconstitucionalidade,
flexibilizar os efeitos da sentença, seja no controle concentrado
de inconstitucionalidade ou no difuso.

452
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Esse argumento foi decisivo para o STF, que expressa­


mente o acatou, citando expressamente a obra mencionada. O
Min. Gilmar Ferreira Mendes, por exemplo, em seu voto pro-
latado no HC 82.959, expressou entendimento no sentido de
que a limitação temporal dos efeitos da declaração de incons-
titucionalidade (de uma norma) pode se aplicar inclusive no
controle difuso de constitucionalidade.126
No corpo do voto do Ministro são tecidas considerações
exaustivas sobre o Direito constitucional norte-americano, com
menção expressa à técnica do prospective overruling: “No Di­
reito americano a matéria poderia assumir feição delicada,
tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema, isto
é, modelo marcadamente voltado para a defesa de posições
subjetivas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar,
não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem a pronún­
cia de eficácia retrospectiva, especialmente nas decisões judi­
ciais que introduzem uma alteração de jurisprudência [pros­
pective overruling]. (...). Embora tenham surgido no contexto
das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospecti-
vities têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orien­
tação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma
lei antes declarada constitucional” .127
Por isso, conclui o Ministro que “a declaração de incons­
titucionalidade in concreto também se mostra passível de limi­
tação de efeitos” sempre que “ um outro princípio justifique a
não-aplicação do princípio da nulidade” , de modo que o afas­
tamento da declaração da inconstitucionalidade da lei com
efeitos retro-operantes “ assenta-se em fundamentos constitu­
cionais, e não em razões de conveniência” .128
Essa jurisprudência guarda, aliás, sintonia com uma
doutrina que o mesmo Gilmar Mendes já sustentava no plano

126. STF, Tribunal Pleno, HC 82.959, rei. Min. Marco Aurélio, j. 23.2.2006,
DJU 1.9.2006, Informativo 418.
127. Ibidem, voto do Min. Gilmar Mendes, Informativo 418.
128. Ibidem.

453
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

acadêmico muito antes de ser nomeado Ministro do STF e da


edição da Lei 9.868/1999:

“A suspensão da aplicação da lei inconstitucional suscita


problemas que não podem ser olvidados. Na decisão proferida
pelo Bundesverfassungsgericht sobre a constitucionalidade da
lei que disciplinava o regime da nacionalidade de crianças
nascidas dos chamados ‘casamentos mistos’, tornou-se eviden­
te que sem a aplicação provisória da disposição constitucional
haveria um vácuo legislativo. O Bundesverfassungsgericht re­
conheceu a legitimidade da aplicação da lei declarada incons­
titucional se razões de índole constitucional (...) tornam impe­
riosa a vigência temporária da lei inconstitucional (...).”
“ Dessarte, pode-se afirmar, de forma conclusiva, que a
aplicação da lei declarada inconstitucional - mas que não
teve a sua nulidade reconhecida - é legítima quando exigida
pela própria Constituição. Inexiste princípio geral sobre
aplicação subsequente da lei declarada inconstitucional. A
decisão depende, por isso, do exame concreto de cada caso”
[Mendes 1999:56],

Essa linha de argumentação - embora o STF evite expres­


samente admitir que está a aplicar a técnica da declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade - foi segura­
mente aceita pelo Supremo como um todo, que tem levado em
conta, ao manifestar seu juízo sobre a inconstitucionalidade de
um ato normativo, os efeitos concretos de sua decisão, já que ao
exercer o controle de constitucionalidade das leis o juiz deve
proteger a Constituição em todos os aspectos, visando a otimizar
todas as normas da Carta Magna, e não apenas o dispositivo que
está sendo declarado inconstitucional. Se a própria Constituição
resultar ferida em medida ainda maior com a pronúncia de
nulidade do ato declarado inconstitucional, é claro que se le­
gitima a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, pois
essa medida é a maneira mais eficiente de proteger os valores
e princípios que a própria Constituição estabelece e exige sejam
observados pelo juiz na aplicação do Direito.

454
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Menciono, nesse sentido, um caso mais recente em que o


STF deixou de pronunciar a nulidade de atos de provimento de
cargos públicos preenchidos por meio do método da “ ascensão
funcional” , com a finalidade de proteger as legítimas expectati­
vas que derivaram desses atos. No caso em questão, o Tribunal,
apesar de reconhecer expressamente a inconstitucionalidade
do “provimento derivado” de cargos públicos, deixou de anular
os atos de contratação com fundamento nos princípios da boa-fé
e da segurança jurídica, como se pode ler na ementa do acórdão:
“ Constitucional - Servidor público - Provimento deriva­
do - Inconstitucionalidade - Efeito ex nunc - Princípios da
boa-fé e da segurança jurídica.”
“I - A Constituição de 1988 instituiu o concurso público
como forma de acesso aos cargos públicos - CEJ art. 37, II - Pe­
dido de desconstituição de ato administrativo que deferiu,
mediante concurso interno, a progressão de servidores públi­
cos. Acontece que, à época dos fatos, 1987 a 1992, o entendi­
mento a respeito do tema não era pacífico, certo que apenas
em 17.2.1993 é que o STF suspendeu, com efeito ex nunc, a
eficácia do art. 8e, III; art. 10, parágrafo único; art. 13, § 4°; art.
17 e art. 33, IV, da Lei n. 8.112, de 1990, dispositivos, esses, que
foram declarados inconstitucionais em 27.8.1998: ADI n. 837-
DF, relator o Min. Moreira Alves, DJU 25.6.1999.”
“II - Os princípios da boa-fé e da segurança jurídica au­
torizam a adoção do efeito ex nunc para a decisão que decreta
a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos que adviriam
para a Administração seriam maiores que eventuais vantagens
do desfazimento dos atos administrativos.”
“III - Precedentes do STF.”
“ IV - R ecurso extraordinário con h ecid o, mas não
provido.”129

129. STí; 2a Turma, RE 442.683-8, rei. Min. Carlos Velloso, j. 13.12.2005, DJU
24.3.2006.

455
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Como se nota, não há dúvida de que as contratações


foram inconstitucionais; mas, com o os servidores puderam
acreditar de boa-fé que seus vínculos estavam legitimados
e não seriam anulados posteriormente, o Tribunal deixou
de pronunciar a nulidade dos atos de contratação, já que
haviam se passado mais de 15 anos do “ concurso interno”
em questão.
Essa construção permite sustentar que em casos ex­
cepcionais o Direito brasileiro conhece e admite o emprego
do prospective overruling, embora os contornos exatos desse
instituto jurídico ainda não tenham sido definidos com a
segurança que se esperaria. A possibilidade de se modular
os efeitos da declaração de nulidade da lei inconstitucional
funciona com o uma interessante base de analogia para a
aplicação do prospective overruling, pois a mesma dose de
insegurança está em jogo seja quando se anula uma lei ou
se m odifica um precedente vinculante em sentido forte.
Todavia, perm anecem ainda alguns problemas no Direito
brasileiro. Inicialmente, a orientação que se consolidou no
HC 82.959 foi apenas a de se admitir a possibilidade do pros­
pective overruling no âmbito da jurisdição constitucional: a
declaração de inconstitucionalidade de uma lei anteriormen­
te tida com o constitucional em um precedente vinculante
pode assumir caráter meramente prospectivo. Não obstante,
há séria dúvida acerca da aplicabilidade da técnica da m o­
dulação dos efeitos da nova jurisprudência fo ra do STF,
especialmente em questões relativas à interpretação do di­
reito infraconstitucional.
Ademais, deve ser introduzida uma limitação formal ou
processual para racionalizar a aplicação do prospective over­
ruling, sob pena de surgimento de uma incoerência. Com
efeito, o art. 27 da Lei 9.869/1999 exige maioria de dois terços
(dos membros do Tribunal) para modulação dos efeitos da
inconstitucionalidade da lei. Não faz sentido que esse requisi­
to não se aplique também às hipóteses de modificação da ju­
risprudência do Tribunal.

456
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Veremos, a seguir, algumas diretivas gerais que conside­


ro adequadas não apenas para o direito brasileiro, mas para
qualquer caso de aplicação do prospective overruling.

3.4A.7 Algumas diretivas gerais para a aplicação da técnica


do prospective overruling

O que justifica a técnica do prospective overruling ê o


estabelecimento, em um precedente judicial, de uma norma
adscrita de natureza geral juntamente com outra norma indi­
vidual, mais específica, que elide sua aplicação no caso concre­
to, tendo em vista considerações de segurança jurídica e outras
razões que tornam irracional a aplicação da nova orientação
jurisprudencial ao caso concreto.

Como tive oportunidade de salientar em outra oportuni­


dade, podemos distinguir o regramento (ruling) estabelecido
por uma decisão judicial - onde é enunciada a norma que os
tribunais reconhecem quando eles enunciam a ratio decidendi
- e a adjudicação em sentido estrito - ou seja, a aplicação das
consequências de tal regramento às partes envolvidas no caso
subjudice [Bustamante/Silva 2007:121]: “Nos casos ordinários
nós podemos identificar um único regramento (ruling) que nos
leva à adjudicação em sentido estrito. Todavia, em casos com­
plexos o tribunal enuncia uma norma geral - prima fa cie apli­
cável a todos os casos que possam ser subsumidos ao enuncia­
do universal compreendido no regramento (ruling) - mas há
razões para não aplicar imediatamente a referida norma ao
caso concreto. Nessas situações, os tribunais formulam uma
outra norma individual, mais concreta, que cria uma exceção
à norma originalmente enunciada no regramento. E precisa­
mente isso que acontece no prospective overruling. E como se
a corte enunciasse dois regramentos no mesmo caso: um para
ser aplicado a todas as situações que estejam para acontecer;
outro apenas para o caso em exame ou para casos que se refi­
ram a fatos jurídicos cujos efeitos já se concretizaram” .

457
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O prospective overruling, no entanto, deve ser reservado


para casos excepcionais, como, aliás, é consenso em todos os
ordenamentos jurídicos em que a técnica é aplicada. Mas por
que a modificação da jurisprudência deve, pelo menos como
regra geral, ser retroativa? Quais são os valores e princípios
que justificam essa interferência no passado?
Como vimos, o Direito judicial só é relevante quando há
espaço para uma pluralidade de interpretações possíveis do
Direito vigente. A indeterminação do Direito é, como disse
Gorla em trecho já citado acima, o húmus para a técnica do
precedente judicial. E nesse espaço de indeterminação, nes­
sa margem de ação do Judiciário, que os tribunais podem
estabelecer o case làw relevante para os casos futuros. Esse
direito jurisprudencial pode assumir várias formas: pode se
constituir por regras concretas que contêm enunciados clas-
sificatórios destinados a reduzir a vagueza de um enunciado
normativo, pode conter reduções semânticas para eliminar a
ambiguidade de determinadas normas que têm conteúdo
relativamente elástico, ou pode estabelecer regras de priori­
dade condicionada entre princípios constitucionais, nos casos
de colisão. Em todos esses casos, porém, há um elemento
comum de ausência de regulação - ou, pelo menos, de regu­
lação insuficiente pois a concretização das normas aplicadas
pelo Judiciário irá depender de uma espécie de “ arbítrio ju­
dicial” (ainda que seja um arbítrio nos confins do ordenamen­
to jurídico).
Ciente dessa esfera de indeterminação é que no Reino
Unido e na Alemanha, não exclusivamente, mas primordial­
mente, se coloca o debate entre as teorias declaratória e
positivista da atividade judicial. Essas teorias, em suas for­
mas puras, põem ênfase em cada um dos poios da tensão
entre facticidade e validade que caracteriza o Direito de
m odo geral.
A teoria declaratória - pelo menos a hoje sustentada por
Dworkin e Simpson - põe ênfase no caráter eminentemente

458
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

racional da decisão jurídica. O ato de interpretação do Direi­


to é descrito de forma semelhante a um processo de desco­
berta da verdade; em grande parte, é ato de conhecimento,
de descoberta de um Direito que se comunica com a Moral e
é capaz de oferecer respostas corretas para cada problema
concreto enfrentado pelo aplicador, inclusive e especialmen­
te nos hard cases, que são justamente aqueles em que os
precedentes são importantes. O Direito é visualizado em sua
faceta ideal. Não existe diferença entre “ Direito” e “Direito
justo” ou “ racional” .
De outro lado, a teoria positivista põe ênfase no outro
extremo. O Direito apresenta-se tal como ele é, tal como ele foi
estabelecido por um ato de autoridade. O ato judicial de apli­
cação do Direito difere do ato legislativo que estabelece uma
norma jurídica apenas em relação ao grau de generalidade. O
juiz, assim como o legislador, não precisa justificar suas decisões
para que elas possam ser reconhecidas como fontes de normas
jurídicas válidas. O Direito judicial é purofiat.
As duas teorias trazem, naturalmente, algo de correto e
algo de implausível. Não há como escapar: para analisá-las,
voltamos necessariamente ao debate entre Jusnaturalismo e
Positivismo. Já tentei fornecer uma solução para esse debate,
e essa solução caminha no sentido de pôr a ênfase no que há
de correto em cada uma das duas teorias, abandonando, porém,
de outro lado, o radicalismo de cada uma das perspectivas
isoladas. Esse reconhecimento de que há algo de correto em
cada uma das teorias é necessário para entendermos que o
Direito é tanto ratio como auctoritas, tanto um sistema de nor­
mas que são dotadas de pretensão de racionalidade como um
sistema de normas positivamente válidas, e que o processo de
aplicação do Direito envolve tanto um processo de conheci­
mento quanto um processo de criação.
No espaço em que se move o case law - a margem de
atuação do Judiciário - há, portanto, atos de conhecimento, de
um lado, e atos de criação de normas, de outro.

459
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

O problema é que quando se olha para o Direito da pers­


pectiva do participante, e se busca dessa forma exercer a fun­
ção normativa da dogmática jurídica, propondo soluções para
os problemas práticos que nascem na aplicação do Direito, fica
claro que o juiz deve se comportar nesses casos como se sua
atividade fosse apenas um ato de conhecimento moral de nor­
mas; deve procurar regatar estas normas discursiva e racio­
nalmente, buscando, com isso, reduzir ao mínimo sua subjeti­
vidade e aplicá-las imparcialmente a todos os casos que sejam
levados ao seu conhecimento.
A razão fundamental da retroatividade da jurisprudên­
cia - inclusive da que desmente a jurisprudência anterior - está
na primazia das razões morais, que valem de igual modo para
todos e independem de uma decisão política do legislador ou
do tribunal, sobre as razões de ordem meramente pragmática
que normalmente justificam a não-aplicação de determinada
norma a um universo de casos. Como explica Habermas [2005-
a:357]: “Estas questões [ético-políticas] (...) estão subordinadas
às questões morais e guardam relação com questões pragmá­
ticas. A primazia detém a questão de como se pode regular
uma matéria no interesse de todos por igual. A produção de
normas se encontra primariamente sujeita ao ponto de vista
da justiça e por este lado tem seu critério primário de correção
nos princípios que dizem o que é bom para todos e por igual.
Diferentemente das questões éticas, as questões de justiça não
estão refergdas por si mesmas a uma determinada coletivida­
de e à sua forma de vida. O Direito politicamente estabelecido
de uma comunidade concreta, para ser legítimo, tem que estar
ao menos em consonância com princípios morais, os quais
pretendem também validez geral para além da comunidade
jurídica concreta” .
O jurista deve buscar sempre, em especial quando o or­
denamento jurídico lhe outorga uma margem de livre aprecia­
ção, decidir de forma substancialmente correta, e os standards
morais que determinam essa correção podem ser, ao menos
aproximadamente, apreendidos de forma objetiva.

460
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A criatividade judicial, embora reconhecida, deve ser


vista com o algo inevitável, não como algo dotado de valor. Sua
raiz está justamente nos limites da razão prática, em suas
deficiências.
Portanto, o juiz só deve aplicar suas decisões prospecti­
vamente, só deve estabelecer uma eficácia futura para as regras
adscritas que ele estabelece, em casos excepcionais em que ele
não consegue mais distinguir os efeitos da sua decisão e os
efeitos de um ato legislativo, ou que a decisão jurídica anterior
tenha gerado para os cidadãos de modo geral as mesmas ex­
pectativas que uma decisão do legislador, de sorte que haveria
uma violação séria aos princípios da segurança jurídica e da
certeza do Direito se esse case law fosse aplicado para regular
os atos já constituídos.130
Apenas nos casos moralmente irrelevantes é que as
razões pragmáticas que justificam o prospective overruling
podem ter lugar.
A única exceção a essa regra é quando a insegurança ju­
rídica seja tão grande que constitua, ela mesma, uma espécie de

130. Pode-se dizer que a distinção entre a produção e a aplicação do Direi­


to - de sorte que ao Judiciário cabe prioritariamente a última atividade - é
um argumento para que a regra geral seja a da retroatividade dos efeitos da
mudança jurisprudencial. Mas ainda assim pode surgir uma dúvida quanto
à existência de razões morais para a retroatividade do precedente judicial.
Neste ponto, pode-se arguir que a retroatividade primafacie dos revirements
se justifica porque o poder normativo do Judiciário tem lugar justamente
nos casos em que a legislação positiva deixa em aberto a solução correta
para o problema jurídico enfrentado no caso concreto. Resta ao aplicador do
Direito, portanto, recorrer à Moral, para nela tentar encontrar solução para o
caso problemático (recordemos, aqui, que a presente teoria dos precedentes
pressupõe a tese da unidade do discurso prático, de sorte que os argumentos
morais necessariamente penetram no discurso jurídico, principalmente nos
casos de textura aberta da legislação positiva). Havendo um princípio moral
que indique a necessidade de um overruling, as razões morais que justificam a
aplicação da nova regra devem, via de regra, preponderar sobre as razões de
natureza pragmática que justificam a eficácia prospectiva do novo regramento
judicial (judicial ruling). Agradeço à professora Ana Paula de Barcellos por
ter atraído a minha atenção para esse problema.

461
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

imoralidade. Nesses casos, diante de um discurso de aplicação,


pode-se afastar a incidência da nova norma jurisprudencial.
Mas com o essas duas situações - (i) casos de “irrelevância
moral” da decisão e (ii) de imoralidade por excesso de insegu­
rança - são excepcionais, a regra geral, ainda que dotada de
uma cláusula ceteris paribus, deve ser a de que as decisões
judiciais têm eficácia retroativa.

Depois de respondida a indagação sobre a natureza re­


trospectiva das reviravoltas jurisprudenciais, pode-se, final­
mente, formular uma nova pergunta que encerra o tópico do
prospective overruling: Quais os critérios ou diretivas que po­
demos utilizar para decidir sobre aplicar, ou não, o prospective
overruling em um caso concreto? Como identificar, objetiva­
mente, os casos que reclamam uma limitação ao efeito retroa­
tivo da reviravolta jurisprudencial?

O prospective overruling será tanto mais bem justificado


quanto mais seja preponderante o elemento “facticidade” ou
“ autoridade” no discurso jurídico. Quanto mais acentuada for
a força normativa do case law, mais razões haverá para a limi­
tação temporal da eficácia do novo Direito jurisprudencial.
Embora os tribunais, ao aplicar o Direito, devam envidar
todos os esforços para encontrar uma resposta correta para
suas decisões, tratando sua atividade como, em parte signifi­
cativa, um processo de reconstrução a partir do uso pratica­
mente orientado da razão, eles não podem perder de vista que,
de fato, muitas vezes sua atividade assemelha-se a uma ativi­
dade legislativa. O fato de o Direito ter um caráter ideal não
deve nos levar a fechar os olhos para o Direito real que emerge
das decisões judiciais.
A primeira regra para se aplicar o prospective overru­
ling deve ser, portanto, a da sinceridade. Em qualquer caso,
os tribunais “ não devem simplesmente negar o caráter nor­
mativo e constitutivo dos regramentos que eles estabelecem,
os quais podem assumir dimensões significativas quando
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

precedentes vinculantes ingressam no ordenamento jurídico.


O overruling de um precedente vinculante não deve ser trata­
do com o um fato simples e insignificante, pois contradiz ex­
pectativas normativas fundadas e legítimas” [Bustamante/
Silva 2007:123].
Por isso, em certos casos não é absurdo sustentar que
em sistemas jurídicos de Direito escrito (civil law) a supera­
ção (overruling) de um precedente estável e vinculante (ou
mesmo de um precedente “quase-vinculante” estabelecido
em termos gerais pelas cortes mais altas) pode ser vislum­
brada com o equivalente ao estabelecim ento de um novo
enunciado legislativo, pois os efeitos de ambos são bastante
semelhantes na prática. Parece um tanto quanto incoerente
sustentar que toda nova legislação necessariam ente tem
efeitos prospectivos e, ao mesmo tempo, que o novo Direito
judicial, com efeitos vinculante (ou “quase-vinculante” ) e
erga omnes, somente terá efeitos retrospectivos [Bustamante/
Silva 2007:123]
Pode-se propor, destarte, a seguinte diretiva geral para
o prospective overruling: “ (D) Na presença de precedentes
vinculantes ou quase-vinculantes (vinculantes de facto) dos
tribunais superiores, quando uma nova decisão venha a revo­
gar regramentos judiciais previamente estabelecidos, o tribu­
nal pode estabelecer, na presença de fatores que possam lesio­
nar os mais importantes princípios do sistema jurídico, como
a justiça material ou a segurança jurídica, as condições da
eficácia temporal do novo Direito jurisprudencial” [Bustamante/
Silva 2007:124].
Essa diretiva pode ser mais bem especificada por meio
das seguintes condições secundárias:
“ (D1) Quanto mais vinculante for a regra jurisprudencial
superada, mais razões haverá para o prospective overruling.”
“ (D2) Quanto mais antiga for a regra jurisprudencial su­
perada, mais razões haverá para os efeitos prospectivos do
overruling.”

