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Everaldo Rodrigues
Copyright © 2018 by Everaldo Rodrigues da Silva Junior Todos os direitos reservados ao autor.
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eletrônicos ou gravações, assim como traduzido, sem a permissão, por escrito, do autor. Sujeito a lei vigente
(nº 9.610/98).
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor
desde 1º de janeiro de 2009.
R696o
Rodrigues, Everaldo
Tonho Matias ia dormir quando ouviu aquele ganido agudo que percorria o
ar e a pele feito um arrepio.
“Mai qui diabo?”, murmurou, e se houvesse vivalma perto dele naquele
cantinho da caatinga, teria sentido o cheiro de pinga escapando da sua boca
aberta; mas o uivo canino foi tão verdadeiro que a embriaguez leve desvaneceu
feito fumaça de cachimbo que o vento leva. Firmou os pés no chão e continuou
sentado na cadeirinha de palha na frente de seu casebre de dois meio-cômodos.
A noite que caminhava pra madrugada soprou um ventinho oportuno no meio da
camisa desabotoada, e todo seu corpo se enrijeceu quando olhou pro céu limpo e
sem estrelas.
A lua parecia um buraco branco no firmamento.
Tonho Matias ajeitou o chapéu redondo de couro em cima da careca
queimada de sol e segurou o ar no peito, como se fosse mergulhar. O sertão
deveria ser plena vida noturna à sua volta, com o cricri dos grilos embalando sua
sinfonia de duas notas, misturado com o sacudir do mato baixo e da poeira
girando. A palha do telhado farfalhava, e o burrinho espremido na baia perto do
poço fazia barulhos estranhos com a boca, soprando e tremendo os beiços, os
olhinhos escuros arregalados e tão atentos quanto os do seu dono. Matias
esperava ouvir mais coisas: o foi-foi-foi dos emenda-toco, o lamento funesto das
corujas, ou até mesmo o resfolegar dos guarás, se é que ainda tinha desses por
ali; não ouviu mais nada. E o nada tinha um poder muito maior na imaginação
do matuto do que o mais animalesco berro. No meio da noite, o silêncio é por
demais traiçoeiro.
Olhou pra lua cheia bonita, repleta de marcas e desenhos. Sua face
acidentada trazia histórias mil e encantos atemporais, uma espécie de sedução
incauta, por puro capricho. Pensou em como ela parecia grande, abrangente,
mesmo com uma imensidão de céu à sua volta. A danada reinava na noite.
Fez força pra se levantar da cadeira. Hora de ir pra cama. Quando a cabeça
começa a ouvir coisa, é melhor caçar descanso, botar o coco no travesseiro e…
O uivo ecoou, atravessando quilômetros de seca e silêncio, de solidão e
vazio. Tonho Matias travou de pé, as pernas formigando, enquanto escutava o
urro crescer, agigantando-se na noite, envolvendo a lua como um halo e
comendo todo e qualquer som que ousasse disputar com ele. Os grilos se
calaram como sob ordem divina, e o burrico, coitado, soltou um muxoxo e se
enfiou de ré mais ainda pra dentro da baia, sacudindo a estrutura de tábua que já
não era lá muito forte.
O aulido sacudiu Tonho Matias também, mesmo sendo ele homem sertanejo,
do couro duro e mão calejada. E assim que o ganido emudeceu, ele se apoiou na
parede e se benzeu três vezes. Torceu a cara numa munganga de pavor legítimo,
enquanto sentia sua janta pobre, farinha de mandioca e carne seca, se mexer
contra a sua vontade no baixo ventre.
“Meu Jesuis Cristinho…”, gemeu, e não reconheceria a própria voz se fosse
outro e se observasse. Os olhos correram em volta do casebre. O ar soprou
contra seu corpo de novo, mais forte, quase o empurrando, assoviando na noite
um eco do uivo maldito que tirara toda a sua coragem.
Ajeitou o chapéu no cocuruto de novo e deu um passo pra trás, na direção da
entrada da casa. O vento bateu a parte de cima da porta holandesa do casebre e o
matuto deu um pulo, o peito na disparada dum possante. Por uma fração de
segundos teve noção da solidão em que vivia, dos quilômetros que o separavam
de toda a civilização que conhecia, e de toda e qualquer ajuda. Percebeu que a
solidão não era só dura. Era injusta. E enlarguecia no perigo.
Ignorou o relincho compassado do burrinho, pegou a cadeira pelo encosto e
seguiu pra porta, crente de que, dentro de casa, aquilo ficaria para trás, aquele
som e aquele silêncio que o seguia, aquele medo e aquela presença. Ia passar.
Era a pinga. Era o sono e o cansaço. O isolamento. O padre já tinha lhe dito pra
procurar uma esposa, porque ficar sozinho era muito ruim, mas ele não lhe dera
ouvidos, e que mulher ia querer um matuto que só tinha um burro velho e mais
nada?
Pôs a mão na porta e ouviu algo. O som murmurinhou por detrás dele, se
insinuando, uma coisa seca, cadenciada, e sua mente caçou um similar dentro da
lógica enquanto o corpo de novo travava de receio.
O que a mente encontrou não o tranquilizou mais.
Unhas.
Raspando o cascalho do solo, um tec tec tec leve e sutil feito a pisada duma
suçuarana, e Tonho Matias imaginou a fera, aquele pelo bacento, as orelhas em
pé atenta, os olhos brilhando redondos no reflexo da lua. Visualizou também a
espingarda em pé no canto do quarto. Se o bicho cercava a casa, só precisava pôr
as mãos na arma e se sentiria mais tranquilo.
Arreganhou a porta num arranque e entrou, tacando a cadeira de qualquer
jeito lá dentro e fechando tudo no trinco. Os olhos correram para o canto do
aposento, onde, detrás da cama, a arma de um metro e meio esperava por ele.
Andou até a bicha e checou se estava carregada. Segurar a peça de aço e madeira
nas mãos expulsou um bocado de medo. Se precisasse, teria como se defender da
suçuarana, e de quebra ainda ganhava fama de valente em Terezinha de Moxotó.
Quem sabe daí não viesse uma moça decente deslumbrada com sua ousadia? O
casamento já não parecia impossível. Era só pegar o bicho, que nem devia ser
tão grande assim. Já tinha visto onça parda e gato-do-mato nas andanças pelo
Nordeste. Bastava um berro da carabina e…
Outra coisa berrou, e mesmo com o ouvido tapado de horror, ele soube o que
era. Empertigou-se, virando pra porta e andando de ré até as costas baterem no
fogão à lenha e lá parar. Ficou ali, inepto ouvindo um som líquido ser
entrecortado pelo urro de alguma besta sanguinária. Madeira se debatia, e o
burro soprou e relinchou três vezes antes de emitir um som que gelou a alma do
sertanejo. Puxou a espingarda pra perto do peito e esperou enquanto o que
parecia uma luta ou massacre se desenrolava tão perto da casa que as parede de
taipa tremiam.
