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O

Capeta-Caolho contra a Besta-Fera


O Capeta-Caolho contra a Besta-Fera

Everaldo Rodrigues
Copyright © 2018 by Everaldo Rodrigues da Silva Junior Todos os direitos reservados ao autor.

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ER Revisões

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desde 1º de janeiro de 2009.

R696o
Rodrigues, Everaldo

O Capeta-Caolho contra a Besta-Fera / Everaldo Rodrigues; Monte Mor – SP


2018 – Edição do Autor

1. Contos brasileiros. I. Título


CDD: B869.3
CDU: 821.134.3(81)
“Porque a ira do homem não opera a justiça de Deus” – Tiago 1:20

“Nós temos cinco governos


O primeiro o federal
O segundo o do Estado
Terceiro o municipal
O quarto a palmatória
E o quinto o velho punhal”

O punhal e a palmatória, Leandro Gomes de Barros


O Capeta-Caolho contra a Besta-Fera

O vento assovia entre as pedras e o mato morto do sertão, e o sertão sopra


lendas em nossos ouvidos e poeira em nossos olhos. A poeira desliza estéril
sobre a pele, e o rosto se torce ante o toque pálido do ar sem vida. A boca enruga
ao golpe seco da sede. O sol seca a pele, a boca, a areia, o mato. Cada canto do
sertão é um ponto morto. E cada ponto morto tem um conto, de alegria ou de
desgosto. A mesma boca seca emite palavras que, antes vazias, ganham
significado no solo árido da caatinga. Histórias; as únicas coisas que crescem
bem nesse chão duro e rachado. Palavras ganham o ar, galopam com o vento e se
misturam com a poeira. Giram pelo céu azul quase branco e sobem até o sol
dolorido e parado feito um olho implacável.
Aqui no sertão, histórias ganham vida.
Essa que eu vou contar não se passou nessas bandas, de modo que só ouvi
falar. Pouco do sertão eu corri pra saber da lenda, mas sei que é uma história de
horror, e de contenda. É a história do coronel Jesuíno de Cândida; do bando de
Jeremias Fortunato Silveira, o Capeta-Caolho; e da besta-fera profana que eu
nunca vi e nem quero ver. Do Lobisomem de Terezinha de Moxotó, que lavou
aquela terra com sangue.
1

Tonho Matias ia dormir quando ouviu aquele ganido agudo que percorria o
ar e a pele feito um arrepio.
“Mai qui diabo?”, murmurou, e se houvesse vivalma perto dele naquele
cantinho da caatinga, teria sentido o cheiro de pinga escapando da sua boca
aberta; mas o uivo canino foi tão verdadeiro que a embriaguez leve desvaneceu
feito fumaça de cachimbo que o vento leva. Firmou os pés no chão e continuou
sentado na cadeirinha de palha na frente de seu casebre de dois meio-cômodos.
A noite que caminhava pra madrugada soprou um ventinho oportuno no meio da
camisa desabotoada, e todo seu corpo se enrijeceu quando olhou pro céu limpo e
sem estrelas.
A lua parecia um buraco branco no firmamento.
Tonho Matias ajeitou o chapéu redondo de couro em cima da careca
queimada de sol e segurou o ar no peito, como se fosse mergulhar. O sertão
deveria ser plena vida noturna à sua volta, com o cricri dos grilos embalando sua
sinfonia de duas notas, misturado com o sacudir do mato baixo e da poeira
girando. A palha do telhado farfalhava, e o burrinho espremido na baia perto do
poço fazia barulhos estranhos com a boca, soprando e tremendo os beiços, os
olhinhos escuros arregalados e tão atentos quanto os do seu dono. Matias
esperava ouvir mais coisas: o foi-foi-foi dos emenda-toco, o lamento funesto das
corujas, ou até mesmo o resfolegar dos guarás, se é que ainda tinha desses por
ali; não ouviu mais nada. E o nada tinha um poder muito maior na imaginação
do matuto do que o mais animalesco berro. No meio da noite, o silêncio é por
demais traiçoeiro.
Olhou pra lua cheia bonita, repleta de marcas e desenhos. Sua face
acidentada trazia histórias mil e encantos atemporais, uma espécie de sedução
incauta, por puro capricho. Pensou em como ela parecia grande, abrangente,
mesmo com uma imensidão de céu à sua volta. A danada reinava na noite.
Fez força pra se levantar da cadeira. Hora de ir pra cama. Quando a cabeça
começa a ouvir coisa, é melhor caçar descanso, botar o coco no travesseiro e…
O uivo ecoou, atravessando quilômetros de seca e silêncio, de solidão e
vazio. Tonho Matias travou de pé, as pernas formigando, enquanto escutava o
urro crescer, agigantando-se na noite, envolvendo a lua como um halo e
comendo todo e qualquer som que ousasse disputar com ele. Os grilos se
calaram como sob ordem divina, e o burrico, coitado, soltou um muxoxo e se
enfiou de ré mais ainda pra dentro da baia, sacudindo a estrutura de tábua que já
não era lá muito forte.
O aulido sacudiu Tonho Matias também, mesmo sendo ele homem sertanejo,
do couro duro e mão calejada. E assim que o ganido emudeceu, ele se apoiou na
parede e se benzeu três vezes. Torceu a cara numa munganga de pavor legítimo,
enquanto sentia sua janta pobre, farinha de mandioca e carne seca, se mexer
contra a sua vontade no baixo ventre.
“Meu Jesuis Cristinho…”, gemeu, e não reconheceria a própria voz se fosse
outro e se observasse. Os olhos correram em volta do casebre. O ar soprou
contra seu corpo de novo, mais forte, quase o empurrando, assoviando na noite
um eco do uivo maldito que tirara toda a sua coragem.
Ajeitou o chapéu no cocuruto de novo e deu um passo pra trás, na direção da
entrada da casa. O vento bateu a parte de cima da porta holandesa do casebre e o
matuto deu um pulo, o peito na disparada dum possante. Por uma fração de
segundos teve noção da solidão em que vivia, dos quilômetros que o separavam
de toda a civilização que conhecia, e de toda e qualquer ajuda. Percebeu que a
solidão não era só dura. Era injusta. E enlarguecia no perigo.
Ignorou o relincho compassado do burrinho, pegou a cadeira pelo encosto e
seguiu pra porta, crente de que, dentro de casa, aquilo ficaria para trás, aquele
som e aquele silêncio que o seguia, aquele medo e aquela presença. Ia passar.
Era a pinga. Era o sono e o cansaço. O isolamento. O padre já tinha lhe dito pra
procurar uma esposa, porque ficar sozinho era muito ruim, mas ele não lhe dera
ouvidos, e que mulher ia querer um matuto que só tinha um burro velho e mais
nada?
Pôs a mão na porta e ouviu algo. O som murmurinhou por detrás dele, se
insinuando, uma coisa seca, cadenciada, e sua mente caçou um similar dentro da
lógica enquanto o corpo de novo travava de receio.
O que a mente encontrou não o tranquilizou mais.
Unhas.
Raspando o cascalho do solo, um tec tec tec leve e sutil feito a pisada duma
suçuarana, e Tonho Matias imaginou a fera, aquele pelo bacento, as orelhas em
pé atenta, os olhos brilhando redondos no reflexo da lua. Visualizou também a
espingarda em pé no canto do quarto. Se o bicho cercava a casa, só precisava pôr
as mãos na arma e se sentiria mais tranquilo.
Arreganhou a porta num arranque e entrou, tacando a cadeira de qualquer
jeito lá dentro e fechando tudo no trinco. Os olhos correram para o canto do
aposento, onde, detrás da cama, a arma de um metro e meio esperava por ele.
Andou até a bicha e checou se estava carregada. Segurar a peça de aço e madeira
nas mãos expulsou um bocado de medo. Se precisasse, teria como se defender da
suçuarana, e de quebra ainda ganhava fama de valente em Terezinha de Moxotó.
Quem sabe daí não viesse uma moça decente deslumbrada com sua ousadia? O
casamento já não parecia impossível. Era só pegar o bicho, que nem devia ser
tão grande assim. Já tinha visto onça parda e gato-do-mato nas andanças pelo
Nordeste. Bastava um berro da carabina e…
Outra coisa berrou, e mesmo com o ouvido tapado de horror, ele soube o que
era. Empertigou-se, virando pra porta e andando de ré até as costas baterem no
fogão à lenha e lá parar. Ficou ali, inepto ouvindo um som líquido ser
entrecortado pelo urro de alguma besta sanguinária. Madeira se debatia, e o
burro soprou e relinchou três vezes antes de emitir um som que gelou a alma do
sertanejo. Puxou a espingarda pra perto do peito e esperou enquanto o que
parecia uma luta ou massacre se desenrolava tão perto da casa que as parede de
taipa tremiam.
O sacolejo se prolongou por um minuto que pareceu eterno ao matuto; o
coitado suava de pingar, e as mãos queriam tremer, mesmo que tentasse
controlar. Por fim a balbúrdia se extinguiu ao som do último pedaço de madeira
desabando. Algo bufou na noite e o silêncio retornou. Sem grilos, sem vento.
Nada.
O sertanejo sabia que tinha que ir lá fora, ver. Sabia. Não queria; não. Havia
uma montanha de razão detrás da inebriez, dos olhos turvados e cheios de
sonolência. No entanto, tinha que averiguar. Se não o fizesse, decerto dormir não
conseguiria.
Caminhou até a porta azul e botou a orelha na madeira. Prendeu a respiração,
a arma na mão esquerda, a palma da direita apoiada no trinco, o suor descendo
pelo pescoço, o saco se encolhendo pra dentro do corpo e a mente gritando não
não não, mas ele precisava.
Ficou assim e só escutou a própria pulsação correndo no ouvido.
O dedo deslizou no trinco. A porta se abriu.
Puxou a madeira de cima. O vento tinha cessado. Deslizou o trinco da
madeira de baixo. Ele estalou. As dobradiças gemeram como Matias queria
fazer. Deu um passo pra fora, depois outro, e encaixou a coronha da espingarda
no sovaco, o dedo indicador grosso procurando o gatilho.
A noite continuava iluminada e quieta. A lua quase o chamava. Vem, Tonho
Matias, vem… vem…
Saiu debaixo da sombra da varanda e olhou à esquerda.
A baia do burrico estava destruída.
A madeira desabara para todos os lados e se encaixara na queda, formando
um triângulo inatural. Poeira ainda se espalhava pelo ar devido ao rebolo.
Pedaços de tijolos da beira do poço se espalhavam ao redor, como se arrancados.
Tonho Matias encarou aquela desordem, transtornado, procurando sinal do
burrico, única coisa que tinha na vida além do casebre que não aguentava um
sopro, e se apressou a andar na direção da baia, ignorando a atmosfera que
aparentava se condensar à sua volta. Os grilos voltaram a cricrilar num uníssono
capitoso. Um bafo de ar girou ao redor dele, e a lua permitiu que nuvens
esparsas lhe ocultassem parte, como se tímida fosse. Chegou perto das ruínas de
sua construção rústica de madeira e arregalou os olhos em choque.
Mal percebeu o triste fim de seu animal e captou outra coisa nas sombras,
detrás da beira alta do poço; todo o sangue de sua face se foi.
Dois olhos o encaravam amarelos na noite.
O matuto gritou. Esqueceu que tinha uma arma nas mãos, mesmo sem saber
que ela era inútil. Jogou a espingarda no chão e correu pelos metros que o
separavam da casa. Atrás a coisa saltou, as patas largas batendo secas no solo, as
unhas arrancando torrões de terra quando ele desembestou detrás do homem
espavorido. O bicho rugia, a garganta úmida de sangue, os dentes manchados de
rubro, a fome gritando mais.
O vento bateu a porta da casa na cara do homem antes que ele entrasse, e
feito um diabo traiçoeiro, segurou o sertanejo do lado de fora.
Tonho Matias se virou ante o rugido do ser, e o som de seu pavor foi cortado
por cinco garras afiadas.
2

Foi o Zé Mindim que, na andança atrás de Tonho Matias, encontrou a


carnificina no raiar do sol.
Seu chinelo estralava na estradinha seca ladeada pelas touceiras de capim
amarelado e pelas pedras duras e quase brancas que rebatiam o astro-rei
acalorado. Um pé pisando, o outro arrastando. O rapaz mastigava um pedaço de
cana dura, seu desjejum, enquanto seguia para a residência do matuto, sem saber
que o homem encontrara destino ruim nas mãos dos absurdos do sertão.
Avistou a baia desmoronada e estranhou o silêncio em volta da choça. De
espírito excitável, Zé Mindim tirou o chapéu da cabeça e estreitou as vistas.
Então viu o chão desenhado, marcas escuras e linhas traçadas com força contra o
solo pedregoso. Viu as moscas pairando nos escombros, e sentiu o cheiro do que
o sol já começava a assar sob seu calor.
Correu, passando pelo poço, encontrando a arma do amigo largada no chão.
Seu peito deu um solavanco e o coitado já murmurou um lamento, porque sabia
que naqueles tempos e naquelas terras onde a lei não alcançava, encontrar a arma
de um homem ao chão quase sempre significava encontrar seu corpo do lado
dela.
Mas Zé Mindim teve que dar mais alguns passos até ver o que sobrara do
Tonho Matias. E antes de correr num passo coxo de volta pra Terezinha de
Moxotó e na trilha da fazenda do coronel, ele engoliu um grito e regurgitou o
caldo da cana de dentro do bucho. O líquido queimou sua garganta como aquela
imagem tórrida feriu sua vista e sua memória.

“Pelamor de Deus, chama coronel Jesuíno! Meu Jesus da Glória!”


O matuto chegou berrando na porta da Casa Grande na fazenda dos Cândida,
e os jagunços na porteira só não derrubaram o coitado porque o conheciam e
sabiam que perigo era algo que não oferecia. Mesmo assim se alarmaram com a
gritaria do homem, e o repreenderam quando, mesmo já na porta da casa do
ilustre coronel, ele ficou esperneando e pedindo pra o chamarem logo.
“Pare de amolação, Zé Mindim! Se controle, cabra besta!”, disse Chico, um
dos jagunços, enquanto o outro entrava na Casa Grande. O manquitola ficou
saltitando perto das escadas, e a impressão que dava era que precisava dar uma
mijada: as pernas se dobravam a todo instante. Soltava gemidos e berrava de
novo por urgência, pelo coronel e por Deus e Padre Cícero, a tal ponto que Chico
quase lhe deu um piparote.
As botas do coronel estalaram no taco da varanda, e Zé Mindim, sossegando
o facho, tirou o chapéu de couro diante da autoridade que, se não tinha o respeito
de todo mundo por direito, menos tinha por medo, como logo ficará claro.
“Que alarido dos infernos é esse?”, perguntou o homem de branco e bota,
coronel e prefeito por consequência.
O jagunço se afastou e Zé Mindim, talvez o único ser daquela cidade que
tinha admiração legítima pelo homem, deu um passo adiante. Puxou o ar com as
ventas ressecadas e soltou, sem aviso:
“O lobisome, coroné! O bicho atacou de novo! Matou o coitado do Tonho
Matias!”
O coronel olhou de cima a baixo pro caboclo que chamava Zé Mindim e viu
nos olhos do rapaz algo que não queria, pelo menos não depois de uma frase
como aquela.
Sinceridade.
“Mas de onde tu tirasse isso, homem de Deus?!”, esbravejou, colocando logo
um sorriso nos lábios, como se quisesse aliviar não só o peso da notícia, mas
parte da frase do matuto que agravava a situação um bocado.
O bicho atacou de novo.
Como resultado, o jagunço Chico, que tinha discretamente agarrado o
crucifixo que levava no peito com a mão esquerda, soltou uma risada e relaxou a
face, mesmo que uma nuvem traiçoeira tenha dominado suas vistas. Zé Mindim
mostrou os dentes podres, num sorriso forçado que demarcou as rugas precoces
que o sol lhe dera. A gravidade da frase, no entanto, pairou no ar feito mau
agouro, e o coronel sentiu o incômodo do silêncio crescer à sua volta.
“E então? De onde tu tirasse isso?”, perguntou de novo o poderoso, as mãos
na cintura, o paletó alvo aberto mostrando a camisa de linho endireitada e os
pelos do peito que saltavam pra fora dos botões abertos.
“É verdade, sinhô coroné…”, disse o Zé, quase chorando a frase. Relutou
um pouco, engolindo em seco, brigando com as palavras na cabeça. “Eu fui atrás
de Tonho Matias como faço todo dia pra ir com ele na casa de Roberto Moraes
ordenhar as vaca, e o coitado… meu Jesus Cristinho…”
O rapaz deu uma cambaleada, o que surpreendeu os outros dois. A cor fugiu
das faces do sertanejo, e Jesuíno deu um passo adiante, quase o amparando. Zé
Mindim pôs as mãos na cerca da varanda e respirou fundo. O rosto estava cheio
de suor, mas ele parecia tremer de frio.
“Ele tava… Deus do céu… aquilo só pode ser coisa… do…”
O coronel o cortou, colocando o chapéu na cabeça.
“Vamos lá. Quero ver com meus próprios olhos.”
3

Jesuíno de Cândida ouviu o zumbido das moscas a trezentos metros da casa


de Tonho Matias.
A duzentos metros ele tirou o lenço do bolso do paletó imaculado e botou em
cima das ventas, porque a podridão era forte, e o calor do sertão amplificava
tudo, do odor aos sentidos. Zé Mindim cobriu a boca com a mão, e agradeceu
aos céus o estômago vazio daquela manhã. O jagunço Chico tirou o crucifixo do
pescoço e o envolveu na mão direita, como se aquilo fosse o proteger de todo o
mal amém, mas o que mais fez mesmo foi o encher de medo e da incômoda
noção de fragilidade do corpo humano, ainda mais quando a carroça passou na
frente da casa do matuto massacrado e os pedaços do homem estavam
espalhados pela terra feito bagaço no rastro de quem chupa uma laranja. Na
porta holandesa que o vento deixou para trás, seu sangue desenhava padrões que
o olho humano procurava sentido e só via um: desventura.
O jagunço fez menção de parar a charrete, mas o coronel, que tinha lágrimas
nos olhos não por luto, mas pelo fedor podre que o ar carregava naquele ponto,
mandou que seguisse em frente e fosse à cidade. Decidiu pensar naquilo tudo
depois de um gole de pinga; e depois que o odor e a nojeira não passassem de
uma lembrança ruim.

Na volta, o jagunço parou a charrete na frente do boteco do Seu Nonoco, sem


que Jesuíno tivesse dito uma palavra. Não precisava. Os olhos do patrão
imploravam por uma dose, e Deus do céu, os dele também.
Os três encararam seus copos por pouco tempo antes de mandá-los pra
dentro, Zé Mindim se arrependendo logo ao lembrar da barriga vazia. Não
importava, e tão pouco adiantava, já que nem mesmo o destilado amarelo serviu
pra empurrar aquelas memórias pra longe.
À noite a lua se exibiu no céu, alumiada mas não plena, não em sua
totalidade como na anterior. Mesmo assim, todas as portas fecharam mais cedo.
As crianças foram pra dentro quando as mães mandaram. O boteco de Nonoco
trancou-se com o crepúsculo. Venda e padaria baixaram as portas dentro do
horário normal, mas por detrás da tranca os donos botaram uns troncos de
madeira da largura dum homem, e se esconderam nos fundos. O próprio padre
passou uma corrente reforçada por dentro da entrada da igreja, e só pegou no
sono naquela madrugada depois da terceira dose do sangue de Cristo… Até
mesmo o coronel, que via ao longe as luzes da cidade se apagando, como se, ao
se esconder no escuro, o povo pudesse se proteger do mal que a cercava, foi se
deitar aperreado, só encontrando sossego quando a carabina se deitou com ele.
O corpo celeste que clarejava aquele horário percorreu o firmamento,
grandioso, e o silêncio só não foi total porque Neco, um bêbado que você ainda
vai conhecer, sem acertar o caminho de casa, ou só Deus sabe se enlouquecido
ou sem noção do perigo, passou horas a cantar sob a luz amarelada daquela
gigante, berrando para ela, chorando feito uma criança e uivando feito um lobo.
Naquela noite ninguém morreu a não ser de medo.
4

O que sobrou do Tonho Matias foi parar num canto atrás da igreja, o
cemitério modesto que nos últimos meses parecia agitado além da conta. Mesmo
numa vila mixuruca como aquela, três corpos em três meses não deveriam se
fazer sentir, não no sertão de peste, seca e fome. Não. O que tornava a coisa
incômoda na verdade, pro cu de mundo que chamavam de cidade de Terezinha
de Moxotó, era a natureza daquelas mortes.
A cidade era na verdade uma rua cheia de casas velhas, uma praça suja pra
não dizer que não tinha nada e uma igreja no fundo, apontando pro céu e
pedindo socorro. Povo sofrido, descendente dos escravos que fugiram das
fazendas de cana lá pra baixo, pros lados da Bahia, e subiram na margem do
Velho Chico, subindo e subindo procurando o mar mas só encontrando secura
onde passava. Subiram tanto que caíram na afluência do Moxotó, e contra a
corrente se instalaram nas proximidades daquele riacho calmo e farto de peixe
nos tempos bons. Nos tempos ruins, o chão rachava que nem bico de teta de
velha centenária e a água sumia, como se o lugar reclamasse as últimas gotas pra
si, com mais sede que o povo. Não tinha nuvem no céu nem pra fazer sombra.
Os juazeiros secavam e ficavam lá, com os galhos erguidos, rezando. As palmas
apontavam pra cima, e vez ou outra brotava umas pétalas brancas no mandacaru
espichado. Era quando o povo podia ter esperança de ver a água despencando do
céu e se esgueirando naquelas fissuras que cabia um dedo, trazendo um pouco de
vida praquele lugar.
O chão não via água há pelo menos sete meses e meio.
O povoado de sertanejo resignado se manteve naquelas bandas e cresceu
pouco, mas o bastante pra ganhar um nome e um mandante, porque um lugar
assim quando se enche de gente, o governo sabe que tem que controlar pra não
sair surpresa. Foi aí que emanciparam Terezinha do Moxotó, quando os Cândida,
reclamando aquelas terras, aceitaram o acordo de governarem a região pelas leis
que a república permitia. Pro povo não mudou muita coisa. Continuaram
miseráveis, e com o passar do tempo, o costume trouxe conformação.
Terezinha de Moxotó nasceu e cresceu debaixo do chicote e da rédea curta da
família Cândida, pessoal que enchia a boca pra dizer que tinha sangue holandês.
Era tudo galego, verdade, daqueles que mira azul com os olhos e é branquelo
que nem um sol de meio-dia, mas o nome era brasileiro mesmo. Jesuíno de
Cândida era o sexto ou sétimo de uma linhagem que só não era real por falta de
registro. E perto da caboclada do sertão, se sentiam de fato donos da coisa toda,
comandantes, reis. Coronéis como só se acha no sertão desse país, de couro seco,
pouca palavra e ruindade sem fim. Do tipo de homem que tira sustento dessa
terra morta não sem mérito, como se a natureza obedecesse suas ordens. A
fazenda dos Cândida, grande, bonita e saudável, parecia um oásis no meio da
secura que a cercava. Tinha gado gordo, boa cana e macaxeira, mas também
tinha sofrimento, suor e ódio. Gente desse tipo geralmente não sabe domar os
outros com o mesmo respeito que doma a terra.
Mas como todo lugar que o sertanejo se assenta e se bota pra viver, existia o
trabalho duro, existia o sonhar; existia o suor que trazia fruto, mesmo que
demorasse pra brotar. Existia o honesto e o aproveitador, o matuto e o malandro,
o santo e o pecador. Existia encanto e superstição. E a vida se formou, quase
feito um desafio ao lugar.
Às vezes as circunstâncias não parecem boas, mas o destino dá um jeito.
Terezinha de Moxotó se conformou com uma rua, uma praça e uma igreja. E
anos se passaram sob o cabresto dos Cândida, até o dia em que o menino bom,
mas sem talento, herdou o comando de seu pai. Jesuíno de Cândida virou
coronel, o povo comemorou sua eleição-contra-quem-mesmo?, e a cidadela veria
tempos diferentes.
Não melhores. Não, o melhor não tem vez no sertão. Ou a coisa é ruim, ou é
ruim pra danar. A vida pra crescer ali fez concessões. E uma hora a natureza
cobra o preço.