463
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

“ (D3) Em todos os casos em que se aplique o prospective


overruling, deve haver uma decisão clara e justificada sobre o
assunto, fundamentada em um juízo ponderado sobre os prin­
cípios afetados pela nova decisão.”
“(D4) O tribunal deve se esforçar para justificar em termos
racionais a decisão sobre a eficácia das normas que está pro­
nunciando” [Bustamante/Silva 2007:124].
Além dessas diretivas, pode-se aprender também com a
experiência do Direito comparado recente, e em especial com
algumas considerações que foram debatidas na Corte de Justiça
da Comunidade Europeia e no Conseil d’Etat nos últimos anos.
Primeiramente, parece plausível a solução da Corte de
Justiça consistente em limitar o efeito prospectivo aos casos
que ainda não tenham sido ajuizados, ou onde a parte lesada
em seu direito ainda não tenha se movimentado para o fim de
proteger seus direitos. Essa solução revela-se correta, porque
privar de seu direito o indivíduo que consegue demonstrar a
incorreção de uma orientação jurisprudencial traria conse­
quências tanto indesejáveis do ponto de vista pragmático (como
uma espécie de congelamento da jurisprudência, com o deses-
tímulo ao desenvolvimento judicial do Direito e à criatividade
dos advogados) quanto substancialmente injustas, na medida
em que fica evidenciado que a regra jurisprudencial não fo i
capaz de gerar, na parte em questão, as legitimas expectativas
que justificam, de modo geral, o prospective overruling. Pelo
contrário, o que se vê é um inconformismo com o case law
anterior e um raciocínio ousado e inovador que conseguiu se
desincumbir dos ônus ou cargas de argumentação derivadas
do princípio da inércia, de forma a reformar o Direito para
melhor. Não pode ser justo, nesse caso, deixar de outorgar
proteção ao indivíduo lesado (ressalvadas, obviamente, situa­
ções realmente excepcionais, quando a insegurança pode ser
qualificada com o “dramática” ).
Em segundo lugar, a solução do Conseil d’État de exigir
que a própria questão de ordem sobre o prospective overruling

464
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

seja tematizada e submetida ao contraditório das partes é uma


forma de torná-la ainda mais controlável e racional.
Em terceiro lugar, a diretiva proposta por Rui Medeiros
e adotada pelo STF brasileiro - de que a corte suprema deve
sempre justificar os efeitos prospectivos do novo case law com
fundamento em princípios constitucionais, assentando sua
decisão em argumentos jurídicos, e não exclusivamente prag­
máticos - deve ser adotada em qualquer caso de mutação ju-
risprudencial prospectiva.
Por derradeiro, na linha de argumentação de Lord Hope
o f Craighead em “Spectrum” ,131 o prospective overruling deve
procurar também fundamento em razões morais ou de equi­
dade, ao invés de se contentar com uma justificação instrumen­
tal ou meramente pragmática.
Com essas diretivas, e tendo em vista seu caráter excep­
cional, o prospective overruling pode ser uma importante fer­
ramenta para não inibir os discursos de justificação de prece­
dentes judiciais. Pode contribuir, em linhas gerais, para a ra­
cionalização do Direito, já que torna sem força o principal ar­
gumento contra a modificação do direito jurisprudencial: o de
que a nova regra poderia frustrar expectativas geradas pelo
próprio tribunal.

131. [2005] UKHL 41, par. 69.

465
iS iilil
llgjlg

5
4
Problemas de Aplicação de Precedentes
Judiciais

4.1 A subsunção como regra geral ãe aplicação de prece­


dentes judiciais. 4.2 O distinguish e suas duas operações
básicas, a redução teleológica e o argumento a contrario.
4.2.1 A redução teleológica e o caráter superável (defea­
sible) das regras jurídicas. 4.2.1.1 A superabilidaãe (de-
feasibility) das normasjurídicas e os conflitos normativos,
as regras jurisprudenciais como obrigações prima facie.
4.2.1.2 A superabilidade dos precedentes judiciais e o
princípio da igualdade. 4.2.2 O argumento a contrario e
a diferenciaçõjo de precedentes judiciais. 4.2.2.1 A s formas
simples do argumento a contrario: replieação e equiva­
lência. 4.2.2.2 A forma mais complexa de argumento a
contrario, o raciocínio a contrario contextual. 4.3 A apli­
cação de precedentes por analogia. 4.3.1 Uma breve in­
trodução histórica. 4.3.2 O conceito de analogia iuris e seu
anacronismo. 4.3.3 A concepção corrente acerca da estru­
tura da argumentação jurídica por analogia. 4.3.4 Os
princípios e a estrutura da argumentação por analogia.
4.3.5 Um exemplo de aplicação do modelo. 4.3.6 A analo­
gia e a interpretação extensiva, diferenciação. 4.4 Pro­
blemas de aplicação, comparação e ponderação, uma
integração de perspectivas.

4.1 A subsunção como regra geral de aplicação de


precedentes judiciais

Como já se disse no capítulo anterior, em tese é possível


extrair normas-princípio de um precedente judicial, referindo-se,

467
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

nesse caso, a uma ratio decidendi bastante abstrata que tenha


sido ventilada na fundamentação da decisão. Essa hipótese, no
entanto, é excepcional, e não nos interessa no momento, pois
tal tipo de ratio decidendi não tem um valor relevante como
“precedente judicial” , já que as normas adscritas que têm ca­
ráter de “princípio” valem não por força do precedente, mas
pela sua própria correção substancial.1
A técnica do precedente apenas se torna relevante nos
casos em que é possível extrair uma ratio decidendi do tipo
regra que seja capaz de elevar o grau de objetivação do Di­
reito. São os precedentes com uma estrutura hipotético-
condicional, com uma estrutura de regra, que cumprem sua
função de produzir certeza e objetividade para o Direito.
Sem uma estrutura silogística, a universalizabilidade e a
igualdade de tratamento em fa ce de um caso concreto deixam
de ser atingíveis.
Se a ratio decidendi é uma norma do tipo regra, então,
segue-se que a operação básica necessária para sua aplicação
em um caso futuro será a subsunção.
Esse tipo de ratio decidendi pode ser visualizado com
clareza ao adotarmos o método silogístico desenvolvido no n. 3.2
do capítulo anterior. E através da subsunção dos fatos do caso
concreto a uma norma universal previamente existente que
são aplicados os precedentes judiciais.
É claro que a subsunção pode apresentar dificuldades
substanciais no raciocínio jurídico em geral. Como explica
MacCormick [2005:61], “o problema de se enquadrar premissas
maiores e menores em um silogismo normativo é o problema
de se assegurar a identidade de sentido dos predicados empre­
gados em ambas [as premissas]” . Normalmente a premissa
normativa em um silogismo judicial pode ser apresentada como
uma regra estruturada segundo um esquema simples do tipo

1. V., supra, Capítulo 3, n. 3.3.2.3.2, (A.2).

468
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

“ sempre que OF, então JVC” - onde OF representa os fatos


operativos (operative facts) e NC as respectivas consequências
normativas (normative consequences) [idem:43]. Há pelo menos
quatro espécies de problemas que podem gerar dificuldades
nesse procedimento: “ (a) problemas de relevância - existem
dúvidas sobre qual é a norma aplicável ao caso; (b) problemas
de interpretação - há dúvidas sobre como se deve entender a
norma aplicável ao caso; (c) problemas de prova - há dúvidas
sobre se um determinado fato realmente aconteceu; (d) pro­
blemas de qualificação - têm lugar quando existem dúvidas
sobre se um fato que não se discute pode ou não ser reduzido
ao suposto de fato da norma jurídica” [ibidem].
As duas primeiras espécies de problemas dizem respei­
to à justificação da premissa normativa, ao passo que as de­
mais dizem respeito às premissas fáticas. Frise-se, ainda, que
as dificuldades listadas acima podem aparecer, no caso con­
creto, de forma combinada, o que torna o caso ainda mais
problemático.
Como resolver esses problemas é algo que deixarei de
tratar, aqui. Trata-se de tema da teoria da argumentação jurí­
dica em geral, e não de um problema específico do raciocínio
por precedentes. Remeto o leitor, nesse ponto, aos estudos de
Alexy [1997-a], MacCormick [1978-a; 2005], Aarnio [1991] e
Atienza [2000], entre vários outros que poderiam ser citados.
Importante ressaltar que essa enumeração de MacCor­
mick, por mais que auxilie o jurista prático, ainda não nos
fornece um diagnóstico completo dos denominados “ casos
difíceis” . Há pelo menos uma hipótese que não foi abordada
pelo jusfilósofo citado, no seu inventário dos problemas que
surgem nos casos difíceis: a questão dos casos nos quais surgem
dúvidas sobre se a norma jurídica existente (válida e em tese
aplicável) deve, ou não, ser aplicada. Nos casos onde existam
dúvidas fundadas a este respeito - os quais Manuel Atienza
denominou “ casos trágicos” - “ não existe nenhuma resposta
correta (à luz do ordenamento jurídico)” , ou seja, eles “não

469
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

podem ser decididos senão ferindo o ordenamento jurídico”


[Atienza 2000:304]. Trata-se de casos trágicos porque a solução
do problema envolve a decisão de não aplicar uma norma cuja
validade não pode ser questionada. Exatamente nesses casos
é que se torna necessário um “discurso de aplicação” no sen­
tido de Klaus Günther, pois já não se pode resolver o caso pela
operação da subsunção. Veremos, a seguir, os mais importantes
problemas de aplicação das regras jurisprudenciais.

4.2 O distinguish e suas duas operações básicas: a


redução teleológica e o argumento a contrario

A técnica do distinguish é um dos elementos caracterís­


ticos do common law, mas tende a se expandir cada vez mais
para outros domínios e tradições jurídicas. Quanto mais rígida
seja a aderência ao precedente judicial, mais frequente será
seu emprego. Como vimos, o distinguish pode ser descrito como
uma judicial departure que se diferencia do overruling porque
o afastamento do precedente não implica seu abandono - ou
seja, sua validade como norma universal não é infirmada -,
mas apenas sua não-aplicação em determinado caso concreto,
seja por meio da criação de uma exceção à norma adscrita
estabelecida na decisão judicial ou de uma interpretação res­
tritiva dessa mesma norma, com o fim de excluir suas conse­
quências para quaisquer outros fatos não expressamente
compreendidos em sua hipótese de incidência.2
Normalmente afirma-se que o distinguish pode se mani­
festar de duas maneiras: (1) por meio do reconhecimento de
uma exceção direta (direct exception) à regra judicial invocada
(justificada por circunstâncias especiais no caso subjudice) ou
(2) pelo estabelecimento de uma exceção indireta (indirect
exception ou circumvention) [Whittaker 2006:731]. Nesse último
caso - também denominado defact-adjusting - os fatos do caso

2. V., supra, Capítulo 3, n. 3.4.

470
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

presente são “ reclassificados” como algo diferente, para o fim


de evitar a aplicação do precedente judicial [ibidem].
A diferença entre essas duas modalidades está no acento
que é posto ora na premissa maior (ou normativa) e ora na
premissa menor (ou fática) do silogismo jurídico. Porém, em
ambas as situações o efeito da decisão é o mesmo: o afastamen­
to da regra jurisprudencial sem abalar sua validade, de sorte
que as duas podem ser descritas como “ equivalentes funcio­
nais” [Eng 2000-b:316].
Já tive oportunidade de demonstrar que há uma interco-
nexão entre fatos e regras que faz com que as regras adscritas
de um precedente judicial estejam indissociavelmente ligadas
aos fatos que lhes deram origem. Citando novamente a passa­
gem de Wróblewski já transcrita acima, “ os fatos no discurso
jurídico não podem ser compreendidos fora de suas conexões
com as regras” [Wróblewski 1988:29-30].3
Para entender essa conexão, recorro a um exemplo bas­
tante conhecido na jurisprudência brasileira: a discussão do
STF acerca da presunção de violência para fins de caracteri­
zação do crime de estupro. No direito brasileiro os arts. 213 e
214 do CP preveem os crimes de “ estupro” e “ atentado violen­
to ao pudor” , sendo que um dos elementos materiais do tipo é
que a conjunção carnal - ou o ato de natureza sexual análogo
- tenha sido praticada mediante “violência ou grave ameaça” .
O art. 224 da mesma lei prevê, nesse sentido, que “presume-se
a violência se a vítima não é maior de 14 (quatorze) anos” (art.
224,1, “ a” , do CP). A presunção de violência foi, historicamen­
te, interpretada pelo STF como de natureza absoluta - ou seja,
a não permitir qualquer exceção para a caracterização do ilí­
cito penal -, até vir a ser relaxada no julgamento do HC 73.662-
9-MG, em que se decidiu que a presunção de violência sobre a
vítima menor de 14 anos é relativa, de sorte que, “ confessada
ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da

3. V., supra, Capítulo 1, n. 1.5.2.

471
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de


pessoa com idade superior a 14 anos, impõe-se a conclusão
sobre a ausência de configuração do tipo penal” .4
Essa decisão, ao estabelecer que a presunção de violência
tem natureza relativa, parecia romper com uma linha de pre­
cedentes anteriores do Tribunal e estabelecer uma exceção à
regra jurídica contida no art. 224 do CFJ tal como interpretada
pela Corte em decisões anteriores. Entretanto, o Tribunal reviu
seu posicionamento rapidamente, e voltou a entender - em
uma série de julgados que hoje constituem uma linha de juris­
prudência consolidada - que a presunção é de natureza abso­
luta, e não admite exceções. Não obstante, nesses mesmos
julgados o Tribunal reconhece a possibilidade de exclusão da
punibilidade por “ erro justificado” do agente quanto à idade
da vítima, por este configurar um “ erro quanto a um dos ele­
mentos constitutivos do tipo” .5
Como se percebe, tanto no primeiro precedente (que
relativiza a natureza da presunção) quanto nos derradeiros
(que retomam a orientação anterior da natureza absoluta, mas
admitem a exclusão da punibilidade com fundamento no “ erro
essencial” ) o resultado do julgamento acaba sendo o mesmo:
o indivíduo que manteve relações com menor de 14 anos com
fundamento em erro justificado acerca da idade da vítima
permanece sem punição. Em ambas as situações são construí­
das exceções à regra geral da punibilidade dos agentes que
tenham mantido relações sexuais com menores de 14 anos, mas
na primeira delas a ausência de punição decorre de uma rein-
terpretação da regra do art. 224,1, “ a” , do Cp ao passo que nas
últimas decorre de um enunciado particular que “ reclassifica”
os fatos e os exclui do âmbito de aplicação daquela regra (já que

4. STF, 2aTurma, HC 73.622-9-MG, rei. Min. Marco Aurélio, j. 16.4.1996, DJU


20.9.1996.
5. STF, 2* Turma, HC 79.778, rei. Min. Nelson Jobim, j. 2.5.2000, DJU 17.8.2001.
No mesmo sentido, v.: Supremo STIJ IaTurma, HC 81.268, rei. Min. Sepúlveda
Pertence, j. 16.10.2001, DJU 16.11.2002.

472
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

os fatos criminosos cometidos sob erro de tipo têm sua puni-


bilidade excluída). No entanto, esse enunciado que “reclassi-
fica” os fatos, ao ser universalizado, passa a constituir também
uma norma adscrita de origem jurisprudencial.
O exemplo demonstra, portanto, que o efeito do distinguish
será o mesmo seja quando o precedente está sendo distinguido
por direct exception ou por indirect exception ou circumvention.
Todavia, a distinção ainda permanece relevante para o
raciocínio jurídico porque a estratégia para justificação da
departure é diferente em cada uma das duas alternativas, e isso
irá repercutir no próprio conteúdo do precedente judicial nos
casos futuros. Com efeito, os precedentes funcionam como
elementos de justificação de uma decisão jurídica, e a forma
como eles são enunciados pode ser decisiva para determinar
sua força nos casos futuros.
Desse modo, a técnica do distinguish deve ser definida
com o um tipo de afastamento do precedente judicial no qual
a regra da qual o tribunal se afasta permanece válida mas não
é aplicada com fundamento em um discurso de aplicação em
que, das duas, uma: (1) ou se estabelece uma exceção ante­
riormente não reconhecida - na hipótese de se concluir que
o fato sub judice pode ser subsumido na moldura do prece­
dente judicial citado; ou (2) se utiliza o argumento a contrario
para fixar uma interpretação restritiva da ratio decidendi do
precedente invocado na hipótese de se concluir que o fato sub
judice não pode ser subsumido no precedente. No primeiro
caso (redução teleológica) opera-se a exclusão de determina­
do universo de casos antes compreendidos no âmbito de in­
cidência da norma apontada com o paradigma; no segundo
caso (argumento a contrario) a norma jurisprudencial perma­
nece intacta, mas se conclui que suas consequências não
podem ser aplicadas aos fatos que não estejam compreendidos
em sua hipótese de incidência.
Analisaremos, a seguir, cada uma dessas duas modalida­
des de distinguish.

473
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

4.2.1 A redução teleológica e o caráter superável (defeasible)


das regras jurídicas

A primeira hipótese de aplicação da técnica do distin-


guish é a redução teleológica. A técnica da redução consiste
no estabelecimento, por razões de equidade, de uma exceção
na hipótese de incidência de uma determinada norma jurídi­
ca. Ocorre, nesse caso, uma redução na área semântica da
regra jurídica excepcionada, uma diminuição do universo de
situações compreendidas na sua hipótese, com o uma forma
de solucionar os problemas de aplicação dessa norma aos
casos particulares.
A redução teleológica é uma espécie de retificação do
Direito quando este se apresenta injusto por excessivamente
geral. Isso acontece porque, embora a norma jurídica em ques­
tão possa ser “validada” com fundamento no princípio “ 17” em
sua versão frágil,6 em um momento futuro surgem condições
adicionais que tornam injustificada - desarrazoada, injusta -
sua aplicação, de sorte que surge a necessidade de uma “revi­
são do seu conteúdo” , para atender às exigências de justiça do
caso concreto [Günther 1993-b:70].
Essa situação pode se dar tanto na fiscalização abstrata
de constitucionalidade das leis - quando se admite, por exem­
plo, a “ inconstitucionalidade parcial da lei” , de sorte que o
tribunal declara inconstitucional apenas uma parte da lei
questionada ou um dos sentidos semanticamente imagináveis
para o dispositivo normativo em questão [Medeiros 1999:413
e ss.] - quanto, no caso concreto, em face de uma excepcio-
nalidade que torna a aplicação da norma geral contrária aos
fins que a justificam.
Como ensina Günther [1993-b:68], “ a relação de uma
norma com todos os outros aspectos da situação tem que ser
determinada novamente em cada situação de aplicação, porque

6. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.3.I.

474
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

modificações na constelação de traços que definem a situação


não podem ser antecipadamente previstas” .
Por vezes o aplicador do Direito é capaz de identificar,
com um grau de objetividade relativamente razoável - já que
também na aplicação imparcial de normas jurídicas devem ser
produzidas normas individuais universalizáveis circunstân­
cias adicionais às contidas na hipótese de incidência da norma
a aplicar, que tornam a solução exigida por essa norma inad­
missível tanto à luz da moral autônoma quanto à luz de prin­
cípios jurídicos fundamentais consagrados nos textos das
Constituições democráticas. Novamente recorro às lições de
Günther para explicar esse fenômeno: “A justificação de uma
norma dura apenas até o momento em que permaneçam inal­
terados os possíveis contextos de aplicação conhecidos por
todos os participantes com fundamento em suas experiências
históricas. Apenas uma aplicação imparcial nos põe em posição
de relacionar uma norma universalmente justificada a contex­
tos estendidos e modificados e desse modo exaurir todas as
variáveis semânticas relevantes para a decisão. Variações no
contexto nos compelem a interpretar novamente as situações,
e nós podemos desse modo trazer à colação novos interesses”
[Günther 1993-b:69].
Urge reconhecer, portanto, a característica da superabi-
lidade (defeasibility) das normas jurídicas em geral, isto é, a
possibilidade de se encontrar exceções ou situações que afas­
tam suas consequências em um caso particular.7
As normas jurídicas são sempre superáveis, de sorte
que pode haver razões para que se deixe de aplicá-las em
certas situações especiais, o que permite sustentar que a
incidência de uma norma sobre um caso concreto não ga­
rante sua aplicação (pois ela pode vir a ser excepcionada).
De acordo com Neil MacCormick [1995:103], isso tem origem

7. Nos próximos parágrafos transcrevo parte de trabalho de minha autoria


publicado anteriormente [Bustamante 2005-a:232-235 e 239-240].

475
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

nos limites à precisão (accuracy) e à exaustividade (exhaus-


tiveness) dos enunciados jurídicos em geral (statements o f the
law). Nesta perspectiva, muitas das condições para a aplicação
do Direito (background conditions) permanecem implícitas
(■unstated), especialmente nos casos excepcionais onde a hi­
pótese de incidência da norma é muito aberta em relação ao
caso. Todo condicional jurídico está sujeito a exceções que
surgem diante de um caso particular, de sorte que as condições
para a aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto
são tão-somente “ ordinariamente necessárias” e “presumida-
mente suficientes” para o surgimento das consequências ju ­
rídicas [idem:108].