O sacolejo se prolongou por um minuto que pareceu eterno ao matuto; o
coitado suava de pingar, e as mãos queriam tremer, mesmo que tentasse
controlar. Por fim a balbúrdia se extinguiu ao som do último pedaço de madeira
desabando. Algo bufou na noite e o silêncio retornou. Sem grilos, sem vento.
Nada.
O sertanejo sabia que tinha que ir lá fora, ver. Sabia. Não queria; não. Havia
uma montanha de razão detrás da inebriez, dos olhos turvados e cheios de
sonolência. No entanto, tinha que averiguar. Se não o fizesse, decerto dormir não
conseguiria.
Caminhou até a porta azul e botou a orelha na madeira. Prendeu a respiração,
a arma na mão esquerda, a palma da direita apoiada no trinco, o suor descendo
pelo pescoço, o saco se encolhendo pra dentro do corpo e a mente gritando não
não não, mas ele precisava.
Ficou assim e só escutou a própria pulsação correndo no ouvido.
O dedo deslizou no trinco. A porta se abriu.
Puxou a madeira de cima. O vento tinha cessado. Deslizou o trinco da
madeira de baixo. Ele estalou. As dobradiças gemeram como Matias queria
fazer. Deu um passo pra fora, depois outro, e encaixou a coronha da espingarda
no sovaco, o dedo indicador grosso procurando o gatilho.
A noite continuava iluminada e quieta. A lua quase o chamava. Vem, Tonho
Matias, vem… vem…
Saiu debaixo da sombra da varanda e olhou à esquerda.
A baia do burrico estava destruída.
A madeira desabara para todos os lados e se encaixara na queda, formando
um triângulo inatural. Poeira ainda se espalhava pelo ar devido ao rebolo.
Pedaços de tijolos da beira do poço se espalhavam ao redor, como se arrancados.
Tonho Matias encarou aquela desordem, transtornado, procurando sinal do
burrico, única coisa que tinha na vida além do casebre que não aguentava um
sopro, e se apressou a andar na direção da baia, ignorando a atmosfera que
aparentava se condensar à sua volta. Os grilos voltaram a cricrilar num uníssono
capitoso. Um bafo de ar girou ao redor dele, e a lua permitiu que nuvens
esparsas lhe ocultassem parte, como se tímida fosse. Chegou perto das ruínas de
sua construção rústica de madeira e arregalou os olhos em choque.
Mal percebeu o triste fim de seu animal e captou outra coisa nas sombras,
detrás da beira alta do poço; todo o sangue de sua face se foi.
Dois olhos o encaravam amarelos na noite.
O matuto gritou. Esqueceu que tinha uma arma nas mãos, mesmo sem saber
que ela era inútil. Jogou a espingarda no chão e correu pelos metros que o
separavam da casa. Atrás a coisa saltou, as patas largas batendo secas no solo, as
unhas arrancando torrões de terra quando ele desembestou detrás do homem
espavorido. O bicho rugia, a garganta úmida de sangue, os dentes manchados de
rubro, a fome gritando mais.
O vento bateu a porta da casa na cara do homem antes que ele entrasse, e
feito um diabo traiçoeiro, segurou o sertanejo do lado de fora.
Tonho Matias se virou ante o rugido do ser, e o som de seu pavor foi cortado
por cinco garras afiadas.
2
O que sobrou do Tonho Matias foi parar num canto atrás da igreja, o
cemitério modesto que nos últimos meses parecia agitado além da conta. Mesmo
numa vila mixuruca como aquela, três corpos em três meses não deveriam se
fazer sentir, não no sertão de peste, seca e fome. Não. O que tornava a coisa
incômoda na verdade, pro cu de mundo que chamavam de cidade de Terezinha
de Moxotó, era a natureza daquelas mortes.
A cidade era na verdade uma rua cheia de casas velhas, uma praça suja pra
não dizer que não tinha nada e uma igreja no fundo, apontando pro céu e
pedindo socorro. Povo sofrido, descendente dos escravos que fugiram das
fazendas de cana lá pra baixo, pros lados da Bahia, e subiram na margem do
Velho Chico, subindo e subindo procurando o mar mas só encontrando secura
onde passava. Subiram tanto que caíram na afluência do Moxotó, e contra a
corrente se instalaram nas proximidades daquele riacho calmo e farto de peixe
nos tempos bons. Nos tempos ruins, o chão rachava que nem bico de teta de
velha centenária e a água sumia, como se o lugar reclamasse as últimas gotas pra
si, com mais sede que o povo. Não tinha nuvem no céu nem pra fazer sombra.
Os juazeiros secavam e ficavam lá, com os galhos erguidos, rezando. As palmas
apontavam pra cima, e vez ou outra brotava umas pétalas brancas no mandacaru
espichado. Era quando o povo podia ter esperança de ver a água despencando do
céu e se esgueirando naquelas fissuras que cabia um dedo, trazendo um pouco de
vida praquele lugar.
O chão não via água há pelo menos sete meses e meio.
O povoado de sertanejo resignado se manteve naquelas bandas e cresceu
pouco, mas o bastante pra ganhar um nome e um mandante, porque um lugar
assim quando se enche de gente, o governo sabe que tem que controlar pra não
sair surpresa. Foi aí que emanciparam Terezinha do Moxotó, quando os Cândida,
reclamando aquelas terras, aceitaram o acordo de governarem a região pelas leis
que a república permitia. Pro povo não mudou muita coisa. Continuaram
miseráveis, e com o passar do tempo, o costume trouxe conformação.
Terezinha de Moxotó nasceu e cresceu debaixo do chicote e da rédea curta da
família Cândida, pessoal que enchia a boca pra dizer que tinha sangue holandês.
Era tudo galego, verdade, daqueles que mira azul com os olhos e é branquelo
que nem um sol de meio-dia, mas o nome era brasileiro mesmo. Jesuíno de
Cândida era o sexto ou sétimo de uma linhagem que só não era real por falta de
registro. E perto da caboclada do sertão, se sentiam de fato donos da coisa toda,
comandantes, reis. Coronéis como só se acha no sertão desse país, de couro seco,
pouca palavra e ruindade sem fim. Do tipo de homem que tira sustento dessa
terra morta não sem mérito, como se a natureza obedecesse suas ordens. A
fazenda dos Cândida, grande, bonita e saudável, parecia um oásis no meio da
secura que a cercava. Tinha gado gordo, boa cana e macaxeira, mas também
tinha sofrimento, suor e ódio. Gente desse tipo geralmente não sabe domar os
outros com o mesmo respeito que doma a terra.
Mas como todo lugar que o sertanejo se assenta e se bota pra viver, existia o
trabalho duro, existia o sonhar; existia o suor que trazia fruto, mesmo que
demorasse pra brotar. Existia o honesto e o aproveitador, o matuto e o malandro,
o santo e o pecador. Existia encanto e superstição. E a vida se formou, quase
feito um desafio ao lugar.