Jesuíno de Cândida, aquele que não tinha talento pra coronel, foi um dos
últimos a chegar no funeral dos restos de Tonho Matias.
Cada par de olho que via e rolava naquele vilarejo se virou pro homem que
ultrapassava a contragosto os portais da capelinha, como se ele fosse um imã e
os olhos todos ferro. Avançou pelo corredor, os saltos das botas estalando, na
direção da caixa fechada sob o altar. Tirou o chapéu alvo e se forçou a acenar um
pouco, mas teve um tico de retorno, o que fez a caminhada parecer uma trilha
longa e lamacenta, na qual os passos de pouco adiantavam. Parou diante do
ataúde do morto, aceitando aqueles olhares, aceitando o julgamento pela
displicência, pela preocupação tardia. Olhou de volta, para cada um, tentando
mostrar que entendia e aceitava. Só não queria ver os olhos do velho Neco, que
perdera a filha para a besta, ou de Dona Déda, chorando debaixo do xale preto
que cobria a sua cabeça desde que o marido morrera estripado no mato, vítima,
meses antes, da mesma fera horrenda que assombrava aquelas bandas. Toda vez
que via o rosto úmido de Dona Déda, se lembrava de como o corpo de Candinho
foi encontrado. Dos restos do homem espalhados numa clareira, ali, nas
redondezas da vila, perto da margem seca do Moxotó. As partes mais inteiras
eram suas mãos, que ainda tinham todos os dedos, mas do resto era impossível
afirmar que aquela desordem de carne, ossos e sangue foi um homem algum dia.
A esposa só o reconheceu (e Jesuíno ainda podia ouvir o gemido da idosa
quando viu o que sobrara do marido) por causa de uma pinta que o homem tinha
no rosto, na metade que a besta-fera poupara.
Não havia muito do homem porque decerto a coisa tinha comido grande
parte.
E foi justo Dona Déda quem Jesuíno viu ao se virar, a cabeça baixa, a coluna
feito um anzol, o manto preto em cima das madeixas brancas, terço pendurado
entre os dedos enrugados, tremendo em suas mãos como sua vida, mas não como
sua fé. Ela levantou o olhar e ele viu a dor e o peso de toda aquela perda e de sua
impotência. Sentiu a imagem que a mulher deveria fazer de si: o jovem e
inexperiente herdeiro de um homem do qual jamais chegaria aos pés, mesmo que
quisesse. E apostaria o dedo polegar que era como todo o povo o enxergava ali.
Pro povo de Terezinha de Moxotó, coronel Jesuíno era diferente.
Se tornou prefeito daquele povo miserável dois anos antes. Era uma época do
Brasil em que a política só funcionava na beirada da lei nos eixos da capital…
no sertão, não. No sertão a coisa ainda não tinha saído do papel. Pra muita gente,
se curvar pra Portugal ainda devia ser costume, mesmo que ali só se curvasse
pros Cândida… o que era de se esperar de um canto de terra esquecido no meio
de Pernambuco, lugar mirrado e cheio de sofrimento onde o homem plantava
tristeza, regava com lágrimas e colhia desespero. Terezinha de Moxotó era um
buraco, daqueles bem fundos, onde a luz não bate. Nesses lugares, manda quem
pode, obedece quem aprendeu que desobediência mata.
Coronel Jesuíno era sujeito de agir distinto. Enquanto seu pai, e o pai do pai,
e o pai do pai do pai, eram de índole raivosa, daquelas que arreganha as ventas,
crispa a testa e avermelha a fuça, e que construíram seu império pisando em
sangue escravo e explorando sertanejo, Jesuíno era pálido e mirrado, não se
irritava nem com mosca zanzando na orelha; quando menino já se mostrava de
caráter ímpar. Estudioso, garoto de gestos lentos e às vezes até efeminados,
sofria na mão de pai e mãe, dois coisa-ruim que parece que só sabiam tratar do
jeito que foram tratados; e pelo que dizia a língua do povo, talvez isso tenha
virado o menino do avesso e expurgado dele o que tinha de pior nos Cândida. Os
mais vis diziam que ele era filho de outro homem, mas ninguém tinha coragem
de falar “Maria Justina de Cândida” e “amante” na mesma frase, então o boato
corria só assim, à boca pequena, quase minúscula. E quando o filho único
cresceu, junto de um coronel Juvêncio de Cândida que envelhecia rápido que
nem um cachorro, todos entenderam que aquele rapaz delicado era herdeiro do
poder mor da cidade.
Incapaz de ignorar a avaliação, Jesuíno encarou cada rosto cansado dentro
daquela igreja. Senhorinhas magricelas de lenço na cabeça, sertanejos de rostos
queimados do sol e pele tão esticada que parecia borracha, mulheres de cabelos
presos e homens de barba cerrada, rostos contritos e olhos amuados, gestos
morosos, limitados pelo cansaço, pela fome e pela miséria. Um povo que
divagava e se lamentava em reticência. Que pensava na fazenda grande do
coronel, na água do açude que se encontrava nos limites de seu domínio, no
verde dos cajueiros e mangabeiras, na saúde dos bichos que tinham mais comida
que eles. Que tencionava o pior na espera do melhor.
Logo as memórias dos últimos três meses retornariam com furor, trazendo o
horror das noites de lua e da insegurança das madrugadas iluminadas. Ele via,
nos olhos que miravam os seus, o medo se avolumando, se mesclando e
grudando na cabeça feito piolho. Um medo sem nome e sem face. Um medo que
só via a lua no céu e aguardava a desgraça. Pelo próximo mês.

Zé Mindim chegou na igrejinha a tempo de ver o coronel parado e olhando


pro povo, até desistir e se sentar no último banco. Inepto como era, mal percebeu
a carga negativa dentro da casa de Deus.
Além do mais, só pensava na conversa do dia anterior com o patrão, Dr.
Roberto Moraes, e a intenção cinzenta por trás das palavras dele.
Chegara alto na casa do doutor, depois de levar o coronel para ver o estrago
na casa do Tonho. O homem o esperava debaixo do pé de seriguela, e pretendia
repreendê-lo pelo atraso. Mudou de ideia ao ver os olhos do matuto. Zé contou
tudo ao homem, que ficou olhando para o horizonte por vários minutos. Falou
sobre o estado do Tonho, sobre sua noção de que fera nenhuma do sertão faria
aquilo com um homem, ao menos fera que matasse pra comer. “A coisa que
matou o Tonho matou pra judiá”, dissera.
Ficaram fumando. O matuto se desculpou pelo atraso.
“Sinto muito que tenha visto um amigo desse jeito… eu sei como é perder
alguém por quem a gente tem apego”, dissera Roberto Moraes. Depois, Zé
Mindim deixou o patrão ciente da preocupação do coronel quanto à terceira
morte.
Enquanto procurava um assento na igreja, se lembrou do olhar vago de
Roberto Moraes, o jeito que torceu os beiços e mexeu na barba marrom que
tocava o peito, a aliança dourada e desnecessária no anelar esquerdo refletindo o
sol. Pensava em algo, e o Zé não foi capaz de saber até que seu patrão lhe
perguntasse qual atitude o coronel tomaria. O sertanejo fora honesto:
“Não sei, Seu Moraes. O bichim ficou chocado por demais. Coitado do
homem… o sinhô sabe como ele é… meio afrescalhado…”
Roberto Moraes fizera um ronco com a garganta, sem encarar o matuto, mas
fora o bastante pra Zé Mindim, que mudou o tom.
“Então… ele viu os restos do coitado do Matias e ficou chocado também. E
o sinhô sabe… ele também tava quando acharam os outros. Candinho de Déda e
a filha do Neco. Então acho que pra ele foi um jeito ruim de relembrar aquilo
tudo…”
O sertanejo encarara Roberto Moraes, procurando os olhos esverdeados
detrás do chapéu de palha, mas o homem olhava para o longe, a fumaça
revoando em torno de sua cabeça. O patrão era homem inteligente, e decerto
poderia pensar em alguma coisa sobre aquilo tudo. Mas tudo o que recebera de
volta foi silêncio. Era típico dele. A voz rouca saía pouco da boca. Gostava do
mistério.
“Agora a cidade todinha tá no alvoroço, porque se fosse só Candinho e Joana
e depois parasse, tudo bem. Mas Tonho é o terceiro e quem não garante que na
próxima lua cheia não tenha outro? Hein? Eu hein! Deus me livre e guarde!”
“O coronel não deve saber o que fazer”, dissera o homem, quebrando com a
voz os gestos desnecessários que o Zé fazia com as mãos na frente da cara. “É
rapaz novo, Zé… e ainda não tá preparado pros tabefe que a vida dá.”
Zé Mindim podia sentir a aspereza daquela voz mesmo ali, no dia seguinte,
com o Cristo crucificado pairando sobre o altar, olhando pra ele com duas bolas
marrons pintadas no gesso. O doutor apertara os olhos, como se pudesse ver
além da risca do horizonte. Mesmo na leve embriaguez do momento, o matuto
gravara aquele tom e aquela olhadura.
Então o homem se levantara, deixando a cadeira balançando sozinha. Entrara
em casa, enquanto Mindim esperava, sem entender. Quando voltou, trazia nas
mãos o que parecia um tubo de madeira. Zé Mindim enxergava tudo meio torto
naquela hora, e quando Roberto Moraes esticou o tubo, ele estranhou. A timidez
o impedira de perguntar o que aquilo era. O médico leu a questão nos olhos do
homem. “Isso é uma luneta, Zé. Pra ver ao longe.”
O matuto ainda estava abestalhado, mesmo um dia depois, com o tubo
esticado e que afunilava perto do olho do patrão. A simplicidade dava lugar à
vergonha ali na capela, mesmo que só revivesse a história em sua cabeça miúda.
Ele olhara para onde Roberto Moraes mirava com a luneta, além do pé de
seriguela, da cerca do terreno e do mato rasteiro. Além da campina ressecada e
das pedras grandes que esperavam, imóveis e roliças, como que deixadas ali por
um gigante entediado. Forçara os olhos, tampando uma parcela da luz do sol
quente com a mão, mas não vira nada a não ser o céu se distorcendo com o calor
e o álcool.
No entanto, o que o atiçara, o que reavivava as memórias e que o fazia bater
o pé num ritmo chato dentro da igreja, a ponto de duas ou três beatas olharem
feio para ele, foi o que Roberto Moraes lhe mostrara e falara, uma ideia que se
retorcia em seu bucho e que ele não seguraria por muito tempo, não quando
houvesse a oportunidade.
“Pode ser que o coronel acabe precisando de ajuda… mas o povo daqui vai
ajudar como?”, dissera o patrão, ainda usando a luneta. O matuto o olhara, sem
resposta, ainda que o doutor não esperasse réplica. “Mas se ele tiver disposto…
pode ser que a ajuda esteja ali, logo ali…”.
Ele apontara para o horizonte e estendera a luneta a Zé Mindim, que
contrariando o receio infantil de ter contato com tamanha tecnologia, a pegara e
imitara o patrão, colocando a circunferência menor do objeto tão perto do olho
que até ardia. A vista prejudicada pelo álcool o atrapalhara por um momento, e
foi como enxergar por dentro d’água por alguns segundos… mas logo em
seguida ele viu…
“Não é uma ajuda que eu gostaria de ter, mas sabe como é… às vezes a única
ajuda que tem é a que a gente tem que aceitar.”
Zé Mindim balançara em afirmativa, enquanto observava ao longe o homem
agachado de camisa azul, lenço vermelho no pescoço e chapéu meia-lua sobre a
cabeça.
Desde então, aquela ideia comia as tripas de Zé Mindim com voracidade:
recorreria aquele povo de Deus, no fim das contas, ao diabo para pôr fim ao
desespero?
Ao se acomodar no banco, o coronel notou Neco ao seu lado, mirando-o com
olhos tortos e perguntas irrespondíveis.
Comparado ao estado rotineiro do homem após a morte da filha, Neco estava
bem, arrumado e perfumado para a ocasião, já que o ambiente da igreja exigia,
no mínimo, que o sujeito não estivesse embriagado. Pelas mãos trêmulas,
Jesuíno sabia que o destino do homem ao fim do funeral seria o boteco, onde ele
beberia até se entortar e dormir sobre a mesa. Era assim desde que Joana, sua
filha, se tornara a segunda vítima do famigerado lobisomem.
Só de lembrar do jeito que encontrara a garota, uma galega de olhos
brilhantes e sorriso arreganhado como se tivesse algo de bom naquele sertão pra
causar alegria, Jesuíno se arrepiava e fazia careta, as pestanas se abraçando,
ainda que aquilo não expulsasse a imagem.
Para sua sorte, ou pra aumentar sua agonia, Neco nada lhe disse, e Jesuíno se
sentiu cada vez menor e inválido naquele banco de igreja. A casa de Deus
crescia à sua volta, ou era sua pequenez que se evidenciava quando olhava pras
próprias mãos e via o sangue que não pudera evitar de ser derramado?
Encarou as linhas rubras que desciam dos furos pretos na testa da estátua do
filho Dele e pensou nas marcas na porta da casa de Tonho Matias.
Os pensamentos foram-se embora um pouco, e ele agradeceu quando o
mirrado Padre Miguel andou até o altar e iniciou o ritual de despedida do matuto
que a besta despedaçara.

O homem de Deus reparou que tinha mais gente que o normal na igrejinha.
Olhando para cada cantinho da capelinha, cada metro disputado por alguém
amedrontado, ele fez o sermão sagrado, leu o Salmo 91 pra tranquilizar o povo,
evitando falar de ovelhas (não naquela semana), e se apercebeu, aborrecido, que
de pouco servira. O pavor ainda brilhava como uma chama de vela atrás de cada
olhar, dentro de cada par de mãos unidas, no fundo de cada coração. E quando
padre Miguel benzeu a alma do sertanejo, já que de seu corpo pouco havia pra
fazer conta, ele viu que em cada face e cada olhar havia uma mistura intensa de
sentimentos, sendo a confusão talvez o mais forte deles, porque se juntava com a
impotência e o medo e criava, dentro de cada cabeça, um monstro maior do que
aquele que matara um homem um dia antes.
Ao fim da cerimônia, o povo se levantou e carregou o caixão pro canto que
lhe cabia naquela terra seca, depois de tudo o que fizera sabendo que de nada
adiantaria; depois que desvendara o mistério da vida que era a morte e não
pudera dizer com o que se parecia; que todo mundo esperava, mas ninguém
queria ver antes do outro. E quando o esquife se cobriu de terra para sempre, o
povo, em vez de seguir seu caminho cada um para sua casa, voltou pra igrejinha,
como se houvesse uma segurança diferente ali, o sagrado que podia manter
longe aquele horror, pelo menos por um tempo, se tivesse piedade daqueles
desamparados.
Os olhos do padre encontraram os do coronel, e sem uma palavra lhe
revelaram as intenções de toda a cidade.
5

Os dois cruzaram a porta da igrejinha emoldurados pelo sol amarelo do fim


da tarde. O padre, coçando os cabelos cor de prata e as bochechas murchas
cheias de tocos de barba, andou até o altar onde minutos antes jazia um cadáver.
Juntou as palmas das mãos, de costas para todos, e encarou a cruz de madeira no
alto, donde um messias tristonho lhe devolvia o sofrimento. O interior da igreja
ganhava tons escuros, o que dava ao lugar apertado e modesto uma aura
amedrontadora.
Quando se virou, sabia o que falar.
“Os homens devem se curvar ao desígnio de Deus. E nada que aconteça
nessa terra acontece sem Seu conhecimento e Sua vontade.”
O povo concordou de leve. O coronel respirou fundo, tentando ignorar a fala
do homem de batina. Era fácil aceitar o desígnio de Deus quando você não era o
homem estripado no chão. Mas também desejou ter a mesma desenvoltura que o
sacerdote. Até aquele instante, na iminência de uma assembleia, ele não sabia o
que dizer.
Meu pai saberia, pensava, mas o povo não estava ali pra ter pena dele.
“E bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão
fartos”, finalizou o padre, e se na primeira frase já não teve a recepção que
desejava, na segunda sentiu que as pessoas não queriam conforto. Não mais.
“Bom…”, começou o coronel, sem saber bem como se dirigir às pessoas, e
todos os rostos se viraram para ele. Deveria dizer meu povo, ou soaria demagogo
demais?
Meu pai saberia.
“Coronel Jesuíno tá aqui, como vocês bem me pediram,”, emendou o padre,
tentando ajudar, “pra falar com vocês todos, meus irmãos e irmãs… sobre o
assunto que vem perturbando nossas noites de sono. Sobre a coisa… que matou
Tonho Matias ontem.”
As vozes se uniram num crescendo modesto. O coronel quase se curvou ante
a urgência daquele som, ante a sensação de desgaste.
“A gente precisa de saber, coroné”, começou Eriberto, rapaz vaqueiro que
vivia sozinho, feito o morto, “que é que o sinhô vai fazer pela cidade qui o sinhô
diz que governa.”
A frase saiu ácida e tocou Jesuíno como um dedo que escorrega
inconveniente pra um buraco indesejado.
Jesuíno ergueu as mãos: “Eu fiz o possível e o impossível, ontem e hoje, pra
que a situação tivesse uma solução… dentro da lei. Eu entrei em contato com o
delegado de polícia na capital…”
As vozes se elevaram de novo, um misto de incredulidade e esperança. O
coronel gesticulou de novo.
“Calma, calma, por favor, me deixem falar… eu tentei, vejam bem, tentei
explicar os acontecidos pro delegado, mas…” Sua voz sumiu. Os braços caíram
ao lado do corpo e ele balançou a cabeça. Olhou para o padre Miguel, com o
rosto desolado.
“O sinhô vai dizê, coroné…”, ouviu-se uma voz, e a multidão se calou
quando o dono dela, Neco, se revelou. “que a puliça não acreditô que tinha um
lubisome aqui, né isso?”
“Sim”, respondeu, e vários dos presentes baixaram a cabeça, abatidos, o dia
ainda mais estragado com aquela notícia. “O delegado foi claro e disse que não
acreditava em lendas, e que não ia destacar seus soldados para chegarem aqui e
matarem uma onça ou suçuarana que qualquer um de nós poderia matar…”
“Mas não é uma suçuarana, seu coroné! É um lubisome! Vossa senhoria sabe
que é!”, disse um senhor careca e com os lábios quase inteiros repuxados para
dentro da boca. Os poucos dentes inferiores que sobravam lembravam um muro
em ruínas.
“Seu Luíz, eu não sei se é certo…”, começou o coronel, caminhando para
perto do padre, mas foi cortado:
“Claro que é um lubisome, seu coroné! Bigode fi de Noronha viu ele antes
de ele atacá a fia de Neco!”, disse Gumercindo, o sobrinho de Nonoco, um
mulato magro e curvado, de cabelos escuros e ralos presos na cabeça com uma
mistura de sebo e saliva.
“Bil também viu!”, disse uma mulher com a cabeça coberta por um pano de
renda amarelado. “O coitado mal dormiu naquele dia, bichim… parecia que
tinha visto o satanás!”
Ante a pronúncia do nome, a própria mulher se empertigou e fez o sinal da
cruz, arrependida. Metade da assembleia repetiu o gesto. Padre Miguel fez uma
careta, como se tivesse levado um tapa nas fuças.
“Essa coisa não é de outra procedência não…”, alguém murmurou, e o
burburinho voltou, como uma onda, deixando Jesuíno desnorteado. Fez menção
de voltar a falar, mas notou que ninguém olhava para ele. Ninguém o notava ali,
tentando tomar o controle da ocorrência, tentando resolver a pendenga, mesmo
sem querer. O padre gesticulava.
“Meus irmãos, fiquem calmos, estamos aqui pra encontrar uma solução, mas
não vamos chegar a lugar nenhum sem paciência e sem conversar…”
“O coronel podia botar os jagunços dele pra caçar a besta-fera!”
O dono da voz não se revelou, mas a frase foi ovacionada pela assembleia
em um uníssono de concordância.
“É, devia sim! Eles não são cabra arretado?”
“Eu não posso pedir que eles se arrisquem!”, disse Jesuíno, meio sem pensar,
o rosto começando a esquentar. “Francisco e Caniço tem família! E se eles
morrerem na caçada?”
“Pois não já morreu Candinho e Tonho Matias? E Joana de Neco? Por que só
dos nossos que tem que morrer? Por que o coroné também não pode enfrentar a
besta-fera?”, disse Eriberto.
“Por que vocês não a enfrentam, diabos? Por acaso são covardes?”
O padre fez outra careta ao ouvir as palavras saindo da boca de Jesuíno. Ele
se sabotava sem perceber. O controle da situação se perdera em segundos,
mesmo Miguel tendo o ajudado. Os homens protestaram, os rostos vermelhos e
cheios de cólera e vergonha, já que a sugestão do coronel tocava num ponto
delicado. Cada vez ficava mais claro que, se fosse ruim como o pai, decerto o
respeitariam.
Padre Miguel entendia, com tristeza, que o povo duro dali só aprendia as
coisas na base da chicotada.
“Meus irmãos, não podemos nos exaltar!”
“Eu tô tentando conversar com vocês, matutos! Mas parece que não
entendem! Tô tentando resolver essa complicação, a pedido de vocês, mas é
vocês que não querem me ajudar!”, esbravejou o coronel. Pessoas se levantaram
nas banquetas, gesticulando de maneira agressiva em sua direção, os chapéus
torcidos nas mãos, os sovacos cheios de suor, os olhos repletos de fúria.
Algumas mulheres estavam à beira das lágrimas. O padre fechou os olhos, tenso.
Sentiu as mãos tremerem e se apoiou no altar. Abriu os olhos e encontrou a
expressão desafortunada do Cristo crucificado.
Meu Senhor, uma ajudinha aqui não seria de todo mal…
“Vocês não podem pedir que eu me arrisque atrás dessa coisa sem fazerem o
mesmo!”, gritou o poderoso, sem a menor noção do quanto estar em menor
número ali lhe era perigoso.
“O sinhô se diz prefeito e representante desse povo, mas num faz um ai pra
ajudar a população!”, devolveu um homem de bigode cheio e olhos injetados.
“Ora, seu…”
“Mas por que então a gente num chama os cangaceiro?”
O vozerio, antes uma força incontrolável, desapareceu quando a frase tímida
ecoou pelo interior da capelinha. Todos se calaram, e os que encaravam o
coronel ou discutiam entre si se viraram na direção da vozinha ousada e murcha
que tivera aquela coragem.
Zé Mindim olhou de volta para a assembleia, sentindo as bochechas corarem.