Em todo sistema jurídico não exaustivamente fechado


pode, em tese, surgir uma situação onde as condições para a
aplicação de um princípio ou regra jurídica válida estão satis­
feitas mas mesmo assim a conclusão (gerada por essas normas)
não é alcançada [Hage 1997:123]. Esse fenômeno é sempre
possível no raciocínio jurídico, tendo em vista que um sistema
jurídico perfeito é algo irrealizável, haja vista que seria neces­
sário, para sua criação, existir uma regra para cada potencial
comportamento humano. Por conseguinte, os enunciados ju­
rídicos são condicionados à manutenção da situação fática para
a qual foram concebidos. Como salienta Alchourrón [2000:23]:
“Na linguagem corrente, as construções condicionais da forma
‘se A, então B ’ são frequentemente usadas de um modo tal que
não se pretende com elas afirmar que o antecedente A é uma
condição suficiente do consequente B, senão somente que o
antecedente, somado a um conjunto de pressupostos aceitos
no contexto de emissão do condicional, é condição suficiente
do consequente B. Este é o caso, por exemplo, quando se afir­
ma, com relação a uma certa mistura de gás, que seu volume
aumenta caso se eleve a temperatura, supondo que, no contex­
to, a pressão se manterá constante. A afirmação condicional é
superada quando algum dos pressupostos implícitos é falso” .
Nesse sentido, as normas jurídicas, incluindo-se aquelas
que chamamos de “regras”, são condicionais superáveis, isto

476
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

é, sujeitos a exceções implícitas [Alchourrón 2000:23]. A des­


coberta dessas exceções é tarefa do intérprete, que parte da
análise das prescrições normativas e do contexto em que elas
foram elaboradas a fim de chegar até a ratio para a qual a
norma foi construída. Não há, qualquer que seja o sistema
jurídico em exame, um montante finito de informação que
garanta, em termos absolutos, a verdade de descrições hipo­
tético-normativas de situações e suas consequências jurídicas
[Hage 1997:84]. Daí a aplicabilidade de uma norma jurídica
não garantir sua efetiva aplicação, haja vista que há certas
incidências excepcionais de regras jurídicas em que sua apli­
cação viola a Constituição, apesar de, nos casos normais, não
se cogitar de qualquer incompatibilidade com a Lei Superior
[Borges 1999:100].
Obviamente, a característica da superabilidade, no caso
específico das regras, diz respeito a situações inéditas, as quais
tenham sido imprevistas e imprevisíveis quando da criação dos
enunciados normativos que as originaram. A efetiva superação
de uma norma jurídica válida será tanto mais difícil quanto
maior for o componente descritivo-comportamental presente
na sua moldura normativa. No entanto, ainda que estejamos
diante da regra mais específica existente num determinado
tempo e lugar (chamemos, aqui, de R), sempre será possível
surgir uma situação na qual sua aplicação cause rompimento
no equilíbrio dos princípios que lhe servem de fundamento.
Caso esse desequilíbrio cause uma restrição desproporcionai
e irracional num desses princípios, é possível que existam ra­
zões para a criação de uma nova regra (R’) que valha como
exceção para R.
Exceções à aplicação das regras jurídicas são formuladas
a partir da ponderação racional de princípios, por meio de uma
valoração que determinará se é possível, ou não, estabelecer
uma exceção para a regra autoritariamente integrada ao sis­
tema jurídico. Como salienta MacCormick [1995:103], “ exceções
ocorrem sempre que surge uma situação em que os aconteci­
mentos particularmente em questão trazem à tona alguns

477
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

princípios ou valores (juridicamente consolidados) com impor­


tância suficiente para prevalecer sobre [override] a presumida
autossuficiêneia das condições expressamente estabelecidas
para o surgimento de um direito” . Nesses casos, a situação
excepcional ativa um fator de fundo (background factor) que
impede o surgimento da consequência que normalmente seria
engendrada pela norma.
Como exemplo MacCormick menciona o caso “ R. vs Na­
tional Insurance Commissioner ex p. O’Connor ”’8em que uma
viúva que foi considerada culpada pela morte de seu marido
não fez jus aos benefícios previdenciários deixados por ele,
embora inexistisse na legislação em tela previsão expressa de
exclusão do benefício. Partindo-se do princípio da culpabilida­
de, que indica que não se pode dar sustentação a direitos ori­
ginados de ilícitos criminais praticados por seu titular (sem
distinguir, aqui, crimes dolosos ou culposos), criou-se para o
caso a regra segundo a qual nem a pensão nem outros benefí­
cios análogos podem ser concedidos ao causador do evento
“ morte” [MacCormick 1995:101].
Quando a aplicação de uma regra jurídica interferir
excessivamente em princípios considerados especialmente
importantes, implicando manifesta injustiça no caso concre­
to, será possível criar uma exceção à regra em tela com o
emprego da técnica da redução de significado (reduction) de
regras jurídicas válidas, por meio da qual se limita o raio de
incidência de uma norma jurídica cujo significado literal é
considerado muito amplo. Através da redução o tribunal re­
conhece uma exceção não-escrita à incidência da norma
[Alexy/Dreier 1991:89 ], ou seja, realiza uma modificação na
regra jurídica R para os casos em que sua aplicabilidade for
tida com o “ indesejada” . Como ensina Alexy [1997-a:227], há
casos em que é possível deixar de aceitar o resultado das in­
terpretações fundamentadas em argumentos semânticos: “ Em

8. [1981] All E. R., 770

478
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

caso de aplicabilidade indesejada de Rp isto pode ter lugar li­


mitando R} ((x) [TjX —> ORxJ), com a ajuda de uma caracterís­
tica F ” , de modo que seria formulada, para o caso, a seguinte
regra: R2 ((x) [T:x a - 1Fx —> ORx]). Vê-se, pela análise da fór­
mula proposta por Alexy, que R2 (que Alexy qualifica como o
resultado da modificação de R, através de redução teleológicd)
não passa de uma reformulação de Rp à qual foi estabelecida
uma exceção (-■ Fx).
Vejamos, a seguir, alguns problemas e particularidades
da redução teleológica de precedentes judiciais.

4.2.1.1 A superabilidade (defeasibility) das normas jurídicas


e os conflitos normativos: as regras jurisprudenciais
como obrigações prima fade

Quando vinculamos a teoria da argumentação jurídica - e,


em especial, a teoria dos precedentes - ao princípio da uni-
versalizabilidade, que funciona com o uma regra de argu­
mentação ou critério de correção para normas jurídicas e
morais, pode se tornar problemática a asserção de que as
regras jurídicas devem ser superadas na presença de razões
relevantes que tornam inadequada sua aplicação ao caso
concreto.
Argumenta-se, por exemplo, que a superabilidade de uma
regra jurídica implica a negação do seu caráter universal.
Quando MacCormick, por exemplo, afirma que “para fatos
particulares serem razões justificativas eles necessariamente
têm de ser subsumíveis em um princípio de ação [norma] enun­
ciado em termos universais, ainda que esse universal seja tido
como superável [defeasible]” [MacCormick 2005:99], dir-se-ia,
ao se seguir essa crítica, que o professor escocês estaria em
contradição.
Se essa crítica for considerada razoável, minha teoria dos
precedentes padece dos mesmos males que o universalismo
superável de Neil MacCormick. No entanto, estou convencido

479
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de que essa objeção não merece ser aceita, bem como de que
não há inconsistência em se afirmar, de um lado, que as decisões
jurídicas devem ser justificadas por meio de regras universais
e, de outro, que essas regras podem ser superadas por outras
razões que eventualmente preponderem sobre elas. Mas a
objeção recomenda que seja feita uma maior especificação no
conceito de superabilidade (defeasibility).
Reconhecer a superabilidade das regras jurídicas signi­
fica admitir para elas um caráter prima facie, embora dife­
rente do dos princípios jurídicos. E um caráter prima fa cie
menos acentuado e que não decorre mais da ausência de
especificação dos comportamentos devidos no suposto de fato
da norma (com o acontece nos princípios), mas das situações
de aplicação em que deve ser levada em conta, para sua apli­
cação adequada, a “ coerência da norma com todas as outras
normas e variáveis semânticas aplicáveis a cada situação”
[Günther 1993-b:242].
Nesse sentido, passa-se a reconhecer as regras jurídicas
como estabelecendo uma espécie de obrigação prima facie, e
não uma obrigação absoluta.
A ideia de obrigação prima facie foi introduzida na Filo­
sofia contemporânea por David Ross, no intento de bem com­
preender os conflitos entre deveres e obrigações que acontecem
no mundo real (real life situations). Num conhecido exemplo,
já citado anteriormente, se eu assumo com A o compromisso
de ir a uma festa mas, ao mesmo tempo, devo acudir B, que
está gravemente ferido, é razoável concluir que eu estou auto­
rizado a deixar de cumprir meu compromisso com A para
poder cumprir minha obrigação em relação a B. Para Ross, a
obrigação que eu tinha com relação a A é, na realidade, uma
obrigação prima facie, e não uma obrigação propriamente dita
(actual obligation) [Searle 1978:82].
Como explica Searle [1978:82], no exemplo a obrigação
prima fa cie é contrastada por uma obrigação propriamente
dita ou real, sendo correto descrever a situação da seguinte

480
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

maneira: “ Eu simplesmente não tenho obrigação de cumprir


minha promessa. Na verdade, eu simplesmente pareço estar
obrigado, porque cumprir a promessa, com o Ross diria, tem
a ‘tendência de ser o nosso dever’, mas quando todos os fatos
são considerados fica claro que eu tenho uma obrigação de
ajudar B, mas não tenho qualquer obrigação de ir à festa de
A ” [ibidem].
Como se vê, a denominada obrigação prima fa cie, na
realidade, não chega a ser, de acordo com David Ross, uma
autêntica “ obrigação” . Para Searle esse fato torna insupera-
velmente inconsistente a teoria de Ross: “ Uma dificuldade
imediata dessa visão é que a promessa, na situação de con­
flito entre deveres, simplesmente acaba não contando para
nada. E com o se eu nunca tivesse feito qualquer promessa”
[Searle 1978:82],
Essas críticas de Searle são pertinentes, pois conceber
uma obrigação prima facie como uma mera “ obrigação apa­
rente” ou como “ algo que ainda não constitui uma obrigação,
mas pode vir a sê-lo” - como seria coerente com a teoria de
Ross - , não ajuda muito a compreender a natureza dos deveres
prima fa cie e nem a resolver conflitos entre obrigações - sejam
morais ou jurídicas como o narrado no exemplo.
Mais adequada é a concepção de Jaakko Hintikka [1969],
que vê a obrigação prima fa cie como um autêntico dever ou
obrigação, embora menos vinculativa (less compelling) que as
obrigações absolutas ou “propriamente ditas” .
Ao examinar uma implicação simples, do tipo (p—
Hintikka [1969:191] diferencia claramente as noções de con-
sequência lógica e consequência deontológica. Quando esta­
mos tratando de uma consequência do tipo lógico, (p—>q)
significa que o enunciado (p& ~q) não pode ser satisfeito;
mas quando estamos discutindo questões normativas esse
quadro pode ser alterado. “ Sem perceber” , quando discuti­
mos questões normativas, “ nós concentramos nossa atenção
não no que pode ou não ser realizado, mas no que pode ou

481
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

não ser realizado sem violar alguma obrigação” . Assim, “ no


caso em tela, nós tacitamente acabamos indagando se p pode
ser realizado sem realizar q, quando todas as normas estão
cumpridas” .
De acordo com Hintikka, “isso significa que nós estamos
considerando [na última hipótese, isto é, quando voltamos nossa
atenção para questões normativas] não a validade de (p&~q),
mas a validade de P(p&~q), ou, noutras palavras, não a vali­
dade de (p—>q), mas a validade de 0 (p —>q). Se (e somente se) o
primeiro enunciado for válido, normalmente se diz que q é
logicamente implicado por p (ou seja, q é uma consequência
lógica de p). Se (e somente se) o último enunciado for válido,
nós devemos dizer que q é deonticamente implicado por p (ou
seja, q é uma consequência deôntica de p)” [Hintikka 1969:191].
Essa diferença, entre consequências lógicas e deontológi­
cas é fundamental para a exata compreensão das denominadas
“ obrigações prima fa cie” , pois quando falamos de consequên­
cias lógicas estamos tratando de regras válidas para qualquer
mundo possível, ao passo que as consequências deontológicas,
se forem tomadas rigorosamente, referem-se unicamente a um
“ mundo deonticamente perfeito” [Hintikka 1969:191]. Ora, “ é
frequentemente mais fácil ser categórico sobre como as coisas
deveriam ser, isto é, como elas seriam num ‘mundo deontica­
mente perfeito’, que conhecer os deveres complexos que uma
pessoa tem no mundo real” [ibidem], especialmente porque
neste último é que se apresentam os verdadeiros conflitos entre
obrigações ou deveres.
A vinculatividade (commitment) das obrigações pode,
segundo Hintikka, manifestar-se de pelo menos duas maneiras,
representadas pelas seguintes fórmulas:

(1) 0(p^q)
e
(2) p - » Oq

482
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A fórmula (1) assemelha-se ao que já havíamos designa­


do com o uma “consequência deontológica” . Em (1), se imagi­
narmos não um “ mundo deonticamente perfeito” - no qual p
invariavelmente implica q - , mas um mundo real em que a
obrigação de realizar q, uma vez verificado p, possa ser elidida
em caso de um conflito com outra obrigação mais forte que ela
- no caso concreto teremos uma obrigação prima facie.
E (2), por sua vez, refere-se a implicações lógicas que
invariavelmente ensejam a obrigatoriedade de realização das
consequências.
Noutros termos, o contraste entre (1) e (2) é “ essencial­
mente o contraste entre obrigações prima facie e obrigações/
deveres propriamente ditos” [Hintikka 1969:204].
Para tornar mais clara essa diferença, Hintikka [1969:204]
propõe ainda uma fórmula mais complexa: se n representa “a
conjunção de um conjunto de princípios normativos” e p, por
sua vez, representa uma premissa fática, consistente num con­
junto de enunciados descritivos, então, com base no conjunto
de normas n , q é uma obrigação prima facie se e somente se

(3) 0[(n&p) -> q]

for válido, isto é, “ se q é uma consequência deôntica de (n&p).


De m odo semelhante, existe uma obrigação absoluta ou ‘pro­
priamente dita’ de realizar q se e somente se

(4) (n&p) -» Oq

for válido, isto é, se e somente se Oq é uma consequência lógi­


ca de (n&q)” .
Vê-se, portanto, que quando Hintikka se refere a obriga­
ções ou deveres prima facie - representados graficamente por
(1) e/ou (3) -, ele está se referindo a enunciados hipotéticos

483
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que, por entrarem potencialmente em conflito com outros


enunciados da mesma natureza, nem sempre ensejam as
consequências ordinariamente previstas para as hipóteses.
Ora, é exatamente essa a situação das regras jurispru-
denciais, com a única diferença (em relação ao silogismo jurí­
dico como tradicionalmente concebido) de que na descrição
de Hintikka os enunciados normativos são expressos em nota­
ções que são capazes de expressar a característica da supera-
bilidade (ou defeasibility) que os marca. Tal característica diz
respeito à possibilidade de se deixar de aplicar uma regra ju­
rídica em vista de exceções que vão sendo construídas na
prática jurídica, seja com fundamento em regras especiais ou
com base em princípios que permitem, sob certas condições
excepcionais, que se crie uma exceção no caso particular.
As relações que se estabelecem entre as hipóteses e con­
sequências nas normas jurídicas em geral - e com maior força
nas regras jurisprudenciais - são, portanto, obrigações prima
facie, no sentido de que não há uma implicação lógica entre
elas, mas uma implicação deontológica, pois é ao menos em
tese admissível que uma circunstância particular do caso con­
creto impeça o surgimento das consequências jurídicas ordi­
nariamente previstas. Nesse caso, o tribunal reinterpreta o
precedente judicial e estabelece uma exceção à regra geral nele
contida. Como já vimos ao relatar a resposta que Alexy dá à
crítica à Tese do Caso Especial/TCE formulada por Günther, o
tribunal soluciona um problema de aplicação da norma geral
e, ao mesmo tempo, justifica uma nova regra especial, que
passa a valer para os casos posteriores.9

4.2.1.2 A superabilidade dos precedentes judiciais e o princí­


pio da igualdade

Ao diferenciar os princípios das regras, explicando o di­


ferente caráter prima facie de cada um dos dois tipos de normas,

9. V., supra, Capítulo 2, n. 2.4.3.I.

484
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Alexy enfatiza que as regras podem ser excepcionadas com


fundamento em um princípio, mas que há certas particulari­
dades que tornam esse procedimento mais complexo que a
ponderação, pois não basta apenas ponderar o princípio que
contribui para a introdução de uma exceção com o que justifi­
ca o seguimento da norma.
Entende Alexy que é possível “introduzir uma cláusula
de exceção nas regras” com fundamento na técnica da redução
teleológica, e quando isso acontece “ a regra perde seu caráter
definitivo para a solução do caso” [Alexy 1997-b:99]. Não obs­
tante, permanecem importantes diferenças entre o caráter
prima fa cie das regras e dos princípios: “ Um princípio é supe­
rado quando, no caso a ser decidido, um outro princípio tem
um peso maior. Diferentemente, uma regra não é automatica­
mente superada quando no caso concreto o princípio oposto
tem um peso maior que o princípio em que ela se apoia. A de­
mais, também têm que ser superados os princípios que esta­
belecem que as regras que são impostas por uma autoridade
legítima para tanto têm que ser seguidas e que não se deve
afastar sem fundamento de uma prática transmitida. Estes
princípios podem ser denominados ‘princípios formais’” [Ale­
xy 2004-e: 58].
Como se nota, há duas razões para o diferente caráter
prima fa cie das regras e princípios jurídicos. De um lado, os
princípios são restringidos com fundamento em princípios
opostos, o que não acontece com as regras, já que estas normas
não são mandados de otimização - e por isso não podem ver
determinada qualquer “medida” de seu cumprimento. Não há
alternativa, ao se observar uma regra, senão a de cumprir ou
desobedecer. A introdução de uma exceção pode ser vista,
portanto, como a criação de uma nova regra jurídica excepcio­
nal que afasta a aplicação da norma anterior no caso concreto.
De outro lado, o abandono de uma regra jurídica, ao contrário
do que se dá com um princípio, depende de uma argumentação
que consiga sobrepor-se aos princípios formais ou procedi­
mentais que exigem o cumprimento da regra jurídica.

485
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Esse segundo ponto é que se configura essencial para


nós. Com efeito, o primeiro refere-se apenas às diferenças
estruturais entre regras e princípios, que é um problema ana­
lítico; ao passo que o último se liga à necessidade normativa
(derivada dos princípios formais) de se obedecer às determi­
nações impostas pelo legislador. Entre esses princípios formais
encontram-se o princípio democrático, o princípio da seguran­
ça jurídica e o princípio do Estado de Direito. Esses princípios
têm um peso especial na argumentação jurídica e estabelecem
um “dever de obediência” ao legislador, o qual torna a supera­
ção de uma regra um fenômeno excepcional que requer razões
especialmente fortes para encontrar fundamento.
O peso desses princípios formais, contudo, é relativiza-
do em importante medida quando se trata de regras derivadas
de precedentes judiciais, e não mais do processo legislativo
democrático, com o imagina Alexy. Não há razões de autorida­
de a impedir a redução teleológica de um precedente judicial
pelo próprio tribunal que o estabeleceu, e mesmo nos tribu­
nais inferiores dificilmente o peso dessas razões será equiva­
lente ao das que militam a favor das regras estabelecidas pelo
legislador democrático. O peso dos “princípios formais” na
redução teleológica de regras jurisprudenciais é significati­
vamente reduzido.
Ainda assim, a redução teleológica de um precedente
judicial não pode ser vista com o um procedimento absoluta­
mente livre, pois o princípio constitucional da igualdade de
tratamento10gera a presunção de que todos os indivíduos com ­
preendidos em uma mesma classe ou categoria devem ser
tratados igualmente, a não ser por razões especialmente rele­
vantes que justifiquem um tratamento diferenciado.
Há de se perquirir, para justificar a exceção introduzida,
a plausibilidade das diferenciações estabelecidas no caso con­
creto. Nesse terreno, o princípio da razoabilidade funciona

10. No caso do Direito brasileiro, v. Constituição da República, art. 5a, caput.

486
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

com o um valor-função que atua seletivamente para contrastar


a relevância das individualidades do caso concreto com a
descrição hipotética da norma geral existente. Ao invés de
um valor-em-si-mesmo (value-in-itself), a razoabilidade é um
valor-função (value-function), porque fixa um parâmetro in-
terpretativo para especificar os fatores de valoração (value-
factors) que são relevantes para um julgamento sobre a exis­
tência, ou não, de justificabilidade nos casos particulares em
análise [MacCormick 1984:143].
É através de um juízo de razoabilidade que se pode veri­
ficar, em cada caso concreto, a justificabilidade das diferencia­
ções de tratamento propostas por meio de regras excepcionais
aos precedentes judiciais. Vale ressaltar, neste particular, a lição
de Celso Antônio Bandeira de Mello segundo a qual o reconhe­
cimento de uma violação à isonomia demanda o enfrentamen-
to de três questões: (1) a verificação do “ elemento tomado como
fator de desigualação” ; (2) a verificação da “ correlação lógica
abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen
e a disparidade estabelecida ao tratamento jurídico diversifi­
cado” ; e, finalmente, (3) a avaliação da “ consonância desta
relação lógica com os interesses absorvidos no sistema consti­
tucional” [Bandeira de Mello 2010:22]. Tal verificação é, indis­
cutivelmente, uma questão de razoabilidade da norma adotada.
Saber se uma medida viola a regra constitucional da igualdade
é saber se os critérios por ela encampados ajustam-se, ou não,
à máxima da razoabilidade.
Sem adentrar o conteúdo e os critérios formais da razo­
abilidade11- pois isso iria tornar o presente trabalho excessi­
vamente extenso -, cumpre ao menos enunciar um requisito
formal para esse processo de distinguish por redução: a exi­
gência de que a exceção seja enunciada em termos universais

11. Sobre o assunto tive oportunidade de fazer breve estudo onde são expostos
os critérios de razoabilidade que considero mais relevantes para a prática
jurídica [Bustamante 2005-b],

487
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

e valha, também, como uma regra adscrita para os julgamentos


futuros. Sem essa exigência a aplicação imparcial do Direito
se torna impossível. Como explica MacCormick, mesmo no caso
do afastamento da lei por equidade, onde são estabelecidas
exceções à incidência de normas dotadas de um grau ainda
maior de vinculatividade, é necessário o emprego de argumen­
tos universais, haja vista o princípio da justiça formal: “Dizer,
com o nós realmente podemos dizer, que em certos casos a
aplicação estrita das regras de direito positivo existentes seria
contrária aos interesses do caso não deve nos levar a crer em
um conceito misterioso de equidade, de acordo com o qual
casos individuais sejam tidos como possuidores de caracterís­
ticas únicas e particulares. A equidade [equity] é tanto uma
questão sobre o que é universalizável quanto o é a justiça”
[MacCormick 1978-a:98-99].