Às vezes as circunstâncias não parecem boas, mas o destino dá um jeito.
Terezinha de Moxotó se conformou com uma rua, uma praça e uma igreja. E
anos se passaram sob o cabresto dos Cândida, até o dia em que o menino bom,
mas sem talento, herdou o comando de seu pai. Jesuíno de Cândida virou
coronel, o povo comemorou sua eleição-contra-quem-mesmo?, e a cidadela veria
tempos diferentes.
Não melhores. Não, o melhor não tem vez no sertão. Ou a coisa é ruim, ou é
ruim pra danar. A vida pra crescer ali fez concessões. E uma hora a natureza
cobra o preço.
Jesuíno de Cândida, aquele que não tinha talento pra coronel, foi um dos
últimos a chegar no funeral dos restos de Tonho Matias.
Cada par de olho que via e rolava naquele vilarejo se virou pro homem que
ultrapassava a contragosto os portais da capelinha, como se ele fosse um imã e
os olhos todos ferro. Avançou pelo corredor, os saltos das botas estalando, na
direção da caixa fechada sob o altar. Tirou o chapéu alvo e se forçou a acenar um
pouco, mas teve um tico de retorno, o que fez a caminhada parecer uma trilha
longa e lamacenta, na qual os passos de pouco adiantavam. Parou diante do
ataúde do morto, aceitando aqueles olhares, aceitando o julgamento pela
displicência, pela preocupação tardia. Olhou de volta, para cada um, tentando
mostrar que entendia e aceitava. Só não queria ver os olhos do velho Neco, que
perdera a filha para a besta, ou de Dona Déda, chorando debaixo do xale preto
que cobria a sua cabeça desde que o marido morrera estripado no mato, vítima,
meses antes, da mesma fera horrenda que assombrava aquelas bandas. Toda vez
que via o rosto úmido de Dona Déda, se lembrava de como o corpo de Candinho
foi encontrado. Dos restos do homem espalhados numa clareira, ali, nas
redondezas da vila, perto da margem seca do Moxotó. As partes mais inteiras
eram suas mãos, que ainda tinham todos os dedos, mas do resto era impossível
afirmar que aquela desordem de carne, ossos e sangue foi um homem algum dia.
A esposa só o reconheceu (e Jesuíno ainda podia ouvir o gemido da idosa
quando viu o que sobrara do marido) por causa de uma pinta que o homem tinha
no rosto, na metade que a besta-fera poupara.
Não havia muito do homem porque decerto a coisa tinha comido grande
parte.
E foi justo Dona Déda quem Jesuíno viu ao se virar, a cabeça baixa, a coluna
feito um anzol, o manto preto em cima das madeixas brancas, terço pendurado
entre os dedos enrugados, tremendo em suas mãos como sua vida, mas não como
sua fé. Ela levantou o olhar e ele viu a dor e o peso de toda aquela perda e de sua
impotência. Sentiu a imagem que a mulher deveria fazer de si: o jovem e
inexperiente herdeiro de um homem do qual jamais chegaria aos pés, mesmo que
quisesse. E apostaria o dedo polegar que era como todo o povo o enxergava ali.
Pro povo de Terezinha de Moxotó, coronel Jesuíno era diferente.
Se tornou prefeito daquele povo miserável dois anos antes. Era uma época do
Brasil em que a política só funcionava na beirada da lei nos eixos da capital…
no sertão, não. No sertão a coisa ainda não tinha saído do papel. Pra muita gente,
se curvar pra Portugal ainda devia ser costume, mesmo que ali só se curvasse
pros Cândida… o que era de se esperar de um canto de terra esquecido no meio
de Pernambuco, lugar mirrado e cheio de sofrimento onde o homem plantava
tristeza, regava com lágrimas e colhia desespero. Terezinha de Moxotó era um
buraco, daqueles bem fundos, onde a luz não bate. Nesses lugares, manda quem
pode, obedece quem aprendeu que desobediência mata.
Coronel Jesuíno era sujeito de agir distinto. Enquanto seu pai, e o pai do pai,
e o pai do pai do pai, eram de índole raivosa, daquelas que arreganha as ventas,
crispa a testa e avermelha a fuça, e que construíram seu império pisando em
sangue escravo e explorando sertanejo, Jesuíno era pálido e mirrado, não se
irritava nem com mosca zanzando na orelha; quando menino já se mostrava de
caráter ímpar. Estudioso, garoto de gestos lentos e às vezes até efeminados,
sofria na mão de pai e mãe, dois coisa-ruim que parece que só sabiam tratar do
jeito que foram tratados; e pelo que dizia a língua do povo, talvez isso tenha
virado o menino do avesso e expurgado dele o que tinha de pior nos Cândida. Os
mais vis diziam que ele era filho de outro homem, mas ninguém tinha coragem
de falar “Maria Justina de Cândida” e “amante” na mesma frase, então o boato
corria só assim, à boca pequena, quase minúscula. E quando o filho único
cresceu, junto de um coronel Juvêncio de Cândida que envelhecia rápido que
nem um cachorro, todos entenderam que aquele rapaz delicado era herdeiro do
poder mor da cidade.
Incapaz de ignorar a avaliação, Jesuíno encarou cada rosto cansado dentro
daquela igreja. Senhorinhas magricelas de lenço na cabeça, sertanejos de rostos
queimados do sol e pele tão esticada que parecia borracha, mulheres de cabelos
presos e homens de barba cerrada, rostos contritos e olhos amuados, gestos
morosos, limitados pelo cansaço, pela fome e pela miséria. Um povo que
divagava e se lamentava em reticência. Que pensava na fazenda grande do
coronel, na água do açude que se encontrava nos limites de seu domínio, no
verde dos cajueiros e mangabeiras, na saúde dos bichos que tinham mais comida
que eles. Que tencionava o pior na espera do melhor.
Logo as memórias dos últimos três meses retornariam com furor, trazendo o
horror das noites de lua e da insegurança das madrugadas iluminadas. Ele via,
nos olhos que miravam os seus, o medo se avolumando, se mesclando e
grudando na cabeça feito piolho. Um medo sem nome e sem face. Um medo que
só via a lua no céu e aguardava a desgraça. Pelo próximo mês.
O homem de Deus reparou que tinha mais gente que o normal na igrejinha.
Olhando para cada cantinho da capelinha, cada metro disputado por alguém
amedrontado, ele fez o sermão sagrado, leu o Salmo 91 pra tranquilizar o povo,
evitando falar de ovelhas (não naquela semana), e se apercebeu, aborrecido, que
de pouco servira. O pavor ainda brilhava como uma chama de vela atrás de cada
olhar, dentro de cada par de mãos unidas, no fundo de cada coração. E quando
padre Miguel benzeu a alma do sertanejo, já que de seu corpo pouco havia pra
fazer conta, ele viu que em cada face e cada olhar havia uma mistura intensa de
sentimentos, sendo a confusão talvez o mais forte deles, porque se juntava com a
impotência e o medo e criava, dentro de cada cabeça, um monstro maior do que
aquele que matara um homem um dia antes.