“Como é que é?”, esbravejou o padre, encarando o matuto coxo no fundo da


igrejinha.
Zé Mindim nunca tinha sentido tantos olhares sobre ele ao mesmo tempo,
nem com aquela intensidade. A boca enroscou, e ele não soube falar. Engoliu
seco, o gogó subindo e descendo feito um ser à parte. As orelhas queimavam.
Temia que todos ouvissem o som de sua barriga se retorcendo. Respirou fundo e
se lembrou de sua conversa com Roberto Moraes. Do que ele lhe mostrara no
horizonte com a luneta… e a ideia que, falada em voz alta, parecia absurda e
perigosa demais.
“É isso, seu padre…”, murmurou o matuto. “Por que a gente num paga os
cangaceiro pra caçá o lubisome?”
“Mas tu tá abilolado da cabeça, Zé Mindim?”, perguntou o padre, agora o
único exaltado, se censurando em seguida com o olhar encabulado que deu para
os fiéis.
“Num tô não, padre…”, retorquiu, reunindo toda valentia que cabia naquele
metro e meio. “Mai olhe! Veja si eu num tenho razão!”
Deu um passo na direção do meio do corredor. O povoado o encarava. O
coronel colocou as mãos na cintura, inconformado. Que é que esse matuto tá
pensando nessa cabeça oca?
“O coroné num qué arriscá seus pistoleiro, certo? E o povo daqui também
num qué enfrentá o bicho, pelo jeito. Então eu pensei: chama os cangaceiro que
tão nas beirada aqui de Terezinha de Moxotó, que são uns fi dum cabrunco ruim
que só a moléstia, e tudo tá resolvido!”
A igrejinha engoliu as palavras de Zé Mindim com um silêncio digno dum
túmulo. Vários queixos se arriaram.
“De onde você tirou que tem cangaceiros aqui perto?”, perguntou Jesuíno,
dizendo as palavras devagar e sentindo o gosto azedo de cada uma.
“Eu vi, oxi! Com esses zói que Deus me deu! Lá pas banda do Morrim dos
Espinheiro. O caboco de chapéu de couro e espingarda no ombro, todo
impriquitado! Tão pixototinho lá no horizonte que eu só vi purque o patrão
pegou a luleta dele e mostrou! E ainda disse que aquele era do bando do Capeta-
Caolho e…”
Houve uma exclamação conjunta, meio grito meio gemido, como se o povo
tivesse ouvido uma maldição onde ela menos deveria ser dita. As mulheres
lançaram mão à boca e várias se meteram a se benzer no sinal santo da cruz
como se o próprio cão tivesse ali no meio, atiçando. Os homens apertaram os
chapéus nas mãos e arregalaram os olhos, tão amedrontados quanto as mulheres,
mas apenas disfarçando melhor. Zé Mindim olhou ao redor sem entender nada.
“Mai danou-se! Que que eu disse demais?”
“Tu não tem a menor noção do que diz, cabra!”, gritou o padre, saindo do
altar, o dedo esticado pra cima, o rosto encarnado de fúria. “O bando de Jeremias
Fortunato Silveira?! O bando do Cape…”
Cortou a fala, os olhos esbugalhados. Pôs a mão sobre o peito, e a assembleia
foi em sua direção para ampará-lo. O homem respirava pesado, como se
estivesse numa briga. Todos falavam num destrambelho, e nada se tirava de
proveitoso. Zé Mindim observava aquilo confuso, a mão apertando o
chapeuzinho redondo, as bochechas voltando a ferver.
“É um absurdo!”, a voz do padre soltava, vez ou outra, enquanto tentava se
recompor. “Absurdo!”
O povo esqueceu Zé Mindim. Ficaram em volta do padre, abanando sua cara,
que parecia ferver. O matuto começou a tremer. Se sentia culpado pelo piripaque
do homem de Deus.
O coronel chegou do seu lado e ele quase deu um pulo.
“Coroné! O sinhô…”
“Zé Mindim, eu quero saber se isso é verdade.”
“Mai é claro qui é, seu coroné! Juro pela minha mãezinha, que Deus a tenha
num bom lugá! Roberto Moraes me deu a luleta dele…”
“Luleta?”
“É, aquele nigucim di zoiá longe! Ele apontou pra mim e eu bizoiei lá no
cantinho e tinha um cangaceiro lá! E se tinha um, tinha doi, tinha trei, tinha um
bando! Num é assim qui eles anda?”
Jesuíno desviou o olhar do matuto. “É… é assim…”
Olhou para a assembleia, que tinha perdido sua função. Além desse bicho
cercando Terezinha de Moxotó, tem cangaceiro por perto… é desgraceira
demais pra um lugar só…
“Roberto Moraes me disse que se o sinhô e a cidade tratar com os
cangaceiro, podia ser qui eles aceitasse vir aqui matá o lobisome.”
“Tratar com os cangaceiros?”
“É… juntar um dinheiro e dá pra eles… o sinhô me dá licença de comentá,
mas tenho certeza qui dinheiro num deve ser pobrema pru sinhô… junta um
tantim du sinhô, um tantim di cada um daqui… e dá pros homi! Paga eles pra
matá o bicho!”
“Dinheiro?”
“Sim, oxi! Si nem os jagunços, nem a puliça, nem o povo aceita o serviço, só
sobrou os cangaceiro pra pedir. E se eles tão por perto assim…”
Jesuíno o olhou sério e aguardou.
“Pode ser que eles tejam querendo vim aqui pa robá…”, insinuou o matuto,
reproduzindo as palavras de seu patrão com a língua que ele chamava de
português, mas que era mais uma paródia.
Pagar para os cangaceiros… pensou coronel Jesuíno de Cândida, pra
impedir que eles venham roubar… é a coisa mais sem sentido que já ouvi…
“Pensa bem, coroné… os homi do cangaço tem bala pa dá e vendê, e são
cabra macho que só a gota serena!”
Jesuíno encarou o Cristo atrás do altar, a face lavada de sangue, os braços
abertos, quase caindo pra frente. Tentou pensar em todas as consequências de
uma decisão do tipo e não conseguiu.
Meu pai saberia o que fazer.
Não, Jesuíno. Ele só fazia.
“Povo de Terezinha de Moxotó!”, gritou, e todos se voltaram para o homem,
até aqueles que abanavam o padre, que suava feito tampa de caçarola. A frase
não fazia o tipo de Jesuíno. Dirigir-se àquelas pessoas como “povo” o fez se
sentir uma enganação, e todos pensaram igualzinho. “Diante da situação… acho
que todos vocês devem entender… que não temos muita escolha.”
As pessoas pareciam petrificadas.
“Eu acredito que, se temos alguma chance nessa coisa toda… e mesmo que
ela pareça a coisa mais absurda de todas… acho que vale sim a pena arriscar!
Então… eu decidi aqui e agora que vou pagar para que o bando de cangaceiros,
se é que Zé Mindim tem razão e é o bando do Capeta-Caolho…”, e nesse ponto
o coronel abriu a mão na direção do padre e balançou a cabeça. Mal acreditava
que as palavras saíam de sua boca com tanta facilidade então. “…que está nas
cercanias da cidade, expulse ou mate essa besta-fera que assola a cidade!”
Não se sabia se o coronel esperava uma comoção ou algumas palmas. Se
esperava, lascou-se, porque a igreja mergulhou naquele silêncio que indica
pavor. Cada homem e cada mulher ali dentro sabia bem o significado de se
envolver com cangaceiros. O risco que era trazê-los para dentro da cidade.
Acolhê-los. Que dirá pagar por seus serviços.
“Eu espero que vocês entendam… e me apoiem.”
“Coronel…”, gemeu o padre, já recuperado da cólera repentina, mas ainda
esgotado da falta de ar, “o senhor não faz ideia da criatura que é Jeremias
Fortunato Silveira. Malemá sabe pouco mais que seu nome e sua alcunha. Ele
não é o Capeta-Caolho por acaso, coronel…”
“Eu não vejo outra solução, padre Miguel. O que o senhor propõe no lugar
disso? Toda essa assembleia foi em busca de uma solução, e esse homem…”
Puxou Zé Mindim pelo ombro e o envolveu com um braço direito fraternal,
“Esse homem foi o único que trouxe uma solução. Arriscada, sim, mas uma
solução!”
“Coronel Jesuíno”, disse Neco, cujas mãos tremiam ainda mais, “Aquele
bando passou aqui nessa cidade quando o senhor era um bruguelinho, desse
tamanhinho… e eu não tenho boas lembranças da visita não. O senhor quer
mesmo trazer esses homi pra cá de novo?”
Jesuíno desviou os olhos daquele cuja vida acabara quando a besta-fera
dividiu sua filha em dois no poço atrás da igreja, sem entender por que o homem
não tinha desejo de vingança, e respirou fundo. Não sabia do passado, mas não
lhe importava. Pensava no agora, e agora tinha encontrado uma solução. Não
abriria mão dela tão cedo.
“Seu Neco, eu não quero pensar no passado. Mas se esses homens vieram
para cá e fizeram mal… acho que essa é uma boa oportunidade de se
redimirem.”
A assembleia não retorquiu ao último argumento do homem que sozinho
decidia os rumos de todos. Jesuíno girou o chapéu branco nas mãos, fez um
aceno e finalizou:
“A assembleia está encerrada. E foi decidido. Vou pagar pros cangaceiros, e
com fé em Deus eles vão acabar com essa coisa e nos deixar livres. Se isso não
acontecer… podem me cobrar depois.”
Girou nos calcanhares, abriu a porta da igreja e saiu, jogando a luz do pôr do
sol sobre os fiéis.

Zé Mindim saiu na cola do coronel, doido pra receber um elogio, coitado.


Jesuíno ouviu seus passos logo atrás e virou para o matuto, que já sorria de
orelha a orelha.
“Ótimo que o senhor já está aqui à minha disposição, seu Zé Mindim.”
“Mai com certeza, coroné! Sou seu criado.”
“Pois bem. Tenho um trabalho de suma importância para o senhor, se seu
patrão Roberto Moraes não se opor, é claro…”
“Mai patrão Roberto Moraes num vai se aperrear se souber que o que vou
fazê é pelo sinhô, coroné…”
“Ótimo, isso é ótimo. Pois bem. Eu quero que o senhor se vire na direção do
morrinho dos espinheiros e vá contatar os cangaceiros, em nome de coronel
Jesuíno de Cândida e da cidade de Terezinha de Moxotó.”
O matuto engoliu tão fundo que deu até um estalo.
“Mai coroné! Mai purque eu? Purque eu que tenho que ir falá com esses
homi, em nome de meu Jesus Cristinho?!”
Jesuíno pôs a mão no ombro do matuto manco que não batia nem na altura
do seu peito e disse:
“Porque o senhor, Zé Mindim, foi quem deu a ideia. Já ouviu aquela história
da assembleia dos ratos? Pois bem. Agora vai lá e pendura o guizo no pescoço
do gato.”
6

A cidade dormiu naquela noite num desassossego maior que o de antes.


Terezinha de Moxotó tinha um passado com cangaceiros que não era muito
agradável de se rememorar; então, quando o coronel bateu o martelo naquela
decisão, não foi solução que o povo viu, mas a união de dois pesadelos.
Ao amanhecer, Zé Mindim se dirigiu para a secura do Morrinho dos
Espinheiros, que ficava a quinze quilômetros da vila banhada pelo rio Moxotó,
afluente que não vivia uma boa época. O matuto subiu num lombo dum jumento
velho e saiu na velocidade que sua coragem permitia… ou seja, quase não indo.
Parecia que o animal dava duas passadas pra frente e uma pra trás. Mulheres e
homens desesperançosos contemplavam o deserto ao longe e imaginavam que
tipo de recepção teria o sertanejo manco, isso, claro, se o bando de Jeremias
Fortunato estivesse mesmo nas redondezas. As notícias de que as volantes vindas
da capital estavam cada vez mais implacáveis sobre quem carregasse a alcunha
de cangaceiro sempre chegavam por lá, atrasadas, e o povo vivia sob a constante
luta entre quem matava porque queria e quem matava porque tinha autorização.
Na verdade mesmo, o povo só queria viver em paz. Porém, naquele sertão
que num era de Deus nem do diabo, paz era um item raro, uma fruta que não
nascia no chão rachado.

O deserto confundia as vistas de Zé Mindim.


Saiu da cidade com sol ainda baixo no horizonte, mas sabia que aquilo não
dizia nada quando o assunto era encarar a quentura do sertão aberto, sem ter
sombra pra se esconder. Olhou para a vila várias vezes, por sobre os ombros,
como se, ao mantê-la ao alcance das vistas, pudesse ter a chance de voltar caso
se arrependesse. Quando a cidade desapareceu atrás da estrada pedregosa, e o
calor subia da terra feito uma panela fervente, Zé Mindim entendeu que só podia
ir em frente.
Tinha cinco quilômetros de estradinha velha até o ponto em que se
embrenharia na mata baixa e seca, repleta de capim morto, espinheiros de todo o
tipo e mandacaru até perder de vista, para seguir na direção de onde vira o
cangaceiro solitário. Cada passo do jumento era um arrependimento que se
acumulava em sua cabeça. Levava o cantil de couro de bode aos lábios, sentindo
o suor se acumular sob o chapéu marrom, e dava bicadas breves e temerosas,
com a sensação constante de que poderia ser o seu último gole d’água. O último
trote do jumento. O último suspiro, antes que a bala dum papo amarelo o
encontrasse no meio do deserto. Logo ele, o matuto mais sem eira nem beira de
Terezinha de Moxotó. Caído morto no meio do sertão, pros urubus comerem os
olhos e depois o resto.
O primeiro arrependimento veio antes mesmo da missão, quando visitara
Roberto Moraes pra avisar do que fora acertado, e ouvira do homem tantos
impropérios que seu ouvido chegou a arder. O mais bonito que o homem lhe
chamou foi de boca de tramela, afirmando que nunca dissera que Zé Mindim
deveria falar aquilo na assembleia. A ideia de pagar pela mão de obra dos
cangaceiros não era só arriscada, era crime. Roberto Moraes comeu-lhe o rabo,
chamando-o tanto de burro e demente que Zé Mindim quase caiu no choro. Mas
no fim o homem respirou fundo, bateu a mão no ombro do matuto e disse que
não dava pra voltar atrás. Que ele tinha que ter cunhão pra ir atrás daqueles
cabras ruins que só o diabo, e que Deus estivesse do seu lado e ele pudesse ao
menos dar o recado ao Capeta-Caolho.
Mesmo com as palavras não muito animadoras do patrão, o sertanejo decidiu
assumir a bronca, e por isso ganhou um jumento novinho do coronel e um
embornal carregado de bolo de fubá e tapioca, que mandara fazer
exclusivamente para ele. Armas não lhe foram entregues. Jesuíno dissera que
seria melhor ir desarmado, pra atestar a confiança nos homens, e Zé Mindim não
reclamou; mesmo que levasse um teco-teco de tambor ou uma peixeira grande,
não saberia usar. E não ousaria. O que sabia, como todo sertanejo que bota o pé
no chão quente, era que bastava estar vivo pra morrer, e que se tinha uma coisa
que cangaceiro não economizava, era bala.
O segundo arrependimento veio naquela hora que o sol está a pino no céu,
um negócio tão grande e brilhoso que é impossível olhar direto pra ele. O matuto
mirava o horizonte e via tudo se balançar, como se detrás de um espelho d’água;
céu se misturava com terra e terra com céu, e o coitado começou a achar que a
quentura cozinhou os poucos miolos que tinha. Ao redor, não havia uma árvore
que se preze pra ficar debaixo, então o homem tirou a camisa amarelada de
poeira e enrolou em cima da cabeça, pra pelo menos aliviar um pouco. A água
do cantil já se via lá pela metade, e o jumento, morrendo de sede, cavalgava num
sacolejo tortuoso, deixando Zé Mindim enjoado.
No ponto que devia sair da estradinha, o calor era tanto que até a sombra
dum cacto parecia atraente, mesmo que o risco de se espetar com cada espinho
do tamanho dum dedo comprido de moça magra fosse evidente. Tocou o
jumento pra longe dos cactos, virou à direita e seguiu em frente, no sentido do
Morrinho dos Espinheiros, um pedaço morto de caatinga que podia fazer os
menos acostumados se enroscarem e nunca mais saírem. Zé Mindim nunca
andara naquelas bandas, mas era caboclo do sertão e sabia no que se meter.
Será que sei mesmo?, se perguntou, pensando na encruzilhada que entrara. O
coitado só tinha vinte e sete anos, e pelo olhar do povo quando deixara a vila,
parecia que queria encurtar a vida.
O firmamento azul clarinho era bonito de se admirar naquela parte do sertão,
mesmo que o calor parecesse capaz de derreter o couro. Não tinha um vento pra
empurrar um bocado do calor. Zé Mindim já não via o menor sinal do vilarejo,
fosse fumaça ou réstia, e nem mesmo a torre da igreja era visível dali. Estava
longe do rio, do povo, e cada vez mais perto do perigo. Seguia na direção do
Morrinho, a pele ardendo. Parou duas vezes pra dar o resto da água do cantil pra
seu parceiro de enrascada, e na segunda quase não foi capaz de fazer o bicho
voltar a andar. Ao redor só havia chão fendido e mato falecido, tudo tão pálido
que era como se fosse se desfazer. Outra hora o jumento se assustou com o
chocalho duma cascavel e disparou no meio dum monte de relva enroscada,
derrubando o matuto com a cara no chão.
Zé Mindim se levantou aperreado, dando um tapa no traseiro do jumento
(que nomeara de “Jessé”) e gritando impropérios a torto e a direito.
Sua voz ecoou no sertão que parecia vazio. E alguém escutou.