4.2.2 O argumento a contrario e a diferenciação de precedentes


judiciais

Diferentemente do que ocorre na redução teleológica,


no argumento a contrario conclui-se que os fatos sub judice
não podem ser subsumidos na regra jurídica cuja aplicação
se pretende evitar no caso concreto. Não é necessário intro­
duzir uma cláusula de exceção na regra em questão, já que
esta foi interpretada em um sentido restrito, de sorte a excluir
do âmbito de incidência da norma os fatos do caso concreto.
Pela via do argumento a contrario conclui-se que, “ havendo
uma norma qualquer que predique certa qualificação norma­
tiva (por exemplo, um poder, uma obrigação ou um status) a
um sujeito ou a uma classe de sujeitos, na falta de uma outra
norma expressa se deve excluir que valha (que exista, que
seja válida) uma norma diversa que preveja essa mesma qua­
lificação normativa para qualquer outro sujeito ou classe de
sujeitos” [Tarello 1980:346].
E um argumento que se baseia na premissa de que o si­
lêncio do legislador acerca de determinado fato, sua falta de

488
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

menção em determinada regra jurídica, não constitui uma fal­


ta de regulação dos fatos omitidos, já que as consequências
previstas na regra em tela valem apenas para os fatos com pre­
endidos em sua hipótese, e não para quaisquer outros [Garcia
Amado 2001:91]. Por isso, para que o argumento possa ser
considerado logicamente válido, é necessário presumir o cará­
ter relativamente fechado do sistema jurídico. Pelo argumento
a contrario conclui-se que não há outras condições suficientes
para a consequência jurídica prevista na norma de partida: “A
argumentação a contrario depende da ausência de condições
suficientes alternativas para a conclusão negada pelo argumen­
to a contrario” [Kaptein 1993:319].
Esse requisito - uma premissa implícita que ateste a
ausência de qualquer outra condição suficiente para a conse­
quência da norma cuja aplicação se afasta - é essencial para a
correção do argumento a contrario, pois na sua falta ele não
passa de um clássico non sequitur. Apesar da alegada plausi­
bilidade retórica do argumento a contrario, só em casos espe­
cíficos - que demandam uma série de premissas implícitas - ele
pode ser considerado um argumento logicamente válido. Com
efeito, não basta negar o antecedente para se concluir que suas
consequências não têm lugar em determinado caso concreto.
Um exemplo pode ser esclarecedor: de uma norma como “todos
os ladrões devem sofrer uma condenação” , conjugada com a
asserção de que “ Shulze não é um ladrão” , não podemos infe­
rir que “ Shulze não deve sofrer uma condenação” . Como ex­
plica Rentería Díaz [1997:321], “ na conclusão existe algo que
não existe nas premissas” .
O emprego falacioso do argumento a contrario constitui,
talvez, o mais comum equívoco de argumentação jurídica, nos
mais variados ordenamentos jurídicos.
Por exemplo, antes da promulgação da Emenda Consti­
tucional 45/2004, que introduziu o § 3Sao art. 5- da CF brasileira,
Flávia Piovesan sustentava, com fundamento no art. 5a, § 2°, da
CF, que todos os tratados internacionais sobre direitos humanos

489
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

celebrados pelo Brasil têm hierarquia constitucional, partindo


da seguinte linha de raciocínio: “ Ora, ao prescrever que ‘os
direitos e garantias expressos na Constituição não excluem
outros decorrentes dos tratados internacionais’, a contrario
sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos
constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos
tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este pro­
cesso de inclusão implica a incorporação pelo texto constitu­
cional destes direitos” [Piovesan 2000:73].
Como é visível a olho nu, o argumento a contrario foi
aplicado de forma equivocada. Com base nele só se pode
concluir que uma situação qualquer é tratada de forma dife­
rente da estabelecida na hipótese de incidência de um enun­
ciado normativo. Nada mais. O argumento a contrario p ode­
ria, no máximo, permitir a conclusão de que estariam exclu­
ídos de qualquer proteção os direitos previstos em fontes
diversas dos tratados internacionais (o que, aliás, seria uma
interpretação insustentável, pois impediria, inclusive, que o
legislador viesse a ampliar o catálogo de direitos individuais).
Percebe-se, portanto, que a correção da conclusão defendida
pela autora citada depende única e exclusivamente da viabi­
lidade de se interpretar a locução “ não excluem os direitos
decorrentes dos tratados internacionais” com o sendo uma
regra de com petência que estabeleça processo especial para
emendas no texto constitucional (diverso daquele criado pelo
art. 60 da CF),12 o que nada tem a ver com o argumento a
contrario.
Justamente para evitar esse tipo de equívoco, o argumento
a contrario deve ser sempre reconstruído de modo a expressar

12. Isso seria, para mim, francamente implausível. O fato de os direitos


previstos em tratados estarem incorporados à ordem jurídica brasileira não
pode implicar que eles tenham a mesma hierarquia da Constituição, até
mesmo porque ela própria estabelece a possibilidade de controle de consti-
tucionalidade dos tratados, e não há qualquer razão para estabelecer uma
exceção a esta regra.

490
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

uma inferência logicamente correta, sob pena de sérios prejuí­


zos para a justificação racional das decisões que o aplicam. Não
se pode admitir, jamais, o emprego logicamente inválido do
argumento a contrario, pois todas as vezes em que o argumen­
to for plausível é possível justificar a decisão a partir da eluci­
dação de premissas implícitas que tornam a inferência a con­
trario logicamente possível.
Portanto, se, por um lado, podemos concordar com Ferraz
Jr. quando ele sustenta que o argumento a contrario é muitas
vezes “logicamente insustentável, pois uma consequência ver­
dadeira pode resultar de um princípio falso, bem como duas
hipóteses contrárias podem ter a mesma consequência” , por
outro lado, parece difícil aceitar que “ o seu estatuto de valida­
de não é lógico, mas retórico” [Ferraz Jr. 2003:338], como se o
argumento a contrario pudesse ter algum valor jurídico inde­
pendentemente de uma construção formalmente correta do
raciocínio.
Em qualquer caso, deve ser possível enunciar a argumen­
tação a contrario sensu de forma logicamente correta, sob pena
de este tipo de argumento carecer de qualquer valor. Como
veremos a seguir, há duas formas de reconstruir o argumento
a contrario, de sorte a torná-lo logicamente válido: uma forma
simples e uma forma complexa.

4.2.2.1 As formas simples do argumento a contrario: replicação


e equivalência

Como informa Tarello, o uso do argumento a contrario


no raciocínio jurídico está associado à consideração do Direito
como expresso em documentos certos e estáveis. Talvez por
isso o argumento tenha atraído pouca atenção dos jurisconsul­
tos romanos, já que o Direito romano se expressava mais no
case law que em textos normativos dotados de autoridade. Foi
no século IV - com o fortalecimento da Igreja como depositária
da doutrina de Cristo e com a consolidação dos textos sagrados

491
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

em documentos - que se tornou possível o argumento a con­


trario: “ O culto do documento e da certeza, próprio © peculiar
da tradição religiosa hebraica, passa à cultura cristã e em par­
ticular - com Eusébio di Cesaerea - à historiografia eclesiásti­
ca cristã; historiografia que, narrando a história da Igreja como
depositária da doutrina de Cristo, se caracteriza ‘pela posição
central que ocupam as controvérsias doutrinárias e pelo amplo
uso de documentos’. Os imperadores cristãos, que legislam ‘em
nome de Deus’, começam a dar atenção à certeza documental,
tornando, assim, materialmente possível o uso do argumento
a contrario nas operações jurídicas (em particular em sede
judiciária)” [Tarello 1980:348].
No entanto, apenas na época moderna das codificações
é que o argumento passa a ocupar lugar de destaque no racio­
cínio jurídico. No direito civil moderno esse fortalecimento do
raciocínio a contrario guarda especial relação com o dogma da
separação dos Poderes bem como com a técnica da interpreta­
ção literal, característica da Escola da Exegese do século X IX
[Tarello 1980:349].
É nesse contexto que, partindo de enunciados particula­
res, se passou a aplicar o argumento a contrario com a finali­
dade de negar as consequências de uma norma jurídica aos
casos não expressamente mencionados por ela.
Mas com o se pode inferir a contrario sensu, se já vimos
que este tipo de argumento representa um caso clássico de
non sequitur? Como justificar sua aplicação se o fato de x se
apresentar com o uma condição suficiente para y não implica
que y necessariamente estará ausente toda vez que x não
estiver presente?
A resposta a essas indagações passa, como explicam os
lógicos do Direito, pela interpretação dos conectores presentes
nas regras jurídicas em geral: deve-se ter em conta que “ o
significado da norma não é apenas o dos termos com que tipi­
fica o suposto de fato ou as consequências jurídicas, mas tam­
bém o significado de seus conectores, pois, como vimos, este

492
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

não é o mesmo quando se trate de um condicional simples, um


bicondicional etc.” [Garcia Amado 2001:102].
Por isso, explica Klug que sempre que está em discussão
o raciocínio a contrario deve-se examinar “que tipo de relação
‘se-então’ está em jog o” [Klug 1990:183], ou seja, que tipo de
implicação existe entre a hipótese (H) e a consequência (C) de
dada norma jurídica, pois nesse terreno a Lógica moderna
ensina que há três diferentes possibilidades alternativas, que
devem igualmente ser consideradas, sendo a opção por uma
delas uma escolha interpretativa, e não uma operação que
possa ser determinada pela Lógica. Essas três diferentes alter­
nativas são [Henket 1992:155-157; Klug 1990:180-184]: “ (1) a
relação entre H e C é uma implicação material ou extensiva -
ou seja, as hipóteses são apenas suficientes para as conse­
quências jurídicas; (2) a relação entre H e C é uma replicação
ou implicação intensiva - ou seja, a hipótese H é uma condição
necessária para a consequência C; (3) a relação entre H e C é
uma relação de equivalência ou implicação recíproca - ou seja,
H é condição necessária e suficiente para C” .
Assim, se depois da interpretação do enunciado norma­
tivo N se entender que a relação entre H e C é apenas uma
implicação material, o argumento a contrario será de pouquís­
sima utilidade para o aplicador do Direito, pois nesse tipo de
raciocínio “ o que interessa é saber se a não-realização da hi­
pótese H é também uma condição suficiente para que não te­
nham lugar as consequências jurídicas C” , e o argumento a
contrario simplesmente não permite inferir tal conclusão [Klug
1990:181]. A título de exemplo, se a norma N dispuser que “ os
danos à honra causados através da imprensa ensejam respon­
sabilidade civil” , jamais se poderia, valendo-se do argumento
a contrario, concluir que somente haverá reparação civil nas
hipóteses de danos causados através da imprensa, ou que os
danos causados de outra forma não possam vir a ser indeniza­
dos. Para tanto seria necessária uma informação adicional, não
prevista inicialmente na norma N, de modo que a hipótese
“dano causado pela imprensa” fosse tida como necessária para
que se pudesse cogitar das consequências previstas em N.

493
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Apenas se a norma N for interpretada como estabelecen­


do uma relação de replicação ou de equivalência entre suas
hipóteses e consequências é que o argumento tem valor no
raciocínio jurídico. Sua utilização fora das alternativas “ (2)” 13
e “ (3)” ,14logo acima, constitui verdadeiro sofisma, pois coinci­
de com a denominada falácia da “ negação do antecedente” .
Nesse sentido, afirma Henket [1992:156]: “Raciocinar a
contrario a partir de uma determinada regra caminha pari
passu com interpretar essa regra ou como uma replicação ou
com o estabelecendo uma relação de equivalência. Quem quer
que esteja raciocinando a contrario não pode interpretar a
regra relevante como uma implicação” .
Em termos formais, o raciocínio a contrario sensu pode ser
expresso com relativa facilidade. Se utilizarmos o símbolo (<-»)
para expressar uma relação de implicação recíproca (ou equi­
valência), o símbolo (<—) para expressar uma replicação (ou
implicação intensiva...), e o símbolo (—») para expressar uma
implicação simples (ou extensiva), então, o argumento a contra­
rio pode ser validamente formalizado de qualquer das duas
maneiras seguintes:

(I). (1) (x) (Cx <- ORx)


(2) (x) ( - Cx -> ORx)

(II). (1) (x) (Cx ORx)


(2) ( x ) ( - C x o - ' ORx)

13. Uma fórmula adequada para descrever o argumento a contrario nas


replicações ou implicações intensivas é a seguinte: “No caso em que as con­
sequências jurídicas C somente tenham lugar quando se dêem as hipóteses
H, as consequências C nunca terão lugar quando as hipóteses H não estejam
presentes” [Klug 1990:182],
14. Para os casos de “implicação recíproca” valem também as mesmas infe­
rências das implicações intensivas, pois, “se as hipóteses são ao mesmo tempo
necessárias e suficientes para as consequências C, então, se dará também
sempre o caso da implicação intensiva” [Klug 1990:182],

494
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Em (I) temos uma implicação intensiva entre Cx e ORx,


ou seja, C é condição necessária para OR para todo x. Em (II),
por sua vez, temos uma implicação recíproca, ou seja, C é con­
dição necessária e suficiente para OR. Em qualquer dos casos
o argumento a contrario estará formalmente justificado, pois
é possível inferir -> OR, ou seja, que não estão previstas as
consequências R.
Veja-se que o argumento a contrario se torna uma forma
de inferência logicamente válida quando se tenha interpre­
tado a norma contida na premissa maior com o estabelecen­
do uma relação de replicação ou equivalência. Por isso,
Garcia Amado sustenta - a meu ver, com razão - que o ar­
gumento a contrario não é nem um argumento interpretati-
vo, nem um argumento produtivo (que seria útil para p re­
encher as lacunas existentes no ordenamento jurídico). Para
o autor, quando se aplica o argumento a contrario “ não se
está colmatando uma lacuna, mas negando que ela exista”
[Garcia Amado 2001:103]. Da mesma forma, o argumento
“ depende da interpretação” , mas “ não é interpretativo em
si m esm o” , pois ele apenas saca as consequências de deter­
minada norma, que já é em si o resultado de uma interpre­
tação [ibidem].
Dependendo da forma como se interprete um enunciado
normativo, poder-se-á aplicar ou não o argumento a contrario.
No entanto, sempre que ele for utilizado, a interpretação do
dispositivo normativo em questão é no sentido de que o legis­
lador disse exatamente o que intentava dizer, já que, se tivesse
querido incluir outras situações na hipótese de incidência da
norma, o teria feito expressamente [Guastini 1996-b:175].

4.2.2.2 A forma mais complexa de argumento a contrario: o


raciocínio a contrario contextuai

A forma simples do argumento a contrario tem com o


referência a interpretação de um único dispositivo, e por isso

495
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

é insuficiente para os casos mais importantes do raciocínio a


contrario, os quais se referem à relação entre as normas gerais
e as normas especiais em um sistema jurídico.
Como exemplo desse tipo de raciocínio invoco a tendên­
cia que o STF apresenta de usar o raciocínio a contrario sensu
na interpretação de suas súmulas, mormente tratando-se de
normas restritivas de direitos individuais ou limitadoras do
exercício da competência tributária. Já se decidiu, por exemplo,
que a Súmula 356 do STF - segundo a qual “o ponto omisso
da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declara-
tórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar
o requisito do prequestionamento” - indica, a contrario sensu,
que o recurso será admitido quando, apesar de interpostos
embargos de declaração, o Tribunal não sanear a omissão.15
Em matéria tributária decidiu-se que é possível, a contrario
sensu, extrair da Súmula 57416do STF uma regra que legitima
a cobrança de ICMS sobre alimentos e bebidas consumidos no
próprio estabelecimento do contribuinte, desde que exista lei
definindo regularmente a hipótese de incidência do tributo.17
Em matéria de competência jurisdicional, interpretou-se o
precedente da ADI 492-1, que assentou a orientação de que
não compete à Justiça do Trabalho decidir questões relativas
ao Regime Jurídico Único dos servidores públicos, de forma
restritiva, concluindo-se, a contrario sensu, que todas as demais
controvérsias entre o Poder Público e os trabalhadores em
geral seriam decididas por aquele órgão jurisdicional.18

Todas essas decisões tratam de relações entre normas


gerais e normas excepcionais, sendo que essas últimas foram

15. STF, RE 214.724-RJ, rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 6.11.1998, p. 19.
16. “Súmula 574. Sem lei estadual que a estabeleça, é ilegítima a cobrança do
imposto de circulação de mercadorias sobre o fornecimento de alimentação
e bebidas em restaurante ou estabelecimento similar.”
17. RE 148.833-PR, rei. Min. Ilmar Galvão, DJU 10.2.1995.
18. RE/AgR 183.999-PE, rei. Min. Marco Aurélio, DJU 26.6.1995.

496
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

interpretadas restritivamente, fazendo com que, automatica­


mente, as situações não compreendidas em suas hipóteses
normativas se subsumissem na norma geral. Esse é o tipo de
caso em que o argumento a contrario adquire maior importân­
cia na argumentação jurídica. Trata-se, no entanto, de um
modelo de argumentação contextualizada, em que a inferência
a contrario sensu não decorre da interpretação de um único
dispositivo, mas da consideração sistemática de normas gerais
e especiais. Nesse caso, o silêncio do legislador em uma norma
normalmente corresponde à aplicação de outra, mais geral,
que regula um grupo maior de relações jurídicas. Veremos, a
seguir, como se dá a aplicação do argumento a contrario nessas
situações mais complexas. Esse tipo de situação refere-se ao
caso em que a inferência a contrario não deriva de uma única
regra jurídica que estabeleça uma relação de equivalência ou
implicação, mas do sistema jurídico como um todo, em que a
não-aplicação de uma norma excepcional gera a aplicação da
regra geral.
Como vimos ao introduzir o tema da argumentação a
contrario, o essencial nesse tipo de argumento é a ausência
de fundamentos alternativos para a aplicação das con se­
quências jurídicas estabelecidas por uma norma N, de sorte
que as hipóteses consideradas nessa norma sejam tidas com o
necessárias para a verificação das respectivas consequências
jurídicas. No entanto, essa inexistência de alternativas nor­
malmente não está prevista na própria norma aplicada a
contrario sensu, mas está contida em certas premissas adicio­
nais que na maior parte das vezes permanecem implícitas
[Kaptein 1993:319-320].
Essas premissas implícitas permitem argumentar a con­
trario sensu ainda que não seja possível inferir diretamente da
norma N que os comportamentos não expressamente previstos
em suas hipóteses normativas deverão ser tratados diferente­
mente. Nessas situações o argumento a contrario decorre não
de uma propriedade semântica da norma particular cuja apli­
cação se quer afastar, mas de uma norma geral exclusiva.