Ao fim da cerimônia, o povo se levantou e carregou o caixão pro canto que
lhe cabia naquela terra seca, depois de tudo o que fizera sabendo que de nada
adiantaria; depois que desvendara o mistério da vida que era a morte e não
pudera dizer com o que se parecia; que todo mundo esperava, mas ninguém
queria ver antes do outro. E quando o esquife se cobriu de terra para sempre, o
povo, em vez de seguir seu caminho cada um para sua casa, voltou pra igrejinha,
como se houvesse uma segurança diferente ali, o sagrado que podia manter
longe aquele horror, pelo menos por um tempo, se tivesse piedade daqueles
desamparados.
Os olhos do padre encontraram os do coronel, e sem uma palavra lhe
revelaram as intenções de toda a cidade.
5
A noite era escura e sem lua sobre Terezinha de Moxotó quando o bando do
Capeta-Caolho entrou na cidade, dias depois.
Todos dormiam mal desde a volta de Zé Mindim, o que não era de se
estranhar, uma vez que o matuto trouxera consigo não só a notícia do acordo dos
bandidos, como também as condições que eles impunham para participarem da
caçada. A primeira delas era a chegada inesperada, o bastante para tirar o sono
de homens e mulheres, que viam na palavra “cangaceiro” um agouro de
desgraça, título que despertava o mais escondido dos pesadelos, mesmo que
poucos fossem capazes de se lembrar da última vez que viram um. Era uma
alcunha carregada de mitos, a maioria fantasiosa demais pra ser verdade, mas o
povo tinha amor à vida o bastante pra não duvidar deles. Ali, onde as palavras
“lei”, “ordem” e “justiça” eram tão fabulosas quanto ausentes, as pessoas
confiavam mais no que escutavam do que no que viam. As histórias corriam no
vento, e era ousadia demais ouvi-las e não dar o devido crédito.
Não era por menos que o povo do vilarejo o temia. Os homens pensavam no
seu olho direito avermelhado os encarando e se arrepiavam por inteiro, assim
como as mulheres, que temiam algo que a maioria dos homens sequer imaginaria
sofrer. Muitas crianças iam dormir tremendo quando as mães, já cansadas,
diziam que o Capeta-Caolho ia vir de noite com uma peixeira do tamanho dum
cabo de vassoura jogar eles pra cima feito boneco e parar a queda na ponta da
lâmina… e não eram poucas as que acordavam às lágrimas de madrugada
quando sonhavam com o rosto enfurecido de um olho só (que muitos diziam ser
no meio da testa…) os encarando no escuro.
Claro, depois que a besta-fera matou Candinho de Déda e Joana, filha de
Neco, o medo das crianças tomou outra forma: a de um monstro meio homem,
meio lobo, que uivava pra lua e matava sem pena. O medo do Capeta-Caolho
não morreu de verdade, só foi trocado por outro mais próximo.
E então, com a expectativa de que a qualquer momento ouviriam os galopes,
vindos do nada, e a cidadela seria invadida por homens de índole ruim e
temperamento genioso, o pavor dobrou. E o povo não sabia o que podia ser pior,
se era morrer ao longo do tempo nas mãos do monstro que só atacava algumas
noites por mês, ou sucumbir em questão de minutos na ponta da bala.
Além da chegada surpresa, os cangaceiros fizeram Zé Mindim prometer que
acenderiam uma fogueira no meio da praça, todas as noites, para que os homens
encontrassem a vila quando bem entendessem. A missão de cuidar da fogueira
não acabou caindo sobre ninguém a não ser o próprio matuto, já que, quando o
sol deitava, algo parecido com um sono opressor dominava cada homem da
cidade… e o sertanejo, se vendo talvez como o único cabra macho do lugar, se
tornou também seu sentinela.
Ele só se ofereceu para a tarefa também porque sabia que não era época de
lua cheia. Coragem tem limite.
Naquela posição “privilegiada”, o matuto via como a cidade era de fato.
Como se comportava diante do medo, da insegurança. E não eram só os homens
frouxos que lhe causavam surpresa; também notava que, diante de sua
demonstração de “valentia”, as moças mais novas pareciam mais viçosas,
mesmo que só por alguns instantes, aqueles em que passavam por Zé Mindim,
sentado perto de sua enorme tocha, e sorriam, ajeitadas, balançando os ombros
com graciosidade e quebrando os quartos como se no lugar da cintura tivesse
uma mola. O sertanejo, quando se apercebeu disso, ficou todo inquieto; depois
começou a se arrepiar e a ficar todo avermelhado; até por fim descambar pra
ousadia e retribuir os gracejos com acenos e piscadelas, ainda que soubesse que
uma ou outra das negras fulô ou das galegas de zói azul tinha marido.
Não é que todo homem fosse frouxo ali, naquele pedacinho de terra, não. É
só que a violência não se enraizou neles, a maioria boiadeiro ou lavrador, que
talvez só tivessem brandido facão na direção duma cana seca e olhe lá. Que só
tinha visto revólver na mão do poderoso fazendo maldade. Não era covardia, não
totalmente. Era só um receio doido, uma falta de saber como agir, que capava
mesmo. E ao mesmo tempo era o tipo de medo que regava um sentimento duro,
que agitava o coração e esquentava as orelhas, fazendo os olhos se
avermelharem. Um sentimento que parecia um elástico se esticando dia após dia.
Numa noite que a lua era um círculo pretinho no céu, e que todo mundo tinha
ido se deitar com medo do vento que assoviava, Zé Mindim viu uma morena
troncuda, de nome Martinha, lhe acenando num beco escuro atrás do bar do
velho Nonoco. O matuto se assustou, depois não acreditou, e em seguida ficou se
torcendo todinho, o troço nas partes baixas se animando. A moça insistiu tanto
com o dedinho que o matuto não teve escolha: abandonou seu posto, deixando a
fogueira por alguns minutos; afinal, o que aconteceria de ruim naquele meio
tempo? Pra ele, decerto nada… e seriam poucos minutos mesmo, porque quando
o coxo chegou perto de Martinha, percebeu que batia bem na altura de seu busto
largo e da cor do pó do cacau. O bicho se aprumou feito galo jovem e se jogou
com gosto nos encantos da morena.
A escuridão era tanta ali naquele canto que Zé Mindim não notou quando um
vulto se aproximou de sua morena, por trás.
Jesuíno fora até a casa de Roberto Moraes várias vezes durante agoniantes
semanas e não achou o homem, mesmo sob plena luz do dia. Mas naquela noite
encontrou o viúvo outra vez sentado na varanda iluminada por um lampião
pendurado, o cigarro queimando feito um vagalume infernal no rosto oculto.