Jesuíno de Cândida notou o olhar não muito surpreso de Roberto Moraes


quando parou seu cavalo preto diante da propriedade do homem.
O doutor estava de pé e sem camisa sob a varanda da casa, exibindo os pelos
cinzentos do peito e o bucho projetado, redondo e rijo feito uma pedra. Os olhos
cintilaram feito berilo brilhoso, apertado entre as rugas que rachavam seu rosto
como o chão do Nordeste. Seus dentes se revelaram debaixo das ventas e entre a
barba desgrenhada. Sacudiu a mão para o coronel.
“Se achegue, homem! Saia de debaixo do sol. Se achegue que Ditinha fez
um café agorinha e tem pão assando no forno.”
Jesuíno saltou do cavalo e atravessou a estradinha de cascalhos até a porta da
casa de Roberto Moraes. O homem tinha se emburacado dentro da residência, e
o visitante não se fez de rogado e foi atrás.
A residência charmosa do doutor era bem iluminada, repleta de janelas que
naquela hora se viam abertas, decorada do jeito que casas de homens que vivem
sozinho são: com apenas o necessário. Na sala havia dois sofás pequenos e uma
cadeira larga de vime, uma máquina de escrever sobre uma mesa no canto e
algumas fotografias na parede. Os olhos do coronel logo caíram sobre o retrato
preto e branco de um casal jovem e feliz, o homem num terno bem recortado, a
mulher num vestido branco que benzadeus, o sorriso dos dois tão largos que
pareciam emitir uma luz por detrás do vidro da moldura. Os outros retratos, três
no total, traziam a mesma mulher, sozinha, com o mesmo sorriso.
Jesuíno desviou o olhar quando ouviu os passos de Roberto Moraes. O
homem abotoava uma camisa até a metade do tronco, os olhos indo e voltando
do coronel para o retrato na parede. O brilho da aliança em seu dedo piscou na
memória de Jesuíno, e ele baixou a cabeça, respirando fundo e tornando a
encarar o retrato do casal feliz que já não existia mais.
Falaram sobre as criações de gado do doutor, depois de um hiato de som que
já dava gastura. O médico lamentou a época ruim e um bezerro que nasceu torto.
“É a seca”, disse o coronel, ainda encarando o retrato. “A seca tira as coisas
da gente.”
“É…”
Ouviram um tilintar de pratos na cozinha, e Jesuíno saiu de sua
contemplação. Roberto Moraes indicou o caminho, e eles foram até uma mesa
modesta, onde Ditinha, a empregada do homem, servia café em duas xícaras
brancas. A morena de rosto enrugado sorriu para Jesuíno, ainda vendo ali o
garoto estudioso de dez anos antes. O coronel retribuiu o sorriso.
“Mas é certo que o senhor não veio em minha casa pra falar de minhas
criações, coronel Jesuíno”, disse o homem grande e barbudo.
“Certamente que não, seu Moraes”, respondeu Jesuíno, dando um gole no
café amargo. Ditinha, treinada no seu ofício há anos, logo debandou pro meio do
terreiro, socar uns grãos no pilão, de um jeito que não pudesse ouvir nada da
conversa. Saber das coisas dos outros não era algo de que gostava, ainda mais
quando tinha homens poderosos envolvidos.
“Muito me intriga, seu Roberto Moraes, que o senhor não tenha ido na
assembleia de ontem na igreja… principalmente quando se para pra pensar que o
senhor poderia ter levado sua ideia pessoalmente…”
Moraes soltou um riso a contragosto, torcendo os beiços no meio da barba.
Desviou o olhar para a pia limpa e para o corredor.
“Digo isso porque o senhor deve saber bem que Zé Mindim não é homem de
tanta ideia. Com certeza não veio dele o plano de chamar um bando de
cangaceiros pra essa cidade pra matar um lobisomem.”
O dono da casa ainda estava com os lábios colados. Os olhos voltaram a cair
sobre o mirrado e jovem coronel.
“Claro que não, Jesuíno… claro que não. Zé Mindim pode ser um bom
sujeito, mas não é dos mais espertos. Acontece que se eu tivesse participado de
sua assembleia com o povo… e dado essa ideia, iam pensar que eu estava
doido.”
Jesuíno o encarou sem entender.
Roberto Moraes inclinou a cabeça, saboreando a ignorância do outro.
“Vejo que o senhor coronel não sabe da missa a metade, e eu entendo
perfeitamente, entendo sim… o senhor é muito jovem, coronel, tão jovem que
chamar o senhor de senhor é uma formalidade que eu só acato por respeito à sua
família, ao seu sobrenome. Não me leve a mal. O fato é que o senhor ainda tem
muito o que aprender na vida, e não é sua culpa.”
“E talvez penses que eu possa aprender com o senhor?”
Roberto Moraes estreitou a vista, notando a irritação no tom de voz do
coronel.
“Sempre se pode aprender com alguém mais velho, Jesuíno. Sempre.”
“Com todo o respeito, seu Moraes”, disse Jesuíno, se mexendo sobre a
cadeira, “eu não quero aprender com o senhor. Eu só quero entender sua atitude,
porque ela me parece por demais irresponsável, se é que me entende. Fez não só
com que eu colocasse um homem numa situação de risco, tanto que Zé Mindim
está à caminho de contatar o bando do Capeta-Caolho, mas também toda a vila,
porque se esses cabras aceitarem o serviço… eles vão vir pra cá.”
“E não é essa a ideia?”, retrucou Moraes, e Jesuíno mais uma vez se viu sem
resposta. “Veja, coronel, eu entendo o que quer dizer. Mas isso também é
responsabilidade sua. O senhor poderia ter mandado outro homem atrás do
bando? Claro que poderia. Poderia ter ido o senhor mesmo. Mas mandou Zé
Mindim. Isso me diz mais sobre o senhor do que gostaria que eu soubesse.”
O coronel soltou o ar pelo nariz com força, mas permaneceu imóvel.
“Ouvi dizer que o senhor não quis arriscar seus jagunços na caçada, e
entendo também. Eles trabalham para a sua segurança, e não para a segurança de
Terezinha de Moxotó. E enquanto o senhor não é alvo do bicho carniceiro, não
tem com o que se preocupar… mas nada garante que continue assim. Né?”
“O que eu deveria ter feito, então?”, esbravejou o coronel. “Dona Déda olha
pra mim com um desgosto que dá dó só de ver. E Neco não sai daquele bar
depois que a filha morreu. Ele só tinha ela. Agora é pinga de manhã, pinga de
meio dia e pinga de noite. O homem vai se acabar pra esquecer essa desgraceira.
E não faz nem um mês que aconteceu! E agora foi Tonho Matias, que era
trabalhador, homem forte. Morto que nem um rato, rasgado feito papel na frente
da própria casa. E junto do burro, ainda. O burro! A coisa não teve dó nem do
animal. Aí eu lhe pergunto, doutor: e depois? Quem que essa besta dos infernos
vai levar mês que vem? Zé Mindim? Jóca? Nonoco do bar? Dona Tézinha? Eu?
O senhor? Isso não vai parar! Não até acabar com Terezinha de Moxotó! Essa…
coisa, não tem dó, doutor! Não conhece piedade. É uma criatura banhada na
maldade. Só conhece o ódio e a violência.”
“E não somos todos assim, coronel?” perguntou Roberto Moraes, satisfeito
com aquela reação.
“Eu vou ser honesto no que vim lhe dizer, Roberto Moraes. Qual sua
intenção com isso tudo? Qual sua intenção com o que me fez fazer?”
Foi a vez de Roberto Moraes ficar sério e se remexer na cadeira. A postura
confiante se desfez, e ele desviou os olhos de novo. Puxou o relógio de bolso e o
encarou por um tempo. Guardou-o e se voltou para o coronel.
“O senhor gosta de ouvir histórias, coronel?”
“Como?”
“Histórias. Sabe? Coisas que aconteceram antes e explicam o agora? Porque
se o senhor gosta, eu lhe convido pra ouvir uma…”
O doutor se levantou, pegou uma cadeira da mesa e se encaminhou para a
varanda. Jesuíno levou alguns segundos para entender que deveria segui-lo.
O sol arriava pro lado do poente e pintava o firmamento com pinceladas de
fogo alaranjado. O doutor se sentou na cadeira de balanço que nunca saía dali e
botou um chapéu na cabeça. Jesuíno tomou seu lugar ao lado, na cadeira que
Moraes levara.
“O senhor me disse agorinha que essa besta-fera é banhada na maldade…”,
começou o doutor, puxando um teco de fumo do bolso e trabalhando com os
dedos para enrolar seu cigarro. O coronel balançou a cabeça.
“Pois bem…”, continuou Moraes, depois de enrolar o fumo, acendê-lo,
tragar com vontade e soltar uma gorda nuvem de fumaça. “Jeremias Fortunato é
cabra criado na maldade, coronel. É o tipo de homem que a gente teme porque
não sabe o que se passa naquela cabeça ruim.”
Jesuíno analisou o homem que falava. A longa pausa e outra baforada lhe
deixaram incomodado.
O silêncio de Roberto Moraes era pra pesar o que contaria. Claro que
Jeremias Fortunato Silveira era famoso naquelas bandas. Todos conheciam as
histórias das coisas que fizera. Era do crédito do cangaceiro, por exemplo, o
causo de que teria interrompido um casamento nas bandas da Paraíba e matado
todos os convidados, gente grã-fina. O noivo, amarraram numa cadeira, nu; e
todo o bando, diante dos olhos do rapaz estupefato, teria se aproveitado do corpo
da noiva, que morreu depois do décimo quinto, que por sinal não foi o último.
Também caía sobre seu nome a lenda de que teria enfrentado uma volante na
ponte entre Petrolina e Juazeiro (ou foi sentido Juazeiro do Norte, na ocasião da
morte de Padre Cícero? Roberto Moraes não se lembrava…), e conta-se que o
enfrentamento foi tão violento que o rio São Francisco ficou pintado de
vermelho naquele trecho…
Também era muito falado sobre o poder de fogo do grupo, graças a seu
surpreendente número de quarenta e sete integrantes. Aí não era lenda, era fato.
O Governo pagava uma recompensa de cem réis por cabeça, sendo a do Capeta-
Caolho a que valia cinco vezes a de um homem do bando. E até então, todas as
investidas para prendê-lo e executá-lo foram por terra. O homem tinha um
talento impressionante para se embrenhar no sertão e desaparecer.
“O senhor quer entender por que eu dei a ideia de chamar os cangaceiros pra
matar a besta-fera?”, retomou o doutor. “Pois então: primeiro porque esses
homens por si só são como esse lobisomem. Só conhecem a violência e o
sangue. E às vezes só o mal pra combater o mal.”
“Essa é a justificativa mais ridícula que já ouvi, seu Moraes. Achei
conveniente por demais a situação…”
“E tu acha que eu também não achei, quando mirei a luneta naquelas bandas
e vi um caboclo com um chapéu de couro grande e emperiquitado!? Conveniente
demais, claro que sim, não nego…”
Roberto Moraes ofereceu o cigarro ao coronel, que recusou.
“Jeremias Fortunato Silveira não ganhou o apelido de Capeta-Caolho por
acaso, Coronel. Ele já tem carreira longa no cangaço… começou antes mesmo
de Virgulino virar o líder do bando de Sinhô Pereira. Quando o assunto é
ruindade, ele não é homem de brincadeira. Mas quando você descobre um pouco
sobre a vida dele… você percebe que não tinha lá muito jeito de fugir desse
caminho. Mesmo que você não aceite, você compreende.”
“Neco me disse que o bando já atacou a cidade… isso é verdade?”
O rosto de Roberto Moraes se fechou, e seus olhos, antes iluminados pelo
brilho do sol, se esconderam debaixo da aba do chapéu.
“Sim… faz muito tempo…”
Ele ainda não era o Capeta-Caolho, não. Tinha as duas vistas perfeitinha e
atirava que só o Satanás.
O senhor tem que primeiro entender, Coronel, que naqueles tempos, entrar
pro cangaço nem sempre era questão de escolha. De um povo sofrido que nem
esse, que nem tem o que comer, que é explorado e sofre na mão dos poderosos, o
senhor pode esperar muitas vezes a resignação. Mas nem sempre o que se
espera é o que vem. Jeremias Fortunato Silveira viu a família morrer debaixo do
facão de um bando de jagunço quando tinha dez anos de idade. E eu tenho que
lhe dizer que ver os entes queridos morrerem é o maior inferno que um ser
humano pode viver.
Eles viviam em terras que não lhes pertencia, e como qualquer fazendeiro
que só enxerga o mundo que é seu e o que lhe circunda o umbigo, o dono do
lugar os obrigou a caçarem seu rumo. Muitas vezes um pai de família não tem
um rumo pra dar à sua mulher e à sua prole. Foi na indecisão que o fazendeiro
perdeu a paciência. Dois dias depois do ultimato mandou um bando de cinco
jagunços até o casebre onde os Fortunato Silveira viviam. Não queria entrar nos
detalhes com o senhor, mas preciso. Quando homens de malvadeza anormal se
juntam, todo tipo de desgraça parece pouco. O pai de Jeremias eles picotaram
no facão. A mãe, encheram de bala depois que usaram seu corpo, um de cada
vez. Jeremias tinha duas irmãs, e as meninas entenderam cedo demais a
maldade que os homens podem cometer. Uma delas morreu segurando uma
boneca de pano nas mãos, o rosto petrificado de desespero procurando Jeremias
na escuridão, procurando daquele jeito insano, como se o olhar pudesse livrá-lo
de algo. A outra, bateram tanto na cabeça dela que chega afundou…
É uma coisa dura, coronel… amar uma coisa que a morte levou, ô se é. E ele
amava a família, claro que amava. Ainda era um menino. Não tinha maldade.
Não tinha ódio. Essas coisas a gente aprende, vendo os exemplos.
Ele só se salvou porque se enfiou dentro de um jarro d’água vazio e os
jagunços não tiveram paciência pra procurar ele depois de toda a desgraceira.
Ficou dez horas lá dentro, espremido, ouvindo os gritos de dor de seus entes
queridos, ouvindo o barulho dos facões desmembrando seu pai, os sons torpes
que os homens emitiam em suas depravações com a mãe e as irmãs. Jeremias só
saiu de dentro do jarro depois que o sol nasceu e o calor atiçou o odor dos
cadáveres, e o barulho das moscas sobre seus parentes se amplificou tanto
naquele interior apertado em que se refugiava que era impossível ignorar. Ele
aguentou por um bom tempo, tempo demais pra um menino. Então ele correu
pelas terras amaldiçoadas, pulou a cerca e atravessou o chão arenoso, as dunas
mutantes. Correu tanto que se cansou, mas continuou correndo, e correndo, até
o sertão derrubar ele de verdade.
O senhor já passou a noite no deserto, coronel?
Vejo a resposta nos seus olhos. É uma coisa horrível. Zé Mindim pode lhe
confirmar quando voltar. Se voltar. A noite sobre sua cabeça é tão grandiosa e
escura que você se sente esmagado. E tudo faz um barulho assustador, até seu
corpo. Você acha que vai ficar doido com tanto som diferente, com tanta coisa
acontecendo à sua volta sem que você consiga ver o que é. Tem que ter muito
brio pra aguentar uma noite sozinho no meio do sertão.
Mas o menino Jeremias conseguiu, não porque era corajoso, mas porque
não tinha opção. Onde ele tava era o que ele tinha. Então no meio da
madrugada acharam ele.
“Cangaceiros?”
“Cangaceiros”, confirmou Roberto Moraes, balançando a cabeça. “Eles
viram aquele menino maltrapilho deitado debaixo de uma rocha arredondada que
só não rolava sobre ele por falta de vento e tiveram pena.
Pena é um sentimento que pouco passa pela mente dessa gente, mas eles
tiveram pena porque o menino era só um menino, e todo homem já foi um
menino um dia. Ainda mais naquele caso, onde se encontrava mais que um
exemplo de si, mas um semelhante. Um que lhe entende. Jeremias foi acordado e
recrutado. Com dez anos, segurava um papo amarelo quase do tamanho dele
mesmo nas mãos. Daí já não precisava de muito para que os sentimentos densos
e vingativos de seu peito abraçassem aquela arma como sua salvação, feito um
ídolo, um anjo rancoroso que lhe permitiria não só sobreviver, mas tirar dela
sua razão de vida. E sua vingança.
Jesuíno olhou para Roberto Moraes. “Vingança?”
“Sim. Jeremias teria sua vingança aos dezesseis, quando voltou pra fazenda
onde o sangue de seus pais caiu. Só que levou junto dele o inferno.
Ele ainda não mandava no bando, mas tinha talento, não só pra falar mas
também pra matar. Era benquisto naquele clã de desajustados. Convenceu todos
de investirem contra o lugar, um grupo de vinte e dois homens, armados e vazios
por dentro, exceto talvez por aquele instinto animalesco, por aquela ruindade
sem fim. E quando tinha a fazenda sob o berro de seu Winchester e andando na
lâmina de seu punhal, ele encontrou sua justiça. A cabeça do fazendeiro que
mandara matar seus pais ele mesmo arrancou, com as próprias mãos,
prendendo o homem em um pelourinho e ralando a peixeira no cangote do velho
como se fosse um serrote. Tocaram fogo em tudo, na fazenda, nos cavalos, nas
pessoas. O bando tirou muita coisa de valor da fazenda, e a investida foi o
primeiro passo de Jeremias para que o comando do grupo caísse sobre seus
ombros. E ele queria muito aquilo. O poder. O poder, coronel… essa coisa que
corrompe os menos preparados.
“Não entendo por que está contando isso tudo, seu Moraes.”
“O senhor não quer entender tudo? Pois bem, é preciso que saiba dessas
coisas. Todo homem tem seus motivos, Coronel, é isso que quero dizer. São seus
motivos que justificam tudo, mesmo que não pareça justo ou certo. O senhor
teve um motivo para mandar Zé Mindim ao deserto… mesmo sabendo do risco
que ele corria, né?”
Jesuíno desviou o olhar.
“O que quero dizer é que aquele homem a quem chama de Capeta-Caolho já
foi uma criança infeliz um dia. Viu a família morrer, e isso o definiu. O que nos
define, Coronel?, eu lhe pergunto. E respondo: são as desgraças que nos
acontecem. Elas moldam a gente.”
O cigarro de Roberto Moraes terminou, e a bituca voou em brasa no meio da
tarde que acabava, a luz vermelha brilhando num arco hipnótico.
“E quando Jeremias Fortunato virou o Capeta-Caolho?”, perguntou o
coronel, voltando à questão inicial.
Roberto Moraes sorriu de lado e o encarou meio torto.
“Ele ganhou essa alcunha, coronel, depois que veio para Terezinha de
Moxotó pela primeira vez.”
7

Zé Mindim observou o sol descendo pro horizonte sem interesse. Tinha


andado léguas e mais léguas, e ao que parecia, todas num círculo, passando
sobre as próprias pegadas tantas vezes que perdeu a conta.
Como papai dizia, ‘parece que passei num rastro de corno’, pensava, não
sem humor, e mamãe dizia baixinho ‘mais também homi, tu anda da cozinha pro
terreiro e do terreiro pra cozinha…’
Saudade mamãe e papai. Saudade de Terezinha de Moxotó. Parece que
fazem décadas…
O céu se transmutava num tom púrpura estonteante, o astro-rei se dirigia
para seu sono, naquela luz avermelhada que tinha cheiro de preguiça. Zé Mindim
estava sentado numa pedra, e Jessé, o jumento, mastigava um capim arenoso
logo abaixo, cansado, as moscas num zum-zum-zum no sedém do coitado.
Sentia-se derrotado pelo deserto e desorientado pelo ambiente que parecia
imutável ao seu redor. Pra onde olhava, era areia e mato morto. Até onde as
vistas batiam. A noite chegava, e ele não só não achara o bando de cangaceiros,
como se perdera. Estava à mercê da natureza.
O sol encostou a traseira no horizonte, e Zé Mindim sentiu um arrepio.
No sertão de noite é que ele mostra as garras. Os perigos. Gato do mato,
jararaca, escorpião-amarelo, murcego carnívoro… a Perna Cabiluda correndo
pela estrada… Pesadeira esperando eu dormir pra me tirar o ar…
Envolveu os ombros com as mãos, como se um vento frio tivesse soprado em
seu cangote.
Ou então…
“Não, isso não…”, murmurou, olhando em volta, pensando no quanto
parecia irônico ser achado pela besta-fera no caminho de encontrar os homens
que poderiam dar fim nela.
Olhou pra cima, procurando a lua, e a encontrou sem um pedaço. Não serviu
de muita coisa. A solidão do sertão instigava o medo e tirava a lógica das coisas.
Não importava se não era lua cheia. Quem garantia, afinal, que a fera só se
transmutasse sob seu manto?
Houve um sacolejo numa moita atrás do matuto, e ele soube que não era sua
imaginação quando o jumento mexeu as orelhas e deu uns passos nervosos. Zé
Mindim se virou no ato, tremendo feito vareta verde, e mesmo não vendo nada,
começou a falar sozinho.
“Meu Jesus Cristinho, meu padim Padi Ciço, minha Nossa Sinhóra, minha
Virgi Maria…” O mato se moveu à sua esquerda. O jumento soltou uma bufada
de ar e o sertanejo deu um salto. Houve um som gutural, como um ronco de fera,
e Zé Mindim desceu da pedra, olhando em volta com os olhos do tamanho de
duas laranjas, os braços cruzados, as pernas bambas.
“Meu sinhô… me proteja dos males, me guarde dibaxo de tua asa, meu
Deus…”
Ouviu passos. Eram sólidos no chão seco, tão sólidos que ele sentiu a
vibração. Esqueceu Jessé, esqueceu a bolsa e o cantil, e começou a correr, a
réstia de sol servindo mais pra ofuscar sua vista dos mistérios do lusco fusco do
que pra iluminar seu caminho. Pisou em pedras grandes, tropeçou e logo
levantou, gemendo e fugindo sem rumo, sentindo que o coração ia explodir.
Bateu de frente com algo duro feito uma rocha e desabou pra trás que nem
uma jaca mole. A voz se perdeu no impacto, e ele abraçou o peito dolorido.
Apertou os olhos, crente de que a besta-fera silenciosa que devorou seu amigo
Tonho Matias agora faria o mesmo com ele.
Ouviu um estalo metálico e arregalou os olhos. Havia um buraco preto diante
de seu rosto, fedendo a óleo e ferro.
“Mai que diabo tu tá fazenu aqui, baitola fi di quenga?”, ouviu, numa voz
arrastada. Seus olhos saíram detrás do buraco que ocultava quase toda sua visão,
e ele finalmente entendeu que aquilo era a boca dum cano duma arma comprida
que só a miséria, segurada pelas mãos do homem mais assustador que já vira na
vida.
Não conseguiu falar nada diante do olhar intenso e furioso do cangaceiro
diante de si.
Mesmo com o crepúsculo ocultando parte de sua roupa, Zé Mindim viu as
medalhas na testa e o chapéu de couro grande e emperiquitado, mas não teve
tempo de admirar nada mais, porque a boca da espingarda tocou sua testa,
fazendo um cróc dolorido que nem um cascudo de mãe.
“Eu fiz uma pergunta, arremedo de homi! Qui qui tu tá fazenu aqui?”
Zé Mindim gaguejou algo, mas a voz não quis sair. O cangaceiro engatilhou
o papo amarelo. “Se tu num fala, fala eu!”
“EU VIM EM NOME DE CORONÉ JESUÍNO DE CÂNDIDA E DA
CIDADE DE TEREZINHA DE MOXOTÓ PA MÓ DE SABER SE OCÊS
PODE MATAR UMA PESTE DUM LUBISOME PRA NÓIS PELO AMÔ DE
MEU SINHÔ!”
O homem armado inclinou a cabeça, desconcertado. O matuto diante de sua
arma cuspiu um mundaréu de palavras sem sentido, mas uma ou outra ele
pescou, mesmo que não entendesse nada.
“Tu tá de presepada cumigo, cabra?”
Colou o cano da arma no queixo do sertanejo. Zé Mindim gemeu, fechando
os olhos.
“Num mate ele não”, soou uma voz, enquanto mais passos se fizeram ouvir.
Zé Mindim sentiu que estava cercado, e que de certa forma encontrara o que
procurava. “Traga esse matuto pra mó de eu saber o qui qui isso qué.”
“Tá certo, capitão”, disse o cangaceiro que o rendia.
Então a arma girou e a coronha deu boa noite a Zé Mindim.

Acordou com o brilho da fogueira diante dos olhos.