497
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Sempre que essa norma geral existir, tem-se como certa


a inexistência de lacunas no ordenamento, e como obrigatório
o uso do argumento a contrario. E esse o caso, por exemplo, no
direito penal e no direito tributário, onde é expressamente
vedada, v.g., a argumentação analógica para caracterização de
uma conduta com o criminosa ou para a imposição de uma
exação tributária. Nesses setores do ordenamento jurídico há
previsão expressa, pela Constituição Federal, do princípio da
legalidade estrita (art. 52, X X X IX , e art. 150,1), de sorte que se
pode falar que a não-previsão expressa da conduta como crime
constitui uma permissão em sentido forte da conduta em ques­
tão, tornando-se automática a aplicação do argumento a con­
trario sensu. Numa palavra, vigora uma regra de clausura que
impõe a conclusão a contrario.
Para que se torne mais visível essa situação, recorro a
duas distinções elaboradas por Alchourrón e Bulygin: a pri­
meira entre sistemas normativos fechados e sistemas norma­
tivos abertos, e a segunda entre permissões (ou proibições) em
sentido forte e em sentido fraco. Um sistema normativo é f e ­
chado se tiver um caráter necessariamente completo, ou seja,
“quando toda ação é deonticamente determinada por ele” ; e
um sistema normativo é aberto quando for pelo menos em
tese admissível a possibilidade de uma incompletude ou la­
cuna [Alchourrón/Bulygin 2002:170]. A segunda distinção, por
outro lado, refere-se às proibições e permissões em sentidos
fraco e forte. Vejamos:
“Definição de permissão forte - p está permitido em sen­
tido forte no caso q em um sistema a ” se e somente se “de a se
infere uma norma que permite p no caso q” .
“ Definição de proibição em sentido forte - p está proi­
bido em sentido forte no caso q em um sistema a ” se e so­
mente se “de a se infere uma norma que proíbe p no caso q”
[idem:174].
As noções de permissão e proibição em sentido forte p o­
dem ser contrapostas à definição de permissão em sentido

498
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

frágil, que é enunciada nos seguintes termos: “Definição de


permissão em sentido frágil - p é permitido em sentido frágil
no caso q em um sistema a ” se e somente se “ entre as conse­
quências de a não existe uma norma que proíba [não permita]
p no caso q” [Alchourrón/Bulygin 2002:176].
Como explicam os juristas argentinos, “ a permissão
frágil - com o a permissão forte - é um caráter da conduta,
não da norma. Mas, diferentemente da permissão forte, que
expressa um fato positivo (a existência de uma norma per­
missiva), a permissão frágil somente aduz um fato negativo:
a inexistência de uma norma proibitiva” [Alchourrón/Bulygin
2002:176-177].
Em um sistema normativo fechado há uma regra de fe­
chamento (clausura) que estabelece, por exemplo, que “ todas
as condutas que não estão proibidas estão permitidas” . E esse
o caso, por exemplo, do Direito penal, em que vigora a regra
da legalidade estrita (ou mesmo do Direito tributário, quando
estivermos tratando da criação de um tributo). Mas repare: a
regra da legalidade estrita vige para um horizonte normativo
determinado, a esfera do Direito penal, e não resolve necessa­
riamente todos os problemas deontológicos que possam surgir
fora desse subsistema normativo, ou seja, fora da esfera das
relações jurídicas reguladas por ela. Onde não vigorar uma
regra de fechamento ou clausura não se poderá concluir que
uma permissão em sentido forte tenha o mesmo efeito de uma
permissão em sentido frágil, ou seja, que a ausência de norma
proibitiva seja o mesmo que a presença de uma norma permis­
siva. Portanto, na ausência de uma norma de clausura o status
das condutas não previstas expressamente por alguma norma
do sistema jurídico está indeterminado, de sorte que há uma
lacuna a ser colmatada pelo aplicador do Direito.
O universo de validade do argumento a contrario é, por­
tanto, o compreendido na esfera de incidência de uma norma
de clausura ou, mais concretamente, de uma norma geral em
relação a suas exceções.

499
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Essa sistematização revela uma premissa implícita quan­


do o argumento a contrario é empregado: a premissa da exis­
tência de uma regra geral à qual a norma aplicada a contrario
sensu constitua uma exceção.
Foi esse exatamente o caso dos três exemplos do STF
que citei logo acima. Quando no RE 214.724-RJ,19por exemplo,
o STF entendeu que a Súmula 356 deveria ser aplicada a
contrario sensu, o fez porque a regra geral é a do cabimento
do recurso extraordinário contra todas as decisões prolatadas
em única ou última instância que tenham violado algum
dispositivo da Constituição Federal. A regra restritiva esta­
belecida pela súmula - segundo a qual “ o ponto omisso da
decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declara-
tórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário” - deve
ser interpretada restritivamente, porque a regra do acesso à
Justiça impede que o recurso seja inadmitido quando a par­
te praticou todas as diligências necessárias para que fosse
saneada a omissão da decisão recorrida. A decisão somente
pode ser considerada “justificada” porque há uma regra ge­
ral de recorribilidade. Do mesmo modo, quando o Tribunal
aplicou a contrario sensu a regra contida na ratio decidendi
da ADI 492-120 - segundo a qual compete à Justiça Federal
julgar as controvérsias entre a União e seus servidores quan­
do o regime de trabalho for o Regime Jurídico Único - , o fez
porque a regra geral é a de que a Justiça do Trabalho é com ­
petente para julgar todas as ações relativas a vínculos de
natureza trabalhista, de sorte que a não-incidência do caso
particular na regra excepcional faz com que a norma geral
tenha aplicação.
Em síntese, pode-se concluir que o uso do argumento a
contrario é limitado porque sua aplicação “ratifica uma regra
geral” que prevê em sua hipótese os fatos sub judice e como

19. V., supra, nesta seção, nota 15.


20. STF, ADI 492-1, rei. min. Carlos Velloso, DJU de 12.03.1993.

500
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

consequência normativa o contrário da prevista na norma-


paradigma. E o que demonstra um interessante exemplo
lembrado por Jansen acerca da denominação controlada de
produtos alimentícios no direito comunitário europeu.21 No
caso em questão, o Syndicat de Défense de VEpoisses ajuizou
ação contra dois produtores de queijo, sob o fundamento de
que estes estariam utilizando ilegalmente a denominação
“Epoisse” em seus produtos. Argumentou o Syndicat que a
denominação “ Epoisse de Bourgogne” é de origem controla­
da e só pode ser atribuída a produtos de determinada região
e que apresentem certos padrões de qualidade estabelecidos
em regulamentos específicos. Invocou, na sua argumentação,
a lista de produtos de denominação controlada estabelecida
pelo Direito comunitário. Argumentou, em sua demanda, que
a denominação protegida abarca não somente a locução com ­
pleta “ Epoisses de Bourgogne” , mas inclusive o primeiro
termo isoladamente (“ Epoisses” ). Na defesa dessa interpre­
tação o Syndicat citou uma nota complementar em que o
Governo Francês estabelecia uma ressalva à proteção para os
produtos denominados “ Camembert” e “ Chabichou” , restrin­
gindo a proteção às denominações “ Camembert de Normandie”
e “ Chabichou du Poitou” .
O argumento do Syndicat reside, fundamentalmente, na
asserção de que se o Governo excluiu a proteção aos nomes
“Camembert” e “ Chabichou” é porque as locuções compostas
“Camembert de Normandie” e “ Chabichou du Poitou” origi­
nariamente incluíam a proibição aos nomes individuais.
Como bem observou Jansen [2005:493], “ a decisão que
teve de ser tomada nesse caso não afetava apenas o queijo
‘Epoisses’, mas também afetava todas as partes de nomes de
outros produtores de queijos não mencionados na nota com­
plementar. Uma decisão afirmativa sobre o raciocínio a contra­
rio iria ratificar uma regra geral segundo a qual todas as partes

21. Arrêt de la Cour du 9.6.1998, Affaires Jointes C-129/97 et C-130/97.

501
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

de nomes compostos que estão presentes na lista e ausentes


na nota complementar merecem proteção” .
Por isso, como a Corte se mostrou temerosa quanto à
aceitação de tal regra geral - que se encontrava implícita no
raciocínio do Syndicat - , deixou de outorgar proteção à marca
“ Epoisses” , já que o argumentum a contrario teria implicações
de alcance excessivamente amplo [Jansen 2005:493],
A aplicação contextuai do argumentum a contrario impli­
ca, portanto, a afirmação de que o silêncio do legislador a
respeito de determinado fato significa a existência de uma
regra geral que estabelece consequências opostas à da norma-
paradigma. Como essa premissa implícita nem sempre pode
ser aceita, o argumento contextuai a contrario tem uma força
de justificação relativamente frágil, já que limitada aos casos
em que há uma regra geral e outra excepcional.
O uso do argumento a contrario para distinguir um caso
C de um precedente judicial P significa, dessarte, a afirmação
de uma regra geral segundo a qual os casos não previstos em
P serão regulados de forma distinta.

4.3 A aplicação de precedentes por analogia


4.3.1 Uma breve introdução histórica

A analogia pode ser descrita com o um tipo de argumen­


to tão antigo quanto o próprio Direito. Bobbio, por exemplo,
sustenta que ela “ foi largamente utilizada em todos os tem­
pos” , e é “ certamente o mais típico e o mais importante dos
procedimentos interpretativos de um determinado sistema
normativo: é o procedimento mediante o qual se explica a
assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a
expandir-se além dos casos expressamente regulamentados”
[Bobbio 1997:151],
O núcleo do argumento per analogiam está na noção
de comparação, e essa, por sua vez, se apresenta com o um

502
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

elemento central da atividade judiciária e um ponto nuclear


de qualquer teoria da justiça. Embora a noção de justiça possa
ser considerada extremamente controvertida, não há dúvida
de que é impossível defini-la sem referência ao valor “ igualda­
de” , que em maior ou menor grau é sempre utilizado com o um
critério de correção das decisões nos casos concretos. A igual­
dade, por sua vez, é um princípio vazio [Torres 2000-b:294], que
necessariamente exige do aplicador do Direito uma compara­
ção de duas ou mais situações fáticas relevantes para o sistema
normativo. Nesse sentido, pode-se concordar com Salguero
[2002:80] quando este afirma que “o problema analógico é o
problema do igual e do distinto, do que é semelhante e propor­
cionalmente igual mas não idêntico” .
Obviamente, portanto, o desenvolvimento do Direito a
partir de precedentes judiciais envolve a analogia. E com a
sua ajuda que no período clássico do direito romano, por
exemplo, os jurisconsultos construíam seu case law e bus­
cavam critérios para realizar a interpretatio e extrair de
regras anteriores um princípio capaz de orientar a solução
dos problemas jurídicos sobre os quais eles se debruçavam.
Como explica Vacca [1998:43], no direito romano “ o recurso
ao critério analógico representa quase uma necessidade
implicada, no nível m etodológico, da própria estrutura do
direito casuístico, cuja essência se individualiza no racioci­
nar indutivamente from case to case” . Por isso: “ O intérpre­
te que deve ‘encontrar’ a solução não pode alcançá-la senão
individualizando, por m eio de ‘diagnoses’ dos elementos
qualificadores do próprio caso, as analogias e diferenças,
não apenas em relação às hipóteses [fattispecie] previstas
na norma - que, contudo, em um sistema de produção do
Direito deste tipo, concernem geralmente apenas a matérias
muito específicas - , mas sobretudo com respeito aos casos
já decididos no âmbito da mesma interpretatio jurispruden-
cial” [ibidem].
No pensamento grego, por sua vez, o que hoje se c o ­
nhece com o analogia era definido com o um procedim ento

503
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

“por semelhança” , e já era encontrado muito antes do de­


senvolvimento da civilização romana. Em Aristóteles, por
exemplo, acham-se as raízes da construção da “ analogia do
ente” , retomada pela Escolástica, em São Tomás de Aquino,
ou posteriormente por Suárez [Falcón y Telia 1991:30]. O
seguinte trecho de Falcón y Telia - em obra onde é feito um
rico histórico do argumento analógico em diferentes tradi­
ções - é elucidativo: “ Para explicar em que consiste esta
concepção, temos que partir do conteúdo metafísico da pa­
lavra ‘ente’ . Este é um atributo que, por se referir a todas as
realidades, há de ter uma certa ‘unidade’ e uma grande ‘di­
versidade’. Todo ente há de coincidir com os demais ao m e­
nos no fato de ser um ente, mas, por outro lado, difere deles
porque todos são entes distintos e não um único ser. Graças
à teoria que estudamos, dois ou mais entes coincidem e, ao
mesmo tempo, se distinguem em sua essência. Denomina-se
‘analogia do ente’ na linguagem filosófica o comportamento
do que é único em sua diversidade e ao mesmo tempo diver­
so em sua unidade. O que todos os entes podem ter em co ­
mum há de ser uma índole relativamente idêntica e, por sua
vez, relativamente diversa. Portanto, em conjunto, análoga”
[ibidem].

A analogia move-se, nesse sentido, a partir da elucidação


das propriedades comuns de dois entes. Ela é descrita, normal­
mente, como o “ termo médio que mitiga a diversidade e esta­
belece graus de participação no comum” [Salguero 2002:80].
Quando se procede por analogia, põe-se acento nos elementos
comuns de dois entes que justificam a mesma qualificação em
um caso concreto. Essa concepção escolástica repercute até
hoje na argumentação por analogia.
Na Idade Média, por sua vez, no trabalho dos glosadores
e dos pós-glosadores já se pode perceber claramente uma con­
cepção jurídica de analogia “idêntica, do ponto de vista lógico” ,
ao conceito contemporâneo da expressão. Sob as denominações
de argumento a simile, a pari e a comparatis, o processo (hoje
descrito como analogia legis) consistente em isolar a ratio de

504
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

determinado caso ou enunciado normativo para, por dedução,


aplicá-la a outro que tenha características semelhantes fazia
parte da rotina dos romanistas de Bolonha do século XIV [Fal-
cón y Telia 1991:34-37] e dos Grandes Tribunais italianos dos
séculos XVII e XVIII [Gorla: 1981-a e 1981-e:466].
Mas a expressão “ analogia” aparece no discurso jurídico
apenas no curso do século XVI, na obra do jurista holandês
Joachim Hopper, onde ela é entendida no sentido de “interpre-
tatio analógica, com o meio para eliminar as possíveis contra­
dições existentes entre leis de um mesmo corpo, comparando-
as e coordenando-as entre si” [Falcón y Telia 1991:38].
Na prática jurídica propriamente dita o termo ingressa
apenas em meados do século XVIII, com a Escola Histórica do
Direito e o Positivismo Jurídico, que passam a advogar a ideia
de que “ todas as leis estão unidas em um sistema lógico que se
completa a si mesmo em virtude de sua força orgânica” [Falcón
y Telia 1991:39-40]. Curiosamente, a locução analogia iuris
surge antes da mais usual analogia legis, embora essa última
já fosse aplicada desde os primórdios das civilizações grega e
romana com denominações diversas. Por analogia iuris se
entendia, na época, o procedimento de inferência de determi­
nada norma concreta a partir do sistema lógico que constituía
o Direito, já que esse sistema era apresentado com o completo
e coerente. O Direito, nessa perspectiva, “bastava em si mesmo
para se completar, desempenhando a analogia iuris um grande
papel para tanto” [idem:40].
Apenas mais tarde - explicam Falcón y Telia e Salguero
- é que aparece a expressão “ analogia legis” , que assume o
significado contemporâneo de “ extensão da solução prevista
por lei para um determinado caso a outro não previsto” [Falcón
y Telia 1991:40-41; Salguero 2002:80].
Não obstante, a expressão “ analogia iuris” permanece
até hoje no vocabulário dos juristas de modo geral. Todavia,
como esclarece Norberto Bobbio, na verdade, ela nada tem a
ver com o raciocínio por analogia.

505
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Como veremos a seguir, a locução “ analogia iuris” pare­


ce ter perdido todas as suas funções no tempo presente, na
medida em que ela apenas se superpõe, com um vocabulário
mais confuso, ao procedimento de desenvolvimento do Direito
a partir de princípios [Bobbio 1997:214].

4.3.2 O conceito de analogia iuris e seu anacronismo

Quando falamos em analogia, normalmente temos em


mente a analogia legis, que é definida como o tipo de raciocínio
por meio do qual se aplica uma “regra legal a um caso que,
visto do ponto de vista da linguagem ordinária, não está inclu­
ído nem no núcleo nem na periferia da área [semântica] de
aplicação da lei em questão, mas se assemelha aos casos co ­
bertos pela lei em aspectos essenciais” [Peczenik 1989:392].
Trata-se de uma “ transposição da solução que uma dada nor­
ma oferece para um caso a uma hipótese não regulada por ela,
mas que contém com o caso regulado uma identidade de razão”
[Salguero 2002:167]. O aplicador do Direito, ao se valer da
analogia, introduz uma nova regra jurídica.

No entanto, por herança de um vocabulário do século


XVIII, os teóricos do Direito de modo geral ainda falam também
na analogia iuris, em que “ se procede do particular ao geral,
por indução de um certo número de normas, formulando um
princípio geral informador de todas elas” [Salguero 2002:167].
Ao contrário da analogia legis, nesta última modalidade não se
parte de uma regra-paradigma que contenha a determinação
das consequências de uma hipótese particular.
Os juristas costumam distinguir dois tipos de analogia
iuris: a analogia iuris imperfecta, que tem lugar quando a con­
clusão por analogia é obtida a partir de princípios extraídos
“de um grupo de normas, por exemplo, as que se referem a
uma determinada instituição” , e a analogia iuris perfecta, que
extrai a norma de decisão “do ordenamento jurídico em seu
conjunto” [Atienza 1985:228].

506
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Manuel Salguero, em importante estudo específico sobre


a argumentação por analogia, cita alguns bons exemplos da
denominada “ analogia iuris imperfecta” . Um deles, original­
mente elaborado por Díez Picazo, é sobre o “ sócio-gestor de
uma sociedade” . No caso, “trata-se de saber se o sócio-geren-
te de uma sociedade tem ou não direito, quando da liquidação
desta, a reter determinados bens enquanto não se lhe reem­
bolsem os gastos que ele realizou com seu próprio pecúnio
pessoal” . Como informa Salguero, não há norma alguma no
Código Civil espanhol que preveja essa hipótese, “mas existem
normas que atribuem um direito de retenção ao possuidor de
boa-fé (art. 453), ao usufrutuário (art. 522), ao contratado em
uma obra (art. 1.600), ao mandatário (1.730) e ao depositário
(art. 1.730). De todos esses artigos se pode extrair como deno-
minador-comum uma regra geral que poderia dizer: ‘quando
em consequência de uma determinada relação jurídica anterior
se tenham realizado gastos com uma coisa alheia e existe a
obrigação de restituir a coisa, pode-se suspender esta restitui­
ção até que esses gastos sejam ressarcidos” . Esta norma, obti­
da por indução a partir dos artigos citados, pode ser aplicada
ao caso do sócio-gestor de uma sociedade, na liquidação desta”
[Salguero 2002:169].
O exemplo reproduzido acima traduz, de forma clara, o
conteúdo da denominada “analogia iuris imperfecta” . No en­
tanto, mostra também como é equivocada a ideia de que o tipo
de raciocínio empregado nesta espécie de analogia seja subs­
tancialmente diferente daquele contido na analogia legis. Com
efeito, a única diferença entre o exemplo do direito de retenção
do sócio-gerente e os argumentos utilizados no caso da analo­
gia legis é que nesta há apenas uma norma a prever a conse­
quência jurídica para um caso semelhante ao regulado, ao
passo que no exemplo em que se aplicou a analogia iuris im­
perfecta havia várias regras jurídicas, com diferentes hipóteses,
prevendo a mesma consequência jurídica. No entanto, podemos
observar que em ambos os casos o aplicador do Direito inicial­
mente parte de regras jurídicas definidas, ou seja, normas que

507
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

outro, a aplicação de uma regra jurídica por analogia, para o


fim de se aplicar suas consequências jurídicas a um caso não
regulado pelo direito positivo.

Apenas esse último caso me interessa neste trabalho.


Com efeito, já tive oportunidade de demonstrar que os pre­
cedentes só são relevantes para a argumentação jurídica na
medida em que seja possível derivar regras a partir deles.
Ademais, o conceito de “ analogia iuris” é impreciso e nada
tem de raciocínio analógico, pois não há uma regra-paradig-
ma que estabeleça quaisquer enunciados sobre fatos que
possam ser comparados. O modelo simples de concretização
de princípios supera, com vantagem, a descrição tradicional
da analogia iuris.

Feita essa ressalva inicial, passemos, então, a analisar


a estrutura da denominada “ analogia legis” ou, com o prefe­
rimos dizer, simplesmente “ analogia” . Em uma síntese da
doutrina tradicional, Peczenik caracteriza a analogia nos
seguintes termos: “A tradição jurídica concernente à analo­
gia legis pode ser explicada com o se segue. Há uma ‘lacuna’
no Direito. Alguns casos deveni ser regulados pelo Direito
mas não o são (...). ‘Lacunas’ podem ser preenchidas pela
analogia. No caso em questão, nenhuma norma jurídica re­
gula um dado caso C. Mas uma dada norma n, intuitivamen­
te lida ou propriamente interpretada, exige ou permite de­
cidir um outro caso em certo m odo M. O caso C é semelhan­
te a todos esses casos ou ao menos a alguns deles, tidos com o
típicos. A semelhança refere-se a pessoas, ou atos, deveres,
direitos, lugares, tempo etc., e é avaliada com o essencial. Por
isso, o caso C é decidido do m odo M ou de forma semelhante”
[Peczenik 1971:330].