“Achei que o senhor não ia querer ouvir mais histórias, coronel…”,
murmurou quando o rapaz, já ciente do ritual, tirou o chapéu e se sentou na
mesma cadeira de antes. Jesuíno nada disse diante da observação. O doutor o
olhou sem virar o rosto. Seu corpo grande e inchado parecia acolher a escuridão
daquela noite de lua nova. O rosto cheio de pelos e os braços apoiados na cadeira
de balanço não pareciam reais. Jesuíno se sentia vendo algo como uma aparição.
“O senhor deve entender um bocado de Lobisomens, coronel… ou não?”,
perguntou ele, para surpresa de Jesuíno.
“Sei o que todo mundo sabe”, respondeu, depois de pensar um pouco.
“E o que todo mundo sabe?”, retorquiu Moraes, pegando o cigarro dos lábios
e soprando a fumaça. O coronel permaneceu em silêncio. “A lua cheia? A
bestialidade? A sanguinolência? Isso, meu caro, é vago por demais…”
“Vago?”
“Homens no passado já mataram e foram mortos só pelo fato de acreditarem
que eram lobisomens. Só por pensarem que eram uma besta-fera. Aqui, as coisas
são diferentes…”
“Diferentes?”
“Sim. Por exemplo: o que faz alguém virar um lobisomem?”
“Ah… meu pai dizia que se um filho homem fosse o sétimo de uma
sequência de…”
“Essa história não tem nada de verdade. Já ouviu aquela de que se o filho
bate na mãe, também vira lobisomem? São lendas ótimas… principalmente se
você quer botar medo num filho malcriado”, interrompeu o doutor com uma
gargalhada. O som correu com patas peludas sobre a pele do coronel.
“Tudo falso, meu caro. Tudo falso. Só tem uma forma de se tornar um
lobisomem, e eu vou te dizer qual é. É ser mordido ou ferido por outro
lobisomem… e sobreviver.”
“Isso é um contrassenso!”, esbravejou Jesuíno, e Moraes olhou para ele de
um jeito divertido, adorando o repentino envolvimento do rapaz. “Não explica a
origem. O primeiro. Tem que ter uma razão pro primeiro lobisomem surgir.”
“Você tá certo, coronel. Mas nem tudo nesse mundo tem uma razão. Nem
tudo é preto no branco, nem tudo pode a ciência dizer como é. Existem coisas
nesse mundo, e especialmente nesse sertão… que são por si só essa palavra
bonita que o senhor usou: um contrassenso.”
Jesuíno ficou calado, esperando.
“O senhor deve tá se perguntando por que eu tô lhe falando disso, e não
terminando a história que deixei pela metade na outra noite. Não fique nervoso,
eu vou terminar ela, vou sim. Mas primeiro o senhor tem que entender algumas
coisas…”
“Como por exemplo?”, perguntou o coronel, cruzando os braços.
“Como por exemplo quem começou com essa história de lobisomem aqui em
Terezinha de Moxotó. O senhor consegue se lembrar?”
O coronel encarou o nada, a noite silenciosa, o rosto confiante de Roberto
Moraes.
“Eu… eu não sei… onde o senhor quer chegar com…”
“Consegue ou não, coronel?”, inquiriu.
Jesuíno fez força com a cabeça.
“Eu me lembro de três meses atrás a gente achar os pedaços de Candinho no
mato. E no outro mês Joana, perto do poço atrás da igreja…”
“Partida pelo meio. Da cintura pra baixo na beira do poço, da cintura pra
cima lá dentro dele. E sem a cabeça”, disse Roberto Moraes, como se Jesuíno
não fosse capaz de falar sobre o estado do corpo da filha de Neco.
O coronel só confirmou.
“Eu vou lhe falar quem começou com essa história, coronel, e espero que o
nome jogue um pouco de luz nisso tudo.” Roberto Moraes engoliu o sorriso, se
virou para Jesuíno e, com o corpo inclinado para frente, pensativo, encarou o
chão.
“Fale logo, homi!”
“Quem começou com essa história toda”, disse Roberto Moraes, levantando
a cabeça e encarando Jesuíno nos olhos, “foi Zé Mindim.”
Um som de tiro cortou a madrugada. O coronel se levantou num salto, olhou
para a direção de onde viera e sussurrou:
“Eles chegaram.”
10
O disparo fez Jesuíno encarcar a espora no cavalo feito um doido. Ele cruzou
ligeiro os poucos quilômetros que isolavam a casa do doutor da vila em que
mandava, e chegou na praça a tempo de ver Zé Mindim ser forçado a se ajoelhar
diante do próprio Jeremias Fortunato, o bandido que ninguém tinha fé de que
salvaria a cidade.
O nome do matuto ficou se repetindo no quengo, feito eco nas pedras do
deserto, enquanto o equino avançava pela estrada, levantando pó. Junto a isso, se
lembrava das outras mortes, de quando encontrou Candinho e Joana
despedaçados. Quem sempre estava presente? Quem levou a notícia a ele,
inclusive, em duas ocasiões?
Não… não pode ser…
Refletiu sobre o que Roberto Moraes lhe dissera naqueles poucos segundos.
Sobre o conhecimento acerca daquela besta denominada lobisomem. Sobre
como o homem parecia saber de algo mais. E sobre como lhe disse o nome do
sertanejo como uma dica, ainda que maliciosa.
Imaginou Zé Mindim encontrando o corpo de Joana de Neco, metade no
chão, metade no fundo do poço, o sangue salpicado no solo seco e nas pedras
cinzas, e tentou ignorar a possibilidade de que talvez o matuto estivesse apenas
reencontrando aquilo que vira na noite anterior… quando dominado pelo
instinto bestial que a lua cheia despertara. A chance incômoda de que, talvez, Zé
Mindim só encontrasse aqueles corpos porque a desgraça ficara gravada em sua
mente feito ferro quente no couro do boi, encarnado, fervente, forte demais para
que o esquecesse por completo, mas léguas longe de sua parte racional… e
humana.
Não… Zé Mindim não… não pode…
Lembrou do olhar lacrimoso do matuto quando fora até ele falar do estado do
amigo Tonho Matias… aqueles olhos d’água seriam mesmo de tristeza ou de
remorso?
Como ele sabia que era mesmo o Tonho Matias se só tinha retalhos do
homem?
Foi em partes por essa desconfiança que o coronel demorou pra agir quando
viu o Capeta-Caolho em pessoa diante do matuto coxo, o cano do revólver
grudado na testa rachada do sentinela da cidade. Parecia que a solução era tão
fácil então… bastava esperar. Homens como Jeremias não pensavam muito pra
puxar o dedo. Bastava um olhar troncho, um resmungo, ou até mesmo a mudeza
que o medo impõe, e pronto.
Tão fácil, tão simples… acabar com a fera enquanto ela ainda se encontrava
na forma humana.
Mas Jesuíno não tinha talento pra ser coronel porque era piedoso. Sua maior
qualidade e defeito num só corpo, numa só pessoa. Ele gritou, esporando o
cavalo, e se meteu pra cima daquele bando de homens paramentados, pois sabia
o que, ou quem, eles queriam.