Mas não era só o brilho, era a quentura também. Daí que, mesmo sonolento,
percebeu que estava junto demais do fogo. Tentou se mexer e sentiu os braços
amarrados pra trás, uma orelha grudada no chão, o corpo pesado.
A fogueira incomodava e ofuscava a visão. Mas sabia que não estava mais
só. Ouvia vozes à sua volta, em vários pontos de conversa baixa, além de risadas
e cantoria leve, vez ou outra. Aos poucos tinha noção da quantidade de gente
que havia ali, mesmo que não pudesse ver direito.
Tentou se virar pro outro lado, e só aí percebeu por que não conseguia se
mexer.
Tinha alguém sentado em cima dele. Parecia pesar duzentos quilos. Zé
Mindim deu uma sacudida leve, mas o homem sobre ele permaneceu no mesmo
lugar.
“Pare de sacolejo, peste bubônica!”, disse uma voz, aquela voz, e Zé Mindim
congelou. “Quando tu tava dormindo tava mió. Qué durmi de novo, moléstia?!”
“Não sinhô! Não sinhô!”, disse o coxo, olhando pra frente, os braços
formigando e as costelas doendo porque o homem parecia feito de chumbo.
O cangaceiro respondeu com um “hum…” e continuou fazendo o que fazia,
que Zé Mindim não podia ver o que era porque estava virado pro outro lado, e
mesmo forçando só via as costas do bandido, curvadas.
“Esse é o bando de Jeremias Fortunato?”, começou o sertanejo, tirando
coragem só Deus sabia da onde, mas logo os homens em volta começaram um
estranho vozerio, um seguimento de urros baixos, e o Zé se calou.
“O nome do capitão não é lixo pra tá na boca de urubu torto”, disse alguém.
“Deixe de xeleléu, cabra!”, repreendeu o homem sentado sobre Zé Mindim.
O cangaceiro puxa-saco não disse mais nada.
O bando continuou com a rotina, e Zé Mindim se sentia cada vez mais
nervoso, primeiro porque com a fogueira na cara não via ninguém, e segundo
porque o homem sentado nele começou a soltar uns peido que só Jesus Cristo
pra salvar a alma, já que o corpo tava podre e cada vento anal vinha seguido
duma risada maldosa que deixava o sertanejo injuriado.
“Então tu veio atrás de capitão Jeremias Fortunato Silveira em nome de
quem mesmo, cabra?”, perguntou, depois do quinto peido, o homem que o usava
de assento.
“Em nome de coroné Jesuíno de Cândida e do povo de Terezinha de
Moxotó…”, murmurou Zé. O cangaceiro soltou um “hum…” com a boca.
Depois emendou: “Terezinha de Moxotó, é?”
Zé Mindim ouviu o raspar de uma faca numa pedra de amolar, aquele chim-
chim de vai-e-vem que ele conhecia bem, perto demais pra não ser o homem
sobre ele quem executava a tarefa, e preferiu fingir que não escutou o tom
perguntante do cangaceiro. Imaginou a peixeira afiada e comprida e engoliu em
seco.
“E quando Inácio botou o cano na tua cara, tu disse a ele que tinha vindo
aqui pra saber de uma coisa… e que coisa era essa?”
A voz arrastada agora acompanhava o movimento da faca sendo afiada. Zé
Mindim fechou os olhos e falou: “Vim purque o coronel vai pagar uma quantia
ao bando do Capeta-Caolho se ele matar um lubisome que tá cercando a cidade.”
A faca parou. Zé Mindim sentiu o cangaceiro se mexer um bocado.
“Lubisome, é?”
“É, sim.”
A faca voltou a sibilar na pedra.
“Quanto de dinheiro tu tá falando, meio-homi?”
O sertanejo fez força pra se lembrar. “Coroné Jesuíno disse que do bolso dele
sai mil merréis se conseguirem matar a besta-fera da cidade de Terezinha de
Moxotó… isso só da parte dele, porque parece que o povo também vai tê qui
butá a mão no bolso… ai…”
O cangaceiro firmou as pernas, jogando um pouco mais de peso sobre o
matuto, e se levantou. Zé Mindim respirou fundo, recuperando a metade que
faltava de sua capacidade pulmonar. Tentou se mexer, agora livre do peso, mas
percebeu também os pés amarrados.
Ouviu um farfalhar e olhou rápido para frente. Deu de cara com o rosto duro
e empreteado do homem que estava sobre ele. Era um rosto redondo,
emoldurado pelo chapéu largo de couro, pelas medalhas sobre a testa e pelos
cintos de balas que cruzavam seu peito e tilintavam a cada movimento. A boca
arreganhada mostrava um monte de dentes pretos feito lápides quebradas dum
cemitério, e cobrindo o olho esquerdo havia uma tira de pano escuro, debaixo de
onde saíam raízes de uma cicatriz que marcava a pele da bochecha.
O olho bom o encarava, e Zé Mindim sentiu medo, como se diante dele
estivesse o próprio Satanás.
“A proposta é boa, arremedo de homi…”, disse Jeremias Fortunato Silveira,
se agachando e chegando perto do matuto acuado. A escuridão ao redor
aumentava a aura intimidante do homem. “É boa por demais, pra falar a verdade.
Tão boa que parece mintira. Eu já tive uma vez no cafundó que tu chama de
cidade e o saldo não foi lá muito positivo. Mai num acho que um matuto besta
que nem tu ia cruzar o sertão pra vim falar uma coisa dessa se não tivesse uma
parte de verdade…”
O homem se levantou, tão rápido que Zé Mindim achou que ele tinha se
desmaterializado (apesar do coitado não conhecer a palavra).
“Cabras!”, gritou o cangaceiro, “Esse pedaço de carne dura e manca disse
que tem um lubisome assombrando a cidade dele!”
Gargalhadas ecoaram. Zé Mindim não viu, mas alguns homens fizeram o
sinal da cruz.
“Vocês dão risada, seus fi de rapariga?!”, perguntou o capitão, também com
um bocado de humor na voz. “Eu não dou risada não, purque eu sei que nesse
sertão de cão tem de tudo que anda e rasteja que mata!”
As risadas foram morrendo devagar. O homem se abaixou rápido de novo,
feito uma cobra, quase colando a cara no rosto amedrontado de Zé Mindim. Mas
dessa vez a peixeira estava na mão, apontada no pescoço do matuto.
“Oia só, cabra… eu sou homi temente a Deus, e só a ele. Não tem coisa
nesse sertão, de homi a animal, de gente a demônio, que eu num já tenha matado
ou encarado de frente! E eu posso num tê visto a besta-fera de que tu fala, mas
também num posso deixá de acreditá que ela existe. Até purque, um coronel tão
distinto como Cândida não ia disimbolsar mil merréis se fosse tapeação. Num
é?”
O único olho de Jeremias encarava fundo na alma de Zé, e o coitado só
conseguiu balançar a cabeça.
“Pois bem. É dinheiro dimais pra botá na mão de alguém se a coisa pra se
matá num fô perigosa… e eu seria burro por demais se não aceitasse uma
proposta dessa. Considere feito.”
O homem puxou a faca e a guardou, se levantando devagar e dando as costas
pro matuto, que do rosto apavorado fez nascer um sorriso, os olhos se
iluminando pelas lágrimas de diamante.
“Mai muito obrigado seu Jeremias! O sinhô num sabe o quanto a cidade lhe
agradece! Já morreu gente amada por dimais lá na conta dessa besta-fera, e a
gente já num sabia mai o que fazer! Mai agora o sinhô é nossa salvação, e em
nome de Pádim Padi Ciço…”
O cangaceiro se virou, a boca apertada formando uma linha, o olho direito
injetado de fúria, brilhando sob a luz do fogo.
“Tu drobe a língua pra falá de Padim Padi Ciço, cabra froxo!”, soltou num
rosnado. “E num pense que purque eu aceitei essa disgrama que eu confio em
sua pessoa, pedaço de bosta! E já vô lhe dizendo…” Agachou-se de novo, sobre
o matuto que parecia encolhido. “Si isso for armadilha de macaco pra pegá nóis,
cabra… tu vai ser o último a morrer naquele cu di mundo. Cada cabra froxo e
cada rapariga qui eu dirrubá vai ser um pedaço di tu que eu vô arrancá na
pexêra… começanu pur essas oreia de abano! Tu me entendesse?!”
Zé Mindim encarou o olho bom do cabra mal e tremeu todinho. Só não se
mijou porque água não tinha mesmo por ali, nem dentro nem fora. Mas ele
imaginou tudo o que o cangaceiro lhe disse, numa fração de segundos. O tom de
sua voz não era de brincadeira.

O coronel estava sentado em seu escritório, em alta hora da madrugada. Um


copo de vidro brilhava âmbar diante dele. Tinha voltado da casa de Roberto
Moraes, contrariado e nervoso, sem o resto da história que o homem começara.
Batia o pé tap tap tap no chão.
“Vá pra casa, coronel. Essa parte da história eu lhe conto outro dia”, dissera
o homem, e mesmo Jesuíno ficando mais dez minutos ao seu lado, parado e em
silêncio, a um fio de cabelo de saltar em seu pescoço para forçá-lo a contar o
resto da história, mesmo assim ele ficou mudo, e lhe pareceu que Roberto
Moraes, após a última frase, esquecera de sua existência. O coronel partiu
contrariado e ofendido, sentindo que o homem não só o manipulava como
debochava dele.
O que você quer me dizer com toda essa história, Dr. Moraes? O que quer
contar por trás disso tudo?
8

No retorno de Zé Mindim a Terezinha de Moxotó, três dias depois de sua


partida, o povo quase não o reconheceu. O coitado estava todo encardido, podre
de sujo mesmo, só com as calças e descalço, a pele tão queimada do sol que
descascava feito uma cobra velha. Veio cambaleando pela mesma estrada por
onde partiu, sem Jessé ao seu lado, que certamente virou comida de cangaceiro.
O sertanejo caiu de joelhos no meio da praça, e levou alguns minutos até que
uma alma bondosa fosse até o homem coxo e o ajudasse a se levantar. Depois
Nonoco veio de dentro do bar com um copo d’água, que o matuto bebeu
desesperado só pra botar tudo pra fora um instante depois. A multidão se juntou
à sua volta, e perceberam que ele olhava aparvalhado para a cruz branca na torre
da igreja. Esticou a mão direita, apontando, como se uma revelação mística se
acendesse só pra ele no céu. Então murmurou algo incompreensível e apagou de
vez, caindo todo mole nos braços do povo. Quando ele acordasse e contasse a
todos de seu encontro com o bando do Capeta-Caolho, a maioria não o levaria a
sério, não na hora; mas coronel Jesuíno reconheceria sua coragem.
9

A noite era escura e sem lua sobre Terezinha de Moxotó quando o bando do
Capeta-Caolho entrou na cidade, dias depois.
Todos dormiam mal desde a volta de Zé Mindim, o que não era de se
estranhar, uma vez que o matuto trouxera consigo não só a notícia do acordo dos
bandidos, como também as condições que eles impunham para participarem da
caçada. A primeira delas era a chegada inesperada, o bastante para tirar o sono
de homens e mulheres, que viam na palavra “cangaceiro” um agouro de
desgraça, título que despertava o mais escondido dos pesadelos, mesmo que
poucos fossem capazes de se lembrar da última vez que viram um. Era uma
alcunha carregada de mitos, a maioria fantasiosa demais pra ser verdade, mas o
povo tinha amor à vida o bastante pra não duvidar deles. Ali, onde as palavras
“lei”, “ordem” e “justiça” eram tão fabulosas quanto ausentes, as pessoas
confiavam mais no que escutavam do que no que viam. As histórias corriam no
vento, e era ousadia demais ouvi-las e não dar o devido crédito.
Não era por menos que o povo do vilarejo o temia. Os homens pensavam no
seu olho direito avermelhado os encarando e se arrepiavam por inteiro, assim
como as mulheres, que temiam algo que a maioria dos homens sequer imaginaria
sofrer. Muitas crianças iam dormir tremendo quando as mães, já cansadas,
diziam que o Capeta-Caolho ia vir de noite com uma peixeira do tamanho dum
cabo de vassoura jogar eles pra cima feito boneco e parar a queda na ponta da
lâmina… e não eram poucas as que acordavam às lágrimas de madrugada
quando sonhavam com o rosto enfurecido de um olho só (que muitos diziam ser
no meio da testa…) os encarando no escuro.
Claro, depois que a besta-fera matou Candinho de Déda e Joana, filha de
Neco, o medo das crianças tomou outra forma: a de um monstro meio homem,
meio lobo, que uivava pra lua e matava sem pena. O medo do Capeta-Caolho
não morreu de verdade, só foi trocado por outro mais próximo.
E então, com a expectativa de que a qualquer momento ouviriam os galopes,
vindos do nada, e a cidadela seria invadida por homens de índole ruim e
temperamento genioso, o pavor dobrou. E o povo não sabia o que podia ser pior,
se era morrer ao longo do tempo nas mãos do monstro que só atacava algumas
noites por mês, ou sucumbir em questão de minutos na ponta da bala.
Além da chegada surpresa, os cangaceiros fizeram Zé Mindim prometer que
acenderiam uma fogueira no meio da praça, todas as noites, para que os homens
encontrassem a vila quando bem entendessem. A missão de cuidar da fogueira
não acabou caindo sobre ninguém a não ser o próprio matuto, já que, quando o
sol deitava, algo parecido com um sono opressor dominava cada homem da
cidade… e o sertanejo, se vendo talvez como o único cabra macho do lugar, se
tornou também seu sentinela.
Ele só se ofereceu para a tarefa também porque sabia que não era época de
lua cheia. Coragem tem limite.
Naquela posição “privilegiada”, o matuto via como a cidade era de fato.
Como se comportava diante do medo, da insegurança. E não eram só os homens
frouxos que lhe causavam surpresa; também notava que, diante de sua
demonstração de “valentia”, as moças mais novas pareciam mais viçosas,
mesmo que só por alguns instantes, aqueles em que passavam por Zé Mindim,
sentado perto de sua enorme tocha, e sorriam, ajeitadas, balançando os ombros
com graciosidade e quebrando os quartos como se no lugar da cintura tivesse
uma mola. O sertanejo, quando se apercebeu disso, ficou todo inquieto; depois
começou a se arrepiar e a ficar todo avermelhado; até por fim descambar pra
ousadia e retribuir os gracejos com acenos e piscadelas, ainda que soubesse que
uma ou outra das negras fulô ou das galegas de zói azul tinha marido.
Não é que todo homem fosse frouxo ali, naquele pedacinho de terra, não. É
só que a violência não se enraizou neles, a maioria boiadeiro ou lavrador, que
talvez só tivessem brandido facão na direção duma cana seca e olhe lá. Que só
tinha visto revólver na mão do poderoso fazendo maldade. Não era covardia, não
totalmente. Era só um receio doido, uma falta de saber como agir, que capava
mesmo. E ao mesmo tempo era o tipo de medo que regava um sentimento duro,
que agitava o coração e esquentava as orelhas, fazendo os olhos se
avermelharem. Um sentimento que parecia um elástico se esticando dia após dia.
Numa noite que a lua era um círculo pretinho no céu, e que todo mundo tinha
ido se deitar com medo do vento que assoviava, Zé Mindim viu uma morena
troncuda, de nome Martinha, lhe acenando num beco escuro atrás do bar do
velho Nonoco. O matuto se assustou, depois não acreditou, e em seguida ficou se
torcendo todinho, o troço nas partes baixas se animando. A moça insistiu tanto
com o dedinho que o matuto não teve escolha: abandonou seu posto, deixando a
fogueira por alguns minutos; afinal, o que aconteceria de ruim naquele meio
tempo? Pra ele, decerto nada… e seriam poucos minutos mesmo, porque quando
o coxo chegou perto de Martinha, percebeu que batia bem na altura de seu busto
largo e da cor do pó do cacau. O bicho se aprumou feito galo jovem e se jogou
com gosto nos encantos da morena.
A escuridão era tanta ali naquele canto que Zé Mindim não notou quando um
vulto se aproximou de sua morena, por trás.

Jesuíno fora até a casa de Roberto Moraes várias vezes durante agoniantes
semanas e não achou o homem, mesmo sob plena luz do dia. Mas naquela noite
encontrou o viúvo outra vez sentado na varanda iluminada por um lampião
pendurado, o cigarro queimando feito um vagalume infernal no rosto oculto.
“Achei que o senhor não ia querer ouvir mais histórias, coronel…”,
murmurou quando o rapaz, já ciente do ritual, tirou o chapéu e se sentou na
mesma cadeira de antes. Jesuíno nada disse diante da observação. O doutor o
olhou sem virar o rosto. Seu corpo grande e inchado parecia acolher a escuridão
daquela noite de lua nova. O rosto cheio de pelos e os braços apoiados na cadeira
de balanço não pareciam reais. Jesuíno se sentia vendo algo como uma aparição.
“O senhor deve entender um bocado de Lobisomens, coronel… ou não?”,
perguntou ele, para surpresa de Jesuíno.
“Sei o que todo mundo sabe”, respondeu, depois de pensar um pouco.
“E o que todo mundo sabe?”, retorquiu Moraes, pegando o cigarro dos lábios
e soprando a fumaça. O coronel permaneceu em silêncio. “A lua cheia? A
bestialidade? A sanguinolência? Isso, meu caro, é vago por demais…”
“Vago?”
“Homens no passado já mataram e foram mortos só pelo fato de acreditarem
que eram lobisomens. Só por pensarem que eram uma besta-fera. Aqui, as coisas
são diferentes…”
“Diferentes?”
“Sim. Por exemplo: o que faz alguém virar um lobisomem?”
“Ah… meu pai dizia que se um filho homem fosse o sétimo de uma
sequência de…”
“Essa história não tem nada de verdade. Já ouviu aquela de que se o filho
bate na mãe, também vira lobisomem? São lendas ótimas… principalmente se
você quer botar medo num filho malcriado”, interrompeu o doutor com uma
gargalhada. O som correu com patas peludas sobre a pele do coronel.
“Tudo falso, meu caro. Tudo falso. Só tem uma forma de se tornar um
lobisomem, e eu vou te dizer qual é. É ser mordido ou ferido por outro
lobisomem… e sobreviver.”
“Isso é um contrassenso!”, esbravejou Jesuíno, e Moraes olhou para ele de
um jeito divertido, adorando o repentino envolvimento do rapaz. “Não explica a
origem. O primeiro. Tem que ter uma razão pro primeiro lobisomem surgir.”
“Você tá certo, coronel. Mas nem tudo nesse mundo tem uma razão. Nem
tudo é preto no branco, nem tudo pode a ciência dizer como é. Existem coisas
nesse mundo, e especialmente nesse sertão… que são por si só essa palavra
bonita que o senhor usou: um contrassenso.”
Jesuíno ficou calado, esperando.
“O senhor deve tá se perguntando por que eu tô lhe falando disso, e não
terminando a história que deixei pela metade na outra noite. Não fique nervoso,
eu vou terminar ela, vou sim. Mas primeiro o senhor tem que entender algumas
coisas…”
“Como por exemplo?”, perguntou o coronel, cruzando os braços.
“Como por exemplo quem começou com essa história de lobisomem aqui em
Terezinha de Moxotó. O senhor consegue se lembrar?”
O coronel encarou o nada, a noite silenciosa, o rosto confiante de Roberto
Moraes.
“Eu… eu não sei… onde o senhor quer chegar com…”
“Consegue ou não, coronel?”, inquiriu.
Jesuíno fez força com a cabeça.
“Eu me lembro de três meses atrás a gente achar os pedaços de Candinho no
mato. E no outro mês Joana, perto do poço atrás da igreja…”
“Partida pelo meio. Da cintura pra baixo na beira do poço, da cintura pra
cima lá dentro dele. E sem a cabeça”, disse Roberto Moraes, como se Jesuíno
não fosse capaz de falar sobre o estado do corpo da filha de Neco.
O coronel só confirmou.
“Eu vou lhe falar quem começou com essa história, coronel, e espero que o
nome jogue um pouco de luz nisso tudo.” Roberto Moraes engoliu o sorriso, se
virou para Jesuíno e, com o corpo inclinado para frente, pensativo, encarou o
chão.
“Fale logo, homi!”
“Quem começou com essa história toda”, disse Roberto Moraes, levantando
a cabeça e encarando Jesuíno nos olhos, “foi Zé Mindim.”
Um som de tiro cortou a madrugada. O coronel se levantou num salto, olhou
para a direção de onde viera e sussurrou:
“Eles chegaram.”
10

Ao enxergar a sombra volumosa detrás de Martinha, Zé Mindim deu um


berro apavorado, fazendo a morena pular e o empurrar pro chão. O matuto
desabou e a mulher, depois de uma olhadela pra trás, desembestou em direção à
praça. Ele ergueu a cabeça e viu o formato alongado das pernas, o volume da
vestimenta e o chapéu largo de um cangaceiro que, no escuro, podia ser qualquer
um. Só quando dois olhos brilharam no reflexo da fogueira que ele viu que não
era quem temia, mas um batedor.
O homem deu dois passos em sua direção. O sertanejo cruzou os braços
diante do rosto e fechou os olhos, pronto pra gritar. Nada saiu da garganta.
Esperou um chute ou uma facada. O cangaceiro solitário passou por ele, saindo
do beco em direção à fogueira. Parou perto dela com as pernas afastadas, puxou
algo de dentro da roupa e soprou.
Era um apito.
O silvo ecoou pela vila plana, como uma agulha perfurando o tecido fino do
silêncio. E quando cessou, ouviu-se a cavalgada.
Como se por mágica, os homens se materializaram na entrada da cidade,
entrando a galope curto, cerimonioso, feito convidados de honra. Zé Mindim já
tinha se levantado e seguido na direção da fogueira. Parou no meio da rua
quando o batedor sacou o rifle e mirou em sua cabeça. Ergueu os braços, doido
pra falar que era aquele coxo, aquele que fora falar com eles, na cara e na
coragem; mas a coragem tinha ficado nas tetas da morena.
A cavalaria surgia do escuro, como se fizesse parte do chão do sertão. Ao
mesmo tempo era possível ver, nos vãos de baixo das portas, que candeeiros
eram acesos. A cidade acordara com o apito, mesmo que não parecesse disposta
a receber os convidados.
Os homens se multiplicavam, cinco, dez, vinte, quarenta, numa fila
interminável e tilintante. Ao fundo, uma única carroça fechava o cortejo,
arrastando algo que, pelo range-range, era pesado por demais, um toldo
amarronzado cobrindo seu conteúdo cheio de arestas. A tocha de Zé Mindim
oferecia luz o bastante para que os cangaceiros ainda desfrutassem de mistério,
mas o matuto se impressionou de verdade ao ver, pela primeira vez, aqueles
homens em sua magistral postura.
Nem todos usavam chapéus largos em forma de meia-lua, mas os que os
tinham os apresentavam com aprumo. Era uma peça opulenta, ornamentada com
símbolos de estrelas cruzadas, em traços dourados que refletiam o fogo. Sobre a
testa de muitos retinia um cordão cheio de medalhas prateadas. Os lenços sob os
queixos, presos com displicência mas notável orgulho com anéis flavescentes,
emolduravam faces duras e apoquentadas. Bocas acidentadas que não sabiam se
sorriam ou rosnavam abriam-se para a noite, e degustavam a calmaria que
toravam. Os mais moços ostentavam cabelos compridos que caíam por detrás
dos chapéus ou em volta das orelhas. Outros cultivavam barbas enroladas no que
pareciam filetes pretos ensebados. Os mais velhos preferiam o rosto liso na
lâmina. Todos tinham a carne dura queimada do sol, curtida, e seca feito o chão.
As túnicas sobre os ombros eram de um azul grisáceo, entrecruzadas por
lençóis finos amarrados e por bornais de couro decorados com bordados também
estrelados ou até mesmo floridos, todos cheios, fosse de charque ou pão duro. Os
cantis dependurados sacolejavam leves, já denotando o vazio interior. Cinturões
de balas prendiam as túnicas ao corpo com o peso da morte que podiam trazer.
Uns carregavam apenas um cinturão preenchido, outros traziam dois, formando
um X no peito. A maioria tinha também faixas de projéteis menores em volta da
cintura, donde pendiam coldres escuros que amparavam revólveres de cano
longo ou pistolas Luger da ponta fina. As cartucheiras penduradas
acompanhavam os passos dos cavalos, demarcando aquela marcha, tornando-a
séria, perigosa.
Cada homem trazia seu papo amarelo preso em bandoleiras adornadas, tal
qual as calças cáqui grossas que findavam em perneiras duras tracionadas em
volta das panturrilhas. Calçavam alpercatas ou botas pontudas, e pareciam
carregar o mesmo que um de si sobre as costas, não só em armaduras de couro e
chumbo, mas em ameaça e tormento. Ademais, era uma marcha que, ao
contrário do que se esperava, não cheirava mal, devido ao fato de a última
empreitada do bando ter sido uma invasão duma fazenda pras bandas de Pajeú,
onde arranjaram, além de dinheiro, armas e sangue nas mãos, diversos perfumes
franceses das mulheres do lugar, de modo que a quadrilha de Jeremias Fortunato
Silveira, vulgo Capeta-Caolho, tudo podia ser, menos catinguenta. O vento
espalhava o odor adocicado das águas de colônia surrupiadas e fazia uma
confusão só daquele cheiro doce com o visual áspero dos assassinos.
Zé Mindim encarava deslumbrado aquele bando de homens, sem saber se
admirava-se de um jeito bom ou ruim. Era tudo opulento, magistral e arriscado.
Quando notou o homem no meio da campanha, aquele cujo olho esquerdo lhe
faltava, sentiu a mesma impotência da noite em que o teve sentado sobre seu
corpo, e finalmente entendeu o medo do povo.
Uma porta se abriu à esquerda, repentina e ruidosa, e um senhor pôs a cabeça
para fora. Os cangaceiros todos se viraram para ver o que era. O velho,
embasbacado, travou trêmulo, sem conseguir sair nem entrar. Jeremias Fortunato
pegou o calibre 38, mirou pro alto e disparou.
O senhor desapareceu pra dentro de casa, e há quem diga que nunca mais
saiu…

O disparo fez Jesuíno encarcar a espora no cavalo feito um doido. Ele cruzou
ligeiro os poucos quilômetros que isolavam a casa do doutor da vila em que
mandava, e chegou na praça a tempo de ver Zé Mindim ser forçado a se ajoelhar
diante do próprio Jeremias Fortunato, o bandido que ninguém tinha fé de que
salvaria a cidade.
O nome do matuto ficou se repetindo no quengo, feito eco nas pedras do
deserto, enquanto o equino avançava pela estrada, levantando pó. Junto a isso, se
lembrava das outras mortes, de quando encontrou Candinho e Joana
despedaçados. Quem sempre estava presente? Quem levou a notícia a ele,
inclusive, em duas ocasiões?
Não… não pode ser…
Refletiu sobre o que Roberto Moraes lhe dissera naqueles poucos segundos.
Sobre o conhecimento acerca daquela besta denominada lobisomem. Sobre
como o homem parecia saber de algo mais. E sobre como lhe disse o nome do
sertanejo como uma dica, ainda que maliciosa.
Imaginou Zé Mindim encontrando o corpo de Joana de Neco, metade no
chão, metade no fundo do poço, o sangue salpicado no solo seco e nas pedras
cinzas, e tentou ignorar a possibilidade de que talvez o matuto estivesse apenas
reencontrando aquilo que vira na noite anterior… quando dominado pelo
instinto bestial que a lua cheia despertara. A chance incômoda de que, talvez, Zé
Mindim só encontrasse aqueles corpos porque a desgraça ficara gravada em sua
mente feito ferro quente no couro do boi, encarnado, fervente, forte demais para
que o esquecesse por completo, mas léguas longe de sua parte racional… e
humana.
Não… Zé Mindim não… não pode…
Lembrou do olhar lacrimoso do matuto quando fora até ele falar do estado do
amigo Tonho Matias… aqueles olhos d’água seriam mesmo de tristeza ou de
remorso?
Como ele sabia que era mesmo o Tonho Matias se só tinha retalhos do
homem?
Foi em partes por essa desconfiança que o coronel demorou pra agir quando
viu o Capeta-Caolho em pessoa diante do matuto coxo, o cano do revólver
grudado na testa rachada do sentinela da cidade. Parecia que a solução era tão
fácil então… bastava esperar. Homens como Jeremias não pensavam muito pra
puxar o dedo. Bastava um olhar troncho, um resmungo, ou até mesmo a mudeza
que o medo impõe, e pronto.
Tão fácil, tão simples… acabar com a fera enquanto ela ainda se encontrava
na forma humana.
Mas Jesuíno não tinha talento pra ser coronel porque era piedoso. Sua maior
qualidade e defeito num só corpo, numa só pessoa. Ele gritou, esporando o
cavalo, e se meteu pra cima daquele bando de homens paramentados, pois sabia
o que, ou quem, eles queriam.