O argumento por analogia compreende, portanto, um


cotejamento entre a situação descrita na fattispecie da norma
jurídica-paradigma e os fatos do caso ainda carente de solução.
Ele se funda, em última análise, em um conceito comparativo

510
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

que estabelece uma conexão entre as propriedades essenciais


ou relevantes da regra de partida e do fato sub judice.23
Para argumentar por analogia precisamos, inicialmente,
de uma “base de partida (base line) ou ponto de apoio a partir
do qual nós possamos iniciar [o raciocínio] e em função do qual
nós possamos comparar e contrastar quaisquer casos proble­
máticos ou situações particulares” [Bahkowski 1991:200]. Preci­
samos selecionar, com fundamento na ideia de justiça - tal como
institucionalizada em uma determinada sociedade - , os princí­
pios que determinam a relevância das similaridades e diferenças
encontradas em cada um dos casos em questão [idem:201].
Dessarte, há uma íntima relação entre a técnica do pre­
cedente e a analogia, pois a aplicação de uma regra jurispru-
dencial a casos posteriores pressupõe, desde o início, um
ponto comum que sirva de base para a solução de cada novo
caso que se apresente, de forma que não haja um rompimento
na cadeia de soluções jurisprudenciais a cada nova demanda
que se apresente. A doutrina do precedente ou stare decisis
fornece o contexto institucional (institutional setting) para o
raciocínio analógico [Baiíkowski 1991:201].
Entretanto, do ponto de vista analítico não há grandes
diferenças entre a aplicação analógica de uma regra extraída
da legislação parlamentar e de uma regra jurisprudencial. Em
ambas as situações busca-se aplicar as consequências jurídicas
de uma regra já conhecida a um caso não expressamente re­
gulado pelo direito positivo.
O ponto de partida para o raciocínio por analogia, di­
ferentemente do argumento a contrario, é o reconhecim en­
to de uma lacuna jurídica24 no caso a ser resolvido, ou seja,

23. Nesse sentido, v. Alchourrón [1991:19], onde é aplicada a “lógica relacio­


nal” para estruturar os argumentos a pari e afortiori. Alchourrón equipara,
no entanto, os dois argumentos enquanto espécies de raciocínio por analogia.
24. Há diferentes sentidos em que a expressão “lacuna jurídica” pode ser
entendida. Uma das enunciações mais interessantes é a tipificação de Al-

511
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

o estabelecimento da premissa de que a ausência de previsão


específica do caso a ser resolvido na norma jurídica tomada
com o paradigma significa uma ausência de regulação. Para
colmatar essa lacuna será necessário criar uma nova norma
jurídica. O argumento a contrario, estudado acima,25 não leva
rigorosamente a lugar algum [Garcia Amado 2001:97].
Exatamente por isso é que está descartada, por exempío,
a argumentação analógica no direito penal, para caracterização
de uma conduta como criminosa, ou no direito tributário, para
a imposição de uma exação tributária, haja vista a previsão
expressa, na Constituição Federal, do princípio da legalidade
estrita nessas situações (art. 5e, X X X IX , e art. 150,1). Pode-se
falar, portanto, que a não-previsão expressa da conduta como
crime constitui uma permissão em sentido forte da conduta em
questão, tornando-se obrigatória a aplicação do argumento a
contrario sensu, pois vigora uma regra de clausura que impõe
tal tipo de conclusão.26

chourrón e Bulygin [2002:22 e ss.]. Tais autores sustentam que o sistema


jurídico “qualifica normativamente certas condutas (em determinadas
circunstâncias) e regula dessa maneira os comportamentos dos indivíduos
que integram um grupo social, contribuindo para sua convivência pacífica
ao prever antecipadamente a forma como hão de se solucionar os conflitos
de interesses que possam ser suscitados” . Os grandes problemas a serem
resolvidos pela função jurisdicional seriam: (1) -problemas de conhecimento
(acerca do status jurídico de determinada conduta); e (2) problemas de
descumprimento (transgressão das normas do sistema). Nos problemas de
conhecimento pode haver tanto defeitos no sistema, que se apresentam ou
sob a forma de lacunas normativas ou de soluções incompatíveis (incoerên­
cias), como também problemas de subsunção, que podem decorrer tanto
da falta de alguma informação fática (lacuna de conhecimento) quanto de
uma indeterminação semântica dos textos normativos (lacuna de reconhe­
cimento). Neste trabalho, quando cogitamos de aplicar a analogia, estamos
tratando exclusivamente das lacunas normativas, ou seja, dos casos em que
se verifica uma ausência de solução, pelo sistema normativo, do problema
jurídico enfrentado no caso concreto.
25. V , supra, neste Capítulo 4, n. 4.2.2.
26. Sobre a regra de clausura e o conceito de “permissão em sentido forte”,
v., supra, neste Capítulo 4, n. 4.2.2.2.

512
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A analogia é, portanto, um argumento do tipo produ­


tivo - necessariamente inovador - que já não está mais no
campo da interpretação dos enunciados legislativos, ou seja,
da atividade de delimitação do sentido de textos, dentro do
marco semântico permitido pelas palavras empregadas pelo
legislador. Apela-se para a analogia quando “ nem a lei nem
o direito consuetudinário nos deem resposta a uma questão
jurídica” , pois se verifica uma lacuna que é considerada uma
“ falta ou falha de conteúdo de regulamentação jurídica para
determinadas situações de fato em que é de se esperar essa
regulamentação e em que tais falhas postulam e admitem a
sua remoção através duma decisão judicial jurídico-integra-
dora” [Engisch 1996:279].
Vê-se', então, que antes de aplicar a analogia é necessária
uma decisão interpretativa para determinar qual é o significa­
do do enunciado normativo estabelecido pelo legislador - ou,
no nosso caso, pelo precedente judicial -, sendo que somente
se poderá cogitar da analogia, enquanto método de integração
do Direito, quando se tiver concluído pela existência de uma
lacuna no caso concreto.
Obviamente, na argumentação por analogia a própria
existência da lacuna necessita ser justificada, pois tal consta­
tação é, em si mesma, o resultado de um raciocínio interpreta-
tivo que constitui uma das etapas do processo de fundamen­
tação da decisão jurídica.
A existência de lacunas pode ser contestada, por exem­
plo, pela tese segundo a qual o ordenamento jurídico estaria
caracterizado pela presença de uma regra geral exclusiva
segundo a qual “ tudo o que não está expressamente proibido
está permitido” , de sorte que todos os casos estariam juridi­
camente regulados, isto é, teriam seu status juridicamente
determinado.
Não obstante, ao lado dessa regra geral exclusiva pode
valer uma “ regra geral inclusiva” que expressamente permita
a analogia, o que torna o raciocínio jurídico sensivelmente mais

513
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

complicado, mormente se se admitir a convivência pacífica das


duas normas em questão (a regra geral exclusiva e a regra
inclusiva que permite o raciocínio per analogiam), como faz,
por exemplo, Falcón y Telia [1991:71].
Essas importantes questões de Teoria Geral do Direito
não podem, porém, ser discutidas no presente trabalho. Aqui,
em função de limitações de tempo e espaço, deixo de lado a
análise dos argumentos que poderiam ser invocados em favor
da existência de uma regra geral exclusiva válida para todo o
ordenamento jurídico27- já que em setores específicos como o
Direito penal ou o Direito tributário não há dúvida da existên­
cia de tal regra para as fattispecie que onerem determinadas
condutas - e me limito a reconhecer que, de fato, praticamen­
te todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos expressa­
mente preveem a possibilidade (e, mais, a necessidade) de uso
da analogia como método de integração do Direito.28
No campo específico dos precedentes judiciais, aliás, a
existência de lacunas específicas em casos particulares e a
possibilidade de superá-las pela via da analogia constituem
não apenas uma premissa teórica fundamental, mas um senso
comum que não pode ser negado.

27. Para uma bibliografia sobre o tema, v.: Alchourrón/Bulygin [2002], Falcón
y Telia [1991:68 e ss.] e Ruiz Manero [1990].
28. Esse dado empírico já é suficiente para excluir, per se, a tese de que
a norma geral exclusiva existiria e seria um impedimento à existência de
uma regra geral inclusiva que expressamente permite a analogia. Ademais,
a própria existência de antinomias é uma situação funcionalmente equi­
valente à da existência de uma lacuna, embora essa lacuna não possa ser
resolvida por meio da analogia. Como explica Amedeo Conte, as condições
de validade em um sistema S “são determinadas por metarregras cons­
titutivas da validade no sistema S”, e é obviamente possível a existência
de antinomias, porque a covalidade [convalidità] ou “validade conjunta”
de duas normas não está condicionada pela sua mútua compatibilidade
[Conte 2006:462]. Os defensores da tese da existência de uma norma geral
exclusiva devem, para ser coerentes, admitir a existência de lacunas pelo
menos nos casos em que estiver presente uma antinomia, por mais raros
que eles sejam.

514
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

A primeira etapa para a aplicação da analogia constitui,


portanto, a constatação da lacuna.
Após vencida essa etapa, passa-se à verificação da exis­
tência de uma disposição jurídica análoga ao caso que se pre­
tende resolver. Trata-se, nitidamente, de uma atividade de
escolha da(s) regra(s) de partida para a solução do caso con­
creto. Na hipótese de se partir de regras oriundas do case law
- que é o que nos interessa - essa escolha pode crescer em
complexidade, dependendo do número de casos semelhantes
já resolvidos pelos tribunais e das diferenciações que tenham
sido feitas pelos tribunais em julgamentos anteriores. Há que
se buscar uma relação de semelhança de casos para o fim de
viabilizar a aplicação de determinada regra por analogia. A
analogia exige, necessariamente, uma comparação do supos­
to de fato não regulado com um ou vários outros supostos de
fatos regulados na lei (ou na jurisprudência), mas de forma a
que conduzam à constatação de uma característica comum
[Salguero 2002:86].
Em caso de múltiplos precedentes essa tarefa pode se
tornar genuinamente difícil. Nesse sentido, Brozek recorda
alguns exemplos que podem ser úteis para demonstrar as es­
colhas envolvidas na aplicação analógica de precedentes judi­
ciais. Primeiramente, cita-se o caso “Adams vs New Jersey
Steamboat Co.” ,29decidido por uma Corte de Apelação de Nova
York, em que um passageiro em um barco operado pela em­
presa New Jersey Setamboat Co. teve certa soma em dinheiro
furtada de sua cabina, apesar de esta estar com a porta e a
janela trancadas. “ Na hipótese, não havia regra expressa
estabelecendo critérios para a responsabilidade dos operado­
res de barcos” , mas havia, no entanto, duas regras passíveis
de aplicação analógica: a primeira no sentido de que os hote­
leiros eram “ responsáveis com o seguradores pelas perdas
sofridas por seus hóspedes” ; e a segunda estabelecendo a
responsabilidade dos operadores de um trem de passageiros

29. [5] N Y 163, 45 N. E. 369 (1896).

515
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

por quantias roubadas de uma cabina, que foram tidos como


responsáveis apenas se negligentes”30[Brozek 2007:140]. O Tri­
bunal, para solucionar o caso, levou em consideração ambas
as analogias e decidiu “que a primeira era mais relevante, es­
tatuindo a responsabilidade do operador de barcos na quali­
dade de segurador” [ibidem].
Em segundo lugar, Brozek imagina um exemplo a partir
do famoso exemplo imaginário de Hart em seu livro The Con­
cept o f Law [1994-a], Assentada a regra imaginada por Hart,
segundo a qual “ está proibido o acesso de veículos ao parque” ,
pode-se admitir a existência de dois precedentes judiciais
que, ao determinar a área semântica dessa regra, tenham
decidido que (1) “carros não são permitidos no parque” e (2)
“ bicicletas são permitidas no parque” . Aqui, também, duas
analogias podem, em princípio, ser admitidas: “Duas analogias
estão em jogo. Primeiramente, motocicletas se assemelham
a carros em que ambos são equipados com motores, baru­
lhentos, poluidores e perigosos para pedestres. Em segundo
lugar, motocicletas são semelhantes a bicicletas, já que ambas
têm duas rodas e necessitam de muito menos espaço que
carros. Ademais, algumas motocicletas com o as scooters não
são mais perigosas para pedestres do que bicicletas” [Brozek
2007:142].
Como se vê, há, em cada um dos precedentes candidatos
a constituir um paradigma de decisão, uma ampla esfera de
semelhança com o caso que aguarda solução, de sorte que uma
decisão racional necessariamente envolve uma comparação da
relevância de cada uma das qualidades de carros, bicicletas e
motocicletas descritas no excerto acima.
Essa relevância, no entanto, não pode ser determinada por
meio de uma mera análise superficial de características indivi­
duais dos fatos previstos no suposto de fato de cada uma das
regras, mas necessita, para além desse juízo de “semelhança de

30. “Carpenter vs Railroad Co.”, 124 N. Y. 53, 26 N. E. 277.

516
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

casos” , de uma cuidadosa reflexão sobre a existência de uma


“ identidade de razões” [Falcón y Telia 1991:86-103; Salguero
2002:84; Barikowski 1991:200-204] entre, de um lado, cada uma
das regras existentes nos precedentes invocados e, de outro, a
regra que se propõe como solução do “ caso da motocicleta” .
Passa-se, nesse estágio, a uma nova fase, em que entra
em cena a comparação da ratio da regra escolhida com a ratio
de cada uma das possíveis regras que derivarão da decisão
do caso vertente. Nesse terreno entra em cena, com toda
força, a máxima ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio. Não
basta mais aduzir uma “semelhança de casos” , mas é preciso
justificar a nova solução analógica com base em uma “ iden­
tidade de razões” .
Nesse terreno, no entanto, ainda há espaço para uma am­
biguidade, pois a “identidade de razões” necessária para esta­
belecer o vínculo analógico pode ser entendida, como argúi
Falcón y Telia, em três sentidos diferentes. Em uma primeira
acepção, a locução eadem ratio pode expressar uma “identidade
de finalidade” , seja no sentido subjetivo de “ finalidade do legis­
lador” , seja no sentido objetivo de “finalidade da lei” . Em segun­
da acepção, a ratio é entendida como o “princípio que serve de
fundamento à lei” , correspondendo à máxima id propter quod
lex lata est et sine quod lata non est. Nesse segundo sentido, apon­
ta Falcón y Telia que os juristas se valem de uma pluralidade de
termos semelhantes para expressar à mesma ideia, tais como: (a)
anima legis, (b) medulla legis, (c) “razão suficiente” para a regra
etc. Ema terceira acepção, por derradeiro, pode-se falar também
em ratio como sendo o “objeto da lei” , ou seja, “já não se trataria
nem do porquê nem do para quê, senão do quê está previsto na
norma” . Buscar-se-iam os “interesses juridicamente protegidos”
como base de analogia [Falcón y Telia 1991:89-90].
Falcón y Telia parece se aproximar, porém, de um m ode­
lo que conjugue um juízo sobre as “ semelhanças entre casos”
e um modelo de ratio decidendi que indique, para justificar a
analogia, uma identidade de razão ou “fundamento” para esses

517
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

casos, que está nos “ elementos essenciais” dos fatos de tais


casos: “O que ocorre, e aí está o importante, é que esses ele­
mentos comuns não são quaisquer uns, senão os elementos
essenciais, não-acidentais” [Falcón y Telia 1991:96].
Conjugando todos esses elementos, Falcón y Telia conse­
gue expressar o raciocínio por analogia com o seguinte esqúe-
ma gráfico:

Analogia Legis31

Plano Jurídico...

Plano fático-
jurídico
RAT10 LEG IS ...

Plano Fático....

Legenda:
N: Norma jurídica IR: Identidade de razão
C: Caso não regulado SC: Semelhança de casos
CJ: Consequência jurídica MD: Máxima de decisão
SF: Suposto de fato X X /O O : Elementos acidentais
Elementos essenciais

Esse esquema constitui uma formulação extremamente


clara do processo de construção do argumento analógico para

31. Gráfico elaborado por Falcón y Telia [1991:98] e reproduzido por Salguero
[2002:85].

518
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

aplicação de precedentes judiciais. Ele tem o mérito de elucidar


a forma como as duas comparações básicas que permitem a
analogia (primeira: semelhança de casos; segunda: identidade
de rationes desses mesmos casos) determinam a construção da
nova regra (máxima de decisão) que elimina a lacuna e justifi­
ca racionalmente a decisão.
No entanto, a determinação da ratio legis - que deve ser
diferenciada do conceito de ratio decidendi que expus no n. 3.2
do Capítulo 3 deste trabalho - padece ainda de certa indeter-
minação, como, aliás, acontece com quase todos os modelos
elaborados pela Teoria Geral do Direito para explicar o méto­
do analógico de integração do Direito.
A ratio permanece ainda algo relativamente obscuro,
misterioso, já que as três ideias básicas propostas por Falcón
y Telia (fim, fundamento e conteúdo da regra) ainda não cons­
tituem um standard suficientemente objetivo para estabelecer
o vínculo analógico.
Dos três elementos que, segundo Falcón y Telia, podem
constituir a base de comparação para o standard da “ identida­
de de razões” , o que se mostra mais adequado, em minha
opinião, não é o da identidade de elementos essenciais de um
caso (como acredita Falcón y Telia), mas o da identidade de
fundamento para a própria norma que se pretende aplicar.
Essa comparação fica mais clara ao lembrarmos que o
que justifica, em cada caso concreto, determinada regra ou
regulação jurídica é sempre um conjunto de princípios jurídi­
cos - e, em certos casos, jurídico-morais - que se escondem por
detrás das regras particulares e lhes servem de fundamento
ético-jurídico.
Quando estabelecemos essa relação - sempre existente -
entre os princípios jurídicos fundamentais e as regras jurídicas
particulares (seja as que são prolatadas pelo legislador ou, mais
precisamente, as que podem ser extraídas de precedentes
judiciais), fica mais fácil elucidar os fatores que determinam

519
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

por quê devemos adotar a máxima de decisão MD como um


fator de transposição de um caso a outro na argumentação
jurídica. A analogia jurídica, com o irei insistir nos próximos
parágrafos, só pode ser justificada por meio de uma ponderação
de princípios.

4.3.4 Os princípios e a estrutura da argumentação por


analogia

Uma das abordagens possíveis para analisar a argumenta­


ção por analogia jurídica e o argumento a contrario, que deno­
minarei “descritiva” , está preocupada apenas em enunciar as
estruturas formalmente corretas de argumentação e descrever
as relações entre as premissas e as conclusões alcançadas por
tais instrumentos metodológicos de aplicação do Direito. Um
exemplo de tal enfoque é descrição que Scott Brewer propõe
para o argumento analógico. Para esse autor este tipo de argu­
mentação é mais bem explicado como “uma sequência de passos,
envolvendo: (1) um estágio de descoberta por abdução, (2) um
estágio de confirmação ou desconfirmação; e (3) um estágio de
aplicação” [Brewer 1996:961]. Os autores que se limitam a essa
abordagem não estão preocupados em avaliar a correção das
premissas necessárias para justificar a conclusão por analogia,
mas apenas as relações entre as premissas e conclusões. Nesse
sentido, Brewer define a “força racional” de um argumento em
um sentido estrito, significando “o grau em que aforma do argu­
mento permite um juízo confiável sobre a verdade da conclusão
baseada na presumida verdade de suas premissas” [idem:928].32

32. Apesar desse enfoque “formal” no processo de “inferência analógica”,


Brewer não consegue uma formulação interessante da estrutura do argu­
mento por analogia. Com efeito, bastaram poucos parágrafos para Brozek
fulminar seu argumento: “Há várias objeções que podem ser aduzidas contra
a proposta de Brewer. E marcante quão pouco essa concepção se parece com
o verdadeiro raciocínio por analogia. (...). Pode-se observar, por exemplo, que
a referência de Brewer ao processo de abdução é equivocada. Abdução, na
sua forma clássica, é um raciocínio que tem a seguinte forma:

520
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Outra abordagem, que denominamos “ argumentativa”,


parte da premissa de que toda decisão judicial pode ser apre­
sentada ex post com o o resultado de um procedimento dedu­
tivo que parte de premissas normativas gerais e de premissas
fáticas particulares. No caso da analogia, entretanto, inicial­
mente não há possibilidade de inferência de uma conclusão,
porque as premissas fáticas não se subsumem às normativas.
E necessária uma ponderação de razões substantivas que
pressupõe um “ salto não-dedutivo que leva a uma transforma­
ção no Direito” [Peczenik 1989:393-394]. Esse salto não-dedu­
tivo só será possível se o aplicador do Direito inserir premissas
normativas intermediárias que estabeleçam para o caso não
regulado as mesmas consequências previstas para o caso já
conhecido pelo ordenamento jurídico [idem:116 e ss.]. Nesse
sentido, a abordagem argumentativa está preocupada tanto

“(1) Certos fenômenos, q, foram observados.”


“(2) p, se verdadeiro, iria explicar q.”
“Portanto, (3) p é provavelmente correto. (...).”
“A proposta de Brewer usa uma estrutura diferente. Ela inicia com um dado
caso; se F representar a descrição dos fatos (relevantes) do caso, então,
teremos:
“(1) E ”
“Então, ele sugere que uma regra jurídica pode ser estabelecida (e depois
confirmada), que tenha F como seu antecedente e certas consequências
jurídicas como seu consequente. Portanto, quando C representa as conse­
quências jurídicas, nós obtemos:”
“(2) F—>C.”
“O terceiro passo desse raciocínio é aplicar (2) a (1):”
“(1) F”
“(2) F—>C”
“(3 )C.”
“Como podemos ver, a proposta de Brewer nada tem a ver com o raciocínio
‘clássico’ por abdução” [Brozek 2007:146].”
Brozek, nessa e em outras passagens, demonstra, com muita segurança,
que o procedimento estabelecido por Brewer para justificação de regras por
analogia têm muito pouca coisa de “analógico”.

521
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

com a justificação das premissas necessárias para justificar


dedutivamente a decisão quanto com a forma através da qual
estas são encontradas.

Entre as abordagens argumentativas, a que mais nos


interessa é a que emprega os princípios jurídicos como fatores
de valoração adequados para a justificação das premissas ne­
cessárias para permitir a descrição dedutiva da analogia. Assim,
quando temos de decidir sobre “ aplicar ou não a analogia (...),
não se trata mais de um problema cognitivo” , mas de uma
questão “valorativa” , que é resolvida a partir dos princípios
que justificam a adoção da solução paradigmática [Bankowski
2001:146].