Nada foi relatado para o coronel, que vez ou outra atravessava a praça
montado em seu cavalo, como um arauto da paz, um vigilante atento, mas
incapaz. Porém, coisas aconteceram. E nada pôde ser feito para impedir.
Nonoco, dono do bar, foi obrigado a servir bebida de graça para boa parte da
quadrilha. O resultado foi que seu estoque se reduziu à metade antes mesmo do
fim do primeiro dia. O velho reclamou de um cangaceiro que quebrou um copo
de vidro, e tomou um tapa na cara. Nunca, em todos os anos que viveu naquele
lugar, passara por tanta humilhação. A face encarnada pulsava e doía tanto
quanto seu orgulho.
Neco, embriagado, se jogou sobre o homem que bateu no rosto do pobre
atendente, e tomou uma surra de seis, sendo jogado na rua desacordado. As
mulheres o ergueram do chão e o carregaram até sua residência, o sangue
cobrindo sua face como uma máscara rubra. As garrafas surrupiadas do bar
encontravam seu fim, depois de esvaziadas, nas fachadas das casas.
Quando o coronel passava, os cangaceiros faziam mesuras debochadas e
rinchavam baixo, doidos pra dar uma cacetada no homem, só não o fazendo
porque era dele o dinheiro do serviço. Mas a vontade era grande.
As desgraças que os bandidos trouxeram, no entanto, não ficaram só nisso.
Martinha, a morena que se engraçara para o matuto coxo durante a
madrugada, foi encontrada sem as roupas na beirada do riacho seco, o rosto sujo
de sangue, lágrimas e areia. Dois sertanejos levaram a coitada para sua casa,
onde ela teve que olhar nos olhos dos homens que lhe fizeram mal sem poder
dizer nada, já que era ali que se encontravam abrigados.
Ela não foi a única. As lágrimas das outras, no entanto, secaram nos colchões
puídos. O choro rebateu nas paredes mal rebocadas. A angústia olhou pra elas
nos cacos de vidro que chamavam de espelho, nos rostos perturbados de um
marido acovardado ou de um pai rendido, na expressão contrita de uma mãe
velha. A primeira noite se mostrara uma visão dura das próximas.
De repente, desejavam a lua cheia, e o fim nas garras ou nas presas do
demônio.
No findar da primeira tarde, que se despedira com um sol vermelho feito o
ódio, os moradores trocariam olhares compreensivos e repletos de receio.
Olhares que, nos próximos dias se transformariam em um silencioso diálogo,
repleto de mudas frases claras.
Então, eles começariam a pensar em algo.
Coronel Jesuíno andava pela vila, daquele jeito impotente, porque estava de
olho em Zé Mindim.
O matuto o incomodava agora. Desde que livrara seu couro das mãos dos
cangaceiros, evitava o rapaz, que sempre tentava se achegar para agradecer.
Escapulia pra direita quando o pobre diabo vinha pela esquerda, e o contrário do
mesmo jeito; quando vinha de frente, Jesuíno metia os calcanhares no lombo do
cavalo e disparava, deixando Zé Mindim comendo poeira.
O matuto via tudo e não entendia nada. Na cabeça limitada do pobre,
acreditava que o coronel estava nos cascos mesmo, com a coisa toda.
Lobisomem, cangaceiro, dinheiro, ordem. Era demais pra um homem só.
Jesuíno mirava o coxo ao longe e também fazia seus planos.
O homem cuja alcunha era Capeta-Caolho se instalou no lugar mais
improvável: a igreja.
Padre Miguel não se opôs. A Casa de Deus estava de portas abertas para todo
e qualquer homem, mesmo que esse se orgulhasse de ostentar o apelido
pernicioso. E o homem em questão carregava tantas armas quanto um pelotão.
Ao pisar no solo sagrado, tirou o chapéu de couro e se benzeu, pra completo
espanto do padre, que observou toda a invasão da cidade calado na casa
paroquial, e ouviu, nos duros sonhos da noite, o sofrimento de cada um daqueles
que abriu sua porta para um demônio entrar. Jeremias Fortunato caminhou até o
homem de batina e mostrou que dentro de seu chapéu havia uma fotografia de
Padre Cícero.
“Padre, eu pequei e não me arrependo. Tem coisas na vida qui eu sei qui
pudia ter cunserto, mais num tem.” O olho bom fitava a face consternada do
padre, duro, como se não pudesse sair daquele esgar odioso. “Não vim aqui atrás
do perdão de Deus. Só vô mi preocupar cum isso quando eu tiver frente a frente
com Ele.”
“Nunca é tarde para se arrepender, meu filho…”, murmurou o padreco, mas
o cangaceiro soltou um riso seco.
“Dexa esse lenga lenga pra outra hora, home de saia. Eu vou passar as noite
aqui, e preciso de que o sinhô me traga algumas coisas. Eu vou pedir, e si o sinhô
quisé fazê, o sinhô faz. Se não, eu lhe faço fazê!”
O padre ficou mudo, e o cangaceiro fez seus estranhos pedidos. Padre
Miguel entendeu só uma parte de tudo, talvez só a parte que dizia que Jeremias
Fortunato tinha planos.
“Zé Mindim! Onde tu pensa que vai?”, perguntou coronel Jesuíno, no fim da
tarde daquela que seria a noite de lua cheia, pegando o matuto andando de
mansinho atrás da igreja. O rapaz levava uma trouxa de roupa amarrada nas
costas e usava um chapéu largo na cabeça. Se o intento era impedir que o
reconhecessem, seria melhor ter fingido andar certo.
“Ô seu coroné…”, murmurou o coitado, todo sem jeito, “Eu tava indo pegar
um mói de capim pros cavalo do capitão Jeremias…”
“Com uma muda de roupa nas costas, Zé Mindim?”
“Pois então, eu ia andar até a casinha do patrão seu Moraes que lá tem capim
bom mesmo, não esse seco aqui no derredor…”
“E ia pousar lá, ao que parece. O capim pode esperar pra amanhã, certo?”,
retorquiu o coronel, afastando o paletó de maneira sutil e revelando o cabo do
revólver acomodado num cinturão em volta do quadril.
Pego na mentira, o matuto deu um sorriso da cor dum arroto de cu e olhou
em volta.
“Eu num tenho o que fazer aqui hoje, coroné. Isso tudo vai virá uma
desgraceira só. Não quero fica aqui pra vê não…”
“Suba aqui, cabra”, disse o coronel, sério, aproximando o alazão do matuto.
“Tu vem comigo.”
O sertanejo nem pensou muito, só subiu na traseira do bicho e agarrou no
paletó branco.
“E pra onde que nóis vai, coroné?”, perguntou ele, depois que Jesuíno pôs o
cavalo pra andar.
“Ora, você não ia pra casa de Roberto Moraes? Pois bem. É pra lá que nós
vamos.”
Jeremias Fortunato observou enquanto meia dúzia dos seus homens puxavam
três cabritos grandes, surrupiados da fazenda do coronel Jesuíno. Os bichos
berravam alto, os olhos pretos e sem substância estalados de pavor, como se
entendessem seu propósito.