O matuto tremia e o revólver junto.


“Cadê o cabra que manda nessa cidade? Fala logo, homi froxo!” Jeremias
botou o olho bom na linha do cano do oitão e engatilhou. Homem medroso o
deixava fulo.
“Se procura Jesuíno de Cândida, é comigo que deve tratar!”
Todos se viraram para o homem que vinha à toda na direção do bando num
alazão preto feito pupila. Na reação todas as armas preparadas se viraram pro
coronel. O som metálico e articulado que fizeram era tão castrador quanto uma
faca nas bolas.
O coronel puxou as rédeas do cavalo de uma vez, fazendo o bicho empinar e
gritar, sacudindo as patas dianteiras. Num esforço que quase o fez botar os bofes
pra fora, se manteve preso ao animal, que se ajeitou e voltou ao solo, arisco,
bravo mesmo. Pisou no solo irritado e aos poucos se acalmou, decerto um pouco
ciente do perigo que era ter quase quarenta bocas de morte viradas para seu
couro.
Jesuíno mal ouvia o som do mundo a sua volta, já que seu peito estava no
galope de duzentos cavalos. Fez o possível pra encarar aqueles homens, mesmo
diante da visão opressora que eram. Ninguém ali erraria um tiro, se quisesse.
“Ora, ora, si num é nosso digníssimo coroné Jesuíno de Cândida, dono
dessas terra toda!”, esbravejou Jeremias Fortunato Silveira. Deu alguns passos
adiante, as alpercatas de couro estalando no chão rachado, e saiu da multidão, se
destacando naquele monte de sujeitos. “Achei qui eu ia tê qui matá meu único
conhecido aqui desse cu de mundo pra saber do sinhô.”
“O senhor deve ser Jeremias Fortunato…”, disse Jesuíno, se surpreendendo
com a voz ainda firme.
O cangaceiro fez uma mesura.
“Em carne, osso e sangue ruim.” A frase de efeito trouxe gargalhadas. As
armas continuavam na direção do coronel. “Pois bem, aqui estou, sinhô coronel,
e acho bom vê que pelo menos uma parte da promessa de vossa sinhuria já foi
cumprida. Não vejo um macaco só por aqui… e espero não ver.”
Jesuíno respirou, pensando no que dizer. Tentando medir o que dizer, mas
parecia muito difícil.
“O senhor tem minha pala…”
“Não, não, não, não, não, não…”, interrompeu o cangaceiro, e Jesuíno
engoliu o resto da frase com dor. “O sinhô pode ser o mangangão daqui desse
buraco fidido, mas pra falar comigo vai ter que ser no mesmo nível… ou
olhando de baixo. Mas nunca de cima! Desça já daí home, e se achegue!”
O olho bom do cabra ruim mirava o coronel com o brilho intenso de uma
maldade pura e desmedida. Jesuíno balançou em cima do alazão e olhou em
volta. Diante da diplomacia canhoneira do bando, era complicado negociar.
Soltou o pé de um estribo, puxou a perna e saltou do cavalo. Caminhou pesado
até o homem, chicote na mão, chapéu na cabeça; as pernas balançavam que nem
maria-mole.
Parou diante do cangaceiro, que tinha talvez uma cabeça de altura sobre ele,
além da sobra do chapéu, e o corpo largo e duro de apetrechos, roupas e armas.
Encarar o único olho do líder da quadrilha era um desafio, mas Jesuíno
permaneceu o máximo possível nessa empreitada, o suor se acumulando na testa
feito uma camada de piche.
O Capeta-Caolho deu dois passos em sua direção, o olho tão escancarado
que parecia prestes a saltar. Quase colou o nariz nas ventas do coronel. Então
abriu um sorriso acidentado e gritou:
“Abaixa as armas, cambada!”
O bando obedeceu ao capitão, que permanecia diante do coronel, imóvel e
desafiador.
“O qui qui o sinhô ia falar lá de cima mesmo?”, perguntou, inclinando a
cabeça e se avolumando sobre Jesuíno.
“Eu ia lhe dizer que o senhor tem minha palavra…”
“Ia dizê e num vai dizê mais?!”
“Eu dizia e continuo lhe dizendo”, emendou o coronel, se contornando, “que
o senhor e seu… grupo tem minha palavra de que, ao findar da próxima lua
cheia e com a prova definitiva da morte da besta-fera que vieram caçar…” (e
nesse ponto ele quase não foi capaz de segurar a vontade de olhar no rosto de Zé
Mindim, que se levantara) “que receberão mil contos de réis de minha mão, em
dinheiro vivo e limpo, pela morte do monstro.”
“Tá certo…”, murmurou Jeremias.
“Mas!”, continuou Jesuíno, esticando um dedo e fazendo o cangaceiro mexer
a sobrancelha visível, “Eu preciso de sua palavra de que seus homens tratarão as
pessoas dessa cidade com respeito, e não lhes causarão mal algum. Tenho sua
palavra?”
Jeremias encarou Jesuíno com o rosto empedrado, teso. A faixa de tecido
preto que cobria sua vista esquerda lhe dava uma assimetria facial incômoda.
Para o coronel, era como se o homem escondesse seu lado verdadeiro.
E foi o que ele confirmou quando a cara feia do cabra se torceu devagar num
sorriso debochado. A carranca se alargou e um som depravado escapou da
garganta do cangaceiro. Junto a isso, todos os homens do bando começaram a rir
também, descontrolados. Eram como um monte de hienas famintas.
“Coronel, o senhor só tem minha palavra de que eu mato esse istupô calango
dessa besta-fera, si é que existe, e si eu digo que mato, eu mato! Até a gente fazê
isso, esses cabra tem um serviço, e vamo honrar. Mas depois… só posso
responder por mim. Nóis tem uma reputação a manter, coronel. E num tem outro
jeito de fazer isso concordando com o que o sinhô pediu. Depois que Terezinha
de Moxotó se ver livre do lubisome… vai ter que rezar pra se ver livre de mim.”
Jesuíno sentiu o sangue sumir da face, ao mesmo tempo em que entendia, de
uma vez por todas, que não tinha o controle da situação. Vendera não só sua
alma ao diabo, mas de toda a cidade. Estava lascado.
11

O bando do Capeta-Caolho se instalou na cidadela. Cada residência se viu


forçada a abrir as portas para acomodar um ou dois facínoras, e o povo de
Terezinha de Moxotó, que já dormia mal, passou a não pregar os olhos.
Nas faces das pessoas se estampava o medo; nas vistas vermelhas do dia
seguinte, nos lábios trêmulos, na pressa em sair de dentro da casa e correr na
direção da igreja, mesmo que isso significasse abandonar suas posses à
disposição da laia que era a promessa de salvação do lugar. De repente a besta-
fera, o Lobisomem de Terezinha de Moxotó, não passava de um risco distante. A
sensação era de que a cidade pereceria a qualquer momento. Bastasse que
Jeremias Fortunato e seus homens decidissem que haveria mais lucro se
levassem não só a fortuna que o coronel se propusera a pagar, mas também o
pouco que a cidade tinha. O pouco que era tudo para as pessoas de lá.

Nada foi relatado para o coronel, que vez ou outra atravessava a praça
montado em seu cavalo, como um arauto da paz, um vigilante atento, mas
incapaz. Porém, coisas aconteceram. E nada pôde ser feito para impedir.
Nonoco, dono do bar, foi obrigado a servir bebida de graça para boa parte da
quadrilha. O resultado foi que seu estoque se reduziu à metade antes mesmo do
fim do primeiro dia. O velho reclamou de um cangaceiro que quebrou um copo
de vidro, e tomou um tapa na cara. Nunca, em todos os anos que viveu naquele
lugar, passara por tanta humilhação. A face encarnada pulsava e doía tanto
quanto seu orgulho.
Neco, embriagado, se jogou sobre o homem que bateu no rosto do pobre
atendente, e tomou uma surra de seis, sendo jogado na rua desacordado. As
mulheres o ergueram do chão e o carregaram até sua residência, o sangue
cobrindo sua face como uma máscara rubra. As garrafas surrupiadas do bar
encontravam seu fim, depois de esvaziadas, nas fachadas das casas.
Quando o coronel passava, os cangaceiros faziam mesuras debochadas e
rinchavam baixo, doidos pra dar uma cacetada no homem, só não o fazendo
porque era dele o dinheiro do serviço. Mas a vontade era grande.
As desgraças que os bandidos trouxeram, no entanto, não ficaram só nisso.
Martinha, a morena que se engraçara para o matuto coxo durante a
madrugada, foi encontrada sem as roupas na beirada do riacho seco, o rosto sujo
de sangue, lágrimas e areia. Dois sertanejos levaram a coitada para sua casa,
onde ela teve que olhar nos olhos dos homens que lhe fizeram mal sem poder
dizer nada, já que era ali que se encontravam abrigados.
Ela não foi a única. As lágrimas das outras, no entanto, secaram nos colchões
puídos. O choro rebateu nas paredes mal rebocadas. A angústia olhou pra elas
nos cacos de vidro que chamavam de espelho, nos rostos perturbados de um
marido acovardado ou de um pai rendido, na expressão contrita de uma mãe
velha. A primeira noite se mostrara uma visão dura das próximas.
De repente, desejavam a lua cheia, e o fim nas garras ou nas presas do
demônio.
No findar da primeira tarde, que se despedira com um sol vermelho feito o
ódio, os moradores trocariam olhares compreensivos e repletos de receio.
Olhares que, nos próximos dias se transformariam em um silencioso diálogo,
repleto de mudas frases claras.
Então, eles começariam a pensar em algo.

Coronel Jesuíno andava pela vila, daquele jeito impotente, porque estava de
olho em Zé Mindim.
O matuto o incomodava agora. Desde que livrara seu couro das mãos dos
cangaceiros, evitava o rapaz, que sempre tentava se achegar para agradecer.
Escapulia pra direita quando o pobre diabo vinha pela esquerda, e o contrário do
mesmo jeito; quando vinha de frente, Jesuíno metia os calcanhares no lombo do
cavalo e disparava, deixando Zé Mindim comendo poeira.
O matuto via tudo e não entendia nada. Na cabeça limitada do pobre,
acreditava que o coronel estava nos cascos mesmo, com a coisa toda.
Lobisomem, cangaceiro, dinheiro, ordem. Era demais pra um homem só.
Jesuíno mirava o coxo ao longe e também fazia seus planos.
O homem cuja alcunha era Capeta-Caolho se instalou no lugar mais
improvável: a igreja.
Padre Miguel não se opôs. A Casa de Deus estava de portas abertas para todo
e qualquer homem, mesmo que esse se orgulhasse de ostentar o apelido
pernicioso. E o homem em questão carregava tantas armas quanto um pelotão.
Ao pisar no solo sagrado, tirou o chapéu de couro e se benzeu, pra completo
espanto do padre, que observou toda a invasão da cidade calado na casa
paroquial, e ouviu, nos duros sonhos da noite, o sofrimento de cada um daqueles
que abriu sua porta para um demônio entrar. Jeremias Fortunato caminhou até o
homem de batina e mostrou que dentro de seu chapéu havia uma fotografia de
Padre Cícero.
“Padre, eu pequei e não me arrependo. Tem coisas na vida qui eu sei qui
pudia ter cunserto, mais num tem.” O olho bom fitava a face consternada do
padre, duro, como se não pudesse sair daquele esgar odioso. “Não vim aqui atrás
do perdão de Deus. Só vô mi preocupar cum isso quando eu tiver frente a frente
com Ele.”
“Nunca é tarde para se arrepender, meu filho…”, murmurou o padreco, mas
o cangaceiro soltou um riso seco.
“Dexa esse lenga lenga pra outra hora, home de saia. Eu vou passar as noite
aqui, e preciso de que o sinhô me traga algumas coisas. Eu vou pedir, e si o sinhô
quisé fazê, o sinhô faz. Se não, eu lhe faço fazê!”
O padre ficou mudo, e o cangaceiro fez seus estranhos pedidos. Padre
Miguel entendeu só uma parte de tudo, talvez só a parte que dizia que Jeremias
Fortunato tinha planos.

Na segunda noite, o bando se juntou na frente da igreja e, num caldeirão


grande e grosso, derreteram os objetos que o padre, a contragosto, dera ao
Capeta-Caolho: a cruz do altar, o turíbulo e o cálice da missa, objetos esses que,
depois de um rápido teste, o cangaceiro constatou serem de um material mais
que necessário para a batalha que enfrentariam.
Assim como as histórias, as noites correram no sertão. A lua, antes
encolhida, voltou a crescer. O céu, outrora preto e ponteado, tornou-se cerúleo e
enevoado. A luz da dona da noite ganhou contornos etéreos. E mesmo
iluminando a noite, trazia seu presságio. Avolumava um sentimento que excitava
e repelia. Revelava mistérios que até então pareciam pertencer apenas à
escuridão.
12

“Zé Mindim! Onde tu pensa que vai?”, perguntou coronel Jesuíno, no fim da
tarde daquela que seria a noite de lua cheia, pegando o matuto andando de
mansinho atrás da igreja. O rapaz levava uma trouxa de roupa amarrada nas
costas e usava um chapéu largo na cabeça. Se o intento era impedir que o
reconhecessem, seria melhor ter fingido andar certo.
“Ô seu coroné…”, murmurou o coitado, todo sem jeito, “Eu tava indo pegar
um mói de capim pros cavalo do capitão Jeremias…”
“Com uma muda de roupa nas costas, Zé Mindim?”
“Pois então, eu ia andar até a casinha do patrão seu Moraes que lá tem capim
bom mesmo, não esse seco aqui no derredor…”
“E ia pousar lá, ao que parece. O capim pode esperar pra amanhã, certo?”,
retorquiu o coronel, afastando o paletó de maneira sutil e revelando o cabo do
revólver acomodado num cinturão em volta do quadril.
Pego na mentira, o matuto deu um sorriso da cor dum arroto de cu e olhou
em volta.
“Eu num tenho o que fazer aqui hoje, coroné. Isso tudo vai virá uma
desgraceira só. Não quero fica aqui pra vê não…”
“Suba aqui, cabra”, disse o coronel, sério, aproximando o alazão do matuto.
“Tu vem comigo.”
O sertanejo nem pensou muito, só subiu na traseira do bicho e agarrou no
paletó branco.
“E pra onde que nóis vai, coroné?”, perguntou ele, depois que Jesuíno pôs o
cavalo pra andar.
“Ora, você não ia pra casa de Roberto Moraes? Pois bem. É pra lá que nós
vamos.”

Roberto Moraes visualizou o cavalo preto chegando exatamente na hora que


queria, quando o sol já deixara o céu quase roxo e não passava duma restiazinha
na beirada do sertão. Enquanto o coronel e Zé Mindim saltavam do cavalo, o
dono da casa caminhou até seu lugar de costume e se sentou. Enrolou o fumo de
sempre e esperou.
Jesuíno indicou o caminho para um confuso Zé Mindim. O matuto andou até
a varanda da casa de seu patrão. A luz fraca do ocaso banhava metade do corpo
largo de Roberto Moraes. Os botões afastados revelavam seu torso robusto e
peludo.
“Sente aí, Zé Mindim”, disse ele, e o matuto se espantou com a grossura de
sua voz.
Antes que pudesse sentar, o coronel pôs a mão no ombro dele e o empurrou
para que se acomodasse no assento. O matuto bateu a traseira na cadeira dura e
ficou travado, estranhando aquilo tudo.
“Eu o trouxe, como talvez o senhor já esperava”, disse Jesuíno de Cândida,
irritadiço. “Agora quero entender tudo, porque eu sei que o senhor está me
escondendo algo.”
“Estou sim, estou sim…”, murmurou Roberto Moraes, soltando uma
baforada. Virou o rosto e olhou meio torto pro trêmulo matuto. “O senhor seguiu
o que lhe falei, coronel. Mas não está enganado porque não foi inteligente, não…
está enganado porque não sabe da missa a metade.”
“O que quer dizer com isso? Quer dizer que ele não é o lobisomem?”
Zé Mindim deu um pulo da cadeira.
“Comé qui é?!”, indagou, mas a mão do coronel ainda estava firme em seu
ombro. Ele afastou o paletó e deixou visível a arma, tanto pro matuto quanto pro
doutor.
“Explique de uma vez, Roberto Moraes. Porque se esse cabra for o
lobisomem, eu dou cabo dele agora, antes que vire uma besta dos infernos. Essa
responsabilidade eu assumo!”
“Mas coroné! Seu Moraes!”, implorou o matuto. “Donde cês tiraram isso?
Eu? O lubisome? Meu Jesuis Cristinho, num sô não!”
“Cale-se!”, gritou o coronel. Roberto Moraes ergueu a lapa de mão e ambos
silenciaram.
“O senhor queria saber antes como Jeremias Fortunato ganhou o apelido, não
é? De Capeta-Caolho? Pois bem…”, começou. “Foi quando ele cruzou meu
caminho, coronel.”
“Eu era homem feliz, coronel. O senhor pode ver quando repara nos retratos.
O nome dela era Célia. O senhor nunca perguntou, claro, porque nunca se
interessou. É rapaz inteligente e por isso percebeu também que era melhor não
tocar no assunto. Quando a gente se casou e veio pras banda de cá, era seu pai o
dono das terra toda aqui… e ele num era flor que se cheirasse, Deus sabe, mas
era justo comigo e me deu esse pedaço de chão mediante pagamento até
modesto. Eu me tornei médico de seu pai, Jesuíno. E consequentemente de sua
mãe. Quando o senhor nasceu, eu que fui até a fazenda fazer seu primeiro
exame, pra ver se tinha vindo ao mundo do jeito certo, tudo no lugar. Por sorte,
ou por ironia, ainda és assim, como era naquele dia. Puro. Inocente. Admiro isso.
Mas não me serve.”
Jesuíno encarou embasbacado o homem sentado na cadeira de balanço. Ao
findar da última luz de sol, seu rosto foi abraçado pelas sombras, mas as duas
bolas dos olhos brilhavam que nem fogo.
“Eu e Célia vivemos bem aqui por muitos anos. Nunca tivemos filhos, veja
só, porque ela não podia. Mas num tinha problema. Eu amava aquela mulher, e
ficaria com ela até mesmo no inferno. Se bem que, se você olhar em volta,
coronel, verá que esse sertão é o inferno. Não tem água e só tem calor. Tudo é
duro e seco, tudo que você recebe pede um pedaço seu em troca. Eu tive um
pouco de paz e felicidade aqui, e a terra arrancou um pedaço muito grande de
mim por isso. Não é irônico, coronel, que o preço que eu devia pagar pela
felicidade fosse a própria felicidade? Que por uma década de alegria eu devesse
penar pelo resto da minha vida na solidão e na amargura?”
A voz de Roberto Moraes se encheu de dor, e embargada, ressoou ainda mais
grave e intensa. Zé Mindim se arrepiou todinho quando os olhos do homem se
viraram um instante e encontraram os seus. Eles pareciam acesos.
“Enfim… como sempre teve nesse sertão até onde eu sei, esses malditos
desses cangaceiros encontraram Terezinha de Moxotó, que até então vivia na paz
que conhecia, essa paz de fome e secura que só eu sei… essas pragas se
espalharam feito doença lá pros anos vinte, coronel… e mesmo que essas bandas
pareçam o lugar de onde menos se podia tirar, era aqui, nesse sertão sofrido, que
essas desgramas decidiam agir. Por que não desciam pras terra do sul e se
ajeitavam com os cabras de lá? Não… eles tinham que matar aqui, em sua
própria terra, em seu próprio nordeste. Afligir sua própria gente. Desmazelar o
próprio quintal…
“Eles invadiram Terezinha de Moxotó e fizeram uma pilhagem. Vieram que
nem uma horda, descendo aquela colina feito os cavaleiros do Apocalipse, mas
não eram só quatro não, coronel. Eram muitos. Enlouquecidos. Esfomeados.
Varreram essa cidade feito peste negra, feito a morte num estado material… e
chegaram aqui, na minha propriedade.”
Os dedos da mão esquerda de Roberto Moraes se encravaram no braço da
cadeira de balanço. Cada veia pulsava no ritmo daquelas palavras doloridas.
“Aquele cabra a quem chamam de Capeta-Caolho era só chamado Fortunato,
ou Boca de Fogo, por causa do rifle que cuspia bala com uma labareda vermelha,
iluminando tudo. Ele não era líder. Ainda seguia as ordens de Tião Mata-Gato, o
caboclo que o tirou do meio do deserto. Quando eles apontaram na entrada do
terreiro, era Jeremias que vinha na frente, com o chapéu na cabeça, arma em
punho, os dois olhos cheio de má intenção. Ele viu Célia na varanda e abriu um
sorriso, desgramado. Eu já tinha apanhado meu rifle e tava só esperando. O
maldito esporeou o cavalo e veio pra cima. Célia se levantou e entrou correndo.
Eu saí e comecei a atirar.
“Acho que eu derrubei três antes de levar o primeiro tiro. Uma merda dessa
arde, coronel…” Fez um gesto com a cabeça na direção do revólver na cintura
de Jesuíno. A barba balançou, mais cheia. “Numa situação feito aquela, um tiro
não pode te derrubar. Tinha dez ou doze homens do bando naquele ataque, e só
oito tiros no rifle, então pelo menos oito eu tinha que deitar. Mas como eu disse,
tinha dez ou doze homens, e eu só era um. Antes de derrubar o quarto eu já tinha
tomado sete tiro e meu corpo todo queimava. Mirei no maldito da frente, o que
liderava, o que tinha o diabo dentro da cabeça, e atirei. O disparo pegou direto na
cabeça do maldito. Ele caiu do cavalo, desabou, igual um saco de batata. E eu
também. Tinha sangue escorrendo das costas, da barriga, dos braços… caí na
areia e apaguei. Queria ter morrido ali, coronel, juro que queria. Porque saber
que eu estava vivo e nada fiz, por não poder, pra ajudar Célia a escapar daquele
tormento, torna tudo pior…
“Quando eu acordei, tava no mesmo lugar. Essa casa aqui agora é outra,
porque a antiga tava em chamas. Foi o calor do incêndio que me acordou, do
incêndio que comia cada pedaço do lugar. Mesmo atordoado eu me mexi, ergui a
cabeça… e vi tudo o que eu não queria ver, coronel. Tudo. O que faziam com
minha Célia, ali, no meio do terreiro, sob o manto da noite. Um monte de
cangaceiro sem alma e minha mulher… eu queria ter morrido, coronel. Juro que
queria.
“Antes de apagar porque um maldito me viu e me deu outro pipoco, aqui,
perto da orelha…”, mostrou, virando o rosto, cutucando no cabelo o ponto onde
a bala se alojara… e o dedo que afastava as madeixas parecia longo demais. “…
eu vi o fi dum cabrunco… era ele em cima dela, coronel… com um pano
enrolado na cabeça, cobrindo o buraco vazio do olho. Eu estourei o olho do
maldito. Só o olho. A bala fez uma curva ou sei lá o quê que só o diabo pra ter
tanta sorte, e pegou atravessada na cara do maldito. Só o olho. Queria ter
estourado os miolos. Teria sido diferente? Certeza que não, não pra Célia… mas
eu não ficaria com aquela imagem na cabeça. Ah, como eu queria ter
morrido…”
“Seu Moraes…”, murmurou Jesuíno, um tanto pálido, quando notou que o
homem parou, forçado por um leve espasmo. O doutor continuou em seguida,
com a voz tão grossa que era como se tivesse acabado de acordar.
“Mas eu não morri, coronel! Eu não morri! Não havia justiça naquele dia,
pra ninguém. Então eu só apaguei, e acordei de novo, veja só que maldição,
mesmo com uma bala na cabeça. Acordei só pra ver o corpo de minha esposa
jogado no chão, o vestido branco que ela usava tão empapado de sangue e
sujeira que ficou preto. E os malditos se afastando, a cavalo, deixando a casa
queimando e os corpos dos caídos para trás. Eles riam, coronel… gargalhavam…
e mesmo com todo o barulho, com o fogo devorando a casa e a dor e o zumbido
na minha cabeça por causa dos tiros, mesmo assim eu ouvi quando deram a
alcunha. Um dos que ainda ficaram vivo… um que apelidaram de Repentista.
Ele girou o chapéu e rimou, cantando:

‘Teu nome era Boca de fogo,


diabo doido e feroz
gargalhava no perigo
mas levou tiro por nós
morreu e nasceu de novo.
Virou o capeta sem zói!’

“Gargalhando, coronel… enquanto eu e Célia morria. Eu me arrastei até ela


depois, quando a dor no peito era maior que a do resto do corpo. Ela já tinha
partido. O corpo todo judiado só não tava frio por causa do fogo na casa. Eu
deitei no colo dela. Ela fedia o cheiro daquele Satanás… mas era minha Célia, e
se era pra morrer, tinha que ser ali, sobre ela. Com ela. Porque sem ela nada mais
fazia sentido. Eu já lhe disse isso, Coronel: não existe sofrimento maior do que
amar aquilo que morre. E naquele momento, eu vivia meu próprio inferno.”
Interrompeu a narrativa com outro espasmo, e dessa vez Zé Mindim quase
colocou o coração pra fora, tamanho o susto. Ele juraria nos pés do padre que o
homem na cadeira de balanço estava um pouco maior.
“E foi assim, meu caro coronel, que Jeremias Fortunato Silveira virou o
Capeta-Caolho. Daí pra frente sua valentia e sua maldade só fez aumentar.
Dizem que ele mesmo matou Tião Mata-Gato pra tomar seu lugar… eu não
duvido, mesmo que se conte tantas histórias absurdas sobre o maldito. O
absurdo, caro coronel, é o ingrediente principal desse sertão, principalmente à
noite, quando toda a luz vem da lua. A lua… foi ela que trouxe a coisa pra cá
aquele dia. Ela e o cheiro de sangue. Foi ela que me salvou, coronel… ”
“Trouxe… a coisa?”, murmurou Zé Mindim num choramingo. Olhou com o
rabo do olho para Jesuíno. O coronel estava com a mão sobre o cabo da arma.
“Você iria atrás de um lobisomem e o seguiria até sua morada se pudesse,
coronel? Se não houvesse escolha? Se fosse isso ou a morte?”
Jesuíno puxou o revólver e apontou para o homem na cadeira de balanço. Zé
Mindim desabou para o lado, derrubando a cadeira e se arrastando até se
encolher no canto da varanda, o chapéu apertado nos dedos. Roberto Moraes
nem se moveu.
“Pare de bestagem, coronel…”, murmurou o homem, e a voz parecia mais
um rosnado. “Um tiro desse não me faria mal algum, não agora. Não sob o
manto dela.”
Fez um gesto com a cabeça, e Jesuíno, com a beira do olho, viu: a lua cheia
brilhava diante da casa. Graúda. Espetaculosa. Iluminava a casa de Roberto
Moraes como se quisesse vê-lo e despertá-lo.
“Pois bem, coronel, no meio da madrugada, quando o fogo na casa se apagou
sozinho por causa do vento, ele apareceu. Eu tava deitado em cima do cadáver
gelado de minha mulher, e desejava tanto a morte que pra mim tudo não passava
de alucinação. Ele parecia uma sombra que andava, um vulto veloz e leve, mas
era enorme e majestoso. Pensei que era um guará ou uma onça preta, por mais
que essa não seja as terras dela, mas não… era um lobisomem, coronel. Devia
ter o tamanho de dois homens, as patas dobradas, as costas curvadas, cheia de
pelo… o focinho longo farejando a carne. Os dentes compridos raspando nos
cadáveres. Ela queria algum quente, eu sei agora. Mas estavam todos duros já.
Menos eu. Por isso que os olhos dela me acharam… dois olhos grandes e
amarelos, dois sóis na madrugada, encimando uma carranca lupina e raivosa,
fruto da completa desgraça, porque um ser como esse, coronel… é a própria
maldição. A própria peste. Diante de uma besta do tipo, não é só seu sangue que
gela e seu espírito que se encolhe. É sua crença que morre. Sua fé. Ela terminou
de destruir o resto que eu ainda poderia ter, mesmo que parecesse muito mais
lógico que, diante de um demônio como aquele, Deus também poderia existir,
mas não… não, é só ela. A natureza. Ela e suas crias. E então eu soube. Que era
aquilo que eu queria.
“E foi como se o bicho lesse minha mente, coronel. Ele olhou em volta, pra
toda aquela desgraceira, e olhou pra mim… e eu entendi que ele era um monstro,
mas não era puramente irracional. Eu temi, claro que temi. Fechei os olhos, não
quis acreditar. Torci para que ela me matasse rápido, depois para que fosse
embora. Um e outro. A morte antes parecia meu único caminho para rever Célia,
mas claro… isso não existia mais. Não havia crença. Esperança. Não. Só tinha
dor. E ódio. E a besta-fera soube, coronel. Eu sei que soube. Porque depois de
me olhar nos olhos ela cheirou a carne dura dos cangaceiros, se virou pro deserto
e foi embora. E eu fui atrás.”
13

Na cidade, todos esperavam.


Gumercindo, o sobrinho de Nonoco, fez um sinal para Eriberto, que viu o
aceno do outro lado da praça, dentro de sua casa. Ele olhou por cima da porta
holandesa para a lua que subia veloz, como se fisgada por uma linha divina, e
entrou. Checou o revólver 32, única coisa que conseguiu naqueles dias. Sabia
que Gumercindo tinha um rifle 22 e que seus vizinhos tinham coisa parecida.
Nunca faria frente ao armamento pesado do bando do Capeta-Caolho; mas eles
não queriam uma vitória. Não queriam expulsar aqueles homens dali, não. Só
queriam vingança.

Jeremias Fortunato observou enquanto meia dúzia dos seus homens puxavam
três cabritos grandes, surrupiados da fazenda do coronel Jesuíno. Os bichos
berravam alto, os olhos pretos e sem substância estalados de pavor, como se
entendessem seu propósito.
O capitão sorriu, mostrando um monte de dente preto. Olhou para cima, para
a noite, para ela. A danada brilhava linda por demais, completinha, uma
perfeição da natureza.
Puxou seu punhal cumprido, cheio de adornos no cabo dourado, e o girou
nos dedos repletos de anéis. Fez um gesto com a cabeça, e então os homens
viraram um dos cabritos com a barriga pra cima, e o capitão enfiou a ponta do
punhal no meio do bucho dele, na altura do umbigo. Depois forçou o braço e fez
a lâmina subir num arroubo, até parar perto do pescoço. Uma boca rubra se
abriu, donde jorrou o sangue fervente. O Capeta-Caolho puxou o punhal,
tomando um esguicho cor de cereja, e se levantou, passando para o próximo
animal. Os homens ergueram pelas patas o bicho já aberto. O conteúdo de seu
abdome despencou de uma vez e ficou pendurado feito uma roupa úmida no
varal. Eles o jogaram sobre uma carriola grande, o vapor subindo do corte. A
cabra ainda berrava.
O Capeta-Caolho fez o mesmo com as outras duas. Os bichos foram jogados
na carroça, e logo surgiram moscas sedentas. O cheiro metálico ascendeu no ar,
rodopiou com o vento, e como as histórias, correu pelo sertão.
Jeremias só queria garantir que a besta-fera viria.

“Eu fui atrás do monstro, coronel, e se não foi Deus que me fez ficar de pé,
que me livrou da morte certa depois de tanto tiro e tanto sangue perdido, com
certeza foi o Diabo; e se foi isso mesmo, só posso agradecer.”
O matuto jogado no chão se benzeu uma dúzia de vezes, enquanto a arma
permanecia firme na mão de Jesuíno.
“Eu não sei se o bicho teve dó de mim. Não duvido, não depois disso tudo…
Ele deixou um rastro e eu fui atrás. Por toda a noite andei nesse sertão vazio e
sem piedade. Cada passo me lembrava que era impossível eu estar andando, mas
eu estava, então eu não podia desperdiçar aquilo. Atravessei veredas e dunas,
passei por espinheiros que retalharam minha pele, e mesmo assim continuei em
frente, porque nada mais podia me retalhar tanto quanto como estava meu
espírito. E então eu encontrei, coronel… a morada da criatura. Era uma
caverninha enfiada numa pedreira no alto dum morro anuviado. Parecia uma
visão de outro mundo. E talvez fosse. Eu escalei o paredão e entrei naquele
buraco escuro. Sabia que ela tava lá. A lua ainda brilhava, coronel… e por um
segundo eu tive medo. Mas depois de tudo aquilo, eu não podia mais ter medo.
Eu só fui. O cheiro de carniça era intenso lá dentro. Era a morada do bicho, e
também seu abatedouro. Seu templo. Quanto mais eu entrava, mais descia e mais
escuro ficava, até o momento em que não havia qualquer luz, só a pedra
inclinada, a descida da gruta, e a ideia na minha cabeça era de que eu desceria
tanto que chegaria ao tártaro. E por mim não tinha mais problema. Eu só queria
aquilo pra mim. Uma parte daquela maldição pra carregar. Pois veja, eu não
tinha mais nada. Eu precisava de algo, e aquele demônio ia me dar isso.
“Quanto mais eu afundava, coronel, mais eu me sentia em casa”, disse
Roberto Moraes, e seus olhos agora refletiam o brilho da lua como se fossem um
espelho da insanidade. Ela brilhava dentro do crânio dele. E aos poucos ele
deixava de ser um homem. Os pelos dos braços ficaram compridos e
emaranhados, e sua barba se esticara e se unira aos cabelos que cresciam no
torso. Sua laringe também parecia ter pelos, já que sua voz se tornara um ronco,
uma caverna onde ecoava seus sentimentos mais perversos. “E quando eu vi
aqueles olhos amarelos de novo, olhando direto nos meus, eu esqueci o medo.
Ele já não fazia mais sentido, mesmo que aquela escuridão me diminuísse tanto a
ponto de parecer que eu não mais existia. Depois eu entendi que eu não existia
mesmo. Não mais. Eu era outro.
“O bicho rosnou arreganhando os dentes e eu senti o bafo dele, e vou te
dizer… era como sentir o grito de socorro de cada homem e cada mulher que ele
matou. Como cheirar todos os cadáveres deles, empilhados debaixo do sol. E
então ele veio, coronel, pra cima de mim. Me derrubou e eu deixei, não só
porque não podia fazer nada, mas porque era tudo o que eu podia fazer. Suas
unhas entraram na minha carne, sobre o ombro… e o sangue jorrou, mais
sangue, só Deus sabe como e de onde podia sair tanto. Mas saiu. E enquanto o
sangue saía, a maldição entrava.”
O doutor moveu a mão direita, e Jesuíno deu um pulo. A arma balançou pela
primeira vez em sua mão.
Os dedos de Roberto Moraes tinham o dobro do tamanho, e as unhas
estavam tão longas e pontudas quanto um bico dum carcará. A mão afastou a
camisa branca, prestes a estourar, e revelou o ombro viloso. Mesmo no escuro e
com tanto pelo, Jesuíno pôde ver as extensas cicatrizes paralelas.
“A dor foi tanta que eu desmaiei, coronel. Mesmo depois de ter sofrido tanto,
eu ainda não sabia o que era dor. Você acredita? Sempre há uma dor maior, e a
gente só sabe disso quando sente. Ou quando perde. Eu perdi muito ali além dos
sentidos. Perdi o resto da minha humanidade. Quando acordei, estava fora da
caverna e era dia. Tinha um bando de apitã preto em volta de mim, doido pra
comer minha carniça. Mas esse bicho só se engraça com morto, e quando me
mexi eles voaram e foram embora. Tinha um gosto amargoso na minha boca,
mas o corpo não doía mais. Olhei pra mim e não achei uma marca de bala. Não
achei um arranhão, uma ferida… a não ser essa. Essa eu levaria pra sempre.”
Roberto Moraes parou outra vez, e um espasmo mais longo arrancou de sua
garganta um grito que deveria ser de dor. Zé Mindim acompanhou o berro, mas o
matuto gritava de horror mesmo, as pernas moles encolhidas junto do corpo.
Jesuíno apontou o revólver no meio da cabeça do homem e puxou o cão.
O estalo atraiu a atenção da coisa que se transformava na cadeira.
“Não ouse, coronel!”, rosnou. Sob a barba, seu rosto mudava. “Eu não faria
isso, mesmo sabendo que não me feriria, apenas por consideração. Por que
acha que fiz tu trazer Zé Mindim pra cá? Por que acha que levei isso tão longe?
Vocês não têm culpa de nada, Coronel. Eu vou poupar vocês, e somente vocês!”
“Do que você tá falando?”, perguntou o homem, as duas mãos no cabo do
revólver, as pernas afastadas. Queria desabar como Zé Mindim e rezar, mas não
podia. O medo de virar uma simples presa era maior. “O que Terezinha de
Moxotó tem a ver com isso? Com sua… vingança?”
“Aprecio pessoas inteligentes, coronel. Entendeste que fiz isso apenas
porque queria minha revanche contra Jeremias Fortunato. Mas o senhor nunca
vai entender se não souber de tudo. Mas não sei… grrrr… se serei capaz de ir
até o final… grrr…”
O homem grunhia feito o bicho que era, enquanto o corpo aos poucos se
agigantava sobre a cadeira, que agora rangia. Seus braços estalavam, como se os
ossos estivessem mudando de lugar. O peito inflou devagar, até as costuras da
camisa arrebentarem. Seu nariz se alongou, cada buraco se arreganhando feito
um poço escuro. Ele fechou os olhos e apertou a mandíbula, agora cheia de
dentes que se espichavam e ficavam pontudos, saltando pra fora dos lábios.
“Você não entenderia tudo, mesmo se quisesse, coronel. O povo nada fez
para ajudar os cangaceiros, mas também nada fez pra impedir aquela
desgraceira. Eles sequer reagiram. Eles não reagiram, coronel! Não tentaram
defender suas famílias, suas coisas… apenas aceitaram. E o bando daquele
maldito fez a maldade que sabia fazer. Vários morreram na bala e na peixeira.
Mas o que eu encontrei quando voltei foi uma cidade apática, conformada. Só eu
carregava o ódio e aquele desejo de retaliação. E só eu podia fazer isso, afinal.
Porque, coronel, na lua cheia seguinte, eu descobri finalmente do que eu era
capaz. O quanto eu podia destruir aqueles que me destruíram. O quanto eu podia
dar o troco, não na mesma moeda, porque aqueles desgraçados não têm dentro
deles o sentimento que eu tinha por minha Célia. Mas eu ia fazer eles pagarem,
sim…
“Na lua cheia, coronel, eu percebi que o lobo sempre esteve dentro de mim.”
Ele abriu os olhos, e ambos eram amarelos.
O rosto se esticou de uma vez, rangendo e assumindo o formato de um
focinho. Pele seca e morta se soltou de sua nova face, enquanto as orelhas
apontavam para o alto e os cabelos da cabeça se avolumavam e se espalhavam
sobre as costas. Os pés da cadeira de balanço racharam, e a coisa que antes era
Roberto Moraes saltou para a frente, caindo de quatro no chão. Virou o rosto
bestial para Jesuíno de Cândida e disse, num urro que não era mais sua voz:
“Agora saia do meu caminho, coronel… grrr… porque o senhor não tem…
grrrr… nada ver … grrr… com isso!”
“O povo não tem nada a ver com isso!”, berrou o coronel de volta. A mira da
arma já não era mais seu foco. O coitado tinha o rosto contrito e suava pelo
corpo todo. “Candinho não tinha nada a ver com isso! Nem Joana! Nem Tonho
Matias! Nenhum deles! E mesmo assim…”
“A besta precisa se alimentar, coronel…”, disse a coisa, no meio de um
rosnado. “E se não sair do meu caminho, será o mesmo com você!”
Jesuíno apontou o revólver e disparou. O tiro ecoou na noite enluarada. A
bala entrou na camada de pelos da criatura e nada mais fez.
Então ela se moveu, tão veloz que só deu pra ver um borrão. Zé Mindim
gemeu, quase desmaiando, e viu quando a coisa arremeteu contra Jesuíno e o
jogou no chão como quem joga um saco de estopa. O coronel voou num arco e
se estatelou no solo duro. A arma inútil voou de sua mão.
Tão veloz quanto, a coisa avançou na direção do já apavorado cavalo árabe
de Jesuíno de Cândida e deu-lhe um tapa na altura do pescoço. A cabeça do
bicho caiu no chão na hora.
Antes que o corpo do animal desabasse sobre o solo, o lobisomem já ia na
direção da cerca. O coronel se sentou e contemplou, abismado, a criatura
abominável na qual se transformara Roberto Moraes. Zé Mindim esticou o
pescoço e tremeu todo quando o bicho olhou para a lua e, sobre as patas
traseiras, uivou em sua homenagem.
14

O uivo chegou até a praça da cidade.


Trazido pelo vento, soou ao redor da igreja, percorreu a rua e atravessou
paredes. A fogueira que queimava no centro quase esmoreceu, assim como a
suposta coragem de muitos homens, ainda mais daqueles que não tinham tanta fé
na empreitada e achavam que tudo se resolveria quando uma onça ou um guará
tomasse um tiro. Aquele som era diferente. Vinha de uma garganta inumana e
mais bestial que qualquer fera do sertão. Era tão imponente que os outros
animais, dos pixototinhos aos grandões, calaram seus ruídos noturnos para
reverenciar e não atrair a atenção do ser de cuja boca escapava o aviso. E então
os cangaceiros descrentes entenderam. Era verdadeiro.
Aquele que se chamava Capeta-Caolho sabia disso. Quando o uivo findou,
ele puxou o rifle pendurado no ombro, deslocou a alavanca e apoiou a coronha
naquele cantinho do ombro que parece que foi feito pra isso. Deu um passo
adiante, tirando poeira do solo.
“Se prepara, cambada”, disse, voz firme. Não era o grito de sempre, e seus
homens entenderam o recado.

A coisa que era Roberto Moraes saltou pela porteira e desatou a correr,
arrancando pedregulhos com as unhas grossas. Jesuíno olhou para Zé Mindim
jogado no chão. O matuto estava branquinho que nem a lua. As bolas dos olhos
pareciam duas jabuticabas estouradas.
O coronel levantou rápido, olhando inconformado para seu animal retalhado
no chão. O sangue escorria vermelho escuro do lugar onde deveria estar sua
cabeça. As patas ainda davam pequenos repuxões. Jesuíno passou a mão sobre a
testa e percebeu que estava gelado de medo. Não sabia o que fazer.
Você nunca sabe, meu filho.
A lua brilhou sobre a arma caída. Ele andou até ela e a apanhou. Deu uns
tabefes na roupa, tirando a poeira, percebendo, não sem alívio, que a besta-fera
não o ferira. Procurou Zé Mindim com os olhos outra vez. O homem estava no
mesmo lugar, do mesmo jeito.
Então Jesuíno de Cândida entendeu que, em certos assuntos, não há o que se
fazer.