Nesse sentido, deve-se concordar com Neil MacCormick


quando este sustenta que os princípios têm a função de expli­
car e justificar as regras jurídicas mais específicas [MacCor­
mick 1978-a:152]. Quando se busca, portanto, a ratio de deter­
minada regra jurídica, só se pode encontrá-la nos princípios
que a justificam e a tornam coerente com o restante do orde­
namento jurídico a que pertence. Por isso, citando novamente
as palavras de Peczenik, podemos dizer que “toda regra jurí­
dica pode ser apresentada como o resultado de uma pondera­
ção de princípios feita pelo legislador” [Peczenik 2000-a:78].
Assim, para justificar a conclusão obtida por analogia é neces­
sário refazer a ponderação levada a cabo pelo legislador (ou
pelo tribunal, tratando-se de um precedente judicial) e verificar
se é razoável ou correto manter as mesmas relações de priori­
dade condicionadas entre os princípios que estão por trás da
regra estabelecida pelo legislador para o caso paradigmático.
Um tal juízo de razoabilidade ou correção deve estar funda­
mentado por uma teoria normativa da argumentação jurídica.
Nota-se, destarte, uma associação indispensável entre os con­
ceitos de analogia, princípios e argumentação, pois é simples­
mente impossível justificar racionalmente uma analogia senão
por meio dos princípios escolhidos ao se concretizar a regra a
ser analogicamente aplicável.

522
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Somente uma argumentação por princípios pode justificar


a criação de uma regra por analogia.
Por isso, pode-se adotar aqui a tese da “ redutibilidade
parcial da analogia à ponderação” (partial reducibility the-
sis), desenvolvida por Bartosz Brozek. Para o autor, a ana­
logia de casos particulares pode ser descrita pelas seguintes
etapas:
“ (1) Encontra-se um caso problemático, isto é, um caso
para o qual não existe regra jurídica diretamente aplicável
“ (2) Passa-se a identificar casos semelhantes ao caso
dado, para os quais haja soluções definidas. A noção de simi­
laridade usada aqui é definida pela questão jurídica discutida
no caso (...).”
“ (3) Passa-se a identificar os princípios que se situam por
trás das regras jurídicas que governam os casos semelhantes
e, então, a usá-los para construir argumentos para o caso em
tela (...).”
“ (4) Ponderam-se os princípios em que os argumentos
que levam a soluções contrárias à desejada estejam baseados.”
“ (5) A conclusão acerca do argumento prevalecente é a
decisão do caso em tela” [Brozek 2007:150].
Esse modelo - explica Brozek - tem a grande vantagem
de “ se livrar do problemático processo de decidir quais seme­
lhanças são relevantes” , pois ele “ transforma esse problema
em uma tarefa bem definida de ponderação de princípios”
[Brozek 2007:152].
De fato, o modelo acima torna muito mais controlável o
raciocínio por analogia, pois não se contenta em examiná-lo na
sua estrutura superficial, trazendo à tona as ponderações de
princípios necessárias para estabelecer as ligações entre um
caso e outro. Ao se descrever a analogia como em parte um
processo de ponderação de princípios, valem para o argumen­
to analógico a lei de colisão e a lei de ponderação, que foram

523
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

estabelecidas por Alexy para demonstrar a estrutura formal


do processo de ponderação.33
Com os elementos de que dispomos já é possível propor
formas de argumento para descrever a justificação interna da
analogia.34Para tanto, é necessário incluir nessa estrutura não
apenas (a) a descrição hipotética da norma jurídica tomada
como paradigma e (b) um enunciado de semelhança entre o
caso a ser resolvido por meio da analogia e o caso regulado pela
norma paradigmática, mas principalmente (c) os princípios
que se encontram por detrás da norma jurídica paradigmática
e os que justificam a criação de uma nova hipótese normativa
por analogia.
É preciso inicialmente descrever a norma jurídica toma­
da com o paradigma através de um enunciado do tipo:

(1) N: (x) (Cx -> ORx)

- onde N designa uma norma jurídica do tipo regra segun­


do a qual “ para todo x deve ser aplicada a consequência
normativa R sempre que estiverem presentes as condições

33. Nesse ponto específico afasto-me do pensamento de Brozek, pois este


autor pretende desassociar a ponderação de princípios (e o modelo de
ponderação como um todo) da lei alexyana de colisão (v., supra, Capítulo
3, n. seção 3.3.2.3.2, (B)). Brozek sustenta, contra Alexy, a desnecessidade
da lei de colisão quando se adota um modelo de lógica defeasible para
os princípios: “A lei de colisão é necessária por causa do uso da Lógica
clássica, e uma virada para a Lógica defeasible nos permite livrar dessa
ferramenta supérflua, na minha opinião” [Brozek 2007:149-150-nota 234].
Pode-se contra-argumentar, no entanto, que é justamente a lei de colisão
alexyana que torna o argumento de Brozek plausível. E justamente o fato de
uma colisão de dois princípios levar à formulação de uma regra que torna
possível determinar, com um certo grau de objetividade, os princípios que
estão por detrás das regras que necessitam ser comparadas para justificar
o argumento analógico.
34. Esta estrutura já foi exposta em Bustamante [2007-b:271-273], em texto
que passo a parafrasear.

524
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

C” .35 No entanto, para permitir a passagem de N a uma nova


norma N’ é necessário incluir outros enunciados, pois é preci­
so explicitar os princípios que foram ponderados pelo legisla­
dor no caso C. Aqui, a lei de colisão, que Alexy utiliza para
expressar as relações de prioridade condicionada entre prin­
cípios jurídicos concorrentes, pode ser útil [Alexy 1997-b:92],
Assim, adiciona-se a seguinte premissa:

(2) (P1P P2) C

Aqui, (2) representa uma relação de prioridade condicio­


nada entre os princípios jurídicos P1 e P2. Portanto, a regra
jurídica N, para a qual valem as consequências normativas OR,
representa o resultado de uma ponderação de princípios que
o legislador realizou para a hipótese C.
Daí, se num caso C’ se estiver diante dos mesmos princí­
pios jurídicos e o aplicador do Direito concluir que a relação
de prioridade entre esses princípios deve ser a mesma, pode-se
chegar ao seguinte enunciado:

(3) (P1P P2) C’

Como resultado de (2) e (3), chega-se a uma nova regra


jurídica N ’, que pode ser expressa da seguinte maneira:

(4) N’: (x) (C’x -» ORx).

35. Esse esquema é equivalente ao utilizado por Robert Alexy [1997-a:214-


regra J.l.l], Nesse esquema, x é uma variável de indivíduo no domínio das
pessoas naturais e jurídicas; C é um predicado que representa o suposto de
fato da norma N; R é um predicado que expressa o que o destinatário da
norma deve fazer; O, por seu turno, é um operador deôntico, equivalente a
“é obrigatório que” .

525
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Vale, portanto, a seguinte forma de argumento:

. (1) N: (x) (Cx -» ORx)


. (2) (P1P P2) C
. (^ ( P P P ^ C ’
(4) N’: (x) (C’x -> ORx) (l)-(3).

Esse esquema argumentativo, apesar de sua extraordi­


nária simplicidade, pode ser um bom modelo para elucidar a
estrutura do argumento por analogia, pois mostra claramente
quais são os princípios escolhidos para justificar a analogia e
qual a relação que se estabelece entre eles.
Essa versão revisada do argumento por analogia revela
que a decisão de aplicação de precedentes deve ser mediada
pelos princípios que estabelecem uma espécie de “ponte” entre
casos e funcionam como pano de fundo para a construção da
coerência ou integridade da ordem jurídica.

4.3.5 Um exemplo de aplicação do modelo

O modelo proposto no n. 4.3.4 - que reconhece a correção


da tese da redutibilidade parcial da analogia à ponderação, de
Brozek, mas pretende combiná-la com a lei de colisão, de Ale-
xy, para o fim de determinar a estrutura do argumento por
analogia - permite, de forma mais controlável que o modelo
tradicional - fundado na ideia de “semelhanças essenciais ou
relevantes” entre casos e suas rationes - , elucidar a estrutura
do argumento analógico e viabilizar um modelo de justificação
interna das decisões que aplicam analogicamente os preceden­
tes judiciais.

Veremos, agora, dois exemplos que explicam com o esse


modelo deve ser utilizado. Recorro, para tanto, aos exemplos
que Baiíkowski utilizou para demonstrar a relação entre

526
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

analogia, princípios, a técnica do precedente e a teoria institu­


cional do Direito em importante ensaio do início da década de
1990. Com efeito, esse autor - ao lado de Neil M acCorm ick- foi
uma das mais importantes vozes para a consolidação da tese,
ora defendida, de que é a existência de princípios jurídicos
comuns (em duas situações) que faz com que a analogia tenha
força na argumentação jurídica.
O caso paradigma no exemplo de Bankowski é talvez o
mais famoso de todo o direito do Reino Unido: “Donoghue vs
Stevenson”36Nesse caso - explica Bankowski - “ foi entendido
que Mrs. Donoghue, que ficou doente após começar a beber,
em um café, uma garrafa de ginger beer na qual ela afirma ter
sido encontrada uma lesma em decom posição, tinha ação
contra o fabricante, com o qual ela não tinha relação contra­
tual” [Bankowski 1991:198]. Na ocasião, Lord Atkin fixou o
seguinte entendimento: “Um fabricante de produtos, que os
vende de tal forma a demonstrar que ele pretende alcançar
o consumidor final na forma em que eles [os produtos] o dei­
xaram, sem possibilidade razoável de exame intermediário e
com o conhecimento de que a ausência de um cuidado razo­
ável na preparação ou armazenamento dos produtos poderá
causar lesões à vida ou à propriedade do consumidor, tem um
dever de cuidado para com o consum idor” ([1932] A.C., 599)
[apud Bankowski 1991:198].
Observe-se que a regra fixada no precedente em questão
estabelecia com o condição suficiente para o surgimento da
consequência jurídica (responsabilidade extracontratual do
fabricante) os seguintes requisitos cumulativos: (1) impossibi­
lidade de o consumidor examinar o produto para verificar sua
nocividade; (2) conhecimento de que a falta de cuidado na
preparação do produto pode lesionar o consumidor. Essa ratio
decidendi pode ser, de acordo com o modelo proposto, recons­
truída com a enunciação dos princípios que a justificam. Como
toda regra, essa também tem sua origem em uma determinada

36. [1932] AC 562.

527
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ponderação de princípios (ressalvada a hipótese de inexistên­


cia de qualquer princípio que poderia ser utilizado como argu­
mento contrário a tal regra): o princípio da proteção aos con­
sumidores, que justifica a responsabilização do produtor,
prepondera sobre o princípio da culpabilidade na responsabi­
lidade civil, já que esse “dever de cuidado” que atinge o pro­
dutor implica a obrigação de evitar a nocividade do produto,
que gera algo com o a responsabilidade objetiva do fabricante
pelos danos causados por seus produtos aos consumidores.
Ao expressarmos essa relação de acordo com a lei de
colisão de Alexy, diríamos:

C (P1P P2)

- onde C expressa os fatos do caso (relação não-contratual +


impossibilidade de exame preventivo do consumidor + conhe­
cimento do fabricante acerca da lesividade do produto), P1
expressa o princípio preponderante (princípio da proteção ao
consumidor) e P2 expressa o princípio afastado (princípio da
culpabilidade, segundo o qual só deve haver responsabilidade
com a prova de culpa ou com fundamento em uma relação
contratual).
Essa colisão implica - como resultado da ponderação - a
regra adscrita C— onde C é o suposto de fato da norma e R
é a consequência jurídica no caso concreto (responsabilização
do fabricante).
A regra adscrita decorre, com o sabemos, de um juízo de
preponderância de um princípio sobre outro: o grau de impor­
tância do cumprimento de P1 foi tido como maior que o grau
de intervenção em P2. Podemos imaginar, por exemplo, que P1
foi satisfeito em uma medida intensa e P2 foi restringido em
uma medida leve, já que a responsabilização objetiva indepen­
dente de relação contratual foi limitada a uma série de circuns­
tâncias especiais que exigiam do fabricante um cuidado especial.

528
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Pois bem, voltando ao ensaio de Bankowski, são apre­


sentados dois exemplos em que foi cogitada a aplicação do
precedente “Donoghue vs Setevenson” por analogia. O pri­
meiro deles, em que a solução analógica foi rejeitada, é o caso
“Kubach vs Holland”37 No caso, um professor com prou do
segundo réu certa quantidade de dióxido de manganês, que
correspondia, na realidade, a uma mistura dessa substância e
de sulfito de antimônio. “ O produto havia sido comprado por
um terceiro, mas a embalagem enunciava que os produtos
‘devem ser examinados e testados antes do uso’. Isso não foi
dito ao professor, e nem ele e nem o intermediário testaram o
produto. Houve uma explosão na sala de aula. Em ação movi­
da por uma aluna ferida na explosão, o segundo réu foi con­
denado, mas o fabricante original foi considerado not liáble”
[Bankowski 1991:199]. Como disse Lord Hewart CJ, após dis­
cutir o caso “ Donoghue” : “ O caso que ora é contemplado é, eu
penso, oposto nos aspectos essenciais ao caso presente. O
dióxido de manganês que a terceira parte deveria ter suprido
aqui ao segundo réu poderia ter sido vendido para uma varie­
dade de propósitos (...). Era um ponto comum que um teste
muito simples, se tivesse sido feito, como prescrevia a emba­
lagem do fabricante, e como o primeiro réu (professor) não foi
avisado, teria imediatamente revelado o fato de que sulfito de
antimônia fora erroneamente feito e entregue com o dióxido
de manganês” [ibidem].
Pode-se observar nesse segundo caso uma série de con­
dições fáticas diferentes que, na opinião do Tribunal, fizeram
inverter a ordem de precedência entre os princípios em ques­
tão no caso concreto. Não havia uma produção específica do
produto com a finalidade de este ser utilizado em sala de aula
(pelo contrário, isso dificilmente seria o caso) e, além disso, o
produtor expressamente se preocupou em neutralizar os riscos
do produto advertindo o consumidor para a prévia necessida­
de de se testar o produto antes do seu consumo. Aqui, pode-se

37. [1937] 3 All E.R. 907.

529
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

dizer que o produtor original se desincumbiu de seu “dever


de cuidado” para com o consumidor ao adverti-lo acerca de
certas medidas de segurança que, se observadas, evitariam o
acidente ocorrido. Nesse caso, pode-se dizer que há uma in­
versão de prioridades entre os princípios, pois o princípio P2
passa a ser restringido em um grau intenso e o princípio P1
apenas em uma intensidade leve ou mediana, já que o dano
ocorrido se deu, na realidade, pelo uso não apropriado do
produto, com a adoção das medidas de segurança recom en­
dadas pelo fabricante.
As mudanças fáticas implicaram, no caso concreto, uma
inversão da relação de precedência condicionada entre os
princípios P1 e P2, de sorte a tornar a regra estabelecida em
“Donoghue vs Stevenson” inaplicável ao caso “Kubach vs
Holland” .
O outro exemplo é o caso “Haseldine vs Daw and Son
Ltd.”38Aqui, Haseldine foi ferido por um elevador em um blo­
co de apartamentos (flats). O prédio acabara de passar por uma
manutenção da companhia A & P. Steven Ltd., que tinha um
contrato para prover o elevador e reportar quaisquer problemas
aos proprietários do bloco de apartamentos. Essa empresa
contratada foi negligente na manutenção dos elevadores e não
reportou aos proprietários qualquer defeito [Baiíkowski
1991:199]. A seguinte passagem, de Goddart LJ, esclarece os
fundamentos da decisão: “ Se havia alguma dúvida acerca do
princípio básico de ‘M Alister (or Donoghue) vs Stevenson’,
Lord Wright a dissipou. O produtor foi considerado responsá­
vel não porque ele estava interessado em que seu produto
fosse utilizado tal como ele deixou a fábrica, mas porque ele
não tinha razão para prever a necessidade de um exame pelo
intermediário ou consumidor final antes do uso. (...). Em qual
princípio razoável, então, pode o caso do fabricante ser dife­
renciado do caso do responsável pela manutenção de um artigo?

38. [1941] 3 Ali. E. R. 165.

530
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Claramente, a doutrina não se aplica ao reparador de qual­


quer artigo, da mesma forma que ao produtor. Se eu ordeno
a meu alfaiate que me faça um terno, ou a um produtor de
relógios que repare o meu relógio, ninguém iria supor que
qualquer outro que não eu iria usar o terno ou o relógio. Se
o alfaiate deixou um alfinete no tecido e este feriu uma
pessoa para quem eu tenha em algum m om ento empresta­
do o paletó, eu devo pensar que este não poderia exigir
reparações do alfaiate. A relação entre eles seria em si mui­
to remota (...). O caso de um responsável pela manutenção
de um elevador, entretanto, é muito diferente. Um elevador
em um bloco defla ts está ali para ser usado pelo proprietá­
rio ou por seus funcionários, pelos locatários e seus funcio­
nários, bem com o por todas as pessoas que recorram ao
prédio para fins lícitos. B locos deflats e escritórios são com
frqüuência de propriedade de companhias limitadas, que
normalmente são contratantes de engenheiros ou com pa­
nhias de manutenção. Em tal caso, o em pregador iria ser
aquele com chances mais remotas de usar o elevador. Se os
reparadores fizerem o seu trabalho de forma descuidada ou
falharem em reportar um dano que, com o experts, eles ti­
nham de estar a par, eu não consigo ver por que o princípio
de ‘M ’Alister’ (or ‘D onoghue’) não seria aplicável a eles”
[Bankowski 1991:200199].
Nesse caso, como se percebe, aplicou-se a regra de “D o­
noghue” a fatos semelhantes, mas não idênticos, com funda­
mento na técnica da analogia. Aqui, foram tidos com o não-
essenciais os fatos de o responsável sem relação contratual ser
o prestador de serviços de manutenção, e não o fabricante, e
de o produto em questão ser um elevador, e não um gênero
alimentício a ser consumido por uma pessoa. Havia uma base
de analogia, por outro lado, no fato de o usuário (que, tanto em
um caso como no outro, não tinha vínculo contratual com o
fabricante ou o responsável pela manutenção) não ter meios de
verificar o estado adequado do bem que está sendo consumido
(seja este uma bebida em uma garrafa opaca ou os cabos de

531
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

fixação de um elevador). Em qualquer das situações, o forne­


cedor - seja de produtos ou serviços - detém uma obrigação
de cuidado não apenas em relação ao comprador, mas a quais­
quer pessoas que venham a entrar em contato com o produto,
pois ele passa a ser responsável pela insegurança que seu pro­
duto gera para toda a coletividade.
Como explica novamente Baiíkowski, o que faz esses
casos serem selecionados como base de comparação para a
analogia é o jogo complexo de princípios que justificam a de­
cisão “Donoghue” e que podem vir a justificar o caso “Hasel-
dine” . Quando o Tribunal decidiu pela aplicação analógica da
regra desenvolvida em “Donoghue” , a melhor forma de justi­
ficar racionalmente essa decisão é remetendo aos princípios
que foram concretizados no caso precedente, para se chegar à
conclusão de que no novo caso C1 deve ser mantida a mesma
ordem de precedência entre os princípios P1 e P2, de sorte a
justificar o estabelecimento das mesmas consequências jurídi­
cas do caso anterior.
Fica claro, portanto, que a analogia encontra funda­
mento na identidade de princípios: ubi eadem principium, ibi
eadem ratio.

4.3.6 A analogia e a interpretação extensiva: diferenciação

Uma forma alternativa de se estender o âmbito de apli­


cação de um precedente judicial é a interpretação extensiva.
Assim como na diferença entre o argumento a contrario e a
redução teleológica, na distinção entre analogia e interpretação
extensiva o elemento de discriminação reside no fato de em
uma das duas (analogia) o caso a resolver não poder ser sub­
sumido na moldura da regra anterior nem mesmo por meio de
uma interpretação elástica de seus termos, ao passo que na
outra (interpretação extensiva) é possível acomodar dentro da
esfera semântica das expressões utilizadas na regra anterior
os casos que aguardam solução.

532
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Por conseguinte, há uma diferença quanto ao grau de


inventividade do procedimento analógico, que supera em me­
dida significativa o da mera interpretação extensiva, pois a
solução, neste último caso, já pode ser considerada como com­
patível com um dos sentidos possíveis para a norma aplicada.
Pode-se dizer, doravante, que no caso da interpretação exten­
siva temos um problema de interpretação (ou seja, há dúvida
sobre o sentido da norma a aplicar), enquanto na analogia te­
mos uma lacuna ou problema de aplicação (a norma a aplicar
não pode ser interpretada com o abarcando os fatos do caso,
mas mesmo assim se cogita de sua aplicação analógica para
suprir uma lacuna normativa).

4.4 Problemas de aplicação, comparação e ponderação:


uma integração de perspectivas

Já me aproximando da conclusão, termino o tratamento


dos problemas de aplicação de precedentes judiciais elucidan­
do certas relações que existem em todas as hipóteses de que
tratei acima (redução teleológica, aplicação do argumento a
contrario e raciocínio por analogia).
Em primeiro lugar, há uma relação entre aplicação e
justificação de precedentes. Como vimos, um problema de
aplicação de um precedente judicial é também um problema
de justificação de um novo precedente judicial para os casos
futuros, isto é, de fundamentação de uma nova regra que, pos­
teriormente, também será aplicada na solução de casos con­
cretos, e assim por diante.
Dependendo da norma que se enfoque, teremos, então,
um problema de aplicação ou um problema de justificação.
Como aqui enfocamos apenas a norma a aplicar, isto é, a regra
que constituí a ratio decidendi de uma decisão anterior, pode­
mos tratar apenas de um dos aspectos envolvidos no desenvol­
vimento judicial do Direito: as situações de aplicação imparcial
de normas jurídicas.