O capitão sorriu, mostrando um monte de dente preto. Olhou para cima, para
a noite, para ela. A danada brilhava linda por demais, completinha, uma
perfeição da natureza.
Puxou seu punhal cumprido, cheio de adornos no cabo dourado, e o girou
nos dedos repletos de anéis. Fez um gesto com a cabeça, e então os homens
viraram um dos cabritos com a barriga pra cima, e o capitão enfiou a ponta do
punhal no meio do bucho dele, na altura do umbigo. Depois forçou o braço e fez
a lâmina subir num arroubo, até parar perto do pescoço. Uma boca rubra se
abriu, donde jorrou o sangue fervente. O Capeta-Caolho puxou o punhal,
tomando um esguicho cor de cereja, e se levantou, passando para o próximo
animal. Os homens ergueram pelas patas o bicho já aberto. O conteúdo de seu
abdome despencou de uma vez e ficou pendurado feito uma roupa úmida no
varal. Eles o jogaram sobre uma carriola grande, o vapor subindo do corte. A
cabra ainda berrava.
O Capeta-Caolho fez o mesmo com as outras duas. Os bichos foram jogados
na carroça, e logo surgiram moscas sedentas. O cheiro metálico ascendeu no ar,
rodopiou com o vento, e como as histórias, correu pelo sertão.
Jeremias só queria garantir que a besta-fera viria.
“Eu fui atrás do monstro, coronel, e se não foi Deus que me fez ficar de pé,
que me livrou da morte certa depois de tanto tiro e tanto sangue perdido, com
certeza foi o Diabo; e se foi isso mesmo, só posso agradecer.”
O matuto jogado no chão se benzeu uma dúzia de vezes, enquanto a arma
permanecia firme na mão de Jesuíno.
“Eu não sei se o bicho teve dó de mim. Não duvido, não depois disso tudo…
Ele deixou um rastro e eu fui atrás. Por toda a noite andei nesse sertão vazio e
sem piedade. Cada passo me lembrava que era impossível eu estar andando, mas
eu estava, então eu não podia desperdiçar aquilo. Atravessei veredas e dunas,
passei por espinheiros que retalharam minha pele, e mesmo assim continuei em
frente, porque nada mais podia me retalhar tanto quanto como estava meu
espírito. E então eu encontrei, coronel… a morada da criatura. Era uma
caverninha enfiada numa pedreira no alto dum morro anuviado. Parecia uma
visão de outro mundo. E talvez fosse. Eu escalei o paredão e entrei naquele
buraco escuro. Sabia que ela tava lá. A lua ainda brilhava, coronel… e por um
segundo eu tive medo. Mas depois de tudo aquilo, eu não podia mais ter medo.
Eu só fui. O cheiro de carniça era intenso lá dentro. Era a morada do bicho, e
também seu abatedouro. Seu templo. Quanto mais eu entrava, mais descia e mais
escuro ficava, até o momento em que não havia qualquer luz, só a pedra
inclinada, a descida da gruta, e a ideia na minha cabeça era de que eu desceria
tanto que chegaria ao tártaro. E por mim não tinha mais problema. Eu só queria
aquilo pra mim. Uma parte daquela maldição pra carregar. Pois veja, eu não
tinha mais nada. Eu precisava de algo, e aquele demônio ia me dar isso.
“Quanto mais eu afundava, coronel, mais eu me sentia em casa”, disse
Roberto Moraes, e seus olhos agora refletiam o brilho da lua como se fossem um
espelho da insanidade. Ela brilhava dentro do crânio dele. E aos poucos ele
deixava de ser um homem. Os pelos dos braços ficaram compridos e
emaranhados, e sua barba se esticara e se unira aos cabelos que cresciam no
torso. Sua laringe também parecia ter pelos, já que sua voz se tornara um ronco,
uma caverna onde ecoava seus sentimentos mais perversos. “E quando eu vi
aqueles olhos amarelos de novo, olhando direto nos meus, eu esqueci o medo.
Ele já não fazia mais sentido, mesmo que aquela escuridão me diminuísse tanto a
ponto de parecer que eu não mais existia. Depois eu entendi que eu não existia
mesmo. Não mais. Eu era outro.
“O bicho rosnou arreganhando os dentes e eu senti o bafo dele, e vou te
dizer… era como sentir o grito de socorro de cada homem e cada mulher que ele
matou. Como cheirar todos os cadáveres deles, empilhados debaixo do sol. E
então ele veio, coronel, pra cima de mim. Me derrubou e eu deixei, não só
porque não podia fazer nada, mas porque era tudo o que eu podia fazer. Suas
unhas entraram na minha carne, sobre o ombro… e o sangue jorrou, mais
sangue, só Deus sabe como e de onde podia sair tanto. Mas saiu. E enquanto o
sangue saía, a maldição entrava.”
O doutor moveu a mão direita, e Jesuíno deu um pulo. A arma balançou pela
primeira vez em sua mão.
Os dedos de Roberto Moraes tinham o dobro do tamanho, e as unhas
estavam tão longas e pontudas quanto um bico dum carcará. A mão afastou a
camisa branca, prestes a estourar, e revelou o ombro viloso. Mesmo no escuro e
com tanto pelo, Jesuíno pôde ver as extensas cicatrizes paralelas.
“A dor foi tanta que eu desmaiei, coronel. Mesmo depois de ter sofrido tanto,
eu ainda não sabia o que era dor. Você acredita? Sempre há uma dor maior, e a
gente só sabe disso quando sente. Ou quando perde. Eu perdi muito ali além dos
sentidos. Perdi o resto da minha humanidade. Quando acordei, estava fora da
caverna e era dia. Tinha um bando de apitã preto em volta de mim, doido pra
comer minha carniça. Mas esse bicho só se engraça com morto, e quando me
mexi eles voaram e foram embora. Tinha um gosto amargoso na minha boca,
mas o corpo não doía mais. Olhei pra mim e não achei uma marca de bala. Não
achei um arranhão, uma ferida… a não ser essa. Essa eu levaria pra sempre.”
Roberto Moraes parou outra vez, e um espasmo mais longo arrancou de sua
garganta um grito que deveria ser de dor. Zé Mindim acompanhou o berro, mas o
matuto gritava de horror mesmo, as pernas moles encolhidas junto do corpo.
Jesuíno apontou o revólver no meio da cabeça do homem e puxou o cão.
O estalo atraiu a atenção da coisa que se transformava na cadeira.
“Não ouse, coronel!”, rosnou. Sob a barba, seu rosto mudava. “Eu não faria
isso, mesmo sabendo que não me feriria, apenas por consideração. Por que
acha que fiz tu trazer Zé Mindim pra cá? Por que acha que levei isso tão longe?
Vocês não têm culpa de nada, Coronel. Eu vou poupar vocês, e somente vocês!”