A besta corria e tudo o que via, além do sertão escuro passando em ambos os
lados, era o rosto de Célia, ora imaculado e terno, ora escuro de sangue. Os
instintos estavam no auge. Sentia o cheiro de carne fresca, de tripas abertas ao
vento. De vida inocente arrancada. Da boca fluiu saliva. A lua correndo com ele,
acompanhando seu trajeto, era sua guia e sua aliada. E a sangria que aos poucos
deixava encarnado seu brilho branco dizia que não faltaria morte.
A estrada ladeada de cactos e capim seco chegou ao fim, e a capelinha de
Terezinha de Moxotó se revelou sob a luz do luar.

O som das garras raspando o chão tocou os ouvidos treinados de Jeremias


Fortunato. Ele ergueu a arma como uma bandeira, gritando:
“É A HORA, CAMBADA! A BESTA-FERA TÁ VINDO!”
Dentro de uma das casas, Gumercindo engatilhou a arma, fez o sinal da cruz
com ela, escancarou a porta e saiu.
Ao mesmo tempo, dez outras portas se abriram, todas de uma vez, como fora
combinado. Dez homens e duas mulheres, cada um com um rifle ou um revólver
velho na mão, se precipitaram para a rua, sob o olhar atento da lua, e dispararam
contra o grupo de cangaceiros.
Jeremias deu um pulo, surpreso. Sua mente deu um nó. Ele não entendeu o
que via. Não entrava na sua cabeça. Ele não via coragem naquele povo pra fazer
aquilo. Mas era o que faziam, e isso o enfureceu.
“ARAPUCA!”, berrou, mas um disparo seco derrubou um homem do seu
lado esquerdo.
Os bandidos perceberam o tiroteio, e a meia formação em que estavam
dispostos se desfez. As balas dos moradores da cidade cortaram o ar. Um chapéu
de couro foi arrancado quando um tiro de rifle estourou a tampa do crânio de um
velho de rosto queimado do sol e sem os dentes inferiores. Ele desabou e foi
pisado. Leseira, um dos cangaceiros, engatilhou o papo amarelo e atirou contra
uma mulher que carregava um rifle quase do tamanho dela. Seu corpo arqueou e
o rifle voou pelo ar quando a bala do cangaceiro fez morada em seu pescoço.
Então a coisa ficou caótica.
Os barulhos eram secos, rápidos e ininterruptos. Num instante todo o largo
foi tomado por uma nuvem de poeira advinda do corre-corre. Gumercindo
apontou para Jeremias e atirou, mas a bala arrebentou a janela de uma casa do
outro lado. Eriberto, que se escondia detrás da carriola onde as cabras recém-
abatidas esperavam ser devoradas, escutou um estouro perto de sua cabeça e se
assustou. A arma escapuliu de sua mão e caiu pra fora de seu esconderijo. O ar
pipocava. Esticou a mão pra a recuperar o revólver e sentiu um ardor. Puxou a
mão de volta e ela tinha um buraco no meio. Berrou e lançou a outra mão,
conseguindo puxar a arma. Outro disparo derrubou um senhor careca usando
chinelo de dedo que estava perto dele, de peito aberto, enfrentando os
cangaceiros sem entender que aquilo tudo era a vida daqueles, e que ele não
passava de um novato no jogo. O corpo desabou sem vida, um buraco no meio
da testa, o suco grosso escorrendo.
Em menos de trinta segundos os cangaceiros tinham se espalhado pelos
pontos cegos da cidade, e Gumercindo entendeu rápido o quão ousado e burro
foi aquele plano.
“MATA TODO MUNDO CAMBADA!”, gritou o Capeta-Caolho, sobre o
som das balas explodindo. Sua voz soava como uma trombeta de guerra.
Gumercindo passou correndo diante de Eriberto, a arma apontada, atirando a
esmo. Quando os seis tiros do tambor findaram num tec tec tec, ele abaixou a
vista e olhou para o amigo. Um buraco do tamanho de um punho fechado se
abriu em seu peito quando um bandido, que contornara a casa de onde o homem
saíra, disparou com seu .44 nas costas do homem; mais três balas vararam o
corpo do sertanejo antes que ele caísse no chão. Enquanto o cangaceiro que
matou Gumercindo engatilhava outra vez o rifle, Eriberto ergueu a mão esquerda
e puxou o gatilho três vezes. O único tiro que acertou bastou pra vingar o amigo.
Houve uma breve pausa, algo que não somou nem dois segundos, mas no
caos daquele tiroteio, foi como se o tempo tivesse deixado de correr. Os ouvidos
apitavam, e o cheiro de pólvora misturado com sangue subia pelo ar, junto com a
poeira que nem tão cedo assentaria. Então as balas voltaram a cruzar aquele
espaço. Um homem atrás de uma árvore levou um tiro e deu um grito, largando o
revólver no chão, que sozinho disparou três vezes contra o nada. Um cangaceiro
sentiu o rifle travar nas mãos, enquanto se via na mira de uma arma pequena e
escura. Largou o rifle no chão e puxou a peixeira comprida e amarronzada.
Arremeteu gritando contra o homem que disparava e disparava e disparava no
cabra que vinha mas não acertava uma bala. O aço frio se enterrou em seu peito
na força do encontro, tirando seus pés do chão. Ambos caíram sobre a areia, o
homem perfurado estrebuchando e gemendo, o cangaceiro rosnando sobre seu
corpo, ambas as mãos forçando a lâmina em seu adversário. Só parou quando
uma bala com caminho certo acertou sua barriga.
Eriberto olhou em volta, procurando pelos disparos que faziam parte do seu
lado naquilo tudo, e só encontrou quando o homem que atirava levou um balaço
no joelho e desabou, a perna se partindo em dois num estalo. Outro tiro acabou
com seu sofrimento.
“Meu Deus do céu…”, murmurou Eriberto, as mãos trêmulas, o sangue
pingando no chão feito uma torneira aberta. Estava sozinho.
“Disista, homi!”, ouviu, e ele sabia de quem era aquela voz. “Vocês nem
diviam ter começado essa merda! Disista, e eu não dou seu corpo pro lobisomem
comer!”
Uma risada generalizada ecoou. Vários estalos de armas sendo engatilhadas
tocaram os ouvidos de Eriberto como se fossem os próprios disparos que
continham. Uma gota de suor escorreu por sua testa e caiu em seu olho.
“Tudo bem! Tudo bem!”, gritou. “Eu me rendo! Eu… eu nem devia ter
concordado com isso!”
“Claro, homi. Tem razão. Não devia mesmo”, disse Jeremias, com a voz
firme e complacente.
No silêncio que se seguiu, Eriberto se ergueu devagar do esconderijo, as
mãos no alto, a arma pendurada no dedo mindinho, apenas porque não sabia o
que fazer com ela.
“Me perdoe, capitão Jeremias. Me perdoe, eu não devia…”
“Claro que perdoo, homi!”, gritou o cangaceiro, sorridente.
Ergueu o revólver e disparou. Mais dez homens fizeram o mesmo. As balas
abriram incontáveis buracos no corpo de Eriberto, que se mexia de um jeito
frenético, teimando pra não cair. Mas caiu.
No mesmo instante outro uivo chegou, tão perto que os pelos da nuca do
cangaceiro se arrepiaram.
“Os malditos só fizeram trapaiá a gente!”, berrou. “Quando eu matá esta
besta-fera, eu vou arrancá o côro de cada fi de rapariga dessa cida…”
O uivo deu lugar a um rosnado, quase como o ronco de uma pedra
desmoronando, ou algo que Deus diria num dia de tempestade. O berro calou
todos os homens, e trouxe consigo um vento ímpar, que ergueu ainda mais
poeira no ar.
Os cangaceiros se juntaram de novo, armas em punho, olhos enfurecidos, e
contemplaram a chegada do bicho.
Ele vinha andando, sem pressa, sobre as patas traseiras. Os olhos amarelos
brilhavam atravessando a poeira. De sua boca escapava um vapor intenso, e cada
pisada no solo causava um arrepio do raspar das unhas.
Nas patas dianteiras fechadas como mãos, o lobisomem trazia dois corpos.
“É AGORA A HORA, CAMBADA!”, gritou o líder do bando. As armas se
ergueram na hora em que o bicho largou os cadáveres no chão, cujas roupas
azuladas e repletas de apetrechos entregavam sua extirpe. Apertou o passo,
correndo como um homem de três metros de altura. E os cangaceiros voltaram a
disparar, desta vez contra a coisa que foram matar de fato.
O som era como a noite, gigante sobre todos, e toda a racionalidade se
desfazia ali, quando se espalhava. As bocas das armas cuspiam fogo e chumbo,
má intenção e morte.
O lobisomem acelerou a corrida, colocando as quatro patas no chão,
avançando como o predador supremo que era. E virou apenas uma mancha que
de repente surgiu diante deles e os atravessou. O bando se dividiu ao meio,
alguns pulando para a direita, outros para a esquerda. Os que ficaram no meio
viraram uma pedaceira de gente, se desfazendo nas garras e nos dentes do
monstro, que os brandia com fúria. Gritos de sofrimento eram cortados junto
com as carnes dos que imploravam. A fera se movia como um redemoinho. Seus
golpes dilaceravam e espirravam o sangue no ar, e em instantes a poeira que
flutuava estava rubra.
Os cangaceiros restantes se espalharam, impressionados com o ataque que,
num instante, dizimou uma dezena de homens. Jeremias Fortunato olhava para a
fera com indagação nos olhos, a mão empurrando balas comuns pra dentro do
rifle. Sabia que aqueles pedaços de ferro não a matariam, mas precisava cansá-
la, deixar que sua fúria se dissipasse no sangue mundano. E quando ela baixasse
a guarda…
O bicho se virou e o olhou dentro do globo único que ainda enxergava, e
algo percorreu o corpo do cangaceiro, uma pontada de reconhecimento e
confirmação. Sim, era aquilo, ou então nunca os olhos de uma besta-fera
carregariam tanto desgosto, tanta amargura, tanta consciência. Só a marca de um
ódio tão grande colocaria intuito tão forte nos atos de um monstro cuja
existência por si só era uma estrada de degradação.
“ATIRA SEM PARAR!”, gritou o líder, e seus homens, mesmo apavorados,
mesmo cientes de que as balas acabariam e a coisa não cairia, obedeceram. No
centro da rua, o lobisomem foi atingido por todos os lados. Os disparos
próximos penetravam sua penugem, acertavam sua cabeça, suas costas e seus
braços. Passavam feito faca perto dos olhos. Ele se encolheu, acumulando um
grito, a carne queimando mas não tanto quanto sua ira.
O lobisomem esticou o corpo e uivou, e mesmo com aquele som desmedido
de balas, se fez ouvir. Metade das armas pararam, porque os homens que as
empunhavam ficaram abestalhados diante daquele absurdo. A besta aproveitou o
instante de pausa e avançou sobre parte do bando. Mais pedaços de corpos
cruzaram o ar. Nenhuma perneira foi capaz de impedir um desmembramento.
Nenhum cinturão de balas ficou inteiro quando garras longas e afiadas
atravessaram peitos e dividiram homens em dois. O Capeta-Caolho, do outro
lado, se esgueirava, puxando dois cabras pra lhe dar cobertura, e se distanciava,
seguindo em direção à igreja. Na sua mão levava não mais o papo amarelo, mas
sim a pistola Parabelo, carregada com um cartucho fabricado especialmente para
aquela ocasião.
E se a pistola não parasse a coisa, o que tinha dentro da igreja pararia.

Padre Miguel deu um pulo quando as mãos do Capeta-Caolho escancararam


as portas da igreja. O homem vinha com mais dois cangaceiros. Na luz das velas
da capelinha, as manchas de sangue nas roupas e a falta dele nas faces dos
rapazes se revelou.
“Se prepara cês dois!”, disse o líder, e os rapazes passaram pelo padre sem
tomarem consciência de sua presença.
O homem de Deus chegou perto do cangaceiro-mor. “Vocês vão trazer o
bicho pra cá?”
Sua voz morreu num gemido quando Jeremias se virou e o agarrou pela
batina.
“Isso mesmo, padreco froxo! E se eu fosse o sinhô eu dava no pé daqui,
porque nem Deus nem o Capeta vão salvar teu couro!” Soltou o padre num
empurrão e voltou pra porta. Miguel observou, chocado, o homem fazer o sinal
da cruz e andar até o lado de fora da igreja.
Ao longe, Jeremias viu o que restava de seu bando, homens bravos que ainda
tentavam meter bala no bicho enquanto não eram encontrados por ele, até os
poucos covardes que tentavam fugir quando a munição acabava. A fera tinha
ainda mais tempo para esses.
Ele empunhou a pistola e abriu os braços.
“ROBERTO MORAES! SOU EU QUI TU QUÉ, CABRA! POIS VENHA!”
Ao som do nome, a besta-fera se virou, os olhos amarelos chamejando no
meio daquela névoa de sangue, e avançou em direção à sua nêmesis.
O bicho parou a poucos passos do cangaceiro. De sua boca escorria o sangue
grosso dos homens do bando, misturado com saliva. A garganta gorgolejava. Em
diversos pontos de seu corpo saía uma fumaça fina, onde as balas inúteis tinham
parado.
“Que coisa tu se tornou, Roberto Moraes?”, perguntou o cangaceiro. Deu um
passo para trás, cauteloso, os braços ainda abertos. “Jurava que tu tinha
morrido!Mas agora vejo isso. Tudo isso por vingança, é? Virasse um monstro
porque eu matei sua mulher?”
O bicho apertou a mandíbula. As gengivas se projetaram junto com os dentes
compridos feito faca.
“Não foi pessoal, tu sabe, num é, cabra?”, continuou Jeremias, ainda
andando para trás. “Nós foi na sua casa como foi na de um monte de homi desse
sertão. Tu não foi o primeiro nem vai sê o último… mesmo que eu num entenda
como um caboclo aguenta tanto tiro… talvez tu já fosse essa besta-fera antes,
não? Bicho de couro grosso, resistente…”
O lobo rosnou, um som que parecia regurgitado pelo inferno, e até mesmo o
cabra que se denominava Capeta-Caolho se arrepiou todo. Era como ouvir a
própria morte. E como um desafio.
“POIS VENHA, DIABO!”, gritou o cangaceiro. Ergueu a arma na hora que o
bicho deu o pulo.
O único disparo possível ecoou. No tapa, arma, mão e braço direito do
cangaceiro foram arrancados duma vez só. Ao mesmo tempo, uma dor nova
invadiu o corpo abominável da fera. O homem desabou dentro da igreja e a fera
baleada caiu sobre ele, sem entender.
O sangue esguichava feito um chuveiro. O monstro pesava o que pareciam
toneladas sobre o corpo duro do Capeta-Caolho, cujo rosto se revelava por
completo então, já que no impacto, chapéu e tira de pano escaparam de sua
cabeça, revelando os pelos esparsos nos cornos e o buraco preto e gangrenoso
onde antes ficava seu maldito olho esquerdo. Jeremias ignorou a dor do membro
decepado e puxou a adaga com a outra mão. O lobisomem parecia desnorteado,
saboreando com desgosto aquela queimação inédita na carne, a chaga que a prata
divina infligia em seu ser. O cangaceiro esticou o braço e enfiou o ferro no
sovaco do bicho, que soltou um urro e ergueu o corpo. Os olhos ainda
queimavam de fúria.
Os dedos longos se fecharam em volta da mão que empunhava a adaga
argêntea. O Capeta-Caolho gritou quando as unhas se enterraram na pele,
atravessando o tecido da camisa feito papel. Ele abriu os dedos, deixando a
adaga enfiada no bicho.
O lobisomem se empertigou sobre seu adversário. O toco do braço espirrava
o líquido encarnado pelo chão sagrado. Mas não importava. Agora ele o tinha
ali, só para ele.
Jeremias encarou o fundo dos olhos do monstro e tudo pareceu se esvaziar,
sua mente, seu coração, até seu ódio, aquele que nunca batera em retirada desde
que era um menino. Mesmo assim, esticou o pescoço, tentando olhar na direção
do altar. Não vendo nada, respirou fundo e gritou:
“AGORA PORRA!” No segundo seguinte a boca arreganhada do lobisomem
se enterrou em sua garganta. Soltou uma golfada de sangue, e o olho bom se
arregalou, quase saltando da face. O bicho sacudiu a cabeça, e pedaços de pele e
nervos se enroscaram nas presas afiadas. Sangue espirrou pro alto e banhou o
pelo do monstro, que ergueu a cabeça e começou a uivar em triunfo.
O berro reverente à lua morreu quando os dois cangaceiros no altar
destravaram a metralhadora Hotchkiss, armamento que eles carregaram pra
dentro da cidade na carroça protegida, e apertaram o gatilho. A desgramada
estava carregada com mais das balas de prata caseiras que os bandidos fizeram
dos objetos da igreja.
Ela rugiu tão forte quanto o monstro, e cuspiu uma torrente de fogo contra o
bicho. Os disparos queimaram no seu peito. Ele arqueou as costas e ganiu como
um cão, a dor enraizando por seu tronco, percorrendo seus membros. Não sabia
por que sentia aquilo, mas de repente entendeu e aceitou. Abriu os olhos para
encarar o homem no chão, aquele que cegara de um olho no passado, mas que
lhe arrancara seu amor. O sangue se empoçava em volta da cabeça e brotava do
olho ausente, escorrendo do pescoço dilacerado como um veio d’água no meio
do deserto. Estava imóvel.
Então o bicho fechou os olhos e abriu os braços. A metralhadora cantou por
um minuto, até estalar, travando com um dos projéteis. Os dois cangaceiros se
desesperaram, empurrando o cinturão de balas, gritando um com o outro para
destravar a porra da metralhadora pelo amor de Deus o bicho vai matar a
gente, até ouvirem a voz do padre atrás deles, baixa, mas intensa:
“Está feito. Está feito…”, e só daí ergueram a cabeça e viram que o bicho, o
Lobisomem de Terezinha de Moxotó, pelo qual seu líder ganharia mil contos de
réis pra dar cabo, desaparecera.
Caído na porta da igreja, nu e repleto de furos, estava o corpo de Roberto
Moraes.
Ao fim do eco da última bala, Terezinha de Moxotó ouviu o gemido dos
feridos. Depois, veio um vento forte, desses que no sertão quase sempre traz
desgraça. O que ele carregava eram nuvens gordas que logo envolveram a lua
cheia. E pela primeira vez naquele ano, caiu água no sertão.
A terra, que até aquele instante bebera sangue amargo, se abriu para a chuva
divina que despencou. Os corpos desmembrados e decapitados, abertos no meio
e dilacerados, foram lavados e esquecidos. Os moradores abriram as portas, os
ouvidos apitando, estranhando aquele novo ruído, como se não fizesse parte
daquele mundo. E entenderam que algo findava ali.
As ruas da cidade se encheram de poças róseas. O cheiro de pólvora e sangue
deu lugar a um petricor ácido. E pelas horas seguintes, a cidade esqueceu aquela
madrugada.

Mas foram só durante aquelas horas.


Quando o coronel Jesuíno finalmente chegou à cidade, depois de caminhar
debaixo da chuva ao descobrir que Roberto Moraes matara até mesmo seus
próprios cavalos para que nem ele nem Zé Mindim estivessem na cidade,
encontrou um bando de cangaceiros desmantelado, sem líder, e um vilarejo
desolado.
Ao ver o corpo do doutor caído na entrada da igreja, tirou o chapéu e
procurou olhos compreensivos para encarar, mas não viu nenhum. Todas as
pessoas da cidade pareciam anestesiadas. Alguns nem tinham entendido que a
besta-fera que os assombrara era Roberto Moraes. Como se tudo fosse uma
ilusão, um fingimento.
Na obrigação de cumprir sua palavra, entregou o pagamento pela morte do
lobisomem nas mãos de um rapaz em roupas azuis encharcadas de vermelho
cujo rosto oscilava entre o pesar do luto e o desespero de não saber qual rumo
tomar na vida. Ele contou o dinheiro e acenou com a cabeça para os homens que
restaram no bando, uma meia dúzia de feridos e atormentados, sem balas nas
armas e só vendo na ponta da peixeira a única ameaça que podiam oferecer.
Talvez por isso eles se levantaram e montaram nos poucos cavalos que restaram,
os que não debandaram para o deserto no momento de horror, e seguiram
caminho pela mesma estrada donde vieram. Terezinha de Moxotó nunca mais
viu outro cangaceiro. Pelo menos não vivo. Ou inteiro.
O cemitério atrás da igreja quase não teve lugar pra tanto corpo e pedaço,
mas o padre fez com que todos tivessem um enterro no mínimo decente, isso se
decente for você ter pelo menos sete palmos de terra sobre seu cadáver. A pouca
gente que sobrou na cidade acompanhou todos os cortejos, até mesmo o do
corpo dilacerado do Capeta-Caolho. E houve uma espécie de entendimento geral
quando o doutor Roberto Moraes foi coberto por terra ao lado do túmulo de
Célia Moraes. Cada pessoa de Terezinha de Moxotó desejou passar a eternidade
do lado da pessoa amada. Mesmo que levasse anos para isso. Mesmo que todos
esses anos de espera fossem pura dor. Mesmo que a eternidade não existisse.
O rio Moxotó encheu de novo, mas como qualquer fio d’água do sertão, seu
ápice não durou muito. O povo entendia aquela ideia, aquele modo de vida. Um
quê de resistência, de teimosia. De esperar anos pelo momento oportuno. De
insistir e aguardar. Mesmo que houvesse sofrimento. Mesmo que parecesse tão
longe.
Quando a terra bebe sangue, nunca retorna coisa boa. A história do
Lobisomem de Terezinha de Moxotó aos poucos foi se apagando, mas os mais
velhos nunca esqueceriam aquela noite, que viveria nos repentes e nas linhas
escuras dos cordéis. Os mais jovens, com o passar do tempo, não entenderiam o
clima estranho das noites de lua. Nem a névoa rubra e poeirenta que subia
quando chegava a madrugada. Nem aqueles sons lamuriosos das almas que
deixaram naquele solo seus últimos momentos.
Já o sertão, soprando suas lendas, nunca se esqueceria.
Agradecimentos

Dedico essa história a meus pais, Everaldo e Maria das Graças, pelo sangue
nordestino que se somou em minhas veias.
Aos amigos Lucas Dallas, Cláudia Lemes, Rafael Michalski, William de
Oliveira, Samara Pimenta, Plácido Rodrigues, Eliel Barberino, Adriana Chaves,
Cesar Bravo e todos que em algum momento me ajudaram em algum nível na
produção e/ou divulgação desse livro, meus eternos agradecimentos.
A todos os membros da ABERST, Associação Brasileira de Escritores de
Romance policial, Suspense e Terror, meu muito obrigado por poder fazer parte
de tão nobre e macabra iniciativa.
E meus eternos e costumeiros agradecimentos especiais à minha esposa
Carol, por suportar meus dedos no teclado durante horas a fio, produzindo
aquele tec tec tec, incômodo como as unhas do lobisomem no cascalho, no
mesmo cômodo em que ela tentava dormir. Me desculpe. Eu te amo.

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