533
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Uma segunda relação, mais complexa, é a que se dá entre


a noção de comparação, de um lado, e o argumento a contrario
e a analogia, de outro. Com efeito, já vimos que uma diferença
entre a utilização do argumento a contrario e da analogia está
em que no primeiro caso se nega a existência de uma lacuna - se
atesta a completude do ordenamento jurídico por meio de uma
regra de clausura que estabelece, para os casos não expressa­
mente regulados, a obrigatoriedade das consequências contrá­
rias às da regra de partida -, ao passo que no segundo caso
(analogia) o ponto de partida é justamente a existência de uma
lacuna, isto é, uma pluralidade de alternativas, de sorte que o
aplicador do Direito deve construir uma solução nova a partir
dos princípios que justificam a existência de uma regra seme­
lhante à que se pretende criar para o caso concreto.

Os dois tipos de argumento, portanto, diferem substan­


cialmente do ponto de vista teórico, haja vista que um deles
nega e o outro pressupõe a existência de uma lacuna jurídica.
Do ponto de vista prático, no entanto, há uma semelhança
entre a analogia e o argumento a contrario que os torna extre­
mamente próximos, apesar de antagônicos. O ponto comum
está na necessidade de se comparar casos, hipóteses e conse­
quências jurídicas tanto no caso invocado como precedente
(caso de partida) quanto no caso duvidoso, que deve ser solu­
cionado pelo juiz no caso concreto.

Embora a reconstrução analítica dos dois tipos de argu­


mentos seja sensivelmente diferenciada e a explicação em
termos de teoria do Direito também (já que num caso se negou
a existência de lacunas e no outro se afirmou), o tipo de valo-
ração jurídica exigido do juiz é rigorosamente o mesmo: o juiz
deve comparar os elementos essenciais dos casos concretos
e os princípios que justificam cada uma das soluções jurídicas
em questão (a solução adotada no precedente invocado e as
soluções propostas para o caso a decidir). Ambos os modos
de argumentação (a contrario e a pari) são intrinsecamente
comparativos e exigem do operador do Direito cuidadosa

534
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

ponderação de princípios segundo a fórmula de ponderação


estudada no n. 3.3.2.3.2 do Capítulo 3 deste trabalho.
Se tentarmos reconstruir as valorações que dão origem
à decisão a contrario e à decisão por analogia, veremos que
em ambos os casos o que se dá é o mesmo tipo de ponderação,
uma ponderação de princípios onde são estabelecidas as con­
sequências jurídicas do caso concreto.
Essa imprescindibilidade de ponderação é a terceira ca­
racterística comum às técnicas do distinguish e da analogia, de
modo geral. Como explica Bankowski, a solução de um caso
em que se cogita da analogia está no estabelecimento de pon­
derações para o fim de justificar ou dispensar analogias e di­
ferenciações (disanalogies). A noção de identidade (sameness)
invoca um juízo sobre a qualidade das semelhanças entre casos
concretos, e isso só pode ser aferido por meio dos princípios
fundamentais do Direito.
A escolha entre a analogia e o argumento a contrario é
também o resultado de uma ponderação.
Nesse sentido, cabe indagar acerca de certas regras de
precedência primafacie entre um e outro tipo de argumento, que
funcionem como diretivas para a prática jurídica de modo geral.
Essas regras podem ser encontradas a partir dos resultados das
ponderações já realizadas pelos teóricos do Direito e pelos tribu­
nais superiores de modo geral. A força delas, porém, há de ser
entendida num sentido limitado, haja vista seu caráter pro tanto.
Uma tentativa nesse sentido que me parece plausível é a
de Aleksander Peczenik, que elaborou as seguintes diretivas
para auxiliar o aplicador do Direito quando este se vê na posi­
ção de escolher entre, de um lado, interpretar a regra de par­
tida restritivamente, dando margem ao argumento a contrario,
ou concluir pela existência de uma lacuna saneável pela ana­
logia com uma regra preexistente [Peczenik 1989:396-402]:
(1) Se uma ação não estiver explicitamente proibida por
um enunciado legislativo ou alguma outra fonte formal do

535
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

Direito, deve-se considerá-la permitida pelo Direito, a não ser


que existam razões fortes para se assumir o oposto.39
(2) Não se deve construir asserções estabelecendo con­
dições suficientes para não seguir uma norma geral por ana­
logia, a não ser que existam razões fortes para se assumir o
contrário.
(3) Não se deve construir asserções que constituam ex­
ceções em uma norma geral por analogia, a não ser que existam
razões fortes para se assumir o contrário.
(4) Deve-se proceder restritivamente ao construir asser­
ções que imponham ônus ou restrições para uma pessoa, a não
ser que existam razões fortes para se assumir o contrário (odia
sunt restringendá).
(5) Somente semelhanças relevantes entre os casos cons­
tituem razão suficiente para a conclusão por analogia.
(6) Somente razões muito fortes podem justificar o uso
da analogia para levar à conclusão de que há um erro no texto
da lei.
(7) Nem todas as razões suficientes para justificar uma
interpretação extensiva são também suficientes para justificar
um raciocínio por analogia.
As quatro primeiras diretivas têm, na verdade, conteú­
dos difíceis de se distinguir rigorosamente. Em todas elas
há uma referência expressa à obrigação prima fa cie de res­
peitar as decisões do legislador, vedando o em prego da ana­
logia nas situações em que se verificam normas proibitivas,
excepcionais e restritivas. Elas valem, porém, também para
os precedentes judiciais estritamente vinculantes ou dotados
de elevado grau de vinculatividade, onde há uma liberdade

39. Como vimos, em tal situação estamos diante de uma permissão em


sentido frágil, o que torna necessária a utilização cautelosa de tal diretiva
argumentativa.

536
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

reduzida para o juiz se afastar de determinada regra jurispru-


dencial. Nesses casos, em que a utilização da analogia é ceteris
paribus limitada, o argumento a contrario, pelo menos a prin­
cípio, pode ser aplicado. A quinta diretiva, por sua vez, estabe­
lece o dever de se levar em conta unicamente semelhanças
relevantes, de acordo com os princípios que justificam a exis­
tência da regra a ser aplicada por analogia. A sexta, por seu
turno, impõe uma proibição prima fa cie de utilização da ana­
logia para modificações no texto de uma norma de origem le­
gislativa. E a sétima, finalmente, marca uma fronteira entre a
mera interpretação extensiva, que se mantém dentro dos limi­
tes semanticamente estabelecidos pelo texto objeto da inter­
pretação, e a analogia, que envolve uma tomada de decisão não
feita originalmente pelo legislador, pois a hipótese ventilada
não pode ser reconduzida a qualquer enunciado normativo em
vigor nem mesmo se este for interpretado extensivamente.
As diretivas acima limitam a utilização da analogia e
privilegiam o argumento a contrario. Mas há outras diretivas
igualmente importantes que dão prevalência à primeira em
relação ao segundo. Com efeito, a analogia normalmente se
justifica nas seguintes situações [Peczenik 1989:396-402]:
(8) Um enunciado normativo deve ser aplicado analogi-
camente a casos não cobertos pelo seu sentido literal, se outro
enunciado dispuser que ele se assemelha nos aspectos relevan­
tes àqueles que estão cobertos.
(9) Só se pode utilizar o argumento a contrario excepcio­
nalmente, quando se estiver interpretando regras baseadas em
precedentes. Observe-se que Peczenik estabelece, para a in­
terpretação de precedentes judiciais em especial, uma estrita
limitação à utilização do argumento a contrario. Com efeito,
esse autor chega a sustentar, em outro estudo, que “ a força
normativa dos precedentes enquanto tais é a força normativa
da analogia entre casos” [Peczenik 2000-b:59].
É claro que Peczenik tem razão em um importante sen­
tido, mas nas diretivas que impõe parece exagerar as diferenças

537
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

que, do ponto de vista da justificação externa da decisão, se
verificam entre o argumento a contrario e a analogia. Como já
disse, em ambas as situações é necessário comparar as diferen­
ças e as semelhanças entre os casos particulares, bem como os
princípios que justificam cada uma das soluções aventadas,
com fundamento na lei de colisão alexyana. Em princípio, há
tantas chances de a relação entre os princípios colidentes se
manter quanto de se modificar nos casos futuros, de sorte que
não parece correto presumir, de antemão, que deva ser prefe­
rida a analogia ao argumento por diferenciação. Por isso, é
necessário especial cuidado ao se aplicar a diretiva 9.
Para além das diretivas de Peczenik, proponho, para fi­
nalizar, a seguinte diretiva, que expressa em linhas gerais a
tese da “ redutibilidade parcial da analogia à ponderação” ,
sustentada por Bartosz Brozek:
D: Sempre que se estiver diante de uma lacuna normativa
e fo r possível refazer o caminho percorrido pelo legislador,40
encontrando assim a relação de prioridade condicionada entre
princípios que ele estabeleceu na regra R, pode-se, por analogia,
aplicar as consequências de R aos casos em que se verifique a
mesma relação entre os mesmos princípios jurídicos.
Com essa diretiva - além das regras específicas que Pe­
czenik elaborou para a analogia e o argumento a contrario em
geral, que são aplicáveis aos problemas de aplicação de prece­
dentes no que forem cabíveis - pode-se estabelecer um parâ­
metro capaz de reduzir sensivelmente a margem de arbitra­
riedade dos juizes e demais aplicadores do Direito no desen­
volvimento do case law.

40. Ou, no caso de precedentes, pelo juiz que prolatou a norma-paradigma.

538
C o n clu sã o

A ambição deste trabalho - estabelecer diretivas práticas


para a aplicação racional de precedentes judiciais - é conside­
rada um esforço inútil por parte substancial dos juristas con­
temporâneos, que acredita no caráter contraditório da noção
de racionalidade prática e não vislumbra sequer a possibilida­
de lógica de uma função normativa para a filosofia e a teoria
jurídicas. Foi necessária, por isso, uma digressão a respeito das
teorias contemporâneas sobre o conceito de Direito, com ên­
fase nas que analisam o fenômeno jurídico como uma prática
social de natureza interpretativa e argumentativa, com o as
teorias pós-hartianas de Dworkin, MacCormick e Alexy.1
Foi necessário também, ainda no Capítulo 2, onde lanço
as bases da teoria do precedente judicial que ora encerro com
estas últimas considerações, justificar a concepção pós-positi-
vista de Direito e demonstrar como a adoção dessa concepção
- que vê um Direito limitado em certo sentido pela Moral, mas
por outro lado não meramente um reflexo dela ou uma ordem
normativa infraordenada ou subordinada - repercute na teoria
jurídica e na filosofia do Direito. A teoria do Direito que subjaz

1. Tomo emprestado, aqui, a distinção entre teorias pré-hartianas e pós-


hartianas utilizada por Massimo La Torre para diferenciar as teorias jurí­
dicas construídas na perspectiva do observador (ponto de vista “externo”)
e na perspectiva do participante (ponto de vista “interno”). As teorias que
permanecem, até hoje, analisando o Direito exclusivamente do ponto de vista
externo são denominadas por La Torre [2006:213] de “pré-hartianas”. Sobre
o assunto, v., além do estudo de La Torre, o meu ensaio “Pós-Positivismo: o
argumento da injustiça além da fórmula de Radbruch” [Bustamante 2006-a].

539
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

a esse livro é uma teoria pós-positivista, porque dá conta da


tensão e da complementaridade entre Direito e Moral, entre
correção e positividade, e busca romper certas dicotomias que
se expressam no Positivismo Jurídico e limitam as possibilida­
des do conhecimento sobre normas, tornando a ciência do
Direito meramente um exercício analítico (como faz o Norma-
tivismo) ou um conjunto de prognoses acerca do comporta­
mento das autoridades dotadas de poder de decisão (como faz
o Realismo Jurídico). Entre essas dicotomias, cito a tese da
separação entre Direito e Moral, a incomunicabilidade abso­
luta entre “ ser” e “dever-ser” , a distinção de Bentham entre
jurisprudência expositória e censorial, a distinção radical entre
enunciados de lege lata e enunciados de legeferenda (de forma
que a ciência do Direito seria composta apenas pelos primeiros),
a dicotomia radical entre o common law e o civil law, a teoria
das fontes do Direito como expressão de um modo de produção
de normas ou dotadas de autoridade absoluta ou carentes por
completo de qualquer autoridade, a separação entre as ativi­
dades de interpretação e aplicação do Direito e uma série de
outras ideias positivistas que historicamente foram responsá­
veis pela completa neglectio dos precedentes pelos teóricos do
Direito do civil law.
Neste trabalho presumo uma identidade de objeto entre
a filosofia jurídica e a teoria do Direito, de modo que ambas se
distinguem apenas em função da perspectiva ou aspecto de
análise adotados por seus estudiosos e contribuem, conjunta­
mente, para a construção de um Direito cada vez mais justo,
racional e integrado à moralidade crítica e social. Isso tem
sérias consequências, porque torna o método filosófico também
um método jurídico, e muitas questões que eram antes relega­
das à filosofia moral passam a fazer parte do discurso jurídico.
E essa a forma mais correta de ver o Direito - proponho - quan­
do se abandona a perspectiva do observador e se adota a do
participante. Por isso é que Hart, mesmo tendo permanecido
positivista até o final de sua vida, foi tão importante para a
superação do Positivismo.

540
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Um participante do discurso jurídico não pode mais ser


indiferente ao conteúdo do Direito: não pode mais admitir que
quaisquer normas venham a fazer parte dele e que qualquer
atrocidade seja praticada in nomine iuris.
Ele tende a prestar mais atenção na tensão entre ratio
e auctoritas que caracteriza a prática jurídica e a tentar esta­
belecer mecanismos metodológicos para minimizar os efeitos
dessa tensão, visando a garantir, na máxima medida possível,
que o Direito seja as duas coisas ao mesmo tempo: justo e
institucionalizado.
A teoria dos precedentes que proponho, com o teoria
metodológica que é, liga-se inseparavelmente a uma teoria da
argumentação que seja capaz de tornar racional o processo de
aplicação do Direito. E pela via das teorias da argumentação
jurídica que o Judiciário, mesmo carente da representação
democrática característica do Poder Legislativo, pode legitimar
as normas jurídicas que ele deixa assentadas em suas decisões.
A teoria dos precedentes, a teoria da argumentação jurídica e
a teoria do Direito passam a fazer parte de um único tipo de
discurso em que cada decisão concreta é considerada como
uma norma universalizável que merece passar por um discur­
so de justificação e, num momento posterior, ser imparcialmen­
te aplicada. Nesse “ Constitucionalismo discursivo” , na lingua­
gem de Alexy, a técnica do precedente é considerada um im­
portante aspecto da racionalidade prática, haja vista que a
exigência de considerar as decisões anteriores encontra fun­
damento não mais apenas em fatores institucionais, mas tam­
bém em fatores extrainstitucionais (intrinsecamente racionais),
que são tão importantes quanto os primeiros.
A teoria da argumentação que se encontra na base da
teoria normativa do precedente judicial esboçada nos capítulos
anteriores é, claramente, uma teoria kantiana da razão prática.
Seu princípio fundamental é a universalizabilidade, que é
empregada por Alexy, MacCormick, Habermas e outros autores
(cujas filosofias do Direito constituíram pontos de apoio deste

541
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

trabalho) como a regra de argumentação mais importante para


o discurso prático, e em especial para o discurso jurídico.
O que tentei estabelecer nos Capítulos 3 e 4 foi um con­
junto de diretivas metodológicas universalmente válidas para
a justificação e aplicação de precedentes judiciais, as quais têm
por meta facilitar a vida do aplicador do Direito. Quando divi­
do os problemas mais importantes do argumento por prece­
dentes em problemas de justificação e de aplicação, obviamen­
te refiro-me à teoria de Klaus Günther. Mas divirjo desse autor,
no entanto, quando ele caracteriza o Direito como apenas um
discurso de aplicação, já que a argumentação jurídica abarca
também problemas de justificação normativa que muito se
assemelham aos discursos morais, embora haja um componen­
te institucional que singulariza o discurso jurídico. Tive, por­
tanto, para me manter coerente, que defender a tese abraçada
por Alexy de que o caráter institucionalizado do discurso jurí­
dico não o desnatura como “discurso prático” , senão apenas o
torna um caso especial desse tipo de discurso.
Como desenvolvi uma teoria dos precedentes dotada de
uma pretensão de universalidade, precisei justificar, no Capí­
tulo 1, a minha premissa de que há uma identidade estrutural
entre o raciocínio por precedentes no common law e na tradição
jurídica continental-europeia. Ao enfrentar a questão da su­
posta “ autonomia metodológica” do common law em relação
ao Direito continental europeu, minha resposta foi a negativa
da asserção de que haveria um “ método” ou “procedimento e
raciocínio” substancialmente diferentes nas duas grandes
tradições jurídicas contemporâneas. Uma comparação entre o
Direito francês e o Direito inglês - e, mais genericamente, en­
tre o common law e o civil law - permitiu-me sustentar que o
poder normativo do Judiciário é semelhante em qualquer sis­
tema jurídico da atualidade, bem como que as diferenças entre
o common law e o Direito codificado implicam apenas distintos
graus de discricionariedade do Poder Judiciário, já que o pro­
cesso hermenêutico de raciocínio por precedentes é idêntico
em todo lugar onde ele é encontrado.

542
TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL

Ainda no capítulo introdutório, acabei fazendo também,


ainda que indiretamente, um breve histórico do Positivismo
Jurídico, pois mostrei como ele se manifestou no Direito euro­
peu desde o seu início, no limiar do século XIX, até a sua con­
valescença na virada do século XX I. O que concluo nesse
ponto é que a tensão entre ratio e auctoritas sempre foi vista
com o imanente ao Direito positivo, tanto no Direito inglês
quanto no Continente Europeu. Até o final do século XVIII
havia um ius commune europaeum que pressupunha uma prá­
tica jurídica universalista e cosmopolita, na qual o precedente
judicial era visto com o um importante instrumento - se não o
mais importante - para a unificação do Direito segundo prin­
cípios comuns de caráter eminentemente racional. Essa situ­
ação, segundo meu diagnóstico, tende a se repetir no século
XXI, e não mais apenas na Europa, mas em todo o mundo
globalizado; de modo que o Direito pós-positivista torna neces­
sário construir uma teoria universalista do precedente judicial,
já que o recurso ao case law passa a constituir novamente uma
das mais importantes fontes do Direito.
Em suma, a teoria dos precedentes que tentei desenvol­
ver não dá razão nem ao decisionismo positivista e nem ao
realismo moral e seu cognitivismo ético radical, que não reco­
nhece qualquer limite ao poder de fundamentação da raciona­
lidade prática. Uma teoria pós-positivista deve incorporar
tanto os critérios positivistas para identificação do Direito vá­
lido quanto os critérios não-positivistas para estabelecer os
limites materiais que determinam o umbral de injustiça a par­
tir do qual as normas jurídicas perdem sua validade. Minha
concepção de Direito e de teoria do Direito parece se aproximar,
portanto, da de Neil MacCormick, que se descreve como nem
jusnaturalista e nem positivista. Para MacCormick, uma teoria
jurídica adequada não deve ser antipositivista, mas pós-posi­
tivista, porque não rompe por completo com a tradição positi­
vista e seus critérios para identificar o Direito válido, senão
apenas poda seus excessos e reconhece a correção da tese
jusnaturalista de que o Direito deve ser racional e deixará de

543
THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE

ser considerado “Direito válido” quando essa pretensão de


racionalidade for expressamente negada ou vilipendiada de
forma ostensiva [MacCormick 2007:278-279].
Os critérios que desenvolvi nos Capítulos 3 e 4, que bus­
cam resolver os principais problemas que aparecem na justi­
ficação de regras jurisprudenciais e na aplicação dessas regras,
espelham o caráter normativo da presente teoria dos preceden­
tes judiciais, que constitui sua característica mais importante.
Embora eu tenha recorrido com frequência a esquemas analí­
ticos para elucidar seja as espécies de fontes do Direito, seja a
estrutura da subsunção, da ponderação de princípios, da exi­
gência de coerência, da redução teleológica, do argumento a
contrario e da analogia, essa dimensão analítica da teoria jurí­
dica esteve sempre a serviço de sua dimensão normativa, que
busca estabelecer modelos de decisão destinados a aproximar
o jurista prático das soluções corretas para os problemas jurí­
dicos com que se depara [Alexy 1997-b:32].
Essas diretivas são, portanto, metanormas (normas sobre
a aplicação de normas) que tornam a teoria dos precedentes
substancialmente relevante para a legitimação das decisões
judiciais. A teoria normativa dos precedentes deve ser entendi­
da, para finalizar, como um caso especial da teoria da argumen­
tação jurídica. Se os parâmetros metodológicos para a utilização
de precedentes judiciais que desenvolvi nos Capítulos 3 e 4 en­
contrarem fundamento e puderem ser aplicados na prática dos
tribunais, a teoria normativa dos precedentes enunciada nas
páginas deste trabalho terá tido sucesso em seus objetivos.

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