“Do que você tá falando?”, perguntou o homem, as duas mãos no cabo do
revólver, as pernas afastadas. Queria desabar como Zé Mindim e rezar, mas não
podia. O medo de virar uma simples presa era maior. “O que Terezinha de
Moxotó tem a ver com isso? Com sua… vingança?”
“Aprecio pessoas inteligentes, coronel. Entendeste que fiz isso apenas
porque queria minha revanche contra Jeremias Fortunato. Mas o senhor nunca
vai entender se não souber de tudo. Mas não sei… grrrr… se serei capaz de ir
até o final… grrr…”
O homem grunhia feito o bicho que era, enquanto o corpo aos poucos se
agigantava sobre a cadeira, que agora rangia. Seus braços estalavam, como se os
ossos estivessem mudando de lugar. O peito inflou devagar, até as costuras da
camisa arrebentarem. Seu nariz se alongou, cada buraco se arreganhando feito
um poço escuro. Ele fechou os olhos e apertou a mandíbula, agora cheia de
dentes que se espichavam e ficavam pontudos, saltando pra fora dos lábios.
“Você não entenderia tudo, mesmo se quisesse, coronel. O povo nada fez
para ajudar os cangaceiros, mas também nada fez pra impedir aquela
desgraceira. Eles sequer reagiram. Eles não reagiram, coronel! Não tentaram
defender suas famílias, suas coisas… apenas aceitaram. E o bando daquele
maldito fez a maldade que sabia fazer. Vários morreram na bala e na peixeira.
Mas o que eu encontrei quando voltei foi uma cidade apática, conformada. Só eu
carregava o ódio e aquele desejo de retaliação. E só eu podia fazer isso, afinal.
Porque, coronel, na lua cheia seguinte, eu descobri finalmente do que eu era
capaz. O quanto eu podia destruir aqueles que me destruíram. O quanto eu podia
dar o troco, não na mesma moeda, porque aqueles desgraçados não têm dentro
deles o sentimento que eu tinha por minha Célia. Mas eu ia fazer eles pagarem,
sim…
“Na lua cheia, coronel, eu percebi que o lobo sempre esteve dentro de mim.”
Ele abriu os olhos, e ambos eram amarelos.
O rosto se esticou de uma vez, rangendo e assumindo o formato de um
focinho. Pele seca e morta se soltou de sua nova face, enquanto as orelhas
apontavam para o alto e os cabelos da cabeça se avolumavam e se espalhavam
sobre as costas. Os pés da cadeira de balanço racharam, e a coisa que antes era
Roberto Moraes saltou para a frente, caindo de quatro no chão. Virou o rosto
bestial para Jesuíno de Cândida e disse, num urro que não era mais sua voz:
“Agora saia do meu caminho, coronel… grrr… porque o senhor não tem…
grrrr… nada ver … grrr… com isso!”
“O povo não tem nada a ver com isso!”, berrou o coronel de volta. A mira da
arma já não era mais seu foco. O coitado tinha o rosto contrito e suava pelo
corpo todo. “Candinho não tinha nada a ver com isso! Nem Joana! Nem Tonho
Matias! Nenhum deles! E mesmo assim…”
“A besta precisa se alimentar, coronel…”, disse a coisa, no meio de um
rosnado. “E se não sair do meu caminho, será o mesmo com você!”
Jesuíno apontou o revólver e disparou. O tiro ecoou na noite enluarada. A
bala entrou na camada de pelos da criatura e nada mais fez.
Então ela se moveu, tão veloz que só deu pra ver um borrão. Zé Mindim
gemeu, quase desmaiando, e viu quando a coisa arremeteu contra Jesuíno e o
jogou no chão como quem joga um saco de estopa. O coronel voou num arco e
se estatelou no solo duro. A arma inútil voou de sua mão.
Tão veloz quanto, a coisa avançou na direção do já apavorado cavalo árabe
de Jesuíno de Cândida e deu-lhe um tapa na altura do pescoço. A cabeça do
bicho caiu no chão na hora.
Antes que o corpo do animal desabasse sobre o solo, o lobisomem já ia na
direção da cerca. O coronel se sentou e contemplou, abismado, a criatura
abominável na qual se transformara Roberto Moraes. Zé Mindim esticou o
pescoço e tremeu todo quando o bicho olhou para a lua e, sobre as patas
traseiras, uivou em sua homenagem.
14
A coisa que era Roberto Moraes saltou pela porteira e desatou a correr,
arrancando pedregulhos com as unhas grossas. Jesuíno olhou para Zé Mindim
jogado no chão. O matuto estava branquinho que nem a lua. As bolas dos olhos
pareciam duas jabuticabas estouradas.
O coronel levantou rápido, olhando inconformado para seu animal retalhado
no chão. O sangue escorria vermelho escuro do lugar onde deveria estar sua
cabeça. As patas ainda davam pequenos repuxões. Jesuíno passou a mão sobre a
testa e percebeu que estava gelado de medo. Não sabia o que fazer.
Você nunca sabe, meu filho.
A lua brilhou sobre a arma caída. Ele andou até ela e a apanhou. Deu uns
tabefes na roupa, tirando a poeira, percebendo, não sem alívio, que a besta-fera
não o ferira. Procurou Zé Mindim com os olhos outra vez. O homem estava no
mesmo lugar, do mesmo jeito.
Então Jesuíno de Cândida entendeu que, em certos assuntos, não há o que se
fazer.
A besta corria e tudo o que via, além do sertão escuro passando em ambos os
lados, era o rosto de Célia, ora imaculado e terno, ora escuro de sangue. Os
instintos estavam no auge. Sentia o cheiro de carne fresca, de tripas abertas ao
vento. De vida inocente arrancada. Da boca fluiu saliva. A lua correndo com ele,
acompanhando seu trajeto, era sua guia e sua aliada. E a sangria que aos poucos
deixava encarnado seu brilho branco dizia que não faltaria morte.
A estrada ladeada de cactos e capim seco chegou ao fim, e a capelinha de
Terezinha de Moxotó se revelou sob a luz do luar.
Dedico essa história a meus pais, Everaldo e Maria das Graças, pelo sangue
nordestino que se somou em minhas veias.
Aos amigos Lucas Dallas, Cláudia Lemes, Rafael Michalski, William de
Oliveira, Samara Pimenta, Plácido Rodrigues, Eliel Barberino, Adriana Chaves,
Cesar Bravo e todos que em algum momento me ajudaram em algum nível na
produção e/ou divulgação desse livro, meus eternos agradecimentos.
A todos os membros da ABERST, Associação Brasileira de Escritores de
Romance policial, Suspense e Terror, meu muito obrigado por poder fazer parte
de tão nobre e macabra iniciativa.
E meus eternos e costumeiros agradecimentos especiais à minha esposa
Carol, por suportar meus dedos no teclado durante horas a fio, produzindo
aquele tec tec tec, incômodo como as unhas do lobisomem no cascalho, no
mesmo cômodo em que ela tentava dormir. Me desculpe. Eu te amo.